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Professor Sustentabilidade Compressed Compressed Compressed

O documento aborda a importância da ciência, inovação e ética na promoção da sustentabilidade, destacando o Programa Agrinho como uma iniciativa educacional que envolve crianças e professores em temas de cidadania e meio ambiente. Com 26 anos de atuação, o programa utiliza uma abordagem interdisciplinar e incentiva a pesquisa, visando desenvolver uma educação crítica e criativa. O livro reúne artigos de especialistas que visam auxiliar professores na implementação dessas temáticas em suas práticas pedagógicas.

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O documento aborda a importância da ciência, inovação e ética na promoção da sustentabilidade, destacando o Programa Agrinho como uma iniciativa educacional que envolve crianças e professores em temas de cidadania e meio ambiente. Com 26 anos de atuação, o programa utiliza uma abordagem interdisciplinar e incentiva a pesquisa, visando desenvolver uma educação crítica e criativa. O livro reúne artigos de especialistas que visam auxiliar professores na implementação dessas temáticas em suas práticas pedagógicas.

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— CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA —

TECENDO REDES E CONEXÕES PARA A


SUSTENTABILIDADE

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ORGANIZADORES | Cleverson V. Andreoli e Patricia Lupion Torres

— CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA —

TECENDO REDES E CONEXÕES PARA A


SUSTENTABILIDADE

Adriana Mocelim | Afonso Vieira | Aluízio Borém | Ana Camila Palma Kotinda
Andrea da Luz Sanches | Angelo José da Silva | Annelissa Gobel Donha | Antonio Carlos Pinto Jachinoski
Antonio T. Camilo Cunha | Araci Asinelli-Luzs | Arlindo Philippi Jr. | Cândido Borges | Charles Carneiro
Cinthya Hoppen | Claudio R. Brito | Cleverson V. Andreoli | Cristiane Piccinini | Dagoberto H. Requião
Daniel Albiero | Darci Vieira da Silva Bonetto | Dilermando Brito Filho | Dra. Elisabeth Seraphim Prosser
Eleusis Ronconi de Nazareno | Elza Sbrissia Artigas | Ericson Falabretti | Etelvina Maria de Castro Trindade
Etiane Caloy Bovkalovski | Eugênio L. Stefanelo | Fabiana de Nadai Andreoli | Fernanda Marder Torres
Fernando Curi Peres | Gustavo Estanislau | Ivonete Coelho da Silva Chaves | Izabella Andrade Brito
Jelson R. de Oliveira1 | Jorge Justi Junior | José Henrique de Faria | José Roberto Canziani
Julio Cesar Bisinelli | Kauê de Andrade Monteiro | Kauê Sebastião Barbosa Cardoso
Kleber Bez Birolo Candiotto | Lucia Santaella | Luiz Carlos Bleggi Torres | Márcia Scholz de Andrade Kersten
Márcio J. Kerkoski | Marcos Henrique Sant’Ana do Nascimento, MD. | Maria Cecilia Barreto Amorim Pilla
Marília Diaz | Marisa Atsuko Toyonaga | Marlon Wesley Machado Cunico | Melany M. Ciampi
Patrícia Lupion Torres | Paulo da Lana Cunha | Paulo Sandoval, MD. | Pedro Kiatkoski Kim
Rafael Küster de Oliveira | Ricardo Tescarolo | Roberta Matassoli Duran Flach | Roberto C. S. Pacheco
Rodrigo Affonseca Bressan | Rodrigo Trindade | Rossana Baldanzi | Simone Tetu Moysés
Suely Ferreira Deslandes | Tamara Vigolo Trindade | Thereza Cristina Gosdal | Valdir Fernandes
Vania Di Addario Guimarães | Vera Maria Gilberti Rocha | Wilson Maske

CURITIBA
2021

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Depósito legal na CENAGRI, conforme Portaria Interministerial n.164, datada de 22 de julho de
1994 e junto a Fundação Biblioteca Nacional e Centro de Editoração, Documentação e Informação
Técnica do SENAR AR-PR

Organização: Cleverson V. Andreoli e Patrícia Lupion Torres


Coordenação técnica: Arthur Piazza Bergamini – CREA-PR-84035/D
Coordenação pedagógica: Josimeri Aparecida Grein
Coordenação gráfica: Carlos Manoel Machado Guimarães Filho
Coordenação Editorial: Patrícia Lupion Torres
Projeto Gráfico e Capa: Glauce Midori Nakamura
Ilustrações: Sincronia Design Gráfico Ltda.
Diagramação: Sincronia Design Gráfico Ltda.
Normalização e revisão final: CEDITEC – SENAR AR/PR

Andreoli, Cleverson V. [e] Torres, Patrícia Lupion.

A559
Ciência, inovação e ética : tecendo redes e conexões para
a sustentabilidade / Cleverson V. Andreoli [e] Patrícia Lupion Torres
(organizadores). – Curitiba : SENAR AR-PR., 2021.
1000 p.

ISBN 978-65-88733-01-1

1. Educação. 2. Temas transversais. 3. Sustentabilidade. 4.


Ensino Aprendizagem. 5. Redes. Torres, Patrícia Lupion, org. II. Título.

CDU37(816.1)
CDD370

Rita de Cassia Teixeira Gusso – CRB 9/647

Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, por qualquer meio,
sem a autorização do editor.

IMPRESSO NO BRASIL – DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

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5

— APRESENTAÇÃO —

Agrinho é o maior programa de responsabilidade social do Sistema FAEP, resultado da parceria entre
o SENAR-PR, FAEP, o governo do Estado do Paraná, por meio das Secretarias de Estado da Educação
e do Esporte, do Desenvolvimento Sustentável e do Turismo, da Agricultura e do Abastecimento, os
municípios paranaense e diversas empresas e instituições públicas e privadas.
O Programa Agrinho completa 26 anos de trabalhos no Paraná, levando às escolas das redes
pública e privada de ensino uma proposta pedagógica baseada em visão complexa, na inter e
transdisciplinaridade e na pedagogia da pesquisa.
Anualmente, o programa envolve a participação de aproximadamente um milhão de crianças e
milhares de professores da educação infantil, do ensino fundamental e da educação especial, estando
presente em todos os municípios do Estado. E, por envolver tão significativo público, tem, de nossa
parte, um empenho comovido. Como experiência bem-sucedida, encontra-se também em diversos
estados do Brasil.
Criado com o objetivo de levar informações sobre cidadania, saúde e segurança pessoal e
ambiental, principalmente às crianças do meio rural, o Programa se consolida como instrumento
eficiente na operacionalização de temáticas de relevância social da contemporaneidade dentro dos
currículos escolares.
Especialistas altamente qualificados, de renome nacional e internacional, de diversos grupos de
pesquisa que trabalham em rede, fundamentam as informações que compõem o material didático
preparado com exclusividade para o Programa. Pelo incentivo à pesquisa, defende-se uma educação
crítica, criativa, que desenvolva a autonomia e a capacidade de professores e alunos assumirem-se como
pesquisadores e produtores de novos conhecimentos.
O Concurso realizado todos os anos nas categorias redação, desenho, experiência pedagógica,
escola e Município Agrinho serve a um só tempo como instrumento de avaliação do alcance das
atividades e como uma amostra daquilo que o Programa vem provocando em termos de ações efetivas.

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6

O elevado grau de apropriação dos temas apresentados nos materiais, por crianças e adolescentes
do Ensino Fundamental, pode também ser comprovado pela Experiência Pedagógica, um relato dos
professores sobre a prática educacional que desenvolvem no Programa Agrinho.
Desde seu início em 1995, os professores do ensino público municipal e estadual, os professores do
ensino privado, as crianças e os jovens recebem com entusiasmo e dedicação as atividades do Programa
Agrinho. A cada ano esse trabalho vem se superando em qualidade e criatividade.
Este livro reúne os artigos elaborados com o propósito de auxiliar os professores no desenvolvimento
das temáticas em sua prática diária. Esta será uma edição exclusiva, distribuída para todos os professores
envolvidos neste Programa nos próximos anos.

Ágide Meneguette
Presidente do Conselho
Administrativo do SENAR-PR

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7

— COMITÊ EDITORIAL —

Arlindo Philippi Jr (Universidade de São Paulo – USP)


Carlos Alberto Cioce Sampaio (Universidade Regional de Blumenau – FURB)
Gustavo Collere Possetti (Instituto Superior de Administração e Economia do Mercosul – ISAE)
Jose Alfaro (University of Michigan – UM)
Lia Maris Orth Ritter Antiqueira (Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR)
Marcelo Limont (Universidade Positivo – UP)
Maria Cristina Basilio Crispim da Silva (Universidade Federal da Paraíba – UFPB)
Maria do Carmo Martins Sobral (Universidade Federal de Pernambuco – UFPE)
Mario Sergio Michaliszyn (Universidade Positivo – UP)
Renata Maria Caminha M. O. Carvalho (Instituto Federal de Pernambuco – IFPE)
Ricardo Ojima (Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN)
Taciana Leme (Agência Nacional de Águas – ANA)
Tadeu Fabricio Malheiros (Universidade de São Paulo – USP)
Tamara Van Kaick (Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR)
Valdir Fernandes (Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR)
Valdir Frigo Denardin (Universidade Federal do Paraná -UFPR)
Vânia Zuin (Universidade Federal de São Carlos – UFSCAR )

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9

— SUMÁRIO —

PREFÁCIO ...................................................................................................................................15
Dra. Blanca Elena Jiménez Cisneros

REDES E CONEXÕES PARA COMPOR OS LIAMES DO CONHECIMENTO...................17


Patrícia Lupion Torres

COMPLEXIDADE E SUSTENTABILIDADE: FUNDAMENTOS DO PROGRAMA


AGRINHO....................................................................................................................................35
Patrícia Lupion Torres
Cleverson V. Andreoli

A INTEGRAÇÃO CAMPO-CIDADE: QUEBRANDO PARADIGMAS..................................45


Eugênio Libreloto Stefanelo
Paulo da Lana Cunha

O PROJETO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NA PERSPECTIVA DE JOHN SEARLE:


UMA REFLEXÃO ÉTICA SOBRE APRENDIZAGEM E PRÁTICA DOCENTE...................65
Kleber Bez Birolo Candiotto

CIÊNCIA DIGITAL E DEMOCRATIZAÇÃO DO CONHECIMENTO ...............................79


Roberto C. S. Pacheco
Valdir Fernandes

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10

EMPREENDEDORISMO COMO MÉTODO: PREPARANDO PROFISSIONAIS PARA


A QUARTA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL...............................................................................105
Cândido Borges

REFLEXÕES SOBRE EDUCAÇÃO NO MUNDO DAS TIC.................................................117


Valdir Fernandes

DIAGNÓSTICO SOBRE O PAPEL DA IMPRESSÃO 3-D NA QUARTA REVOLUÇÃO


INDUSTRIAL ............................................................................................................................129
Marlon Wesley Machado Cunico

ROBÓTICA E NANOTECNOLOGIAS: IMPACTOS TECNOLÓGICOS E SUAS


RUPTURAS SOCIAIS................................................................................................................155
Daniel Albiero

CIÊNCIA E TECNOLOGIA À LUZ DA INTERDISCIPLINARIDADE................................189


Arlindo Philippi Jr.
Valdir Fernandes

SERVIÇOS ECOSSISTÊMICOS NA QUARTA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL....................201


Rafael Küster de Oliveira
Cleverson Vitório Andreoli

OBJETIVOS DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL (ODS) E FATORES


INTERVENIENTES PARA O ATINGIMENTO DAS METAS...............................................249
José Henrique de Faria
Charles Carneiro

CRISE AMBIENTAL, O MAIS URGENTE DESAFIO ÉTICO DOS NOSSOS TEMPOS...277


Jelson R. de Oliveira

AS FORMAS DA DEMOCRACIA: CONSENSO E CONFLITO...........................................289


Ericson Falabrett

COMPORTAMENTO SUICIDA: O QUE OS EDUCADORES DEVEM SABER................309


Gustavo Estanislau
Rodrigo Affonseca Bressan

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11

BIODIVERSIDADE: A IMPORTÂNCIA DA PRESERVAÇÃO AMBIENTAL PARA


MANUTENÇÃO DA RIQUEZA E EQUILÍBRIO DOS ECOSSISTEMAS ..........................329
Cleverson V. Andreoli
Fabiana de Nadai Andreoli
Cristiane Piccinini
Andrea da Luz Sanches
Izabella Andrade Brito

BIOTECNOLOGIA NA AGRICULTURA: RISCOS E BENEFÍCIOS


SOCIOAMBIENTAIS.................................................................................................................363
Aluízio Borém

MUDANÇAS CLIMÁTICAS: UMA ABORDAGEM CONCEITUAL SOBRE ESSE


PROBLEMA AMBIENTAL GLOBAL.......................................................................................377
Cleverson V. Andreoli
Fabiana de Nadai Andreoli
Pedro Kiatkoski Kim
Kauê de Andrade Monteiro

RELAÇÃO ENTRE A QUALIDADE E A QUANTIDADE DE ÁGUA NO AMBIENTE


URBANO E RURAL...................................................................................................................407
Cleverson V. Andreoli
Fabiana de Nadai Andreoli
Annelissa Gobel Donha
Ana Camila Palma Kotinda
Kauê Sebastião Barbosa Cardoso

FORMAÇÃO E CARACTERÍSTICAS DOS SOLOS PARA O ENTENDIMENTO DE


SUA IMPORTÂNCIA AGRÍCOLA E AMBIENTAL................................................................429
Cleverson V. Andreoli
Fabiana de Nadai Andreoli
Jorge Justi Junior

RESÍDUOS SÓLIDOS: ORIGEM, CLASSIFICAÇÃO E SOLUÇÕES PARA


DESTINAÇÃO FINAL ADEQUADA.......................................................................................451
Cinthya Hoppen
Cleverson V. Andreoli
Fabiana de Nadai Andreoli
Rodrigo Trindade
Tamara Vigolo Trindade

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12

ALTERNATIVAS VIÁVEIS PARA USO DE RESÍDUOS SÓLIDOS – ASPECTOS


GERAIS.......................................................................................................................................469
Ivonete Coelho da Silva Chaves
Rossana Baldanzi

ÉTICA E CONSUMO................................................................................................................495
Ricardo Tescarolo

CONSUMO RESPONSÁVEL....................................................................................................505
Valdir Fernandes
Afonso Vieira

MERCADO DE TRABALHO NA QUARTA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL: O DESAFIO


DE FORMAR PROFISSIONAIS PARA CARREIRAS QUE AINDA NEM EXISTEM..........521
Claudio R. Brito
Melany M. Ciampi

PRECONCEITOS1 E DISCRIMINAÇÃO NAS RELAÇÕES DE TRABALHO....................545


Thereza Cristina Gosdal

A AGRICULTURA BRASILEIRA E O EMPREENDEDORISMO RURAL............................553


Fernando Curi Peres
Vania Di Addario Guimarães
José Roberto Canziani

ESTADO E PODER....................................................................................................................569
Angelo José da Silva

OS DIREITOS HUMANOS NA HISTÓRIA............................................................................577


Adriana Mocelim
Etiane Caloy Bovkalovski

UMA JORNADA HISTÓRICA PELO PARANÁ: TERRA, HOMENS E VIDA


MATERIAL..................................................................................................................................601
Etelvina Maria de Castro Trindade

TRÂNSITOS ATLÂNTICOS: HISTÓRIA, CULTURA E SENSIBILIDADES


AFRICANAS NO BRASIL..........................................................................................................631
Maria Cecilia Barreto Amorim Pilla
Wilson Maske

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13

PLURALIDADE CULTURAL – O CONCEITO DE CULTURAL.........................................651


Márcia Scholz de Andrade Kersten

ARTE EM TODO LUGAR: CAMINHOS DO COTIDIANO E HISTÓRIA DAS ARTES


VISUAIS DO PARANÁ..............................................................................................................665
Dra. Elisabeth Seraphim Prosser

TECENDO UMA REDE DE RELAÇÕES: INTERCULTURALIDADE E O ENSINO


DAS ARTES VISUAIS.................................................................................................................731
Marília Diaz

LAZER, MOTRICIDADE HUMANA E INTELIGÊNCIA EMOCIONAL NO


DESENVOLVIMENTO DE POSTURAS INOVADORAS E ÉTICAS....................................747
Antonio T. Camilo Cunha
Márcio J. Kerkoski

SAÚDE COLETIVA....................................................................................................................757
Eleusis Ronconi de Nazareno

ETAPAS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO ..................................................................779


Luiz Carlos Bleggi Torres
Fernanda Marder Torres

ALIMENTAÇÃO E NUTRIÇÃO...............................................................................................801
Antonio Carlos Pinto Jachinoski

SAÚDE BUCAL..........................................................................................................................815
Antonio Carlos Pinto Jachinoski
Simone Tetu Moysés
Julio Cesar Bisinelli

ACIDENTES NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA1...............................................................839


Luiz Carlos Bleggi Torres
Fernanda Marder Torres

EXPERIÊNCIAS AFETIVO-SEXUAIS DE ADOLESCENTES PELA INTERNET:


O QUE OS ESTUDOS REVELAM?..........................................................................................867
Roberta Matassoli Duran Flach
Suely Ferreira Deslandes

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14

GRAVIDEZ NA ADOLESCÊNCIA...........................................................................................881
Darci Vieira da Silva Bonetto

O ADOLESCENTE E A FAMÍLIA............................................................................................891
Elza Sbrissia Artigas
Marisa Atsuko Toyonaga
Vera Maria Gilberti Rocha

NOÇÕES SOBRE DROGAS PSICOTRÓPICAS.....................................................................905


Dilermando Brito Filho

USO, ABUSO OU DEPENDÊNCIA DE ÁLCOOL.................................................................925


Dagoberto Hungria Requião

TABAGISMO: UMA DOENÇA CRÔNICA EVITÁVEL.........................................................955


Marcos Henrique Sant’Ana do Nascimento, MD.
Paulo Sandoval, MD.

VISÃO EDUCACIONAL DAS DROGAS: ORIENTAÇÃO PARA PAIS E


PROFESSORES...........................................................................................................................971
Araci Asinelli-Luzs

CENTRO DE ESTUDOS PARA UMA EDUCAÇÃO AMBIENTAL RENOVADA...............987


Lucia Santaella

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15

— PREFÁCIO —

É um grande prazer escrever o prefácio do livro “Ciência, Inovação e Ética: Tecendo Redes e
Conexões para a Sustentabilidade”. A razão para isso é simples, eu nasci em uma das mais complexas
cidades (Cidade do México) de um Pais em desenvolvimento. O México, como muitos outros países
dessa natureza, é basicamente urbano e experimenta em muitas de suas cidades problemas que parecem
impossíveis de resolver. Todos aqueles que viveram em cidades complicadas ou que as visitam sempre
se perguntam: o que deve ser feito para melhorar os modelos de desenvolvimento? Neste sentido, este
livro “Ciência, Inovação e Ética: Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade” combina dois
aspectos sem os quais ninguém poderia hoje, entender a possibilidade de uma profunda mudança:
ciência e inovação. De fato, frente a sociedades tão complexas criadas pela Humanidade – que
muitas vezes não se dão conta disso -, a transformação para melhorar as condições de vida, requer
solidos conhecimentos e engenhosidade. A presente coleção de ensaios, que inlcluem desde os direitos
humanos até aspectos da saúde, abordando tambem questões relacionadas a democracia, conflitos de
interesse e questões de sustentabilidade, representa um quadro de referência ideal para orientar essa
mudança. Esta transformação se tornou um desafio tão difícil, que atualmentes comecam a aparecer
novas profissões que formam especialistas para alcancar este objetivo, contudo há poucos exemplos
capazes de demonstrar que realmente é possível fazer uma mudança radical na sociedade.
Mas por que tem sido tão difícil conseguir uma transformação da sociedade? Por que as estruturas,
as cidades e os modelos de desenvolvimento são tão difícies de transformar? Essas são perguntas
fundamentais que os capítulos deste livro pretendem abordar para ser possivel vislumbrar como avançar
para o alcance de sociedades urbanas diferentes, sustentáveis, resilientes e humanas. Os autores fazem
uma reflexão a partir de uma perspectiva científica, considerando que para realizar as modificações
requeridas é necessário um terceiro elemento, que vai além da ciência e da inovação: a ética. Esse é
um elemento muito mais difícil de lidar, pois não tem respostas quantitativas e contundentes como

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16

a ciência e, portanto, as reflexões associadas se constituem na principal contribuição deste livro. O


emprego da ética permite que a compreensão do papel desempenhado pelas drogas (álcool, tabaco e
drogas, no sentido convencional do termo), das formas modernas de democracia e participação social
e da proteção e remediação dos impactos ambientais na concepção de novos modelos de cidades.
Neste contexto, o desenvolvimento e uso de uma ciência democrática e socialmente responsável é
apresentado como uma chave para construir um futuro melhor.
Embora considerando que como apontado no livro “a tecnologia deu super poderes aos seres
humanos”, contudo sem a inclusão do terceiro elemento orientador, a ética, não saberíamos avaliar
que futuro teremos como sociedade e um desafio ainda mais difícil, não saberíamos quando estaríamos
usando estes potencial tecnologico para o bem ou para o mal de todos.

Setembro 2018
Paris, França
Dra. Blanca Elena Jiménez Cisneros
Directora de la División de Ciencias de Agua y
Secretaria del Programa Hidrológico Internacional
de la UNESCO

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
17

REDES E CONEXÕES PARA COMPOR OS LIAMES


DO CONHECIMENTO

Patrícia Lupion Torres

O PROGRAMA AGRINHO
O ano de 1995 foi o marco inicial do Programa Agrinho, quando se estruturou uma proposta
pedagógica que tinha por pressupostos teóricos basilares a transversalidade. Os ‘temas transversais’
foram a base para o primeiro material, destinado a alunos de 1.ª a 4.ª série do Ensino Fundamental,
tendo como personagem principal o menino Agrinho. Na ocasião priorizou-se a temática ambiental
em decorrência da necessidade de responder a problema pontual de extrema gravidade no meio rural:
a contaminação da população por agrotóxicos.
Em 1996 iniciou-se a implantação do Programa de forma piloto em cinco municípios paranaenses.
Desde então os professores do ensino público municipal e estadual, as crianças e os jovens recebem
com entusiasmo e dedicação as atividades do Programa Agrinho.
Já no ano seguinte, após a avaliação dessa experiência piloto e com base na elevada receptividade e
participação da comunidade escolar, buscou-se agregar à temática inicial dos agrotóxicos outros temas
relativos à questão da saúde. Assim, passou-se a trabalhar também com os temas ‘saúde infantil’ e
‘saúde bucal’. Nesse momento ganhou destaque a personagem Aninha, que passou a ser a protagonista
da revista de saúde.
Em 1998 trabalhou-se a proposta pedagógica baseada na concepção dos temas transversais,
propostos nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), estabelecidos pelo Ministério da Educação
e fundados na perspectiva da interdisciplinaridade. Nesse momento já estava claro que a proposta

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18

pedagógica deve compor a necessária formação de alunos e professores pesquisadores. Ainda nesse ano
se ampliaram e aprofundaram as temáticas relativas ao meio ambiente (solo, biodiversidade, água e
clima) e foi incluído o tema ‘cidadania’, que incorporou as temáticas relativas a ‘trabalho e consumo’,
‘temas locais’ e ‘civismo’.
Nova modificação fez-se necessária quando o governo estadual iniciou a implantação do processo
de nuclearização das escolas, fator determinante para que o Programa Agrinho chegasse a crianças e
jovens do meio urbano.
Em meados de 2002, a fundamentação pedagógica foi revista e passou a ser adotada a proposta
metodológica crítica, desenvolvida por Torres em sua tese de doutorado, que tem como princípios
fundantes a colaboração, a interdisciplinaridade e a pesquisa. O Programa passou então por mais
uma ampliação para contemplar outros temas que se faziam igualmente prioritários: ‘meio ambiente’,
‘saúde’, ‘cidadania’ e ‘trabalho e consumo’. Novos materiais foram desenvolvidos, dessa vez para alunos
e professores.
Em 2006, quando o Programa completou 10 anos, buscou-se realizar uma ampla avaliação
dele. Iniciou-se com o levantamento de dados e informações, por meio de questionários e entrevistas
voltados a professores e alunos. Os resultados daí obtidos levaram à segunda etapa da avaliação,
realizada com diretores de escolas, documentadores municipais, secretários municipais de educação,
educadores de instituições governamentais, professores e pesquisadores de universidades, especialistas
que acompanham o Programa desde sua implantação e um consultor externo da área de Comunicação
e Educação.
Assim, em 2006 o material do aluno recebeu outra estruturação, passando a ser organizado por
série e não mais por temas. A Coleção Agrinho preparada em 2006 foi idealizada para contribuir na
formação de alunos e professores pesquisadores, como sujeitos fazedores da história atual. Sua proposta
explorava a interdisciplinaridade na perspectiva de superar a mera transversalidade de conteúdos e
temas. Foi composta por nove materiais destinados aos alunos e dois materiais dirigidos aos professores.
Os materiais voltados para os alunos atendem à ampliação do Ensino Fundamental, já anunciada na
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – Lei n.º 9.394 de 20 de dezembro de 1996) e
pela Lei n.º 10.172, de 9 de janeiro de 2001, que estabeleceu o Plano Nacional de Educação (PNE),
e pela Lei n.º 11.274, de 6 de fevereiro de 2006, que alterou alguns artigos da LDB e determinou que
municípios, estados e Distrito Federal implantassem até 2010 a ampliação para nove anos do Ensino
Fundamental, tornando obrigatória a matrícula para crianças a partir dos 6 anos.
Os dois livros que compunham o material do professor apresentavam reflexões teórico-práticas. O
primeiro, Alguns fios para entretecer o pensar e o agir, continha orientações gerais referentes a todos
os temas do Programa, e o segundo, Algumas vias para entretecer o pensar e o agir, contemplava
algumas propostas metodológicas inovadoras em consonância com as orientações do Programa.
No final da primeira década do século XXI nova pesquisa foi realizada para avaliar o Programa.
Trabalhou-se com uma amostra de 617 professores, 1.060 alunos, 92 diretores, chefes de núcleos de
educação e secretários municipais. Muitos foram os dados levantados e avaliados. Julgamos pertinente
apresentar alguns. A pesquisa com os alunos nos trazem, por exemplo os seguintes resultados:

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19

• 96,23% dos estudantes conhecem ou já ouviram falar do Programa Agrinho e apenas 3,77%
desconhecem o Programa;
• 70,20% consideraram os assuntos trabalhados no material do Programa interessante;
• 24,51% acharam o material muito interessante, 4,8% disseram que era pouco interessante e
0,49% não souberam opinar ou consideraram nada interessante;
• 75% dos entrevistados disseram que o material do Agrinho foi trabalhado em sala de aula e
foram realizadas atividades sobre ele;
• 53,10% dos estudantes mostraram os materiais para os pais, irmãos e amigos, 37,73% releram
os materiais e 9,15% não.

Os alunos elencam como as principais lições que aprenderam com o Agrinho: preservar a
natureza; alimentar-se bem; cuidar da higiene pessoal; não desperdiçar água; não poluir; cuidar do
meio ambiente.
Já os resultados da pesquisa com os professores nos trazem os seguintes dados:
• 98,86% dos docentes conhecem ou já ouviram falar do Programa Agrinho e apenas 1,14%
desconhecem o Programa;
• 68,03% consideraram os assuntos trabalhados no material do Programa interessantes;
• 28,36% acharam os assuntos trabalhados no material muito interessantes, 2,46% disseram
que eram pouco interessantes e 1,15% não sabiam opinar ou consideram nada interessante;
• 72,47% dos entrevistados disseram que o material do Agrinho foi trabalhado em sala de aula
e foram realizadas atividades, dentre as quais se destacam a leitura em sala de aula, a produção
de textos, os debates, as atividades da revista e as pesquisas;
• 92,62% souberam elencar os objetivos do Programa e 7,8% não souberam elencar os objetivos
do Programa;
• 72,13 perceberam alguma mudança de hábito no dia a dia dos alunos que participaram do
Programa e 27,87% não perceberam.

Em 2011, o Programa Agrinho passou a ofertar na modalidade a distância cursos de formação


continuada para os professores, ampliando dessa forma o processo formativo. Foram selecionadas
para esses cursos as temáticas pedagógicas visando “preparar os professores para o trabalho com a
interdisciplinaridade, com a colaboração, com a pesquisa e com a transversalidade, propostas fundantes
que subsidiam a abordagem dos temas selecionados pelo Agrinho”. (TORRES; SAHEB, 2015, p. 189).
Esses cursos a distância foram avaliados em pesquisa realizada em tese de doutorado (ZACLIKEVIC;
TORRES, 2019), por meio de um estudo de caso único, com uma amostra não probabilística por
conveniência composta por 37 turmas, de 8 cursos, totalizando 1.130 questionários que tiveram seus

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20

dados tratados. Em breve nota conclusiva pode-se constatar que esses cursos vêm alcançando resultados
positivos, fato que reafirma o compromisso do Programa com a qualidade e a melhoria constante dos
cursos oferecidos.
Em 2014 novo ciclo se iniciou com a elaboração de novos materiais tendo o tema ‘sustentabilidade’
como eixo norteador. Para Andreoli e Torres, o Programa Agrinho nessa edição teve por objetivo:

[...] estimular o debate complexo, mostrando a interdependência entre relações frequentemente


apresentadas como antagônicas. Dessa forma, resgatam-se, por exemplo, a complementaridade dos
conceitos de sustentabilidade e atividade produtiva, a ideia de integração dos conceitos de conservação
e produção e a superação da visão completamente equivocada que coloca a cidade e o meio rural em
campos opostos. (2014, p. 33)

Ainda sobre os materiais desse ciclo iniciado em 2014, a diretora da Divisão de Ciência da Água
e secretária do Programa Hidrológico Internacional da Unesco, Blanca Jiménez-Cisneros, ao comentar
sobre os livros distribuídos no formativo do Programa, destacou que

graças a esses materiais e o Programa Agrinho, o Estado de Paraná, por certo, terá uma nova geração
de cidadãos que podem cuidar melhor de sua saúde física e mental, preservar e gerenciar a natureza,
mas acima tudo contribuir para um mundo melhor. (2014, p. 13).

Nesses 26 anos de processos formativos o Programa Agrinho

incentivou a comunidade escolar a debater questões – às vezes ausentes das salas de aula – referentes
à sustentabilidade nas dimensões propostas por Sacks (2000): social, econômica, ecológica, cultural,
espacial, política e ambiental. Toda uma geração participou da construção de uma nova consciência
social. (TORRES, 2019).

De todo esse processo restou a certeza de que o Programa Agrinho trilha um percurso bem-
-sucedido, o que reforça o compromisso da manutenção da qualidade, da melhoria constante e da
capacidade de propor inovação. Em vista disso, a proposta foi acrescida de novos temas e materiais,
desta vez com conteúdo on-line.

COLEÇÃO DO PROGRAMA AGRINHO


Esta Coleção Agrinho está idealizada para contribuir na formação de alunos e professores
pesquisadores, como sujeitos fazedores da história atual. Sua proposta explora a interdisciplinaridade
na perspectiva de superar a mera transversalidade de conteúdos e temas. É composta por nove materiais
destinados aos alunos e dois materiais dirigidos aos professores.
Os nove materiais para alunos atendem à ampliação do Ensino Fundamental, já anunciada na
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996),

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pela Lei n.º 10.172, de 9 de janeiro de 2001, que estabelece o Plano Nacional de Educação (PNE),
e pela Lei n.º 11.274, de 6 de fevereiro de 2006, que altera alguns artigos da LDB e determina que
municípios, estados e Distrito Federal deverão até 2010 implantar a ampliação para nove anos do
Ensino Fundamental, tornando obrigatória a matrícula para crianças a partir dos seis anos.
A nova Coleção Agrinho atende também aos preceitos da Base Nacional Comum Curricular
(BNCC), considerando o conjunto de aprendizagens essenciais que os discentes devem desenvolver na
Educação Básica, “de modo a que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento,
em conformidade com o que preceitua o Plano Nacional de Educação (PNE)”. (BRASIL, 2019).
Destaca-se que bem de acordo com o preconizado pelo Programa Agrinho

este documento normativo aplica-se exclusivamente à educação escolar, tal como a define o § 1º do
Artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei n.º 9.394/1996) e está orientado
pelos princípios éticos, políticos e estéticos que visam à formação humana integral e à construção
de uma sociedade justa, democrática e inclusiva, como fundamentado nas Diretrizes Curriculares
Nacionais da Educação Básica (DCN). (BRASIL, 2019).

Os dois livros que compõem o material do professor apresentam reflexões teórico-práticas:


Ciência, inovação e ética – tecendo redes e conexões para a sustentabilidade contém as orientações
gerais referentes a todos os temas do Programa, e Ciência, inovação e ética – tecendo redes e conexões
para a produção do conhecimento contempla algumas propostas metodológicas inovadoras em
consonância com as orientações do Programa.
Na reestruturação do Programa, a cada reunião para a composição dos dois livros destacou-se a
preocupação de selecionar novos autores e orientar os antigos para que seus textos contribuíssem para
auxiliar os docentes a prepararem suas aulas e atividades, de modo a facilitar as aprendizagens essenciais
de seus alunos e de modo a permitir que os mesmos consigam adquirir as competências gerais da
Educação Básica propostas na BCCN e apresentadas no Quadro 1.

Quadro 1 – Competências gerais da Educação Básica.

1. Valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos sobre o mundo físico, social, cultural e digital para
entender e explicar a realidade, continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade justa, democrá-
tica e inclusiva.

2. Exercitar a curiosidade intelectual e recorrer à abordagem própria das ciências, incluindo a investigação, a reflexão,
a análise crítica, a imaginação e a criatividade, para investigar causas, elaborar e testar hipóteses, formular e resolver
problemas e criar soluções (inclusive tecnológicas) com base nos conhecimentos das diferentes áreas.

3. Valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais, e também participar de práticas
diversificadas da produção artístico-cultural.

4. Utilizar diferentes linguagens – verbal (oral ou visual-motora, como Libras, e escrita), corporal, visual, sonora e digital –,
bem como conhecimentos das linguagens artística, matemática e científica, para se expressar e partilhar informações, experiên-
cias, ideias e sentimentos em diferentes contextos e produzir sentidos que levem ao entendimento mútuo.

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5. Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva
e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e disseminar informações, produ-
zir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva.

6. Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de conhecimentos e experiências que lhe possibi-
litem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu
projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade.

7. Argumentar com base em fatos, dados e informações confiáveis, para formular, negociar e defender ideias, pontos de
vista e decisões comuns que respeitem e promovam os direitos humanos, a consciência socioambiental e o consumo
responsável em âmbito local, regional e global, com posicionamento ético em relação ao cuidado de si mesmo, dos
outros e do planeta.

8. Conhecer-se, apreciar-se e cuidar de sua saúde física e emocional, compreendendo-se na diversidade humana e reco-
nhecendo suas emoções e as dos outros, com autocrítica e capacidade para lidar com elas.

9. Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito
ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus
saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza.

10. Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação, tomando
decisões com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários.

Fonte – Brasil, 2019.

A inspiração primeira de ambos os livros foi a urdidura de uma rede, de uma malha, por entender-se
que o conhecimento se processa como um liame, composto respectivamente pela relação de vias e
interconexões. As vias podem representar o indivíduo, o sujeito, o ser, o self, que ao mesmo tempo em
que olha para si toma ciência da perspectiva do outro e se prepara para o coletivo. As interconexões
representam as relações; em outros termos, às perspectivas individuais somam-se os entrelaçamentos
decorrentes do outro, do coletivo, do temporal, do espacial, do contextual, do conjuntural etc. O
liame é muito mais do que a mera composição de vias, interconexões, tramas e malhas. Representa
a vinculação dinâmica do todo, ou seja: das vias, das interconexões, do individual e do coletivo, do
sujeito e do grupo, do tempo e do espaço, do contexto e das conjunturas, das ações e das atuações, da
própria malha e da própria rede.

FUNDAMENTOS DA PROPOSTA
A proposta metodológica adotada pelo Programa Agrinho é crítica e se orienta pela necessária
formação de alunos e professores pesquisadores. Está baseada nas seguintes premissas, prescrições
e princípios teóricos: 1) na concepção dos temas transversais, propostos nos PCN estabelecidos
pelo Ministério da Educação, fundados na perspectiva da interdisciplinaridade e na busca da

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transdisciplinaridade; 2) na pesquisa como prática educacional proposta por Bochniak (1998) e Torres
(2002); e 3) na colaboração na perspectiva apresentada por Torres (2002) em sua tese de doutorado.
Tal escolha metodológica se deu pelo fato de que se pretende a ruptura com as propostas pedagógicas
tradicionais que fragmentam o processo educacional, compartimentando os conteúdos em estruturas
disciplinares. A interdisciplinaridade, a transdisciplinaridade, a cooperação, a colaboração, o diálogo,
a troca, a interatividade, a pesquisa, a produção de conhecimentos e a comunicação de grupo são
constantemente destacados em discursos e projetos, embora poucos programas de fato proponham
estratégias pedagógicas que garantam tais práticas. Muitas vezes se constata o uso dessas palavras sem,
contudo, qualquer compromisso com uma prática a elas consentânea. Não raro a proposta pedagógica
é a da transmissão de informação, travestida de uma roupagem nova, garantida pelo uso de tecnologias
de informação e comunicação para difundir a informação. (TORRES; KUCHARSKI, 2011).
A escola precisa ser formada para o trabalho com a interdisciplinaridade, a colaboração, a pesquisa
e a transversalidade, propostas de fundo teórico que subsidiam a abordagem dos temas selecionados
pelo Agrinho. Para Torres e Bochniak

Sabe-se que diversas são as experiências de colocação dos princípios da ‘transversalidade’ e da


‘interdisciplinaridade’ em prática, assim como se sabe, também, que a efetiva transposição ainda
não foi concretizada, na maioria das escolas. Faz-se, necessário concretizar a implementação
desse eixo epistemológico, buscando uma proposta metodológica coerente com os princípios
teóricos estabelecidos, pois, percebe-se, de fato, que especialmente em relação às questões da
‘interdisciplinaridade’ e da ‘transversalidade’ a escola ainda se encontra diante de um enorme
descompasso entre teoria e prática. (2000, p. 3).

A fim de buscar a referida transposição foi que se definiu pelo uso neste programa da proposta
metodológica desenvolvida por Torres (2002) em sua tese de doutorado, denominada Laboratório
On-Line de Aprendizagem (LOLA), que sem nunca pretender se constituir em uma receita, apresenta,
sugere, propõe procedimentos práticos a serem desenvolvidos em sala de aula para se chegar aos
propósitos teórico-práticos para uma educação crítica, criativa e reflexiva, que desenvolva em docentes
e discentes a inventividade, a autonomia e o comprometimento, tornando-os sujeitos pesquisadores
fazedores da história atual, capazes de produzir novos conhecimentos.
O objetivo dessa proposta metodológica é a promoção de uma aprendizagem em molde colaborativo
por meio de atividades programadas e interativas. No LOLA pretende-se proporcionar uma dinâmica
que se configura por uma metodologia colaborativa, ativa e interativa. (TORRES, 2010).
Destaque deve ser dado à função do trabalho em grupo e individual nessa proposta. É de fundamental
importância que todos os exercícios sejam feitos em algumas ocasiões individualmente e em outras em
grupos pequenos, bem como a exigência de que esses grupos tenham sua composição constantemente
alterada. A colaboração modifica substancialmente o papel do aluno e do professor no que diz respeito
à percepção de sua função individual e social, já que o trabalho individual desenvolve perspectivas bem
diferentes das do trabalho em grupo e isso deve obrigatoriamente ser explorado pelos discentes e professores.

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A proposta colaborativa faz que, ao desenvolverem atividades em equipe, a organização pessoal,


o ritmo e metodologia de trabalho, bem como a noção de diferentes enfoques e indagações sobre o
trabalho promova tanto o autoconhecimento quanto o conhecimento e desenvolvimento do aluno
como membro de um grupo, ao mesmo tempo em que se tem o fortalecimento do grupo.
Embora hoje, mais do que nunca, a escola enalteça os trabalhos coletivos, destaca-se que sem
um trabalho de individuação, interiorização e internalização não se tem um trabalho real de equipe.
A recíproca também é verdadeira, sem o grupo não se pode trabalhar o indivíduo, de maneira total
e interdisciplinar. Simonne Ramain (1973) já destacava a importância do grupo ao afirmar que “o
ser é relação”. A fim de explorar essa questão relacional, nessa metodologia a composição dos grupos
precisa ser constantemente alterada. É indispensável que os alunos não trabalhem sempre com os
mesmos colegas na mesma equipe, mas que o trabalho ocorra em diferentes grupos, com as mais
diversas composições.
Assim se pretende superar a resistência apresentada pelos alunos em relação às constantes mudanças
nos grupos, já que tais variações visam permitir aos alunos vivenciar diversos papéis na equipe. Destaca-
-se a necessidade de questionarmos e analisarmos os motivos pelos quais os alunos resistem às mudanças
no grupo de maneira tão intensa.
Cabe discutir o processo de acomodação que invariavelmente leva os discentes a assumirem
determinados e fixos papéis. Com a mudança constante na composição dos grupos, ocorre o rompimento
dessa acomodação; dessa maneira, modificam-se os papéis, que deixam de ser fixos.
Na escola, de maneira geral, os alunos invariavelmente assumem os mesmos papéis: líder do grupo
ou negligente; organizador de conteúdo ou apresentador etc.
Com as mudanças frequentes, garante-se que em um grupo possa estar reunido mais de um relator,
mais de um organizador de conteúdo, mais de um redator, mais de um líder. Isso obriga o grupo e
cada um dos participantes ao revezamento de papéis, atitude muito educativa e rica para ser explorada.
Essas variações alteram substancialmente as praxes e rotinas determinadas pela instalação das chamadas
‘panelinhas’, inadequadas à escola atual. Assim, uma das premissas fundamentais dessa proposta é
provocar rupturas, desinstalar, colocar o sujeito diante de situações sempre novas e conflitantes.

ATIVIDADES DO PROGRAMA AGRINHO


Este livro é composto por 48 artigos. Eles constituem a base teórica para que os temas possam ser
trabalhados com o necessário aprofundamento.
Esses temas deverão ser abordados pelo professor, junto aos alunos, por meio das atividades que
compõem o LOLA1, metodologia desenvolvida em tese de doutorado por Torres (2002) e atualizada
posteriormente após a implementação no Programa Agrinho e em diversas turmas de pós-graduação
stricto sensu.

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As atividades no LOLA, tanto individuais como grupais, são propostas para promover a construção
do conhecimento. É no processo de gestão das atividades do LOLA que os grupos se organizam e
elaboram uma proposta de trabalho definida e negociada coletivamente. (TORRES, 2010).
Com o acréscimo da atividade de construção de mapas conceituais, hoje se tem oito atividades
no LOLA que organizam, dinamizam e dão sentido à ação do grupo. Essas atividades específicas e
consecutivas que hoje compõem o LOLA se desdobram conforme o esquema a seguir:
• delimitação da pesquisa: leitura de bases teóricas;
• inserir links;
• questionar o conhecimento existente;
• responder aos questionamentos elaborados;
• delimitação da pesquisa: leitura da realidade;
• construir Mapas Conceituais;
• produzir novos conhecimentos;
• avaliar todos os procedimentos desenvolvidos.

O primeiro exercício do trabalho, denominado ‘Delimitação da Pesquisa: leitura de bases teóricas’,


corresponde à atividade introdutória da proposta e pretende estabelecer o universo de referência que
será delimitado, ou seja, a abrangência do propósito da pesquisa.
Foi assim denominado porque aos professores é fornecida uma breve coletânea de textos já
existentes sobre o assunto, que se consubstancia como argumentação teórica para inspirar os sujeitos
pesquisadores no desencadeamento da eventual pesquisa bibliográfica necessária para a produção de
novo conhecimento sobre a temática. Assim, essa primeira atividade corresponde ao levantamento do
referencial teórico do assunto, também denominado levantamento bibliográfico ou levantamento do
‘estado da arte’ de temáticas relevantes e correlatas ao tema da pesquisa.
Corresponde àquelas atividades em que professores e alunos tomarão conhecimento do conteúdo
dos textos de apoio sobre cada um dos temas do Programa, por meio de leituras e construção de mapas
conceituais2 para que possam ter uma visão mais ampla do assunto, seja do ponto de vista técnico, seja
do ponto de vista socioeconômico, político, literário, psicossocial e operacional.
Mapas conceituais são uma forma de representação visual da informação utilizados em diferentes
contextos educacionais e não educacionais. (TORRES; SIERRA, 2012). Eles são muito úteis em
trabalhos de revisão bibliográfica, que supõem a leitura, a análise e o registro de anotações relacionadas
a documentos revisados. (TORRES; SIERRA, 2011).
Com essas leituras iniciais e a elaboração desses primeiros mapas conceituais pretende-se fornecer
uma breve argumentação teórica para inspirar alunos e professores no desencadeamento da pesquisa
bibliográfica necessária para o aprofundamento sobre a temática. Recomenda-se nesta atividade que

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o professor não se restrinja aos textos disponibilizados nos diversos materiais e instigue seus alunos a
proporem novos textos para a leitura.
No segundo exercício, ‘Inserir links’, busca-se propor conexões ao conhecimento de forma a
estabelecer a relação entre a teoria e a prática. No início desse exercício, os alunos devem buscar,
individualmente ou em grupo, novas fontes de informações: páginas na internet, livros, jornais e
revistas. As informações complementares obtidas devem ser disponibilizadas a todos os alunos, dando
as mais diversas visões sobre o mesmo tema.
Os textos trazidos para esse exercício podem ser consultados tanto na biblioteca da escola quanto
em outro local, durante o tempo livre do aluno, além do expediente escolar. Os novos textos selecionados
devem ser explorados por todos os alunos, ora individualmente, ora em grupo.
Pode-se utilizar aqui a técnica de mapas conceituais3 para ajudar os alunos a explorarem os
conteúdos dos diversos materiais por eles selecionados, a fim de garantir que as informações sejam
transformadas em conhecimento.
Os mapas conceituais elaborados pelos alunos devem ser disponibilizados para todos os colegas.
Assim, pode-se colocá-los em exposição em um mural, em um arquivo de fácil acesso a todos ou ainda
se pode publicá-los na internet.
Nessa atividade, ao atribuir-se ao grupo a função de selecionar conteúdos para serem discutidos,
encoraja-se o aluno a refletir, pesquisar, questionar e reelaborar o conhecimento existente. Busca-
-se superar o paradigma da escola tradicional, de ensino memorístico, que coloca sobre o professor
a responsabilidade de selecionar a ‘verdade’ científica a ser apresentada aos alunos, a quem resta
simplesmente memorizar o que lhe é apresentado.
Destaca-se que os conteúdos propostos por alunos, tanto para os professores quanto para outros
alunos, são tão valorizados quanto os conteúdos selecionados pelos professores. Assim, alunos e
professores estabelecem uma parceria que os leva a manter um papel ativo, colaborativo e reflexivo no
processo de aquisição e produção do conhecimento.
É de responsabilidade também dos alunos a análise crítica desses conteúdos, que, após serem
disponibilizados para os colegas com comentários, podem e devem receber novos comentários, que
também estarão à disposição de todos para novas intervenções. Cada aluno deve colocar no seu portfólio4
seus textos e fichas com seu levantamento bibliográfico, seus mapas conceituais e seus comentários.
Os alunos podem e devem exprimir suas ideias, questionar o saber estabelecido, construir
significações e ressignificações e, principalmente, resgatar o prazer do saber.
Ao compartilhar os comentários com os colegas da turma, os discentes passam a ter seu grupo
‘invadido’ por membros novos, sofrem outras rupturas e recomeçam o processo de negociação de
conflitos, de gestão da pluralidade e reformulação da análise, da síntese e da tese elaborada anteriormente.
Para disponibilizar esses textos para toda a turma, pode-se publicar esse material em um mural ou ainda
colocá-lo em um arquivo de fácil acesso a todos.
‘Questionar o conhecimento existente’ é um exercício basilar para a pesquisa. A origem do
conhecimento está, para Freire e Faundez (1985), na pergunta, ou nas perguntas, ou mesmo no ato de
perguntar. Assim, é impossível pesquisar e produzir novo conhecimento sem perguntar.

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Na atividade de formular perguntas, os alunos fazem seus questionamentos sobre os conteúdos


transmitidos pelos professores ou pesquisados pelos próprios estudantes, ora em grupos, ora de forma
individual.
Cabe ao professor exercer o papel de orientador, levando seus alunos a superarem a proposição de
perguntas simples, meramente conceituais ou factuais, que na maioria das vezes se caracterizam pela
reprodução de conteúdos memorizados. Sugere-se ao professor que oriente seus alunos a descartarem
perguntas tais quais ‘O que é?; Quais são as características?; Quem fez?; Em que ano? etc.’ e a buscarem
aprimorar questões mais complexas de interpretação, comparação de aplicação, análise, síntese e
avaliação. Ao propor aos alunos essa atitude mais reflexiva, o professor conduz os discentes a assumirem
uma posição de sujeitos pesquisadores. Para Freire e Faundez, “o problema que, na verdade se coloca
ao professor é o de, na prática, ir criando com os alunos o hábito, como virtude, de perguntar”. (1985,
p. 25).
Essa atitude interdisciplinar de pesquisa tem como base a concepção de interdisciplinaridade de
Bochniak (1998) adotada nesta proposta, em que alunos e professores vivenciam a superação de inúmeras
visões fragmentadas e(ou) dicotômicas existentes no cotidiano de nossas escolas, principalmente a
superação da visão dicotômica entre teoria e prática. Vale destacar que quando a intenção é superar a
elaboração de questões apenas conceituais, não se trata de o professor artificialmente fazer a indicação
para os alunos por meio de comandos, mas sim de levar cada um dos alunos a refletir sobre suas
questões, sobre a atividade – individual ou grupal – e sobre suas atitudes durante o período do exercício.
A defesa do ato de perguntar não coloca a pergunta como um jogo intelectual; para Freire e
Faundez (1985) é justo o contrário, é necessário que o aluno, ao elaborar uma pergunta, obtenha
na resposta uma explicação do fato e não a mera descrição das palavras ligadas ao fato. Para eles “é
preciso que o educando vá descobrindo a relação dinâmica, forte, viva, entre palavra e ação, entre
palavra--ação-reflexão”. (1985, p. 26). Ao exercitar esse processo reflexivo, tem-se de forma quase
natural e espontânea a superação da dicotomia entre teoria e prática. Destaca-se ainda a artificialidade
de solicitar somente ao professor que desempenhe o papel de relacionar teoria e prática, pois ele não
conhece na totalidade a realidade sociocultural do estudante, seu ambiente familiar e suas vivências e
experiências para fazer esse tipo de relação.
O professor, ainda que bem-intencionado, ao estabelecer a relação existente entre a teoria
e a prática e simplesmente apresentá-la a seu aluno acaba por privá-lo da oportunidade única de
desenvolver sua leitura de realidade, com base nos conteúdos que vem trabalhando na escola. E privá-lo
dessa oportunidade pode ser um fator impeditivo para o desenvolvimento de seu espírito crítico e de
sua autonomia.
Na atualidade, dados os avanços científico-tecnológicos que facilitam o acesso a informações, cabe
à escola ultrapassar a função de transmissão do conhecimento que, por muitos séculos, desempenhou.
O simples exercício de elaborar questões sobre um entendimento existente determina, por parte de
quem o produz, a aquisição desse conhecimento, pois a questão fundamental do processo de questionar
o conhecimento existente é o de que

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só se pode perguntar sobre algo a respeito do qual já se tenha algum conhecimento. Se nada se sabe
sobre Nicarágua, por exemplo, nem a mais elementar pergunta a esse respeito pode ser elaborada.
Até a questão básica sobre ‘O que é Nicarágua?’ supõe, ao menos, o conhecimento da expressão
‘Nicarágua’. Todas as demais perguntas sobre ela implicam tantos outros conhecimentos quantas mais
perguntas se quiser fazer. Aos que a conhecem não seria cabível a questão ‘Quem é Nicarágua?’. Aos
que sabem pouco sobre ela, e sobre assuntos a ela correlatos, seria extremamente embaraçoso fazer
perguntas. Mesmo as mais simples (Qual é o regime político da Nicarágua? Onde está situada? Qual é
sua capital?) supõem outros tantos conhecimentos (sobre regime político, situação geográfica, capital,
Estado, país...). Assim é que, com certo exagero, pode-se dizer que quando se elabora uma pergunta é
porque já se sabe respondê-la. Ou, com razão, pode-se afirmar que para questionar algo há que se saber
sobre ele, ou se saber onde buscar informações sobre ele. (BOCHNIAK ,1993, p. 45).

É fundamental destacar que nessa atividade não há limite mínimo nem máximo para o número
de questões a serem feitas. Esse limite é estabelecido em função da duração de cada sessão ou
momento que o professor reservar para a atividade, seja ela individual, seja grupal. Nessa atividade
os estudantes devem registrar as questões elaboradas em uma ficha ou folha de exercício própria.
Se os discentes ainda não forem alfabetizados, a atividade será feita oralmente e o professor fará o
registro por eles.
O fato de não se estabelecer um limite, a não ser o de duração das sessões, para as atividades
nessa metodologia tem por objetivo evitar a chamada ‘atitude ou mentalidade de tarefeiro’, bastante
difundida nas escolas; “cumprida a tarefa não há mais nada a fazer a não ser, o quanto antes, livrar-se
do fardo a que qualquer atividade na escola está associada”. (TORRES; BOCHNIAK, 2000, p. 13).
Procura-se trabalhar no aluno a percepção de que, enquanto ainda se tem tempo, é melhor
aproveitar para continuar a pesquisa. Bochniak (1998) também destaca outra dicotomia existente entre
trabalho e lazer que essa proposta se propõe a superar. O trabalho não é necessariamente desprazer, da
mesma forma que o lazer não é sempre prazeroso. Isso fica claramente evidenciado entre as crianças
pequenas que ainda não assimilaram as visões preconceituosas de nossa sociedade atual.
‘Responder aos questionamentos elaborados’ por outros alunos é o quarto exercício dessa
metodologia. Nessa atividade se deve tomar cuidado especial para que os alunos jamais selecionem
questionamentos elaborados por si mesmos ou por equipe de que tenham participado.
No exercício de responder, os discentes, individualmente ou em grupo, deparam-se com um
elenco muito variado e volumoso de questões, já que dispõem para sua escolha de inúmeras fichas de
questionamentos elaboradas por seus colegas e disponibilizadas em um fichário ou arquivo publicado
na internet. A escolha de perguntas a que se deseja responder nessa atividade corresponde a um singular
exercício de avaliação, já que, em primeira instância, o aluno deverá avaliar, em função de critérios
diferentes, por ele ou pelo seu grupo estabelecido, qual seria a ficha escolhida, bem como assumir as
consequências de sua escolha.
Dessa forma, diversos são os critérios estabelecidos. Alguns escolhem as perguntas mais fáceis,
outros as mais difíceis, ou ainda as mais curtas, ou seja, aquelas que contam com poucas questões.

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Também entram em consideração critérios que dizem respeito a interesse por determinados
assuntos e desprezo por outros ou ainda a utilidade prática em responder às questões. Alguns escolhem
perguntas de memorização em detrimento de outras que exigem maior elaboração.
Interessante destacar que os alunos logo percebem que na execução nem sempre são confirmadas
as expectativas do momento da escolha, e isso tudo deve ser explorado na avaliação. Às vezes, o discente
escolhe uma ficha com poucas questões, mas que, embora curta, leva bastante tempo para ser resolvida,
ou tempo maior do que alguma que tenha maior número de perguntas.
Outras vezes, escolhe-se uma ficha com questões das quais o aluno já sabe a resposta, mas que vão
fazê-lo entender que não foram significativas para seu crescimento.
Para a realização desse exercício com alunos não alfabetizados, é necessário ser pensada e
programada toda uma série de procedimentos que mudam radicalmente a rotina de uma sala de aula
e impõem uma mudança na atitude metodológica do professor. É preciso destacar a importância do
papel do professor com tais alunos nessas atividades de escolher os exercícios que serão respondidos por
eles, para evitar uma indução por parte do professor.
Com o aluno que já tem independência para a leitura, esse processo de escolha é feito diretamente
por ele. Quando se trata do responder individualmente ou em grupo de alunos não alfabetizados, o
professor deve fazer a leitura das questões sem, contudo, interferir na escolha.
Vale comentar que nas sessões de avaliação tudo isso é discutido e aprofundado amplamente.
Tanto o aluno quanto o professor têm a possibilidade de perceber, por exemplo, que escolher uma ficha
cujas respostas já são conhecidas é uma atitude equivocada, pois se está submetendo a um exercício que
nada tem a acrescentar à produção de novos conhecimentos. Resumindo, trata-se de um exercício de
perda de tempo.
Em segundo lugar, é preciso destacar que o processo de escolha da ficha oportuniza, ao aluno, a
percepção de que o conhecimento é algo inesgotável e de que jamais ele terá tempo para responder a
todas as questões. Assim sendo, torna-se claro ao aluno o motivo para que a escolha seja feita em função
da oportunidade de crescimento que tal exercício poderá propiciar.
O objetivo dessa proposta metodológica é criar essas reflexões – ou pesquisas – também a respeito
de si mesmo e dos outros, ou de si mesmo como um outro, como diria Paul Ricoeur, e de desvelar que
muito mais importante é o processo de crescimento pelo qual venha a passar quando escolhe uma ficha
do que o resultado ou produto final decorrente dessa escolha. É o que vimos designado – inspiradas
em Gaston Bachelard (1977), que se refere à ‘vigilância intelectual de si’ – por ‘vigilância seletiva’ ou
tomada de consciência de que, devido à imensa possibilidade de acesso à informação colocada à nossa
disposição, especialmente nos dias atuais, faz-se necessário estabelecer um foco para pesquisar. Nessa
perspectiva interdisciplinar dessa proposta metodológica, a ênfase recai na ideia de que os conteúdos
constituem meros pretextos sobre os quais devem se desenvolver as diversas atividades educacionais.
A quinta atividade, ‘Delimitação da pesquisa: leitura da realidade’, corresponde ao conhecimento
do ambiente, da localidade, da comunidade, do grupo social em que a pesquisa será desenvolvida; é
também chamada de pesquisa de campo. Essa atividade permitirá aos pesquisadores estabelecer relações

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entre o conteúdo teórico lido e pesquisado e a realidade da comunidade em que estão inseridos. Alunos
e professores vão a campo colher dados relativos a certa situação a fim de estabelecer relações possíveis
naquele momento entre a teoria e a prática.
Nessa atividade, os envolvidos com a perspectiva de desenvolvimento da pesquisa vão colher
dados relativos à situação como um todo, entrar em contato direto com a realidade, locais, logradouros,
instituições, pessoas da comunidade, buscando superar, assim, a dicotomia muitas vezes existente entre
a teoria e a prática.
O sexto exercício é ‘Construir mapas conceituais’ partindo dos textos indicados pelo professor
e também pelos indicados pelos alunos. Segundo Molina, “os mapas conceituais proporcionam um
resumo esquemático do que foi aprendido, ordenado de maneira hierárquica”. (2006, p. 108).
A elaboração de comentários realizada nas duas primeiras atividades – ‘Delimitação da pesquisa:
leitura de bases teóricas’ e ‘Inserir links’ – prepara os alunos para a atividade de construção de texto
coletivo. Após a realização das cinco primeiras atividades, eles devem elaborar um mapa conceitual
que se constitui em uma síntese dos textos trabalhados pela equipe. Cabe esclarecer que essa síntese
é entendida não simplesmente como um resumo das ideias de outrem, mas, sobretudo, como uma
produção própria, particular e singular, exercitando-os como autores na produção do conhecimento,
pois “um mapa representa o conhecimento de quem o faz num determinado instante”. (MARRIOTT;
TORRES, 2006, p. 11).
No sétimo exercício, ‘Produzir novos conhecimentos’, pretende-se levar os alunos a elaborar um
texto sobre um dos temas pertinentes à temática. Primeiro individualmente e depois em grupo. O
primeiro momento do exercício é realizado em grupo e consiste na definição do tema para a produção
do texto. Esta escolha emerge do diálogo entre todos os componentes da equipe.
Inicia-se assim um processo de negociação entre os integrantes da equipe que devem superar
conflitos, resistências e problemas de comunicação, para coletivamente produzir o conhecimento.
A primeira etapa da atividade é individual, e o aluno é desafiado a elaborar uma síntese, que se
constitua efetivamente em uma nova produção do conhecimento. Tal síntese pode ser elaborada com
base nos mapas conceituais feitos na primeira atividade, ou seja, na ‘Delimitação da pesquisa: leitura
de bases teóricas’, ou na segunda atividade, ou seja, na atividade de ‘Inserir links’, ou ainda na sexta
atividade, de ‘Construir mapas conceituais’.
A segunda etapa é realizada em grupo, e para isso os alunos são convidados a construir um texto
coletivo que seja subsidiado pelos diversos textos e mapas conceituais elaborados individualmente.
Nesse processo de elaboração coletiva do texto cada aluno apresenta suas contribuições, que vão sendo
discutidas com os outros, que por sua vez vão completando, refutando ou acrescentando ideias.
Cada membro do grupo de alunos pode interagir com qualquer um dos colegas e também com
o professor, estabelecendo assim uma rede de comunicação. Dessa forma, todos são responsáveis pela
produção do texto e assumem os papéis de escritor, pesquisador, revisor e crítico. Nesse exercício, assim
como nos outros, a ênfase é dada ao processo e não ao produto, sendo importante que o professor
acompanhe todos os momentos: a discussão e a negociação para a escolha do tema, as intervenções, a
pesquisa, as articulações, os questionamentos e debates para a elaboração do texto.

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Ramain, em palestra proferida em Curitiba (1972), relatou que preferia ver o borrão de um
trabalho do que o mesmo trabalho passado a limpo, pois no borrão era possível ver um retrato real
da aprendizagem do aluno e no trabalho passado a limpo via-se um retrato maquiado. Via de regra,
constata-se que a soma das diversas versões do texto é muito mais do que a versão final, o que comprova
ser o processo bem mais rico que o produto.
Quanto ao último exercício, o de ‘Avaliar os procedimentos desenvolvidos’ na pesquisa, sempre
deve ser realizado em grande grupo, com a regularidade das sessões estabelecidas em decorrência da
sequência proposta para a realização dos demais exercícios pelos discentes. Nas sessões de avaliação o
que se faz, basicamente, é conversar com todos os estudantes sobre como vêm sendo desenvolvidos
os exercícios de questionar, propor conexões, produzir conhecimento e, inclusive, como eles estão
vivenciando o próprio exercício de avaliar.
Dificuldades, facilidades, obstáculos, resistências, formas de superação e motivos de manutenção
dessas dificuldades cabem muito bem nessa conversa, uma vez que nela não estão presentes ‘os medos’
das notas, do descontar pontos, que prejudicam situações desse tipo que se conduzem na perspectiva
da autoavaliação.
Essa concepção de avaliação tem como substrato os fundamentos filosóficos da avaliação de
Montessori e Ramain. A ênfase exclusiva deve ser a avaliação do processo, proposta muito maior que a
preconizada por alguns professores, cujas iniciativas só têm aumentado a frequência das avaliações de
produto e nada têm contribuído para a mudança de seu enfoque para o de processo.
Muitas vezes os docentes verbalizam que realizam avaliação contínua e de processo, justificando
que a cada aula, solicitam um trabalho de avaliação a seus alunos. Tais professores não percebem que
essa é uma avaliação de produto travestida, que só os sobrecarrega pela maior quantidade de atividades
planejadas, elaboradas e avaliadas, sem, no entanto, contribuir para com a melhoria do trabalho da
educação. Não se trata de uma situação de autoavaliação, mas sim de proceder à síntese de todos os
pressupostos da proposta metodológica do LOLA.
Nas sessões de avaliação, cada aluno deve elaborar uma síntese pessoal como exercício de
sistematização das ideias discutidas e da experiência vivenciada durante a realização das atividades do
LOLA. Esse trabalho singular de elaboração de síntese não consiste em um resumo de todas as ideias,
tampouco em uma resenha da reunião da avaliação; constitui-se sim num exercício privilegiado de
reflexão absolutamente fundamental à atitude de pesquisar.

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NOTAS EXPLICATIVAS
1 As atividades questionar, responder e avaliar do LOLA se baseiam no Laboratório de Aprendizagem, de
autoria da professora doutora Regina Bochniak.
2 “Mapa conceitual é o recurso esquemático para apresentar um conjunto de significados conceituais
incluídos uma estrutura de propostas”. (MOLINA, 2006, p. 108).
3 A técnica de mapas conceituais está apresentada no livro Complexidade: redes e conexões na produção
do conhecimento da Coleção Agrinho.
4 O uso de portfólio como metodologia de avaliação está apresentado no livro Complexidade: redes e
conexões na produção do conhecimento da Coleção Agrinho.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
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COMPLEXIDADE E SUSTENTABILIDADE:
FUNDAMENTOS DO PROGRAMA AGRINHO

Patrícia Lupion Torres


Cleverson V. Andreoli

A atualização do Programa Agrinho, cujos resultados estão traduzidos em dois livros destinados
aos professores e nove materiais paradidáticos para os alunos do Ensino Fundamental, contemplou o
tema ‘sustentabilidade’ como eixo orientador de toda a concepção e manutenção da transversalidade,
com a adoção dos temas definidos nos Parâmetros Curriculares Nacionais.
A nova fase do programa Agrinho pretende estimular o debate complexo, mostrando a
interdependência entre relações frequentemente apresentadas como antagônicas. Dessa forma,
resgatando-se, por exemplo, a complementaridade dos conceitos de sustentabilidade e atividade
produtiva, a ideia de integração dos conceitos de conservação e produção e a superação da visão
completamente equivocada que coloca a cidade e o meio rural em campos opostos.
Conhecer e aceitar o diferente é a base fundamental para a construção dos consensos tão
necessários em nossa sociedade. Não há diálogo possível quando partimos do princípio da certeza de
nossas posições em um panorama de dissociação que separa o campo da cidade, o desenvolvimento
da conservação, o produtor rural e o ecologista como antípodas, como representações antagônicas. É
preciso, antes de tudo, resgatar a complementaridade entre os conceitos artificiais e reducionistas que
ignoram as inter-relações e a complementaridade das diferenças, como um continuum humano e social.
As relações entre a cidade e o campo, entre o desenvolvimento e a conservação, entre produtores
rurais e ambientalistas devem ter uma nova leitura, que estimule a reflexão sobre a complementaridade
e a interdependência existente entre os conceitos estereotipados. O falso antagonismo é determinado
por uma visão simplificada e maniqueísta, com definições parciais que enfatizam a diferença e a
parcialidade. O que precisamos estimular é o pensamento complexo, que aprofunde a interdependência
dos extremos, uma visão dialética.

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Daí porque, na elaboração deste livro – Ciência, inovação e ética: tecendo redes e
conexões para a sustentabilidade – recomendou-se a cada autor que considerasse em seu
tema a abordagem da dimensão social, econômica e ambiental que compõe os conceitos de
desenvolvimento sustentável.
Esclarecemos que ‘desenvolvimento sustentável’ é aqui entendido como um modelo econômico,
político, social, cultural e ambiental equilibrado, que satisfaça as necessidades das gerações atuais, sem
comprometer a capacidade de reprodução que garanta a satisfação das necessidades das gerações futuras.
Essa concepção é embasada em um tripé que inclui processos ecologicamente prudentes, socialmente
justos e economicamente viáveis.
O conceito abrange, para Sachs (2000), sete aspectos ou dimensões principais da sustentabilidade:
• sustentabilidade social – compreende melhoria da qualidade de vida da população, equidade na
distribuição de renda e diminuição das diferenças sociais, com participação e organização popular;
• sustentabilidade econômica – diz respeito à regularização do fluxo de investimentos públicos
e privados, compatibilidade entre padrões de produção e consumo, equilíbrio de balanço de
pagamento, acesso à ciência e tecnologia;
• sustentabilidade ecológica – significa que o uso dos recursos naturais deve minimizar danos
aos sistemas de sustentação da vida por meio da redução dos resíduos tóxicos e da poluição; da
reciclagem de materiais e energia; da conservação; de tecnologias limpas e de maior eficiência;
de regras para uma adequada proteção ambiental;
• sustentabilidade cultural – implica respeito aos diferentes valores entre os povos e incentivo a
processos de mudança que acolham as especificidades locais;
• sustentabilidade espacial – abrange o equilíbrio entre o rural e o urbano, o equilíbrio de
migrações, a desconcentração das metrópoles, a adoção de práticas agrícolas mais inteligentes
e não agressivas à saúde e ao ambiente, o manejo sustentado das florestas e a industrialização
descentralizada;
• sustentabilidade política – no caso do Brasil, refere-se à evolução da democracia representativa
para sistemas descentralizados e participativos, à construção de espaços públicos comunitários,
à maior autonomia dos governos locais e à descentralização da gestão de recursos;
• sustentabilidade ambiental – trata da conservação geográfica, do equilíbrio de ecossistemas,
da erradicação de pobreza e exclusão, do respeito aos direitos humanos e da integração social.
Abarca todas as dimensões anteriores por meio de processos complexos.

A discussão sobre o desenvolvimento sustentável esbarra, contudo, nas chamadas restrições


biofísicas ao crescimento, pois um sistema aberto não pode existir para sempre, dado que o ambiente é
finito. Segundo Georgescu-Roegen (1977), mesmo a ideia de manutenção do padrão de vida alcançado
pelos países ricos não pode ser mantida indefinidamente. Daly (1993) sugeriu a condição estacionária,

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entendida como um estado em que a utilização de recursos da natureza serviria apenas para manter o
capital e a população constantes, como estratégia para prolongar a permanência da espécie humana.
No conceito de sustentabilidade, a condição é que seja sempre garantido às gerações seguintes
o somatório de três tipos de capital, considerados intercambiáveis: o capital propriamente dito, o
natural/ecológico e o humano/social. (VEIGA, 2009). Esse conceito corrobora com a proposta original
de Sachs (2000), o qual sugeria que o desenvolvimento sustentável somente poderia ser definido se
fossem observados três requisitos fundamentais: economicamente viável, ecologicamente prudente e
socialmente justo. Nesse caso, o requisito social engloba as dimensões cultural e política, e o requisito
ambiental engloba as dimensões ecológica e espacial. Veiga conclui esse debate afirmando que não se
deve entender a sustentabilidade como conceito, mas como um valor que reaproxima a economia da
ética e a sociedade da natureza.
Nesse contexto, a sustentabilidade pode ser entendida como a ‘capacidade do meio ambiente
de suprir cada recurso natural e absorver os produtos finais descartados’. Assim, a antiga noção de
capacidade de suporte do ambiente deu lugar à compreensão da relação entre a biocapacidade do
território e as pressões a que são submetidos seus ecossistemas, pelo aumento do consumo de energia e
matéria pelas sociedades humanas e pelas decorrentes poluições.
Segundo Veiga (2009) o desenvolvimento pode se manter, mesmo que a economia não cresça
indefinidamente. A simples adjetivação do desenvolvimento como ‘sustentável’ pode atrasar a transição
para uma economia estacionária.
Em recente relatório elaborado pela United Nations Environment Programme – UNEP (2019)
foi demonstrado que há uma forte influência da qualidade ambiental planetária na saúde e no bem-
-estar da população humana. Embora o Produto Interno Bruto (PIB) planetário tenha alcançado o
valor de 75 trilhões de dólares em 2017, cerca de 70% da população humana ainda vivia na pobreza.
Segundo Costanza et al. (2014), a influência ambiental na vida humana pode ser dimensionada pelas
perdas econômicas decorrentes da redução de serviços ecossistêmicos estimado, entre 4 a 20 trilhões de
dólares no período de 1995 a 2011.
A humanidade se encontra frente ao desafio de oferecer qualidade de vida à população sem
desestabilizar os processos planetários críticos. Segundo O’Neill et al. (2018), usando indicadores para
mensurar um sistema de vida ‘justo e seguro’, os autores concluíram que nenhum dos 150 países
estudados foi capaz de atender às necessidades básicas de suas populações mantendo um padrão
sustentável de recursos. Os autores afirmam que os recursos planetários seriam suficientes para atender
às necessidades básicas da população, como nutrição, saneamento, energia elétrica e eliminação da
pobreza extrema, contudo, para alcançar os altos padrões de consumo seria necessária uma oferta de
recursos duas a seis vezes acima dos padrões sustentáveis.
Entre os principais desafios da agricultura está a oferta de alimentos a uma população de 9,6
bilhões de pessoas em 2050, cerca de dois bilhões a mais do que a atual. Considerando ainda que
essa é uma exigência ética da humanidade, além de ofertar alimentos para esse novo contingente é
imprescindível também incluir as 821 milhões de pessoas que atualmente sofrem com a fome. Para

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responder a esse desafio é necessária a adoção de práticas mais eficientes, produtivas, sustentáveis,
inclusivas e transparentes em sistemas de produção mais resilientes. (FAO, 2018).
Como a agricultura é o principal agente das transformações ambientais e ao mesmo tempo o
setor mais afetado, ela é considerada a chave para o atingimento dos objetivos globais. No estudo
coordenado por Rockstron et al. (2016) foi apresentado o conceito de ‘intensificação sustentável da
agricultura’, que integra objetivos independentes, mas relacionados de atender às necessidades básicas
da população e contribuir para o aumento da resiliência e sustentabilidade do sistema planetário.
Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura – FAO (2019),
a inovação tecnológica, especialmente as tecnologias disruptivas da chamada quarta revolução
industrial, e principalmente a disponibilização dessas ferramentas aos diferentes modelos agrícolas,
especialmente aos pequenos produtores, que têm mais dificuldade no acesso à inovação, é uma questão
que obrigatoriamente faz parte da solução requerida.
Para isso é necessário garantir o acesso aos diferentes modelos de agricultura – principalmente
aos pequenos produtores rurais, às tecnologias digitais, de informação, à inteligência artificial, à bio
e à nano tecnologia, enfim, ao arsenal criado pelo meio científico para o aumento da produtividade
e da sustentabilidade. Para isso é imprescindível capacitar os pequenos produtores para o uso das
tecnologias disruptivas sob pena de se ampliar o abismo entre os atuais modelos agrícolas, que pode
aumentar os graves problemas sociais hoje existentes.
As grandes transformações iniciadas pela indústria 4.0, que também foram a base da agricultura
4.0, vão se intensificar nos próximos anos por meio do uso de tecnologias digitais, como internet
das coisas, big data, inteligência artificial e outras práticas digitais, como cooperação, conectividade,
mobilidade, tudo com base na chamada ‘inovação aberta’, que preconiza a redução da distância entre o
lado acadêmico/teórico e sua aplicação prática. Essas novas tecnologias são muito promissoras e devem
resultar em importante aumento de produtividade, com consequente crescimento da sustentabilidade,
principalmente pela racionalização do uso de insumos, com destaque para os fertilizantes e agrotóxicos.
As imensas possibilidades de automação tendem a substituir o trabalho humano e devem ser
cuidadosamente gerenciadas, pois dependendo da forma como essas tecnologias forem utilizadas elas
poderão trazer grandes benefícios econômicos, associados a graves problemas sociais. (EC, 2014).
Para além das temáticas norteadoras definidas para essa atualização, foram incluídos novos temas
de relevância, como saúde coletiva, drogas lícitas (álcool, tabaco e medicamentos antidepressivos),
direitos humanos, história da África e dos africanos no Brasil, interculturalidade, artes visuais, entre
outros. Essas temáticas estão abordadas com base no paradigma da complexidade.
Morin (2000) encontra no significado da palavra latina complexus elementos para desenvolver a
noção de complexidade. Para o autor, “Complexus significa o que foi tecido junto; de fato, há complexidade
quando os elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo (como o econômico, o político,
o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico)”. (2000, p. 38). Tal conceito está explicitado no
texto de abertura do outro livro da Coleção Agrinho, intitulado Ciência, inovação e ética: tecendo
redes e conexões para a produção do conhecimento.

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CAMINHOS PARA EXPLORAR AS REDES E


CONEXÕES NA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO
NO PROGRAMA AGRINHO
Partindo de ambos os livros dedicados ao professor/professora, foram produzidos nove materiais
para os alunos das escolas públicas e privadas do Ensino Fundamental. Todos os temas propostos nesses
livros estão implícita ou explicitamente contemplados nesses materiais paradidáticos. Embora nem
sempre as temáticas estejam descritas nos textos, muitas vezes as ideias e os conceitos podem constituir
as imagens. Pretende-se com isso que o professor/professora trabalhe com o material de forma a levar
seus alunos a perceber as questões relacionadas ao tema nas variadas abordagens. Desse modo, há
espaço para uma discussão que ultrapasse as informações apresentadas e permita lidar com as diferentes
visões de mundo que os alunos possam trazer. Ao lado disso, abre-se a possibilidade de utilização das
informações contidas no material para a discussão de eventos, fatos, fenômenos da atualidade.
A contextualização das temáticas à realidade mundial, nacional e local ajuda o aluno a fazer uma
reflexão fundamentada, articulando os conceitos e as ideias com a realidade circundante. Por exemplo, em
determinada temática pode-se trazer fatos apresentados nos telejornais ou ainda a experiência do próprio
aluno para aprofundar o debate, de tal forma que ele consiga formar sua opinião e perceba a ligação dessa
temática com as questões culturais, de cidadania, saúde, meio ambiente, inclusão social, entre outros.
Mais do que simplesmente apresentar as temáticas, o conjunto do material do Programa Agrinho
desenvolvido para os alunos pretende promover a estimulação das linguagens verbais (oral e escrita) e
não verbal.
O material 1, denominado Brincando com o Agrinho, é composto por 62 folhas de atividades que
foram desenvolvidas para crianças da Educação Infantil, considerando diversos níveis de dificuldade.
Simone Ramain (1973) chama isso de ‘dente de serra’, ou seja, existem atividades que a criança fará
com facilidade e outras que lhe demandarão mais esforço.
Nesse material foram consideradas também as diferenças determinadas pelo nível de estimulação
prévia que a criança recebeu. Questões relativas à higiene, à alimentação, aos esportes e ao lazer são as
mais exploradas dentre as diversas temáticas de saúde. Obras de arte de artistas paranaenses também estão
presentes no material, com vistas a possibilitar a exploração de todos os temas transversais. As temáticas são
transversais também entre si; por exemplo, nas folhas em que aparecem carinhas representando algumas
famílias, é possível explorar questões sobre pluralidade cultural, cidadania, inclusão, manifestações
culturais locais, ciclos de desenvolvimento econômico, emigração e migração etc.
Tem-se ainda, uma atividade de recorte e colagem com quatro páginas que compõe uma única
cena de fundo. Duas páginas com animais e veículos para completar o cenário e diversos rostinhos para
os alunos colarem na árvore para compor sua ‘árvore genealógica’.
Destacamos também que todas as figuras recortadas para as atividades propostas podem ser
reutilizadas em jogos de percepção visual, classificação, desenvolvimento da linguagem ou qualquer
outro que o professor/professora crie ou adapte. Apresentamos aqui dois exemplos:

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1. as figuras recortadas são colocadas em um saco plástico. Os discentes são organizados em


grupos de cinco ou seis colegas para jogar. As crianças também trazem suas figuras. O docente
mostra uma figura para seus alunos, e eles devem encontrar uma figura igual em seu saco de
figuras. A equipe que primeiro encontrar a figura igual marca um ponto;
2. esse material também pode servir para exercícios de classificação. O docente deve solicitar
aos alunos que separem, por exemplo, as verduras, os legumes, os cereais, as frutas, as frutas
vermelhas ou ainda os produtos de limpeza etc.

Essas figuras podem ainda ser utilizadas para diversas outras atividades de desenvolvimento de
linguagem oral e escrita a critério do professor/professora.
O material 2, Agrinho em cenas cotidianas, consiste em um conjunto de atividades compostas
por imagens de ‘Cenas do cotidiano familiar’ e um jogo de baralho. Nesse material se privilegia como
forma de passagem da informação a linguagem não verbal, o que possibilita o exercício de fluência
da oralidade e o desenvolvimento da escrita. Com esse material é possível ainda fazer exercícios de
orientação-temporal, orientação-espacial e percepção visual.
As fichas ilustradas que compõem uma ou várias histórias têm molduras coloridas que sugerem
a organização de diferentes histórias. Se considerarmos todas as fichas como partes de uma única
história, teremos então uma história maior, que pode ser composta de outras menores, por nós sugeridas
pelas molduras, ou ainda por tantas outras quantas forem as sequências propostas pelo professor/pela
professora ou por seus alunos.
Lembramos que a narrativa exige uma sequência mínima: abrir, desenvolver e fechar uma ideia.
Não há fragmentos isolados, pois cada um compõe o todo. Com esse material podem ser trabalhados
todos os temas transversais. Em cada uma das fichas, podem ainda ser exploradas múltiplas temáticas.
Por exemplo, na ficha em que aparece uma cena do posto de saúde podem ser discutidos: os papéis
da família; o respeito ao idoso, à pessoa com deficiência física, ao meio ambiente; a importância do
aleitamento materno e da vacinação; o valor da leitura do lazer e da brincadeira. Acompanha o jogo de
fichas um encarte com sugestões de atividades que permitirá explorar de diversas maneiras este material.
O trabalho com essas imagens pode ser realizado ora individualmente, ora em grupo, para que
as crianças possam vivenciar essas duas formas de trabalho que, embora carreguem diferenças, são
igualmente ricas. O docente pode selecionar as imagens que deseja explorar com seus alunos, ou pode,
ainda, pedir- lhes que as selecionem individualmente ou em grupo.
Completa o material um baralho de cartas que pode ser usado independentemente das fichas
ou de forma complementar a elas. Ele é composto de 36 cartas com palavras de diversas categorias
gramaticais, como verbos, substantivos, preposições, adjetivos etc. As cartas podem ser usadas para
formar frases ou modificar histórias. Pode-se usar apenas uma carta ou muitas delas. Pode-se também
associar as imagens a uma ou mais cartas. Pode-se ainda simplesmente usar as cartas.
O material 3, intitulado Descobrindo o mundo, é composto por frases sobre diversas temáticas:
campo, cidade, agricultura, água, florestas, clima, estações do ano, os amigos, a família, os livros etc.

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As frases são enriquecidas com elementos não verbais que permitem ao professor/professora explorar
outras questões sobre a mesma temática.
O material 4, intitulado Investigando o ciclo da água tem como ideia central um mistério a ser
descoberto. Nesse material se pretende mostrar uma grande aventura vivida por Agrinho e seus amigos.
Por meio da narrativa, que apresenta Agrinho e seus amigos em diversos espaços, os diálogos entre
eles e as pesquisas realizadas pelo grupo na internet, mostramos questão de grande relevância para a
atualidade: o ciclo da água.
Os materiais 5, 6, 7, 8 e 9 estão em formato de revista e têm como ideia central um jeito
sustentável de ser e viver. Um título único nos apresenta o tom da coleção – Ciência, inovação e
ética – tecendo redes e conexões.
Esse conjunto de material conta, ainda, com diversas seções, a saber:
• Ciência de tudo: Agrinho apresenta temáticas da atualidade. Com uma linguagem informal,
traz comentários, registros e outras informações sobre os assuntos que estão sendo apresentados.
É um espaço para a curiosidade e o aprofundamento na temática científica. Informações que
surpreendem e despertam o desejo de saber mais.
• Você jornalista: parte das questões clássicas do jornalismo – O quê? Quem? Quando? Onde?
Por quê? –, essa seção convida os estudantes a investigarem os temas de estudo. Incentiva
os alunos a pesquisarem e, muitas vezes, indica leituras complementares sobre determinado
assunto.
• Eureka: palavra grega que significa ‘descobri’, nessa seção a ideia é aprofundar os conhecimentos
sobre vários temas com informações curiosas, instigantes e que convidem os estudantes à
reflexão. Dedica-se a acrescentar dados e fatos sobre a temática destacada, porque sempre há
muito mais a aprender.
• Retronautas dos pinheirais: pretende levar o leitor, como num passe de mágica, a uma viagem
do presente ao passado para um encontro com protagonistas de nossa história. Apresenta
personagens importantes da arte, da ciência e da educação paranaenses. Para conhecer, valorizar
e inspirar. O foguete mágico é acionado por estes versos da poetisa paranaense Helena Kolody:
“... quatro... três... dois... um... ignição... partida”.

Cada uma dessas revistas procura desenvolver as temáticas selecionadas em decorrência da


experiência esperada e da faixa etária da maioria dos alunos matriculados em cada uma das séries.
Pretende-se que os conteúdos suscitem discussões e debates que contribuam para preparar os
alunos para o exercício ativo da cidadania. Essas discussões muitas vezes podem ser iniciadas tendo
por base as ilustrações. Para cada um dos aspectos levantados nos debates, os docentes podem
coordenar um exercício de análise comparada levando questões como: ‘O que vejo no material?
O que vejo na minha família, na minha casa, na minha vizinhança, na minha escola, no meu bairro,
na minha cidade?’.

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Vale destacar que qualquer ilustração do material pode ser utilizada para discutir temas que não
estão claramente explicitados no texto correspondente do material, mas que o professor/professora
entende pertinente explorar. O docente pode ainda conduzir um exercício de comparação explorando
essas comparações ao máximo. No material há ainda diversos textos e desenhos que permitem o
desenvolvimento desse mesmo exercício de comparação.
Os docentes podem enriquecer muito a discussão solicitando a seus alunos que realizem pesquisas
nos meios de comunicação, já que todas as temáticas propostas no material são relevantes e atuais.
Fontes diversas de informação apresentam os fatos de maneira diferente. A diversidade de dados e
posicionamentos pode enriquecer a discussão e favorecer o desenvolvimento de uma posição crítica.
Todas as cinco revistas pretendem, por meio de suas seções, incentivar a investigação, reiterando
a possibilidade de um desdobramento que toda pesquisa sempre tem. Assim, tanto a sugestão dada no
material pode ser acrescida, melhorada, quanto podem ser sugeridas outras pesquisas pelos discentes
ou pelos docentes.
A ideia principal do material é que o conhecimento permite uma reflexão mais fundamentada para
auxiliar na tomada de atitude individual e coletiva, procurando buscar uma sociedade mais sustentável,
justa, solidária, fraterna e igualitária.

BIBLIOGRAFIA
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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
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A INTEGRAÇÃO CAMPO-CIDADE: QUEBRANDO


PARADIGMAS

Eugênio Libreloto Stefanelo


Paulo da Lana Cunha

O RURAL E O URBANO COMO ESPAÇOS


CONTÍNUOS E INTERDEPENDENTES
Em 2011, 37% da superfície dos continentes terrestres era ocupada pelas chamadas zonas rurais,
segundo as categorizações da Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO), que nelas incluem
tanto os sistemas de produção agrícolas como os pecuários. No contexto global, as oportunidades para a
expansão das áreas de cultivo ou pecuária vêm se reduzindo, na medida em que as áreas mais adequadas já
foram historicamente ocupadas. Áreas marginais, como encostas íngremes e solos pobres ou áridos, vêm
sendo progressivamente convertidas para essas finalidades, assim como os grandes espaços das florestas ou
de áreas desérticas, por meio da irrigação. Os sistemas agrícolas e pecuários se especializaram na provisão
de alimento, fibra e, mais recentemente, de energia e outros produtos madeiráveis, frequentemente às
custas de outros serviços potencialmente prestados pelos ecossistemas. Por outro lado, a urbanização e o
crescimento populacional continuam a ser tendências demográficas de caráter global. De 1900 a 2000, a
população total da Terra passou de 200 milhões a 3 bilhões de pessoas, chegando a 7,6 bilhões em 2017,
e devendo atingir mais de 9,8 bilhões em 2050. O acelerado crescimento demográfico e econômico tem
igualmente trazido pressões significativas sobre os ecossistemas terrestres.
‘Campo e cidade’ são realidades materiais concretas, enquanto seu par dialético ‘rural e urbano’ são
representações sociais. (BIAZZO, 2008). Ao longo da história, campos e cidades foram tradicionalmente

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reconhecidos e distinguidos pelas estruturas físicas criadas ou transformadas pelos seres humanos e pela
maior ou menor densidade demográfica que mantinham. Foram vistos e representados como espaços
antagônicos ou, na melhor das hipóteses, ‘complementares’. Sob a perspectiva marxista do modo de
produção capitalista, a divisão entre campo e cidade representaria a culminância do processo de divisão
técnica, social e territorial do trabalho.
Para melhor compreendermos e transcendermos essa tradicional dicotomia entre os mundos do
campo e da cidade, devemos analisar as origens e evolução desse afastamento, que tem de fato bases
materiais, mas também reflete nossas representações sociais sobre o que é o rural e o que é o urbano.
Segundo Ferrão (2000), o mundo rural tradicional se organiza em torno de uma função principal
(a produção de alimentos), uma atividade econômica dominante (a agricultura), um grupo social de
referência (a família camponesa, com modos de vida, valores e comportamentos próprios) e um tipo
de paisagem que reflete a conquista de equilíbrios entre as características naturais e o tipo de atividades
humanas desenvolvidas. Esse mundo rural secular se oporia ao mundo urbano, marcado por funções,
atividades, grupos sociais e paisagens não só distintos, mas em grande medida construídos ‘contra’ o
mundo rural. Essa percepção, vista como espontânea ou ‘natural’, traz implícita a ideia de que campo
e cidade seriam complementares e poderiam manter um relacionamento estável em um contexto
marcado pelo equilíbrio e pela harmonia, mesmo mantendo suas identidades materiais e culturais e
suas especificidades funcionais.
Até que ponto essa representação tem bases históricas ou, em outras palavras, até que ponto essa
oposição ou dicotomia é legitimada pelos melhores conhecimentos que temos a respeito da evolução
desses sistemas? Seja material ou culturalmente construída, essa oposição entre campo e cidade é fruto
da capacidade que nossa espécie teve de transformar o espaço ao seu redor e, a partir daí, de representar
socialmente essas mudanças, como base de seus sistemas de valores e de comportamento. Esse processo
pode ser chamado genericamente de ‘antropização dos sistemas naturais’. Um sistema antropizado seria
aquele submetido à presença do ser humano e modificado, em maior ou menor grau, por sua presença e
suas intervenções materiais e sociais. Nesse contexto, os sistemas rurais e urbanos se assemelham muito,
desde a origem, no sentido de que ambos são antropizados, ou seja, profundamente transformados
para atender necessidades e demandas muito específicas de nossa própria espécie.
As próprias leis da física apontam para outras similaridades entre os sistemas rurais e urbanos.
Todos os ecossistemas da Terra são abertos, no sentido de que trocam matéria e energia entre si, de
forma intensa ou mais limitada. Nesse sentido, sistemas rurais e urbanos não diferem de outros sistemas
naturais, pois também trocam matéria e energia entre si, desenvolvendo relações de interdependência
mais ou menos intensas, que variam em função das regiões e épocas consideradas. Em outras palavras,
também do ponto de vista dos ciclos de materiais e do fluxo de energia não faz maior sentido opormos
um sistema a outro ou os reconhecermos como ‘complementares’.
As próprias estratégias de construção do conhecimento ambiental, nas últimas décadas, têm levado
a uma progressiva mudança de nossas percepções do rural e do urbano. A análise da influência do ser
humano sobre a natureza foi até uns cinquenta anos atrás uma área muito mais explorada pela geografia

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do que pela ecologia ou por qualquer uma das ciências naturais. Esse quadro se alterou nos últimos anos
e o que hoje denominamos ‘revolução’ no conhecimento ambiental é na verdade resultado da interação
de disciplinas muito diversas, tanto do domínio natural como do socioeconômico. Não é possível,
portanto, transcender a tradicional dicotomia entre o rural e o urbano sem um olhar interdisciplinar,
que novamente tende a enfatizar muito mais as semelhanças do que as diferenças entre eles.
Por fim, uma das preocupações latentes da revolução do conhecimento ambiental é a necessidade
de estimar a viabilidade ou sustentabilidade dos recursos naturais, como a água, o solo, os alimentos,
ou os demais bens e serviços prestados pelos ecossistemas. Para isso, é necessário estimar a quantidade
desses recursos e suas taxas de uso e reposição, tanto nos sistemas naturais como naqueles modificados
pelo ser humano. Os recursos renováveis, em particular, tiveram sua qualidade e quantidade muito
modificadas ao longo do tempo e espaço. Alguns foram expandidos pelas atividades humanas e outros
entraram em colapso ou se extinguiram. A definição de sustentabilidade, tal como apresentada pela
World Commission on Environment and Development de 1987 – atender as necessidades das gerações
presentes sem comprometer as necessidades das gerações futuras – apresenta de fato grande valor
conceitual e retórico, mas pode se mostrar de pouca valia do ponto de vista prático ou operacional. A
simples retórica não garante a reposição ou persistência dos bens e serviços ecossistêmicos dos quais
dependemos, estejamos ou não em áreas categorizadas como urbanas ou rurais.
Nesse sentido, será possível usar o conceito de sustentabilidade como uma das formas de superar o
paradigma de que campo e cidade são categorias funcionalmente distintas? Se há algum sentido no uso
desse conceito, será preciso – de alguma forma e em algum momento – tratar de sua base material, ou
seja, os próprios recursos naturais e sua disponibilidade e persistência ao longo do tempo, bem como
do espaço, como uma continuidade necessária entre campo e cidade.
Para compreender as variações na disponibilidade de recursos no tempo e no espaço e seus fluxos
entre campo e cidade, é preciso investigar a história ambiental e cultural da Terra. Precisamos, portanto,
determo-nos na análise da própria história cultural humana e dos usos e abusos que os seres humanos
fizeram dos recursos naturais renováveis ou não renováveis, criando nesse processo os grandes espaços
antropizados do campo e da cidade. Uma excelente abordagem dessa história, desenvolvida por Goudie
(2005), é resumida nas seções a seguir.

Origem dos sistemas rurais


Apesar de ainda controversa em muitos pontos, a origem dos sistemas rurais já foi razoavelmente
mapeada pela arqueologia. A colonização inicial da Terra pelos seres humanos foi uma conquista
extraordinária, alcançada com economias de subsistência, sustentadas pela caça de animais selvagens,
pesca e coleta de vegetais silvestres. Essas práticas são o uso mais antigo que os humanos fizeram dos
recursos naturais. Ainda que caçadores, pescadores e coletores possam ter sido componentes importantes
dos ecossistemas, as modificações que introduziram nos ambientes à sua volta foram muito mais uma
questão de grau do que de tipo.

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Comparados com os estágios posteriores de desenvolvimento material e cultural, os primeiros


coletores e caçadores não mantinham densidades populacionais ou as habilidades tecnológicas capazes
de causar efeito substancial sobre o ambiente. Ou seja, durante grande parte da história ou pré-história
humana, fomos apenas mais uma espécie entre muitas, adaptada à vida em ecossistemas variados, mas
principalmente em savanas ou campos abertos. A influência do ambiente sobre essas populações era
muito mais evidente do que a recíproca. No entanto, no início do Holoceno, há cerca de 10.000 anos,
os seres humanos começaram em várias regiões do globo a ‘domesticar’ plantas, mais do que coletá-las,
e a criar animais, mais do que caçá-los.
Com a mudança dos modos de produção prevalecentes, começou também a mudar decisivamente
esse presumido ‘equilíbrio’ entre a espécie humana e seu entorno. Com o cultivo de plantas, foi possível
reduzir enormemente, em até 500 vezes, o espaço necessário para o sustento de cada indivíduo.
Apesar de a agricultura ter surgido de forma provavelmente independente em diversas regiões do
globo, o crescente fértil do Oriente Próximo foi provavelmente o mais importante desses centros.
Como consequência, a visão convencional do povoamento humano afirma que surgiram logo depois,
particularmente no Oriente Médio e na Mesopotâmia, as primeiras cidades ou ensaios de urbanização.
Há evidências de que a produção de alimento era apenas uma das finalidades da domesticação de
plantas, mas não necessariamente a mais importante. As primeiras plantas domesticadas seriam usadas
para fins múltiplos, como fornecimento de carboidratos, conservação de redes de pesca, produção de
tecidos, remédios e venenos.
A visão clássica a respeito dos povoamentos humanos afirma que a domesticação de plantas e
animais antecedeu a criação das cidades e, em última análise, das grandes civilizações clássicas. Jacobs
(1969) foi a primeira a questionar essa visão, defendendo uma agricultura originada dentro ou em
volta das cidades, e não no campo. Essa argumentação, muito apoiada por descobertas arqueológicas
recentes no Oriente Médio e na Turquia, afirma que mesmo as sociedades extrativistas e caçadoras
podem criar e sustentar centros comerciais grandes e estáveis, baseados nos produtos da extração e caça,
como pedras, pigmentos e conchas. O alimento seria trocado por esses bens, mas os produtos perecíveis
trazidos de distâncias maiores deveriam ser duráveis. Para tal, espécies animais deveriam ser trazidas
vivas e nem todos os animais seriam consumidos imediatamente. Alguns poderiam ser mantidos em
rebanho e se reproduziriam. Estariam assim lançadas as bases da domesticação.
De fato, escavações arqueológicas realizadas a partir de 1995 na Turquia, forneceram evidências
da construção de grandes templos há 12.000 anos, muito antes das primeiras práticas agrícolas
conhecidas. Para explicar esse padrão, o raciocínio histórico convencional precisa ser completamente
invertido. A necessidade de uma vasta mão de obra para construir templos e infraestrutura associada
teria literalmente forçado as populações humanas a desenvolver a agricultura e a pecuária como uma
forma de garantir alimentos de forma previsível.
Se essa hipótese não for refutada, temos evidências ainda mais consistentes da estreita dependência
histórica entre os espaços rurais e os espaços urbanos e da inadequação das percepções e representações
posteriores, que os viram como espaços separados e estranhos um ao outro.

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Modernas sociedades urbanas e industriais


Goudie (2005) mostrou ainda que a aglomeração dos indivíduos no que chamamos ‘aldeias’
ou ‘cidades’ é um fenômeno relativamente recente. A ocupação de territórios por populações de
coletores e caçadores só pôde ser otimizada pela dispersão espacial, ou seja, pelo espalhamento de
nossa espécie. Essa foi de fato uma característica histórica do Homo sapiens, que reconhecidamente
passou por grandes ondas de migrações, desde sua especiação, entre 260.000 e 350.000 anos atrás.
(SCHLEBUSCH et al., 2017).
Por outro lado, foi o aumento na previsibilidade de obtenção de recursos que tornou possível
a ampliação da densidade demográfica e dos povoamentos urbanos. A primeira ocupação da cidade
de Jericó, com seus 2000 habitantes, data de 7000 a.C., enquanto sítios vizinhos de populações de
coletores e caçadores datam de 8000 a 12000 a.C. Algumas cidades antigas tiveram populações muito
grandes. Há estimativas de que Nínive teve 700.000 habitantes em seu apogeu; Roma e Constantinopla,
cerca de 1.000.000; e Cartago, 700.000. Com toda certeza, essas cidades exerceram uma influência
considerável em suas redondezas, até mesmo em escala global. Das cidades antigas às grandes cidades
da Europa medieval e pré-industrial, a distância não foi muito grande. Os tamanhos eram equivalentes
e a composição étnica mantinha em geral uma forte dominância de indivíduos de extração local, que
moderavam a heterogeneidade biológica do conjunto. Os problemas ligados à densidade populacional,
à higiene, às condições alimentares e às patologias seguiram um mesmo padrão evolutivo. O que
mudou gradualmente foi a diversificação crescente das atividades ligadas ao meio urbano e ao próprio
desenvolvimento técnico dessas sociedades.
Mais variadas foram as mudanças dos sistemas de gestão política, com uma tendência histórica
de manutenção da primazia das cidades sobre os meios rurais. Com o advento da industrialização, a
milenar dualidade rural-urbana poderia ter perdido o sentido, mas frequentemente se intensificou,
em particular nas sociedades ocidentais. A noção de cidade moderna passou a se tornar cada vez
menos indissociável da noção de Estado, por constituir seu maior suporte econômico ou social. A
dominação sobre o mundo rural não foi apenas política e técnica, mas também econômica, na medida
em que a prosperidade de todos aparentemente dependia da atividade industrial do setor secundário
e dos serviços do setor terciário a ela associados. Isso se exprimiu por meio de um forte fluxo humano
das zonas rurais para as cidades, com as primeiras se despovoando enquanto as segundas atingiram
proporções gigantescas, transformando-se nas metrópoles e megalópoles contemporâneas.
Segundo Ferrão (2000), o processo de perda da centralidade econômica, social e simbólica por
parte do mundo rural foi progressivo. Este passou a ser globalmente identificado com realidades
arcaicas, enquanto as aglomerações urbano-industriais passaram a ser vistas como o palco, por
excelência, do progresso. Cidades se transformaram em entidades políticas com muito mais peso do
que as áreas rurais. Os fluxos assimétricos entre campo e cidade determinaram grandes mudanças de
ordem demográfica (pelas migrações e pela regulação da fecundidade e mortalidade), genética (pela
miscigenação sem precedentes de populações provenientes de horizontes muito variados) e sociocultural

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(pelo desenvolvimento de subpopulações ou setores ligados a funções econômicas específicas). O fato


de a expansão das infraestruturas e dos equipamentos de apoio à qualidade de vida dos cidadãos ser
muito mais rápida nas aglomerações urbanas reforçou o papel (e as percepções associadas) das cidades
como polos de prestação de serviços pessoais e sociais.
Esses processos de urbanização e metropolização, associados à atividade industrial, resultaram em
uma capacidade de ‘antropizar’ em níveis jamais registrados em toda a história humana. A atividade
industrial, desde sempre associada aos meios urbanos, ao contrário da agricultura e da pecuária,
reduziu ainda mais o espaço necessário para sustentar cada indivíduo e intensificou o ritmo de uso
dos recursos naturais. Esses efeitos foram ainda mais aumentados pelos avanços da moderna ciência,
principalmente a medicina, que possibilitaram acentuados aumentos populacionais, mesmo nas
sociedades não industrializadas. As tendências de urbanização acompanharam esse processo, e hoje as
cidades, consideradas como sistemas ‘artificiais’ ou uma ‘natureza derivada’, têm os próprios problemas
ambientais, que não serão objeto primário deste capítulo.
Goudie (2005) mostrou também que outra chave para se entender o desenvolvimento das
sociedades industriais e a tendência contemporânea de urbanização acelerada está na transição do uso
primário de recursos renováveis para os não renováveis. Nos sistemas agrícolas e pecuários tradicionais,
o insumo energético era historicamente derivado da fotossíntese e da força motriz humana ou animal,
complementado pela energia da água e do vento, ou da madeira como combustível. Todos esses recursos
são, a princípio, renováveis, já que os próprios bosques podem ser manejados para alcançar uma produção
sustentada. Na prática, o que se viu ao longo da história humana foi uma redução generalizada na
cobertura vegetal de todas as regiões habitadas, antes da transição para fontes de energia não renováveis.
Já a base energética dos sistemas industriais foi fundamentalmente diferente da presente nos sistemas
anteriores e representou um ponto de inflexão na história humana, comparável ao domínio do fogo ou à
implantação da agricultura. O uso do carvão, do gás natural e do petróleo reduziu a dependência direta
da sociedade industrial à fixação biológica da energia por meio das plantas. Desde o início do século
XIX, essas ‘novas’ fontes de energia, baseadas em recursos não renováveis na escala da vida humana, têm
sido exploradas e incorporadas à tecnologia de produção de bens materiais em quantidades e variedades
crescentes. Esses produtos e seus processos de transporte fizeram, por sua vez, com que a superfície
terrestre se transformasse em um ritmo que não havia sido possível nas sociedades pré-industriais.
Essa lógica foi inclusive ‘exportada’ das cidades para os campos, com a implantação da agroindústria
e da produção primária intensiva no uso de insumos modernos, igualmente dependente de insumos
não renováveis, agora em escala global. Por sua vez, a agroindústria e a produção primária intensiva
trouxeram duas novas realidades bem distintas para o mundo rural, dividindo-o em rural moderno e
rural considerado arcaico ou tradicional. Nesse sentido, a modernidade deixou de ser uma exclusividade
do espaço urbano. Isso contribuiu paradoxalmente para aprofundar ainda mais o fosso entre o mundo
rural tradicional ou arcaico, percebido atrasado, e o mundo da modernidade urbana, com os dois
intermediados pelo mundo da modernidade agroindustrial e, mais recentemente, incluindo também
atividades do setor de serviços como lazer, cultura e turismo rural.

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A percepção real ou presumida de uma verdadeira crise ambiental a partir da segunda metade
do século XX trouxe a implantação de políticas de conservação em todo o globo e com elas a
invenção social de um mundo rural não agrícola. A função desse novo mundo rural, com o aumento
acentuado de reservas e parques naturais, deixou de ser necessariamente a produção de alimentos,
ou seja, sua atividade predominante deixou de ser agrícola ou pecuária. Essa nova dicotomia,
que separou a agricultura e a pecuária do mundo rural pela primeira vez na história humana,
originou-se de (ou deu origem) a novas percepções e representações sociais, que passaram a ver
o mundo rural como o espaço único e possível da recuperação ou recriação de espaços naturais
modificados pela ação do ser humano, quase sempre considerada danosa ou mesmo irreversível.
Como exemplo, as áreas preservadas nos imóveis rurais e em unidades de conservação terrestres no
Brasil somavam 218 milhões de hectares em 2018, cerca de 25,6% do total da superfície terrestre
do país. (EMBRAPA, 2018).
Essa é a realidade complexa que vivemos hoje, quando a dualidade histórica de campo e cidade se
vê matizada por diversas situações híbridas, nas quais se confundem o moderno e o arcaico, o urbano
e o rural, área de produção e área de conservação. Essa complexidade, sempre marcada por relações de
estreita interdependência, novamente sugere que esses espaços devem ser tratados como um continuum
e não como mundos antagônicos, em conflito ou complementares.

Como a redução dessa percepção da dualidade entre campos


e cidades pode contribuir para maior sustentabilidade e
maior qualidade da vida humana
Todas essas modificações e inovações culturais e tecnológicas apontam para algumas tendências
prevalecentes nas sociedades modernas. Houve aumento da complexidade, intensidade e frequência
dos impactos humanos, paralelamente a um crescimento generalizado do consumo per capita, com
acentuados aumentos populacionais, em particular nos países em desenvolvimento.
Nesse contexto, a recente Avaliação dos Ecossistemas do Milênio, conduzida por cientistas de
todo o mundo (HASSAN; SCHOLES; ASH, 2005), afirmou sem ambiguidades que o bem-estar
e a qualidade de vida humanas, dentro e entre a maioria das sociedades, têm melhorado de forma
substancial ao longo dos dois últimos séculos.
Por outro lado, o conceito da sustentabilidade está intrinsecamente ligado à ideia de que o
crescimento econômico e o desenvolvimento social e humano têm limites, na medida em que nossa
própria base de recursos não é ilimitada, ainda mais ao se basear primariamente em uma matriz
energética finita e não renovável, como é o caso dos combustíveis fósseis. Para muitos pensadores e
ativistas ambientais, essa percepção deveria ser a base de uma mudança radical da sociedade, com a
volta a estilos de vida rurais e autossuficientes. Esse cenário implicaria uma perda de relevância do
mundo urbano, presumidamente mais insustentável e mais afligido pelos problemas ambientais.

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No extremo oposto, a crise ambiental contemporânea, seja ela fato ou apenas percepção,
representaria para os otimistas da tecnologia um desafio que deve ser enfrentado com uma reciclagem
eficiente das matérias-primas e com o desenvolvimento de fontes alternativas de energia, incluindo as
energias nuclear, eólica e solar. Segundo essa lógica, essas fontes alternativas ofereceriam perspectivas
de consumo quase ilimitadas. Sejam radicalmente conservacionistas ou tecnológicas, essas projeções
ambientais tendem novamente a reforçar e enfatizar a indesejável dualidade entre campo e cidade,
sugerindo que um e outro seriam os únicos pontos de equilíbrio possível para a sustentabilidade
de populações felizes e com boa qualidade de vida. Como tal, tendem a simplificar ou reduzir a
complexidade que os chamados mundos rural e urbano assumiram na época contemporânea.
A percepção da insustentabilidade de um modelo civilizatório baseado em uma matriz energética
não renovável se expressou historicamente com muito mais intensidade nas cidades. Elas foram
desde sempre afligidas pela poluição, pela contaminação do ar e pelas dificuldades de abastecimento,
saneamento e acesso à água potável. Só mais recentemente essa percepção se estendeu para as áreas
rurais, com a crescente assimilação do passivo ambiental também associado à agroindústria. Na
verdade, temos hoje a percepção e a compreensão de que as atividades humanas afetam a Terra como
um todo, incluídos aí o mundo rural e o urbano. Essa percepção é fundamentada por projeções mais
ou menos pessimistas das mudanças climáticas em grande escala e do papel que nelas desempenhamos,
intensificando os riscos ambientais. Nesse sentido, campo e cidade novamente se aproximam, agora
em um mau sentido, ao compartilharem situações de risco ambiental que comprometem a qualidade
de vida das populações humanas como um todo.
Segundo Sachs (1993), a solução para os problemas das cidades exigiria uma nova estratégia global
de ocupação do território, incluindo necessariamente a área rural. Se pensarmos que o mundo rural, seja
tradicional, seja moderno, também tem questionada sua sustentabilidade, a recíproca é verdadeira. O
generoso conceito de sustentabilidade deveria, nesse sentido, não reforçar o mito da complementaridade,
mas contribuir para a demonstração da efetiva continuidade e interdependência entre ‘campo’ e ‘cidade’.
Sachs (1993) sugere que se abandone definitivamente a ‘antiga’ ideia prevalecente durante todo
o século 20, de que urbanização e desenvolvimento são necessariamente sinônimos. As mudanças
tecnológicas da industrialização e dos serviços contemporâneos já viabilizariam a sobrevivência de
empresas menores, com menos empregos, fora do eixo das cidades. Nesse contexto, um novo ordenamento
territorial urbano passaria por um novo ciclo de desenvolvimento rural. Da mesma forma, a substituição
da energia fóssil pela renovável e o desenvolvimento tecnológico poderiam abrir novas oportunidades
de vida econômica no meio rural e assim oferecer importante contribuição para sua sustentabilidade,
baseada mais uma vez na interdependência dos dois sistemas e não em sua complementaridade.
Nesse sentido, a continuidade campo-cidade é vista aqui como a persistência e coexistência de
múltiplas ruralidades e urbanidades. Essa nova visão do mundo assumiria como inevitável e necessária
a coexistência de múltiplas funções nos diversos mundos rurais e urbanos. Se assumirem de fato essas
múltiplas funções econômicas, sociais e ambientais, as diversas configurações do rural e do urbano
deixariam de ser vistas como espaços antagônicos ou de estranhamento entre populações humanas,
com sua carga histórica de valores econômicos e socioculturais também conflitantes entre si.

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Como corretamente diagnosticado pelo objetivo 11 da Agenda 21, é preciso redescobrir o potencial
de desenvolvimento sustentável do Brasil dito rural, reduzindo a dívida social, dando um novo impulso
à economia nacional e um fim às práticas de exploração predatória dos imensos recursos naturais do
país. Isso poderia reverter a percepção de que a população rural estaria condenada a se encolher devido
à expansão de culturas e pastagens extensivas. Essa suposta inevitabilidade tem sido contestada, na
realidade, pelo próprio potencial ainda inexplorado de desenvolvimento do interior do país.
Ainda segundo a Agenda 21, esse potencial está baseado na maior capacidade de absorção de força de
trabalho dos sistemas produtivos de caráter familiar, cuja base é a pluriatividade e a multifuncionalidade
da agropecuária de pequeno porte. Isso seria baseado na modernização da chamada ‘agricultura familiar’ e
nas amplas oportunidades de geração de empregos rurais nos setores terciário e secundário da economia.
Independentemente dos cenários que podemos visualizar para o futuro, no Brasil ou no mundo,
torna-se cada vez mais intensa, entre diferentes setores da sociedade, incluindo os próprios cientistas,
a percepção da insustentabilidade de um modelo que opõe cidade e campo, mundo urbano e mundo
rural, vistos equivocadamente como complementares e não como espaços que podem e devem alternar
funções similares de sustentação da vida humana.
Os seres humanos sempre fizeram previsões e especulações mais ou menos otimistas ou pessimistas
a respeito do próprio futuro. Esse é, com certeza, um de nossos traços distintivos como espécie. As
especulações e projeções a respeito de nosso futuro ocupam hoje um enorme espaço na literatura
científica e nos meios de comunicação. Não sabemos se são corretas ou se apenas refletem nossos temores,
esperanças e desesperanças. O fato é que nossa capacidade de avaliar as alterações ambientais e suas
consequências, seja de forma qualitativa, seja de modo quantitativo, tem aumentado muito nas últimas
duas ou três últimas décadas. Infelizmente, essa compreensão não tem induzido ou gerado melhores
formas de uso e manejo dos recursos renováveis ou não renováveis em escalas globais ou até mesmo
regionais. Do mesmo modo, nosso conhecimento não tem se refletido em estratégias que reduzam os
fossos materiais e sociais entre os diversos mundos rurais e urbanos. Essa crescente compreensão dos
riscos físicos, sociais e culturais associados às mudanças climáticas globais, se não acompanhada de sua
atenuação ou solução, poderá paradoxalmente nos tornar mais sábios, mas muito mais tristes.

CIDADE E CAMPO: ATIVIDADES E PRÁTICAS


AMIGÁVEIS AO MEIO AMBIENTE DESENVOLVIDAS
NO BRASIL E NO PARANÁ
Um dos desafios atuais, em praticamente todos os países do mundo, é a busca de soluções que
aumentam a produção de alimentos e atendam ao aumento da demanda de uma população também
em crescimento, considerando a disponibilidade finita de recursos naturais como terra apropriada aos
cultivos e à água. Por outro lado, a migração das pessoas para as cidades continua, embora em percentagem

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menor do que no passado. Ao mesmo tempo, nos anos mais recentes, verifica-se a migração de pessoas
das cidades mais populosas para aquelas de menor porte e com boas condições de infraestrutura.
As transformações que estão ocorrendo no setor da produção primária (lavouras, pecuária e
extração vegetal) atendem ao aumento da demanda e devem contemplar da mesma forma a redução da
pobreza rural e a preservação do meio ambiente.
Em 2016, segundo a FAO Statistical Yearbook, 37% da superfície terrestre era ocupada pela
produção agropecuária, 31% pelas áreas florestais e os 32% restantes por outros usos. Dos 4,91 bilhões
de hectares de terras agricultáveis, os cultivos aráveis (no Brasil denominados temporários) ocupavam
aproximadamente 29%, os permanentes 3% e as pastagens naturais e cultivadas 68%. A área mundial
de culturas colhidas foi 1,38 bilhão de hectares, registrando intensidade média de 0,9 hectare por
habitante. E as áreas terrestres protegidas representavam 14% da área total.
Nesse mesmo ano, a população mundial total situada nas zonas rurais era de 44,7%, com tendência
decrescente, e a residente nas zonas urbanas era de 55,3%.
A taxa de crescimento da população mundial é menor do que nas décadas anteriores e maior nos
países minimamente desenvolvidos e em desenvolvimento. Segundo a Organização das Nações Unidas
(esa.un.org population in World Population Prospects 2019, entre 2020 e 2050 a população total deve
passar de 7,79 para 9,74 bilhões.
Na região da América Latina e do Caribe, a relação entre os usos da terra para a produção primária
é semelhante à situação verificada no mundo: 37% das terras estão ocupadas pelos sistemas agrícola e
pecuário e 47% cobertas por bosques. Da superfície total agrícola, em 2,7% há culturas permanentes
e em 75% pastagens naturais e cultivadas.
Também segundo a FAO, em 2016, no Brasil, a área de culturas colhidas era de 76,2 milhões de
hectares, com intensidade média de 0,9 hectare por habitante. As áreas florestais representavam 59%, e as
destinadas à agropecuária representavam 34% da área total. As áreas terrestres protegidas somavam 29% da
área total (contempla, no mundo e no Brasil, as unidades de conservação terrestre mais as terras indígenas).
Em 2018, segundo o pesquisador Evaristo Miranda, do Grupo de Inteligência Territorial Estratégica
(GITE), da Embrapa, da superfície total brasileira de 851,6 milhões de hectares, as lavouras e florestas
plantadas ocupavam 9% ou 76,6 milhões de hectares, as pastagens plantadas 13,2% ou 112,2 milhões
de hectares, as pastagens nativas 8% ou 68,0 milhões de hectares, e a vegetação preservada nos imóveis
rurais (como áreas de preservação permanente e reserva legal) 25,6% ou 218,2 milhões de hectares.
Outros 315,9 milhões de hectares ou 37,1% do território nacional são áreas legalmente atribuídas como
unidades de conservação terrestre, terras indígenas, assentamentos rurais, comunidades quilombolas e
áreas militares.
Da mesma forma que o estimado para a população mundial, a projeção das Nações Unidas revela
o crescimento da população brasileira de 212,56 milhões em 2020, dos quais 15,7% residiam nas
zonas rurais segundo o último censo demográfico do IBGE, para 228,98 milhões em 2050.
No Paraná, conforme o último censo agropecuário do IBGE de 2017, os 305,15 mil estabelecimentos
agropecuários ocupavam a área de 14,7 milhões de hectares, dos quais 6,1 milhões eram lavouras

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temporárias, 209,5 mil lavouras permanentes, 4,0 milhões destinados à pecuária (836,2 mil de pastagens
naturais e 3,2 milhões de pastagens plantadas), 2,5 milhões eram matas ou florestas destinadas à reserva
legal e a áreas de preservação permanente, 287,7 mil eram florestas naturais, 949,0 mil florestas plantadas,
192,5 mil eram destinados aos sistemas agroflorestais, 5,3 mil para o cultivo de flores e 499,6 mil eram
cobertos por lâminas d’água, construções, caminhos e terras degradadas ou inaproveitáveis.
Da população total do estado, de 10,4 milhões de pessoas, 85,3% residiam nas cidades e 14,7%
ou 1,5 milhão no campo. Segundo a Projeção da População dos Municípios do Paraná para o período
2018 a 2040, do Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (IPARDES), em 2020 e
2030 a população total somará 11,5 e 12,2 milhões de pessoas, devendo chegar a 12,5 milhões em 2040.
Até meados do século XX, o habitat ou espaço construído pelo ser humano era naturalmente seu
lugar de moradia e trabalho, e a maioria dos brasileiros residia e trabalhava no meio rural, desenvolvendo
as atividades primárias.
A revolução industrial iniciada no século XIX e os avanços tecnológicos subsequentes determinaram
profundas transformações nos sistemas de produção, nos mercados dos bens e serviços e dos fatores de
produção e nas relações entre as cidades e o campo.
A migração do campo para as cidades se intensificou e novas atividades foram criadas em
função das oportunidades de trabalho e de renda que surgiram com o desenvolvimento dos setores
secundário e terciário da economia. No Paraná, esse processo ocorreu principalmente durante as
décadas de 1960, 70 e 80.
A forma como as cidades foram organizadas criou diferenças não apenas de domicílio e de
atividade em relação ao campo. Vários autores citam outras divergências, como de ambiente (natural
e artificial), tamanho, densidade e homogeneidade ou heterogeneidade da população, diferenças na
forma e complexidade da estratificação social, na mobilidade social, no sistema de integração social
e no sentido da migração (maior do campo para as cidades). Mesmo após as primeiras evoluções
ocorridas nos conceitos clássicos de rural e urbano foi mantida a distinção de espaços antagônicos e
separados, um sinônimo de atraso e outro de moderno.
Os avanços continuados da industrialização e do setor de serviços provocou a crescente urbanização
do campo. A mecanização e o aumento da produtividade das pessoas liberou uma parcela da mão-de-
-obra familiar para outras múltiplas atividades, a maioria delas consideradas não rurais. No Paraná, a
pluriatividade se intensificou desde o final dos anos 1970.
Muito contribuíram para esse movimento os acontecimentos climáticos ocorridos em 1975 e
1979, a fragmentação das propriedades decorrente da sucessão familiar e o surgimento das empresas
prestadoras de serviços rurais, como as de planejamento agropecuário, assistência técnica, pesquisa,
mecanização, crédito e seguro, transporte, armazenagem, entre outras. Assim, parcela significativa das
pessoas e empresas que estão situadas no campo não mais está diretamente ligada à produção primária
propriamente dita (lavoura, pecuária e produção florestal).
A consolidação da infraestrutura de apoio à produção, do comércio dos produtos e fatores de
produção, das cadeias de produção, da tecnologia da informação e das empresas prestadoras de serviços

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também facilitou a entrada no campo de investidores e empresas sem tradição agropecuária. E, mais
recentemente, de grandes empresas de capital nacional ou multinacional, que competem com as
unidades familiares de pequeno, médio ou grande porte.
O uso e o mercado da terra também experimentaram grandes transformações. Já usam espaços
territoriais crescentes, antes considerados apenas rurais, as agroindústrias, os centros de pesquisa,
os estabelecimentos que oferecem atividades de lazer, turismo rural, segunda residência e atividades
festivas, as unidades de conservação ambiental, as terras indígenas, as terras de quilombolas e as áreas
extrativistas. Muitas pessoas da cidade passaram a ver o campo como um local de vida alternativo
e ambientalmente sustentável, que simboliza melhor qualidade de vida, valorização do rural e da
identidade das pessoas e grupos relacionados e que está atraindo para o campo diversas atividades não
primárias, também promovendo sua diversificação.
Dessa forma, não faz mais sentido tipificar as unidades de produção do campo em capitalistas
e familiares, tendo por base o número de pessoas empregadas ou assalariadas e o valor da produção.
Também não se pode mais delimitar áreas e pessoas como rurais ou urbanas segundo a localização de
seus domicílios e a intensidade da ocupação humana. Isso porque atividades consideradas típicas do
campo são executadas na cidade, como a produção de hortaliças e frutas em terrenos urbanos, bem
como atividades consideradas do setor industrial e de serviços são desempenhadas nos estabelecimentos
rurais, como a agroindustrialização familiar, o lazer, o turismo rural e o ecoturismo.
Considerando a intensidade da ocupação humana, a sinopse do censo demográfico do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010 classifica como áreas urbanas as correspondentes
às cidades (sedes dos municípios), vilas (sedes dos distritos) ou às áreas urbanas isoladas definidas pelas
Câmaras Municipais; já as áreas rurais correspondem a todas aquelas fora desses limites. Da mesma
forma e usando o mesmo critério, o IBGE classifica a população em urbana e rural.
A classificação mais agregada de atividades econômicas do IBGE mantém a distribuição entre os
setores primário, secundário e terciário da economia. O primário engloba agricultura, pecuária, produção
florestal, pesca e aquicultura. Esses conceitos de áreas urbanas e rurais e das atividades econômicas
nelas desenvolvidas não mais expressam toda a complexa realidade atual, na qual as sociedades ainda
mantêm algumas características próprias, mas evoluíram para uma estreita interdependência econômica,
física, cultural, social e ambiental, interligando-se em um espaço local e regional, que abrange áreas
destinadas a diferentes finalidades e onde são executadas múltiplas atividades. Essa nova concepção
enterra definitivamente os conceitos clássicos de rural e urbano.
Daí decorre que o mais adequado seria tipificar os espaços territoriais e não as pessoas como urbano,
rural ou multifuncional, em função de um conjunto de outras variáveis, além da intensidade da ocupação
humana. De acordo com essa visão, as iniciativas locais e as políticas públicas se alicerçam na criação de
um projeto de desenvolvimento para o futuro, que valorize as potencialidades e riquezas locais e regionais.
No campo, os estabelecimentos médios e grandes desenvolveriam atividades econômicas que
apresentam economias de escala e exigem especialização para maximizar a competitividade das cadeias
de produção. Para os pequenos e médios estabelecimentos sugere-se a diversificação da economia local
pela pluriatividade, que contempla múltiplas atividades ocupacionais, inclusive as não agrícolas. E nos

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locais cujo território apresenta características favoráveis ao lazer e ao turismo, propõe-se a construção
das condições que promovam a atração dos consumidores locais e de outras regiões.

Práticas amigáveis ao meio ambiente


O desenvolvimento sustentável e a adoção de práticas amigáveis ao meio ambiente não terão o
sucesso pretendido caso não seja eliminada a pobreza absoluta e promovida a inclusão social de todas
as pessoas, independentemente de onde moram, do que fazem e de quais grupos sociais pertençam.
Todos devem ter acesso a uma renda mínima, segurança alimentar, moradia, água de qualidade e a
outros bens e serviços públicos.
A sobrevivência e o crescimento das comunidades na história da humanidade estão diretamente
vinculados à qualidade da terra e da água. As pessoas, com o passar do tempo, desenvolveram diversas
técnicas agropecuárias que aumentam a produção e a produtividade dos vegetais e animais necessários
a sua alimentação, o que propiciou o aumento das próprias comunidades e, como consequência, o
cultivo de áreas cada vez maiores.
A repetição dos cultivos durante períodos de tempo muito prolongados nas mesmas áreas, a falta de
manejo adequado, a baixa diversificação e rotação de culturas, a falta de cobertura do solo durante o período
entre as safras e, em alguns casos, o uso excessivo de produtos químicos, muitas vezes por desconhecimento
dos produtores, criaram problemas como a erosão, a compactação, a salinização, a diminuição da fertilidade
do solo e, em casos mais extremos, a desertificação, assim como a contaminação das águas, o secamento de
vertentes pelo rebaixamento do lençol freático, o assoreamento dos rios e, inclusive, seu desaparecimento.
A Terra tem características físicas, químicas e biológicas completamente inter-relacionadas. A
Física estuda os aspectos relacionados à origem do solo e aos problemas como erosão e compactação;
a Química, os aspectos ligados à composição e à quantidade de elementos químicos nele contidos;
e a Biologia analisa as micro e macrofaunas, a microflora e também os vegetais que são cultivados.
Esses organismos vivos provocam a decomposição da matéria orgânica (restos de plantas e de animais
mortos), e a intensidade desse processo depende das condições de temperatura, umidade e arejamento.
Os nutrientes resultantes da decomposição são novamente aproveitados pelas plantas. A matéria
orgânica, a micro e a macrovida e os nutrientes disponíveis para as plantas estão concentrados na
camada mais superficial do solo, o horizonte A. É a camada mais fértil, na qual as raízes se desenvolvem
com maior facilidade e de onde retiram a maior parcela da água que absorvem. Também nessa camada
existem espaços ocupados pelo ar, necessário à sustentação dos organismos vivos.
Outro aspecto relacionado ao solo e às plantas nele cultivadas é a textura, ou a concentração de
areia, silte e argila. Ela influencia o grau de infiltração e retenção da água e dos nutrientes, a quantidade
de ar presente entre as partículas e o processo de manejo por meio da mecanização.
Os solos arenosos são mais permeáveis porque apresentam baixa capacidade de retenção de água
e nutrientes, têm grande capacidade de aeração e baixa concentração de matéria orgânica. Facilitam a
mecanização e são facilmente erodidos, razão pela qual não são os mais indicados ao cultivo em sequência

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de plantas de ciclo curto. Os solos argilosos, por sua vez, têm grande capacidade de retenção de água
e de nutrientes e menor concentração de ar. São menos permeáveis e erosíveis e de mecanização mais
difícil, adequando-se mais aos cultivos em sequência das plantas de ciclo curto. Existem outros tipos
intermediários, como os humíferos, de coloração mais escura, que apresentam elevada concentração de
matéria orgânica, grande capacidade de retenção de água e nutrientes e elevada porosidade e aeração.
São os que existem em menor extensão, mas são os mais indicados à produção agropecuária.
Para minimizar os problemas relacionados ao uso da terra e da água, muitas práticas foram e
estão sendo pesquisadas e adotadas, tanto pelos produtores quanto pelas pessoas que desempenham
atividades ao longo das cadeias de produção. Dentre as principais e amigáveis ao meio ambiente
destacam-se a preservação de rios e nascentes, das áreas de preservação permanente e de reserva legal;
o plantio direto; a eliminação da queima de restos de culturas; as técnicas de conservação do solo;
a análise do solo e o uso racional dos fertilizantes e corretivos; a rotação de culturas; os programas
Agricultura de Baixo Carbono, Integração Lavoura, Pecuária e Florestas e diversificação de culturas e
criações; o zoneamento agrícola e o escalonamento das épocas de plantio; o manejo integrado de pragas
e doenças, técnicas de controle biológico e de uso racional de agrotóxicos; o uso racional da água; o
uso de energia renovável e aumento da eficiência energética; a reciclagem de embalagens; o tratamento
de dejetos, resíduos e efluentes; rastreabilidade; boas práticas de bem-estar animal; eliminação das
perdas na colheita, transporte e armazenagem dos produtos; alimentação saudável e aproveitamento
integral dos alimentos; agricultura de precisão; diversificação via pluriatividade como lazer, turismo
rural, artesanato e agroindustrialização.

Preservação de rios, nascentes, áreas de preservação permanente


e reserva legal
A conservação e o uso sustentável de florestas e recursos hídricos propiciam serviços ambientais ou
benefícios ofertados à sociedade e também o adequado funcionamento dos ecossistemas.
Nesse sentido, diversas iniciativas foram implementadas, como a criação de unidades de
conservação, sendo o Brasil reconhecido como líder global; a aprovação do Código Florestal; a adoção
do manejo sustentável dos recursos florestais; e o pagamento por serviços ambientais prestados, a
exemplo do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) ecológico criado no Paraná,
instrumento usado para compensar os municípios que têm parte de suas áreas atingidas por restrições
ambientais. Também os programas que repassam recursos àqueles que promovem ações de conservação
da biodiversidade.

Plantio direto e eliminação da queima de restos de culturas


A chuva provocava situações críticas de erosão nos plantios convencionais executados no Brasil,
principalmente nos solos arenosos, com declividade acentuada e regime de alta precipitação durante
determinadas épocas do ano.

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O sistema de plantio direto na palha começou no Paraná no início dos anos 1970. Ele mantém a
palha e outros restos de culturas sobre a superfície do solo, diminuindo o impacto das gotas de chuva,
do escorrimento da água e dos ventos, reduzindo assim a erosão. Também o mínimo revolvimento e
a diminuição da compactação provocada pelo uso das máquinas e implementos agrícolas favorece a
atividade biológica e toda a micro e macrofauna. O aumento do teor de matéria orgânica de menos
de 1% para mais de 3% aumenta a infiltração e também o armazenamento da água e dos nutrientes.
O Brasil é líder mundial na adoção dessa tecnologia, uma das principais práticas usadas na
integração entre lavoura, pecuária e floresta plantada e na recuperação de áreas degradadas de lavouras
ou de pecuária.

Conservação do solo
A conservação do solo propicia o uso sustentável através do tempo.
A erosão, a compactação e a salinidade, esta última provocada pelo excesso de adubação, são
graves problemas decorrentes do manejo inadequado, que desequilibra o sistema de produção e a
receita dos produtores.
Diversas práticas a viabilizam, como a construção de sistema de curvas de nível ou de terraceamento;
a análise química do solo e a aplicação da quantidade correta de fertilizantes e corretivos; o plantio
em nível; o cultivo de acordo com a capacidade de uso do solo (florestas, pastagens, culturas perenes,
culturas anuais); a rotação de culturas; o plantio direto; o uso de plantas de cobertura e de adubação
verde (manter o solo coberto entre os ciclos de cultivos comerciais); e o plantio em contorno de faixas
de vegetação permanente, entre outras práticas.

Análise do solo e uso racional de fertilizantes e corretivos


A análise química, a adubação e a correção do solo são ferramentas importantes para produtores,
técnicos e pesquisadores e para a produção sustentável. O uso de fertilizante em excesso, além do desperdício
que eleva os gastos dos produtores, contamina as águas superficiais dos rios e lagos e as águas subterrâneas.
A contaminação favorece a proliferação de algas e de outras plantas aquáticas, que, quando morrem, são
decompostas, provocando a diminuição do oxigênio presente na água e a mortandade de peixes e de outros
animais aquáticos. Esse processo também é desencadeado pelo despejo direto na água, sem tratamento; de
outros efluentes agrícolas, como os dejetos animais; industriais, como a vinhaça; e urbanos.

Rotação de culturas
A monocultura ou a sucessão de culturas de forma continuada, como trigo no inverno e soja no
verão ou soja no verão e milho como segunda safra, provoca a degradação física, química e biológica
do solo, reduz a produtividade, favorece o ataque de doenças e pragas e a erosão e dificulta o controle
das plantas invasoras.

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A rotação de culturas alterna as espécies vegetais cultivadas na mesma área, durante os vários anos
safra, usando plantas para fins comerciais (soja, milho, feijão, trigo) ou para produção de biomassa
(adubação verde) ou pastagem. A técnica, entre outras vantagens, diversifica a produção e reduz o
impacto de uma situação desfavorável de mercado sobre a receita dos produtores.

Programa ABC, integração lavoura-pecuária-floresta e diversificação


O Programa de Agricultura de Baixo Carbono foi criado em 2010 pelo governo federal e incentiva,
via crédito rural em condições mais facilitadas, os produtores a adotarem práticas agropecuárias
sustentáveis, que garantam a segurança alimentar sem agredir o meio ambiente. O sistema agrega, na
mesma propriedade, sistemas produtivos diferentes e diversificados, como grãos, fibras, carne, leite,
álcool, óleo vegetal e madeira, minimizando os riscos de redução da renda provocados por eventos
climáticos ou por condições de mercado desfavoráveis.
Esse sistema deixa a terra ocupada durante maior período de tempo devido à diversificação de
culturas. A integração reduz o emprego de agrotóxicos e fertilizantes e permite a abertura de novas áreas
para a agropecuária. O aumento da biodiversidade facilita o controle da erosão pela menor exposição
do solo às intempéries.
O programa também incentiva o plantio direto na palha, a fixação simbiótica do nitrogênio, o
tratamento dos dejetos animais e a recuperação das áreas de lavoura ou de pastagens degradadas.

Zoneamento agrícola
Dentre as atividades econômicas, a agricultura é a que mais depende das condições ambientais,
isso porque o desenvolvimento das plantas está diretamente relacionado às condições do solo, do clima
e dos efeitos de pragas e doenças.
O Zoneamento Agrícola de Risco Climático, segundo o site do Ministério da Agricultura, Pecuária
e do Abastecimento (Mapa), é um instrumento de política agrícola e de gestão de risco na agricultura.
É elaborado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), por meio da análise de
parâmetros como clima, solo (arenoso, argiloso e textura média) e de ciclos de cultivares (precoce,
médio e tardio), que quantifica os riscos climáticos envolvidos na condução das lavouras e as potenciais
perdas de produção. São delimitadas, por município, as regiões com aptidão de solo e clima (com
menor risco climático) para o cultivo das culturas de ciclo anual e permanente, indicando a época mais
propícia ao plantio da cultura, por tipo de solo e ciclo de cultivar.

Manejo integrado de pragas e doenças


Segundo a FAO e a EMPRAPA, o Manejo Integrado de Pragas associa o ambiente e a dinâmica
populacional da espécie e utiliza todas as técnicas e métodos disponíveis e apropriados, de forma tão
compatível quanto possível, para manter a população de pragas em nível abaixo daqueles capazes de
causar dano econômico.

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As principais ferramentas são o monitoramento da população de insetos, pragas e doenças; o


controle biológico, que viabiliza o aparecimento dos inimigos naturais; e o uso do controle químico
apenas quando o grau de ataque à planta cultivada atinge o nível de dano econômico.
Também os métodos não químicos de controle são priorizados, como as variedades resistentes ou
tolerantes; os biopesticidas e feromônios ou o biocontrole; a erradicação de hospedeiros indesejados;
a mudança de práticas agrícolas, como o ajuste da época de plantio ao período menos favorável a
infestações; a retirada e queima das partes das plantas e mudas afetadas; a poda e o raleio; a desinfecção
de ferramentas; o uso de plantas armadilhas, entre outros.

Uso racional da água


As commodities agrícolas necessitam de muita água para serem produzidas. O uso racional, ou a
redução do consumo por unidade de produto, é um diferencial competitivo que pode ser aproveitado
pelo Brasil nos mercados interno e internacional e representa redução de custo do recurso e do consumo
de energia.
O uso racional implica no fornecimento da quantidade necessária, proveniente basicamente do
acúmulo das precipitações ou dos mananciais superficiais, na qualidade requerida, no momento certo
e mantendo-a livre de contaminantes, como resíduos de agrotóxicos, fertilizantes e dejetos animais.

Uso de fontes renováveis de energia e eficiência energética


O maior conforto e os avanços no desenvolvimento da humanidade, principalmente após a revolução
industrial e tecnológica, estão aumentando o consumo de energia, inclusive nas propriedades agropecuárias.
Sua falta é um dos impeditivos ao crescimento das atividades produtivas e ao aumento do bem-
-estar das famílias.
A participação das fontes não renováveis está diminuindo na matriz energética dos países, ao passo
que o uso das fontes renováveis está aumentando. As principais são a solar, a eólica, a hidráulica e a
biomassa. Desta última são exemplos a madeira usada como lenha e carvão vegetal; o bagaço de cana-
-de-açúcar usado na geração de vapor e energia elétrica; o biodiesel; e o biogás.

Reciclagem de embalagens e tratamento de resíduos


A logística reversa prevê o reaproveitamento de embalagens, de peças de máquinas, equipamentos
e utensílios domésticos avariados ou colocados fora de uso pelo desgaste físico ou tecnológico, de
resíduos de construções, de lixo eletrônico.
Os resíduos urbanos, domésticos nos estabelecimentos rurais e agrossilvopastoris, como os restos
de alimentos, o bagaço da cana-de-açúcar, os dejetos humanos e animais e os restos de madeira podem
ser transformados em adubo orgânico ou gerar energia para atender ao consumo do setor e ainda ser
comercializada no mercado.

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O resíduo proveniente da limpeza dos produtos agrícolas na propriedade pode ser usado na
alimentação animal ou ser transformado em adubo orgânico.
Esses são exemplos, entre muitos outros, de atividades em franco crescimento, principalmente
após a aprovação da Política Nacional de Resíduos Sólidos e das políticas que vedam o descarte desses
resíduos na natureza sem tratamento ou destinação correta.
A logística reversa de embalagens vazias de agrotóxicos, proveniente de parceria formada
entre os produtores agropecuários, os fabricantes representados pelo Instituto Nacional de
Processamento de Embalagens Vazias (impEV), os canais de distribuição e o governo, encaminha
para destinos ambientalmente corretos as embalagens vazias de agrotóxicos. Mais recentemente,
leis foram aprovadas no âmbito de diversos estados e municípios vedando o uso de sacolas plásticas
e canudos originários de derivados de petróleo pelos estabelecimentos comerciais. Essas medidas
estão incrementando o uso de sacolas feitas com matérias-primas originárias de fontes renováveis
como o amido de milho, casca de soja e cana-de-açúcar, bem como das sacolas reutilizáveis e
canudos de papel.

Rastreabilidade
Esse conceito surgiu com a globalização da economia e dos mercados, o desenvolvimento das
cadeias logísticas de suprimento e de controle de qualidade e da necessidade do consumidor do produto
ou da matéria-prima saber o que a mercadoria contém e como foi produzida, de onde vem (a origem)
e para onde vai (o destino). O registro da vida passada do produto e de matérias-primas e insumos
usados em sua produção se torna um instrumento de proteção à saúde pública, porque possibilita que
os produtos sejam retirados do mercado, inclusive após a colocação à venda.
Também é um investimento rentável e um mecanismo de diferenciação e agregação de valor aos
produtos. No caso dos alimentos e matérias-primas produzidos pelo setor primário, a rastreabilidade
gera maior segurança alimentar pela garantia do cumprimento da legislação existente; melhora a
qualidade dos produtos e a eficiência do processo de produção por meio da certificação de qualidade;
melhora o marketing e a imagem do produto pela certificação de origem, como as denominações de
origem previstas nos normativos da Organização Mundial do Comércio (OMC).

Boas práticas para o bem-estar animal


Conhecer o comportamento dos animais em relação ao seu ambiente é o primeiro passo. O
segundo é a exigência dos consumidores.
O manejo racional, além de assegurar o bem-estar dos animais, gera ganhos de produtividade
e qualidade aos produtos finais. Para tanto, são requeridos cuidados especiais dos produtores com as
instalações, a higiene, o conforto, a alimentação, a saúde, o comportamento normal dos animais em
relação ao seu ambiente e às práticas que podem gerar dor, lesões e comportamentos anormais.

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Redução de perdas na colheita, no transporte e na armazenagem


Durante o percurso dos produtos agropecuários, desde a colheita nas lavouras ou a produção dos
animais nos estabelecimentos rurais até chegarem à mesa dos consumidores, ocorrem perdas físicas
(redução de peso ou volume) e de qualidade mercadológica, que diminuem a receita dos produtores e
elevam os preços aos consumidores.
Manejo inadequado, despreparo das pessoas, instalações e equipamentos deficientes ou mal
regulados e sem manutenção e falta de infraestrutura são algumas das causas apontadas para o problema.
As perdas nas hortaliças e frutas são estimadas entre 30% a 40% da produção e em até 10% nos
grãos. Não existe zero de perda, mas nenhuma perda deve ser considerada normal e tolerada.

Alimentação saudável e aproveitamento integral dos alimentos


A alimentação é a base da vida, e atualmente cresce o número de pessoas preocupadas com a
alimentação saudável, que é sinônimo de saúde e qualidade de vida.
Uma dieta equilibrada contém, de forma balanceada, alimentos ricos em proteínas, vitaminas,
sais minerais, carboidratos e fibras. O aproveitamento integral implica o uso de todas as fontes de
nutrientes que os alimentos oferecem, evitando desperdício, reduzindo custos e mantendo o paladar.
O desconhecimento das qualidades nutricionais, o incorreto aproveitamento e manuseio, a guarda,
a conservação e o preparo inadequado provocam o desperdício de milhares de toneladas de alimentos,
que vão parar no lixo. Por essas mesmas razões, componentes de alimentos ricos em nutrientes também
são desprezados e jogados fora, como cascas de ovos; sementes, cascas, partes da polpa e caules de
vegetais; e diversos farelos.

Agricultura de precisão
Nos estabelecimentos rurais, o solo e o clima não são uniformes e apresentam variações que
interferem no desenvolvimento e no resultado das espécies cultivadas. Com base nesse princípio e
usando tecnologia da informação, equipamentos de informática acoplados a máquinas e equipamentos
e geoestatística (análise dos dados de amostras georreferenciadas), implanta-se o processo de automação
agrícola denominado agricultura de precisão.
A tecnologia reduz o desperdício, os custos de produção, a contaminação da natureza e aumenta
a produtividade em lavouras, florestas, pastagens e na pecuária.

Pluriatividade
Trata-se de uma forma alternativa de garantir renda às famílias que residem no campo que consiste
na execução, por seus membros, de atividades rentáveis e diversificadas de produção de lavouras, pecuária
e florestas, e também aquelas consideradas não rurais e executadas dentro ou fora do estabelecimento

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rural, como o lazer e o entretenimento, o turismo rural, o artesanato, a agroindustrialização familiar, a


prestação de serviços públicos ou privados e atividades de comércio e transporte.
Além de aumentar e estabilizar a renda da família, a pluriatividade gera efeitos positivos sobre
o nível de emprego e sobre a multifuncionalidade do meio rural, contribuindo decisivamente para o
desenvolvimento local e regional.

BIBLIOGRAFIA
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Agrária. In: ENGRUP, 4., 2008, São Paulo. Anais... São Paulo: FFLCH/USP, 2008. p. 132-150.
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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
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O PROJETO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NA


PERSPECTIVA DE JOHN SEARLE: UMA REFLEXÃO
ÉTICA SOBRE APRENDIZAGEM E PRÁTICA
DOCENTE

Kleber Bez Birolo Candiotto

INTRODUÇÃO
Na segunda metade do século XX, a neurociência e as ciências cognitivas ampliaram
significativamente o conhecimento a respeito de capacidade humana de conhecer o mundo e a si
mesmo. O otimismo resultante desses avanços científicos ensejou projetos de replicação ou até mesmo
de ampliação da capacidade cognitiva humana que culminaram no ramo de investigação científica
denominado Inteligência Artificial (IA), termo que John McCarthy trouxe pela primeira vez no seminário
de Darthmouth em 1956, ao qual estiveram presentes Marvin Minsky, Claude Shannon, Allen Newell,
Herbert Simon, entre outros pioneiros da ciência da computação. (HANDERSON, 2007).
Com os avanços científicos e de engenharia da IA, a própria natureza da inteligência reaparece
como objeto de investigação filosófica. Afinal, se o projeto da IA estiver certo, a mente humana não
seria mais que um programa instanciado num meio físico qualquer, como o cérebro ou uma máquina
computacional. Assim, as atividades cognitivas poderiam não apenas serem reproduzidas artificialmente,
mas também melhoradas com a sofisticação da programação. Autores como John Searle alertam sobre
os exageros dessa pretensão reducionista da inteligência humana, procurando apresentar a ambiguidade
no entendimento de intencionalidade. Embora John Searle reporte sua crítica à IA do final do século

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XX, este texto procura sustentar que, mesmo com os notáveis avanços da IA contemporânea, suas
críticas ainda se fazem pertinentes para identificar a distinção entre inteligência humana e IA. Com base
nesse pressuposto distintivo, é possível refletir sobre os impactos da IA na educação, especificamente
sobre a aprendizagem, e suas consequências no papel do professor.
Embora verse consideravelmente sobre questões ontológicas da inteligência, com a apresentação de
conjecturas atuais para um futuro próximo da IA, o presente texto tem a intenção final de problematizar
o papel do professor diante dos desafios da aprendizagem no contexto das superinteligências. Trata-
-se, portanto, de uma nova responsabilidade docente, com exigências éticas fundamentais, em que
a artificialização de determinadas capacidades cognitivas já alcançadas pela IA esgotaram papéis de
transmissor de informação ou facilitador de conhecimento, mas propiciam uma educação voltada com
maior atenção às atividades propriamente humanas, como reflexão e criatividade.

PROBLEMAS FILOSÓFICOS DO PROJETO DA IA


Com o objetivo de identificar as condições estruturais e materiais para artefatos artificiais
realizarem comportamentos inteligentes, a Inteligência Artificial trouxe implicações muito além de
seu propósito técnico advindo das ciências da computação. No campo da filosofia, talvez a maior
implicação tenha sido a hipótese de as máquinas produzirem pensamento, o que sugere a existência
da mente artificial. O pioneiro dessa hipótese, Alan Turing, considerava que, assim como a força física
dos homens havia sido largamente expandida com o surgimento das máquinas a vapor da Revolução
Industrial, também a atividade cognitiva de pensar racionalmente, habilidade até então exclusiva da
espécie humana, poderia ser reproduzida e intensificada pelas máquinas computacionais.
Turing, em Computing machinery and intelligence, revolucionário artigo de 1950, procurou
provar a possibilidade de uma máquina exibir comportamento inteligente equivalente aos humanos.
Essencialmente, o teste consistia na tentativa de um grupo de avaliadores, numa sala, descobrir se
as respostas dadas a suas perguntas a dois monitores eletrônicos na parede (um monitor conectado
a um computador e outro a um humano) vinham de um computador ou de um humano. Se os
avaliadores não soubessem distinguir com evidências se a resposta fora dada por um computador ou
por uma pessoa, significaria que a máquina passara no teste, logo, seria possível afirmar que exibiria
comportamento inteligente. “A nova formulação do problema pode ser descrita em termos de um jogo
a que nós chamamos ‘jogo da imitação’”. (TURING, 1950, p. 434).
É possível identificar uma marca behaviorista na conclusão de Turing, dado ser do comportamento
da máquina que se deduz sua possível inteligência. Todavia, essa conclusão ainda leva a crer que
o pensamento pode ser entendido sob o aspecto computacional, ou seja, sob uma perspectiva de
processamento de dados representados simbólica e binariamente.
Visto dessa forma, o teste de Turing soa demasiadamente simplista. Contudo, sua tese do
pensamento como computacional foi determinante para o surgimento e aprimoramento da ciência

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cognitiva. Por ser ainda rudimentar, o computador na época de Turing não tinha tecnologia suficiente
para realizar uma imitação do comportamento humano capaz de passar no seu teste1, todavia
sua concepção adiantou uma série de desafios, entre eles, os pressupostos ontológicos e as opções
metodológicas de um campo de investigação própria, denominado ciências cognitivas. Gardner (2003)
sistematizou os fundamentos epistemológicos das ciências cognitivas: 1) atividades cognitivas humanas
devem ser tomadas como representações mentais, com a criação de um nível de análise distinto do
biológico e do cultural; 2) o computador é o modelo de compreensão do funcionamento da mente
humana; 3) no nível de análise cognitiva, fatores não cognitivos, tais como emocionais, culturais ou
históricos, devem ser isolados; 4) as pesquisas em ciências cognitivas devem ser interdisciplinares, dada
a complexidade de seu entendimento; 5) antigas questões da agenda filosófica são retomadas, mas com
um aporte empírico.
Mesmo considerando todo o avanço científico que a ciência cognitiva proporcionou desde Turing
até o final do século XX, a IA como um projeto de imitação da inteligência humana foi objeto de
consistentes críticas. Dentre os filósofos contrários às pretensões de reprodução da inteligência humana,
destaca-se John Searle, que concebe duas versões de projeto de inteligência artificial: um projeto ‘fraco’,
que idealiza o computador como uma referência metafórica ou como um instrumento que simula
situações aparentemente racionais; e outro ‘forte’, cunhado por Searle como IA Forte, que considera
ser o computador a base para a construção de uma mente artificial.
A IA Forte é considerada por Searle (1980; 1999) como inócua, uma vez que a linguagem
computacional está adstrita aos processos sintáticos, não alcançando os processos semânticos da
linguagem genuinamente humana. Com o célebre experimento mental da ‘sala chinesa’2, Searle procura
sustentar que a imitação proposta pelo teste de Turing não é suficiente para provar que as máquinas
pensam. No experimento, Searle convida imaginar uma pessoa numa sala, de posse de um dicionário
chinês-inglês contendo todas as regras gramaticais dos dois idiomas, com a incumbência de traduzir
uma folha do chinês para o inglês, porém essa pessoa não fala e não entende chinês, somente faz a
substituição dos ideogramas para seu idioma, que é o inglês. Ao terminar a tradução em outra folha,
ele a envia por uma janela a outra pessoa fora da sala, que não sabe nada a respeito do que se passa no
interior da sala. Mesmo que essa pessoa fora da sala receba a folha com o conteúdo em inglês, é possível
dizer que há no interior da sala um falante da língua chinesa? Para Searle, a resposta é veementemente
não, pois o que acontece no interior da sala é apenas uma manipulação de símbolos com base em regras
ajustadas, sem conhecimento de seu significado. O mesmo ocorre com os computadores, segundo
Searle, que manipulam símbolos, sem qualquer domínio de seu significado. Por assim ser, o projeto
forte da inteligência artificial está assentado nesse equívoco, visto que a máquina computacional está
adstrita tão somente a seguir regras formais previamente programadas para manipular símbolos, sem
qualquer compreensão dos significados destes símbolos.
O projeto fraco da inteligência artificial, por sua vez, fornece comparações produtivas para o
entendimento dos processos mentais, muito embora não seja uma representação fiel da capacidade
mental humana. Por essa razão, a consciência passou a ser entendida por Searle com um fenômeno
natural exclusivo dos humanos, passível de compreensão com base em seu status ontológico subjetivo.

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Searle considera que, por serem puramente formais e sintáticos, os programas computacionais jamais
podem ser tomados como idênticos a processos mentais. A inteligência humana é composta não somente
por habilidades sintáticas, mas também por habilidades semânticas. Além do mais, estas não são derivadas
das sintáticas, uma vez que pressupõem intencionalidade3, conceito central na agenda de pesquisa de Searle.

A razão por que nenhum programa de computador pode alguma vez ser uma mente é simplesmente
porque um programa de computador é apenas sintático, e as mentes são mais do que sintáticas.
As mentes são semânticas, no sentido de que possuem mais do que uma estrutura formal, têm um
conteúdo. (SEARLE, 1997, p. 39)

A habilidade humana semântica é intencional, uma vez que o conceito de intencionalidade se


reporta à capacidade de a mente representar objetos. Todavia, a intencionalidade não se reduz à simples
compreensão do significado de uma palavra obtido pelo significado de outras palavras, assim como no
dicionário. Intencionalidade, no entender de Searle, requer crenças e desejos sobre a palavra, algo que
não se produz de maneira puramente formal. Intencionalidade pressupõe um conteúdo mental e mais
um estado mental sobre esse conteúdo (crenças e desejos). Para Searle, o computador está limitado ao
conteúdo mental, que pode ser representado por símbolos, mas não tem crenças ou desejos sobre esses
símbolos. Por mais que se implemente um dicionário com grande capacidade em um computador,
o que ele fará será sempre a substituição de símbolos, sem que existam crenças ou desejos associados
a esses símbolos. O que levaria um computador a executar uma ação de desligar uma TV seria certa
quantidade de símbolos previamente programados, tais como tempo de funcionamento, temperatura
do equipamento, ausência de pessoas por determinado tempo no ambiente (identificado por sensores),
mas jamais seria o ‘desejo’ de silêncio ou a ‘crença’ de que, se não dormir mais cedo, estará cansado no
dia seguinte.
Feita essa consideração sobre a intencionalidade, Searle (1997) admite existir um uso ambíguo do
termo quando nos referimos, por exemplo, aos computadores. Para isso, Searle forjou a distinção entre
‘intencionalidade original’ e ‘intencionalidade derivada’, entendendo que a original advém de uma
atividade mental, ou seja, com a existência de estados mentais associados a um conteúdo, como na frase
‘eu quero desligar a TV’. Já a intencionalidade derivada é o uso metafórico, em frases como ‘a TV não
quer ligar’, que carregam implícito o ‘como se’. No exemplo, a TV está com o cabo de energia elétrica
conectado, há energia elétrica na casa, o botão do controle acionado é o correto, portanto, é ‘como se’ a
TV não quisesse ligar. A intencionalidade do programa de computador é derivada da intencionalidade
original do ser humano que o produziu. O que fica subentendido nessa clássica distinção de Searle é
que a intencionalidade derivada não se desvencilhará de sua condição metafórica, ou seja, nunca se
elevará à intencionalidade original.
A crítica de Searle foi dirigida à pesquisa sobre IA da década de 1980, quando a referência principal
de computação era Turing e a internet sequer estava difundida. O modelo de computação de Turing
era de caráter imitativo: a máquina poderia ser considerada pensante se um testador não conseguisse
distinguir a identidade (máquina ou humano) da entidade emissora da resposta.

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Desde a década de 1940, de acordo com Bostrom (2014), já havia a expectativa de serem criadas
máquinas equivalentes a seres humanos em inteligência que associa senso comum4 e habilidades para
aprender e raciocinar em uma ampla gama de domínios naturais e abstratos. Embora Turing já tenha
aventado na década de 1940 que computadores no futuro poderiam aprender mediante sua interação
com o meio, o modelo de ‘máquina pensante’ existente até a década de 1980 ainda era imitativo.

PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS DA IA
A austera advertência de Searle quanto à inviabilidade do projeto forte da inteligência artificial se
reportava ao modelo computacional existente até o fim do século XX. Já na segunda década do século
XXI, o modelo de inteligência artificial tem se desenvolvido exponencialmente, desvinculando-se,
inclusive, da referência à inteligência humana para o surgimento de outra forma de inteligência.
Computadores atuais já têm a capacidade de copiar, variar e selecionar as informações. No entanto,
pesquisadores como Moravec (1988) destacam que será uma questão de tempo para as máquinas serem
capazes de realizar a própria manutenção, replicação e aperfeiçoamento sem nenhuma interferência
humana. Kurzweil vai além e considera que as “máquinas irão acumular conhecimento por conta
própria, aventurando-se no mundo físico, aproveitando toda a variedade de serviços e informações
de mídia, e compartilhar conhecimento umas com as outras”. (2007, p. 20). Para que as máquinas
alcancem esse patamar de autonomia, algumas condições devem ser satisfeitas: adquirir habilidade de
autorreparo e autorreprodução; demonstrar inteligência sem emoção ou empatia; desenvolver instinto
de sobrevivência; desvincular-se da dependência e do controle de humanos. (BROOKS, 2003).
Os autores que sustentam a autonomia inteligente das máquinas empregam argumentos que
destacam determinadas vantagens do artificial sobre o biológico. Por exemplo, Bostrom (2014) argumenta
salientando a maior capacidade de conexão das máquinas, uma vez que os computadores podem
estabelecer tantas conexões quanto a física permitir, enquanto o cérebro humano tem uma quantidade
limitada de neurônios (aproximadamente 85 bilhões) que não lhe permite uma capacidade maior de
conexões. Também Moravec (1999) ressalta a vantagem de aprendizagem no meio artificial, uma vez que
os humanos aprendem individualmente, enquanto as máquinas transferem direta e concomitantemente
informações de uma para outra e em rede. Outra vantagem possível dos mecanismos digitais está
relacionada às atividades dos neurônios, as quais são atividades menos concentradas no controle de
informação e muito mais voltadas a seus processos vitais. Estima-se que os neurônios executem apenas
duzentos cálculos por segundo (KURZWEIL, 2007), enquanto os circuitos eletrônicos podem executar
algo em torno de cem bilhões de operações por segundo5. Vale destacar ainda que o cérebro humano
combina métodos digitais e analógicos, enquanto grande parte dos computadores atuais é completamente
digital, o que garante mais segurança às informações armazenadas. (KURZWEIL, 2014).
Com esses fundamentos, e diante do crescimento exponencial da capacidade de processamento
das máquinas computacionais, Kaku (2001) aventa que até 2030 as máquinas manifestarão capacidade

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imaginativa, refletindo o mundo e prevendo as consequências de suas ações. Isso levará, até meados do
século, à possibilidade de as máquinas produzirem emoções primitivas, reconhecerem vozes e terem
discernimento.
Esse possível cenário coloca em questão se há possibilidade de o ser humano interferir no
progresso das máquinas computacionais e no aparecimento das máquinas inteligentes. Blackmore
(1999) considera um ponto sem volta, uma vez que há uma expansão mútua e de retroalimentação
entre internet e máquinas computacionais. Se a capacidade algorítmica alcançar o controle da própria
fonte de energia e recursos, os seres humanos se tornarão dispensáveis para o progresso da inteligência
artificial.
Assim como Blackmore, Moravec (1988) procura sustentar que a humanidade caminha em
direção à era das máquinas inteligentes. É notória a expansão da presença da IA no cotidiano dos
humanos. Essa presença, ao se estabelecer paulatinamente nas mais diversas atividades da vida comum
das pessoas, causa certa invisibilidade das máquinas computacionais, o que Kaku (2001) designa por
‘computação onipresente’. Com base nesse raciocínio, Kurzweil (2007) afirma que, nas primeiras
décadas do século XXI, emergiu uma nova forma de inteligência na Terra em coexistência com a
inteligência humana. Se antes inteligência era a capacidade de raciocinar, atualmente inteligência é
também poder computacional. (TEIXEIRA, 2009).
O ser humano, portanto, perderia a soberania de inteligência no planeta ao criar, com sua
inteligência, outra forma de inteligência que será significativamente superior à sua: a superinteligência.
Esta emerge com a presença de “um intelecto que supere amplamente a performance cognitiva de
humanos em praticamente todos os domínios de interesse”. (BOSTROM, 2014, p. 22). O advento
da superinteligência, de acordo com Teixeira, eliminaria a linha divisória entre robôs e humanos
com o aparecimento da civilização ‘homem-máquina’, com a fusão entre a existência biológica e
a tecnologia humana, o que resultaria no que Kurzweil (2005) denomina de singularidade, a qual
consiste em um momento ‘singular’ em que a capacidade algorítmica computacional e a capacidade
cognitiva humana se equivaleriam, mas que, passado esse momento, esta seria superada por
aquela. Com a existência da superinteligência, a sofisticação dos processos internos de um sistema
computacional poderia promover a simulação minuciosa da mente humana, tornando a máquina
virtualmente consciente. Com a compreensão da psicologia humana e da sociologia, por exemplo, a
superinteligência seria capaz de realizar trilhões de simulações conscientes para que a ação possa ser
percebida de forma consciente.
Vista disjuntivamente, a superinteligência pode ser compreendida como uma possibilidade adstrita
às máquinas computacionais e que, por assim ser, essas máquinas tornarão a capacidade cognitiva
humana obsoleta ou inferiorizada, suscetível de domínio. Todavia, não é dessa forma que autores
como Kurzweil e Blackmore a compreendem. Em vez do domínio das máquinas sobre os humanos,
haveria a fusão da humanidade com as superinteligências artificiais, dando início à era dos ciborgues6.
As limitações biológicas dos cérebros e corpos humanos seriam minimizadas ou superadas para que seja
possível até mesmo prolongar a vida para o tempo desejável. Com a fusão entre a existência biológica

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e a tecnológica, em um mundo da pós-singularidade, não haveria “mais distinção entre humano e


máquina ou entre realidade física e realidade virtual”. (KURZWEIL, 2005, p. 9). É nesse sentido
que surge o transumanismo, entendido como uma linha de pensamento que aposta na superação dos
limites da atual condição humana. Assim, a pós-humanidade seria uma ampliação das possibilidades
de ser no mundo.
Esses influentes autores procuram sustentar a viabilidade de máquinas computacionais alcançarem
o que Searle nega ser possível: terem intencionalidade original. Como visto, Searle aprofunda a noção
de intencionalidade para diferenciar aquilo que é genuinamente inteligente daquilo que não o é,
embora pareça ser. Assim, as máquinas computacionais estariam reclusas à intencionalidade derivada?
Seria essa a condição suficiente para inviabilizar o triunfo do projeto da Inteligência Artificial Forte que
os transumanistas já anunciam, prevendo sua data? O argumento de Searle de que a intencionalidade
intrínseca é exclusivamente humana é um dos fundamentos da tradição filosófica que rejeita o projeto
de Turing. Como o computador não tem intencionalidade original, não é possível falar de compreensão
e menos ainda de consciência da máquina, como Searle sustenta.
O papel da filosofia, na emergência das superinteligências, precisa de readequação, dada a enorme
profundidade e complexidade com que a tecnologia computacional tem se desenvolvido. Assim, está
cada vez mais distante a sintonia do filósofo com os resultados científicos atuais. Eis o motivo da
crítica de Dennett (2009, p. 233) ao considerar que há muitos motivos para os filósofos serem vistos
com desconfiança pela comunidade científica que aborda especialmente a inteligência artificial. Para
ele, a atitude crítica dos filósofos pode ser vista como destrutiva, uma vez que não ajuda a elaborar
procedimentos para superar os problemas que sua crítica filosófica identifica.

