UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE
CENTRO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES
UNIDADE ACADÊMICA DE LETRAS
CURSO DE LICENCIATURA EM LETRAS- LÍNGUA PORTUGUESA
INGRA CLÊNIA DOS SANTOS MARIANO
PERSPECTIVA E PODER: O SILÊNCIO DA VOZ FEMININA NO ROMANCE
FOGO MORTO, DE JOSÉ LINS DO REGO
CAJAZEIRAS – PB
2018
INGRA CLÊNIA DOS SANTOS MARIANO
PERSPECTIVA E PODER: O SILÊNCIO DA VOZ FEMININA NO ROMANCE
FOGO MORTO, DE JOSÉ LINS DO REGO
Trabalho de Conclusão de Curso (TCC)
apresentado ao Curso de Licenciatura
em Letras/Língua Portuguesa, do
Centro de Formação de Professores da
Universidade Federal de Campina
Grande – Campus de Cajazeiras - como
requisito de avaliação para obtenção do
título de Licenciada em Letras – Língua
Portuguesa.
Orientador: Prof. Dr. Elri Bandeira de
Sousa
CAJAZEIRAS – PB
2018
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação - (CIP)
Denize Santos Saraiva Lourenço - Bibliotecária CRB/15-1096
Cajazeiras - Paraíba
M333p Mariano, Ingra Clênia dos Santos.
Perspectiva e poder: o silêncio da voz feminina no romance Fogo
Morto, de José Lins do Rego / Ingra Clênia dos Santos Mariano. - Cajazeiras,
2018.
36f.
Bibliografia.
Orientador: Prof. Dr. Elri Bandeira de Sousa.
Monografia (Licenciatura em Letras - Língua Portuguesa) UFCG/CFP,
2018.
A Deus.
Ao meu marido, meus pais, meus avós e
irmãos que sempre acreditaram que seria
possível realizar este sonho.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus por ter me dado forças para superar meus limites nas horas
de fraqueza.
Aos meus pais, meus avós e irmãos às pessoas que permaneceram comigo
nessa caminhada árdua e de renúncias difíceis, me incentivando e me acolhendo nos
momentos de angústias.
Agradeço ao meu marido, Carlos Rian, pela paciência e pelo apoio em todos
os momentos que precisei.
Agradeço ao meu orientador, professor Elri Bandeira de Sousa, e a minha
professora Erlane, por não terem desistido de mim quando fraquejei. Pela paciência,
determinação e confiança que conseguiríamos.
Aos meus amigos, que me apoiaram nos desânimos mas que também
comemoraram nas conquistas no decorrer do curso, em especial a Alex Sandra, pois
sofremos e vencemos juntas do início ao fim. Sem dúvidas, foram anos que ficarão
marcados em nossas lembranças por toda vida.
A todos os professores que me ensinaram durante este período de licenciatura.
Levarei para minha profissão, que agora se inicia, um pouco de cada um de vocês.
Muito obrigada.
RESUMO
O presente trabalho de conclusão de curso tem como objetivo mostrar a força que se
encontra no silêncio da voz feminina das personagens da obra Fogo Morto de José
Lins do Rego. Bem como, o desenrolar trágico de três famílias que se desgastam pelo
orgulho de seus patriarcas que caem em decadência, mas não percebem esta queda.
D. Sinhá, d. Amélia e d. Adriana são mulheres que sofrem caladas e encontram nos
seus monólogos internos uma forma de mostrar a real situação que envolve suas
famílias. Na parte teórica, discorremos sobre comunicação narrativa e seus tipos de
narrador, sobre focalização e sobre o percurso história pelo qual passou a definição
da personagem ao longo dos anos; discorremos também sobre o patriarcado e o
feminismo e sobre o ponto de vista de Gomes (1981) a respeito das personagens
femininas de Fogo Morto. Nossa pesquisa teórica é feita com base em Reis e Lopes
(1988), Reuter (2002), Friedman (2002), Candido (2009), Brait (1999), Gomes (1981),
Fraga (2013), Sousa (2011) e Azevedo (2017). A obra, que tem como foco três
homens, que pertencem a classes sociais distintas mas que sofrem com conflitos
muito parecidos, são destruídos pelo próprio ego, levando consigo suas famílias.
Palavras-chave: Fogo Morto, personagens femininas, patriarcado, José Lins do
Rego.
ABSTRACT
This Course Conclusion Paper aims to analyze the force which was located in the
silence of the female voice in the characters from the work Fogo Morto by Jose Lins
do Rego, as well as the tragic progression of the three families who spend themselves
through price of their patriarchs who decay but they do not realize that decline. Sinha,
Amelia and Adriana are women who suffer themselves quiet and they find a way to
show the real context that involves their families through the internal monologues. In
the theory, we discuss about the narrative communication and its types of narrator,
focalization and the historical journey by which the definition of character has been
argued over the years; we also observe about the patriarchate and feminism, as well
as the female characters by the narrative in Fogo Morto through Gomes’ perspective
(1981). The theoretical research was developed according to Reis e Lopes (1988),
Reuter (2002), Friedman (2002), Candido (2009), Brait (1999), Gomes (1981), Fraga
(2013), Sousa (2011) and Azevedo (2017). The novel focuses on three men who
belong to the distinctive social classes and, however, they suffer themselves with the
conflicts very similar and they are destroyed by their own ego, taking with them the
families.
Keywords: Fogo Morto, female characters, patriarchate, José Lins do Rego.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 9
1 COMUNICAÇÃO NARRATIVA ............................................................................. 11
1.1 FOCALIZAÇÃO .................................................................................................. 15
1.2 PERSONAGEM ................................................................................................. 17
2 O PATRIARCADO E O FEMINISMO .................................................................... 21
2.1 DISCUSSÃO ACERCA DO TEMA: “A PRESENÇA DE CASSANDRA” DE
HELOÍSA TOLLER GOMES .................................................................................... 23
3 MULHERES DE FOGO MORTO: A REALIDADE POR TRÁS DO SILÊNCIO ..... 27
3.1 DONA SINHÁ ..................................................................................................... 27
3.2 DONA AMÉLIA................................................................................................... 28
3.3 DONA ADRIANA ................................................................................................ 31
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 34
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 35
9
INTRODUÇÃO
Durante muito tempo, a literatura brasileira foi influenciada pela portuguesa,
fazendo com que a nossa não possuísse uma fisionomia só sua. Ou seja, a literatura
brasileira era apenas tomada por empréstimo.
No início do século XX, alguns escritores começaram a produzir seus textos
buscando assuntos mais próximos da nossa realidade, dando início ao movimento
conhecido como Pré-Modernismo e que se estendeu até 1922. Pois, com a realização
da Semana de Arte Moderna, neste mesmo ano, consolida-se o Modernismo no Brasil.
As obras do modernismo, especificamente, as obras da segunda fase, que se
estendeu de 1930 a 1945, encontram um novo cenário para suas produções artísticas:
O nordeste, cercado por seus problemas sociais e suas riquezas culturais é um
ambiente fértil para escritores que buscavam uma literatura voltada para realidade
sofrida da sociedade.
Dentre estes autores que retratam a vida do nordestino sofrido e os desmandos
dos que possuem melhor nível social, encontra-se José Lins do Rego, romancista da
década de 30 que se destacou pelos seus romances do ciclo de cana de açúcar, os
quais retratam o processo de degradação dos engenhos para dar origem às usinas.
O autor marcou a literatura com o regionalismo presente em obras como o Menino de
Engenho, Doidinho, Banguê, Fogo Morto.
Nesta perspectiva, este estudo foi elaborado tendo como foco de análise a obra
Fogo Morto, datada de 1943. Obra que caracteriza a segunda fase do Modernismo,
pois a obra conta a história de três patriarcas: Mestre José Amaro, seu Lula e capitão
Vitorino, homens, que mesmo estando a beira do completo fracasso, não deixam o
orgulho de lado para tentar enfrentar a situação. Ao contrário, cada um sofre seu
destino de maneira diferente e peculiar. Mas, quem mais sofre com esse orgulho são
suas esposas que enfrentam “caladas” os desatinos de seus maridos.
