O-Fim-do-Marxismo - Nildo Viana
O-Fim-do-Marxismo - Nildo Viana
Desde o inicio do século se fala em uma “crise do marxismo”. Hoje, mais do que
nunca, se fala em tal crise. Nós, ao contrário, observamos não uma crise do marxismo e
sim uma aproximação do fim do marxismo. Antes de esclarecermos tal tese, é necessário
analisar algumas das explicações “marxistas” da crise do marxismo e posteriormente
fundamentarmos a inconsistência de tal concepção.
Rosa Luxemburgo, já em 1903, falava do “Progresso e Estagnação do Marxis-
mo”. Ela toma como ponto de partida as afirmações de Karl Grün sobre os sistemas utó-
picos de Fourier e Saint-Simon. Para Grün, a explicação para o desenvolvimento das
idéias saint-simonianas está no fato de Saint-Simon ter elaborado mais uma variedade
de teorias do que um sistema acabado tal como Fourier, o que explicaria a pouca pene-
tração social das idéias deste último.
Rosa Luxemburgo pergunta: será este o motivo da estagnação do pensamento
marxista? Segundo ela, pouca coisa de original foi acrescentado ao marxismo depois da
morte dos seus fundadores. Mas Marx criou um sistema acabado? Segundo Rosa Lu-
xemburgo:
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cada fora da cultura atual”. Isto cria limites para o desenvolvimento do marxismo. O
problema não se encontra na obra de Marx: “não só Marx produziu o suficiente para
nossas necessidades, como também nossas necessidades não foram ainda suficiente-
mente grandes para que utilizássemos todas as idéias de Marx” (Luxemburgo, 1984, p.
57). Portanto, a utilização limitada do pensamento de Marx se deve à sua incompatibili-
dade com a cultura burguesa e porque ultrapassa as necessidades da luta do proletariado.
Para o comunista conselhista Karl Korsch, em 1931, o marxismo tanto como teo-
ria quanto como movimento se encontra em crise e esta é uma crise do marxismo e não
apenas dentro dele. Esta crise se revela, exteriormente, na perda da hegemonia no mo-
vimento operário europeu, e, interiormente, na separação entre teoria e prática do mar-
xismo, que se exprime na reforma da teoria e prática dos marxistas inclusive na nova
posição assumida diante do estado burguês (antes este era combatido e depois passou a
ser o alvo da estratégia política da social-democracia e do bolchevismo, que pretendem
conquistá-lo).
Korsch argumenta que essa separação surge da recepção do marxismo na segun-
da metade do século 19, tal como se dá pelo movimento operário europeu. Adota-se
determinados elementos da teoria marxista elaborada em outra época e aplica-os em
condições históricas diferentes realizando uma separação entre teoria e prática. Esta
separação aprofundou-se cada vez mais e sobre ela se fundamenta tanto o “revisionis-
mo” (Bernstein e outros), a “ortodoxia” (Kautsky) e o bolchevismo (Lênin). Esta adoção
já havia retirado do marxismo vários aspectos de seu caráter original e revolucionário
devido ao período histórico não ser revolucionário e sim de consolidação do capitalis-
mo. Assim, ocorre a deformação da teoria marxista: o materialismo histórico torna-se
uma teoria contemplativa da evolução objetiva da sociedade determinada por leis exte-
riores e a economia marxista deixa de ser uma crítica radical da economia burguesa tor-
nando-se um “sistema científico”.
Os principais representantes do marxismo revolucionário, tal como Rosa Lu-
xemburgo, teriam cometido o equívoco de considerar a “estagnação” da teoria marxista
um mal menor do que sua desfiguração pela cultura burguesa.
Para Korsch, nenhuma das orientações marxistas existentes atende às necessida-
des históricas da luta operária. O “marxismo ortodoxo” (Kautsky) revela-se uma mera
ideologia em desintegração enquanto que as duas outras correntes – o socialismo refor-
mista e o leninismo – podem ser assim definidos:
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“Parece um fato histórico incontrovertido que durante o período da
guerra e pós-guerra mundial a anterior ideologia, revolucionária e inimiga do
estado, própria do marxismo social-democrata dos países dominantes do sis-
tema mundial capitalista, os chamados países imperialistas, se transformaram
em toda a parte em um socialismo de estado reformista (...)”;
Enquanto que nos países periféricos do sistema mundial capitalista as classes
oprimidas
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dade que ultrapassa as necessidades práticas da classe trabalhadora. Por isso, ocorreu a
vulgarização do marxismo. Foram as necessidades práticas do movimento dos trabalha-
dores que levou à deformação de algumas teses do marxismo, tal como na substituição
do internacionalismo proletário pelo “socialismo num só país”. O essencial do marxis-
mo clássico, segundo Deutscher, continua válido.