IMPACTOS DA IA NA EDUCAÇÃO: APRENDIZAGEM


E PAPEL DO PROFESSOR
A filosofia, diante dos resultados surpreendentes da tecnologia contemporânea quanto aos
processos algorítmicos das máquinas computacionais, parece não acompanhar aos avanços da ciência.
À filosofia, portanto, cabe avaliar os avanços científicos dessa nova modalidade de inteligência e
também reconsiderar a inteligência humana sob um novo prisma, especialmente no que se refere
ao futuro da educação. Assumir as possibilidades previstas pelo transumanismo é uma forma de se
adiantar a questões filosoficamente relevantes e, talvez, inevitáveis. Entre estas questões filosóficas estão
os problemas éticos decorrentes da profunda influência da IA no contexto educacional. Para Popenici
e Kerr,

Desde então [2007], o iPhone não apenas incorporou tecnologias inovadoras que pareciam impossíveis
há alguns anos sobre como acessamos e usamos informações (como identificação de impressões digitais
e assistente ‘inteligente’ Siri), mas essa tecnologia introduziu uma mudança cultural significativa com

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impactos em nossas vidas cotidianas. De todo modo, se mudarmos o foco dos ‘cyborgs’ da ficção
científica para a ideia de capacidade aumentada para professores e alunos, não é irrealista considerar
que cyborgs – ou ‘cruzamentos’ de humanos e máquinas – serão em breve uma realidade no ensino
[...] do futuro próximo. (2017, p. 6).

Um problema ético, como se sabe, diz respeito não ao ‘ser’, mas ao ‘dever ser’. Portanto, cabe
agora levantar algumas questões sobre esse dever ser no campo educacional, considerando o resultado
da discussão anterior, que apresentou um dos principais debates filosóficos atuais sobre IA que
procurou identificar o elemento distintivo do mental mediante a argumentação de John Searle sobre
intencionalidade original.
Com base na definição adotada para IA, é possível identificar seus alcances, bem como seus limites.
Com relação aos alcances (alguns serão apresentados em seguida), são inquestionáveis os impactos na
educação, especialmente no que se refere ao papel do professor em sala de aula. Para justificar o papel
próprio do profissional docente na era das superinteligências, é preciso compreender o alcance de
substituição da atividade humana pela IA.
A aplicação da IA na educação tem aumentado significativamente nessas duas primeiras décadas
do século XXI. Questões básicas em educação, como aquisição de informações no ambiente da sala
de aula, podem ser facilmente substituídas com o uso de plataformas como EdX, criada em 2012 pela
associação entre Harvard University e MIT (Instituto Tecnológico de Massachusetts).
Embora tenha havido avanços significativos, muito crescimento da aplicação da IA no campo
educacional ainda se espera, como é possível concluir pela prospecção de Barbara Kurshan na Forbes,
um dos veículos de comunicação de maior influência no mundo:

nosso mundo como o conhecemos está funcionando com inteligência artificial. Siri gerencia nossos
calendários. Facebook sugere nossos amigos. Computadores negociam nossas ações. Temos carros que
se estacionam e o controle de tráfego aéreo é quase totalmente automatizado. Praticamente todos os
campos se beneficiaram dos avanços da inteligência artificial, dos militares à medicina e à manufatura.
No entanto, quase nenhum dos recentes avanços em inteligência artificial avançou a indústria da
educação. Por que a educação está atrasada? Por que o ímpeto da inteligência artificial na educação
parece ter se desvanecido nos últimos anos?7

A verificação de aprendizagem (correção de provas) normalmente ocupa muito tempo da atuação


do professor. Com a IA em crescente evolução, verificações simples, como testes de múltipla escolha
ou preenchimento de lacunas, são plenamente substituídas por processos automatizados. Assim, o
tempo do professor dedicado para longas leituras dos testes dos estudantes pode ser aproveitado para
planejamentos mais eficazes de aprendizagem, com o emprego também da tecnologia disponível.
Existem softwares que já se aproximam à habilidade humana de avaliar uma resposta dissertativa8,
embora não seja possível (ao menos ainda) substituir a participação humana do professor com sua
competência interpretativa, uma vez que isso requer capacidade semântica. Esses softwares ainda

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podem, e vão, melhorar muito, permitindo que as atividades dos professores possam se concentrar
mais na interação com os estudantes que nas correções de suas avaliações.
Os procedimentos avaliativos em IA não apenas poupam o tempo do professor, como também
preservam o estudante de possíveis exposições no que se refere à forma de lidar com seu aprendizado
por tentativa e erro. Sendo esta a parte crítica do aprendizado, a ideia de errar ou simplesmente não
saber a resposta pode fazer com que o estudante evite sua participação em sala de aula tradicional, uma
vez que está exposto a seus colegas e professores. Com um programa computacional inteligente para
a aprendizagem com tutores de IA, o estudante pode dispor de um ambiente mais livre para aprender
por tentativa e erro, uma vez que a exposição a julgamentos é praticamente inexistente. Aliás, o próprio
sistema, por ser inteligente, também se alimenta de informações por tentativa e erro, aprimorando sua
atuação com o estudante.
A existência desse ambiente isento a julgamentos e críticas poderia retirar do estudante
a experiência de enfrentar a exposição pública de suas tentativas e erros. Cabe ressaltar que a IA
favorece um ambiente de aprendizado cada vez mais autônomo para a aquisição de informações e
conceitos fundamentais, em que a tentativa e o erro em público poderia não ser muito eficiente.
Contudo, a reflexão, a argumentação, a criatividade ou a avaliação crítica desse estudante quanto a
problemas que envolvem aquelas informações e conceitos dependem, afinal, da interação humana.
Por isso, com o emprego da IA, o tempo em sala de aula deixaria de ser dedicado ao aprendizado de
informações ou conceitos básicos e fundamentais para se voltar à interação humana e desenvolver o
que é propriamente humano.
A atuação do professor em uma sala de aula com vários estudantes dificulta o processo
individualizado do aprendizado. A IA pode promover a aplicação de maiores níveis de aprendizado
individualizado, seja na Educação Básica, seja na Educação Superior. Já é possível identificar esse
impacto com o constante lançamento de jogos, programas e softwares que estimulam o aprendizado
com grande possibilidade de adaptação às características do usuário, bem como promovem maiores e
distintas oportunidades de revisão de tópicos, de acordo com a capacidade e o ritmo de cada estudante.
A tendência do aprendizado adaptativo pode ser uma solução realizada em larga escala por máquinas
que conectam estudantes de diversos níveis em atividades interativas, seja em sala de aula, seja fora
dela, ou viabilizam a customização de seu aprendizado individual. Kurzweil ressalta que cada vez mais a
sofisticação tecnológica alcança elevados níveis com menor custo, o que amplia o acesso dessas soluções
a um maior público. Na realidade brasileira, programas adaptáveis de aprendizagem são empregados
atualmente em muitas escolas privadas e públicas, bem como cresce cada vez mais o número de softwares
livres em educação9.
Não apenas o aprendizado do estudante pode ser adaptado com o emprego de IA, como também
o ensino do professor pode ser dirigido de acordo com as dificuldades de seus estudantes identificadas
por programas computacionais. Com atividades extraclasses realizadas computacionalmente pelos
estudantes, a IA pode sugerir ao professor os tópicos que merecem mais atenção em sala, com
propostas de condução da próxima aula, assim como também recomendar ao estudante dicas de como

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se preparar para essa aula. O benefício disso é algo que dificilmente haveria sem o emprego da IA:
a possibilidade de um grande número de estudantes com distintas características de aprendizagem
construírem uma base conceitual de mesmo nível com o mesmo professor. Com a IA, os estudantes
podem obter feedback imediato de seu domínio conceitual para poder ajustar seu aprendizado ao seu
ritmo e a suas características.
Essa adaptabilidade e personalização já existem em sites de procura, como o Google, que direciona
os resultados com base na localização do usuário, ou em sites de compras, como Amazon, que
recomenda compras futuras com base nas compras anteriores. Em educação, além da personalização
do aprendizado, a IA também pode favorecer a confecção de cursos personalizados para professores
e estudantes, com a possibilidade de múltiplos direcionamentos de acordo com o feedback constante
sobre o êxito do curso como um todo. Na esteira desse aprimoramento, sistemas com uso de IA podem
oferecer aos estudantes sugestões de cursos futuros com base da identificação dos êxitos em seus cursos
concluídos ou em andamento.
Presume-se que a IA não direciona a decisão do estudante, mas fornece sugestões que possivelmente
não foram conjecturadas por ele, dando-lhe novos elementos para deliberar de forma mais assertiva de
acordo com seus propósitos. Além disso, nota-se a importância cada vez maior de uma educação que
promova uma diversidade de experiências para os estudantes, em que a IA pode aprimorar sua base
de dados para identificar com mais eficiência suas sugestões. Sistemas de mineração de dados já fazem
parte do cenário educacional, especialmente no Ensino Superior, em que a IA pode promover uma
transição do Ensino Médio para o superior de forma mais integrada.
As tutorias são práticas cada vez mais realizadas por IA, ajudando os estudantes a melhorarem
sua compreensão conceitual elementar, bem como tornar a sala de aula um espaço mais intenso de
interação humana voltado à reflexão e à criatividade. Por paradoxal que pareça, a presença da IA na
educação pode favorecer o desenvolvimento das características próprias da inteligência humana que a
função predominantemente informacional da sala de aula tradicional pouco promove. O matemático e
filósofo americano Patrick Suppes, na década de 1960, já anunciava que “daqui a alguns anos, milhões
de crianças em idade escolar terão acesso ao que Alexandre, filho de Filipe da Macedônia, desfrutou
como uma prerrogativa real: os serviços pessoais de um tutor tão bem informado e sensato quanto
Aristóteles”. (1966, p. 207).
O aumento do emprego da IA em educação também aumenta o questionamento sobre o papel do
professor. Sem dúvida, o professor como fonte de informação, como outrora fora fundamental, deixa de
ser significativo numa realidade em que a acessibilidade informacional pelas máquinas computacionais
é muito mais rápida e ampla. Dada a obsolescência do papel da informação, o professor tem sido
considerado como um facilitador.
Muito provavelmente sempre haverá um papel humano insubstituível para o professor, mesmo
com a crescente tecnologia na forma de sistemas de computação inteligente em educação. Contudo,
cabe questionar se realmente esse novo papel é mesmo de um facilitador. Sistemas de IA podem ser
programados para fornecer conhecimentos especializados e personalizados, bem como para promover

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ambientes virtuais para estudantes encontrarem informações e obterem esclarecimentos sobre


fundamentos, como se houvesse a presença constante de um professor para suas necessidades específicas
e de acordo com suas características particulares de aprendizagem. Ao que parece, a IA já alcançou o
papel de facilitador do aprendizado de forma muito mais presente e adaptável que a do professor. Sendo
assim, qual papel ainda resta ao professor que não seja substituível pela IA? Talvez o papel seja não o de
facilitador, mas o de problematizador, de desafiador, isto é, alguém que instiga e inspira o estudante.
São características afetivas associadas a um razoável domínio de IA que fará o professor completar o
que a tecnologia já fornece, proporcionando sentido aos conhecimentos mediante interação humana
e experiências práticas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O anúncio de grandes transformações sociais promovidas pelo surgimento de novas tecnologias de
informação tende a provocar questionamentos sobre a função do professor. Assim como o argumento
do quarto chinês de Searle, o que ocorre em ambientes de aprendizagem com IA está adstrito à
manipulação de símbolos com base em regras complexas e sofisticadamente ajustadas, mas sem o
domínio de seu significado. O sentido se obtém mediante crenças e desejos sobre um conteúdo, que
são estados mentais não alcançados pela IA.
Não obstante, é prudente considerar as conjecturas quanto ao alcance da IA em um futuro
próximo, mesmo que atualmente tais especulações sejam tomadas como exageros, como é o caso do
projeto transumanista da singularidade ou o surgimento dos ciborgues. De toda sorte, os impactos da
IA no campo educacional já são significativos. Como já anunciado há duas décadas por Blackmore,
trata-se de um ponto sem volta: a substituição da ação humana por máquinas computacionais em
várias atividades que outrora eram exclusividades humanas.
Há de se considerar que o acesso à tecnologia ainda é uma limitação para muitos estudantes da
realidade brasileira. Porém, com a constante diminuição do custo da tecnologia, seu acesso a usuários
(professores e estudantes) de baixa renda poderá ser ampliado de forma expressiva. Também é evidente
a necessidade da formação de professores para o uso das novas ferramentas oportunizadas pela IA.
Apesar dessas limitações, a presença da IA na área educacional é um fato inquestionável que somente
tende a crescer, exigindo uma nova postura por parte do professor: entender que a presença da IA pode
ser favorável para o desenvolvimento humano, viabilizando ainda a inclusão de estudantes que por
motivos diversos teriam dificuldades de acompanhamento em seu processo de aprendizagem.
As atividades operacionais do trabalho docente realizadas pela IA não necessariamente retiram
a importância do professor, mas podem dar oportunidade para que seu desempenho seja ainda
mais impactante em termos de formação humana. Dessa forma, com o foco na reflexão, no senso
crítico ou na criatividade dos estudantes, a presença do professor continua sendo indispensável no
ambiente de aprendizagem.

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BIBLIOGRAFIA
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NOTAS EXPLICATIVAS
1 Em 2014, um supercomputador desenvolvido na Universidade de Reading, em Londres, foi considerado
o primeiro a passar no desafio do “jogo da imitação” proposto por Turing em 1950, ao convencer os juízes
que era um garoto de 13 anos chamado Eugene Goostman. Disponível em: https://www.theguardian.
com/technology/2014/jun/08/super-computer-simulates-13-year-old-boy-passes-turing-test. Acesso em:
30 set. 2019.
2 Esse experimento mental (expressão empregada em filosofia da mente para experimentos abstratos
resultantes da imaginação, mas com implicações lógicas) foi introduzido por Searle em seu artigo Minds,
brains and programs e aprofundado em suas publicações subsequentes.
3 ‘Intencionalidade’ é um conceito medieval retomado por Franz Brentano no século XIX. O termo vem
do verbo latino intentio, que significa ‘apontar’ ou ‘indicar’. Brentano empregou o conceito para definir
o elemento distintivo do mental, uma vez que somente os fenômenos mentais indicam alguma coisa,
representam algo, característica esta não presente nos fenômenos físicos. Para Searle, intencionalidade é “a
propriedade de muitos estados e eventos mentais pela qual eles são dirigidos para ou acerca de objetos e
estados de coisas no mundo”. (1995, p. 1).
4 O projeto da IA tem um grande desafio, que é incluir noções de senso comum na máquina computacional,
uma vez que tais noções não são obtidas pelo mero acúmulo de informação e domínio de regras
(programação). Isso se evidencia também pelo fato de que nem todo conhecimento pode ser transferível
pela linguagem: como uma pessoa pode aprender a dirigir um carro tendo recebido apenas instruções
e informações, sem a interação com o veículo e o ambiente? Contudo, como sugere Navega, “não é a
capacidade de raciocínio de senso comum que ‘provoca’ a inteligência, pelo contrário, é o mecanismo
inteligente que consegue acumular o conhecimento responsável pelo senso comum”. (2000, p. 1).
5 Há uma pesquisa sendo desenvolvida no departamento de energia dos Estados Unidos que visa construir um
supercomputador chamado Aurora. Estima-se que esse computador será concluído em 2021, alcançando
uma velocidade de pico de um quintilhão de cálculos por segundo. Disponível em: https://oglobo.globo.
com/economia/tecnologia/aurora-computador-que-batera-recorde-de-calculos-um-quintilhao-de-contas-
por-segundo-23533471. Acesso em: 21 jan. 2020.
6 Ciborgue, aqui, não se refere à visão de senso comum de um organismo cibernético futurista, dotado
de capacidades extra-humanas. Trata-se, na verdade, de uma realidade já anunciada por filósofos como
Andy Clark. Para ele, a fusão entre homem e máquina é já um fato presente. Em Natural-Born Cyborgs,
Clark identifica que há um pressuposto cultural (que ele denomina por limites do corpo) a que os fatores
biológicos se sobressaem e que suprimem os fatores tecnológicos, isto é, que ‘somos’ algo acima do que
‘fazemos’. Para ele, é um equívoco reduzir a capacidade cognitiva humana ao que está no invólucro da

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pele (ou muito menos do crânio). Esse equívoco está calcado no pressuposto de que o melhoramento das
capacidades humanas se dá unicamente de dentro para fora, sendo que já desenvolvemos esse melhoramento
de fora para dentro há muito tempo com o uso de tecnologia, basta ver o desenvolvimento da capacidade
cognitiva de uma criança que interage com instrumentos modernos como smartphones ou tablets. Dessa
forma, nós, humanos, existimos apenas enquanto “coisas pensantes que somos, graças a uma complexa
dança de cérebros, corpos e muletas culturais e tecnológicas”. (2003, p. 11).
7 Disponível em: https://www.forbes.com/sites/barbarakurshan/2016/03/10/the-future-of-artificial-
intelligence-in-education/#340152a52e4d. Acesso em: 21 jan. 2020.
8 O software Remark Office OMR, da GB Network & Print, por exemplo, já realiza correção automática de
avaliações dissertativas.
9 Uma lista de softwares livres pode ser encontrada em: https://softwarelivrenaeducacao.wordpress.com/
softwares-livres-educacionais/.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
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CIÊNCIA DIGITAL E DEMOCRATIZAÇÃO


DO CONHECIMENTO

Roberto C. S. Pacheco
Valdir Fernandes

INTRODUÇÃO
Em um mundo em plena transformação, promovida pelas tecnologias digitais e por seus impactos
culturais, sociais e econômicos, um dos poucos consensos é que, em praticamente todas as áreas, a
sociedade contemporânea exige novas competências e novas maneiras de realizar o trabalho.
De todos os setores e segmentos, a ciência e a educação são provavelmente os únicos que têm
um papel dual na transformação digital. De um lado, são elas que geram tanto o conhecimento como
o capital humano, fatores indispensáveis ao desenvolvimento das tecnologias da informação e da
comunicação geradoras da transformação (disrupção) digital. E, de outro, ciência e educação têm sido,
também, profundamente impactadas pela transformação digital.
Portanto, ciência e educação também são demandantes de novos profissionais e novos modus de
trabalho. Nesse sentido, pergunta-se: como será o cientista do futuro? Quais têm sido os impactos
da era digital em que vivemos na produção de conhecimento científico? Como nossos professores da
Educação Básica podem atuar na formação dos cientistas do futuro?
Neste capítulo, pretendemos ajudar nestas questões, primeiro, apresentando os principais elementos
dessa ciência contemporânea. Para isso, retomamos a definição que propusemos recentemente para a
ciência digital – sistema compartilhado por comunidades científicas e sociais engajadas em resolver
problemas complexos, baseadas na noção de bem comum e na coprodução de dados, informações e

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conhecimento por meio de infraestrutura metodológica e tecnológica integradas. (PACHECO et al.,


2018). Posteriormente, discutimos casos e exemplos de como a ciência digital já está presente nas salas
de aula de todos os níveis educacionais.

UMA ERA DE TRANSFORMAÇÃO DISRUPTIVA


Em seu livro 3001: the final odyssey, Arthur C. Clarke1 conclui sua odisseia no espaço com a
história do personagem Frank Poole, o astronauta que, como nós, é um cidadão do século XX. Poole é
resgatado de sua cápsula criogênica, mil anos após ter sido perdido no espaço. No livro de Clarke, o ser
humano do início do quarto milênio praticamente só está interessado em uma única contribuição dos
nossos tempos atuais: a tecnologia espacial (que se mostrou crucial para sobrevivência da raça humana).
Não estaremos lá para saber, mas é muito provável que, em sua projeção do futuro, Clarke tenha
minimizado o efeito transformador da era em que vivemos, principalmente em relação a tudo o que a
humanidade viveu anteriormente.
Nenhuma outra era até aqui foi tão transformadora como a atual, social, econômica e culturalmente.
Se o ponto de vista deve ser o espacial, como faz Clarke, talvez a melhor metáfora para entender a
transformação digital seja a de Morin e Kern: trata-se de uma visão da “terra vista da terra” (1995,
p. 42) em alusão à Terra vista da Lua.

Convergência digital
Para Henry Jenkins, nossos tempos são equivalentes a uma ‘Renascença Digital’, caracterizada
pela convergência de mídias tecnológicas e industriais, em que conteúdos e audiências vivenciam uma
fusão de dimensão tecnológica, econômica, social, cultural e global. (JENKINS, 2006). Nessa visão,
de forma análoga ao que ocorreu no período renascentista, a humanidade não voltará a patamares
semelhantes, vividos no período industrial.
Para Jenkins, a principal característica da sociedade em que vivemos está na 1) convergência dos
meios de comunicação; 2) na cultura participativa e na 3) inteligência coletiva.
O primeiro fenômeno se dá pelo fluxo de conteúdos por meio de múltiplas plataformas, de
múltiplos locais, com diferentes contextos culturais, sociais e econômicos. Para que esse fluxo de
conteúdos ocorra, há, também, a cooperação entre múltiplos produtores mediáticos, bem como a
atitude migratória de público, que se desloca entre diversas fontes emissoras, em busca de informação,
entretenimento ou oportunidades.
Jenkins alerta, no entanto, que a convergência não tem natureza tecnológica, mas se origina
da mudança de papel dos interlocutores, que são agora incentivados a buscarem novas informações,
produzirem os próprios conteúdos e se conectarem por múltiplas mídias. A esse fenômeno Jenkins associa
o segundo fenômeno, que é a cultura participativa da sociedade contemporânea. Nela não há mais a

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separação linear produtor-consumidor, típica da sociedade industrial, mas sim copartícipes de um sistema
complexo, com papéis (e poderes) não equitativos no fluxo produtor-emissor-receptor de conteúdo.
O terceiro fenômeno apontado por Jenkins é a inteligência coletiva. O autor lembra que a
convergência não ocorreria exclusivamente com o fluxo de conteúdos e a cultura participativa. Esses
dois fenômenos combinados levaram a uma explosão de conteúdo. A convergência surge em nossa
atitude individual: incapazes de deter toda informação que acessamos, somos levados à interação social
crescente, formando o que Pierre Lévy denomina de ‘inteligência coletiva’. O resultado é uma rede
de indivíduos que pode levar à rápida discussão, apropriação e modificação de conteúdos e atitude
coletiva, um fenômeno que muda o tempo e o espaço das tomadas de decisão e que tem desafiado
arranjos sociais, políticos e culturais.
Segundo Gibbons et al. (2000), esse processo produz, também, uma mudança cognitiva
principalmente nos jovens, que são nativos digitais.

Cultura e natividade digital


Também para o teólogo e consultor Rex Miller, a era de transformação atual se manifesta na
profunda mudança de cultura desses tempos. Miller utiliza a expressão ‘cultura digital’ para denominar
os tempos em que vivemos, de profunda convergência de textos, gráficos, sons e dados, que leva
à conectividade, complexidade, aceleração, intangibilidade e instantaneidade das comunicações.
(MILLER, 2005).
Em relação à trajetória até os tempos atuais, Miller lembra que a humanidade passou pelas eras
da ‘cultura oral’, da ‘cultura impressa’, da ‘cultura radiotelevisiva (broadcast)’ e chega, agora, à era
da ‘comunicação digital interativa’, com impacto transformador nas atividades sociais, profissionais,
econômicas e culturais.
Essa mudança nas culturas traz profundas diferenças nas visões de mundo de cada geração. Segundo
Ertmer e Ottenbreit-Leftwich (2010), os profissionais do século XXI pensam e atuam diferentemente
daqueles dos séculos precedentes e essa diferença pode ser atribuída diretamente às tecnologias digitais
e a sua influência em todas as atividades sociais, econômicas e culturais.
Curiosamente, ciência e educação parecem viver certo dilema: de um lado, estiveram entre
os principais fatores responsáveis pelas mudanças de era – especialmente por terem propiciado as
Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC) – e, de outro, têm enfrentado dificuldades para
se adaptar à era atual, para adotar as inovações e assumir a cultura digital com a mesma velocidade de
outros campos da atividade humana contemporânea.
Não se trata apenas de reconhecer e adotar as novas mídias, como redes sociais e grandes bases
de dados como instrumentos educacionais e de produção de conhecimento. A transformação digital é
inexoravelmente disruptiva não apenas tecnológica, mas cultural e cognitivamente, como ressaltaram
Gibbons et al. (2000). Essa característica está na essência nas visões da convergência digital de Jenkins,
na cultura digital de Miller, na inteligência coletiva de Pierre Lévy e na visão que diversos outros
pensadores contemporâneos têm apresentado para descrever o momento em que vivemos.

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As mudanças na sala de aula já estão em curso, mas são certamente mais efetivas quando professores,
gestores de escolas e pais reconhecem os fatores e os impactos da sociedade digital sobre seus sistemas
educacional e científico.
Uma das formas de se verificar esses fenômenos contemporâneos está na melhor compreensão
da gama de novas denominações que têm emergido para caracterizar fenômenos de convergência,
participação e produção coletiva, como explicamos a seguir.

Prefixos da disrupção digital


Um dos principais indicativos da cultura digital está na proliferação de prefixos que têm
caracterizado a era em que vivemos, como ‘crowd’’, ‘co’, ‘multi’, ‘open’, ‘wiki’, ‘inter’ e ‘trans’, ilustrados
na Figura 1. Tais prefixos identificam as principais características da convergência digital: magnitude e
abrangência, multiplicidade, convergência, abertura, combinação e transposição de padrões e práticas
prévias à era digital.

Figura 1 – Prefixos da era digital.

Crowd
Multidões

Co Multi
Fazer juntos Fazer com múltiplos

Open Wiki Inter Trans


Fazer aberto Construir Neociências = ∑ de ∑ saberes além
juntos Ciências da Ciência

Fonte – Adaptado de Pacheco, 2016.

O prefixo ‘co’ – estar/fazer com – precede o avento das TIC e é utilizado para caracterizar
atividades típicas da era da convergência. A coprodução, por exemplo, é uma proposta de Elinor
Ostrom, primeira e única mulher ganhadora do Nobel de Economia, para caracterizar a necessidade de
sociedade e governo serem corresponsáveis pelo bem público. Há muito tempo suas variantes ‘cocriação’,
‘colaboração’ e ‘cooperação’ identificam formas de aproximar atores na realização de propósito comum.
Em todas essas expressões o prefixo ‘co’ indica a concomitância de atuação, com diferentes graus de
participação e propriedade de seus protagonistas.
Quando o número de protagonistas cresce exponencialmente, surgem os fenômenos típicos do
prefixo ‘crowd’. Destacam-se as iniciativas que reúnem multidões em plataformas de tecnologia de
informação, com um propósito comum, tal como ‘colaboração’ (crowd collaboration), ‘competição’

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(crowd competition), ‘provimento’ (crowd sourcing), ‘investimento’ (crowd funding), ‘trabalho’ (crowd
work) ou mesmo ‘inovação’ (crowd innovation).
A possibilidade de democratização do acesso à informação fez disseminar o prefixo ‘open’
como característico para se referir a sistemas, tecnologias, processos, práticas e dados da sociedade
digital ‘abertos’ a seus interessados. Essa abertura pode ser de natureza tecnológica, legal, regulatória,
metodológica, econômica ou social. Em serviços públicos, por exemplo, o chamado ‘governo aberto’
(open government) contempla desde a abertura de dados à transparência à viabilização do controle pelo
cidadão. Em desenvolvimento de sistemas, o ‘software aberto’ (open software) indica o acesso ao código-
-fonte por terceiros e, em ciência, a chamada ‘ciência aberta’ (open Science) está relacionada aos processos
de produção do conhecimento científico e acesso a ele de forma pública (normalmente gratuita).
O prefixo ‘wiki’, por sua vez, refere-se a processos abertos de coprodução e acesso a documentos.
Sua origem está no projeto Wikipédia, de Jimmy Wales, uma enciclopédia livre que foi o primeiro
veículo de informação a utilizar a linguagem de marcação ‘Wiki’ e que permite a edição coletiva via
sistemas de navegação na Web. Don Tapscott e Anthony Williams propuseram o termo ‘Wikinomics’
para descrever o impacto do trabalho coletivo em grande escala sobre os modelos econômicos e formas
de produção empresarial resultantes da participação coletiva em todos os estados da produção de bens
e serviços. (TAPSCOTT; WILLIAMS, 2006).
Já o prefixo ‘multi’ se refere à coexistência de múltiplos componentes de diversas naturezas,
tais como tecnológicos (ex. multimídia), organizacionais (ex. multi-institucional), culturais (ex.
multicultural), conceituais (ex. multirreferencial), científicos (ex. multidisciplinar). Normalmente, os
múltiplos fatores ou protagonistas, embora participem ou atuem conjuntamente, não chegam a se
transformar em novos fatores ou protagonistas. No caso da multidisciplinaridade, por exemplo, não
há a intenção de se criar uma nova ‘multidisciplina’, e sim de combinar conhecimento de diferentes
origens para resolver um problema complexo.
Quando a combinação de múltiplos elementos adquire uma nova identidade, fruto da
interdependência de seus elementos, utiliza-se o prefixo ‘inter’, que indica o que está ou surge entre os
componentes. Estes podem ser organizações (ex. interinstitucionalidade), regiões (ex. interestadual),
países (internacional) ou disciplinas (interdisciplinaridade). A nova identidade está no surgimento de
novos fatores ou atores em decorrência da convergência. Na ciência, por exemplo, a interdisciplinaridade
leva, com o tempo, à criação de novos métodos, definições e visões que combinam as disciplinas
partícipes, dando origem a uma nova ‘interciência’.
Os prefixos ‘multi’ e ‘inter’ denotam combinações de múltiplos fatores ou componentes,
respeitando-se, porém, limites previamente estipulados (ex. quanto à natureza ou missão dos
partícipes). Já o prefixo ‘trans’ significa ‘através’ ou ‘além de limites pré-existentes’. Quando os limites
estão na forma, significa modificar o formato original (transformar). Quando se referem a espaço,
significa levar de um lugar para outro (transportar). Na atividade científica, o prefixo refere-se ao
conceito da ‘transdisciplinaridade’, que implica ir além dos limites da disciplinaridade (e, também, da
interdisciplinaridade). Há diferentes formas de ultrapassar esses limites. Robert Frodeman (2013), por
exemplo, sugere que o conhecimento transdisciplinar decorre da participação de atores científicos e

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não acadêmicos em atividades de pesquisa, caracterizando, assim, a chamada ‘transdisciplinaridade


de coprodução’.
A combinação de vários prefixos pode ilustrar bem o impacto da cultura digital. Milhares de
pessoas (crowd) podem trabalhar coletivamente na elaboração de documentos (wiki), em ambientes
acessíveis e gratuitos (open). Esses coletivos podem ser de pesquisadores de diferentes áreas resolvendo
problemas (projetos multidisciplinares), criando novos saberes pela combinação de ciências (projetos
interdisciplinares) ou mesmo trabalhando em conjunto com cidadãos na coleta de dados e em suas
pesquisas (transdisciplinaridade).

Figura 2 – Dinâmica das atividades na era digital.

Fonte – Os autores.

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A disrupção contemporânea na ciência e na educação é resultado, portanto, de uma série de fatores


e fenômenos, potencializados – mas não limitados – pelas possibilidades trazidas pelas TIC. Os novos
potenciais tecnológicos impactam a visão, o modus operandi, os meios e, também, os protagonistas da
atividade científica e educacional. Trata-se de mudanças transformadoras cujos impactos deram origem
a termos e campos emergentes que caracterizam a era digital vigente. Para a ciência, definem as bases
da chamada ‘ciência digital’, como descrevemos a seguir.

BASES DA CIÊNCIA DIGITAL


A ciência digital é resultado da combinação de múltiplos protagonistas, incluindo cientistas,
docentes, estudantes e atores não acadêmicos, que compartilham uma visão de espaço coletivo de
produção de conhecimento como um bem comum e viabilizado por múltiplas tecnologias de
conectividade. Como todo sistema complexo, a ciência digital é mais bem compreendida se analisarmos
a natureza, o funcionamento e, especialmente, as relações de seus elementos componentes, conforme
fazemos a seguir.

Visão de ciência: e-Ciência e ciberinfraestrutura


No início dos anos 2000, a National Science Foundation (NSF), agência do governo americano
fundada no pós-guerra para o investimento em ciência, apresentou uma nova visão de como as
tecnologias computacionais poderiam apoiar a eficiência e eficácia da produção de conhecimento
científico, ajudando todos os seus protagonistas (cientistas, engenheiros, estudantes, técnicos e,
também, beneficiários). A essa nova visão deu-se o nome de ciberinfraestrutura (cyberinfraestructure).
(ATKINS, 2003).
Na mesma época, no Reino Unido, John Taylor, então diretor do Conselho de Pesquisa do
Ministério de Ciência e Tecnologia Britânico, denominou um programa equivalente de e-ciência
(e-Science) e e-infraestrutura (e-infrastructure). Ele caracterizou e-ciência como uma colaboração global
em áreas-chave da pesquisa e e-infraestrutura como a próxima geração de tecnologias que capacitariam
a e-ciência.
Tanto a ciberinfraestrutura como e-ciência previram a combinação de infraestrutura, processos,
métodos e perfis dos diferentes protagonistas da ciência contemporânea. Em uma análise recente sobre
a evolução das noções originais americana e britânica sobre a ciência do século XXI (PACHECO et al.,
2018), propomos que esses conceitos dão complementariedade à ciência contemporânea. Desse modo,
ciberinfraestrutura pode ser compreendida como a infraestrutura tecnológica, organizacional e, também,
cultural que viabiliza a e-ciência. Esta, por sua vez, consiste na produção de conhecimento científico em

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projetos com uma comunidade global de pesquisadores de múltiplas áreas do conhecimento, engajados
em projetos de pesquisa de fenômenos de interesse mundial, utilizando TIC de última geração.
Assim, a combinação de ciberinfraestrutura e e-ciência viabiliza o desenvolvimento científico
coletivo (a crowd Science) por meio de redes globais de pesquisa. (LAW et al., 2017).
Além disso, após quase duas décadas desde o começo dos programas americano e britânico, outras
visões e termos emergiram, tornando a ciência contemporânea mais um fenômeno característico da era
da cultura digital de Miller e da convergência digital de Jenkins. A seguir destacamos aqueles conceitos
que nos parecem ser os mais estruturantes para a caracterização da ciência contemporânea.

Causa: bem comum


Ciberinfraestrutra e e-ciência são conceitos que procuram caracterizar a forma como a ciência
contemporânea é realizada, ou seja, partem do pressuposto de que a ciência atual é efetivada de forma
global, com o apoio de múltiplas estruturas tecnológicas e com impacto sociocultural na organização
dos diversos atores protagonistas do trabalho científico.
Contudo, há um elemento fundamental à articulação de projetos científicos contemporâneos
sem o qual dificilmente essas visões de ciência efetivam empreendimentos sustentáveis e coletivos: o
problema investigativo a que se direcionam. Sem um problema relevante e de impacto coletivo, há
muita dificuldade de articulação, engajamento e financiamento de projetos da ciência digital.
É nesse contexto que o conceito de ‘bem comum’ ganha especial relevância, pois traz ao projeto a
causa, a motivação, a referência que serve de fator de engajamento a seus protagonistas.
Para a ciência digital (e para toda coprodução coletiva), a principal contribuição científica para a
compreensão do conceito e relevância do bem comum foi da cientista social americana Elinor Ostrom.
Seu prêmio Nobel de Economia, a que nos referimos anteriormente, deve-se ao seu trabalho com a
teoria dos commons. Nos anos 1970, Ostrom (juntamente a seu marido Vincent Ostrom) indicou
a relevância dos arranjos institucionais na gestão de recursos (bens) comuns. Nos anos 1980, após
estudar milhares de casos comunitários de gestão de bens comuns, tanto naturais (ex. água, pesca)
como produzidos (ex. bibliotecas públicas), a autora identificou oito princípios, que dão identidade,
regramento e monitoramento a sistemas coletivos complexos exitosos na geração de bens comuns
sustentáveis (OSTROM, 1990), conforme ilustrado na Figura 3.
Em 2007, Elinor Ostrom e Charlotte Hess definiram ‘bem comum’ (commons) como “recursos
compartilhados por um grupo de indivíduos sujeitos a conflitos sociais”. (OSTROM; HESS, 2007).
Essa definição ajuda a compreender os princípios que a pesquisadora havia descoberto nos seus estudos
anteriores, representados e classificados na Figura 3.

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Figura 3 – Princípios de commons.

1 5
Limites ES Penalidades
O D
ÇÃ DA proporcionais às
ITA claramente I
LIM N AL defesas
DE definidos PE

Regras de 2 6
provimento e Baixo custo na RESOLUÇÃO
apropriação CONTEXTO resolução de DE
aderentes ao local LOCAL conflitos CONFLITOS

3 Indivíduos 7
afetos às regras Communers devem poder
organizar as próprias
PARTICIPAÇÃO participam DIREITOS instituições
das decisões

4 8
Governança
Verificar condições O
E NT multinível e
do commons e o AM
R multi- ADOCRACIA
comportamento NITO
MO -institucional
dos communers

Fonte – Adaptado de Ostrom (1990).

Em síntese, Ostrom descobriu que bens comuns se tornam duradouros quando: (i) seus limites
são claramente definidos e os direitos de seus partícipes em utilizá-los são precisamente identificados
(delimitação); (ii) as regras de provimento e apropriação do bem comum respeitam condições locais
(contexto Local); (iii) os indivíduos afetos a essas regras também participam de sua elaboração ou
modificação (participação); (iv) há acompanhamento tanto do uso do bem comum como do
comportamento dos partícipes (monitoramento); (v) há penalidades proporcionais às ofensas
dos partícipes no bem comum (penalidades); (vi) os conflitos (que são inevitáveis, por definição)
têm baixo custo para resolução (resolubilidade de conflitos); (vii) os partícipes do bem comum
devem ter suas regras respeitadas por instituições externas (autonomia); e (viii) há um sistema de
governança multi-institucional e multinível em comum (governança).
Esses princípios foram resultado de anos de estudos de Ostrom sobre bens comuns naturais ou
produzidos pelo ser humano. Alguns anos após receber o Nobel, a pesquisadora trabalhou com Charlotte

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Hess (OSTROM; HESS, 2007) na verificação de commons de conhecimento e commons digitais (ex.
internet, redes sociais). Suas análises indicam que também esses têm princípios semelhantes, mesmo
sendo bens que permitem o compartilhamento sem o esgotamento do recurso (ao contrário da água e
de outros bens naturais).
Para a ciência digital, os estudos de Ostrom e Hess têm especial relevância, pois caracterizam o
propósito, a causa dos projetos realizados pelos coletivos interessados. A noção de bem comum e o
respeito às boas práticas de commons duradouros ajudam na identificação de propósito, comunicação,
resolução de conflitos e governança de projetos da ciência digital.

Coprodução: ciência cidadã e transdisciplinaridade


Embora seja fundamental ao engajamento, a definição clara de um objetivo, uma causa que
possa ser virtuosa para seus protagonistas não diferencia necessariamente a ciência digital da ciência
tradicional. Além da noção de bem comum entre seus protagonistas, a ciência digital se caracteriza
pela presença de protagonistas científicos e não acadêmicos, pela participação cidadã e pela noção
de coprodução.
Em 1995, Alan Irwin publicou seu livro Ciência cidadã propondo o uso dual do termo: a ciência
cidadã significa tanto uma ciência dedicada a atender necessidades e preocupações do cidadão como
uma ciência viabilizada e protagonizada pelo próprio cidadão. (IRWIN, 1995).
Essa noção guarda relação direta com a visão de transdisciplinaridade como uma forma de
produção de conhecimento da qual participam tanto cientistas como protagonistas não acadêmicos.
(FRODEMAN, 2013). Denominamos esse modo de ciência de ‘transdisciplinaridade de coprodução’,
sendo esta resultante do protagonismo de múltiplos atores, conscientes de sua contribuição individual
e coautores do resultado final.
Na ciência digital, a combinação de ciberinfraestruturas, e-ciência, transdisciplinaridade em
projetos de ciência cidadã leva à formação de espaços coletivos, como descrito a seguir.

Espaço semântico: dados abertos, bases científicas


e ontologias
Uma das principais características da ciência digital é a formação de um espaço coletivo de dados,
informações, taxonomias e ontologias, resultantes da atividade de coprodução de seus partícipes. A
esse repositório coletivo comum denominamos ‘espaço semântico’. Pode-se compreendê-lo como um
ambiente de múltiplas camadas: dados, informações e conhecimento.
A camada de dados refere-se aos registros sobre indivíduos (ex. pesquisadores, docentes, estudantes
etc.), instituições, projetos, produção intelectual e, ainda, registros específicos ao domínio de aplicação
da ciência digital (ex. saúde, agricultura, segurança, turismo etc.). Uma das práticas mais relevantes

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para a ciência digital nessa camada se refere ao uso de técnicas de dados abertos, dados ligados e outras
que permitem explicitar não somente os registros de domínio, mas também as relações entre estes. Tais
técnicas dão contexto ao dado, criando uma camada de informações para os partícipes do projeto da
ciência digital.
Com o uso de técnicas das engenharias do conhecimento e de ontologias, surge a camada de
conhecimento, que tem não somente o dado contextualizado, mas também a semântica, propósito e
tomada de decisão sobre o domínio dos projetos. Para isso, são criadas taxonomias (relação de termos
categorizados, definidos e relacionados), ontologias e sistemas de conhecimento.
Entre os principais recursos do espaço semântico estão as bases de dados científicas, resultantes do
acúmulo de dados, informações e conhecimento sobre domínios e problemas específicos. Essas bases
são tanto resultado como insumos à produção de conhecimento científico. Com o uso de técnicas da
ciência de dados, Big Data, Data Mining, Text Mining e outras, é possível explorar as bases de dados
formadas e derivar novos insights.

Tecnologias: conectividade e redes sociais


Na camada de serviços, a ciência digital se vale das tecnologias de conectividade e das redes sociais.
Aquelas permitem conectar os diversos atores individuais e institucionais da ciência digital e, também,
via dispositivos móveis, reduzir os custos de acesso à ciência por parte da sociedade. Já as redes sociais
e demais sistemas de informação on-line (ex. portais, blogs etc.) permitem a comunicação e viabilizam
a coprodução dos atores da ciência digital.
Entre esses dispositivos, destacam-se os aparelhos de celular, cada vez mais robustos em
capacidade de processamento e mais acessíveis na escola, com custos que os têm tornado disponíveis
até mesmo para as camadas sociais de menor poder aquisitivo. No Brasil, contudo, há ainda o desafio
da velocidade de conexão de internet nas escolas públicas, que, quando alcançada, combinada com
a difusão dos aparelhos celulares, pode levar a ciência digital ainda mais fortemente para o sistema
educacional do país.
Combinadas, as novas tecnologias e as redes sociais somam-se a mudanças de processos e à
definição de projetos científicos que têm transformado os laboratórios em ‘colaboratórios’, conforme
descrito a seguir.

Trabalho: colaboratórios e experimentação remota


O termo ‘colaboratório’ foi proposto por Wiliam Wulf, em relatório apresentado à National
Science Foundation, cerca de uma década antes da agência ter proposto o termo ciberinfraestructure.
Wulf definiu esses espaços coletivos de pesquisa como centros “sem paredes, no qual os pesquisadores
do país podem realizar suas pesquisas sem considerar a localização física, interagindo com colegas,

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acessando instrumentação, compartilhando dados e recursos computacionais e acessando informações


em bibliotecas digitais”. (WULF, 1989, p. 7).
Nas décadas seguintes, o termo evoluiu para destacar não somente a utilização de TIC
contemporânea, mas, também, os novos processos sociais de trabalho coletivo e a coprodução de
conhecimento. Um exemplo é a definição de Cogburn (2003), para quem um colaboratório “é uma
nova forma organizacional em rede que também inclui processos sociais; técnicas de colaboração;
comunicação formal e informal; e acordo sobre normas, princípios, valores e regras”. (COGBURN,
2003, p. 86).
A experimentação remota surgiu entre meados dos anos 1990 e início dos anos 2000, como
um novo conceito que combina equipamentos, software, acesso on-line, controle automático de
equipamentos (robótica), processos e experiências científicas que podem ser acessadas por usuários de
qualquer local geográfico. Entre as principais aplicações estão o ensino a distância e a prática no ensino
fundamental de disciplinas como Matemática, Física e Química. (RNP, 2016).
Para a ciência digital, a experimentação remota é um dos principais recursos para a abertura de
laboratórios e a promoção de compartilhamento e coprodução de conhecimento entre pesquisadores
de múltiplas origens e a sociedade engajada em projetos científicos.

CIÊNCIA DIGITAL
Nas últimas seções descrevemos os construtos que formam a ciência digital e a definem como
um empreendimento compartilhado e coletivo de atores científicos e não acadêmicos, em torno
de bem comum, com acesso a TIC contemporâneas e coprodução de espaço semântico de dados,
informações e conhecimentos. A esses elementos devemos agregar processos, práticas e campos
do conhecimento que caracterizam e dinamizam o complexo sistema da ciência digital, conforme
descrito a seguir.

Visão geral da ciência digital


Na Figura 4 estão relacionados os construtos descritos anteriormente que formam o cenário
contemporâneo que denominamos ‘ciência digital’. Ilustra-se esse novo modus operandi de
produção de conhecimento científico, em que cientistas, cidadãos, estudantes, professores, gestores,
empresários, trabalhadores sociais e demais interessados criam e compartilham conhecimento,
informações e dados, apoiados por diversas tecnologias, métodos e práticas de diferentes campos
do conhecimento.

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Figura 4 – Visão geral da ciência digital.

Visão de Espaço Trabalho


Causa Coprodução
ciência semântico inovador

Transdisciplinaridade
Ciberinfraestrutura

Experimentação
Colaboratórios
Bases de dados
Ciência cidadã
Complexidade

Dados abertos
Bem comum

Ontologias
científicas
e-Ciência

remota
Ciência é feita Ciência visa Ciência gera dados, Projetos
Ciência resulta
por coletivos ao bem comum bases e conhecimentos científicos
da coprodução
globais, apoiada e a problemas coletivos, abertos e contemporâneos
com a sociedade
por TIC complexos comunitários são inovadores

Fonte – Os autores.

A Figura 4 ilustra o fato de que a ciência digital se inicia pela visão contemporânea de que seus
projetos devem ser realizados por coletivos globais, apoiados pelas TIC, com explicitação de seus
objetivos de interesse público (bem comum) e, por natureza, complexos. Para enfrentar tais desafios,
os projetos da ciência digital incluem noção, valores e práticas transdisciplinares da ciência cidadã, em
que a sociedade, além de beneficiária, é coprodutora do trabalho científico.
Como resultado, a ciência digital cria espaços semânticos formados por bases de dados
científicos, em formatos abertos e, também, bases de informação e de conhecimento (ontologias).
Para tal, utiliza-se de instrumentos contemporâneos de trabalho, em laboratórios conectados
globalmente (colaboratórios) e com o uso de ferramentais propiciados pelas novas TIC, como a
experimentação remota.

Arquitetura conceitual da ciência digital


A visão geral ilustrada na Figura 4 abrange praticamente a totalidade de conceitos contemporâneos
que afetam a ciência digital. Na prática, no entanto, a combinação desses conceitos requer, ainda,
uma ‘arquitetura conceitual’, ou seja, a explicitação de como o sistema da ciência digital dispõe seus
componentes e relações.
Recentemente tratamos dessa questão definindo a ciência digital como um sistema complexo,
compartilhado por comunidades científicas e sociais engajadas em resolver problemas complexos

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baseados no bem comum e no compartilhamento de métodos, dados, informação e infraestrutura


tecnológica ou metodológica. (PACHECO et al., 2018).
A Figura 5 ilustra a arquitetura conceitual da ciência digital com seus elementos, fatores e relações
impactantes na coprodução de conhecimento.

Figura 5 – Arquitetura conceitual da ciência digital.

Ciência digital

Fonte – Pacheco et al., 2018.

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No alto da Figura 5 está representado o espaço de conhecimento (semântica coletiva) produzido


na ciência digital. Nele, ontologias ou redes de ontologia podem ser desenvolvidas, com base em
diretrizes da Engenharia de Ontologias ou da Engenharia do Conhecimento. Mais do que dados e
informações, as ontologias representam definições e relacionamentos (ex. sinônimos) e regras válidas
para o que se conhece do domínio. A ciência digital pode produzir esse espaço semântico por meio
de colaboratórios.
À direita na Figura 5 estão representados os protagonistas não científicos de projetos da ciência
cidadã, que utilizam de infraestrutura computacional em nuvem, em rede e de dispositivos móveis de
conectividade, em modelos baseados na computação por serviços (representada pelo macroprocesso
na base da figura).
Ainda na Figura 5, logo abaixo do espaço semântico, estão os processos e campos do conhecimento
que dão as bases referenciais para a ciência digital. A produção de conhecimento conjunta com cidadãos
exige novos fluxos de atividades (workflows científicos), sistemas de acompanhamento de parte da
sociedade sobre os avanços da ciência (i.e., Community Based Monitoring) e a transdisciplinaridade de
coprodução.
Também estão representados na Figura 5 os processos de crowdsourcing, ciência de dados (essa
explicitada nos subprocessos de exploração, análise, criação e disseminação de dados) e acesso aberto.
Esses processos indicam a forma como a ciência digital produz (i.e., por grandes coletivos), explora e
oferece seus dados.
Finalmente, ainda na Figura 5, destacam-se os campos da Gestão, Engenharia e Mídia do
Conhecimento, como provedores de métodos, metodologias e tecnologias que dão à ciência digital
a propriedade de estabelecer um fluxo contínuo de dados, informações e conhecimento, todos
percebidos como bens comuns (ou commons).

EXEMPLOS DA CIÊNCIA CONTEMPORÂNEA

Casos no mundo
Passadas mais de duas décadas desde que Alan Irwin propôs uma ciência não somente engajada
às demandas da sociedade, mas também coproduzida com cidadãos, nota-se sua presença tanto como
metodologia de ensino quanto como tipo de projeto executado e financiado por governos. Como
demonstram Shah e Martinez (2016), os projetos da ciência cidadã ocorrem desde a escola fundamental
até o ensino médio, como ilustrado na Figura 6.

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Figura 6 – Exemplos de projetos de ciência cidadã para Ensino Fundamental e Médio.

Feeder World Water Nature’s Notebook, USA


Watch Monitoring Day Phenology Network

Disponível em: https://feederwatch. Disponível em: http://www.worldwa Disponível em: https://www.usanpn.


org. Acesso em: 4 out. 2019. termonitoringday.org/. Acesso em: 4 org/home. Acesso em: 4 out. 2019.
out. 2019.
Projeto: os alunos montam dispositivos Projeto: os alunos usam kits de teste Projeto: os alunos observam e identi-
de alimentação de pássaros e os obser- para monitorar a saúde dos manan- ficam plantas e animais em uma região
vam quando estão se alimentando. ciais de água locais, medindo o pH, o para determinar os efeitos das mudan-
oxigênio dissolvido, a temperatura e a ças climáticas globais na vegetação e na
turbidez. vida selvagem.

Fonte – Os autores (com base em casos citados por Shah e Martinez).

Como ilustrado na Figura 6, as áreas educacionais mais beneficiadas pela ciência cidadã estão
normalmente associadas às ciências naturais e à sua relação com disciplinas de fundamentos como
Biologia e Química. Seus procedimentos têm sido usados em projetos de coleta de dados sobre os tipos
e número de aves (ex. projeto FeederWatch), coleta e análise da qualidade da água (ex. projeto World
Water Monitoring Day) e observação de plantas e animais (ex. projeto Nature’s Notebook).
Além da educação, cabe destacar a contribuição da ciência cidadã à produção de conhecimento
científico, tanto na realização de projetos em estreita relação com a sociedade (ex. Programa Scienstarter)
como na produção de bases de dados de amplo uso em pesquisas científicas. Entre estas se destaca o
projeto eBird (SULLIVAN et al., 2009), uma base digital com milhões de registros sobre sons e vídeos
de pássaros ao redor do mundo que tem sido usada como referência em dezenas de trabalhos científicos
e exemplifica a mudança disruptiva que a adoção de sensores (internet das coisas) e, especialmente, a
relação ciência-sociedade causarão no futuro da atividade científica.

Casos no Brasil
A ciência cidadã não tem alcançado em nosso país a mesma abrangência e o mesmo histórico que
em países desenvolvidos. Segundo Nascimento (2018), a ciência cidadã brasileira se limita a projetos
locais, com as primeiras experiências relatadas no início da década de 2010, também para observação
de pássaros e análise de biodiversidade em atividades de ecoturismo (projeto Ubatuba, em São Paulo).
Os autores também mencionam o impacto do acidente de Mariana-MG, que levou à organização de

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voluntários que formaram o Grupo Independente para Avaliação do Impacto Ambiental (GIAIA)
para registrar informações ambientais sobre o impacto dos rejeitos do minério de ferro.
Outro caso brasileiro que vai além da ciência cidadã é o Laboratório RExLab da Universidade
Federal de Santa Catarina. (RNP, 2016). Criado pelo professor João Bosco Alves em 1997, o
laboratório completou duas décadas com um projeto realizado em rede internacional que viabiliza a
experimentação remota, via internet.
Segundo os pesquisadores do RexLab, estima-se que apenas 8% das escolas públicas do
país têm um laboratório de ciência. O projeto RexLab permite aos alunos realizar experimentos
acessando a estrutura física real, controlando-a de forma remota para coletar informações, analisar
os experimentos e fazer comparações com o trabalho dos colegas – conectados pela internet das mais
diversas origens – para que o aprendizado seja coletivo e facilitado pelo uso de dispositivos móveis.
(RNP, 2016). Em 2018 os projetos do laboratório RexLab alcançaram, também, outros países da
América Latina e foram implantados no ensino de ciências naturais e engenharias na Universidad
Estatal a Distancia (Uned) da Costa Rica. (CHINCHILLA, 2018).
Embora no Brasil tenha casos de destaque em projetos de ciência cidadã e ciência digital, a
verdade é que estamos muito aquém do necessário diante dos desafios de nossa nação no alcance
das competências requeridas na sociedade do conhecimento contemporânea e muito abaixo do
potencial existente diante de nossas dimensões continentais, nossa biodiversidade e nossos problemas
complexos com alto potencial de engajamento de estudantes, professores e cientistas.
Uma boa notícia, no entanto, é o fato de que um dos insumos relevantes para a ciência digital –
os dados – começam a ser cada vez mais ampliados e disponibilizados para pesquisas em nosso
país. Há uma gama de fontes, que incluem dados sobre competências (Plataforma Lattes/CNPq),
programas de pós-graduação (Plataforma Sucupira/Capes), inovação (Portal Inovação/MCTIC),
teses e dissertações (BDTD/IBICT), documentos disponíveis nas bibliotecas nacionais (OASISBR/
/IBICT), bem como bases setoriais (ex. saúde/MS, educação/INEP). Desde o advento da lei de
acesso à informação, o Brasil tem avançado no desenvolvimento e abertura de seus repositórios de
dados. Falta, contudo, avançar para além do controle do cidadão sobre o Estado e o surgimento de
aplicações que promovam a coprodução, tendo essas fontes de dados e informações como insumos
à promoção de redes.

LEVANDO A CIÊNCIA DIGITAL PARA A SALA


DE AULA
Uma vez que conhecemos a estrutura conceitual e os principais atores e fatores da ciência digital,
podemos retornar a uma das questões originais deste capítulo: Como nossos professores da Educação
Básica podem atuar na formação dos cientistas do futuro?

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Essa pergunta remete ao desafio de buscar maneiras de levar a ciência digital para a sala de aula e
de desenvolver as competências necessárias a esse modo contemporâneo de se produzir conhecimento.
Contrariamente ao que possa parecer, dado o sistema complexo de elementos, processos e
resultados que formam a ciência digital, ela pode ser praticada em sala de aula, em todos os níveis de
educação, respeitados os cuidados em projetos e apoio aos docentes. (HARLIN et al., 2018).
Nesta seção, primeiramente destacamos algumas das principais fontes para consulta de projetos
com potencial para serem levados à escola, posteriormente apresentamos método e proposta de projeto
de ciência cidadã, discutindo, ao final, os aprendizados que a literatura já registra para esse modelo
educacional e forma de produção de conhecimento.

Fontes de consulta
Uma das formas mais seguras de tratar desse desafio é verificando quem já realizou experimentos
com as características da ciência digital. Felizmente, as fontes de consulta sobre o tema incluem uma
gama de programas, organizações e pesquisadores que propõem projetos, práticas, procedimentos e,
também, frameworks para levar a ciência cidadã para a prática pedagógica de professores, nas mais
variadas disciplinas, como ilustrado no Quadro 1.

Quadro 1 – Fontes de estudos da ciência cidadã nas escolas.

Tipo Descrição Exemplos


Programas Promovidos. Scienstarter, Next Generation Science Standards.

Organizações Instituições promotoras de programas Association of Science Technology Centers (ASTC), Educator
e projetos em ciência cidadã. Innovator, Common Core; California Academy of Sciences.

Pesquisadores Estudiosos e praticantes da ciência HARLIN et al. (2018), SHAH; MARTINEZ (2016), GRAY;
cidadã. NICOSIA; JORDAN (2012).

Fonte – Os autores.

Como podemos ver nos exemplos listados no Quadro 1, as oportunidades de aprendizado


propostas pela ciência cidadã estão em diversas fontes. Professores podem encontrar desde programas
abertos em comunidades globais até estudiosos do tema, passando por programas institucionais de
objetivos específicos (como museus e associações científicas).
Para efeitos deste capítulo, propomos, a seguir, um experimento simplificado, com o objetivo
de ilustrar os passos que os docentes tomam quando da aplicação da ciência cidadã em projetos de
sala de aula.

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Projeto de ciência cidadã para a sala de aula


Em programas da Educação Básica e Fundamental, a face mais natural da ciência digital a ser
praticada é a ciência cidadã. Mesmo com baixo uso de tecnologia pode-se convidar e motivar a alunos
a criarem espaços compartilhados com membros de sua comunidade em torno de temas de interesse
comum, que possam ser levados à escola como um experimento transdisciplinar.
Não há um método de consenso para isso. Para efeitos deste capítulo, optamos por combinar
a estrutura de atividades proposta por Gray, Nicosia e Jordan (2012) para análise de jornais e por
Harris e Ballard (2018) para experimento em Biologia. Nosso objetivo, contudo, está no campo da
sustentabilidade urbana, conceito que tem sido cada vez mais presente na vida do estudante das cidades,
em todos os níveis. Assim, sugere-se um projeto de ciência cidadã dedicado ao tema da obra Humane
smart cities (Cidades humanas inteligentes e sustentáveis). (COSTA; OLIVEIRA, 2017).
Para tal, propõe-se um experimento com as atividades descritas no Quadro 2.

Quadro 2 – Proposta de projeto de ciência cidadã para sala de aula.

Etapa Descrição Exemplo Aprendizado

Definir desafio Definir projeto (desafio Responda: ‘Como podemos tornar nossa Compreensão do desafio e da
que cause engajamento). cidade mais inteligente, humana e sus- definição dos protagonistas
tentável?’ (equipe e comunidade).

Definir equipe Indicar papéis e responsa- Defina o plano de trabalho e os papéis de Identificação e cumprimento
bilidades da equipe. cada integrante da equipe. de responsabilidades e lide-
rança.

Pesquisa de domí- Buscar conhecimento so- Responda: ‘O que são Cidades Huma- Estudo individual e coletivo
nio bre o tema da experiên- nas, Inteligentes e Sustentáveis (CHIS)? dos estudantes sobre o tema
cia. Como e o que pode tornar uma cidade da pesquisa.
ou região uma das CHIS?’

Instrumentaliza- Pesquisar e definir os ins- Prepare uma síntese de apresentação da O que são e para que servem
ção trumentos da pesquisa de pesquisa para o entrevistado (ex. o que protocolos de pesquisa.
campo (ex. entrevistas, são CHIS) e roteiro de perguntas.
coleta de dados).

Coletar dados Buscar dados sobre Colete sugestões da equipe, de colegas, pais, Aprender a realizar pesquisa
o problema, seguin- vizinhos e amigos sobre como melhorar de campo (nesse caso, entre-
do protocolo proposto nossa cidade. vista semiestruturada).
pelo professor.

Analisar dados Verificar a qualidade, Verifique que sugestões se enquadram no Aprender noções da análise
coerência e aderência conceito de CHIS. de conteúdo, categorização e
dos dados aos objetivos aderência a conceitos.
da experiência.

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Etapa Descrição Exemplo Aprendizado

Tirar conclusões Identificar e priorizar Que ideias a equipe considera mais rele- Discussão e busca de consen-
conclusões do estudo vantes? Por quê? so em equipe.

Comunicar as Apresentar aos professo- Apresente os resultados para a turma e Organização, preparação e
ideias res e à turma os resulta- registre críticas e sugestões de professores defesa oral de trabalhos de na-
dos alcançados. e colegas. tureza coletiva.

Tomar decisões e Com base no feedback Faça a análise das críticas e sugestões re- Rever análises com base em
fazer inferências dos professores, colegas cebidas e refine seus resultados. feedbacks, visão coletiva e pla-
e comunidade fazer me- nejar evolução de projeto.
lhorias e evoluções na
pesquisa.

Fonte – Os autores.

Como podemos verificar no Quadro 2, o experimento da ciência digital pode ter nove atividades
até sua conclusão, a saber:
1. Definir desafio: a primeira atividade de um docente ao determinar seu projeto de ciência cidadã
está na definição de um problema, de um desafio que requeira a coleta de dados e/ou a participação
tanto dos estudantes como de cidadãos e que venha a gerar dados, informações ou conhecimento
de interesse coletivo. Há uma gama de desafios que se enquadram nesse requisito, incluindo o
levantamento de dados socioculturais de comunidades (hábitos e costumes locais, preferências
culturais, percepções sobre problemas locais), dados ambientais de comunidades (ex. qualidade
do ar, nível de poluição sonora, qualidade da água) ou opiniões e/ou ideias sobre problemas
complexos (que é o caso sugerido, no tema das cidades humanas, inteligentes e sustentáveis).
2. Definir equipe: no passo seguinte formam-se os grupos de alunos, com a definição dos respectivos
papéis na equipe. As responsabilidades podem variar de projeto para projeto, mas é importante
que sejam definidos papéis e responsabilidades, bem como o plano de projeto e de entregas.
3. Pesquisa de domínio: na terceira etapa, a equipe inicia seu preparo para as atividades de
campo por meio de consulta a material que lhe permita compreender os conceitos que tratará
no experimento. No caso proposto, sugere-se a consulta a textos e vídeos sobre o conceito
de cidades humanas, inteligentes e sustentáveis. Em nosso projeto são exemplos o Programa
Cidades Sustentáveis2 ou o Laboratório VIA da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC)3. Assistindo a esses e a outros vídeos, bem como consultando documentos, os alunos
devem explicitar o conceito de CHIS, suas características e a natureza dos projetos urbanos
que fazem uma cidade se tornar uma das CHIS.
4. Instrumentalização: ainda na etapa de preparação, a equipe deve selecionar os instrumentos
que utilizará em sua pesquisa de campo. No caso de haver entrevistas, deve-se escrever um

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documento para ser apresentado aos futuros entrevistados, com a descrição desses conceitos
e com a relação de perguntas que vão trazer o levantamento de percepção que farão sobre
CHIS. Entre as perguntas, sugere-se incluir: Quais os principais problemas que temos em
nossa cidade/bairro? Como você acha que eles poderiam ser resolvidos? O que você faria se
fosse o prefeito para ajudar a resolver esses problemas? O que você faria se fosse um empresário
para criar soluções para esses problemas? As escolas poderiam ajudar na resolução desses
problemas? Em caso afirmativo, de que forma?.
5. Coleta de dados: de posse dos conceitos e do roteiro de entrevistas, os estudantes podem ir a
campo e falar com pais, parentes e vizinhos. Antes, no entanto, devem fazer o levantamento
com os colegas para verificar como devem atuar nas entrevistas (ex. marcando horário, não
interferindo em respostas a não ser para compreender o que foi dito etc.).
6. Análise dos dados: após a coleta de dados, a equipe deve reunir o que coletou e realizar uma
atividade de análise e síntese. Sugere-se que o professor ajude indicando formas de sintetizar
ideias e entrevistas (ex. elaboração de mapas mentais) para que os estudantes não demorem
muito a descobrir o que coletaram e não percam seu interesse e entusiasmo com a tarefa.
7. Elaboração das conclusões: após analisar os dados, a equipe deve explicitar que ideias/respostas
considera mais adequadas para tratar da pergunta-problema da pesquisa. É importante elaborar
critérios antes dessa análise (ex. originalidade, relevância, viabilidade) para que a priorização
entre as possibilidades da pesquisa seja o mais objetiva possível. Aqui será importante o
exercício do consenso entre os integrantes da equipe, especialmente se a relação contar com
ideias propostas pelo próprio grupo.
8. Apresentação de resultados (comunicação): a etapa seguinte consiste em apresentação, em sala
de aula, dos resultados do trabalho. É importante que os alunos sejam tanto apoiados como
incentivados a buscarem formas próprias de levar sua mensagem aos colegas. A habilidade de
conhecer previamente sua audiência, preparar o conteúdo e respeitar o tempo de apresentação
é cada vez mais valiosa na vida profissional e esse momento da pesquisa ajuda os estudantes a
adquirirem essas experiências.
9. Tomar decisões e fazer inferências: finalmente, após obter feedback da audiência (outra
cognição cada vez mais importante), as equipes devem rever seus resultados (i.e., verificar
como as ideias foram recebidas, se a proposta de classificação inicial ainda é a mesma após as
discussões) e preparar uma nova apresentação. Os professores podem, nesse momento, optar
por uma continuidade na experiência, agora pedindo ao grupo que amplie o projeto de sua
ideia, entreviste mais pessoas, procure especialistas ou outras pessoas que possam verificar a
viabilidade e valor de sua ideia.

Os procedimentos descritos formam uma proposta-exemplo que procura seguir parte dos
aprendizados da literatura em ciência cidadã, tem como problema-sugestão um tema de interesse

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crescente para a sociedade e com potencial de engajamento das comunidades, requerendo pouca
tecnologia para ser realizado.
Uma das características principais da ciência digital está na exigência de constante preparação
por parte de docentes e das instituições de ensino e pesquisa para acompanharem os aprendizados,
institucionalizarem os projetos e acompanharem seus progressos na formação e na produção de
conhecimento científico coletivo.

Aprendizados da ciência cidadã


Até aqui a literatura e os projetos têm registrado os seguintes aprendizados (HARLIN et al., 2018):
(i) é necessário equilibrar objetivos científicos e educacionais; (ii) os docentes necessitam de apoio
(treinamento específico para docentes); (iii) deve-se adotar um dos modelos existentes de inserção de
ciência cidadã (i.e., adaptação de programa existente, desenvolvimento local autônomo ou parceria
entre cientistas e professores); e (iv) ter um planejamento (roadmap) para o programa de ciência cidadã
na escola (que explicite a relação com o currículo, os recursos necessários, o apoio da administração, os
níveis de evolução entre projetos e dentro de cada projeto, treinamento docente, rede de docentes para
colaboração sobre a Web e relações com a comunidade, incluindo os pais).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Há na literatura e em programas educacionais vigentes uma gama de possibilidades para se
combinar as ferramentas contemporâneas em TIC, tais como redes sociais e comunidades de prática,
em sala de aula. A informática na educação é, em realidade, um campo multidisciplinar que já conta
com algumas décadas de pesquisa e produção de conhecimentos. Têm sido diversas as abordagens
bem-sucedidas de incorporar as novas TIC na educação, viabilizando educação a distância e inclusiva.
Contudo, quando a questão abrange, também, a democratização do acesso ao conhecimento e o
papel das novas tecnologias, verifica-se que há mais a ser compreendido e refletido em sala de aula do
que apenas sobre a criação e uso de novas tecnologias educacionais. A discussão sobre a democratização
do conhecimento e sua relação com a educação posicionam a reflexão para o papel que ciência e
educação têm na sociedade digital em que vivemos.
Neste capítulo, procuramos tratar dessa questão, primeiro, pela caracterização da sociedade
contemporânea. Posteriormente, tratamos de uma gama de fatores e elementos que caracterizam a
sociedade digital em que vivemos, evidenciando, assim, a ciência digital. Entre os conceitos abordados
na compreensão da ciência digital estão a ciência cidadã, a transdisciplinaridade, os dados abertos, os
colaboratórios e a coprodução, todos com diferentes impactos sobre a democratização do acesso à ciência.
No plano prático, sugerimos a aplicação de um experimento de ciência cidadã dedicado à melhoria
de nossas cidades, problema suficientemente desafiador para provocar engajamento estudantil, de

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pais e da comunidade e adequadamente delimitado (no conceito de cidades humanas inteligentes


e sustentáveis) para ser viabilizado em períodos de curto a médio prazo e em quase todos os níveis
educacionais.
A ciência digital veio para ficar. Seus impactos nos sistemas educacionais são plenamente duais:
essa modalidade de produção de conhecimento científico necessita de novas competências e espera
essa efetividade do sistema educacional e, por outro lado, oferece tanto a esse sistema como à própria
produção de conhecimento um arsenal de novas possibilidades, que exigem a capacitação de docentes,
diretores de escola e demais protagonistas do sistema educacional.
Evidentemente, nações com educação básica e fundamental sólidas terão menos dificuldade de
enfrentar esses desafios e podem liderar o processo global da ciência digital. A questão em aberto é:
Como o Brasil se posicionará em relação a mais esse desafio contemporâneo?. Esperamos ter contribuído
na direção de uma boa resposta para esta questão.

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1 CLARKE, Arthur. 3001: the final odyssey. Nova Iorque: Del Rey Books, 1998.
2 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5sTDik3rUug&index=62&list=LLsfBqTMvdXhxL
J4wBwQhYIA. Acesso em: 4 out. 2019.
3 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Bt106F6Hpvw. Acesso em: 4 out. 2019.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
105

EMPREENDEDORISMO COMO MÉTODO:


PREPARANDO PROFISSIONAIS PARA A QUARTA
REVOLUÇÃO INDUSTRIAL

Cândido Borges

INTRODUÇÃO
A incerteza que acompanhou a trajetória de empreendedores, gestores e demais profissionais no
século XX foi ampliada no século XXI. A velocidade do desenvolvimento tecnológico acentuou o
processo de destruição criativa; o avanço e a conversão das tecnologias digitais, físicas e biológicas
está resultando na expansão dos sistemas ciberfísicos e automatizados e, em consequência disso,
na reconfiguração dos arranjos produtivos e do mundo do trabalho. Na chamada quarta revolução
industrial, robôs e programas de computador realizam tarefas antes restritas aos seres humanos.
(SCHWAB, 2017).
Diferente da onda de automatização dos sistemas produtivos nas décadas de 80 e 90 do século
passado, quando robôs substituíram profissionais basicamente em trabalhos mecânicos e repetitivos,
na quarta revolução industrial trabalhadores qualificados estão sendo substituídos por sistemas que
utilizam, entre outras ferramentas, a inteligência artificial, a aprendizagem aprofunda (deep learning) e
a internet das coisas em atividades complexas, como a tradução de textos, a condução de automóveis
ou cirurgias.

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Isso é o que já se sabe. Existem ainda as incertezas do que não se sabe. O desenvolvimento
científico e a expansão da capacidade de armazenamento, processamento e comunicação de máquinas e
equipamentos em conjunto com a evolução dos sistemas sociais e políticos garantem um futuro incerto
e desafiador pela frente. Não sabemos exatamente qual será o sistema produtivo ou as configurações de
trabalho que uma pessoa, hoje no ensino fundamental, encontrará quando sair da universidade – qual
será o perfil do profissional requisitado pelas empresas em 2035? Provavelmente será bem diferente do
perfil de hoje e não podemos ter certeza de que a universidade necessariamente estará em sua trajetória
de aprendizagem.
O empreendedorismo se apresenta como uma alternativa a esse contexto. Ele é essencialmente agir
na incerteza; trata da criação e ação daquilo que ainda não conhecemos; da conversão do conhecimento
em empreendimentos; da criação e exploração de novos produtos e nichos de atividades – daí a
adequação ao ambiente da quarta revolução industrial. Entretanto, para ser adequado aos desafios
sociais do século XXI, o empreendedorismo precisa ser ensinado com outros desenhos, conteúdos e
metodologias, diferentes daqueles que predominaram até aqui.
Tradicionalmente, o empreendedorismo foi ensinado tendo como base conteúdos e metodologias
ancorados na perspectiva de que a ação empreendedora seria previsível. Pesquisas recentes mostraram
que essa perspectiva não é adequada. O processo empreendedor não é linear nem previsível – ele é
um fenômeno complexo que se dá em um contexto de incerteza. Frente a essa constatação, uma nova
perspectiva para a educação do empreendedorismo surgiu: o empreendedorismo como método. Não
se trata mais do ensino do empreendedorismo como disciplina científica, mas como um método que
resiste às constantes mudanças de contexto e conteúdo. (NECK; GREENE, 2011).
Nessa nova perspectiva, o ensino do empreendedorismo não tem como parâmetro principal
o compreender e o conhecer, mas o aplicar e, principalmente, o agir. O foco é a prática do
empreendedorismo e o uso de metodologias ativas de ensino que possibilitem a experimentação
do empreendedorismo. A ênfase na redação de um plano de negócio que outrora predominou foi
substituída pela criação efetiva, pelos estudantes, de um novo empreendimento, com ou sem fins
lucrativos. Jogos e simulações, abordagens derivadas do design thinking e da prática reflexiva também
compõem o portfólio de técnicas utilizadas.
Este capítulo apresenta como a compreensão e o ensino do empreendedorismo se desenvolveram
mutuamente até chegar nessa nova perspectiva – a do empreendedorismo como método. Ao auxiliar
os estudantes na aprendizagem dos mecanismos de reconhecimento e exploração de oportunidades
em um contexto de incerteza, espera-se não apenas capacitá-los para um mundo mais automatizado,
mas também para identificar nichos de atuação e para a criação de sentido na realização das atividades
profissionais. Ao tratar o empreendedorismo como método, sua utilização como eixo transversal em
outras disciplinas curriculares (não necessariamente as da área de negócios), fica mais coerente e mais
bem adequada a outros conteúdos e objetivos curriculares.

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A INADEQUAÇÃO DAS METODOLOGIAS


PREDOMINANTES DE ENSINO DE
EMPREENDEDORISMO
Neck e Greene (2011) indicam que as três abordagens mais utilizadas para o ensino do
empreendedorismo até a primeira década do século XXI foram: (i) com foco no perfil do empreendedor;
(ii) enquanto processo; e (iii) com foco no processo cognitivo do empreendedor. Em contraponto a
essas três abordagens, Neck e Greene (2011) propõem o ensino do empreendedorismo como método.
Como será mostrado a seguir, cada abordagem foi influenciada pelo nível de conhecimento que existia
sobre empreendedorismo na época em que foi predominante, pelos questionamentos sobre sua eficácia na
formação de empreendedores e pelas reflexões correntes sobre educação e as metodologias de ensino.

Ensino do empreendedorismo com foco nas características


do empreendedor
Nas décadas de 60 e 70 do século XX as pesquisas sobre empreendedorismo eram focadas
majoritariamente em tentar responder quem era o empreendedor. (GARTNER, 1988). Após
Schumpeter e outros economistas que o seguiram mostrarem a importância do empreendedorismo
para o desenvolvimento de empresas e regiões, acreditou-se que o caminho para difundir o
empreendedorismo passava por ter mais empreendedores. Para tanto era necessário primeiro conhecê-
-los e, em seguida, formar novos empreendedores. Partindo desse pressuposto, as pesquisas realizadas
no período buscaram essencialmente descobrir o perfil e as características dos empreendedores, com
ênfase nos traços psicológicos predominantes.
Um dos expoentes dessa fase é o psicólogo David McClelland (1917-1998). Em suas pesquisas,
McClelland constatou que os empreendedores são pessoas que têm uma necessidade de realização maior
do que as outras. Pessoas, enfim, motivadas pela tarefa, pelo desafio e pela oportunidade de realizar
algo. (McCLELLAND, 1965). A isso sucedeu a descoberta de outras características, tais como lócus
de controle interno, tolerância à ambiguidade, capacidade de correr riscos calculados e perseverança.
Na sala de aula, apresentava-se o perfil do empreendedor com ênfase nos empreendedores de
sucesso. No centro, estava o mito do empreendedor herói, que enfrentava sozinho os obstáculos do
percurso para realizar seu sonho e enriquecer. Em termos de metodologia de ensino, o predomínio era
da transmissão de conteúdo, pelas aulas expositivas ou por meio de exemplos, utilizando-se do relato
de histórias ou da exposição oral de empreendedores.
Ao menos três limites podem ser apresentados na abordagem do empreendedorismo com foco
no perfil do empreendedor. O primeiro é que os conteúdos disseminados foram construídos com base

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em pesquisas realizadas com amostra composta basicamente por empreendedores brancos e homens
selecionados utilizando critérios de sucesso que privilegiaram o componente econômico, como o
crescimento da empresa e da renda do empreendedor. (NECK; GREENE, 2011). Dessa forma, a
diversidade de tipos de empreendedorismo e de empreendedores foi negligenciada.
O segundo limite dessa abordagem é o fato de as pesquisas sobre o perfil do empreendedor
chegarem a uma grande quantidade de características pessoais que seriam importantes para o sucesso
de um empreendedor; tantas que tornavam o perfil almejado inacessível para a maior parte das pessoas.
Em consequência, muitos estudantes, no lugar de se identificarem com empreendedores e quererem
agir como eles, frustravam-se por não enxergarem em si próprios as características do propagado
empreendedor herói nem os meios de desenvolvê-las.
O terceiro limite da abordagem foi sua ênfase na transmissão de conhecimentos, utilizando
como técnicas de ensino principais aulas expositivas e relatos de casos de empreendedores. Ou
seja, além da inadequação dos conteúdos transmitidos, utilizavam-se metodologias de ensino que se
mostraram ineficazes.

Ensino do empreendedorismo com foco no processo


empreendedor
Em 1988, William Gartner publicou um artigo que se tornou seminal na área de empreendedorismo.
Com o título Whos is an entrepreneur? Is the wrong question1, o texto se tornou o maior representante
de uma literatura que, de forma crescente, questionava o fato de as pesquisas se preocuparem
majoritariamente em investigar quais eram os traços psicológicos e as características dos empreendedores.
Gartner (1988) defendia que as pesquisas deveriam olhar menos para o empreendedor e mais para o
que ele fazia. O comportamento empreendedor e, principalmente, o processo empreendedor passou
então a dominar as pesquisas sobre empreendedorismo na década seguinte. O nível de análise mudou
do empreendedor para o empreendimento. (NECK; GREENE, 2011).
O ensino do empreendedorismo também acompanhou essa mudança de ênfase. Os novos
conhecimentos sobre o que era o empreendedorismo foram levados para as salas de aula. A apresentação
de quem era o empreendedor e a exposição de alguns exemplos de empreendedores continuavam lá,
mas as disciplinas de empreendedorismo passaram a dedicar tempo para o ensino do processo de
criação de empresas, de conteúdos de gestão – como finanças e marketing – e, principalmente, do
plano de negócios – este último se tornou o fio condutor de muitos cursos de empreendedorismo.
(BORGES; HASHIMOTO; LIMONGI, 2013).
O processo empreendedor descreve as atividades que um empreendedor realiza para criar uma
empresa, como a identificação de oportunidades, o planejamento, a mobilização de recursos e o
desenvolvimento de novos produtos. O Quadro 1 lista as principais atividades desse processo, divididos
em quatro etapas. Na primeira, o foco é a decisão de criar a empresa; na segunda, é a preparação para

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o início das atividades; na terceira, o lançamento da empresa no mercado e na quarta o foco é a


consolidação e o crescimento da empresa.

Quadro 1 – Etapas e atividades do processo de criação de empresas.


Etapas

Consolidação e
Decisão Preparação Lançamento
crescimento

1. Identificação da oportu- 1. Redação do plano de negó- 1. Organização das instalações 1. Gestão da nova em-
nidade de negócio. cios. e equipamentos. presa.
2. Reflexão e desenvolvi- 2. Mobilização de recursos fi- 2. Contratação de funcioná- 2. Mobilização de mais
Atividades

mento da ideia de negó- nanceiros. rios. recursos financeiros.


cio. 3 Escolha de um local para 3. Desenvolvimento de pro- 3. Identificação de novas
3. Constituição da equipe instalar a empresa. dutos. oportunidades.
empreendedora. 4. Constituição legal da empre- 4. Comercialização de produ- 4. Desenvolvimento de
4. Decisão de criar a empre- sa. tos. novos produtos.
sa.
Fonte – Adaptado de Borges, Filion e Simard, 2008.

Apesar de o quadro anterior apresentar o processo empreendedor como algo linear, ele na verdade
é caótico. (LEVIE; LICHTENSTEIN, 2010). As atividades que aparecem listadas em determinada
ordem e separadas por etapas não necessariamente são realizadas e, quando o são, não necessariamente
acontecem na ordem mostrada. Outras configurações do processo são possíveis e prováveis – ordens
diferentes na realização de atividades, ausência de algumas atividades e presença de outras.
Reside nesse ponto a primeira crítica à abordagem do ensino do empreendedorismo com ênfase no
processo: a tentativa de transmitir o empreendedorismo como se ele fosse um processo linear, enquanto
as pesquisas já demonstraram o contrário. (NECK; GREENE, 2011). Além disso, não se pode garantir
que a realização das atividades tais como descritas nos modelos de processo empreendedor resultará em
novo empreendimento. A previsibilidade não combina com o empreendedorismo; pelo contrário, o
contexto do empreendedorismo é de incerteza – não se pode prever o que vai acontecer.
Dentre as atividades do processo empreendedor, aquela que ganhou maior espaço no ensino
do empreendedorismo foi o planejamento traduzido pelo plano de negócio. A redação de tal plano
foi não apenas o conteúdo, mas uma das estratégias de ensino de maior presença nos cursos de
empreendedorismo no final do século XX e início do século XXI. Aulas expositivas, casos de ensino,
exposição de empreendedores e redação do plano de negócios eram as técnicas de ensino predominantes
nesse período. (BORGES; HASHIMOTO; LIMONGI, 2013). Em geral, os alunos desenvolviam um
plano de negócio ao longo do curso que era o elemento principal de avaliação da aprendizagem.
Nos últimos anos, a redação do plano de negócios passou a ser questionada severamente, seja
como instrumento de planejamento para empreendedores, seja como estratégia de ensino, e aos
poucos deixou de constar nos cursos introdutórios de empreendedorismo. No primeiro ponto, como
conteúdo a ser ensinado, as pesquisas encontraram resultados inconsistentes na relação entre a redação
de um plano de negócio e o sucesso de um empreendimento. Isso porque os empreendedores gastavam

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mais recursos e tempo tentando prever algo que não é preditivo do que experimentando o mercado
e validando com possíveis clientes sua ideia de negócio. Por que então ensinar para os alunos um
instrumento de gestão que é ineficaz para o sucesso de um empreendimento nascente?
No segundo ponto, o plano de negócio também não mostrou resultados satisfatórios como
instrumento de ensino. Não resultou em mais engajamento nas aulas nem há evidências de que
resultou em mais alunos empreendedores. Utilizando o plano de negócios como estratégia de ensino,
os estudantes planejavam a criação de uma empresa fictícia. Ou seja, colocavam seus esforços em
um plano e eram avaliados por um plano. Nada mais distante do empreendedorismo que ficar no
planejamento, reduzi-lo a um plano. Afinal, empreendedorismo é criação e ação.
Em conclusão, a abordagem por processo deixou sua contribuição para o ensino do
empreendedorismo ao incluir uma visão geral do que os empreendedores fazem e de como fazem, mas
apresentou limites ao tratar o empreendedorismo como um fenômeno linear e preditivo, quando na
verdade ele é caótico e complexo.

Ensino do empreendedorismo com foco no processo cognitivo


A abordagem cognitiva recolocou o empreendedor no foco das atenções. Mas, diferentemente da
primeira abordagem, que tinha ênfase nas características do empreendedor e o tratava como um ser atomizado,
que agia sozinho e desconectado de aspectos sociais, aqui já se considera o fato de os empreendedores
agirem em equipes e imersos socialmente, com ênfase no modelo mental dos empreendedores: Como
eles pensam?; Como decidem se engajar em uma atividade empreendedora?. Procura-se assim entender e
difundir o pensar de forma empreendedora. (MITCHELL et al., 2002). No campo do empreendedorismo,
as pesquisas sobre o processo cognitivo dos empreendedores ganharam força no fim dos anos 1990 e
chegaram às salas de aula no início do século XXI. (NECK; GREENE, 2011).
Paralelamente ao crescimento da ênfase no processo cognitivo dos empreendedores, também
ganhou espaço a visão de que um elemento importante do processo empreendedor era a oportunidade
de negócios – ou de ação, quando o empreendedorismo é tratado de forma mais ampla e não restrita
ao mundo dos negócios. Tal crescimento se deu especialmente após a publicação do artigo seminal
de Shane e Ventkataram (2000), que colocou a identificação e a exploração de oportunidades
como elementos centrais e distintivos do empreendedorismo, quando comparado a outras áreas de
conhecimento. Assim, passaram a ser objeto de investigação e ensino as seguintes questões: Como
os empreendedores identificam e avaliam as oportunidades?; Como eles decidem pela exploração de
algumas oportunidades e não de outras?; Como as oportunidades são criadas pelos empreendedores?.
Em termos de técnicas de ensino, a abordagem com foco no processo cognitivo reforçou a
utilização de casos de ensino e passou a valorizar a simulação – algo até então pouco utilizado na área.
Timidamente, também se iniciou nesse período a inclusão de práticas reflexivas.
O uso da abordagem pelo processo cognitivo é relativamente recente no ensino do
empreendedorismo e as avaliações sobre os resultados alcançados pela abordagem ainda são incipientes.
(NECK; GREENE, 2011).

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Nesse período foram incorporados elementos fundamentais de compreensão e ensino do


empreendedorismo. Como compreensão do fenômeno, a contribuição é pelo reconhecimento da
complexidade do empreendedorismo e de este ser uma ação coletiva, que se dá em equipe e em relação
com outras pessoas em dado contexto social e setorial. Em termos de técnicas de ensino, a contribuição
da abordagem reside no uso de simulações e da prática reflexiva – técnicas que também serão adotas
pelo empreendedorismo como método.

EMPREENDEDORISMO COMO MÉTODO


A abordagem de empreendedorismo como método coloca a ênfase na prática do empreendedorismo
e tem como pressuposto que a ação é um componente essencial para a aprendizagem. O racional
pedagógico dessa perspectiva é construído tendo como base principal o agir-aprender. O nível de análise
não é mais apenas o empreendedor e sua equipe ou empresa, separadamente, como nas perspectivas
anteriores, mas a interação entre esses elementos em um contexto dado, considerando as contingências
de cada situação. (NECK; GREENE, 2011; NECK; GREENE; BRUSH, 2014).
O surgimento da perspectiva do empreendedorismo como método no campo do empreendedorismo
foi influenciado por alguns desenvolvimentos teóricos que ocorreram em paralelo e com influências
mútuas, notadamente no início do século XXI. Primeiro, com a utilização das teorias sobre a efetuação
(effectution) e a bricolagem nas pesquisas sobre empreendedorismo, depois com a abordagem do
empreendedorismo como prática e, por fim, como uma ciência do artificial.
A lógica da efetuação surgiu como um contraponto da lógica causal. Tradicionalmente, o ensino
do empreendedorismo era fundamentado na crença de que os empreendedores seguiam a lógica de
um processo causal: primeiro os objetivos, depois os meios para alcançá-lo. Em consequência, era
transmitido para os alunos que, para empreender, o primeiro passo seria realizar um planejamento onde
constasse de forma clara quais seriam os objetivos do negócio, os recursos e as estratégias necessárias
para criá-lo e um plano de ação detalhado – daí a ênfase no plano de negócios. Entretanto, Sarasvathy
(2001, 2009) mostrou que a maior parte dos empreendedores não segue a lógica causal, mas sim a
efetual. Nesta, os empreendedores pensam primeiro nos meios de que dispõem e somente depois
definem os objetivos que podem alcançar com esses meios. Não arriscam muito. Utilizam poucos e
próprios recursos e iniciam o processo empreendedor tateando o mercado e desenvolvem o negócio de
forma incremental. O empreendimento nascente é, dessa forma, compatível com os recursos que os
empreendedores possuem ou podem conseguir com sua rede de relacionamento e apoio. Nesse sentido,
para Sarasvathy (2009), ao pensar em criar um empreendimento, uma pessoa deve tentar responder às
seguintes perguntas: Quem sou eu?; O que eu conheço?; Quem eu conheço?. Assim, poderá conhecer
melhor seus meios (competência, recursos e contatos) e definir objetivos realizáveis.
Próximo do conceito de efetuação é o de bricolagem, que se trata de fazer algo com os meios
(recursos e ferramentas) disponíveis. Muitos empreendedores constroem seus negócios via improvisação

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e bricolagem. (BAKER; MINER; EESLEY, 2003; BAKER; NELSON, 2005). A improvisação nesse
caso não tem um sentido negativo, de algo temporário e precário, mas sim um sentido positivo, no
qual o empreendedor consegue criar, com os recursos disponíveis, soluções para os problemas e desafios
que surgem ao longo do desenvolvimento do negócio.
O segundo polo teórico que deu base para o uso da perspectiva do empreendedorismo como
método no ensino foi a emergência da visão do empreendedorismo como prática. Derivado das
pesquisas sobre estratégia como prática que ganharam força no fim dos 1990 e tinham como base o
construtivismo, uma linha de estudos surgiu e cresceu colocando a prática como elemento central
da construção e da aprendizagem do empreendedorismo. (DE CLERCQ; VORONOV, 2009;
JOHANNISSON, 2011, 2016).
Finalmente, o terceiro polo de influência para o surgimento do empreendedorismo como método
ganhou força na segunda década do século XXI e é inspirada na obra As ciências do artificial, de
Simon (1996). Tornou-se comum, entre os pesquisadores de empreendedorismo, a visão de que o
empreendedorismo lida não apenas com a solução de problemas conhecidos, mas com a criação do que
não existe, onde se sobressaem os processos de adaptação e design.
Os maiores expoentes da reflexão do empreendedorismo como ciência do artificial são Sankaran
Venkataraman e Saras Sarasvathy.
Considerando as reflexões da efetuação, do empreendedorismo como prática e como ciência do
artificial, emergiu o empreendedorismo como método. Segundo Neck e Greene (2011) e Neck, Greene
e Brush (2014), os pressupostos do empreendedorismo como método são quatro. O primeiro é que
o empreendedorismo é a criação de um novo empreendimento em um ambiente de incerteza e ainda
desconhecido, desenvolvendo oportunidades que ainda não foram descobertas ou criadas. O segundo
é que o foco é no fazer para aprender, no lugar do aprender para depois fazer – “o método força os
estudantes a irem além do compreender, saber e discutir. Ele requer utilizar, aplicar e agir. O método
requer prática”. (NECK; GREENE, 2011, p. 61). O terceiro pressuposto preconiza que o método é
dependente de pessoas – não de um tipo de pessoa específica, como a figura do empreendedor herói
do passado – e que não é dependente de um conteúdo em particular. Finalmente, o quarto pressuposto
considera que aprender um método é mais importante que aprender um conteúdo, pelo fato de o
método ser mais resistente às mudanças contextuais e da base de conhecimento.
O Quadro 2 compara a perspectiva do empreendedorismo como método com as outras perspectivas
apresentadas previamente.

Quadro 2 – Perspectivas do ensino do empreendedorismo.

Perspectiva Características do Processo empreendedor Cognitiva Empreendedorismo


empreendedor como método

Visão Heróis, mitos e perfil do


Planejamento e predição Pensar Ação
dominante empreendedor

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Perspectiva Características do Processo empreendedor Cognitiva Empreendedorismo


empreendedor como método

Foco Traços da personalidade Criação de novos negócios Tomada de decisão Portfólio de técnicas
para engajamento para a prática do
em uma atividade empreendedorismo
empreendedora

Nível de análise Empreendedor Empresa Empreendedor e Empreendedor, equipe


equipe e empresa

Pedagogia Introdução à adminis- Estudos de caso, plano de Estudos de caso, si- Jogos, observação, prá-
privilegiada tração de empresas, au- negócios e modelagem de mulações e tica, reflexão, interdis-
las expositivas, provas e negócios roteirização ciplinaridade e design
avaliações

Linguagem Lócus de controle, pro- Projeções, mercado de capi- Roteirização por es- Prática, autoconhe-
pensão ao risco, tolerân- tais, crescimento, alocação pecialistas, tomadas cimento, adequação,
cia à ambiguidade e ne- de recursos e desempenho de decisão, modelos ação, agir-aprender,
cessidade de realização mentais e estruturas cocriação, criação de
(n-ach) de conhecimento oportunidades e aceite
do fracasso

Implicações Descrição Predição Decisão Ação


pedagógicas

Fonte – Adaptado de Neck e Greene, 2011.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: QUAIS METODOLOGIAS


DE ENSINO UTILIZAR?
Considerando essa nova abordagem, do empreendedorismo como método, o objetivo desta última
seção do capítulo é discutir metodologias de ensino que seriam mais adequadas a ela. No Quadro 2, na
página anterior, é possível identificar que a pedagogia privilegiada pela perspectiva do empreendedorismo
como método preconiza a utilização de metodologias ativas no ensino. Tendo como base que a prática é
um componente essencial para a aprendizagem, é natural que as metodologias escolhidas proporcionem
aos alunos a experimentação do empreendedorismo – empreender algo concreto não apenas para
aprender novas técnicas, como também para ganhar confiança na própria capacidade de realizar.

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Neck e Greene (2011) sugerem quatro metodologias principais de ensino: 1) Criação de um novo
empreendimento, no qual os alunos criam um negócio real; 2) Jogos e simulações, que expõem os
alunos a desafios reais em um ambiente virtual; 3) Aprendizagem baseada no design (GARBUIO et al.,
2018), que capacita os alunos para a utilização de ferramentas do design na criação de oportunidades
e compreensão do contexto; e 4) Prática reflexiva, que promove a reflexão para gerar conhecimento e
aprofundar o que foi aprendido.
Algumas das metodologias propostas por Neck e Greene (2011) já são praticadas e ganham cada
vez mais espaço em escolas do Brasil e no mundo. Por exemplo, em termos de criação de um novo
empreendimento, a ONG Junior Achievement, que promove o empreendedorismo entre alunos do
Ensino Fundamental e Médio, utiliza o programa miniempresa como uma de suas estratégias. Esse
programa consiste na fabricação e venda de produtos pelos alunos, organizados em uma miniempresa
em que eles mesmos criam.
Importante dizer que proporcionar aos alunos a experiência de empreender de fato não se restringe
a empreendimentos comerciais que visam ao lucro. Qualquer tipo de experiência empreendedora
pode contribuir para o aprendizado do empreendedorismo. A Universidade Federal de Goiás
(UFG), por exemplo, realiza desde 2014 a Olimpíada de Empreendedorismo Universitário e tem
como uma das categorias o empreendedorismo social. Nela os alunos realizam o ciclo completo do
empreendedorismo – identificam um problema social, desenvolvem uma solução e empreendem uma
ação para implementá-la.
Outro exemplo da UFG que envolve metodologias ativas de ensino no empreendedorismo é
o Programa UFG Empreende e seu coirmão, o UFG Empreende Social. O primeiro é um curso
de extensão que inclui a modelagem de um novo empreendimento por meio da ferramenta Canvas
(OSTERWALDER; PIGNEUR, 2010), técnicas de design thinking e lean startup (RIES, 2011),
as quais permitem a validação do problema e o aprimoramento das ideias propostas. O curso
começou a ser ofertado em sua versão atual em 2016, e seus resultados iniciais são promissores,
demonstrando o potencial do empreendedorismo como método e das metodologias ativas de ensino
do empreendedorismo.

BIBLIOGRAFIA
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NOTAS EXPLICATIVAS
1 A tradução do título da obra é Quem é um empreendedor? É a pergunta errada.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
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REFLEXÕES SOBRE EDUCAÇÃO NO MUNDO


DAS TIC

Valdir Fernandes

INTRODUÇÃO
O mundo contemporâneo, como o descreve Raynaut (2011), tornou-se substancialmente
interdisciplinar em seus conteúdos e relações e cada vez mais composto de redes dispersas em termos
organizacionais, sociais e geográficos. A sociedade se tornou globalizada e, em certa medida, liberou-se
das relações sociais ancoradas apenas em contextos locais de interações. Para o bem ou para o mal, a
sociedade se reestruturou no espaço e no tempo.
Essa liberação se deu, sobretudo, após o alto desenvolvimento tecnológico que possibilitou novos
e ampliados espaços de interação. Graças às tecnologias digitais de informação e comunicação (TIC),
o tempo necessário para realizar as atividades foi reduzido gradativamente. Em função disso, além
dos contextos de proximidade social, psicológica e geográfica, a vida passou a se desenrolar também
em contextos que superam os antigos limites comunitários, locais e regionais de espaço. A vida da
sociedade já não se desenvolve mais apenas a partir da praça central e da igreja das cidades. Assistimos
e participamos, em tempo real, dos fatos em todas as partes do mundo, materializando aquilo que
Morin e Kern definiram como “terra vista da terra” (1995, p. 42), numa alusão à visão da Terra a
partir da Lua. Por outro lado, como afirma Boisier (2005), a esmagadora maioria das pessoas ainda
faz uso da maior parte de seu tempo em determinados espaços geográficos, nos quais constrói seu
quotidiano, no qual vive, trabalha, obtém educação, saúde, lazer. Ali se nasce, vive e morre. Embora o

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pão consumido cotidianamente possa ter a mesma receita do pão feito em outro continente, ainda tem
de ser comprado na padaria da ‘esquina’.
Neste contexto, compreender o lugar da tecnologia e suas implicações na sociedade contemporânea
significa compreender parte importante da condição humana e do estágio de desenvolvimento das
sociedades atuais, na medida em que estas são alteradas pelo desenvolvimento científico e tecnológico,
ao mesmo tempo em que o influenciam profundamente. Devido à aceleração da produção científica
e tecnológica nas últimas décadas, a tecnologia penetrou, por meio de inúmeros artefatos, em todos
os níveis e espaços da sociedade, alterando hábitos, valores e costumes, espaços e tempos. Tornou-se,
mais do que em qualquer época, elemento fundante dos modos de vida cotidianos e parte importante
das relações sociais e dos próprios espaços de interação, redefinindo territorialidades, compreensões de
mundo e até mesmo processos cognitivos1. Na atualidade, o próprio conceito de sociedade só pode
ser adequadamente definido quando contextualizado na reconfiguração proporcionada pelas novas
tecnologias. (DAGNINO, 2008; PHILIPPI JR; FERNANDES; PACHECO, 2017).
Como parte importante desse processo de reconfiguração das sociedades em função das novas
tecnologias, Daniels (2002) já ressaltava que as tecnologias digitais de informação e comunicação
(TIC) tornaram-se, em curto espaço de tempo, uma das dimensões básicas de construção da sociedade
moderna, e em razão disso se tornaram elemento fundante dos processos sociais e consequentemente
educativos, junto à leitura, escrita e aritmética. (NOOR-UL-AMIN, 2013).
As TIC transformaram muitos aspectos de nossas vidas e ofereceram oportunidades e desafios
sem precedentes para a educação e atuação profissional. O surgimento de um novo tipo de aluno,
nativo digital, e da necessidade de profissionais adaptados a este novo mundo, tem induzido alterações
nas escolas e nos professores. De acordo com Cantoni, Cellario e Porta (2004), o contexto dos alunos
atualmente é muito mais amplo e com constante presença da tecnologia. A interação é uma experiência
plug-and-play em que com poucos cliques se acessa diversas bases de informação e conhecimento;
diversas bibliotecas; diversas universidades; diversas culturas. Este novo contexto, apresenta amplas
perspectivas e oportunidades, mas igualmente apresenta desafios e riscos.
As TIC emergem como instrumentos e ao mesmo tempo como contexto da educação, trazendo
a necessidade de remodelação dos processos de ensino e aprendizagem, considerando esse novo
contexto, de tempo e espaço, incluindo o mundo virtual e a grande quantidade de informação. O
ensino tradicional perde espaço, não só por gradativamente se mostrar descontextualizado em relação
ao mundo do educando, mergulhado no mundo virtual e nas TIC, mas também por cada vez menos
conseguir acessar e se comunicar com a nova cognição que está se desenvolvendo no novo contexto.
Para além da discussão clássica entre métodos de aprendizagem convencionais, baseados em conteúdos
e contraposições com ênfase em competências e desempenho, há necessidade premente de atualização
da pedagogia como uma necessidade básica da sociedade, tendo nas TIC uma estratégia para melhorar
o ensino e a aprendizagem, como bem demonstra a literatura. (NOOR-UL-AMIN, 2013).
Embora o uso das TIC seja mais comum em ambientes virtuais de educação a distância (EAD),
a educação presencial também é afetada por seu uso, bem como pelas mudanças culturais e cognitivas

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que ela traz. Compreender as implicações dessas mudanças e ressignificar a educação enquanto função
e processo talvez seja o grande desafio da educação contemporânea.
Posto esse desafio, o objetivo deste capítulo é trazer uma reflexão acerca dessa necessidade. Com
base em revisão de literatura internacional, são apresentados alguns dos aspectos considerados mais
importantes para a necessária mudança pedagógica, ponderando o impacto das TIC, dentre os quais
se destacam: possíveis mudanças cognitivas dos educandos no contexto dos processos de virtualização
e desmaterialização de materiais e espaços; novas formas, tempos e espaços de comunicação entre
educadores e educandos; o papel do professor frente às novas configurações de ensino e aprendizagem
com o uso de tecnologias digitais de informação e comunicação.

TRANSIÇÃO COGNITIVA
Silva e Silva, baseando-se em dados do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.Br), relatam que

o nível de frequência de uso da internet por adolescentes para determinadas atividades, como a troca
de mensagens instantâneas, por exemplo, é bem superior ao uso para pesquisas escolares e que o
uso diário da tecnologia, sobretudo da internet, é muito mais frequente para a troca de mensagens
instantâneas (75%) e a interação em redes sociais (56%), via aplicativos de celulares e computadores,
e o uso para pesquisas escolares fica na quinta posição (21%). (2017, p. 92-93).

Os autores avaliam esse dado como preocupante, por considerarem que há excessivo uso para
comunicação social em detrimento de pesquisas escolares. Prospectam também consequências sociais
e a influência negativa no desenvolvimento educacional, bem como alterações cognitivas. De fato, há
farta literatura sobre a influência negativa da internet e das redes sociais na atenção e aprendizagem dos
educandos. Contudo, igualmente há grande número de estudos que defendem não haver volta para
essa realidade e que os processos de ensino e aprendizagem devem ser repensados, potencializando as
TIC e a nova cognição moldada por estas. Segundo Junco e Cotten (2012), o fato é que a proliferação
e a facilidade de acesso às TIC, como as mídias sociais e ferramentas de comunicações instantâneas,
resultaram em usuários conectados em tempo real à informação e à comunicação, cada vez mais
multitarefas.
De acordo com Nanayakkara (2007), as tecnologias digitais podem revolucionar as práticas de
ensino e aprendizagem em todo o mundo. Mas, em que pese o grande potencial de uso das tecnologias
nesse processo, com investimentos significativos em infraestrutura por parte de instituições de ensino
outro aspecto é fundamental. Trata-se do desafio de compreender que as TIC não são apenas ferramentas
ou instrumentos de mediação da aprendizagem. Elas são um fator fundamental para o surgimento de
um novo contexto, de espaços globais e tempos reais e instantâneos.
De acordo com Cubeles e Riu (2018), o simples uso das TIC não garante sua efetiva incorporação
nos processos de ensino e aprendizagem. Isso devido ao fato de que muitas vezes as TIC são usadas

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apenas como acessórios pedagógicos descontextualizados e por isso não ‘acessam’ os esquemas mentais e
cognitivos dos alunos. Constituem, nesses casos, meros facilitadores de comunicação, não significando
novo método e nova abordagem pedagógica. Apenas substituem os antigos instrumentos por novos,
sem considerar a mudança que essas ferramentas trouxeram aos educandos e ao seu contexto.
Para melhor aproveitar as novas oportunidades de aprendizado oferecidas pela tecnologia, é
necessário primeiro aprofundar a reflexão teórica acerca do contexto no qual se situam atualmente
os educandos. Tal contexto remete para um fato fundamental: as tecnologias do mundo atual não
constituem apenas ferramentas ou instrumentos, estas são o próprio contexto do estudante e parte
importante de seu mundo, de suas percepções e representações sociais e, consequentemente, de seus
processos cognitivos e de sua aprendizagem.
Tal desafio nos devolve para o papel do contexto na aprendizagem, tão debatido, mas por vezes
pouco considerado e praticado no exercício pedagógico e didático. Impele-nos também a recuperar a
importante e axiomática conclusão de Merleau-Ponty (1962) sobre o conhecimento que adquirimos,
quando afirmou que ele é dependente do mundo em que vivemos, que não pode ser separado do
nosso corpo, da nossa língua, das nossas percepções e representações sociais historicamente construídas
acerca das dimensões material e imaterial do mundo.
No contexto atual, as tecnologias não constituem apenas ferramentas ou instrumentos, são, com
efeito, parte fundamental do mundo contemporâneo e da reconfiguração da cognição dos indivíduos
e das percepções e representações sociais. Incorporar essa parte fundamental nos processos pedagógicos
e de aprendizagem é a condição para oferecer uma pedagogia com processos de ensino e aprendizagem
compatíveis com o estudante atual, ‘nativo digital’ que conjuga com tamanha facilidade o mundo
presencial com o mundo virtual, o off-line com o on-line.
Segundo Giboons et al. (2000), devido às TIC há uma mudança cognitiva em curso. Ela é mais
intensa nos mais jovens e consequentemente nos alunos, produzindo uma distância cognitiva ainda
maior entre alunos e professores. Por isso a nova cognição gerada pelas TIC deve ser captada, apreendida
e considerada pelos mestres na definição de suas pedagogias. Esse é o caminho para aprendizados mais
efetivos, levando em conta o novo mundo e as representações advindas das interações proporcionadas
pelas TIC.
O uso das TIC é fato inexorável, mas as mudanças cognitivas, trazidas em seu bojo, necessitam ser
apropriadas e trabalhadas pela educação, por suas concepções, métodos e instrumentos como um todo,
compreendendo o novo estudante, seu novo mundo, suas novas capacidades e limitações.

NOVOS TEMPOS E ESPAÇOS DE COMUNICAÇÃO


ENTRE EDUCADORES E EDUCANDOS
Há no mundo contemporâneo novas formas de conhecimento e novas formas de estruturação
deste. Em pouco cliques é possível acessar bases de dados e de conhecimento e informação. Bases

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como as do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Organização das Nações Unidas
(ONU), por exemplo, que disponibilizam uma constelação de informações sobre o Brasil e sobre o
mundo, bem como dados e séries históricas sobre população, economia, renda, geografia e recursos
naturais, entre outros. Além dessas, são abundantes as bases de dados estatísticos e científicos sobre
quase todas as disciplinas em nível internacional. Assim, uma descoberta científica pode ser acessada
imediatamente à sua publicação. Vivemos mais do que em qualquer época em uma sociedade em rede,
na qual as estruturas de organização do conhecimento e os sistemas educacionais também adquirem
perfil de rede. Essa estrutura é uma característica-chave da complexidade da sociedade contemporânea.
Com o advento da tecnologia, o mundo do educando mudou drasticamente. Da mesma
forma, as abordagens para o ensino e aprendizagem devem mudar. As salas de aula já não são o que
costumavam ser. Ainda que muitas permaneçam com aspectos tradicionais, equipadas com quadros-
-negros e controladas por professores autoritários e rigorosos, a geração atual de estudantes,
altamente exposta a gadgets como os smartphones e tablets tem a informação e o questionamento a
um clique de distância. Acompanha essa facilidade e rapidez de informação e aferição dos conteúdos
trazidos pelo professor o desejo por liberdade em decidir o que e como se quer aprender. (YADAV;
GUPTA; KHETRAPAL, 2018). Emerge assim a necessidade de abordagens com participação do
próprio aluno em seu aprendizado, de forma colaborativa e contextual, utilizando-se dos novos
espaços e tempos proporcionados pelas TIC, que torna os alunos cidadãos globais inseridos em
múltiplas redes.
O mundo virtual e on-line proporciona novos ambientes de aprendizado, provocando mudanças
não apenas no papel do professor, como também na função dos ambientes físicos das escolas. As
salas de aula, por exemplo, não devem ser mais ambientes de aprendizagem restritos off-line, mas
ambientes físicos de encontro e compartilhamento, com interferência direta dos ambientes virtuais
on-line. Portanto, o mundo virtual proporcionado pelas TIC rompe com a restrição física off-line
e proporciona amplo e irrestrito acesso à informação. Transcende, também, os limites de contato,
transformando a comunicação entre educador e educando em ato on-line, plug and play, instantâneo
e independente de hora marcada, produzindo alto grau de compartilhamento mútuo, propício à
colaboração constante. Contudo, segundo Scott (2015), a abundância de informação e comunicação
não é suficiente para uma educação de qualidade sem que haja orientação pedagógica adequada.
Segundo a autora, é necessário pensar em pedagogias adequadas às TIC, de forma a proporcionar
processos de aprendizagem personalizados e a facilitar a inclusão e equidade (SCOTT, 2015) e uma
democratização do conhecimento e do aprendizado, que transcende os limites territoriais dos países.
As TIC podem contribuir para ampliar e melhor expor conteúdos durante as aulas, como uso
das diversas mídias, sites e bibliotecas virtuais, passando pela análise de conteúdos (como por meio
da comparação entre dados econômicos, sociais, políticos e culturas, disponível nas redes), até criar
espaços coletivos de aprendizagem (como drives, blogs, espaços de grupos de discussão entre outros),
que transcendem o espaço físico da sala de aula e aproximam o espaço de aprendizagem do mundo dos
alunos nativos digitais.

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De acordo com Skutil, Maněnová e Čermáková (2013), são inúmeras as possibilidades devido à
abundância de fontes de informação, interpretação e visualização, inclusive por imagens ou satélites em
tempo real. Tais condições e ambientes ampliam as perspectivas de desenvolver habilidades nos alunos,
tais como de análise, comparação, trabalho coletivo ou individual de empatia e de alteridade.
A tecnologia pode oferecer também ambientes de aprendizado personalizados, adaptados às
diferenças individuais dos alunos, como nível de progressão, ritmo, interesses, estilo de aprendizado
e profundidade. Nesse mesmo sentido, de acordo com Beacham e Mcintosh (2014), as TIC podem
facilitar também o aprendizado de alunos com necessidades especiais, que também têm seu mundo e
cognição afetados pelas interações virtuais. Para que isso aconteça, segundo os autores, é fundamental
a atitude dos professores, que devem estar preparados para lidar com os diferentes níveis de interação
com as TIC por parte dos alunos. Da mesma forma, é necessária a adaptação da escola e de seus
ambientes, de forma a proporcionar acesso e ferramentas tecnológicas adequadas a todos, de acordo
com suas necessidades. Para tanto, deve haver nas escolas condições mínimas para o exercício dessas
competências, com qualidade de interações educacionais, principalmente infraestrutura de software
e de hardware.
De acordo com Noskova et al. (2014), um ambiente inovador deve sempre combinar on-line e
off-line. Essa combinação é o que precisamente estimula o aprendizado, melhorando a qualidade da
formação, considerando o perfil do aluno nativo digital e a amplitude de informações disponíveis. Essa
associação virtual e presencial constitui ambiente de aprendizado que contrasta com o processo de
aprendizagem tradicional e, portanto, requer adaptação significativa por parte do professor.

O PAPEL DO PROFESSOR NO USO DE


TECNOLOGIAS DIGITAIS DE INFORMAÇÃO E
COMUNICAÇÃO
A mudança cognitiva anteriormente discutida vem acompanhada de outras constatações. Ertmer
e Ottenbreit-Leftwich (2010) chamam a atenção para o fato de que as pessoas, e consequentemente
os profissionais do século XXI, pensam e atuam diferentemente daqueles dos séculos precedentes, e
um dos fatores fundamentais dessa diferença é sem dúvida a influência das TIC na reconfiguração
dos processos de comunicação e interação, bem como na redefinição na dimensão do mundo no qual
vivemos, anexando à convivência local os acontecimentos e interações globais. Os autores exemplificam
que a medicina, a segurança e o transporte foram radicalmente transformados pelas TIC nos últimos
anos. Mas também questionam: e a educação? Os métodos educacionais, a didática, os conceitos
pedagógicos também sofreram esse impacto? Quais são as características ou qualidades necessárias
aos professores para que as TIC realmente sejam instrumentos pedagógicos significativos? Ao mesmo
tempo, quais mudanças são necessárias na infraestrutura e na gestão nas escolas?

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As novas tecnologias de informação e de comunicação, certamente estão trazendo mudanças nos


instrumentos e ferramentas de aprendizagem, mas por também constituírem um processo cultural e
contextual, que produz um novo tipo de aluno, significam grande desafio pedagógico, provocando a
reflexão sobre conceitos, teorias e sobre o papel do professor. A exemplo do ocorrido em outras áreas, as
TIC também proporcionam aos educadores e aos alunos a possibilidade de ambientes de aprendizagem
inovadores, que permitem estimular e melhorar o processo de ensino e aprendizagem, considerando
o novo contexto. Segundo Stockless (2018), muitos estudos e relatórios atestam a importância de
efetivamente usar as TIC em contextos educacionais para lidar com alunos naturalmente adaptados, os
‘nativos digitais’, e ao mesmo tempo prepará-los para o uso profissional dessa natividade, aperfeiçoando
habilidades. No entanto, o mesmo autor destaca que a literatura científica sobre as TIC na educação
demonstra que os professores enfrentam, frequentemente, obstáculos para a integração das TIC na sala
de aula. Isso ocorre devido a diversos fatores, como a insistência em se manterem presos a tradições
pedagógicas, que impedem de ver o valor pedagógico das TIC, e como consequência a ausência de
modelos pedagógicos considerando as variáveis contextuais (STOCKLESS, 2018), bem como as
próprias mudanças cognitivas já discutidas.
O ensino presencial, por exemplo, necessita considerar em seus métodos as tecnologias digitais
de informação e comunicação, levando em conta um processo de desmaterialização de diversos
elementos, como livros, veículos de comunicação e bibliotecas. Esse processo e as mudanças
cognitivas que o acompanha devem ser levadas em consideração na pedagogia adotada para o
ensino. Como já acentuado, atualmente qualquer informação ou material pode ser conferido ou
acessado instantaneamente. Da mesma forma, a comunicação independe de ‘hora marcada’ e ocorre
em tempo real a qualquer momento. O desenrolar de um processo de aprendizagem, disciplina ou
atividade pedagógica, deve, portanto, levar esses aspectos em conta, usando essa nova realidade
para potencializar o aprendizado.
Meurant (2010) destaca que o rápido desenvolvimento das tecnologias de comunicação e
informação impactou radicalmente a educação, principalmente com disponibilidade de conteúdos
multimídia. Analisando o ensino de línguas, o autor conclui que por meio desse fenômeno a
aprendizagem mediada pelas TIC é um processo sem volta que precisa ser internalizado na educação
como um todo, mas fundamentalmente pelo educador, que é imigrante digital e precisa se adaptar.
Essa reflexão deve estar associada a outro processo, ainda mais necessário, que é deslocar o foco do
professor para o aluno e seu contexto. O professor continua sendo elemento-chave, porém agora como
facilitador do processo de aprendizagem que ocorre no aluno. (SMEETS; MOOIJ, 2001). Segundo
Wang (2014), o foco excessivo no professor tem impacto direto na aprendizagem do aluno. O autor
defende que a obrigação de acessar o mundo do aluno, sua cognição e suas visões de mundo é do
professor e não o contrário. É o professor que deve compreender o aluno e utilizar essa compreensão
no aprendizado. Esperar que o aluno compreenda o mundo e os esquemas mentais do professor para
produzir o próprio aprendizado é subverter a ordem das coisas.

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O professor também tem de lidar com novas formas de tempo, espaço e comunicação, adaptando-
-se a novos ambientes de aprendizagem, que são mais globais e vinculados a contextos e redes múltiplas.
A crescente complexidade e as mudanças supradiscutidas ensejam alterações significativas na educação
e no ensino enquanto profissão, fazendo emergir inclusive novos ofícios associados ao ensino. As
TIC tornam o ensino cada vez mais uma profissão, não apenas uma vocação, porque requerem novas
habilidades específicas. Do transmissor de conhecimento o professor passa a facilitador para interpretar
esse mundo complexo, exercendo um papel de mediador do desenvolvimento de inteligências coletivas
interconectadas. (CORNU, 2003).
Essa nova realidade exige inovação pedagógica, utilizando-se da cultura digital proporcionada
pelas TIC para produzir reflexões e competências. Nesse novo contexto, o papel do professor continua
sendo chave, porém ele deixa de ser agente de informação e conhecimento para assumir um papel
de organizador, facilitador e tutor. Deixa seu papel de portador do conhecimento para assumir um
papel muito mais pedagógico em relação à informação e ao conhecimento abundantemente disponível
aos estudantes no mundo virtual. Como atualmente alunos e professores podem ter acesso às
mesmas informações, a diferença entre eles está então na competência que o professor pode agregar,
transformando as informações em conhecimento. (SMEETS; MOOIJ, 2001; SCOTT, 2015).
Retomando a análise de Ertmer e Ottenbreit-Leftwich (2010), esses autores defendem que os
elementos centrais de qualquer pedagogia atual deve ser o aluno e seu contexto. O papel do professor
é, portanto, compreender o mundo e o contexto do aluno e utilizá-los como instrumento de reflexão
e aprendizagem.
O uso das TIC na configuração de novas pedagogias e didáticas não é diferente, apenas amplifica
o desafio pela imensidão do mundo global, que agora é o mundo dos educandos. Portanto, na
atualidade o ensino não é eficaz sem o uso adequado das TIC simplesmente porque elas não são apenas
ferramentas, mas parte do mundo no qual vivem os alunos. Por essa razão, a integração da tecnologia
nos processos de ensino e aprendizagem requer mudanças significativas na postura do professor, de suas
crenças pedagógicas e da cultura escolar. (ERTMER; OTTENBREIT-LEFTWICH, 2010). Assim,
como afirma Moran (2013), é preciso ‘educar o educador’, transformando, em última análise, sua
postura, suas crenças pedagógicas e sua cultura de educador.
Em revisão de literatura realizada em 2000, Mumtaz (2000) já identificava essa necessidade,
destacando o papel de uma nova pedagogia para o mundo proporcionado pelas TIC. Para o autor, essa
nova pedagogia deveria começar pela compreensão do mundo e da nova cognição dos alunos nativos
digitais. Sugeria ele que a implementação bem-sucedida de processos de ensino e aprendizagem com
base nas TIC depende de três fatores: o professor, a escola e os decisores. Ou seja, além de condições
necessárias e adequadas oferecidas pelas escolas (como acesso a recursos, qualidade de software e
hardware, facilidade de utilização), os incentivos para a mudança do professor são necessários.
Em análise realizada por Bingimlas (2009), a conclusão é que os professores tinham um forte desejo
de integrar as TIC na educação, porém existiam ainda muitas barreiras, como falta de confiança, falta
de competência, falta de preparo e falta de acesso a recursos como softwares e a ferramentas adequadas.

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Por essa razão, Alt (2018) argumenta que é importante focar no desenvolvimento profissional dos
docentes, associando competências pedagógicas adequadas ao novo cenário trazido pelas TIC às
condições materiais das escolas. Ou seja, a formação de professores deve considerar em sua equação
pedagógica e de conteúdo o processo e a competência para lidar com as TIC, como ferramenta e
contexto de aprendizagem, de forma a proporcionar, no processo de desenvolvimento profissional, a
confiança dos professores para projetar eficazmente as práticas construtivas de ensino no contexto das
TIC e da interatividade que essa possibilita.
Em razão disso, novos conceitos educacionais são necessários, como a aprendizagem combinada, que
é ao mesmo tempo simples e complexa. É simples, na medida em que significa combinar aulas presenciais
com aprendizagem on-line. Por outro lado, é complexa pelo fato de o on-line consistir numa janela infinita
para o mundo, sobre a qual o educador não tem o controle e, principalmente pela naturalidade com que
os alunos navegam pelo mundo virtual. (GARRISON; KANUKA, 2004; KANUKA; GARRISON,
2004). A aprendizagem combinada alia conteúdos e métodos on-line e off-line.
Outro aspecto importante, considerando a necessidade de superar a visão do professor como um
transmissor do conhecimento e a do estudante como mero destinatário deste (CHAN; ELLIOTT,
2004), é adotar uma visão construtivista da aprendizagem, centrada no aluno com base em um
contexto de aprendizagem que leva em conta seu mundo quotidiano (ALT, 2018). Nesse sentido,
dentre as estratégias de aproximação do ensino à tecnologia, o conceito de Conhecimento Tecnológico
e Pedagógico do Conteúdo (TPACK) é uma das formas introduzidas para aproximar, sob a tutela
do professor, pedagogia, tecnologia, conteúdo, alunos e contexto, buscando produzir ambientes de
convergência entre as diversas dimensões contidas nesse modelo pedagógico, que versa sobre o contexto
de aprendizagem composto da associação entre o conhecimento tecnológico, a perspectiva pedagógica
adotada e os conteúdos a serem trabalhados. (ANGELI; VALANIDES, 2009).
Independentemente do método, da pedagogia ou da didática, o professor continua sendo elemento-
chave, e a educação dependente de sua competência. Por isso, adquirir proficiência na utilização da
tecnologia para fins educacionais é fundamental a ele. Embora os dispositivos eletrônicos estejam
substituindo o giz, bem como os portais e as bases de dados e bibliotecas virtuais estejam substituindo
a biblioteca e o livro físico, o papel e a competência do educador não serão substituídos facilmente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vivemos em um mundo globalizado, em que as conexões entre as pessoas e entre essas e a informação
e o conhecimento, independem de aspectos geográficos. O rápido e contínuo desenvolvimento
tecnológico proporcionou alterações significativas nos modos de vida, em todos os seus aspectos.
Trouxe mudanças culturais, redefiniu profissões e competências, bem como as noções de tempo e
espaço. Consequentemente, a tecnologia também se infiltrou no campo da educação, proporcionando
mudanças cognitivas nos ambientes e na relação entre educadores e educandos.

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Essas mudanças trazidas pela tecnologia, em especial pelas TIC, impelem a novas compreensões e
abordagens de aprendizagem que conjuguem o mundo presencial com o mundo real, o off-line com o
on-line, o local com o global. Elas deslocam o papel do professor de mero transmissor de conhecimento
para desenvolvedor de competências, anexando o mundo virtual ao empírico como contextos de
aprendizagem. Elas redefinem o lugar do aluno, de neófito em relação aos temas objetos das aulas para,
como nativo digital, ser um agente bem informado com base em múltiplas visões, embora telegráficas.
Em que pese a falta de profundidade das informações e conhecimentos detidos ou instantaneamente
acessados pelo estudante nativo digital, essas podem constituir poderoso instrumento pedagógico,
quando relevadas pela competência de análise e didática do educador.
No mundo globalizado virtual, proporcionado pelas TIC, o grande desafio do educador é acessar
a nova cognição do educando e usá-la para produzir o aprendizado. Nesse novo ambiente, com novos
espaços e formas de comunicação que transcendem o off-line e instituem o on-line, os alunos são
nativos digitais, e os professores, imigrantes digitais.
O desafio da educação, portanto, para além do uso das TIC como ferramentas de ensino, está em
compreender as mudanças culturais e cognitivas provocadas pelo mundo digital e on-line e adaptar a
escola, o educador e as pedagogias a essa nova realidade, um contexto ao mesmo tempo local e global.

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NOTAS EXPLICATIVAS
1 Segundo Silva e Silva, “A cognição envolve os mecanismos cognitivos individuais e distribuídos, inerentes às
atividades em colaboração, que envolvem percepção, atenção, memória, linguagem e raciocínio, atividades
cujas origens são culturais. Em outras palavras, cognição é o ato ou processo de adquirir conhecimentos e
um procedimento por meio do qual o ser humano interage com seus semelhantes e com o meio em que
vive, sem perder sua identidade”. (2017, p. 93).

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
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DIAGNÓSTICO SOBRE O PAPEL DA IMPRESSÃO 3-D


NA QUARTA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL

Marlon Wesley Machado Cunico

INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, tecnologias de manufatura aditiva, também conhecidas como impressoras 3D,
conquistaram papel fundamental e disruptivo no cotidiano das indústrias e até mesmo na vida pessoal
de muitos. (GIBSON; ROSEN; STUCKER, 2010; CUNICO, 2012; CUNICO, 2015; VOLPATO,
2017).
Pode-se identificar que a mudança do perfil da produção e de segmentos de mercado também
vem sofrendo grandes mudanças, visto que a demanda e a customização de produtos foi alterada.
(RICHARDSON; HAYLOCK, 2012; SAURAMO, 2014).
Neste capítulo, busca-se apresentar as principais tecnologias de manufatura aditiva e suas
contribuições para Indústria 4.0. Adicionalmente, são apresentadas abordagens de manufatura híbridas
que permitem a implementação desta indústria.
Este capítulo é dividido em quatro partes: levantamento do estado da arte; produção híbrida e
distribuída por meio de impressoras 3D; impressoras 3D e a indústria 4.0 e conclusões.
Na primeira parte deste trabalho são apresentados os principais marcos históricos relacionado às
impressoras 3D, além das principais tecnologias desenvolvidas ao longo do advento da indústria 4.0.
São apresentados movimentos aceleradores das tecnologias, como comunidades open-source,
entre outros desenvolvimentos paralelos que fortaleceram a popularização de impressoras 3D no
cotidiano de desenvolvedores, hobbistas e indústrias.

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Outro ponto que também é apresentado no levantamento do estado da arte é o nascimento da


Indústria 4.0, conceitos a ela relacionados, diferenças em relação a outras revoluções industriais e
peculiaridades que as impressoras 3D permitem nessa nova abordagem de produção.
A segunda parte deste trabalho busca apresentar formas de fabricação híbridas, nas quais tecnologias
de manufatura aditiva são incorporadas como parte do meio produtivo, e assim vantagens produtivas
podem ser obtidas em baixa e em larga escala. Pode-se identificar que a produção híbrida e distribuída
permite vantagens competitivas e que impressoras 3D permitem a fabricação desde protótipos até
produtos em larga escala de forma direta e indireta.
A terceira parte deste capítulo busca contextualizar a participação de impressoras 3D na indústria
4.D, indicando exemplos de células autônomas, BigData, machine learning, B2B, B2C e novos mercados.
Por outro lado, esta seção também indica riscos legais que nasceram junto aos benefícios advindos
da Indústria 4.0 e das impressoras 3D.
Por fim, são apresentadas as considerações finais e projeção sobre futuro das impressoras 3D e
indústria 4.0, sendo indicado um roadmap de convergência tecnológica.

ESTADO DA ARTE

Fundamentação histórica sobre impressoras 3D


Apesar de parecer muito recente, o conceito de impressoras 3D tem sido desenvolvido há longa data.
A primeira vez que conceitos de manufatura aditiva foram consolidados e publicados data de 1890, quando
Blanther indicou a construção de moldes por meio de chapas cortadas e empilhadas topograficamente.
Apesar desse indicativo, podemos salientar a patente de quatro tecnologias como as principais
pioneiras na revolução das impressoras 3D: estereolitografia, fabricação por filamento fundido,
sinterização seletiva a laser e impressão de aglomerante em particulado (bind jetting).
Essas tecnologias podem se destacar por terem revolucionado a forma de se fabricar de forma
automatizada, além de terem implicado na criação das duas maiores companhias globais de impressoras
3D, que atualmente têm mais de 2 bilhões de dólares.
Embora haja diversas tecnologias de manufatura aditiva, todas seguem o mesmo princípio:
fabricação por empilhamento de camadas. Nesse quesito, diversos autores indicam uma forma de
classificar tais tecnologias de acordo com o tipo de matéria-prima a ser processada. Nesse caso, pode-se
classificar as impressoras 3D em:
• tecnologias a base de fusão e deposição (extrusão);
• tecnologias a base de polímeros líquidos;
• tecnologias a base de sólidos laminados;
• tecnologias a base de pó.

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131

Nessa classificação, destacam-se as mesmas tecnologias citadas anteriormente, cujos marcos


temporais são 1984 (Stereolithography – SLA), 1986 (Selective Laser Sintering – SLS), 1989 (Fused
Deposition Modeling – FDM ou Fabricação com Filamento Fundido – FFF), 1989 (3D Printing – 3DP).

Figura 1 – Roadmap de principais patentes relacionadas a impressoras 3D e à manufatura aditiva

Fonte – Cunico, 2015.

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Impressoras 3D por materiais sólidos

Impressoras 3D baseadas em filamentos fundidos


Na Figura 2, pode-se observar uma representação esquemática do processo Fused Deposition
Modelling (FDM), na qual um filamento de material termoplástico é movimentado para dentro da
câmara de liquidificação por ação de rolos de alimentação (normalmente acionados por motores de passo).
Ao redor dessa câmara são posicionadas resistências térmicas com a finalidade de elevar a temperatura do
material até valores superiores à temperatura de amolecimento do plástico (ponto de transição vítrea).
A fim de construir o perfil da camada, esse cabeçote se desloca ao longo dos eixos ‘x’ e ‘y’
adicionando filamentos de material. Após a finalização de cada camada, a plataforma de deposição se
desloca no sentido ‘z’ com a finalidade de construção da próxima camada, repetindo esse procedimento
até a finalização da peça. (PRINZ; ATWOOD et al., 1997; COOPER, 2001; GIBSON, 2005; LIOU,
2007; VOLPATO, 2007; CUNICO, 2015; VOLPATO, 2017).

Figura 2 – Esquemático de tecnologia de manufatura aditiva por fusão de filamento sólido.


Filamento de material

Rolos de alimentação

Câmara de
liquidificação

Bico de deposição

Eixos x_y

Objeto 3D

Plataforma

Eixo Z

           Fonte – Cunico, 2015.

Entre as principais tecnologias comerciais que utilizam esse princípio de funcionamento está a
modelagem por fusão e deposição (Fused Deposition Modelling – FDM). Essa tecnologia, que é uma
das mais difundidas no mercado, foi desenvolvida pela empresa Stratasys, tendo como marco inicial
o depósito de patente da tecnologia pelo fundador da Stratasys. (CRUMP, 1989). Essa tecnologia é
uma das pioneiras na área de fabricação aditiva (PRINZ; ATWOOD et al., 1997; COOPER, 2001;

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133

GIBSON, 2005; LIOU, 2007; VOLPATO, 2007), sendo o conceito de base para as impressoras 3D
de baixo custo encontradas atualmente.

Impressoras 3D baseadas em material laminado


Outra classificação de impressoras 3D tem como base a utilização de sólidos laminados. Essa
tecnologia, denominada AM, foi uma das primeiras a serem comercializadas, em 1991. Inicialmente,
a empresa japonesa que desenvolveu essa tecnologia (Kira) denominou seu processo de Laminated
Object Modelling (LOM). (PRINZ; ATWOOD et al., 1997; GIBSON, 2005; GIBSON; ROSEN;
STUCKER, 2010).
O princípio de funcionamento dessa impressora 3D baseia-se no corte e na colagem de folhas de
papel ou plástico, e o perfil de camada é gerado por meio de um laser de CO2 que se desloca ao longo
dos eixos ‘xy’. As camadas são empilhadas gradativamente e coladas por meio de resinas térmicas.
Como pode ser observado na Figura 3, após a finalização de cada camada uma plataforma é
movimentada no eixo ‘z’, possibilitando a construção de novas camadas e a aderência da camada com
folhas anteriores. Para colar as camadas, um rolo comprime a camada a ser fabricada contra as camadas
anteriores, proporcionando a aderência por meio de pressão e calor. (PRINZ; ATWOOD et al., 1997;
COOPER, 2001; GIBSON, 2005; GIBSON; ROSEN; STUCKER, 2010; CUNICO, 2015).

Figura 3 – Exemplo de resultado de impressora 3D de laminado (mcor).

        Fonte – Cunico, 2015.

Esse tipo de tecnologia é muito eficiente para a fabricação de protótipos estéticos e de baixíssimo
custo, sendo um dos processos com material mais barato no mercado.

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Impressoras a base de material líquido

Impressoras 3D baseadas em resinas fotocuráveis


Outra classificação de impressoras 3D se baseia em materiais líquidos. A estereolitografia (SLA)
é uma das mais difundidas tecnologias de impressoras 3D, e foi comercializada inicialmente pela
empresa 3D Systems.
Apesar da validação de seu princípio funcional ter sido publicada por Kodama (1981) e Herbert
(1982), a tecnologia SLA teve como marco inicial a patente do fundador da 3D Systems em 1984. (HULL,
1986; PRINZ; ATWOOD et al. 1997; GIBSON, 2005; GIBSON; ROSEN; STUCKER, 2010).
O princípio funcional desse processo consiste na cura localizada de resina fotossensível por meio
de feixe de laser UV que se desloca ao longo dos eixos ‘x’ e ‘y’. Tal feixe incide sobre um recipiente
imerso em resina a fim de construir a silhueta da camada previamente calculada computacionalmente.
Após a finalização de cada camada, uma plataforma de sustentação do material imersa no
reservatório de resina se desloca ao longo do eixo ‘z’, permitindo o início da construção de uma nova
camada, como pode ser observado na ilustração da Figura 4.

Figura 4 – Esquemático de tecnologia de manufatura aditiva por estereolitografia a laser


(SL – Stereolithography) e por máscara de projeção (MPSL).

Laser
z

Plataforma de
construção Plataforma de
Objeto construção
Objeto

Resina

Resina
Projetor

Fonte – Cunico, 2015.

Impressoras 3D baseadas em cabeçote jato de tinta


Com referência às tecnologias de prototipagem rápida baseadas em impressão jato de tinta de
fotopolimerizáveis (Inkjet Print – IJP), o princípio de funcionamento consiste na criação de camadas
por deposição de gotas de material por meio de cabeçote jato de tinta.

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135

Essa tecnologia foi desenvolvida inicialmente pela empresa Sanders Prototyping (SolidScape)
em 1994. Contudo, a utilização de jato de tinta em equipamentos AM passou a ser mais expressiva
somente a partir de 1999, quando foi patenteada a concepção empregada pela empresa israelense Objet
Geometries (PRINZ; ATWOOD et al. 1997; SANDERS; FORSYTH et al., 1998; GOTHAIT, 2000;
GIBSON; ROSEN; STUCKER, 2010). Em 2013, esta empresa se fundiu com a Stratasys, principal
fabricante de processos FDM.
No conceito inicial, apresentado pela Sanders Prototyping, é utilizado cabeçote jato de tinta
térmico a fim de depositar seletivamente gotas de materiais a base de cera para a construção de seção
transversal de objetos 3D ao longo dos eixos ‘x’ e ‘y’.
Após a finalização de cada camada, a plataforma de construção se desloca em ‘z’ proporcionando
a construção da próxima camada, sendo que esse processo se repete até a conclusão da peça. (PRINZ;
ATWOOD et al. 1997; SANDERS; FORSYTH et al., 1998; GIBSON; ROSEN; STUCKER, 2010).
Já na concepção adotada inicialmente pela Objet um cabeçote jato de tinta piezoeléctrico é
utilizado para a deposição de gotas de material fotocurável no estado líquido sobre plataforma ou
substrato ao longo dos eixos ‘xy’.
Simultaneamente, essas gotas são solidificadas devido à exposição a uma fonte de luz UV extensa.
Após a finalização de cada camada, a plataforma de construção se desloca em ‘z’, dando início a uma
nova camada, como pode ser observado na Figura 5. (PRINZ; ATWOOD et al. 1997; GOTHAIT,
2000; GIBSON; ROSEN; STUCKER, 2010).

Figura 5 – Esquemático de impressora 3D jato de tinta fotocurável.


Cabeçote de
Eixo X
jato de tinta

Eixo Y

Luz UV

Material de
modelamento

Material de
suporte

Plataforma de
construção Eixo Z

        Fonte – Cunico, 2015.

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Impressoras a base de material em pó

Impressoras 3D baseadas em jateamento de aglomerante


Dentre as diversas categorias de impressoras 3D, a mais difundida e que projetou o nome
da tecnologia é a impressão 3D baseada em materiais particulados. Esse processo foi inicialmente
desenvolvido pela Universidade Tecnológica de Massachussets (MIT) e patenteada em 1989 por
Emanuel Sachs e seus colegas pesquisadores.
Contudo, o produto comercial foi lançado no mercado apenas nos anos 1990 pela empresa Z
Corporation, que faz parte da empresa 3D Systems. (SACHS; HAGGERTY et al., 1989; GIBSON;
ROSEN; STUCKER, 2010).
O princípio funcional se fundamenta na deposição de um material colante (binder) sobre uma
camada de pó cerâmico (geralmente gesso), gerando um aglomerado. Nesse processo, apresentado na
Figura 6, um reservatório contendo pó eleva uma plataforma enquanto um rolo distribui esse mesmo
pó sobre a plataforma de construção da peça.
Para a geração de camada, um cabeçote jato de tinta se desloca em ‘xy’ de forma a depositar ou
borrifar o material colante sobre a camada de pó. Esse processo se repete até a finalização da peça,
quando, normalmente, é utilizado um jato de ar para retirar o pó excedente do objeto. (SACHS;
HAGGERTY et al., 1989; COOPER, 2001; GIBSON, 2005; LIOU, 2007; VOLPATO, 2007;
GIBSON; ROSEN; STUCKER, 2010).

Figura 6 – Esquemático de impressora 3D jato de tinta de aglomerante de pó (bindjet).


Sistema de posicionamento X - Y
Cabeçote jato de tinta

Alimentador de pó
Gotas de aglomarante
Peça

Pó não utilizado

z
Plataforma de construção

Fonte – Cunico, 2015.

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137

Impressoras 3D baseadas em sinterização seletiva a laser e fundição


seletiva a laser
Os processos de impressão 3D baseados em sinterização seletiva a laser (SLS) começaram a ser
desenvolvidos na Universidade do Texas em Austin, Estados Unidos, e foram patenteados em 1989.
Contudo, sua comercialização se iniciou apenas em 1990 pela empresa DTM. (BEAMAN; DECKARD,
1990; PRINZ; ATWOOD et al. 1997; GIBSON, 2005; GIBSON; ROSEN; STUCKER, 2010).
Essa tecnologia consiste na construção de objetos 3D por meio da sinterização de pó de material.
A construção das camadas ocorre por meio de fusão ou sinterização do particulado metálico, cerâmico
ou polimérico com laser, que se desloca ao longo dos eixos ‘xy’. Após o término de cada camada, a
plataforma de construção se desloca no eixo ‘z’, permitindo a alimentação de material na nova camada,
como pode ser observado na Figura 7. (PRINZ; ATWOOD et al. 1997; COOPER, 2001; GIBSON,
2005; LIOU, 2007; VOLPATO, 2007; GIBSON; ROSEN; STUCKER, 2010).
Essas etapas se repetem até o término do objeto, que em diversos casos necessita de um processo de
pós-processamento para obtenção de resistência mecânica. Quando isso acontece, a peça, que também
é chamada de peça verde (Green Part), é infiltrada por meio de material ligante em adição à queima de
material residual. (PRINZ; ATWOOD et al. 1997; COOPER, 2001; GIBSON, 2005; LIOU, 2007;
VOLPATO, 2007; GIBSON; ROSEN; STUCKER, 2010).

Figura 7 – SLA.

CO2 Laser

Depósito e nivelador
de pó termoplástico
Selective Laser Sintering
DTM Corp. (U. S.)

EOSINT
EOS Corp. (Germany)

  Fonte – Cunico, 2015.

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138

Técnicas de acabamento
Em paralelo ao desenvolvimento de novas tecnologias de manufatura aditiva e impressoras 3D,
houve o desenvolvimento de técnicas de acabamento, tratamentos superficiais e pós-processamentos
para que objetos fabricados por impressoras 3D tivessem alta performance. São exemplo o aumento de
resistência mecânica, o aumento de resistência química, a redução de rugosidade e porosidade de objetos,
o aumento de isotropia e homogeneidade de material, o aumento de estanqueidade, entre outros.
Pode-se indicar que essas técnicas são imprescindíveis para a incorporação de impressoras 3D no
mundo industrial, visto que objetos fabricados por impressoras 3D domésticas sem pós-tratamento
não resultam em resistência dimensional nem acabamento com repetibilidade adequada para
comercialização.
Um exemplo de técnicas de acabamento pode ser observado na Figura 8. Ela apresenta uma
das técnicas de acabamento desenvolvidas pela empresa Concep3D. Nesse exemplo foi utilizada uma
estação de acabamento e tratamento superficial automatizado, na qual um conjunto de peças é colocado
e finalizado em bateladas, sem a necessidade de lixamento manual ou pintura.

Figura 8 – Exemplo de técnicas de acabamento progressivas de objetos de impressão 3D sobre impressão


3D de baixíssima qualidade.

Superfície final
Impressão 3d de baixíssima qualidade Acabamento progressivo
      Fonte – O autor.

As principais técnicas de acabamento para objetos de impressão 3D podem ser classificadas em:
• técnicas de remoção;
• técnicas de recobrimento;
• tratamentos térmicos e químicos;
• técnicas de conformação e deformação.

A inclusão dessas técnicas ao processo de fabricação por manufatura aditiva é imprescindível para
que os objetos apresentem características conforme necessidade de clientes.

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139

Quebra de paradigma de projeto de produto


Pode-se também indicar que o movimento tecnológico ao redor do desenvolvimento das
impressoras 3D implicou também na mudança de mentalidade sobre o conceito de produtos e de
desenvolvimento de projetos de produto.
A partir do momento que o custo dos protótipos de objetos estéticos foi reduzido drasticamente,
o processo de desenvolvimento de produto (que é fundamentalmente do tipo waterfall) pôde ser
revisto, e metodologias ágeis, como extreme programming (XP,) scrum, scrum-kanban (amplamente
utilizadas em desenvolvimento de software), começam a fazer parte do cotidiano de designers, projetistas
e engenheiros de desenvolvimento de produto.
Outro ponto também importante no advento das impressoras 3D é a facilidade de fabricar formas
livres. A esse respeito, diversos autores indicam equivocadamente que impressoras 3D permitem
fabricar qualquer forma. Infelizmente, esta afirmação não é verdadeira. Essas impressoras permitem
a fabricação de formas muito mais livres que as produzidas por processos convencionais. Contudo,
cada uma das tecnologias de impressão 3D apresenta restrições e características próprias para que a
fabricação possa ser mais complexa e confiável.
Exemplos de fabricação de produtos com formas livres pode ser observado na Figura 9, que
representa instrumentos musicais impressos pelo professor Olaf Diegel, da Universidade de Lund.
Apesar de o resultado ser extraordinário, o processo para obtenção é muito penoso, pois demanda
remoção de materiais metálicos de suporte, processo de acabamento, remoção de degraus e porosidades
por meio de primer, pinturas e polimentos. Em muitos casos, inclusive há a quebra do objeto, devido
à variação geométrica proporcionada pela liberdade de formas.

Figura 9 – Exemplo de guitarra fabricada com mecanismos livres impressos 100% em equipamento SLS.

           Fonte – O autor.

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Por esse motivo, diversos grupos de pesquisa ao redor do mundo buscam por recomendações de
projeto para manufatura aditiva (Design for Additive Manufacturing). Um exemplo de recomendação
é apresentado na Figura 10, na qual a alteração de projeto implica na redução de tempo de fabricação,
além da eliminação da necessidade de utilização de material de suporte.

Figura 10 – Exemplo de recomendação de projeto para minimização de material de suporte.


Região de balanço

Material de
suporte

Sem recomendação de Com recomendação de


projeto para AM projeto para AM

  Fonte – O autor.

Outros aspectos interessantes no que se refere à manufatura aditiva são os projetos baseados
em mesoestruturas (lattices ou scaffolds). Esses projetos também tomaram grande proporção devido
às impressoras 3D. (LEARY et al., 2014; THOMPSON; MORONI et al., 2016; NTOPOLOGY,
2018). Nessas abordagens, objetos são fabricados com massa muito reduzida, como se pode observar
na Figura 11.

Figura 11 – Exemplo de mesoestruturas e de objetos fabricados com esse conceito.

         Fonte – O autor.

Pode-se também observar que nessa linha de projeto a otimização de topologia também vem
ganhando espaço, e que a geometria é simplesmente um resultado de cálculos numéricos para aumento
de resistência e redução de massa, concomitantemente.

Agrinho-Tecnicos_BOOK.indb 140 13/04/2021 11:12:14


141

Com isso, métodos clássicos de projeto de engenharia são colocados à prova, tendo eles de ser
reinventados e ajustados às novas tendências de fabricação, projeto, design e mercado.

DESENVOLVIMENTO COMPARTILHADO E
OPENSOURCE: ACELERADORES PARA INDÚSTRIA 4.0
A popularização das impressoras 3D não foi algo fácil ou rápido. Mas se elas já estavam bem
estabelecidas no mercado desde a década de 1990, por que sua popularização demorou tanto para
ocorrer?
O início da popularização das impressoras 3D teve como grandes marcos:
• a expiração da patente de Hull em 2005 e de Crump em 2009;
• o nascimento do grupo Reprap, em 2005, na Universidade de Bath, com o intuito de criar
impressoras 3D autorreplicadoras;
• o nascimento do grupo FAB@HOME na Universidade de Cornell, em 2005, com a proposta
de criar impressoras 3D com código aberto.

Em 2006, o desenvolvimento de softwares livres de planejamento (slicers) na universidade de Bath


(Inglaterra) resultou na criação dos softwares Skeinforge e RepRap Host, que atualmente fazem parte
de 90% do código de fatiamento de slicers no mercado.
Outro marco para a popularização das impressoras 3D foi a distribuição de projeto aberto e a
comercialização a baixo custo de impressora MAKERBOT. A comercialização por si só não implicou
grande destaque. Contudo, a iniciativa dos empresários Bre Pettis, Adam Mayer e Zach Smith em criar
uma plataforma de compartilhamento de projetos on-line implicou na disruptura de conceitos clássicos
de projeto, dando origem ao conceito de projeto colaborativo. Com isso, em apenas quatro anos a
companhia Makerbot foi adquirida em 2013 pela Stratasys por 604 milhões de dólares, deixando um
legado para a popularização das impressoras 3D.
Pode-se também indicar o advento, em 2001, do conceito de Fab Lab (laboratórios de fabricação)
no Instituto de Tecnologia de Massachussets (MIT). Com isso, intensificou-se a cultura DIY (faça
você mesmo) para coisas tecnológicas, permitindo a liberdade criativa e de projeto. Por meio dessa
iniciativa, entre outras, pode-se observar um desenvolvimento acelerado de tecnologias de impressão
3D, escaneamento 3D, computação em nuvem e robôs autônomos, que são tecnologias de suporte
fundamentais para a implementação da Indústria 4.0.
Atualmente, a iniciativa Fab Lab tem como equipamentos mais populares impressoras 3D, braços
robóticos, corte a laser, CNC de três eixos, fresadora de circuito impresso ou estação de corrosão de
circuito impresso. Nessa mesma linha, Pearce (2013), compilou um apanhado de projetos livres e
técnicas de fabricação para a criação de laboratórios de bioengenharia, ciência dos materiais e engenharia
por meio de desenvolvimento compartilhado.

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142

Por conta disso, diversas outras tecnologias têm ganhado destaque, permitindo a viabilização da
Indústria 4.0 na forma e no entendimento que se tem hoje. Por exemplo, técnicas de mapeamento
tridimensional por meio de imagem passaram por grande evolução, implicando na redução de custos
para implementação em linhas produtivas.

QUARTA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL


Pode-se observar que o avanço da tecnologia sempre direcionou o desenvolvimento da indústria,
variando desde máquinas a vapor até sistemas com inteligência artificial.
A Primeira Revolução Industrial foi marcada pela mecanização do tear, criando o conceito de
produção mecanizado por meio de máquinas movidas a água ou a vapor de água.
Na Segunda Revolução Industrial, por sua vez, destacou-se o desenvolvimento de linhas de
produção em série, com a distribuição de recursos e a utilização de energia elétrica.
Na Terceira Revolução Industrial, a introdução a sistemas de tecnologia da informação e de
tecnologias eletrônicas implicou a automatização de processos e sistemas.
Finalmente, na Quarta Revolução Industrial busca-se a otimização dos meios produtivos por
meio de sistemas ciberfísicos.

Figura 12 – Esquemático de evolução das revoluções industriais.


1ª Revolução Industrial

2ª Revolução Industrial

3ª Revolução Industrial

4ª Revolução Industrial

Mecanização de pro- Produção em série, Implementação de Criação de siste-


cessos manuais por utilização de máqui- sistemas computado- mas ciberfísicos,
meio de máquinas nas rizados, sistemas de conectividade entre
hidráulicas e a vapor informação e auto- equipamentos, com
matização de sistemas equipamentos, com
fabris inteligência artificial

1784 1870 1969 Atualidade


Fonte – O autor.

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143

Com o objetivo de criar ambientes físico-cibernéticos em meio industrial foram identificadas as


seguintes esferas de modificação cultural e de infraestrutura corporativa: 1) Digitalização e integração
a cadeias de valor verticais e horizontais; 2) Digitalização de produtos e serviços oferecidos; e
3) Digitalização de modelo de negócio e acesso ao cliente, como pode ser observado na Figura 20.
Para dar suporte a essas mudanças, diversas tecnologias têm sido utilizadas de forma a acelerar
e desenvolver sistematicamente a alteração corporativa, por exemplo: 1) dispositivos móveis;
2) plataformas de internet das coisas (IoT); 3) computação em nuvens; 4) realidade aumentada;
5) tecnologias de detecção de posicionamento; 6) análise de Big Data e algoritmos avançados;
7) segurança cibernética; 8)sensores inteligentes; 9) robôs autônomos; 10) impressoras 3D.

Figura 13 – Esquemático das principais tecnologias de suporte à Indústria 4.0.


Dispositivos móveis

Computação em
nuvem
Plataformas loT
idade para aná
c a pabil lise
d e de
lc eo ão d e int e graç ão
da
aç de
aliz vertical e hori ca d Tecnologias de

do

Realidade aumentada it zon eia


ig alor

s
t detecção de posição
v al
D

e
s
1.
d

rodutos e

Indústria
3. Digit

4.0
de negó

s
cido
de p
aliz
cio

fere
ão
açã

de z

ali
ea

so
o

mo
so igit
ce

vi
ço

de l o D Segurança
. se r
s

ao 2
clie cibernética
nte
Análise Big Data e
algoritmos avançados

Sensores
Robôs autônomos
inteligentes

Impressoras 3D
Fonte – O autor.

Sobre a contribuição de impressoras 3D para a Indústria 4.0, pode-se afirmar que elas são utilizadas
em conjunto com tecnologias de escaneamento 3D, robôs autônomos e de prototipagem rápida de

Agrinho-Tecnicos_BOOK.indb 143 13/04/2021 11:12:15


144

circuitos eletrônicos, como aceleradores de desenvolvimento, assim como recursos produtivos em fases
iniciais de comercialização (startup) e em início de escalonamento comercial (scaleup).
Por outro lado, as impressoras 3D também auxiliam na manutenção do sistema produtivo e do
portfólio de produtos, visto que peças de manutenção de equipamentos podem ser fabricadas por meio
de tecnologias de impressão 3D.
Outro aspecto que também salienta a utilização de impressoras 3D e projetos open-source na
Indústria 4.0 é a opção de replicabilidade otimizada e de escalonabilidade de infraestrutura. Aquela
pode ser caracterizada como a capacidade de um equipamento ou sistema fabricar outro dele mesmo
com maior precisão ou capacidade que o equipamento original.
Nesse caso, também há centros de fabricação distribuídos, onde são produzidos em série
equipamentos de impressão 3D e ocorre a prestação de serviços de impressão 3D de forma seriada.
Dessa forma, eles apresentam índices de eficiência operacionais altíssimos, como pode ser observado
na Figura 14.

Figura 14 – Exemplos de centros de fabricação com mais de 100 impressoras 3D centralizadas em uma
sala de 50 m².

   Fonte – O autor.

Nota-se que 100% das impressoras fabricadas nessa célula de fabricação foram produzidas por
meio de outra impressora 3D.

Agrinho-Tecnicos_BOOK.indb 144 13/04/2021 11:12:15


145

Da mesma forma, a escalonabilidade de infraestrutura incita a capacidade de um equipamento de


produzir outros equipamentos sem ou com pouca necessidade de processos secundários.
Um exemplo desse tipo de abordagem se dá para pela fabricação de equipamentos complexos,
como micropipetas, espectrofotometros, instrumentos de laboratório (PEARCE, 2013) e também
robôs, como apresentado na Figura 15.

Figura 15 – Exemplo de fabricação de braços robóticos com cinco graus de liberdade por meio de
célula de impressoras 3D em adição a sistemas laboratoriais open source.

.
   Fonte – O autor.

Aplicações fundamentais de impressões 3D na Indústria 4.0


Durante muitos anos, a manufatura aditiva, realizada por meio de impressoras 3D e prototipagem
rápida, foi utilizada amplamente com o objetivo exclusivo de fabricação de protótipos. Entre os
principais motivos dessa abordagem está o nível de maturidade da tecnologia, além da retenção do
conhecimento dessas tecnologias por parte dos fabricantes proprietários das patentes desses processos.
Pode-se também identificar que objetos fabricados por impressoras 3D apresentam características
diferentes de objetos fabricados por outros processos, gerando uma barreira cultural para projetistas,
designers e engenheiros que utilizam tais recursos.
Além disto, tempos de fabricação de impressoras 3D são extremamente mais longos que outros
processos, implicando em restrições para a aplicação delas em larga escala.

Agrinho-Tecnicos_BOOK.indb 145 13/04/2021 11:12:16


146

Por exemplo, se compararmos uma peça fabricada por molde de injeção com uma mesma peça
fabricada por impressão 3D FFF, temos uma diferença no lead time de 20 segundos (injeção) para duas
horas (impressora 3D). Nesse mesmo caso, a resistência mecânica da peça fabricada por impressão 3D
é de 70 a 80% menor que a peça injetada, além de apresentar rugosidade em toda sua superfície.
Então por que as impressoras 3D tiveram tal advento e crescimento? Ora, porque o investimento
para ferramental e equipamentos de injeção plástica custa cerca de R$ 150.000,00, enquanto uma
impressora 3D de código fonte aberto custa atualmente R$ 3.000,00 (50 vezes menos).

Fabricação de protótipos
Quanto à fabricação de protótipos, as impressoras 3D já vêm ocupando essa cadeira de forma
estável. Contudo, pode-se dizer que com a popularização dessa tecnologia ocorreu a desprofissionalização
da mão de obra. Com isso, são fabricados produtos com acabamentos questionáveis, quebradiços e que
não atendem à necessidade do cliente.
Na Figura 16 são apresentados alguns exemplos de defeitos graves que ocorrem em impressoras
do tipo FFF, a saber: a) perda de aderência entre camadas; b) bolhas e heterogeneidade de extrusão;
c) falta de preenchimento; d) distância entre filamentos equivocada.
Além desses defeitos, ainda se observa um mercado onde projetos colaborativos em nuvens
cresceram mais rapidamente que as técnicas de especificação de produto. Logo, ao realizar um projeto
colaborativo ou ao utilizar um modelo 3D de uma nuvem (como a Thingiverse), pode-se enviar esses
modelos para dez fabricantes (baseados em impressoras 3D) diferentes. Como consequência, obtêm-se
dez peças totalmente diferentes entre si, tanto em relação à geometria quanto ao acabamento e também
em relação à resistência mecânica.

Figura 16 – Exemplo de defeitos ocasionados em processos de impressão 3D.

a) b)

c) d)
Fonte – O autor.

Por esse motivo, diversos grupos de pesquisa buscam a padronização de informações relacionadas
à manufatura aditiva, de forma que seja possível fabricar um componente de forma distribuída com o
máximo de repetibilidade e confiabilidade.

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147

Produção em baixa e média escala


Por outro lado, a fabricação profissional utilizando manufatura aditiva tem benefícios diversos,
sendo que diversos estudos indicam a possibilidade de substituição do processo de fabricação
convencional para manufatura aditiva no caso de baixos volumes de fabricação.
Por exemplo, a Figura 17 apresenta um comparativo entre o custo de fabricação de peças em três
tamanhos distintos que foram produzidas em molde de injeção, por meio de escritórios especializados
em manufatura aditiva, equipamentos de manufatura aditiva profissional e célula de manufatura com
oito impressoras 3D trabalhando em rede.
Pode-se observar a viabilidade econômica na utilização de impressoras 3D em rede para a demanda
anual de 3 mil peças, enquanto escritórios especializados em manufatura aditiva se mostram mais
interessantes para volumes anuais inferiores a mil peças.

Figura 17 – Exemplo de amortização de custo de três tamanhos de peça fabricadas por molde de injeção,
em comparação com prestadores de serviços de manufatura aditiva, equipamentos de manufatura
aditiva de nível profissional e célula de produção com oito impressoras 3D de baixo custo.

Molde de injeção
$320,00 Serviços de AM
AM de produção
$160,00 AM em nework com 8 máquinas

$80,00
Custo de peça

$40,00

$20,00

$10,00

$5,00
0 1000 2000 3000 4000 5000
Demanda anual de peças
de tamanho 8 x 8 x 15 mm

Molde de injeção
$640,00 Serviços de AM
AM de produção
$320,00 AM em nework com 8 máquinas

$160,00
Custo de peça

$80,00
$40,00
$20,00
$10,00
$5,00
0 1000 2000 3000 4000 5000
Demanda anual de peças
de tamanho 30 x 30 x 15 mm

Agrinho-Tecnicos_BOOK.indb 147 13/04/2021 11:12:16


148

Molde de injeção
$640,00 Serviços de AM
AM de produção
$320,00 AM em nework com 8 máquinas

$160,00
Custo de peça
$80,00
$40,00
$20,00
$10,00
$5,00
0 1000 2000 3000 4000 5000
Demanda anual de peças
de tamanho 15 x 15 x 15 mm
        Fonte – O autor.

Nesse caso, comparou-se o custo total da operação, sendo considerados os custos de equipamento,
mão de obra, aluguel, ferramental, entre outros custos fixos e variáveis.
Pode-se também indicar que nesse caso foi analisado somente o processo de fabricação de peças
plásticas; outras características vantajosas de manufatura aditiva não foram colocadas em pauta, como
liberdade de forma geométrica e complexidade de objeto.
Sobretudo, pode-se indicar que a flexibilidade de fabricação de produtos complexos sob demanda
é um dos pontos mais fortes da manufatura aditiva em comparação com os processos convencionais.
Dessa forma, mercados com baixo e médio volume de produção, que antes eram negligenciados,
tomam força de forma competitiva. Adicionalmente, por meio desta e de outras abordagens, criam-se
novos mercados ciberfísicos que proporcionam experiências diferenciadas para consumidor, como os
conceitos de comercialização B2C.
Para mercados especializados, como aeronáutico e médico, a aplicação de manufatura aditiva se
tornou parte integrante do processo de desenvolvimento de produto e de produção. Pode-se indicar que
devido ao baixo volume, ferramental e equipamentos de produção especializados encarecem o custo
do produto. Em contrapartida, a manufatura aditiva permite manter baixos os custos de fabricação.

Produção híbrida e em larga escala


Outras abordagens de aplicação em indústria se relacionam a processos de fabricação híbridos,
nos quais a utilização de métodos de manufatura aditiva e de remoção de material são encontrados no
mesmo equipamento. Dessa forma, pode-se aproveitar os benefícios dos processos convencionais sem
abrir mão da flexibilidade que a manufatura aditiva permite à fabricação de objetos complexos.

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Figura 18 – Exemplo de equipamento CNC com cabeçote intercambiável entre manufatura aditiva
por deposição de a laser (LMD) e fresa.

  Fonte – O autor.

Outras abordagens de sistemas de produção híbridos também têm sido estudadas, sendo que a
fabricação de ferramental e equipamentos de suporte permite a diversificação de portfólio em adição
ao aumento de produtividade. A Figura 19 apresenta um comparativo de custo de fabricação por
número de peças fundidas em função de processo de fabricação de molde. Nela se pode observar a
viabilidade de manufatura aditiva sobre processos convencionais para larga escala. Adicionalmente,
pode-se observar a oportunidade de diversificação de portfólio e o aumento de numero de produtos.
Consequentemente, indica-se o aumento da competitividade e da proximidade com necessidades
latentes de clientes.
Nessa abordagem, pode-se também observar um efeito ‘dente de serra’ ao longo da amortização
de custo que é ocasionado na finalização da vida útil da ferramenta. A cada dente de serra, tem-se a
oportunidade de alterar completamente o produto, de forma a atender novas expectativas e necessidades
de clientes.

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150

Figura 19 – Comparação entre processo de fundição por areia verde com fabricação de molde de
madeira, molde de aço, molde por FDM com recobrimento metálico e FDM sem recobrimento
16384
8192 Madeira
4096 Aço
2048 Alumínio
FDM com spray de metal
1024
FDM – ABS
512
256
128
Custo ($)

64
32
16
8
4
2
1
0,5
0,25
1,0 10,0 100,0 1000,0 10000,0
Números de peças

16384
8192 Aço
4096 5 AM produtos
2 AM produtos
2048
AM – ABS
1024
512
256
128
Custo ($)

64
32
16
8
4
2
1
0,5
0,25
1,0 4,0 16,0 64,0 256,0 1024,0 4096,0 16384,0

Números de peças
      Fonte – Cunico; Kai, 2017.

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151

Produção distribuída
Outra abordagem que a manufatura aditiva apresenta em conjunto com a Indústria 4.0 está
relacionada ao processo de produção distribuído.
Ao contrário de métodos convencionais, que centralizam meios produtivos para aumentar o
volume de produção, essa abordagem se baseia em centros de fabricação distribuídos baseados em Fab
Labs. Dessa forma, custos logísticos, de armazenagem, estoque e investimento de infraestrutura são
reduzidos de forma que clientes se envolvam mais proximamente ao desenvolvimento e à fabricação.
Pode-se observar, na Figura 20, que tecnologias de corte a laser, robótica e manufatura aditiva
são atualmente as principais opções para empresas direcionadas ao cliente, visto que permitirem
alta customização, além de acelerarem o desenvolvimento de produto, gerar rapidamente mockups,
protótipos e produzirem em baixa e média escala.

Figura 20 – Análise das principais tecnologias adotadas por empresas em mercados B2B e B2C.
60.00%

50.00%

40.00%

30.00%

20.00%
B2C
10.00% B2B

0.00%
r

ca

va

es

3D

a
ase

ad
lou

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óti

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al

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b

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os

da
ut
an

g
Bi

od

ali
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Re
Pr
T/
IO

       Fonte – Adaptado de Bettiol; Capestro et al., 2017.

