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Violência Contra A Mulher Onde Começa e Quando Termina

Este estudo qualitativo investigou o impacto da violência na vida de mulheres que sofreram agressões de ex-companheiros, revelando a complexidade e a dinâmica da violência de gênero. A pesquisa destacou a importância de redes de apoio e a necessidade de intervenções preventivas, além de evidenciar que, apesar dos avanços legais, a proteção das vítimas ainda é insuficiente. Os resultados foram organizados em três categorias: a dinâmica da violência, a busca por ajuda e o impacto na vida das mulheres.
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Violência Contra A Mulher Onde Começa e Quando Termina

Este estudo qualitativo investigou o impacto da violência na vida de mulheres que sofreram agressões de ex-companheiros, revelando a complexidade e a dinâmica da violência de gênero. A pesquisa destacou a importância de redes de apoio e a necessidade de intervenções preventivas, além de evidenciar que, apesar dos avanços legais, a proteção das vítimas ainda é insuficiente. Os resultados foram organizados em três categorias: a dinâmica da violência, a busca por ajuda e o impacto na vida das mulheres.
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Violência Contra a Mulher: Onde Começa e Quando Termina?

Jéssica Medtler1
Sabrina Daiana Cúnico2

Resumo

Este estudo qualitativo objetivou compreender o impacto da violência na perspectiva de mulheres que
sofreram agressão. Participaram do estudo quatro mulheres, de 50 a 55 anos, que sofreram agressões
do ex-companheiro e foram atendidas em um Centro de Atenção Psicossocial da Região Metropolitana
de Porto Alegre/RS. A produção dos dados se deu por meio de entrevistas semiestruturadas, sendo a
análise realizada por meio da análise de conteúdo. Os resultados são discutidos e apresentados a partir
de três categorias: “A dinâmica da violência contra a mulher em suas múltiplas faces”, “Rede de apoio
e busca por ajuda” e “A violência e seu impacto na vida das mulheres”. Conclui-se que apesar dos
avanços legais alcançados, ainda há muito o que se discutir sobre o atendimento e a proteção efetiva
das vítimas. Além disso, há necessidade de intervenções anteriores à instauração da violência,
buscando o entendimento desse fenômeno como social e não individual.
Palavras-chave: gênero, violência contra a mulher, saúde mental, psicologia

The Complexity of Violence Against Women: An Empirical Study

Abstract

This qualitative study aimed to understand the impact of violence from the perspective of women who
have suffered aggression. Four women, aged 50 to 55 years old, who have suffered violence from their
ex-partners and have been treated at a Psychosocial Care Center in the Metropolitan Region of Porto
Alegre / RS, participated in the study. The production of the data took place through semi-structured
interviews, which data analysis took place through content analysis. The results were discussed and
presented from three categories: "The dynamics of violence against women in its multiple facets",
"Support network and search for help" and "Violence and its impact on women's lives." The conclusion
is that, despite the legal advances achieved, there is still much to be discussed about the care and
adequate protection of victims. Besides, there is a need for interventions before violence occurs, seeking
to understand this phenomenon as social and not individual.
Keywords: gender, violence against women, mental health, psychology

A violência contra a mulher é um fenômeno de conceituação complexa e multicausal, cuja


compreensão atravessa uma trama de aspectos religiosos, sociais, culturais e econômicos. Mostra-se
como um fenômeno persistente na atualidade, promovendo danos que afetam de modo significativo a

1
Acadêmica de Psicologia da Universidade Feevale.
2
Doutora em Psicologia (PUCRS) e professora da Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Feevale.

198
Pensando Famílias, 26(1), jul. 2022, (198-213).
Violência Contra a Mulher: Onde Começa e Quando Termina? - J. Medtler, S. D. Cúnico

saúde das mulheres, gerando prejuízos e preocupação para com as políticas públicas e setores de
apoio (Assis et al. 2010).
No Brasil, a primeira medida efetiva de mudança desse cenário ocorreu no ano de 2006 com a
implementação da Lei nº 11.340/06, também conhecida como Lei Maria da Penha. A lei prevê a criação
de equipamentos indispensáveis à sua efetividade como Delegacias Especializadas de Atendimento à
Mulher, Centros de Referência da Mulher, Casas Abrigo, entre outros. Em seu Art. 7º define-se as
formas de violência doméstica e familiar contra a mulher como: física, psicológica, sexual, patrimonial
e moral (Brasil, 2006).
A partir da vigência da Lei Maria da Penha, a violência deixou de ser uma questão familiar e passou
a ser tratada como responsabilidade do Estado, indo contra a máxima “em briga de marido e mulher
não se mete a colher”. Outra legislação importante que busca coibir e punir os casos envolvendo a
violência contra a mulher é a Lei nº 13.104/15, conhecida como a Lei do Feminicídio, a qual alterou o
Código Penal, prevendo o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio e
incluindo o feminicídio no rol dos crimes hediondos. É entendido como feminicídio o crime que foi
praticado contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, considerando tanto a violência
doméstica e familiar quanto o menosprezo ou discriminação à condição de mulher (Brasil, 2015).
Apesar da legislação avançada, existem números alarmantes acerca dos casos de violência em
território brasileiro, como pode ser visto através do Sistema de Informação de Agravos de Notificação
– SINAN. Só no ano de 2016, registrou-se 182.287 casos de violência contra a mulher no âmbito da
saúde, predominando violência física (101.218 registros), violência psicológica ou moral (50.955
registros), violência sexual (27.059 registros) e violência financeira ou patrimonial (3.055 registros)
(Brasil, 2018). As pesquisas indicam que a violência física nos relacionamentos íntimos normalmente
é acompanhada por abuso psicológico e, de um terço a mais da metade dos casos, por abuso sexual
(OMS, 2002). A violência psicológica se traduz como um processo silencioso, que floresce sem ser
percebido ou identificado por vítimas e agressores. É uma forma sutil que pode aparecer como algo
comum aos relacionamentos afetivos. Na narrativa dos envolvidos, o comportamento violento aparece
como algo pertencente à esfera da relação conjugal, ou seja, como algo comum ao plano das relações
afetivas (Franco et al., 2018).
A Organização Pan Americana de Saúde – OPAS/OMS (2017) entende que a violência cometida
por parceiros e a violência sexual causam sérios problemas para a saúde física, mental, sexual e
reprodutiva, a curto e em longo prazo, para as vítimas. No que tange ao sofrimento psíquico, os
sintomas psicológicos frequentemente encontrados em mulheres vítimas de violência incluem: insônia,
pesadelos, falta de concentração, irritabilidade, falta de apetite e até o aparecimento de problemas
mentais sérios, como a depressão. Pesquisas revelam que a vivência de violência doméstica é um
importante fator de risco para a depressão, inclusive em mulheres que sofrem agressões durante a
gestação (Audi et al., 2008).
A violência tem impactos na vida das mulheres de tal forma que Hatzenberger et al. (2010) sugerem
que a violência contra a mulher, perpetrada pelo parceiro íntimo, é geradora de patologias e déficits em
funções cognitivas. Adeodato et al. (2005), em sua pesquisa, mencionam o fato de que 38% das
mulheres participantes de seu estudo pensaram na possibilidade de suicídio. Neste sentido, quando se
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Violência Contra a Mulher: Onde Começa e Quando Termina? - J. Medtler, S. D. Cúnico