Para Deutscher, existe um único elemento essencial na crítica marxista do capi-
talismo:
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capitalismo, mas colocando que a partir dele se tornará visível o papel do sujeito revolu-
cionário. A crise do marxismo se revela na impossibilidade de construir filosoficamente
um sujeito da revolução e na refutação da tese de que o desenvolvimento das forças pro-
dutivas engendra a sociedade comunista. Resta, para o marxismo, reformular teses como
a da abolição do estado e da produção de mercadorias que, segundo Heller, são impossí-
veis de se realizar. A crise do marxismo é constitutiva dele e isso se deve ao fato da teo-
ria marxiana não ser um “dogma” acabado e que pode ser reformulado e interpretado de
diversas formas. Por isso, ao lado da crise apresenta-se uma expansão e um renascimen-
to.
Em 1980, André Gorz disse que:
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des capitalistas (EUA e Inglaterra) vivia-se uma época de estabilidade e sem contesta-
ções revolucionárias. A partir desta época houve uma separação entre teoria e prática e
surgiria o “marxismo ocidental”. O marxismo se desloca dos partidos e sindicatos para
as universidades e institutos de pesquisa. Marxismo e movimento popular de desligam.
Segundo P. Anderson: “essa mudança de terreno institucional refletiu-se numa altera-
ção do foco intelectual. Enquanto Marx em seus estudos mudou sucessivamente da filo-
sofia para a política e desta para a economia, o marxismo ocidental inverteu sua rota”
(Anderson, 1984, p. 19).
O objeto de estudo do marxismo deixa de ser o desenvolvimento capitalista, a lu-
ta de classes, o estado burguês, etc. E passa a ser a estética, a literatura, a teoria do co-
nhecimento, a cultura, etc.
A partir das revoltas estudantis do final da década de 60 e das crises e contesta-
ções do início da década de 70, vê-se “um súbito gosto, um novo apetite pelo concreto”.
Os trabalhos sobre o desenvolvimento capitalista do trotskista Ernest Mandel acompa-
nhados pelos de Harry Braverman, Michel Aglietta, entre outros; as investigações histó-
rico-concretas e metodológicas da historiografia realizadas por Morishima, Steedman,
Roemer, Lippi, Krause e outros; a análise do estado capitalista efetuada por Poulantzas,
C. Offe, R. Miliband, G. Therborn, etc.; o estudo da estratificação social nas sociedades
capitalistas contemporâneas realizadas por E. O. Wright, G. Carchedi, Baudelot e Esta-
blet, etc.; a crítica da URSS e leste Europeu levada a cabo por R. Bahro, Nuti e Brus,
entre outros; demonstram a mudança de “foco intelectual” para questões concretas, ape-
sar da continuação de trabalhos sobre cultura e literatura feitas, por exemplo, por
Raymond Willians e Frederic Jameson, juntamente com estudos sobre filosofia tal como
o de G. Cohen.
Mas podemos observar que esta expansão do marxismo se dá principalmente na
Inglaterra e EUA. Entretanto,
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xismo (L. Coletti, J. Kristeva, A. Glucksman, etc.) e surgem ideologias reacionárias e
anticomunistas como a “nova filosofia”. Portanto, a crise do marxismo deve ser delimi-
tada histórica e geograficamente: o marxismo da Europa latina na década de 70.
