Internal Colonialism and Neoliberal Coloniality in The Amazon
Internal Colonialism and Neoliberal Coloniality in The Amazon
53660/CLM-1769-23M10
Mayane Bento
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1800-7548
Universidade do Estado do Pará, Brasil
E-mail: [email protected]
ABSTRACT
The objective of this paper is to analyze how the economic policies of the Brazilian Business-Military
Dictatorship imposed in the Amazon were responsible for consolidating a dynamic of internal colonialism
whose legacies are expressed in the perpetuation of social conflicts, environmental degradation and
socioeconomic and regional inequality. As a result, I propose to reflect on the characteristics of the
contemporary relationship of the Brazilian State with the Amazon as a relationship of internal coloniality,
linked to neoliberal coloniality.
.
Keywords: Amazon; Business-Military Dictatorship; Coloniality; Neoliberalism.
RESUMO
O objetivo deste trabalho é analisar como as políticas econômicas da Ditadura Empresarial-Militar
brasileira impostas na Amazônia foram responsáveis por consolidar uma dinâmica de colonialismo interno
cujas heranças se expressam na perpetuação de conflitos sociais, degradação ambiental e desigualdade
socioeconômica e regional. Como resultado proponho refletir as características da relação contemporânea
do Estado brasileiro com a Amazônia como uma relação de colonialidade interna, vinculada à colonialidade
neoliberal.
Palavras-chave: Amazônia; Ditadura Empresarial-Militar; Colonialidade; Neoliberalismo.
INTRODUÇÃO
1
Para tanto ver Dreifuss (1981); Mathis e Farias Filho (2008) e; Farias Filho e Souza (2013).
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e do crescimento do capitalismo global. Por isso, para o coletivo Modernidade Colonialidade não
há que se falar em modernidade sem colonialismo e colonialidade.
Para Lugones (2008) o colonialismo não se materializou pela capacidade de conquista
do colonizador, nem em função dos poderes econômicos e políticos inferiores do colonizado, mas
antes, pela consolidação do discurso que considera o outro não europeu em estágio anterior da
história humana, entendida como unidimensional, atribuindo-lhe o adjetivo “primitivo”. É dessa
hierarquização social, fruto da ficção da “raça”, que então é criada, por vias de exploração, a
instituição da colonização (LUGONES, 2008). E a hegemonia da razão moderna e do capitalismo
são frutos dessa dinâmica.
O colonialismo foi, portanto, um sistema de controle, cuja dominação/exploração forjou
práticas discursivas específicas de subalternização violenta e autoritária dos povos que aqui
viviam, em quatro domínios: “(1º) através do controle da economia: impondo um sistema de posse
e cumulação (2º) da autoridade: impondo um modelo de organização social (3º) do gênero e da
sexualidade: impondo a heteronomatividade e o patriarcalismo como padrão (4º) do
conhecimento e da subjetividade: impondo como verdade apenas os dogmas e formas de
conhecimento europeus (MIGNOLO, 2017, p. 5).
No que tange ao colonialismo na América, este não inventou a escravidão, que há
tempos era usada como punição aos sobreviventes derrotados em guerra. A inovação, a partir de
1492, foi a escravidão racializada, posto que desde os primeiros contatos com a América a ideia
de raça foi produzida “para dar sentido à novas relações entre índios e ibéricos” (QUIJANO,
2005a, p. 18).
No mundo conquistado não existiriam mais Maias, Incas, Astecas, substituídos pela
identidade racial e colonial “índio”. Da mesma forma, dos sequestrados e arrastados para a
América, Ashantis, Zulus, Bacongos, Iorubas e outros, foram todos racializados como “negros”.
Estes, que mais tarde foram chamados de “africanos” eram uma cor conhecida desde os romanos,
sem que a ideia de raça fosse estabelecida como legitimadora da opressão. Essa nova identidade
histórica e geocultural que hierarquizou “brancos”, “índios”, “negros” e “mestiços” representa
para Quijano (2005b) a primeira classificação social global da história. Produzida na América e
mais tarde estendida a todos os membros da espécie, acrescentando-se os “amarelos”, “oliváceos”
e configurando-se em uma geografia do poder que conformou Europa, Europa Ocidental, Oriente,
Oriente próximo, África, Ásia, América etc.