trata de relacionamentos íntimos, a regulação emocional pode ser uma importante influência para o
enfrentamento dos conflitos. A literatura contempla ainda outros sintomas como, por exemplo, a
somatização, transtornos relacionados a ansiedade, transtorno do estresse pós-traumático (TEPT),
distúrbios do sono, desgaste físico, sensação constante de cansaço, alimentação inadequada,
fraqueza, falta de energia e distúrbios do trato intestinal (Netto et al. 2014).
Ressalta-se que a violência conjugal é um fenômeno que ocorre em relações permeadas por
afetos, nas quais são depositadas expectativas que giram em torno do ideal de família e de casamento.
O agressor é uma pessoa com quem a vítima compartilha sua vida, divide e constitui seu lar, implicando
sentimento de impotência, decepção, desamor e desesperança. Ademais, há relatos de perda de
autoestima e desânimo em relação à vida, ocasionada pela violência que destruiu a relação conjugal e
os sonhos em torno do ideal de casamento (Guedes et al., 2009).
Nesse interim, é importante ressaltar que, em casos de relacionamentos marcados pela violência,
a agressão à mulher não se constitui como constante em todos os momentos do relacionamento, tal
como a teoria do ciclo da violência indica. Essa teoria pressupõe que tal ciclo seja composto por três
momentos marcantes, quais sejam: a fase de tensão, a explosão e a fase de lua de mel. A fase de
tensão é caracterizada por provocações, insultos, humilhações e intimidações mútuas entre o casal. A
explosão pode ser descrita como o episódio agudo da violência em que diferentes tipos de agressões
se fazem presentes. A fase de lua de mel, por sua vez, é o momento em que a vivência da violência é
negada assim como há uma idealização do parceiro por parte da vítima, que acredita ter parcela de
culpa na violência sofrida. Ainda que promessas mútuas de mudança estejam presentes nessa fase,
não raramente, o ciclo da violência se renova, pois não há o cumprimento dos pactos firmados (Brasil,
2018, Lucena et al. 2016). A partir das informações expostas no que diz respeito ao fenômeno da
violência contra a mulher, este estudo tem por objetivo conhecer e explorar a dinâmica dessa violência
e o impacto nas diferentes esferas da vida a partir da perspectiva de mulheres que sofreram agressão.

Método

Delineamento de Estudo
Está pesquisa teve caráter qualitativo. Minayo (2002) explana sobre a pesquisa qualitativa como
aquela que responde a questões muito particulares e se preocupa com um nível de realidade que não
pode ser quantificado. Tal pesquisa trabalha com um universo de significados, motivos, aspirações,
crenças, valores e atitudes, correspondendo a um espaço mais profundo das relações, dos processos
e dos fenômenos.

Participantes
Participaram deste estudo quatro mulheres com idades entre 50 e 55 anos que foram atendidas
em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de uma pequena cidade da Região Metropolitana de
Porto Alegre e que sofreram agressão por parte do ex-companheiro. Outras informações relevantes
sobre as participantes podem ser consultadas na tabela a seguir:

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Nome Camila Joana Maria Morgana


Idade 55 anos 50 anos 52 anos 52 anos
Com quem Atual Filhos, pai e neto Sozinha Atual marido
reside companheiro
Estado civil União Estável Solteira Solteira Casada
Número 4, sendo 2 3 com o agressor 2 com o agressor 3 com o agressor
de filhos com o
agressor
Idade dos Filhos Maiores de Maiores de 18 anos Maiores de 18 anos Maiores de 18 anos
18 anos

Produção de Dados
A produção de dados foi realizada por meio de uma entrevista semiestruturada. Esse tipo de
entrevista tem como característica ser composta por um roteiro de perguntas abertas, indicada para
estudar um fenômeno com uma população específica (Manzini, 2012). A escolha das mulheres que
participaram desta pesquisa ocorreu aleatoriamente através de consulta aos prontuários do CAPS já
mencionado. Essas mulheres participaram de uma única entrevista individual semiestruturada que
ocorreu nas dependências do serviço, em horário conveniente a elas. A temática da entrevista versou
a respeito da percepção das mulheres entrevistadas sobre os episódios de violência vivenciados e o
impacto que essa violência teve na vida cotidiana de cada uma delas. As entrevistas foram gravadas
em áudio e foram transcritas na íntegra.