Qual o motivo dessa crise do “marxismo latino”? O marxismo, segundo Ander-
son, explica seu desenvolvimento por razões extrínsecas a ele, mas esta explicação não
pode ser absoluta. É preciso complementá-la por uma história interna da teoria para de-
monstrar sua validade e vitalidade. Perry Anderson, para realizar tal análise, utiliza o
marxismo francês como exemplo. Este teria encontrado um adversário capaz de superá-
lo: o estruturalismo. Foi de dentro do próprio marxismo que se abriu a brecha para a
implantação da superioridade estruturalista: a obra de Althusser com seu “estruturalismo
marxista”. A problemática marxista da história das sociedades sempre encontrou uma
dificuldade não resolvida: a transformação histórica é resultado da luta de classes ou da
contradição entre forças produtivas e relações de produção? Ou, em outras palavras, é o
sujeito ou a estrutura que leva à transformação social? Althusser dissolve o sujeito o
sujeito na estrutura seguindo os passos de Lévi-Strauss, embora a estrutura, para este
último seja a linguagem. Graças ao estruturalismo, o modelo lingüístico passa a ser o
paradigma de todas as ciências humanas e é expresso nas obras de Lévi-Strauss, Lacan,
Foucault, entre outros. A predominância do estruturalismo é substituída pela do pós-
estruturalismo, a estrutura pelo sujeito, mas ambos derrotam o marxismo.
Mas isto não explica, por si só, as razões da crise do marxismo latino. Por isso, é
necessário retornar à história extrínseca do marxismo para explicá-la. Anderson diz que
foi o fracasso do kruschevismo na URSS e da Revolução Cultural na China juntamente
com o fiasco do eurocomunismo que gerou esta predominância do estruturalismo sobre
o marxismo. A decepção dos intelectuais marxistas como o “socialismo real” e como o
eurocomunismo provocou a crise do marxismo latino.
Mas o próprio Perry Anderson, em um escrito posterior, discorda da existência
de uma “crise do marxismo”. Para ele, o vocábulo crise significa o surgimento de algo
novo que marca uma ruptura com um estado de estabilidade anterior e o vocábulo mar-
xismo indica o plano da teoria. “Crise do marxismo” significaria, portanto, uma crise do
pensamento marxista. Isto, segundo Anderson, não ocorre com o marxismo, já que na
década de 70 há um verdadeiro reflorescimento da produção teórica marxista sobre o
capitalismo, o estado, a estratificação social, o “socialismo real”, etc.
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Mas, se tal “crise” se refere a uma crise da prática socialista, não se vê nenhuma
deterioração do sistema soviético nos últimos anos e, na verdade, as coisas na URSS
teriam melhorado (ele escrevia antes da crise do capitalismo estatal russo) e não piorado
(Anderson, 1991). Se se refere à situação do movimento operário nos países imperialis-
tas também não se pode sustentar a existência de uma crise, pois a classe operária nestes
países vem apresentando um poder reivindicativo altamente elevado e o fato de lhe fal-
tar uma estratégia e perspectiva revolucionária não expressa nada de novo que descreva
alguma incapacidade surgida recentemente em contraste com uma situação anterior dife-
rente.
Apesar disso tudo, existe um conteúdo autêntico na fórmula “crise do marxis-
mo”: é a crise do movimento comunista que se desprende da tradição da III Internacio-
nal e é produto das decepções da intelectualidade comunista da Europa Ocidental com o
maoísmo e o eurocomunismo. As derrotas eleitorais das esquerdas na Europa Ocidental
juntamente com as decepções acima citadas criaram junto aos intelectuais e trabalhado-
res uma “sensação difusa de uma crise do marxismo”.
P. Anderson tira disso três conclusões significativas:
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“Em certo estágio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradi-
ção com as relações de produção existentes ou, o que é a sua expressão jurídica, com as relações de
propriedade no seio das quais se tinham movido até então. De formas de desenvolvimento das forças
produtivas, estas relações transformam-se no seu entrave. Surge então uma época de revolução social”
(Marx, 1983, p. 24-25).
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ideologia da separação entre economia e política realizada pela ciência social contempo-
rânea.
O modo de produção capitalista expande a divisão social do trabalho. Esta divi-
são, no seu aparecer, é tomada como a realidade pela consciência coisificada (burgue-
sa) e é sistematizada pela ciência social. Essa cria uma fragmentação da realidade em
esferas autônomas e ao fazer isto cria a necessidade de reproduzir isto no seu próprio
interior. Assim, cria-se a divisão capitalista do trabalho intelectual e as diversas ciências
humanas, sociologia antropologia, historiografia, ciência política, psicologia, geografia,
etc. (Viana, 2007).
Mas na sociedade capitalista não se expande a divisão social do trabalho e isto
não cria realidades específicas que precisam ser estudadas e isto não justifica a existên-
cia das diversas ciências humanas? A especificidade existe, mas ela não cria setores
autônomos da realidade e sim elementos da totalidade que são submetidos, direta ou
indiretamente, à sua determinação fundamental, que é o modo de produção.
