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A VIDA SECRETA DOS RITUAIS E SEUS CRITICOS Kennyo Ismail

O artigo discute a evolução dos rituais maçônicos no Brasil, enfatizando a necessidade de evitar anacronismos ao avaliar práticas passadas. O autor argumenta que os rituais são construções culturais que evoluem com o tempo e não devem ser vistos como imutáveis. Além disso, critica a falta de educação maçônica e a resistência a mudanças, propondo a importância de uma literatura maçônica de qualidade para o entendimento e a prática dos rituais.

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A VIDA SECRETA DOS RITUAIS E SEUS CRITICOS Kennyo Ismail

O artigo discute a evolução dos rituais maçônicos no Brasil, enfatizando a necessidade de evitar anacronismos ao avaliar práticas passadas. O autor argumenta que os rituais são construções culturais que evoluem com o tempo e não devem ser vistos como imutáveis. Além disso, critica a falta de educação maçônica e a resistência a mudanças, propondo a importância de uma literatura maçônica de qualidade para o entendimento e a prática dos rituais.

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A vida secreta dos rituais e seus críticos

Por Kennyo Ismail

1. Sobre “gosto” e “certo”

Eu estava desde o ano passado (2024) elaborando um artigo sobre a evolução dos graus
simbólicos do REAA no Brasil, quando recebi um interessante artigo chamado “Manuais do REAA
Revelados: uma carta aberta sobre a confecção, enxertos, alterações e possíveis plágios dos
manuais dos Rituais do Rito Escocês Antigo e Aceito nos graus simbólicos”, de autoria de
Fernand-es-Quadros Hi-kon-Passos (pseudônimo). Como estava aparentemente relacionado
com o tema do meu artigo, resolvi ler. E devo dizer que a leitura me levou a modificar totalmente
o formato e a direção do artigo, convertido em ensaio; não por trazer alguma informação nova;
mas pelas suas conclusões acerca do assunto. Chamou-me a atenção para o fato de que
precisamos falar, primeiramente, sobre os riscos do anacronismo.

Anacronismo é “julgar os fatos do passado com base nos conceitos e conhecimentos do


presente”.1 Como exemplo, não posso julgar um alemão que abraçou o Nazismo no início do
movimento como eu julgaria um nazista atual, que sabe das atrocidades cometidas, enquanto
que aquele alemão de 1930 não poderia saber daquilo que ainda não havia ocorrido.

Observado isso, vamos ao que interessa: A Maçonaria não é alienígena, nem seus rituais.
Parece óbvio, mas esse atributo deve ser o cerne de toda análise sobre qualquer ritual. Contudo,
na Maçonaria brasileira, tem-se uma cultura positivista de “certo ou errado” sobre práticas
ritualísticas, que não sobrevive a três segundos de raciocínio lógico, partindo dessa premissa.

A Maçonaria não nos foi concedida por uma civilização alienígena, mais evoluída
intelectual, moral e espiritualmente do que a nossa. Logo, todo seu conteúdo foi confeccionado
com base em conhecimentos terrestres previamente desenvolvidos por humanos não-maçons.
Do mesmo modo, nenhum ritual maçônico veio pronto de outro planeta ou foi ditado pelo anjo
Gabriel a um maçom. Logo, todos os rituais maçônicos são uma “colcha de retalhos”2 (termo
emprestado do Irmão “Hi-kon-Passos”): todos são enxertos de conteúdos de escritores, religiões,
sociedades, escolas e tradições não-maçônicas anteriores, com adequações e alterações para
uso maçônico. Discutir se um retalho é melhor do que o outro é como discutir o sexo dos anjos.

