0% acharam este documento útil (0 voto)
11 visualizações14 páginas

Lenine e A Sua Lenda

O texto analisa a figura de Lenine e a construção de sua lenda na história russa, destacando como a verdadeira revolução foi impulsionada pela revolta camponesa, e não apenas pela liderança bolchevique. A narrativa de Lenine como o único responsável pelo sucesso da Revolução Russa é contestada, enfatizando que a questão agrária e as necessidades dos camponeses foram cruciais para a mudança. O autor argumenta que a política dos bolcheviques, embora inicialmente apoiada pelos camponeses, não se alinhou com os princípios do comunismo e resultou em um novo tipo de opressão sob o governo bolchevique.
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
0% acharam este documento útil (0 voto)
11 visualizações14 páginas

Lenine e A Sua Lenda

O texto analisa a figura de Lenine e a construção de sua lenda na história russa, destacando como a verdadeira revolução foi impulsionada pela revolta camponesa, e não apenas pela liderança bolchevique. A narrativa de Lenine como o único responsável pelo sucesso da Revolução Russa é contestada, enfatizando que a questão agrária e as necessidades dos camponeses foram cruciais para a mudança. O autor argumenta que a política dos bolcheviques, embora inicialmente apoiada pelos camponeses, não se alinhou com os princípios do comunismo e resultou em um novo tipo de opressão sob o governo bolchevique.
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
Você está na página 1/ 14

Lenine e a Sua Lenda

MIA > Biblioteca > Mattick > Novidades

Paul Mattick
Dezembro de 1935

Primeira edição: I.I.C. vol. II n.º 1 Dezembro de 1935


Fonte: http://guy-debord.blogspot.com/2009/06/paul-
mattick-lenine-e-sua-lenda.html.
Tradução de: ........
Transcrição de: Antonio Oliveira
HTML de: Fernando A. S. Araújo

Quanto mais a face embalsamada de Lenine amarelece e se


pergaminha, quanto mais a fila dos visitantes à porta do seu
mausoléu se prolonga, menos as pessoas se interessam pela
verdadeira personagem e pela sua dimensão histórica. Todos os
dias, novos monumentos à sua memória se elevam, encenadores
fazem dele o herói dos seus filmes, escrevem-se livros a seu
respeito, e os pasteleiros russos confeccionam figurinhas de broa
de mel com a sua efígie. Mas os traços fluidos dos Lenines de
chocolate igualam bem as histórias inexactas e duvidosas que
correm a seu respeito. E ainda que o Instituto Lenine publique
as suas obras completas, a partir de agora, nada mais significam
comparadas com as lendas fabulosas que se desenvolveram em
torno do seu nome. A partir do momento em que as pessoas se
começaram a interessar pelos botões de colarinho de Lenine,
deixaram de ligar importância às suas ideias. Depois já, cada
qual talha o seu próprio Lenine, senão segundo a sua imagem,
pelo menos segundo os seus próprios desejos. A lenda de Lenine
é para a nova Rússia, o que a lenda napoleónica é para a França
e o que a lenda do rei Frederico é para a Alemanha. E, assim
como houve em tempos pessoas que recusavam acreditar na
morte de Napoleão e outras que esperavam a ressurreição do rei
Frederico, também existem ainda hoje na Rússia camponeses
para os quais o "paisinho Czar" não morreu, mas continua a
satisfazer o seu insaciável apetite de homenagens
continuamente repetidas. Outros põem a arder eternamente
lamparinas sob o seu retracto; para estes, ele é um santo, um
redentor, a quem é preciso rezar para que nos socorra. Para os
milhões de olhos fixos nestes milhões de retratos, Lenine
simboliza o Moisés russo, São Jorge, Ulisses, Hércules, o diabo e
o bom deus. O culto de Lenine deu origem a uma nova religião
perante a qual os mais ateus dos comunistas dobram o joelho
com solicitude — isso simplifica muito a vida, sob todos os
pontos de vista. Lenine surge-lhes como o pai da República
soviética, o homem que permitiu que a revolução triunfasse, o
grande dirigente sem o qual não existiriam. A Revolução russa
tornou-se, não somente na Rússia e na lenda popular, mas
também para uma larga fracção da intelligentsia marxista de
todo o mundo, um acontecimento mundial tão estreitamente
ligado ao génio de Lenine que pareceria que sem ele a revolução
— e consequentemente, a história do mundo — teria tido um
rumo completamente diferente. Contudo, a análise
verdadeiramente objectiva da Revolução russa revelará
imediatamente a inépcia de uma tal concepção.