O silêncio destas mulheres, durante todo o percurso da obra, chamou nossa
atenção e portanto, o nosso objeto de estudo será a obra Fogo Morto com foco no
silêncio das personagens femininas. Mas, além da atenção dispensada às
personagens femininas, não poderíamos deixar, à margem, o papel do narrador nesta
narrativa. Pois, segundo Gouveia (2004, p. 9), “Podem-se fazer outros tipos de
análise, mas qualquer enfoque sobre FM é brutalmente incompleto se prescindir da
complexidade da forma apresentada pelo narrador.”
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Neste sentido, não poderíamos perder de vista a relação de Fogo Morto com o
modelo de sociedade da época, que ainda era uma sociedade dominada pelos
coronéis, senhores de engenho, que tinham o comando nas mãos. Portanto, uma
relação da obra com o patriarcado se faz necessária para compreender a forma de
pensar de suas personagens.
Como aporte teórico para realização deste estudo, recorremos a livros e
artigos, haja visto que a pesquisa é de ordem bibliográfica. Esta escolha se faz
necessária por oferecer suportes relevantes para a compreensão e aprofundamento
acerca do tema relacionado. Para isso, estabelecemos diálogo entre as ideias
relacionadas a ele, formando nosso embasamento teórico a partir das reflexões
encontradas em Reis e Lopes (1988), Reuter (2002), Friedman (2002), Candido
(2009), Brait (1999), Gomes (1981), Fraga (2013) e Azevedo (2017).
Estruturalmente, este trabalho divide-se em três capítulos. O primeiro, intitulado
“Comunicação narrativa”, trata de forma concisa, do nível narrativo, tempo da
narração e tipo de narrador pela visão de Reis e Lopes (1988) relacionando com a
visão de Reuter (2002) e Friedman (2002) sobre os tipos de narrador. O capítulo é
seguido de dois tópicos: “Focalização”, que também segue a visão de Reis e Lopes
(1988), e “Personagem”, trabalhado pelas perspectivas de Candido (2009) e Brait
(1999).
O segundo capítulo que tem como título “O patriarcado e o feminismo”, traz um
estudo sobre o patriarcado elaborado por Azevedo (2017). No seu artigo, Azevedo
apresenta uma definição de patriarcalismo e também destaca o ponto de vista de
algumas autoras feministas que discordam das conclusões dos estudiosos de renome
que tratam deste assunto. Este capítulo é seguido de um subtítulo intitulado
“Discussões acerca do tema: ‘Presença de Cassandra’ de Heloísa Toller Gomes”
fazendo uma discussão acerca da opinião de Gomes (1981) sobre as personagens
femininas do romance Fogo Morto.
O último capítulo, intitulado “Mulheres de Fogo Morto: a realidade por trás do
silêncio”, é dividido em três subtítulos: “Dona Sinhá”, “Dona Amélia”, (neste tópico
também encontraremos comentários acerca de dona Mariquinha, mãe de Amélia), e
“Dona Adriana”. Cada subtítulo retrata a vida destas mulheres por trás do silêncio que
resta a elas no mundo em que vivem, cercadas por sofrimento e perdas que testam,
a cada dia, os limites destas famílias.
11
1 COMUNICAÇÃO NARRATIVA
Reis e Lopes (1988, p. 21) afirmam que a comunicação narrativa deve ser
entendida como “específico processo de transmissão de textos narrativos”, podendo
relevar as circunstâncias e os componentes que regem a comunicação e/ou guiam a
ação de fatores e agentes determinantes para a qualidade das narrativas.
As entidades que articulam a comunicação narrativa estão divididas em
narrador e narratário. Sendo que “o narrador modeliza um universo diegético [...] e
transmite um certo conhecimento ao narratário” (REIS; LOPES, 1988, p. 21), o qual é
dissemelhante do leitor real, pois possui uma correlata aptidão para a decodificação
da mensagem. A comunicação narrativa se apresenta em três subdomínios díspares:
o nível narrativo, o tempo da narração e o tipo de narrador.
O nível narrativo pode ser extradiegético, intradiegético e hipodiegético. Reis e
Lopes afirmam que existe uma relação de dependência que parte do nível
extradiegético como primordial, aquele a partir do qual pode(m) construir-se outro(s)
nível(is) narrativo(s). Assim, no nível extradiegético encontra-se o narrador que pode
fazer parte da história ou não, pois não existe nenhuma dependência rígida entre nível
narrativo e pessoa da narração. O nível intradiegético é aquele que se coloca
imediatamente seguinte ao nível extradiegético e precede imediatamente o nível
hipodiegético. Assim:
[...] uma personagem colocada no nível intradiegético, à qual cabe
circunstancialmente o papel de narrador dentro da história: abre-se
então um nível hipodiegético, em que se encontram personagens (e
também, naturalmente, ações, espaços etc) dessa história engastada
no nível intradiegético. (REIS; LOPES, 1988, p. 131, grifo dos autores).
Ou seja, quando esta personagem assume o papel de narrador para contar
uma história independente da que faz parte, abre outro nível narrativo, o nível
hipodiegético, que possui personagens, ações, espaços, totalmente dissociados da
primeira história.
O tempo da narração pode-se encontrar como narração anterior, quando o ato
narrativo antecede a ocorrência dos eventos a que se referem; narração intercalada,
quando o ato narrativo, por não aguardar a conclusão da história, resulta da
fragmentação da narração em várias etapas inseridas na história; narração
simultânea, quando se trata de uma sobreposição precisa. Esta se distingue da
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imprecisão que normalmente caracteriza a distância temporal da narração ulterior. E
narração ulterior, quando o ato narrativo se situa numa posição de inequívoca
posteridade em relação à história.
Por fim, ainda no âmbito da comunicação narrativa, destaca-se a presença do
narrador, que Brait considera como uma instância que conduz o leitor por um mundo
que parece estar se criando à sua frente (BRAIT, 1999). Sabe-se que a função do
narrador é modelar esse mundo e possibilitar a compreensão por parte do narratário.
Os tipos de narrador podem ser classificados em narrador autodiegético, narrador
heterodiegético e narrador homodiegético.
Narrador autodiegético é o narrador que relata as suas experiências como
personagem central da história. A situação narrativa criada por este narrador (REIS;
LOPES, 1988, p. 120) “[...] suscita leituras que, de um ponto de vista semiótico tendem
precisamente a valorizar a peculiar utilização de códigos temporais e de focalização
ativados em tal situação narrativa”.
O narrador heterodiegético é aquele que narra uma história que não vivenciou,
como personagem principal, nem presenciou, como personagem testemunha.
Portanto:
A expressão narrador heterodiegético [...] designa uma particular
relação narrativa: aquela em que o narrador relata uma história à qual
é estranho, uma vez que não integra nem integrou, como personagem,
o universo diegético em questão. (REIS; LOPES, 1988, p. 121, grifo
dos autores).
O narrador heterodiegético se distingue dos outros narradores, pois ele é o que
relata uma história que não vivenciou, como personagem principal, nem presenciou,
como testemunha.
O narrador homodiegético partilha semelhanças com o narrador autodiegético,
pois ambos vivenciam a história que narram, sendo que o primeiro é apenas uma
personagem secundária ou figurativa, que conta a história por meio de suas
percepções como testemunha do que narra, e o segundo é o personagem principal
da narrativa, vivenciando os fatos que narra. Conclui-se então que o narrador
homodiegético:
[...] é a entidade que veicula informações advindas da sua própria
experiência diegética; quer isto dizer que, tendo vivido a história como
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personagem, o narrador retirou daí as informações de que carece para
construir o seu relato, assim se distinguindo do narrador
heterodiegético, na medida que este último não dispõe de um
conhecimento direto. (REIS; LOPES, 1988, p. 124, grifo dos autores).
Portanto, o narrador homodiegético é apenas uma personagem secundária ou
figurativa que conta a história por meio de suas percepções (REIS; LOPES, 1988).