Análise de Dados
Os dados foram examinados através da análise de conteúdo. Gomes (2002) indica que a utilização
da análise de conteúdo prevê as seguintes fases: pré-análise, exploração do material, tratamento dos
resultados e a interpretação. Na primeira fase, a pré-análise, organizou-se o material a ser analisado
de acordo com os objetivos do estudo. Foi realizada a leitura do material em busca de contato com sua
estrutura, descobrindo orientações para a análise e registrando impressões sobre a mensagem. A fase
seguinte foi o momento em que ocorreu a aplicação do que foi definido na fase anterior. Foi a fase mais
longa e exigiu releituras do mesmo material. A terceira fase teve como objetivo fundamental desvendar
o conteúdo subjacente ao que estava manifesto, elencando categorias de análise de modo a apresentar
os resultados e a sua interpretação. As categorias foram intituladas: “a dinâmica da violência contra a
mulher em suas múltiplas faces”, “rede de apoio e busca por ajuda” e “a violência e seu impacto na
vida das mulheres”.

Aspectos Éticos
Este projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade a qual as
pesquisadoras estão vinculadas e realizado com base nos critérios éticos estabelecidos pela Resolução
566/12 do Conselho Nacional de Saúde, sendo que a pesquisa iniciou somente após a sua aprovação
(CAEE 16428919.4.0000.5348). As participantes foram informadas sobre a natureza e os objetivos
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desta pesquisa, consentindo sua participação através da assinatura do Termo de Consentimento Livre
e Esclarecido (TCLE). De modo a preservar o sigilo com a identidade das participantes, todos os nomes
utilizados são fictícios.

Resultados e Discussão

Os resultados deste estudo serão apresentados a partir das três categorias elencadas, a saber: a
dinâmica da violência contra a mulher em suas múltiplas faces; rede de apoio e busca por ajuda; e a
violência e seu impacto na vida das mulheres, as quais serão discutidas a partir de trechos retirados
das entrevistas e da literatura correspondente.

A Dinâmica da Violência Contra a Mulher em Suas Múltiplas Faces

De modo geral, as participantes deste estudo relataram que o início dos seus relacionamentos foi
calmo e com passar do tempo esse cenário foi mudando gradativamente, situação já evidenciada em
outros estudos (Porto & Luz, 2004). A fase de acumulação da tensão – primeira fase do ciclo da
violência - foi caracterizada na fala da entrevistada Camila, quando diz que “ele começou a ficar
agressivo[...]” [sic]. Entende-se a partir dessa fala que esse não era um comportamento característico
do início da relação, conforme mencionado também por Joana quando diz que “no começo tava tudo
mil maravilhas, né? Ai, depois ele começou a ser muito mandão, tinha que ser tudo do jeito que ele
queria...” [sic] e confirmada pela Maria, terceira entrevistada quando diz “[...] ele nunca se mostrou um
cara violento como ele realmente era. Ele começou a mostrar depois...” [sic].
As falas anteriores permitem afirmar que, de acordo com as entrevistadas, a fase de acumulação
da tensão iniciou-se somente após a consolidação da relação e decorrido certo tempo de
relacionamento. Segundo Maria “[...] desde a primeira gravidez...” e [...] “só depois de casada...” [sic]
surgiram os primeiros momentos de agressividade. O relato de Maria traz uma questão relevante que
é a identificação da gestação como o marco do início da violência conjugal. De fato, o advento da
gravidez pode ser percebido por alguns homens como um momento de perda de autonomia sobre o
corpo da mulher, sendo a agressão a forma com que encontram para mostrar a ela que ainda estão no
comando da relação (Porto & Luz, 2004).
Conforme já mencionado, um possível desdobramento da fase de acumulação da tensão é a
chamada fase de explosão. A tensão no relacionamento passa a se estabelecer de forma gradual,
geralmente iniciando com agressões verbais, até fugir do controle e dar ensejo a uma agressão física
grave, em um ataque de fúria já considerado a fase de explosão (Brasil, 2018, Lucena et al. 2016). Três
participantes desse estudo descreveram tal fase revelando agressões físicas graves que sofreram
como, por exemplo, Maria que mesmo grávida era agredida com “chutes, tapas... Onde ele acertava,
ele acertava...” [sic]. Além disso, Joana relatou tentativas de feminicídio quando [...] “na primeira vez
ele tentou me matar com o travesseiro, botou o travesseiro em cima do rosto e eu com as pernas e
tudo eu tentava empurrar ele, tirar ele de cima de mim...” [sic].