Riscos e problemas legais


Embora existam diversos benefícios da aplicação de desenvolvimentos distribuídos e abertos,
atualmente há diversas questões jurídicas relacionadas ao assunto, como a responsabilidade técnica
pelo produto, a repetibilidade da fabricação, as técnicas de especificação.
Um exemplo clássico pode ser observado em produtos com restrições legais, como armamentos.
Esse tema teve maior difusão devido a sua divulgação pela mídia em meados de 2013, quando foi

Agrinho-Tecnicos_BOOK.indb 151 13/04/2021 11:12:16


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fabricado um simulacro – o Liberator Handgun, da empresa Defense Distributed (ROBERTS, 2013),


que realiza apenas um tiro, causando polêmica ao redor do mundo. (MORELLE, 2013; ROBERTS,
2013; ROMANI, 2013).
Outros aspectos sobre a legalidade de projetos distribuídos estão relacionados à responsabilidade
legal sobre os produtos. Por exemplo, ainda existem controvérsias sobre de quem é a responsabilidade
por um produto que cause algum tipo de problema, lesão ou incômodo para um consumidor ou
usuário de plataformas de projetos em nuvens. Em casos convencionais, a responsabilidade recai sobre
o fabricante e revendedor/distribuidor. Contudo, nesse novo cenário, a responsabilidade será dos
projetistas (quando o projeto for colaborativo), do fabricante, do fornecedor de matéria-prima ou até
do usuário.
Essas questões ainda estão em aberto, sendo discutidas de forma extensivas para identificação de
pontos intermediários que não prejudiquem o avanço de uma tecnologia revolucionária e de questões
de responsabilidade legal sobre produtos.

CONCLUSÕES
De forma geral, as impressoras 3D são atualmente uma das principais engrenagens que movimentam
a Indústria 4.0, ao se considerar que permitem flexibilidade e fabricação de componentes com maior
liberdade geométrica que dos processos convencionais, além de suportarem novos mercados.
Neste capítulo, foi evidenciado que as impressoras 3D, em conjunto com processos convencionais,
podem proporcionar maior produtividade e flexibilidade de produção que estes isoladamente,
quebrando assim com o paradigma produtivo ‘a variedade de produto é inversamente proporcional à
produtividade’.
Pode-se também observar que a utilização de equipamentos de manufatura aditiva apresenta
a vantagem de replicabilidade e de escalonabilidade de infraestrutura, sendo que por meio de um
equipamento de impressão 3D é possível fabricar novos equipamentos mais precisos, além de
equipamentos complementares alinhados à necessidade de produção e/ou desenvolvimento.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
155

ROBÓTICA E NANOTECNOLOGIAS: IMPACTOS


TECNOLÓGICOS E SUAS RUPTURAS SOCIAIS

Daniel Albiero

INTRODUÇÃO
Neste capítulo pretendemos dar uma ideia sobre robótica e nanotecnologias, tanto do ponto de
vista técnico-científico como social-filosófico. Faremos uma tentativa para diminuir a ‘aridez’ desses
assuntos em termos de palavreado científico e conceitos técnicos, no entanto não os eliminaremos
totalmente, pois senão correremos o risco de limitar o assunto no que ele tem de mais interessante: o
estado da arte da atual conjuntura do desenvolvimento técnico-social da humanidade. O objetivo do
texto é apresentar os conceitos, desafios e perigos de forma clara e simples, sem rodeios ou passeios por
emaranhados de teorias, cálculos, projetos, sistemas e processos.
Quando conceitos mais ‘espinhosos’ se apresentarem, usaremos a abordagem didático-
-construtivista. Nesse ponto, precisamos fazer uma ressalva: em robótica e nanotecnologia, a maioria do
conhecimento é produzido em língua inglesa. Por exemplo, em uma rápida pesquisa no Google em 16 de
abril de 2018 usando-se a palavra-chave ‘robótica’ foram encontradas 5,94 ⋅ 106 páginas (desconsiderando
a qualidade desse material). Já para a palavra ‘robotics’ foram encontradas 64,90 ⋅ 106 páginas, ou seja, no
Google há 10 vezes mais informação em inglês sobre robótica do que em português e espanhol.
Se usarmos um finder científico, como o ScienceDirect (2018), que é disponibilizado pela Capes
para as universidades, percebemos que a língua inglesa é mais utilizada ainda. Usando essa plataforma

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156

encontramos, para a palavra-chave ‘robótica’, 2.684 artigos científicos, e para ‘robotics’, 180.255 artigos,
sem juízo de valor quanto ao valor intrínseco do conhecimento que é apresentado neles. Ou seja, em
termos científico-tecnológicos existe 67 vezes mais conhecimento em inglês do que em português e
espanhol juntos. Em relação à nanotecnologia o panorama é o mesmo.
Essa discussão é pertinente por dois motivos: primeiro, porque se a língua hegemônica para se
escrever sobre robótica e nanotecnologia é o inglês, devemos conhecer os termos em inglês sobre esses
temas. Vou dar um exemplo: em robótica existe um conceito chamado ‘robôs swarm’, termo que
traduzido para o português quer dizer ‘robôs enxame’. O fato é que na área de robótica os especialistas
e simpatizantes não escrevem ‘robôs enxame’, mas algo como ‘estes robôs swarm são muito bons’. Esse
fato se repete em qualquer língua. Um especialista em robótica paraguaio escreveria, por exemplo: ‘estos
robots swarm son muy Buenos’.
Em um contexto educacional, esse fato pode ser uma ótima oportunidade para um ensino
transdisciplinar entre Física, Química, Matemática, Biologia, Literatura, Filosofia, Sociologia e Língua
Inglesa, pois como os termos em inglês são amplamente utilizados nessas áreas, facilmente é possível
realizar atividades e processos educacionais transversais pelos(as) professores(as) de Ciências e as(os) de
Inglês e Literatura com foco em robótica e nanotecnologia.
Segundo motivo, é preciso diferenciar em robótica e nanotecnologia o que é ‘conhecimento’ do
que é ‘informação’. Isso é essencial, pois muita gente confunde esses conceitos e por isso verdadeiros
descalabros são escritos e divulgados. Principalmente no Google, nas 70 milhões de páginas sobre
robotics/robótica você vai encontrar desde teorias conspiratórias até conceitos completamente errados –
tudo divulgado como se fosse a última palavra sobre o assunto.
Para esclarecer um conceito não técnico, sempre procuro a origem da palavra (etimologia) que
o define. Como as línguas são muito antigas, ricas e profundas, para realmente conhecermos seus
fundamentos devemos partir da origem de seus termos conceituais. A origem da palavra ‘conhecimento’,
por exemplo, está no latim. Ela é a conjunção de três partes: com (junto) + gnoscere (conhecer ou saber
algo) + mento (ação ou ato). Portanto, trata-se da ação de saber ou conhecer algo.
Segundo a filosofia, o conhecimento é sempre subjetivo, pois depende do sujeito, do objeto e
principalmente das experiências subjetivas de cada sujeito ao codificar e interpretar a informação.
Conhecimento é uma palavra intrínseca ao contexto, que significa o resultado de uma atitude livre e
consciente de alguém em saber ou conhecer alguma coisa baseada em dados subjetivos ou não.
A palavra ‘informação’ também vem do latim e é a junção de in (dentro) + formatio (forma) + onis
(genitivo do singular), portanto significa ‘dentro da forma de alguma coisa’ e, em geral, é uma ideia.
Segundo a ciência da informação, ela pode ser objetiva ou não e é um conjunto organizado de dados
ou ideias relativos a um fenômeno.
Dessa contextualização epistemológica podemos concluir que a informação faz parte do
conhecimento e que este é muito mais amplo, poderoso e significativo do que aquela. Na relação entre
informação e conhecimento não existe a eterna dúvida representada pela alegoria redundante ‘Quem
vem primeiro: o ovo ou a galinha?’. Nessa relação a informação sempre vem primeiro e o conhecimento

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157

vem depois, eis então porque aquela é sempre limitada (aos dados e ideias), enquanto este não, pois
por meio de informações comuns a vários sujeitos cada um pode gerar saberes inovadores, diferentes
entre si, das mais variadas formas. O conhecimento pode até ser tratado como informação, mas em sua
origem houve alguém com consciência e liberdade que ‘pensou’ os dados e ideias.
Essa discussão é muito importante, pois em robótica e nanotecnologia ela encerra a principal
fonte de confusão filosófica/ideológica da atualidade, fomentada por muitos autores famosos de
best-sellers que chegam ao cúmulo de afirmar que os dados são tudo, que a era da informação gerará
algoritmos e sistemas que facilmente suplantarão a humanidade. Nada mais falacioso, pois todos eles se
esquecem de que para ser formado o conhecimento (que realmente importa) precisa essencialmente de
um sujeito conscientemente livre, que interprete os dados (informação) subjetivamente para que estes
se tornem saberes úteis, o que, repito, é realmente o que interessa.
Esses sistemas artificialmente inteligentes jamais substituirão a humanidade, pois para isso teriam
de ser conscientes, livres e subjetivos, o que vai contra o estamento lógico deles. Eles podem ser ou
serão muito melhores tomadores de decisões do que nós, mas jamais vão gerar conhecimento, pelo
simples motivo de que gerar, processar e usar informação não é e nunca será gerar conhecimento. Esses
sistemas, por definição, apenas lidam ou lidarão com informação.
Nesse contexto, este capítulo foi planejado para fornecer os fundamentos e tentar apresentar o estado
da arte em robótica e nanotecnologia neste início do século XXI. Navegaremos pelo tormentoso oceano
das polêmicas sociais/filosóficas a respeito desses temas e por fim adentraremos com esperança na única
estrada segura para o futuro, cada dia mais robótico e nanométrico: a educação. Como últimas palavras
desta introdução, é preciso ressaltar ser completamente impossível abordar robótica e nanotecnologia
sem fazer interfaces com a biotecnologia e as ciências da informação. Dessa forma, insights e conceitos
dessas áreas serão abordados na discussão, principalmente quando nos direcionarmos para o futuro.
Alguns dirão que essas quatro áreas do conhecimento são os anjos que levarão a humanidade ao
paraíso, outros, que são os quatro cavaleiros do apocalipse. Em uma visão de mundo mais equilibrada,
podemos pensar que são na verdade quatro potenciais, que podem ser usados para o bem ou para o
mal, tudo muda de repente. Isso não é o importante. Fundamental é ter esperança em fazer um bom
‘negócio’ com o ‘diabo’, como Guimarães Rosa escreveu em sua obra prima, Grande Sertão: Veredas:
“Tem cisma não. Pense para diante. Comprar ou vender, às vezes, são as ações que são as quase iguais...”
(ROSA, 2001, p. 623).

ROBÓTICA

Houve um tempo em que o homem enfrentou o universo sozinho e sem amigos. Agora ele tem criaturas
para ajudá-lo; criaturas mais fortes que ele próprio, mais fiéis, mais úteis e totalmente devotadas a ele.
A humanidade não está mais sozinha. (ASIMOV, 1950).

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158

Fundamentos
A palavra ‘robô’ teve origem na década de 20 do século XX, quando um escritor tcheco de ficção
científica (Karel Capek) escreveu uma peça para teatro intitulada R.U.R. (Rosumovi Univerzalni
Roboti)1. A palavra ‘roboti’ é o plural de robota, que em línguas eslavas significa ‘trabalho exercido de
forma compulsória’ (escravo).
Apesar de a origem da palavra remeter ao século XX, o conceito de um ser autômato construído
pelo homem para servi-lo é muito antigo. Na mitologia grega (2.500 a.C) já havia deuses fazendo
escravos de bronze para servi-los. Há 2.500 anos os chineses já pensavam nas vantagens de soldados
‘desenvolvidos e construídos’ em massa para formar os exércitos do Rei Amarelo durante sua estadia
entediante no túmulo. No ano 1.500 de nossa era Leonardo da Vinci projetou inúmeros engenhos
fantásticos, como um leão autômato e um cavaleiro robótico. Enfim, o conceito de robô é muito
antigo; nova é a concretização dessa ideia de forma prática, baseada no método científico e lastreada
pelos avanços tecnológicos que tornaram viável sua utilização pela humanidade com bom custo/
/benéfico. Isso já vem ocorrendo há pelo menos 40 anos.
Nesse ponto, é preciso definir o conceito de robô de forma precisa. Trata-se de todo sistema
automático que tem capacidade de decisão. Existem outras definições, mas essa me parece a mais
abrangente e principalmente, a que se direciona para o real futuro.
Um sistema automático puro não toma decisões. Pensemos, por exemplo, na linha de produção de
cerveja em uma grande indústria de bebidas. De um lado entram os insumos, de outro saem as cervejas
engarrafadas e prontas para serem comercializadas. Se o sistema estiver adequadamente dimensionado,
projetado, regulado, calibrado, fiscalizado e gerenciado, o ser humano não toca em um único botão
durante o processo de produção da cerveja, pois o sistema faz tudo sozinho. No entanto, se um único
elemento externo gerar uma modificação representativa não prevista pela programação do sistema, este
funcionará errado e poderá parar de funcionar.
O gerenciador automático digital do sistema de esterilização das garrafas da linha de produção
pode, por exemplo, apresentar um comportamento estranho e imprevisível devido a uma tempestade
solar. Esta pode ter enviado para a Terra uma subpartícula atômica que gerou um erro na linha de
código do programa, graças a um decaimento em escala de uma partícula múon em pósitrons. Assim, um
semicondutor de germânio, presente em um microchip de memória do gerenciador, em vez de guardar
um valor ‘zero’ guardou um valor ‘um’, e isso fez o sistema aumentar a temperatura de esterilização em
alguns graus.
Os sistemas de alerta podem não detectar essa falha e, se a detectarem, nenhuma ação humana
pode ser tomada. Pode acontecer então de essa pequena variação na temperatura gerar microfissuras nas
garrafas que vão gerar concentração de tensões no vidro. No momento em que a garrafa for preenchida,
isso poderá ocasionar a ruptura das garrafas. Se tudo isso acontecer em um sistema automático puro, este
jamais vai avaliar que as garrafas estão quebrando e muito menos diagnosticar que isso foi ocasionado
porque a temperatura de esterilização está alta demais e, principalmente, jamais vai tomar a decisão de
diminuir um pouco a temperatura do sistema de esterilização.

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Assim, existem três opções para esse sistema puro nesse experimento mental: 1) as garrafas
quebrarão uma atrás da outra, sem parar; 2) alguém vai ver o que está acontecendo e vai parar o
sistema; 3) o sistema automático identificará que algo muito errado está acontecendo e vai parar a linha
de produção (sem saber da quebra das garrafas). Esta última opção não será uma decisão no sentido
estrito, mas um sinal de comando de que a programação não está sendo concluída corretamente. Então
alguma linha de código que já tinha sido escrita por alguém há muito tempo manda pará-la.
Uma palavra-chave essencial nesse sentido é ‘robótica’, que segundo Siciliano e Khatib (2008) é
definida como a ciência que estuda a conexão inteligente entre percepção e ação. De acordo com o
livro Springer Handbook of Robotics, organizado por esses autores, a ação de um sistema robótico é
confiada a um complexo de locomoção para se movimentar no ambiente e/ou um aparato de manipulação
para operar objetos onde atuadores animam os componentes mecânicos de um robô. A percepção é
extraída de sensores que provêm informações sobre o estado do robô (posição e velocidade) e do
ambiente (força, alcance, visão). A conexão inteligente é fornecida por um sistema de processamento
digital em que uma programação computacional baseada em uma arquitetura de controle explora a
aprendizagem e as habilidades de aquisição de informação por meio de uma lógica definida.
Dessa definição podemos entender que um sistema robótico é algo muito mais avançado e poderoso
do que um sistema automático, e podem acreditar: sistemas robóticos já dominam há vários anos muitas
áreas da indústria e agora estão adentrando com tudo na agricultura e estão chegando ‘com vontade’
ao setor de serviços. Os ‘cérebros’ desses robôs atuam com uma programação computacional digital
avançada e junto a microprocessadores de alto nível são alimentados por feedbacks (retroalimentados)
provenientes de sensores que ‘sentem’ o ambiente, possibilitando aos robôs ‘pensarem’ com lógicas
estocásticas, redundantes ou Fuzzy, que os direcionam diretamente para as tecnologias de Artificial
Intelligence (AI), que em pouco tempo terão potencial quase infinito, os deixando a muitos anos-luz de
nossa reles capacidade de processar informação e tomar decisões.
Para muitas pessoas, tal potencial é deveras assustador, pois há uma questão arquetípica de perigo
em relação ao alcance de decisões tomadas por uma AI. Muitos livros e filmes de ficção científica se
referem exatamente a esta questão: a criatura que supera ou mata o criador. (ASIMOV, 2010). Esse medo
é saudável quando nos ‘avisa’ que temos de criar barreiras quanto a esse perigo potencial, mas também
pode ser doentio quando gera a ‘tecnofobia’, levando a posições extremistas e teorias conspiratórias.
Nesse capítulo o foco é a tecnologia, o desenvolvimento e o potencial da robótica para melhorar a vida
da humanidade. Nesse contexto, posso garantir que o medo da robótica é semelhante àquele sentido
quando encontramos algo desconhecido; depois que entendemos o que a coisa é e faz, o medo acaba.
Quando pensamos nos fundamentos da robótica temos de considerar um conteúdo multidisciplinar
muito intrincado e interativo. Os sistemas robóticos envolvem muitos conhecimentos, que por sua
vez tentam resolver muitos desafios práticos referentes à operacionalização de um robô. Segundo
Orin, Hager, Chung, Fu e Hsu (apud SICILIANO; KHATIB, 2016), os princípios e métodos para o
desenvolvimento de sistemas robóticos estão envoltos em cinemática, dinâmica, projeto de mecanismos,
sensoriamento, planejamento de movimentos, teoria de controle, programação, arquitetura de sistemas
e métodos em raciocínio AI.

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É obvio que neste pequeno capítulo me é impossível abordar minimamente esses tópicos. No
entanto, tentarei fornecer o início do básico.2
Quando consideramos a cinemática, pensamos no movimento dos corpos, cujos principais
parâmetros são a distância e o tempo. A cinemática se ocupa, portanto, de corpos em movimento que
viajam a velocidade constante ou não (acelerados). Segundo Waldron e Schmiedeler (apud SICILIANO;
KHATIB, 2016), o movimento das partes do robô deve ser projetado, analisado, controlado e simulado
de tal forma que as diferentes posições e orientações de seus meios sejam alcançadas de forma eficiente,
e o ambiente para esses estudos é o workspace (espaço de trabalho) do robô.
A cinemática robótica se converte em algoritmos aplicados aos mecanismos, e esses sistemas
basicamente se referem a conexões e uniões entre corpos rígidos. A combinação entre a orientação e
a posição desses corpos rígidos é chamada de ‘pose’. Assim, a cinemática robótica descreve as poses,
velocidades e acelerações desses corpos, que compreendem os mecanismos do robô. (WALDRON;
SCHMIEDELER apud SICILIANO; KHATIB, 2016). A cinemática robótica estuda, dimensiona e
projeta isso.
O formalismo da cinemática robótica assenta-se nos cálculos vetorial e matricial. Basicamente,
trata-se do estudo da combinação dos corpos rígidos pertencentes a um robô em relação a translações
e rotações em bases vetoriais dentro de um workspace. Nessa parte do capítulo vou apresentar uma
daquelas expressões matemáticas complicadas e enigmáticas; ei-la:

 xj pi 
j 
j
p
. i =  y pi 
j 
 z pi 
Galileu uma vez escreveu que qualquer um consegue falar obscuramente, o difícil é se expressar
claramente. Neste texto vou tentar mostrar que a matemática da cinemática robótica é muito simples,
no fundo é apenas uma questão de conhecer sua linguagem.
Em primeiro lugar, temos de definir ‘base vetorial’ sem entrar muito na álgebra linear. Para fins
didáticos, descreverei esse conceito como o canto de um quarto vazio. Então imagine o chão e as
paredes de um quarto. Se alguém (ou, se preferir, um robô) estiver em qualquer lugar do quarto e olhar
para esse canto, vai ver que na intersecção dos planos das duas paredes que formam o canto existe uma
linha (a linha vertical do canto) a que vamos chamar de zi . No chão há mais duas linhas, que são os
vértices formados pela intersecção do chão com as duas paredes do canto. Vamos chamar uma delas de
xi e a outra de yi . Uma característica muito interessante entre essas três linhas é que o ângulo entre
qualquer par delas é sempre de 90°. Quando temos essa característica exotérica dizemos que essas linhas
são ortogonais.
Avançando mais um pouco, ao observarmos a linha zi , podemos perceber que ela tem uma
direção, no caso vertical. Desse modo, uma formiguinha bem no canto tem a opção de subir ou descer,

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ou seja, ela pode escolher um sentido (para cima, para baixo). O ente matemático que tem direção e
sentido é chamado vetor.
No caso estudado, o acento circunflexo sobre a letra z indica que se trata de um vetor, e na
matemática e robótica o linguajar técnico é ‘vetor z’. O índice ‘i’ é simples: na intersecção entre os três
planos (as duas paredes e o chão) existe um ponto conhecido como origem: ‘Oi’. A junção desses três
entes matemáticos ( xi , yi , zi ) define uma base vetorial ortogonal, e essa tríade, junto à origem Oi,
define um frame (quadro) das coordenadas de referência ‘i’. Então, na linguagem matemática, diz-se
que ‘o vetor z na base i é um vetor diretor de base global’ porque todos os outros vetores possíveis nessa
base podem ser decompostos em uma composição formada pelos vetores diretores xi , yi , zi .
Ao ver uma barata se deslocando, por exemplo, matematicamente podemos descrever seu
movimento em função das posições, distâncias e tempos entre ela e cada uma das coordenadas x, y e z
baseados no frame ‘i’ que define a base vetorial ortogonal global3.
Suponha que em algum lugar deste quarto exista um robô human-centered (HC) – também
conhecido como robô humanoide – e ele resolva levantar um braço. Nesse caso ainda temos de
levar em consideração a base global, mas somente com ela fica difícil modelar matematicamente esse
movimento. Então, para facilitar a matemática, imagina-se outra base vetorial ortogonal ‘j’, cuja origem
está no centro do ombro do braço do HR que se levanta. A origem da base ‘j’ não é ‘Oi’, mas ‘Oj’, que
é o centro do ombro do HR, e não o canto do quarto. A representação da base vetorial ortogonal será
então xj , yj , zj , e será denominada base local.
Do relacionamento (às vezes conflituoso) entre os frames ‘i’ e ‘j’ temos a posição da origem do
frame ‘j’ (ombro do robô) em relação ao frame global ‘i’ (canto da parede), xj pi , yj pi , zj pi . Ou seja,
temos, na linguagem matemática, a ‘base local jota p (x, y, z) base global i’. Portanto, essa equação
nada mais é que a representação das coordenadas de posição j pi de alguma parte do braço do robô.
Tais coordenadas são redigidas em uma coluna vertical porque representam um vetor codificado em
uma matriz coluna 3x1 (3 de três dimensões, 1 porque é um vetor). Essa forma matricial de escrever os
vetores facilita muito os cálculos computacionais baseados no processamento digital, e assim o cálculo
matricial assume o comando.
Matematicamente, para qualquer parâmetro de movimento essa forma de escrever é a mesma,
tanto para posição quanto para deslocamento, orientação, rotação, velocidade e aceleração, afinal
todos seguem a mesma lógica. É claro que na prática complica um pouquinho, pois envolve ainda
conceitos de trigonometria e um pouco mais de cálculo e manipulação algébrica, sem falar nas regras
de multiplicação de matrizes, transposta de uma matriz, determinantes etc. Cada um desses parâmetros
terá matrizes específicas que modelam o movimento em função do cálculo vetorial e matricial, e tudo
isso é aplicado para todos os componentes móveis do robô, desde uma roda até uma mão, sempre
considerando as bases locais e a global.
A respeito da cinemática, trata-se da ciência que estuda os movimentos dos corpos. Mas o que faz
os corpos se movimentarem? As forças, e quando elas entram no jogo a cinemática é pouco, então temos
de estudar a dinâmica com o background (fundo/base/fundamento) da cinemática, e assim chegamos às

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complicadas equações dinâmicas do movimento. Featherstone e Orin (apud SICILIANO; KHATIB,


2016) afirmam que essas equações relacionam a atuação dos corpos rígidos às forças de atuação nos
mecanismos dos robôs. Tais forças geram acelerações que resultam no movimento e definem a trajetória
dos elementos atuantes.
A matemática utilizada é a mesma da cinemática, cálculo vetorial e matricial, com o adendo do
uso disseminado de equações diferenciais4. Em robótica, a equação espacial de movimento é o modelo
matemático mais extensivamente usado para os algoritmos computacionais cuja função é controlar e
avaliar o movimento dos elementos de um robô. Basicamente, ela é uma equação da seguinte forma:

d(I ⋅ v )
F=
dt
Essa equação diferencial estabelece que a força (F) de um elemento mecânico é a taxa de variação
no tempo (d()/dt) do momentum desse elemento (I.v). O momentum (também conhecido como
quantidade de movimento) relaciona a massa de um corpo à velocidade desse corpo. Vem daí o
conceito de impulso, ou seja, uma força aplicada durante certo tempo que é igual à variação de
momentum nesse mesmo tempo.
Até aqui parece muito simples, mas as coisas começam a ficar mais interessantes quando
enriquecemos o conceito: como essa massa é distribuída no corpo? Considere para tanto um cilindro.
Se toda a massa é distribuída no cilindro homogeneamente, considerando um eixo transversal ao
cilindro você consegue colocar ele para girar com algum esforço, em um movimento parecido com
o de uma hélice de avião. Mas se a maior parte da massa é distribuída nas pontas do cilindro, então
o esforço é muito maior para brincar de aviãozinho. Então, empiricamente podemos comprovar que
esse cilindro homogêneo gira de forma mais fácil do que aquele que tem massa nas pontas, pois a
distribuição de massa no corpo é considerada com base no momento de inércia de massa desse corpo
(I), que é a resistência imposta por um corpo à modificação de sua velocidade angular.
Pois bem, um corpo dividido por uma linha em duas partes iguais (simétricas) também representa
a divisão de massas, ou seja, metade de um lado e metade do outro, e terá um momento de inércia X.
No entanto, se seu corpo ficar torto como o meu, com uma barriga protuberante e pesada deslocada
da linha de simetria, o momento de inércia será 3 · X, e quanto maior o momento de inércia de massa
mais difícil será realizar um rodopio.
O tipo de movimento desse corpo também deixa o conceito mais rico, se pensarmos que o corpo
apenas translada ou se somente gira, ou se translada e gira ao mesmo tempo. Como existem velocidades
diferentes para cada tipo de movimento, quando o corpo apenas translada temos a velocidade
translacional; se ele gira, temos a velocidade angular. Todas essas questões são levadas em conta na
equação dinâmica do movimento, e assim ela evolui:

d(I ⋅ v ) d(I) d( v ) 
F= = ⋅v + I⋅ = I⋅v + I⋅a
dt dt dt

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A força aplicada em um elemento qualquer de um robô é igual à taxa de variação da dificuldade


de se mudar a velocidade desse elemento no tempo multiplicada pela velocidade mais a dificuldade
em se mudar a velocidade desse corpo multiplicada pela aceleração desse elemento. Interpretar
fisicamente essa equação não é simples. Para nossos propósitos, basta saber que no fundo esse
momentum (I · v) variável no tempo se relaciona com a energia desse elemento robótico. O
importante mesmo é saber que por meio dessas equações os engenheiros mecatrônicos conseguem
elaborar algoritmos computacionais eficientes para controlar o movimento do robô com base em
equações compactas de fácil desenvolvimento e implementação. (FEATHERSTONE; ORIN apud
SICILIANO; KHATIB, 2016).
Os mecanismos de um robô são associados a um nível de precisão dos movimentos que determinam
características detalhadas, tais como estrutura mecânica, transmissão de forças e seleção do atuador.
Essas características são definidas por elementos mecânicos, tais como vigas, elos, uniões, eixos,
rolamentos, engrenagens, que formam um esqueleto móvel e configuram uma estrutura mecânica e
seus mecanismos. (SCHEINMAN; MCCARTHY apud SICILIANO; KHATIB, 2016).
Nesse contexto existem diversas topologias de robôs. Em termos de esqueletos há os robôs série, que
correspondem a uma cadeia de elementos e se ligam em série consecutivamente. Por outro lado existem
os robôs paralelos, que formam um conjunto de elementos em série que se ligam em paralelo. Existem
ainda robôs móveis e fixos. Em cada uma dessas topologias existem ainda diversas configurações. Na
topologia em série existem desde braços robóticos, como os encontrados em robôs soldadores nas
indústrias, até o sistema robótico dos ônibus espaciais da NASA, especializados em manipular satélites.
Na topologia em paralelo existem desde sistemas de quatro barras, especializados em manter um nível
constante no chassi de um carro, até veículos que caminham sobre seis apoios.
Existem robôs de todos os tipos: manipuladores, com mãos, com pernas, com mãos e pernas,
aquáticos, aéreos, terrestres, insetos, swarm, com rodas, teleguiados, industriais, domésticos, cirurgiões,
humanoides (HR), modulares, celulares, submarinos, espaciais, agrícolas, para mineração, para
construção, para aplicações perigosas, de combate, de busca e salvamento, médicos, educacionais,
biologically inspired (BI), evolutivos e até nanorrobôs. (SICILIANO; KHATIB, 2016).
O equacionamento desses mecanismos segue os ditames da cinemática e da dinâmica já descritos
com a adição de estudos de otimização estrutural e operacional dos elementos e atuadores – estes
podem ser resumidos em hidráulicos, pneumáticos e eletromagnéticos. As transmissões podem
ocorrer diretamente dos atuadores, mas geralmente existem elementos de máquinas específicos tais
como correias, engrenagens, cremalheiras, roscas sem-fim, parafusos, braços, pinhões e cabos de aço.
(SCHEINMAN; MCCARTHY apud SICILIANO; KHATIB, 2016).
Por meio do desenvolvimento dos mecanismos robóticos, o desempenho dos robôs pode ser
medido em relação a sua velocidade, aceleração, repetibilidade, resolução, acurácia e vida útil. E isso é
muito importante quando queremos estimar suas ações e estados.
Segundo Christensen e Hager (apud SICILIANO; KHATIB, 2016), o sensoriamento e a estimação
são essenciais em qualquer sistema robótico. Em nível básico, um robô deve estimar que o controle

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retroalimentado (feedback) será utilizado para definir seu estado e em alto nível perceber o ambiente
por meio dos dados dos sensores, permitindo a integração entre a informação do sensor inserido no
workspace em função do tempo e espaço. Tudo isso para facilitar o planejamento das ações.
E o que são sensores e estimativa de estado? Fazendo uma analogia com os seres vivos, sensores
seriam os órgãos dos sentidos (visão, tato, paladar, olfato e audição), todos ligados pelos nervos ao
cérebro, que institivamente ou não estima que ações devem ser tomadas tanto para a manutenção da
vida como para a realização de tarefas.
Christensen e Hager fazem uma observação muito interessante sobre esse tópico:

O controle de sistemas robóticos seria relativamente simples se um modelo completo do ambiente fosse
disponível, e se os atuadores dos robôs pudessem executar movimentos comandados perfeitamente em
relação a este modelo. Infelizmente em muitos casos de interesse um modelo completo do mundo
não é disponível, e um controle perfeito de estruturas mecânicas nunca é uma suposição realística.
O sensoriamento e a estimativa são meios para compensar esta falta de informações completas. (apud
SICILIANO; KHATIB, 2016).

É preciso nesse ponto diferenciar dois tipos de sensoriamento e estimativa. Existem sensores e
processamento específicos para cobrir o estado do robô em si mesmo, chamados de proprioception,
e outros para cobrir o estado do mundo externo, exteroception. Os sensores de proprioception
são usados para medir condições internas do robô: posição de elementos em diferentes graus de
liberdade; temperatura; voltagem nos componentes; corrente nos motores; forças aplicadas etc.
Já os de exteroception são usados para medir e obter informações externas ao robô: temperatura;
umidade; velocidade do vento; pressão atmosférica; distância entre objetos; forças de interação,
densidades de tecidos etc.
O leitor percebe, pelo texto anterior, que existem centenas, talvez milhares de sensores disponíveis
para a robótica. Eles podem ser classificados em oito grupos: sensores de toque; táteis; de eixo; de
orientação; de guiamento; de alcance; de velocidade/movimento; de identificação. Quanto aos tipos
disponíveis, segundo Christensen e Hager (apud SICILIANO; KHATIB, 2016) são 40, e para cada
qual talvez haja centenas de modelos e sistemas.
Segundo Christensen e Hager (apud SICILIANO; KHATIB, 2016), os processos de estimação
baseados nas informações provenientes dos sensores devem ser combinados para definirem as ações do
robô por meio das estimativas das condições ambientais e internas do sistema. As metodologias mais
comuns incluem métodos baseados em votação, técnicas estatísticas de estimação paramétricas ou
não, lógica Fuzzy e teoria Dempster-Shafer (que raciocina com a incerteza e as conexões entre várias
estruturas lógicas e probabilísticas; é muito utilizada na AI).
Com base na definição das ações que o robô deve realizar, é necessário realizar então o planejamento
do movimento. Kavraki e LaValle (apud SICILIANO; KHATIB, 2016) descrevem que uma tarefa
fundamental da robótica é planejar movimentos livres de colisões para corpos complexos do início
ao final, passando entre uma coleção de obstáculos estáticos. Embora essa tarefa seja relativamente

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simples, ela é computacionalmente difícil. Os algoritmos modernos têm tido sucesso em atingir esse
objetivo em problemas geométricos básicos, e muito esforço tem sido dispendido para estender as
capacidades dos robôs para situações desafiadoras.
A primeira questão a ser resolvida no planejamento de movimento é a configuração do espaço, que
deve conter uma completa descrição geométrica do robô, e do workspace, onde as ações se desenrolarão.
Feita essa descrição, deve-se planejar o caminho geométrico do movimento em linguagem algorítmica:
o workspace – em R2 (bidimensional) ou R3 (tridimensional); os obstáculos, suas posições e geometrias;
a definição e a descrição físico-mecânica dos elementos do robô; os diagramas de corpo-livre; a
configuração do espaço; as condições iniciais; a condição final desejada. Por último, deve-se redigir
tudo isso em uma linguagem lógica compatível com os sistemas de processamento.
Concluído o planejamento de movimento, é preciso executá-lo, e para isso o controle do
movimento é a próxima etapa. O principal desafio para a robótica sobre esse tema é a complexidade
da dinâmica e as incertezas que abarcam os elementos em ação de um robô. Como em geral os
movimentos são não lineares e as redes de controle podem ser desestruturadas, os parâmetros
dinâmicos têm soluções não triviais para os diversos componentes (uniões, vigas, elos, atuadores) que
sofrem influência direta do atrito e de outros parâmetros desconhecidos do ambiente. (CHUNG;
FU; HSU apud SICILIANO; KHATIB, 2016).
O controle do movimento é realizado por integradores eletrônicos, em geral sistemas
microprocessados com placas de controle especializadas (um tipo de computador). Esses sistemas
podem fazer parte do sistema central de processamento ou serem separados dele. Os elementos do
robô atuam por meio das ‘ordens’ dadas por esse cérebro.
Em primeiro lugar, o controle de movimento deve ter um modelo dinâmico avançado o bastante
para predizer as forças e acelerações do movimento dos elementos. Depois, as tarefas de controle
devem ser elencadas em um workspace de controle operacional, que deve ser configurado em função
dos elementos do robô. Por último, deve-se elaborar a estratégia de controle, que em geral segue um
projeto de controle por meio de um controlador Proportional-Integral-Derivative (PID). Um projeto
PID fundamentalmente controla a velocidade e a posição do elemento em um processamento em
loop fechado com feedback (retroalimentado). O que isso quer dizer? Segundo Chung, Fu e Hsu
(apud SICILIANO; KHATIB, 2016) em um controle PID o ‘P’ controla o esforço de tornar o
presente estado no estado desejado; o ‘I’ acumula o esforço usando informação experimentada do
estado anterior e o ‘D’ prediz o esforço, refletindo a informação sobre a tendência dos futuros
estados do robô.
Depois que controlamos o movimento, temos de controlar a força. De que adianta um robô
conseguir pegar uma fruta no galho mais escondido e retorcido de um pé de acerola se ao pegá-lo, ele
o esmaga de tal forma que nem o caroço sobra?
Um requerimento fundamental para o sucesso da manipulação de objetos por um robô é a capacidade
de controlar a força de contato entre os elementos do robô e os objetos do ambiente, principalmente
quando se leva em consideração o comportamento instável durante essa interação. Assim, o controle

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da força é essencial para se alcançar sucesso em operações com segurança, principalmente em situações
de interação com humanos. (VILLANI; DE SCHUTTER, 2008).
Durante o contato entre os elementos do robô e os objetos do ambiente pode haver restrições
geométricas relativas aos caminhos seguidos por esses elementos. Elas são chamadas de restrições
cinemáticas, e esse movimento é chamado restringido. Por outro lado, as tarefas de contato são
caracterizadas por interações dinâmicas entre o robô e o ambiente e podem ser inerciais (empurrar um
bloco); dissipativas (deslizar sobre uma superfície) ou elásticas (empurrar uma parede). O sucesso dessas
interações somente é atingido se a estratégia de controle e o planejamento de movimento se adequarem
a um modelo manipulador que respeite as restrições e atenda às exigências dinâmicas. (VILLANI;
DE SCHUTTER, 2008). Eis então a importância do controle de força, pois nessas interações sempre
haverá processos recursivos entre o controle de movimento e o controle de força.
Kortenkamp e Simmons (apud SICILIANO; KHATIB, 2016) afirmam que os softwares de sistemas
robóticos tendem a ser complexos devido à necessidade de controlar diversos sensores. Atuadores
em tempo real em face de significativo ruído e incerteza, os robôs devem realizar tarefas enquanto
monitoram reações, situações inesperadas e o ambiente, tudo ao mesmo tempo e assincronizadamente,
o que adiciona imensa complexidade ao sistema.
Nesse contexto é importante o uso de arquiteturas computacionais bem concebidas e conjugadas
com ferramentas de programação que suportem essa arquitetura. Atualmente não existe uma arquitetura
boa o bastante para todas as aplicações, assim é importante entender as fraquezas e vantagens de
cada uma para escolher a que melhor se adequa a dada aplicação. Segundo Kortenkamp e Simmons
(apud SICILIANO; KHATIB, 2016), a arquitetura de um robô tem dois conceitos distintos: 1) a
arquitetura da estrutura, que se refere a como os sistemas são divididos em subsistemas e em como
estes interagem entre si; 2) o estilo da arquitetura, que se refere ao conceito computacional em que
os sistemas se subjazem. A arquitetura de robôs é em geral modular e hierárquica, ou seja, é formada
por módulos simples e independentes que seguem uma hierarquia no sentido de que são construídos
e montados seguindo uma ordem pré-estabelecida de elementos e/ou processos. Essa configuração
diminui a complexidade e aumenta a confiabilidade.
Finalmente, chegamos ao último desses fundamentos em robótica, a área mais avançada, a ponta-
-de-lança de tudo o que discutimos até aqui: a Artificial Intelligence (AI) de um robô. Não por acaso,
esse é o tópico que suscita maior curiosidade, maior fascínio e maior confusão, o que por sua vez gera
o medo.
Segundo Beetz et al. (apud SICILIANO; KHATIB, 2016), a tecnologia de raciocínio da AI
envolve inferência, planejamento e aprendizagem que são fundamentados no raciocínio simbólico
usando a lógica predicativa de primeira ordem (First order predicate logic – FOPL) ou a Teoria de
Probabilidade Bayesiana.
A lógica bayesiana, que em robótica gostamos de chamar FOPL, trata exatamente dessa situação,
pois representa incertezas sobre proposições, principalmente quando não temos a informação completa
sobre a plausibilidade da proposição5.

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Para Beetz et al. (apud SICILIANO; KHATIB, 2016), em AI é sempre preciso pensar em duas
palavras-chave: ‘representação do conhecimento’ (KR-Knowledge Representation) e ‘inferência’. Esses
conceitos, por sua vez, levantam duas questões: 1) Quais são os formatos adequados para a KR?;
2) De onde vem a KR? A resposta para a primeira pergunta é fácil: FOPL. Para a segunda é mais
difícil, pois se refere à geração e manutenção, em tempo real, de uma descrição simbólica do ambiente
do robô baseada em uma condição situacional recente da informação ambiental obtida por sensores e
comunicação com outros agentes envolvidos.
Segundo Beetz et al. (apud SICILIANO; KHATIB, 2016), a FOPL é o arquétipo do formalismo
KR para AI. Em algumas variantes, esse tipo de lógica facilita as inferências do conhecimento e por
dedução automática é um campo dos estudos em AI que tem sistemas de dedução implementados
muito poderosos, inclusive prontos para uso.
Em robótica, a inferência ou a lógica inferencial possibilita deduzir grande número de fatos que de
outra forma seria muito difícil, por exemplo: um robô percebe pela aquisição e interpretação de dados
de um sensor que a porta de uma sala em que ele deve entrar está fechada (primeira opção). Se o fato
‘porta fechada’ for representado por um código expresso em uma linguagem FOPL, então o robô, que,
pode estar em um corredor (fato também codificado na lógica), pode inferir várias coisas:
a) Assumindo ‘saber’ que a porta está fechada, o robô pode inferir que será melhor tomar
outra rota para tentar entrar por outra porta (segunda opção). Mas ele não sabe se esta
está fechada, ou seja, o status desse conhecimento é desconhecido, e por isso não pode ser
provado nem desaprovado;
b) Esse status deixa aberta a opção de planejar outra rota (terceira opção) para outra porta,
diferente da segunda. Devido a outros dados, também incompletos, ele calcula por inferência
que a probabilidade de essa porta estar aberta é maior do que a segunda opção;
c) então ele decide pela terceira opção.

Esse é um exemplo da forma de ‘pensar’ FOPL. (BEETZ et al. apud SICILIANO; KHATIB,
2016). Existem muitas outras lógicas utilizadas para AI: descritiva (Description Logics – DL), que são
consideradas um subconjunto de lógicas FOPL; Fuzzy; indutiva (Inductive logic programming – ILP);
redundantes etc. Essa área de pesquisa é interessantíssima e emocionante; trata-se do estado da arte da
AI, que é a vanguarda da robótica.

Estado da arte
Obviamente, é impossível abarcar tudo o que está sendo gerado e construído no mundo sobre
robótica nos dias de hoje. Somente considerando os artigos review (revisões bibliográficas) no estado da
arte (discussão baseada no conhecimento dos últimos cinco anos) foram publicados no ScienceDirect
(2018), em um período de 16 meses (2017 até abril de 2018), um total de 1.210 artigos.

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Por meio de uma filtragem avançada foram selecionados para o presente trabalho 288 desses
artigos, cujos abstracts foram lidos. Destes, foram escolhidos 86 para uma leitura rápida, sendo que
somente 44 foram eleitos para uma leitura profunda, que levou a uma seleção de apenas 22. Ou seja,
do total de artigos que foram encontrados serão discutidos apenas 1,8%. Não é preciso escrever que
certamente muita coisa vai ficar de fora, porém essa seleção de artigos seguiu os critérios, interesses e
objetivos por mim escolhidos.
Segundo Ingrand e Ghallab (2017), um assunto central nos desenvolvimentos de robótica é a
deliberação desses sistemas visando cumprir alguma tarefa. Considerando que um ato deliberado é
uma ação motivada e justificada em função de um objetivo intencionado, em robótica ele se relaciona
a uma função computacional requerida por um ato deliberado.
Atualmente, muito esforço tem sido dispendido na otimização e operacionalização dessas funções.
Nesse contexto, uma área de vanguarda é a interseção entre a Neurociência e a AI. Segundo Hassabis et
al. (2017), a generalização de ideias da neurociência acelerará o desenvolvimento da AI, pois estimula
questões relativas aos algoritmos, focando a aprendizagem e a inteligência de organismos.
Esta é outra área de destaque na robótica: os algoritmos de aprendizado de máquina (Machine
Learning – ML). Esses algoritmos emergem como um dos campos mais promissores da AI. Segundo
Portugal, Alencar e Cowan (2018), existem abundantes algoritmos ML, redes bayesianas, análises
de clusters, classificadores KNN (k-Nearest Neighbor). Dentre muitos outros, esses algoritmos podem
aprender com seus erros e conseguem fazer previsões e melhorar seu desempenho proporcionalmente
à quantidade de informação e conhecimento a que têm acesso. Portanto, com as atuais tecnologias Big
Data é possível um desenvolvimento de aprendizagem inigualável.
Wolfert et al. (2017) definem Big Data como conjuntos tão grandes e complexos de dados que as
ferramentas tradicionais de processamento são inadequadas para eles. Por isso, eles demandam novas
técnicas e tecnologias que consigam integrá-los e assim transformá-los em informações úteis.
A interface entre esses dados e a ML têm um potencial muito real para mudar o mundo atual.
Como os atuais sistemas não têm capacidade para quantidades tão grandes de dados, Faust et al.
(2018) afirmam que o foco está no desenvolvimento de algoritmos focados na aprendizagem profunda
(Deep learning – DL), método que promete estabelecer conhecimento implícito por meio de uma
rede de aprendizado interligada baseada em algoritmos modernos de redes neurais (Artificial Neural
Network – ANN).
Exemplos muito interessantes da aplicação da ML são apresentados por Yassin et al. (2018), que
realizaram uma revisão bibliográfica sobre o uso dessas técnicas para o diagnóstico de câncer de mama
usando diferentes modalidades de imagens.
Tudo isso é potencializado com a computação em nuvem (Cloud computing), que é a utilização de
computadores e suas memórias baseada na internet. Segundo Souri, Navimipour e Rahmani (2018), a
computação em nuvem é o atual paradigma, pois provê uma gama de recursos escaláveis e virtualizados,
tais como Software as a Service (SaaS – software como serviço); Plataform as a Service (PaaS – plataforma
como serviço) e Infrastructure as a Service (IaaS – infraestrutura como serviço).

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Esse novo paradigma junto ao Big Data nos apresenta uma nova forma de viver, pensar e conhecer
o mundo. Segundo Souri, Navimipour e Rahmani (2018), esse paradigma apresenta as seguintes
tendências: Internet of Things (IOT – internet das coisas); interoperacionalidade entre troca de dados e
recursos; consumo energético; robótica em nuvem (a mais nova tendência nos ambientes em nuvem,
para ajudar em ambientes de ameaça à vida, por exemplo, em terremotos).
Nesse contexto, Kim et al. (2017) apresentam um interessante estudo no qual um robô é obrigado
a aprender a reconhecer várias tarefas e ser hábil em derivar uma sequência delas para atingir o objetivo
em função de obstáculos, o que gera um comportamento adaptativo. Para isso, foi desenvolvida uma
técnica para modificar trajetórias baseada em processamento inteligente.
Nesse contexto, Gruyer et al. (2017) apresentam o estado da arte em termos de percepção e
processamento de sensores para os Advanced Driver Assistance Systems (ADAS – sistemas avançados de
assistência à direção), que possibilitam a existência dos carros autônomos, tais como o desenvolvido
pela Waymo/Google. (WAYMO, 2019).
Todos esses recursos estão gerando a Quarta Revolução Industrial, conhecida como Indústria 4.0,
que é completamente relacionada a IOT, Cyber Physical Systems (CPS – sistemas físicos cibernéticos),
Information and Communications Technology (ICT – tecnologias de informação e comunicação),
Enterprise Architecture (EA – arquitetura empreendedora) e Enterprise Integration (EI – integração
empreendedora). (LU, 2017).
A Indústria 4.0 não está mudando só a manufatura, mas também a indústria de construção,
como apresentam Dallasega, Rauch e Linder (2018), principalmente no ‘calcanhar de aquiles’
desse setor, que é a cadeia de suprimentos. Assim, as novas tecnologias robóticas, de informação e
comunicação estão revolucionando as organizações construtoras, que por sua vez estão sincronizando
todos os processos.
A agricultura não está de fora dessa tendência avassaladora. Wolfert et al. (2017) também descrevem
esses avanços na Agricultura 4.0, que na área agrícola chama-se Smart Farming (fazenda inteligente).
Eles explicam que as máquinas inteligentes e sensores de culturas nas fazendas têm obtido grandes
quantidades de dados agrícolas e que a quantidade, a qualidade e o escopo têm crescido enormemente,
o que possibilita uma disponibilidade de dados para melhorar processos.
Nesse contexto, as inovações no campo estão se desenvolvendo de forma acelerada. (BECHAR;
VIGNEAULT, 2016). Existem robôs de aplicação de produtos fitossanitários; para semeadura; para
diagnóstico de solo, de plantas, da água; com sistemas de visão computacional; para colheita; com
sistemas remotos de controle de direção; com sistemas de transplante; para controle de plantas daninhas;
para monitoramento de doenças e pragas; para podas. (BECHAR; VIGNEAULT, 2017).
Uma interessante inovação no conceito de Smart Farms foi um robô para irrigação de vasos em
estufas agrícolas. Ele usa sensores de umidade, posição e visão computacional para avaliar quanto
cada planta, individualmente, precisa de água e então realiza a aplicação da lâmina d’água necessária
para cada planta. Esse sistema possibilita economizar água e melhora substancialmente a eficiência da
irrigação. (BATISTA et al., 2017).

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Podemos afirmar que o descrito até aqui é sem dúvida a última palavra sobre o assunto (ao
menos na data de publicação deste artigo, na segunda década do século XXI). Mas não foge muito
de nossas expectativas quando pensamos no desenvolvimento avançado em robótica. A partir daqui
serão apresentados alguns desenvolvimentos que são realmente impressionantes, beirando as raias da
ficção científica.
Iniciaremos pelos metamateriais, que segundo Yu et al. (2018) não são materiais no senso comum,
mas produtos da engenhosidade humana, não observáveis na natureza. Eles nos permitem projetar
nossas unidades semelhantes a átomos (o que está mais para nanotecnologia) e assim criar materiais
com propriedades sem precedentes na natureza.
Esses materiais têm módulos físico-mecânicos de rigidez e compressibilidade completamente
diferentes e antiparadigmáticos na ciência dos materiais. Consequentemente, eles podem ser superfortes
como o aço e ultraleves como o plástico; tomar formas impossíveis topologicamente em comparação
com qualquer material sólido/líquido; têm propriedades mecânicas de ultraleveza, ultrarrigidez,
controle de esforços, módulo de cisalhamento nulo e compressibilidade negativa (se forem apertados,
em vez de encolher eles se expandem). (YU et al., 2018).
Outra fronteira do conhecimento em robótica é a interação humano-robô. Segundo Musić e
Hirche (2017), os humanos são excelentes para raciocinar e planejar em ambientes não estruturados;
por outro lado, robôs são muito bons em fazer tarefas precisas e repetitivas.
Atualmente, avanços na interação entre robôs e humanos tem possibilitado a execução de trabalhos
nos quais as habilidades desses dois agentes se complementam. A base disso é o compartilhamento do
controle. Nesse contexto, Shishehgar, Kerr e Blake (2018) apresentam um interessante estudo sobre
o uso da robótica para ajudar pessoas idosas, principalmente a viverem de forma independente. As
tecnologias estudadas tratam de auxílio robótico para mitigar o isolamento social, a dependência,
mobilidade, monitoramento da saúde, recreação, problemas com lembranças, prejuízo cognitivo/
/físico e problemas com quedas.
Finalmente, temos a robótica médica, que envolve de tudo: sistemas robóticos para biópsia de
mamas (MAHMOUD et al., 2018); sistemas robóticos para ensino em Medicina (SARDI; IDRI;
FERNÁNDEZ-ALEMÁN, 2017); bioimpressoras 3D para tecidos biológicos (DERAKHSHANFAR
et al., 2018); robôs cientistas pesquisadores em biomateriais (VASILEVICH; DE BOER, 2018) etc.
Para tocar nesse universo da robótica médica escolhi um artigo de Nehme, Neville e Bahsoun
(2017) que trata do uso de robótica para cirurgia plástica. Os autores desse artigo apresentam a
viabilidade, os procedimentos, as aproximações, os desafios e as complicações da assistência robótica
nos procedimentos cirúrgicos plásticos e de reconstrução em pacientes humanos ou modelos. A
maioria dos procedimentos que realizaram foi para cirurgia transoral (retirada de tumores). Para isso
existem sistemas que auxiliam os procedimentos na cabeça e no pescoço e que fazem reconstruções
usando enxertos. Eles ainda não são capazes de fazer cirurgias estéticas como de um nariz arrebitado,
mas em função das tendências tecnológicas para o futuro, em breve, a cirurgia plástica robótica poderá
reconstruir esteticamente o corpo humano todo.

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NANOTECNOLOGIA

Eu quero falar sobre o problema da manipulação e controle de coisas em escala pequena...


Por que não podemos escrever todos os 24 volumes da Enciclopédia Britânica na cabeça
de um alfinete?. (FEYNMAN, 1960).

Fundamentos
Bhushan (2010) define nanotecnologia como qualquer tecnologia em nanoescala que tem
aplicações no mundo real, direciona-se à produção e aplicação em sistemas físicos, químicos e biológicos
em escalas que variam de átomos a moléculas submicrométricas e também se refere à integração de
nanoestruturas em sistemas grandes. O físico Richard P. Feynman, em sua ontológica palestra Existe
muito espaço lá embaixo, de 1959 (FEYNMAN, 1960), profetizou praticamente todas as aplicações
da nanotecnologia. Muitos métodos que ele imaginou naquele tempo hoje são lugar comum nessa área
do conhecimento.
Neste século XXI a nanotecnologia define ‘as regras’ do que é estado da arte tecnológico da
mesma forma que os semicondutores, as tecnologias da informação e a biologia molecular o fizerem
no século passado, e por isso é largamente aceita como centro da próxima revolução industrial.
(BHUSHAN, 2010).
A nanotecnologia trabalha em escalas variando de 10 átomos: um nanosensor químico de 2 nm
até 1 mm. Trata-se dos Microeletromechanical Systems (MEMS – sistemas microeletromecânicos).
As tecnologias nanométricas estão revolucionando o mundo. Descobertas de novos materiais,
processos e fenômenos em nanoescala têm levado ao desenvolvimento de nanossistemas e nanoestruturas
inovadoras que estão conduzindo as tecnologias para a miniaturização dos sistemas, comprimindo
sensores, processadores e atuadores, combinando componentes mecânicos e elétricos que formam
sistemas inteligentes em escala micro e nanométrica. (BHUSHAN, 2010). Qualquer semelhança com
nanorrobôs não é mero acaso.
Segundo Von Gleich et al. (2010), a natureza usa a nanotecnologia desde sempre, por exemplo,
nas teias de aranha. Biomineralização, superfícies funcionais, cristalização controlada, neurobiônica,
todos essas estruturas biológicas são ‘copiadas’ pelos especialistas em nanotecnologia, e esse ‘plágio’
tecnobiológico é chamado de nanobiomimética. Ela basicamente foca nos processos de crescimento,
ontogenética, desenvolvimento molecular, células e tecidos, incluindo a reconfiguração desses sistemas
e também os processos de autocura.
Tudo isso leva diretamente ao desenvolvimento de materiais inteligentes capazes de reagir a diferentes
cargas e solicitações, reparando a si mesmos. Lembra-se dos metamateriais citados anteriormente nesse

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capítulo no estado da arte em robótica? Sim... esse é o futuro pessoal. Uma interface interessantíssima
entre nanotecnologia e robótica.
De acordo com Raymo (apud BHUSHAN, 2010), a natureza constrói nanoestruturas
biomoleculares que dependem de uma abordagem altamente modular. Pequenos blocos são conectados
por robustas ligações químicas, gerando longas cadeias de unidades repetidas. Nesse sentido, os ácidos
nucleicos e as proteínas são exemplos de montagens subnanométricas de alta precisão.
O poder da síntese química atual fornece a oportunidade de imitarmos em aproximação a construção
modular de nanomateriais, assim moléculas artificiais podem ser montadas peça por peça, formando
topologias espirais, tubulares, intertravadas e altamente interligadas. Essas construções oferecem
oportunidades para a engenharia desenvolver materiais com novas propriedades, tais como os materiais
eletroativos e fotoativos, que abrem caminho para o desenvolvimento da eletrônica e fotônica em nível
nanométrico, chegando aos processadores digitais nanométricos. (RAYMO apud BHUSHAN, 2010).
Monthioux et al. (apud BHUSHAN, 2010) afirmam que os nanotubos de carbono revolucionarão
a paisagem tecnológica no futuro próximo. Eles serão, para a sociedade de amanhã, o que as tecnologias
baseadas no silício produzem hoje: elevadores espaciais com os mais fortes cabos, veículos potenciados
por hidrogênio e músculos artificiais. Segundo esses autores, os nanotubos de carbono são sintetizados
pela ação de uma catálise em espécies gasosas originárias da decomposição termal de hidrocarbonetos.
Monthioux et al. (apud BHUSHAN, 2010) descrevem que as principais estruturas de nanotubos
são o Single-Wall Carbon Nanotube (SWNT – nanotubo de carbono de parede simples) e o Multiwall
Carbon Nanotube (MWNT – nanotubo de carbono multiparede). Basicamente, um SWNT é uma
folha de grafeno (uma das formas cristalinas do carbono, ‘primo’ do diamante e do grafite) que se
enrola em forma de um tubo, sendo as pontas deste tampadas por duas capas de fulereno (carbonos em
forma de uma gaiola). Para construir um MWNT são usados vários SWNT com diâmetros apropriados
arranjados um dentro do outro, formando um nanotubo multiparede.
A síntese de nanotubos enquadra-se naquela categoria de conhecimentos que está além do estado
da arte. É a fronteira da ciência e abre o caminho para o futuro, por isso muitos bilhões de dólares são
investidos nesse assunto anualmente.
Segundo Monthioux et al. (apud BHUSHAN, 2010), as técnicas para produção de nanotubos
podem ser baseadas principalmente em síntese por fonte sólida de carbono; por fonte gasosa de carbono;
por modelagem e por síntese de orientação controlada.
Descrever as técnicas usadas em cada fonte foge ao escopo deste artigo, mas apenas como exemplo,
escolhendo as técnicas de fonte sólida, temos ablação a laser; método de arco elétrico; arco de plasma de
corrente alternada trifásico e forno solar. Em todos esses exemplos a formação dos nanotubos depende
de uma catálise das partículas em altíssimas temperaturas (variando de 1000 K até 8000 K, mas o bom
mesmo é 1200 °C), sendo que o segredo é a taxa de resfriamento e o tempo de residência das partículas.
Parentes próximos dos nanotubos são os nanofios, sistemas que têm duas direções ‘quantum-
-confinadas’ e uma direção não confinada. Isso permite que os nanofios sejam usados em aplicações
nas quais a condução elétrica é requerida. (DRESSELHAUS et al. apud BHUSHAN, 2010). Nesse

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contexto existe grande variedade de nanoelementos: nano-hastes, nanorredes, nanocantilever,


nanorredes-cantilever, nanocorais, nanodots, nanoprobes e nanofilmes. (BHUSHAN, 2010).
Nessa verdadeira ‘selva nanométrica’ uma das classes mais interessantes são os Microeletromechanical
Systems (MEMS – sistemas microeletromecânicos) e os Nanoeletromechanical Systems (NEMS – sistemas
nanoeletromecânicos).
Segundo Young, Zorman e Mehregany (apud BHUSHAN, 2010), os MEMS transportam,
comunicam, automatizam, manufaturam, monitoram o ambiente, cuidam da saúde, são sistemas
de defesa, enfim, fazem parte de uma imensa gama de produtos. Eles são sistemas inerentemente
pequenos, portanto são muito atrativos, pois reduzem o tamanho, o peso e dissipação de potência,
além de melhorarem a velocidade e a precisão.
A moderna indústria de fabricação de circuitos integrados é essencialmente baseada em MEMS,
sendo os mais emblemáticos representantes do clássico micromotor de Mehregany et al. (1998), com
150 μm de diâmetro e 1 μm de altura, e a microengrenagem de Sniegowski e Garcia (1996), de 50 μm.
Talvez você nem imagine como é complicado fazer uma engrenagem em tamanho normal.
Para isso são necessárias máquinas específicas para gerar os dentes de forma adequada em função da
geometria de uma curva envolvente para cada dente. Imagine então uma engrenagem que tem ¾ do
tamanho um fio de cabelo...
O desenvolvimento de MEMS exige métodos apropriados de fabricação para a definição
de geometrias muito pequenas, com controle dimensional, flexibilidade de projeto, interface com
a microeletrônica, repetibilidade, confiabilidade, alta produtividade e baixo custo. (YOUNG;
ZORMAN; MEHREGANY apud BHUSHAN, 2010).
Korvink e Paul (2006) descrevem vários tipos de MEMS: microtransdutores, microssensores
químicos, microssensores térmicos, microacelerômetros, detectores de fótons, sistemas micro-
-ópticos, microssensores magnéticos, microssensores mecânicos, microbombas fluídicas, microrredes,
microrreatores, microinstrumentos cirúrgicos, microimplantes, microatuadores, micromáquinas.
Young, Zorman e Mehregany (apud BHUSHAN, 2010) descrevem microrrádios (receptores
e transmissores de radiofrequência), microssensores de pressão, microssensores de inércia,
microgiroscópios, microespelhos e microcapacitores variáveis.
Para quase todos esses MEMS existem suas contrapartes NEMS. Para um sistema ser classificado
como um NEMS ele precisa ter dimensões menores do que 100 nm (0,1 μm). (YOUNG; ZORMAN;
MEHREGANY apud BHUSHAN, 2010).
O estado da arte tem muitos ramos, por exemplo, novos dispositivos que se automontam para
nanofabricação e são muito utilizados para testes de DNA. (HELLER et al. apud BHUSHAN, 2010).
Há ainda nanodispositivos para terapias biológicas moleculares (LEE; BHUSHAN, 2010), microscopia
eletrônica, por tunelamento e força atômica (BHUSHAN; MARTI, 2005) e nanomecânica celular.
(KAMM; LAMMERDING; MOFRAD apud BHUSHAN, 2010).
Um tema muito interessante nesse universo é a nanorobótica, que segundo Nelson e Dong (apud
BHUSHAN, 2010) é o estudo da robótica em nanoescala, o que inclui robôs em nanoescala e robôs

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grandes, que podem manipular objetos em nanoescala. Eles são classificados como NEMS. Sua base de
construção são os nanotubos, nanofios e nanobobinas, que permitem a construção de suas estruturas
robóticas, além de nanoferramentas, nanossensores e nanoatuadores.
Os nanorobôs inauguram uma nova e inexplorada área para a ciência no sentido de que permitem
medir, manipular e operar no biodomínio de objetos nanométricos. (NELSON; DONG apud
BHUSHAN, 2010). Eles podem caracterizar e atuar diretamente nas membranas celulares, no DNA e em
outras biomoléculas e bioestruturas. Seus nanossensores, nanoferramentas e nanoatuadores promovem
movimentos e medidas na escala de nanometros, gigahertz, piconewtons e femtogramas. Eles podem
reproduzir a maquinaria molecular, eliminar antígenos, matar cânceres etc., enfim, são o futuro.

Estado da arte
Seguindo o mesmo critério usado para buscar artigos review sobre o estado da arte em robótica,
foram encontrados sobre nanotecnologia no ScienceDirect (2018), no período de 16 meses (a partir
de janeiro de 2017), um total de 1.546 artigos. Destes, em uma filtragem avançada foram selecionados
354, cujos abstracts foram lidos. Destes outros formam escolhidos 76 para uma leitura rápida, sendo
que somente 34 foram eleitos para uma leitura profunda, que determinou o uso de 28. A porcentagem
do material de que vamos tratar aqui em relação ao total é também de 1,8%.
Dentre esses artigos, o de AlKahtani (2018) apresenta as nanoaplicações na área de odontologia,
principalmente na diagnose dental, na prevenção e em novos materiais. Na área de diagnose ele descreve
os biossensores para diagnóstico de problemas mecânicos e químicos nos dentes na área de prevenção.
Já foram desenvolvidas nesse sentido nanoescovas de dente, que consistem em nanopartículas de ouro
e prata que ficam nas cerdas e matam as bactérias. Em relação a materiais, já existem dentaduras com
uma camada de nanopartículas de óxido de titânio, ótimas para exterminar qualquer bactéria, além de
deixar a dentadura praticamente inquebrável e agastável.
Se existe uma nanotecnologia que é estado da arte atualmente esta é o grafeno. Trata-se de uma
forma de o carbono se ligar formando camadas. Qualquer semelhança com a grafite de seu lápis não é
coincidência, pois ela é a forma tridimensional do grafeno.
Segundo Bai et al. 2018) o grafeno é ideal para nanossistemas, principalmente os que se referem à
teranóstica, novo campo da Medicina que inclui a medicina nuclear e a diagnose molecular. Essa área
do conhecimento utiliza uma terapia específica contra uma doença com base em testes diagnósticos
específicos. (NEOURO, 2018).
Bai et al. (2018) afirmam que o grafeno possibilita a criação de nanossistemas otimizados para
a entrega de drogas, a terapia genética, o bioimageamento, a fototerapia e a teranóstica híbrida. Suas
características eletroquímicas revelam seu potencial para serem usadas em engenharia de tecidos,
especificamente na construção de músculos cardíacos, nervos, ossos, pele e células-tronco.
Ghany, Elsherif e Handal (2017) descrevem outras aplicações desse fantástico nanomaterial: novas
baterias elétricas, sensores, engenharia de empacotamento, energia por osmose, separação química,

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processamento de alimentos, tratamento de esgoto, ultrapurificação da água, dessalinização de água


do mar, dessalinização de águas salinas, captura de CO2, separação de ar, separação de gás hidrogênio
(H2) e separação de gás natural.
No campo técnico a nanotecnologia vem revolucionando todos os setores. Contreras, Rodriguez e
Taha-Tijerina (2017) descrevem o uso de nanotecnologias em transformadores elétricos considerando
os materiais de isolamento, os fluidos dielétricos, os isoladores externos e os sistemas de monitoramento.
Ferreira, Nóvoa e Marques (2016) descrevem o desenvolvimento de materiais multifuncionais
baseados em nanopartículas. Esses novos materiais podem ter várias propriedades intrínsecas,
representativas de vários tipos de materiais específicos. Por exemplo, um material que seja condutor
elétrico pode eliminar a necessidade de fios; um material que modifica sua forma elimina a necessidade
de atuadores; outro que seja retardante de chama elimina a proteção contra incêndio. Os materiais
multifuncionais unem todas essas característica em um só material e podem ser micromateriais,
nanomateriais e picomateriais. Exemplos são a fibra de vidro (micromaterial); as nanopartículas
(nanomaterial) e o grafeno (picomaterial).
Ullattil et al. (2018) reportam que nanomateriais de óxido de titânio (TiO2) negro têm
revolucionado a área de absorção de energia solar, pois possibilitam o máximo de eficiência em se
tratando de frequências ultravioleta (UV) e infravermelho (IR) do espectro solar, o que aumenta muito
a eficiência dos sistemas de energia renovável com fonte solar.
Nunn el at. (2017) apresentam os nanodiamantes. O diamante é uma estrutura cristalina de
carbono configurada em um sistema cristalino cúbico com hábito octaédrico. Ao considerar essa
mesma geometria individualmente em escala nanométrica você tem os nanodiamantes, que embora
não sejam novos, mas conhecidos há 50 anos, sua aplicação em nanosistemas está no estado da arte,
principalmente por suas características realmente impressionantes em termos de combinação entre
resistência mecânica, resistência química, biocompatibilidade, características ópticas e propriedades
eletrônicas. (NUNN et al., 2017).
Teow e Mohammad (2017) descrevem a nova geração de nanomateriais utilizados por processos e
sistemas de dessalinização da água: nanotubos de carbono, grafeno, zeolitos e aquaporin (AQP). Esses
materiais têm revolucionado os atuais métodos ao usar membranas para osmose reversa, membranas
de destilação, forward osmose, perevaporação e eletrodialíse, permitido a elaboração de novos métodos:
novos adsorventes, supercapacitores, deionização capacitiva.
Wang et al. (2017) descrevem a técnica do DNA origami, que possibilita aos pesquisadores
projetar arbitrariamente qualquer nanoestrutura complexa em 3D. Basicamente, eles imitam uma
criança fazendo um origami, só que em vez de papel eles usam um longo filamento de DNA como
modelo. Então eles ‘dobram’ centenas de outros filamentos curtos de DNA oligonucleicos e assim
projetam as estruturas complementarmente ao DNA modelo. O DNA origami é largamente utilizado
para nanofabricação, biosensores e entrega de drogas (carregadores).
Zhao e Fu (2017) descrevem os últimos avanços na criopreservação, técnica que usa muito baixas
temperaturas para preservar estruturalmente intactas células e tecidos. Ela é uma ciência/tecnologia

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que visa à estocagem de células, tecidos, órgãos em temperaturas criogênicas (-196 °C, temperatura do
nitrogênio líquido) a longo prazo. Atualmente, ela é utilizada em medicina reprodutiva, tecnologia de
células-tronco, terapias celulares, engenharia de tecidos, desenvolvimento in vitro de drogas anticâncer,
farmacologia e pesquisa básica.
O segredo é realizar o congelamento e descongelamento de todo o tecido (em suas diversas
camadas) na velocidade ótima, de forma nem muito lenta nem muito rápida. Em uma velocidade
menor do que a ótima ocorre a formação de cristais de gelo d’água, que se expandem devido a sua
configuração cristalina organizada, aumentando seu volume e destruindo as membranas e os elementos
da célula. Já em velocidades mais altas do que a ótima ocorre vitrificação, que também mata a célula.
A nanotecnologia está revolucionando essa área do conhecimento porque está possibilitando
a construção de plataformas microfluídicas para operar e manipular as células em escala micro e
nanométrica, permitindo que os procedimentos de criopreservação sejam muito mais precisos e com
alta acurácia no controle de seus parâmetros.
Essas plataformas microfluídicas são sistemas nanométricos que controlam o ‘carregamento e
descarregamento’ da carga de tensão que as células sofrem durante o congelamento e descongelamento,
além de caracterizarem a resposta osmótica da célula. (ZHAO; FU, 2017).
A agricultura não podia ficar de fora dessa onda revolucionária. Parisi, Vigani e Rodríguez-Cerezo
(2015) descrevem várias aplicações da nanotecnologia voltadas para a agricultura: produtos para
proteção de plantas em nanocápsulas e nanopartículas; fertilizantes em nanocápsulas e nanopartículas;
retenção de água por meio de nanomateriais tais como zeolitas; purificação de água também por
nanomateriais, tais como nanoargilas; diagnóstico por nanoestruturas em biossensores; modificação
genética de plantas por meio de nanopartículas carregadoras de DNA ou RNA; desenvolvimento
de nanomateriais de plantas como engenharia de plantas ou micróbios, por exemplo, nanofibras de
resteva de trigo ou soja para bionanocompósitos.
Novamente, a Medicina é a campeã em artigos sobre nanotecnologia nos 1546 papers estado da
arte. Dessa imensa quantidade de conhecimento existente sobre aplicações nanotecnológicas foram
escolhidas quatro que são muito esperançosas para todos aqueles que enfrentam/enfrentaram ou têm/
/tiveram um ente querido que enfrenta/enfrentou o câncer.
Dentre esses artigos está o de Aftab et al. (2018), que descreve vários tipos de nanopartículas
que têm sido usadas como carregadores para a entrega de drogas anticâncer, principalmente devido
ao seu tamanho ótimo (nanométrico) e aos negligenciáveis efeitos adversos. Os autores descrevem
detalhadamente as várias nanopartículas e suas modificações superficiais e químicas que facilitam a
entrega das drogas nos sítios de câncer. Segundo os autores, essas partículas têm excelentes qualidades,
como hemocompatibilidade, biodistribuição, longo tempo de circulação, hidrofilia, lipofilia, balanço
para alta biodisponibilidade, prevenção de degradação das drogas e de vazamento delas no lugar
errado e, o mais importante, são certeiras em atingir os alvos sem danificar as células sadias. Eles ainda
discutem as vantagens de cada tipo dessas heroicas nanopartículas: poliméricas, magnéticas, de ouro
e mesoporosas de sílica. Trata-se de verdadeiros mísseis teleguiados que levam a carga explosiva para
destruir completamente as células cancerígenas.

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Outra nanotecnologia fantástica usada na luta contra o câncer é descrita por Chen et al. (2017),
Torelli et al. (2018) e Tripathi e Kumar (2018). São os nanorobôs. Os métodos atuais para tratamento
do câncer por quimioterapia não são tão eficientes devido ao fato de que boa parte das drogas não
alcança as células cancerígenas. No entanto, nanorobôs podem levar essas drogas diretamente aos alvos.
Acredita-se que devido a isso em poucos anos o câncer será uma doença crônica, mas completamente
manejável. (TRIPATHI; KUMAR, 2018).
Os cientistas têm modificado geneticamente bactérias de salmonella (3 μm) que carregam
nanorobôs. Estes, por sua vez, levam nanopartículas carregadoras com as drogas, e quando a bactéria
alcança o tumor os nanorobôs lançam sua carga mortal. (TRIPATHI; KUMAR, 2018).
Chen et al. (2017) descrevem detalhadamente os progressos de seus grupos de pesquisa no
desenvolvimento de micro e nanorobôs para diversas aplicações, inclusive no combate ao câncer.
Eles desenvolvem diversos tipos e funções de nanorobôs: nadadores helicoidais, nadadores flexíveis,
caminhadores de superfície, dentre muitos outros, todos utilizados para aplicações em biomedicina e
remediação ambiental.
Sokolov et al. (2017) imaginam que em um futuro próximo agentes nanométricos inteligentes serão
capazes de analisar diferentes fatores fisiológicos dentro dos organismos vivos e implementar programas
de correção e construção, desencadeando ações terapêuticas antes mesmo de as doenças acontecerem.
Eles serão baseados em sensoriamento biocomputacional, externamente atuados e quimicamente
alimentados, gerando movimentos autônomos. Os sistemas seguirão a configuração de swarm robôs
com o comportamento interconectado por comunicação autônoma tanto entre os membros do
‘enxame’ como entre os elementos externos. A combinação sinergética entre as tecnologias disponíveis
em termos nanotecnológicos e as drogas inteligentes permitem funcionalidades incomparáveis.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

It’s just a spark; But it’s enough to keep me going; And when it’s dark out;
No one’s around, it keeps glowing.
Paramore, Last hope (2013).6

Após essa introdução à robótica e à nanotecnologia é necessário fazer alguns comentários sobre
a educação contemporânea brasileira frente ao novo cenário que se descortina para a humanidade e
evolui cada vez mais rápido, robótica e nanotecnologicamente.
É preciso que o professor perceba o que Freire quis dizer em relação aos nossos alunos: “aprendam
algo de sua sintaxe e de sua semântica, sem o que não poderão com eficácia, trabalhar com eles”. (2013,
p. 23). Nesse sentido, é preciso que o professor esteja atualizado em termos de informações e tenha
foco na origem e no fundamento do que se ensina. É uma questão de origem e atualidade da

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informação aliada à linguagem de apresentação, conceitos que formam a grande pedra de toque da
AI e da robótica.
Os professores devem divisar um mundo a ser construído de forma diferente e apresentá-lo a
seus alunos, que por sua vez devem participar dessas transformações tal qual El Salvador, tornando-
-se uma sociedade menos malvada, menos injusta, pouco a pouco mais decente, mais humana.
(FREIRE, 2013).
A robótica e a nanotecnologia são algumas das escadas tecnológicas possíveis para inseri-los no
futuro. Nesse contexto, Alencar (2005) fez uma excelente investigação sobre esse evento complexo
que é a tecnologia apoiado nos pensamentos de um dos maiores teóricos da pedagogia progressista da
humanidade, Paulo Freire.
Freire fez uma observação que deveria ser o mote principal de todo professor que pretende ensinar
sobre robótica e nanotecnologia: “Faço questão enorme de ser um homem de meu tempo e não um
homem exilado dele”. (1984, p. 32). E continua, dizendo que “a tecnologia não é tarefa de demônios,
mas sim a expressão da criatividade humana”. Alencar (2005) explica que a tecnologia, segundo Freire,
nunca é neutra, é sempre intencional e não se produz nem se usa sem uma visão de mundo, de homem
e de sociedade.
Segundo Freire, o uso da tecnologia na prática educacional não deve ser realizado sem preparação,
é preciso delinear uma metodologia de uso e uma análise para que ela seja incorporada. (ALENCAR,
2005). Em robótica isso é muito gritante, por isso é preciso trazer e desenvolver metodologias
apropriadas para cada nível dos estudantes e para cada interesse transdisciplinar.
Peralta, Prado e Gonçalves (1994) admitem que a robótica tem o potencial de tornar o aluno
produtor e não apenas consumidor de tecnologia digital, como tem acontecido com o uso da maioria
dos recursos tecnológicos na educação, e de fazer do professor protagonista em processos de reconstrução
da própria prática pedagógica.
Segundo Pinto (2011), torna-se necessário repensar currículos e práticas pedagógicas para que
o ambiente escolar não vire uma ilha do passado, desmotivando alunos e professores. Em relação à
robótica nas escolas, ele afirma que na maioria das vezes acontece a aplicação e o desenvolvimento de
aparatos de robótica, algo muito motivador e instigante para qualquer um, não só para estudantes.
Peralta, Prado e Gonçalves (1994) afirmam que a robótica na escola deve ser direcionada para que o
professor seja capaz de criar condições para recontextualizar uma postura interdisciplinar.
Nesse início de século XXI pipocam iniciativas multidisciplinares focadas em robótica nas
escolas pelo mundo afora: Coreia do Sul (YOO, 2015), Áustria (LINERT; KOPACEK, 2016), Brasil
(COELHO; BARROS; SILVA et al., 2013). Tudo ficou muito facilitado pelo acesso a kits pedagógicos
em robótica de fácil manuseio, fácil compreensão e custo baixo, tais como o Boost Creative Toolbox
(LEGO, 2018a) e o Lego Mindstorms (LEGO, 2018b).
Todas essas ferramentas e metodologias direcionam a escola para uma revolução robótica e
nanotecnológica. Os estudantes que já têm acesso a elas estão adorando, e os que ainda não a conhecem
vão adorar e aguardam esperançosos.

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Cito um trecho da entrevista de Paulo Freire e Seymour Papert para a TV PUC: “a minha questão
não é acabar com a escola, é mudá-la completamente, é radicalmente fazer que nasça dela um novo ser
tão atual quanto a tecnologia. Eu continuo lutando no sentido de por a escola à altura do seu tempo.
E por a escola à altura do seu tempo não é soterrá-la, mas refazê-la”. (PAULO FRANCISCO SLOMP,
2007, n.p.).
É uma tarefa homérica e titânica. Principalmente porque o tempo urge, e se os professores não
acordarem para essa desenfreada e alucinante corrida pedagógico-tecnológica serão os culpados, turma
após turma, por gerações de estudantes que sairão da escola sem o devido preparo, sem as devidas armas e
armaduras para enfrentar esse mundo que muda a passos exponenciais com a robótica e a nanotecnologia.
Obviamente, os professores não são os únicos culpados, pois os governos, os pais, a nação e sua
sociedade também têm sua dose de responsabilidade. Ser professor não é e nunca foi fácil. Aliás, é até
perigoso. Como Albert Camus expressou em sua obra prima A peste,

Aqueles homens arriscavam a vida. Mas há sempre, na história, um momento em que, se alguém ousa
dizer que dois e dois são quatro, é condenado à morte. O professor não ignora isto. E não se trata de
saber qual a recompensa ou a punição que aguarda esse raciocínio. A questão é saber se de fato dois e
dois são quatro. (1946).

Aquele que arrisca a vida nem sempre tem coragem. Mas aquele que tem coragem, se necessário,
arrisca a vida. É preciso ter coragem e assumir a tarefa atual de ensinar robótica a quatro mãos, talvez
seis, oito, dez, por meio de uma postura didático/pedagógica transdisciplinar. É essencial dominar as
novas tecnologias e levá-las para dentro das salas de aula com metodologias novas, instrumentos novos
e ideias novas, despertando a curiosidade em nossas crianças, motivando-as a saltarem sobre esse muro
de travamento mental que as impede de avançar eficientemente pela aventura da vida.
É uma tarefa difícil e que gera medo. Nesse sentido, Paulo Freire motiva os professores com
esperança, incentivando-os a vencer o medo e seguir os ditames de sua sabedoria:

1. há sempre uma relação entre medo e dificuldade, medo e ‘difícil’. Mas, nesta relação, obviamente,
se acha também a figura do sujeito que tem ‘medo do difícil’ ou da ‘dificuldade’. Sujeito que ‘teme’
a tempestade, que ‘teme’ a solidão ou que teme não poder contornar as dificuldades para finalmente
entender o texto, ou produzir a inteligência do texto;
2. a questão que se coloca não é, de um lado, negar o ‘medo’, mesmo quando o perigo que o gera
é fictício. O medo, porém, em si é concreto. A questão que se apresenta é não permitir que o
medo facilmente nos paralise ou nos persuada de desistir de enfrentar a situação desafiante sem
luta e sem esforço;
3. com estas reflexões quero sublinhar que o ‘difícil’ ou a ‘dificuldade’ está sempre em relação com
a capacidade de resposta do sujeito que, em face do difícil e da avaliação de si mesmo quanto à
capacidade de resposta, terá mais ou menos ‘medo’, nenhum ‘medo’ ou ‘medo infundado’;
4. um dos erros mais funestos que podemos cometer, enquanto estudamos, como alunos ou professores,
é recuar em face do primeiro obstáculo com que nos defrontamos. É o de não assumirmos a

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responsabilidade que a tarefa de estudar nos impõe, como, de resto, qualquer tarefa o faz a quem a
deve cumprir;
5. estudar é um ‘que-fazer’ exigente em cujo processo se dá uma sucessão de dor, de prazer, de sensação
de vitórias, de derrotas, de dúvidas e de alegria. Mas estudar, por isso mesmo, implica a formação
de uma disciplina rigorosa que forjamos em nós mesmos, em nosso corpo consciente. (1997, p. 55;
57; 60).

Os professores que assumirem com coragem a grande aventura de ensinar robótica e nanotecnologia
para crianças podem ser definidos por Freire (1987, 2013, 2014) como professores que dominam o
conteúdo e são carismáticos. E principalmente, o mais importante, que amam seus estudantes, não
como tias ou tios, mas como mestres e mestras perante seus discípulos e discípulas, como a sabedoria
chinesa do Tao vaticina: o objetivo último do mestre é que seu discípulo lhe supere.

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25 out. 2019.

NOTAS EXPLICATIVAS
1 Caso se interesse por ler o roteiro original em tcheco, você pode acessá-lo no link http://www.gutenberg.
org/ebooks/13083. Caso não domine o tcheco, há uma versão em inglês disponível em http://preprints.
readingroo.ms/RUR/rur.pdf.
2 Se porventura o leitor se interessar especificamente por algum desses assuntos, poderá consultar a
Bibliografia deste capítulo.
3 Global porque foi definida arbitrariamente como a base ‘i’, com origem em ‘O’i, ou seja, foi uma escolha
deliberada. Poderíamos ter escolhido qualquer outra para ser a base global.
4 Caso o leitor se interesse pelo assunto, pode se aprofundar na literatura relacionada.
5 Caso o leitor se interesse por uma explicação mais técnica, mas ainda palatável sobre o assunto, pode acessar
o blog de Calsaverini por meio do link https://arsphysica.wordpress.com/2009/11/13/logica-bayesiana/.
6 Tradução livre: “É apenas uma faísca, mas é o bastante para me manter continuando; e quando está escuro
lá fora, ninguém por perto, continua brilhando.”.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
189

CIÊNCIA E TECNOLOGIA À LUZ DA


INTERDISCIPLINARIDADE

Arlindo Philippi Jr.


Valdir Fernandes

INTRODUÇÃO
Atualmente, mais do que em qualquer outra época, a tecnologia é um fenômeno interdisciplinar,
não só por sua constituição, mas sobretudo por seus efeitos. Basta pensar em sua influência na vida
cotidiana, nas comunicações, com os diversos artefatos e redes sociais; nos transportes, com as várias
aplicações inteligentes, como controle de tráfego, navegação e monitoramento; no mercado financeiro,
principalmente em sua operação e acompanhamento em tempo real. São aplicações locais e globais,
naturalmente interdisciplinares, porque demandam conhecimentos e interações diversas, produzindo
novas formas de atuação e de conhecimento.
Compreender esse cenário não significa entender apenas suas origens, mas também assimilar seu
funcionamento e influência nos períodos atual e futuro. Compreender a história e o desenvolvimento
tecnológico é importante, mas refletir sobre sua incidência no cotidiano atual e analisar as formas de
adaptação por parte das sociedades, bem como repensar os diversos processos de gestão e de tomada de
decisão, constitui campo interdisciplinar aberto na ciência contemporânea. À ciência, além de produzir
o conhecimento que resulta em tecnologia, cabe pensar seus efeitos e consequências, sendo este um
campo de pesquisa interdisciplinar, denominado Ciência Tecnologia e Sociedade (CTS).
Com a aceleração da produção de conhecimento nas últimas décadas, a tecnologia penetrou, por meio
de inúmeros artefatos, em todos os níveis e espaços da sociedade, alterando hábitos, valores e costumes.

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Tornou-se, mais do que em qualquer época, elemento fundante dos modos de vida cotidianos em suas
várias dimensões – profissional, cultural, familiar etc. A tecnologia transformou-se em elemento de poder
e definidor das relações sociais e dos próprios espaços de interação, redefinindo territorialidades, tempos,
compreensões de mundo e talvez até mesmo processos cognitivos. Na atualidade, o próprio conceito de
sociedade só pode ser adequadamente definido quando contextualizado na reconfiguração proporcionada
pelo desenvolvimento científico e tecnológico. (DAGNINO; THOMAS; DAVYT, 1996; DAGNINO,
2008; FEENBERG, 2002; VIEIRA PINTO, 2005; VARSAVSKY, 2013; VESSURI, 2007).
Grandes fenômenos contemporâneos e seus desdobramentos políticos e econômicos, como
globalização, industrialização, urbanização e questões ambientais, têm relação direta com o
desenvolvimento científico e tecnológico, portanto, o debate lhe é intrínseco. Todavia, há uma lacuna
importante, tanto nos debates sobre desenvolvimento de ciência e tecnologia (DCT) e ciência,
tecnologia e sociedade (CTS), como em relação ao próprio desenvolvimento.
A interdisciplinaridade, por sua vez, como forma de conhecimento, tem alguns desafios
que envolvem a postura interdisciplinar, tanto em função de práticas de pesquisa e de inovações
tecnológicas como na relação entre sujeito e objeto de pesquisa. Ela implica diálogo mais estreito com
as filosofias das ciências. Afinal de contas, deve-se perguntar: realizar pesquisa e gerar conhecimento
para quê? Cada vez mais se têm verificado, em muitas situações, que se faz pesquisa pela pesquisa,
sem estabelecer filosoficamente porque aquilo tem de ser feito e a quem ou ao que se está servindo.
Essa reflexão deve ser inerente ao processo de fazer pesquisa de qualquer projeto, mas é resgatada com
força na pesquisa interdisciplinar.
Dentre as contribuições da interdisciplinaridade está a reavaliação de valores em relação à ciência
e à tecnologia rumo a uma atitude mais ética em relação às implicações de seus avanços, bem como no
que se refere à formação com ênfase humanista à docência e à pesquisa. A interdisciplinaridade, antes
de ser uma ‘área’ de conhecimento, é uma ‘forma’ de conhecimento, de trabalho, é uma perspectiva de
análise que pode ser aplicada naturalmente em todas as áreas disciplinares.
Considerando esse ponto de vista, que é naturalmente interdisciplinar – por estar nas fronteiras
de várias áreas de conhecimento – e transdisciplinar – por envolver diversas interações e conexões
que transcendem o conhecimento científico (FERNANDES; PHILIPPI JR, 2017) –, este capítulo
objetiva, por meio da caracterização da pesquisa e do sujeito interdisciplinar, discorrer e refletir sobre
ciência e tecnologia no Brasil à luz da interdisciplinaridade.

PESQUISA INTERDISCIPLINAR
A interdisciplinaridade, segundo Philippi Jr. et al.,

pressupõe a convergência de duas ou mais áreas do conhecimento, pertencentes ou não à mesma


classe, em torno de um objeto ou problema, [...]. A coprodução de conhecimento interdisciplinar

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resulta de intenso processo de trocas de conhecimentos e metodologias, entre os pesquisadores


partícipes. Ainda no epistêmico, de forma heurística pode-se afirmar que a interdisciplinaridade não
resulta exclusivamente do processo de convergência entre os conhecimentos e métodos das disciplinas
envolvidas, mas, sobretudo, da natureza do objeto sobre o qual estas se reúnem. (2017, p. 643-644).

Essa característica, associada à natureza do objeto, potencializa a interdisciplinaridade como uma


perspectiva favorável a aproveitar as potencialidades dos territórios e das culturas locais, em favor
de maior diversidade de atividades econômicas, da diminuição do desperdício e da degradação dos
recursos naturais. Trata-se da superação da padronização, por meio da qual o fluxo tecnológico é visto
quase como de mão única, centro versus periferia.
Áreas de conhecimento isoladas conseguem equacionar, resolver e elucidar alguns problemas
tecnológicos, mas sem o concurso de outras áreas, que façam a crítica e busquem de fato evidenciar
elementos para que seja possível apresentar proposições baseadas em perspectivas complexas inter e
transdisciplinares, continuará a haver crises cada vez maiores, sem a compreensão dos impactos do
desenvolvimento tecnológico na vida da sociedade atual.
A receita para o enfrentamento de tais crises de compreensão passa, portanto, por estratégias
que epistemologicamente possam ser colocadas em novas bases, que permitam às mais diversas
áreas de conhecimento se debruçarem sobre as próprias atuações e os resultados que produzem,
não apenas em termos de artefatos, mas também de impacto, no tempo e no espaço. Ao mesmo
tempo, são necessárias estratégias que reconheçam existir na sociedade saberes de grande valor, sobre
significados e impactos da tecnologia, numa postura, por parte da comunidade científica, diferente
daquela que muitas vezes dispensa outros saberes. Do contrário, corre-se o risco de perder saberes
imensos que poderão e deverão fazer parte dos processos de apropriação para melhoria de vida da
sociedade como um todo.
O pressuposto fundamental da interdisciplinaridade sempre será o conhecimento disciplinar
sólido, sem o qual não há como desenvolver novas tecnologias. Porém, mesmo os impactos de
tecnologias resultantes de atuação disciplinar serão objeto de diversas disciplinas e potencialmente
interdisciplinares. Se é impossível reunir, em um projeto único de pesquisa, a totalidade de
campos de conhecimento existentes em todo o espectro da ciência, como uma ‘superdisciplina’, o
reconhecimento de que alguns fenômenos e objetos devem ser desenvolvidos à luz de diversos olhares
numa perspectiva interdisciplinar, considerando os efeitos de seu uso, por exemplo, é cada vez mais
evidente na atualidade. Igualmente, o processo interdisciplinar pode influenciar os impactos já na
origem do desenvolvimento.
Enquanto os estudos disciplinares podem ser relativamente simples – envolvendo profissionais
com mesma formação, linguagem comum, muitas vezes com perspectivas teóricas e metodológicas
similares –, na interdisciplinaridade, ao contrário, o ponto de partida é a construção de um entendimento
e um domínio linguístico comum sobre a temática, objeto de estudo, por parte daqueles que farão
parte do processo, o que certamente demandará mais tempo, exigindo o exercício de sair da zona de
conforto de cada disciplina para ampliar a compreensão por meio da perspectiva das outras disciplinas.

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Esse exercício, porém, pode maximizar naturalmente a contribuição de cada disciplina para a pesquisa,
pois se dará não apenas por meio de sua visão de mundo, mas considerando também a de outras
disciplinas, implicando em um desenvolvimento mais completo, tendo em vista não apenas o resultado
do que se está desenvolvendo, mas também acerca dos impactos de sua utilização.
É importante, porém, diferenciar projetos interdisciplinares de multidisciplinares. A
multidisciplinaridade constitui-se na agregação, por meio de uma coordenação, de diferentes áreas do
conhecimento em torno de um ou mais temas, no qual cada área ainda preserva sua metodologia e
independência e na qual cooperação entre disciplinas não é obrigatória. A construção de um marca-
-passo1, por exemplo, se dá por meio de um processo com características multidisciplinares, envolvendo
diversas áreas do conhecimento. O conhecimento, a disciplina central, é a patologia cardiológica, mas
seu desenvolvimento envolve outras disciplinas, como Fisiologia, Engenharia de Materiais, Eletrônica,
Mecânica, Física e Matemática e assim por diante. Entretanto, trata-se de um projeto que realiza suas
encomendas junto às áreas de conhecimento necessárias, com um resultado esperado, por meio de uma
coordenação bem definida. Por outro lado, não há necessidade de um domínio linguístico comum,
nem de uma mesma metodologia para o estudo como um todo, já que não há obrigatoriedade de
um diálogo profundo, com transferência de conhecimentos e métodos, de forma que cada um dos
envolvidos continua com seu método científico, com independência, cabendo-lhe entregar o produto
parcial encomendado. O produto final, o marca-passo, continua sendo um objeto disciplinar, uma
tecnologia para uma patologia cardíaca, na área médica.
Na interdisciplinaridade, por sua vez, o envolvimento dos participantes é mais profundo e gera
consequências mais amplas. Ela pressupõe a convergência de duas ou mais áreas do conhecimento,
pertencentes ou não à mesma classe, que contribua para o avanço das fronteiras da ciência e tecnologia e
transfira métodos de uma área para outra, gerando novos conhecimentos ou disciplinas. A biotecnologia,
a nanotecnologia e certas áreas das ciências de materiais2 são exemplos de disciplinas que surgem da
própria prática interdisciplinar ensejada por problemas concretos. Nesses casos, o foco transcende o
processo de desenvolvimento, em tempo e espaço, abrangendo os impactos de uso e de descarte.
Como exemplo, uma área essencialmente interdisciplinar é a saúde pública, que envolve várias
áreas do conhecimento e transcende tempo e espaço. Um exemplo de pesquisa interdisciplinar em saúde
pública é a entomologia médica, ramo que trata, entre outras, de doenças transmitidas por insetos. Nesse
exemplo, um grupo que escolhesse tal caminho iria precisar de especialistas tais como epidemiologistas;
biólogos; geógrafos; demógrafos, para entender os territórios e suas ocupações; médicos, capazes de
realizar pesquisas em tais condições; farmacêuticos; bioquímicos e assim por diante. O recorte pode
ainda agregar mais disciplinas, caso se enfoque uma área urbana, onde o tema assume uma conformação
que exige outros profissionais, já que vão existir preocupações com sistemas de saneamento básico
(água, esgotos, resíduos sólidos); meios de transporte e mobilidade urbana; sistemas de áreas verdes;
habitação; sistemas de saúde pública e assim por diante. Assim, a interdisciplinaridade emerge como
processo em construção para cada grupo, e as pesquisas terão suas conformações diferenciadas em
relação aos elementos que vão constituir o objeto e as equipes de pesquisa.

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193

SUJEITO INTERDISCIPLINAR
A necessária convergência de conhecimentos deve ainda, como consequência, dar origem a um
novo trabalhador, com perfil distinto do profissional disciplinar, preservando sua formação básica
sólida, mas com características integradoras da interdisciplinaridade. Seguramente, um profissional
capaz de comunicar-se com outras áreas. Não se trata de alguém especializado em várias áreas, mas de
um profissional que construiu gradualmente um domínio linguístico associado, além de sua formação
de origem, a outras áreas, constituindo-se num sujeito com visão interdisciplinar.
Toda disciplina representa e tem uma forma de conhecimento baseada num método próprio,
que deve ser respeitado e valorizado, de forma que no contexto de um grupo convergente possa dar
contribuições para uma metodologia integrada, incorporando os elementos considerados positivos
de cada uma das disciplinas. Portanto, quem adentra a área interdisciplinar tem de estar disposto e
ter coragem, porque isso implica em deixar o conforto disciplinar, onde normalmente o profissional
já tem o reconhecimento de seus pares. Na pesquisa interdisciplinar esse conforto é colocado à prova,
inclusive porque a posição disciplinar consolidada continua sendo respeitada, mas provavelmente
precise ser relativizada.
Os pesquisadores interdisciplinares provavelmente levarão mais tempo para produzir uma
proposta para um projeto, assim como mais tempo para conseguir respostas, porque elas pressupõem a
necessidade de mais discussões, mais diálogos e, ainda, como levar o resultado à comunidade científica
em uma linguagem comum a todos os participantes do trabalho.
Certamente a humanidade passou, num período mais recente da História, por uma especialização
expressiva e cada profissional usa de sua especialização para erigir o pedestal de sua importância, o que
certamente aumenta o desafio. O sujeito interdisciplinar deve lidar com essa ambição, desenvolvendo
capacidade de espera e divisão dos méritos advindos dos resultados. O trabalho coletivo deve resultar
também em reconhecimento coletivo, o que absolutamente depende de uma liderança sólida.
Em uma pesquisa não é possível que todas as disciplinas sejam representadas, até por razões
operacionais, de modo a evitar o risco de se ter um grupo que, de tão grande, possa se tornar
inoperante. A equipe só deve ser aumentada, incorporando novas disciplinas, à medida que aumenta
a familiaridade e experiência com os métodos de trabalho científico em bases interdisciplinares.
Formada a equipe, o passo seguinte é o trabalho de coordenação e liderança. Em programas
interdisciplinares ou grupos de pesquisa interdisciplinares, é indispensável que os vários profissionais
envolvidos reconheçam em seu coordenador uma figura de liderança. Em grupos com atuação
interdisciplinar, a liderança é uma exigência para o bom andamento dos trabalhos e para a não
individualização do reconhecimento do trabalho coletivo.
Outro aspecto importante é a escrita interdisciplinar. A convergência dos conhecimentos provoca
permanente reflexão sobre os resultados por diferentes ângulos. Tão importante quanto a linearidade
das ciências exatas deve ser a reflexão das ciências sociais. A riqueza desse processo de interação é
o que possivelmente se perde nas pesquisas disciplinares, porque é da reflexão e dos momentos de

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interação e de troca de saberes que de fato emerge o conhecimento interdisciplinar. Não é à toa que
a interdisciplinaridade é entendida como uma forma essencial, não a única, de inovação. Esta surge
quando diferentes perspectivas se somam e revelam muito mais nuances do fenômeno estudado do
que a simples soma de perspectivas. É nesse sentido que a interdisciplinaridade passa a ser identificada
como uma necessidade das ciências modernas, em especial para análise e compreensão de fenômenos
transversais, como tecnologia e sociedade, porque ela provoca a reflexão sincrônica, com o tempo e
espaço atual, e diacrônica, com o tempo e espaço futuro.
Na pesquisa interdisciplinar, como em qualquer outro projeto, inicia-se pela identificação de
um problema, com base no qual podem ser estabelecidos os conceitos e competências necessários
para entendê-lo. A fase seguinte deve ser necessariamente de reflexão, discussão e embates no sentido
de fazer emergir a diversidade de perspectivas. A convergência só é possível se a diversidade for logo
revelada. Do contrário, corre-se o risco de se construir uma interdisciplinaridade frágil, baseada na
superficialidade das posições veladas e dos conhecimentos recíprocos.
Por meio da evidência das diferenças, é possível tratar as perspectivas disciplinares em relação
aos conceitos tratados e à definição das metaperspectivas, por meio das quais se deve organizar a
informação e sintetizar os conflitos identificados entre os diferentes campos de conhecimento reunidos
no trabalho. Somente após essa trajetória é que se pode ter a identificação do problema em estudo em
termos operacionais. E é só então que se deve iniciar o trabalho de pesquisa propriamente dito, com a
coleta de dados, bibliografia e todos os demais elementos, incluindo a construção do modelo de análise
a ser adotado. O exame interdisciplinar, entretanto, se retroalimenta não somente da relação com os
dados e elementos teóricos-conceituais, mas novamente envolve a tensão entre as várias perspectivas
disciplinares e suas respectivas contribuições, avaliando e reavaliando o aprendizado de forma a construir
os resultados, a exemplo da compreensão e definição do problema a ser estudado. Para além da soma
de perspectivas composta pela diversidade das disciplinas, busca-se eliminar ou aproximar as lacunas
remanescentes nas fronteiras dessas mesmas disciplinas, no sentido de se produzir um conhecimento
integrador.
Outro aspecto importante na interdisciplinaridade é a necessidade de cooperação entre
universidade, setor público, setor empresarial e sociedade civil. Tal cooperação passa a existir não
apenas entre departamentos de uma única instituição. A busca por profissionais capacitados para um
projeto pode, e deve, ultrapassar barreiras além das existentes em instituições acadêmicas. Por meio
dessa cooperação, ficam lançadas as bases para as interações transdisciplinares.

CIÊNCIA E TECNOLOGIA NA AMÉRICA LATINA À


LUZ DA INTERDISCIPLINARIDADE
No tocante ao processo de desenvolvimento da ciência e tecnologia nas sociedades latino-
-americanas, é elucidativa a análise histórica e conjuntural empreendida por Dagnino, Thomas e

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Davyt (1996), que delinearam as características desse desenvolvimento. Segundo os autores, uma
das características foi a internacionalização com a proliferação das transnacionais num movimento
de homogeneização dos espaços econômicos. Essa homogeneização ocorreu por meio do padrão dos
países ditos desenvolvidos para a América Latina.
Na mesma perspectiva, consagrou-se a expansão urbana e a industrialização, em detrimento
de outros modos de vida. A industrialização em substituição à importação (ISI), iniciada em 1929,
sofreu forte intervenção do Estado a partir da década de 1960. Visava-se implementar uma política de
desenvolvimento econômico e industrial integrando o capital nacional ao capital transnacional. Além do
provimento da infraestrutura, o estado passava a se envolver no setor produtivo, em especial em algumas
indústrias de base. Segundo Furtado (1974), essa política de desenvolvimento homogeneizadora e de
padronização, desconectada do território, desconsiderando as potencialidades, vocações e demandas
regionais, provocou um mimetismo em relação à Europa e aos EUA. A tecnologia era vista apenas como
artefato do desenvolvimento econômico, desconsiderando sua influência e impactos socioambientais.
Além disso, segundo descrevem Dagnino, Thomas e Davyt (1996), a ISI trazia implícitas
certas ‘determinações tecnológicas’. A crescente importação de tecnologias pelas economias locais
demandava a adequação dessa tecnologia importada às condições locais com modificações e redução
do grau de inovação. Esse processo, por um lado, gerou um aprendizado tecnológico, ensejando por
vezes incremento nas inovações, mas por outro, o que predominou foi o fato de o setor produtivo,
submetido à lógica da importação da tecnologia, não internalizou a dinâmica de geração de tecnologia
significativa. A pesquisa científica, em sua maioria, continuou com financiamento a cargo do estado,
raramente relacionada ao setor industrial, e não se conseguiu estabelecer uma dinâmica de inovação
endógena que proporcionasse um padrão de desenvolvimento industrial autônomo ampliando os
atores de ciência e tecnologia.
Além disso, segundo os mesmos autores, predominava a visão europeia baseada no modelo
linear de inovação, que não levava em conta os fatores sociais que proporcionam o desenvolvimento
de determinadas soluções em detrimento de outras, nem o fato de que essas opções têm, via de
regra, forte viés econômico e político. Portanto, uma visão desprovida da reflexão interdisciplinar
inerente aos processos tecnológicos, para além de seu desenvolvimento e implementação, sobre seus
impactos sociais, políticos e ambientais. Essa visão é criticada pelo Pensamento Latino-Americano
sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade (PLACTS)3, que a partir da década de 1960 passou a contestar
o desenvolvimento científico e tecnológico como algo desassociado de uma função relacionada ao
desenvolvimento nacional.
A ciência e a tecnologia deveriam ser pensadas e definidas por meio de um ‘projeto de sociedade’
e de um ‘projeto de país’, considerando os diversos aspectos, o tempo presente e o futuro. Ao observar
que as inovações tecnológicas não são socialmente neutras, o PLACTS chamava a atenção para o fato
de que a suposta e festejada ‘transferência (importação) da tecnologia’, que se fazia de forma acrítica
à época, trazia nos artefatos, uma série de características culturais, muitas vezes estranhas às culturas
locais e nem sempre adequadas ao ambiente.

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Enquanto a política oficial deixava a seleção de tecnologia por conta dos agentes macroeconômicos,
baseada numa visão disciplinar, o PLACTS considerava imprescindível o papel do Estado em
centralizar essa escolha utilizando-se de critérios macroeconômicos. Com efeito, para além de
critérios macroeconômicos, o adequado, numa visão interdisciplinar, seria considerar sobretudo as
potencialidades socioambientais locais. O PLACTS via o desenvolvimento local de tecnologias, como
substitutivo da transferência de tecnologias (DAGNINO; THOMAS; DAVYT, 1996; DIAS, 2008;
DAGNINO, 2008), convergindo com uma perspectiva de aproveitamento dos potenciais locais. Em
contraposição ao modelo ofertista, o PLACTS concebia o desenvolvimento tecnológico e científico
com base em um projeto nacional, representado na política científica. (DIAS, 2008).
A partir das décadas de 1980 e 1990 surgiu um novo padrão tecnológico, que acentuou o processo
de centralização sobretudo pelo domínio de multinacionais. Houve a migração de um modelo de
transnacionais para outro, de globalização, em que uma das características marcantes foi a remoção
dos obstáculos impostos pelos estados nacionais, que então se tornaram facilitadores das ações das
empresas transnacionais. O resultado desse processo foi uma reorganização da produção e dos fluxos
de tecnologias e insumos, estruturas de decisão e controle, diminuição da importância das fronteiras e
das especificidades regionais, mesmo com o aproveitamento dos mercados locais e suas características.
Na América Latina, a presença de empresas transnacionais com tecnologias avançadas trouxe grande
desafio às empresas nacionais e locais, que se viram impotentes para competir em igualdade de condições.
Asseverou-se o processo de busca pela exportação e promoveu-se significativa desregulamentação com
vistas a facilitar a transferência tecnológica, bem como a entrada de capital financeiro e produtivo. O
estado promoveu, assim, a associação de capital nacional e estrangeiro para facilitar a transferência
tecnológica, deixando de lado o conjunto de capacidades desenvolvido anteriormente.
Nessa lógica, apenas fundamentada na visão disciplinar da economia, o desenvolvimento local
de tecnologia perdeu ainda mais espaço, sendo considerado inadequado por ser lento, caro e de
menor eficácia em curto prazo. Houve nesse processo uma submissão à racionalidade instrumental
e econômica (HORKEIMER, 2002; FERNANDES, 2008), o que submeteu o desenvolvimento
científico tecnológico da região às necessidades de funcionalidade do mercado. Tais premissas poderiam
significar que não é mais papel do estado promover o desenvolvimento tecnológico, integrando
universidade e sociedade, mas que esse desenvolvimento ocorreria nos próprios agentes econômicos,
lócus da inovação funcional e necessária. Por outro lado, a partir da década de 1990, promoveu-se a
instalação de incubadoras e centros tecnológicos como forma de integrar universidade e empresas,
mimetizando a experiência de países centrais.
Emergiu nesse contexto uma grande contradição, que é a necessidade de curto prazo, imposta
pelo mercado, e a natureza de longo prazo do desenvolvimento científico e tecnológico. Além disso,
deixou-se esse processo a cargo da universidade, cujo escopo e estrutura não são adequados para tal
demanda e nem sempre combinam com a necessidade e a ideologia do mercado, que via de regra se
fundamenta na visão econômica disciplinar de curto prazo, sem a reflexão sincrônica e diacrônica de
tempo e espaço. (FERNANDES, 2010).

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PÓS-GRADUAÇÃO E CIÊNCIA E TECNOLOGIA NO


BRASIL
Foi no contexto dessas contradições que no Brasil houve um processo de incremento
da pós-graduação, como tentativa de transformá-la em lócus do desenvolvimento científico e
tecnológico, visando não só à formação acelerada de mestres e doutores, como também a busca pelo
aumento da produção científica e tecnológica. Mas, assim como nas décadas anteriores, nos últimos
15 anos predominou a pesquisa bancada pelo Estado. O Brasil avançou significativamente na
produção científica, saindo da 39.a posição para a 13.a em produção científica. Contudo, a produção
tecnológica e sua consequente transferência permaneceram pouco significativas, se comparadas às
dos países desenvolvidos.
Dentre as ações para reverter esse quadro, além do apoio à instalação de Parques Tecnológicos e
Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia, a partir de 2010 houve incentivos para a implantação de
mestrados profissionais. Dos atuais 6.945 cursos de pós-graduação sensu stricto no Brasil, cerca de 848
são mestrados profissionais, e a taxa de crescimento nos últimos cinco anos tem acompanhado aquela
dos mestrados acadêmicos. (CAPES, 2019).
Entretanto, essa é uma ação que tem gerado debates, pois desafia uma das principais características
da pós-graduação brasileira, que é o financiamento público, sobretudo de bolsas. As duas principais
características do mestrado profissional seriam: formar profissionais e desenvolver tecnologias e soluções
diretamente ligadas a demandas provenientes da sociedade e do mercado. Nesse sentido, a ideia original
era a busca dos recursos nos demandadores desses profissionais e soluções. Ocorre que numa sociedade
cartorária, regida por um estado patrimonialista e paternalista, os diversos obstáculos são por vezes
intransponíveis para esse tipo de iniciativa. Entre esses obstáculos, pode-se citar a dificuldade das
universidades públicas, predominantemente o principal espaço de desenvolvimento da pós-graduação,
em captar recursos privados. Por sua natureza pública, essas instituições também não são autorizadas
a cobrar mensalidades, tornando as iniciativas do mestrado de características profissionais pouco
atraentes em relação às iniciativas de características acadêmicas.
Além disso, como discutido anteriormente, por razões históricas as grandes demandas tecnológicas
não vêm de um projeto de desenvolvimento do país, mas do mercado internacional, que via de regra
ignora o local enquanto potencial desenvolvedor para importar tecnologia considerada mais ‘rápida’,
focando apenas no mercado consumidor.
Um exemplo ilustrativo, nesse sentido, é a indústria automobilística. Atualmente, na América
Latina são montados automóveis de grande número de marcas, mas ela detém poucos centros de
desenvolvimento científico e tecnológico associados à inovação no setor. O resultado mais visível disso
é a atração das atividades de produção, sem o domínio sobre o capital financeiro e produtivo e a
patente sobre o capital intelectual, científico e tecnológico, que permanece nos países de origem.
Mesmo considerando que, se houve avanços nas discussões de CTS, abordando questões como
o mito da neutralidade de C&T, evidenciando que se trata de uma construção social, e da dinâmica

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de especialização e departamentalização, produzindo, nas palavras de Durant, um “especialista


científico que sabe mais e mais a respeito de menos e menos” (2000, p. 10) e um hiato entre a vida
e o conhecimento sobre o mundo contemporâneo, cujos fenômenos são cada vez mais complexos e
conectados, demandando atuação interdisciplinar e interações transdisciplinares.
Por essas questões, os questionamentos originais do PLACTS são ainda atuais. Mais de 40 anos
depois, algumas questões fundamentais ainda não foram respondidas: Por que a América Latina tem
dificuldades em desenvolver ciência e tecnologia?; Por que ela continua a depender tão fortemente da
ciência e tecnologia desenvolvida nos países centrais? Essas são questões que precisam ser enfrentadas e
respondidas para a existência de uma ciência e tecnologia que atendam aos interesses do desenvolvimento
dos países dessa região, e com certeza, do Brasil.

A IMPORTÂNCIA DA INTERDISCIPLINARIDADE NO
CENÁRIO BRASILEIRO ATUAL
Importante pontuar que a pesquisa brasileira ocorre majoritariamente no âmbito da pós-graduação
stricto sensu e que seu avanço coincide com a institucionalização da multi e interdisciplinaridade na pós-
graduação, que responde a um movimento deflagrado no final da década de 1990, quando foi criada
a Área de Avaliação Multidisciplinar na Capes, posteriormente denominada Área Interdisciplinar a
partir de 2008. (PHILIPPI JR; FERNANDES, 2015).
Inspiradas nesse movimento, surgiram outras ações de institucionalização, como o lançamento de
editais temáticos privilegiando a composição de equipes multidisciplinares e abordagem interdisciplinar;
comitês e áreas de avaliação em temáticas transversais ou híbridas, como Biotecnologia, Biodiversidade,
Materiais e Ciências Ambientais, que impulsionam o pensamento interdisciplinar e tencionam as áreas
disciplinares a fazerem o mesmo. Áreas como Planejamento Urbano e Regional e Saúde Coletiva, por
abrangerem diversos domínios de conhecimento e problemas transversais, cada vez mais se reconhecem
como interdisciplinares.
Segundo Philippi Jr, Fernandes e Pacheco, como resultado desse tensionamento feito no âmbito
da avaliação da pós-graduação na Capes,

em 2012, a interdisciplinaridade ganhou espaço no processo de institucionalização da CAPES,


quando suas áreas de avaliação foram convidadas a descrever como veem e inserem programas
com características interdisciplinares em suas avaliações. Trata-se de um reconhecimento de que a
institucionalização e a internalização da interdisciplinaridade passam pela sua apropriação pelas áreas
do conhecimento. (2017, p. 19).

Os autores descrevem, detalhadamente, como esse processo de institucionalização vem se


expandindo para outras instâncias institucionais, como as Fundações de Amparo à Pesquisa (FAPs),
o Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), o Fórum de Pró-Reitores de Pós-graduação e Pesquisa

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(Foprop), o Plano Nacional de Pós-graduação (PNPG), o Programa de Reestruturação e Expansão


das Universidades Federais (Reuni), com o surgimento de universidades com desenho organizacional
inovador e não departamentalizadas.
Trata-se de um processo que ensejou, e ainda enseja, diversas mudanças. Estas passam pela
reorganização da ciência em termos institucionais, na sua relação com a sociedade, não só no que
diz respeito à relativa neutralidade, mas também à postura e às atitudes de alteridade, empatia e
reconhecimento de saberes ditos populares e à transdisciplinaridade.

Para tal, são necessárias visões institucionais que tornem a universidade, ao mesmo tempo, conectada
ao território e à cultura local e sintonizada aos processos e movimentos globais trazidos à tona pelo
desenvolvimento da ciência e da tecnologia. (PHILIPPI JR; FERNANDES; PACHECO, 2017, p. 15).

Ou seja, trata-se de uma conexão ao contexto territorial, considerando suas bases naturais,
construções sociais e identidades, superando a perspectiva ofertista, na qual se consome o que se produz,
para uma perspectiva de demanda, em que se produz o que é necessário. Portanto, uma ciência, além
de global, também conectada às especificidades de cada território, desenvolvida para e por meio de seus
potenciais e demandas.
Nesse sentido, a interdisciplinaridade, principalmente nos últimos 15 anos, significou importante
elemento de mudança cultural na ciência brasileira. É certo que grandes desafios permanecem e
precisam ser enfrentados pela academia e pelo país, como uma melhor conexão entre ciência e
sociedade, extremamente dificultada por inúmeros entraves legais e burocráticos. Condições para isso
estão claramente disponíveis, considerando o parque universitário e científico existente, o corpo de
professores, pesquisadores, profissionais e estudantes qualificados e capacitados, associados à existência
de instituições públicas e privadas estruturadas em todo o país.
Portanto, um novo fazer ciência e tecnologia, em que esses tensionamentos, por serem inerentes,
sejam adequadamente enfrentados e venham a produzir mudanças gradativas que aos poucos façam da
ciência brasileira cada vez mais cidadã, conectada aos interesses, demandas e potencialidades nacionais.

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VIEIRA PINTO, A. O conceito de tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. v. 1

NOTAS EXPLICATIVAS
1 Equipamento utilizado em alguns pacientes com problemas cardíacos.
2 Não é possível desenvolver novos materiais sem o concurso de profissionais das mais diversas origens:
engenheiros, físicos, matemáticos, bioquímicos, entre outros.
3 O PLACTS tinha como principais representantes Amilcar Herrera, Jorge Sábato e Oscar Varsavsky, da
Argentina; José Leite Lopes, do Brasil; Miguel Wionczek, do México; Francisco Sagasti, do Peru; Máximo
Halty Carrere, do Uruguai; Marcel Roche, da Venezuela.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
201

SERVIÇOS ECOSSISTÊMICOS
NA QUARTA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL

Rafael Küster de Oliveira


Cleverson Vitório Andreoli

INTRODUÇÃO
Não é exagero afirmar que a tecnologia conferiu superpoderes aos humanos. Por exemplo, a
invenção da máquina a vapor possibilitou mover objetos extremamente pesados durante períodos
prolongados e em praticamente qualquer lugar. Além de potencializar a capacidade humana em
termos de força, mobilidade, velocidade e comunicação, a tecnologia também permitiu que a espécie
desenvolvesse novas habilidades, como voar e sintetizar fertilizantes nitrogenados.
Nas últimas décadas, as tecnologias de comunicação e transporte propiciaram o surgimento de
uma sociedade global. A globalização se caracteriza por um fluxo frenético e jamais visto de informações,
pessoas e produtos entre praticamente todas as regiões do planeta. Hoje em dia, não é de se estranhar
franquias do McDonald´s, uma rede de lanchonetes norte-americana, nas grandes cidades brasileiras.
Nessa lanchonete, num parque ou no conforto de sua casa, você pode usar um smartphone ou tablet
para interagir com familiares, amigos e colegas de trabalho. Você também pode assistir a um vídeo
no YouTube que acabou de ser postado por alguém em outro canto do mundo. É provável que esse
smartphone ou tablet tenha componentes confeccionados em diferentes países. Aliás, talvez seu aparelho
não tenha sido projetado ou montado em qualquer dessas nações. Isso porque as ‘cadeias globais de
valor’ representam a nova realidade do comércio internacional.

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202

Se o surgimento de uma sociedade global já não indicasse o suprassumo do progresso tecnológico,


há muitas discussões sobre a revolução tecnológica das cadeias globais de valor: a Indústria 4.0. Esse
conceito viralizou a partir da Hannover Messe de 2011, a principal feira mundial de tecnologia
industrial. Contudo, ainda é difícil explicá-lo1. Ele surgiu naquele ano como uma iniciativa estratégica
do governo alemão para a transformação computacional da indústria. Conforme a Figura 1, a premissa
do programa é a de que a chegada da internet das coisas (IOT) na indústria abriria as portas para a
Quarta Revolução Industrial (4RI).

Figura 1 – As quatro revoluções industriais e seus propulsores.

Final do século XVIII Início do século XX Início dos anos 1970

1º- 2º- 3º- 4º-


Mecanização Produção em massa Automação Sistemas ciberfísicos

Máquina a Eletricidade e Eletrônicos e Internet das coisas


vapor linha de montagem tecnologia da
informação
Propulsores
Fonte – Baseado em Kagermann et al., 2013.

Antes do programa alemão, outros países já faziam pesquisas de inovação industrial com base
na IOT. (KAGERMANN et al., 2013). Não obstante, a Indústria 4.0 foi o conceito que viralizou.
Atualmente, vários países, indústrias, centros de pesquisa e universidades a almejam, apesar de não se
saberem ao certo o que ela significa e, consequentemente, a melhor forma de alcançá-la.
Presume-se conhecer algumas de suas principais tecnologias. Em especial, IOI, Big Data,
computação em nuvem, manufatura aditiva (impressão 3D), inteligência artificial, cobots (robôs que
cooperam com os humanos) e CPS. Trata-se de tecnologias muito promissoras da Terceira Revolução
Industrial (3RI) que estão avançando rapidamente. Portanto, cabe questionar se estaríamos realmente
beirando a 4RI ou apenas vivenciando os desdobramentos da 3RI. Afinal, qual seria o limiar entre as
duas revoluções?

Agrinho-Tecnicos_BOOK.indb 202 13/04/2021 11:12:33


203

A mera ideia de uma indústria, ou cadeia produtiva, na qual as máquinas resolvem basicamente
todos os problemas é vaga demais para iluminar esses questionamentos. Se caracterizar a Indústria 4.0
já não fosse difícil o bastante, outros ainda argumentam que a 4RI é algo muito maior.

A quarta revolução industrial, no entanto, não diz respeito apenas a sistemas e máquinas inteligentes
e conectadas. Seu escopo é muito mais amplo. Ondas de novas descobertas ocorrem simultaneamente
em áreas que vão desde o sequenciamento genético até a nanotecnologia, das energias renováveis à
computação quântica. O que torna a quarta revolução industrial fundamentalmente diferente das
anteriores é a fusão dessas tecnologias e a interação entre os domínios físicos, digitais e biológicos.
(SCHWAB, 2016, p. 16).

Uma das únicas certezas sobre a 4RI é que ocorreria num planeta finito e imensamente alterado
pelos humanos. Por conseguinte, seja ela o que for, teria dois desafios ecológicos colossais: 1) reverter
a grave crise ambiental planetária deixada como legado pelas revoluções industriais anteriores; e 2)
desvincular o crescimento econômico da degradação dos ecossistemas e da queima de combustíveis
fósseis. Se a 4RI não realizar tais proezas, então o futuro da humanidade residirá na capacidade daquela
em produzir substitutos tecnológicos para os serviços ecossistêmicos (SE).
Considerando os SE como os benefícios que os humanos obtêm dos ecossistemas, o objetivo deste
capítulo é investigar tais benefícios sob uma ótica atual, ampla, integrada e, acima de tudo, plausível
de ser trabalhada com estudantes do Ensino Fundamental. Acreditamos que a 4RI, ou a continuidade
da 3RI, poderá proporcionar um mundo mais próspero, desde que norteada pelo desenvolvimento
sustentável (DS). O tópico de SE oferece uma valiosa ponte entre inúmeros assuntos inerentes ao
DS. Por conseguinte, confere ao estudante um importante instrumento (uma lupa investigativa)
para a construção de uma visão mais crítica, holística e concreta acerca desse tão urgente modo de
desenvolvimento. Esperamos que este capítulo propicie ao professor uma instigante e enriquecedora
introdução aos tópicos de ES e DS.
O capítulo está estruturado na forma de um conjunto de perguntas-chaves (Quadro 1). Com exceção
da última questão, a qual fará o fechamento do capítulo, as demais não precisam ser necessariamente
lidas em ordem, uma vez que estão interligadas e, portanto, são complementares. Duas delas são
dedicadas às mudanças climáticas. Os SE e as mudanças climáticas estão tão relacionados que não seria
possível adentrar exclusivamente o primeiro tópico (a regulação do clima é um dos SE, enquanto as
mudanças climáticas colocam a integridade dos ecossistemas e seus serviços em risco). A última questão
explora a relação entre os SE e a tecnologia.

Quadro 1 – Dez perguntas-chaves do capítulo relacionadas aos serviços ecossistêmicos.

1. Serviços ecossistêmicos: a voz da biodiversidade no desenvolvimento sustentável?


2. O que é o Antropoceno?
3. Como as mudanças climáticas impactariam os ecossistemas terrestres?
4. A ciência prova que as mudanças climáticas são causadas pelos humanos?

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204

5. O que foi a Avaliação Ecossistêmica do Milênio?


6. Qual é a relação entre a diversidade arbórea e a funcionalidade dos ecossistemas florestais?
7. Qual seria o melhor uso da terra para a provisão de serviços ecossistêmicos?
8. Se os serviços ecossistêmicos são tão importantes, por que a maioria não tem valor de mercado?
9. Seria ético comercializar os serviços ecossistêmicos?
10. Considerações finais: a tecnologia conseguiria substituir os serviços ecossistêmicos?
Fonte – Os autores.

SERVIÇOS ECOSSISTÊMICOS: A VOZ DA


BIODIVERSIDADE NO DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL?
A busca pelo desenvolvimento sustentável (DS) não é harmoniosa, mas conflitosa. Não poderia
ser diferente. Afinal, esse conceito já nasceu com a incumbência de acomodar três ideias até então tidas
como antagônicas: o crescimento econômico, a igualdade social e a proteção ambiental. Contudo,
não importa que se gere calor desde que se alcance a luz no final. Isto é, o surgimento de conflitos no
presente é plenamente justificável se propiciar um mundo mais sustentável no futuro.
Esta seção começa com um apanhado histórico do DS. Em seguida, discorre sobre sua natureza
conflitosa. Finalmente, contrasta a importância da biodiversidade sob perspectivas conflitantes do
DS, sendo uma delas referente à biodiversidade como fonte de benefícios para os humanos (serviços
ecossistêmicos).
A Primeira Revolução Industrial (1RI) foi marcada por um amplo espectro de transformações
sociais e econômicas, pelo desenvolvimento tecnológico e pelo aumento da poluição e da demanda de
recursos naturais. Contudo, a relação entre a sociedade humana e o ambiente ainda não era vista como
uma questão prioritária no século XIX. As questões sociológicas dominantes compreendiam as causas
da desigualdade social, o combate à pobreza, a melhoria das condições de vida nos centros urbanos
e a avaliação dos futuros rumos do desenvolvimento industrial. (GIDDENS, 2009). Apesar de cada
um dos reconhecidos ‘pais’ da Sociologia – Durkheim, Weber e Marx – terem dado atenção a um ou
outro aspecto da relação sociedade-ambiente, ela não configurou o tema central de seus trabalhos.
(HANNIGAN, 2006).
Entre o início do século XX e a década de 1960, o meio ambiente ganhou notoriedade devido
a catástrofes ambientais ocorridas pelo mundo. Dentre os relatos clássicos da literatura se destaca o
‘grande smog’ (mistura de névoa e fumaça) em Londres em 1952. Lá, os níveis de poluição atmosférica
eram altíssimos desde a 1RI. No dia 5 de dezembro daquele ano, a cidade amanheceu coberta por um
smog de consequências catastróficas. Uma inversão térmica impediu sua dispersão por quatro dias, o
que levou a óbito mais de 4 mil pessoas.

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205

Em 1962, Rachel Carson, naturalista e pesquisadora em biologia marinha, publicou o best-seller


Silent spring (Primavera silenciosa), no qual documentou eloquentemente os efeitos nocivos dos
pesticidas, especialmente o DDT, para o ambiente e a saúde humana. (CARSON, 1980). Esse livro
foi de extrema importância para a ascensão do movimento ambientalista na década de 1960. Também
atribui‑se a ele proibição do uso do DDT nos Estados Unidos anos mais tarde. (ORESKES, 2004).
O Clube de Roma foi outra peça-chave para a sensibilização da sociedade no tocante às questões
ambientais. Fundado pelo industrial e filantropo italiano Aurelio Peccei em 1966, o Clube de Roma
consistiu num think tank (laboratório de ideias) para os desafios globais da humanidade. Contou com
a participação de diversos atores sociais, como cientistas, educadores, humanistas, economistas, oficiais
das Nações Unidas e líderes corporativos.
Em 1972, sob encomenda do Clube de Roma, uma equipe do Instituto de Tecnologia de
Massachusetts (MIT) publicou a obra Limites para o crescimento. (MEADOWS et al., 1972). A
obra aborda os resultados de um modelo computacional criado para simular as consequências do
crescimento econômico desregulado, do crescimento populacional e da exploração desmedida dos
recursos naturais. Os autores concluíram que o ambiente não suportaria o crescimento econômico até
o ano de 2100 caso a sociedade não adotasse novas formas de agir e pensar.
Também em 1972 emergiu uma nova perspectiva sobre a relação entre o desenvolvimento e
o meio ambiente na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, também
conhecida como Conferência de Estocolmo. (EARTH COUNCIL et al., 2002). Nessa conferência, as
questões ambientais foram oficialmente elevadas como condicionantes da qualidade de vida humana
e da garantia dos interesses das futuras gerações. A busca do crescimento econômico sem consideração
a outros fatores – como necessidades básicas, respeito ao próximo, ar puro, água, abrigo e saúde – foi
questionada de gerar condições de vida indignas ao ser humano. Reconheceu‑se que dois terços da
população mundial estavam vivendo em condições de pobreza, desnutrição, analfabetismo e miséria.
Concluiu-se que satisfazer as necessidades básicas de vida nos países em desenvolvimento seria um
requisito fundamental para que a sociedade avançasse nas questões ambientais; esses países, no entanto,
deveriam promover um desenvolvimento correto. Isto é, um desenvolvimento alinhado às questões
ambientais, de modo a evitar os mesmos erros cometidos pelos países desenvolvidos. (EARTH
COUNCIL, 2002).
Em 1987, a Comissão Mundial das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
(CMMAD) apresentou um documento chamado Nosso Futuro Comum (Our Common Future),
também conhecido como Relatório Brundtland. Nele, o desenvolvimento sustentável (DS) é definido
como “o desenvolvimento que procura satisfazer as necessidades da geração atual, sem comprometer
a capacidade das gerações futuras de satisfazerem as próprias necessidades”. (CMMAD, 1998). O
desafio de alcançar o DS levou à convocação da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente
e Desenvolvimento, ou Eco-92, realizada no Rio de Janeiro. Nesse evento foram criados importantes
instrumentos internacionais relacionados ao meio ambiente, tais como a Convenção-Quadro das
Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas e a Convenção da Diversidade Biológica.

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Desde a Eco-92, o DS vem se consolidando como um tema prioritário nos três setores da sociedade.
Nos dias de hoje, dificilmente alguém refutaria a ideia de conciliar o bem-estar humano, a proteção
da natureza e um futuro promissor para as próximas gerações. Entretanto, o conceito de DS, apesar
de muito atrativo, abre espaço para múltiplas interpretações. Pode-se questionar que já existe um forte
consenso sobre tal leitura: a do equilíbrio entre as dimensões ambiental, social e econômica (o famoso
tripé do DS). Contudo, ainda precisaríamos definir o que seria esse tripé e quais as melhores estratégias
para alcançá-lo. Em última análise, o DS diz respeito a um mundo ideal. Mais especificamente, a busca
pelo DS exige uma reflexão profunda em torno da seguinte questão: ‘Como deveriam ser idealmente
as relações dentro da sociedade e entre a sociedade e a natureza?’. Entretanto, dificilmente duas pessoas
quaisquer dariam as mesmas respostas (já é difícil achar duas pessoas quaisquer que defendam o mesmo
partido político, religião e time de futebol...).
Ressaltamos que a existência de múltiplas visões de mundo é extremamente desejável, pois serve
como um valioso banco de ideias e perspectivas para a sociedade enfrentar os vários desafios do DS que
já existem (por exemplo, consultar os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável das Organizações
Unidas) ou que estão por vir. Uma ‘monocultura de mentes’ colocaria em risco o futuro da humanidade,
pois diferentes problemas e desafios exigem diferentes respostas, as quais possivelmente não seriam
produzidas por meio de uma única visão da realidade. Ademais, seria extremamente angustiante viver
num planeta no qual todas as pessoas pensassem e agissem igualmente.
Em resumo, o desenvolvimento sustentável tem múltiplas interpretações, e cada indivíduo tende a
crer que a sua é a correta. Por conseguinte, não é incomum que os debates sobre o DS sejam marcados
pelo conflito, e não pela harmonia. Não obstante, esse pode ser um conflito do bem (se gerar ‘luz’
por causa dos ‘acalorados’ debates). Na verdade, ele não surge por causa do DS em si, mas devido
às divergentes visões de mundo e interesses dos debatedores. O DS funciona, portanto, como uma
janela de oportunidade para o diálogo (MEPPEM; BOURKE, 1999), ou seja, oportuniza que essas
divergências sejam expostas e negociadas. Uma vez expostas, cada indivíduo tem a chance de entender
o significado do DS para os demais. À medida que o diálogo avança, o grupo começa a construir
involuntariamente um ‘significado comum’ para o DS. Tal construção não assegura que as divergências
sejam solucionadas ou minimizadas, contudo poderá ser um importante passo nessa direção.
Para ilustrar o argumento anterior, faremos a seguinte analogia: imagine um grupo no qual
1) cada integrante fale um idioma distinto e 2) cada integrante fale apenas um idioma. Não é difícil
conceber que o grupo teria grande dificuldade na resolução de um impasse qualquer. Considere que,
com o tempo e frente às adversidades impostas por esse impasse, essas pessoas desenvolvam, de alguma
forma, um idioma em comum, isto é, uma segunda língua. Porém, o fato de elas conseguirem se
comunicar verbalmente não significa que resolverão ou minimizarão o conflito, mas certamente as
chances de sucesso se tornarão muito maiores. Em nossa analogia, o DS teria dois estágios: provocaria
o desenvolvimento dessa segunda língua (ao trazer à tona vários impasses decorrentes dos diferentes
interesses e visões de mundo) e passaria a constituir, à medida que o diálogo avançasse, a segunda língua

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em si. Em outras palavras, o DS seria tanto o agente provocador quanto o resultado da provocação. É
isso o que queremos dizer com a expressão ‘conflito do bem’.
É fundamental que a sociedade preserve sua pluralidade de perspectivas sobre como o mundo
funciona e como deveria funcionar. Contudo, uma vez que essas pessoas habitam o mesmo planeta,
elas precisam negociar um mundo em comum. Além disso, o desafio do DS não se limita a negociar
e fazer esse mundo acontecer. Sob uma perspectiva ética, é preciso assegurar a integridade daqueles
que não participam (a biodiversidade e as futuras gerações) ou que têm pouca voz (os mais pobres, as
comunidades locais, as mulheres, as crianças e os idosos) nessa negociação.
Nas próximas seções, abordaremos a biodiversidade sob a ótica dos serviços ecossistêmicos.
Nessa perspectiva, ela é importante porque assegura, direta ou indiretamente, vários constituintes do
bem-estar humano. No entanto, vários autores já criticaram a dependência humana sobre os serviços
ecossistêmicos como a principal justificativa para a conservação da biodiversidade. Por exemplo, tomemos
o questionamento feito por Oreskes (2004): imagine que os humanos vivessem perfeitamente em um
planeta com muito menos biodiversidade, no qual todos os serviços ecossistêmicos fossem obtidos das
monoculturas florestais, dos campos de golfe, dos quintais, e assim por diante. Nesse caso, a perda da
biodiversidade seria aceitável? Sob perspectivas éticas, religiosas, culturais e filosóficas, os ecossistemas
possuem valores independentemente de contribuírem para o bem‑estar humano. (ORESKES, 2004).
Nós (autores do presente capítulo) acreditamos que a maioria dos pesquisadores da linha de
serviços ecossistêmicos concorda que a biodiversidade é muito mais do que o somatório de seus
benefícios para a humanidade. Contudo, consideram que tal perspectiva antropocêntrica seja vital para
a biodiversidade ‘ganhar voz’ nas negociações do DS. Outros pesquisadores, por sua vez, defendem que
uma melhor alternativa seria sensibilizar a sociedade sobre os demais valores da biodiversidade, ou seja,
valores que existiriam de forma avulsa à satisfação humana imediata, tais como os éticos, religiosos,
culturais e ecológicos. Em suma, os pesquisadores divergem em relação a como sensibilizar a sociedade
quanto à importância da biodiversidade. Isso ocorre porque eles, assim como os demais seres humanos,
têm diferentes visões sobre como a sociedade funciona.

O QUE É O ANTROPOCENO?
O Holoceno é o período geológico pós-glacial com início entre dez e doze mil anos atrás. Foi palco
do desenvolvimento da agricultura (a chamada Revolução Neolítica), da ascensão e do declínio das
grandes civilizações e do advento das três revoluções industriais. Durante esse período de amenidade
climática, no entanto, a tecnologia potencializou as atividades humanas a ponto de impactarem o
planeta como um todo. Na década de 2000, o químico Paul Josef Crutzen tornou conhecido o termo
‘Antropoceno’ em referência a um período geológico que estaria sendo induzido pelos humanos. Na
década anterior, esse mesmo químico ganhara o Nobel de Química por seu trabalho concernente à
destruição da camada de ozônio por óxidos de nitrogênio.

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Em um trabalho seminal publicado no periódico Nature, Rockstrom et al. (2009) propuseram


que as dinâmicas naturais do Holoceno deveriam ser investigadas e fixadas como ‘limites planetários’.
Conforme a lógica dos autores, uma vez que o Holoceno teria propiciado condições ambientais
adequadas para a prosperidade humana, a integridade do planeta e de seus habitantes estaria em risco
caso tais limites planetários fossem ultrapassados. Os autores concluíram que a perda da biodiversidade
e o ciclo biogeoquímico do nitrogênio já superariam seus limites planetários. Esse estudo foi atualizado
e aprimorado anos mais tarde por Steffen et al. (2015), que verificou o fato de o ciclo biogeoquímico
do fósforo também estar além de seu respectivo limite, ao passo que as mudanças climáticas e as
mudanças no uso da terra ocupariam a zona de incerteza (Figura 2).
É importante notar que os problemas ambientais, como aqueles destacados na Figura 2, não são
independentes um do outro. Aliás, a distinção de problemas ambientais em categorias e subcategorias
não passa de uma artimanha dos cientistas para facilitar e aprofundar seus estudos. Embora tenha sido
uma estratégia importante para o avanço do conhecimento científico, trabalhos interdisciplinares que
exploram as interconexões entre problemas ambientais são extremamente desafiadores e, portanto,
escassos. (ANDREOLI et al., 2014). Porém, são cada vez mais urgentes.

Figura 2 – Limites planetários no Antropoceno.


Mudanças climáticas

Perda da biodiversidade
Novas questões
Perda funcional da ambientais
biodiversidade
(serviços ecossistêmicos)
?
Mudança no uso da Destruição da
terra camada de ozônio

Consumo de água
? ?
fresca Carga de aerossóis
na atmosfera

Ciclo do fósforo
Ultrapassou o limite (alto risco)
Acidificação dos
Ciclo do nitrogênio Zona de incerteza (risco aumentado)
oceanos
Abaixo do limite (seguro)
? Limite não calculado

Fonte – Adaptado de Steffen et al., 2015.

O interesse científico no Antropoceno tem crescido tanto que já existem três periódicos exclusivos
sobre o tema: o Anthropocene, o The Anthropocene Review e o Elementa. Um assunto recorrente
nesses periódicos é o início dessa possível era geológica. (LEWIS; MASLIN, 2015). A presença do

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Homo sapiens no planeta remonta a 160 mil anos. Durante mais de 90% desse período, os humanos
existiram como caçadores e coletores. (STEFFEN et al., 2007).
Mas a relação desses antepassados com a natureza não foi tão harmônica como alguns romantizam
hoje. (ELLIS et al., 2013). O fogo era amplamente utilizado como estratégia de proteção e de caça. Na
última era glacial, vários grandes mamíferos foram extintos na Ásia, Austrália e América. Essa extinção
da megafauna teria coincidido com a chegada dos humanos. É polêmico se o Homo sapiens foi sua
principal causa, mas já existe um forte consenso de que teve uma participação importante sobre o
evento. (STEFFEN et al., 2011).
A extensão em que o planeta fora modificado por caçadores e coletores é um assunto complexo,
pois é difícil diferenciar as alterações ambientais causadas pelo clima e pelos humanos. (LEWIS;
MASLIN, 2015). É certo que os impactos humanos chegavam a ser regionais e até continentais.
(STEFFEN et al., 2011). A dúvida é se poderiam ser globais, os quais assinalariam o começo do
Antropoceno. De qualquer forma, se populações mundiais tão pequenas e com tecnologias limitadas
(basicamente o fogo e instrumentos relativamente rudimentares) conseguiram modificar tanto a
superfície do planeta (a ponto de fomentar o debate anterior), não é de se espantar que o avanço
tecnológico aliado ao crescimento populacional nos dois últimos séculos romperia limites planetários
(ver Figura 2). Enquanto não existe consenso quanto ao início do Antropoceno, não há dúvidas que a
1RI faça parte desse novo período geológico.
A 1RI ocorreu aproximadamente entre 1760 e 1840. Não seria apropriado dizer que a máquina a
vapor foi sua causa solene. Afinal de contas, inovação tecnológica alguma ocorreria num ‘vácuo social’.
Contudo, os fatores ou processos sociais que a propiciaram são foco de imensa polêmica dentro da
Sociologia, Economia e História. Feitas as devidas considerações, por que a máquina a vapor seria
considerada seu estopim? Basicamente, ela facultou o uso eficiente dos combustíveis fósseis, um vasto
estoque de energia solar acumulada ao longo de dezenas ou milhares de anos. Os combustíveis fósseis
representam uma fonte energética rica (concentrada), abundante, fácil de ser transportada e poluidora.
Isso é, uma fonte energética ideal para um Antropoceno.
A 1RI propiciou mudanças socioeconômicas colossais. Entre 1800 e 2000, a esperança de vida ao
nascer aumentou consideravelmente em todas as regiões do mundo. A população humana se tornou
aproximadamente seis vezes maior, ao passo que a economia, conforme o produto interno bruto (PIB),
cresceu mais de 50 vezes.
Indiscutivelmente, os dois últimos séculos testemunharam uma fase majestosa de prosperidade
humana. Infelizmente, no entanto, três ressalvas precisam ser feitas. Em primeiro lugar, os frutos
dessa prosperidade ainda não são colhidos de forma igualitária. Ou seja, enfrentamos gravíssimas
questões de desigualdade social (Figura 3). É verdade que algumas desigualdades entre países, como a
mortalidade infantil até os cinco anos, diminuíram nas últimas décadas. Mas ainda assim são expressivas
e inaceitáveis. Em segundo lugar, todo esse crescimento econômico e populacional desmedido ocorreu
em um planeta finito, cuja biodiversidade é base para seu funcionamento. A terceira ressalva mescla as
duas primeiras. As mudanças climáticas e as perdas de serviços ecossistêmicos, dois grandes ‘sintomas’

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do Antropoceno, deverão afetar desproporcionalmente as populações mais pobres, de modo a acentuar


os contrastes e conflitos sociais pelo mundo.

Figura 3 – Desigualdades mundiais em relação às rendas dos países.


a) Total de países b) Produto Interno Bruto (PIB)
80 50
70 45
40
60
35
Frequência

50 30

US$
40 25
30 20
15
20
10
10 5
0 0
Alta Média alta Média baixa Baixa Alta Média alta Média baixa Baixa
Renda dos países Renda dos países

c) População d) Esperança de vida ao nascer


3 80
70
2,5
Bilhões de pessoas

60
2
50
Anos

1,5 40
30
1
20
0,5
10
0 0
Alta Média alta Média baixa Baixa Alta Média alta Média baixa Baixa
Renda dos países Renda dos países

e) Emissão de gás carbônico f ) Mortalidade infantil até os 5 anos


18 80
16 70
Para cada 1 000 nascidos

14 60
12
50
10
Gt

40
8
30
6
4 20
2 10
0 0
Alta Média alta Média baixa Baixa Alta Média alta Média baixa Baixa
Renda dos países Renda dos países

*Adotou-se a classificação de renda do Banco Mundial. O gráfico (e) abrange o ano de 2015, e os demais gráficos, o ano
de 2016.
Fonte – World Bank, 2018.

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211

COMO AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS IMPACTARIAM


OS ECOSSISTEMAS TERRESTRES?
Os modelos de circulação gerais (MCG), que são as principais ferramentas matemáticas do Painel
Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), operam sob dois grandes focos de incerteza:
1) os futuros níveis de emissões de gases de efeito estufa, e 2) as respostas climáticas planetárias. Quanto
ao segundo foco, não se sabe, por exemplo, se o aumento das nuvens acentuará ou minimizará o
aquecimento global. (IPCC, 2013).
Para três dos quatro cenários de emissões do IPCC, é provável que a temperatura aumente em
ao menos 1,5 °C (em comparação ao período de 1850-1900) até o final do século. (IPCC, 2013).
Ressaltamos que pequenas alterações na temperatura média global representam mudanças muito
maiores na temperatura de vários locais do planeta. Tanto é que a diferença de temperatura média
global entre os períodos mais quente e mais frio dos últimos 150 mil anos (os picos interglacial e
glacial) foi de apenas 5 °C. (TURNER; GARDNER, 2015). Os modelos do IPCC também projetam
alterações nos regimes de precipitações: as regiões úmidas receberão mais chuvas; as regiões secas, ainda
menos chuvas. Além disso, a frequência e a intensidade de eventos climáticos extremos (como secas,
enchentes e ondas de calor) deverão aumentar em função do aquecimento global. (IPCC, 2013).
O aumento da temperatura e da concentração atmosférica de dióxido de carbono poderá
favorecer o crescimento da vegetação em regiões atualmente frias, desde que esses aumentos não
venham acompanhados por déficit hídrico. (LINDNER et al., 2010; FAO, 2012; LINDNER et al.,
2014). Contudo, estudos de enriquecimento artificial de dióxido de carbono (Free air carbon-dioxide
enrichment – Face) apontam que o efeito fertilizante do CO2 sobre a vegetação diminui com o tempo.
(AINSWORTH; LONG, 2005; JONES et al., 2014).
Por outro lado, as mudanças climáticas influenciarão os distúrbios abióticos (como secas,
tempestades e incêndios) e bióticos (como doenças e infestações de insetos). (LINDNER et al., 2010;
FAO, 2012). Quando eventos climáticos extremos, tais quais secas prolongadas ou tempestades muito
severas, são acompanhados por infestações de insetos, doenças ou incêndios, os impactos ecológicos
sinergéticos chegam a ser colossais. (DAVIDSON et al., 2012; FAO, 2012).
Os distúrbios não são sempre prejudiciais aos ecossistemas. Para um ecossistema florestal, por
exemplo, eles podem evitar que algumas poucas espécies arbóreas mais competitivas eliminem as
demais. (CONNELL, 1978). Como um segundo exemplo, os distúrbios pequenos e frequentes
dessincronizam as idades das árvores. Tal dessincronizarão evita que, com o passar dos anos, a floresta
se torne dominada por árvores velhas, o que aumentaria sua vulnerabilidade a eventos climáticos
extremos. (RADEMACHER et al., 2004). Ressaltamos que eventos climáticos extremos possivelmente
façam parte das dinâmicas de todos os ecossistemas naturais ou seminaturais. Contudo, têm intervalos
de retorno bem longos (isto é, baixa probabilidade de ocorrência). (TURNER et al., 1993; PERRY,
2002). Em suma, um ecossistema natural ou seminatural está adaptado a um regime de distúrbio,

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212

o qual é necessário para sua manutenção. Mas esse regime de distúrbio deverá ser alterado pelas
mudanças climáticas.
As pesquisas ecológicas ainda não desvendaram tão bem a relação temporal entre distúrbios
(como incêndios ou o tombamento de árvores por tempestades), isso é, em que extensão e sob quais
condições a ocorrência de um distúrbio influencia (aumenta ou diminui) a probabilidade de ocorrência
de novos distúrbios. (ATTIWILL, 1994; PERRY, 2002). As possíveis conexões entre diferentes tipos de
distúrbios tornam ainda mais complexa a previsão dos impactos das mudanças climáticas. (ATTIWILL,
1994; BENGTSSON et al., 2000; DALE et al., 2001). Finalmente, todas essas interações climáticas e
ecológicas colocam em xeque a resistência do ecossistema à invasão de espécies exóticas. (PETERSON
et al., 2008). Muitas espécies endêmicas talvez não tenham tempo o bastante para responderem
(migrarem e/ou se adaptarem geneticamente) às novas condições climáticas e ecológicas. Assim, alguns
autores temem que as mudanças climáticas, caso não mitigadas, levem a uma nova extinção em massa
da biodiversidade. (BELLARD et al., 2012; ALFARO et al., 2014).

A CIÊNCIA PROVA QUE AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS


SÃO CAUSADAS PELOS HUMANOS?
Podemos argumentar que modelos climáticos, assim como qualquer tipo de modelo matemático,
são meras abstrações ou simplificações grosseiras do mundo real e que, por conseguinte, as projeções
climáticas devem ser encaradas com muita cautela. Embora essas duas premissas sejam corretas,
vale lembrar que já existem várias evidências de que o planeta esteja aquecendo desde a 1RI, por
exemplo, o incremento das temperaturas médias da atmosfera e o dos oceanos, o derretimento
das calotas polares e o aumento do nível do mar. Não obstante, alguns autores insistem que não
existem provas científicas sobre esse aquecimento ou sobre sua relação com as ações antrópicas.
(LOMBORG, 2001). Em resposta, muitos cientistas acreditam que sua função é fornecer tais provas.
Porém, em última análise, a ciência não produz provas (afinal, o que seria uma prova científica?), e
sim consensos, mas que devem passar por um processo rigorosíssimo e interminável de reavaliação.
(ORESKES, 2004).
Em poucas palavras, a ciência não trata de provas. Isso explica por que os autores céticos quanto
à legitimidade dessas questões climáticas, do mesmo modo, não conseguem provar seus contrapontos.
Em resumo, a ciência não produz provas inquestionáveis, mas consensos baseados em níveis de certeza.
De acordo o IPCC (2013), é extremamente provável (nível de certeza acima de 95%) que mais da
metade do aumento da temperatura entre 1951-2010 foi causado pelo aumento antropogênico de gases
de efeito estufa. Vale lembrar que a preparação da sociedade para as mudanças climáticas (adaptação e
mitigação) não deve se justificar apenas em argumentos científicos. Acima de tudo, essa é uma questão
fundamentalmente ética, pois se coloca em jogo o bem-estar das gerações futuras, milhares de vidas
humanas e a sobrevivência de uma porção expressiva da biodiversidade planetária.

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213

O QUE FOI A AVALIAÇÃO ECOSSISTÊMICA


DO MILÊNIO?
A Avaliação Ecossistêmica do Milênio (AEM), promovida pelas Nações Unidas, contemplou o
estudo mais extenso e audacioso sobre o estado e as tendências de mudança dos ecos­sistemas do planeta.
Conduzida no período de 2001 a 2005, contou com a participação de mais de dois mil autores e revisores
de diversos países e foi de extrema importância para que os ecossistemas e a biodiversidade ganhassem
enorme destaque na literatura, sendo que alguns desses estudos a corroboram, complementam ou
corrigem. (CARPENTER et al., 2006; CARPENTER et al., 2009; CARDINALE et al., 2012;
YANG et al., 2013). Tal destaque alavancou outras iniciativas das Nações Unidas para se avançar no
assunto, notadamente, a Economia dos Ecossistemas e da Biodiversidade (TEEB)2 e a Plataforma
Intergovernamental sobre a Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES)3.
Todas essas iniciativas das Nações Unidas, incluindo o IPCC e Global Environment Outlook
(GEO), não têm o objetivo de conduzir novas pesquisas, e sim sintetizar o ‘estado da arte’ com base nos
principais periódicos científicos4. Os próximos parágrafos apresentarão um breve panorama da AEM, o
qual esperamos servir como um convide de leitura para o Relatório-Síntese da Avaliação Ecossistêmica
do Milênio5.
De acordo com a AEM (2005a), o ecossistema é um complexo dinâmico de comunidades vegetais,
animais e de microrganismos que interagem com o meio como uma unidade funcional. Inclui desde
áreas pouco perturbadas, como florestas naturais, até regiões intensamente administradas e modificadas
pelos humanos, como áreas agrícolas e parques urbanos. Ainda de acordo com a AEM, os serviços dos
ecossistemas, ou serviços ecossistêmicos (SE), são os benefícios diretos e indiretos que os humanos
obtêm dos ecossiste­mas.
Antes de avançarmos na AEM, seria oportuno abordar o conceito de ‘funções ecossistêmicas’,
frequentemente empregado como sinônimo de SE na literatura científica. Contudo, alguns autores
os diferenciam. Para Groot e Van Der Meer (2010), as funções ecossistêmicas sempre existem, mas
precisam ser vistas como benefícios para então serem consideradas serviços. Segundo Boyd e Banzhaf
(2007), as funções não são os produtos finais, e sim intermediários na produção do serviço ecossistêmico.
Como exemplo, argumentam que a purificação da água não é um SE, mas uma função associada a
certas coberturas de uso da terra. A água pura, por sua vez, seria o serviço cujo valor é definido,
em determinado lugar e época, por sua conexão com a saúde humana, recreação etc. Costanza et al.
(1997) destacam que a relação entre funções e SE não é necessariamente de um para um. Ou seja, uma
única função ecossistêmica pode contribuir para vários SE, enquanto um único SE pode configurar o
resultado de duas ou mais funções ecossistêmicas.
A AEM não fez distinção entre função e serviço, mas criou categorias de serviços. Por exemplo, a
água pura seria um SE de provisão, ao passo que a purificação da água configuraria um SE de regulação.
Mais precisamente, a AEM classificou os SE em quatro linhas funcionais: provisão, regulação, cultural
e suporte (Quadro 2).

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214

Os ‘serviços de provisão’ são os produtos obtidos dos ecossistemas. Os ‘serviços de regulação’ são
os benefícios obtidos por meio da regulação dos processos ecossistêmicos. Os ‘serviços culturais’ são
caracterizados pelos benefícios não materiais obtidos dos ecossistemas por meio de enriquecimento
espiritual, desenvolvimento cognitivo, reflexão, recreação e experiências estéticas. Finalmente, os
‘serviços de suporte’ são aqueles necessários para a produção dos demais serviços ecossistêmicos. Ao
contrário das outras categorias, os impactos desses serviços na sociedade são indiretos e ocorrem
durante longos períodos. Por exemplo, as pessoas não usufruem diretamente do SE de formação do
solo; o impacto da perda de solo, no entanto, prejudica a provisão de produtos agrícolas e florestais,
dois serviços ecossistêmicos de provisão que afetam diretamente as pessoas. Se o efeito indireto da
perda de solo é perceptível em poucos anos, então a formação de solo pode ser considerada como um
serviço regulador. Se o efeito for observado ao longo de décadas, então a formação de solo passa a ser
vista nesse enquadramento como um serviço de suporte.

Quadro 2 – Categorias, descrição e exemplos de serviços ecossistêmicos.

Categorias Descrição Exemplos


Serviços de suporte Serviços necessários para a oferta dos de- • Fotossíntese
mais serviços ecossistêmicos. • Ciclagem de nutrientes
• Formação do solo
Serviços de provisão Produtos obtidos dos ecossistemas. • Alimento • Fibras têxteis
• Água potável • Bioquímicos
• Madeira • Recursos genéticos
Serviços de regula- Benefícios obtidos por meio da regulação • Regulação do clima • Controle de pestes
ção dos processos ecológicos. • Purificação da água • Polinização
• Controle de enchentes • Dispersão de sementes
• Sequestro de carbono • Tratamento de resíduos
• Controle de doenças
Serviços culturais Benefícios intangíveis obtidos dos ecossis- • Espiritual e religioso • Recreação e ecoturismo
temas por meio do enriquecimento espi- • Estéticos • Senso de lugar
ritual, do desenvolvimento cognitivo, da • Inspiradores • Herança cultural
reflexão, da recreação e das experiências • Educacional
estéticas.

Fonte – MEA, 2005a.

A AEM (2004b) concluiu, com alto nível de certeza, que a biodiversidade influencia fortemente
a provisão de ES e, portanto, o bem-estar humano. Nessa conclusão, a biodiversidade incluiu número,
abundância e composição de genótipos, populações, espécies, tipos funcionais, comunidades e
unidades da paisagem. No relatório intitulado Síntese da Biodiversidade, a AEM (2005c) expressou
essa conclusão da seguinte maneira: a biodiversidade forma a fundação do vasto conjunto de ES que
contribui criticamente para o bem-estar humano. O último foi definido em função de múltiplos
elementos (Quadro 3).

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Quadro 3 – Elementos do bem-estar humano dependentes dos serviços ecossistêmicos.

Elementos do bem-estar Descrição/exemplos


Materiais básicos para uma • Meio de sustento seguro e adequado.
vida salutar • Alimentos.
• Moradia.
• Vestuário.
• Acesso a bens.
Saúde • Ausência de doenças.
• Ambiente físico salutar, incluindo ar puro e água limpa.
Boas relações sociais • Coesão social.
• Respeito mútuo.
• Capacidade de ajudar o semelhante.
• Prover as crianças do necessário.
Segurança • Acesso seguro aos recursos naturais.
• Segurança pessoal.
• Proteção contra desastres naturais e desastres causados pelos humanos.

Liberdade de escolha e ação • Oportunidades para o indivíduo alcançar o que almeja. A perda de serviços ecossistê-
micos diminui o leque de opções e oportunidades para as relações entre os humanos e
os ecossistemas.
• Dependente dos demais elementos do bem-estar humano listados anteriormente.
• Dependente de fatores sociais, econômicos, políticos e culturais.
• Requisito para se usufruir outros elementos do bem-estar, notadamente a igualdade e
a justiça.

Fonte – MEA, 2005d.

Conforme a AEM (2005a), a conversão de ecossistemas terrestres em diferentes formas de uso da


terra desde 1945 foi maior do que a ocorrida nos séculos XVIII e XIX somados. Sua principal motivação
foi a crescente demanda por alimentos, água, madeira, fibras e combustível. Apesar de trazer muitos
benefícios aos humanos, resultou em um custo ambiental muito elevado, com destaque para a degradação
de ecossistemas e a perda de biodiversidade. Eis algumas das principais conclusões da AEM (2005a):
• 60% dos 23 serviços ecossistêmicos avaliados estavam degradados (apresentavam menor
disponibilidade) ou sendo utilizados de maneira insustentável (água doce e recursos pesqueiros);
• a degradação dos ecossistemas aumentou a probabilidade de ocorrência de mudanças
ambientais abruptas e potencialmente irreversíveis, como o colapso da produção pesqueira, a
introdução ou perda de espécies e mudanças climáticas regionais;
• os efeitos negativos da degradação dos ecossistemas recaíram desproporcionalmente sobre as
populações mais pobres, o que contribuiu para o aumento das desigualdades e conflitos sociais
pelo mundo.

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A AEM elaborou quatro cenários para investigar os ecossistemas e o bem-estar humano no século
21 (Figura 4). Esses cenários possibilitaram explorar, entre outras questões, duas ambiguidades da
gestão ecossistêmica: 1) gestão global versus gestão regional, e 2) gestão ativa (todas as questões só são
abordadas quando já estão óbvias) versus gestão proativa (políticas buscam deliberadamente manter os
serviços dos ecossistemas a longo prazo).

Figura 4 – Cenários da avaliação ecossistêmica do milênio.

Orquestração global
Sociedade totalmente conectada, que
enfatiza o comércio global e a liberalização
econômica e faz uma abordagem reativa
das questões dos ecossistemas, mas que
ao mesmo tempo adota medidas severas
para minimizar a pobreza e a desigualdade
e investir em bens públicos, como
infraestrutura e educação.

Mosaico adaptável
O foco das atividades políticas e
econômicas são os ecossistemas
regionais em âmbito de bacias.
As instituições locais são fortalecidas
e são comuns estratégias locais de
gestão dos ecossistemas; as sociedades
desenvolvem uma abordagem
predominantemente proativa da
gestão dos ecossistemas.

Ordem com força


Mundo regionalizado e
fragmentado, preocupado
com segurança e proteção, e
cujo enfoque principal são os
mercados regionais, com pouca
ênfase nos bens públicos e uma
abordagem reativa das questões
dos ecossistemas.

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Tecnologia ambiental
Mundo globalmente conectado
e fortemente dependente de uma
tecnologia ambiental segura,
servindo-se de ecossistemas
altamente gerenciados, geralmente
engendrados, para fornecer os
serviços, propondo uma abordagem
proativa da gestão dos ecossistemas
a fim de evitar problemas.

Fonte – AEM, 2015a.

A gestão regional e ativa (cenário Ordem com Força) levou às maiores perdas de SE e aos
maiores contrastes socioeconômicos entre países. Em relação aos demais cenários, corroborou-
-se que nenhum dos extremos de gestão é ideal. Mas por que não seriam ideais? Por exemplo, o
conhecimento desenvolvido na gestão global pode ser limitado ou inadequado para lidar com os
problemas ambientais regionais. Já os conhecimentos regionais talvez digam muito pouco sobre a
resolução de questões ambientais globais, como as mudanças climáticas. A gestão ativa, por sua vez,
pode falhar muitas vezes em responder em tempo hábil, ao passo que a gestão proativa corre o risco
de se tornar engessada e repetir erros.
Em resumo, nenhum dos outros três cenários apontou um caminho satisfatório para reverter
a degradação dos ecossistemas no século 21. Por conseguinte, não é de se estranhar que a AEM não
tenha priorizado uma ou outra solução, e sim a sinergia entre múltiplas respostas (Quadro 4). As
instituições não seriam as respostas em si, mas por meio delas estas seriam convertidas em vetores
de mudança (AEM, 2005a) e teriam o desafio de lidar com o caráter multiescalar das questões
ambientais. Isto é, o de atuar em diferentes níveis organizacionais: 1) local, 2) subnacional, 3) nacional,
4) regional, 5) global e 6) combinação entre os níveis anteriores. (MEA, 2005e). Além disso, exigiram a
cooperação entre diferentes atores sociais, como: 1) governos nacionais e subnacionais, 2) organizações
não governamentais nacionais e internacionais, 3) institutos de pesquisa, 4) setor de negócios,
5) comunidades e 6) famílias e indivíduos. (AEM, 2005e). Finalmente, deveriam promover a gestão
ecossistêmica proativa e flexível. (AEM, 2005a).

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Quadro 4 – Respostas sociais para a reversão da degradação dos ecossistemas.

Tipologia Explicação/exemplos
de resposta
Legal • Promovem as regras formais por meio das quais as demais respostas são estruturadas e operaciona-
lizadas.

Econômica • Eliminação de subsídios que promovem o uso excessivo dos serviços ecossistêmicos.
• Uso mais intensivo de instrumentos econômicos e abordagens baseadas no mercado para a gestão
dos ecossistemas.
Social e • Educação ambiental e campanhas de sensibilização ambiental.
comportamental • Movimentos e protestos sociais.
• Empoderamento das comunidades mais dependentes dos serviços de um ecossistema e/ou mais
afetadas pela sua degradação.
• Empoderamento das mulheres e dos jovens.
Tecnológica • Produtos, instrumentos, processos e práticas que promovam o uso eficiente dos serviços ecossistê-
micos e a minimização dos impactos humanos sobre os ecossistemas.
Cognitiva • Reconhecimento (legitimação) do conhecimento tradicional. O conhecimento tradicional é aquele
desenvolvido e compartilhado entre os integrantes de uma comunidade caracterizada por uma cul-
tura distinta. Vários integrantes da comunidade contribuem para a construção desse conhecimento.
• Desenvolvimento, reconhecimento e integração do conhecimento científico sobre o funcionamen-
to dos ecossistemas.
• Desenvolvimento, reconhecimento e integração do conhecimento científico sobre a sinergia e a
operacionalização de todas as respostas listadas nesse quadro.

Fonte – AEM, 2015d.

QUAL É A RELAÇÃO ENTRE A DIVERSIDADE


ARBÓREA E A FUNCIONALIDADE DOS
ECOSSISTEMAS FLORESTAIS?
Conforme a seção anterior, a Avaliação Ecossistêmica do Milênio concluiu que a biodiversidade
influencia fortemente a provisão dos ES. O objetivo dessa seção é propiciar uma breve imersão nessa
complexa e fascinante relação.
Ao final da primeira seção, comentamos acerca de dois tipos de valores da biodiversidade: o ético
e o instrumental/utilitarista (o que traz benefício aos humanos). O foco da presente seção é um terceiro
tipo de valor: o ecológico. Nele, adotaremos as florestas como exemplo de ecossistema, considerando
que o Brasil é privilegiado com a segunda maior área florestal do mundo.
Muito se tem discutido sobre o efeito (acréscimo ou decréscimo) do número de espécies
sobre as funções ecossistêmicas. Essa relação será chamada daqui em diante como ‘biodiversidade-

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-funcionalidade’ (BF). Mas nada impede que consideremos as funções ecossistêmicas como sinônimos
de SE. Na Avaliação Ecossistêmica do Milênio, boa parte das evidências empíricas experimentais
(oriundas de estudos de campo controlados) sobre a BF adveio de pesquisas com espécies gramíneas.
Em especial, os experimentos de Cedar Creek, os quais vêm sendo analisados desde 1996 (Figuras
5). A justificativa para a escolha de gramíneas se deu pela praticidade na instalação do experimento
e na coleta dos dados. Por exemplo, experimentos florestais seriam muito maiores e mais demorados
(embora já existam hoje). Os estudos com gramíneas elucidaram que a biodiversidade favorece e
estabiliza funções ecossistêmicas, tais como produtividade, ciclagem de nutrientes e armazenamento de
carbono no solo. (TILMAN; REICH; KNOPS, 2006). Existem diversas hipóteses para explicar essas
conclusões6, dentre as quais se destacam: a da ‘complementariedade de nicho’ (TILMAN; LEHMAN;
THOMSON, 1997; LOREAU; HECTOR, 2001), a do ‘efeito de amostragem’ (AARSSEN, 1997) e
a do ‘seguro’ (NAEEM; LI, 1997; YACHI; LOREAU, 1999).