Além disso, diferente dos 10 mandamentos, que são leis pétreas (e nesse caso,
literalmente gravadas em pedra), de caráter imutável; os rituais maçônicos são recursos
culturais, educacionais, literários, artísticos, linguísticos e, acima de tudo, sociais. Eles têm
hierarquia, relações sociais, relações de poder, discursos, conhecimentos, etc. Logo, os rituais
não são meras coleções de palavras mortas, pois são ensinados, praticados, vivenciados e
influenciam seus adeptos. Eles são, portanto, vivos. E, como viventes, eles envelhecem e

1
ISMAIL, Kennyo. Maçonaria Brasileira: a história ocultada. Vol. II. Brasília: No Esquadro, 2021, p. 14.
2
PASSOS, F. Q. H. Manuais do REAA Revelados: Uma carta aberta sobre a confecção, enxertos, alterações
e possíveis plágios dos manuais dos Rituais de Rito Escocês Antigo e Aceito nos graus simbólicos. Jan-
2025, p. 4.

1
precisam renascer para não morrer. Por isso, o desejo por um ritual imutável é mais do que uma
utopia. É um paradoxo. Seria como um “gato de Schrödinger”: algo nem vivo e nem morto.

Isso fica mais claro dando como exemplo um ritual brasileiro do século XIX. A língua
portuguesa contida naquelas páginas não existe mais. Morreu. Ela renasceu como uma nova
língua portuguesa. “Gráo” virou “Grau”, “Maçon” virou “Maçom”, “Escocez” virou “Escocês”,
“Acceito” virou “Aceito”, “Symbolica” virou “Simbólica”, “Anonymo” virou “Anônimo”,
“Typographia” virou “Gráfica”, “Carmesim” virou “Vermelho”, “Accôrdo” virou “Acordo”,
“Systema” virou “Sistema”, “Allegoria” virou “Alegoria”, etc.

Essa mudança na língua foi uma evolução ou uma involução? Qualquer reposta para essa
pergunta é um juízo de valor. O que se sabe é que, na época, muitos cidadãos não gostaram da
mudança, o que é natural, pois é não apenas do ser humano, mas de todo animal, a resistência
a mudanças. Por sorte, os rituais foram adequados à nova norma da língua. E digo “por sorte”,
porque, se a Maçonaria tivesse resistido à adequação, nós, alfabetizados na nova língua
portuguesa, rejeitaríamos o ritual, que morreria sem o devido renascimento.

Não há como parar o tempo. Leis de todos os países são revogadas (morrem) ou
atualizadas (renascem). Há um esforço para que se preserve os PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS, mas
há leis que simplesmente não se aplicam mais. No Brasil, por exemplo, já foi proibido vender
métodos contraceptivos e dar nome de gente a pets; e atualmente, há um projeto de lei para
extinguir o dinheiro físico. Quando esse projeto for aprovado, circularemos o tronco de
solidariedade para nada? Ou o ritual será atualizado?

Assim, deve-se considerar que muitas das alterações sofridas nos rituais tinham, na
época, uma razão de ser. Elas, seus autores e proponentes, não podem ser julgados com
anacronismo, ou seja, com base no conhecimento e nos valores atuais. Tentar descobrir como,
porque, onde e quando essas alterações foram feitas é algo extremamente útil à Maçonaria. Já
condenar suas existências, além de juízo de valor e imposição de gosto pessoal, é “chorar sobre
o leite derramado”.

Há quem prefira um ritual mais objetivo; mas há quem goste de um ritual mais reflexivo.
Há quem odeie incenso, mas há quem queima incenso até para dormir. Mas estes são gostos
particulares, enquanto a Maçonaria nos ensina a sermos tolerantes e respeitosos com os
pensamentos e preferências distintas das nossas. No REAA, trata-se do bom e velho “vencer
minhas paixões, submeter minhas vontades”. Apesar de “gostos” e “certos” serem metade
parecidos (“tos”), isso não os torna sinônimos. Nem tudo que é certo, eu gosto; assim como nem
tudo que gosto é o certo.

2. Sobre esoterismo e esquisoterismos

Quem me conhece sabe que sou avesso a esquisoterismos. A palavra “egrégora”,


aplicada em um contexto maçônico, me causa repulsão. Desafio qualquer irmão a me mostrar a
palavra “egrégora” em qualquer ritual de qualquer grau de qualquer rito sério no mundo, ou em
qualquer dicionário ou enciclopédia maçônica decentes. Não existe, simplesmente porque não
faz parte do conhecimento maçônico, sendo resultado de uma forte influência da Teosofia
moderna (Blavatsky e Leadbeater) na Maçonaria brasileira.

