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Oliveira Corrigida

A tese de Marcella Pereira de Oliveira investiga os significados atribuídos por mulheres vítimas de violência, utilizando a psicanálise de Freud e Lacan para entender a origem de concepções discriminatórias sobre o feminino. A pesquisa qualitativa inclui entrevistas que revelam como a cultura machista e patriarcal contribui para comportamentos abusivos, propondo novos dispositivos clínicos para atendimento. O estudo é relevante para a saúde pública e para a luta contra a violência e discriminação das mulheres.

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Carolina Lopes
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Oliveira Corrigida

A tese de Marcella Pereira de Oliveira investiga os significados atribuídos por mulheres vítimas de violência, utilizando a psicanálise de Freud e Lacan para entender a origem de concepções discriminatórias sobre o feminino. A pesquisa qualitativa inclui entrevistas que revelam como a cultura machista e patriarcal contribui para comportamentos abusivos, propondo novos dispositivos clínicos para atendimento. O estudo é relevante para a saúde pública e para a luta contra a violência e discriminação das mulheres.

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

INSTITUTO DE PSICOLOGIA

Marcella Pereira de Oliveira

Violência contra as mulheres: reflexões sob o viés da psicanálise de Freud e


Lacan

São Paulo
2021

MARCELLA PEREIRA DE OLIVEIRA


Violência contra as mulheres: reflexões sob o viés da psicanálise de Freud e
Lacan

Versão corrigida

Tese apresentada ao Instituto de Psicologia


da Universidade de São Paulo para obter o
título de doutora em psicologia clínica
Área de Concentração: Psicologia Clínica
Orientadora: Profa. Dra. Léia Priszkulnik

São Paulo

2021
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO,
PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

Catalogação na publicação
Biblioteca Dante Moreira Leite
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Dados fornecidos pelo(a) autor(a)

de Oliveira, Marcella
Violência contra as mulheres: reflexões sob o viés da psicanálise de Freud e
Lacan / Marcella de Oliveira; orientador Léia Priszkulnik . -- São Paulo, 2021.
217 f.
Tese (Doutorado - Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica) -- Instituto
de Psicologia, Universidade de São Paulo, 2021.

1. Violência. 2. Mulher. 3. Feminino. 4. Freud. 5. Lacan. I. Priszkulnik , Léia ,


orient. II. Título.
1

Oliveira, Marcella Pereira de


Violência contra as mulheres: reflexões sob o viés da psicanálise de Freud e Lacan

Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da


Universidade de São Paulo para obtenção do
título de doutora em Psicologia Clínica
Aprovada em:

Banca Examinadora

Profa. Dra. _________________________________________________________________


Instituição: _________________________________________________________________
Julgamento: _________________________________________________________________

Profa. Dra. _________________________________________________________________


Instituição: _________________________________________________________________
Julgamento: _________________________________________________________________

Profa. Dra. _________________________________________________________________


Instituição: _________________________________________________________________
Julgamento: _________________________________________________________________

Prof. Dr. _________________________________________________________________


Instituição: _________________________________________________________________
Julgamento: _________________________________________________________________

Prof. Dr. _________________________________________________________________


Instituição: _________________________________________________________________
Julgamento: _________________________________________________________________
2

À minha avó, em memória, Madalena Moreira de Oliveira, falecida duas


semanas antes do depósito desta tese, quem me inspirou à vida no seu modelo
de liberdade. Mulher de vanguarda, nascida na primeira metade do século XX,
dedicada não só à família como também aos bailes de dança, a dirigir e
comprar seu carro, aos encontros amorosos, dentre tantos outros desejos e
escolhas.
3

AGRADECIMENTOS

Ao programa de pós-graduação em psicologia clínica da Universidade de São Paulo (USP),


pela seriedade na condução do trabalho conjunto que deu suporte a esta tese. Destaco os
nomes da Claudia Rocha da secretaria do programa, e dos (as) professores (as): Ivan Estevão,
Maria Lívia Tourinho Moretto, Miriam Debieux, cujas intervenções, ainda que pontuais,
foram fundamentais para o suporte do trabalho;
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela aposta no
financiamento da pesquisa que contribuiu para a minha dedicação;
À minha orientadora, Léia Priszkulnik, pela leitura cuidadosa do texto, bem como pelas
orientações precisas, em relação às leituras necessárias e aos ajustes de escritas, fundamentais
na construção da tese, ao longo dos últimos quatro anos;
Aos professores que participaram da banca de qualificação, e aceitaram participar da defesa
da tese, Ilana Mountian e Niraldo de Oliveira Santos, cuja leitura atenta do texto em meados
do percurso, e sugestões de leitura para a continuidade propiciou uma base para a tese adquirir
seu corpo;
Aos colegas de percurso, Diógenes Faustino, Fernanda Carvalho, Fernanda Leão e Nattasha
Silva, pela parceria de trabalho que propiciou a construção de laços que alegraram e deram
segurança aos duros dias;
À Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), representada aqui pelas e pelos psicanalistas: Luiz
Fernando Carrijo da Cunha, Maria Josefina Sotta Fuentes, Carlos Genaro (em memória),
Cássia Guardado, Rosangela Santos, Lucila Darrigo, Veridiana Marucio, Gustavo Oliveira
Menezes e Niraldo Oliveira Santos; cujas intervenções foram fundamentais para minha
construção como analista; seja na escuta de meu inconsciente, ou na escuta de meus
atendimentos a fim de controle da minha prática clínica; nos laços de cartéis tão importantes
para o surgimento das minhas questões; e nas demais parcerias imprescindíveis para o bom
funcionamento da escola;
Ao meu amado filho Bruno, por tamanho amor que me possibilitou ir mais além; pela
paciência por me ver debruçada por dias consecutivos no computador e, na medida do
possível, aceitar;
À minha família de origem, minha mãe Leila, meu pai Cláudio, minhas irmãs Marina e
Juliana, minha madrasta Iracema; meu tio Clóvis, meu primo Max e seus agregados; e a
todos; pelo amor, pela urgência em manter o bom funcionamento da vida, pelo modelo de que
se ganha a vida através do estudo;
4

Ao meu primeiro amor, Marcelo Andrade Camargo (em memória); pela introdução no
universo da parceria amorosa com as marcas de liberdade, igualdade e, principalmente,
alegria;
Aos amigos, tão fundamentais para o suporte psíquico e emocional de conseguir levar adiante
um trabalho tão árduo, em especial aos queridos que dividem a vida comigo há tantos anos,
Esdras e Paloma;
À Plataforma Brasil e seus responsáveis, pela autorização da pesquisa de campo;
A delegada Vânia Idalera Zacaro de Oliveira, pela autorização da pesquisa na Delegacia de
Defesa da Mulher (DDM) de sua então responsabilidade na época, bem como pelo
acolhimento;
A policial Josina, quem me acolhia em minha rotina na DDM, a quem eu sempre dizia que
sem ela eu não teria conseguido;
A todas as mulheres que me concederam entrevista na DDM, pela disponibilidade, pela
confiança e por terem me proporcionado profunda sensibilização e aprendizado sobre o tema.
5

RESUMO

Oliveira, M. P. (2021). Violência contra as mulheres: reflexões sob o viés da


psicanálise de Freud e Lacan (Tese de Doutorado). Instituto de Psicologia, Universidade de
São Paulo, São Paulo.
Este trabalho tem por objetivo investigar os significados que as mulheres vítimas de
violência atribuem a essas experiências de vida, para oferecer subsídios para a formulação de
novos dispositivos clínicos para o atendimento destes casos. A necessidade de se pensar a
violência contra a mulher é imprescindível para a saúde pública. Trata-se de levantar,
questionar e tentar desconstruir discursos e saberes específicos sobre as concepções sobre a
mulher, desde tempos antigos, na sociedade ocidental e mais especificamente no Brasil,
construídos num campo de saberes discriminatórios, de dominação, controle sexual e restrição
de liberdade, em que o sexo masculino exerce valoração sobre o feminino, e pouco se
interroga sobre a origem das concepções e dos estereótipos, nem sobre a maneira como são
veiculados. A psicanálise de orientação Freud-Lacan pode contribuir com sua teorização
sobre o feminino. O conceito de devastação é trabalhado na psicanálise como referência à
mulher que se deixa encarcerar inteiramente no papel de objeto do homem, fazendo dele o seu
estrago. Levanto a hipótese de que a discriminação que a mulher sofre desde os tempos
antigos– com uma cultura machista e patriarcal predominante no ocidente, na qual a mulher é
vista como objeto de posse do outro (homem) – permite comportamentos abusivos por parte
do homem como humilhações e agressões. A concepção de investigação que embasa esta
pesquisa é o modelo de pesquisa qualitativa em psicanálise que permite compreender os
fenômenos em profundidade. Consta de uma pesquisa bibliográfica e de uma pesquisa de
campo através de entrevistas abertas, orientadas pela psicanálise, para a coleta de dados. Os
conteúdos das entrevistas foram analisados pelo viés da psicanálise de Freud e Lacan. Através
da escuta analítica foi possível identificar nas falas transcritas das entrevistas, significantes
cujos significados inconscientes trouxeram originalidade ao problema da pesquisa em
questão. Esta pesquisa envolvendo este tema é fundamental, pois pode contribuir para a luta
das mulheres contra violências e discriminações que ainda sofrem, e pode trazer contribuições
para o campo psicanalítico e para a área da saúde pública, através da formulação de novos
dispositivos clínicos para o atendimento destes casos.

Palavras-chave: violência; mulher; feminino; Freud; Lacan.


6

ABSTRACT

Oliveira, M. P. (2021). Violence against women: reflections under the perspective of


Freud and Lacan's psychoanalysis (Tese de Doutorado). Instituto de Psicologia, Universidade
de São Paulo, São Paulo.
This work aims to investigate the meanings that women victims of violence attribute
to these life experiences, in order to offer subsidies for the formulation of new clinical devices
for the care of these cases. The need to think about violence against women is essential for
public health. It is about raising, questioning and trying to deconstruct speeches and specific
knowledge about the conceptions about women, since ancient times, in Western society and
more specifically in Brazil, built in a field of discriminatory knowledge, domination, sexual
control and freedom restriction. , in which the male gender values the female, and little is
asked about the origin of the conceptions and stereotypes, nor about the way they are
conveyed. Freud-Lacan-oriented psychoanalysis can contribute to its theorizing about the
feminine. The concept of devastation is worked on in psychoanalysis as a reference to the
woman who allows herself to be incarcerated entirely in the role of the man's object, making
him her damage. I hypothesize that the discrimination that women have suffered since ancient
times – with a sexist and patriarchal culture prevalent in the West, in which women are seen
as the object of possession of the other (man) – allows abusive behavior by men as
humiliation and aggression. The research concept that underlies this research is the qualitative
research model in psychoanalysis that allows to understand the phenomena in depth. It
consists of a bibliographic research and a field research through open interviews, guided by
psychoanalysis, for data collection. The contents of the interviews were analyzed from the
perspective of Freud and Lacan's psychoanalysis. Through analytical listening it was possible
to identify in the speeches transcribed from the interviews, signifiers whose unconscious
meanings brought originality to the research problem in question. This research on this topic
is fundamental, as it can contribute to the fight of women against violence and discrimination
that they still suffer, and can bring contributions to the psychoanalytical field and to the area
of public health, through the formulation of new clinical devices for care these cases.

Keywords: violence; woman; feminine; Freud; Lacan.


7

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .................................................................................................10
2 METODOLOGIA ..............................................................................................14
3 HISTÓRIA, RESISTÊNCIA E LUTA ..............................................................19
3.1 História das mulheres no ocidente: recortes................................................ 19
3.2 História das mulheres no Brasil: recortes ....................................................36
4 FIGURAS DE MULHERES E A RESISTÊNCIA ...........................................51
4.1 As indígenas no Brasil .................................................................................51
4.2 As feministas e o poder.................................................................................62
4.2.1 A caça às bruxas ............................................................................62
4.2.2 O feminismo após a revolução francesa ........................................66
4.3 Mulheres na ciência ......................................................................................75
4.4 As psicanalistas .............................................................................................78
5 A PSICANÁLISE NO ÂMBITO PÚBLICO DA VIOLÊNCIA CONTRA AS
MULHERES....................................................................................................................86
5.1 A psicanálise em políticas públicas para violência contra as mulheres.........86
5.1.1 A psicanálise, o público e o político ...............................................89
5.1.2 Um recorte da história da violência contra as mulheres no
Brasil em âmbito público ................................................................................................90
5.1.3 A sexualidade na psicanálise e suas facetas de poder .....................92
5.2 Violência contra as mulheres nas mídias digitais...........................................96
5.2.1 O corpo, sua imagem, e repercussões nas mídias digitais ..............100
6 O FEMININO N A PSICANÁLISE DE FREUD E LACAN..............................107
6.1 Freud, Lacan e as mulheres...........................................................................107
6.2 O feminino na teorização freudiana..............................................................112
6.3 Preceitos para a teorização sobre o feminino em Lacan .............................123
6.3.1 A tábua da sexuação e os modos de gozo masculino e feminino ...123
6.3.2 O feminino e a sociedade: o ódio ao feminino ...............................130
6.3.3 A devastação ...................................................................................133
6.3.4 O parceiro sintoma e o amor ...........................................................137
6.3.5 A despersonalização ........................................................................139
8

7 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DAS ENTREVISTAS .................................141


7.1 Aspectos gerais das entrevistas ....................................................................142
7.2 Categorização com base nos significantes e nos significados .....................149
8 O PSICANALISTA DIANTE DESSES CASOS ..............................................177
9 PALAVRAS FINAIS..........................................................................................185
REFERÊNCIAS .................................................................................................188
ANEXO A: Termo de consentimento livre e esclarecido...................................199
ANEXO B: Principais entrevistas ......................................................................202
9

Haverá algo mais sublime e humano do que o relacionamento de


dois seres que se amam, sem perda de identidade de cada um?
Haverá algo mais compensador do que o desejo de querer
manter uma união viva, pela comunhão, pelo partilhar de
saberes, o abandono do egoísmo e o afastamento das sombras
que possam turvar o entendimento de um casal? Haverá algo
mais belo e humano do que um casal? (Fernandes, Maria da
Penha Maia, 2012. P. 112)
10

1 – INTRODUÇÃO

A importância de estudar o masculino e o feminino vem de algumas poucas décadas.


Esta divisão fora sempre escondida por um neutralismo sexual que beneficiava o masculino.
São comuns certas frases do dia a dia como “meu filho vai para a melhor escola, minha filha
não precisa”; “não posso usar este vestido porque meu marido não deixa”; “dou tudo do
melhor a minha mulher”. São fatos que acontecem sem ser dada a devida ênfase na
discriminação subjacente às mulheres.
Este trabalho trata de questionar e desconstruir discursos e saberes específicos sobre as
mulheres. As concepções sobre a mulher, desde os tempos mais remotos, em países que
marcaram o início da civilização ocidental, são construídas num campo de saberes
discriminatórios, de dominação, controle sexual e restrição de liberdade, em que o sexo
masculino exerce valoração sobre o feminino e pouco se interrogam sobre a origem destes
estereótipos, nem sobre a maneira como são veiculados.
Em toda a história ocidental são encontrados exemplos significativos de mulheres
oprimidas por homens, muitas vezes pelos próprios maridos ou pela sociedade que, ao atribuir
aos homens poderes maiores do que as mulheres, obriga os maridos a posicionarem-se no
lugar de suas esposas; posicionamentos que muitas vezes são relativos a assuntos diretamente
ligados às mulheres, com os quais seus maridos não tinham ligação alguma.
Centenas de anos atrás, temos Mary Shelley, escritora britânica, cujo talento resultou
na sua grande obra O Frankenstein, a qual precisou ser assinada por seu marido; embora
inteira escrita por ela. Inclusive era a Mary Shelley quem ajudava a promover os poemas do
marido, também escritor. Margaret Keane, pintora americana nascida no século passado,
conhecida por seus desenhos de crianças com olhos grandes, teve sua autoria plagiada pelo
marido, Walter Keane. Ele aspirava a pintor, porém não teve sucesso, e, ao perceber que
assumindo as obras da sua esposa como suas conseguia vende-las, ele toma este plágio um ato
cotidiano até ser interceptado judicialmente. No Brasil temos Dandara, escrava negra do
período colonial, esposa do Zumbi dos Palmares, quem, embora com poucos registros sobre
sua história, simboliza a resistência das mulheres brasileiras de descendência africana frente à
opressão dos portugueses que queriam usa-las para serviços desgastantes ligados à escravidão
dos negros, além de explorá-las sexualmente. Em tempos atuais, uma das grandes
representantes da resistência à violência contra as mulheres no Brasil é Elza Soares, cuja vida
é marcada pela violência doméstica desde o início da adolescência, além de um grande
11

sofrimento advindo da condição pobre. Em meio a uma vida marcada pela fome, pela perda
de filhos e muita violência doméstica, Elza foca na carreira musical, tendo obtido sucesso
internacional. Uma de suas canções, “Maria da Vila Matilde”, de 2015, é um claro chamado
ao movimento de resistência para com a violência contra as mulheres, e ela foi indicada ao
Grammy Latino de melhor canção brasileira.
No Brasil não foram só mulheres como Dandara e Elza o símbolo da resistência das
mulheres. Homens também já fizeram este papel e compraram esta luta em movimentos de
repercussão nacional como o movimento antropofágico do século XX e década de vinte,
vinculado ao campo da arte, com objetivo de resgate da cultura nacional. Oswald de Andrade,
seu principal expoente junto a Tarsila do Amaral, ao opor o patriarcado ao matriarcado, vai
denunciar a manipulação social para manter a mulher fora da prática política; machista e
misógina (Botrel, Brisset, Castro, & Matos, 2018). O que estava em jogo nesta denúncia do
patriarcado não era a troca do pai pela mãe; mas sim que a diferença, inscrita pela mulher,
possa estar dentro do jogo com papel tão fundamental quanto a virilidade mais padronizada
colocada pelos homens.
As mulheres são, todos os dias, discriminadas e exploradas em diversos países. Alguns
deles são considerados os piores países para se nascer mulher, como o Congo na África, onde
1095 mulheres são estupradas todos os dias. Algumas são mortas pelas milícias enquanto
outras são capturadas para serem escravas sexuais ou das tarefas domésticas (Spotniks, 2015).
O Brasil, por exemplo, em 2019, obteve um registro de 1314 casos de feminicídios,
em número absoluto, o que significa uma média de uma mulher sendo morta a cada sete horas
neste país, cujo motivo da morte está diretamente relacionado ao fato de ser mulher; ser
mulher para um homem, quem lhe matou. Foi um aumento de 7,3% em relação ao ano de
2018; em contramão ao número de assassinatos que sofreu grande queda de 19% de 2018 para
2019. Estes dados são de um levantamento feito pelo Monitor da Violência: uma parceria
entre a Globo Comunicação e Participações SA (G1), o Núcleo de Estudos da Violência da
Universidade de São Paulo (NEV-USP), e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (G1,
2020). As maiores taxas de feminicídios brasileiros estão no Acre, em Alagoas, no Mato
Grosso, Mato Grosso do Sul e no Distrito Federal; sendo os dois primeiros estados os
campeões em feminicídios. As menores taxas estão em São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará e
Rondônia. São crimes que não tem relação com a criminalidade urbana; crimes domésticos,
que em maioria acontecem na casa da vítima. Em 2018 foram registrados 66 mil casos de
estupro.
12

De acordo com dados obtidos em março de 2021 da Agência Patrícia Galvão, em


parceria com o Instituto Avon, no Brasil uma mulher é vítima de estupro a cada nove
minutos; três mulheres são vítimas de feminicídio a cada dia; uma pessoa trans ou gênero-
diversas é assassinada a cada dois dias; uma mulher registra agressão sob a lei Maria Penha a
cada dois minutos (Agência Patrícia Galvão, 2021).
Segundo Ana Flávia Oliveira, professora da Faculdade de Medicina da USP, em
entrevista cedida ao jornal da USP em julho de 2016, uma mulher violentada tem sua saúde
afetada em vários aspectos: mais chance de ter depressão, de cometer suicídio, de ter uma
gravidez indesejada, de cometer um aborto, de ter uma doença sexualmente transmissível
como AIDS, e uma ínfima chance de ter sua integridade física e social preservada e de atuar
na sociedade (Leitão, 2016).
No Brasil, em junho de 2017 a Secretaria de políticas para as mulheres, em
proximidade a data do dia dos namorados, lança a campanha: “Não é amor quando”, listando
uma série de características de relacionamentos abusivos, como desconsiderar idéias e
opiniões, tentar diminuir sonhos e esperanças, fazer com que a mulher se sinta sempre errada.
O Portal Brasil (2017) afirma que em 2016 foram feitas mais de um milhão de denúncias para
o número de telefone 180, serviço que funciona a todo tempo recebendo denúncias de
violência contra a mulher de toda a ordem, desde abuso sexual, agressão física, até violência
obstetrícia.
Em agosto de 2017, o estado do Alagoas cria a campanha Agosto Lilás, sobre a
importância de se denunciar o agressor da mulher. Ao ressaltar que os tipos de crimes
cometidos são muitos, como estupro, lesão corporal, feminicídio, crime contra a liberdade de
expressão, fica evidente o poder do homem sobre a mulher, o que, para todo o espanto, é
comumente avaliado pela vítima como uma forma de demonstração de amor ou proteção (G1
Al, 2017).
No mesmo ano, na região do Vale do Paraíba, em São Paulo, foi feito um
levantamento pelo governo, publicado no jornal O Vale, de que no Estado de São Paulo, no
ano de 2017, a cada quatro minutos uma mulher era vítima de violência. De acordo com a
delegada titular da Delegacia de Defesa da Mulher de São José dos Campos, em reportagem
para o Jornal O Vale de fevereiro de 2018, a média de registros de violência contra a mulher
nesta cidade é de dez ao dia. A violência contra a mulher pode ser definida como qualquer
prática baseada no gênero, que pode causar morte, dano, ou sofrimento nos âmbitos físico,
sexual e psicológico (Alvim, 2018).
13

A mesma delegada atribui este dado à discriminação da mulher decorrente de


pensamentos que naturalizam o gênero feminino dentro da opressão social, da ideologia
patriarcal, na qual o homem é o chefe da família e todos devem obedecê-lo, mulher e filhos.
Inclusive a maioria dos episódios de violência acontece nos locais do convívio familiar. A
maioria dos registros são feitos por mulheres jovens que trabalham e que, por terem
independência financeira, não toleram imposições por parte do homem.
Os autores da referida reportagem mencionam caso de feminicídio contra uma mulher
que engravidou numa situação extraconjugal e não quis abortar. É o machismo como norte de
chacinas, crimes que começam com o tratamento recebido dentro de casa, quando as meninas,
por exemplo, são obrigadas a lavar a louça enquanto os meninos não são. Os feminícios
também são “justificados” em situações de mulheres que registram boletim de ocorrência
contra maridos, de prostitutas que rejeitam um cliente a fim de trabalhar para outro.
Em abril de 2018, o Senado divulga notícia via internet sobre duas novas leis acerca da
proteção da mulher; uma delas é sobre a criminalização da divulgação de mensagens
misóginas – que propagam ódio ou aversão à mulher – pela internet, e a outra sobre o
descumprimento de medida protetiva colocada pela Lei Maria da Penha (Agência Senado,
2018). Em poucas palavras, esta lei protege o direito da mulher de ir e vir e proíbe a violência
contra ela em cinco âmbitos: físico, psicológico, moral, patrimonial e sexual.
Em vista de contribuir para a diminuição deste fenômeno da violência contra a mulher,
ao menos contribuir para uma maior problematização da questão e consequente desconstrução
de estereótipos, o objetivo desta pesquisa é investigar aspectos inconscientes que promovem a
repetição na posição de vítima por mulheres que sofrem violência doméstica, a fim de obter
novos subsídios para a prática clínica com estes casos.
14

2 – METODOLOGIA

Estudos sobre violência contra as mulheres são sempre importantes em vias de


contribuir na problematização da questão. Questões sociais só podem ser modificadas através
de reais problematizações, cujo impacto provoca um tensionamento do tema, possibilitando a
retificação de ideias, paradigmas, conceitos e estereótipos. Este estudo, além disto, aprofunda
na dimensão do feminino com intuito de investigar significados inconscientes para a
permanência de mulheres em situações nas quais sofrem agressões, o que leva a indagação
acerca desta posição de vítima; percepção que leva a uma desconstrução da divisão
estereotipada entre a vítima e o agressor.
A concepção de investigação utilizada é o modelo de pesquisa qualitativa em
psicanálise que permite compreender os fenômenos em profundidade. Foram desenvolvidos
dois procedimentos: pesquisa bibliográfica e pesquisa de campo.
Segundo Gil (2007), a pesquisa bibliográfica é feita a partir do levantamento de
referências teóricas já analisadas e publicadas por meios escritos e eletrônicos, como livros,
artigos científicos, páginas de web sites. Portanto, essa pesquisa é elaborada com base em
material já publicado, procurando recolher informações e conhecimentos sobre o problema a
respeito do qual se procura a resposta (Fonseca, 2002).
A pesquisa bibliográfica consiste no levantamento de textos nas bases de dados de
sites que publicam e divulgam artigos acadêmicos, bem como nas Bibliotecas da
Universidade de São Paulo e na Biblioteca Virtual em Saúde. São considerados artigos de
periódicos, livros, dissertações, teses, anais de eventos, assim como material divulgado nos
veículos de comunicação de massa, como jornais e revistas, pois se considera que esses
também constituem fontes de informação apropriadas sobre o tema. São realizados estudos
críticos desses textos com o objetivo de contextualizar o tema da pesquisa e caracterizar as
referências conceituais utilizadas neste trabalho.
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, na qual “o pesquisador se defronta com aspectos
fluidos, não mensuráveis, que podem e devem ser examinados de ângulos os mais diversos”
(Turato, 2003, p. 27). Aqui o caminho se faz caminhando, e a importância do processo é ainda
maior do que o resultado. O qualitativo enfatiza a contextualização, o singular, a diferença, os
sentidos e os significados de um fenômeno humano.
O autor acima mostra que as diferenças na concepção de verdade elucidam diferenças
cruciais entre a pesquisa qualitativa e a quantitativa; enquanto esta é pautada na oposição
15

entre o verdadeiro e o falso, aquela busca uma verdade surgida a partir de uma relação de
confiança. A partir de um encontro podem surgir verdades acerca de uma subjetividade que
sofre, e este encontro proporciona alívio para o sofrimento na medida em que constrói
verdades, traz à tona aspectos até então encobertos, sobre o sujeito que fala de si. Esta
concepção de verdade é traduzida por emunah em habraico, que diz que algo novo nascerá a
partir de uma relação. É uma verdade voltada para o futuro, para como as coisas serão a partir
de uma aliança construída (Turato, 2003). Pode-se dizer que esta verdade associada à
confiança torna possível a produção de efeitos de realidade. Aqui a verdade como
desvelamento, oposto do falso, traduzida por alethéia em grego, tem uma conotação de uma
verdade acerca da subjetividade, a qual se revela pela via do retorno do recalcado; contudo,
não se coloca exatamente em oposição ao falso, mas em oposição ao obscuro, que não foi
possível de ser desvelado.
De acordo com Safra (2001), o rigor na investigação em psicanálise é comprovado
pela fidelidade do pesquisador em relação aos princípios analíticos. Desta forma, a psicanálise
traz para a universidade outra forma de fazer pesquisa, na qual o rigor está na fidedignidade a
um paradigma epistemológico.
O advento da psicanálise como prática de pesquisa traz a quebra do paradigma
científico que situa o sujeito pesquisador e seu objeto como entes exclusivamente separados.
Um marco claro desta nova na forma de pensar a ciência, sem a dicotomia entre sujeito e
objeto é o texto Sobre o narcisismo: uma introdução, do próprio Freud (1914b/2006),
momento no qual ele conclui que a separação entre o sujeito e o outro com quem ele está em
relação é muito mais porosa do que pode parecer.
A compreensão de que o sujeito que aqui se trata é o sujeito do inconsciente é
fundamental para se pensar a pesquisa em psicanálise. Galimberti (2006) reflete sobre a
psichê humana ao diferenciar o modo de funcionamento entre o homem e o animal. Ele diz
que enquanto o animal se adapta ao meio em que vive, ainda que sob condições extremamente
adversas, o ser humano “se relaciona com o meio ambiente para transcendê-lo” (Galimberti,
2006, p. 90). Nesta relação, algo da ordem de um acontecimento é inerente à constituição do
sujeito do inconsciente, tal como traz Foucault (1979) ao elucidar a concepção de
acontecimento. Nesta medida, o acontecimento delimita novos circuitos energéticos, ou
circuitos pulsionais. Freud (1915/2006) esclarece que a energia que emana do sujeito para se
comunicar com o mundo externo é a pulsão, a qual é oriunda do id e tem por principais
características ser parcial e constante. A parcialidade se revela no modo como a fonte
16

pulsional é localizada em partes específicas do corpo, denominadas zonas erógenas. Aqui


ocorre a comunicação com o mundo externo, que vai delimitando o mundo humano, por meio
de acontecimentos de corpo. Vale ressaltar que o corpo para a psicanálise se refere à
autoimagem inconsciente, e não ao corpo como organismo biológico.
Este paradigma epistemológico foi aplicado não só na pesquisa bibliográfica, mas
também na análise dos dados colhidos na pesquisa de campo. Para esta, foram colhidos dados
a partir da pesquisa com mais de cem mulheres que sofreram violência doméstica, sendo que
destas quarenta foram utilizadas para a análise dos dados. São mulheres que sofreram
violência dentro de suas casas, tendo por agressor o seu marido ou namorado.
As entrevistas utilizadas na pesquisa de campo foram abertas, psicanaliticamente
orientadas, o que Lacan denomina psicanálise em extensão, pois está fora do consultório,
contudo não menos fundamentada na ética da psicanálise. Aqui não se supõe um saber prévio
no entrevistado, mas sim o encontro com o entrevistador suscita questões a serem refletidas
(Costa & Poli, 2006). Tais autoras ressaltam que é possível constituir uma pesquisa em
psicanálise das mais diversas formas, as quais obviamente vão além do caso clínico, desde
que nas quais o sujeito pesquisado seja o sujeito sob o olhar do inconsciente. De acordo com o
inconsciente freudiano, tais produções idiossincráticas inconscientes são tidas nos tropeços da
linguagem, tais como atos falhos, chistes, e também nos sonhos. Já o inconsciente lacaniano
se manifesta a todo o tempo, por meio da fala, através do significante, ou seja, da imagem
acústica da palavra, a qual se sobrepõe aos significados imbricados na palavra.
Ainda de acordo com as autoras acima, existem duas formas das formações do
inconsciente se manifestarem nas entrevistas em psicanálise, que são a formulação de uma
demanda por parte do entrevistado e a produção de um efeito surpresa, também por quem
concede a entrevista. A primeira diz respeito à possibilidade do entrevistando formular uma
questão a ser investigada ao longo da entrevista; por exemplo, porque eu me mantive neste
relacionamento violento. A segunda diz respeito a uma novidade a surgir ao longo da
entrevista, a qual coloca o sujeito entrevistado em contato com a novidade do seu saber
inconsciente.
A amostra da pesquisa foi fechada por saturação teórica, cujas entrevistas foram
interrompidas quando as respostas de novos sujeitos passaram a apresentar, na avaliação da
pesquisadora, uma quantidade de repetições em seu conteúdo e este já apresentou elementos
suficientes e necessários para atingir os objetivos apontados no projeto de pesquisa (Turato,
2003). Semanalmente foram realizadas entrevistas as quais foram posteriormente
17

selecionadas; algumas foram descartadas por estarem incoerentes, com um discurso


desorganizado; outras pela entrevistada não ter ganhado voz em seus relatos.
As entrevistas foram abertas e livres; não houve uma forma padronizada do desenrolar
das mesmas. Houve liberdade na forma de início; contudo, quando a mulher entrevistada tinha
mais dificuldade de começar a falar, a entrevistadora lhe pedia que falasse sobre si. As
entrevistas selecionadas foram gravadas e transcritas para posterior análise dos dados.
Sobre o método psicanalítico de análise de entrevistas, Assadi, Bichara, Dunker,
Gordon e Ramirez (2002) o aproximam a um romance policial. Isto porque ambos
compartilham de um mistério, de uma situação enigmática – um sintoma no caso do primeiro
e o crime no caso do segundo – a ser interpretada a partir de indícios e induções, com uma
análise minuciosa das circunstâncias. Através da abdução, é possível circunscrever uma
verdade consistente.
A capacidade de abdução, de sintetizar a fala como corpo da mensagem e transformá-
la em um quadro clínico definido por uma ou mais queixas situadas numa história de vida, é
fundamental. O raciocínio abdutivo parte da premissa de que a subjetividade humana ocorre
por saltos e rupturas, e não por continuidade. Deve prevalecer, portanto, sobre os raciocínios
indutivo e dedutivo, os quais partem da premissa de que há uma verdade a ser desvelada, por
exemplo, com exames laboratoriais tal como nas ciências duras.
A contribuição de Bakhting, citado por Brait (2005), conhecido como o filósofo do
diálogo, sobre a necessidade do diálogo como ética e estética é aqui também fundamental para
se pensar o que este trabalho pretendeu colher com as entrevistas orientadas pela psicanálise.
Este autor coloca o diálogo como base para a criação de concepções humanas. Desta forma, a
partir de um evento que ocorre no meio situado entre sujeito e interlocutor, o diálogo mostra
sua importância na criação de paradigmas que permitem a construção de subsídios clínicos.
Assim como Freud e Lacan, Bakhting coloca a linguagem e a cultura como alteridades
fundamentais na construção do eu, ou constituição do sujeito, adiantando as contribuições de
Lacan. A relação entre o sujeito e a cultura é sempre conflitiva e incessante; o que implica que
o sujeito nunca pode ser compreendido como tábula rasa, parte-se sempre do pressuposto de
que algo o precedeu enquanto sujeito de uma família e uma cultura. E também implica no
dinamismo permitido ao humano, sempre um sujeito inacabado, sempre em movimento e
mudança, de acordo com a sua cultura.
Ao longo da tese, são desenvolvidos pontos elencados como fundamentais para a
problematização do assunto em questão, bem como pontos considerados novos, que agregam
18

inovação à temática. A primeira parte é dedicada à história: será realizada uma


contextualização da história das mulheres no ocidente, com destaque maior para o Brasil; em
seguida são destacadas formas de resistência das mulheres ao longo da história: na cultura
indígena, no movimento feminista, na ciência e na psicanálise. Já a parte seguinte avança para
a temática da violência contra as mulheres no âmbito público: são tratadas políticas públicas e
redes sociais. Em seguida, entra-se a fundo na temática do feminino na psicanálise: foi feita
uma revisão sobre este conceito de Freud à Lacan, partindo daquele como base e avançando
para o último com sua grande contribuição sobre a teoria do gozo feminino. Nesta parte
também é falado sobre as relações destes autores com as mulheres. Finalizando a pesquisa
teórica, são apresentados os resultados da pesquisa de campo realizada com mulheres na
Delegacia de Defesa da Mulher de uma cidade do interior de São Paulo, sede da Região
Metropolitana do Vale do Paraíba e Litoral Norte; pesquisa que permite uma série de
reflexões, construções, e análise dos significantes envolvidos nos episódios de violência. O
último capítulo é um fechamento sobre as construções realizadas na tese, que culmina na
abertura de possibilidades para a atuação do psicanalista diante destes casos, no âmbito
político e ético.
19

3 – HISTÓRIA, RESISTÊNCIA E LUTA

3.1 – História das mulheres no ocidente: recortes

Uma vez que a violência contra a mulher aqui é vista como fruto da discriminação, é
necessário investigar a origem desta visão inferiorizada da mulher. O ocidente foi tido como
recorte metodológico para fins de delimitação de campo de pesquisa teórico. Por se tratar de
algo existente desde tempos remotos e extremamente recorrente no ocidente (nosso recorte), a
discriminação da mulher pode ser pensada como algo inerente à cultura; algo que vai além de
um fenômeno social: é estruturante.
Faz-se necessário trazer dados de como a história escreve sobre as mulheres no
ocidente nos países considerados os berços da civilização. É preciso ir além de conversas
especulativas e consultar material cientifico como registros de livros e artigos sobre povos que
ajudaram a estabelecer alicerces culturais, políticos, artísticos, filosóficos e científicos; sobre
os quais se baseia boa parte da civilização ocidental.
Kehl (2008), apoiada na linguística de Saussure, define a linguagem como a estrutura
genérica que comporta todas as línguas. A língua, por sua vez, é definida como a herança
simbólica, herdada no nascimento de forma imposta; pois não implica numa escolha, sendo,
portanto, uma forma rigorosa de manifestação da lei. Como seres de linguagem, é pela fala
que o ser humano constrói e inscreve a sua história, cuja escrita será lida posteriormente com
fins de compreensão e embasamento de fenômenos. A história das mulheres é marcada muito
menos pela sua fala do que pelo que delas falam. Nascer mulher, em uma cultura, ou numa
outra, implica herdar uma língua, para além da língua do código alfabético: a língua através
da qual se inscreve o ser mulher. Os deslocamentos políticos e sociais sofridos ao longo da
história trazem os contextos dentro dos quais ocorrem os deslocamentos de pensamentos e
estruturações subjetivas acerca das mulheres.
A começar pela Grécia, temos uma visão maravilhada e incoerente das mulheres. O
conto de Sófocles (2017) ilustra:
Creonte: E tu, tu que baixas a cabeça,
admites ou negas que procedeste assim?
Antígona: Admito, não nego nada.
Creonte: Tu, podes retirar-te para onde queres,
De acusações condenatórias estás livre.
E tu, declara sem rodeios, sinteticamente.
Sabias que eu tinha proibido essa cerimônia?
Antígona: Sabia. Como poderia ignorá-lo? Falaste abertamente.
....
Creonte: Esta já se mostrou insolente
Ao transgredir as leis estabelecidas.
20

Insolência renovada é orgulhar-se


E rir, cometida a transgressão.
Agora, entretanto, homem não serei eu,
Homem será ela,
Se permanecer impune tamanho atrevimento.
Ainda que seja filha de minha irmã, ainda que
Me seja a mais próxima dos que rendem.
Antígona: Estou nas tuas mãos. Mata-me. Que mais queres?
....
Creonte: muito bem, se precisas amar os mortos,
Incorpora-te a eles, ama-os. Mas, em minha vida, não permitirei
Que uma mulher governe (p. 133-139).

Na mitologia encontramos guerreiras e líderes como Antígona, figura que se destaca


na sua luta por um ideal e sua perseverança que inclusive lhe custa a própria vida. Na obra
mitológica sua força contrasta com a força de Creonte, quem interpreta como afronta sua
atitude de ir contra as leis e na ofensa de ser contrariado por uma mulher, termina por decretar
morte a Antígona mesmo ela sendo membro de sua família. Na vida real, mulheres que
fizeram resistência na Grécia não ficaram na história em destaque. Os dados que encontramos
com facilidade é que as mulheres gregas viviam isoladas num local designado Gineceu,
privadas de vida profissional e social. Algumas resistiam e se descatavam em funções sociais,
mas não era fácil resistir a uma forma social opressora em relação a elas, e isto fica claro na
dificuldade em se encontrar registros com nomes de mulheres que ali se destacaram por
próprio mérito.
No século V a.C. na Grécia antiga, predominava uma cultura patriarcal e altamente
discriminatória. Em Atenas, a polis era caracterizada como um local de presença
exclusivamente masculina: apenas os homens tinham direito de participar das assembléias nas
quais as principais decisões sobre a nação aconteciam: as mulheres eram excluídas de toda
participação política. Todos os funcionários públicos da polis eram homens (Cartledge et. al.,
2009).
As mulheres permaneciam em casa, ocupadas com costura, tarefas domésticas e
funções rotineiras como lavar a estátua de culto, moer o milho para os bolos rituais
oferecidos. Elas permaneciam no lugar de acessórios importantes e necessários. Sua educação
era basicamente aprender a cozinhar e a tecer. Nas classes menos favorecidas, as mulheres
saíam de casa, porque era necessário que elas ajudassem no sustento da família.
Não menos restrita era sua vida sexual: as mulheres eram primeiramente consideradas
propriedades do pai e depois do marido (Pinafi, 2007). Podemos pensar nas gregas antigas
como objetos, que tinham suas vidas decididas da forma que estes seus tutores assim
estabeleciam. Os casamentos eram estabelecidos por bons negócios; jamais a mulher poderia
21

escolher o seu marido. Uma vez casada, cabia à mulher obedecer às ordens do marido, ele a
orientava sobre os cuidados com o lar. Ela não tinha autonomia para nada, era submissa ao
extremo, inclusive à função de procriar: dar filhos ao marido. Estes filhos iriam garantir o
patrimônio da família e dariam continuidade à ordem cívica. Não existia relação afetuosa
entre o casal de pais.
De acordo com Boheringer & Caciagli (2015), na antiguidade grega não havia
distinção entre os gêneros, mas sim divisão entre aqueles que eram livres e aqueles que não
eram; entre os que podiam dispor do próprio corpo e os que o próprio corpo pertencia a um
mestre. As identidades “homem” e “mulher” apenas existiam sob o estatuto social. Os
critérios que envolviam o desejo por um corpo não incluíam o sexo do mesmo. Enquanto os
homens casavam-se por volta dos trinta anos, as mulheres por volta dos dezoito, já que os
atributos necessários ao matrimônio a estas e àqueles eram completamente diferentes: os deles
relacionados à posição social, enquanto os delas à maternidade e dedicação ao lar. Os autores
dizem ainda que tanto traições conjugais quanto relações sexuais com pessoas do mesmo
sexo, nesta sociedade, quando praticados por mulheres eram condenados e reprimidos com
muito mais força do que quando praticados por homens.
Não existia a concepção de vulnerabilidade na Grécia antiga, ou seja, não existia o
pensamento de que um indivíduo pode estar numa condição mais frágil do ponto de vista
social, condição mais propícia à desproteção, à desvalia. O casamento, que era arranjado pela
família, autorizava diversos comportamentos abusivos do homem perante a mulher, o que
hoje seria recriminado como estupro. A sedução era considerada um ataque grave por parte da
mulher, sendo ela aqui considerada culpada. A presença da sexualidade colocava a sedução
como um ato abominável, já que, desta forma, o sexo poderia servir para algo diferente do que
a reprodução.
Beauvoir (2016a) ressalta que a valorização da mulher na Grécia não passou de algo
utópico, pois não saiu do âmbito dos mitos; elas não foram para o homem o seu semelhante.
Enquanto Andrômaca e Hécuba têm uma aparição na literatura mundial de importância
exacerbada, a mulher grega de carne e osso permanece escondida à sombra do Gineceu.
Nos livros, a cultura Grega costuma ser descrita desta forma, estratificada, tendo as
mulheres um papel absolutamente secundário em todos os âmbitos: pessoais e de trabalho.
Contudo, em pesquisas feitas em sites podemos ver que a resistência sempre operou: nem
todas estavam dentro deste padrão de submissão e serventia. Aparecem mulheres encontrando
saídas diferentes para situarem-se em locais mais interessantes na sociedade. Por exemplo, as
heteras eram mulheres de Atenas que ofereciam prazeres intelectuais e sexuais aos homens.
22

Elas queriam chamar atenção não só pela beleza, mas pelo gosto erudito que cultivavam para
conversar com os homens. Nesta época, era comum os homens buscarem relações
extraconjugais para preencher lacunas que as esposas comumente deixavam – ou
propositalmente, pois não era colocado em discurso o prazer sexual dentro do casamento.
Estes eram uniões arranjadas com fins de gerar filhos legítimos para a continuação do estado.
As heteras, por estarem fora das famílias consideradas legítimas, não poderiam gerar
filhos legítimos, tampouco casarem-se. Elas eram adeptas do amor livre, mulheres que
ofereciam envolvimento sexual, afetivo, intelectual; eram mais descoladas e podiam servir de
fonte de inspiração. Estavam envolvidas com homens ricos e podiam construir
relacionamentos relativamente estáveis. Em troca, recebiam presentes; e não pagamentos
como as prostitutas, as pórnai. Também há indícios de que trabalhavam no comércio, em
bordados, ou atividades de cuidado como babás. As heteras eram as mulheres livres da época.
Aspásia de Mileto, por exemplo, foi uma hetera que influenciou na vida política de Péricles,
um dos estadistas mais importantes (Urbinatti, 2019).
Na Roma antiga, o adultério, ainda que não saibamos se existia um termo para o
definir, era pensado, de acordo com Pacheco (1017), como uma relação sexual entre uma
mulher casada e um homem que não era o seu marido. O alvo da lei contra as relações
extraconjugais eram claramente as mulheres, já que a lei não incriminava a traição efetivada
pelo homem casado. Uma cultura ambígua, de uma moralidade imoral, que colocava o sexo
masculino acima da lei. Atos extremamente abusivos e repressivos eram praticados para com
mulheres romanas. Por exemplo, existiam as chamadas “virgens vestais”, que deveriam ser
virgens e cuidar do templo onde ficava a Deusa Vesta. Se seu voto de castidade não fosse
cumprido, eram assassinadas.
Já próximos da idade média temos, do outro lado do Mediterrâneo, no Egito, uma
mulher que se destacou por mérito próprio chamada Hipácia, quem, infelizmente foi acusada
de bruxaria e morta pela Santa Inquisição. Seu nome é citado como a única mulher cientista
da antiguidade medieval, até as primeiras centenas dos tempos modernos (Chassot, 2004).
Tratava-se de uma intelectual, professora carismática, influenciadora de pessoas. Vivia na
Alexandria, capital egípcia, centro da cultura grega da época. Tornou-se expoente do
pensamento filosófico neoplatônico. Suas realizações em literatura e ciência ultrapassaram
todos os teóricos da época. Contudo, isto era uma afronta de uma moça pagã, contra os
princípios religiosos severos de acordo com os quais as moças deveriam ter o saber sobre
cuidados com o lar, marido e filhos; nunca sobre a ciência.
23

Durante a Europa do século XVII, do início do mercantilismo, na nova família


burguesa o marido em casa representava o Estado, a nível hierárquico, de forma que a mulher
e os filhos eram seus subordinados, disciplinados pelo chefe (Federici, 2017). Ainda que
muitas vezes a mulher trabalhasse, era o marido quem recebia o salário da mulher. A sujeição
aos homens era aqui inevitável, não só dos trabalhos, como dos corpos das mulheres; elas
estão próximas a condição de escravas.
Outros países foram escolhidos para compor o trabalho, representando a cultura do
ocidente, são eles: a França, Espanha, Alemanha, Itália, Rússia, Inglaterra e os Estados
Unidos; com destaque para a França, devido a seu grande e rico arsenal cultural, além de ser
sede da psicanálise que embasa esta tese: a orientação lacaniana. O critério de escolha foram
países em cuja história é possível encontrar registros relevantes, tanto sobre a discriminação
histórica das mulheres, quanto sobre marcas importantes que mulheres deixaram na
construção de seus países. A França ganha um grande destaque para contextualizar a história
antiga, assim como Grécia e Roma, e também ganha destaque devido a importantes
intelectuais que ali viveram, como Beauvoir e Foucault. Tais autores foram também
pesquisadores da antiguidade greco-romana, e nos auxiliaram com informações sobre estes
países. Já nos demais países foi realizada uma breve pesquisa histórica voltada principalmente
para o papel das mulheres na história de tais países, e uma pesquisa de números no que tange
à violência e à discriminação contra as mulheres.
Foram pesquisados, nestes países mencionados, os seguintes dados: participações das
mulheres nas construções de seus países, bem como movimentos de resistência à
discriminação para com elas; a conquista do sufrágio universal, marcando o ano em que ele
ocorreu, como um dado importante sobre a efetivação de um direito à participação das
mulheres na política; dados sobre a inserção e aceitação das mulheres no mercado de trabalho,
os quais são obtidos pela quantidade de mulheres economicamente ativas, bem como pela
equidade ou disparidade salarial entre os sexos; a possibilidade de efetivar o aborto de forma
legal, bem como o ano desta autorização, como um marco que coloca às mulheres à
responsabilidade sobre o próprio corpo, bem como retira do estado o controle sobre a
natalidade.
Também foram pesquisados: dados sobre políticas públicas e legislativas no combate à
violência contra as mulheres; números brutos de feminicídios nestes países em anos atuais,
como forma de comprovar a existência da violência praticada contra as mulheres, bem como a
gravidade letal da mesma. Partimos da hipótese de que há estreita relação entre a
discriminação das mulheres e a violência praticada contra elas, sendo que a discriminação é
24

vista principalmente na exclusão que elas sofrem das vidas política e social-econômica. Os
dados foram pesquisados de forma qualitativa, tendo cada país uma ou mais marcas em
relação a tais fatores mencionados.
Partimos então para a França, a qual foi ocupada pelos romanos ainda no calendário
antes de Cristo, por volta do ano de número cem. Este país, que também apresenta registros de
civilizações muito precocemente desenvolvidas, aparece com seus principais registros
históricos nos primeiros mil e quinhentos anos depois de Cristo, marcados por um longo
período de absolutismo, no qual nos vale destacar que todos os reis eram homens. Eram
apenas eles que se envolviam nas decisões sobre os destinos da nação (Caro, 2012). Até que
em 1429 encontramos Joana D’Arc (1412-1431), pessoa que entrou para a história com sua
participação decisiva na vitória da França durante a Guerra dos Cem Anos, cujo
acontecimento fora na Idade Média, entre os anos de 1337 e 1453, com duração de 116 anos.
Joana apresenta o mesmo espírito de guerreira que Antígona, capaz de lutar por um
ideal mesmo que este lhe custe a própria vida. Mas Joana era pessoa, e não lenda; e ainda que
tenha sido reconhecida como presença decisiva na Guerra dos Cem Anos também foi
considerada bruxa, condenada à morte na fogueira por heresia.
Joana só foi autorizada a efetuar sua participação militante após ter sido interrogada e
ter sua virgindade comprovada mais de uma vez: tamanha era a desconfiança sobre esta
mulher, que dizia escutar vozes de que deveria salvar a França. Anos após ter sido morta, a
igreja reviu sua postura e reconsiderou como correta a atitude de Joana. Mas apenas no século
XX ela pôde ser beatificada e tornou-se a santa padroeira da França. Também é conhecida
como a Donzela de Orléans, cidade na qual venceu a batalha.
A França, país que assim como a Grécia representa o exercício do direito ao poder sob
uma aparente universalidade, traz a ideologia do sufrágio universal em 1792. Contudo, e para
nossa surpresa, ele só coube efetivamente à metade da população: as mulheres foram
marginalizadas. O direito ao voto a elas na França só veio em 1944, um dos últimos países da
Europa, embora algumas mulheres já estivessem reivindicando este direito desde a Revolução
Francesa (1789-1799).
O século XVIII, na França, também é marcado pelo pensamento e obra de Rousseau,
cujas ideias são de que as características de doçura, passividade e obediência da mulher lhe
eram destinadas a agradar ao homem para que ele, por conseguinte, fizesse um bom uso de
suas potências no governo da civilização. Era uma estratificação das relações que não ajudava
as mulheres que se identificavam com ideais de poder e autonomia. Ainda discriminava as
25

mulheres como seres frágeis do ponto de vista intelectual e emocional, despreparadas para
cuidar da própria vida.
Além da já mencionada Joana D’Arc, outra figura feminina marcante na história da
França é Simone de Beauvoir (1908-1986), filósofa existencialista, socialista e ativista
política, que só foi denominar-se feminista no final de sua vida. Ela viveu em meados do
século XX, após a Revolução Francesa e o advento da razão, trazendo concepções de
igualdade econômica e política para as mulheres, com ênfase para a discriminação, desprezo e
exigência excessiva para com as mulheres.
Em 1949, Beauvoir (2016a, 2016b) traz um estudo minucioso sobre a mulher e sua
imagem social. Sua grande contribuição foi uma elucidação de que não há essência feminina,
e nem masculina: ser mulher ou ser homem são construções singulares, tecidas ao longo do
tempo, das relações humanas, dos encontros; ou seja, a existência precede a essência.
Mulheres e homens encontram a própria liberdade e com ela fazem uns para os outros as
possíveis versões de si mesmos.
Em sua grande obra, O segundo sexo (2016a, 2016b), ela realiza uma revisão histórica
sobre as mulheres desde a antiguidade, e ressalta que nem sempre a mulher foi vista como
submissa. No Egito antigo, de acordo com a autora, elas adquiriam mais prestigio tornando-se
esposas: sua condição social foi ali mais favorecida. A mulher surge como aliada e
complementar do homem: “sua magia é tão pouco hostil que o próprio medo do incesto é
vencido e que não se hesita em confundir a irmã com a esposa” (Beauvoir 2016a, p. 122).
Tratava-se de um país onde os direitos não eram tão desiguais na antiguidade, haja vista
Cleópatra, a polêmica rainha que conquistou generais em busca de suas ambições políticas já
antes de Cristo. Lá a mulher casava-se livremente, inclusive quando viúva. Embora os
homens praticassem a poligamia, a mulher legítima era apenas uma.
Contudo, a grande contribuição da autora foi ressaltar o que é escamoteado pela
sociedade; que é a visão da mulher como submissa ao homem, inferior a ele, desmerecedora,
e até repugnante em alguns momentos. Durante a Idade Média, por exemplo, era comum a
concepção do corpo da mulher como algo inferior e deplorável, capaz de propagar doenças.
Os leprosos, pessoas acometidas pela infecção de lepra ou hanseníase, eram vistos como
filhos dos homens que tiveram relação com mulheres no período da menstruação. Ou ainda,
mulheres menstruadas, ou que tiveram relações sexuais fogosas, por vezes, eram acusadas de
envenenar seus filhos na amamentação com leite estragado.
Já no século XX, a autora francesa se volta para questões relacionadas à cobrança da
mulher para com a maternidade. Não era discutido nem colocado em pauta como a tarefa da
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gravidez e as primeiras práticas maternas com o bebê são algo extremamente difícil e
desgastante para a mulher: sugam-lhe toda a energia, e não há o devido acolhimento à mulher
que passa por isso. A autora ressalta que o corpo da mulher perde cálcio durante o período
menstrual e gravidez, afetando o sistema nervoso. Isto é causa de emotividade e instabilidade.
Além de tudo isto ainda há uma enorme discriminação e preconceito com a mulher que opta
por não ser mãe.
O aleitamento é também uma servidão esgotante; um conjunto de fatores – o
principal dos quais é, sem dúvida, o aparecimento de um hormônio, a progestina – traz às
glândulas mamárias a secreção do leite; a ocorrência é dolorosa e é acompanhada, com
frequência, de febres, e é em detrimento de seu próprio vigor que a mãe alimenta o recém-
nascido. (Beauvoir, 2016a, p. 58).

Cabe às mulheres se afirmarem numa relação de reciprocidade com o homem, para


que sua idade de ouro possa ser realmente efetivada e saia do plano dos mitos. A autora
ressalta a frase de Pitágoras a fim de ilustrar como a figura da mulher enquanto sujeito pode
ser assustadora numa sociedade patriarcal, a qual coloca o homem como a figura de poder:
“Há um princípio bom que criou a ordem, a luz, o homem; e um princípio mau que criou o
caos, as trevas e a mulher” (Pitágoras, citado por Beauvoir, 2016a, p. 116). A figura das
mulheres, vistas como submissas, destituídas de poder, pode gerar sentimentos de aversão,
como a misoginia.
Uma vez que as mulheres foram inscritas como o outro sexo de acordo com a igreja,
por si só elas podem designar a alteridade, a diferença. Este estereótipo de “outro”
costumeiramente é utilizado para estigmatizar grupos tidos como inferiores na hierarquia.
Aqui as mulheres atacam a concepção do padrão que é tomado como o masculino. A autora
ainda ressalta que os homens haviam designado as mulheres como o outro da sociedade junto
à aplicação de uma falsa áurea de mistério sobre elas; o que justifica o estereótipo da mulher
como um ser cuja essência é impossível de ser compreendida.
Não podemos colocar como responsabilidade das mulheres desconstruírem esta
imagem negativa, mas sim colocar como uma responsabilidade social o sofrimento advindo
dos estereótipos de gênero, tais como os que incidem sobre as mulheres, muitas vezes
reducionistas, como a dualidade entre ser dona de casa, a mulher casada, ou ser a cortesã que
é mulher da rua e, portanto, de todos. A autora francesa constrói uma metáfora interessante,
que coloca à reflexão tais criações de estereótipos quando diz: “Elas não são anjos nem
demônios, nem esfinges, são seres humanos que costumes imbecis reduziram a uma
semiescravidão” (Beauvoir, 2016a, p. 315).
27

Outro autor que se destaca na França e traz considerações importantes para uma
problematização acerca do controle da sexualidade como forma de poder é Michel Foucault.
O autor viveu durante o século XX e pôde publicar livros, dos quais aqui destaco Microfísica
do Poder (1979) e História da sexualidade (2014, 2018, 2019) pela possibilidade de se pensar
o poder como algo que é criado e fluido; e a sexualidade como uma manifestação do humano,
não necessariamente submissa a determinadas imposições sociais. Foucault era homossexual,
e faz parte da mesma luta das mulheres por liberdade sexual e contra o controle dos corpos.
São grupos que podem interferir diretamente no controle de natalidade, já que a mulher é
quem engravida e pode conseguir controlar se ela quer a gestação ou não. Já os homossexuais
podem ser vistos como quem desvincula o sexo da reprodução, bem como quem quebra certas
normas estratificadas em torno do modelo de família. Acabam por serem dois grupos
sensíveis a políticas e práticas de controle de corpos, os quais sofrem diretamente a opressão
de controles sociais.
Na trilogia História da sexualidade, Foucault (2014, 2018, 2019) ressalta que a
sexualidade foi confiscada durante a era vitoriana do século XIX– era da ascensão da família
burguesa patriarcal, pós-idade média, que deu início à idade moderna – e resumiu-se à função
de reprodução dentro das casas. O sexo foi silenciado, posto em segredo, submetido à norma
de procriação. O autor traz uma reflexão sobre o porquê de não se falar em sexo livremente,
encontrando alguma conclusão de que, assim como outras dimensões humanas, o sexo e a
sexualidade foram submetidos a discursos de poder, os quais o colocaram a serviço muito
mais de uma conveniência e uma normalização social, do que a serviço de uma construção
pessoal, enquanto ser humano. Era uma cientifização e biologização a serviço da reprodução
como um instrumento de opressão da subjetividade inerente à sexualidade. Contudo, colocar o
sexo em segredo é uma forma de valorizá-lo e não será sem consequências; o segredo pode
promover uma multiplicação de pensamentos em obscuridade.
Pode-se pensar que foi o recurso possível à sociedade da época para se proteger contra
os perigos diversos associados ao sexo; não apenas doenças, mas também o “perigo” inerente
à liberdade sexual das mulheres e homossexuais. As mulheres podem decidir sobre a vida que
cresce em seu corpo e os homossexuais podem ser vistos como quem desvincula o sexo da
reprodução, bem como quem quebra certas normas estratificadas em torno do modelo de
família. São normas a serviço de forças de poder, formuladas dentro de discursos que definem
o correto, até serem desobedecidas e questionadas. Mas, dentro do que se pensa como o
homem comum, no sentido da humanidade e não do sexo masculino, o homem não se
28

reconhece como sujeito de desejo? Ou seja, sujeito permitido de se autorizar em relação ao


seu desejo?
Esta reflexão faz pensar em formas de poder sobre as mulheres sendo exercidas de
maneira brutal, nos feminicídios. São mortas as mulheres que podem aparentar alguma
espécie de perigo; biológico, moral, financeiro. Sem falar em uma imaginaria superioridade
do sexo masculino que “autorizaria” a matar o inferior feminino; tal como no Nazismo foram
assassinados os indivíduos considerados de sangue inferior, num fenômeno mortífero de
poder sobre a raça.
Foucault (2018), em História da Sexualidade, também traz registros da Grécia antiga
na qual a exclusão das mulheres em relação às funções que dirigiam a nação, suas leis, seu
destino; era muito grande. Ele relembra Aristóteles (Aristóteles, 384 a.c. – 322 a.c.), quem
colocou a noção de felicidade enquanto associada a ideia de um bem; a noção de qual seria o
Bem é posta em jogo, atrelada a fazer o bem à sociedade. O sexo masculino enquanto ativo,
viril, deveria ir em busca de seu Bem; enquanto a mulher é uma espécie de coadjuvante que
pode ajudá-lo a encontrar felicidade no seu Bem. A esposa do marido seria mais um artefato a
ser governado por este, dentre outros.
Um ponto a ser destacado a respeito do matrimônio em tempos de Grécia e Roma
antigas, trazido pelo autor francês, é a definição do casamento enquanto um ato privado, no
qual a tutela da mulher até então exercida pelo pai era transferida ao marido em meio a uma
cerimônia com efeitos de direito (havia junção de bens, a transmissão do nome, da herança, a
constituição de herdeiros), embora o ato não fosse jurídico; não tinha intervenção dos poderes
públicos, o casamento era sem ligação com a organização política e social. Este ponto é
fundamental para se pensar na dificuldade ainda atual de se intervir na violência doméstica; é
comum ouvir dizer que “não se sabe o que a mulher fez para estar apanhando”, ou que “em
briga de marido de mulher não se mete a colher”. Foi necessária uma grande mobilização
social para possibilitar que o privado pode vir a ser público, e não apenas pode como deve vir
a ser público quando qualquer força de opressão, coerção, ou violência opera.
Foucault (2014), em História da sexualidade, traz contribuições fundamentais à
história das mulheres em meio a conquistas por liberdade ao falar sobre sexualidade e sobre o
casamento, desde a antiguidade. Ele mostra a mudança na concepção de casamento, enquanto
forma de vida, a qual se inicia como um arranjo, tanto na idade antiga quanto na moderna, e
culmina na possibilidade de uma união com escolha e consentimento de duas partes, cuja
desigualdade é progressivamente quebrada.
29

