Oliveira Corrigida
Oliveira Corrigida
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
São Paulo
2021
Versão corrigida
São Paulo
2021
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO,
PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogação na publicação
Biblioteca Dante Moreira Leite
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Dados fornecidos pelo(a) autor(a)
de Oliveira, Marcella
Violência contra as mulheres: reflexões sob o viés da psicanálise de Freud e
Lacan / Marcella de Oliveira; orientador Léia Priszkulnik . -- São Paulo, 2021.
217 f.
Tese (Doutorado - Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica) -- Instituto
de Psicologia, Universidade de São Paulo, 2021.
Banca Examinadora
AGRADECIMENTOS
Ao meu primeiro amor, Marcelo Andrade Camargo (em memória); pela introdução no
universo da parceria amorosa com as marcas de liberdade, igualdade e, principalmente,
alegria;
Aos amigos, tão fundamentais para o suporte psíquico e emocional de conseguir levar adiante
um trabalho tão árduo, em especial aos queridos que dividem a vida comigo há tantos anos,
Esdras e Paloma;
À Plataforma Brasil e seus responsáveis, pela autorização da pesquisa de campo;
A delegada Vânia Idalera Zacaro de Oliveira, pela autorização da pesquisa na Delegacia de
Defesa da Mulher (DDM) de sua então responsabilidade na época, bem como pelo
acolhimento;
A policial Josina, quem me acolhia em minha rotina na DDM, a quem eu sempre dizia que
sem ela eu não teria conseguido;
A todas as mulheres que me concederam entrevista na DDM, pela disponibilidade, pela
confiança e por terem me proporcionado profunda sensibilização e aprendizado sobre o tema.
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RESUMO
ABSTRACT
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................10
2 METODOLOGIA ..............................................................................................14
3 HISTÓRIA, RESISTÊNCIA E LUTA ..............................................................19
3.1 História das mulheres no ocidente: recortes................................................ 19
3.2 História das mulheres no Brasil: recortes ....................................................36
4 FIGURAS DE MULHERES E A RESISTÊNCIA ...........................................51
4.1 As indígenas no Brasil .................................................................................51
4.2 As feministas e o poder.................................................................................62
4.2.1 A caça às bruxas ............................................................................62
4.2.2 O feminismo após a revolução francesa ........................................66
4.3 Mulheres na ciência ......................................................................................75
4.4 As psicanalistas .............................................................................................78
5 A PSICANÁLISE NO ÂMBITO PÚBLICO DA VIOLÊNCIA CONTRA AS
MULHERES....................................................................................................................86
5.1 A psicanálise em políticas públicas para violência contra as mulheres.........86
5.1.1 A psicanálise, o público e o político ...............................................89
5.1.2 Um recorte da história da violência contra as mulheres no
Brasil em âmbito público ................................................................................................90
5.1.3 A sexualidade na psicanálise e suas facetas de poder .....................92
5.2 Violência contra as mulheres nas mídias digitais...........................................96
5.2.1 O corpo, sua imagem, e repercussões nas mídias digitais ..............100
6 O FEMININO N A PSICANÁLISE DE FREUD E LACAN..............................107
6.1 Freud, Lacan e as mulheres...........................................................................107
6.2 O feminino na teorização freudiana..............................................................112
6.3 Preceitos para a teorização sobre o feminino em Lacan .............................123
6.3.1 A tábua da sexuação e os modos de gozo masculino e feminino ...123
6.3.2 O feminino e a sociedade: o ódio ao feminino ...............................130
6.3.3 A devastação ...................................................................................133
6.3.4 O parceiro sintoma e o amor ...........................................................137
6.3.5 A despersonalização ........................................................................139
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1 – INTRODUÇÃO
sofrimento advindo da condição pobre. Em meio a uma vida marcada pela fome, pela perda
de filhos e muita violência doméstica, Elza foca na carreira musical, tendo obtido sucesso
internacional. Uma de suas canções, “Maria da Vila Matilde”, de 2015, é um claro chamado
ao movimento de resistência para com a violência contra as mulheres, e ela foi indicada ao
Grammy Latino de melhor canção brasileira.
No Brasil não foram só mulheres como Dandara e Elza o símbolo da resistência das
mulheres. Homens também já fizeram este papel e compraram esta luta em movimentos de
repercussão nacional como o movimento antropofágico do século XX e década de vinte,
vinculado ao campo da arte, com objetivo de resgate da cultura nacional. Oswald de Andrade,
seu principal expoente junto a Tarsila do Amaral, ao opor o patriarcado ao matriarcado, vai
denunciar a manipulação social para manter a mulher fora da prática política; machista e
misógina (Botrel, Brisset, Castro, & Matos, 2018). O que estava em jogo nesta denúncia do
patriarcado não era a troca do pai pela mãe; mas sim que a diferença, inscrita pela mulher,
possa estar dentro do jogo com papel tão fundamental quanto a virilidade mais padronizada
colocada pelos homens.
As mulheres são, todos os dias, discriminadas e exploradas em diversos países. Alguns
deles são considerados os piores países para se nascer mulher, como o Congo na África, onde
1095 mulheres são estupradas todos os dias. Algumas são mortas pelas milícias enquanto
outras são capturadas para serem escravas sexuais ou das tarefas domésticas (Spotniks, 2015).
O Brasil, por exemplo, em 2019, obteve um registro de 1314 casos de feminicídios,
em número absoluto, o que significa uma média de uma mulher sendo morta a cada sete horas
neste país, cujo motivo da morte está diretamente relacionado ao fato de ser mulher; ser
mulher para um homem, quem lhe matou. Foi um aumento de 7,3% em relação ao ano de
2018; em contramão ao número de assassinatos que sofreu grande queda de 19% de 2018 para
2019. Estes dados são de um levantamento feito pelo Monitor da Violência: uma parceria
entre a Globo Comunicação e Participações SA (G1), o Núcleo de Estudos da Violência da
Universidade de São Paulo (NEV-USP), e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (G1,
2020). As maiores taxas de feminicídios brasileiros estão no Acre, em Alagoas, no Mato
Grosso, Mato Grosso do Sul e no Distrito Federal; sendo os dois primeiros estados os
campeões em feminicídios. As menores taxas estão em São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará e
Rondônia. São crimes que não tem relação com a criminalidade urbana; crimes domésticos,
que em maioria acontecem na casa da vítima. Em 2018 foram registrados 66 mil casos de
estupro.
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2 – METODOLOGIA
entre o verdadeiro e o falso, aquela busca uma verdade surgida a partir de uma relação de
confiança. A partir de um encontro podem surgir verdades acerca de uma subjetividade que
sofre, e este encontro proporciona alívio para o sofrimento na medida em que constrói
verdades, traz à tona aspectos até então encobertos, sobre o sujeito que fala de si. Esta
concepção de verdade é traduzida por emunah em habraico, que diz que algo novo nascerá a
partir de uma relação. É uma verdade voltada para o futuro, para como as coisas serão a partir
de uma aliança construída (Turato, 2003). Pode-se dizer que esta verdade associada à
confiança torna possível a produção de efeitos de realidade. Aqui a verdade como
desvelamento, oposto do falso, traduzida por alethéia em grego, tem uma conotação de uma
verdade acerca da subjetividade, a qual se revela pela via do retorno do recalcado; contudo,
não se coloca exatamente em oposição ao falso, mas em oposição ao obscuro, que não foi
possível de ser desvelado.
De acordo com Safra (2001), o rigor na investigação em psicanálise é comprovado
pela fidelidade do pesquisador em relação aos princípios analíticos. Desta forma, a psicanálise
traz para a universidade outra forma de fazer pesquisa, na qual o rigor está na fidedignidade a
um paradigma epistemológico.
O advento da psicanálise como prática de pesquisa traz a quebra do paradigma
científico que situa o sujeito pesquisador e seu objeto como entes exclusivamente separados.
Um marco claro desta nova na forma de pensar a ciência, sem a dicotomia entre sujeito e
objeto é o texto Sobre o narcisismo: uma introdução, do próprio Freud (1914b/2006),
momento no qual ele conclui que a separação entre o sujeito e o outro com quem ele está em
relação é muito mais porosa do que pode parecer.
A compreensão de que o sujeito que aqui se trata é o sujeito do inconsciente é
fundamental para se pensar a pesquisa em psicanálise. Galimberti (2006) reflete sobre a
psichê humana ao diferenciar o modo de funcionamento entre o homem e o animal. Ele diz
que enquanto o animal se adapta ao meio em que vive, ainda que sob condições extremamente
adversas, o ser humano “se relaciona com o meio ambiente para transcendê-lo” (Galimberti,
2006, p. 90). Nesta relação, algo da ordem de um acontecimento é inerente à constituição do
sujeito do inconsciente, tal como traz Foucault (1979) ao elucidar a concepção de
acontecimento. Nesta medida, o acontecimento delimita novos circuitos energéticos, ou
circuitos pulsionais. Freud (1915/2006) esclarece que a energia que emana do sujeito para se
comunicar com o mundo externo é a pulsão, a qual é oriunda do id e tem por principais
características ser parcial e constante. A parcialidade se revela no modo como a fonte
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Uma vez que a violência contra a mulher aqui é vista como fruto da discriminação, é
necessário investigar a origem desta visão inferiorizada da mulher. O ocidente foi tido como
recorte metodológico para fins de delimitação de campo de pesquisa teórico. Por se tratar de
algo existente desde tempos remotos e extremamente recorrente no ocidente (nosso recorte), a
discriminação da mulher pode ser pensada como algo inerente à cultura; algo que vai além de
um fenômeno social: é estruturante.
Faz-se necessário trazer dados de como a história escreve sobre as mulheres no
ocidente nos países considerados os berços da civilização. É preciso ir além de conversas
especulativas e consultar material cientifico como registros de livros e artigos sobre povos que
ajudaram a estabelecer alicerces culturais, políticos, artísticos, filosóficos e científicos; sobre
os quais se baseia boa parte da civilização ocidental.
Kehl (2008), apoiada na linguística de Saussure, define a linguagem como a estrutura
genérica que comporta todas as línguas. A língua, por sua vez, é definida como a herança
simbólica, herdada no nascimento de forma imposta; pois não implica numa escolha, sendo,
portanto, uma forma rigorosa de manifestação da lei. Como seres de linguagem, é pela fala
que o ser humano constrói e inscreve a sua história, cuja escrita será lida posteriormente com
fins de compreensão e embasamento de fenômenos. A história das mulheres é marcada muito
menos pela sua fala do que pelo que delas falam. Nascer mulher, em uma cultura, ou numa
outra, implica herdar uma língua, para além da língua do código alfabético: a língua através
da qual se inscreve o ser mulher. Os deslocamentos políticos e sociais sofridos ao longo da
história trazem os contextos dentro dos quais ocorrem os deslocamentos de pensamentos e
estruturações subjetivas acerca das mulheres.
A começar pela Grécia, temos uma visão maravilhada e incoerente das mulheres. O
conto de Sófocles (2017) ilustra:
Creonte: E tu, tu que baixas a cabeça,
admites ou negas que procedeste assim?
Antígona: Admito, não nego nada.
Creonte: Tu, podes retirar-te para onde queres,
De acusações condenatórias estás livre.
E tu, declara sem rodeios, sinteticamente.
Sabias que eu tinha proibido essa cerimônia?
Antígona: Sabia. Como poderia ignorá-lo? Falaste abertamente.
....
Creonte: Esta já se mostrou insolente
Ao transgredir as leis estabelecidas.
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escolher o seu marido. Uma vez casada, cabia à mulher obedecer às ordens do marido, ele a
orientava sobre os cuidados com o lar. Ela não tinha autonomia para nada, era submissa ao
extremo, inclusive à função de procriar: dar filhos ao marido. Estes filhos iriam garantir o
patrimônio da família e dariam continuidade à ordem cívica. Não existia relação afetuosa
entre o casal de pais.
De acordo com Boheringer & Caciagli (2015), na antiguidade grega não havia
distinção entre os gêneros, mas sim divisão entre aqueles que eram livres e aqueles que não
eram; entre os que podiam dispor do próprio corpo e os que o próprio corpo pertencia a um
mestre. As identidades “homem” e “mulher” apenas existiam sob o estatuto social. Os
critérios que envolviam o desejo por um corpo não incluíam o sexo do mesmo. Enquanto os
homens casavam-se por volta dos trinta anos, as mulheres por volta dos dezoito, já que os
atributos necessários ao matrimônio a estas e àqueles eram completamente diferentes: os deles
relacionados à posição social, enquanto os delas à maternidade e dedicação ao lar. Os autores
dizem ainda que tanto traições conjugais quanto relações sexuais com pessoas do mesmo
sexo, nesta sociedade, quando praticados por mulheres eram condenados e reprimidos com
muito mais força do que quando praticados por homens.
Não existia a concepção de vulnerabilidade na Grécia antiga, ou seja, não existia o
pensamento de que um indivíduo pode estar numa condição mais frágil do ponto de vista
social, condição mais propícia à desproteção, à desvalia. O casamento, que era arranjado pela
família, autorizava diversos comportamentos abusivos do homem perante a mulher, o que
hoje seria recriminado como estupro. A sedução era considerada um ataque grave por parte da
mulher, sendo ela aqui considerada culpada. A presença da sexualidade colocava a sedução
como um ato abominável, já que, desta forma, o sexo poderia servir para algo diferente do que
a reprodução.
Beauvoir (2016a) ressalta que a valorização da mulher na Grécia não passou de algo
utópico, pois não saiu do âmbito dos mitos; elas não foram para o homem o seu semelhante.
Enquanto Andrômaca e Hécuba têm uma aparição na literatura mundial de importância
exacerbada, a mulher grega de carne e osso permanece escondida à sombra do Gineceu.
Nos livros, a cultura Grega costuma ser descrita desta forma, estratificada, tendo as
mulheres um papel absolutamente secundário em todos os âmbitos: pessoais e de trabalho.
Contudo, em pesquisas feitas em sites podemos ver que a resistência sempre operou: nem
todas estavam dentro deste padrão de submissão e serventia. Aparecem mulheres encontrando
saídas diferentes para situarem-se em locais mais interessantes na sociedade. Por exemplo, as
heteras eram mulheres de Atenas que ofereciam prazeres intelectuais e sexuais aos homens.
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Elas queriam chamar atenção não só pela beleza, mas pelo gosto erudito que cultivavam para
conversar com os homens. Nesta época, era comum os homens buscarem relações
extraconjugais para preencher lacunas que as esposas comumente deixavam – ou
propositalmente, pois não era colocado em discurso o prazer sexual dentro do casamento.
Estes eram uniões arranjadas com fins de gerar filhos legítimos para a continuação do estado.
As heteras, por estarem fora das famílias consideradas legítimas, não poderiam gerar
filhos legítimos, tampouco casarem-se. Elas eram adeptas do amor livre, mulheres que
ofereciam envolvimento sexual, afetivo, intelectual; eram mais descoladas e podiam servir de
fonte de inspiração. Estavam envolvidas com homens ricos e podiam construir
relacionamentos relativamente estáveis. Em troca, recebiam presentes; e não pagamentos
como as prostitutas, as pórnai. Também há indícios de que trabalhavam no comércio, em
bordados, ou atividades de cuidado como babás. As heteras eram as mulheres livres da época.
Aspásia de Mileto, por exemplo, foi uma hetera que influenciou na vida política de Péricles,
um dos estadistas mais importantes (Urbinatti, 2019).
Na Roma antiga, o adultério, ainda que não saibamos se existia um termo para o
definir, era pensado, de acordo com Pacheco (1017), como uma relação sexual entre uma
mulher casada e um homem que não era o seu marido. O alvo da lei contra as relações
extraconjugais eram claramente as mulheres, já que a lei não incriminava a traição efetivada
pelo homem casado. Uma cultura ambígua, de uma moralidade imoral, que colocava o sexo
masculino acima da lei. Atos extremamente abusivos e repressivos eram praticados para com
mulheres romanas. Por exemplo, existiam as chamadas “virgens vestais”, que deveriam ser
virgens e cuidar do templo onde ficava a Deusa Vesta. Se seu voto de castidade não fosse
cumprido, eram assassinadas.
Já próximos da idade média temos, do outro lado do Mediterrâneo, no Egito, uma
mulher que se destacou por mérito próprio chamada Hipácia, quem, infelizmente foi acusada
de bruxaria e morta pela Santa Inquisição. Seu nome é citado como a única mulher cientista
da antiguidade medieval, até as primeiras centenas dos tempos modernos (Chassot, 2004).
Tratava-se de uma intelectual, professora carismática, influenciadora de pessoas. Vivia na
Alexandria, capital egípcia, centro da cultura grega da época. Tornou-se expoente do
pensamento filosófico neoplatônico. Suas realizações em literatura e ciência ultrapassaram
todos os teóricos da época. Contudo, isto era uma afronta de uma moça pagã, contra os
princípios religiosos severos de acordo com os quais as moças deveriam ter o saber sobre
cuidados com o lar, marido e filhos; nunca sobre a ciência.
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vista principalmente na exclusão que elas sofrem das vidas política e social-econômica. Os
dados foram pesquisados de forma qualitativa, tendo cada país uma ou mais marcas em
relação a tais fatores mencionados.
Partimos então para a França, a qual foi ocupada pelos romanos ainda no calendário
antes de Cristo, por volta do ano de número cem. Este país, que também apresenta registros de
civilizações muito precocemente desenvolvidas, aparece com seus principais registros
históricos nos primeiros mil e quinhentos anos depois de Cristo, marcados por um longo
período de absolutismo, no qual nos vale destacar que todos os reis eram homens. Eram
apenas eles que se envolviam nas decisões sobre os destinos da nação (Caro, 2012). Até que
em 1429 encontramos Joana D’Arc (1412-1431), pessoa que entrou para a história com sua
participação decisiva na vitória da França durante a Guerra dos Cem Anos, cujo
acontecimento fora na Idade Média, entre os anos de 1337 e 1453, com duração de 116 anos.
Joana apresenta o mesmo espírito de guerreira que Antígona, capaz de lutar por um
ideal mesmo que este lhe custe a própria vida. Mas Joana era pessoa, e não lenda; e ainda que
tenha sido reconhecida como presença decisiva na Guerra dos Cem Anos também foi
considerada bruxa, condenada à morte na fogueira por heresia.
Joana só foi autorizada a efetuar sua participação militante após ter sido interrogada e
ter sua virgindade comprovada mais de uma vez: tamanha era a desconfiança sobre esta
mulher, que dizia escutar vozes de que deveria salvar a França. Anos após ter sido morta, a
igreja reviu sua postura e reconsiderou como correta a atitude de Joana. Mas apenas no século
XX ela pôde ser beatificada e tornou-se a santa padroeira da França. Também é conhecida
como a Donzela de Orléans, cidade na qual venceu a batalha.
A França, país que assim como a Grécia representa o exercício do direito ao poder sob
uma aparente universalidade, traz a ideologia do sufrágio universal em 1792. Contudo, e para
nossa surpresa, ele só coube efetivamente à metade da população: as mulheres foram
marginalizadas. O direito ao voto a elas na França só veio em 1944, um dos últimos países da
Europa, embora algumas mulheres já estivessem reivindicando este direito desde a Revolução
Francesa (1789-1799).
O século XVIII, na França, também é marcado pelo pensamento e obra de Rousseau,
cujas ideias são de que as características de doçura, passividade e obediência da mulher lhe
eram destinadas a agradar ao homem para que ele, por conseguinte, fizesse um bom uso de
suas potências no governo da civilização. Era uma estratificação das relações que não ajudava
as mulheres que se identificavam com ideais de poder e autonomia. Ainda discriminava as
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mulheres como seres frágeis do ponto de vista intelectual e emocional, despreparadas para
cuidar da própria vida.
Além da já mencionada Joana D’Arc, outra figura feminina marcante na história da
França é Simone de Beauvoir (1908-1986), filósofa existencialista, socialista e ativista
política, que só foi denominar-se feminista no final de sua vida. Ela viveu em meados do
século XX, após a Revolução Francesa e o advento da razão, trazendo concepções de
igualdade econômica e política para as mulheres, com ênfase para a discriminação, desprezo e
exigência excessiva para com as mulheres.
Em 1949, Beauvoir (2016a, 2016b) traz um estudo minucioso sobre a mulher e sua
imagem social. Sua grande contribuição foi uma elucidação de que não há essência feminina,
e nem masculina: ser mulher ou ser homem são construções singulares, tecidas ao longo do
tempo, das relações humanas, dos encontros; ou seja, a existência precede a essência.
Mulheres e homens encontram a própria liberdade e com ela fazem uns para os outros as
possíveis versões de si mesmos.
Em sua grande obra, O segundo sexo (2016a, 2016b), ela realiza uma revisão histórica
sobre as mulheres desde a antiguidade, e ressalta que nem sempre a mulher foi vista como
submissa. No Egito antigo, de acordo com a autora, elas adquiriam mais prestigio tornando-se
esposas: sua condição social foi ali mais favorecida. A mulher surge como aliada e
complementar do homem: “sua magia é tão pouco hostil que o próprio medo do incesto é
vencido e que não se hesita em confundir a irmã com a esposa” (Beauvoir 2016a, p. 122).
Tratava-se de um país onde os direitos não eram tão desiguais na antiguidade, haja vista
Cleópatra, a polêmica rainha que conquistou generais em busca de suas ambições políticas já
antes de Cristo. Lá a mulher casava-se livremente, inclusive quando viúva. Embora os
homens praticassem a poligamia, a mulher legítima era apenas uma.
Contudo, a grande contribuição da autora foi ressaltar o que é escamoteado pela
sociedade; que é a visão da mulher como submissa ao homem, inferior a ele, desmerecedora,
e até repugnante em alguns momentos. Durante a Idade Média, por exemplo, era comum a
concepção do corpo da mulher como algo inferior e deplorável, capaz de propagar doenças.
Os leprosos, pessoas acometidas pela infecção de lepra ou hanseníase, eram vistos como
filhos dos homens que tiveram relação com mulheres no período da menstruação. Ou ainda,
mulheres menstruadas, ou que tiveram relações sexuais fogosas, por vezes, eram acusadas de
envenenar seus filhos na amamentação com leite estragado.
Já no século XX, a autora francesa se volta para questões relacionadas à cobrança da
mulher para com a maternidade. Não era discutido nem colocado em pauta como a tarefa da
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gravidez e as primeiras práticas maternas com o bebê são algo extremamente difícil e
desgastante para a mulher: sugam-lhe toda a energia, e não há o devido acolhimento à mulher
que passa por isso. A autora ressalta que o corpo da mulher perde cálcio durante o período
menstrual e gravidez, afetando o sistema nervoso. Isto é causa de emotividade e instabilidade.
Além de tudo isto ainda há uma enorme discriminação e preconceito com a mulher que opta
por não ser mãe.
O aleitamento é também uma servidão esgotante; um conjunto de fatores – o
principal dos quais é, sem dúvida, o aparecimento de um hormônio, a progestina – traz às
glândulas mamárias a secreção do leite; a ocorrência é dolorosa e é acompanhada, com
frequência, de febres, e é em detrimento de seu próprio vigor que a mãe alimenta o recém-
nascido. (Beauvoir, 2016a, p. 58).
Outro autor que se destaca na França e traz considerações importantes para uma
problematização acerca do controle da sexualidade como forma de poder é Michel Foucault.
O autor viveu durante o século XX e pôde publicar livros, dos quais aqui destaco Microfísica
do Poder (1979) e História da sexualidade (2014, 2018, 2019) pela possibilidade de se pensar
o poder como algo que é criado e fluido; e a sexualidade como uma manifestação do humano,
não necessariamente submissa a determinadas imposições sociais. Foucault era homossexual,
e faz parte da mesma luta das mulheres por liberdade sexual e contra o controle dos corpos.
São grupos que podem interferir diretamente no controle de natalidade, já que a mulher é
quem engravida e pode conseguir controlar se ela quer a gestação ou não. Já os homossexuais
podem ser vistos como quem desvincula o sexo da reprodução, bem como quem quebra certas
normas estratificadas em torno do modelo de família. Acabam por serem dois grupos
sensíveis a políticas e práticas de controle de corpos, os quais sofrem diretamente a opressão
de controles sociais.
Na trilogia História da sexualidade, Foucault (2014, 2018, 2019) ressalta que a
sexualidade foi confiscada durante a era vitoriana do século XIX– era da ascensão da família
burguesa patriarcal, pós-idade média, que deu início à idade moderna – e resumiu-se à função
de reprodução dentro das casas. O sexo foi silenciado, posto em segredo, submetido à norma
de procriação. O autor traz uma reflexão sobre o porquê de não se falar em sexo livremente,
encontrando alguma conclusão de que, assim como outras dimensões humanas, o sexo e a
sexualidade foram submetidos a discursos de poder, os quais o colocaram a serviço muito
mais de uma conveniência e uma normalização social, do que a serviço de uma construção
pessoal, enquanto ser humano. Era uma cientifização e biologização a serviço da reprodução
como um instrumento de opressão da subjetividade inerente à sexualidade. Contudo, colocar o
sexo em segredo é uma forma de valorizá-lo e não será sem consequências; o segredo pode
promover uma multiplicação de pensamentos em obscuridade.
Pode-se pensar que foi o recurso possível à sociedade da época para se proteger contra
os perigos diversos associados ao sexo; não apenas doenças, mas também o “perigo” inerente
à liberdade sexual das mulheres e homossexuais. As mulheres podem decidir sobre a vida que
cresce em seu corpo e os homossexuais podem ser vistos como quem desvincula o sexo da
reprodução, bem como quem quebra certas normas estratificadas em torno do modelo de
família. São normas a serviço de forças de poder, formuladas dentro de discursos que definem
o correto, até serem desobedecidas e questionadas. Mas, dentro do que se pensa como o
homem comum, no sentido da humanidade e não do sexo masculino, o homem não se
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mortas uma mulher de vinte e um anos e uma senhora de noventa e dois (BBC News, 2019).
Até setembro deste ano haviam sido mortas cem mulheres, vítimas de feminicídios. O número
de mulheres mortas pelos maridos é bem maior do que quando o assassinato é cometido por
parte delas, contra eles. Além disto, a França é o país com maior número de feminicídios da
União Europeia, segundo dados deste ano – embora suas taxas ainda sejam muito menores do
que as do Brasil.
O presidente Emmanuel Macron, em reação a estes dados, lançou uma campanha
pública, na qual um canal de atendimento telefônico fica disponível para escutar as vítimas de
violência doméstica e tomar as devidas providências, com intuito de prevenção de
feminicídios. Além disto, o primeiro ministro francês, Edouard Philippe, prometeu doação de
cinco milhões de euros para o combate ao feminicídio, e também prometeu melhorar a
capacidade de suporte dos abrigos que recebem as vítimas de violência doméstica, e ainda as
condições das delegacias, nas quais as queixas das mulheres são tratadas. Campanhas de
políticas públicas com adolescentes, discutindo sobre aspectos que definem um
relacionamento amoroso como saudável, são as medidas mais mencionadas pelos movimentos
de apoio às mulheres, como eficazes na prevenção.
Já a Espanha é relatada na mesma reportagem como exemplo acerca de medidas
protetoras das mulheres, contra as violências de gênero. Existe uma lei no país, em vigor
desde 2004, a qual estabeleceu uma rede de tribunais especializados em violência doméstica,
a qual também destina verbas a apoio de sobreviventes. Contudo, a situação do país ainda
mostra dados preocupantes de feminicídio, embora bem menores que os da França. A
reportagem mostra que o número de mulheres mortas por este crime em 2019 foi maior que o
dobro do número de 2018.
Na Alemanha, as mulheres ganharam um papel diferenciado após a primeira guerra
mundial, pois com a morte de muitos homens elas ficaram sendo maioria, e foram
responsáveis pela reconstrução do país. Este foi um dos primeiros países em que o sufrágio
feminino foi conquistado: desde 1918 as mulheres têm direito de voto ativo e passivo, ou seja,
podem votar e serem votadas (Agenda Berlim, 2018). – Vale ressaltar que o primeiro país do
mundo a conceder o direito ao voto às mulheres foi a Nova Zelândia. Aconteceu na Alemanha
um movimento feminista mais sentimental, o qual reclamava para as mulheres o direito de
ajudar o país; tinha um caráter nacionalista (Beauvoir, 2016a).
O país alemão avança nas conquistas no ano de 1949, quando então é promulgada a
declaração que coloca homens e mulheres iguais perante a lei. A mesma reportagem (Agenda
31
Berlim, 2018) ainda destaca que a Alemanha é colocada em décimo primeiro lugar entre os
melhores países para ser mulher, ranking feito pela revista Forbes em 2016.
Contudo, as mulheres alemãs não escaparam dos períodos mais opressores de suas
histórias, como o período nazista, o qual as confinou aos papéis de mãe e esposa, excluindo-as
das decisões sociais. E não ficaram livres das torturas cometidas na época: mulheres que
engravidavam em ocasiões consideradas inadequadas, por exemplo, eram cremadas vivas; o
que fazia com que médicas se mobilizassem para ajudar mulheres a interromperem sua
gravidez (Ansede, 2018).
Batista (2018), em reportagem para o jornal Folha de Pernambuco, destaca como
relevantes as práticas públicas que a Alemanha vem tomando para lidar com o problema da
violência doméstica e prevenção de feminicídios. De acordo com a reportagem, em 2017, na
Alemanha, 455 pessoas foram mortas pelos seus parceiros, de forma intencional ou não.
Destas, 364 eram mulheres. A autora destaca serem crimes que não escolhem as
especificidades das vítimas; atingem todas as idades e setores socioeconômicos: quase todas
as mulheres alemãs, entre dezesseis e oitenta e cinco anos, já sofreu algum tipo de violência
dentro de um relacionamento: física ou sexual. Em 1976 foi criado o primeiro abrigo
autônomo feminista no país. Em 1980 os abrigos então existentes se uniram criando uma rede
e uma organização: Centro de Informações de Abrigos para Mulheres, com base no simples
princípio de que mulheres ajudam mulheres. Embora tais abrigos tenham apoio de parte
significativa das mulheres, ainda existam grupos que dizem que é dentro das famílias que as
mulheres estão protegidas, ignorando crimes domésticos.
A Alemanha, desta forma, hoje contabiliza cerca de trezentos e cinquenta abrigos para
mulheres, voltados para atender as vítimas de violência doméstica e seus filhos, somando em
média seis mil vagas. Além disso, existem em torno de setecentos e cinquenta centros
especializados em aconselhamentos para mulheres vítimas de violência; somados a um canal
de atendimento telefônico que as aconselha em quinze idiomas diferentes, vinte e quatro horas
por dia.
O país continua determinado a investir nas políticas públicas de combate a violência
contra as mulheres. Em 2018, ratificou a Convenção do Conselho Europeu, no que tange a
esta temática. Tal convenção propõe proteção para todas as mulheres, de todas as idades,
vítimas de todos os tipos de violência. Este objetivo envolve investimento financeiro nos
programas já existentes, de forma a aumentar o número de vagas; bem como uma cooperação
entre a sociedade civil e o governo, envolvidos no combate à violência contra as mulheres.
32
Voltando-nos agora à Itália, país cede do Império Romano, junto à Grécia, faz parte da
região com registros mais antigos sobre a civilização ocidental. Este país tornou-se berço do
Renascimento, movimento cultural fundamental para o crescimento do pensamento
intelectual, e valorização da razão; embora a religião católica tenha sempre sido fortemente
presente na cultura do país.
Sobre a história de resistência das mulheres italianas, Beauvoir (2016a) ressalta que o
regime político fascista de Mussolini, predominante nos anos vinte do século passado, atrasou
fortemente a luta das mulheres por emancipação neste país. Foi um regime aliado da igreja
católica, com uma valorização da família que aprisionava duplamente as mulheres: ao marido
e ao poder público. Embora diversos países tenham passado por movimentos conservadores
autoritários, os quais tendem a ser rígidos em relação ao comportamento da mulher, o regime
comandado por Mussolini é considerado um dos mais marcantes em relação à opressão dos
governantes, e o seu caráter conservador esteve no desencontro da liberdade sexual, política e
econômica buscada pelas mulheres da resistência.
Atualmente, encontram-se na Itália, assim como na maioria dos países europeus,
movimentos feministas organizando lutas a favor da emancipação mulher e igualdade de
gênero. Em reportagem da ANSA – Agência italiana de notícias – temos conhecimento de que
o dia oito de março do ano de 2018 foi marcado por passeata feminista denominada “Non Una
Di Meno” (nem uma a menos) que protestava a favor da igualdade de gênero, contra o
feminicídio, a cultura patriarcal, e a cultura do assédio e abuso sexual (ANSA, 2018).
Introduzindo mais um país e sua forma de organização cultural, que nos traz dados
relevantes sobre a história das mulheres, temos a Rússia. Situada geograficamente entre o
ocidente e o oriente, ela absorve grande parte da cultura ocidental, e tem uma história marcada
por grandes contribuições das mulheres. Este país trás no marco de sua história um forte
movimento feminista ao final do século XIX, aliado ao movimento político revolucionário
predominante no país nesta época (Beauvoir, 2016a). As mulheres têm uma participação
significativa na guerra Russo-japonesa do início do século XX, envolvendo-se em atividades
predominantemente masculinas como metalurgia, indústria e paraquedismo; participação esta
que ganha reconhecimento e resulta na criação de um grupo parlamentar pelos direitos da
mulher; o qual, contudo, não culminou em resultados efetivos na luta pela igualdade de
gênero. Foi na revolução, com Lênin, que as mulheres russas conquistam emancipação, ele
alinhou a luta das mulheres à luta dos trabalhadores, atribuindo a ambos igualdade política e
igualdade econômica.
33
Voltando-nos para a história da Inglaterra, encontramos registros de que foi ali que o
movimento sufragista começou, e, junto a ele, importantes reflexões sobre a emancipação das
mulheres. A primeira onda de movimento feminista mundial ocorreu na transição do século
XIX para o XX, e a Inglaterra foi um dos principais países expoentes – embora as raízes
políticas do feminismo possam ser encontradas nas decorrências da revolução francesa, que
ocorreu no final do século XVIII, esta revolução não surtiu efeito direto nos direitos das
mulheres. De acordo com Marques e Xavier (2018), muitas vezes as feministas eram
hostilizadas e ridicularizadas – o que acontece até hoje no Brasil – e tais reações enfraqueciam
suas vozes. Consequentemente, algumas mulheres expoentes desta primeira onda apelaram
para atos violentos, os quais teriam mais chance de visibilidade, como até destruir
propriedades. As autoras citam o caso de Emily Davison, que em 1913 lançou-se em frente ao
cavalo do Rei em meio a um evento de corrida de cavalos em Derby. Emily ganha visibilidade
a si e ao movimento feminista as custas da própria vida.
O sufrágio das mulheres na Inglaterra veio em 1928, com bastante dificuldade
(Marques e Xavier, 2018). Esta primeira onda de movimento feminista teve por principal
objetivo de ser sufragista e, soma-se ao movimento o fato das mulheres terem tido papel
fundamental na economia do país durante a primeira guerra mundial. Neste país, conhecido
até os dias atuais por uma forte marca de conservadorismo, algo inédito e marcante ocorreu na
antiguidade e ocorre no presente: importantes mulheres governantes marcaram e marcam
história.
A começar pela Rainha Elizabeth I, responsável pela reforma protestante; quem
governou a Inglaterra por quarenta e cinco anos no século XVI. Esta mulher já nasceu em
momento de rompimento de seu pai com o catolicismo para poder se casar por amor com Ana
Bolena. No século XIX, quem fez marca foi a Rainha Vitória, a qual dentro de seus sessenta e
quatro anos de reinado aboliu a escravidão, reduziu a jornada dos trabalhadores da indústria
têxtil e deu direito a voto para todos os trabalhadores. Ela herdou o trono aos dezoito anos de
seu tio, o rei Guilherme IV. No século XX Margareth Tatcher foi a primeira mulher a se
tornar primeiro ministro neste país. Ficou conhecida pelas medidas econômicas que
implementou, incluindo não adotar o Euro como moeda (Obvious, 2018).
Já as mulheres norte-americanas, precocemente emancipadas em relação às europeias,
começaram a reivindicar direitos políticos por volta de 1830, época do seu primeiro
movimento feminista. A primeira associação feminista sufragista foi ali fundada em 1840,
junto a campanhas a favor dos negros (Beauvoir, 2016a). Em 1869 foi fundada nos EUA a
Associação Nacional para o Sufrágio das Mulheres, e neste ano o estado de Wyoming
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concede o voto às mulheres. Aqui as mulheres alcançam êxito econômico mais rápido do que
na Europa: cinco milhões de mulheres já trabalhavam em 1900 neste país; contudo a luta pelo
sufrágio seguiu sem êxito em diversos estados, sendo amplamente conquistada apenas em
1933, após diversos embates entre as feministas e o governo.
No dia internacional da mulher de 2019, o jornal BBC News publica reportagem
dizendo que os únicos seis países que garantem direitos iguais a homens e mulheres são:
Bélgica, Dinamarca, França, Letônia, Luxemburgo e Suécia. Para esta conclusão, foram
analisados cento e oitenta e sete países em uma pesquisa intitulada: “Mulheres, negócios e a
lei”. Foram analisados dados de dez anos através dos requisitos: desigualdade financeira e
legal, liberdade de circulação, maternidade, violência doméstica e direito de gerir ativos. A
mesma pesquisa disse que, em escala mundial, as mulheres têm em torno de setenta e cinco
por cento dos direitos dos homens (BBC News, 2019).
A média dos direitos das mulheres em relação aos dos homens varia entre regiões,
sendo em torno de oitenta e cinco por cento na Europa e Ásia Central; ao passo que em torno
de quarenta e sete por cento no Oriente Médio e África. Os Estados Unidos apresentam uma
porcentagem de aproximadamente oitenta e quatro por cento de igualdade de direitos entre os
sexos, e não estão nem entre os cinco melhores países neste quesito. A última pontuação da
lista foi ocupada pela Arábia Saudita, com em torno de vinte e cinco por cento de igualdade
de direitos (BBC News, 2019).
Falando sobre a população mundial, o jornal EY publica reportagem em janeiro de
dois mil e vinte alertando ao fato de que, mesmo com o PIB mundial crescente, a
desigualdade de renda entre homens e mulheres tem se tornado mais dispare. À medida que o
mundo enrique, as mulheres se tornam mais pobres quando comparadas aos homens. A
diferença de gênero econômica cresceu significativamente nos últimos anos (Teigland, 2020).
A mesma matéria diz que enquanto setenta e oito por cento dos homens adultos estão ativos
no mercado de trabalho, em escala mundial, apenas cinquenta e cinco por cento das mulheres
estão. A renda média anual das mulheres é quase a metade da renda anual dos homens: em
torno de onze mil e quinhentos dólares delas, contra vinte e um mil e quinhentos dólares
deles. Uma discriminação muito comum que as mulheres sofrem, ressaltada pela reportagem,
é a penalização da maternidade.
O jornal sugere que algumas ações podem ser úteis no objetivo de melhorar este
cenário, tais como: aumento do número de mulheres em altos cargos políticos, pois elas serão
modelos para encorajar mulheres que visam cargos de liderança no mercado de trabalho;
atração de mulheres para os setores tecnológicos, já que a maioria das mulheres ativas no
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A pesquisa sobre a história das mulheres no Brasil teve como principal objetivo
encontrar material que mostre a forma como as mulheres são concebidas, vistas e localizadas
dentro da cultura brasileira, desde o período colonial. Para isso, foram consideradas as
mulheres indígenas, as negras e as portuguesas. A organização do material foi em linha do
tempo; partiu de registros da época da colonização portuguesa para chegar aos dias atuais. No
período que vai do século XV ao XVIII foram encontrados registros sobre como foi tecida a
história do Brasil, bem como a localização das mulheres na mesma; tanto mulheres
marginalizadas socialmente – a maioria – bem como mulheres que tiveram importante papel
nos principais acontecimentos que marcaram a história, as quais representam a resistência. Já
em relação aos séculos XIX, XX e o atual, XXI, foram encontrados materiais com análises
mais críticas e profundas sobre formas de se exercer a discriminação das mulheres, partindo
da hipótese de que tal discriminação é a principal causa da violência contra as mulheres; ou
mesmo a discriminação já é uma forma de violência. São discursos como a santificação da
maternidade, e a boa dona de casa, predominantes no século XIX; a ditadura da beleza e o
capital marital, presentes nos séculos XX e XXI – discursos estes aparentemente ingênuos e
inocentes – que serão apresentados e discutidos neste item, de forma a construir alicerces
sobre a possível origem da violência contra as mulheres em nosso país.
Assim como feito com os países ocidentais do item anterior, também foram levantados
dados sobre: participações das mulheres nas construções do Brasil; a conquista do sufrágio
universal, marcando o ano em que ele ocorreu; dados sobre políticas públicas e legislativas no
combate à violência contra as mulheres. No Brasil, também foram encontrados os dados sobre
a autorização do divórcio e do uso da pílula anticoncepcional, sobre a autorização das
mulheres a estudar e a iniciarem-se no mercado de trabalho.
A colonização do Brasil, marcada pela catequização portuguesa, baseada na igreja
católica a frente dos pensamentos em termos de costume, e da visão etnocêntrica europeia
sobre o povo brasileiro, pode ser considerada bastante opressora para com os grupos
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considerados pelos europeus como inferiores: os nativos e as mulheres. Abaixo tal opressão
será justificada em alguns exemplos.
Freyre (2006) descreve, nos primeiros séculos da entrada portuguesa no Brasil, séculos
XV, XVI e XVII, conflitos inerentes à colonização de exploração que lidou com os habitantes
locais como uma espécie de raça inferior, a qual precisava se adequar aos costumes lusitanos;
ignorando o fato de que eles eram os então donos da casa.
Os relacionamentos entre portugueses e índios ocorreram muitas vezes na forma de
exploração sexual das mulheres indígenas, fato responsável pela miscigenação da raça
brasileira. Não era uma relação recíproca ou construída, mas sim imposta; forma que se
perpetua até hoje. A figura da mulher morena, diferente da mulher branca europeia, passa a
ser a preferida pelos portugueses para sexo: eram os anjos maus, de pele e cabelos escuros –
em contraste com os anjos brancos e loiros – cuja salvação poderia advir com o batismo,
imposição de costumes da igreja católica (Freyre, 2006).
As mulheres indígenas tinham, e muitas ainda têm, hábitos de andarem com pouca
roupa; pois possuem uma relação especial com seus corpos: elas os consideram parte da
natureza. Como exemplos, podemos mencionar que para lidar com os enigmas do sangue
menstrual são organizados rituais que envolvem recursos naturais, e não remédios, ou
produtos químicos; hábitos que são sustentados sem precisarem de costumes urbanos
europeus. Entre as mulheres da tribo Toba é costume se pintarem de vermelho (urucu) quando
menstruadas, como um método profilático para lidar com os espíritos ruins deste período. O
gosto pelo cuidado com o corpo é grande entre elas.
Contudo, estruturas opressivas para com o papel social da mulher também são vistas
dentro das organizações indígenas tribais – não apenas dos portugueses para com elas – as
quais são colocadas de maneira mais sutil, por exemplo, quando reduzem as indígenas às
atividades de maternidade e cuidados com o lar. A mulher indígena quando mãe, no período
colonial, é retratada como dedicada à amamentação até longa idade e a ensinamentos
maternais como ensinar suas filhas a fiar algodão e a preparar as comidas. Já os filhos
meninos eram ensinados a exercer o domínio sobre as meninas; eram preparados para isso em
casas frequentadas apenas por homens onde se aprendia sobre os privilégios e
responsabilidades de ser homem. Nestes locais, era ensinado a tratar a mulher como local de
resto; os afetos eram de pai para filho, de aspecto viril (Alves et al, 2018).