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Não raramente, após a fase de agressão, o casal passa pela chamada lua de mel. Nessa fase, o
parceiro violento geralmente age de forma a confundir a vítima, a quem atribui parcela de culpa pela
violência sofrida, além de fazer promessas de mudança de comportamento. Caracterizando a lua de
mel, destacam-se situações como a de Maria que recebia presentes após as agressões. Morgana, por
sua vez, conta que durante a audiência de separação, o ex-marido sentou-se ao lado dela, pegou em
sua mão e disse “amor, vamo voltar, eu não quero me separar de ti” [sic]. Mesmo contra sua vontade,
Morgana foi embora da audiência de mãos dadas com ele. Outra situação trazida por ela também
caracteriza tal fase:
“[...] ele chegou em casa e virou a mesa (que estava posta para a janta) de quatro pro ar. Depois
comprou carne, fez carne assada de novo, fez um monte de coisas sabe? Dai ele pediu desculpa
pra mim e não sei o que. Mas não fez nada, só foi isso que ele fez, né? Foi só isso que ele fez,
não fez nada de mal também, né? [sic]”
A fala anterior é interessante, pois ao mesmo tempo em que relata uma situação de violência
também demonstra a dificuldade que algumas mulheres possuem em reconhecer o comportamento
violento nas suas relações conjugais. Para Morgana, ter o marido derrubado toda a comida que ela
havia feito no chão não se caracteriza como algo violento, já que ele “não fez nada de mal”. O fato de
depois de depois ter ido comprar carne para refazer a janta contribui para que minimize o fato
acontecido. Realmente, tais comportamentos confundem as mulheres, pois parece existir uma
verdadeira descrença de que fenômenos como humilhação, desqualificação, críticas destrutivas,
exposição a situações vexatórias, bem como desvalorização da mulher como mãe e como amante
constituem formas de violência contra a mulher e que podem culminar na violência física (Silva et al.,
2007).
Morgana entende que as situações violentas que viveu não passavam de brigas normais de
qualquer casal. Na perspectiva da entrevistada [...] “violência é espancar... Porque violência... bate, faz
e acontece. Fica roxo, fica cortado, fica tudo...” [sic]. Para Morgana, apenas a violência física grave é
entendida como violência e as situações de constrangimento mencionados por ela, como quando seu
marido brigava com ela dizendo que “não sabia cozinhar” [sic] não são entendidas como violência.
Identifica-se a partir do relato desta participante, o quão difícil pode ser para as mulheres reconhecer
as suas vivências de violência. Reiterando que Morgana descreveu situações que exemplificam a fase
de acumulação de tensão, contundo nega que houve qualquer tipo de violência física. Franco et al.
(2018) destacam que a violência na relação conjugal nem sempre é percebida de forma consciente
pelos envolvidos uma vez que, frequentemente, se dá de forma sutil, fazendo com que não seja
reconhecida pelos componentes da família como uma forma de violência.
Na mesma perspectiva, a entrevistada Joana relata “[...] não ter entendido que o que eu tava
passando nesse casamento, não era casamento...” [sic]. Isso pode ocorrer, pois conforme discorre
Saffioti (2004), são muito tênues os limites entre a quebra de integridade e obrigação de suportar o
destino de gênero traçado para as mulheres. Desta maneira, cada mulher colocará o limite entre
agressão e direito dos homens sobre as mulheres. No mesmo viés, Verardo et al. (2004) completa
dizendo que perceber que está vivendo uma situação de violência pode ser difícil para algumas
mulheres já que faz parte da própria situação de violência que a mulher interiorize opiniões do
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companheiro sobre si reforçando sua baixa autoestima, agravando a situação. Outras não só
interiorizam as opiniões do companheiro, como absorvem desejos e vontades que a ele pertencem,
anulando os seus (Verardo et al., 2004). Pode-se pensar ainda que pelo fato de estarem
emocionalmente envolvidas, é difícil romper com o relacionamento e as mulheres acabam apegando-
se a esperança de que a violência é passageira.
No que diz respeito a perpetuação da violência, pode-se perceber a partir das falas das mulheres
entrevistadas que o agressor adotava condutas em favor da dependência da mulher. A entrevistada
Maria relata que “[...] ele jamais pensou que eu ia largar dele...” [sic], evidenciando que o rompimento
de relacionamento com o agressor é complexo e permeado por muito mais do que a decisão de cessar
a violência. Maria conta ainda que tinha uma vida financeira confortável “[...] eu tinha uma casa de três
pisos, tinha uma casa com piscina...” [sic] e renunciou a isso para se proteger das agressões. A situação
de Maria demonstra que os homens fazem uso do patrimônio para subjugar as mulheres. Isso porque
a ameaça de empobrecimento induz muitas mulheres a suportar humilhações e outras formas de
violência (Saffioti, 2004). Não obstante, Maria expõe que:
“[...] ele praticamente me obrigou a fazer ligadura pra eu não ter mais filhos porque ele sempre
achou que eu ia me separar dele e ia ter filho de outro homem... ele sempre soube que eu queria
ter mais filhos, não só dois. Então, eu tinha 20 anos e tive que fazer ligadura[...]” [sic].
Essa fala revela a imposição do parceiro, não somente no que diz respeito a relação, mas também
no que diz respeito as escolhas da mulher como sujeito de direito, fazendo uso da situação para
submeter a mulher ao relacionamento. A gravidade das construções de relações baseadas na
dominação androcêntrica situa-se no fato de que a pessoa submetida é impedida ou dificultada no
estabelecimento do seu estatuto de sujeito (Strey et al., 2007).
Há também, no relato de Maria uma fala muito característica de relações permeadas pela violência:
“[...] tu fala 15 minutos com ele, ele te convence que ele é a melhor pessoa do mundo. A louca sou
eu...” [sic]. É interessante perceber que essa fala prejudica o julgamento da mulher acerca da situação
e faz com que ela fique confusa sobre as circunstâncias sob as quais vive. Seguindo o mesmo viés,
Joana fala que:
“[...] ele sempre dizia que ele queria ser um bom marido e um bom pai, mas ele não era. Eu
comecei a entender que o que ele fazia comigo era só um homem que queria dominar, queria
mandar e eu não sabia responder ele, eu não sabia me defender, em todos os sentidos...” [sic].
O conteúdo dos relatos das duas participantes corrobora com as ideias de Fonseca et al. (2012),
que expõem que esta confusão perceptiva pode ser a explicação para o ciclo violento perdurar por
anos. Uma vez que oscilam entre momentos alegres e tristes, essas mulheres se mantêm alimentando
a violência por estarem sempre na espera dos momentos gratificantes do relacionamento, em
contrapartida aos momentos de crise (Fonseca et al. 2012).
No decorrer das entrevistas, as falas das quatro mulheres participantes deste estudo,
caracterizaram os cinco tipos de violência contra a mulher: psicológica, física, sexual, moral e
patrimonial. Segundo os relatos, a violência se manifestava de diferentes formas, desde as mais
veladas ou não reconhecidas até as indubitáveis, cujo caso extremo era a violência física que, por
vezes, pode resultar em feminicídio. Do ponto de vista de Saffioti (2004), a violência não ocorre
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isoladamente, qualquer que seja a forma assumida pela agressão, a violência emocional está sempre
presente e pode-se afirmar o mesmo para a moral.
Exemplificando casos mais extremos, Camila, Joana e Maria foram ameaçadas de morte ou
sofreram tentativas de feminicídio. Camila conta que: “[...] ele me bateu, ele tentou me estrangular, ele
sempre queria... ele sempre dizia que um dia queria me matar” [sic]. Joana relata que conseguiu se
desvencilhar do ex-marido quando ele tentou sufocá-la com um travesseiro enquanto dormia. Maria
narra diversas ameaças de morte que entendia como iminentes durante e após o término do
casamento. Por meio das entrevistas realizadas com as mulheres participantes deste estudo,
identificou-se o ciclo de violência, permeado pela dificuldade de reconhecimento da violência e ainda,
o quão difícil é romper com o silêncio e buscar ajuda.