Foucault e Beauvoir entram como grandes expoentes do pensamento inovador francês


em relação a posição social de grupos oprimidos, como mulheres e homossexuais. Berço da
revolução que derrubou a monarquia e tudo o que ela simboliza em termos de abuso de poder
e desigualdade, a França é representada no século XX por grandes intelectuais que
questionaram diretamente formas estanques de poder como se este fosse um instrumento de
opressão, e não de organização.
Ainda em Foucault, temos a obra Microfísica do Poder (1979), obra na qual ele traz
uma concepção de poder enquanto uma rede produtiva que culmina num instrumento de
fabricação do indivíduo – uma vez que o poder opera causando efeitos de verdade; e não de
destruição, como acontece em sistemas de opressão. Ou seja, o indivíduo não pode ser
anulado pelo poder, mas sim constituído por ele, em meio a seus efeitos: “todo saber tem sua
gênese em relações de poder” (Foucault, 1979, p. XXIII). São as relações de poder que
produzem efeitos de verdade em discursos que não são, em si, nem verdadeiros nem falsos.
O mesmo autor em As palavras e as coisas (1966), ao falar sobre a Formação do Valor
diz que “só existe troca se cada uma das duas partes reconhecer um valor no que a outra
possui” (Foucault, 1966, p. 253). Esta obra contribui a uma abertura na forma de interpretação
de uma narrativa ao dar importância às noções de signo e significado, as quais mostram que as
formas de discursos estão permeadas por valores simbólicos distintos entre culturas e capazes
de serem problematizados, uma vez que um símbolo nunca será colado em apenas um
significado, mas sim abre a uma gama de possíveis significados atrelados a diferentes
culturas, diferentes contextos, diferentes cadeias de pensamento. Esta obra é fundamental para
a compreensão do discurso enquanto criação cultural. Não é possível, por exemplo, definir o
significado de “mulher” enquanto signo senão dentro de uma cadeia discursiva colocada por
uma determinada cultura; a qual pode ser contraposta com o significado colocado por uma
outra cadeia discursiva criada por diferentes pessoas, de uma outra cultura. A contribuição do
autor é fundamental para a derrubada de ilusões de poderes absolutos ou formas estanques de
pensamento acerca de relações de poder.
Voltando-nos não mais para a França do século XX de Beauvoir e Foucault, mas para
a França atual, é possível recolher dados que vão na contramão da cultura feminista e
libertária; o que nos leva a questionar o porquê da violência contra as mulheres, dentro de
uma cultura que se propõe igualitária. O jornal BBC News publica reportagem em 2019
alertando a população para casos de feminicídio na França, os quais repercutem por toda a
Europa, expandindo a preocupação. A reportagem ressalta o fato de que são crimes globais, os
quais não escolhem fronteiras, classe social, tampouco idade das vítimas: no mesmo dia foram
30

mortas uma mulher de vinte e um anos e uma senhora de noventa e dois (BBC News, 2019).
Até setembro deste ano haviam sido mortas cem mulheres, vítimas de feminicídios. O número
de mulheres mortas pelos maridos é bem maior do que quando o assassinato é cometido por
parte delas, contra eles. Além disto, a França é o país com maior número de feminicídios da
União Europeia, segundo dados deste ano – embora suas taxas ainda sejam muito menores do
que as do Brasil.
O presidente Emmanuel Macron, em reação a estes dados, lançou uma campanha
pública, na qual um canal de atendimento telefônico fica disponível para escutar as vítimas de
violência doméstica e tomar as devidas providências, com intuito de prevenção de
feminicídios. Além disto, o primeiro ministro francês, Edouard Philippe, prometeu doação de
cinco milhões de euros para o combate ao feminicídio, e também prometeu melhorar a
capacidade de suporte dos abrigos que recebem as vítimas de violência doméstica, e ainda as
condições das delegacias, nas quais as queixas das mulheres são tratadas. Campanhas de
políticas públicas com adolescentes, discutindo sobre aspectos que definem um
relacionamento amoroso como saudável, são as medidas mais mencionadas pelos movimentos
de apoio às mulheres, como eficazes na prevenção.
Já a Espanha é relatada na mesma reportagem como exemplo acerca de medidas
protetoras das mulheres, contra as violências de gênero. Existe uma lei no país, em vigor
desde 2004, a qual estabeleceu uma rede de tribunais especializados em violência doméstica,
a qual também destina verbas a apoio de sobreviventes. Contudo, a situação do país ainda
mostra dados preocupantes de feminicídio, embora bem menores que os da França. A
reportagem mostra que o número de mulheres mortas por este crime em 2019 foi maior que o
dobro do número de 2018.
Na Alemanha, as mulheres ganharam um papel diferenciado após a primeira guerra
mundial, pois com a morte de muitos homens elas ficaram sendo maioria, e foram
responsáveis pela reconstrução do país. Este foi um dos primeiros países em que o sufrágio
feminino foi conquistado: desde 1918 as mulheres têm direito de voto ativo e passivo, ou seja,
podem votar e serem votadas (Agenda Berlim, 2018). – Vale ressaltar que o primeiro país do
mundo a conceder o direito ao voto às mulheres foi a Nova Zelândia. Aconteceu na Alemanha
um movimento feminista mais sentimental, o qual reclamava para as mulheres o direito de
ajudar o país; tinha um caráter nacionalista (Beauvoir, 2016a).
O país alemão avança nas conquistas no ano de 1949, quando então é promulgada a
declaração que coloca homens e mulheres iguais perante a lei. A mesma reportagem (Agenda
31

Berlim, 2018) ainda destaca que a Alemanha é colocada em décimo primeiro lugar entre os
melhores países para ser mulher, ranking feito pela revista Forbes em 2016.
Contudo, as mulheres alemãs não escaparam dos períodos mais opressores de suas
histórias, como o período nazista, o qual as confinou aos papéis de mãe e esposa, excluindo-as
das decisões sociais. E não ficaram livres das torturas cometidas na época: mulheres que
engravidavam em ocasiões consideradas inadequadas, por exemplo, eram cremadas vivas; o
que fazia com que médicas se mobilizassem para ajudar mulheres a interromperem sua
gravidez (Ansede, 2018).
Batista (2018), em reportagem para o jornal Folha de Pernambuco, destaca como
relevantes as práticas públicas que a Alemanha vem tomando para lidar com o problema da
violência doméstica e prevenção de feminicídios. De acordo com a reportagem, em 2017, na
Alemanha, 455 pessoas foram mortas pelos seus parceiros, de forma intencional ou não.
Destas, 364 eram mulheres. A autora destaca serem crimes que não escolhem as
especificidades das vítimas; atingem todas as idades e setores socioeconômicos: quase todas
as mulheres alemãs, entre dezesseis e oitenta e cinco anos, já sofreu algum tipo de violência
dentro de um relacionamento: física ou sexual. Em 1976 foi criado o primeiro abrigo
autônomo feminista no país. Em 1980 os abrigos então existentes se uniram criando uma rede
e uma organização: Centro de Informações de Abrigos para Mulheres, com base no simples
princípio de que mulheres ajudam mulheres. Embora tais abrigos tenham apoio de parte
significativa das mulheres, ainda existam grupos que dizem que é dentro das famílias que as
mulheres estão protegidas, ignorando crimes domésticos.
A Alemanha, desta forma, hoje contabiliza cerca de trezentos e cinquenta abrigos para
mulheres, voltados para atender as vítimas de violência doméstica e seus filhos, somando em
média seis mil vagas. Além disso, existem em torno de setecentos e cinquenta centros
especializados em aconselhamentos para mulheres vítimas de violência; somados a um canal
de atendimento telefônico que as aconselha em quinze idiomas diferentes, vinte e quatro horas
por dia.
O país continua determinado a investir nas políticas públicas de combate a violência
contra as mulheres. Em 2018, ratificou a Convenção do Conselho Europeu, no que tange a
esta temática. Tal convenção propõe proteção para todas as mulheres, de todas as idades,
vítimas de todos os tipos de violência. Este objetivo envolve investimento financeiro nos
programas já existentes, de forma a aumentar o número de vagas; bem como uma cooperação
entre a sociedade civil e o governo, envolvidos no combate à violência contra as mulheres.
32

Voltando-nos agora à Itália, país cede do Império Romano, junto à Grécia, faz parte da
região com registros mais antigos sobre a civilização ocidental. Este país tornou-se berço do
Renascimento, movimento cultural fundamental para o crescimento do pensamento
intelectual, e valorização da razão; embora a religião católica tenha sempre sido fortemente
presente na cultura do país.
Sobre a história de resistência das mulheres italianas, Beauvoir (2016a) ressalta que o
regime político fascista de Mussolini, predominante nos anos vinte do século passado, atrasou
fortemente a luta das mulheres por emancipação neste país. Foi um regime aliado da igreja
católica, com uma valorização da família que aprisionava duplamente as mulheres: ao marido
e ao poder público. Embora diversos países tenham passado por movimentos conservadores
autoritários, os quais tendem a ser rígidos em relação ao comportamento da mulher, o regime
comandado por Mussolini é considerado um dos mais marcantes em relação à opressão dos
governantes, e o seu caráter conservador esteve no desencontro da liberdade sexual, política e
econômica buscada pelas mulheres da resistência.
Atualmente, encontram-se na Itália, assim como na maioria dos países europeus,
movimentos feministas organizando lutas a favor da emancipação mulher e igualdade de
gênero. Em reportagem da ANSA – Agência italiana de notícias – temos conhecimento de que
o dia oito de março do ano de 2018 foi marcado por passeata feminista denominada “Non Una
Di Meno” (nem uma a menos) que protestava a favor da igualdade de gênero, contra o
feminicídio, a cultura patriarcal, e a cultura do assédio e abuso sexual (ANSA, 2018).
Introduzindo mais um país e sua forma de organização cultural, que nos traz dados
relevantes sobre a história das mulheres, temos a Rússia. Situada geograficamente entre o
ocidente e o oriente, ela absorve grande parte da cultura ocidental, e tem uma história marcada
por grandes contribuições das mulheres. Este país trás no marco de sua história um forte
movimento feminista ao final do século XIX, aliado ao movimento político revolucionário
predominante no país nesta época (Beauvoir, 2016a). As mulheres têm uma participação
significativa na guerra Russo-japonesa do início do século XX, envolvendo-se em atividades
predominantemente masculinas como metalurgia, indústria e paraquedismo; participação esta
que ganha reconhecimento e resulta na criação de um grupo parlamentar pelos direitos da
mulher; o qual, contudo, não culminou em resultados efetivos na luta pela igualdade de
gênero. Foi na revolução, com Lênin, que as mulheres russas conquistam emancipação, ele
alinhou a luta das mulheres à luta dos trabalhadores, atribuindo a ambos igualdade política e
igualdade econômica.
33

As mulheres russas tiveram um papel fundamental, com seus talentos criativos, na


construção da sociedade socialista. Nomes como Liubuv Popova e Varvara Stepanov tiveram
destaque no início do século XX enquanto artistas de vanguarda. Suas obras culminaram por
afetar a cultura do país dando origem à versão russa do design industrial chamado de
Produtivismo. Este foi um movimento dos anos vinte do século passado, no qual os artistas
participavam ativamente da economia da noção, desenhando itens domésticos, têxteis, e
também utensílios para a propaganda da revolução russa. A ideia era inaugurar um novo
mundo, com seus representantes ilustrativos. Todo este movimento foi suprimido com a
virada stalinista ao final dos anos vinte, devido a sua política radical e opressora (Willette,
2017).
Apesar de não ser reconhecida por abraçar causas das mulheres, o aborto foi
descriminalizado na Rússia em 1920, sendo permitido em todas as circunstâncias, quando
realizado até a décima segunda semana da gravidez (Reif, 2018). O país, portanto, supera o
Brasil em dos quesitos mais significativos que opera sobre o corpo das mulheres: o direito
reprodutivo. Embora o país seja laico, grupos religiosos tentam se articular para modificar
esta legislação no país, os quais, embora ganhem representatividade, não conseguiram
derrubar a lei.
No cenário da mulher russa trabalhadora, as lutas por igualdade de gênero ainda não
tiveram muito sucesso. A legislação do país proíbe o trabalho às mulheres em cerca de
quatrocentos e cinquenta ocupações e quarenta ramos da indústria (Reif, 2018). São trabalhos
considerados árduos, nocivos à saúde das mulheres, principalmente no que tange à saúde
reprodutiva; tais como mergulhadoras profissionais, paraquedistas e motoristas de ônibus.
Embora o país conte com o Comitê para a Eliminação da Discriminação contra Mulheres, as
reivindicações contra estas legislações trabalhistas ainda não obtiveram resultado.
Além disto, o país é notadamente atrasado em relação às políticas públicas de combate
à violência contra as mulheres. Em fevereiro de 2017, o presidente Vladimir Putin sancionou
uma lei que despenaliza a violência doméstica e ainda permite que os maridos batam em suas
mulheres, desde que não deixem marcas ou quebrem ossos. Caso o agressor descumpra a lei,
a pena se resume, assustadoramente, apenas a multa ou trabalho voluntário; a não ser no caso
de reincidência de um ano, ocasião em que o agressor pode ser preso, desde que a vítima
apresente as evidências da violência. Com esta frágil legislação sobre proteção à violência
contra as mulheres, o país ocupa o quarto lugar mundial no ranking de feminicídio (Reif,
2018).
34

Voltando-nos para a história da Inglaterra, encontramos registros de que foi ali que o
movimento sufragista começou, e, junto a ele, importantes reflexões sobre a emancipação das
mulheres. A primeira onda de movimento feminista mundial ocorreu na transição do século
XIX para o XX, e a Inglaterra foi um dos principais países expoentes – embora as raízes
políticas do feminismo possam ser encontradas nas decorrências da revolução francesa, que
ocorreu no final do século XVIII, esta revolução não surtiu efeito direto nos direitos das
mulheres. De acordo com Marques e Xavier (2018), muitas vezes as feministas eram
hostilizadas e ridicularizadas – o que acontece até hoje no Brasil – e tais reações enfraqueciam
suas vozes. Consequentemente, algumas mulheres expoentes desta primeira onda apelaram
para atos violentos, os quais teriam mais chance de visibilidade, como até destruir
propriedades. As autoras citam o caso de Emily Davison, que em 1913 lançou-se em frente ao
cavalo do Rei em meio a um evento de corrida de cavalos em Derby. Emily ganha visibilidade
a si e ao movimento feminista as custas da própria vida.
O sufrágio das mulheres na Inglaterra veio em 1928, com bastante dificuldade
(Marques e Xavier, 2018). Esta primeira onda de movimento feminista teve por principal
objetivo de ser sufragista e, soma-se ao movimento o fato das mulheres terem tido papel
fundamental na economia do país durante a primeira guerra mundial. Neste país, conhecido
até os dias atuais por uma forte marca de conservadorismo, algo inédito e marcante ocorreu na
antiguidade e ocorre no presente: importantes mulheres governantes marcaram e marcam
história.
A começar pela Rainha Elizabeth I, responsável pela reforma protestante; quem
governou a Inglaterra por quarenta e cinco anos no século XVI. Esta mulher já nasceu em
momento de rompimento de seu pai com o catolicismo para poder se casar por amor com Ana
Bolena. No século XIX, quem fez marca foi a Rainha Vitória, a qual dentro de seus sessenta e
quatro anos de reinado aboliu a escravidão, reduziu a jornada dos trabalhadores da indústria
têxtil e deu direito a voto para todos os trabalhadores. Ela herdou o trono aos dezoito anos de
seu tio, o rei Guilherme IV. No século XX Margareth Tatcher foi a primeira mulher a se
tornar primeiro ministro neste país. Ficou conhecida pelas medidas econômicas que
implementou, incluindo não adotar o Euro como moeda (Obvious, 2018).
Já as mulheres norte-americanas, precocemente emancipadas em relação às europeias,
começaram a reivindicar direitos políticos por volta de 1830, época do seu primeiro
movimento feminista. A primeira associação feminista sufragista foi ali fundada em 1840,
junto a campanhas a favor dos negros (Beauvoir, 2016a). Em 1869 foi fundada nos EUA a
Associação Nacional para o Sufrágio das Mulheres, e neste ano o estado de Wyoming
35

concede o voto às mulheres. Aqui as mulheres alcançam êxito econômico mais rápido do que
na Europa: cinco milhões de mulheres já trabalhavam em 1900 neste país; contudo a luta pelo
sufrágio seguiu sem êxito em diversos estados, sendo amplamente conquistada apenas em
1933, após diversos embates entre as feministas e o governo.
No dia internacional da mulher de 2019, o jornal BBC News publica reportagem
dizendo que os únicos seis países que garantem direitos iguais a homens e mulheres são:
Bélgica, Dinamarca, França, Letônia, Luxemburgo e Suécia. Para esta conclusão, foram
analisados cento e oitenta e sete países em uma pesquisa intitulada: “Mulheres, negócios e a
lei”. Foram analisados dados de dez anos através dos requisitos: desigualdade financeira e
legal, liberdade de circulação, maternidade, violência doméstica e direito de gerir ativos. A
mesma pesquisa disse que, em escala mundial, as mulheres têm em torno de setenta e cinco
por cento dos direitos dos homens (BBC News, 2019).
A média dos direitos das mulheres em relação aos dos homens varia entre regiões,
sendo em torno de oitenta e cinco por cento na Europa e Ásia Central; ao passo que em torno
de quarenta e sete por cento no Oriente Médio e África. Os Estados Unidos apresentam uma
porcentagem de aproximadamente oitenta e quatro por cento de igualdade de direitos entre os
sexos, e não estão nem entre os cinco melhores países neste quesito. A última pontuação da
lista foi ocupada pela Arábia Saudita, com em torno de vinte e cinco por cento de igualdade
de direitos (BBC News, 2019).
Falando sobre a população mundial, o jornal EY publica reportagem em janeiro de
dois mil e vinte alertando ao fato de que, mesmo com o PIB mundial crescente, a
desigualdade de renda entre homens e mulheres tem se tornado mais dispare. À medida que o
mundo enrique, as mulheres se tornam mais pobres quando comparadas aos homens. A
diferença de gênero econômica cresceu significativamente nos últimos anos (Teigland, 2020).
A mesma matéria diz que enquanto setenta e oito por cento dos homens adultos estão ativos
no mercado de trabalho, em escala mundial, apenas cinquenta e cinco por cento das mulheres
estão. A renda média anual das mulheres é quase a metade da renda anual dos homens: em
torno de onze mil e quinhentos dólares delas, contra vinte e um mil e quinhentos dólares
deles. Uma discriminação muito comum que as mulheres sofrem, ressaltada pela reportagem,
é a penalização da maternidade.
O jornal sugere que algumas ações podem ser úteis no objetivo de melhorar este
cenário, tais como: aumento do número de mulheres em altos cargos políticos, pois elas serão
modelos para encorajar mulheres que visam cargos de liderança no mercado de trabalho;
atração de mulheres para os setores tecnológicos, já que a maioria das mulheres ativas no
36

mercado encontram-se em setores de comércio, varejo e escritório e não são encorajadas a


aprender o necessário para entrarem no setor de automação. Ainda há um número baixo de
escolaridade entre mulheres em escala mundial, especialmente entre as mulheres de baixa
renda.

3.2 - História das mulheres no Brasil: recortes

A pesquisa sobre a história das mulheres no Brasil teve como principal objetivo
encontrar material que mostre a forma como as mulheres são concebidas, vistas e localizadas
dentro da cultura brasileira, desde o período colonial. Para isso, foram consideradas as
mulheres indígenas, as negras e as portuguesas. A organização do material foi em linha do
tempo; partiu de registros da época da colonização portuguesa para chegar aos dias atuais. No
período que vai do século XV ao XVIII foram encontrados registros sobre como foi tecida a
história do Brasil, bem como a localização das mulheres na mesma; tanto mulheres
marginalizadas socialmente – a maioria – bem como mulheres que tiveram importante papel
nos principais acontecimentos que marcaram a história, as quais representam a resistência. Já
em relação aos séculos XIX, XX e o atual, XXI, foram encontrados materiais com análises
mais críticas e profundas sobre formas de se exercer a discriminação das mulheres, partindo
da hipótese de que tal discriminação é a principal causa da violência contra as mulheres; ou
mesmo a discriminação já é uma forma de violência. São discursos como a santificação da
maternidade, e a boa dona de casa, predominantes no século XIX; a ditadura da beleza e o
capital marital, presentes nos séculos XX e XXI – discursos estes aparentemente ingênuos e
inocentes – que serão apresentados e discutidos neste item, de forma a construir alicerces
sobre a possível origem da violência contra as mulheres em nosso país.
Assim como feito com os países ocidentais do item anterior, também foram levantados
dados sobre: participações das mulheres nas construções do Brasil; a conquista do sufrágio
universal, marcando o ano em que ele ocorreu; dados sobre políticas públicas e legislativas no
combate à violência contra as mulheres. No Brasil, também foram encontrados os dados sobre
a autorização do divórcio e do uso da pílula anticoncepcional, sobre a autorização das
mulheres a estudar e a iniciarem-se no mercado de trabalho.
A colonização do Brasil, marcada pela catequização portuguesa, baseada na igreja
católica a frente dos pensamentos em termos de costume, e da visão etnocêntrica europeia
sobre o povo brasileiro, pode ser considerada bastante opressora para com os grupos
37

considerados pelos europeus como inferiores: os nativos e as mulheres. Abaixo tal opressão
será justificada em alguns exemplos.
Freyre (2006) descreve, nos primeiros séculos da entrada portuguesa no Brasil, séculos
XV, XVI e XVII, conflitos inerentes à colonização de exploração que lidou com os habitantes
locais como uma espécie de raça inferior, a qual precisava se adequar aos costumes lusitanos;
ignorando o fato de que eles eram os então donos da casa.
Os relacionamentos entre portugueses e índios ocorreram muitas vezes na forma de
exploração sexual das mulheres indígenas, fato responsável pela miscigenação da raça
brasileira. Não era uma relação recíproca ou construída, mas sim imposta; forma que se
perpetua até hoje. A figura da mulher morena, diferente da mulher branca europeia, passa a
ser a preferida pelos portugueses para sexo: eram os anjos maus, de pele e cabelos escuros –
em contraste com os anjos brancos e loiros – cuja salvação poderia advir com o batismo,
imposição de costumes da igreja católica (Freyre, 2006).
As mulheres indígenas tinham, e muitas ainda têm, hábitos de andarem com pouca
roupa; pois possuem uma relação especial com seus corpos: elas os consideram parte da
natureza. Como exemplos, podemos mencionar que para lidar com os enigmas do sangue
menstrual são organizados rituais que envolvem recursos naturais, e não remédios, ou
produtos químicos; hábitos que são sustentados sem precisarem de costumes urbanos
europeus. Entre as mulheres da tribo Toba é costume se pintarem de vermelho (urucu) quando
menstruadas, como um método profilático para lidar com os espíritos ruins deste período. O
gosto pelo cuidado com o corpo é grande entre elas.
Contudo, estruturas opressivas para com o papel social da mulher também são vistas
dentro das organizações indígenas tribais – não apenas dos portugueses para com elas – as
quais são colocadas de maneira mais sutil, por exemplo, quando reduzem as indígenas às
atividades de maternidade e cuidados com o lar. A mulher indígena quando mãe, no período
colonial, é retratada como dedicada à amamentação até longa idade e a ensinamentos
maternais como ensinar suas filhas a fiar algodão e a preparar as comidas. Já os filhos
meninos eram ensinados a exercer o domínio sobre as meninas; eram preparados para isso em
casas frequentadas apenas por homens onde se aprendia sobre os privilégios e
responsabilidades de ser homem. Nestes locais, era ensinado a tratar a mulher como local de
resto; os afetos eram de pai para filho, de aspecto viril (Alves et al, 2018).
A vida menos rotineira, mais nômade e livre, menos dependente de bens materiais dos
indígenas foi considerada uma espécie de heresia pelos portugueses, como se vivessem em
crime perante a igreja católica. Eles valorizavam o imaterial, o conhecimento advindo da
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natureza e dos antepassados, o que era visto como uma afronta aos portugueses, cujo saber era
desconsiderado. Assim, eles foram apelidados de bugres, o que os denominava de sujos,
pecadores imundos. Além disso, eles não serviam ao trabalho escravo, pois eram mais
desobedientes e considerados de saúde mais frágil, mais moleirões e avessos à sobrecarga de
esforço físico.
A história do Brasil é profundamente marcada pelo regime patriarcal de aristocracia, o
qual criou a casa-grande e a senzala; o contraste entre o gosto pelo sofá, pela mulher, pela
cadeira de balanço, pela cozinha – e todo o desconforto e perigo que regia a vida dos
explorados para manter o conforto do senhor; grupo representado pelos negros e pelas
mulheres, tanto as negras quanto as portuguesas. As primeiras, quando não eram escravas,
eram escolhidas por critérios como beleza, saúde e porte físico a amamentarem os filhos das
brancas portuguesas. Muitas vezes acabavam por criarem-nos: embalavam, contavam
histórias, brincavam com as crianças. Estas mesmas negras eram muitas vezes as escolhidas
pelos portugueses, senhores de engenho, para perderem a virgindade por meio de práticas
sadistas; a “disponibilidade” que eles atribuíam a elas, por meio de ordens, facilitava a
precocidade dos senhorzinhos (Freyre, 2006).
Já as portuguesas, quando meninas, de acordo com Freyre (2006) dormiam num quarto
que se assemelhava ao do doente grave, bem no centro da casa, rodeado pela vigília de todos.
Elas passavam de meninas criadas sob a vigilância dos encarregados pelo pai, ao casamento
precoce, no qual a vigilância era exercida pelo marido: casavam-se com maridos de escolha
exclusiva dos pais, jovens demais, ainda meninas, por volta dos treze anos; sem
amadurecimento psíquico para conseguirem cumprir as principais funções da maternidade.
Eram comuns casamentos com diferenças de dez, vinte, até trinta anos da idade do homem
acima da mulher; o que reforçava ideais de superioridade por parte dele. Inclusive a cerimônia
de celebração do casamento simulava a captura da menina pelo marido: eram festas enormes,
de dias de duração, fartas em comidas e bebidas.
É possível pensar que, embora tivessem conforto físico, as portuguesas que viviam no
Brasil não tinham o mesmo conforto de alma por viverem sob a tutela do senhor: reprimidas
social e sexualmente dentro da sombra do pai ou do marido. Muitas portuguesas morriam
após o parto, sem criarem o primeiro filho. Esta mortalidade pode ser compreendida para
além da falta de assistência médica no puerpério: como uma falta de cuidados para com as
mulheres como um todo; por exemplo, elas viviam trancadas dentro de casa, sem atividade
física; suas alimentações não eram vistas como tão importantes como a dos homens. Até a
forma como se vestiam refletia uma desorganização mental: era um excesso de cores, formas
39

e joias numa ostentação de superioridade que precisa ser comprovada a todo momento,
subentendendo uma enorme insegurança.
Neste período de Brasil colônia, o acesso ao ensino era restrito aos homens brancos, à
classe dominadora. Mulheres, negros e índios não podiam estudar. Algumas mulheres que
tiveram o privilégio do ensino em âmbito privado, no início do século XIX, reivindicavam a
educação pública e à emancipação moral para todas elas. Um grande exemplo desta
resistência das mulheres da época foi Júlia Lopes de Almeida, quem, com auxílio da
imprensa, pôde expor suas ideias críticas à sociedade de seu tempo (Schumaher & Ceva,
2015). As mulheres brancas conquistaram o acesso ao ensino por direito com a primeira
Constituição brasileira, de 1824, a qual excluía deste direito as populações negra e indígena. E
ainda vale ressaltar que existia a exigência por uma renda mínima para ser eleitor, ou seja, os
brancos pobres também foram excluídos. O acesso das mulheres aos cursos superiores foi
uma conquista do final do século XIX; e o sufrágio foi conquistado no século XX.
Kehl (2008), em uma reflexão psicanalítica sobre a história das mulheres no ocidente,
demarca o século XIX como fundamental enquanto período que imprime formas de conduta
das mulheres, formas estas que deixam grandes marcas no país até hoje. Foi a época após a
Era das luzes, a qual, com o advento da razão, traz uma possibilidade de liberdade na
construção de identidades, inclusive a das mulheres; é o período chamado de Modernidade. É
um tempo de mudança de perspectiva, com o surgimento de ideias de que o sujeito humano
pode ser mais autor do próprio discurso. A autora enumera algumas mudanças advindas da
modernidade, dentre elas: a industrialização, e consequente organização social em função de
produções industriais; a urbanização; o nascimento da família nuclear e a consequente
separação entre o público e o privado com a família ocupando o lugar do privado.
Contudo, tal proposta de liberdade nas formas de vida não foi concretizada na referida
sociedade, tampouco no âmbito da vida das mulheres. A família burguesa do século XIX era
composta por uma tríade de um homem provedor do lar, o qual tinha suas ocupações que lhe
demandam um longo tempo fora de casa nas indústrias e no comércio; uma mulher que se
ocupava dos cuidados domésticos e dos cuidados com o repouso deste homem quando ele
retornava para a casa; e pelos filhos que ficavam aos cuidados da mulher. O casamento tinha
então menos uma função de unir um casal homem e mulher, e mais de unir a mulher a seu lar,
e, desta forma, consequentemente, sustentar a virilidade do homem moderno.
A industrialização trouxe a marca da padronização, com reflexos nas subjetividades. A
idade moderna, portanto, traz uma forma de ordenação dos laços sociais, extremamente
40

simplificada, que não valoriza a reflexão e a luta por uma reconfiguração subjetiva – apesar
do nome Idade Moderna e das propostas trazidas pelo iluminismo.
As mulheres brasileiras com frequência se entristeciam por viver uma rotina sempre
igual, onde quase nada lhes era permitido, e acabavam por adoecer, de tédio e desesperança.
Não se pensava que a proibição de ter um discurso próprio poderia ser tão desastrosa à vida de
algumas mulheres. A saída de algumas era viver uma vida de devaneio, pelo tempo em que
ele sustentava uma realização de desejos fantasiada. Era uma vida calcada no princípio do
prazer, numa tentativa de fuga da realidade tão entediante. A busca pelo adultério também era
comum, sendo que este pode aqui ser pensado como uma forma de viver uma relação na qual
o homem olha para a parceira enquanto mulher, e não enquanto mãe de seus filhos, ou seja,
uma relação na qual ela podia se sentir desejada. Contudo, a questão que ficava é que a culpa
gerada por este ato fora da lei era motivo de neurose, na melhor das hipóteses, quando não de
suicídio, na pior. A condenação pelo adultério feminino era muito maior do que quando o
homem era o adúltero.
Kehl (2008) ilustra este modelo de feminilidade com o caso fictício de Madame
Bovary, personagem escrita por Gustav Flaubert em 1857. Emma Bovary procura em amantes
e em compras de objetos materiais ostensivos, como roupas e utensílios domésticos, a
resposta para o vazio de sua existência, e, ao não encontrar, termina por cometer suicídio:
último recurso contra a angústia advinda de um profundo sentimento de despersonalização.
Emma vivia num mundo de fantasia, sustentado por sua imensa carga de leitura, regado a
viagens, romances de contos de fadas e vida cultural intensa: tudo em uma rica vida de
imaginação que contrastava com a realidade de classe média monótona, e interiorana que era
a realidade desta personagem.
É neste contexto que a histeria entra em cena, como a forma de sofrimento psíquico
que acomete principalmente mulheres e as deixa com a sensação permanente de insatisfação,
despersonalização, e ainda confusamente dirigindo ao homem uma espécie de domínio
mágico sobre o seu desejo, o qual, na maioria das vezes, ela nem sabe dizer qual é, mas
acredita que ele deve saber. Uma espécie de crença inconsciente de que apenas sendo amada
pelo homem seria possível atingir o caminho de seu desejo, pois é no homem que repousariam
os códigos dos caminhos a serem percorridos no laço social. É na mulher repreendida pela
convenção social, pelo moralismo hipócrita, que a histeria passa a se manifestar com toda a
sua força.
Voltando-nos ao Brasil, ao longo do século XIX, consolida-se a separação entre os
indígenas e os povos brasileiros que se denominam descendentes de europeus, e pode-se
41

concluir que a visão de superioridade europeia nunca cessou e repercute em processos de


brigas de terras com indígenas, bem como opressão cultural. “A força concentrou-se nas
mãos dos senhores rurais. Donos das terras. Donos dos homens. Donos das mulheres. Suas
casas representam esse imenso poderio feudal” (Freyre, 2006, p. 38). É o que vemos no
Brasil, até os dias de hoje. O mandonismo autocrático sempre foi marca da história do Brasil,
compondo uma dualidade entre o sadismo do senhor e o masoquismo dos escravos e das
mulheres. Dualismo facilmente visto entre doutores e analfabetos, senhores e escravos,
europeus e negros.
No final do século XIX, período de proclamação da república, muitos indígenas
haviam sido mortos pelos portugueses, e os que resistiram passaram a viver longe dos centros
urbanos, na zona mais a oeste do país e na região amazônica. Os negros também foram em
grande número mortos, e os sobreviventes passaram a viver de forma subalterna dentro dos
centros urbanos; dando origem aos excluídos socialmente dentro da própria cidade: ali
estavam, mas não tinham acesso a maioria dos serviços oferecidos, uma vez que os serviços
urbanos foram construídos e planejados por e para os portugueses; de acordo com seus
estudos, seu pensamento, sua forma de vida capitalista, à qual a exclusão é inerente.
A proclamação da república foi decretada devido ao trabalho de uma mulher, a
princesa carioca Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de
Bragança e Bourbon; nomeada princesa aos quatro anos de idade. Ela herdou o trono devido a
morte prematura de seus dois irmãos homens, Pedro e Afonso (Schumaher & Ceva, 2015).
Vinda de uma sólida formação cultural e intelectual, Isabel apresentou-se aos quatorze anos
junto ao Senado para prestar o juramento de herdeira da coroa do Brasil. Quatro anos depois,
casou-se com o príncipe francês Luís Felipe Maria Gastão de Orléans, conde D’Eu. Foi nesta
ocasião que libertou todos os escravos que lhe serviram na adolescência, num ato de
demonstração pública de seus ideais abolicionistas e humanitários.
Ao final da guerra do Paraguai, em 1870, a princesa Isabel substituiu dom Pedro II
durante períodos em que ele viajou para fora do país. Além de sua contribuição com os
movimentos abolicionistas, a princesa Isabel conseguiu destaques no governo com
estabelecimento de relações comerciais com países vizinhos, a naturalização dos estrangeiros
que viviam no Brasil, conseguiu soluções para problemas de limites territoriais, e ainda o
desenvolvimento da viação férrea.
Ao assumir o poder, a princesa, com apenas vinte e quatro anos de idade, ordenou a
libertação dos escravos que pertenciam ao governo através da lei do Ventre Livre, de vinte e
oito de setembro de 1871, a qual declarou livre os nascidos das mulheres escravizadas a partir
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desta data, embora eles ainda ficassem sob a tutela de seu senhor até os vinte e um anos.
Isabel governou por mais uma regência em 1876, e pela terceira e última vez em 1887, em
meio a ideais conservadores, escravocratas e latifundiários do presidente do Conselho de
Ministros, o barão de Cotegipe; quem atrasou os interesses abolicionistas da princesa. Apesar
das dificuldades, a princesa consegue concretizar a Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, cujo
decreto era de libertação incondicional dos escravos; logo em seguida, Isabel perde o trono.
A causa republicana, apoiada em parte pela aristocracia rural que perdeu seus bens
com a abolição dos escravos, concretizou seus objetivos em quinze de novembro de 1889.
Toda a família real foi obrigada a deixar o país, inclusive Isabel, que precisou partir sem seus
filhos. Questionada em exílio sobre a Lei Áurea, ela declara: “Quantos tronos houvessem a
cair, eu não deixaria de assiná-la”. (Schumaher, S. & Ceva, A., p. 37).
No Brasil república, assim como em grande parte do mundo ocidental do século XIX,
constrói-se o modelo de vida burguês, cujo modelo de família tradicional burguesa prevalece
em grande parte da sociedade até a atualidade. A figura da mulher “dona de casa” ganha
força; aqui ela não mais precisava trabalhar: o salário do marido era a renda centralizadora e a
mulher podia, de forma integral, cuidar da casa. A revolução industrial coloca um fim no
recrutamento de mulheres, e a divisão do trabalho entre os sexos é extremamente estratificada,
ficando as mulheres a cargo dos serviços domésticos e os homens dos demais. Surge um
modelo de feminilidade: a mulher ideal era a esposa passiva, obediente, casta e ocupada com
suas atividades domésticas. A figura da mulher nas ruas passa até a ser ridicularizada e
atacada; as mulheres não deviam estar pela cidade.
É importante ressaltar que formas de vida que saíam das regras sociais sempre se
fizeram presentes. Ao longo desta fase, por exemplo, a figura da mulher prostituta era
frequente fazendo funções de esposa para os trabalhadores homens; além de lhes servir
sexualmente ela cuidava de suas comidas e limpeza. Pode ser considerada uma forma de
alternativa de vida às mulheres que não se casavam; pois suas saídas para além desta seriam
tão ou mais cruéis com problemas advindos da pobreza e exclusão social. De acordo com Del
Priori (2013) as mulheres que não se casavam, por não pertencerem a uma família nobre,
designada ao casamento, eram ainda menos respeitadas e se mantinham num lugar sem
proteção.
Em geral as moças não eram ensinadas a ler, de modo que permanecendo incultas
cabia-lhes permanecer numa vida com muitas privações. Eram ensinadas desde criança por
suas mães a bordar, fazer costura e cozinhar, como futura ocupação para os momentos em que
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não estavam servindo ao marido ou aos filhos. Enquanto isso aos homens eram valorizadas as
práticas hedonistas, sair para curtir a noite, ter vida social.
Predomina, no Brasil república, uma cultura de que o amor feminino deveria ser
respeitoso e recatado, e o masculino uma espécie de ternura inspirada pela fragilidade
feminina. O respeito só era conseguido através do casamento, o qual tinha regras rígidas sobre
o comportamento das mulheres. Contudo, a resistência sempre aconteceu, mesmo dentro do
modelo tradicional não eram todas que aceitavam calmamente o modelo imposto; esta
opressão resultava muitas vezes em rebeldia por parte delas: “Muitas delas se insurgiram
contra a ditadura do fogão e do berço, resistindo às vontades do marido cotidianamente:
salgavam a comida, deixavam de lavar a roupa ou passavam os dias na igreja – um dos
poucos lugares de encontro social” (Del Priori, 2013, p. 22).
Vale ressaltar que nesse século não existiam métodos anticoncepcionais, pois evitar
filhos não era uma prática permitida. O sexo era para reprodução, não podia existir o
erotismo. Qualquer tipo de prática de sedução feminina era extremamente mal vista. Esta
temática tem por base a visão de relacionamento entre homem e mulher que não envolve
reciprocidade, mas sim a propriedade por parte do homem. A mulher aqui deve ser vista como
a delicada e recatada: deve inspirar ternura pela sua fragilidade (Del Priori, 2005). A mulher
bem quista era a recatada e distinta, a que jamais tomava a iniciativa. Obviamente que o
marido procurava relação sexual fora do casamento, já que com a esposa tinha que ser casto.
As brancas eram para casar, mulatas e negras para sexo e trabalho.
A opressão portuguesa e burguesa tinha por base premissas da igreja católica, por
meio de ideias de que as mulheres devem ser exemplarmente submissas ao marido. É a
mesma relação de poder já implícita na escravidão: a mulher entra como escrava doméstica –
deve lavar, passar, cozinhar e servir com o sexo (Del Priori, 2013). Antes do século XX, a
maioria das brasileiras não aprendiam a ler, pois esta cultura não era necessária à sua vida
restrita a tarefas domésticas e costura. O homem em casa representava o Estado e a igreja.
Com a igreja dominando os pensamentos, prega-se a ideia da mulher como criatura
imperfeita, uma vez que nasceu da costela de Adão e, portanto, deveria tanto obedecer quanto
se submeter ao homem.
Durante a instrução, a mulher deve ficar em silêncio, com toda a submissão. Eu
não permito que a mulher ensine ou domine o homem. Portanto, que ela conserve o
silêncio. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E não foi Adão que foi seduzido,
mas a mulher que, seduzida, pecou. Entretanto, ela será salva pela sua maternidade, desde
que permaneça com modéstia na fé, no amor e na santidade. (Bíblia, 1 Timóteo, 2, 11-15,
citado por Pinafi, 2007).
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A igreja católica – com seus preceitos de que a mulher veio de Adão e a ele deve se
submeter – explorou a relação homem e mulher como algo de predominante dominação, onde
caberia à mulher ser exemplarmente submissa: uma escrava doméstica que deveria servir
também com o sexo quando assim fosse vontade do homem. Caberia à mulher lavar, passar,
cozinhar, lustrar o chão, e dar filhos para prosseguir com a descendência.
Algumas mulheres gostavam mais de estudar, preferiam a ciência à religião e
frequentar cursos a permanecer apenas em casa nos cuidados com o lar e filhos. Acabavam
por se tornar mulheres inteligentes e de alta capacidade intelectual e, ainda que com estas
qualidades, eram consideradas criminosas e incapazes de dotes necessários à maternidade
como a paciência e abnegação. Mulheres com conhecimentos costumavam causar
repugnância nos homens comuns, não eram atrativas.
Em 1879, o Brasil abriu acesso das mulheres aos cursos superiores, embora não fosse
uma prática efetivamente exercida pelo preconceito acima citado e consequente falta de
incentivo cultural. As mulheres que decidiam estudar eram vistas como as desertoras de lares,
as solteironas que não se casariam, ou seja, que eram responsáveis pela destruição da família
(Silva, 2008).
No século XX, o Brasil autoriza o divórcio, isto é, viabiliza a lei que o autoriza, mas
socialmente continua recriminando-o. As mulheres que optam por ele são consideradas as
verdadeiramente infelizes, as péssimas mães e esposas que podem desmontar a sociedade (Del
Priori, 2013). Este século também é marcado pela lei que autoriza a entrada da mulher no
mercado de trabalho sem autorização expressa do marido, embora esta lei não tenha trazido
liberdade à mulher; ainda que houvesse autonomia econômica, não significou que ela trazia
autonomia nos âmbitos social, psicológico, cultural, moral; dentre outros. Além disso, é
válido pensar que esta autorização para o trabalho se deu mais por necessidade de ajuda no
sustento da casa do que por reconhecimento da mulher como um sujeito de direitos, já que ela
ganhava, e ainda ganha, menos do que o homem exercendo a mesma função.
A maternidade, neste século XX, se mostra como salvação para muitas mulheres, para
que elas ganhem visibilidade e reconhecimento. Ser uma boa mulher passa a ser sinônimo de
ser uma boa mãe, ideia que exclui desejos e crenças sobre a importância de ter um filho, como
o desejo de continuidade ou o amor pela criança. Com essa crença na salvação tudo se resume
a ganhar reconhecimento e lugar social sendo mãe, como uma tradição que simplesmente
deve ser cumprida, sem reflexão. Desta forma, com a mulher santificada em mãe, fica inibida
a sexualidade conjugal. O sexo assim é associado à procriação e o papel da mulher quando
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não está sendo mãe é resguardar pelo lar e pelo marido. Já o dele é se dedicar ao trabalho, ter
vida social e fiscalização sobre a mulher e os filhos (Del Priori, 2013).
Em seguida, no mesmo século XX, vemos o início da tirania da perfeição física: o
desafio não é uma busca de identidade, mas sim de uma identificação com um modelo de
beleza que escraviza as mulheres a se submeterem a práticas dolorosas e, muitas vezes,
perigosas em troca de um corpo aceito socialmente. Do marido, o algoz se desloca para a
mídia, tão perseguidora e inconsequente. Com a sociedade incentivando o resultado rápido e
prático a qualquer custo, não é de espantar que o caminho pela beleza impossível seja
procurado muito menos por hábitos de vida saudáveis do que por cirurgias plásticas,
cosméticos extremamente caros, exercícios físicos abusivos, anabolizantes perigosos. O preço
para ser aceita é qualquer um, e algumas mulheres presas a este discurso se submetem a tudo.
Essas considerações são pertinentes, também, ao século XXI.
Vale ressaltar que há no Brasil, no mesmo período histórico – com mais força na
década de setenta – um forte movimento feminista que comprova a resistência de muitas
mulheres em entrar tanto no discurso da maternidade enquanto salvação quanto no discurso
dos padrões de beleza severos, impostos pelas grandes mídias, principalmente às mulheres.
Pode-se dizer que as feministas da década de setenta são mulheres que se valem das ideias de
Simone de Beauvoir, autora já citada acima, uma das principais representantes do feminismo
mundial. Beauvoir (2016a) destaca, dentre outras questões, como já mencionado em itens
anteriores, a maternidade como função extremamente esgotante, principalmente em relação
aos primeiros cuidados para com o bebê, que exigem uma atenção sem descanso por parte da
mãe. O aleitamento, por exemplo, é muito diferente das imagens que aparecem nas
campanhas de amamentação: trazem ferimentos e dor ao seio com frequência, além de febre
alta e demais indisposições à lactante. A autora não era adepta de padrões estéticos e, muito
pelo contrário, ressalta a importância da mulher se impor perante os discursos impositivos
acerca do comportamento dela.
De acordo com Del Priori (2013), nos dias atuais algumas mulheres tendem a ser mais
sozinhas do que os homens. Estas mulheres que não se casam podem vir a chefiar famílias
monoparentais, e ainda aceitar situações de submissão aos padrões estéticos colocados pela
mídia. A autora traz uma importante reflexão de que em casa estas mulheres solitárias
escondem sentimentos contraditórios com o estilo de vida que levam: são mulheres
progressistas no âmbito econômico e no posicionamento social por terem uma família não
tradicional, contudo, em alguns casos, protegem filhos que agridem mulheres ou até não
permitem que os filhos homens se ocupem de tarefas domésticas, o que os torna dependentes
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delas em assuntos domésticos. São muitas vezes coniventes com piadas machistas da mídia, e
aceitam que os filhos usem temas apelativos.
No âmbito de legislação e políticas públicas, os séculos XX e XXI são marcados por
algumas conquistas sociais, políticas e econômicas por parte das mulheres. Além da lei do
divórcio, métodos anticoncepcionais e lei do direito ao voto, já mencionados, na década de
50, a Organização das Nações Unidas (ONU) iniciou trabalhos de erradicação da violência
contra as mulheres e criou a Comissão de Status da Mulher. Ela está embasada na afirmação
de direitos iguais entre homens e mulheres e na Declaração Universal dos Direito Humanos
cuja premissa é, de que tanto direitos quanto liberdades, devem ser aplicados, de maneira
igual, entre homens e mulheres. Em 1979, a Assembléia Geral da ONU adotou a CEDAW:
Convenção para Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, conhecida
como lei internacional dos direitos da mulher, buscando a repressão das discriminações
(Silva, 2008).
Também é fruto da década de 1970 a chegada no Brasil da segunda onda do
movimento feminista. A partir de então, este movimento reforça a consciência de que a
discriminação contra as mulheres existe. As feministas são as que enfatizam a idéia de que
não há um poder: o poder é criado. Se os homens haviam sempre estado no poder, é porque
eles assim se colocavam, e as mulheres não deveriam permitir que fossem excluidas. Portanto,
começam a reivindicar direitos iguais não só política e economicamente como também nos
âmbitos que envolvem responsabilização, como o sistema prisional. O ano de 1975 foi
definido pela ONU como o Ano Internacional da Mulher (Silva, 2008). Foi na Rússia que o
movimento feminista ganhou mais força, e no Brasil a luta tem se intensificado nos últimos
anos.
Na década de oitenta, surge no Rio de Janeiro o SOS mulher com objetivo de
atendimento a mulheres vítimas de violência, visando melhores condições de vida. Esta
iniciativa foi adotada também por outras cidades, inclusive São José dos Campos, cidade
paulista, onde encontramos tanto o SOS mulher como o Centro Dandara, importantes centros
de acolhimento às mulheres vítimas de violência doméstica. As políticas públicas então
crescem, e ainda na década de oitenta são fundadas as Delegacias de Defesa da Mulher. A
primeira unidade foi inaugurada no Estado de São Paulo, em 6 de agosto de 1985, durante o
governo Franco Montoro e foi planejada pelo então secretário da Segurança Pública Michel
Temer), que hoje são centenas, sua maioria na região sudeste.
Na década de noventa houve a declaração de Viena, que fornece mais subsídios para a
luta. Nela, foram incluídos vários graus e manifestações de violência, considerando que ela
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infringe Direitos Humanos e acontece na maioria em esfera privada. Em 1995, foi ratificada
no Brasil a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a violência contra a
mulher, aprovada pela Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos (Silva,
2008).
A Lei Maria da Penha, promulgada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2006,
foi mais um grande avanço em direção à proteção da mulher e reconhecimento de sua
vulnerabilidade (Silva, 2010). A Lei determina o encaminhamento de mulheres em situação
de violência e seus dependentes a programas e serviços de proteção, garantindo-lhe os
Direitos Humanos que já se achavam positivados na Constituição Federal. Vale ressaltar que
esta lei não considera apenas a violência física: controlar financeiramente, expor vida íntima e
forçar atos sexuais também são exemplos de violência que são cobertos. A lei classifica a
violência em cinco categorias: violência patrimonial, violência sexual, violência física,
violência moral e violência psicológica.
Maria da Penha Maia Fernandes é uma farmacêutica, cearense, cujo nome batizou a lei
que protege mulheres contra violências devido à violência doméstica da qual foi vítima e
quase lhe levou a óbito. Ela conheceu o agressor em 1974, quando fazia mestrado na
Universidade de São Paulo, ele era estudante de pós-graduação em economia; e, inicialmente,
ela o acolheu como namorado em sua casa com uma situação financeira mais favorecida que a
dele. Contudo, após o casamento, que se consolidou no ano de 1976, o marido ascende
financeiramente e seu modo de tratamento para com ela muda. Ele fica agressivo com ela e
com as filhas do casal. Em seu livro Sobrevivi... posso contar, Fernandes (2012) relata que a
violência doméstica obedece a um ciclo no qual o agressor pede desculpas, garante amor
eterno e diz que nunca mais irá ferir a vítima. É neste momento que a vítima costuma
engravidar de novos filhos, no seu caso, foi em momentos como este que ela engravidou tanto
da segunda quanto da terceira filha, já que a primeira nasceu antes da mudança de
comportamento do marido.
Na visão de Maria da Penha, o marido torna-se agressivo ao ascender financeiramente;
ela acredita que ele se manteve pacato no período de início de relacionamento porque
dependia dela (Fernandes, 2012). A agressividade vai ficando cada vez maior para com ela e
para com as três filhas; tudo era motivo para briga e agressões físicas e o controle para com as
quatro era intenso. Ele, por exemplo, simulava viagens e voltava antes do previsto para
verificar se tudo estava acontecendo conforme ele havia determinado. Se a filha pequena
chupava dedo para dormir, era motivo para agressão; se fizesse xixi na cama, era jogada
brutalmente no chuveiro. O casamento assim afunda e Maria da Penha percebe que se o
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pedido de divórcio não acontecesse por ela, eles permaneceriam casados; contudo ela não
consegue pedir o divórcio por medo de que ele a matasse.
No ano em que o crime de tentativa de assassinato aconteceu, 1983, Maria da Penha
relata que o marido tentou fazê-la assinar um seguro de vida que o beneficiava, em caso dela
falecer. Dias depois, conseguiu fazê-la assinar outro documento para que o carro dela fosse
vendido a um colega dele. Tudo indicava uma armação para matá-la, da qual ela não
conseguiu escapar. Em uma noite após uma visita a casa de amigos do casal, ela acorda com o
forte barulho e sensação de borbulhar nas costas. O marido é levado em um carro de polícia e
relata um assalto. Maria da Penha é socorrida com vida, e, apesar de ter ficado paraplégica,
sobrevive após uma difícil recuperação, com uma série de limitações. Em meio a seu período
de recuperação, ele tenta assassiná-la novamente, por meio de um choque elétrico no chuveiro
em que ela tomava banho (Fernandes, 2012).
Hoje Maria da Penha é uma militante de ideias feministas. Além da lei que protege à
violência contra as mulheres, seu nome intitulou o Instituto Maria da Penha, com sede em
Fortaleza e objetivo de garantir o funcionamento da lei, bem como políticas públicas voltadas
para a prevenção e conscientização da violência doméstica e contra as mulheres. O marido foi
condenado a dez anos e seis meses após doze anos de julgamento em 1996; contudo, sob
alegação de irregularidades no caso por parte de um dos advogados de defesa, a sentença não
foi cumprida. Em 1998 o caso foi denunciado para a Comissão Interamericana de direitos
humanos; o estado foi responsabilizado por omissão e negligência em 2001; o réu foi preso
em 2002, solto em 2004 estando hoje, livre. O caso ganhou repercussão internacional por ter
sido o primeiro a ganhar reconhecimento no âmbito da violência contra as mulheres, abrindo
portas para uma problematização e reflexão profunda sobre o tema.
Em 2015, a presidente Dilma Rousseff, em andamento ao ciclo de problematização da
violência contra a mulher, traz uma nova proposta jurídica em relação a este tema com a
importante lei do Feminicídio, a qual colocou a morte de mulheres no rol de crimes hediondos
(Silva, 2008).
Nos últimos anos, algumas discussões a respeito da discriminação da mulher vêm
acontecendo no Brasil em grande proporção. A cultura do estupro, por exemplo, é uma
importante campanha criada em 2016 para desnaturalizar a concepção de que mulher
assediada sexualmente é responsável pelo assédio que sofreu, ou seja, se a sociedade
normaliza a mulher como culpada, existe cultura do estupro. Em 2017, atrizes lançam frases
nas mídias como: “mexeu com uma mexeu com todas” que sensibilizam a população para esta
importante questão de violência contra a mulher, como se ela pudesse ser naturalizada no
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lugar de um objeto de uso. As mulheres vão continuar sendo vistas como culpadas pela
violência que sofrem, caso a cultura a exclua do poder e a inferiorize (Braga & Ruzzi, 2017).
Contudo, apesar de toda esta resistência e movimento políticos, os números sobre
violência contra as mulheres no Brasil são assustadores. Temos o dado de 2016 de um
relatório da ONG sobre o Brasil estar no 102º lugar no ranking dos melhores países para
nascer mulher, num total de 144 países pesquisados, ou seja, um dos piores (Modefica, 2017).
Em março de 2017 a ONU publica em seu site uma reportagem sobre desigualdade de
gênero nas políticas sobre drogas. Existem mais mulheres morrendo de overdose do que
homens. O que acontece é que muitas mulheres não têm acesso a tratamento, ou são
impedidas de fazê-lo. A reportagem ainda afirma que existe forte ligação entre o trabalho com
sexo e o uso de drogas: algumas usam a droga para conseguir lidar com as exigências deste
trabalho; enquanto outras trabalham com sexo como forma de pagamento para o uso de
drogas. Obviamente, estas mulheres não têm acesso ao tratamento devido ao preconceito que
sofrem, preferem se omitir a se expor. Mulheres com filhos têm menos ainda acesso a
tratamento, pois temem perderem suas crianças ao serem taxadas de drogadas (ONU BR,
2017).
Caminhando no movimento, em 2018, a ONU lança a campanha: “O valente não é
violento”. Esta campanha mostra o reconhecimento de que a sociedade ainda hoje é machista
(supervalorização do homem em detrimento da mulher) e, portanto, é necessário conscientizar
a população para a necessidade de mudança de comportamento e responsabilidade nesta
questão (ONU BR, 2018). Frases como: “o valente compartilha as responsabilidades do lar”,
“o valente respeita a opinião das mulheres”, “o valente jamais usa a força” são então lançadas
como estratégias de conscientização popular da necessidade de combate ao machismo.
Como um dado quantitativo acerca da problematização atual sobre a violência contra
as mulheres como um fenômeno social, foi realizada uma pesquisa no jornal O Estado de São
Paulo (Estadão) em 22 de abril de 2018, na qual apareceram 39 reportagens desde primeiro de
março até esta data envolvendo violência contra as mulheres. Estas notícias falam, em sua
maioria, de violência física envolvendo atos como espancamento que muitas vezes chega até a
morte; crimes com armas brancas como facas ou pé de cabra, sendo que a maioria acontece
dentro da residência da vítima, e entre casais que já se relacionaram. O término da relação por
parte da mulher é o maior dos motivos para o crime acontecer, seguido pelo sentimento de
posse por parte do agressor (Estadão, 2018). Vale ressaltar que é justamente esse sentimento
de posse que leva muitas mulheres a se manterem numa relação violenta, por uma
interpretação por parte delas de que o sentimento de posse é devido ao amor. Quanto maior a
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vulnerabilidade sentimental em que a mulher se encontra, mais provável é fazer esta confusão
entre o sentimento de posse e o amor, o que leva a pensar que, para além da vítima de
violência, há um masoquismo inconsciente envolvido.
Mesmo com o Brasil tendo um dos melhores sistemas legislativos em relação à
proteção das mulheres do mundo, contraditoriamente, tem o número de crimes contra as
mulheres extremamente altos, inclusive de feminicídios, os quais envolvem a morte de
mulheres. Em março de 2018 a lei do feminicídio completou três anos. Ela prevê penas mais
altas para condenados por assassinatos a mulheres ou por atos de discriminação e menosprezo
às mulheres.
Ressalto que são quase setenta anos de lutas contra a discriminação das mulheres, o
que pode parecer significativo. Contudo, ainda é muito pouco quando comparado aos
milênios de anos passados nos quais esta cultura na qual a mulher podia lutar não existia.
Ainda há muito a ser feito na descontrução e construção de pensamentos nos quais os gêneros
– ainda que diferentes – não podem ser vistos em termos de valoração. Analisar a diferença
entre o masculino e o feminino enquanto gênero é necessário, mas o discurso de falar do sexo
masculino exercendo valoração e poder sobre o feminino pode e deve ser erradicado.
Para finalizar este item, a contradição entre as conquistas da mulher brasileira nos
âmbitos político, econômico, social e a permanência do discurso ditatorial em relação a
padrões estéticos, precisa ser exposta. Goldenberg (2010) em crítica à mulher brasileira
ressalta que o envelhecimento é aqui tema de imensa preocupação; o que não acontece na
maioria dos países europeus. A relação entre o corpo e o capital fica evidente quando não se
pode perder o estatuto de poder estético associado ao corpo. A autora ainda fala sobre o
capital marital, ou seja, a mulher que só consegue se autovalorizar quando acompanhada por
um homem em união formal. Ou seja, corpo e marido são considerados capitais na cultura
brasileira.
A mulher precisa saber dizer o que ela quer num relacionamento para além do “status
de se ter um marido”. Precisa saber dizer ao marido o que ela quer no relacionamento. É
evidente que algumas mulheres só caem em si depois que os filhos saem de casa e percebem
então que sempre viveram para eles e não sabem ao certo quem são. A ditadura da mulher
perfeita associada ao corpo perfeito, à maternidade e submissão ao homem precisa cair.
Não pode haver uma desvalorização das conquistas das mulheres por elas mesmas. Não
basta a mulher ser independente financeiramente se ela não tem independência de valores que
justifiquem uma vida digna de ser vivida. É preciso um algo mais, é preciso um sentido para a
liberdade.
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4 – FIGURAS DE MULHERES E A RESISTÊNCIA

4.1 - As indígenas no Brasil

Esse tópico é relevante de ser construído, principalmente porque essas mulheres


sofrem dupla discriminação e violência: por serem mulheres e por serem indígenas. Trata-se
de populações definidas por nativas, pioneiras no local onde vivem, em contraposição às
populações colonizadoras, que chegaram em determinado local para viver num segundo
momento (CIDH, 2018). No Brasil, há um antagonismo evidente entre nativos e
colonizadores no que diz respeito à cultura: enquanto os primeiros esforçam-se por construir e
preservar os seus próprios saberes, os segundos, adeptos da globalização, impõe saberes com
tendências de objetivos rentáveis, pautados em interesses econômicos exploratórios, interesses
os quais retiram de cena aspectos fundamentais aos indígenas, como a singularidade e
construções subjetivas – entendendo subjetividade por uma confluência de identificações. Os
indígenas também costumam ser chamados de autóctones, nativos, ou ainda aborígenes.
A história do Brasil é contada do chamado “descobrimento” em diante, ignorando o
fato de que antes dos portugueses aqui chegarem havia pessoas vivendo em equilíbrio com o
meio físico, com seus sofisticados costumes e cultura aliados ao respeito pelos recursos
naturais. Considerando-se superiores em termos de ciência, monetarização e comercialização,
os portugueses veem os indígenas como uma espécie de raça inferior, a qual precisa ser
treinada para atingir o modelo português imposto, sem suavização; ou até morta em caso de
atrapalharem seus objetivos exploratórios sobre o Brasil.
As mulheres indígenas merecem cuidado ao serem tratadas, uma vez que
consideremos o fato de ser mulher como inerente a uma das facetas da desigualdade do
mundo ocidental, estruturado em cima da figura do homem branco, patriarcal. A
discriminação das mulheres indígenas é uma das formas mais perversas de manifestação da
discriminação das mulheres, pois estão imersas em dois discursos discriminatórios que se
sobrepõe: o sexo feminino, categoria comumente considerada submissa ao masculino, e ainda
indígena, categoria considerada por muitos como submissa ao europeu, colonizador.
Para a criação de políticas públicas e sistemas de proteção aos indígenas, a priori é
necessário o reconhecimento dos mesmos enquanto população distinta à sociedade que se
submeteu à colonização portuguesa de exploração. Os povos indígenas têm direitos comuns
resguardados pela Constituição Federal de 1988, e direitos específicos às suas condições de
vida, regidos por legislações complementares. Estas leis reconhecem que os povos indígenas
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possuem costumes, línguas, crenças, tradições e organizações sociais específicas. Dentre estes
direitos, ressalta-se a livre ocupação das terras nas quais foram criados em suas tribos.
A Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) define como
indígena aquele que:
... contando com uma continuidade histórica das sociedades anteriores à colonização
que foi desenvolvida em seus territórios, consideram a si mesmos distintos de outros
setores da sociedade, e estão decididos a conservar, a desenvolver e a transmitir às gerações
futuras seus territórios ancestrais e sua identidade étnica, como base de sua existência
continuada como povos, em conformidade com seus próprios padrões culturais, as
instituições sociais, econômicas, políticas e os sistemas jurídicos (Ministério do
desenvolvimento social, 2011, p. 10).

Freyre (2006) descreve, nos primeiros séculos da entrada portuguesa no Brasil,


conflitos inerentes à colonização de exploração europeia; a qual lidou com os habitantes
locais, os índios brasileiros, como uma espécie de raça inferior que precisava se adequar aos
costumes portugueses; como se eles não estivessem aqui no país muito antes de suas
chegadas.
Pelos frequentes relacionamentos entre portugueses e índias, pode-se afirmar que a
figura da mulher morena passa a ser a preferida dos portugueses, ao menos para sexo: eram os
anjos maus cuja salvação poderia advir com o batismo, imposição de costumes da igreja
católica (Freyre, 2006). As mulheres indígenas desde sempre possuem uma relação especial
com seus corpos como parte da natureza, e organizam rituais para lidar com os enigmas do
sangue menstrual, por exemplo. Entre as mulheres da tribo Toba é costume se pintarem de
vermelho (urucu) quando menstruadas, como um método profilático para lidar com os
espíritos ruins deste período. O gosto pelo cuidado com o corpo é grande entre elas.
A mulher indígena quando mãe, no período colonial, é retratada como dedicada à
amamentação até longa idade e a costumes maternais como ensinar suas filhas a fiar algodão e
a preparar as comidas – de acordo com o mesmo autor acima. Já os filhos meninos eram
ensinados a exercer o domínio sobre as meninas; eram preparados para isso em casas
frequentadas apenas por homens onde se aprendia sobre os privilégios e responsabilidades de
ser homem. Nestes locais, era aprendido a tratar a mulher como local de resto; os afetos eram
de pai para filho, de aspecto viril.
A vida menos rotineira, mais nômade e livre, menos dependente de bens materiais dos
indígenas foi considerada uma espécie de heresia pelos portugueses, como se vivessem em
crime perante a igreja católica. Os índios valorizam o imaterial, o conhecimento advindo da
natureza e dos antepassados, cujo saber foi desconsiderado pelos portugueses, e até visto
como uma afronta. Assim, eles foram apelidados de bugres, o que os denominava de sujos,
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pecadores imundos. Além disso, eles não serviam ao trabalho escravo, pois eram mais
desobedientes e considerados de saúde mais frágil, mais moleirões e avessos à sobrecarga de
esforço físico.
De acordo com Alves et. al. (2018), podemos destacar diversas tribos indígenas
originárias da região do Vale do Rio Paraíba que sofreram com a colonização de exploração e
subsequente extermínio de indígenas locais, dentre elas os Puris, Coroados, Ararís, Coropós,
Caxaxenes, Tupinaki. Eles utilizavam o Rio Paraíba para deslocamento e povoavam seus
entornos.
Os Puris são uma grande tribo, habitantes das regiões úmidas de São Paulo, com sua
população se estendendo desde a Serra do Mar ao Rio de Janeiro, com grande concentração
no Vale do Rio Paraíba. São considerados os primeiros habitantes da atual cidade de Rezende,
situada no médio do Vale do Rio Paraíba, cuja organização social sofreu com a atuação da
colonização de exploração no século XVIII, caracterizada na região, principalmente, pela
extração do ouro, e foi considerada uma tribo extinta no século XIX (Oliveira, 2019).
Contudo, em 2018, a comunidade de índios Puris de Padre de Brito foi motivo de reunião da
FUNAI na Câmara de vereadores de Barbacena, junto a representantes do sindicato de
trabalhadores rurais para a discussão de políticas públicas destinadas a esta comunidade; isto
nos mostra que os Puris resistem, mesmo apesar de terem sido dados como extintos (Câmara
Municipal de Barbacena, 2018).
Este grupo de caráter nômade nunca aceitou o aldeamento missionário, e até hoje luta
por seus direitos a terra, pertencimento na sociedade contemporânea e identidade enquanto
grupo. Os Puris ainda existem por serem um grupo resistente, que não aceitou a aldeia, correu
para a mata e se escondeu. A resistência pela fuga e deslocamento vêm como marca desta
tribo, em busca de sobrevivência e manutenção de sua liberdade. Contudo, ao fugirem para a
mata suas terras foram consideradas como abandonadas; daí vem a contradição: como um
povo vivo pode ser dado como morto, uma vez que as tribos são facilmente associadas às suas
terras. O nomadismo enquanto característica fez dos Puris uma espécie de indígenas “sem
terras”, pois não eram nelas que eles colocavam a sua segurança, mas sim na capacidade de
deslocamento.
Freud (1913/2006), em “Totem e Tabu” analisa as peculiaridades culturais de
civilizações definidas aqui por ele como selvagens, com análise principal para as interdições
do incesto e parricídio: ele teoriza sobre a forma como tais proibições operam nos povos
selvagens, cuja inserção de leis organiza suas civilizações. É uma obra na qual a intersecção
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entre a antropologia e a psicanálise é evidente, fundamental para uma reflexão acerca da


subjetividade humana para além da civilização urbana. Ele define um totem como:
...um animal (comível e inofensivo, ou perigoso e temido) e mais raramente um
vegetal ou um fenômeno natural (como a chuva ou a água), que mantém relação peculiar
com todo o clã. Em primeiro lugar, o totem é o antepassado comum do clã; ao mesmo
tempo, é o seu espírito guardião e auxiliar, que lhe envia oráculos, e embora perigoso para
os outros, reconhece e poupa os seus próprios filhos (Freud, 1913/2006, p. 22).