Do mesmo modo, o colonialismo não fundou todas as formas de opressão. O padrão de
ordem social patriarcal, vertical e autoritário já era portado pelo conquistador ibérico. Conforme
tal, todo homem era superior a mulher, porquanto, toda mulher (ameríndia, negra ou mestiça), na
América, era colonizada duplamente (SANTOS, 2004). Também a divisão social do trabalho, em
marcha na Europa, não foi fruto do colonialismo, mas reestruturada conforme a lógica racial.
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O que o contato com a América inaugurou foi a articulação dos eixos centrais de
dominação da modernidade, conformados na relação colonial: raça, gênero e trabalho
(QUIJANO, 2010). A articulação entre esses elementos de classificação possuía dois propósitos
centrais: controle de produção de recursos e o controle da reprodução da espécie. O primeiro,
visava o controle da força de trabalho e dos recursos que institucionalizam a propriedade. O
segundo controla o sexo e seus produtos (descendência e prazer), também em função da
propriedade (QUIJANO, 2010). A raça apresenta-se como invenção para dominação, e na medida
que foi incorporada em função de ambos os propósitos (controle da produção e reprodução), a
autoridade foi organizada para garanti-la. Nesse contexto, a divisão social do trabalho foi na
verdade a divisão racial da população:
[...] os “negros” eram, por definição, escravos; os “índios”, servos. Os não-
índios e não-negros eram amos, patrões, administradores da autoridade
pública, donos dos benefícios comerciais, senhores no controle do poder. E,
naturalmente, em especial desde meados do século XVIII, entre os “mestiços”
era precisamente a “cor”, o matiz da “cor”, o que definia o lugar de cada
indivíduo ou cada grupo na divisão social do trabalho (QUIJANO, 2005a, p.
20).
No topo da hierarquia derivada do colonialismo, habitava o homem
heterossexual/branco/patriarcal/cristão/militar/capitalista/europeu e neste ínterim, o Sistema-
Mundo conformou-se como um todo histórico-estrutural-heterogêneo dotado de uma matriz de
poder colonial, e mais adiante, toda esta articulação heterogênea, conflitiva e descontínua, se
coadunou sob o primado do “Estado-nación”, “la familia burguesa”, la “racionalidad moderna”
(QUIJANO, 2014, p. 292). A caracterização desse momento histórico de exploração foi
sintetizada pela categoria “colonialidade” que é ao mesmo tempo lógica fundacional e herança da
matriz colonial de poder (QUIJANO, 1992).
Quijano (1992) desenvolveu essa compreensão, concebendo que o colonialismo
enquanto dominação política, cultural e social direta se encerrou formalmente na América no
século XIX. A colonialidade do poder, por sua vez, entendida como matriz de dominação,
perpetuou-se nas dinâmicas sociais do capitalismo e do Estado-nação na América, mas também
na África e na Ásia. Para Mignolo (2017) a colonialidade é o constitutivo mais obscuro e lógica
subjacente de modernidade.
A colonialidade não esgota, “obviamente, as condições nem as formas de exploração e
dominação existentes entre as pessoas. Mas não parou de ser, há 500 anos, seu marco principal”
(QUIJANO, 1992, p. 4). No cerne dessa lógica de transição do colonialismo formal à perpetuação
da colonialidade está a noção de que o “processo histórico da mudança não consiste na
transformação de uma totalidade histórica noutra equivalente, ou por saltos e rupturas”
(QUIJANO, 2010, p; 95).
Ou seja, ainda que a compreensão das dinâmicas de exploração modernas não possa
desconsiderar as heranças dos séculos de colonialismo e suas instituições, a mudança da
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origina-se desde as resistências coloniais. “En segundo lugar, [es] un proyecto de transformación
sistemática y global de las presuposiciones e implicaciones de la modernidad, asumido por una
variedad de sujetos en diálogo” (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 160).
Posto que dentro da lógica eurocêntrica só seria possível falar em multiculturalismo ou
direito a diferença, quando todos estivessem domesticados pelo capitalismo, o termo
decolonialidade é pensado como um projeto de resistência teórico-política, uma alternativa de
fronteira e uma resposta transmoderna à modernidade ocidental. (MALDONADO-TORRES,
2007).