Figuras 5 – Experimento Long Term Ecological Research (LTER), em Cedar Creek, Minnesota, nos
EUA.

Fonte – University of Minnesota, 2018.

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Contudo, as florestas são ecossistemas de vida longa e extremamente complexos. Logo, fortes
questionamentos surgiram quanto à adequação daqueles experimentos com gramíneas como forma
de conhecimento florestal. A solução foi investigar a BF florestal por meio de estudos observacionais
(estudos não experimentais/manipulativos) com base em gradientes de diversidade arbórea. De
forma geral, essas pesquisas corroboram o efeito positivo da biodiversidade para a produtividade e
várias outras funções ecossistêmicas. (NADROWSKI; WIRTH; SCHERER-LORENZEN, 2010).
Contudo, tais resultados devem ser analisados com cautela frente à falta de controle experimental
sobre os efeitos do ambiente e, especialmente, da identidade das espécies. (NADROWSKI; WIRTH;
SCHERER-LORENZEN, 2010; TROGISCH et al., 2017). Quanto ao último, é difícil distinguir
se o aparente efeito da biodiversidade sobre uma função não teria sido causado pela presença de uma
espécie em particular que tenha se destacado na provisão daquela função.
Em comparação aos estudos experimentais (manipulativos), os estudos observacionais são menos
rigorosos. Porém, são mais flexíveis, permitindo a investigação da BF florestal em escalas espaciais
impraticáveis para um experimento, chegando quase até a escala de todo o continente europeu. (VAN
DER PLAS et al., 2016; RATCLIFFE et al., 2017; VAN DER PLAS et al., 2018). Esses raríssimos
estudos de diversidade entre ecossistemas florestais foram possíveis graças ao cruzamento de diversos
outros estudos com o aporte de ferramentas de estatística e modelagem. Para os próximos anos, o
debate da BF florestal deverá ser fortalecido por conta dos resultados de experimentos florestais que
foram instalados pelo mundo nos últimos quinze anos. (TROGISCH et al., 2017).
Por razões de praticidade, o número de espécies, conhecido como riqueza de espécies, tem sido
o nível da biodiversidade mais investigado no tocante à BF florestal. Entretanto, reconhece-se a
importância de outros níveis de diversidade arbórea, como a funcional, a estrutural, a genética e a
entre ecossistemas, assim como a de outros níveis tróficos.
Os ecossistemas florestais naturais ou seminaturais são extremamente complexos, de tal forma que
generalizações são arriscadas. Ainda assim, tentaremos sumarizar algumas das principais perspectivas
atuais relacionadas à BF florestal. No final da seção, abordaremos uma funcionalidade florestal que
está intimamente associada à diversidade genética: a adaptabilidade climática.
Na Europa Central, a BF florestal aparentemente apresenta um efeito jackkinfe, para o qual o
aumento da riqueza de espécies arbóreas propicia mais funções acima de um limite mínimo, porém
em níveis intermediários7. (VAN DER PLAS et al., 2016). Em outras palavras, nenhuma composição
de espécies seria capaz de maximizar todas as funções. Porém, a diversidade entre florestas permitiria
a maximização de muitas delas. (VAN DER PLAS et al., 2016; VAN DER PLAS et al., 2018). Isto
é, a diversidade de ecossistemas na paisagem favoreceria a BF (o conceito de paisagem será tratado na
próxima seção).
As condições ambientais, como stress hídrico, podem influenciar a BF florestal (RATCLIFFE et
al., 2017), mas é difícil prever a direção dessa relação. (FORRESTER; BAUHUS, 2016). Por exemplo,
a diminuição de um recurso, como água ou nutrientes, poderia prejudicar uma espécie altamente

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competitiva, o que favorecia outras espécies e, consequentemente, várias funções ecossistêmicas. A


diminuição desse recurso também aumentaria o nível das funções ecossistêmicas ao estimular as
espécies a explorarem novos nichos. (RATCLIFFE et al., 2017). Por outro lado, o incremento de
um recurso poderia amenizar a competição entre as espécies, o que levaria a ganhos nas funções
ecossistêmicas. (FORRESTER; BAUHUS, 2016). Em resumo, embora se reconheça que as condições
de stress ambiental influenciam a BF florestal, ainda não existe consenso se, ou sob quais condições,
tais influências seriam benéficas. Nos próximos anos, espera-se que os estudos experimentais de BF
florestal elucidem essa questão.
Comumente, o efeito de uma nova espécie sobre as funções ecossistêmicas é expressivo quando
existem poucas espécies, mas pequeno quando já existem várias outras. (BAUHUS, 2017). Espécies
com características distintas (arquitetura da copa e da raiz, profundidade da raiz, tipo de folha, exigência
em luz, eficiência no uso da água e nutrientes, taxa de crescimento, período de crescimento durante o
ano, resistência a insetos, concentração química foliar, capacidade em fixar nitrogênio etc.) influenciam
mais a funcionalidade ecossistêmica do que espécies similares. (BAUHUS, 2017). Por outro lado,
a existência de espécies com ‘redundância funcional’ é desejável, pois conferiria ao ecossistema um
‘seguro’ contra mudanças ambientais. (YACHI; LOREAU, 1999).
A presença de espécies com características diferentes favorece o compartilhamento de nicho, isto
é, a utilização diferenciada dos recursos no tempo ou espaço. A exploração de mais nichos (como
diferentes profundidades do solo ou diferentes estratos do dossel) acresce a diversidade estrutural.
A última, por sua vez, contribui para a produtividade e o estoque de carbono, entre outras funções.
(MCELHINNY et al., 2005; FORRESTER; BAUHUS, 2016; ALBERTI et al., 2017).
Para as florestas do México, a diversidade estrutural foi a variável mais importante para explicar
os diferentes estoques de carbono florestal. (ARASA-GISBERT et al., 2018). A diversidade estrutural
(como múltiplos estratos de dossel, árvores ocas, árvores com diferentes diâmetros, idades e formas
e troncos caídos sob diferentes estágios de decomposição) também contribui substancialmente na
provisão de habitat para a biodiversidade terrestre (BAUHAUS et al., 2009; BAUHUS, 2017), a qual
inclui os polinizadores e dispersores de semente. Ambos os grupos ecológicos funcionais são essenciais
no que se refere à manutenção da variabilidade (diversidade) genética das populações arbóreas.
(THOMPSON et al., 2009; ALFARO et al., 2014). Por seu turno, a variabilidade genética dessas
populações confere uma importante fonte de diversidade funcional e estrutural para os ecossistemas
florestais. Em relação à segunda, existem florestas com expressiva diversidade estrutural apesar da pouca
diversidade de espécies arbóreas, como é o caso das florestas seminaturais dominadas por Fagus sylvatica
na Europa Central. (EMBORG et al., 2000). Finalmente, considerando horizontes temporais longos, a
variabilidade genética das populações é chave para a função ecossistêmica de adaptabilidade climática.
(HOOPER et al., 2005). Mais precisamente, se existir variabilidade genética e tempo suficiente, a
adaptação das populações às novas condições climáticas pode ser alcançada por meio de alterações na
frequência dos genes entre gerações.

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A variabilidade genética intrapopulacional das árvores é admirável. Evidências paleoecológicas


apontam que, em virtude de mudanças ambientais, as amplitudes geográficas das espécies arbóreas
foram expandidas e contraídas diversas vezes desde a última era glacial. Entretanto, a maioria dessas
espécies não apresentou consideráveis perdas de diversidade genética. Diferentemente das plantas
herbáceas, as espécies arbóreas apresentam maior variabilidade genética dentro de populações do
que entre populações. Por conseguinte, a extinção de uma grande proporção das populações de
uma espécie arbórea teria resultado apenas numa perda genética pequena. (HAMRICK, 2004).
Nota-se que as árvores também têm altas taxas de fecundidade. Além disso, as sementes e o
pólen são capazes de percorrer distâncias longas rapidamente, permitindo reestabelecer a ampla
diversidade genética das populações. Com tudo isso levado em consideração, não é de se espantar
que as espécies arbóreas comumente apresentam mais adaptações locais do que outros grupos de
plantas. (KAWECKI; EBERT, 2004). Ao longo de gradientes geográficos e ecológicos, as variações
adaptativas nas espécies arbóreas são, de modo geral, tão pronunciadas quanto aquelas entre essas
espécies. (PETIT; HAMPE, 2006; ALBERTO et al., 2013). Em suma, a capacidade adaptativa
das espécies florestais às mudanças climáticas não deve ser subestimada, desde que exista ampla
variabilidade genética.
O Governo brasileiro, por meio do Decreto n.º 8.972/2017, instituiu a Política Nacional
de Recuperação da Vegetação Nativa (Proveg) com os seguintes objetivos: I) articular, integrar e
promover políticas, programas e ações indutoras da recuperação de florestas e demais formas de
vegetação nativa; e II) impulsionar a regularização ambiental das propriedades rurais brasileiras, nos
termos da Lei n.º 12.651/2012 (o Novo Código Florestal), em ao menos 12 milhões de hectares (ha)
até 2030.
Em relação ao estabelecimento (plantio) dessas florestas, a literatura científica brasileira reconhece a
necessidade de assegurar uma ampla diversidade de espécies e, ainda, de modo a considerar a composição
e aspectos ecológicos da vegetação natural regional. (BRANCALION et al., 2010; DURIGAN et
al., 2010). Contudo, a importância de se assegurar conjuntamente a diversidade genética tem sido
pouco debatida. Outro assunto negligenciado diz respeito ao manejo das florestas restauradas. O
Governo brasileiro, em seu Plano Nacional de Recuperação de Vegetação Nativa (Planaveg), sugere
que o manejo das florestas recuperadas em Reserva Legal seja viável economicamente. Mas não
elucida como alcançar tal façanha. O problema é que o manejo de florestas mistas sempre foi um
assunto relegado pela pesquisa florestal brasileira. Ironicamente, o Código Florestal 1) obriga que os
produtores mantenham uma Reserva Legal em suas propriedades e 2) reconhece a função econômica
dessas reservas. Nesse contexto, cabe ressaltar que vários países estão pesquisando a BF florestal com
o intuito de desenvolver conhecimento para o manejo de florestas mistas. O Brasil poderia aproveitar
o momentum (‘o bonde’) internacional da pesquisa em BFF florestal para desenvolver práticas de
manejo voltadas para as florestas recuperadas em Reserva Legal.

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QUAL SERIA O MELHOR USO DA TERRA PARA A


PROVISÃO DE SERVIÇOS ECOSSISTÊMICOS?
Nenhuma forma de uso da terra é capaz de ofertar todos os SE. (DEFRIES et al., 2004; FOLEY
et al., 2005). Por exemplo, seria impossível conciliar num único ecossistema a conservação da
biodiversidade, sequestro de carbono, recreação, produção de comida e produção de biocombustíveis.
No entanto, pode-se reconciliar os SE conflitantes ao ampliar o foco do manejo, geralmente o talhão
produtivo ou a propriedade, para a paisagem. (DEFRIES et al., 2004; FOLEY et al., 2005).
No âmbito desse capítulo, o conceito de paisagem remete a um todo integrado que se estende além
de um único sítio. Pode ser concebida como um mosaico de diferentes formas de uso da terra, como
áreas de proteção/conservação ecológica, corredores ecológicos, áreas agrícolas, florestas plantadas e
faixas de vegetação ripária.
Existem duas grandes justificativas para que o manejo de ecossistemas seja adotado em nível de
paisagem. Em primeiro lugar, a configuração espacial da paisagem influencia as dinâmicas ecológicas.
(TURNER, 1989). Por exemplo, o sucesso reprodutivo de algumas espécies não depende apenas da área
florestal total, mas também do grau de conectividade entre essas florestas. Similarmente, a capacidade
das florestas em proteger a qualidade de um rio não é apenas uma função da área florestal total, mas
da largura da faixa de floresta ripária, das condições de declividade do terreno e dos padrões de uso da
terra nessa paisagem, dentre outros fatores como o solo. (NEARY et al., 2009).
A segunda justificativa seria justamente conciliar os SE de diferentes ecossistemas. Por exemplo,
as florestas ofertam inúmeros SE para a agricultura, tais como mitigação das mudanças climáticas,
controle de pragas (habitat de inimigos naturais) e polinização. (THOMPSON et al., 2009; FAO,
2015). A título de curiosidade, o SE de polinização está estimado entre 235 e 577 bilhões de dólares
americanos ao ano (IPBES, [s.d]).
Um dos maiores desafios futuros será conciliar a produção de alimentos e a biodiversidade frente à
crescente escassez de terras. A agricultura e a pecuária já ocupam 38% da superfície terrestre. (FOLEY
et al., 2011). Segundo estimativas das Nações Unidas, a população mundial alcançará 9,1 bilhões até
2050 (quase dois bilhões a mais que hoje). Com base em projeções para o crescimento econômico pelo
mundo e a decorrente mudança de hábitos alimentares, a produção mundial de alimentos precisaria
aumentar em 70% até 2050. (FAO, 2009).
O Brasil poderá assumir uma posição de supremacia no cenário agrícola mundial. E, ainda por cima,
sem precisar converter um único hectare de vegetação natural. Além de ter dimensões continentais, o
país apresenta condições climáticas (temperatura e disponibilidade hídrica) favoráveis para a agricultura
em grande parte do território. A restauração da produtividade de pastagens degradadas em conjunto
com a intensificação da pecuária poderia poupar um vasto contingente de terras para a agricultura
(Figura 6). Entretanto, o futuro do agronegócio brasileiro deverá ser consolidado em práticas agrícolas

Agrinho-Tecnicos_BOOK.indb 223 13/04/2021 11:12:36


224

sustentáveis, as quais deverão priorizar, dentre outras questões, a conservação do solo e da água. Além
disso, o manejo deverá ser adotado em nível de paisagem, de modo a conciliar a produção agrícola, a
biodiversidade e os serviços ecossistêmicos.

Figura 6 – Uso da terra no Brasil.

Unidades de
conservação integral

10,4%
Áreas destinadas Terras indígenas
à preservação da
vegetação nativa nos
imóveis ruais 13,8%
25,6%
Área destinada à
vegetação protegida e
Uso preservada
agropecuário
66,3%
30,2% Vegetação nativa em
terras devolutas e não
cadastradas

16,5%
Pastagens nativas 3,5% Infraestruturas e outros

3,5%
8,0% Pastagens Florestas
plantadas plantadas
Lavouras

13,2% 7,8% 1,2%


Fonte – EMBRAPA, 2018.

SE OS SERVIÇOS ECOSSISTÊMICOS SÃO TÃO


IMPORTANTES, POR QUE A MAIORIA NÃO TEM
VALOR DE MERCADO?
Para o ano de 2011 (COSTANZA et al., 2014), estimaram o valor global dos SE entre 125 e 145
trilhões US$. Naquele ano, os SE contribuíram mais para o bem-estar humano do que o dobro de todo
o produto interno bruto (PIB) global. Mas por que existe uma diferença tão grande entre esses valores?
Grosso modo, o PIB é uma medida dos bens e serviços finais que têm valor de mercado (preço). Como
regra geral, apenas serviços ecossistêmicos de provisão (produtos ecossistêmicos), como madeira, mel e
produtos agrícolas, têm valor de mercado. (BROWN et al., 2007). Precisamos entender então por que

Agrinho-Tecnicos_BOOK.indb 224 13/04/2021 11:12:38


225

um serviço ecossistêmico de outra categoria raramente teria um valor de mercado, isto é, quais seriam
os requisitos para que esse SE tivesse preço de mercado. Logicamente, a existência de um mercado
é necessária. Duas importantes condições para o surgimento de mercado são a escassez do produto/
/serviço e a possibilidade de exclusão de terceiros. (BROWN et al., 2007). Para ilustrá-las, tomemos
como exemplo a internet Wi-Fi, um serviço humano para o qual sabemos que existe mercado.
Se você tem internet Wi-Fi na sua residência, então é muito provável que ela tenha uma senha
de acesso. Essa é uma forma simples e eficiente de ‘excluir’ os vizinhos de ‘pegarem carona’ na sua
internet. Similarmente, se você não mantiver o pagamento desse serviço em dia, é fácil para a empresa
provedora cortá-lo. Para reduzir despesas, você poderia compartilhar a internet com algum vizinho,
mas corre o risco de a velocidade do serviço oscilar. A internet Wi-Fi é, portanto, um exemplo do que
os economistas denominam ‘bem privado’.
Na Economia, o bem privado é definido como um produto ou serviço que é ‘excludente’ e ‘rival’
(Figura 7). A exclusão diz respeito à possibilidade de controlar o acesso dos usuários. No exemplo
anterior, se as empresas provedoras do serviço não conseguissem excluir os ‘caronistas’ (os usuários que
não se dispõem a pagar pela internet), então teriam de mudar de ramo para evitar a falência.

Figura 7 – Quatro tipos de bens segundo os critérios de exclusão e rivalidade.

Rival?
Sim Não
Sim Bens privados Monopólios naturais
Excludente?
Não Bens comuns Bens públicos

Fonte – Mankiw, 2011.

O bem é rival quando seu uso reduz ou elimina sua disponibilidade para os demais usuários, como
nos casos do solo, água doce e recursos pesqueiros. Exemplos de bens sem rivalidade são a beleza cênica
de uma paisagem, a regulação do clima e a proteção contra os raios ultravioleta.
A rivalidade é importante para o surgimento do mercado porque leva à escassez do bem. Mas por
que esta estimularia a criação do mercado? Precisamos agora adentrar a natureza do valor econômico.
Consideremos então o famoso ‘paradoxo da água e do diamante’, o qual intrigou os economistas por
séculos. (FARBER; COSTANZA; WILSON, 2002). Apesar de essencial à vida, a água tem um valor
de mercado muito inferior àquele do diamante. Os economistas resolveram esse paradoxo ao proporem
que o valor econômico de um bem reflete sua ‘utilidade marginal’. (FARBER; COSTANZA; WILSON,
2002). A utilidade é uma medida abstrata do bem-estar que um consumidor obtém de um bem. A
utilidade marginal é o aumento da utilidade que o indivíduo obtém do consumo de uma unidade
adicional. Supõe-se que a maioria dos bens apresenta utilidade marginal decrescente: quanto maior
seu consumo em um período curto, menor a utilidade marginal proporcionada pelo consumo de uma
unidade adicional8. Em suma, a água é abundante, mas os diamentes são raros. Logo, um diamante a
mais tem uma utilidade marginal maior do que um copo extra de água.

Agrinho-Tecnicos_BOOK.indb 225 13/04/2021 11:12:39


226

Muitos autores contestam a utilização de valores de mercado para a valoração dos recursos da
natureza. (BROWN; ULGIATI, 1999; HAU; BAKSHI, 2004; GASPARATOS, 2010). Por exemplo,
segundo a crítica de Odum et al. (2000), quando o solo, a madeira, as frutas, a água limpa escoada
e outros produtos florestais estão em abundância, a contribuição florestal é máxima, mas o valor de
mercado de seus produtos é baixo; vice-versa, quando os produtos florestais estão em escassez, seus
valores de mercado são altos. Já outros autores lançam um olhar mais favorável sobre tal relação entre
preço e escassez. (SUNDERLIN, 1995a). Para eles, a escassez, paradoxalmente, asseguraria que o
recurso não se esgote. (DALY, 1998). Mais especificamente, o preço do recurso aumenta em função da
escassez; esse aumento, contudo, induz à diminuição da quantidade demandada do bem. Ou seja, o
encarecimento do recurso abrandaria a pressão da sociedade sobre ele.
Em resumo, para que exista mercado, o bem precisa propiciar utilidade marginal e ser excludente.
Os SE de regulação, de suporte e culturais são, de modo geral, não excludentes. Ou seja, configuram
‘bens públicos’ ou ‘bens comuns’ (ver Figura 7). Para esses bens, o surgimento do mercado ainda é
possível, mas quase sempre requer a interferência de um agente externo, como o governo ou as Nações
Unidas, para coordená-lo e assegurar que os responsáveis pela proteção do ecossistema recebam um
pagamento. (BROWN et al., 2007; ENGEL et al., 2008; FARLEY; COSTANZA, 2010). Em outras
palavras, torna-se necessária a criação de programas de pagamento por serviços ecossistêmicos (no
Brasil são chamados de programas de pagamento por serviços ambientais – PSA). Retornaremos para
o tópico de PSA na próxima seção. Agora nos ateremos a outra questão econômica instigante: se a
maioria dos SE não tem mercado, como seria possível estimar os valores econômicos desses serviços
(como no estudo mencionado no inicia da seção)?
Existem diferentes métodos de valoração econômica para serviços ecossistêmicos sem valor de
mercado, ou então subvalorizados por ele (Quadro 5). Cabe ressaltar que a valoração econômica de
SE permanece como um assunto extremamente polêmico entre os economistas. Inclusive, alguns
contestam que apenas mercados reais seriam fontes legítimas de valores econômicos. Contudo, esse
debate extrapola o escopo desse capítulo. Independentemente de quem esteja com a razão, importa
é que ele vem viralizando o tópico de SE. Aliás, motivou a criação da Avaliação Ecossistêmica do
Milênio, assim como outras duas iniciativas das Nações Unidas relacionadas aos ES: a TEEB e a
IPBES. A primeira foi estabelecida para abordar especificamente esse debate. Contudo, o assunto
pelo jeito ainda dará muito pano para manga, o que não é de todo ruim, pois se trata de um daqueles
‘conflitos do bem’ a que nos referimos na segunda seção desse capítulo.
Cada método de valoração tem vantagens e desvantagens, e suas aplicações são limitadas pelo
serviço ecossistêmico em questão e pela disponibilidade de dados e recursos. (TEEB, 2010). Os
serviços ecossistêmicos de regulação têm sido preferencialmente avaliados pelos métodos de custos
de substituição e valoração contingente; os serviços ecossistêmicos culturais, pelos métodos de custos
de viagens, preços hedônicos e valoração contingente; e os serviços ecossistêmicos de provisão, pelos
métodos de produção/fator renda e pelos preços de mercado. (TEEB, 2010).

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227

Quadro 5 – Métodos de avaliação econômica para serviços ecossistêmicos.

Método Comentário/exemplo
Aplicável principalmente para serviços ecossistêmicos com características de bens privados,
Preço de mercado como o mel, a madeira e produtos agrícolas.

O valor do serviço de controle de enchentes pode ser derivado dos danos estimados caso a
Custos
Valoração de mercado

enchente ocorresse.
evitados
Baseados nos custos

O valor da recarga do lençol freático pode ser estimado com base nos custos de obtenção de
Custos de
água de outras fontes.
substituição

Os benefícios dos serviços de regulação fornecidos por zonas úmidas podem ser estimados
Custos de
calculando-se os custos de investimento necessários para prevenir enchentes em sua ausência.
mitigação

Função de O valor do serviço ecossistêmico é estimado por sua contribuição como insumo ou fator de
produção/ produção de outro produto. Por exemplo, a contribuição da fertilidade do solo à produção e,
/fator de renda com isso, à renda do produtor.
Parte do valor de lazer atribuído pelas pessoas a uma localidade ou paisagem se reflete no
Preferências

Custos de viagens montante de tempo e dinheiro que as pessoas gastam com a viagem para visitar esse lugar.
reveladas

O valor da beleza cênica pode ser estimado ao identificar o quanto uma bela vista aumenta
Preços hedônicos o preço de um imóvel.

A aplicação de questionários pode levantar a disposição dos usuários para pagar pela preser-
Valoração
vação das amenidades ambientais ou pela melhoria de um serviço: por exemplo, a melhoria
Valoração simulada

contingente
da qualidade de água para possibilitar a pesca e o banho em um rio.
Entre os métodos estão os experimentos de escolha, classificação de contingências e compa-
Modelagem de
ração de pares.
escolha

Estimativas de valoração obtidas em grupo e baseadas nos princípios da democracia deliberativa


Valoração em
e na suposição de que as decisões públicas devem resultar do debate e de consensos entre atores
grupo
sociais, e não da agregação de preferências individuais medidas separadamente.

Fonte – Adaptado de Groot; Van Der Meer, 2010; Teeb, 2010; Seehusen; Prem, 2011.

Uma vez feita a valoração econômica dos SE, pode-se incorporar esses valores nas análises de
custo-benefício ou custo-efetividade para políticas governamentais. Para a primeira, recomenda-se a
política se o benefício total superar o custo total. Já na análise custo-efetividade uma decisão já foi
tomada em relação à implementação da política. Isto é, decidiu-se que seu benefício supera o custo. O
propósito da análise custo-efetividade é apontar qual projeto possibilitaria alcançar tamanho benefício
incorrendo o menor custo. (BROWN et al., 2007).

Agrinho-Tecnicos_BOOK.indb 227 13/04/2021 11:12:39


228

Um exemplo da análise custo-efetividade foi o famoso caso do abastecimento de água na cidade de


Nova York. (CHICHILNISKY; HEAL, 1998). O serviço ecossistêmico de purificação de água na bacia
hidrográfica de Catskill costumava ser suficiente para que água abastecida em Nova York atendesse
aos padrões de qualidade da EPA, a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos. Contudo,
a qualidade da água foi sendo deteriorada em virtude do aumento da poluição do solo por efluentes
domésticos, pesticidas e herbicidas. Em 1996, a prefeitura teve de optar entre a restauração ambiental
da bacia ou a construção e manutenção de uma estação de tratamento de água. O custo estimado
para a construção da estação foi entre 6 e 8 bilhões dólares, ademais um custo anual de manutenção
de 300 mil dólares. No final, optou-se por investir cerca de 1,5 bilhão de dólares na restauração da
bacia hidrográfica. Esse custo de restauração contemplou especialmente a compra de terras, subsídios
de restrição do uso do solo para proprietários de terras e a construção de novas e melhores estações de
tratamento de efluentes. Cabe destacar que, no Brasil, a proteção da vegetação ripária em propriedades
rurais privadas (na figura das Áreas de Proteção Permanente) é uma obrigação legal prevista pelo
Código Florestal. Não obstante, a Agência Nacional de Águas (ANA) criou o Programa Produtor de
Água para incentivar o produtor rural (por meio de apoio técnico e financeiro) a adotar ações (como
práticas agrícolas conservacionistas) que ajudem a melhorar o controle do fluxo e da qualidade da água
em sua região.

SERIA ÉTICO COMERCIALIZAR OS SERVIÇOS


ECOSSISTÊMICOS?
Considere o caso de uma propriedade rural cuja floresta natural contribui para o sequestro de
carbono e o controle do fluxo e qualidade da água, dentre outros SE de regulação. Diferentemente dos
SE de provisão (produtos como o mel, a madeira e o arroz), os SE de regulação se estendem além dos
limites físicos da propriedade. É como possuir um bem cujos benefícios ‘vazam’ para a sociedade. Surge
então o ‘dilema do caronista’: as pessoas não têm incentivos para pagar por um serviço recebido de graça;
elas são beneficiadas pelo serviço, mas esperam que outros usuários paguem por ele. (SCHEFFER;
BROCK; WESTLEY, 2000; WUNDER, 2007). Assim sendo, o proprietário é incentivado a converter
a floresta em outra forma de uso da terra, como uma monocultura de soja ou de cana-de-açúcar, de
tal modo a captar o benefício pleno do bem alternativo (isto é, ‘lacrar o vazamento’). Entretanto, tal
conversão impõe custos à sociedade na medida em que aqueles serviços ecossistêmicos são perdidos.
Qual seria a lógica dos programas de pagamentos por serviços ecossistêmicos (também chamados
de serviços ambientais – PSA)? Conforme a Figura 8, a sociedade não precisaria pagar ao proprietário
todo o valor econômico referente aos SE, mas um valor mínimo que, somado ao benefício inicial da
floresta, tornasse a conservação florestal mais atrativa em relação às outras formas de uso da terra.
(ENGEL et al., 2008). Nesse caso, todas as partes (o proprietário, a sociedade e a biodiversidade)
sairiam ganhando.

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229

Figura 8 – Lógica dos programas de pagamentos por serviços ambientais (PSA).


Degradação da floresta Proteção da floresta

Pagamento mínimo PSA


Benefício econômico
para o proprietário

Custos econômicos Pagamento máximo


para a sociedade devido
à emissão de carbono
e perda de serviços
ecossistêmicos

Fonte – Adaptado de Engel et al., 2008.

Alguém poderia questionar que os serviços ecossistêmicos são direitos humanos fundamentais, de
modo que não seria ético comercializá-los. No Brasil, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo
225, traz a seguinte determinação: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e
à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. (BRASIL,
1988, n.p.). Respaldado pelo Constituição de 1988, o Novo Código Florestal, instituído pela Lei n.º
12.651/2012, dispõe sobre a proteção de áreas de vegetação nativa em terras privadas9. A Lei determina
que as propriedades rurais mantenham uma Reserva Legal (RL), a qual varia entre 20 e 80% da área
da propriedade dependendo do bioma. A Lei também estipula a obrigatoriedade das Áreas de Proteção
Permanente (APP). É verdade que a RL já existe (embora com diferentes requisitos e não com esse
nome) desde o Código Florestal de 1937. Mas seu papel na conservação da biodiversidade e provisão
de serviços ecossistêmicos só foi oficialmente reconhecido na década de 1980 (até então o foco da
RL era a segurança do estoque nacional de madeira). Em síntese, o atual Código Florestal prevê a
manutenção dos SE em RL e APP como uma obrigação do proprietário. Mas, independentemente de
estar pautada sobre princípios éticos, seria a fixação de tal obrigação legal uma estratégia eficiente para
se assegurar esses SE?
Se o manejo de RL fosse atrativo economicamente (infelizmente, o governo não se interessou em
desenvolver práticas de manejo sustentável para RL), se o governo tivesse interesse ou capacidade para
implementar as versões anteriores do Código Florestal (as leis ambientais brasileiras são conhecidas
mundialmente como fortes no papel, mas fracas na prática (MCALLISTER, 2008), ou se houvesse

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230

incentivos de mercado para o cumprimento da lei (por exemplo, se o mercado boicotasse os produtores
que não respeitassem a legislação, como no ‘boicote da soja’ realizado na Amazônia (GIBBS et al., 2015)),
talvez o desmatamento em propriedades privadas não teria sido tão pronunciado (aproximadamente
um quarto da área de vegetação nativa dessas propriedades foi perdido. (SOARES-FILHO et al., 2014).
É difícil fazer conjecturas se o Novo Código Florestal será eficiente em conter o desmatamento
no futuro. Além de ter dimensões continentais, o Brasil detém uma das legislações florestais mais
exigentes do mundo. Por conseguinte, não existem referências mundo afora sobre casos de sucessos
ou insucessos com base em iniciativas legais similares. De modo genérico, a literatura internacional
de governança ambiental sugere que a proteção dos ecossistemas não pode ser uma incumbência
exclusiva do governo. Em outras palavras, a governança ambiental requer a atuação conjunta de
diferentes ‘atores sociais’. (LEMOS; AGRAWAL, 2006). Tomemos como exemplo as quedas das taxas
de desmatamento na Amazônia entre 2004 e 2012, as quais o Governo brasileiro costuma atribuir
ao seu Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm).
Em paralelo às melhorias no monitoramento e na aplicação das leis, vários outros fatores podem ter
contribuído para a redução do desmatamento. Mais especificamente, a expansão das áreas públicas
de proteção; flutuações na lucratividade da soja e pecuária; boicotes nas cadeias de soja e carne contra
produtores que promovessem o desmatamento (a Moratória da Soja e o Acordo de Gado); criação
do programa Municípios Verdes, que impôs restrições de crédito agrícola para os municípios com
as maiores taxas de desmatamento. (MACEDO et al., 2012; NEPSTAD et al., 2014; GIBBS et al.,
2015). Para título de curiosidade, a Moratória da Soja e o Acordo de Gado surgiram por meio de
campanhas de ONGs contra empresas europeias que adquiriam soja e gado de áreas recentemente
desmatadas na Amazônia.
Certamente, um monitoramento eficiente e o alto risco de punição aos infratores configuram
um incentivo importante para que os proprietários não desmatem áreas de RL e APP. As duas grandes
questões são se existirá tal incentivo e, mesmo que exista, se será suficiente. (STICKLER et al., 2013).
Caso não seja, cabe então questionar o quanto o resto do mundo estará incentivando o cumprimento
do Código Florestal.
Conforme a Avaliação Ecossistêmica do Milênio, a biodiversidade forma a fundação do vasto
conjunto de ES que contribui criticamente para o bem-estar. A maior porção da diversidade de espécies
terrestres se encontra nos trópicos. (DIRZO; RAVEN, 2003). O Brasil tem a segunda maior área
florestal do mundo (depois da Rússia), a maior área de vegetação natural nos trópicos e também a
maior área de vegetação natural protegida. (FAO, 2015). Se não for justo que os proprietários rurais
brasileiros recebam alguma compensação pelo cumprimento do Código Florestal (como pagamentos
diretos por meio de PSA ou vantagens comerciais), não seria justo que todos os países também
impusessem a obrigatoriedade de uma reserva natural em suas propriedades rurais?
A Convenção de Diversidade Biológica defende a necessidade de se compreender e gerir os
ecossistemas sob um contexto econômico10. Existem duas lógicas centrais para isso. A primeira delas
é a de que os proprietários deveriam ser os principais interessados no sucesso da restauração ou

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manutenção da vegetação natural em suas propriedades. Afinal, o sucesso dessas atividades depende
do comprometimento deles. A segunda é a de que essas atividades trariam benefícios para toda a
sociedade. Por conseguinte, esta deveria compartilhar seus custos, e não apenas seus benefícios. É
por esses motivos que, em outros países, costuma-se remunerar os proprietários rurais que mantém
ou restauram florestas. (SALZMAN et al., 2018). E é por esses mesmos motivos que, considerando-
-se a gestão ecossistêmica em nível global, o Governo brasileiro deverá receber, a partir dos próximos
anos, pagamentos de outros países por meio do programa Redução das Emissões por Desmatamento
e Degradação florestal (REDD), promovido pelas Nações Unidas. Contudo, com a exceção do
REDD, ainda não existem grandes perspectivas de PSA entre países. (SALZMAN et al., 2018).
Ademais, o foco do REDD brasileiro serão as florestas públicas, apesar de aproximadamente a
metade da área de vegetação natural brasileira se localizar em propriedades privadas. (SOARES-
-FILHO et al., 2014).
É verdade que o Novo Código Florestal prevê a criação de programas de PSA. Um dos principais
mecanismos previstos é a compensação de RL mediante Cotas de Reserva Ambiental (CRA). Mais
precisamente, um proprietário que tenha déficit de RL terá a opção de restaurar essa área ou então
adquirir CRA de outros proprietários. As CRA serão originadas especialmente de: 1) áreas de vegetação
natural que excedem o requisito de RL e APP; e de 2) RL de pequenas propriedades. Entretanto, a
quantidade ofertada de CRA seria muito superior àquela demandada. (SOARES et al., 2016). Ou
seja, o mercado de CRA só funcionará (como instrumento de combate ao desmatamento) caso o
Governo brasileiro o abra para outros países (talvez como parte do REDD) (SOARES et al., 2016) e,
logicamente, haja o interesse de participação por parte desses países.
No Brasil, algumas ONGs internacionais fazem campanhas para associar a imagem do agronegócio
brasileiro ao desmatamento. Uma estratégia mais eficiente para conter o desmatamento nas propriedades
rurais brasileiras seria: 1) sensibilizar os governos ou empresas de seus países de origem a contribuírem
para a proteção da biodiversidade dessas propriedades (por exemplo, por meio de programas de PSA) e
2) sensibilizar o mercado nacional e internacional a privilegiar os produtores rurais que seguem à risca
o Código Florestal (em relação a produtores mundo afora que não tenham áreas de vegetação natural
em suas propriedades ou produtores brasileiros que não cumpram a Lei).
Em síntese, no Brasil alguns defendem que os serviços ecossistêmicos configuram direitos humanos
fundamentais, de tal forma que suas provisões devam ser impostas aos proprietários rurais, enquanto
outros discorrem que, independentemente de a premissa estar correta, a forma mais eficiente de se
assegurar tais serviços é remunerar os responsáveis pela proteção dos ecossistemas. O Governo brasileiro
buscou conciliar ambos os lados desse debate no Novo Código Florestal. Agora, tem a árdua missão
de fazer com que essa lei ambiental avançada, ao contrário dos códigos florestais anteriores, funcione
satisfatoriamente na prática. Contudo, seria ingênuo acreditar que a eficiência da Lei dependerá apenas
do desempenho e da boa vontade do Governo brasileiro. Nesse sentido, duas importantes estratégias
seriam a participação de outros países no mercado de CRA e a exigência de mercados nacionais e
internacionais pelo cumprimento do Código Florestal.

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232

A TECNOLOGIA CONSEGUIRIA SUBSTITUIR OS


SERVIÇOS ECOSSISTÊMICOS?
Existem três linhas centrais da economia no que se refere ao DS: a neoclássica, a ambiental e a
ecológica. (ASAFU-ADJAYE, 2005; VENKATACHALAM, 2007; DAILY; FARLEY, 2011). A questão
SE versus tecnologia está no cerne das divergências entre elas. Geralmente, tal questão é abordada em
termos da substituição entre as diferentes formas de capital. Grosso modo, a ideia de capital remete a
um estoque do qual um fluxo (bem ou serviço) é obtido. O capital natural contempla os ecossistemas e
suas biodiversidades. Ou seja, o ‘estoque’ de serviços ecossistêmicos. O capital produzido constitui bens
tangíveis, tais como ferramentas, equipamentos, máquinas, prédios e infraestrutura. O capital humano
contempla bens intangíveis, como educação, conhecimento e habilidade das pessoas. Finalmente, o
capital social diz respeito às redes e instituições sociais pelas quais esses bens intangíveis são transmitidos
e as contribuições individuais são coordenadas na sociedade. Já a tecnologia seria o que combinaria
todas essas formas de capital para a produção de bens e serviços humanos.
Sob a ótica da economia neoclássica, uma forma de capital geralmente pode ser substituída por
outra sem acarretar prejuízos à sociedade (por exemplo, o serviço ecossistêmico de purificação da água
é parcialmente substituído pelos sistemas humanos de saneamento). Se um serviço ecossistêmico não
tiver um substituto tecnológico, então se confia fortemente na capacidade do mercado em induzir seu
desenvolvimento.
Um argumento frequente é o da ‘curva ambiental de Kuznets’. (GROSSMAN; KRUEGER,
1995). Ela sugere que o desenvolvimento econômico provocaria inicialmente a deterioração ambiental;
após certo nível de crescimento econômico, no entanto, a sociedade passaria a se preocupar mais com o
ambiente e a cuidar dele. Em outras palavras, o crescimento econômico seria benéfico para o ambiente.
Independentemente de a premissa estar correta, cabe ressaltar que a degradação ambiental nem sempre
vem acompanhada por melhorias socioeconômicas. Por exemplo, Rodrigues et al. (2009) avaliaram
o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 286 municipalidades no ‘arco do desmatamento’
(a fronteira agrícola da Amazônia Legal) caracterizadas por diferentes estágios de desmatamento.
Verificou-se um padrão boom and bust (crescimento e expansão) de desenvolvimento: os valores do
IDH aumentaram no início do desmatamento, mas decresceram com a expansão da fronteira, de
modo que as condições de desenvolvimento humano, antes e depois da fronteira, foram similarmente
baixas. Os autores concluíram que o padrão de desenvolvimento nas fronteiras agrícolas da Amazônia
foi ineficaz tanto em termos de desenvolvimento humano quanto de conservação dos recursos naturais.
Mas o que estaria por trás do IDH e PIB de um país? Para explorar essa questão, criamos uma
matriz de correlação contemplando o IDH, o PIB e indicadores de capital aplicados pelo Banco Mundial
(Quadro 5). Selecionamos o ano de 2014 por ser o período mais recente que apresentou dados para
todos os indicadores em questão. Os indicadores mais correlacionados com o IDH foram o ‘rule of law’
e o ‘controle de corrupção’, dois indicadores de capital social. O primeiro é uma medida da percepção

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233

dos indivíduos sobre a extensão em que as leis da sociedade são seguidas pelos demais cidadãos, assim
como da confiança dos entrevistados nas instituições públicas, como a polícia e os tribunais de justiça.
O segundo considera a percepção do indivíduo quanto à extensão em que a corrupção é controlada no
país. Os indicadores mais correlacionados com o PIB per capita foram o ‘capital produzido per capita’ e
o ‘capital humano per capita’. É importante realçar que a correlação entre indicadores não significa uma
relação de causalidade. Para investigar as relações de causalidade, os economistas constroem modelos
matemáticos complexos (modelos econométricos) sobre séries temporais de dados (não se considera
um único ano). Ainda assim, os resultados desses modelos não podem ser interpretados como genuínas
relações de causalidade. Contudo, são fundamentais para elevar (ou diminuir) o nível de confiança
dos economistas sobre tais relações. Dentre os indicadores do Quadro 5, a relação entre o ‘controle da
corrupção’ e o PIB per capita vem sendo investigada por meio desses modelos econométricos. Com
base nesses estudos, o consenso firmado é o de que o ‘controle da corrupção’ estaria por trás do PIB per
capita, e não o contrário. (UGUR; DASGUPTA, 2011). Mais precisamente, a percepção da sociedade
sobre a corrupção seria um bom indicador sobre a corrupção, e a corrupção depreciaria em grande
medida o crescimento econômico dos países.

Quadro 6 – Matriz de correlação para indicadores de desenvolvimento de países no ano de 2014.

Rule of Controle da Capital Capital Capital Produto Índice de


law corrupção humano natural produzido Interno Desenvolvimento
per capita per capita per capita Bruto (PIB) Humano (IDH)
per capita

r 1 ,937** ,813** ,107 ,834** ,706** ,778**


Rule of law 1

N 209 209 140 140 140 199 163

Controle da r ,937** 1 ,828** ,123 ,839** ,705** ,730**


corrupção 2 N 209 209 140 140 140 199 163

Capital humano r ,813** ,828** 1 ,234** ,961** ,959** ,668**


per capita 3 N 140 140 140 140 140 140 124

Capital natural r ,107 ,123 ,234** 1 ,200* ,357** ,200*


per capita 4 N 140 140 140 140 140 140 124

Capital produzido r ,834** ,839** ,961** ,200* 1 ,960** ,713**


per capita 5 N 140 140 140 140 140 140 124

Produto Interno r ,706** ,705** ,959** ,357** ,960** 1 ,645**


Bruto (PIB) per
capita 6 N 199 199 140 140 140 201 162

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Rule of Controle da Capital Capital Capital Produto Índice de


law corrupção humano natural produzido Interno Desenvolvimento
per capita per capita per capita Bruto (PIB) Humano (IDH)
per capita

Índice de r ,778** ,730** ,668** ,200* ,713** ,645** 1


Desenvolvimento
Humano (IDH) 7 N 163 163 124 124 124 162 163

r – Coeficiente de correlação de Pearson


N – Tamanho da amostra
**Correlação significativa ao nível de 1% de probabilidade

*Correlação significativa ao nível de 5% de probabilidade


1, 2
Worldwide Governance Indicators, 2015

3, 4, 5
Banco Mundial, 2018a

6
–Banco Mundial, 2018b
7
–UNDP, 2015
Fonte – Os autores.

Conforme o Quadro 6, o ‘capital natural’ foi o que apresentou a menor correlação com ambos,
o PIB per capita e o IDH. Mas isso não significa que o capital natural seja menos importante que as
demais formas de capital. Mas certamente aponta que ele é extremamente subvalorizado pelo sistema
econômico. Afinal, o que seria da humanidade se o capital natural de todos os países fosse degradado?
A única possibilidade de sobrevivência humana seria importar o capital natural de outro planeta.
Além disso, o PIB não desconta o quanto do crescimento econômico foi obtido à custa da emissão de
gases de efeito estufa. E mesmo que descontasse, não considera as emissões desses gases no contexto
do comércio internacional. Ou seja, não rastreia as emissões dos gases ao país do consumidor final
do produto. Finalmente, conforme ressaltado pelo Banco Mundial (2008), os países não enriquecem
apenas por meio da liquidação do capital natural para outras formas de capital, mas também por meio
do aumento da eficiência no uso do primeiro.
Na economia ambiental, busca-se avaliar para cada situação se as perdas do capital natural
realmente valeriam a pena em longo prazo. Para tanto, torna-se necessário estimar o valor econômico
dos SE em questão (ver Quadro 5). Esses mesmos métodos de valoração são adotados na economia
ecológica. Mas o enfoque na última não é investigar relações de substituição entre as formas de capital, e
sim sensibilizar a sociedade sobre a importância de se proteger os ecossistemas. Na economia ecológica,
de modo geral, rejeita-se a visão utilitarista da natureza, ou então se advoga que seja apenas uma das
múltiplas formas de contemplá-la. Considera-se que o capital natural constitui a base para a economia,
revogando-se, assim, a ideia de substituição do capital natural (Figura 9). Por exemplo, não existiriam
serrarias sem árvores ou barcos pesqueiros sem peixes. (COSTANZA; DALY, 1992; COSTANZA et
al., 2014). Ademais, para que um país ou região consiga substituir o capital natural por outras formas
de capital, é necessário usar o capital natural de outros locais. Por exemplo, devido ao esgotamento de

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madeira na Malásia, a indústria madeireira da região se tornou dependente da importação de madeira


tropical. Isto é, a indústria madeireira da Malásia continua existindo porque outros países mantiveram
suas florestas. Em resumo, sob a perspectiva da economia ecológica, as diferentes formas de capital não
seriam substituíveis, apenas complementares.

Figura 9 – Relação entre as formas de capital segundo a Economia Ecológica.

Capital natural
Proteção, manejo Serviços Degradação dos
ou restauração dos ecossistêmicos ecossistemas
ecossistemas

Capital Capital Capital


humano social construído

Bem-estar
humano
Fonte – Os autores, 2018.

Qual das três escolas econômicas está com a razão? A resposta dependerá de sua visão de mundo.
Se estudá-las a fundo, você possivelmente desenvolverá maior afinidade por uma delas. Não obstante, é
importante reconhecer a importância das três para o DS. Destacaremos duas justificativas para isso. Em
primeiro lugar, cada uma colabora com perspectivas que poderão ser úteis sob diferentes circunstâncias.
Por exemplo, uma premissa central da economia neoclássica é a de que as pessoas respondem
racionalmente a incentivos. Tal premissa, embora nem sempre correta11 (KAHNEMAN, 2003), vem
ganhando força e prestígio na gestão ambiental. (LEMOS; AGRAWAL, 2006). Por exemplo, se o custo
para o cumprimento de uma lei ambiental for muito alto, ­cria-se um incentivo para que seja burlada,
ou então para que práticas ainda mais nocivas sejam adotadas. Afinal, como é possível promover o
reuso agrícola do esgoto tratado se uma lei estabelece padrões ambientais demasiadamente rigorosos?
Nesse caso, o produto não é aplicado no solo, onde seria um adubo, mas acaba lançado no rio, onde
configura um risco para a vida aquática. Como um segundo exemplo, a pressão social contra a instalação
de pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) incentiva a expansão da energia termelétrica no Brasil, a qual
é muito mais nociva que a primeira em termos de poluição atmosférica. Como um terceiro exemplo,
teme-se que as fortes restrições ambientais nos países desenvolvidos estejam deslocando, num mundo
globalizado, as atividades poluidoras para os países com legislações ambientais fracas ou governos

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muito corruptos. Em síntese, proteger os ecossistemas e suas biodiversidades não é tão simples quanto
elaborar leis ambientais rigorosas, um achado que encontra forte respaldo na economia neoclássica.
Um segundo motivo para a participação conjunta das três escolas na negociação do DS é o de
que todas deverão se sentir representadas e responsáveis por ele. Se alguma escola ficar de fora desse
processo, além de não contribuir para o DS, possivelmente o boicotará. (SUNDERLIN, 1995a,b).
Afinal de contas, possivelmente grupo social algum aprecia o sentimento de exclusão. Ressalta-se que
as duas considerações anteriores não se limitam às três escolas econômicas, mas a todas as escolas
acadêmicas e grupos da sociedade.
Nesta seção, as perspectivas econômicas em relação à substituição entre as formas de capital foram
agrupadas entre três escolas. Entretanto, é importante reconhecer que muitos economistas não se
enquadram em um desses três extremos, mas em algum lugar ao longo do contínuo entre eles. Além do
que, é questionável o quanto essas escolas diferem uma da outra. (VENKATACHALAM, 2007). Por
exemplo, a economia ambiental é vista por muitos como uma ramificação da economia neoclássica,
ao passo que os adeptos da economia ecológica, embora defendam acirradamente o pluralismo de
métodos científicos, costumam limitar seus estudos de avaliações ambientais aos mesmos métodos
praticados pela economia ambiental.
Embora a economia neoclássica traga importantes perspectivas para a construção do DS, o
excessivo otimismo tecnológico não configura uma delas. Seria totalmente irresponsável confiar o
futuro planetário a tecnologias que ainda nem existem. Como diz o ditado popular: ‘não se deve
contar com o ovo antes de a galinha o botar’. Contudo, nos dias de hoje, seria incorreto afirmar que
a falta de consciência ambiental impera por toda a economia neoclássica. Na verdade, a mitigação das
mudanças climáticas configura uma questão iminente nas principais e mais tradicionais universidades
de economia do mundo, as quais serviram de berço para a economia neoclássica.
Em 2007, o IPCC e o político americano Albert Arnold (Al) Gore Jr. foram contemplados com o
Prêmio Nobel da Paz em decorrência de seus esforços na construção e disseminação de conhecimento
tangendo às mudanças climáticas causadas pelos humanos, assim como da importância da mitigação
e adaptação climática. Esse prêmio contribuiu para que as mudanças climáticas ganhassem os
holofotes como o grande problema ambiental da atualidade (o grande problema ambiental entre países
desenvolvidos, haja vista que o resto do mundo ainda enfrenta sérias questões ambientais relacionadas
ao saneamento). Desde então, contudo, o desenvolvimento tecnológico ainda não consagrou uma
grande solução para as mudanças climáticas, ao passo que as emissões globais de gases de efeito estufa
continuam aumentando12. Para agravar ainda mais esse quadro ambiental, muitos cientistas temem
que as perdas de serviços ecossistêmicos logo passem a dividir os holofotes com as mudanças climáticas.
Conforme a seção sobre a relação biodiversidade-funcionalidade, os europeus, com toda sua tradição
de manejo e pesquisa florestal, além do aporte das tecnologias mais modernas para o monitoramento
e a modelagem desses ecossistemas, estão tendo enorme dificuldade para explicar a relação entre uma
dúzia de espécies arbóreas e algumas poucas funções ecossistêmicas. Isto é, os cientistas estão apenas
começando a entender a importância da biodiversidade para a funcionalidade dos ecossistemas e,

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consequentemente, para o bem-estar humano. Consequentemente, ainda pouco se sabe se os SE serão


perdidos de forma gradativa ou abruptamente caso as perdas da biodiversidade não sejam contidas.
(CARDINALE et al., 2012; MONTOYA et al., 2018).
Mesmo que as tecnologias substituíssem todos os serviços ecossistêmicos, duas importantíssimas
questões éticas deveriam ser consideradas: o direito de existência da biodiversidade e a liberdade de
escolha das futuras gerações humanas. Talvez essas gerações não aprovem um mundo sem árvores,
elefantes, peixes e pássaros. Talvez prefiram sucos de fruta natural a seus equivalentes artificiais em pó.
Perante a gravidade da crise ambiental planetária, a proteção dos serviços ecossistêmicos e
o desenvolvimento tecnológico de seus serviços humanos equivalentes não devem ser vistos como
alternativas excludentes, mas complementares. Por exemplo, a mitigação das mudanças climáticas
possivelmente exigirá a adoção em larga escala da captura e do sequestro artificial de carbono (as
geoengenharias). (ROCKSTROM et al., 2017; WALSH et al., 2017). Contudo, mesmo com base nos
cenários científicos mais otimistas quanto ao desenvolvimento e adoção dessas e outras tecnologias de
mitigação climática, não será possível reverter o aquecimento global (ou ao menos atingir o Acordo de
Paris13) sem que haja reduções substanciais nas emissões de gases de efeito estufa.
É difícil prever o efeito da Indústria 4.0 na qualidade ambiental. Por um lado, o avanço
tecnológico da indústria permitiria utilizar os recursos naturais de forma mais eficiente. Por outro
lado, a diminuição do custo de produção, oriunda do ganho em eficiência, poderia levar ao aumento
da quantidade demandada do recurso (da mesma forma que as pessoas costumam dirigir mais quando
o preço do combustível diminui). Assim, se o aumento do consumo superar o benefício do ganho em
eficiência, o impacto ambiental do avanço tecnológico será negativo. Esse fenômeno é conhecido como
‘paradoxo de Jevons’. (POLIMENI; POLIMENI, 2006). Em última análise, os avanços tecnológicos
serão fundamentais para contornar a crise ambiental planetária, mas necessitarão ser acompanhados
impreterivelmente por alterações profundas na forma de agir e pensar de toda a espécie humana.
Mesmo que os caçadores e coletores tenham impactado enormemente o ambiente, ainda nos
legaram um planeta habitável. Com as tecnologias e padrões de organização social atuais, ademais
aqueles que ainda surgirão, a capacidade humana em modificar o planeta amplia-se de forma
esmagadora. Logo, não é possível se pensar e agir como a única ou a mais importante espécie planetária.
Nesse sentido, torna-se iminente que o Homo sapiens negocie – de forma inclusiva e pautada em
considerações científicas e éticas – o planeta que será deixado como legado para seus sucessores. O
desenvolvimento sustentável surge ‘quase aos quarenta e cinco minutos do segundo tempo’ como uma
preciosa oportunidade de diálogo e reflexão para tal negociação.

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246

NOTAS EXPLICATIVAS
1 Segue uma breve descrição do conceito alemão de Indústria 4.0 com base em Kagermann et al., 2013;
Hermann et al., 2016; Stock e Seliger, 2016: A IOT maximizaria a cooperação numa ‘indústria inteligente’
(smart factory), pois as máquinas se comunicariam com os humanos e entre elas mesmas. Contudo, boas
decisões geralmente demandam boas informações contextuais. Portanto, além da IOT, os ‘sistemas ciber-
físicos’ (CPS) também estariam no cerne da indústria inteligente. De acordo com o conceito de CPS,
toda a indústria seria digitalizada, de tal modo que cada objeto e processo receberia um ‘irmão digital’.
Os CPS analisariam esses processos, fariam simulações, antecipariam falhas, indicariam melhorias e até
responderiam no mundo físico. Imagine agora que os CPS estariam integrados à IOT. Ou seja, receberiam
dados em tempo real de praticamente tudo que estaria acontecendo na indústria física, tal como enviariam
informações contextuais para as máquinas e pessoas dessa indústria. Considere então que os CPS de todas
as indústrias da rede global de valor estariam conectados à IOT, assim como os serviços de logística, os
serviços de infraestrutura (como água e energia) e os consumidores finais. O resultado disso tudo seria uma
cadeia de valor inteligente. Dentre seus maiores benefícios, ela permitiria a personalização de produtos
e ainda de forma rápida e barata. Acima de tudo, asseguraria a hegemonia econômica e tecnológica da
Alemanha.
2 Para saber mais sobre o assunto, acesse http://www.teebweb.org/.
3 Para saber mais sobre o assunto, acesse https://www.ipbes.net/.
4 Os periódicos científicos são os principais meios de divulgação científica. Para que um artigo seja aprovado
para publicação, ele é submetido a uma avaliação minuciosa por um editor e pelo menos dois especialistas
anônimos. Os três principais critérios de avaliação são: 1) relevância, 2) originalidade e 3) validade
(confiabilidade dos procedimentos). O fator de impacto é uma das métricas usadas para conceituar os
periódicos científicos. A maioria das métricas considera a frequência com a qual os artigos publicados pelo
periódico são citados na literatura científica.
5 Para saber mais sobre o assunto, acesse https://www.millenniumassessment.org/documents/document.446.
aspx.pdf.
6 De acordo com a hipótese do seguro, a maior diversidade aumentaria as chances de o ecossistema ter
espécies que respondam diferentemente aos distúrbios (como enchentes, secas, vendavais, incêndios e
pragas). Além do mais, aumentaria as chances de o ecossistema abrigar espécies com redundância funcional,
de tal sorte que espécies com efeitos estabilizadores possam ser rapidamente substituídas. Nesses dois
casos, a biodiversidade contribuiria, respectivamente, para a resistência e resiliência do ecossistema frente
a distúrbios. Webster et al. (1975) definiram a resistência como a habilidade do ecossistema em resistir
a uma mudança, e a resiliência como a de retornar a um estado de referência após a mudança. Segundo
a hipótese de complementariedade de nicho, o aumento da diversidade pode aumentar a competição
entre as espécies. Contudo, se as espécies conseguirem utilizar os recursos diferentemente no tempo ou
espaço (isto é, explorando-se diferentes nichos), então se diminuirá a pressão competitiva. A diminuição
da pressão competitiva por meio da exploração de mais nichos (como diferentes profundidades do solo)
se traduziria então no aumento da produtividade do ecossistema. Na hipótese do efeito de amostragem,
a maior diversidade aumenta as chances de existir uma espécie muito mais competitiva que as demais.
Devido à superioridade competitiva, essa espécie conseguiria se desenvolver tão bem a ponto de aumentar
a produtividade do ecossistema e estabilizar suas funções.

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247

7 As funções consideradas foram: qualidade da madeira, produção de madeira, biomassa das raízes,
decomposição da madeira, decomposição da serapilheira, biomassa microbiana, biomassa de minhocas,
estoque de carbono no solo, resistência a stress hídrico, ausência de herbivorismo por insetos, ausência de
herbivorismo por animais, ausência de estragos por patógenos, diversidade de pássaros, diversidade de
morcegos e diversidade de plantas no sub-bosque. Consideraram-se quinze espécies arbóreas.
8 Por exemplo, mesmo que seu poder aquisitivo possibilitasse uma ida diária ao seu restaurante favorito,
possivelmente você não o faria todos os dias. Se você foi a esse restaurante no dia anterior, é bem provável
que uma ida ao seu segundo restaurante favorito hoje seja mais prazerosa do que repetir sua primeira opção
dois dias consecutivos.
9 A RL tem a função de “assegurar o uso econômico de modo sustentável dos recursos naturais do imóvel
rural, auxiliar a conservação e a reabilitação dos processos ecológicos e promover a conservação da
biodiversidade, bem como o abrigo e a proteção de fauna silvestre e da flora nativa”. A Lei institui a Área
de Preservação Permanente (APP) como “uma área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a
função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade,
facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas”.
(BRASIL, 2012, n.p.).
10 Estruturada em 12 princípios, a Abordagem Ecossistêmica da Convenção de Diversidade Biológica
configura uma estratégia para a gestão integrada do solo, da água e dos recursos biológicos que busca
a conservação e o uso sustentável dos ecossistemas e da biodiversidade de forma equitativa. Conforme
o quarto princípio: “Reconhecendo os ganhos potenciais da gestão, há geralmente a neces­sidade de
compreender e gerir o ecossistema em um contexto econô­mico”. (CBD, 2018, n.p.).
11 Por exemplo, se as pessoas sempre tomassem decisões racionais, então não experimentariam drogas, não
brigariam no trânsito, não fumariam, não ingeririam bebidas alcoólicas em excesso e não apostariam em
casinos, entre outras decisões cujos malefícios superariam os benefícios em longo prazo.
12 Entre 2000 e 2009, os humanos emitiram aproximadamente 8,9 Gt/ano de carbono para a atmosfera
(sendo 7,7 Gt/ano referentes às queimas de combustível fósseis). Os ecossistemas terrestres e os oceanos
sequestraram 2,6 e 2,3 Gt/ano de carbono, respectivamente. A resultante foi o aumento de 4,0 Gt/ano de
carbono na atmosfera. (IPCC, 2013).
13 Compromisso firmado por 195 países, incluindo o Brasil, em dezembro de 2015, com o objetivo de
manter o aumento da temperatura média global abaixo de 2 °C em relação ao período anterior à 1RI.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
249

OBJETIVOS DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL


(ODS) E FATORES INTERVENIENTES PARA O
ATINGIMENTO DAS METAS

José Henrique de Faria


Charles Carneiro

INTRODUÇÃO
Um dos temas mais comentados e debatidos na área econômica e social é o desenvolvimento.
Muitas vezes, ele tem sido reduzido a indicadores de crescimento econômico, geralmente medido pelo
Produto Interno Bruto (PIB), que é a soma de todas as riquezas produzidas no país em dado período
de tempo (normalmente, um ano), expressas em termos monetários.
Porém, há aqueles que propõem uma discussão tendo como tema o desenvolvimento
socioeconômico, que

procura considerar não apenas os aspectos econômicos, como igualmente os sociais. A concepção
de desenvolvimento socioeconômico, contudo, tem se restringido a duas disciplinas: sociologia e
economia. Mas o desenvolvimento da sociedade requer mais do que duas disciplinas, por mais que a
expressão ‘sócio’ pretenda dizer além do que realmente diz. (FARIA, 2015, p. 10).

O senso comum

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250

atribui à expressão ‘sócio’ uma extensão que ela não tem. Problemas relativos, por exemplo, à
saúde, transporte, educação, segurança, aparatos jurídicos, ideologia, cultura, relações de trabalho,
planejamento urbano, são enquadrados como se fossem simplesmente sociais. (FARIA, 2015, p. 10).

Contudo, é preciso considerar o desenvolvimento socioeconômico como um tema interdisciplinar.


Esse é um desafio para qualquer projeto ou política pública de desenvolvimento.

DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E
DESENVOLVIMENTO SOCIOECONÔMICO
Conforme Faria,

de início, o problema do desenvolvimento era estritamente econômico. Esse ponto de vista ainda
prevalece no âmbito da economia. A concepção original era a de que o desenvolvimento econômico
produziria, por si mesmo, um desenvolvimento social. Assim, as políticas desenvolvimentistas tratavam
do incremento da capacidade produtiva medida por variáveis como poupança, relações comerciais,
níveis de consumo, distribuição de renda, entre outros indicadores, acreditando que estes apontariam
melhorias na qualidade de vida, educação, saúde, analfabetismo e infraestrutura urbana e social. Entre
os indicadores mais conhecidos estão os que tratam da distribuição de renda. (2015, p. 11-12).

Vejamos quais são eles a seguir.

Coeficiente de Gini
Tal coeficiente

é uma medida utilizada para calcular a desigualdade de distribuição de renda, mas pode ser usada
para qualquer distribuição. Ele consiste em um número entre 0 e 1, em que 0 corresponde à completa
igualdade de renda ou rendimento (todos têm a mesma renda) e 1 corresponde à completa desigualdade
(uma pessoa tem toda a renda ou rendimento e as demais nada têm). O índice de Gini é o coeficiente
expresso em pontos percentuais (coeficiente x 100). O coeficiente de Gini é usado para medir a
desigualdade de renda ou rendimento, porém pode ser também usado para mensurar a desigualdade
de riqueza. Esse uso requer que ninguém tenha uma riqueza líquida negativa. Este índice é útil para
mostrar a concentração ou a distribuição de renda de um país. Quanto mais próximo de 1 for o índice,
mais concentrada é a renda. (FARIA, 2015, p. 11).

O Gráfico 1 ilustra este coeficiente.

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251

Gráfico 1 – Índice de Gini.


Coeficiente de Gini no mundo

65
África do Sul
Brasil
58

Chile
Argentina
51

México
44
Rússia

37
Indonésia

30
1995 96 97 98 99 00 01 02 03 04 05 06 07 08 09 10 11 12 2013
Fonte – Banco Mundial

Índice de Theil
Trata-se de

uma medida estatística da distribuição de renda na qual se usa o logaritmo neperiano da razão entre
as médias aritméticas e geométricas da renda familiar per capita média. Se a razão entre as médias
for igual a 1, Theil será igual a zero, indicando perfeita distribuição. Quanto maior a razão entre as
médias, maior será o valor para o Índice de Theil, e pior será a distribuição de renda. Este valor está
entre 0 e 1 e quanto maior este valor, pior a distribuição. O Índice de Theil, calculado por Theil em
1967, é baseado no conceito de entropia de uma distribuição. Entre suas qualidades enumeram-se
que é simétrico (tem a propriedade de invariância em caso de permuta de indivíduos), é invariante à
replicação (é independente de replicações de população), independente da média (tem a propriedade
de ser invariante em caso de alteração da escala da renda), e satisfaz o Princípio de Pigou-Dalton (a
desigualdade cresce como resultado de transferências regressivas). (FARIA, 2015, p. 11).

O Gráfico 2 ilustra esse índice.

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252

Gráfico 2 – Índice de Theil.


Análise do Índice de Theil
IT dos países do Mercado Comum Centroamericano para o Mundo
1990-2006

4,0

3,5

3,0

2,5

2,0

1,5

1,0
Costa Rica El Salvador Guatemala
0,5
Honduras Nicarágua Panamá
0,0
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
Posteriormente, foram incluídas nos indicadores questões chamadas de sociais, tais como nível de
educação, infraestrutura urbana, saúde etc. Entre esses indicadores, destacam-se os seguintes.

Índice de Pobreza Humana (IPH)


De acordo com Faria, este índice

serve como indicador da taxa de pobreza que existe em determinado país. Este indicador faz a
ponderação de três variáveis: (i) Curta duração da vida (o percentual da população, em cada país,
que não atinge os 40 anos); (ii) Falta de educação elementar (percentual da população analfabeta);
(iii) Falta de acesso aos recursos públicos e privados (percentagem composta das pessoas com falta de
acesso ao serviço de saúde, água potável e nutrição razoável). O IPH considera diversos indicadores
para verificar a porcentagem de pessoas em uma população que sofre de privações em quatro
dimensões básicas da vida: a longevidade, o conhecimento, a provisão econômica e a inclusão social.
(2015, p. 11-12).

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Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)


Ainda de acordo com Faria,

Os Relatórios do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD apontam alguns
fatores que compõem o Índice de Desenvolvimento Humano – IDH. O IDH é calculado a partir de
indicadores de educação (alfabetização e taxa de matrícula), saúde (esperança de vida) e renda (PIB
per capita) e avalia as condições comparadas de desenvolvimento humano no mundo, identificando os
países de alto, médio e baixo desenvolvimento. O PNUD mostra o que a ONU chama de desigualdades
mundiais grotescas e indica que o processo recente de globalização está contribuindo para acentuar
as desigualdades sociais entre os países. No entanto, este indicador não mostra, por exemplo, que
a concentração de riqueza pessoal é extraordinária: os ativos dos dez maiores multimilionários do
mundo em 2012. [...] a literatura tratou de diferenciar crescimento de desenvolvimento econômico.
O crescimento econômico trataria somente das questões propriamente econômicas, tais como Produto
e Renda (PIB, PNB etc.), Gastos do Governo, Consumo das Famílias, Poupança/Investimento,
exportação e Importação, na clássica fórmula em que a renda (Y) é igual à soma do consumo das
famílias (C), mais os investimentos (I), mais os gastos do governo (G), mais as exportações (X), menos
as importações (M), ou seja, Y = C + I + G + X – M. O desenvolvimento econômico trataria também
de questões sociais, tais como bem-estar, nível de consumo, IDH, taxa de desemprego, analfabetismo,
qualidade de vida, entre outros. (2015, p. 11-12).

Depois de muitos anos de crescimento do IDH brasileiro, em função da recente crise econômica
houve uma estagnação da evolução do índice, mantendo-se em 0,754 em 2015, número este já
alcançado em 2014, conforme se pode observar no Gráfico 3.

Gráfico 3 – Evolução do IDH do Brasil nos últimos anos.

2010 0,724

2011 0,730

2012 0,734

2013 0,747

2014 0,754

2015 0,754

Fonte – PNUD, 2017.

Em comparação aos demais países, o Brasil ocupa o 79° lugar, junto a Granada, que é uma ilha
do Caribe. Em primeiro lugar continua a Noruega, com 0,949, conforme se constata no Quadro 1.

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254

Quadro 1 – Ranking do IDH mundial 2015.

1º Noruega 0,949

2º Austrália 0,939

2º Suíça 0,939

4º Alemanha 0,926

5º Dinamarca 0,925

5º Singapura 0,925
IDH muito alto
7º Holanda 0,924

8º Irlanda 0,923
9º Islândia 0,921
10º Canadá 0,92
10º EUA 0,92
45º Argentina 0,827

49º Rússia 0,804

54º Uruguai 0,795


68º Cuba 0,775

71º Venezuela 0,767

77º México 0,762

78º Azerbaijão 0,759


IDH
alto 79º Brasil 0,754

79º Granada 0,754


81º Bósnia e H. 0,75

90º China 0,738

95º Colômbia 0,727

110º Paraguai 0,693

118º Bolívia 0,674


IDH
médio 119º África do Sul 0,666

131º Índia 0,624

Fonte – PNUD, 2017.

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255

Como mostra Faria,

com o tempo, a literatura inclui uma nova expressão: desenvolvimento socioeconômico, para qualificar
a ideia de desenvolvimento econômico. Contudo, esta nova expressão não alterou as formas de medida
utilizadas. No campo crítico da economia, o conceito de desenvolvimento aparece acompanhado do termo
‘capitalista’, para diferenciar o desenvolvimento social daquele especificamente capitalista. (2015, p. 12).

POLÍTICAS DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL


Ainda conforme Faria,

o uso do conceito de desenvolvimento socioeconômico e seu atrelamento aos indicadores mostra


claramente que não há uma concepção interdisciplinar. Com alguma boa vontade, pode-se mesmo
admitir que se trata de uma visão multidisciplinar restrita. Os indicadores de educação e saúde, por
exemplo, pouco revelam sobre a real situação da saúde da população e sobre o processo de educação.
Isto sem mencionar problemas atuais como transporte, segurança, planejamento urbano, mobilidade
social, violência e o conjunto da infraestrutura urbana e social. (2015, p. 12-13).

A questão que se deve propor é

como adotar uma concepção interdisciplinar no que se refere ao desenvolvimento socioeconômico?


Como considerar que um projeto de desenvolvimento trate, simultaneamente, da educação, do direito,
da economia, das engenharias, do campo da saúde física e mental, da agropecuária, da preservação
sustentável do ambiente, das questões sociais, das tecnologias (da biotecnologia), do processo político,
da cultura e da arte, do emprego e do processo de trabalho, do desenvolvimento científico, enfim, de
todas as disciplinas que concorrem para que o desenvolvimento se faça em sua totalidade? (FARIA,
2015, p. 13).

Mas essa questão também precisa considerar outra: como considerar o desenvolvimento como um
processo sustentável? Talvez seja preciso ousar em uma proposta que possa dar conta do desenvolvimento
socioeconômico sustentável.
Nesse sentido, quais questões precisam ser consideradas em uma política de desenvolvimento
socioeconômico sustentável? Vamos apontar três delas.

Redistribuição igualitária da riqueza produzida


Essa questão envolve, de acordo com Fraser (2008b),

a redistribuição dos rendimentos, a reorganização da divisão do trabalho, subordinação dos


investimentos a um processo democrático de tomada de decisão e transformação das estruturas básicas
da economia. Tais questões, naturalmente, se referem à construção de um projeto de transformação

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que permita acentuar as contradições da sociedade. Isso poderia envolver a revalorização ascendente de
identidades desrespeitadas e os produtos culturais de grupos excluídos.
[...]
Também poderia envolver reconhecimento e valorização positiva da diversidade cultural. Mais
radicalmente ainda, poderia envolver a total comunicação, de forma que se alteraria a percepção
coletiva que todos têm de si mesmos. Assim, toda medida que repara uma perda redistributiva ou
que restabelece uma relação econômica pressupõe uma concepção subjacente de reconhecimento
social. É neste sentido que as reivindicações pela redistribuição muitas vezes reclamam a abolição
de arranjos econômicos que sustentam a especificidade de determinados grupos sociais. (FARIA,
2015, p. 20-21).

Distribuição da riqueza produzida pela sociedade não é distribuição de renda. Assim, por
exemplo, se uma Prefeitura utiliza os recursos da arrecadação tributária, que resultam do trabalho de
toda a população, para beneficiar prioritariamente áreas ou bairros mais carentes, com escola, postos
de saúde, rede de esgoto, saneamento básico, transporte e mobilidade urbana, postos de atendimento a
demandas sociais e administrativas, ela estará adotando um programa de distribuição de riqueza.

Reconhecimento social
De acordo com Faria, esse tema

é resgatado na discussão contemporânea devido à emergência dos movimentos sociais que ultrapassam
a tradicional divisão de classes contemplando questões como gênero, preconceito, desemprego,
direitos sociais urbanos, educação, saúde pública, segurança, moradia, infraestrutura urbana e rural,
sustentabilidade ambiental, entre muitos outros. A centralidade das lutas sociais estabelece uma nova
agenda de enfrentamentos. Não se pode deixar de observar que as mudanças estruturais e normativas
somente podem ocorrer pela ação coletivamente organizada dos membros dos grupos sociais. [...] é
apenas com o assentimento do coletivo, solidamente suposto, que o sujeito coletivo pode estabelecer
uma relação de pertença que viabilize e legitime as transformações. Os sujeitos coletivos que lutam
por mudanças nas regras precisam, antes, reconhecê-las como tais, bem como suas motivações, os
interesses que expressam, os acordos e as articulações que as viabilizaram. A luta pelo reconhecimento,
na perspectiva de Fraser (2008) tornou-se rapidamente a forma paradigmática do conflito político do
Século XX. (2015, p. 21).

A luta pelo reconhecimento, no entanto,

ocorre em um mundo de exacerbada desigualdade material o que significa que o desafio do processo de
desenvolvimento socioeconômico sustentável requer o entendimento de que a justiça deve contemplar
a articulação entre redistribuição econômica, reconhecimento social e representação política. Para
Fraser, portanto, uma política de desenvolvimento que falhe no que diz respeito aos direitos humanos,
por exemplo, é inaceitável mesmo que a mesma promova uma igualdade social. (FARIA, 2015, p. 21).

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Representação paritária
É necessário, de pronto, estabelecer algumas condições do que se entende por representação
paritária:

Tal representação necessita valorizar a participação coletiva dos membros dos grupos sociais no
processo decisório, enfatizando a partilha das responsabilidades em todas as instâncias ou fases do
processo. A representação paritária tem como pressuposto básico o estabelecimento de relações
de igualdade na medida em que expande e estimula a difusão do conhecimento, além de destruir
a estrutura social verticalmente hierarquizada, de forma que todos se tornem conscientes de suas
responsabilidades para com o sucesso do processo de desenvolvimento. A supressão da estrutura
hierárquica preconiza o desenvolvimento de habilidades criativas nos sujeitos, além de habilitá-los
a tomar suas próprias decisões eliminando estruturas piramidais impostas.
[...]
Tal objetivo não implica a instalação do caos. Pelo contrário, diz respeito muito mais a uma rede de
relações baseada no desejo de cada sujeito, individual ou coletivo, fazer da organização um produto
da discussão, das decisões e do controle do conjunto de seus membros.
[...]
Supressão da hierarquia, colaboração/cooperação entre setores de produção econômica e social,
participação direta e efetiva, democratização das decisões, defesa de interesses sociais comuns e
compartilhados, colaboração no planejamento e na execução dos projetos sociais, partilha das
responsabilidades em todas as instâncias, preservação e valorização do trabalho coletivo, todas estas
questões, entre outras, caracterizam a representação paritária dos sujeitos nas esferas de decisão.
[...]
A participação paritária dos sujeitos nas decisões coletivas deve considerar o grau de controle que
os sujeitos possuem sobre quaisquer decisões em particular, as questões sobre as quais estas decisões
são tomadas e o nível político no qual as questões objetos de tais decisões são definidas. Neste
sentido, o acesso e o domínio das informações relevantes para que o processo de decisão paritária
possa se efetivar é uma condição elementar para que a participação seja qualificada. (FARIA, 2015,
p. 23-24).

Assim, é necessário que “não apenas o acesso à informação seja disponibilizado, mas que esta
informação esteja disponibilizada de modo a conceder condições mínimas para que os sujeitos possam
se apropriar dela”. (VARGAS DE FARIA, 2003, p. 87).
Para Fraser,

o significado mais geral de justiça é a paridade de participação. De acordo com esta interpretação
democrática radical do princípio de igual valor moral, a justiça requer acordos sociais que permitam
a todos participar como pares na vida social. Superar a injustiça significa desmantelar os obstáculos
institucionalizados que impedem a alguns participar em igualdade com outros, como sócios com
pleno direito na interação social. (2008a, p. 39).

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Por fim, Fraser indica que “existem três princípios disponíveis para a avaliação das demarcações
políticas, no que se refere a ‘quem’ deve ser incluído na representação paritária”. (2008a, p. 124-129).
São eles:

a) Princípio da condição de membro: propõe resolver as discussões sobre ‘quem’ apelando para
critérios de pertencimento político (cidadania, nacionalidade compartida, projetos comuns);
b) Princípio do humanismo: propõe resolver disputas relativas a ‘quem’ apelando a critérios que
remetem ao ser humano, enquanto sujeitos que possuem em comum as características distintivas
da humanidade (autonomia, racionalidade, linguagem, capacidade de aprender, sensibilidade,
condições de distinção da boa e má moral);
c) Princípio de todos os afetados: propõe resolver as disputas sobre ‘quem’ apelando às relações sociais
de interdependência, de forma que os sujeitos se submetam à justiça devido às coimbricações em
uma rede de relações causais. Este princípio tem o mérito de elaborar uma verificação crítica sobre
a qualidade dos membros das coletividades tendo em vista as relações sociais. (FRASER, 2008a,
p. 124-129).

Uma vez indicadas as três questões fundamentais de uma política de desenvolvimento


socioeconômico sustentável, é preciso, agora, esclarecer o que se entende por sustentabilidade.

SUSTENTABILIDADE
O conceito de sustentabilidade, conforme exposto por Faria (2014), tem origem em 1987,
quando a então presidente da Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, Gro
Harlem Brundtland, apresentou para a Assembleia Geral das Organização das Nações Unidas (ONU)
o documento Nosso Futuro Comum, que ficou conhecido como Relatório Brundtland. (ONU,
2007). Nesse relatório, o desenvolvimento sustentável foi conceituado como algo que “atende às
necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem as suas
próprias necessidades”. (ONU, 2007, n.d.). Esse conceito deu origem a outro, o de sustainability, que é
“uma ação em que a elaboração de um produto ou desenvolvimento de um processo não compromete
a existência de suas fontes, garantindo a reprodução de seus meios”. (ONU, 2007, n.d.).
Como consequência, de acordo com Santana logo se propôs o conceito de desenvolvimento
sustentável enquanto um “processo de gerar riqueza e bem-estar, ao mesmo tempo em que promove a
coesão social e impede a destruição do meio ambiente”. (2008, p. 28). A sustentabilidade passou a ser
então adjetivada e conceituada de acordo com paradigmas, modelos e critérios.
Para Almeida, esse paradigma tripolar “refere-se diretamente à integração entre a economia, o
ambiente e a sociedade, conduzida e praticada em conjunto por três grupos: empresários, governo
e sociedade civil organizada”. (2002, p. 37). Enquanto ‘modelo colaborador-comunidade’, esse
paradigma indicaria que a preocupação central das empresas deveria ir além da produção e geração de
dividendos. Para Faria, além disso deveria haver, por parte das empresas,

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maior envolvimento com questões que proporcionam o bem-estar dos seus empregados, associadas à
preocupação com a comunidade da qual fazem parte estes mesmos empregados [...], entre o modelo e
sua prática, há uma distância equivalente à que separa a intenção do gesto. (2014, p. 13).

Para Kraemer,

enquanto critério da responsabilidade social este paradigma remete à busca do desenvolvimento


sustentável em que três critérios fundamentais devem ser obedecidos ao mesmo tempo: equidade
social, prudência ecológica e eficiência econômica. (2005, p. 5).

Na mesma linha, Hart e Milstein listaram os elementos motivadores da sustentabilidade, a saber:

I) Crescente industrialização e suas consequências, como o consumo da matéria-prima, poluição


e geração de resíduos, sem perder de vista que o cuidado com essas questões seria crucial para o
desenvolvimento sustentável;
II) Proliferação e interligação dos grupos de interesse que fazem com que as empresas funcionem de
maneira responsável e transparente, objetivando a formação de uma base de partes interessadas
na atividade da empresa (acionistas, funcionários, comunidades, ONGs, consumidores,
fornecedores, concorrentes e Governo) bem informada e ativa;
III) Tecnologias emergentes, que ofereceriam soluções inovadoras e poderiam tornar obsoletas as
bases das indústrias que usassem energia e matéria-prima de forma intensiva;
IV) Aumento da população, da pobreza e da desigualdade social, que estaria acarretando como
consequência a decadência social. (2003, p. 61).

O argumento dos elementos motivadores, ainda de acordo com Faria (2014), teria por base quatro
princípios expostos pela ONU:

I) Princípio precatório: possibilidade de prejuízos sérios à saúde dos seres vivos e a ausência de
certeza científica não deve adiar medidas preventivas;
II) Princípio preventivo: riscos e danos ambientais devem ser evitados o máximo possível e avaliados
previamente, com o objetivo de escolher a solução adotada;
III) Princípio compensatório: compensações para vítimas da poluição e outros danos ambientais
devem estar previstas na legislação;
IV) Princípio do poluidor pagador: os custos da reparação ambiental e das medidas compensatórias
devem ser arcados pelas partes responsáveis. (FARIA, 2014 apud ONU, 2007)

O conceito de sustentabilidade, tradicionalmente, apresenta diferentes abordagens, conforme


exposto por Faria:

I) Concepção Tradicional Clássica: a pressão da concorrência, do crescimento econômico e da


prosperidade leva automaticamente ao uso racional dos recursos naturais, ao progresso tecnológico
e a novas necessidades de consumo compatíveis com as exigências do meio ambiente. O mercado
é o melhor mecanismo para garantir a satisfação dos desejos individuais, inclusive dos desejos

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ambientais. (DRYZEK, 1992). À medida que os consumidores manifestem sua consciência


ecológica nas decisões de compra, o mercado responde a esta demanda com a oferta crescente de
produtos e serviços ecológicos .(MASON, 1999);
II) Concepção Tradicional Moderna: defende a internalização dos custos ambientais (os quais
costumam ser avaliados e calculados de forma monetária) (MUNASINGHE, 2002) através da
introdução de sistemas de estímulo de mercado, geralmente com o auxílio de impostos e taxas
ambientais ou do comércio de títulos de poluição;
III) Concepção Tradicional Ecológico-tecnocrata: defende a concepção da sustentabilidade planejada.
Esta abordagem parte da ideia de que a superação dos problemas ambientais é perseguida por
meios gerenciais, em uma perspectiva tecnocrática, geralmente baseada no centralismo do processo
decisório, confiando na capacidade técnica do planejador. A intervenção do Governo é considerada
indispensável para reduzir ou evitar os efeitos nocivos dos processos de crescimento econômico, ou
ainda para poder eliminar ou reparar distúrbios e danos já existentes. (FREY, 2001);
IV) Concepção Tradicional Biocêntrica e do Ambientalismo Radical: apresenta uma pretensão
holística, do tipo universalista-integrativa, em que todas as políticas e atividades sociais devem
ser subordinadas às exigências da sustentabilidade da natureza;
V) Concepção Tradicional da Política de Participação Popular: a participação é parte fundamental
da política ambiental, indispensável para uma mudança substancial no atual quadro de políticas
públicas. O planejamento deve ser compreendido não apenas como orientado pelas necessidades
da população, mas também como conduzido por ela. (2014, p. 6-7).

Ainda segundo Faria,

as duas primeiras decorrem da concepção econômico-liberal de mercado. A abordagem do


ambientalismo radical rejeita o consumismo prevalecente nas sociedades modernas visando permitir
a inclusão dos objetivos da satisfação das necessidades econômicas básicas da população e da justiça
social, especialmente no que diz respeito aos países em desenvolvimento. (NAESS, 1995). Em oposição
às abordagens ecocêntricas, a abordagem política de participação democrática ou popular parte do
pressuposto de que o homem e a sociedade devem estar no centro de atenção e de reflexão, daí porque se
considera que esta é uma ‘abordagem sociológica do desenvolvimento sustentável’. (CERNEA, 1994).
A teoria tradicional também tem seu viés crítico. A concepção mais representativa deste viés crítico da
teoria tradicional pode ser encontrada, por exemplo, nas formulações da Agenda 21. (2014, p. 8).

Segundo a concepção da Agenda 21 (1992),

o Desenvolvimento Sustentável deveria ser um modelo econômico, político, social, cultural


e ambiental equilibrado, que satisfizesse as necessidades das gerações atuais, sem comprometer a
capacidade das gerações futuras de satisfazer suas próprias necessidades. Esta concepção se oporia ao
‘estilo de desenvolvimento adotado’, que na avaliação da Agenda 21 é ecologicamente predatório na
utilização dos recursos naturais, socialmente perverso com geração de pobreza e extrema desigualdade
social, politicamente injusto com concentração e abuso de poder, culturalmente alienado em relação
aos seus próprios valores e eticamente censurável no respeito aos direitos humanos e aos das demais
espécies. (FARIA, 2014, p. 10).

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261

Dessa forma, segundo a Agenda 21 (1992), o conceito de sustentabilidade comportaria sete


aspectos principais, assim resumidos por Faria:

I) Dimensão Social: melhoria da qualidade de vida da população, equidade na distribuição de


renda e diminuição das diferenças sociais, com participação e organização popular;
II) Dimensão Econômica: organizações públicas e privadas, regularização do fluxo desses
investimentos, compatibilidade entre padrões de produção e consumo, equilíbrio de balanço de
pagamento, acesso à ciência e tecnologia;
III) Dimensão Ecológica: o uso dos recursos naturais deve minimizar danos aos sistemas de
sustentação da vida: redução dos resíduos tóxicos e da poluição, reciclagem de materiais
e energia, conservação, tecnologias limpas e de maior eficiência e regras para uma adequada
proteção ambiental;
IV) Dimensão Cultural: respeito aos diferentes valores entre os povos e incentivo a processos de
mudança que acolham as especificidades locais;
V) Dimensão Espacial: equilíbrio entre o rural e o urbano, equilíbrio de migrações, desconcentração
das metrópoles, adoção de práticas agrícolas mais inteligentes e não agressivas à saúde e ao
ambiente, manejo sustentável das florestas e industrialização descentralizada;
VI) Dimensão Política: no caso do Brasil, a evolução da democracia representativa para sistemas
descentralizados e participativos, construção de espaços públicos comunitários, maior autonomia
dos governos locais e descentralização da gestão de recursos;
VII) Dimensão Ambiental: conservação geográfica, do clima e todos os recursos naturais, equilíbrio
de ecossistemas, erradicação da pobreza e da exclusão, respeito aos direitos humanos e integração
social. Abarca todas as dimensões anteriores através de processos complexos. (2014, p. 10).

A ONU E OS OBJETIVOS DE DESENVOLVIMENTO


SUSTENTÁVEL (ODS)
De acordo com os documentos veiculados pela Organização das Nações Unidas (ONU) aqui
transcritos, em setembro de 2015

chefes de Estado, de Governo e altos representantes da Organização das Nações Unidas reuniram-se
em Nova York e adotaram a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, a qual inclui os Obje-
tivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). A nova Agenda de desenvolvimento propõe uma ação
mundial coordenada entre os governos, as empresas, a academia e a sociedade civil para alcançar os 17
ODS e suas 169 metas, de forma a erradicar a pobreza e promover vida digna para todos, dentro dos
limites do planeta. (ONU, 2015).

Os ODS representam uma nova formatação dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio


(ODM). Ao oferecer uma melhor compreensão sobre estes, o Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento reafirma que o desenvolvimento sustentável só será alcançado mediante o
envolvimento, o compromisso e a ação de todos.

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Segundo documento da ONU exposto na Agenda 20301:

Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e 169 metas (UNITED NATIONS, 2018)


trazidos pela Agenda 2030 demonstram a escala e a ambição desta nova Agenda Universal. Eles se
constroem sobre o legado dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e concluirão o que estes não
conseguiram alcançar. Eles buscam concretizar os direitos humanos de todos e alcançar a igualdade de
gênero e o empoderamento das mulheres e meninas. Eles são integrados e indivisíveis, e equilibram
as três dimensões do desenvolvimento sustentável: a econômica, a social e a ambiental. (ONUBR,
2015, n.p.).

As 169 metas definidas para alcance dos ODS, entre hoje e 2030, buscam acabar com a pobreza e
a fome em todo o mundo; combater as desigualdades em todos os países; construir sociedades pacíficas,
justas e inclusivas e fortalecer as instituições; promover a igualdade de gênero, os direitos humanos
e o empoderamento de mulheres e meninas; garantir a sobrevivência dos ecossistemas; estimular o
crescimento econômico sustentável com trabalho decente para todos e redução das desigualdades
sociais, enfim, promover o desenvolvimento sustentável do planeta.
Segundo a United Nations (2018), a estimativa é que a população global seja de 9,6 bilhões de
pessoas em 2050 e, a considerar esse ritmo de produção e consumo, precisaríamos do equivalente a três
planetas para prover os mesmos níveis, pois nos dias atuais o mundo não apresenta um desenvolvimento
sustentável e também não caminha nessa direção.
Vários segmentos e setores apresentam sintomas de sobre-exploração e gestão deficitária. Os índices
de pobreza, por exemplo, ainda eram extremante altos em 2016. Nos países menos desenvolvidos,
cerca de 38% da população vive abaixo da linha de pobreza (U$ 1,90/pessoa/dia), comparativamente
a índices inferiores a 10% nos países desenvolvidos e em desenvolvimento. No total, são mais de
2,2 bilhões de pessoas no mundo que vivem com menos de U$ 2 por dia. Isso tem reflexo direto
em questões como fome e desnutrição. Globalmente, uma em cada nove pessoas são consideradas
desnutridas, o que representa mais de 800 milhões de indivíduos. A desnutrição também é a principal
causa-morte de crianças menores de 5 anos (45%).
Se por um lado a fome é um grande problema, a produção de alimentos em suficiência também
o é. Segundo a Unesco (2015), a produção mundial de alimentos precisa aumentar 60% até 2050
para atender toda a população, sendo que nos países em desenvolvimento esse aumento precisa ser da
ordem de 100%. Como alcançar esses números é outro grande dilema. Além disso, a cada ano 1/3 de
toda produção de alimentos é perdida, seja pelo mau aproveitamento, seja por problemas nos processos
produtivo e de transporte. Políticas e programas de incentivo à manutenção dos produtores no campo
e de incremento de produtividade são fundamentais e urgentes.
A Figura 1 apresenta resumidamente os 17 ODS propostos pela Agenda 2030 da ONU.

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263

Figura 1 – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS.

Fonte – PNUD, 2015.

As desigualdades sociais e de renda são inerentes à maioria das sociedades. Existem grandes
disparidades de riqueza, oportunidade e poder. As crianças nascidas entre os 20% mais pobres
da população tem três vezes mais chance de morrer até o quinto ano de vida que o quintil mais
rico. O desemprego, principalmente entre jovens e idosos, também é uma grande preocupação. O
desemprego global aumentou nos últimos anos, passando de 170 milhões de pessoas em 2007 para
mais de 200 milhões em 2012, dos quais 75 milhões são jovens. Estima-se que cerca de 470 milhões de
novos postos de trabalho serão necessários até 2030 para suprir a necessidade dos novos trabalhadores,
o que é algo extremamente desafiador.
Ameaças à vida das pessoas, como desastres naturais frequentes e intensos, terrorismo, conflitos
e guerras, deslocamento forçado de pessoas; epidemias e doenças virais em escala também oferecem
grande risco à população mundial. Ainda hoje seis milhões de crianças menores de 5 anos morrem por
ano no mundo, a maioria delas nascidas em bolsões de pobreza, com baixo índice educacional ou áreas
de risco. A mortalidade materna também é significativa, muito embora o percentual tenha se reduzido
bastante nos últimos anos. O número de mães que morrem no parto (boa parte delas jovens) em países
não desenvolvidos é 14 vezes superior ao de regiões desenvolvidas. Quanto às doenças, Aids, malária
e tuberculose ainda são consideradas as mais preocupantes, sendo a primeira a principal causa-morte
em mulheres com idade reprodutiva. Em 2013 estimava-se que 35 milhões de pessoas conviviam com
HIV, das quais 240 mil eram crianças. (UNITED NATIONS, 2018).
O esgotamento dos recursos naturais e os impactos adversos da degradação ambiental, incluindo
desertificação, secas, enchentes, degradação de solos, poluição aquática e redução de biodiversidade
ampliam a lista de desafios que a humanidade enfrenta. As perdas econômicas decorrentes de desastres
naturais variam entre U$ 250 bilhões e U$ 300 bilhões por ano. As mudanças climáticas são, sem
dúvida, um dos maiores desafios dos dias atuais, com impactos severos nos mais variados segmentos,
comprometendo o desenvolvimento sustentável.

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264

Dentre os efeitos decorrentes das mudanças climáticas, cabe destacar: a falta de água para mais
de 20% da população mundial; a elevação do nível dos mares e oceanos e a acidificação; a diminuição
da proporção dias/noites frias e o aumento da relação dias/noites quentes em escala global; a grande
possibilidade de o aquecimento global ter relação com o aumento da ocorrência de ciclones tropicais
e também de marés extremas; o aumento, em algumas regiões, dos índices de mortalidade humana
devido ao calor e a diminuição dos índices relacionados ao frio; o aumento da magnitude e do número
de inundações e enchentes; a ocorrência de eventos de chuva e estiagem mais extremos; a queda na
produção de alimentos em várias regiões do mundo; o derretimento de várias geleiras e a destruição
de biota marinha; a intensificação dos processos de desertificação; o aumento de espécies em processo
de extinção e que já foram extintas; e até mesmo a associação com o aumento de doenças infecciosas.
Ainda em relação à água, hoje mais de 750 milhões de pessoas não têm acesso à água de qualidade,
e em 2050 haverá aumento da demanda hídrica em 55%, devido à crescente demanda do setor
industrial, dos sistemas de geração de energia termoelétrica e dos usuários domésticos. Hoje, três em
cada quatro empregos no mundo são forte ou moderadamente dependentes de água. (UNESCO,
2016; UNESCO, 2015).
Esses são alguns dos problemas relacionados às mudanças climáticas que têm afetado muito
as vidas na cidade e campo, especialmente nas regiões costeiras e em países menos desenvolvidos e
insulares. A sobrevivência da população de muitas cidades está em risco.
Os problemas supracitados são apenas alguns dos desafios que a humanidade enfrenta e enfrentará
na busca pela sustentabilidade do desenvolvimento. Não há mais dúvida em relação aos impactos já
diagnosticados, como também não há incerteza de que as medidas precisam ser aplicadas imediatamente.
As metas apresentadas pela Agenda 2030, bem como o monitoramento por meio dos respectivos
indicadores, devem nortear esse processo, o que de forma alguma inviabiliza a implementação de
outras ações, é preciso agir já.
Os objetivos de desenvolvimento sustentável são integrados e procuram atender, de forma
equilibrada, os três pilares da sustentabilidade (triple bottom line): a dimensão econômica, a dimensão
social e a dimensão ambiental. Há grande transversalidade entre causas e consequências desses objetivos
e ações preconizadas. Existem fatores causadores com múltiplas implicações que, não raras vezes,
permeiam várias metas e objetivos, como a distribuição de renda, o acesso a recursos, o mercado de
trabalho, as políticas governamentais, os hábitos culturais, entre vários outros.
O Quadro 2 sumariza os 17 ODS, seus objetivos e os principais fatores causadores associados,
porém, é importante destacar o efeito da consequência indireta (quando não direta) de fatores ora não
apontados em relação a certo objetivo. A sumarização busca indicar apenas os principais aspectos de
cada ODS, apontando que certamente há interação sobremaneira entre estes, tanto em causas quanto
em consequências.

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265

Quadro 2 – Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e as principais causas e


problemas associados.

ODS / ÁREA OBJETIVO-BASE PRINCIPAIS FATORES CAUSAIS ASSOCIADOS


TEMATICA

1. E rradicação Acabar com a pobreza Mercado de trabalho insuficiente.


da pobreza em todas as suas for- Exclusão social.
mas, em todos os lu- Acesso à educação.
gares. Acesso à saúde, a serviços e ao bem-estar.
Distribuição de riqueza e baixa renda.
Políticas e programas inadequados.
Necessidade de abandono de lar devido a zonas de conflito.

2. Segurança ali- Acabar com a fome, al- Políticas e programas inadequados e insuficientes para a produção de alimentos.
mentar e agri- cançar a segurança ali- Infraestrutura de transporte e energia precárias ou inadequadas.
cultura mentar e a melhoria da Recursos e proteção insuficientes ao produtor.
nutrição e promover a Falta de proteção ao meio ambiente.
agricultura sustentável. Ineficiência em garantir alimentação a todos – subnutrição.
Desigualdade na distribuição de renda.
Mercado de trabalho insuficiente.

3. Saúde Assegurar uma vida Mortalidade infantil e materna ainda elevadas.


saudável e promover o Saúde sexual e reprodutiva.
bem-estar para todos, Doenças virais.
em todas as idades. Déficit em aleitamento materno.
Vícios relacionados a drogas, tabaco e álcool.
Altos índices de acidentes de trânsito.

4. Educação Assegurar a educação Existência de crianças fora da escola.


inclusiva e equitativa Necessidade de abandono da escola devido a zonas de conflito.
de qualidade e promo- Infância inadequada.
ver oportunidades de Elevado número de analfabetos.
aprendizagem ao longo Políticas e programas inadequados e insuficientes.
da vida para todos. Falta de recursos para investimento em infraestrutura.
Falta de recursos para financiamento de estudos a estudantes.

5. Igualdade de Alcançar a igualdade Inequidade econômica, salarial e funcional.


gênero de gênero e empoderar Falta de empoderamento político e maior representatividade.
todas as mulheres e me- Racismo e discriminação.
ninas. Violência e feminicídio.
Falta de melhores programas de saúde dirigidos às mulheres.

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ODS / ÁREA OBJETIVO-BASE PRINCIPAIS FATORES CAUSAIS ASSOCIADOS


TEMATICA

6. Água e sanea- Assegurar a disponibi- Qualidade e quantidade de água inadequados.


mento lidade e a gestão sus- Poluição química e orgânica.
tentável da água e do Perdas de água no processo de produção e transporte.
saneamento para todos. Tratamento de esgoto inadequado.
Governança e integração deficitários.
Carência de regulação de uso.
Dificuldades com controle, fiscalização e punição.
Falta de conscientização para a preservação do meio e uso consciente urbano,
industrial e agrícola.
Serviços de saneamento básico inadequados ou insuficientes.
Crescimento e ocupação desordenados.
Baixo investimento em inovação e educação e políticas públicas inadequadas.
Falta de recursos para investimento em infraestrutura.

7. Energias Assegurar o acesso Elevadíssimas taxas de queima de combustíveis fósseis.


confiável, sustentável, Infraestrutura de energia ainda não garante acesso a todos.
moderno e a preço Falta de investimento para a universalização.
acessível à energia para Falta de recursos para investimento em energias limpas.
todos. Carência de linhas de financiamento específicas.
Políticas e programas para energias limpas insuficientes para promover
a devida expansão.
Política de comunicação e informação deficitária.
Setor responsável pelas maiores emissões globais de gases de efeito estufa.

8. Emprego e Promover o crescimen- Mercado de trabalho insuficiente.


crescimento to econômico sustenta- Remuneração de trabalho inadequada.
do, inclusivo e susten- Dificuldade de acesso ao primeiro emprego.
tável, o emprego pleno Políticas e programas socioeconômicos inadequados e insuficientes.
e produtivo e trabalho Problemas com trabalho não descente.
decente para todos. Carência de linhas de financiamento.
Falta de maior estímulo e incentivo às empresas e ao empreendedorismo.
Infraestrutura atual inadequada e insuficiente.
Eficiência produtiva não elevada.
Poucos programas de qualificação profissional e autodesenvolvimento.
Excesso de burocratização.
Corrupção.

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267

ODS / ÁREA OBJETIVO-BASE PRINCIPAIS FATORES CAUSAIS ASSOCIADOS


TEMATICA

9. Infraestrutu- Construir infraestrutu- Infraestrutura atual inadequada e insuficiente.


ra, indústria e ras resilientes, promo- Falta de energia em tempo integral e saneamento a muitas pessoas.
inovação ver a industrialização Serviços de telefonia, habitação, transporte, saúde e segurança problemáticos
inclusiva e sustentável em vários locais.
e fomentar a inovação. Carência de linhas de financiamento específicas.
Falta de recursos para investimento e manutenção.
Baixo valor agregado à maioria dos produtos de países não desenvolvidos.
Pouco estímulo às pequenas e médias empresas.
Interferência política.
Reduzida aplicação de princípios de sustentabilidade por empresas e cidadãos.
Políticas e programas inadequados.
Falta de compreensão da relevância da ciência, da tecnologia e da inovação.
Falta de integração e cooperação entre os setores.
Baixo estímulo à qualificação profissional e ao autodesenvolvimento.

10. Redução das Reduzir a desigualdade Falta de acesso a serviços básicos.


desigualda- dentro dos países e en- Disparidade na distribuição de renda.
des tre eles. Mercado de trabalho insuficiente.
Racismo e discriminação.
Políticas e programas inadequados.
Intolerância religiosa.
Acesso à educação.

11. Cidades sus- Tornar as cidades e os Êxodo rural, logo altas densidades populacionais pontuais.
tentáveis assentamentos huma- Falta de planejamento urbano adequado.
nos inclusivos, seguros, Infraestrutura atual que não atende serviços básicos.
resilientes e sustentá- Habitação, transporte, saúde e segurança inadequados.
veis. Alto padrão de consumo e geração de poluição.
Elevada pressão sobre o ecossistema.
Não efetividade de políticas e programas.
Insuficiência de recursos e investimentos em infraestrutura.

12. Padrões sus- Assegurar padrões de Alto padrão de consumo e geração de poluição.
tentáveis de produção e de consu- Elevadas perdas da colheita ao armazenamento.
produção e mo sustentáveis. Falta de recursos para investimento em energias limpas.
consumo Políticas e programas para energias limpas insuficientes para promover a devida
expansão.
Uso da energia e de recursos naturais ineficiente.
Informação e educação sobre problemas decorrentes do uso não sustentável
que não alcança todos.
Falta de integração entre os atores envolvidos – produtores, consumidores, to-
madores de decisão, academia, comércio, comunicação, políticas e governo.

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ODS / ÁREA OBJETIVO-BASE PRINCIPAIS FATORES CAUSAIS ASSOCIADOS


TEMATICA

13. Proteção do Tomar medidas ur- Elevados índices de emissão de gases de efeito estufa e intensificação do fenô-
clima gentes para combater meno.
a mudança do clima e Elevadíssimas taxas de queima de combustíveis fósseis.
seus impactos. Remoção de florestas e conversão para outros usos.
Alto padrão de consumo e geração de poluição.
Falta de adaptação e entendimento das mudanças climáticas.
Escassez e excesso de água que afetam todo o ciclo produtivo e as pessoas (cus-
tos, transportes, preços, inflação, economia).
As atividades são sempre influenciadas por fatores de clima, e estes são cíclicos:
ora estiagem, ora chuva intensa. ora frio, ora calor excessivo....
Falta de informações preditivas e pesquisa para minimizar riscos nas atividades
e prevenir certos desastres.
Falta de efetividade na atuação de órgãos de governo.

14. Proteção dos Conservação e uso sus- Aumento da acidificação.


oceanos tentável dos oceanos, Poluição química e orgânica.
dos mares e dos recur- Disposição de resíduos sólidos.
sos marinhos para o Aumento do nível dos mares.
desenvolvimento sus- Sobrepesca e sobreuso.
tentável Urbanização desordenada.
Controle e fiscalização insuficientes e ineficazes.
Falta de monitoramento, ações de prevenção, contingência e mitigação.
Falta de integração e cooperação entre os setores.
Políticas e programas de proteção e uso inadequados.
Falta de conscientização para a preservação do meio.
Falta de recursos para gestão.

15. Uso susten- Proteger, recuperar e Elevada pressão sobre florestas, bacias hidrográficas, águas subterrâneas, solos,
tável dos promover o uso susten- biodiversidade e clima.
ecossistemas tável dos ecossistemas Falta de planejamento e de uso racional dos recursos.
terrestres terrestres e das flores- Alta pressão econômica sobre os meios de produção.
tas, combater a deserti- Alto padrão de consumo e geração de poluição.
ficação, deter e reverter Informação e educação sobre problemas decorrentes do uso não sustentável
a degradação da terra e que não alcança a todos.
deter a perda de biodi- Distribuição de renda desigual, com elevados índices de pobreza.
versidade.

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ODS / ÁREA OBJETIVO-BASE PRINCIPAIS FATORES CAUSAIS ASSOCIADOS


TEMATICA

16. Paz, justiça, Promover sociedades Falta de combate à corrupção, ao suborno e à evasão de divisas.
inclusão so- pacíficas e inclusivas, Falta de combate às injustiças sociais.
cial e empo- proporcionar o acesso
Falta de participação de todos os atores com responsabilidade e comprometi-
deramento à justiça para todos e
institucional construir instituições mento.
eficazes, responsáveis e Falta de vigilância e monitoramento.
inclusivas em todos os Políticas e legislação ineficientes e pouco rigorosas.
níveis. Programas de governo inadequados e insuficientes.
Pouca solidariedade.
Renda e trabalho insuficientes.
Intolerância religiosa, racismo e discriminação.
Pouco acesso à educação e a serviços básicos.

17. Pa r c e r i a s , Fortalecer os meios de Modelos de governança ineficazes em vários locais.


governança implementação e revi- Falta de integração entre os atores envolvidos – setor privado, sociedade e go-
e meios de talizar a parceria global
verno.
implemen- para o desenvolvimen-
tação to sustentável. Dificuldade para desenvolver e implementar políticas.
Falta de análise crítica de metas e resultados para aprimoramento.
Carência de mais comprometimento institucional e de pessoas.
Recursos insuficientes para a promoção de parcerias.

Fonte – Adaptado de United Nations, 2018; ONUBR, 2017; ONUBR, 2018.

IMPLEMENTAÇÃO DE AÇÕES PARA ALCANCE DOS


ODS – COMO FAZER
Transformar o mundo atual é a linha de base da Agenda 2030 para o alcance das metas de
desenvolvimento sustentável das Nações Unidas. Todo país deve contribuir para o alcance dos ODS e, por
conseguinte, do desenvolvimento sustentável em seus pilares integrados econômico, social e ambiental.
O Brasil sediou a primeira conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (chamada
Rio 92) e depois a Conferência Rio +20, já em 2012. Nosso país tem participado das discussões
e implementado ações para evolução dos indicadores dos ODS, resultando em avanços em várias
áreas, contudo os resultados obtidos ainda não são satisfatórios. É necessário a intervenção de todos –
sociedade civil organizada, empresas, autarquias, academia, governo e cidadãos – para o cumprimento
das metas. Não basta vontade e demonstração de interesse, é preciso unir esforços para efetivar ações e
monitorá-las de modo a garantir constante evolução.

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Atualmente, estão em andamento em todas as partes do mundo diversas ações para alcançar os
17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Uma série de desafios e oportunidades têm surgido
regionalmente, possibilitando alcançar as comunidades menos desenvolvidas. De toda forma, para que
haja sucesso nas ações locais é necessário a priorização por parte dos gestores locais. Todos os ODS têm
metas diretamente relacionadas às responsabilidades dos governos locais e regionais. A máxima ‘pensar
globalmente e agir localmente’ se faz valer nesse caso. E, também, promover esforços para manutenção
e monitoramento desses locais, para que sejam abastecidos nas bases de dados, e assim permitam avaliar
a eficácia das medidas tomadas e o planejamento futuro.
Os desafios de implementação muitas vezes refletem as falhas de coordenação entre diferentes
atores, países, sociedades e setor privado. Particularmente, quando nações colocam os próprios interesses
à frente de outros, como por meio de políticas comerciais protecionistas, acabam por favorecer os
locais, mas prejudicam os de fora, o que acaba comprometendo o andamento do todo.
As metas acordadas globalmente precisam refletir objetivos de contexto local, da mesma que
as metas locais precisam compor os objetivos estratégicos globais, sob risco do não atendimento de
ambos. Além disso, as crises financeiras e seus efeitos globalizados também dificultam os avanços.
A maioria das economias do mundo continua a sofrer com dívidas e déficits elevados, mercado de
trabalho fraco e produtividade em declínio, o que acaba elevando os índices de pobreza e baixa renda.
Não se pode negligenciar também a ascensão do terrorismo. Ainda que o Brasil não seja
diretamente afligido por esse tipo de problema, é necessário considerar que os países europeus têm
enfrentado situações preocupantes, com vários ataques a civis e migração desordenada de 60 milhões
de refugiados, o maior número global desde a II Guerra Mundial, gerando grande instabilidade política
e social, comprometendo também o cumprimento dos ODS.
O caminho a ser percorrido entre teoria e prática é por vezes tortuoso e difícil, porém, factível.
Algumas iniciativas têm sido desenvolvidas por órgãos de governo, institutos e academias buscando
apoiar cidades e regiões com várias estratégias e ferramentas que podem ser adaptadas às realidades locais
a fim de auxiliar no cumprimento da Agenda 2030. Dentre essas iniciativas, destacam-se as diretrizes
sugeridas pela ONUBR (2016), que discorre sobre mecanismos para aumentar a conscientização e
defender a responsabilidade dos gestores locais junto aos ODS, bem como apoiar a tomada de decisões –
ver Quadro 3. O documento ONUBR (2016) também apresenta uma série de cases de sucesso
conformes com os eixos de atuação que podem ser replicados em várias situações.
É importante destacar também alguns aspectos principais a compor os planos de ação para
implementação dos ODS e aplicação das ações para compor metas pactuadas.
• Educação e conscientização: aspectos de grande relevância que podem ser mais bem trabalhados
nos planos. Os resultados em trabalhos com esse viés sempre são bastante efetivos. Ainda
que não alcançar os ODS afete a vida de todos, o grupo mais afetado é o dos jovens, pela
longevidade. Assim, trazê-los para o enfrentamento e a mobilização é determinante.
• Capacitação e treinamento dos gestores e comunidades locais para se apropriarem dos ODS:
em geral, os povoados e comunidades são os mais adversamente afetados, logo é natural e

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pertinente que sejam capacitados com habilidade, conhecimento, recursos e experiência para
desenvolver as soluções de ODS. Ainda que haja (e deve haver) planos de ação locais para
atender realidades pontuais, é importante reconhecer e saber atuar com a diversidade dentro
e fora do sistema local.
• Troca de experiências de sucesso e insucesso, auxílio ao desenvolvimento e à capacidade de
trabalho, além da sensibilização propriamente dita: colaboração e cooperação integradas e
multidisciplinares são fundamentais para o alcance dos ODS. Ainda que já bastante discutido
anteriormente, cabe novamente apontar que a participação de todos é fundamental; todos
precisam vivenciar e tomar parte dos problemas e soluções.

Quadro 3 – Eixos de atuação para implementação e estímulo dos ODS a nível local e regional.

EIXOS DE GOVERNOS LOCAIS ASSOCIAÇÕES E


ATUAÇÃO E REGIONAIS REDES DE GOVERNO
SENSIBILIZA- Incluir os ODS nas próprias estruturas políticas (mídias, pla- Realizar campanhas nacionais e inter-
ÇÃO taformas, eventos culturais). nacionais para aumentar o compromis-
Conhecer os Realizar campanhas educacionais de comunicação e sensibi- so dos gestores.
ODS localmente lização. Nomear organizações locais e regionais
Nomear ‘embaixadores’ dos ODS para maximizar o alcance idôneas como ‘promotoras’ dos ODS.
e impacto. Apoiar governos locais em suas campa-
nhas de sensibilização.
DEFESA DA Participar da definição de estratégias nacionais dos ODS. Fazer uso de prioridades locais na de-
IDEIA LOCAL Buscar estratégias nacionais que reflitam as necessidades dos finição de estratégias nacionais e arca-
Incluir uma governos locais, das partes interessadas e/ou impactadas e dos bouços institucionais.
perspectiva local cidadãos. Aumentar a representatividade e a par-
nas estratégias Reunir evidências de diferentes partes interessadas e/ou im- ticipação de governos locais e regionais
nacionais dos pactadas para apoiar a defesa de suas ideias. em diálogos nacionais.
ODS Buscar um ambiente favorável no nível nacional e promover
parcerias multiníveis e interinstitucionais para melhor coope-
ração e eficácia.
IMPLEMEN- Estabelecer prioridades relacionadas aos 17 ODS com base Apoiar os governos locais e regionais a
TAÇÃO em contextos locais, necessidades e recursos. otimizar seus recursos humanos, técni-
Os ODS no ní- Identificar necessidades por meio da análise de planos e pro- cos e financeiros.
vel local gramas existentes. Promover a troca de melhores práticas.
Conduzir os trabalhos de forma integrada e interinstitucional – Promover a cooperação descentralizada
promover o senso de apropriação aos ODS. e a cooperação efetiva para o desenvol-
Identificar e construir sinergias com as estratégias nacionais vimento.
para os ODS e de acordo com a governança local e adaptar os Identificar os desafios políticos que têm
existentes, se necessário. impacto nos ODS e fazer recomenda-
ções para a melhoria.

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272

EIXOS DE GOVERNOS LOCAIS ASSOCIAÇÕES E


ATUAÇÃO E REGIONAIS REDES DE GOVERNO
IMPLEMEN- Elaborar um plano de ação e alinhar planos já existentes. Promover a implementação completa
TAÇÃO Identificar as ações e os recursos necessários para implemen- e eficaz de compromissos por meio da
Os ODS no ní- tar as ações e definir prioridades. descentralização.
vel local Criar mecanismos locais e estruturas de governança para Estabelecer relações entre ministérios e
apoiar a implementação dos ODS. governo local para implementação dos
Mobilizar recursos humanos, técnicos e financeiros nacionais ODS.
e internacionais: realocação de recursos próprios, parcerias
com universidades e outras partes interessadas e/ou impacta-
das, busca de canais alternativos de financiamento.
Desenvolver programas de capacitação.

MONITORA- Coletar, acompanhar e analisar os dados locais. Coletar, acompanhar e analisar os da-
ÇÃO Participar do acompanhamento e da avaliação dos ODS no dos nacionais.
Avaliar e apren- nível nacional. Promover a participação dos governos
der com a prá-
Desenvolver um conjunto de indicadores localizados e espe- locais e outras partes interessadas e/ou
tica e publicizar
informações cíficos a seus territórios. impactadas no acompanhamento e na
Promover a participação de outras partes interessadas e/ou avaliação dos ODS no nível nacional.
impactadas e garantir que a informação coletada no nível lo- Apoiar os governos locais na coleta de
cal seja usada para o acompanhamento nacional e disponibi- dados, no monitoramento, na avaliação
lizada a todos. e na publicização das informações.
P R Ó X I M O S Realizar periodicamente análises críticas, manutenção das Sempre manter as ações de sensibiliza-
PASSOS boas ações em andamento e planejamento de novas ações. ção, defesa da ideia, implementação e
Análise crítica e Apoiar o trabalho da Força-Tarefa Global dos ODS e da For- acompanhamento dos ODS no nível
planejamento
ça-Tarefa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sus- local na Agenda, a fim de evitar sobre-
tentável no seu país e região. posições ou lacunas, bem como manter
o trabalho como prioridade.

Fonte – Adaptado de ONUBR, 2016.

As estratégias de comunicação precisam ser mais efetivas e acessíveis a qualquer entendedor.


Isso porque as informações precisam chegar a todos, e a internet parece ser a melhor ferramenta
para isso atualmente.
Inúmeros programas e ações que colaboram para o atingimento das metas dos ODS já são hoje
desenvolvidos, contudo ainda não vinculados à Agenda. É importante que isso esteja sistematizado
para registro e evitar sombreamentos e carências. Caso possa haver vínculo entre ODS's, ainda melhor.
A inovação tem um papel decisivo na busca das metas, podendo gerar novas ideias e técnicas de
engenharia e implementar ações revolucionárias. As mudanças ou melhorias de processo ou produto
trazidas por ela são cruciais para o desenvolvimento e crescimento sustentável. A importância da
inovação está aumentando significativamente. No cenário atual, ela é uma ferramenta importante para
definir um planejamento estratégico mais sustentável.

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273

O mundo hoje percebe o impacto da globalização, das mudanças climáticas, da economia, enfim
todos com abordagem nos ODS. A inovação tecnológica pode auxiliar firmemente a reduzir o desemprego,
a erradicar a pobreza, a minimizar impactos ambientais, entre outros. A inovação é imperativa se há
pretensão em melhorar a qualidade de vida das pessoas, desde que com aderência à realidade.
A questão que se deve colocar é exatamente como as políticas públicas podem direcionar o
desenvolvimento sustentável e viabilizar o atingimento dos ODS. Considerando estes e a promoção de
políticas de desenvolvimento socioeconômicas sustentáveis, entendemos que as políticas públicas devem
considerar, para cada ODS, três grandes eixos: redistribuição igualitária da riqueza, reconhecimento
social e participação paritária nas decisões. O Quadro 4 resume essa proposição.
A questão que se deve colocar é exatamente como as políticas públicas podem direcionar o
desenvolvimento sustentável e viabilizar o atingimento dos ODS. Considerando estes e a promoção de
políticas de desenvolvimento socioeconômicas sustentáveis, entende-se que as políticas públicas devem
considerar, para cada ODS, três grandes eixos transversais: i) redistribuição igualitária da riqueza,
ii) reconhecimento social e iii) participação paritária nas decisões, os quais devem ser considerados como
critérios de desenvolvimento socioeconômico e, portanto, aplicados na concepção e implementação
das políticas públicas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A estruturação dos ODS denota explicitamente o compromisso da comunidade internacional em
alcançar as metas e ideias propostas. As metas impostas pelos ODS são específicas, de fácil mensuração
e observação, mas de razoável complexidade em direção ao seu cumprimento.
Os compromissos com a Agenda 2030 são de todos – governo, sociedade e setor produtivo –,
comprometidos com o atingimento das metas, que somente poderão ter êxito se os planos de ação
forem, efetivamente executados. A participação de todos os stakeholders no processo é de fato necessária.
Nesse sentido, o envolvimento dos líderes é determinante. Experiências de sucesso tiveram como
alicerce a percepção e o estímulo de seus líderes. O corpo operacional também precisa estar engajado,
contudo mudanças de postura na gestão, de estratégias e principalmente possíveis investimentos
necessários à adoção são facilitados quando a alta direção tem essa percepção.
Nas organizações, a aplicação de princípios de sustentabilidade pode, além de proporcionar uma
gestão mais responsável, promover a redução de custos, oportunizar diferentes nichos mercadológicos,
bem como vantagens em determinadas concorrências. Com a globalização, a velocidade da informação
tem sido uma ferramenta de grande relevância para permear conceitos, ao mesmo tempo em que permite
um olhar ‘fiscalizatório’ da população.
É indispensável haver uma governança sustentável e responsável, bem como uma gestão
eficiente. É preciso ainda conhecer em detalhes o processo de produção, monitorá-lo e mensurá-lo

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adequadamente, bem como responsabilidade. É possível ter desenvolvimento sustentável com alto
rendimento e atendendo preceitos legais.
De acordo com Faria,

as políticas e práticas de desenvolvimento sustentável têm servido mais ao consumo externo do que ao
respeito por um ambiente sustentável, no qual as pessoas sejam consideradas como alvo principal da
garantia de uma vida saudável, tanto econômica como social, cultural e politicamente. (2014, p. 21).

A sustentabilidade tem sido reduzida a um discurso que visa preservar uma imagem externa
desfavorável de um país e não em um compromisso com as pessoas que nele vivem e trabalham e com
o futuro. É preciso mudar essa concepção, e tal mudança começa com a educação.

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MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2002.
ONUBR – Nações Unidas do Brasil. Agenda 2030. Transformando nosso mundo: a Agenda 2030 para o
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general (Rio + 5). Rio de Janeiro: Organização das Nações Unidas, 2007.
ONUBR – Nações Unidas do Brasil. Documentos temáticos. Objetivos de desenvolvimento sustentável,
Brasília, 2017.
ONUBR – Nações Unidas do Brasil. Roteiro para a localização dos Objetivos de Desenvolvimento
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PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Acompanhando a agenda 2030 para o
desenvolvimento sustentável: subsídios iniciais do Sistema das Nações Unidas no Brasil sobre a identificação
de indicadores nacionais referentes aos objetivos de desenvolvimento sustentável/Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento. Brasília, 2015.w
SANTANA, Naja Brandão. Responsabilidade socioambiental e valor da empresa: uma análise por envoltória
de dados em empresas distribuidoras de energia elétrica. 2008. Dissertação (Mestrado em Engenharia de
Produção) – Universidade de São Paulo, São Carlos, 2008.
Organização das Nações Unidas (2007). Rio declaration on environment and development: application and
implementation report of secretary general (Rio + 5). Rio de Janeiro: Organização das Nações Unidas. Disponível
em https://sustainabledevelopment.un.org/conferences.
ONU – Organização das Nações Unidas. Disponível em https://nacoesunidas.org/pos2015/
VARGAS DE FARIA, J. R. Organizações coletivistas de trabalho: autogestão nas unidades produtivas. 2003.
Dissertação. (Mestrado em Administração) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2003.
UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Water for a sustainable
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Agrinho-Tecnicos_BOOK.indb 275 13/04/2021 11:12:42


276

UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. The United Nations
world water development report 2016. United Nations – Water, Paris, 2016.
UNITED NATIONS. Transforming our world: the 2030 agenda for sustainable development. USA, 2018.

NOTAS EXPLICATIVAS
1 Para saber mais sobre a Agenda 2030, acesse https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
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CRISE AMBIENTAL, O MAIS URGENTE


DESAFIO ÉTICO DOS NOSSOS TEMPOS

Jelson R. de Oliveira

Quando escreveu sobre aquilo que ele chama de ‘a conquista social da terra’, o famoso sociobiólogo
norte-americano Edward O. Wilson reconheceu que “a humanidade é realização magnífica, mas frágil”
(2013, p. 23), isso porque ela seria a culminação exitosa de uma história evolutiva de milhões de anos e,
ao mesmo tempo, de uma aventura perigosa, marcada por extinções precoces cujas primeiras linhagens
desapareceram diante dos obstáculos do ambiente e por riscos variados que constantemente colocam
em xeque a continuidade da vida humana sobre o planeta.
Desde que começamos a jornada de ocupação da terra, há cerca de 60 mil anos, temos sofrido
com constrições de todo tipo, que vão de secas e inundações a quedas de meteoritos, ataques de
predadores ou epidemias dizimadoras. Como aventura, a vida manteve-se sempre em uma espécie de
frágil equilíbrio: um pequeno vírus pode dizimar-nos aos milhões, um mero balanço no terreno destrói
uma civilização inteira, um grau a mais na temperatura do planeta exigiria que os mapas do mundo
fossem redesenhados.
Diante de tamanha fragilidade e tão graves riscos, o que teria salvado a humanidade? Por que
simplesmente não desaparecemos ainda? A resposta pode não ser fácil, mas uma coisa é certa: ao longo
das eras, fomos capazes de vencer as intempéries com o uso de nosso instinto gregário, cujo fundamento
é nossa capacidade racional, no geral transformada em capacidade técnica. Desde que começamos a
usar ferramentas de pedra e/ou cobrir o nosso corpo com a pele de animais, iniciamos uma longa
trajetória de luta contra nossa extinção. Nossos progressos nos levaram daquelas primeiras pedras rudes
aos dispositivos tecnológicos mais avançados de nossos dias, passando pela invenção das máquinas a
vapor, da eletricidade, da cibernética ou da biotecnologia. No negócio da vida, assim, a racionalidade
tem sido o principal instrumento, apropriado à utilidade prática da sobrevivência. Por meio daquele

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instinto gregário nascido de nossa fraqueza (sozinhos, a sobrevivência se torna muito mais improvável) e
das estruturas ósseas e cerebrais disponíveis, inventamos a linguagem, critério primeiro para a existência
das famílias, das aldeias e das civilizações. Ordenados em nossas cidades, criamos formas de proteção e
gerenciamos os riscos de forma a garantir a continuidade da vida humana no futuro.
Há 10 mil anos inventamos a agricultura, que nos possibilitou passar do nomadismo ao
sedentarismo, favorecendo a formação da cultura. Com mais comida, a humanidade aumentou
exponencialmente de tamanho populacional e passou a afetar o ambiente terrestre de forma nunca
antes vista. Assim, o crescimento populacional patrocinado pelas técnicas de sobrevivência tem sido,
ao longo da história, equivalente à saturação das reservas naturais, ao retrocesso da biodiversidade e à
escassez de condições capazes de garantir a própria sobrevivência da espécie. Eis o paradoxo que temos
chamado, atualmente, de ‘crise ambiental’: para sobreviver ao número e conforme os estilos de vida
contemporâneos, acabamos por impactar negativamente a biosfera, colocando em risco, por isso, a
própria potencialidade de sobrevivência no futuro. Apoiados na técnica (que logo se tornou a condição
de nossa sobrevivência), inauguramos a tal história da ‘conquista social do planeta’, tematizada por
Wilson em seu livro homônimo, mas, ao mesmo tempo, demos margem ao paradoxo que se tornou a
maior ameaça à existência da humanidade.
O chamado “novo regime climático”1 (LATOUR, 2015, p. 11), por exemplo, é parte desse processo
em que a expressão contemporânea da técnica, a que chamamos de tecnologia, em sua faceta produtiva
cujo símbolo são as máquinas consumidoras de energia suja (ou não renováveis, como petróleo,
carvão e gás natural), acaba liberando na atmosfera gases responsáveis pelo efeito estufa, levando ao
aquecimento global. Tal novo regime ganhou, entre os antropólogos, um nome próprio: Antropoceno,
em referência ao fim da era do Holoceno (iniciada há mais ou menos 11 mil anos) e o início de uma
nova era geológica marcada pela presença humana em grande escala, cuja consequência seria a alteração
substantiva da paisagem planetária. O início desse novo período geológico pode ser marcado em algum
lugar entre o final do século dezoito e meados do século vinte, justamente o período de tempo que
registra um relevante aumento da quantidade de dióxido de carbono e outros gases de efeito estufa no
planeta, principalmente devido à queima dos combustíveis fósseis usados como energia para fomentar
a produção industrial baseada nas novas tecnologias.
O perigo dessa situação passou a fazer parte da agenda de ambientalistas já a partir dos anos 1970 e,
mais recentemente, ocupa de forma decisiva os cientistas do clima, repercutindo no mundo da política
e dos governos, que vem estudando medidas para evitar as catástrofes anunciadas – infelizmente com
muito pouco sucesso até agora.

A EXIGÊNCIA DA RESPONSABILIDADE
Ora, foi justamente nos anos 1970 (mais especificamente em 1979) que um livro escrito por um
autor alemão radicado nos Estados Unidos teve enorme impacto no campo da Ética por ter trazido a
questão da responsabilidade para os debates filosóficos, até então, em geral, alheios a esse tema. Trata-

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-se da obra O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica, de
Hans Jonas. O livro, dividido em seis capítulos, é, ao mesmo tempo, uma reflexão teórica sobre os
fundamentos possíveis para uma ética ambiental (ou ética do futuro, como ele mesmo se refere) e uma
tomada de posição prática (e crítica) em relação ao avanço das tecnologias no mundo contemporâneo,
precisamente devido à sua ambiguidade e, nesse caso, aos seus potenciais malefícios para a continuidade
da vida sobre o planeta.
Para o autor, trata-se de formular uma ética que não esteja mais limitada 1) ao horizonte do antigo
antropocentrismo (afinal, agora precisamos cuidar da vida como um todo); 2) da visão de neutralidade
ética da natureza (os novos poderes elevam as possibilidades de a ação humana interferir de forma decisiva
no mundo natural); 3) da constância da entidade ‘homem’ (agora objeto da técnica reconfiguradora,
embora sem uma imagem capaz de orientar essa tarefa); 4) o curto prazo do planejamento da ação
(agora precisamos prever em longo prazo as consequências de nossas ações); e 5) ao círculo imediato da
ação (hoje precisamos pensar nas gerações futuras).
A responsabilidade como princípio ético parte da antiga pergunta filosófica fundamental
formulada por Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716): “por que o Ser e não antes o nada?”. Tal
pergunta, contudo, assume um novo sentido no cenário tecnológico: se temos o poder de destruir a
vida como um todo, quais são os critérios capazes de nos impedir de fazê-lo ou, em outras palavras,
se podemos matar a vida, por que não o fazer?; por que, afinal, a vida merece ser preservada e por que
devemos orientar nossos atos em direção à sua preservação?
A nova ética adquire, portanto, uma base tanto ontológica quanto metafísica, na medida em que
ela parte de uma pergunta sobre o Ser que se apresenta em sua forma ‘viva’, por assim dizer. É por isso
que sua ética se apoia em sua ontologia: a vida diz ‘sim’ a si mesma e, como é parte da história evolutiva
do espírito, o ser humano é o único ser de responsabilidade porque, tendo ascendido a graus superiores
de espiritualidade, pode entender essa afirmação e assumir sua responsabilidade sobre os demais, até
porque ele se tornou um perigo para si e para as demais formas de vida. Com isso, enfrenta-se um dos
principais dogmas da filosofia: ele afirma que, diante da emergência dos novos tempos, é não apenas
possível, como necessário, que retiremos do Ser um ‘dever ser’. A ética deve, agora, pela primeira vez,
garantir a existência do próprio objeto.
Responsabilizar-se, assim, 1) significa reconhecer a vulnerabilidade da natureza e as novas
dimensões de seu poder, 2) prever os danos possíveis e 3) alterar a ação humana a fim de evitá-los.
Para tanto, a nova ética deve reunir o máximo de informações advindas das demais ciências, a fim de
forjar um diagnóstico o mais preciso possível dos danos que atingem, no momento presente, a vida
como um todo.
O naturalista norte-americano Edward O. Wilson, em seu livro Diversidade da vida, reconheceu
essa como a urgência de nosso tempo e o maior desafio à ciência de hoje: “será algum dia possível
avaliar os danos à diversidade biológica que estamos sofrendo? Não consigo imaginar um problema
científico de maior importância imediata para a humanidade”. (2012, p. 317).

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Além disso, é preciso combater a ingenuidade das promessas do progresso tecnológico, que acabam
forjando uma versão limitada e enganosa dos benefícios futuros das ações técnicas do presente; para
isso é preciso dar preferência ao prognóstico negativo, por meio daquilo que se chama de ‘heurística
do temor’ ou seja, em termos técnicos, o reconhecimento do malum deve ter preferência ao do bonum.
Caberia à ética, afinal, prever os efeitos distantes da ação técnica, operando por meio de
diagnósticos hipotéticos relativos àquilo que devemos esperar do futuro, ou daquilo que devemos
evitar ou incentivar. A partir daí, a ética precisa mobilizar um sentimento de responsabilidade, capaz de
orientar as ações do presente para que o mal futuro seja evitado: imaginando o mal, saberemos, afinal, o
que deve ser evitado, abrindo mão daquilo que pretendemos no presente em função das garantias para
que haja um futuro. Isso quer dizer que precisamos ser capazes de prever o perigo e as consequências
das ações humanas. Agora, não podemos mais simplesmente incrementar o poder, independentemente
de seus riscos, mesmo diante da certeza de seus êxitos. Tal ética tem, por isso, como objetivo despertar
a consciência e o sentimento dos homens e mulheres contemporâneas em relação às suas ações no
presente, cujo impacto alcança o futuro de forma incomensurável. A gravidade do risco levaria, assim,
ao aprendizado ético: antever o perigo teria a função educativa de reorientar as ações no presente a fim
de evitar que o imaginado ocorra realmente.

UM IMPERATIVO ÉTICO A FAVOR DA NATUREZA


Partindo de uma análise da natureza modificada do agir humano, ou seja, da mudança significativa
do poder de intervenção e impacto da humanidade sobre o planeta, promovido pelo uso crescente das
tecnologias (que passam a representar uma força imensa, equivalente e, não raras vezes, mais poderosa do
que as forças naturais), Hans Jonas chega à formulação de um imperativo categórico capaz de orientar as
ações humanas no presente: “Aja de modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência
de uma autêntica vida humana sobre a Terra” ou, ainda, numa versão negativa, “Aja de modo a que os
efeitos da tua ação não sejam destrutivos para a possibilidade futura da vida”, ou ainda, “Não ponha em
perigo as condições necessárias para a conservação indefinida da humanidade sobre a Terra”. (2006, p. 47).
Como imperativo categórico, tal norma moral pretende orientar de forma inequívoca a ação do
ser humano no presente em vista da continuidade das condições de sua sobrevivência no futuro. E
o faz apelando para uma normatividade ética capaz de inspirar a humanidade em sua vida prática,
recomendando: na hora de fazer algo (desde lançar uma latinha de refrigerante pela janela do carro ou
separar o lixo doméstico, até atos de maior impacto ambiental, como despejar o esgoto de uma indústria
em um rio ou pulverizar um agrotóxico proibido sobre uma lavoura ou ainda construir uma hidrelétrica
ou abrir uma estrada em meio a uma floresta), só o faça se você realmente acreditar que isso não coloca
em risco a autêntica vida da humanidade no futuro. Não precisamos muito para compreender a eficácia
desse argumento. Diante dos inúmeros poderes e, ao mesmo tempo, dos enormes desafios colocados
para quem precisa viver (alimentar-se, vestir-se, locomover-se etc.) no mundo contemporâneo, é preciso

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levar em conta as garantias da continuidade da vida humana futura. Tal atitude é responsável, e a
responsabilidade seria para Jonas a virtude ou o valor daqueles que agem segundo essa norma ética,
assumindo o fato de que sua ação aumentou em termos de impacto sobre o planeta e, sendo assim, que
também aumentou sua responsabilidade em agir de forma correta para evitar a catástrofe.
Como desafio, ao pensar no meio ambiente é preciso ter em mente a fragilidade da vida, explicitada
de forma mais evidente pela ciência do último século, algo que, infelizmente, já aparece na forma de
danos, dada a imensa vulnerabilidade da vida diante dos poderes da tecnologia e dos impactos que
ela causa sobre a vida em geral. Isso significa que de um lado está a fragilidade da vida, e de outro o
aumento dos poderes trazidos pela nova tecnologia e, consequentemente, a urgência ainda maior da
responsabilidade como valor capaz de orientar o uso desses poderes. É preciso que se diga desde já que
não se trata de tomar uma atitude tecnofóbica, ou seja, é preciso ter consciência da importância da
tecnologia para a manutenção da vida humana, mas até o ponto em que seu uso não coloque em risco
a integridade da biosfera. Do ponto de vista ético, por meio da responsabilidade deveríamos ser capazes
de evitar as apostas e prestar atenção aos maus prognósticos em vez de continuarmos arriscando todas
as fichas na continuidade do modelo de exploração do planeta conforme temos feito até aqui.
A responsabilidade trata, assim, da busca por um cuidado maior com a vida e a natureza em
geral, compreendendo que os organismos vivos têm direito a continuar existindo no futuro e que é
justamente isso que tornará a vida humana autêntica, já que está ligada à grande rede de seres que
povoam o planeta.
É nesse sentido que a nova ética capaz de ajudar a humanidade atual a enfrentar o desafio da crise
climática inclui um apelo por modos de vida mais simples e contidos, baseada em uma tentativa de
impor freios voluntários tanto ao consumo de uma minoria mundial esbanjadora quando ao uso dos
poderes atuais e à conquista de novos. Obviamente se trata de uma dificuldade, em nosso mundo,
trocar a felicidade associada ao conforto e ao consumo por uma vida mais frugal, mas é preciso acentuar
que, diante dos riscos radicais, temos de tomar decisões cada vez mais radicais. Afinal, é fácil fazer dieta
em tempos de escassez e muito mais difícil em tempos de excesso de ofertas, embora seja nestes que a
dieta se torna mais necessária. Eis o desafio do tempo que é nosso.
De um lado, do ponto de vista de nosso estilo de vida, seria necessário optar pela frugalidade,
pela temperança, pela parcimônia e pela continência, valores bastante importantes nas éticas antigas
que em nosso tempo foram colocados em segundo plano diante de novos valores como a gula, que
antes constava na lista dos vícios. Agora ela passou a ser considerada uma virtude, uma espécie de dever
socioeconômico tratado com indulgência geral, cujas coações e estímulos nos convencem facilmente de
que a felicidade está nos shopping centers, esses templos sagrados do mundo contemporâneo, onde bens
exuberantes e (mais ou menos) acessíveis são mostrados como solução para muitos de nossos males,
ansiedades e frustrações.
Assim, para impedir o empobrecimento das espécies e a contaminação geral do planeta é necessário
que mudemos nossos modos de vida. De outro lado, do ponto de vista do uso e da aquisição de novos
poderes, é necessário que a reflexão ética oriente tais atividades em vista de sua aplicação adequada do

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ponto de vista da garantia da continuidade da vida. A ética, nesse caso, funcionaria como um ‘poder
sobre o poder’, ou seja, um poder capaz de orientar a ação técnica.

SOBRE A VANTAGEM DO TEMOR NO CAMPO DA


ÉTICA
Ora, para que isso seja possível, uma das bases da nova atitude ética é o sentimento de ‘temor’
(ou medo) diante das ameaças da tecnologia: trata-se, mais especificamente, de um aprendizado por
meio de uma exposição ao perigo, ou seja, de imaginar as consequências negativas no futuro. O medo
de que este possa ser catastrófico poderia, assim, nos ajudar a evitar agora o mal futuro. Ou seja,
por meio do medo do que poderia acontecer caso continuássemos agindo da forma como agimos,
seríamos despertados a agir de forma a evitar que as projeções negativas viessem a se realizar. Para isso,
precisaríamos dar preferência aos prognósticos negativos, a fim de reconhecermos com clareza aquilo
que deve ser evitado, pois temos geralmente mais capacidade para reconhecer o mal do que o bem.
Deveríamos usar, assim, a projeção imaginativa das catástrofes (tal como ela ocorre, por exemplo,
nos livros de ficção científica baseados em distopias ou mesmo em filmes) para mobilizar aquele
sentimento adequado para a representação prévia daquilo que não queremos para a humanidade
futuramente. Assim, o primeiro dever de uma ética orientada para o futuro deveria ser visualizar os
efeitos a longo prazo das ações humanas. Como esse tipo de representação não ocorre normalmente,
ela precisa ser produzida intencionalmente, ou seja, precisaríamos criar ocasiões para que esse futuro
distópico pudesse aparecer.
Assim, o temor poderia nos ajudar a projetar ou representar o mal possível para conquistar o bem
desejado e, para isso, precisamos promover uma convergência dos saberes, a fim de que várias áreas do
conhecimento se juntem a fim de salvar a humanidade e a vida em geral no futuro. Tal saber deve ter
duas bases: 1) as informações científicas precisas, advindas dos vários âmbitos do saber, a respeito dos
indícios atuais e futuros, já previsíveis, da ação humana; 2) uma imaginação teoricamente fundada em
uma projeção dos indícios ainda não visíveis, mas que podem ser imaginados com base no presente.
O medo, portanto, seria parte de uma espécie de futurologia comparativa que se torna, no fundo,
também uma futurologia da ‘advertência’, na medida em que traduz o lema segundo o qual, em caso
de dúvida, devemos agir com precaução.

A UTOPIA DO PROGRESSO TÉCNICO E O


ESGOTAMENTO DOS BENS NATURAIS
Ao formular tal hipótese sobre o medo, dando preferência a esse prognóstico negativo, estaríamos
em um campo crítico às utopias, que sempre projetam um futuro absolutamente positivo. Isso porque

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a primeira condição da utopia é a abundância material, que trata de satisfazer a necessidade de todas
as pessoas. Além disso, seria preciso que tal abundância fosse de fácil acesso, ou seja, que estivesse
disponível na forma de recursos a serem explorados de maneira mais ou menos fácil, em benefício do
lazer e do conforto. Ora, esses dois elementos estariam ligados à abundância dos bens de consumo e
do acesso a eles, algo que pode ser sustentado pela tecnologia, precisamente o poder que convenceu
os seres humanos do nosso tempo a radicalizar sempre mais o avanço da técnica, acreditando que só
ela poderia conduzir a humanidade à felicidade. Eis o que se revela pela mecanização do trabalho, por
exemplo, porque as máquinas são o modo segundo o qual é possível retirar da natureza suas riquezas de
forma rápida e satisfatória. Em outras palavras, é preciso questionar a ideia mesma de que é necessário
continuar a corrida pela exploração da natureza por meio de um crescimento da produção em nível
global, com tecnologias cada vez mais intensas e agressivas.
O problema reside justamente nos limites de tolerância da natureza em relação a esse crescimento
exponencial do poder tecnológico: a questão é saber como a natureza reagirá à nossa agressão e não
mais, como antes, apenas como e se o homem é capaz de provocar alguma mudança significativa na
vida do planeta. Estamos às vésperas de uma grande catástrofe e precisamos evitá-la: eis o papel da ética.
Tal desastre está ligado ao desconhecimento dos limites naturais ou ao desrespeito a eles. Tais limites,
contudo, podem ser facilmente conhecidos pelos saberes ligados à ecologia, ciência que conjuga saberes
tão diversos como a Biologia, a Agronomia, a Geologia, a Climatologia, a Economia, a Engenharia e o
Urbanismo, que devem agora fornecer à ética elementos capazes de elevar o grau de responsabilidade
do ser humano diante do risco da catástrofe.
Dentre esses limites da natureza estão: 1) o problema da alimentação: as tecnologias agrícolas
baseadas na mecanização, no emprego extensivo de fertilizantes e, hoje, na transgenia, tem levado
ao esgotamento dos solos e à poluição das águas, ao desmatamento e ao consequente aumento da
temperatura do planeta; 2) o problema das matérias-primas: hoje se vê desde o esgotamento das
reservas naturais, inclusive o consumo dos reservatórios mais profundos, a imensos dispêndios de
energia para acessar novas energias, numa corrente cada vez mais autofágica; 3) o problema energético:
fontes não renováveis, como os combustíveis fósseis, contribuem para a poluição dos ares e agravam
o aquecimento climático; as renováveis, por sua vez, como a energia solar e a hidrelétrica, além de
insuficientes para o progresso, são sempre soluções parciais, enquanto a energia nuclear, além de
arriscada, também está limitada fisicamente; e 4) o problema térmico: o efeito estufa seria agravado
pelo consumo ilimitado e pela extração de matérias-primas a níveis muito altos do ponto de vista
termodinâmico. O desenvolvimentismo precisa lidar com esse balanço energético negativo, no qual
o processo produtivo consome muito mais energia do que aquela gerada pelo produto, levando ao
insustentável divórcio entre o cálculo monetário e o material energético.
O estilo de vida anunciado pela utopia do progresso técnico baseia-se em um enorme consumo
per capita de energia evidentemente insustentável. Qualquer potencial energético favorável (como o
atômico) poderia, diante da tentação utópica de uma vida farta, simplesmente elevar ao infinito o
dispêndio e aumentar a sedutora lógica dos fins desmesurados que acabam por anular o sentimento

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da responsabilidade. Ou seja, temos diante de nós um desafio imenso quando pensamos na sedução
exercida pelo modo de vida contemporâneo. Por isso, o apelo a fins modestos, embora soe estranho a
nossos ouvidos, precisa se impor à corrida embriagada do progresso irresponsável.
Os modelos econômicos que ignoram essas restrições são tão maléficos quanto aqueles que as
patrocinam. O otimismo tecnológico não seria apenas um erro teórico, mas um prejuízo ético e até
mesmo um crime político, porque, estando baseado no uso irrestrito de máquinas e energia, parece
desconhecer as leis da termodinâmica, segundo as quais a transformação da matéria dissipa energia em
calor. E para o planeta, o único termostato possível é a parcimônia no uso dos poderes. Do contrário,
o equilíbrio natural será desfeito e a vida mesma, que concorre para a manutenção harmônica desse
sistema, será a primeira a desaparecer, já que ela interfere no equilíbrio dinâmico.
Reféns do modelo positivista de fazer ciência, segundo o qual conhecemos as consequências
sempre a posteriori, é preciso alterar nosso modo de pensamento para incluir com a máxima
urgência nos interesses da sociedade contemporânea a virtude ética, sendo o principal dos valores a
capacidade de previsão das consequências negativas de nossas ações, cujo benefício último atenta ao
princípio geral que agora recai sobre nossa responsabilidade. Trata-se de reunir todos os esforços para
garantir que haja uma humanidade no futuro, junto a todas as outras formas de vida. Ora, porque
o progresso é refém de um otimismo utópico ingênuo, é preciso apelar para aquela responsabilidade
com o fim de despertar os homens e mulheres de agora em relação ao meio ambiente. Tal preferência
pelo prognóstico negativo tem como objetivo reconhecer os limites da natureza no que tange ao uso
desses poderes.
Ocorre que, para se manter enquanto utopia, a técnica precisou mostrar que não há perigo algum
em sua ação e que, mais ainda, ela deve contar com o apoio irrestrito de toda a sociedade, dado não
haver nela nada que não seja simplesmente ‘bom’. Além disso, a utopia do progresso tecnológico
se apoiou em uma visão equivocada da natureza, seja aquela herdada da modernidade, seja aquela
que ela assumiu para si como verdade: que o potencial da natureza é inesgotável e o poder do ser
humano de afetá-la é mínimo ou quase nulo. Esses dois equívocos são repetidos hoje em dia como lema
da irresponsabilidade daqueles que pretendem aproveitar de forma insustentável o conforto de suas
presentes vidas sem incluir nelas nenhuma preocupação com o futuro da humanidade. Tal perspectiva
fazia sentido na era chamada pré-moderna, onde o poder técnico ainda era bastante limitado.
Uma passagem do texto de Antígona, de Sófocles, é exemplar a esse respeito. Escrito em 442 a.C.,
ele faz uma apologia (ingênua) ao poder humano diante da natureza. Vale a pena revisitarmos esse texto,
que Hans Jonas reproduziu já nas primeiras páginas de seu livro O princípio da responsabilidade:

Numerosas são as maravilhas da natureza, mas de todas a maior é o homem! Singrando os mares
espumosos, impelido pelos ventos do sul, ele avança e arrosta as vagas imensas que rugem ao redor!
E Gaia, a suprema divindade, que a todas mais supera, na sua eternidade, ele a corta com suas charruas,
que, de ano em ano, vão e vêm, fertilizando o solo, graças à força das alimárias!
Os bandos de pássaros ligeiros; as hordas de animais selvagens e peixes que habitam as águas do mar,
a todos eles o homem engenhoso captura e prende nas malhas de suas redes.

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Com seu engenho ele amansa, igualmente, o animal agreste que corre livre pelos montes, bem como o
dócil cavalo, em cuja nuca ele assentará o jugo, e o infatigável touro das montanhas.
E a língua, e o pensamento alado, e os sentimentos de onde emergem as cidades, tudo isso ele ensinou
a si mesmo! E também a abrigar-se das intempéries e dos rigores da natureza! Fecundo em recursos,
previne-se sempre contra os imprevistos. Só contra a morte ele é impotente, embora já tenha sido
capaz de descobrir remédio para muitas doenças, contra as quais nada se podia fazer outrora.
Dotado de inteligência e de talentos extraordinários, ora caminha em direção ao bem, ora ao mal...
Quando honra as leis da terra e a justiça divina ao qual jurou respeitar, ele pode alçar-se bem
alto em sua cidade, mas excluído de sua cidade será ele, caso se deixe desencaminhar pelo Mal.
(2006, p. 4).

O trecho, como se nota, não faz nenhuma referência aos perigos do uso indiscriminado desse
domínio que levou à ‘conquista social da terra’. Isso não se deve, necessariamente, a um erro de
avaliação de seu autor, mas à condição mesma de seu tempo: podemos imaginar que nessa época os
problemas ambientais, se é que existiam, estavam muito aquém daqueles que nos são visíveis hoje em
dia, produtos do aumento populacional e do modo de vida tido como mais adequado no que tange
à aquisição da felicidade. Essa angustiosa homenagem ao poder humano tão perigoso não evidencia
os impactos negativos desse poder, tal como ele se apresenta na era moderna e, mais ainda, a partir
do século XX. Agora, essa ideia de natureza não passa de uma ingenuidade, dadas as consequências
danosas trazidas pelo projeto de desenvolvimento da tecnologia que assume, aliás, um papel até mesmo
de redenção do homem diante dos pretensos limites impostos pela natureza. Isso tudo exige de todos
nós uma renúncia efetiva aos sonhos ingênuos, em nome de uma vida mais sóbria e responsável.

A DIMENSÃO POLÍTICA DA RESPONSABILIDADE


A evidência da gravidade dessa situação deveria, portanto, gerar uma precaução em relação ao
progresso, uma modéstia no anúncio das promessas utópicas e até mesmo uma crítica interna de seu ideal.
Uma solução para essa problemática passaria por uma renúncia, por parte dos países desenvolvidos, em
relação a sua dinâmica desenfreada de sempre mais, já que o crescimento dos países subdesenvolvidos
só poderia ocorrer às suas custas, ou seja, seria necessário que os países ricos impusessem limites em
seu afã de progresso para que os países pobres pudessem alcançar algum patamar de desenvolvimento
compatível com a garantia de vida digna para sua população.
Do ponto de vista psicológico, a utopia sempre aponta para o ‘mais’ e não para o ‘menos’. Nesse
sentido, qualquer ideia de contenção na atividade de produção e consumo atuais soaria como um
obstáculo à magia da utopia e à sedução do progresso. Ocorre que, diante do cenário de catástrofe
ambiental que nos ameaça, tal contenção ‘deve’ ser levada em conta, pois a nova ética deve se encontrar
com a política, para conduzir uma crítica não apenas ao modelo econômico, mas também e, sobretudo,
às formas de governo e às estruturas políticas em vigência em nossa sociedade.

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Tratamos aqui do campo daquilo que hoje se chama de ‘tese do decrescimento’2, por questionar
o atual índice de desenvolvimento na medida em que isso leva à degradação ambiental. A utopia,
na medida em que cresce unicamente amparada em um desenvolvimento irrestrito e irresponsável,
é portadora de grande periculosidade diante da urgente atitude de maturidade, que significa a
capacidade de agir com responsabilidade, fugindo dos arroubos irresponsáveis daqueles que não se
importam com essa problemática. Ou seja, a utopia seria um momento imaturo no qual a humanidade
tudo pode, tudo faz, tudo pretende, tudo sonha. Ocorre que, diante dos desafios impostos pela crise
ambiental decorrente dessa atitude, é preciso recuar a uma maturidade responsável, capaz de levar ao
questionamento sobre o valor real da utopia, sobre as vantagens e desvantagens de seu abandono ou,
inversamente, de sua manutenção.
Tal maturidade, contudo, não chega facilmente, porque ela tem como obstáculo as ilusões e o
alto potencial sedutor das utopias. Será preciso optar pela coragem e ser capaz de orientar as ações
do presente para evitar o mal radical no futuro. E isso caberá aos dirigentes, que devem assumir sua
legitimidade e eficácia diante da maior das tarefas da política até então: decidir se a humanidade deve/
/merece ou não continuar existindo. Por isso, é preciso que os dirigentes sejam os primeiros a renunciar
aos mitos utópicos, a fim de conquistarem uma liberdade intelectual e moral capaz de orientar as
decisões que passariam pela recusa da ideia de progresso como movimento autônomo em direção
ao sempre renovado desejo de ‘mais’. Também a bomba atômica é tecnicamente melhor em termos
técnicos, e isso comprova que o progresso pode não ser sempre desejável por si mesmo.
Caberia à política, assim, deter a história triunfal da tecnologia, que não é capaz de impor limites
a si mesma. Trata-se de forjar um modelo político capaz de impor, no pior dos cenários, uma mudança
de costumes mediante a lei pública e suas sanções. Isso porque o modelo democrático segundo o
qual estamos conduzindo os debates nesse campo não tem sido (como é evidente também para nós)
exitoso, pois o procedimento de votação democrática está amplamente dominado por interesses e
circunstâncias orientados não pelo futuro, mas pelas necessidades atuais. Não há lugar, nesse caso,
para a sustentabilidade. Ocorre que essa posição deve ser entendida como uma espécie de advertência:
ou alteramos nossas ações no presente ou seremos obrigados a radicalizar as posições em termos de
normatização de nossas vidas por meio de medidas pouco ou menos democráticas.

A NATUREZA SOB A RESPONSABILIDADE HUMANA


Falamos em nossos dias de cuidar da natureza. Isso é uma novidade na história humana, porque
a natureza sempre cuidou de si mesma ou Deus cuidou dela. Agora isso mudou porque a natureza
está sendo cada vez mais afetada pela ação humana e, portanto, é um campo sobre o qual se deve
alargar o círculo da responsabilidade, superando a tradicional fronteira das ações humanas confinadas
ao círculo imediato da ação, que tem na cidade seu modelo. De um campo eticamente neutro a
natureza passou para as mãos humanas. A natureza, assim, se opõe, no sentido ético, à cidade. Diante

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da natureza, o homem precisava ser inteligente e inventivo, não ético. Diante da cidade, ao contrário,
tendo em vista que ela é um artefato social, o homem deve ser capaz de casar sua inteligência com a
moralidade. Subjacente a essa visão sobre a natureza estava a convicção (ingênua e imatura) de sua
invulnerabilidade diante do fraco poder humano de interferência. Todas as ingerências sobre a natureza
estavam orientadas por essa crença na inviolabilidade da natureza, que permanecia como algo fixo e
dado de uma vez por todas, sobre o qual se desenvolviam as ações humanas.
Essa antiga visão da natureza mudou de tal forma que sua violabilidade é manifesta de forma cada
vez mais clara diante do poder incrementado da ação técnica, que ao contrário do que acontecia no
passado, não admite mais a crença de que alguma natureza permanente do próprio homem, depois de
muitos movimentos e mudanças, pudesse se impor novamente, como compensação de todos os possíveis
desvios cometidos. Agora, para quaisquer desses desvios, não há garantia alguma de retorno a algo que
permaneceria inalterado. Tal dado, por si mesmo, fundaria o novo tipo de responsabilidade, ou seja,
a responsabilidade pela natureza. Isso porque, em primeiro lugar, o destino humano continua sempre
dependente da natureza, e a magnitude, a irreversibilidade e o caráter cumulativo das intervenções
tecnológicas emitem um sinal de alerta que deve ser incluído entre os objetivos dessa nova ética, na
medida em que o que está em risco é a própria condição fundamental de toda sequência, ou seja, o
próprio pressuposto sobre o qual a ação humana se desenvolve: a natureza como um todo. A natureza,
por isso, é entendida como a realidade extra-humana, a biosfera no todo e em suas partes que hoje se
encontram subjugadas ao nosso poder e carentes de nossa responsabilidade. Como conceito, a natureza
está pensada nesse contexto, nem sempre livre do contato humano. A preocupação aqui é com a
gravidade, a irreversibilidade, a ambivalência e a magnitude do poder desse contato.

CONCLUSÃO
A natureza é o novum ético na medida em que reivindica o próprio direito como portadora de fins
em si. Chegamos, assim, ao ponto central de nossa argumentação: é o ‘bem’ da natureza – como algo
que inclui os seres vivos em geral e a preservação das condições inorgânicas às quais eles continuam
atrelados de forma interdependente – que aparece agora como conteúdo ético. Assim, como um objeto
novo no âmbito da ética, a natureza ganha importância como um objeto recente. Nesse sentido, como
objeto ético, a ideia de natureza não estaria mais incluída entre as coisas que independem da interferência
humana. Natureza não é o que não foi tocado pelo homem (segundo uma antiga tradição), mas o que
está agora sob seus cuidados. E é ela que demanda nossa responsabilidade.
Por fim, deveríamos substituir a desesperança não pela utopia ou por uma esperança vulgar, mas
pela responsabilidade, que é a forma mais adequada de ação humana. Esse é o grande aprendizado
que precisamos fazer no campo ético em vista da proteção do meio ambiente, no qual convivemos
com os demais seres vivos. Como bem assinalou a professora norte-americana de Educação
Ambiental Elisabeth Andre, em seu artigo The need to talk about despair (A necessidade de falar

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sobre desesperança), é urgente vencer a descrença advinda dos dados da crise climática e vencer
o pessimismo das catástrofes que ocorrem diariamente fazendo vítimas às centenas. Tal descrença,
embora seja pautada em inúmeras evidências, centenas de iniciativas, relatórios, propagandas, livros e
revistas, falha em alterar a atitude dos seres humanos. Frente a isso, a ética exige que todos mudemos
urgentemente nossas formas de lidar com o meio ambiente que está à nossa volta. Porque é dos
pequenos gestos que crescem as grandes causas.

BIBLIOGRAFIA
ANDRE, E. The need to talk about despair. In: BREI, Andrew. (ed.). Ecology, Ethics and Hope. London/New
York: Rowman & Littlefield International, 2016. p. 1-11.
JONAS, H. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Tradução de
Marijane Lisboa [e] Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUCRio, 2006.
JONAS, H. Técnica, medicina e ética: sobre a prática do princípio responsabilidade. Tradução do Grupo de
trabalho Hans Jonas da ANPOF. São Paulo: Paulus, 2013. (Coleção Ethos).
LATOUR, B. Face à Gaïa: huit conférences sur le nouveau régime climatique. Paris: La Découverte, 2015. (Les
Empêcheurs de Penser en Rond).
WILSON, E. O. A conquista social da terra. Tradução de Ivo Korytovski. São Paulo: Companhia das Letras,
2013.
WILSON, E. O. Diversidade da vida. Tradução de Carlos Afonso Malferri. São Paulo: Companhia das Letras,
2012.

NOTAS EXPLICATIVAS
1 Expressão usada por Bruno Latour, derivada da expressão criada por Stefan Aykut e Amy Dahan para se
referir à tentativa (fracassada) de ‘governar o clima’.
2 Tese formulada por Nicholas Georgescu-Roegen em The entropy law and the economic process, de 1971,
mais recentemente, retomada pelo francês Serge Latouche, que associou a ideia ao pós-desenvolvimento e
às teses anticonsumistas que afirmam o decrescimento como garantia da sustentabilidade.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
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AS FORMAS DA DEMOCRACIA:
CONSENSO E CONFLITO

Ericson Falabrett

INTRODUÇÃO
O valor da democracia na tradição ocidental é um dogma quase inquestionável do campo da
política. À democracia atribuímos a estruturação das condições políticas mais elevadas e desejáveis:
autogoverno dos cidadãos, regulação isonômica da esfera pública (do Estado) e respeito aos direitos
individuais fundamentais. Desse modo, o elogio e a confiança na democracia remetem a uma
espécie de princípio de conveniência política: aceitamos a democracia como a melhor forma – ou
regime – de governo porque, quando comparada a todas as outras, é a única que operaria com
base no consentimento – voto livre – com a pretensão de atender de maneira justa – igualitária –
uma comunhão de interesses – o mundo comum – preservando, ao mesmo tempo, direitos básicos
referentes à esfera da vida privada. Desse modo, com base nesse dogma político, temos visto ao longo
dos últimos séculos diversas revoluções e movimentos1 articulados em torno da democracia. Assim
como temos, contraditoriamente, acompanhado um pretenso sistema democrático sendo imposto de
fora e à força em diferentes partes do mundo por meio do patrocínio de golpes de Estado – América
Latina nos anos 1960 e 70 –, de conflitos armados entre nações – guerra do Iraque e da Síria – e tantas
outras disputas internacionais.
Entretanto, nessas lutas pela democracia a significação conceitual, seu uso e suas formas nem
sempre são evidentes. Isso fica claro quando recordamos que, do ponto de vista do uso da democracia,
antes da queda do Muro de Berlim era com certa dose de incredulidade que aceitávamos o fato de

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a Alemanha Oriental ou Alemanha Socialista ser oficialmente chamada de República Democrática


Alemã (Deutsche Demokratische Republik – DDR) pois, usualmente, ligamos democracia à liberdade
econômica, religiosa e política, direitos que não pareciam tão evidentes nos regimes comunistas pós-
-Segunda Guerra Mundial, como era o caso da Alemanha socialista. Da mesma forma, não sem certa
dose de razão, colocamos em questão a designação de democracia para países capitalistas onde opera
um regime de livre mercado que, ano após ano, apenas tem acentuado desigualdades econômicas e
sociais. A impressão geral é que a liberdade de direito aliada à extrema desigualdade – como podemos
presenciar em países como o Brasil e a Índia – representa uma condição tão antidemocrátrica como a
igualdade sem liberdade, situação presente em regimes socialistas, a exemplo da Alemanha socialista.
Conceitualmente também lidamos com diversas formas de democracia: direta, representativa,
liberal, participativa, deliberativa, radical, entre outras. Essa polissemia indica que o conceito de
democracia se apresenta como um campo de disputa que opõe diferentes perspectivas e tradições
epistêmicas e ideológicas, que reivindicam legitimidade nos planos discursivo e político. Desse modo,
as ideias basilares que parecem dar forma ao dogma democrático anteriormente citado – liberdade,
igualdade e comunhão de interesses – não são definitivas nem universais. Basta pensarmos na
concepção de uma democracia radical fundada no conflito e na pluralidade em confronto com a noção
de democracia deliberativa pensada com base na ideia de consenso. Podemos dizer que as diferentes
concepções sobre democracia são tão antigas e questionáveis como o são os modelos e experiências de
democracia que encontramos na Grécia, em Roma e nos mundos Moderno e Contemporâneo.
Entretanto, temos pelos menos duas grandes perspectivas sobre a natureza da democracia: como
comunhão de interesses e/ou como um espaço de diferenças. A primeira forma de democracia –
estabelecida, inicialmente, pelos gregos – encontra nas obras de pensadores iluministas – como na
de Rousseau – seu desenvolvimento teórico mais radical: as ideias de alienação e vontade geral como
fundamentos de uma noção de igualdade absoluta que ultrapassaria toda forma de diferença e pluralismo.
A segunda concepção, discutida com base na obra de Maquiavel e, em uma perspectiva aparentemente
contrária à ideia de democracia como comunhão de interesses, estabelece a diferença e o conflito
como elementos estruturantes de uma sociedade democrática. Todavia, afinal, a democracia é uma
comunhão de interesses comuns ou de diferenças? Além do mais, quando pensamos na estruturação
de uma sociedade democrática a primazia deve ser a garantia da liberdade ou, mais importante ainda,
a promoção de condições absolutas de igualdade?