Aqui é possível aproximar a concepção do totem à figura de um pai protetor, embora


exista muita diferença na forma de se sentirem protegidos, uma vez que a ligação dos ditos
selvagens com o seu meio ambiente é muito forte: o totem pode ser inclusive representado por
um fenômeno da natureza. O fato é que entre o totem e os membros de uma tribo há uma
relação diferenciada: íntima e especial, de forma que o totem termina por organizar as
relações sociais, na medida em que a partir dele são colocadas as leis. Em última análise, os
totens serviram para diferenciar as tribos umas das outras, na medida em que cada uma
responde ao seu totem, conectando-se com a sua singularidade: ele se torna a insígnia de um
grupo. Há uma identificação entre determinados sujeitos e o seu totem. Como conclusão a
esta forma de organização tribal em torno de um determinado totem, pode-se pensar que a
valorização do coletivo entre os selvagens ganha destaque: a proteção se insere ao grupo e não
a famílias nucleares. Aplicando este pensamento aos indígenas brasileiros, pode-se pensar na
proteção a tribos, cada uma das quais cultiva suas formas de proteção.
Freud (1913/2006) percebe que em algumas populações selvagens a palavra pai, por
exemplo, designa todos os indivíduos capazes de serem pais, a quem assim os chama, e não
apenas o seu genitor em específico. Assim como também ocorre com a palavra mãe. É uma
forma de organização da vida com ênfase no social, e não na família nuclear. Além disso,
também é mencionada a ênfase que povos, definidos pelo autor como primitivos, atribuem a
seus desejos. A crença em um totem está diretamente ligada à valorização das questões do
espírito, oriundas do mundo anímico, voltado à alma e mais distante da materialidade.
Totem e tabu são termos que apresentam, em ordem inconsciente, uma ambivalência
emocional contida numa intensidade de afetos. Há ao menos uma dualidade de correntes de
afeto em torno do totem: uma que provoca veneração, amor, curiosidade, desejo; enquanto
outra provoca repugnância, medo, hostilidade. São-lhe atribuídos poderes superiores, ao
mesmo tempo em que, quando provocam frustração, são-lhe retirados qualquer forma de
poder para dar vez a sensação de hostilidade.
Já para a palavra tabu, Freud (1913/2006) a define como proibições que visam à
proteção. Como exemplo, a obra trabalha o tabu do incesto e do parricídio exercidos contra o
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totem. São proibições às quais as tribos simplesmente seguem, sem levantar objeções; quem
as transgredir estará carregado de um poder perigoso, tal qual uma infecção. Este poder de
transgressão está ligado a pessoas e situações tidas como especiais, excepcionais, ou ainda
misteriosas. Contudo, são proibições que organizam as tribos, e, desta forma, as protegem. O
autor conclui que o incesto é algo que sempre é colocado como parâmetro em tais
organizações: ou ele é proibido ou é autorizado enquanto exclusividade. Já o parricídio não
aparece enquanto aceitável, e é refletido metaforicamente ao final da obra, como um caminho
para a independência e a liberdade: matar o pai e se alimentar de seus poderes.
O tabu, portanto, atua em forte ligação com o mistério ou com a provocação de temor,
ainda que o perigo não seja objetivável; inclusive pelo contrário, o perigo aqui reside justo
na ausência de objetivação: a base do tabu é uma ação proibida, para cuja realização existe
forte inclinação do inconsciente (Freud, 1913/2006, p. 49).

Retomando as colocações sobre as mulheres indígenas, é válida aqui uma reflexão às


proibições associadas às mulheres e ao que é tido como feminino; por exemplo, tabus em
relação à menstruação, à gestação e ao parto. São aspectos que transcendem os imperativos
categóricos universais, na medida em que são exclusivos das mulheres e vividos de forma
muito singular. Vale ressaltar que são condições que despertam sensações de desamparo, o
que, por sua vez, desperta desejos inerentes a uma possível cura para o desamparo. São
muitos os ditos como: não se deve ter relações sexuais com uma mulher menstruada; – entre
as mulheres da tribo Toba, por exemplo, é costume se pintarem de vermelho (urucu) quando
menstruadas, como um método profilático para lidar com os espíritos deste período –. Durante
a gestação e o parto também há uma série de proibições que podem ser vistas como tabus,
pela ausência de clareza; são proibições que visam mais a uma organização social do que de
fato a algum perigo iminente.
Tais situações que despertam tabus são frequentemente tratadas como isoladas do
cotidiano, como exceções, pelo suposto perigo iminente. A pergunta que incide é: se já é
inerente às mulheres situações que despertem tabus pelos seus aspectos singulares como a
menstruação, a gestação e o parto; mulheres indígenas causariam um impacto ainda maior por
viverem de forma não urbana, mais conectada ao transcendental, ao místico, e aos poderes
obscuros e fortes da própria natureza?
Há um fator encantamento, associado ao sobrenatural, vinculado ao corpo da mulher
que pode provocar uma espécie de fascínio. Na cultura brasileira, tal fascínio
costumeiramente é associado à figura da mulher mulata (termo usado, mas contestado
atualmente) aquela que dança no carnaval seminua e provoca a atenção de todos (Ribeiro,
2018). É um fascínio ambíguo: ao mesmo tempo em que encanta provoca certo medo,
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advindo da sensação de mistério e perigo. Embora a mulata seja apenas uma mulher, e a
dança apenas uma forma de expressão corporal, a sensualidade presente no corpo da mulata
provoca um algo além. Pode-se pensar que é justo este além, ligado ao encantamento por uma
imagem, que talvez tenha causado fascínio aos portugueses quando chegaram ao Brasil e
encontraram as indígenas; mulheres de pele morena e cabelos pretos, diferentes das europeias,
cujos hábitos diferentes envolviam andar seminuas em poucas roupas coloridas e exóticas.
Indo mais além, pode-se pensar que este mesmo fator encantamento está envolvido nos atos
de violência que muitas mulheres, inclusive as indígenas, sofrem: pode provocar raiva nos
homens por ser um comportamento que foge do controle e previsibilidade; há um fator
místico envolvido no encantamento que não tem ligação com a anatomia dos corpos e nem
com a ciência: transmite a sensação de mistério. Por si só, é enigmático. Uma vez que alguns
homens tomam as mulheres como sua propriedade para que assim possam exercer controle
sobre seus corpos, o que não é controlável não seria, na cultura da posse, suportável.
O nome do maior Estado do Brasil, que abriga grande parcela da população indígena
nacional, é herança do mito das Amazonas: mulheres cujo nome passou a ser associado às
mulheres guerreiras que talvez tenham habitado aquela região. Diz o mito que as Amazonas
eram mulheres gregas que formaram um reino independente, sob o governo de uma rainha,
entre as quais a primeira foi a rainha Hipólita. O termo “Ama” tem o significado de mãe de
acordo com o dialeto Moso Chinês, e no sentido figurativo denomina cultura matriarcal. As
Amazonas, assim como outros personagens mitológicos, passaram a fazer parte do imaginário
popular associadas a mulheres guerreiras, cuja ousadia lhes permite gozar de liberdade e
condição de igualdade para com os homens. Contudo, vale ressaltar que ainda assim aqui no
Brasil as Amazonas foram vencidas pelo homem explorador, fato que coloca em cena a
ideologia de submissão das mulheres; e outro fato contraditório é que as Amazonas, uma vez
vindas da Grécia, eram de cor branca, assim como o explorador europeu; e ainda um terceiro
fato é que elas cortavam o seio para melhor manusearem o arco e flecha, justo o seio, tão
característico da feminilidade; causando a impressão de que para vencer é preciso
masculinizar-se (Travassos, 2014).
Há uma série de mitos associados aos indígenas da região amazônica, tais como o
Curupira, o Boto, a Iara, o Caipora... As Amazonas são aqui enfatizadas pela sua ligação com
as indígenas, e suas peculiaridades residem na ligação de mulheres à guerra e às armas,
embora sejam arco e flecha, e não armas de fogo. Eram as guerrilheiras que chegavam a
amputar o seio direito para melhor manusear o arco e flecha, o que pode ser interpretado
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como abdicação da feminilidade para melhor guerrear. Outro fato relevante é que,
diferentemente das outras lendas, não se sabe se as Amazonas existiram de verdade:
No tempo da Conquista da América, século XVI, muitos pensaram que a terra das
Amazonas ficasse fisicamente ao sul do rio Amazonas ... pois a expedição espanhola que o
explorou no ano de 1541 relatou ter encontrado uma tribo de mulheres guerreiras que
lideravam com grande coragem os índios da região na luta contra os espanhóis. Foi assim
que o rio ganhou seu nome (Wolff, 2018, p. 424).

Há indícios de que existiam as indígenas guerrilheiras na região do rio Amazonas,


solteiras, matriarcais, de peles claras e prontas para tomar a iniciativa. Contudo, a lenda
parece acrescentar elementos, como o fato delas terem vindo da Grécia, e ainda cortarem o
seio num ato de masculinizar-se para melhor guerrearem; é uma mistura de realidade com
ficção. O fato é que, reais ou não, estas indígenas representaram a liberdade de mulheres, em
tempos de inquisição nos quais mulheres rebeldes e fora dos padrões podiam ser acusadas de
bruxaria e queimadas EM fogueiras na Europa. Agiam com desenvoltura, causavam forte
impressão em quem as acompanhava.
Azelene Kaingáng, mulher indígena, resume sua história de vida em meio à história de
sua tribo num encantador relato, publicado no livro Nova história das mulheres no Brasil
(2018). Nascida no Rio Grande de Sul, sua língua materna é o kaingáng; idioma que chegou a
ser proibido de falar durante a ditadura militar. Ela conta que, durante o “panelão”, almoço
oferecido pelo governo federal nesta época, recebia a comida somente quem falasse “língua
de gente”, e seu avô fazia questão que sua família se mantivesse pedindo a comida em
kaingáng, ainda que pagassem a pena de ter de voltar ao final da fila.
Azelene é socióloga, funcionária pública na Fundação Nacional do Índio, casada com
um advogado indígena do povo wapichana. Sobre casamentos, ela afirma que na sua tribo
ainda é comum as moças fugirem com o namorado para conseguirem se casar. Na sua
maioria, as uniões são monogâmicas e separações são permitidas, embora não incentivadas e,
quando acontecem, é comum os filhos ficarem com as mães. Sua tribo é patrilinear e mantém
uma estrutura muito próxima do patriarcado. Ela menciona tribos, como os tupis, que são
matrilineares: quem dá a identidade aos filhos é a mãe.
Nas tribos patrilineares a liderança política é sempre exercida pelos homens. Também
são eles que passam às crianças noções sobre ritos e a vida coletiva. As mulheres enfrentam
mais diretamente problemas que envolvem saúde, alimentação e educação dos filhos; são elas
que ensinam o dialeto indígena, por exemplo. Quando as mulheres participam na resolução de
questões complexas, é comum fazerem questão de não as comentar, para que assim possam
pensar que a resolução foi feita pelos homens. A situação é mais extrema quando se trata da
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ocupação das mulheres nos espaços políticos; elas só o fazem quando autorizadas pelos
homens.
Aqui temos o exemplo de Muwaji, uma indígena suruwahá que não permitiu que sua
filha Ignani, diagnosticada com paralisia cerebral, fosse enterrada viva; pois, de acordo com a
tradição tribal, a criança deveria ser sacrificada. Contudo, esta não permissão custou a Muwaji
a saída de sua tribo e a adaptação forçada à vida na cidade. Posteriormente, ela foi
homenageada com o projeto de lei n. 1057, aprovado na Câmara dos Deputados em junho de
2011, com a pretensão de criminalizar a prática do infanticídio. Kaingáng (2018) defende que
os direitos humanos devem ser soberanos, em especial quando agem em ligação direta com a
vida.
Para Azelene, o que define uma mulher enquanto indígena tem relação com o
pertencimento: quem se é, filha de quem, neta de quem; e também existe o sentimento de ser
indígena, que precisa ser genuíno – e não uma máscara vestida de forma oportunista para
conseguir benefício de políticas públicas destinadas aos indígenas. Embora mudanças de
comportamento ocorram, como por exemplo, o uso de computadores, a autora ressalta que o
novo pode perfeitamente conviver com tradições e não significa deixar de ser indígena.
Solange Reis, descendente Puri e militante dos direitos indígenas e por
reconhecimento da cultura de sua tribo, é um exemplo da importância das mulheres na luta
por visibilidade e reconhecimento das populações consideradas minorias. Assim como
também Joênia Batista de Carvalho, outro exemplo de mulher da resistência indígena, atual
representante desta população na Câmara dos Deputados, cuja atuação é pautada no cuidado
em defender a ênfase da diferença cultural indígena, sem diminuir a categoria de cidadãos
iguais em termos de direitos constitucionais. Joênia criou a Frente Parlamentar Mista em
Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, composta por duzentos e dezenove deputados e
vinte e nove senadores. Ela ainda é a primeira mulher indígena advogada do Brasil e atua
defendendo suas comunidades desde os vinte e quatro anos de idade, com destaque para sua
atuação em defesa da demarcação de terra na comunidade Raposa Serra do Sol. Joênia já
atuou na Comissão Interamericana de Direitos Humanos em Washington, nos Estados
Unidos, para denunciar violações por parte do Brasil e, em 2011, foi a primeira indígena a ser
Mestre por uma Universidade nos Estados Unidos.
Joênia ressalta que o Estado brasileiro falha, principalmente em não ter políticas
específicas para as mulheres indígenas, por exemplo, em relação à gestação e aos partos; sua
irmã inclusive faleceu logo após parir. Ela ressalta que políticas de proteção precisam ser
vistas como direitos, e não como assistencialismo, e que a diferença do indígena aos demais
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está justamente na incapacidade de deixar de ser indígena, mesmo que viva em uma cultura
urbana; há uma impossibilidade de aculturação enfatizada por ela, que precisa ser considerada
enquanto direito civil (Geremias, 2019).
Em 2011 houve o lançamento, pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate
à Fome, da cartilha de cadastramento das famílias indígenas, com o objetivo de efetivar um
real acompanhamento das famílias indígenas existentes para que elas possam estar inclusas
nos programas sociais do Governo Federal. É uma forma de proteção às famílias indígenas e
direito ao exercício da cidadania plena.
O cadastramento facilitou a localização das famílias indígenas e, também, de seus
problemas, com destaque à vulnerabilidade das suas mulheres. Segundo a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, as mulheres indígenas são vítimas de violência em
contextos específicos como: privação de liberdade; violência doméstica; contra defensoras de
direitos humanos; em conflitos pelos seus territórios; em contextos de conflitos armados; no
meio urbano e no contexto de migração e deslocamento; em órgãos jurídicos tanto indígenas
quanto estatais. Nos órgãos indígenas podem sofrer preconceito advindo da ideologia
patriarcal que limita sua participação e representatividade; nos órgãos estatais, além disto,
sofrem preconceitos raciais (CIDH, 2019).
A Organização das Nações Unidas (ONU), uma das instituições responsáveis pela
garantia dos direitos humanos, em 2008, lança a Declaração sobre os Direitos dos Povos
Indígenas. Apoiada nesta, no mesmo ano, a ONU Mulheres inaugura o projeto Voz das
Mulheres Indígenas, em parceria com a embaixada da Noruega, com o objetivo de
empoderamento, mobilização social e participação política de mulheres indígenas de diversas
etnias nacionais. O projeto foi fruto de mais de um ano de coleta de informações junto às
mulheres de mais de cem tribos, de forma que pudesse ser estabelecida a pauta nacional
comum para a garantia dos direitos humanos e bem-estar das mulheres. Dez eixos compõem a
pauta: violação dos direitos das mulheres indígenas, incluindo a violência de gênero;
empoderamento político; formação de uma estratégia de incidência política; direito a terra e
processos de retomada; direito à saúde, educação e segurança; direitos econômicos; tradições
e diálogos intergeracionais; comunicação e processos de conhecimento; processos de
resistência; sustentabilidade e financiamento (ONU Mulheres, 2018). Este projeto culminou
no documentário: “Mulheres Indígenas: Vozes por Direito e Justiça”. O vídeo foi produzido
pelo grupo temático de Gênero, Raça e Etnia da ONU Brasil e pelo Centro de Informação das
Nações Unidas para o Brasil, com apoio da Embaixada do Canadá, como parte das ações da
ONU pelos setenta anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
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Foi um exercício de identificar precisamente os problemas das mulheres indígenas,


discuti-los e torna-los visíveis como algo a ser problematizado. Desta forma, elas puderam se
colocar como importantes em termos de respeito por suas especificidades e necessidades de
políticas públicas de proteção que garantam seus bem-estares e de suas novas gerações. Um
apoio aos seus pré-natais e seus partos, por exemplos, são questões urgentes, uma vez que
acesso a carros e uso de hospitais, caso necessário, não são algo simples a elas. Em
consequência, o desamparo às jovens mães indígenas é um fato que leva a altas taxas de
mortalidade materna. O acesso à educação também é dificultado devido à distância geográfica
e, quando este problema é superado, também existe a barreira do idioma: as escolas raramente
se adaptam aos dialetos indígenas, o que obviamente dificulta também o acesso ao mercado
de trabalho.
Infelizmente, a visão das mulheres indígenas como seres “menores”, que merecem
menos cuidados ao chegar a um hospital, por exemplo, em detrimento das mulheres de
descendência europeia, é algo real. O indígena, frequentemente, é visto como um animal,
menor em importância do que o homem branco; a mulher indígena sofre o duplo preconceito,
de gênero e de raça. Além disso, qualquer ser humano ao lutar pelos seus direitos está
vulnerável a sofrer ataques como se estivesse cometendo algum crime, pois é muito mais
cômodo aos líderes autoritários que as minorias oprimidas se mantenham caladas.
Dentre os principais crimes cometidos contra as comunidades indígenas no mundo, a
maioria é violência contra as suas mulheres (Rosa, 2019). Dados da ONU mostram que ao
menos uma em cada três mulheres indígenas são estupradas ao longo da vida. O estupro vem
do homem branco, geralmente associado ao consumo de álcool, ações que desestabilizam a
harmonia social das aldeias. Inclusive o estupro pode ser considerado estratégico, pois
desmoraliza a comunidade e levanta o discurso sobre uma “necessária limpeza étnica”. O
Mato Grosso do Sul é o estado com a segunda maior população indígena do país. Em 2010,
foram registrados cento e quatro casos de agressões físicas contra as mulheres indígenas. Esse
número subiu para seiscentos e dezenove casos em 2014, e os números mostram que o
percentual de boletins de ocorrência vem ainda subindo nos últimos anos; sem contar casos de
violência psicológica e social que não costumam ser contabilizados - embora estejam listados
na Lei Maria da Penha, em vigor desde o dia 22 de setembro de 2006.
Diante desse aumento expressivo, o Núcleo de Proteção e Defesa dos Direitos da
Mulher da Defensoria Pública do Estado do Mato Grosso do Sul optou por distribuir cartilhas
às mulheres indígenas das tribos Terenas e Guaranis, nas quais constam os artigos da Lei
Maria da Penha, traduzidos nos seus dialetos. O órgão também tomou providência para que as
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cartilhas fossem lidas nas escolas, tanto para as meninas quanto para aos meninos. A
conscientização de que a Lei Maria da Penha é um benefício do Estado do qual elas podem
usufruir, embora possa parecer óbvia, não o é em populações oprimidas. As mulheres
indígenas, mesmo conhecendo a lei, podem ter dificuldades de se reconhecerem nela, uma vez
que temem pela desestabilidade da realidade em que vivem.
Em 2018, o presidente da Fundação Nacional do Índio, Franklimberg de Freitas,
comemorou o crescimento da atuação de mulheres dentre as lideranças das comunidades
indígenas e cacicas. Ele afirma que este crescimento é fruto de inovação nos órgãos públicos,
como a criação de uma coordenação específica de gênero para as mulheres indígenas, o que
resulta na melhoria de suas qualidades de vida.
Estas mulheres líderes estão fazendo história em ações fundamentais, como a busca
pela demarcação e proteção das terras de seus povos, a luta pelo fim da violência de gênero
nas comunidades indígenas e pelo fim da discriminação para a profissionalização. A grande
esperança é ver um número representativo de mulheres indígenas ocupando postos de
liderança política, de modo a seus discursos ganharem visibilidade e representatividade
nacionais (Funai, 2018).
É importante ressaltar que feminicídios também acontecem dentre as mulheres
indígenas. Em 2017, a índia Roseane Dantas foi assassinada pelo marido na aldeia Pitaguary
de Monguba. A articulação de mulheres indígenas do Ceará então organizou um ato de
repúdio ao feminicídio (Asa CE Mulheres, 2019). Mobilizado pela causa, o Esplar, Centro de
Pesquisa e Assessoria, promoveu um seminário sobre as causas da violência doméstica, sobre
a aplicação da Lei Maria da Penha e formas de proteção às mulheres. Participaram do
seminário cerca de cinquenta mulheres das etnias Tremebé, Pitaguary, Anacé, Jenipapo-
Kanindé, Kanindé e Tapeba. A advogada Magnólia Said e a antropóloga Cinthia Moreira,
técnicas do projeto “Fortalecendo povos indígenas” mediou o debate que aconteceu em
novembro de 2020. O evento foi uma oportunidade de compreensão por parte das mulheres
indígenas de como acontece a violência contra as mulheres e quais são as possíveis formas de
superá-la.
É necessária a construção de um Estado realmente democrático onde possam coexistir
populações de costumes distintos, porém com a mesma dignidade em representação sobre
direitos humanos. Aqui direito não deve ser compreendido apenas como um sistema de
legalidades, mas também como um conjunto de ações efetivas, promovidas para superar
movimentos de opressão racial e de gênero, como forma de superá-los.
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De acordo com a indígena atual deputada, Joênia Batista de Carvalho, ser indígena é
uma condição da qual não se define com uma ou mais ações; pode ser pensada como um
estado de alma. Se a mulher passa a usar roupa, não por isso ela deixa de ser indígena; se
deixa de falar a língua materna, também não é o que define que deixou de ser indígena.
Contudo, a mulher sofre este tipo de vigilância e preconceito a todo momento, o que também
é uma forma de violência. Joênia afirma que ela pode morar em qualquer parte do mundo e
passar a se adaptar a alguma outra cultura que, mesmo assim, ela não deixará de ser indígena.
No Brasil, as mulheres indígenas costumam enfrentar formas diversas de
discriminação histórica em termos de violação de seus direitos humanos, civis e políticos. A
discriminação dupla que sofrem, de raça e de gênero, torna-as vulneráveis à violência e à
impunidade dos agressores, uma vez que forma o estereótipo da mulher indígena como vítima
fácil. Dentre os inúmeros obstáculos que as mulheres indígenas enfrentam no Brasil estão:
exclusão social; poucas oportunidades de acesso ao mercado de trabalho; dificuldades
econômicas e geográficas de acesso aos serviços de saúde e educação; pouca
representatividade no cenário político e marginalização social.
É necessária a garantia aos povos indígenas de determinar livremente seu
desenvolvimento econômico, social e cultural, de forma que possam assegurar-se
subjetivamente enquanto povos diferenciados. Cabe ao Estado avaliar os aspectos culturais
que caracterizem a população indígena, principalmente suas mulheres, sua cosmovisão e seu
conceito de justiça para uma efetiva inserção social democrática. O governo deve adotar
estratégias para facilitar o empoderamento, possibilitar sua participação nas esferas civis e
política e melhorar sua situação socioeconômica. É necessário romper preconceitos e
estereótipos.

4.2 - As feministas e o poder

4.2.1 - A caça às bruxas

A resistência das mulheres em relação a movimentos opressores, que as retiram


direitos sociais e políticos, sempre existiu. Tais movimentos configuram-se tanto em exclusão
das mulheres, enquanto serem participantes do laço social, como também em exclusão do
corpo físico, nos assassinatos de mulheres devido ao gênero, hoje chamados de feminicídios.
Contudo, sempre houveram algumas mulheres que não estavam em consonância com os
mandamentos sociais. Através de consulta de registros, podemos colocar que as mulheres
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denominadas de bruxas durante a idade média foram as primeiras a fazerem resistência num
movimento que, ainda que não organizado, ganhou formato e consolidou-se enquanto
oposição às mulheres que se organizavam em torno do absolutismo europeu. Tais mulheres,
as bruxas, foram duramente perseguidas num movimento historicamente denominado de caça
às bruxas, que percorreu quase toda a Europa, tendo início durante a transição do período da
Idade Média para a Idade Moderna, alastrando-se por muitos anos (Federici, 2017).
Durante o período feudal medieval, eram os Senhores, proprietários dos feudos, que
decidiam sobre o trabalho e sobre as relações sociais das mulheres. Contudo, elas eram
autorizadas a trabalhar nas terras e podiam dispor dos frutos do seu trabalho, ou seja, não
necessariamente dependiam dos maridos para se manter. Ressaltando que, nesta época, as
relações coletivas prevaleciam sobre as relações familiares, havia uma cooperação e
solidariedade entre as mulheres em meio a suas atividades de lavar, fiar, colher, cuidar dos
animais (Federici, 2017). Muitas vezes elas trabalhavam nos comércios locais, nas cidades
medievais, como açougueiras, padeiras, cervejeiras. Embora a igreja católica pregasse pela
submissão da mulher e ainda autorizasse o direito do marido de bater na esposa, pode-se dizer
que nem tudo se resumia a este pensamento na vida delas; elas eram cidadãs que partilhavam
vidas.
Contudo, esta mesma igreja católica passou a usar o termo heresia como acusação aos
indivíduos mal comportados, àqueles que recusavam a subordinação social, política e
religiosa. Foi criada pela igreja a inquisição, também chamada de Santo Ofício, para controlar
que as práticas consideradas hereges não acontecessem. Tudo o que estivesse contra as
decisões da igreja era considerado heresia: o infanticídio era uma heresia equiparada ao aborto
e à sodomia (sexo anal); considerados crimes reprodutivos.
Deste movimento resultou um grande controle político sobre a sexualidade, cuja
função fora da reprodução era vista como dos piores crimes. A igreja passa a constatar que o
poder da mulher residia justamente aí, em exercer influência sobre o desejo sexual dos
homens; e então age com a extrema repressão para exorcizá-lo; as mulheres deveriam ser
evitadas, e a sexualidade só podia ser falada se fosse para confissão.
Ainda de acordo com Federici (2017), autora que é uma grande representante do
feminismo atual, no século XV, marco do final da idade média, movimentos contraditórios
como a descriminalização do estupro acontecia em países como a França, quando eram
cometidos contra mulheres proletárias solteiras. Tal acontecimento criou um clima
extremamente misógino, que abalou o que existia de solidariedade construída no sistema
feudal. Também insensibilizou a população para a tão enraizada violência contra as mulheres;
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o que, em junção com o pensamento da mulher como perigosa, provocadora do sexo –


pensamento colocado pela igreja – preparou o terreno para o fenômeno subsequente de caça
às bruxas. Neste cenário, o estupro e a prostituição passam a ser vistos como legítimos, a
partir de preceitos embasados contra a sodomia e as práticas hereges; a prostituição entra
como a possibilidade de barrar tais práticas; e assim proteger a vida familiar – era considerada
menos perigosa.
Os primeiros julgamentos de bruxaria ocorreram no final do século XIV, por parte da
igreja que passou a localizar a existência de heresia, algo que seria próximo do demônio e
atribuído ao feminino. Com o início do mercantilismo ao longo do século XVII, houve pela
primeira vez a concepção de ser humano como um recurso natural a serviço do estado, para o
qual devia vender a sua força de trabalho. Um desejo de aumentar a população começou a
acontecer, sinônimo de mais força de trabalho. A família surge com mais força, pois seria a
mantenedora da propriedade e da reprodução da força de trabalho; era o embrião de uma
política capitalista (Federici, 2017). Neste contexto, as mulheres enquanto donas de seus
corpos, capazes de controlar a atividade reprodutiva, eram a representação de uma ameaça a
ser combatida. Havia vigilância para que as mulheres não interrompessem a gravidez, por
exemplo, e de combate às mães solteiras, não lhes dando qualquer apoio. As parteiras perdem
lugar à entrada dos médicos nas salas. Era um terreno fértil à caça às bruxas, fenômeno que
aqui ganha força declarando uma verdadeira guerra contra as mulheres, as quais eram
acusadas de crimes horrendos, como sacrificar crianças ao demônio. O resultado desta caça
foi um grande controle político do estado e dos homens sobre os corpos das mulheres,
representações de seus úteros.
Nessa época, as mulheres haviam perdido espaço em diversos âmbitos sociais,
inclusive em empregos que haviam tradicionalmente ocupado, como a fabricação de cerveja e
a realização de partos. As proletárias, em particular, encontram dificuldades para obter
qualquer emprego além daqueles com status mais baixos: empregadas domésticas (a ocupação
de um terço da mão de obra feminina), trabalhadoras rurais, fiandeiras, tecelãs, bordadeiras,
vendedoras ambulantes ou amas de leite. Ganhava-se espaço a suposição de que as mulheres
não deviam trabalhar fora de casa e de que tinham apenas que participar na produção para
ajudar seus maridos (Federici, 2017, p. 182).
A carreira para a mulher seria, portanto, o casamento; já que ainda que ela conseguisse
trabalhar, ela iria inevitavelmente ganhar pouco quando comparada aos homens. Além disso,
as mulheres que trabalhavam passaram a ser julgadas pejorativamente, denominadas de
“putas” e “bruxas”. A pobreza passa a ser feminizada.
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É importante ressaltar que a caça às bruxas exerceu papel fundamental na degradação


da imagem da mulher e em sua consequente função social. A associação feita entre mulheres
e seres demoníacos, capazes de crimes atrozes, deixaram marcas indeléveis na sociedade e no
mundo psíquico em termos coletivos. Restringiram às mulheres seu senso de possibilidades,
suas formas de se colocarem no mundo: durante cerca de dois séculos, centenas de mulheres
foram mortas de forma brutal, queimadas em fogueiras, torturadas. Tal dimensão de
acontecimentos não ganhou a devida proporção nem em divulgação, muito menos em punição
e responsabilização de criminosos. Embora tenham existido publicações a respeito, o silêncio
indica que não houve a devida penalidade a tais crimes, e nem mesmo a devida indignação no
nível público.
Como um fato histórico, a caça às bruxas foi um marco de transição ao capitalismo e à
cultura de acumulação primitiva decorrente. Os países mais afetados foram a França,
Alemanha, Suíça e Itália, porém os crimes percorreram toda a Europa. A feitiçaria foi
determinada uma forma de heresia, ou seja, um crime contra Deus e contra o Estado, sem
mesmo não existir uma definição clara para o que se queria dizer com feitiçaria. Ela, por si só,
já era considerada um crime; ou seja, não eram os possíveis danos causados por feitiçaria.
Seria algo similar ao crime considerado de terrorismo atualmente, ou crime de “lesa-
majestade”, do código inglês do mesmo período. Filósofos de grande importância, a princípio
adeptos do ceticismo, tais como Thomas Hobbes e Jean Bodin aprovaram a perseguição às
bruxas como forma de controle social; talvez em reposta a um resguardo pela ciência
incipiente. O ápice foi entre os anos de 1580 e 1630.
As “bruxas”, na maioria das vezes, eram mulheres mais velhas, viúvas, sozinhas,
agressivas ou vigorosas, prontas para tomar a inciativa. Quando casadas, seus maridos eram
trabalhadores diaristas. Viviam da assistência pública ou até mendigando. Contudo, também
haviam homens acusados de bruxaria, em minoria.
Federici (2017) conclui que
... a caça às bruxas na Europa foi um ataque à resistência que as mulheres
apresentaram contra a difusão das relações capitalistas e contra o poder que obtiveram em
virtude de sua sexualidade, de seu controle sobre a reprodução e de sua capacidade de cura.
(p. 305).

Ao colocar o controle em primeiro plano, numa tentativa de controlar o trabalho, a


natureza e a acumulação; a organização capitalista devia de fato rejeitar qualquer ato da
ordem do imprevisível, tal como era a vida das mulheres sozinhas, que se viravam em seus
saberes para sobreviver. A magia e a capacidade de estabelecer uma relação com elementos
naturais não era condizente com o capitalismo emergente, uma vez que não são controláveis,
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generalizáveis, muito menos exploráveis. A magia fica como uma espécie de insubordinação,
um instrumento de resistência. Soma-se a isto a capacidade de controlar o aumento
populacional, já que a mulher pode escolher entre gerir ou não; o que não era interessante para
a mentalidade de acumulação primitiva, que queria exercer controle sobre os corpos.
Vale ressaltar que a caça às bruxas também pode ser vista como uma forma de
controle sobre a sexualidade feminina. Para que mulheres não arruinassem os homens
moralmente, ou financeiramente, deviam ser eliminadas. Sua capacidade de sedução, de
levantar um pênis ou fazê-lo cair aparentemente à sua vontade, era vista como perigosa
demais.
Devido à escassez de registros e diferenças na forma de conceber o uso dos termos –
ao longo do tempo e da construção de referenciais epistemológicos – não podemos chamar as
“bruxas” de feministas. Contudo, podemos pensar que estas mulheres, consideradas hereges,
mostraram formas de resistência a normas de conduta impostas socialmente, num movimento
semelhante ao que mais tardiamente veio a ser chamado de feminismo. Esta forma de
resistência ilustra que, desde a Idade Média, o controle sobre os corpos não era exercido de
forma naturalizada sobre todas as mulheres.

4.2.2 – O feminismo após a revolução francesa

Avançando ao final do século XVIII e suas transformações, o feminismo, enquanto


movimento organizado e nomeado, é herdeiro da revolução francesa; revolução que teve
repercussão mundial e foi a responsável por estabelecer novas formas de organizações
político-sociais, com base principalmente na ideia de distribuição do poder. Assim, ocorreu a
queda da monarquia francesa, seguida pela queda de diversos outros regimes monárquicos,
caraterizados por abuso de poder e de regalias por parte da família real. Deixou-se de admitir
que o poder é algo simplesmente herdado, mas sim fluido e criado. Não foi por acaso que este
pensamento permitiu a existência da ideologia feminista, a qual traz a possibilidade de poder
para as mulheres.
O discurso feminista abala a premissa de que o homem pode exercer poder sobre a
mulher; pois abala a premissa de que a mulher é submissa a ele, e deve a ele obedecer e
consentir. A concepção de que é possível ao homem exercer a sua autoridade sobre a mulher
para discipliná-la dominou por milênios, e ainda é muito forte, apesar do discurso feminista
também ser forte. E é essa concepção de autoridade do homem sobre as mulheres que autoriza
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abusos e violência moral, psicológica e física; sob argumento de submissão e necessidade de


educação do homem sobre elas.
Foucault (1979) teoriza sobre as relações de poder. O autor afirma que o poder não
deve ser visto como uma coisa que tem materialidade por si só; o poder está na relação,
envolve uma construção social. O poder é algo que se exerce, que se efetua. Se os homens o
exercem, é porque assim se colocam neste direito: cabe a mulher também se colocar. O
pensamento do autor vai de encontro ao pensamento feminista trazido neste texto com a
representante francesa Simone de Beauvoir, reconhecida mundialmente por ter influenciado
todo o ocidente com o feminismo no século XX, inclusive o Brasil. A autora critica as
mulheres que não se posicionam, sendo assim coniventes com o pensamento de que a mulher
não é autora da própria vida e de seus papéis sociais. Quem não participa do discurso social
ocupa o lugar cômodo dos mortos que em nada precisam se implicar.
Tais discursos, trazidos tanto por Foucault quanto pelas feministas, são fundamentais
para problematizar e rever os papéis das mulheres ocidentais, para uma abertura que permita
às mulheres escolherem suas formas de vida. Hoje as mulheres se colocam como donas de
casa, chefes de família, gestoras de empresas, operárias de obra, devido a estes discursos.
Contudo, não se pode esquecer que houve uma construção social de milênios que
colocou os homens no poder e que discriminou as mulheres, construção que não se modifica
em poucas décadas. Os homens durante uma grande maioria dos anos anteriores foram os que
tiveram o encargo de dizer o que era verdadeiro, e a verdade está sempre ligada a sistemas de
poder, que a induzem e a apóiam. Desta forma, trata-se de ver como são produzidos efeitos de
verdade a partir de discursos que pelas meras palavras não trazem nada de verdade em si
mesmos, ou seja, o conceito de verdade vai além tanto da dicotomia entre o verdadeiro e o
falso, quanto da dicotomia entre a verdade e a mentira.
A palavra opressão é comumente usada em contextos de relações de poder, nos quais
uma pessoa, ou um grupo, age para com outra pessoa, ou outro grupo, sem levar em
consideração as características subjetivas deste outro; ou seja, considera apenas a
subjetividade própria, os seus interesses pessoais. Ribeiro (2018) afirma que “opressão é
quando um grupo detém privilégios em detrimento de outro” (p. 42).
A primeira onda de movimento feminista é caracterizada pela entrada de mulheres em
massa na vida pública, ao final do século XIX e início do século XX, em diversos países da
Europa e da América, bem como fora delas, como a Austrália, Nova Zelândia, Rússia,
Bulgária, Ucrânia, Hungria, dentre outros. Tal entrada vinha reivindicar principalmente o
sufrágio – direito ao voto – e a isonomia, igualdade perante a lei como um todo. Estes pontos
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compunham reivindicações tais como: autodeterminação sexual e profissional, bem como


melhorias nas condições do trabalho; acesso à educação formal; reforma do direito
matrimonial, visando erradicar o tratamento diferenciado perante o adultério, bem como
perante os bens da esposa; liberdade religiosa. O movimento ganha forma em passeatas,
panfletagens, greves, grandes mídias e movimentos intelectuais, como congressos (Zirbel,
2021).
Dentre discursos feministas que se destacam no Brasil nesta primeira onda, cenário de
mudanças do final do século XIX, uma mulher chama atenção por ideias vanguardistas e
termina considerada símbolo do feminismo, aliada ao movimento sufragista: Leolinda Daltro.
Foi uma baiana que viveu no Rio de Janeiro, onde criou seus cinco filhos separada do marido.
Além de lutar por direitos das mulheres, ela também se destacou na luta por direitos dos
indígenas, outro grupo com dificuldade de inserção política e social. Ela propôs um projeto de
alfabetização dos indígenas, porém sofreu fortes perseguições e ridicularizações por parte da
imprensa. Outra pauta de Leolinda e suas seguidoras feministas da época era por melhores
condições de trabalho às mulheres, pois elas eram desqualificadas e exploradas com salários
muito inferiores aos dos homens (Schumaher & Ceva, 2015).
No início do século XX, outro nome que virou influência foi Bertha Lutz, botânica que
havia vivido na Europa de onde trouxe ideais de vanguarda em relação aos direitos das
mulheres. Em 1918, ela fundou a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher. Era um
grupo de discussão pensado para pressionar parlamentares, cujas primeiras ações
empreendidas estavam relacionadas ao direito ao voto das mulheres. Posteriormente, a liga foi
renomeada de Liga pelo Progresso Feminino. Com habilidade política e capacidade de
concretizar alianças, a Liga foi conquistando adesões.
Após pequenas conquistas da Liga na sensibilização de governos como o do Rio
Grande do Norte, por exemplo, a incluir o voto feminino em pauta, a conquista que repercutiu
em nível nacional foi a de Maria Ernestina Carneiro Santigo Manso Pereira, conhecida como
Mietta Santiago, advogada e feminista mineira. Ela conseguiu com mandado de segurança
baseado na Constituição o direito de votar e concorrer ao cargo de deputada federal. A
Constituição de 1891 dizia em um de seus artigos que considerava eleitores os cidadãos
maiores de 21 anos que se alistassem na forma da lei.
Foi após a Revolução de 1930, durante a Era Vargas, que alguns decretos
regulamentaram o trabalho das mulheres e a licença-maternidade. Após intensa campanha
nacional pelas feministas, em prol da conquista dos direitos das mulheres, o decreto que
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autorizou o voto deste grupo entrou em vigor em vinte e quatro de fevereiro de 1932; grande
marco cultural político do Brasil.
O nome de Bertha Lutz volta à cena quando, em 1975, o governo a convida para ser
uma das representantes do país no Congresso Internacional da Mulher, ocorrido no México;
cujo marco foi a institucionalização, pela ONU, do ano internacional da mulher.
Vale ressaltar que, embora a participação das mulheres na política seja uma conquista
concreta, a participação ainda é discreta, principalmente quando analisados os cargos mais
altos; por exemplo, Dilma Rousseff foi a única presidente eleita do Brasil, em mais de cem
anos de república. Foram necessários muitos anos para que as mulheres chegassem à Suprema
Corte no país e, embora algumas poucas mulheres estejam ocupando este cargo, nunca uma
mulher negra foi nomeada Ministra das Cortes Supremas (Schumaher & Ceva, 2015).
Atualmente, as representantes mulheres do Supremo Tribunal Federal são Rosa Maria Pires
Weber e Carmen Lúcia Antunes Rocha.
Ribeiro (2018) afirma que a primeira onda do movimento feminista no Brasil ocorreu
no século XIX, por manifestações principalmente sufragistas; enquanto a segunda onda no
país foi na década de setenta, formado principalmente por professoras universitárias, no
cenário de crise da democracia, cujas reivindicações principais das mulheres estavam em
torno de melhores condições de trabalho, contra a ditadura militar; liberdade sexual e contra a
violência neste âmbito.
A respeito da segunda onda feminista, antes dela chegar ao Brasil, já havia
conquistado outros países. Simone de Beauvoir, francesa, companheira de Sartre, foi a grande
precursora desta segunda onda feminista. A partir da publicação de sua grande obra O
segundo sexo em 1949, dividida em dois volumes, suas ideias são estudadas até hoje, pois
trazem uma abertura para reflexões a respeito não apenas da discriminação das mulheres
como também a respeito das divisões de gênero em masculino e feminino. Beauvoir (2016a,
2016b) traz mais reflexões sobre o que é ser mulher do que possíveis soluções à discriminação
que gira em torno deste sexo biológico, permitindo a elaboração de perguntas fundamentais
no que tange a grande questão sobre as insígnias da construção da feminilidade. A grande
contribuição da autora foi destacar que não há uma essência inata sobre a feminilidade: ser
mulher, assim como ser homem, são construções atingidas quando ambos alcançam a
liberdade, por meio de relações: a existência precede a essência.
Ela afirma que o movimento feminista é alinhado da luta de classes e retoma fatos
históricos como o episódio de 1879, em que o congresso socialista proclama a igualdade dos
sexos evidenciando a aliança feminismo-socialismo, pois é a partir da emancipação dos
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trabalhadores em geral que se espera a emancipação e liberdade das mulheres – embora na


prática isto não tenha acontecido. As reivindicações das burguesas – palavras da autora – não
eram tão alinhadas; elas lutavam por direitos relacionados a costumes, como supressão da
literatura pornográfica e da prostituição; são direitos mais específicos quando comparados a
uma reorganização social. Neste contexto, a Nova Zelândia foi a pioneira em conceder às
mulheres a plenitude de seus direitos, em 1893, seguida da Austrália em 1908.
No primeiro volume da obra, a autora traz dados de outras espécies animais com
intuito de mostrar casos de intersexualidade. Quando ela cita os peixes em reprodução, por
exemplo, Beauvoir (2016a) diz que:
Os peixes não se juntam, quando muito alguns se esfregam um contra o outro, para se
estimular. A mãe expulsa os óvulos; o pai expele o sêmen: idêntico é o papel de ambos.
Não há razão para que a mãe, mais do que o pai, reconheça os ovos como seus. (p.47).

Com isto, vemos que há uma tendência a um nivelamento entre macho e fêmea, o qual
intriga, pois remete a um incômodo a respeito de como a diferença entre sexos é pensada entre
os humanos. Talvez o incômodo da autora tenha origem na rigidez do binarismo: são papéis
atribuídos a homens, enquanto grupo equivalente; e mulheres, enquanto grupo equivalente,
durante o século XIX, o qual precedeu a autora. Tal rigidez desconsidera as singularidades,
dinamismos e construções de identidades; desconsidera, por exemplo, que ser mulher é uma
construção singular, a qual ocorre de acordo com raça, sociedade, política, cultura, religião,
ideais de família e de vida. Ou seja, de acordo com a autora deve ser uma construção que
respeite a singularidade, não deve obedecer a mandamentos sociais burgueses. Cada mulher
será única, assim como cada homem também o será.
Isto quer dizer que atributos inerentes as mulheres, como gerir, amamentar, não devem
ser enaltecidos de forma espetaculosa, pois seria uma recusa a enxergar toda a dificuldade
envolvida no puerpério: a recuperação da vitalidade da mãe é desgastante, ao mesmo tempo,
esta mulher deve amamentar, o que envolve disposição física na melhor das hipóteses, pois a
amamentação pode também ferir o seio da mulher, deixa-la com febre, principalmente em
casos em que há apedrejamento de leite.
Outra questão que Beauvoir (2016a) ressalta são as alterações hormonais pelas quais a
mulher passa, poucas vezes consideradas quando se trata das atividades, por exemplo, de
trabalho das mulheres. Não é comum as mulheres ocuparem os postos altos de trabalho – o
que é muito nítido no âmbito político – devido a discursos sem embasamento que
desvalorizam a competência feminina para cargos de alta responsabilidade; contudo não se
coloca em discussão as necessidades das mulheres em ocuparem-se ao mesmo tempo de
71

serviços de maternagem e serviços de trabalho sem condições apropriadas para isso. O que de
fato são dificuldades inerentes à mulher como gestação, puerpério, alterações hormonais
principalmente no período menstrual, não são falados, não são problematizados; enquanto
questões que são atribuídas às mulheres por puro preconceito, como dificuldade de assumir
posição de poder são a todo tempo falados, com uma naturalidade mórbida. Quando as
questões inerentes à mulher são trazidas, o que é raro, são trazidas para justificar postos
menores de trabalho devido à gravidez, por exemplo; grande absurdo e preconceito. Não se
olha de fato para as diferenças e singularidades que habitam o corpo da mulher, com o devido
cuidado.
Isto comprova que, para não lidar com o outro sexo em sua real diferença, ou ainda
para não lidar com o outro enquanto alteridade, a sociedade masculina diminui este outro
sexo, denigre sua imagem. Colocar o outro como menor, incapaz, é uma forma de não lidar
com a, de fato, diferença. O diferente é o que abala o narcisismo da sociedade masculina, e as
mulheres foram inscritas no discurso, principalmente católico, como o Outro sexo.
Sobre a menstruação das mulheres, Beauvoir (2016a) afirma que foi com o advento do
patriarcado que o sangue menstrual passa a ser visto como sujo, e até carregado de poderes
sobrenaturais. Tudo isto por que o sangue menstrual é um objeto metonímico que pode
representar a feminilidade? É por isso que põe em perigo quem com ele entra em contato?
Diversos mitos já foram construídos para lidar com a menstruação, ao longo de tribos e
civilizações:
Entre os Aleutas, se o pai vê a filha quando das primeiras regras, ela pode ficar cega
ou muda. Pensa-se que, durante esse período, a mulher é possuída por um espírito e
carregada de forças perigosas. Certos primitivos acreditam que o fluxo é provocado pela
picada de uma cobra, pois a mulher tem com a serpente e o lagarto suspeitas afinidades: o
fluxo participaria do veneno do animal rastejante. O Levítico compara o fluxo menstrual à
gonorreia; o sexo feminino sangrento não é apenas uma ferida, é uma chaga suspeita...
Fruto de perturbadoras alquimias interiores, a hemorragia periódica da mulher acerta-se
estranhamente ao ciclo da lua: a lua tem também caprichos perigosos. A mulher faz parte
da terrível engrenagem que comanda o movimento dos planetas e do Sol, é presa das forças
cósmicas que regulam o destino das estrelas, das marés, e cujas irradiações inquietantes os
homens têm de suportar (Beauvoir, 2016a, págs. 211 e 212).

Além destes tabus, ainda há um outro dizer rigoroso de que não é permitido ter
relações com as mulheres quando elas estão menstruadas, cuja prerrogativa precisa ser
seguida sob ameaça de punição, no caso do Levítico e das leis de Manu – legislações de
cunho religioso católico, por exemplo. Ao que parece, o homem procura dissociar este
aspecto da feminilidade, ligado à maternidade, da mulher; e se afasta dela nos períodos
72

associados ao seu papel reprodutor: durante a menstruação, a gravidez e quando amamenta. A


sexualidade do homem tende a dissociar a mãe da esposa.
A mesma autora afirma que o marido ama a esposa, enquanto ela lhe pertence. Ela
conclui que é isto que o faz a suportar enquanto outro: ela é dele. Enquanto ela for sua, ele a
reconhece como semelhante e pessoa na sua dignidade. O casamento e a procriação entram
como uma força defensiva para não lidar com o erotismo e seus malefícios, sendo a imagem
da mulher grande representante do erotismo e da magia; profundamente domesticada dentro
da família patriarcal. Em junção com a igreja, ela se torna santa abençoada.
Outra saída apontada pela autora, como uma espécie de caricatura de outro tipo de
mulher que quer ser aceita pelo homem sem renunciar à sexualidade, é a mulher que se coloca
inútil fora do amor; estúpida e submissa, aceita docilmente prazer e dinheiro, nunca pede
nada. Caso ela adquira pretensões de ter opinião sobre discursos, e trazer razão na sua fala
torna-se irritante. Por isso, mesmo que ela não seja de fato estúpida, ela finge. É a mulher feita
para entregar-se, não para possuir.
Para além de Beauvoir, vale ressaltar que a segunda onda feminista mundial teve como
legado a nomeação do ano de 1975 como o “Ano internacional da mulher”, pela ONU, e da
década das mulheres (1976-1985), com intuito de problematizar as profundas desigualdades
entre os sexos no campo da educação, política, direitos civis e do trabalho, bem como
atividades domésticas. Carol Hanisch, jornalista norte-americana presente em uma série de
lutas contra a opressão, tais como racismo, o apartheid na África do Sul e o imperialismo
americano, cria o slogan “O pessoal é político”, em um texto de 1969, como forma de
destacar a importância do olhar sobre as violências vividas em espaços privados, as quais se
entrelaçam com opressões políticas e desigualdades. Esta segunda onda pode ser pensada se
estendendo da década de quarenta até o final do século XX, refletindo numa série de
amadurecimentos teóricos e de costumes que tiveram repercussão nos campos da política, das
artes e da economia; embora sua expressão mais significativa talvez tenham sido os
movimentos de rua da década de setenta (Zirbel, 2021).
Após a segunda onda, nos EUA as adolescentes e mulheres adultas jovens passaram a
ser rotuladas de “pós-feministas”, por conseguirem circular socialmente com os ganhos
advindos de movimentos anteriores, que não haviam sido praticados por elas, num movimento
que transparecia uma não necessidade de perpetuar com a luta feminista. No entanto, autoras
como Rebecca Walker, Claire Hemmings, e Judith Butler vieram mostrar questões sexistas
ainda vigentes no país, provocando uma terceira onda feminista, que também obteve
73

repercussão mundial, principalmente através das mídias digitais, já vigentes no período.


(Zirbel, 2021).
Esta terceira onda de feminismo chega Brasil no início do século XX, talvez com a
principal expressão das publicações de Judith Butler, originais dos Estados Unidos da
América. As novas reflexões ressaltam que o discurso universal é excludente ao não levar em
consideração a micropolítica. Isto quer dizer que a opressão não atua da mesma forma sobre
as mulheres; as negras, particularmente, lutam por serem consideradas pessoas em condições
mínimas de existência digna, as quais as brancas já conquistaram e lutam por questões ligadas
à participação política e direitos do trabalho.
De acordo com Butler (2019):
Se alguém “é” uma mulher, isso certamente não é tudo o que esse alguém é; o termo
não logra ser exaustivo, não porque os traços predefinidos de gênero da “pessoa”
transcendam a parafernália específica de seu gênero, mas porque o gênero nem sempre se
constituiu de maneira coerente ou consistente nos diferentes momentos históricos, e porque
o gênero estabelece intersecções com modalidades raciais, classicistas, étnicas, sexuais e
regionais de identidades discursivamente constituídas. (p. 21).

A contribuição da autora norte-americana é de suma importância para se pensar o


feminismo de forma mais aprofundada, uma vez que não há uma divisão simples da
humanidade em dois gêneros, mas sim uma grande diversidade cultural, socioeconômica,
política e religiosa mesmo dentro de um único país; e toda esta diversidade precisa ser
considerada quando da análise de casos de violência doméstica, por exemplo. Ela ressalta que
há uma ideia nostálgica da existência de uma feminilidade original ou genuína; o que na
opinião dela é uma concepção provinciana que rejeita a demanda contemporânea de que a
abordagem de gênero precisa passar por uma construção cultural complexa.
A autora traz o termo “performatividade” aplicado a categorias de gênero para explicar
como a cultura, de forma velada, acaba por impor formatos binários de ser homem e ser
mulher, desconsiderando diversos fatores que afetam a subjetividade: “O fato de o corpo
gênero ser marcado pelo performativo sugere que ele não tem status ontológico separado dos
vários atos que constituem sua realidade” (Butler, 2019, p. 67). Com isto ela enfatiza que a
sexualidade – regulada por discursos que, ao serem proferidos, atestam os significados de
“mulher” e de “homem”, sem interesse por refletir e criar formas mais singulares e dinâmicas
de se fazer representar com o seu corpo, de homem ou de mulher, no mundo – é mais uma
forma de estruturar politicamente o poder e controle sobre os corpos. Mais uma forma de
produção de efeitos de verdades, em discursos que, em si mesmos, não têm nada de
verdadeiro ou falso: uma tentativa de estancar a fluidez inerente à sexualidade humana.
74

No ano de dois mil foi organizada pela ONU a “Marcha internacional de mulheres”,
um movimento feminista internacional que ganhou adesão em mais de cento e cinquenta
países. Dentre as principais pautas estavam o enfrentamento da pobreza e da violência contra
as mulheres. Com isso vemos que pautas antigas, relativas à inclusão econômica das
mulheres, bem como a direitos básicos, como integridade física, perpetuam-se em debate na
terceira onda feminista. (Zirbel, 2021).
No Brasil, uma grande representante do feminismo atual – que pode ser pensado ainda
na terceira onda – é Djamila Ribeiro, filósofa, mulher negra com obras publicadas
reconhecidas internacionalmente. Segundo Ribeiro (2018), mulheres negras são
hipersexualizadas e tratadas como objetos sexuais; concepção que vem do período colonial,
quando mulheres negras eram exploradas e estupradas frequentemente. A mulher negra passa
a ser um ser para o sexo, mulher que não deve ser apresentada à família do namorado. Até
hoje elas são o grupo mais estuprado no Brasil. Se, como dizia Beauvoir, a mulher é o outro
sexo, a mulher negra é o outro do outro.
As seleções para a “mulata globeleza” é um grande exemplo de hipersexualização da
mulher negra que em muito faz lembrar o período de escravidão no qual as negras mais
bonitas e saudáveis eram escolhidas para trabalhar na casa-grande. E estas eram as de pele um
pouco mais clara e com traços do rosto que mais se assemelhavam aos da mulher branca. São
poucas ocasiões em que mulheres negras na Globo apresentam programas; elas ganham
visibilidade no carnaval, confinando a elas o papel da sensualidade como se fosse o único
possível a assumirem, negando suas humanidades e multiplicidades.
Ribeiro (2018) traz uma reflexão importante sobre a “boa imagem da mulher branca”
como a que consegue magicamente dar conta de tudo: ser bem-sucedida no trabalho, cuidar da
casa, dos filhos, e ainda sempre está bonita e magra para o marido. A mulher moderna é a que
tem a cozinha com a geladeira de última geração, o smartphone com mais funções; são
valorizadas questões ligadas à emancipação econômica, e não subjetiva: não será o acesso a
tecnologias de ponta que fará as mulheres sentirem-se mais livres, mas sim elas saberem e
dizerem o que querem e como querem; não se permitirem serem faladas, desconsideradas em
sua subjetividade de mulher, o que inclui, por exemplo, direitos relativos ao trabalho e a
maternidade. É preciso considerar, por exemplo, que mulher é capaz de gestar, amamentar, e é
um sujeito de desejos assim como o homem é. Empresas poderiam ter mais creches para que
crianças fiquem próximas de suas mães, bem como poderiam considerar a amamentação um
processo mais natural dentro no ambiente corporativo.
75

A obra Problemas de gênero (2019), de Butler, é o grande marco teórico desta terceira
onda de feminismo; assim como O Segundo sexo, de Beauvoir, foi da segunda onda, a qual
estava atrelada ao discurso de gênero ser opressor como um todo, pelo fato de ser socialmente
imposto. Dizer, por exemplo, que mulheres são naturalmente maternais é uma concepção que
as associa a afazeres domésticos e passa a mensagem que o espaço público não é o mais
adequado para elas.
Um exemplo atual de que discursos opressivos de gênero podem atuar a qualquer
momento, principalmente em situações vulneráveis, foi a reportagem publicada pela revista
Veja em 2016 referindo-se a Marcela Temer, esposa de Michel Temer que havia recentemente
assumido o poder no lugar de Dilma Rousseff, como “bela, recatada e do lar”; descrição que
claramente contrasta com o perfil de guerreira de Dilma. É uma mensagem que diz que
mulher boa não é presidente, e sim a primeira dama; a que está por trás de um grande homem.
Ribeiro (2018) defende que o movimento feminista precisa ser interseccional. A autora
afirma que é necessário:
... dar voz e representação às especificidades existentes no ser mulher. Se o objetivo é
a luta por uma sociedade sem hierarquia de gênero, existindo mulheres que, para além da
opressão de gênero, sofrem outras opressões, como racismo, lesbofobia, transmisoginia,
torna-se urgente incluir e pensar as intersecções como prioridades de ação, e não mais
como assuntos secundários (p. 47).

Para ilustrar mulheres da resistência feminista mais recentes, trago aqui o nome de
Malala Yousafzai, paquistanesa que em 2014 ganhou o prêmio Nobel da Paz. Esta moça
precisou fugir do Paquistão, pois foi baleada por um Taliban após defender o estudo das
mulheres. Hoje com vinte anos, ela conseguiu concluir a escola e diz que seu trabalho será
ajudar a promover a educação de meninas do mundo todo (G1 Educação, 2017).

4.3 - Mulheres na ciência

Ao buscar uma caracterização das grandes produções no âmbito da academia científica,


sem grandes dificuldades temos dados do quanto ela é masculina. Os reitores das grandes
universidades sempre são homens. Isto se agrava quando se tratam de cursos mais pleiteados,
como a medicina, a engenharia e o direito, nos quais seus diretores quase sempre são homens.
Ao tentar explicar o porquê desta situação, vemos que ela foge à consciência, pois não há
alguma deficiência nas mulheres que justifique o porquê de elas ficarem abaixo nas estruturas
hierárquicas, e nem de aparecerem menos dentre a comunidade científica.
76

Não só na ciência como em outros campos, os homens predominam nos postos de alto
escalão, haja vista na política; como é difícil ver uma mulher eleita, e até se candidatar a altos
postos como o governo, a presidência e o supremo tribunal. E até mesmo em atividades
consideradas femininas como a culinária, e a costura: vemos as mulheres dentre os
funcionários comuns e os homens dentre os grandes mestres.
De acordo com Dunker (2017), a definição de ciência é complexa, pois abrange
diferentes campos do saber como a sociologia, a filosofia, a física. Alguns dos critérios
pensados para definir a ciência que o autor compartilha são de que um conhecimento deve ser
definido e transmitido de uma forma específica, particular; de que deve existir um método a
ser praticado para atingir este conhecimento; de que o conhecimento gerado sempre parte de
saberes anteriormente formados; de que este conhecimento possa ser falseado, ou seja, que o
inverso do que ele afirma seja falso. Trata-se de critérios indiferentes às questões de sexo ou
gênero.
Temos na história antiga, o nome de Hipácia no Egito quem, assim como Joana
D’Arc, foi mais uma mulher acusada de bruxaria e morta pela Santa Inquisição. Seu nome é
citado como a única mulher cientista da antiguidade medieval, até as primeiras centenas dos
tempos modernos (Chassot, 2004). Tratava-se de uma intelectual, professora carismática,
influenciadora de pessoas. Vivia na Alexandria, capital egípcia, centro da cultura grega da
época. Tornou-se expoente do pensamento filosófico neoplatônico. Suas realizações em
literatura e ciência ultrapassaram todos os teóricos da época. Contudo, isto era uma afronta de
uma moça pagã, contra os princípios religiosos severos de acordo com os quais as moças
deveriam ter o saber sobre cuidados com o lar, marido e filhos; nunca sobre a ciência.
Contrariamente ao que muito romance sobre a história das mulheres distorce, o dia
internacional da mulher foi proposto em 1910 por Clara Zetkin, membro do partido comunista
alemão, em luta pelos direitos iguais das mulheres trabalhadoras (Blay, 2001). Foi um período
de movimentos constantes das classes trabalhistas por igualdade de direitos entre homens e
mulheres; o início da percepção que há um jogo de poder calcado em valores patriarcais, que
divide a sociedade em dominados e subordinados e culmina na depreciação da mulher.
Voltando ao Brasil, cito o nome de Julia Lopes de Almeida, escritora, autora de uma
série de obras que retratam a sociedade burguesa de sua época com temas como o político
bem-sucedido, o agiota, a mãe dedicada, o homem de negócios, o oportunista. Esta autora
deveria ter sido uma das fundadoras da Academia Brasileira de Letras, segundo dados
colhidos sobre os principais idealizadores da academia. Contudo, a ABL só foi admitir
mulheres dentre seus membros em 1977, quando escolheu Raquel de Queiroz (Ferreira,
77

2017). O nome de Julia ficou excluído desta comunidade devido à discriminação da mulher
no Brasil.
No campo da ciência da psicologia, as mulheres conquistam lugar não apenas
enquanto cientistas atuantes, mas também enquanto objeto de estudo. De acordo com
Saavedra e Nogueira (2006), há três grandes formas de conceber a mulher no campo da
psicologia, desde que esta área nasceu e ganhou estatuto de ciência; tais formas são distintas e
organizadas por meio de pontos de ruptura nos discursos, os quais assinalam términos e
inícios de período. O primeiro período é marcado por uma figura feminina ausente ou, quando
presente, inferiorizada. O segundo período coincide com a segunda saga feminista; é quando
as mulheres entram na academia e conseguem se enxergar enquanto sujeito e objeto de
estudo, de acordo com suas particularidades. Este período coincide com o surgimento da
psicologia enquanto ciência moderna, no final do século XIX. O terceiro período será tido
como atual, tendo por início o final dos anos oitenta e início dos anos noventa; comumente é
conhecido como período pós-moderno: ele apresenta uma confluência de perspectivas de
estudos sobre as mulheres.
Foi no segundo período que pela primeira vez na história é feita referência às
experiências intelectuais das mulheres, por autores como Galton, citado por Saavedra e
Nogueira (2006), os quais colocam as mulheres como dotadas de capacidades intelectuais
inferiores. Tal crença, ao longo do século XIX e início do século XX foi bastante disseminada
e vista como consensual, pois era uma teoria apoiada inclusive em aspectos biológicos, como
o fato do cérebro das mulheres ser menor – na época pensava-se que o tamanho do cérebro
fosse diretamente proporcional a sua capacidade cognitiva. O ingresso das mulheres nas
atividades acadêmicas teve um papel fundamental para a contraprova de que o tamanho não
define a qualidade; ou seja, a capacidade intelectual não tem relação direta com o sexo
biológico e suas anatomias.
A partir dos anos noventa, o conceito de gênero ganha força e passa a ser concebido,
segundo as autoras, como “um conjunto de princípios que organizam as relações entre
homens e mulheres num determinado contexto social e cultural... performances através das
quais os homens e as mulheres se posicionam uns face aos outros e constroem a sua
subjetividade” (Saavedra e Nogueira, 2006, p. 119). Esta concepção ajuda na reflexão de
gênero como algo dinâmico e situacional; o que é muito diferente do que pensar que ser
mulher ou homem é algo estanque, definido pela biologia. Assim, o gênero passa a ser uma
invenção das sociedades humanas, com a finalidade de auxiliar na construção de arranjos
sociais, bem como atribuir significado a tais arranjos, como forma de estruturar a imaginação.
78

O ativismo feminista foi fundamental a este terceiro período da mulher, ainda vigente no atual
cenário genericamente conhecido por “pós-moderno”, na medida em que permitiu o
refinamento de métodos de estudos para se pensar as mulheres em termos ontológicos, o que
teve por consequência um significativo aumento de mulheres em posições de poder e
liderança, promovendo consequências inclusive em relação a justiça social. Vale ressaltar que
Beauvoir (2016a) alinhava o movimento feminista ao movimento marxista de luta de classes,
por considerar que a marginalização do proletariado estava estruturada de forma similar ao
movimento higienista que marginalizava as mulheres, com base em justificativas teóricas e
discriminatórias que não se sustentam na prática.
Já no campo da psicanálise, há uma ligação com as mulheres e com o feminino muito
forte, já que essa, enquanto forma de tratamento da psique humana, nasce através de estudos
com as mulheres. Não por acaso, pois a moral vitoriana do século XIX, na qual Freud viveu,
quando da criação da psicanálise, era especialmente rígida e opressora para com as mulheres.
De acordo com Kehl (2008), o século XIX comporta uma marca de virada na vida das
mulheres junto à modernidade. Os psicanalistas vieram contribuir no pensamento sobre a
subjetividade da mulher em meio a era moderna, a qual na prática não era tão moderna como
seu nome.
Na “modernidade” as formas de subjetividade da mulher que marcam história são as
confortáveis mães, mulheres que reduzem sua subjetividade à maternidade; ou quando isto
não lhes basta, sofrem de histeria: campo aberto ao início das investigações sobre o
inconsciente com Freud. A psicanálise então vai operar no século XIX, após a Era das Luzes,
em meio a um buraco deixado pelo advento da razão e da consciência: o inconsciente. Ela
advém como uma possibilidade de uma liberdade na construção subjetiva das mulheres, com
o advento da chamada Modernidade. É um tempo de mudança de perspectiva, com o
surgimento de ideias de um sujeito mais autor do próprio discurso.