Normalmente, o narrador pode se apresentar de duas maneiras específicas:
como narrador em primeira pessoa também chamado de narrador personagem, e
narrador em terceira pessoa.
Reuter (2002) explica que uma narrativa pode surgir com apenas dois tipos de
narrador: heterodiegético e homodiegético, seguindo o que foi exposto por Gérard
Genette de que, no primeiro, o narrador está ausente da história e no segundo o
narrador está presente como personagem da história contada.
Sendo assim Reuter (2002) apresenta cinco grandes combinações possíveis:
narrador heterodiegético e perspectiva passando pelo narrador; Narrador
heterodiegético e perspectiva passando pela personagem; narrador heterodiegético e
perspectiva neutra; narrador homodiegético e perspectiva passando pelo narrador e
homodiegético e perspectiva passando pela personagem.
O narrador heterodiegético e perspectiva passando pelo narrador domina e
sabe de tudo. ”Como Deus no tocante à sua criação, ele sabe mais que todas as
personagens, conhece os comportamentos e também o que pensam e sentem os
diferentes atores, podendo sem problema estar em todos os lugares e dominar o
tempo.” (REUTER, 2002, p. 76).
Este tipo de narrador é onisciente pois não narra apenas do ponto de vista de
uma personagem, portanto é usado com muita frequência.
O narrador heterodiegético e perspectiva passando pela personagem reduz-se
à perspectiva de apenas uma personagem. Ele é onisciente, mas só com relação a
está. Pois “[...] o narrador não pode – normalmente – saber, perceber e dizer o que
sabe e percebe a personagem pela qual passa a perspectiva.” (REUTER, 2002, p.
78).
O narrador heterodiegético e perspectiva neutra não é considerado um narrador
frequente, pois esse narra sem apresentar informações ao leitor como se soubesse
menos que as personagens e portanto mostra as cenas de forma menos especifica
que os outros. Assim:
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Em termos de tendência, é impossível, portanto, saber o que pensam
e sentem as personagens; as voltas ao passado são limitadas; as
antecipações corretas são interditadas; estão ausentes as
intervenções explicitas do narrador. (REUTER, 2002, p. 80).
O quarto narrador é o homodiegético e perspectiva passando pelo narrador.
Reuter (2002) esclarece que este narrador é comum nas autobiografias, das
confissões e dos relatos e que o narrador conta o que, ele mesmo, viveu. Portanto
não consegue transmitir certeza do que narra.
Este narrador homodiegético de Reuter assemelha-se com o narrador
autodiegético de Reis e Lopes, pois como foi citado anteriormente, o narrador
autodiegético relata suas experiências como personagem central da história.
O último narrador de Reuter (2002) é o homodiegético e perspectiva passando
pela personagem que narra no presente e pela visão da personagem, dando a
impressão de simultaneidade entre o que é visto e o que é narrado. Como contraponto,
o narrador restringe-se ao que está próximo da personagem sem intervenções por
parte do mesmo. O autor afirma que: “Essa instância foi desenvolvida sobretudo na
segunda metade do século XX, em relação a um crescente interesse pela expressão
mais íntima da vida psicológica.” (REUTER, 2002, p. 84).
Friedman (2002), em seu artigo O ponto de vista na ficção, classifica de forma
diferente os tipos de narrador em: Autor onisciente intruso, narrador onisciente neutro,
“eu” como testemunha e narrador protagonista, além de explicar o que é onisciência
seletiva e onisciência seletiva múltipla. Deste modo, o leitor pode ter mais facilidade
de identificar as características que distinguem cada tipo de narração.
O primeiro tipo mencionado por Friedman, fala frequentemente por meio do
“eu” ou do “nós” e está longe da cena que narra. Portanto:
A marca característica, então, do Autor Onisciente Intruso é a
presença das intromissões e generalizações autorais sobre a vida, os
modos e as morais, que podem ou não estar explicitamente
relacionadas com a estória à mão. (FRIEDMAN, 2002, p. 173)
Este autor tem muita liberdade na narrativa pois não narra apenas os fatos por
eles mesmos, mas pode acrescentar comentários que enriquecem a diegese e é uma
marca que distancia um pouco este narrador do narrador seguinte.
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O Narrador Onisciente Neutro distancia-se do Autor Onisciente Intruso porque
não apresenta intromissões diretas mas não significa que o autor não tenha voz
quando conta a história por meio do Narrador Onisciente Neutro. (FRIEDMAN, 2002).
Se no Narrador Onisciente Neutro, o autor já tinha abdicado do seu poder de
interferência, no “Eu” como Testemunha ele entrega todo o seu trabalho ao outro.
Pois:
Muito embora o narrador seja uma criação do autor, a este último, de
agora em diante, será negada qualquer voz direta nos procedimentos.
O narrador-testemunha é um personagem em seu próprio direito
dentro da estória, mais ou menos envolvido na ação, mais ou menos
familiarizado com os personagens principais, que fala ao leitor na
primeira pessoa. (FRIEDMAN, 2002, p. 175-176. Grifo do autor)
Quando o autor opta por este tipo de narrador, além de perder a onisciência da
narrativa, transferindo para a testemunha a responsabilidade de narrar, esta, só pode
contar o que está no seu campo de percepção, pois é apenas um personagem
secundário.
Por último, temos o narrador-protagonista, o mais limitado dos narradores, haja
vista que o narrador-testemunha tem maior liberdade de circulação dentro da
narrativa, enquanto o narrador-protagonista: “[...] encontra-se quase que inteiramente
limitado a seus próprios pensamentos, sentimentos e percepções. De maneira
semelhante, o ângulo de visão é aquele do centro fixo.” (FRIEDMAN, 2002, p. 177).
1.1 FOCALIZAÇÃO
Segundo Reis e Lopes (1988, p. 246, grifo dos autores), “[...] a focalização pode
ser definida como a representação da informação diegética que se encontra ao
alcance de um determinado campo de consciência”. Essa consciência pode ser de
uma personagem da história como narrador homodiegético ou narrador autodiegético,
ou de um narrador heterodiegético; consequentemente, “a focalização, além de
condicionar a quantidade de informação veiculada, atinge a sua qualidade, por traduzir
uma certa posição afetiva, ideológica, moral e ética em relação a essa informação”.
Focalização é a nomeação dada por G. Genette a essa representação, o qual
tomou por base o termo foco de narração denominado anteriormente por C. Brooks e
R. P. Warren e hoje em dia possui várias denominações como ponto de vista, visão,
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restrição de campo e foco narrativo. Este último, muito usado em estudos de origem
brasileira. Reis e Lopes (1988) destacam que o termo focalização está se
consolidando como “designação pertinente e operatoriamente eficaz”, no domínio da
teoria e análise do discurso narrativo. Os autores ainda destacam que:
[...] em princípio, reduz-se a três signos fundamentais (v. focalização
externa, focalização interna e focalização onisciente), essas opções
permitem combinações sintáticas muito variadas, normalmente
inspiradas pelo intuito de confrontar as diferentes atitudes ideológico-
emocionais que a focalização traduz; em certo sentido, pode, portanto,
falar-se na possibilidade de se analisar, a partir da ativação de várias
focalizações, a articulação dialética de “visões de mundo” (do narrador
e de personagens da história) suscetíveis de ilustrarem os
fundamentais vectores ideológicos representados na narrativa. (REIS;
LOPES, 1988, p. 247, grifo dos autores).
A focalização externa, para os autores, é um modo objetivo e desapaixonado
de se referir aos eventos e personagens que integram a história. Esta focalização “é
constituída pela estrita representação das características superficiais e materialmente
observáveis de uma personagem, de um espaço ou de certas ações.” (REIS; LOPES,
1988, p. 249).
Na focalização interna, é levado em consideração, além do que a personagem
vê, também o que está no seu campo de consciência. Este tipo de focalização:
[...] corresponde à instituição do ponto de vista de uma personagem
inserida na ficção, o que normalmente resulta na restrição dos
elementos informativos a relatar, em função da capacidade de
conhecimento dessa personagem. (REIS; LOPES, 1988, p. 251).