A vida menos rotineira, mais nômade e livre, menos dependente de bens materiais dos
indígenas foi considerada uma espécie de heresia pelos portugueses, como se vivessem em
crime perante a igreja católica. Eles valorizavam o imaterial, o conhecimento advindo da
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natureza e dos antepassados, o que era visto como uma afronta aos portugueses, cujo saber era
desconsiderado. Assim, eles foram apelidados de bugres, o que os denominava de sujos,
pecadores imundos. Além disso, eles não serviam ao trabalho escravo, pois eram mais
desobedientes e considerados de saúde mais frágil, mais moleirões e avessos à sobrecarga de
esforço físico.
A história do Brasil é profundamente marcada pelo regime patriarcal de aristocracia, o
qual criou a casa-grande e a senzala; o contraste entre o gosto pelo sofá, pela mulher, pela
cadeira de balanço, pela cozinha – e todo o desconforto e perigo que regia a vida dos
explorados para manter o conforto do senhor; grupo representado pelos negros e pelas
mulheres, tanto as negras quanto as portuguesas. As primeiras, quando não eram escravas,
eram escolhidas por critérios como beleza, saúde e porte físico a amamentarem os filhos das
brancas portuguesas. Muitas vezes acabavam por criarem-nos: embalavam, contavam
histórias, brincavam com as crianças. Estas mesmas negras eram muitas vezes as escolhidas
pelos portugueses, senhores de engenho, para perderem a virgindade por meio de práticas
sadistas; a “disponibilidade” que eles atribuíam a elas, por meio de ordens, facilitava a
precocidade dos senhorzinhos (Freyre, 2006).
Já as portuguesas, quando meninas, de acordo com Freyre (2006) dormiam num quarto
que se assemelhava ao do doente grave, bem no centro da casa, rodeado pela vigília de todos.
Elas passavam de meninas criadas sob a vigilância dos encarregados pelo pai, ao casamento
precoce, no qual a vigilância era exercida pelo marido: casavam-se com maridos de escolha
exclusiva dos pais, jovens demais, ainda meninas, por volta dos treze anos; sem
amadurecimento psíquico para conseguirem cumprir as principais funções da maternidade.
Eram comuns casamentos com diferenças de dez, vinte, até trinta anos da idade do homem
acima da mulher; o que reforçava ideais de superioridade por parte dele. Inclusive a cerimônia
de celebração do casamento simulava a captura da menina pelo marido: eram festas enormes,
de dias de duração, fartas em comidas e bebidas.
É possível pensar que, embora tivessem conforto físico, as portuguesas que viviam no
Brasil não tinham o mesmo conforto de alma por viverem sob a tutela do senhor: reprimidas
social e sexualmente dentro da sombra do pai ou do marido. Muitas portuguesas morriam
após o parto, sem criarem o primeiro filho. Esta mortalidade pode ser compreendida para
além da falta de assistência médica no puerpério: como uma falta de cuidados para com as
mulheres como um todo; por exemplo, elas viviam trancadas dentro de casa, sem atividade
física; suas alimentações não eram vistas como tão importantes como a dos homens. Até a
forma como se vestiam refletia uma desorganização mental: era um excesso de cores, formas
39
e joias numa ostentação de superioridade que precisa ser comprovada a todo momento,
subentendendo uma enorme insegurança.
Neste período de Brasil colônia, o acesso ao ensino era restrito aos homens brancos, à
classe dominadora. Mulheres, negros e índios não podiam estudar. Algumas mulheres que
tiveram o privilégio do ensino em âmbito privado, no início do século XIX, reivindicavam a
educação pública e à emancipação moral para todas elas. Um grande exemplo desta
resistência das mulheres da época foi Júlia Lopes de Almeida, quem, com auxílio da
imprensa, pôde expor suas ideias críticas à sociedade de seu tempo (Schumaher & Ceva,
2015). As mulheres brancas conquistaram o acesso ao ensino por direito com a primeira
Constituição brasileira, de 1824, a qual excluía deste direito as populações negra e indígena. E
ainda vale ressaltar que existia a exigência por uma renda mínima para ser eleitor, ou seja, os
brancos pobres também foram excluídos. O acesso das mulheres aos cursos superiores foi
uma conquista do final do século XIX; e o sufrágio foi conquistado no século XX.
Kehl (2008), em uma reflexão psicanalítica sobre a história das mulheres no ocidente,
demarca o século XIX como fundamental enquanto período que imprime formas de conduta
das mulheres, formas estas que deixam grandes marcas no país até hoje. Foi a época após a
Era das luzes, a qual, com o advento da razão, traz uma possibilidade de liberdade na
construção de identidades, inclusive a das mulheres; é o período chamado de Modernidade. É
um tempo de mudança de perspectiva, com o surgimento de ideias de que o sujeito humano
pode ser mais autor do próprio discurso. A autora enumera algumas mudanças advindas da
modernidade, dentre elas: a industrialização, e consequente organização social em função de
produções industriais; a urbanização; o nascimento da família nuclear e a consequente
separação entre o público e o privado com a família ocupando o lugar do privado.
Contudo, tal proposta de liberdade nas formas de vida não foi concretizada na referida
sociedade, tampouco no âmbito da vida das mulheres. A família burguesa do século XIX era
composta por uma tríade de um homem provedor do lar, o qual tinha suas ocupações que lhe
demandam um longo tempo fora de casa nas indústrias e no comércio; uma mulher que se
ocupava dos cuidados domésticos e dos cuidados com o repouso deste homem quando ele
retornava para a casa; e pelos filhos que ficavam aos cuidados da mulher. O casamento tinha
então menos uma função de unir um casal homem e mulher, e mais de unir a mulher a seu lar,
e, desta forma, consequentemente, sustentar a virilidade do homem moderno.
A industrialização trouxe a marca da padronização, com reflexos nas subjetividades. A
idade moderna, portanto, traz uma forma de ordenação dos laços sociais, extremamente
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simplificada, que não valoriza a reflexão e a luta por uma reconfiguração subjetiva – apesar
do nome Idade Moderna e das propostas trazidas pelo iluminismo.
As mulheres brasileiras com frequência se entristeciam por viver uma rotina sempre
igual, onde quase nada lhes era permitido, e acabavam por adoecer, de tédio e desesperança.
Não se pensava que a proibição de ter um discurso próprio poderia ser tão desastrosa à vida de
algumas mulheres. A saída de algumas era viver uma vida de devaneio, pelo tempo em que
ele sustentava uma realização de desejos fantasiada. Era uma vida calcada no princípio do
prazer, numa tentativa de fuga da realidade tão entediante. A busca pelo adultério também era
comum, sendo que este pode aqui ser pensado como uma forma de viver uma relação na qual
o homem olha para a parceira enquanto mulher, e não enquanto mãe de seus filhos, ou seja,
uma relação na qual ela podia se sentir desejada. Contudo, a questão que ficava é que a culpa
gerada por este ato fora da lei era motivo de neurose, na melhor das hipóteses, quando não de
suicídio, na pior. A condenação pelo adultério feminino era muito maior do que quando o
homem era o adúltero.
Kehl (2008) ilustra este modelo de feminilidade com o caso fictício de Madame
Bovary, personagem escrita por Gustav Flaubert em 1857. Emma Bovary procura em amantes
e em compras de objetos materiais ostensivos, como roupas e utensílios domésticos, a
resposta para o vazio de sua existência, e, ao não encontrar, termina por cometer suicídio:
último recurso contra a angústia advinda de um profundo sentimento de despersonalização.
Emma vivia num mundo de fantasia, sustentado por sua imensa carga de leitura, regado a
viagens, romances de contos de fadas e vida cultural intensa: tudo em uma rica vida de
imaginação que contrastava com a realidade de classe média monótona, e interiorana que era
a realidade desta personagem.
É neste contexto que a histeria entra em cena, como a forma de sofrimento psíquico
que acomete principalmente mulheres e as deixa com a sensação permanente de insatisfação,
despersonalização, e ainda confusamente dirigindo ao homem uma espécie de domínio
mágico sobre o seu desejo, o qual, na maioria das vezes, ela nem sabe dizer qual é, mas
acredita que ele deve saber. Uma espécie de crença inconsciente de que apenas sendo amada
pelo homem seria possível atingir o caminho de seu desejo, pois é no homem que repousariam
os códigos dos caminhos a serem percorridos no laço social. É na mulher repreendida pela
convenção social, pelo moralismo hipócrita, que a histeria passa a se manifestar com toda a
sua força.
Voltando-nos ao Brasil, ao longo do século XIX, consolida-se a separação entre os
indígenas e os povos brasileiros que se denominam descendentes de europeus, e pode-se
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desta data, embora eles ainda ficassem sob a tutela de seu senhor até os vinte e um anos.
Isabel governou por mais uma regência em 1876, e pela terceira e última vez em 1887, em
meio a ideais conservadores, escravocratas e latifundiários do presidente do Conselho de
Ministros, o barão de Cotegipe; quem atrasou os interesses abolicionistas da princesa. Apesar
das dificuldades, a princesa consegue concretizar a Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, cujo
decreto era de libertação incondicional dos escravos; logo em seguida, Isabel perde o trono.
A causa republicana, apoiada em parte pela aristocracia rural que perdeu seus bens
com a abolição dos escravos, concretizou seus objetivos em quinze de novembro de 1889.
Toda a família real foi obrigada a deixar o país, inclusive Isabel, que precisou partir sem seus
filhos. Questionada em exílio sobre a Lei Áurea, ela declara: “Quantos tronos houvessem a
cair, eu não deixaria de assiná-la”. (Schumaher, S. & Ceva, A., p. 37).
No Brasil república, assim como em grande parte do mundo ocidental do século XIX,
constrói-se o modelo de vida burguês, cujo modelo de família tradicional burguesa prevalece
em grande parte da sociedade até a atualidade. A figura da mulher “dona de casa” ganha
força; aqui ela não mais precisava trabalhar: o salário do marido era a renda centralizadora e a
mulher podia, de forma integral, cuidar da casa. A revolução industrial coloca um fim no
recrutamento de mulheres, e a divisão do trabalho entre os sexos é extremamente estratificada,
ficando as mulheres a cargo dos serviços domésticos e os homens dos demais. Surge um
modelo de feminilidade: a mulher ideal era a esposa passiva, obediente, casta e ocupada com
suas atividades domésticas. A figura da mulher nas ruas passa até a ser ridicularizada e
atacada; as mulheres não deviam estar pela cidade.
É importante ressaltar que formas de vida que saíam das regras sociais sempre se
fizeram presentes. Ao longo desta fase, por exemplo, a figura da mulher prostituta era
frequente fazendo funções de esposa para os trabalhadores homens; além de lhes servir
sexualmente ela cuidava de suas comidas e limpeza. Pode ser considerada uma forma de
alternativa de vida às mulheres que não se casavam; pois suas saídas para além desta seriam
tão ou mais cruéis com problemas advindos da pobreza e exclusão social. De acordo com Del
Priori (2013) as mulheres que não se casavam, por não pertencerem a uma família nobre,
designada ao casamento, eram ainda menos respeitadas e se mantinham num lugar sem
proteção.
Em geral as moças não eram ensinadas a ler, de modo que permanecendo incultas
cabia-lhes permanecer numa vida com muitas privações. Eram ensinadas desde criança por
suas mães a bordar, fazer costura e cozinhar, como futura ocupação para os momentos em que
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não estavam servindo ao marido ou aos filhos. Enquanto isso aos homens eram valorizadas as
práticas hedonistas, sair para curtir a noite, ter vida social.
Predomina, no Brasil república, uma cultura de que o amor feminino deveria ser
respeitoso e recatado, e o masculino uma espécie de ternura inspirada pela fragilidade
feminina. O respeito só era conseguido através do casamento, o qual tinha regras rígidas sobre
o comportamento das mulheres. Contudo, a resistência sempre aconteceu, mesmo dentro do
modelo tradicional não eram todas que aceitavam calmamente o modelo imposto; esta
opressão resultava muitas vezes em rebeldia por parte delas: “Muitas delas se insurgiram
contra a ditadura do fogão e do berço, resistindo às vontades do marido cotidianamente:
salgavam a comida, deixavam de lavar a roupa ou passavam os dias na igreja – um dos
poucos lugares de encontro social” (Del Priori, 2013, p. 22).
Vale ressaltar que nesse século não existiam métodos anticoncepcionais, pois evitar
filhos não era uma prática permitida. O sexo era para reprodução, não podia existir o
erotismo. Qualquer tipo de prática de sedução feminina era extremamente mal vista. Esta
temática tem por base a visão de relacionamento entre homem e mulher que não envolve
reciprocidade, mas sim a propriedade por parte do homem. A mulher aqui deve ser vista como
a delicada e recatada: deve inspirar ternura pela sua fragilidade (Del Priori, 2005). A mulher
bem quista era a recatada e distinta, a que jamais tomava a iniciativa. Obviamente que o
marido procurava relação sexual fora do casamento, já que com a esposa tinha que ser casto.
As brancas eram para casar, mulatas e negras para sexo e trabalho.
A opressão portuguesa e burguesa tinha por base premissas da igreja católica, por
meio de ideias de que as mulheres devem ser exemplarmente submissas ao marido. É a
mesma relação de poder já implícita na escravidão: a mulher entra como escrava doméstica –
deve lavar, passar, cozinhar e servir com o sexo (Del Priori, 2013). Antes do século XX, a
maioria das brasileiras não aprendiam a ler, pois esta cultura não era necessária à sua vida
restrita a tarefas domésticas e costura. O homem em casa representava o Estado e a igreja.
Com a igreja dominando os pensamentos, prega-se a ideia da mulher como criatura
imperfeita, uma vez que nasceu da costela de Adão e, portanto, deveria tanto obedecer quanto
se submeter ao homem.
Durante a instrução, a mulher deve ficar em silêncio, com toda a submissão. Eu
não permito que a mulher ensine ou domine o homem. Portanto, que ela conserve o
silêncio. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E não foi Adão que foi seduzido,
mas a mulher que, seduzida, pecou. Entretanto, ela será salva pela sua maternidade, desde
que permaneça com modéstia na fé, no amor e na santidade. (Bíblia, 1 Timóteo, 2, 11-15,
citado por Pinafi, 2007).
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A igreja católica – com seus preceitos de que a mulher veio de Adão e a ele deve se
submeter – explorou a relação homem e mulher como algo de predominante dominação, onde
caberia à mulher ser exemplarmente submissa: uma escrava doméstica que deveria servir
também com o sexo quando assim fosse vontade do homem. Caberia à mulher lavar, passar,
cozinhar, lustrar o chão, e dar filhos para prosseguir com a descendência.
Algumas mulheres gostavam mais de estudar, preferiam a ciência à religião e
frequentar cursos a permanecer apenas em casa nos cuidados com o lar e filhos. Acabavam
por se tornar mulheres inteligentes e de alta capacidade intelectual e, ainda que com estas
qualidades, eram consideradas criminosas e incapazes de dotes necessários à maternidade
como a paciência e abnegação. Mulheres com conhecimentos costumavam causar
repugnância nos homens comuns, não eram atrativas.
Em 1879, o Brasil abriu acesso das mulheres aos cursos superiores, embora não fosse
uma prática efetivamente exercida pelo preconceito acima citado e consequente falta de
incentivo cultural. As mulheres que decidiam estudar eram vistas como as desertoras de lares,
as solteironas que não se casariam, ou seja, que eram responsáveis pela destruição da família
(Silva, 2008).
No século XX, o Brasil autoriza o divórcio, isto é, viabiliza a lei que o autoriza, mas
socialmente continua recriminando-o. As mulheres que optam por ele são consideradas as
verdadeiramente infelizes, as péssimas mães e esposas que podem desmontar a sociedade (Del
Priori, 2013). Este século também é marcado pela lei que autoriza a entrada da mulher no
mercado de trabalho sem autorização expressa do marido, embora esta lei não tenha trazido
liberdade à mulher; ainda que houvesse autonomia econômica, não significou que ela trazia
autonomia nos âmbitos social, psicológico, cultural, moral; dentre outros. Além disso, é
válido pensar que esta autorização para o trabalho se deu mais por necessidade de ajuda no
sustento da casa do que por reconhecimento da mulher como um sujeito de direitos, já que ela
ganhava, e ainda ganha, menos do que o homem exercendo a mesma função.
A maternidade, neste século XX, se mostra como salvação para muitas mulheres, para
que elas ganhem visibilidade e reconhecimento. Ser uma boa mulher passa a ser sinônimo de
ser uma boa mãe, ideia que exclui desejos e crenças sobre a importância de ter um filho, como
o desejo de continuidade ou o amor pela criança. Com essa crença na salvação tudo se resume
a ganhar reconhecimento e lugar social sendo mãe, como uma tradição que simplesmente
deve ser cumprida, sem reflexão. Desta forma, com a mulher santificada em mãe, fica inibida
a sexualidade conjugal. O sexo assim é associado à procriação e o papel da mulher quando
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não está sendo mãe é resguardar pelo lar e pelo marido. Já o dele é se dedicar ao trabalho, ter
vida social e fiscalização sobre a mulher e os filhos (Del Priori, 2013).
Em seguida, no mesmo século XX, vemos o início da tirania da perfeição física: o
desafio não é uma busca de identidade, mas sim de uma identificação com um modelo de
beleza que escraviza as mulheres a se submeterem a práticas dolorosas e, muitas vezes,
perigosas em troca de um corpo aceito socialmente. Do marido, o algoz se desloca para a
mídia, tão perseguidora e inconsequente. Com a sociedade incentivando o resultado rápido e
prático a qualquer custo, não é de espantar que o caminho pela beleza impossível seja
procurado muito menos por hábitos de vida saudáveis do que por cirurgias plásticas,
cosméticos extremamente caros, exercícios físicos abusivos, anabolizantes perigosos. O preço
para ser aceita é qualquer um, e algumas mulheres presas a este discurso se submetem a tudo.
Essas considerações são pertinentes, também, ao século XXI.
Vale ressaltar que há no Brasil, no mesmo período histórico – com mais força na
década de setenta – um forte movimento feminista que comprova a resistência de muitas
mulheres em entrar tanto no discurso da maternidade enquanto salvação quanto no discurso
dos padrões de beleza severos, impostos pelas grandes mídias, principalmente às mulheres.
Pode-se dizer que as feministas da década de setenta são mulheres que se valem das ideias de
Simone de Beauvoir, autora já citada acima, uma das principais representantes do feminismo
mundial. Beauvoir (2016a) destaca, dentre outras questões, como já mencionado em itens
anteriores, a maternidade como função extremamente esgotante, principalmente em relação
aos primeiros cuidados para com o bebê, que exigem uma atenção sem descanso por parte da
mãe. O aleitamento, por exemplo, é muito diferente das imagens que aparecem nas
campanhas de amamentação: trazem ferimentos e dor ao seio com frequência, além de febre
alta e demais indisposições à lactante. A autora não era adepta de padrões estéticos e, muito
pelo contrário, ressalta a importância da mulher se impor perante os discursos impositivos
acerca do comportamento dela.
De acordo com Del Priori (2013), nos dias atuais algumas mulheres tendem a ser mais
sozinhas do que os homens. Estas mulheres que não se casam podem vir a chefiar famílias
monoparentais, e ainda aceitar situações de submissão aos padrões estéticos colocados pela
mídia. A autora traz uma importante reflexão de que em casa estas mulheres solitárias
escondem sentimentos contraditórios com o estilo de vida que levam: são mulheres
progressistas no âmbito econômico e no posicionamento social por terem uma família não
tradicional, contudo, em alguns casos, protegem filhos que agridem mulheres ou até não
permitem que os filhos homens se ocupem de tarefas domésticas, o que os torna dependentes
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delas em assuntos domésticos. São muitas vezes coniventes com piadas machistas da mídia, e
aceitam que os filhos usem temas apelativos.
No âmbito de legislação e políticas públicas, os séculos XX e XXI são marcados por
algumas conquistas sociais, políticas e econômicas por parte das mulheres. Além da lei do
divórcio, métodos anticoncepcionais e lei do direito ao voto, já mencionados, na década de
50, a Organização das Nações Unidas (ONU) iniciou trabalhos de erradicação da violência
contra as mulheres e criou a Comissão de Status da Mulher. Ela está embasada na afirmação
de direitos iguais entre homens e mulheres e na Declaração Universal dos Direito Humanos
cuja premissa é, de que tanto direitos quanto liberdades, devem ser aplicados, de maneira
igual, entre homens e mulheres. Em 1979, a Assembléia Geral da ONU adotou a CEDAW:
Convenção para Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, conhecida
como lei internacional dos direitos da mulher, buscando a repressão das discriminações
(Silva, 2008).
Também é fruto da década de 1970 a chegada no Brasil da segunda onda do
movimento feminista. A partir de então, este movimento reforça a consciência de que a
discriminação contra as mulheres existe. As feministas são as que enfatizam a idéia de que
não há um poder: o poder é criado. Se os homens haviam sempre estado no poder, é porque
eles assim se colocavam, e as mulheres não deveriam permitir que fossem excluidas. Portanto,
começam a reivindicar direitos iguais não só política e economicamente como também nos
âmbitos que envolvem responsabilização, como o sistema prisional. O ano de 1975 foi
definido pela ONU como o Ano Internacional da Mulher (Silva, 2008). Foi na Rússia que o
movimento feminista ganhou mais força, e no Brasil a luta tem se intensificado nos últimos
anos.
Na década de oitenta, surge no Rio de Janeiro o SOS mulher com objetivo de
atendimento a mulheres vítimas de violência, visando melhores condições de vida. Esta
iniciativa foi adotada também por outras cidades, inclusive São José dos Campos, cidade
paulista, onde encontramos tanto o SOS mulher como o Centro Dandara, importantes centros
de acolhimento às mulheres vítimas de violência doméstica. As políticas públicas então
crescem, e ainda na década de oitenta são fundadas as Delegacias de Defesa da Mulher. A
primeira unidade foi inaugurada no Estado de São Paulo, em 6 de agosto de 1985, durante o
governo Franco Montoro e foi planejada pelo então secretário da Segurança Pública Michel
Temer), que hoje são centenas, sua maioria na região sudeste.
Na década de noventa houve a declaração de Viena, que fornece mais subsídios para a
luta. Nela, foram incluídos vários graus e manifestações de violência, considerando que ela
47
infringe Direitos Humanos e acontece na maioria em esfera privada. Em 1995, foi ratificada
no Brasil a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a violência contra a
mulher, aprovada pela Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos (Silva,
2008).
A Lei Maria da Penha, promulgada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2006,
foi mais um grande avanço em direção à proteção da mulher e reconhecimento de sua
vulnerabilidade (Silva, 2010). A Lei determina o encaminhamento de mulheres em situação
de violência e seus dependentes a programas e serviços de proteção, garantindo-lhe os
Direitos Humanos que já se achavam positivados na Constituição Federal. Vale ressaltar que
esta lei não considera apenas a violência física: controlar financeiramente, expor vida íntima e
forçar atos sexuais também são exemplos de violência que são cobertos. A lei classifica a
violência em cinco categorias: violência patrimonial, violência sexual, violência física,
violência moral e violência psicológica.
Maria da Penha Maia Fernandes é uma farmacêutica, cearense, cujo nome batizou a lei
que protege mulheres contra violências devido à violência doméstica da qual foi vítima e
quase lhe levou a óbito. Ela conheceu o agressor em 1974, quando fazia mestrado na
Universidade de São Paulo, ele era estudante de pós-graduação em economia; e, inicialmente,
ela o acolheu como namorado em sua casa com uma situação financeira mais favorecida que a
dele. Contudo, após o casamento, que se consolidou no ano de 1976, o marido ascende
financeiramente e seu modo de tratamento para com ela muda. Ele fica agressivo com ela e
com as filhas do casal. Em seu livro Sobrevivi... posso contar, Fernandes (2012) relata que a
violência doméstica obedece a um ciclo no qual o agressor pede desculpas, garante amor
eterno e diz que nunca mais irá ferir a vítima. É neste momento que a vítima costuma
engravidar de novos filhos, no seu caso, foi em momentos como este que ela engravidou tanto
da segunda quanto da terceira filha, já que a primeira nasceu antes da mudança de
comportamento do marido.
Na visão de Maria da Penha, o marido torna-se agressivo ao ascender financeiramente;
ela acredita que ele se manteve pacato no período de início de relacionamento porque
dependia dela (Fernandes, 2012). A agressividade vai ficando cada vez maior para com ela e
para com as três filhas; tudo era motivo para briga e agressões físicas e o controle para com as
quatro era intenso. Ele, por exemplo, simulava viagens e voltava antes do previsto para
verificar se tudo estava acontecendo conforme ele havia determinado. Se a filha pequena
chupava dedo para dormir, era motivo para agressão; se fizesse xixi na cama, era jogada
brutalmente no chuveiro. O casamento assim afunda e Maria da Penha percebe que se o
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pedido de divórcio não acontecesse por ela, eles permaneceriam casados; contudo ela não
consegue pedir o divórcio por medo de que ele a matasse.
No ano em que o crime de tentativa de assassinato aconteceu, 1983, Maria da Penha
relata que o marido tentou fazê-la assinar um seguro de vida que o beneficiava, em caso dela
falecer. Dias depois, conseguiu fazê-la assinar outro documento para que o carro dela fosse
vendido a um colega dele. Tudo indicava uma armação para matá-la, da qual ela não
conseguiu escapar. Em uma noite após uma visita a casa de amigos do casal, ela acorda com o
forte barulho e sensação de borbulhar nas costas. O marido é levado em um carro de polícia e
relata um assalto. Maria da Penha é socorrida com vida, e, apesar de ter ficado paraplégica,
sobrevive após uma difícil recuperação, com uma série de limitações. Em meio a seu período
de recuperação, ele tenta assassiná-la novamente, por meio de um choque elétrico no chuveiro
em que ela tomava banho (Fernandes, 2012).
Hoje Maria da Penha é uma militante de ideias feministas. Além da lei que protege à
violência contra as mulheres, seu nome intitulou o Instituto Maria da Penha, com sede em
Fortaleza e objetivo de garantir o funcionamento da lei, bem como políticas públicas voltadas
para a prevenção e conscientização da violência doméstica e contra as mulheres. O marido foi
condenado a dez anos e seis meses após doze anos de julgamento em 1996; contudo, sob
alegação de irregularidades no caso por parte de um dos advogados de defesa, a sentença não
foi cumprida. Em 1998 o caso foi denunciado para a Comissão Interamericana de direitos
humanos; o estado foi responsabilizado por omissão e negligência em 2001; o réu foi preso
em 2002, solto em 2004 estando hoje, livre. O caso ganhou repercussão internacional por ter
sido o primeiro a ganhar reconhecimento no âmbito da violência contra as mulheres, abrindo
portas para uma problematização e reflexão profunda sobre o tema.
Em 2015, a presidente Dilma Rousseff, em andamento ao ciclo de problematização da
violência contra a mulher, traz uma nova proposta jurídica em relação a este tema com a
importante lei do Feminicídio, a qual colocou a morte de mulheres no rol de crimes hediondos
(Silva, 2008).
Nos últimos anos, algumas discussões a respeito da discriminação da mulher vêm
acontecendo no Brasil em grande proporção. A cultura do estupro, por exemplo, é uma
importante campanha criada em 2016 para desnaturalizar a concepção de que mulher
assediada sexualmente é responsável pelo assédio que sofreu, ou seja, se a sociedade
normaliza a mulher como culpada, existe cultura do estupro. Em 2017, atrizes lançam frases
nas mídias como: “mexeu com uma mexeu com todas” que sensibilizam a população para esta
importante questão de violência contra a mulher, como se ela pudesse ser naturalizada no
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lugar de um objeto de uso. As mulheres vão continuar sendo vistas como culpadas pela
violência que sofrem, caso a cultura a exclua do poder e a inferiorize (Braga & Ruzzi, 2017).
Contudo, apesar de toda esta resistência e movimento políticos, os números sobre
violência contra as mulheres no Brasil são assustadores. Temos o dado de 2016 de um
relatório da ONG sobre o Brasil estar no 102º lugar no ranking dos melhores países para
nascer mulher, num total de 144 países pesquisados, ou seja, um dos piores (Modefica, 2017).
Em março de 2017 a ONU publica em seu site uma reportagem sobre desigualdade de
gênero nas políticas sobre drogas. Existem mais mulheres morrendo de overdose do que
homens. O que acontece é que muitas mulheres não têm acesso a tratamento, ou são
impedidas de fazê-lo. A reportagem ainda afirma que existe forte ligação entre o trabalho com
sexo e o uso de drogas: algumas usam a droga para conseguir lidar com as exigências deste
trabalho; enquanto outras trabalham com sexo como forma de pagamento para o uso de
drogas. Obviamente, estas mulheres não têm acesso ao tratamento devido ao preconceito que
sofrem, preferem se omitir a se expor. Mulheres com filhos têm menos ainda acesso a
tratamento, pois temem perderem suas crianças ao serem taxadas de drogadas (ONU BR,
2017).
Caminhando no movimento, em 2018, a ONU lança a campanha: “O valente não é
violento”. Esta campanha mostra o reconhecimento de que a sociedade ainda hoje é machista
(supervalorização do homem em detrimento da mulher) e, portanto, é necessário conscientizar
a população para a necessidade de mudança de comportamento e responsabilidade nesta
questão (ONU BR, 2018). Frases como: “o valente compartilha as responsabilidades do lar”,
“o valente respeita a opinião das mulheres”, “o valente jamais usa a força” são então lançadas
como estratégias de conscientização popular da necessidade de combate ao machismo.
Como um dado quantitativo acerca da problematização atual sobre a violência contra
as mulheres como um fenômeno social, foi realizada uma pesquisa no jornal O Estado de São
Paulo (Estadão) em 22 de abril de 2018, na qual apareceram 39 reportagens desde primeiro de
março até esta data envolvendo violência contra as mulheres. Estas notícias falam, em sua
maioria, de violência física envolvendo atos como espancamento que muitas vezes chega até a
morte; crimes com armas brancas como facas ou pé de cabra, sendo que a maioria acontece
dentro da residência da vítima, e entre casais que já se relacionaram. O término da relação por
parte da mulher é o maior dos motivos para o crime acontecer, seguido pelo sentimento de
posse por parte do agressor (Estadão, 2018). Vale ressaltar que é justamente esse sentimento
de posse que leva muitas mulheres a se manterem numa relação violenta, por uma
interpretação por parte delas de que o sentimento de posse é devido ao amor. Quanto maior a
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vulnerabilidade sentimental em que a mulher se encontra, mais provável é fazer esta confusão
entre o sentimento de posse e o amor, o que leva a pensar que, para além da vítima de
violência, há um masoquismo inconsciente envolvido.
Mesmo com o Brasil tendo um dos melhores sistemas legislativos em relação à
proteção das mulheres do mundo, contraditoriamente, tem o número de crimes contra as
mulheres extremamente altos, inclusive de feminicídios, os quais envolvem a morte de
mulheres. Em março de 2018 a lei do feminicídio completou três anos. Ela prevê penas mais
altas para condenados por assassinatos a mulheres ou por atos de discriminação e menosprezo
às mulheres.
Ressalto que são quase setenta anos de lutas contra a discriminação das mulheres, o
que pode parecer significativo. Contudo, ainda é muito pouco quando comparado aos
milênios de anos passados nos quais esta cultura na qual a mulher podia lutar não existia.
Ainda há muito a ser feito na descontrução e construção de pensamentos nos quais os gêneros
– ainda que diferentes – não podem ser vistos em termos de valoração. Analisar a diferença
entre o masculino e o feminino enquanto gênero é necessário, mas o discurso de falar do sexo
masculino exercendo valoração e poder sobre o feminino pode e deve ser erradicado.
Para finalizar este item, a contradição entre as conquistas da mulher brasileira nos
âmbitos político, econômico, social e a permanência do discurso ditatorial em relação a
padrões estéticos, precisa ser exposta. Goldenberg (2010) em crítica à mulher brasileira
ressalta que o envelhecimento é aqui tema de imensa preocupação; o que não acontece na
maioria dos países europeus. A relação entre o corpo e o capital fica evidente quando não se
pode perder o estatuto de poder estético associado ao corpo. A autora ainda fala sobre o
capital marital, ou seja, a mulher que só consegue se autovalorizar quando acompanhada por
um homem em união formal. Ou seja, corpo e marido são considerados capitais na cultura
brasileira.
A mulher precisa saber dizer o que ela quer num relacionamento para além do “status
de se ter um marido”. Precisa saber dizer ao marido o que ela quer no relacionamento. É
evidente que algumas mulheres só caem em si depois que os filhos saem de casa e percebem
então que sempre viveram para eles e não sabem ao certo quem são. A ditadura da mulher
perfeita associada ao corpo perfeito, à maternidade e submissão ao homem precisa cair.
Não pode haver uma desvalorização das conquistas das mulheres por elas mesmas. Não
basta a mulher ser independente financeiramente se ela não tem independência de valores que
justifiquem uma vida digna de ser vivida. É preciso um algo mais, é preciso um sentido para a
liberdade.
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possuem costumes, línguas, crenças, tradições e organizações sociais específicas. Dentre estes
direitos, ressalta-se a livre ocupação das terras nas quais foram criados em suas tribos.
A Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) define como
indígena aquele que:
... contando com uma continuidade histórica das sociedades anteriores à colonização
que foi desenvolvida em seus territórios, consideram a si mesmos distintos de outros
setores da sociedade, e estão decididos a conservar, a desenvolver e a transmitir às gerações
futuras seus territórios ancestrais e sua identidade étnica, como base de sua existência
continuada como povos, em conformidade com seus próprios padrões culturais, as
instituições sociais, econômicas, políticas e os sistemas jurídicos (Ministério do
desenvolvimento social, 2011, p. 10).
pecadores imundos. Além disso, eles não serviam ao trabalho escravo, pois eram mais
desobedientes e considerados de saúde mais frágil, mais moleirões e avessos à sobrecarga de
esforço físico.
De acordo com Alves et. al. (2018), podemos destacar diversas tribos indígenas
originárias da região do Vale do Rio Paraíba que sofreram com a colonização de exploração e
subsequente extermínio de indígenas locais, dentre elas os Puris, Coroados, Ararís, Coropós,
Caxaxenes, Tupinaki. Eles utilizavam o Rio Paraíba para deslocamento e povoavam seus
entornos.
Os Puris são uma grande tribo, habitantes das regiões úmidas de São Paulo, com sua
população se estendendo desde a Serra do Mar ao Rio de Janeiro, com grande concentração
no Vale do Rio Paraíba. São considerados os primeiros habitantes da atual cidade de Rezende,
situada no médio do Vale do Rio Paraíba, cuja organização social sofreu com a atuação da
colonização de exploração no século XVIII, caracterizada na região, principalmente, pela
extração do ouro, e foi considerada uma tribo extinta no século XIX (Oliveira, 2019).
Contudo, em 2018, a comunidade de índios Puris de Padre de Brito foi motivo de reunião da
FUNAI na Câmara de vereadores de Barbacena, junto a representantes do sindicato de
trabalhadores rurais para a discussão de políticas públicas destinadas a esta comunidade; isto
nos mostra que os Puris resistem, mesmo apesar de terem sido dados como extintos (Câmara
Municipal de Barbacena, 2018).
Este grupo de caráter nômade nunca aceitou o aldeamento missionário, e até hoje luta
por seus direitos a terra, pertencimento na sociedade contemporânea e identidade enquanto
grupo. Os Puris ainda existem por serem um grupo resistente, que não aceitou a aldeia, correu
para a mata e se escondeu. A resistência pela fuga e deslocamento vêm como marca desta
tribo, em busca de sobrevivência e manutenção de sua liberdade. Contudo, ao fugirem para a
mata suas terras foram consideradas como abandonadas; daí vem a contradição: como um
povo vivo pode ser dado como morto, uma vez que as tribos são facilmente associadas às suas
terras. O nomadismo enquanto característica fez dos Puris uma espécie de indígenas “sem
terras”, pois não eram nelas que eles colocavam a sua segurança, mas sim na capacidade de
deslocamento.
Freud (1913/2006), em “Totem e Tabu” analisa as peculiaridades culturais de
civilizações definidas aqui por ele como selvagens, com análise principal para as interdições
do incesto e parricídio: ele teoriza sobre a forma como tais proibições operam nos povos
selvagens, cuja inserção de leis organiza suas civilizações. É uma obra na qual a intersecção
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totem. São proibições às quais as tribos simplesmente seguem, sem levantar objeções; quem
as transgredir estará carregado de um poder perigoso, tal qual uma infecção. Este poder de
transgressão está ligado a pessoas e situações tidas como especiais, excepcionais, ou ainda
misteriosas. Contudo, são proibições que organizam as tribos, e, desta forma, as protegem. O
autor conclui que o incesto é algo que sempre é colocado como parâmetro em tais
organizações: ou ele é proibido ou é autorizado enquanto exclusividade. Já o parricídio não
aparece enquanto aceitável, e é refletido metaforicamente ao final da obra, como um caminho
para a independência e a liberdade: matar o pai e se alimentar de seus poderes.
O tabu, portanto, atua em forte ligação com o mistério ou com a provocação de temor,
ainda que o perigo não seja objetivável; inclusive pelo contrário, o perigo aqui reside justo
na ausência de objetivação: a base do tabu é uma ação proibida, para cuja realização existe
forte inclinação do inconsciente (Freud, 1913/2006, p. 49).
advindo da sensação de mistério e perigo. Embora a mulata seja apenas uma mulher, e a
dança apenas uma forma de expressão corporal, a sensualidade presente no corpo da mulata
provoca um algo além. Pode-se pensar que é justo este além, ligado ao encantamento por uma
imagem, que talvez tenha causado fascínio aos portugueses quando chegaram ao Brasil e
encontraram as indígenas; mulheres de pele morena e cabelos pretos, diferentes das europeias,
cujos hábitos diferentes envolviam andar seminuas em poucas roupas coloridas e exóticas.
Indo mais além, pode-se pensar que este mesmo fator encantamento está envolvido nos atos
de violência que muitas mulheres, inclusive as indígenas, sofrem: pode provocar raiva nos
homens por ser um comportamento que foge do controle e previsibilidade; há um fator
místico envolvido no encantamento que não tem ligação com a anatomia dos corpos e nem
com a ciência: transmite a sensação de mistério. Por si só, é enigmático. Uma vez que alguns
homens tomam as mulheres como sua propriedade para que assim possam exercer controle
sobre seus corpos, o que não é controlável não seria, na cultura da posse, suportável.
O nome do maior Estado do Brasil, que abriga grande parcela da população indígena
nacional, é herança do mito das Amazonas: mulheres cujo nome passou a ser associado às
mulheres guerreiras que talvez tenham habitado aquela região. Diz o mito que as Amazonas
eram mulheres gregas que formaram um reino independente, sob o governo de uma rainha,
entre as quais a primeira foi a rainha Hipólita. O termo “Ama” tem o significado de mãe de
acordo com o dialeto Moso Chinês, e no sentido figurativo denomina cultura matriarcal. As
Amazonas, assim como outros personagens mitológicos, passaram a fazer parte do imaginário
popular associadas a mulheres guerreiras, cuja ousadia lhes permite gozar de liberdade e
condição de igualdade para com os homens. Contudo, vale ressaltar que ainda assim aqui no
Brasil as Amazonas foram vencidas pelo homem explorador, fato que coloca em cena a
ideologia de submissão das mulheres; e outro fato contraditório é que as Amazonas, uma vez
vindas da Grécia, eram de cor branca, assim como o explorador europeu; e ainda um terceiro
fato é que elas cortavam o seio para melhor manusearem o arco e flecha, justo o seio, tão
característico da feminilidade; causando a impressão de que para vencer é preciso
masculinizar-se (Travassos, 2014).
Há uma série de mitos associados aos indígenas da região amazônica, tais como o
Curupira, o Boto, a Iara, o Caipora... As Amazonas são aqui enfatizadas pela sua ligação com
as indígenas, e suas peculiaridades residem na ligação de mulheres à guerra e às armas,
embora sejam arco e flecha, e não armas de fogo. Eram as guerrilheiras que chegavam a
amputar o seio direito para melhor manusear o arco e flecha, o que pode ser interpretado
57
como abdicação da feminilidade para melhor guerrear. Outro fato relevante é que,
diferentemente das outras lendas, não se sabe se as Amazonas existiram de verdade:
No tempo da Conquista da América, século XVI, muitos pensaram que a terra das
Amazonas ficasse fisicamente ao sul do rio Amazonas ... pois a expedição espanhola que o
explorou no ano de 1541 relatou ter encontrado uma tribo de mulheres guerreiras que
lideravam com grande coragem os índios da região na luta contra os espanhóis. Foi assim
que o rio ganhou seu nome (Wolff, 2018, p. 424).
ocupação das mulheres nos espaços políticos; elas só o fazem quando autorizadas pelos
homens.
Aqui temos o exemplo de Muwaji, uma indígena suruwahá que não permitiu que sua
filha Ignani, diagnosticada com paralisia cerebral, fosse enterrada viva; pois, de acordo com a
tradição tribal, a criança deveria ser sacrificada. Contudo, esta não permissão custou a Muwaji
a saída de sua tribo e a adaptação forçada à vida na cidade. Posteriormente, ela foi
homenageada com o projeto de lei n. 1057, aprovado na Câmara dos Deputados em junho de
2011, com a pretensão de criminalizar a prática do infanticídio. Kaingáng (2018) defende que
os direitos humanos devem ser soberanos, em especial quando agem em ligação direta com a
vida.
Para Azelene, o que define uma mulher enquanto indígena tem relação com o
pertencimento: quem se é, filha de quem, neta de quem; e também existe o sentimento de ser
indígena, que precisa ser genuíno – e não uma máscara vestida de forma oportunista para
conseguir benefício de políticas públicas destinadas aos indígenas. Embora mudanças de
comportamento ocorram, como por exemplo, o uso de computadores, a autora ressalta que o
novo pode perfeitamente conviver com tradições e não significa deixar de ser indígena.
Solange Reis, descendente Puri e militante dos direitos indígenas e por
reconhecimento da cultura de sua tribo, é um exemplo da importância das mulheres na luta
por visibilidade e reconhecimento das populações consideradas minorias. Assim como
também Joênia Batista de Carvalho, outro exemplo de mulher da resistência indígena, atual
representante desta população na Câmara dos Deputados, cuja atuação é pautada no cuidado
em defender a ênfase da diferença cultural indígena, sem diminuir a categoria de cidadãos
iguais em termos de direitos constitucionais. Joênia criou a Frente Parlamentar Mista em
Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, composta por duzentos e dezenove deputados e
vinte e nove senadores. Ela ainda é a primeira mulher indígena advogada do Brasil e atua
defendendo suas comunidades desde os vinte e quatro anos de idade, com destaque para sua
atuação em defesa da demarcação de terra na comunidade Raposa Serra do Sol. Joênia já
atuou na Comissão Interamericana de Direitos Humanos em Washington, nos Estados
Unidos, para denunciar violações por parte do Brasil e, em 2011, foi a primeira indígena a ser
Mestre por uma Universidade nos Estados Unidos.
Joênia ressalta que o Estado brasileiro falha, principalmente em não ter políticas
específicas para as mulheres indígenas, por exemplo, em relação à gestação e aos partos; sua
irmã inclusive faleceu logo após parir. Ela ressalta que políticas de proteção precisam ser
vistas como direitos, e não como assistencialismo, e que a diferença do indígena aos demais
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está justamente na incapacidade de deixar de ser indígena, mesmo que viva em uma cultura
urbana; há uma impossibilidade de aculturação enfatizada por ela, que precisa ser considerada
enquanto direito civil (Geremias, 2019).