4.4 - As psicanalistas

Na história da psicanálise, tomando por base seu nascimento com Freud ao final do
século XIX, encontramos mulheres de destaque enquanto clínicas e teóricas, embora elas não
sejam a maioria. Contudo, no referido período histórico, na Europa, uma mulher ganhar
destaque com o seu trabalho fora de casa era digno de destaque, o que justifica trazer aqui
alguns nomes de psicanalistas que ilustram a resistência das mulheres por meio de seus
trabalhos. Foram selecionadas apenas analistas contemporâneas de Freud, dentre elas Anna
79

Freud e Melanie Klein, pelo efeito que seus movimentos tiveram na psicanálise de criação de
novas correntes analíticas: o annafreudismo e o kleinismo; o que exemplifica mulheres com
grandes construções sociais e resistência ao conformismo. Além delas, foram trazidas outras
analistas contemporâneas de Freud, as quais obtiveram destaque por construções teóricas que
estudam as mulheres e o feminino. Assim temos Marie Bonaparte, com sua obra dedicada à
sexualidade feminina; Helene Deutsch, com sua teorização sobre o masoquismo feminino;
Lou-Andréas Salomé, com contribuições fundamentais sobre o amor; Joan Rivière, com o
grande conceito de mascarada, dentro da teorização sobre o feminino. Tais analistas foram
trazidas de forma pontual, de modo a localizar seus trabalhos e contribuições, ao lado de fatos
de suas vidas, que ilustram a saída diferenciada que cada uma delas adotou para lidar com a
feminilidade, em meio a uma época extremamente repressora para com as mulheres.
As primeiras mulheres a ganharem destaque são as contemporâneas Melanie Klein e
Anna Freud, esta é a sexta e última filha do casal Sigmund e Martha Freud. Ambas souberam
inserir-se na psicanálise com firmeza, e convenceram milhares de pessoas de suas posições;
que eram discordantes entre si – Anna e Melanie não foram parceiras, embora fossem da
mesma época e tenham ambas vivido grande parte de suas vidas na Inglaterra.
Anna Freud (1895-1982), filha de Sigmund Freud, austríaca que viveu grande parte da
vida em Londres, é pedagoga de formação. Filha caçula, ela precisou dividir a atenção com
cinco irmãos mais velhos, com os quais teve mais rivalidade do que afinidade, especialmente
com a irmã mais próxima de idade Sophie, dois anos e meio mais velha. Sophie teve pouco
tempo de vida, sua morte prematura ocorreu quando tinha vinte e seis anos de idade, vítima da
gripe espanhola. A família costumava se referir às duas como a bela, Sophie; e o cérebro,
Anna (Instituto Morashá de cultura, 2003). Por ironia ou mera contingência, Anna nunca se
casou. Freud, embora fosse muito próximo a Anna, principalmente enquanto parceira de
trabalho e nutrisse por ela grande admiração intelectual, não mostra de tudo que ela fosse a
filha que ele esperava, por exemplo, quando confia a seu amigo Fliess, médico com quem se
correspondia frequentemente, sua decepção sobre o sexo de Anna; ele gostaria de ter tido
mais um filho homem.
Anna mostrou-se desde esta primeira atuação como pedagoga interessada no
comportamento de crianças; o que fora uma porta de entrada para sua prática clínica na
psicanálise, com crianças. Embora tenha deslocado seu interesse da pedagogia para a
psicanálise, Anna não fez o mesmo com a dimensão psíquica observada, que permaneceu
sendo a dimensão consciente do comportamento; e não o inconsciente, o qual caracteriza a
prática da psicanálise, descoberto por seu pai, Sigmund Freud. Desta forma, sua clínica acaba
80

por caracterizar-se com um objetivo de adaptação da criança ao social, em detrimento da


exploração da dimensão inconsciente que opera sob o comportamento observável (Calzavara,
2013). A conclusão é que Anna, embora tenha se envolvido com o movimento psicanalítico
inaugurado por seu pai, permaneceu regida em maioria por sua formação pedagógica, calcada
na educação e na adequação. É uma forma de atuação que privilegia o eu em detrimento da
verdade particular do desejo de cada sujeito; desejo este que é sempre inconsciente. O
sintoma, dentro da lógica de Anna Freud, não se insere como uma formação do inconsciente,
inerente ao ser humano, mas sim como um comportamento que pode e precisa ser eliminado.
De acordo com Roudinesco (1998), o annafreudismo foi uma corrente psicanalítica
representada pelos diversos partidários de Anna Freud, a qual se consolidou em oposição ao
kleinismo: ambas desenvolvidas dentro da International Psychoanalytical Association (IPA),
foram fortes correntes aplicadas ao tratamento de crianças, uma grande inovação para a época.
Tal corrente corresponde a um certo modo de praticar análise com privilégio para os conceitos
de “eu” e “mecanismos de defesa”. Era introduzida uma dimensão social e profilática ao
tratamento das neuroses e psicoses. Essencialmente os países de idioma inglês, incluindo os
Estados Unidos da América, esforçaram-se para defender o annafreudismo.
Melanie Klein (1882-1960), psicanalista nascida em Viena, que viveu grande parte de
sua vida também em Londres, tem uma história marcada por tristezas e decepções, as quais
aparecem em suas biografias (Esclapes, 2016). Seu pai aparece como uma personalidade
melancólica, que nunca conquistou sucesso na vida. Sua mãe, como dominadora e invasora;
sempre trabalhando para ajudar na renda familiar. Melanie era vista como bastante apegada à
irmã Sidonie, quem veio a morrer aos oito anos de idade. Ainda jovem, Klein se casa com um
engenheiro de personalidade sombria e tirânica; e permanece casada por mais de vinte anos,
apesar de relatos mostrarem que ela sofria constantemente com as viagens do marido e sua
personalidade depressiva. O casal teve três filhos: Mellita, quem na vida adulta se mostrará
sua adversária no campo psicanalítico e na vida pessoal; Hans que veio a falecer ainda jovem,
realizando uma escalada – morte com suspeita de suicídio; e Erich. Melanie Klein sofria de
episódios recorrentes de depressão, dos quais precisava se ausentar da família para se tratar e
se internar em clínicas especializadas. Aparentemente, a entrada de Klein na psicanálise foi
uma forma de tratamento para sua depressão, para o que ela busca ajuda de Ferenczi.
A prática analítica de Melanie Klein é marcada por profunda controvérsia com a
tendência pedagógica colocada por Anna Freud ao tratamento com crianças: Anna e Melanie
eram ambas mulheres, com grandes ambições dentro do campo psicanalítico, e interessadas
por uma prática ainda mais inovadora; que era a viabilidade da análise com crianças.
81

Contudo, Melanie Klein mostra um posicionamento muito mais próximo do id, do superego e
das incertezas e paradoxos do inconsciente do que Anna. Ela defendia que mesmo em
crianças a análise deveria ser voltada para a interpretação de fantasias inconscientes; e não
para uma adaptação social (Calzavara, 2013). Sua forma de nomear o aparelho psíquico como
calcado nas posições esquizo-paranóide e depressiva foi um grande marco conceitual para a
psicanálise da época, bem como sua inovação em relação ao tratamento das psicoses, o qual
não fora aprofundado por Freud.
De acordo com Roudinesco (1998), Melanie Klein foi a principal expoente do
pensamento da segunda geração psicanalítica mundial. Deu origem a uma das grandes
correntes do freudismo, o kleinismo, contribuindo consideravelmente para o desenvolvimento
da escola inglesa de psicanálise, graças a Ernest Jones (1879-1958). Diferente do
annafreudismo, o kleinismo é uma grande corrente, comparável à lacaniana. Ela não só
contribuiu para a psicanálise clássica, como desenvolveu importantes conceitos teóricos e
técnicos, o que fizera dela uma chefe de escola dentro da IPA. Dentre suas contribuições estão
o tratamento das psicoses – esquizofrenia, borderlines, distúrbios da personalidade ou do self ,
posições esquizo-paranóide e depressiva-; um novo princípio para a psicanálise com crianças,
centrado nas fantasias e no id; a exploração da relação arcaica com a mãe. Sua obra é
composta de cinquenta artigos e de um livro sobre psicanálise de crianças, largamente
traduzida em quinze idiomas. Hanna Segal é sua principal comentadora, e ela ganhou grandes
partidários, como Donald Woods Winnicott (1896-1971) e Wilfred Ruprecht Bion (1897-
1979).
Ainda no início do século XX, aparece Marie Bonaparte (1882-1962), francesa,
contemporânea de Klein e Anna Freud, sobrinha-bisneta de Napoleão I. Sua mãe morreu por
ocasião de seu nascimento, o que fez de sua infância e adolescência um período trágico
(Roudinesco, 1998). Ela foi educada pelo pai, quem apenas se interessava por suas atividades
de geógrafo e antropólogo, e pela avó paterna. Apesar disto, foi uma mulher de vanguarda que
dedicou a vida e boa parte de sua fortuna para a causa psicanalítica. Casou-se com o príncipe
Jorge da Grécia, homossexual que pouco deveria se interessar por ela enquanto mulher,
alcoólatra e conformista, quem fez dela uma alteza coberta de honras. Quando se encontrou
com Freud estava quase realizando um processo cirúrgico, a fim de aproximar o clitóris da
vagina, para conseguir tratar seu sintoma de frigidez.
Marie Bonaparte consagrou à vida à psicanálise, tornou-se uma importante
psicanalista francesa, tradutora incansável das obras de Freud, uma das poucas que se analisou
com ele, cuja análise foi dedicada a tratar o sintoma de sua frigidez, tratamento que foi
82

interminável (Roudinesco, 1998). Ela ajudou a fundar a Associação psicanalítica da França, e


escreveu uma obra extensa, dedicada em maioria a explorar os mistérios da sexualidade
feminina; obra que não ganhou muita expressividade. Marie era vista como uma mulher cuja
análise não tinha por objetivo modificar a sua caricatura de mulher aristocrática (Laurent,
2012a).
Na mesma época, temos ainda Helene Deutsch (1884-1982), cujo nome foi conhecido
como a primeira psicanalista mulher a liderar a sociedade psicanalítica de Viena de Sigmund
Freud; expandindo consideravelmente as considerações freudianas sobre as mulheres. Helene
também ficou conhecida por ser expoente do movimento feminista, outra causa à qual
dedicou a vida, junto da psicanálise. Ela é de origem judia, nascida na Polônia, tendo com
Freud mais esta identificação do judaísmo, embora registros mostrem que ambos não eram
religiosos (Gul, 2010).
Sua infância foi em meio a três irmãos mais velhos, seu pai, e sua mãe, Regina
Rosenbach, pessoa autoritária, conformista e pouco afetuosa. Apesar de destacar-se pela
beleza e inteligência, Helene era deprimida, aparentemente devido à marca de hostilidade de
sua mãe para com ela e devido a um abuso sexual que sofreu do irmão (Roudinesco, 1998).
Torna-se amante de um homem casado, dirigente socialista, quem lhe ajuda a conhecer Rosa
Luxemburgo (1891-1919), figura histórica. Posteriormente, casa-se com Felix Deutsch,
médico atraído pelas ideias freudianas, e tem um filho, após uma série de abortos.
Helene era uma mulher de vanguarda, que conseguiu estudar direito na universidade
de Viena para tornar-se advogada como seu pai, e ainda concluiu doutorado em medicina
(Gul, 2010). Deutsch analisou-se com Freud e Karl Abraham (1977-1925), ficou conhecida
por afirmar que a frigidez da mulher poderia ter por origem uma identificação ao pai: na
medida em que a identificação era com o lado homem, o lado mulher lhes seria fechado. Ela
acrescenta que não necessariamente esta condição seria um sintoma analítico, a não ser
quando a mulher envolvida o faça assim tornar-se. Caso ela não o faça, não se deve mexer,
para não correr o risco de tocar em uma identificação muito crucial. Outra contribuição da
autora foi em relação à sua teorização sobre o masoquismo feminino. Ela afirmou a
necessidade de se encontrar nas mulheres um equilíbrio entre o masoquismo, que as leva a
uma adaptação à dor, e o narcisismo, o qual seria uma resposta defensiva contra o
masoquismo excessivo. Tal equilíbrio seria necessário para as funções de reprodução. Sua
principal publicação intitulou-se Psicologia da mulher (1924), foi uma dentre outras obras
dedicada a causa da sexualidade feminina, tendo sido lida por mulheres como Simone de
Beauvoir, já mencionada.
83

Trago também a figura de Lou-Andréas Salomé (1861-1937), alemã, filha de um


general do exército dos Romanov. Mais uma psicanalista judia de vanguarda, tanto pela vida
profissional avançada quando comparada às mulheres de sua época, quanto por sua vida
pessoal; única, cheio de desejos singulares os quais ela não reprimia. Sua vida ficou
conhecida por um fervilhar de amores e paixões. Quando morta, a Gestapo retirou de sua
biblioteca todos os seus livros, sob o argumento de que era uma psicanalista, estudiosa desta
ciência judaica (Dacorso, 2017). Lou foi uma mulher bonita e encantadora, não foi mãe, e
ficou conhecida pelas suas faces exóticas como o hábito de viajar com outros homens mesmo
enquanto casada com o professor Andreas. Lou, embora aparentemente tenha copiado dos
homens de sua época o modo de vida, não foi uma mulher masculina; ainda mesmo sendo a
única menina dentre seis filhos, criada entre cinco irmãos. Freud pensara que a facilidade de
Lou a adentrar o círculo psicanalítico da época, composto por homens, era a convivência inata
que tinha com eles e o fato de ter sido escolhida a filha preferida de seu pai.
De acordo com Roudinesco (1998), Freud apaixonou-se por ela e ao escrever seu
artigo sobre o narcisismo (1914/2006) era nela que estava se baseando para descrever os
traços tão particulares de mulheres que se assemelham a grandes animais solitários,
apaixonados por si mesmos. Ainda assim, Freud não considerava que ela tivesse sentimentos
de culpa neurótica, e a desaconselhava tanta dedicação à psicanálise. Ela sempre participava
das reuniões do círculo freudiano e às de Alfred Adler (1870-1937).
Dos diversos homens com os quais Lou se envolveu, um deles foi Nietzsche; deixando
em dúvida se a relação fora uma amizade profunda ou um caso amoroso. Há diversas
produções que ligam Lou a Nietzsche: filmes, livros, biografias. Ela às vezes aparece descrita
como a mulher por quem Nietzsche sofreu, e em outras versões aparece como uma garota
inconsequente e oportunista.
Em sua obra como psicanalista, Lou trouxe contribuições fundamentais a teoria do
amor. Ela defendia a ideia de que o “nós” pode causar o término da relação por arruinar as
criações do “eu”. Amor para ela era associado à criação: amar alguém colore tudo à volta;
pelo tempo que a liberdade permanecer. Algumas pessoas florescem quando se separam, pois
a união estava rompendo com a individualidade. Ela dizia ainda que dois amantes devem
procurar nunca se conhecer por inteiro, para a relação não estar fadada a acabar no tédio.
Dentre suas obras publicadas, ela analisa a personagem da literatura Madame de Bovary, com
o tema da loucura amorosa e quietude conjugal (Roudinesco, 1998). Lou estreita vínculos
com Freud entre 1911 e 1937; época em que entra na meia idade com aparência e sensação de
84

uma jovem de vinte anos. Além da psicanálise, Lou fizera parte de todos os círculos
intelectuais da Europa no pós-guerra, incluindo filosofia, ciência, cinema e arte.
Uma última figura feminina importante que será evocada no campo da história da
psicanálise é Joan Rivière (1883-1962), pioneira da sociedade britânica, com contribuições
nas traduções dos trabalhos de Freud, Klein, dentre outros, devido a seu conhecimento
perfeito das línguas alemã e inglesa, e gosto pela literatura. Ela era diferente de Lou, de uma
beleza melancólica ao estilo vitoriano. Seu estilo era elegante, refinado. Pertencia à
aristocracia inglesa, do que se orgulhava, apesar de que sofria de insônia, dores de cabeça e
angústia; motivos pelos quais se desvalorizava (Roudinesco, 1998).
Mesmo com sua personalidade tímida e simples, desenvolveu uma obra que
influenciou o pensamento de outros autores como Winnicott, Susan Isaacs e Hanna Segal.
Desde a adolescência, Joan se destaca pelo gosto por estudos refinados e o ideal de vida
voltado ao trabalho e produção intelectual, que se aproxima mais do que era tido como
masculino, em sua época. Também contemporânea de Freud e Klein, Joan participou dos
movimentos feministas que lutavam por direitos econômicos iguais e pelo sufrágio feminino
na Inglaterra. Ela se casou ainda jovem, e teve uma filha que foi entregue aos cuidados da avó
materna e da tia, pois Joan sofria de “neurastenia”. Em sua análise com Ernest Jones, ele dizia
que sofria de angústia generalizada, enxaqueca e insônia (Haudenschild, 2017). Após esta
análise, Joan também se analisou com Freud, e tentou convencê-lo da importante dos
trabalhos de Klein; mas ele sempre defendia a filha Anna. Sua vida fora inteira perpassada por
experiências intensas de desamparo e dor, internações em hospitais psiquiátricos, e grande
distanciamento afetivo de sua mãe.
Para a psicanálise de orientação lacaniana, a grande contribuição de Rivière está
relacionada à teorização sobre o feminino; sua criação é o conceito de mascarada, lançado por
ela no artigo: “Feminilidade como uma mascarada” (1929). Ela desenvolve a ideia de que por
trás de uma máscara de feminilidade pode estar escondido o desejo por uma masculinidade,
em mulheres que na escolha de objeto, embora não sejam homossexuais, não são de tudo
heterossexuais. A mascarada é então um disfarce, para esconder ódio e rivalidade para com os
homens, pois o desejo subjacente ao ódio é o de castrá-los e roubar-lhes sua potência.
Anna, Melanie, Marie, Helene, Lou e Joan são mulheres fortes com diferenças muito
marcadas, cujas singularidades as fazem responsáveis pelo próprio discurso, inovador.
Tiveram êxitos e ocuparam papéis de liderança em pleno início do século XX, inovando o
pensamento vigente e trazendo traços de ruptura com o mesmo (Laurent, 2012a). Elas
estavam na psicanálise de corpo e alma, na medida em que em meio a suas análises pessoais
85

conseguiram avançar enquanto analistas com contribuições inéditas à clínica de mulheres. O


que elas queriam com a psicanálise e sua instituição a IPA, ia muito além de uma mera
relação de poder.
86

5- A PSICANÁLISE NO ÂMBITO PÚBLICO DA VIOLÊNCIA CONTRA AS


MULHERES

5.1 - A psicanálise em políticas públicas para violência contra as mulheres

Em meio a coleta de dados de campo para esta pesquisa, foram solicitados números
absolutos de boletins de ocorrência, medidas protetivas e feminicídios na Delegacia de Defesa
da Mulher onde a pesquisa foi realizada. Em meio a esta busca por números absolutos, foi
possível concluir que não há uma clareza acerca da necessidade dos registros dos
feminicídios. Estes são definidos, de acordo com a lei de 9 de março de 2015, promulgada
pela presidente Dilma Rousseff, como assassinatos em decorrência da violência de gênero
contra as mulheres, e são qualificados como crimes hediondos. Isto significa que os
feminicídios deveriam ser destacados dos demais homicídios dentro das Delegacias de
Polícia, mas na prática isto sofre uma dificuldade para acontecer. Pode-se concluir que, as
políticas públicas que ressaltam o fenômeno da violência contra as mulheres como forma de
preveni-lo, ainda não ganharam o devido reconhecimento pelos próprios policiais, que
deveriam ser os principais envolvidos nestas políticas.

5.1.1 – A psicanálise, o público e o político

Enquanto ferramenta de escuta e investigação da psique humana, podemos inserir a


psicanálise em domínios para além do contexto clínico, onde ela foi criada. Em instituições de
domínios públicos, como a Delegacia de Defesa da Mulher utilizada nesta pesquisa, podemos
inserir a psicanálise como uma ferramenta de escuta refinada com a finalidade tanto de colher
dados sobre a psique das mulheres, para criar subsídios clínicos; como também para ampará-
las em situações de vulnerabilidade. São formas de aplicação da psicanálise com menos
aspirações de elaborações de sintomas, e mais aspirações de olhar para singularidade em
ambientes nos quais tal olhar é costumeiramente rechaçado.
Entendendo por política as formas de se colocar enquanto cidadão de direito, e as
formas de governo que incidem sobre os espaços públicos, de livre acesso, podemos pensar
que a psicanálise incide sobre a política. Esta afirmação recai sobre a premissa de que a
psicanálise prescinde do sujeito de direitos; parte da liberdade humana em traçar seu caminho
e não prezar pela submissão a um autoritarismo. Parte também da liberdade de fala, enquanto
uso individual da língua, como o principal instrumento de trabalho. Enquanto incide sobre
87

liberdade de posicionamentos e contra formas de controle dos corpos, a psicanálise está


diretamente ligada à política.
Ignorar o contexto social seria fracassar com o trabalho psicanalítico, uma vez que o
sujeito está em permanente construção em meio a seu ambiente no qual vive: suas interações,
seus laços amorosos, seus trabalhos criam ideais e premissas que vão redefinindo o sujeito, a
todo tempo. Estar à altura da sociedade, e caminhar conforme as suas transformações, é
fundamental à psicanálise.
Sendo assim, a psicanálise pode ser usada como ferramenta de análise para
acontecimentos que ultrapassam as clínicas e tornam-se públicos, como o tema desta tese,
violência contra as mulheres, e suas decorrências sociais. O assassinato de mulheres sob a
perspectiva de gênero foi inserido no Código Penal do Brasil com a denominação de
feminicídio como crime hediondo em 2015, pela então presidenta, uma mulher. Pode-se
considerar o segundo grande marco legislativo acerca do combate à violência contra as
mulheres, sendo o primeiro a efetivação da Lei da Maria Penha. Esta lei é imensamente eficaz
não só por representar legislativamente a proibição da violência contra as mulheres, como
também por fazê-lo em cinco âmbitos: moral, psicológico, patrimonial, físico e sexual;
desmistificando mitos de que violência se restringe a agressão física, por exemplo.
Contudo, a eficácia legislativa acerca deste tipo específico de assassinato denominado
de feminicídio ainda precisa muito se fortalecer. Dificuldades de interpretação do termo
feminicídio o levam a ser tido como mais um homicídio, talvez devido a uma dificuldade
nacional de analisar a história da mulher no país e visualizar o fato de que são mais
vulneráveis a crimes violentos, justo por se enquadrarem no gênero feminino; estando aí
inclusas as travestis e transexuais.
Esforços do poder público já foram realizados em vista de aprimorar a legislação
acerca do tema da violência doméstica e casos de feminicídios decorrentes. A Secretaria de
Segurança Pública do Piauí criou em março de 2015 um núcleo para investigação do
feminicídio no Estado, o qual tem por finalidade uma metodologia policial investigatória, cujo
privilégio é a perspectiva de gênero; diferenciando-se das categorias dos demais homicídios
(Vila e Machado, 2018). Esta perspectiva leva em consideração que há na cultura nacional a
ideia de menosprezo e discriminação da condição de ser mulher. Neste Estado, foram criadas
diretrizes nacionais para investigação do feminicídio em parceria com a ONU Mulheres e com
a Secretaria de Política para Mulheres da Presidência da República.
Tal núcleo permitiu a elaboração do Mapa do Feminicídio, no qual foram definidas
categorias para análise das vítimas: cor das vítimas; idade; meios utilizados e locais onde
88

ocorreu o crime. A maioria das vítimas são negras, da faixa etária entre 30 e 59 anos,
solteiras. A maioria dos crimes acontece por meio de arma branca como faca, na residência da
própria vítima. Os dados também revelam que, na maioria dos casos, o assassino era
conhecido da vítima, tendo tido com ela relações afetivas, em alguns casos conjugais (Vila e
Machado, 2018).
O fato de feminicídios acontecerem em grande parte no âmbito doméstico – são
maridos que matam esposas dentro de casa, no âmbito familiar – reforça o pensamento
patriarcal embasado no código civil do Brasil colonial, no qual os maridos tinham direito de
assassinar as esposas adúlteras, bem como suas filhas. Este fato contrasta com a realidade dos
homens, cujos episódios nos quais são vítimas de agressão costumam acontecer em espaços
públicos. Foi preciso o desenvolvimento do slogan “o pessoal é político”, por meio de
movimentos feministas da década de setenta, para desmistificar ideias de que não se pode
intervir em casos de violência doméstica, pois são “assuntos de família”.
Antes da criação e aplicação do termo feminicídio, dentre as políticas públicas no
combate à violência contra as mulheres, esforços já vinham sendo feitos pelo governo federal.
Em 2013, a Secretaria de Políticas para as Mulheres, comemorando uma década de existência
e em sintonia com o ambiente gerado por uma primeira presidenta mulher da república do
Brasil, publica a terceira edição do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, cuja
premissa básica é de que perspectivas de gênero precisam estar inseridas em todas as políticas
públicas como forma de combate à discriminação e à violência contra as mulheres, vista como
decorrência da primeira. O plano foi elaborado em dez pontos: igualdade no mundo do
trabalho e autonomia econômica; educação para igualdade e cidadania; saúde integral das
mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos; enfrentamento de todas as formas de
violência contra as mulheres; fortalecimento e participação das mulheres nos espaços de
poder e decisão; desenvolvimento sustentável com igualdade econômica e social; direito à
terra com igualdade para as mulheres do campo e da floresta; cultura, esporte, comunicação e
mídia; enfrentamento do racismo, sexismo e lesbofobia; igualdade para as mulheres jovens,
idosas e mulheres com deficiências (Senado, 2015).
No ano seguinte, o mesmo governo inicia um projeto de atendimento especializado e
integral às mulheres vítimas de violência, com intuito de todas as capitais do Brasil disporem
de locais onde a vítima inicie seu processo de denúncia contra o agressor, e seja também ali
atendida por demais profissionais de áreas sociais e da saúde pertinentes, bem como também,
quando se fizer necessário, ser no mesmo local abrigada. O local foi denominado de “Casa da
Mulher Brasileira” (Senado, 2015). Este complexo conta, em tese, com delegacia, juizado,
89

defensoria, promotoria, equipes psicossociais e de orientação para emprego e renda,


brinquedoteca e área de convivência. Esta Casa permitiria assim um atendimento em rede,
humanizado, ágil e eficaz, no qual a escuta psicanalítica poderia cumprir seu papel não só de
amparo às mulheres como também de elaboração de seus sofrimentos pela fala, elucidação de
modos de comportamentos sintomáticos, que não seriam detectados sem uma escuta atenta.
Contudo, até o ano atual de 2019, apenas uma, no Mato Grosso do Sul, está em pleno
funcionamento.
De acordo com Nolasco, Lopes e Meireles (2017), a Casa da Mulher Brasileira reflete
vinte anos de trabalho e de luta acerca dos direitos humanos das mulheres. Ela entra com uma
proposta não só de simplificar e resguardar pela vida das mulheres, oferecendo todos os
serviços necessários à segurança da mulher vítima de violência num mesmo local; como
também proposta de um caminho para erradicar o fenômeno da violência contra as mulheres.
Sendo um espaço que recebe as mulheres vítimas de violência, acolhe-as com intuito de
libertá-las; é um espaço que pode ser visto como receptivo ao discurso e à atuação da
psicanálise, enquanto ferramenta de escuta atenta e apurada.
Tais autoras mencionadas acima fizeram uma pesquisa de campo na Casa da Mulher
Brasileira de Campo Grande, MS, e sinalizam muitos elogios e agradecimentos, mas também
deficiências no serviço prestado pela Casa. Em relação ao acolhimento prestado às mulheres,
há um déficit em não culminar num atendimento contínuo: as profissionais envolvidas, que
são áreas de serviço social e psicologia, por exemplo, queixam-se de não ter notícias das
mulheres após suas saídas da Casa; o que torna o serviço insuficiente no que tange ao controle
de que episódios de violência contra as mulheres possam voltar a acontecer. Ainda que não
haja um limite de tempo fixo pré-estabelecido para as mulheres permanecerem na casa, o
serviço prestado nesta tem caráter emergencial, e não contínuo.
Contudo, a Casa da Mulher Brasileira é um serviço recente, que foi efetivado em 2015
e passou por crises de instalação, além de sofrer abalos advindos das mudanças de governo.
Ela ainda pode se aperfeiçoar e vir a ser mais abrangente. Atualmente estão funcionando pelo
Brasil seis Casas da Mulher Brasileira: a de Campo Grande, MS – primeira casa a vir a
funcionar -; São Luiz (MA); Curitiba (PR); São Paulo (SP); Fortaleza (CE); e Boa Vista (RR)
(Governo do estado MS, 2019). A presença de psicanalistas nelas abre possibilidades não só
para a escuta refinada e singular, como também para uma política de atendimento pautada na
continuidade e acompanhamento próximo.
90

5.1.2 – Um recorte da história da violência contra as mulheres no Brasil em

âmbito público

O Brasil, segundo o Mapa da Violência de 2015, ocupa o quinto lugar no ranking feito
entre oitenta e três países com mais assassinatos de mulheres. Em 8 de março de 2019, o site
do G1 publica reportagem dizendo que o número de feminícídios cresceu no Brasil de 2017
para 2018. O Acre é o Estado que registra um maior número de casos. Roraima foi o Estado
segundo colocado. A justificativa dos estados foi um aumento no número de mulheres
envolvidas com facções criminosas. Parece muito fácil atribuir a um comportamento da
mulher a causa de crimes contra elas; é uma forma de não se envolver mais a fundo nos
âmbitos que permeiam o problema.
A maioria dos feminicídios ocorre em situações de crise de relacionamentos conjugais
ou extraconjugais, como exemplos: após a vítima ter pedido separação ou terminado o
namoro, após a vítima ter engravidado, ou em alguns casos a vítima já havia prestado queixa
de violência doméstica e estava sob medida protetiva. Também são comuns crises nos
relacionamentos após a mulher iniciar um trabalho fora do âmbito doméstico: a vida social
das mulheres, bem como autonomia financeira são aspectos que incomodam alguns homens,
cujas repercussões são crises conjugais embasadas na premissa de posse do homem sobre a
mulher, as quais, aliadas a outros fatores, têm por desfecho episódios de violência doméstica
com alto risco de feminicídio.
Saindo agora das questões específicas do Brasil e retomando o que já foi escrito
anteriormente, a fim de pensar no por que a violência contra as mulheres é tão forte e
disseminada mundialmente, temos que a divisão entre o gênero feminino e o masculino
sempre esteve de alguma forma fazendo discurso e surtindo efeitos político-sociais. Na Idade
Média, por exemplo, havia uma divisão clara de tarefas entre homens e mulheres, sendo que
estas eram colocadas como submissas pela Igreja católica apostólica romana, delegando aos
maridos o direito de bater na esposa, como uma forma de educa-la. As formas de
insubordinação sociais e políticas eram tidas como heresias (Federici, 2017, p. 64).
Já nesta época, havia entre os discursos sobre os sexos práticas de controle de corpos
comprovadas nas proibições da sodomia e do aborto, os quais eram tidos como heresias.
Neste cenário, a sedução, característica atribuída em maioria às mulheres por ser um
comportamento tido na sociedade ocidental como feminino, é vista como perigosa, como uma
armadilha a ser evitada, assim como o ato sexual quando desvinculado da reprodução.
91

É importante ressaltar que qualquer período de crise social atinge principalmente as


mulheres, como mostram registros históricos. A Idade Média termina em crise econômica e
pobreza, cenário propício a discursos sociais segregacionistas, aos quais as mulheres são mais
vulneráveis, pois são muitas vezes vistas como o sexo inferior e, portanto, devendo ser
submissa. Este contexto favorece o discurso de hostilidade contra as mulheres proletárias, em
especial as solteiras, o que perigosamente aumenta a vulnerabilidade, por exemplo, das
prostitutas.
No Brasil, com a colonização de exploração portuguesa se dissemina esta idealização
de feminilidade, talvez mascarada no patriarcado. De acordo com Freyre (2006), o patriarcado
no Brasil, e também em outros países da América, caracterizados pelo regime de colonização
de exploração, como nas Antilhas e na Jamaica, é fruto da forma de organização escravocrata:
a divisão entre a casa grande e a senzala, onde aquela era o local do senhor, dotado do poder
sobre bens materiais: a cadeira de balanço, o cavalo, o sofá; e a mulher. A moral sexual
católica foi a forma de organização familiar tomada pela casa grande, cujo chefe é o senhor:
dono das terras e das mulheres.
Ainda de acordo com Freyre (2006), o contato dos portugueses com os sarracenos
ajudou a criar a imagem da figura da moura encantada: a mulher morena de olhos pretos,
semelhante às índias nuas no Brasil, envoltas de um misticismo sexual inerente ao discurso da
mulher sedutora. O caráter, de certa forma ameaçador, visto em algumas versões da mulher
sedutora, marcou o Brasil na figura das índias, em detrimento da mulher loira, cuja imagem
fora associada a aspectos angelicais, divinos – ao contrário dos “anjos maus”, de cabelo
escuro. A inscrição da mulher brasileira como perigosa facilitou a concepção de que ela
precisava de um dono, como forma de proteção social.
A mulher, criada na sombra do pai e do marido, estava inscrita dentro deste sistema de
relações caraterizado por posições estratificadas, antagonistas e sádicas: reprimida social e
sexualmente; deve ser casta para não ser apelidada de vagabunda:
A nossa tradição revolucionária, liberal, demagógica, é antes aparente e limitada a
focos de fácil profilaxia política: no íntimo, o que o grosso do que se pode chamar “povo
brasileiro” ainda goza é a pressão sobre ele de um governo másculo e corajosamente
autocrático. (Freyre, 2006, P. 114)

A cultura constituiu-se no excesso de mimos e reclusão para as meninas brancas e o


oposto aos meninos; excesso de liberdade, cheios de vícios sádicos na educação, tais como
deflorarem negrinhas, maltratar animais. A tirania dos pais brancos sobre as meninas depois
era substituída pela tirania dos maridos. O código civil patriarcal da época permitia que os
maridos assassinassem as esposas adúlteras, além das filhas (Vila e Machado, 2018).
92

Dias (2019), discorrendo sobre a mulher no Código Civil brasileiro, escreve que o
Código Civil de 1916:
Retratava a sociedade da época, marcadamente conservadora e patriarcal. Assim, só
podia consagrar a superioridade masculina. Transformou a força física do homem em
poder pessoal, em autoridade, outorgando-lhe o comando exclusivo da família. Por isso, a
mulher ao casar perdia sua plena capacidade, tornando-se relativamente capaz, como os
índios, os pródigos e os menores. Para trabalhar precisava da autorização do marido (Dias,
2019, online).

Referindo-se ao Código em vigência (sancionado em 2002), destaca os prejuízos das


mulheres quando da separação. Escreve que a manutenção
... do instituto para fins de concessão da separação traz maiores prejuízos à mulher. É
bem mais restrita a moral sexual feminina. A liberdade da mulher ainda não foi assimilada,
tanto que é rotulada com uma série de qualificativos. Virtude, honestidade, seriedade,
castidade e pureza, são atributos que só dizem com o exercício da sexualidade, ou melhor,
com a abstinência sexual feminina (Dias, 2019, online).

Atualmente, muitas mulheres têm participado do mercado de trabalho e conseguido


uma independência financeira. Entretanto, essa condição não garante que não sofram
violência doméstica. Platonow (2019) cita um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea), divulgado em 19 de agosto de 2019.
De acordo com os dados levantados, o índice de violência contra mulheres que
integram a população economicamente ativa (52,2%) é praticamente o dobro do registrado
pelas que não compõem o mercado de trabalho (24,9%) (Platonow, 2019)
Segundo o Ipea
Uma possível explicação é que, pelo menos para um conjunto de casais, o aumento da
participação feminina na renda familiar eleva o poder de barganha das mulheres, reduzindo
a probabilidade de sofrerem violência conjugal. Em muitos casos, porém, a presença
feminina no mercado de trabalho – por contrariar o papel devido à mesma dentro de
valores patriarcais – faz aumentar as tensões entre o casal, o que resulta em casos de
agressões e no fim da união. Uma das conclusões é que o empoderamento econômico da
mulher, a partir do trabalho fora de casa e da diminuição das discrepâncias salariais, não se
mostra suficiente para superar a desigualdade de gênero geradora de violência no Brasil
(Platonow, 2019, online).

De acordo com o estudo,

... outras políticas públicas se fazem necessárias "como o investimento em produção e


consolidação de bases de dados qualificados sobre a questão, o aperfeiçoamento da Lei
Maria da Penha e intervenções no campo educacional para maior conscientização e respeito
às diferenças de gênero” (Platonow, 2019, online).

5.1.3 – A sexualidade na psicanálise e suas facetas de poder


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Voltando-nos agora para a psicanálise, no que tange à capacidade de escuta apurada do


analista, e à psicossexualidade, Freud (1925b/2006) nos ajuda a entender que o humano pode
rejeitar aquilo que não compreende, que está longe de seu alcance, ou até aquilo que não quer
enxergar, pois foi recalcado em seu inconsciente. A escuta psicanalítica possibilita um olhar
ao conteúdo recalcado, através da materialização da fala e da crença de que conteúdos
inconscientes podem vir à tona, em meio a uma relação de transferência, os quais estão na
origem de sintomas. Comportamentos que se repetem, mesmo causando sofrimento são
comuns. Muitas vezes, são meros padrões de repetições de comportamentos já vividos com
outras pessoas importantes da família. Contudo, o sujeito não se percebe repetindo, ou
naturaliza suas ações como se elas não pudessem ser de outra forma. Podem ser também
posicionamentos subjetivos fixados em determinadas fantasias inconscientes, por exemplo, de
que a mulher é inferior ao homem.
A teoria da sexualidade humana construída pela psicanálise de Freud e Lacan ajuda a
compreender que se comportar como homem ou mulher são formas de defesa frente à
castração. Nascer homem ou mulher não é um mero fato sem consequências; o sujeito
humano possui o seu corpo de nascença e precisa lidar com ele ao longo da vida; aceitando-o
ou rejeitando-o há uma responsabilidade implicada no fato de se ter um corpo de uma certa
forma, ao mesmo tempo uma forma única e uma forma inscrita dentro do registro do sexo
masculino ou feminino. Responsabilidade esta que é aliada de uma criação singular sobre seu
corpo, de mulher ou de homem: “No psiquismo não há nada com que o sujeito pudesse se
situar como ser macho ou ser fêmea. O que se deve fazer como homem ou como mulher, o ser
humano tem que aprender, peça por peça, do outro” (Lacan, 1964/2008, p. 220).
A sexualidade humana é um furo no registro do saber: não se sabe de antemão sobre
ela: constrói-se uma simbologia, imersa em uma cultura, a qual, mesmo quando é valorizada,
ainda não é capaz de responder tudo sobre o sexo: a sexualidade insiste em fazer furo, em não
se apresentar no campo do conhecimento. Há uma perda necessária na assunção do próprio
sexo, e não menos na rejeição também, que leva aos conhecidos casos de transexuais.
Partindo da premissa de que os sintomas neuróticos se constituem sobre a sexualidade,
entendendo esta em seu sentido maior do que o simples ato sexual, ou seja, abarcando tudo o
que envolve semblantes de respostas sobre o ser homem ou ser mulher, Freud constrói a
psicanálise e passa a compreender que a insistência de alguns sintomas diz algo sobre uma
posição subjetiva inconsciente, que precisa ser desvendada.
Podemos entender por gênero a ideia de que nem sempre o sexo biológico define um
sujeito em termos de identificação subjetiva. Em termos culturais, há sempre rituais que
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versam sobre ser menina ou ser menino, homem ou mulher. Ainda que os movimentos de
quebras de estereótipos tenham caminhado com peso, certos rituais insistem em acontecer.
Por exemplo, o casamento cristão, no qual a mulher é repassada em sua entrada do pai para o
marido ilustra a mulher submetida a uma inerência de posse, do homem. Mesmo em
casamentos homo e transsexuais é possível ver o mesmo ritual se repetir, quem se identifica
com a mulher é entregue ao outro, o homem que recebe; o “proprietário”.
Lacan (1982) pensa o feminino e o masculino de forma que vai além das teorias de
gênero, pois ele não está pautado em rituais ou semblantes sociais, mas sim nas formas de
defesa frente à castração (somos seres incompletos). Uma vez que a mulher sente inveja do
pênis (pênis significando o órgão representante do poder) e o homem tem medo da
possibilidade de perdê-lo, estas sensações trazem consequências diferentes na hora de se
portar na partilha sexual; o que não diz respeito de forma direta a comportamentos sociais.
Frente a um homem, uma mulher costumeiramente tende a solicitar amor de forma tão plena e
infinita e a todo custo. Frente a uma mulher, um homem pode tender a dominá-la, para não a
perder, como se ela fosse o seu falo (representação simbólica do pênis).
Muitas mulheres vítimas de violência doméstica buscam uma escuta para suas
angústias, uma espécie de amparo e contenção de seu sofrimento, uma vez que não podem
encontrar essa escuta no parceiro conjugal, já que ele inclusive é a causa de grande parte de
seu sofrimento, e muitas não encontram amparo da família. Assim, a escuta que o psicanalista
pode oferecer para estas mulheres torna-se importante, na medida em que suas falas, diante de
quem de fato quer escuta-las, adquirem grande valor.
Ao mesmo tempo em que elas são escutadas, elas podem falar e se escutar e esta
escuta pode, de alguma forma, contribuir para que elas se reposicionem diante dos fatos e da
violência que sofrem.
A diferença entre escutar e ouvir é fundamental para entendermos o que é a escuta
para a psicanálise. Bastos afirma: “Ouvir nos remete mais diretamente aos sentidos da
audição, ao próprio ouvido, enquanto escutar significa prestar atenção para ouvir, dar ouvido
a algo. Portanto, a atenção é uma função específica da escuta”. (Bastos, 2019, online).
A autora acrescenta:
Quando falamos a um amigo, temos a expectativa de sermos compreendidos, de
confirmarmos nossas certezas, nossos julgamentos. Buscamos uma identificação, uma
cumplicidade. Quando ouvimos um amigo, procuramos lhe dar atenção, confortá-lo, se for
preciso, aconselhá-lo, orientá-lo, enfim, procuramos demonstrar nossa amizade apoiando-o
da melhor maneira possível (Bastos, 2019, online).
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Para indicar a diferença entre falar com amigos e falar a um psicanalista, Bastos
(2019) ressalta a diferença entre este e um semelhante; a relação em análise não é de
reciprocidade, na qual a comunicação é por meio de diálogo; mas sim é construída uma
relação baseada em uma parceria que trabalha. Por parte do psicanalista, há uma escuta e uma
pontuação, de modo a facilitar a emergência do que há nas entrelinhas do discurso; uma
escuta para além do que está dito.
Para concluir este item, chegamos aqui em uma consequência, então importante de
elucidar sobre a relação entre escuta psicanalítica e as políticas públicas contra a violência
contra as mulheres: possibilitar com que as mulheres vítimas de violência adquiram uma certa
capacidade de escutar a si próprias. É essa escuta em relação a si mesmas que pode contribuir
para que elas se reposicionem diante dos fatos e das circunstâncias da violência que sofrem, e
busquem soluções singulares para tentar enfrentar suas dificuldades, inclusive em relação às
agressões que sofrem.
A todo instante mulheres são mortas por homens, em atos que caracterizam
feminicídios, ou seja, são mortes devido à condição de pertencerem ao gênero feminino. Ao
final da Idade Média estas mortes assumiram proporções numéricas catastróficas num
fenômeno conhecido por “caça às bruxas”, como já evidenciado; e o que é mais alarmante, as
mulheres eram mortas com a justificativa etérea de acusações de bruxaria, as quais não eram
passíveis de comprovação e nem ao menos de definição.
Estas acusações envoltas de misticismo e falta de objetividade, reforçam a ideia de que
as mulheres eram acusadas de um crime o qual poderia simplesmente ser definido como a
capacidade de exercerem influência sobre a mente de um homem. Uma vez que alguns
homens estão, mesmo que inconscientemente, embasados na premissa de dominação e posse
sobre as mulheres, não é aceitável se deixar influenciar por elas. Quando um homem mata
uma mulher em um ato de feminicídio, o que ele mata parece ser a sua condição de
vulnerabilidade em relação a ela, insuportável e intolerável, para alguns deles. São mortos
aqueles que oferecem algum tipo de perigo à população; perigo real ou fictício.
A psicanálise, enquanto ferramenta de escuta apurada, escuta que preconiza aspectos
inconscientes, para além da consciência, é um instrumento fundamental ao se pensar em
políticas públicas mais direcionadas e singulares; ou seja, que atendam onde elas mais
precisam, da forma como precisam, e que tenham efeito de mudanças nelas, tanto nos seus
pensamentos como nas suas ações. Ela pode estar presente, na figura de psicanalistas, em
locais de atendimento multidisciplinares às mulheres vítimas de violência, como a Casa da
Mulher Brasileira, bem como também pode ser um instrumento de análise das falas das
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mulheres vítimas e dos homens agressores, uma vez que a fala é um corpo material passível
de ser analisado. Análise esta que serve de parâmetro para se pensar em políticas públicas de
disseminação de informação e conscientização social.

5.2 - Violência contra as mulheres nas mídias digitais

Mídias digitais podem ser compreendidas como toda forma de comunicação por meio da
internet, meio altamente eficaz para disseminar e compartilhar informações na sociedade
atual. Veremos aqui algumas facetas desta forma de conexão que é intimamente ligada a
imagens; como tais imagens podem afetar os grupos de espectadores, tendo como principais
representantes das mídias digitais as redes sociais.
Uma vez que as mídias digitais acompanham o movimento social – fazem função de
espelho aos fenômenos em andamento e são portas abertas para discussões e exposições
inerentes – reflexões sobre o que as mídias podem provocar e auxiliar são fundamentais. A
violência contra as mulheres tem sido um dos principais temas em debate nos últimos anos.
Aqui serão expostas algumas formas de tratar este fenômeno nas mídias.
Em abril de 2018, o senado divulga notícia via internet sobre nova lei acerca da
proteção da mulher, diretamente ligada a riscos de propagação de intolerâncias e preconceitos
pelo mundo virtual: a lei diz sobre a criminalização da divulgação de mensagens misóginas –
que propagam ódio ou aversão às mulheres – pela internet (Agência Senado, 2018). Uma
medida de proteção contra ofensas e minorações à mulher virarem moda. Esta discussão
estava em cheque desde setembro de 2017, quando fora publicada uma reportagem no site da
Câmara sobre violência contra as mulheres na internet e sua impunidade. As deputadas
proponentes de um debate para discussão desta temática vêm com o argumento de que redes
sociais são um meio de fomentar violências contra as mulheres, uma vez que expõem suas
intimidades.
As deputadas Ana Perugini, Laura Carneiro e Erika Kokay, alegam que a maioria dos
crimes de difamação que acontecem na internet é contra mulheres e que a falha nas leis de
proteção contra esta situação em específico a perpetua, gerando a necessidade de se colocar a
situação em pauta. Os traumas psíquicos de uma humilhação pública por via da internet
podem ser irreversíveis, tamanho o impacto emocional que esta violência, de ordem
psicológica, que geram (Câmara, 2017).
Em novembro de 2017, o jornal O Estado de São Paulo publicou reportagem sobre
uma vendedora do interior de São Paulo, quem postou fotos de seu rosto inchado em sua rede
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social, com intuito de dar um basta nas agressões que acometem mulheres diariamente,
efetuadas por cônjuges ou namorados. A delegada de uma cidade próxima apoiou a atitude da
vendedora por se tratar de um ato corajoso, o qual encoraja outras mulheres, via identificação,
a também dar um basta na violência que sofrem de seus pares amorosos, já que as redes
sociais possuem ampla visibilidade (Tomazela, 2017). A mesma delegada diz também que
infelizmente a maioria das mulheres ainda opta por não se expor, devido ao medo do que o
agressor possa vir a fazer com ela e sua situação se agravar.
Vale ressaltar que de acordo com a reportagem publicada no jornal O Estado de São
Paulo em maio de 2017, a violência contra as mulheres é maior no interior do Estado de São
Paulo do que na capital. Isto se explica com facilidade ao pensar que o pensamento acerca do
lugar da mulher no interior é mais provinciano, ou seja, de que a cultura na qual a mulher é
vista como posse do homem e deve a ele obedecer, na medida em que ocupa um lugar
rebaixado, é maior em cidades interioranas, ainda que não sejam tão bairristas. É a
desvalorização da mulher que se mostra propulsora da violência, junto ao estereótipo sexual
de que seu corpo pertence ao homem.
Em reportagem do jornal O Vale, de fevereiro de 2018, temos o dado de que o número
de boletins de ocorrência registrados em uma cidade do interior de São Paulo, sede do Vale do
Paraíba e Litoral Norte, é de uma média de dez por dia. Este dado pode ser atribuído à
discriminação da mulher decorrente de pensamentos que naturalizam o gênero feminino
dentro da opressão social, da ideologia patriarcal, na qual o homem é o chefe da família e
todos devem obedecê-lo, mulher e filhos. Inclusive a maioria dos episódios de violência
acontece nos locais do convívio familiar. A maioria das ocorrências é feita por mulheres
jovens que trabalham, e que, por terem independência financeira, não toleram imposições por
parte do companheiro (Alvim, 2018).
Os autores da referida reportagem mencionam caso de feminicídio contra uma mulher
que engravidou numa situação extraconjugal e não quis abortar. É o machismo como norte de
chacinas, crimes que começam com o tratamento recebido dentro de casa, quando, por
exemplo, filhos que agridem mulheres são protegidos, ou os filhos homens não são chamados
para as tarefas domésticas. Os feminicídios também são costumeiramente “justificados” em
situações de mulheres que registram boletim de ocorrência contra maridos, prostitutas que
rejeitam um cliente a fim de trabalhar para outro.
Voltando-nos para a psicanálise, Kehl (2008) ressalta que o ser humano é um ser de
linguagem, portanto submetido às regras, costumes, interpretações e até imposições que estão
arraigadas à fala. As práticas da fala: “se modificam sutil e lentamente em função dos
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deslocamentos sofridos por agentes sociais ao longo da história – deslocamentos de classe, de


gênero, de inserção junto ao poder” (pág. 24). Não se pode, portanto, pensar o sujeito fora de
sua perspectiva social, na medida em que esta incide sobre o corpo.
Miller (2004) reflete sobre a sociedade atual enfatizando a escassez de significantes
mestres orientadores: ausência de conceitos, líderes, e instituições fortes, que orientem as
escolhas subjetivas. O autor denomina de desbussolado, ou seja, sem bússola este sujeito pós-
moderno; o qual é vítima do individualismo e falta de amparo social. Neste novo cenário é o
próprio sujeito que precisa criar o seu norte; este não mais está nas mãos do estado, da
religião, da família como já estiveram em anos passados. A possibilidade de escolha é muito
maior.
Podemos articular uma importante questão: redes sociais podem ganhar força como
um importante grupo de amparo ao sujeito desbussolado; nelas, é possível encontrar ideais,
modelos de conduta, compartilhamento de angústias. As redes sociais podem funcionar como
um grupo, o qual consegue exercer uma enorme influência na subjetividade e transmissão de
ideologias: são uma grande forma de discurso da sociedade atual, as quais ganham força
também em âmbitos de gênero e sexualidade, ditando padrões de conduta.
Até poucas décadas, a forma de uma informação tornar-se pública eram os noticiários,
impressos e em televisão. Quando algum assunto virava notícia, ele era editado e publicado
em redes de comunicação jornalística, as quais possuem donos explícitos, bem como
ideologias. Desta forma, não era qualquer assunto que podia ser publicado e, também, não se
detinha controle da forma como a publicação iria acontecer. Toda a responsabilidade pela
edição e formatação do assunto permanecia nas mãos do editor do jornal. Ele também poderia
optar por publicar ou não uma reportagem, de acordo com seus critérios ideológicos e sua
suposição de impacto público. Era comum a opção por publicar apenas assuntos que
supostamente dariam mais lucro devido a maior audiência, bem como a forma de edição da
reportagem também poderia ser pautada por critérios lucrativos. Desta forma, uma notícia
corria sempre o risco da espetacularização das suas imagens.
Contudo, a partir dos anos dois mil uma nova forma de divulgação de notícias entra
em cena, por meio de mídias digitais, com as redes sociais. Aqui, vida pública e vida privada
se entrecruzam num fenômeno que pode ser visto como de desmascaramento do sujeito; as
máscaras ficam mais frágeis em meio à cultura de exposição de fotos pessoais, bem como
exposição de acontecimentos da vida. Ainda que existam configurações de privacidade, a
força do movimento favorece a exposição, pois é ao se expor que o sujeito pode ser amparado
ao ser visto pelos seus pares, em meio a tempos de sujeitos desbussolados.
99

Outra questão a ser articulada é que, uma vez que as informações de redes sociais não
têm a obrigatoriedade de passarem por avaliação, elas podem ser utilizadas como ferramenta
de descarga de sobrecargas pulsionais do id, com menos censura superegóica. Vale ressaltar
que as redes sociais apenas interferem no tipo de informação que virá a ser publicado salvo
grandes exceções, de conteúdo improprio: a liberdade na exposição de conteúdos é muito fácil
por serem gratuitas, de fácil acesso, e sem algum tipo de crivo ou seleção para publicação.
Não há um Outro na função de mestre ditando quais significantes podem ser tratados em suas
páginas, tampouco na função de corretor superegóico. Freud (1921/2006) auxilia na
compreensão acerca da peculiaridade inerente ao poder de contágio de uma ideia quando
propagada em grupo. Vale ressaltar que aqui as redes sociais são vistas como grupos – pois
nelas de fato se formam grupos ideológicos – nos quais um líder atua disseminando uma
informação, ou uma opinião, a qual ali tem o poder de rapidamente se propagar entre
internautas. Numa questão de minutos uma ideia pode ganhar mais de mil adeptos.
O indivíduo nas relações que já mencionei ... cai sob a influência de apenas uma só
pessoa ou de um número bastante reduzido de pessoas, cada uma das quais se torna
enormemente importante para ele. Ora, quando se fala de psicologia social ou de grupo,
costuma-se deixar essas relações de lado e isolar como tema de indagação o
influenciamento de um indivíduo por um grande número de pessoas simultaneamente,
pessoas com quem se acha ligado por algo, embora, sob outros aspectos e em muitos
respeitos, possam ser-lhe estranhas (Freud, 1921/2006, p. 81-82).

Em um grupo os elos de ligação são obscuros, principalmente, quando compostos por


pessoas que não se conhecem, e mais condicionados a influências que acontecerão a partir de
seu funcionamento próprio. A um sujeito que num dado momento está na função de líder é a
quem o grupo dirige sua atenção e afeto e, portanto, o assunto que o líder coloca em pauta
tende a ganhar adesão dos demais membros, num fenômeno de contágio.
Freud (1921/2006) também assinala como fenômenos pulsionais inconscientes vêm à
tona quando o sujeito está situado num grupo; como o grupo facilita esta emergência de
conteúdos, até então submersos pelo recalque. Desta forma, as inibições perdem força e dão
lugar a manifestações de desejos até então adormecidos, mas que no grupo ganham uma
gratificação. O autor ressalta algumas características inerentes ao funcionamento do grupo: a
teoria do contágio, ou seja, o poder de uma ideia se propagar e ganhar adesão dos outros
membros do grupo com rapidez; a predominância de fenômenos inconscientes sobre os
conscientes; a necessidade de existir um elo em comum, como elemento de ligação entre os
membros; e a necessidade de existir um líder para o grupo.
Redes sociais, na condição de mídias digitais, ficam então como via fácil para que
experiências pessoais sejam expostas, possibilitando, em meio ao compartilhamento, uma
100

evasão da pulsão, aliada a uma possível elaboração de tal experiência por meio de
comentários de membros do grupo que se forma nas postagens. Como é de se esperar dos
fenômenos de grupo, uma mulher que expõe sua situação de vítima de violência doméstica
pode virar líder e ganhar adesão de um grupo de mulheres que se identificam com seu
sofrimento. Suas informações são largamente disseminadas, de forma que algumas
participantes, por meio do contágio, passam a acreditar que elas também podem sair desta
condição. As redes ainda contribuem para disseminar informações como a Lei Maria da
Penha ou como o crime de Feminicídio, ou seja, crime de morte contra a mulher envolvendo
questões referentes ao gênero, e suas maiores chances de incidência – aspectos estes que
problematizam o tema, causando um tensionamento necessário na contribuição a caminho da
diminuição (Miranda, 2017).
Algumas mulheres, vítimas de violência doméstica, buscam nas redes sociais uma
escuta para suas angústias, como já mencionado, uma espécie de amparo e contenção de seu
sofrimento; uma vez que não podem encontrar esta escuta por parte do parceiro conjugal - já
que ele inclusive é a causa de grande parte de seu sofrimento. São parceiros que denigrem a
imagem de suas parceiras, rebaixam-nas à posição de um objeto dejeto. Aqui, as redes entram
em cena como um importante caminho para estas mulheres vítimas, cuja fala se enaltece ao
ter quem, ao menos aparentemente, dá-lhes atenção; enxerga-lhes.