DESENVOLVIMENTO
A ‘democracia’ – governo do povo – é o termo criado pelos gregos para designar, no século V a.C.,
um novo sistema político que nasceu em oposição à oligarquia e à aristocracia. A democracia grega foi
estruturada com base na criação de instituições formais que promoveram a participação livre e igual
de todos os cidadãos nos negócios públicos. Destaca-se, em primeiro plano, a Assembleia (Ekklesia,

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eκκλησíα), reunião regular de cidadãos atenienses para ouvir, discutir e votar decretos que afetavam
a vida de todos, tanto pública como privada, envolvendo questões econômicas e religiosas, festivais
públicos, declarações de guerra e tratados de paz.
A Assembleia foi a instituição central e definitiva da democracia ateniense e, nos dias hoje, ainda
representa o modelo operativo mais fundamental de um regime democrático. Em seu livro A política,
Aristóteles descreve o governo democrático como aquele em que o povo, reunido em assembleia,
administra todos os negócios públicos por meio de decretos e leis. A Assembleia estava estruturada
em dois direitos e um dever. O primeiro direito, fundamental até nossos dias, é a isonomia, isto é, a
igualdade absoluta entre todos os cidadãos. O segundo direito, também central até hoje, é a isegoria,
garantia legal para que todos os cidadãos possam se manifestar – ter voz – na Assembleia. No entanto,
entre os gregos esses direitos vinham acompanhados de uma obrigação: a parrhesia. Enraizada na
prática da comunidade nos séculos IV e V a.C., a parrhesia, manifestação da inseparabilidade entre
dever e virtude, impunha ao cidadão a obrigação (dever) de dizer corajosamente (virtude) o que ele
realmente (francamente) pensava sobre os assuntos públicos.
A parrhesia, espécie de antídoto contra a demagogia e a apatia política, remontava à obrigatoriedade
da sinceridade da fala e ao discurso como prática política. Evidentemente, em uma Assembleia, na qual
tudo pode ser discutido, algumas pessoas podem ser mais bem qualificadas do que outras para opinar
sobre determinados temas. Sócrates, personagem no Protágoras de Platão, argumenta que quando
a Assembleia ateniense está discutindo a edificação de casas e prédios, os cidadãos devem e podem
considerar a fala dos construtores em detrimento do discurso dos leigos sobre o tema; assim, se alguém
que o povo não considera um especialista no tema tenta aconselhá-los, não importa quão “bonito, rico
e bem nascido ele seja, nenhuma dessas coisas os induz a aceitá-lo: não somente não lhe dão ouvidos,
como riem dele, até que, atemorizado com a assuada, desista de falar”. (PLATÃO, 2002, p. 61). No
entanto, continua Sócrates, “quando a deliberação diz respeito à administração da cidade, qualquer
indivíduo pode levantar-se para emitir opinião” (PLATÃO, 2002, p. 63), e não importa, conclui o
filósofo, que seja um ferreiro, um sapateiro, um comerciante, um capitão do mar, um homem rico
ou pobre, de boa família ou não. Na Assembleia, a isegoria (igualdade) e a liberdade são direitos de
todos os cidadãos. Nela, a democracia grega representa a criação do espaço público por excelência,
lugar de invenção da democracia direta, sem distinção entre pessoas e representantes, entre cidadãos e
especialistas. Todavia, a Assembleia não era aberta para todos: dela só participavam homens maiores de
18 anos considerados cidadãos, ficando de fora das decisões políticas escravos, estrangeiros e mulheres.
Na democracia grega o demos (o povo), portanto, não correspondia à totalidade das pessoas. Somente
cinco séculos após a experiência da democracia grega, com base na Religião Cristã – autoproclamada a
religião de um único Deus para todos os homens – encontramos a ideia do povo como totalidade dos
entes humanos, a igualdade pensada universalmente e, finalmente, a cidade como espaço de comunhão
de um único povo e de um único interesse. Santo Agostinho, ainda que não seja propriamente um
teórico da democracia, desenvolveu, em sua obra A cidade de Deus, a origem da política – a cidade dos
homens – da justiça e do povo orientado por essa ideia capital de comunhão de interesses.

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Dois amores deram origem a duas cidades: o amor a si mesmo até o desprezo de Deus, a terrena; e
o amor de Deus até o menosprezo de si, a celestial. A primeira se glorifica em si mesma; a segunda
se glorifica no Senhor. A primeira está dominada pela ambição do domínio de seus príncipes ou as
nações que submetem; a segunda utiliza mutuamente a caridade dos superiores mandando e os súditos
obedecendo; uma ama a própria força na pessoa dos seus soberanos, e a outra glorifica a Deus: Senhor,
que é minha virtude, eu vos amarei. (AGOSTINHO, 2000a, p. 1319).

Duas coisas, de imediato, chamam atenção nas palavras de Agostinho. Em primeiro lugar, a
separação entre o espaço público, a cidade dos homens, como o lugar da política; e a cidade de Deus, o
lugar da virtude, da verdade e da justiça sempiterna. Em seguida, a descrição agostiniana, quase precisa,
dos motivos que movem a política no domínio da civitas dos homens: a ambição pelo poder fundada
no amor de si. Podemos dizer, com base em Santo Agostinho, que a política, pensada como espaço
público, como cidade dos homens, estaria na origem de todas as injustiças terrenas, pois ela despreza as
virtudes como caridade, amor ao outro e, ainda, parrhesia. Todavia, Santo Agostinho não é definitivo
sobre essa separação, pois a cidade dos homens – palco das injustiças – se aproxima e se reúne à cidade
de Deus pela justiça e pelo seu povo. No capítulo XXI do livro XIX da mesma obra, retomando uma
definição de Cipião sobre República, Estado e Povo, Santo Agostinho estabelece que a República
(= Estado) é uma “empresa do povo”, e o “povo” não é reunião de indivíduos, mas “uma associação de
pessoas baseada na aceitação do direito e na comunhão de interesses”. (2000a, p. 1534). Para Agostinho,
podemos dizer, a justiça – que aproximaria a República dos homens da cidade de Deus – não estaria
fundada na produção de um consenso por meio do dizer livre (isegoria) e sincero (parrhesia), mas em
uma igualdade original, no amor à lei eterna. Para Santo Agostinho, como podemos ler no livro três das
Confissões, a lei eterna que ordena todas as coisas é o verdadeiro fundamento das leis civis:

Verdadeira justiça interior, que não julga pelo costume, mas pela lei retíssima de Deus Onipotente.
Segundo ela formam-se os costumes das nações e dos tempos, consoante às nações e aos tempos,
permanecendo ela sempre a mesma em toda parte, sem se distinguir na essência ou nas modalidades,
em qualquer lugar. (1973, p. 63).

Desse modo, a função da lei civil é estruturar a ordem civil em conformidade com uma lei prévia
que é a própria expressão do amor e da verdade de Deus, inspirada e comunicada por Deus, em
detrimento do amor de si mesmo. Em Santo Agostinho, a obediência livre aos mandamentos divinos
torna possível a uma associação de pessoas ser reconhecida como um povo: uma multidão de seres
racionais associados na participação concorde de um interesse comum.
Essas definições de povo e de justiça de Agostinho – associação fundada no amor e na participação
livre de um interesse comum e anterior à própria associação – à primeira vista, ambiguamente,
confrontam-se e harmonizam-se com as duas grandes tradições do pensamento político: o republicanismo
de Maquiavel e o contratualismo iluminista, que formam, por assim dizer, a base filosófica de nossa
concepção moderna de Democracia.

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Maquiavel, que separou as virtudes cristãs da virtú política – pois as primeiras ameaçam a
segunda – pensa, do começo ao fim, a política, a justiça e o povo no domínio da cidade dos homens e
do amor de si mesmo, como podemos ler, por exemplo, no capítulo XVIII de O príncipe:

No entanto, não é preciso que o príncipe tenha todas as qualidades mencionadas; basta que aparente
possuí-las. Teria eu a audácia de assegurar que, possuindo-as e usando-as todas, tais qualidades ser-lhe-iam
nocivas; mas, aparentando possuí-las, são-lhe benéficas; por exemplo: de um lado pareceria ele ser
realmente piedoso, fiel, humano, íntegro, religioso, e de outro teria ânimo de uma vez obrigado pelas
circunstâncias a não o ser, torna-se o contrário. E é preciso compreender que um príncipe, em especial
quando novo, não pode observar todas as coisas a que são obrigados os homens tidos como bons, pois
é muitas vezes forçado, para manter o governo, a agir contra a caridade, a fé, a humanidade, a religião.
Por isso, é necessário que tenha ânimo disposto a voltar-se para a direção a que os ventos e as mudanças
da sorte o impelirem e, como foi dito antes, não partir do bem, mas, se lhe for possível e se a isso for
constrangido, a saber entrar para o mal. (1999, p. 111).

Todavia, não nos interessa esse Maquiavel ardiloso, gênio maligno da política, que o texto anterior
descontextualizado autorizaria. Antes, é prudente admitir que o texto de Maquiavel não se explica pela
designação do mal que reencontramos no adjetivo ‘maquiavélico’. Como bem estabeleceu Rousseau
em sua obra O contrato social, Maquiavel, “fingindo das lições aos reis, deu-as, grandes aos povos.
O príncipe de Maquieval e o livro dos republicanos”. (1978a, p. 89). Ou, ainda, como interpretou
Merleau-Ponty, Maquiavel fala ‘do’ poder e fala ‘contra’ o poder. E poder, no estrito sentido político,
na cidade dos homens – o principado – não está assentado em uma comunhão de interesses; muito
pelo contrário, nasce de um contínuo estado de disputa e conflito que opõe, pelo menos, dois polos de
interesses: dos grandes e do povo. No capítulo IX de O príncipe, Maquiavel sustenta que o conflito
nasce e alimenta essa oposição de forças que compõem a cidade e que, por sua vez, lutam continuamente
pelo poder para atender a seus interesses específicos ou, ainda, a suas diferenças irredutíveis a um
consenso permanente ou a um interesse comum:

[...] digo que se alcança o principado ou pelo favor do povo ou pelo favor dos poderosos. Em todas
as cidades acham-se essas duas tendências diferentes e isso vem do fato que o povo não quer ser
dominado e nem oprimido pelos poderosos, e estes desejam governar e oprimir o povo. Desses
dois apetites distintos origina-se, nas cidades, um dos seguintes resultados: principado, liberdade e
desordem. (1999, p. 73).

Para Maquiavel, portanto, a política como uma comunhão universal de interesses, no sentido
agostiniano, é praticamente impossível. O conflito de interesses, que opõe o desejo de dominar ao
desejo de não ser dominado, pode até ser sufocado ou controlado, mas, como o recalque de um projeto
de vida não realizado que habita nossas almas, jamais será completamente anulado. Basta, na perspectiva
de Maquiavel, um vácuo de poder, uma demonstração de fraqueza do príncipe, para que o interesse de
dominar reapareça, geralmente mediado por diferentes formas de violência: armada ou não2.

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Ciente desse problema diagnosticado por Maquiavel, a tradição contratualista repensou a origem
do poder civil. A lógica da força perdeu lugar para o direito, e a disputa foi sobrepujada pelo pacto. Para
Hobbes, assim como para Rousseau, por exemplo, a descoberta de um interesse comum – próximo
de Agostinho apenas num sentido formal – tornou possível uma associação, um pacto social: a defesa
da vida, no caso de Hobbes, e a garantia da liberdade para Rousseau. O interesse comum, portanto,
a garantia de direitos, não resulta de consenso, de preferências pessoais ou mesmo de sentimentos
cristãos como caridade e amor ao próximo.
Na perspectiva do O contrato social de Rousseau, publicado quase 30 anos antes da Revolução
Francesa, a ordem civil e o poder soberano somente podem ser legitimamente instituídos por meio de
um pacto social. A premissa geral rousseauniana – aparentemente próxima da noção de democracia
deliberativa que discutiremos mais adiante – sustenta que os homens são naturalmente livres e
independentes e que não há autoridade natural de homem nenhum sobre seus semelhantes. Rousseau,
em O contrato social (livro 1, capítulos: II, III, IV), rejeita qualquer convenção que queira fundar
uma ordem civil baseada: i) na mais antiga das sociedades, a família (nela os homens se ligam apenas
por uma necessidade de sobrevivência, que logo passa, e quando isso acontece eles se tornam senhores
de si, livres e independentes.); ii) num raciocínio segundo o qual os homens não são naturalmente
iguais, pois uns nascem destinados a dominar e outros a serem dominados; iii) no pretenso direito do
mais forte (da força não resulta direito algum e a ela só se obedece por prudência e nunca por dever;
cessando a obrigação, a força, não há mais dever, não há mais direito e este não se constitui coisa
volúvel assim, que se dissipa com tanta facilidade); iv) na alienação voluntária da liberdade em favor de
um déspota; v) no direito de escravizar decorrente da guerra.
Contra todas essas perspectivas tácitas – naturais ou históricas – de submissão, a obra de Rousseau
estabeleceu a lógica do pacto. O poder político só é legítimo se for contratado, pactuado, acordado
por homens livres e iguais. Desse modo, logo na abertura de O contrato social, Rousseau manifesta
o objetivo primordial de sua obra: “Quero indagar se pode existir na ordem civil alguma regra de
administração legítima e segura, tomando os homens como são e as leis como devem ser. Esforçar-me-
-ei sempre, nessa procura, para unir o que o direito permite ao que o interesse prescreve a fim de que
não fiquem separadas a justiça e a utilidade”. (1978a, p. 21).
Todavia, como fazer um contrato sem se despojar da liberdade? Paradoxalmente, no capítulo VI do
livro I de O contrato social, Rousseau nomeia como cláusula fundante do pacto social a alienação total e
irrestrita de cada contratante. Por meio da alienação voluntária não restará direito ou vontade particular
alguma, pois seriam a causa da ruína do pacto: “Essas cláusulas, quando bem compreendidas, reduzem-
-se todas a uma só: a alienação total de cada associado, com todos os seus direitos à comunidade toda”.
(1978a, p. 32). No ato de alienação o indivíduo une sua vontade particular a uma única vontade; leva
a própria vontade ao grau máximo de realização, agora transformada em um único tecido, a vontade
geral. A alienação sem reservas impõe, portanto, que cada contratante esteja submetido a todos (e
esse todos se expressa pela vontade geral) e, ao mesmo tempo, seja parte integrante da vontade geral.
Por isso mesmo, na lógica do texto de Rousseau, após a alienação, cada contratante obedece apenas à

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própria vontade: “Enfim, cada um dando-se a todos não se dá a ninguém e, não existindo um associado
sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo, ganha-se o equivalente de
tudo o que se perde, e maior força para conservar o que se tem”. (1978a, p. 33).
A alienação universal, conforme a criativa e surpreendente lógica interna do texto de Rousseau,
cria as condições para que todas as escolhas e ações dos cidadãos, amparadas na vontade geral sejam, do
ponto de vista do direito político, livres. No âmbito da obra O contrato social, a liberdade consiste no
direito do cidadão de criar leis para si mesmo numa cadeia de relações e compromissos com o outro.
Portanto, a liberdade, o direito de seguir a própria vontade, de um direito natural limitado às forças
individuais, ganha, com o contrato social, o amparo das leis e a proteção do Estado: “Poder-se-ia, a
propósito do que ficou acima, acrescentar à aquisição do estado civil a liberdade moral, única a tornar
o homem verdadeiramente senhor de si mesmo, porque o impulso do puro apetite é escravidão, e a
obediência à lei que se estatui a si mesmo é liberdade”. (ROUSSEAU, 1978a, p. 37).
Portanto, a vontade geral, poder soberano e legítimo nascido do pacto social, é a expressão
política do ser da vontade, dirigida para assegurar um interesse comum de todos os homens, isto é:
uma existência livre e igual. O pacto social na perspectiva de Rousseau não está, é verdade, estruturado
em uma comunhão de diferenças, mas em um interesse comum a todas as vontades: a liberdade.
A própria vontade geral, nascida da alienação total, da cláusula original do pacto, é a marca de
uma vontade que reencontramos universalmente em todos os homens, e resulta de uma unidade
primordial – a vontade de ser livre. Assim, nascida do pacto, a vontade geral é a realização política de
um interesse comum:

Há muitas vezes grande diferença entre a vontade de todos e a vontade geral: esta olha somente o
interesse comum, a outra o interesse privado, e outra coisa não é senão a soma de vontades particulares;
mas tirai dessas mesmas vontades as que em menor ou maior grau reciprocamente se destroem (6), e
resta como soma das diferenças a vontade geral. (ROUSSEAU, 1978a, p. 56).

A fórmula da liberdade civil – obedecer à vontade geral é obedecer a si mesmo –, nascida da


alienação voluntária, dá origem a novos entes políticos, como Rousseau explica no capítulo IV do
Livro II de O contrato social: “[...] a república ou o corpo político, [...] Estado quando passivo,
soberano quando ativo [...]. Quanto aos associados, recebem eles, coletivamente, o nome de povo e
se chamam, em particular cidadãos, enquanto partícipes da autoridade soberana, e súditos enquanto
submetidos às leis do Estado”. (1978a, p. 73). Enquanto a lei deve nascer da vontade, o governo, como
está no livro III, é o agente político intermediário entre o Estado e os cidadãos, um dispositivo político
desprovido de vontade própria e, por consequência, não livre: “É um corpo intermediário estabelecido
entre os súditos e o soberano para sua mútua correspondência, encarregado da execução das leis e da
manutenção da liberdade, tanto civil como política”. (1978a, p. 74). O governo, nesse sentido, é uma
máquina sem livre-arbítrio. Desse modo, no livro III de O contrato social o discurso rousseauniano
muda de plano, passando do direito para a ciência política, dos fundamentos do pacto para a teoria de
governo. Como, então, deve ser o governo? Os dois primeiros pontos rousseaunianos sobre o governo

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são de natureza negativa, pois dizem o que o governo não é e, principalmente, estabelecem o que ele
não deve fazer. São postulados universais, isto é, servem para todos os Estados e formas de governo.
Portanto, não cabe ao governo fazer leis, pois ele não é um corpo legislativo, mas tão somente um
corpo executivo desprovido de vontade própria. O governo, em si mesmo, não é uma fonte de poder.
Ele atua com poder e autoridade delegada, permanece sempre subordinado à vontade geral. Todavia,
ao mesmo tempo que é necessário, também representa uma ameaça constante ao poder soberano.
Todo governo tem uma tendência – quase um ímpeto natural antidemocrático – de se apropriar
do Estado, de confundir-se com o poder soberano e colocar-se acima das leis e esquecer-se de sua
função de encarregado: “[...] quando o príncipe não mais administra o Estado de acordo com as leis e
usurpa o poder soberano. [...] quando os membros dos governos usurpam isoladamente o poder [...]”.
(ROUSSEAU, 1978a, p. 111).
Como evitar, portanto, a usurpação do poder por parte do Governo? Como impedir que o
governo se transforme de agente do Estado em poder soberano? Nesse ponto, Rousseau reintroduz
o expediente grego da democracia direta. A reunião constante e frequente do povo, na forma de
assembleias estabelecidas previamente pela lei, é o dispositivo de poder legítimo que pode limitar o
governo à sua condição de poder intermediário. Há um compromisso prévio, um dever cívico, fixado
pela lei, anterior e independente do governo, que impõe a cada cidadão o dever de participar das
assembleias ‘legítimas’. Para Rousseau, não basta que o povo promulgue as leis e escolha um governo,
pois a sobrevivência do pacto e a inviolabilidade da vontade geral dependem da presença do povo no
espaço público. A única forma de evitar a usurpação do poder pelo governo é a voz ativa da vontade
geral, é a ocupação dos espaços públicos de poder pelo poder soberano, é a visibilidade e a presença do
poder soberano em sua forma original, o povo. Portanto, o povo, após o pacto, só se reconhece como
tal nas assembleias. O cidadão, o particular, o trabalhador isolado não é, em si mesmo, o povo, não
representa a forma essencial deste. O povo só o é nas assembleias, na ocupação das cidades, no exercício
de deliberar, impondo diretamente ao governo sua vontade. A vigilância constante e permanente do
povo é o remédio contra a usurpação do poder pelo governo, isto é, pelo encarregado.

Não basta que o povo reunido tenha uma vez fixado a constituição do Estado sancionando um corpo
de leis; não basta, ainda, que tenha estabelecido um governo perpétuo ou que, de uma vez por todas,
tenha promovido a eleição dos magistrados; além das assembleias extraordinárias em que os casos
imprevistos podem exigir, é preciso que haja outras, fixas e periódicas, que nada possa abolir ou adiar,
de tal modo que, no dia previsto, o povo se encontre legitimamente convocado pela lei, sem que haja
necessidade de qualquer outra convocação formal. (ROUSSEAU, 1978a, p. 104).

Como o parágrafo anterior estabelece, o direito às assembleias do povo não depende do governo,
nasce do próprio pacto e, nesse sentido, é irrevogável por qualquer governo. Assim, na república
rousseauniana, a democracia direta não é uma forma de governo, mas representa o modelo de um
regime constitucionalista, a forma de poder soberano que antecede e funda o Estado, faz as leis e
estabelece o governo.

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O contrato social, portanto, reinaugurou na modernidade a noção de espaço público como


lugar de liberdade e igualdade política, refundando a noção grega de Assembleia. Desse modo, a
grande novidade daquela obra é o reestabelecimento dos fundamentos de uma democracia direta no
pensamento político moderno. Primeiro, o contrato está na origem do Estado, é, nas palavras de
Rousseau, uma “obra de arte”. (1978a, p. 102). O pensamento rousseauniano sustenta, ainda que de
maneira não inédita, um princípio fundamental do republicanismo moderno presente em todas as
constituições democráticas: a separação entre Estado e governo. É preciso respeitar a ordem das razões
do contrato social. Do pacto, imediatamente, nascem o poder soberano, os cidadãos, o Estado, e,
num segundo momento, promulgam-se as leis e só então, num momento bem posterior, institui-se o
governo e, o mais importante, na condição de encarregado.
Se a concepção rousseauniana de contrato social pode ser considerada a afirmação das condições
teóricas para uma nova concepção de democracia direta, no século XIX, após os ecos das revoluções
Americana e Francesa, o tema da democracia – assim como o das lutas pela democracia – passou a
ser pensado não somente com base em seus fundamentos filosóficos, mas também em referência a
sua situação histórica. Não se trata apenas de falar dos princípios de um Estado de Direito, do pacto
social com base na liberdade e na igualdade como direitos abstratos, mas, sobretudo, da igualdade
e da liberdade enquanto fenômenos concretos. No século XIX, sem dúvida alguma, coube ao
historiador Alexis de Tocqueville descrever essa experiência como momento inaugural da democracia
contemporânea. Aristocrata e intelectual francês, Tocqueville viajou aos Estados Unidos (1831) para
estudar o sistema prisional americano. Dessa viagem nasceu o clássico da sociopolítica A democracia
na América. Nele o autor descreve os hábitos e costumes do povo americano e a relação disso tudo
com as instituições políticas e com a formação da sociedade civil. Tocqueville encontra nos EUA
uma sociedade radicalmente diferente da francesa. Ainda que a Revolução Francesa, alguns anos antes
de seu nascimento, tenha provocado um profundo abalo no sistema de privilégios aristocratas, foi
somente nos EUA que Tocqueville vislumbrou uma situação de igualdade política, econômica e social,
ainda que fosse tão somente de igualdade de condições. Desse modo, logo na introdução de sua obra
podemos ler sobre a centralidade da igualdade na formação de um certo espírito democrático.

Entre os novos objetos que chamaram a minha atenção, durante a minha permanência nos Estados
Unidos, nenhum me tocou mais vivamente do que a igualdade de condições. Facilmente percebi
a influência prodigiosa que este fato elementar exerce sobre a marcha da sociedade; ele confere ao
espírito público uma certa direção, uma certa recorrência às leis; aos governantes, novos preceitos e,
aos governados, hábitos peculiares. (1961, p. 7).

A igualdade de condições, em sua interpretação, é o grande impulso para o progresso político e


social e, sem dúvida alguma, o elemento essencial da democracia. Do exame da situação americana,
Tocqueville apresenta um conceito universal de democracia fundado em uma situação de equilíbrio
e, ao mesmo tempo, de interdependência entre igualdade e liberdade, pois a garantia de condições
de igualdade deve ser inseparável da preservação da liberdade. O constante aumento das condições

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de igualdade para Tocqueville representa uma lei universal e necessária para a construção de uma
sociedade democrática: “É a própria igualdade que torna os homens independentes uns dos outros,
que os faz contrair o hábito e o gosto de seguir apenas a sua vontade [...] e lhes sugere a ideia e o amor
da liberdade política”. (1961, p. 431).
Entretanto, em uma democracia as condições de igualdade e liberdade estruturam, necessariamente,
um novo arranjo do poder. Para Tocqueville, a democracia é única, “pois nela o poder político foi
libertado da arbitrariedade de um governo pessoal, tal como um rei” (1961, p. 433); no máximo, como
já havia estabelecido Rousseau, o poder pertence ao povo.
Para Lefort, leitor de Tocqueville e Maquiavel, filósofo francês central no debate político
contemporâneo, a democracia opera uma grande mudança: o poder é um ente vazio, não tem corpo
e não pertence a absolutamente ninguém. Essa grande invenção democrática, um poder vazio, impõe
ao espaço político a dinâmica de uma competição que se renova periodicamente para constituir uma
autoridade, sempre passageira, que se faz e refaz em virtude da manifestação da vontade popular.

O lugar do poder torna-se um lugar vazio. Inútil insistir nos pormenores do dispositivo institucional.
O essencial é que impede aos governantes de se apropriarem do poder, de se incorporarem no poder.
Seu exercício depende do procedimento que permite um reajuste periódico. É forjado ao termo de
uma competição regrada, cujas condições são preservadas de maneira permanente. Esse fenômeno
implica a institucionalização do conflito. Vazio, inocupável – de tal maneira que nenhum indivíduo,
nenhum grupo poderá lhe ser consubstancial – o lugar do poder mostra-se infigurável. São visíveis
unicamente os mecanismos de seu exercício, ou então os homens, simples mortais, que detêm a
autoridade política. (LEFORT, 1991, p. 32).

A democracia, na leitura de Lefort, em consonância com as descrições e análises de Tocqueville,


fez nascer o espaço da política como inominável e absolutamente inocupável, colocando fim à ideia
de que as pessoas, em função de variáveis privadas, estariam predestinadas a ocupar funções e posições
especiais na sociedade. O espaço vazio supõe que o poder político está separado das pessoas e de suas
biografias e personalidades específicas.
Todavia, como já alertava Tocqueville, também é preciso considerar os riscos desse processo
igualitário, pois ele pode suprimir a liberdade e dar origem à tirania da maioria ou, ainda, a um Estado
despótico autocrático. A primeira situação remonta ao aparecimento de uma sociedade de massa, na
qual o poder da maioria impede que uma minoria tenha voz, lugar e direitos. Já o Estado despótico
autocrático encontra no individualismo e no desinteresse do cidadão pelos negócios públicos a situação
ideal para seu surgimento. A apatia política e a falta de espírito cívico dos cidadãos, preocupados com
seus ganhos particulares e imediatos, representam para Tocqueville a situação ideal para o aparecimento
de um governo autocrático que ocupe o poder como uma propriedade particular. Também para Lefort
uma democracia sempre apresenta o risco – o espaço vazio – de se tornar opressiva, uma tirania,
quando, por exemplo, um demagogo populista ou um partido político – de direita ou esquerda –
ocupam o lugar sustentando que incorporam ou expressam o povo.

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A situação dos EUA no século XIX, a centralidade das condições de igualdade como elemento
fundamental da democracia, à primeira vista, revigorou a ideia de comunhão de interesses do povo
ou, mesmo, as noções de soberania popular e liberdade, revelando, sobretudo na descrição da natureza
vazia do poder, uma aproximação teórica com pensadores iluministas, como o conceito de vontade
geral de Rousseau. Para Tocqueville, na democracia dos EUA, “o povo reina sobre o mundo político
como Deus sobre o universo”. (1961, p. 60).
Entretanto, Tocqueville ainda permanece preso à noção de ‘condição de igualdade’ e num
primeiro momento ignora, a exemplo dos gregos, que a democracia americana não incluía os nativos,
os escravos e as mulheres. A noção de condição de igualdade remonta, assim, como o pacto social de
Rousseau, a um interesse comum prévio e genérico. Todavia, a sociedade pós-Tocqueville mudou,
pluralizou-se e multiplicou os interesses. Ouvimos, já faz muito tempo, ao lado da voz do sujeito
universal de direito, a voz do ser humano concreto que luta por uma liberdade muito mais ampla e
concreta do que aquela estabelecida pelo pacto social. Sabemos, já faz tempo, que uma igualdade de
condições, concebida unicamente no registro operacional e jurídico da política, é insuficiente para
promover uma situação de igualdade de fato. Nesse sentido, as pessoas não se sentem plenamente
realizadas apenas por se reconhecerem como cidadãs livres, porque podem votar, expressar ideias e
serem tratadas igualmente perante à lei.
Os princípios básicos da democracia moderna formam, sem dúvida alguma, a base de uma sociedade
fundada em um interesse comum. Entretanto, eles não parecem ser mais suficientes para dar dignidade
às diferentes existências e interesses: das mulheres, dos negros, dos gays, dos transexuais, dos índios etc.
O espaço social é, na expressão de Lefort, “formatado”, “encenado”, “posto em sentido”; sua ordem
traduz e é determinada por certa representação das relações sociais. Por isso, uma abordagem ao espaço
público pela neutralidade ou que submeta os sujeitos a uma forma de exigência de neutralidade torna-
-se insuficiente. Uma sociedade sempre se apresenta como uma totalidade diferenciada e articulada,
mas o princípio gerador dessa diferenciação, o modo de instituição peculiar a essa sociedade, deve estar
relacionado a sua definição política.
Em apoio às análises de Maquiavel, como já escrevemos antes, Lefort reelabora a ideia da
inseparabilidade do conflito social e da política. Entretanto, para ele, uma política genuinamente
democrática não se distingue apenas por aceitar a realidade do conflito, mas pelo estabelecimento
de condições de integrá-lo à dinâmica política. Por esse motivo, Lefort define a democracia moderna
como a institucionalização do conflito. Nesse sentido, o grande desafio da democracia está em lidar
com uma sociedade de interesses plurais e, muitas vezes, anônimos, antagônicos e invisíveis. Todavia,
como fazer coexistir, comungar na política real as diferenças de interesses sem os riscos, por exemplo,
de uma ditadura da maioria? A saída, ainda, somente pode ocorrer pela via democrática? Mas que tipo
de democracia pode responder com legitimidade ao desafio da pluralidade?
Na última metade do século XX, influenciados pelas análises precedentes dos gregos, bem como
de Maquiavel, Rousseau, Tocqueville e Lefort, podemos destacar pelo menos duas grandes teorias
democráticas que procuram responder ao problema do conflito e da pluralidade: a noção habermasiana

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de democracia deliberativa e, mais recentemente, as elaborações de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe


sobre democracia radical, como podemos ler em sua obra Hegemonia e estratégia socialista.
Em Direito e democracia, o filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas apresenta um
modelo de democracia integracionista entre o direito civil formal e o estado de bem-estar social.
Esse modelo, em sua interpretação, se faz necessário para regular o capitalismo e limitar o abuso de
poder do Estado e, ainda, do mercado contra as liberdades individuais, como aquelas estabelecidas
na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Para alcançar isso é premente, sustenta
Habermas, mostrar que há uma conexão profunda entre o Estado de direito e a democracia. Mais
especificamente – respondendo também aos temores de Tocqueville e Lefort a respeito da ditadura
da maioria – os direitos individuais, ou Direitos Humanos, constituem para Habermas espécies
de limites legítimos para a ação da maioria que, em uma democracia, supostamente tem a última
palavra. Portanto, em primeiro lugar, um governo democrático deve, obrigatoriamente, respeitar
os direitos dos indivíduos. Desse modo, por exemplo, o direito à propriedade representaria uma
fronteira para o apetite estatizante do Estado que, paradoxalmente, também deveria se esforçar para
alcançar a igualdade democrática de condições para todos os cidadãos. Entretanto, isso não significa
que Habermas seja favorável ao individualismo de propriedade, pois, como afirmamos há pouco,
o que está em questão é certa domesticação do capitalismo e, por extensão, a superação de uma
concepção atomística e monológica do indivíduo como um ente de direitos sem compromissos sociais
e políticos. O modelo de democracia habermasiano, nesse sentido, fundado no reconhecimento nos
direitos individuais – correspondente aos Direitos Humanos – demarca, por um lado, o poder de
intervenção do Estado e do mercado contra o indivíduo e, por outro, coloca em suspeição a validade
do individualismo atomístico.

Uma ordem jurídica não pode limitar-se apenas a garantir que toda pessoa seja reconhecida em seus
direitos por todas as demais pessoas; o reconhecimento recíproco dos direitos de cada um por todos
os outros deve apoiar-se, além disso, em leis legítimas que garantam a cada um liberdades iguais,
de modo que a liberdade do arbítrio de cada um possa manter-se junto com a liberdade de todos.
(HABERMAS, 1997, p. 52).

Portanto, o modelo de democracia habermasiano não se estrutura exclusivamente no direito do


indivíduo, como estabelece a maior parte das teorias liberais, nem na vontade soberana do povo, como
está em Rousseau, mas supõe um meio-termo entre ambos: o consenso racionalmente deliberado.
Para Habermas, a legitimidade das leis resulta de um processo de autorregulação e está fundada na
condição universalizante da comunicação, na qual os atores políticos partem do pressuposto de que as
únicas normas legítimas são aquelas sobre as quais todas as pessoas envolvidas concordaram após uma
discussão racional. Todavia, o que seria, de modo geral, esse tipo de discussão?
O pressuposto fundamental para definir a discussão racional encontra a possibilidade no próprio
uso da linguagem repensada por Habermas no corpo da teoria do agir comunicativo. Segundo esse
autor, inspirado em teóricos da linguagem como Frege e Wittgenstein, estamos inevitavelmente

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compromissados por certas regras do uso do discurso, tais como: todos têm a capacidade de argumentar e
entrar num campo de disputa discursiva para expressar as próprias opiniões; todas as afirmações podem
ser questionadas. O ponto central da argumentação, a teoria do agir comunicativo – espinha dorsal da
obra de Habermas – repensa a constituição das disputas sociais pela noção de intercompreensão. No
agir comunicativo, entende Habermas, no âmbito do mundo da vida, os atos de fala que importam – e
devem ser colocados em cena como objeto de discussão – são aqueles que vinculam a fala do agente
político a uma pretensão, não de verdade universal, mas de validade criticável. Por isso mesmo podemos
falar, com base em Habermas, em uma concepção pós-metafísica e não dogmática de verdade aplicada
ao domínio do mundo da vida, como espaço de construção de consensos mediados por uma teoria do
discurso. Em Direito e democracia, Habermas estabelece:

Com o uso da linguagem orientada pelo entendimento, através do qual os atores coordenam suas
ações (agir comunicativo) essa relação de tensão emigra para o mundo dos fatos sociais... Enquanto a
coordenação da ação, e com ela o entrelaçamento de interações, transcorrer pela via de processos de
entendimento, as convicções compartilhadas intersubjetivamente formam o médium da interação
social. (1997, p. 56).

O agir comunicativo é o termo estruturante da concepção de democracia deliberativa, na medida


em que rompe com a ideia de um agente político monológico que falaria sempre com a pretensão de
estabelecer uma verdade de caráter universal. Entretanto, a prática da discussão racional também requer
procedimentos éticos e jurídicos institucionalizados, como a garantia de alguns direitos individuais
fundamentais, tais como o uso de argumentos que podem ser aceitos por todos, os direitos iguais à
comunicação e participação, entre outros. Mais concretamente, isso significa que os membros devem
reconhecer mútua e aprioristicamente certos direitos com o objetivo de regular sua vida em comum,
de acordo com o princípio da discussão, como igualdade e liberdade de expressão: “À luz do princípio
do discurso é possível fundamentar direitos elementares de justiça, que garantem a todas as pessoas
igual proteção jurídica, igual pretensão de ser ouvido, igualdade da aplicação do direito, portanto, o
direito a serem tratadas como iguais perante à lei etc”. (HABERMAS, 1997, p. 162). Assim, esses
direitos permitem a prática cívica da autorregulação, e o agir comunicativo é, nesse caso, o princípio
democrático do discurso que confere legitimidade às leis.
A democracia deliberativa de Habermas parte do princípio de que os homens querem se entender
e estão naturalmente, por assim dizer, orientados racionalmente para a busca de um acordo mútuo.
Portanto, a lógica central da democracia deliberativa supõe uma formação discursiva da vontade nas
quais os cidadãos iguais possam, por meio da manifestação pública de argumentos, definir as regras
e condições de associação. Entretanto, esse modelo é somente normativo, no sentido em que apenas
indica quais são as condições ideais que uma sociedade democrática deveria se aproximar. Assim, a
democracia deliberativa, como falamos há pouco, supõe um integracionismo do Estado constitucional
às dimensões sempre plurais do mundo da vida. Nessa perspectiva, o voto e a eleição de representantes
para as câmaras legislativas representa apenas uma pequena etapa do processo de deliberação que,

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em sua essência, pertence aos debates públicos entre os cidadãos. O Congresso Nacional, nesse caso,
seria apenas uma espécie de setor de homologação dos problemas sociais identificados, discutidos,
deliberados e transmitidos pela sociedade civil.
Para Habermas, ao contrário do que uma primeira impressão possa sugerir, a democracia
deliberativa não suprime o campo de disputas típico do mundo da vida, pois os processos democráticos
só são legítimos se os agentes construírem o consenso e não simplesmente concordarem previamente
ou passivamente com determinado ponto de vista. O consenso deve nascer de trocas, debates em
fóruns públicos destinados para isso. Para Habermas, os cidadãos num processo deliberativo devem
estar abertos para colocar em suspeição seus pontos de vista e, ao mesmo tempo, acolher os argumentos
do outro. Esse princípio de reciprocidade supõe o deslocamento de um regime de preferências pessoais
para um acordo de razões. O que a democracia deliberativa supõe é uma normalização das diferenças
por meio da superação das posições pessoais em benefício do melhor argumento, impondo, portanto,
à política, um princípio ético discursivo: o consenso.
A democracia deliberativa habermasiana entende a política democrática como um espaço civil
de discussão, durante a qual os cidadãos identificam problemas comuns e resolvem conflitos por
meio de debates. Entretanto, para Chantal Mouffe a democracia deliberativa não leva em conta
dois aspectos fundamentais do mundo da vida: a existência de conflitos irreconciliáveis fundados
no caráter plural e dinâmico das diferentes identidades que compõem o tecido social e a lógica das
paixões – dos sentimentos irracionais, inconscientes – como elemento estruturante das identificações
sociais. Em The return of the political, Mouffe entende que há uma explosão de particularismos,
pluralidades e identidades que indicam a impossibilidade de uma perspectiva essencialista e, mais
precisamente, da própria pretensão de um consenso universalizante fundado no agir comunicativo
de uma razão deliberativa:

O que é uma ‘sociedade democrática’? É uma sociedade pacificada e harmoniosa onde as divergências
básicas foram superadas e onde se estabeleceu um consenso imposto a partir de uma interpretação
única dos valores comuns? Ou é uma sociedade com uma esfera pública vibrante, onde muitas visões
conflitantes podem se expressar e onde há uma possibilidade de escolha entre projetos alternativos
legítimos? Gostaria de argumentar em favor desta segunda visão porque estou convencida de que, ao
contrário do que hoje é comumente tido como certo, é um equívoco acreditar que uma ‘boa sociedade’
é aquela na qual os antagonismos foram erradicados e onde o modelo adversarial de política se tornou
obsoleto. (2003, p. 11).

Na avaliação de Mouffe, a democracia deliberativa é uma tentativa de expurgar o conflito,


de reduzi-lo a meras disputas procedimentais de natureza legislativa. Para a filósofa, a alternativa é
promover o pluralismo agonístico, que se espera seja contínuo e disputado pela submissão às regras
do jogo, liberais e democráticas. Em uma releitura afirmativa de sua obra escrita com Laclau, num
artigo que apresenta os principais pontos de inflexão e divergência entre as concepções liberais de
democracia – de Habermas e Rawls – em relação ao projeto de um modelo agonístico de democracia,

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Mouffe estabelece que “precisamos de um modelo democrático capaz de apreender a natureza do


político. Isso requer o desenvolvimento de uma abordagem que inscreve a questão do poder e do
antagonismo em seu próprio centro. É tal perspectiva que advogo, cujas bases teóricas foram delineadas
em Hegemony and Socialist Strategy”. (2005, p. 19).
Em Hegemonia e estratégia socialista, obra canônica da teoria sobre democracia radical, em
uma análise que recupera os pressupostos da crítica de Gramsci ao modelo essencialista do marxismo
tradicional, Laclau e Mouffe sustentam que a política contemporânea está marcada por uma profunda
insatisfação identitária, por lutas sociais que decretaram o fim da concepção de um espaço político
ocupado por um modelo unívoco de sujeito e estruturado em uma lei universal da História3. Desse
modo, a democracia agonística está comprometida com a desconstrução da noção de classe social
marxista – uma categoria monotemática sobre a unidade do sujeito – em proveito de novos antagonismos
que reconhecem as lutas mais diversas contra outras formas de subordinação além da econômica. As
lutas sociais, como também as lutas civis contra o racismo e os movimentos feministas, por exemplo,
nos mostram que convivemos constantemente com a sensação de que nossa identidade está ameaçada,
está em perigo de ser forçosamente aniquilada. Com o capitalismo tardio, como estabelecem os autores
no prefácio da edição espanhola de Hegemonia e estratégia socialista, “assistimos constantemente à
redefinição das fronteiras do político e a emergência de identidades populares e coletivas que não se
reconhecem em termos de classes”. (LACLAU; MOUFFE, 2004, p. 7).
As identidades, sobretudo após as revoluções modernas e as lutas civis, já não podem mais ser
encaixadas, sistematizadas, catalogadas com base em categorias rígidas sociais, éticas e/ou políticas.
Entretanto, essa situação não significa que não possamos conceber sujeitos coletivos, como ‘classe
trabalhadora’, ‘homens’, ‘mulheres’, ‘negros’, ‘gays’ ou outros significantes. O que, de certo modo,
está interditado é uma concepção apriorística e absolutamente estável de qualquer identidade. Do
mesmo modo, as diferentes lutas por identidade que se apresentam no tecido social não se resolvem
mediadas por uma racionalidade de procedimentos, como estabeleceu Habermas, pois o tecido social
é permeado por antagonismos, disputas que remetem a uma estrutura discursiva essencialmente
instável, submetida a projetos hegemônicos que ameaçam a estabilidade de toda e qualquer identidade
social que, em si mesma, podemos dizer, nunca é definitiva. Por meio de uma análise contrária aos
pressupostos teóricos de Habermas, o conflito é entendido como o elemento formador de uma
sociedade democrática e, em última instância, deveria ser contínuo e infindável, pois é no âmbito das
lutas sociais – dos antagonismos – que os sujeitos políticos se afirmam e reconhecem suas identidades
de maneira autêntica e livre.
Em Hegemonia e estratégia socialista, o conceito de hegemonia pensado como elemento
estruturante do tecido social, sem qualquer vínculo com ‘uma lei necessária da história’, é o fundamento
da crítica de toda perspectiva essencialista acerca de uma concepção determinista e acabada das
identidades coletivas. As relações sociais estão articuladas em disputas por hegemonia. Além do mais,
um discurso hegemônico nunca alcança toda a sociedade. Laclau e Mouffe suspeitam de todo tipo de

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concepção unitária e harmônica do social. Para os autores não há possibilidade de uma reconciliação
final e definitiva, pois a pluralidade e o antagonismo são constitutivos do social, manifestam seu caráter
aberto e incompleto. Desse modo, afirmam que a democracia não tem lugar num terreno neutro e
“o estabelecimento de uma nova hegemonia requer a criação de novas fronteiras políticas e não sua
desaparição”. (2004, p. 16).
Portanto, são as lutas sociais que possibilitam afirmar democraticamente a identidade dos
diversos grupos de maneira que suas reivindicações possam se articular entre si, em conformidade
com o princípio da equivalência. Para Laclau e Mouffe é inevitável que as pessoas formem cadeias de
equivalência e entrem nas disputas políticas para defender projetos hegemônicos próprios. Um projeto
hegemônico, portanto, é a busca de afirmação de uma ordem política aglutinadora – ainda que precária
e temporária – fundado numa articulação de equivalências.
Laclau e Mouffe ainda esboçam, em sua obra, a noção de equivalência sobre um fundo de
ambiguidade, na medida em que ela não é concebida como modelo de uma relação de identidade entre
objetos, como poderíamos afirmar, por exemplo, existir entre um copo e uma caneca. No âmbito das
lutas sociais, a constituição de uma relação de equivalência é sempre dividida entre o sentido próprio
e literal de uma identidade e uma significação reencontrada num contexto mais amplo. Todavia, uma
cadeia de equivalência não é uma aliança ou um acordo pontual, mas um esforço para suplantar
determinados interesses de grupos antagônicos e modificar a própria identidade dessas forças, como
podemos ler, nessa obra, sobre a relação entre o colonizador e o colonizado.
Em um país colonizado, estabelecem os autores, a presença da potência dominante se mostra
diariamente em uma grande manifestação de conteúdos: nas roupas, no uso da linguagem, na cor
de pele, nos costumes etc. Cada um desses conteúdos equivale a outros desde o ponto de vista de
sua diferenciação, com respeito ao povo colonizado e o colonizador. Uma relação de equivalência,
numa perspectiva ambígua, não suprime as identidades em benefício de um contexto que as envolve –
colonizador e colonizado – mas articula, modifica e subverte essas identidades para expressar uma
significação negativa que não é nada fora do contexto: “o colonizador é construído discursivamente
como o anticolonizado”. (LACLAU; MOUFFE, 2004, p. 219).
Esse conceito operativo de equivalência é central para pensar as lutas sociais como afirmação
de identidades. Do ponto de vista da democracia radical, pensado por meio de diferentes lutas –
antirracistas, antissexistas, ambientais, refugiados e outras – seria necessário articular uma cadeia de
equivalência ampla contra as variadas formas de subordinação, isto é, uma oposição que não fosse restrita
ao domínio econômico da clássica concepção de luta de classes. Assim, uma espécie de princípio de
equivalência plural seria a saída para que as diferentes lutas sociais passassem a operar conjuntamente para
estabelecer igualdades democráticas. De um ponto de vista essencialista, dispendemos continuamente
esforços para conferir ao espaço público uma ordem objetiva e universalizante. Todavia, a experiência
do antagonismo demonstra, de certa forma, a esterilidade desse esforço diante da impossibilidade da
constituição de uma sociedade fundada nesses pressupostos. O antagonismo, nesse caso, é a fronteira
móvel de uma instabilidade permanente.

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As identidades antagônicas, reencontradas em relações de equivalência, articulam práticas


discursivas para estabelecer a concepção de um ‘nós’ em contraposição a um ‘eles’. Desse modo, a
formação das cadeias de equivalência impõe uma luta pelo poder que, em última instância, é a expressão
de uma pretensão hegemônica de identidades fundadas em um terreno precário e sempre vulnerável.
Há uma instabilidade inevitável nas identidades, pois elas são construídas – afirmadas – em contextos
abertos, recheados de diferenças.
Portanto, como já afirmava Maquiavel, se as lutas pelo poder são constitutivas do social, a questão
principal para a política democrática não é como eliminar o poder, mas como constituir formas de
poder mais compatíveis com valores democráticos. Para Mouffe,

compreender a natureza constitutiva do poder implica abandonar o ideal de uma sociedade democrática
como a realização de perfeitas harmonia ou transparência. O caráter democrático de uma sociedade
só pode ser dado na hipótese em que nenhum ator social limitado possa atribuir-se a representação da
totalidade ou pretenda ter controle absoluto sobre a sua fundação. (2005, p. 19).

A democracia radical, dessa forma, realiza uma profunda inflexão sobre a constituição das relações
sociais. Enquanto Habermas estabelece a centralidade do consenso fundado em um discurso com
pretensão de validade criticável, Mouffe e Laclau estabelecem que as lutas sociais – base de todo tecido
social – estão fundadas em pretensões hegemônicas, são embates pelo poder que opõem adversários.
Entretanto, essa noção de adversário, encarada como uma categoria central da legítima pretensão
pelo poder como afirmação de um conflito democrático, impõe, segundo Mouffe, repensar um
deslocamento da complexa noção de antagonismo para a ideia de agonismo: “O antagonismo é a
luta entre inimigos, enquanto o agonismo representa a luta entre adversários. Podemos, portanto,
reformular nosso problema dizendo que, desde a perspectiva do ‘pluralismo agonístico’, o propósito da
política democrática é transformar antagonismo em agonismo”. (2005, p. 20).
Desse modo, como Mouffe escreve em The democratic paradox, recuperando um velho lema
do pensamento de Voltaire, o adversário que se apresenta em uma disputa agonística não é “percebido
como um inimigo a ser destruído, mas como [...] alguém cujas ideias nós combatemos e, ao mesmo
tempo, não colocamos em questão o seu direito a defendê-las”. (2000, p. 102). No projeto de Laclau
e Mouffe, rompendo com a ideia de um único povo fundado em um consenso prévio e com uma
representação simbólica da sociedade como um corpo homogêneo, a democracia se caracteriza pelo
pluralismo de valores e pelos conflitos inevitáveis que dela emergem e pelo espírito agônico que opõem
os adversários.

CONCLUSÃO
Chantal Mouffe e Ernesto Laclau, assim como Lefort, pensam a centralidade do conflito no
processo democrático. O conflito, além de ser um fato permanente na vida e nas instituições políticas,

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é uma proteção contra toda forma de autocracia. Querer eliminá-lo é partilhar de uma visão apolítica e
essencialista. Nesse sentido, cabe ao estado democrático evitar que algum grupo tome o poder, preencha
definitiva e autoritariamente aquele espaço vazio e vascularizado pela pluralidade de interesses que Lefort
entendeu ser a grande invenção da democracia. Desse modo, a proteção contra a ocupação do poder é o
próprio dissenso, pois as disputas constituem o elemento fundamental do tecido social que, em última
análise, se estrutura por meio de contrastes irreconciliáveis em constante renovação. Para os autores,
o Estado deriva do poder e da luta de grupos pré-políticos, e os interesses desses grupos definem suas
interações políticas, formam, como dissemos antes, suas cadeias de equivalências, e articulam os seus
projetos hegemônicos. Portanto, o grande problema não está em restringir o conflito – normalizá-lo –
mas sobretudo, em negá-lo. A crença em um consenso absoluto, a ideia do tecido social como uma
comunhão de interesses formada com base em uma unidade prévia, como falávamos no início deste
trabalho, remonta à negação radical do caráter aberto e mutável do tecido social e, desse modo,
expressa o ponto extremo de uma concepção antidemocrática que pode ser encontrada nas sociedades
totalitárias, nas autocracias religiosas e, mesmo, nos atores políticos que, no âmbito de um regime
democrático, não reconhecem a derrota das urnas e propagam o ódio e a destruição do adversário,
reproduzindo uma lógica de equivalência maniqueísta:

Um exemplo extremo de lógica de equivalência constitui os movimentos milenaristas. Aqui o mundo


se divide, através de um sistema de equivalências [...] em dois campos: da cultura campesina, que
representa a própria identidade, e a cultura urbana, que encarna o mal. A segunda representa o reverso
negativo da primeira. Chegando ao ponto máximo de separação: nenhum elemento de um sistema de
equivalência entra em outras relações que não seja a oposição com os elementos de outro sistema. Não
há uma, senão duas sociedades. E quando a rebelião milenarista tem lugar, o assalto à cidade é feroz,
total e indiscriminado: não existem discursos capazes de estabelecer as diferenças no interior de uma
cadeia de equivalências em que todos e cada um dos seus termos simboliza o mal. A única alternativa
é a imigração massiva para outra região para constituir a cidade de Deus, totalmente segregada da
corrupção do mundo. (LACLAU; MOUFFE, 2004 p. 222).

Para Mouffe e Laclau, o conflito é a materialização – o móvel – de todas as reivindicações sociais


da luta por identidade. Ao rejeitar as posições essencialistas, os teóricos do pluralismo radical sustentam
que as identidades não são fixas, mas dependem de relações que mudam e são contingentes. Assim,
para os teóricos da democracia radical o consenso em si mesmo é sempre precário, pois ele é sempre
temporário e remonta a uma hegemonia apenas aparente. Como estabilização do poder, o consenso
sempre acarreta alguma forma de exclusão. Para Laclau e Mouffe, a democracia radical promove o
pluralismo, reconhecendo a permanência estruturante dos conflitos na esfera democrática. Entretanto,
a ideia não é transformar inimigos em amigos, mas garantir direitos e condições de expressão de
identidades, sobretudo, daqueles que estão permanentemente ameaçadas por práticas e discursos
hegemônicos essencialistas nas suas mais variadas formas: sexista, racista etc.

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BIBLIOGRAFIA
AGOSTINHO, S. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos, S. J. e A. Ambrósio de Pina, S. J. São Paulo:
Abril Cultural, 1973. Livro III, capítulo VII, p. 63. (Os Pensadores).
AGOSTINHO, S. A cidade de Deus. 2 ed. Tradução de João Dias Pereira. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1996. v. 1-2.
AGOSTINHO, S. A cidade de Deus. 2. ed. Tradução de João Dias Pereira. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2000a. v. 2.
AGOSTINHO, S. A cidade de Deus. 2. ed. Tradução de João Dias Pereira. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2000b. v. 3.
LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemonia y estrategia socialista: hacia una radicalización de la democracia. 2.
ed. Buenos Aires: Fondo de Cultura Economica de Argentina, 2004b.
LEFORT, C. A invenção democrática: os limites da dominação totalitária. São Paulo: Brasiliense, 1983.
LEFORT, C. A questão da democracia. In: LEFORT, C. Pensando o político: ensaios sobre democracia,
revolução e liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler,
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. I.
MAQUIAVEL, N. O príncipe. São Paulo: Abril Cultural, 1999. (Os Pensadores).
MOUFFE, C. Por um modelo agonístico de democracia. Tradução de Pablo Sanges Ghetti. Revista de
Sociologia e Política, Curitiba, n. 25, p. 165-175, jun. 2005.
MOUFFE, C. The return of the political. London/New York: Verso, 1993.
MOUFFE, C. The democratic paradox. London/New York: Verso, 2000.
PLATÃO. Protágoras. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Pará: Ed. da UFPA, 2002.
ROUSSEAU, J.-J. O Contrato Social. Tradução de Lurdes Santos Machado. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
(Os Pensadores).
TOCQUEVILLE, A. de. A democracia na América. Belo Horizonte ; São Paulo : Itatiaia; Ed. da USP, 1977.

NOTAS EXPLICATIVAS
1 Por exemplo: a luta pelos direitos civis nos EUA, sobretudo nos anos de 1960; o movimento na década de
1980 intitulado Diretas Já, exigindo eleições diretas para presidente no Brasil; a queda do Muro de Berlim
em 1989, entre outros.
2 A análise de Maquiavel parece explicar dois eventos históricos no Brasil. O golpe militar de 1964, que
marcou a destituição do presidente João Goulart e, mais recentemente, o impeachment da ex-presidente
Dilma Rousseff. Nesses dois casos, os presidentes não foram destituídos por terem cometido algum

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crime, e além do mais a destituição não foi pensada com base em um interesse comum. Os dois casos
de destituição forçada, mesmo considerando as diferenças históricas e os meios, a força das armas ou o
voto dos parlamentares, parecem obedecer à equação de Maquiavel: toda demonstração de fraqueza só faz
alimentar a hostilidade do povo (pelo menos de uma parte) e o desejo de dominar dos grandes.
3 Podemos caracterizar o essencialismo por meio: i) da centralidade da classe trabalhadora; ii) da concepção
da revolução como momento fundacional para uma nova sociedade; iii) da afirmação da possibilidade
de uma vontade coletiva perfeitamente única e homogênea; vi) da história e sociedade como totalidades
inteligíveis. (LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal Hegemonía y estratégia socialista, 2004.)

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
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COMPORTAMENTO SUICIDA: O QUE OS


EDUCADORES DEVEM SABER

Gustavo Estanislau
Rodrigo Affonseca Bressan

INTRODUÇÃO
Quando pensamos sobre saúde mental, uma das situações que causa maior preocupação é, sem
dúvida, o suicídio. Nos últimos anos, o suicídio na adolescência tem sido muito. Impactante em
noticiários, séries de televisão, mídias sociais, nas rodas de conversa em todo o país e tem deflagrado
um debate de grandes proporções na nossa sociedade. Porém, devido à falta de conhecimento somada
à veiculação de notícias sensacionalistas, bem como à distorção de acontecimentos e ao estigma, o
suicídio passou a ser associado equivocadamente a um senso de ‘inevitabilidade’. Isso vem gerando
um clima de desorientação e medo na população. Nesse cenário, é de vital importância que as pessoas
tenham acesso a conhecimento consistente, embasado em evidências científicas para que possamos
reverter esse quadro.
O pensamento sobre morte, os planejamentos e as tentativas de suicídio, embora sejam pouco
frequentes durante a infância, tornam-se mais comuns durante a adolescência. Considerando esse fato,
o presente capítulo oferece uma fonte de recursos confiável sobre crianças e adolescentes que apresentam
comportamento suicida, tendo como proposta empoderar educadores na tarefa de identificar sinais,
intervir da melhor forma em situações de risco e atuar contra elas por meio de medidas preventivas
úteis em sua prática diária.

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Embora a questão do suicídio seja um grande desafio, é importante mencionar que a vasta maioria das
pesquisas destaca que ele é um evento que pode ser prevenido. (LEENAARS, 2005).
Antes de começarmos, gostaríamos de lembrar que, ao ler este material, é conveniente que você
considere as particularidades de cada situação. Com isso, queremos dizer que a sensibilidade e o bom
senso são fundamentais na análise e na aplicação dessas informações.

CONCEITOS INICIAIS SOBRE O COMPORTAMENTO


SUICIDA
O comportamento suicida diz respeito a pensamentos sobre morte, ao planejamento suicida, às
tentativas de suicídio e ao suicídio propriamente dito. Pesquisadores acreditam que o risco de suicídio
acontece em estágios, passando a ser maior com a transição de pensamentos para planejamento, e de
planejamento para a tentativa.

Tentativa
Pensamento
Planejamento de
sobre morte
suicídio

Risco
Mais de 60% das tentativas de suicídio acontecem no ano em que surgiram os pensamentos
suicidas (WHO, 2014), portanto, quanto mais cedo identificamos o risco (ou seja, quanto mais
próximo do momento em que se iniciaram os pensamentos), mais eficiente é nossa atuação.
Para que possamos continuar, é necessário que o leitor compreenda os termos associados ao
comportamento suicida.

Termos associados ao comportamento suicida

• Suicídio: ato por meio do qual um indivíduo intencionalmente tira a própria vida.
• Comportamento suicida: pensamentos e comportamentos que têm relação com a intenção de
um indivíduo de tirar a própria vida.
• Pensamentos sobre morte ou ideação suicida: pensamentos sobre a morte e a contemplação
do próprio suicídio (falas possíveis seriam ‘Queria desaparecer’; ‘Queria dormir e não acordar
mais’) são acontecimentos prováveis durante a passagem da infância para a adolescência na

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medida em que dilemas existenciais, como a busca pelo sentido da vida e a inevitabilidade da
morte ganham mais relevância. (MCGOLDRICK; WALSH apud ARONSON; WOLBERG,
1983). Atendendo a isso, é recomendado que jovens tenham espaço para conversar sobre esses
assuntos com adultos. (OMS, 2000). Embora requeiram atenção, estudos apontam que apenas
um terço das pessoas que têm pensamentos suicidas farão uma tentativa de suicídio. (OMS,
2000). Pensamentos suicidas devem ser encarados como preocupantes quando acontecem
com maior frequência ou quando a possibilidade de colocar esses pensamentos em prática
passa a ser considerada a única saída para os problemas da pessoa.
• Planejamento suicida: pensamento por meio do qual a pessoa define métodos específicos
e estabelece cenários detalhados com a finalidade de tirar a própria vida. Apesar de muitos
suicídios ocorrerem na vigência de um plano, é importante estar atento ao fato de que o ato
suicida nem sempre envolve planejamento.
• Tentativa de suicídio: tomada de iniciativa em um comportamento autodestrutivo com ao
menos alguma intenção de morte como resultado desse comportamento. Por mais que seja
complicado registrar as tentativas de suicídio, acredita-se que o número de tentativas seja, pelo
menos, dez vezes maior que o de óbitos por suicídio.

PREVALÊNCIA
Um dos recursos mais importantes para que se estabeleçam estratégias bem sucedidas de
prevenção ao suicídio são os levantamentos populacionais das tentativas e dos suicídios em um país.
Uma compreensão abrangente desse fenômeno permite que ações a serem tomadas sejam mais efetivas
por estarem baseadas no esclarecimento das demandas específicas que encontramos em cada região,
seja pelo número de eventos ocorridos, seja por sua distribuição por faixa etária, gênero e etnia, seja
pelos métodos mais utilizados.
Até recentemente, não contávamos com esse tipo de recurso no Brasil. Porém, durante o Setembro
Amarelo de 2017, o Ministério da Saúde divulgou o primeiro Boletim Epidemiológico de Tentativas
e Óbitos por Suicídio do Brasil. Uma iniciativa inédita no país, que só foi possível porque desde 2011
a notificação em até 24h de tentativas e óbitos por suicídio passou a ser obrigatória.

Setembro Amarelo
Trata-se de uma importante campanha de conscientização sobre a importância da prevenção do
suicídio no Brasil. Idealizada pelo Centro de Valorização da Vida (CVV), pelo Conselho Federal de
Medicina (CFM) e pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), o Setembro Amarelo teve início em
2015, no mês em que se comemora o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio (10 de setembro).

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As atividades propostas pelos organizadores ao longo desse mês têm como objetivo alertar sobre o
impacto do suicídio no Brasil e no mundo, promover debates com foco na conscientização e disseminar
estratégias de prevenção.
Os resultados mais relevantes do Boletim, tendo em conta as finalidades deste capítulo, estão
resumidos a seguir. (BRASIL, 2017b).
• O número de suicídios no Brasil aumentou cerca de 7% no período entre 2011 e 2015 (de
5,3 para 5,7 suicídios a cada 100 mil habitantes).
• De forma geral, os homens concretizaram o ato com maior frequência, correspondendo a
79% do total de óbitos registrados entre 2011 e 2016, enquanto as mulheres totalizaram 21%
dos óbitos.
• Se considerarmos apenas os indivíduos de 15 a 29 anos, no ano de 2015 a taxa de suicídio
no sexo masculino foi quase quatro vezes maior do que no sexo feminino (proporção de 9
para 2,4 óbitos por 100 mil habitantes). O suicídio representa a terceira causa de morte mais
frequente no sexo masculino, precedido apenas por mortes causadas por agressão (110,6 por
100 mil habitantes) e acidentes de transporte (41,3 por 100 mil habitantes). No sexo feminino,
o suicídio foi apontado como a oitava causa de mortalidade mais frequente, antecedido por
causas como complicações na gestação, parto ou puerpério (8,0 por 100 mil habitantes),
acidentes de transporte (7,4 por 100 mil habitantes) e agressões (7,0 por 100 mil habitantes).
• A mortalidade por suicídio na faixa etária entre 5 e 19 anos foi de 1,7 óbitos por 100 mil
habitantes, índice que representa 3,4% dos óbitos por suicídio (2,1% dos óbitos ocorreu
em pessoas do sexo masculino e 1,1% do sexo feminino), entre os anos de 2011 a 2015.
(BRASIL, 2017a).
• Ao analisar os dados referentes à raça/cor, a população indígena apresentou índices de suicídio
quase três vezes maiores em comparação com a população considerada branca (15,2 para 5,9)
e negra (4,7), e bastante inferior à amarela (2,4). Uma informação alarmante é que entre os
indígenas a faixa etária de 10 a 19 anos está associada a 44,8% das mortes.
• Ao se referir ao impacto por região, o boletim indica que o índice é mais alarmante na Região
Sul (23% dos suicídios no país, concentrando 14% da população), seguido pela Região
Sudeste (38% dos suicídios, porém concentrando 42% da população do país) e alcança seus
menores índices na Região Nordeste.
• O meio utilizado na maioria dos óbitos por suicídio foi o enforcamento (66,1% das mortes
entre os homens e 47% entre as mulheres), seguido por intoxicação exógena (13,9% dos
homens e 31,2% das mulheres) e das mortes por armas de fogo (10% entre os homens e 4%
entre as mulheres).
• Ao contrário do número de óbitos, o número de tentativas de suicídio foi bem maior entre as
mulheres (69%) do que entre os homens (31%). Além disso, o documento aponta que quase

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um terço das mulheres que tentaram suicídio o fez mais de uma vez. Os meios mais utilizados
para as tentativas foram o envenenamento ou a intoxicação (58%), seguidos da utilização de
objetos perfurocortantes (6,5%) e enforcamento (5,8%).

Diante desses dados, podemos concluir que o número de suicídios no Brasil vem aumentando nos
últimos anos, e que embora os indivíduos do sexo feminino realizem mais tentativas são os indivíduos
do sexo masculino que apresentam maior mortalidade. A faixa etária entre 15 e 29 anos é bastante
afetada por esse problema, na qual o suicídio é a terceira causa de morte entre homens e a oitava entre
mulheres. Os meios mais utilizados são o enforcamento, a intoxicação ou o envenenamento e as armas
de fogo. A população indígena apresenta um risco aumentado (com especial atenção à faixa etária dos
10 aos 19 anos) e a Região Sul apresenta os maiores índices de suicídio no país.

IDENTIFICAÇÃO DE FATORES DE RISCO


ASSOCIADOS AO COMPORTAMENTO SUICIDA
Uma das formas mais eficientes de atuar na prevenção do comportamento suicida é a identificação
de fatores associados a ele. Entre os mais importantes estão a presença de um transtorno mental, o fato
de a pessoa ter tentado o suicídio anteriormente, eventos negativos, aspectos psicológicos, aspectos
sociodemográficos e a presença de condições físicas graves.
Embora nenhum deles possa ser considerado determinante para que tenhamos certeza do que está
acontecendo, a associação entre dois ou mais fatores sugere que devemos redobrar a atenção.
Os fatores de risco costumam ser os mesmos para jovens do sexo masculino e feminino, porém
alguns deles apresentam impacto um pouco diferente entre os sexos. Por exemplo, a depressão é o
fator de risco mais significativo entre as meninas, sendo que em alguns estudos ela chega a aumentar
em até 20 vezes o risco de suicídio. (SHAFFER et al., 1996a). Já em meninos uma tentativa anterior
de suicídio é considerada o fator de risco mais alarmante, aumentando a probabilidade de suicídio
em mais de 30 vezes. (BRENT et al., 1999; SHAFFER; CRAFT, 1999). Ela é seguida por depressão,
abuso de substâncias (álcool ou drogas) e comportamento disruptivo. (BRASIL, 2017b; BRENT et
al., 1993b).

Transtornos mentais
Mais de 90% das pessoas que morreram por suicídio apresentavam um transtorno psiquiátrico
no momento da morte (CAVANAGH, 2003), portanto a detecção e o tratamento dessas condições
são cruciais em sua prevenção. Por outro lado, a maioria das pessoas portadoras de transtorno mental
não desenvolve ideação suicida nem faz uma tentativa de suicídio ou morre por suicídio. Assim, não

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podemos concluir que a presença de um transtorno mental é o único motivo pelo qual as pessoas
apresentam comportamento suicida.
Uma reflexão válida a respeito da associação entre transtornos mentais e o suicídio é que as pessoas
que estão enfrentando uma condição psiquiátrica podem ser expostas a um número maior de situações
estressoras (rompimentos amorosos, queda no rendimento escolar ou piora no clima familiar, por
exemplo). Além disso, ao enfrentar esses eventos, a pessoa pode estar mais fragilizada e não conseguir
lidar da forma mais satisfatória com as demandas que vão surgindo.

Depressão
Esta é a condição psiquiátrica mais frequente em casos de óbito por suicídio. Os quadros depressivos
podem ser classificados como leves, moderados ou graves, e dentre os portadores do subgrupo grave
15% cometem suicídio. (BRASIL, 2006). Por essa forte correlação, é de grande valia que o educador
tenha algum conhecimento sobre esse transtorno, possibilitando a detecção e o tratamento precoces,
levando a melhores respostas de tratamento. Ainda assim, é importante recordar que jovens podem
cometer suicídio sem estarem deprimidos, e que na maior parte das vezes em que estão deprimidos não
apresentam comportamento suicida.

Quadro 1 – Sinais da necessidade de avaliação para depressão em jovens.

Parece estar constantemente triste, ansioso ou refere estar se sentindo ‘vazio’, como se não sentisse nada?
Refere estar se sentindo sem esperança ou como se tudo estivesse dando errado?
Refere que se sente inútil ou expressa culpa por coisas que não tem?
Tem parecido irritado a maior parte do tempo?
Passa mais tempo sozinho e se afasta de amigos e familiares?
Tem apresentado queda nas notas?
Parece ter perdido interesse ou prazer em atividades e hobbies de que costumava desfrutar?
Apresenta mudança nos hábitos alimentares ou de sono (comer ou dormir mais do que o habitual ou menos do que o
habitual)?
Apresenta queixas constantemente de sempre estar cansado, como se estivesse com menos energia que o normal?
Parece inquieto ou tem problemas para ficar quieto?
Queixa-se de dificuldade em se concentrar, lembrar informações ou tomar decisões?
Queixa-se de dores de cabeça, cãibras ou problemas estomacais sem causa clara?
Fala abertamente ou implicitamente sobre o fato de que a vida não faz sentido, tem pensamentos relacionados à morte e
ao suicídio ou já tentou se machucar?

Fonte – Adaptado de NIH, [s.d.].

Meninas com diagnóstico de depressão se sentem mais abandonadas, desesperançosas e sem


motivação. Com isso, frequentemente se tornam mais isoladas. Por outro lado, elas são mais propensas
a se comunicar e buscar ajuda que os meninos, e nesse sentido podem atuar de maneira mais assertiva
na resolução de seus problemas.

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Por sua vez, os meninos deprimidos tendem a apresentar um tipo de comportamento mais
agressivo e inadequado (muitas vezes, seu diagnóstico de depressão está associado a outro, como
o transtorno de conduta, ou à dependência de algum tipo de substância) e acabam demandando
mais atenção das pessoas que estão a sua volta. Como ocorre com as meninas, esse comportamento
frequentemente leva ao isolamento, que é um fator de risco importante para o comportamento suicida.
Pelo comportamento mais agressivo e impulsivo e por não raro agirem sob o efeito de álcool ou outra
droga ilícita, os indivíduos do sexo masculino estão mais envolvidos com tentativas fatais.

Abuso de álcool e outras drogas


A história de abuso e dependência de álcool ou outras drogas está presente entre muitos jovens
que cometem suicídio. Nesse sentido, um estudo revelou que um em cada quatro jovens que se suicida
consumiu álcool ou outra droga antes do acontecimento. Acredita-se que o consumo dessas substâncias
altere a capacidade de tomada de decisão das pessoas ao mesmo tempo em que aumenta a impulsividade
(que por sua vez prejudica a tomada de decisões) e alavanca o risco.
Outros transtornos mentais bastante estudados por estarem associados a maior risco de suicídio
são os de ansiedade, alimentares e a esquizofrenia.

Fatores sociais gerais


Pessoas que têm uma ‘história familiar’ de suicídio têm maior risco de comportamento suicida, e
estudos vêm demonstrando que esse efeito não acontece por histórias de transtorno mental em comum
entre a pessoa que se suicidou e a pessoa em risco (QIN; AGERBO; MORTENSEN, 2002), mas sim
por aspectos sociais de transmissão.
A exposição ao comportamento suicida de familiares ou amigos, assim como a depressão e o abuso
de substância por parte dos pais, também elevam o risco desses comportamentos em adolescentes.
(BRENT et al., 1994b; NANAYAKKARA et al., 2013).
A exposição de suicídios reais ou fictícios na ‘mídia’ podem elevar as taxas de suicídio em jovens
vulneráveis. (PIRKIS; NORDENTOFT, 2011; GOULD apud HENDIN; MANN, 2003). Estudos
demonstram que o risco de comportamento suicida permanece aumentado por um período em torno
de quatro semanas (SISASK; VÄRNIK, 2017), enquanto os pensamentos suicidas podem permanecer
por até um ano após o suicídio de uma celebridade com a qual o jovem se identifica. (FU; YIP, 2007).

Efeito Werther
Tem relação com uma onda de suicídios que se sucedeu após a publicação do livro Os sofrimentos
do jovem Werther, escrito por Johann Wolfgang von Goethe e publicado em 1774. Nesse romance,
um jovem se suicida após sofrer uma desilusão amorosa.

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O termo ‘Efeito Werther’ foi cunhado em 1974 e se refere a um aumento do número de tentativas
de suicídio e suicídios consumados após a divulgação de um suicídio na mídia.
O impacto da ‘internet’ sobre o comportamento suicida ainda não é claro, pois está associado
tanto a desfechos positivos (por exemplo, informações de como conseguir apoio), quanto negativos.
(DAINE, K. et al., 2013). Em um estudo, quase 20% dos adolescentes que se mutilavam relataram
que foram influenciados por conteúdos encontrados na internet. (O’CONNOR; RASMUSSEN;
HAWTON, 2014).
O isolamento e a ‘ausência de apoio social’ são fatores de risco amplamente comprovados e devem
ser sempre considerados. (O’CONNOR, 2003; HAW; HAWTON, 2011). Reduzir a interação nas
redes sociais, não responder às ligações dos amigos e familiares, passar períodos cada vez maiores em
casa ou fechado em seu quarto e reduzir as atividades sociais (principalmente aquelas de que gostava de
fazer) são sinais evidentes de isolamento problemático.
Aspectos vinculados à identidade e à ‘orientação sexual’ têm sido descritos como fatores de risco
para o comportamento suicida, possivelmente por questões de aceitação por parte dos pais e da escola e
pela falta de modelos de identificação para um desenvolvimento adequado. A expectativa é de que esse
fator de risco seja atenuado com a maior aceitação da sociedade sobre questões de sexualidade, porém
esse processo vem se mostrando mais lento do que o esperado.

Sistemas familiares disfuncionais


Algumas características relacionadas ao funcionamento familiar aumentam o risco de
comportamento suicida, incluindo:
• abuso físico, psicológico ou sexual;
• ambiente onde há muita rejeição ou negligência;
• falta de atenção ou tempo para a discussão de situações estressoras envolvendo a criança ou o
adolescente (HOLLIS, 1996);
• ambientes muito instáveis e tensos;
• padrão excessivamente autoritário ou rígido;
• desemprego familiar e problemas financeiros.

Eventos de vida negativos


Não é incomum que tentativas de suicídio sejam precedidas por situações estressantes (DE
WILDE, 1999; GOULD et al., 1996), porém é importante compreender que esses eventos negativos,
por si só, geralmente não são suficientes para que isso aconteça.

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Na maioria das vezes, a ocorrência desses eventos em um contexto de fragilidade (frequentemente


devido a um diagnóstico psiquiátrico) desencadeia o comportamento suicida. Vários eventos negativos
estão associados ao aumento do risco de comportamento suicida, entre eles:
• problemas de relacionamento com os amigos, rompimento amoroso;
• problemas disciplinares (com a lei ou dentro da escola);
• bullying ou assédio moral infantojuvenil (AMI), ou seja, atos de violência física ou psicológica
intencionais e repetidos que causam dor e angústia. Geralmente a vítima se sente impotente,
pois o perpetrador tem uma posição de força e/ou poder em relação à vítima. Pelo fato de
ser repetitivo, é comum que deixe sequelas psicológicas e predisponha a vítima a transtornos
psiquiátricos;
• maus resultados na escola, demanda escolar muito alta;
• aborto ou gravidez indesejada;
• perdas recentes ou morte de familiar na infância;
• discriminação por orientação sexual e identidade de gênero (KING et al., 2008; RUSSELL;
JOYNER, 2001);
• eventos traumáticos na infância (por exemplo, abuso físico, psicológico ou sexual) aumentam
consideravelmente o risco de comportamento suicida, principalmente se a pessoa não receber
apoio e não desenvolver formas de lidar com o trauma. (DUBE et al., 2001; BRUFFAERTS
et al., 2010). O abuso físico e sexual durante a infância é um risco especialmente forte.

OBS.: Jovens que se encontram fragilizados podem interpretar situações aparentemente


corriqueiras como mais complicadas ou ameaçadoras e, por isso, apresentar um comportamento mais
reativo frente ao stress, elevando o risco de suicídio.

Doenças físicas
Pessoas que apresentam doenças físicas que levam a grandes prejuízos ou incapacitação, tais como
problemas cardiológicos ou respiratórios graves, diabetes juvenil, lesões desfigurantes, dor crônica,
epilepsia, trauma medular e neoplasias malignas têm maior risco de comportamento suicida. (SCOTT
et al., 2010; WEBB et al., 2012).

Fatores psicológicos
Neste capítulo, classificaremos os fatores de risco psicológicos em dois grupos:
• traços de personalidade e diferenças individuais;
• aspectos cognitivos.

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Traços de personalidade e diferenças individuais

Desesperança
Definida como pessimismo ou ausência de pensamentos positivos para o futuro, é um forte preditor
de ideação e comportamento suicida. (BEEVERS; MILLER, 2004; BREZO; PARIS; TURECKI, 2006).

Impulsividade
Tendência a agir sem adequada reflexão e consideração das consequências, o traço favorece
comportamentos indevidamente arriscados. Pesquisas demonstram que existe uma forte correlação
entre a impulsividade e as tentativas de suicídio. (BREZO; PARIS; TURECKI, 2006). É importante
frisar que o impulso de cometer suicídio desencadeado por eventos negativos geralmente é transitório,
não excedendo algumas horas. Por isso, nessas situações, a presença de uma pessoa que ofereça suporte
e proteção é muito útil para reduzir o risco suicida.

Perfeccionismo
Uma das definições de perfeccionismo tem relação a uma crença de que as pessoas
(frequentemente familiares) têm expectativas exageradas em relação ao indivíduo. Frequentemente,
essa percepção se transforma em autocrítica excessiva e tende a levar ao isolamento, elevando o
risco de suicídio.

Aspectos cognitivos
Têm relação com questões do pensamento e da inteligência que em algumas circunstâncias podem
gerar risco.

Rigidez cognitiva
Uma pessoa com risco suicida tende a pensar, sentir e tomar decisões de modo mais rígido e drástico
(isto é, sem muita flexibilidade ou ‘jogo de cintura’). Com base nisso, ela pode passar a acreditar que
o suicídio é a única opção para seus problemas, por mais que as pessoas a sua volta enxerguem outras
saídas. Comentários que explicitam esse padrão cognitivo são, por exemplo, ‘Tenho mais é que morrer
mesmo’; ‘Não posso fazer mais nada’; ‘Não tenho outra saída’.

Ruminação
Outro fator cognitivo associado a risco aumentado de comportamento suicida acontece quando
o indivíduo passa um tempo significativo de seu dia pensando sobre os aspectos de sua angústia.
(MORRISON; O’CONNOR, 2008; GRASSIA; GIBB, 2009).

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Vieses de memória autobiográfica


Estudos demonstraram que pessoas com comportamento suicida frequentemente têm uma
capacidade diminuída de recordar memórias autobiográficas (WILLIAMS; BROADBENT, 1986),
o que, por sua vez, pode prejudicar sua capacidade de pensar no futuro e de desenvolver estratégias
assertivas de resolução de problemas (muitas vezes aperfeiçoadas por recordações de experiências),
aumentando assim a probabilidade de comportamento suicida. (ARIE et al., 2008).

Percepções de ‘não pertencimento’ ou de ‘ser um peso’


Tanto a concepção subjetiva, quanto a real falta de contato social vêm sendo associadas à ideação
suicida (VAN ORDEN et al., 2008) e às tentativas de suicídio (HATCHER; STUBBERSFIELD,
2013). A percepção que uma pessoa pode ter de ser um fardo para os outros é um fator de risco para
ideação suicida. Pesquisadores têm sugerido que ela parece ser uma das ligações entre o perfeccionismo
e a ideação suicida. Comentários que explicitam esse tipo de percepção é ‘Vou deixar vocês em paz’;
‘Vou deixar de ser um peso para vocês’.

Baixa sensibilidade à dor


Pesquisas têm comprovado que adolescentes que morrem por suicídio apresentam, frequentemente,
limiares maiores de tolerância à dor. (ORBACH et al., 1997).

Ambivalência
A maioria das pessoas que demonstra comportamento suicida fica ambivalente entre morrer ou
viver, e o predomínio de um desejo sobre o outro é crucial em termos de prevenção. Nesse sentido,
estudos vêm apontando que indivíduos que referem ter poucas razões para viver (percepção que
pode não ser real, e sim uma distorção da realidade) apresentam maior risco de pensamentos suicidas
(ZHANG; LAW; YIP, 2011) e tentativas de suicídio. (GALFALVY et al., 2006).
Nesse período de dúvida entre o desejo de viver e a vontade de acabar com a dor psíquica, a
presença de uma pessoa que ofereça apoio emocional e auxilie o indivíduo a recuperar a esperança de
viver aumenta consideravelmente a chance de reduzir o comportamento suicida.

Outros aspectos cognitivos que vêm sendo estudados

• Baixa autoestima, presente em visões negativas sobre a própria competência.


• Sentimentos de inferioridade que podem ser disfarçados por manifestações de superioridade
e arrogância.
• Sensação de culpa excessiva, com a percepção frequentemente distorcida de ser responsável
por eventos negativos.

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• Baixa tolerância a frustrações.


• Maior reatividade a datas importantes.

FATORES DE PROTEÇÃO

• Ambientes familiares positivos nos quais existam diálogo e bons relacionamentos.


• Boas habilidades sociais, entre elas a capacidade de procurar ajuda frente a adversidades.
• Capacidade de procurar conselhos e estar aberto a opiniões diferentes das suas.
• Baixo estigma/preconceito em relação aos transtornos mentais e ao suicídio.
• Auxílio psiquiátrico especializado (o Boletim Epidemiológico de Tentativas e Óbitos por
Suicídio do Brasil apontou que nos locais onde existem Centros de Apoio Psicossocial –
CAPS o risco de suicídio reduz em até 14%).

Otimismo e esperança
Algumas evidências sugerem que pessoas mais otimistas apresentam menor risco de ideação ou
tentativas de suicídio quando confrontadas com eventos de vida gravemente ou moderadamente
negativos em comparação com pessoas com baixo otimismo. (HIRSCH et al., 2007).

Resiliência
Apesar do interesse das pesquisas sobre resiliência (definido como ‘qualidades que permitem a
um indivíduo se desenvolver diante das adversidades’), há poucas evidências de seu efeito protetor no
contexto do risco de suicídio.

VERDADES E MITOS SOBRE SUICÍDIO


Suicídios são eventos cercados de pré-conceitos e crenças populares que interferem no processo
de prevenção. É muito importante que as pessoas tenham conhecimentos embasados em evidências
científicas para que esses mitos se desfaçam.

Mitos
A pessoa que tem a intenção de tirar a própria vida não avisa.
Pessoas que falam sobre suicídio estão ‘querendo chamar a atenção’.

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Esses dois argumentos são muito prejudiciais, pois desvalorizam o fato de que pelo menos dois
terços das pessoas que tentam o suicídio ou se matam comunicam de alguma maneira sua intenção
para amigos, familiares ou conhecidos. Elas podem passar a falar mais sobre morte e suicídio, referir
desesperança com o futuro ou escrever cartas de despedida, entre outras coisas. Esses sinais ou avisos
não devem ser interpretados como ameaças, alarmes falsos ou chantagens emocionais. Pelo contrário,
devem ser considerados com muita atenção e sensibilidade com a finalidade de prevenir a progressão
do comportamento suicida.

O suicídio é inevitável.

Essa crença popular é totalmente falsa e perigosa, pois desmotiva as pessoas a se engajarem em
uma série de estratégias de prevenção que são efetivas.

A pessoa que melhora após um período de risco de suicídio ou sobrevive a uma tentativa está
fora de perigo.

Na verdade, muitos casos de suicídio acontecem após uma fase de risco (muitas vezes de até três
meses), quando a pessoa passa a dispor de energia para uma tentativa mais assertiva. Além disso, outra
grande parcela dos óbitos acontece em tentativas subsequentes.

Perguntar sobre ideação suicida e suicídio em geral eleva o risco de suicídio.

Esse é um dos mitos mais prejudiciais e comprovadamente equivocados. Na verdade, perguntar


e conversar de forma sensata e franca sobre pensamentos suicidas não induz as pessoas a se engajarem
em um comportamento suicida, pelo contrário; essa postura reduz o risco de suicídio por possibilitar
a identificação de pessoas em sofrimento, reduzir o isolamento e a sensação de desesperança e facilitar
a busca por apoio profissional.

Pessoas que cometem suicídio estão convictas de que essa é a melhor saída para seus
problemas.

A maior parte das pessoas que cometem suicídio se encontra indecisa sobre a possibilidade de tirar
a própria vida.

Uma pessoa que demonstrou comportamento suicida apresenta para sempre um risco de
suicídio.

A maioria das pessoas que demonstra um comportamento suicida apresenta esse comportamento
por um período limitado de tempo.

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O suicídio acomete pessoas mais ricas ou mais pobres.

Estudos mostram que o suicídio é um evento que não escolhe classe social.

Verdades
• Em grande parte, os suicídios são planejados e as pessoas emitem sinais de suas intenções.
• Reconhecer os sinais de alerta e oferecer apoio são fundamentais na prevenção do suicídio.
• A expressão do desejo de morrer nunca deve ser interpretada como uma simples ameaça,
chantagem emocional ou desejo de chamar atenção de forma leviana.
• Perguntar sobre a intenção de suicídio não aumenta o desejo de cometer o suicídio nas pessoas.
• Auxílio psiquiátrico especializado reduz as taxas de suicídio.
• Nem todos os suicídios estão associados a outros casos de suicídio na família.

ORIENTAÇÕES DE CONDUTA
Uma estratégia de orientação que vem sendo empregada com frequência por organizações que
se propõem a atuar na prevenção do suicídio, como a Organização Mundial de Saúde (OMS) e o
Ministério da Saúde do Brasil (WHO, 2014; BRASIL, 2017c), são os guias rápidos de referência sobre
o que fazer e o que não fazer em situações de risco de suicídio. A seguir, descrevemos uma compilação
dessas orientações.

O que fazer diante de uma pessoa sob risco de suicídio


Com as informações que discutimos até aqui, você já pode se sentir mais apto a identificar fatores
de risco de comportamento suicida. Mas o que você deve fazer no momento em que um risco for
detectado? Considere para isso algumas orientações.
Ao nos depararmos com uma pessoa que apresenta comportamento suicida, é reconfortante saber
que a maioria das pessoas não acha simples perguntar sobre ideação suicida e não se sente preparada
para lidar com isso. Porém, lembre que a abordagem franca e sensata sobre os pensamentos suicidas é
uma das formas mais eficazes para prevenção.
Ao entrar em contato com tal pessoa, sugerimos que você tenha em mente alguns dos fatores de
risco para o comportamento suicida apresentados neste capítulo. Entre eles, salientamos a desesperança,
a tendência ao isolamento (sensação de não pertencimento) e a sensação de ser um peso para as outras
pessoas. Tendo conhecimento deles, tente visualizar uma situação em que você considere estes aspectos:

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• leve-a para um ambiente adequado (uma sala tranquila, por exemplo), que permita à pessoa
não ser frequentemente interrompida, se sentir segura, cuidada e confiante em você;
• apresente disposição para a conversa. Esse aspecto é fundamental, já que um dos objetivos
é estabelecer um vínculo com a pessoa. Pouca disposição pode aumentar a desesperança e a
sensação de não poder contar com ninguém;
• seja compreensivo acima de tudo. Assumir uma postura de julgamento tende a exacerbar a
sensação de desesperança, de ser um peso, e possivelmente desmotivaria a pessoa a buscar
novas formas de comunicação;
• aborde o assunto ‘pelas beiradas’;
• respeite as emoções e os motivos que levaram a pessoa a pensar sobre suicídio, em uma atitude
de acolhimento.

Algumas perguntas úteis são:


• como você está se sentindo?
• quem são as pessoas com as quais você conta?
• você tem tido pensamentos de morte?

Perguntas abertas (que não permitam apenas a resposta ‘sim’ ou ‘não’) oferecem oportunidade
para as pessoas falarem sobre si mesmas, sobre o momento que estão vivendo e de como estão lidando
com suas dificuldades.
Momentos oportunos para realizar uma abordagem acerca de ideação ou planejamento suicida
acontecem quando você percebe que a pessoa demonstra estar confortável para falar do que sente ou
quando ela própria aborda assuntos relacionados ao comportamento suicida, como sentimentos de
solidão, desamparo ou desesperança. Se a pessoa demonstrar não ter mais esperança no futuro ou o
sentimento de que não existe outra solução para seus problemas além da morte, é importante questionar
sobre planos suicidas, a acessibilidade a meios de cometer suicídio e se a pessoa vem cogitando uma
data para cometer o ato. Algumas perguntas que podem auxiliar nesse momento da conversa são:
• Você tem feito algum tipo de plano para morrer?
• Você tem remédios (arma, veneno, corda) em casa?
• Você decidiu quando está planejando em fazê-lo?

Além disso, é conveniente estar atento ao estado mental do jovem (sinais de intoxicação por álcool
ou outra droga, possibilidade de depressão etc.) e questionar sobre a rede de apoio disponível para a
pessoa (familiares, amigos e profissionais como psicólogos ou psiquiatras).

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O que não fazer diante de uma pessoa sob risco de suicídio


Pessoas que enfrentam ideações suicidas são frequentemente tratadas de forma exaltada (ansiosa
ou enraivecida), com descaso ou desprezo. Como apresentamos ao longo deste capítulo, posturas como
essa agravam o risco de suicídio por reforçarem a visão negativa que essas pessoas têm da vida.
Pensando nisso, evite atitudes como:
• ignorar a situação;
• transparecer estar em choque ou muito emocionado. A pessoa que está em risco necessita de
alguém que apresente certa consistência para poder auxiliá-lo;
• falar que tudo vai ficar bem, porém sem tomar atitudes para que isso aconteça;
• minimizar a gravidade do quadro, comparando o caso com o de outras pessoas por meio de
frases como ‘Você tem tudo e não tem porque ficar assim’;
• abordar histórias de suicídio de forma excessiva;
• jurar segredo. Situações de risco DEVEM ser comunicadas aos pais do jovem;
• interromper muito a pessoa enquanto ela fala sobre suas emoções;
• emitir julgamentos (certo x errado), tentar doutrinar a pessoa;
• deixar a pessoa sozinha em casos em que o risco é iminente.

Além disso, evite comentários como:


• condenar ou julgar: ‘Você quer acabar com seus pais?’; ‘Você não é fraco, é?’;
• banalizar: ‘Que bobagem, você é jovem, vai ter muitas outras namoradinhas’;
• opinar: ‘Você está querendo chamar a atenção’; ‘Isso é falta de vergonha na cara’;
• dar sermão: ‘Há tantas pessoas com problemas mais sérios do que o seu, siga em frente’; ‘Isto
é falta de Deus’.

ONDE BUSCAR AJUDA


Situações em que existe risco de suicídio são angustiantes e pode ser muito difícil saber o que fazer
nesses casos. Precisamos ter em mente que é necessário dar um encaminhamento adequado para cada
situação. Precisamos esclarecer que ‘existe ajuda disponível’ tanto na escola quanto na família e até em
serviços psicológicos e psiquiátricos especializados.
O encaminhamento pode acontecer da seguinte forma:

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325

• mesmo que o jovem não dê permissão para você entrar em contato com um familiar, em uma
situação de risco é importante localizar um familiar que seja particularmente compreensivo
com a situação. Procure, dentro do possível, preservar o sigilo do aluno;
• fale com os familiares sem acusá-los ou fazê-los sentirem-se culpados;
• tenha à mão as referências de contato com os recursos de atendimento na comunidade;
• coloque-se à disposição para auxiliar a família a marcar a consulta;
• ofereça dados que facilitem a avaliação pelo especialista (é de bom tom pedir permissão à
família para enviar um relatório escolar);
• auxilie a desfazer mitos a respeito do atendimento psicológico ou psiquiátrico;
• reforce a efetividade desses tratamentos, no sentido de aumentar a sensação de esperança da
pessoa;
• demonstre que você continuará por perto enquanto a pessoa passa pelo processo de avaliação
e tratamento;
• se possível, encontre a pessoa depois da consulta e demonstre apoio;
• fique atento também às necessidades dos amigos e familiares que se propuseram a ajudar.

SERVIÇOS DE SAÚDE

• Caps.
• Unidades básicas de saúde (Saúde da Família, postos e centros de saúde).
• Centro de Valorização da Vida (CVV) – telefone 141 (ligação paga) ou www.cvv.org.br para
chat, Skype, e-mail e mais informações sobre ligação gratuita.
• Emergência – Samu 192, UPA, prontos-socorros e hospitais.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
329

BIODIVERSIDADE: A IMPORTÂNCIA DA
PRESERVAÇÃO AMBIENTAL PARA MANUTENÇÃO
DA RIQUEZA E EQUILÍBRIO DOS ECOSSISTEMAS

Cleverson V. Andreoli
Fabiana de Nadai Andreoli
Cristiane Piccinini
Andrea da Luz Sanches
Izabella Andrade Brito

INTRODUÇÃO
A idade estimada do planeta Terra é de 4,5 bilhões de anos1. Durante todo esse período, inúmeras
interações vêm ocorrendo entre os seres vivos e o meio físico-químico, que em seu princípio, embora
de maneira muito arcaica e basal, produziram condições e ambientes propícios à proliferação de
milhares e complexas expressões de vida no planeta. Logo, toda essa derivação ocorrida desde o início
do planeta produziu a biodiversidade ou diversidade de vida (em toda a sua compreensão) como uma
característica muito peculiar da Terra, que a difere dos demais planetas conhecidos por não terem vida
ou ambientes habitáveis, pelo menos, sob a ótica do homem.
A vida na Terra também é antiga. Até pouco tempo, estimava-se que os mais antigos fósseis
conhecidos tinham cerca de 3,5 bilhões de anos. Para se ter uma ideia, os dinossauros tiveram seu início
há 250 milhões de anos. (MARSHALL, 2016). Mas a cada dia, com o aperfeiçoamento de técnicas
e o avanço nas pesquisas científicas, surgem novas descobertas que retratam um pouco mais sobre a

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nossa história. A exemplo disso, pesquisadores descobriram recentemente o que parecem ser micróbios
fossilizados que remontam a 3,7 bilhões de anos! Chamados de estromatólitos, esses indícios de vida
são agora um dos mais antigos fósseis conhecidos da Terra e foram encontrados em um afloramento de
rochas na Groenlândia.
Assim, o planeta com as atuais caraterísticas foi desenvolvido por um complexo processo
evolutivo que sofreu profundas transformações por milhões de anos e produziu cada ecossistema
existente hoje, construído por interações e coevoluções, gerando um sistema totalmente equilibrado
com milhões de espécies interagindo entre si e com o meio físico-químico, e contribuindo para a saúde
e estabilidade desse complexo sistema. Durante todo esse processo de evolução, o planeta enfrentou
uma série de influências ambientais, como aumentos e reduções de temperatura, precipitações
atmosféricas, raios e ventos, quedas de meteoros, movimentos tectônicos e magmáticos, glaciações
etc. Em resposta a essas influências, foram estabelecidas determinadas condições ambientais que
permitiram que as espécies e ecossistemas se adequassem às condições existentes, em uma complexa
dinâmica de extinção ou especiação (DARWIN, 1859; MAYR, 1963; PRICE, 2007), moldando
condições que determinam a existência do chamado equilíbrio ecológico, caraterizado como uma
tênue resultante dos diferentes impactos, que apresenta condições extremamente variáveis com
o passar do tempo. Assim, todos esses fenômenos e experimentações ocorridos no planeta criou
um conjunto de ‘aprendizagem comum’ que alguns cientistas chamam de ‘biblioteca da vida’.
(VÄLIVERRONEN; HELLSTEN, 2002).
De fato, a intervenção humana sobre o planeta tornou-se tão profunda que a comunidade
científica definiu essa nova era com o termo ‘Antropoceno’2 (CRUTZEN; STOERMER, 2000),
indicando o atual período geológico da Terra, o qual começou há aproximadamente 10 mil anos com o
fim da última glaciação. Isso se deve à tamanha alteração que o homem vem provocando no planeta de
forma a causar interferência nos processos atmosféricos, geológicos e hidrológicos da biosfera. Assim,
os lançamentos de gases de efeito estufa, de efluentes domésticos e industriais não tratados em cursos
hídricos, o desmatamento de grandes áreas florestadas, têm apresentado evidências globais de que
estamos alterando ou acelerando os ciclos naturais da Terra (como exemplos o aquecimento global e
as extinções em massa das espécies), atualmente conhecida como a 6.ª grande extinção. (BARNOSKY
et al., 2011).

BIODIVERSIDADE E SEUS CONCEITOS


Embora esse tema seja bastante discutido e muito atual, ainda assim é um conceito muito recente.
O termo ‘diversidade biológica’ foi primeiramente utilizado pelo cientista Raymond Dasmann em seu
livro intitulado A different kind of country. Contudo, o tema só foi amplamente adotado depois
da publicação do livro Conservation biology na década de 1980, o qual teve seu prefácio escrito

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por Thomas Lovejoy, importante biólogo conservacionista, que apresentou o termo à comunidade
científica e o popularizou na sociedade. Entretanto, foi somente em 1989 que a International Union for
Conservation of Nature and Natural Resources (IUCN) contemporizou o conceito de biodiversidade
para ‘o grau de variedade da natureza’, incluindo tanto o número como a frequência dos ecossistemas,
espécies ou genes em determinada assembleia3, considerado em três níveis diferentes: diversidade
genética (variedade de genes em uma espécie), diversidade de espécies (variedade e riqueza de e entre as
espécies) e diversidade de ecossistemas (variedade em maior nível de complexidade e compreendendo
todos os níveis de variação).
Concomitantemente à crescente popularização do tema, sobretudo pela comunidade científica,
a problemática em relação à degradação dos ecossistemas também se tornava assunto relevante na
sociedade, a qual experimentava um período de grande avanço tecnológico. Nesse contexto mundial,
foi realizado em 1992, no Rio de Janeiro, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente
e Desenvolvimento, também conhecida por Rio-92, Eco-92 ou Cúpula da Terra. Nesse evento foi
aprovado o texto da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), o qual representou um marco
extremamente significativo, pois trouxe à luz a necessidade de preservação da biodiversidade e definiu
uma política relacionada às ações necessárias em nível global. (MMA, 2018). Assim, o artigo 2.º da
Convenção sobre Diversidade Biológica (1992) consolidou biodiversidade ou diversidade biológica
como “a variabilidade de organismos ‘vivos’ de todas as origens, compreendendo, dentre outros, os
ecossistemas ‘terrestres’, ‘marinhos’ e outros ‘ecossistemas aquáticos’, e os complexos ecológicos de que
fazem parte; compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas”.
(CDB, 2006).

Níveis de diversidade
Diversidade genética é o conjunto de genes presentes na população. Isso porque indivíduos de
uma mesma população são diferentes geneticamente, com exceção dos clones4 (exemplo: plantação
de cana-de-açúcar, mandioca ou florestas plantadas para produção de celulose). Assim, quanto maior
a variabilidade genética, maiores são as recombinações e as chances de a população se adaptar às
variações ambientais e serem menos vulneráveis às extinções. A variação genética é muito benéfica à
economia também, pois permite o melhoramento genético de espécies úteis ao homem (que incluem
animais domésticos e plantas cultivadas), tornando-as resistentes às pragas e doenças e/ou com maior
produtividade.
A diversidade de espécies incluiu todos os organismos da Terra, desde as bactérias unicelulares
até os animais mais complexos. Para entendermos melhor, dentro do conceito biológico, espécies
são membros de populações que se intercruzam ou têm potencial para cruzar naturalmente, gerando
descendentes férteis. Ainda assim, existem muitos conceitos para espécies.

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Diversidade de ecossistemas (paisagem)


A comunidade biológica de uma localidade e as suas interações entre si e entre o meio
físico-químico é chamada de ecossistema. Dessa forma, ainda que bastante discutido pela Ecologia de
Comunidades, entende-se que em ambientes que apresentam maior diversidade de espécies e habitat
possa haver maior estabilidade do ecossistema diante de impactos ambientais naturais (ou distúrbios),
como exemplo, incêndios florestais, extensos períodos de seca ou chuvas e/ou de impactos ambientais
causados pelo homem (antropogênicos), como o desmatamento ou o lançamento de efluentes não
tratados em rios. Entende-se que ambientes com maior diversidade são mais complexos e, portanto,
poderiam se recuperar mais facilmente ao serem afetados por uma perturbação, diferentemente de
pequenas populações, as quais poderiam ser extintas. (LACY et al., 2005).
A biodiversidade pode ser interpretada do ponto de vista da variação intraespecífica, como
por exemplo, subpopulações geneticamente distintas (BATISTA, 2006) e incluir, em maior escala,
a variedade de tipos de comunidades ou ecossistemas de uma região, tais como desertos, florestas,
mares, lagos, entre outros. (BEGON et al., 1996). Portanto, de acordo com a escala utilizada, a
diversidade pode se diferenciar em três tipos: alfa (α), beta (β) e gama (γ). (WHITTAKER, 1972).
Índices matemáticos de biodiversidade têm sido desenvolvidos para descrever a diversidade das
espécies em escalas geográficas diferentes, sobretudo para implementação de políticas preservacionistas
e criação de áreas de conservação, principalmente em áreas que detenham alta diversidade. Assim, a
diversidade dentro de um habitat não deve ser confundida com a de uma região a qual contém vários
habitat.
Para que possamos entender as escalas da biodiversidade, tem-se por ‘diversidade alfa’ (α) ou
‘diversidade local’ o número total de espécies em um habitat ou em uma única comunidade (Figuras
1 e 2), de forma que pode ser considerada como a riqueza das espécies para fins de comparação entre
ecossistemas e é bastante sensível à definição de habitat e à área e intensidade da amostragem. Por
exemplo, a diversidade de organismos identificados em uma mata de galeria.
A ‘diversidade gama’ (γ) ou ‘diversidade regional’ é o número total de espécies observado em
‘todos os habitat dentro de uma área geográfica’ (Figuras 1 e 2), que não inclui fronteiras significativas
para a dispersão de organismos, como um bioma, um continente, uma ilha. Por exemplo, a diversidade
de organismos do Cerrado.
Já a ‘diversidade beta’ (β) é a mudança de espécies ao longo de um gradiente ambiental (Figuras
1 e 2). Assim, a diversidade β corresponde à diversidade entre habitat ou outra variação ambiental
qualquer, isto é, mede o quanto a composição de espécies varia de um lugar para outro. Ela abrange
grandes áreas de ecossistemas e sua caracterização depende também da diversidade de relevos, solos e
fitofisionomias em um território.

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Figura 1 – A área cinza representa uma Comunidade X (paisagem) hipotética. Os círculos representam
a diversidade alfa (α), que é igual a 5, pois tenho 5 espécies em cada local. A diversidade gama (γ) é
representada por todas as diferentes espécies na região, sendo igual a 15 (5 + 5 + 5). Já a diversidade
beta (β) é igual a 3, pois tenho diferentes composições em três áreas.

Fonte – Adaptado de Baselga, 2010.

Figura 2 – A área cinza representa uma Comunidade Y (paisagem) hipotética. Os círculos representam a
diversidade alfa (α), que é igual a 5, pois tenho 5 espécies em cada local. A diversidade gama (γ) também
é igual a 5, visto que temos a mesma composição de espécies nos locais. Assim, a diversidade beta (β)
é igual a 1, pois embora os locais sejam geograficamente distintos, o conjunto de espécies é o mesmo.

Fonte – Adaptado de Baselga, 2010.

Assim, pode-se avaliar a biodiversidade de determinada área com base em dois parâmetros:
1. riqueza de espécies: número de espécies existentes na comunidade;
2. equitabilidade: abundância de cada espécie, ou seja, a proporção de indivíduos de cada espécie
que existe na região.

Quanto maior o número da riqueza de espécies e quanto maior a equitabilidade entre elas, maior
a biodiversidade. O que poucos sabem é que a diversidade é a principal característica que determina
a capacidade de sobrevivência de um sistema durante e após um período de adversidade. A grande

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diversidade de espécies foi o que permitiu a recuperação da vida em nosso planeta após as várias
crises pelas quais ele passou, como mudanças climáticas globais, movimentos de continentes, erupções
vulcânicas, choques de meteoros, entre outros fatores que alteraram e ainda alteram drasticamente a
vida sobre a Terra. (SALGADO-LABORIAU, 1994).
Durante todo o processo de equilíbrio do planeta ocorreram transformações, ou seja, toda energia
que entra em um sistema é processada em nova energia, seja ela térmica, seja cinética, potencial etc.
A natureza mantém o equilíbrio por meio da reserva de energia por parte de alguns organismos, que
apresentam a capacidade de reter em si parte da energia de alta entropia que sugam da natureza.
Isso quer dizer que tais organismos agem de modo a colaborar para o equilíbrio ecológico. Porém,
quando a capacidade desses organismos é superada, a desorganização do meio ambiente vem à tona
por meio de entropia negativa (desequilíbrio). Quando isso acontece, alguns alertas são possíveis de
serem observados, como a extinção de determinadas espécies ou o desequilíbrio entre épocas de chuvas
e secas. (MORALEZ; DINIZ, 2008).
O meio ambiente pode se harmonizar em um sistema aberto por meio da homeostase, ou seja,
pela autorregulação. Conforme exemplo descrito por Moralez e Diniz (2008), a visita excessiva de
turistas em uma ilha pode causar a degradação do sistema presente, no caso, a beleza intocada da
natureza. O controle quanto ao número de visitantes, como ocorre na Ilha do Mel, em Pontal do
Paraná-PR, mantendo o baixo fluxo de pessoas, contribui para a homeostase local.
Mesmo sabendo-se da importância de se estudar a diversidade da vida em todos seus níveis, a
diversidade de espécies é certamente o item mais conhecido e estudado.
O conceito de espécie biológica vem sofrendo influência pela ampliação do conhecimento
genético atual, assim como pela evolução dos organismos. Atualmente, acredita-se que a capacidade
de intercruzamento ou da troca de combinação genética entre indivíduos, em condições normais, é a
principal característica de separação entre espécies.
Esse conceito reconhece que indivíduos ou populações podem variar quanto à aparência e até
mesmo ser de raças distintas (por exemplo, as raças de cães) e ainda corresponderem à mesma espécie,
desde que possam se reproduzir livremente originando filhotes férteis.
Contudo, essa determinação de ‘espécie’ não se aplica para os microrganismos e algumas plantas,
pois podem apresentar sistemas reprodutivos especiais ou diferentes entre os indivíduos, ou seja, o
conceito de espécie biológica baseado na capacidade de intercruzamento não funciona para esses
organismos. Sendo assim, atualmente, o conceito de espécie baseia-se principalmente em diferenças
genéticas ou de aparência, desde que consideradas suficientemente significativas, em vez da sua
separação reprodutiva.
Para se caracterizar a diversidade de espécies de determinado local, a maneira mais simples é
contar ou listar as espécies existentes. Essa contagem é chamada de ‘riqueza de espécies’. Porém, para
algumas plantas e microrganismos o que contamos são formas distintas e não exatamente espécies
biológicas. Portanto, a diversidade de espécies apresenta significados diferentes para animais, plantas e
microrganismos.

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Biodiversidade atual
O conhecimento do homem sobre quantas são as espécies que coexistem na Terra é ainda muito
incipiente. As estimativas científicas sobre o número de espécies variam de 2 a 100 milhões, contudo, a
maioria dos estudos aceita o número de 10 milhões como o mais próximo da realidade. Dessas, menos
de 1,8 milhão foi devidamente classificada e descrita cientificamente.
Em 2011, a revista PLOS Biology publicou um artigo no qual os cientistas calculavam que o
número de espécies estimadas para a Terra seria de 8,7 milhões. Embora exista uma grande margem de
erro, esse é o cálculo mais preciso já feito sobre a presença de vida no planeta. De acordo com os cientistas,
dos 8,7 milhões, 6,5 milhões são espécies terrestres e 2,5 milhões, marinhas. (MORA et al., 2011).
A Conservation International (CI) denomina como ‘País de Megadiversidade’, os países mais ricos
em biodiversidade do mundo. Os critérios avaliados são o número de espécies de plantas endêmicas
e o número total de espécies de mamíferos, aves, répteis e anfíbios. Assim, o Brasil apresenta-se como
campeão absoluto de biodiversidade, reunindo 13,1% da biota mundial (com intervalo de confiança
igual a 95%), de acordo com Lewinsohn e Prado (2005). Aqui, conforme pode ser observado na
Tabela 1, concentram-se 55 mil espécies de plantas superiores (22% do total mundial), muitas delas
endêmicas; 524 espécies de mamíferos; mais de 3 mil espécies de peixes de água doce; entre 10 e 15
milhões de insetos (a grande maioria ainda por ser descrita) e mais de 70 espécies de psitacídeos: araras,
papagaios e periquitos. (COSTA, 2010; LEWINSOHN; PRADO, 2005). Isso ocorre devido ao fato
do país apresentar regiões com diferentes zonas climáticas, variando entre trópico úmido, semiárido
e áreas temperadas, gerando diversas zonas biogeográficas, tais como a Floresta Amazônica, Pantanal,
Cerrado, Caatinga, Campos Sulinos e a Mata Atlântica.

Quadro 1 – Número de espécies descritas no Brasil e no mundo.

Reino/Filo ou subdivisão Brasil Mundo


VÍRUS 310 – 410 3.600

MONERA (bactérias e algas verde-azuladas) 800 – 900 4.300

FUNGOS 13.090 – 14.510 70.600 – 72.000

PROTISTAS 7.650 – 10.320 76.100 – 81.300

Protozoários 3.600 – 4.140 36.000

Algas 4.180 – 5.770 37.700 – 42.900

PLANTAS 43.020 – 49.520 263.800 – 279.400

Musgos (briófitas) 1.800 – 3.100 14.000 – 16.600

Samambaias (pteridófitas) 1.200 – 1.400 9.000 – 12.000

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Reino/Filo ou subdivisão Brasil Mundo


Coníferas – pinheiros (gimnospermas) 15 806

Plantas de flor com ovário (angiospermas) 40.000 – 45.000 240.000 – 250.000

ANIMAIS 103.780 – 136.990 1.279.300 – 1.359.400

Invertebrados 96.660 – 129.840 1.218.500 – 1.298.600

Esponjas (poríferos) 300 – 400 6.000 – 7.000

Corais e águas-vivas (cnidários) 470 7.000 – 11.000

Vermes achatados (platelmintos) 1.040 – 2.300 12.200

Vermes redondos (nematódeos) 1.280 – 2.880 15.000 – 25.000

Minhocas e poliquetas (anelídeos) 1.000 – 1.100 12.000 – 15.000

Moluscos 2.400 – 3.000 70.000 – 100.000

Estrelas-do-mar, ouriços (equinodermas) 329 6.000 – 7.000

Artrópodes 88.790 – 118.290 1.077.200 – 1.097.400

Insetos 80.750 – 109.250 950.000

Centopeias e gongolos (miriápodes) 400 – 500 11.000 – 15.100

Aranhas e ácaros (aracnídeos) 5.600 – 6.500 80.000 – 93.000

Crustáceos 2.040 36.200 – 39.300

Cordados (vertebrados e outros) 7.120 – 7.150 60.800

Tubarões e raias (condrictes) 155 960

Peixes (com osso – osteíctes) 3.261 27.400

Anfíbios 687 5.504

Répteis 633 8.163

Aves 1.696 9.900

Mamíferos 541 5.023

TOTAL 168.640 – 212.650 1.697.600 – 1.798.500

Fonte – Lewinsihn; Prado, 2005.

O Brasil é reconhecido por ter a maior diversidade biológica do mundo, de forma que temos,
portanto, muitas áreas que são consideradas prioritárias para conservação, conhecidas por hotspots, termo

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apresentado pela primeira vez pelo cientista Norman Myers (1988). A Conservação Internacional (CI)
adotou o conceito de que, para uma região ser qualificada como hotspots, deve preencher pelo menos dois
critérios: abrigar no mínimo 1.500 espécies de plantas vasculares endêmicas e ter 30% ou menos da sua
vegetação original. Assim, a Conservação Internacional Brasil colaborou com o Projeto de Ações Prioritárias
para a Conservação da Biodiversidade dos Biomas Brasileiros, do Ministério do Meio Ambiente. Centenas
de especialistas e representantes de várias instituições trabalharam juntos para identificar áreas prioritárias
para a conservação, como o Cerrado e a Mata Atlântica. (SCARANO; CEOTTO, 2015).
Essas pesquisas recentes apontam o tamanho do nosso desconhecimento em relação à biodiversidade,
uma vez que a maioria das espécies ainda não foi classificada ou mesmo descoberta, o que tem gerado
uma grande preocupação dos especialistas, visto que muitas delas estão desaparecendo antes mesmo
que saibamos da sua existência ou da sua importância dentro do nicho ou do ecossistema. Dessa forma,
as ações humanas estão queimando a nossa imensa ‘biblioteca da vida’.

AMEAÇAS À BIODIVERSIDADE
Nas últimas décadas, dados apontam que o homem devastou mais áreas naturais do que toda a
humanidade em milhões de anos da existência do planeta. A ação humana sobre os ecossistemas tem
afetado cada vez mais espécies da fauna e flora do planeta.
A diminuição do endemismo de determinada espécie é uma forte ameaça à biodiversidade. Nesse
caso, o nosso país se destaca negativamente, pois diversas espécies, tanto de animais quanto de plantas,
originárias de ambientes endêmicos, como a Mata Atlântica e o Cerrado, estão seriamente ameaçadas
de extinção. (SANTOS, 2010).
Segundo Mendonça et al. (2009), a consequência mais nefasta das ameaças à biodiversidade é, sem
sombra de dúvida, a extinção de uma espécie. Quando isso acontece perde-se o patrimônio genético,
podendo afetar a dinâmica das relações tróficas entre os seres vivos que compõem a teia alimentar em
que a espécie se insere.
Cabe lembrarmos que a extinção de espécies faz parte do processo evolutivo. Estima-se que de
99% de todas as espécies que já existiram estão hoje extintas. Trata-se de um evento lento causado
por fatores como surgimento de competidores mais eficientes e catástrofes naturais, como a extinção
dos dinossauros. Acredita-se que os dinossauros entraram em extinção em função da mudança
climática em decorrência da queda de um meteorito, há cerca de 65 milhões de anos. Conforme
mencionado anteriormente, a principal ameaça às espécies e, consequentemente, à biodiversidade é
o impacto planetário causado pelo ser humano. A degradação dos ecossistemas do planeta acelerou o
desaparecimento de animais e plantas, um processo que deveria ocorrer lentamente. Para ser ter uma
ideia, registros fósseis mostram que os níveis de extinção atuais são cerca de mil vezes maiores do que a
taxa natural prévia. (PIMM et al., 2014). Os anfíbios são particularmente mais sensíveis às mudanças
ambientais, com taxas de extinção estimadas em até 45 mil vezes a sua velocidade natural. Vale lembrar

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que a maioria dessas extinções nem mesmo são registradas, de forma que nem sabemos o quanto
estamos perdendo sistematicamente.
A principal causa da degradação ambiental é a ação humana por meio do uso desequilibrado dos
recursos naturais, desregulando os ecossistemas, seja pela morte de espécies, nichos, habitat, seja pela
perda da função ecossistêmica. As principais causas da perda de espécies são
1. Degradação e fragmentação de ambientes naturais causados, principalmente, pelo
desmatamento proveniente da expansão das cidades, infraestrutura e das atividades rurais
como pastagens (como a pecuária extensiva) e agricultura (por exemplo, abertura de fronteira
agrícola em área de Amazônia Legal). A formação de lagos para hidrelétricas causa fragmentação
nos fluxos hídricos e acaba por isolar espécies. A mineração também elimina, muitas vezes de
forma irreversível, habitat. Esses fatores reduzem o total de habitat disponíveis às espécies e
aumentam o grau de isolamento entre suas populações, diminuindo o fluxo gênico entre elas,
o que pode acarretar perdas de variabilidade genética e, eventualmente, a extinção de espécies.
2. Superexploração como a caça e a sobrepesca, por exemplo, são ações responsáveis pela pressão
e consequente diminuição do número de indivíduos de várias espécies anualmente (por
exemplo, atum-azul, jacaré-de-papo-amarelo, rinoceronte-branco), bem como a retirada ilegal
de madeira (como o mogno-brasileiro, árvore nativa da Amazônia) e a exploração de plantas
de interesse especial ao homem (tais como o xaxim e o palmito, nativos da Mata Atlântica),
de forma que as espécies não conseguem repor o estoque natural, devido à grande exploração
comercial que sofrem. Adicionalmente, o tráfico de animais e plantas silvestres também é um
facilitador da diminuição de organismos, pois alimenta um comércio internacional cruel,
porém muito lucrativo, tendo como exemplo as aves brasileiras, especialmente da família
Psittacidae, representada por periquitos, papagaios e araras.
3. Introdução de espécies exóticas, ou seja, aquelas que não são nativas de uma região (também
conhecidas por espécies alienígenas), pois são encontradas fora da sua área de abrangência
natural (espécies endêmicas). Essas apresentam vantagens competitivas, por exemplo, a
ausência de predadores ao se instalarem. Alguns estudos indicam que ambientes degradados
favorecem a dispersão dessas espécies por apresentarem características mais rústicas. Com o
aumento do comércio internacional (por exemplo, maior fluxo de tráfego de navios), muitas
vezes indivíduos são translocados para áreas onde não encontram filtros ambientais (doenças,
predadores, competidores) ou ainda apresentam maior eficiência que as espécies nativas no
uso dos recursos (como as tilápias). Dessa forma, multiplicam-se rapidamente, ocasionando
o empobrecimento dos ambientes, simplificação dos ecossistemas e a extinção de espécies
nativas. (VITULE; PRODOCIMO, 2012).
4. Poluição da água, ar e solo. Muitas espécies não conseguem sobreviver a esses ambientes, seja
pelo uso indiscriminado de pesticidas, que leva à morte ou ao surgimento de doenças, seja pelo
desequilíbrio da cadeia alimentar e pela perda de espécies (como as abelhas polinizadoras).

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5. Mudanças climáticas. Embora não haja consenso na comunidade científica, muitos estudos
apontam o desaparecimento de espécies, em especial de anfíbios. Um estudo publicado em
2011, por meio da análise e compilação de vários outros estudos, concluiu que 10 a 14%
das espécies serão extintas. (MACLEAN; WILSON, 2011). O aumento da temperatura dos
oceanos tem causado eventos globais de branqueamento e morte de corais. É importante
lembrar que os corais são organismos-base da cadeia alimentar marinha, que sustentam os
demais níveis tróficos representados por crustáceos, peixes e mamíferos marinhos.

Dentre as ameaças à biodiversidade, um tema bastante comentado atualmente é a mortandade


das abelhas. Esses animais exercem um serviço ecossistêmico essencial à sobrevivência humana
(MILLENNIUM ECOSYSTEM ASSESSMENT, 2005), sendo responsáveis por 70% da
polinização das principais culturas produzidas no mundo (RICKETTS et al., 2008), destacando a
produção de culturas alimentícias nos países tropicais que dependem da polinização por abelhas,
tais como a produção de maçãs, açaí, acerola, maracujá, castanha, café, canola, soja, morango,
tomate, entre outros.
Em alguns casos, essa interação entre o polinizador e a planta não é obrigatória, ou seja, existem
outros agentes polinizadores que transferem o pólen, contudo, pesquisas demonstram que culturas
polinizadas por abelhas selvagens apresentam melhores resultados na produtividade e na qualidade.
Os frutos, por exemplo, apresentam mais sementes, melhor aparência, valor nutritivo, peso e até
longevidade. (JUNQUEIRA; AUGUSTO, 2016; NUNES-SILVA et al., 2013). Entende-se, portanto,
que ao refletirem melhor qualidade e estabilidade nas colheitas, as abelhas polinizadoras também
promovem melhores rendimentos aos agricultores.
Os serviços prestados pelos ecossistemas são incalculáveis, assim como o de polinização promovido
pelas abelhas e demais polinizadores, quando falamos em manutenção da diversidade de vida na
Terra. Muitos especialistas têm se dedicado a valorar economicamente o serviço da polinização. De
acordo com a Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES,
2016), os cálculos apontam que a polinização e produção de alimentos podem ser estimadas entre
US$ 235 bilhões e US$ 577 bilhões. No Brasil, a polinização tem um valor anual de US$ 12 bilhões
apenas para a renda agrícola das culturas dependentes. A safra de soja representa US$ 22 bilhões de
receita anual, sendo que US$ 5,7 bilhões é contribuição das culturas polinizadas por abelhas e demais.
As abelhas apresentam relevante papel econômico, sobretudo no Brasil em que o PIB tem sua maior
contribuição proveniente da agricultura. Além disso, deve-se destacar que os polinizadores apresentam
imprescindível papel na manutenção dos sistemas naturais. A polinização é um serviço ecossistêmico de
‘regulação’, ‘provisão’ e ‘suporte’, sendo responsável pela produção de muitas variedades de alimentos,
além de contribuírem com o fluxo gênico entre as espécies, pois quando uma abelha visita uma flor
masculina e transfere o pólen para a flor feminina, promove a fertilização e mistura de material genético
entre as espécies, fato essencial para a manutenção da biodiversidade genética. Esse fator contribui de
forma significativa para a regeneração de áreas vegetadas e mais resilientes aos impactos do que áreas

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mais homogêneas. Além do mais, a polinização por abelhas promove a restauração de ecossistemas
naturais, manutenção e qualidade dos solos, tão importantes para a manutenção da produção de
alimentos. Pesquisas apontam que das espécies silvestres que atuam na polinização agrícola, apenas 2%
são responsáveis por 80% dos serviços de polinização. (KLEIJN et al., 2015).
O papel desses polinizadores não é somente dedicado à transferência de pólen entre as flores
dos indivíduos; as abelhas selvagens aumentam a quantidade total de pólen depositada nos estigmas
das flores, elevando as probabilidades de fecundação e, por consequência, aumentam a quantidade
e qualidade de culturas. (NRC, 2007). Sem contabilizar os valores intrínsecos de coevolução das
relações específicas entre polinizador-planta, o valor de existência das espécies e todo o conhecimento
e potencial embutido nesses processos. O que não sabemos é como seria a vida no mundo se as abelhas
tivessem suas populações reduzidas ou mesmo se desaparecessem.
Atualmente, a expansão das fronteiras agrícolas para produção de alimentos para uma população
mundial que cresce de forma exponencial tornou-se a principal ameaça à biodiversidade. A intensificação
agrícola e a conversão de terras, antes cobertas por florestas, em solos produtivos e na maioria por
monocultoras, provocam uma série de alterações, as quais têm contribuído para o desaparecimento
das abelhas.
Com o aumento de áreas agricultáveis, há perdas substanciais de habitat naturais que interrompem
as comunidades de polinizadores. Assim, inicia-se um efeito cascata, no qual o ecossistema perde a
estabilidade, espécies entram em extinção local e o serviço ecossistêmico é perdido. Perde-se o equilíbrio
ecológico, juntamente ao controle natural de pragas, o qual existe pela coexistência de predadores
versus presas e competidores. Quando se perde esse equilíbrio na cadeia trófica, perde-se a capacidade
de resiliência dos ecossistemas, de decomposição da matéria orgânica, da ciclagem de nutrientes e da
alteração dos ciclos biogeoquímicos, ou seja, o processo deixa de ser autorregulado.
Cabe destacar que o desaparecimento das abelhas tem se dado por um efeito sinérgico em
função das profundas alterações ambientais causadas pelo homem ao planeta, tais como poluição,
grande número de produtos presentes na vida moderna (fármacos, nanopartículas), que acabam
armazenados em algum compartimento ambiental, seja na água, seja no solo, no ar ou em
sedimentos. As mudanças climáticas têm um papel importante no declínio das abelhas, uma vez
que alteram épocas de florações, por exemplo. Contudo, a comunidade científica internacional
tem relatado que a principal causa do desaparecimento dos polinizadores se deve ao uso abusivo de
pesticidas nas lavouras, principalmente o fipronil e os neonicotinoides. (THE GUARDIAN, 2013;
BONMATIN et al., 2007).
Além de causarem efeitos letais nas abelhas, os pesticidas são levados para dentro das colmeias
e acabam contaminando a prole, o que tem causado o desaparecimento em massa delas em certas
regiões. Como já discutido anteriormente, polinização pode ser muito específica para certas culturas,
e essa relação tão estreita entre polinizador-planta tem causado inúmeros prejuízos na agricultura, que
passa a ser menos produtiva e precisa utilizar dispersores de sementes não naturais, aumentando os
custos do processo, os quais acabam sendo repassados ao consumidor final.

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O tema sobre o desaparecimento das abelhas é bastante polêmico, mas real e muito bem relatado.
Essa dependência humana dos serviços prestados pelo ecossistema deveria ser mais bem valorada,
sobretudo respeitada para que continuemos a usufruir e coexistir.

Extinção de espécies
Durante toda a história da vida na Terra os organismos foram expostos a variações climáticas,
responsáveis em grande parte pelos padrões atuais de diversidade, distribuição e abundância das
espécies. (NAVAS; CRUZ-NETO, 2008). Acredita-se que se as condições climáticas mudam, podem
ocorrer diferentes tipos de ajustes à nova condição, ocasionando até mesmo extinção local ou total das
espécies.
Anteriormente, comentamos que grandes extinções em massa foram possivelmente causadas por
mudanças climáticas que aconteceram no passado, tratando-se de um processo natural. Destaca-se
que o processo natural não significa desejável, pois naturais são as erupções vulcânicas, os impactos de
asteroides sobre a Terra, entre outros. E, ainda, fenômenos biológicos decorrentes da ação antrópica
(causados pelo homem) não são considerados naturais.
O grande e recente crescimento demográfico das cidades reduziu expressivamente a cobertura
vegetal do país, formando, geralmente, pequenos e isolados fragmentos florestal.
Para várias espécies, muitos desses fragmentos podem não disponibilizar a área e/ou condições
mínimas necessárias para sua reprodução (CUTLER, 1991; GILPIN; SOULÉ, 1986), ou a
fragmentação é avançada a ponto de não permitir a dispersão de espécies entre os fragmentos, o que
leva a desaparecimentos locais. (LIMA; ROPER, 2009; SEKERCIOGLU, 2002). Porém, essas áreas
podem disponibilizar abrigo e alimento a muitas espécies nativas e esses efeitos podem até ser favoráveis
a algumas populações de caráter generalista, por oferecer, por exemplo, novas fontes de alimento ou
outros recursos importantes para reprodução. (BOTKIN, 1990).
A Floresta Atlântica é considerada o tipo de formação mais ameaçada do Brasil e uma das principais
do mundo. Além de ter o maior índice de endemismos do país, apresenta também a maior taxa de
espécies nas categorias ameaçadas de extinção. (MMA, 2019).
Segundo Barbosa e Viana (2014), uma espécie ameaçada de extinção é aquela cuja população está
decrescendo a ponto de colocá-la em alto risco de desaparecimento na natureza em futuro próximo.
De acordo com o Ministério do Meio Ambiente (2014), por meio das Portarias n.os 443, 444 e 445, no
Brasil existem 3.286 espécies incluídas em alguma categoria de ameaça ou extinção adotada pelo meio
científico5, dos quais 1.173 são animais e 2.113 são plantas.
Apesar de ainda não sabermos com precisão quantos organismos habitam a biosfera, nossa
capacidade em promover a erosão genética tem sido notável. A taxa de extinção de espécies nos últimos
50 anos é considerada equivalente àquela que ocorreu há 1.950 anos, configurando o chamado sexto
evento de extinção em massa. O tamanho da biodiversidade global é estimado hoje entre 30 e 50
milhões de espécie, das quais mais da metade são insetos.

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As florestas brasileiras, por exemplo, representam uma importante fonte de riquezas, tanto de
forma direta, de matéria-prima para diversos setores estratégicos, como também pelas suas influências
ambientais positivas na manutenção da biodiversidade, no equilíbrio de gases atmosféricos, no ciclo
hidrológico e no controle da erosão.
Durante os últimos 18 anos, a riqueza medida pelo Produto Interno Bruto (PIB) per capita aumentou
34%. No mesmo período, o capital natural (a soma de todos os recursos naturais, de florestas a combustíveis
fósseis) caiu 46%, como revela o Indicador Inclusivo de Riqueza (IIR), criado experimentalmente para
rebater ao PIB e avaliar o progresso de uma nação. O que queremos mostrar é que o Brasil retirou mais
recursos da natureza do que cresceu economicamente. Caso o capital natural, o humano e os produtos
manufaturados fossem avaliados em conjunto, o crescimento no país seria de apenas 3%.
A Mata Atlântica é um bom exemplo de como os recursos naturais vêm diminuindo com o
passar dos anos. Essa formação vegetal cobria 1.300.000 km², ou cerca de 15% do território nacional,
inclusive o Paraguai e a Argentina, e atualmente existe cerca de 7,9% da área original (92,1% do que
havia já foi devastado), ou seja, cerca de 1% do território brasileiro. Segundo o Ministério do Meio
Ambiente, nos anos de 2008 e 2009 o desmatamento na Mata Atlântica reduziu. O bioma mais
ameaçado do país perdeu nesse período 248 km2 da cobertura vegetal. Esse número é inferior à média
anual do período de 2002 a 2008, que era de 457 km2.
Em relação à fauna brasileira, o tráfico de animais silvestres é uma das maiores atividades
predatórias. Das florestas brasileiras são retiradas em média 12 milhões de animais a cada ano. De
acordo com essa estatística, para cada animal vendido nove morrem. O tráfico de animais só perde para
o tráfico de drogas e de armas na escala dos mais rentáveis. O tráfico de animais tem sobrevivido da
miséria humana, explorando pessoas simples que fazem da venda de animais um meio trágico de obter
dinheiro, causando enormes e irreparáveis danos à natureza.

FORMAS DE PRESERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE


Há diversos motivos e razões para se preservar a biodiversidade, por exemplo:
• motivos éticos – o ser humano tem o dever de proteger outras formas de vida;
• motivos estéticos – deve-se proteger a natureza, uma vez que as pessoas apreciam e gostam de
observar seres (animais e plantas) no seu estado selvagem;
• motivos econômicos – devemos lembrar que cerca de 40% da economia mundial dependem
de recursos biológicos. A preservação da biodiversidade apresenta razões econômicas quando
pensamos que a diminuição de espécies animais e vegetais pode prejudicar atividades já
existentes, como a pesca podendo comprometer seu uso no futuro também (como a produção
de medicamentos);

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• motivos funcionais da natureza – a redução da biodiversidade ocasionará perdas ambientais,


ou seja, as espécies compõem uma cadeia interligada por mecanismos naturais com
importantes funções, como regulação do clima; purificação do ar; proteção dos solos e das
bacias hidrográficas contra a erosão; controle de pragas; entre outros.

Fatores que influenciam a qualidade da preservação


Para preservar e proteger a riqueza existente em nosso país, o Brasil segue a tendência mundial de
criar áreas naturais protegidas legalmente instituídas, como parques e reservas, onde não é permitida a
presença humana e o uso dos recursos naturais é restrito.
O termo ‘floresta’ pode ser definido como entidade biológica formada por um conjunto complexo
de formas biológicas interdependentes, que se dispõem em camadas, e cujo elemento dominante é a
árvore. Esse conceito demonstra a importância da organização da estrutura vertical dos organismos
arbóreos. Diferentemente, área verde é uma região com cobertura vegetal de porte arbustivo-arbóreo
que visa contribuir para a melhoria da qualidade de vida urbana, permitindo seu uso para atividades
de lazer, podendo ou não cumprir uma função ecológica, ter a estrutura de uma floresta. Dentro
das áreas verdes urbanas estão compreendidos os parques. Estes são áreas delimitadas, dotadas de
atributos naturais, objeto de conservação permanente, submetidas à condição de inalienabilidade e
indisponibilidade em seu todo, destinadas a fins científicos, culturais, educativos e recreativos. São
áreas criadas e administradas pelo Governo Federal, Estadual e Municipal, visando principalmente à
conservação dos ecossistemas naturais englobados.
Normalmente, um processo de urbanização de uma região elimina grande parte da cobertura
vegetal, porém também cria ‘áreas’ de conservação. A influência positiva da cobertura vegetal em
relação à dinâmica do ambiente urbano tem sido referenciada por inúmeros autores (HENKE-
-OLIVEIRA, 1996), enfatizando a sua importância para o controle climático, da poluição do ar e
acústica, a melhoria da qualidade estética, os efeitos sobre a saúde mental e física da população, o
aumento do conforto ambiental, a valorização de áreas para convívio social, a valorização econômica
das propriedades e a formação de uma memória e de um patrimônio cultural.
Os parques e manchas verdes em áreas urbanas podem reter até 85% do material particulado,
e as ruas arborizadas são responsáveis pela redução de 70% da poeira em suspensão. Muitos gases
são também filtrados, uma vez que aderem ao material particulado. De acordo com Guzzo (1999),
uma barreira com 30 metros de vegetação entre uma área industrial e uma residencial promove uma
intercepção total do material particulado e uma redução significativa de poluentes gasosos.
Em se tratando de impactos da urbanização sobre as plantas, Lima (1993) aponta os principais
problemas prejudiciais: poluição do ar, pavimentação e falta ou excesso de água no solo, além de
pouca ou nenhuma disponibilidade de nutrientes, pH mais elevado do que em condições naturais em
prejuízo de vida microbiana e excesso de reflexão de energia por casas e pavimentos.

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Áreas protegidas por Lei


Para garantir a existência de espaços naturais, a legislação define critérios para orientar o uso do
solo, mantendo áreas conservadas, denominadas de preservação permanente e reserva legal.

Áreas de preservação permanente: são as margens de rios, cursos d’água, lagos, lagoas e reservatórios,
topos de morros e encostas com declividade elevada, cobertas ou não por vegetação nativa, com a função
ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o
fluxo gênico de fauna e flora, e de proteger o solo e assegurar o bem-estar da população humana.
(BRASIL, 2012).

Esse conceito foi dado pela Lei Federal n.° 4.771/1965 e suas alterações, e permanece no atual
Código Florestal (Lei Federal n.° 12.651/2012 e alterações). São consideradas áreas mais sensíveis e
sofrem riscos de erosão do solo, enchentes e deslizamentos (BRASIL, 2012; SOS Florestas, 2011),
possuindo grande relevância no que concerne a funções voltadas ao equilíbrio ecossistêmico e à
preservação e conservação dos recursos naturais. (TAMANINI, 2012).
Considera-se área de preservação permanente (APP) as faixas marginais de qualquer curso d’água
natural, desde a borda da calha do leito regular. A delimitação das áreas de preservação permanentes
em relação à largura do rio, segundo a Lei n.º 12.651/2012 (Novo Código Florestal) é apresentada na
Tabela 2, a seguir:

Tabela 2 – Área de preservação permanente em relação à largura do rio.

Largura máxima do rio (metro) APP (metro)

Menor que 10 (dez) 30 (trinta)

De 10 (dez) a 50 (cinquenta) 50 (cinquenta)

De 50 (cinquenta) a 200 (duzentos) 100 (cem)

De 200 (duzentos) a 600 (seiscentos) 200 (duzentos)

Maior que 600 (seiscentos) 500 (quinhentos)

Fonte – Brasil, 2012.

Também são consideradas áreas de preservação permanentes as áreas no entorno dos lagos e lagoas
naturais; as áreas no entorno dos reservatórios d’água artificiais; as áreas no entorno das nascentes e
dos olhos d’água perenes; as encostas ou partes destas com declividade superior a 45º; as restingas,
como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues; os manguezais; as bordas dos tabuleiros ou
chapadas; o topo de morros; as áreas em altitude superior a 1.800 metros e a faixa marginal de veredas.

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Além da área de preservação permanente também foi instituída por legislação a Reserva Legal.
Essa lei foi criada com a finalidade de assegurar a preservação da biodiversidade e dos recursos naturais
existentes em propriedades rurais:

Reserva Legal: área localizada no interior da propriedade ou posse rural com a função de assegurar
o uso econômico sustentável dos recursos naturais, proporcionar a conservação e a reabilitação dos
processos ecológicos, promover a conservação da biodiversidade, abrigar e proteger a fauna silvestre e
a flora nativa. (BRASIL, 2012).

O tamanho da área varia de acordo com a região onde a propriedade está localizada. Na Amazônia
é de 80% (Artigo 12, Inciso I, Alínea ‘a’), e no Cerrado é de 35% (Artigo 12, Inciso I, Alínea ‘b’).
Nas demais regiões do país, a reserva legal é de 20% (Artigo 12, Inciso II). (BRASIL, 2012; SOS
FLORESTAS, 2011; BECK, 2012; GANEM, 2009).
Apesar de no atual Código Florestal (2012) os percentuais permanecerem os mesmos, a isenção de
recuperação dos passivos relacionados à Reserva Legal depende do tamanho do imóvel rural, restringindo
essa isenção para pequenas propriedades, sendo elas imóveis com área de até quatro módulos fiscais
(Artigo 67). (IPEA, 2011; BECK, 2012). Viana destacou em seu Parecer (sobre o Projeto de lei que
culminou no Código Florestal) (BRASIL, 2011) que a nova Lei busca orientar a exploração sustentável
da vegetação da reserva legal, estabelecendo condicionantes para o uso e compensação e o tratamento
diferenciado para a regularização das pequenas propriedades e posses rurais quanto à reserva legal
(Artigo 66). (TAMANINI, 2012).
Além da conservação nas propriedades, o Estado em seus diferentes níveis (federal, estadual e
municipal), e, em algumas situações, a iniciativa privada instituíram as chamadas Unidades de
Conservação (UCs), que são espaços territoriais com características naturais relevantes, com limites
e objetivos definidos, com regimes específicos de manejo e administração. As UCs têm a finalidade
de assegurar a representatividade de amostras significativas e ecologicamente viáveis das diferentes
populações, habitat e ecossistemas do território nacional e das águas jurisdicionais, preservando o
patrimônio biológico existente.
De forma a regularizar a questão das UCs, foi instituído, há dez anos, o Sistema Nacional de
Conservação da Natureza (SNUC), a partir da Lei n.º 9.985, de 18 de julho de 2000. A Lei do SNUC
representou inúmeros avanços à criação e gestão das UCs, pois possibilitou uma visão sistêmica das
áreas naturais a serem preservadas e conservadas, além de estabelecer mecanismos que regulamentam a
participação da sociedade na gestão das UCs, potencializando a relação entre o Estado, os cidadãos e o
meio ambiente. O SNUC separa as unidades de conservação em dois grupos.
I) Unidades de Proteção Integral: a proteção da natureza é o objetivo principal dessas unidades,
com regras e normas mais restritivas. É permitido apenas o uso indireto dos recursos naturais,
ou seja, aqueles que não envolvem consumo, coleta ou dano aos recursos naturais. As categorias
de proteção integral são: Estação Ecológica, Reserva Biológica, Parque, Monumento Natural
e Refúgio de Vida Silvestre.

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• Estação Ecológica: área destinada à preservação da natureza e à realização de pesquisas


científicas, podendo ser visitada apenas com o objetivo educacional.
• Reserva Biológica: área destinada à preservação da diversidade biológica, na qual são realizadas
medidas de recuperação dos ecossistemas alterados para recuperar o equilíbrio natural e
preservar a diversidade biológica, podendo ser visitada apenas com objetivo educacional.
• Parque Nacional: área destinada à preservação dos ecossistemas naturais e sítios de beleza cênica.
O parque é a categoria que possibilita uma maior interação entre o visitante e a natureza, pois
permite o desenvolvimento de atividades recreativas, educativas e de interpretação ambiental,
além da realização de pesquisas científicas.
• Monumento Natural: área destinada à preservação de lugares singulares, raros e de grande
beleza cênica, permitindo diversas atividades de visitação. Essa categoria de UC pode ser
constituída de áreas particulares, desde que as atividades realizadas nessas áreas sejam
compatíveis com os objetivos da UC.
• Refúgio da Vida Silvestre: área destinada à proteção de ambientes naturais, na qual se objetiva
assegurar condições para a existência ou reprodução de espécies ou comunidades da flora local
e da fauna. Permite diversas atividades de visitação e a existência de áreas particulares, assim
como no monumento natural.

II) Unidades de Uso Sustentável: são áreas que visam conciliar a conservação da natureza com
o uso sustentável dos recursos naturais. As atividades que envolvem coleta e uso dos recursos
naturais são permitidas, mas devem ser praticadas de uma forma sustentável, visando à
sustentabilidade dos recursos envolvidos. As categorias de uso sustentável são Área de Relevante
Interesse Ecológico, Floresta Nacional, Reserva de Fauna, Reserva de Desenvolvimento
Sustentável, Reserva Extrativista, Área de Proteção Ambiental (APA) e Reserva Particular do
Patrimônio Natural (RPPN).
• Área de Proteção Ambiental: área dotada de atributos naturais, estéticos e culturais importantes
para a qualidade de vida e o bem-estar das populações humanas. Geralmente, é uma área
extensa, com o objetivo de proteger a diversidade biológica, ordenar o processo de ocupação
humana e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais. É constituída por terras
públicas e privada.
• Área de Relevante Interesse Ecológico: área com o objetivo de preservar os ecossistemas
naturais de importância regional ou local. Geralmente, é uma área de pequena extensão, com
pouca ou nenhuma ocupação humana e com características naturais singulares. É constituída
por terras públicas e privada.
• Floresta Nacional: área com cobertura florestal onde predominam espécies nativas, visando
ao uso sustentável e diversificado dos recursos florestais e à pesquisa científica. É admitida a
permanência de populações tradicionais que a habitam desde sua criação.

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• Reserva Extrativista: área natural utilizada por populações extrativistas tradicionais, onde
exercem suas atividades baseadas no extrativismo, na agricultura de subsistência e na criação
de animais de pequeno porte, assegurando o uso sustentável dos recursos naturais existentes.
Permite visitação pública e pesquisa científica.
• Reserva de Fauna: área natural com populações animais de espécies nativas, terrestres ou
aquáticas; adequada para estudos técnico-científicos sobre o manejo econômico sustentável
de recursos faunísticos.
• Reserva de Desenvolvimento Sustentável: área natural onde vivem populações tradicionais
que se baseiam em sistemas sustentáveis de exploração de recursos naturais. Permite visitação
pública e pesquisa científica.
• Reserva Particular do Patrimônio Natural: área privada com o objetivo de conservar a
diversidade biológica, na qual é permitida a pesquisa científica e a visitação turística, recreativa
e educacional. É criada por iniciativa do proprietário, que pode ser apoiado por órgãos
integrantes do SNUC na gestão da UC.

Conforme estabelecido pelo Ministério do Meio Ambiente, sob um olhar econômico e


socioambiental, de acordo com o tipo de atividade econômica permitida em cada categoria, a
classificação das UCs pode ser analisada da seguinte maneira.

Tabela 3 – Categorias e classificação das Unidades de Conservação do Brasil de acordo com a Lei
Federal n.º 9.985/2000 (SNUC).

Classe Principais usos – Categoria de manejo


Lei n.º 9.985/2000
Classe 1 – Pesquisa científica e educa- Desenvolvimento de pesquisa científica e Reserva biológica; Estação ecológica.
ção ambiental. de educação ambiental.
Classe 2 – Pesquisa científica, educação Turismo em contato com a natureza. Parques nacionais e estaduais; reservas
ambiental e visitação. particulares do patrimônio natural.
Classe 3 – Produção florestal, pesquisa Produção florestal. Florestas nacionais e estaduais.
científica e visitação.
Classe 4 – Extrativismo, pesquisa cien- Extrativismo por populações tradicio- Reservas extrativistas.
tífica e visitação. nais.
Classe 5 – Agricultura de baixo impacto, Áreas públicas e privadas onde a produção Reserva de desenvolvimento susten-
pesquisa científica, visitação, produção agrícola e pecuária são compatibilizadas tável; refúgio de vida silvestre; monu-
florestal e extrativismo. com os objetivos da UC. mento natural.
Classe 6 – Agropecuária, atividade in- Terras públicas e particulares com possi- Área de proteção ambiental; área de
dustrial, núcleo populacional urbano e bilidade de usos variados, visando ao or- relevante interesse ecológico.
rural. denamento territorial sustentável.

Fonte – DAP/SBF/MMA, 2012.

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De acordo com o Cadastro Nacional de Unidade de Conservação (CNUC, 2018), o Brasil tem
2.180 Unidades de Conservação (UCs) nas esferas federal, estadual e municipal. Desse total, 684
enquadram-se na categoria de Proteção Integral (PI) e 1.496 de Uso Sustentável (US), totalizando uma
área de 2.498.165 km². Desse total, 1.582.511 km² são representados por UCs em área continental
e equivalem a 18,6% do território nacional continental. Já as UCs marinhas correspondem a
962.407 Km² e representam 26,4% do mar territorial brasileiro.
Embora com áreas bastante representativas, o Brasil encontra-se em 37º lugar no ranking mundial
em porcentagem de áreas protegidas, conforme os dados do Banco Mundial (World Database on
Protected Areas – WDPA, 2018). Ainda de acordo com a pesquisa, dados indicam que apenas
14,8% de todo o planeta encontram-se sob algum status de conservação, representando uma parcela
muito pequena e não homogênea da distribuição dessas áreas. A Nova Caledônia, um arquipélago
localizado na Oceania, lidera o ranking do país com a maior porcentagem de áreas protegidas do
planeta, representando 54,4% de seu território. Contundo, a Venezuela é o país que apresenta a maior
porcentagem territorial de área protegida, com 54,14%.
As Unidades de Conservação têm um papel fundamental na manutenção dos serviços ecossistêmicos
que, por sua vez, são essenciais ao desenvolvimento econômico do país. De acordo com o Mistério da
Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento, em 2018 o agronegócio foi responsável por 5,7% do PIB
brasileiro, correspondendo a aproximadamente 93,94 bilhões de reais. Essa alta produtividade deve-se,
principalmente, à disponibilidade de recursos naturais do país, como solos férteis, água doce superficial,
recursos florestais, recursos minerais e clima favorável associado à adoção de avançados padrões tecnológicos
mundialmente reconhecidos. Contudo, para manutenção e equilíbrio desse sistema, que é limitado,
necessita-se de uma boa gestão para garantir que a produção dessas riquezas seja mantida numa visão em
longo prazo, pois o agricultor é o principal beneficiado pela adoção de bases sustentáveis de produção.
Dessa forma, podemos entender que o Brasil tem dado importantes passos na busca desse
desenvolvimento sustentável. O país dispõe do equivalente a 170 milhões de hectares de vegetação nativa
preservada dentro dos imóveis rurais cadastrados no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural
(SICAR). Essas áreas protegidas, conhecidas por Reserva Legal (RL) e Área de Preservação Permanente
(APP), são constituídas por áreas florestadas e/ou de vegetação nativa, as quais têm seus usos bastante
limitados dentro das propriedades rurais, cujo principal objetivo é a conservação em atendimento à
preservação em Lei Federal n.° 12.651/2012 (Código Florestal). Essa preservação e declaração ao CAR de
RL e APP por parte do agricultor é de extrema importância para que se possa garantir a produtividade e
a qualidade ambiental no campo e, consequentemente, a funcionalidade dos ecossistemas e manutenção
dos serviços de polinização, decomposição de matéria, ciclagem de nutrientes essenciais à vida. Estima-se
que essas áreas representem mais de 20% do território brasileiro (Embrapa, 2017), conforme pode ser
observado na Figura 3. Esses dados demostram que os produtores rurais têm um relevante papel na
conservação dos recursos naturais e importância da consolidação do nosso Código Florestal.

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Figura 3 – Áreas mapeadas de vegetação preservada nos imóveis rurais cadastrados no SICAR até
dezembro de 2016.

Fonte – EMBRAPA, 2017.

A melhor maneira de proteger a biodiversidade é manter as florestas preservadas em áreas que


permitam sua resiliência, promoção de fluxo gênico e manutenção de bancos de sementes. Contudo,
a maior ameaça à biodiversidade no nosso país advém do desmatamento ilegal, praticado, sobretudo,
para a expansão da pecuária em estados que constituem a Amazônia Legal. O Brasil é o campeão de
desmatamento mundial e estima-se que a pecuária é responsável por 80% desse índice. De acordo com
o Imazon, em outubro de 2018, o desmatamento ocorreu principalmente no Pará (60%), em Mato
Grosso (12%), em Rondônia (9%), no Acre (8%), no Amazonas (6%) e em Roraima (5%). Parte desse
desmatamento ocorreu em Unidades de Conservação (8%) e Terras Indígenas (3%).
Diante desse contexto, o Brasil lida com um desafio, pois detemos a maior biodiversidade e
floresta tropical do mundo, de forma que é urgente alinhar toda essa riqueza com o uso sustentável. O
Brasil precisa atender seu papel na agenda mundial e propor um novo paradigma para a conservação,
o qual não é evitar o uso do recurso e impedir o crescimento econômico. Hoje, conservar significa
utilizar-se de todas essas riquezas com gerenciamento e boas práticas, mantendo áreas de reservas

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florestais nas propriedades rurais, cumprindo as leis ambientais e melhorando a utilização de recursos
florestais subexplorados, como castanhas, mandioca, açaí, além de todo potencial farmacêutico, de
forma a sistematizarmos a ideia de que a floresta ‘de pé’ é mais valiosa que a floresta ‘deitada’, como se
acredita a maioria dos brasileiros. O Brasil é soberano em relação à utilização do próprio território, mas
não é uma forma inteligente utilizar a sua soberania para depredar tão importante patrimônio natural.
Apesar de estarmos na direção, ainda nos falta governança, pois ainda se investe muito pouco em
pesquisa e gestão de UCs, por exemplo. Para se entender a questão, a Organização das Nações Unidas
informou que o Brasil é um dos países que menos investe na preservação de cada hectare de suas
florestas, desembolsando em média R$ 4,43/ha, enquanto os Estados Unidos investem R$ 156,12/ha
(IPEA, 2011), ou seja, vivemos um paradoxo: instituímos grandes áreas do nosso território como
unidades de conservação, contudo não fazemos os necessários investimentos para elaborar e implantar
os Planos de Manejo que deveriam nortear a forma de aproveitar os benefícios ambientais, sociais e
econômicos das áreas especialmente protegidas.

Figura 4 – Investimento por hectare de unidade de conservação em diferentes países.


Investimento por hectare de unidade de conservação em diferentes países
180
R$ por hectare
160 156,12

140

120 110,39
100

80
67,09
60 53,33 55,1
39,71
40 32,29
21,37
20
4,43
0
Brasil Argentina Costa Rica México Canadá Austrália África do N. Zelândia Estados
Sul Unidos
Fonte – Adaptado de Medeiros et al., 2011.

BIODIVERSIDADE NO AGROECOSSISTEMA
Na definição de Odum (1989), os agroecossistemas são ecossistemas semidomesticados que se
encontram entre ecossistemas que sofrem um mínimo de impacto humano e aqueles que sofrem
profundas intervenções humanas, como as cidades. O autor apresenta, ainda, as principais características
dos agroecossistemas: (a) necessitam de fontes auxiliares de energia, como a humana, animal e de
combustíveis, a fim de aumentar a produtividade de organismos em particular; (b) a diversidade

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geralmente é bem reduzida em comparação com ecossistemas naturais; (c) os animais e as plantas
dominantes estão mais sob seleção artificial do que natural; (d) os controles dos sistemas são na maioria
das vezes externos e não internos.
Os agroecossistemas, por serem mais simplificados biologicamente do que os ecossistemas
naturais, apresentam uma redução na homeostase. Esse termo é formado pelos radicais homeo, que
significa ‘igual’, e stasis, que é definido como ‘estado’. A homeostase é a característica de um ecossistema
em manter a sua estabilidade ecológica e a resistência ao desequilíbrio que é fortemente influenciada
por duas características principais: a quantidade de espécies que o compõe (biodiversidade) e pela
capacidade em reaproveitar a água e os nutrientes (ciclagem).
A implantação de um agroecossistema promove uma grande alteração na estrutura ecológica
original, aumentando a população de poucas espécies, que são os cultivos agrícolas, de pastagens ou
ainda de florestas comerciais. Os insetos fitófagos (que se alimentam de produtos vegetais), assim como
micro-organismos fitopatogênicos, têm uma tendência em aumentar a sua população pela grande
oferta de alimento. O crescimento anormal das populações de insetos ou agentes fitopatogênicos
são considerados surtos de pragas ou doenças na agricultura. Da mesma forma, plantas espontâneas,
representadas por estrategistas R (estratégia ecológica de espécies pioneiras, que investem muita energia
na reprodução e dispersão) tendem a se desenvolver com muita velocidade, competindo com as espécies
cultivadas.
A agroecologia entende que esses surtos são mecanismos normais da natureza para voltar ao seu
equilíbrio original, mas que, no entanto, representam perdas econômicas para os produtores. A forma
convencional para solucionar esse problema é o uso de agrotóxicos, especialmente inseticidas, fungicidas
e herbicidas, para controlar os surtos populacionais. No entanto, como os agrotóxicos são potentes
biocidas, podem causar outros efeitos ambientais indesejáveis, na qual se destacam a ressurgência, a
resistência, a transformação de pragas secundárias em primárias e, sobretudo, a contaminação e os
efeitos adversos no ecossistema.
Os agrotóxicos são agentes muito potentes para o controle de determinadas espécies, mas atingem
também uma grande quantidade de outros organismos existentes no agroecossistema, sendo muitos
deles inimigos naturais que poderiam ter uma ação muito importante no controle natural desses surtos
populacionais. Dessa forma, a redução do número de organismos existentes tem uma influência direta
na homeostase, tornando o agroecossistema ainda mais simplificado e consequentemente instável,
portanto, mais suscetível à ocorrência de novos surtos populacionais. Esse processo desencadeia a
ressurgência, definida como o recrescimento mais intenso de determinada população, decorrente da
redução do número de organismos de diferentes espécies (denominado de vácuo biótico), causado pela
ação de um biocida em um agroecossistema. Por essa razão é que quanto mais cedo se faz a primeira
aplicação de agrotóxicos, provavelmente será necessário um número maior de aplicações.
Outro importante efeito ecológico do uso de agrotóxicos é o aumento da resistência dos insetos
fitófagos ao princípio ativo utilizado. Geralmente, os agrotóxicos são aplicados para o controle
de grandes populações de insetos fitófagos enquanto ainda não se desencadeou o crescimento das

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populações dos inimigos naturais, que é estimulado pelo aumento do seu nível trófico, pois os insetos
fitófagos são alimentos dos inimigos naturais. Como a resistência geralmente é determinada por
características hereditárias, a aplicação dos biocidas em grandes populações seleciona aqueles indivíduos
que apresentam previamente fatores genéticos de resistência, aumentando a frequência desses genes na
população e elevando gradativamente a resistência ao princípio ativo das populações descendentes.
As chamadas pragas secundárias são aquelas que raramente representam fatores significativos de
perdas nas lavouras. Como o uso de agrotóxicos simplifica ainda mais o agroecossistema, muitas vezes
reduzindo as populações de organismos competidores e inimigos naturais, algumas pragas consideradas
secundárias encontram condições ecológicas favoráveis para o seu crescimento populacional,
desencadeando um surto capaz de gerar prejuízos na produção agrícola.
Pelas razões apresentadas, o uso de agrotóxicos não deve ser considerado uma prática agrícola
convencional. A condução do processo de produção deve adotar medidas preventivas sempre que
possível, utilizando os conhecimentos da ecologia, para reduzir os riscos de surtos de pragas e doenças.
Trata-se de medidas capazes de aumentar a complexidade e a estabilidade do agroecossistema, que devem
ser aplicadas em conjunto. Dentre as medidas possíveis, podemos destacar: rotação de culturas, uso de
espécies resistentes, manejo de matéria orgânica do solo, observação do equilíbrio entre os nutrientes
do solo, não usar grandes áreas contínuas com monoculturas, cultivo em faixas, sistemas integrados
de lavoura/pastagem/floresta, uso de espécies resistentes, ajuste na época de plantio, manutenção da
vegetação nativa nas reservas legais e áreas de proteção permanente (matas ciliares de rios e lagos,
declividades mais fortes e topos de morro), adubação verde, plantio direto, uso de inimigos naturais,
medidas culturais e mecânicas para o controle de pragas, uso e manejo adequado do solo.
Nos casos em que as medidas preventivas não sejam eficazes, deve-se adotar os conceitos de Manejo
Integrado de Pragas (MIP), que considera o uso de agrotóxicos dentro de determinados conceitos que
reduzem os seus riscos inerentes.

CORREDORES DE BIODIVERSIDADE
A fragmentação de habitat representa a maior ameaça para a biodiversidade do planeta. (TABARELLI;
GASCON, 2005). Como principais consequências, acarreta o isolamento das formações e populações
remanescentes, alterações nos fluxos gênicos, a intensificação das competições, alterações da estrutura
e qualidade de habitat, extinções de espécies e perda de biodiversidade. (CAMPOS; AGOSTINHO,
1997; METZGER, 1998; BIERREGAARD et al., 1992; PRIMACK; RODRIGUES, 2001).
No estado do Paraná, o processo de ocupação territorial desordenado resulta em significativas
perdas de biodiversidade. Estima-se que de um número aproximado de 7.000 espécies vegetais
ocorrentes no Estado, cerca de 70% (5.000) têm hoje seus ambientes alterados a ponto de colocar
em risco os processos de interação dos ecossistemas. A Lista Vermelha de Plantas Ameaçadas de
Extinção no Estado do Paraná relaciona 593 dessas espécies consideradas em situação crítica.

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(PARANÁ, 1995). O estudo realizado para o Livro Vermelho da Fauna Ameaçada no Estado do
Paraná (MIKICH; BÉRNILS, 2004) diagnosticou 344 espécies da fauna paranaense, destas 163 são
consideradas ameaçadas de extinção.
O planejamento do uso do solo, considerando a distribuição espacial dos remanescentes florestais,
tornou-se uma importante ferramenta para propostas que visam à minimização dos impactos causados
pela fragmentação de habitat. Considerando os limitados recursos humanos e financeiros disponíveis
para aplicação na área ambiental, há necessidade de esforços para otimizar as ações de proteção à
biodiversidade. Portanto, o planejamento do uso do solo deve primar pela adequação técnica, que
assegure a conservação das áreas de maior fragilidade, a estabilidade e a manutenção das funcionalidades
de cada ambiente.
Quando o conceito de Corredores Ecológicos surgiu na década de 1990, defendia a minimização
do impacto provocado pela fragmentação desses locais. Nos fragmentos florestais isolados, observa-se
um empobrecimento contínuo de populações e espécies, que atinge todo o funcionamento do sistema.
O estabelecimento de corredores é uma estratégia baseada na necessidade de se conectar fragmentos
florestais, permitindo maior fluxo gênico entre as populações e aumentando a área para sobrevivência
das espécies.
Corredores de Biodiversidade são, conforme Lei Federal n.o 9985/2000, que institui o Sistema
Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), áreas que abrangem porções de ecossistemas naturais
ou seminaturais que interligam Unidades de Conservação a outras áreas naturais, possibilitando o fluxo
de genes e o movimento da biota entre elas, facilitando a dispersão de espécies, a recolonização de áreas
degradadas, a preservação das espécies raras e a manutenção de populações que necessitam, para sua
sobrevivência, de áreas maiores do que as disponíveis nas Unidades de Conservação.
O estabelecimento dos corredores ecológicos não é suficiente para promover a conservação da
biodiversidade. Nas últimas décadas uma nova modalidade da ciência tem tratado dessa questão, a
Ecologia da Paisagem. Vários outros aspectos devem ser levados em consideração, como, o tamanho do
fragmento e da faixa a ser conectada, a matriz da paisagem, o tipo de ameaças humanas, entre muitos
outros, que inclusive variam consideravelmente de acordo com o ecossistema.
Outro aspecto de fundamental importância é o nível de alteração dos fragmentos. Os mais bem
conservados são a fonte da biodiversidade de muitos grupos de animais e plantas e, consequentemente,
de processos funcionais. Os processos de restauração e da promoção do estabelecimento de corredores
não serão bem sucedidos se esses fragmentos não forem conservados. Além de serem fontes de propágulos
para a restauração dos ecossistemas, qualquer tipo de alteração acarreta perdas de biodiversidade, na
maior parte das vezes irreversíveis. (FERRETTI; BRITEZ, 2006).
Em paisagens fragmentadas, a manutenção da biodiversidade depende, dentre outros fatores, da
conectividade dos fragmentos. As conexões podem ser feitas por meio de corredores contínuos ou por
pequenas áreas situadas entre os fragmentos, os chamados stepping stones ou pontos de conexão. As
florestas ciliares podem formar conexões naturais entre habitat isolados, além de prestar importantes

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serviços ambientais. Quando bem conservadas, funcionam como corredores eficientes para muitos
grupos de animais, fornecendo-lhes abrigo e alimento, além de uma área de passagem.
Os Corredores de Biodiversidade representam uma das estratégias mais promissoras para o
planejamento eficaz de conservação e preservação de flora e fauna, como citados anteriormente. A ligação
dos remanescentes isolados por corredores de vegetação é uma estratégia para mitigar os efeitos da ação
antrópica e garantir a biodiversidade nos mesmos. Todos os corredores a serem propostos visam oferecer
um direcionamento da fauna para os cursos hídricos, conforme proposta da função dos corredores.
Os corredores são implantados em regiões que têm grande importância ecológica. Basicamente,
para a construção dos corredores são utilizados instrumentos como as Áreas de Preservação Permanente,
especialmente ao longo dos rios, reserva legal, além da implantação de pequenos fragmentos de
vegetação que permitem o trânsito de espécies, conhecidos como ilhas de vegetação. Existe uma
interação muito grande entre a vegetação e a fauna, sendo que a maioria das espécies arbóreas tropicais
é polinizada por insetos e aves e suas sementes disseminadas por uma diversidade grande de animais.
Assim, a fragmentação de uma área de vegetação natural cria barreiras para a dispersão dos organismos
entre os fragmentos, já que o movimento de algumas espécies depende da habilidade de dispersão e do
comportamento migratório das mesmas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
De maneira geral, o conceito de biodiversidade compreende não apenas as espécies de animais
e plantas, mas todas as diferentes populações e variações genéticas existentes dentro de cada espécie.
A biodiversidade é ameaçada principalmente pelas modificações ambientais, como a fragmentação
e/ou o desmatamento de florestas que acabam eliminando ambientes propícios para o desenvolvimento
de espécies. As mudanças climáticas em escala global e regional estão ocorrendo rapidamente, e esse
conjunto de mudanças vem limitando as possibilidades de respostas da natureza e acelerando a taxa de
extinção das linhagens biológicas.
Nunca se viveu um período onde a quantidade de espécies ameaçadas de extinção foi tão grande
como a que estamos vivenciando num curto período de tempo. Uma vez extinta, essa espécie não
será mais encontrada na natureza e, consequentemente, poderá afetar diretamente a cadeia alimentar.
Pode-se dizer que a maior parte da ameaça de extinção das espécies é substancialmente decorrente da
atividade humana.
Para reverter essa situação, é necessária uma mudança fundamental no modo em que as sociedades
funcionam e como os indivíduos vivem. Essa mudança precisa envolver o sistema econômico, sistema
de valor de indivíduos e de sociedade, convicções religiosas, direitos humanos e as rotinas diárias de
indivíduos. Será difícil parar o avanço da extinção e reverter o declínio das populações de espécies
ameaçadas. Nas próximas décadas os processos atuais continuarão intensificando e uma grande parte
da diversidade biológica da Terra será perdida.