"A afirmação segundo a qual a história é feita pelos grandes


homens é totalmente desprovida de fundamento no plano
teórico".

Foi com estas palavras que Lenine fez nascer a lenda que
pretende que ele seja o único responsável pelo sucesso da
Revolução Russa. Considerava que a Primeira Guerra mundial
tinha sido a causa directa da revolução e que tinha determinado
a sua altura. Sem esta guerra, disse, "a revolução teria sido sem
dúvida adiada várias décadas". Dizer da Revolução russa que ela
se desencadeou e se desenvolveu, em grande parte, graças a
Lenine, é identificar a revolução com a tomada do poder pelos
bolcheviques. O próprio Trotsky disse que todo o mérito do êxito
da sublevação de Outubro pertencia a Lenine; que apesar da
oposição de quase todos os seus camaradas de partido, tinha ele
só tomado a decisão da insurreição. Mas a tomada do poder
pelos bolcheviques não dotou a revolução com o espírito de
Lenine. Pelo contrário, Lenine adaptou-se tão bem às
necessidades da revolução que se pode quase dizer que concluiu
a obra dessa classe que ele combateu abertamente(1). Na
verdade, muitas vezes se afirmou que a tomada do poder pelos
bolcheviques tinha permitido que a revolução democrática-
burguesa se transformasse numa revolução socialista proletária.
Mas quem poderá quer seriamente que um só acto político tenha
podido substituir todo o desenvolvimento histórico; que sete
meses — de Fevereiro a Outubro — tenham bastado para criar as
bases económicas de uma revolução socialista num país que mal
começava a libertar-se das cadeias feudais e absolutistas e a
abrir-se à influência do capitalismo moderno?

Até à época da revolução e, em certa medida, ainda hoje, a


questão agrária desempenhou um papel decisivo no
funcionamento económico e social da Rússia. Dos 174 milhões
de habitantes que o país contava antes da guerra, apenas 24
milhões viviam nas cidades. Por cada milhar de trabalhadores
remunerados, 719 trabalhavam no sector agrícola. Apesar do
papel considerável que desempenhavam na economia do país, os
camponeses continuavam na sua grande maioria, a levar uma
existência miserável. O Estado, a nobreza e os grandes
proprietários de terras exploravam a população sem o menor
escrúpulo, com uma brutalidade bem asiática.

Após a abolição da servidão (1861), a falta de terra não deixou de


estar no centro da política interna. Foi esta falta que esteve na
origem de todas as tentativas de reforma, pois transportava
consigo o germen da revolução nascente que era necessário
irradiar. A política económica do regime czarista, que decretava
sem cessar novos impostos indirectos, apenas agravava a
situação dos camponeses. As despesas com o exército, a armada
e a máquina governamental atingiam proporções gigantescas. A
maior parte do orçamento nacional era desperdiçado em fins
não produtivos, o que teve como resultado arruinar totalmente a
base económica agrícola.

"A liberdade e a terra" foi inevitavelmente a reivindicação


revolucionária dos camponeses. E foi o slogan da série de
levantamentos camponeses que viriam a tomar, de 1902 a 1906,
uma amplitude particular. Esta agitação, que coincidia com os
movimentos operários de greves gerais, não deixou de abalar
violentamente o próprio coração do czarismo, de tal modo que
este período pôde ser qualificado de ensaio geral da revolução de
1917. O modo como o czarismo reagiu perante estas revoltas foi
particularmente bem descrito na expressão de Bogdanovitch,
então vice governador de Tambiovsk:

"Quanto mais fuzilados houver, menos são os prisioneiros".