Em 2011 houve o lançamento, pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate
à Fome, da cartilha de cadastramento das famílias indígenas, com o objetivo de efetivar um
real acompanhamento das famílias indígenas existentes para que elas possam estar inclusas
nos programas sociais do Governo Federal. É uma forma de proteção às famílias indígenas e
direito ao exercício da cidadania plena.
O cadastramento facilitou a localização das famílias indígenas e, também, de seus
problemas, com destaque à vulnerabilidade das suas mulheres. Segundo a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, as mulheres indígenas são vítimas de violência em
contextos específicos como: privação de liberdade; violência doméstica; contra defensoras de
direitos humanos; em conflitos pelos seus territórios; em contextos de conflitos armados; no
meio urbano e no contexto de migração e deslocamento; em órgãos jurídicos tanto indígenas
quanto estatais. Nos órgãos indígenas podem sofrer preconceito advindo da ideologia
patriarcal que limita sua participação e representatividade; nos órgãos estatais, além disto,
sofrem preconceitos raciais (CIDH, 2019).
A Organização das Nações Unidas (ONU), uma das instituições responsáveis pela
garantia dos direitos humanos, em 2008, lança a Declaração sobre os Direitos dos Povos
Indígenas. Apoiada nesta, no mesmo ano, a ONU Mulheres inaugura o projeto Voz das
Mulheres Indígenas, em parceria com a embaixada da Noruega, com o objetivo de
empoderamento, mobilização social e participação política de mulheres indígenas de diversas
etnias nacionais. O projeto foi fruto de mais de um ano de coleta de informações junto às
mulheres de mais de cem tribos, de forma que pudesse ser estabelecida a pauta nacional
comum para a garantia dos direitos humanos e bem-estar das mulheres. Dez eixos compõem a
pauta: violação dos direitos das mulheres indígenas, incluindo a violência de gênero;
empoderamento político; formação de uma estratégia de incidência política; direito a terra e
processos de retomada; direito à saúde, educação e segurança; direitos econômicos; tradições
e diálogos intergeracionais; comunicação e processos de conhecimento; processos de
resistência; sustentabilidade e financiamento (ONU Mulheres, 2018). Este projeto culminou
no documentário: “Mulheres Indígenas: Vozes por Direito e Justiça”. O vídeo foi produzido
pelo grupo temático de Gênero, Raça e Etnia da ONU Brasil e pelo Centro de Informação das
Nações Unidas para o Brasil, com apoio da Embaixada do Canadá, como parte das ações da
ONU pelos setenta anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
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cartilhas fossem lidas nas escolas, tanto para as meninas quanto para aos meninos. A
conscientização de que a Lei Maria da Penha é um benefício do Estado do qual elas podem
usufruir, embora possa parecer óbvia, não o é em populações oprimidas. As mulheres
indígenas, mesmo conhecendo a lei, podem ter dificuldades de se reconhecerem nela, uma vez
que temem pela desestabilidade da realidade em que vivem.
Em 2018, o presidente da Fundação Nacional do Índio, Franklimberg de Freitas,
comemorou o crescimento da atuação de mulheres dentre as lideranças das comunidades
indígenas e cacicas. Ele afirma que este crescimento é fruto de inovação nos órgãos públicos,
como a criação de uma coordenação específica de gênero para as mulheres indígenas, o que
resulta na melhoria de suas qualidades de vida.
Estas mulheres líderes estão fazendo história em ações fundamentais, como a busca
pela demarcação e proteção das terras de seus povos, a luta pelo fim da violência de gênero
nas comunidades indígenas e pelo fim da discriminação para a profissionalização. A grande
esperança é ver um número representativo de mulheres indígenas ocupando postos de
liderança política, de modo a seus discursos ganharem visibilidade e representatividade
nacionais (Funai, 2018).
É importante ressaltar que feminicídios também acontecem dentre as mulheres
indígenas. Em 2017, a índia Roseane Dantas foi assassinada pelo marido na aldeia Pitaguary
de Monguba. A articulação de mulheres indígenas do Ceará então organizou um ato de
repúdio ao feminicídio (Asa CE Mulheres, 2019). Mobilizado pela causa, o Esplar, Centro de
Pesquisa e Assessoria, promoveu um seminário sobre as causas da violência doméstica, sobre
a aplicação da Lei Maria da Penha e formas de proteção às mulheres. Participaram do
seminário cerca de cinquenta mulheres das etnias Tremebé, Pitaguary, Anacé, Jenipapo-
Kanindé, Kanindé e Tapeba. A advogada Magnólia Said e a antropóloga Cinthia Moreira,
técnicas do projeto “Fortalecendo povos indígenas” mediou o debate que aconteceu em
novembro de 2020. O evento foi uma oportunidade de compreensão por parte das mulheres
indígenas de como acontece a violência contra as mulheres e quais são as possíveis formas de
superá-la.
É necessária a construção de um Estado realmente democrático onde possam coexistir
populações de costumes distintos, porém com a mesma dignidade em representação sobre
direitos humanos. Aqui direito não deve ser compreendido apenas como um sistema de
legalidades, mas também como um conjunto de ações efetivas, promovidas para superar
movimentos de opressão racial e de gênero, como forma de superá-los.
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De acordo com a indígena atual deputada, Joênia Batista de Carvalho, ser indígena é
uma condição da qual não se define com uma ou mais ações; pode ser pensada como um
estado de alma. Se a mulher passa a usar roupa, não por isso ela deixa de ser indígena; se
deixa de falar a língua materna, também não é o que define que deixou de ser indígena.
Contudo, a mulher sofre este tipo de vigilância e preconceito a todo momento, o que também
é uma forma de violência. Joênia afirma que ela pode morar em qualquer parte do mundo e
passar a se adaptar a alguma outra cultura que, mesmo assim, ela não deixará de ser indígena.
No Brasil, as mulheres indígenas costumam enfrentar formas diversas de
discriminação histórica em termos de violação de seus direitos humanos, civis e políticos. A
discriminação dupla que sofrem, de raça e de gênero, torna-as vulneráveis à violência e à
impunidade dos agressores, uma vez que forma o estereótipo da mulher indígena como vítima
fácil. Dentre os inúmeros obstáculos que as mulheres indígenas enfrentam no Brasil estão:
exclusão social; poucas oportunidades de acesso ao mercado de trabalho; dificuldades
econômicas e geográficas de acesso aos serviços de saúde e educação; pouca
representatividade no cenário político e marginalização social.
É necessária a garantia aos povos indígenas de determinar livremente seu
desenvolvimento econômico, social e cultural, de forma que possam assegurar-se
subjetivamente enquanto povos diferenciados. Cabe ao Estado avaliar os aspectos culturais
que caracterizem a população indígena, principalmente suas mulheres, sua cosmovisão e seu
conceito de justiça para uma efetiva inserção social democrática. O governo deve adotar
estratégias para facilitar o empoderamento, possibilitar sua participação nas esferas civis e
política e melhorar sua situação socioeconômica. É necessário romper preconceitos e
estereótipos.
denominadas de bruxas durante a idade média foram as primeiras a fazerem resistência num
movimento que, ainda que não organizado, ganhou formato e consolidou-se enquanto
oposição às mulheres que se organizavam em torno do absolutismo europeu. Tais mulheres,
as bruxas, foram duramente perseguidas num movimento historicamente denominado de caça
às bruxas, que percorreu quase toda a Europa, tendo início durante a transição do período da
Idade Média para a Idade Moderna, alastrando-se por muitos anos (Federici, 2017).
Durante o período feudal medieval, eram os Senhores, proprietários dos feudos, que
decidiam sobre o trabalho e sobre as relações sociais das mulheres. Contudo, elas eram
autorizadas a trabalhar nas terras e podiam dispor dos frutos do seu trabalho, ou seja, não
necessariamente dependiam dos maridos para se manter. Ressaltando que, nesta época, as
relações coletivas prevaleciam sobre as relações familiares, havia uma cooperação e
solidariedade entre as mulheres em meio a suas atividades de lavar, fiar, colher, cuidar dos
animais (Federici, 2017). Muitas vezes elas trabalhavam nos comércios locais, nas cidades
medievais, como açougueiras, padeiras, cervejeiras. Embora a igreja católica pregasse pela
submissão da mulher e ainda autorizasse o direito do marido de bater na esposa, pode-se dizer
que nem tudo se resumia a este pensamento na vida delas; elas eram cidadãs que partilhavam
vidas.
Contudo, esta mesma igreja católica passou a usar o termo heresia como acusação aos
indivíduos mal comportados, àqueles que recusavam a subordinação social, política e
religiosa. Foi criada pela igreja a inquisição, também chamada de Santo Ofício, para controlar
que as práticas consideradas hereges não acontecessem. Tudo o que estivesse contra as
decisões da igreja era considerado heresia: o infanticídio era uma heresia equiparada ao aborto
e à sodomia (sexo anal); considerados crimes reprodutivos.
Deste movimento resultou um grande controle político sobre a sexualidade, cuja
função fora da reprodução era vista como dos piores crimes. A igreja passa a constatar que o
poder da mulher residia justamente aí, em exercer influência sobre o desejo sexual dos
homens; e então age com a extrema repressão para exorcizá-lo; as mulheres deveriam ser
evitadas, e a sexualidade só podia ser falada se fosse para confissão.
Ainda de acordo com Federici (2017), autora que é uma grande representante do
feminismo atual, no século XV, marco do final da idade média, movimentos contraditórios
como a descriminalização do estupro acontecia em países como a França, quando eram
cometidos contra mulheres proletárias solteiras. Tal acontecimento criou um clima
extremamente misógino, que abalou o que existia de solidariedade construída no sistema
feudal. Também insensibilizou a população para a tão enraizada violência contra as mulheres;
64
generalizáveis, muito menos exploráveis. A magia fica como uma espécie de insubordinação,
um instrumento de resistência. Soma-se a isto a capacidade de controlar o aumento
populacional, já que a mulher pode escolher entre gerir ou não; o que não era interessante para
a mentalidade de acumulação primitiva, que queria exercer controle sobre os corpos.
Vale ressaltar que a caça às bruxas também pode ser vista como uma forma de
controle sobre a sexualidade feminina. Para que mulheres não arruinassem os homens
moralmente, ou financeiramente, deviam ser eliminadas. Sua capacidade de sedução, de
levantar um pênis ou fazê-lo cair aparentemente à sua vontade, era vista como perigosa
demais.
Devido à escassez de registros e diferenças na forma de conceber o uso dos termos –
ao longo do tempo e da construção de referenciais epistemológicos – não podemos chamar as
“bruxas” de feministas. Contudo, podemos pensar que estas mulheres, consideradas hereges,
mostraram formas de resistência a normas de conduta impostas socialmente, num movimento
semelhante ao que mais tardiamente veio a ser chamado de feminismo. Esta forma de
resistência ilustra que, desde a Idade Média, o controle sobre os corpos não era exercido de
forma naturalizada sobre todas as mulheres.
autorizou o voto deste grupo entrou em vigor em vinte e quatro de fevereiro de 1932; grande
marco cultural político do Brasil.
O nome de Bertha Lutz volta à cena quando, em 1975, o governo a convida para ser
uma das representantes do país no Congresso Internacional da Mulher, ocorrido no México;
cujo marco foi a institucionalização, pela ONU, do ano internacional da mulher.
Vale ressaltar que, embora a participação das mulheres na política seja uma conquista
concreta, a participação ainda é discreta, principalmente quando analisados os cargos mais
altos; por exemplo, Dilma Rousseff foi a única presidente eleita do Brasil, em mais de cem
anos de república. Foram necessários muitos anos para que as mulheres chegassem à Suprema
Corte no país e, embora algumas poucas mulheres estejam ocupando este cargo, nunca uma
mulher negra foi nomeada Ministra das Cortes Supremas (Schumaher & Ceva, 2015).
Atualmente, as representantes mulheres do Supremo Tribunal Federal são Rosa Maria Pires
Weber e Carmen Lúcia Antunes Rocha.
Ribeiro (2018) afirma que a primeira onda do movimento feminista no Brasil ocorreu
no século XIX, por manifestações principalmente sufragistas; enquanto a segunda onda no
país foi na década de setenta, formado principalmente por professoras universitárias, no
cenário de crise da democracia, cujas reivindicações principais das mulheres estavam em
torno de melhores condições de trabalho, contra a ditadura militar; liberdade sexual e contra a
violência neste âmbito.
A respeito da segunda onda feminista, antes dela chegar ao Brasil, já havia
conquistado outros países. Simone de Beauvoir, francesa, companheira de Sartre, foi a grande
precursora desta segunda onda feminista. A partir da publicação de sua grande obra O
segundo sexo em 1949, dividida em dois volumes, suas ideias são estudadas até hoje, pois
trazem uma abertura para reflexões a respeito não apenas da discriminação das mulheres
como também a respeito das divisões de gênero em masculino e feminino. Beauvoir (2016a,
2016b) traz mais reflexões sobre o que é ser mulher do que possíveis soluções à discriminação
que gira em torno deste sexo biológico, permitindo a elaboração de perguntas fundamentais
no que tange a grande questão sobre as insígnias da construção da feminilidade. A grande
contribuição da autora foi destacar que não há uma essência inata sobre a feminilidade: ser
mulher, assim como ser homem, são construções atingidas quando ambos alcançam a
liberdade, por meio de relações: a existência precede a essência.
Ela afirma que o movimento feminista é alinhado da luta de classes e retoma fatos
históricos como o episódio de 1879, em que o congresso socialista proclama a igualdade dos
sexos evidenciando a aliança feminismo-socialismo, pois é a partir da emancipação dos
70
Com isto, vemos que há uma tendência a um nivelamento entre macho e fêmea, o qual
intriga, pois remete a um incômodo a respeito de como a diferença entre sexos é pensada entre
os humanos. Talvez o incômodo da autora tenha origem na rigidez do binarismo: são papéis
atribuídos a homens, enquanto grupo equivalente; e mulheres, enquanto grupo equivalente,
durante o século XIX, o qual precedeu a autora. Tal rigidez desconsidera as singularidades,
dinamismos e construções de identidades; desconsidera, por exemplo, que ser mulher é uma
construção singular, a qual ocorre de acordo com raça, sociedade, política, cultura, religião,
ideais de família e de vida. Ou seja, de acordo com a autora deve ser uma construção que
respeite a singularidade, não deve obedecer a mandamentos sociais burgueses. Cada mulher
será única, assim como cada homem também o será.
Isto quer dizer que atributos inerentes as mulheres, como gerir, amamentar, não devem
ser enaltecidos de forma espetaculosa, pois seria uma recusa a enxergar toda a dificuldade
envolvida no puerpério: a recuperação da vitalidade da mãe é desgastante, ao mesmo tempo,
esta mulher deve amamentar, o que envolve disposição física na melhor das hipóteses, pois a
amamentação pode também ferir o seio da mulher, deixa-la com febre, principalmente em
casos em que há apedrejamento de leite.
Outra questão que Beauvoir (2016a) ressalta são as alterações hormonais pelas quais a
mulher passa, poucas vezes consideradas quando se trata das atividades, por exemplo, de
trabalho das mulheres. Não é comum as mulheres ocuparem os postos altos de trabalho – o
que é muito nítido no âmbito político – devido a discursos sem embasamento que
desvalorizam a competência feminina para cargos de alta responsabilidade; contudo não se
coloca em discussão as necessidades das mulheres em ocuparem-se ao mesmo tempo de
71
serviços de maternagem e serviços de trabalho sem condições apropriadas para isso. O que de
fato são dificuldades inerentes à mulher como gestação, puerpério, alterações hormonais
principalmente no período menstrual, não são falados, não são problematizados; enquanto
questões que são atribuídas às mulheres por puro preconceito, como dificuldade de assumir
posição de poder são a todo tempo falados, com uma naturalidade mórbida. Quando as
questões inerentes à mulher são trazidas, o que é raro, são trazidas para justificar postos
menores de trabalho devido à gravidez, por exemplo; grande absurdo e preconceito. Não se
olha de fato para as diferenças e singularidades que habitam o corpo da mulher, com o devido
cuidado.
Isto comprova que, para não lidar com o outro sexo em sua real diferença, ou ainda
para não lidar com o outro enquanto alteridade, a sociedade masculina diminui este outro
sexo, denigre sua imagem. Colocar o outro como menor, incapaz, é uma forma de não lidar
com a, de fato, diferença. O diferente é o que abala o narcisismo da sociedade masculina, e as
mulheres foram inscritas no discurso, principalmente católico, como o Outro sexo.
Sobre a menstruação das mulheres, Beauvoir (2016a) afirma que foi com o advento do
patriarcado que o sangue menstrual passa a ser visto como sujo, e até carregado de poderes
sobrenaturais. Tudo isto por que o sangue menstrual é um objeto metonímico que pode
representar a feminilidade? É por isso que põe em perigo quem com ele entra em contato?
Diversos mitos já foram construídos para lidar com a menstruação, ao longo de tribos e
civilizações:
Entre os Aleutas, se o pai vê a filha quando das primeiras regras, ela pode ficar cega
ou muda. Pensa-se que, durante esse período, a mulher é possuída por um espírito e
carregada de forças perigosas. Certos primitivos acreditam que o fluxo é provocado pela
picada de uma cobra, pois a mulher tem com a serpente e o lagarto suspeitas afinidades: o
fluxo participaria do veneno do animal rastejante. O Levítico compara o fluxo menstrual à
gonorreia; o sexo feminino sangrento não é apenas uma ferida, é uma chaga suspeita...
Fruto de perturbadoras alquimias interiores, a hemorragia periódica da mulher acerta-se
estranhamente ao ciclo da lua: a lua tem também caprichos perigosos. A mulher faz parte
da terrível engrenagem que comanda o movimento dos planetas e do Sol, é presa das forças
cósmicas que regulam o destino das estrelas, das marés, e cujas irradiações inquietantes os
homens têm de suportar (Beauvoir, 2016a, págs. 211 e 212).
Além destes tabus, ainda há um outro dizer rigoroso de que não é permitido ter
relações com as mulheres quando elas estão menstruadas, cuja prerrogativa precisa ser
seguida sob ameaça de punição, no caso do Levítico e das leis de Manu – legislações de
cunho religioso católico, por exemplo. Ao que parece, o homem procura dissociar este
aspecto da feminilidade, ligado à maternidade, da mulher; e se afasta dela nos períodos
72
No ano de dois mil foi organizada pela ONU a “Marcha internacional de mulheres”,
um movimento feminista internacional que ganhou adesão em mais de cento e cinquenta
países. Dentre as principais pautas estavam o enfrentamento da pobreza e da violência contra
as mulheres. Com isso vemos que pautas antigas, relativas à inclusão econômica das
mulheres, bem como a direitos básicos, como integridade física, perpetuam-se em debate na
terceira onda feminista. (Zirbel, 2021).
No Brasil, uma grande representante do feminismo atual – que pode ser pensado ainda
na terceira onda – é Djamila Ribeiro, filósofa, mulher negra com obras publicadas
reconhecidas internacionalmente. Segundo Ribeiro (2018), mulheres negras são
hipersexualizadas e tratadas como objetos sexuais; concepção que vem do período colonial,
quando mulheres negras eram exploradas e estupradas frequentemente. A mulher negra passa
a ser um ser para o sexo, mulher que não deve ser apresentada à família do namorado. Até
hoje elas são o grupo mais estuprado no Brasil. Se, como dizia Beauvoir, a mulher é o outro
sexo, a mulher negra é o outro do outro.
As seleções para a “mulata globeleza” é um grande exemplo de hipersexualização da
mulher negra que em muito faz lembrar o período de escravidão no qual as negras mais
bonitas e saudáveis eram escolhidas para trabalhar na casa-grande. E estas eram as de pele um
pouco mais clara e com traços do rosto que mais se assemelhavam aos da mulher branca. São
poucas ocasiões em que mulheres negras na Globo apresentam programas; elas ganham
visibilidade no carnaval, confinando a elas o papel da sensualidade como se fosse o único
possível a assumirem, negando suas humanidades e multiplicidades.
Ribeiro (2018) traz uma reflexão importante sobre a “boa imagem da mulher branca”
como a que consegue magicamente dar conta de tudo: ser bem-sucedida no trabalho, cuidar da
casa, dos filhos, e ainda sempre está bonita e magra para o marido. A mulher moderna é a que
tem a cozinha com a geladeira de última geração, o smartphone com mais funções; são
valorizadas questões ligadas à emancipação econômica, e não subjetiva: não será o acesso a
tecnologias de ponta que fará as mulheres sentirem-se mais livres, mas sim elas saberem e
dizerem o que querem e como querem; não se permitirem serem faladas, desconsideradas em
sua subjetividade de mulher, o que inclui, por exemplo, direitos relativos ao trabalho e a
maternidade. É preciso considerar, por exemplo, que mulher é capaz de gestar, amamentar, e é
um sujeito de desejos assim como o homem é. Empresas poderiam ter mais creches para que
crianças fiquem próximas de suas mães, bem como poderiam considerar a amamentação um
processo mais natural dentro no ambiente corporativo.
75
A obra Problemas de gênero (2019), de Butler, é o grande marco teórico desta terceira
onda de feminismo; assim como O Segundo sexo, de Beauvoir, foi da segunda onda, a qual
estava atrelada ao discurso de gênero ser opressor como um todo, pelo fato de ser socialmente
imposto. Dizer, por exemplo, que mulheres são naturalmente maternais é uma concepção que
as associa a afazeres domésticos e passa a mensagem que o espaço público não é o mais
adequado para elas.
Um exemplo atual de que discursos opressivos de gênero podem atuar a qualquer
momento, principalmente em situações vulneráveis, foi a reportagem publicada pela revista
Veja em 2016 referindo-se a Marcela Temer, esposa de Michel Temer que havia recentemente
assumido o poder no lugar de Dilma Rousseff, como “bela, recatada e do lar”; descrição que
claramente contrasta com o perfil de guerreira de Dilma. É uma mensagem que diz que
mulher boa não é presidente, e sim a primeira dama; a que está por trás de um grande homem.
Ribeiro (2018) defende que o movimento feminista precisa ser interseccional. A autora
afirma que é necessário:
... dar voz e representação às especificidades existentes no ser mulher. Se o objetivo é
a luta por uma sociedade sem hierarquia de gênero, existindo mulheres que, para além da
opressão de gênero, sofrem outras opressões, como racismo, lesbofobia, transmisoginia,
torna-se urgente incluir e pensar as intersecções como prioridades de ação, e não mais
como assuntos secundários (p. 47).
Para ilustrar mulheres da resistência feminista mais recentes, trago aqui o nome de
Malala Yousafzai, paquistanesa que em 2014 ganhou o prêmio Nobel da Paz. Esta moça
precisou fugir do Paquistão, pois foi baleada por um Taliban após defender o estudo das
mulheres. Hoje com vinte anos, ela conseguiu concluir a escola e diz que seu trabalho será
ajudar a promover a educação de meninas do mundo todo (G1 Educação, 2017).
Não só na ciência como em outros campos, os homens predominam nos postos de alto
escalão, haja vista na política; como é difícil ver uma mulher eleita, e até se candidatar a altos
postos como o governo, a presidência e o supremo tribunal. E até mesmo em atividades
consideradas femininas como a culinária, e a costura: vemos as mulheres dentre os
funcionários comuns e os homens dentre os grandes mestres.
De acordo com Dunker (2017), a definição de ciência é complexa, pois abrange
diferentes campos do saber como a sociologia, a filosofia, a física. Alguns dos critérios
pensados para definir a ciência que o autor compartilha são de que um conhecimento deve ser
definido e transmitido de uma forma específica, particular; de que deve existir um método a
ser praticado para atingir este conhecimento; de que o conhecimento gerado sempre parte de
saberes anteriormente formados; de que este conhecimento possa ser falseado, ou seja, que o
inverso do que ele afirma seja falso. Trata-se de critérios indiferentes às questões de sexo ou
gênero.
Temos na história antiga, o nome de Hipácia no Egito quem, assim como Joana
D’Arc, foi mais uma mulher acusada de bruxaria e morta pela Santa Inquisição. Seu nome é
citado como a única mulher cientista da antiguidade medieval, até as primeiras centenas dos
tempos modernos (Chassot, 2004). Tratava-se de uma intelectual, professora carismática,
influenciadora de pessoas. Vivia na Alexandria, capital egípcia, centro da cultura grega da
época. Tornou-se expoente do pensamento filosófico neoplatônico. Suas realizações em
literatura e ciência ultrapassaram todos os teóricos da época. Contudo, isto era uma afronta de
uma moça pagã, contra os princípios religiosos severos de acordo com os quais as moças
deveriam ter o saber sobre cuidados com o lar, marido e filhos; nunca sobre a ciência.
Contrariamente ao que muito romance sobre a história das mulheres distorce, o dia
internacional da mulher foi proposto em 1910 por Clara Zetkin, membro do partido comunista
alemão, em luta pelos direitos iguais das mulheres trabalhadoras (Blay, 2001). Foi um período
de movimentos constantes das classes trabalhistas por igualdade de direitos entre homens e
mulheres; o início da percepção que há um jogo de poder calcado em valores patriarcais, que
divide a sociedade em dominados e subordinados e culmina na depreciação da mulher.
Voltando ao Brasil, cito o nome de Julia Lopes de Almeida, escritora, autora de uma
série de obras que retratam a sociedade burguesa de sua época com temas como o político
bem-sucedido, o agiota, a mãe dedicada, o homem de negócios, o oportunista. Esta autora
deveria ter sido uma das fundadoras da Academia Brasileira de Letras, segundo dados
colhidos sobre os principais idealizadores da academia. Contudo, a ABL só foi admitir
mulheres dentre seus membros em 1977, quando escolheu Raquel de Queiroz (Ferreira,
77
2017). O nome de Julia ficou excluído desta comunidade devido à discriminação da mulher
no Brasil.
No campo da ciência da psicologia, as mulheres conquistam lugar não apenas
enquanto cientistas atuantes, mas também enquanto objeto de estudo. De acordo com
Saavedra e Nogueira (2006), há três grandes formas de conceber a mulher no campo da
psicologia, desde que esta área nasceu e ganhou estatuto de ciência; tais formas são distintas e
organizadas por meio de pontos de ruptura nos discursos, os quais assinalam términos e
inícios de período. O primeiro período é marcado por uma figura feminina ausente ou, quando
presente, inferiorizada. O segundo período coincide com a segunda saga feminista; é quando
as mulheres entram na academia e conseguem se enxergar enquanto sujeito e objeto de
estudo, de acordo com suas particularidades. Este período coincide com o surgimento da
psicologia enquanto ciência moderna, no final do século XIX. O terceiro período será tido
como atual, tendo por início o final dos anos oitenta e início dos anos noventa; comumente é
conhecido como período pós-moderno: ele apresenta uma confluência de perspectivas de
estudos sobre as mulheres.
Foi no segundo período que pela primeira vez na história é feita referência às
experiências intelectuais das mulheres, por autores como Galton, citado por Saavedra e
Nogueira (2006), os quais colocam as mulheres como dotadas de capacidades intelectuais
inferiores. Tal crença, ao longo do século XIX e início do século XX foi bastante disseminada
e vista como consensual, pois era uma teoria apoiada inclusive em aspectos biológicos, como
o fato do cérebro das mulheres ser menor – na época pensava-se que o tamanho do cérebro
fosse diretamente proporcional a sua capacidade cognitiva. O ingresso das mulheres nas
atividades acadêmicas teve um papel fundamental para a contraprova de que o tamanho não
define a qualidade; ou seja, a capacidade intelectual não tem relação direta com o sexo
biológico e suas anatomias.
A partir dos anos noventa, o conceito de gênero ganha força e passa a ser concebido,
segundo as autoras, como “um conjunto de princípios que organizam as relações entre
homens e mulheres num determinado contexto social e cultural... performances através das
quais os homens e as mulheres se posicionam uns face aos outros e constroem a sua
subjetividade” (Saavedra e Nogueira, 2006, p. 119). Esta concepção ajuda na reflexão de
gênero como algo dinâmico e situacional; o que é muito diferente do que pensar que ser
mulher ou homem é algo estanque, definido pela biologia. Assim, o gênero passa a ser uma
invenção das sociedades humanas, com a finalidade de auxiliar na construção de arranjos
sociais, bem como atribuir significado a tais arranjos, como forma de estruturar a imaginação.
78
O ativismo feminista foi fundamental a este terceiro período da mulher, ainda vigente no atual
cenário genericamente conhecido por “pós-moderno”, na medida em que permitiu o
refinamento de métodos de estudos para se pensar as mulheres em termos ontológicos, o que
teve por consequência um significativo aumento de mulheres em posições de poder e
liderança, promovendo consequências inclusive em relação a justiça social. Vale ressaltar que
Beauvoir (2016a) alinhava o movimento feminista ao movimento marxista de luta de classes,
por considerar que a marginalização do proletariado estava estruturada de forma similar ao
movimento higienista que marginalizava as mulheres, com base em justificativas teóricas e
discriminatórias que não se sustentam na prática.
Já no campo da psicanálise, há uma ligação com as mulheres e com o feminino muito
forte, já que essa, enquanto forma de tratamento da psique humana, nasce através de estudos
com as mulheres. Não por acaso, pois a moral vitoriana do século XIX, na qual Freud viveu,
quando da criação da psicanálise, era especialmente rígida e opressora para com as mulheres.
De acordo com Kehl (2008), o século XIX comporta uma marca de virada na vida das
mulheres junto à modernidade. Os psicanalistas vieram contribuir no pensamento sobre a
subjetividade da mulher em meio a era moderna, a qual na prática não era tão moderna como
seu nome.
Na “modernidade” as formas de subjetividade da mulher que marcam história são as
confortáveis mães, mulheres que reduzem sua subjetividade à maternidade; ou quando isto
não lhes basta, sofrem de histeria: campo aberto ao início das investigações sobre o
inconsciente com Freud. A psicanálise então vai operar no século XIX, após a Era das Luzes,
em meio a um buraco deixado pelo advento da razão e da consciência: o inconsciente. Ela
advém como uma possibilidade de uma liberdade na construção subjetiva das mulheres, com
o advento da chamada Modernidade. É um tempo de mudança de perspectiva, com o
surgimento de ideias de um sujeito mais autor do próprio discurso.
4.4 - As psicanalistas
Na história da psicanálise, tomando por base seu nascimento com Freud ao final do
século XIX, encontramos mulheres de destaque enquanto clínicas e teóricas, embora elas não
sejam a maioria. Contudo, no referido período histórico, na Europa, uma mulher ganhar
destaque com o seu trabalho fora de casa era digno de destaque, o que justifica trazer aqui
alguns nomes de psicanalistas que ilustram a resistência das mulheres por meio de seus
trabalhos. Foram selecionadas apenas analistas contemporâneas de Freud, dentre elas Anna
79
Freud e Melanie Klein, pelo efeito que seus movimentos tiveram na psicanálise de criação de
novas correntes analíticas: o annafreudismo e o kleinismo; o que exemplifica mulheres com
grandes construções sociais e resistência ao conformismo. Além delas, foram trazidas outras
analistas contemporâneas de Freud, as quais obtiveram destaque por construções teóricas que
estudam as mulheres e o feminino. Assim temos Marie Bonaparte, com sua obra dedicada à
sexualidade feminina; Helene Deutsch, com sua teorização sobre o masoquismo feminino;
Lou-Andréas Salomé, com contribuições fundamentais sobre o amor; Joan Rivière, com o
grande conceito de mascarada, dentro da teorização sobre o feminino. Tais analistas foram
trazidas de forma pontual, de modo a localizar seus trabalhos e contribuições, ao lado de fatos
de suas vidas, que ilustram a saída diferenciada que cada uma delas adotou para lidar com a
feminilidade, em meio a uma época extremamente repressora para com as mulheres.
As primeiras mulheres a ganharem destaque são as contemporâneas Melanie Klein e
Anna Freud, esta é a sexta e última filha do casal Sigmund e Martha Freud. Ambas souberam
inserir-se na psicanálise com firmeza, e convenceram milhares de pessoas de suas posições;
que eram discordantes entre si – Anna e Melanie não foram parceiras, embora fossem da
mesma época e tenham ambas vivido grande parte de suas vidas na Inglaterra.
Anna Freud (1895-1982), filha de Sigmund Freud, austríaca que viveu grande parte da
vida em Londres, é pedagoga de formação. Filha caçula, ela precisou dividir a atenção com
cinco irmãos mais velhos, com os quais teve mais rivalidade do que afinidade, especialmente
com a irmã mais próxima de idade Sophie, dois anos e meio mais velha. Sophie teve pouco
tempo de vida, sua morte prematura ocorreu quando tinha vinte e seis anos de idade, vítima da
gripe espanhola. A família costumava se referir às duas como a bela, Sophie; e o cérebro,
Anna (Instituto Morashá de cultura, 2003). Por ironia ou mera contingência, Anna nunca se
casou. Freud, embora fosse muito próximo a Anna, principalmente enquanto parceira de
trabalho e nutrisse por ela grande admiração intelectual, não mostra de tudo que ela fosse a
filha que ele esperava, por exemplo, quando confia a seu amigo Fliess, médico com quem se
correspondia frequentemente, sua decepção sobre o sexo de Anna; ele gostaria de ter tido
mais um filho homem.
Anna mostrou-se desde esta primeira atuação como pedagoga interessada no
comportamento de crianças; o que fora uma porta de entrada para sua prática clínica na
psicanálise, com crianças. Embora tenha deslocado seu interesse da pedagogia para a
psicanálise, Anna não fez o mesmo com a dimensão psíquica observada, que permaneceu
sendo a dimensão consciente do comportamento; e não o inconsciente, o qual caracteriza a
prática da psicanálise, descoberto por seu pai, Sigmund Freud. Desta forma, sua clínica acaba
80
Contudo, Melanie Klein mostra um posicionamento muito mais próximo do id, do superego e
das incertezas e paradoxos do inconsciente do que Anna. Ela defendia que mesmo em
crianças a análise deveria ser voltada para a interpretação de fantasias inconscientes; e não
para uma adaptação social (Calzavara, 2013). Sua forma de nomear o aparelho psíquico como
calcado nas posições esquizo-paranóide e depressiva foi um grande marco conceitual para a
psicanálise da época, bem como sua inovação em relação ao tratamento das psicoses, o qual
não fora aprofundado por Freud.
De acordo com Roudinesco (1998), Melanie Klein foi a principal expoente do
pensamento da segunda geração psicanalítica mundial. Deu origem a uma das grandes
correntes do freudismo, o kleinismo, contribuindo consideravelmente para o desenvolvimento
da escola inglesa de psicanálise, graças a Ernest Jones (1879-1958). Diferente do
annafreudismo, o kleinismo é uma grande corrente, comparável à lacaniana. Ela não só
contribuiu para a psicanálise clássica, como desenvolveu importantes conceitos teóricos e
técnicos, o que fizera dela uma chefe de escola dentro da IPA. Dentre suas contribuições estão
o tratamento das psicoses – esquizofrenia, borderlines, distúrbios da personalidade ou do self ,
posições esquizo-paranóide e depressiva-; um novo princípio para a psicanálise com crianças,
centrado nas fantasias e no id; a exploração da relação arcaica com a mãe. Sua obra é
composta de cinquenta artigos e de um livro sobre psicanálise de crianças, largamente
traduzida em quinze idiomas. Hanna Segal é sua principal comentadora, e ela ganhou grandes
partidários, como Donald Woods Winnicott (1896-1971) e Wilfred Ruprecht Bion (1897-
1979).
Ainda no início do século XX, aparece Marie Bonaparte (1882-1962), francesa,
contemporânea de Klein e Anna Freud, sobrinha-bisneta de Napoleão I. Sua mãe morreu por
ocasião de seu nascimento, o que fez de sua infância e adolescência um período trágico
(Roudinesco, 1998). Ela foi educada pelo pai, quem apenas se interessava por suas atividades
de geógrafo e antropólogo, e pela avó paterna. Apesar disto, foi uma mulher de vanguarda que
dedicou a vida e boa parte de sua fortuna para a causa psicanalítica. Casou-se com o príncipe
Jorge da Grécia, homossexual que pouco deveria se interessar por ela enquanto mulher,
alcoólatra e conformista, quem fez dela uma alteza coberta de honras. Quando se encontrou
com Freud estava quase realizando um processo cirúrgico, a fim de aproximar o clitóris da
vagina, para conseguir tratar seu sintoma de frigidez.
Marie Bonaparte consagrou à vida à psicanálise, tornou-se uma importante
psicanalista francesa, tradutora incansável das obras de Freud, uma das poucas que se analisou
com ele, cuja análise foi dedicada a tratar o sintoma de sua frigidez, tratamento que foi
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uma jovem de vinte anos. Além da psicanálise, Lou fizera parte de todos os círculos
intelectuais da Europa no pós-guerra, incluindo filosofia, ciência, cinema e arte.
Uma última figura feminina importante que será evocada no campo da história da
psicanálise é Joan Rivière (1883-1962), pioneira da sociedade britânica, com contribuições
nas traduções dos trabalhos de Freud, Klein, dentre outros, devido a seu conhecimento
perfeito das línguas alemã e inglesa, e gosto pela literatura. Ela era diferente de Lou, de uma
beleza melancólica ao estilo vitoriano. Seu estilo era elegante, refinado. Pertencia à
aristocracia inglesa, do que se orgulhava, apesar de que sofria de insônia, dores de cabeça e
angústia; motivos pelos quais se desvalorizava (Roudinesco, 1998).
Mesmo com sua personalidade tímida e simples, desenvolveu uma obra que
influenciou o pensamento de outros autores como Winnicott, Susan Isaacs e Hanna Segal.
Desde a adolescência, Joan se destaca pelo gosto por estudos refinados e o ideal de vida
voltado ao trabalho e produção intelectual, que se aproxima mais do que era tido como
masculino, em sua época. Também contemporânea de Freud e Klein, Joan participou dos
movimentos feministas que lutavam por direitos econômicos iguais e pelo sufrágio feminino
na Inglaterra. Ela se casou ainda jovem, e teve uma filha que foi entregue aos cuidados da avó
materna e da tia, pois Joan sofria de “neurastenia”. Em sua análise com Ernest Jones, ele dizia
que sofria de angústia generalizada, enxaqueca e insônia (Haudenschild, 2017). Após esta
análise, Joan também se analisou com Freud, e tentou convencê-lo da importante dos
trabalhos de Klein; mas ele sempre defendia a filha Anna. Sua vida fora inteira perpassada por
experiências intensas de desamparo e dor, internações em hospitais psiquiátricos, e grande
distanciamento afetivo de sua mãe.
Para a psicanálise de orientação lacaniana, a grande contribuição de Rivière está
relacionada à teorização sobre o feminino; sua criação é o conceito de mascarada, lançado por
ela no artigo: “Feminilidade como uma mascarada” (1929). Ela desenvolve a ideia de que por
trás de uma máscara de feminilidade pode estar escondido o desejo por uma masculinidade,
em mulheres que na escolha de objeto, embora não sejam homossexuais, não são de tudo
heterossexuais. A mascarada é então um disfarce, para esconder ódio e rivalidade para com os
homens, pois o desejo subjacente ao ódio é o de castrá-los e roubar-lhes sua potência.
Anna, Melanie, Marie, Helene, Lou e Joan são mulheres fortes com diferenças muito
marcadas, cujas singularidades as fazem responsáveis pelo próprio discurso, inovador.
Tiveram êxitos e ocuparam papéis de liderança em pleno início do século XX, inovando o
pensamento vigente e trazendo traços de ruptura com o mesmo (Laurent, 2012a). Elas
estavam na psicanálise de corpo e alma, na medida em que em meio a suas análises pessoais
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Em meio a coleta de dados de campo para esta pesquisa, foram solicitados números
absolutos de boletins de ocorrência, medidas protetivas e feminicídios na Delegacia de Defesa
da Mulher onde a pesquisa foi realizada. Em meio a esta busca por números absolutos, foi
possível concluir que não há uma clareza acerca da necessidade dos registros dos
feminicídios. Estes são definidos, de acordo com a lei de 9 de março de 2015, promulgada
pela presidente Dilma Rousseff, como assassinatos em decorrência da violência de gênero
contra as mulheres, e são qualificados como crimes hediondos. Isto significa que os
feminicídios deveriam ser destacados dos demais homicídios dentro das Delegacias de
Polícia, mas na prática isto sofre uma dificuldade para acontecer. Pode-se concluir que, as
políticas públicas que ressaltam o fenômeno da violência contra as mulheres como forma de
preveni-lo, ainda não ganharam o devido reconhecimento pelos próprios policiais, que
deveriam ser os principais envolvidos nestas políticas.
ocorreu o crime. A maioria das vítimas são negras, da faixa etária entre 30 e 59 anos,
solteiras. A maioria dos crimes acontece por meio de arma branca como faca, na residência da
própria vítima. Os dados também revelam que, na maioria dos casos, o assassino era
conhecido da vítima, tendo tido com ela relações afetivas, em alguns casos conjugais (Vila e
Machado, 2018).
O fato de feminicídios acontecerem em grande parte no âmbito doméstico – são
maridos que matam esposas dentro de casa, no âmbito familiar – reforça o pensamento
patriarcal embasado no código civil do Brasil colonial, no qual os maridos tinham direito de
assassinar as esposas adúlteras, bem como suas filhas. Este fato contrasta com a realidade dos
homens, cujos episódios nos quais são vítimas de agressão costumam acontecer em espaços
públicos. Foi preciso o desenvolvimento do slogan “o pessoal é político”, por meio de
movimentos feministas da década de setenta, para desmistificar ideias de que não se pode
intervir em casos de violência doméstica, pois são “assuntos de família”.
Antes da criação e aplicação do termo feminicídio, dentre as políticas públicas no
combate à violência contra as mulheres, esforços já vinham sendo feitos pelo governo federal.
Em 2013, a Secretaria de Políticas para as Mulheres, comemorando uma década de existência
e em sintonia com o ambiente gerado por uma primeira presidenta mulher da república do
Brasil, publica a terceira edição do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, cuja
premissa básica é de que perspectivas de gênero precisam estar inseridas em todas as políticas
públicas como forma de combate à discriminação e à violência contra as mulheres, vista como
decorrência da primeira. O plano foi elaborado em dez pontos: igualdade no mundo do
trabalho e autonomia econômica; educação para igualdade e cidadania; saúde integral das
mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos; enfrentamento de todas as formas de
violência contra as mulheres; fortalecimento e participação das mulheres nos espaços de
poder e decisão; desenvolvimento sustentável com igualdade econômica e social; direito à
terra com igualdade para as mulheres do campo e da floresta; cultura, esporte, comunicação e
mídia; enfrentamento do racismo, sexismo e lesbofobia; igualdade para as mulheres jovens,
idosas e mulheres com deficiências (Senado, 2015).
No ano seguinte, o mesmo governo inicia um projeto de atendimento especializado e
integral às mulheres vítimas de violência, com intuito de todas as capitais do Brasil disporem
de locais onde a vítima inicie seu processo de denúncia contra o agressor, e seja também ali
atendida por demais profissionais de áreas sociais e da saúde pertinentes, bem como também,
quando se fizer necessário, ser no mesmo local abrigada. O local foi denominado de “Casa da
Mulher Brasileira” (Senado, 2015). Este complexo conta, em tese, com delegacia, juizado,
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âmbito público
O Brasil, segundo o Mapa da Violência de 2015, ocupa o quinto lugar no ranking feito
entre oitenta e três países com mais assassinatos de mulheres. Em 8 de março de 2019, o site
do G1 publica reportagem dizendo que o número de feminícídios cresceu no Brasil de 2017
para 2018. O Acre é o Estado que registra um maior número de casos. Roraima foi o Estado
segundo colocado. A justificativa dos estados foi um aumento no número de mulheres
envolvidas com facções criminosas. Parece muito fácil atribuir a um comportamento da
mulher a causa de crimes contra elas; é uma forma de não se envolver mais a fundo nos
âmbitos que permeiam o problema.