Rede de Apoio e a Busca por Ajuda

Por muitos anos a violência contra a mulher foi consentida pela sociedade, fator que prolongou o
sofrimento e prejudicou o direito das mulheres de ter uma vida sem violações. A partir da perspectiva
das mulheres entrevistadas neste estudo, pode-se dizer que a falta de apoio da família, amigos ou de
algum profissional foi um fator relevante para não buscarem ajuda, visto que apenas uma delas teve
apoio efetivo da família e da rede de proteção à mulher. Segundo Dutra et al. (2013), os dispositivos
institucionais de atenção à mulher em situação de violência como a legislação específica, casas abrigo,
delegacias especializadas e centros de referência não garantem uma compreensão da violência como
paradigma das desigualdades de gênero. Somado a isso, Strey et al. (2007) expõem que, no que se
refere à prevenção e atenção de situações de violência, ações eficazes devem agregar diferentes
setores da sociedade, articulando os serviços de saúde, educação, justiça e segurança, assistência
social e trabalho. É fundamental constituir redes de apoio interdisciplinares, fortalecendo espaços de
atenção integral às pessoas envolvidas em situações de violência.
Sob a ótica de Camila, tanto a família do agressor quanto sua própria família tinham conhecimento
e consentiam a violência, conforme ela conta: “a minha mãe era daquelas ela dizia ‘tu saiu de casa,
agora vive a tua vida, tu escolheu isso’” [sic]. O exposto por Camila expressa a falta de sensibilidade e
empatia dos familiares frente à situações de violência, podendo-se pensar que tal posicionamento
perpassa a máxima de que o casamento deve se manter independente das condições dele.
Ademais, conforme já mencionado na categoria anterior, Camila apontou mudanças no
comportamento do companheiro com o passar do tempo de relação. É relevante mencionar que o
período de 12 anos que Camila sofreu violência foi anterior a promulgação da Lei Maria da Penha (Lei
11.340/2006). Ao longo da entrevista, Camila expõe que, procurou a delegacia várias vezes e em uma
delas, após uma tentativa de feminicídio lembra que:
“eles debocharam ainda de mim naquela noite, eu tava com as crianças, ai eles mandaram eu ir
pra casa, ele disse que não podiam fazer nada. [...] eles falaram que não tinha acontecido nada,
que não tinha o que eles fazer [...] daí tu ia fazer o que??? Naquela época não era que nem hoje
que tem assistência pra isso, pra aquilo... naquela época não era assim...” [sic].