E um dos oficiais que tinha participado na repressão das


insurreições escreveu:

"Só havia massacre à nossa volta; tudo ardia; atirava-se, abatia-


se, degolava-se".

Foi neste mar de sangue e de chamas que nasceu a revolução de


1917.

Apesar destas derrotas, a agitação camponesa tornou-se mais


ameaçadora. Conduziu à reforma Stolypina que devia contudo,
revelar-se vazia de conteúdo; as promessas não foram mantidas
e a questão agrária não deu o menor passo em frente. De facto,
estas fracas tentativas de apaziguamento não fizeram mais do
que reforçar as reivindicações camponesas. O agravamento da
situação dos camponeses durante a guerra, a derrota dos
exércitos czaristas na frente, a agitação crescente nas cidades, a
política caótica do governo que perdia a cabeça, a incerteza geral
que se lhe seguiu para todas as classes da sociedade, conduziram
à revolução de Fevereiro, cujo primeiro acto foi pôr bruscamente
fim à quente questão agrária. No entanto, esta revolução não foi
marcada politicamente pelo movimento camponês, que se
limitou a dar-lhe todo o seu apoio. As primeiras declarações do
comité central dos conselhos operários e de soldados de São
Petersburgo nem se quer fizeram caso da questão agrária. Mas
em breve os camponeses atraíram a atenção do novo governo.
Em Abril e Maio de 1917, as massas camponesas, desiludidas e
cansadas de esperar, começaram a apropriar-se das terras.
Receosos de perderem a sua parte na nova distribuição, os
soldados das primeiras linhas abandonaram as trincheiras e
regressaram rapidamente às suas aldeias. Mas conservaram as
suas armas e o governo não se pôde opor à sua deserção. Os
apelos ao sentimento nacional e ao carácter sagrado dos
interesses russos não tiveram qualquer força perante a
necessidade premente, para as massas, de providenciar
finalmente às suas necessidades económicas. E estas
necessidades só podiam ser satisfeitas pela paz e pela terra. Diz-
se que, na época, alguns camponeses a quem se pedira que
ficassem na frente para impedir que os alemães ocupassem
Moscovo, tinham ficado muito admirados e tinham respondido
aos emissários do governo:

"O que é que isso nos interessa? Somos do governo de Tamboff".

Lenine e os bolcheviques não inventaram o slogan vitorioso da


"terra aos camponeses"; não fizeram mais que aceitar a
verdadeira revolução camponesa que se desenrolava
independentemente deles. Aproveitando as hesitações do regime
de Kérensky, que esperava poder resolver a questão agrária
através das negociações pacíficas, os bolcheviques atraíram as
simpatias dos camponeses e puderam assim derrubar o governo
e tomar o poder. Mas alcançaram esta vitória apenas como
agentes da vontade dos camponeses — sancionando as suas
apropriações de terras — e é só graças ao seu apoio que puderam
manter-se no poder.

O slogan "a terra aos camponeses" não tem nada a ver com os
princípios do comunismo. A parcialização dos grandes domínios
numa multitude de pequenas empresas agrícolas independentes
era precisamente o contrário do socialismo e só se poderia
justificar como uma táctica necessária. As alterações que
ulteriormente se operam na política camponesa de Lenine e dos
bolcheviques foram impotentes para modificar as consequências
inevitáveis deste oportunismo. Apesar dos esforços de
colectivização que, até aos nossos dias, se limitaram sobretudo
ao aspecto técnico dos processos de produção, a agricultura
russa é ainda hoje essencialmente determinada pelos interesses
económicos privados. Assim como a indústria, ela deve
necessariamente orientar-se para uma economia de capitalismo
de Estado. Embora o capitalismo de Estado vise transformar a
produção rural numa massa de assalariados agrícolas, é bastante
improvável que este objectivo seja atingido quando se pensa nas
incidências revolucionárias de tal aventura. A actual
colectivização não pode ser considerada como a realização do
socialismo. Este é o ponto de vista de observadores estrangeiros
como Maurice Hindus que pensa, por seu lado, que
"mesmo que os Sovietes se viessem a desmoronar, a agricultura
russa continuaria colectivizada e o seu controlo talvez estivesse
mais entre as mãos dos camponeses que do governo".