A maioria dos feminicídios ocorre em situações de crise de relacionamentos conjugais
ou extraconjugais, como exemplos: após a vítima ter pedido separação ou terminado o
namoro, após a vítima ter engravidado, ou em alguns casos a vítima já havia prestado queixa
de violência doméstica e estava sob medida protetiva. Também são comuns crises nos
relacionamentos após a mulher iniciar um trabalho fora do âmbito doméstico: a vida social
das mulheres, bem como autonomia financeira são aspectos que incomodam alguns homens,
cujas repercussões são crises conjugais embasadas na premissa de posse do homem sobre a
mulher, as quais, aliadas a outros fatores, têm por desfecho episódios de violência doméstica
com alto risco de feminicídio.
Saindo agora das questões específicas do Brasil e retomando o que já foi escrito
anteriormente, a fim de pensar no por que a violência contra as mulheres é tão forte e
disseminada mundialmente, temos que a divisão entre o gênero feminino e o masculino
sempre esteve de alguma forma fazendo discurso e surtindo efeitos político-sociais. Na Idade
Média, por exemplo, havia uma divisão clara de tarefas entre homens e mulheres, sendo que
estas eram colocadas como submissas pela Igreja católica apostólica romana, delegando aos
maridos o direito de bater na esposa, como uma forma de educa-la. As formas de
insubordinação sociais e políticas eram tidas como heresias (Federici, 2017, p. 64).
Já nesta época, havia entre os discursos sobre os sexos práticas de controle de corpos
comprovadas nas proibições da sodomia e do aborto, os quais eram tidos como heresias.
Neste cenário, a sedução, característica atribuída em maioria às mulheres por ser um
comportamento tido na sociedade ocidental como feminino, é vista como perigosa, como uma
armadilha a ser evitada, assim como o ato sexual quando desvinculado da reprodução.
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Dias (2019), discorrendo sobre a mulher no Código Civil brasileiro, escreve que o
Código Civil de 1916:
Retratava a sociedade da época, marcadamente conservadora e patriarcal. Assim, só
podia consagrar a superioridade masculina. Transformou a força física do homem em
poder pessoal, em autoridade, outorgando-lhe o comando exclusivo da família. Por isso, a
mulher ao casar perdia sua plena capacidade, tornando-se relativamente capaz, como os
índios, os pródigos e os menores. Para trabalhar precisava da autorização do marido (Dias,
2019, online).
versam sobre ser menina ou ser menino, homem ou mulher. Ainda que os movimentos de
quebras de estereótipos tenham caminhado com peso, certos rituais insistem em acontecer.
Por exemplo, o casamento cristão, no qual a mulher é repassada em sua entrada do pai para o
marido ilustra a mulher submetida a uma inerência de posse, do homem. Mesmo em
casamentos homo e transsexuais é possível ver o mesmo ritual se repetir, quem se identifica
com a mulher é entregue ao outro, o homem que recebe; o “proprietário”.
Lacan (1982) pensa o feminino e o masculino de forma que vai além das teorias de
gênero, pois ele não está pautado em rituais ou semblantes sociais, mas sim nas formas de
defesa frente à castração (somos seres incompletos). Uma vez que a mulher sente inveja do
pênis (pênis significando o órgão representante do poder) e o homem tem medo da
possibilidade de perdê-lo, estas sensações trazem consequências diferentes na hora de se
portar na partilha sexual; o que não diz respeito de forma direta a comportamentos sociais.
Frente a um homem, uma mulher costumeiramente tende a solicitar amor de forma tão plena e
infinita e a todo custo. Frente a uma mulher, um homem pode tender a dominá-la, para não a
perder, como se ela fosse o seu falo (representação simbólica do pênis).
Muitas mulheres vítimas de violência doméstica buscam uma escuta para suas
angústias, uma espécie de amparo e contenção de seu sofrimento, uma vez que não podem
encontrar essa escuta no parceiro conjugal, já que ele inclusive é a causa de grande parte de
seu sofrimento, e muitas não encontram amparo da família. Assim, a escuta que o psicanalista
pode oferecer para estas mulheres torna-se importante, na medida em que suas falas, diante de
quem de fato quer escuta-las, adquirem grande valor.
Ao mesmo tempo em que elas são escutadas, elas podem falar e se escutar e esta
escuta pode, de alguma forma, contribuir para que elas se reposicionem diante dos fatos e da
violência que sofrem.
A diferença entre escutar e ouvir é fundamental para entendermos o que é a escuta
para a psicanálise. Bastos afirma: “Ouvir nos remete mais diretamente aos sentidos da
audição, ao próprio ouvido, enquanto escutar significa prestar atenção para ouvir, dar ouvido
a algo. Portanto, a atenção é uma função específica da escuta”. (Bastos, 2019, online).
A autora acrescenta:
Quando falamos a um amigo, temos a expectativa de sermos compreendidos, de
confirmarmos nossas certezas, nossos julgamentos. Buscamos uma identificação, uma
cumplicidade. Quando ouvimos um amigo, procuramos lhe dar atenção, confortá-lo, se for
preciso, aconselhá-lo, orientá-lo, enfim, procuramos demonstrar nossa amizade apoiando-o
da melhor maneira possível (Bastos, 2019, online).
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Para indicar a diferença entre falar com amigos e falar a um psicanalista, Bastos
(2019) ressalta a diferença entre este e um semelhante; a relação em análise não é de
reciprocidade, na qual a comunicação é por meio de diálogo; mas sim é construída uma
relação baseada em uma parceria que trabalha. Por parte do psicanalista, há uma escuta e uma
pontuação, de modo a facilitar a emergência do que há nas entrelinhas do discurso; uma
escuta para além do que está dito.
Para concluir este item, chegamos aqui em uma consequência, então importante de
elucidar sobre a relação entre escuta psicanalítica e as políticas públicas contra a violência
contra as mulheres: possibilitar com que as mulheres vítimas de violência adquiram uma certa
capacidade de escutar a si próprias. É essa escuta em relação a si mesmas que pode contribuir
para que elas se reposicionem diante dos fatos e das circunstâncias da violência que sofrem, e
busquem soluções singulares para tentar enfrentar suas dificuldades, inclusive em relação às
agressões que sofrem.
A todo instante mulheres são mortas por homens, em atos que caracterizam
feminicídios, ou seja, são mortes devido à condição de pertencerem ao gênero feminino. Ao
final da Idade Média estas mortes assumiram proporções numéricas catastróficas num
fenômeno conhecido por “caça às bruxas”, como já evidenciado; e o que é mais alarmante, as
mulheres eram mortas com a justificativa etérea de acusações de bruxaria, as quais não eram
passíveis de comprovação e nem ao menos de definição.
Estas acusações envoltas de misticismo e falta de objetividade, reforçam a ideia de que
as mulheres eram acusadas de um crime o qual poderia simplesmente ser definido como a
capacidade de exercerem influência sobre a mente de um homem. Uma vez que alguns
homens estão, mesmo que inconscientemente, embasados na premissa de dominação e posse
sobre as mulheres, não é aceitável se deixar influenciar por elas. Quando um homem mata
uma mulher em um ato de feminicídio, o que ele mata parece ser a sua condição de
vulnerabilidade em relação a ela, insuportável e intolerável, para alguns deles. São mortos
aqueles que oferecem algum tipo de perigo à população; perigo real ou fictício.
A psicanálise, enquanto ferramenta de escuta apurada, escuta que preconiza aspectos
inconscientes, para além da consciência, é um instrumento fundamental ao se pensar em
políticas públicas mais direcionadas e singulares; ou seja, que atendam onde elas mais
precisam, da forma como precisam, e que tenham efeito de mudanças nelas, tanto nos seus
pensamentos como nas suas ações. Ela pode estar presente, na figura de psicanalistas, em
locais de atendimento multidisciplinares às mulheres vítimas de violência, como a Casa da
Mulher Brasileira, bem como também pode ser um instrumento de análise das falas das
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mulheres vítimas e dos homens agressores, uma vez que a fala é um corpo material passível
de ser analisado. Análise esta que serve de parâmetro para se pensar em políticas públicas de
disseminação de informação e conscientização social.
Mídias digitais podem ser compreendidas como toda forma de comunicação por meio da
internet, meio altamente eficaz para disseminar e compartilhar informações na sociedade
atual. Veremos aqui algumas facetas desta forma de conexão que é intimamente ligada a
imagens; como tais imagens podem afetar os grupos de espectadores, tendo como principais
representantes das mídias digitais as redes sociais.
Uma vez que as mídias digitais acompanham o movimento social – fazem função de
espelho aos fenômenos em andamento e são portas abertas para discussões e exposições
inerentes – reflexões sobre o que as mídias podem provocar e auxiliar são fundamentais. A
violência contra as mulheres tem sido um dos principais temas em debate nos últimos anos.
Aqui serão expostas algumas formas de tratar este fenômeno nas mídias.
Em abril de 2018, o senado divulga notícia via internet sobre nova lei acerca da
proteção da mulher, diretamente ligada a riscos de propagação de intolerâncias e preconceitos
pelo mundo virtual: a lei diz sobre a criminalização da divulgação de mensagens misóginas –
que propagam ódio ou aversão às mulheres – pela internet (Agência Senado, 2018). Uma
medida de proteção contra ofensas e minorações à mulher virarem moda. Esta discussão
estava em cheque desde setembro de 2017, quando fora publicada uma reportagem no site da
Câmara sobre violência contra as mulheres na internet e sua impunidade. As deputadas
proponentes de um debate para discussão desta temática vêm com o argumento de que redes
sociais são um meio de fomentar violências contra as mulheres, uma vez que expõem suas
intimidades.
As deputadas Ana Perugini, Laura Carneiro e Erika Kokay, alegam que a maioria dos
crimes de difamação que acontecem na internet é contra mulheres e que a falha nas leis de
proteção contra esta situação em específico a perpetua, gerando a necessidade de se colocar a
situação em pauta. Os traumas psíquicos de uma humilhação pública por via da internet
podem ser irreversíveis, tamanho o impacto emocional que esta violência, de ordem
psicológica, que geram (Câmara, 2017).
Em novembro de 2017, o jornal O Estado de São Paulo publicou reportagem sobre
uma vendedora do interior de São Paulo, quem postou fotos de seu rosto inchado em sua rede
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social, com intuito de dar um basta nas agressões que acometem mulheres diariamente,
efetuadas por cônjuges ou namorados. A delegada de uma cidade próxima apoiou a atitude da
vendedora por se tratar de um ato corajoso, o qual encoraja outras mulheres, via identificação,
a também dar um basta na violência que sofrem de seus pares amorosos, já que as redes
sociais possuem ampla visibilidade (Tomazela, 2017). A mesma delegada diz também que
infelizmente a maioria das mulheres ainda opta por não se expor, devido ao medo do que o
agressor possa vir a fazer com ela e sua situação se agravar.
Vale ressaltar que de acordo com a reportagem publicada no jornal O Estado de São
Paulo em maio de 2017, a violência contra as mulheres é maior no interior do Estado de São
Paulo do que na capital. Isto se explica com facilidade ao pensar que o pensamento acerca do
lugar da mulher no interior é mais provinciano, ou seja, de que a cultura na qual a mulher é
vista como posse do homem e deve a ele obedecer, na medida em que ocupa um lugar
rebaixado, é maior em cidades interioranas, ainda que não sejam tão bairristas. É a
desvalorização da mulher que se mostra propulsora da violência, junto ao estereótipo sexual
de que seu corpo pertence ao homem.
Em reportagem do jornal O Vale, de fevereiro de 2018, temos o dado de que o número
de boletins de ocorrência registrados em uma cidade do interior de São Paulo, sede do Vale do
Paraíba e Litoral Norte, é de uma média de dez por dia. Este dado pode ser atribuído à
discriminação da mulher decorrente de pensamentos que naturalizam o gênero feminino
dentro da opressão social, da ideologia patriarcal, na qual o homem é o chefe da família e
todos devem obedecê-lo, mulher e filhos. Inclusive a maioria dos episódios de violência
acontece nos locais do convívio familiar. A maioria das ocorrências é feita por mulheres
jovens que trabalham, e que, por terem independência financeira, não toleram imposições por
parte do companheiro (Alvim, 2018).
Os autores da referida reportagem mencionam caso de feminicídio contra uma mulher
que engravidou numa situação extraconjugal e não quis abortar. É o machismo como norte de
chacinas, crimes que começam com o tratamento recebido dentro de casa, quando, por
exemplo, filhos que agridem mulheres são protegidos, ou os filhos homens não são chamados
para as tarefas domésticas. Os feminicídios também são costumeiramente “justificados” em
situações de mulheres que registram boletim de ocorrência contra maridos, prostitutas que
rejeitam um cliente a fim de trabalhar para outro.
Voltando-nos para a psicanálise, Kehl (2008) ressalta que o ser humano é um ser de
linguagem, portanto submetido às regras, costumes, interpretações e até imposições que estão
arraigadas à fala. As práticas da fala: “se modificam sutil e lentamente em função dos
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Outra questão a ser articulada é que, uma vez que as informações de redes sociais não
têm a obrigatoriedade de passarem por avaliação, elas podem ser utilizadas como ferramenta
de descarga de sobrecargas pulsionais do id, com menos censura superegóica. Vale ressaltar
que as redes sociais apenas interferem no tipo de informação que virá a ser publicado salvo
grandes exceções, de conteúdo improprio: a liberdade na exposição de conteúdos é muito fácil
por serem gratuitas, de fácil acesso, e sem algum tipo de crivo ou seleção para publicação.
Não há um Outro na função de mestre ditando quais significantes podem ser tratados em suas
páginas, tampouco na função de corretor superegóico. Freud (1921/2006) auxilia na
compreensão acerca da peculiaridade inerente ao poder de contágio de uma ideia quando
propagada em grupo. Vale ressaltar que aqui as redes sociais são vistas como grupos – pois
nelas de fato se formam grupos ideológicos – nos quais um líder atua disseminando uma
informação, ou uma opinião, a qual ali tem o poder de rapidamente se propagar entre
internautas. Numa questão de minutos uma ideia pode ganhar mais de mil adeptos.
O indivíduo nas relações que já mencionei ... cai sob a influência de apenas uma só
pessoa ou de um número bastante reduzido de pessoas, cada uma das quais se torna
enormemente importante para ele. Ora, quando se fala de psicologia social ou de grupo,
costuma-se deixar essas relações de lado e isolar como tema de indagação o
influenciamento de um indivíduo por um grande número de pessoas simultaneamente,
pessoas com quem se acha ligado por algo, embora, sob outros aspectos e em muitos
respeitos, possam ser-lhe estranhas (Freud, 1921/2006, p. 81-82).
evasão da pulsão, aliada a uma possível elaboração de tal experiência por meio de
comentários de membros do grupo que se forma nas postagens. Como é de se esperar dos
fenômenos de grupo, uma mulher que expõe sua situação de vítima de violência doméstica
pode virar líder e ganhar adesão de um grupo de mulheres que se identificam com seu
sofrimento. Suas informações são largamente disseminadas, de forma que algumas
participantes, por meio do contágio, passam a acreditar que elas também podem sair desta
condição. As redes ainda contribuem para disseminar informações como a Lei Maria da
Penha ou como o crime de Feminicídio, ou seja, crime de morte contra a mulher envolvendo
questões referentes ao gênero, e suas maiores chances de incidência – aspectos estes que
problematizam o tema, causando um tensionamento necessário na contribuição a caminho da
diminuição (Miranda, 2017).
Algumas mulheres, vítimas de violência doméstica, buscam nas redes sociais uma
escuta para suas angústias, como já mencionado, uma espécie de amparo e contenção de seu
sofrimento; uma vez que não podem encontrar esta escuta por parte do parceiro conjugal - já
que ele inclusive é a causa de grande parte de seu sofrimento. São parceiros que denigrem a
imagem de suas parceiras, rebaixam-nas à posição de um objeto dejeto. Aqui, as redes entram
em cena como um importante caminho para estas mulheres vítimas, cuja fala se enaltece ao
ter quem, ao menos aparentemente, dá-lhes atenção; enxerga-lhes.
movimento dinâmico. O autor ressalta ainda que um corpo adoecido tende a voltar a libido
para si mesmo; fecha-se do mundo externo, perde a capacidade de amar, enquanto não se
recompõe. Fica evidente como o narcisismo primário, que corresponde ao reconhecimento da
imagem do corpo, é a primeira base para o reconhecimento de si e consequente diálogo com o
social. Na medida em que esta imagem está em risco, sensações de angústia e desamparo
advêm, e torna-se imprescindível uma recomposição narcísica.
Com o “O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada
na experiência psicanalítica”, Lacan (1949/1998) reforça o efeito transformador que culmina
na assunção pelo sujeito de sua própria imagem, embora o dinamismo do sujeito humano seja
inerente, pois ele está em constante transformação a partir de suas relações e laços sociais.
Assumir uma imagem, reconhecer-se como ser para além de seu organismo é imprescindível
para alívio psíquico. Destaco também a prematuridade do parto do sujeito humano em relação
aos outros animais, uma vez que o bebê nasce em um estado de prematuração biológica, sem
conseguir realizar algumas de suas funções vitais sem ajuda, ele é muito dependente do Outro
para garantir sua vida. O desamparo vivido nos primórdios da existência é inevitável e
traumático a todos.
O mesmo autor em “A agressividade em psicanálise” (1948/2003) destaca o quanto
cenas de um corpo despedaçado, marcado pela agressão, judiado, facilmente causa horror e
angústia. Não é por acaso que imagens de corpos agredidos chamam muito a atenção, pois na
empatia com a dor do outro é a iminência da própria dor que está em jogo; só é possível
sensibilizar-se com a dor do outro na medida em que se imagina que poderia ter sido consigo
próprio. É a ameaça de dilaceração do próprio corpo que está evidente nestas imagens.
Em “O estranho” temos uma reflexão de Freud (1919a/2006) sobre o que leva à
classificação de certas coisas e fenômenos como amedrontadores e, consequentemente,
estranhos, embora nem tudo que é estranho seja aterrorizante. Primordialmente, o que é
assustador ao ser humano é a possibilidade iminente de desamparo. O sujeito humano nasce
prematuramente em relação aos outros animais, os cuidados com o recém-nascido são
necessários no nível de sobrevivência: nem ao menos se alimenta sozinho. Levam-se anos e
muito dispêndio psíquico para superar o desamparo fundamental, o qual, por ser inerente à
prematuridade do sujeito humano, nunca é por completo superado. Assim, defesas são criadas
e objetos e fenômenos que remetem a uma possível regressão ao estágio de desamparo serão
certamente rejeitados, pois são vistos como amedrontadores.
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incessante e sempre parcial; como forma de aliviar o mal-estar provocado por sua carga
energética, o movimento pulsional se direciona a objetos inconscientemente eleitos, os quais,
apesar de incapazes de saciar toda a tensão provocada pela pulsão, fazem função de amparo e
contorno. Se oferecem não como a salvação, mas como uma possibilidade de auxílio ao mal-
estar por serem circunscritos, contornados pela pulsão. “A satisfação pulsional, equivale,
portanto, ao percurso do circuito da pulsão em torno do objeto” (Quinet, 2002, p. 81). Vale
ressaltar que é o olhar da mãe perdido desde sempre, uma vez que a mãe dirige seu olhar para
outros objetos além da criança, que provoca o início do circuito pulsional escópico em torno
da dualidade entre o olhar e o ser visto.
O mito da medusa é trabalhado em Freud (1940/2006) como uma faceta entre a pulsão
escópica e a castração, atrelado ao horror pela mulher e seu potencial sedutor. Medusa foi
castigada pela relação sexual que teve com Posseidon e foi amaldiçoada com uma punição,
cuja insígnia colocava que o que ela olhasse viraria pedra. Para “protege-la” de seduzir outro
homem, Medusa nada podia ver.
Quinet (2002) atribui três momentos ao percurso da pulsão escópica, os quais auxiliam
na compreensão deste trabalho sobre o impacto das imagens nas mídias digitais. O primeiro
momento é o que equivale ao autoerotismo, ou seja, o prazer no próprio corpo; o segundo
tempo introduz um objeto estranho no corpo do sujeito, que realiza a ação de olhar a ser visto
por ele mesmo; e o terceiro e último tempo introduz uma pessoa estranha a olhar para este
mesmo objeto estranho. Ou seja, o sujeito do primeiro tempo foi reduzido a um objeto a ser
olhado pelo outro: “somente o objeto brilha em satisfação, o gozo escópico” (Quinet, 2002, p.
76).
É interessante observar como o olho roxo da mulher agredida pode ser visto como este
objeto que emana do sujeito para ser visto e contemplado pelo outro, um outro sujeito
qualquer. Objeto que ganha um estatuto de enorme importância, símbolo da vulnerabilidade,
castração e desamparo fundamental. Remete a sensações profundas de falta de garantias e
angústia.
Ser um ser faltante é o que nenhum sujeito humano quer se haver, é o que provoca a
angústia. Não é espantoso que Lacan (1962-1963/2005) ao falar de angústia remeta este afeto
aos primórdios da constituição do corpo imaginário. Não há nada mais desorganizador ao
sujeito do que o seu corpo, suporte de sua representação no mundo, vir a ser ameaçado. O
autor prossegue a análise dizendo que o mais angustiante é deixar de colocar a sua castração a
serviço do Outro: “Dedicar sua castração à garantia do Outro, é diante disso que o neurótico
se detém” (Lacan, 1962-63/2005, p. 56). Uma vez que ele abdique de dirigir sua falta ao
104
Outro, só restará a ele lidar com a própria castração sozinho: daí advém a angústia, da
impossibilidade de sustentar a própria falta.
Aqui conseguimos compreender porque se torna saudável à mulher expor seus
hematomas para que o outro a veja e a ampare; a angústia sofrida pela mulher agredida é
atenuada ao colocar sua falta a serviço de um outro que irá olhá-la com amparo. Ainda que
este outro, quem se solidariza com a mulher agredida que expõe seu hematoma numa rede
social, seja uma pessoa a princípio totalmente desconhecida, segundo Freud (1921/2006)
quando em grupo os sujeitos se conectam por um ideal, suas mensagens são organizadas por
um líder, e por um fenômeno de contágio solidarizam-se entre si. O olhar do outro sobre si
traz prazer, na medida em que tampona a castração, preenchendo a falta-a-ser inerente ao
sujeito através da libido contida no olhar.
Entrando na última reflexão deste item, a identificação com a vítima também é um
importante fenômeno provocado pelas imagens de corpos agredidos em mídias digitais. Freud
(1914b/2006) introduz o termo identificação relacionando-o ao narcisismo, já mencionado
anteriormente, o qual aqui é visto como uma etapa da constituição do sujeito na qual ele se
apropria da imagem do seu corpo.
De acordo com Lima (2006), é no âmbito do fascínio que está situado o sujeito quando
é capturado pelas imagens expostas nas mídias digitais. Contudo, considerando o poder de
contágio já exposto que ocorre nos fenômenos de grupo, e considerando ainda a dinamicidade
inerente ao sujeito humano, o fascínio inicial pode vir a dar lugar ao processo de
identificação, descrito por Freud (1921/2006), processo mais elaborado, uma vez que abre
caminho para a representação. Na identificação há uma interiorização do objeto e da
dimensão do sentido que o comporta, indo além, portanto, do caráter mágico e instantâneo do
fascínio, o qual é próximo da alucinação. A introjeção leva ao enriquecimento do eu, a um
acontecimento de corpo transformador para a subjetividade.
Uma mulher que sofre agressão verbal do marido, como exemplo, e nunca percebeu
que estas agressões são manifestações de violência, pode passar a ter este discernimento em
meio ao contágio e identificação provocados pelo encontro com mulheres que expõem a
público suas agressões nas mídias digitais. A identificação significa uma introjeção de
aspectos vistos nas mulheres que expõe suas experiências como vítimas, contudo, sem uma
alienação ou um fascínio, sem uma mistura de si com as outras, pertencentes aos mesmo
grupo.
Há na identificação uma renúncia ao amor consigo mesmo em troca do amor pelos
objetos, é a forma de constituir um laço afetivo com os outros. Na medida em que o sujeito
105
abandona o seu ideal de eu substituindo-o pelo ideal do grupo, o qual é colocado pelas
mulheres agredidas como uma tentativa de erradicação destes episódios, o laço criado com o
grupo de mulheres internautas se fortalece, contribuindo para a criação de uma cultura na qual
a minoração da mulher é inadmissível. É uma identificação pela via do desejo, que pode levar
a perda narcísica e ganho em cultura.
Freud (1914a/2006) coloca que a repetição de comportamentos é comum devido ao
fato de haver conteúdo inconsciente determinando esta repetição, o qual não foi elaborado. O
autor afirma que “... o paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu ou reprimiu, mas o
expressa pela atuação... ele o reproduz não como lembrança, mas como ação; repete-o, sem,
naturalmente, saber o que está repetindo” (p. 165). Para que a recordação do que foi reprimido
venha à tona, é preciso que as resistências sejam deixadas de lado, o que significa uma perda
narcísica e consentimento para com o outro. É isto que o grupo de mulheres internautas
promovem, através do contágio, empatia e identificação umas com as outras.
Freud (1919b/2006) escreve sobre a fantasia de espancamento presente em meninas no
período escolar, a qual possui dimensões inconscientes e remete ao masoquismo em ser
espancada pelo pai, ou qualquer figura semelhante substituta. A fantasia se desmembra em
momentos, e pode ser reduzida ao axioma “bate-se em uma criança”. Em um dos momentos, a
pessoa que agride é o pai, e a criança espancada é alguma coleguinha ou irmã; adiante a
criança passa a ser a própria menina: de sádica a fantasia passa a ser masoquista. Esta fantasia
foi pesquisada pelo autor, com a conclusão de que ela permanece atuante no psiquismo do
sujeito do sexo feminino; em meninos a fantasia foi menos evidente. Certamente, podemos
fazer uma relação entre a fantasia masoquista e os episódios de agressão; já que o
inconsciente é atemporal. Tal fantasia inconsciente pode ocasionar uma repetição para com o
comportamento masoquista de ser agredida, sem que as mulheres tenham consciência. Para
uma elaboração desta fantasia e suas dimensões masoquistas subjacentes, é necessário que as
resistências sejam postas de lado, para que, tanto o caráter sádico quanto o masoquista, cedam
lugar a um cuidado consigo mesma e empatia para com o outro. Por meio da identificação, é
possível a conquista de uma forma de subjetividade que tenha empatia com o outro e não
reduza episódios de violência doméstica a meras brigas de casais, mas sim a um grande
problema social a ser combatido.
Para finalizar a reflexão sobre as mídias, podemos observar que, embora as mídias
digitais possam ser propulsoras de divulgação de frases misóginas, e possam ser vistas como
facilitadoras de ideologias discriminatórias das mulheres, atualmente existem leis de proteção
a este tipo de comportamento hoje tido como crime. É importante destacar que as mídias
106
digitais são capazes de contribuir para uma problematização e até diminuição da violência
contra as mulheres, uma vez que podem encorajar mulheres a expor suas situações,
sensibilizando a população para a profundidade da temática e inclusive sensibilizando
mulheres a dar um basta em situações de violência que sofrem.
O mundo das imagens, representado grandemente pelas redes sociais, pode ser
interpretado como raso e escasso de sentido; contudo numa análise mais detalhada podemos,
com ajuda da psicanálise de Freud com Lacan, elucidar questões inerentes às fotos postadas
que mobilizam nos espectadores afetos dos mais profundos, causando empatia e coragem nas
mulheres que sofrem violência. Claro que a violência também acomete o sujeito do sexo
masculino, mas temos dados estatísticos que mostram o Brasil como um dos campeões
mundiais de violência contra as mulheres e dados históricos que mostram um pensamento
pejorativo e discriminatório em relação às mulheres que data de milênios, desde os primórdios
da civilização ocidental.
107
A psicanálise nasceu em meio a pacientes mulheres. Não é por acaso que até hoje a
temática do feminino – mais próximo às mulheres do que aos homens, na maioria das vezes –
se faz tão presente nos círculos psicanalíticos; já que foram elas, as mulheres, que
sensibilizaram Freud a sofrimentos até então nunca olhados. Freud e Breuer descreveram a
vida de Ana O. – conhecida como o caso pioneiro da psicanálise – como restrita e monótona,
contradizendo o vivo e diverso intelecto que ela carregava. Apesar de não ter demonstrado
interesse pelo movimento feminista que já existia em sua época, representado principalmente
pelas sufragistas, Freud foi extremamente sensível ao sofrimento das mulheres com o perfil de
Ana O., as quais inauguraram uma nova forma de se pensar a saúde psíquica (Kehl, 2018).
Além do fato da cultura vitoriana delegar às mulheres um lugar social extremamente
inexpressivo e tedioso, há questões biológicas e de cuidados neonatais que complicam a
sexualidade feminina e a feminilidade – entendendo a primeira como ligada às questões
eróticas e a segunda como ligadas às formas de se habitar um corpo de mulher. Uma questão é
o fato das mulheres terem dois órgãos sexuais: o clitóris e a vagina, ao passo que os homens
têm apenas o pênis. Outra questão são os cuidados neonatais recebidos, costumeiramente pela
mãe, genitora do mesmo sexo; os quais dirigem o movimento libidinal numa direção
homossexual o qual, posteriormente, pode, ou não, ser deslocado ao pai, genitor do sexo
oposto (Kehl, 2018).
A sexualidade em âmbito psíquico é presente e central na psicanálise, pois é ali que se
encontra o mais íntimo e profundo no que há de humano. Freud escandalizou a sociedade
vitoriana de sua época ao estudar a psicosexualidade nas crianças. Ao longo da obra ele se
debruça sobre a psicosexualidade nas mulheres – o que também era tabu para a época, pois
havia uma divisão clara entre o sexo nas mulheres casadas, associado à reprodução enquanto
o sexo por prazer era encontrado com as prostitutas, ou cortesãs. Lacan persiste no interesse
sobre o feminino e as mulheres, inaugurando a temática da sexuação pautada na teorização
sobre os gozos.
A vida de Freud foi permeada pelas mulheres desde sua mais tenra infância, uma vez
que cresceu junto a cinco irmãs, e apenas um irmão. Ele nasceu no final do século dezenove,
foi o primogênito de sua mãe, embora não de seu pai, quem já viúvo por duas vezes. Mannoni
(1994) tem uma biografia dedicada ao pai da psicanálise, na qual o descreve na vida pessoal
108
em paralelo a suas obras e percurso de analista. Esta biografia foi escolhida como referência,
pelo fato de apenas ser destacada a parte da vida de Freud que levanta reflexão sobre a
construção de suas obras, principalmente no que tange à sexualidade feminina, à feminilidade
e ao feminino.
O autor conta que Freud teve sua primeira paixão aos dezessete anos, quando, devido a
sua ambição de entrar na universidade, precisou se hospedar em uma casa de família na qual
havia uma moça de quinze anos. Ela foi seu primeiro amor, que foi mantido em segredo,
embora não fosse efêmero. A jovem, quem se chamava Gisela Fluss, também estava ali em
férias e logo foi embora para voltar para a escola, causando uma distância que alimentou
ainda mais este amor platônico.
Ainda jovem Freud decide ser médico, o que inevitavelmente o fez passar pelos
percalços de ter vindo de família pobre, sem dinheiro para ganhar os estudos. Ele escolhe se
casar com Martha, também de família pobre. Os noivos tinham como planos um casamento
aos moldes burguês, o que se tornou um desafio que alimentou o romantismo.
Foi curioso como Freud não inovou no quesito do casamento ao decidir fazer o seu
seguindo o modelo burguês; justo ele que tanto inovou em conhecimento da psiquê humana.
Martha foi sua escolhida para compartilhar da família tradicional, e o apelido que Freud a
chamava era “mamãe” (Mannoni, 1994), nada muito erótico. O pai da psicanálise não
apresentou interesse pelo movimento feminista que se lançava na Europa na época da
primeira guerra. Aparentemente, ele queria manter sua mulher apenas no papel de mãe, e não
a envolver nos assuntos que dizem respeito, de fato, à feminilidade.
É curioso que a mesma pessoa que em “Moral sexual civilizada e a doença nervosa
moderna”, (Freud 1908/2006), venha criticar os desastres subjetivos que a repressão libidinal
pode causar às mulheres, quando elas são reduzidas à função de maternagem, fez
aparentemente a mesma coisa com sua mulher Martha. A figura da mulher fora da
maternidade era comumente associada à da prostituta quando da época da moral vitoriana, o
que pode ser um motivo para a incoerência de Freud.
Freud parece então mais um adepto da união não entre o homem e a mulher, mas sim
entre a mulher e o lar, pois desta forma acreditava-se que a virilidade do homem burguês seria
sustentada. E isto é visto em sua teoria ao afirmar que a saída mais elaborada do complexo de
Édipo da menina é a maternidade (Freud, 1931/2006).
Freud também não foi um artista. Ele via nas obras algo rico em conteúdo, contudo
não era um grande apreciador do aspecto estético. O que vai de acordo com um
109
Marguerite tinha uma visão lúcida das relações de poder e assim podia julgar a hipocrisia que
ela via na família Lacan, a qual será aqui relatada. Ela guardou uma lembrança terrível de seu
período de internação e guardou mágoa de Lacan por nada ter feito para tirá-la do hospital.
Estes aspectos deixam dúvidas de qual era afinal a profundidade da relação entre os dois.
Nesta época Lacan namorava Marie-Thérèse Bergerot, uma viúva austera, quinze anos
mais velha do que ele, quem contribui para sua intelectualidade lhe apresentando obras de
filósofos e viagens de estudo. Contudo, em concomitância ele inicia um romance com Olésia
Sienkiewicz, uma mulher de espírito rebelde e aparência andrógina, quem era ex-mulher de
seu amigo Pierre de la Rochelle. Ela virou sua companheira de viagens de férias improvisadas
em passeios a altas velocidades pela França. As duas mulheres participaram de sua defesa de
doutorado em medicina, embora ignorassem a presença uma da outra. Lacan se mostrou desde
então reativo a monogamia e incapaz de romper um relacionamento, ficando a critério da
mulher esta decisão (Roudinesco, 1994).
Ele cai em tristeza em análise com Loewenstein ao se deparar com a dificuldade de se
separar de Marie-Thérère e com o fato de sua relação com Olésia dar mais certo quando
mantida à distância. Assim, ele percebe que a felicidade lhe escapa e a impaciência lhe
impede de aproveitar o momento presente. (Roudinesco, 1994).
Em meio a esta incapacidade de decisão, Lacan conhece um novo amor, Marie-Louise
Blondin, apelidada de Malou, quem vem a ser sua esposa. Malou era irmã de Sylvain
Blondin, irmão a quem ela mantinha um amor sem limites. Ele, também médico, era um
homem culto, extremamente sedutor e grande colega de Lacan com quem mantinha uma
relação de admiração mútua. Com facilidade, Malou projeta Sylvain em Lacan, sem se dar
conta que o irmão não era adepto da psicanálise, e via em Jacques Lacan um belo psiquiatra, a
altura de sua superioridade (Roudinesco, 1994).
Malou tinha um temperamento artístico e talento para pintura, era avançada em termos
intelectuais, também em seus gostos e aspirações; contudo isto não a levou a algum traço de
subversão com a sociedade da época: permaneceu ligada de forma rígida a uma ideia
tradicional burguesa de conjugalidade (Roudinesco, 1994).
Lacan se apaixona por esta mulher e a necessidade do casamento se faz presente, pois
não cabia ser amante de uma mulher jovem e inexperiente. Ele se casa no início da década de
trinta, aparentemente sem se dar conta das consequências da contradição entre a vida conjugal
a que ela aspirava e a vida amorosa que ele levava. Não é de se estranhar que a ruptura com
Olésia jamais se consumou. Ele inclusive lhe mandou cartas de amor em plena lua de mel na
Itália. O casal Malou e Lacan, mantido por uma idealização que não convinha com a
111
longe de partilhar com ele do mesmo amor que a irmã, de mesma idade, só que filha de
Sylvia, partilhava (Roudinesco, 1994).
Sylvia cada vez mais se fortaleceu como mulher de Lacan na década de quarenta, com
quem ele viveu até o final da vida. Eles se casam em cartório em 1953. Moraram juntos na
rua Lille, onde possuíam dois apartamentos: em um deles vivia Sylvia, Judith, Laurence – sua
primeira filha – e a mãe de Sylvia. Laurence Bataille tornou-se uma renomada psicanalista e
muito engajada em movimentos sociais, assim como a mãe. No outro apartamento, Lacan
atendia seus pacientes e também recebia suas amantes; ele permaneceu avesso à monogamia.
Lacan também teve uma secretaria muito devota, Glória (Roudinesco, 1994).
Os registros falam do quanto Lacan adorava Sylvia, do quanto a ouvia e admirava. O
nome da filha que teve com ela, Judith, foi em sensibilização à vida dos judeus na época da
perseguição nazista. Judith foi uma psicanalista seguidora dos preceitos do pai, casada com
Jacques Miller, quem na época da união era apenas aluno de Lacan, hoje seu redator
responsável por suas obras e sua escola (Miller, 2001).
O autor francês estudou com bastante cautela e profundidade a mulher e as facetas do
feminino, bem como ressaltou a importância do pai na subjetivação e elucidou de forma
minuciosa o feminino e o masculino tomando por base os modos de gozo que serão aqui
vistos em breve.
Sua forma de pensar a sexuação vai de encontro ao seu espírito inovador e autêntico.
0Colocou a posição sexuada para além da rigidez da biologia, atrelada a uma escolha que
parte de um sujeito falante, embora haja sempre um resto que vai além da palavra,
representado pelo gozo feminino que será apresentado adiante. Embora a concepção de sujeito
implique na importância da fala, algo lhe escapa, o qual será possível contornar, mas não
representar em palavras. Não sabemos ao certo se sua dificuldade inicial com as mulheres,
contada na biografia acima, foi talvez um gatilho para pensar a sexuação, mas podemos
concluir que Lacan foi fortemente envolvido por elas. Era uma pessoa livre, que vivia
apaixonadamente, sempre quebrando paradigmas conservadores e criando novos; além de ter
tido um profundo envolvimento com sua última mulher, envolvimento representado também
na sua forte ligação com a filha Judith e o genro Jacques-Alain Miller.
É na obra “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, que Freud (1905/2006) inicia a
reflexão sobre o feminino ao afirmar, referindo-se às transformações da adolescência, que
113
Também é neste texto que é introduzido o termo masoquismo, uma concepção que
designa o prazer na dor e, também, o prazer obtido em situação de sujeição ou humilhação. O
masoquismo é trabalhado junto com o sadismo, como facetas universais da vida sexual, vistas
não apenas na perversão como na vida sexual como um todo. É aqui que Freud (1905/2006)
se depara com a fantasia masoquista inconsciente, caraterística da neurose, embora velada
pelo recalque. Isto significa que o desenvolvimento e satisfação da sexualidade humana são
marcados por tendências sádicas e masoquistas. Mas, também pode acontecer uma fixação
nestes componentes da sexualidade, o que devido a suas características pré-genitais e
polimorfas, caracteriza uma aberração sexual. Desta forma, o masoquismo é perverso quando
a satisfação pulsional está condicionada à dor advinda do objeto sexual. É importante destacar
ainda, que o autor não coloca o masoquismo como uma atitude exclusivamente passiva, pois o
localiza como um sadismo voltado ao próprio sujeito pulsional.
Em “O instinto e suas vicissitudes” Freud (1915/2006) coloca que a transformação do
amar em ser amado responde a dualidade da passividade e atividade inscritas no inconsciente,
o que é fundamental ao posicionamento sexual. É neste momento que o autor retifica a
atividade como forte aliada ao masculino e a passividade ao feminino ao dizer que: “A junção
da atividade com a masculinidade e da passividade com a feminilidade nos confronta, na
realidade, com um fato biológico, mas não é de forma alguma tão invariavelmente completa e
exclusiva como tendemos a presumir” (Freud, 1915/2006, p. 139). Aqui a passividade aparece
como um mecanismo de retorno da pulsão ao eu, característico do processo de narcisismo.
Um dos possíveis destinos da pulsão seria esta espécie de inversão: ao invés dela ser
direcionada ao mundo externo ela retorna ao eu, recolhe-se no próprio eu, como um artefato
que protege e ao mesmo tempo causa inibição. Na referida edição das obras de Freud, o termo
alemão trieb é traduzido por instinto; ressalto que neste trabalho o mesmo termo é utilizado
como pulsão.
Este texto, portanto, abre a reflexão sobre o feminino e o masculino não se resumirem
nem equivalerem à passividade e à atividade. Além disso, também aprofunda na dimensão do
masoquismo, como um movimento pulsional pertencente às três grandes polaridades que
dominam a vida pulsional, que são: a atividade-passividade, descrita como de ordem
biológica; ego-mundo externo, de ordem real; e prazer-desprazer, na qual é abordada a
dinâmica do masoquismo, de ordem econômica. Em relação ao movimento pulsional, o
masoquismo é descrito como uma reversão do sadismo, que se dirige em direção ao próprio
eu. Embora ocorra mudança do objeto para o eu, a finalidade da pulsão permanece inalterada,
é a mesma tortura. O processo é descrito da seguinte forma: a origem da pulsão é sádica,
115
sendo que o sadismo consiste no exercício de violência ou poder sobre outra pessoa; num
segundo momento, esta outra pessoa é abandonada e substituída pelo próprio eu, juntamente à
mudança da finalidade pulsional de ativa para passiva. Neste segundo momento, a
transformação do sadismo em masoquismo acarreta um retorno ao objeto narcisista. No
último momento, que é quando se opera o masoquismo, uma pessoa estranha é mais uma vez
procurada como objeto, a qual assumirá o papel do sujeito que exerce a violência, ou poder.
Neste terceiro momento, o sujeito narcisista é substituído por outro ego, estranho, através da
identificação. O autor ainda coloca que a fruição não é da dor em si, mas da excitação sexual
concomitante, ou seja, o masoquismo novamente aparece vinculado à pulsão sexual (Freud,
1915/2006).
Freud (1919b/2006) discorre sobre a fantasia “Uma criança é espancada” encontrada
em crianças do período escolar, em três tempos, nos quais ciúmes, masoquismo e rivalidade
estão presentes. Foi feita uma pesquisa com quatro meninas e dois meninos, e o autor relata
dificuldade na análise dos sujeitos meninos, o que indica que é uma fantasia
predominantemente feminina. É importante ressaltar que, neste ano de 1919, ele ainda não
havia teorizado sobre a dissimetria entre meninos e meninas, o que fará a partir de 1923. Esta
fantasia já foi trazida no tópico anterior e é aqui retomada para maior ênfase dos trechos de
Freud escolhidos para se pensar o feminino.
O primeiro tempo da fantasia inicia-se com a frase “Uma criança é espancada”, e
encerra-se com uma formulação mais precisa: “O meu pai está batendo na criança que eu
odeio”. Aqui os ciúmes prevalecem como o afeto desencadeador: uma menina se vangloria
com o fato de que outra criança, a qual ela não gosta, é punida com agressão pelo pai que ela
ama. Este pai, portanto, a ama também porque pune o outro e não a ela. Este tempo o autor
coloca como uma fantasia de nível consciente, a qual se acessa com facilidade.
Já o segundo tempo é visto como o mais importante e de nível inconsciente. Nunca
será lembrado, mas pode ser construído em análise. Ele é descrito pela frase: “estou sendo
espancada pelo meu pai” – o que atribui à fantasia um caráter nitidamente masoquista. Esta
fantasia é uma irrupção do sentimento de culpa da menina, quem obteve prazer incestuoso
anteriormente ao ver o outro ser espancado pelo seu pai. O fato de ela ser advinda do
sentimento de culpa faz com que permaneça inconsciente, devido ao recalque.