O preciosismo de muitos maçons brasileiros com a espada flamígera me causa


sentimento similar. Mesmo antes da loja ser aberta, muitos são os que vigiam para que um mero

2
mortal não-instalado não arrisque sequer a triscar a manga de seu paletó nela. E isso que, assim
creio, a maioria dos profissionais que as produzem e que as vendem não são Mestres Instalados.

Esses são apenas dois exemplos de uma infinidade deles, todos corroborando com a
teoria de que, pela falta de educação maçônica de qualidade, formamos maçons repetidores de
achismos, os quais vêm sendo transmitidos por gerações.

Contudo, não há relação alguma desse “esquisoterismo” com as características de


Catolicismo, Cabala, Astrologia, Alquimia e Numerologia inseridos nos rituais franceses da
chamada “Maçonaria Escocesa”. Trata-se de um processo histórico que tentarei resumir ao
máximo aqui:

O Século XVIII foi o século das luzes, do Iluminismo. Na França, esse Iluminismo não era
apenas científico, mas sociopolítico, visto à época existir lá uma monarquia absolutista católica.
Nesse sentido, Jean-Jacques Rousseau publicou, em 1762, sua obra-prima: “Do Contrato Social”.
Nela, ele propõe, dentre outras coisas, a ideia de Religião-Civil, que seria uma religião com um
credo mínimo, que não tira a liberdade do cidadão, mas colabora para que ele seja uma pessoa
melhor. Seriam apenas dois dogmas: crença em um Ser Supremo e na Imortalidade da Alma.
Então, a Maçonaria “escocesa” francesa decidiu se tornar a Religião Civil proposta por Rousseau.
Tanto que foi criada a Loja “Do Contrato Social”, considerada a Loja-Mãe Escocesa da França. E
um dos membros dessa Loja era o Conde de Grasse-Tilly: ninguém menos do que um dos
fundadores dos Altos Graus do REAA e autor dos primeiros rituais dos graus simbólicos do REAA.3

Ainda, nessa época, o que estava em voga na França, principalmente entre os


intelectuais, eram as ciências ocultas, como Alquimia, Astrologia e Cabala, até pouco antes
perseguidas pela Inquisição. Assim, para facilitar a “conversão” do profano ao maçom, foram
adotadas na Maçonaria “Escocesa” características católicas e dessas tradições esotéricas. Em
teoria, o maçom desse sistema francês seria mais “completo” do que o maçom do sistema inglês,
pois aprenderia tudo que este aprende, além das “ciências ocultas”.

Podemos inferir que esse conteúdo esotérico não foi incluído no REAA apenas no início
do século XX, como Joaquim dos Santos afirmou4 e nosso Irmão “Hi-kon-Passos” acreditou.
Primeiro, porque foram incluídos também nos Altos Graus da “Maçonaria Escocesa”, ainda no
século XVIII, e que, em 1801, comporiam o REAA. 5 Lembrando ainda que alguns dos graus
adicionais, como o 31 e o 33, foram cedidos por Grasse-Tilly e eram praticados pela Loja “Do
Contrato Social”. E, em segundo, porque a alquímica Câmara das Reflexões, que substituiu a
simples sala de preparação, existe na Maçonaria francesa desde, pelo menos, 1750.6

Ou seja, o fato de uma sessão do REAA, em alguns aspectos, ser mais parecida com uma
missa gnóstica do que com uma aula de moralidade foi resultado de um processo histórico,
motivado pelo momento que a sociedade francesa vivia. Assim como o fato de o Rito de Schröder
ser tão pragmático e racionalista foi resultado de um processo de desgastes e problemas
causados pela prática do Rito da Estrita Observância Templária. E assim como o fato de o Ritual