Todavia, mesmo que a política agrícola bolchevique fosse bem


conduzida, mesmo que o capitalismo de Estado se estendesse a
todos os ramos da economia nacional, a situação dos operários
em nada seria modificada. De resto, um tal regime não poderia
ser considerado como uma fase de transição para o verdadeiro
socialismo, pois que os elementos da população que hoje são
favorecidos pelo capitalismo de Estado defenderiam os seus
privilégios opondo-se a qualquer mudança, como o fizeram os
proprietários de terras durante a revolução de 1917.

Os operários, que então não constituíam mais que uma pequena


parte da população, não tiveram influência real sobre o carácter
de revolução russa. Quanto aos elementos burgueses que tinham
combatido o czarismo, depressa iriam recuar perante a natureza
das suas próprias tarefas. Eles não podiam aderir à solução
revolucionária da questão agrária, pois uma expropriação geral
das terras podia facilmente desencadear uma expropriação das
empresas industriais. Não foram seguidos nem pelos operários
nem pelos camponeses e o destino da burguesia foi decidido pela
aliança temporária entre estes dois grupos. Foram os operários e
não a burguesia que concluíram a revolução burguesa; o lugar
dos capitalistas foi tomado de assalto pelo aparelho estatal dos
bolcheviques, sob o slogan leninista:

"Se é necessário o capitalismo, façamo-lo nós mesmos".

Na verdade, os operários das cidades derrubaram o capitalismo


mas depressa encontraram um novo senhor: o governo
bolchevique. Nas cidades industriais, a luta dos trabalhadores
prosseguiu em nome das reivindicações socialistas e
independentemente da revolução camponesa em curso (pelo
menos na aparência, porque esta iria determinar a luta operária
de modo decisivo). As reivindicações revolucionárias dos
operários não puderam ser satisfeitas. Claro que os operários
podiam, com a ajuda dos camponeses, aceder ao poder estatal,
mas este novo Estado tomou rapidamente uma posição que se
opunha directamente aos interesses dos trabalhadores. Oposição
que assumiu um tal aspecto, que se pode hoje falar de "czarismo
vermelho": supressão das greves, deportações, execuções
massivas, e como consequência, nascimento de novas
organizações ilegais que travam uma luta comunista contra o
falso socialismo actual. O facto de hoje em dia se falar em
estender a democracia na Rússia, e em introduzir uma espécie
de regime parlamentar, ao mesmo tempo que a resolução do
último congresso dos Sovietes sobre o desmantelamento da
ditadura, não são mais que puras manobras tácticas destinadas a
atenuar a violência com que o governo tem ultimamente
reprimido a oposição. É preciso deixarmo-nos de tomar estas
promessas a sério; não são mais que a excrescência da prática
leninista que nunca hesitou em fazer duas coisas contraditórias
ao mesmo tempo quando isso se revelasse necessário para a sua
estabilidade e segurança. Este movimento em zig-zag da política
leninista explica-se pela necessidade do governo em se adaptar
constantemente às variações nas relações de força entre as
classes, de modo a manter-se sempre como senhor da situação.
Assim, o que ontem foi rejeitado é hoje aceite, e vice-versa; a
falta de princípios foi erigida em princípio, e o partido
bolchevique só se preocupa com o exercício do poder a qualquer
preço.