No terceiro tempo, há uma indefinição tanto no agente quanto no receptor da agressão;
a fantasia torna-se, portanto, um axioma. Ele pode ser resumido na frase: “bate-se em uma
criança”. O autor pensa este tempo como relacionado à excitação sexual advinda da visão de
116
uma criança sendo espancada, a qual proporciona a satisfação masturbadora. Castigos e outras
demais humilhações podem aparecer aqui como substituindo a agressão física.
Em “O problema econômico do masoquismo”, Freud (1924a/2006) define três tipos de
masoquismo à luz de sua observação: o masoquismo erógeno, definido como uma condição
imposta à excitação sexual que obtém prazer do sofrimento; o masoquismo feminino, uma
expressão da natureza feminina, ao qual ele dedica uma análise mais minuciosa; e o
masoquismo moral, cuja natureza advém de um sentimento de culpa inconsciente, por não
haver seguido determinadas normas de comportamento e condutas sociais.
Ele prossegue dizendo que o masoquismo feminino se baseia no masoquismo
primário, erógeno, no prazer advindo do sofrimento. Desta forma, este texto modifica a
proposição anterior de que o masoquismo seria posterior ao sadismo, já que coloca a
existência de um masoquismo primário, o qual atua pela via pulsional além do princípio do
prazer. Ao analisar fantasias masoquistas, ele conclui que situações caracteristicamente
femininas lhes são inerentes; por exemplo, ser castrado, ser copulado, ou dar à luz a um bebê.
Alinhado à reflexão exposta no texto anterior de 1919, Freud (1924a/2006) afirma que
o desejo de ser espancado pelo pai se encontra muito próximo ao desejo de ser por ele
copulado; de ter uma relação sexual passiva, ou feminina, com ele. Também pode-se pensar
em tais traços masoquistas junto ao masoquismo moral; o que reduziria os três tipos de
masoquismo a uma única situação: o masoquismo aqui seria uma forma de regressão, aliado
da pulsão de morte, à moralidade sexualizada – uma espécie de nova vivência regressiva do
complexo de Édipo.
Avançando na obra freudiana, temos uma produção mais intensa sobre
psicossexualidade e sobre o feminino entre os anos 1924 e 1933. A começar pelo texto A
dissolução do complexo do Édipo, Freud (1924b/2006) aqui fomenta as consequências do
conflito edípico para além das identificações com pai e mãe. Ele desenvolve primeiramente a
concepção de angústia de castração que permeia o masculino, a qual tem origem na visão da
menina como um sujeito que não têm pênis, e o consequente temor do menino acerca da
possibilidade que esta visão dispara de perda do seu próprio pênis. É importante destacar que
o pênis é um representante fálico e que o masculino, segundo este raciocínio, pode ser
pensado como o sujeito que se vê como o portador do falo imaginário. É importante distinguir
o falo imaginário do falo simbólico: o primeiro é o falo do mundo das imagens mentais, como
pênis, carros, dinheiro... objetos emblemáticos efêmeros, que não se sustentam pelo discurso,
associados ao narcisismo. Já o falo simbólico pode representado pelo poder da palavra: é a
garantia sustentada pelo discurso, o qual opera em meio à cultura, em meio a um contexto no
117
algumas mulheres, inclusive, não a efetuam, o que ele coloca como um germe da paranoia nas
mulheres: o temor inconsciente de ser morta, devorada pela mãe.
A reflexão sobre a troca de objeto de amor nas mulheres é pensada enquanto uma
dupla troca, simultânea: em seu corpo – do clitóris para a vagina – e em seu objeto de amor –
da mãe para o pai.
Neste momento, ele se debruça sobre as consequências do complexo de castração na
menina, o qual teria mais dificuldade de elaboração do que nos meninos, por vir
anteriormente ao complexo de Édipo. As consequências são três: a primeira é um rechaço da
sexualidade; uma não elaboração do sentimento de inferioridade de origem anatômica seria
responsável por este rechaço. A segunda consequência é a assunção de uma posição
masculina, advinda da persistência da fantasia de possuir um pênis. Esta posição pode
também resultar numa escolha de objeto homossexual, segundo o autor. A terceira
consequência, que para o autor é considerada a feminilidade normal, é a elaboração do
complexo do Édipo, cuja decorrência é a escolha pelo pai como objeto, o que abre portas para
se ter um filho com um homem, representante do pai.
A fase de ligação da menina à mãe é uma fase pré-edipiana, que aqui apresenta uma
ligação muito maior do que nos meninos. Este texto é o momento freudiano fundamental de
ênfase na mãe, enquanto objeto libidinal pré-edípico da menina, ligação esta que ganha uma
importância fundamental na sexualidade feminina.
É possível observar que esta ligação pré-edípica com a mãe comumente se repete, de
forma inconsciente, mais tardiamente, com o marido: afetos pré-edípicos podem vir à tona
num movimento de retorno do recalcado. O que retorna neste caso são conteúdos arcaicos,
confusos e ambíguos por serem primários: não sofreram a organização advinda da elaboração
do complexo de castração. Freud (1931/2006, p. 239) afirma que:
O amor infantil é ilimitado; exige a posse exclusiva, não se contenta com menos do
que tudo. Possui, porém, uma segunda característica; não tem, na realidade, objetivo, sendo
incapaz de obter satisfação completa e, principalmente por isso, está condenado a acabar
em desapontamento e a ceder lugar a uma atitude hostil.
O autor ainda trás fantasias relacionadas a esta fixação de libido no objeto materno,
como a fantasia da mãe ser a culpada pela menina ter vindo ao mundo mulher, e também ser
culpada por não a ter amamentado o suficiente, deixando-a numa sensação de insatisfação.
Contudo, não são motivos que justifiquem a hostilidade da menina. A melhor explicação é
encontrada na consideração de que a relação entre a menina e a mãe é muito próxima do pior,
por estar embasada num amor pré-edípico muito primitivo, ambivalente e imaturo. Da mesma
forma, o casamento de mulheres, principalmente as que se casam imaturas, sem terem
120
A palavra “catástrofe” está sendo usada dando sentido a algo na relação mãe e filha
que, quando não elaborado, leva ao pior. A catástrofe seria a demanda de amor da menina à
sua mãe, de forma desorientada e ambígua, que conduz a sensação de não estar sendo amada
pela mãe o suficiente; pois a demanda dirigida a ela é insaciável. Consequentemente, a
menina se sente incapaz de ser amável, sente-se um objeto dejeto.
Em relação às tendências passivas, conquistadas com a elaboração do conflito
edipiano, e as quais auxiliam no desligamento da menina à sua mãe, serão mais elaborados na
conferência “Feminilidade” (1933/2006). Aqui entendemos que a passividade é uma
conquista advinda da menina não mais precisar demandar amor à mãe, pois o ato de demandar
é ativo. E o novo posicionamento seria ser o objeto de amor escolhido pelo pai,
posicionamento onde predomina a passividade.
O último escrito do pai da psicanálise sobre o feminino aparece então, finalmente, de
forma mais madura em 1933: sua conferência intitulada “Feminilidade”. Aqui ele destaca que,
embora quando se conheça uma pessoa uma das primeiras perguntas que se mentalize a
respeito do desconhecido é se estas falando com um homem ou com uma mulher, caracteres
femininos e masculinos acompanham todos os seres humanos; mesmo quando tais caracteres
são vistos do âmbito da concretude biológica:
... partes do aparelho sexual masculino também aparecem no corpo da mulher, ainda
que em estado atrofiado, e vice-versa. Considera tais ocorrências como indicações de
bissexualidade, como se um indivíduo não fosse homem ou mulher, mas sempre fosse
ambos – simplesmente um pouco mais de um, do que de outro. E então se lhes pede
familiarizarem-se com a ideia de que a proporção em que masculino e feminino se
misturam num indivíduo, está sujeita a flutuações muito amplas... a masculinidade ou a
feminilidade é uma característica desconhecida que foge do alcance da anatomia (Freud,
1933/2006, p. 115).
121
Aqui ele retoma a ideia de passivo ligado ao feminino e ativo ligado ao masculino e
relaciona tal ideia ao comportamento do produto sexual do homem: o sêmen, que corre na
direção do produto sexual da mulher; enquanto o óvulo o recebe em repouso. Este modelo de
conduta do sêmen e do óvulo seriam protótipos da conduta sexual dos indivíduos. Contudo,
Freud (1933/2006) avança na reflexão e diz que esta agressividade masculina relacionada a
apanhar a fêmea e nela penetrar, em algumas espécies animais, é uma atividade usada
unicamente no ato sexual; em todos os outros comportamentos a fêmea se mostra mais
agressiva e ativa, é o caso, por exemplo, das aranhas. Mesmo as funções de maternagem,
tipicamente femininas para o autor, não estão invariavelmente ligadas ao sexo feminino nos
animais: algumas vezes os dois genitores dividem esta tarefa, e em outras vezes é tarefa
exclusiva do macho.
Desta forma, é inadequado reduzir atividade ao masculino e passividade ao feminino;
uma mãe é ativa quando cuida de seu filho. Uma conclusão muito interessante desta
conferência é que na feminilidade, embora não necessariamente predomine atitudes passivas,
há predominância de escolha por fins passivos; o que não são sinônimos, pois para se chegar a
um fim passivo há um grande dispêndio de atividade. Isto para Freud seria um caminho
pulsional, independente de costumes sociais que impelem as mulheres a uma situação passiva.
Vale ressaltar que toda oposição quando tomada de forma binária e generalizada pode ser
considerada totalizante, como uma forma de impor uma consistência à inconsistência inerente
às relações entre parceiros.
No masoquismo, visto acima através do texto “Bate-se em uma criança” de 1919 como
tipicamente feminino, aqui na conferência de 1933 é visto como uma supressão da
agressividade nas mulheres, com origem tanto constitucional quanto de imposições sociais.
Homens com características masoquistas permanecem como enigma, pois não se pode
concluir facilmente que estariam fazendo uso de traços femininos ao se mostrarem
masoquistas.
Neste momento, Freud (1933/2006) mostrou-se interessado em aprofundar o estudo
na operação de troca de objeto libidinal na sexualidade feminina da mãe para o pai, cujo
marco é o desligamento – ou ao menos abrandamento – do poderoso vínculo entre a menina e
sua mãe. Para isto, ele retoma fantasias infantis da menina, tais como a crença de que a mãe
não a nutriu o suficiente com seu leite, a qual seria justificada no fato de que as mães não têm
leite suficiente para seus filhos e, ademais, muitas mães se contentam em amamentar apenas
nos primeiros meses de vida dos seus bebês. A segunda fantasia de ataque à mãe é oriunda do
nascimento de um novo bebê: o amor infantil é ilimitado, não tolera partilha. Um irmão é
122
pela psicanálise, é curioso ver um grande intelectual, que iniciou seus trabalhos de cunho
progressistas com mulheres, não se interessar pelo movimento feminista.
Para encerrar a retomada freudiana no que tange ao feminino e às mulheres, trago o
conceito de despersonalização, retirado do texto “Um distúrbio de memória na Acrópole”.
Neste texto, que é uma gentil carta dirigida a um colega, Freud (1936/2006) se mostra mais do
que impressionado com sua visita à Acrópole, e traz em sequência três concepções, que são
decorrências da visão da Acrópole, as quais vai desenvolvendo e interligando conforme
desenvolve seu raciocínio: incredulidade; desrealização; despersonalização. A primeira ele diz
que é uma tentativa de repelir uma parte da realidade; ele, em certa medida, duvidou da
existência da Acrópole, justo ao estar ali presente. A segunda, desrealização, ele descreve
como uma distorção ainda mais profunda do que a primeira, que pode ser definida pela frase:
“O que estou vendo aqui não é real” (Freud, 1936/2006, p. 242). O que passa a ideia de
tentativa de rechaçar uma parte da realidade em relação ao ego. Interligando a incredulidade e
a desrealização, o autor chega na despersonalização, a qual ele define como a sensação pelo
sujeito não de que uma parte da realidade lhe é estranha, mas sim do do seu próprio eu. Tal
sensação de estranhamento do próprio eu leva à situação de personalidade dividida, a qual
mais tarde Miller (2012) irá descrever e desenvolver melhor como uma faceta do feminino, o
que será apresentado no item abaixo.
A forma de se comportar como homem ou mulher e fazer casal não são, de forma
alguma, inatos ao ser humano. Lacan (1964/2008) ao desenvolver os conceitos de alienação e
separação, em meio a reflexões sobre a constituição do sujeito, sobre a libertação em relação
ao Outro e o consequente advento do desejo, também coloca uma reflexão sobre a
psicossexualidade. Ele afirma que não há inscrição inconsciente que localize ao sujeito sobre
os enigmas inerentes ao tornar-se homem ou tornar-se mulher. Alguma chave para tais
enigmas será extraída do Outro, da cultura e da sociedade; contudo são construções singulares
que dependem de uma interpretação.
Kehl (2008), psicanalista, partindo deste raciocínio afirma que ser homem ou mulher
não é algo inato, mas sim construído a partir da travessia edípica, por meio de um processo
definido pela psicanálise como identificação. Com isto, pode-se concluir, de acordo com a
124
psicanálise de Freud com Lacan – pois não existe Lacan sem Freud -, que há duas questões
em jogo: uma seria o processo de identificação, o qual Freud (1925a/2006) coloca como
resultado da travessia edípica. Meninos e meninas, para o autor, identificam-se com os pais e
com demais pessoas de convívio social, para conseguirem fazer-se homens e mulheres em
meio a uma cultura. O gênero, a partir do movimento feminista, sempre foi algo colocado em
debate. Identificação, portanto, está relacionada diretamente à gênero.
Uma outra questão psicossexual diz respeito a forma como o corpo sexuado lida com o
complexo de castração. Retomando Freud (1925a/2006), cada sexo reage de forma diferente
ao deparar-se com a castração: meninos observam que meninas não têm pênis e temem perder
os seus órgãos sexuais: sofrem da angústia de castração. Já as meninas, ao observarem que
meninos têm pênis, sentem-se castradas no próprio corpo, antes mesmo de assimilarem a
castração de forma simbólica, metafórica: sofrem inveja do pênis. Contudo, nem sempre
meninos e meninas correspondem ao sexo biológico, e daí a importância do conceito de
sujeito, o qual designa àquele que se constitui a partir da fala, e não necessariamente do sexo
biológico. Um sujeito pode, no corpo com vagina, sofrer de angústia de castração; e não de
inveja do pênis. Da mesma forma, um sujeito com pênis pode sofrer de inveja do pênis no
sentido simbólico, pois, para si mesmo, o seu próprio pênis não está associado
inconscientemente ao falo imaginário. A orientação lacaniana, com os conceitos de sujeito,
imaginário e simbólico, ajuda a entender melhor esta passagem.
Podemos concluir com base em Lacan (1982), que existe a escolha por uma posição
sexuada na tábua da sexuação explicada abaixo: homem ou mulher, posição esta que tem
menos relação com a anatomia e mais relação com a fala possível de ser construída, a partir
da relação de um sujeito, – entendendo sujeito como aquele que fala –, com o seu corpo. É
resultado da forma como cada um sofreu o processo de castração: quem se posiciona do lado
mulher é o sujeito cuja imagem do próprio corpo é castrada no sentido imaginário, ou seja, no
sentido narcísico, relativo ao corpo, pois sente, inconscientemente, seu órgão sexual como
castrado. A inveja do pênis e o medo da falta de amor são os sofrimentos subsequentes a uma
possível sensação de inferioridade advinda da castração imaginária. Já o sujeito que se
posiciona do lado homem da tábua da sexuação é o sujeito cuja imagem de seu corpo, para si
mesmo, é portadora do falo imaginário; embora a castração simbólica possa incidir neste
sujeito, resultado do conflito edípico. O sofrimento advindo aqui é a angústia de castração:
medo de perder o pênis, ou o falo imaginário.
Os modos de gozo, masculino e feminino entram na teoria lacaniana como um
posicionamento inconsciente frente ao real da castração. Aqui não há uma ontologia sobre
125
homens e mulheres, o gozo, neste paradigma, responde a forma como o sujeito responde ao
complexo de castração.
É no Seminário XX que Lacan (1982) apresenta a tábua da sexuação:
Homem Mulher
Desta forma, Lacan (1982) irá teorizar sobre as posições subjetivas de mulher e
homem enquanto modos de gozo. É uma teorização de difícil apreensão, já que o próprio
conceito de gozo surge para dar conta de uma insuficiência na própria linguagem. Gozo é um
conceito feminino: la jouissance. Está relacionado a um tipo particular de satisfação, cuja
principal referência é um ganho primário dos sintomas, ou seja, é indissociável. O gozo é uma
espécie de tentativa de eliminar o espaço entre o objeto e o traço mnêmico que ele deixa, ao
qual retornamos alucinatoriamente; como se fosse possível uma sutura na posição subjetiva.
Aonde se goza é onde está o excesso, o inominável, o traumático.
Miller (2012) localiza o conceito de gozo situado em seis diferentes paradigmas ao
longo da teorização lacaniana. O momento de construção da tábua da sexuação está localizado
no sexto e último paradigma, o qual Miller (2012) intitula o paradigma da não relação. Aqui o
gozo é da ordem da registro imaginário, ou seja, está fora do simbólico. O gozo aqui aparece
disjunto do Outro; ou ainda na disjunção entre significante e significado. Podemos concluir
que o gozo aqui se trata do retorno à Coisa, ao objeto inominável.
Homem e mulher na tábua da sexuação são posições em relação ao gozo masculino e
ao gozo feminino; também chamados de gozo fálico e Outro gozo. O gozo masculino é o gozo
fálico, ou seja, é o gozo atrelado ao significante e à fantasia; ou ainda, o gozo circunscrito e
delimitado dentro da linguagem e da cultura. Já o gozo feminino pode também ser chamado
de gozo como tal, pois ele é o melhor representante do que foi descrito acima: excessivo e
inominável; é o Outro gozo, inalcançável pela linguagem, por isso Outro por excelência:
126
nunca se tornará conhecido. Em outras palavras, estes dois modos de gozo são formas de
obtenção de satisfação, como uma defesa para com o trauma da castração.
Iremos compreender por sujeito como aquele que se posiciona ou junto ao gozo
feminino – posição mulher -; ou junto ao gozo masculino – posição homem. Pelo fato do gozo
feminino não ser inserido na linguagem, o posicionamento junto ao gozo feminino foge à
concepção de sujeito, já que este é quem precisamente se constitui pela linguagem. Contudo,
podemos afirmar que há um sujeito posicionado junto ao gozo feminino partindo de uma
aproximação do conceito; já que jamais haverá um gozo feminino puro, o gozo masculino,
mesmo que em pequena medida, irá incidir também junto a ele. Em se tratando de psicanálise
não existe o absoluto, da mesma forma que Freud (1933/2006) concluiu sobre a anatomia:
hormônios masculinos irão incidir sempre sobre o corpo com vagina, e vice-versa. Ao se falar
em sujeito posicionado junto ao gozo feminino, portanto, não se trata de um binarismo que
exclui o masculino de cena, e também não se trata de um uso enganoso no emprego da
palavra sujeito em uma situação na qual não opera a linguagem; trata-se de uma aproximação,
ou seja, é o sujeito próximo ao gozo feminino – embora nunca opere com ele em absoluto.
Mulher, aqui, sujeito posicionado próximo ao gozo feminino, é aquela cujo corpo é
tido inconscientemente, por si própria, como castrado; castração esta que incide sobre
imaginário, ou seja, sobre o corpo narcísico. Ao sofrer o complexo de Édipo, tal complexo de
castração é colocado a nível simbólico, nível da linguagem, e daqui resulta a inveja do pênis.
O gozo feminino é resultante a este real da castração, a qual, em quem aqui chamamos de
mulher, é inscrita no corpo: as mulheres são as não portadoras do falo imaginário.
Já a designação homem, aqui, sujeito posicionado próximo ao gozo masculino, é
aquele que se vê portador do falo imaginário. É possível concluir, a nível imaginário – nível
do corpo -, que a castração não opera sobre o sujeito homem; ela irá operar a nível simbólico.
Ao passar pela castração simbólica, a qual opera pela linguagem, o homem é o que não sofre
de inveja do pênis, mas sim de angústia de castração, que é o medo de perder o seu órgão. Ao
visualizar, ainda menino, que as meninas não possuem pênis, ele poderia, em fantasia, ficar
como elas. Ao sentimento de angústia de castração corresponde o modo de gozo masculino, o
qual opera de forma diferente ao gozo feminino, e não o complementa.
A tábua da sexuação de Lacan (1982) está baseada não só na teorização freudiana, mas
também em premissas de Darwin e Aristóteles. O lado homem da tábua da sexuação, descrito
na parte de cima e à esquerda, é constituído pelo pressuposto de que há um ancestral macho
ao ser humano, o qual não estava submetido à castração: podia gozar livremente. Este macho
é a figura do macaco que deu origem às espécies, com base na teoria de Darwin, e também
127
pode ser visto como o Pai da horda primeva descrito por Freud em Totem e Tabu
(1913/2006): um homem considerado acima de todos, que poderia gozar de todos os corpos a
seu bel prazer. Este homem é uma exceção, cuja existência permite a formação do conjunto
dos iguais, com base na teoria dos conjuntos de Aristóteles; todos submetidos à função fálica,
todos castrados, com exceção do mais um: aquele que é o pai da horda primeva, quem pode
gozar de tudo e de todos, uma vez que não é submetido à castração.
Já o lado mulher da tábua da sexuação, descrito na parte de cima e à direita da tábua,
mostra que aqui não há esta exceção: ou seja, todos os sujeitos inscritos do lado mulher estão
submetidos à castração, a nível imaginário. Contudo, a falta de uma figura de exceção, que
não esteja submetida, impossibilita a construção do conjunto feminino de acordo com a teoria
dos conjuntos aristotélica, de modo que aqui a castração incide de forma singular, a cada
corpo de uma forma. Ainda que possam existir teorias que afirmem a existência de uma
mulher acima de todos, não submetida à castração, Lacan (1982) estava baseado em Freud,
Darwin e Aristóteles quando constrói esta teoria sobre a sexuação.
As mulheres, enquanto inscrição próxima ao gozo feminino, existem, portanto, apenas
em sua singularidade, no uma a uma; já que o gozo feminino não é inscrito pela linguagem,
sendo, portanto, impossível de ser partilhado. Daí advém a conclusão de que não há inscrição
inconsciente para o significante do sexo feminino, já que este se localiza para além do
significante e da linguagem, não corresponde à construção fantasmática acerca dos enigmas
do desejo do Outro. Esta conclusão resulta na afirmação de Lacan, que está no texto Televisão
(1964/2003) – e é vista como um jargão – A mulher não existe, o que existe é Uma mulher: a
mulher só existe enquanto única, singular, no uma a uma.
O gozo masculino, portanto, é equivalente ao gozo fálico: é submetido à castração em
padrão, universalmente, pela via da linguagem. Tem um limite circunscrito, delineado de
forma fálica através da construção fantasmática. Já o gozo feminino é não todo submetido à
lógica fálica, sendo que este não todo representa uma inconsistência, e não uma incompletude:
embora não esteja totalmente fora da lógica fálica, ele a escapa, está para além dela, para além
da linguagem simbólica. Refere-se ao real escapando ao significante. É um gozo inscrito no
corpo que não encontra seu ponto de basta, seu limite, seu contorno. Mesmo nos alicerces
culturais, não encontra apoio. Esta concepção amplia a orientação freudiana, uma vez que até
então o falo era colocado no campo central da psicossexualidade. Soler (2005) escreve sobre o
gozo feminino:
É a tentação de um amor tão total, tão absoluto quanto irrespirável, que varre para
longe não só as mediocridades do compromisso, mas esvazia de substância os objetos mais
128
O gozo feminino, colocado agora em questão de acordo com a teoria lacaniana, uma
vez que não é pautado na linguagem e opera sobre o corpo, está relacionado ao
comportamento de busca de um amor que não suporta o limite; já que não suporta ser pautado
pelas vias do significante e da função fálica, uma vez que esta é limitada.
Lacan (1982) prossegue na tábua da sexuação descrevendo que os dois modos de gozo
provocam diferentes movimentos do lado homem e do lado mulher: isto está descrito na parte
debaixo da figura:
ser entendido como o ponto de onde se origina a capacidade de desejar, o ponto que causa o
desejo por todos os objetos comuns.
De acordo com Laurent (2012a), os objetos a para uma mulher são os seus filhos; e o
homem que os acolhe ganha o respeito da mulher. A construção aqui não seria a freudiana,
que tem os filhos enquanto falo, substituto do pênis para a mulher. O enigma se desenvolve: o
homem é atraído por uma mulher enquanto ela cause o desejo, faça para ele papel de objeto a;
a mulher o recebe enquanto ele se ocupe de seus filhos, que são para ela os seus objetos a.
O mesmo autor ainda afirma que a escolha de ocupar a posição de causa de desejo é o
caminho pelo qual uma mulher se torna mulher; do que podemos concluir que traz alívio
psíquico sustentar uma posição enquanto figura sexuada. Contudo, tal posição abarca uma
solidão particular, uma vez que, apoiada ou não por um parceiro, é inerente ao feminino não
se apoiar sobre um modelo universal; portanto, todo sujeito inserido próximo ao gozo
feminino permanece sozinho em sua relação com o seu gozo. O autor afirma ainda que o ser
mulher é da ordem de um suplemento: não há palavra que o abarque: daí a sensação de
solidão e podemos extrair que daqui se conclui que a mulher será sempre Outra para ela
mesma; tal conclusão elimina a busca por uma resposta sobre o enigma da feminilidade e, a
busca por uma Outra mulher.
De acordo com Machado (2012), as fórmulas da sexuação definem o gozo masculino e
o feminino como modos de habitar a linguagem, relativizando a determinação anatômica. Esta
teorização não equivale ao conceito de gênero, pois este é sobre identidade ao corpo pautada
no social; enquanto a teorização da sexuação são formas de defesa frente ao trauma da
castração. A teoria dos gozos mostra que feminino e masculino não são complementares, isto
posto fica evidente o sofrimento advindo do fracasso de se tentar fazer o Um, ou
simplesmente de ter o Um como referência. O gozo feminino é o que está além do registro do
Um e do universal, é o ponto obscuro do gozo de todos os sujeitos, uma vez que ele não está
presente apenas nas mulheres. Mesmo no sujeito situado ao lado homem da tábua, o gozo
feminino irá existir, ainda que possa não prevalecer; tal como Freud (1933/2006) falou sobre a
presença de hormônios masculinos no corpo da mulher.
Na sociedade atual, século XXI, há uma perda do ponto de ideal que orientava
gerações e regulava relações. Isto não significa que os ideais deixaram de existir, mas sim que
estes estão multifacetados, pluralizados. Na sociedade patriarcal, ou seja, aquela na qual o
131
Ainda em Soler (2005), a autora trás a personagem Ysé, da peça Partage du midi,
tentando dizer ao seu parceiro algo da ordem do indizível sobre o perigo inominável que
carrega no corpo. Quando seu parceiro está indo em viagem para a China, ela lhe pede para
que não se vá. E não consegue descrever o porquê de seu pedido. Seu problema não era
exatamente a ida dele, saudades, ou ciúmes; era deixá-la só. Ela lhe diz para não confiar muito
nela, porque sente uma tentação, a qual não quer se apegar.
Vieira et al. (2012) retomam o conceito de Unheimlich, freudiano, o qual se refere ao
mais íntimo do corpo do ser falante; contudo, tão íntimo que provoca estranheza, uma vez que
não é compartilhável, tampouco possível de ser exposto em palavras. Tão íntimo que
estranho. Quando este conteúdo emerge e vem à cena, ele inevitavelmente provoca horror, e o
sentimento que surge é a angústia; consequência de uma sensação que irrompe e não é
possível de ser simbolizada, ou imaginarizada. É um conceito próximo à concepção de
despersonalização, que Freud (1936/2006) traz, na qual o sujeito sente que uma parte de seu
próprio eu lhe é estranho.
Na mesma obra, Vieira et al. (2012) desenvolvem uma reflexão sobre o afeto de ódio,
e colocam-no como um sentimento primitivo, anterior ao amor. Trata-se do ódio estrutural, ou
seja, diferente do ódio sentido em uma experiência em isolado. Embora o senso comum
convide a pensar o ódio enquanto um avesso do amor, ou seja, ambos seriam duas faces da
mesma moeda; há facetas no sentimento do ódio que são dele, e não mantém relação com o
amor.
Este ódio estrutural precisa ser entendido com base na constituição primordial do
sujeito, pensada sobre os preceitos lacanianos do estádio do espelho, segundo os quais não há
um momento inicial de amor próprio, correspondente ao narcisismo primário; uma vez que
não há possibilidade para o amor antes da distinção entre o eu e os outros objetos externos, ou
seja, antes da separação entre o interno e o externo. Há uma instabilidade essencial na
formação do eu, cujo papel é essencial para a permeabilidade entre o dentro e o fora. No
contato com sensações prazerosas e outras desagradáveis, o sujeito repele o desagradável para
o mundo externo, e passa a senti-lo como hostil. Esta parte hostil expelida será posteriormente
sentida com ódio: uma sensação de aversão bem delimitada, com objeto bem definido: o
sujeito nunca ocupa o mesmo espaço do objeto do seu ódio. Este sentimento comprova que a
separação entre o sujeito e seu mundo externo nunca será plena, ou absoluta; ao entrar em
contato com o objeto de seu ódio a mesma sensação desagradável, advinda da sensação do
sujeito em contato com o seu estranho/íntimo, entra em cena.
133
6.3.3 - A devastação
O termo devastação pode ser compreendido dentro da teorização lacaniana como uma
continuidade à temática do masoquismo freudiana, enfatizando à dimensão do estrago que um
homem pode causar a algumas mulheres. Assim como Freud, Lacan coloca uma dose de
atividade no masoquismo, não o reduzindo a um objeto passivo: “De fato, salta aos olhos que,
mesmo em sua pretensa fase passiva, o exercício de uma pulsão, masoquista por exemplo,
exige que o masoquista, se ouso me exprimir assim, trabalhe feito um burro” (Lacan,
1964/2008).
O enigma fica na aproximação, dentro da psicanálise de Freud à Lacan, entre o
masoquismo e o feminino. Talvez a similaridade venha do fato de ambos inscreverem-se sob
uma insígnia do negativo, uma marca de subtração. Tal aproximação não diz que o feminino é
134
Quando Lol decide de casar, sua melhor amiga tem dúvidas se havia paixão envolvida,
ou se não seria o casamento uma busca de uma situação estável para seu coração inacabado.
Contudo, o casamento não apenas não se consolida, desta vez, como também Lol é trocada
por uma outra mulher em um baile, Anne-Marie Stretter nas vésperas de seu casamento. Esta
outra mulher rouba o olhar de seu noivo ao entrar em cena no baile, de modo que sua
fisionomia muda e ele se rende aos novos encantos: pede a Anne-Marie uma dança, e dali não
mais se retira até o final do baile. Lol não se retira do salão, e pelo contrário, assiste a tudo.
Quando a saída do salão é inevitável, o noivo e Anne-Marie passam por diante de Lol
para se retirarem. Quando ela não mais os vê, Lol, fora de si, cai no chão, desmaiada. Um ato
em que a queda do corpo predomina sobre o sofrimento, seria uma forma de omitir sua dor?
Lol não vai longe no desconhecido sobre o qual se abre aquele instante. Não dispõe
nem mesmo de uma lembrança imaginária, não tem ideia alguma desse desconhecido. Mas
o que ela acredita é que devia penetrar nele, que era o que precisava fazer, que teria sido
para sempre, para sua cabeça e para seu corpo, sua maior dor e sua maior alegria
confundidas até em sua definição, que se tornou única mas inominável na falta de uma
palavra. Gosto de acreditar, como gosto dela, que se Lol está silenciosa na vida é porque
135
acreditou, no espaço de um relâmpago, que essa palavra podia existir. Na falta de sua
existência, ela se cala. Teria sido uma palavra-ausência, uma palavra-buraco, escavada em
seu centro para um buraco, para esse buraco onde todas as outras palavras teriam sido
enterradas (Duras, 1986, p. 35).
Lol não busca notícias da dupla após o acontecido. O amor ao noivo aparentemente
morreu, e ela se casa não muito tempo depois com Jean Bedford, quem aparentemente tinha
predileção por moças abandonadas e loucas. Ela então vive um casamento dentro do senso
comum, enquanto mulher pacata, de opiniões raras, dedicada à casa, aos filhos, e à celebração
de uma ordem rigorosa.
O que chama atenção nesta história é principalmente o fato do Lol cair desmaiada
assim que o casal adúltero, seu noivo e a outra mulher, saem da cena no baile. Lol, ainda que
quieta, permaneceu presente e firme todo o tempo em que seu noivo dançava com a outra
mulher; assistiu de camarote a toda a cena sem pestanejar, fez parte dela. Quando a cena
termina e o casal se retira, Lol cai com seu corpo; de alguma forma, ela sai de cena junto com
os dois. Ela não pôde manter-se em pé sem os dois; ainda que estivesse ocupando uma
posição de coadjuvante da cena, ou até de dejeto, já que foi preterida pelo noivo e deixada de
lado, ela precisava da cena para manter-se de pé. Uma vez só, ela não sustenta o seu corpo.
Para alguma elucidação sobre esta queda de Lol, muito representativa e enigmática,
faremos uma digressão. Machado (2012), retomando Lacan, afirma que “no inconsciente, só
há inscrição de um sexo, o masculino” (Machado, 2012, p. 9). Tal afirmação se explica pela
falta de um ponto de identificação, do ponto de vista do simbólico, que conjugue os elementos
pertencentes ao gozo feminino, pois ele não se organiza somente pelo falo. Se o gozo
feminino é próximo do real, ele encontra dificuldade de inscrição simbólica e, portanto, não se
inscreve no inconsciente.
Em “Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein”, Lacan
(2003) analisa o ocorrido com a personagem Lol Stein como um acontecimento da ordem de
um arrebatamento; advindo de uma vida vazia, cujo objeto regente é da ordem do
indescritível. Este texto acabou sendo ponto de partida para o desenvolvimento do conceito de
Devastação, o qual parte tanto da obra de Duras quanto do termo “estrago”, utilizado por
Freud (1931/2006) referindo-se à menina que não consegue elaborar os sentimentos ambíguos
e precários do amor pré-edípico dirigido à mãe.
De acordo com Brousse (2019), na devastação o lugar do significante mestre –
entendendo por este como a primeira inscrição significante que possibilita o início de uma
cadeia discursiva – não é um nome, mas sim um objeto. Aqui o objeto, o qual pode ser
pensado tomando por referência o objeto do Fort-Da freudiano (1920/2006), não foi reduzido
136
cenário e roubar a cena, tal como aconteceu com a personagem Lol Stein; pois uma mulher
devastada só existe sob a perspectiva da Outra, atrelando-se a ela pejorativamente.
É possível associar devastação ao masoquismo feminino trazido por Helene Deutsch e
por Freud (1924a/2006)? Em “Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina”,
Lacan (1958/1998) questiona se o masoquismo feminino seria uma resposta à uma fantasia
masculina, e deixa a pergunta em aberto, já que há outras hipóteses, como ele mesmo levanta,
sobre o masoquismo feminino ser uma espécie de véu, conveniente aos interesses das
mulheres, o qual não deve ser levantado depressa demais. Sob esta perspectiva, o masoquismo
seria um tipo de mecanismo de defesa, diferente da devastação.
Joan Rivière ficou conhecida na psicanálise inglesa ao trazer o conceito de mascarada,
associado à inveja do pênis. Ela definiu a feminilidade enquanto a máscara fabricada pelas
mulheres para compensar-lhes a ausência de pênis. A mascarada é um disfarce, é o semblante
criado pela mulher em seu corpo para lidar com a inveja do pênis, tal como os enfeites e
excessos de adereços. A mascarada faz a função do véu da noiva: é aquele que lhe faz parecer
algo valioso. Penso que a mascarada seria uma saída para não sucumbir à devastação;
contudo, saída não muito eficaz, pois pautada no falo imaginário.
Laurent (2012) afirma que a mascarada é uma forma de se apresentar de um lugar
fálico e, por este caminho, encontrar um lugar no desejo do homem. O que termina em
falácia, pois o desafio do sujeito tido como feminino é justamente fabricar algo com o “nada”,
e não com o falo. A posição feminina, para o autor, parte de saber amar a falta; e não o falo.
Harari (2008) comenta a afirmação de Lacan sobre a não existência da relação sexual,
concluindo que a parceria amorosa só pode ser feita no nível do gozo. A parceria feita sempre
envolve o sintoma. Miller (2016) inicia sua reflexão a respeito da diferença entre a forma de
amar do homem e da mulher – entendendo ambos como forma de posicionamento na tábua da
sexuação – fazendo uma brincadeira com um diálogo fictício no qual uma mulher declara ao
homem estar pronta para tudo; e ele, por sua vez, responde-lhe que está pronto, para não-tudo.
Convém delimita-la: até aqui, mas não mais além.
Ambos os autores levam a pensar que o lugar tirânico que faz da mulher o ser privado
– privada do falo imaginário -, fadada a uma irremediável incompletude e, consequentemente,
o ser ávido, insaciável e, por isto, pouco confiável, aparece com ênfase nas vias do amor. A
busca que algumas mulheres fazem de marcar seu corpo com um excesso: seja de joias, de
138
cores, de saltos, acaba mais por marca-las enquanto corpo que transborda; pouca eficácia estas
medidas apresentam para lidar com a incompletude.
Já do lado do homem, o traço de tirania aparece em outros aspectos. Ele faz da mulher
que escolhe o seu objeto a, e tal escolha tem profunda relação com ela ser o seu objeto
fetiche. Isto pode ganhar traços perversos, quando ele escolhe o que ela deve vestir, por
exemplo; passa a impor-lhe certo número de condições, as quais são mais da ordem do ter do
que do ser. O fetiche encontrado ao lado do gozo masculino pode ser visto como uma forma
de ter a situação da parceria amorosa sob o seu controle, como um proprietário. Daí a
sensação de posse sobre a sua mulher; contudo nesta, muito menos do que o controle, há a
ousadia, o risco de forma mais cega. De um lado temos a prudência; e de outro o idealismo. O
que a mulher exige com o parceiro é uma espécie de “homem-bússula”.
Tomemos o caso de Medéia, citado por Miller (2016). Ela diz a Jasão que está pronta
para tudo, enquanto ele lhe diz: não tudo. Ela não recua, nem diante do assassinato de seus
filhos, enquanto a representação do homem cuja existência ela quer eliminar, após ele lhe
dizer não. Claro que matar os filhos não é solução plausível para lidar com a perda do amor;
Medéia nos ensina uma posição mais extrema, ela não é aquela que perdeu, mas sim a que não
tem mais nada a perder.
O sintoma e a devastação são os modos de gozar do masculino e do feminino,
respectivamente, assim desenvolvidos pelo autor acima. A mulher é para o homem seu
parceiro-sintoma, enquanto o homem é para ela algo muito próximo de seu parceiro
devastação. Do lado do homem, temos o gozo finito, o fetiche. Este é da ordem de um objeto
que não fala, inerte, objetificado. Do lado mulher temos a erotomania associada à devastação,
a exigência de que se fale com ela.
Miller (2012) afirma que fazer-se mulher enquanto mãe seria uma solução pela via do
ter, ter um filho; solução oposta à que ele encontra, acima mencionada, pela via do ser, na
qual se fabrica algo com o buraco: metaboliza-se o buraco, o qual simboliza a falta, pela via
do ser. A via do ter é próxima do gozo masculino, que responde à castração com medo de
perder o seu pênis. O autor conclui que uma mulher que se constitui ao lado do ser o falo
assume sua falta a ter. Desta forma, pela via do ser, ela consegue ser o que falta aos homens.
Esconder a falta aqui é visto como uma forma de ostentar ser a proprietária, a quem não falta
nada nem ninguém; o que para o autor, é uma mulher que apenas aparenta ser igual a uma
mulher, ou ainda: uma mulher com postiço. Segundo o autor, “Uma mulher verdadeira” está
ao lado do ser e é ela que faz papel de apontar ao homem que o ter é ridículo. A mulher com
postiço, pelo contrário, denuncia o homem como castrado e se completa colocando-o na
139
sombra. Por outro lado, ela não ameaça o homem por não exigir que ele seja desejante, e
ambos assim descansam dos preâmbulos da castração.
De acordo com Suarez (2012) o amor faz acreditar no Um, mesmo sabendo na sua
impossibilidade e, desta forma, faz suplência à relação sexual inexistente entre os dois sexos.
Enquanto o desejo do homem fora do amor atormenta as mulheres, a crença de que o mesmo
desejo no amor salva, é uma suplência.
Dentro desta mesma perspectiva, Ferretti (2012) afirma que:
É somente na medida em que o homem pode dizer não à função fálica, isto é,
quando há castração, que ele pode amar a mulher e gozar de seu corpo, mulher que, por sua
vez, se insere como objeto a e como não toda na relação amorosa. (Ferretti, 2012, p. 135).
De acordo com Laurent (2012a), o amor para as mulheres pode se apresentar como
uma placa giratória, na qual elas circulam infinitamente em tentativas infrutíferas de agradar o
seu homem, e dar tudo a ele; ser tudo para ele: uma espécie de dar tudo para conseguir ser
tudo. Por essa via, em algum momento o sujeito mulher vai perceber que na verdade não é
nada para o seu homem; não passa de ser o seu dejeto maltratado. Esta é a falsa solução
encontrada pelo masoquismo feminino. Para o autor, não se trata de ser tudo para o homem,
tampouco de ser nada; trata-se de ser Outro – para o seu homem e para si mesma; livre da
fantasia imaginária do Um. O homem servirá de conector para a mulher ser Outro para si
mesma. Este autor parte da afirmação de Lacan que está no texto mencionado acima,
“Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina”:
... a castração não pode ser deduzida apenas do desenvolvimento, uma vez que
pressupõe a subjetividade do Outro como lugar de sua lei. A alteridade do sexo
descaracteriza-se por essa alienação. O homem serve aqui de conector para que a mulher se
torne esse Outro para ela mesma, como o é para ele. (Lacan, 1958/1998, p. 741).
O amor foi dito por Lacan em diversas passagens como “dar o que não se tem”. Esta
reflexão pode ser pensada em paralelo com o Banquete de Platão (Platão, 2015), uma vez que
esta obra coloca que o objeto amado não está exatamente no parceiro, está mais além. Com
isso, entendo que o amor está fora do universo do falo imaginário.
6.3.5 - A despersonalização
Miller (2012) afirma que nas mulheres abre-se uma clínica da falta de identidade, nada
comparável em intensidade do que acontece com os homens. Tal falta de identidade também
pode ser lida como falta de consistência; a qual, em alguns casos, leva a queixas de sensações
de fragmentação corporal e dúvidas, por parte do analista, sobre o diagnóstico de neurose ou
140
psicose. São queixas de dor psíquica ligadas a um afeto de não existência, ou de ser nada, com
momentos de ausência de si mesmas, semelhante ao que Freud (1936/2006) coloca em sua
visita à Acrópole e chama de sensação de despersonalização: estranheza em relação ao si
mesmo. Há também relatos de uma relação íntima com o infinito, traduzida como uma
sensação de incompletude radical; nada satisfaz. Encontra-se nas mulheres a frequente dúvida
se é possível encontrarem seus lugares na civilização com uma posição social, pelas vias da
sublimação. Insiste nelas uma ideia, até comovente, de que o verdadeiro lugar seria
encontrado nas vias do amor, ao serem amadas por um homem.