3
ISMAIL, Kennyo. Ordem sobre o caos. Brasília: No Esquadro, 2020.
4
DOS SANTOS, J. O Ritual de Aprendiz no REAA: Gênese e Desenvolvimentos. Disponível em:
https://www.academia.edu/21762600/O_RITUAL_DE_APRENDIZ_NO_REAA_G%C3%89NESE_E_DESENV
OLVIMENTOS
5
Comprovado, por exemplo, pelo Manuscrito de Francken (1783).
6
WIRTH, O. Le symbolisme hermétique dans ses rapports avec l'alchimie et la Franc-maçonnerie. Paris:
Librairie Initiatique, 1909.

3
de Emulação ser tão enxuto foi resultado de um processo de promulgação entre Antigos e
Modernos, em que os pontos de discordância foram descartados, em vez de preservados.

O maior agravante dessa experiência do REAA talvez seja que a prática ritualística nunca
veio acompanhada de uma literatura maçônica decente. E não sou eu que estou afirmando isso.
Marius Lepage, importante autor maçônico francês do século XX, afirmou que os maçons
franceses têm pouquíssimas possibilidades de adquirir algum conhecimento, mesmo que
superficial, da Maçonaria, não havendo nem uma dezena de obras que valeriam a pena. 7 A
verdade é que os irmãos adeptos do REAA têm acesso a vários elementos e mensagens
alquímicas na Câmara das Reflexões, mas dificilmente aprenderão algo a respeito. O mesmo se
aplica sobre Cabala, Astrologia e similares.

E como se soluciona esse problema? Se um paciente está doente, a solução é matá-lo,


para livrá-lo da doença? Ou buscar formas para que fique saudável? Se você não é um psicopata,
concorda que o ideal é trata-lo. Logo, precisamos investir em pesquisa, literatura e ensino
maçônico de qualidade. Uma coisa é certa: No Brasil temos ritos para todos os gostos (Destaco:
“gostos” e não “certos ou errados”) e todos carecem de literatura.

3. Sobre uns cem anos atrás

Nessa cultura positivista da Maçonaria brasileira, tem-se muitas manifestações acerca


do chamado “Ritual de Behring”. Muitos são seus críticos que, geralmente desprovidos de
estudos sobre o tema, apenas repetem o que escutaram, fazendo coro a afirmações como a de
que “Behring criou outro rito”. Isso somente escancara uma má formação maçônica,
desconhecendo até a básica distinção entre rito e ritual. E quando alguém, que se dedicou a
pesquisar e a escrever a respeito, como, por exemplo, o irmão e historiador Cloves Gregorio,
discorda dessa visão míope, baseado numa análise crítica dos rituais e documentos da época,8 a
resposta a ele geralmente é em forma de “pós-verdade”.

A esses irmãos, convido-os a ler algum ritual brasileiro do REAA de antes de 1927, como,
por exemplo, o de 1898 e o de 1904. Trata-se de rituais extremamente curtos, protocolares e...
vazios de conteúdo. Para se ter uma ideia, cada grau tinha uma única instrução, em formato de
catecismo (perguntas e respostas) e era curta. Esse ritual, em vez de enxertos, havia sofrido
mutilações. Então, veio a cisão de 1927 e Behring precisou elaborar novos rituais dos graus
simbólicos do REAA para uso das então recém-formadas Grandes Lojas. Isso foi visto como uma
oportunidade de corrigir e incrementar um ritual que era mutilado e vazio.

Aqui, devo fazer uma breve observação: credito os rituais ao Behring, ciente de que ele
não fez os rituais sozinho, mas ele quem demandou, organizou, aprovou, publicou e forneceu.
Por isso, refiro-me ao “Ritual de Behring”, assim como Thomas Smith Webb somente compilou
e codificou rituais mais antigos e seu trabalho é chamado de “Webb’s Monitor”. Então, por favor,
quando eu mencionar Behring, lembre-se que ele não fez nada sozinho.