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De acordo com Gould,

Grandes extinções de espécies não são novidade na história do planeta, mas pela primeira vez uma
grande extinção de espécies é causada por uma espécie que se orgulha de sua inteligência, racionalidade
e ética! Essa espécie, bem o sabemos, é a Homo sapiens. (1995 apud SANTOS, 2010).

A mudança está em nossas mãos, reflita!

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NOTAS EXPLICATIVAS
1 O cientista pioneiro Clair Cameron Patterson conseguiu, em 1956, estimar a idade do nosso planeta
estudando os meteoritos da Terra. Ele calculou a quantidade de urânio (U) e chumbo (Pb) presentes nessas
rochas utilizando um técnica conhecida por ‘meia-vida’. O urânio é um elemento químico radioativo que

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ao se decompor produz o chumbo. Assim, com o tempo, a quantidade dos núcleos do urânio se reduz até
chegar à metade na amostra (conceito de meia-vida). O cientista, então, analisou a relação existente entre
Pb/U nos meteoritos e conhecendo a meia-vida do U estimou a idade da Terra para cerca de 4,56 bilhões
de anos. Esse é o conceito básico e utilizado até hoje para datação por meio do urânio.
2 O radical anthropo significa ‘humano’ e o sufixo cene significa ‘época’ ou ‘era’ no tempo geológico.
3 Segundo Fauth et al. (1996), assembleia significa grupo de espécies filogeneticamente relacionadas em uma
mesma comunidade.
4 Clones são organismos originários de uma única célula, sendo idênticos à célula-mãe e entre si. O conceito
foi inicialmente introduzido pelo botânico Webber em 1903 e publicado em 1918. Contudo, o tema
tornou-se muito popular em 1997, com o nascimento da ovelha Dolly, primeiro mamífero a ser clonado
com base em uma célula adulta. (BBC, 1997).
5 Categorias de ameaças ‘status’ de conservação ou que se enquadrem nas diversas categorias de ameaças de
extinção, segundo o Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção (MMA, 2008), sendo:
extinto na natureza (EW), criticamente em perigo (CR), em perigo (EM) e vulnerável (VU).

LINKS
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Fipronil named as fourth insecticide to pose risk to honeybees.
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Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal. Acesso em: 9 nov. 2019.
Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).
Disponível em: https://imazon.org.br/publicacoes/o-combate-ao-desmatamento-na-maior-floresta-tropical-do-
mundo. Acesso em: 9 nov. 2019.
500 anos de destruição.
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362

Produção Florestal da Atividade Madereira na Amazônia.


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atividade_madereira_na_amazonia.html. Acesso em: 9 nov. 2019.
SOS Mata Atlântica.
Disponível em: http://www.sosma.org.br/index.php?section=press&action=listData. Acesso em: 9 nov. 2019.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
363

BIOTECNOLOGIA NA AGRICULTURA: RISCOS


E BENEFÍCIOS SOCIOAMBIENTAIS

Aluízio Borém

BIOTECNOLOGIA AGRÍCOLA
Após acumular conhecimentos e experiência, a biotecnologia moderna, em sua definição atual,
inclui as várias técnicas que utilizam o DNA recombinante (engenharia genética) para desenvolver
produtos ou serviços. Não restam dúvidas de que a biotecnologia do século XXI é muito diferente daquela
de quando esse termo foi usado pela primeira vez, no século passado, para descrever procedimentos de
produção de vinhos, pães e derivados lácteos.
No contexto atual, tais técnicas dificilmente se enquadrariam na biotecnologia e não são abordadas
neste livro. De forma semelhante, embora se adote uma definição abrangente, a manipulação de plantas
por meio de enxertia, o uso de microrganismos para fermentação e outros procedimentos relacionados
não serão tratados neste capítulo. O que distingue os procedimentos citados daqueles desenvolvidos
pela biotecnologia moderna não são os princípios envolvidos, mas as técnicas utilizadas. Por exemplo,
o melhoramento genético convencional e o melhoramento molecular compartilham vários aspectos
e têm, muitas vezes, o mesmo objetivo: ambos buscam desenvolver variedades mais úteis ao homem.
A biossegurança, por outro lado, é o conjunto de ações voltadas para a prevenção, minimização ou
eliminação de riscos inerentes às atividades de pesquisa, produção, ensino, desenvolvimento tecnológico
e prestação de serviços, visando à saúde do homem e dos animais, a preservação do meio ambiente e à
qualidade dos resultados.

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364

Nas últimas quatro décadas, as questões ambientais passaram a integrar, de forma proeminente,
fóruns científicos internacionais. Estes são decorrentes, entre outras razões, do aumento da poluição
atmosférica e hídrica, em razão principalmente de gases e resíduos derivados da indústria e dos meios
de transporte que geram o aquecimento global. Além disso, outras questões de caráter social passaram
a preocupar cada vez mais a comunidade internacional. Estimativas do Banco Mundial mostram que
cerca de 20% da população do mundo não tem acesso à água potável. A preservação ecológica nunca
esteve em tanta evidência como agora.
Nesse cenário surgiu a engenharia genética, no início da década de 1970, na Califórnia, EUA,
por meio da transferência e expressão do gene da insulina em Escherichia coli. Essa experiência, de
1973, provocou forte reação da comunidade científica mundial, o que culminou com a Conferência
de Asilomar, em 1974. Nesta, a comunidade científica praticamente propôs uma moratória para o
uso da engenharia genética até que se estabelecessem mecanismos para garantir que suas técnicas
poderiam ser utilizadas sem riscos para o homem e o meio ambiente. Em um prazo relativamente
curto, desenvolveram-se regras de biossegurança para uso dessas tecnologias em laboratório, e não se
tem notícia de nenhum efeito adverso do uso da engenharia genética para a saúde humana e animal ou
para o meio ambiente nesses mais de 45 anos de pesquisas com a biotecnologia.
Algumas ONGs têm organizado manifestações contra os organismos geneticamente modificados
(GM), apesar de eles terem se mostrado seguros para consumo humano e plantio em larga escala e de
trazerem benefícios socioecológicos.

Figura 1 – Manifestação contra o uso de organismos geneticamente modificados (GM).

Fonte – O autor.

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365

Vários produtos derivados da tecnologia do DNA recombinante são atualmente comercializados


no mundo. No Brasil os seguintes produtos transgênicos já se encontram no mercado: insulina,
somatropina, variedades transgênicas de milho, soja, algodão, cana etc.
Embora a insulina produzida por bactérias transgênicas já seja comercializada no Brasil há bastante
tempo, o lançamento das variedades de plantas transgênicas no mercado mundial despertou uma nova
ótica na avaliação dos riscos dos Organismos Geneticamente Modificados (OGM) para a saúde humana
e animal e para o meio ambiente. Testes de campo com variedades transgênicas têm sido conduzidos na
Argentina, na Bolívia e no Chile desde 1991. No Brasil, esses testes foram iniciados em 1997.

BIOSSEGURANÇA AGROPECUÁRIA
A necessidade de regulamentação dos organismos geneticamente modificados tornou-se mais
evidente em meados de 1980, quando as empresas de biotecnologia buscaram permissão para realizar
pesquisas com esse tipo de organismo. Atualmente, a regulamentação das normas de biossegurança
no mundo é realizada caso a caso, com base em aspectos técnicos e científicos, com transparência nos
processos de tomada de decisão e consistência, construindo a confiança pública.
Em 1979, o Brasil produzia cerca de 39 milhões de toneladas de grãos. Na safra 2016-2017, essa
produção aumentou para 215 milhões. O país mais que quintuplicou a produção agrícola em 38 anos.
Esse aumento ocorreu graças à elevação da produtividade e à expansão da fronteira agrícola.
A biotecnologia tem um papel essencial na produção de alimentos, pois permite aumentar a
produtividade, melhorar a qualidade nutricional e reduzir os custos de produção. Um dos setores
que está sendo fortemente afetado pela biotecnologia é o de defensivos agrícolas, que hoje tem direta
relação com a agricultura e manipula algo em torno de US$ 40 bilhões, anualmente. Desse valor, cerca
de US$ 10 bilhões/ano correspondem aos chamados defensivos agrícolas usados para o controle de
doenças, pragas e espécies daninhas. Em alguns casos, o custo dos agrotóxicos em relação ao custo total
da produção atinge cerca de 40%, como no caso do algodão.
A engenharia genética desenvolveu variedades resistentes a insetos, fungos, bactérias e vírus,
permitindo, assim, diminuir o custo da produção agrícola, além de reduzir os resíduos dos produtos
fitossanitários que causam danos ao meio ambiente e à saúde humana. Entretanto, toda nova variedade
geneticamente modificada precisa passar pelo crivo da biossegurança, para análise de sua segurança
alimentar e ambiental. Dentre os aspectos ambientais, precisa ser analisado o risco de fluxo gênico,
isto é, de transferência do transgene para outras entidades biológicas (plantas silvestres, por exemplo).
Os riscos de desenvolvimento de resistência de plantas daninhas a herbicidas e de insetos às toxinas Bt
também são avaliados. Quanto aos aspectos da saúde humana e animal, a nova variedade precisa ser
substancialmente equivalente à sua contraparte convencional. Sendo assim, sem riscos de toxicidade
ou de alergenicidade. Embora não seja atribuição da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança
(CTNBio), o risco de aumento do uso de defensivos agrícolas sempre precisa ser considerado.

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366

BIOSSEGURANÇA DE TRANSGÊNICOS
Vários países – incluindo Brasil, Argentina, Chile, México e Venezuela, na América Latina –
estabeleceram, por meio de legislações específicas, normas de biossegurança para regular o uso da
engenharia genética e a liberação, no meio ambiente, de organismos geneticamente modificados. No
Brasil, essas normas estão reguladas pela Lei no 11.105, sancionada em 24 de março de 2005. Essa
lei criou ainda a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), o Conselho Nacional de
Biossegurança (CNS), também conhecido como Conselho de Ministros, e o Serviço de Informação
em Biossegurança (SIB).
A CTNBio é composta por 27 membros titulares e seus suplentes, dentre os quais especialistas
indicados pela comunidade acadêmica, com notório saber científico nas áreas humana, animal, vegetal
e ambiental, obrigatoriamente com doutorado, além de representantes dos Ministérios. A Comissão
reúne-se mensalmente para certificar a segurança de laboratórios e experimentos relativos à liberação
de organismos geneticamente modificados no meio ambiente e para julgar pedidos de experimentos e
de plantios comerciais de produtos que contenham OGMs.
A CTNBio analisa, caso a caso, as solicitações que lhe são encaminhadas, emitindo pareceres
que são específicos para o transgênico alvo da avaliação. Antes da liberação para plantio, comércio ou
utilização de qualquer produto transgênico, ele deve ser submetido a análises sobre seus possíveis riscos
para o homem, para os animais e para o meio ambiente. Os resultados dessas análises são avaliados
pela CTNBio, que então faz a recomendação de liberação dos transgênicos que não oferecem riscos à
saúde humana ou animal ou ao meio ambiente. Os produtos transgênicos suspeitos de apresentarem
algum efeito nocivo à saúde humana, animal ou ao meio ambiente são vetados para comercialização
pela CTNBio.
Assim, antes da liberação de qualquer produto biotecnológico no setor agropecuário é necessária
uma rígida avaliação do produto quanto aos possíveis impactos negativos à saúde humana, animal e
ao meio ambiente.

Agências congêneres reguladoras nos EUA


Nos Estados Unidos, as agências que examinam a segurança das variedades geneticamente
modificadas são a Environmental and Protection Agency (EPA), a Food and Drug Administration
(FDA), o Department of Health and Human Services (HHS) e o Animal and Plant Health Inspection
Service (Aphis), do USDA.
O Aphis regula o desenvolvimento e os testes de campo tanto de plantas quanto de microrganismos
geneticamente modificados. Ele revisa os processos de licença para a realização de testes de campo pelas

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indústrias, universidades e ONGs. Os processos relacionados com a segurança agrícola e ambiental de


organismos pesticidas, como a soja RR, também são revisados por essa agência.
A responsabilidade da EPA é garantir a segurança de OGM’s praguicidas, substâncias químicas e
biológicas para distribuição, comércio e consumo e também de variedades que produzem elementos
pesticidas.
O FDA avalia a segurança e os aspectos nutricionais de variedades geneticamente modificadas que
são alimentos (inclusive para animais). Sua diretriz tem como base o fato de que todo alimento deve
satisfazer os mesmos rigorosos padrões de segurança requeridos para os alimentos convencionais.

Agências congêneres em outros países


A regulamentação da biossegurança é realizada em cada país por meio de agências locais: no
Canadá, pela Health Canada and Canadian Food Inspection Agency; no Japão, pelo Ministry of
Agriculture, Forestry and Fisheries e pelo Ministry of Health, Labour and Welfare; e na Argentina pela
CONABia. No Brasil, tanto a elaboração de normas técnicas de biossegurança como a revisão técnica
dos processos de liberação de transgênicos são de responsabilidade da CTNBio.

VARIEDADES TRANSGÊNICAS
As primeiras plantas transgênicas começaram a ser testadas em campo no início da década de
1980. Até hoje, já foram realizados mais de 70.000 testes de campo no mundo.
Já as variedades transgênicas começaram a ser comercializadas na década de 1990, inicialmente
pela Calgene, que ofereceu o tomate geneticamente modificado Flavr Savr (BORÉM; SANTOS;
PEREIRA, 2016). Atualmente, variedades transgênicas de soja, milho, algodão, canola e mamão, entre
outras, já têm participação relevante na agricultura mundial.
No Brasil, já foram liberadas pela CTNBio para plantio, consumo e comercialização variedades
transgênicas de soja, milho, algodão, feijão eucalipto e cana de açúcar. Além dessas, variedades
transgênicas, muitas outras espécies deverão chegar ao mercado nos próximos anos. As espécies citadas
têm como características transgênicas a resistência a insetos, a tolerância a herbicidas e a melhor
qualidade nutricional, como no caso da canola, cuja composição lipídica foi alterada para diminuir
o conteúdo de ácidos graxos indesejáveis, característica especialmente importante para a dieta de
pacientes cardíacos.
A Figura 2 apresenta a linha do tempo do desenvolvimento de variedades transgênicas, enquanto
a Figura 3 mostra a evolução da área cultivada com OGM globalmente.

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368

Figura 2 – Linha do tempo no desenvolvimento de variedades transgênicas.

10.000 1940s
anos atrás e
1950s
Final anos
1800 1980s 1990s 1995 1996 1997 1999 2006 2016 

Primeira
Novas maneiras Primeiro GMO Primeira Primeira
Início da variedade GM
de introduzir lançado no variedade GM variedade GM
agricultura de milho
variabilidade mercado de canola de batata
e algodão

Primeiras Primeira
Primeira
Início de transferências variedade GM Primeira Primeira
variedade GM
hibridações de material de soja e de variedade GM variedade GM
de alfafa e de
artificiais genético entre abóbora de mamão de maçã
beterraba
espécies lançadas

Fonte – O autor.

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369

Figura 3 – Área global com variedades transgênicas até 2016.


Milhões de
hectares

200 185.1
milhões de hectares
180

160

140

120 99.6
milhões de hectares
100

85.5
80

60 milhões de hectares
40

20

1996 2002 2009 2016

Total

Países industriais

Países em desenvolvimento

Fonte – Celeres, 2017.

ANIMAIS TRANSGÊNICOS
As dificuldades adicionais na transformação gênica de animais adiaram sua chegada ao mercado. O
primeiro animal transgênico comercializado foi o oncomouse, um camundongo no qual foi introduzido
um gene do câncer. Esse animal é utilizado em estudos de drogas para tratamento do câncer.
No setor de alimentos, o primeiro animal transgênico colocado no mercado norte-americano
foi o salmão. Essa espécie de peixe foi modificada para produzir maior quantidade de hormônio de
crescimento. O salmão transgênico cresce mais rapidamente que os convencionais e tem uma taxa
de conversão alimentar cerca de 15% superior à dos não transgênicos. Nos Estados Unidos, ele já foi
liberado para comércio e está sendo comercializado.
Outros animais transgênicos, como bovinos, suínos, ovinos e caprinos, estão em fase final de
avaliação e devem ser colocados no mercado nos próximos anos. A avaliação técnica da biossegurança
dos animais transgênicos normalmente é menos complicada do que a elaboração de pareceres técnicos
para liberação de plantas transgênicas. No entanto, a criação de animais transgênicos sofre várias críticas
de outros órgãos, como sociedades protetoras de animais e comissões de ética em experimentação animal.

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370

POSSÍVEIS RISCOS DOS TRANSGÊNICOS


Os principais riscos dos transgênicos podem ser agrupados em dois grupos: à saúde humana
e animal e ao meio ambiente. Todo alimento geneticamente modificado, antes de ser liberado para
plantio comercial e/ou consumo, passa pelas análises de biossegurança com o intuito de se identificar
possíveis riscos de intoxicação, alergia, aumento de resistência aos antibióticos.
Com relação ao meio ambiente, os principais aspectos avaliados são: fluxo gênico, efeitos
adversos à flora microbiana do solo, efeitos adversos a organismos benéficos, possibilidade de seleção
de resistência etc.

Biossegurança alimentar
A segurança alimentar de plantas transgênicas é avaliada de acordo com os princípios de uma
metodologia denominada ‘análise de riscos’. Ela foi desenvolvida inicialmente com o objetivo de avaliar
efeitos deletérios na saúde humana advindos de potenciais substâncias químicas tóxicas presentes em
alimentos, como resíduos de pesticidas, contaminantes e aditivos alimentares, sendo posteriormente
aplicada na avaliação da segurança alimentar de plantas GM.
Um dos fundamentos da metodologia de análise de riscos é que as plantas transgênicas não são
intrinsecamente mais nocivas que as convencionais, ou seja, os eventuais riscos alimentares que uma
variedade transgênica pode oferecer não são decorrentes do fato de ela ser transgênica, mas sim das
eventuais alterações químicas que podem resultar da modificação genética. (KOING, 2004). Por
exemplo, uma planta de feijão GM expressando uma proteína alergênica de castanha-do-pará será
alergênica não por ser obtida por ferramentas de engenharia genética, mas pelo fato de a modificação
genética ter incorporado uma proteína alergênica a essa variedade.
É evidente que, de forma geral, uma planta transgênica tem uma proteína que não está presente
nas variedades convencionais. Ela foi codificada pelo transgene e introduzida exatamente com o
propósito de conferir a característica que se deseja ser incorporada. No entanto, além dessa diferença,
outras alterações bioquímicas podem ser resultantes da introdução de um transgene, mas tudo isso é
investigado exaustivamente durante os estudos de segurança alimentar.
No caso de plantas transgênicas, a análise de riscos é realizada pela comparação delas com as plantas
não GM equivalentes, que são consideradas seguras pelo histórico de uso. Por essa metodologia, em vez
de se tentar identificar cada perigo associado à variedade GM procura-se identificar novos perigos que
não estejam presentes na variedade tradicional.
Essa diferença pode parecer pequena, mas tem profundas implicações. Quando se analisa se
uma planta GM é segura, estudam-se vários aspectos composicionais, além de vários ensaios com
modelos animais para a avaliação de possíveis riscos. Por meio dessa análise comparativa surge o termo
‘equivalência substancial’. Com base na comparação entre o perfil bioquímico da variedade transgênica
e o da convencional, a variedade GM pode ser classificada como substancialmente equivalente ou
substancialmente não equivalente.

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Nesse ponto, deve-se esclarecer que a avaliação da segurança alimentar de uma planta GM não
se restringe à aplicação do conceito de equivalência substancial. Esse se constitui somente no ponto de
partida dessa avaliação, que visa à identificação das diferenças que serão posteriormente analisadas. As
análises incluem testes de alergenicidade e de toxidade realizados in silico, in vitro e estudos com animais
(roedores, aves, peixes e outros) para se avaliar sua segurança. Nessas análises, em geral, é determinada a
DL50 (dose letal em 50% dos casos) como um indicativo da toxicidade aguda, isto é, de curto prazo.
As análises de riscos são realizadas em três etapas:
• Avaliação de riscos – nela se avalia a probabilidade de efeitos adversos à saúde advindos da
exposição humana ou animal a um perigo. Ela consiste de quatro etapas:
I) identificação do perigo – reconhecimento, em um alimento, de agentes biológicos,
químicos e físicos capazes de causar efeitos prejudiciais à saúde;
II) caracterização do perigo – avaliação, em termos qualitativos e quantitativos, de um perigo
identificado. Frequentemente, envolve o estabelecimento de uma relação dose-resposta
em razão da magnitude de exposição (dose) a um agente físico, químico ou biológico e da
severidade dos efeitos adversos à saúde;
III) avaliação da exposição – estimação quantitativa e qualitativa da probabilidade de ingestão
de agentes físicos, químicos e biológicos por meio da alimentação;
IV) caracterização do risco – estimação qualitativa e quantitativa da probabilidade de ocorrência
e severidade de um efeito contrário à saúde com base na identificação e caracterização do
perigo e na avaliação da exposição.
• Gerenciamento de riscos – medidas tomadas com base nos resultados da avaliação de riscos e
em outros fatores legítimos, visando reduzir os riscos para projetar a saúde dos consumidores.
Medidas de gerenciamento podem incluir rotulagem, imposição de condições para aprovação
comercial e monitoramento pós-comercial.
• Comunicação de riscos – troca de informações que deve ser realizada entre todas as partes
interessadas, incluindo governo, indústria, comunidade científica, mídia e consumidores. Ela
deve acontecer durante todo o processo de avaliação e gerenciamento de riscos e incluir a
explicação das decisões para o público, garantindo a ele o acesso aos documentos obtidos
por meio da avaliação de riscos e ao mesmo tempo respeitando o direito de salvaguardar a
confidencialidade de informações industriais e comer­ciais.

As variedades transgênicas são consideradas seguras para o consumo humano por diversas
instituições científicas renomadas, como a Organização Mundial de Saúde, o Conselho Internacional
para Ciência, a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação, a Sociedade Real de
Londres e as Academias Nacionais de Ciências de vários países: Brasil, México, Índia, Estados Unidos,
Austrália, Itália entre outros.

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Biossegurança ambiental
De forma semelhante à avaliação de riscos alimentares, a avaliação de riscos ambientais
considera três pontos importantes: possibilidade, probabilidade e consequência de um perigo, o
qual deve ser sempre avaliado caso a caso. Isso significa que, após a identificação de um possível
perigo, deve-se considerar se ele é possível, provável e, se vier a ocorrer, qual é sua consequência.
(CONNER et al., 2003).
No caso específico de avaliação de riscos de plantas GM, um quarto ponto também deve ser
considerado: os riscos decorrentes da não adoção dessa tecnologia.
Uma premissa essencial em qualquer avaliação de riscos é o estabelecimento de parâmetros corretos
de comparação. Como descrito, na avaliação de segurança alimentar a planta GM é comparada com
plantas não GM equivalentes. De forma análoga, o impacto ambiental de plantas transgênicas deve ser
avaliado em relação ao impacto causado pela variedade convencional.
Esses princípios são essenciais para orientar sobre quais ensaios devem ser realizados e quais
perguntas devem ser respondidas, de forma a gerar informações que auxiliem na tomada de decisão de
se utilizar ou não determinada planta transgênica. A não observância desses princípios pode ter como
consequência ensaios desnecessários e que não ajudam na correta avaliação de riscos.
Por exemplo, o cultivo de algodão transgênico resistente a insetos no Brasil suscitou preocupações
em relação ao escape gênico, ou seja, à possibilidade de cruzamento da variedade transgênica com duas
espécies silvestres do gênero Gossypium, que são sexualmente compatíveis com o algodão cultivado.
(CARVALHO et al., 2000). Os questionamentos partem da possibilidade de grãos de pólen originários
de algodão transgênico fertilizarem plantas de algodão silvestres. A progênie desse cruzamento poderia
sofrer retrocruzamentos, levando à introgressão do transgene, o que poderia ter consequências para a
manutenção da diversidade genética.
O escape gênico de plantas transgênicas pode ocorrer de três maneiras principais: 1) quando a
planta transgênica se torna uma espécie daninha; 2) quando o DNA transgênico é transferido, por
cruzamento, para espécies silvestres ou outras variedades cultivadas; e 3) quando o DNA transgênico é
transmitido assexuadamente para outras espécies e organismos.
Para que o escape gênico entre distintas espécies ocorra por transmissão sexual, algumas condições
são necessárias: 1) os dois indivíduos parentais devem ser sexualmente compatíveis; 2) deve ocorrer
sobreposição no período de florescimento entre os dois tipos parentais; 3) um vetor de pólen adequado
deve estar presente e ser capaz de transferir o pólen entre os indivíduos e 4) a progênie resultante deve
ser fértil e ecologicamente adaptada às condições ambientais onde os parentais estão situados.
Plantas de milho e soja não têm atributos biológicos para ‘escapar’ e se estabelecerem como espécie
daninha. O milho é resultado de uma espécie de polinização eólica, e as distâncias que o pólen pode
percorrer dependem do padrão do vento, da umidade e da temperatura. Em geral, campos com essas
variedades devem ser isolados de outras variedades convencionais com uma distância de pelo menos
200 m. O risco de escape gênico da soja e do milho para parentes silvestres no Brasil é considerado, pela

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maioria dos cientistas, pequeno ou inexistente. No entanto, se a espécie transgênica fosse o feijão, esse
risco seria real, pois existem aqui várias espécies de feijão silvestres. Em outros países, o risco do escape
gênico com soja ou milho pode ser significativo.
O artigo Transgenic DNA introgressed into traditional maize landraces in Oaxaca, Mexico,
publicado na revista Nature em 2001, relata a presença de sequências típicas de variedades geneticamente
modificadas em milho silvestre da região da Sierra Norte, na Província de Oaxaca, sul do México.
Vários questionamentos foram levantados sobre os resultados publicados no artigo supracitado, como
o texto Corn goes Pop, then kaboom, apresentado pelo jornal The Scientist, que afirma ter a revista
Nature se preciptado ao publicar o referido artigo, uma vez que as conclusões foram baseadas em
artefatos dos dados de PCR.
A diversidade genética e de espécies deve ser preservada, pois pode ser futuramente útil no
desenvolvimento de novas variedades sempre que outros desafios surgirem para os melhoristas, a
exemplo de uma doença inédita para a qual não se conhece uma fonte de resistência.
Quanto ao risco das variedades Bt para insetos benéficos, como abelhas e joaninhas, as evidências
apontam que a dose letal (DL50) é muito superior à que os insetos estarão expostos em campos plantados
com essas variedades transgênicas.
Embora a segurança das variedades Bt para a borboleta-monarca tenha sido inicialmente
questionada, trabalhos conduzidos por diferentes grupos evidenciaram sua segurança, inclusive para
esses insetos. (TABASHNIK, 1994; CAO et al., 1999).
Um estudo realizado sob os auspícios da União Europeia acerca dos impactos ambientais
ocasionados pelo cultivo de plantas GM, que foi conduzido durante 15 anos (1985-2000) e envolveu
400 instituições públicas de pesquisa, chegou à seguinte conclusão: “a pesquisa demonstra que, de
acordo com avaliações de riscos-padrão, as variedades GM e seus produtos não apresentam riscos para
a saúde humana ou o ambiente. De fato, o uso de tecnologia mais precisa e as análises mais acuradas
conduzidas durante a fase de regulação tornam estas variedades e seus produtos derivados até mais
seguros do que os convencionais”. (EUROPEAN UNION, 1999).
Além dos aspectos relacionados ao fluxo gênico, os possíveis efeitos adversos do OGM para a
microbiota do solo, para organismos não alvo, como os insetos benéficos (abelhas, inimigos naturais
das pragas etc.), e a possibilidade de seleção de pragas resistentes são criteriosamente investigados
antes da liberação da variedade transgênica para plantio comercial. Todos os resultados de pesquisa e
o consumo ao longo dos últimos 25 anos atestam que esses alimentos GM são seguros para a saúde
humana e animal e para o meio ambiente.

PRINCIPAIS BENEFÍCIOS DOS TRANSGÊNICOS


No Brasil, os alimentos geneticamente modificados já representam mais de 90% das plantações de
soja, milho e algodão e têm trazido os seguintes benefícios para a sociedade:

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1. Aumentam a produção de alimentos – plantas transgênicas resistentes a pragas e doenças


e livres da concorrência de plantas daninhas se desenvolvem melhor, com menos riscos de
perdas de produção e aumento da produtividade. Assim, elevam a oferta de alimentos para a
população, como no caso do milho e soja.
2. Reduzem o custo de produção – mesmo com os custos da aquisição de sementes transgênicas
(em que há o pagamento de royalties), agricultores afirmam que o investimento é altamente
rentável. Isso porque as variedades tolerantes a herbicidas e as resistentes a pragas proporcionam
considerável redução no custo dos defensivos agrícolas utilizados.
3. Contribuem para a redução do efeito estufa – segundo o estudo Os benefícios socioambientais
da biotecnologia agrícola no Brasil, realizado pela Céleres, ao exigir menos aplicações de
defensivos, as lavouras com transgênicos emitem menos poluentes por tratores e máquinas
movidas a diesel. Com o menor consumo de combustível há significativa redução de CO2 na
atmosfera. Globalmente, a adoção de OGM gerou uma redução nas emissões de dióxido de
carbono (CO2) equivalente à retirada de cerca de 12 milhões de carros das ruas em um ano,
segundo o CIB.
4. Permitem o desenvolvimento de alimentos mais saudáveis – com a biotecnologia os cientistas já
desenvolveram variedades de soja cujo óleo é mais saudáveis sob o ponto de vista coronariano.
Embora essas variedades de alimentos ainda não estejam disponíveis no Brasil, há perspectivas
de que elas também sejam cultivadas por aqui. No mundo, há vários projetos em fase de
aprovação, como o arroz Golden Rice, na Bélgica (enriquecido com vitamina A); a batata
Innate, nos Estados Unidos (com menor teor de substâncias cancerígenas na fritura), e uma
ração de peixe que aumenta a síntese de ômega 3, na Grã-Bretanha.
5. Contribuem para a redução do gás metano – a pecuária responde por 16% das emissões
mundiais de gás metano (CH4), um dos principais causadores do efeito estufa. Cientistas do
Instituto AgResearch, da Nova Zelândia, desenvolveram forrageiras geneticamente modificadas
que reduzem as emissões do gás metano CH4 pelo gado.
6. Trazem benefícios sociais – variedades transgênicas resistentes a pragas, como as variedades
Bt de algodão, milho e soja, requerem menor número de aplicações de defensivos agrícolas,
liberando o operador rural para dedicar seu tempo a outras atividades que não a pulverização,
como as relacionadas à família.
7. Aumentam a renda do produtor – do ponto de vista econômico, essa tecnologia contribuiu
para o aumento de renda de aproximadamente 18 milhões de agricultores. No Brasil, um
levantamento da consultoria britânica PG Economics revelou que, entre 2013 e 2015, os
benefícios econômicos acumulados chegaram a R$ 52 bilhões.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após mais de 25 anos de plantio em larga escala e de consumo pela população mundial, não
há qualquer caso de efeito prejudicial das variedades transgênicas para o meio ambiente ou para a
saúde humana ou animal. Entretanto, toda e qualquer variedade geneticamente modificada precisa ser
analisada pela biossegurança antes de serem liberadas comercialmente.

BIBLIOGRAFIA
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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
377

MUDANÇAS CLIMÁTICAS: UMA


ABORDAGEM CONCEITUAL SOBRE ESSE
PROBLEMA AMBIENTAL GLOBAL

Cleverson V. Andreoli
Fabiana de Nadai Andreoli
Pedro Kiatkoski Kim
Kauê de Andrade Monteiro

INTRODUÇÃO
A biosfera integra todas as formas de vida, entre elas os seres humanos, os quais dependem do
meio ambiente para sobreviver, e consequentemente da exploração dos recursos naturais disponíveis,
modificando o espaço com suas necessidades e conveniências. Com a prática do nomadismo, nos
primórdios de sua existência, o ser humano buscou áreas providas de recursos naturais necessários
à sua perpetuação, que quando esgotados demandavam a busca de novas áreas, fato que, apesar da
exploração realizada, permitia a recuperação do ambiente objeto do uso.
Ao longo do tempo a humanidade aprendeu a controlar e explorar os ambientes naturais de modo
que não mais se fez necessária a busca de novas áreas de exploração, iniciando o desenvolvimento
de práticas agrícolas, domesticação e criação de animais. Tais fatores permitiram o assentamento e
desenvolvimento de comunidades, as quais foram condicionadas principalmente à disponibilidade dos
recursos naturais e a circunstâncias climáticas favoráveis, culminando na criação de cidades geralmente
localizadas às margens de rios, lagos, estuários e outros.
O aumento demográfico associado ao êxodo rural e aliado aos avanços científicos e tecnológicos,
à demanda pela transformação do espaço natural e à exploração de recursos se fez perceber
significativamente nas últimas décadas, implicando em diferentes fatores de degradação ambiental
que comumente são tratados separadamente, entretanto, integram uma complexa interligação entre
aspectos ambientais, sociais e econômicos.

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Nesse contexto, a solução ambiental não pode ser dissociada dos problemas socioeconômicos,
gerando assim a busca por um modelo de desenvolvimento sustentável, ou seja, que integre os fatores
ambientais, sociais e econômicos.
Atualmente, o foco das principais discussões mundiais está ligado diretamente às mudanças
climáticas causadas por atividades antrópicas, as quais interferem na composição da atmosfera do
planeta e que se somam à variação climática natural. A história tem mostrado que o clima é um
condicionante fundamental no desenvolvimento das populações ao redor do mundo. Em que pese o
avanço tecnológico do último século, a variabilidade climática pode produzir impactos significativos
no desenvolvimento dos países e comprometer a sustentabilidade das populações.
À medida que os efeitos das mudanças climáticas são notados e que se reconhece a ameaça e
as consequências ao desenvolvimento econômico e social, evidencia-se a necessidade de se dar cada
vez mais atenção a tais questões, e o entendimento e a busca por soluções para a minimização dessas
mudanças tem sido um dos maiores desafios da humanidade na atualidade.
O esforço acadêmico para aperfeiçoar as modelagens que elaboram cenários tem apresentado
resultados bastante consistentes, que determinam uma grande hegemonia na comunidade científica.
Há unanimidade no meio acadêmico a respeito do aquecimento global; as avaliações estatísticas, com
mais de 90% de probabilidade, associam os problemas climáticos a atividades antrópicas, contudo
ainda existem posturas divergentes. Porém, independentemente se mudanças climáticas são ou não
uma consequência das intervenções do homem no meio, há uma necessidade evidente de ajuste do
modelo de desenvolvimento, tendo em vista que a crise ambiental é decorrência direta de alterações
em diversos componentes do meio, como a redução da biodiversidade, a desorganização do ciclo
hidrológico, a poluição de rios, a erosão dos solos, a desertificação, entre outros.
Nesse sentido, temos de adotar padrões de acesso aos recursos que reduzam os efeitos ambientais,
mas sejam capazes de incluir cerca de 870 milhões de habitantes que vivem hoje em insegurança
alimentar, ou seja, sem acesso ao mais básico dos recursos, que é a certeza de um prato de comida
no dia de hoje. As projeções de crescimento populacional mostram que teremos, até o ano de 2050,
mais 1,3 bilhões de habitantes, na maioria nascidos em países periféricos, o que amplia a gravidade
do problema. Dessa forma, o modelo referente à distribuição dos recursos deve necessariamente ser
ajustado em padrões que permitam a inclusão e ao mesmo tempo reduzam os impactos planetários,
independentemente de o aquecimento global ser ou não causado pelas atividades antrópicas.
O Brasil não está imune à mudança do clima e, em resposta a ela, pode apresentar vulnerabilidades
socioeconômicas e ambientais significativas. Portanto, torna-se um imperativo estratégico o
conhecimento científico dos possíveis impactos da mudança do clima projetada para ocorrer neste
século afetando todos os setores, sistemas e regiões do país, especialmente sobre agricultura, recursos
hídricos, energias renováveis, saúde humana, ecossistemas e biodiversidade, zonas costeiras e oceanos,
infraestrutura, cidades e indústria. (CPRM, 2016).
Por esse motivo, trata-se de uma solução complexa, que exige uma avaliação integrada de todos os
fatores ambientais, sociais e econômicos inerentes. Assim, para podermos discutir sobre tais problemas
é necessário uma breve abordagem conceitual sobre os principais assuntos relacionados ao tema.

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DIFERENÇA ENTRE CLIMA E TEMPO


Popularmente, os termos ‘clima’ e ‘tempo’ são empregados para se referir à mesma coisa, no entanto,
trata-se de duas coisas distintas. O ‘tempo’, nesse caso, refere-se ao estado momentâneo das condições
meteorológicas de determinada região, como quando dizemos em um dia de chuva que o tempo está
‘chuvoso’. Já o ‘clima’ se refere ao conjunto de condições meteorológicas de determinada região, ou seja, é
a variação do ‘tempo’ em uma região durante um longo período cronológico que determina o clima desse
local. Portanto, o termo ‘clima’ trata dos padrões de comportamento da atmosfera em suas interações com
as atividades humanas e com a superfície do planeta durante um longo período de tempo, ao passo que
o termo ‘tempo’ trata do estado momentâneo das condições meteorológicas.
Com o dinamismo da atmosfera e a complexidade de seus fenômenos se faz necessária uma análise
conjunta dos elementos do clima, a fim de possibilitar a definição de tipologias climáticas.
Ao longo dos anos, diversos climatologistas desenvolveram métodos próprios de classificação do
clima adaptados a suas regiões de interesse, embasados em concepções clássicas do clima, como aquelas
descritas por Wilhelm Köppen. Ele desenvolveu diversos modelos de classificação do clima que até hoje
servem como base para elaboração de outros esquemas.
Um desses modelos categoriza 5 (cinco) grandes grupos climáticos principais que correspondem
às regiões fundamentais, do Equador aos polos (1 – tropicais chuvosos, 2 – secos, 3 – temperados
chuvosos/moderadamente quentes, 4 – frios com neve-floresta e 5 – polares). As regiões supracitadas são
divididas em subgrupos, determinados de acordo com a distribuição sazonal da precipitação juntamente
às características de temperatura, totalizando 24 tipos climáticos.
Assim como a vida influencia a atmosfera, as condições meteorológicas interferem diretamente
na vida humana, modificando cultural e fisicamente as atividades desenvolvidas pelos seres vivos.
Principalmente pelo fato de a atmosfera (local onde ocorrem as mudanças de tempo e clima) ser muito
dinâmica, faz-se necessário o aprendizado da estrutura atmosférica, que é onde acontecem essas alterações
de tempo e clima.

ATMOSFERA
Atmosfera (palavra que tem origem do latim moderno, atmos = vapores ou névoas e sfera = esfera
ou globo) é o nome dado à massa gasosa que envolve nosso planeta. Sem a atmosfera, certamente o
planeta seria privado de vida, apresentando aspecto inabitável muito próximo da Lua.
Mas para que serve a atmosfera? Ela desempenha várias funções muito importantes, dentre elas,
proteger o planeta de nocivas radiações ultravioletas vindas do espaço, fornecer oxigênio de modo a
permitir a existência de seres aeróbicos, reter e absorver parte do calor irradiado por corpos terrestres
e pelo Sol, provocar a desintegração de meteoritos que poderiam atingir diretamente a superfície
terrestre, evitar variações de temperaturas extremas entre a noite e o dia, atuar como redistribuidor da
água na superfície terrestre por meio da chuva, além de conter gases indispensáveis à vida.

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380

E por que a atmosfera não vai embora pelo espaço? Por ser composta por várias moléculas e
partículas de diferentes elementos (sólidas, gasosas e líquidas) e ser influenciada pela lei da gravidade
e pelo campo magnético que envolve o Planeta Terra, fatores que a impedem de escapar espaço afora.

Origem e evolução da atmosfera


A atmosfera nem sempre foi assim. Há aproximadamente 4,6 bilhões de anos, a explosão de uma
supernova ocasionou uma precipitação radioativa em uma nuvem de gás vizinha, fazendo com que
parte dessa nuvem começasse a se condensar sob o próprio peso, formando o Sol e os planetas. Após
a formação da Terra ocorreu uma colisão desta com outro planeta, fundindo-a em parte e ao mesmo
tempo separando dela uma massa de rocha derretida, que após condensação e aprisionamento no campo
gravitacional da Terra deu origem à Lua. Essa fusão permitiu a segregação das rochas, quando as mais
pesadas foram direcionadas ao centro do planeta e as mais leves flutuaram, posteriormente esfriando,
formando a crosta.
O longo período compreendido entre o início da Terra até pouco tempo antes de a vida começar
foi caracterizado por colisões constantes de corpos espaciais com a Terra, intensas atividades vulcânicas
e alta radioatividade. Esse período durou cerca de 1 bilhão de anos e ao longo deste a Terra esfriou
e desenvolveu gases que formaram a primeira atmosfera duradoura. Com as erupções iniciais houve
a fuga de gases voláteis para a camada exterior da crosta terrestre. Esses gases, juntamente aos que
predominavam na nebulosa primitiva que deu origem ao Sistema Solar (hidrogênio e hélio), formaram
a ‘atmosfera primitiva’. À época, tratava-se de uma atmosfera redutora, ou seja, um sistema que continha
compostos capazes de reduzir outras substâncias no meio. Mais precisamente, é um processo em que
ocorre a redução no número de oxidação de um átomo ou no número de cargas positivas de um íon.
Dessa forma, a condição da Terra era inóspita.

Figura 1 – Composição da atmosfera primitiva.


= 40%
Composição da atmosfera
primitiva (% volume)

= 30%
= 25%

= 5% = Vestígios%

Nitrogênio Dióxido de carbono Vapor de água Metano Amônia


(N2) (CO2) (H2O) (CH4) (NH3)
      Fonte – Adaptado de Almeida, 2016.
A atmosfera primitiva tinha concentração média, em valores aproximados, de 40,0% de nitrogênio;
30,0% de dióxido de carbono; 25,0% de vapor de água; 5,0% de metano e vestígios de amônia. Os
três primeiros compostos são classificados como ‘majoritários’, e os dois últimos, como ‘minoritários’.
(ALMEIDA, 2016).

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À medida que a Terra resfriava e os gases eram liberados, a atmosfera primitiva começou a ficar
saturada de vapor de água, posteriormente precipitando dos céus e iniciando a formação dos oceanos.
Nessa época não existia oxigênio na composição da atmosfera. Indícios apontam que na época
os raios ultravioletas solares atingiam a superfície terrestre atuando sobre as moléculas existentes na
atmosfera. Acredita-se que a radiação atuou como agente de ruptura das moléculas de água na formação
do hidrogênio e oxigênio. O hidrogênio era liberado para o espaço e o oxigênio foi inicialmente se fixando
ao ferro, formando os dióxidos e, posteriormente sendo liberado para a atmosfera. O aparecimento
de organismos fotossintéticos (processo fundamental na regulação dos teores de dióxido de carbono)
foi fundamental para a formação do oxigênio atmosférico, consequentemente, sendo responsável pela
retenção parcial do hidrogênio livre na atmosfera por meio da reação deste com o oxigênio, formando
água e impedindo sua perda para o espaço. Nesse caso, o surgimento da vida pode ser considerado
essencial na formação da atmosfera, tanto pelo acréscimo de oxigênio ao ambiente como um subproduto
da fotossíntese, como pela retenção do hidrogênio livre na atmosfera pela reação com oxigênio para
formação de água, uma vez que a perda contínua de hidrogênio para o espaço resultaria na perda
constante de água até sua total eliminação, como acredita-se que aconteceu com Marte e Vênus.

Composição
A atmosfera atual demonstra estar muito distante do equilíbrio, pois como poderia uma atmosfera
tão rica em oxigênio conviver com substâncias reduzidas, tais como monóxido de carbono, amônia,
metano etc. Pode-se afirmar que essa situação única de composição da atmosfera é fruto da vida que se
desenvolveu há bilhões de anos.
Os gases que compõem a atmosfera na atualidade são, quase em sua totalidade, produtos de
organismos vivos da superfície da Terra e dos oceanos, com exceção de uma parcela de aproximadamente
1%. De acordo com Almeida (2016), o gás mais abundante na atmosfera é o nitrogênio, com
aproximadamente 78%. O oxigênio é segundo gás mais abundante no ar, com aproximadamente 21%.
A exceção correspondente à parcela de 1% é constituída por gases nobres, quimicamente inertes, como
hélio, neônio, argônio, criptônio e xenônio, além de outras substâncias como dióxido de carbono,
metano e poeiras. Essas porcentagens podem ser vistas na Figura 2.

Figura 2 – Gases que compõem a atmosfera atual.


1%

21%

78%

Nitrogênio Oxigênio Outros gases


             Fonte – Almeida, 2016.

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Importância dos principais gases da atmosfera


Para a meteorologia, os gases mais importantes que constam na atmosfera são oxigênio, vapor
d’água, ozônio e dióxido de carbono.
O oxigênio, além de permitir a existência de seres aeróbicos, é o principal elemento na composição
de três outros essenciais à vida: o gás oxigênio (O2), o gás carbônico (CO2) e a água (H2O).
O ozônio é uma variedade do elemento oxigênio que se forma por meio do rompimento de células
de oxigênio nas camadas mais altas da atmosfera pela radiação ultravioleta vinda do Sol, servindo como
camada protetora para a superfície terrestre, barrando parte da radiação solar.
O dióxido de carbono desempenha papel de termorregulador, sendo absorvedor eficiente de
emissões de radiação terrestre.

Camadas atmosféricas
A atmosfera é constituída de camadas estruturadas em forma de conchas concêntricas, e cada uma
delas tem sua função. A primeira delas, partindo da crosta terrestre, é chamada de ‘troposfera’, sendo a
camada mais fina da atmosfera e também a que concentra a maior parte dos gases (aproximadamente
75% do total). Localiza-se a uma altitude perto de 7 km nos polos e aproximadamente 17 km no
Equador por conta do movimento de rotação da Terra. À medida que subimos, entramos na ‘estratosfera’
(camada logo acima da troposfera), e a fronteira entre essas duas camadas se chama ‘tropopausa’. Essa
fronteira é mais bem entendida quando analisamos as mudanças de temperatura na medida em que
subimos na atmosfera. O ar quente tende a subir e se expandir, e ao passo que se expande, resfria. Ao
atingir próximo de –50 °C entramos na tropopausa.
A troposfera, além de ser a porção com maior concentração dos gases, tem um percentual de
99,99% da quantidade de vapor de água de toda a atmosfera. Pode ser analisada em várias subdivisões,
a exemplo da Camada Limite da Atmosfera (CLA), que corresponde ao extrato mais baixo da
troposfera (até ≈1 km de altitude) e sofre influência direta da superfície terrestre, sendo caracterizada
pela turbulência térmica com inversões durante os períodos do dia e noite.
A ‘estratosfera’, camada superposta à troposfera, atinge cerca de 50 km de altitude. Nessa camada,
ao contrário da anterior, onde a temperatura cai ≈ 7 °C por km à medida que subimos, a temperatura
aumenta quanto mais subimos. A estratosfera é uma camada muito estável, bem diferente da troposfera,
que produz os fenômenos climáticos como chuvas, ventos, furacões etc. Por esses motivos a estratosfera
é utilizada pelos aviões para fugir de instabilidades da troposfera.
A explicação para a estabilidade da estratosfera está na diferença de temperatura ao longo dela, onde
as porções mais baixas são mais frias (–50 °C) e as mais altas são mais quentes (2 °C), impossibilitando
a troca de calor por convecção (algo que acontece na troposfera) e, consequentemente, não permitindo
a movimentação das moléculas, tornando-a mais calma.
A camada de ozônio (camada que protege a superfície terrestre dos raios ultravioletas provindos do
Sol) se encontra na estratosfera. Essa camada tem uma espessura de 22 km de alta concentração desse

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gás. O ozônio (O3), embora seja um gás quimicamente diferente do oxigênio (O2), é estruturalmente
muito parecido com ele. A explicação sobre o aumento da temperatura quando da elevação da
altitude na estratosfera é que os raios ultravioletas são parcialmente absorvidos pela camada de ozônio,
desorganizando os átomos e quebrando o O3, gerando energia e consequentemente aumentando a
temperatura nessa porção da atmosfera. (BRASIL, 2012a).
Acima da estratosfera se inicia a ‘mesosfera’, que chega a altitudes de 80 km. Por não conter
ozônio em sua composição, ou ainda outros gases ou nuvens capazes de absorver energia solar, também
apresenta declínio nas temperaturas à medida que aumenta a altitude, com variações entre –10 °C e
–100 °C. Apesar da baixa quantidade de moléculas de ar, a mesosfera oferece resistência a objetos que
entram na atmosfera, servindo de proteção ao planeta contra a colisão de meteoros. Nessa camada
ocorre ainda um fenômeno que dá cor aos dias, denominado ‘aeroiluminescência’. Basicamente, esse
fenômeno acontece com a entrada da radiação vinda do Sol em contato com as moléculas de oxigênio,
que emitem fótons e consequentemente colorem o céu.
Já a ‘termosfera’ está localizada acima da mesosfera, apresentando altitude de até 640 km. Por
consequência de os raios ultravioletas serem muito intensos, volta a apresentar a característica de
aumento de temperatura quando do aumento da altitude. A grande intensidade dos raios ultravioletas
ocasiona ainda a decomposição das moléculas em átomos e íons, por esse motivo tal camada também é
chamada de ‘ionosfera’. As temperaturas nas porções mais altas podem chegar a 1 000 °C. Essa camada
reflete as ondas de rádio, permitindo a comunicação entre lugares distantes.
Finalmente, a ‘exosfera’ é a camada mais externa da atmosfera, sendo a zona de transição entre
esta e o espaço, atingindo até 1.600 km de altitude, podendo apresentar temperaturas próximas a
1.000 °C. É a camada mais rarefeita, sendo composta basicamente de hidrogênio e hélio em proporções
equivalentes, onde se posicionam vários satélites.

Fragilidade da atmosfera
A atmosfera faz parte dos três principais e mais importantes ambientes físicos da Terra: litosfera,
hidrosfera e atmosfera. O primeiro é a porção do planeta Terra composta por rochas e solos. O segundo
compreende o ambiente aquático, enquanto o terceiro corresponde à porção gasosa do planeta.
De acordo com Carl Sagan (1998), a espessura da atmosfera terrestre, incluindo toda a parte
afetada pelo efeito estufa, representa apenas 0,1% do diâmetro da Terra. Se incluirmos a alta estratosfera,
a espessura total passa a representar 1% do diâmetro do planeta.
Segundo estatísticas apresentadas pelo cientista James Lovelock (2006) na Teoria de Gaia, a massa
total da atmosfera é de aproximadamente 5,137 × 1018 kg, uma fração minúscula da massa total da Terra
(≈ 5,976 × 1024 kg). Exerce papel fundamental na manutenção da vida, interagindo complexamente
com o planeta e o espaço exterior. Com isso, podemos perceber a fragilidade e importância dessa
fina camada que nos protege das ameaças exteriores, como os meteoros vindos do espaço e os raios
ultravioletas emitidos pelo Sol.

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Densidade e pressão atmosférica


Como já vimos anteriormente, a atmosfera é composta por vários gases que sofrem a ação da
gravidade e, portanto, têm peso, caso contrário escapariam da Terra e se dispersariam no espaço. Assim,
esses gases exercem uma força sobre a superfície terrestre denominada ‘pressão atmosférica’, tendo
como unidade de medida o ‘hectopascal’, a ‘atmosfera-padrão’ (atm) e o ‘milibar’ (bar).
A atmosfera tem volume e densidade variáveis, modificando-se na medida em que se afasta da
superfície terrestre; consequentemente, a pressão atmosférica varia de acordo com a altitude. Por
exemplo, em grandes altitudes o ar é rarefeito (menor quantidade de partículas de ar por unidade de
volume), consequentemente a pressão atmosférica é menor se comparada a regiões ao nível do mar,
onde o ar é mais denso (maior quantidade de moléculas de ar por unidade de volume) e a pressão
atmosférica é maior. Esse fenômeno pode ser notado quando descemos uma serra em direção à praia e
sentimos um incômodo no ouvido, ou seja, quando a pressão atmosférica aumenta gradativamente na
medida em que a altitude diminui.
O decréscimo da densidade com a altura se dá de forma bastante rápida. Em uma altitude de
5,6 km a densidade já é a metade se comparada com a densidade ao nível do mar. Em 16 km já passa
a ser 10% da densidade ao nível do mar e em 32 km corresponde a apenas 1% do valor. Ou seja, é um
decréscimo exponencial da densidade em relação à altitude; quanto mais próximo da superfície mais
denso será o ar, que se torna rarefeito com o aumento da altitude.
A força da gravidade comprime a atmosfera, sendo o local de maior pressão atmosférica aquele
próximo à superfície da Terra. Ao nível do mar a pressão atmosférica padrão é 1013 hPa. Para determinar
a pressão atmosférica ao nível do mar, o físico italiano Evangelista Torricelli realizou uma experiência
na qual colocou um tubo de 1 metro de comprimento completamente cheio de mercúrio, com a boca
tampada e virada para baixo, dentro de um recipiente também cheio de mercúrio. Após destampar a
boca do tubo o cientista observou que a coluna de mercúrio desceu e se estabilizou no nível 76 cm,
restando o vácuo na parte vazia do tubo.
Mas por que o tubo com mercúrio não foi completamente esvaziado quando a boca foi destampada?
Por causa da pressão que a atmosfera exerceu sobre a superfície exposta do mercúrio que estava no
recipiente, impedindo que a coluna de mercúrio dentro do tubo escoasse para o recipiente além dos
76 cm. Com isso, Torricelli concluiu que a pressão exercida pela coluna de mercúrio equivaleu à pressão
atmosférica quando atingiu 76 cm, portanto, se estabilizou nesse ponto. Por meio dessa experiência
ele calculou a pressão atmosférica média ao nível do mar, considerando que é equivalente à pressão
exercida pela coluna de 76 cm de mercúrio.
A temperatura também influencia a pressão atmosférica. Quando o ar se esquenta, suas moléculas
se expandem, tornando-o menos denso e, consequentemente, diminuindo a pressão atmosférica.
Seguindo o mesmo raciocínio, o ar se comprime na medida em que esfria, tornando-se mais denso e,
portanto, aumentando a pressão atmosférica.
Assim, nas áreas mais quentes do planeta (Equador) são constatadas pressões atmosféricas menores
e, consequentemente, pressões maiores são encontradas em locais mais frios (polos). Portanto, podemos

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dizer que a latitude influencia de forma diretamente proporcional a pressão atmosférica, pois quanto
menor a latitude (proximidade ao Equador) menor é a pressão e vice-versa, ao contrário da altitude, que
influencia a pressão atmosférica de forma inversamente proporcional, como já vimos anteriormente.
A pressão atmosférica varia com o tempo ao longo do dia e durante o ano. As variações temporais
se relacionam às mudanças de temperatura do ar em função da variação de temperatura da superfície
ao longo do dia e das estações do ano.

Grandes circulações atmosféricas


A atmosfera é algo dinâmico, e se analisada dessa forma deve ser considerada a movimentação do
ar e consequente troca de influências que o ar proveniente de uma região leva a outra, formatando-se
assim em um sistema complexo de sistemas atmosféricos.
A atmosfera terrestre, como já vimos, é um conjunto de gases preso à Terra pela ação da gravidade,
cujos movimentos são descritos pelas leis da mecânica dos fluidos e da termodinâmica. Os movimentos do
ar são nutridos pela distribuição desigual da energia solar e influenciados diretamente pela rotação terrestre.
A atmosfera encontra-se em constante movimento, ficando difícil captar e representar de maneira
fiel as leis que regem esse constante dinamismo. Contudo, com a localização dos campos médios
de pressão atmosférica (ou centros atmosféricos de ação) por meio de cartografia fica mais fácil
entender toda essa movimentação. Esses centros atmosféricos são classificados como de alta pressão
(‘anticiclonais’) ou de baixa pressão (‘ciclonais’ ou ‘depressões’).
A circulação geral da atmosfera pode ser observada na Figura 3, que traz os principais movimentos
da atmosfera em escala planetária.

Figura 3 – Circulação geral da atmosfera.


Alta Polar

60o Baixa Subpolar

30o Alta Subtropical

0o Baixa Equatorial

30o Alta Subtropical

             Fonte – Adaptado de Atlante Geográfico Metódico de Agostini, 1996.

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Os centros de alta pressão (‘anticiclones’) caracterizam-se por apresentar pressão atmosférica mais
elevada que seu entorno. Essas são áreas em cuja superfície ocorre divergência do ar partindo do
núcleo. Já ‘ciclones’ (centros de baixa pressão) é o termo utilizado para perturbações tropicais mais
velozes, características das regiões tropicais.
Os centros de ação atmosférica são, de maneira geral, sazonalmente móveis, com o movimento do
ar se fazendo geralmente dos centros de ação positivos (anticiclones) para os negativos, de baixa pressão
(ciclones). (MENDONÇA, 2007).

Rios aéreos
A expressão ‘rios aéreos’ ou ‘rios voadores’ foi trazida para o Brasil pelo pesquisador do
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) José Marengo, na década de 1990. O conceito
dessa expressão é uma analogia aos rios terrestres que simplificam o nome científico ‘jatos de baixos
níveis da América do Sul’ (MOSS; MOSS, 2014), tornando o conceito muito similar ao dos rios
atmosféricos. (NOBRE, 2014).
Os rios aéreos são grandes massas de vapor de água invisíveis que circulam na atmosfera com o
auxílio dos ventos. Esse fenômeno ocorre quando a umidade contida nesses rios se precipita e encontra
condições meteorológicas favoráveis como a frente fria.
No Brasil, o principal ‘rio voador’ encontra-se na Região Nordeste, na franja equatorial do Oceano
Atlântico, que é transportado pelos ventos rumo à Região Norte do país, chegando até a Floresta
Amazônica. Para Nobre (2014), esse processo se dá quando um rio aéreo une regiões doadoras de
umidade com outras receptoras de umidade.
A precipitação que cai sobre a floresta é evaporada e pela ação do calor ocorre a evapotranspiração
das árvores. Dessa maneira, o ar é recarregado com mais umidade e ocorre a precipitação novamente.
De acordo com Dall’Agnol (2017), cerca de 200 milhões de litros por segundo é o volume de água que
evapora da Floresta Amazônica e é transportado pelos rios aéreos da região. Além disso, o autor afirma
que apesar de não conseguirmos visualizar esse volume de água, ele corresponde à grandeza da vazão do
Rio Amazonas, o maior do Brasil. Apesar de sua grandeza, existem duas dezenas de diversas correntezas
aéreas carregadas de vapor de água que atravessam o espaço aéreo brasileiro e são responsáveis pelas
chuvas que caem em pontos distintos do território nacional.
Na Figura 4 podemos observar como ocorre esse fenômeno entre as regiões do país.

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Figura 4 – Caminho dos rios voadores.

3 Essa umidade avança em sentido oeste até


atingir a Cordilheira dos Andes. Durante
essa trajetória, o vapor d’água sofre uma
recirculação ao passar sobre a floresta.
2 A intensa evapotranspiração
e condensação sobre a
Amazônia produz a sucção
dos alíseos, bombeando
esses ventos para o interior
do continente, gerando
chuvas e fazendo mover os
rios voadores.

1 Na faixa equatorial
do Oceano Atlântico
ocorre intensa
evaporação. É lá que
o vento se carrega de
umidade.

4 Quando a
umidade
encontra a 5 A umidade que atinge a
Cordilheira dos região andina em parte
Andes, parte dela retorna ao Brasil por meio
se precipitará dos rios voadores e pode
novamente, precipitar em outras regiões.
formando as
cabeceiras dos
rios da Amazônia.

6 Na fase final, os rios


voadores ainda podem
alimentar os reservatórios de
água do Sudeste e da Região
Sul, se dispersando pelos
países fronteiriços, como
Paraguai e Argentina.

Fonte – Moss e Moss, 2014.

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FATORES CLIMÁTICOS
Para entendermos melhor os diferentes tipos de climas do planeta, devemos compreender os
fatores que o influenciam. Ou seja, para aprendermos sobre os diversos climas temos de entender
como as características e a dinâmica da atmosfera atuam sobre os diferentes lugares em sua permanente
interação com a superfície.
Desse modo, os elementos climáticos (temperatura, pressão, umidade, precipitação, vento etc.) são
influenciados por características geográficas da paisagem, diferenciadas de local para local. Os fatores
que influenciam diretamente esses elementos são latitude, altitude, relevo, vegetação, continentalidade/
/maritimidade e atividades humanas.
A latitude é um importante fator, pois trata do posicionamento do planeta em relação a outros
astros, condicionando a quantidade de energia na Terra. A rotação (movimento dela em volta do seu
próprio eixo), por exemplo, proporciona a diferenciação entre dia e noite em determinado local do
planeta, implicando em uma diferenciação na entrada de energia na atmosfera. A inclinação do eixo da
Terra e o próprio movimento de translação (movimento da Terra ao redor do Sol) também propiciam
uma diferenciação de distribuição da energia emitida pelo Sol. Em resumo, a latitude de um lugar,
como também a época do ano, define o ângulo com que os raios do sol irão incidir sobre a superfície
daquele local.
O relevo é outro fator que influencia o clima de uma região, principalmente em decorrência
da variação de altitude, forma e posição e da orientação das vertentes. Quando consideramos dois
lugares com a mesma latitude, porém com diferentes altitudes, o local com maior altitude terá menor
temperatura, ao passo que o local mais próximo ao nível do mar terá maior temperatura. A cada 100 m
de elevação da altitude diminui-se aproximadamente 0,3 °C.
A posição e a forma de um relevo podem favorecer ou dificultar fluxos de calor e umidade entre
áreas próximas. A Cordilheira dos Andes, por exemplo, barra a penetração de umidade proveniente
do Oceano Atlântico e da Amazônia para o oeste do Chile, deixando o clima do Deserto de Atacama
mais seco.
A orientação do relevo em relação ao Sol irá definir as vertentes mais aquecidas e secas, bem como
aquelas mais frias e úmidas, influenciando assim no clima da região.
A vegetação serve como regulador de umidade e temperatura de uma região. Nota-se que no
interior de áreas florestais a temperatura é inferior às áreas vizinhas não florestadas. Isso se dá por
causa da copada e dos troncos das árvores, que barram a radiação solar direta. Nessas áreas florestadas
o processo de infiltração de água no solo é mais eficiente, havendo maior disponibilidade de água
no terreno dessas regiões, o que torna a evaporação e a evapotranspiração mais hábeis, deixando o
ambiente mais úmido e frio.

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Os mares e oceanos, por sua vez, são fundamentais para a regulação do clima no planeta, pois
são os principais fornecedores de água para a troposfera e controlam a distribuição de energia entre
continentes e oceanos. Eles induzem a temperatura do ar conforme a temperatura da superfície
aquática, fazendo o ar se resfriar por meio das baixas temperaturas das águas superficiais frias, inibindo
a formação de nuvens e, consequentemente, de chuvas. O contrário acontece em locais de superfícies
aquáticas quentes, esquentando o ar e elevando a formação de nuvens e chuvas. Os locais muito
distantes dos mares e oceanos sofrem com o efeito da continentalidade, sentido principalmente nas
temperaturas e umidades do ar. Nessas regiões a amplitude térmica é acentuada, pois o aquecimento e
o resfriamento do ar se tornam mais rápidos.
As atividades humanas também atuam sobre o clima. Como exemplo disso temos as ilhas de calor,
ou ilhas térmicas, que são áreas de intensidade distinta de aquecimento do ar, criadas pela modificação
da paisagem natural pela ocupação humana, onde é possível observar que a temperatura dos centros
urbanos é superior à das regiões periféricas.
Contribuem significativamente para a ocorrência desse fenômeno as atividades de produção,
notadamente industriais, de transporte e lazer das grandes cidades. No entanto, é importante ressaltar
que os centros urbanos apresentam diversas contribuições para a alteração do clima nessas regiões.
(MENDONÇA, 2007).

Inversão térmica
Como já visto anteriormente, na troposfera o ar se resfria à medida que se aumenta a altitude.
Assim, o ar mais próximo da superfície é mais quente, portanto, é mais leve e tende a subir. Nas grandes
cidades essa dinâmica faz com que os gases poluentes, advindos das indústrias e dos automóveis, sejam
dispersos mais facilmente, conforme Figura 5.
A diferença de temperatura entre o ar das camadas mais baixas (próximas à superfície) e mais
altas da troposfera faz o ar circular verticalmente; o ar quente sobe e vai se resfriando gradativamente,
empurrando o ar frio para baixo, que será aquecido, repetindo o fenômeno. Quando a superfície
terrestre se resfria rapidamente, forma uma camada de ar frio abaixo da camada de ar quente, fato que
ocorre com maior frequência nos invernos em períodos noturnos, ocasionando a ‘inversão térmica’,
que pode ser definida como uma condição meteorológica que ocorre quando uma camada de ar quente
se sobrepõe a uma camada de ar frio, dificultando o movimento ascendente do ar, uma vez que o ar
frio é mais pesado. A poluição emitida pela área urbanizada então fica contida abaixo da camada de ar
quente, criando uma faixa cinza no horizonte da cidade (smog), resultado da poluição concentrada na
camada mais próxima da superfície, conforme Figura 5.

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Figura 5 – Inversão térmica.


Sem inversão
Altitude

Temperatura

Com inversão

Camada de inversão
Altitude

Temperatura
Fonte – Feltre, 2004.

A inversão térmica é um fenômeno natural que ocorre durante todo o ano, atingindo altitudes
mais baixas no inverno, principalmente nos períodos noturnos.

Efeito estufa
A atmosfera depende de algumas condições para que tenha possibilidades de abrigar vida. Uma
delas é a temperatura, que certamente não seria da forma como é hoje sem o efeito estufa.

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Trata-se de um processo natural de aquecimento da atmosfera. Caso ele não existisse, o planeta
teria cerca de –18 °C de temperatura média (em vez de 15 °C), existiria abundantemente água em
estado sólido e seguramente não haveria condições de abrigar vida.
O efeito estufa funciona da seguinte forma: a radiação atravessa a atmosfera e aquece a superfície
da Terra. Parte dessa energia retorna à atmosfera, mas nem toda consegue atravessar a camada de gases
que envolvem o planeta, como o vidro de uma estufa. Cerca de 30% da radiação solar é refletida de
volta ao espaço pela atmosfera (nuvens e partículas) e pela superfície da Terra. A reflexividade (albedo)
da superfície do planeta varia de acordo com o material refletivo.
De modo simplificado, a radiação solar que atinge a superfície é convertida em energia térmica,
aquecendo o planeta e evaporando a água. Quando o calor da superfície sobe para a atmosfera, uma parte
dele vai para o espaço e outra é absorvida pelos gases do efeito estufa, que emitem a energia de volta para
o planeta. Quanto mais alta a coluna de gases do efeito estufa, maior é a quantidade de energia emitida
de volta, reaquecendo a superfície e a baixa atmosfera, em um processo constante, conforme a Figura 6.

Figura 6 – Efeito estufa.

Efeito estufa

B
A

AT
MO
SF
ER
A

Fonte – PUBLICO.PT., 2001.

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392

Os chamados Gases do Efeito Estufa (GEE) se concentram naturalmente na atmosfera,


representando menos de um milésimo da atmosfera total. Sem eles não existiria efeito estufa. Como
esses gases absorvem os raios infravermelhos, servindo como um cobertor do planeta, o aumento de sua
concentração pode bloquear a saída dos raios refletidos pela superfície terrestre, causando o aumento
da temperatura média da atmosfera.
Os principais GEE são o vapor de água, o dióxido de carbono (CO2), os clorofluorcarbonos
(CFCs), o metano (CH4) e o óxido nitroso (N2O). Esses gases têm diferentes concentrações e ciclos de
produção e destruição, bem como diversos potenciais de aquecimento do planeta.
Os GEE citados anteriormente se diferenciam dos principais gases que constituem 99, 97% do ar,
como oxigênio e nitrogênio no que se refere à capacidade de absorção da energia solar. O oxigênio e o
nitrogênio são diatômicos (dois átomos ligados um ao outro) e não podem absorver o infravermelho e
os comprimentos de ondas visíveis do Sol. Dessa forma, não são aquecidos e não aquecem o ar quando
atingidos pela luz solar e pelo infravermelho irradiado para cima pela superfície terrestre. O mesmo se
aplica aos gases monoatômicos (constituídos de um átomo), como o argônio.
Os gases constituídos por três ou mais átomos, como o dióxido de carbono, o vapor d’água e o
metano, são capazes de absorver a radiação infravermelha, pois suas moléculas são maiores e vibram
naturalmente nas mesmas frequências que o infravermelho.
Atuando como um isolante térmico da estufa gasosa do planeta, o ar da camada atmosférica exterior
é mais frio, assim, o aumento de temperatura pela estufa gasosa no nível da superfície poderá ocasionar
uma queda de temperatura na camada atmosférica exterior. Nesse caso, pode-se afirmar que em função do
isolamento térmico do planeta a atmosfera exterior seria mais fria caso não estivesse isolada termicamente.

Aquecimento global
Atualmente, um dos principais assuntos em discussão é o aquecimento global e as possíveis
consequências a ele relacionadas, como o aumento da temperatura média do planeta, o derretimento do
gelo polar, o aumento do nível do mar, a influência sobre fenômenos como tempestades, furacões etc.
O efeito estufa em si e sua existência não são motivo de preocupação, pois como já vimos
anteriormente esse fenômeno é natural e essencial para a absorção do calor do sol e para manutenção
da vida na Terra. O que preocupa é o acréscimo dos chamados GEE na atmosfera pelas atividades
humanas, a capacidade destes em aumentar significativamente o aquecimento do planeta e como isso
pode afetar o complexo sistema de vida.
A concentração dos GEE vem aumentando devido a ações antrópicas decorrentes de atividades
econômicas e sociais, provocando alterações na biosfera, causando a quase duplicação da concentração
desses gases. Os principais deles são o dióxido de carbono (CO2) e o metano (CH4), sendo o primeiro
responsável por 80% do aquecimento causado pelo homem, enquanto o segundo, que é 21 vezes mais
potente que o primeiro, tem aumentado em quantidade de cerca de 1% ao ano nas últimas décadas.
A queima de combustíveis fósseis como carvão, petróleo e gás natural é a principal fonte de emissão
de dióxido de carbono na atmosfera. Já as principais fontes de emissão do metano estão na atividade

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agrícola, produzida pela fermentação das bactérias anaeróbicas associadas aos arrozais, pela fermentação
entérica dos ruminantes, pelo desflorestamento e pela queima de biomassa. O óxido nitroso é emitido
pelo uso de fertilizantes e por atividades industriais.
As mudanças climáticas e o aquecimento global estão em discussão há algum tempo, e a comunidade
científica tem feito várias pesquisas para saber a real causa dessas mudanças. Uma parcela da comunidade
científica mundial acredita que elas são parte de um processo natural, longo e dinâmico de glaciação do
planeta, sendo o aumento da temperatura consequência dele.
Porém, as principais atribuições das causas do aumento da temperatura são as ações antrópicas, que
aumentam a quantidade de gases do efeito estufa, principalmente por meio da queima de combustíveis
fósseis, petróleo, carvão e gás natural.
Além de serem fontes de energia muito utilizadas nos tempos atuais, elas são limitadas, ou seja,
seu estoque no planeta vai se esgotar em algum tempo, por isso são chamadas de ‘fontes não renováveis
de energia’.
Elas se formaram no chamado Período Carbonífero ou Era Paleozoica, quando surgiram as
grandes florestas e consequentemente as grandes jazidas de carvão. Árvores que caíam em pântanos
eram soterradas sem se decompor, pois havia pouco oxigênio. O soterramento levava ao aumento da
temperatura, causando transformações químicas que resultaram no carvão. (CRPM, 2016).
Os cataclismos geológicos dessa época foram responsáveis pelo soterramento de quantidades
imensas de biomassa a grandes profundidades. Esta viria a se tornar a fonte dos combustíveis fósseis
tanto utilizados hoje e que liberam para a atmosfera uma quantidade imensa de CO2.
Na figura 7 notamos a relação de emissão de carbono e o aumento das temperaturas em centenas
de anos.

Figura 7 – Relação de emissão de carbono × aumento da temperatura.


C
o

PPM 20
400 18,2 CO2 tmed 14,6
18
350 15,5 16
Concentração de CO2

12,8 13,7 13,4 13,6


300 13,5 14 Temperatura média
12,2
10,5
250 12
7,7 10
200 6,0
7,7 8
150
6
178

300

240

285

270

210

251

262

280

282

295

397
188

100 4
720 325 200 125 115 40 19 11 7 1780 1815 1908 2007
mil mil mil mil mil mil mil mil mil
Anos
Fonte – Almeida, 2016.

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394

Voltando aos tempos atuais, a partir da década de 1980 são observados com maior frequência
os chamados Fenômenos Climáticos Extremos, que são eventos como furacões, enchentes, secas,
tornados, que podem causar catástrofes sociais e ambientais e demonstram sinais de mudanças no
clima do planeta. Apesar de que sempre haverá incertezas sobre um sistema tão complexo como o clima
e tão diversificado quanto o ecossistema do nosso planeta, as evidências, no caso o aumento desses
fenômenos climáticos extremos, tornam essas incertezas motivos de medo e alerta. (UNFCCC, 2018).
Em 1988 houve em Toronto, no Canadá, a primeira reunião entre governantes e cientistas sobre
mudanças climáticas. Após esse evento a Organização das Nações Unidas (ONU) criou um órgão
chamado Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), composto por delegações de
130 países do mundo todo com a função de promover avaliações regulares sobre mudanças climáticas.
A criação desse órgão se deu pela percepção de que as atividades humanas exercem forte influência
sobre o clima global. (IPCC, 2012).
O primeiro relatório do IPCC foi publicado em 1990 e demonstrou a necessidade de criação
da Convenção-Quadro das Nações Unidas para Mudanças do Clima (UNFCCC), formada para os
governantes discutirem políticas sobre mudanças climáticas. De acordo com esse relatório, seria preciso
a redução em 60% de todas as emissões de CO2 na atmosfera.
Um segundo relatório foi publicado em 1995, e os estudiosos chegaram à conclusão de que as
atividades humanas causam impacto significativo no clima global, criando assim um grande desafio
aos grupos defensores da utilização das fontes de energia não renováveis fósseis. A partir de 1995
foram criadas então as Conferências das Partes, que seriam encontros para a discussão de assuntos
relacionados às mudanças climáticas globais. (BRASIL, 2012).
Na Conferência das Partes (COP) de 1997, no Japão, foi assinado o Protocolo de Kyoto, primeiro
acordo que vinculou o comprometimento dos países responsáveis pelas maiores emissões de gases do efeito
estufa em diminui-las. O objetivo desse Protocolo é estabilizar a concentração de gases do efeito estufa a
um nível que impeça a interferência perigosa no sistema climático. O protocolo estabeleceu que os países
industrializados deveriam reduzir suas emissões para 5,2% em relação aos níveis de 1990, para o período de
2008-2012. Estabeleceu-se ainda no protocolo de Kyoto três mecanismos de flexibilidade para a redução de
emissões: a Implementação Conjunta (Joint Implementation), o Comércio de Emissões (Emissions Trading)
e o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo – MDL (Clean Development Mecanism – CDM).
Em contrapartida à teoria do aquecimento global pelo acréscimo dos gases de estufa pelas atividades
antrópicas, da existência do efeito estufa e da camada de ozônio, atualmente há algumas vertentes que
defendem a inexistência destes fenômenos.

Camada de ozônio
Quando estudamos os problemas atmosféricos não podemos deixar de citar aqueles relacionados
à diminuição da camada de ozônio. Como já vimos, a camada de ozônio encontra-se na estratosfera e
exerce a função de proteção da Terra contra a radiação ultravioleta vinda do Sol. Mas sabe-se que alguns
gases causam o estreitamento da camada de ozônio.

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As principais substâncias que contribuem para a destruição da camada de ozônio são


• cloroflurcarbono (CFC);
• hidroclorofluorcarbono (HCFC);
• brometo de metila (BR);
• óxido de nitrogênio (NO).

O clorofluorcarbono (CFC) é a principal substância destruidora da camada de ozônio. Após


liberado na atmosfera e atingir a estratosfera, é desintegrado pela radiação ultravioleta, liberando o
radical cloro, que reage com o ozônio formando oxigênio e monóxido de cloro. A molécula de oxigênio
é então liberada na atmosfera, enquanto a ligação do monóxido de cloro é quebrada por um átomo de
oxigênio, formando nova molécula de oxigênio e liberando o radical cloro, repetindo-se o processo.
Esse gás foi amplamente utilizado entre as décadas de 1980 e 1990 na indústria de produtos e
serviços, como na manufatura de espuma, em aerossóis e em bombinhas para asma. Serviu também
como esterilizante e fluido refrigerante para geladeiras e aparelhos de ar-condicionado. O CFC é um gás
de origem industrial que foi introduzido na atmosfera pelas atividades humanas, não sendo encontrado
naturalmente. Por ser capaz de absorver raios infravermelhos e irradiá-los novamente à superfície,
contribui para o efeito estufa e por isso seu consumo foi proibido em 2010.
O hidroclorofluorcarbono (HCFC) foi desenvolvido como alternativa de mercado para substituir
o uso dos CFCs. Com composição mais branda, apresenta menor potencial de destruição da camada de
ozônio e, por isso, seu uso foi ampliado. Ele é usado como fluido para extintores de incêndio, na fabricação
de embalagens térmicas, em limpeza de circuitos, entre outros fins. Apesar de ser menos nociva à camada
de ozônio, pesquisas recentes demonstraram que a substância contribui para o aquecimento global. Assim,
as metas internacionais em discussão preveem a eliminação do uso do HCFC até 2040. Atualmente,
alguns segmentos industriais adotam a substituição dos HCFCs pelos HFCs (hidrofluorcarbonos), que
não afetam a camada de ozônio, no entanto, também contribuem para o efeito estufa.
O brometo de metila (BR) é um agrotóxico gasoso utilizado como desinfetante de solos
para cultivos e exterminador de pragas (insetos, fungos, bactérias e ervas daninhas). O produto é
extremamente tóxico e prejudicial à saúde.
O óxido de nitrogênio (NO) é liberado na atmosfera por meio de atividades humanas. É emitido
por veículos motorizados, aviões, centrais termoelétricas, fábricas de fertilizantes, de explosivos ou de
ácido nítrico, incineradores e provenientes das queimadas.
O conhecimento a respeito da destruição da camada de ozônio mobilizou várias nações. Em 1985, a
Convenção de Viena para a Proteção da Camada de Ozônio foi assinada por dezenas de países, entre eles
o Brasil. Posteriormente, foi estabelecido o Protocolo de Montreal sobre as Substâncias que Destroem
a Camada de Ozônio (SDOs), ligado à Organização das Nações Unidas (ONU), estabelecendo aos
signatários o compromisso para eliminação da produção e do consumo de substâncias destruidoras
da camada de ozônio por meio da estipulação de metas entre os 193 países que integram o Protocolo.

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Além disso, o Protocolo estabeleceu que os maiores consumidores de substâncias que destroem a
camada de ozônio em maior quantidade (países desenvolvidos) deveriam contribuir financeiramente
para apoiar os países em desenvolvimento a cumprirem as metas estabelecidas no Protocolo. Para
isso foi criado em 1990 o Fundo Multilateral para Implementação do Protocolo de Montreal (FML)
(PNUD, 2017), cujo objetivo é prover assistência técnica e financeira aos países em desenvolvimento
com recursos provenientes dos países desenvolvidos, por isso é um dos mecanismos que garantem o
êxito da implementação desse tratado internacional.
Nesses 30 anos de história, o Brasil tem sido precursor na eliminação das SDOs. Sob a coordenação
do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e com o apoio das agências implementadoras – PNUD,
Agência de Cooperação Alemã (GIZ) e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial
(UNIDO) –, o país executou projetos para conversão tecnológica nos setores de espumas, refrigeração
e ar condicionado, solventes, agricultura, indústria farmacêutica e demais setores da indústria química,
além de capacitar mais de 30 mil técnicos do segmento de refrigeração e ar condicionado.
Ao longo dessas três décadas, o país eliminou o consumo de aproximadamente 17 mil toneladas
de Potencial de Destruição do Ozônio (PDO) de substâncias prejudiciais para a camada de ozônio, tais
como CFC, Halons, CTC e brometo de metila na agricultura. No cenário atual, o principal foco do
Protocolo de Montreal é a completa eliminação da produção e do consumo dos hidroclorofluorcarbonos
(HCFCs) em todo o planeta até 2040.
Segundo dados da ONU, os Estados Partes do Protocolo de Montreal já eliminaram aproximadamente
98% de substâncias nocivas para a camada de ozônio, impedindo, assim, que mais de dois milhões de
casos de câncer de pele atingissem a população por ano. Os resultados desses 30 anos de existência do
Protocolo mostram a importância de seguir avançando com ações para a proteção da camada de ozônio
por meio de uma parceria bem-sucedida entre Governo, setor produtivo e sociedade. (PNUD, 2017).

MDL E CRÉDITO DE CARBONO


Com o estabelecimento de metas para limitação e redução de emissões de gases de efeito estufa
por meio do Protocolo de Quioto, originaram-se os chamados mecanismos de flexibilização, que
possibilitam a redução das emissões de forma diferenciada.
Os Mecanismos de Desenvolvimento Limpo (MDL) são o principal meio de participação
dos países em desenvolvimento na questão das mudanças climáticas, sendo considerados ótimos
instrumentos de fomento de boas práticas, aprendizado e padrões de produção mais ajustados aos
novos paradigmas de sustentabilidade.
De maneira sucinta, o MDL permite a certificação de projetos de redução de emissões nos países
em desenvolvimento e a posterior venda das reduções certificadas de emissão, para serem utilizadas
pelos países desenvolvidos como modo suplementar para cumprirem suas metas. Esse mecanismo deve

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provocar reduções de emissões adicionais àquelas que ocorreriam na ausência do projeto, garantindo
benefícios reais, mensuráveis e de longo prazo para a mitigação da mudança do clima. (JURAS, 2009).
Esse tipo de mecanismo foi estruturado no princípio do ‘poluidor pagador’, que prevê a cobrança
de uma taxa para alguma iniciativa de correção daquela poluição. (ARAÚJO, 2007).
Dentre os diversos segmentos de mercado que poderão se favorecer do comércio dos créditos de
carbono, na esfera do MDL, destacam-se
a) projetos de recuperação de gás de aterro sanitário, de autófonos, biodigestores e de outros
gases;
b) energias limpas (biomassa, hidrelétrica, eólica, solar etc.);
c) troca de combustíveis (óleo × gás, biomassa etc.);
d) eficiência energética e eficiência em transporte (logística);
e) melhorias/tecnologias industriais: cimento, petroquímica, fertilizantes etc.;
f ) projetos florestais (reflorestamento ou florestamento).

Somente após a redução é que a empresa pode negociar o crédito de carbono.


Em 2016, de acordo com relatório do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações
do Brasil, a situação mundial dos projetos em âmbito dos MDLs, o Brasil ocupava a 3.ª colocação
(4,4% de todos os projetos registrados) no número de projetos registrados no UNFCCC, conforme
podemos observar na Figura 8.

Figura 8 – Projetos MDL registrados em 2016.


60

48,9
50

40

30

20,8
20
13,0
10
4,4 3,3 2,5 1,9 1,9 1,9 1,3
0
China Índia Brasil Vietnã México Tailândia Indonésia Malásia Chile Outros
    Fonte – Brasil, 2018a.

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Carbonização da economia e matriz energética


Como já vimos, um dos principais responsáveis pela emissão de gases de efeito estufa na atmosfera
é a utilização de combustíveis fósseis, e sabemos que na maioria dos países essa fonte de energia é
utilizada em larga escala, apesar de ser não renovável. Porém, essa não é a única fonte de energia
disponível no mundo.
No intuito de diminuir emissões e frear o aquecimento global, alguns países estão buscando fontes
alternativas de energia, as chamadas ‘renováveis’. Elas são menos poluentes e recebem essa denominação
por serem provenientes de recursos capazes de se refazer em curto período de tempo, ao contrário dos
não renováveis.
A matriz energética de um país é a quantidade de energia disponível neste para sua utilização.
Empresas multinacionais, grandes organizações financeiras, empresas estatais e órgãos reguladores
são agentes com grande participação na dinâmica do mercado energético. Os derivados de petróleo
integram a maior parte da energia utilizada no mundo, como podemos observar na Figura 9.

Figura 9 – Matriz energética mundial.


Nuclear
4,9%
Biomassa
Petróleo e
9,7%
derivados
Hidráulica 31,7%
2,5%

Outros
1,5%

Carvão
28,1%

Gás natural
21,6%
Fonte – Adaptado de IEA, 2017.

Por ser a fonte de energia mais utilizada no mundo, o petróleo exerce não apenas um papel
econômico, mas também geopolítico. Nesse contexto, os derivados de petróleo trazem consigo,
juntamente à riqueza, toda uma série de disputas comerciais, financeiras e diplomáticas, bem
como conflitos.
A questão da utilização de derivados de petróleo está ligada ao rápido crescimento da utilização de
energia e depende também da quantidade de fontes disponíveis, que nesse caso é abundante. Por ele ser

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muito poluente, as únicas alternativas para a não utilização dessas fontes de energia não renováveis seria
a restrição de oferta dos derivados de petróleo, e principalmente o uso de fontes alternativas de energia
renovável. Assim, por meio da queda na produção de petróleo a disponibilidade de outras fontes de
energia será decisiva para a economia global.
Nesse contexto, a bioenergia é uma alternativa viável e promissora para ocupar maior espaço
na matriz energética mundial, principalmente para atender o setor de transportes. Mas para que
essa tendência funcione é preciso observar características específicas de cada região, avaliando as
potencialidades agrícolas e o desempenho energético ambiental de cada cultura.
No Brasil, essa tendência já é uma realidade. A matriz energética brasileira é a mais renovável do
mundo, com 41,1% de sua produção proveniente de fontes como lenha e carvão vegetal, hidráulica,
derivados de cana e outras renováveis, conforme Figura 10. (EPE, 2018). Essa atual situação se deu
desde 1975, por meio da implementação da política de incentivo ao etanol, que desenvolveu a pesquisa
sobre o biocombustível no Brasil.

Figura 10 – Matriz energética brasileira.


Outras
renováveis
5,4%
Carvão
Outras não
5,5%
renováveis
0,7%

Lenha e carvão
Petróleo e
vegetal
derivados
8,0%
36,5%

Derivados
da cana
17,5%

Hidráulica Gás natural


12,6% 12,3%
Nuclear
1,5%
Fonte – EPE, 2018.

Comparados aos combustíveis provenientes do petróleo, os biocombustíveis apresentam


características que os colocam como menos poluentes. Analisando alguns fatores, pode-se dizer que
a utilização de biocombustíveis não aumentaria o aquecimento da atmosfera. Isso ocorre em virtude

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400

de a biomassa (cana-de-açúcar, soja, mamona etc.) capturar em seu crescimento parte do carbono
emitido, caracterizando-se como um sistema fechado de emissão e captura de carbono, ao contrário
da utilização dos combustíveis fósseis, que não contempla um ciclo de liberação e captura, sendo que
a quantidade liberada não é capturada totalmente, já que são fontes de CO2 estocadas a milhares de
anos no período carbonífero e em quantidades não compatíveis com a quantidade capturada por estes
agentes absorvedores.
Porém, sabe-se que as queimadas emitem grandes quantidades de gases do efeito estufa. Desse
modo, no caso de ser preciso substituir uma floresta (fonte de absorção de carbono) por uma área de
plantio novo para produção de biocombustíveis, as emissões geradas para essa mudança de uso do solo
podem acarretar uma restrição da atividade, pois afetarão o equilíbrio quantitativo entre as emissões e
capturas de carbono.

CONVENÇÃO DA ONU SOBRE MUDANÇAS


CLIMÁTICAS
Essa Convenção foi criada em 1992 no Rio de Janeiro durante a Conferência das Nações Unidas
para o Ambiente e Desenvolvimento, com o principal objetivo de reunir os países em um esforço
conjunto para estabilizar as concentrações de gases de efeito estufa em níveis que não impliquem
alterações climáticas perigosas.
A Conferência das Partes (COP), por sua vez, é o órgão supremo dessa convenção e tem como
um dos objetivos elaborar estratégias globais para proteger o sistema climático para gerações presentes e
futuras. Outro objetivo da COP é manter regularmente sob exame a implementação da Convenção e de
quaisquer instrumentos jurídicos que a conferência possa adotar, além de tomar as decisões necessárias
para promover a efetiva implementação da Convenção. (BRASIL, 2018b).
Com frequência mínima de um ano, os países signatários se reúnem na COP para discussões o
progresso de implementações da Convenção.
Essa reunião aconteceu em diferentes países com diversas realizações em prol do clima1:
• COP 1 – Berlim, 1995: primeiro encontro, no qual se firmaram oficialmente os primeiros
esforços para a redução das emissões dos gases do efeito estufa. Nele forma definidos os
primeiros passos para a criação do Protocolo de Quioto.
• COP 2 – Genebra, 1996: teve como documento oficial a Declaração de Genebra e aprovou
o resultado do relatório da segunda avaliação do IPCC. Nessa reunião foi recomendado que
cada país tivesse liberdade para encontrar soluções relevantes para a própria situação.
• COP 3 – Quioto, 1997: o Protocolo de Quioto foi confirmado nessa conferência após abertas
negociações. Pela primeira vez, introduziram-se metas obrigatórias de emissões de gases de
efeito de estufa em 37 países industrializados, para o período de 2008 a 2012.

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401

• COP 4 – Buenos Aires, 1998: devido a algumas questões pendentes sobre o Protocolo de
Quioto, foi agendado nessa conferência um período de dois anos para esclarecimento e prática
de ferramentas que colaborassem para a realização das ações descritas no protocolo.
• COP 5 – Bonn, 1999: nessa edição houve várias discussões técnicas sobre mecanismos do
Protocolo de Quioto.
• COP 6 – La Haya, 2000: aconteceu o primeiro fracasso da convenção ao ser apresentada recusa
da União Europeia em relação ao compromisso do Protocolo de Quioto. Evidenciaram-se
inseguranças sobre as sanções estipuladas aos países que não assumissem o compromisso
de redução.
• COP 7 – Marraqueche, 2001: as negociações sobre o Protocolo de Quioto foram
praticamente finalizadas.
• COP 8 – Delhi, 2002: houve a tentativa, sem sucesso, de se obter uma declaração recorrendo
para mais ações das Partes da Convenção da ONU. (UNFCCC).
• COP 9 – Milão, 2003: foram esclarecidos os últimos detalhes técnicos sobre o Protocolo
de Quioto.
• COP 10 – Buenos Aires, 2004: ocorreram discussões sobre detalhes técnicos do Protocolo de
Quioto e sobre o que aconteceria caso o Protocolo expirasse em 2012.
• COP 11 – Montreal, 2005: primeira reunião após aprovação do Protocolo de Quioto, com
discussões sobre o que aconteceria depois da expiração do Protocolo.
• COP 12 – Nairobi, 2006: as últimas questões técnicas relativas ao Protocolo de Quioto
foram realizadas. O trabalho envolvido na obtenção de um novo acordo para o período
pós-Quioto continuou, e uma série de marcos foram estabelecidos no processo rumo a um
novo acordo.
• COP 13 – Bali, 2007: por meio do reconhecimento do recente relatório do IPCC, que
demonstrava ser o aquecimento global uma realidade, e com a formulação de um texto comum
pedindo ações mais rápidas sobre o assunto, apareceu a necessidade de um novo acordo que
substituísse o Protocolo de Quioto.
• COP 14 – Poznan, 2008: deu continuidade ao sentido de trabalhar em um novo acordo
climático global em Copenhague. A Conferência foi caracterizada pela antecipação da postura
a ser adotada pelo novo governo americano.
• COP 15 – Copenhague, 2009: considerado o mais importante da história recente dentre os
acordos multilaterais ambientais, tinha por objetivo estabelecer o tratado que substituiria o
Protocolo de Quioto, vigente de 2008 a 2012. Nele foram debatidas questões como o impasse
entre países desenvolvidos e em desenvolvimento para se estabelecer metas de redução de
emissões e as bases para um esforço global de mitigação e ajuste.

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402

• COP 16 – Cancún, 2010: nele se destaca a criação do Fundo Climático Verde (Green Climate
Fund), com o objetivo de ajudar os países em desenvolvimento a reduzirem suas emissões.
Além disso, foi nessa edição que o Brasil lançou sua Comunicação Nacional de Emissões de
Gases de Efeito Estufa e anunciou a regulamentação de sua Política Nacional sobre Mudança
do Clima por meio do Decreto n.º 7.390.
• COP 17 – Durban, 2011: foi o fórum multilateral mais amplo (com 195 países) para discutir
e adotar medidas contra o aquecimento global. O texto aprovado prevê que todos os países
deverão participar de um processo para, futuramente, reduzir o volume de carbono que atiram
na atmosfera, inclusive os menos desenvolvidos.
• COP 18 – Doha, 2012: trinta e seis países aderiram ao segundo período de pacto do Protocolo
de Kyoto, de janeiro de 2013 a dezembro de 2020. As metas de redução de emissão de gases
de efeito estufa do conjunto de países significa uma redução de 18% de emissões de países
desenvolvidos em relação às taxas de 1990. Países como Estados Unidos, Canadá, Japão, Rússia
e Nova Zelândia não estão participando desse segundo período, enfraquecendo a ferramenta.
Iniciou-se discussão para novo acordo, que deve gerar um novo instrumento com força de
lei por meio de compromissos entre todos os países, de acordo com suas responsabilidades
históricas e com uma distribuição equitativa entre todos. Espera-se, portanto, que países hoje
fora do Protocolo de Kyoto e as grandes economias assumam compromissos muito maiores
do que os países mais pobres.
• COP 19 – Varsóvia, 2013: trouxe avanços em direção ao acordo global sobre clima em
2015 e outras decisões importantes para a redução de emissões de gases do efeito estufa no
desmatamento. No contexto de 2015, as nações concordaram em iniciar ou intensificar a
preparação das contribuições nacionais para o acordo, que deverá entrar em vigor em 2020.
Os planos prontos foram apresentados no primeiro trimestre de 2015, antes da COP de
Paris. Também se chegou ao consenso de que os países intensificarão o trabalho para reduzir
a lacuna de emissões até 2020. A conferência também decidiu pela criação de mecanismo que
ofereça proteção maior para as populações mais vulneráveis às mudanças climáticas.
• COP 20 – Lima, 2014: o objetivo dessa conferência foi a análise e proposição de diversas ações para
conter o aumento da temperatura global e, consequentemente mitigar os impactos da mudança
global do clima. Ademais, foram aprovadas 19 decisões que têm, entre outros objetivos: ajudar
a operar o Mecanismo Internacional de Varsóvia por Perdas e Danos; estabelecer o programa de
trabalho em Lima sobre gênero; adotar a Declaração de Lima sobre Educação e Conscientização.
• COP 21 – Paris, 2015: nela foi adotado um novo acordo com o objetivo central de fortalecer
a resposta global à ameaça da mudança do clima e reforçar a capacidade dos países para lidar
com os impactos decorrentes dessas mudanças. O Acordo de Paris foi aprovado pelos 195
Países Parte da UNFCCC para reduzir emissões de GEE no contexto do desenvolvimento

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403

sustentável. O compromisso ocorre no sentido de manter o aumento da temperatura média


global em bem menos de 2 °C acima dos níveis pré-industriais e de envidar esforços para
limitar o aumento da temperatura a 1,5 °C acima dos níveis pré-industriais.
• COP 22 – Marrakech, 2016: teve como principal objetivo regulamentar o Acordo de Paris,
já em vigor, que instituiu um processo com metas individuais de cada país para a redução de
emissões de gases de efeito estufa. O Brasil comprometeu-se a reduzir 37% das emissões até
2025, com indicativo de cortar 43%, até 2030.
• COP 23 – Bonn, 2017: foram aprovados diversos elementos para a construção, ao longo
de 2018, do livro de regras que permitirá a implementação efetiva do Acordo de Paris
sobre mudanças climáticas. Os principais embates ocorreram em relação ao financiamento
para combater o aquecimento global e com os prazos para a redução da emissão dos gases
do efeito estufa. Os questionamentos e obstruções partiram, principalmente, dos países
industrializados. O presidente dos EUA anunciou a saída de seu país do Acordo Climático de
Paris. Os EUA são um dos maiores emissores de gases do efeito estufa do mundo e tal decisão
afeta significativamente o acordo. (BRASIL, 2018; UNFCCC, 2018).

O QUE PODEMOS FAZER PARA CONTRIBUIR COM A


SOLUÇÃO DO PROBLEMA?
Observando todos os problemas relacionados ao aquecimento global e à poluição da atmosfera,
percebemos que a solução ainda está distante, e que se não houver uma conscientização a nível mundial
em todas as esferas da sociedade, juntamente a uma ação mais efetiva, poderemos não conseguir reverter
os problemas atuais.
Algumas medidas podem ser tomadas singularmente, mas podem fazer muita diferença
globalmente. Uma delas é a economia de energia. Para a maioria dos habitantes a oportunidade mais
fácil de diminuir as emissões de gases do efeito estufa está dentro de casa. Como exemplo, podemos
citar o uso de lâmpadas mais econômicas para reduzir um pouco o consumo de energia, pois além de
contribuírem no combate a crise climática, por meio delas se economiza diretamente na conta de luz.
Mais uma alternativa é a redução de emissões de carros e outros meios de transporte. Nesse
sentido, a manutenção dos automóveis é a primeira etapa e pode reduzir consideravelmente a emissão
de gases poluentes. A utilização de meios de transporte públicos e alternativos também pode ser uma
boa medida para alcançar esse objetivo, pois com o inchaço das cidades e o crescimento do número
de veículos nas ruas é imprescindível a utilização de meios menos poluentes, com ênfase à utilização
do transporte coletivo. Além disso, a escolha cuidadosa de seu veículo, bem como a utilização de
combustível alternativo aos derivados de petróleo, são boas opções para contribuir com o clima global.
Evitar a utilização de veículos em atividades que podem ser realizadas a pé também contribui para a

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404

diminuição do tráfego urbano, da emissão de gases de efeito estufa e do consumo de combustíveis


fósseis, além de servir para cuidar de sua saúde.
Diminuir o consumo é usar menos energia na fabricação e no transporte, pois para cada etapa
do processo de produção há emissões de combustíveis fósseis. Dessa forma, consumir menos é gastar
menos energia. ‘Reduzir, reutilizar e reciclar’ parece ser o lema para diminuição de emissões em
relação ao consumo. A ideia é comprar menos, escolher itens duráveis e não descartáveis, consertar
em vez de jogar fora e passar para outra pessoa o que não for utilizado. A moderação do consumo de
carne vermelha também é um passo para a melhora da saúde e para se reduzir a emissão de gases do
efeito estufa, pois além de evitar o desmatamento em função da criação de áreas de confinamento de
gado e pastagens, diminui-se a emissão de metano por parte dos bovinos e durante o transporte e o
processo produtivo.
Além de tudo isso, quanto mais pessoas souberem sobre os problemas causados pelas emissões de
gases do efeito estufa em nosso clima, maior será o consenso e mais abrangentes serão as contribuições
pessoais. Assim, a informação e divulgação poderão ajudar a minimizar esses problemas, tornando
nosso clima cada vez melhor.

BIBLIOGRAFIA
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Disponível em: https://unfccc.int/. Acesso em: 10 maio 2018.

NOTAS EXPLICATIVAS
1 Os relatórios sobre os principais assuntos discutidos no COP foram divulgados no site do United Nations
Framework Convention on Climate Changes (UNFCCC): https://unfccc.int/.

Links
• http://mudancasclimaticas.cptec.inpe.br/abc/index.html
• http://enos.cptec.inpe.br/
• http://videoseducacionais.cptec.inpe.br/
• vimeo.com/26882644
• http://www.protocolodemontreal.org.br/eficiente/sites/protocolodemontreal.org.br/pt-br/site.
php?secao=fotos&pub=38
• http://www.youtube.com/user/PMontrealBR
• http://www.ipcc.ch/
• http://www.mma.gov.br/clima/protecao-da-camada-de-ozonio
• http://channel.nationalgeographic.com/one-strange-rock/

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
407

RELAÇÃO ENTRE A QUALIDADE E A QUANTIDADE


DE ÁGUA NO AMBIENTE URBANO E RURAL

Cleverson V. Andreoli
Fabiana de Nadai Andreoli
Annelissa Gobel Donha
Ana Camila Palma Kotinda
Kauê Sebastião Barbosa Cardoso

A água destaca-se como um dos recursos essenciais para o desenvolvimento, pois além de ter
importância direta para o consumo humano, sua disponibilidade está relacionada à produção de
alimentos, energia e fabricação de produtos industrializados. O crescimento da população humana,
associado ao grande aumento do consumo, determinou um novo patamar na demanda de recursos
naturais e consequentemente na produção de resíduos. Nesse contexto, devemos compreender a crise
da água como resultado de um processo inadequado de apropriação e uso dos recursos naturais que
tem duas grandes consequências: a redução dos volumes pelo crescimento da demanda do recurso
hídrico e a diminuição paulatina da qualidade da água em função da poluição, visto que quanto maior
o consumo de água, maior a produção de efluentes que deterioram sua qualidade e comprometem seu
potencial de uso, limitando sua disponibilidade.
Assim, apesar de várias notícias e discussões afirmarem a diminuição da água no mundo, isso
não é de todo verdade; esse recurso não está acabando, mas a demanda por ele vem aumentando
gradativamente, visto que a população mundial tem apresentado um crescimento acelerado. A
Organização das Nações Unidas (ONU) estima que a população atual, de aproximadamente
7,6 bilhões, poderá atingir o número de 9 a 10 bilhões até 2050, dependendo das políticas populacionais
para os próximos anos. (WWAP, 2018).

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408

Grandes instabilidades e conflitos econômicos e socioambientais são gerados pela escassez hídrica
e tendem a se agravar com o tempo, por isso é imprescindível que a água seja tratada como um recurso
estratégico, para que seu uso sustentável seja pautado em seu consumo racional, no fortalecimento
institucional, em marcos regulatórios, no planejamento e na gestão integrada, na disponibilidade de
recursos financeiros, e, principalmente, no respeito ao princípio de que todos têm direito à água de
qualidade, um bem fundamental à vida. (IBGE, 2010).
Nas últimas décadas foram desenvolvidos mecanismos e ações para tornar a água de boa qualidade
disponível para as gerações atuais e futuras, ampliando a percepção da conservação desse recurso como
um valor social e ambiental de alta relevância.
No Brasil, a partir dos anos 1980, a gestão dos recursos hídricos passou a abordar a sustentabilidade
ambiental, social e econômica, além de buscar por leis mais adequadas e formular políticas públicas
que integrem toda a sociedade. Em 1997, foi sancionada a Lei das Águas, que estabeleceu a Política
Nacional de Recursos Hídricos e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos
(SINGREH). A lei tem como fundamentos a compreensão de que a água é um bem público (não
pode ser privatizada), sendo sua gestão baseada em usos múltiplos (abastecimento, energia, irrigação,
indústria etc.) e descentralizada, com intensa participação de usuários, da sociedade civil e do governo.
Contudo, mesmo com a grande quantidade de informações disponíveis sobre a gravidade do
quadro ambiental envolvendo os recursos hídricos tanto a nível nacional quanto internacional ainda
não foi suficiente para mobilizar a humanidade a adotar uma forma mais racional de utilização dos
recursos planetários.
Compreender a importância de se preservar a água em boa qualidade implica em diversas ações
fundamentais para que esse fato se concretize. Para tanto, faz-se necessário o entendimento de todo o
ciclo pelo qual a água percorre no meio ambiente.
Por meio desse ciclo, é possível verificar também a questão da disponibilidade e distribuição da
água para todos os seus usos, seja no meio rural, cuja maior expressividade é na agricultura por meio
da irrigação, seja no meio urbano, em seus mais variados usos.
Assim, é fundamental iniciar a construção desse pensamento entendendo todos os fatores
relacionados ao recurso natural ‘água’, tão fundamental para a vida no planeta.

A ÁGUA
A água é uma substância química composta de hidrogênio e oxigênio (H2O), sendo a molécula
mais abundante em nosso corpo e no nosso planeta. Ela é fundamental para todas as formas de vida
e em todos os ecossistemas, representando um importante elo entre a sociedade e o meio ambiente.

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409

Trata-se de um recurso natural que propicia o abastecimento rural e urbano, a produção de alimentos e
bens de consumo e a geração de energia elétrica, entre outros aspectos essenciais para o desenvolvimento
socioeconômico da humanidade.
Contudo, ao mesmo tempo em que a demanda mundial por água cresce a uma taxa de
aproximadamente 1% por ano devido ao crescimento populacional, ao desenvolvimento econômico e
às mudanças nos padrões de consumo, entre outros fatores, as mudanças climáticas e a poluição hídrica
afetam a disponibilidade e a qualidade da água. (WWAP, 2018).
Com isso, compreender a maneira como esse recurso se distribui e circula pelo planeta é essencial
para o gerenciamento adequado dos recursos hídricos, o que fica mais evidente quando entendemos o
ciclo da água.

Ciclo da água
O ciclo da água ou ciclo hidrológico é um fenômeno global de circulação fechada da água entre a
superfície terrestre, que engloba os continentes e oceanos e a atmosfera. (SILVEIRA, 2012).
Ele tem início com a evaporação das águas dos oceanos, lagos e rios e com a transpiração dos
seres vivos, especialmente das plantas. Ao conjunto formado pela evaporação e transpiração dá-se
o nome de evapotranspiração. Esta é controlada pelo calor do sol, pelo teor de umidade e pela
ação dos ventos, transformando a água do estado líquido para o estado gasoso. O vapor de água,
por ser mais leve que o ar, sobe na atmosfera formando nuvens; quando estas são atingidas por
temperaturas mais baixas o vapor de água se condensa e se transforma em gotículas que voltam à
superfície em forma de chuva – esse é o fenômeno da precipitação. Em regiões frias, por exemplo,
as gotículas também podem se transformar em cristais de gelo, então a precipitação ocorre na forma
de neve ou granizo.
Nos continentes, a água precipitada pode seguir diferentes caminhos até retornar aos oceanos:
• infiltrar-se no solo ou nas rochas, podendo formar aquíferos subterrâneos, ressurgir na
superfície na forma de nascentes e áreas úmidas e alimentar rios e lagos;
• escoar pela superfície em direção aos corpos hídricos;
• congelar nas montanhas e geleiras.

Uma vez que o ciclo da água é contínuo, a qualquer tempo e local a água que circula pelos
continentes e oceanos pode evaporar/evapotranspirar, dando início a um novo ciclo. O mais importante
é entender que a água está sempre em movimento.

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410

A Figura 1 apresenta de forma ilustrativa o ciclo da água.

Figura 1 – Representação esquemática do ciclo da água.

Nuvens
Movimento das massas de ar úmido

Nuvens
Precipitação

Sublimação
Neve e gelo

R Precipitação
Água
suspensa Transpiração
Fonte (nascente)
R
ET
Fluxo em meio não saturado ET
R Evaporação
Nível da água Rio
subterrânea

Fluxo de afluentes de
fossas sépticas Mar

Interface água doce Água do mar


Fluxo de água subterrânea (fluxo água salgada
em meio saturado)

E: evaporação; ET: evapotranspiração; I: infiltração; R: escoamento superficial.


Fonte – MMA, 2015.

Distribuição da água no planeta


A hidrosfera corresponde a toda a água distribuída na Terra pelos oceanos, continentes (rios, lagos,
geleiras e aquíferos subterrâneos) e na atmosfera na forma de vapor. Assim, apresenta-se nos estados
líquido, sólido e gasoso.

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411

Estima-se que no total a hidrosfera tenha em torno de 1.386 milhões de km³. Desse volume total,
conforme pode ser visualizado na Figura 2, a água salgada representa 97,5%, enquanto apenas 2,5%
são de água doce. (SHIKLOMANOV, 1998).

Figura 2 – Distribuição da água no planeta.

TOTAL GLOBAL (água doce)

68,9%
Geleiras e neves eternas
97,5%
Água
salgada

29,9%
Águas subterrâneas

2,5%
Água doce

0,9% 0,3%
Solo, pântanos e geadas Rios e lagos
Fonte – Adaptado de EMBRAPA Semi-Árido, 2007 apud SHIKLOMANOV, 1998.

Destaca-se que a maior parte da água doce se encontra no estado sólido nas calotas polares e geleiras
(68,9%). Outra parcela significativa é representada pela água subterrânea distribuída nos aquíferos
(29,9%) e em outras formas, como nas áreas úmidas e pântanos, na umidade do solo e na atmosfera
(0,9%). Por fim, tem-se que apenas 0,3% constituem a água doce armazenada nos rios e lagos, que ainda
representa a principal fonte para uso e consumo humano em grande parte do mundo.
O relatório anual da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO)
traz que 3,6 bilhões de pessoas, ou seja, quase metade da população mundial, atualmente vivem em áreas
que apresentam uma potencial escassez de água por pelo menos um mês por ano, e essa população poderá
aumentar para algo entre 4,8 bilhões e 5,7 bilhões até 2050. (WWAP, 2018). Aproximadamente 73% das
pessoas afetadas por essa situação vivem na Ásia (69% em 2050). (BUREK et al., 2016).
O Brasil tem posição privilegiada no mundo em relação à disponibilidade de recursos hídricos
superficiais. A vazão média anual dos rios em território brasileiro é de cerca de 180 mil metros cúbicos
por segundo (m3/s), valor que corresponde a aproximadamente 12% da disponibilidade mundial, que é
de 1,5 milhões de m3/s. (BRASIL, 2007).
Como se pode ver na Figura 3, em relação à distribuição e disponibilidade de água nos continentes,
a América do Sul detém 26% do total, sendo que abriga apenas 6% da população mundial. Em

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contrapartida, a Ásia, por exemplo, abriga aproximadamente 60% da população mundial e apenas
36% dos recursos hídricos do mundo.

Figura 3 – Disponibilidade da água doce no mundo × população.

8% 13%
15% 8%
Ásia

Europa 36% 60%


América Central e
do Norte

África

América
do Sul
Austrália e
26% 6% Oceania
11% 13%
5% <1%

Fonte – WWAP, 2003.

Quanto à distribuição per capita, a vazão média de água no Brasil é de aproximadamente


33 mil metros cúbicos por habitante por ano (m3/hab./ano); esse volume é 19 vezes superior ao piso
estabelecido pela ONU, de 1.700 m3/hab./ano, abaixo do qual um país é considerado em situação de
estresse hídrico. (BRASIL, 2007).
Porém, o desperdício de água no Brasil tem um dos maiores índices do planeta e, além disso,
grande parte dos rios e mananciais estão sendo contaminados e se tornando impróprios para os mais
diversos tipos de uso.
Atualmente, grande parte do monitoramento da quantidade e da qualidade da água no
Brasil, sobretudo da superficial, é realizado em estações pluviométricas e fluviométricas da Rede
Hidrometeorológica Nacional (RNH).
Conforme os dados mais recentes disponibilizados pela Agência Nacional de Águas (ANA), a
RHN tinha em 2016 mais de 20 mil estações sob responsabilidade de várias entidades públicas e
privadas. (BRASIL, 2017). A ANA gerencia diretamente 4.663 estações, sendo 2.722 pluviométricas
(monitoram as chuvas) e 1.941 fluviométricas (monitoram os rios). Nas estações fluviométricas, em
1.646 desses pontos há medição de vazão de água (descarga líquida), em 1.652 de qualidade de água e
em 480 de sedimentos em suspensão (descarga sólida).
Além das águas superficiais, as subterrâneas, que estão armazenadas nos aquíferos, desempenham
um papel cada vez mais importante como fonte de água para os diversos usos, tanto nacional
quanto internacionalmente.

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Os dados de águas subterrâneas no Brasil são disponibilizados por meio do Sistema de Informações
de Águas Subterrâneas (SIAGAS), onde está cadastrada uma parte dos poços existentes no país. Em
outubro de 2016 havia um total de 278 mil poços cadastrados no sistema, que é operado pelo Serviço
Geológico do Brasil (CPRM). Apesar disso, destaca-se que o monitoramento de águas subterrâneas no
Brasil ainda é bastante incipiente. (BRASIL, 2017).

USOS DA ÁGUA
Conforme o relatório de conjuntura dos recursos hídricos anual da ANA (BRASIL, 2017), os
principais usos da água no Brasil são para irrigação, abastecimento humano e animal, industrial,
geração de energia, mineração, aquicultura, navegação, turismo e lazer.
As parcelas de água em seus múltiplos usos podem ser classificadas em: ‘retirada’, ‘consumo’ e ‘retorno’.
Conforme definição da ANA (BRASIL, 2017), a retirada refere-se à água total captada para uso
específico como, para o abastecimento urbano. O consumo indica a água retirada que não retorna
diretamente aos corpos hídricos, ou seja, é a diferença entre a retirada e o retorno. Por sua vez, o retorno
refere-se à parte da água retirada para determinado uso que retorna para os corpos hídricos. Um exemplo
simples deste último caso são os esgotos decorrentes do uso da água para abastecimento urbano.
No Brasil, a principal retirada e consumo de água é para irrigação. O abastecimento urbano é o
segundo em termos de retirada, porém consome menos que a indústria e o uso animal, uma vez que é
o tipo de uso com maior retorno. Esses dados podem ser observados na Figura 4.
Figura 4 – Demandas por finalidade no Brasil em 2016 (retirada, retorno e consumo).
Retirada Consumo Retorno

USOS (Em m3/s)

Irrigação 969,0 745 224

Abastecimento urbano 488,3 97,7 390,6

Indústria 192,4 104,9 87,4

Abastecimento rural 34 27 7

Mineração 32,8 8,9 24,0

Termelétrica 216,3 2,9 213,4

Uso animal 165,1 123,0 42,2

Fonte – Brasil, 2017.

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414

Em termos de porcentagem, a média anual de retirada da água no Brasil para irrigação é de


46,2%, enquanto o abastecimento urbano e rural, por exemplo, somam juntos 24,9%. Já em relação à
água consumida, a irrigação consome 67,2% do total, enquanto o abastecimento urbano e rural apenas
11,2%. Pode-se observar esses dados na Figura 5.

Figura 5 – Total de água retirada e consumida no Brasil por tipo de uso.


Total de água retirada no Brasil (média anual)
Abastecimento animal
7,9% Indústria
9,2%

Termelétricas
Irrigação 10,3%
TOTAL DE RETIRADA
46,2%
2 098 m3/s
Abastecimento rural
1,6%

Abastecimento urbano
Mineração 23,3%
1,6%

Total de água consumida no Brasil (média anual)

Mineração
0,8%
Irrigação
67,2%

TOTAL DE CONSUMIDA Termelétricas


1 109 m3/s 0,3%

Abastecimento urbano
8,8%

Abastecimento animal Abastecimento rural


11,1% 2,4%

Indústria
9,5%
Fonte – Brasil, 2017.

O território brasileiro é dividido em doze grandes regiões hidrográficas, que foram instituídas pela
Resolução n.º 32/2003 do Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CONAMA), conforme se pode
observar na Figura 6. São elas: Amazônica; Atlântico Leste; Atlântico Nordeste Ocidental; Atlântico
Nordeste Oriental; Atlântico Sudeste; Atlântico Sul; Paraguai; Paraná; Parnaíba; São Francisco;
Tocantins-Araguaia e Uruguai.

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415

Figura 6 – Regiões hidrográficas do Brasil.

Região do Atlântico
Nordeste Ocidental

Região do Atlântico
Nordeste Oriental
Região
Amazônica

Região do
Parnaíba

Região do
Tocantins Região do
Araguaia São
Francisco
Região do
Atlântico
Leste

Região do
Paraguai
Região do Paraná
Região do Atlântico Sudeste

Região do
Uruguai

Região do Atlântico Sul

Fonte – ANA, 2015.

Tal divisão partiu da premissa de se considerar como região hidrográfica o espaço territorial
brasileiro compreendido por uma bacia, um grupo de bacias ou sub-bacias hidrográficas contíguas
com características naturais, sociais e econômicas homogêneas ou similares, com vistas a orientar o
planejamento e o gerenciamento de recursos hídricos. (ANA, 2015).
Em relação à retirada e ao consumo de água por região hidrográfica, conforme os dados
disponibilizados pela ANA referentes ao ano de 2016 e apresentados na Figura 7, a Região Hidrográfica
do Paraná é a que mais retira e consome água, sendo seguida pela Região Hidrográfica Atlântico Sul e
São Francisco, respectivamente.

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416

Figura 7 – Total de água retirada e consumida no Brasil por região hidrográfica.


Região Hidrográfica
Retirada Consumo Retorno
AOR
AOC
AMZ
PNB

TOC
SFO ALT
PRN
PAR
ASD

URU
ASU

Amazônica 124,77 44,55 75,32

Atlântico Leste 128,95 73,56 52,26

Atlântico Nordeste Ocidental 27,58 11,72 14,91

Atlântico Nordeste Oriental 190,71 103,57 82,14

Atlântico Sudeste 218,95 63,49 145,82

Atlântico Sul 333,43 175,10 175,50

Paraguai 31,86 15,68 15,23

Paraná 484,25 252,68 218,14

Parnaíba 23,22 13,84 8,85

São Francisco 226,66 164,06 59,54

Tocantins-Araguaia 126,36 74,11 54,34

Uruguai 181,04 117,05 87,00

Fonte – Brasil, 2017.

Quanto ao histórico do uso da água no Brasil ao longo do tempo, tem-se, segundo a Figura 8, que
na década de 1940 o uso preponderante em todos os estados brasileiros era o abastecimento humano
(rural e urbano). Já em 2016 o principal uso era a irrigação. Porém, ao considerar o desenvolvimento
econômico e industrial do país, destaca-se também o incremento do uso da água na indústria e na
geração termoelétrica. Neste último caso, em função da necessidade de ativação de fontes de energias
complementares, pela redução no volume de água disponível no país para geração hidroelétrica.
(BRASIL, 2017).

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Figura 8 – Uso da água preponderante no Brasil (1940 e 2016).


Usos predominantemente Abastecimento humano rural
rurais Uso animal
Irrigação
Mineração

1940 2016

Abastecimento humano urbano


Usos predominantemente Indústria
urbanos Termoelétrico

1940 2016
Fonte – Brasil, 2017.

A título de comparação com níveis globais, de modo mais generalista, conforme relatório anual da
UNESCO, a agricultura é responsável por cerca de 70% das retiradas de água em todo o mundo, sendo
a maioria usada para irrigação. O uso de água pela indústria responde por cerca de 20% das retiradas
globais, com destaque para a produção de energia, enquanto o uso doméstico da água representa
aproximadamente os 10% restantes. (WWAP, 2018).

Uso da água no ambiente rural


O principal consumo de água em escala global ocorre no ambiente rural. Além do uso ligado a práticas
agrícolas, principalmente na irrigação – que como já vimos representa a maior fatia de retirada e consumo
dentre os diversos tipos de uso –, parte desse montante também está relacionado ao abastecimento animal,
que engloba a utilização de água nas estruturas de dessedentação, criação e ambiência nos sistemas de
criação de animais. No Brasil a irrigação e o abastecimento animal, com destaque para a criação de bovinos,
somam juntos 54,1% do total de água retirada e 78,3% do total de água consumida. (BRASIL, 2017).

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Como exemplo claro, uma pessoa adulta precisa em média de no máximo 4 litros de água por
dia para beber, mas para produzir seu alimento diário, considerando todo o ciclo produtivo, desde o
preparo do solo até o consumo, são necessários de 2 a 5 mil litros.
Dessa forma, nota-se claramente que a água é um fator essencial para o desenvolvimento rural e da
própria humanidade, sendo necessário o uso sustentável dos recursos hídricos captados para esse fim e
também o gerenciamento adequado dos efluentes gerados por meio das diversas práticas agropecuárias.
Um dos maiores desafios é garantir a produção de alimentos com o aumento da população nas
próximas décadas, o que consequentemente irá aumentar de forma significativa a demanda por água.
Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), para
garantir a segurança alimentar de uma população global estimada de 9 a 10 bilhões em 2050, algumas
políticas e investimentos públicos e privados relacionados diretamente com a água são necessários.
Eles devem ser implementados para garantir que o volume de água, a qualidade e o acesso aos recursos
hídricos sejam suficientes. (FAO; WWC, 2015).
Por exemplo, a FAO sugere a adoção da agricultura irrigada sustentável, que compreende práticas
agrícolas que atendam às necessidades sociais atuais e futuras por alimentos e fibras, permitam a
manutenção dos serviços ambientais dos ecossistemas e possibilitem uma vida saudável para agricultores
e consumidores, evitando, por exemplo, a poluição ambiental. Para isso, antes de tudo, é necessário
empregar novas tecnologias e intensificar a produção em áreas de agricultura e pecuária já existentes.
É importante destacar que a tecnologia é um ponto-chave para o aperfeiçoamento e aumento da
eficiência das técnicas e processos de irrigação. (FAO, 2017).
Com a mesma preocupação, a UNESCO traz em seu relatório anual que a agricultura deverá
aperfeiçoar sua eficiência no uso dos recursos e, ao mesmo tempo, reduzir seu impacto, e a água é essencial
para isso. Propõe assim soluções baseadas na natureza (SbN), que são voltadas para o fornecimento
de recursos hídricos por meio da gestão da precipitação, da umidade e do armazenamento, bem como
da infiltração e do transporte de água e, dessa forma, são geradas melhorias na distribuição em termos
de espaço, tempo e quantidade da água disponível para as necessidades humanas. A ‘agricultura de
conservação’, que incorpora práticas destinadas a minimizar os impactos no solo, manter a cobertura
vegetal e regularizar a rotação de colheitas, é um exemplo emblemático da abordagem da intensificação
da produção sustentável. (WWAP, 2018).
O mais importante é compreender que não há uma única solução para manter a segurança
alimentar quando a água é escassa. Todas as fontes de água, superficiais e subterrâneas, são importantes,
sendo fundamental a adoção de práticas sustentáveis para garantir a manutenção e conservação do
meio ambiente. A escolha da tecnologia mais adequada e, sobretudo, a promoção de métodos de
irrigação que evitam o desperdício é fundamental para atender à demanda por alimentos, visando ao
mínimo de impactos ambientais.
Nesse sentido, ressalta-se que a agricultura ainda é considerada a segunda maior fonte de poluição
do país, atrás do lançamento de esgoto doméstico. Ela é causada pelo manejo agrícola inadequado,
que vai desde o assoreamento dos rios causado pela devastação de matas ciliares, passando pela
compactação do solo, impossibilitando a infiltração de água superficial e ocasionando rebaixamento

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do lençol freático, até a contaminação pelo uso excessivo de fertilizantes e agrotóxicos, diminuindo
com isso a disponibilidade hídrica.
Os fertilizantes e pesticidas são os insumos que mais poluem as águas devido a sua grande utilização
na agricultura atual. Os fertilizantes mais utilizados são o fósforo, a amônia e o potássio. Esses elementos,
quando suspensos em águas superficiais, provocam a eutrofização da água e outros desequilíbrios
ecológicos. Outro fertilizante bastante utilizado é o esterco, que é rico em amônia e nitratos e apresenta
alto risco de poluição hídrica, tendo em vista que nem sempre os resíduos da pecuária são tratados
adequadamente, podendo ocorrer vazamentos de fossas ou despejo de dejetos em locais inapropriados.
Conforme dados disponibilizados pela ANA (BRASIL, 2017), mesmo existindo regiões agrícolas
do país que empregam práticas mais sustentáveis como o plantio direto, a rotação de culturas/pastagens
e o uso de agentes biológicos para combater pragas, segundo a Figura 9 foram comercializadas em
2014 508.556 toneladas de agrotóxicos no Brasil, com destaque para os estados do Mato Grosso, de
São Paulo, do Rio Grande do Sul, do Paraná e de Goiás. Já os fertilizantes comercializados em 2015
chegaram a 13 milhões de toneladas.

Figura 9 – Agrotóxicos e fertilizantes comercializados no Brasil.

Agrotóxicos comercializados Em 2014 Fertilizantes comercializados Em2015


508.556 de toneladas 13 milhões de toneladas
Mato Grosso 18% Mato Grosso 18%
São Paulo 14% Rio Grande do Sul 13%
Rio Grande do Sul 11% Minas Gerais 11%
Paraná 11% São Paulo 11%
Goiás 9% Goiás 10%

QUANTIDADE DE
AGROTÓXICOS
COMERCIALIZADOS
EM 2014
Em toneladas

Até 100
Até 500
Até 1.250
Até 2.500
Até 7.144

Fonte – Brasil, 2017.

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Uso da água no ambiente urbano


No ambiente urbano, os principais usos da água são o abastecimento urbano para consumo
humano e o uso industrial e termelétrico, que como vimos anteriormente correspondem a 23,3%,
9,2% e 10,3% das vazões totais de retirada dos mananciais, respectivamente.
Em números de vazão de água, apenas para o abastecimento urbano são necessários 488,3m³/s,
aproximadamente 15 vezes a demanda para o abastecimento rural. Dentre os municípios brasileiros,
58% utilizam mananciais de águas superficiais de forma preponderante para o abastecimento, enquanto
42% têm nos mananciais subterrâneos suas principais fontes. (BRASIL, 2017).
Nas cidades, os problemas de abastecimento de água, que é considerado um dos componentes
do saneamento básico, estão diretamente relacionados, entre outros fatores, ao crescimento direto da
demanda, à urbanização descontrolada que atinge regiões de mananciais e compromete a qualidade da
água, ao desperdício e às perdas na distribuição. Conforme dados do Sistema Nacional de Informações
sobre Saneamento (SNIS) de 2016, em média os sistemas de distribuição nacionais sofrem perdas de
até 38,1%. (BRASIL, 2018).
A água para consumo humano ou doméstico é utilizada na alimentação, na higiene pessoal e na
limpeza da casa, na lavagem de automóveis, na irrigação de jardins, entre outros usos. O consumo
médio de água no Brasil é de 154,1 litros diários por habitante. (BRASIL, 2018).
Estima-se que a distribuição do consumo médio diário de água por pessoa é aproximadamente
a seguinte:
• 36% na descarga do banheiro;
• 31% em higiene corporal;
• 14% na lavagem de roupa;
• 8% na rega de jardins, lavagem de automóveis, limpeza de casa, atividades de diluição e outras;
• 7% na lavagem de utensílios de cozinha; e
• 4% para beber e alimentação.

Na indústria, a água é utilizada nos mais variados ramos e processos. A mineração é a indústria
extrativa de maior consumo de água no Brasil, com destaque para os estados de Minas Gerais e Pará. O
total de água retirado no país para esse fim é de 32,8 m³/s. Já na indústria de transformação a demanda
de água reflete o tipo de produto ou serviço que está sendo produzido e os processos industriais
associados, totalizando 192,4 m³/s de retirada no Brasil. (BRASIL, 2017).
As indústrias que fabricam produtos alimentícios, bebidas, celulose, papel e produtos deste,
produtos derivados do petróleo e de biocombustíveis, produtos químicos e metalurgia correspondem,
somadas, a aproximadamente 85% da demanda hídrica de vazões de retirada e cerca de 90% das vazões
consumidas pela indústria nacional, conforme se observa na Figura 10. Em 2016, o consumo de água
total da indústria no Brasil correspondeu a 104,9 m³/s. (BRASIL, 2017).

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Figura 10 – Consumo de água industrial no Brasil.


Produtos derivados Bebidas
do petróleo e de
2,9%
biocombustíveis
25,5%

Metalurgia Celulose, papel


2,4% e produtos
de papel
Produtos químicos 3,8%
1,9%

Produtos Outros
alimentícios 7,4%
55,8%
Fonte – Brasil, 2017.

Em termos regionais, as maiores vazões de retirada e consumo, conforme dados do ano de 2015,
estão nas regiões Sudeste, Nordeste e Sul, respectivamente (BRASIL, 2017b), como se pode observar
na Figura 11.
Figura 11 – Proporção de demanda hídrica industrial por região brasileira em 2015: retirada (primeiro
gráfico) e consumo (segundo gráfico).
17,76% 46,94% 11,49% 47,32%
(34,17 m3/s) (90,33 m3/s) (12,05 m3/s) (49,65 m3/s)

12,52%
(13,14 m3/s)
10,77%
(20,71 m3/s) 1,42%
(1,49 m3/s)
2,57%
(4,94 m3/s)

21,96% 27,32%
(42,26 m3/s) (28,58 m3/s)
Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

Fonte – Brasil, 2017b.

No ambiente urbano é preciso considerar também a parcela da água utilizada para geração de
energia nas usinas termelétricas. Em escala nacional, a retirada de água para esse fim é próxima à
da indústria e do abastecimento animal, embora o consumo não seja representativo, uma vez que

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a água retorna aos mananciais. O uso da água nessas instalações está relacionado ao acionamento
de turbinas por vapor de água e à necessidade do uso de sistemas de resfriamento. A ANA
(BRASIL, 2017) estimou em aproximadamente 216 m³/s a vazão de retirada para atendimento
das termelétricas em 2016, com destaque para os estados do Amazonas, do Rio de Janeiro, de São
Paulo e de Santa Catarina.
A interferência das ações humanas, por meio dos usos múltiplos da água no setor urbano, constitui
um subciclo denominado ‘ciclo urbano da água’, que pode ser visto na Figura 12, o qual tem início na
extração de água dos rios, reservatórios e aquíferos, passando por todas as etapas de utilização da água
até ao momento da sua restituição à natureza.

Figura 12 – Ciclo urbano da água.

Captação Devolução

Tratamento Tratamento

ETA ETAR

Distribuição Recolha

Municípios

Rede/distribuição Consumo doméstico/industrial

Fonte – Águas de Portugal, 2019.

Após a captação, que pode ser feita por meio de fontes superficiais ou subterrâneas, a água é
tratada de acordo com o uso pretendido (consumo humano, industrial etc). O tratamento é feito em
uma Estação de Tratamento de Água (ETA). Em seguida, a água é conduzida pela rede de distribuição
de água até os pontos de consumo. Após o uso, a água carregada dos mais diversos compostos (esgoto)
é conduzida até uma Estação de Tratamento de Efluentes ou de Águas Residuais (ETE ou ETAR) e
após atingir os padrões exigidos pela legislação ambiental vigente e pelos órgãos ambientais o efluente

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é lançado no corpo hídrico receptor. O recolhimento das águas pluviais urbanas pelo sistema de
drenagem e o respectivo escoamento em corpos d’água receptores também fazem parte desse ciclo.
Destaca-se que com as demandas crescentes, em especial nos centros urbanos, aumentar a eficiência
do uso da água é fundamental, ou seja, é preciso tornar o ciclo urbano da água mais sustentável. Para
isso, algumas medidas simples podem ser adotadas, entre elas: minimizar a quantidade de água para
executar determinadas tarefas; buscar fontes alternativas de água, por exemplo, por meio do uso de
águas pluviais (chuva); reutilizar águas residuais tratadas e não tratadas, como usar a água da máquina
de lavar roupas para a lavagem de calçadas, ou seja, usar a mesma quantidade de água diversas vezes.

GESTÃO DAS ÁGUAS


A forte demanda de água no Brasil, aliada aos problemas de poluição doméstica e industrial
que contaminam mananciais, tornam críticas as situações de sustentabilidade, sobretudo nas grandes
concentrações urbanas. Dentre os principais problemas referentes ao ciclo urbano da água destaca-se a
degradação da qualidade da água dos mananciais devido ao lançamento irregular de esgoto sanitário.
Segundo a ANA (BRASIL, 2017), a infraestrutura e os serviços adequados de coleta e tratamento
de esgotos são fundamentais para garantir a qualidade da água dos corpos hídricos. Além desta, as
intervenções em saneamento básico refletem diretamente na melhoria das condições de saúde pública,
reduzindo a incidência de doenças de veiculação hídrica.
O saneamento básico, conforme a Lei Federal n.º 11.445/2007, é constituído justamente pelo
conjunto de serviços, infraestrutura e instalações operacionais de abastecimento de água potável,
esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos e drenagem e manejo das águas
pluviais, conforme se observa na Figura 13.

Figura 13 – Componentes do saneamento básico.

Água potável

Manejo de SANEAMENTO Esgotamento


águas pluviais BÁSICO sanitário

Manejo de
resíduos
sólidos
Fonte – O autor.

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Para o fornecimento de água potável para a população faz-se necessário um tratamento prévio,
garantindo assim que esta tenha condições adequadas para consumo. Para isso é aplicada uma série de
processos de modo a livrar a água de qualquer tipo de contaminação e evitar a transmissão de doenças.
Esses processos ocorrem em diversas etapas dentro de uma estação de tratamento (ETA), conforme
apresentado a seguir.
• Coagulação: quando a água entra na ETA em seu estado natural (bruta) após a captação, ela
recebe nos tanques determinada quantidade de sulfato de alumínio ou outro coagulante. Essa
substância serve para aglomerar e separar as partículas sólidas que se encontram na água.
• Floculação: com a água em movimento em tanques de concreto, as partículas sólidas se
aglutinam em flocos maiores.
• Decantação: por ação da gravidade, os flocos com as impurezas e partículas ficam depositados
no fundo de tanques decantadores.
• Filtração: a água passa por filtros formados por carvão, areia e pedras de diversos tamanhos.
Nessa etapa, as impurezas menores ficam retidas no filtro.
• Desinfecção: é aplicado cloro ou ozônio na água para eliminar microrganismos causadores de
doenças.
• Fluoretação: é aplicado flúor na água para melhorar a saúde bucal da população.
• Correção de PH: é aplicada na água certa quantidade de cal hidratada ou carbonato de sódio.
Esse procedimento serve para corrigir o pH da água e preservar a rede de encanamentos
de distribuição.

Os dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), levantados para o conjunto
de municípios cujos prestadores de serviço (companhias estaduais, empresas e autarquias municipais,
empresas privadas e prefeituras) participaram do SNIS em 2016, apontam que, na média do Brasil, o
índice de atendimento total com rede de abastecimento de água é de 83,3%, sendo que o índice de
abastecimento urbano de água chega a 93%, um valor que pode ser considerado elevado. (BRASIL, 2018).
Com relação à coleta de esgotos, o índice médio de atendimento total com rede de esgotos do país
em 2016 era igual a 51,9%, chegando a 59,7% nas áreas urbanas. (BRASIL, 2018).
Quanto ao tratamento dos esgotos sanitários, o índice médio do país soma 44,9% para a estimativa
total dos esgotos gerados, ou seja, mais da metade da população brasileira não conta com esse serviço.
Por sua vez, em relação apenas ao tratamento dos esgotos que são coletados, o índice médio sobe
para 74,9%. Em termos de volume, isso significa que em 2016 foram tratados 4,06 bilhões de m³ de
esgotos sanitários. (BRASIL, 2018).
As regiões brasileiras que mais se destacam em termos de abastecimento de água são Sudeste, Sul e
Centro-Oeste. Em termos de coleta de esgoto, ressalta-se a Região Sudeste, e em termos de tratamento
novamente as regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste, conforme indica o Quadro 1.

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Quadro 1 – Níveis de atendimento com água e esgotos dos municípios cujos prestadores de serviço
participaram do SNIS em 2016, segundo região geográfica e Brasil.

Região Índice de atendimento com rede % Índice de tratamento dos esgotos (%)

Água Coleta de esgotos Esgotos gerados Esgotos coletados

Total Urbano Total Urbano Total Total

Norte 55,4 67,7 10,5 13,4 18,3 81

Nordeste 73,6 89,3 26,8 34,7 36,2 79,7

Sudeste 91,2 96,1 78,6 83,2 48,8 69

Sul 89,4 98,4 42,5 49 43,9 92,9

Centro-Oeste 89,7 97,7 51,5 56,7 52,6 92,1

Brasil 83,3 93 51,9 59,7 44,9 74,9

Fonte – Adaptado de Brasil, 2018.

Muitas vezes, a falta de água, tanto para o abastecimento quanto para os setores agrícolas, é
provocada pela falta de programas preventivos para redução dos impactos causados por situações de
secas devido a eventos climáticos. Por isso, a racionalização do uso da água e o reuso poderão permitir
uma solução mais sustentável.
Além do reuso, a água subterrânea vem sendo considerada como um meio de acelerar o
desenvolvimento econômico das regiões mais carentes de todo país. Com isso, observa-se um
crescimento no número de empresas privadas e órgãos públicos que atuam nas pesquisas e na captação
de água subterrânea.
Apesar de apresentar distribuição irregular ao longo do território nacional, assim como a água
superficial, estima-se que a disponibilidade de água subterrânea no Brasil seja em torno de 14.650 m³/s.
(BRASIL, 2017).
A utilização das águas subterrâneas para abastecimento público é muito mais prática, rápida e
barata que o uso de águas superficiais. No Brasil, observou-se nas últimas décadas um aumento da
utilização da água subterrânea para o abastecimento público. Convém destacar que grande parte das
cidades brasileiras com população inferior a 5.000 habitantes, com exceção do semiárido nordestino e
das regiões formadas por rochas cristalinas, têm capacidade de ser atendidas pelas reservas subterrâneas.
Para superar a crise da água, é preciso promover mudanças substanciais em vários aspectos, como
conter o aumento da demanda de água devido tanto ao aumento da população e ao uso crescente desse
recurso por parte da indústria e da agricultura, reduzindo os excessos no consumo mediante melhoria e
ampliação dos sistemas de abastecimento e visando reduzir as perdas e a gestão das bacias hidrográficas
de maneira sustentável.

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Dicas para se economizar água


• Um banho de ducha de quinze minutos consome 240 litros de água. Fechar a torneira enquanto
se ensaboa, diminuindo o tempo de banho para cinco minutos, reduz o gasto para 80 litros.
• Escovar os dentes durante cinco minutos com a torneira aberta provoca um gasto de 80 litros.
Molhar a escova, fechar a torneira e enxaguar a boca com um copo de água consome 1 litro.
• Para lavar a louça na pia com a torneira aberta durante quinze minutos gastam-se 240 litros.
Limpar os restos dos pratos com uma escova, usar a água retida na cuba para ensaboar a louça
e abrir a torneira só na hora do enxágue gera uma economia de 220 litros.
• Esqueça a mangueira na hora de lavar a calçada. Água, só depois de varrer bem as folhas e a sujeira.
• Use as lavadoras de louça e de roupa apenas quando estiverem cheias.
• Atenção aos pequenos vazamentos. Aquelas gotas que insistem em pingar da torneira da
cozinha significam um gasto extra de 46 litros por dia. As torneiras devem ser fechadas por
completo depois do uso e consertadas se apresentarem qualquer defeito.
• Com uma mangueira semiaberta, gastam-se 560 litros para lavar o carro. Se o serviço for feito
com um balde, o consumo é de 40 litros.

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for Life. Paris; New York: Unesco; Berghahn Books, 2003.

DEFINIÇÕES

Águas residuais: são aquelas descartadas pelas atividades humanas, cujas características naturais foram alteradas.
Aquífero: camada geológica capaz de armazenar e conduzir volumes significativos de água subterrânea. O tipo
de aquífero mais conhecido é o livre ou freático, popularmente chamado de lençol freático.

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Bacia hidrográfica: área de captação natural da água de precipitação que faz convergir os escoamentos para um
único ponto de saída, compondo-se basicamente de um conjunto de vertentes e de uma rede de drenagem formada
por cursos hídricos e canais efêmeros que confluem até resultar um leito único no exutório. (SILVEIRA, 2012).
Consumo: refere-se à água retirada que não retorna diretamente aos corpos hídricos.
Eutrofização: fenômeno causado pelo excesso de nutrientes (compostos químicos ricos em fósforo ou
nitrogênio) em uma massa de água, provocando aumento excessivo de algas, o que pode levar à diminuição
do oxigênio dissolvido, ocasionando por sua vez a decomposição de muitos organismos e diminuindo assim a
qualidade da água.
Fertilizantes: compostos químicos que visam suprir as deficiências em substâncias vitais à sobrevivência dos
vegetais. São aplicados na agricultura com o intuito de melhorar a produção, como fertilizantes ou adubos.
Hidrosfera: corresponde a toda a água distribuída na Terra pelos oceanos e continentes (rios, lagos, geleiras e
aquíferos subterrâneos) e na atmosfera, na forma de vapor.
Indústria de transformação: faz a primeira transformação da matéria-prima para ser utilizada em outras
indústrias (de bens de produção), bem como produzem alimentos, roupas e todos os produtos que são
consumidos no dia a dia (indústrias de bens de consumo).
Indústria extrativa: retira a matéria-prima da natureza para ser utilizada em outras indústrias.
Pesticidas: todas as substâncias ou misturas que têm como objetivo impedir, destruir, repelir ou mitigar qualquer
praga.
Região hidrográfica: bacia, grupo de bacias ou sub-bacias hidrográficas contíguas com características naturais,
sociais e econômicas homogêneas ou similares, com vistas a orientar o planejamento e o gerenciamento de
recursos hídricos.
Retirada: refere-se à água total captada para determinado uso.
Retorno: refere-se à parte da água retirada para determinado uso que retorna para os corpos hídricos.
Vazão de água: volume de água que escoa através de uma seção por unidade de tempo. Exemplo: uma torneira
aberta que demora 2 minutos para encher um balde de 10 litros tem vazão de 5 L/min.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
429

FORMAÇÃO E CARACTERÍSTICAS DOS SOLOS


PARA O ENTENDIMENTO DE SUA IMPORTÂNCIA
AGRÍCOLA E AMBIENTAL

Cleverson V. Andreoli
Fabiana de Nadai Andreoli
Jorge Justi Junior

INTRODUÇÃO
Podemos começar este capítulo com a seguinte questão: você alguma vez já se perguntou ou tem
conhecimento sobre a importância dos solos, seja ela ambiental, seja agrícola?
Podemos então rebater essa questão com outras três: mas o que vem a ser o solo? Alguém estuda
exclusivamente os solos? Ele têm realmente alguma importância ambiental e agrícola?
Sendo assim, ao longo deste capítulo tentaremos esclarecer a temática acerca desse assunto e,
principalmente, demonstrar o quão importante ele é ao meio ambiente, para a agricultura e para a sociedade
como um todo. A premissa fundamental deste capítulo é a inserção desse conhecimento na sociedade,
permitindo um melhor entendimento quanto à preservação ambiental em geral. De fato, Foucalt (2001)
afirma que práticas sociais podem produzir domínios do saber, que além de criarem novos objetos, conceitos
e técnicas, também são responsáveis pelo nascimento de novos sujeitos e de sujeitos de conhecimento.
O que se perceberá aqui é que o solo é fundamental para o desenvolvimento de diversas atividades
humanas, das quais podemos citar algumas principais: construção civil (fundações, telhas, tijolos etc.),
tratamento de resíduos (esgoto, resíduos sólidos etc.), produção de alimentos (agricultura e pecuária),

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ornamentação (produção de espécies vegetais para paisagismo etc.), silvicultura (produção de madeira
para móveis, residências etc.), além de inúmeras outras não comuns no dia a dia.
No sentido amplo, a palavra ‘solo’ tem vários significados, mas a definição tradicional afirma que
ele é o meio natural para o crescimento de plantas terrestres. (USDA, 2014).
Já a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) (2018) e Batista (2018), seguindo
uma denominação técnica, definem o solo como uma coleção de corpos naturais, constituídos por partes
sólidas, líquidas e gasosas, tridimensionais, dinâmicos, formados por materiais minerais e orgânicos
que ocupam a maior parte do manto superficial das extensões continentais do nosso planeta, além
disso, contêm matéria viva e podem ser vegetados na natureza onde ocorrem e podem, eventualmente,
terem sido modificados por interferências antrópicas.
Podemos dizer ainda que a ciência responsável pelo estudo dos solos é a pedologia. Essa palavra
tem origem grega: pedo(n) = solo, terra; logos = estudo de um assunto particular, portanto, a etimologia
da palavra pedologia corresponde ao estudo dos solos.
Essa ciência teve origem na União Soviética, em meados de 1880 (IBGE, 2015), por Vasily
Dokuchaiev, considerado o pai da pedologia. Lepsch (2002) a descreve como sendo aquela que se
dedica a estudar os solos, considerando sua origem, morfologia, classificação e mapas, formulando
propostas para seu melhor uso dentro dos preceitos da sustentabilidade (proteção ambiental).

FORMAÇÃO DOS SOLOS


O solo é formado por meio da decomposição das rochas, por meio de um conjunto de processos
físicos, químicos e biológicos, que podem ser denominados de intemperização. Dentre os processos
físicos podemos listar o atrito entre as partículas de solo, a temperatura, o vento, a pressão, entre outros
fatores. No que se refere aos processos químicos, temos a atuação da água, de ácidos, bases, sais e outros
compostos. Finalmente, entre os processos biológicos podemos citar a ação dos microrganismos, da
matéria orgânica, das raízes das plantas, entre outros. Todos esses processos atuam em conjunto e são
responsáveis pela pulverização da rocha em partículas menores, resultando em frações de material e
dimensões ou granulometria variável, responsáveis pela formação dos diferentes tipos de solos.
Essa característica de formação do solo permite, normalmente, separá-lo em duas camadas,
denominadas de horizontes: o primeiro, mais profundo, conhecido como horizonte genético ou
horizonte B; enquanto que o segundo, mais suscetível aos agentes intemperizantes, e também com maior
quantidade de material orgânico, uma vez que está na superfície do solo, denominado de horizonte
A. Algumas vezes, dependendo de seu processo de formação, os horizontes podem estar ausentes, bem
como pode haver a formação de novos horizontes, com menor ocorrência. Segundo a EMBRAPA
(2018), os solos, quando examinados com base na superfície, consistem de seções aproximadamente
paralelas – denominadas horizontes ou camadas – que se distinguem do material de origem inicial,
como resultado de adições, perdas, translocações e transformações de energia e matéria.

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O clima, o tipo de material de origem e a deposição do material orgânico na superfície conferem


cores diferenciadas ao perfil de solo. Normalmente as camadas mais superficiais, constituídas pelo
horizonte A, tendem a apresentar cores mais escuras em função do maior teor de matéria orgânica.
No horizonte B as cores variam do vermelho (regime de formação mais seco) ao amarelo (regime de
formação mais úmido). Por fim, áreas em que o solo se encontra saturado por água, mesmo que de
forma sazonal, devido à oxidação do ferro, a coloração tende a ficar pálida, acinzentada, podendo
inclusive haver mosqueados de coloração avermelhada.

Figura 1 – Modelo esquemático de um perfil de solo.

Horizontes

Fonte – Adaptado de Brasil Escola, 2012.

TIPOS DE SOLO
A EMBRAPA, em parceria com diversas instituições de ensino e pesquisa de todo o Brasil, vem
ao longo dos anos desenvolvendo e aprimorando o Sistema Brasileiro de Classificação de Solos. Esse
sistema, considerando o território nacional, divide os diferentes tipos de solo em níveis categóricos.
O primeiro e o mais importante, denominado de ordem, separa os solos em treze níveis (EMBRAPA,
2018): Argissolos, Cambissolos, Chernossolos, Espodossolos, Gleissolos, Latossolos, Luvissolos,
Neossolos, Nitossolos, Organossolos, Planossolos, Plintossolos e Vertissolos. Cada qual apresenta uma
definição decorrente de suas características, em especial resultantes de seu processo de formação. De
forma geral, podemos separá-los pelo seu grau de desenvolvimento, teor de material mineral e orgânico,
textura ao longo dos horizontes e saturação por água.
Os demais níveis categóricos são definidos pelas características e propriedades dos solos, por
exemplo, pela sua coloração.

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Especificamente no estado do Paraná, segundo Lima et al. (2012) e o Mapa Simplificado de Solos
do Estado do Paraná (EMBRAPA Florestas, Laboratório de Monitoramento Ambiental e UFPR,
2012), ocorrem oito ordens de solo. Estes têm sua distribuição no estado conforme seu processo
de formação, diretamente relacionado às condições geológicas do substrato (material de origem) e
geomorfológicas (paisagem).
Segundo a EMBRAPA (2007), a ordem de maior representatividade é o Latossolo, ocupando
aproximadamente 31% da área total do Estado, o que equivale a cerca de 62.000 ha. Outras ordens que se
destacam são os Neossolos, abrangendo aproximadamente 22% do Paraná, contudo devem-se considerar
diferentes subordens, que apresentam características bastante distintas, ocupando desde áreas de praia,
com solos de textura essencialmente arenosa (quartzarênicos), até áreas de encostas com declividade
elevada, com perfil pouco espeço, sem horizonte genético e com afloramentos rochosos (litólicos). Os
Nitossolos e Argissolos representam cerca de 15% da superfície do Estado, enquanto os Cambissolos,
aproximadamente 10%. As demais classes em conjunto ocupam cerca de 2% da área total do Estado.

Figura 2 – Distribuição dos solos no estado do Paraná.

C+L – CAMBISSOLOS + LATOSSOLOS

AR+RL – AFLORAMENTOS DE ROCHAS + NEOSSOLOS LITÓLICOS C+N – CAMBISSOLOS + NITOSSOLOS

G+O – GLEISSOLOS + ORGANOSSOLOS L – LATOSSOLOS

RY – NEOSSOLOS FLÚVICOS L+C – LATOSSOLOS + CAMBISSOLOS

RL+RR – NEOSSOLOS LITÓLICOS + NEOSSOLOS REGOLÍTICOS L+A – LATOSSOLOS + ARGISSOLOS

E – ESPODOSSOLOS N – NITOSSOLOS

P – ARGISSOLOS N+RL – NITOSSOLOS + NEOSSOLOS LITÓLICOS

P+N – ARGISSOLOS + NITOSSOLOS N+L – NITOSSOLOS + LATOSSOLOS

C – CAMBISSOLOS GZ – GLEISSOLOS SÁLICOS

C=rr – CAMBISSOLOS + NEOSSOLOS REGOLÍTICOS Corpos de água

Fonte – Adaptado de EMBRAPA, 2012.

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Quadro 1 – Principais características dos solos com ocorrência no estado do Paraná.

Classe (ordem) Principais características

Argissolos Solos com acumulação de argila no horizonte subsuperficial B.

Cambissolos Solos com horizonte B em início de formação.

Espodossolos Solos muito arenosos com acúmulo de material orgânico e compostos de ferro e alumínio no
horizonte B.

Gleissolos Solos com cores acinzentadas indicando saturação por água.

Latossolos Solos desenvolvidos e profundos.

Neossolos Solos jovens em início de formação (sem horizonte B).

Nitossolos Solos com agregados do horizonte B com superfícies brilhantes (cerosidade).

Organossolos Solos com elevados teores de material orgânico.

Fonte – Adaptado de Lima et al. (2012).

Os Argissolos apresentam um aumento no teor de argila do horizonte A para o B. Esse


comportamento condiciona uma elevada suscetibilidade à erosão ou erodibilidade. Segundo Lima
et al. (2012), ocorrem desde o litoral até o noroeste do Estado, sendo escassos nas regiões de rochas
basálticas.
Os Cambissolos são solos pouco desenvolvidos e, em geral, pouco profundos. Estão distribuídos
por todo o estado, contudo ocorrem principalmente na região sul e leste. Ambientalmente são pouco
espessos e de ocorrência em locais de maior declividade.
Solos rasos e com acúmulo de material orgânico e/ou óxidos de ferro nas camadas subsuperficiais
são enquadrados como Espodossolos. Essa unidade ocorre exclusivamente na planície litorânea do
estado. Apresentam textura arenosa, sendo muito suscetíveis à contaminação do aquífero freático,
geralmente bastante superficial.
Os Gleissolos compreendem os solos hidromórficos ou saturados por água. Apresentam um
horizonte Glei caracterizado pela coloração pálida ou acinzentada devido ao processo de redução do
ferro. Está distribuído por todo o estado, especialmente nas planícies fluviais, várzeas ou banhados,
podendo ocorrer também no litoral, em solos de mangue. Do ponto de vista ambiental são muito
frágeis devido à saturação por água.
Os Latossolos são solos desenvolvidos e profundos devido ao seu processo de intemperização
ou formação. Essa unidade está distribuída por todo o estado, em áreas mais elevadas e planas,
tendo menor ocorrência no litoral e áreas de maior declividade. Eles têm uma boa capacidade de
armazenamento de água que somada a sua estrutura, profundidades, ausência de impedimentos

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como rochas, torna sua aptidão agrícola elevada. Ambientalmente, apresentam baixa fragilidade
ambiental e baixa erodibilidade, salvo as unidades com textura arenosa observadas no noroeste do
Paraná. (LIMA et al., 2012).
Neossolos são solos pouco desenvolvidos, com camada superficial pouco espessa, sem horizonte
B Diagnóstico, podendo estar assentada diretamente sobre a rocha de origem ou horizonte C. Essa
ordem é subdividida conforme sua formação ou local de ocorrência. Os Neossolos Litólicos são solos
com contato lítico, rasos, com ocorrência em áreas de forte declividade, podendo estar associados a
afloramentos de rochas. Os Neossolos Flúvicos são derivados de deposição de sedimentos aluviais.
Os Neossolos Regolíticos diferem dos Litólicos por não apresentarem contato lítico. Já os Neossolos
Quartzarênicos são caracterizados pela sua textura essencialmente arenosa. Ambientalmente, indiferente
da subordem, são solos de elevada fragilidade ambiental.
Segundo Lima et al. (2012), os Nitossolos são caracterizados pela presença de um horizonte B
cujos agregados apresentam brilho em sua superfície. Ocorrem principalmente na região de rochas
basálticas, norte, oeste e sudoeste do estado, em áreas de moderada inclinação. Apesar da boa fertilidade,
apresentam elevada erodibilidade devido à drenagem limitada e sua ocorrência em relevos ondulados.
Por fim, os Organossolos são solos compostos por material orgânico com coloração escura
devido ao acúmulo de restos vegetais em ambientais saturados por água. (LIMA et al., 2012). Estão
distribuídos por todo o Paraná, contudo em áreas alagadiças ou úmidas, chamadas de banhados. São
solos extremamente frágeis, devendo ser destinados à preservação.

CARACTERÍSTICAS DOS SOLOS


Os diferentes tipos de solos são condicionados, em geral, pelas suas características e propriedades,
das quais podemos separar algumas, fundamentais do ponto de vista ambiental e da agricultura.
• Cor: tem relação com a formação dos solos, normalmente as cores avermelhadas indicam uma
formação em regime climático mais seco; já as cores amareladas indicam que essa formação
ocorreu num regime mais úmido que o anterior; e solos com cores pálidas ou acinzentadas
indicam saturação por água (hidromorfismo), que também pode ser caracterizada por
mosqueados (pigmentações) vermelhas e amarelas ao longo do perfil.
• Hidromorfismo: refere-se à superficialidade do aquífero freático, indicando que o solo está
permanentemente ou sazonalmente saturado por água. Normalmente os solos com essa
característica, conforme já citado, têm coloração pálida ou acinzentada, podendo apresentar
mosqueados; outro fator que pode ser indicativo dessa característica é a deposição de material
orgânico, que deixa a coloração dos solos muito escura, praticamente preta. Solos com essa
característica têm uma elevada fragilidade ambiental, recomendando-se na maioria das vezes
destiná-los à preservação.

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• Potencial hidrogênio (pH): indica a acidez dos solos, tem relação direta com a fertilidade
(disponibilidade de nutrientes) e, consequentemente, com a produção agrícola. Pode ser
facilmente corrigido por meio de calagens (aplicação de calcário).
• Textura: refere-se à proporção dos particulados do solo, determinados de acordo com suas
dimensões (granulometria): areia (mais grosseira), silte (intermediário) e argila (mais fina).
Influi na velocidade de infiltração e na capacidade de retenção de água no solo, em decorrência
da porosidade (macro e microporos).
• Atividade química: definida pela Capacidade de Troca de Cátions (CTC), que tem papel
importante na retenção de substâncias contaminantes, ou ainda de nutrientes, por isso sua
importância como filtro sob o ponto de vista ambiental, e na agricultura, influenciando na
fertilidade dos solos, respectivamente. Analogamente, a CTC atua como uma espécie de ímã,
e os nutrientes seriam simples peças de metal atraídas por essas cargas do solo.
• Material mineral x material orgânico: na massa de solo podemos separar duas frações,
uma mineral e outra orgânica. Normalmente, temos o predomínio da fração mineral. A
orgânica se concentra nas camadas superficiais do solo em decorrência da decomposição da
vegetação em sua superfície, enquanto nas camadas mais profundas, onde o solo está em
processo de formação (intemperização da rocha), essa fração é reduzida. A fração mineral
fornece nutrientes às plantas de forma mais lenta, enquanto na orgânica os nutrientes estão
prontamente disponíveis. Outro aspecto importante a se considerar é que a fração orgânica
do solo é responsável por armazenar carbono, um dos principais gases responsáveis pelo efeito
estufa e aquecimento global.

As características citadas anteriormente são apenas algumas de muitas outras, porém, dentre todas,
essas são as mais comuns e diretamente relacionadas aos aspectos agrícolas e ambientais. Além disso,
todas elas se relacionam entre si, uma influenciando e sendo influenciada por outras.

IMPORTÂNCIA AGRÍCOLA DOS SOLOS


O solo é imprescindível para as atividades agrícolas em larga escala, pois além de servir de suporte às
plantas (visão simplista), ainda fornece nutrientes e água para o seu desenvolvimento. Porém, podemos
considerá-lo como um recurso não renovável, principalmente no que tange aos seus nutrientes. A
agricultura empregada de forma intensiva é responsável pelo depauperamento do solo por diversas
vias, dentre elas podemos destacar a absorção dos nutrientes pelas plantas, sem haver sua reposição
(ciclagem de nutrientes) por meio de adubações, ou ainda, a instalação de processos erosivos que
carreiam partículas de solo, com nutrientes adsorvidos a elas, para as partes mais baixas do terreno.
As queimadas, muito comuns num passado recente, também eram responsáveis pela degradação dos

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solos, visto que alguns nutrientes são voláteis, como o nitrogênio, além de eliminar praticamente toda
a microflora e microfauna das camadas superficiais do solo.
Dessa forma, podemos dizer efetivamente que a principal importância dos solos à agricultura é
o fornecimento de nutrientes e água para as plantas. Não basta apenas ter um solo com nutrientes
e água, se estes, por alguma razão, não estiverem disponíveis às plantas, então, em uma análise
geral, devemos considerar a quantidade armazenada de nutrientes e água e também sua pronta
disponibilidade à vegetação.
Solos mais desenvolvidos tendem a ter uma melhor fertilidade natural, porém o que determina
sua disponibilidade é a carga do solo (CTC) e qual percentual dela está ocupado com os nutrientes
(saturação por bases – V%).
No solo há um elemento, conhecido como alumínio, que além de ser tóxico limita a absorção de
nutrientes pelas plantas, ocupando a maior parte das cargas (distrófico), conhecida CTC. O mesmo
comportamento é válido quando nos referimos à acidez do solo (pH), que também é responsável por
limitar a absorção de nutrientes pelas plantas, mesmo que tenhamos uma boa quantidade deles no solo.
O desequilíbrio de nutrientes é outro fator que pode interferir na absorção, pois o excesso ou a falta de
um determinado elemento também pode limitar a absorção dos demais.
Conforme citado, para o desenvolvimento das plantas há o consumo dos nutrientes do solo, devido
a esse fato é que devemos repô-los por meio de adubações, que podem ser químicas, minerais ou ainda
com a adição de material orgânico. Caso não se proceda com a reposição, haverá o depauperamento
do solo, reduzindo gradativamente a produtividade ao longo do tempo, até que não se consiga mais
viabilizar um cultivo agrícola no terreno degradado.
Mesmo que os solos se encontrem em condições originais no que tange à fertilidade (disponibilidade
de nutrientes), as plantas dependem de certa quantidade, que muitas vezes não são encontradas nos
solos em condições naturais. Para tal, também se faz necessária a adubação, com objetivo não só de
repor a reserva consumida pela planta, mas também suprir sua demanda de absorção, que, conforme
mencionado, pode ser de três tipos: química, mineral e orgânica.
Na adubação química, geralmente, consideramos como fertilizantes apenas os macronutrientes
nitrogênio (N), fósforo (P) e o potássio (K), por isso o nome dos adubos de NPK. Quando citamos
números, como exemplo 4-14-8, nos referimos à proporção de cada um desses elementos no adubo,
respectivamente, ou seja, nesse caso o adubo exemplificado teria 4 partes de nitrogênio (N); 14 partes
de fósforo (P) e 8 partes de potássio (K). Porém, muitas vezes temos nos solos deficiência de outros
elementos, sejam eles macronutrientes, sejam micronutrientes. Em ambos os casos, faz-se necessária
a consulta a um engenheiro agrônomo, que irá indicar quais nutrientes e a quantidade de cada um
a ser aplicada para determinada cultura agrícola e tipo de solo, com base nas análises de solo e na
necessidade de cada cultura.
A adubação mineral se refere à aplicação de frações de rochas moídas, normalmente provenientes
do processo de trituração da pedra brita. É pouco difundida dado ao custo, à disponibilidade do
insumo e a um retorno que não ocorre de forma imediata.