No que se refere à focalização interna, esta pode ser dividida em fixa (apenas
uma personagem com função de focalizador), múltipla (o campo de consciência passa
a ser de um grupo de personagens) ou variável (permite a circulação do núcleo
focalizador por várias personagens). Outro aspecto do processo de focalização
interna, considerado importante pelos autores, é constituído pelo que pode ser
chamado de marcas de focalização: discurso modalizante, tendência para a
velocidade narrativa isocrônica, possível recurso ao presente histórico, possível
representação da corrente de consciência da personagem focalizadora, etc.
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Por fim, a focalização onisciente, é aquela que excede os limites de
conhecimento de uma personagem da história. Para Reis e Lopes (1988, p. 255),
focalização onisciente é:
[...] toda a representação narrativa em que o narrador faz uso de uma
capacidade de conhecimento praticamente ilimitada, podendo, por
isso, facultar as informações que entender pertinentes para o
conhecimento minudente da história; colocado numa posição de
transcendência em relação ao universo diegético [...], o narrador
comporta-se como entidade demiúrgica, controlando e manipulando
soberanamente os eventos relatados, as personagens que os
interpretam, o tempo em que se movem, os cenários em que se situam
etc.
Deste modo, a focalização onisciente pode mostrar tanto o exterior quanto o
interior das personagens e o narrador pode utilizar-se de diversas focalizações em
uma mesma obra como estratégia narrativa.
1.2 PERSONAGEM
Para entendermos a importância da personagem na construção dos romances
ou para uma narrativa específica é necessário um conhecimento prévio, mesmo que
superficial, do surgimento desse elemento tão marcante em determinado período
histórico até o momento atual.
Brait comenta que a concepção de personagem teve início nos estudos
empreendidos por Aristóteles com seu conceito de mimesis e vigorou até meados do
século XVIII. Comenta ainda que todos os estudiosos da arte poética foram
influenciados pela visão desse pensador, incluindo Horácio, um poeta latino que
associa o aspecto de entretenimento, contido na literatura, à sua função pedagógica.
Brait ressalta que essa associação fez com que se acentuasse o conceito já
dado ao termo mimesis de “imitação do real”. E, a partir de Aristóteles e Horácio, Brait
(1999, p. 37) afirma que surgiram “[...] conceituados autores que, durante os séculos
XVI e XVII, legaram à posteridade curiosos estudos da personagem como imagem de
pessoa, revestida da moralizante condição de verdadeiro retrato do melhor do ser
humano.” Em seu livro, ela cita exemplos como o escritor inglês Philip Sidney (1554-
86), autor de A defesa da poesia, entre outras obras, e o também inglês John Dryden,
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considerado o primeiro grande crítico da Inglaterra. Ambos elegeram os conceitos de
Aristóteles e Horácio para fundamentar seus estudos. Mas, a partir da segunda
metade do século XVIII, essa concepção de personagem começa a declinar. Surge
uma visão de representação do universo psicológico do seu criador, chegando a se
tornar mais heterogênea e maleável no final do século XVIII e século XIX, graças às
modificações que ocorreram no romance para adaptar-se ao novo público burguês.
Público este, que possuía um gosto particular, ao qual as narrativas até então não
estavam adaptadas.
Candido (2009, p. 60) verifica que “[...] a marcha do romance moderno (do
século XVIII ao começo do século XX) foi no rumo de uma complicação crescente da
psicologia das personagens”, pois, ao passo que a personagem afastava-se da ideia
de imitação, tornava-se mais complexa e múltipla. Segundo Candido:
Ao fazer isso, nada mais fez do que desenvolver e explorar uma
tendência constante do romance de todos os tempos, acentuada no
período mencionado, isto é, tratar as personagens de dois modos
principais: 1) como seres íntegros e facilmente delimitáveis, marcados
de uma vez por todas com certos traços que os caracterizam; 2) como
seres complicados, que não se esgotam nos traços característicos,
mas têm certos poços profundos, de onde pode jorrar a cada instante
o desconhecido e o mistério. (CANDIDO, 2009, p. 60).
Ainda no século XVIII, Johnson, seguindo a técnica de caracterização do
romance em compor seres íntegros e coerentes, dividiu as personagens em
personagens de costume e personagem de natureza. Cândido (2009, p. 61) diz que
as personagens de costume “são [...] apresentadas por meio de traços distintivos,
fortemente escolhidos e marcados”. Estas personagens apresentam características
que são fixadas e se tornam elementos essenciais para sua afirmação. Já as
personagens de natureza possuem, além de seus traços superficiais, um modo íntimo
de ser que faz com que estas não tenham a mesma constância das outras.
No século XX, o romancista e crítico inglês Edward Morgan Forster, em seu
livro Aspects of the novel, imortalizou-se com sua classificação de personagem em
flat – planas e round – redondas ou esféricas – ambas traduções superficiais. Segundo
Brait:
As personagens planas são construídas ao redor de uma única ideia
ou qualidade. Geralmente, são definidas em poucas palavras, estão
imunes à evolução no transcorrer da narrativa, de forma que as suas
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ações apenas confirmem a impressão de personagens estáticas, não
reservando qualquer surpresa ao leitor. (BRAIT, 1999, p. 40–41, grifo
do autor).
Estas personagens são facilmente reconhecíveis pois suas características
típicas são ressaltadas durante toda a sua trajetória na obra, haja vista, que o
romancista não tem a pretensão de alterá-las. Elas se diferenciam das personagens
redondas principalmente pela complexidade destas, que buscam surpreender o leitor.
A autora explica:
As personagens classificadas como redondas, por sua vez, são
aquelas definidas por sua complexidade, apresentado várias
qualidades ou tendências, surpreendendo convincentemente o leitor.
São dinâmicas, são multifacetadas, constituindo imagens totais e, ao
mesmo tempo, muito particulares do ser humano. (BRAIT, 1999, p.
41).
Candido (2009, p. 63) ressalta ainda que personagens esféricas “[...] se
reduzem essencialmente ao fato de terem três, e não duas dimensões; de serem,
portanto, organizadas com maior complexidade e, em consequência, capazes de nos
surpreender.” Mas, podemos perceber que Forster não conseguiu fugir
completamente da relação personagem ficcional – pessoa humana. E o mesmo
acontece com o poeta, romancista e crítico inglês Edwin Muir, que, segundo Brait
(1999), analisa diversos aspectos da estrutura romanesca, procurando separar a
ficção, o romance, da vida. Mas, mesmo tendo noção dessa diferença do ser fictício –
pessoa, Muir não consegue se desvencilhar totalmente desta relação.
Só por volta de 1916, um movimento de reação aos estudos naturalista-
biológicos da literatura desencadeado pelos formalistas russos radicaliza a “[...]
concepção da personagem como ser de linguagem [...]” (BRAIT, 1999, p. 43). Estes
conseguem romper essa concepção da personagem como imitação do ser humano
estabelecendo suas próprias características que levam o estudo da narrativa a uma
direção mais exploratória de sua estrutura. Mesmo o formalismo russo tendo
passagem curta e levantando discussões que foram negadas pelas teorias modernas,
deu sua contribuição e ainda continua influenciando teóricos com Roman Jacobson,
Lévi-Strauss, Tzvetan Todorov, Julien Greimas e outros.
Candido (2009) destaca a visão de François Mauriac em seu livro Le Romancier
et ses Personnages, onde ressalta que o grande arsenal do romancista é a memória
20
e isso confere acentuada ambiguidade à personagem. O autor reproduz somente os
elementos circunstanciais reconstituídos da memória; o essencial é sempre inventado.