COLONIALIDADE E COLONIALISMO INTERNO
desigualdade. Essa desigualdade não é passageira, não é uma etapa do progresso, é herança e
perpetuação da hierarquização social e subalternização, é projeto da lógica de acumulação que
violenta, empobrece, discrimina e exclui outras formas e sistemas de vida, que a despeito de tudo,
resistem. so, como alerta Santos (2004, p. 28) “devem ser consideradas ilusórias
COLONIALISMO INTERNO NA AMAZÔNIA NO PERÍODO DA DITADURA
EMPRESARIAL-MILITAR BRASILEIRA
Como nos lembra Wallerstein (2001) o mundo capitalista é que sempre buscou os
produtos das regiões externas a ele, não o contrário. E para a elite orgânica2 que subsidiava o
poder do Estado autoritário brasileiro em 1964, a Amazônia representava uma fronteira de
recursos a ser explorada. O discurso carregava consigo binômio do desenvolvimento e garantia
da segurança nacional, mas impôs uma modernização-conservadora pensada pela elite no poder,
interessada nos recursos naturais e na mão-de-obra de baixo custo (DREIFUSS, 1987;
LOUREIRO, 2002).
Ainda conforme essa mentalidade, o habitante da Amazônia era deslegitimado em sua
cosmologia, tradições e formas de relação com a floresta. Os povos da tradição, no quadro da
imposição da mentalidade dual homem/natureza eurocentrada, se apresentavam como maior
obstáculo para o uso da terra e a industrialização (SIMONIAN; SILVA; BAPTISTA, 2015;
LACERDA; VIEIRA, 2015; SANTOS, 2016). Para o regime militar, a floresta amazônica só
possuía valor quando derrubada, como demonstrou o uso legal do conceito de terra-nua (VTN)
do qual se fez uso para venda de terras cheias de biodiversidade a preços irrisórios, a fim de
incentivar a ocupação e o deflorestamento (LOUREIRO, 2014).
Assim como os portugueses, que após a conquista aguardaram alguns anos para iniciar
o processo exploração do Brasil, após o golpe militar, foi apenas em 1966 que o programa de
políticas públicas intitulado ‘Operação Amazônia’ reformulou as precedentes medidas de
intervenção na região.
No que tange às medidas burocráticas, cabe destacar que a Superintendência do Plano
de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA) foi convertida em Superintendência do
Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) e o Banco de Crédito da Amazônia (BCA) em Banco
da Amazônia (BASA), com a finalidade de gerir e financiar os projetos de colonização. E a lei nº
2
[...] se não todos os empresários, tecno-empresários intelectuais, burocratas e militares, “pelo menos uma
elite entre eles” deverá ter a capacidade de articular e organizar os seus interesses num projeto de Estado
para si e para a sociedade. E isto será feito, com a consciência de que seus “próprios interesses corporativos,
no seu presente e no seu futuro desenvolvimento, transcendem os limites corporativos de classe puramente
econômica” e tanto podem como devem “transformar-se em interesses de outros grupos subordinados”.
Estas elites são as que denominamos de elites orgânicas: agentes coletivos político-ideológicos
especializados no planejamento estratégico e na implementação da ação política de classe, através de cuja
ação se exerce o poder de classe (DERIFUSS, 1987, p. 24).
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5.174 estendeu os incentivos fiscais industriais, existentes desde 1953, aos empreendimentos
agropecuários
Em termos simbólicos, em dezembro de 1966 o Presidente Castelo Branco desceu o rio
Amazonas no navio Rosa da Fonseca, no sentido Manaus-Belém e lá celebrou a 1ª Reunião de
Investidores da Amazônia. A elite local ficou extasiada com o renascimento da Amazônia,
enquanto o presidente, apresentava como de interesse nacional às oportunidades de lucro fácil aos
capitalistas de fora da região. Na exaltação da racionalidade do planejamento econômico, em
nenhum momento esses projetos apareceram como sendo “financiados pelas classes
subordinadas, posto que são incentivos e subsídios governamentais” (LOUREIRO, 2014, p. 70).
A SUDAM elaborou o 1º Plano Quinquenal de Desenvolvimento da Amazônia (1967-
1971) e em 1967 foi criada da Zona Franca de Manaus, administrada pela Superintendência da
Zona Franca (SUFRAMA) (RIBEIRO, 2006). Também em decorrência da Operação Amazônia,
em 1966 foi criado o Instituto de Desenvolvimento Econômico-Social do Pará (IDESP), que
inicialmente foi marcado por certa divergência entre as pretensões da tecnoburocracia regional e
o Governo Federal. Enquanto os militares discursavam para atrair maciços capitais, a elite
regional, em seus trabalhos técnicos, versava sobre atividades passiveis de exploração pelo capital
médio: madeira, mandioca, pecuária de corte, transporte, pimenta do reino, turismo etc.