Em outras palavras, a formação de um estado gigantesco na sociedade capitalista
cria a aparência de que ele é autônomo. Essa aparência provoca o surgimento de uma
ciência específica, a ciência política, que irá sistematizá-la sob a forma de uma ideolo-
gia. Na verdade, o estado possui uma autonomia relativa, mas ele é determinado pelo
modo de produção e é inseparável deste. No mundo da ideologia, que se caracteriza pela
sistematização da falsa consciência (que se limita a ver a aparência), o estado torna-se
autônomo e independente do modo de produção.
Em síntese, a consciência coisificada da divisão social do trabalho produz uma
divisão do trabalho intelectual em diversas ciências que sistematizam essa consciência
coisificada sob cada aspecto particular da realidade social. Daí ser possível separar a
economia da política, falar em determinismo “econômico”, “geográfico”, etc., falar de
aspectos “sociológicos”, “antropológicos”, “históricos”, etc. Enfim, a divisão capitalista
do trabalho intelectual cria armaduras ideológicas sob as quais os intelectuais passam a
ver o mundo e estas se chamam ciências humanas (Viana, 2007).
Portanto, para o marxismo, a transformação social é produto da luta de classes e
não de nenhuma dicotomia entre “estrutura” e “sujeito”, entre “desenvolvimento das
forças produtivas” e “ação operária”, pois, de acordo com o seu ponto de vista, estas
distinções nem sequer existem.
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Neste sentido, a tese de A. Heller (e também a dicotomia entre “estrutura” e “su-
jeito” vista por P. Anderson) é totalmente equivocada. Não é, pois, no pensamento mar-
xista e em suas possíveis antinomias que se encontra a causa da “crise do marxismo”.
Tal crise será produzida pelas contradições externas? A suposta crise do mar-
xismo será produto da crise do movimento operário, tal como afirma A. Gorz? Esta hi-
pótese apresenta algumas dificuldades. O que significa falar em “crise do movimento
operário”? Na verdade, não significa nada. Seria mais correto falar em crise do movi-
mento revolucionário do proletariado. Ocorre, porém, que tal movimento só se eleva em
períodos revolucionários. Assim sendo, não haveria sentido em falar em “crise” do mo-
vimento revolucionário, pois tal “situação” é a mais constante em sua história.
A tese de Korsch sobre a separação entre teoria e prática é muito mais consisten-
te. A deformação do marxismo pela social-democracia, pelo bolchevismo e por outras
correntes são responsáveis, sem dúvida, pela estagnação (parcial) da teoria marxista.
Isto, entretanto, não quer dizer que tal fato provocou uma crise do marxismo.
A posição de Deutscher é muito menos consistente. O divórcio entre teoria e prá-
tica, revelado pela degeneração do marxismo clássico (no qual ele inclui, curiosamente,
Kautsky e Plekhanov, além, como era de se esperar por parte dele, Lênin e Trotski), teria
como causa a vulgarização do marxismo. E o que provoca a vulgarização do marxismo?
O fato de o marxismo clássico oferecer uma compreensão tão rica da realidade que ul-
trapassa as necessidades práticas da classe operária.
Esta tese de Rosa Luxemburgo, retomada por Deutscher, apresenta um endeusa-
mento desnecessário (e até prejudicial ao movimento operário, que deve rejeitar todo e
qualquer culto à autoridade) de Marx ou dos “marxistas clássicos” (Deutscher). A pro-
dução teórica de Marx é realmente rica e muitas de suas teorias ainda devem ser desco-
bertas, devido, entre outras coisas, a prolixidade de sua obra e o ofuscamento de suas
teorias pelas interpretações deformadoras de seu pensamento. Ocorre, porém, que dizer
que ela esgota ou explica a realidade, inclusive nos períodos históricos posteriores, é um
grande equivoco. O que acontece é geralmente o contrário: meras intuições ou afirma-
ções soltas são, devido às necessidades práticas do movimento operário, desenvolvidas e
se elevam ao nível de uma teoria.
Rosa Luxemburgo vai mais longe ao constatar que a ideologia dominante é a
ideologia da classe dominante e que o marxismo é a teoria da classe oprimida e que esta
está fora da cultura atual, sendo isto a razão da estagnação do marxismo. Entretanto, o
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que significa dizer que o marxismo está além das necessidades práticas do proletariado e
mesmo assim está estagnado? Desde o seu início o marxismo era incompatível com a
cultura burguesa e isto, por conseguinte, não pode explicar sua estagnação. Dizer que
existe outro motivo e que este é o fato do marxismo ultrapassam as necessidades da luta
operária, como já foi colocado anteriormente, é uma posição pouco convincente.