Prosseguindo em Miller (2012), o autor menciona uma saída interessante para as
mulheres lidarem com o gozo feminino, que seria abdicar da tentativa de “tapar o buraco” –
buraco aqui entendemos tanto pelo buraco da castração que incide no corpo das mulheres, ou
seja, no lugar do pênis elas possuem um buraco; como também o buraco que reside entre o
gozo feminino e os masculino, já que não são complementares – abdicar do buraco resulta em
encarnar o buraco, ou seja, ser o buraco; e, desta forma, dialetiza-lo, metaboliza-lo: “fabricar
um ser com o nada” (Miller, 2012, p. 68).
Brousse (2019) coloca que o corpo da mulher pode ser visto como o limite da função
castração, limite do poder da castração. O sangue feminino, o qual escorre pelo buraco
exclusivo do corpo da mulher, remete ao furo no simbólico. Ela ainda problematiza sobre o
movimento em direção ao falo no qual opera o feminino ao relembrar as frases usadas para
agredir mulheres como “malcomidas”, as quais sugerem que a mulher encontraria a felicidade
sendo “bem comida”. O falo imaginário, neste raciocínio, é tido como remédio universal,
justo porque tapa o buraco. Contudo, nem sempre as mulheres o querem, enquanto solução.
No discurso organizado em torno da metáfora paterna, enquanto desfecho do complexo de
castração, o falo é sim o remédio universal. Mas, nem sempre elas o querem. O que isto
indica? A despersonalização seria da ordem do gozo feminino escapando ao falo imaginário, e
não encontrando um ponto de basta?
E quando as mulheres não estão dirigidas ao falo, a autora aponta para outro
movimento típico do feminino: o objeto escondido: “Gineceu, harém, casa, cozinha, muros
altos, terraços, balcões, janelas, persianas: tantos territórios de onde ver sem ser vista”
(Brousse, 2019, p. 27). Esta também é a lógica do uso do véu: esconder-se. Desenvolvendo o
pensamento, a autora traz a ideia de que, para as mulheres enquanto posicionadas ao lado do
gozo feminino da tábua da sexuação, o falo não ganha o estatuto de um objeto a ser
preservado, mas sim de um objeto que seria possível de adquirir. A mulher, enquanto objeto
escondido, portanto, representa o falo imaginário – da mesma forma que foi dito acima sobre
141
Como já foi anteriormente dito, a psicanálise pode ser inserida em qualquer contexto
que envolva a necessidade de uma escuta atenta e apurada, a fim de colher dados para
pesquisa, trazendo ganhos tanto na construção de subsídios clínicos quanto no acolhimento de
entrevistados envolvidos.
As entrevistas foram realizadas na Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de uma
cidade do interior de São Paulo, sede da Região Metropolitana do Vale do Paraíba e Litoral
Norte, semanalmente. Foram selecionadas entrevistas com mulheres que sofreram violência
doméstica; de acordo com a ordem estabelecida na referida delegacia são violências no
relacionamento estável. Não foram considerados para análise os casos denominados pela
delegacia como violência urbana, os quais se referem a violências que ocorrem em locais
públicos, praticados por pessoas que não conhecem a vítima, ou que a conhecem pouco.
Tentou-se também efetuar as entrevistas com os homens agressores, sem muito sucesso. Os
casos selecionados para análise têm o requisito de serem entrevistas ricas de conteúdo, cujas
mulheres entrevistadas ganharam voz ao relatarem suas experiências. Tais conteúdos
relatados abrem possibilidade a reflexões sobre as experiências de violência, a fim de atingir o
objetivo da pesquisa: investigar significados inconscientes que promovem a repetição em
sofrer agressões, por mulheres que sofrem violência doméstica.
As entrevistas foram abertas, psicanaliticamente orientadas. Às mulheres, que
estavam enquanto vítimas na referida delegacia, eram oferecidas a possibilidade de
participarem de uma pesquisa com uma psicóloga; quem aceitava participar dirigia-se a uma
sala a sós com a pesquisadora, a qual lhes apresentava o termo de consentimento livre e
esclarecido. Após o preenchimento do termo, as mulheres passavam a falar livremente,
contando suas histórias de vida e violências envolvidas. As entrevistas que estavam dentro do
perfil de serem casos de violência doméstica, e cujas mulheres entrevistadas conseguiam
ganhar voz em seus relatos, produzindo um discurso coerente, foram transcritas. Quarenta
entrevistas foram utilizadas para a análise dos casos. Todas as mulheres foram entrevistas
apenas uma vez. Todos os nomes utilizados são fictícios.
A análise dos casos foi feita em duas etapas. Primeiramente foram construídas duas
tabelas, cujo fator de diferença entre elas é a idade das mulheres, para finalidade de análise
geral dos dados colhidos. As perguntas envolvidas para esta análise geral foram: Casou-se
muito jovem?;Trabalha fora de casa?; Violência na família original?; Ainda sofre violência?;
Violência em relacionamentos anteriores? Alcoolismo ou drogas no agressor? Problema de
143
relacionamento com a mãe? Foram questões que permearam a maioria das entrevistas,
mostrando-se pontos de partida importantes para uma análise global dos casos.
Em segundo lugar, foram recolhidos significantes das entrevistas. Os critérios de
escolha dos significantes foram: palavras que as mulheres usam para refletirem sobre elas
mesmas e suas histórias; repetição destas palavras, ao longo das entrevistas.
Foram escolhidas cinco entrevistas para serem expostas quase na íntegra, na seção de
anexos. São entrevistas valiosas, por serem ou de mulheres que sofreram violência durante
muitos anos de vida, ou por serem casos de violências muito acentuadas, as quais foram
expostas em detalhes, cujas falas profundas despertaram sensibilizações e inovações
pertinentes à temática.
Após uma primeira leitura dos relatos, foi possível observar alguns aspectos
recorrentes na maioria dos casos, aos quais repetidamente as mulheres se referiam, como, por
exemplo: o início dos episódios de agressão é costumeiramente depois que a mulher começa a
trabalhar, ou depois que ela começa a opinar sobre o comportamento do marido, bem como
sobre aspectos sociais em geral; outras vezes é depois que o filho do casal nasce, mostrando
ciúmes por parte do agressor ao dividir a atenção da mulher que lhe era até então exclusiva,
com o filho deles. Algumas mulheres, de mais idade, diziam que no início da relação achavam
que apanhar do marido era correto, pois eles estavam no papel de educa-las. Já as mulheres de
quarenta anos ou menos, que são a maioria na referida DDM, são mulheres que
costumeiramente partem da concepção de independência, e têm mais dificuldade de encontrar
o motivo pelo qual se submeteram às violências sofridas.
A maioria das mulheres permanece com o agressor, por bastante tempo, mesmo após
agressões sérias e ameaças de morte, com todo o risco de vida e sequelas psíquicas que a
situação inevitavelmente acarreta. Já outras mulheres, principalmente as jovens, têm mais
dificuldade de encontrar o motivo da permanência com o agressor. Algumas querem “fugir da
casa dos pais”, outras acham que elas vão “curá-lo”. Outras ainda dizem que gostavam muito
dele.
144
Esta tabela, com intuito de uma análise global, levou em consideração os fatores que
mais foram falados durante as entrevistas, que foram: casamentos realizados quando as
145
mulheres ainda eram muito jovens, e, portanto, meninas; impossibilidade de trabalhar fora,
devido a proibições do agressor; episódios de violência na família original, tanto por parte de
pai, mãe, como também de parentes próximos; se ainda sofre episódios de violência por parte
do agressor (envolvendo os cinco tipos de violência determinados pela lei Maria da Penha, já
mencionados: física, psicológica, moral, patrimonial e sexual); se houve violência também em
relacionamentos anteriores; se os episódios de violência envolvem ingestão de álcool ou uso
de drogas por parte do agressor; e, por último, se as mulheres relatam problemas de
relacionamento com suas mães.
Num total de 30 mulheres, de idade até quarenta anos:
Oito casaram-se muito jovens, com vinte anos ou menos; mostrando-se minoria nesta
faixa etária. Este dado indica que são mulheres nascidas em uma geração que possibilita o
namoro como escolha de um parceiro, e, também, liberdade para namorar quantas pessoas
quiserem; e não o namoro como preparo para um casamento, com um parceiro único ao longo
da vida.
Vinte e quatro trabalham fora de casa, grande maioria, o que indica que proibições do
agressor para que não trabalhem não incide de forma grande nesta faixa etária de mulheres;
sendo que duas, destas restantes seis mulheres que não trabalham fora, ainda se consideram
estudantes.
Em relação a ter presenciado ou ter sido vítima de violência na família de origem,
quinze mulheres dizem que sim e outras quinze dizem que não. Embora o número tenha
ficado empatado, é uma alta taxa de mulheres que convivem com a violência durante toda a
vida; transportando este significante para suas relações.
Vinte e uma mulheres relatam ainda sofrer violência do agressor, enquanto nove
mulheres consideram já ter dado um basta na violência que sofreram, e estavam fazendo
boletim de ocorrência por indicação de advogado para relatarem episódios anteriores, ou o
BO não era dirigido, neste momento, ao parceiro agressor, mas sim a outras pessoas da
família dele; tais como ex-sogras que ameaçam, novas parceiras do agressor que também
ameaçam ou agridem. Este dado indica que, nesta faixa etária, as mulheres conseguem, em
maioria, colocar um basta, um limite para preservar os seus corpos em relação ao parceiro
agressor.
Duas destas mulheres relataram já ter tido episódios de violência em relacionamentos
anteriores. O número é baixo, mas vale ressaltar que algumas são muito novas, de idade entre
dezoito e vinte e anos, o que indica que não tiveram relacionamentos anteriores de longo
período de tempo. Entretanto, não temos dados de relevância neste fator.
146
Quinze mulheres associam os episódios de violência que sofrem a uso de drogas e/ou
álcool no agressor. Ainda que outras quinze não tenham feito este relato, consideramos o
número alto. Os agressores se transformaram ao usarem estas substâncias, e perdem qualquer
tipo de censura em relação ao que pode ser feito ou dito com as parceiras; o que caracteriza
situações extremamente perigosas, potenciais desencadeadoras de feminicídios. O uso de
álcool e drogas no agressor pode ser pensado como um semblante viril, do homem que bebe
como o poderoso, a quem é socialmente autorizado o uso de substâncias das quais as
mulheres ou são privadas, ou são mal vistas quando o fazem, mal faladas. E em última
instância, o uso destas substâncias acaba sendo uma espécie de autorização para que a pulsão
de morte seja livremente exercida contra aqueles a quem têm mais dificuldade de dominar,
por serem habitados por um modo de gozo diferente do deles: as mulheres.
Quinze mulheres relataram problemas de relacionamento com suas mães, número
considerado alto, e que pode ser visto como bastante sério em alguns casos de mulheres que
não se sentiram amadas pelas mães, ou sentiram-se abandonadas, causando um quadro de
grande transtorno afetivo cujos efeitos são sentidos diretamente nas relações amorosas.
147
A tabela dois trabalhou os mesmos fatores, com as mulheres de mais de quarenta anos;
as quais são minoria na referida DDM. Foram dez entrevistas válidas realizadas com mulheres
desta faixa etária, contra trinta na faixa etária anterior, o que, muito provavelmente, não indica
que mulheres de mais idade não sofram violência, mas sim que sofrem de grande dificuldade
de relatar estes episódios. Podemos pensar em hipóteses que justificam este fato como:
naturalização da violência, por tê-la sofrido durante muitos anos; dificuldade de locomoção,
por terem restrição de liberdade imposta pelos maridos; medo e descrença na lei, por
colocarem as proibições do marido acima de qualquer proibição legislativa.
Num público de dez mulheres de mais de quarenta anos:
Oito relataram terem se casado muito jovens, com vinte anos ou menos. É um dado
significativo que indica a possibilidade de que a maioria destas mulheres ainda sofre
influência da moralidade do século XIX, cujos preceitos eram de que as mulheres foram feitas
para se dedicarem ao marido, ao lar e aos filhos, com pouca possibilidade de escolha. O
namoro aqui é visto como um preparo para o casamento, a respeito do qual as mulheres pouco
1 – Sem informação
148
ou nada opinam, nem mesmo na escolha do parceiro. Esta proporção foi muito diferente da
tabela anterior.
Sete trabalham fora de casa, e três disseram que não trabalham. Destas três que
disseram que não, duas justificaram por proibição do marido; a outra, que tinha mais de
setenta anos, relatou o fato de não ter trabalhado fora como uma divisão natural da relação
com o marido, pois ela lhe dava suporte para que ele pudesse sair para trabalhar. Ainda dentre
as três que disseram não, vale ressaltar que duas têm mais de sessenta anos, e foram as únicas
mulheres entrevistadas da terceira idade.
Cinco mulheres num público de nove relataram episódios de violência na família de
origem, a proporção ficou semelhante à faixa etária anterior. Dentre as dez, uma mulher não
forneceu nenhuma informação de sua família de origem, justamente a de mais idade, setenta e
um anos. Podemos pensar que ela tenha se distanciado de sua família de origem há muitos
anos, e por isso não a menciona.
Oito mulheres relataram ainda sofrer violência do agressor, proporção tão alta quanto
na faixa etária anterior. Dentre as duas mulheres que relataram não mais sofrer violência, uma
parecia ter clareza e sensatez em relação ao perfil possessivo do marido, e estava na delegacia
cumprindo com as prerrogativas jurídicas do divórcio; a outra relatou um episódio de
violência ocorrido quando ela pediu pensão ao ex-marido, não relatou violência recorrente,
embora tenha se queixado bastante da relação com este ex-marido.
Duas mulheres disseram que já sofreram violência em relacionamentos anteriores.
Ambas são mulheres que relatam relacionamentos muito conturbados, com violências
recorrentes, bem como violência presente na família de origem. O número foi igual ao da
faixa etária anterior, e aqui mais significativo, pela proporção ser maior.
Seis mulheres associaram uso de álcool e drogas por parte do agressor aos seus
episódios de violência, porcentagem parecida com a faixa etária anterior e preocupante, pelos
mesmos motivos.
Apenas uma mulher desta faixa etária relatou problemas de relacionamento com sua
mãe, porcentagem muito menor do que na faixa etária anterior. Não sabemos ao certo o
porquê das mulheres de mais idade não se queixarem de falta afeto ou abandono de suas
mães. Talvez por já terem elaborado suas questões com a família de origem, ou por terem
vindo de uma rígida educação na qual não se pode falar mal de mãe ou pai. O que é
importante ressaltar é que este dado não significa que estas mulheres não se apresentem
devastadas, rebaixadas; embora, tal como foi visto anteriormente, a devastação tenha relação
direta com uma relação difícil com a mãe.
149
Lissandra, 29 anos:
Tenho dificuldade com maconha, cigarro, já fui usuária de craque, consegui parar só
com SOS mulher.... Se não fosse o SOS mulher me falar palavras positivas, já tinha tocado
fogo na minha casa.
A droga para esta mulher parece ter sido saída para lidar com uma vida difícil, na qual
ela só encontra palavras positivas no tratamento que recebeu do SOS mulher. A vida para
Lissandra é uma droga, e talvez ela também se veja como tal.
Milena, 31 anos:
Comecei a usar drogas quando via ele me trair com outras mulheres como se não
houvesse problema. Ele me esperava dormir e saía com prostituta. Usei tanta droga até ser
presa com liberdade assistida. Eu não consegui comprovar meu endereço, e fui presa.
Consegui melhorar porque escolhi minha filha, e nunca mais dei trabalho com drogas e
crack.
Meus pais faleceram os dois quando eu era muito nova, não queria que minha filha
pensasse que eu não penso no pai dela. Só que não da para conviver em família, para ele
tudo tanto fez tanto faz. Minha mãe tinha problema no coração, trabalhava muito. Criou os
filhos honestamente e sofria muito de dores de varise. Meu pai era pilantrão, usuário de
drogas. Minha mãe era solteira e meu pai era do mundo mesmo, não se falavam. Fui adotada
por uma vizinha.
Aqui aparecem dois significados à droga: o primeiro é o usuário de drogas aparecer
associado ao pilantrão, na descrição de seu pai; o segundo é a o uso de drogas como fuga de
uma situação insuportável, que era assistir às traições do marido. Milena pode acabar por se
entender como uma droga, ao ser traída sem limites.
Mariana, 40 anos
... Era por causa de bebida mesmo. Eu acho que eu tenho que parar de beber cerveja
também, porque ele diz que eu fico agressiva e fico xingando, falando as coisas mas o dele
mistura tudo, porque é bebida, é cocaína, e as crianças vendo isso é o pior. Como o pessoal
estava tudo com visita em casa ainda, um pessoal de Campinas estava aí, eles queiram que eu
saísse o mais rápido possível da casa para não passarem vergonha. Então ta bom, comecei a
xingar todo mundo.
- Por que ele fala que você tira ele do sério?
151
Pelo jeito de falar, ele fala que eu toco nas feridas. Eu falo para ele ir se tratar, que
ele é usuário de drogas. Ele fica vendo pornografia no celular, eu falo que vou levar o
celular para a polícia. Falei que tava parecendo que ou ele é homossexual, ou que ele vai
para os dois lados, pelas coisas que ele estava vendo no celular. Quando eu falei isso ele veio
e me deu um soco.... Ele tinha bebido também. Tudo envolve bebida. O sogro não bebe, o
cunhado sim, e os dois são dependentes químicos. A briga dessa vez foi porque meu cunhado
saiu com o meu carro, tirou a chave que eu tinha acabado de mandar fazer, a hora que eu fui
pegar o carro para poder pegar os filhos dele lá em cima a chave ficou no contato, ficou só a
lâmina na dentro. Eu fiquei na rua, sem celular, sem nada, e ele ligando para eles poderem
me socorrer. Nesse meio tempo eles foram procurar porcariada para poder usar. Eu tinha
bebido também, mas eles tinham bebido e usado substância química.
Aqui o significado da droga é dúbio, ambíguo. Mariana se inclui no uso quando diz
que ela também bebe, quase todos bebem, as crianças vêem assim como o uso de drogas
também aparece generalizado. Ela se inclui e se exclui, diz que bebe e não usa substância
química. Parece um uso naturalizado, até um ritual. Ao mesmo tempo, ela fala que ele precisa
de tratamento, deixando a entender que ele excede mais do que ela, e por isso ele precisa se
tratar.
Com ajuda da psicanálise, podemos pensar a droga como uma companheira, uma
parceira, embora assexuada, que promove a sensação de completude; em contraposição ao
parceiro sexual do amor, quem se mostra incompleto e insuficiente.
As três mulheres aqui vistas ou como usuária de drogas, ou alcoolistas, mostram,
principalmente as duas primeiras, um desinvestimento narcísico no próprio corpo. São
mulheres devastadas, que se mostram sem valor fálico. Podemos pensar ou que a droga
produz uma ruptura com o gozo fálico, ou que a identificação com o significante droga já a
produziu de antemão.
Larissa, 39 anos
Tenho vergonha de estar aqui porque sempre vendo imagem de ser uma mulher
autoconfiante e ele me destruiu. Falava mal das minhas músicas, eu sou cantora e autora e
ele não deixava, falava que era coisa de prostituta. Só que a gente se conheceu num bar que
ele contratou a banda que eu cantava.
152
Bianca, 27 anos
... Ele tinha dívidas e morava no batalhão da polícia, para ajudar coloquei ele para
morar na minha casa. Quis ajudar e esqueci de mim. Ele me colocou uma aliança no dedo e
prometeu que quando a situação financeira melhorasse a gente casaria. Eu acreditei porque
era o que queria, uma família.
... Até hoje só me envolvi com lixo, não sei se sou só eu que não estou me valorizando
ou se todas as mulheres não se valorizam, porque acho que não existe homem fiel, homem
família. Eu me tornei uma pessoa fria, mais rancorosa. Só me vejo mulher dentro de casa
com meus filhos.
Estou cansada de ser o homem e a mulher. Estou para resolver tudo, a casa, as
dívidas, ainda sou dona de casa e sou mãe. Ser mãe e dona de casa é uma benção, mas tem
dia que saio do serviço às 22h e ainda tenho que fazer janta para os filhos. Sou manicure e
não consigo me cuidar. Enquanto isso ele estava sempre tranquilo.
Bianca relata uma situação de decepção com o parceiro após um grande investimento
libidinal feito nele. Após ter percebido que ela se casou com uma pessoa muito aquém de suas
expectativas, ela se pergunta se ela não se valoriza, ou se é algo comum a todas as mulheres a
falta de valorização pessoal; numa associação entre o significante mulher e a falta de
investimento libidinal, narcísico em si mesmas. Em seguida, curiosamente, ela diz que só se
153
vê mulher em casa com os filhos, numa associação, aparentemente inconsciente, entre o ser
mulher e à maternidade. Desta forma, ela pode ter dificuldade em se ver mulher de um
homem por uma possível colagem entre o significante mulher e à maternidade. Encerra o
trecho queixando-se de cansaço, pois trabalha em demasia, trabalha por uma mulher e por um
homem; de forma que não sobre tempo para cuidados tipicamente femininos, como fazer as
unhas, mesmo que ela os valorize com sua profissão. Bianca demonstra dificuldade com a
feminilidade, com o habitar o corpo de uma mulher. A hipótese que temos é a associação com
a maternidade.
Tássia, 48 anos
Meu primeiro marido me abandonou após a morte de um filho de um ano que tivemos,
e me trocou por uma índia em Manaus. As pessoas faziam brincadeira disso, mas acho que
tinha sarcasmo.
Tenho dois filhos vivos do primeiro casamento adultos, e dois filhos com este ex
marido agressor, um de 13 e outra de 14. O de 13 é insuportável, maltrata as pessoas e não
me aceita como mulher, ficou com raiva quando eu disse que estava saindo com outro
homem.
Tássia queixa-se de ter sido abandonada pelo marido, rebaixada a um objeto
descartável ao ser trocada pela índia. Queixa-se em seguida do filho que não a aceita como
mulher, pois não tolera vê-la como parceira de um homem. Ela então associa o ser mulher a
uma parceria amorosa com um homem, contudo não percebe a dificuldade do filho em fazer a
mesma associação.
Luciana, 26 anos
Ele me agredia muito, e eu sou explosiva, não sou mulher que apanha e fica quieta, se ele
me bate eu bato também... Ele me xinga e eu me descontrolo... Fiz papel de mãe na vida dele.
Quando a gente se conheceu, ele não tinha pai nem mãe. Vivia na rua, cada dia na casa de
um com os amigos cuidando dele, mas são os mesmos amigos traficantes.
Ele foi morar comigo no dia que a gente se conheceu, porque morri de dó dele....
Quando ela se refere a ele como homem:
O Luis é uma pessoa... é lindo sabe, parece ser um cavalheiro, achei que eu ia ajudar ele
e ele ia me ajudar. Falei que eu não tinha ninguém, ele também não e optamos por ficar
juntos.
154
Eu consegui ver que nem todo mundo que parece amigo é, mas ele não consegue ver
isso, tentei mostrar isso para ele e ele não quis ver, não entende... Não sei como ele consegue
bater em mim com o filho dele no colo. Aí eu batia nele também, mas que mulher que fica
quieta?
Luciana se define como mulher que não apanha e fica quieta, mulher que não submete
a maus tratos. Conta sua história de amor colocando-se como aquela que cuida do homem, faz
papel de mãe. Penso se não há uma contradição em não ser aquela que se submete a maus
tratos, mas ao mesmo tempo ser aquela que se submete a uma união com alguém incapaz de
se colocar numa situação de igualdade, pois ela precisa cuidar dele muito mais do que ele
precisa cuidar dela. Talvez ao ter dó dele ela se sente superior, e seu relato de ser aquela que
não apanha e fica quieta seja também uma forma de se sentir superior, dar ao seu corpo um
status fálico. Ela parece associar o significante mulher como aquela que precisa ser forte, e
não ser submissa, com algo de maternidade envolvido no ser mulher. O trecho abaixo de sua
fala indica nesta direção:
... Encontrei um homem mais velho que me recebeu na casa dele.
- Por que você não ficou com ele?
Ele não estava interessado em ajudar, ele queria que eu ficasse com ele em troca de
me dar silicone, carro. Mas eu não queria isso, queria fazer faculdade.
Roberta, 36 anos
Casei com 17 para 18 anos, tenho um menino de 15 e outro de 13 anos. Fiz magistério
e abandonei tudo para trabalhar junto dentro do trailer e fazer o negócio crescer. Lá é a
parte de entrega e a parte de frente do trailer, eu sempre fiquei na parte de trás.
Nem mulher que é da vida mesmo pode ser xingada, ainda mais quem está lá dentro
trabalhando para sustentar dois filhos.
Roberta valoriza a mulher que trabalhadora, que se sacrifica para sustentar os filhos,
em contraponto à mulher da vida (prostituta), embora tente demonstrar respeito também para
as mulheres que escolhem este caminho, quando diz que nem elas merecem ser maltratadas. O
significante mulher para ela está associado a mais de uma forma possível de ser mulher, e a
que ela valoriza é a mulher que trabalha e se esforça pelos filhos; tem algo de maternidade
envolvido no ser mulher para ela também. O fato dela ficar socialmente escondida, na parte
detrás do trailer, não parece ter sido escolha consciente dela, embora sabemos que
inconscientemente nada é por acaso.
155
Denise, 20 anos
Minha mãe é uma mulher guerreira. Criou os filhos sozinha esperando por um homem
que poderia ou não mudar. Minha mãe eu coloco no altar, ele não (o pai, que passou grande
parte da vida na cadeia).
Quero focar nos meus estudos, fazer enfermagem, ter minha casa e não depender de
homem; assim como minha mãe.... Tenho um vazio que é a falta de um pai...
Denise, ao citar exemplo de mulher, cita sua mãe, e a enaltece por ter sido mãe solteira
esperando por um homem que havia cometido um crime, e poderia não mudar. Sua mãe é
uma mulher que não depende de homem, e é esta forma de mulher que ela quer pegar para si.
Ao mesmo tempo, percebe com dor a falta de um pai.
Emely, 37 anos
Eu saí daqui toda maquiada, com o cabelo muito bem feito, desci na rodoviária do
Rio e falei: que calor é esse. Qual é a idade dessa mulher mãe dele. Aquelas mulheres não
vestem roupas, andam de top e chinelo.
Eu não podia ir no mercado sozinha, porque na comunidade não é de uma mulher
casada ir no supermercado, é o homem que faz compra.
Meu marido falava para eu parar de usar essa máscara, que minha família me trata
como bonequinha, que eu tenho que mostrar que sou mulher.
Emely mostra um conflito na sua concepção de ser mulher após se mudar para uma
comunidade no Rio de Janeiro, onde foi viver com um novo marido, quem veio a ser o
agressor. Ela se coloca como a mulher bem arrumada, que se espanta como as mulheres
cariocas que se vestem de forma despojada e com pouca roupa. O significante mulher,
primeiramente, está com ela associado à boa imagem, à mulher pronta, às imagens sociais.
Contudo, o marido lhe perturba ao dizer que ela precisa ser mulher, pois sua família de
origem lhe trata como bonequinha – ainda no diminutivo, e se refere a sua forma de se portar
como uma máscara. Esta fala a abala, contudo ela não mostra na entrevista ter elaborado uma
nova concepção para o ser mulher, mostra apenas uma dúvida.
Vilma, 45 anos
Ele tem duas casas, tem um carro, porque ele não sai de casa? Quando eu vivo desse
jeito me acabando, limpando, minha casa é grande. Eu sou mulher, sou um ser humano, não
preciso dele, não vai mudar nada, ele nunca me deu nada. Então to com muita raiva dele,
156
não quero isso. Se ele fosse uma pessoa que não me maltratasse. O pai dele batia na mãe
dele, até os cunhados dele batem na mãe dele, isso é bem familiar.
Vilma parece ter um “insight” durante a entrevista de que o significante mulher está
atrelado à humanidade, é um ser humano e, portanto – podemos ir um pouco adiante – um ser
digno. Ela parece concluir, nesta passagem, que, por ser mulher e, portanto, ser humano, não
pode ser maltratada e pode viver sozinha, não precisa de um homem para viver; quanto menos
um homem que maltrata.
Úrsula, 33 anos:
Quando você tem um companheiro você quer que o companheiro e proteja né, nós
mulheres queremos isso.
Úrsula, nesta passagem, associa o significante mulher ao significado de ser alguém
que quer proteção por parte do parceiro.
Gisele, 20 anos:
Era tão ruim, eu me sentia tão para baixo. É engraçado que a mulher começa a se
cuidar mais quando separa.
Gisele associa o cuidado da mulher com a separação da parceria amorosa. O
significante mulher é aqui associado àquela que se cuida, mas fica a incógnita de porque o
cuidado é após uma separação. Na parceria amorosa as mulheres precisam sustentar a
virilidade do homem, e, portanto, dirigir a libido a eles, esvaziando-se de si?
As considerações finais deste item são difíceis de serem expostas. Para a psicanálise
de orientação lacaniana, existe a polêmica frase de que A mulher não existe. O que pode
causar espanto, embora seu significado seja de que as mulheres só existem em singularidade,
no uma a uma e, portanto, não são passíveis de um pronome que as generalize. É preciso fazer
a mulher existir mediante traços que não são de uma feminilidade pura, mas sim inventada.
Contudo, sabemos que sob alguns aspectos sociais a mulher é aquela que não pode
existir. Precisa trabalhar na parte de trás do trailer, para não aparecer, tal como Roberta, ou as
antigas gregas, no Gineceu. Precisa sustentar a virilidade do homem, como podemos
especular que é o caso de Vilma e de Gisele e, portanto, esvaziar-se narcisicamente.
Temos ainda os casos de Denise e Luciana, cujo com exemplo de mulher é a que cuida
e estuda, já Úrsula coloca o oposto, a que é protegida. Emely e Larissa, associam as mulheres
àquelas que mantém uma boa imagem do corpo, precisam estar sempre bonitas, algo muito
157
evidente nos séculos XX e XXI: a ditadura da beleza incidindo sobre as mulheres; o que as
faz submeterem-se muitas vezes a dietas ditatoriais, exercícios físicos degradantes e até à
banalização das cirurgias plásticas, como se fossem procedimentos corriqueiros e nada
invasivos. Já Bianca trás, aparentemente inconscientemente, a moral vitoriana em jogo: a
mulher que só se vê como tal enquanto mãe. Vilma traz algo muito interessante: a mulher
enquanto ser humano; próximo às afirmações de Beauvoir. Tássia traz a mulher enquanto
aquela que faz parceria amorosa com o homem, próximo ao que é colocado pela psicanálise
de orientação lacaniana, a qual se distancia da proximidade entre mulher e mãe, tal como
fizera o pai da psicanálise.
Enfim, não nos cabe concluir, mas sim abrir possibilidades de significados ao
significante mulher, para que possamos criar subsídios clínicos ao olharmos para as variações
inconscientes.
Vanessa, 35 anos:
No relacionamento nem se preocupava comigo, era eu a mãe dele, era comida no
prato. Ele tem 26 anos é bem mais novo que eu, eu era a protetora.
Vanessa, neste trecho, associa o significante mãe ao significado de proteção, o qual
pode ser exercido por qualquer pessoa, tal como uma esposa para com um marido.
Bianca, 27 anos:
Eu estou para resolver tudo, a casa, as dívidas, ainda sou dona de casa e sou mãe. Ser
mãe e dona de casa é uma benção, mas tem dia que saio do serviço às 22h e ainda tenho que
fazer jantar para os filhos.
Bianca aqui associa mãe aquela que cuida dos filhos, independentemente de
circunstâncias difíceis, de cansaço; o que remete a uma posição masoquista, de cuidado ao
outro acima de tudo e ausência de cuidado consigo própria.
Celina, 37 anos:
Minha irmã decidiu agora que gosta de meninas. Para ela eu disse que o problema é
dela, aguentando o que tiver que aguentar. Minha mãe briga com ela, fala que ela vai
morrer, e quer que eu apoie a briga contra minha irmã. Eu sempre foi a que estava no meio
158
para apaziguar, mas na hora que eu precisava era só pedra. Tenho 70% de meu corpo
tatuado, e minha mãe diz que eu vou queimar no inferno.
Celina ficou com uma marca de sua mãe como figura opressiva, quem julga e denigre
o outro passando por cima do desejo dele. Para além disto, o significante mãe aqui aparece
associado a uma figura muito poderosa, até abusiva. O trecho abaixo provoca esta reflexão:
Não acredito no amor, acho que amor é de mãe para filho.
O amor, algo tão importante que inacreditável, só pode ser exercido pela mãe.
Luciana, 26 anos:
Fiz papel de mãe na vida dele. Quando a gente se conheceu, ele não tinha pai nem
mãe... virei mãe desse idiota.
Mãe aqui, para Luciana, é uma metáfora da pessoa que vem suprir uma orfandade.
Deise, 26 anos:
Quando minha mãe estava grávida de mim, teve birra do meu pai. Então eu tive
gravidez psicológica, como fala, gravidez rejeitada, uma coisa assim.
É triste ver a mãe dando carinho para minhas irmãs e para mim não.
Para Deise a mãe não aparece associada à figura que cuida, mas sim à mãe biológica,
quem fez parceria com o pai e engravidou dela. Ela coloca os afetos da mãe para a filha como
relacionados aos da mãe pelo pai. Deise se sente rejeitada pela mãe e justifica a rejeição numa
desavença afetiva da mãe para com seu pai. Como a mãe é o primeiro objeto de amor para o
bebê, na medida em que oferece os primeiros cuidados, sentir-se rejeitada pela mãe pode
gerar impacto psíquico para toda uma vida. Aqui o significante mãe aparece associado a algo
que gera dor.
Eva, 33 anos:
... Minha mãe é alcoólatra, meu tio usuário de craque. Saí de casa aos quatorze anos
para morar com amigas, porque a minha mãe me batia bêbada. Com dezessete anos meu
primeiro marido, que era meu namorado, me convidou para morar na casa dele para me
ajudar.
Eu gosto muito de ser mãe e fico confundindo um pouco se sou mãe ou mulher. Eu
falava isso para ele, que eu não sabia se eu era mãe dele.
Ele nunca me ajudou, sentia até que parecia que ele estava comigo para fazer um
favor a uma mãe solteira.
159
Em Eva o significante mãe aparece associado a uma figura perversa, capaz de bater e
ficar fora de si com uso de álcool. A dificuldade em gerar significados positivos à mãe pode
ter feito Eva se colar a este significante, numa tentativa de elaboração, e, consequentemente,
ver mãe em diversas posições subjetivas, tais como na relação com o marido. Ela também traz
o significante mãe solteira, como uma figura que precisa de ajuda. Há ao mínimo três
significados atrelados aos significantes mãe aqui em Eva: uma figura perversa e omissa; uma
figura que ajuda o marido; e uma figura desamparada na mãe solteira.
Denise, 20 anos:
Minha mãe é pastora e tem esse hábito de querer ajudar. Era ela que pagava até a
conta de luz dele. Minha mãe é uma mulher guerreira. Criou os filhos sozinha esperando por
um homem que poderia ou não mudar. Minha mãe eu coloco no altar, ele não.
... minha mãe que manda nele. Ele trabalha de segurança, faz compra, paga contas, a
casa foi minha mãe que comprou. Ele não faz as regras...
O significante mãe aparece em Denise como figura forte, guerreira, esperançosa e
cuidadora, e também poderosa, é ela quem manda. Mãe aqui é próximo do matriarcado.
Cecília, 32 anos:
- o que te fez ficar com ele, mesmo violento?
... É porque eu teria mais um filho solteira... (chorou)... É porque estava casada com
o pai da minha filha, e ela gosta dele.
... Prefiro ser mãe solteira do que ser casada e não ser feliz, prefiro mil vezes ficar
assim e minha família não está me julgando.
Cecília usa o significante mãe para referir-se à mãe solteira como uma figura passível
de ser julgada pejorativamente. Entendemos daqui que o correto para ela seria não ser a mãe
solteira, mas sim a mãe casada, talvez pelo status do casamento como o correto para uma mãe,
dentro de algumas linguagens conservadoras. Ela elabora um pouco desta questão ao longo da
entrevista e termina dizendo que estar casada não necessariamente traz felicidade.
Arlene, 33 anos:
Meu filho de 12 anos, o pai dele me expulsou de casa com o pequeno de 4. Aí eu falei
pra ele assim: filho você quer vir com a mãe? Ai ele falou que não, que queria ficar com o
pai dele, porque o pai dele faz tudo por ele. Mãe é mais protetora, não gosta de deixar sair, e
o pai dele permite tudo, acho que é por isso.
160
Minha mãe até me expulsou da casa dela quando eu era criança. Sempre foi
agressiva. Meu pai já era mais próximo de mim, conversava, compreendia. Minha mãe era
mais agressiva, não se importava. Com todos os filhos ela é assim.
Arlene sofre por ser uma mãe cujo filho mais velho prefere viver com o pai. Coloca-se
como uma mãe protetora, e justifica a saída do filho nesta proteção. O significante mãe,
portanto, primeiro aparece atrelado à proteção. Em seguida aparece associado à agressividade
e distanciamento, na figura de sua própria mãe.
Úrsula, 33 anos:
A minha mãe já é daquela pessoa assim nervosa, desde quando eu era criança ela é
mais nervosa. O meu pai já é mais centrado, procura resolver as coisas com mais calma.
Úrsula coloca o significante mãe associado à pessoa nervosa. Ela mostra uma tentativa
grande ao longo das entrevistas de resolver as coisas usando a razão e não a emoção, talvez
pela atuação deste significado inconsciente:
Meu pai me da livre arbítrio para fazer o que deve ser feito, mas ele fala: aja sempre
com a razão, nunca com a emoção.. Eu fui criada na roça e é por isso que tenho essa cabeça
sentimental até demais. Agora eu tenho que agir pela razão mesmo, pelo que é para ser.
Gisele, 20 anos:
Falei que o pai e a mãe não da certo juntos, mas ele vai continuar sendo seu pai e eu
vou continuar sendo sua mãe. Eu não arrumei um marido, eu arrumei um namorado.
E a sua mãe, não fica com ele?
Eu nunca deixei porque ela batia muito na gente. Tenho medo que ela não tenha
paciência de cuidar.
Minha mãe sempre assim, quebrava um copo era motivo de apanhar. Não apanhar de
arrebentar, mas sempre batia, dava chinelada até a gente chorar. Nunca foi aquela mãe de
abraçar, de dar beijo. Meu pai já era ao contrário. Era ela que batia no meu pai.
Todo final de semana minha mãe parecia que estava com alguma coisa...
Gisele, ao início da entrevista, faz um esforço para dissociar o significante mãe do
significante esposa, ao contar da forma como conseguiu relatar ao seu filho que ela não viverá
com o pai dele, mas será sempre sua mãe. Em seguida, refere-se ao significante mãe
remetendo a figura de violência, em contraposição ao pai e a mãe que aparece como ideal,
aquela que abraça e dá beijo.
161
Rosa, 61 anos:
... Mãe, a gente quer honrar pai e mãe, eu jamais vou levantar a mão para o meu pai,
ele não houve a gente.
Rosa conta de seu filho dizendo que é necessário honrar pai e mãe, ao que ela
concorda e parece ter sido quem lhe ensinou este preceito. É uma mulher de mais de sessenta,
nascida em meados do século passado, e parece ter recebido uma educação de caráter moral
rígido, como a necessidade de se honrar pai e mãe independente do comportamento deles. É
um congelamento do significante mãe enquanto figura inatingível, de poder supremo, que não
sofre julgamento.
Selma, 35 anos:
Eu só queria ter o direito de exercer minha maternidade em paz... Tenho medo de
minha filha falar um dia que eu fiz um Boletim de ocorrência contra o pai dela, tenho pânico
de perder minha filha.
Selma coloca a maternidade como algo muito precioso, o qual ela jamais pode perder;
podemos ir adiante e pensar que o significante mãe para ela é de extrema importância, onde
ela se apega muito fortemente.
O significante mãe, dentre os seis significantes recolhidos das entrevistas, foi o que
apareceu num número maior de vezes. O que foi curioso, uma vez que as mulheres
entrevistadas estavam dirigidas à DDM para relatarem seus episódios de violência, enquanto
mulheres.
Conforme visto anteriormente, a mãe é o primeiro objeto libidinal homossexual da
menina, com a qual é construída uma relação carregada de sentimentos intensos e ambíguos:
amor, ódio, raiva, culpa, gratidão; dentre outros. Pode-se dizer que mãe representa o objeto
total, chamado pela orientação lacaniana de Das Ding, capaz de plena – e fantasiosa –
satisfação. Tal objeto não existe, ele é uma ilusão. Mas as expectativas depositadas sobre uma
mãe, sempre são muitas.
Sendo um sujeito do sexo feminino, facilmente a menina atribui à mãe à tarefa de
transmitir-lhe o enigma da feminilidade, ou seja, os significados inerentes ao habitar um corpo
de mulher. Contudo, tais significados nunca vêm, pois são construídos em singularidade, bem
como são contingentes. Mas as expectativas em cima de uma mãe, não cessam.
Ao longo da história, temos que na época de Freud, na conhecida era vitoriana, século
dezenove, a maternidade era fortemente valorizada como uma grande saída para as mulheres
162
encontrem um lugar enquanto sujeito. Vale ressaltar que tal valorização pode ter forte relação
com a revolução industrial, a qual estimulou a reprodução, pois ela era traduzida em aumento
de mão de obra. As mulheres não precisavam trabalhar, pois a renda do marido compunha a
renda da família, para que elas pudessem, integralmente, dedicarem-se aos cuidados do lar,
marido e filhos. A maternidade aqui entra como salvação para as mulheres ganharem
visibilidade e reconhecimento. Enfim, a forma de conduta da mulher resumida em mãe
imprime marcas no Brasil até hoje.
As falas de Eva e Bianca ilustram uma confusão entre o ser mãe e o ser mulher. Elas
não demonstram clareza se há uma diferença entre estas duas funções ou se não há, mostrando
possibilidade de resumir à feminilidade à maternidade. Principalmente Eva traz claramente
este questionamento.
Por outro lado, algumas mulheres trouxeram claramente a assunção do papel de mãe
nos relacionamentos; é o caso de Luciana, Vanessa e Denise, esta última se baseia no modelo
de sua mãe, quem tomou o lugar de cuidar do seu pai, como um filho. Não houve
questionamento nestes casos, houve a assunção do lugar, ainda que nem sempre tenha dado
certo no relacionamento. Denise ainda vangloria o papel da mulher guerreira, que sacrifica à
própria vida em função de cuidar dos membros da família, num tom composto de um tanto de
masoquismo.
Rosa associa mãe à honra, remetendo a um poder inabalável e inatingível, o qual não é
passível de questionamento. Talvez esta associação tenha origem em educação religiosa;
honrar pai e mãe está dentro dos dez mandamentos da Bíblia. Não conseguimos saber se a
relação de Rosa com sua mãe foi boa ou não, pois ela não se permite falar dela.
O significante mãe solteira aparece nas entrevistas de Eva e de Cecília, na primeira
como uma prerrogativa de abandono, necessitando de cuidado; e na segunda com uma
prerrogativa moral, de ser um condição de vida passível de julgada pejorativamente.
Arlene se coloca como uma mãe protetora, aquela que gostaria de guardar os filhos em
uma caixinha, embora sua própria mãe seja descrita como uma pessoa cruel e distante. Selma
se aproxima da mãe protetora, mas tem um grau de veneração da maternidade no seu caso
aliado à insegurança de possivelmente este lugar de mãe lhe ser retirado.
O mais marcante dentre os relatos envolvendo o significante mãe é o número alto de
mulheres que descrevem problemas de relacionamento com suas próprias mães, alguns deles
muito graves, devastadores. Vale ressaltar que estas entrevistas foram feitas apenas uma única
vez, o que impossibilita tirar conclusões profundas sobre o inconsciente destas mulheres, mas
podemos apontar para sinais de devastação em algumas delas, tais como Eva, Celina e Deise.