Cândido (2009, p. 75, grifo do autor) também ressalta a ideia de Bennett de
personagem convencionalizada, afirmando que “a convencionalização é,
basicamente, o trabalho de selecionar os traços, dada a impossibilidade de descrever
a totalidade duma existência”. José Lins do Rego utiliza-se bastante da
convencionalização em suas personagens. Principalmente em Fogo Morto, como
ressalta Candido:
José Lins do Rego, em Fogo Morto, descreve obsessivamente três
famílias, constituídas cada uma de três membros, com três pais
inadequados, três mães sofredoras, tudo em três níveis de frustração
e fracasso; e cada família é marcada, sempre que surgem os seus
membros, pelos mesmos cacoetes, palavras análogas, pelos mesmos
traços psicológicos, pelos mesmos elementos materiais, pelas
mesmas invectivas contra o mundo. (CANDIDO, 2009, p. 76, grifo do
autor).
Encontra-se em Fogo Morto três personagens principais, mestre José Amaro,
seu Lula e capitão Vitorino, que estão ligadas, mesmo que inconscientemente, umas
às outras e esta ligação está relacionada ao futuro de cada uma delas na narrativa.
Essa convencionalização é importante para que as personagens se tornem parte do
enredo, do lineamento da trama. Portanto:
[...] a vida da personagem depende da economia do livro, da sua
situação em face dos demais elementos que o constituem: outras
personagens, ambiente, duração temporal, idéias (sic). Daí a
caracterização depender de uma escolha e distribuição conveniente
de traços limitados e expressivos, que se entrosem na composição
geral e sugiram a totalidade dum modo-de-ser, duma existência.
(CANDIDO, 2009, p. 75).
Para que a personagem se enquadre na composição da narrativa é necessário
que esteja alinhada aos outros elementos do texto. O texto, por sua vez, é marcado
pela presença do narrador que, dependendo de sua apresentação, pode funcionar
como caracterizador da personagem.
21
2 O PATRIARCADO E O FEMINISMO
Azevedo (2017), faz um estudo acerca do conceito de patriarcado discutido nas
ciências sociais. Ela mostra que não há uma homogeneidade sobre esse conceito,
pois diferentes autores como Weber, Rousseau, Locke e outros teorizam sobre como
o pai impõe-se sobre os demais membros da família.
O patriarcado é o tipo de dominação considerado por muito tempo como ideal,
pois mantinha um padrão familiar em que o chefe da família dominava os demais
membros: filhos, esposa, escravos e servos, impondo regras e os tinha como bens de
que poderia dispor sempre que achasse necessário.
Baseado em Florestan Fernandes (1996), Azevedo (2017) mostra o conceito
de família patriarcal como algo obscuro e que teria uma semelhança com a forma
social de organização das tribos hebraicas, pois nestas o patriarca exercia seu mando
dando sequência à tradição, tendo como base um ancestral mítico. Essa relação com
as tribos hebraicas não se tornou a base para as manifestações típicas vistas
posteriormente, mas a família patriarcal se manifesta em várias civilizações e
estruturas sociais.
Weber (2009) conceituou tipos ideais de dominação que serão definidos a
seguir. São eles: dominação legal, dominação carismática e dominação tradicional.
Segundo Azevedo (2017), os motivos para a submissão variam de acordo com
interesses, considerações utilitárias de vantagem e inconvenientes por parte de quem
obedece.
Fraga (2003) explica que a dominação legal ou legal-racional é a mais
sofisticada e para a qual todos convergem. Nesta dominação, o senhor que está no
poder não é respeitado e obedecido pela pessoa que é, mas pelo cargo que exerce
no poder. Não é um simples instrumento do próprio sistema. A regra estabelecida dá
as diretrizes de como se deve governar. O autor finaliza afirmando que a burocracia é
considerada o tipo mais puro dessa dominação (FRAGA, 2003).
Na dominação carismática, o respeito se dá pelo carisma ou admiração ao
dominador. Os tipos mais comuns e puros de dominação carismática são: dominador
na posição de profeta, guerreiro ou demagogo. Este tipo de dominação desaparece
quando o carisma do dominador acaba.
22
A dominação tradicional consiste no tipo de dominação que perdurou no tempo.
Nela consiste o patriarcalismo onde quem manda é o senhor e quem obedece é o
súdito. Neste tipo de dominação a tradição prevalece, pois é mais aceita pelo povo.
Weber (2009) distingue este tipo de dominação em estrutura patriarcal e
estrutura estamental. No primeiro tipo, os dominados são estritamente dependentes
do senhor como escravos. No segundo tipo, os dominados são ligados ao senhor por
terem recebido um favor, feito um acordo ou adquirido um título com sua ajuda. Na
época dos senhores de engenho, era comum que os grandes das terras recebessem
títulos dos governantes assim como os senhores de engenho mais prestigiados pelo
governo, como o coronel José Paulino, que conseguira o título de tenente-coronel para
seu Lula, como mostra o trecho a seguir: “O tenente-coronel Lula de Holanda não deu
importância à patente. Era mais um ato de proteção de seu vizinho que ele recebia
como esmola.” (REGO, 2010, p. 247).
A dominação tradicional pode ser percebida no tipo de sociedade retratada por
José Lins em suas obras do ciclo da cana de açúcar. Menino de engenho, Banguê,
Doidinho, e Fogo Morto são exemplos de narrativas em que se encontra este tipo de
dominação. Em Fogo Morto, por exemplo, encontramos tanto a dominação tradicional
como estrutura patriarcal quanto a dominação tradicional como estrutura estamental.
Como estrutura patriarcal, temos o exemplo da família do seu Lula que, quando
se torna senhor de engenho, após a morte de sua sogra, passa a ser senhor de seus
escravos, de suas terras e da sua família como mostra o trecho da obra: “– Quem
manda nesta terra, hein, mestre José Amaro? [...] – Mando eu, hein, mestre José
Amaro? ” (REGO, 2010, p. 174). Seu Lula proíbe até a filha de se casar: “Então, seu
Lula pôde olhar para sua filha como uma propriedade sua; que ninguém tocaria.”
(REGO, 2010, p. 256).
Como exemplo de estrutura estamental temos o coronel José Paulino, que é
um senhor respeitado. Não só por sua família e empregados, mas por todo o povo da
várzea. Resolvia questões para os outros senhores, chegando a comprar um engenho
para encerrar uma contenda entre seu vizinho Lula e um homem que viera da
caatinga. O homem comprara uma terra próxima às de Lula e fazia questão por um
limite de terra marcado de forma errada. Como mostra o trecho: “O coronel José
Paulino do Santa Rosa montou a cavalo e foi ao Engenho Velho. E de lá voltou com
a questão morta. (REGO, 2010, p. 245).
23
A dominação tradicional, em particular a estrutura patriarcal, é nosso objetivo
nessa pesquisa porque este é o motivo de vários questionamentos que abordaremos
mais adiante com a perspectiva feminina acerca do assunto.
Azevedo (2017), utilizando as concepções de Weber (2009), explica que a
dominação patriarcal é caracterizada como comunitária, tendo:
[...] um senhor que ordena, súditos que obedecem e servidores que
formam um quadro administrativo. Os súditos obedecem o senhor que
tem poder santificado pela tradiço (sic), por fidelidade. [...]. A
dominação patriarcal do pai de família, chefe da parentela ou
soberano, é o tipo mais puro de dominação tradicional, a fidelidade ao
patriarca é passada através da educação, hábito na infância em
relação à criança com o chefe de família. (AZEVEDO, 2017, p. 14).
Por muito tempo, teóricos da democracia liberal apropriaram-se do conceito de
patriarcado que atribui, ao pai, todo o comando da família, relacionando-o à
monarquia, para negar sua existência nas sociedades modernas.
Azevedo, influenciada pelos estudos de Pateman (1993), afirma que “[...], o
feminismo organizado no final dos anos 1960 colocou o conceito de volta ao uso
popular e acadêmico, proporcionando diversas interpretações dentro da área de
estudos feministas.” (AZEVEDO, 2017, p. 12). Constata-se que as concepções liberais
dos contratualistas, de que o patriarcado foi superado pelas sociedades modernas,
mascara uma dominação masculina nas sociedades contemporâneas.
Sendo assim, podemos afirmar que o patriarcado predominou por muito tempo
e ainda perdura em muitas culturas. Mesmo nos dias atuais, encontramos
características do patriarcado na nossa sociedade, tanto nos modelos familiares,
quanto no discurso preconceituoso de algumas pessoas.