Retomando o raciocínio: Behring fez muitas inclusões aos rituais, mas não as tirou da
cartola. Ciente de que o REAA tinha o painel do grau, e este inexistindo nos rituais anteriores
(e.g. 1898 e 1904), ele recuperou a ilustração do painel do REAA, incluindo-a no ritual, ao mesmo

7
LEPAGE, M. História e Doutrina da Franco-Maçonaria. São Paulo: Pensamento, 1994.
8
GREGORIO, C. Entendendo o Rio Escocês Antigo e Aceito: Grau de Aprendiz Maçom. São João de Meriti:
ed. do autor, 2023.

4
tempo em que adotou o painel de John Harris, utilizado no Ritual de Emulação, e que tinha por
diferencial vir acompanhado da devida instrução. Behring também recuperou as colunas
zodiacais, as constelações e astros específicos da abóbada, a corda de 81 nós, a cena de João
Batista e outros conteúdos típicos do REAA, mas que não estavam presentes nos rituais do REAA
do GOB.

Talvez o que mais foi incrementado nos Rituais de Behring foram as instruções. Ao final
do século XIX, ou seja, não muito distante de 1927, Oswald Wirth (que diferente do que o Irmão
anônimo afirmou, não foi Grão-Mestre, mas sim Venerável Mestre) havia publicado três
manuais, sendo um para cada grau simbólico. Apesar de ser seu nome nas capas, esses manuais
não haviam sido desenvolvidos exclusivamente por ele, mas por um grupo de maçons eruditos,
liderados por ele (assim como no caso de Behring). Os manuais eram comumente utilizados por
grupos de estudo maçônico e como instruções complementares em lojas. Mas o que pouca
gente parece saber, incluindo o Irmão “Hi-kon-Passos”, é que boa parte desses manuais
tornaram-se os rituais do REAA que Wirth desenvolveu para a Grande Loja da França – GLdF,9 a
pedido de seu Grão-Mestre, Bernard Wellhoff, e passaram a ser adotados por ela, em 1921.10 O
que Behring fez foi aproveitar o conteúdo desses rituais, especialmente as instruções, que era o
que havia de mais atual no REAA.

Nesse sentido, acusar Behring de plágio é leviano. “Aquele que não conhece o erro do
anacronismo está fadado a cometê-lo”.11 O conhecimento, a cultura e a legislação sobre plágio
não eram os mesmos de hoje. Como exemplos, pelas regras atuais, Thomas Smith Webb
cometeu plágio da obra de William Preston; e Albert Pike cometeu plágio de obras de uma dúzia
de autores. No caso do Behring, ele baseou-se naqueles rituais do REAA que Wirth elaborou para
a GLdF. Pelo menos, tomou-se o cuidado de, por exemplo, mencionar, na introdução da Terceira
Instrução de Companheiro: “Noções de Philosophia Iniciatica e de Symbologia Numerica do 2º
Gráo, segundo o nosso Ir⸫ O. Wirth”.12

4. Diferenciando restaurações de invenções

São muitas as críticas aos rituais de Behring, ao longo dos últimos 97 anos, sugerindo
enxertos de outros ritos ou invenções, que teriam gerado certa desfiguração do REAA. Contudo,
muitas delas são conceitualmente equivocadas. Para demonstrar isso, utilizarei a obra “The
Porch and the Middle Chamber: The Book of the Lodge”, de Albert Pike, publicada originalmente
em 1872, ou seja, mais de meio século antes do Ritual de Behring, e antes mesmo dos rituais de
1898 e de 1904 do REAA para o Grande Oriente do Brasil. Essa obra de Pike é baseada em seu
extenso e invejável acervo de manuscritos e livros antigos relacionados ao Rito Escocês Antigo e
Aceito, incluindo seus primeiros rituais dos graus simbólicos.