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Na adubação orgânica, em geral, utilizamos resíduos vegetais, restos de alimentos, esterco


(diversas fontes, incluindo a ‘cama’ de criadouros de animais). Esse material orgânico pode ser
aplicado diretamente, o que não é recomendado, ou ainda por meio da compostagem, que, segundo
o Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo – USP (2012), compreende um processo
biológico em que os microrganismos transformam a matéria orgânica – como estrume, folhas, papel
e restos de comida – em um material semelhante ao solo, que se chama composto (húmus), e que
pode ser utilizado como adubo. Esse processo é chamado de humificação e ocorre de forma natural,
decorrente da ação de bactérias, fungos, vermes (minhoca); ou ainda via ação humana, quando
aplicados produtos químicos para ocorrer sua formação. Esse produto tem elevada eficiência, visto
que o nutriente está prontamente disponível para a planta.
A adubação, seja ela química, seja mineral ou orgânica, só terá efeito se o solo estiver corrigido, ou
seja, se seu pontencial hidrogênico (pH) – acidez – estiver próximo da neutralidade (levemente ácido).
A acidez dificulta a absorção dos nutrientes, portanto, de nada adianta realizar uma adubação adequada
se o solo não estiver, antes de tudo, corrigido. Para tal, aplicamos calcário ou gesso, sendo o primeiro
mais eficiente na neutralização da acidez do solo.
Outro aspecto a se considerar para o desenvolvimento das plantas é a disponibilidade de água
no solo, visto que muitas vezes é necessária a suplementação por meio da irrigação em épocas de seca
ou estiagem. No solo devemos considerar a existência de micro e macroporos (pequenos e grandes
poros, respectivamente) que interferem diretamente na capacidade de infiltração e retenção de água.
Solos com maior quantidade de macroporos permitem uma rápida infiltração, diminuindo assim
o escorrimento superficial e, consequentemente, os processos erosivos, no entanto, sua capacidade
de retenção é baixa, podendo causar déficit hídrico (murcha) nas plantas em períodos de pouca
chuva. Essa característica é comum em solos arenosos. Contudo, solos com maior quantidade de
microporos têm uma menor capacidade de infiltração, no entanto, sua capacidade de retenção
de água é maior, diminuindo a possibilidade ou frequência de haver murchamento nas plantas.
Conforme citado, quando o solo está em déficit hídrico, num estágio crítico de desenvolvimento da
planta, ou seja, que possa resultar em prejuízos na produtividade, faz-se necessária a irrigação para
suplementar essa deficiência.
Todavia, a matéria orgânica com a CTC são as principais responsáveis pela formação de agregados
e estrutura do solo. Solos arenosos, devido à predominância de macroporos, apresentam uma maior
aeração, fato que resulta em uma rápida decomposição do material orgânico aliada com a baixa carga
desses tipos de material, significando que terão poucos agregados e estrutura fraca, tornando-os muito
suscetíveis à erosão, mesmo tendo uma elevada velocidade de infiltração.
O manejo adequado dos solos agrícolas possibilita o uso sustentável dos recursos naturais
provindos desse substrato, ou seja, atividades agrícolas, desde que bem manejadas, não resultariam
no esvaziamento da reserva de nutrientes, na degradação do material orgânico, na pulverização dos
agregados ou na perda da biota do solo, fatores que levariam à perda significativa de produtividade e a
elevados custos de recuperação edáfica.

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SOLOS E SEUS SERVIÇOS ECOSSISTÊMICOS


Os serviços ecossistêmicos, segundo MMA (2017), são os benefícios diretos e indiretos obtidos
pelo homem por meio dos ecossistemas naturais. De modo geral, pode ser tratado como o conjunto
de processos naturais dos ecossistemas, classificados como de provisão, sustentação, regulação e
culturais, capazes de manter e dar suporte à vida. Quando há algum tipo de ação antrópica, que gera
um impacto ambiental negativo, pode haver a perda da função ecossistêmica, ou sua redução, ou
depreciação. Esses serviços podem ser de provisão, quando relacionados com os produtos obtidos dos
ecossistemas, como água doce, alimentos, madeira, minerais, entre outros; de suporte e regulação, que
compreendem os benefícios obtidos por meio de processos naturais, enquanto os serviços de suporte se
referem àqueles que contribuem para a produção de outros serviços; e culturais, que dizem respeito aos
benefícios obtidos da natureza considerados intangíveis, ou seja, relacionados à recreação, à educação,
ao paisagismo/à estética, entre outros.
Dentre os serviços ecossistêmicos de provisão relacionados aos solos, destacam-se aqueles referentes
à sua capacidade produtiva, já descritos neste capítulo em: ‘Importância agrícola dos solos’.
Quanto aos serviços ecossistêmicos de suporte e regulação, ao se abordar um dos assuntos mais
discutidos atualmente – a disponibilidade de água com qualidade –, pouco se fala sobre como o solo
(características intrínsecas) pode vir a contribuir para a manutenção dessa qualidade. Solos com uma elevada
Capacidade de Troca de Cátions (CTC) têm grande poder de filtro, retendo eventuais contaminações do
solo, antes mesmo de atingir o aquífero freático ou um corpo hídrico. Solos saturados com água, no
entanto, apresentam uma CTC quase nula, consequentemente uma capacidade filtrante baixa, sendo uma
das justificativas para a preservação de planícies e porções baixas próximas a canais de drenagem.
Certas características dos solos lhe conferem determinada capacidade filtrante, em que a
CTC pode ser considerada como um dos principais agentes desse comportamento. Normalmente,
quando determinado tipo de solo apresenta CTC baixa, a profundidade do perfil e a textura acabam
compensando tal deficiência. Dessa forma, o uso em locais com solos de baixa CTC, pequena espessura
e textura arenosa tem elevado risco de contaminação da água subterrânea.
Assim, podemos concluir que, caso os solos não tivessem características e propriedades filtrantes,
a qualidade da água que consumimos estaria seriamente comprometida.
Outro serviço de suporte e regulação dos solos tem relação com a quantidade de material orgânico
armazenado. Solos com elevados teores de material orgânico, comuns em áreas de várzea quando
drenados, passam pela decomposição acelerada do material orgânico (oxidação) com a liberação
de Gases de Efeito Estufa (GEE), principalmente dióxido de carbono e metano (cujo potencial
de aquecimento global é vinte e uma vezes superior ao CO2), considerados por algumas literaturas
como os grandes responsáveis pelo aquecimento global. A exemplo disso, se considerarmos os solos
de várzea, com solos ‘turfoso’ de profundidade não inferior a 2 metros, poderíamos atingir cerca de
2.000 toneladas de carbono armazenadas em um hectare, quantidade equivalente ao que uma floresta
comercial de pinus, plantada em 3 hectares, fixa em pelo menos 18 anos de ciclo.

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A drenagem desses solos tem ainda outras implicações ambientais negativas, entre elas o
que chamamos de subsidência, que trata do rebaixamento do nível do solo por perda de volume,
inicialmente pela retirada da água, e posteriormente pela decomposição da matéria orgânica de forma
acelerada. Esse comportamento pode implicar em danos a eventuais edificações e/ou estruturas que
existam nesses solos.
Ainda no que se refere aos solos de várzea, devemos considerar sua importância como regulador
hídrico dos rios, visto que atuam como uma ‘esponja’, ou seja, em períodos de chuva, em que se tem
a vazão dos rios aumentada, essas áreas absorvem o excedente de água, retendo-o temporariamente, e
liberando essa água armazenada gradativamente em períodos de estiagem, mantendo certa constância
na vazão dos rios e mitigando os efeitos dos picos de vazão, como cheias, alagamentos, inundações, ou
o secamento do curso hídrico, respectivamente.
Entre as décadas de 1970 e 1980, o Ministério da Agricultura promoveu um programa denominado
de Pró-várzea, que dava incentivos e facilidade aos agricultores na abertura de novas áreas agrícolas,
por meio da drenagem das áreas de várzea. O material orgânico desses solos lhes conferia uma grande
fertilidade, porém temporária ou de curto prazo, visto que é rapidamente decomposto, além disso não
havia a devida reposição de nutrientes, cujas implicações já foram relatadas. O desenvolvimento de
um programa desse tipo só foi possível devido ao conhecimento limitado sobre esses solos, já que para
o seu sucesso haveria um grande impacto ambiental, por meio da liberação de grandes quantidades
de carbono para a atmosfera, perda de nutrientes, rebaixamento do nível do solo (subsidência),
interferência sobre o regime hídrico dos rios e rápido depauperamento dos solos, inviabilizando seu
uso futuro na agricultura.
Outro fato importante a se considerar sobre os solos no que tange ao meio ambiente, cada vez
mais comuns nos noticiários, é a instabilidade de encostas e o risco de deslizamentos (risco geotécnico)
em períodos chuvosos. Na verdade, esses eventos são consequência de uma soma de aspectos: climático
(intensidade e frequência de chuvas), pedológico (características do solo) e antrópico (ocupação em áreas
de fragilidade ambiental). A dinâmica de deslizamentos ocorre quando o solo superficial, na encosta,
fica saturado por água em decorrência de um grande volume de chuva, passando a se comportar como
um fluido. Esse processo ocorre naturalmente, e pode ser considerado como um dos fatores responsáveis
pela formação dos solos e da paisagem. O problema está na ocupação desordenada e descontrolada das
áreas ou a jusante delas, que deveriam ser destinadas à preservação, colocando toda a população em risco.
Por se tratar de áreas de encosta, normalmente os solos são pouco espessos (rasos) por apresentarem
impedimento rochoso logo abaixo, diminuindo assim sua capacidade de infiltração, armazenamento
de água e estabilidade.
Conforme exposto, a fragilidade dos solos é percebida, suas características e propriedades estão
intimamente relacionadas entre si, e qualquer modificação que ocorra em uma delas pode comprometer
o sistema (solo) como um todo, implicando não somente em sua degradação, mas também na de toda
cadeia ambiental dependente dele: água, flora e fauna, interferindo negativa e significativamente sobre
as mais diversas atividades humanas, em especial a agricultura e a construção civil.

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As características dos solos e da vegetação formam um complexo indissociável. Em geral, a


vegetação é responsável por reduzir os danos causados pelo impacto da gota da chuva sobre o solo,
além de aumentar a rugosidade da superfície, facilitando a infiltração da água, bem como reduzindo a
energia do escorrimento superficial. Esses aspectos têm relação direta com a qualidade da água. Áreas
desprovidas de vegetação, quando localizadas em encostas, são altamente suscetíveis a processos erosivos,
cujos sedimentos, em áreas agricultadas, podem ser carreados para cursos hídricos, contaminando sua
água com defensivos agrícolas e fertilizantes. Conforme citado, o solo em decorrência de sua carga tem
um potencial filtrante, sendo assim, quando a água é infiltrada, eventuais contaminantes são retidos
pela CTC do solo antes de atingir qualquer corpo hídrico, seja ele subterrâneo, seja superficial.

DEGRADAÇÃO DOS SOLOS


A degradação do solo tem relação com a interferência ou anulação dos serviços ecossistêmicos
disponibilizados pelo substrato. Nesse sentido, existem diversos usos ou atividades que resultam
nessa degradação, tendo como consequência final impactos diretos ou indiretos sobre os recursos
hídricos, sejam eles superficiais, subterrâneos. Esses impactos são o resultado dos processos erosivos,
de contaminação do solo e da redução da fertilidade, portanto, o comum é que toda e qualquer
degradação do solo resulte em um desses dois impactos.
Na agricultura, principalmente aquela de forma intensiva, podemos elencar os seguintes fatores
responsáveis pela degradação do solo ou de seus serviços ecossistêmicos.
• Remoção da camada nativa de vegetação: antes de qualquer uso normalmente é removida a
camada de vegetação nativa sobre o solo, expondo-o a fatores climáticos, aumentando assim
sua suscetibilidade à erosão.
• Pulverização do solo: aração e subsolagem são procedimentos comuns na agricultura
convencional, porém, se empregadas frequentemente podem ocasionar a pulverização do
solo, que se trata perda de sua estrutura. Esse fator tem relação direta com o aumento da
suscetibilidade à erosão dos solos.
• Queimadas: além da desestruturação do solo, também é responsável por eliminar a biologia
dele, e principalmente por queimar a matéria orgânica existente, reduzindo assim sua fertilidade
natural. Além disso, a matéria orgânica permite uma melhor estruturação do solo, que caso
seja comprometida pela queimada, também implicará em uma maior suscetibilidade à erosão.
• Superdosagens de fertilizantes: a alteração do pH de forma inadequada pelo uso de corretivos
e a elevação da concentração de determinado nutriente pode inibir a absorção de outros pelas
plantas. Além disso, superdoses de fertilizantes podem conferir aos solos certa toxicidade,
bem como resultar na salinização do mesmo, dificultando ou até mesmo impedindo o
desenvolvimento de plantas.

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• Remoção ou perda de horizontes do solo: os processos erosivos e o próprio preparo do solo


implicam na perda ou no revolvimento do solo. Conforme já citado, as camadas superficiais
do solo são as mais férteis, principalmente em decorrência da deposição da matéria orgânica, e
são justamente essas que são perdidas pela erosão em sulcos. Com o revolvimento do solo, ou
ainda sua perda pela erosão, a produtividade agrícola fica comprometida dado a perda desses
nutrientes ou sua relocação em camadas não atingidas pelas raízes das plantas.
• Compactação: quando há um tráfego intenso exercendo pressão sobre a superfície do solo
temos uma redução/diminuição dos macroporos dele, causando com isso seu adensamento.
Isso interfere diretamente sobre a velocidade de infiltração da água no solo, favorecendo assim
a instalação de processos erosivos. Além disso, compromete a penetração das raízes das plantas
no solo, influenciando negativamente no seu desenvolvimento.
• Uso inadequado de agrotóxicos: pragas nada mais são do que insetos filófagos, que têm
um grande estímulo ao crescimento populacional pelo aumento do nível trófico (oferta
de alimentos). Com o crescimento dessas populações, a natureza tem mecanismos para
promover o ajuste, como o desenvolvimento de inimigos naturais. Assim, o controle de
pragas e doenças deve considerar as condições ambientais, utilizando práticas mecânicas,
físicas, biológicas e químicas, que denominamos de manejo integrado de pragas. Quando o
uso de agrotóxicos é realizado de forma inadequada, sem uma análise sistêmica das causas
do surgimento de pragas e doenças, pode causar impactos ambientais, como a contaminação
do solo, da água e dos alimentos, além de promover desequilíbrios biológicos que podem
ampliar as perdas na agricultura.

Não somente a agricultura, mas outros usos também são responsáveis pela degradação dos solos.
Nos centros urbanos é comum haver a contaminação dele por efluentes domésticos em decorrência do
sistema de fossas para seu tratamento. Além disso, para as obras de construção civil, as intervenções no
solo são muito severas, dentre as quais podemos relacionar:
• corte: obras de corte são necessárias para a eliminação da camada superficial do solo, rica
em matéria orgânica, o que lhe confere baixa capacidade de suporte, por isso, para garantir
a estabilidade das estruturas e edificações é removida a camada. O corte do solo também é
empregado para nivelamento do terreno em projetos urbanísticos, visando adequar o relevo à
proposta de ocupação;
• aterro: empregado para, normalmente, corrigir imperfeições do terreno. Tem importância
também na mitigação dos efeitos de inundações e alagamentos, com a elevação do nível do
terreno. O material utilizado para aterro deve ser adequado, permitindo sua compactação e
sua estabilidade após essa etapa, o que interfere significativamente no regime de infiltração
dos solos.

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Dentre outras atividades relacionadas à degradação dos solos está a disposição de resíduos sobre
sua superfície, comuns em aterros sanitários e lixões. Essas atividades, caso não tenham as devidas
estruturas de impermeabilização, permitirão que o chorume (resultado da decomposição) se infiltre no
solo e atinja o lençol freático, contaminando a água. O solo, até determinado ponto, é capaz de reter
essa contaminação com a sua carga (CTC), porém, nesse caso, estamos falando de grandes volumes,
impossibilitando o solo de conter toda a contaminação.
Porém, o principal fator e mais comum dentre os relacionados à degradação dos solos é a erosão,
que compreende desde a desagregação de partículas, causada pelo impacto da gota da chuva na superfície
do solo, justificando assim a manutenção de uma camada vegetada permanente sobre ela; passando
pelo transporte dessas partículas de solo, formando sulcos e canais de erosão, e em casos extremos as
voçorocas; e por fim, quando a água perde sua energia de carreamento de partículas, ocorrendo sua
deposição, normalmente nas cotas mais baixas do terreno, causando o assoreamento dos rios. Com o
solo também são perdidos seus nutrientes, matéria orgânica, fertilizantes e muitas vezes resíduos de
agrotóxicos recém-aplicados na agricultura.

Figura 3 – Simulação do impacto da gota no solo.


Freepik

Fonte – Adaptado de Roloff, 2008.

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Figura 4 – Modelo esquemático da formação de processo erosivo.

Remoção do solo
por enxurrada

Quebra na cobertura vegetal

Enxurrada

Formação de depressão

Aparecimento da cabeceira

Turbilhonamento na
Erosão por remoção base da cabeceira
na base e falta de
estabilidade da parede

Fluxo em canal

Avanço da cabeceira

Fundo do canal
Fonte – Adaptado de Roloff, 2008.

Kamiyama (2011) considera a erosão um dos principais problemas ambientais decorrentes da


agricultura, não apenas pelos alarmantes números de perdas de solo, mas também pelos desequilíbrios
causados nos ecossistemas, com impactos negativos em outros importantes recursos naturais, como a

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água. Tal fato é corroborado por Morais e Sales (2017) quando afirmam que a erosão é um dos problemas
ambientais mais importantes na atualidade, atingindo indiscriminadamente regiões agrícolas, centros
urbanos e áreas naturais.
Na década de 1970, período em que a agricultura não era tecnificada como atualmente, estima-
se que as áreas sob mecanização intensiva tinham perda de solo na ordem de 15 a 20 toneladas por
hectare por ano, representando uma camada de aproximadamente 1 cm de solo perdido por ano. Não
somente o solo, mas juntamente a ele se perdem os nutrientes em uma quantidade estimada de 20 kg
de nitrogênio, 0,2 kg de fósforo e 2,3 kg de potássio por hectare ano, representando grandes montantes
financeiros no ato da reposição. (ROLOFF, 2008).
Segundo Telles (2015), a degradação das terras agrícolas pela erosão do solo pode ser considerada
como uma questão central no debate econômico, visto os prejuízos causados para os agricultores e a
sociedade como um todo, tornando-se um obstáculo para a sustentabilidade.
A erosão é dependente das características da chuva (erosividade) e da suscetibilidade à erosão dos
solos (erodibilidade). Aliado a esses fatores temos a inclinação e o comprimento da rampa, além da
cobertura do solo. Esses últimos três fatores determinam a velocidade da enxurrada, que quanto maior
for pior será seu efeito sobre a superfície do solo.
O pior cenário do ponto de vista erosivo seria uma chuva de intenso volume, com gotas grandes,
solo arenoso e sem cobertura, com uma inclinação significativa e rampas longas, o que resultaria em
uma enxurrada com grande velocidade, capacidade de desagregação e arraste de partículas, abrindo
facilmente no terreno sulcos e canais de erosão. Ao contrário deste último cenário, o ideal, visando à
mitigação dos efeitos erosivos, seria uma chuva leve e de gotas pequenas, solo com textura argilosa e boa
infiltração, em superfícies pouco inclinadas e de pequena extensão, gerando um escorrimento superficial
muito pequeno, e com uma capacidade de desagregação e transporte de partículas pouco significativa.
Nesse aspecto a vegetação tem forte influência. Uma cobertura vegetal herbácea ou arbustiva,
aliada à presença de serapilheira, reduzem significativamente a intensidade da energia da gota sobre a
superfície do solo, reduzindo assim a erosão responsável pela desagregação de partículas. Todavia, nove
metros de altura já são suficientes para a gota atingir sua velocidade terminal, portanto, florestas sem
sub-bosque, contrariando o senso comum, não são consideradas uma boa cobertura no que se refere à
proteção do solo.
Uma técnica bastante comum na agricultura é o plantio direto na palha, porém, ao contrário
do que muitos pensam, não dispensa os terraços, conhecidos comumente como curvas de nível no
controle da erosão. Essas estruturas têm a função de reduzir o comprimento da vertente, diminuindo
assim a capacidade da água da enxurrada em causar erosão. Com sua ausência, as rampas, sob a ótica do
escorrimento superficial, permanecem alongadas, aumentando a energia, a capacidade e competência
do fluxo superficial da água em causar a erosão.
O plantio direto, além de auxiliar no controle da erosão, também tem papel importante na
reposição de nutrientes no solo por meio da palhada (matéria orgânica) que permanece na superfície do
solo após a colheita. Essa cobertura também é responsável por manter a temperatura do solo constante,

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criar condições favoráveis ao desenvolvimento de uma microfauna no solo, bem como auxiliar na
estruturação do mesmo, permitindo um ambiente mais favorável para as raízes das plantas e com uma
melhor disponibilidade de água.
Porém, ao contrário do que normalmente se pensa, a erosão não é um problema exclusivo de
áreas rurais, como consequência das atividades agrícolas. Em grandes centros urbanos os processos
erosivos também são bastante comuns. Os sedimentos carreados pela enxurrada têm origem em
jardins, áreas permeáveis, pavimentos, construção civil, entre outros. O impacto resultante da erosão
urbana é evidenciado por meio do entupimento de galerias pluviais, geralmente ocasionando pequenas
inundações, cujas consequências se veem no trânsito, e principalmente nos prejuízos de comerciantes
e moradores que perdem seus bens.
Além da instalação de processos erosivos, a atividade agrícola pode afetar a qualidade do ar e da
atmosfera de formas diferentes.
Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura – FAO (2012), as
emissões de GEE da agricultura, incluindo produção agropecuária, silvicultura e mudanças associadas
ao uso da terra, são responsáveis por uma fração significativa das emissões induzidas pelo homem – até
30% no mundo, segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Dentre as
fontes se destacam a fermentação entérica de animais ruminantes, os sistemas de manejo de adubo, os
fertilizantes sintéticos, resíduos culturais, o cultivo do arroz, os solos orgânicos cultivados e a queima
de resíduos de culturas. Essas emissões aumentaram em média 1,6% ao ano desde 1990.
Apesar da principal fonte de GEE ser decorrente da pecuária, especialmente da fermentação
entérica de ruminantes (gado), as emissões decorrentes do cultivo em solos orgânicos têm crescido
significativamente. (FAO, 2014).
O uso inadequado do solo pode promover a degradação dos recursos hídricos pelo lançamento
difuso por meio do escoamento superficial de água de enxurrada, que carrega junto fertilizantes,
agrotóxicos e resíduos da pecuária. Além disso, a irrigação agrícola é o setor de maior consumo de água
do mundo: segundo a FAO (2014), a agricultura irrigada responde por cerca de 70% das captações de
água em todo o mundo.
Geralmente a precipitação é suficiente para a manutenção hídrica das culturas agrícolas,
especialmente em regiões mais úmidas. Contudo, considerando o solo atual como um reservatório
natural de água, em áreas de clima árido a irrigação é fundamental para suprir a deficiência hídrica.

MEDIDAS E AÇÕES PARA A CONSERVAÇÃO


DOS SOLOS
Existem diversas técnicas que podemos empregar no intuito de mitigar ou controlar a degradação
do solo e suas consequências. No entanto, essas técnicas aplicadas serão diferenciadas considerando o
uso do solo, pois muitas vezes o que se aplica ao meio rural não é viável ao urbano e vice-versa.

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Conforme exposto até então, as principais formas de degradação do solo, que devem ser evitadas,
mitigadas ou controladas são: perdas de solo por processos erosivos; contaminação do solo por resíduos
diversos; uso agrícola intensivo; superdosagens de insumos agrícolas, sendo estes últimos dois exclusivos
de áreas rurais, enquanto os primeiros podem ocorrer também em áreas urbanizadas.
Visando reduzir ou controlar a degradação do solo, podemos adotar três diferentes linhas de
atuação (EPAMIG, 2009):
1. Práticas de caráter vegetativo: visa à manutenção ou à instalação de cobertura vegetacional
sobre o solo, que terá importante papel em aumentar a rugosidade do solo (redução da
velocidade da enxurrada) ou ainda facilitar a infiltração da água no solo. Algumas técnicas
permitem a incorporação da massa verde no solo como forma de adubação. Dentre as práticas
podemos citar:
• Plantio direto na palha – cobertura do solo, menor revolvimento, em contrapartida maior
compactação do solo;
• Pousio – descanso do solo e incorporação de massa verde;
• Rotação de culturas – redução de pragas, adubo verde, ciclagem de nutrientes, incorporação
de nutrientes (fixação de nitrogênio);
• Manutenção da cobertura vegetal nativa – pouca intervenção no solo além da cobertura
atuar na mitigação dos processos erosivos, o mesmo pode ser realizado com a silvicultura;
• Manejo de pastagem em áreas de pecuária – evitar a pressão de pastagem em demasiado,
principalmente na formação de caminhos preferenciais dos animais, realização de adubação
e calagem da pastagem, evitando o surgimento de manchas de solo exposto.
2. Práticas de caráter edáfico: tem relação com as características e propriedades do solo,
normalmente são dependentes das outras duas práticas. Dentre as técnicas temos a
determinação da capacidade de uso dos solos, que irá permitir o planejamento do uso do solo;
a incorporação da massa verde como adubo; eliminação de queimadas; correção da acidez do
solo (calagem) e adubações.
3. Práticas de caráter mecânico: envolvem procedimentos e equipamentos específicos para
serem realizadas, independem de processos e fatores naturais. Dentre essas práticas podemos
citar a instalação de canais e terraços perpendiculares ao sentido do fluxo de água superficial
com o objetivo de diminuir o comprimento de rampa e, consequentemente, a energia da
enxurrada; planejar as rotas (logística) durante o projeto de cultivo, a fim de mitigar os efeitos
da compactação do solo em decorrência do tráfego de veículos; plantio em nível, nunca no
sentido do relevo.

Especialmente para as atividades agrícolas, Roloff (2008) diz que para um sistema ser sustentável
deve, simultaneamente,

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• manter ou aumentar a produtividade ao longo do tempo – pilares da sustentabilidade;


• reduzir os riscos da produção – segurança;
• proteger o potencial dos recursos naturais – proteção;
• ser viável economicamente – viabilidade;
• ser socialmente aceitável – aceitabilidade.

Sendo assim, por meio de técnicas de manejo e de medidas de conservação ambiental de áreas
de fragilidade, podemos garantir uma menor degradação do solo e, consequentemente, a manutenção
da qualidade e dinâmica dos recursos hídricos, sejam superficiais, sejam profundos, visto a atuação do
solo, principalmente como filtro e regulador hídrico. Inicialmente essas medidas implicam em custos
elevados, porém insignificantes se comparados aos custos futuros que teremos para explorar e tratar a
água de forma que satisfaça nossas necessidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por fim, vimos neste capítulo a importância dos solos para a vida, seja por meio da produção
de alimentos, seja pela sua capacidade de filtro, ou simplesmente pelo seu suporte para as nossas
atividades. O solo é um sistema vivo e dinâmico, onde qualquer alteração pode desencadear uma série
de processos e impactos ambientais, bem como simples medidas de controle ambiental podem mitigar,
de forma eficiente, esses diversos impactos ambientais relacionados ao solo.
Diamond (2007) afirma que os solos utilizados para a agricultura são erodidos numa proporção
de 10 a 40 vezes maior que sua capacidade de regeneração, sofrendo de 500 a 10 mil vezes mais erosão
que em solos florestados, havendo com isso uma perda ativa de solo apto para a agricultura.
A disponibilidade de áreas aptas à agricultura, proporcionalmente à demanda futura por
alimentos, tenderá a ser reduzida, justificando sua preservação e conservação por meio de ações que
visem, principalmente, a contenção dos processos erosivos e redução no consumo de água. Segundo
FAO (2014), em 2011 cerca de 4,9 bilhões de hectares, 37,4% da superfície terrestre, era utilizada
na produção vegetal, sendo reduzido o espaço para a expansão das terras agrícolas. Isso se deve ao
fato de que áreas, mesmo potencialmente aptas à agricultura, por alguma razão não estão disponíveis,
geralmente por serem de preservação ou utilizadas em assentamentos urbanos.
Para poder suprir uma demanda crescente por alimentos será necessária a adoção de novas
tecnologias. Nos últimos 50 anos, a produção agrícola cresceu de 1,5 a 3 vezes, contudo a área cultivada
aumentou apenas 12% (FAO, 2012), demonstrando a importância da adoção de novos meios e
tecnologias de produção, como exemplo o melhoramento genético. O The World Watch Institute
(2011) afirma que para 2050 a demanda por inovações extraordinárias no campo do melhoramento de
espécies vegetais será determinante na produção de alimentos no futuro.

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Em valores, estima-se que em 2050 a população exija uma elevação de 70% da produção global
atual de alimentos, equivalente a mais de 1 milhão de toneladas de cereais e 200 milhões de toneladas
de produtos de origem animal. (FAO, 2012).
Além das questões relacionadas ao depauperamento do solo em decorrência do uso agrícola e de
uma possível falta de alimento até 2050, as atividades agrícolas também são responsáveis por 75% do
consumo de água e 15% das emissões de gases do efeito estufa, em países em desenvolvimento esse
valor pode chegar a 75%. (THE WORLD WATCH INSTITUTE, 2011).
Tudo isso comprova a importância dos solos e de sua conservação. A medida que a agricultura
adotar uma postura intensiva e predatória, haverá uma significativa e contínua redução de áreas aptas
para a agricultura, fato que, num futuro próximo, mesmo com a adoção de novas tecnologias, não
permita a produção de alimentos em quantidade suficiente para suprir a crescente demanda prevista.

BIBLIOGRAFIA
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DIAMOND, J. O colapso: como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso. 5. ed. Rio de Janeiro: Record,
2007.
EMBRAPA. Florestas, laboratório de monitoramento ambiental e UFPR: Mapa simplificado de solos do
estado do Paraná. Londrina, 2012.
EMBRAPA. Mapa de Solos do Estado do Paraná. Rio de Janeiro: EMBRAPA Solos, 2007.
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Disponível em: http://www.mma.gov.br/perguntasfrequentes?catid=5. Acesso em: 18 nov. 2019.
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KAMIYAMA, A. Agricultura sustentável. Secretaria do Meio Ambiente – Coordenadoria de Biodiversidade e


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LEPSCH, I. F. Formação e conservação dos solos. São Paulo: Oficinas de Textos, 2002.
LIMA, V. C. et al. Conhecendo os principais solos do Paraná: abordagem para professores do ensino
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MORAIS, R. C. S.; SALES, M. C. L. Estimativa do potencial natural de erosão dos solos da Bacia Hidrográfica
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ROLOFF, G. Apostila da disciplina de erosão e conservação dos solos: Curso de Agronomia. Curitiba:
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TELES, T. S. Conservação dos solos e preços de terras agrícolas no Brasil. Campinas: Universidade Federal
de Campinas, 2015.
THE WORLD WATCH INSTITUTE. O estado do mundo: inovações que nutrem o planeta. Washington:
UMA Editora, 2011.
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Twelfth Edition, 2014.

Links
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Pedologia Fácil. Disponível em: http://pedologiafacil.com.br. Acesso em: 18 nov. 2019.
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USP – Instituto de Biociências. Disponível em: http://www.ib.usp.br. Acesso em: 18 nov. 2019.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
451

RESÍDUOS SÓLIDOS: ORIGEM, CLASSIFICAÇÃO E


SOLUÇÕES PARA DESTINAÇÃO FINAL ADEQUADA

Cinthya Hoppen
Cleverson V. Andreoli
Fabiana de Nadai Andreoli
Rodrigo Trindade
Tamara Vigolo Trindade

INTRODUÇÃO
O acelerado processo de transformação da sociedade contemporânea apresenta consequências
ambientais significativas, uma delas relacionada à gestão de resíduos sólidos considerando a dificuldade
em relação à enorme quantidade de resíduos gerados e à sua composição. Antigamente, os resíduos
eram orgânicos e voltavam para a natureza pela decomposição. Em decorrência da industrialização, que
aumentou a produção de produtos inorgânicos que não se decompõem (ou que requerem um tempo
muito grande para se degradar), tais como vidro, plástico, metais, borracha etc., houve um grande
crescimento na produção de resíduos.
Associado ao aumento da produção de bens decorrentes da tecnologia de extração de recursos
naturais e da sua manufatura, principalmente a partir da Revolução Industrial, a sociedade ampliou
muito suas demandas. Segundo Nagashima et al. (2011), entre 1979 e 1990, a geração de Resíduos
Sólidos Urbanos (RSU) cresceu a uma taxa de 25%, sendo superior ao crescimento populacional
em nível mundial, que foi de 18% no mesmo período. Para Ramos et al. (2016, p.1234), o Brasil,
somente no ano de 2013, produziu 76,4 milhões de toneladas de resíduos e, no ano seguinte, gerou

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78,5 milhões de toneladas. De acordo com o Banco Mundial, em 2025 cada brasileiro deverá produzir
584 quilos de lixo urbano — um aumento de 50% em três décadas. Paralelamente, os bens que no
passado tinham uma vida útil muito longa passaram a ser substituídos com grande intensidade, até
chegarmos à era dos produtos descartáveis. A adequada gestão dos resíduos representa um dos grandes
desafios atuais da humanidade.
A busca incessante pelo conforto fez com que a sociedade extraísse da natureza os recursos naturais,
que muitas vezes são posteriormente desperdiçados, acarretando uma maior quantidade de resíduos
sólidos e causando vários impactos ambientais. Como grande parte desses recursos provenientes da
natureza é modificada, eles não retornam à natureza facilmente, pois muitas vezes dependem de
processos especiais para sua preparação para a reciclagem.
Ainda no cenário de transformação, perdura na sociedade a ideia da obsolescência planejada, em
que os produtos são projetados para terem durabilidade e tempo de vida menor e, consequentemente,
havendo a necessidade de se comprar várias vezes o mesmo objeto. Dessa forma, os produtos são
trocados por ficarem obsoletos e não por estragarem, repercutindo diretamente no aumento da
produção de resíduos.
Certamente, o aumento da quantidade de resíduos sólidos é um grave problema ambiental, pois
é necessário levar em consideração que o planeta é um sistema fechado, ou seja, onde não há troca de
matérias com o meio e, portanto, o resíduo é o resultado de um processo de transformação da natureza.
Além disso, ao considerar a Terra como um sistema fechado, devemos perceber que os resíduos
sólidos são, na realidade, ou deveriam ser considerados, as matérias-primas para a produção de outros
artefatos, evitando assim a exploração de recursos naturais, que são finitos.
Desse modo, o termo aqui utilizado será ‘resíduos sólidos’, já que todo o pensamento está
fundamentado na possibilidade de reutilização, partindo do pressuposto que os resíduos serão
matéria-prima para a produção de novos artefatos. Assim, entende-se resíduo como matéria-prima em
local inadequado.
A problemática que envolve a questão dos resíduos sólidos não está apenas relacionada com a
quantidade gerada, mas sim, e, principalmente, pela forma de destinação final, descartando os resíduos
em áreas a céu aberto, conhecidas como lixões, onde as consequências de poluição ambiental causadas por
essa forma de destinação podem acarretar na contaminação tanto do solo quanto dos recursos hídricos.
Os lixões, além de se tornarem um grave problema de saúde pública, em virtude da disposição
inadequada dos resíduos, são fontes de sobrevivência para muitas pessoas, evidenciando um grave
problema social.
E nesse sentido, uma discussão ética pode ser levantada, já que o que é sobra para alguns é fundamental
para a sobrevivência de outros: enquanto muitos passam fome, outros desperdiçam alimentos.
Surge, nesse cenário, a necessidade de gerenciar toda a cadeia dos resíduos sólidos. O primeiro
passo é reduzir a produção de resíduos por meio da diminuição do consumo (consumo responsável).
Cabe destacar que como essa etapa de geração de resíduos precede às demais, quanto menos resíduo
gerado, menor será a quantidade a ser gerenciada.

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Posteriormente, deve-se aumentar ao máximo a reutilização e reciclagem, promovendo o correto


depósito e tratamento dos resíduos sólidos, conforme estabelecido na Agenda 21, durante a Conferência
das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento – ocorrida no Rio de Janeiro, em 1992.
No item 21.4 do capítulo 21 da Agenda 21 ficou estabelecido que o manejo ambientalmente
saudável desses resíduos deve ir além do simples depósito ou aproveitamento por métodos seguros
dos resíduos gerados, como buscar resolver a causa fundamental do problema, procurando mudar
os padrões não sustentáveis de produção e consumo. Isso implica a utilização do conceito de manejo
integrado do ciclo vital, o qual apresenta oportunidade única de conciliar o desenvolvimento com a
proteção do meio ambiente. (MMA, 2018).
Assim, nota-se o tripé da sustentabilidade que envolve a questão dos resíduos sólidos:
• aspecto ambiental: forma de disposição inadequada dos resíduos;
• aspecto social: o lixão como forma de sobrevivência de muitos;
• aspecto econômico: resíduos sólidos como matéria-prima.

CONDIÇÃO ECONÔMICA X PRODUÇÃO DE


RESÍDUOS
O cenário nacional e internacional da produção de resíduos sólidos está diretamente relacionado
com a época em que vivemos, bem como o modo de vida da população, ou seja, com a condição
econômica das pessoas.

Países ricos e pobres


Nos países mais industrializados, a quantidade de resíduos produzidos é maior. Quanto mais
rico o país, mais lixo se joga fora, comprovando assim que a composição e a quantidade de resíduos
produzidos estão diretamente relacionadas com o modo de vida da população.
A relação da produção de resíduos com as condições econômicas também pode ser observada com
o período do mês. Geralmente no começo do mês, quando temos maior poder de compra, o resíduo
produzido sofre variação, tanto em quantidade quanto em composição.

Localização das cidades


A localização das cidades também se relaciona com a produção de resíduos. Cidades litorâneas
costumam receber no verão uma quantidade maior de pessoas que sua população normal e isso interfere

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diretamente na quantidade gerada de resíduos sólidos. As cidades que têm turismo no inverno também
vivenciam o mesmo problema.

PANORAMA DOS RESÍDUOS SÓLIDOS URBANOS


NO BRASIL

Produção de resíduos no Brasil


De acordo com a ABRELPE (2017), o índice per capita de geração de resíduos sólidos urbanos no
Brasil apresentou um aumento de 0,48% entre os anos de 2016 e 2017. Esse percentual representa um
crescimento de 1,032 kg/hab./dia no ano de 2016 e 1,035 kg/hab./dia no ano de 2017, conforme figura
a seguir. No mesmo período, a geração total de resíduos sólidos no país aumentou 1%, alcançando um
total de 214.868 ton/dia.

Figura 1 – Geração de RSU per capita (kg/hab./ano).

1%

212.753 214.868

2016 2017
Fonte – ABRELPE, 2017.

A comparação da quantidade total gerada em 2017, com o total de resíduos sólidos urbanos
coletados, mostra que 6,89 milhões de toneladas de resíduos sólidos urbanos deixaram de ser coletados
no ano de 2017.
Na comparação entre o índice de crescimento da geração com o índice de crescimento da coleta,
percebe-se que este foi ligeiramente menor do que o primeiro, levando em consideração o ano anterior,
no entanto, a cobertura de coleta nas regiões e no Brasil apresentou um ligeiro avanço.

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Destinação final dos Resíduos Sólidos Urbanos (RSU)


Segundo a ABRELPE (2017), não houve nenhum avanço em relação à destinação final
ambientalmente adequada de RSU, em comparação ao ano de 2016. A destinação inadequada
representou 29 milhões de toneladas de RSU dispostos em lixões e aterros controlados, conforme a
figura a seguir.

Figura 2 – Destinação final dos RSU coletados no Brasil em 2016 e 2017 (ton/ano).

58,40% 59,10%

41,60% 40,90%

Adequado
Inadequado

2016 2017
Fonte – Adaptado de ABRELPE, 2017.

O aterro sanitário é a forma de destinação final mais utilizada no Brasil, atingindo em 2017 o
índice de 59,1%. No entanto, pode-se notar pela figura a seguir que o lixão ainda continua sendo uma
alternativa de disposição final bastante utilizada, apresentando um percentual igual a 18%, equivalente
a 12.909.320 (ton/dia), em 2017. (ABRELPE, 2017).

Figura 3 – Destinação final de RSU (ton/dia).


42.267.365

16.381.565
12.909.320

Aterro sanitário Aterro controlado Lixão


Fonte – Adaptado de ABRELPE, 2017.

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CLASSIFICAÇÃO DE RESÍDUOS
Como já definido, resíduos sólidos são gerados a partir de atividades de origem industrial, doméstica,
hospitalar, comercial, agrícola, de varrição, entre outras e podem ser utilizados como matéria-prima.
Em contrapartida, lixo pode ser entendido como algo inútil, que não pode ser reaproveitado.
Tecnicamente, resíduo sólido é definido como:

Resíduos no estado sólido e semissólido resultantes de atividades da comunidade de origem


industrial, doméstica, hospitalar, comercial, agrícola, de serviços e de varrição. Ficam incluídos nessa
definição lodos provenientes dos sistemas de tratamento de água, aqueles gerados em equipamentos
e instalações de controle de poluição, bem como determinados líquidos cujas particularidades
tornem inviável seu lançamento na rede pública de esgotos ou corpos d’água, ou exijam para isso
soluções técnicas e economicamente viáveis em face da melhor tecnologia disponível. (ABNT, NBR
10.004, 2004).

Destaca-se que todos os resíduos, estejam eles em estado líquido ou pastoso, são caracterizados
como resíduos sólidos.
Ainda de acordo com a norma técnica – NBR 10.004/2004, os resíduos são classificados como.
• Resíduos Classe I – Perigosos: “aqueles que apresentam periculosidade ou características como
inflamabilidade, corrosividade, reatividade, toxicidade, patogenicidade”. (ABNT, 2004).
Pode-se citar tintas, solventes, lâmpadas fluorescentes e pilhas como alguns exemplos para
esse tipo de resíduo.
• Resíduos Classe II – Não perigosos: esses resíduos podem ser divididos em duas outras classes:
• Resíduos Classe II A – Não inertes: “são aqueles resíduos que não são enquadrados nem
como resíduos perigosos (classe I) nem como resíduos inertes (classe II B), podendo
apresentar propriedades como biodegradabilidade, combustibilidade ou solubilidade em
água”. (ABNT, 2004). Pode-se citar como exemplos: matérias orgânicas, papéis, lodos,
entre outros.
• Resíduos Classe II B – Inertes: “são resíduos amostrados de forma representativa por
meio da NBR 10.007 (estabelece o procedimento para obtenção de extrato solubilizado
de resíduos sólidos) e submetidos a um contato dinâmico e estático com água destilada
ou desionizada, na temperatura ambiente, de acordo com a NBR 10.006 (estabelece o
procedimento para obtenção de extrato solubilizado de resíduos sólidos), que não tiverem
nenhum de seus constituintes solubilizados a concentrações superiores aos padrões de
potabilidade de água, excetuando-se o aspecto cor, turbidez, dureza e sabor”. (ABNT,
2004). Por exemplo: entulhos, materiais de construção.

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Apesar de os resíduos de construção civil serem considerados como inertes (classe II B), apresentam
resoluções específicas, Resolução Conama n.º 307/2002 (estabelece diretrizes, critérios e procedimentos
para a gestão dos resíduos da construção civil), e alterações posteriores, obtendo a seguinte classificação.
• Classe A: “resíduos reutilizáveis ou recicláveis como agregados. São aqueles provenientes de
construção, demolição, reformas e reparos de pavimentação ou edificações, como também
daqueles provenientes da fabricação ou demolição de peças pré-moldadas em concreto”.
(ABNT, 2004). Por exemplo, resíduos de alvenaria, de concreto, de peças cerâmicas, pedras,
restos de argamassa, entre outros.
• Classe B: “são os resíduos recicláveis para outras destinações”. (ABNT, 2004). Por exemplo,
plásticos (embalagens, PVC de instalações), papéis e papelões (embalagens de argamassa,
embalagens em geral, documentos), metais (perfis metálicos, tubos de ferro galvanizado,
marmitex de alumínio, aço, esquadrias de alumínio, grades de ferro e resíduos de ferro em geral,
fios de cobre, latas), madeiras (forma), vidro, embalagens vazias de tintas imobiliárias e gesso.
• Classe C: “são os resíduos para os quais não foram desenvolvidas tecnologias ou aplicações
economicamente viáveis que permitam a sua reciclagem ou recuperação”. (ABNT, 2004). Por
exemplo, estopas, lixas, manta asfáltica, massas de vidro e tubos de poliuretano.
• Classe D: “são os resíduos perigosos oriundos do processo de construção ou demolições”.
(ABNT, 2004). Por exemplo, tintas, solventes, óleos, resíduos de clínicas radiológicas, latas e
sobras de aditivos e desmoldantes, telhas e outros materiais de amianto, ou outros produtos
nocivos à saúde.

Destaca-se que cada tipo de resíduo tem um tempo de decomposição específico. O plástico, por
exemplo, leva mais de 400 anos para se decompor. Materiais como os metais levam mais de 100 anos e
o alumínio mais de 200 anos. Estima-se que o tempo de decomposição do vidro seja de mais de 1.000
anos e das borrachas é indeterminado.

GESTÃO DE RESÍDUOS SÓLIDOS URBANOS E


INDUSTRIAIS
A gestão dos resíduos sólidos urbanos e industriais deve sempre estar em consonância com os
princípios estabelecidos pela Agenda 21, bem como em atendimento às exigências legais.
A elaboração do Plano de Gerenciamento de Resíduos Sólidos (PGRS) visa à destinação final
adequada dos resíduos sólidos, evitando que os mesmos sejam jogados de forma indiscriminada no
meio ambiente. A seguir, é apresentada de forma detalhada a estrutura do PGRS.

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PLANO DE GERENCIAMENTO DE RESÍDUOS


SÓLIDOS

Acondicionamento
É a etapa de preparação dos resíduos para a coleta adequada de acordo com o tipo e a quantidade.
Os resíduos são acondicionados em recipientes próprios e mantidos até o momento em que são
coletados e transportados ao aterro sanitário ou outra forma de destinação final. Destaca-se que o
acondicionamento dos resíduos deve ser realizado de forma a evitar acidentes e proliferação de vetores.
Assim, essa etapa pode ser considerada temporária, mas sem dúvida ela é fundamental para o êxito
do PGRS, pois pode facilitar a coleta dos resíduos.
Para o acondicionamento temporário de resíduos, podem ser utilizadas caçambas, contêineres
e lixeiras destinados à coleta de resíduos recicláveis (coleta seletiva), dependendo do tipo de resíduo.
Cabe destacar que é fundamental a identificação dos recipientes onde os resíduos serão acondicionados,
sinalizando com figuras (cores) e dizeres e apresentando qual é o tipo de resíduos que corresponde
àquele recipiente para facilitar o correto descarte deles. De acordo com a Resolução Conama
n.º 275/2001 (CONAMA, 2001), para a identificação de coletores foram estabelecidos padrões de
cores para os diferentes tipos de resíduos:
• azul: papel, papelão;
• vermelho: plástico;
• verde: vidro;
• amarelo: metal;
• preto: madeira;
• laranja: resíduos perigosos;
• branco: resíduos ambulatoriais e de serviços de saúde;
• roxo: resíduos radioativos;
• marrom: resíduos orgânicos;
• cinza: resíduos em geral, não reciclável, misturado ou contaminado, não passíveis de separação.

A coleta seletiva permite que os materiais que podem ser reciclados sejam separados dos demais,
ou seja, os materiais recicláveis são separados em papéis, plásticos, metais e vidros, sendo que lixos
orgânicos (restos de alimentos, podas de árvores, folhas secas e outras partes das árvores) são utilizados
para a fabricação de adubos orgânicos por meio da compostagem ou são (deveriam ser) encaminhados
para o aterro sanitário.

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Cabe destacar que as pilhas, baterias e lâmpadas fluorescentes também devem ser separadas, pois
se descartadas inadequadamente no meio ambiente podem causar contaminação do solo em virtude
da presença de metais pesados em sua composição. Ainda nesse sentido, enquadram-se os resíduos
hospitalares em virtude da contaminação biológica que podem apresentar, devendo ser segregados dos
demais resíduos e destinados para incineração, pirólise, autoclavagem, micro-ondas, radiação ionizante,
desativação eletrotérmica ou tratamento químico.

Coleta
O passo seguinte é a coleta dos resíduos anteriormente acondicionados de forma correta. Essa
etapa deve ser realizada com frequência para evitar que o resíduo fique muito tempo exposto e ocorra
emissão de odores e atração de vetores. Por esse motivo, a regularidade da coleta é imprescindível, pois
reduz o acúmulo de resíduos nos recipientes de acondicionamento.
Cabe destacar que a coleta geralmente é realizada por caminhões, que transportam o resíduo até
o destino final pretendido.
Ainda nessa etapa, pode-se dizer que caso o acondicionamento de resíduos seja feito de forma
adequada, realizando a segregação do lixo, a coleta é facilitada, favorecendo posteriormente a reciclagem.
Ressalta-se ainda que, quando possível, deve ser realizada coleta periódica de resíduos especiais, como
pilhas, baterias e lâmpadas fluorescentes.
Dessa maneira, a coleta seletiva dos resíduos contribui de forma direta para a sustentabilidade,
pois reduz significativamente o consumo de recursos naturais, bem como minimiza a possibilidade de
poluição dos recursos hídricos e do solo.

Transporte
Após a fase de coleta dos resíduos, o próximo passo corresponde ao transporte desses resíduos à
etapa de tratamento e, posteriormente, à destinação final.
O transporte dos resíduos geralmente é realizado por caminhões específicos para tal finalidade.
Nessa etapa, devem ser tomados alguns cuidados com relação às exigências legais, buscando sempre
verificar e atender às normas de transporte de resíduos da localidade, bem como atentar para o
arquivamento de certificados e manifesto de transporte de resíduos, já que por meio destes é possível
se assegurar que o resíduo foi transportado de forma adequada até o destino final, que pode ser a
reciclagem ou o tratamento.

Reciclagem
A reciclagem é um processo no qual os resíduos são reaproveitados para um novo produto,
economizando matéria-prima que seria necessária para a produção de produtos novos.

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A reciclagem é facilitada pelo correto acondicionamento dos resíduos, por meio da realização da
coleta seletiva. Cabe destacar que as associações dos catadores também contribuem para a reciclagem,
uma vez que realizam a coleta dos resíduos e posteriormente efetuam a venda para as recicladoras,
aumentando o índice de separação de materiais para a reciclagem.
Em 2007, foi implantado em Curitiba o Projeto EcoCidadão, que é voltado para os catadores de
materiais recicláveis. Ele foi criado como alternativa para aumentar o índice de separação de materiais
para a reciclagem, fortalecendo a coleta informal e, especialmente, para o reconhecimento e a inclusão
do catador na cadeia de reciclagem, possibilitando o aumento de sua renda, sua proteção e resgate a
uma vida digna.
Dessa forma, os resíduos chegam aos recicladores segregados e prontos para reciclagem. No
entanto, é importante destacar que caso os resíduos não sejam separados de forma adequada, isso
resultará em problemas no processo de reciclagem.
O fato de se reciclar resíduos, sem dúvida, contribui para o aumento da vida útil dos aterros
sanitários, haja vista que uma menor quantidade de resíduos é encaminhada aos mesmos.
Nesse sentido, segundo Calderoni (2003), os ganhos proporcionados pela reciclagem decorrem
do fato de que é mais econômica a produção por meio da reciclagem do que de matéria-prima virgem,
pois a produção com base na reciclagem utiliza menos energia, matéria-prima, recursos hídricos,
reduzindo os custos de controle ambiental e também os de disposição final do resíduo.
Cabe destacar que a reciclagem apresenta relevância ambiental, econômica e social, com implicações
que se desdobram em diversas esferas, tais como: organização espacial, preservação e uso racional
dos recursos naturais, conservação e economia de energia, geração de empregos, desenvolvimento de
produtos, geração de renda, redução de desperdícios, entre outros. (CALDERONI, 2003).

Tratamento
Tem por objetivo reduzir a quantidade ou o potencial poluidor dos resíduos sólidos, impedindo
o descarte inadequado no meio ambiente e transformando-os em material inerte ou biologicamente
estável. Para os resíduos orgânicos, uma alternativa sustentável é a compostagem.

Compostagem
Segundo dados do Compromisso Empresarial para Reciclagem (CEMPRE), em 2015 cerca de
5% do lixo sólido orgânico urbano gerado no Brasil foi compostado.
O CEMPRE (2018a) define compostagem como o processo de produção de adubo por meio da
decomposição dos resíduos orgânicos. É um processo simples e pode ser feito em casa, seguindo apenas
alguns passos:
• primeiramente, é preciso escolher uma área no quintal. Não é preciso que a área seja
concretada, desde que o piso de terra esteja compactado para impedir a infiltração do

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chorume. Prepare sua área de compostagem em local fresco e seco, protegido da chuva e da
insolação direta;
• depois da definição da área, é necessário colocar uma primeira camada de 5 cm de resíduo de
palha ou folhas secas junto ao local definido. Sobre essa camada, coloque restos de comida e
outros resíduos orgânicos de fácil decomposição misturados. Em seguida, polvilhe um pouco
de terra (cerca de 5 cm) ou sobreponha uma nova camada de palha ou folhas secas. Intercale
as camadas até atingir a altura máxima de 1 m;
• faça sempre montes pequenos, de no máximo 1 m × 1 m × 1 m (comprimento × largura ×
altura) para facilitar a movimentação e o revolvimento do material. Uma vez por semana,
procure revirar o monte de composto e molhá-lo superficialmente. Lembre-se que quanto
mais triturado estiver o resíduo primário, mais rápida será sua decomposição e o preparo do
composto orgânico. O ideal é que os materiais tenham entre 10 e 40 milímetros de tamanho.

Caso prepare o composto orgânico em áreas abertas, evite misturar restos e pedaços de carne, que
poderão atrair insetos e roedores.
Com o passar dos dias perceberá que a temperatura do monte estará aumentando. Não se preocupe,
pois ela se elevará até aproximadamente 70 °C. Nunca se esqueça de revolver o monte, pois isso ajuda
a aerar a massa e manter a temperatura adequada.
Após esse período, o composto pode ser utilizado como adubo orgânico em uma infinidade de
espécies vegetais, como em fruticultura, jardins, paisagismo, gramados, reflorestamento, produção de
mudas, grãos, entre outros.

Destinação final
A última etapa do Plano de Gerenciamento de Resíduos Sólidos refere-se à destinação final dos
resíduos, configurando-se como um grande desafio para as cidades em virtude da grande quantidade
de material gerado.
Como alternativas de disposição final, podem ser citadas:

Lixão
Forma inadequada de disposição de resíduos, pois o local não tem nenhum tipo de tratamento.
O resíduo é disposto diretamente no solo, o que pode causar diversos tipos de contaminação, além da
atração de vetores e odores, não recebendo nenhuma técnica de tratamento, além de se localizar em
locais inadequados.
Essa disposição ainda tem como agravante a presença de pessoas, as quais se utilizam da garimpagem
do lixo como forma de sobrevivência e até mesmo para alimentação, podendo ainda contrair várias
doenças, tornando-se, dessa maneira, um grave problema social.

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Aterro controlado
Os aterros controlados, ao contrário do aterro sanitário, visam apenas à cobertura dos resíduos
com uma camada de terra, evitando a proliferação de vetores e o seu carreamento pelas águas pluviais,
não dispondo de área impermeabilizada nem tratamento do chorume ou coleta e queima de biogás.
Essa forma de disposição é preferível ao lixão, mas ainda não é considerada a melhor escolha, pois
apenas minimiza os impactos ambientais, mas não previne a sua poluição.

Aterro sanitário
O aterro sanitário é uma alternativa de disposição final que consiste na compactação dos resíduos
sólidos em camadas. O solo é impermeabilizado, o chorume coletado e posteriormente tratado,
evitando a contaminação das águas subterrâneas. O gás metano gerado em virtude da decomposição
anaeróbia da matéria orgânica no interior do aterro muitas vezes é queimado, podendo também ser
realizado o aproveitamento energético para geração de energia elétrica.
Cabe lembrar que o aterro sanitário é um passivo ambiental, já que essa área nunca poderá ser
novamente utilizada em virtude do grande armazenamento de resíduos e produção contínua de gás
metano. Seu único destino será a geração de áreas verdes.
As principais características do aterro sanitário são:
• impermeabilização da base do aterro, evitando o contato do chorume com as águas subterrâneas,
podendo usar geomembranas sintéticas;
• instalação de drenos de gás, constituindo-se como um canal de saída do gás metano do
interior do aterro para a atmosfera. Esse gás pode ser apenas queimado e transformado em gás
carbônico ou pode ser recolhido para o aproveitamento energético;
• sistema de coleta de chorume, por meio de drenos que coletam o líquido decorrente
da decomposição da matéria orgânica. Esse líquido coletado é enviado para o sistema de
tratamento de efluentes;
• sistema de tratamento de chorume, onde é coletado e encaminhado para um sistema de
tratamento para posterior descarte em um curso hídrico. O tratamento pode ser feito
no próprio local ou o chorume coletado pode ser transportado para um local apropriado
(geralmente uma Estação de Tratamento de Esgotos). O tipo de tratamento varia, podendo
ser utilizados tratamentos mais convencionais por meio da utilização de lagoas anaeróbias,
aeróbias e lagoas de estabilização ou também pela adição de substâncias químicas ao
chorume;
• sistema de drenagem de águas pluviais, evitando que se juntem ao chorume. Esse sistema de
captação e drenagem de águas de chuva tem por objetivo drenar a água por locais apropriados
para evitar a infiltração e o contato com o chorume, minimizando o volume a ser tratado.

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Incineração
A incineração é a técnica de queima de resíduos, a qual é altamente utilizada nos países desenvolvidos
e que têm indisponibilidade de área e capacidade de altos investimentos. Essa técnica visa à diminuição
da quantidade e do volume de resíduos, bem como a sua toxicidade. No entanto, origina o problema
da geração da cinza após a queima, a qual ainda necessita de um destino final adequado.
A incineração consiste na combustão controlada de resíduos com temperaturas entre 900 °C e
1.200 °C, transformando o resíduo em dióxido de carbono, vapor de água e cinza, podendo gerar
a dispersão de gases tóxicos, necessitando de filtros especiais para evitar a poluição do ar. Uma das
vantagens dessa técnica é que a combustão pode ser transformada em energia térmica.

POLÍTICA NACIONAL DE RESÍDUOS SÓLIDOS


Em 2 de agosto de 2010 foi instituída a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), por meio
da Lei n.º 12.305. (BRASIL, 2010). A PNRS é considerada um marco histórico da gestão ambiental
no Brasil, pois lança uma visão moderna na luta contra um dos maiores problemas do planeta: o lixo
urbano. (CEMPRE, 2018b). A PNRS reúne princípios, objetivos, instrumentos e diretrizes para a
gestão dos resíduos sólidos.
A PNRS também distingue o lixo que pode ser reaproveitado ou reciclado e o que não é passível
de reaproveitamento, referindo-se ainda aos demais tipos de resíduos.
A tabela a seguir apresenta as alterações decorrentes após a instituição da Política Nacional de
Resíduos Sólidos, mostrando um panorama ‘antes/depois’ da lei.

Quadro 1 – O que muda com a Lei 12.305.

Antes Depois

Poder público
Falta de prioridade para o lixo urbano. Municípios farão plano de metas sobre resíduos com participação
dos catadores.
Existência de lixões na maioria dos municípios. Os lixões precisam ser erradicados em 4 anos.
Resíduo orgânico sem aproveitamento. Prefeituras passam a fazer compostagem.

Coleta seletiva cara e ineficiente. É obrigatório controlar custos e medir a qualidade do serviço.

Empresas
Inexistência de lei nacional para nortear os investi- Marco legal estimulará ações empresariais.
mentos das empresas.

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População

Falta de incentivos financeiros. Novos instrumentos financeiros impulsionarão a reciclagem.

Baixo retorno de produtos eletrônicos pós-consumo. Mais produtos retornarão à indústria após o uso pelo consumidor.

Desperdício econômico sem a reciclagem. Reciclagem avançará e gerará mais negócios com impacto na gera-
ção de renda.

Catadores
Exploração por atravessadores e riscos à saúde. Catadores reduzem riscos à saúde e aumentam renda em coope-
rativas.

Informalidade. Cooperativas são contratadas pelos municípios para coleta e reci-


clagem.
Problemas de qualidade e quantidade dos materiais. Aumenta a quantidade e melhora a qualidade da matéria a ser re-
ciclada.
Falta de qualificação e visão de mercado. Trabalhadores são treinados e capacitados para ampliar produção.

População

Não há separação do lixo reciclável nas residências. Consumidor fará separação mais criteriosa nas residências.
Falta de informação. Campanhas educativas mobilizarão moradores.
Falhas no atendimento da coleta municipal. Coleta seletiva melhorará para recolher mais resíduos.
Pouca reivindicação junto às autoridades. Cidadão exercerá seus direitos junto aos governantes.

Fonte – Adaptado de CEMPRE, 2018b.

Em nível estadual, o estado do Paraná promulgou em 1999 a Lei n.º 12.493, que rege os “princípios
e normas referentes à geração, acondicionamento, armazenamento, coleta, transporte e destinação final
dos resíduos sólidos no Paraná, visando o controle da poluição, da contaminação e a minimização
de seus impactos ambientais”. (PARANÁ, 1999). Essa lei responsabiliza as empresas geradoras de
resíduos por todas as etapas da gestão e disposição final, assim como pelo passivo ambiental causado
pela desativação da fonte geradora e recuperação de áreas degradadas. Também proíbe o lançamento
in natura a céu aberto, a queima a céu aberto, o lançamento em corpos d’água, terrenos baldios, redes
públicas, poços, em redes de drenagem pluvial, de esgotos, de eletricidade e de telefone.
No Paraná, a Lei n.º 19.261, de dezembro de 2017, cria o Programa Estadual de Resíduos Sólidos do
Paraná para atendimento às diretrizes da Política Nacional de Resíduos Sólidos no Estado do Paraná e dá
outras providências, visando apoiar a gestão integrada dos resíduos sólidos nos municípios paranaenses.
O lixo é um dos maiores problemas dos centros urbanos. Além da sujeira que deixa as cidades
visualmente feias, representa foco de doenças graves. A coleta do lixo é atribuição da prefeitura, mas
cuidar e evitar que ele seja depositado nos córregos e em lugares inadequados é uma responsabilidade
de todos nós.

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INICIATIVAS DE DESTINO FINAL ADEQUADO


ADOTADAS NO PARANÁ
A seguir, serão apresentados alguns exemplos de programas que adotaram a coleta seletiva.

Curitiba
A prefeitura de Curitiba incentiva a separação de resíduos por meio de dois programas diferentes
de coleta seletiva, sendo eles:
• ‘lixo que não é lixo’ – coleta regular de materiais recicláveis, tais como papéis, plásticos, vidros,
metais, sucatas, entre outros. É realizada entre uma e três vezes por semana, atingindo toda a
cidade;
• ‘câmbio Verde’ – visa à troca de material reciclável por hortifrutigranjeiros nas periferias da
cidade, para famílias com renda salarial entre 0 e 3,5 salários mínimos. Atualmente são cerca
de 100 locais para troca. Cada quatro quilos de lixo vale um quilo de frutas e verduras.
Óleos vegetal e animal também podem ser trocados: cada dois litros de óleo vale um quilo de
alimento. (CURITIBA, 2018).

Guarapuava

• ‘Coleta Seletiva’ – o morador acondiciona todos os materiais recicláveis em um saco ou caixa,


separados do lixo orgânico e de rejeitos, e os caminhões da coleta seletiva fazem o recolhimento
seguindo o calendário por bairros da cidade. Os materiais recolhidos são encaminhados à
cooperativa Reciclasol para a triagem, gerando renda e trabalho para os operadores ecológicos.
São separados plástico, vidro, papel, metal e óleo de cozinha (colocado em recipiente fechado).
Pneus velhos que já não são mais utilizados também podem ser entregues no ecoponto
específico da cidade para serem destinados corretamente. (GUARAPUAVA, 2018).

Instituto das Águas do Paraná

• ‘Reciclo’ – Sistema Integrado de Coleta Seletiva – realizado por meio de convênio com as
prefeituras. A primeira etapa consiste na liberação de recursos para a aquisição de um caminhão
próprio para a coleta seletiva. Como contrapartida, o município se responsabiliza pela instalação
dos barracões da unidade de processamento dos materiais recicláveis, motorista para o veículo
de coleta e a manutenção dos equipamentos. Em outra etapa, são destinados os equipamentos
para a triagem e reciclagem, conforme a necessidade de cada município. (PARANÁ, 2018).

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O programa efetuou um repasse, entre os anos de 2015 a 2017, no valor de R$ 82.840.000,00 para
300 municípios, referente a caminhões coletores de lixo reciclável; R$ 2.208.960,00 a 117 municípios
com carrinhos e cestos para coleta seletiva; e R$ 8.864.000,00 a 40 municípios, referente a equipamentos
de triagem e processo de resíduo reciclável.

Companhia Paranaense de Energia (COPEL)

• ‘Coleta Seletiva Solidária’ – programa que visa garantir a destinação de resíduos recicláveis
administrativos às associações e cooperativas de materiais recicláveis. Tem alto impacto social,
pois contribui com a geração de renda e melhoria das condições de trabalho dos catadores.
(COPEL, 2018).

CONCLUSÕES
Nota-se, por meio do exposto, que a questão dos resíduos sólidos envolve diversas esferas,
as quais têm relação direta com a qualidade de vida da população, bem como com os princípios
da sustentabilidade, já que o consumo responsável faz com que se reduza de forma significativa a
quantidade de resíduos gerada.
Outro fator importante a se considerar é o grande problema ambiental que vem sendo gerado em
decorrência da destinação final inadequada dos resíduos, prejudicando a qualidade ambiental do meio
em que vivemos.
Ainda nesse sentido, faz-se necessário o entendimento da complexidade relacionada aos
resíduos sólidos, e aqui cabe destacar a questão social (pois muitas pessoas dependem do lixo para
sua sobrevivência), a questão econômica (por exemplo, a geração de renda envolvida no trabalho
dos catadores) e a questão ambiental, cuja magnitude só será percebida pela população com o passar
dos anos.
Dessa forma, é fundamental que se perceba o quão importante é questão dos resíduos frente aos
problemas ambientais, sociais e econômicos gerados, assim como entender que muito ainda se pode
fazer individualmente.

BIBLIOGRAFIA
ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas. NBR 10.004:2004. Resíduos sólidos – classificação. Rio
de Janeiro, 2004. p. 71.
ABRELPE – Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais. Panorama dos
resíduos sólidos no Brasil. 2017. Disponível em: http://abrelpe.org.br/panorama. Acesso em: 11 nov. 2019.

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467

BRASIL. Lei n.º 12.305/2010 – Institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos; altera a Lei n.º 9.605, de
12 de fevereiro de 1998; e dá outras providências. Brasília, 2010.
CALDERONI, S. Os bilhões perdidos no lixo. 4 ed. São Paulo: Humanitas, 2003.
CEMPRE – COMPROMISSO EMPRESARIAL PARA RECICLAGEM. Composto Urbano. Disponível em:
http://cempre.org.br/artigo-publicacao/ficha-tecnica/id/10/composto-urbano. 2019a. Acesso em: 11 nov. 2019.
CEMPRE – COMPROMISSO EMPRESARIAL PARA RECICLAGEM. Política Nacional de Resíduos
Sólidos – Agora é lei: Novos desafios para poder público, empresas, catadores e população. 2019b. Disponível
em: http://cempre.org.br/artigo-publicacao/artigos. Acesso em: 11 nov. 2019.
CONAMA – CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE. Resolução n.º 275, de 25/04/2001.
Estabelece o código de cores para os diferentes tipos de resíduos, a ser adotado na identificação de coletores e
transportadores, bem como nas campanhas informativas para a coleta seletiva. Diário Oficial da União, Seção
1, Brasília, n. 117-E, p.80, 19 jun. 2001
CONAMA – CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE. Resolução n.º 307, de 05/07/2002.
Diretrizes, critérios e procedimentos para gestão dos resíduos da construção civil. Diário Oficial da União,
Brasília, 2002.
COPEL – COMPANHIA PARANAENSE DE ENERGIA. Coleta Seletiva Solidária. Disponível em:
http://www.copel.com/hpcopel/root/nivel2.jsp?endereco=%2Fhpcopel%2Froot%2Fpagcopel2.nsf%2Fdocs%
2FFD74F4507A0C9D1003257473006267E2. Acesso em: 11 nov. 2019.
CURITIBA. Prefeitura Municipal. Programa Câmbio Verde. Disponível em: http://www.curitiba.pr.gov.br/
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GUARAPUAVA. Prefeitura Municipal. Coleta Seletiva. Disponível em: http://www.guarapuava.pr.gov.br/
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MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE – MMA. Manejo ambientalmente saudável dos resíduos
sólidos e questões relacionadas com os esgotos. Disponível em: http://www.mma.gov.br/responsabilidade-
socioambiental/agenda-21/agenda-21-global/item/681. Acesso em: 11 nov. 2019.
NAGASHIMA, L. A.; BARROS JÚNIOR, C.; ARAÚJO, C. C.; SILVA, E. T.; HOSHIKA, C. (2011) Gestão
integrada de resíduos sólidos urbanos: uma proposta para o município de Paranavaí, Estado do Paraná, Brasil.
Acta Scientiarum Technology, Maringá, v. 33, n. 1, p. 39-47.
PARANÁ. Águas do Paraná. Instituto das Águas do Paraná. Sistema Integrado de Coleta Seletiva: um
Programa Inovador que atrai prefeitos. Disponível em: http://www.aguasparana.pr.gov.br/pagina-326.html.
Acesso em: 11 nov. 2019.
PARANÁ. Casa Civil. Lei nº 12.493/1999. Estabelece princípios, procedimentos, normas e critérios referentes
à geração, acondicionamento, armazenamento, coleta, transporte, tratamento e destinação final dos resíduos
sólidos no Estado do Paraná, visando controle da poluição, da contaminação e a minimização de seus impactos
ambientais e adota outras providências. Curitiba, 1999.
RAMOS, N. F. et al. Desenvolvimento de ferramenta para diagnóstico ambiental de lixões de resíduos sólidos
urbanos no Brasil (2016). Eng. Sanit. Ambient, v. 22 n. 6. nov.-dez. 2017, p. 1234-1241.
SILVA, P. S.; ALMEIDA, M. V. Módulo didático: lixo, saúde e ambiente. Educação Ambiental Centro de
Referência Virtual do Professor – SEE-MG, ago. 2010.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
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ALTERNATIVAS VIÁVEIS PARA USO DE RESÍDUOS


SÓLIDOS – ASPECTOS GERAIS

Ivonete Coelho da Silva Chaves


Rossana Baldanzi

INTRODUÇÃO
Em 1785 o químico francês Antoine Laurent Lavoisier, considerado pai da química moderna,
descobriu a Lei de Conservação das Massas, também conhecida como Lei de Lavoisier. Após diversas
experiências em que pesou as substâncias participantes antes e depois da reação, ele verificou que a massa
total do sistema permanecia inalterada quando a reação ocorria num sistema fechado, concluindo desse
modo que a soma total das massas das espécies envolvidas na reação (reagentes) é igual à soma total das
massas das substâncias produzidas pela reação (produtos).
Essa lei também pode ser enunciada pela famosa frase de Lavoisier “Na natureza nada se cria e nada
se perde, tudo se transforma”. Dessa forma, podemos tranquilamente relacionar a Lei de Conservação
das Massas ao gerenciamento de resíduos sólidos, que nada mais são do que matérias as quais por
algum motivo foram descartadas, mas que podem ser transformadas em algo de valor, com foco na
preservação do meio ambiente.
Assim, vislumbrando a preservação dos recursos ambientais, a economia de insumos e energia
e a minimização da poluição ambiental, os resíduos sólidos, seja qual for sua composição, requerem
responsabilidade coletiva e têm merecido cada vez mais a atenção da administração pública, do setor
privado e da sociedade civil em relação a sua geração e destinação, e seu gerenciamento tem sido
associado às medidas de prevenção e correção dos problemas.

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A gestão adequada dos resíduos é uma preocupação crescente em todo o mundo. No Brasil, a
Política Nacional de Resíduos Sólidos, instituída pela Lei n.º 12.305/2010, reflete essa preocupação ao
estabelecer a obrigatoriedade do aproveitamento dos resíduos e a busca por alternativas de destinação
ambientalmente adequadas. (BRASIL, 2010).

RECURSOS NATURAIS
Trata-se de todos os elementos da natureza – como a luz solar, a água, o solo, os minérios, o ar, os
animais, os vegetais – que são utilizados pelo ser humano com a finalidade de este desenvolver as mais
variadas atividades. Os recursos naturais dividem-se em ‘renováveis’ e ‘não renováveis’.

Recursos naturais não renováveis


São aqueles que uma vez retirados do ambiente não podem ser recolocados pelo ser humano. São
exemplo o petróleo, os minerais (carvão de pedra, xisto, ferro, manganês, cobre, pedras preciosas), a
matéria-prima do vidro (sílica, soda cáustica e cal), entre outros.
Como o próprio nome já menciona, esses recursos não se renovam e devem ser retirados da
natureza com sabedoria, ou seja, de forma planejada, assim teremos nossas reservas de recursos não
renováveis por um período maior de tempo.

Recursos naturais renováveis


São aqueles que podem ser recolocados na natureza. Assim, quando o ser humano retira da
natureza os vegetais para sua alimentação, deve plantar novos vegetais para nova retirada, sem deixar
faltar para sua alimentação. Se retirar árvores para a fabricação de móveis, utensílios e lenha, ele deve
se preocupar em realizar novas plantações e não usufruir daquelas que já existem.
O Brasil tem uma série de recursos animais que podem ser utilizados pelo ser humano. Eles servem
de alimento, como a carne, os ovos e o leite. Também fornecem couro e pele para a fabricação de bolsas,
sapatos, cintos e roupas e ainda servem como meio de transporte, como é o caso dos bois e cavalos.

RESÍDUOS SÓLIDOS NO MUNDO


Dos vários problemas ambientais decorrentes do mundo moderno, a geração de resíduos
apresenta-se como um dos mais preocupantes.
A Revolução Industrial, que se iniciou na Inglaterra no século XVIII, ocasionou um grande
avanço tecnológico, o que proporcionou produções em alta escala e com preços mais acessíveis,

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estimulando o consumo sem a preocupação com a geração de resíduos, que necessitariam de um


destino ambientalmente correto.
Desse modo, materiais como plástico, vidro, metal e papel passaram a estar presentes no cotidiano
das pessoas, principalmente como embalagens de alimentos, de vestuário, entre outros.
De acordo com dados constantes do trabalho de Mota e Silva (2016), a Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD), composta por 34 países-membros, mais África
do Sul, China e Rússia, divulgou que a geração per capita dos resíduos sólidos varia de 115 kg/hab./ano
na China a 830 kg/hab./ano na Noruega.
Segundo relatório divulgado pelo Banco Mundial (What a Waste: A Global Review of Solid
Waste Management), atualmente se gera aproximadamente 1,3 bilhão de toneladas de resíduos sólidos
por ano no mundo, o correspondente a 1,2 kg por dia por habitante. E o mais impressionante é que
esse volume deve aumentar para 2,2 bilhões de toneladas em 2025.
A Figura 1 revela como essa geração é distribuída no mundo:

Figura 1 – Geração de resíduos sólidos ao redor do mundo.

Resíduos sólidos
urbanos
Cuba
> 2,50 Haiti
2,0-2,49 República
Dominicana
1,5-1,99 Jamaica Antígua e Barbuda
São Cristóvão
1,01,49 e Névis Dominica
Mar do Santa Lúcia
0,5-0,,99 Caribe São Vicente e Barbados
0,0-0,49 Granadinas Granada
sem dados Trindade e Tobago

Fonte – The Economist, 2012.

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A composição desses resíduos é influenciada por diversos fatores, como desenvolvimento econômico
da região, fontes de energia utilizadas, cultura e clima. Conforme um país se desenvolve e sua população
se torna mais rica, o consumo de materiais inorgânicos (plástico, papel e alumínio) aumenta, enquanto
a parcela orgânica diminui. A Figura 2 mostra a composição global de resíduos sólidos em 2009.

Figura 2 – Geração de resíduos sólidos ao redor do mundo.

Composição global de resíduos sólidos

Outros
18%

Metal
4%
Vidro Orgânico
5% 45%

Plástico
10%

Papel
17%
Fonte – Hoornweg; Bhada-Tata, 2012.

Dessa maneira, a gestão dos resíduos e o descarte correto de materiais se torna cada dia mais
imprescindível para que o mundo caminhe para um desenvolvimento sustentável. Felizmente, em
termos mundiais, se tem investido muito em tecnologias de tratamento e destinação final de resíduos,
principalmente para a geração de energia, cuja geração depende de recursos naturais cada vez mais escassos.
Assim, a gestão de resíduos e sua destinação adequada se tornam cada dia mais imprescindíveis
para que o mundo caminhe para um desenvolvimento sustentável.

RESÍDUOS SÓLIDOS NO BRASIL


No Brasil, da mesma forma como ocorreu no mundo, a geração de resíduos passou a ser um
problema no final do século XVIII devido ao exponencial desenvolvimento industrial, que só aumentou
com o passar dos anos, justamente pelos avanços tecnológicos nos meios produtivos. Isso ocasionou
a elevação do consumo, assim como a crescente necessidade de matérias-primas e de alimentos,
acarretando os mesmos problemas no campo.
A gestão de resíduos sólidos iniciou-se efetivamente após a adoção da Agenda 21, programa voltado
ao desenvolvimento sustentável lançado na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento (Rio-92).

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A Agenda 21 considera que a gestão de resíduos sólidos requer a participação de toda a sociedade,
ou seja, de acordo com ela o poder público, o setor empresarial, os consumidores e outros segmentos
da sociedade devem estimular a produção de bens e serviços ambientalmente saudáveis, a reciclagem e
a reutilização do produto consumido e dos insumos usados nos processos de produção e ainda reduzir
o desperdício na embalagem dos produtos.
A linha do tempo referente à Política Nacional de Gestão e Gerenciamento de Resíduos Sólidos
remonta ao final da década de 1980. Com base em uma proposição apresentada no Senado Federal, tal
projeto dispôs especificamente sobre resíduos de serviços de saúde. No decorrer de sua longa tramitação,
ele passou a incorporar questões distintas relativas a resíduos sólidos e se consolidou em uma proposta
legislativa alicerçada nos princípios estabelecidos na Agenda 21.
Em setembro de 2007, o Poder Executivo propôs em 1991 um projeto de lei referente à Política
Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), justificando que o estilo de vida da sociedade acarretava sérios
impactos ambientais e sociais à saúde pública, incompatíveis com o modelo de desenvolvimento
sustentado que se pretendia implantar no Brasil.
Assim, no dia 2 de agosto de 2010, após várias discussões com toda a sociedade e a aprovação do
PL na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, o Governo Federal sancionou a Lei n.º 12.305, que
criou a Política Nacional de Resíduos Sólidos. Publicada no Diário Oficial da União em 3 de agosto, a
lei é considerada um marco histórico na legislação ambiental do país.
No dia 23 de dezembro do mesmo ano foi publicado, no Diário Oficial da União, o Decreto
n.º 7.404, que regulamentou a Lei n.º 12.305 e criou o Comitê Interministerial da Política Nacional de
Resíduos Sólidos e o Comitê Orientador para a Implantação dos Sistemas de Logística Reversa.
A PNRS foi um marco no setor por tratar de todos os resíduos sólidos (materiais que podem ser
reciclados ou reaproveitados), sejam eles domésticos, sejam industriais, eletroeletrônicos, entre outros,
e também por tratar a respeito de rejeitos (itens que não podem ser reaproveitados), incentivando o
descarte correto de forma compartilhada ao integrar poder público, iniciativa privada e cidadãos.
Além da responsabilidade compartilhada, a lei prevê a logística reversa, um conjunto de ações que
deverá ser implementado para viabilizar a coleta e o retorno dos resíduos ao setor empresarial, que será
responsável pelo reaproveitamento ou outra destinação adequada de seus produtos.
A lei também estabelece metas importantes para a eliminação dos lixões e prevê a implantação de
aterros sanitários, que deverão receber apenas rejeitos ou materiais que ainda não podem ser reciclados
ou reaproveitados. Esses aterros deverão ser construídos com valas impermeabilizadas para evitar a
contaminação do solo e lençóis freáticos.
Outro instrumento importante da nova lei é a obrigatoriedade municipal de elaboração dos
Planos Municipais de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos (PMGIRS), que se tornaram condição
obrigatória para o Distrito Federal e os municípios terem acesso aos recursos da União, destinados à
limpeza urbana e ao manejo de resíduos sólidos.
A lei ainda propõe a redução do volume de resíduos gerados, a ampliação da reciclagem associada
a sistemas de coleta seletiva com a inclusão social de catadores. Outros princípios importantes da

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lei são referentes à prevenção e precaução, ao poluidor-pagador, à ecoeficiência, ao reconhecimento


do resíduo como bem econômico e de valor social, ao direito à informação e ao controle social,
entre outros.
De acordo com a Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais
(ABRELPE), embora a Lei Federal n.º 12.305/2010 (BRASIL, 2010) esteja em vigor há mais de sete
anos, ela ainda carece de aplicação prática em vários pontos, pois:
• a geração de resíduos se mantém em patamares elevados;
• a reciclagem ainda patina;
• a logística reversa não mostrou a que veio;
• no país mais de três mil municípios realizam destinação inadequada dos resíduos, apesar da
proibição disso desde 1981 e de o prazo estabelecido pela PNRS ter-se encerrado em 2014,
sem ter havido prorrogação, como alguns têm se manifestado.

Conforme análise dos dados apresentados no documento, verificou-se que as disposições da lei,
por si só, não proporcionaram os tão esperados avanços no setor, e a recessão da economia trouxe
impactos negativos para as práticas até então verificadas, que retrocederam em diversos pontos. Em
termos de geração de Resíduos Sólidos Urbanos (RSU), o Panorama mostra que:
• houve redução na produção de resíduos de aproximadamente 2% em relação ao ano de 2015,
porém o volume total se mantém acima das 200.000 toneladas por dia, o que implica em
pouco mais de um quilograma de resíduos descartados por pessoa diariamente;
• a cobertura dos serviços de coleta de RSU passou de 90,8% para 91,2% do volume gerado;
• a coleta seletiva pouco avançou e hoje só há iniciativas registradas em 69,6% das cidades, de
forma que os índices de reciclagem se mostram estagnados há alguns anos.

Assim, por conta desses pontos e pela ausência de iniciativas consolidadas para aproveitamento e
recuperação da fração orgânica, o documento mostra que há uma sobrecarga nos sistemas de destinação
final e que por conta disso grande quantidade de resíduos ainda é depositada em lixões.
Além da coleta e destinação de Resíduos Sólidos Urbanos (RSU), os municípios ainda são
responsáveis por gerenciar um grande volume de Resíduos de Construção e Demolição (RCD) e de
Resíduos de Serviços de Saúde (RSS), os quais legalmente deveriam estar sob responsabilidade dos
respectivos geradores, conforme dispõe a legislação vigente, e também deveriam ser adicionados ao
total de RSU coletado.
O documento conclui ainda, no que se refere a resíduos sólidos urbanos, que para reverter esse
quadro deficitário atual e promover os avanços determinados pela legislação e pelas orientações vigentes
é indispensável a instituição de instrumento específico de remuneração dos serviços de limpeza urbana
pelos municípios brasileiros.

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No tocante aos resíduos industriais, pode-se afirmar que a situação difere dos RSU. Tal fato
se deve principalmente à premissa de que a geração de resíduos em processos produtivos significa
desperdício e consequente redução nos lucros das empresas.
Outros pontos significativos nessa abordagem são:
• adoção de práticas ambientalmente adequadas, como reaproveitamento antes do descarte ou
da reciclagem no mesmo ou em outro processo produtivo;
• legislações e regulamentações ambientais;
• exigências dos consumidores;
• iniciativas da alta administração.

RESÍDUOS SÓLIDOS NO PARANÁ


A gestão e o gerenciamento de resíduos sólidos no estado do Paraná foram estabelecidos por meio
da Lei Estadual n.º 12.493/99, que instituiu a Política Estadual de Resíduos Sólidos e o respectivo
Decreto Estadual n.º 6674, de 03/12/2002.
Essas políticas dispõem sobre princípios, procedimentos, normas e critérios referentes à geração,
ao acondicionamento, à armazenagem, ao transporte, ao tratamento e à destinação final dos Resíduos
Sólidos no estado do Paraná e estabeleceu como princípios básicos:
• não geração;
• minimização;
• reaproveitamento;
• reciclagem;
• tratamento e disposição final adequados.

Em atendimento à Política Nacional de Resíduos Sólidos, foram criados no estado do Paraná o


Programa Estadual de Resíduos Sólidos ou Programa Paraná Resíduos e o Plano Estadual de Resíduos
Sólidos do Paraná (PERS/PR).
O primeiro programa, criado pela Lei Estadual n.º 19.261, de 07/12/2017, tem como premissa
o atendimento às diretrizes da Política Nacional de Resíduos Sólidos no Estado do Paraná e deve
atender as diretrizes definidas na Política Nacional de Resíduos Sólidos. Ele tem como princípios e
fundamentos:
• ações de incentivo à educação ambiental;
• visão sistêmica na gestão dos resíduos sólidos;

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• gestão integrada, compartilhada e participativa dos resíduos sólidos;


• controle e fiscalização da gestão de resíduos sólidos;
• regionalização do gerenciamento de resíduos sólidos;
• minimização dos resíduos por meio de incentivos às práticas ambientalmente adequadas de
reutilização e reciclagem;
• responsabilidade pela destinação dos resíduos por parte dos geradores, produtores ou
importadores de matérias-primas, de produtos intermediários ou acabados, transportadores,
distribuidores, comerciantes, consumidores, catadores, coletores e operadores de resíduos
sólidos em qualquer das fases de seu gerenciamento;
• atuação em consonância com as políticas estaduais de recursos hídricos, meio ambiente,
saneamento, saúde, educação, desenvolvimento social e econômico;
• reconhecimento dos resíduos sólidos reutilizáveis e recicláveis como um bem econômico
gerador de trabalho e renda;
• valorização da dignidade humana e a promoção da erradicação do trabalho infantojuvenil nas
atividades relacionadas aos resíduos sólidos, com a finalidade de sua integração social e de sua
família;
• incentivo sistemático às atividades de reutilização, coleta seletiva, compostagem, reciclagem e
valorização de resíduos, podendo, inclusive, serem criados mecanismos de redução tributária
às empresas que se encaixarem nesse perfil.

Já o segundo programa é um importante instrumento no processo de planejamento da gestão de


resíduos sólidos no estado. Além dos resíduos sólidos urbanos, ele contempla os resíduos de saúde, de
construção civil, de transporte, de mineração, de saneamento, industriais e agrossilvopastoris.
Assim, tanto para a implementação do Programa Estadual de Resíduos Sólidos como para a elaboração
do Plano Estadual de Resíduos Sólidos do Paraná foi necessário conhecer as quantidades geradas de
resíduos, sua tipologia, sua forma de tratamento e sua disposição final. Dessa forma, são realizados pelo
Instituto Água e Terra (IAT) o Diagnóstico da Situação da Disposição Final de Resíduos Sólidos Urbanos
no Estado do Paraná e o Inventário de Resíduos Sólidos Industriais no Estado do Paraná.
O último relatório referente ao Diagnóstico da Situação da Disposição Final de Resíduos Sólidos
Urbanos no Estado do Paraná, realizado ao longo do ano de 2016, demonstrou que dos 399 municípios,
301 (75,4%) dispõem os RSU em áreas de aterro sanitário, 74 (18,5%) em áreas de aterro controlado
e 24 (6,0%) em áreas de lixão.
As informações levantadas por esse Diagnóstico foram comparadas com os resultados obtidos no
Diagnóstico de 2013, e esse comparativo demonstrou que parte dos municípios já se regularizou e passou
a destinar seus resíduos sólidos em áreas devidamente licenciadas. Verificou-se também o aumento da
população atendida quanto à destinação adequada dos resíduos, conforme gráficos comparativos.

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Em atendimento à Resolução 313/2002 do Conselho Nacional do meio ambiente (CONAMA),


que dispõe sobre o Inventário Nacional de Resíduos Sólidos Industriais e estabelece que os diversos
setores industriais devem apresentar informações sobre geração, características, armazenamento,
transporte e destinação dos resíduos, o Estado do Paraná instituiu o Inventário Estadual de Resíduos
Sólidos Industriais.
Assim, por meio de informações prestadas pelo setor industrial foi elaborado o Relatório da Situação
do Inventário de Resíduos Sólidos Industriais no Estado do Paraná, que apresentou o diagnóstico da
situação de resíduos sólidos industriais nesse estado. O Relatório apontou as seguintes situações:
• A geração de resíduos é mais concentrada na região noroeste do estado do Paraná;
• Dentre os destinos específicos para os resíduos registrados nos inventários enviados
destacaram-se os quatro maiores montantes: utilização em caldeira; fertirrigação; incorporação
em solo agrícola; sucateiros intermediários.

Figura 3 – Formas de tratamento dos resíduos sólidos no Paraná.

% de formas de tratamento de resíduos sólidos


industriais no Paraná

Reprocessamento
de óleo
Reprocessamento
de solventes Incinerador

Outras formas de
utilização
Compostagem
Reutilização/
/Reciclagem/
/Recuperação

Sucateiros
intermediários

Re-refino de óleo

Incorporação em
solo agrícola
Logística reversa

Fonte – IAP, 2016.

Considerando os grupos de disposição final de acordo com as contribuições classificadas, foi


obtido o gráfico representado na Figura 4.

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Figura 4 – Grupos de disposição final dos resíduos industriais no Paraná.


Disposição final Reutilização/Reciclagem/Recuperação
inadequada 0,1%
0,1%
Tratamento
Disposição final 0,9%
adequada
8,5%

Coprocessamento
90,4%
Fonte – IAP, 2016.

Dessa forma, pode-se afirmar que a destinação predominante no estado do Paraná pelo setor
industrial é a reutilização/reciclagem/recuperação, o que vem ao encontro dos princípios das Políticas
Nacional e Estadual de Resíduos Sólidos.

CONCEITO E CLASSIFICAÇÃO DE RESÍDUOS


SÓLIDOS

Definição
A Lei n.º 12.305, de 2 de agosto de 2010, que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos
por meio do Art. 3°, Inciso XVI, define ‘resíduos sólidos’ como

material, substância, objeto ou bem descartado resultante de atividades humanas em sociedade,


a cuja destinação final se procede, se propõe proceder ou se está obrigado a proceder, nos estados
sólido ou semissólido, bem como gases contidos em recipientes e líquidos cujas particularidades
tornem inviável o seu lançamento na rede pública de esgotos ou em corpos d’água, ou exijam
para isso soluções técnica ou economicamente inviáveis em face da melhor tecnologia disponível.
(BRASIL, 2010).

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Na prática, podemos considerar como resíduo todo material que sobra de atividades da comunidade
em geral, seja ele doméstico, seja industrial, comercial, de serviços (saúde, construção civil etc.) ou agrícola.

Classificação de resíduos sólidos


Os resíduos sólidos apresentam uma vasta diversidade e complexidade, sendo que suas
características físicas, químicas e biológicas variam de acordo com a fonte ou atividade geradora,
podendo ser classificados de acordo com origem, tipo, composição química e periculosidade.
A Lei Federal n.º 12.305/10 classifica os resíduos sólidos de duas formas: de acordo com a origem
e conforme a periculosidade. Esta última também é aplicada pela Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT), por meio da Norma ABNT 10.004/2004. Outras classificações consideram ainda
o tipo e a composição química.

Classificação dos resíduos de acordo com a origem


(Lei Federal n.º 12.305/10)
A classificação dos resíduos sólidos quanto à origem identifica os responsáveis por seu
gerenciamento, que se tornam obrigados a desenvolver soluções sustentáveis, observando o que prevê
a Lei n.º 12.305/2010 (Art. 9º). Ou seja, na gestão e no gerenciamento de resíduos sólidos deve ser
observada a seguinte ordem de prioridade: não geração, redução, reutilização, reciclagem, tratamento
dos resíduos sólidos e disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos.
Desse modo, os resíduos podem ser classificados em:
a) resíduos domiciliares: originários de atividades domésticas em residências urbanas;
b) resíduos de limpeza urbana: oriundos da varrição e limpeza de logradouros e vias públicas e
outros serviços de limpeza urbana;
c) resíduos sólidos urbanos: os englobados nos itens ‘a’ e ‘b’;
d) resíduos de estabelecimentos comerciais e prestadores de serviços: gerados nessas atividades,
excetuados os referidos nos itens ‘b’, ‘e’, ‘g’, ‘h’ e ‘j’;
e) resíduos dos serviços públicos de saneamento básico: oriundos dessas atividades, excetuados
os referidos no item ‘c’;
f ) resíduos industriais: originários dos processos produtivos e das instalações industriais;
g) resíduos de serviços de saúde: gerados nos serviços de saúde, conforme definido em regulamento
ou em normas estabelecidas pelos órgãos do Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA)
e do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS);
h) resíduos da construção civil: oriundos de construções, reformas, reparos e demolições de obras de
construção civil, incluídos os resultantes da preparação e escavação de terrenos para obras civis;

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i) resíduos agrossilvopastoris: gerados nas atividades agropecuárias e silviculturais, incluídos os


relacionados a insumos utilizados nessas atividades;
j) resíduos de serviços de transportes: originários de portos, aeroportos, terminais alfandegários,
rodoviários e ferroviários e passagens de fronteira;
k) resíduos de mineração: gerados na atividade de pesquisa, extração ou beneficiamento de
minérios.

Classificação dos resíduos de acordo com a periculosidade (Lei Federal


n.º 12.305/10 e Norma ABNT 1004/2004)
De acordo com essa classificação, os resíduos se dividem em duas classes:
• Classe I – perigosos: aqueles que, em razão de suas características de inflamabilidade,
corrosividade, reatividade, toxicidade, patogenicidade, carcinogenicidade, teratogenicidade e
mutagenicidade, apresentam significativo risco à saúde pública ou à qualidade ambiental, de
acordo com a lei, regulamento ou norma técnica;
• Classe II – não perigosos: aqueles não enquadrados no item ‘a’. São subdivididos em:
• Resíduos classe II-A – não inertes: apresentam propriedades como biodegradabilidade,
solubilidade ou combustão. Exemplo: matéria orgânica e papel.
• Resíduos classe II-B – inertes: compreendem rocha, tijolos, vidros e certos plásticos e
borrachas que não são decompostos prontamente.

Classificação dos resíduos de acordo com a composição química


Conforme essa classificação, os resíduos se dividem em duas classes:
• orgânicos: restos de alimentos, folhas, grama, animais mortos, esterco, papel, madeira etc.
Muita gente não sabe, mas alguns compostos orgânicos podem ser tóxicos. São os chamados
Poluentes Orgânicos Persistentes (POP) e os Poluentes Orgânicos Não Persistentes. Os
primeiros são formados por hidrocarbonetos de elevado peso molecular, clorados e aromáticos
e alguns pesticidas (Ex.: DDT, DDE, Lindane, Hexaclorobenzeno e PCB’s). Esses compostos
orgânicos são tão perigosos que foi criada uma norma internacional para seu controle
denominada Convenção de Estocolmo. Os segundos são compostos por óleos novos e usados,
solventes de baixo peso molecular, alguns pesticidas biodegradáveis e a maioria dos detergentes
(Ex.: organosfosforados e carbamatos);
• inorgânicos: vidros, plásticos, borrachas etc.

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Classificação dos resíduos de acordo com o tipo


Os resíduos podem ser classificados pelo tipo em:
• recicláveis: papel, plástico, metal, alumínio, vidro etc.;
• não recicláveis ou rejeitos: resíduos que não são recicláveis ou resíduos recicláveis contaminados.

GERENCIAMENTO DE RESÍDUOS SÓLIDOS

Gestão e gerenciamento de resíduos sólidos


Antes de mais nada é preciso diferenciarmos gerenciamento de gestão de resíduos sólidos. Embora
possam ter a mesma conotação, suas abordagens são diferentes, porém se complementam.
A gestão de resíduos sólidos tem uma abordagem mais ampla e é entendida como um conjunto
de referências institucionais, administrativas, legais, políticas, estratégicas e ambientais que buscam as
formas adequadas de minimização, tratamento e disposição de resíduos, com a participação efetiva do
poder público, da comunidade envolvida e de diversos setores da sociedade.
Já o gerenciamento de resíduos sólidos trata da implementação das decisões contidas na gestão,
no sentido de buscar alternativas técnicas, de acordo com a realidade, a operacionalização das ações
propostas, a fiscalização e o dimensionamento dos resultados dessas ações.

Tabela 1 – Responsabilidade pelo gerenciamento de cada tipo de resíduo.

Tipos de lixo Responsável


Domiciliar Prefeitura
Comercial Prefeitura*
De serviços Prefeitura
Industrial Gerador (indústrias)
Serviços de saúde Gerador (hospitais etc.)
Portos, aeroportos e terminais ferroviários e rodoviários Gerador (portos etc.)
Agrícola Gerador (agricultor)
Entulho Gerador*
Radioativo CNEN
Fonte – Jardim et al., 1995 apud Schalch, 2002.
Obs.: (*) a prefeitura é corresponsável por pequenas quantidades (geralmente menos que 50 kg/dia), e de acordo com a
legislação municipal específica.

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Para o adequado gerenciamento de resíduos, o gestor deve conhecer muito bem a legislação
estabelecida para o setor de resíduos sólidos tanto na esfera municipal quanto na estadual e na nacional. A
premissa para o gerenciamento deve considerar, de acordo com a Política Nacional de Resíduos Sólidos:
• não geração;
• redução;
• reutilização;
• reciclagem;
• tratamento dos resíduos sólidos e
• disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos.

Reciclagem de resíduos sólidos


A reciclagem é um conjunto de técnicas de reaproveitamento de materiais descartados,
reintroduzindo-os no ciclo produtivo. É uma das alternativas de tratamento de resíduos sólidos (lixo)
mais vantajosas, tanto do ponto de vista ambiental quanto do social: ela reduz o consumo de recursos
naturais, poupa energia e água, diminui o volume de lixo e dá emprego a milhares de pessoas.
É um processo industrial que começa em casa. A correta separação desses materiais em nossas
casas e o encaminhamento para catadores ou empresas recicladoras permite que eles retornem para o
processo produtivo, diminuindo o volume de lixo acumulado em aterros e lixões. É uma questão de
hábito e percepção: precisamos modificar nosso olhar sobre o que chamamos de ‘lixo’, pois cerca de
30% dele é composto de materiais recicláveis como papel, vidro, plástico e latas, e todos têm valor de
mercado, pois são reaproveitados como matéria-prima no processo de fabricação de novos produtos.
Para reciclar seus resíduos, o consumidor deve:
1.° Separar o material reciclável: embalagens de papelão, plástico, isopor, metal (aço, alumínio),
embalagens longa-vida, vidro etc.;
2.° Lavar o material: as embalagens que serão encaminhadas para a reciclagem devem ser
limpas, pois resíduos podem contaminar o material, inviabilizando sua reciclagem;
3.° Encaminhar o material para a coleta seletiva, cooperativas de catadores ou centrais de
recebimento de recicláveis.

Tabela 2 – Resíduos recicláveis.

RESÍDUO DÁ PARA RECICLAR NÃO É RECICLÁVEL

Papel Papéis de escritório, papelão, caixas em geral, jornais, Carbono, celofane, papel vegetal, termofax,
revistas, livros, listas telefônicas, cadernos, papel cartão, papéis encerados ou plastificados, papel higiê-
cartolinas, embalagens longa-vida, listas telefônicas, li- nico, lenços de papel, guardanapos, fotogra-
vros. fias, fitas ou etiquetas adesivas.

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RESÍDUO DÁ PARA RECICLAR NÃO É RECICLÁVEL

Plástico Sacos, CDs, disquetes, embalagens de produtos de lim- Plásticos termofixos (usados na indústria ele-
peza, PET (como garrafas de refrigerante), canos e tu- troeletrônica e na produção de alguns com-
bos, plásticos em geral. putadores, telefones e eletrodomésticos), em-
balagens plásticas metalizadas (como as de
salgadinhos), isopor.

Vidro Garrafas de bebida, frascos em geral, potes de produtos Espelhos, cristais, vidros de janelas, vidros de
alimentícios, copos. automóveis, lâmpadas, ampolas de medica-
mentos, cerâmicas, porcelanas, tubos de TV e
de computadores.

Metal Latas de alumínio (refrigerante, cerveja, suco), latas de Clips, grampos, esponjas de aço, tachinhas,
produtos alimentícios (óleo, leite em pó, conservas), pregos e canos.
tampas de garrafa, embalagens metálicas de congelados,
folha-de-flandres.

Fonte – Brasil, [s.d.].

Formas de tratamento e destinação de resíduos sólidos


Atualmente, são muitas as formas de tratamento de resíduos sólidos, sejam eles urbanos, sejam
industriais, de serviços, de saúde, agropecuários, entre outros. Essas formas visam principalmente
reduzir o impacto negativo no meio ambiente e para a saúde humana, além de, em alguns casos, gerar
retorno financeiro para as organizações.
Podem-se classificar os tipos tratamento de resíduos sólidos de três formas, apresentadas a seguir.

Tratamento mecânico
Forma de tratamento na qual são realizados processos físicos, geralmente no intuito de separar
(usinas de triagem) ou alterar (reciclagem) o tamanho físico dos resíduos. Nesse processo não ocorrem
reações químicas entre os componentes, como nos muitos casos do tratamento térmico.
De forma geral, podemos classificar as formas de tratamento mecânico de resíduos de acordo com
sua finalidade. Vejamos alguns exemplos:
• diminuição do tamanho das partículas: quebra, trituração, moinhos etc.;
• aumento do tamanho das partículas: aglomeração, briquetagem, peletagem etc.;
• separação da fração física: classificação;
• separação pelo tipo de substância;
• mistura de substâncias: extrusão, compactação etc.;

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• separação de fases físicas: sedimentação, decantação, filtração, centrifugação, floculação etc.;


• mudança de estados físicos: condensação, evaporação, sublimação etc.

Vale a pena destacar no tratamento mecânico a produção de Combustível Derivado de Resíduo


(CDR), que é usado como combustível para caldeiras, fornos industriais, centrais de energia elétrica,
entre outros. O processo consiste da utilização de equipamentos mecânicos que selecionam os materiais
que têm maior valor energético, como plástico e papel, removendo o que possa comprometer a queima,
como vidro e matéria orgânica.

Tratamento térmico
Nessa forma de tratamento os resíduos recebem grande quantidade de energia em forma de calor
a uma temperatura mínima que varia de acordo com a tecnologia aplicada (temperatura de reação)
durante certa quantidade de tempo (tempo de reação), tendo como resultado uma mudança em suas
características, como a redução de volume, devido a diversos processos físico-químicos que acontecem
durante o tratamento.
Os principais processos de tratamento térmicos são:
• secagem: retirada de umidade dos resíduos por meio de correntes de ar;
• pirólise: decomposição da matéria orgânica a altas temperaturas e na ausência total ou quase
total de oxigênio;
• gaseificação: transformação de matéria orgânica em uma mistura combustível de gases (gás de
síntese);
• incineração: oxidação total da matéria orgânica com auxilio de outros combustíveis a
temperaturas variando entre 850 e 1.300°C;
• coprocessamento em fornos de cimento: tecnologia em que o mesmo forno usado para fazer
cimento é utilizado para destinar resíduos e material inservível, os quais são utilizados como
combustíveis da chama dos fornos ou substitutos de matéria-prima (componentes do calcário
e da argila e minério de ferro);
• plasma: desintegração da matéria para a formação de gases.

Tratamento bioquímico
Ocorre por meio da ação de bactérias e fungos, como também de organismos maiores, como
lesmas e minhocas, transformando-as em uma mistura de substâncias e moléculas menores.
Em alguns casos só ocorre o processo biológico, em outros somente o químico. Isso vai depender
da tecnologia e metodologia utilizada.

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Os processos de tratamento bioquímico mais conhecidos são:


• biodigestão: decomposição da matéria orgânica na ausência de oxigênio nos chamados
biodigestores ou centrais de biogás. Utilizados principalmente para resíduos sólidos orgânicos
urbanos e resíduos sólidos orgânicos rurais;
• compostagem: decomposição da matéria orgânica na presença de oxigênio em usinas
de compostagem.

Processos bioquímicos são amplamente aplicados para tratamento de resíduos agropecuários,


os quais podem ser utilizados e transformados em fertilizantes orgânicos ou minerais e também,
podem ser transformados em energia tanto para geração de calor como para geração de eletricidade.
Normalmente, para esses resíduos são utilizados dois processos de decomposição:
• decomposição aeróbia: ocorre na presença de oxigênio. Esse processo é o princípio básico
da compostagem, no qual é muito importante o processo de aeração. Como resultado desse
processo temos basicamente o húmus, os minerais, o gás carbônico e a água.
• decomposição anaeróbia: quando a decomposição acontece na ausência de oxigênio. Também
pode ser chamada de fermentação ou biodigestão anaeróbia.

Em biodigestores, a decomposição é realizada na ausência de oxigênio e consegue produzir


biofertilizantes e energia elétrica. Esse é o princípio de funcionamento de biodigestores. Como
resultado desse processo temos basicamente o biofertilizante e o biogás. Este é composto em grande
parte por metano e gás carbônico. O metano pode ser aproveitado energeticamente para a geração de
energia térmica ou elétrica.
A depender da matéria orgânica utilizada, a eficiência dos biodigestores varia. Em linguagem
técnica, a matéria orgânica utilizada em biodigestores é chamada de substrato.

USO DE RESÍDUOS NA AGRICULTURA


As plantas se desenvolvem com base em nutrientes que estão disponíveis no solo, entre outros
fatores. Os elementos principais são nitrogênio (N), fósforo (P) potássio (K), cálcio (Ca), magnésio
(Mg) e enxofre (S), além dos chamados microelementos. Entre eles podemos citar: selênio (Se), cobre
(Cu), zinco (Zn) e manganês (Mn).
A matéria orgânica é responsável por manter o solo equilibrado em suas características químicas,
físicas e biológicas, aumentando a fertilidade da terra.
Essa matéria orgânica é produto da decomposição de materiais orgânicos por meio de reações que
ocorrem no solo com especial ajuda de organismos que estão presentes no meio e da temperatura e
umidade.

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Dependendo de sua composição, os resíduos gerados pelo ser humano, seja em casa (domiciliar),
nas indústrias e nas propriedades rurais, podem ser usados na agricultura como fertilizantes orgânicos
ou minerais.
Os resíduos podem ser usados diretamente no solo ou devem sofrer um tratamento prévio, para
isso, pode ser utilizada a compostagem, estabilização, fermentação etc.
Para que os resíduos sejam destinados para fins agrícolas e florestais, devem proporcionar efeitos
benéficos para o solo e as espécies nele cultivadas, sem causar prejuízos ao meio ambiente, mantendo
a qualidade edáfica.
São vantagens do uso de resíduos na agricultura:
• destinação final adequada, ambientalmente e tecnicamente viável;
• alternativa à destinação final em aterros, aumentando a vida útil destes e proporcionando
ganhos econômicos diretos e indiretos;
• é uma forma de reciclagem;
• reduz o custo de produção do gerador do resíduo, pois economizará na compra de insumos.

De acordo com a Associação Nacional para Difusão de Adubos (Anda), de janeiro a dezembro de
2017 o mercado de fertilizantes no Brasil consumiu mais de 34 milhões de toneladas, sendo o quarto
maior consumidor do insumo no mundo, e importou 75% do total utilizado.
Conforme estudo econômico de Cruz, Pereira e Figueiredo (2017), a utilização de compostos
orgânicos em substituição ou complementação aos adubos químicos e minerais teve como resultado
economia na adubação para produção agrícola. No mesmo estudo, concluiu-se que o setor de
fertilizantes organominerais surgiu como alternativa competitiva de fornecimento ao agronegócio
de parte da matéria orgânica e dos nutrientes necessários à adequada correção do solo e à nutrição
das plantas.
Os resíduos gerados no processo produtivo dos setores sucroalcooleiro, de suínos e de aves teriam
o potencial para fornecer, aproximadamente, 14% da demanda por fertilizantes N, P e K, em relação
à demanda de 2015, considerando a melhoria propiciada pela presença de matéria orgânica com os
nutrientes. Ao se converterem esses nutrientes nos produtos comercializados com os agricultores, estimou-
se que o mercado potencial para esses resíduos era de US$ 1,1 bilhão em 2015. No setor bovino, poder-
-se-ia atingir patamar de oferta de nutrientes de 53% da demanda por macronutrientes em 2015.
Para que o resíduo seja utilizando na agricultura, deve trazer os seguintes benefícios:
• fornecer água e/ou nutrientes para a cultura;
• melhorar as condições físicas do solo: porosidade, capacidade de retenção de água,
condutividade hidráulica;
• melhorar as condições biológicas (aumento da atividade microbiana);

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• ser seguro, isto é, não poluir o ambiente e ter segurança alimentar para o ser humano e os
animais. Além disso, não deve conter substâncias que podem contaminar o solo, como metais
pesados etc.

De acordo com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa (2008), vários aspectos
do resíduo e da atividade agrícola da região onde se pretende utilizá-lo e da legislação pertinente
deverão ser analisados para dispor um resíduo na agricultura. A viabilidade do uso agrícola de um
resíduo é avaliada em diferentes etapas, detalhando a origem e as características do resíduo, o plano
de amostragem, os aspectos legais, sua eficiência agronômica, a viabilidade econômica (inclusive a
demanda de mercado) da disposição agrícola e o planejamento da aplicação.

Resíduos com potencial para uso na agricultura


De acordo com a Instrução Normativa n.º 25 do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
(Mapa) de 2009, os fertilizantes orgânicos simples, mistos, compostos e organominerais são classificados,
de acordo com as matérias-primas utilizadas em sua produção, em quatro classes, a saber:
• classe A: fertilizante orgânico em cuja produção não são utilizados metais pesados tóxicos,
elementos ou compostos orgânicos sintéticos potencialmente tóxicos, resultando em produto
de utilização segura na agricultura. Ex.: dejetos de suínos, aves e bovinos, bem como a vinhaça
e o efluente da indústria de beneficiamento de mandioca;
• classe B: fertilizante orgânico em cuja produção se utiliza matéria-prima oriunda de
processamento da atividade industrial ou da agroindústria, na qual metais pesados tóxicos,
elementos ou compostos orgânicos sintéticos potencialmente tóxicos são utilizados no
processo, resultando em produto de utilização segura na agricultura. Ex.: iodo gerado em
estações de tratamento de frigoríficos e de indústrias de alimentos;
• classe C: fertilizante orgânico em cuja produção se utiliza qualquer quantidade de matéria-prima
oriunda de lixo domiciliar, resultando em produto de utilização segura na agricultura;
• classe D: fertilizante orgânico em cuja produção se utiliza qualquer quantidade de matéria-prima
oriunda do tratamento de despejos sanitários, resultando em produto de utilização segura na
agricultura. Ex.: lodos gerados em estação de tratamento de efluente sanitário.

A seguir, detalharemos caso a caso a quantidade de resíduo e o potencial agronômico de cada um


dos exemplos supracitados.

Suínos
O Paraná é o primeiro maior produtor de suínos do Brasil, com 7.131.132 cabeças. Cada cabeça
gera 0,009 m3/dia de dejetos líquidos, portanto, o Paraná gera, por dia, 64.180,188 m.

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A Tabela 3 apresenta a oferta de nitrogênio, fósforo e potássio calculada a partir da excreção do


equivalente em N, P2O5 e K2O por unidade animal alojada nos diferentes sistemas de produção.

Tabela 3 – Quantidade de excreção por animal alojado.

Sistema de produção Unidade animal Excreção anual por animal alojado


N P2O5 K2O

kg ano–1

Unidade de terminação1 Suíno alojado 8,00 4,30 4,00

UPL 25 kg2 Fêmea alojada 25,70 18,00 19,40

Creche3 Leitão alojado 0,40 0,25 0,35

UPL 6kg4 Fêmea alojada 14,50 11,00 9,60

Ciclo completo5 Fêmea alojada 85,70 49,60 46,90

1
Considerado 3,26 lotes por ano(lotes de 105 e 7 dias de intervalo entre lotes). Fonte: Tavares (2012).
2
Considerado 2,35 partos por fêmea alojada por ano e a produção de 28 leitões por fêmea alojada por ano. Fonte: Corpen
(2003); Dourmade et al. (2007).
3
Fonte: Corpen (2003); Dournmade et al. (2007).
4
Calculado descontando-se a produção de nutrientes da fase Creche em relação à UPL 25kg. Fonte: Corpen (2003);
Dourmade et al. (2007).
5
Considerando 2,35 partos por fêmea alojada por ano, a produção de 28 leitões por fêmea alojada por ano e 12 suínos
terminados por fêmea alojada por ano. Calculado com base nos dados de UPL 25kg e terminação. Fonte: Corpen (2003);
Dourmade et al. (2007).
Em função de não haver dados atualizados disponíveis referente à excreção de N, P2O5 e K2O por unidade animal
alojada nos rebanhos para UPL e creche no estado de Santa Catarina, utilizou-se como referência Corpen (2003) e
Dourmade et al. (2007), devido à similaridade do sistema de produção e do número de animais entre os rebanhos da
França e de Santa Catarina.
Fonte – Fatma, 2014.

Mandioca
Segundo a Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Paraná (Seab), a estimativa era de que o
Paraná plantaria, em 2018, 126.825 hectares (ha) de mandioca, com produção estimada em 3.287.613
toneladas. Cada tonelada gera 0,25 m3 de água de prensa, que pode ser destinada para a agricultura,
num total de 821.903,25 m3 de efluente. Estudos de Botelho, Poltronieri e Rodrigues (2009) mostraram
que cada metro cúbico de manipueira equivale, respectivamente, a 7,61, 3,00 e 5,51 kg de ureia (45%
de N); 3,45, 2,61 e 1,70 kg de superfosfato triplo (45% de P2O5); 6,20, 3,38 e 6,08 kg de cloreto
de potássio (60% de K2O); 0,54, 0,45 kg e 0,43 de carbonato de cálcio (50% de CaO); 6,27,3,95 e
4,21 kg de sulfato de magnésio (16% de MgO).

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Vinhaça
O Paraná tem 8,74 milhões de hectares com plantações de cana-de-açúcar, produzindo 635,59
milhões de toneladas e 27,05 bilhões de litros de etanol. (OCEPAR, 2017). Considerando que um
litro de etanol gera em torno de 13 litros de vinhaça, estima-se uma geração de 351,65 bilhões de
vinhaça no Paraná.
A vinhaça de mosto de caldo apresenta, respectivamente, 0,3 kg, 0,2 kg e 1,5 kg de nitrogênio,
fósforo e potássio para cada m³ de vinhaça.

Aves
Segundo dados da AVIPAR (2018), a produção avícola no Paraná é de 297.785.645, ocupando o
1.º lugar do sul do Brasil, com 1.551.100.753 de aves em geral.
Conforme o Manual de Adubação e Calagem para Rio Grande do Sul e Santa Catarina (2004),
a cama de aves tem, em média, 75% de matéria seca e 3,8% de nitrogênio, 4% de fósforo e 3,5% de
potássio da matéria seca.

BOVINOCULTURA DE LEITE
A bovinocultura confinada no Paraná conta com rebanho efetivo de 1.621.957 cabeças de vacas
ordenhadas (SEAB, 2018), ocupando o 3.º lugar do ranking nacional. Em termos de dejetos, cada animal
produz em média, por dia, de 10 kg a 15 kg de resíduo sólido, conforme Tabela 4. A composição média
desse material, conforme Cruz, Pereira e Figueiredo (2017), é de 1,7 g de nitrogênio, 0,9 g de fósforo
e 1,4 g de potássio para cada quilo de dejeto. Portanto, os dejetos podem ser utilizados na agricultura
em substituição ou complementação da adubação mineral.

Tabela 4 – Produção diária de dejetos líquidos e sólidos de animais.

Origem do resíduo Líquido(%.dia–1) Sólido (kg. (animal.dia–1))

Frango de corte 6,6 0,12 – 0,18

Gado de corte 4,6 10 – 15

Gado de leite 9,4 10 – 15

Fonte – Cruz; Pereira; Figueiredo, 2017.

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Resíduos domésticos
Especificamente falando da geração de resíduos na área rural, segundo levantamento de 2011
do Ministério do Meio Ambiente, a composição do resíduo sólido doméstico na área rural é cada
vez mais semelhante à do resíduo urbano, devido, muitas vezes, à proximidade das comunidades
rurais a centros urbanos, além de hábitos e bens de consumo contemporâneos inseridos por toda a
sociedade. O resíduo sólido doméstico (RSD) rural era composto essencialmente por restos orgânicos,
mas atualmente se verifica um volume crescente de frascos, sacos plásticos, pilhas, pneus, lâmpadas,
aparelhos eletroeletrônicos etc., que se acumulam ou se espalham ao longo das propriedades rurais.
Considerando uma população brasileira rural de aproximadamente 30 milhões de habitantes (IBGE,
2010) e produção total de resíduo sólido doméstico rural (RSD rural) de 0,10 kg a 0,44 kg/pessoa/dia,
chega-se a um valor de 1,1 milhão a 5 milhões de toneladas de RSD rural, das quais cerca de 50% são
resíduos inorgânicos e 50% são de matéria orgânica.
Portanto, pode-se concluir que metade do resíduo sólido gerado no meio rural poderia deixar de
ser destinado para aterros e ser transformado em fertilizante orgânico. Entretanto, antes dessa utilização
ele deve, obrigatoriamente, sofrer processos de tratamento tais como a biodigestão ou a compostagem.
O CONAMA estabelece critérios e procedimentos para garantir o controle e a qualidade
ambiental do processo de compostagem de resíduos orgânicos e dá outras providências na Resolução
n.º 481/2017.
O Paraná estabelece condições, critérios e dá outras providências para empreendimentos de
compostagem de resíduos sólidos de origem urbana e de grandes geradores e para o uso do composto
gerado por meio da Resolução CEMA n.º 90, de 03/12/2013.

Lodo gerado de efluente sanitário


Nos últimos anos, a Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar) já destinou, 26 mil
toneladas de lodo de esgoto higienizado a propriedades rurais do Paraná. O projeto foi recomendado
pela Organização das Nações Unidas (ONU) como boa prática a ser replicada.
Hoje, metade do lodo produzido no Paraná é utilizado como adubo, destinado gratuitamente
aos agricultores.
Na região noroeste, desde 2012 100% do lodo produzido é aproveitado pelos agricultores.
De 2007 a junho de 2017, 900 áreas agrícolas de 236 produtores foram beneficiadas por
um projeto conduzido em parceria com a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Paraná
(EMATER-PR).
O processo para o uso nas produções rurais envolve em média dez profissionais em cada regional
da companhia e vinte passos que vão desde a higienização e emissão de laudos de sanidade até o
transporte do lodo às propriedades.

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O lodo de esgoto passa pelo processo de Estabilização Alcalina Prolongada (EAP), que tem como
princípio básico a adição de cal, e se transforma em um resíduo rico em nutrientes e de alto desempenho
para correção do pH do solo, prática comum para aumentar a produtividade agrícola.
A ação do lodo tratado no solo é muito parecida com o processo de calagem, que é a adição de
calcário à terra para regular sua acidez.
No Paraná, o Instituto Água e Terra conta com a Resolução n.º 021/09 da Sema, uma legislação
específica que trata sobre o licenciamento ambiental, estabelece condições e padrões ambientais e dá
outras providências para empreendimentos de saneamento.

Critérios para uso agrícola de resíduos no Paraná


Cabe ressaltarmos que a quantidade aplicada, chamada de ‘taxa de aplicação’, deve ser calculada
com a ajuda de profissionais para que não sejam utilizadas quantidades maiores de resíduos do que
aquela recomendada, para não causar danos ao solo e água.
Para o uso do resíduo liquido ou sólido como fertilizante no Paraná, o Instituto Água e Terra,
órgão do meio ambiente do Paraná, exige que seja realizada a caracterização do material por meio da
classificação pela norma ABNT 10.004, na qual ele deve constar na Classe II, ou seja, não perigoso.
Outra exigência é realizar análises ambientais para verificar se o resíduo contém, em sua composição,
elementos contaminantes que possam poluir o solo e contaminar os alimentos. Dependendo da origem
do resíduo, exigem-se análises de sanidade para verificar a presença de organismos patogênicos.
Por último, deve-se verificar o potencial agronômico por meio de análise de nutrientes benéficos
para as plantas.
O Instituto Água e Terra exige também que seja feita análise do solo que receberá o resíduo para
que seja aplicado na quantidade recomendada pelos manuais de adubação para a cultura que será
cultivada.
Deve-se verificar também os aspectos locacionais, isto é, se o local que receberá o resíduo está
longe de cursos d’água, nascentes, residências, evitando áreas íngremes e solos rasos.

CONCLUSÃO
O uso de resíduos como fertilizantes orgânicos é comprovadamente uma alternativa viável do
ponto de vista técnico e econômico, podendo trazer melhoria nas características químicas, físicas e
biológicas do solo, reduzindo os gastos do custo de produção, além de ser uma forma de reciclar.
Entretanto, deve-se observar os critérios agronômicos e ambientais de uso para que tais resíduos não
causem prejuízos para o ambiente.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
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ÉTICA E CONSUMO

Ricardo Tescarolo

INTRODUÇÃO
A transformação que a humanidade e a Terra experimentam hoje, embora não represente uma
novidade, é, sem dúvida, um fenômeno inédito em sua radicalidade e rapidez. Nesse contexto crítico
e dinâmico, impõe-se a necessidade de mudanças radicais em sistemas tão complexos como redes de
transporte, matrizes energéticas, governança pública e privada e modelos e sistemas educacionais.
Os inéditos desafios provocaram a emergência de uma nova ética, constituída na sustentação
universal da ação que acompanha a vida e contribui para transformar as realidades humanas, na medida
em que foi a negação dessa condição que deflagrou novos problemas.
A crise atual é ‘produto de uma cosmovisão’1 fundada no materialismo e em uma perspectiva
exclusivamente antropocêntrica. Em tal concepção, o ser humano é tratado como mão de obra e
mercadoria e a natureza como matéria-prima. Os dados disponíveis demonstram claramente que a
crise planetária decorre da convicção de que a felicidade depende em grande parte do consumo de
quantidades crescentes, e muitas vezes desnecessárias, de bens materiais e serviços. A isso se denomina
consumismo, processo de natureza econômica e social baseado na criação e desenvolvimento sistemáticos
de um desejo compulsivo de comprar e consumir cada vez mais.
O consumismo é uma das características culturais mais marcantes da sociedade atual, sendo as
crianças e os jovens os mais atingidos pelos excessos que provoca, como a obesidade, a violência,
o materialismo excessivo, o desgaste das relações sociais e a erotização precoce. Ela constitui, em
estado crítico, uma patologia, denominada Oneomania, transtorno psiquiátrico marcado pelo desejo
irrefreável de comprar sem qualquer critério ou consciência da necessidade e condição financeira.

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Apresentamos a seguir um exemplo das consequências do consumismo. Celulares, GPS, TV de


plasma, PDA, MP3, MP4, jogos eletrônicos, armas sofisticadas, estações espaciais, mísseis teleguiados e
toda uma gama de sofisticados equipamentos eletrônicos dependem de um metal, o ‘coltan’ (conhecido
como ‘ouro cinza’). Ele resulta da combinação de dois minerais, a columbita e a tantalita (daí col-tan),
de que se extrai o metal atualmente mais cobiçado do que o ouro. Esse metal é considerado altamente
estratégico e essencial para as novas tecnologias. Cerca de 80% das reservas do ‘coltan’ encontram-se na
República Democrática do Congo, onde ocorre uma guerra desde o dia 2 de agosto de 1998 em razão
da ocupação militar por Ruanda e por Uganda, que lutam pelo controle do ‘coltan’ do Congo, onde já
morreram mais de dois milhões de pessoas em consequência do conflito.
Segundo a Federación de Comités de Solidariedad com África Negra, o que torna a situação
mais grave é a passividade da comunidade internacional, que não pode mais ignorar que a guerra na
República Democrática do Congo tem como causa a busca desse metal por grandes empresas com um
custo altíssimo para a vida humana e para a natureza.
O International Peace of Information Service (IPIS) realizou estudo minucioso sobre a vinculação
das empresas ocidentais com a exploração do coltan e com o financiamento da guerra no Congo. Sem
dúvida, os obscuros negócios dessas indústrias são, em primeira instância, responsáveis por essa guerra.
E quem vende, compra e usa a parafernália eletrônica disponível no mercado pode não ter consciência
do problema, mas tem parcela de responsabilidade.
Outra informação, agora do Banco Mundial2, em relação ao consumo privado no mundo: 20%
da população mais pobre consome 1,5% dos bens e serviços oferecidos pelo mercado; cerca de 60% da
chamada classe média 21,9%; e 20% da população mais rica consome 76,6% (BANCO MUNDIAL,
2008).
Arlie Hochschil () apresenta um ‘dano colateral’ provocado pela onda consumista: o ciclo vicioso
da “materialização do amor” (apud BAUMAN, 2011, p. 65). Explica ele que,

expostos a bombardeio ininterrupto de publicidade diária de três horas de televisão (a metade de


todo seu tempo ocioso), os trabalhadores são persuadidos a ‘necessitar’ de mais coisas. E para comprar
aquilo que agora necessitam, eles precisam de dinheiro, Para ganhar dinheiro, trabalham mais horas.
Estando longe de casa tantas horas, compensam sua ausência com presentes que custam dinheiro. Eles
materializam o amor. E assim o ciclo se perpetua. (2011, p. 208).

Benjamin Barber, em seu livro com o sugestivo título Consumido: como o mercado corrompe
crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos, explica que a recente crise financeira mundial destruiu
certos mitos, como o de que “o capitalismo pode triunfar fabricando desejos e necessidades, e não
produtos”. A nova religião do consumismo desenfreado, “com sua indução de crianças à catedral do
comércio, sacraliza (as) novas necessidades”. (2007, p. 62).
Veja o caso, publicado no jornal Folha de S. Paulo (Domingo, 29 de abril de 2012 – Cotidiano,
p. 7), do desequilíbrio existente entre a infraestrutura hídrica disponível no sertão nordestino e o
aumento da renda de seus habitantes. Essas pessoas não dispõem de água encanada, mas possuem TVs

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LCD, antenas parabólicas, e até geladeiras e máquinas de lavar roupa. Segundo a Fundação Getúlio
Vargas, mencionada na reportagem, a renda da região Nordeste cresceu 42% entre os anos de 2001 e
2009 (cf. FGV), mas o total de casas com água encanada na região cresceu apenas 6,9% (cf. IBGE –
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Outro exemplo encontra-se descrito no relatório publicado pela Organização para a Agricultura
e o Alimento (Food and Agricultural Organization – FAO) da Organização das Nações Unida (ONU),
o setor de produção de carne animal produz mais efeito estufa do que todo o sistema de transporte,
sendo hoje a maior fonte de degradação da terra e da água.
As pessoas estão consumindo cada vez mais carne animal a cada ano, provocando um aumento de 229
milhões de toneladas entre 1999/2001 para 465 milhões de toneladas em 2050. Tal crescimento cobrará
um altíssimo preço ambiental, de acordo com o relatório da FAO (ONU) Livestock’s Long Shadow –
Environmental Issues and Options: “O custo ao meio ambiente em consequência da produção de carne
animal precisa ser cortado pela metade, apenas para evitar que o problema piore além de seu nível atual”.3
Por tudo isso, uma vida mais simples e frugal é a iniciativa imediata que todos podemos tomar,
não significando, entretanto, que a ética da responsabilidade “seja contrária ao prazer, mas sim que os
prazeres que ela valoriza não provêm do consumo exagerado” (SINGER, 2006, p. 304). A consequência
“são os altos níveis de endividamento pessoal, menos tempo livre e o meio ambiente danificado, sinais
evidentes de que o consumo excessivo está diminuindo a qualidade de vida das pessoas”. (cf. Estado do
mundo 2004, World Watch Institute: www.worldwatch.org).
Vale enfatizar, todavia, que deve-se evitar uma postura reducionista. Sem dúvida, a sociedade do
consumo dever ser “corrigida e enquadrada”, mas “não posta no pelourinho”. Portanto, não se deve
rejeitar tudo, ainda que muito precisa ser “reajustado e reequilibrado a fim de que a ordem tentacular
do hiperconsumo não esmague a multiplicidade dos horizontes da vida”. (LIPOVETSY, 2007, p. 370).
Assim, para enfrentar e ajudar superar a profunda e grave crise atual, a humanidade conta com
uma nova ética.

A ÉTICA EMERGENTE
A palavra ‘ética’ tem origem no termo grego ‘ethos’, que se refere “aos usos e costumes vigentes
numa sociedade e também, secundariamente, aos hábitos individuais”. (COMPARATO, 2006, p. 96).
O dicionário eletrônico Houaiss define ética como “parte da filosofia responsável pela investigação
dos princípios que motivam, distorcem, disciplinam ou orientam o comportamento humano, refletindo
a respeito a essência das normas, valores, prescrições e exortações presentes em qualquer realidade social”.
A ética pode chegar ao nível das questões práticas,

como o tratamento dispensado às minorias étnicas, a igualdade para as mulheres, o uso de animais em
pesquisas e para a fabricação de alimentos, a preservação do meio ambiente, o aborto, a eutanásia e a
obrigação que têm os ricos de ajudar os pobres. (SINGER, 2006, p. 9).

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Já na visão de Vazquez, a ética constitui “a teoria ou ciência do comportamento moral dos homens
em sociedade” ‘ocupando’ “o setor da realidade humana que chamamos moral”. (1998, p. 12).
Contudo, a “natureza qualitativamente nova de muitas de nossas ações descortinou uma dimensão
inteiramente nova do significado ético, não prevista nas perspectivas e nos cânones da ética tradicional”,
tendo como um pressuposto a responsabilidade humana. (JONAS, 2006, p. 29).
A ética emergente, como fundamento da responsabilidade social e ambiental, tem como missão
“tomar os problemas gerados globalmente e os enfrentar à queima roupa – em seu próprio nível”.
(BAUMAN, 2011, p. 35).
A exploração excessiva dos recursos naturais é consequência direta da ação humana que, em sua
“irrupção violenta e violentadora na ordem cósmica” e na “invasão atrevida dos diferentes domínios da
natureza por meio de sua incansável esperteza”, demonstra que “a violação da natureza e a civilização
do homem andam de mãos dadas”. (JONAS, 2006, p. 32).
A oportunidade de encontrar o atalho para um mundo mais bem ajustado, no entanto, foi
perdida. Em vez disso, pode-se dizer que, entre este mundo, aqui e agora, e um outro mundo,
hospitaleiro à humanidade e ‘amigável’, não restou nenhuma ponte visível, seja ela genuína ou
suposta. (BAUMAN, 2011, p. 33). Tal análise é corroborada por Horkheimer quando afirma:
“a história dos esforços humanos para subjugar a natureza é também a história da subjugação do
homem pelo homem”. (2002, p. 109).
É nesse contexto de perplexidade que a nova ética se apresenta: como movimento transformador
que transcende ao modernismo progressista, ainda que o reconheça, e se empenhe para favorecer um
“habitat planetário sustentável para seres vivos interdependentes, além e contra o apelo disfuncional do
mercado competitivo global”. (O’SULLIVAN, 2004, p. 26).
A ética assume, por conseguinte, um novo sentido radical: não só como responsabilidade individual,
mas também coletiva, levando em conta as consequências das intervenções humanas no mundo, muitas
vezes inconscientes, mas sempre produtoras de consequências, construtivas ou destrutivas.
A ética da responsabilidade reconhece a dimensão vital da relação entre todas as pessoas e destas
com o planeta; representa a origem primordial dos valores; constitui o encontro do conhecimento e
da consciência; estabelece-se como a condição fundamental da liberdade e da solidariedade universais;
e propicia a intervenção humana no mundo. Isso implica a adoção de uma dupla concepção
contemporânea de ética: como óptica “dos valores irrenunciáveis” e como “negociação dos consensos
com vistas a normas jurídicas e a criação de instituições, que terão efeitos autorreguladores na dinâmica
social das sociedades complexas”. (ASSMANN, 1996, p. 230).
O novo paradigma, portanto, não resulta apenas de reforma ou mudança, mas da transformação
completa de essência, forma, natureza e estrutura da civilização contemporânea de tal modo
veloz, profunda e abrangente que significa de fato verdadeira metamorfose antropológica. Alain
Touraine categoriza esse processo como o conjunto das “transformações profundas das sociedades
contemporâneas”. (2007, p. 17). Tal condição anuncia a progressiva substituição do paradigma social
por outro mediante inexorável processo de ‘dessocialização’ [também ‘decomposição’, ou ‘declínio’]

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(2007, p. 23). A reconhecida ‘dessocialização’ é acompanhada pela generalização “de uma violência de
mil formas e faces, que rejeita todas as normas e os valores sociais”. (2007, p. 240).
Na visão do sociólogo francês, no esforço de se criar instituições e regras que sustentarão a liberdade
e a criatividade das pessoas, coloca-se em risco a sociedade. Por tal razão, considera-se também que

a possibilidade de sobreviver dignamente neste planeta depende da aquisição de uma nova mentalidade
[que] precisa, entre outras coisas, ser talhada em uma epistemologia radicalmente diferente que irá
orientar as atitudes relevantes. Assim sendo, acima de toda a sua intrínseca beleza, os meandros
epistemológicos [...] parecem imprescindíveis. (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 2003, p. 46).

A ética assume aqui um sentido mais radical: não só como responsabilidade pelo outro, mas
também em relação às consequências das nossas ações – muitas vezes inconscientes e não intencionais,
mas sempre produtoras de consequências, construtivas ou destrutivas – na escola, onde seus atores
agem e são principalmente mistério.
A ética, então, não será apenas sistêmica ou ontológica, mas também e principalmente interpessoal,
porque reconhece a dimensão sagrada da relação de cada pessoa com a outra, o que pode representar
uma interrogação, um desafio ou uma ameaça, mas também uma resposta, um perdão, uma presença
ou uma promessa.
A ética representa a origem primordial dos valores; constitui o encontro do conhecimento e da
consciência; representa a condição fundamental da liberdade e da solidariedade universais, como utopia
e mistério; e propicia a atividade teleológica de intervenção humana no mundo.
Não fosse desse modo, o sentido ético de toda ação acabaria se diluindo na bruma da não
intencionalidade, da determinação inevitável e do não protagonismo humano. Isso implica a
necessidade de se estabelecerem critérios e princípios que inspiram e julguem a ação humana. Mesmo
porque a ética, como corresponsabilidade solidária e com validade intersubjetiva, é a urgente condição
de se resolverem os problemas que podem mesmo levar a espécie humana à extinção. (DUSSEL, 2000,
p. 572-574).
Tal possibilidade é real, na medida em que corremos o risco de banir o resto da vida ao renunciar
a própria ética, que se fundamenta em uma posição em favor da vida e da pessoa contra o formalismo
e o universalismo abstrato; contra o racionalismo absoluto, reconhecendo a natureza às vezes irracional
das atitudes humanas; e contra uma perspectiva de inspiração analítica que se disfarça de análise da
linguagem moral. (VÁZQUEZ, 1998, p. 245).
Uma ética, enfim, que sirva de referência para o juízo crítico das ações das pessoas em sociedade
e como capacidade de julgar da vida do espírito, ao tomar como princípio os valores humanos. E é ela
que será capaz de condicionar e parcializar uma listagem moral que, tomando como princípio, hábitos e
costumes, limita-se a determinar o que é proibido ou permitido, certo ou errado, lícito ou ilícito, meramente
prescrevendo obrigações e condenações. Principalmente a ética, como essa capacidade de julgamento,
propiciará o diálogo de cada pessoa com a sua própria consciência e com as consciências das outras pessoas,
despertando-as de uma eventual indiferença em relação à agressão, à vida e à dignidade do próximo.

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Embora as pessoas aparentemente tenham preservado e mobilizem sua capacidade de


desencadear processos de intervenção transformadora, ela acabou se tornando uma prerrogativa dos
cientistas que, sem “a textura das relações humanas”, ampliaram a esfera dos negócios humanos a tal
ponto que extinguiram “a consagrada linha divisória e protetora entre a natureza e o ser humano”.
(ARENDT, 2001, p. 337).
Como consequência, a cosmovisão exclusivamente antropocêntrica, em sua natureza analítica,
cientificista e instrumentalmente racional da realidade universal, separou a Noosfera – a dimensão
humana e social – da Biosfera – a camada viva não reflexiva que alimenta e sustenta a Noosfera – que
por sua vez depende de sua preservação, numa simbiose cheia de energia, mas complexa e delicada.
(CHARDIN, 2003, p. 210).
Para tanto, é preciso que todos sejamos capazes de, mesmo fazendo prevalecer nosso livre-arbítrio,

agir de maneira aberta, não condicionada pelo apego e volições egoístas. Essa abertura e essa sensibilidade
incluem não apenas a esfera imediata das percepções da própria pessoa: possibilitam-na também a estimar
os outros e a desenvolver uma percepção compassiva das aflições alheias. (VARELLA et al., 2003, p. 132).

Os princípios determinantes do livre arbítrio, segundo Kant (2002), devem ser representados
com os verdadeiros móveis da ação, mesmo porque, de outro modo, poderia até ser observada a
legalidade de nossos atos, mas não uma moralidade, vigiada pela ética, de nossas intenções. E tudo,
então, seria pura hipocrisia, e até as normas e as leis acabariam por ser odiadas e mesmo desacatadas,
se a obediência decorresse apenas por considerações de proveito próprio. Nesse caso, a letra da lei,
como legalidade, até apareceria em nossa ação, mas seu espírito, como ética, não se manifestaria em
nossas intenções. (2002, p. 275-280).
A vontade e o livre-arbítrio, assim como o sentimento de responsabilidade, pondera Isaiah Berlin
(2002), poderiam ser apenas uma ilusão, na medida em que não seríamos de fato livres, inexoravelmente
submetidos ao determinismo histórico e incapazes de viver sem pensar que somos de fato livres em nossa
vontade. Nesse sentido, a vontade e o livre-arbítrio não passariam de uma espécie de liberdade ilusória.
Como negar, entretanto, a nossa livre vontade diante da impossibilidade de se determinar o futuro
sem se comparar o que acontece com o que aconteceria se não tivesse ocorrido o que de fato aconteceu?
Como resolver tal paradoxo? Afinal, o futuro é imprevisível, mas se constrói com as histórias pessoais
que constituem a história do mundo que se projeta no futuro.
O livre-arbítrio pode até nascer de impulsos e desejos, mas só sustenta projetos de vida se envolver
“a previsão de consequências que decorrem da ação por impulso”, o que exige pensar nelas como
resultados “de nossa ação, em face e à luz dos sinais do que vemos, ouvimos ou tocamos”, isto é, de sua
significação. (DEWEY, 1979, p. 66).
Outra condição da ética da responsabilidade é a ação educativa assumir como princípio que
toda pessoa é essencialmente livre e solidária e capaz de um protagonismo responsável, princípio
humanizante que muitas vezes parece improvável por depender do interesse de quem, consciente ou
inconscientemente, dele se serve desumanamente.

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Como a convivência humana se baseia na necessidade histórica de estabelecer contratos de longo


prazo que evoluem em leis, regimentos, normas e preceitos morais, a ética passa a ser esse princípio
catalisador que garante a vida. Ela passa a se constituir no fundamento das normas de respeito de
todos por todos e da responsabilidade solidária de cada um pelo outro e pelo mundo, repudiando
um pensamento solipsista4, ainda hegemônico, que subordina a ética a atos reguladores de progresso
material e de consumo doentio.
A nova mentalidade implica necessariamente a ampliação e o aprofundamento do conhecimento
a respeito dos graves problemas provocados pelas intervenções humanas no meio ambiente e na própria
sociedade para buscar superá-los. Assim, à medida que o conhecimento se diversifica e a ele se atribui
mais valor, mais os processos de sua produção e aprendizagem se tornam imprescindíveis para as pessoas.

CONCLUSÃO
As condições minimamente necessárias para o exercício crítico da educação escolar devem propiciar
a incorporação, o desenvolvimento e a construção de conhecimentos significativos, assegurando a
aquisição de conhecimentos que evitem transformá-la em um centro de treinamento com uma rotina
mecânica e burocrática, baseada na transmissão e na reprodução de informações desconexas.
Não obstante, conquanto se reconheça que poucos instrumentos são tão poderosos e eficazes em
termos de progresso científico e tecnológico do que o conhecimento, preocupa a constatação de que
o mesmo conhecimento que garante tal progresso afinal se transformou em refém do mercado e da
exploração em um ímpeto de tal modo obsessivo que transformou os seres humanos nos predadores
mais vorazes da natureza.
Implica, pois, que seja superado o relativismo moral e a privatização de valores ofertados ao deus-
-mercado, para que se lute pelos Direitos da Mãe Terra, nosso lar, e contra toda forma de desumanização,
exclusão, preconceito e degradação, e se cultive o sentido da contemplação e da sensibilidade.
Para tanto, precisamos urgentemente atingir – nós, humanos – um consenso sobre a nossa
responsabilidade pela vida e pelo planeta. A atual expansão do conhecimento, integrada às
investigações das dimensões mais profundas do pensamento humano, torna esse empreendimento
viável, destacando aqui o protagonismo de professores e professoras nas escolas. Isso “pressupõe um
compromisso com a bondade do mundo, uma bondade que pode ser infinitamente multifacetada
e plural, mas que reconhecemos como sendo muito maior e mais poderosa que nós mesmos”.
(SOLOMON; HIGGINS, 2003, p. 100).
É imperativo, pois, promover uma reflexão crítica sobre a educação para que esta não se reduza a
uma instrumentalização exclusivamente analítica ou categorizadora, tampouco a uma visão de mundo
em que sua constituição sistêmica e complexa seja eliminada na tentativa de entendê-lo.
Por fim, vale destacar a referência que Zygmund Bauman faz a Václav Havel, escritor, intelectual e
dramaturgocheco, último presidente da Checoslováquia e primeiro presidente da República Checa, que

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“quase sozinho conseguiu derrubar um dos mais sinistros baluartes dos campos comunistas soviéticos”.
(2011, p. 36). Segundo Bauman, Havel dispunha de três armas apenas:

esperança, coragem e obstinação. São armamentos primitivos, sem nada de altamente tecnológico. E
são as mais mundanas e comuns dentre as armas: todos os homens as possuem e as têm pelo menos
desde a Era Paleolítica. Apenas, nós as usamos muito raramente. (2011, p. 36).

Armados assim desse poderoso arsenal, a escola pode lutar pelo consumo sustentável que representa
um salto qualitativo catalisador de características que articulam temas como justiça e defesa do meio
ambiente e da cidadania, destacando as práticas coletivas como norteadoras de um processo que, embora
considere cada consumidor em sua individualidade, prioriza as ações na sua dimensão política pública.

BIBLIOGRAFIA
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VAZQUEZ, Adolfo Sanchez. Ética. 18ed. Trad. João Dell’Anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.

NOTAS EXPLICATIVAS
1 Cosmovisão é uma maneira subjetiva de ver e entender o mundo, especialmente as relações humanas e os
papéis das pessoas na sociedade; visão de mundo.
2 O Banco Mundial é uma instituição financeira de âmbito global que propicia empréstimos a países em
desenvolvimento para programas de capitalização. Seu objetivo principal é a redução da pobreza.
3 (Rearing cattle produces more greenhouse gases than driving cars, UN report warns. Food and Agricultural
Organization (FAO) of the United Nations Organization (ONU). <http://www.un.org/apps/news/story.
asp?newsID=20772&CR1=warning>).
4 Solipsista: relativo ao Solipsismo, doutrina segundo a qual existe apenas o Eu, sendo os outros humanos
meros partícipes da única mente pensante.

LINKS
• http://www.akatu.org.br
Organização não governamental criada para educar e mobilizar a sociedade para o consumo consciente.
• http://www.alana.org.br/CriancaConsumo/ConsumismoInfantil.aspx
Instituto Alana

• http://www.un.org/apps/news/story.asp?newsID=20772&CR1=warning
Food and Agricultural Organization (FAO) of the United Nations Organization (ONU)

• http://www.umoya. org
• http://envolverde.com.br/
Jornalismo e Sustentabilidade

• http://www.ecodesenvolvimento.org.br/
Ecodesenvolvimento – informação para um mundo sustentável

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504

• http://pensandoemeducacaoambiental.blogspot.com.br/2009/05/dados-sobre-o-consumo-no-mundo_11.
html
Pensando em EducaçãoAmbiental

• http://www.ecodebate.com.br/2009/04/13/pesquisador-alerta-para-os-riscos-do-consumo-mundial/
EcoDebate – Cidadania e Meio Ambiente
• http://www.ibflorestas.org.br/ultimas-noticias/440
InstitutoBrasileiro de Florestas

• http://www.globalissues.org/issue/235/consumption-and-consumerism
Global Issues – Social, Political, Economic, and Environmental Issues That Affect Us All

• http://999itstime.org/links/Consumerism-Links 999
It’s Time – If not us then who? If not now then when?

• http://www.ipisresearch.be/?lang=en
• http://recicloteca.org.br/blog/index.php/2010/03/15/consumo-e-meio-ambiente/
EcoMarapendi -Recicloteca- Estudos - Educação Ambiental

• http://youtu.be/Kobbmdo0IEcídeos
O Consumo e o meio ambiente

• http://youtu.be/tOzIFynYxj0
Filme educativo sobre meio ambiente

• http://youtu].be/O7SZGbkcnLI
Consumo e meio ambiente

• http://youtu.be/ifL5YOg3t-Q
Consumismo Infantil

• http://youtu.be/joLiu7ugr7M
Publicidade infantil X Consumismo

• http://youtu.be/N5WCndQZ7A8
Desenvolvimento sustentável X Consumismo

• http://youtu.be/L5eox7YpMAY
Entrevista com Lívia Borges – Compulsão por comprar

• http://youtu.be/aStJB1kTa04
Os riscos do consumo compulsivo

• http://youtu.be/dhdpWmm2RH0
Sociedade e Consumo

• http://youtu.be/lyPSIYuCLH4
CONSUMO CONSCIENTE: pequenas atitudes, grandes realizações!

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
505

CONSUMO RESPONSÁVEL

Valdir Fernandes
Afonso Vieira

INTRODUÇÃO
Crescimento populacional, urbanização, industrialização e tecnologia, por um lado, e degradação
socioambiental, por outro, são algumas das características do processo de desenvolvimento das
sociedades contemporâneas, a partir da Revolução Industrial.
Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), a população mundial passou de
3 bilhões de habitantes em 1960 para 7,2 bilhões em 2013. No Brasil, segundo estimativa do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), passou-se de 70 milhões de habitantes, em 1970, para mais
de 207 milhões em 2017. (IBGE, 2017). Houve também intensa migração para os centros urbanos.
Em 1960, 34% da população mundial vivia em centros urbanos. Em 2011 esse percentual subiu para
82% na América do Norte, 80% na América Latina e Caribe, 73% na Europa, 70% na Oceania, 42%
na Ásia e 40% na África. (UN, 2011). Em 1950, 36% da população brasileira morava nas cidades, e
em 2010 a proporção urbana passou para 84% e continua crescendo segundo estimativas do IBGE.
(2010; 2017).
O processo de industrialização também foi intenso. Se houve a migração é porque as principais
atividades produtivas geradoras de emprego e renda se deslocaram do campo para os centros urbanos.
O crescimento populacional e a Revolução Industrial, causas e consequências diretas da urbanização e
do desenvolvimento tecnológico, elevaram exponencialmente o uso de energia e de recursos naturais,
ao mesmo tempo aumentando sobremaneira a geração de resíduos e a produção de poluentes, tais
como os gases de efeito estufa, metais pesados que contaminam solos, rios e mares, pesticidas de uso

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agrícola. Esse aumento das atividades humanas, por meio da produção e do consumo, é uma ameaça à
capacidade da Terra de fornecer os recursos e de absorver resíduos e efluentes. (UN, 2011). Ainda não
é conhecido o ponto de resiliência1 do planeta Terra.
Associam-se aos problemas de dilapidação dos recursos naturais e da qualidade do ambiente físico
as graves desigualdades sociais. Embora o Produto Interno Bruto (PIB) mundial tenha aumentado de
5,3 trilhões em 1960 para quase 70 trilhões em 2013, 10% da população mundial ainda vivia abaixo da
linha de pobreza, o que significa uma renda de menos de 1,9 dólar por dia. (WORLD BANK, 2013).
Os dados sobre a renda per capita nos vários países também ilustram as diferenças em relação ao
acesso aos benefícios produzidos pelo crescimento econômico. Enquanto em 2010 a renda per capita
nos Estados Unidos era de 46,5 mil dólares/ano, no Brasil esse valor era de 10,7 mil dólares, e em
Uganda de apenas 509 dólares. Em 2015 houve melhora nesses indicadores: nos Estados Unidos a
média subiu para 55,8 mil dólares/ano, no Brasil para 15,6 mil dólares e em Uganda para 2 mil dólares.
(FMI, 2015). Embora tenha havido melhora, a distribuição de renda continua díspar. Enquanto a
degradação ambiental, que historicamente vem sustentando o crescimento econômico, prejudica todos
em termos de qualidade de vida, beneficia economicamente apenas parte da população da Terra.
O crescimento econômico e a urbanização, segundo Fernandes, proporcionaram

paradoxalmente crescente melhora na qualidade de vida, advinda da infraestrutura (redução de tempo


e distância através dos meios de transportes e comunicação; melhora na condição de trabalho e lazer,
a partir do desenvolvimento tecnológico e de gestão; qualidade de serviços, diversidade de bens de
consumo quase individualizados aos respectivos gostos) e, ao mesmo tempo, crescente diminuição
dessa mesma qualidade de vida no que se refere às condições psicológicas e sociais (pressões de todas
as ordens, alto stress) e da redução da qualidade dos bens naturais (água, ar, solo, produtos agrícolas e
outros bens essenciais provenientes e derivados da natureza). (2008, p. 2).

A economia, que originalmente consistia na busca pelo sustento do homem, transformou-se na


busca pela riqueza e corre o risco de esgotar suas duas fontes de sustentação: o trabalhador, na medida
em que os resultados econômicos não são distribuídos, e a natureza, por causa de sua exploração sem
limites. (ANTUNES et al., 1990).
Assim, os problemas ambientais não estão apenas relacionados ao crescimento populacional e ao
consumo dos recursos naturais para suprir necessidades de alimentação, vestuário e moradia, mas também
ao excessivo consumo desses recursos por uma pequena parcela da humanidade, que concentra renda e
riqueza e compromete o acesso à cultura, educação e necessidades básicas de boa parcela das sociedades.
A cultura consumista teve impulso nos Estados Unidos logo após a Segunda Guerra Mundial,
como forma de estimular a economia americana. A ideia foi proposta pelo analista econômico Victor
Lebow, que propôs transformar o consumo em estilo de vida, recomendando converter o ato de
comprar e utilizar bens em rituais por meio dos quais se buscasse bem-estar e satisfação emocional, uma
vez que o objetivo maior da economia americana deveria ser produzir mais e mais bens de consumo.
(SUZUKI, 2003).

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Desenvolveu-se assim um sistema que se espalhou pelo mundo todo, no qual o comportamento
do indivíduo é adaptado às necessidades da economia, invertendo a lógica da produção e consumo.
Em vez de se produzir para atender as necessidades do consumidor, o sistema, por meio de apelos
sociais e psicológicos e do uso do marketing, induz as pessoas a consumirem segundo as necessidades
de produção. Esta controla o comportamento do mercado, dirigindo e configurando as atitudes sociais
e suas necessidades, gerando assim uma cultura consumista e uma racionalidade econômica2.
A cidadania e a cultura também passam a ser confundidas com capacidade de consumo. Essa foi,
e é, condição necessária para o desenvolvimento e a manutenção da racionalidade econômica que, nas
palavras de Gorz, não poderia ser aplicada “quando o indivíduo é livre para determinar por si só o nível
de suas necessidades e o nível de esforço que despende” (2003, p. 112) para atendê-las. Nesse mesmo
sentido, Illich (1976) afirma que o indivíduo, uma vez modelado na mentalidade de consumidor-
-usuário, perde a capacidade de ver a perversão dos meios voltados para fins da manutenção da estrutura
da produção industrial, assim como perde a noção tanto do necessário como do excessivo, agarrando-se
à ideia de que o aumento do salário corresponde ao aumento do nível de vida. Assim, o homem
moderno não consegue conceber o desenvolvimento e a modernização em termos de redução, senão
como crescimento e consumo de energia, e de toda ordem de coisas, associando o grau de cultura com
alto consumo. Segundo Gorz (2003), nesse tipo de sociedade só são compreendidas as noções de mais
(+) e de menos (-), ao mesmo tempo em que se perdeu a noção do ‘suficiente’.
Essa aceleração da produção e do consumo, entretanto, tem consequências diretas na qualidade de
vida das populações das cidades e do campo, devido ao crescente uso de recursos naturais, utilizados como
insumos para a produção e geração de energia necessária a esses processos; ao aumento das emissões de
gases e da geração de resíduos lançados no meio ambiente; à gradativa condição de stress pela imposição de
metas de produção e pelas condições do trânsito nas cidades; ao crescente estado de frustração psicológica
pela abstinência de consumo quando este não é possível; ao progressivo estado de violência, sobretudo
urbana, pela desigualdade social e degradação das relações sociais. Configura-se assim um ambiente de
degradação socioambiental, no qual a alienação ao consumo é um dos principais vetores.

DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Considerando o cenário contextualizado anteriormente, que evidencia os dois principais problemas
que abalam a humanidade – a degradação do ambiente e a desigualdade social –, o tema ‘sustentabilidade’
tem se tornado agenda emergente, amplamente debatido. Ele tem levado vários setores da sociedade a
se mobilizarem em prol de maior conscientização na construção e divulgação de um saber que possa
contribuir para, se não sanar totalmente, ao menos minimizar a contradição estabelecida. Trata-se de
conciliar a necessidade de produzir bens necessários à qualidade de vida das sociedades e ao mesmo
tempo preservar os elementos naturais igualmente responsáveis por essa mesma qualidade de vida.
Com base na consciência dessa contradição por parte de alguns setores sociais, a busca de soluções
tem evoluído em todo o mundo, podendo ser observados seus reflexos no Brasil. Segundo Barbieri

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(2009), a preocupação com os problemas ambientais decorrentes dos processos de crescimento


e desenvolvimento deu-se lentamente e de modo muito diferenciado entre os diversos agentes,
indivíduos, governos, organizações internacionais e entidades da sociedade civil. Poder-se-ia resumir
essa evolução em alguns processos. Primeiramente, pode-se afirmar que houve certa ignorância,
negligência e até indiferença da maioria das pessoas – consumidores, produtores de bens e serviços –
em relação à percepção da problemática ambiental. E as ações para lidar com as consequências
oriundas desses problemas ambientais foram de natureza reativa, corretiva e repressiva, por meio
de multas, proibições e atividades de controle da poluição em relação às atividades industriais e de
consumo, associadas ao ambiente urbano e rural. Em seguida, essa problemática foi percebida como
um problema generalizado, confinado nos limites dos estados nacionais, que intervieram na resolução
desses problemas ambientais com estímulos à substituição de processos produtivos poluidores, estudos
de impacto ambiental, licenciamento de empreendimentos, entre outros. Nesse processo, segundo
Philippi Jr. et al. (2014), emergiram novas políticas e foram revistas antigas; houve uma evolução
dos sistemas de gestão nacionais, reflexo do movimento internacional, materializado por inúmeras
conferências e fóruns oficiais. Tal processo induziu, também, a uma evolução institucional, que no
Brasil representa um grande desafio. Em um terceiro processo, toda essa problemática foi percebida
de maneira global, planetária, de forma que suas consequências podem atingir a todos como resultado
do modelo de desenvolvimento concebido e praticado pelos países. Então se passou a questionar as
políticas e metas de desenvolvimento, a racionalidade subjacente e a própria noção de desenvolvimento
apenas baseada no crescimento econômico. À dimensão econômica foram agregadas aquelas de
natureza ambiental, ecológica, territorial, política, cultural e social, constituintes inseparáveis do que
se convencionou denominar ‘desenvolvimento sustentável’.
Ao longo dessa evolução, desenvolveu-se também uma dimensão científica, um movimento
internacional que coloca na agenda das ciências a necessidade de inovações nos produtos e no
próprio processo de produção do conhecimento à luz de uma nova perspectiva de desenvolvimento,
mais sustentável.
De acordo com Clark e Dickson (2003), a partir da década de 1990 tomou corpo uma série de
movimentos relacionados à sustentabilidade, no contexto de ciência e tecnologia. Eles ocorreram em duas
perspectivas complementares: uma mais técnica e outra mais holística. Na primeira, a tecnologia auxilia no
desenvolvimento de melhores formas de uso dos recursos naturais e na redução dos impactos das atividades
sociais do meio ambiente. Na segunda, é necessário refazer a ciência na perspectiva da sustentabilidade.
De acordo com Fernandes e Philippi Jr. (2017), esse processo também gerou duas perspectivas
distintas para se compreender a organização da sustentabilidade enquanto ciência. A primeira, uma
‘ciência da sustentabilidade’, no singular, como uma (inter)disciplina (KATES et al., 2001; KOMIYAMA;
TAKEUCHI, 2006; KAJIKAWA; TACOA; YAMAGUCHI, 2014) na qual a interdisciplinaridade
e a transdisciplinaridade são necessárias para produzir conhecimento científico, bem como novas
estruturas de conhecimento, plataformas de pesquisa, teorias e métodos, incluindo uma delimitação
da área desenvolvida em um ambiente interdisciplinar, tais como grupos de pesquisa e programas de

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pós-graduação. A segunda, ‘ciências da sustentabilidade’, no plural, como tema multidimensional, um


campo de conhecimento no qual as diversas disciplinas e competências atuam, combinando estruturas,
plataformas, teorias, métodos e conhecimentos em favor da sustentabilidade. Desse modo, estariam
esta e seus temas transversais como elo entre as disciplinas. (FERNANDES; PHILIPPI JR., 2017).
Por fim, outro movimento é o da sustentabilidade em si, como imperativo ético, preconizando:
solidariedade sincrônica com a geração atual e solidariedade diacrônica com as gerações futuras;
garantia de acesso às condições básicas de saúde e educação; respeito aos costumes e às tradições,
bem como à legitimidade das instituições (SACHS, 2006), dentre outros, presentes nas dimensões e
na definição de desenvolvimento sustentável do Relatório Brundtland (1987): “aquele que atende às
necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem as suas
próprias necessidades”. (CMMAD, 1991, p. 46).
Esse conceito, segundo pontua o relatório, está baseado em dois outros conceitos-chave: “o
conceito de ‘necessidades’, sobretudo necessidades essenciais dos pobres do mundo, que deve receber a
máxima prioridade” (CMMAD, 1991, p. 46. grifo original), e “a noção das limitações que o estágio da
tecnologia e da organização social impõe ao meio ambiente, impedindo-o de atender às necessidades
presentes e futuras”. (CMMAD, 1991, p. 46. grifo original).
O referido relatório enaltece que as necessidades devem ser bem delimitadas, compreendidas e
negociadas com o meio e satisfeitas de modo responsável em termos de consumo e produção no presente,
levando em conta as necessidades dos outros, aqui e agora, e as daqueles que ainda virão. É como diz
o provérbio chinês: “Todas as flores do futuro estão nas sementes de hoje”. Nesse sentido, o relatório
preconiza de forma direta o imperativo quanto à distribuição dos benefícios econômicos: “Para que haja
um desenvolvimento sustentável, é preciso que todos tenham atendidas as necessidades básicas e lhes
sejam proporcionadas oportunidades de concretizar suas aspirações a uma vida melhor”. (CMMAD,
1991, p. 47). Há nessa concepção de desenvolvimento, portanto, mudança ética substancial, que por sua
vez impõe grandes desafios de reestruturação dos processos de desenvolvimento, local, nacional e global.
Sachs (2000, p. 85-88) sintetiza esses desafios em sete dimensões de sustentabilidade
interdependentes e com profunda inter-relação: ecológica, espacial, cultural, social, econômica,
territorial e política. Ou seja, ao planejar o desenvolvimento em parâmetros sustentáveis é necessário
considerar simultaneamente essas sete dimensões e suas implicações ecológicas, espaciais, territoriais,
ambientais, sociais, culturais, políticas, econômicas e éticas.
A primeira delas, a ‘ecológica’, se refere à conservação da natureza (dos ecossistemas), levando em
conta seus elementos biológicos e físico-químicos. A sustentabilidade ecológica significa parcimônia no
uso dos recursos, considerando sua capacidade de resiliência, devendo, portanto, serem priorizados os
recursos renováveis. É o que Dansereau (1999, p. 303) define como prospecção ecológica, que significa
levar em conta os critérios e limites do meio ecológico, em contraste com os critérios econômicos,
históricos, culturais e políticos e de construção da territorialidade.
O mesmo deve se dar nos planos científico e tecnológico, que devem revisar seus esquemas
com base na perspectiva dos limites ecológicos. Por meio dessa premissa, torna-se fundamental a

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mudança nos padrões de consumo e a reversão do modelo cultural que sustenta os padrões atuais, de
elevado consumo de energia e demais recursos e gerador de resíduos. Essa dimensão remete à própria
sustentação da economia enquanto atividade dependente dos recursos naturais. Remete também à
noção de necessidade objetiva, em contraste com as necessidades subjetivas socialmente construídas.
A dimensão ‘territorial’, por sua vez, deve considerar a ocupação planejada do espaço, respeitando
os limites impostos pelo sistema ecológico na construção da territorialidade3. Precisa levar em conta
o equilíbrio na ocupação do espaço, principalmente considerando a distribuição entre meio urbano
e rural. São necessárias legislações, políticas e aparato institucional integrados para o planejamento
urbano e de uso e ocupação do solo. Deve-se favorecer as vocações locais sem privilegiar o urbano em
relação na alocação de recursos governamentais em infraestrutura e fomento à produção como um
todo. Deve haver a valorização da produção sustentável no campo, inclusive com políticas de formação
técnica para atividades nesse meio, tendo em vista a conservação de ecossistemas e da biodiversidade.
Já a dimensão ‘ambiental’ incorpora as dimensões ecológica e territorial e está intimamente ligada
com a compreensão dos limites e capacidades dos ecossistemas. Como afirma Merico, “a biosfera não
cresce” (1996, p. 30) e é a fonte de todos os recursos que alimentam a economia e lugar de depósito dos
resíduos e rejeitos. Portanto, é preciso respeitar dois pressupostos básicos: não retirar dos ecossistemas
mais do que sua capacidade de regeneração; não lançar nos ecossistemas mais do que sua capacidade
de absorção. Por meio dessa compreensão, o ambiente é resultado das atividades humanas na biosfera.
O ambiente construído deve, portanto, estar em harmonia com a ecologia e os aspectos territoriais.
A dimensão ‘social’ diz respeito ao equilíbrio social em termos econômicos e políticos, com justa
distribuição de renda, pleno emprego, acesso a serviços básicos como moradia, transporte, saúde, educação
e alimentação e à garantia de participação democrática nos processos políticos e de tomada de decisão,
com livre expressão, direito à informação e possibilidade de organização em busca desses direitos.
A dimensão ‘cultural’, por sua vez, consiste em garantir o respeito às tradições culturais, eliminando
preconceitos e, principalmente valorizando as culturas ditas ‘não modernas’, oriundas de comunidades
rurais e tradicionais. Por meio desses elementos Sachs sugere um projeto nacional e integrado de
desenvolvimento endógeno, em oposição ao modelo mimético e dependente copiado dos países centrais
(Europa e Estados Unidos). O desenvolvimento endógeno, segundo Godard et al. (1987), consiste em
as sociedades nacionais e locais adquirirem certo domínio como atores do próprio desenvolvimento.
Já a dimensão ‘econômica’ tem por objetivo garantir a viabilidade econômica do desenvolvimento,
no sentido de construir um modelo produtivo viável, com infraestrutura consistente e provedor das
necessidades sociais, condição necessária para a erradicação da pobreza sem a exaustão dos recursos
naturais que o sustentam. Portanto, um modelo que não dilapida os recursos naturais e não degrada o
equilíbrio sociocultural. Ele preconiza o desenvolvimento econômico diversificado, intersetorial, com
capacidade de inovação e modernização contínua dos instrumentos de produção e a economia como
atividade humana provedora das necessidades sociais.
A dimensão ‘política’ se dá em dois âmbitos: nacional e internacional. O primeiro diz respeito
à democracia como expressão prática dos direitos humanos e o Estado como expressão coletiva da
sociedade, envolvendo seus vários setores e interesses, a manutenção das instituições democráticas e

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a segurança jurídica, por meio da construção de regras estáveis e duradouras, considerando as esferas
federal, estadual e municipal. O segundo se refere à busca incessante pela paz e cooperação entre
os povos, à redução das assimetrias entre norte e sul, ao compartilhamento de responsabilidades, ao
controle do sistema financeiro internacional, ao estabelecimento e à aplicação efetiva de princípios de
precaução na gestão ambiental dos recursos naturais, visando prevenir as mudanças climáticas globais,
conservar a biodiversidade biológica, respeitar a diversidade cultural, gerir efetivamente os patrimônios
da humanidade, cooperar científica e tecnologicamente com base na compreensão de que se trata de
patrimônio construído historicamente, portanto, de propriedade e uso comum da humanidade.