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A partir da fala anterior, fica claro seu sentimento de impotência e, além disso, a desproteção e
desamparo familiar, legal e social que Camila vivenciou. A experiência de Joana é mais recente e
ocorreu após a promulgação da Lei Maria da Penha. Após realizado o boletim de ocorrência na
delegacia do município, Joana conta que: “[...] o Oficial de Justiça veio e disse pra mim que ele não
podia mais voltar pra casa. Ali foi que eu me senti aliviada...” [sic]. Com relação ao suporte familiar,
Joana relata que: “[...] meus pais, sim... me disseram que se eu precisava de uma coisa eles iam me
ajudar, mas assim... dizer que o pai e a mãe ajudaram não. Eu tive apoio dos filho, isso sim” [sic]. Cabe
apontar que Joana iniciou tratamento psicológico e psiquiátrico na época que a violência aconteceu e
durante a psicoterapia teve suporte para elaborar seu medo e recebeu apoio da profissional que a
atendia: “[...] ela disse: tu não precisa ter medo, nós vamos te ajudar” [sic]. Tal fala está de acordo com
Dutra et al. (2013), que afirmam que as relações de solidariedade e confiança podem ser decisivas na
inserção das mulheres na rede de atendimento constituindo elas mesmas um elo entre a mulher e a
busca por algum tipo de assistência.
Por meio das histórias de Camila e Joana, pôde-se verificar que houve avanços com a vigência de
uma legislação específica acerca da violência contra a mulher, além de ter sido possível perceber a
falta de apoio familiar impactando na decisão da mulher em tomar atitude e romper com o ciclo de
violência. Outro fator importante nesse processo foi a possibilidade de acompanhamento de um
profissional que estivesse à disposição da vítima oferecendo suporte e orientações ao longo do
processo.
Em contrapartida, Maria expõe uma perspectiva divergente de Joana. Mesmo com o respaldo legal
já estabelecido durante sua separação que ocorreu em meados de 2015, Maria diz que:
“[...] a gente não tem nenhuma proteção, a gente perde mais do que ganha. Tem a vida, né?
Lógico! Mas a gente perde tudo. [...] Tu foge completamente da tua vida. [...] Hoje nós não temos
proteção [...] qualquer um que quiser matar a mulher mata. A mulher tem que procurar se esconder,
a mulher tem que procurar viver do jeito que da, mas a justiça hoje ainda não tem como ajudar a
mulher [...] a gente é condenada ainda. Por isso muitos acham que a gente é culpada, tu apanha
porque tu fez alguma coisa errada. Por que nossa justiça deixa isso acontecer?” [sic].
Para Maria, apesar de todos os avanços já alcançados, a mulher ainda é muito prejudicada,
especialmente no que diz respeito a sua segurança. Conforme já mencionado, o relacionamento de
Maria foi marcado por brigas e agressões físicas, inclusive durante suas gestações. Por vezes, Maria
buscou por ajuda e sempre que isso sucedia era obrigada a migrar de cidade:
“Eu tinha procurado ajuda, tinha denunciado ele por ameaça de morte e não pude ir adiante. E a
gente se mudou de cidade então, por causa disso. Toda vez que eu tentava a gente se mudava,
começava uma vida nova pra não ir adiante o processo. A denúncia já tinha sido feita, que ele
quase me matou em Carazinho. [...] Eu já morei em Picada Café, Nova Petrópolis, Carazinho,
Viamão, Porto Alegre e em Ivoti eu morei três vezes” [sic].
O relato de Maria revela a falta do respaldo legal e do apoio social apesar da existência de
legislação aplicável. Ela lembra que: “em Carazinho, eu era nova ainda, mas tava toda, toda, toda
quebrada e não foi dada a assistência, sabe? Que eu realmente precisava de uma assistência e não
foi dada” [sic]. A situação dela era atravessada por outras duas questões: a dificuldade de pedir ajuda
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dos filhos e o julgamento de sua irmã que não acreditava na violência sofrida por Maria. De acordo com
ela: “eu nunca procurei a minha família, nunca meti meus filhos, nunca pedi ajuda pros meus filhos,
nunca pedi ajuda pra ninguém” [sic]. Sobre os julgamentos por parte de sua irmã, ela conta: “[...] ela
achava que a errada sou eu. Até hoje ela acha isso [...] ele é um cara muito bom, ele tem dinheiro, ele
tem status” [sic].
Maria relembra que teve apoio de um amigo policial que a acompanhou até a delegacia para a
realização da denúncia e que por isso foi bem recebida na delegacia. Sobre o assunto expõe: “eu não
sei como eu ia chegar lá sozinha”. As delegacias nem sempre têm o treinamento ou supervisão no
trabalho, podendo agir de forma inadequada diante das demandas de mulheres que procuram o serviço
em situação de violência (Souza & Cortez, 2014; Tavares et al., 2017). Com base nisso, é fundamental
que os policiais recebam apoio e sejam preparados para lidar com os atendimentos de mulheres em
situação de violência (Souza & Sousa, 2015). Maria confirma ao longo da entrevista, o quanto a rede
de apoio às mulheres vítimas de violência ainda precisa ser aperfeiçoada. Ela desabafa:
“Por isso que tem muitas mulheres, por isso que 31 anos... é uma vida. Podia ter decidido tudo
bem antes, né, se tivesse uma ajuda. Por isso que tem muitas mulheres que morrem ainda hoje
por causa disso...[pausa] A mulher que procura ajuda, ela precisa de ajuda, a gente não procura
ajuda de graça [pausa]. Não é porque tu tá com raiva dele, alguma coisa... Não! Tu tá com medo!
Por isso que tu tá procurando. E se tu tem medo, alguma coisa aconteceu” [sic].
Caracterizando outra situação que acomete a violência contra a mulher, podemos retomar a
vivência de Morgana que não identifica a violência que viveu e, consequentemente, não chega a buscar
os meios legais para se proteger. Além disso, a falta de reconhecimento das violências vividas faz com
que tal forma de relacionamento seja naturalizado e, desta forma, se torne mais frequente, dificultando
a sua conscientização em busca de relações mais saudáveis.
Outra perspectiva a ser avaliada é que Morgana pode ter optado por não compartilhar com a
entrevistadora todas as situações que vivenciou em função da entrevista estar sendo gravada. Ao longo
da entrevista, por diversas vezes ela repediu frases como “eu não to te mentindo” e “pode gravar, eu
não me importo” [sic]. Além disso, conforme já citado, ela descreve o ciclo de violência com várias
situações típicas e relata ter fugido de casa, abandonando a família para “não brigar na presença dos
filhos”. Diz ser julgada pelos filhos e conta que um deles diz: “mãe, eu não vou te perdoar nunca” [sic]
por ter fugido.
As mulheres participantes deste estudo apontaram que toleraram por muito tempo as múltiplas
violências. Dentre uma das razões está o fato de terem filhos pequenos e acreditarem que precisavam
manter a família unida para dar bons exemplos. Assim, fica evidente que há um dilema entre denunciar
o próprio marido e pai de seus filhos ou continuar sofrendo. Outro motivo para tolerar a violência é a
dependência financeira do agressor que era o provedor principal do lar e, por vezes, administrava as
finanças da família. Essas informações convergem com a pesquisa de Souza e Ros (2006) que
relacionam a perpetuação da violência principalmente à dependência financeira, dependência
emocional, criação dos filhos e falta de apoio da família e dos amigos.