A posição de Anderson a respeito da crise do marxismo é de que há uma anti-
nomia no pensamento marxista (estrutura e sujeito) provocada por uma separação entre
teoria e prática. Como a primeira hipótese já foi refutada, focalizaremos apenas a segun-
da. Marx passou do estudo da filosofia para o da política e da economia enquanto que o
“marxismo ocidental” fez o contrário. Mudou-se o foco intelectual e o objeto de estudo
deixa de ser o capitalismo, o estado, etc., e passa a ser a estética, a literatura, a filosofia,
etc. Mas isto só se aplica a Europa Latina, que é onde se pode falar em crise do marxis-
mo. A causa de tal crise foi a decepção dos intelectuais dos países da Europa latina com
o “socialismo real” e o “eurocomunismo”.
Resta saber os motivos pelos quais esta decepção só atingiu os intelectuais da
Europa latina. Deixando de lado a defesa que P. Anderson faz do capitalismo de estado
da antiga URSS (que, segundo ele, vai – ou melhor, diríamos hoje, “ia” – muito bem,
bem para a burocracia, é claro), devemos dizer que a questão dos temas não convence.
Afinal, analisar o capitalismo, o estado, etc., não quer dizer nada dependendo do ponto
de vista que a análise é feita. Os ideólogos da burguesia, por exemplo, nunca deixaram
de analisar o capitalismo.
Em síntese, Anderson vê antinomia onde não existe, problema onde não há, de-
cepção apenas onde é conveniente vê-la. Na versão posterior, ele separa “crise da teoria”
de “crise da prática” (como se isto fosse possível). A teoria está melhor que antes e a
prática está em crise. Isto é o mesmo que dizer que os “marxistas” acadêmicos estão
produzindo volumosas ideologias e os “marxistas” práticos do movimento “comunista”
estão perdendo espaço político. Resta saber se tanto uns quanto os outros podem ser
considerados marxistas.
Na verdade, Anderson só pode fazer este tipo de análise por que esquece o cará-
ter de classe do marxismo. É por isso que ele pode tomar como parâmetro da crise do
marxismo não a íntima relação entre marxismo-marxistas e movimento operário e sim a
recepção e reprodução da “teoria” e prática pretensamente marxista e postular, assim,
uma separação entre “crise teórica” e “crise prática”.
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A última versão da crise do marxismo que iremos analisar é a de E. Laclau. Este
é o mais distante do marxismo. O primeiro questionamento ao marxismo é que ele toma
as classes sociais como “unidades últimas” da análise histórica. É por isto que ele não
pode compreender a questão racial e a questão feminina. Tal colocação é inexata. O
marxismo não toma as classes sociais como “unidades últimas” da análise histórica e
sim como o aspecto fundamental desta análise. Por ser o aspecto fundamental, é no es-
tudo das classes sociais que se explicam as demais “unidades”, últimas ou não, incluin-
do aí a questão racial e a questão feminina. Aliás, desde Marx foram feitas inúmeras
tentativas neste sentido2.
Outro questionamento se refere à concepção de Marx segundo existem leis obje-
tivas na história e na sociedade que as unificam e lhe dão uma direção pré-determinada.
Isto é verdade no que se refere a alguns epígonos de Marx, mas não ao próprio. Para
Marx, a história é feita pelos seres humanos e não possui “leis” e sim tendências. A tese
dos cinco estágios da evolução humana é uma criação do stalinismo e não de Marx. Para
ele, não há uma evolução unilinear que vai do modo de produção escravista passando
pelo feudalismo e capitalismo até chegar ao comunismo. A sua afirmação de que a Rús-
sia poderia chegar ao comunismo sem passar pelo capitalismo é uma prova disto.
Uma citação, entretanto, resolve toda esta questão. Segundo Marx, sua concep-
ção de história de foram alguma oferece “uma receita ou um esquema onde as épocas
podem ser enquadradas” (Marx e Engels, 1991, p. 38). Marx não apresenta nenhuma
concepção naturalista da sociedade. Para ele, a história da sociedade se distingue da his-
tória natural porque a primeira é produzida pelos seres humanos e a segunda não. Por-
tanto, existe uma distinção entre natureza e sociedade e tal reconhecimento refuta qual-
quer afirmação de que Marx tentou realizar uma “naturalização do social” ou transferir
as “leis da natureza” para a sociedade.