2.1 DISCUSSÃO ACERCA DO TEMA: “A PRESENÇA DE CASSANDRA” DE
HELOÍSA TOLLER GOMES
Para Gomes (1981), a mulher em Fogo Morto surge como a que sofre as ações
desencadeadas pelos homens. Ela não tem força de comando, sendo comparada ao
negro e ao branco pobre. Fica acima do negro e abaixo do branco pobre porque este
consegue fazer ouvir sua voz. Portanto:
24
A mulher submete-se social, econômica e moralmente às exigências
de uma sociedade em que prevalecem os valores masculinos. Mas,
não estando diretamente envolvida em problemas de competição e de
classe, cuja resolução é delegada ao homem, a mulher se permite
pensar. (GOMES, 1981, p. 415).
O pensamento da mulher é uma característica marcante em Fogo Morto mas
suas ações também merecem destaque. Isto pode ser percebido no trecho: “[...] a
velha Mariquinha preferira ser o homem da família.” (REGO, 2010, p. 220). Dona
Mariquinha, esposa do capitão Tomaz, assume o Santa Fé quando o marido
esmorece depois da volta da caçada mal sucedida no interior da Paraíba e dos
desaforos que sofreu por lá.
Quando Gomes (1981) se refere à situação da mulher em Fogo Morto, ela
afirma que esta é primordialmente passiva e impotente, independentemente da
posição que ocupe no corpo social. E que seu mundo se encerra em sua própria casa
e, mesmo ali, não tinha domínio algum. A autora cita duas falas de Mestre José Amaro,
mostrando poder sobre sua casa e sua esposa. Mas, se analisarmos com atenção os
trechos mencionados pela autora, percebemos que o Mestre José Amaro só estava
tentando se redimir da afronta da esposa que o desmoraliza diante da visita: “– Cala
a boca Zeca!” (REGO, 2007, p. 35). “– Nesta casa mando eu. [...]. Isto é casa de
homem.” (REGO, 2007, p. 36). Detalharemos, no próximo capítulo, esse diálogo entre
Mestre Amaro e sua esposa.
A análise da mulher em Fogo Morto feita por Gomes (1981) continua
desalinhada ao que acontece na narrativa. A pesquisadora afirma que a mulher “[...]
é freqüentemente (sic) mostrada do ponto de vista masculino, sendo, além disso, o
homem quem determina seu destino e sua posição no corpo social.” (GOMES, 1981,
p. 416).
Quando a autora diz que o homem é quem determina o destino da mulher,
quebra com o que mostra o próprio enredo, pois as três mulheres escolhem o seu
próprio destino: Dona Sinhá decide ir embora e deixar seu marido sozinho à mercê
das desgraças que o cercavam e da doença que o consumia, como mostra o trecho
da obra: “– Compadre, a comadre se foi. Fiz tudo para ela não fazer aquela besteira.
Mas estava com determinação.” (REGO, 2007, p. 371); dona Amélia temia ao marido,
mas decidiu tomar decisões às escondias para manter o engenho ativo. “E pelas suas
mãos começavam a passar as contas dos trabalhadores. Eram férias pequenas de
25
eitos de cinco homens. Mas, mesmo assim, o engenho moía.” (REGO, 2007, p. 267);
e dona Adriana que também é exemplo de mulher que faz o próprio destino. Mas
diferente de Sinhá, esta deixa de ir com seu filho para o Rio de Janeiro para ficar com
seu marido: “Não, ela imaginara em abandonar o marido, e deixá-lo sozinho para que
ele sofresse sem amparo, sem um coração amigo que velasse por ele. Quisera
abandonar o pobre Vitorino.” (REGO 2007, p. 369).
A autora utiliza uma passagem de Fogo Morto para se referir às limitações da
mulher que não se enquadra a esta situação. Ela utiliza a seguinte passagem que se
refere a dona Olívia: “[...] sem parar, da sala de visitas para a cozinha [...].” (REGO
2007, p. 70), como consequência da opressão sofrida pela mulher que se limita a ficar
dentro de sua casa. A mulher, na obra, mantém um certo afastamento do mundo que
a cerca. Principalmente as que moram na casa grande dos engenhos, mas o fato de
Olívia andar de um lado para o outro da casa, da sala de visitas para a cozinha, é
consequência da loucura, doença que acometera-a na adolescência e, daí em diante,
tinha essa mania de andar de um lado para o outro.
Gomes (1981) refere-se à loucura na obra como “[...], a mais grave denúncia
da repressão feminina [...]” (GOMES, 1981, p. 421), pois, Olívia e Marta são
personagens que não conseguem lidar com o que lhes é imposto.
Olívia não consegue se adaptar às rígidas normas da escola em Recife e a
distância de onde foi criada. E Marta enlouquece devido à brutalidade como seu pai a
trata e, possivelmente, por não ter casamento à vista, pois era o destino reservado às
moças no patriarcado. Esta opressão pode ser percebida no monólogo interior de
Sinhá, mãe de Marta:
Pobre de Marta que o pai não podia ver que não viesse com palavras
de magoar até as pedras. Por ela não, que era um resto de gente só
esperando a hora da morte. Mas não podia se conformar com a sorte
de sua filha. O que teria ela de menos que as outras? (REGO, 2007,
p. 81).
Gomes (1981) assemelha as mulheres de Fogo Morto a “fantasmas”. Esta
referência, mesmo sendo perfeitamente cabível, só se enquadra às mulheres do
engenho Santa Fé. Como podemos perceber nas seguintes passagens do livro que
são as mesmas citadas por Gomes: Olívia “era aquele fantasma vivo, de olhos
mortiços, a andar de um lado para o outro, numa ânsia que não parava.” (REGO 2007,
p. 217, grifo nosso); “D. Amélia com os trancelins, com os dedos cheios de anéis,
26
andava dura como um fantasma.” (REGO 2007, p. 230, grifo nosso); e Neném ficava
de lado “[...] indiferente à alegria das quadrilhas, como um fantasma, branca, de olhos
fundos, de cabelos penteados como velha.” (REGO 2007, p. 261, grifo nosso).
27
3 MULHERES DE FOGO MORTO: A REALIDADE POR TRÁS DO SILÊNCIO
Em um mundo em que os coronéis ainda exerciam grande poder sobre a
sociedade e o patriarcado era evidente, dar destaque a uma personagem feminina era
quase impensável. Mas José Lins, ao retratar a história trágica de três personagens
masculinas, nos possibilita enxergar um mundo além destes seres, por meio da visão
de suas esposas.
Estas três mulheres, dona Sinhá, dona Amélia e dona Adriana, personagens
secundárias e “submissas” aos comandos dos seus maridos, chamam nossa atenção
pelo seu silêncio denunciador e por assumirem as rédeas da situação quando seus
cônjuges já não mais conseguem.
A ideia do patriarcado, de que as mulheres, filhos e escravos eram como bens
dos quais o chefe da família poderia dispor sempre que achasse necessário, vai
perdendo sua força na narrativa com a abolição dos escravos, com a decepção com
o futuro dos filhos que não atingiram suas expectativas e com suas esposas, de forma
sutil e despretensiosa, representando o papel de chefes da família.
O pensamento foi o meio encontrado pela mulher como escapatória para a
opressão vivida por elas. Em seus monólogos interiores, elas conseguem desabafar
suas mágoas e suas frustrações sem que sofram nenhum tipo de censura.
3.1 DONA SINHÁ
Em Fogo Morto, Sinhá, esposa do mestre José Amaro, surge como uma mulher
cansada de sua vida e de como seu marido trata a filha Marta. Esta já passava da
idade de casar mas o fato de não haver pretendentes perturbava sua mãe, como pôde
ser percebido no trecho: “E não havia rapaz que parasse para puxar uma conversa.
Havia moças mais feias, mais sem jeito, casadas desde que se puseram em ponto de
casamento.” (REGO, 2010, p. 82).