A Violência e Seu Impacto na Vida das Mulheres


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Conforme já citado, as participantes deste estudo são ou foram atendidas em um CAPS e todas
tinham diagnóstico de depressão: em remissão ou em nível leve ou moderado, confirmando a afirmação
de Audi et al. (2008) de que o sofrimento psíquico frequentemente causa sintomas sérios de ordem
psicológica. É importante enfatizar que Camila e Maria relatam momentos em que pensaram que o
suicídio seria a única saída para cessar a violência, tamanho o abalo em suas vidas. O impacto
emocional foi nomeado por todas as mulheres manifestando-se principalmente em forma de tristeza,
angústia, preocupação, sentimento de impotência e medo intensos. Segundo o relato de Maria, quando
encontrava o ex-marido “[...] entrava em desespero, começava a chorar, a tremer...” [sic]. De acordo
com ela, esses sentimentos despertados não se restringiam somente ao momento em que ainda era
casada com ele e sofria violência, mas sim perpassou o tempo, repetindo-se ao longo dos anos após
a separação. Joana expõe tal impacto dizendo:
“[...] eu era triste [...] tinha medo dele, porque ele sempre dizia assim se eu ia contar o que tava
acontecendo em casa, ele ia me matar [...] Eu sofria muito, sabe? Eu chorava muito, não queria
mostrar pro Anderson [filho] como eu tava, mas quando eles iam na aula... eu sentava muito e
chorava muito. [...] Ele [ex-marido] sempre dizia que nunca ia ser igual o pai dele [...] eu nunca vou
fazer o que o pai fazia pra mãe. Só que fazia pior, né?” [sic].
Conforme Fonseca et al. (2012), a violência psicológica compromete a autoestima, levando à
distorção do pensamento na construção de crenças de desvalor e autodepreciação, interferindo no
bem-estar e no desenvolvimento da saúde psicológica da mulher. Tal situação emergiu na fala de três
das entrevistadas, Camila conta que se sentia “péssima, humilhada” [sic] e pensava não ser digna de
uma vida diferente. Ela conta situações em que dependia da boa vontade ex-marido para adquirir
roupas e utensílios de beleza, pois era ele quem administrava o dinheiro que recebiam pelo trabalho
realizado em casa. Tal situação concerne o uso do patrimônio do casal, neste caso o dinheiro, para
demonstrar domínio e consequentemente praticar violência psicológica para com a mulher.
É preciso considerar também que três das mulheres entrevistadas relataram que por muito tempo
não conseguiram falar sobre o assunto. Dentre elas, chama atenção o posicionamento de Camila que
pediu para não relembrar e não falar sobre os momentos em que foi agredida. A mesma entrevistada
revelou que o ex-companheiro abusou sexualmente de sua filha que, apesar de não ter laços
sanguíneos com o abusador, o considerava como pai. A partir dessas informações, pode-se refletir
acerca da dor emocional que a agressão causa na vida das mulheres, pois ela ainda completa “[...] mas
vai passar, eu vou superar isso ainda” [sic]. Camila separou-se do marido há mais de 20 anos e assim
como as demais participantes, apesar de decorridos anos das agressões sofridas, ainda demonstra
sofrimento com relação ao que foi vivido. Morgana, por sua vez, embora tenha registro em seu
prontuário mencionando situações de violência, manteve uma postura indiferente durante a entrevista,
o que leva a se pensar que o impacto neste caso se dá justamente na dificuldade de falar sobre o
assunto, talvez por estar sendo gravada. No que diz respeito às mudanças físicas e na dinâmica da
família após a separação, Joana fala:

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“Primeira coisa eu engordei, eu era magrinha, pesava 48, 49 kg. Eu sempre era triste. Agora não,
engordei, eu sou mais feliz. Me dedico mais aos filhos, eu saio bastante, [...] comer pastel ou comer
panqueca, nós saímos, né? Isso eu não tinha antes” [sic].
É possível perceber os reflexos da convivência com a violência para a saúde da mulher e o bem-
estar de toda a família. Para Moreira (2007), todos os membros do grupo são afetados direta ou
indiretamente por tal situação, o que produz consequências diretas no desenvolvimento pessoal e
social de todo o sistema familiar. A entrevistada Joana também diz ter descoberto recentemente um
tumor maligno, e estar realizando quimioterapia, o que fez cair seu cabelo. Apesar da situação de
enfermidade, ela complementa: “mesmo assim eu sou feliz, antes eu não era feliz” (sic). Nesse viés,
pode-se pensar que a violência é tão impactante de forma negativa na vida da mulher que ela prefere
enfrentar uma doença potencialmente fatal a viver em um contexto em que sofre violências. O impacto
social também fica claro na fala da entrevistada Camila quando expõe que deixa de estar presente em
momentos de família para não reencontrar o agressor. Ela conta que prefere não ir ao aniversário dos
filhos e do neto para não ter que reencontrar o ex-companheiro, sendo cobrada pelos familiares que
não entendem a sua atitude.
Com relação à vida afetiva e à conjugalidade, é interessante ressaltar que apenas duas das
mulheres estão num relacionamento afetivo no momento. Nesta perspectiva, Maria diz: “eu não consigo
mais confiar em homem nenhum... [pausa]. Hoje eu não consigo mais me ver tendo um relacionamento.
Não tem como. Se o cara me pegar, encostar meio forte, eu já paraliso, mesmo se a intenção dele não
for essa” [sic]. Validando o conjunto de impactos descrito pelas entrevistadas, Ribeiro e Coutinho (2011)
inferem que a vivência da violência doméstica diminui drasticamente a qualidade de vida das mulheres,
atingindo negativamente sua saúde física, psicológica e principalmente a social, fazendo as vítimas se
isolarem cada vez mais, e perderem gradativamente sua rede de apoio, tornando-se vulneráveis e com
poucas estratégias de enfrentamento, sendo cada vez mais difícil quebrar este ciclo.