(LOREIRO, 2014). Porém, isso era inviável para os interesses industriais que sustentaram o golpe
militar.
Para expansão do agronegócio, o Estado autoritário, em seu “planejamento de
ocupação”, adotou como prática permanente negligenciar a existência de grupos autóctones e
migrantes que já haviam incorporado inúmeras benfeitorias às terras que ocupavam na Amazônia.
O valor da terra-nua, garantiu que a negociação de terras fosse praticamente uma doação,
desconsiderando a floresta natural e o valor das benfeitorias existentes. A SUDAM negou
qualquer responsabilidade em constatar a existência de posseiros na região, atribuindo a
responsabilidade aos órgãos regionais que adotaram a prática comum, nas décadas de 1960, 70 e
80, de venda de uma mesma propriedade para compradores diferentes, gerando o descontrole dos
registros do Sistema Nacional de Cadastro Rural, a concentração fundiária e os conflitos no
campo, que se perpetuam-se na atualidade como herança dessa colonização interna da Amazônia
(IPAM, 2006; LOUREIRO, 2014).
O que se teve como resultado imediato da abertura econômica da Amazônia foi a
falência das pequenas industriais locais devido à concorrência com as do Centro-Sul do país. Esse
cenário foi agravado pela marcha de industrialização pesada, que se efetivou de forma
oligopolizada e com predominância de capital estrangeiro. Do total de investimentos para a
Amazônia, até 1975, a prioridade foram os equipamentos elétricos, mecânicos, de áudio, ótica
etc. Em nada beneficiou-se o consumo médio regional. Com a falência das empresas, criou-se
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mais um gatilho de transformação regional, que garantiu a extensão de isenções fiscais ao setor
do agronegócio (COSTA, 2012; BECKER, 1982).
Ainda em 1970, na gestão Médici, o decreto-lei 1.106 criou o Programa de Integração
Nacional (PIN), e estabeleceu como primeira etapa de suas metas a construção das rodovias
Transamazônica e Santarém-Cuiabá – sucedidas pelas Perimetral Norte, Porto Velho-Manaus e a
São Paulo-Cuiabá-Porto Velho. Para tanto, o Governo usou para os fins da reforma agrária 10 km
de cada margem de estada das unidades federadas da Amazônia Legal. Essa medida gerou o que
ficou conhecido como Polígono desapropriado de Altamira, no Pará. Foram expropriados do
estado 64 mil km² de terras, a “maior desapropriação de terras jamais efetuada por um estado
capitalista” (LOUREIRO, 2014, p. 152). Ainda que tenha aberto a região para novas pessoas,
mercadorias e informações, o impacto desses eixos de penetração sobre a região também foi
violento, principalmente pela rapidez com que se faz a penetração da “inovação” (BECKER,
1982, p. 67).
O programa também converteu o Instituto Brasileiro de Reforma Agraria (IBRI), no
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), então responsável pelos Projetos
Integrados de Colonização (PIC) e Projetos de Assentamento Dirigido (PAD), desapropriando
mais 6,4 milhões de hectares, somente no estado do Pará. As unidades familiares assentadas, eram
provenientes do Nordeste e Sul do país, estimuladas a deixarem suas terras para que a expansão
agroindustrial que ‘irrigaria o Nordeste’ e ‘mecanizaria a produção ao Sul’, subsidiados pelo
governo, não encontrasse maiores problemas e resistências populares. Essa estratégia foi vendida
sob o lema que marcou a década de 1970: “homens sem-terra (do Nordeste e Centro-Sul) para
terras sem homens (da Amazônia)” (LOUREIRO, 2014, p.155).