Contudo, o que aqui nos interessa é tão só demonstrar


claramente como a revolução russa não foi obra nem de Lenine
nem dos bolcheviques, mas da revolta camponesa. E o próprio
Zinoviev, ainda no poder na época e do lado de Lenine,
observava, a quando do XI congresso do partido bolchevique
(Março - Abril de 1922):

"Não foi a vanguarda proletária que se bateu ao nosso lado, que


decidiu da nossa vitória, mas sim o apoio que nos votaram os
soldados, porque queríamos a paz. E o exército eram os
camponeses. Se não tivéssemos sido apoiados por milhões de
soldados camponeses, nunca teríamos vencido a burguesia".

Como os camponeses se preocupavam mais com a terra do que


com o modo como era gerido o país, os bolcheviques tiveram
todo o vagar para conquistar o poder. Os camponeses deixaram
de boa vontade o Kremlin para os bolcheviques, com a única
condição destes não se entremeterem na sua luta contra os
grandes proprietários de terras.
A acção de Lenine foi mais determinante nas cidades. Pelo
contrário, foi arrastado, sem poder oferecer resistência, na
esteira dos operários que ultrapassavam em muito os
bolcheviques nas suas reivindicações e na sua prática, Lenine
não conduziu a revolução, foi a revolução que o conduziu. Se
bem que até ao levantamento de Outubro Lenine tenha
restringido as suas primeiras exigências ambiciosas, limitando-
se a reclamar o controlo da produção, e se bem que tenha
desejado parar, uma vez consumada a socialização dos bancos e
dos meios de transportes, sem chegar a abolir totalmente a
propriedade privada, os operários deviam ir mais além e
expropriar todas as empresas. Não deixa de ter interesse notar
que o primeiro decreto do governo bolchevique foi dirigido
contra as expropriações selvagens das fábricas, praticadas pelos
conselhos operários. Nessa época, os sovietes eram mais
poderosos que o aparelho do partido e Lenine foi forçado a
decretar a nacionalização de todas as empresas industriais. E foi
apenas sob a pressão dos operários que os bolcheviques
consentiram em alterar os seus planos. Pouco a pouco, o poder
estatal iria consolidar-se em detrimento dos sovietes que
actualmente, não têm mais que um papel decorativo.

Durante os primeiros anos da revolução, e até à introdução da


NEP em 1921, houve, no entanto, algumas experiências
realmente comunistas na Rússia. Elas foram, não obra de
Lenine, mas dessas forças que fizeram dele um verdadeiro
camaleão político, tão depressa reaccionário como
revolucionário. Iria assim fazer figura de extremista durante as
novas sublevações camponesas contra os bolcheviques, ao
conceder uma grande audiência aos operários e aos camponeses
pobres que tinham sido lesados pela primeira distribuição de
terras. Esta política foi um fracasso: os camponeses pobres
recusaram apoiar os bolcheviques. Lenine voltou-se então para
os camponeses médios, não hesitando em favorecer os
elementos capitalistas enquanto que os seus antigos aliados
eram abatidos a tiro, como aconteceu em Cronstadt.

O poder, nada mais que o poder; a isso se reduz, afinal, toda a


sabedoria política de Lenine. O facto do caminho escolhido e dos
meios utilizados para atingir esse fim determinarem, por seu
lado, o modo como esse poder era aplicado, não o preocupava
absolutamente nada. Para ele o socialismo, em última instância,
não era mais que uma espécie de capitalismo de Estado a partir
do "modelo dos correios alemães"(2). E devia ultrapassar este
capitalismo postal no seu lançamento, pois que, de facto, nada
mais havia a ultrapassar. Tratava-se unicamente de saber quem
beneficiaria com o capitalismo de Estado, e neste domínio
ninguém soube igualar Lenine. George Bernard Shaw, de
regresso da Rússia, não hesitava em declarar, numa conferência
na Sociedade Fabiana de Londres, que

"o comunismo russo não é senão a aplicação prática do


programa fabiano que defendemos à quarenta anos".