O terceiro questionamento de Laclau é desviado, curiosamente, de Marx para a
Segunda Internacional e sua concepção economicista. Tal “desvio” retira toda validade
de tal questionamento, pois a Segunda Internacional não é considerada marxista pela
maioria das correntes auto-intituladas marxistas. A conclusão de Laclau é que o mar-
2
Houve muitas tentativas de utilizar a análise marxista para se compreender tanto a questão racial (O. Cox,
P. Baran e P. Sweezy, etc.) quanto à questão feminina (F. Engels, C. Zetkim, A. Kollontai, A. Bebel, E.
Leacock, K. Sacks, M. Godelier, entre inúmeros outros), que podem até ser consideradas analises pseu-
domarxistas, mas que possui relevância e proximidade com a abordagem marxista e tendo em vista a vi-
são de marxismo de Laclau, que engloba todos estes autores, tal afirmação só pode ser fruto de má-fé ou
ignorância.
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xismo deve ser substituído por uma concepção nova de política, centrada na prática dis-
cursiva. A estratégia se fundamenta na elaboração de novos discursos. Esta concepção
ideológica, entretanto, não tem mais nada a ver com o marxismo e significa que a análi-
se de Laclau sobre a crise do marxismo é não-marxista de forma explícita. Trata-se de
uma concepção tipicamente burguesa, calcada numa concepção evolucionista do saber,
segundo a qual a última idéia é que é a verdadeira. É assim que Laclau pode postular a
superação do marxismo pelo desenvolvimento científico.
O marxismo está em crise? Para responder a esta questão é necessário responder
a duas outras, a saber: a) o que significa a palavra crise? B) o que é o marxismo?
A palavra crise expressa um conceito universal, ela é dependente de outro ser,
pois toda crise é crise de alguma coisa. Consideramos que a melhor definição de crise
que conhecemos foi a de Jürgen Habermas: “as crises surgem quando a estrutura de um
sistema social permite menores possibilidades para resolver o problema de que são
necessárias para a contínua existência do sistema” (Habermas, 1980, p. 13).
Entretanto, devemos reconhecer as limitações desta concepção. Em primeiro lu-
gar, crise é um conceito universal e, portanto não se refere somente a “sistemas sociais”;
em segundo lugar, as dificuldades de reprodução de um “ser” (ou “coisa” ou, na lingua-
gem adotada por Habermas, “sistema”) não significam necessariamente uma crise. O
capitalismo, por exemplo, sempre encontrou dificuldades em se reproduzir e sendo as-
sim não há sentido em se falar de crise do capitalismo, pois isto seria uma característica
dele e o acompanharia sempre. Neste caso, a banalidade da crise lhe retiraria qualquer
elemento explicativo e o conceito de crise se tornaria vazio e inútil.
Esta definição, contudo, pode ser corrigida, se considerarmos que crise é um
processo no qual um ser encontra dificuldades crescentes para realizar sua reprodução.
Desta forma, podemos dizer que uma crise começa a ocorrer quando surge uma dificul-
dade de reprodução ou então, quando esta dificuldade se torna constitutiva desse ser,
então deixa de ser crise e o mesmo quando ela se torna maior, mas ganha estabilidade.
Nesse último caso, só se pode falar em crise quando ela se torna maior ainda. Daí a de-
finição acima, segundo a qual só existe crise quando um ser encontra dificuldades cada
vez maiores para se reproduzir. Por conseguinte, o conceito de crise remete a um mo-
mento histórico preciso, que é marcado pelo fim da estabilidade e pela sua suspensão
por um tempo determinado e que é relativamente curto. O fim da crise é marcado pelo
fim do ser em questão ou então pela volta da estabilidade anterior existente neste ser.
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Resta-nos agora definir o que é o marxismo. O marxismo é a expressão teórica
do movimento operário (Korsch, 1977; Viana, 2007). Ele é expressão dos interesses de
classe do proletariado sob a forma de teoria (expressão da realidade articulada num uni-
verso conceitual). Tal definição acarreta diversas conseqüências, entre as quais a indis-
solubilidade da ligação entre marxismo e proletariado. Disto decorre, por sua vez, o fato
de que a visão de mundo veiculada pelo marxismo é antagônica a visão burguesa de
mundo.