Em 1971 a repressão se estendeu. O decreto-lei nº 1.164 permitiu à União retirar dos
estados amazônicos o poder de jurisdição sobre as terras devolutas nas faixas de 100 km marginais
das rodovias federais. Foi mais um decreto-confisco. Mediante esse decreto, apoiado em
dispositivos da carta constitucional, a federalização do território foi apontada como uma questão
de segurança e desenvolvimento nacional. Foi a forma encontrada pelo governo para, em vez de
rever o modelo, acelerar o processo de ocupação e acumulação do capital, em resposta aos
conflitos prementes. O Pará foi o estado mais penalizado por essas medidas. Isso porque sua
geografia já o divide naturalmente, seja pelos grandes rios que o cortam e ou pelas estradas - em
maior número que nos demais estados amazônicos. A federalização acentuava ainda mais essa
fragmentação (LOUREIRO, 2014).
Além da motivação econômica, a pressa na ocupação “justificou-se também pelo temor
do surgimento de movimentos de guerrilha rural de base camponesa na região, de que se
começava a ter notícias a partir dos anos primeiros da década de 1970” (LOUREIRO, 2014, p.
125).
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aprovação do Projeto de Lei 191/2020, que regulamenta a exploração mineral e garimpeira nas
terras indígenas (BENTO, COLARES, NUNES, 2022).
Em continuidade à cronologia, o II PND marcou uma nova etapa no esforço de
colonização da Amazônia. Essa fase de Grandes Projetos, iniciada em 1980, compreendia, em
essência, a potencialização de grandes empreendimentos propostos pelo Governo Federal,
implementados com a parceria estrangeira. Em 1988, 29 empreendimentos já haviam sido
implementados. Além do enorme potencial mineral, o Projeto Grande Carajás parecia estratégico,
pelo conjunto de vantagens comparativas derivadas da grande massa florestal, útil para fabricação
de carvão, o insumo básico da produção de ferro gusa, no entanto representou de forma mais
ampla uma transferência da atividade extrativa/energética dos grandes centros econômicos para
periferias como o Brasil. O Banco Mundial foi um grande encorajador e planejador do projeto. E
o conjunto de empreendimentos recebem até hoje, isenções fiscais (LOUREIRO, 2014). Já as
carvoarias, hoje, são objeto de sérias denúncias de trabalho escravo na Amazônia.
É importante notar que a capacidade de implementação dos grandes projetos, a essa
altura dos anos 1980, derivava da disponibilidade de petrodólares, ou seja, agravavam o quadro
de endividamento externo do país. Ainda que o Brasil comportasse o oitavo parque industrial do
mundo, sob a crescente hegemonia do capital financeiro, a desnacionalização e desregulação da
economia trouxe como principal resultado uma crise econômica e social na qual o Brasil foi
inserido pelo regime empresarial-militar (FILGUEIRAS et al, 2010).
Nos últimos anos do regime empresarial-militar, em função da crise que se desvelava,
o III Plano Nacional de Desenvolvimento foi seriamente afetado pelos cortes de financiamento
público e não conseguiu alcançar os objetivos propostos pelo governo. Sudam e Sudene foram
paulatinamente sendo esvaziadas de suas atividades, quando ainda em “1980, o governo
demandou uma desvalorização do cruzeiro frente ao dólar na ordem de 30%”, como forma de
potencializar as exportações para fins de pagamento do endividamento externo (PONTE, 2010,
p. 133). A Amazônia brasileira seguia permeada por novos colonos, fazendeiros, grileiros e
grandes empresas fruto de grandes projetos, integrando-se à economia brasileira como
fornecedora de matéria-prima à divisão internacional do trabalho.
Nos anos finais do regime militar até a transição para a redemocratização, a Amazônia
perdeu 10,5% de sua cobertura vegetal. No estado do Pará (1970-1991) a perda foi de 13% da
2 2
cobertura vegetal. Em 1970 havia 65,9 mil km desmatados, em 1991 a área já era de 146 mil km
(FEARNSIDE, 1995).
Souza (2016) constata que não foi no período colonial que a América Latina se tornou
significativamente mais desigual que os países desenvolvidos, essa peculiaridade ocorreu no
século XX. Tal qual na Amazônia, a crescente perda de nivelamento social foi promovida por
modelos econômicos impostos, foram efeitos imediatos das investidas de controle sobre a
economia, a autoridade e a natureza.