E, no entanto, ninguém até hoje pensou que os Fabianos


constituíssem uma força revolucionária à escala mundial.
Enquanto que Lenine é antes de mais, aclamado como um
revolucionário, não obstante o facto do actual governo russo,
encarregado de administrar o seu "domínio", publicar vigorosos
desmentidos cada vez que a imprensa fala de brindes feitos pelos
russos à revolução mundial — como aconteceu recentemente a
propósito de um artigo do New York Times sobre o Congresso
dos sovietes russos. A lenda que pretende que Lenine simbolize
a revolução mundial estabeleceu-se a partir da política
internacional consequente por ele seguida durante a Primeira
Guerra Mundial. Nessa época, Lenine não podia conceber que a
revolução russa não teria repercussões e que seria abandonada a
si mesma. E isto por duas razões: a primeira era que uma tal
concepção teria estado em contradição com a situação objectiva
que resultava da Primeira Guerra Mundial; a segunda era ele
supor que o ataque das nações imperialistas contra os
bolcheviques venceria a resistência da Revolução russa se o
proletariado da Europa ocidental não fosse em seu socorro. O
apelo de Lenine à revolução mundial era um apelo à defesa e à
manutenção do poder bolchevique. A prova disso é a sua
incoerência sobre a seguinte questão: ao mesmo tempo que
reclamava a revolução mundial, reivindicava o "direito de
autodeterminação de todos os povos oprimidos" para a sua
libertação nacional. Com estes dois slogans esperava
enfraquecer as forças de intervenção dos países capitalistas nas
questões russas, desviando a sua atenção para os seus próprios
territórios e colónias. Os bolcheviques podiam assim respirar
fundo e, para prolongarem o mais possível esta trégua, serviram-
se da sua Internacional. Esta assumiu uma dupla tarefa: por um
lado, submeter os trabalhadores da Europa ocidental e da
América às decisões de Moscovo; por outro, reforçar a influência
do Kremlin sobre os povos da Ásia oriental. A política
internacional reproduzia o percurso da Revolução russa. O
objectivo visado era unir os interesses dos operários e dos
camponeses à escala mundial e controlá-los através do órgão
bolchevique, a Internacional Comunista. O poder bolchevique
russo seria mantido pelo menos por este meio; e no caso da
revolução mundial se propagar realmente, os bolcheviques
poderiam dominar o mundo. Se o primeiro objectivo foi coroado
de êxito, o mesmo não aconteceu com o segundo. A revolução
mundial não pôde progredir como imitação da revolução russa, e
as limitações nacionais da vitória na Rússia fizeram
necessariamente com que os bolcheviques se mostrassem como
uma força contra-revolucionária à escala internacional. A
exigência de uma "revolução mundial" transformou-se pois
numa teoria da "construção do socialismo num só país". Tal não
é uma deturpação do pensamento de Lenine — como o afirma
hoje Trotsky — mas sim a consequência directa da pseudo
política de revolução mundial que o próprio Lenine seguiu.

Era evidente nessa época, mesmo para numerosos bolcheviques,


que se a revolução não fosse para além da Rússia, teria como
efeito entravar a revolução mundial. Na sua obra Os problemas
económicos da ditadura do proletariado, publicada em 1921 pela
Internacional comunista, Eugène Varga escrevia por exemplo:

"É de recear que a Rússia não possa mais ser a força motriz da
revolução internacional... Há comunistas que estão cansados de
esperar a revolução europeia e que desejam tirar o melhor
partido possível do seu isolamento nacional... Com uma Rússia
que se desinteressasse pela revolução social dos outros países, as
nações capitalistas teriam boa vizinhança. Longe de mim pensar
que um tal estrangulamento da Rússia revolucionária seria
suficiente para parar o avanço da revolução mundial. Mas a sua
evolução abrandaria".