5.2.1 – O corpo, sua imagem, e repercussões nas mídias digitais

O fenômeno do olhar é imprescindível ao sujeito humano. É por meio dele que se


constrói uma autoimagem, tendo por base o olhar do Outro sobre si. A imagem do próprio
corpo pode ser pensada como a primeira marca da importância do olhar sobre o sujeito
humano, ainda que este olhar remeta a todo o cuidado que se tem ao se enxergar alguém em
sua singularidade. Ser visto, receber o olhar do Outro é a primeira demanda do recém-nascido
que carrega este desafio de provocar o desejo do Outro pelo seu corpo.
Freud (1914b/2006), ao expor o conceito de narcisismo como uma etapa necessária à
constituição do sujeito, nos permite compreender que o corpo para a psicanálise não
corresponde ao corpo organismo, corpo biológico, mas sim a uma imagem inconsciente que o
sujeito forma de si próprio nos primórdios de sua existência, cuja consistência é conquistada
em meio à relação com quem lhe cuida. Esta imagem inconsciente do próprio corpo pode ser
pensada como a primeira base de segurança, na qual o sujeito se apoia para colocar-se em
relação e, a partir dos laços construídos em suas relações, aprimorar esta imagem num
101

movimento dinâmico. O autor ressalta ainda que um corpo adoecido tende a voltar a libido
para si mesmo; fecha-se do mundo externo, perde a capacidade de amar, enquanto não se
recompõe. Fica evidente como o narcisismo primário, que corresponde ao reconhecimento da
imagem do corpo, é a primeira base para o reconhecimento de si e consequente diálogo com o
social. Na medida em que esta imagem está em risco, sensações de angústia e desamparo
advêm, e torna-se imprescindível uma recomposição narcísica.
Com o “O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada
na experiência psicanalítica”, Lacan (1949/1998) reforça o efeito transformador que culmina
na assunção pelo sujeito de sua própria imagem, embora o dinamismo do sujeito humano seja
inerente, pois ele está em constante transformação a partir de suas relações e laços sociais.
Assumir uma imagem, reconhecer-se como ser para além de seu organismo é imprescindível
para alívio psíquico. Destaco também a prematuridade do parto do sujeito humano em relação
aos outros animais, uma vez que o bebê nasce em um estado de prematuração biológica, sem
conseguir realizar algumas de suas funções vitais sem ajuda, ele é muito dependente do Outro
para garantir sua vida. O desamparo vivido nos primórdios da existência é inevitável e
traumático a todos.
O mesmo autor em “A agressividade em psicanálise” (1948/2003) destaca o quanto
cenas de um corpo despedaçado, marcado pela agressão, judiado, facilmente causa horror e
angústia. Não é por acaso que imagens de corpos agredidos chamam muito a atenção, pois na
empatia com a dor do outro é a iminência da própria dor que está em jogo; só é possível
sensibilizar-se com a dor do outro na medida em que se imagina que poderia ter sido consigo
próprio. É a ameaça de dilaceração do próprio corpo que está evidente nestas imagens.
Em “O estranho” temos uma reflexão de Freud (1919a/2006) sobre o que leva à
classificação de certas coisas e fenômenos como amedrontadores e, consequentemente,
estranhos, embora nem tudo que é estranho seja aterrorizante. Primordialmente, o que é
assustador ao ser humano é a possibilidade iminente de desamparo. O sujeito humano nasce
prematuramente em relação aos outros animais, os cuidados com o recém-nascido são
necessários no nível de sobrevivência: nem ao menos se alimenta sozinho. Levam-se anos e
muito dispêndio psíquico para superar o desamparo fundamental, o qual, por ser inerente à
prematuridade do sujeito humano, nunca é por completo superado. Assim, defesas são criadas
e objetos e fenômenos que remetem a uma possível regressão ao estágio de desamparo serão
certamente rejeitados, pois são vistos como amedrontadores.
102

Ainda em “O estranho”, o autor ressalta que o ferimento nos olhos é extremamente


temido, o que remete à importância da visão para o sujeito humano. A valorização do visual,
embora não isenta de críticas, é evidente em grande parte da civilização humana.
O mito de Édipo, ao falar sobre o temor da castração, também remete à falta de olhos
como uma terrível punição, ao ilustrar que Édipo retira os seus próprios olhos como
autopunição após não ter reconhecido Jocasta como sua mãe. O paralelo entre perder a visão e
ser castrado é evidente em diversas passagens literárias. Ainda no mesmo texto Freud
(1919a/2006) se refere ao conto alemão O homem de areia no qual um menino tem medo do
homem de areia falado por seu pai, quem lhe dizia que em certos dias deveria ir para cama
mais cedo a fim de se proteger deste homem que iria chegar. Sua babá lhe contou que este
homem jogava areia nos olhos das crianças que não fossem para cama, até que seus olhos
saltassem para fora do rosto. A equação entre o homem de areia que tira os olhos e o pai que
castra o filho pode ser facilmente pensada, entendendo por castração a imposição do limite
colocado pelo pai, para que o filho perca sua onipotência e ganhe cultura. O limite imposto
pela castração leva a busca de outras possibilidades de satisfação em meio ao laço social.
Freud (1925a/2006) já dizia que o corpo da menina provoca a angústia de castração no
menino, ao descobrirem a diferença anatômica entre os sexos. Atrelo esta reflexão às
mulheres que vão expor seus hematomas feitos por agressores homens nas mídias serem do
sexo feminino, e muitas vezes elas expõem seus olhos roxos, o que mais uma vez remete a
castração advinda do temor da cegueira.
Fotos de mulheres com olhos roxos são protótipos das campanhas de violência contra
a mulher. A imagem de um olho roxo remete a inevitável vulnerabilidade do humano, sempre
à mercê de sofrer ataques e retornar a um estado de desamparo no qual os cuidados por um
Outro é fundamental. Estas imagens podem ocasionar a liberação de afetos até então
reprimidos ou deslocados, os quais, a princípio, podem parecer estranhos, tais como os afetos
gerados após agressões sofridas pelos pais na infância. Ao se deparar com estas fortes
imagens, as sensações reprimidas podem vir à tona com extraordinária força. Bem como a
ameaça de morte iminente, que uma imagem de um corpo agredido provoca, e não pode ser
deixada de lado; não há nada mais estranho do que a morte.
Retomando ao fenômeno do olhar, Quinet (2002) dedica parte de sua obra à
compreensão da pulsão escópica. Este conceito atribui ao olhar algo mais do que a visão,
devido à libido presente na pulsão implicada no olhar, como sublinha a psicanálise. Vale
ressaltar que esta pulsão escópica na referida obra é tratada a partir do movimento pulsional
cujo objeto libidinal privilegiado é o olhar. Tal como Freud (1905/2006) colocara, a pulsão é
103

incessante e sempre parcial; como forma de aliviar o mal-estar provocado por sua carga
energética, o movimento pulsional se direciona a objetos inconscientemente eleitos, os quais,
apesar de incapazes de saciar toda a tensão provocada pela pulsão, fazem função de amparo e
contorno. Se oferecem não como a salvação, mas como uma possibilidade de auxílio ao mal-
estar por serem circunscritos, contornados pela pulsão. “A satisfação pulsional, equivale,
portanto, ao percurso do circuito da pulsão em torno do objeto” (Quinet, 2002, p. 81). Vale
ressaltar que é o olhar da mãe perdido desde sempre, uma vez que a mãe dirige seu olhar para
outros objetos além da criança, que provoca o início do circuito pulsional escópico em torno
da dualidade entre o olhar e o ser visto.
O mito da medusa é trabalhado em Freud (1940/2006) como uma faceta entre a pulsão
escópica e a castração, atrelado ao horror pela mulher e seu potencial sedutor. Medusa foi
castigada pela relação sexual que teve com Posseidon e foi amaldiçoada com uma punição,
cuja insígnia colocava que o que ela olhasse viraria pedra. Para “protege-la” de seduzir outro
homem, Medusa nada podia ver.
Quinet (2002) atribui três momentos ao percurso da pulsão escópica, os quais auxiliam
na compreensão deste trabalho sobre o impacto das imagens nas mídias digitais. O primeiro
momento é o que equivale ao autoerotismo, ou seja, o prazer no próprio corpo; o segundo
tempo introduz um objeto estranho no corpo do sujeito, que realiza a ação de olhar a ser visto
por ele mesmo; e o terceiro e último tempo introduz uma pessoa estranha a olhar para este
mesmo objeto estranho. Ou seja, o sujeito do primeiro tempo foi reduzido a um objeto a ser
olhado pelo outro: “somente o objeto brilha em satisfação, o gozo escópico” (Quinet, 2002, p.
76).
É interessante observar como o olho roxo da mulher agredida pode ser visto como este
objeto que emana do sujeito para ser visto e contemplado pelo outro, um outro sujeito
qualquer. Objeto que ganha um estatuto de enorme importância, símbolo da vulnerabilidade,
castração e desamparo fundamental. Remete a sensações profundas de falta de garantias e
angústia.
Ser um ser faltante é o que nenhum sujeito humano quer se haver, é o que provoca a
angústia. Não é espantoso que Lacan (1962-1963/2005) ao falar de angústia remeta este afeto
aos primórdios da constituição do corpo imaginário. Não há nada mais desorganizador ao
sujeito do que o seu corpo, suporte de sua representação no mundo, vir a ser ameaçado. O
autor prossegue a análise dizendo que o mais angustiante é deixar de colocar a sua castração a
serviço do Outro: “Dedicar sua castração à garantia do Outro, é diante disso que o neurótico
se detém” (Lacan, 1962-63/2005, p. 56). Uma vez que ele abdique de dirigir sua falta ao
104

Outro, só restará a ele lidar com a própria castração sozinho: daí advém a angústia, da
impossibilidade de sustentar a própria falta.
Aqui conseguimos compreender porque se torna saudável à mulher expor seus
hematomas para que o outro a veja e a ampare; a angústia sofrida pela mulher agredida é
atenuada ao colocar sua falta a serviço de um outro que irá olhá-la com amparo. Ainda que
este outro, quem se solidariza com a mulher agredida que expõe seu hematoma numa rede
social, seja uma pessoa a princípio totalmente desconhecida, segundo Freud (1921/2006)
quando em grupo os sujeitos se conectam por um ideal, suas mensagens são organizadas por
um líder, e por um fenômeno de contágio solidarizam-se entre si. O olhar do outro sobre si
traz prazer, na medida em que tampona a castração, preenchendo a falta-a-ser inerente ao
sujeito através da libido contida no olhar.
Entrando na última reflexão deste item, a identificação com a vítima também é um
importante fenômeno provocado pelas imagens de corpos agredidos em mídias digitais. Freud
(1914b/2006) introduz o termo identificação relacionando-o ao narcisismo, já mencionado
anteriormente, o qual aqui é visto como uma etapa da constituição do sujeito na qual ele se
apropria da imagem do seu corpo.
De acordo com Lima (2006), é no âmbito do fascínio que está situado o sujeito quando
é capturado pelas imagens expostas nas mídias digitais. Contudo, considerando o poder de
contágio já exposto que ocorre nos fenômenos de grupo, e considerando ainda a dinamicidade
inerente ao sujeito humano, o fascínio inicial pode vir a dar lugar ao processo de
identificação, descrito por Freud (1921/2006), processo mais elaborado, uma vez que abre
caminho para a representação. Na identificação há uma interiorização do objeto e da
dimensão do sentido que o comporta, indo além, portanto, do caráter mágico e instantâneo do
fascínio, o qual é próximo da alucinação. A introjeção leva ao enriquecimento do eu, a um
acontecimento de corpo transformador para a subjetividade.
Uma mulher que sofre agressão verbal do marido, como exemplo, e nunca percebeu
que estas agressões são manifestações de violência, pode passar a ter este discernimento em
meio ao contágio e identificação provocados pelo encontro com mulheres que expõem a
público suas agressões nas mídias digitais. A identificação significa uma introjeção de
aspectos vistos nas mulheres que expõe suas experiências como vítimas, contudo, sem uma
alienação ou um fascínio, sem uma mistura de si com as outras, pertencentes aos mesmo
grupo.
Há na identificação uma renúncia ao amor consigo mesmo em troca do amor pelos
objetos, é a forma de constituir um laço afetivo com os outros. Na medida em que o sujeito
105

abandona o seu ideal de eu substituindo-o pelo ideal do grupo, o qual é colocado pelas
mulheres agredidas como uma tentativa de erradicação destes episódios, o laço criado com o
grupo de mulheres internautas se fortalece, contribuindo para a criação de uma cultura na qual
a minoração da mulher é inadmissível. É uma identificação pela via do desejo, que pode levar
a perda narcísica e ganho em cultura.
Freud (1914a/2006) coloca que a repetição de comportamentos é comum devido ao
fato de haver conteúdo inconsciente determinando esta repetição, o qual não foi elaborado. O
autor afirma que “... o paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu ou reprimiu, mas o
expressa pela atuação... ele o reproduz não como lembrança, mas como ação; repete-o, sem,
naturalmente, saber o que está repetindo” (p. 165). Para que a recordação do que foi reprimido
venha à tona, é preciso que as resistências sejam deixadas de lado, o que significa uma perda
narcísica e consentimento para com o outro. É isto que o grupo de mulheres internautas
promovem, através do contágio, empatia e identificação umas com as outras.
Freud (1919b/2006) escreve sobre a fantasia de espancamento presente em meninas no
período escolar, a qual possui dimensões inconscientes e remete ao masoquismo em ser
espancada pelo pai, ou qualquer figura semelhante substituta. A fantasia se desmembra em
momentos, e pode ser reduzida ao axioma “bate-se em uma criança”. Em um dos momentos, a
pessoa que agride é o pai, e a criança espancada é alguma coleguinha ou irmã; adiante a
criança passa a ser a própria menina: de sádica a fantasia passa a ser masoquista. Esta fantasia
foi pesquisada pelo autor, com a conclusão de que ela permanece atuante no psiquismo do
sujeito do sexo feminino; em meninos a fantasia foi menos evidente. Certamente, podemos
fazer uma relação entre a fantasia masoquista e os episódios de agressão; já que o
inconsciente é atemporal. Tal fantasia inconsciente pode ocasionar uma repetição para com o
comportamento masoquista de ser agredida, sem que as mulheres tenham consciência. Para
uma elaboração desta fantasia e suas dimensões masoquistas subjacentes, é necessário que as
resistências sejam postas de lado, para que, tanto o caráter sádico quanto o masoquista, cedam
lugar a um cuidado consigo mesma e empatia para com o outro. Por meio da identificação, é
possível a conquista de uma forma de subjetividade que tenha empatia com o outro e não
reduza episódios de violência doméstica a meras brigas de casais, mas sim a um grande
problema social a ser combatido.
Para finalizar a reflexão sobre as mídias, podemos observar que, embora as mídias
digitais possam ser propulsoras de divulgação de frases misóginas, e possam ser vistas como
facilitadoras de ideologias discriminatórias das mulheres, atualmente existem leis de proteção
a este tipo de comportamento hoje tido como crime. É importante destacar que as mídias
106

digitais são capazes de contribuir para uma problematização e até diminuição da violência
contra as mulheres, uma vez que podem encorajar mulheres a expor suas situações,
sensibilizando a população para a profundidade da temática e inclusive sensibilizando
mulheres a dar um basta em situações de violência que sofrem.
O mundo das imagens, representado grandemente pelas redes sociais, pode ser
interpretado como raso e escasso de sentido; contudo numa análise mais detalhada podemos,
com ajuda da psicanálise de Freud com Lacan, elucidar questões inerentes às fotos postadas
que mobilizam nos espectadores afetos dos mais profundos, causando empatia e coragem nas
mulheres que sofrem violência. Claro que a violência também acomete o sujeito do sexo
masculino, mas temos dados estatísticos que mostram o Brasil como um dos campeões
mundiais de violência contra as mulheres e dados históricos que mostram um pensamento
pejorativo e discriminatório em relação às mulheres que data de milênios, desde os primórdios
da civilização ocidental.
107

6 - O FEMININO NA PSICANÁLISE DE FREUD E LACAN

6.1. - Freud, Lacan e as mulheres

A psicanálise nasceu em meio a pacientes mulheres. Não é por acaso que até hoje a
temática do feminino – mais próximo às mulheres do que aos homens, na maioria das vezes –
se faz tão presente nos círculos psicanalíticos; já que foram elas, as mulheres, que
sensibilizaram Freud a sofrimentos até então nunca olhados. Freud e Breuer descreveram a
vida de Ana O. – conhecida como o caso pioneiro da psicanálise – como restrita e monótona,
contradizendo o vivo e diverso intelecto que ela carregava. Apesar de não ter demonstrado
interesse pelo movimento feminista que já existia em sua época, representado principalmente
pelas sufragistas, Freud foi extremamente sensível ao sofrimento das mulheres com o perfil de
Ana O., as quais inauguraram uma nova forma de se pensar a saúde psíquica (Kehl, 2018).
Além do fato da cultura vitoriana delegar às mulheres um lugar social extremamente
inexpressivo e tedioso, há questões biológicas e de cuidados neonatais que complicam a
sexualidade feminina e a feminilidade – entendendo a primeira como ligada às questões
eróticas e a segunda como ligadas às formas de se habitar um corpo de mulher. Uma questão é
o fato das mulheres terem dois órgãos sexuais: o clitóris e a vagina, ao passo que os homens
têm apenas o pênis. Outra questão são os cuidados neonatais recebidos, costumeiramente pela
mãe, genitora do mesmo sexo; os quais dirigem o movimento libidinal numa direção
homossexual o qual, posteriormente, pode, ou não, ser deslocado ao pai, genitor do sexo
oposto (Kehl, 2018).
A sexualidade em âmbito psíquico é presente e central na psicanálise, pois é ali que se
encontra o mais íntimo e profundo no que há de humano. Freud escandalizou a sociedade
vitoriana de sua época ao estudar a psicosexualidade nas crianças. Ao longo da obra ele se
debruça sobre a psicosexualidade nas mulheres – o que também era tabu para a época, pois
havia uma divisão clara entre o sexo nas mulheres casadas, associado à reprodução enquanto
o sexo por prazer era encontrado com as prostitutas, ou cortesãs. Lacan persiste no interesse
sobre o feminino e as mulheres, inaugurando a temática da sexuação pautada na teorização
sobre os gozos.
A vida de Freud foi permeada pelas mulheres desde sua mais tenra infância, uma vez
que cresceu junto a cinco irmãs, e apenas um irmão. Ele nasceu no final do século dezenove,
foi o primogênito de sua mãe, embora não de seu pai, quem já viúvo por duas vezes. Mannoni
(1994) tem uma biografia dedicada ao pai da psicanálise, na qual o descreve na vida pessoal
108

em paralelo a suas obras e percurso de analista. Esta biografia foi escolhida como referência,
pelo fato de apenas ser destacada a parte da vida de Freud que levanta reflexão sobre a
construção de suas obras, principalmente no que tange à sexualidade feminina, à feminilidade
e ao feminino.
O autor conta que Freud teve sua primeira paixão aos dezessete anos, quando, devido a
sua ambição de entrar na universidade, precisou se hospedar em uma casa de família na qual
havia uma moça de quinze anos. Ela foi seu primeiro amor, que foi mantido em segredo,
embora não fosse efêmero. A jovem, quem se chamava Gisela Fluss, também estava ali em
férias e logo foi embora para voltar para a escola, causando uma distância que alimentou
ainda mais este amor platônico.
Ainda jovem Freud decide ser médico, o que inevitavelmente o fez passar pelos
percalços de ter vindo de família pobre, sem dinheiro para ganhar os estudos. Ele escolhe se
casar com Martha, também de família pobre. Os noivos tinham como planos um casamento
aos moldes burguês, o que se tornou um desafio que alimentou o romantismo.
Foi curioso como Freud não inovou no quesito do casamento ao decidir fazer o seu
seguindo o modelo burguês; justo ele que tanto inovou em conhecimento da psiquê humana.
Martha foi sua escolhida para compartilhar da família tradicional, e o apelido que Freud a
chamava era “mamãe” (Mannoni, 1994), nada muito erótico. O pai da psicanálise não
apresentou interesse pelo movimento feminista que se lançava na Europa na época da
primeira guerra. Aparentemente, ele queria manter sua mulher apenas no papel de mãe, e não
a envolver nos assuntos que dizem respeito, de fato, à feminilidade.
É curioso que a mesma pessoa que em “Moral sexual civilizada e a doença nervosa
moderna”, (Freud 1908/2006), venha criticar os desastres subjetivos que a repressão libidinal
pode causar às mulheres, quando elas são reduzidas à função de maternagem, fez
aparentemente a mesma coisa com sua mulher Martha. A figura da mulher fora da
maternidade era comumente associada à da prostituta quando da época da moral vitoriana, o
que pode ser um motivo para a incoerência de Freud.
Freud parece então mais um adepto da união não entre o homem e a mulher, mas sim
entre a mulher e o lar, pois desta forma acreditava-se que a virilidade do homem burguês seria
sustentada. E isto é visto em sua teoria ao afirmar que a saída mais elaborada do complexo de
Édipo da menina é a maternidade (Freud, 1931/2006).
Freud também não foi um artista. Ele via nas obras algo rico em conteúdo, contudo
não era um grande apreciador do aspecto estético. O que vai de acordo com um
109

tradicionalismo prevalecendo sobre o aspecto revolucionário; contraditório para quem


escreveu obras como os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (Freud, 1905/2006).
Vale ressaltar que são informações retiradas da obra de Octave Mannoni sobre a
biografia de Freud, obra muito conceituada no universo psicanalítico. O mais relevante foi
conseguir, através desta biografia, articular sobre a aparente dificuldade do pai da psicanálise
de desvincular feminilidade, sexualidade feminina, e maternidade. Já a concepção de
feminino ele desvincula da maternidade, trazendo reflexões vastas sobre este conceito que vão
do início de sua obra até o final; por cerca de trinta anos Freud debruçou-se sobre o feminino
desvinculando-o do corpo da mulher e das questões com as quais a feminilidade se ocupa.
Jacques Lacan, nascido no início do século XX – filho de uma família de católicos
tradicionalistas, comerciantes de vinagre – provocou na psicanálise uma grande revolução
com sua inovação na técnica, revolução que lhe rendeu sua “excomunhão” da IPA e criação
de uma escola própria de psicanálise. Será feito um diálogo entre vida e obra deste autor, com
base em sua biografia publicada por Elizabeth Roudinesco, no que se faz necessário para
provocar reflexões sobre sua teorização acerca da sexuação – entendendo esta como a eleição
e sustentação de uma posição sexuada – cujo foco na pesquisa são principalmente às
mulheres, enquanto sujeito falante, para além da anatomia.
O autor francês teve como mãe uma mulher bastante devota à igreja e um pai que pôde
ser caracterizado como fraco, com pouca representação, esmagado pela força de seu próprio
pai. Por sua família pairava um clima de conformismo ao catolicismo e à vida burguesa
tradicional, o que veio a horrorizar Lacan. Inicialmente, ele ganhou o nome da Virgem Maria,
mas renunciou a este nome; aparentemente para subverter o tradicionalismo do catolicismo
burguês, com o qual ele em nada se identificava (Roudinesco, 1994).
É sabido que Lacan sempre se interessou pelas mulheres, chegou inclusive a ser
chamado de colecionador de mulheres por seu irmão, Marc Lacan, quem disse que Jacques foi
possessivo desde a infância e desta forma queria possuí-las; ainda que fosse um gênio não
soube reconhecê-las no sentido de alteridade, segundo o irmão. Não sabemos como era a
relação dos dois para que Marc chegasse a esta afirmação.
Quando ainda médico no hospital Sainte-Anne, sua relação com a psicanálise começou
com o caso de uma mulher, Marguerite Pantaine, quem foi apelidada de Aimée, a protagonista
de sua tese de doutorado sobre a psicose paranoica. Ela permitiu não só sua entrada na
psicanálise como uma introdução à paranoia feminina em geral. Todavia, esta mulher não se
colocou em afinidade com o autor, chegando a afirmar que ela não passou de “objeto de um
saber psiquiátrico” (Roudinesco, 1994, p. 51). Embora comprometida psiquicamente,
110

Marguerite tinha uma visão lúcida das relações de poder e assim podia julgar a hipocrisia que
ela via na família Lacan, a qual será aqui relatada. Ela guardou uma lembrança terrível de seu
período de internação e guardou mágoa de Lacan por nada ter feito para tirá-la do hospital.
Estes aspectos deixam dúvidas de qual era afinal a profundidade da relação entre os dois.
Nesta época Lacan namorava Marie-Thérèse Bergerot, uma viúva austera, quinze anos
mais velha do que ele, quem contribui para sua intelectualidade lhe apresentando obras de
filósofos e viagens de estudo. Contudo, em concomitância ele inicia um romance com Olésia
Sienkiewicz, uma mulher de espírito rebelde e aparência andrógina, quem era ex-mulher de
seu amigo Pierre de la Rochelle. Ela virou sua companheira de viagens de férias improvisadas
em passeios a altas velocidades pela França. As duas mulheres participaram de sua defesa de
doutorado em medicina, embora ignorassem a presença uma da outra. Lacan se mostrou desde
então reativo a monogamia e incapaz de romper um relacionamento, ficando a critério da
mulher esta decisão (Roudinesco, 1994).
Ele cai em tristeza em análise com Loewenstein ao se deparar com a dificuldade de se
separar de Marie-Thérère e com o fato de sua relação com Olésia dar mais certo quando
mantida à distância. Assim, ele percebe que a felicidade lhe escapa e a impaciência lhe
impede de aproveitar o momento presente. (Roudinesco, 1994).
Em meio a esta incapacidade de decisão, Lacan conhece um novo amor, Marie-Louise
Blondin, apelidada de Malou, quem vem a ser sua esposa. Malou era irmã de Sylvain
Blondin, irmão a quem ela mantinha um amor sem limites. Ele, também médico, era um
homem culto, extremamente sedutor e grande colega de Lacan com quem mantinha uma
relação de admiração mútua. Com facilidade, Malou projeta Sylvain em Lacan, sem se dar
conta que o irmão não era adepto da psicanálise, e via em Jacques Lacan um belo psiquiatra, a
altura de sua superioridade (Roudinesco, 1994).
Malou tinha um temperamento artístico e talento para pintura, era avançada em termos
intelectuais, também em seus gostos e aspirações; contudo isto não a levou a algum traço de
subversão com a sociedade da época: permaneceu ligada de forma rígida a uma ideia
tradicional burguesa de conjugalidade (Roudinesco, 1994).
Lacan se apaixona por esta mulher e a necessidade do casamento se faz presente, pois
não cabia ser amante de uma mulher jovem e inexperiente. Ele se casa no início da década de
trinta, aparentemente sem se dar conta das consequências da contradição entre a vida conjugal
a que ela aspirava e a vida amorosa que ele levava. Não é de se estranhar que a ruptura com
Olésia jamais se consumou. Ele inclusive lhe mandou cartas de amor em plena lua de mel na
Itália. O casal Malou e Lacan, mantido por uma idealização que não convinha com a
111

realidade, já se consumou a beira de um desastre. Contudo, Lacan sempre se mostrou incapaz


de abandonar uma mulher e Malou só pôde compreender que o homem idealizado não
correspondia a suas aspirações tarde demais: “Sempre imerso em seus pensamentos, Lacan
era ao mesmo tempo tirânico e sedutor, inquisidor e angustiado, cabotino e obcecado pela
verdade, coisas que o tornavam inapto àquela fidelidade conjugal que Malou teria desejado”
(Roudinesco, 1994, p. 151).
Na volta da viagem de Núpcias, Lacan encontra pela primeira vez Sylvia Bataille,
ainda casada com George Bataille e decidida a construir sua carreira de atriz. Ela a princípio
não se interessou por Lacan, pois o viu formando um casal bastante burguês e convencional
com Malou. Dois anos mais tarde, Lacan a corteja em sua casa com Bataille ao dizer que teria
ido até lá para vê-la. No mesmo ano eles ficam juntos, ela já estava separada de Bataille em
relação, embora não em papéis. E assim Sylvia se torna primeiro amante de Lacan, pois sua
ruptura definitiva com Malou só se consumou muitos anos depois, por iniciativa dela. A
ligação com Sylvia faz Lacan se despedir do mundo da alta burguesia médica de Paris, que
venerava o dinheiro e o sentimento de ser a elite da nação: “o lado boêmio de Sylvia traduzia
um temperamento lúdico que a tornava, pelo menos aparentemente, mais apta a suportar as
extravagâncias de um homem cuja existência ela havia escolhido partilhar por amor”
(Roudinesco, 1994, p. 152).
A ligação entre Lacan e Sylvia acontece entre o nascimento dos filhos dele com
Malou. Eles já tinham a Caroline, mais velha, e a gravidez de Thibaut, o segundo, estava em
andamento. O pior aconteceu quando as duas mulheres engravidaram em concomitância,
Malou de Sibylle e Sylvia de Judith. Lacan foi anunciar à esposa legítima, grávida de oito
meses, a gravidez de Sylvia, e Malou deu a luz em meio a uma profunda depressão advinda
do peso da humilhação. Aparentemente, Lacan o fez por uma mescla de felicidade e sadismo.
Judith Sophie, filha de Lacan e Sylvia, nasceu na França em meio à segunda guerra
mundial, e foi registrada com o sobrenome de Bataille, já que ambos seus pais permaneciam
em registro casados com outras pessoas. Judith nasceu neste imbróglio no qual a realidade não
podia condizer com a ordem legal. Em meio a este dilema pessoal, o conceito de Nome-do-pai
como chave para o estabelecimento da metáfora paterna fica marcado como pivô da teoria
lacaniana (Roudinesco, 1994).
Vale ressaltar que a rivalidade entre as filhas nascidas em concomitância ficou
explícita por parte de Sibylle, já que Judith fora de forma clara a preferida do pai, e Caroline a
da mãe. O pouco contato que Sibylle teve com o pai foi o suficiente para ela ver que estava
112

longe de partilhar com ele do mesmo amor que a irmã, de mesma idade, só que filha de
Sylvia, partilhava (Roudinesco, 1994).
Sylvia cada vez mais se fortaleceu como mulher de Lacan na década de quarenta, com
quem ele viveu até o final da vida. Eles se casam em cartório em 1953. Moraram juntos na
rua Lille, onde possuíam dois apartamentos: em um deles vivia Sylvia, Judith, Laurence – sua
primeira filha – e a mãe de Sylvia. Laurence Bataille tornou-se uma renomada psicanalista e
muito engajada em movimentos sociais, assim como a mãe. No outro apartamento, Lacan
atendia seus pacientes e também recebia suas amantes; ele permaneceu avesso à monogamia.
Lacan também teve uma secretaria muito devota, Glória (Roudinesco, 1994).
Os registros falam do quanto Lacan adorava Sylvia, do quanto a ouvia e admirava. O
nome da filha que teve com ela, Judith, foi em sensibilização à vida dos judeus na época da
perseguição nazista. Judith foi uma psicanalista seguidora dos preceitos do pai, casada com
Jacques Miller, quem na época da união era apenas aluno de Lacan, hoje seu redator
responsável por suas obras e sua escola (Miller, 2001).
O autor francês estudou com bastante cautela e profundidade a mulher e as facetas do
feminino, bem como ressaltou a importância do pai na subjetivação e elucidou de forma
minuciosa o feminino e o masculino tomando por base os modos de gozo que serão aqui
vistos em breve.
Sua forma de pensar a sexuação vai de encontro ao seu espírito inovador e autêntico.
0Colocou a posição sexuada para além da rigidez da biologia, atrelada a uma escolha que
parte de um sujeito falante, embora haja sempre um resto que vai além da palavra,
representado pelo gozo feminino que será apresentado adiante. Embora a concepção de sujeito
implique na importância da fala, algo lhe escapa, o qual será possível contornar, mas não
representar em palavras. Não sabemos ao certo se sua dificuldade inicial com as mulheres,
contada na biografia acima, foi talvez um gatilho para pensar a sexuação, mas podemos
concluir que Lacan foi fortemente envolvido por elas. Era uma pessoa livre, que vivia
apaixonadamente, sempre quebrando paradigmas conservadores e criando novos; além de ter
tido um profundo envolvimento com sua última mulher, envolvimento representado também
na sua forte ligação com a filha Judith e o genro Jacques-Alain Miller.

6.1 - O feminino na teorização freudiana

É na obra “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, que Freud (1905/2006) inicia a
reflexão sobre o feminino ao afirmar, referindo-se às transformações da adolescência, que
113

O desenvolvimento das inibições da sexualidade (vergonha, nojo, compaixão) ocorre


nas garotinhas mais cedo e com menor resistência do que nos meninos. Nelas, em geral, a
tendência ao recalcamento sexual parece maior, e quando se tornam visíveis as pulsões
parciais da sexualidade, elas preferem a forma passiva (Freud, 1905/2006, p. 207)

A relação do feminino à passividade é o ponto de partida para pensar esta divisão


subjetiva inerente às concepções de masculino e feminino enquanto significantes.
Em nota de rodapé na mesma página, ele aprofunda na temática ao dizer que
masculino e feminino não são simplesmente formas estanques do ser humano se comportar
enquanto homem ou enquanto mulher; mas sim categorizações psíquicas das mais complexas,
as quais habitam o psiquismo tanto de homens quanto de mulheres:

É indispensável deixar claro que os conceitos de “masculino” e “feminino”, cujo


conteúdo parece tão inambíguo à opinião corriqueira, figuram entre os mais confusos da
ciência e se decompõe em pelo menos três sentidos. Ora se empregam masculino e
feminino no sentido de atividade e passividade, ora no sentido biológico, ora ainda no
sentido sociológico. O primeiro desses três sentidos é o essencial, assim como o mais
utilizável em psicanálise. A isso se deve que a libido seja descrita no texto como
masculina, pois a pulsão é sempre ativa, mesmo quando estabelece para si um alvo passivo.
O segundo sentido de masculino e feminino, o biológico, é o que admite a definição mais
clara. Aqui, masculino e feminino caracterizam-se pela presença de óvulos e
espermatozóides, e pelas funções decorrentes deles. A atividade e suas manifestações
concomitantes – desenvolvimento muscular mais vigoroso, agressividade, maior
intensidade da libido – costumam ser vinculadas à masculinidade biológica, embora essa
não seja uma associação necessária, já que existem espécies animais em que essas
propriedades correspondem antes na fêmea. O terceiro sentido, o sociológico, extrai seu
conteúdo da observação dos indivíduos masculinos e femininos existentes na realidade.
Essa observação mostra que, no que concerne ao ser humano, a masculinidade ou a
feminilidade puras não são encontradas nem no sentido psicológico nem no biológico.
Cada pessoa exibe, ao contrário, uma mescla de seus caracteres sexuais biológicos com os
traços biológicos do sexo oposto, e ainda uma conjugação da atividade e da passividade,
tanto no caso de esses traços psíquicos de caráter dependerem dos biológicos, quanto no
caso de independerem deles (Freud, 1905/2006, p. 207).

Esta passagem é fundamental para reflexão de como a psicanálise inicia o seu


pensamento sobre o feminino; como um semblante criado por meio das relações de
identificação. A relação do feminino à passividade é, portanto, o ponto de partida para pensar
nesta divisão subjetiva inerente às concepções de masculino e feminino como significantes
que querem dizer algo para além da diferença biológica. Seu postulado é que o significante de
um dos sexos predomine no sujeito, pois o significante do outro foi reprimido ao inconsciente.
Contudo, a dualidade passividade e atividade permanecem inscritas no mundo
anímico, ainda que de forma inconsciente, e exercem influência ao comportamento humano
sem que o sujeito disto se aperceba.
114

Também é neste texto que é introduzido o termo masoquismo, uma concepção que
designa o prazer na dor e, também, o prazer obtido em situação de sujeição ou humilhação. O
masoquismo é trabalhado junto com o sadismo, como facetas universais da vida sexual, vistas
não apenas na perversão como na vida sexual como um todo. É aqui que Freud (1905/2006)
se depara com a fantasia masoquista inconsciente, caraterística da neurose, embora velada
pelo recalque. Isto significa que o desenvolvimento e satisfação da sexualidade humana são
marcados por tendências sádicas e masoquistas. Mas, também pode acontecer uma fixação
nestes componentes da sexualidade, o que devido a suas características pré-genitais e
polimorfas, caracteriza uma aberração sexual. Desta forma, o masoquismo é perverso quando
a satisfação pulsional está condicionada à dor advinda do objeto sexual. É importante destacar
ainda, que o autor não coloca o masoquismo como uma atitude exclusivamente passiva, pois o
localiza como um sadismo voltado ao próprio sujeito pulsional.
Em “O instinto e suas vicissitudes” Freud (1915/2006) coloca que a transformação do
amar em ser amado responde a dualidade da passividade e atividade inscritas no inconsciente,
o que é fundamental ao posicionamento sexual. É neste momento que o autor retifica a
atividade como forte aliada ao masculino e a passividade ao feminino ao dizer que: “A junção
da atividade com a masculinidade e da passividade com a feminilidade nos confronta, na
realidade, com um fato biológico, mas não é de forma alguma tão invariavelmente completa e
exclusiva como tendemos a presumir” (Freud, 1915/2006, p. 139). Aqui a passividade aparece
como um mecanismo de retorno da pulsão ao eu, característico do processo de narcisismo.
Um dos possíveis destinos da pulsão seria esta espécie de inversão: ao invés dela ser
direcionada ao mundo externo ela retorna ao eu, recolhe-se no próprio eu, como um artefato
que protege e ao mesmo tempo causa inibição. Na referida edição das obras de Freud, o termo
alemão trieb é traduzido por instinto; ressalto que neste trabalho o mesmo termo é utilizado
como pulsão.
Este texto, portanto, abre a reflexão sobre o feminino e o masculino não se resumirem
nem equivalerem à passividade e à atividade. Além disso, também aprofunda na dimensão do
masoquismo, como um movimento pulsional pertencente às três grandes polaridades que
dominam a vida pulsional, que são: a atividade-passividade, descrita como de ordem
biológica; ego-mundo externo, de ordem real; e prazer-desprazer, na qual é abordada a
dinâmica do masoquismo, de ordem econômica. Em relação ao movimento pulsional, o
masoquismo é descrito como uma reversão do sadismo, que se dirige em direção ao próprio
eu. Embora ocorra mudança do objeto para o eu, a finalidade da pulsão permanece inalterada,
é a mesma tortura. O processo é descrito da seguinte forma: a origem da pulsão é sádica,
115

sendo que o sadismo consiste no exercício de violência ou poder sobre outra pessoa; num
segundo momento, esta outra pessoa é abandonada e substituída pelo próprio eu, juntamente à
mudança da finalidade pulsional de ativa para passiva. Neste segundo momento, a
transformação do sadismo em masoquismo acarreta um retorno ao objeto narcisista. No
último momento, que é quando se opera o masoquismo, uma pessoa estranha é mais uma vez
procurada como objeto, a qual assumirá o papel do sujeito que exerce a violência, ou poder.
Neste terceiro momento, o sujeito narcisista é substituído por outro ego, estranho, através da
identificação. O autor ainda coloca que a fruição não é da dor em si, mas da excitação sexual
concomitante, ou seja, o masoquismo novamente aparece vinculado à pulsão sexual (Freud,
1915/2006).
Freud (1919b/2006) discorre sobre a fantasia “Uma criança é espancada” encontrada
em crianças do período escolar, em três tempos, nos quais ciúmes, masoquismo e rivalidade
estão presentes. Foi feita uma pesquisa com quatro meninas e dois meninos, e o autor relata
dificuldade na análise dos sujeitos meninos, o que indica que é uma fantasia
predominantemente feminina. É importante ressaltar que, neste ano de 1919, ele ainda não
havia teorizado sobre a dissimetria entre meninos e meninas, o que fará a partir de 1923. Esta
fantasia já foi trazida no tópico anterior e é aqui retomada para maior ênfase dos trechos de
Freud escolhidos para se pensar o feminino.
O primeiro tempo da fantasia inicia-se com a frase “Uma criança é espancada”, e
encerra-se com uma formulação mais precisa: “O meu pai está batendo na criança que eu
odeio”. Aqui os ciúmes prevalecem como o afeto desencadeador: uma menina se vangloria
com o fato de que outra criança, a qual ela não gosta, é punida com agressão pelo pai que ela
ama. Este pai, portanto, a ama também porque pune o outro e não a ela. Este tempo o autor
coloca como uma fantasia de nível consciente, a qual se acessa com facilidade.
Já o segundo tempo é visto como o mais importante e de nível inconsciente. Nunca
será lembrado, mas pode ser construído em análise. Ele é descrito pela frase: “estou sendo
espancada pelo meu pai” – o que atribui à fantasia um caráter nitidamente masoquista. Esta
fantasia é uma irrupção do sentimento de culpa da menina, quem obteve prazer incestuoso
anteriormente ao ver o outro ser espancado pelo seu pai. O fato de ela ser advinda do
sentimento de culpa faz com que permaneça inconsciente, devido ao recalque.
No terceiro tempo, há uma indefinição tanto no agente quanto no receptor da agressão;
a fantasia torna-se, portanto, um axioma. Ele pode ser resumido na frase: “bate-se em uma
criança”. O autor pensa este tempo como relacionado à excitação sexual advinda da visão de
116

uma criança sendo espancada, a qual proporciona a satisfação masturbadora. Castigos e outras
demais humilhações podem aparecer aqui como substituindo a agressão física.
Em “O problema econômico do masoquismo”, Freud (1924a/2006) define três tipos de
masoquismo à luz de sua observação: o masoquismo erógeno, definido como uma condição
imposta à excitação sexual que obtém prazer do sofrimento; o masoquismo feminino, uma
expressão da natureza feminina, ao qual ele dedica uma análise mais minuciosa; e o
masoquismo moral, cuja natureza advém de um sentimento de culpa inconsciente, por não
haver seguido determinadas normas de comportamento e condutas sociais.
Ele prossegue dizendo que o masoquismo feminino se baseia no masoquismo
primário, erógeno, no prazer advindo do sofrimento. Desta forma, este texto modifica a
proposição anterior de que o masoquismo seria posterior ao sadismo, já que coloca a
existência de um masoquismo primário, o qual atua pela via pulsional além do princípio do
prazer. Ao analisar fantasias masoquistas, ele conclui que situações caracteristicamente
femininas lhes são inerentes; por exemplo, ser castrado, ser copulado, ou dar à luz a um bebê.
Alinhado à reflexão exposta no texto anterior de 1919, Freud (1924a/2006) afirma que
o desejo de ser espancado pelo pai se encontra muito próximo ao desejo de ser por ele
copulado; de ter uma relação sexual passiva, ou feminina, com ele. Também pode-se pensar
em tais traços masoquistas junto ao masoquismo moral; o que reduziria os três tipos de
masoquismo a uma única situação: o masoquismo aqui seria uma forma de regressão, aliado
da pulsão de morte, à moralidade sexualizada – uma espécie de nova vivência regressiva do
complexo de Édipo.
Avançando na obra freudiana, temos uma produção mais intensa sobre
psicossexualidade e sobre o feminino entre os anos 1924 e 1933. A começar pelo texto A
dissolução do complexo do Édipo, Freud (1924b/2006) aqui fomenta as consequências do
conflito edípico para além das identificações com pai e mãe. Ele desenvolve primeiramente a
concepção de angústia de castração que permeia o masculino, a qual tem origem na visão da
menina como um sujeito que não têm pênis, e o consequente temor do menino acerca da
possibilidade que esta visão dispara de perda do seu próprio pênis. É importante destacar que
o pênis é um representante fálico e que o masculino, segundo este raciocínio, pode ser
pensado como o sujeito que se vê como o portador do falo imaginário. É importante distinguir
o falo imaginário do falo simbólico: o primeiro é o falo do mundo das imagens mentais, como
pênis, carros, dinheiro... objetos emblemáticos efêmeros, que não se sustentam pelo discurso,
associados ao narcisismo. Já o falo simbólico pode representado pelo poder da palavra: é a
garantia sustentada pelo discurso, o qual opera em meio à cultura, em meio a um contexto no
117

qual as verdades e os poderes são construídos. A consequência do sentimento de ser portador


do falo imaginário é a angústia de castração: a angústia diante da possibilidade de perdê-lo.
Ainda neste texto, o autor inicia a reflexão sobre a castração na menina. Embora nela
possamos pensar em complexos de castração, este não opera da mesma forma que opera no
menino. Ele traz o exemplo da exigência feminista de direitos iguais de sua época como
equivocada no âmbito da inevitável diferença psíquica, advinda da diferença morfológica.
Talvez ele tenha desconsiderado que o sujeito de direitos não é o mesmo que o sujeito
psíquico. O importante é que a ênfase dada para a anatomia aqui é muito grande, a ponto de
ele colocar que a menina se sente inferior ao equiparar seu clitóris ao pênis. Embora ele possa
ter exagerado na ênfase, penso que fantasias acerca do crescimento do clitóris, até que ele
fique tão grande quanto um pênis, são comuns em meninas.
A grande pérola deste texto é ele colocar que a menina, devido a sua anatomia, parte
da castração como um fato consumado, e as consequências de sua “inferioridade” anatômica,
primeiramente, são colocadas como um medo da perda de amor: as meninas sofrem de falta
de amor. Contudo, ele empobrece seu raciocínio ao tentar concluí-lo com a equação: falo é
igual a bebê, como se a maternidade fosse uma saída eficaz para lidar com a falta de pênis.
No ano seguinte, em “Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre
os sexos”, Freud (1925a/2006) abre mais sua reflexão sobre o masculino e o feminino. Ele
diz, por exemplo, que mesmo em meninos o complexo de Édipo apresenta uma dupla
orientação, ativa e passiva, devido à constituição bissexual inata do ser humano.
Aqui ele enfatiza que a problemática do conflito edípico é dupla para as meninas, já
que elas têm dois objetos de amor: a mãe, em primeiro lugar; e o pai, num segundo momento.
A inveja do pênis aparece aqui descrita como consequência do complexo de castração,
anatomicamente inerente às meninas; além do medo da perda de amor, mencionado no texto
anterior. Após ter visto um pênis e saber que ele não é seu – a não ser por seu fraco
representante, o clitóris, a menina quer tê-lo.
O texto torna-se ainda mais interessante quando ele coloca reflexões que vão além da
questão anatômica. Freud (1925a/2006, p. 282) diz que: “... uma menina pode recusar o fato
de ser castrada, enrijecer-se na convicção de que realmente possui um pênis e
subsequentemente ser compelida a comportar-se como se fosse homem” – o que é possível
interpretar como comportar-se enquanto masculina, homem, pois anatomia não é destino -.
Ele descreve isto como uma rejeição; o que é possível de ler como um posicionamento
inconsciente de se ver possuidora do falo imaginário, e sofrer, não de falta de amor e de inveja
do pênis, mas sim de angústia de castração.
118

Sobre as consequências da inveja do pênis, ele descreve como um possível sentimento


de inferioridade, uma espécie de cicatriz advinda de uma sensação de inferioridade anatômica.
Caso esta sensação não seja elaborada, a menina pode situar-se como um homem, e aí advém
o descrito no parágrafo anterior. Outra consequência advinda da inveja do pênis são os
ciúmes, os quais, segundo o autor, representam um papel muito mais fundamental no
psiquismo de mulheres do que no de homens. A fantasia “uma criança é espancada”, vista
acima, cuja intensidade é maior em meninas do que em meninos, pode ser interpretada, no seu
primeiro tempo, como uma crise de ciúmes sádica, a qual as leva a fantasiar numa colega
sendo espancada.
Penso que a versão masculina dos ciúmes é o sentimento de posse, que alguns homens
claramente sentem sobre suas mulheres, diretamente relacionado à angústia de castração –
pois as mulheres podem ser vistas como capazes de lhes atribuir valor fálico, haja vista os
“mulherengos”, que adoram exibir suas mulheres como se fossem seus troféus -; sendo esta
posse ainda mais precária e limitadora do que os ciúmes.
Uma terceira e importante consequência da inveja do pênis é colocada pelo autor
como um afrouxamento da ligação afetiva entre a menina e sua mãe. Esta seria a culpada pela
ausência de pênis, uma vez que também não o tem, e a menina logo começa a demostrar
ciúmes de uma outra criança considerada, em fantasia, mais amada, o que justifica o
desligamento afetivo da mãe e as fantasias sádicas de espancamento para com a outra criança.
Este texto se encerra com Freud (1925a/2006) iniciando reflexões sobre uma possível
correlação entre o abandono do clitóris, o desligamento afetivo da mãe; e o investimento na
vagina e na feminilidade. Contudo, novamente o autor é levado a equacionar que a
feminilidade tem relação com o desejo pela maternidade, com o filho sendo um substituto ao
falo; um empuxo ao qual Freud parece não conseguir ceder, talvez pela moralidade vitoriana
de sua época.
A principal pérola deste texto, é ele, ao final, inverter a ordem dos complexos na
menina: ao invés do complexo de Édipo vir primeiro e o de castração em segundo lugar, como
uma elaboração para o primeiro, ele afirma que na menina é ao contrário: o complexo de
castração vem primeiro, como reflexo da anatomia; e o complexo de Édipo viria depois, com
mais dificuldade de elaboração do que nos meninos, portanto. Ele conclui que o complexo de
castração sempre opera no sentido de inibir a masculinidade e incentivar a feminilidade.
Dando um passo adiante na teorização, é em “Sexualidade feminina” que Freud
(1931/2006) se debruça sobre a questão dos dois objetos de amor que permeiam a vida da
menina: a mãe e o pai, e sobre a troca da primeira pelo segundo. Tal troca não é simples, e
119

algumas mulheres, inclusive, não a efetuam, o que ele coloca como um germe da paranoia nas
mulheres: o temor inconsciente de ser morta, devorada pela mãe.
A reflexão sobre a troca de objeto de amor nas mulheres é pensada enquanto uma
dupla troca, simultânea: em seu corpo – do clitóris para a vagina – e em seu objeto de amor –
da mãe para o pai.
Neste momento, ele se debruça sobre as consequências do complexo de castração na
menina, o qual teria mais dificuldade de elaboração do que nos meninos, por vir
anteriormente ao complexo de Édipo. As consequências são três: a primeira é um rechaço da
sexualidade; uma não elaboração do sentimento de inferioridade de origem anatômica seria
responsável por este rechaço. A segunda consequência é a assunção de uma posição
masculina, advinda da persistência da fantasia de possuir um pênis. Esta posição pode
também resultar numa escolha de objeto homossexual, segundo o autor. A terceira
consequência, que para o autor é considerada a feminilidade normal, é a elaboração do
complexo do Édipo, cuja decorrência é a escolha pelo pai como objeto, o que abre portas para
se ter um filho com um homem, representante do pai.
A fase de ligação da menina à mãe é uma fase pré-edipiana, que aqui apresenta uma
ligação muito maior do que nos meninos. Este texto é o momento freudiano fundamental de
ênfase na mãe, enquanto objeto libidinal pré-edípico da menina, ligação esta que ganha uma
importância fundamental na sexualidade feminina.
É possível observar que esta ligação pré-edípica com a mãe comumente se repete, de
forma inconsciente, mais tardiamente, com o marido: afetos pré-edípicos podem vir à tona
num movimento de retorno do recalcado. O que retorna neste caso são conteúdos arcaicos,
confusos e ambíguos por serem primários: não sofreram a organização advinda da elaboração
do complexo de castração. Freud (1931/2006, p. 239) afirma que:
O amor infantil é ilimitado; exige a posse exclusiva, não se contenta com menos do
que tudo. Possui, porém, uma segunda característica; não tem, na realidade, objetivo, sendo
incapaz de obter satisfação completa e, principalmente por isso, está condenado a acabar
em desapontamento e a ceder lugar a uma atitude hostil.

O autor ainda trás fantasias relacionadas a esta fixação de libido no objeto materno,
como a fantasia da mãe ser a culpada pela menina ter vindo ao mundo mulher, e também ser
culpada por não a ter amamentado o suficiente, deixando-a numa sensação de insatisfação.
Contudo, não são motivos que justifiquem a hostilidade da menina. A melhor explicação é
encontrada na consideração de que a relação entre a menina e a mãe é muito próxima do pior,
por estar embasada num amor pré-edípico muito primitivo, ambivalente e imaturo. Da mesma
forma, o casamento de mulheres, principalmente as que se casam imaturas, sem terem
120

refletido a fundo acerca da feminilidade, também tendem a desembocar em hostilidade. A


saída seria uma melhor elaboração da intensidade da ligação da menina à mãe, pela via do
complexo de Édipo; o que é comprovado quando mulheres conseguem uma relação mais
maduras com seus parceiros, pois não estão permeadas por este amor ambíguo, intenso e
ilimitado.
Aqui Freud (1931/2006, p. 247) apresenta uma “grande sacada”, fundamental para o
desenvolvimento posterior do conceito de devastação, pela escola lacaniana. A grande pérola
deste texto é a afirmação:
A transição para o objeto paterno é realizada com o auxílio das tendências passivas, na
medida que escaparam à catástrofe. O caminho para o desenvolvimento da feminilidade
está agora aberto à menina, até onde não se ache restrito pelos remanescentes da ligação
pré-edipiana à mãe, ligação que superou (p. 257).

A palavra “catástrofe” está sendo usada dando sentido a algo na relação mãe e filha
que, quando não elaborado, leva ao pior. A catástrofe seria a demanda de amor da menina à
sua mãe, de forma desorientada e ambígua, que conduz a sensação de não estar sendo amada
pela mãe o suficiente; pois a demanda dirigida a ela é insaciável. Consequentemente, a
menina se sente incapaz de ser amável, sente-se um objeto dejeto.
Em relação às tendências passivas, conquistadas com a elaboração do conflito
edipiano, e as quais auxiliam no desligamento da menina à sua mãe, serão mais elaborados na
conferência “Feminilidade” (1933/2006). Aqui entendemos que a passividade é uma
conquista advinda da menina não mais precisar demandar amor à mãe, pois o ato de demandar
é ativo. E o novo posicionamento seria ser o objeto de amor escolhido pelo pai,
posicionamento onde predomina a passividade.
O último escrito do pai da psicanálise sobre o feminino aparece então, finalmente, de
forma mais madura em 1933: sua conferência intitulada “Feminilidade”. Aqui ele destaca que,
embora quando se conheça uma pessoa uma das primeiras perguntas que se mentalize a
respeito do desconhecido é se estas falando com um homem ou com uma mulher, caracteres
femininos e masculinos acompanham todos os seres humanos; mesmo quando tais caracteres
são vistos do âmbito da concretude biológica:
... partes do aparelho sexual masculino também aparecem no corpo da mulher, ainda
que em estado atrofiado, e vice-versa. Considera tais ocorrências como indicações de
bissexualidade, como se um indivíduo não fosse homem ou mulher, mas sempre fosse
ambos – simplesmente um pouco mais de um, do que de outro. E então se lhes pede
familiarizarem-se com a ideia de que a proporção em que masculino e feminino se
misturam num indivíduo, está sujeita a flutuações muito amplas... a masculinidade ou a
feminilidade é uma característica desconhecida que foge do alcance da anatomia (Freud,
1933/2006, p. 115).
121

Aqui ele retoma a ideia de passivo ligado ao feminino e ativo ligado ao masculino e
relaciona tal ideia ao comportamento do produto sexual do homem: o sêmen, que corre na
direção do produto sexual da mulher; enquanto o óvulo o recebe em repouso. Este modelo de
conduta do sêmen e do óvulo seriam protótipos da conduta sexual dos indivíduos. Contudo,
Freud (1933/2006) avança na reflexão e diz que esta agressividade masculina relacionada a
apanhar a fêmea e nela penetrar, em algumas espécies animais, é uma atividade usada
unicamente no ato sexual; em todos os outros comportamentos a fêmea se mostra mais
agressiva e ativa, é o caso, por exemplo, das aranhas. Mesmo as funções de maternagem,
tipicamente femininas para o autor, não estão invariavelmente ligadas ao sexo feminino nos
animais: algumas vezes os dois genitores dividem esta tarefa, e em outras vezes é tarefa
exclusiva do macho.
Desta forma, é inadequado reduzir atividade ao masculino e passividade ao feminino;
uma mãe é ativa quando cuida de seu filho. Uma conclusão muito interessante desta
conferência é que na feminilidade, embora não necessariamente predomine atitudes passivas,
há predominância de escolha por fins passivos; o que não são sinônimos, pois para se chegar a
um fim passivo há um grande dispêndio de atividade. Isto para Freud seria um caminho
pulsional, independente de costumes sociais que impelem as mulheres a uma situação passiva.
Vale ressaltar que toda oposição quando tomada de forma binária e generalizada pode ser
considerada totalizante, como uma forma de impor uma consistência à inconsistência inerente
às relações entre parceiros.
No masoquismo, visto acima através do texto “Bate-se em uma criança” de 1919 como
tipicamente feminino, aqui na conferência de 1933 é visto como uma supressão da
agressividade nas mulheres, com origem tanto constitucional quanto de imposições sociais.
Homens com características masoquistas permanecem como enigma, pois não se pode
concluir facilmente que estariam fazendo uso de traços femininos ao se mostrarem
masoquistas.
Neste momento, Freud (1933/2006) mostrou-se interessado em aprofundar o estudo
na operação de troca de objeto libidinal na sexualidade feminina da mãe para o pai, cujo
marco é o desligamento – ou ao menos abrandamento – do poderoso vínculo entre a menina e
sua mãe. Para isto, ele retoma fantasias infantis da menina, tais como a crença de que a mãe
não a nutriu o suficiente com seu leite, a qual seria justificada no fato de que as mães não têm
leite suficiente para seus filhos e, ademais, muitas mães se contentam em amamentar apenas
nos primeiros meses de vida dos seus bebês. A segunda fantasia de ataque à mãe é oriunda do
nascimento de um novo bebê: o amor infantil é ilimitado, não tolera partilha. Um irmão é
122

visto, mesmo que inconscientemente, como um rival principalmente em relação à atenção da


mãe, que precisa agora ser dividida.
A terceira fantasia que perpassa o inconsciente das meninas e ajuda no seu
desligamento psíquico de suas mães, ressaltada por Freud (1933/2006) é que a genitora seja a
culpada por sua ausência de pênis; fantasia que opera durante a fase fálica, período do
Penisneid, ou inveja do pênis, e não perdoam a mãe por terem sido colocadas em
desvantagem. Se, no caso dos genitores, a despossuída de pênis é a mãe, ela obviamente seria
a culpada. É nesta fase que o clitóris, que podia ser adorado como um possível pênis
incipiente, passa a ser também alvo de hostilidade por sua inferioridade em relação ao mesmo.
A mãe, vista como também castrada, é assim possível de ser abandonada, com ajuda do
acúmulo da hostilidade alimentada por essas fantasias. Todos os seres cujo corpo está inscrito
no sexo feminino são assim vistos como menores, pois não escapam à castração.
O autor traz uma observação interessante ao dizer que são concomitantes: o
desligamento da mãe, do clitóris, e o abandono da postura de atividade; a qual dá lugar a
possibilidade de a pulsão caminhar a finalidades passivas, sem que isto seja motivo de
angústia, mas sim como um caminho inerente ao sujeito inscrito no feminino – aquele que
reconhece a castração inscrita em seu corpo. O voltar-se para o pai realiza-se com ajuda da
pulsão caminhando em direção a fins passivos.
Entretanto, algo claudica neste ponto e Freud (1933/2006), aparentemente, recua em
sua pesquisa sobre o feminino ao dizer que a feminilidade só se completa com o desejo por
um bebê, como forma de compensar a ausência de pênis no corpo das mulheres, como uma
equivalência simbólica (falo = bebê). Maternidade aqui é vista como sinônimo de
feminilidade; pensamento, no mínimo, ultrapassado e equivocado. O autor pensara que o
desejo de ser mãe faria a menina finalmente se identificar com sua mãe e seu enigma de ser
mulher assim se resolveria e encontraria um final feliz, já que brincar de boneca não basta
para que este desejo advenha. Compensar a falta de pênis com vaidade e cuidados no corpo
também é mencionado pelo autor como um artifício válido; contudo o desejo por um filho foi
apontado como a solução mais satisfatória.
De acordo com Fuentes (2009), Freud foi acusado de misógino pelas feministas ao
elucidar a inveja do pênis como uma questão crucial na sexualidade feminina. É interessante
observar que toda vez que o autor cita o movimento feminista ele apresenta um recuo, não
aprofunda. Por exemplo, Freud (1925a/2006) demostra temor pelos feministas por pensar que
estes são ávidos a colocar os dois sexos como completamente iguais em posição e valor.
Apesar do movimento feminista nada ter a ver com a profundidade do psiquismo trabalhada
123

pela psicanálise, é curioso ver um grande intelectual, que iniciou seus trabalhos de cunho
progressistas com mulheres, não se interessar pelo movimento feminista.
Para encerrar a retomada freudiana no que tange ao feminino e às mulheres, trago o
conceito de despersonalização, retirado do texto “Um distúrbio de memória na Acrópole”.
Neste texto, que é uma gentil carta dirigida a um colega, Freud (1936/2006) se mostra mais do
que impressionado com sua visita à Acrópole, e traz em sequência três concepções, que são
decorrências da visão da Acrópole, as quais vai desenvolvendo e interligando conforme
desenvolve seu raciocínio: incredulidade; desrealização; despersonalização. A primeira ele diz
que é uma tentativa de repelir uma parte da realidade; ele, em certa medida, duvidou da
existência da Acrópole, justo ao estar ali presente. A segunda, desrealização, ele descreve
como uma distorção ainda mais profunda do que a primeira, que pode ser definida pela frase:
“O que estou vendo aqui não é real” (Freud, 1936/2006, p. 242). O que passa a ideia de
tentativa de rechaçar uma parte da realidade em relação ao ego. Interligando a incredulidade e
a desrealização, o autor chega na despersonalização, a qual ele define como a sensação pelo
sujeito não de que uma parte da realidade lhe é estranha, mas sim do do seu próprio eu. Tal
sensação de estranhamento do próprio eu leva à situação de personalidade dividida, a qual
mais tarde Miller (2012) irá descrever e desenvolver melhor como uma faceta do feminino, o
que será apresentado no item abaixo.

6.3 – Preceitos para a teorização sobre o feminino em Lacan

6.3.1 – A tábua da sexuação e modos de gozo masculino e feminino

A forma de se comportar como homem ou mulher e fazer casal não são, de forma
alguma, inatos ao ser humano. Lacan (1964/2008) ao desenvolver os conceitos de alienação e
separação, em meio a reflexões sobre a constituição do sujeito, sobre a libertação em relação
ao Outro e o consequente advento do desejo, também coloca uma reflexão sobre a
psicossexualidade. Ele afirma que não há inscrição inconsciente que localize ao sujeito sobre
os enigmas inerentes ao tornar-se homem ou tornar-se mulher. Alguma chave para tais
enigmas será extraída do Outro, da cultura e da sociedade; contudo são construções singulares
que dependem de uma interpretação.
Kehl (2008), psicanalista, partindo deste raciocínio afirma que ser homem ou mulher
não é algo inato, mas sim construído a partir da travessia edípica, por meio de um processo
definido pela psicanálise como identificação. Com isto, pode-se concluir, de acordo com a
124

psicanálise de Freud com Lacan – pois não existe Lacan sem Freud -, que há duas questões
em jogo: uma seria o processo de identificação, o qual Freud (1925a/2006) coloca como
resultado da travessia edípica. Meninos e meninas, para o autor, identificam-se com os pais e
com demais pessoas de convívio social, para conseguirem fazer-se homens e mulheres em
meio a uma cultura. O gênero, a partir do movimento feminista, sempre foi algo colocado em
debate. Identificação, portanto, está relacionada diretamente à gênero.
Uma outra questão psicossexual diz respeito a forma como o corpo sexuado lida com o
complexo de castração. Retomando Freud (1925a/2006), cada sexo reage de forma diferente
ao deparar-se com a castração: meninos observam que meninas não têm pênis e temem perder
os seus órgãos sexuais: sofrem da angústia de castração. Já as meninas, ao observarem que
meninos têm pênis, sentem-se castradas no próprio corpo, antes mesmo de assimilarem a
castração de forma simbólica, metafórica: sofrem inveja do pênis. Contudo, nem sempre
meninos e meninas correspondem ao sexo biológico, e daí a importância do conceito de
sujeito, o qual designa àquele que se constitui a partir da fala, e não necessariamente do sexo
biológico. Um sujeito pode, no corpo com vagina, sofrer de angústia de castração; e não de
inveja do pênis. Da mesma forma, um sujeito com pênis pode sofrer de inveja do pênis no
sentido simbólico, pois, para si mesmo, o seu próprio pênis não está associado
inconscientemente ao falo imaginário. A orientação lacaniana, com os conceitos de sujeito,
imaginário e simbólico, ajuda a entender melhor esta passagem.
Podemos concluir com base em Lacan (1982), que existe a escolha por uma posição
sexuada na tábua da sexuação explicada abaixo: homem ou mulher, posição esta que tem
menos relação com a anatomia e mais relação com a fala possível de ser construída, a partir
da relação de um sujeito, – entendendo sujeito como aquele que fala –, com o seu corpo. É
resultado da forma como cada um sofreu o processo de castração: quem se posiciona do lado
mulher é o sujeito cuja imagem do próprio corpo é castrada no sentido imaginário, ou seja, no
sentido narcísico, relativo ao corpo, pois sente, inconscientemente, seu órgão sexual como
castrado. A inveja do pênis e o medo da falta de amor são os sofrimentos subsequentes a uma
possível sensação de inferioridade advinda da castração imaginária. Já o sujeito que se
posiciona do lado homem da tábua da sexuação é o sujeito cuja imagem de seu corpo, para si
mesmo, é portadora do falo imaginário; embora a castração simbólica possa incidir neste
sujeito, resultado do conflito edípico. O sofrimento advindo aqui é a angústia de castração:
medo de perder o pênis, ou o falo imaginário.
Os modos de gozo, masculino e feminino entram na teoria lacaniana como um
posicionamento inconsciente frente ao real da castração. Aqui não há uma ontologia sobre
125

homens e mulheres, o gozo, neste paradigma, responde a forma como o sujeito responde ao
complexo de castração.
É no Seminário XX que Lacan (1982) apresenta a tábua da sexuação:
Homem Mulher

Desta forma, Lacan (1982) irá teorizar sobre as posições subjetivas de mulher e
homem enquanto modos de gozo. É uma teorização de difícil apreensão, já que o próprio
conceito de gozo surge para dar conta de uma insuficiência na própria linguagem. Gozo é um
conceito feminino: la jouissance. Está relacionado a um tipo particular de satisfação, cuja
principal referência é um ganho primário dos sintomas, ou seja, é indissociável. O gozo é uma
espécie de tentativa de eliminar o espaço entre o objeto e o traço mnêmico que ele deixa, ao
qual retornamos alucinatoriamente; como se fosse possível uma sutura na posição subjetiva.
Aonde se goza é onde está o excesso, o inominável, o traumático.
Miller (2012) localiza o conceito de gozo situado em seis diferentes paradigmas ao
longo da teorização lacaniana. O momento de construção da tábua da sexuação está localizado
no sexto e último paradigma, o qual Miller (2012) intitula o paradigma da não relação. Aqui o
gozo é da ordem da registro imaginário, ou seja, está fora do simbólico. O gozo aqui aparece
disjunto do Outro; ou ainda na disjunção entre significante e significado. Podemos concluir
que o gozo aqui se trata do retorno à Coisa, ao objeto inominável.
Homem e mulher na tábua da sexuação são posições em relação ao gozo masculino e
ao gozo feminino; também chamados de gozo fálico e Outro gozo. O gozo masculino é o gozo
fálico, ou seja, é o gozo atrelado ao significante e à fantasia; ou ainda, o gozo circunscrito e
delimitado dentro da linguagem e da cultura. Já o gozo feminino pode também ser chamado
de gozo como tal, pois ele é o melhor representante do que foi descrito acima: excessivo e
inominável; é o Outro gozo, inalcançável pela linguagem, por isso Outro por excelência:
126

nunca se tornará conhecido. Em outras palavras, estes dois modos de gozo são formas de
obtenção de satisfação, como uma defesa para com o trauma da castração.
Iremos compreender por sujeito como aquele que se posiciona ou junto ao gozo
feminino – posição mulher -; ou junto ao gozo masculino – posição homem. Pelo fato do gozo
feminino não ser inserido na linguagem, o posicionamento junto ao gozo feminino foge à
concepção de sujeito, já que este é quem precisamente se constitui pela linguagem. Contudo,
podemos afirmar que há um sujeito posicionado junto ao gozo feminino partindo de uma
aproximação do conceito; já que jamais haverá um gozo feminino puro, o gozo masculino,
mesmo que em pequena medida, irá incidir também junto a ele. Em se tratando de psicanálise
não existe o absoluto, da mesma forma que Freud (1933/2006) concluiu sobre a anatomia:
hormônios masculinos irão incidir sempre sobre o corpo com vagina, e vice-versa. Ao se falar
em sujeito posicionado junto ao gozo feminino, portanto, não se trata de um binarismo que
exclui o masculino de cena, e também não se trata de um uso enganoso no emprego da
palavra sujeito em uma situação na qual não opera a linguagem; trata-se de uma aproximação,
ou seja, é o sujeito próximo ao gozo feminino – embora nunca opere com ele em absoluto.
Mulher, aqui, sujeito posicionado próximo ao gozo feminino, é aquela cujo corpo é
tido inconscientemente, por si própria, como castrado; castração esta que incide sobre
imaginário, ou seja, sobre o corpo narcísico. Ao sofrer o complexo de Édipo, tal complexo de
castração é colocado a nível simbólico, nível da linguagem, e daqui resulta a inveja do pênis.
O gozo feminino é resultante a este real da castração, a qual, em quem aqui chamamos de
mulher, é inscrita no corpo: as mulheres são as não portadoras do falo imaginário.
Já a designação homem, aqui, sujeito posicionado próximo ao gozo masculino, é
aquele que se vê portador do falo imaginário. É possível concluir, a nível imaginário – nível
do corpo -, que a castração não opera sobre o sujeito homem; ela irá operar a nível simbólico.
Ao passar pela castração simbólica, a qual opera pela linguagem, o homem é o que não sofre
de inveja do pênis, mas sim de angústia de castração, que é o medo de perder o seu órgão. Ao
visualizar, ainda menino, que as meninas não possuem pênis, ele poderia, em fantasia, ficar
como elas. Ao sentimento de angústia de castração corresponde o modo de gozo masculino, o
qual opera de forma diferente ao gozo feminino, e não o complementa.
A tábua da sexuação de Lacan (1982) está baseada não só na teorização freudiana, mas
também em premissas de Darwin e Aristóteles. O lado homem da tábua da sexuação, descrito
na parte de cima e à esquerda, é constituído pelo pressuposto de que há um ancestral macho
ao ser humano, o qual não estava submetido à castração: podia gozar livremente. Este macho
é a figura do macaco que deu origem às espécies, com base na teoria de Darwin, e também
127

pode ser visto como o Pai da horda primeva descrito por Freud em Totem e Tabu
(1913/2006): um homem considerado acima de todos, que poderia gozar de todos os corpos a
seu bel prazer. Este homem é uma exceção, cuja existência permite a formação do conjunto
dos iguais, com base na teoria dos conjuntos de Aristóteles; todos submetidos à função fálica,
todos castrados, com exceção do mais um: aquele que é o pai da horda primeva, quem pode
gozar de tudo e de todos, uma vez que não é submetido à castração.
Já o lado mulher da tábua da sexuação, descrito na parte de cima e à direita da tábua,
mostra que aqui não há esta exceção: ou seja, todos os sujeitos inscritos do lado mulher estão
submetidos à castração, a nível imaginário. Contudo, a falta de uma figura de exceção, que
não esteja submetida, impossibilita a construção do conjunto feminino de acordo com a teoria
dos conjuntos aristotélica, de modo que aqui a castração incide de forma singular, a cada
corpo de uma forma. Ainda que possam existir teorias que afirmem a existência de uma
mulher acima de todos, não submetida à castração, Lacan (1982) estava baseado em Freud,
Darwin e Aristóteles quando constrói esta teoria sobre a sexuação.
As mulheres, enquanto inscrição próxima ao gozo feminino, existem, portanto, apenas
em sua singularidade, no uma a uma; já que o gozo feminino não é inscrito pela linguagem,
sendo, portanto, impossível de ser partilhado. Daí advém a conclusão de que não há inscrição
inconsciente para o significante do sexo feminino, já que este se localiza para além do
significante e da linguagem, não corresponde à construção fantasmática acerca dos enigmas
do desejo do Outro. Esta conclusão resulta na afirmação de Lacan, que está no texto Televisão
(1964/2003) – e é vista como um jargão – A mulher não existe, o que existe é Uma mulher: a
mulher só existe enquanto única, singular, no uma a uma.
O gozo masculino, portanto, é equivalente ao gozo fálico: é submetido à castração em
padrão, universalmente, pela via da linguagem. Tem um limite circunscrito, delineado de
forma fálica através da construção fantasmática. Já o gozo feminino é não todo submetido à
lógica fálica, sendo que este não todo representa uma inconsistência, e não uma incompletude:
embora não esteja totalmente fora da lógica fálica, ele a escapa, está para além dela, para além
da linguagem simbólica. Refere-se ao real escapando ao significante. É um gozo inscrito no
corpo que não encontra seu ponto de basta, seu limite, seu contorno. Mesmo nos alicerces
culturais, não encontra apoio. Esta concepção amplia a orientação freudiana, uma vez que até
então o falo era colocado no campo central da psicossexualidade. Soler (2005) escreve sobre o
gozo feminino:
É a tentação de um amor tão total, tão absoluto quanto irrespirável, que varre para
longe não só as mediocridades do compromisso, mas esvazia de substância os objetos mais
128

diletos, mata qualquer diferença e se afirma sob a forma de um aniquilamento... de todos os


objetos correlacionados com a função fálica, ou seja, com a falta (Soler, 2005, p. 21).