O fato da filha não ter se casado também afeta o mestre Amaro, que martelando
sua sola lastima seu futuro e, ao vê-la passar com uma panela na cabeça para o
chiqueiro dos porcos, sacudiu o martelo e pensou com ódio: “uma filha solteira, sem
casamento em vista, sem noivo, sem vida de gente.” (REGO, 2010, p. 48).
28
Sinhá era uma mulher simples e vivia em sua casa, cuidando dos afazeres
domésticos e de suas criações de galinhas e de porcos. Tudo que seu marido falava
a incomodava, principalmente quando era direcionado à filha. Sentia-se presa a um
mundo que não a agradava. Não tinha com quem desabafar a não ser com sua
comadre Adriana, que às vezes lhe fazia uma visita, como podemos perceber nesse
trecho do romance: “Fora-se a sua amiga Adriana. Só a ela confiava as mágoas que
lhe enchiam o coração.” (REGO, 2010, p. 147). A forma encontrada por esta
personagem para desabafar, assim como pelas outras personagens que trataremos a
seguir, foi por meio dos monólogos interiores, como já foi mencionado anteriormente.
Com seu marido ela só conversava utilizando frases curtas e normalmente
grosseiras, demonstrando sua falta de respeito e a pouca aproximação que tinha com
ele. Nos trechos: “– Cala a boca, Zeca! A gente não está aqui para ouvir besteira.”
(REGO, 2010, p. 35); “– Deixa a menina, Zeca. Vai bater sola.” (REGO, 2010, p. 37);
“– Cala a tua boca, homem infeliz, cala a tua boca. Deixa a desgraçada da tua filha
sofrer quieta.” (REGO, 2010, p. 43). Vemos mais um exemplo da decadência do
patriarcado.
Seu marido percebia sua falta de comando com a sua esposa e precisava
mostrar às pessoas, que frequentavam a sua casa ou que ali passavam e paravam
para cumprimenta-lo, que quem mandava na casa era ele, como podemos perceber
nesse excerto: “– Nesta casa mando eu. Quem bate sola o dia inteiro, quem está
amarelo de cheirar sola, de amansar couro cru? Falo o que quero, seu Laurentino.
Isto aqui não é casa de Vitorino Papa-Rabo. Isto é casa de homem.” (REGO, 2010, p.
36). No entanto, o mestre tem de ouvir de Lula, dono do Santa Fé, o mesmo que o
mestre dizia à esposa. Entre Amaro e Lula, a diferença era de classe.
3.2 DONA AMÉLIA
Dona Amélia, esposa do coronel Lula, era submissa ao marido e aos seus
desmandos. Estudou em Recife, sabia tocar piano e falar francês, mas nada do que
estudou lhe servia. Pois, após a morte de sua mãe, dona Mariquinha, teve que assumir
seu lugar nos serviços da casa.
Dona Mariquinha também representa uma figura guerreira, pois chegou com
seu marido vindos do Ingá do Bacamarte para construir uma nova vida com a herança
29
que seu marido recebeu após a morte de seu pai. Já tinha suas filhas e trabalhou
arduamente para ajudar seu marido a construir o engenho Santa Fé. Batalhadora e
forte, continuou firme quando seu marido caiu em desânimo após a notícia da doença
de sua filha mais nova, Olívia, que precisou voltar do Recife onde estudava como
podemos perceber no trecho: Mas “Mariquinha não se entregava ao desânimo. Via-a
na cozinha, ao fuso de fiar, mandando nas negras com a mesma força de
antigamente.” (REGO, 2010, p. 201).
O desânimo do capitão Tomaz só aumentava. Principalmente quando um negro
chamado Domingos fugiu levando dois de seus cavalos de cela. O acontecido feriu a
honra do capitão principalmente porque não conseguiu recuperá-los, deixando-o sem
forças para cuidar dos seus afazeres e de comandar seus empregados. Dona
Mariquinha, vendo que seu marido não tinha mais forças para o trabalho e seu genro
vivia naquela preguiça sem fim, comandava os feitores e mandava nos escravos,
como mostra o narrador no trecho abaixo:
Via que o genro não seria homem para botar as coisas pra frente.
Então d. Mariquinha do Santa Fé resolveu dar as ordens no seu
engenho. Custara-lhe muito tomar aquela decisão. Era urgente. Ela
bem vira no decorrer da safra que o genro não acudia às necessidades
do engenho. [...]. E assim tudo passou a depender das ordens de d.
Mariquinha. Era a senhora de engenho que vendia o açúcar aos
cargueiros de Itabaiana. [...]. Ali em casa olhava para tudo, ordenava
tudo. Os negros vinham lhe tomar a bênção de manhã e de noite. O
feitor chegava-se para pedir ordens. (REGO, 2010, p. 219-220).
Dona Mariquinha não se encaixa no perfil de mulher sem voz, como d. Sinhá,
d. Amélia e d. Adriana, que se apresentam como submissas diante dos maridos mas
por trás, cada uma a sua maneira, enfrentam a autoridade que as perseguem e tomam
suas próprias decisões. Ela não. Tinha o poder nas mãos. Enfrentava seu genro sem
medo mesmo sabendo o que aquilo poderia lhe custar, como mostra o narrador na
passagem citada anteriormente.
Quando seu marido morreu, houve um grande conflito com Seu Lula, que agora
passou a se chamar Capitão Lula. Este fez exigências no inventário. Mas a senhora
de engenho não cedeu. Continuou no comando do engenho como afirma o trecho:
O juiz não lhe deu direito nenhum. D. Mariquinha faria o que quisesse
para o dr. Gouveia. O velho magistrado dava as suas sentenças
conforme o seu direito. Nada de genros roubando sogras. Lá em sua
30
casa estivera seu Lula. O juiz disse-lhe o diabo. Ali na Ribeira não era
lugar para caça-dotes. (REGO, 2010, p. 225).
A expressão caça-dotes, utilizada pelo juiz, cai como uma luva para o capitão
Lula pois, as vezes que se mostrou interessado em algo na narrativa, foi quando o
negro Domingos fugiu levando dois cavalos de cela e quando sentiu que podia pôr as
mãos no ouro de Dona Mariquinha.
Amélia era uma mulher sem fibra, fazia tudo que seu marido queria e não tinha
coragem de enfrentá-lo para defender sua mãe que morre depois de um grande
desgosto. Mariquinha sofreu muito nas mãos do genro, que não lhe permitia cuidar da
neta. Amélia condena a mãe em seus pensamentos, como mostra o trecho: “O seu
marido não era assim como a sua mãe dizia. Era nervoso, era uma injustiça contra
Lula.” (REGO, 2010, p. 227). E dois dias depois de uma discussão com o coronel Lula,
sua mãe morre em seu quarto com o médico na cabeceira de sua cama.
Mesmo depois da morte de sua mãe, Amélia não percebeu a realidade que a
cercava: Um marido ocioso, grosso, que cultuava a filha com uma princesa; um
engenho aos pedaços quase sem forças para continuar rastejando e uma escravatura
cansada dos desmandos do feitor mandado pelo seu marido. Vivia como uma
verdadeira senhora de família patriarcal. Alheia à realidade que a cercava como pode
ser percebido na seguinte passagem:
O que haveria contra Lula para aquela hostilidade? Seria que fosse
inveja? Lula era homem de sua casa, de certo trato, de orgulho que
ela não apoiava. Era o orgulho do marido. Havia nele uma maneira de
sentir as coisas que talvez desgostasse a gente do Pilar. (REGO,
2010, p. 233).
A sua falta de contato com o mundo fez d. Amélia se tornar uma pessoa com
pouco conhecimento do mundo que a cercava e não perceber os exageros cometidos
por seu marido contra os escravos que agora livres espalhavam aos quatro ventos os
desmandos que sofriam.
Com o passar dos anos, Amélia começa a enxergar o que está a sua volta e,
principalmente, a verdadeira face de seu marido. Após seu segundo parto, quando
deu à luz a uma criança com problemas e não poderia mais ter filhos, começou a
sofrer com o desprezo de Lula que não a via mais como mulher. Lula só tinha olhos
para sua filha Neném. “Lula era para ela, ali dentro da casa, como se fosse um
31
estranho. Há muito que ela não existia para ele. Em relação a ela, não era nada.”