Ao mesmo tempo, a acentuação das crises internas na Rússia


levaria a grande maioria dos comunistas a pensar assim. De
facto, já muito antes, em 1920, Lenine e Trotsky tinham feito o
possível para barrar o caminho às forças revolucionárias da
Europa. A paz mundial era indispensável para o estabelecimento
de um capitalismo de Estado na Rússia, sob os auspícios dos
bolcheviques. Não era nada desejável que essa paz fosse
perturbada por guerras ou por novas revoluções, porque nesse
caso, um país como a Rússia seria necessariamente implicado. É
assim que Lenine, através de cisões e de intrigas, decidiu impor
aos movimentos operários da Europa ocidental a via neo-
reformista que iria conduzir à sua desintegração. Apoiado por
Lenine, Trotsky dirigir-se-ia severamente aos insurrectos do
centro da Alemanha (1921):

"Diremos muito simplesmente aos operários alemães que


consideramos a táctica da ofensiva como das mais perigosas, e a
sua aplicação prática como o maior crime político".

Sempre com a aprovação de Lenine, e a propósito de uma outra


situação revolucionária, Trotsky declarava, em 1923, ao
correspondente do Manchester Guardian:

"Claro que nos interessamos pela vitória das classes


trabalhadoras, mas não teríamos de modo algum interesse em
ver rebentar uma revolução numa Europa exangue e em ver o
proletariado receber apenas ruínas das mãos da burguesia. Por
agora, queremos manter a paz".

Dez anos mais tarde, a Internacional Comunista não opôs a


mínima resistência à tomada do poder por Hitler. Trotsky não
tem apenas razão, mas deve também ter perdido a memória —
sem dúvida porque perdeu o uniforme — quando descreveu a
recusa de Estaline em apoiar os comunistas alemães como uma
traição aos princípios do leninismo. Ora este tipo de traição foi
constantemente praticado quer por Trotsky, quer por Lenine.
Mas não era uma das máximas de Trotsky que o que conta não é
o que se faz, mas quem o faz? Pela sua atitude para com o
fascismo alemão, Estaline mostrou-se, de facto, como o melhor
discípulo de Lenine. Os próprios bolcheviques não teriam
hesitado em contrair alianças com a Turquia e a sustentar
política e economicamente os governos desse país, mesmo numa
época em que os comunistas aí eram severamente reprimidos e,
por vezes, mais selvaticamente do que alguma vez o fez Hitler.

Se se tiver em conta que a Internacional Comunista, na medida


em que continua a existir, não é nada mais que a repartição de
turismo russa, e se se tiver em conta a derrota de todos os
movimentos comunistas dirigidos a partir de Moscovo, é bem
evidente que a lenda de Lenine, esse revolucionário
internacional, está neste momento de tal modo enfraquecida que
se pode esperar não ter mais lugar num futuro próximo. Já hoje
os nostálgicos da Internacional Comunista não utilizam mais o
conceito de revolução mundial, mas falam antes de "Pátria dos
trabalhadores", fórmula que os entusiasma tanto mais que aí
não têm que viver como operários. Os que persistem em fazer de
Lenine um revolucionário internacional, apenas pretendem, de
facto, despertar os velhos sonhos leninistas de domínio do
mundo, sonhos que a luz do dia reduziu a poeira.