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O fim do colonialismo formal não significou o fim das relações de poder coloniais. A
literatura afirma que, no pós-independências, o mundo moderno inseriu-se em uma dinâmica de
colonialidade que se vincula intrinsecamente à acumulação capitalista. Da mesma forma, o fim
do regime empresarial-militar brasileiro que concretizou a relação de colonialismo interno com a
Amazônia, não a tornou livre da exploração, em verdade integrou-a, ainda que de forma truncada,
à economia nacional e ao capitalismo globalizado, rearticulou os eixos de exploração nos moldes
de uma colonialidade interna diretamente vinculada a colonialidade/modernidade capitalista, que
consolidou, aos finais do século XX, a hegemonia da economia neoliberal. E é esta nova fase que
podemos denominar colonialidade de caráter neoliberal.
O vínculo entre a colonialidade interna - que baliza a relação contemporânea do Estado
brasileiro com a Amazônia – e a colonialidade neoliberal se dá primordialmente pela atuação da
elite orgânica. Composta por empresários, técnicos e políticos que Dreifuss (1987, p. 24) resume
como “agentes coletivos político-ideológicos especializados no planejamento estratégico e na
implementação da ação política de classe” e cujo empenho é transformar seus interesses
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3
Ver: Maristella Svampa (2019).
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na Amazônia, ao mesmo tempo em que convive com as velhas formas de exploração. Em uma
perspectiva crítica e realista acerca da região, Gonçalves (2017, p.20) argumenta que:
Sob esse magma de significações imaginárias que funda a sociedade
capitalista moderno-colonial, cabe à Amazônia a condição de estar a
serviço dos desígnios das relações de poder e das visões de acumulação
de capital e do desenvolvimento de suas forças produtivas com a função
de supridora de recursos naturais, como a geopolítica do sistema mundo
capitalista moderno-colonial impõe aos
continentes/países/regiões/lugares coloniais, sobretudo aos
grupos/classes sociais em situação de subalternização nessas diferentes
escalas. Esse é o pano de fundo sobre o qual uma nova (nova?) chave de
leitura é imposta, mais uma vez de fora, desde finais dos anos 1960 e,
sobretudo, desde os anos 1970: a chave ecológica. Essa nova (?) chave de
leitura se aproxima de velhas perspectivas conservacionistas, com fortes
raízes nos EEUU, que busca a criação de áreas protegidas seja em função
de seu valor científico e/ou estético (parques nacionais, reservas
biológicas etc.) que tem na UICN (União Internacional de Conservação da
Natureza) sua principal instituição internacional, mas também pelas
oportunidades de ser transformada em novas commoditties da economia
verde pelo capital financeiro. Essa nova (nova?) chave de leitura tem nos
capitais das novas indústrias ligadas à engenharia genética e de novos
materiais um de seus suportes e, mais recentemente, reinventada pelo
capital financeiro. De certa forma, esses novos setores do capital
industrial têm uma relação diferente com as fontes de matéria-prima, por
sua valorização do material genético (biodiversidade, germoplasma), ao
contrário dos setores tradicionais, que põem a floresta abaixo, agora para
o avanço da pecuária, para qualquer monocultura. E, mais recentemente,
pelo capital financeiro com sua enorme avidez para inventar mercadorias
fictícias que só existem para ampliar a circulação-acumulação de uma
economia especulativa, como o mercado de carbono e seus bônus e ônus.
(GONÇALVES, 2017, p.20).
Diante dessa reflexão é possível notar que, no ideal do cidadão moderno, a natureza,
que antes representava apenas um estoque de recursos – por muitas vezes entendida como
empecilho a ocupação e ao desenvolvimento – precisou da tecnologia, da economia verde, e da
difusão de termos como o do desenvolvimento sustentável, para ter seu valor existencial
reconhecido pelo mercado, e com ela, a importância se estendeu às comunidades tradicionais, que
passaram a adquirir a função de guardiões do que poderá, mais tarde, ser apropriado pela
biotecnologia, engenharia genética etc.
Essa lógica sinaliza que a destruição da diversidade biológica, da fauna e da flora
regional só será repensada, ainda que parcialmente, pela política nacional e internacional, quando
a natureza se converter, conforme a mentalidade privatista e individualista eurocêntrica, em
reserva de recursos para a nova fase do capitalismo. E os intermediários desse saque premeditado,
podem vir a ser justamente, como mostra a história, a elite local articulada aos interesses
econômicos transnacionais.