(REGO, 2010, p. 266).
Seu Lula começa a mostrar traços de loucura quando acha que sua filha estava
arquitetando um plano, junto com sua mãe, para fugir com um pretendente, como
mostra a passagem do romance: “Acertou bem o ouvido e na calçada do alpendre
batiam cascos de cavalos. De repente lhe veio à cabeça a ideia de um rapto.” (REGO,
2010, p. 258), o qual não era do agrado de seu pai. “– Namorar com um camumbembe,
uma filha minha na boca da canalha do Pilar. Isto eu não permito, Amélia. Amélia,
venha cá com esta menina.” (REGO, 2010, p. 251).
Outra característica marcante do patriarcado pode ser percebida nessa
passagem, pois, no patriarcado, era o chefe da família quem escolhia o marido para
suas filhas, e não aceitava que fosse de uma classe inferior a sua.
A família fazia de tudo para manter a dignidade e a aparência de senhores de
engenho e, enquanto isso, as safras minguavam. O narrador heterodiegético conta a
situação em que se encontra a família pela perspectiva de dona Amélia, que por meio
de um extenso monólogo interno, muito característico desta obra, mostra a situação
em que a família se encontrava:
Tudo era agora aquela mansidão, a pobreza de uma casa-grande que
se escondia das vistas dos outros. Sim, todos ali viviam a se esconder
dos ricos e dos pobres. [...]. Lula era como se não soubesse das
dificuldades por que passavam. Só ela tinha os olhos para ver o Santa
Fé como estava, na petição de miséria em que vivia. (REGO, 2010, p.
266-267).
Dona Amélia, agora bem mais velha, consegue enxergar a situação em que se
encontrava. Ela não era mulher de enfrentar marido nem de se tornar chefe de nada.
Mas precisava impedir que sua família passasse necessidade. E foi por meio de suas
galinhas, que sempre gostara de tomar conta, que conseguiu este auxílio. “Se não
fosse as suas galinhas, não teria recursos para, no inverno, mandar o boleeiro Macário
fazer a feira no Pilar”. (REGO, 2010, p. 267-268).
3.3 DONA ADRIANA
32
Dona Adriana, esposa de capitão Vitorino, viera do sertão junto com sua família
para escapar da seca como o narrador mostra no trecho a seguir: “Quando fora em
1877, a velha Adriana chegara, moça feita, com seu povo morrendo de fome, no Santa
Fé [...]” (REGO, 2010, p. 69). E chegando na várzea, casa-se com Vitorino como forma
de fixar raízes ali.
O dilema de dona Adriana era conviver com os desatinos de seu marido, pois
Vitorino era um homem que não tinha emprego e vivia em cima de uma burra, de um
lado para o outro, como se fosse um cavaleiro errante a procura de aventura. Mas,
por onde ele passava, os moleques apelidavam-no de “Papa-rabo” e isto fazia o velho
Vitorino os descompor.
Para Sousa (2011, p. 47), “Vitorino Carneiro da Cunha, figura central da
Terceira Parte é, ao contrário do mestre, talhado para a luta aberta. Ao invés do
recolhimento consigo mesmo, prefere o movimento, a ação.” E é por este motivo que
Vitorino vive a procura de se meter em conflitos dos outros. Tenta solucionar qualquer
problema que esteja em seu caminho. Pois, ele “acredita na lei, no voto, no habeas
corpus, mas, acima de tudo, acredita em si.” (SOUSA, 2011, p. 57, grifo do autor).
Sua esposa sofre com a vida que o marido leva, enfrentando os grandes sem
ter medo das consequências e lamenta que o filho não esteja lá para proteger o pai
como pode ser percebido no trecho:
Enxugou os olhos e foi para a cozinha preparar o café. Gemia o seu
pobre Vitorino. Se Luís estivesse ali, o pai não sofreria uma desfeita
daquela. Desejou que o filho aparecesse no Pilar, fardado, forte e
fechasse a rua como um furacão. Desejou que ele vingasse o sangue
de Vitorino, do pai ofendido, batido como um cachorro. (REGO, 2010,
p. 80).
Luís, seu único filho, foi embora muito cedo para servir à Marinha. Mesmo
sendo seu filho único, ela lutou para tirá-lo dali, pois não queria que Luís crescesse
vendo aquele exemplo de pai que só lhe dava desgosto.
Quando seu filho voltou para visitá-los, dona Adriana pensou que ele se sentiria
envergonhado em ver como seu pai vivia. Mas, Luís demonstrava-se orgulhoso das
histórias que seu pai lhe contava. E até dona Adriana, no final da narrativa, depois da
prisão de Vitorino e da forma como o velho enfrentou o tenente, passou a enxergar a
grandeza de seu marido. “Pela primeira vez em sua vida, ela via a grandeza de
Vitorino Carneiro da Cunha.” (REGO, 2010, p. 369)
33
Devido às faltas de Vitorino como patriarca da família, dona Adriana precisava
trabalhar fora de casa para se sustentar. Ela trabalhava castrando frangos como uma
cirurgiã nos engenhos mais próximos como vemos na citação seguinte: “Ali estava ela
desde manhã, como uma cirurgiã que confiava no seu talho. Com ela não morria uma
cria. Tinha boa mão, tinha força de verdade para fazer as coisas.” (REGO, 2010, p.
68)
Devido ao seu trabalho e aos costumes da época Vitorino passou a ser
ridicularizado pelo povo por ser sustentado pela esposa, como pode ser percebido no
seguinte trecho: “Isto aqui não é casa de Vitorino Papa-Rabo. Isto é casa de homem.”
(REGO, 2010, p. 36), falava mestre José Amaro, para o pintor Laurentino, após ter
sido afrontado pela sua esposa que lhe mandou calar a boca. Nessa perspectiva,
podemos destacar a descrença na figura de Vitorino, pois percebe-se a inversão do
papel social do homem a partir do momento em que a mulher passa a ser a provedora
do lar.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de todas as observações feitas no livro Fogo Morto, percebemos que a
riqueza desta obra não se encontra apenas na complexidade de suas personagens,
mas também na forma como foram organizados seus elementos estruturais.
Principalmente o narrador que, se apropriando da onisciência seletiva múltipla e de
monólogos interiores, humaniza suas personagens.
As mulheres foram as personagens que mais tiveram a ganhar com os
monólogos interiores, pois se não fosse por estes monólogos, elas não teriam tanto
destaque no romance e não chamariam a nossa atenção. Além disso, é por meio das
personagens femininas que passamos a entender melhor a decadência do Mestre
José Amaro, de seu Lula e do capitão Vitorino.
Diante dos textos nos quais nos amparamos, a fim de realizarmos a análise das
personagens femininas da obra de José Lins do Rego, percebemos que Fogo Morto
é uma obra que recebeu diversas críticas positivas, tanto relativas à sua estrutura
quanto ao conteúdo.
Em se tratando de um romance regional e regionalista, Fogo Morto, assim como
tantos outros que fixam as características nordestinas na literatura brasileira,
apresenta-se com riquezas de detalhes, dando espaço para, além das personagens
principais, para suas mulheres que são personagens secundárias.
Vale ressaltar, também, que as considerações sobre as personagens femininas
da obra de José Lins do Rego, feitas neste estudo, não são conclusivas, e esperamos
que, a partir deste, possam surgir outros interesses para novas pesquisas, visto que,
assim como acontece com outras obras literárias desse porte, ainda há muito a ser
exposto, em termos de debate, sobre o romance Fogo Morto.
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REFERÊNCIAS
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teóricas das ciências sociais: uma contribuição feminista. Revista três [...] pontos.
UFMG, ISSN: 1808-169X e-ISSN: 2525-4693 Belo Horizonte: 2017
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Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3791, 17 nov. 2013.
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Ed. Ática, 1988.
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Janeiro: Ed. DIFEL, 2002.
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