Nenhuma personagem da história moderna foi tão mal


interpretada e tão desfigurada como o foi Lenine.
Demonstramos que não se lhe pode atribuir o sucesso da
revolução russa, e que a sua teoria e a sua prática não tinham o
alcance internacional que muitas vezes se lhes quis dar. Tal
como ele, apesar de todas as afirmações em contrário, não
alargou nem enriqueceu o marxismo. Na obra de Thomas B.
Brameld, A Philosofhical Approach to Communism,
recentemente publicada pela universidade de Chicago, o
comunismo é ainda definido como "uma síntese das doutrinas
de Marx, de Engels e de Lenine". E não é unicamente neste livro,
mas em toda a literatura do partido comunista, que Lenine é
assim situado. Estaline descreveu o leninismo como "o
marxismo do período imperialista". Mas uma tal apreciação só
se justifica por uma sobrevalorização sem fundamento de
Lenine. Porque Lenine não acrescentou ao marxismo o menor
elemento que possa ser qualificado como novo e original. A sua
posição filosófica não é outra que o materialismo dialéctico tal
como foi desenvolvido por Marx Engels e Plékhanov. E a ele se
refere para todo e qualquer problema importante — brandindo-o
como critério universal, como arma de última hora. Na sua
principal obra filosófica, Marxisme et empirio-criticisme,
limitou-se a repetir Engels, opondo as diferentes concepções
filosóficas e terminando pela oposição entre materialismo e
idealismo. O materialismo afirmando a prioridade da natureza
sobre o espírito, o idealismo partindo do ponto de vista inverso,
Lenine assumiu como sua esta definição, reforçando-a com
elementos emprestados a diversas fontes; não contribuiu com
qualquer maior enriquecimento para a dialéctica marxiana e é
impossível, no domínio filosófico, falar de uma escola leninista.

No domínio da economia, a obra de Lenine fica muito aquém do


que se quis fazer ver. Sem dúvida que os seus escritos
económicos são mais marxistas que os dos seus
contemporâneos, mas não passam da aplicação brilhante de
doutrinas existentes baseadas no marxismo. De resto, Lenine
não teve de modo algum a intenção de se erigir como teórico
económico original, pois que considerava ter já Marx, dito tudo
neste domínio. Convencido de que era impossível ultrapassar
Marx, ir-se-ia limitar a provar que os postulados marxistas
concordavam com a situação existente. A sua principal obra
económica, Le Développement du Capitalisme en Rússia
esclarece bem sobre esta questão. Lenine nunca quis ser algo
mais do que o discípulo de Marx e só a lenda pode falar de uma
teoria do "leninismo".

Lenine pretendia-se acima de tudo um político prático. As suas


obras teóricas são quase exclusivamente de natureza polémica.
Nelas ataca os inimigos teóricos e outros do marxismo, com o
qual se identifica. Para o marxismo, a prática decide da justeza
de uma teoria. Na qualidade de prático ao serviço do
pensamento de Marx, Lenine prestou talvez um grande serviço
ao marxismo. Contudo, toda a prática é, para o marxismo, uma
prática social que os indivíduos não podem modificar ou
influenciar senão em fraca medida, e sobre a qual nunca podem
ter acção decisiva. Não se pode negar que a união da teoria e da
prática, do objectivo final que se tem em vista e dos problemas
concretos que se põem a cada instante — preocupações
constantes de Lenine — não seja um grande sucesso. Mas este
sucesso só se pode medir pelo êxito que o acompanha, e este
êxito, já o dissemos, foi recusado a Lenine. Não só a sua obra se
demonstrou incapaz de fazer avançar o movimento
revolucionário mundial, como também não soube estabelecer as
condições prévias para a construção de uma verdadeira
sociedade socialista na Rússia. Os êxitos que pôde alcançar,
longe de o aproximar do seu objectivo, afastaram-no.

A situação que hoje existe na Rússia e a condição dos


trabalhadores em todo o mundo deveriam ser suficientes para
provar a qualquer observador comunista que a política
"leninista" actual é precisamente o contrário da fraseologia que
emprega. Esta contradição acabará por destruir a lenda artificial
de Lenine e a história poderá, finalmente, remeter Lenine para o
seu verdadeiro lugar.

Início da página

Notas:

(1) A burguesia. (N.T.F.) (retornar ao texto)

(2) L’État et la révolution, Éd. De Moscou p.66 (N.T.F.)


(retornar ao texto)

Inclusão 28/09/2010
Última atualização 23/11/2015

Você também pode gostar