Escobar (1995) denominou de pós-moderna, essa nova fase de capitalização da
natureza, mais adequada aos avanços tecnológicos e que impõe um duplo desafio aos movimentos
de resistência: construir formas alternativas de produção ao mesmo tempo que resistem a essa
dominação simbiótica da natureza.
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Nesses termos, estaremos mais próximos de sair do maniqueísmo que antagoniza ciência e
tradição, rumo a um conhecimento completo, que não renuncie aos rigores metodológicos, mas
que não se limite à monocultura disciplinar e a estratégias descontextualizadas.
Esses esforços possuem como finalidade pôr em prática ações e decisões balizadas na
interculturalidade, mas esta não se reduz a um movimento funcional ao sistema de mercado, útil
para dirimir conflitos e vender produtos “verdes”. A interculturalidade é um projeto, um processo
a se construir, que precisa envolver a guinada econômica, social e epistêmica dos povos (WALSH,
2012).
Retomando a ideia primeira deste trabalho, quando ouvimos falar em crise ambiental, é
importante ter em mente que ela é fruto da incapacidade da modernidade/colonialidade de criar
mundos sustentáveis. Fruto de uma separação dicotômica entre homem/natureza,
civilização/outros. É a própria expressão da contradição do capital e da hierarquização social
colonial.
Para tanto, o pensamento ecológico e transmoderno implica em crítica à falácia
desenvolvimentista, na luta em prol das multiplicidades culturais, econômicas e ecológicas,
vincula-se à preocupação epistemológica que busca o respeito ao modo de pensar e as
especificidades de povos baseados no lugar (ESCOBAR, 2010). Partindo desses pressupostos,
qualquer que seja a teoria ou projeto de desenvolvimento socioespacial aplicados a regiões como
a Amazônia, eles não podem furtar-se de ser politicamente situados, abertos e interculturais
(SOUZA, 1997).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
de reserva de capital natural, que entre seus beneficiários inclui elites econômicas extrativistas
locais, atores nacionais e mercados internacionais. Nesses moldes, as desigualdades regionais
brasileiras sinalizam que a integração da Amazônia à economia nacional e internacional, serviu
antes para perpetuar uma colonialidade interna no âmbito da colonialidade neoliberal.
Na base, o fator determinante desse processo segue sendo a lógica da racionalidade
eurocêntrica e capitalista, que monolítica, captura ciência e modos de vida para uma finalidade
utilitarista, individualista, de acumulação privativa do trabalho, da natureza e da própria vida. E
para isso, dissemina a tese de povos atrasados, primitivos e desprovidos de racionalidades
legítimas, violentando a todos que divergem desse padrão de apropriação do mundo.
Decorre, no entanto, que esta razão, incapaz de viver em harmonia com a terra e os
recursos disponíveis, tem avançado à revelia de si mesma e levado à implosão da própria
hegemonia e da democracia ocidental. O desafio em decoloniazar a Amazônia, e as periferias que
seguem nas amarras da colonialidade neoliberal, está em justamente conceber que esse modelo é
parte do projeto de hegemonia da razão utilitarista do mercado neoliberal, quer siga sendo
perpetuado pelos interesses do ocidente em declínio ou asiáticos em ascensão.
Por isso, os movimentos e conflitos sociais subestatais, fruto da colonialidade, do
colonialismo interno e dessa sociabilidade colonial, precisam existir, resistir e de capacidade de
articulação e de agência global, como forma de ganharem força e visibilidade.
Esse espaço supra e intraestatal precisa ser alcançado para uma co-realização de
solidariedade de diversas etnias, diversas classes, que reintegre humanidade/terra, culturas do
mundo periférico, não como anulação ou homogeneização, mas por incorporação partindo da
Alteridade (DUSSEL, 2005), da ecologia de saberes (SANTOS, 2004) e da socialização do poder,
ou seja, a ação de “la devolución a las gentes mismas, de modo directo e inmediato, del control
de las instancias básicas de su existencia social: trabajo, sexo, subjetividad, autoridade”
(QUIJANO, 2014, p. 325).
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REFERÊNCIAS
LOUREIRO, V. R. Amazônia: estado, homem, natureza. 3º. ed. Belém: Cultura Brasil,
2014.
SANTOS, B. D. S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia
de saberes. In: SANTOS, B. D.; MENESES, M. P. Epstemologias do Sul. Coimbra:
Almedina, 2009. p. 23-72.