163
Gisele, Úrsula e Arlene também apresentam relações difíceis com suas mães, mas descrevem
seus pais como pessoas melhores, de forma que aparentemente seus pais cumpriram algo da
função materna de cuidados primários, protegendo suas filhas da devastação; embora sinais
dela também sejam encontrados nelas.
A devastação é estudada pela orientação lacaniana apontando para mulheres cujo
corpo encontra-se sem sustentação fálica. Entendendo o falo enquanto o significante do poder
são corpos que se encontram rebaixados, sem lugar no desejo do Outro. Sendo o Outro
primordial do sujeito humano a mãe, quem dirige os primeiros olhares à criança, a devastação
é estudada atrelada diretamente à relação das mulheres com suas mães. Eva descreve sua mãe
como bêbada, agressiva e distante. Celina descreve como opressora e distante afetivamente;
Deise descreve-se como preterida pela mãe, quem deu carinho a seus irmãos em detrimento
dela. Vale ressaltar que a origem do termo devastação, ou “ravage”, em inglês, derivado de
“ravir”, quer dizer: apreender violentamente. Já outro derivado, “ravissement”, quer dizer:
transportado para o céu; termo que se aproxima da mística. No devastar, ou arrebatar, há o
êxtase; há, portanto, um fator de erotomania inscrito no termo. Quando se arrebata uma
pessoa, ela é levada a um estado de felicidade suprema.
Devastação é algo extremamente sério e perigoso, pois as mulheres tendem a repetir
na parceria amorosa o mesmo lugar de objeto dejeto vivenciado com suas mães, e permite
com quem seus parceiros façam dela o que quiserem, pois ele é quem fica com elas, quem não
as descartou, tal como suas mães, no mundo interno delas. Devastação pode levar à morte de
mulheres, embora nem todas as mulheres desta pesquisa se submetem à violência por estarem
devastadas.
Vanessa, 35 anos:
Já rompemos uma vez quando eu vi troca de mensagens dele com meninas, que eu
considerei traição, mesmo que não tenha tido o contato de corpo, porque era um
relacionamento mesmo que ele tinha por whatsap, com várias meninas, de dar bom dia, boa
tarde, boa noite, dizer que está com saudade. Ele insistiu muito para que que a gente
voltasse, conseguiu vencer pelo cansaço; não, ele me convenceu. Eu já tinha sentido que ele
teve dificuldade demais com a separação, mas voltei porque ele prometeu casamento, família,
e eu acreditei, ficou tudo bem, entre aspas.
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Aqui com Vanessa o significante família entra associado como uma forma de resgatar
e oficializar um relacionamento tido como perdido.
Larissa, 39 anos:
Natália, 28 anos:
Continuei com ele pensando que ele iria mudar, que eu ia conseguir fazer ele mudar,
e na minha família é cada um por si, eu não teria para onde ir. Fiquei vivendo separada dele
na mesma casa, até conseguir meu emprego e ter incentivo de pessoas pra separar. Daí
peguei um dinheiro da pensão, aluguei uma casinha e fui. A avó dele está me ajudando, ele
não me deixava colocar ninguém para olhar as crianças, só quem é da família que pode
cuidar, senão ele me ameaça de morte.
Natália usa o significante família neste trecho duas vezes, com significados diferentes.
Na primeira vez família aparece associado às pessoas cuja união é de cunho biológico,
apenas. Quando ela diz que na sua família é cada um por si podemos entender que não há
união afetiva na família e nem relação funcional. Já em seguida ela diz que seu marido proíbe
qualquer pessoa que não seja da família a cuidar de seus filhos; aqui família aparece associada
a uma relação de confiança máxima, contudo tal significante foi mencionado pelo agressor, e
não por ela.
Raíssa, 36 anos:
165
Eu não tenho família para ter com quem contar. Tenho pouco contato com minha mãe
que mora em São Paulo. Meu pai não me assumiu, eu não conheço ele. Tenho dois irmãos
que não tenho muito contato.
Com Raíssa o significante família aparece associado a pessoas de confiança, e
companheiras. Ela não tem família, portanto, não tem com quem contar.
Nádia, 21 anos:
A relação era complicada, eu era idiota e ia e voltava com ele o tempo inteiro
conforme ele quisesse. Ele me xingou uma vez que minha mãe ouviu e entrou na briga.
Depois disso ele ficou distante, mas eu, idiota, continuava com ele e achava que minha mãe e
minha família que eram o problema.
Nádia está, neste relato, associando família a um problema, a uma pedra no caminho
dela conquistar o que queria, que era estar junto do agressor.
Bianca, 27 anos:
... Ele tinha dívidas e morava no batalhão da polícia, para ajudar coloquei ele para
morar na minha casa. Quis ajudar e esqueci de mim. Ele me colocou uma aliança no dedo e
prometeu que quando a situação financeira melhorasse a gente casaria. Eu acreditei porque
era o que queria, uma família.
... Até hoje só me envolvi com lixo, não sei se sou só eu que não estou me valorizando
ou se todas as mulheres não se valorizam, porque acho que não existe homem fiel, homem
família.
Bianca primeiro se refere à família como um sonho para sua vida, sem seguida coloca
família com o significado de fidelidade.
Eduarda, 45 anos:
Ele sempre foi muito ciumento e possessivo. Não me deixava frequentar festas de
família, nem ir no cinema sozinha.
... Levei o casamento até esse ponto para ficar com a nossa casa, que é financiada, e
ficar com a família, mas ele está fazendo mal para os filhos.
Eduarda coloca a família como uma localização social na qual ela quer estar sempre
dentro, seja na sua família de origem, seja na que construiu com o parceiro, que veio a ser o
agressor.
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Milena, 31 anos:
Meus pais faleceram os dois quando eu era muito nova, não queria que minha filha
pensasse que eu não penso no pai dela. Só que não da para conviver em família, para ele
tudo tanto fez tanto faz.
Milena trás uma valorização da concepção de família como um lugar de convívio
necessário, ao se lamentar de ter perdido seus pais cedo e querer resguardar a família para sua
filha. Lamenta-se do parceiro não se preocupar com este convívio.
Emely, 37 anos:
... Meus parentes saem do trabalho e se juntam as 6 da tarde para tomar café, parece
uma padaria. Eu tinha vida aqui.
- Você tinha medo deles?
Era vergonha, não medo. Sempre foram muito perto, unidos, família. Eram a família
do comercial Doriana. Depois que aconteceu isso comigo foram descobrindo outras coisas.
Uma sobrinha engravidou com 13 anos. Meu irmão e a filha mais velha se identificaram
gays. Todo mundo tinha medo dos meus pais, são da roça, muito conservadores.
Emely traz o significante família associado à união e à conservadorismo, e também
traz o significante popular: família Doriana, frequentemente usado para se referir a família
cuja imagem aparenta um funcionamento em extrema perfeição.
Flaviane, 34 anos:
... Na minha cabeça tinham os meus filhos também, porque a gente criar tudo junto
bonitinho, então quando eles fizessem 18 e fossem trabalhar era mais fácil, mas a gente
acabou antecipando. A gente pensa naquele modelo de família de margarina né? Ai a gente
foi adiando, adiando, passando uma humilhação aqui, outra ali.
... Eu ia para praia, ir ver o por do sol e ficava até a hora que eu queria. Daí pensei
que é essa paz que eu quero para mim. Mas ainda tem o lado de você que quer fazer um
passeio família, tanto que esse ano não programei nada, e não pretendo fazer sozinha.
Flaviane traz o significante família parecido com Emely, mas ao invés do termo
família Doriana disse família de margarina, o que se refere à mesma valorização da imagem
de uma família perfeita e tradicional, mas sem ênfase para a marca. Ela também associa
família à união, quando diz que gostou do passeio sozinha, mas o próximo quer fazer em
família, quer companhia de uma família.
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Márcia, 32 anos:
Eu conheci ele pela minha prima. Na família dele tem um monte de problemas graves,
um irmão está preso por estupro, outro por droga. São famílias problemáticas.
... na minha família não tem nenhum presidiário, ninguém que bebe, fuma. Eu sou a
única que tenho tatuagem.
Márcia trás o significante popular família problemática, comumente associado à
julgamento moral e acompanhado por outros significantes que sofrem julgamento deste cunho
como droga e presidiário. A família dela seria oposta à problemática.
Carmen, 37 anos:
Acho que eu nunca gostei muito dele, mas eu queria formar uma família. Eu insisti, eu
tentei, eu trabalhei, construiu coisas, mas sempre aguentando ele, carregando o estresse dele.
Carmen traz a valorização do significante família como um sonho para sua vida,
associado a algo que vai lhe trazer paz psíquica.
O significante família sofre influência direta do contexto social. Vemos que os
arranjos psíquicos que cada uma destas mulheres entrevistadas pôde fazer ao mencionar esta
palavra tem relação com a sociedade que elas internamente construíram para viver.
Comecemos pensando em Emily e Flaviane, a primeira fala em família Doriana, e a
segunda fala em família de margarina. O comercial da margarina Doriana foi largamente
conhecido nos anos noventa por ilustrar uma família feliz, tomando café da manhã em
perfeito funcionamento, com uma bela mesa posta pela esposa, bem recebida pelo marido e
pelos filhos. Ainda hoje tais cenas são facilmente lembradas e viraram jargão popular a fim de
referir-se à família conservadora, herdada da família tradicional burguesa do século XIX, na
qual a mulher “dona de casa” ganha força. Vale ressaltar a valorização da imagem neste
modelo de família, muito bem ilustrado no referido comercial: é um perfeito funcionamento
com total predomínio da felicidade. Faz lembrar o cinema hollywoodiano, já que o cinema
europeu costuma tratar mais da realidade como tal; e não de um império da imagem sobre ela.
A família também é vista como uma espécie de localização social, um lugar almejado
para que o sujeito não esteja à deriva, às margens da sociedade, uma espécie de proteção
contra o desamparo construída. Tal significado pode ser encontrado nas entrevistas de
Carmen, Milena, Eduarda, Bianca e Vanessa, e é de extrema importância para pensar nas
mulheres que permanecem em uma união com um parceiro violento pelo simples fato de
manterem-se em família. Ainda que sofram maus-tratos, é melhor do que estar no desamparo,
à deriva.
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cumplicidade, confiança. Bianca associa à fidelidade, dentre outras coisas. Flaviane, dentre
outras coisas, mostra desejo de estar unida à família e Milena se entristece por ter se sentido
só sem uma família, a qual associa à convívio.
Vanessa, 35 anos:
Sinto medo que algum crime aconteça... não é amor da parte dele, é medo de perder a
companheira, é obsessão. Ele manda mensagem todos os dias no celular, eu não bloqueei,
mas ignoro.
Vanessa está separando o significante amor do comportamento obsessivo do marido,
que faz contato exagerado.
Natália, 28 anos:
Ele é perigoso, tem amigos com armas. Eu tenho amor à vida.
Natália aqui atrela o significante amor ao significado de gosto, zelo, que pode ser
dirigido não necessariamente a alguém, ou a alguma coisa material.
Débora, 44 anos:
Eu tenho vontade de ter um novo amor, mas sinto medo agora.
Débora refere-se ao amor como algo que pode ferir, doer, já que ela o teme.
Celina, 37 anos:
... Eu nunca quis viver com alguém, e tinha receio de levar alguém para casa com o
meu filho. Não acredito no amor, acho que amor é de mãe para filho.
... Não acredito no amor, gosta de ficar sozinha. Eu me lembro de quando desmaiei de
dor, agredida, e meu ex chorava falando que matou seu amor, fazendo carinho em mim
desmaiada.
Celina primeiro traz o significante amor atrelado ao significado de maternidade, e
apenas isto. Em seguida ela relata, ainda que não com clareza, como ela perdeu a crença em
uma abordagem maior do amor, após seu ex lhe agredir; ou seja, quem ama não agride, este é
um outro significado.
Denise, 20 anos:
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Acho que queria ajudar e assim foi surgindo a paixão, não era amor. Eu tenho um
vazio que é a falta de um pai, e ele não foi criado com o pai também.
Denise está diferenciando os significantes amor e paixão. Ela se identifica com o
rapaz, gosta dele, mas não necessariamente viraria amor.
Vilma, 45 anos:
Porque 30 anos Marcella, o amor acaba. O amor é como se fosse uma flor, se você
rega ela vai ficar bonita, mas se você não rega ela vai ficar feia não vai? Quando eu tive
minha filha eu queria uma filha, mas já tinha acabado.
Vilma pensa no amor com significado de cultivação necessária, o amor para ela não
tem significado de algo estático, mas sim dinâmico.
Arlene, 33 anos:
Não vou dizer que nunca amei ele, amei sim. Mas o amor foi virando ódio no meu
coração.
Arlene traz o amor como algo possível de virar ódio, transformar-se em algo negativo,
significado que também atrela o amor a algo dinâmico, tal como Vilma.
Raíssa, 36 anos:
... Tenho que aprender a me amar.
Raíssa fala do amor dirigido a si mesma, autovalorização.
Luana, 57 anos:
O primeiro foi tranquila a separação, casei com 18 anos, tive as duas filhas. Depois
tive um filho do terceiro marido. Com 50 anos conheci o último marido, não gostava muito
dele mas achava que iria conseguir amar.
Luana coloca o amor como difícil de conseguir. Ela conta sobre uma série de maridos,
sendo que ao se referir ao último coloca um fracasso na tentativa de amá-lo. Em relação aos
primeiros, ela nada diz, o que faz parecer que também não os amou.
Estes nove exemplos trazem formas muito diferentes de se pensar o amor, são diversos
significados. Algumas mulheres pensam com base na exclusão, tais como Vanessa: amor não
é obsessão, ou Denise: amor não é paixão. Outras colocam o amor como algo difícil, raro, tais
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como Celina e Luana. A primeira sofreu uma decepção amorosa, e passa a atrelar o amor à
maternidade, a segunda coloca uma dificuldade sua em amar.
A relação entre as mulheres e o amor pode ser pensada como uma das conquistas do
direito à liberdade das mulheres; ou ainda, como uma conquista em andamento. Uma vez que
nos séculos passados não era dada às mulheres o direito de opinar sobre a parceria amorosa,
como elas iriam amar? Amar pode ser feito de forma imposta?
Fazendo um recorte histórico, já falamos anteriormente sobre um modelo de
feminilidade fortemente imposto às mulheres no século XIX, que era uma dedicação ao lar,
composto de marido e filhos; uma vida monótona de poucas escolhas. Tal modelo gerava uma
vida de miséria às mulheres com gosto por dotes intelectuais, pois estes causavam
repugnância nos homens. A saída que muitas escolhiam era uma espécie de refúgio no mundo
da imaginação, alimentado por suas leituras, as quais elas deviam fazer muitas vezes as
escondidas, para assim, ao menos em fantasia, conseguirem uma vida mais movimentada e
interessante. O problema é que, desta forma, elas se afastavam da realidade, colocando sonhos
a si próprias que jamais seriam realizados. Podemos concluir que o amor era, na maioria das
vezes, mais realizado em fantasia do que em realidade, já que as uniões não eram de escolha
por parte das mulheres. O caso de Luana faz lembrar esta falta de escolha, quando ela diz que
não gostava muito do último marido, mas achava que iria conseguir amar. Já Celina coloca
uma descrença que parece ter fundo melancólico, ainda que ela tenha passado pela
contingência de uma relação traumática.
Raíssa fala na necessidade em aprender a se amar, e Natália fala em amor à vida, são
formas de amor sem erotização; ou o amor a si mesma ou o amor à existência.
Arlene, Vilma e Débora referem-se ao amor dentro de uma parceria amorosa, como
algo dinâmico e que não é simples. Débora quer um novo amor, mas tem medo; talvez de
sofrer pelo trauma que foi a relação com o agressor. Arlene diz que amava o parceiro, mas o
amor foi virando em ódio em seu coração a medida que ele foi ficando agressivo; ou seja, o
amor acaba dependendo das atitudes do parceiro, não é eterno de antemão. Vilma compara o
amor a uma flor, algo que floresce – cresce e ganha beleza, saúde – se for cultivado, e caso
não se cultive, morre. Estas três mulheres partem de uma concepção de que o amor depende
delas e do parceiro amoroso. Mesmo Vilma que mostra uma vida de inteira submissão ao
marido – vide entrevista completa em anexo – mostra que se o marido não investe na relação,
não há porque investir nele.
Na teorização lacaniana, o amor é trabalhado como o que faz ao gozo condescender ao
desejo, o que pode ser entendido de diversas formas. Retomando o conceito de gozo enquanto
172
Vanessa, 35 anos:
Ele insistiu muito para que a gente voltasse, conseguiu vencer pelo cansaço; não, ele
me convenceu. Eu já tinha sentido que ele teve dificuldade demais com a separação, mas
voltei porque ele prometeu casamento, família, e eu acreditei, ficou tudo bem, entre aspas.
Casamento para Vanessa aqui aparece associado à família, algo que oficializa uma
união.
Eduarda, 45 anos:
173
.... Levei o casamento até esse ponto para ficar com a nossa casa, que é financiada, e
ficar com a família, mas ele está fazendo mal para os filhos.
Casamento aqui está associado ao que une Eduarda ao lar, no sentido material, e à
família; o significado está próximo ao anterior, colocado por Vanessa.
Roberta, 36 anos:
....Nunca foi bom o casamento, mas agressivo ele não era. O casamento foi
empurrado com a barriga até as crianças pegar uma certa idade.
Roberta aqui coloca o significante casamento com o significado de relacionamento
com o marido, homem e mulher.
Úrsula, 33 anos:
Quando ele bebe, ele sempre alterou. Meu pai falava: se você quiser levar seu
casamento para ver se ele melhora, você vai ter que saber lidar com isso dele beber. Eu casei
com ele com dezessete anos. Dos dezessete aos vinte e um anos eu não sabia lidar com aquela
situação da bebida. Eu agredia ele verbalmente, ele me agredia. Escutei meu pai, fui
amadurecendo, fui sabendo lidar devido ao filho.
Aqui com Úrsula o casamento aparece referido ao relacionamento entre ela e o
marido, embora ela tenha reproduzido uma fala do pai dela, a qual ela diz que acatou.
Paula, 20 anos:
Eu não consigo mais olhar para um homem e pensar que quero casar. Acho que são
todos iguais. Só queria me livrar.
Com Paula o casamento também aparece enquanto relacionamento com um homem,
embora aqui o significado adquira uma conotação ruim, como algo que ela não quer, devido
aos homens em geral não serem bons.
Flaviane, 34 anos:
- Você tinha vontade de sair logo da casa dos pais quando engravidou?
Não, sou até meio contra achar que a pessoa tem que casar porque engravidou e
penso isso para os meus filhos.
Flaviane se refere ao casamento como desvinculado da maternidade.
174
Luana, 57 anos:
Começamos de forma errada porque eu era casada. O Márcio tem ciúmes das minhas
filhas, minhas netas, não posso ir ao shopping.
- Por que o casamento acabou?
Porque começou errado.... Já foram quatro casamentos.
O primeiro foi tranquila a separação, casei com dezoito anos, tive duas filhas. Depois
tive um filho do terceiro marido. Com cinquenta anos conheci o último marido, não gostava
muito dele, mas achava que eu iria conseguir amar. Estava na fase de não saber se era isso
que eu queria e acabei reencontrando o Márcio, que é este atual namorado. Já sabia que ele
era possessivo e que o último casamento dele foi terrível, mas achava que comigo seria
diferente.
Meu primeiro marido me tratava como princesa.
Você quer ser tratada como princesa?
Não, aos trinta quis separar, fui contra a família inteira. E fui muito inconsequente,
qualquer um que se encantava comigo eu já casava, foi muito atropelado.
Luana tem uma história de casamentos e separações, foram quatro até ela conhecer o
agressor, com quem não se casou. Ela entra na história de casamentos com um marido que a
tratava como princesa, e termina dizendo que se casava com quem se encantava com ela, até
que no último marido ela se queixa de não o ter amado. O casamento para Luana pareceu uma
forma de ser amada, talvez, indo um pouco mais longe, de aprender a amar; o que não deu
certo.
O que temos nestas entrevistas sobre o significante casamento, é que a maioria das
mulheres o utiliza com significado de união entre um homem e uma mulher, um
relacionamento amoroso; é o que aparece com Roberta, Úrsula e Paula. Esta última mostra
uma descrença no casamento, justificada por desacreditar nos homens. Algumas entrevistas
ressaltam o caráter de formalidade do casamento, ao associá-lo ao significado de não ser uma
união comum, mas uma união que traz uma marca de oficialização da relação, tais como
Vanessa e Eduarda. Esta última também associa ao significante casamento as construções
materiais advindas do casamento, como a casa própria. Esta concepção do casamento
enquanto uma união de importância, para além de um relacionamento, pode ser uma condição
nas quais as mulheres se colocam, ainda que com homens agressores, em busca de um
reconhecimento fálico para seus corpos.
175
antemão não o introduz. Com esta finalidade, o analista vai transformar a queixa sintomática
num enigma singular a ser desvendado, o qual visa não necessariamente ser curado, mas
principalmente, ser escutado. Além disso, uma escuta atenta pode produzir efeitos
terapêuticos de alívio de angústia e redução de sofrimento; ou uma palavra dirigida pelo
analista, com intuito muito menos de cura e muito mais de direcionar o olhar do analisante
para o seu próprio inconsciente, pode ter efeito terapêutico.
Brousse (2018) ressalta a dimensão política da psicanálise, ao afirmar que o analista
deve estar ao alcance da subjetividade de sua época, parafraseando Lacan (1953/1998, p.
321), na afirmação: “Deve renunciar à prática da psicanálise todo analista que não conseguir
alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”.
Uma vez que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, dinâmico e formado
em meio às relações do sujeito dentro de sua cultura, um analista não conseguirá estar ao
alcance do inconsciente de seu analisante se ele não estiver, sob transferência, em
consonância com sua subjetividade; a qual é sempre atrelada a um contexto histórico
internalizado, subjetivado. Não existe o psicanalista enquanto tal, modelo de atuação. Mas
existe um lugar ocupado pelos psicanalistas, o qual resguarda por uma ética desvinculada dos
ideais e do bem-estar. De tal lugar é possível resvalar, de modo que a formação do
psicanalista – pautada no tripé: análise pessoal, estudo, e supervisão dos casos clínicos –
nunca terá fim (Priszkulnik, 2009). É importante ressaltar que o estudo do analista também
precisa envolver outros autores, para além da psicanálise, para que sua escuta atue pautada na
cultura em que se opera, a qual lhe atravessa.
Brousse (2018) ainda nos traz que a subjetividade da época atual está marcada pela
segregação como forma de organização social; são os grupos que se juntam por identificação,
os quais acabam por operar formas de organizar a delimitação dos espaços. É a identificação
que permite juntar indivíduos dentro de um mesmo grupo, e é a falta de identificação que
exclui determinados indivíduos de um grupo, os quais irão, por sua vez, formar um outro
grupo pautado numa outra identificação. Ao mesmo tempo em que a segregação exclui quem
não tiver um determinado traço semelhante, ela permite uma grande aproximação entre quem
o tem e, consequentemente, profundidade de relação entre os indivíduos que formaram um
grupo.
Assim entendemos formações de grupo como as feministas, ou também os LGBTQ+.
Tais movimentos de grupos, podemos pensar, acabam por mostrar que o universo das
mulheres pode ser amplo e que elas têm a escolha de pertencer aonde se identificarem. Por
outro lado, há quem se identifique com uma forma de subjetividade restritamente binária, na
178
qual homens e mulheres equivalem a azul e rosa, cuja explicação encontra-se na vontade de
Deus. São diversas formas imaginárias de se lidar com a não existência da relação sexual, isto
é, não existe um estado de harmonia e completude na relação com o outro.
De acordo com Laurent (2012a), o desejo do psicanalista supõe uma ruptura na cadeia
de identificações. Isto quer dizer que uma das consequências da análise é a queda das
identificações. O percurso de uma análise se inicia com o estabelecimento do inconsciente
transferencial, o qual opera na associação entre dois significantes S1 – S2. Tal percurso
finaliza-se quando os significantes mestres (S1) desprendem-se do saber (S2), e desta forma,
situam-se numa dimensão mais próxima ao real. Mas há restos: sempre haverá significantes
que não ficarão sozinhos; não esperamos a produção de todos os significantes mestres. A
produção de significantes mestres corresponde a percorrer o labirinto dos modos de gozo do
sujeito, e assim evocar as situações nas quais ocorrem repetições, culpabilidade; passagens ao
ato como agitação ou agressividade. Aqui estão os modos de satisfação do gozo os quais, uma
vez localizados, podem ser disjuntos do saber e dar origem aos significantes mestres. A
localização de um modo de gozo, nada mais é do que o que conhecemos, desde Freud
(1921/2006), por identificação.
A quebra entre o significante primário da cadeia e o significado a ele aliado (S1-S2),
que aqui chamamos de quebra das identificações e seus modos de gozo, é uma prova de que
não existe uma palavra final: há sempre uma errância no sujeito, encarnada na formulação do
conceito de objeto a: uma letra, a primeira do alfabeto. Este conceito vem formalizar que a
pulsão estará sempre em ligação com seus objetos, seja pela vida da causa do desejo, seja pela
via do mais de gozar.
Uma análise, portanto, causa a queda das identificações, e não tranquiliza em relação
às identificações de gênero. Com esta queda, o que advém são semblantes com o corpo,
necessários para o sujeito se criar e recriar em meio ao laço social. A diferença entre a
identificação e o semblante é que, enquanto a primeira procura por um lugar no Outro, a
segunda busca formas criativas e incessantes de estar no laço social, o que não causa
segregação. A identificação é da ordem do imaginário; ela é inclusiva e segregacionista ao
mesmo tempo.
É importante ressaltar que, nos casos difíceis, a presença do Outro é, na maioria das
vezes, necessária, e ainda pode ser criada. É preciso acolher certa identificação no intuito de
construção de uma “pele” sobre o sujeito, a qual poderá cair junto ao processo de perda da
identificação; queda esta que equivale a possibilidade de abertura para o objeto a. Contudo,
alguns casos estão muito aliados à segregação, nos quais a identificação ao objeto dejeto é
179
muito forte, o que torna impossível a construção de alguma pele. Nestes casos, o analista
opera num caminho contrário, tentando construir o seu lugar de Outro para o sujeito.
Garcia (2011) define o principal traço da época atual como a valorização da rapidez,
uma aceleração da realidade, a qual gera desordem simbólica e, consequentemente, desfaz
laços. Ele reflete sobre os casais atuais, que hoje acabam por viver em cinco anos o que os
casais de antigamente viviam em trinta anos, é tudo mais rápido: a vivência, a intimidade, as
desavenças, as traições: “aceleração dissolve os laços” (p. 16).
Ser a mulher de um homem, e anular-se em meio a necessidade de se modular para
obter lugar no desejo do Outro, o que foi anteriormente visto como a origem do masoquismo
feminino – pode ser uma espécie de grito desesperado, na busca por encontrar uma
identificação enquanto esposa, em meio a uma cultura de mudanças e rearranjos frenéticos? É
importante destacar que a maioria das mulheres da pesquisa são jovens, de até quarenta e
poucos anos, o que indica que estão imersas fortemente na cultura atual. Se identificar
enquanto mulher de um homem, seria uma forma de conforto, ou até uma resistência a lidar
com seu corpo e seus modos de gozo?
Ressalto que o mais intrigante na pesquisa com mulheres que sofrem violência do
parceiro é a reincidência; de todas as entrevistas que foram analisadas, em nenhuma apareceu
a violência em um episódio isolado. Elas demoram para denunciar, para dar um basta neste
comportamento, e ainda insistem em permanecer com o parceiro.
Neste contexto, entra um grande desafio ao analista: lidar muitas vezes com um
sintoma que se mostra no tempo presente, urgente, sem tornar-se uma formação do
inconsciente pela via metafórica e metonímica, em transferência. Em outras palavras, trata-se
de um sintoma que não faz laço com o analista; não o inclui, recusa-se a entrada na cadeia
discursiva. É da ordem da emergência e do silêncio, do sofrimento muitas vezes mudo,
embora exposto a céu aberto, sem a máscara do recalque.
A psicanálise nasce partindo da ideia de que há uma irredutibilidade nos afetos, ou
seja, a repressão dos mesmos nunca será satisfatória. Embora o significante possa ser
recalcado, o afeto imbricado nunca o será, e irá passear num outro lugar (Grostein, 2011). No
caso das mulheres desta pesquisa, são afetos que retornam numa demanda de urgência por
serem olhados, pois elas estão próximas da morte. São afetos relacionados a suas histórias de
vida, suas relações com seus pais e irmãos, seus relacionamentos amorosos; cuja articulação
indica seus modos de gozo. À medida que tais afetos não encontraram via de escoamento por
uma cadeia discursiva, retornam num sintoma que grita a céu aberto, clamam por ajuda com
interferência policial. Podemos pensar que o apelo à polícia seria uma forma de inserir um
180
Os casos nos quais o sintoma opera mais pela via do ato do que do enigma discursivo
são de mais difícil acesso. Aqui opera a devastação, ou arrebatamento, conceito desenvolvido
anteriormente. De acordo com Caldas (2015) o arrebatamento opera pela via do gozo não
permeado pelo falo, de onde se pode deslizar para um gozo tanto indomesticado quanto
indefinido, muitas vezes deslumbrado, como uma forma de escamotear o devastado. São
episódios descritos com sensação de desorientação e angústia profundas. O que beira uma
erotomania, pode ser simplesmente um desespero de uma mulher de não perder o seu homem
a todo custo; já que o desejo dele sobre ela se inscreve inconscientemente como o falo
imaginário, quem poderia dar consistência a seu corpo.
Voltando ao pensamento sobre os desafios da clínica do século XXI, caracterizada
pela incidência de sintomas cuja forma muitas vezes opera por passagens ao ato e acting out e
recusa à inserção na cadeia simbólica discursiva, o que dizer sobre o sintoma das mulheres
que se inscrevem como vítimas de violência? É possível a perda em ato e ganho em palavra?
Há uma repetição clara, envolvida nos episódios de violência, que conduz a escuta dos modos
de gozo imbricados nesta repetição.
Duas possibilidades de pensamento se abrem. Em alguns casos das mulheres
entrevistadas, a violência se inscreve num sintoma da ordem do puro ato, do real que retorna
no corpo, cuja entrada na cadeia discursiva é impossível. Aqui podemos pensar que a
intervenção policial entra como necessidade de salvar a vida num âmbito do concreto, apenas,
pois não há abertura para uma retificação subjetiva.
Já em outros casos, é possível ao sintoma se articular dentro de uma cadeia discursiva
simbólica, de forma a ser elaborado pela via da palavra. Aqui a intervenção policial pode
representar uma ajuda a estas mulheres a inserirem-se na cultura e sociedade, pela via do
simbólico, e, portanto, delimitarem limites aos seus corpos, com perda do gozo masoquista.
Esta segunda possibilidade de casos é mais acessível a um tratamento psicanalítico via
transferência. Tomando a violência como um significante, o qual irá se inscrever numa cadeia
discursiva metafórica e metonímica, numa sucessão que marca a cadeia de associações de um
sujeito, tal significante irá deslizar. A medida que afetos inconscientes virem à tona, em
associação a novos significantes, os episódios de violência serão sintomatizados via
transferência, de modo a tornarem-se decifráveis.
Nos casos mencionados primeiramente, nos quais o sintoma opera mais pela via do ato
do que do enigma discursivo, são casos de mais difícil acesso, mais próximos da psicose, ou
ainda do que Lacan (2003) coloca como a devastação, ou arrebatamento. De acordo com
Caldas (2015) o arrebatamento opera pela via do gozo não permeado pelo falo, de onde se
182
pode deslizar para um gozo tanto indomesticado quanto indefinido, muitas vezes
deslumbrado, como uma forma de escamotear o devastado. A princípio, é fácil associar a
ausência do falo simbólico colocando limites à psicose. Contudo, uma vez que a castração e,
portanto, a metáfora paterna incide de forma inconsistente nas mulheres inscritas ao lado
direito da tábua da sexuação, a atuação do gozo feminino pode causar episódios de devastação
nestas mulheres, os quais são descritos como episódios de desorientação e angústia profundos.
Mesmo em mulheres neuróticas, a devastação pode incidir de forma que a metáfora paterna
não opere demarcando limites; permaneça inconsistente, principalmente quando em relação
com um homem, já que ele pode se inscrever como a saída fálica imaginária. O que beira uma
erotomania, pode ser simplesmente um desespero de uma mulher de não perder o seu homem
a todo custo; já que ele se inscreve inconscientemente como o falo imaginário, quem poderia
dar consistência a seu corpo.
Por meio do conceito de letra, Lacan destacou o fundamento de materialidade da
linguagem. Uma das definições que desenvolveu sobre a letra é a de literal a ser fundado no
litoral. (Legey, 2015). Retornando ao pensamento sobre a função da análise nestes casos,
como uma possibilidade de operar na separação psíquica entre uma mulher e o seu agressor,
demarcando o modo de gozo daquela, que é sempre único e singular, aqui o conceito de letra
poderia entrar fazendo litoral entre os dois. A letra faz referência à palavra dita, de forma mais
esvaziada do que o significante, produzindo uma nomeação singular.
De acordo com Zbrun (2015): “numa análise, apreende-se a letra, apreende-se o real,
porque a letra é o traço deixado pelo gozo no corpo...” (p. 45). O que fazer com um traço,
localizado, porém irredutível à entrada na cadeia discursiva? Um traço que não faz enigma,
que não é decifrável? Será uma aposta, que, via transferência, uma retificação subjetiva possa
acontecer a partir do apontamento de uma letra de gozo.
Penso que o analista, com sua escuta atenta, e sua capacidade precisa de pontuação
sobre o modo de gozo envolvido numa demanda de um sujeito, o qual, por sua vez, precisa
estar implicado no próprio sofrimento, pode vir a promover uma retificação na cadeia
discursiva de modo que seja possível uma retificação subjetiva. O analista não retira os
significantes que marcaram um sujeito, os quais se repetem em suas falas, mas pode conseguir
pontuá-los de forma que conduzam a novas significações e, portanto, novos posicionamentos
diante das mesmas marcas.
183
9 – PALAVRAS FINAIS
pelo reconhecimento dos direitos das mulheres, já que elas ainda ganham muito menos do que
os homens exercendo a mesma função.
Há ainda um fator que esta pesquisa não pôde trabalhar, que é a grande quantidade de
mulheres que retiram o boletim de ocorrência contra o marido, quando é possível; ou não dão
andamento no processo, quando não é possível retirar. Algumas mulheres entrevistadas
disseram que assim faziam, pois o agressor pedia insistentemente, alegando que iria gerar
problemas para eles no trabalho principalmente, e prometiam nunca mais agredi-las – o que
não cumpriam. Maria da Penha inclusive ressalta que a violência doméstica obedece a este
ciclo, e que é em meio a estas promessas de mudança do agressor que as mulheres costumam
engravidar, dificultando ainda mais o processo de separação.
Os fenômenos de violência contra as mulheres reduzem seus corpos a meros objetos
sem dignidade, numa agressividade sem limites. E o que é ainda mais surpreendente, mesmo
as mulheres estudadas, com conhecimento dos movimentos públicos que ressaltam as
legislações de proteções às mulheres, mantém-se em relacionamentos nos quais correm risco
de vida, sem mencionar as sequelas psíquicas que as diversas formas de agressões acarretam.
Nos perguntamos qual é a saída para estas mulheres, se o movimento feminista, com sua
elucidação de que o poder é criado e pode estar nas mãos das mulheres, seria uma possível
solução. Mas vemos que a posição subjetiva escapa ao racional.
Não podemos usar a psicanálise para justificar no gozo feminino tal permanência,
embora a psicanálise nos ajude muito num aprofundamento sobre o fenômeno e numa ajuda a
estas mulheres. Mas, uma coisa é o gozo feminino não todo, outra coisa é o sofrimento das
mulheres. A devastação, com sua conotação de objeto rebaixado, erotomania,
deslumbramento, nos ajuda a escutar estas mulheres, mas não justifica o que elas passam.
Ressalto que não basta uma mulher ser independente financeiramente se ela não tem
independência de valores que justifiquem uma vida digna de ser vivida. É preciso um algo
mais, é preciso um sentido para a liberdade. Uma psicanálise pode ser muito bem-vinda para,
através da elucidação dos sofrimentos e modos de gozo destas mulheres, conseguir alguma
retificação subjetiva nos aspectos que as levam ao pior.
O que se mata no feminicídio é a condição de vulnerabilidade que um homem pode
ficar frente a uma mulher, quando ele não consegue dominá-la e percebe que, mesmo
despossuída do falo, ela consegue colocar seu corpo a um estatuto de poder; seja pela da
sedução, do trabalho, ou até da maternidade.
Ser mulher, ser homem, ser cis, ser trans, ser queer, ..., são construções singulares que
jamais podem ser estereotipadas ou reduzidas a estigmas – o que é um convite ao preconceito
185
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A apreciação ética da pesquisa será realizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com
Seres Humanos do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo - CEPH-IPUSP,
credenciado junto a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) localizado à Av.
Prof. Mello Moraes, 1.721 - Bloco G, 2º andar, sala 27 - CEP 05508-030 - Cidade
Universitária - São Paulo/SP. E-mail: [email protected] Telefone: (11) 3091-4182. O CEPH-
IPUSP tem a finalidade de defender os direitos dos participantes da pesquisa (artigo 5º,
incisos II e X da CF/88) e de contribuir com o desenvolvimento das pesquisas dentro de
padrões éticos em consonância com a Resolução do CNS nº 466/2012.
Os dados obtidos das entrevistas serão somente utilizados com vistas a coletar temas
que interessam ao objetivo da pesquisa. Informações como dados pessoais do entrevistado,
bem como de seus familiares, cônjuge, não serão de forma alguma incluídas na análise dos
resultados e na pesquisa como um todo. Caso haja o uso de vinhetas clínicas, estas serão
cuidadosamente modificadas de seu contexto original e isentadas de dados ou enredos que
indiquem qualquer proximidade com a realidade do sujeito bem como da instituição na qual
são realizadas as entrevistas.
Eu,_____________________________________RG__________________,sexo____,
nascido em____/____/_______, residente
à_______________________________________com número de
telefone_________________, após tomar ciência da proposta desta pesquisa, através da
pesquisadora responsável e ratificado no texto acima, considero-me plenamente
esclarecido(a), sabendo que poderei, a qualquer momento, rever esta posição e solucionar
dúvidas. Estou de acordo com minha participação, como voluntário(a), nesta pesquisa e dou
permissão para ser entrevistado(a) e para estas entrevistas serem utilizadas conforme citado
neste documento. Declaro que, após convenientemente esclarecido(a) pelo pesquisador e ter
entendido o que me foi explicado, consinto em participar do presente Projeto de Pesquisa.
199
Data:
Assinatura do entrevistado:
200
I) Lissandra, 29 anos:
Estou há treze anos com a pessoa. Tenho quatro filhos, três com ele e o mais velho é
de outra pessoa. Sou sozinha com eles, não tenho mãe por perto, meu pai é alcoólatra.
Vivemos bem por quatro anos só. Ele começou com xingamentos, palavrões. Começou
quando eu comecei a dizer o que pensava, por exemplo, que não queria minha sogra
morando junto. Meus filhos têm 14, 9, 6 e 4. Quando conheci ele o de 14 tinha um ano. Deixei
tudo para trás por causa dele, que cagada que eu fiz. Às vezes me arrependo, me culpo muito.
Tem 14 anos que falo com o pai do mais velho, a pensão não da certo porque ele não é
registrado no nome do pai dele.... Não sei se as crianças vão ficar meio baqueadas comigo.
- Ele é agressivo com as crianças também?
Hoje ele agrediu o de 9 anos que é dele. Tenho medo dos meninos ficarem contra mim
se eu tomar atitude. Meu irmão incentivou que eu fosse na delegacia, porque se ele ameaça
de matar uma hora vai fazer mesmo. Ele fala para eu sair da casa, mas a casa é minha,
ganhei da prefeitura, porque era área de risco, quando conheci ele eu já morava ali. Estou
indo à igreja, vendendo latinha, reciclados, não tenho vergonha de nada. Mas ultimamente
não estou aguentando mais a rotina.
.... É briga constante, agressão constante. Hoje veio para jogar panela de pressão na
minha cabeça. Quebrei meu vidro de remédio nas costas dele para isso não acontecer. Já
tenho problema no cérebro por agressão na cabeça dela que ele fez. O alvo principal sou eu,
já tenho 15 BO contra ele, mas não tenho prova. Eu não tenho celular para ter as provas,
todo celular que eu tenho ele quebra. As amizades que eu arrumo com mulher por exemplo
ele diz que não presta. Se eu tenho amizade com homem ele diz que eu to me prostituindo. Eu
tenho uma tia que queria que eu fosse prostituta, ele sabe disso.
Ele não participa com nenhuma ajuda, nem na casa e nem na escola, ele quebra as
coisas da casa. Minha cunhada casada com o irmão dele me pergunta o que eu estou fazendo
com esse homem. Tenho dificuldade com maconha, cigarro, já fui usuária de craque,
consegui parar só com SOS mulher.
... Não quero nada, nem pensão. Ele tá me acusando de fazer mal para os meninos,
porque eu forço para ir na escola, porque não tenho dó do choro. Ele tomava o meu cartão
201
do bolsa família que está no meu nome. Ele fazia porque é louco com dinheiro, tem que estar
com ele.
- Ele controla até o dinheiro...
Eu tenho medo disso estar mexendo com a cabeça dos meninos, e por isso eles não
querem ir na escola. A menina de 6 anos fala que eu não posso deixar ele fazer isso. O de 9
anos queria vir comigo... Se não fosse o SOS mulher me falar palavras positivas, já tinha
tocado fogo na minha casa. Eu ando até sem meu RG, escondo para ele não pegar.
Meu pai fazia a mesma coisa com sua mãe. Meu filho de 9 anos me defende da forma
como eu defendia minha mãe...
Agora as ameaças são constantes e eu não posso ficar acreditando no diabo. Ele está
pegando os filhos e dizendo que não vão porra nenhuma para a escola. E os filhos dizendo
que não vão para a escola porque não estão bem, e era igualzinho o que acontecia comigo.
Minha mãe separou do meu pai e me abandonou com 7 anos, largou eu e meu irmão
para fazer uma escolha que não tinha outra. Demorou para eu ver que não era abandono.
Minha tia irmã do meu pai que adotou eu e meu irmão....
Rosa, 61 anos:
Sou casada há quarenta e sete anos, casei com dezesseis anos. Sou bisa, tem 6 meses
minha netinha. E agora eu cansei de ser humilhada, cansei de apanhar. Cansei de tudo. Aí eu
falei: tirar a minha vida eu não vou. Hoje ele não pôs a mão em mim, mas palavras dele é
uma facada, tem coisas que magoam muito.
- A senhora lembra como começou?
Já faz uns cinco anos que eu desconfio que a mudança dele tem o envolvimento de
outra pessoa. Ele mudou completamente. Ele é um excelente pai, ele se aposentou na GM, ele
é um excelente avô, até então era um excelente marido, mas de uns tempos para ca mudou
completamente, é só xingamento.
Com a minha família eu vivi até os 16 anos, casei com 16, hoje tenho sessenta e um
anos. Eu levo cuspe na cara, eu apanho, levo chute, fora as palavras que doem mais.
- O que ele fala?
Eu falei para ele: Coloca pra mim 9,99 no celular que da para 7 dias. Ele falou pra
mim, sobe, vai na praça, desculpa não vou falar o termo que é muito feio, dê, que você
consegue pra carregar seu celular, vagabunda, parasita, vai olhar carro, vai ser flanelinha.