4.1. Cor das Paredes: Muitos afirmaram que as paredes do REAA devem ser vermelhas e
que Behring inventou de pintá-las de azul, copiando outros ritos e, assim,
desvirtuando o REAA. Contudo, no ritual dos graus simbólicos do REAA, publicado

9
A GLdF era regular e reconhecida pelo mainstream maçônico mundial na época.
10
GRANDE LOJA ALPINA DA SUÍÇA. Oswald Wirth et “une certaine idée” de la franc-maçonnerie.
Disponível em: https://freimaurerei.ch/fr/oswald-wirth-et-une-certaine-idee-de-la-franc-maconnerie/
11
ISMAIL, Kennyo. Maçonaria Brasileira: a história ocultada. Vol. II. Brasília: No Esquadro, 2021, p. 14.
12
BEHRING, M. Ritual do Gráo de Companheiro-Maçon. Rio de Janeiro: Delta, 1928, p. 48.

5
por Pike, em 1872, afirma-se que “As paredes da Loja devem ser cobertas do teto ao
chão com tecido azul claro”.13 Já no Manual do Aprendiz, de Wirth (1894), também
consta que “O teto é pontilhado de estrelas. Como o revestimento da parede, é azul
como a abóbada celeste que envolve a terra por todos os lados” (grifo nosso).14

4.2. Corda de 81 nós: Outra “invenção” de Behring seria a corda de 81 nós, havendo,
inclusive, teorias de como ele chegou ao número e o que representam. Mas, no
mesmo ritual do REAA publicado por Pike (1872), tem-se que nas paredes do templo
há uma “corda com nós (la houppe dentelée), com cerca de quinze centímetros de
diâmetro, com borlas pendentes em cada canto. Os nós são em número de 81”. Isso
difere do que consta, por exemplo, no Manual do Aprendiz, de Wirth (1894), que
afirma que “os nós podem ser doze em número, para corresponder aos signos do
zodíaco”.15

4.3. Abóbada Celeste: Uma crítica feita a Behring é quanto à escolha de uma série de
constelações do hemisfério norte para a Abóbada Celeste do seu ritual do REAA. Os
críticos se baseiam nos rituais brasileiros do REAA adotados anteriormente, assim
como no de outros países, em que não se tem os astros específicos definidos para
adornar o teto, sugerindo que Behring fez tais escolhas. Mas o ritual do REAA que
Pike publicou em 1872 traz que:
No teto, também, estão pintadas estrelas e constelações específicas. No
centro, as três estrelas do cinturão de ÓRION; e entre elas e o Nordeste, as
PLÊIADES e HIADES, uma das quais é ALDEBARAN; a meio caminho entre
ORION e o Noroeste, REGULUS em Leão; no Norte, URSA MAIOR; no Noroeste,
ARCTURUS; Oeste de Regulus, SPICA VIRGINIS; no Ocidente, ANTARES; no Sul,
FOMALHAUT; sobre o Leste, também, está JÚPITER, e sobre o Oeste, VÊNUS;
MERCÚRIO, próximo ao Sol; e MARTE e SATURNO, perto do centro do teto. As
Estrelas do Cinturão de Órion representam o número 3; as Híades 5; as
Plêiades e a Ursa Maior, 7. As cinco estrelas reais são ALDEBARAN, ARCTURUS,
REGULUS, ANTARES e FOMALHAUT.16

4.4. Cena de João Batista: De tanto criticarem no Brasil essa outra “invenção de Behring”,
até mesmo lideranças maçônicas de algumas Grandes Lojas se renderam e passaram
a defender o caráter “opcional”, ou mesmo a retirada da Cena de João Batista do
ritual. Entretanto, pelo ritual de 1872, de Albert Pike: “o Venerável Mestre bate três
vezes lentamente. Na terceira batida, o Segundo Vigilante retira a venda do
candidato. Na penumbra ele vê a cabeça de “João Batista” à sua frente”.17

13
PIKE, A. The Porch and the Middle Chamber: The Book of the Lodge. Washington: Supreme Council, SJ-
USA, 1872, p. 17.
14
WIRTH, O. Le Livre de L'Apprenti. Paris: AUX ÉDITIONS RHÉA, 1894. Disponível em:
https://www.freemasonryresearchforumqsa.com/wirth-apprentice-book.php#a12
15
Idem, Ibidem.
16
PIKE, op. cit., p. 20.
17
PIKE, op. cit., p. 23.