Neste sentido, o marxismo é incompatível com a ideologia burguesa, tanto em
sua forma dominante (a ciência) quanto em suas formas subordinadas (religião, filoso-
fia, etc.). o marxismo não é uma ciência, uma filosofia ou uma religião. Do ponto de
vista formal, ele é uma teoria.
Desta forma, a tese de Rosa Luxemburgo é correta. A ideologia dominante é a
ideologia da classe dominante, da burguesia, e o marxismo é a teoria da classe domina-
da, do proletariado. Isto significa, entre outras coisas, que o marxismo é uma concepção
de mundo marginalizada na sociedade capitalista.
Seria muito estranho imaginar que nas universidades (instituições burguesas),
nas livrarias, nos partidos, tudo que se autodenomina marxista realmente o fosse, pois,
neste caso, teríamos um exército numeroso de marxistas em todos os lugares e institui-
ções da sociedade. O marxismo que está presente nestes lugares e instituições é o mar-
xismo assimilado pela cultura burguesa. Trata-se de um marxismo deformado e domes-
ticado, inofensivo. Ele é transformado em ciência social (positivismo), em filosofia
(conjunto de abstrações metafísicas), etc. Ele perde o seu caráter de classe, revolucioná-
rio, teórico.
Mas permanece existindo, no submundo da sociedade capitalista, o marxismo
autêntico. Este só pode ser o marxismo marginal, que vive à margem da sociedade capi-
talista. Algumas expressões individuais deste marxismo foram Korsch, Pannekoek, Gor-
ter, Mattick, Rühle, H. Wagner, entre outros.
A marginalização da teoria revolucionária é uma experiência constante e cotidia-
na no capitalismo. Somente em épocas de rupturas revolucionários é que o marxismo
reaparece em cena para assumir o seu lugar verdadeiro.
Portanto, Rosa Luxemburgo e Karl Korsch foram os que mais avançaram sobre a
compreensão do marxismo e de sua situação na sociedade capitalista. Porém, somente
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hoje a questão aparece com uma clareza cristalina, e o próprio destino da vida e obra
destes dois representantes do marxismo confirma a conclusão que nos é imposta.
A conclusão a que chegamos é a de que o marxismo não está em crise e nunca
esteve. O marxismo sempre foi marginalizado na sociedade capitalista e a sua margina-
lização atual apenas confirma o seu caráter revolucionário3.
O marxismo sempre teve dificuldades em se reproduzir na sociedade capitalista e
sempre foi marginal no interior desta sociedade dominada pela cultura burguesa. Mas se
o marxismo não está em crise, o que significa o abandono dele por diversos indivíduos,
a diminuição de sua influência social, acadêmica e política? Significa, na verdade, uma
crise do “marxismo” deformado pela cultura burguesa e pela burocracia, ou seja, signifi-
ca não uma crise do marxismo e sim uma crise do pseudomarxismo. Trata-se de uma
crise do bolchevismo (leninismo, trotskismo, stalinismo), do “marxismo” acadêmico e
do “marxismo” social-democrata.
Portanto, não existe nenhuma crise do marxismo. Na verdade, o que ocorre é
uma aproximação do fim do marxismo. O que significa isto? Segundo Marx, em seus
escritos de juventude, o proletariado é o coração da revolução e a filosofia é a sua cabe-
ça. Posteriormente, ele abandonaria a filosofia e a substituiria, tal como colocou Marcu-
se, pela teoria dialética da sociedade (Marcuse, 1988).
Mas, se a filosofia foi superada como “cabeça da revolução”, o que tomou o seu
lugar? Só pode ter sido o próprio marxismo. Quando Marx dizia filosofia, ele pensava
na “filosofia” materialista que era expressão do proletariado e que estava nascendo na-
quele período. Tal “filosofia” materialista eram as idéias revolucionárias do período e
um dos seus principais representantes era o próprio Marx, que, posteriormente, se torna-
ria o seu maior representante. Hoje, entretanto, não se pode dizer que se trata de uma
filosofia e sim de uma teoria e esta só pode ser o marxismo.