O gozo feminino, colocado agora em questão de acordo com a teoria lacaniana, uma
vez que não é pautado na linguagem e opera sobre o corpo, está relacionado ao
comportamento de busca de um amor que não suporta o limite; já que não suporta ser pautado
pelas vias do significante e da função fálica, uma vez que esta é limitada.
Lacan (1982) prossegue na tábua da sexuação descrevendo que os dois modos de gozo
provocam diferentes movimentos do lado homem e do lado mulher: isto está descrito na parte
debaixo da figura:

Do lado homem, à esquerda e abaixo, há a inscrição de sujeito barrado ($) – barrado


pela linguagem e pela castração – e do falo imaginário, Phi maiúsculo; e ainda há a seta que
indica movimento direcionado ao lado mulher, no qual se encontra o objeto a. Ou seja, o
sujeito homem barrado é o portador do falo imaginário, e procura no sujeito inscrito próximo
ao gozo feminino, sujeito mulher, seu objeto que lhe cause desejo. Já do outro lado da tábua,
lado mulher, abaixo e à direita, não há a inscrição de sujeito, o que nos ajuda a entender que
falar sobre sujeito mulher é apenas uma aproximação do termo. Há a inscrição de grande
Outro barrado (A barrado), de objeto a, e de S de A barrado, a qual designa que não existe
Outro do Outro. Ao lado mulher, opera um modo de gozo que também é chamado de Outro;
o que é devido a sua não inscrição fálica, que o torna mais próximo ao corpo e sem limites.
Por ser ilimitado será sempre alter, portanto, Outro, diferente, estranho. Uma mulher, aqui
entendida como uma posição mais próxima ao gozo feminino do que um homem, será sempre
Outra para ela mesma, pois haverá sempre uma parte de si, desconhecida de si mesma, a qual
não ser abarcada pela linguagem. Daí a inscrição de A barrado neste lado da tábua.
129

Já a inscrição S de A barrado, indica que não há Outro do Outro. A seta menor,


inscrita no lado direito e abaixo da tábua, indica que, partindo da inscrição de grande Outro
(barrado), o sujeito posicionado no lado mulher não encontra um grande Outro que possua os
desígnios, ou seja, a decifração, para o Outro que a habita – relembrando que o Outro aqui
representa o alter, o estranho. O objeto a também se encontra inscrito ao lado direito,
indicando que o sujeito mulher é quem faz semblante de objeto a, encarna o lugar de falta, no
sentido de inconsistência, de onde parte a capacidade de desejar.
O fato de não existir um Outro do Outro que responda ao sujeito inserido ao lado
mulher sobre o estranho que há em seu gozo, pode levar algumas mulheres na busca deste
Outro em uma outra mulher, a qual representa a possibilidade de decifrar o enigma da
feminilidade. Ou seja, por uma mulher não encontrar respostas sobre o que é habitar um corpo
de mulher nela mesma, ela vai em busca de respostas numa outra mulher, quem teria,
supostamente, um melhor domínio sobre o assunto. O caso Lol Stein, que será descrito
abaixo, ajuda nesta compreensão da necessidade, aparentemente masoquista, embora
frequentemente vista entre as mulheres, de enaltecerem uma outra mulher, a qual também faz
parte da vida de seus parceiros.
A tendência a dirigir a libido para uma Outra mulher é associada às dificuldades
inerentes à decifração sobre os enigmas da feminilidade. Para tais enigmas não há respostas,
apenas possíveis construções. Quando uma mulher se depara com a pergunta (sem resposta)
acerca do que é ser mulher, facilmente ela pode se desviar da angustia de encarar uma
construção singular a este respeito, buscando refúgio não exatamente no parceiro, mas no
enaltecimento de uma Outra mulher, pois talvez seja na Outra que repousem as respostas
(impossíveis) à pergunta sobre o que é uma mulher.
A tábua da sexuação, em sua região abaixo e à direita, apresenta duas setas indicativas
de dois movimentos do gozo. A seta menor, que parte de A barrado e chega em S de A
barrado indica, como já mencionado, o movimento de encontro à não existência do Outro do
Outro. O segundo movimento realizado pelo gozo feminino indicado pela tábua está
representado na seta maior, que parte de A barrado e vai de encontro ao falo do lado homem.
Enquanto o gozo de um homem, gozo masculino, busca em uma mulher a causa de seu
desejo, o gozo feminino busca em um homem o seu alicerce fálico.
A saída das mulheres, apontada por Lacan (1982), é adotarem uma posição de objeto
causa de desejo, para assim atraírem a atenção de que talvez, por trás de seu véu – semblante
de objeto a -, exista algo de valioso. Entretanto, por trás não há nada, tudo não passa de
semblante. O objeto a, posição ocupada pelo sujeito inscrito ao lado mulher da tábua, precisa
130

ser entendido como o ponto de onde se origina a capacidade de desejar, o ponto que causa o
desejo por todos os objetos comuns.
De acordo com Laurent (2012a), os objetos a para uma mulher são os seus filhos; e o
homem que os acolhe ganha o respeito da mulher. A construção aqui não seria a freudiana,
que tem os filhos enquanto falo, substituto do pênis para a mulher. O enigma se desenvolve: o
homem é atraído por uma mulher enquanto ela cause o desejo, faça para ele papel de objeto a;
a mulher o recebe enquanto ele se ocupe de seus filhos, que são para ela os seus objetos a.
O mesmo autor ainda afirma que a escolha de ocupar a posição de causa de desejo é o
caminho pelo qual uma mulher se torna mulher; do que podemos concluir que traz alívio
psíquico sustentar uma posição enquanto figura sexuada. Contudo, tal posição abarca uma
solidão particular, uma vez que, apoiada ou não por um parceiro, é inerente ao feminino não
se apoiar sobre um modelo universal; portanto, todo sujeito inserido próximo ao gozo
feminino permanece sozinho em sua relação com o seu gozo. O autor afirma ainda que o ser
mulher é da ordem de um suplemento: não há palavra que o abarque: daí a sensação de
solidão e podemos extrair que daqui se conclui que a mulher será sempre Outra para ela
mesma; tal conclusão elimina a busca por uma resposta sobre o enigma da feminilidade e, a
busca por uma Outra mulher.
De acordo com Machado (2012), as fórmulas da sexuação definem o gozo masculino e
o feminino como modos de habitar a linguagem, relativizando a determinação anatômica. Esta
teorização não equivale ao conceito de gênero, pois este é sobre identidade ao corpo pautada
no social; enquanto a teorização da sexuação são formas de defesa frente ao trauma da
castração. A teoria dos gozos mostra que feminino e masculino não são complementares, isto
posto fica evidente o sofrimento advindo do fracasso de se tentar fazer o Um, ou
simplesmente de ter o Um como referência. O gozo feminino é o que está além do registro do
Um e do universal, é o ponto obscuro do gozo de todos os sujeitos, uma vez que ele não está
presente apenas nas mulheres. Mesmo no sujeito situado ao lado homem da tábua, o gozo
feminino irá existir, ainda que possa não prevalecer; tal como Freud (1933/2006) falou sobre a
presença de hormônios masculinos no corpo da mulher.

6.3.2 - O feminino e a sociedade: o ódio ao feminino

Na sociedade atual, século XXI, há uma perda do ponto de ideal que orientava
gerações e regulava relações. Isto não significa que os ideais deixaram de existir, mas sim que
estes estão multifacetados, pluralizados. Na sociedade patriarcal, ou seja, aquela na qual o
131

poder incide sobre os homens, e não sobre as mulheres, há um modelo de masculinidade e


feminilidade claros e generalizáveis. Os homens predominam em funções de liderança
políticas, autoridade moral, controle das propriedades e privilégios sociais. No domínio da
família, o pai, ou a figura paterna, mantém a autoridade sobre as mulheres e as crianças. Os
homens poderiam repudiar suas esposas por esterilidade, infidelidade, dentre outros modos de
conduta. Às mulheres era delegado o papel de cuidados com a casa, no que inclui marido e
filhos. Hoje, as críticas a este modo de estruturação social universalista sobre os gêneros
trouxeram a possibilidade de liberdade e uma necessidade maior de responsabilidade pelas
escolhas singulares: é tarefa do sujeito definir-se como homem; como mulher; como
transsexual - e, ainda, fazer a sua definição ter lugar no social.
Miller (2004) fala sobre a civilização ocidental do século XXI como desbussolada,
sem norte, individualizada, mais preocupada com o desempenho do que com os laços sociais.
Ele fala sobre o objeto a neste contexto com uma vertente diferente de causa do desejo. Este
objeto aqui seria uma espécie de operador do além do princípio do prazer, da pulsão de morte
em busca de um gozo desenfreado que almeja prazer, resultado, desempenho, eficiência; à
custa dos laços sociais, dos afetos e até mesmo, da castração. É neste contexto que o sujeito
tenta se equilibrar e se encontrar enquanto sexuado.
Diferente de Freud que considera a maternidade uma forma elaborada de desfecho do
complexo de castração nas mulheres, para Lacan (1982) ser mãe não basta para que o ser
falante posicionado ao lado mulher na tábua da sexuação encontre a sua posição sexuada: é
preciso ir mais além, situar-se e sustentar-se como objeto causa do desejo de um homem. O
caminho do ter, ter um filho, não é suficiente. É no caminho do ser que a mulher encontra um
contorno para lidar com a falta, que lhe é inscrita no corpo. Podemos definir por sexuação o
processo de reconhecimento do próprio corpo como sexuado e a busca por significantes que
ajudem a responder ao enigma do que significa a diferença sexual, do que significa ser
homem ou mulher na singularidade.
A sexualidade marca inscrição na experiência infantil traumática, na qual a mulher é
vista como castrada e o homem precisa preservar o que tem, já que corre o risco de perdê-
lo. Esta questão traz consequências ao gozo feminino, que pode ser considerado o grande
conceito na teorização de Lacan acerca das mulheres, na medida em que proporciona avanço
imensurável na teoria e prática clínica (Soler, 2005). Uma grande queixa clínica das mulheres
é sobre o paradoxo envolvido em, por um lado demandar todo o amor, e, por outro lado,
acabar por não receber nenhum amor.
132

Ainda em Soler (2005), a autora trás a personagem Ysé, da peça Partage du midi,
tentando dizer ao seu parceiro algo da ordem do indizível sobre o perigo inominável que
carrega no corpo. Quando seu parceiro está indo em viagem para a China, ela lhe pede para
que não se vá. E não consegue descrever o porquê de seu pedido. Seu problema não era
exatamente a ida dele, saudades, ou ciúmes; era deixá-la só. Ela lhe diz para não confiar muito
nela, porque sente uma tentação, a qual não quer se apegar.
Vieira et al. (2012) retomam o conceito de Unheimlich, freudiano, o qual se refere ao
mais íntimo do corpo do ser falante; contudo, tão íntimo que provoca estranheza, uma vez que
não é compartilhável, tampouco possível de ser exposto em palavras. Tão íntimo que
estranho. Quando este conteúdo emerge e vem à cena, ele inevitavelmente provoca horror, e o
sentimento que surge é a angústia; consequência de uma sensação que irrompe e não é
possível de ser simbolizada, ou imaginarizada. É um conceito próximo à concepção de
despersonalização, que Freud (1936/2006) traz, na qual o sujeito sente que uma parte de seu
próprio eu lhe é estranho.
Na mesma obra, Vieira et al. (2012) desenvolvem uma reflexão sobre o afeto de ódio,
e colocam-no como um sentimento primitivo, anterior ao amor. Trata-se do ódio estrutural, ou
seja, diferente do ódio sentido em uma experiência em isolado. Embora o senso comum
convide a pensar o ódio enquanto um avesso do amor, ou seja, ambos seriam duas faces da
mesma moeda; há facetas no sentimento do ódio que são dele, e não mantém relação com o
amor.
Este ódio estrutural precisa ser entendido com base na constituição primordial do
sujeito, pensada sobre os preceitos lacanianos do estádio do espelho, segundo os quais não há
um momento inicial de amor próprio, correspondente ao narcisismo primário; uma vez que
não há possibilidade para o amor antes da distinção entre o eu e os outros objetos externos, ou
seja, antes da separação entre o interno e o externo. Há uma instabilidade essencial na
formação do eu, cujo papel é essencial para a permeabilidade entre o dentro e o fora. No
contato com sensações prazerosas e outras desagradáveis, o sujeito repele o desagradável para
o mundo externo, e passa a senti-lo como hostil. Esta parte hostil expelida será posteriormente
sentida com ódio: uma sensação de aversão bem delimitada, com objeto bem definido: o
sujeito nunca ocupa o mesmo espaço do objeto do seu ódio. Este sentimento comprova que a
separação entre o sujeito e seu mundo externo nunca será plena, ou absoluta; ao entrar em
contato com o objeto de seu ódio a mesma sensação desagradável, advinda da sensação do
sujeito em contato com o seu estranho/íntimo, entra em cena.
133

Teria relação entre o objeto do ódio que parte do estranho/íntimo de si e o gozo


feminino? Uma questão que emerge é em relação ao ódio dirigido ao feminino. Os
movimentos misóginos, enrustidos em frases do dia a dia como “mulher ao volante perigo
constante”, “vai pilotar fogão”, “mulher tem que se dar ao respeito”, “mulher de malandro”,
“comporte-se como uma mocinha”, “mal-comida”, “por trás de um grande homem tem
sempre uma grande mulher”... aparentam serem formas de ódio ao feminino. O termo
Efeminofobia, geralmente usado no público gay e transexual, indica que trejeitos, traços e
comportamentos femininos frequentemente causam aversão. Tal aversão estaria relacionada
ao gozo feminino ser essencialmente o Outro gozo? Uma vez que o gozo masculino é o
padrão, podemos pensar que o sujeito situado ao lado homem da tábua da sexuação é aquele
que não priorizou o gozo feminino como parte de seu funcionamento psíquico; mas a não
priorização não necessariamente implica em ódio. Talvez o ódio advenha do conteúdo que foi
repelido enquanto estranho, nos primórdios da constituição psíquica que acontece no estádio
do espelho; e não enquanto um modo de gozo que simplesmente não lhe cabe, por lidar de
forma diferente com o complexo de castração. Não é simplesmente pelo gozo feminino ser
Outro que ele gera ódio. Depende de como o sujeito que opera principalmente pelo gozo
masculino lida com ele.
Com o aprofundamento na teorização sobre o gozo feminino, junto à pesquisa de
campo que virá no próximo capítulo, conseguiremos alguma elucidação destas questões sobre
ódio ao feminino; embora a compreensão do gozo feminino por completo, inscrito como não-
todo fálico, é da ordem do impossível: ele não se submete a qualquer circunscrição.

6.3.3 - A devastação

O termo devastação pode ser compreendido dentro da teorização lacaniana como uma
continuidade à temática do masoquismo freudiana, enfatizando à dimensão do estrago que um
homem pode causar a algumas mulheres. Assim como Freud, Lacan coloca uma dose de
atividade no masoquismo, não o reduzindo a um objeto passivo: “De fato, salta aos olhos que,
mesmo em sua pretensa fase passiva, o exercício de uma pulsão, masoquista por exemplo,
exige que o masoquista, se ouso me exprimir assim, trabalhe feito um burro” (Lacan,
1964/2008).
O enigma fica na aproximação, dentro da psicanálise de Freud à Lacan, entre o
masoquismo e o feminino. Talvez a similaridade venha do fato de ambos inscreverem-se sob
uma insígnia do negativo, uma marca de subtração. Tal aproximação não diz que o feminino é
134

masoquista, e sim que o masoquismo é feminino. No masoquismo encontramos fantasias em


torno de um dano que resulte em um equivalente à castração; ou seja, o enredo da fantasia
masoquista conduz, aquele que a produz, a uma lesão equivalente à castração (Ribeiro, 2017).
Lacan (1962-1963/2005) desenvolve, a partir da construção de uma paciente, a
concepção de que o masoquismo feminino parte da forma como uma mulher pode se
posicionar para atingir o desejo do seu homem. Este pensamento coloca que para algumas
mulheres, conseguir o desejo do seu homem sobre ela é algo vital, mais importante do que o
amor. Desta forma, ela se anula para tentar corresponder ao que supõe ser o desejo do Outro,
e daí advém o masoquismo. Ademais, este posicionamento, que pode anular uma mulher
enquanto sujeito, coloca também o homem numa posição difícil, e o faz sofrer. Mas, embora o
masoquismo feminino também possa atingir homens, o autor focou a análise para o
sofrimento das mulheres, chegando, a partir daí, no conceito de devastação.
Marguerite Duras, uma das principais vozes femininas da literatura do século XX na
França, escreveu um romance sobre uma personagem chamada Lol Stein, cuja obra foi
analisada por Lacan, com ênfase na excentricidade do desfecho. Lol, segundo Duras (1986),
já no colégio chamava a atenção muita mais pela ausência, do que pela presença:
... já faltava algo a Lol para estar – ela diz: presente. Dava a impressão de tolerar num
tédio tranquilo uma pessoa com quem ela julgava ter a obrigação de parecer e de quem
perdia a lembrança na menor oportunidade. Glória de doçura mas também de indiferença,
descobriam rapidamente, nunca parecera sofrer ou estar magoada, nunca se lhe vira uma
lágrima de moça. (Duras, 1986, p. 8).

Quando Lol decide de casar, sua melhor amiga tem dúvidas se havia paixão envolvida,
ou se não seria o casamento uma busca de uma situação estável para seu coração inacabado.
Contudo, o casamento não apenas não se consolida, desta vez, como também Lol é trocada
por uma outra mulher em um baile, Anne-Marie Stretter nas vésperas de seu casamento. Esta
outra mulher rouba o olhar de seu noivo ao entrar em cena no baile, de modo que sua
fisionomia muda e ele se rende aos novos encantos: pede a Anne-Marie uma dança, e dali não
mais se retira até o final do baile. Lol não se retira do salão, e pelo contrário, assiste a tudo.
Quando a saída do salão é inevitável, o noivo e Anne-Marie passam por diante de Lol
para se retirarem. Quando ela não mais os vê, Lol, fora de si, cai no chão, desmaiada. Um ato
em que a queda do corpo predomina sobre o sofrimento, seria uma forma de omitir sua dor?
Lol não vai longe no desconhecido sobre o qual se abre aquele instante. Não dispõe
nem mesmo de uma lembrança imaginária, não tem ideia alguma desse desconhecido. Mas
o que ela acredita é que devia penetrar nele, que era o que precisava fazer, que teria sido
para sempre, para sua cabeça e para seu corpo, sua maior dor e sua maior alegria
confundidas até em sua definição, que se tornou única mas inominável na falta de uma
palavra. Gosto de acreditar, como gosto dela, que se Lol está silenciosa na vida é porque
135

acreditou, no espaço de um relâmpago, que essa palavra podia existir. Na falta de sua
existência, ela se cala. Teria sido uma palavra-ausência, uma palavra-buraco, escavada em
seu centro para um buraco, para esse buraco onde todas as outras palavras teriam sido
enterradas (Duras, 1986, p. 35).

Lol não busca notícias da dupla após o acontecido. O amor ao noivo aparentemente
morreu, e ela se casa não muito tempo depois com Jean Bedford, quem aparentemente tinha
predileção por moças abandonadas e loucas. Ela então vive um casamento dentro do senso
comum, enquanto mulher pacata, de opiniões raras, dedicada à casa, aos filhos, e à celebração
de uma ordem rigorosa.
O que chama atenção nesta história é principalmente o fato do Lol cair desmaiada
assim que o casal adúltero, seu noivo e a outra mulher, saem da cena no baile. Lol, ainda que
quieta, permaneceu presente e firme todo o tempo em que seu noivo dançava com a outra
mulher; assistiu de camarote a toda a cena sem pestanejar, fez parte dela. Quando a cena
termina e o casal se retira, Lol cai com seu corpo; de alguma forma, ela sai de cena junto com
os dois. Ela não pôde manter-se em pé sem os dois; ainda que estivesse ocupando uma
posição de coadjuvante da cena, ou até de dejeto, já que foi preterida pelo noivo e deixada de
lado, ela precisava da cena para manter-se de pé. Uma vez só, ela não sustenta o seu corpo.
Para alguma elucidação sobre esta queda de Lol, muito representativa e enigmática,
faremos uma digressão. Machado (2012), retomando Lacan, afirma que “no inconsciente, só
há inscrição de um sexo, o masculino” (Machado, 2012, p. 9). Tal afirmação se explica pela
falta de um ponto de identificação, do ponto de vista do simbólico, que conjugue os elementos
pertencentes ao gozo feminino, pois ele não se organiza somente pelo falo. Se o gozo
feminino é próximo do real, ele encontra dificuldade de inscrição simbólica e, portanto, não se
inscreve no inconsciente.
Em “Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein”, Lacan
(2003) analisa o ocorrido com a personagem Lol Stein como um acontecimento da ordem de
um arrebatamento; advindo de uma vida vazia, cujo objeto regente é da ordem do
indescritível. Este texto acabou sendo ponto de partida para o desenvolvimento do conceito de
Devastação, o qual parte tanto da obra de Duras quanto do termo “estrago”, utilizado por
Freud (1931/2006) referindo-se à menina que não consegue elaborar os sentimentos ambíguos
e precários do amor pré-edípico dirigido à mãe.
De acordo com Brousse (2019), na devastação o lugar do significante mestre –
entendendo por este como a primeira inscrição significante que possibilita o início de uma
cadeia discursiva – não é um nome, mas sim um objeto. Aqui o objeto, o qual pode ser
pensado tomando por referência o objeto do Fort-Da freudiano (1920/2006), não foi reduzido
136

a signo, e, consequentemente, é tomado por objeto total, completo, numa armadilha do


imaginário que, pela falta da metáfora paterna, não é permeado pelo simbólico. O sujeito,
reduzido a estatuto de objeto inominável, sai da cena como um dejeto: é o que acontece com
Lol.
A autora ainda amplia a reflexão ao ressaltar que o corpo feminino frequentemente
causa efeito de fascínio; precisamente a nudez feminina adquire valor de falo imaginário justo
por ser impossível de ali encontrar-se tanto o órgão peniano, quanto a angústia de castração
decorrente da ameaça de perda. Em diversas culturas, desde a arte grega ocidental e as
culturas indígenas ocidentais, é possível encontrar o corpo feminino como um representante
de um falo erigido. Esta é a mesma ideia embutida na supervalorização da Outra mulher,
encontrada frequentemente na histeria, tal como o enaltecimento da senhora K por Dora
(Freud, caso Dora – 1900-1901). A senhora K seria a representante do falo imaginário; cuja
resposta ao enigma a respeito de como ser uma mulher ideal deve ali habitar.
Outro ponto a ser desenvolvido, sobre possíveis fatores envolvidos na devastação, é
colocado por Soler (2005) quando ela aponta para a importante separação, ou divisão, do
sujeito do sexo feminino em mulher e em mãe, ressaltando o quanto não são sinônimos. Ao
tornar-se mãe, a mulher pode ou ficar na posição de ser toda mãe, ou considerar que esta
posição não lhe realiza plenamente, pois ela também precisa, além de mãe, ser mulher. Isso
porque existe um desejo na mulher que não se satisfaz com o filho. Basta este desejo aparecer
mulher: permanece toda mãe. Desta forma, os filhos acabam por ocupar um lugar central em
excesso para estas mães, são mães que querem tanto seus filhos tal como a mãe do pequeno
Hans descrita por Freud (1909/2006) que lhe provoca uma fobia. Esta fobia é vista como um
medo inconsciente de ser devorado pela mãe, já que ela não o olha em singularidade, por não
se dividir. É uma mãe descrita como uma “boca de jacaré”: devoradora. Os filhos da mãe
“boca de jacaré” ou ficam no lugar de seu fetiche ou ficam no lugar de seu dejeto: não há
lugar subjetivo pela ausência da divisão do sujeito mãe em mulher. Este lugar provoca uma
tensão neste relacionamento afetivo e a consequente não elaboração do mesmo, e pode ser
vista como possível fator envolvido na devastação.
Como efeitos da devastação advêm angústia, melancolia, sensação de
despersonalização, perda de si mesmo, fragmentação. É o estrago descrito por Freud
(1931/2006): uma mulher que permanece fixada a este modo de gozo ilimitado que não fixa o
sujeito ao seu corpo e leva a perda de controle. É o contato com o nada, a perda de valor de si
mesma, a identificação com o objeto dejeto. Uma Outra mulher facilmente pode entrar neste
137

cenário e roubar a cena, tal como aconteceu com a personagem Lol Stein; pois uma mulher
devastada só existe sob a perspectiva da Outra, atrelando-se a ela pejorativamente.
É possível associar devastação ao masoquismo feminino trazido por Helene Deutsch e
por Freud (1924a/2006)? Em “Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina”,
Lacan (1958/1998) questiona se o masoquismo feminino seria uma resposta à uma fantasia
masculina, e deixa a pergunta em aberto, já que há outras hipóteses, como ele mesmo levanta,
sobre o masoquismo feminino ser uma espécie de véu, conveniente aos interesses das
mulheres, o qual não deve ser levantado depressa demais. Sob esta perspectiva, o masoquismo
seria um tipo de mecanismo de defesa, diferente da devastação.
Joan Rivière ficou conhecida na psicanálise inglesa ao trazer o conceito de mascarada,
associado à inveja do pênis. Ela definiu a feminilidade enquanto a máscara fabricada pelas
mulheres para compensar-lhes a ausência de pênis. A mascarada é um disfarce, é o semblante
criado pela mulher em seu corpo para lidar com a inveja do pênis, tal como os enfeites e
excessos de adereços. A mascarada faz a função do véu da noiva: é aquele que lhe faz parecer
algo valioso. Penso que a mascarada seria uma saída para não sucumbir à devastação;
contudo, saída não muito eficaz, pois pautada no falo imaginário.
Laurent (2012) afirma que a mascarada é uma forma de se apresentar de um lugar
fálico e, por este caminho, encontrar um lugar no desejo do homem. O que termina em
falácia, pois o desafio do sujeito tido como feminino é justamente fabricar algo com o “nada”,
e não com o falo. A posição feminina, para o autor, parte de saber amar a falta; e não o falo.

6.3.4 - O parceiro sintoma e o amor

Harari (2008) comenta a afirmação de Lacan sobre a não existência da relação sexual,
concluindo que a parceria amorosa só pode ser feita no nível do gozo. A parceria feita sempre
envolve o sintoma. Miller (2016) inicia sua reflexão a respeito da diferença entre a forma de
amar do homem e da mulher – entendendo ambos como forma de posicionamento na tábua da
sexuação – fazendo uma brincadeira com um diálogo fictício no qual uma mulher declara ao
homem estar pronta para tudo; e ele, por sua vez, responde-lhe que está pronto, para não-tudo.
Convém delimita-la: até aqui, mas não mais além.
Ambos os autores levam a pensar que o lugar tirânico que faz da mulher o ser privado
– privada do falo imaginário -, fadada a uma irremediável incompletude e, consequentemente,
o ser ávido, insaciável e, por isto, pouco confiável, aparece com ênfase nas vias do amor. A
busca que algumas mulheres fazem de marcar seu corpo com um excesso: seja de joias, de
138

cores, de saltos, acaba mais por marca-las enquanto corpo que transborda; pouca eficácia estas
medidas apresentam para lidar com a incompletude.
Já do lado do homem, o traço de tirania aparece em outros aspectos. Ele faz da mulher
que escolhe o seu objeto a, e tal escolha tem profunda relação com ela ser o seu objeto
fetiche. Isto pode ganhar traços perversos, quando ele escolhe o que ela deve vestir, por
exemplo; passa a impor-lhe certo número de condições, as quais são mais da ordem do ter do
que do ser. O fetiche encontrado ao lado do gozo masculino pode ser visto como uma forma
de ter a situação da parceria amorosa sob o seu controle, como um proprietário. Daí a
sensação de posse sobre a sua mulher; contudo nesta, muito menos do que o controle, há a
ousadia, o risco de forma mais cega. De um lado temos a prudência; e de outro o idealismo. O
que a mulher exige com o parceiro é uma espécie de “homem-bússula”.
Tomemos o caso de Medéia, citado por Miller (2016). Ela diz a Jasão que está pronta
para tudo, enquanto ele lhe diz: não tudo. Ela não recua, nem diante do assassinato de seus
filhos, enquanto a representação do homem cuja existência ela quer eliminar, após ele lhe
dizer não. Claro que matar os filhos não é solução plausível para lidar com a perda do amor;
Medéia nos ensina uma posição mais extrema, ela não é aquela que perdeu, mas sim a que não
tem mais nada a perder.
O sintoma e a devastação são os modos de gozar do masculino e do feminino,
respectivamente, assim desenvolvidos pelo autor acima. A mulher é para o homem seu
parceiro-sintoma, enquanto o homem é para ela algo muito próximo de seu parceiro
devastação. Do lado do homem, temos o gozo finito, o fetiche. Este é da ordem de um objeto
que não fala, inerte, objetificado. Do lado mulher temos a erotomania associada à devastação,
a exigência de que se fale com ela.
Miller (2012) afirma que fazer-se mulher enquanto mãe seria uma solução pela via do
ter, ter um filho; solução oposta à que ele encontra, acima mencionada, pela via do ser, na
qual se fabrica algo com o buraco: metaboliza-se o buraco, o qual simboliza a falta, pela via
do ser. A via do ter é próxima do gozo masculino, que responde à castração com medo de
perder o seu pênis. O autor conclui que uma mulher que se constitui ao lado do ser o falo
assume sua falta a ter. Desta forma, pela via do ser, ela consegue ser o que falta aos homens.
Esconder a falta aqui é visto como uma forma de ostentar ser a proprietária, a quem não falta
nada nem ninguém; o que para o autor, é uma mulher que apenas aparenta ser igual a uma
mulher, ou ainda: uma mulher com postiço. Segundo o autor, “Uma mulher verdadeira” está
ao lado do ser e é ela que faz papel de apontar ao homem que o ter é ridículo. A mulher com
postiço, pelo contrário, denuncia o homem como castrado e se completa colocando-o na
139

sombra. Por outro lado, ela não ameaça o homem por não exigir que ele seja desejante, e
ambos assim descansam dos preâmbulos da castração.
De acordo com Suarez (2012) o amor faz acreditar no Um, mesmo sabendo na sua
impossibilidade e, desta forma, faz suplência à relação sexual inexistente entre os dois sexos.
Enquanto o desejo do homem fora do amor atormenta as mulheres, a crença de que o mesmo
desejo no amor salva, é uma suplência.
Dentro desta mesma perspectiva, Ferretti (2012) afirma que:
É somente na medida em que o homem pode dizer não à função fálica, isto é,
quando há castração, que ele pode amar a mulher e gozar de seu corpo, mulher que, por sua
vez, se insere como objeto a e como não toda na relação amorosa. (Ferretti, 2012, p. 135).

De acordo com Laurent (2012a), o amor para as mulheres pode se apresentar como
uma placa giratória, na qual elas circulam infinitamente em tentativas infrutíferas de agradar o
seu homem, e dar tudo a ele; ser tudo para ele: uma espécie de dar tudo para conseguir ser
tudo. Por essa via, em algum momento o sujeito mulher vai perceber que na verdade não é
nada para o seu homem; não passa de ser o seu dejeto maltratado. Esta é a falsa solução
encontrada pelo masoquismo feminino. Para o autor, não se trata de ser tudo para o homem,
tampouco de ser nada; trata-se de ser Outro – para o seu homem e para si mesma; livre da
fantasia imaginária do Um. O homem servirá de conector para a mulher ser Outro para si
mesma. Este autor parte da afirmação de Lacan que está no texto mencionado acima,
“Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina”:
... a castração não pode ser deduzida apenas do desenvolvimento, uma vez que
pressupõe a subjetividade do Outro como lugar de sua lei. A alteridade do sexo
descaracteriza-se por essa alienação. O homem serve aqui de conector para que a mulher se
torne esse Outro para ela mesma, como o é para ele. (Lacan, 1958/1998, p. 741).

O amor foi dito por Lacan em diversas passagens como “dar o que não se tem”. Esta
reflexão pode ser pensada em paralelo com o Banquete de Platão (Platão, 2015), uma vez que
esta obra coloca que o objeto amado não está exatamente no parceiro, está mais além. Com
isso, entendo que o amor está fora do universo do falo imaginário.

6.3.5 - A despersonalização

Miller (2012) afirma que nas mulheres abre-se uma clínica da falta de identidade, nada
comparável em intensidade do que acontece com os homens. Tal falta de identidade também
pode ser lida como falta de consistência; a qual, em alguns casos, leva a queixas de sensações
de fragmentação corporal e dúvidas, por parte do analista, sobre o diagnóstico de neurose ou
140

psicose. São queixas de dor psíquica ligadas a um afeto de não existência, ou de ser nada, com
momentos de ausência de si mesmas, semelhante ao que Freud (1936/2006) coloca em sua
visita à Acrópole e chama de sensação de despersonalização: estranheza em relação ao si
mesmo. Há também relatos de uma relação íntima com o infinito, traduzida como uma
sensação de incompletude radical; nada satisfaz. Encontra-se nas mulheres a frequente dúvida
se é possível encontrarem seus lugares na civilização com uma posição social, pelas vias da
sublimação. Insiste nelas uma ideia, até comovente, de que o verdadeiro lugar seria
encontrado nas vias do amor, ao serem amadas por um homem.
Prosseguindo em Miller (2012), o autor menciona uma saída interessante para as
mulheres lidarem com o gozo feminino, que seria abdicar da tentativa de “tapar o buraco” –
buraco aqui entendemos tanto pelo buraco da castração que incide no corpo das mulheres, ou
seja, no lugar do pênis elas possuem um buraco; como também o buraco que reside entre o
gozo feminino e os masculino, já que não são complementares – abdicar do buraco resulta em
encarnar o buraco, ou seja, ser o buraco; e, desta forma, dialetiza-lo, metaboliza-lo: “fabricar
um ser com o nada” (Miller, 2012, p. 68).
Brousse (2019) coloca que o corpo da mulher pode ser visto como o limite da função
castração, limite do poder da castração. O sangue feminino, o qual escorre pelo buraco
exclusivo do corpo da mulher, remete ao furo no simbólico. Ela ainda problematiza sobre o
movimento em direção ao falo no qual opera o feminino ao relembrar as frases usadas para
agredir mulheres como “malcomidas”, as quais sugerem que a mulher encontraria a felicidade
sendo “bem comida”. O falo imaginário, neste raciocínio, é tido como remédio universal,
justo porque tapa o buraco. Contudo, nem sempre as mulheres o querem, enquanto solução.
No discurso organizado em torno da metáfora paterna, enquanto desfecho do complexo de
castração, o falo é sim o remédio universal. Mas, nem sempre elas o querem. O que isto
indica? A despersonalização seria da ordem do gozo feminino escapando ao falo imaginário, e
não encontrando um ponto de basta?
E quando as mulheres não estão dirigidas ao falo, a autora aponta para outro
movimento típico do feminino: o objeto escondido: “Gineceu, harém, casa, cozinha, muros
altos, terraços, balcões, janelas, persianas: tantos territórios de onde ver sem ser vista”
(Brousse, 2019, p. 27). Esta também é a lógica do uso do véu: esconder-se. Desenvolvendo o
pensamento, a autora traz a ideia de que, para as mulheres enquanto posicionadas ao lado do
gozo feminino da tábua da sexuação, o falo não ganha o estatuto de um objeto a ser
preservado, mas sim de um objeto que seria possível de adquirir. A mulher, enquanto objeto
escondido, portanto, representa o falo imaginário – da mesma forma que foi dito acima sobre
141

o corpo nu da mulher -: o esconderijo é uma espécie de máscara para fabricar-se enquanto


falo imaginário, uma vez que, segundo a autora: “O falo como objeto perdido é o suporte do
sujeito falante quando este é ‘uma mulher’” (Brousse, 2019, p. 40). Concluindo este item, na
impossibilidade de encontrar o seu lugar junto ao falo imaginário, encarnar o próprio falo e
fazer-se de semblante pode ser uma saída para as mulheres, situadas na tábua da sexuação
junto ao gozo feminino, para escapar à devastação e à despersonalização.
142

7 – APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DAS ENTREVISTAS

Como já foi anteriormente dito, a psicanálise pode ser inserida em qualquer contexto
que envolva a necessidade de uma escuta atenta e apurada, a fim de colher dados para
pesquisa, trazendo ganhos tanto na construção de subsídios clínicos quanto no acolhimento de
entrevistados envolvidos.
As entrevistas foram realizadas na Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de uma
cidade do interior de São Paulo, sede da Região Metropolitana do Vale do Paraíba e Litoral
Norte, semanalmente. Foram selecionadas entrevistas com mulheres que sofreram violência
doméstica; de acordo com a ordem estabelecida na referida delegacia são violências no
relacionamento estável. Não foram considerados para análise os casos denominados pela
delegacia como violência urbana, os quais se referem a violências que ocorrem em locais
públicos, praticados por pessoas que não conhecem a vítima, ou que a conhecem pouco.
Tentou-se também efetuar as entrevistas com os homens agressores, sem muito sucesso. Os
casos selecionados para análise têm o requisito de serem entrevistas ricas de conteúdo, cujas
mulheres entrevistadas ganharam voz ao relatarem suas experiências. Tais conteúdos
relatados abrem possibilidade a reflexões sobre as experiências de violência, a fim de atingir o
objetivo da pesquisa: investigar significados inconscientes que promovem a repetição em
sofrer agressões, por mulheres que sofrem violência doméstica.
As entrevistas foram abertas, psicanaliticamente orientadas. Às mulheres, que
estavam enquanto vítimas na referida delegacia, eram oferecidas a possibilidade de
participarem de uma pesquisa com uma psicóloga; quem aceitava participar dirigia-se a uma
sala a sós com a pesquisadora, a qual lhes apresentava o termo de consentimento livre e
esclarecido. Após o preenchimento do termo, as mulheres passavam a falar livremente,
contando suas histórias de vida e violências envolvidas. As entrevistas que estavam dentro do
perfil de serem casos de violência doméstica, e cujas mulheres entrevistadas conseguiam
ganhar voz em seus relatos, produzindo um discurso coerente, foram transcritas. Quarenta
entrevistas foram utilizadas para a análise dos casos. Todas as mulheres foram entrevistas
apenas uma vez. Todos os nomes utilizados são fictícios.
A análise dos casos foi feita em duas etapas. Primeiramente foram construídas duas
tabelas, cujo fator de diferença entre elas é a idade das mulheres, para finalidade de análise
geral dos dados colhidos. As perguntas envolvidas para esta análise geral foram: Casou-se
muito jovem?;Trabalha fora de casa?; Violência na família original?; Ainda sofre violência?;
Violência em relacionamentos anteriores? Alcoolismo ou drogas no agressor? Problema de
143

relacionamento com a mãe? Foram questões que permearam a maioria das entrevistas,
mostrando-se pontos de partida importantes para uma análise global dos casos.
Em segundo lugar, foram recolhidos significantes das entrevistas. Os critérios de
escolha dos significantes foram: palavras que as mulheres usam para refletirem sobre elas
mesmas e suas histórias; repetição destas palavras, ao longo das entrevistas.
Foram escolhidas cinco entrevistas para serem expostas quase na íntegra, na seção de
anexos. São entrevistas valiosas, por serem ou de mulheres que sofreram violência durante
muitos anos de vida, ou por serem casos de violências muito acentuadas, as quais foram
expostas em detalhes, cujas falas profundas despertaram sensibilizações e inovações
pertinentes à temática.

7.1 - Aspectos gerais das entrevistas

Após uma primeira leitura dos relatos, foi possível observar alguns aspectos
recorrentes na maioria dos casos, aos quais repetidamente as mulheres se referiam, como, por
exemplo: o início dos episódios de agressão é costumeiramente depois que a mulher começa a
trabalhar, ou depois que ela começa a opinar sobre o comportamento do marido, bem como
sobre aspectos sociais em geral; outras vezes é depois que o filho do casal nasce, mostrando
ciúmes por parte do agressor ao dividir a atenção da mulher que lhe era até então exclusiva,
com o filho deles. Algumas mulheres, de mais idade, diziam que no início da relação achavam
que apanhar do marido era correto, pois eles estavam no papel de educa-las. Já as mulheres de
quarenta anos ou menos, que são a maioria na referida DDM, são mulheres que
costumeiramente partem da concepção de independência, e têm mais dificuldade de encontrar
o motivo pelo qual se submeteram às violências sofridas.
A maioria das mulheres permanece com o agressor, por bastante tempo, mesmo após
agressões sérias e ameaças de morte, com todo o risco de vida e sequelas psíquicas que a
situação inevitavelmente acarreta. Já outras mulheres, principalmente as jovens, têm mais
dificuldade de encontrar o motivo da permanência com o agressor. Algumas querem “fugir da
casa dos pais”, outras acham que elas vão “curá-lo”. Outras ainda dizem que gostavam muito
dele.
144

Tabela 1: Aspectos gerais das entrevistas de mulheres até 40 anos:


Nome Casou-se Trabalha Violência na Ainda Violência em Alccolismo Problema de
muito fora de família sofre relacionamentos ou drogas no relacionamento
jovem casa original violência anteriores agressor com a mãe

Adriana Não Sim Sim Não Não Não Não


Arlene Sim Sim Sim Sim Não Sim Sim
Bianca Não Sim Não Não Não Não Não
Carmen Sim Sim Sim Sim Não Não Não
Cecília Não Não Não Sim Não Não Sim
Celina Não Sim Sim Sim Não Sim Sim
Deise Não Não Sim Sim Não Sim Sim
Denise Não Não Sim Não Não Sim Não
(estuda)
Emely Não Não Não Não Não Sim Sim
Eva Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim
Fabiana Não Sim Não Sim Não Sim Não
Flaviane Sim Sim Não Sim Não Não Não
Gabriela Não Sim Não Sim Não Não Sim
Gilse Sim Não Sim Não Não Não Não
Gisele Não Sim Sim Não Não Sim Sim
Iara Não Sim Sim Sim Não Sim Sim
Larissa Não Sim Não Sim Não Não Não
Lissandra Não Sim Sim Sim Não Sim Sim
Luciana Não Sim Sim Sim Não Sim Não
Márcia Não Sim Não Sim Não Não Não
Milena Não Sim Não Sim Não Sim Sim
Nádia Não Sim Sim Sim Não Não Sim
Natália Sim Sim Sim Sim Não (casou-se Não Sim
aos 15 anos)
Noeli Não Sim Não Sim Não Sim Não
Paula Não Não Sim Sim Não Não Não
(estuda)
Raíssa Não Sim Não Sim Sim Sim Sim
Roberta Sim Sim Não Sim Não Não Não
Selma Não Sim Não Não Não Não Não
Úrsula Sim Sim Não Não Não Sim Sim
Vanessa Não Sim Não Não Não Não Não

Esta tabela, com intuito de uma análise global, levou em consideração os fatores que
mais foram falados durante as entrevistas, que foram: casamentos realizados quando as
145

mulheres ainda eram muito jovens, e, portanto, meninas; impossibilidade de trabalhar fora,
devido a proibições do agressor; episódios de violência na família original, tanto por parte de
pai, mãe, como também de parentes próximos; se ainda sofre episódios de violência por parte
do agressor (envolvendo os cinco tipos de violência determinados pela lei Maria da Penha, já
mencionados: física, psicológica, moral, patrimonial e sexual); se houve violência também em
relacionamentos anteriores; se os episódios de violência envolvem ingestão de álcool ou uso
de drogas por parte do agressor; e, por último, se as mulheres relatam problemas de
relacionamento com suas mães.
Num total de 30 mulheres, de idade até quarenta anos:
Oito casaram-se muito jovens, com vinte anos ou menos; mostrando-se minoria nesta
faixa etária. Este dado indica que são mulheres nascidas em uma geração que possibilita o
namoro como escolha de um parceiro, e, também, liberdade para namorar quantas pessoas
quiserem; e não o namoro como preparo para um casamento, com um parceiro único ao longo
da vida.
Vinte e quatro trabalham fora de casa, grande maioria, o que indica que proibições do
agressor para que não trabalhem não incide de forma grande nesta faixa etária de mulheres;
sendo que duas, destas restantes seis mulheres que não trabalham fora, ainda se consideram
estudantes.
Em relação a ter presenciado ou ter sido vítima de violência na família de origem,
quinze mulheres dizem que sim e outras quinze dizem que não. Embora o número tenha
ficado empatado, é uma alta taxa de mulheres que convivem com a violência durante toda a
vida; transportando este significante para suas relações.
Vinte e uma mulheres relatam ainda sofrer violência do agressor, enquanto nove
mulheres consideram já ter dado um basta na violência que sofreram, e estavam fazendo
boletim de ocorrência por indicação de advogado para relatarem episódios anteriores, ou o
BO não era dirigido, neste momento, ao parceiro agressor, mas sim a outras pessoas da
família dele; tais como ex-sogras que ameaçam, novas parceiras do agressor que também
ameaçam ou agridem. Este dado indica que, nesta faixa etária, as mulheres conseguem, em
maioria, colocar um basta, um limite para preservar os seus corpos em relação ao parceiro
agressor.
Duas destas mulheres relataram já ter tido episódios de violência em relacionamentos
anteriores. O número é baixo, mas vale ressaltar que algumas são muito novas, de idade entre
dezoito e vinte e anos, o que indica que não tiveram relacionamentos anteriores de longo
período de tempo. Entretanto, não temos dados de relevância neste fator.
146

Quinze mulheres associam os episódios de violência que sofrem a uso de drogas e/ou
álcool no agressor. Ainda que outras quinze não tenham feito este relato, consideramos o
número alto. Os agressores se transformaram ao usarem estas substâncias, e perdem qualquer
tipo de censura em relação ao que pode ser feito ou dito com as parceiras; o que caracteriza
situações extremamente perigosas, potenciais desencadeadoras de feminicídios. O uso de
álcool e drogas no agressor pode ser pensado como um semblante viril, do homem que bebe
como o poderoso, a quem é socialmente autorizado o uso de substâncias das quais as
mulheres ou são privadas, ou são mal vistas quando o fazem, mal faladas. E em última
instância, o uso destas substâncias acaba sendo uma espécie de autorização para que a pulsão
de morte seja livremente exercida contra aqueles a quem têm mais dificuldade de dominar,
por serem habitados por um modo de gozo diferente do deles: as mulheres.
Quinze mulheres relataram problemas de relacionamento com suas mães, número
considerado alto, e que pode ser visto como bastante sério em alguns casos de mulheres que
não se sentiram amadas pelas mães, ou sentiram-se abandonadas, causando um quadro de
grande transtorno afetivo cujos efeitos são sentidos diretamente nas relações amorosas.
147

Tabela 2 – Aspectos gerais das entrevistas de mulheres de mais de 40 anos


Nome Casou-se Trabalha Violência Ainda Violência em Alcoolismo Problema de
muito fora na sofre relacionamentos no agressor relacionamento
jovem família violência anteriores com a mãe
original
Débora Sim Sim Sim Não Não (primeiro Não Não
parceiro)
Eduarda Sim Sim Não Sim Não Sim Não
Luana Sim Sim Não Sim Não Sim Não
Mariana Não Sim Sim Sim Sim Sim Não
Noêmia Sim Não s/i 1 Sim Não Sim Não
Rebeca Não Sim Sim Sim Não Sim Sim
Rosa Sim Não Sim Sim Não (primeiro Não Não
parceiro)
Sonia Sim Sim Sim Sim Sim Sim Não
Tássia Sim Sim Não Não Não Não Não
Vilma Sim Não Não Sim Não (primeiro Não Não
parceiro)

A tabela dois trabalhou os mesmos fatores, com as mulheres de mais de quarenta anos;
as quais são minoria na referida DDM. Foram dez entrevistas válidas realizadas com mulheres
desta faixa etária, contra trinta na faixa etária anterior, o que, muito provavelmente, não indica
que mulheres de mais idade não sofram violência, mas sim que sofrem de grande dificuldade
de relatar estes episódios. Podemos pensar em hipóteses que justificam este fato como:
naturalização da violência, por tê-la sofrido durante muitos anos; dificuldade de locomoção,
por terem restrição de liberdade imposta pelos maridos; medo e descrença na lei, por
colocarem as proibições do marido acima de qualquer proibição legislativa.
Num público de dez mulheres de mais de quarenta anos:
Oito relataram terem se casado muito jovens, com vinte anos ou menos. É um dado
significativo que indica a possibilidade de que a maioria destas mulheres ainda sofre
influência da moralidade do século XIX, cujos preceitos eram de que as mulheres foram feitas
para se dedicarem ao marido, ao lar e aos filhos, com pouca possibilidade de escolha. O
namoro aqui é visto como um preparo para o casamento, a respeito do qual as mulheres pouco

1 – Sem informação
148

ou nada opinam, nem mesmo na escolha do parceiro. Esta proporção foi muito diferente da
tabela anterior.
Sete trabalham fora de casa, e três disseram que não trabalham. Destas três que
disseram que não, duas justificaram por proibição do marido; a outra, que tinha mais de
setenta anos, relatou o fato de não ter trabalhado fora como uma divisão natural da relação
com o marido, pois ela lhe dava suporte para que ele pudesse sair para trabalhar. Ainda dentre
as três que disseram não, vale ressaltar que duas têm mais de sessenta anos, e foram as únicas
mulheres entrevistadas da terceira idade.
Cinco mulheres num público de nove relataram episódios de violência na família de
origem, a proporção ficou semelhante à faixa etária anterior. Dentre as dez, uma mulher não
forneceu nenhuma informação de sua família de origem, justamente a de mais idade, setenta e
um anos. Podemos pensar que ela tenha se distanciado de sua família de origem há muitos
anos, e por isso não a menciona.
Oito mulheres relataram ainda sofrer violência do agressor, proporção tão alta quanto
na faixa etária anterior. Dentre as duas mulheres que relataram não mais sofrer violência, uma
parecia ter clareza e sensatez em relação ao perfil possessivo do marido, e estava na delegacia
cumprindo com as prerrogativas jurídicas do divórcio; a outra relatou um episódio de
violência ocorrido quando ela pediu pensão ao ex-marido, não relatou violência recorrente,
embora tenha se queixado bastante da relação com este ex-marido.
Duas mulheres disseram que já sofreram violência em relacionamentos anteriores.
Ambas são mulheres que relatam relacionamentos muito conturbados, com violências
recorrentes, bem como violência presente na família de origem. O número foi igual ao da
faixa etária anterior, e aqui mais significativo, pela proporção ser maior.
Seis mulheres associaram uso de álcool e drogas por parte do agressor aos seus
episódios de violência, porcentagem parecida com a faixa etária anterior e preocupante, pelos
mesmos motivos.
Apenas uma mulher desta faixa etária relatou problemas de relacionamento com sua
mãe, porcentagem muito menor do que na faixa etária anterior. Não sabemos ao certo o
porquê das mulheres de mais idade não se queixarem de falta afeto ou abandono de suas
mães. Talvez por já terem elaborado suas questões com a família de origem, ou por terem
vindo de uma rígida educação na qual não se pode falar mal de mãe ou pai. O que é
importante ressaltar é que este dado não significa que estas mulheres não se apresentem
devastadas, rebaixadas; embora, tal como foi visto anteriormente, a devastação tenha relação
direta com uma relação difícil com a mãe.
149

7.2 – Categorização com base nos significantes e significados

Foi realizada a criação de categorias para um melhor embasamento da análise dos


dados colhidos. O objetivo da categorização foi a realização de uma análise mais aprofundada
das entrevistas, com base na escuta analítica; escuta que envolve atenção flutuante e abertura
para o inconsciente. Sabemos que a via régia para o inconsciente são os sonhos, os tropeços
da fala – lapsos de linguagem e atos falhos. Contudo, a psicanálise de orientação lacaniana
inova ao aplicar conceitos da linguística na técnica analítica de acesso ao inconsciente, os
quais englobam, dentre outros, a teorização sobre o significante e o significado. Foram
observados, nas falas das mulheres, significantes cujos significados atrelados trouxeram
originalidade ao problema da pesquisa.
Vale ressaltar que o termo significante, utilizado na psicanálise de orientação
lacaniana, é de origem da linguística de Saussure (Ferdinand de Saussure – 1857-1913), o
qual se refere à imagem acústica da palavra, em contraponto ao significado, o qual refere-se
ao conceito associado à palavra. O significado é sempre múltiplo, pois varia principalmente
de acordo com a cultura. A fala é um conjunto de palavras, também denominadas de signos,
sendo que um signo é composto de significante e significado. Para a psicanálise de orientação
lacaniana, o significante sempre predomina sobre o significado; o que justifica os mal-
entendidos na linguagem. Além disso, um significante pode remeter a diversos significados.
Aqui, inserimos a psicanálise como uma ferramenta de escuta refinada com a
finalidade de colher dados sobre a psique das mulheres, a fim de criar subsídios clínicos para
o atendimento destes casos. A escuta psicanalítica cumpre o papel de elucidação de sintomas
e modos de gozo, os quais não seriam detectados sem uma escuta atenta. É essa escuta em
relação a si mesmo que pode contribuir para que elas se reposicionem diante dos fatos e da
violência que sofrem, e busquem soluções singulares para tentar enfrentar suas dificuldades,
inclusive da violência que sofrem.

Os principais significantes elencados, os quais correspondem às categorias criadas,


foram: droga, mulher, mãe, família, amor, casamento. Foram escolhidos por apresentarem-se
repetidamente ao longo das entrevistas, possibilitando uma abertura para reflexões sobre
diferentes significados associados aos mesmos.

Categoria 1 - significante Droga:


150

Lissandra, 29 anos:
Tenho dificuldade com maconha, cigarro, já fui usuária de craque, consegui parar só
com SOS mulher.... Se não fosse o SOS mulher me falar palavras positivas, já tinha tocado
fogo na minha casa.
A droga para esta mulher parece ter sido saída para lidar com uma vida difícil, na qual
ela só encontra palavras positivas no tratamento que recebeu do SOS mulher. A vida para
Lissandra é uma droga, e talvez ela também se veja como tal.

Milena, 31 anos:
Comecei a usar drogas quando via ele me trair com outras mulheres como se não
houvesse problema. Ele me esperava dormir e saía com prostituta. Usei tanta droga até ser
presa com liberdade assistida. Eu não consegui comprovar meu endereço, e fui presa.
Consegui melhorar porque escolhi minha filha, e nunca mais dei trabalho com drogas e
crack.
Meus pais faleceram os dois quando eu era muito nova, não queria que minha filha
pensasse que eu não penso no pai dela. Só que não da para conviver em família, para ele
tudo tanto fez tanto faz. Minha mãe tinha problema no coração, trabalhava muito. Criou os
filhos honestamente e sofria muito de dores de varise. Meu pai era pilantrão, usuário de
drogas. Minha mãe era solteira e meu pai era do mundo mesmo, não se falavam. Fui adotada
por uma vizinha.
Aqui aparecem dois significados à droga: o primeiro é o usuário de drogas aparecer
associado ao pilantrão, na descrição de seu pai; o segundo é a o uso de drogas como fuga de
uma situação insuportável, que era assistir às traições do marido. Milena pode acabar por se
entender como uma droga, ao ser traída sem limites.

Mariana, 40 anos

... Era por causa de bebida mesmo. Eu acho que eu tenho que parar de beber cerveja
também, porque ele diz que eu fico agressiva e fico xingando, falando as coisas mas o dele
mistura tudo, porque é bebida, é cocaína, e as crianças vendo isso é o pior. Como o pessoal
estava tudo com visita em casa ainda, um pessoal de Campinas estava aí, eles queiram que eu
saísse o mais rápido possível da casa para não passarem vergonha. Então ta bom, comecei a
xingar todo mundo.
- Por que ele fala que você tira ele do sério?
151

Pelo jeito de falar, ele fala que eu toco nas feridas. Eu falo para ele ir se tratar, que
ele é usuário de drogas. Ele fica vendo pornografia no celular, eu falo que vou levar o
celular para a polícia. Falei que tava parecendo que ou ele é homossexual, ou que ele vai
para os dois lados, pelas coisas que ele estava vendo no celular. Quando eu falei isso ele veio
e me deu um soco.... Ele tinha bebido também. Tudo envolve bebida. O sogro não bebe, o
cunhado sim, e os dois são dependentes químicos. A briga dessa vez foi porque meu cunhado
saiu com o meu carro, tirou a chave que eu tinha acabado de mandar fazer, a hora que eu fui
pegar o carro para poder pegar os filhos dele lá em cima a chave ficou no contato, ficou só a
lâmina na dentro. Eu fiquei na rua, sem celular, sem nada, e ele ligando para eles poderem
me socorrer. Nesse meio tempo eles foram procurar porcariada para poder usar. Eu tinha
bebido também, mas eles tinham bebido e usado substância química.
Aqui o significado da droga é dúbio, ambíguo. Mariana se inclui no uso quando diz
que ela também bebe, quase todos bebem, as crianças vêem assim como o uso de drogas
também aparece generalizado. Ela se inclui e se exclui, diz que bebe e não usa substância
química. Parece um uso naturalizado, até um ritual. Ao mesmo tempo, ela fala que ele precisa
de tratamento, deixando a entender que ele excede mais do que ela, e por isso ele precisa se
tratar.

Com ajuda da psicanálise, podemos pensar a droga como uma companheira, uma
parceira, embora assexuada, que promove a sensação de completude; em contraposição ao
parceiro sexual do amor, quem se mostra incompleto e insuficiente.
As três mulheres aqui vistas ou como usuária de drogas, ou alcoolistas, mostram,
principalmente as duas primeiras, um desinvestimento narcísico no próprio corpo. São
mulheres devastadas, que se mostram sem valor fálico. Podemos pensar ou que a droga
produz uma ruptura com o gozo fálico, ou que a identificação com o significante droga já a
produziu de antemão.

Categoria 2 – significante Mulher

Larissa, 39 anos
Tenho vergonha de estar aqui porque sempre vendo imagem de ser uma mulher
autoconfiante e ele me destruiu. Falava mal das minhas músicas, eu sou cantora e autora e
ele não deixava, falava que era coisa de prostituta. Só que a gente se conheceu num bar que
ele contratou a banda que eu cantava.
152

O pior é o estrago emocional, quando eu me olho no espelho. Lembro da barriga


nojenta que ele fala.
Ele diz que eu não valho nada, que sou mulher de uma noite só, que se arrepende de
se ter se envolvido comigo, que eu vou ver só se for em ato sexual na frente da filha dele, que
tem dó de mim....
Não consigo entender onde a minha cabeça estava, porque é aquelas histórias que eu
leio e não acredito que a mulher passou por aquilo. Sempre fui aquelas amigas que dava
conselho ao contrário.
- Você saberia explicar por que?
Acho que a minha autoestima foi abaixando muito. Lembro dele falando da minha
barriga caída após a gravidez.
Larissa mostra o significante mulher altamente relacionado à imagem do corpo, e
bastante dependente emocionalmente do discurso do parceiro sobre o seu corpo. À medida
que o discurso dele sobre seu corpo passa a ser depreciativo, sua autoestima diminui e ela não
se reconhece.

Bianca, 27 anos
... Ele tinha dívidas e morava no batalhão da polícia, para ajudar coloquei ele para
morar na minha casa. Quis ajudar e esqueci de mim. Ele me colocou uma aliança no dedo e
prometeu que quando a situação financeira melhorasse a gente casaria. Eu acreditei porque
era o que queria, uma família.
... Até hoje só me envolvi com lixo, não sei se sou só eu que não estou me valorizando
ou se todas as mulheres não se valorizam, porque acho que não existe homem fiel, homem
família. Eu me tornei uma pessoa fria, mais rancorosa. Só me vejo mulher dentro de casa
com meus filhos.
Estou cansada de ser o homem e a mulher. Estou para resolver tudo, a casa, as
dívidas, ainda sou dona de casa e sou mãe. Ser mãe e dona de casa é uma benção, mas tem
dia que saio do serviço às 22h e ainda tenho que fazer janta para os filhos. Sou manicure e
não consigo me cuidar. Enquanto isso ele estava sempre tranquilo.
Bianca relata uma situação de decepção com o parceiro após um grande investimento
libidinal feito nele. Após ter percebido que ela se casou com uma pessoa muito aquém de suas
expectativas, ela se pergunta se ela não se valoriza, ou se é algo comum a todas as mulheres a
falta de valorização pessoal; numa associação entre o significante mulher e a falta de
investimento libidinal, narcísico em si mesmas. Em seguida, curiosamente, ela diz que só se
153

vê mulher em casa com os filhos, numa associação, aparentemente inconsciente, entre o ser
mulher e à maternidade. Desta forma, ela pode ter dificuldade em se ver mulher de um
homem por uma possível colagem entre o significante mulher e à maternidade. Encerra o
trecho queixando-se de cansaço, pois trabalha em demasia, trabalha por uma mulher e por um
homem; de forma que não sobre tempo para cuidados tipicamente femininos, como fazer as
unhas, mesmo que ela os valorize com sua profissão. Bianca demonstra dificuldade com a
feminilidade, com o habitar o corpo de uma mulher. A hipótese que temos é a associação com
a maternidade.