6
Como se pode observar, esses pontos, por muitos considerados, ao longo de quase um
século, como enxertos de outros ritos e invenções, mostram-se, na verdade, como um resgate
da identidade do Rito Escocês Antigo e Aceito, restaurando seu conteúdo, de modo a oferecer
uma prática maçônica mais próxima da francesa (berço dos graus simbólicos do REAA) e mais
condizente com a demanda dos irmãos e lojas escocistas brasileiras, em 1927/28, por mais
conhecimento.

5. A César o que é de César

O Irmão “Hi-kon-Passos” fez um excelente trabalho em seu artigo, mas pecou ao permitir
um viés cognitivo de confirmação, que é quando sua pesquisa e análise são direcionadas a
confirmar suas crenças e opiniões iniciais sobre aquele assunto. E quando se tem “dados
viciados” em um jogo, você restringe todas as possibilidades a um único resultado possível. O
anacronismo também pode ser uma consequência disso.

Se, por um lado, fico feliz em saber que temos aí um escritor promissor, e o GADU bem
sabe o quanto ainda estamos carentes disso na Maçonaria brasileira... por outro, fico triste que
ele tenha escolhido o caminho do anonimato. Não triste pela decisão dele, que é compreensível,
mas pelo atual cenário maçônico do Brasil, com crescentes casos de intolerância, que
provavelmente o levou a essa decisão. Contudo, o anonimato traz muitos pontos negativos e
aqui destaco dois: o primeiro é que você se acovarda, pois foge da antítese, da réplica, do debate
de ideias; e o segundo é que você pode se tornar imprudente e ofensivo, por não poder ser
responsabilizado pelo que escreve, protegido sob o véu do pseudônimo.

A contribuição ritualística de Behring não foi apenas restaurando o conteúdo e,


consequentemente, a identidade do REAA, mas dando aos rituais um aspecto mais moderno e
interessante, nunca antes visto na Maçonaria brasileira. Se você analisar os rituais anteriores a
1927, independente de rito, eles eram muito mais simples. Behring inovou ao incluir o modelo
alegórico de cada grau, a ilustração dos painéis, uma apresentação sobre a Maçonaria, uma
planta baixa do templo com a posição de cada oficial e utensílio, uma série de informações
preliminares úteis, além de ilustrações nas instruções. Hoje, os rituais brasileiros costumam
seguir um padrão mínimo de qualidade, e isso foi inaugurado pela versão dele.

Pergunto-lhe: O ritual do REAA da sua potência tem colunas zodiacais? Essas colunas
têm uns símbolos diferentes, dos signos dentro de triângulos para cima ou para baixo? Tem
estrelas e planetas específicos na abóbada, em vez de somente um punhado de estrelas
indefinidas? Tem a exposição de um painel do grau? Tem uma corda com 81 nós na parede? Tem
mais de uma instrução por ritual?

Se você respondeu “sim” para uma ou mais dessas perguntas, saiba que sua potência
copiou isso do Ritual de Behring. Mas não chamemos isso de “plágio”... Apenas reflita que, se
você é um desses que defendia que Behring “criou um novo rito”, que não deveria ser chamado
de REAA, mas sim de “Rito de Behring” ou algo parecido; os rituais do “REAA” de sua potência
brasileira, seja ela qual for, têm muito mais dos Rituais de Behring do que de qualquer ritual do
REAA que existiu no Brasil antes dos dele. Assim sendo, talvez temos o “Rito de Behring” não
apenas nas Grandes Lojas da CMSB, mas também no GOB e nos Grandes Orientes da COMAB.

Se não quiser adotar o termo “Rito de Behring” em sua potência, a outra opção é
aprender a diferença entre rito e ritual, entendendo e aceitando que há diferenças entre rituais

7
de um mesmo rito, como ocorre entre os diferentes rituais do Rito de York (Webb, Duncan, etc.)
e do Rito Moderno (Amiable, Montaleau, etc.), por exemplo.