202
Sendo que moça, eu não peço nada, tudo que eu tenho é ganhado. Minha irmã de me dá,
minha mãe, meus filhos.
Eu saí de casa 3 vezes para deixar ele livre. Fui para casa da minha mãe e dos meus
filhos. Aí ele liga: volta.. Em 2011 eu entrei com um processo porque ele me machucou, fiz
corpo de delito, na hora de chegar no final do bendito processo ele veio: pelo amor de Deus,
eu nunca fui processado na minha vida, eu te prometo não vou e fazer nada mais, perdão. Eu
tirei. Eu não quero processo, não quero maldade para o lado dele. Só quero viver em paz,
sem precisar ouvir assim: esse apartamento é meu, esse carro é meu. Eu não ligo para bem,
eu quero ser feliz descalça, não tem problema. Hoje eu digo assim Deus me de força. Estou
com 61 anos, tenho doença do Crom, tenho diabetes, pressão alta e agora eu to com
problema cardíaco, eu não vou aguentar eu não tenho que aguentar. Agora que eu to vindo
mas ele já ligou, já me ameaçou. Ele falou assim: Maria da Penha não resolve nada. É
apenas um papel. Eu mato a hora que eu quiser matar. Eu faço o que eu quiser que vocês não
têm proteção, a lei não faz nada para vocês.
Eu fui na base de Santana pedir ajuda. Fui correndo, tava chovendo, senão ele me
pegava, hoje eu tive habilidade. Ele disse: procura teus direitos mas eu vou te matar, não
adianta. O policial escutou. Com esse papel na mão, tudo certinho, meu filho disse: mãe, a
gente quer honrar pai e mãe, eu jamais vou levantar a mão para o meu pai, ele não houve a
gente. A senhora procura o primeiro passo que a senhora estando com o papel eu vou poder
falar: no meu portão o senhor não entra.
Eu tenho 4 filhos, 1 morreu com 25 anos ajudando um amigo.
- Foi depois desse falecimento que seu marido piorou?
Também. Mas ele perdeu a mãe com 12 anos, ele tem 68 anos. Fez no dia das mães
agora dia 12. Ele é um homem muito frio. O meu filho morreu e ele diz assim: se fosse o do
meio que é o meu pescador, ta sempre junto comigo, eu ia sentir muito mais. Gente, filho não
tem diferença. Eles são todos iguais. Eu não sei se é porque ele perdeu a mãe com 12 anos,
apanhou muito do pai, mas ele é tipo assim eu falei, tem que ser o que eu falei. Se você falar
ele não te ouve.
- Já te passou pela cabeça separar dele?
Já. Eu já falei: vamos separar, que dai você vive sua vida, estou notando que você
mudou, então vamos separar. Ele falou: não vou separar de você, porque se eu for separar eu
vou ter que dividir apartamento, dividir carro. Eu falei que não quero bem material, que eu
assino na frente do juiz que eu não quero nada. Ele quebrou muita coisa lá no apartamento,
ele foi jogando e foi quebrando. Eu falei que ele que ele tem um carro zero, nós temos esse
203
apartamento aqui na avenida Rui Barbosa, pague só o condomínio e deixa eu ficar aqui. Ele
falou: vai para a rua, muitos moram embaixo da ponte, porque você não pode morar?
Eu pesava 65, eu to com 43 quilos. Eu não posso ficar com a prótese porque eu tenho
que por o corega. Aí ele fica: magrela, esqueleto, você é feia. Eu olho pra ele e digo: eu tenho
espelho eu sei que sou feia, não preciso de você falar.
Eu to arriscada sim, dele me matar. Meu sofrimento é isso, eu queria deitar. A
palavra dele entra. Meus filhos falam assim: pai, eu preferia que o senhor me desse um tapa
no rosto, mas não falasse as coisas que o senhor fala. Minha netinha falou vovô, não bate na
vovó não por favor vovô, ela é doente. Meu filho conversou com ele, falou pai, não faz isso.
Meu filho falou: pai o senhor perdeu a razão, minha mãe está doente, está com 42 quilos. Eu
to trabalhando porque vocês não têm estrutura para ficar com a minha filha pai? Ele falou
vai arrumar uma empregada e abaixa a voz que você está no meu apartamento. E meu filho
falou: seu não, da minha mãe também. E ele falou: faça o favor de se retirar. Aí meu filho
saiu chorando. A educação que a gente deu é honrar pai e mãe, então jamais eles vão falar
mais alto. O meu mais velho de 46 ele já falou: mãe, se eu pudesse eu matava, se eu achasse
que eu tenho esse direito eu matava para a senhora ser feliz, para a gente ser feliz; mas eu
sou covarde, não vou fazer isso... A palavra última tem que ser a dele sempre. Ele não
abaixa.
- Foi depois daquele falecimento que ele começou com isso, ou ele era agressivo
antes?
Posso te falar a verdade, a gente com 16 anos é muito inocente. Eu já apanhava com
16 anos. Mas logo eu já engravidei. Então foi uma coisa assim, casei de 4 de outubro de 75,
meu filho nasceu dia 17 de outubro de 75, foi muito em seguida.
- Você achava normal ele te bater?
Na minha mente eu achava que eu merecia. Porque na minha juventude eu com ele
estava aprendendo a beber, aprendendo a fumar.
- Como se ele estivesse te ensinando?
Sim. Então eu bebia, eu fumava, e depois eu achava que eu apanhei porque eu mereci.
Eu deixei as vezes de fazer alguma coisa que ele pediu porque eu tava bêbada, então eu tinha
que apanhar mesmo.
- Ninguém tem que apanhar. Seus pais tinham essa educação de bater?
Minha mãe apanhou muito do meu pai, largou dele eu tinha 6 anos. Meu pai faleceu
com 41 anos. Minha mãe que abandonou, quando ele começou a bater na gente também, em
mim e no meu irmão que também já faleceu com 51 anos, aí ela falou: meus filhos não, eu
204
tudo bem, meus filhos não. Ela saiu e foi morar com a minha vozinha que morreu com 97
anos, e minha mãe trabalhava. Então a educação que a gente teve era da minha mãe e da
minha avó. A gente não pensa, acha que é normal apanhar, viver escarrada no rosto, não é
normal. Isso que o policial falou pra mim, que eu continuar nessa lavagem que ele anda
fazendo a senhora nunca vai tomar atitude. Mas eu tenho medo, porque ele falou pra mim:
independente eu vou te matar. A primeira coisa que vem na mente é suicidar mesmo. Mas
graças a Deus, pelos meus filhos que estão aqui, meus netos, pelo meu bisneto, porque senão
eu não estaria aqui, eu te juro, pelo que há de mais sagrado (chorou muito).
Ele assiste muito esses programas do Datena, ele acha que é normal. Ele fala: se ela
morreu alguma coisa ela fez, tem que morrer mesmo. Eu não sei, eu to perdida. Minha mãe
preocupada, minha irmã na prefeitura trabalhando preocupada, meu filho na Petrobras falou
mãe eu vou te buscar onde você tiver, mas eu to trabalhando. Eu falei: ta bom meu filho, não
fui que liguei, foi o policial. Meus filhos não concordam com isso, mas ao mesmo tempo eles
têm medo também do pai. Eu tenho que fazer algo pra pelo menos me alimentar e sobreviver.
E meus remédios, que eu ganho do governo, mas alguns eu tenho que comprar. Mas a minha
mãe é que me da.
- Ele nunca te deixou trabalhar?
Nunca, mulher dele, nem pensar. Filho dele em creche, nem pensar. Você vai tomar
conta. Aí eu falei pra ele: qual foi o dia que você foi trabalhar na GM com uma dobradinha
na gola sua do seu uniforme? Nunca, era passadinha, não digo engomada, mas bem
passadinha, você não passou vergonha não. Quem abria o portão pra você quando você
chegava, e quem abria quando você saía 4 e pouco pra bater cartão 5 e pouco? Era eu. Café
da manhã arrumadinho para você. Eu nunca fiz nada, nunca trabalhei.
Emely, 37 anos:
Assim que me separei conheci uma outra pessoa. Ele é carioca, a gente trabalhava na
mesma empresa, porém eu aqui e ele lá no Rio. Eu era gerente da marca no Vale Sul e ele
analista de sistemas. A gente se falava a todo momento, acabou que a gente se conheceu
ficamos juntos e eu fui morar com ele. Chegando no RJ eu me deparei com a real situação da
onde eu ia morar. Eu tinha uma condição de vida boa aqui e fui morar numa comunidade no
RJ.
Descobri que estava grávida do segundo filho em 2015, e nessa época descobri que
meu marido era usuário de drogas. Eu morava lá desde 2012 e isso nunca transpareceu. De
205
lá para ca foi uma luta diária para tentar tirar isso dele. A gente via que ele não queria, mas
era mais forte do que ele.
- Como foi a descoberta?
Ele tinha um emprego bom na Petrobrás, um rapaz novo de vinte anos que já tinha um
bom cargo e boas influências, era massom, era uma pessoa muito inteligente apesar de novo.
Ele começou a dormir fora de casa, falando que era motivo de trabalho, que tinha perdido o
celular. Sempre que chegava em casa ia direto para o banho, eu não entendia aquilo, achava
que era dele, mas era para ajudar a passar o efeito da droga, ele ficava no banheiro duas
horas fechado. Até que um dia ele chegou foi tomar banho deitou na cama e morreu. Eu
estava com muita dor de cabeça e fui pegar um remédio na mochila dele. Aí eu encontrei uma
quantidade muito grande de maconha e meu mundo desabou. Trinta e três anos eu nunca
presenciei uma coisa daquela. Eu morava numa comunidade, mas minha vida era fora dali.
Eu era gerente de loja no shopping. Dias depois foi o chá de bebê da tia dele, e naquele dia
eu cheguei para ele e falei que eu descobri. Ele ficou branco, perguntou quem deu ordem
para mexer nas coisas dele. Eu nunca tinha feito aquilo em três anos. Ele insistiu que não era
para eu abandonar ele. A única pessoa que eu podia contar era a mãe dele, mas se eu
contasse para ela que seu filho era usuário de drogas há mais de dez anos conforme ele me
contou a festa ia acabar. Daí esperei a festa acabar e contei. A mãe dele não acreditou.
Falou que meu filho era uma pessoa honesta, trabalhadora, estudante. Eu falei que era
verdade e que agora isso explica tudo que eu não conseguia entender. As crises dele, os dias
que ele sumia, os dias que ele dormia direto. A maconha tem um efeito, a cocaína tem outro,
o lance e o craque tem outros, e eu via tudo isso nele. Eu sempre vi o dependente químico
como uma doença, eu me vi no lugar de esposa e de ter que ajudar a tirar ele dali...
... Eu era casada e meu primeiro marido bebia demais. Não tinha violência, ele só não
aceitava que era alcóolatra. Eu falei ou você pede ajuda ou vai embora, ele foi embora.
Assim que eu descobri ele foi mandado embora (ela se refere ao segundo marido, o
agressor). Porque ele não conseguia trabalhar no dia seguinte que usava. Ele ficava numa
favela qualquer que conseguia ficar. Daí ia para o médico, o médico encostava ele por três,
quatro dias. Daí foi se afundando. Aconteceram coisas que só eu passando, não tenho como
contar. Passei por uma depressão muito forte, emagreci trinta quilos. Eu tentei, fiz o meu
possível. Era uma pessoa que passava quatro dias fora de casa e voltava parecendo um lixo.
Eu ajudava.
- Como?
206
Eu não julgava, dava banho, acolhia. Tentava fazer com que ele se sentisse bem
dentro de casa. Ele só chorava e pedia perdão. A pessoa quando chega está transtornada,
chegava até sem roupa. Eu fazia ele sentir que podia voltar para a casa a qualquer momento
que eu estaria ali esperando por ele. Por mais que depois eu tivesse uma crise de choro.
Quando ele acordava ele pedia perdão e fazia promessas que ia parar. Mas durava uma
semana.
- Então não tinha conversa.
Ele começou com treze anos. Ele morava nessa comunidade mesmo. Ele teve emprego
bom e continuou morando lá, era pelo comodismo. Você não paga imposto, não paga conta
de água, condomínio, o máximo que paga de aluguel é duzentos reais. Hoje ele tem vinte e
seis anos e eu trinta e sete, quando a gente casou eu tinha trinta e ele dezenove. Já era
inteligentíssimo, sempre teve empregos muito bons. Quem mora dentro de comunidade nem
sempre é pobre, eu tinha tudo do bom e do melhor dentro de casa, mas eu não tinha vida, não
podia ficar na rua com meus filhos.
Depois que eu descobri, ele passou a ter a doença do ciúmes, ficou com medo de me
perder, virou uma pessoa muito possessiva. Tive que sair do meu emprego, porque senão
eram muitas brigas. As agressões foram aumentando. Eu falei que não queria mais. Ele falou
tudo bem, mas os meus filhos você não leva.
Eu tenho uma paixão por estética, e fui fazendo cursos lá, era uma maneira de sair de
casa. Mesmo assim ele ia me levar e buscar. Quando a pessoa usa droga ela fica fora de si.
Quando ele usava cocaína, craque, ele via coisas onde não tinha. Daí ele falava que eu não
tinha voltado rápido da creche porque eu tinha encontrado algum homem. Eu tinha ficado
conversado com as mães e passado na padaria para as crianças chegarem e já tomarem um
café.
Ele, uma semana depois, retomava o dia que eu tinha demorado para chegar e falava
que eu tinha encontrado com alguém. Eu já recuava porque sabia que ele ia me bater. Aí eu
chamei os pais dele e contei, porque já não estava aguentando aquela situação. Quantas
vezes ele chegou em casa enrolado num lençol porque estava nú e enrolavam ele. Quantas
vezes eu já não saí procurando ele na rua jogado nas valas. E tinha muita agressão, eu tenho
hoje duas costelas quebradas.
-Era nas crises de ciúmes ?
Quando não tinha, ele arranja motivo.
Até que um dia perguntei o que te faz ser assim, preciso entender. Ele falou que
quando moravam na outra rua de aluguel ele tinha que fumar um ou dois baseados para
207
entrar em casa e aguentar minha chatice. Falava que ele ia fazer algo para comer, para ela
não fazer.
-Que chatice?
Ele falou que eu era fresca. Eu era revoltada de estar morando ali, não podia sair na
rua porque meu marido tinha ciúmes. Depois fui entender que não era ciúmes, era medo de
eu descobrir quem ele era. Ele falou que começou a usar com mais frequência depois que o
João Paulo nasceu, o primeiro filho. Ele não podia se afundar nas drogas. Ele falava que eu
era muito chata, ele pisava dentro de casa e eu já vinha falando que tinha isso para comprar,
contas para pagar. Eu disse que era simples, falava que não queria que eu ia embora, mas eu
ia levar meus filhos.
- Não tinha conversa.
Ele sempre foi muito fechado. Ele era um moleque de dezenove anos que virou pai. Eu
já tinha uma criança de seis anos, que foi embora comigo e voltou, hoje mora na casa do meu
ex marido porque não se adaptou, não vai no Rio de Janeiro nem para passear.
As agressões eram muitas, na frente das crianças. Se eu tivesse na rua ia ser na rua.
Me colocou para fora de casa várias vezes, até que a mãe dele descobria e ia me ajudar. A
mãe dele largou da vida dela, entrou para a igreja, achou que assim as coisas iam melhorar,
só que não.
Eu abri uma esmalteria para mim lá, tinha eu e mais duas funcionárias. Ele tinha que
escolher quem podia trabalhar comigo, e quem eu tinha que atender. As pessoas chegam
tarde na comunidade, então tinha dia que era duas horas da manhã e eu estava trabalhando.
Onde eu morava tem uma facção que toma conta, o terceiro comando. Se tornou um lugar
inabitável. Até que no dia da eleição, fomos votar e meu lugar não era lá. Ele falou para eu ir
votar e voltar ali. Só que quando a gente chegou, dois rapazes estavam na fila. A gente não
anda de mão dada, era costume deles ali, é muito diferente daqui. As pessoas não sabiam que
a gente era casado. Eu casei e não usei aliança.
- Você tentava se aproximar na rua?
Sim, e ele falava que as pessoas ali não andavam de mãos dadas. Chegou uma hora
que você cansa de lutar e para mim tanto faz. Minha rotina era sair para deixar as crianças
na creche e voltar, eu não tinha vida, não tinha nada. Ia na esmalteria, e voltava. Por mais
que eu tivesse cliente quando ele queria eu tinha que fechar. Porque ele queria sair para usar
a droga dele, eu tinha que parar de trabalhar para o bonito sair para a rua.
Um desses dois rapazes do dia da eleição eu sabia que era o motorista da van. Eu
nunca parei para conversar com ninguém, eu sabia que eu não podia. E na cabeça deles eu
208
era casada e não era para conversar comigo. Na minha cabeça, eles olharam porque
pensaram se a gente era um casal. Ele entendeu que eu estava de caso com o cara. Ele
perguntou se eu conhecia um dos dois. Eu falei que sim, que era o motorista da van. Ele
bateu na minha testa e perguntou qual é a tua com ele. Na hora minha testa ficou roxa. Ele
falou que se eu falasse o que eu tinha com ele ia me arrebentar ali mesmo. Nisso o policial
chegou e perguntou o que estava acontecendo. Ele falou que não era nada que era para
resolver com ela. Ele me mandou ir para casa pensar na desculpa que eu ia dar. Eu pensei
que ele ia acabar comigo. Ele me deu um empurrão, eu fui para a casa. Ele voltou para a
casa dois dias depois como se nada tivesse acontecido.
Com isso você não dorme, não come, não bebe. Eu fazia as coisas porque tinham duas
crianças que dependiam de mim. Foi nisso que fui emagrecendo.
Depois que ele perdeu o emprego abriu uma loja de conserto de celular. Aí ele
desandou de vez. Eu fechei a esmalteria e passei a atender as clientes em casa, aí ele ficou
pior ainda. Ele escolhia quem eu podia atender.
A loja dele são vários box, numa quadra onde tem eventos, baile funk. O abençoado
desse rapaz chegou e colocou o carro dentro do box dele. Ele olhou para mim e falou vamos
para a casa. Eu falei nossa vamos mesmo estou com dinheiro da dona Maria para comprar
açaí para ela. Ele perguntou porque eu estava olhando para lá. Eu respondi que estava
olhando para a rua, eu não vi o rapaz. Ele mandou eu ir para a casa, chegando lá perguntou
qual era a desculpa que eu ia dar. Saí da cozinha e fui para o quarto para deixar ele falando
sozinho. Nisso ele puxou meu cabelo e começou a me bater. Aí eu falei que não vou apanhar.
Sempre deixei ele me bater, ele colocava saco na minha cabeça, me desmaiava. Naquele dia
eu falei que não ia apanhar, e grudei no saco dele, começou a jorrar sangue, achei que eu
tinha estourado o saco dele. Mas não era, era da minha unha. Nisso ele começou a me dar
socos por baixo na minha cara, e eu fiquei toda ensanguentada. O meu pequenininho até hoje
fala para todo mundo que o papai tirou sangue da boca da mamãe. Ele nunca tinha tirado
sangue de mim, sempre me deixava toda roxa. Ao mesmo tempo que ele me batia ele queria
me lavar, ele pedia perdão, falava olha o que você fez, eu te machuquei.
Até que eu consegui ficar calma, ele também, e ele falou cara é melhor você ir
embora. Vai embora e deixa os meus filhos. Eu falei que eu ia, mas eu levava os meus filhos.
Até que eu resolvi mesmo ir embora. Resolvi olhar o facebook dele e ele estava falando com
uma garota de uma festa no Vidigal, que a mulher dele ia o matar, porque estava há dias fora
de casa. Naquele dia eu pensei que não precisava disso. Ele chegou, perguntou se minha
boca estava melhor, e se eu não ia ficar brava. Eu falei não. Combinei com o Uber para levar
209
na rodoviária. Eu tinha quarenta e nove reais na carteira, quarenta era para o Uber.
Comprei passagem com o cartão da minha mãe. Todo mundo queria que eu fosse embora,
mas ninguém acreditava. Ele deu ordem para todo mundo que se me visse saindo de mala era
para avisar a ele. Eu não quis nem saber. Peguei roupas que eu nem imaginava que eu tinha,
era roupas para doar que eu tinha separado, para você ver a situação da pessoa. Não peguei
um pacote de biscoito para os meus filhos. Meus filhos me perguntando para onde a gente ia
eu falei que a gente ia para a casa da bisa, para caso ele nos encontrasse no caminho falar
que íamos na casa da bisa, pois se falasse que era na casa da vovó Marta ele ia falar, você
vai, meus filhos ficam. Só que eu esqueci que era véspera de feriado, a avenida Brasil estava
parada, perdi o ônibus por meia hora e não tinha dinheiro nenhum. Liguei para minha irmã
que comprou uma nova passagem para mim, de um ônibus que só saía quatro horas depois.
Eu com nove reais, meus filhos começaram a pedir as coisas, comprei uma água era quatro e
cinquenta. O que me salvou foi um casal com uma criança que sentou do meu lado com um
kooler cheio de lanche. A hora que o ônibus saiu ele começou a me ligar e eu não atendi. Eu
carreguei a chave e ele ficou sem. Diz a minha vizinha que ele gritou a noite toda, me
chamava de vagabunda para baixo. Eu só atendi no dia seguinte.
Desse dia para ca, ele nunca veio ver as crianças. Nunca mandou cinco reais para
ajudar. Ligava uma vez por semana para falar com os meninos, mas estava sempre me
ameaçando. Quando foi sábado por volta do meio dia quem chega aqui, ele com a mãe dele,
sem me avisar. Ele pediu para levar as crianças na praça para andar de bicicleta, ele trouxe
para as crianças as coisas que eu pedia, e não trouxe as minhas coisas. Eu não deixei ele sair
com as crianças. Aí minha sogra me pediu, falou que as trazia cinco horas, o meu filho pediu
para ir no parque do avião. Eu deixei. Onde está meus filhos hoje?
Minha advogada já tinha entrado com pedido de guarda provisória, e nisso ela entrou
com urgência, e pediu para eu registrar BO. Hoje falei com meu mais velho e ele chorou no
telefone, falou que queria vir para casa. Muito me admira a mãe dele sendo quem ela é ter
ajudado ele a fazer isso.
Voltando para abril do ano passado, ele me bateu muito, na frente da família lá em
casa. Depois de tudo isso ele aceitou que eu viesse e trouxesse as crianças. Eu voltei. Mas
quinze dias depois a médica me ligou para falar que a cirurgia do meu filho tinha saído.
Ninguém queria que eu voltasse, e eu voltei. Daí foi que eu fiquei presa, ele chegava, me
batia, até o dia que eu consegui fugir dele. Ele falou para mim que não vai devolver, que os
filhos dele são carioca e vão ficar lá. Falou para mim que eu preciso de tratamento, preciso
de uma psicóloga.
210
Essa noite eu consegui dormir, mas estou desde sábado aérea. Hoje acordei cinco da
manhã e fui correr, mas é como se eu não tivesse feito nada, não senti, de tão extasiada que
eu to.
- Como era sua vida aqui antes?
Muito diferente. Eu era casada, tinha amigos, meu filho, minha família, meu trabalho.
Meu primeiro marido foi dono do espetinho Andrômeda. A mãe dele era chefe no shopping A,
até que o shopping foi vendido para uma administradora carioca, e eu trabalhava com a
minha sogra.
- Você se doou muito na relação.
Eu era muito nova, tinha uma condição de vida boa, estava sempre nos melhores
lugares. Eu sempre quis ter todo mundo perto, você não me via sozinha em lugar nenhum. Eu
estava sempre rodeada de pessoas, era bem querida. Até que eu falei para meu marido que
ele estava bebendo demais, tinha virado alcoólatra. Ele quebrava minhas coisas, meu carro,
o dele. Só que não tinha briga, nada, era um surto psicótico dele. Até que falei ou você para
ou vai embora, ele foi embora. Foi quando conheci esse atual marido, um mês depois. Com
mais um mês eu estava grávida. Para não envergonhar minha mãe eu fui embora para o Rio.
Tranquei minha matrícula, a empresa não aceitava mandou nós dois embora.
Meus amigos hoje nem me conhecem, eu não saio, só vou para o salão e fico com
meus filhos, agora retomei a faculdade. Ele não aceita, constantemente me manda mensagem
e fala para eu ir embora, que meus filhos sentem falta da mãe, e o meu lugar é lá.
- Onde você vê o seu lugar?
Aqui. Ele joga na minha cara que eu escolhi o ap que a gente morava. Foi a mãe dele
quem pagou as prestações do apartamento, e aquilo não é meu. Eu saí e deixei tudo lá, não
faço questão, não saiu em centavo do meu bolso para pagar aquilo.
- Você gosta dele ainda?
Não, é isso que ele não entende, acabou lá atrás... Não gosto mais de tomar um banho
e ir dormir com ele.
Tenho mensagens de sete anos de casados, não sabe porque, mas registrava tudo que
acontecia e mandava para um email que ele não sabia que eu tinha. Tenho certeza de que se
falar que volto para lá ele vem me buscar hoje. E se eu falar que estou namorando ele me
bate e eu consigo um corpo delito. Mas não vou fazer isso.
- Tem comportamento violento na sua família de origem?
Nenhum. Ninguém usa droga, ninguém bebe. Sou a quarta de cinco filhos. Meu pai e
irmãos são marceneiros, outros cabelereiros. A minha mãe é do lar. Minha mãe dentro de
211
casa presenciou ele dar socos na minha cara. Minha irmã faz tratamento com psicólogo pelo
que ela viu eu passar. Eu sentada ele segurando meu cabelo dando socos na minha cara.
- Ele só tem a mãe?
Ele tem uma família muito grande, mas todos com quadro de usuários. Isso tudo fui
descobrindo depois.
- O que você espera de um casamento?
Meu primeiro marido veio de família de comerciantes e eu fiz administração para
poder trabalhar junto com eles. Eles não tinham noção da parte burocrática. Meu marido é
um crianção até hoje, é um moleque que gosta de carro turbinado e estar no meio do pessoal.
Perderam tudo. Eu vivia como uma patricinha. Eles só viviam de imagem, status.
É até ridículo eu falar, mas antes eu tinha medo de passar no campo dos alemães.
Hoje moraria lá numa boa. Eu saí daqui toda maquiada, com o cabelo muito bem feito, desci
na rodoviária do Rio e falei, que calor é esse. Qual é a idade dessa mulher mãe dele. Aquelas
mulheres não vestem roupas, andam de top e chinelo.
Meu sonho era conhecer a favela da rocinha. Fui morar numa comunidade ao lado do
complexo do alemão. No começo quando fiquei assustada me levaram para um condomínio
fechado na casa da avó dele, que era comandado pelas milícias, mas afastado. Até meu filho
nascer eu vinha muito para ca para tentar me acostumar.
- Você não disse não?
Eu percebia, só que minha mãe deixou claro que se eu engravidei agora tenho um
filho. Na minha mente minha mãe não me queria aqui. E ele dizia isso. Meu pai nunca foi lá
saber onde eu morava. Meu pai gostava muito dele porque ele também é uma pessoa
inteligentíssima. Minha mãe não gostava dele, porque gostava do meu ex marido. Eu não
conseguia chegar para ele e falar que não queria morar lá, que queria morar em são Paulo.
Eu não conseguia ficar lá e nem aqui, na casa da minha mãe era complicado, eles não me
aceitavam naquela situação, se eu casei tinha que ficar com o meu marido. Até que quando
meu filho nasceu eu parei de vir para ca, mas fui morar com a minha sogra porque tinha
medo. Até que briguei com meu sogro e ele me expulsou de lá. Eu era revoltada de estar ali.
Meus filhos sempre foram de creche, eu saía para trabalhar cedo e não vivia aquilo. Naquela
época quem tomava conta era o comando vermelho, e era tranquilo. Ele ganhava muito bem
e gastava tudo. A gente não se divertia e eu não sabia para onde ia o dinheiro que ele
ganhava, tinha coisas boas dentro de casa, mas não tinha nem o nosso carro. Até que a dona
desse apartamento o pediu, e Santa Cruz onde ele tinha um terreno era muito longe. Aí
compramos o apartamento e ele me culpa disso até hoje. Foi quando o terceiro comando
212
invadiu e tomou a favela do comando vermelho. Então o que era habitável, não era mais. Eu
estava levando meu pequenininho para a creche e ele batia a mão no fuzil de um. O rapaz
falava po tia, cuida do menor. Eu falava que era passagem das crianças, e eles reclamavam
com meu marido que eu era folgada pra caramba.
- E como era para sua mãe você estar lá?
Na primeira guerra que teve eu estava no telefone com minha mãe. Começou o
tiroteio, eu me joguei debaixo da mesa, todo mundo gritava. Aí ela falou para eu voltar. Mas
ainda assim quando eu vinha para a casa dela, ela meio que não aceita. Aí o meu irmão falou
para eu ir embora.
Eu simplesmente falei ta, e fui aceitando. Eu não podia ir no mercado sozinha, porque
na comunidade não é de uma mulher casada ir no supermercado, é o homem que faz compra.
- Como era sua mãe quando você era criança, vocês tinham uma relação afetiva?
Era mais com meu pai. Ele tinha uma marcearia no Sul de Minas, e chegava em casa
na sexta à noite. A gente foi criado no campo, teve infância. Eu vivi. Eu vi aqueles bairros
serem construídos, eu brincava na terra, eu tinha vida, eu me criei, um construí uma vida.
Quando engravidei falei que teriam que ir na casa da minha mãe contar para ela.
Meus parentes saem do trabalho e se juntam as seis da tarde para tomar café, parece uma
padaria. Eu tinha vida aqui.
- Você teve medo deles?
Era vergonha, não medo. Sempre foram muito perto, unidos, família. Eram a família
do comercial Doriana. Depois que aconteceu isso comigo foram descobrindo outras coisas.
Uma sobrinha engravidou com treze anos. Meu irmão e a filha mais velha se identificaram
gays. Todo mundo tinha medo dos meus pais, são da roça, muito conservadores.
- Você estava querendo provar para a sua família que tinha condição de ficar lá?
Sim. Meu marido falava para eu parar de usar essa máscara, que minha família me
trata como bonequinha, que eu tenho que mostrar que sou mulher. Que eu sou chata, e
aguentou tudo isso de mim, que eu tenho que me tratar.
- Toda chatice do mundo não se compara a você achar que pode morrer todos os dias.
Eu não durmo, lembra do assobio dele chegando em casa e não sabia como ele ia
chegar, se ele ia me bater. Ele perdia a chave e assobiava. Por isso até hoje não durmo. E
penso nisso, no porque precisei passar por isso. Eu tinha um sonho com o primeiro marido de
conhecer o RJ e a favela, não morar ali. O RJ é bom para ir no fim de semana e ir embora no
domingo. Meu cunhado que gosta de lá não precisa do RJ, de nada público. Eu precisava do
hospital e da escola pública.
213
Eva, 33 anos:
Meu ex marido foi morar comigo quando eu engravidei, ele morava com a mãe.
Ficamos juntos um ano. Ele me contou que bebia após já estar morando comigo, ele tinha
problema com bebida e droga, pediu ajuda para isso, mas ficou agressivo toda vez que eu
perguntava disso. Começou a dizer que era culpa minha, e eu foi até procurar tratamento
psiquiátrico porque acreditei que estava fazendo mal a ele.
Ele não me agredia no começo, ele começou esfregando a cara em mim pedindo para
eu bater nele. A primeira vez que fez isso foi quando eu o enfrentei pela primeira vez. Estava
voltando de meu trabalho as 23h e ele estava num churrasco desde as 9h. Perguntei a ele se
tinha bebido e ele disse que não. O amigo disse que sim, que estavam bebendo desde as 9h, e
eu enfrentei dizendo que tinha bebido sim, e ele pediu que eu batesse nele, acho que era para
ele poder bater em mim depois. Depois ele disse que não lembrava de nada e pediu desculpa.
A família dele sempre acreditou nele e não em mim, acreditava na situação distorcida. A mãe
dele ia tirar satisfação comigo por eu bater nele, pois era a versão que ele contava e ela
acreditava.
Nunca contei no psiquiatra que ele usava droga, dai comecei a tomar remédio para
depressão e bipolaridade.
... Até que um dia ele pegou uma faca e ficou me provocando para bater nele com a
faca, e eu joguei a faca no chão. Eu jogava coisas nele nessas brigas, e uma vez joguei uma
latinha que cortou a boca dele. Ele fez BO contra mim dizendo que eu tinha dado socos nele.
- Por que você passou a achar que era a culpa era sua?
Pode ser pelas vezes que eu revidava e jogava as coisas nele.
Desde que ele foi morar comigo passou a me fazer passar vergonhas, me difamava
para minha família. Caí na real agora porque ele me agrediu na frente de todos os amigos
dele, porque eu perguntei se ele estava usando droga.
Comecei a pensar então que o problema nunca fui eu. Que ele era um cara que
distorcia a situação, e eu nunca tive coragem de fazer BO contra ele. Mas agora que ele fez
contra mim vou fazer.
... Os pais dele antigamente bebiam muito. Hoje participam do grupo da igreja, o pai
dele fala que faz vinte anos que ele não bebe, e a mãe dele fala que faz vinte anos que não
fuma, mas fuma escondido. Então eles se defendem para um não entregar o outro.
214
O patrão dele veio me contar que eu mudei ele, que hoje ele tem cabeça erguida e
consegue olhar nos olhos das pessoas, e aí eu fui ganhando força e dando chances a ele.
- A decisão de mudar é dele.
Ele não tomou. Quando ele me conheceu o carro dele e as roupas que ele usava eram
todas largadas, ele tinha dívidas, e melhorou comigo.
Com o meu primeiro marido, eu quis separar dele e ele me ameaçou de morte depois.
Eu fiz BO contra ele e ele implorou que eu tirasse porque deu problema no trabalho dele, ele
queria abrir empresa. Falou que já perdeu a mulher e a filha e ia perder o trabalho. Depois
me arrependi muito, porque ele conseguiu a guarda da minha filha e se tivesse esse BO podia
conseguir reaver a guarda. No começo eu quis que ele ficasse com a filha porque eu não
tinha para onde ir e estava com a minha segunda filha bebê. Mas depois que me estruturei
poderia ter tido a filha de volta. Eu me separei porque descobri uma traição que não queria
aceitar. Ele voltava para casa às seis da manhã dizendo que estava no trabalho, não
participava de nada da família. A mãe dele falava que ele estava me traindo. Descobri depois
que era com a estagiária dele que tinha dezessete anos. Ele gosta de mim até hoje, me pediu a
pensão alimentícia sabendo que eu não podia pagar, eu quase fui presa por isso, ele me
ameaçou tirar o meu nome no registro de maternidade da minha filha, tudo para falar
comigo. Até que eu passei a ignorar essas ameaças e o contato entre a gente acabou.
Minha mãe é alcoólatra, meu tio é usuário de craque. Saí de casa com quatorze anos
para morar com amigas, porque a minha mãe me batia bêbada. Aos dezessete anos meu
primeiro marido que era meu namorado me convidou para morar na casa dele para me
ajudar, junto com os pais dele. Depois de três anos engravidei. Quando tive minha segunda
filha com outro homem estava na época da separação. Ele quis registrar essa minha filha,
mas na primeira discussão que tivemos ele falou para eu calar a boca porque ia assumir essa
bastarda, aí foi a gota d’água eu decidi que ia separar mesmo. Fiz o pai registrar e ele foi
embora para o Nordeste, eu não queria contato porque não sabia o que ele podia fazer com
ela, se ele podia levar ela para longe. Fiquei sozinha e foi a fase mais feliz da minha vida. Ele
não paga pensão para não ter direito sobre ela. Ele tem cinco filhos, cada um com uma
pessoa. Já veio e ficou uma semana com ela, mas não está fazendo falta. A primeira filha tem
treze anos e eu a pego ela todos os finais de semana.
Depois minha filha que mora comigo começou a dizer que depois que este terceiro
homem entrou na minha vida a vida delas ficou um inferno, e sempre moramos só as duas.
Minha filha também contou que ele levou ela nuns predinhos para pegar droga. Pensei que se
não luto por mim tenho que lutar pela minha filha. Ele ficou com raiva de mim e começou a
215
me tratar mal. Não me servia com as coisas que fazia em casa para os três, e dava respostas
atravessadas do tipo: você tem mão vai lá e pega. Chamava minha filha de folgada, a menina
de oito anos.
Neste último casamento ficou muito forte o seu desejo de salvar o outro.
Eu gosto muito de ser mãe e fico confundindo um pouco se sou mãe ou mulher. Eu
falava isso para ele, que eu não sabia se era mãe dele.
... Hoje já nem sei mais se quero uma família. Com o primeiro marido fiquei casada
oito anos.
Parei de tomar remédio porque o problema não sou eu. Eu só falava no psiquiatra
que fico nervosa e avanço no marido, mas tive vergonha de contar tudo sobre ele. A ex dele
terminou com ele por causa do uso de drogas também, e ela acabou virando sapatão.
Ele nunca me ajudou, eu sentia até que parecia que ele estava comigo para fazer um
favor a uma mãe solteira. A família dele me chamando de manipuladora porque não queria
que eu fizesse ele parar de beber. Eu era tudo de ruim e ele o anjo da família.
Vilma, 45 anos:
Tanta coisa para falar.. sou casada há 30 anos, tenho que contar tudo?
- Não não, o que você quiser.
Sou muito agredida pelo meu marido, apanho muito também, chega uma hora que não
deu mais. Sábado ele pegou a faca para me matar, só não me matou por causa da minha
filha de três anos, mas eu vi a morte assim... sempre eu apanhava, me deixava roxa, e ele
falava pra mim que se eu dia eu procurasse me defender ele ia me matar mesmo, tou com
muito medo. E a minha filha de 10 anos, é ela que eu acho que precisa de psicólogo. Ela
dorme com a porta trancada, às vezes ela não consegue dormir, mas nunca teve paz na nossa
casa.
- Esses 30 anos foram assim?
Sim, e cada vez vai ficando pior.
- E como começou?
A gente briga mais porque ele não quer que eu trabalhe. Eu sempre quis, mas ele
queria que eu ficasse trancada. E de uns tempos desse para ca eu comecei a reagir. Por que
eu tive depressão, tava a coisa ficando cada vez pior. Ele não quer que eu saia, que eu use
batom, que eu arrume o cabelo, ele quer que eu fique trancada. Então aí eu comecei a ficar
muito triste, minha filha me via triste e falava que vai matar ele, dez anos. Tenho uma de dez
e um de vinte e sete. ... Por mim tudo bem, mas ela ta precisando muito de uma psicóloga,
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não sei se tem de graça ali perto da minha casa.... Ele ta ameaçando direito, eu to com muito
medo.
- É a primeira vez que você vem aqui?
É. A gente vê muito as coisas na televisão né.
- E o que te fez ter coragem?
É porque eu assisto e estou vendo que eu não mereço passar por tudo isso. Ele fala
que eu não tenho capacidade para trabalhar, mas eu vou ter sim. E a psicóloga que me
atendeu há 3 anos atrás que falou: ou você quer essa vida, ou vai ter sua filha doente para o
resto da vida. Eu to fazendo por ela.
Trinta anos, foi bastante tempo. Você vê diferença em você nesse tempo?
Vejo que agora tem reação. Nunca teve reação em mim. Hoje eu saio sem dar
satisfação para ele. Eu não faço nada de errado. Ele conversa com você ele é outra pessoa,
mas dentro de casa ele é totalmente diferente. E eu me acabava, só limpando casa,
arrumando roupa para ele, tantas vezes fui tomar café meia noite para deixar a casa limpa.
Então, isso acabou. Eu quero viver minha vida em paz. Ele nem sabe que estou aqui.
Sei que ele já me traiu, ele tem uma filha de quatro anos, passa a semana fora.
Aconteceu no sábado, que a gente brigamos, a gente não dorme junto já tem uns dez anos.
Dei o quarto para ele e fiquei dormindo no quarto do fundo junto com a pequenininha.
- Você saiu por medo ou pela relação?
Foi porque eu não tinha mais nada com ele. A noite ele não me bate não, só se eu
falar alguma coisa. Agora ele vai lá, mexe na porta.
- Para bater?
Sim, fala que vai me matar, com canivete.
- Foi depois que você saiu do quarto que ele começou a piorar?
Foi. E ele tem uma gaveta na cômoda, esqueceu da chave e eu fui pegar. E eu vi como
se fosse um jornal ele declarando que não me amava, que só estava comigo porque eu
cuidava dele e não quer dividir os bens, mas eu amo você Márcia, não é a Vilma, eu tenho
nojo dela, ela não se cuida. Aquilo mexeu comigo e eu fui perguntar para ele. Aí foi quando
ele pegou a faca para cima de mim. Foi quando meu filho mais velho foi chegando e entrou
no meio. Daí ele soltou a casa e deu uma de bonzinho: eu não vou fazer isso com sua mãe
meu filho. Meu filho foi e chamou a polícia, contou para a polícia que ele sempre fazia isso.
A minha sorte é que ele deixou a chave dele dentro de casa. Aí a polícia chegou e falou para
a gente vir na delegacia da mulher. E ele passa semana fora de casa, eu não tenho marido.
Quando vem traz a bolsa de roupa para eu lavar, meus vizinhos vêm me falar que você não
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merece isso. Eu quero viver minha vida sozinha com a minha filinha, meu filho já vive a vida
dele. Ele ainda ajuda o pai dele que está desempregado.
- Quem sustenta a casa é o seu filho mais velho?
É o meu filho, a gente falou isso para a polícia. Ele não compra nada para lá. Meu
filho que paga tudo.
Muita gente me fala que pela sua idade não vão pegar você. Eu limpo banheiro, faço
qualquer coisa, eu quero um trabalho. Meu filho vai pagar as contas dele, não a minha.
- Então você acreditando em você.
Firme. Porque trinta anos Marcella, o amor acaba. O amor é como se fosse uma flor,
se você rega ela vai ficar bonita, mas se você não rega ela vai ficar feia não vai? Quando eu
tive minha filha eu queria uma filha, mas já tinha acabado. Ele tem duas casas, tem um
carro, por que ele não sai de casa? Quando eu vivo desse jeito me acabando, limpando,
minha casa é grande. Eu sou mulher, sou um ser humano, não preciso dele, não vai mudar
nada, ele nunca me deu nada. Então to com muita raiva dele, não quero isso. Se ele fosse
uma pessoa que não me maltratasse. O pai dele batia na mãe dele, até os cunhados dele bate
na mãe dele, isso é bem familiar.
- E na sua família?
Não, graças a Deus. Quando fui para casar com treze anos, ele foi meu primeiro
namorado, meu primeiro homem. Meu pai falava para mim que não concordava com aquele
casamento, e eu nem liguei. Hoje meu pai fala para mim que eu vou ter que viver o que casei.
Meu filho está passando mal e o médico falou para ele que é preocupação. E eu quero que
ele saia de casa, se ele tem outra casa porque ele não vai morar lá? Eu cuido dele direitinho,
ele não lava uma louça para mim. Minha filha faz natação, ele ta desempregado e não leva,
eu que levo.
- E essa fala do seu pai que tem que ser assim mesmo?
Era. Hoje não é mais. Tenho um corte na cabeça que ele que fez...
- Ele bate em vocês duas, no menino não?
No meu filho não, porque meu filho é bem grandão, ele não é besta.
- É covarde?
É covarde mesmo. Ele falou para a polícia que é porque ele está desempregado que
ele faz isso. Eu falei que não, que há muito tempo que ele faz isso. Eu sempre tive um monte
de roxo, agora ele está ameaçando com faca.... Eu queria que ele ficasse longe de casa, não é
preso também.