Tássia, 48 anos

Meu primeiro marido me abandonou após a morte de um filho de um ano que tivemos,
e me trocou por uma índia em Manaus. As pessoas faziam brincadeira disso, mas acho que
tinha sarcasmo.
Tenho dois filhos vivos do primeiro casamento adultos, e dois filhos com este ex
marido agressor, um de 13 e outra de 14. O de 13 é insuportável, maltrata as pessoas e não
me aceita como mulher, ficou com raiva quando eu disse que estava saindo com outro
homem.
Tássia queixa-se de ter sido abandonada pelo marido, rebaixada a um objeto
descartável ao ser trocada pela índia. Queixa-se em seguida do filho que não a aceita como
mulher, pois não tolera vê-la como parceira de um homem. Ela então associa o ser mulher a
uma parceria amorosa com um homem, contudo não percebe a dificuldade do filho em fazer a
mesma associação.

Luciana, 26 anos
Ele me agredia muito, e eu sou explosiva, não sou mulher que apanha e fica quieta, se ele
me bate eu bato também... Ele me xinga e eu me descontrolo... Fiz papel de mãe na vida dele.
Quando a gente se conheceu, ele não tinha pai nem mãe. Vivia na rua, cada dia na casa de
um com os amigos cuidando dele, mas são os mesmos amigos traficantes.
Ele foi morar comigo no dia que a gente se conheceu, porque morri de dó dele....
Quando ela se refere a ele como homem:
O Luis é uma pessoa... é lindo sabe, parece ser um cavalheiro, achei que eu ia ajudar ele
e ele ia me ajudar. Falei que eu não tinha ninguém, ele também não e optamos por ficar
juntos.
154

Eu consegui ver que nem todo mundo que parece amigo é, mas ele não consegue ver
isso, tentei mostrar isso para ele e ele não quis ver, não entende... Não sei como ele consegue
bater em mim com o filho dele no colo. Aí eu batia nele também, mas que mulher que fica
quieta?
Luciana se define como mulher que não apanha e fica quieta, mulher que não submete
a maus tratos. Conta sua história de amor colocando-se como aquela que cuida do homem, faz
papel de mãe. Penso se não há uma contradição em não ser aquela que se submete a maus
tratos, mas ao mesmo tempo ser aquela que se submete a uma união com alguém incapaz de
se colocar numa situação de igualdade, pois ela precisa cuidar dele muito mais do que ele
precisa cuidar dela. Talvez ao ter dó dele ela se sente superior, e seu relato de ser aquela que
não apanha e fica quieta seja também uma forma de se sentir superior, dar ao seu corpo um
status fálico. Ela parece associar o significante mulher como aquela que precisa ser forte, e
não ser submissa, com algo de maternidade envolvido no ser mulher. O trecho abaixo de sua
fala indica nesta direção:
... Encontrei um homem mais velho que me recebeu na casa dele.
- Por que você não ficou com ele?
Ele não estava interessado em ajudar, ele queria que eu ficasse com ele em troca de
me dar silicone, carro. Mas eu não queria isso, queria fazer faculdade.

Roberta, 36 anos
Casei com 17 para 18 anos, tenho um menino de 15 e outro de 13 anos. Fiz magistério
e abandonei tudo para trabalhar junto dentro do trailer e fazer o negócio crescer. Lá é a
parte de entrega e a parte de frente do trailer, eu sempre fiquei na parte de trás.
Nem mulher que é da vida mesmo pode ser xingada, ainda mais quem está lá dentro
trabalhando para sustentar dois filhos.
Roberta valoriza a mulher que trabalhadora, que se sacrifica para sustentar os filhos,
em contraponto à mulher da vida (prostituta), embora tente demonstrar respeito também para
as mulheres que escolhem este caminho, quando diz que nem elas merecem ser maltratadas. O
significante mulher para ela está associado a mais de uma forma possível de ser mulher, e a
que ela valoriza é a mulher que trabalha e se esforça pelos filhos; tem algo de maternidade
envolvido no ser mulher para ela também. O fato dela ficar socialmente escondida, na parte
detrás do trailer, não parece ter sido escolha consciente dela, embora sabemos que
inconscientemente nada é por acaso.
155

Denise, 20 anos
Minha mãe é uma mulher guerreira. Criou os filhos sozinha esperando por um homem
que poderia ou não mudar. Minha mãe eu coloco no altar, ele não (o pai, que passou grande
parte da vida na cadeia).
Quero focar nos meus estudos, fazer enfermagem, ter minha casa e não depender de
homem; assim como minha mãe.... Tenho um vazio que é a falta de um pai...
Denise, ao citar exemplo de mulher, cita sua mãe, e a enaltece por ter sido mãe solteira
esperando por um homem que havia cometido um crime, e poderia não mudar. Sua mãe é
uma mulher que não depende de homem, e é esta forma de mulher que ela quer pegar para si.
Ao mesmo tempo, percebe com dor a falta de um pai.

Emely, 37 anos
Eu saí daqui toda maquiada, com o cabelo muito bem feito, desci na rodoviária do
Rio e falei: que calor é esse. Qual é a idade dessa mulher mãe dele. Aquelas mulheres não
vestem roupas, andam de top e chinelo.
Eu não podia ir no mercado sozinha, porque na comunidade não é de uma mulher
casada ir no supermercado, é o homem que faz compra.
Meu marido falava para eu parar de usar essa máscara, que minha família me trata
como bonequinha, que eu tenho que mostrar que sou mulher.
Emely mostra um conflito na sua concepção de ser mulher após se mudar para uma
comunidade no Rio de Janeiro, onde foi viver com um novo marido, quem veio a ser o
agressor. Ela se coloca como a mulher bem arrumada, que se espanta como as mulheres
cariocas que se vestem de forma despojada e com pouca roupa. O significante mulher,
primeiramente, está com ela associado à boa imagem, à mulher pronta, às imagens sociais.
Contudo, o marido lhe perturba ao dizer que ela precisa ser mulher, pois sua família de
origem lhe trata como bonequinha – ainda no diminutivo, e se refere a sua forma de se portar
como uma máscara. Esta fala a abala, contudo ela não mostra na entrevista ter elaborado uma
nova concepção para o ser mulher, mostra apenas uma dúvida.

Vilma, 45 anos
Ele tem duas casas, tem um carro, porque ele não sai de casa? Quando eu vivo desse
jeito me acabando, limpando, minha casa é grande. Eu sou mulher, sou um ser humano, não
preciso dele, não vai mudar nada, ele nunca me deu nada. Então to com muita raiva dele,
156

não quero isso. Se ele fosse uma pessoa que não me maltratasse. O pai dele batia na mãe
dele, até os cunhados dele batem na mãe dele, isso é bem familiar.
Vilma parece ter um “insight” durante a entrevista de que o significante mulher está
atrelado à humanidade, é um ser humano e, portanto – podemos ir um pouco adiante – um ser
digno. Ela parece concluir, nesta passagem, que, por ser mulher e, portanto, ser humano, não
pode ser maltratada e pode viver sozinha, não precisa de um homem para viver; quanto menos
um homem que maltrata.

Úrsula, 33 anos:
Quando você tem um companheiro você quer que o companheiro e proteja né, nós
mulheres queremos isso.
Úrsula, nesta passagem, associa o significante mulher ao significado de ser alguém
que quer proteção por parte do parceiro.

Gisele, 20 anos:
Era tão ruim, eu me sentia tão para baixo. É engraçado que a mulher começa a se
cuidar mais quando separa.
Gisele associa o cuidado da mulher com a separação da parceria amorosa. O
significante mulher é aqui associado àquela que se cuida, mas fica a incógnita de porque o
cuidado é após uma separação. Na parceria amorosa as mulheres precisam sustentar a
virilidade do homem, e, portanto, dirigir a libido a eles, esvaziando-se de si?

As considerações finais deste item são difíceis de serem expostas. Para a psicanálise
de orientação lacaniana, existe a polêmica frase de que A mulher não existe. O que pode
causar espanto, embora seu significado seja de que as mulheres só existem em singularidade,
no uma a uma e, portanto, não são passíveis de um pronome que as generalize. É preciso fazer
a mulher existir mediante traços que não são de uma feminilidade pura, mas sim inventada.
Contudo, sabemos que sob alguns aspectos sociais a mulher é aquela que não pode
existir. Precisa trabalhar na parte de trás do trailer, para não aparecer, tal como Roberta, ou as
antigas gregas, no Gineceu. Precisa sustentar a virilidade do homem, como podemos
especular que é o caso de Vilma e de Gisele e, portanto, esvaziar-se narcisicamente.
Temos ainda os casos de Denise e Luciana, cujo com exemplo de mulher é a que cuida
e estuda, já Úrsula coloca o oposto, a que é protegida. Emely e Larissa, associam as mulheres
àquelas que mantém uma boa imagem do corpo, precisam estar sempre bonitas, algo muito
157

evidente nos séculos XX e XXI: a ditadura da beleza incidindo sobre as mulheres; o que as
faz submeterem-se muitas vezes a dietas ditatoriais, exercícios físicos degradantes e até à
banalização das cirurgias plásticas, como se fossem procedimentos corriqueiros e nada
invasivos. Já Bianca trás, aparentemente inconscientemente, a moral vitoriana em jogo: a
mulher que só se vê como tal enquanto mãe. Vilma traz algo muito interessante: a mulher
enquanto ser humano; próximo às afirmações de Beauvoir. Tássia traz a mulher enquanto
aquela que faz parceria amorosa com o homem, próximo ao que é colocado pela psicanálise
de orientação lacaniana, a qual se distancia da proximidade entre mulher e mãe, tal como
fizera o pai da psicanálise.
Enfim, não nos cabe concluir, mas sim abrir possibilidades de significados ao
significante mulher, para que possamos criar subsídios clínicos ao olharmos para as variações
inconscientes.

Categoria 3 - Significante Mãe:

Vanessa, 35 anos:
No relacionamento nem se preocupava comigo, era eu a mãe dele, era comida no
prato. Ele tem 26 anos é bem mais novo que eu, eu era a protetora.
Vanessa, neste trecho, associa o significante mãe ao significado de proteção, o qual
pode ser exercido por qualquer pessoa, tal como uma esposa para com um marido.

Bianca, 27 anos:
Eu estou para resolver tudo, a casa, as dívidas, ainda sou dona de casa e sou mãe. Ser
mãe e dona de casa é uma benção, mas tem dia que saio do serviço às 22h e ainda tenho que
fazer jantar para os filhos.
Bianca aqui associa mãe aquela que cuida dos filhos, independentemente de
circunstâncias difíceis, de cansaço; o que remete a uma posição masoquista, de cuidado ao
outro acima de tudo e ausência de cuidado consigo própria.

Celina, 37 anos:
Minha irmã decidiu agora que gosta de meninas. Para ela eu disse que o problema é
dela, aguentando o que tiver que aguentar. Minha mãe briga com ela, fala que ela vai
morrer, e quer que eu apoie a briga contra minha irmã. Eu sempre foi a que estava no meio
158

para apaziguar, mas na hora que eu precisava era só pedra. Tenho 70% de meu corpo
tatuado, e minha mãe diz que eu vou queimar no inferno.
Celina ficou com uma marca de sua mãe como figura opressiva, quem julga e denigre
o outro passando por cima do desejo dele. Para além disto, o significante mãe aqui aparece
associado a uma figura muito poderosa, até abusiva. O trecho abaixo provoca esta reflexão:
Não acredito no amor, acho que amor é de mãe para filho.
O amor, algo tão importante que inacreditável, só pode ser exercido pela mãe.

Luciana, 26 anos:
Fiz papel de mãe na vida dele. Quando a gente se conheceu, ele não tinha pai nem
mãe... virei mãe desse idiota.
Mãe aqui, para Luciana, é uma metáfora da pessoa que vem suprir uma orfandade.

Deise, 26 anos:
Quando minha mãe estava grávida de mim, teve birra do meu pai. Então eu tive
gravidez psicológica, como fala, gravidez rejeitada, uma coisa assim.
É triste ver a mãe dando carinho para minhas irmãs e para mim não.
Para Deise a mãe não aparece associada à figura que cuida, mas sim à mãe biológica,
quem fez parceria com o pai e engravidou dela. Ela coloca os afetos da mãe para a filha como
relacionados aos da mãe pelo pai. Deise se sente rejeitada pela mãe e justifica a rejeição numa
desavença afetiva da mãe para com seu pai. Como a mãe é o primeiro objeto de amor para o
bebê, na medida em que oferece os primeiros cuidados, sentir-se rejeitada pela mãe pode
gerar impacto psíquico para toda uma vida. Aqui o significante mãe aparece associado a algo
que gera dor.

Eva, 33 anos:
... Minha mãe é alcoólatra, meu tio usuário de craque. Saí de casa aos quatorze anos
para morar com amigas, porque a minha mãe me batia bêbada. Com dezessete anos meu
primeiro marido, que era meu namorado, me convidou para morar na casa dele para me
ajudar.
Eu gosto muito de ser mãe e fico confundindo um pouco se sou mãe ou mulher. Eu
falava isso para ele, que eu não sabia se eu era mãe dele.
Ele nunca me ajudou, sentia até que parecia que ele estava comigo para fazer um
favor a uma mãe solteira.
159

Em Eva o significante mãe aparece associado a uma figura perversa, capaz de bater e
ficar fora de si com uso de álcool. A dificuldade em gerar significados positivos à mãe pode
ter feito Eva se colar a este significante, numa tentativa de elaboração, e, consequentemente,
ver mãe em diversas posições subjetivas, tais como na relação com o marido. Ela também traz
o significante mãe solteira, como uma figura que precisa de ajuda. Há ao mínimo três
significados atrelados aos significantes mãe aqui em Eva: uma figura perversa e omissa; uma
figura que ajuda o marido; e uma figura desamparada na mãe solteira.

Denise, 20 anos:
Minha mãe é pastora e tem esse hábito de querer ajudar. Era ela que pagava até a
conta de luz dele. Minha mãe é uma mulher guerreira. Criou os filhos sozinha esperando por
um homem que poderia ou não mudar. Minha mãe eu coloco no altar, ele não.
... minha mãe que manda nele. Ele trabalha de segurança, faz compra, paga contas, a
casa foi minha mãe que comprou. Ele não faz as regras...
O significante mãe aparece em Denise como figura forte, guerreira, esperançosa e
cuidadora, e também poderosa, é ela quem manda. Mãe aqui é próximo do matriarcado.

Cecília, 32 anos:
- o que te fez ficar com ele, mesmo violento?
... É porque eu teria mais um filho solteira... (chorou)... É porque estava casada com
o pai da minha filha, e ela gosta dele.
... Prefiro ser mãe solteira do que ser casada e não ser feliz, prefiro mil vezes ficar
assim e minha família não está me julgando.
Cecília usa o significante mãe para referir-se à mãe solteira como uma figura passível
de ser julgada pejorativamente. Entendemos daqui que o correto para ela seria não ser a mãe
solteira, mas sim a mãe casada, talvez pelo status do casamento como o correto para uma mãe,
dentro de algumas linguagens conservadoras. Ela elabora um pouco desta questão ao longo da
entrevista e termina dizendo que estar casada não necessariamente traz felicidade.

Arlene, 33 anos:
Meu filho de 12 anos, o pai dele me expulsou de casa com o pequeno de 4. Aí eu falei
pra ele assim: filho você quer vir com a mãe? Ai ele falou que não, que queria ficar com o
pai dele, porque o pai dele faz tudo por ele. Mãe é mais protetora, não gosta de deixar sair, e
o pai dele permite tudo, acho que é por isso.
160

Minha mãe até me expulsou da casa dela quando eu era criança. Sempre foi
agressiva. Meu pai já era mais próximo de mim, conversava, compreendia. Minha mãe era
mais agressiva, não se importava. Com todos os filhos ela é assim.
Arlene sofre por ser uma mãe cujo filho mais velho prefere viver com o pai. Coloca-se
como uma mãe protetora, e justifica a saída do filho nesta proteção. O significante mãe,
portanto, primeiro aparece atrelado à proteção. Em seguida aparece associado à agressividade
e distanciamento, na figura de sua própria mãe.

Úrsula, 33 anos:

A minha mãe já é daquela pessoa assim nervosa, desde quando eu era criança ela é
mais nervosa. O meu pai já é mais centrado, procura resolver as coisas com mais calma.
Úrsula coloca o significante mãe associado à pessoa nervosa. Ela mostra uma tentativa
grande ao longo das entrevistas de resolver as coisas usando a razão e não a emoção, talvez
pela atuação deste significado inconsciente:
Meu pai me da livre arbítrio para fazer o que deve ser feito, mas ele fala: aja sempre
com a razão, nunca com a emoção.. Eu fui criada na roça e é por isso que tenho essa cabeça
sentimental até demais. Agora eu tenho que agir pela razão mesmo, pelo que é para ser.

Gisele, 20 anos:

Falei que o pai e a mãe não da certo juntos, mas ele vai continuar sendo seu pai e eu
vou continuar sendo sua mãe. Eu não arrumei um marido, eu arrumei um namorado.
E a sua mãe, não fica com ele?
Eu nunca deixei porque ela batia muito na gente. Tenho medo que ela não tenha
paciência de cuidar.
Minha mãe sempre assim, quebrava um copo era motivo de apanhar. Não apanhar de
arrebentar, mas sempre batia, dava chinelada até a gente chorar. Nunca foi aquela mãe de
abraçar, de dar beijo. Meu pai já era ao contrário. Era ela que batia no meu pai.
Todo final de semana minha mãe parecia que estava com alguma coisa...
Gisele, ao início da entrevista, faz um esforço para dissociar o significante mãe do
significante esposa, ao contar da forma como conseguiu relatar ao seu filho que ela não viverá
com o pai dele, mas será sempre sua mãe. Em seguida, refere-se ao significante mãe
remetendo a figura de violência, em contraposição ao pai e a mãe que aparece como ideal,
aquela que abraça e dá beijo.
161

Rosa, 61 anos:
... Mãe, a gente quer honrar pai e mãe, eu jamais vou levantar a mão para o meu pai,
ele não houve a gente.
Rosa conta de seu filho dizendo que é necessário honrar pai e mãe, ao que ela
concorda e parece ter sido quem lhe ensinou este preceito. É uma mulher de mais de sessenta,
nascida em meados do século passado, e parece ter recebido uma educação de caráter moral
rígido, como a necessidade de se honrar pai e mãe independente do comportamento deles. É
um congelamento do significante mãe enquanto figura inatingível, de poder supremo, que não
sofre julgamento.
Selma, 35 anos:
Eu só queria ter o direito de exercer minha maternidade em paz... Tenho medo de
minha filha falar um dia que eu fiz um Boletim de ocorrência contra o pai dela, tenho pânico
de perder minha filha.
Selma coloca a maternidade como algo muito precioso, o qual ela jamais pode perder;
podemos ir adiante e pensar que o significante mãe para ela é de extrema importância, onde
ela se apega muito fortemente.

O significante mãe, dentre os seis significantes recolhidos das entrevistas, foi o que
apareceu num número maior de vezes. O que foi curioso, uma vez que as mulheres
entrevistadas estavam dirigidas à DDM para relatarem seus episódios de violência, enquanto
mulheres.
Conforme visto anteriormente, a mãe é o primeiro objeto libidinal homossexual da
menina, com a qual é construída uma relação carregada de sentimentos intensos e ambíguos:
amor, ódio, raiva, culpa, gratidão; dentre outros. Pode-se dizer que mãe representa o objeto
total, chamado pela orientação lacaniana de Das Ding, capaz de plena – e fantasiosa –
satisfação. Tal objeto não existe, ele é uma ilusão. Mas as expectativas depositadas sobre uma
mãe, sempre são muitas.
Sendo um sujeito do sexo feminino, facilmente a menina atribui à mãe à tarefa de
transmitir-lhe o enigma da feminilidade, ou seja, os significados inerentes ao habitar um corpo
de mulher. Contudo, tais significados nunca vêm, pois são construídos em singularidade, bem
como são contingentes. Mas as expectativas em cima de uma mãe, não cessam.
Ao longo da história, temos que na época de Freud, na conhecida era vitoriana, século
dezenove, a maternidade era fortemente valorizada como uma grande saída para as mulheres
162

encontrem um lugar enquanto sujeito. Vale ressaltar que tal valorização pode ter forte relação
com a revolução industrial, a qual estimulou a reprodução, pois ela era traduzida em aumento
de mão de obra. As mulheres não precisavam trabalhar, pois a renda do marido compunha a
renda da família, para que elas pudessem, integralmente, dedicarem-se aos cuidados do lar,
marido e filhos. A maternidade aqui entra como salvação para as mulheres ganharem
visibilidade e reconhecimento. Enfim, a forma de conduta da mulher resumida em mãe
imprime marcas no Brasil até hoje.
As falas de Eva e Bianca ilustram uma confusão entre o ser mãe e o ser mulher. Elas
não demonstram clareza se há uma diferença entre estas duas funções ou se não há, mostrando
possibilidade de resumir à feminilidade à maternidade. Principalmente Eva traz claramente
este questionamento.
Por outro lado, algumas mulheres trouxeram claramente a assunção do papel de mãe
nos relacionamentos; é o caso de Luciana, Vanessa e Denise, esta última se baseia no modelo
de sua mãe, quem tomou o lugar de cuidar do seu pai, como um filho. Não houve
questionamento nestes casos, houve a assunção do lugar, ainda que nem sempre tenha dado
certo no relacionamento. Denise ainda vangloria o papel da mulher guerreira, que sacrifica à
própria vida em função de cuidar dos membros da família, num tom composto de um tanto de
masoquismo.
Rosa associa mãe à honra, remetendo a um poder inabalável e inatingível, o qual não é
passível de questionamento. Talvez esta associação tenha origem em educação religiosa;
honrar pai e mãe está dentro dos dez mandamentos da Bíblia. Não conseguimos saber se a
relação de Rosa com sua mãe foi boa ou não, pois ela não se permite falar dela.
O significante mãe solteira aparece nas entrevistas de Eva e de Cecília, na primeira
como uma prerrogativa de abandono, necessitando de cuidado; e na segunda com uma
prerrogativa moral, de ser um condição de vida passível de julgada pejorativamente.
Arlene se coloca como uma mãe protetora, aquela que gostaria de guardar os filhos em
uma caixinha, embora sua própria mãe seja descrita como uma pessoa cruel e distante. Selma
se aproxima da mãe protetora, mas tem um grau de veneração da maternidade no seu caso
aliado à insegurança de possivelmente este lugar de mãe lhe ser retirado.
O mais marcante dentre os relatos envolvendo o significante mãe é o número alto de
mulheres que descrevem problemas de relacionamento com suas próprias mães, alguns deles
muito graves, devastadores. Vale ressaltar que estas entrevistas foram feitas apenas uma única
vez, o que impossibilita tirar conclusões profundas sobre o inconsciente destas mulheres, mas
podemos apontar para sinais de devastação em algumas delas, tais como Eva, Celina e Deise.
163

Gisele, Úrsula e Arlene também apresentam relações difíceis com suas mães, mas descrevem
seus pais como pessoas melhores, de forma que aparentemente seus pais cumpriram algo da
função materna de cuidados primários, protegendo suas filhas da devastação; embora sinais
dela também sejam encontrados nelas.
A devastação é estudada pela orientação lacaniana apontando para mulheres cujo
corpo encontra-se sem sustentação fálica. Entendendo o falo enquanto o significante do poder
são corpos que se encontram rebaixados, sem lugar no desejo do Outro. Sendo o Outro
primordial do sujeito humano a mãe, quem dirige os primeiros olhares à criança, a devastação
é estudada atrelada diretamente à relação das mulheres com suas mães. Eva descreve sua mãe
como bêbada, agressiva e distante. Celina descreve como opressora e distante afetivamente;
Deise descreve-se como preterida pela mãe, quem deu carinho a seus irmãos em detrimento
dela. Vale ressaltar que a origem do termo devastação, ou “ravage”, em inglês, derivado de
“ravir”, quer dizer: apreender violentamente. Já outro derivado, “ravissement”, quer dizer:
transportado para o céu; termo que se aproxima da mística. No devastar, ou arrebatar, há o
êxtase; há, portanto, um fator de erotomania inscrito no termo. Quando se arrebata uma
pessoa, ela é levada a um estado de felicidade suprema.
Devastação é algo extremamente sério e perigoso, pois as mulheres tendem a repetir
na parceria amorosa o mesmo lugar de objeto dejeto vivenciado com suas mães, e permite
com quem seus parceiros façam dela o que quiserem, pois ele é quem fica com elas, quem não
as descartou, tal como suas mães, no mundo interno delas. Devastação pode levar à morte de
mulheres, embora nem todas as mulheres desta pesquisa se submetem à violência por estarem
devastadas.

Categoria 4 – significante Família

Vanessa, 35 anos:
Já rompemos uma vez quando eu vi troca de mensagens dele com meninas, que eu
considerei traição, mesmo que não tenha tido o contato de corpo, porque era um
relacionamento mesmo que ele tinha por whatsap, com várias meninas, de dar bom dia, boa
tarde, boa noite, dizer que está com saudade. Ele insistiu muito para que que a gente
voltasse, conseguiu vencer pelo cansaço; não, ele me convenceu. Eu já tinha sentido que ele
teve dificuldade demais com a separação, mas voltei porque ele prometeu casamento, família,
e eu acreditei, ficou tudo bem, entre aspas.
164

Aqui com Vanessa o significante família entra associado como uma forma de resgatar
e oficializar um relacionamento tido como perdido.

Larissa, 39 anos:

- Como são os seus pais?


Um casal muito equilibrado. Meu pai sempre pensa antes de falar. Minha irmã é mais
parecida com eles... Eu não consigo trabalhar nem estudar. Me sento a ovelha negra da
família, porque ele fica falando se eu não tenho vergonha de ter separado e ter tido filho com
outro homem.
Larissa traz um significante popular, ovelha negra da família, cantado por Rita Lee.
Ela tem medo de ser vista neste lugar por ser separada e ter filhos de pais diferentes. Ovelha
negra da família pode ser pensado, então, como um significante de cunho moral, como se
dentro da família estivessem quem segue preceitos morais, e a ovelha negra estivesse fora da
família por não os seguir. Família, nesta entrevista, aparece como significante de cunho
moral.

Natália, 28 anos:
Continuei com ele pensando que ele iria mudar, que eu ia conseguir fazer ele mudar,
e na minha família é cada um por si, eu não teria para onde ir. Fiquei vivendo separada dele
na mesma casa, até conseguir meu emprego e ter incentivo de pessoas pra separar. Daí
peguei um dinheiro da pensão, aluguei uma casinha e fui. A avó dele está me ajudando, ele
não me deixava colocar ninguém para olhar as crianças, só quem é da família que pode
cuidar, senão ele me ameaça de morte.
Natália usa o significante família neste trecho duas vezes, com significados diferentes.
Na primeira vez família aparece associado às pessoas cuja união é de cunho biológico,
apenas. Quando ela diz que na sua família é cada um por si podemos entender que não há
união afetiva na família e nem relação funcional. Já em seguida ela diz que seu marido proíbe
qualquer pessoa que não seja da família a cuidar de seus filhos; aqui família aparece associada
a uma relação de confiança máxima, contudo tal significante foi mencionado pelo agressor, e
não por ela.

Raíssa, 36 anos:
165

Eu não tenho família para ter com quem contar. Tenho pouco contato com minha mãe
que mora em São Paulo. Meu pai não me assumiu, eu não conheço ele. Tenho dois irmãos
que não tenho muito contato.
Com Raíssa o significante família aparece associado a pessoas de confiança, e
companheiras. Ela não tem família, portanto, não tem com quem contar.

Nádia, 21 anos:
A relação era complicada, eu era idiota e ia e voltava com ele o tempo inteiro
conforme ele quisesse. Ele me xingou uma vez que minha mãe ouviu e entrou na briga.
Depois disso ele ficou distante, mas eu, idiota, continuava com ele e achava que minha mãe e
minha família que eram o problema.
Nádia está, neste relato, associando família a um problema, a uma pedra no caminho
dela conquistar o que queria, que era estar junto do agressor.

Bianca, 27 anos:
... Ele tinha dívidas e morava no batalhão da polícia, para ajudar coloquei ele para
morar na minha casa. Quis ajudar e esqueci de mim. Ele me colocou uma aliança no dedo e
prometeu que quando a situação financeira melhorasse a gente casaria. Eu acreditei porque
era o que queria, uma família.
... Até hoje só me envolvi com lixo, não sei se sou só eu que não estou me valorizando
ou se todas as mulheres não se valorizam, porque acho que não existe homem fiel, homem
família.
Bianca primeiro se refere à família como um sonho para sua vida, sem seguida coloca
família com o significado de fidelidade.

Eduarda, 45 anos:
Ele sempre foi muito ciumento e possessivo. Não me deixava frequentar festas de
família, nem ir no cinema sozinha.
... Levei o casamento até esse ponto para ficar com a nossa casa, que é financiada, e
ficar com a família, mas ele está fazendo mal para os filhos.
Eduarda coloca a família como uma localização social na qual ela quer estar sempre
dentro, seja na sua família de origem, seja na que construiu com o parceiro, que veio a ser o
agressor.
166

Milena, 31 anos:
Meus pais faleceram os dois quando eu era muito nova, não queria que minha filha
pensasse que eu não penso no pai dela. Só que não da para conviver em família, para ele
tudo tanto fez tanto faz.
Milena trás uma valorização da concepção de família como um lugar de convívio
necessário, ao se lamentar de ter perdido seus pais cedo e querer resguardar a família para sua
filha. Lamenta-se do parceiro não se preocupar com este convívio.

Emely, 37 anos:
... Meus parentes saem do trabalho e se juntam as 6 da tarde para tomar café, parece
uma padaria. Eu tinha vida aqui.
- Você tinha medo deles?
Era vergonha, não medo. Sempre foram muito perto, unidos, família. Eram a família
do comercial Doriana. Depois que aconteceu isso comigo foram descobrindo outras coisas.
Uma sobrinha engravidou com 13 anos. Meu irmão e a filha mais velha se identificaram
gays. Todo mundo tinha medo dos meus pais, são da roça, muito conservadores.
Emely traz o significante família associado à união e à conservadorismo, e também
traz o significante popular: família Doriana, frequentemente usado para se referir a família
cuja imagem aparenta um funcionamento em extrema perfeição.

Flaviane, 34 anos:
... Na minha cabeça tinham os meus filhos também, porque a gente criar tudo junto
bonitinho, então quando eles fizessem 18 e fossem trabalhar era mais fácil, mas a gente
acabou antecipando. A gente pensa naquele modelo de família de margarina né? Ai a gente
foi adiando, adiando, passando uma humilhação aqui, outra ali.
... Eu ia para praia, ir ver o por do sol e ficava até a hora que eu queria. Daí pensei
que é essa paz que eu quero para mim. Mas ainda tem o lado de você que quer fazer um
passeio família, tanto que esse ano não programei nada, e não pretendo fazer sozinha.
Flaviane traz o significante família parecido com Emely, mas ao invés do termo
família Doriana disse família de margarina, o que se refere à mesma valorização da imagem
de uma família perfeita e tradicional, mas sem ênfase para a marca. Ela também associa
família à união, quando diz que gostou do passeio sozinha, mas o próximo quer fazer em
família, quer companhia de uma família.
167

Márcia, 32 anos:
Eu conheci ele pela minha prima. Na família dele tem um monte de problemas graves,
um irmão está preso por estupro, outro por droga. São famílias problemáticas.
... na minha família não tem nenhum presidiário, ninguém que bebe, fuma. Eu sou a
única que tenho tatuagem.
Márcia trás o significante popular família problemática, comumente associado à
julgamento moral e acompanhado por outros significantes que sofrem julgamento deste cunho
como droga e presidiário. A família dela seria oposta à problemática.

Carmen, 37 anos:
Acho que eu nunca gostei muito dele, mas eu queria formar uma família. Eu insisti, eu
tentei, eu trabalhei, construiu coisas, mas sempre aguentando ele, carregando o estresse dele.
Carmen traz a valorização do significante família como um sonho para sua vida,
associado a algo que vai lhe trazer paz psíquica.
O significante família sofre influência direta do contexto social. Vemos que os
arranjos psíquicos que cada uma destas mulheres entrevistadas pôde fazer ao mencionar esta
palavra tem relação com a sociedade que elas internamente construíram para viver.
Comecemos pensando em Emily e Flaviane, a primeira fala em família Doriana, e a
segunda fala em família de margarina. O comercial da margarina Doriana foi largamente
conhecido nos anos noventa por ilustrar uma família feliz, tomando café da manhã em
perfeito funcionamento, com uma bela mesa posta pela esposa, bem recebida pelo marido e
pelos filhos. Ainda hoje tais cenas são facilmente lembradas e viraram jargão popular a fim de
referir-se à família conservadora, herdada da família tradicional burguesa do século XIX, na
qual a mulher “dona de casa” ganha força. Vale ressaltar a valorização da imagem neste
modelo de família, muito bem ilustrado no referido comercial: é um perfeito funcionamento
com total predomínio da felicidade. Faz lembrar o cinema hollywoodiano, já que o cinema
europeu costuma tratar mais da realidade como tal; e não de um império da imagem sobre ela.
A família também é vista como uma espécie de localização social, um lugar almejado
para que o sujeito não esteja à deriva, às margens da sociedade, uma espécie de proteção
contra o desamparo construída. Tal significado pode ser encontrado nas entrevistas de
Carmen, Milena, Eduarda, Bianca e Vanessa, e é de extrema importância para pensar nas
mulheres que permanecem em uma união com um parceiro violento pelo simples fato de
manterem-se em família. Ainda que sofram maus-tratos, é melhor do que estar no desamparo,
à deriva.
168

No caso de Vanessa, a família entra como um significante importantíssimo para


resgatar um relacionamento perdido; após traições do marido ela o aceita de volta pois ele
promete uma família; o significado de família aparece atrelado a uma oficialização de união a
qual não mais permitiria a ocorrência de traições, o que podemos entender como uma
inscrição oficial de uma união regulamentada. Bianca também apresenta um significado
semelhante à família, na medida em que investe e acredita no relacionamento com o agressor
a partir do momento em que ele lhe promete uma família.
Larissa trás o significante popular ovelha negra da família, o qual é título de uma
canção lançada por Rita Lee na década de setenta, a qual se refere à pessoa que não faz série
em sua família, ou seja, destoa dos demais membros. Quem denomina Larissa desta forma é o
seu ex, o agressor, mas ela se preocupa. Ele assim o faz considerando que ela é separada e tem
filhos de pais diferentes; ou seja, não se encaixa no modelo de família tradicional mencionado
anteriormente, composto por pai, mãe e filhos. Como Larissa demonstra excessiva
preocupação com a imagem do seu corpo, o que também já foi visto anteriormente, ela se
parece se preocupar de não se encaixar na imagem de família ideal.
Já Márcia traz um significante de cunho moral muito acentuado: família problemática.
Este significante faz pensar que família pode ser localizada enquanto parâmetro de adequação
social: quem tem uma família sem problemas está socialmente adequado e quem tem a família
com problemas está socialmente inadequado. Esta arrumação faz com que muitos problemas
familiares sejam mascarados, escondidos, para manter de forma hipócrita a imagem de família
sem problemas, àquela se assemelha ao comercial Doriana, tradicional, com papéis
enrijecidos.
Família enquanto biologia, ou transmissão genética hereditária é um significado que
pode ser pensado a partir da entrevista de Natália, ela diz que na sua família é cada um por si,
ou seja, a ligação entre elas é apenas biológica, não é nem afetiva e nem funcional. De forma
diferente ela coloca o discurso de seu parceiro agressor, quem diz que seu filho não pode ser
olhado por ninguém que não seja da família, colocando a família num significado de
confiança extrema, que pode ser associado à sensação de posse: o que é da família é meu.
Nádia, mulher jovem, coloca família com um significado de prisão, sufocamento,
posse, pois sua família é vista como quem poderia lhe impedir de realizar seu sonho de unir-se
ao parceiro, que já havia dado mostras de violência quando a família impede. Ela, a princípio,
não vê problema ao lado dele, mas sim ao lado da família, por barrar um sonho.
Família como união, companheirismo, confiança pode ser visto em entrevistas como a
de Raíssa, Bianca, Milena e Flaviane. Raíssa associa família a ter com quem contar, ou seja,
169

cumplicidade, confiança. Bianca associa à fidelidade, dentre outras coisas. Flaviane, dentre
outras coisas, mostra desejo de estar unida à família e Milena se entristece por ter se sentido
só sem uma família, a qual associa à convívio.

Categoria 5 - significante Amor

Vanessa, 35 anos:

Sinto medo que algum crime aconteça... não é amor da parte dele, é medo de perder a
companheira, é obsessão. Ele manda mensagem todos os dias no celular, eu não bloqueei,
mas ignoro.
Vanessa está separando o significante amor do comportamento obsessivo do marido,
que faz contato exagerado.

Natália, 28 anos:
Ele é perigoso, tem amigos com armas. Eu tenho amor à vida.
Natália aqui atrela o significante amor ao significado de gosto, zelo, que pode ser
dirigido não necessariamente a alguém, ou a alguma coisa material.

Débora, 44 anos:
Eu tenho vontade de ter um novo amor, mas sinto medo agora.
Débora refere-se ao amor como algo que pode ferir, doer, já que ela o teme.

Celina, 37 anos:
... Eu nunca quis viver com alguém, e tinha receio de levar alguém para casa com o
meu filho. Não acredito no amor, acho que amor é de mãe para filho.
... Não acredito no amor, gosta de ficar sozinha. Eu me lembro de quando desmaiei de
dor, agredida, e meu ex chorava falando que matou seu amor, fazendo carinho em mim
desmaiada.
Celina primeiro traz o significante amor atrelado ao significado de maternidade, e
apenas isto. Em seguida ela relata, ainda que não com clareza, como ela perdeu a crença em
uma abordagem maior do amor, após seu ex lhe agredir; ou seja, quem ama não agride, este é
um outro significado.

Denise, 20 anos:
170

Acho que queria ajudar e assim foi surgindo a paixão, não era amor. Eu tenho um
vazio que é a falta de um pai, e ele não foi criado com o pai também.
Denise está diferenciando os significantes amor e paixão. Ela se identifica com o
rapaz, gosta dele, mas não necessariamente viraria amor.

Vilma, 45 anos:
Porque 30 anos Marcella, o amor acaba. O amor é como se fosse uma flor, se você
rega ela vai ficar bonita, mas se você não rega ela vai ficar feia não vai? Quando eu tive
minha filha eu queria uma filha, mas já tinha acabado.
Vilma pensa no amor com significado de cultivação necessária, o amor para ela não
tem significado de algo estático, mas sim dinâmico.

Arlene, 33 anos:
Não vou dizer que nunca amei ele, amei sim. Mas o amor foi virando ódio no meu
coração.
Arlene traz o amor como algo possível de virar ódio, transformar-se em algo negativo,
significado que também atrela o amor a algo dinâmico, tal como Vilma.

Raíssa, 36 anos:
... Tenho que aprender a me amar.
Raíssa fala do amor dirigido a si mesma, autovalorização.

Luana, 57 anos:

O primeiro foi tranquila a separação, casei com 18 anos, tive as duas filhas. Depois
tive um filho do terceiro marido. Com 50 anos conheci o último marido, não gostava muito
dele mas achava que iria conseguir amar.
Luana coloca o amor como difícil de conseguir. Ela conta sobre uma série de maridos,
sendo que ao se referir ao último coloca um fracasso na tentativa de amá-lo. Em relação aos
primeiros, ela nada diz, o que faz parecer que também não os amou.
Estes nove exemplos trazem formas muito diferentes de se pensar o amor, são diversos
significados. Algumas mulheres pensam com base na exclusão, tais como Vanessa: amor não
é obsessão, ou Denise: amor não é paixão. Outras colocam o amor como algo difícil, raro, tais
171

como Celina e Luana. A primeira sofreu uma decepção amorosa, e passa a atrelar o amor à
maternidade, a segunda coloca uma dificuldade sua em amar.
A relação entre as mulheres e o amor pode ser pensada como uma das conquistas do
direito à liberdade das mulheres; ou ainda, como uma conquista em andamento. Uma vez que
nos séculos passados não era dada às mulheres o direito de opinar sobre a parceria amorosa,
como elas iriam amar? Amar pode ser feito de forma imposta?
Fazendo um recorte histórico, já falamos anteriormente sobre um modelo de
feminilidade fortemente imposto às mulheres no século XIX, que era uma dedicação ao lar,
composto de marido e filhos; uma vida monótona de poucas escolhas. Tal modelo gerava uma
vida de miséria às mulheres com gosto por dotes intelectuais, pois estes causavam
repugnância nos homens. A saída que muitas escolhiam era uma espécie de refúgio no mundo
da imaginação, alimentado por suas leituras, as quais elas deviam fazer muitas vezes as
escondidas, para assim, ao menos em fantasia, conseguirem uma vida mais movimentada e
interessante. O problema é que, desta forma, elas se afastavam da realidade, colocando sonhos
a si próprias que jamais seriam realizados. Podemos concluir que o amor era, na maioria das
vezes, mais realizado em fantasia do que em realidade, já que as uniões não eram de escolha
por parte das mulheres. O caso de Luana faz lembrar esta falta de escolha, quando ela diz que
não gostava muito do último marido, mas achava que iria conseguir amar. Já Celina coloca
uma descrença que parece ter fundo melancólico, ainda que ela tenha passado pela
contingência de uma relação traumática.
Raíssa fala na necessidade em aprender a se amar, e Natália fala em amor à vida, são
formas de amor sem erotização; ou o amor a si mesma ou o amor à existência.
Arlene, Vilma e Débora referem-se ao amor dentro de uma parceria amorosa, como
algo dinâmico e que não é simples. Débora quer um novo amor, mas tem medo; talvez de
sofrer pelo trauma que foi a relação com o agressor. Arlene diz que amava o parceiro, mas o
amor foi virando em ódio em seu coração a medida que ele foi ficando agressivo; ou seja, o
amor acaba dependendo das atitudes do parceiro, não é eterno de antemão. Vilma compara o
amor a uma flor, algo que floresce – cresce e ganha beleza, saúde – se for cultivado, e caso
não se cultive, morre. Estas três mulheres partem de uma concepção de que o amor depende
delas e do parceiro amoroso. Mesmo Vilma que mostra uma vida de inteira submissão ao
marido – vide entrevista completa em anexo – mostra que se o marido não investe na relação,
não há porque investir nele.
Na teorização lacaniana, o amor é trabalhado como o que faz ao gozo condescender ao
desejo, o que pode ser entendido de diversas formas. Retomando o conceito de gozo enquanto
172

relacionado a um tipo particular de satisfação, sua principal referência é um ganho primário


dos sintomas. Aonde se goza é onde está o excesso, o inominável. Em outras palavras, o
amor, ao fazer o gozo condescender ao desejo, é aquele que transforma o que não se escreve
ao que se escreve, ao que precisa passar pela palavra e perder, portanto, em agressividade. No
amor é necessário a substituição, já que o parceiro não é o objeto absoluto, mas sim o seu
semblante: há uma substituição da satisfação para a parceria. Já no gozo, não há substituição,
não há alteridade.
Outra forma que a orientação lacaniana coloca o amor é como dar o que não se tem,
ressalta a não relação entre o amor e o ter. Ou seja, o amor visa o mais além do ter, o qual
assume formas diferentes entre homens e entre mulheres. Enquanto estas se encontram mais
próximas da erotomania, devido à proximidade com a devastação, já mencionada, eles estão
mais próximos do amor fetiche, já que o corpo da mulher pode ser visto como o representante
do falo; as mulheres estão mais próximas do ser o falo, e não do ter, conforme visto
anteriormente. Enquanto as mulheres parecem aceitar a violência por buscarem no homem o
amor a todo custo, cujo protótipo é a erotomania, homens batem em mulheres por terem seus
corpos como fetiches para uso.
Nas experiências de violência, os corpos das mulheres são reduzidos a objetos, sem
nenhuma dignidade; é puro gozo do corpo delas. Elas apanham porque decidiram trabalhar,
decidiram falar o que pensam, enquanto o agressor permanece no pensamento de que elas são
obrigadas agir para satisfazê-lo, e não para olharem para seus desejos. Podemos pensar em na
violência contra as mulheres como puro gozo; muito distante do amor, já que este, por ser
uma relação construída a dois, envolve o corpo do outro – e não o destrói.

Categoria 6 – significante Casamento

Vanessa, 35 anos:
Ele insistiu muito para que a gente voltasse, conseguiu vencer pelo cansaço; não, ele
me convenceu. Eu já tinha sentido que ele teve dificuldade demais com a separação, mas
voltei porque ele prometeu casamento, família, e eu acreditei, ficou tudo bem, entre aspas.
Casamento para Vanessa aqui aparece associado à família, algo que oficializa uma
união.

Eduarda, 45 anos:
173

.... Levei o casamento até esse ponto para ficar com a nossa casa, que é financiada, e
ficar com a família, mas ele está fazendo mal para os filhos.
Casamento aqui está associado ao que une Eduarda ao lar, no sentido material, e à
família; o significado está próximo ao anterior, colocado por Vanessa.

Roberta, 36 anos:
....Nunca foi bom o casamento, mas agressivo ele não era. O casamento foi
empurrado com a barriga até as crianças pegar uma certa idade.
Roberta aqui coloca o significante casamento com o significado de relacionamento
com o marido, homem e mulher.

Úrsula, 33 anos:
Quando ele bebe, ele sempre alterou. Meu pai falava: se você quiser levar seu
casamento para ver se ele melhora, você vai ter que saber lidar com isso dele beber. Eu casei
com ele com dezessete anos. Dos dezessete aos vinte e um anos eu não sabia lidar com aquela
situação da bebida. Eu agredia ele verbalmente, ele me agredia. Escutei meu pai, fui
amadurecendo, fui sabendo lidar devido ao filho.
Aqui com Úrsula o casamento aparece referido ao relacionamento entre ela e o
marido, embora ela tenha reproduzido uma fala do pai dela, a qual ela diz que acatou.

Paula, 20 anos:
Eu não consigo mais olhar para um homem e pensar que quero casar. Acho que são
todos iguais. Só queria me livrar.
Com Paula o casamento também aparece enquanto relacionamento com um homem,
embora aqui o significado adquira uma conotação ruim, como algo que ela não quer, devido
aos homens em geral não serem bons.

Flaviane, 34 anos:
- Você tinha vontade de sair logo da casa dos pais quando engravidou?
Não, sou até meio contra achar que a pessoa tem que casar porque engravidou e
penso isso para os meus filhos.
Flaviane se refere ao casamento como desvinculado da maternidade.
174

Luana, 57 anos:
Começamos de forma errada porque eu era casada. O Márcio tem ciúmes das minhas
filhas, minhas netas, não posso ir ao shopping.
- Por que o casamento acabou?
Porque começou errado.... Já foram quatro casamentos.
O primeiro foi tranquila a separação, casei com dezoito anos, tive duas filhas. Depois
tive um filho do terceiro marido. Com cinquenta anos conheci o último marido, não gostava
muito dele, mas achava que eu iria conseguir amar. Estava na fase de não saber se era isso
que eu queria e acabei reencontrando o Márcio, que é este atual namorado. Já sabia que ele
era possessivo e que o último casamento dele foi terrível, mas achava que comigo seria
diferente.
Meu primeiro marido me tratava como princesa.
Você quer ser tratada como princesa?
Não, aos trinta quis separar, fui contra a família inteira. E fui muito inconsequente,
qualquer um que se encantava comigo eu já casava, foi muito atropelado.
Luana tem uma história de casamentos e separações, foram quatro até ela conhecer o
agressor, com quem não se casou. Ela entra na história de casamentos com um marido que a
tratava como princesa, e termina dizendo que se casava com quem se encantava com ela, até
que no último marido ela se queixa de não o ter amado. O casamento para Luana pareceu uma
forma de ser amada, talvez, indo um pouco mais longe, de aprender a amar; o que não deu
certo.

O que temos nestas entrevistas sobre o significante casamento, é que a maioria das
mulheres o utiliza com significado de união entre um homem e uma mulher, um
relacionamento amoroso; é o que aparece com Roberta, Úrsula e Paula. Esta última mostra
uma descrença no casamento, justificada por desacreditar nos homens. Algumas entrevistas
ressaltam o caráter de formalidade do casamento, ao associá-lo ao significado de não ser uma
união comum, mas uma união que traz uma marca de oficialização da relação, tais como
Vanessa e Eduarda. Esta última também associa ao significante casamento as construções
materiais advindas do casamento, como a casa própria. Esta concepção do casamento
enquanto uma união de importância, para além de um relacionamento, pode ser uma condição
nas quais as mulheres se colocam, ainda que com homens agressores, em busca de um
reconhecimento fálico para seus corpos.
175

Já falamos sobre o movimento relacionado ao gozo feminino, de ir em busca de um


estatuto fálico ao lado do masculino, ou seja, considerar-se castrada, desprovida do falo, em ir
em busca de quem o tem. Além disso, precisamos considerar a reflexão trazida anteriormente
sobre o marido enquanto capital marital, ou seja, uma possibilidade de autovalorização para as
mulheres é encontrarem-se casadas, que incide próximo a um um poder estético sobre o
corpo.
Também existe a questão do puro tradicionalismo, conservadorismo, que tende a
valorizar a estética do casamento. Enfim, é necessário abrir a reflexão de que o casamento
enquanto união formal existe, e regulamenta as relações, bem como a regulação dos bens.
Contudo, existe a banalização da formalidade vista nos aspectos levantados, que podem ser
considerados hipócritas, dentre os quais são: manter-se em união pela formalidade e estética,
ou até por convenção religiosa, e não pela união em si, pela parceria amorosa.
Flaviane traz uma fala interessante de que casamento e maternidade devem ser vistas
como separadas; embora ela não traga elementos que nos façam pensar sobre o significante
casamento ela o desvincula da maternidade ou até mesmo da família tradicional.
Já Luana traz uma situação bastante peculiar, que nos ajuda a fazer uma reflexão entre
esta categoria e à anterior, sobre o amor. Ela diz casar-se com quem se encanta por ela, sem
muita reflexão; parece que o único fator envolvido é receber amor, ser amada. Em seguida
queixa-se de ter tido uma expectativa frustrada de não conseguir amar o último marido. O
casamento aqui aparece associado a uma reflexão que já foi feita sobre histeria e o gozo
feminino; um lugar ao casamento posto como a possibilidade, às mulheres, de encontrar um
lugar fálico a si mesmas sendo amadas por um homem. Além disso, pode-se considerar a
expectativa de muitas mulheres, principalmente as mais vinculadas às imagens, de encontrar
respeito no respeito: uma espécie de moralismo: as não casadas são as mau faladas, as que
querem “aprontar”, sair com várias pessoas, “avulsas”. Após quatro casamentos frustrados,
Luana conhece justo o único homem que veio a ser um agressor, e insiste em permanecer com
ele mesmo após o início da violência contra ela. É uma mulher independente financeiramente
e intelectualmente, o que nos faz pensar que ele pode ser uma pessoa que ela de fato pensa
amar, ou que ela não quer se ver solteira, de forma alguma, preferindo as agressões.
176

8 - O PSICANALISTA DIANTE DESSES CASOS

A chave de entrada começa quando se apaga a tela, quando resta


somente a tela do sonho, essa tela curiosa da experiência do sonho que dá
acesso a um mundo sem representação localizada (Laurent, 2012a, p. 254).

Falar da atuação do analista em meio a um grupo de casos é sempre um desafio


delicado, posto que uma análise somente se efetua dentro de um setting, sob transferência,
caso a caso; não é objeto de generalização. Contudo, este trabalho trata de pensar em
subsídios clínicos, elementos de estudo, dados, informações as quais não têm por intuito
replicações, mas sim levantar reflexões. Desta forma, espera-se contribuir para uma melhor
escuta de casos de mulheres – e seus modos de gozo em meio às parcerias amorosas. Trata-se,
predominantemente, de uma escuta sobre o gozo feminino; sobre como este modo de gozo
incontornável, ilimitado e irrefreável opera nas repetições de comportamento observadas.
Laurent (2012a) traz aspectos peculiares sobre psicanálise e poder: ele diz,
primeiramente, que o analista seria aquele que, talvez como ninguém, soube renunciar a uma
relação de poder. Ele pode querer tudo, menos exercer poder sobre o seu paciente. Por outro
lado, tal renuncia suscita aspectos de poder subjacentes ainda maiores, os quais são próprios à
psicanálise: “os poderes da linguagem, os poderes da associação livre, os poderes da inércia
da fantasia que vai encarnar-se no tratamento. Esses poderes são, também, aqueles da pulsão
de morte” (p. 25). Destituído do desejo de poder, o analista fica mais próximo aos efeitos que
uma análise pode exercer, e, assim, pode apostar na força da transferência e seus impactos
subjetivos.
Fora do contexto clínico, a psicanálise pode não almejar conduzir um tratamento
minucioso, em um percurso com etapas que conduzem a um final; entretanto, a psicanálise
pode ser inserida fora da clínica, em instituições de saúde mental, ou casas de atendimento
público com foco em minoração do sofrimento, tais como a Cada da Mulher Brasileira, já
mencionada. Não há uma prerrogativa nem com Freud e nem com Lacan de que a psicanálise
pertença exclusivamente ao contexto clínico, embora a clínica favoreça o desenvolvimento de
uma análise numa maior profundidade.
De acordo com Priszkulnik (2009), o trabalho do psicanalista nas instituições abre
espaço à singularidade do sujeito, em meio ao universal da instituição, e pode ser pensado
justamente com este propósito: introduzir o particular do sujeito, num contexto que de
177

antemão não o introduz. Com esta finalidade, o analista vai transformar a queixa sintomática
num enigma singular a ser desvendado, o qual visa não necessariamente ser curado, mas
principalmente, ser escutado. Além disso, uma escuta atenta pode produzir efeitos
terapêuticos de alívio de angústia e redução de sofrimento; ou uma palavra dirigida pelo
analista, com intuito muito menos de cura e muito mais de direcionar o olhar do analisante
para o seu próprio inconsciente, pode ter efeito terapêutico.
Brousse (2018) ressalta a dimensão política da psicanálise, ao afirmar que o analista
deve estar ao alcance da subjetividade de sua época, parafraseando Lacan (1953/1998, p.
321), na afirmação: “Deve renunciar à prática da psicanálise todo analista que não conseguir
alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”.
Uma vez que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, dinâmico e formado
em meio às relações do sujeito dentro de sua cultura, um analista não conseguirá estar ao
alcance do inconsciente de seu analisante se ele não estiver, sob transferência, em
consonância com sua subjetividade; a qual é sempre atrelada a um contexto histórico
internalizado, subjetivado. Não existe o psicanalista enquanto tal, modelo de atuação. Mas
existe um lugar ocupado pelos psicanalistas, o qual resguarda por uma ética desvinculada dos
ideais e do bem-estar. De tal lugar é possível resvalar, de modo que a formação do
psicanalista – pautada no tripé: análise pessoal, estudo, e supervisão dos casos clínicos –
nunca terá fim (Priszkulnik, 2009). É importante ressaltar que o estudo do analista também
precisa envolver outros autores, para além da psicanálise, para que sua escuta atue pautada na
cultura em que se opera, a qual lhe atravessa.
Brousse (2018) ainda nos traz que a subjetividade da época atual está marcada pela
segregação como forma de organização social; são os grupos que se juntam por identificação,
os quais acabam por operar formas de organizar a delimitação dos espaços. É a identificação
que permite juntar indivíduos dentro de um mesmo grupo, e é a falta de identificação que
exclui determinados indivíduos de um grupo, os quais irão, por sua vez, formar um outro
grupo pautado numa outra identificação. Ao mesmo tempo em que a segregação exclui quem
não tiver um determinado traço semelhante, ela permite uma grande aproximação entre quem
o tem e, consequentemente, profundidade de relação entre os indivíduos que formaram um
grupo.
Assim entendemos formações de grupo como as feministas, ou também os LGBTQ+.
Tais movimentos de grupos, podemos pensar, acabam por mostrar que o universo das
mulheres pode ser amplo e que elas têm a escolha de pertencer aonde se identificarem. Por
outro lado, há quem se identifique com uma forma de subjetividade restritamente binária, na
178

qual homens e mulheres equivalem a azul e rosa, cuja explicação encontra-se na vontade de
Deus. São diversas formas imaginárias de se lidar com a não existência da relação sexual, isto
é, não existe um estado de harmonia e completude na relação com o outro.
De acordo com Laurent (2012a), o desejo do psicanalista supõe uma ruptura na cadeia
de identificações. Isto quer dizer que uma das consequências da análise é a queda das
identificações. O percurso de uma análise se inicia com o estabelecimento do inconsciente
transferencial, o qual opera na associação entre dois significantes S1 – S2. Tal percurso
finaliza-se quando os significantes mestres (S1) desprendem-se do saber (S2), e desta forma,
situam-se numa dimensão mais próxima ao real. Mas há restos: sempre haverá significantes
que não ficarão sozinhos; não esperamos a produção de todos os significantes mestres. A
produção de significantes mestres corresponde a percorrer o labirinto dos modos de gozo do
sujeito, e assim evocar as situações nas quais ocorrem repetições, culpabilidade; passagens ao
ato como agitação ou agressividade. Aqui estão os modos de satisfação do gozo os quais, uma
vez localizados, podem ser disjuntos do saber e dar origem aos significantes mestres. A
localização de um modo de gozo, nada mais é do que o que conhecemos, desde Freud
(1921/2006), por identificação.
A quebra entre o significante primário da cadeia e o significado a ele aliado (S1-S2),
que aqui chamamos de quebra das identificações e seus modos de gozo, é uma prova de que
não existe uma palavra final: há sempre uma errância no sujeito, encarnada na formulação do
conceito de objeto a: uma letra, a primeira do alfabeto. Este conceito vem formalizar que a
pulsão estará sempre em ligação com seus objetos, seja pela vida da causa do desejo, seja pela
via do mais de gozar.
Uma análise, portanto, causa a queda das identificações, e não tranquiliza em relação
às identificações de gênero. Com esta queda, o que advém são semblantes com o corpo,
necessários para o sujeito se criar e recriar em meio ao laço social. A diferença entre a
identificação e o semblante é que, enquanto a primeira procura por um lugar no Outro, a
segunda busca formas criativas e incessantes de estar no laço social, o que não causa
segregação. A identificação é da ordem do imaginário; ela é inclusiva e segregacionista ao
mesmo tempo.
É importante ressaltar que, nos casos difíceis, a presença do Outro é, na maioria das
vezes, necessária, e ainda pode ser criada. É preciso acolher certa identificação no intuito de
construção de uma “pele” sobre o sujeito, a qual poderá cair junto ao processo de perda da
identificação; queda esta que equivale a possibilidade de abertura para o objeto a. Contudo,
alguns casos estão muito aliados à segregação, nos quais a identificação ao objeto dejeto é
179

muito forte, o que torna impossível a construção de alguma pele. Nestes casos, o analista
opera num caminho contrário, tentando construir o seu lugar de Outro para o sujeito.
Garcia (2011) define o principal traço da época atual como a valorização da rapidez,
uma aceleração da realidade, a qual gera desordem simbólica e, consequentemente, desfaz
laços. Ele reflete sobre os casais atuais, que hoje acabam por viver em cinco anos o que os
casais de antigamente viviam em trinta anos, é tudo mais rápido: a vivência, a intimidade, as
desavenças, as traições: “aceleração dissolve os laços” (p. 16).
Ser a mulher de um homem, e anular-se em meio a necessidade de se modular para
obter lugar no desejo do Outro, o que foi anteriormente visto como a origem do masoquismo
feminino – pode ser uma espécie de grito desesperado, na busca por encontrar uma
identificação enquanto esposa, em meio a uma cultura de mudanças e rearranjos frenéticos? É
importante destacar que a maioria das mulheres da pesquisa são jovens, de até quarenta e
poucos anos, o que indica que estão imersas fortemente na cultura atual. Se identificar
enquanto mulher de um homem, seria uma forma de conforto, ou até uma resistência a lidar
com seu corpo e seus modos de gozo?
Ressalto que o mais intrigante na pesquisa com mulheres que sofrem violência do
parceiro é a reincidência; de todas as entrevistas que foram analisadas, em nenhuma apareceu
a violência em um episódio isolado. Elas demoram para denunciar, para dar um basta neste
comportamento, e ainda insistem em permanecer com o parceiro.
Neste contexto, entra um grande desafio ao analista: lidar muitas vezes com um
sintoma que se mostra no tempo presente, urgente, sem tornar-se uma formação do
inconsciente pela via metafórica e metonímica, em transferência. Em outras palavras, trata-se
de um sintoma que não faz laço com o analista; não o inclui, recusa-se a entrada na cadeia
discursiva. É da ordem da emergência e do silêncio, do sofrimento muitas vezes mudo,
embora exposto a céu aberto, sem a máscara do recalque.
A psicanálise nasce partindo da ideia de que há uma irredutibilidade nos afetos, ou
seja, a repressão dos mesmos nunca será satisfatória. Embora o significante possa ser
recalcado, o afeto imbricado nunca o será, e irá passear num outro lugar (Grostein, 2011). No
caso das mulheres desta pesquisa, são afetos que retornam numa demanda de urgência por
serem olhados, pois elas estão próximas da morte. São afetos relacionados a suas histórias de
vida, suas relações com seus pais e irmãos, seus relacionamentos amorosos; cuja articulação
indica seus modos de gozo. À medida que tais afetos não encontraram via de escoamento por
uma cadeia discursiva, retornam num sintoma que grita a céu aberto, clamam por ajuda com
interferência policial. Podemos pensar que o apelo à polícia seria uma forma de inserir um
180

terceiro elemento, representante da metáfora paterna, em meio à dupla mortífera formada


entre uma mulher e seu agressor, a fim de conquistar algum afastamento da dupla e,
consequentemente, um lugar para o próprio desejo?
Para a psicanálise de orientação lacaniana, o sujeito não nasce com um corpo;
conquista-o por meio da operação simbólica representada pela metáfora paterna. Há algo nas
mulheres da pesquisa que dificulta com que se coloquem, imponham e delimitem limites ao
que pode e ao que não pode em relação aos seus corpos. Aparentemente, ficam nas mãos do
parceiro agressor, quem percebe tal vulnerabilidade e agride cada vez mais, num modo de
gozo extremamente sádico. Ter um corpo aqui diz muito menos da biologia do mesmo do que
de uma apreensão psíquica sobre seus modos de gozo; aonde o sujeito obtém seus pontos de
prazer: suas relações, seus lugares, sua forma de ser e estar, de se inserir e se comunicar com a
cultura. É perceptível nas mulheres da pesquisa uma falta de clareza sobre o que pode e o que
não pode em relação aos seus corpos. Tal dificuldade pode ser pensada como associada ou até
advinda do modo de gozo feminino: ilimitado, desorientado e desorganizado; facilmente
conduz a uma postura masoquista, ao buscar seu limite no desejo do Outro.
Dentro do raciocínio de que a apropriação do corpo está imbricada à metáfora paterna,
podemos pensar na intervenção policial, aliada às suas evidências, como o boletim de
ocorrência e a medida protetiva, como possibilidades de fazer furo entre estas mulheres e seus
parceiros; cuja função do furo é permitir um espaço de circulação e, ao mesmo tempo, de
diferenciação e limite entre elas e eles.
Tomando a violência como um significante, o qual irá se inscrever numa cadeia
discursiva metafórica e metonímica, numa sucessão que marca a cadeia de associações de um
sujeito, tal significante irá deslizar. A medida que afetos inconscientes virem à tona, em
associação a novos significados, os episódios de violência serão sintomatizados via
transferência, de modo a tornarem-se decifráveis.
Esta ênfase na possibilidade de novos significados inscreverem-se sob um mesmo
significante, foi trabalhada na análise dos casos, a qual selecionou os significantes que mais se
repetiam nas falas das mulheres entrevistadas e ressaltou que eles se relacionavam a
significados diversos, o que atesta sobre a possibilidade de abertura, de decifração dos
sintomas. Desta forma, o fenômeno de violência contra as mulheres deixa de ser visto como
uma mera repetição que se perpetua, e passa a ser visto como sintoma analítico, com
possibilidade de leitura inconsciente e ressignificação subjetiva através da própria cadeia
discursiva.
181