Considerações Finais

Este estudo objetivou compreender os impactos da violência na perspectiva de quatro mulheres


que sofreram agressão por parte do ex-companheiro. Vale ressaltar que esse estudo aconteceu antes
da pandemia do Covid-19, situação que tem intensificado os números da violência contra a mulher em
função das medidas de distanciamento social impostas para conter o avanço do vírus somado a hiper
convivência entre os parceiros. Tais questões alinhadas ao desemprego, a insegurança econômica e
a sobrecarga de delegacias e hospitais contribuíram e ainda contribuem para o aumento vertiginoso da
violência contra a mulher no período da pandemia (Siqueira et al., 2020).
O aumento dos casos de violência na pandemia desvela a problemática vivenciada por inúmeras
mulheres dentro de suas casas, algo que este estudo buscou evidenciar. A partir das três categorias
apresentadas foi possível identificar fragilidades, limites, avanços e potencialidades no que abarca a
violência contra a mulher. Cabe reiterar que é preciso avançar no que diz respeito a quatro pontos
centrais: a proteção efetiva da vítima, o entendimento da violência como um fenômeno social e não
individual ou patológico, a importância da intervenção anterior a instauração da violência como forma
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de relacionamento do casal e ainda a articulação de um suporte adequado para as vítimas


conjuntamente com ações voltadas para o agressor.
Apesar dos avanços obtidos nos últimos anos, ainda existem casos permeados por situações que
ultrapassam o alcance da Lei Maria da Penha. Dessa forma, ocorre uma dicotomia entre aquilo que é
assegurado pela legislação e o que é vivenciado pelas mulheres, evidenciando que apesar da
existência da legislação, sua aplicabilidade ainda é falha e precisa ser aperfeiçoada principalmente no
que diz respeito a proteção da vítima e garantia de seus direitos. Reitera-se a importância da articulação
de uma rede de cuidados acerca da mulher vítima de violência em busca do fortalecimento e da
reparação dos impactos de tal violência, visto que é uma problemática que abrange os setores de
segurança, saúde, educação, bem-estar social e jurídico.
Percebe-se também que há uma mobilização abrangente acerca da vítima após a ocorrência de
violência física, todavia faz-se necessário e urgente o engajamento para intervir em tais situações antes
que a violência esteja instaurada, pois como pôde ser assimilado a partir deste estudo, nesses casos
já é difícil e moroso romper com o ciclo. Tal intervenção pode se dar através de uma reflexão social
visto que existe uma tendência a repetição de relacionamentos violentos. A psicologia, através da
psicoeducação sobre a violência, tanto com as mulheres quanto com os agressores, também se faz
fundamental. É importante que homens e mulheres saibam identificar os primeiros sinais de violência
para que, dessa forma, possam romper o ciclo antes que ele se perpetue. E, por fim, mas não menos
importante, a participação da população em todo o processo de garantia de direitos e proteção da
mulher vítima de violência se faz necessária. Ademais, ressalta-se que a prevenção da violência
psicológica pode ser uma estratégia de intervenção, pois saber identificar os primeiros sinais de
violência empodera a mulher fazendo com que ela tenha mais consciência das suas vivências.
Conforme discutido ao longo das categorias de análise, com o passar do tempo, a violência vai se
tornando parte da dinâmica de relacionamento do casal, o que faz com que seja muito difícil manter o
relacionamento sem que a violência volte a se instaurar. O agressor é parte fundamental para que
ocorram mudanças efetivas nas relações impactando como prelúdio de uma mudança social. Exigir
que somente a mulher identifique, denuncie e se proteja dos atos de violência é uma forma de
revitimizá-la. Outro ponto central deste estudo é ressaltar a importância de serviços especializados no
suporte às mulheres, pois atualmente as instituições ainda não conseguem realizar efetivamente seu
papel de proteção. Pode-se pensar que a oferta de serviços especializados resulte na diminuição das
ocorrências, todavia verificam-se agravos tanto na quantidade quanto na gravidade das agressões
perpetradas. Mudanças efetivas e duradouras ocorrerão a partir de uma mudança social abrangente e
efetiva impactando em novos modelos de relacionamentos saudáveis e reparadores.
Por fim, sugere-se a relevância em elucidar novos estudos no que diz respeito à criação de políticas
públicas para conscientização das pessoas envolvidas em situações de violência. Ademais, ressalta-
se a importância de buscar a implementação do tema da violência nas grades curriculares escolares
dos adolescentes, visando a mudança social citada ao longo deste artigo. Registra-se ainda a força,
perseverança, coragem e resiliência das mulheres que são vítimas da violência e que por anos lutam
pela sua vida e esperam uma oportunidade de romper com o silêncio para ter uma vida digna.

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Endereço para correspondência

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[email protected]

Enviado em 06/05/2020
1ª revisão em 28/02/2021
2ª revisão em 08/12/2021
Aceito em 08/03/2022

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