Portanto, podemos hoje substituir a palavra filosofia, equivocada e inexata, pela
palavra teoria ou marxismo. No mesmo escrito, Marx fala do fim da filosofia. Hoje,
falaremos do fim do marxismo. O fim da filosofia, para Marx, seria a realização da filo-
sofia materialista do proletariado, ou seja, quando o proletariado realizar a revolução
3
“Nada prova de maneira mais peremptória o caráter revolucionário das teorias de Marx do que a dificul-
dade de assegurar a sua manutenção nos períodos não revolucionários. (...) Um revolucionário não pode
deixar de, de tempos em tempos, se encontrar à margem da situação. Crer que uma prática revolucioná-
ria, exprimindo-se através da ação autônoma dos trabalhadores, é possível em todos os momentos, sig-
nifica aceitar as ilusões democráticas” (Mattick, 1977, p. 56-57.)
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social e confirmar a teoria marxista na prática. Traduzindo para a linguagem revolucio-
nária atual, o fim do marxismo só ocorrerá através de sua realização.
O modo de produção capitalista se caracteriza pela luta incansável entre burgue-
sia e proletariado. O marxismo anunciou que o proletariado seria o coveiro da burgue-
sia. Quando isto ocorrer, o marxismo se realizará, e, desta forma chegará ao seu fim,
pois numa sociedade autogerida, onde não existem mais classes sociais, o marxismo terá
o valor de uma teoria que explicou a existência, contradição e o fim da sociedade capita-
lista. Mas a futura sociedade socialista será totalmente diferente e por isso muitos ele-
mentos da teoria marxista tornar-se-ão deslocados e serão substituídos por novos ele-
mentos, adequados à nova realidade. Sem dúvida, grande parte do marxismo ainda so-
breviverá e será o ponto de partida da nova mentalidade e da teoria da realidade social e
natural, o que significa que ele continuará, com algumas alterações existindo, mas anali-
sando uma realidade totalmente diferente e, portanto, assumindo mudanças radicais.
A teoria do capitalismo, dos modos de produção pré-capitalistas e das relações
sociais burguesas será de utilidade para a reconstituição da história da humanidade, mas
a sua teoria do capitalismo não servirá para compreender a nova sociedade baseada na
autogestão social, que traz a necessidade de novos conceitos, apenas esboçados atual-
mente por algumas formas de manifestação de uma consciência antecipadora. Os seus
elementos mais abrangentes persistirão, mas a teoria do capitalismo não fornece concei-
tos aplicáveis ao modo de produção comunista. O marxismo deixará de ser um pensa-
mento entre outras formas de pensamento existentes e se torna uma manifestação cultu-
ral da população em geral, não sendo mais apenas acessível ao círculo dos trabalhadores
intelectuais, que deixaram de existir. O marxismo será parte da consciência coletiva e da
produção cultural da humanidade. Inclusive o nome “marxismo” perderá o sentido e,
conseqüentemente, o seu uso. Neste sentido, a revolução autogestionária significará o
fim do marxismo.
O modo de produção capitalista é apresentado pelos ideólogos da burguesia co-
mo sendo eterno. Os falsos adversários do capitalismo justificam seu imobilismo afir-
mando que a “crise final do capitalismo” virá e ele será destruído. Outros falsos adversá-
rios, também para justificar seu imobilismo, dizem que a revolução virá mais daqui um
ou dos séculos.
Contra os ideólogos burgueses devemos colocar que o capitalismo não é eterno e
que o seu fim virá mais cedo ou mais tarde. Contra os adeptos da tese da “crise final do
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capitalismo”, que ocorreria mecanicamente a partir da crise econômica, declaramos que
o capitalismo possui a tendência de repetir ciclicamente suas crises, mas que ele também
cria contra-tendências e que busca e, muitas vezes consegue, conter suas crises. A crise
do capitalismo só ocorre quando o proletariado entra em ação e corrói as relações de
produção capitalistas. Contra os adeptos da tese da “revolução do futuro distante”, afir-
mamos que apesar do capitalismo resistir e criar mecanismos para evitar sua crise, ele só
pode fazê-lo dentro de determinados limites e que existe um limite que é o do seu esgo-
tamento histórico, e a este ele não pode resistir. O capitalismo dificilmente se manterá
no século 21, pois suas forças se esgotam a cada dia, suas estratégias se tornam cada vez
mais limitadas e contraditórias, e por isso ele ao poderá sobreviver utilizando as mesmas
manobras do passado.
O século 21 será marcado por um grande acontecimento histórico: o fim do capi-
talismo e o fim do marxismo.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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