O fato é que, ao reconhecermos a adaptação dos rituais do REAA do GOB após 1928,
adotando uma série dos resgates feitos nos rituais de Behring e aproximando-se deste na prática,
temos aí um indício de que houve essa demanda dos irmãos escocistas gobianos. O que é distinto
da ideia afirmada pelo irmão anônimo, de que os rituais foram “piorando diferenças, com
alterações ainda mais estranhas”. Se houvesse esse estranhamento, bem como uma preferência
por um ritual mais curto e simples, as atualizações de Behring não teriam encontrado morada
até mesmo nos rituais do REAA do GOB.

Ainda, o Irmão “Hi-kon-Passos” criticou que o Ritual de Behring foi “confeccionado por
dois autores e finalizado às pressas numa sessão administrativa por votação”.18 Na verdade,
houve dois autores, seus rituais não foram aprovados por serem longos demais, mas foram
aproveitados por uma comissão de três irmãos, que utilizaram, além dos projetos dos autores,
rituais do REAA de diferentes países a que tinham acesso e, principalmente, a “obra clássica de
Albert Pike sobre a Maç∴ Azul”,19 que é exatamente a que foi usada aqui para derrubar tantos
mitos e críticas acerca dos pseudo-enxertos nos rituais. E, mesmo se fosse verdade, quantos
foram os rituais elaborados por apenas um irmão? Não foi esse o caso de Willermoz? De
Schröder? De Webb, e de tantos outros? Duas mentes não pensam melhor do que uma? E cinco
mentes? E que forma melhor de aprovar algo do que por uma votação democrática?

Sim, o REAA contém esoterismo. Assim como o RER contém cristianismo, o Moderno
contém agnosticismo, e o Brasileiro contém ufanismo. Esse conteúdo esotérico no REAA não é
culpa de Wirth, muito menos de Behring, nem de outro alguém específico, mas sim por conta
do “quando e onde” seus graus foram desenvolvidos. O fato de conter esoterismo, diferente do
que “Hi-kon-Passos” afirma, não é algo a se corrigir ou a se declarar como “incorrigível”, pois isso
parte do pressuposto de que é errado, enquanto já distinguimos “gosto” de “certo” e “errado”.
E, como também já esclarecemos, a Maçonaria não é alienígena, não existindo, portanto, um
conteúdo 100% maçônico. Todo o conteúdo maçônico é emprestado de algo anterior, recebendo
uma “roupagem” ou “releitura” maçônica.

O fato de os graus simbólicos do REAA terem mais conteúdo sem roupagem do


Operativismo do que um rito anglo-saxão não pode ser considerado como algo menos maçônico
ou errado. Isso é um gigantesco juízo de valor. Como ilustração, utilizarei o Rito de York, citado
pelo Irmão “Hi-kon-Passos”: Os cargos de Marechal e Capelão são de origem maçônica? Não.
São de origem militar. Devemos então interpretar como um enxerto, declarar o Rito de York como
“incorrigível”, sugerir a abolição de tais cargos e a migração dos membros para lojas de outros
ritos? Observe que, se eu continuar com esse exercício, tudo, absolutamente TUDO na
Maçonaria pode ser declarado como “enxerto” a ser “corrigido” ou até “incorrigível”.

O título deste ensaio, “A vida secreta dos rituais e seus críticos”, foi inspirado em “A vida
secreta das abelhas”, título de um belo livro que aborda o tema do preconceito de gênero e de
raça. Que possamos combater o preconceito de rito, bem como evitar o anonimato na
Maçonaria.

18
PASSOS, F. Q. H. Manuais do REAA Revelados: Uma carta aberta sobre a confecção, enxertos,
alterações e possíveis plágios dos manuais dos Rituais de Rito Escocês Antigo e Aceito nos graus
simbólicos. Jan-2025, p. 11.
19
SC33. Astréa News, Ano X, N. 119, Novembro de 2020, p. 10.

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