Os casos nos quais o sintoma opera mais pela via do ato do que do enigma discursivo
são de mais difícil acesso. Aqui opera a devastação, ou arrebatamento, conceito desenvolvido
anteriormente. De acordo com Caldas (2015) o arrebatamento opera pela via do gozo não
permeado pelo falo, de onde se pode deslizar para um gozo tanto indomesticado quanto
indefinido, muitas vezes deslumbrado, como uma forma de escamotear o devastado. São
episódios descritos com sensação de desorientação e angústia profundas. O que beira uma
erotomania, pode ser simplesmente um desespero de uma mulher de não perder o seu homem
a todo custo; já que o desejo dele sobre ela se inscreve inconscientemente como o falo
imaginário, quem poderia dar consistência a seu corpo.
Voltando ao pensamento sobre os desafios da clínica do século XXI, caracterizada
pela incidência de sintomas cuja forma muitas vezes opera por passagens ao ato e acting out e
recusa à inserção na cadeia simbólica discursiva, o que dizer sobre o sintoma das mulheres
que se inscrevem como vítimas de violência? É possível a perda em ato e ganho em palavra?
Há uma repetição clara, envolvida nos episódios de violência, que conduz a escuta dos modos
de gozo imbricados nesta repetição.
Duas possibilidades de pensamento se abrem. Em alguns casos das mulheres
entrevistadas, a violência se inscreve num sintoma da ordem do puro ato, do real que retorna
no corpo, cuja entrada na cadeia discursiva é impossível. Aqui podemos pensar que a
intervenção policial entra como necessidade de salvar a vida num âmbito do concreto, apenas,
pois não há abertura para uma retificação subjetiva.
Já em outros casos, é possível ao sintoma se articular dentro de uma cadeia discursiva
simbólica, de forma a ser elaborado pela via da palavra. Aqui a intervenção policial pode
representar uma ajuda a estas mulheres a inserirem-se na cultura e sociedade, pela via do
simbólico, e, portanto, delimitarem limites aos seus corpos, com perda do gozo masoquista.
Esta segunda possibilidade de casos é mais acessível a um tratamento psicanalítico via
transferência. Tomando a violência como um significante, o qual irá se inscrever numa cadeia
discursiva metafórica e metonímica, numa sucessão que marca a cadeia de associações de um
sujeito, tal significante irá deslizar. A medida que afetos inconscientes virem à tona, em
associação a novos significantes, os episódios de violência serão sintomatizados via
transferência, de modo a tornarem-se decifráveis.
Nos casos mencionados primeiramente, nos quais o sintoma opera mais pela via do ato
do que do enigma discursivo, são casos de mais difícil acesso, mais próximos da psicose, ou
ainda do que Lacan (2003) coloca como a devastação, ou arrebatamento. De acordo com
Caldas (2015) o arrebatamento opera pela via do gozo não permeado pelo falo, de onde se
182

pode deslizar para um gozo tanto indomesticado quanto indefinido, muitas vezes
deslumbrado, como uma forma de escamotear o devastado. A princípio, é fácil associar a
ausência do falo simbólico colocando limites à psicose. Contudo, uma vez que a castração e,
portanto, a metáfora paterna incide de forma inconsistente nas mulheres inscritas ao lado
direito da tábua da sexuação, a atuação do gozo feminino pode causar episódios de devastação
nestas mulheres, os quais são descritos como episódios de desorientação e angústia profundos.
Mesmo em mulheres neuróticas, a devastação pode incidir de forma que a metáfora paterna
não opere demarcando limites; permaneça inconsistente, principalmente quando em relação
com um homem, já que ele pode se inscrever como a saída fálica imaginária. O que beira uma
erotomania, pode ser simplesmente um desespero de uma mulher de não perder o seu homem
a todo custo; já que ele se inscreve inconscientemente como o falo imaginário, quem poderia
dar consistência a seu corpo.
Por meio do conceito de letra, Lacan destacou o fundamento de materialidade da
linguagem. Uma das definições que desenvolveu sobre a letra é a de literal a ser fundado no
litoral. (Legey, 2015). Retornando ao pensamento sobre a função da análise nestes casos,
como uma possibilidade de operar na separação psíquica entre uma mulher e o seu agressor,
demarcando o modo de gozo daquela, que é sempre único e singular, aqui o conceito de letra
poderia entrar fazendo litoral entre os dois. A letra faz referência à palavra dita, de forma mais
esvaziada do que o significante, produzindo uma nomeação singular.
De acordo com Zbrun (2015): “numa análise, apreende-se a letra, apreende-se o real,
porque a letra é o traço deixado pelo gozo no corpo...” (p. 45). O que fazer com um traço,
localizado, porém irredutível à entrada na cadeia discursiva? Um traço que não faz enigma,
que não é decifrável? Será uma aposta, que, via transferência, uma retificação subjetiva possa
acontecer a partir do apontamento de uma letra de gozo.
Penso que o analista, com sua escuta atenta, e sua capacidade precisa de pontuação
sobre o modo de gozo envolvido numa demanda de um sujeito, o qual, por sua vez, precisa
estar implicado no próprio sofrimento, pode vir a promover uma retificação na cadeia
discursiva de modo que seja possível uma retificação subjetiva. O analista não retira os
significantes que marcaram um sujeito, os quais se repetem em suas falas, mas pode conseguir
pontuá-los de forma que conduzam a novas significações e, portanto, novos posicionamentos
diante das mesmas marcas.
183

9 – PALAVRAS FINAIS

A pesquisa partiu de uma reflexão sobre a necessidade de problematização da temática


da violência contra as mulheres, reflexão que se iniciou em 2016, momento em que
campanhas com esta bandeira voltaram a acontecer, tais como a liderada pela mídia: “mexeu
com uma mexeu com todas”. Ao longo do percurso, foi visto o quanto a discriminação das
mulheres, que embasa a violência contra elas, é ampla, antiga, e quantitativamente alta: foram
pesquisados dados de diversos países do ocidente, foram aprofundados os dados do Brasil, e
comprovado que a luta das mulheres está apenas começando.
A lei do feminicídio, promulgada em 2015, ainda hoje sofre sérias dificuldades de ser
executada, e foi principalmente a observação desta dificuldade que mobilizou a continuidade
deste trabalho com finalidade de levantar a temática. A lei prevê que os feminicídios devem
ser destacados dos demais homicídios dentro das Delegacias de Polícia, mas na prática tal
distinção claudica.
Além e antes da lei sobre o feminicídio, existe a famosa – ou que deveria ser famosa –
Lei Maria da Penha, promulgada em 2006, a qual prevê, julga e penaliza a violência contra as
mulheres em cinco categorias: patrimonial, sexual, moral, psicológica e física. Na prática,
vemos praticamente todas as mulheres entrevistadas desconhecendo a amplidão da lei, e ainda
quando são ensinadas sobre a lei por completo, elas dizem que não conseguem provar a
violência que não seja física, por falta de provas. Muitas delas não têm celular, ou algum
outro aparelho que fotografe ou grave por proibição do próprio agressor. Outras não têm
testemunha, pois o agressor sabe os momentos em que pode agir, quando não há ninguém por
perto. Muitos vizinhos não querem exercer o papel de testemunha, pois permanecem dentro
do discurso de que em briga de marido e mulher não se mete. Algumas mulheres usam os seus
filhos de testemunha, e vale ressaltar o quanto esta situação é complicada, pois seus filhos,
muitas vezes, também são filhos do agressor. São crianças e adolescentes que vão a uma
delegacia depor contra o próprio pai, o que gera uma grande quantidade de ambiguidades e
conflitos psíquicos nestes filhos, pois o mesmo marido que bate frequentemente na mulher
pode ser um bom pai, ao menos em alguns momentos.
Vale ressaltar que tais leis foram aparentemente criadas para proteger as mulheres,
mas muitas conquistas, ressalto dentre elas a autorização das mulheres para trabalhar fora de
casa, foi algo que se deu muito mais por necessidade de ajudar no sustento da casa do que
184

pelo reconhecimento dos direitos das mulheres, já que elas ainda ganham muito menos do que
os homens exercendo a mesma função.
Há ainda um fator que esta pesquisa não pôde trabalhar, que é a grande quantidade de
mulheres que retiram o boletim de ocorrência contra o marido, quando é possível; ou não dão
andamento no processo, quando não é possível retirar. Algumas mulheres entrevistadas
disseram que assim faziam, pois o agressor pedia insistentemente, alegando que iria gerar
problemas para eles no trabalho principalmente, e prometiam nunca mais agredi-las – o que
não cumpriam. Maria da Penha inclusive ressalta que a violência doméstica obedece a este
ciclo, e que é em meio a estas promessas de mudança do agressor que as mulheres costumam
engravidar, dificultando ainda mais o processo de separação.
Os fenômenos de violência contra as mulheres reduzem seus corpos a meros objetos
sem dignidade, numa agressividade sem limites. E o que é ainda mais surpreendente, mesmo
as mulheres estudadas, com conhecimento dos movimentos públicos que ressaltam as
legislações de proteções às mulheres, mantém-se em relacionamentos nos quais correm risco
de vida, sem mencionar as sequelas psíquicas que as diversas formas de agressões acarretam.
Nos perguntamos qual é a saída para estas mulheres, se o movimento feminista, com sua
elucidação de que o poder é criado e pode estar nas mãos das mulheres, seria uma possível
solução. Mas vemos que a posição subjetiva escapa ao racional.
Não podemos usar a psicanálise para justificar no gozo feminino tal permanência,
embora a psicanálise nos ajude muito num aprofundamento sobre o fenômeno e numa ajuda a
estas mulheres. Mas, uma coisa é o gozo feminino não todo, outra coisa é o sofrimento das
mulheres. A devastação, com sua conotação de objeto rebaixado, erotomania,
deslumbramento, nos ajuda a escutar estas mulheres, mas não justifica o que elas passam.
Ressalto que não basta uma mulher ser independente financeiramente se ela não tem
independência de valores que justifiquem uma vida digna de ser vivida. É preciso um algo
mais, é preciso um sentido para a liberdade. Uma psicanálise pode ser muito bem-vinda para,
através da elucidação dos sofrimentos e modos de gozo destas mulheres, conseguir alguma
retificação subjetiva nos aspectos que as levam ao pior.
O que se mata no feminicídio é a condição de vulnerabilidade que um homem pode
ficar frente a uma mulher, quando ele não consegue dominá-la e percebe que, mesmo
despossuída do falo, ela consegue colocar seu corpo a um estatuto de poder; seja pela da
sedução, do trabalho, ou até da maternidade.
Ser mulher, ser homem, ser cis, ser trans, ser queer, ..., são construções singulares que
jamais podem ser estereotipadas ou reduzidas a estigmas – o que é um convite ao preconceito
185

e à discriminação. Este trabalho, além de problematizar a temática da violência contra as


mulheres e levantar significantes que convocam a uma reflexão, pensa que certos subsídios
clínicos podem ajudar o profissional no seu trabalho, por exemplo, uma ação terapêutica pode
se concretizar em ações de acolhimento, pode se concretizar na escuta da pessoa que é
convidada a falar e a expor suas necessidades, seja na demanda espontânea, nos encontros
programados, individualmente ou em grupo, pode se concretizar no esclarecimento que
também facilita a reflexão e pode permitir uma reestruturação do pensamento. Enfim, oferece
elementos de estudo, dados, informações as quais não têm por intuito replicações, mas sim
levantar reflexões e possibilidades de combinar atividades de modo a melhor responder as
demandas desses casos. Desta forma, espera-se contribuir, principalmente, para que a escuta
dessas mulheres considere seus modos de gozo em meio às parcerias amorosas.
Aquilo que é comumente chamado de destino, neste trabalho foi chamado de gozo, o
qual, demarcado por um analista, designa um lugar onde se pode navegar e, portanto, retificar.
Que as mulheres encontrem seus “avessos”, e saibam lidar com as contingências dos
encontros e desencontros.
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197

ANEXO A – Termo de consentimento livre e esclarecido

(De Acordo com a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde)

Eu, Marcella Pereira de Oliveira, estou realizando uma pesquisa de nível de


doutoramento intitulada “Violência contra as mulheres: contribuições da psicanálise de
Freud e Lacan. O objetivo é investigar os sentidos e significados que as mulheres vítimas de
violência atribuem a estas experiências de vida, para oferecer subsídios à formulação de
novos dispositivos clínicos ao atendimento destes casos. Nesta pesquisa, um número de 10
participantes, sendo estes agressores e vítimas, serão convidados a participar através de
entrevistas abertas de modo que possam falar sobre suas experiências de vida neste contexto.

A apreciação ética da pesquisa será realizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com
Seres Humanos do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo - CEPH-IPUSP,
credenciado junto a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) localizado à Av.
Prof. Mello Moraes, 1.721 - Bloco G, 2º andar, sala 27 - CEP 05508-030 - Cidade
Universitária - São Paulo/SP. E-mail: [email protected] Telefone: (11) 3091-4182. O CEPH-
IPUSP tem a finalidade de defender os direitos dos participantes da pesquisa (artigo 5º,
incisos II e X da CF/88) e de contribuir com o desenvolvimento das pesquisas dentro de
padrões éticos em consonância com a Resolução do CNS nº 466/2012.

Os dados obtidos das entrevistas serão somente utilizados com vistas a coletar temas
que interessam ao objetivo da pesquisa. Informações como dados pessoais do entrevistado,
bem como de seus familiares, cônjuge, não serão de forma alguma incluídas na análise dos
resultados e na pesquisa como um todo. Caso haja o uso de vinhetas clínicas, estas serão
cuidadosamente modificadas de seu contexto original e isentadas de dados ou enredos que
indiquem qualquer proximidade com a realidade do sujeito bem como da instituição na qual
são realizadas as entrevistas.

Como pesquisadora responsável, cumprirei as exigências contidas Resolução nº


466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, que visa garantir o sigilo relativo às propriedades
intelectuais e o devido respeito à dignidade humana. Com base nesta resolução, fica
explicitado neste termo de consentimento que o(a) participante poderá solicitar quaisquer
informações sobre procedimentos, riscos e benefícios relacionados à pesquisa, inclusive para
esclarecimento de eventuais dúvidas e poderá retirar seu consentimento a qualquer momento
198

sem penalidades. As entrevistas, previamente agendadas, serão realizadas em uma sala


privada na delegacia da mulher de uma cidade do interior de São Paulo, sede da região
Metropolitana do Vale do Paraíba e Litoral Norte, serão gravadas, e terão duração de,
aproximadamente, uma hora. Ao término da pesquisa o material gravado será inutilizado.

Haverá ressarcimento em dinheiro ao participante caso haja gastos com o transporte


para o local da entrevista. O(a) participante poderá se recusar a falar sobre qualquer assunto
que julgar necessário e poderá não autorizar a utilização total ou parcial dos dados. Os
desconfortos e riscos esperados são mínimos e o(a) participante obterá o benefício, durante a
realização da entrevista, de refletir sobre suas experiências de vida. A pesquisadora está ciente
da necessidade de acolhimento aos participantes, tendo em vista a cautela para evitar e/ou
reduzir efeitos e condições adversas. Caso algum dano venha ocorrer a algum participante, a
indenização está garantida. Haverá acompanhamento e assistência aos participantes, tanto
durante quanto após o término da pesquisa, incluindo encaminhamento a serviço
especializado quando este se fizer necessário. O sigilo e a privacidade dos participantes da
pesquisa serão mantidos durante todas as fases da pesquisa.

O(a) participante receberá uma via do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e


poderá entrar em contato com a pesquisadora através do telefone (12) 991649171 ou por e-
mail: [email protected] a qualquer momento desta pesquisa ou posterior a ela. O(a)
participante terá a disposição uma cópia deste documento. Orientadora da pesquisa: Profª. Dr.ª
Léia Priszkulnik. Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP. Tel:
(11) 3091-4173.

Eu,_____________________________________RG__________________,sexo____,
nascido em____/____/_______, residente
à_______________________________________com número de
telefone_________________, após tomar ciência da proposta desta pesquisa, através da
pesquisadora responsável e ratificado no texto acima, considero-me plenamente
esclarecido(a), sabendo que poderei, a qualquer momento, rever esta posição e solucionar
dúvidas. Estou de acordo com minha participação, como voluntário(a), nesta pesquisa e dou
permissão para ser entrevistado(a) e para estas entrevistas serem utilizadas conforme citado
neste documento. Declaro que, após convenientemente esclarecido(a) pelo pesquisador e ter
entendido o que me foi explicado, consinto em participar do presente Projeto de Pesquisa.
199

Data:

Assinatura da entrevistadora (IP_USP):

Assinatura do entrevistado:
200

ANEXO B - Principais entrevistas

I) Lissandra, 29 anos:

Estou há treze anos com a pessoa. Tenho quatro filhos, três com ele e o mais velho é
de outra pessoa. Sou sozinha com eles, não tenho mãe por perto, meu pai é alcoólatra.
Vivemos bem por quatro anos só. Ele começou com xingamentos, palavrões. Começou
quando eu comecei a dizer o que pensava, por exemplo, que não queria minha sogra
morando junto. Meus filhos têm 14, 9, 6 e 4. Quando conheci ele o de 14 tinha um ano. Deixei
tudo para trás por causa dele, que cagada que eu fiz. Às vezes me arrependo, me culpo muito.
Tem 14 anos que falo com o pai do mais velho, a pensão não da certo porque ele não é
registrado no nome do pai dele.... Não sei se as crianças vão ficar meio baqueadas comigo.
- Ele é agressivo com as crianças também?
Hoje ele agrediu o de 9 anos que é dele. Tenho medo dos meninos ficarem contra mim
se eu tomar atitude. Meu irmão incentivou que eu fosse na delegacia, porque se ele ameaça
de matar uma hora vai fazer mesmo. Ele fala para eu sair da casa, mas a casa é minha,
ganhei da prefeitura, porque era área de risco, quando conheci ele eu já morava ali. Estou
indo à igreja, vendendo latinha, reciclados, não tenho vergonha de nada. Mas ultimamente
não estou aguentando mais a rotina.
.... É briga constante, agressão constante. Hoje veio para jogar panela de pressão na
minha cabeça. Quebrei meu vidro de remédio nas costas dele para isso não acontecer. Já
tenho problema no cérebro por agressão na cabeça dela que ele fez. O alvo principal sou eu,
já tenho 15 BO contra ele, mas não tenho prova. Eu não tenho celular para ter as provas,
todo celular que eu tenho ele quebra. As amizades que eu arrumo com mulher por exemplo
ele diz que não presta. Se eu tenho amizade com homem ele diz que eu to me prostituindo. Eu
tenho uma tia que queria que eu fosse prostituta, ele sabe disso.
Ele não participa com nenhuma ajuda, nem na casa e nem na escola, ele quebra as
coisas da casa. Minha cunhada casada com o irmão dele me pergunta o que eu estou fazendo
com esse homem. Tenho dificuldade com maconha, cigarro, já fui usuária de craque,
consegui parar só com SOS mulher.
... Não quero nada, nem pensão. Ele tá me acusando de fazer mal para os meninos,
porque eu forço para ir na escola, porque não tenho dó do choro. Ele tomava o meu cartão
201

do bolsa família que está no meu nome. Ele fazia porque é louco com dinheiro, tem que estar
com ele.
- Ele controla até o dinheiro...
Eu tenho medo disso estar mexendo com a cabeça dos meninos, e por isso eles não
querem ir na escola. A menina de 6 anos fala que eu não posso deixar ele fazer isso. O de 9
anos queria vir comigo... Se não fosse o SOS mulher me falar palavras positivas, já tinha
tocado fogo na minha casa. Eu ando até sem meu RG, escondo para ele não pegar.
Meu pai fazia a mesma coisa com sua mãe. Meu filho de 9 anos me defende da forma
como eu defendia minha mãe...
Agora as ameaças são constantes e eu não posso ficar acreditando no diabo. Ele está
pegando os filhos e dizendo que não vão porra nenhuma para a escola. E os filhos dizendo
que não vão para a escola porque não estão bem, e era igualzinho o que acontecia comigo.
Minha mãe separou do meu pai e me abandonou com 7 anos, largou eu e meu irmão
para fazer uma escolha que não tinha outra. Demorou para eu ver que não era abandono.
Minha tia irmã do meu pai que adotou eu e meu irmão....

Rosa, 61 anos:

Sou casada há quarenta e sete anos, casei com dezesseis anos. Sou bisa, tem 6 meses
minha netinha. E agora eu cansei de ser humilhada, cansei de apanhar. Cansei de tudo. Aí eu
falei: tirar a minha vida eu não vou. Hoje ele não pôs a mão em mim, mas palavras dele é
uma facada, tem coisas que magoam muito.
- A senhora lembra como começou?
Já faz uns cinco anos que eu desconfio que a mudança dele tem o envolvimento de
outra pessoa. Ele mudou completamente. Ele é um excelente pai, ele se aposentou na GM, ele
é um excelente avô, até então era um excelente marido, mas de uns tempos para ca mudou
completamente, é só xingamento.
Com a minha família eu vivi até os 16 anos, casei com 16, hoje tenho sessenta e um
anos. Eu levo cuspe na cara, eu apanho, levo chute, fora as palavras que doem mais.
- O que ele fala?
Eu falei para ele: Coloca pra mim 9,99 no celular que da para 7 dias. Ele falou pra
mim, sobe, vai na praça, desculpa não vou falar o termo que é muito feio, dê, que você
consegue pra carregar seu celular, vagabunda, parasita, vai olhar carro, vai ser flanelinha.
202

Sendo que moça, eu não peço nada, tudo que eu tenho é ganhado. Minha irmã de me dá,
minha mãe, meus filhos.
Eu saí de casa 3 vezes para deixar ele livre. Fui para casa da minha mãe e dos meus
filhos. Aí ele liga: volta.. Em 2011 eu entrei com um processo porque ele me machucou, fiz
corpo de delito, na hora de chegar no final do bendito processo ele veio: pelo amor de Deus,
eu nunca fui processado na minha vida, eu te prometo não vou e fazer nada mais, perdão. Eu
tirei. Eu não quero processo, não quero maldade para o lado dele. Só quero viver em paz,
sem precisar ouvir assim: esse apartamento é meu, esse carro é meu. Eu não ligo para bem,
eu quero ser feliz descalça, não tem problema. Hoje eu digo assim Deus me de força. Estou
com 61 anos, tenho doença do Crom, tenho diabetes, pressão alta e agora eu to com
problema cardíaco, eu não vou aguentar eu não tenho que aguentar. Agora que eu to vindo
mas ele já ligou, já me ameaçou. Ele falou assim: Maria da Penha não resolve nada. É
apenas um papel. Eu mato a hora que eu quiser matar. Eu faço o que eu quiser que vocês não
têm proteção, a lei não faz nada para vocês.
Eu fui na base de Santana pedir ajuda. Fui correndo, tava chovendo, senão ele me
pegava, hoje eu tive habilidade. Ele disse: procura teus direitos mas eu vou te matar, não
adianta. O policial escutou. Com esse papel na mão, tudo certinho, meu filho disse: mãe, a
gente quer honrar pai e mãe, eu jamais vou levantar a mão para o meu pai, ele não houve a
gente. A senhora procura o primeiro passo que a senhora estando com o papel eu vou poder
falar: no meu portão o senhor não entra.
Eu tenho 4 filhos, 1 morreu com 25 anos ajudando um amigo.
- Foi depois desse falecimento que seu marido piorou?
Também. Mas ele perdeu a mãe com 12 anos, ele tem 68 anos. Fez no dia das mães
agora dia 12. Ele é um homem muito frio. O meu filho morreu e ele diz assim: se fosse o do
meio que é o meu pescador, ta sempre junto comigo, eu ia sentir muito mais. Gente, filho não
tem diferença. Eles são todos iguais. Eu não sei se é porque ele perdeu a mãe com 12 anos,
apanhou muito do pai, mas ele é tipo assim eu falei, tem que ser o que eu falei. Se você falar
ele não te ouve.
- Já te passou pela cabeça separar dele?
Já. Eu já falei: vamos separar, que dai você vive sua vida, estou notando que você
mudou, então vamos separar. Ele falou: não vou separar de você, porque se eu for separar eu
vou ter que dividir apartamento, dividir carro. Eu falei que não quero bem material, que eu
assino na frente do juiz que eu não quero nada. Ele quebrou muita coisa lá no apartamento,
ele foi jogando e foi quebrando. Eu falei que ele que ele tem um carro zero, nós temos esse
203

apartamento aqui na avenida Rui Barbosa, pague só o condomínio e deixa eu ficar aqui. Ele
falou: vai para a rua, muitos moram embaixo da ponte, porque você não pode morar?
Eu pesava 65, eu to com 43 quilos. Eu não posso ficar com a prótese porque eu tenho
que por o corega. Aí ele fica: magrela, esqueleto, você é feia. Eu olho pra ele e digo: eu tenho
espelho eu sei que sou feia, não preciso de você falar.
Eu to arriscada sim, dele me matar. Meu sofrimento é isso, eu queria deitar. A
palavra dele entra. Meus filhos falam assim: pai, eu preferia que o senhor me desse um tapa
no rosto, mas não falasse as coisas que o senhor fala. Minha netinha falou vovô, não bate na
vovó não por favor vovô, ela é doente. Meu filho conversou com ele, falou pai, não faz isso.
Meu filho falou: pai o senhor perdeu a razão, minha mãe está doente, está com 42 quilos. Eu
to trabalhando porque vocês não têm estrutura para ficar com a minha filha pai? Ele falou
vai arrumar uma empregada e abaixa a voz que você está no meu apartamento. E meu filho
falou: seu não, da minha mãe também. E ele falou: faça o favor de se retirar. Aí meu filho
saiu chorando. A educação que a gente deu é honrar pai e mãe, então jamais eles vão falar
mais alto. O meu mais velho de 46 ele já falou: mãe, se eu pudesse eu matava, se eu achasse
que eu tenho esse direito eu matava para a senhora ser feliz, para a gente ser feliz; mas eu
sou covarde, não vou fazer isso... A palavra última tem que ser a dele sempre. Ele não
abaixa.
- Foi depois daquele falecimento que ele começou com isso, ou ele era agressivo
antes?
Posso te falar a verdade, a gente com 16 anos é muito inocente. Eu já apanhava com
16 anos. Mas logo eu já engravidei. Então foi uma coisa assim, casei de 4 de outubro de 75,
meu filho nasceu dia 17 de outubro de 75, foi muito em seguida.
- Você achava normal ele te bater?
Na minha mente eu achava que eu merecia. Porque na minha juventude eu com ele
estava aprendendo a beber, aprendendo a fumar.
- Como se ele estivesse te ensinando?
Sim. Então eu bebia, eu fumava, e depois eu achava que eu apanhei porque eu mereci.
Eu deixei as vezes de fazer alguma coisa que ele pediu porque eu tava bêbada, então eu tinha
que apanhar mesmo.
- Ninguém tem que apanhar. Seus pais tinham essa educação de bater?
Minha mãe apanhou muito do meu pai, largou dele eu tinha 6 anos. Meu pai faleceu
com 41 anos. Minha mãe que abandonou, quando ele começou a bater na gente também, em
mim e no meu irmão que também já faleceu com 51 anos, aí ela falou: meus filhos não, eu
204

tudo bem, meus filhos não. Ela saiu e foi morar com a minha vozinha que morreu com 97
anos, e minha mãe trabalhava. Então a educação que a gente teve era da minha mãe e da
minha avó. A gente não pensa, acha que é normal apanhar, viver escarrada no rosto, não é
normal. Isso que o policial falou pra mim, que eu continuar nessa lavagem que ele anda
fazendo a senhora nunca vai tomar atitude. Mas eu tenho medo, porque ele falou pra mim:
independente eu vou te matar. A primeira coisa que vem na mente é suicidar mesmo. Mas
graças a Deus, pelos meus filhos que estão aqui, meus netos, pelo meu bisneto, porque senão
eu não estaria aqui, eu te juro, pelo que há de mais sagrado (chorou muito).
Ele assiste muito esses programas do Datena, ele acha que é normal. Ele fala: se ela
morreu alguma coisa ela fez, tem que morrer mesmo. Eu não sei, eu to perdida. Minha mãe
preocupada, minha irmã na prefeitura trabalhando preocupada, meu filho na Petrobras falou
mãe eu vou te buscar onde você tiver, mas eu to trabalhando. Eu falei: ta bom meu filho, não
fui que liguei, foi o policial. Meus filhos não concordam com isso, mas ao mesmo tempo eles
têm medo também do pai. Eu tenho que fazer algo pra pelo menos me alimentar e sobreviver.
E meus remédios, que eu ganho do governo, mas alguns eu tenho que comprar. Mas a minha
mãe é que me da.
- Ele nunca te deixou trabalhar?
Nunca, mulher dele, nem pensar. Filho dele em creche, nem pensar. Você vai tomar
conta. Aí eu falei pra ele: qual foi o dia que você foi trabalhar na GM com uma dobradinha
na gola sua do seu uniforme? Nunca, era passadinha, não digo engomada, mas bem
passadinha, você não passou vergonha não. Quem abria o portão pra você quando você
chegava, e quem abria quando você saía 4 e pouco pra bater cartão 5 e pouco? Era eu. Café
da manhã arrumadinho para você. Eu nunca fiz nada, nunca trabalhei.

Emely, 37 anos:

Assim que me separei conheci uma outra pessoa. Ele é carioca, a gente trabalhava na
mesma empresa, porém eu aqui e ele lá no Rio. Eu era gerente da marca no Vale Sul e ele
analista de sistemas. A gente se falava a todo momento, acabou que a gente se conheceu
ficamos juntos e eu fui morar com ele. Chegando no RJ eu me deparei com a real situação da
onde eu ia morar. Eu tinha uma condição de vida boa aqui e fui morar numa comunidade no
RJ.
Descobri que estava grávida do segundo filho em 2015, e nessa época descobri que
meu marido era usuário de drogas. Eu morava lá desde 2012 e isso nunca transpareceu. De
205

lá para ca foi uma luta diária para tentar tirar isso dele. A gente via que ele não queria, mas
era mais forte do que ele.
- Como foi a descoberta?
Ele tinha um emprego bom na Petrobrás, um rapaz novo de vinte anos que já tinha um
bom cargo e boas influências, era massom, era uma pessoa muito inteligente apesar de novo.
Ele começou a dormir fora de casa, falando que era motivo de trabalho, que tinha perdido o
celular. Sempre que chegava em casa ia direto para o banho, eu não entendia aquilo, achava
que era dele, mas era para ajudar a passar o efeito da droga, ele ficava no banheiro duas
horas fechado. Até que um dia ele chegou foi tomar banho deitou na cama e morreu. Eu
estava com muita dor de cabeça e fui pegar um remédio na mochila dele. Aí eu encontrei uma
quantidade muito grande de maconha e meu mundo desabou. Trinta e três anos eu nunca
presenciei uma coisa daquela. Eu morava numa comunidade, mas minha vida era fora dali.
Eu era gerente de loja no shopping. Dias depois foi o chá de bebê da tia dele, e naquele dia
eu cheguei para ele e falei que eu descobri. Ele ficou branco, perguntou quem deu ordem
para mexer nas coisas dele. Eu nunca tinha feito aquilo em três anos. Ele insistiu que não era
para eu abandonar ele. A única pessoa que eu podia contar era a mãe dele, mas se eu
contasse para ela que seu filho era usuário de drogas há mais de dez anos conforme ele me
contou a festa ia acabar. Daí esperei a festa acabar e contei. A mãe dele não acreditou.
Falou que meu filho era uma pessoa honesta, trabalhadora, estudante. Eu falei que era
verdade e que agora isso explica tudo que eu não conseguia entender. As crises dele, os dias
que ele sumia, os dias que ele dormia direto. A maconha tem um efeito, a cocaína tem outro,
o lance e o craque tem outros, e eu via tudo isso nele. Eu sempre vi o dependente químico
como uma doença, eu me vi no lugar de esposa e de ter que ajudar a tirar ele dali...
... Eu era casada e meu primeiro marido bebia demais. Não tinha violência, ele só não
aceitava que era alcóolatra. Eu falei ou você pede ajuda ou vai embora, ele foi embora.
Assim que eu descobri ele foi mandado embora (ela se refere ao segundo marido, o
agressor). Porque ele não conseguia trabalhar no dia seguinte que usava. Ele ficava numa
favela qualquer que conseguia ficar. Daí ia para o médico, o médico encostava ele por três,
quatro dias. Daí foi se afundando. Aconteceram coisas que só eu passando, não tenho como
contar. Passei por uma depressão muito forte, emagreci trinta quilos. Eu tentei, fiz o meu
possível. Era uma pessoa que passava quatro dias fora de casa e voltava parecendo um lixo.
Eu ajudava.
- Como?
206

Eu não julgava, dava banho, acolhia. Tentava fazer com que ele se sentisse bem
dentro de casa. Ele só chorava e pedia perdão. A pessoa quando chega está transtornada,
chegava até sem roupa. Eu fazia ele sentir que podia voltar para a casa a qualquer momento
que eu estaria ali esperando por ele. Por mais que depois eu tivesse uma crise de choro.
Quando ele acordava ele pedia perdão e fazia promessas que ia parar. Mas durava uma
semana.
- Então não tinha conversa.
Ele começou com treze anos. Ele morava nessa comunidade mesmo. Ele teve emprego
bom e continuou morando lá, era pelo comodismo. Você não paga imposto, não paga conta
de água, condomínio, o máximo que paga de aluguel é duzentos reais. Hoje ele tem vinte e
seis anos e eu trinta e sete, quando a gente casou eu tinha trinta e ele dezenove. Já era
inteligentíssimo, sempre teve empregos muito bons. Quem mora dentro de comunidade nem
sempre é pobre, eu tinha tudo do bom e do melhor dentro de casa, mas eu não tinha vida, não
podia ficar na rua com meus filhos.
Depois que eu descobri, ele passou a ter a doença do ciúmes, ficou com medo de me
perder, virou uma pessoa muito possessiva. Tive que sair do meu emprego, porque senão
eram muitas brigas. As agressões foram aumentando. Eu falei que não queria mais. Ele falou
tudo bem, mas os meus filhos você não leva.
Eu tenho uma paixão por estética, e fui fazendo cursos lá, era uma maneira de sair de
casa. Mesmo assim ele ia me levar e buscar. Quando a pessoa usa droga ela fica fora de si.
Quando ele usava cocaína, craque, ele via coisas onde não tinha. Daí ele falava que eu não
tinha voltado rápido da creche porque eu tinha encontrado algum homem. Eu tinha ficado
conversado com as mães e passado na padaria para as crianças chegarem e já tomarem um
café.
Ele, uma semana depois, retomava o dia que eu tinha demorado para chegar e falava
que eu tinha encontrado com alguém. Eu já recuava porque sabia que ele ia me bater. Aí eu
chamei os pais dele e contei, porque já não estava aguentando aquela situação. Quantas
vezes ele chegou em casa enrolado num lençol porque estava nú e enrolavam ele. Quantas
vezes eu já não saí procurando ele na rua jogado nas valas. E tinha muita agressão, eu tenho
hoje duas costelas quebradas.
-Era nas crises de ciúmes ?
Quando não tinha, ele arranja motivo.
Até que um dia perguntei o que te faz ser assim, preciso entender. Ele falou que
quando moravam na outra rua de aluguel ele tinha que fumar um ou dois baseados para
207

entrar em casa e aguentar minha chatice. Falava que ele ia fazer algo para comer, para ela
não fazer.
-Que chatice?
Ele falou que eu era fresca. Eu era revoltada de estar morando ali, não podia sair na
rua porque meu marido tinha ciúmes. Depois fui entender que não era ciúmes, era medo de
eu descobrir quem ele era. Ele falou que começou a usar com mais frequência depois que o
João Paulo nasceu, o primeiro filho. Ele não podia se afundar nas drogas. Ele falava que eu
era muito chata, ele pisava dentro de casa e eu já vinha falando que tinha isso para comprar,
contas para pagar. Eu disse que era simples, falava que não queria que eu ia embora, mas eu
ia levar meus filhos.
- Não tinha conversa.
Ele sempre foi muito fechado. Ele era um moleque de dezenove anos que virou pai. Eu
já tinha uma criança de seis anos, que foi embora comigo e voltou, hoje mora na casa do meu
ex marido porque não se adaptou, não vai no Rio de Janeiro nem para passear.
As agressões eram muitas, na frente das crianças. Se eu tivesse na rua ia ser na rua.
Me colocou para fora de casa várias vezes, até que a mãe dele descobria e ia me ajudar. A
mãe dele largou da vida dela, entrou para a igreja, achou que assim as coisas iam melhorar,
só que não.
Eu abri uma esmalteria para mim lá, tinha eu e mais duas funcionárias. Ele tinha que
escolher quem podia trabalhar comigo, e quem eu tinha que atender. As pessoas chegam
tarde na comunidade, então tinha dia que era duas horas da manhã e eu estava trabalhando.
Onde eu morava tem uma facção que toma conta, o terceiro comando. Se tornou um lugar
inabitável. Até que no dia da eleição, fomos votar e meu lugar não era lá. Ele falou para eu ir
votar e voltar ali. Só que quando a gente chegou, dois rapazes estavam na fila. A gente não
anda de mão dada, era costume deles ali, é muito diferente daqui. As pessoas não sabiam que
a gente era casado. Eu casei e não usei aliança.
- Você tentava se aproximar na rua?
Sim, e ele falava que as pessoas ali não andavam de mãos dadas. Chegou uma hora
que você cansa de lutar e para mim tanto faz. Minha rotina era sair para deixar as crianças
na creche e voltar, eu não tinha vida, não tinha nada. Ia na esmalteria, e voltava. Por mais
que eu tivesse cliente quando ele queria eu tinha que fechar. Porque ele queria sair para usar
a droga dele, eu tinha que parar de trabalhar para o bonito sair para a rua.
Um desses dois rapazes do dia da eleição eu sabia que era o motorista da van. Eu
nunca parei para conversar com ninguém, eu sabia que eu não podia. E na cabeça deles eu
208

era casada e não era para conversar comigo. Na minha cabeça, eles olharam porque
pensaram se a gente era um casal. Ele entendeu que eu estava de caso com o cara. Ele
perguntou se eu conhecia um dos dois. Eu falei que sim, que era o motorista da van. Ele
bateu na minha testa e perguntou qual é a tua com ele. Na hora minha testa ficou roxa. Ele
falou que se eu falasse o que eu tinha com ele ia me arrebentar ali mesmo. Nisso o policial
chegou e perguntou o que estava acontecendo. Ele falou que não era nada que era para
resolver com ela. Ele me mandou ir para casa pensar na desculpa que eu ia dar. Eu pensei
que ele ia acabar comigo. Ele me deu um empurrão, eu fui para a casa. Ele voltou para a
casa dois dias depois como se nada tivesse acontecido.
Com isso você não dorme, não come, não bebe. Eu fazia as coisas porque tinham duas
crianças que dependiam de mim. Foi nisso que fui emagrecendo.
Depois que ele perdeu o emprego abriu uma loja de conserto de celular. Aí ele
desandou de vez. Eu fechei a esmalteria e passei a atender as clientes em casa, aí ele ficou
pior ainda. Ele escolhia quem eu podia atender.
A loja dele são vários box, numa quadra onde tem eventos, baile funk. O abençoado
desse rapaz chegou e colocou o carro dentro do box dele. Ele olhou para mim e falou vamos
para a casa. Eu falei nossa vamos mesmo estou com dinheiro da dona Maria para comprar
açaí para ela. Ele perguntou porque eu estava olhando para lá. Eu respondi que estava
olhando para a rua, eu não vi o rapaz. Ele mandou eu ir para a casa, chegando lá perguntou
qual era a desculpa que eu ia dar. Saí da cozinha e fui para o quarto para deixar ele falando
sozinho. Nisso ele puxou meu cabelo e começou a me bater. Aí eu falei que não vou apanhar.
Sempre deixei ele me bater, ele colocava saco na minha cabeça, me desmaiava. Naquele dia
eu falei que não ia apanhar, e grudei no saco dele, começou a jorrar sangue, achei que eu
tinha estourado o saco dele. Mas não era, era da minha unha. Nisso ele começou a me dar
socos por baixo na minha cara, e eu fiquei toda ensanguentada. O meu pequenininho até hoje
fala para todo mundo que o papai tirou sangue da boca da mamãe. Ele nunca tinha tirado
sangue de mim, sempre me deixava toda roxa. Ao mesmo tempo que ele me batia ele queria
me lavar, ele pedia perdão, falava olha o que você fez, eu te machuquei.
Até que eu consegui ficar calma, ele também, e ele falou cara é melhor você ir
embora. Vai embora e deixa os meus filhos. Eu falei que eu ia, mas eu levava os meus filhos.
Até que eu resolvi mesmo ir embora. Resolvi olhar o facebook dele e ele estava falando com
uma garota de uma festa no Vidigal, que a mulher dele ia o matar, porque estava há dias fora
de casa. Naquele dia eu pensei que não precisava disso. Ele chegou, perguntou se minha
boca estava melhor, e se eu não ia ficar brava. Eu falei não. Combinei com o Uber para levar
209

na rodoviária. Eu tinha quarenta e nove reais na carteira, quarenta era para o Uber.
Comprei passagem com o cartão da minha mãe. Todo mundo queria que eu fosse embora,
mas ninguém acreditava. Ele deu ordem para todo mundo que se me visse saindo de mala era
para avisar a ele. Eu não quis nem saber. Peguei roupas que eu nem imaginava que eu tinha,
era roupas para doar que eu tinha separado, para você ver a situação da pessoa. Não peguei
um pacote de biscoito para os meus filhos. Meus filhos me perguntando para onde a gente ia
eu falei que a gente ia para a casa da bisa, para caso ele nos encontrasse no caminho falar
que íamos na casa da bisa, pois se falasse que era na casa da vovó Marta ele ia falar, você
vai, meus filhos ficam. Só que eu esqueci que era véspera de feriado, a avenida Brasil estava
parada, perdi o ônibus por meia hora e não tinha dinheiro nenhum. Liguei para minha irmã
que comprou uma nova passagem para mim, de um ônibus que só saía quatro horas depois.
Eu com nove reais, meus filhos começaram a pedir as coisas, comprei uma água era quatro e
cinquenta. O que me salvou foi um casal com uma criança que sentou do meu lado com um
kooler cheio de lanche. A hora que o ônibus saiu ele começou a me ligar e eu não atendi. Eu
carreguei a chave e ele ficou sem. Diz a minha vizinha que ele gritou a noite toda, me
chamava de vagabunda para baixo. Eu só atendi no dia seguinte.
Desse dia para ca, ele nunca veio ver as crianças. Nunca mandou cinco reais para
ajudar. Ligava uma vez por semana para falar com os meninos, mas estava sempre me
ameaçando. Quando foi sábado por volta do meio dia quem chega aqui, ele com a mãe dele,
sem me avisar. Ele pediu para levar as crianças na praça para andar de bicicleta, ele trouxe
para as crianças as coisas que eu pedia, e não trouxe as minhas coisas. Eu não deixei ele sair
com as crianças. Aí minha sogra me pediu, falou que as trazia cinco horas, o meu filho pediu
para ir no parque do avião. Eu deixei. Onde está meus filhos hoje?
Minha advogada já tinha entrado com pedido de guarda provisória, e nisso ela entrou
com urgência, e pediu para eu registrar BO. Hoje falei com meu mais velho e ele chorou no
telefone, falou que queria vir para casa. Muito me admira a mãe dele sendo quem ela é ter
ajudado ele a fazer isso.
Voltando para abril do ano passado, ele me bateu muito, na frente da família lá em
casa. Depois de tudo isso ele aceitou que eu viesse e trouxesse as crianças. Eu voltei. Mas
quinze dias depois a médica me ligou para falar que a cirurgia do meu filho tinha saído.
Ninguém queria que eu voltasse, e eu voltei. Daí foi que eu fiquei presa, ele chegava, me
batia, até o dia que eu consegui fugir dele. Ele falou para mim que não vai devolver, que os
filhos dele são carioca e vão ficar lá. Falou para mim que eu preciso de tratamento, preciso
de uma psicóloga.
210

Essa noite eu consegui dormir, mas estou desde sábado aérea. Hoje acordei cinco da
manhã e fui correr, mas é como se eu não tivesse feito nada, não senti, de tão extasiada que
eu to.
- Como era sua vida aqui antes?
Muito diferente. Eu era casada, tinha amigos, meu filho, minha família, meu trabalho.
Meu primeiro marido foi dono do espetinho Andrômeda. A mãe dele era chefe no shopping A,
até que o shopping foi vendido para uma administradora carioca, e eu trabalhava com a
minha sogra.
- Você se doou muito na relação.
Eu era muito nova, tinha uma condição de vida boa, estava sempre nos melhores
lugares. Eu sempre quis ter todo mundo perto, você não me via sozinha em lugar nenhum. Eu
estava sempre rodeada de pessoas, era bem querida. Até que eu falei para meu marido que
ele estava bebendo demais, tinha virado alcoólatra. Ele quebrava minhas coisas, meu carro,
o dele. Só que não tinha briga, nada, era um surto psicótico dele. Até que falei ou você para
ou vai embora, ele foi embora. Foi quando conheci esse atual marido, um mês depois. Com
mais um mês eu estava grávida. Para não envergonhar minha mãe eu fui embora para o Rio.
Tranquei minha matrícula, a empresa não aceitava mandou nós dois embora.
Meus amigos hoje nem me conhecem, eu não saio, só vou para o salão e fico com
meus filhos, agora retomei a faculdade. Ele não aceita, constantemente me manda mensagem
e fala para eu ir embora, que meus filhos sentem falta da mãe, e o meu lugar é lá.
- Onde você vê o seu lugar?
Aqui. Ele joga na minha cara que eu escolhi o ap que a gente morava. Foi a mãe dele
quem pagou as prestações do apartamento, e aquilo não é meu. Eu saí e deixei tudo lá, não
faço questão, não saiu em centavo do meu bolso para pagar aquilo.
- Você gosta dele ainda?
Não, é isso que ele não entende, acabou lá atrás... Não gosto mais de tomar um banho
e ir dormir com ele.
Tenho mensagens de sete anos de casados, não sabe porque, mas registrava tudo que
acontecia e mandava para um email que ele não sabia que eu tinha. Tenho certeza de que se
falar que volto para lá ele vem me buscar hoje. E se eu falar que estou namorando ele me
bate e eu consigo um corpo delito. Mas não vou fazer isso.
- Tem comportamento violento na sua família de origem?
Nenhum. Ninguém usa droga, ninguém bebe. Sou a quarta de cinco filhos. Meu pai e
irmãos são marceneiros, outros cabelereiros. A minha mãe é do lar. Minha mãe dentro de
211

casa presenciou ele dar socos na minha cara. Minha irmã faz tratamento com psicólogo pelo
que ela viu eu passar. Eu sentada ele segurando meu cabelo dando socos na minha cara.
- Ele só tem a mãe?
Ele tem uma família muito grande, mas todos com quadro de usuários. Isso tudo fui
descobrindo depois.
- O que você espera de um casamento?
Meu primeiro marido veio de família de comerciantes e eu fiz administração para
poder trabalhar junto com eles. Eles não tinham noção da parte burocrática. Meu marido é
um crianção até hoje, é um moleque que gosta de carro turbinado e estar no meio do pessoal.
Perderam tudo. Eu vivia como uma patricinha. Eles só viviam de imagem, status.
É até ridículo eu falar, mas antes eu tinha medo de passar no campo dos alemães.
Hoje moraria lá numa boa. Eu saí daqui toda maquiada, com o cabelo muito bem feito, desci
na rodoviária do Rio e falei, que calor é esse. Qual é a idade dessa mulher mãe dele. Aquelas
mulheres não vestem roupas, andam de top e chinelo.
Meu sonho era conhecer a favela da rocinha. Fui morar numa comunidade ao lado do
complexo do alemão. No começo quando fiquei assustada me levaram para um condomínio
fechado na casa da avó dele, que era comandado pelas milícias, mas afastado. Até meu filho
nascer eu vinha muito para ca para tentar me acostumar.
- Você não disse não?
Eu percebia, só que minha mãe deixou claro que se eu engravidei agora tenho um
filho. Na minha mente minha mãe não me queria aqui. E ele dizia isso. Meu pai nunca foi lá
saber onde eu morava. Meu pai gostava muito dele porque ele também é uma pessoa
inteligentíssima. Minha mãe não gostava dele, porque gostava do meu ex marido. Eu não
conseguia chegar para ele e falar que não queria morar lá, que queria morar em são Paulo.
Eu não conseguia ficar lá e nem aqui, na casa da minha mãe era complicado, eles não me
aceitavam naquela situação, se eu casei tinha que ficar com o meu marido. Até que quando
meu filho nasceu eu parei de vir para ca, mas fui morar com a minha sogra porque tinha
medo. Até que briguei com meu sogro e ele me expulsou de lá. Eu era revoltada de estar ali.
Meus filhos sempre foram de creche, eu saía para trabalhar cedo e não vivia aquilo. Naquela
época quem tomava conta era o comando vermelho, e era tranquilo. Ele ganhava muito bem
e gastava tudo. A gente não se divertia e eu não sabia para onde ia o dinheiro que ele
ganhava, tinha coisas boas dentro de casa, mas não tinha nem o nosso carro. Até que a dona
desse apartamento o pediu, e Santa Cruz onde ele tinha um terreno era muito longe. Aí
compramos o apartamento e ele me culpa disso até hoje. Foi quando o terceiro comando
212

invadiu e tomou a favela do comando vermelho. Então o que era habitável, não era mais. Eu
estava levando meu pequenininho para a creche e ele batia a mão no fuzil de um. O rapaz
falava po tia, cuida do menor. Eu falava que era passagem das crianças, e eles reclamavam
com meu marido que eu era folgada pra caramba.
- E como era para sua mãe você estar lá?
Na primeira guerra que teve eu estava no telefone com minha mãe. Começou o
tiroteio, eu me joguei debaixo da mesa, todo mundo gritava. Aí ela falou para eu voltar. Mas
ainda assim quando eu vinha para a casa dela, ela meio que não aceita. Aí o meu irmão falou
para eu ir embora.
Eu simplesmente falei ta, e fui aceitando. Eu não podia ir no mercado sozinha, porque
na comunidade não é de uma mulher casada ir no supermercado, é o homem que faz compra.
- Como era sua mãe quando você era criança, vocês tinham uma relação afetiva?
Era mais com meu pai. Ele tinha uma marcearia no Sul de Minas, e chegava em casa
na sexta à noite. A gente foi criado no campo, teve infância. Eu vivi. Eu vi aqueles bairros
serem construídos, eu brincava na terra, eu tinha vida, eu me criei, um construí uma vida.
Quando engravidei falei que teriam que ir na casa da minha mãe contar para ela.
Meus parentes saem do trabalho e se juntam as seis da tarde para tomar café, parece uma
padaria. Eu tinha vida aqui.
- Você teve medo deles?
Era vergonha, não medo. Sempre foram muito perto, unidos, família. Eram a família
do comercial Doriana. Depois que aconteceu isso comigo foram descobrindo outras coisas.
Uma sobrinha engravidou com treze anos. Meu irmão e a filha mais velha se identificaram
gays. Todo mundo tinha medo dos meus pais, são da roça, muito conservadores.
- Você estava querendo provar para a sua família que tinha condição de ficar lá?
Sim. Meu marido falava para eu parar de usar essa máscara, que minha família me
trata como bonequinha, que eu tenho que mostrar que sou mulher. Que eu sou chata, e
aguentou tudo isso de mim, que eu tenho que me tratar.
- Toda chatice do mundo não se compara a você achar que pode morrer todos os dias.
Eu não durmo, lembra do assobio dele chegando em casa e não sabia como ele ia
chegar, se ele ia me bater. Ele perdia a chave e assobiava. Por isso até hoje não durmo. E
penso nisso, no porque precisei passar por isso. Eu tinha um sonho com o primeiro marido de
conhecer o RJ e a favela, não morar ali. O RJ é bom para ir no fim de semana e ir embora no
domingo. Meu cunhado que gosta de lá não precisa do RJ, de nada público. Eu precisava do
hospital e da escola pública.
213

Eva, 33 anos:
Meu ex marido foi morar comigo quando eu engravidei, ele morava com a mãe.
Ficamos juntos um ano. Ele me contou que bebia após já estar morando comigo, ele tinha
problema com bebida e droga, pediu ajuda para isso, mas ficou agressivo toda vez que eu
perguntava disso. Começou a dizer que era culpa minha, e eu foi até procurar tratamento
psiquiátrico porque acreditei que estava fazendo mal a ele.
Ele não me agredia no começo, ele começou esfregando a cara em mim pedindo para
eu bater nele. A primeira vez que fez isso foi quando eu o enfrentei pela primeira vez. Estava
voltando de meu trabalho as 23h e ele estava num churrasco desde as 9h. Perguntei a ele se
tinha bebido e ele disse que não. O amigo disse que sim, que estavam bebendo desde as 9h, e
eu enfrentei dizendo que tinha bebido sim, e ele pediu que eu batesse nele, acho que era para
ele poder bater em mim depois. Depois ele disse que não lembrava de nada e pediu desculpa.
A família dele sempre acreditou nele e não em mim, acreditava na situação distorcida. A mãe
dele ia tirar satisfação comigo por eu bater nele, pois era a versão que ele contava e ela
acreditava.
Nunca contei no psiquiatra que ele usava droga, dai comecei a tomar remédio para
depressão e bipolaridade.
... Até que um dia ele pegou uma faca e ficou me provocando para bater nele com a
faca, e eu joguei a faca no chão. Eu jogava coisas nele nessas brigas, e uma vez joguei uma
latinha que cortou a boca dele. Ele fez BO contra mim dizendo que eu tinha dado socos nele.
- Por que você passou a achar que era a culpa era sua?
Pode ser pelas vezes que eu revidava e jogava as coisas nele.
Desde que ele foi morar comigo passou a me fazer passar vergonhas, me difamava
para minha família. Caí na real agora porque ele me agrediu na frente de todos os amigos
dele, porque eu perguntei se ele estava usando droga.
Comecei a pensar então que o problema nunca fui eu. Que ele era um cara que
distorcia a situação, e eu nunca tive coragem de fazer BO contra ele. Mas agora que ele fez
contra mim vou fazer.
... Os pais dele antigamente bebiam muito. Hoje participam do grupo da igreja, o pai
dele fala que faz vinte anos que ele não bebe, e a mãe dele fala que faz vinte anos que não
fuma, mas fuma escondido. Então eles se defendem para um não entregar o outro.
214

O patrão dele veio me contar que eu mudei ele, que hoje ele tem cabeça erguida e
consegue olhar nos olhos das pessoas, e aí eu fui ganhando força e dando chances a ele.
- A decisão de mudar é dele.
Ele não tomou. Quando ele me conheceu o carro dele e as roupas que ele usava eram
todas largadas, ele tinha dívidas, e melhorou comigo.
Com o meu primeiro marido, eu quis separar dele e ele me ameaçou de morte depois.
Eu fiz BO contra ele e ele implorou que eu tirasse porque deu problema no trabalho dele, ele
queria abrir empresa. Falou que já perdeu a mulher e a filha e ia perder o trabalho. Depois
me arrependi muito, porque ele conseguiu a guarda da minha filha e se tivesse esse BO podia
conseguir reaver a guarda. No começo eu quis que ele ficasse com a filha porque eu não
tinha para onde ir e estava com a minha segunda filha bebê. Mas depois que me estruturei
poderia ter tido a filha de volta. Eu me separei porque descobri uma traição que não queria
aceitar. Ele voltava para casa às seis da manhã dizendo que estava no trabalho, não
participava de nada da família. A mãe dele falava que ele estava me traindo. Descobri depois
que era com a estagiária dele que tinha dezessete anos. Ele gosta de mim até hoje, me pediu a
pensão alimentícia sabendo que eu não podia pagar, eu quase fui presa por isso, ele me
ameaçou tirar o meu nome no registro de maternidade da minha filha, tudo para falar
comigo. Até que eu passei a ignorar essas ameaças e o contato entre a gente acabou.
Minha mãe é alcoólatra, meu tio é usuário de craque. Saí de casa com quatorze anos
para morar com amigas, porque a minha mãe me batia bêbada. Aos dezessete anos meu
primeiro marido que era meu namorado me convidou para morar na casa dele para me
ajudar, junto com os pais dele. Depois de três anos engravidei. Quando tive minha segunda
filha com outro homem estava na época da separação. Ele quis registrar essa minha filha,
mas na primeira discussão que tivemos ele falou para eu calar a boca porque ia assumir essa
bastarda, aí foi a gota d’água eu decidi que ia separar mesmo. Fiz o pai registrar e ele foi
embora para o Nordeste, eu não queria contato porque não sabia o que ele podia fazer com
ela, se ele podia levar ela para longe. Fiquei sozinha e foi a fase mais feliz da minha vida. Ele
não paga pensão para não ter direito sobre ela. Ele tem cinco filhos, cada um com uma
pessoa. Já veio e ficou uma semana com ela, mas não está fazendo falta. A primeira filha tem
treze anos e eu a pego ela todos os finais de semana.
Depois minha filha que mora comigo começou a dizer que depois que este terceiro
homem entrou na minha vida a vida delas ficou um inferno, e sempre moramos só as duas.
Minha filha também contou que ele levou ela nuns predinhos para pegar droga. Pensei que se
não luto por mim tenho que lutar pela minha filha. Ele ficou com raiva de mim e começou a
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me tratar mal. Não me servia com as coisas que fazia em casa para os três, e dava respostas
atravessadas do tipo: você tem mão vai lá e pega. Chamava minha filha de folgada, a menina
de oito anos.
Neste último casamento ficou muito forte o seu desejo de salvar o outro.
Eu gosto muito de ser mãe e fico confundindo um pouco se sou mãe ou mulher. Eu
falava isso para ele, que eu não sabia se era mãe dele.
... Hoje já nem sei mais se quero uma família. Com o primeiro marido fiquei casada
oito anos.
Parei de tomar remédio porque o problema não sou eu. Eu só falava no psiquiatra
que fico nervosa e avanço no marido, mas tive vergonha de contar tudo sobre ele. A ex dele
terminou com ele por causa do uso de drogas também, e ela acabou virando sapatão.
Ele nunca me ajudou, eu sentia até que parecia que ele estava comigo para fazer um
favor a uma mãe solteira. A família dele me chamando de manipuladora porque não queria
que eu fizesse ele parar de beber. Eu era tudo de ruim e ele o anjo da família.

Vilma, 45 anos:
Tanta coisa para falar.. sou casada há 30 anos, tenho que contar tudo?
- Não não, o que você quiser.
Sou muito agredida pelo meu marido, apanho muito também, chega uma hora que não
deu mais. Sábado ele pegou a faca para me matar, só não me matou por causa da minha
filha de três anos, mas eu vi a morte assim... sempre eu apanhava, me deixava roxa, e ele
falava pra mim que se eu dia eu procurasse me defender ele ia me matar mesmo, tou com
muito medo. E a minha filha de 10 anos, é ela que eu acho que precisa de psicólogo. Ela
dorme com a porta trancada, às vezes ela não consegue dormir, mas nunca teve paz na nossa
casa.
- Esses 30 anos foram assim?
Sim, e cada vez vai ficando pior.
- E como começou?
A gente briga mais porque ele não quer que eu trabalhe. Eu sempre quis, mas ele
queria que eu ficasse trancada. E de uns tempos desse para ca eu comecei a reagir. Por que
eu tive depressão, tava a coisa ficando cada vez pior. Ele não quer que eu saia, que eu use
batom, que eu arrume o cabelo, ele quer que eu fique trancada. Então aí eu comecei a ficar
muito triste, minha filha me via triste e falava que vai matar ele, dez anos. Tenho uma de dez
e um de vinte e sete. ... Por mim tudo bem, mas ela ta precisando muito de uma psicóloga,
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não sei se tem de graça ali perto da minha casa.... Ele ta ameaçando direito, eu to com muito
medo.
- É a primeira vez que você vem aqui?
É. A gente vê muito as coisas na televisão né.
- E o que te fez ter coragem?
É porque eu assisto e estou vendo que eu não mereço passar por tudo isso. Ele fala
que eu não tenho capacidade para trabalhar, mas eu vou ter sim. E a psicóloga que me
atendeu há 3 anos atrás que falou: ou você quer essa vida, ou vai ter sua filha doente para o
resto da vida. Eu to fazendo por ela.
Trinta anos, foi bastante tempo. Você vê diferença em você nesse tempo?
Vejo que agora tem reação. Nunca teve reação em mim. Hoje eu saio sem dar
satisfação para ele. Eu não faço nada de errado. Ele conversa com você ele é outra pessoa,
mas dentro de casa ele é totalmente diferente. E eu me acabava, só limpando casa,
arrumando roupa para ele, tantas vezes fui tomar café meia noite para deixar a casa limpa.
Então, isso acabou. Eu quero viver minha vida em paz. Ele nem sabe que estou aqui.
Sei que ele já me traiu, ele tem uma filha de quatro anos, passa a semana fora.
Aconteceu no sábado, que a gente brigamos, a gente não dorme junto já tem uns dez anos.
Dei o quarto para ele e fiquei dormindo no quarto do fundo junto com a pequenininha.
- Você saiu por medo ou pela relação?
Foi porque eu não tinha mais nada com ele. A noite ele não me bate não, só se eu
falar alguma coisa. Agora ele vai lá, mexe na porta.
- Para bater?
Sim, fala que vai me matar, com canivete.
- Foi depois que você saiu do quarto que ele começou a piorar?
Foi. E ele tem uma gaveta na cômoda, esqueceu da chave e eu fui pegar. E eu vi como
se fosse um jornal ele declarando que não me amava, que só estava comigo porque eu
cuidava dele e não quer dividir os bens, mas eu amo você Márcia, não é a Vilma, eu tenho
nojo dela, ela não se cuida. Aquilo mexeu comigo e eu fui perguntar para ele. Aí foi quando
ele pegou a faca para cima de mim. Foi quando meu filho mais velho foi chegando e entrou
no meio. Daí ele soltou a casa e deu uma de bonzinho: eu não vou fazer isso com sua mãe
meu filho. Meu filho foi e chamou a polícia, contou para a polícia que ele sempre fazia isso.
A minha sorte é que ele deixou a chave dele dentro de casa. Aí a polícia chegou e falou para
a gente vir na delegacia da mulher. E ele passa semana fora de casa, eu não tenho marido.
Quando vem traz a bolsa de roupa para eu lavar, meus vizinhos vêm me falar que você não
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merece isso. Eu quero viver minha vida sozinha com a minha filinha, meu filho já vive a vida
dele. Ele ainda ajuda o pai dele que está desempregado.
- Quem sustenta a casa é o seu filho mais velho?
É o meu filho, a gente falou isso para a polícia. Ele não compra nada para lá. Meu
filho que paga tudo.
Muita gente me fala que pela sua idade não vão pegar você. Eu limpo banheiro, faço
qualquer coisa, eu quero um trabalho. Meu filho vai pagar as contas dele, não a minha.
- Então você acreditando em você.
Firme. Porque trinta anos Marcella, o amor acaba. O amor é como se fosse uma flor,
se você rega ela vai ficar bonita, mas se você não rega ela vai ficar feia não vai? Quando eu
tive minha filha eu queria uma filha, mas já tinha acabado. Ele tem duas casas, tem um
carro, por que ele não sai de casa? Quando eu vivo desse jeito me acabando, limpando,
minha casa é grande. Eu sou mulher, sou um ser humano, não preciso dele, não vai mudar
nada, ele nunca me deu nada. Então to com muita raiva dele, não quero isso. Se ele fosse
uma pessoa que não me maltratasse. O pai dele batia na mãe dele, até os cunhados dele bate
na mãe dele, isso é bem familiar.
- E na sua família?
Não, graças a Deus. Quando fui para casar com treze anos, ele foi meu primeiro
namorado, meu primeiro homem. Meu pai falava para mim que não concordava com aquele
casamento, e eu nem liguei. Hoje meu pai fala para mim que eu vou ter que viver o que casei.
Meu filho está passando mal e o médico falou para ele que é preocupação. E eu quero que
ele saia de casa, se ele tem outra casa porque ele não vai morar lá? Eu cuido dele direitinho,
ele não lava uma louça para mim. Minha filha faz natação, ele ta desempregado e não leva,
eu que levo.
- E essa fala do seu pai que tem que ser assim mesmo?
Era. Hoje não é mais. Tenho um corte na cabeça que ele que fez...
- Ele bate em vocês duas, no menino não?
No meu filho não, porque meu filho é bem grandão, ele não é besta.
- É covarde?
É covarde mesmo. Ele falou para a polícia que é porque ele está desempregado que
ele faz isso. Eu falei que não, que há muito tempo que ele faz isso. Eu sempre tive um monte
de roxo, agora ele está ameaçando com faca.... Eu queria que ele ficasse longe de casa, não é
preso também.

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