ALGUNS AVANÇOS
Embora não se possa afirmar que já existe uma mudança de paradigma, algumas práticas com base
na perspectiva da sustentabilidade já ocorrem em nível mundial. A título de ilustração, são citadas a
seguir algumas dessas práticas.
Durante as crises financeiras de 2007, 2008 e 2009, a Coreia do Sul utilizou quase a totalidade
dos recursos destinados a reaquecer a economia em tecnologia verde. Esse país resolveu ser a primeira
nação no mundo a ter uma economia verde4. Essa atitude partiu da percepção de que se trata de
uma mudança necessária e ao mesmo tempo uma oportunidade de desenvolvimento científico e
tecnológico, com resultados econômicos inerentes. Cabe registro que, nos últimos 20 anos, a Coreia do
Sul experimenta desenvolvimento científico e tecnológico dos mais profícuos do mundo. A percepção
é que há enormes oportunidades em tecnologias sustentáveis, diante do desafio em que a humanidade
e a economia se encontram. Os primeiros que realizarem essas oportunidades poderão inaugurar outro
estilo de vida e de economia ao mesmo tempo que estarão ajudando a salvar o planeta.
Em tempo, a proposta de uma economia verde está na agenda de desenvolvimento internacional
e foi tema central da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, no Rio de
Janeiro, de 13 a 22 de junho de 2012. A Rio +20, como foi apelidada, tratou da economia verde no
contexto do desenvolvimento sustentável e da erradicação da pobreza.
Em 2016, representantes de mais de 170 países ratificaram o acordo de Paris visando à redução de
emissões de carbono. A impressão do presidente da França sobre o significado desse ato foi publicada
pelo jornal The Guardian: “Não haverá volta”. (GOLDENBERG; NESLEN, 2016).
Da mesma forma, há inúmeras oportunidades de trabalho e renda relacionadas à preservação
ambiental, como na conservação e no manejo sustentável de florestas e rios, no tratamento dos
resíduos sólidos, na eficiência energética, na produção agrícola orgânica e de baixo carbono e ainda
em mecanismos de produção mais limpa. Segundos dados da Organização Internacional do Trabalho
(OIT), as atividades em prol da sustentabilidade já são responsáveis por aproximadamente 2,5% dos
empregos de alto nível, envolvendo bacharéis, mestres e doutores, em países como Brasil e Estados
Unidos, portanto já evidenciando ganhos sociais importantes.

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Conforme relatório da UNEP (1998), um investimento anual de 2% do PIB global para adaptar
as economias a um futuro mais sustentável poderia trazer como benefício secundário um crescimento
econômico de 15,7% até 2050. O mesmo relatório sugere que seriam necessários investimentos
equivalentes a US$ 1,3 trilhão anuais (cerca de R$ 2,15 trilhões) em algumas áreas-chave, como
agricultura, construções, suprimento de energia, pesca, florestas, indústria, turismo, transporte e
manejo de lixo e água, para garantir uma economia verde, de baixo carbono e eficiente no uso dos
recursos. (UNEP, 1998). Pode-se pensar que seja um valor alto demais, contudo, a remediação de
catástrofes socioambientais pode ter custo ainda maior, com prejuízos incalculáveis tanto em termos
econômicos como socioambientais.
Utilizando a análise das bases de dados Thompson Reuters e Web of Science, as duas maiores bases
científicas do planeta, Kajikawa et al. (2014) e Fernandes e Philippi Jr. (2017) evidenciam também
grande crescimento das pesquisas sobre temas relacionados à sustentabilidade. Kajikawa et al. (2014)
identificaram que as publicações mais relevantes começaram a surgir por volta de 1990, acelerando
consideravelmente no início do presente milênio. Fernandes e Philippi Jr. (2017), realizando pesquisa
semelhante, evidenciaram maior crescimento após 1992 e demonstraram que o crescimento mais
acentuado ocorreu após 2000, conforme Figura 1.

Figura 1 – Evolução de documentos contendo nos respectivos títulos as palavras sustainability ou


sustainable a partir de 1990.
Documentos por ano
sustentabilidade ou sustentável, 1900-2015
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30000

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Fonte – Scopus© e Web of Science© (apud FERNANDES; PHILIPPI JR., 2017, p. 375).

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Portanto, é possível afirmar que dentre os avanços observados, como novas oportunidades
econômicas e de empregos, é relevante também o avanço científico e tecnológico, por meio do qual
a sustentabilidade se tornou um campo de conhecimento interdisciplinar, permeando diversos outros
campos de conhecimento e provocando alterações em diversas disciplinas.

EDUCAÇÃO PARA CONSUMO RESPONSÁVEL


Em discurso no evento Sustainable Energy for All (2015), o diretor-geral das Nações Unidas para
o Desenvolvimento Industrial, Kandeh Yumkella, salientou que cerca de 70% das emissões de gases de
efeito estufa resultam de atividades relacionadas à produção e consumo de energia, com destaque para
seu consumo na produção industrial. Portanto, não é possível falar de desenvolvimento sustentável
sem pensar em uma revolução energética e nos padrões de consumo e na distribuição de renda. Ainda
segundo Yumkella, a questão climática e a pobreza são os dois maiores problemas dos tempos modernos
e estão interligados. Com efeito, pode-se afirmar que a ligação entre esses dois grandes dramas da era
moderna é justamente o modelo de desenvolvimento baseado na produção e consumo.
É absolutamente vital um novo estilo de produção com novos padrões tecnológicos, utilizando-se
de técnicas e tecnologias mais limpas; com economia de materiais; diminuição no uso de insumos
tóxicos, como metais pesados; diminuição na geração de resíduos; reciclagem; reuso de materiais;
tratamento do lixo; tratamento e reuso de água; eliminação e diminuição de defensivos agrícolas; uso
de agricultura orgânica, melhoria do transporte e armazenamento visando à diminuição de desperdícios
e assim por diante.
Todas essas ações são necessárias e emergentes e dependem diretamente do desenvolvimento
científico e tecnológico na perspectiva do desenvolvimento sustentável, que prevê, também, uma
mudança cultural em relação aos padrões de consumo. A alteração desses padrões de produção e
consumo, portanto, é um requisito fundamental para se alcançar um desenvolvimento sustentável,
como reconhecido pelos chefes de Estado e governos na Declaração de Joanesburgo (2002).
O uso intensivo de recursos, padrões de consumo e produção dos países desenvolvidos não pode ser
replicado em todo o mundo porque, como sugerem alguns cálculos, ele exigiria recursos de três planetas
para sustentar tais padrões. O impacto disso sobre o clima e os ecossistemas do mundo seria enorme e
imprevisível – e até mesmo perigoso. (DESA, 2012). O desenvolvimento sustentável é, portanto, uma
responsabilidade coletiva (UNEP, 1998), e a produção responsável exige uma reformulação fundamental
da forma como as sociedades produzem, usam e descartam produtos. (DESA, 2012). Tal reformulação,
por sua vez, depende de mudança cultural e do desenvolvimento científico e tecnológico, segundo os
preceitos do desenvolvimento sustentável.
Segundo definição da Comissão para o Desenvolvimento Sustentável da ONU (Commission
on Sustainable Development), o consumo sustentável consiste na utilização de serviços e produtos

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que correspondam às necessidades básicas e proporcionem melhor qualidade de vida, evitando o uso
excessivo de recursos naturais e impedindo o uso de materiais tóxicos, bem como reduzindo a geração
de resíduos e emissões poluentes durante o ciclo de vida do produto. (CSD, 1995).
Em documento intitulado Consumo sustentável, o Programa Ambiental das Nações Unidas
(United Nations Environment Programme – UNEP, 1998) especifica padrões de consumo como
resultado de escolhas e de variadas atividades, feitas por agentes do mercado, do governo e por
famílias e indivíduos. Afirma também que influenciar essas escolhas significa estimular e facilitar novas
oportunidades econômicas, melhores produtos e serviços. Tem papel fundamental, igualmente, a
estruturação de aparato institucional e marco legal, no sentido de coibir comportamentos, produção e
consumo insustentável.
E qual é o papel da educação para desenvolver uma cultura de sustentabilidade e de consumo
responsável? Nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), além das disciplinas consideradas
fundamentais para o conhecimento dos saberes acumulados socialmente, são inseridas questões
urgentes que devem necessariamente ser tratadas de maneira transversalizada. Um dos temas
transversais propostos é ‘meio ambiente’. Estudá-lo tem como função principal “a contribuição para
a formação de cidadãos conscientes, aptos para decidirem e atuarem na realidade socioambiental de
um modo comprometido com a vida, com o bem-estar de cada um e da sociedade, local e global”.
(BRASIL, 1997, p. 20).
O conceito de sustentabilidade na educação, como destaca Gadotti (2008), é uma oportunidade
para, por meio do estudo desse tema transversal, resgatar o sentido de educação e cidadania. Para
esse autor, a sustentabilidade está relacionada ao ‘sonho de bem viver’, de uma dinâmica relacional
equilibrada entre homem e ambiente. Nesse sentido, ele concebe educação para a sustentabilidade
como educação para a vida, já que não são coisas separadas. Não há educação descontextualizada, fora
do ambiente, como se pode inferir com base na pedagogia de Paulo Freire. (FREIRE, 1983).
Nesse sentido, Gadotti (2000) propõe uma ‘pedagogia da terra’, intrínseca ao que denomina
‘ecologia integral’, que implica uma mudança nas estruturas econômicas, sociais e culturais
e na relação com o meio. Eis o princípio da sustentabilidade traduzido na educação, como
questionamentos existenciais e da vida concreta como ‘Qual sentido damos a tudo o que fazemos?;
‘Qual é o impacto de nossas ações no meio, na qualidade de vida dos povos e para a sua felicidade?’.
A sustentabilidade pode ser trabalhada também com base em dois eixos fundamentais: um relativo
à natureza e o outro relativo à sociedade. O primeiro refere-se à sustentabilidade ecológica,
ambiental, espacial e territorial, que envolve os recursos naturais e ecossistemas, relacionados à base
física do processo de desenvolvimento e à capacidade da natureza de suportar a ação humana, com
vistas à sua reprodução e aos limites das taxas de crescimento populacional. O segundo refere-se à
sustentabilidade social, econômica, política e cultural, que diz respeito à manutenção da diversidade
e das identidades, diretamente relacionada à qualidade de vida das pessoas, à justiça distributiva, ao
processo de construção da cidadania e à participação das pessoas no processo de desenvolvimento.
(GADOTTI, 2008). Tal pensamento vem ao encontro da proposta dos PCN, cujo entendimento é

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a educação por meio da compreensão da complexidade da natureza e da sociedade, suas correlações


e interações. (BRASIL, 2001).
Nesse sentido, as ações com base na complexidade ambiental vinculam-se a escolhas pessoais e de
grupo, relacionadas à conformação de novos valores de ver e viver no mundo, principalmente no que se
refere ao modo de produzir e consumir, como também na construção de novas interpretações da relação
homem e natureza. De fato, talvez seja esta a função primeira da educação para a sustentabilidade:
propor-se a conformar esses valores para criar uma consciência condizente com comportamentos
ambientais saudáveis. Trata-se de desenvolver novos padrões comportamentais, que devem estar
intimamente vinculados a mudanças de atitudes necessárias com vistas à sustentabilidade. Tais atitudes
não são inatas, mas aprendidas, implicando mudanças de valores, segundo preconizado por Sachs
(2000) quando propõe as dimensões de sustentabilidade.
A Unep propõe o uso de alguns instrumentos para estimular essa consciência, tais como marketing
e publicidade, avaliação do ciclo de vida e ecodesign, visando criar aos poucos uma consciência dos
problemas relacionados ao consumo excessivo e, ao mesmo tempo, das possibilidades de sustentabilidade
por meio de um consumo consciente e responsável.
Nos espaços educacionais, essas práticas podem ser subsidiadas por instrumentos e atividades
pedagógicas, como cartazes; vídeos; oficinas de leitura e debates; atividades de coleta e separação de
resíduos; oficinas psicopedagógicas relacionadas à cultura consumista e ao controle do impulso de
consumo; atividades de separação de itens de consumo, classificando-os como essenciais e supérfluos;
oficinas de estabelecimento de relações entre os produtos e suas matérias-primas; oficinas de reuso de
materiais e recuperação de produtos.
O processo educativo pode ser definido como um ato contínuo de tornar-se consciente do mundo
e de seu estado de coisas e, por meio dessa consciência, fazer as opções em relação às várias dimensões
que integram a vida em sociedade e no ambiente. Portanto, é um processo de integração consciente
com a sociedade e suas contradições e com o meio onde se vive. Não se limita assim à circunscrição
da escola e da sala de aula, e nesse sentido têm papel fundamental os mecanismos de comunicação
social, tais como televisão, jornais, rádios, internet, outdoors, entre outros. A influência destes, de
responsabilidade do estado e das políticas públicas, deve fazer parte da agenda de sustentabilidade e dos
mecanismos legais e institucionais de controle.
O intercâmbio de experiências de boas práticas de sustentabilidade com base no uso dos meios de
comunicação nas várias partes do mundo também pode ter grande poder pedagógico, de forma a evidenciar
que não existe apenas a cultura de consumo, e que a inclusão em grupos sociais não depende apenas do
poder aquisitivo e da capacidade de consumir coisas, mas pode advir também da busca de interesses comuns,
como a causa da sustentabilidade. Portanto, as relações sociais não precisam ser mediadas necessariamente
por associações comerciais ou demarcadas pelo poder de compra e pela posse de bens de consumo.
Nossas relações podem ser mediadas por valores. Nesse sentido, Almeida (2009) traz uma reflexão
de Hannah Arendt sobre o ‘amor mundi’, que representa a importância do valor do amor, do cuidado
por esse mundo, entendido também como responsabilidade política e econômica pelo planeta. Para

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Arendt, o mundo é o “conjunto de artefatos e instituições criadas pelo homem, os quais permitem que
eles estejam relacionados entre si sem que deixem de estar simultaneamente separados”. (DUARTE,
2001, p. 257). Segundo Arendt, o mundo é ainda “espaço institucional que deve sobreviver ao ciclo
natural da natalidade e mortalidade das gerações” (DUARTE, 2001, p. 257), e o lugar das estórias
humanas espaço onde se possa garantir as relações. Por meio da educação é possível então introduzir as
crianças e os jovens ao apreço por este mundo.
Quem educa, propõe Arendt, torna-se responsável por quem está sendo educado e pelo mundo,
pois no processo de educação o ser humano decide se ama o mundo e quem nele habita. O amor,
como valor, é uma resposta à destruição do mundo e ao ‘não mundo’, caracterizado como a sociedade
moderna organizada em torno do processo vital de produção e de consumo.
É também por meio dos conceitos de ‘ação’ e ‘pensamento’ que Arendt mostra a vantagem de
apostar no mundo apesar de ele estar ‘fora do eixo’ e o quanto é importante o papel da educação no
sentido de encorajar os alunos a estabelecerem um vínculo com esse espaço comum de todos, que é
o mundo. A educação para o consumo sustentável é, na prática, a educação para uma nova ética, da
sustentabilidade, nos termos de Sachs (2006).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O homem está em constante interação com aquilo que cria e com o ambiente que o cerca, seja
ele organizacional, seja educacional, urbano ou ecológico, o seu meio ambiente. E se o que ele cria
com o desenvolvimento tecnológico for provido de valores humanos positivos e sustentáveis, com
certeza ele estará ajudando a preservar e não ultrajar sua moradia: o meio ambiente. Se por um lado
é preciso humanizar a economia – que se tornou a ameaça mais grave à ecologia –, por outro são
necessários valores éticos a fim de minimizar os efeitos da crise ambiental, que por sua vez resultam
da crise antropológica em relação ao ambiente. A solução para isso depende de comportamentos
éticos enquanto cidadãos, empresários e governantes, no que se refere a um novo modo de produzir e
consumir, e também de uma nova ciência, que reconheça na sustentabilidade um norteador ético de
seu desenvolvimento e do desenvolvimento tecnológico. Tal ciência deve ter interações dinâmicas entre
natureza e sociedade, ser interdisciplinar, por sua natureza complexa e sistêmica, e transdisciplinar,
por requerer interações entre cientistas e diversos outros atores sociais nos processos de diagnóstico
de problemas e desenvolvimento de soluções práticas relevantes. (KOMIYAMA; TAKEUCHI, 2006;
COSTANZA; GRAUMLICH; STEFFEN, 2005; FERNANDES; RAUEN, 2016). Trata-se de uma
ciência transversal, cujas pesquisas devem ser absolutamente contextualizadas porque estão na fronteira
de grandes áreas de conhecimento, resultantes de conexões entre as ciências da terra, biológicas, agrárias,
da saúde, sociais, aplicadas e humanas e engenharias. (FERNANDES; PHILIPPI JR., 2017).
A mudança climática, a extinção maciça de espécies, a degradação dos oceanos, por um lado, e
questões sociais relacionadas à falta de emprego, má distribuição de renda, aumento populacional,

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por outro, convocam para um esforço coletivo, com todas as organizações – governo, sociedade civil,
comunidade científica –, para uma tomada de consciência de que somos responsáveis pela saúde do
planeta e podemos nos reunir para corrigir os rumos dessas situações, pois as respostas que daremos a
esses desafios afetarão toda a humanidade, quer positivamente, quer negativamente. É como nos alerta
Diamond (2007), quando afirma que o fracasso de uma sociedade pode recair sobre povos periféricos
em áreas frágeis, mas também sobre sociedades avançadas e criativas como a nossa. Como afirma
Eduardo Galeano, no vídeo de 2012 El Derecho al Delirio, “que tal se delirarmos por um momento
[...] para imaginar outro mundo possível, no qual o ar estará limpo de todo o veneno que não provenha
dos medos humanos”. (GALEANO, 2012).

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NOTAS EXPLICATIVAS
1 A palavra ‘resiliência’ tem origem no latim resilio, que significa retornar a um estado anterior. Resiliência
é, portanto, a propriedade pela qual a energia armazenada em um corpo deformado é devolvida quando
cessa a tensão causadora da deformação elástica. (HOUAISS; VILLAR, 2001). Adaptando-se à questão

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520

ambiental, ou a uma visão sistêmica, resiliência é a capacidade de um sistema de superar o distúrbio


imposto por um fenômeno externo e se manter inalterado. É a resiliência que determina o grau de defesa,
ou vulnerabilidade, do sistema às pressões ambientais externas.
2 Racionalidade econômica pode ser definida como a instrumentalização de toda a vida em função de
finalidades e critérios econômicos. A racionalidade econômica pode ser entendida como aplicação da
racionalidade instrumental para finalidades de conteúdo predominantemente econômico. A racionalidade
instrumental consiste na capacidade de construir os meios para se atingir os fins. (FERNANDES, 2008,
p. 14-19).
3 O termo ‘territorialidade’ associa-se à ideia de integração de uma área efetivamente ocupada pela população
pela economia, pela produção, pelo comércio, pelos transportes, pela fiscalização, enfim, onde se dão essas
relações. (HAESBAERT, 2002).
4 ‘Economia verde’ é aquela que resulta em ‘um bem-estar humano melhor e mais igualdade social, ao
mesmo tempo reduzindo os riscos ambientais e as carências ecológicas’. Uma ‘economia verde’ se caracteriza
pelo foco dos investimentos em atividades relacionadas à conservação ambiental ou visando aproveitar e
potencializar o capital natural, social e humano, considerando em suas decisões os limites do planeta e os
interesses sustentáveis da sociedade”. (UNEP, 1998).

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
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MERCADO DE TRABALHO NA QUARTA


REVOLUÇÃO INDUSTRIAL: O DESAFIO DE FORMAR
PROFISSIONAIS PARA CARREIRAS QUE AINDA
NEM EXISTEM

O DESAFIO DE SEMPRE – ALCANÇAR O SUCESSO

Claudio R. Brito
Melany M. Ciampi

Vamos começar nossa interessante jornada com a palavra ‘desafio’, que segundo o dicionário é um
substantivo masculino que significa “1. Ato de desafiar. 2. Provocação. 3. Porfia. 4. Despique. 5. Jogo,
peleja, partida. [...]”. (DESAFIO, 2013).
É fato que este não é um conceito novo para os seres humanos, pois somos desafiados a aprender
desde que nascemos a andar de pé, a deglutir sólidos e a falar – embora sejam processos naturais,
exigem de nós esforço pessoal.
Concomitantemente com nosso desenvolvimento físico, recebemos de nossos pais não só
ensinamentos, como também exemplos e diretrizes para convivermos em sociedade. Recebemos
deles o que é chamado de educação, ou seja, os fundamentos que nos auxiliam a adquirir os
dotes físicos, morais e intelectuais que são o cerne da ‘educação’. Recebemos da família não só
os ensinamentos para o desenvolvimento físico como também o conhecimento e a prática dos
usos considerados corretos socialmente, que são os fundamentos para a convivência, a cortesia e a
polidez. (EDUCAÇÃO, 2013).

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As investigações históricas nos mostram as grandes conquistas dos seres humanos no


desenvolvimento de tecnologias que os auxiliassem a realizar os trabalhos diários, principalmente
na agricultura, em que desde o arado até as grandes máquinas auxiliam imensamente na colheita,
mas também na semeadura e na irrigação. Isso sem mencionar os transportes e a comunicação, que
juntamente à língua são elementos de integração, que promovem o sucesso da sobrevivência humana.
Quanto ao desenvolvimento de tecnologias com vistas à sobrevivência humana, em destaque
estão os desafios enfrentados e em muito superados das pesquisas químicas e farmacêuticas na busca de
remédios que combatem as doenças, prolongando a vida dos seres humanos.
A superação de doenças, bem como as pesquisas que trazem informação valiosa para uma vida mais
saudável, têm efeito interessante sobre a população, promovendo não só a longevidade dos seres humanos,
como também o aumento da população mundial. Pode-se dizer que hoje, graças ao desenvolvimento
tecnológico e das pesquisas científicas, a maioria da população mundial tem vivido mais e melhor. Esse
fenômeno tem consequências interessantes sob o ponto de vista psicológico e social, pois a longevidade
requer novos parâmetros para a vida em coletividade. Isso porque pessoas idosas, na maioria, têm um
conhecimento e uma experiência tais que podem e devem ser aproveitados, daí a necessidade da extensão
de seu período de trabalho profissional, uma vez que o ser humano pode ser produtivo por mais tempo.
Outro fenômeno com grande impacto na vida dos seres humanos é o processo de globalização,
que embora não seja novo, vem apresentando vários desafios para a humanidade.
De acordo com muitos historiadores, o processo de globalização teve início nos séculos XV e
XVI, período em que ocorreram as Grandes Navegações e as Descobertas Marítimas. Começava então
a saga do homem europeu, que venceu grandes desafios em suas viagens pelos oceanos, descobrindo
novas terras e entrando em contato com povos de outros continentes, estabelecendo com eles relações
comerciais e culturais.
A expansão marítima europeia foi a grande responsável pela transformação gradativa da estrutura
social da época, causando profundas mudanças sociais e econômicas. Antes desse evento não se pode
dizer que havia um processo de globalização, uma vez que predominava o isolamento de povos em
economias relativamente autônomas e pouco ou nada integradas entre si.
Há, portanto, certo consenso que o processo de globalização se iniciou no final do século XX, com
o desenvolvimento científico e tecnológico, e chegou a tal patamar que seu desenvolvimento passou a
ser exponencial, como assistimos hoje.
O fenômeno que impulsionou exponencialmente o processo de globalização foi, sem dúvida, o
desenvolvimento da World Wide Web (www), que facilitou a comunicação em massa, em tempo real
e com rapidez espantosa.
Junto à televisão, a web quebra barreiras, ligando pessoas e espalhando ideias, formando assim a
chamada aldeia global, na qual as pessoas estão distantes, mas ligadas. Esse fenômeno é responsável pela
disseminação ainda maior da língua inglesa. Pode-se dizer que atualmente saber ler, falar e entender
a língua inglesa é fundamental nesse contexto, pois é o idioma universal e o instrumento pelo qual as
pessoas podem se comunicar mundialmente. O que também colabora para a adoção da língua inglesa
é a língua em si, que embora tenha alta entropia, é relativamente fácil de ser aprendida.

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Quanto aos transportes, aliados aos novos sistemas de comunicação, promovem o encurtamento
de distâncias, reduzindo gastos e também tempo em deslocamentos e trocas de correspondência. Esse
desenvolvimento tem desencadeado uma rede de fluxos de informações e serviços que interligam vários
pontos do planeta entre si.
Toda essa dinâmica de integração e superação de distâncias se deve à Terceira Revolução Industrial,
também chamada de Revolução Técnico-Científico-Informacional, que tem como base primordial a
informação e está ligada ao conhecimento de inúmeras ciências. Um exemplo disso é o microchip,
que apesar de ser composto com pouquíssimo material, tem grande valor agregado, uma vez que
para ser concebido foram necessários anos de estudos e pesquisas. São justamente as informações
inseridas nesse produto que tornam possível a importante etapa que a sociedade atravessa, na qual a
comunicação e os transportes acontecem com uma rapidez nunca vista antes na história. Trata-se de
uma dinâmica de transformações cada vez mais acelerada e produtora de uma integração maior entre
as pessoas. (PENA, 2018).
Podemos afirmar, portanto, que a evolução do processo de globalização se constitui de uma série
contínua de desenvolvimento da ciência e da tecnologia e tem proporcionado grandes avanços nas
comunicações, na saúde, nas relações econômicas, sociais e até mesmo pessoais.
Atualmente, o processo de globalização tem extrapolado as relações comerciais e financeiras, que hoje
se encontram em um estágio de franca expansão, possibilitando novas oportunidades em todos os países.
Esse fato é responsável pelo aumento da empregabilidade, pois agora os locais de trabalho extrapolam as
paredes dos prédios que outrora abrigavam equipamentos e pessoas e limitavam a ação laboral a períodos
distintos. Essa característica é profundamente transformadora e democrática, pois assim, por exemplo, as
pessoas com deficiência podem trabalhar de casa utilizando computadores e a web, sem precisar enfrentar
as adversidades diárias que as dificuldades de mobilidade lhes impõem. A globalização é, sem dúvida, uma
aliada na inserção social dos portadores de deficiência. (KUEPPER, 2019).

QUARTA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL


As três revoluções industriais anteriores tiveram início nos países desenvolvidos, mais exatamente
no continente europeu. A primeira aconteceu entre 1760 e 1840, movida por tecnologias mecânicas
como máquinas a vapor e ferrovias. Essas máquinas substituíram processos manuais e o uso de animais
para gerar força e movimento. Os países começaram então a investir em pesquisa como um diferencial
competitivo para a economia.
A Segunda Revolução Industrial aconteceu entre o final do século 19 e início do século 20, tendo
como principais inovações a eletricidade e seu emprego em bens de consumo, como os eletrodomésticos –
dentre eles o rádio –, e a implantação das linhas de montagem, que possibilitaram a produção em massa.
A Terceira Revolução Industrial, que se iniciou na década de 1960, tem como ponto de partida o
advento da informática e da tecnologia da informação, o uso de computadores pessoais e, mais tarde,
nos anos 1990, a internet e as plataformas digitais.

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Em relação à Quarta Revolução Industrial, de acordo com Klaus Schwab, fundador e presidente
executivo do Fórum Econômico, ela “não é definida por um conjunto de tecnologias emergentes em si
mesmas, mas pela transição em direção a novos sistemas que foram construídos sobre a infraestrutura
da revolução digital”. (2017, p.12).
De acordo com ele, as revoluções industriais anteriores liberaram a humanidade do uso de animais
para o trabalho, tornaram possível a produção em massa e trouxeram capacidades digitais a bilhões
de pessoas. Já a chamada Quarta Revolução Industrial é, no entanto, fundamentalmente diferente.
Ela é caracterizada por uma gama de novas tecnologias que estão fundindo os mundos físico, digital
e biológico, o que tem causado impacto em todas as disciplinas, economias e indústrias e até mesmo
desafiado ideias sobre o que significa ser humano.
Segundo Schwab, as mudanças e interrupções resultantes significam que vivemos em uma época
de grande promessa e grande perigo. Afinal, o mundo tem o potencial de conectar bilhões de pessoas
a redes digitais, melhorar drasticamente a eficiência das organizações e até mesmo gerenciar ativos, de
forma a ajudar a regenerar o ambiente natural, potencialmente desfazendo os danos das revoluções
industriais anteriores. (WORLD ECONOMIC FORUM, 2018).
A Quarta Revolução Industrial difere em muito das três precedentes por estas características:
velocidade, alcance e impacto nos sistemas. Em outras palavras, a velocidade dos avanços atuais
está interferindo em quase todas as indústrias de todos os países a uma velocidade espantosa, com
consequências profundas no desenvolvimento do trabalho.
Esse novo cenário traz muitas perguntas sobre o futuro da humanidade. Devemos olhar para
essas perspectivas com animação e entusiasmo, pois embora as mudanças tragam aspectos negativos
há também os positivos, haja vista que o desenvolvimento científico e tecnológico tem aumentado a
expectativa de vida e melhorado as comunicações e a mobilidade de forma nunca antes visto, o que tem
sido extremamente bom por ajudar também a assegurar os direitos humanos.
Atualmente, a Quarta Revolução Industrial traz consigo uma tendência à automação total das
fábricas – seu nome vem, na verdade, de um projeto de estratégia de alta tecnologia do governo da
Alemanha, trabalhado desde 2013 para levar sua produção à total independência da obra humana.
A automação acontece por meio de sistemas ciberfísicos, que foram possíveis graças à internet
das coisas e à computação na nuvem. Tais sistemas combinam máquinas com processos digitais e são
capazes de tomar decisões descentralizadas e de cooperar – entre eles e com humanos – por meio da
internet das coisas.
O que vem por aí, dizem os teóricos, é uma ‘fábrica inteligente’, ou seja, verdadeiramente
inteligente. O princípio básico é que as empresas poderão criar redes inteligentes capazes de controlar
a si mesmas. Sem dúvida, os países mais desenvolvidos adotarão as mudanças com mais rapidez, pois
dispõem de recursos financeiros e têm outra mentalidade, porém alguns especialistas destacam que as
economias emergentes serão as mais beneficiadas, se houver, é claro, interesse por parte delas. (LEITÃO;
COLOMBO; KARNOUSKOS, 2006).
Com o aumento do desemprego e a necessidade de crescimento sustentável, em todo o planeta se
estudam novos modelos econômicos, que compreendem a redução da jornada de trabalho e a criação

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de redes de apoio social, inclusive por parte do Estado, que assim pagaria uma renda mínima aos
cidadãos. Só isso, porém, não basta. É necessário preparar as novas gerações para essa realidade,
ou seja, para enfrentar os desafios de outras formas de trabalho e de novas profissões, que surgirão
de acordo com as necessidades (uma tendência inevitável). Portanto, é imprescindível investir na
educação em todos os níveis, pois mesmo com o aparecimento de novos empregos no futuro, milhares
de postos de trabalho serão extintos, uma vez que a Indústria 4.0 poderá aumentar a produção sem
precisar de mais trabalhadores.
Portanto, no tocante à empregabilidade dos indivíduos haverá sem dúvida uma mudança
profunda, em que algumas profissões irão se extinguir e outras irão surgir. Não podemos prever com
exatidão o futuro, porém podemos nos preparar para o novo, o inusitado, para as constantes mudanças
e os desafios de uma nova carreira.

DESAFIOS PROFISSIONAIS TRAZIDOS PELA


QUARTA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL
Nessa nova fase do desenvolvimento científico e tecnológico, assistimos a avanços impulsionados
por um conjunto de tecnologias chamadas de ‘disruptivas’, termo que descreve uma inovação
tecnológica, um produto ou um serviço que utiliza uma estratégia disruptiva, em vez de evolucionária ou
revolucionária, para derrubar uma tecnologia dominante no mercado. Tais tecnologias compreendem
a inteligência artificial, a robótica, a realidade aumentada, o big data, ou seja a análise de volumes
massivos de dados, a nanotecnologia, a impressão 3D, a biologia sintética e a internet das coisas.
(RUSSELL; NORVIG, 2016).
Há um movimento em que cada vez mais dispositivos, equipamentos e objetos estão sendo
conectados uns aos outros por meio da internet. Podemos dizer que está ocorrendo uma conexão entre
o mundo digital, o mundo físico, que são as ‘coisas’, e o mundo biológico, que são os seres humanos.
(WORLD ECONOMIC FORUM, 2016).
Como discutido anteriormente, esse novo estado do desenvolvimento científico e tecnológico não
ameaça somente os meios de produção, mas está tendo repercussões nas diversas profissões tradicionais.
Há previsões de que em 2025 um em cada quatro empregos conhecidos hoje deverá ser substituído
por um software, por exemplo. Isso não é um fenômeno novo, pois se olharmos para alguns anos atrás
veremos que algumas profissões que no passado eram fundamentais deixaram de existir, tais como
telefonista, datilógrafo, telegrafista, operador de telex, e outras estão quase extintas, como relojoeiro,
sapateiro, alfaiate, entre outras.
Estima-se que até 2020 serão criados dois milhões de empregos, por todo o mundo, em áreas
ligadas à inovação. Em sentido contrário, 7,1 milhões de postos de trabalho ficarão obsoletos e serão
eliminados. Tais dados nos remetem à seguinte pergunta: ‘Quais profissões se tornarão obsoletas?’.
Na realidade, segundo estudiosos e futuristas, os postos de trabalho que correm maior risco de
desaparecer são os caracterizados por ações rotineiras, repetitivas e previsíveis. As pessoas que hoje os

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realizam serão substituídas por robôs, máquinas inteligentes que farão o mesmo trabalho repetitivo sem
ocasionar a elas o estresse que causam ao ser humano. Além disso, elas poderão trabalhar por 24 horas,
sem necessidade de férias, seguro saúde, auxílio transporte etc. Os únicos gastos a elas relacionados
serão de manutenção, ainda que elas possam ser facilmente substituídas.
As máquinas também assumirão tarefas repetitivas em profissões relacionadas às leis, e alguns
profissionais dessa área verão seus empregos informatizados. Acredita-se que mais de 100 mil empregos
no setor jurídico têm grandes chances de serem automatizados nos próximos 20 anos, o que significa
que os profissionais dessa área terão de se adequar a essa nova realidade.
Alguns trabalhos não desaparecerão totalmente, mas serão redefinidos e será necessário aos
profissionais desenvolver novas habilidades para desempenhar sua profissão, que terá então um novo
modo de operar.
Alguns estudiosos e futuristas acreditam que mesmo a profissão de professor será substituída pela
inteligência artificial. Há inclusive uma empresa sueca denominada Sana que disponibiliza conteúdos
para ensino. Segundo definição que consta em seu site, ela

utiliza inteligência artificial para personalizar o conteúdo para ensino de acordo com as necessidades
de cada aluno. Nós lidamos diariamente com milhões de recomendações de conteúdo para instituições
de educação com visão de futuro em todo o mundo. (SANA LABS, 2018).

O que isso significa? Que já temos inteligência artificial para ensinar e de maneira mais incisiva,
uma vez que hoje os conhecimentos podem ser ensinados de modo que os alunos, sejam de onde for,
tenham a sua disposição conteúdos pertinentes. Como explicado na homepage da plataforma Sana, ela é
construída em torno de APIs (Interfaces de Programação de Aplicação) padrão do setor, que fornecem
fácil integração de algoritmos de aprendizagem profunda. A arquitetura simplifica a integração com
qualquer sistema educacional, e a plataforma pode estar pronta para produção em questão de de dias,
não em meses. (SANA LABS, 2018).
Esse é apenas um exemplo, e outros virão após este. Governos e instituições de ensino certamente
verão nesse tipo de tecnologia uma utilidade.
Sendo assim, nossas próximas indagações são: ‘Quais são as profissões do futuro?’; ‘O que é
necessário para ter sucesso e conseguir um emprego nas próximas décadas?’. E mais: ‘Como preparar
os jovens para os empregos do futuro, para profissões que nem sequer existem ainda?’.
Sabemos que a maioria dos empregos que serão desempenhados pelos profissionais do futuro
ainda não existem. É evidente que o digital será uma dimensão crítica dessa realidade, por isso podemos
apenas tentar imaginar qual será a combinação de competências adequada a essas realidades por definir.
Esse cenário que se avizinha impõe certas necessidades, como ensinar crianças com idade entre 4
e 7 anos a codificar, ou seja, programar, pois essa será uma habilidade necessária principalmente para a
manutenção e o desenvolvimento das cidades inteligentes, por exemplo.
Nesse sentido, é absolutamente necessário incentivar a aprendizagem e experimentação nos jovens
estudantes ao longo de seu percurso escolar – da educação básica ao nível pré-universitário –, bem

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como na universidade. É preciso proporcionar aos jovens uma formação abrangente e flexível, que os
envolva em conceitos, ferramentas e descobertas nas várias áreas do saber, expandindo assim seu leque
de conhecimentos e experiências.
Vendo essa nova realidade de maneira otimista é possível enxergar que algumas das melhores
carreiras para o futuro já existem. E, uma vez que se tenha adquirido conhecimento e aprendido
habilidades para um tipo de carreira, fica mais fácil aprender habilidades para algo novo. Portanto,
qualquer tipo de formação que um jovem adquira agora poderá lhe dar uma base para as oportunidades
que ainda estão por vir.
Estamos falando aqui da formação profissional. Se o estudante for bem formado desde o princípio
de sua vida escolar, obterá todas as ferramentas de que necessita para ter um desempenho tal que, não
importem as mudanças na carreira nem do mercado de trabalho, poderá se inserir e ser vitorioso em
sua jornada profissional. Fica claro assim que é necessário estudar e ter em mente que estudar é para a
vida toda.

MELHORES ESCOLHAS DE CARREIRAS PARA


O FUTURO
Fazer uma previsão dos melhores empregos e carreiras para o futuro requer a compreensão de
todas as variáveis que irão interagir de maneira complexa e surpreendente. Muitos empregos de amanhã
provavelmente resultarão dos avanços científicos e tecnológicos atuais ou do desdobramento destes.
Mas boa porcentagem dos empregos do futuro provavelmente ainda não existem, e muitos deles sequer
foram imaginados. De fato, de acordo com uma estimativa, quase dois terços dos atuais estudantes do
jardim de infância, por exemplo, terão ocupações que não existem atualmente.
Como escrito anteriormente, é claro que muitas ocupações de hoje continuarão a fazer parte
do futuro, porém sofrerão mudanças. E muitas se transformarão em algo inteiramente novo – ou
desaparecerão por completo. É difícil visualizar esse futuro. Afinal, muitos de nós temos uma resistência
natural à mudança e à incerteza. Por sermos humanos, tendemos a nos manter na zona de conforto e
de manter o status quo. Por isso é tão difícil afirmar categoricamente quais profissões existirão no futuro
ou quais se extinguirão ou mesmo continuarão a existir, mas modificadas.
Estudos sobre esse assunto podem revelar novos caminhos ou sugerir novas maneiras para os
jovens se prepararem para os cenários mais interessantes ou plausíveis do futuro.
Muitas categorias ocupacionais já estão mudando e se sobrepondo umas às outras, e esse processo
pode ser acelerado à medida que as inovações científicas e tecnológicas se desenvolvem.
Após uma extensa pesquisa, chegamos à conclusão de que se podemos vislumbrar algumas das
profissões de futuro, estas serão relacionadas aos avanços biomédicos; às máquinas, cada vez mais
inteligentes; às mudanças culturais, demográficas e econômicas; aos desafios e crises globais e ao
impulso humano para brincar e explorar.

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Portanto, apresentamos as seguintes profissões como alguns exemplos daquelas que podem se
tornar as melhores carreiras para o futuro, respeitando a necessidade delas e visando ao enriquecimento
da vida humana.
Cada uma delas tem sua importância, e se algumas já existem, certamente serão desenvolvidas de
maneira diferente e de acordo com sua evolução e as necessidades do futuro (em ordem alfabética):
• analista de big data;
• analista de sistemas de computação;
• arquiteto e engenheiro 3D;
• coach (treinador, professor particular) em várias áreas;
• consultor de imagem;
• cuidador de idosos;
• desenvolvedor de dispositivos wearables (utilizáveis);
• desenvolvedor de Realidade Aumentada;
• desenvolvedor de software;
• engenheiro biomédico;
• engenheiro de biologia sintética;
• engenheiro de nanotecnologia;
• engenheiro especialista em genética;
• engenheiro hospitalar;
• especialista em agricultura urbana;
• especialista em e-commerce;
• especialista em energias renováveis ou energias alternativas;
• farmacêutico;
• geneticista;
• gestor de inovação;
• gestor de resíduos;
• gestor financeiro;
• influencer marketing (influenciador de mercado);
• médico;

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• professor on-line;
• profissional de saúde mental;
• profissional de marketing digital;
• segurança da informação;
• técnico de biomecânica;
• técnico de construção inteligente;
• técnico de cibersegurança;
• técnico de impressão 3D.

Essa lista não está limitada, mesmo porque, como mencionamos antes, não é possível prever
exatamente o futuro das profissões ou quais profissões surgirão, porém podemos preparar os jovens
para enfrentar o novo, desafiador e mutante mercado de trabalho, que se avizinha neste século de
grandes conquistas científicas e tecnológicas.

CRIATIVIDADE E INOVAÇÃO
Novamente, vamos lançar mão da definição das palavras ‘criatividade’ e ‘inovação’, que se referem
a características especiais a serem fomentadas nos jovens para o futuro.
O termo ‘criatividade’, segundo o dicionário, é um substantivo feminino que significa
“1. Capacidade de criar, de inventar. 2. Qualidade de quem tem ideias originais, de quem é criativo.
3. [Linguística] Capacidade que o falante de uma língua tem de criar novos enunciados sem que os
tenha ouvido ou dito anteriormente”. (CRIATIVIDADE, 2013). Em suma, é a capacidade ou ato de
conceber algo original ou incomum.
Já o termo ‘inovação’, segundo o dicionário, é um substantivo feminino que significa “1. Ato ou
efeito de inovar. 2. Aquilo que constitui algo de novo (ex.: trata-se de uma inovação técnica brevemente
disponível no mercado [...]”. (INOVAÇÃO, 2013). Em suma, é a implementação de algo novo.
A principal diferença entre criatividade e inovação é o foco. A criatividade é subjetiva, e por isso
é difícil de ser medida. Ela significa desenvolver o potencial da mente para conceber novas ideias.
Esses conceitos podem se manifestar de várias maneiras, mas na maioria das vezes se tornam algo que
podemos ver, ouvir, cheirar, tocar ou provar. A inovação, por outro lado, é completamente mensurável.
Ela é, sobretudo, a introdução de mudanças em sistemas relativamente estáveis. Também se preocupa
com o trabalho necessário para se viabilizar uma ideia.
Em economia, ao identificar uma necessidade não reconhecida e não atendida, uma organização
pode usar a inovação para aplicar seus recursos criativos a fim de projetar uma solução apropriada e
colher o retorno de seu investimento.

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A invenção é a criação de algo que nunca foi feito antes e é reconhecida como o produto de uma
visão única, fruto da criatividade inovadora.
Parte da educação é instigar a criatividade nos estudantes e fazê-los buscar a inovação em seus
projetos. Vivemos em um mundo no qual as pessoas são reconhecidas por seu potencial criativo
e suas propostas inovadoras. Em geral, as pessoas criativas são reconhecidas como geradoras de
desenvolvimento, pois agregam valores à vida e ao trabalho. Essas habilidades podem e devem ser
incentivadas desde a tenra idade e aperfeiçoadas conforme o crescimento.

COMO PREPARAR O PROFISSIONAL DO FUTURO


PARA CARREIRAS QUE AINDA NÃO EXISTEM
O engenheiro, por exemplo, é um profissional que precisa desenvolver certas habilidades além de
ter conhecimento em ciências básicas da engenharia e nas ciências específicas de sua área de atuação,
como a engenharia mecânica ou de produção. Portanto, é importante muni-lo com as ferramentas que
poderá utilizar sem ter de seguir um modelo preestabelecido. O engenheiro é um artista e também
um cientista. É um artista quando tem um problema real e precisa criar um modelo usando sua
criatividade, e é cientista quando resolve um problema.
Cada vez mais, o foco na formação de qualquer profissional é oferecer a eles ferramentas para que
possam desenvolver modelos para a solução de problemas que nem sempre serão os já padronizados
e conhecidos.
Os empregadores esperam dos graduados que se aplicam a uma posição atributos que incluem
trabalho em equipe, comunicação, liderança, pensamento crítico, resolução de problemas e até mesmo
habilidades gerenciais, além do conhecimento de seu grau acadêmico. A questão que se coloca aqui é:
‘Como a universidade pode lidar com essas demandas?’.
Esse tem sido um desafio enfrentado pelas faculdades, o que nos leva a concluir que é hora de
repensar a Educação Superior. Levando em consideração a necessidade de preparar os profissionais
do futuro, é importante salientar que se os alunos desenvolverem a habilidade de aprender sozinhos
continuarão a aprender sozinhos pelo resto de suas vidas. Como isso é possível? Pelo caminho bem
percorrido do experimentado e comprovado – o método clássico de educação, considerado forte e que
ainda funciona para tornar o aluno um estudante independente e para a vida toda.
Levando-se em conta o atual e o vindouro cenário mundial, é preciso encarar a realidade de que
algumas vezes é necessário voltar ao básico. Assim, parece-nos que o melhor caminho é a educação
clássica não como sinônimo de educação cristã, mas como aquela de bases sólidas, com conhecimento
em ciências básicas em geral e nas ciências básicas e específicas da profissão escolhida. Os alunos então
terminarão seu curso equipados com as ferramentas certas e uma forte capacidade de aprendizado.
A educação clássica é, nesse sentido, um processo para a vida inteira, sendo ele de aplicação das
‘ferramentas de aprendizado’ – habilidades inerentes às ciências básicas, às ciências básicas do campo

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de estudos e às específicas, que acompanham o aluno em sua carreira profissional ou acadêmica.


Em outras palavras, o mercado parece estar pronto para receber aqueles profissionais que obtiveram
um ensino generalista e são capazes de desenvolver habilidades adaptáveis, que lhes serão úteis
enquanto o mundo e as profissões continuarem a evoluir. (STARK, 2018). Não se trata, reiteramos,
de educação cristã ou domiciliar, mas sim do ensino das matérias com base forte, um ensino centrado
no conhecimento.
Outro aspecto importante na formação de um profissional, não importa de qual campo seja ele,
é que o conhecimento é mais uma teia do que uma cômoda. Afinal, não há assuntos que não estejam
relacionados uns aos outros. Acontece o mesmo com a formação do engenheiro: o programa do curso
é uma rede de conhecimento fornecida por estudos, entregue em um prazo, interligado e necessário
para obter o conhecimento pertinente e o desenvolvimento de habilidades que permitam ao aluno
aprender por si mesmo.
É por isso que os alunos têm de ver a grande figura desde o início. É importante mostrar-lhes,
na primeira semana de aula, todo o programa, como um grande quadro, e suas partes e os detalhes de
cada parte. É uma maneira de localizá-los nesse programa. É difícil, mas não impossível, e vale a pena.
O conhecimento de todo o programa tem grande efeito em estudantes, que assim podem ver o valor
do conhecimento sólido em ciências básicas como ponto de partida para sua formação e a importância
destes como ferramentas valiosas.
O método educacional adotado e as abordagens de um programa devem levar os alunos a perceber
que a educação não é um termo abstrato, mas se estabelece em avanço cultural, econômico, individual,
filosófico, científico e social. Em outras palavras, a educação é o meio para desenvolver a mente para a
melhoria do indivíduo e da sociedade.
É importante também mostrar aos alunos que os avanços em ciência e tecnologia revelam que
o mundo continuará a mudar rapidamente, de modo que o conhecimento aprendido pelos alunos
em carreiras específicas tem uma vida útil curta. Em contraste, aqueles que receberam uma educação
generalista desenvolverão habilidades adaptativas, que lhes servirão enquanto o mundo evoluir. Além
disso, uma vez que as pessoas tendem a mudar de emprego e de áreas ocupacionais várias vezes ao longo
de suas vidas, é importante adquirir a capacidade dinâmica de absorver informações, ajustar-se às metas
organizacionais e navegar por relações de trabalho complexas. Por esse motivo, uma educação clássica
parece mais útil para o mercado de trabalho atual, bem como do futuro.
Outro aspecto importante é que a parte integrante do programa são os estágios, bem como os
projetos práticos, que são relevantes para ambos: os estudos dos alunos e o cenário de trabalho real. O
estágio e o projeto oferecem oportunidades aos alunos de levar as habilidades que estão desenvolvendo
em sala de aula para o mundo real. Assim, as faculdades devem fornecer estágios em empresas, no
campo escolhido pelo aluno, durante o quarto ou o penúltimo ano, dependendo do curso escolhido
e da duração do programa. Os estágios proporcionam aos alunos uma experiência que contribui para
sua autoconfiança e os faz se sentirem mais preparados para enfrentar os desafios inerentes à profissão
escolhida. (BRITO et al, 2017c).

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Outro ponto importante a enfatizarmos novamente é que a ‘educação clássica’ a que nos
referimos aqui significa ‘educação centrada no conhecimento’ e se refere ao ‘método clássico de
educar’, nesse caso com o mesmo tipo de abordagem: aulas com interação face a face, estudo forte e
aprofundado principalmente em Português, História, Geografia, Matemática e Física como base para
uma educação de qualidade que forneça as ferramentas necessárias aos profissionais de concepção
ou aplicação.
Em nível universitário, refere-se a uma formação generalista com ênfase em especialidades,
mas que, no entanto, fornece ao futuro profissional as ferramentas essenciais a serem utilizadas no
desenrolar de sua carreira, permitindo-lhe uma visão mais abrangente e uma capacidade maior de
buscar soluções.

POR QUE UMA EDUCAÇÃO TRADICIONAL


GENERALISTA?
A visão da educação tradicional/clássica/generalista está baseada na crença de que os seres humanos
são pensantes. Ou seja, de que ao contrário de outros seres, os humanos têm uma inteligência da qual
fazem uso. Eles são naturalmente curiosos e querem compreender o mundo que os cerca. Querem
saber como a natureza se desenvolve, como as coisas funcionam. Querem saber quem são, de onde
vieram e o que o futuro os reserva. Resumindo, querem saber a verdade.
Desde o nascimento, os seres humanos demonstram uma curiosidade espantosa. As crianças
observam tudo e todos a sua volta. Aprendem a língua rapidamente, e tão logo aprendem a falar fazem
perguntas para saber e compreender o que lhes chama a atenção. Elas demonstram o que é verdade para
todo ser humano: somos naturalmente aprendizes. Portanto, qualquer plano educacional deve tirar
vantagem dessa curiosidade natural dos jovens.
Esquemas que protelam o desenvolvimento das crianças em seu aprendizado porque ‘elas não estão
prontas para isso’ ou porque não são ‘adequados à idade’, ou que usam vários truques que ensinam
de um modo como se as crianças considerassem seus livros como eles tomam seus remédios não são
apenas desnecessários, mas contraproducente e insultuosos para a mente humana.
A educação clássica tem uma história de mais de 2.500 anos no Ocidente. Começou na Grécia
antiga, foi adotada amplamente pelos romanos, vacilou após a queda de Roma, fez uma lenta, mas
constante recuperação durante a Idade Média e foi novamente levada à perfeição no Renascimento
italiano. A herança clássica passou para Portugal e de lá para a América, por meio da colonização. Na
época da fundação da nação, a educação clássica ainda estava prosperando.
Ao contrário das antigas escolas clássicas, as escolas tradicionais de hoje não ensinam o latim
e o grego (embora, para serem clássicas, devam exigir o estudo do latim em algum momento). Não
obstante, permanecerão clássicas mantendo os mesmos padrões de ensino, de currículo e de disciplina
encontrados nas escolas antigas. De fato, nessas escolas a Língua Portuguesa será ensinada por

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meio de métodos derivados de séculos de ensino e aprendizado das línguas clássicas. A escolha pela
educação clássica é forte e tem base, diferentemente dos últimos modismos da escola de educação.
(PÂMÎNTAŞ, 2015).

ELEMENTOS ESSENCIAIS DA EDUCAÇÃO


QUE PROMOVE O PROFISSIONAL
COM FUTURO
Os principais elementos dessa forma de educação envolvem:
• conceber um currículo sequencial e coerente;
• oferecer cursos pautados em conhecimento forte e pertinente;
• ajustar outras partes do sistema de ensino do programa para apoiar as metas de aprendizagem;
• fornecer aos professores um currículo cuidadosamente concebido, repleto de textos e materiais
desafiadores;
• explicitar aos alunos onde eles estão indo e como chegarão lá, ou seja, mostrar-lhes um mapa
de todo do curso, bem como o percurso que deverão percorrer para chegar até o fim.

É necessário desafiar os alunos a adquirir o conhecimento de que eles realmente precisam para se
tornar profissionais capazes de fazer qualquer trabalho e superar o futuro imprevisível quando se tornar
difícil antecipar as novas profissões e oportunidades que serão necessárias. (BRITO et al. apud AUER;
GURALNICK; UHOMOIBHI, 2017).
O processo é longo e implica muitas mudanças, incluindo a formação de professores para o
programa e a realização do objetivo principal, que é fomentar nos alunos habilidades analíticas e
verbais, criatividade e inovação, empreendedorismo, apreciação da complexidade e ambiguidade e
liderança, muito importante para a formação do profissional deste milênio.
Além das matérias concernentes, sugerimos a inserção de um bloco de diferentes cursos no
primeiro ano do programa, ou seja, um pré-programa, um período de imersão que deve acontecer
duas semanas antes do início oficial das aulas. Se possível, com aulas intensivas de manhã e à tarde para
aproveitar mais o tempo. Nesse período do ano, os alunos teriam aulas de:
• uso da linguagem e Inglês Instrumental – de modo a aprender a usar o Inglês técnico para
compreensão e comunicação;
• reforço em Língua Portuguesa – para reforçar a boa escrita com o objetivo de ensinar o aluno
a fazer um relatório, por exemplo, ou mandar um e-mail que seja conciso e explicativo, ou
escrever sobre uma ideia de modo que todos a entendam;

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• Matemática – com o objetivo de revisar o conteúdo do Ensino Médio (no caso de profissões
nas áreas de engenharia e tecnologia);
• Psicologia – para trabalhar aspectos relacionados à pressão do ambiente competitivo e exigente;
promover recursos psicológicos adequados para o enfrentamento e a redução da ansiedade
diante de situações encontradas no desenrolar do curso; o gerenciamento do estresse de modo
a evitar a incidência de problemas psicossomáticos derivados do estresse relacionado à tensão
decorrente das provas.

Tais cursos têm o objetivo de dar subsídios ao estudante para enfrentar o longo caminho que um
curso universitário implica, seus desafios e sua complexidade.
A empregabilidade dos graduados é de responsabilidade, digamos, das universidades e dos
empregadores, no entanto ambos falham em muitos aspectos porque também eles têm de enfrentar
o ambiente tecnológico mutante em que os negócios e a pesquisa estão imersos. O caso é que
principalmente as universidades devem considerar a missão de preparar os alunos para o primeiro
emprego e/ou para carreiras de futuro.
A universidade agora tem outras missões além de fazer a ciência avançar. Elas se tornaram
polos de desenvolvimento nas regiões onde estão inseridas e promotoras das comunidades sociais.
Essas novas tarefas significam muitos ovos em uma única cesta. Porém não são desculpa para
a universidade se eximir de sua missão primordial que é a de desenvolver ciência, disseminar o
conhecimento adquirido e formar o profissional que vai colaborar para a promoção do bem-estar
da humanidade.
Para além disso, sugerimos algumas medidas factíveis para incrementar a formação do profissional
do futuro, levando-se em consideração a necessidade das faculdades responderem às novas demandas
de formação dos futuros profissionais. Tais medidas ou ações são:
• pesquisar a cultura da faculdade e estabelecer metas educacionais factíveis e sustentáveis –
ou seja, estar ciente do ambiente profissional da instituição e em que medida a novidade
pode ser bem recebida;
• apresentar e convidar os professores a se envolverem no projeto de desenvolvimento do
curso, pois é importante que estejam engajados no projeto e ‘vistam a camisa’;
• ter uma aula magna convidando um profissional de sucesso para falar sobre o que é o dia a dia
de sua atuação como profissional. Essa aula é importante para apresentar o curso e mostrar
como os profissionais que estão no mercado de trabalho foram resilientes (no sentido de
resistentes às intempéries e aos problemas que surgiram) e chegaram onde estão;
• mostrar aos alunos o todo do programa, onde eles estão e onde estarão se possível com
um diagrama ou figura – isso torna mais compreensível o motivo pelo qual eles estudam
determinadas matérias que muitas vezes parecem não ter nada a ver com o curso;

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• desafiar os meninos competitivamente e as meninas colaborativamente – alguns estudos


sérios mostram que os meninos são competitivos e as meninas são colaborativas, por isso é
importante conhecer esse fato e organizar o ensino de modo que atenda os dois modos de ser;
•usar toda a tecnologia disponível para atingir os alunos e facilitar o processo de comunicação e
aprendizagem – incluindo Facebook, WhatsApp, e-mail, aulas on-line, conteúdo on-line, chats etc.
É de suma importância ter em mente que vale a pena tentar alcançar qualquer objetivo. As ações
propostas são viáveis e sustentáveis ao longo do tempo e terão algum impacto no programa em médio
prazo. (BRITO et al, 2017b).

RESULTADOS ESPERADOS PELO PROGRAMA DE


FORMAÇÃO PROPOSTO
A educação generalista prepara o futuro profissional para enfrentar os desafios que uma carreira
traz. É uma formação que lhe dá as ferramentas para isso e propõe resultados específicos de aprendizagem
e competências, tais como:
• aprendizagem aplicada: usada pelos alunos para demonstrar o que eles podem fazer com o
que sabem;
• habilidades intelectuais: usadas pelos alunos para pensar e analiticamente criticar o que
aprendem;
• conhecimento especializado: o saber que os estudantes demonstram sobre seu campo
individual de estudo;
• amplo conhecimento: transcende as fronteiras típicas de estudantes de Ensino Superior e
abrange toda a aprendizagem em áreas amplas por meio de seus sólidos conhecimentos em
ciências básicas e específicos do campo escolhido;
• aprendizagem cívica: capacita os alunos a responder aos desafios sociais, ambientais e
econômicos nos níveis local, nacional e global – é importante trabalhar com o respeito e a
ética em tudo, seja no trato com os colegas, seja no desenvolvimento do trabalho. (BRITO et
al, 2017a).

PREPARANDO O CAMINHO – A EDUCAÇÃO BÁSICA


Para formar cidadãos coesos, fortes e conscientes é necessário investir na sua formação desde o
jardim de infância. É sem dúvida um processo longo, que necessita de um grande investimento não só
monetário, mas também pessoal dos envolvidos, tais como pais, professores e escola.

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A escola tem a nobre missão de ensinar, ou seja, de instruir o futuro cidadão no conhecimento e
na experiência de aprendizado forte e pertinente. Ela deve fornecer aos alunos as ferramentas que lhes
possibilitarão o pleno desenvolvimento de sua inteligência, bem como de suas habilidades, de modo a
aprender sob a perspectiva da ética e dos bons princípios adquiridos em casa, com a família, e que na
escola são reforçados por meio de atividades e do convívio com os colegas.
Esse embasamento psicossocial é de suma importância mais tarde, quando forem adultos e tiverem
de superar problemas de ordem social, tais como o convívio com colegas, e ainda mais tarde, durante
convívio com outros profissionais no ambiente de trabalho.
Uma boa educação básica é um dos pilares do sucesso profissional, pois propicia ao aluno o
desenvolvimento crítico tão necessário a seu desempenho profissional e como cidadão consciente
de seus deveres e obrigações, bem como de seus direitos. É a base para a formação de um cidadão
completo, que dificilmente se deixará levar por filosofias vãs ou modismos incoerentes.
É importante ter disciplina e estar ciente de suas responsabilidades mesmo em tenra idade, pois
esses elementos moldam o caráter do indivíduo. Desse modo, nossa proposta é a educação clássica,
pois as crianças estão naturalmente dispostas a aprender e por isso precisam de instrução explícita
para entender o mundo ao seu redor, seja na linguagem, seja nas operações de natureza física, seja nas
relações entre os seres humanos.
À medida que as crianças crescem, suas questões se tornam cada vez mais complexas e suas
habilidades de assimilar e suas observações são mais avançadas. Toda criança tem um verdadeiro arsenal
de capacidades mentais: memória, razão, imaginação, senso de beleza e facilidade para a aquisição da
linguagem.
A educação clássica não deixa as crianças entregues aos próprios impulsos e inclinações mentais.
Em vez disso, alimenta, direciona e fortalece suas capacidades mentais da mesma forma que os esportes
exercitam suas habilidades físicas. A mente, como o corpo, atrofia quando não é bem utilizada e
treinada. A ênfase na formação mental rigorosa é uma diferença importante entre a educação clássica e
a educação moderna e progressista.
Ao adotar estratégias como a ênfase na ‘criatividade’ e na ‘espontaneidade’ da infância, denegrindo
a ‘mera aprendizagem mecânica’ (e, portanto, a própria memória humana), sem deixar que as crianças
trabalhem muito ou se ocupem de algo importante, a escola moderna toma as pequenas e brilhantes
crianças e as coloca em um caminho para se tornarem adultos entediados, mal preparados e com
poucos conhecimentos de base.
É a velha história da tartaruga e da lebre. Apaixonarmo-nos por nossos talentos, sem fazermos
nenhum esforço substancial para melhorá-los, nos fará perder a corrida. E nesse caso é a corrida mais
importante para fazer dos alunos cidadãos informados, éticos e pensantes.
Por outro lado, a educação clássica coloca mentes jovens para trabalhar. Isso leva os estudantes
a entender a si mesmos e ao mundo ao seu redor. Os alunos não aprendem no abstrato. Eles devem
adquirir habilidades concretas e conhecimento em certas disciplinas para participar plena e efetivamente
da civilização humana. (LYNCH, 2007).

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A IMPORTÂNCIA DE ENSINAR A CODIFICAR DESDE


A PRÉ-ESCOLA
Muito se tem pesquisado sobre ensino e aprendizagem, desde a tenra idade escolar até a idade adulta
e depois da maturidade. Hoje podemos dizer que estudar é para a vida inteira, ou seja, constantemente
teremos de voltar a estudar para nos desenvolver e atualizar.
Estudos mais recentes e que vem sendo desenvolvidos desde o início dos anos 2000 mostram o
que é chamado de ‘alfabetização em codificação’, algo que tem se tornado tão importante quanto o
aprendizado de língua inglesa e de ainda outra língua.
Codificação (também chamado de programação) significa dizer a um computador, aplicativo,
telefone ou site o que queremos que ele faça. Alguns educadores e especialistas chamam isso de ‘nova
alfabetização’ – um assunto tão importante que toda criança precisa conhecer o básico para se destacar
nesse mundo em rápida transformação.
As habilidades que vêm com a programação de computadores ajudam as crianças a desenvolver
novas maneiras de pensar e a promover técnicas de resolução de problemas que podem ter grandes
repercussões em outras áreas. O pensamento computacional permite que crianças em idade pré-escolar
compreendam conceitos como algoritmos, recursão e heurística – mesmo que não entendam os termos,
aprenderão os conceitos básicos com facilidade.
Crianças de quatro e cinco anos podem aprender os fundamentos de codificação e comandos de
computador antes mesmo de escrever e soletrar palavras. Já as crianças mais velhas podem aprender a
codificar por meio de aulas e tutoriais.
Aprender a codificar prepara as crianças para o mundo em que vivemos hoje. Há diversas
profissões e ocupações que usam código diretamente, como web designers, desenvolvedores de software
e engenheiros de robótica, portanto, saber como codificar é um grande trunfo – já existem muitos
empregos em manufatura, nanotecnologia ou ciências da informação. No entanto, para a maioria dos
defensores da codificação infantil, as razões para aprender a codificar são muito mais profundas do que
a preparação profissional.
Quando as crianças aprendem a codificar, um mundo de possibilidades se abre a elas,
permitindo-lhes criar novas soluções em seu caminho. No caso, se uma criança joga e não gosta do jogo
e tem a possibilidade de reescrever um código e modificá-lo, ela usa sua imaginação para criar soluções
reais, com isso sua criatividade e confiança crescem.
Aprender a codificar é o mesmo que aprender uma nova habilidade linguística e é uma das
ocupações que mais crescem. Assim como aprender um novo idioma ou andar de bicicleta, é melhor
começar a aprender como codificar nos primeiros anos.
Se as crianças aprenderem a codificar desde cedo, elas desenvolverão fluidez em seu pensamento,
o que significa que serão capazes de contar uma história em uma ordem específica. Como muitas
crianças usam videogames para aprender a codificar, elas sabem como seguir ou até mesmo criar sua
linha sequencial de história ou sequência de código.

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Saber codificar pode garantir empregos bem remunerados no futuro, e isso significa mais
liberdade para escolher. Sendo assim, podemos dizer que quando as crianças aprendem a codificar
elas não estão apenas ganhando habilidades de pensamento de ordem superior, mas estão adquirindo
a chance de escolher trabalhos emocionantes e mais desafiadores no futuro. (CATAPULT
LEARNING, 2016).

O DESAFIO DA ADOLESCÊNCIA –
O PREPARO PARA O ENSINO SUPERIOR
Atualmente, talvez mais do em qualquer outra época da história, a educação é vista no mundo
como o caminho mais desejável para que as pessoas ganhem um bom rendimento, tenham uma vida
decente e alcancem o crescimento pessoal e a felicidade. É senso comum que as pessoas educadas não
só obtêm rendimentos mais elevados, mas também contribuem consideravelmente para a inovação
empresarial, a produtividade e o desempenho econômico nacional.
Outro aspecto sobre a educação é que existe uma relação forte e direta entre investimento em
educação, realização pessoal e crescimento econômico. Esses fatos levam à necessidade de trabalhar
na melhoria da qualidade do Ensino Fundamental e Médio, ou o que se chama de K12 no mundo
inteiro, principalmente no que diz respeito aos conhecimentos básicos em alfabetização, matemática e
desenvolvimento de habilidades vitais essenciais.
O que se chama de Science, Technology, Engineering and Mathematics (STEM) que
representa ciências, tecnologia, engenharia e matemática, são as matérias cujo ensino vem sendo
enfatizado porque os países desenvolvidos se deram conta de que tais disciplinas têm a capacidade
de desenvolver em seus cidadãos jovens as habilidades para desenvolverem ciência e tecnologia,
tão essenciais para o desenvolvimento e a economia das nações atuais e futuras. No entanto, eles
nem sempre são enfatizados como deveriam pelas escolas. Disciplinas como Ciências, Tecnologia,
Engenharia e Matemática são amplamente consideradas como os ‘fundamentos’ da capacidade para
inovação.
Há muito que se argumentar, com base em dados de renda, que a conclusão da universidade
é o indicador mais relevante da capacidade de um país para produzir pessoas altamente talentosas,
criativas e inovadoras. Algumas pesquisas mostram, por exemplo, que profissionais com diplomas
universitários em disciplinas acadêmicas – como Ciências Humanas, Educação, Biologia e Ciências
Agrícolas – ganham menos da metade daqueles obtidos por universitários em cursos profissionais e de
ciências aplicadas – como Medicina, Engenharia e Tecnologia. Como melhorar esse quadro?
Nossa proposta é implementar um novo programa nas escolas para o 11o. e 12o. ano (os dois
últimos anos do Ensino Médio), pois é nesse período que os jovens têm de fazer suas escolhas para o
futuro, como adultos, algo de fundamental importância para eles, pois irá afetar o resto de suas vidas.

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Nosso objetivo principal é ajudar a encorajar mentes jovens e brilhantes a buscar carreiras
em engenharia e/ou tecnologia, fornecendo aos estudantes do Ensino Médio as disciplinas Uso da
Linguagem e Inglês Instrumental, Reforço em Língua Portuguesa, Matemática Básica e Psicologia – já
mencionadas anteriormente.
A adição dessas disciplinas no Ensino Médio se encaixa na necessidade do país de melhorar a
competitividade e o crescimento da tecnologia nacional, o que tem implicações no desenvolvimento
da força de trabalho, bem como para no desenvolvimento da ciência e da tecnologia.
A característica principal de nossa proposta é a possibilidade de aplicar abordagens novas e
inovadoras, que proporcionem aos estudantes a capacidade de desenvolver conceitos e teorias para
resolver e compreender problemas científicos e não científicos e, consequentemente, encontrar soluções
para tais problemas.
Trata-se de um programa que pode acontecer em dois momentos, de manhã ou à tarde, sempre
antes ou após o período escolar normal. Ou em sendo necessário, é possível serem inseridas no
currículo escolar como matérias optativas ou mesmo constantes do currículo, para que grande número
de estudantes tenha acesso a esse programa.
Para ser desenvolvido, esse projeto precisa, antes de tudo, que os dirigentes da escola tenham
vontade de oferecer essas matérias aos alunos. Em termos de infraestrutura, necessita de salas de aula
equipadas com recursos multimídia e alguns computadores para a realização de algumas atividades
e também para receber visitantes e profissionais de várias áreas para ministrarem palestras sobre sua
trajetória (enfatizando em sua fala o quanto a formação universitária lhes foi importante e o quanto os
ajudou em sua realização pessoal).
Outro aspecto importante é a possibilidade de ao longo do ano os alunos fazerem visitas planejadas
a lugares interessantes, como empresas, museus, centros de pesquisa, feiras, indústrias e outros lugares
que possam permitam aos estudantes vislumbrar uma atmosfera de trabalho tecnológico e os resultados
desse trabalho.
Essa dinâmica de aulas tornará os alunos mais inspirados e preparados para enfrentar o desafiador
processo da admissão na universidade, e mesmo que escolham outro caminho, não relacionado às
ciências exatas e à tecnologia ou que não inclua o diploma universitário, eles terão a chance de adquirir
as ferramentas necessárias para enfrentar o mercado de trabalho com mais confiança.
O aspecto mais importante talvez seja proporcionar experiência e contato com o mundo
profissional e acadêmico, uma imersão para vislumbrar as oportunidades disponíveis.
O sistema de avaliação é muito suave, já que eles apenas autoavaliam seus desempenhos e atualizam
o próprio portfólio de atividades e realizações com o objetivo de lhes dar a responsabilidade de seu
crescimento e o desejo de aquisição de conhecimento.
Pretendemos com isso que os jovens se sintam incentivados a resistir às adversidades que fazem
parte da vida e a fazer escolhas conscientes para seu futuro, munidos com conhecimento mais alargado
sobre profissões e possibilidades de trabalho e autorrealização. (VESTIBULAR, 2018).

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ESCOLHA DA PROFISSÃO, EXAMES


DE INGRESSO NA UNIVERSIDADE –
O RITUAL DE PASSAGEM PARA A FASE ADULTA
Como argumentado anteriormente, evidências recentes indicam que pessoas educadas podem
tomar decisões que ajudem na busca de uma vida mais saudável. Assim, é possível dizer que a educação
é a mola propulsora para ajudar a obter sucesso, saúde e felicidade, desejo de praticamente todos os
seres humanos.
Com isso em mente, pensemos nos momentos decisivos para o ser humano. Talvez o primeiro e
mais importante seja a escolha da profissão e a entrada na universidade.
Os jovens entre 17 e 18 anos, que estão no final da adolescência e a caminho da vida adulta, ainda
estão em fase de desenvolvimento emocional, mas têm a responsabilidade de escolher o que vai estudar
na universidade, qual a profissão que este deseja seguir, pois se trata do seu futuro. A escolha da profissão
e o ingresso na universidade são as principais pressões que muitos jovens experimentam nessa fase.
O vestibular é um exame de seleção para o ingresso na universidade que domina o tempo e os
esforços dos adolescentes que desejam ter uma carreira acadêmica ou profissional. Trata-se do exame
mais conhecido no Brasil e por muitos anos foi o mais adotado no país para ingresso no Ensino Superior.
Apesar de ter sido substituído pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em muitas faculdades e
universidades no país, algumas instituições de Ensino Superior ainda usam o vestibular como principal
meio de ingresso.
O vestibular consiste na aplicação de provas presenciais com questões que avaliam o conhecimento
adquirido no Ensino Médio. As perguntas podem ser dissertativas ou objetivas e há também uma prova
de redação. Para alguns cursos, há ainda uma avaliação de habilidades específicas. O exame vestibular
sofreu transformações ao longo das décadas, inclusive por meio de decretos, portarias, leis e resoluções.
A instituição de ensino que usa o vestibular como forma de seleção de candidatos para seus cursos
divulga o cronograma de inscrições, provas, matrículas, fases do exame etc. a cada ano, bem como as
vagas disponíveis para o período. Há instituições que oferecem os exames uma ou duas vezes no ano.
(RIBEIRO NETO, 1985).
O vestibular é de suma importância, pois está ligado à ideia do projeto de vida pessoal dos jovens.
O adolescente, que não é mais criança, muitas vezes recebe da família as diretrizes e o apoio financeiro
e psicológico para seguir estudando na fase adulta e assim conquistar uma carreira e sua independência
econômica e pessoal. Faz parte da busca por sua autorrealização, sua felicidade e o ser cidadão.
Hoje o Enem é considerado o maior ‘vestibular’ do país. De certa forma, ele é um exame de
conhecimentos, e seu propósito é o mesmo do vestibular: permitir o ingresso dos melhores candidatos
na universidade.
Podemos afirmar que no Brasil o exame de ingresso para a universidade é um marco de passagem
da adolescência para a fase adulta. É um período em que a maioria dos jovens estudantes sofre com

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estresse psicológico por causa da pressão para passar nos exames e fazer a escolha certa. É um momento
de grande importância na vida dos jovens brasileiros e por isso merece toda a atenção não só do jovem e
de sua família, mas de toda a sociedade, pois eles é quem estarão a cargo dos rumos da nação no futuro.
Para finalizar, é preciso dizer que o exame de ingresso para a universidade não deve ser utilizado
como forma de acentuar desigualdades sociais. Entretanto, não podemos entendê-lo como um processo
cuja missão (impossível) é compensar as diversidades financeiras e de oportunidades aos candidatos, que
na verdade têm origens diversas e quase sempre percorreram caminhos distintos. Porém é uma forma justa
de ingresso na universidade, pois não tem memória e os candidatos podem tentar quantas vezes quiserem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os novos agentes de transformação neste século virão da engenharia genética e das nanotecnologias,
e seu desenvolvimento terá grande impacto em como somos e como nos relacionamos até nos lugares mais
distantes do planeta. Essa revolução afetará o mercado de trabalho, o futuro das profissões e a desigualdade
de renda. Suas consequências impactarão a segurança geopolítica e o que é considerado ético.
Educação é um assunto sério, pois é a melhor maneira de se formar um indivíduo, um ser humano
capaz, consciente de seus deveres, obrigações e direitos.
Neste século, em que o desenvolvimento tecnológico têm um impacto significativo na sociedade,
torna-se necessário, por exemplo, o ensino de codificação para crianças a partir dos quatro anos de
idade, antes mesmo de aprenderem a ler e escrever. Trata-se de um novo tipo de alfabetização – a
chamada alfabetização em codificação ou programação.
O desenvolvimento tecnológico e suas implicações para a formação dos profissionais despertou
a necessidade de se desenvolver novas maneiras de formar o profissional, de modo que seja capaz
de se inserir no mercado de trabalho mutante e desafiador. Portanto, quando falamos de ensino e
educação torna-se necessário uma pedagogia que funcione nesse novo cenário, que seja capaz de formar
profissionais competentes. Sendo assim, a educação clássica nos parece responder a esse desafio. Ela
se refere a uma formação generalista, que fornece aos jovens as ferramentas para enfrentar os desafios
impostos pelas novas profissões.
Ao contrário do que diz a opinião popular, a educação clássica está longe de ser arcana, velha,
ultrapassada, irrelevante, monótona e pouco imaginativa. Em vez disso, a visão clássica entende que
um ser humano sem conhecimento do passado, sem reverência por sua herança e sem um julgamento
formado pelos padrões da verdadeira grandeza é muito parecido com um ser humano com amnésia.
É uma verdadeira educação cívica, clássica, liberal, que reconhece o fato de que se soubermos onde
estamos e onde estivemos, saberemos para onde estamos indo e estaremos aptos a enfrentar o futuro.
Em nível universitário, a educação clássica/generalista exige autodisciplina e produz jovens
profissionais inteligentes e curiosos, capazes de pensar, calcular, analisar, compreender, resolver
problemas e seguir uma ampla gama de perspectivas. Ela é sistemática, rigorosa, tem objetivos e um

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método para alcançá-los. Fornece ao futuro profissional as ferramentas para aprender e adaptar-se ao
novo ambiente de trabalho, bem como ao mercado de trabalho mutante deste milênio.
A combinação que devemos perseguir, portanto, é a de um currículo clássico/tradicional/
/generalista aliado ao uso de tecnologia moderna e estágios, o que resulta em uma formação profissional
de alta qualidade, que envolve e prepara os alunos para enfrentar o desafiador desenvolvimento da
carreira escolhida neste século.
A educação clássica/generalista forma, portanto, profissionais equipados com ferramentas que
lhes permitem responder rapidamente às mudanças do mercado de trabalho e à imprevisível nova
experiência profissional promovida pelo desenvolvimento científico e tecnológico, além de preparar
para uma possível carreira em uma nova profissão emergente.

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PRECONCEITOS1 E DISCRIMINAÇÃO2 NAS


RELAÇÕES DE TRABALHO

Thereza Cristina Gosdal

Não há como imaginar sustentabilidade social e diminuição das diferenças sociais com a
perpetuação de práticas discriminatórias na escola, no trabalho, no acesso aos serviços de saúde e aos
serviços públicos em geral. Quem já se sentiu discriminado, por ser mulher, por ser idoso, por ser
obeso, por ser negro, por ter alguma deficiência físicas ou mental, por ser pobre, por ser homossexual,
por ter alguma doença, como a AIDS, ou as muitas outras formas de discriminação com as quais nos
deparamos na sociedade, sabe que a conduta atinge o discriminado naquilo que todos nós temos de
mais precioso, que é a dignidade como pessoa humana. A dignidade pressupõe o direito à igualdade.
A Constituição Federal Brasileira assegura no art. 5º, caput, o ‘princípio da igualdade’, ao estatuir
que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. O princípio da igualdade
está diretamente ligado ao ‘princípio da não discriminação’. Porém, o princípio da igualdade não é
absoluto. Algumas distinções são lícitas e a própria Constituição estabelece algumas dessas distinções,
por exemplo, quando proíbe o trabalho do menor, exceto na condição de aprendiz, ou quando assegura
a proteção ao mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei, o que
está previsto no inc. XX do art. 7º. (BRASIL, 1988).
Essa breve menção a dispositivos da Constituição já evidencia a grande dificuldade que enfrenta
o Direito na atualidade, que é a de compatibilizar a ‘igualdade em direitos’, com o ‘direito à diferença’.
Por um lado, a demanda por igual reconhecimento exige que as pessoas sejam tratadas sem consideração
a suas diferenças; todos os seres humanos são compreendidos como iguais em relação aos direitos
humanos, que são considerados inerentes ao homem e universais, ou universalizáveis. Por outro lado,
em nome da política das diferenças é preciso reconhecer e até fomentar particularidades, como em

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relação às minorias étnicas (que é o caso dos indígenas no Brasil, dos aborígenes na Austrália, dos povos
ciganos na Europa), ou às mulheres, aos afrodescentes etc.
Vejamos então, inicialmente, o que significa igualdade real e formal, para depois tratarmos da
discriminação (e do preconceito) e de quando um discrimen (uma distinção) é possível, é lícito.
Os juristas costumam distinguir dois tipos de igualdade, a formal e a real (ou material). A ‘igualdade
formal’ é a estabelecida idealmente, perante a lei. Todos são iguais perante a lei. Assim é que, a todos
está assegurado o direito de não ser submetido à tortura ou a tratamento desumano ou degradante (art.
5º, inc. III, CF/88). A igualdade formal é importante, assegurando aos cidadãos direitos e imunidades
que devem ser observados. (BRASIL, 1988).
Mas é por meio da ‘igualdade real’ que se busca a igualdade de fato, no plano das relações, na vida
social e econômica. Essa é a igualdade que atende mais satisfatoriamente à ideia de sustentabilidade
social, porque permite o exercício de direitos fundamentais, como o direito à educação e ao trabalho,
assim como assegura possibilidade de acesso aos mecanismos e processos de decisão política e garante
igualdade de oportunidades.
A nossa Constituição contempla normas destinadas à busca da igualdade real, por exemplo,
quando prevê o benefício de prestação continuada, que é um benefício que a Seguridade Social paga
à pessoa com deficiência que comprove não possuir meios para prover a própria subsistência ou de
tê-la provida pela família (inciso V do art. 203 da CF/88), no valor de um salário mínimo mensal.
(BRASIL, 1988).
Bem, mas então vejamos o que é preconceito e discriminação. A ‘diversidade biológica e cultural’ é
própria das sociedades humanas, mas o homem comum tem dificuldade para encará-la como tal e para
compreender a humanidade como única, porque ele vive numa cultura específica e tradicional, sem a
percepção da dimensão da sociedade humana e do outro, aquele que é diferente. Temos a tendência de
negar as diferenças que não compreendemos e a condenar as experiências do outro que nos chocam.
O ‘preconceito’ constitui uma atitude interior do indivíduo ou grupo, uma ideia pré-concebida
acerca de algo ou alguém. O preconceito conduz à discriminação e normalmente está relacionado à
ausência de conhecimento sobre a realidade do outro, do diferente. É o que acontece, por exemplo,
quando deixamos de contratar uma pessoa com deficiência, por entendermos que não tem a desejada
capacidade laboral, avaliando-a por suas limitações, não por suas habilidades
Em geral o preconceito se presta a justificar a exploração econômica, a dominação política,
ou a ocultar antagonismos de classe. Segundo Arnold M. Rose (p. 165.), o preconceito traz uma
sensação de poder aos membros do grupo dominante, seja ele racial, nacional, religioso, seja de
gênero (relativo às mulheres). Os membros deste grupo, ainda que estejam no seu último escalão,
sentem-se superiores aos membros da minoria. É uma vantagem ilusória, já que se abre mão de outras
satisfações de prestígio reais. Além do preconceito, há o estereótipo, que muitas vezes desencadeia
práticas discriminatórias. O ‘estereótipo’3 é o rótulo, a noção padronizada a respeito de certas pessoas
ou grupos, generalizando-se características. Podem ser positivos e negativos. Por exemplo, a ideia de
que todo japonês é inteligente, ou todo índio é preguiçoso, ou todo judeu é sovina, ou toda loura é
burra.

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O estereótipo é mantido e veiculado pelos meios de comunicação, podendo ser absorvido e tornar-
-se crença que conduz a ação do indivíduo. Preconceitos e estereótipos estão presentes nas relações
sociais, atuando na manutenção de ideias e justificando as diferenças de tratamento existentes. O
preconceito tem um caráter mais individual, enquanto o estereótipo apresenta-se mais fortemente
como um produto cultural e social.
A ‘discriminação’, diversamente do preconceito, implica necessariamente uma ação, que produz
um impacto “diferencial e negativo” nos membros do grupo discriminado. “Uma ação educativa e
persuasiva pode contribuir para a diminuição do preconceito e para a revisão dos estereótipos, levando
à valorização das diferenças e da diversidade. Já no caso da discriminação, entretanto, por se tratar de
prática, há de se usar também dispositivos legais, ou não se terá alteração no quadro das desigualdades”.
(BENTO, 2000)
A palavra ‘discriminar’ apresenta dois significados, o de distinguir ou diferenciar, utilizados
num ‘sentido neutro’; e o ‘sentido pejorativo’ que adquiriu ao longo do século XX, de parcialidade,
favoritismo, fanatismo ou intolerância, que é o sentido com que mais frequentemente empregamos a
expressão atualmente.
A discriminação representa um fenômeno social. Por ser social, é dinâmica, variável no tempo e
no espaço. Isso ocorre porque não diz respeito a uma característica inerente ao sujeito, mas a algo que
se constrói na relação com o outro, a uma valoração comparativa.
Nesse sentido está a Convenção Internacional dos Direitos das pessoas com Deficiência da ONU,
aprovada em dezembro de 2006 e ratificada pelo Congresso Nacional brasileiro em julho de 2008,
o que significa que passou a valer para nós como lei interna. Por essa convenção e pela definição
que ela traz de pessoa com deficiência, em seu artigo 1.º, fica claro que considera a deficiência como
sendo da sociedade, não da pessoa: pessoas com deficiência “são aquelas que têm impedimentos de
natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir
sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas”. (BRASIL, 2008).
Quer dizer, a sociedade é que não tem os mecanismos, apoios e instrumentos necessários para que
aquela pessoa possa desenvolver-se plenamente e exercer seus direitos. Porque não podemos imaginar
que uma pessoa que tenha deficiência física, por exemplo, que necessite de cadeira de rodas, encontre
os mesmos obstáculos morando num sítio no interior do Paraná, sendo de família humilde, que aquela
que mora em Munique, na Alemanha, onde todas as calçadas e veículos de transporte coletivo são
adaptados e ela tem acesso mais fácil à cadeira de rodas motorizada.
Claro que existem deficiências que comprometem e limitam muito as possibilidades de uma pessoa,
quanto à educação, ao trabalho e à vida social. Mas mesmo para estas, o acesso a recursos médicos, de
tratamentos fisioterápicos e psicopedagógicos, pode fazer muita diferença no desenvolvimento.
Tomando mais um exemplo, uma mulher sabe que é mulher porque se relaciona com o outro,
que é o homem, percebendo a diferença entre eles. Uma pessoa percebe que é negra ao ter contato
com o outro, que é branco, ou amarelo, por exemplo. Como se vê, a diferença não está na pessoa, mas
na relação que ela constrói com o outro, Por isso a aceitação do ‘diferente’ é uma atitude que todos
deveríamos adotar, porque em outro contexto todos nós poderíamos nos tornar o diferente.

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Maurício Godinho Delgado conceitua a discriminação como “conduta pela qual se nega à pessoa
tratamento compatível com o padrão jurídico assentado para a situação concreta por ela vivenciada”
(DELGADO, 2000, p. 97-114).
Egídia Maria de Almeida Aiexe afirma que a discriminação em regra atinge um grupo de pessoas
unidas por um traço comum:

Neste sentido, o ato de discriminar compõe-se, antes de tudo, de uma generalização dos atributos
extrínsecos das pessoas de um grupo como sinônimos de uma ou mais qualidades vistas como negativas.
O efeito é a negação da individualidade de cada componente do grupo e sua dissolução em um todo
imaginário, que recebe uma categorização estigmatizante a partir dos valores daquele que discrimina.
(AIEXE, 2000, p. 337).

Essa mesma autora ressalta o aspecto cruel da discriminação, que é o de prestar-se à justificativa
da marginalização e exploração da pessoa ou grupo discriminado.
Segundo Hédio Silva Junior, o discrimen (o tratamento diferenciado) é ‘possível’ quando houver
correlação lógica com a norma de conduta e com os valores constitucionais. Quer dizer, a finalidade
da diferenciação deve ser acolhida pelo Direito, não pode ser contrária às normas e dos princípios
constitucionais. Luís Roberto Barroso acrescenta que tratamento diferenciado deve possuir fundamento
razoável e ser destinado a um fim legítimo; deve haver adequação entre o meio utilizado e o fim
pretendido; deve haver proporcionalidade entre o valor objetivado e o sacrificado.
Como exemplo de desequiparações possíveis, traz o da contratação de artista negro para evento
comemorativo do dia da consciência negra; ou a contratação de guardas penitenciários do sexo feminino
para presídio feminino. Nesses exemplos, o elemento diferenciador conformado pela raça e pelo sexo
constitui condição determinante da atividade que vai ser desenvolvida, fundada em sua natureza ou
condições de exercício.
No âmbito das relações de trabalho, para que o fator diferenciador seja válido, deve ser vinculado
objetiva e logicamente à necessidade do posto de trabalho oferecido, ou à condição de trabalho a que
estiver vinculado. Por exemplo, se contrato um jogador para um time de futebol masculino, posso
validamente preferir que seja do sexo masculino. Mas não posso preferir contratar um homem para
trabalhar na lavoura, só porque imagino que seja melhor um homem para aquele posto de trabalho.
Compreendendo-se como possíveis determinadas diferenciações, inclusive as relativas às medidas
de ação afirmativa, das quais se tratará mais adiante, nas demais hipóteses estará configurada a prática
discriminatória, reprovável do ponto de vista sociojurídico.
A discriminação pode assumir feições diversas, efetivando-se direta ou indiretamente, ou
consolidando-se em ações positivas.
A ‘discriminação direta’ é aquela pela qual o tratamento desigual funda-se em critérios proibidos.
É, por exemplo, a não contratação de empregados negros.4
A ‘discriminação indireta’ é a que tem uma aparência formal de igualdade, mas que em verdade cria
uma situação de desigualdade. É o caso, por exemplo, da instituição de um adicional de remuneração
a uma determinada função, ocupada exclusivamente por homens.

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A discriminação indireta é mais frequente que a direta. Outro exemplo seria o de criar requisitos
para a admissão que excluíssem um determinado grupo e que não fossem relacionado com a necessidade
do serviço, como, por exemplo, a ‘boa aparência’ para ser vendedor em loja.
Para Maria Aparecida Bento (p.2113-2132) há, ainda, a ‘discriminação institucional’, que ocorre
quando o preconceito está subjacente ao próprio comportamento coletivo ou institucional, inserido
na lógica da empresa ou instituição, de modo não necessariamente consciente, mas reprodutor das
desigualdades sociais. Pode-se dizer que é uma discriminação estrutural, vinculada à estrutura da
sociedade tal qual se encontra estabelecida num dado momento histórico, com a advertência que
estrutural não quer dizer imutável.
É possível falar-se ainda em ‘discriminação vertical’ e horizontal. A vertical ocorre quando há
maior dificuldade para determinados indivíduos e grupos de ter acesso a determinados postos e
posições mais elevados e melhor remunerados na empresa, como costuma ocorrer ainda em relação a
negros e mulheres. A horizontal ocorre quando os empregos ocupados por estes grupos, majoritária ou
tradicionalmente, são piores remunerados e socialmente desvalorizados, como ocorre com professores
primários e enfermeiros, que são predominantemente ocupados por mulheres.
Por fim, há a ‘discriminação positiva’, ou ação afirmativa, que compreende o conjunto de medidas
legais e de práticas sociais, destinadas a compensar uma situação de efetiva desigualdade em que se
encontre um determinado grupo social, possibilitando o acesso ao sistema legal, tornando viável para
estes indivíduos o exercício de direitos fundamentais. Significa o estabelecimento de favorecimentos
a algumas minorias socialmente inferiorizadas, juridicamente desigualadas, destinados a facilitar a
igualdade real.
‘Cota’ é um dos mecanismos possíveis de ação afirmativa e representa o número ou porcentagem
previsto na norma. Por ela se estabelece uma reserva mínima e rígida de lugares, em números ou
percentuais. Mas não é o único mecanismo de ação afirmativa, que pode compreender também, uma
política de incentivos fiscais para as empresas que adotarem políticas de inclusão no trabalho.
No Brasil temos as cotas para pessoas com deficiência, em relação ao acesso ao trabalho. Essas
pessoas têm direito à reserva de vagas nos concursos públicos, ou seja, um percentual é reservado
para elas; e tem direito à cota nas empresas privadas, ou seja, toda empresa que tenha 100 (cem)
empregados ou mais, está obrigada a contratar um percentual de pessoas com deficiência (que vai de
2% a 5%, conforme o número de empregados da empresa). Temos as cotas para negros e indígenas
em algumas universidades, como a Universidade Federal do Paraná (que também tem uma cota para
alunos oriundos das escolas públicas).
O indivíduo beneficiado pela ação afirmativa deve estar apto para a função ou vaga pretendida.
Porém os requisitos exigidos para um posto de trabalho devem guardar estreita vinculação com a
necessidade do serviço, com as atividades compreendidas para o posto de trabalho oferecido. Não é
possível a inserção de critérios discriminatórios nas ofertas de emprego, como a idade entre 18 e 40 anos.
A ação positiva está a serviço da igualdade real. Não constitui um privilégio, mas sim um meio
para reequilíbrio das situações reais de desigualdade.

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TRATAMENTO LEGAL DA DISCRIMINAÇÃO NO


ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO
A Constituição Federal de 1988, no art. 1.o, inc. III, eleva à condição de ‘fundamento’ do ‘Estado
democrático’ de direito a ‘dignidade’ da pessoa humana, estabelecendo como ‘objetivo fundamental
da República’ a ‘promoção do bem de todos’, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação (art. 3.o, inc. IV). Nesse mesmo art. 3.o, inc. III estabelece
o objetivo de reduzir as desigualdades sociais. No artigo 5.o, caput, prevê que todos são iguais perante
a lei, sem distinção de qualquer natureza. No artigo 7.o, inc. XX estabelece a proteção ao mercado de
trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei. No mesmo artigo, inc. XXX,
proíbe “diferença de salário, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo,
idade, cor ou estado civil”. Estabelece no art. 7.o, inc. XXXII a vedação de distinção entre trabalho
manual, técnico e intelectual e entre os profissionais respectivos. (BRASIL, 1988).
Além do que está expresso em nossa Constituição, que é a lei mais importante do país, há vários
tratados e convenções internacionais que foram ratificados pelo Brasil, o que quer dizer que passaram
a valer como lei interna. Assim, por exemplo, a Convenção n.º 111 da Organização Internacional do
Trabalho (a OIT), que trata da discriminação no trabalho. E há também várias leis infraconstitucionais
(que estão abaixo da Constituição, que é a lei mais importante), tratando da igualdade e não discriminação,
como, por exemplo, a Lei n.º 9.029/95, que trata da proibição de qualquer forma de discriminação no
acesso ao emprego ou na sua manutenção, proibindo, dentre outras coisas, que o empregador exija
atestados ou exames de gravidez, ou esterilidade da empregada ou candidata a emprego.
Apesar de toda a tutela constitucional, de normas de direito internacional ratificadas pelo Brasil e
de normas de direito infraconstitucional, as práticas discriminatórias continuam a ocorrer nas relações
de trabalho, carecendo de tutela a ser buscada perante o Poder Judiciário (o poder incumbido de julgar)
e de atuação do Ministério Público.
A discriminação não traz consequências apenas para o que dela é vítima, ou para aquele que
discrimina apenas quando chamado a responder judicialmente. Ela gera perda de tempo e de potencial
humano. Traz, portanto, prejuízos econômicos. Traz prejuízos psicológicos para aquele que discrimina,
que se torna incapaz de manter relações plenamente humanas e de atacar causas verdadeiras de problemas
que o afligem. Traz prejuízos psicológicos para aqueles que a vivenciam, não obstante não sejam dela
vítima. Limita, pela exclusão, a possibilidade de reunir no ambiente de trabalho, ou num local de lazer,
ou numa universidade, indivíduos com experiências, talentos, histórias de vida e habilidades diversas.
Nós já caminhamos bastante nos últimos anos em relação à diminuição da discriminação. A
maioria das pessoas já sabe que é ilegal deixar de contratar alguém porque é negro, ou porque é mulher,
por exemplo. Mas ainda temos muito a avançar no sentido de uma igualdade efetiva e da aceitação do
diferente. Não raro vemos notícias nos jornais de pessoas espancadas e até mesmo mortas, porque são
indigentes que moram nas ruas, ou porque são homossexuais, ou que sofrem pressão de colegas porque
são obesas. Ainda temos que fazer um grande esforço para nos considerarmos uma sociedade inclusiva.

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PARÁGRAFOS COM AS IDEIAS PRINCIPAIS


DO TEXTO
Não há como se imaginar sustentabilidade social e diminuição das diferenças sociais com a
perpetuação de práticas discriminatórias na escola, no trabalho, no acesso aos serviços de saúde e aos
serviços públicos em geral. A dignidade pressupõe o direito à igualdade.
A Constituição Federal Brasileira assegura no art. 5º, caput, o princípio da igualdade, ao estatuir
que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. O princípio da igualdade está
diretamente ligado ao princípio da não discriminação. Porém, o princípio da igualdade não é absoluto.
Algumas distinções são lícitas e a própria Constituição estabelece algumas dessas distinções, como a
proteção ao trabalho do menor.
Por um lado, a demanda por igual reconhecimento exige que as pessoas sejam tratadas sem
consideração a suas diferenças; todos os seres humanos são compreendidos como iguais em relação aos
direitos humanos, que são considerados inerentes ao homem e universais, ou universalizáveis. Por outro
lado, em nome da política das diferenças é preciso reconhecer e até fomentar particularidades. Isso não
significa discriminar no sentido negativo da palavra. A discriminação, diversamente do preconceito,
implica necessariamente uma ação, que produz um impacto ‘diferencial e negativo’ nos membros
do grupo discriminado. Não diz respeito a uma característica inerente ao sujeito, mas a algo que se
constrói na relação com o outro, a uma valoração comparativa.
Maurício Godinho Delgado conceitua a discriminação como “conduta pela qual se nega à pessoa
tratamento compatível com o padrão jurídico assentado para a situação concreta por ela vivenciada”.
(DELGADO, 2000). No âmbito das relações de trabalho, para que o fator diferenciador seja válido,
deve ser vinculado objetiva e logicamente à necessidade do posto de trabalho oferecido, ou à condição
de trabalho a que estiver vinculado. Fora desta situação a discriminação será ilícita e merecerá repúdio.

BIBLIOGRAFIA
AIEXE, Egídia Maria de Almeida. Uma conversa sobre direitos humano, visão da justiça e discriminação. In
Discriminação. VIANA, Marcio Túlio; RENAULT, Luiz Otávio Linhares. (org). São Paulo: LTr, 2000, p. 337
BENTO, Maria Aparecida da Silva. Igualdade e diversidade no trabalho. In BENTO, Maria Aparecida da Silva
(org.). Ação afirmativa e diversidade no trabalho: desafios e possibilidades. São Paulo, Casa do Psicológico,
2000.
DELGADO, Maurício Godinho. Proteções contra discriminação na relação de emprego. In Discriminação.
VIANA, Marcio Túlio; RENAULT, Luiz Otávio Linhares. (org). São Paulo: LTr, 2000, P. 97 - 114.
ROSE, op. cit., p.165.

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NOTAS EXPLICATIVAS
1 Preconceito: julgamento prévio negativo, uma ideia preconcebida acerca de algo ou alguém.
2 Discriminação: conduta (ação ou omissão) que viola direitos das pessoas com base em critérios injustificados
e injustos, como a raça, o sexo, a idade e outros.
3 Estereótipo: conjunto de atributos relativos a pessoas ou grupos, que são generalizados como uma espécie
de rótulo. É a ideia, por exemplo, de que todo japonês é inteligente, ou de que todo índio é preguiçoso.
Pode ser positivo ou negativo, mas é sempre equivocado, na medida em que generaliza características e
comportamentos a todos os integrantes daquele determinado grupo ou segmento.
4 Racismo: ideologia que defende a existência de hierarquia entre grupos humanos com base em raças que
reputa existentes, marcadas por características físicas, hereditárias e culturais.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
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A AGRICULTURA BRASILEIRA E O
EMPREENDEDORISMO RURAL

Fernando Curi Peres


Vania Di Addario Guimarães
José Roberto Canziani

CONCEITOS FUNDAMENTAIS
O que a sociedade brasileira espera de seu agronegócio, de sua agricultura em geral e dos
empreendedores rurais em particular? Para responder a essa questão é necessário, antes de tudo,
definir os termos ‘agronegócio’ e ‘agricultura’ e indicar o papel dos empresários rurais, que são os
empreendedores mais relevantes para o setor.
Para se entender os termos deve-se notar que desde a década de 50 e 60 do século passado as
economias começaram a se organizar em torno de cadeias produtivas, dentre as quais o agronegócio
é um conjunto. As cadeias do agronegócio englobam desde i) as instituições de pesquisas de novas
tecnologias para o setor, as empresas prestadoras de serviços aos produtores da agricultura, tais como
os serviços de assistência técnica, a produção e processamento de sementes, sêmen, óvulos fecundados,
medicamentos e rações para animais, o fornecimento de serviços de máquinas e equipamentos para os
produtores, o oferecimento de serviços e produtos de controle de pragas e doenças das plantas e animais,
a disponibilização de corretivos e fertilizantes para os solos, os serviços de softwares para a gestão da
produção da agricultura e das consultorias especializadas, além de outros serviços; ii) a produção da
agricultura propriamente dita – ou a produção dentro da porteira ou da fazenda; (iii) os serviços de
transporte dos produtos da fazenda; (iv) seu processamento industrial ou seu processamento para a

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comercialização; (v) os serviços dos atacadistas, dos exportadores e dos varejistas até que os produtos da
agricultura cheguem aos consumidores finais, sejam eles brasileiros ou sejam do exterior. Dessa forma,
o agronegócio compreende todas as atividades que contribuem para que os alimentos, fibras e energias
renováveis produzidas pelos agricultores cheguem, nas condições desejadas, até seus destinatários finais,
os consumidores do Brasil ou do exterior.
Dentre as cadeias agroalimentares, a agricultura compreende as subatividades do agronegócio
correspondentes aos cultivos agrossilvopastoris ou ao cultivo de plantas, florestas e animais, tais como
a silvicultura, a bovinocultura e a suinocultura, bem como o cultivo de grãos, de plantas destinadas à
produção de energia e de hortaliças e ao tratamento de seus resíduos; é, portanto, a parte do agronegócio
que corresponde às chamadas atividades ‘dentro da porteira’ ou ‘da fazenda’.
Embora as estatísticas mostrem principalmente os números do agronegócio brasileiro – que
correspondem a cerca de um quarto (1/4) da renda total gerada na economia (considerando o Produto
Interno Bruto – PIB), sendo o setor do agronegócio responsável por, pelo menos, um quinto (1/5) do
emprego do país (CEPEA, 2018)1 –, é preciso notar que a agricultura é só uma pequena parte dele.
Mesmo sendo o elo mais sensível de cada cadeia que forma o agronegócio, a agricultura recebe somente
cerca de 5% da renda gerada no país, mesmo empregando aproximadamente 15% de sua mão de obra
ativa. (CEPEA, 2018). Isso tem sérias implicações para o equilíbrio da economia, como será visto em
outra parte deste capítulo.
Qual o papel desempenhado na agricultura pelos empreendedores? Primeiro, é preciso mostrar a
importância dos empreendedores para o setor. Eles são os responsáveis diretos pela organização de sua
produção. Eles tomam as decisões sobre o que produzir, que tecnologia utilizar, que fatores primários de
produção usar – i) recursos naturais; ii) recursos humanos; (iii) serviços de capitais físicos e financeiros;
iv) recursos empresariais – e em que quantidades relativas, quando e para quem será vendida a produção
e de quem serão adquiridos os insumos e outros serviços necessários ao processo. Como se trata da
produção da agricultura, os empreendedores relevantes são os empresários. Há empreendedores que
tomam decisões equivalentes em outras instituições, como as organizações não governamentais sem
fins de lucro (ONGs), associações, cooperativas etc., que também são geridas por eles, embora não
sejam, necessariamente, empresários.
Os empresários rurais são os principais empreendedores tratados neste capítulo. Como são os
responsáveis diretos pelas decisões nas unidades produtivas da agricultura, eles podem gerir unidades
comerciais não incorporadas, corporações ou pequenas unidades familiares. Deve-se notar que mesmo
os parceiros e arrendatários são empresários, já que eles tomam decisões e assumem os riscos associados
a elas. Por aceitar incorrer nos riscos de organizar a produção e da comercialização associada, além da
mobilização dos fatores primários de produção, eles merecem uma retribuição, que nas economias de
mercado, ou capitalistas, é chamada de lucro. Essa retribuição, por ser a remuneração ao risco, pode ter
sinal positivo ou negativo (prejuízo). Na agricultura familiar, o empresário é sempre um membro da
família que, em geral, é o dono do negócio.

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O QUE A SOCIEDADE ESPERA DA AGRICULTURA E


DOS SEUS EMPREENDEDORES
A sociedade brasileira espera que sua agricultura cumpra adequadamente pelo menos três
grandes objetivos fundamentais para o funcionamento da economia. Primeiro, que os agricultores em
particular e o agronegócio em geral continuem a produzir alimentos por preços decrescentes para toda
a população do país, o que corresponde ao aumento da renda real dos consumidores, uma vez que
com a mesma renda sobram, cada vez mais, recursos que podem ser utilizados na compra de outros
bens e serviços. Numa visão humanitária mais abrangente, deve-se considerar esse efeito como bom
para toda a população do planeta, já que as exportações do país expandem esse efeito para grande parte
das economias do mundo. Ele já é muito importante para parte dos mais de 7 bilhões de habitantes
da Terra e será, com certeza, fundamental para os 9 a 10 bilhões que estarão no planeta na metade do
presente século. (FAO, 2017).
O segundo grande objetivo que a agricultura brasileira deverá continuar a viabilizar corresponde
à geração das divisas essenciais ao funcionamento da maioria dos demais setores da economia. À
exceção do setor minerador, todos os outros setores da economia brasileira precisam que as divisas
(moedas estrangeiras, principalmente dólares americanos) provenientes das exportações da agricultura
e, consequentemente, do agronegócio, continuem a entrar no país. Elas são fundamentais para que o
país possa importar bens e serviços não produzidos internamente e/ou aumentar as reservas do país
(tesouro nacional) em moedas estrangeiras, diminuindo o chamado risco Brasil.
O Brasil é um grande exportador de aviões, mas importa mais aviões e suas peças do que exporta;
exporta muitos veículos motorizados, mas importa mais carros e peças do que exporta. O fenômeno se
repete em todos os outros setores da economia nas quais o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) divide a economia do país, com exceção do agronegócio e do setor minerador – este responsável
pela exportação de minérios –, que são os únicos a terem exportações de bens tangíveis maiores que
importações2.
Além da produção de alimentos baratos e da geração das divisas fundamentais para o funcionamento
dos demais setores da economia, a sociedade brasileira espera, ainda, que sua agricultura, em particular,
e seu agronegócio, em geral, produzam fibras e energias renováveis de forma competitiva e sustentável,
garantindo o abastecimento da população e gerando divisas que garantam o saldo da balança comercial do
país. A necessidade de sustentabilidade do setor fez com que a tecnologia desenvolvida no país conseguisse
se distinguir espetacularmente com o Programa Nacional do Álcool (Proalcool), entre todas as nações do
mundo, na produção de energia com base em biomassa e sem prejudicar a produção de alimentos.
A principal fronteira do desenvolvimento da agricultura brasileira está na região do Cerrado,
cujo solo é antigo e muito lixiviado pelas águas e intempéries em geral, tornando-se, assim, bastante
limitado em sua capacidade natural de sustentar processos intensivos de cultivos. (SILVA, 2006). A
pesquisa agrosilvopastoril brasileira foi capaz, no entanto, de gerar processos tecnológicos de produção

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que tornaram seus solos altamente produtivos e de maneira sustentável. Nesse ponto, é preciso entender
o conceito de sustentabilidade que está sendo utilizado aqui.
A sustentabilidade ambiental deve ser entendida como a garantia de que as próximas gerações que
habitarão as diferentes regiões do país encontrarão uma disponibilidade de recursos naturais pelo menos
igual à que existe atualmente. (STIGLITZ et al., 2009). A primeira reação das pessoas desavisadas é,
assim, a de preservação dos recursos naturais em sua forma original. É claro que parte de cada um
dos diferentes biomas do Cerrado precisa ser preservada porque eles contêm uma riqueza biológica,
especialmente a genética, sobre os quais conhecemos relativamente pouco e que podem se mostrar
muito úteis no futuro, bem como a dinâmica hídrica do conjunto Cerrado-Pantanal, que também é
de grande importância. De fato, essa necessidade de preservação vale para todos os biomas do mundo.
Por outro lado, não se pode deixar de adotar práticas sustentáveis, como fizeram os europeus, que
destruíram importantes elementos de sua fauna e flora nativa a ponto de atualmente não restar de sua
vegetação nativa mais de 1%. O Brasil preserva, especialmente com a ajuda de seus empreendedores
rurais, cerca de 2/3 (ou mais de 65%) de sua vegetação original. (SINDAG, 2019).
A incorporação do Cerrado à agricultura brasileira, desde que a legislação seja cuidadosamente
observada, pode garantir a manutenção de importantes áreas com cobertura nativa, embora, como em
praticamente todos os casos descritos no mundo, existam situações pouco defensáveis. Cada bioma que
o compõe está mantendo, por força de lei, pelo menos 20% de sua área, de forma a preservar sua flora
e fauna nativas, como reserva legal, além das áreas de proteção permanente, como as matas ciliares,
vegetação em ambientes com topografia mais acidentada, topos de morro etc.
Em outros biomas, como a Floresta Amazônica, a área mínima a ser preservada é de 80%,
embora haja relatos de unidades produtivas que, ilegalmente, desmatam proporções superiores ao
permitido. O restante da área do Cerrado deverá ser incorporada à produção da agricultura de uma
forma que garanta às gerações futuras uma disponibilidade de recursos naturais maiores e melhores
que os atualmente disponíveis.
Deve-se notar que o espetacular desenvolvimento da agricultura no Cerrado brasileiro deveu-se,
fundamentalmente, à existência dos recursos empresariais originários dos estados do Sul do país, onde
tradições familiares que enfatizavam a gestão empresarial da propriedade rural estavam mais presentes.
(PAIVA, 1963; PAIVA, 1963-73).
Em resumo, a sociedade brasileira deseja que sua agricultura cumpra as missões de: i) produzir
e oferecer a sua população alimentos, fibras e energias renováveis de boa qualidade e a preços
competitivos e decrescentes no tempo; ii) gerar divisas preciosas para os demais setores da economia,
por meio da exportação de seus produtos e derivados; iii) assegurar sua sustentabilidade por meio de
processos que garantam às gerações futuras pelo menos a mesma disponibilidade dos recursos naturais
atualmente existentes. Além disso, a sociedade quer que os objetivos mencionados sejam conseguidos,
mantendo no campo uma fração da sua população economicamente ativa superior àquela que as forças
de mercado estão indicando. A sociedade brasileira valoriza a distribuição mais ou menos pulverizada
das propriedades rurais, exigindo a manutenção de pequenas empresas, mesmo que as existências de

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economias de escalas3 estejam presentes em seus processos produtivos. Essa preferência por pequenas
e médias empresas rurais parece estar associada ao uso mais intensivo de recursos humanos do que
das empresas comerciais ou corporativas. Ela reflete a preocupação da sociedade com os níveis de
desemprego que têm caracterizado a sociedade brasileira.
A manutenção de uma fração maior da população ativa trabalhando na agricultura – atualmente
próxima de 15% do total – do que o indicado pelas forças do mercado cria um problema de
distribuição de renda entre os setores na economia. Lembrando que só 5% da renda interna, ou do
PIB do país, são destinados ao pagamento dos fatores de produção do setor – i) recursos humanos,
cujas remunerações são os salários em geral e os prolabores pagos aos proprietários por seu trabalho
na empresa; ii) recursos naturais, cujas remunerações são os arrendamentos ou aluguéis; iii) capitais
físicos e financeiros, cujas remunerações são os juros; iv) recursos empresariais, cujas remunerações
são os lucros. (CEPEA, 2018).
Assim, não há como equilibrar as rendas per capita entre os setores. Uma conta simples mostra
que a renda média recebida pelos fatores de produção dos demais setores da economia é equivalente
a 3,4 vezes4 a renda per capita média da agricultura. Dessa forma, as rendas recebidas pelos fatores
de produção da agricultura – inclusive, e principalmente, a remuneração ao trabalho – são muito
menores no campo do que nos outros setores da economia. E não há mágica que consiga mudar essa
situação matemática.
Também é preciso lembrar que a tendência em todo o mundo é de redução relativa da participação
da renda da agricultura nos PIBs das economias5. Assim, as forças econômicas indicam que parte da
população excedente do campo deverá se mudar para os centros urbanos, no futuro.
Os empresários rurais – desde os proprietários de grandes empresas incorporadas até os que
produzem em parceria – têm de gerir suas empresas num ambiente altamente demandante, como visto
anteriormente, e, ao mesmo tempo, têm de competir com as empresas de todo o mundo, uma vez que
a maioria das cadeias do agronegócio está internacionalmente integrada. Além disso, o setor trabalha
em condições de mercado bem próximas às que os economistas chamam de competição perfeita6,
devido a características que serão mostradas adiante. Nessas condições, aqueles cientistas demostram
que os lucros tendem a ser baixos. Assim, espera-se dos empreendedores rurais alto desempenho no
sentido de atender inúmeros objetivos sociais – às vezes não necessariamente consistentes com as forças
dos mercados –, ao mesmo tempo em que devem se manter economicamente competitivos em meio
a produtores de todo o mundo.
Os habitantes dos centros urbanos muitas vezes atribuem aos agricultores – empresários rurais –
culpas e resultados sociais perversos que não são deles, e sim de políticas destinadas a atingir objetivos
completamente estranhos a suas atividades. Um exemplo decorre da política iniciada por Celso
Furtado com a criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) para
o desenvolvimento da Região Nordeste, que foi posteriormente estendida à Região Norte com a
Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), que estimulou financeiramente a
abertura de áreas na Amazônia pelos empresários rurais. Na ocasião, o governo militar utilizou os

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estímulos fiscais da SUDAM para ocupar partes da região, por razões geopolíticas, contribuindo para
que ela não continuasse a ser cobiçada por potências estrangeiras; por isso, estimulou desmatamentos
e o deslocamento de populações para algumas áreas da Amazonas. Hoje, muitos dos empresários rurais
que atenderam àqueles chamamentos governamentais, para desenvolver suas empresas na região, estão
sendo taxados de criminosos destruidores das florestas.

COMPETÊNCIAS EXIGIDAS DOS


EMPREENDEDORES RURAIS BRASILEIROS
No Brasil, tradicionalmente se associou as atividades agrícolas com a menor exigência de
conhecimentos de seus trabalhadores. Porém, desde a grande revolução ocorrida no setor, a partir da
década de 1970, com a utilização de novas e modernas tecnologias, o aumento dos conhecimentos,
habilidades e atitudes passou a ser uma exigência para os trabalhadores do setor.
De fato, a combinação entre a manutenção de grande número de pequenas unidades produtivas
na agricultura (um ‘valor social’ da população brasileira) e as exigências das mencionadas competências
dos empresários rurais, está demandando deles maiores conhecimentos que os requeridos de seus
correspondentes urbanos. Isso porque nas propriedades pulverizadas do agro dificilmente se pode
contratar indivíduos especializados nas diferentes áreas de atuação e nas funções gerenciais de suas
unidades produtivas. Em geral, as propriedades e, consequentemente, a maioria dos negócios são
pequenos e não podem pagar para ter aqueles especialistas em seus quadros. Assim, os gestores do agro
têm, eles próprios, que desempenhar atividades nas diversas áreas da administração empresarial.
Acredita-se que os principais estrangulamentos da agricultura brasileira advirão das deficiências
de seus trabalhadores em sua capacidade de efetivamente utilizar as novas tecnologias que deverão
estar disponíveis para o setor. Com o aumento do fenômeno da globalização, a produção de novos
conhecimentos científicos e, consequentemente, tecnológicos, tendem a aumentar sobremaneira.
O ritmo de surgimento de novos processos gerenciais e técnicas de cultivo estão crescendo
exponencialmente. O problema que se antevê está relacionado à capacidade dos trabalhadores do setor
de absorver e implantar as novas tecnologias, especialmente de seus recursos empresariais.
Uma importante limitação do setor rural brasileiro está associada aos baixos estoques de capital
social ou institucional do país. (KNACK; KEEFER, 1997; BUAINAIN, 2014). Para definir os estoques
de capital social ou institucional, é melhor determinar antes os estoques de capital humano.
O estoque – ou o retrato atual – do capital humano de um país ou região pode ser definido, ou
descrito, por meio de quatro variáveis: i) conhecimento; ii) habilidades; iii) atitudes; iv) saúde das
pessoas que formam aquele estoque. Deve-se notar que o sistema escolar brasileiro está desenhado,
fundamentalmente, para aumentar o estoque de conhecimentos das pessoas. As habilidades – que
correspondem à capacidade de transformar conhecimento em trabalho – não têm sido contempladas

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suficientemente pela maioria das instituições de ensino no Brasil, exceto em algumas áreas, tais como
a saúde e as forças armadas. Assim, a produtividade do capital humano do país vem apresentando
uma performance muito baixa quando comparada à dos países mais desenvolvidos. (GOITIA, 2019).
Os estoques de capitais sociais ou institucionais podem, por sua vez, ser descritos por três variáveis:
i) confiança entre as pessoas, ou pares; ii) capacidade das pessoas de trabalhar em grupos; iii) civismo
das pessoas.
A confiança é fundamental nas relações humanas e, quanto mais desenvolvida, mais fácil ou
eficiente ficam os relacionamentos e os negócios. Por exemplo, quando não há confiança entre as pessoas
que se engajam em uma troca ou negócio elas precisam gastar tempo e recursos produzindo papéis e
dando garantias de que cumprirão o acordado, o que torna as transações muito mais caras e lentas. A
capacidade de trabalhar em grupo facilita muito a possibilidade de membros de qualquer comunidade
resolver problemas comuns, o que é dificultado se cada um resolve trabalhar individualmente.
Finalmente, o civismo trata do quanto as pessoas esperam que seus pares – ou qualquer membro do
grupo – se comportem de acordo com regras aceitas.
O civismo e a capacidade de trabalho em grupo são responsáveis pela competência das
comunidades na resolução de problemas. Quando há um alto estoque de capital social ou institucional
numa comunidade, os problemas tendem a ser resolvidos por iniciativas da própria comunidade; seus
membros não esperam que um político ou padrinho venha resolvê-los. Nessas comunidades não há, ou
existe só em menor grau, o chamado clientelismo, tão típico de regiões onde aqueles estoques são baixos.
As comunidades com altos estoques de capital social ou institucional não ficam reféns de coronéis ou
políticos que tiram das pessoas seu poder de escolha, quase obrigando-as a aceitarem determinismos
que lhes infernizam a vida, como acontece em regiões ‘dominadas’ por caciques políticos ou ‘coronéis’,
que fazem valer sua autoridade de forma impositiva7.
Os membros da agricultura não comercial, que ficaram no campo durante o longo período das
políticas do nacional desenvolvimentismo (CARDOSO, 1991) são, provavelmente, aqueles que não
aceitaram correr os riscos das necessárias mudanças que a migração impõe às pessoas. Quais são esses
riscos? Primeiro, o do tipo de vida desconhecida: será que a família se adaptará à vida urbana? Em
segundo lugar, estão os riscos derivados da insegurança econômica que acompanha a migração. No
campo, as famílias têm ao menos o mínimo de recursos alimentares necessários a sua sobrevivência.
A família terá condições de sobreviver nos meios urbanos? Outro risco está associado às exigências de
competências – conhecimentos, habilidades e atitudes – para a sobrevivência da família nas cidades.
Ora, os especialistas em estudos sobre os recursos humanos consideram a atitude positiva quanto
aos mencionados riscos, uma das principais qualidades que os trabalhadores ou empresários podem
apresentar. Assim, ficaram na agricultura não comercial as pessoas que tinham atitudes negativas quanto
à disposição de enfrentar novas situações ou novos ambientes, exatamente uma das características do
mundo moderno que, pela velocidade das mudanças devido aos novos conhecimentos científicos,
precisa produzir ambientes sempre novos.

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CONSEQUÊNCIAS DOS BAIXOS ESTOQUES DE


CAPITAL SOCIAL OU INSTITUCIONAL DO PAÍS
Os estoques de capital humano e social ou institucional do Brasil são considerados muito
baixos. Algumas regiões do país têm melhores estoques devido às migrações mais recentes de povos
originários de países com mais altos estoques, como os da Europa e do Japão, entre outros. Para
aumentar seus estoques, o país precisa de investimentos em capital humano por meio de educação
formal, especialmente com o envolvimento das famílias. Infelizmente, o país não tem uma tradição de
alto envolvimento das famílias no monitoramento da performance educacional dos filhos – nos países
onde a educação é considerada de melhor qualidade, essa participação das famílias é considerado o
fator mais importante na formação dos jovens.
Os baixos estoques de capital social ou institucional colaboram, pesadamente, para a performance
baixa, ou deficiente, de parte dos pequenos agricultores empobrecidos da sociedade brasileira. À medida
que as novas tecnologias exigem tamanhos de negócios maiores para se viabilizarem (economias de
escala), as pequenas propriedades ficam em desvantagens. O fenômeno ocorre em todo o mundo, e as
tecnologias tendem a ser, cada vez mais, exigentes em volumes de negócios.
Nos países desenvolvidos, as deficiências da baixa escala de produção das pequenas empresas
rurais têm sido resolvidas pelo cooperativismo. O problema da pequena produção agrícola do Brasil
é que o cooperativismo não prospera onde os estoques de capital social ou institucional são baixos.
Se não há confiança entre as pessoas, elas sabem que não podem confiar seus negócios à cooperativa
porque os inescrupulosos podem tirar proveito delas, prejudicando todos os cooperados.
Nas sociedades mais desenvolvidas, os agricultores podem entregar seus produtos à cooperativa
para serem comercializados em épocas e em quantidades apropriadas, tudo feito por profissionais
altamente qualificados. A mesma coisa acontece com os insumos e créditos necessários aos processos
produtivos. Dessa forma, os pequenos empresários rurais, mesmo que sejam microempresários, não
precisam, por exemplo, dedicar seu precioso tempo de trabalho em atividades de comercialização
por saberem que ela está sendo feita por profissionais competentes; eles podem, assim, dedicar todos
os seus esforços à tarefa de produzir bem na agricultura. Porém, quando não existem cooperativas
confiáveis, os empresários têm, eles mesmos, de gastar parte importante de seu tempo procurando
fontes alternativas de financiamento e coletando preços e condições mais apropriadas para comprar
os insumos necessários ao processo produtivo e à venda de seus produtos. Além disso, eles não têm o
treinamento ou a formação requeridos para uma boa performance dessas atividades. Ainda lhes sobra
menos tempo para trabalharem em suas propriedades ou empresas.
Em resumo, os baixos estoques de capitais humanos e sociais ou institucionais são um pesado
fardo na luta pela competitividade das pequenas propriedades ou pequenas empresas do agro. Deve-se
notar que nessa categoria estão 3,5 a 4 milhões de unidades produtivas com suas famílias, o que dá
a dimensão social da continuidade da inviabilização destas empresas. (GRAZIANO, 2004). O fluxo

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de novas tecnologias está crescentemente chegando ao campo, e requer contínuas melhorias de dois
importantes estoques de capitais – humanos e sociais ou institucionais – para serem implantados,
garantindo as condições de competitividade necessárias para a permanência dessas unidades produtivas.
É urgente, portanto, que a sociedade aumente os investimentos nesses dois estoques: i) no aumento
da qualidade do capital humano dos agricultores; e ii) no aumento dos estoques de capital social ou
institucional do setor rural. Aumentar os estoques de capital humano é possível com melhorias na
educação, incluindo a participação das famílias. Aumentar os estoques de capital social ou institucional
é mais complicado.

RESPONDENDO ÀS NOVAS EXIGÊNCIAS FEITAS


AO SETOR
Para continuar competindo em níveis internacionais e cumprir seu importante papel no
desenvolvimento da sociedade brasileira, a agricultura depende da constante atualização de suas
tecnologias, inclusive de novas e mais eficientes técnicas de gestão de suas unidades produtivas. No
país há diversas instituições que podem desempenhar a contento o papel de produtoras das novas
tecnologias exigidas pela agricultura. (BUAINAIN, 2014). O problema futuro parece estar associado
à qualidade dos recursos humanos do setor. Atualmente, o estoque de capital humano na agricultura,
apesar de ser mais que abundante em número de pessoas em certas áreas do país, está se tornando
o fator mais limitante do desenvolvimento da agricultura brasileira, devido a deficiências em suas
competências tecnológicas para trabalhos cada vez mais exigentes.
Como consequência dos valores antirrurais da nossa sociedade e da necessidade de retirar recursos –
humanos e financeiros – da agricultura para promover a industrialização (PERES apud PARTENIANI,
2006), a sociedade brasileira nem sempre associou a devida prioridade à criação e ao desenvolvimento
de um sistema educacional rural eficiente e capaz de ajudar na necessária formação de seus recursos
humanos. Muitas vezes as políticas para a educação formal rural do país estiveram, equivocadamente,
voltadas à preparação de recursos humanos para as atividades urbanas. Infelizmente, muitas escolas
agrotécnicas simplesmente copiaram, em seus currículos, grades de cursos e conteúdos semelhantes aos
das escolas urbanas (PERES et al. 2017), os quais são relativamente irrelevantes para o agro e tendem
assim a cooperar para que seus egressos também sejam estimulados a sair do campo.
Do ponto de vista da necessária priorização de políticas públicas por parte da sociedade, uma
pergunta parece muito relevante: como se dá a incorporação das novas tecnologias na agropecuária e
quem se beneficia dela? Como a agricultura vende seus produtos em mercados cujas características se
aproximam muito dos de competição perfeita, um mecanismo peculiar acontece com os recursos do
setor. Esse mecanismo foi explicitado no Brasil por Ruy Muller Paiva (1971, 1973 e 1975). Como se
dá a transferência dos benefícios derivados de novas tecnologias dos produtores para os consumidores
dos produtos da agricultura?

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Quando uma nova tecnologia é incorporada pelos produtores inovadores, seus custos de produção
tendem a cair em termos de valor unitário do produto. Eles conseguem, assim, receber algum excedente
ou lucro puro em sua atividade no início do uso da tecnologia. O problema acontece quando, em seguida,
grande número de produtores adota a tecnologia: como o custo de produção do produto diminui para
a maioria deles, a oferta aumenta e o preço do produto no mercado diminui, e a maioria dos produtores
deixa de ter lucros. No final, quem ganha com a inovação são os consumidores do produto.
Os produtores rurais que não podem ou não sabem como adotar a nova tecnologia acabam por
gerar um problema social. Eles continuarão a produzir com um custo maior do que o custo da maioria
dos casos. No entanto, eles só poderão fazer isso durante pouco tempo. Esses agricultores retardatários
tenderão a deixar o campo. É por isso que a agricultura é um setor perdedor de recursos, especialmente
os humanos, em todo o mundo. Muitas das novas tecnologias contribuem para expulsar recursos não
competitivos do campo. Do ponto de vista da sociedade, os recursos humanos excedentes precisam ser
requalificados para serem utilizados nos setores urbanos da economia.
Devido ao mecanismo de transferência dos ganhos tecnológicos do agro para os consumidores em
geral, quando os empresários rurais, ou suas lideranças, pedem mais e melhores recursos ou atenções
legislativas para geração e incorporação de novas tecnologias, eles, de fato, não estão pedindo vantagens,
ou privilégios, para as unidades produtivas do setor; isso acontece porque quem acaba ganhando
com a maior eficiência da agricultura são os consumidores. Portanto, defesas das políticas que visam
melhorias na eficiência das empresas do agro não correspondem à defesa de interesses de classe ou do
agronegócio, mas dos interesses de toda a sociedade pois assim a agricultura acontece de forma mais
eficiente ou competitiva. Os consumidores são os ganhadores finais.
De posse do conceito de competitividade dos mercados, pode-se entender por que alguns
grupos de pessoas são francamente contrários à globalização. O que é globalização e quais são suas
características? A globalização é, basicamente, um fenômeno que corresponde à eliminação de barreiras
internas nas economias e aos mercados internacionalizados que aumentam o grau de competitividade
nas economias. Com a globalização, um carro que é mais eficientemente montado no Brasil, por
exemplo, tem partes ou componentes produzidos em muitos países produtores e ele pode ser vendido,
também, para consumidores de muitos países. Ela equivale à expansão dos mercados, aumentando suas
características competitivas. E, desde que o gênio de Adam Smith apresentou sua obra seminal, a ciência
sabe que os principais ganhadores com a globalização, e o consequente aumento na competitividade,
são os consumidores de todo o mundo.
Outro importante aspecto da globalização é dado pela assimetria na distribuição de seus ganhos e
custos, ou perdas. Ora, quando o mercado de um produto numa determinada economia é relativamente
fechado, por efeito de barreiras tarifárias ou por proibições expressas destinadas a proteger determinadas
indústrias ou segmentos produtivos, os consumidores acabam por pagar mais por unidade do produto
ou pagar a mesma coisa por produtos de qualidade inferior ao desejado.
Os ganhadores na globalização são, portanto, os consumidores, que por constituição correspondem
a grande número de pessoas. Embora cada consumidor tenha acesso a produtos mais baratos, os ganhos

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são diluídos entre muitos deles. Por outro lado, os perdedores, os membros das indústrias ou outros
segmentos dos mercados que se globalizaram – empresários, acionistas e trabalhadores – perdem muitas
de suas rendas que antes eram privilegiadas pela ausência de competição. Estes perdedores têm, assim,
todos os incentivos para protestar e exercer pressões políticas contra a globalização (inclusive para tentar
proteger seus empregos). A organização das economias como unidades formando parte de cadeias
internacionais está sinalizando que o processo de globalização veio para ficar, apesar da resistência de
certos setores de países que tentam manter privilégios pelo relativo fechamento de suas economias.

PERSPECTIVAS E LIMITAÇÕES ATUAIS DA


AGRICULTURA BRASILEIRA
A agricultura precisa atrair pessoas de talento, devidamente preparadas para enfrentar os desafios
colocados por conhecimentos baseados em processos e tecnologias que carregam as principais atualizações
derivadas dos mais modernos conhecimentos científicos. Eles certamente serão remunerados e receberão
o reconhecimento social correspondente as suas competências.
A ideia ultrapassada segundo a qual indivíduos que não queriam estudar poderiam trabalhar
na agricultura perdeu todo o seu apelo, exceto em funções que só requeiram força bruta; estas, no
entanto, deverão ser substituídas por equipamentos mecânicos e eletrônicos que são continuamente
criados pelas novas tecnologias. Hoje, os que trabalham na agricultura – principalmente os empresários
rurais – precisam ter conhecimentos em biologia para manejar seus cultivos, conhecer processos de
engenharia para utilizar adequadamente as máquinas e equipamentos (cada vez mais sofisticados e
que são continuamente incorporados aos processos produtivos) e conhecer e utilizar corretamente
os instrumentos de informática que estão presentes em todas as fases dos cultivos vegetais, animais e
florestais com os quais os agricultores estão envolvidos. E, pelo menos até que tenhamos grande número
de cooperativas bem estruturadas e competitivas (com alto capital social), os produtores rurais deverão
continuamente desenvolver habilidades comerciais, financeiras e de gestão de pessoas. Onde existem
boas cooperativas, parte dessas áreas administrativas podem ser complementadas, ou substituídas por
serviços de comercialização, financiamento e de assistência técnica prestados por elas.
Das novas gerações que decidirem se dedicar a atividades na agricultura será exigido, cada vez
mais, conhecimentos, habilidades e atitudes compatíveis com um mundo em constante transformação
devido, principalmente, aos avanços das ciências. Além de forte formação inicial, as atualizações serão
requeridas durante toda a vida útil das pessoas do agro. O aumento da longevidade de toda a população
fará com que as necessidades de reciclagem e atualizações tecnológicas se transformem em processos
rotineiros para o treinamento dos recursos humanos do setor.
Se a sociedade brasileira compreender bem o papel que sua agricultura tem desempenhado e,
acima de tudo, se a nação garantir o respeito a suas instituições – respeito às leis, aos contratos, à
propriedade e à liberdade de empreender – ela certamente continuará a desempenhar importante papel

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na produção eficiente e competitiva de alimentos, fibras e energias renováveis para seus habitantes e
para parte importante da população mundial.
Além disso, é preciso assegurar que informações falsas não prejudiquem o apoio da sociedade
brasileira para o desenvolvimento sustentável do agronegócio como um todo. Às vezes, informações
estatísticas equivocadas, propaladas até por autoridades governamentais8, por exemplo, de que a
agricultura familiar é responsável pela produção de 70% dos alimentos consumidos pelos brasileiros9,
só levam a divisionismos ou ideologismos que não contribuem para que todos os empreendimentos
rurais se desenvolvam em sua plenitude, sejam eles conduzidos por microempreendedores, sejam por
pequenos, médios ou grandes empreendedores. A pequena propriedade rural existente em número tão
expressivo no Brasil (e conta com o apoio da sociedade em geral), que não precisa, como bem lembra
Hoffmann (2014) de falsidades para justificar políticas públicas que assegurem sua existência ou lhes
ajude em suas competências concorrenciais. Certamente, todos os bem-intencionados concordam que
cabe aos governos desenhar e implantar políticas públicas que assegurem a viabilidade econômica das
famílias que atualmente vivem nas e das empresas ou propriedades rurais.

CONCLUSÕES
As exigências que continuamente são e continuarão sendo feitas à agricultura do Brasil e do mundo
exigem constante capacidade de adaptação e incorporação de novas tecnologias, devido aos novos
conhecimentos que as ciências estão produzindo. Estes continuarão surgindo em ritmos cada vez mais
acelerados, e as consequentes novas tecnologias terão de ser incorporadas pelas unidades produtivas
do agro. Isso exige recursos humanos mais bem formados e capazes de se manterem atualizados com
o surgimento crescente de novas tecnologias. Os jovens que escolherem se dedicar à agricultura terão,
consequentemente, de investir pesadamente no desenvolvimento de suas competências, especialmente
no aprimoramento de seus conhecimentos, habilidades e atitudes empresariais.
Mesmo estigmatizados pela sociedade urbana, que muitas vezes no passado os taxava de
latifundiários, exploradores, atrasados e dependentes de subsídios governamentais, os empresários
da agricultura comercial brasileira conseguiram incorporar as modernas tecnologias geradas por
instituições de pesquisa – universidades, instituições públicas federais e estaduais, instituições privadas
e estrangeiras – que desenvolveram novos processos baseados em conhecimentos científicos. Dessa
forma, a agricultura comercial brasileira tornou-se integrada às cadeias internacionais de seus produtos
de forma bastante competitiva, e só recentemente está sendo reconhecida a contribuição dos empresários
do agronegócio em geral e da agricultura em particular para o bom funcionamento da sociedade e da
economia do Brasil.
O Brasil é um país muito bem dotado de recursos naturais e poderá ajudar a atender a demanda
da população mundial por alimentos, fibras e energias renováveis. Os bens de consumo produzidos
pela agricultura no país são, e continuarão a ser, no futuro, imprescindíveis para a satisfação daquelas

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exigências da humanidade, e terão ainda de ser produzidos de forma sustentável, como o país está
fazendo com sua agricultura tropical.
Os jovens que se dispuserem a perseguir seus sonhos de empreender nas atividades do agro
poderão encontrar a plena realização de seus anseios em suas atividades. Como o desenvolvimento do
conhecimento humano está apontando claramente, dos empreendedores da agricultura e dos demais
setores da economia serão exigidos muitos conhecimentos, habilidades e atitudes que garantam sua
competência competitiva, que permitirá a esses rapazes e moças sentirem o merecido orgulho, derivado
do importante papel social que estarão desempenhando.

BIBLIOGRAFIA
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em: www.fgv.br/professor/epge. Acesso em: 3 maio 2019.

NOTAS EXPLICATIVAS
1 De acordo com a Análise Mercado de Trabalho realizada pelo Cepea em 2018, “No acumulado do ano, a
participação do setor agro no total de ocupados no Brasil foi de 19,82%, ligeiramente inferior aos 20,11%
observados em 2017”. (CEPEA, 2018).
2 Dado disponível em: https://www3.bcb.gov.br/sgspub/localizarseries/localizarSeries.do?method=preparar
TelaLocalizarSeries. Acesso em: 27 jan. 2019.
3 Existe economia de escala em um processo produtivo quando as firmas maiores conseguem produzir a
custos unitários mais baixos que as firmas menores.
4 Como a agricultura recebe 5% do PIB e têm 15% da população, isso dá uma relação %PIB/%População =
0,33; os demais setores da economia recebem 95% do PIB e tem 85% da população ativa do país com uma
correspondente relação equivalente a 95/85 = 1,12, que é 3,4 vezes maior que a da agricultura.
5 Nos EUA, a participação da soma da mão de obra empregada na agricultura, nas florestas e na pesca no
total da mão de obra ativa do país é de cerca de 0,7%. (CIA, 2019).

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6 Grande número de produtores; facilidade de entrada de novos produtores; produtos homogêneos ou


não diferenciados; inexistência de economias de escala; fatores de produção homogêneos e disponíveis
para todos; disponibilidades tecnológicas iguais para todos e informações de mercado distribuídas
homogeneamente estão entre as principais características dos mercados perfeitos.
7 Sobre esse assunto, ver COLEMAN, J. S. Foundations of social theory. Cambridge: The Belknap Press
of Harvard University Press, 1989.; PERES, F. C. Capital social: a nova estrela do crescimento econômico.
Preços Agrícolas, Piracicaba, maio 2000.
8 Em 27/07/2011, o Portal Brasil [1] publicou a notícia intitulada ‘Agricultura familiar produz 70% de
alimentos do País, mas ainda sofre na comercialização’. Afirma-se no texto que: “Apesar de ser responsável
pela produção de 70% dos alimentos do País, a agricultura familiar enfrenta desafios na comercialização
e organização de sua produção. A avaliação é do secretário de Agricultura Familiar do Ministério do
Desenvolvimento Agrário, Laudemir Müller [...] O valor da porcentagem é repetido em notícia do Portal
Planalto [2] de 05/06/2012, com o título ‘Agricultura familiar já produz 70% dos alimentos consumidos no
mercado interno do País, informa Pepe Vargas’. Na ocasião, Pepe Vargas era o ministro do Desenvolvimento
Agrário”. (HOFFMANN, 2014).
9 Não é necessário repetir os argumentos e evidências mostradas por dois trabalhos já publicados, um por
Peres (2006) e outro por Hoffman (2014), que mostram, definitivamente, que aquele segmento produz,
no máximo, aproximadamente 23% dos alimentos consumidos no país.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
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ESTADO E PODER

Angelo José da Silva

Vamos começar a contar um pouco da história do Estado, do meu jeito, porque cada um de nós
conta a mesma história com o seu próprio jeito. É por isso que o João Antonio assina diferente do João
José: porque cada um tem o seu jeito de ver, de falar, de entender e de explicar o que acontece à sua
volta, mesmo sendo Joões.
Podemos não saber quem inventou o Estado, nem como fez, nem para quê. Mas é muito difícil
que não percebamos o Estado fazendo coisas, obrigando-nos a fazer outras. Por que chegamos a esse
estado de coisas?
Estamos falando da multa no trânsito, do salário pago ao funcionário público, dos impostos, das
escolas, da polícia, dos hospitais, das leis, da burocracia e de muitas, muitas, muitas outras coisas que
são feitas apenas pelo Estado, também pelo Estado (por exemplo, escola pública e escola privada) e
outras tantas que o Estado nos convence, nos empurra ou nos obriga a fazer.
Antes de continuarmos a falar sobre essa coisa do Estado, vamos sair pelo caminho ao lado, para
passarmos em frente ao poder, que é aquilo que o Estado tem mais do que qualquer um de nós e,
talvez, mais do que todos nós juntos.
Começando pelo fim, por que fazemos determinadas coisas para o Estado que não faríamos nem
para nossos filhos? Porque o Estado tem poder. Vocês podem dizer: bom, nossos filhos também têm poder.
Certo, mas o poder do Estado é diferente, tão diferente que vamos começar a escrevê-lo com maiúscula.
O Poder do Estado é diferente do poder que nós temos. Talvez para chegarmos mais perto daquilo
que podemos chamar de Poder seja mais interessante lembrarmos da palavra autoridade. O prefeito
tem autoridade, o sargento também.
Então, podemos começar a entender o significado de Poder do Estado, lembrando que a origem
dessa autoridade vem desse mesmo Poder do Estado, que dá ao cidadão que ocupa o cargo essa

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autoridade. Assim, todos nós sabemos que o prefeito é uma autoridade e que se não pagarmos o
Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), vamos pagar multa, ou seja, seremos penalizados.
Quando a maioria das pessoas não cumpre o que nos é ordenado pelo Estado por intermédio das
pessoas que ocupam os postos de autoridade (prefeitos, soldados, governadores, professores e muitos
outros), dizemos que o Estado está em crise, que há uma crise de legitimidade, de autoridade, de poder.
Só que esta já é uma outra história...
Para continuarmos pensando o Estado e o Poder e para entendermos melhor a origem disso tudo,
vamos voltar no tempo. No feudalismo, havia um tipo de Estado controlado por um rei. Talvez esse
tenha sido o mais antigo Estado a parecer-se com os Estados atuais. Um rei francês disse uma frase que
ficou célebre: ‘o Estado sou eu’. Claro que ele falou em francês.
Qual o significado dessa frase para a nossa história? Que aquele tipo de Estado tinha um dono,
tinha apenas um indivíduo que mandava em tudo e em todos. Mas aquele estado de coisas mudou.
Por que mudou? Em primeiro lugar porque as coisas mudam mesmo. Independentemente da nossa
vontade ou, talvez, dependendo dela.
Outro motivo para as mudanças daquele Estado de um dono só para um Estado de alguns donos foi
o surgimento e o crescimento de um tipo de pessoa que não estava disposto a aceitar as coisas como elas
eram. Refiro-me à burguesia1. Ela estava crescendo em tamanho, em riquezas, em poder e em vontades.
Que época era aquela? É difícil de precisar. É como responder à pergunta: quando deixamos de
ser jovens? Com dezoito, vinte e cinco, quarenta e sete anos e meio de idade... Podemos dizer que por
volta do século XVIII, na Europa, as coisas já não eram tão iguais ao século XVII. Bem, no XIX então,
elas estavam bem diferentes.
O que tinha mudado? Muito, mas vamos ao que nos interessa. Basicamente, a mudança da
maneira pela qual as pessoas produziam as mercadorias. Como isso havia mudado, uma série de outras
coisas mudou junto. Hoje em dia vivemos reclamando dos impostos. Naquela época muitos impostos
eram cobrados pelos reis para sustentá-los e à sua corte.
O comércio daquele período tinha se alterado muito. As pessoas que ganhavam dinheiro com ele
não queriam deixar a maior parte de seu lucro com o rei, que nem trabalhava. Não queriam, também,
ficar pagando pedágio a cada feudo que eles tinham que atravessar para vender suas coisas. Aquela
forma de organizar a vida das pessoas era uma gravata apertando o pescoço dos futuros ricos, donos de
fábricas, de bancos e outras coisas. Para que os negócios pudessem continuar a crescer, era necessário
cortar todos aqueles laços que amarravam as pessoas.
Desculpem-nos o ritmo ligeiro. Caso resolvamos entrar em detalhes, essa história vai ficar muito
comprida. Voltando ao ponto, foi naquele período que algumas revoluções ocorreram na Europa.
É claro que não foi só por dinheiro. Muitas ideias novas, de liberdade, igualdade e fraternidade,
povoavam as cabeças das pessoas, fossem elas ricas ou pobres. O problema é que ninguém podia prever
os resultados. E, no fim, quem saiu ganhando com a história foram os de sempre. Eles fizeram um
Estado de acordo com os seus interesses. Quando as pessoas se deram conta, já estava tudo resolvido.
Para os filósofos que pensaram sobre as origens do Estado, de como ele deveria ser, podemos afirmar
que existe um certo acordo sobre como esse Estado surgiu: um acordo entre os indivíduos está nas bases

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da origem do Estado moderno. Foi o que eles chamaram de contrato. Um grande número de pensadores
formulou interpretações sobre o Estado, suas origens e seus objetivos. Vou tentar apresentar as principais
ideias daqueles que ganharam importância ao longo do tempo. É o que chamamos de autores clássicos.
O primeiro deles é Nicolau Maquiavel. Ele é considerado o fundador da Ciência Política, que
basicamente estuda o Poder e o Estado. Esse autor pensou o processo de formação do Estado. Procurou
separar a moral e a religião de suas ideias. O significado desta separação é o pensamento sobre como as
coisas realmente são, e não como elas deveriam ser. É a moral, e não a política, que se ocupa da formulação
de valores, de como as coisas deveriam ser. No sentido apontado acima, Maquiavel identificou certas
características, técnicas e normas próprias à política e ao Estado. Esta última, portanto, é entendida
como a arte do possível e não a do desejável. A política, por meio do Estado, realiza apenas o que pode
ser efetivado e não aquilo que seria bom.
Dois pensadores ingleses, Hobbes e Locke, formularam teorias a respeito do Estado moderno.
Hobbes afirmava que “o homem é o lobo do homem”, ou seja, caso não haja uma instituição acima dos
homens, estes se destruirão. O Estado surge como uma espécie de concretização de um contrato entre
os indivíduos para a própria manutenção deles. Esse Estado pensado por Hobbes foi o Estado absoluto,
com Poder absoluto. Os indivíduos aceitavam como legítima essa força do Estado porque a alternativa
era a destruição do Homem pelo Homem.
Locke acrescenta um outro elemento a essas ideias de Hobbes: a liberdade. Por que os homens
fazem o contrato que funda o Estado? Por que os Homens aceitam perder sua liberdade para submeter-
-se ao Estado? A resposta que Locke nos dá é que os Homens aceitam essa privação de sua plena
liberdade para garantir sua propriedade. O Estado vai controlar e limitar os desejos dos outros como
forma de garantir a propriedade para todos (pelo menos todos os proprietários...). Mais uma vez,
portanto, o Estado origina-se de um contrato.
Nunca é demais lembrar que esses pensadores utilizam uma imagem, uma figura para pensar o
Estado. Suas teorias funcionam como um modelo explicativo, uma vez que não é possível voltar para
o dia da fundação do Estado, porque esse dia nunca ocorreu de fato. Foi um processo lento e gradual
de transformações que fizeram o mundo como ele é hoje, processo este que continua a marchar. É o
que podemos chamar de História.
Voltando à história das teorias sobre o Estado, depois de termos passado pelos italianos e bretões, vamos
visitar os franceses. Rousseau foi um dos mais radicais pensadores franceses do tema Estado. Até Lênin, um
dos principais líderes da revolução comunista na Rússia, foi buscar em Rousseau inspiração para os sovietes.
Qual era a formulação desse pensador? Rousseau considerava que o único órgão soberano era
a Assembleia. Em verdade, o Poder do Estado materializava-se de forma legítima na Assembleia, no
Parlamento. A igualdade era fundamental para ele. Assim, não havia liberdade sem igualdade. Enquanto
os outros pensavam na propriedade, Rousseau concentrava-se na igualdade: “Todos os Homens nascem
livres e iguais perante a Lei”.
Com o fim da Revolução Francesa, o resultado dessas visões chamadas de liberais (liberdade =
= propriedade) e democráticas (liberdade = igualdade) acabaram por se fundir, na Europa do século
XIX, em um tipo de Estado que garantia a propriedade e, dentro de certos limites, a igualdade jurídica.

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Entram em cena, agora, os alemães, mais especificamente Karl Marx e Max Weber. Embora Weber
seja posterior a Marx, começaremos por ele. A formulação weberiana procura tratar o Estado de uma
forma ‘técnica’. Queremos dizer com isso que Weber analisa o Estado, como ele mesmo afirmava,
sine ira et studio, sem ira nem paixão. Essa análise fria nos informa que o Estado é um aparelho
composto por uma série de instituições. Esse conjunto de instituições atua sobre um determinado
território, abrangendo um povo específico. As pessoas que fazem essa máquina funcionar, os famosos
funcionários, são também conhecidas como burocracia2.
Ainda conforme as ideias de Max Weber, o Estado detém o monopólio legítimo da violência
física. Em outras palavras, o Estado, por meio da polícia, por exemplo, pode bater sem ferir nenhuma
lei, muito pelo contrário. O Estado bate para fazer cumprir a Lei.
O outro alemão com o qual vamos tratar é Karl Marx. Segundo ele, o Estado é algo como o
produto das relações sociais, e não aquilo que funda a sociedade. Para aqueles que veem o Estado como
um contrato, a sociedade é o resultado desse contrato. É o Estado que funda a sociedade.
Marx inverte essa lógica. Para ele, a sociedade foi se tornando cada vez mais complexa, com a
propriedade, as classes sociais e os conflitos entre elas. O Estado surge no momento em que surge a
propriedade e tem por função garantir aos proprietários o usufruto dela. Para cada tipo de organização
social, temos um tipo de Estado correspondente. Em uma sociedade baseada na escravidão, o Estado
assume as formas necessárias para garantir essa sociedade. No capitalismo, o Estado é articulado da
melhor maneira para garantir o bom funcionamento dessa forma de organização social.
Na atualidade identifica-se uma separação entre o que é público e o que é privado. Podemos dizer,
em outras palavras, que temos o Estado, o público, de um lado, e a sociedade civil, o privado, de outro.
A relação entre essas duas partes, Estado e sociedade civil, é um dos principais problemas
analisados nas discussões sobre Estado, democracia, cidadania etc. Assim, na discussão sobre o Estado
contemporâneo, a participação da sociedade no Estado, ou melhor, aquilo que podemos chamar de
questão social, para usar uma ‘linguagem sindical’, aparece com significativo destaque.
Como essa questão social foi tratada ao longo da construção do Estado capitalista? Na Europa,
inicialmente, esse problema assumiu um contorno assistencial. Reforma social ou, numa linguagem
atual, previdência social.
O primeiro movimento do Estado nesse sentido foi na Inglaterra, em 1601, com a Poor Law, a Lei
dos Pobres. O objetivo era acabar com a pobreza. O resultado foi a quase extinção dos pobres, uma vez
que as comunidades tinham que pagar uma taxa para constituir um fundo de ajuda. Essas comunidades
descobriram que era mais fácil expulsar os pobres existentes e impedir que novos entrassem do que
pagar as taxas para fundo assistencial.
Ao longo dos séculos, a Inglaterra viu seu sistema assistencial ser aperfeiçoado. Ao contrário da ação
estatal existir exclusivamente como repressiva, aquela que mantém a ordem, impôs-se para os legisladores,
ao invés disso, a necessidade de uma série de medidas que pretendiam atenuar as diferenças sociais.
Uma espécie de ‘tecnologia social’ nasceu dessa realidade adversa aos mais pobres. Tratou- se de
vasculhar as causas das diferenças sociais, econômicas e de formular proposições capazes de remediar
as agruras dos despossuídos.

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A Inglaterra foi, assim, um dos primeiros países a elaborar uma legislação fabril que visava proteger
os trabalhadores da exploração insuportável feita pelos capitães da indústria. Era necessário manter viva
a galinha dos ovos de ouro.
Essa ‘Consolidação das Leis do Trabalho’ (CLT) à inglesa serviu de modelo para os demais países
que se industrializaram depois da Inglaterra. Se a Inglaterra tomou a dianteira na elaboração de leis que
garantiam certos direitos aos trabalhadores, foi a Alemanha o país pioneiro na produção de um conjunto
de reformas sociais que assumiu o desenho daquilo que podemos chamar, com as palavras de hoje, de um
sistema articulado de previdência social.
Encontramos, portanto, nos últimos anos do século XIX, dois países europeus com dois modelos
de legislação social que trouxeram para o interior do Estado uma demanda da sociedade. As leis
inglesas, reguladoras da atividade fabril, assim como os programas alemães de seguro obrigatório contra
a doença, a velhice e a invalidez produziram imitadores em quase todo o mundo.
Essa legislação foi o resultado dos conflitos políticos entre o Estado a sociedade civil. Caso
utilizemos uma fala marxista, a ‘luta de classes’3 explica esse resultado como o produto dessa luta. O
Estado foi obrigado a criar certas medidas reguladoras para, ao entregar os anéis, não perder os dedos.
Em meados do século XX, verificou-se o desenvolvimento de um tipo de Estado, na Europa e nos
Estados Unidos, chamado de welfare state, ou Estado do bem-estar social. Esse Estado foi o responsável
pelo seguro-desemprego, por aposentadoria integral, por saúde e educação gratuitos e públicos etc.
Esse tipo de Estado, contudo, demandava financiamento. Para se pagar, por exemplo, as
aposentadorias, um volume cada vez maior de recursos tornava-se necessário ano a ano. Assim, as políticas
fiscais e tributárias passaram a ganhar importância na análise do Estado. Como é possível continuar
pagando os benefícios, se o número de beneficiados aumenta em relação ao número de contribuintes?
A tensão que dilacera o Estado nos dias de hoje é o atendimento das demandas da assim chamada
sociedade civil e os limites da arrecadação. E, se não bastasse esse problema, o Estado ainda tem que
manter o capitalismo.
Principalmente entre os autores marxistas, na atualidade, o Estado cumpre quatro funções
básicas: criação da infraestrutura para a produção; manutenção da ordem e aplicação das
leis; regulamentação do conflito capital e trabalho e garantia da inserção do capital nacional no
mercado mundial.
Não é pouca coisa. E, além disso, os movimentos sociais ganharam força a partir dos anos sessenta.
Aquele Estado do bem-estar social começou a entrar em crise e os cidadãos começaram, cada vez mais,
a organizar-se para manter e ampliar seus direitos.
Não pretendemos transformar o Estado em vítima das demandas sociais. Consideramos
importante, contudo, ressaltar o tamanho do problema que os políticos enfrentam para equacionar as
demandas cada vez maiores e as limitações para sua ação no Estado cada vez mais fortes. Do ponto de
vista da população, contudo, não cabe aumentar ou diminuir o trabalho dos políticos. Cabe apenas
tentar ampliar cada vez mais as conquistas.
O Poder do Estado não é absoluto. Nem é a força da sociedade civil. Cabe a nós, indivíduos, cada
vez mais, pensarmos as maneiras mais eficientes de exercer nossa cidadania.

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Maquiavélicas
(retiradas de O Príncipe)
Quando se conquista um Estado acostumado a viver em liberdade, e sob suas próprias leis, há três
modos de mantê-lo: o primeiro consiste em arruiná-lo; o segundo, em nele residir; o terceiro, em
permitir-lhe continuar vivendo com suas próprias leis, impondo-lhe um tributo e instituindo um
governo composto de poucas pessoas do lugar, que sejam amigas. (p. 20)
Chegamos agora ao caso do cidadão que se torna soberano não por meio do crime, ou de violência
intolerável, mas pelo favor dos seus concidadãos: é o que se poderia chamar de governo civil. Chegar
a essa posição dependerá não inteiramente do valor ou da sorte, mas da astúcia assistida pela sorte.
Chega-se a ela com o apoio da opinião do povo ou da aristocracia. Em todas as cidades se pode
encontrar esses dois partidos antagônicos, que nascem do desejo popular de evitar a opressão dos
poderosos, e da tendência destes últimos para comandar e oprimir o povo. Desses dois interesses que
se opõem surge uma de três consequências: o governo absoluto, a liberdade ou a desordem. (p. 31)
Muitos já conceberam repúblicas e monarquias jamais vistas, e que nunca existiram na realidade; de
fato, a maneira como vivemos é tão diferente daquela como deveríamos viver que quem despreza o
que se faz pelo que deveria ser feito aprenderá a provocar sua própria ruína, e não a defender-se. Quem
quiser praticar sempre a bondade em tudo o que faz está condenado a penar, entre tantos que não
são bons. É necessário, portanto, que o príncipe que deseja manter-se aprenda a agir sem bondade,
faculdade que usará ou não, em cada caso, conforme seja necessário. (p. 44)
Chegamos assim à questão do saber se é melhor ser amado ou temido. A resposta é que é preciso ser
ao mesmo tempo amado e temido mas que, como isso é difícil, é muito mais seguro ser temido, se
for preciso escolher. De fato, pode-se dizer dos homens, de modo geral, que são ingratos, volúveis,
dissimulados; procuram escapar dos perigos e são ávidos de vantagens; se o príncipe os beneficia, estão
inteiramente do seu lado; como já observei, quando a necessidade é remota, oferecem seu próprio
sangue, o patrimônio, sua vida e os filhos; quando ela é iminente, revoltam-se. Estará perdido o
príncipe que confiar somente nas suas palavras, sem fazer outros preparativos, porque a amizade
conquistada pela compra, e não pela grandeza e nobreza de espírito, não é segura – não se pode contar
com ela. Os homens têm menos escrúpulos em ofender quem se faz amar do que quem se faz temer,
pois o amor é mantido por uma corrente de obrigações que se rompe quando deixa de ser necessária,
já que os homens são egoístas; mas o temor é mantido pelo medo da punição, que nunca falha. (p. 47)
A escolha dos ministros por um príncipe não tem pouca importância: os ministros serão bons ou
maus de acordo com a prudência que o príncipe demonstrar. A primeira impressão que se tem de um
governante, e da sua inteligência, é dada pelos homens que o cercam. Quando estes são competentes
e leais, pode-se sempre considerar o príncipe sábio, pois foi capaz de reconhecer a capacidade e de
inspirar fidelidade. Quando a situação é oposta, pode-se sempre fazer dele juízo desfavorável, porque
seu primeiro erro terá sido cometido ao escolher os assessores. (p. 62)

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NOTAS EXPLICATIVAS
1 Burguesia: classe social composta pelos burgueses, que eram os habitantes das cidades medievais, chamadas
à época de burgos. O sentido atual do termo deve a Karl Marx a maior parte de sua formação. Segundo
esse autor, a sociedade atual divide-se em várias classes sociais. As duas mais importantes são o operariado
e a burguesia. A primeira delas não tem posses e para sobreviver precisa vender seu trabalho para a outra
classe, a burguesia, a dona dos meios de produção: as fábricas, os bancos, as terras etc. Assim, podemos
concluir que, para Marx, o que coloca um indivíduo em uma classe ou outra não é o que nós pensamos
desse indivíduo e tampouco o que ele pensa de si mesmo, mas o lugar em que ele está no interior do
sistema produtivo, ou seja, a posse ou a falta dela em relação aos bens, o capital, que produz outros bens,
as mercadorias.
2 Burocracia: normalmente usamos a burocracia para atacar alguém ou alguma instituição ou, ainda, para
desculparmo-nos por algo que devíamos fazer e não fizemos. Frases como ‘é muita burocracia’, ‘tudo para
com a burocracia’, ‘é um burocrata mesmo’ ou ‘não entendo nada de burocracia’, ‘era tanta burocracia que
eu não fiz’ ilustram essa ideia corrente sobre a burocracia. Vamos apresentar aqui, resumidamente, uma
outra visão a respeito desse tema, inspirando-nos em Max Weber, um dos mais reconhecidos estudiosos da
burocracia. O conjunto de funcionários que trabalha para o Estado, exercendo funções administrativas e
organizados por um conjunto de normas, regras, regimentos que definem funções e dão uma rotina para o
trabalho constitui a burocracia. Esse corpo de funcionários trabalha norteado pela racionalidade, ou seja,
as ações são determinadas pelas normas, e não pelas emoções, pelos interesses pessoais. Agindo dessa forma,
racional e imparcialmente, a burocracia faz funcionar de maneira eficiente o Estado contemporâneo. É
claro que as coisas não são iguais as definições, mas isso já é uma outra história.
3 Luta de classes: essa expressão faz parte do conjunto de ideias desenvolvidas por Karl Marx sobre a História.
Segundo ele, desde a Antiguidade, nossa História tem sido moldada pela luta de classes. Essa luta nada
mais é que o confronto entre as classes que são proprietárias e as que não são. Muito raramente as classes
dominantes lutam entre elas. Ocasionalmente as classes dominadas o fazem. E, sempre, as dominantes e
dominadas (ou proprietárias e não proprietárias) estão em luta entre si para inverter a situação, no caso
das não proprietárias ou para manter as coisas como estão, no caso das proprietárias. O que está em jogo é
o poder, ou seja, a capacidade de uma das classes fazer com que a outra submeta- se à sua vontade. Ainda
segundo Marx, é essa luta e os seus resultados que fazem com que as coisas modifiquem-se à nossa volta.
Por isso ele escreveu que a história de todas as sociedades existentes até os nossos dias tem sido a história
das lutas de classes.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
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OS DIREITOS HUMANOS NA HISTÓRIA

Adriana Mocelim
Etiane Caloy Bovkalovski

INTRODUÇÃO
Os Direitos Humanos (com esse nome) passaram a fazer parte da agenda internacional dos países
há poucas décadas, porém, quando voltamos nossos olhos para o passado, percebemos que sua busca
vem de longa data, mesmo que tenha recebido outros nomes ao longo dos séculos, como Direitos
Naturais ou Direitos Fundamentais.
Voltar ao passado é importante porque a história nos mostra a presença de conflitos nas mais
diversas sociedades, desde os tempos mais remotos, bem como a necessidade de grupos ou indivíduos
serem protegidos por determinadas leis ou lutarem para que existam leis que os protejam; o segundo
caso, normalmente, é o mais comum: a conquista dos Direitos Humanos por meio da luta social.
Por haver um caráter histórico na luta pelos Direitos Humanos é que vamos, num primeiro
momento, conhecer um pouco de sua história ao longo do tempo com o objetivo de entender como
eles chegaram a se constituir em três gerações até o final do século XX.
Em um segundo momento, vamos estudar brevemente a trajetória histórica dos Direitos Humanos
no Brasil.

HISTÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS


Quando refletimos sobre as chamadas ‘sociedades primitivas’ e observamos sua transformação ao
longo do tempo, podemos identificar que, ao longo dos séculos e lentamente, esses grupos começaram

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a lidar com a presença do Estado como uma instituição com o objetivo de organizar a sociedade. E por
que isso foi necessário? Porque os grupos se tornaram maiores em termos populacionais e porque se
tornaram sedentários, ou seja, houve uma busca por regiões do globo que possibilitassem a sobrevivência
e esses lugares eram próximos a rios; temos o exemplo da Mesopotâmia, do Egito, dos Maias, Incas e
Astecas na América e muitos outros.
Porém, esse crescimento e a sedentarização de inúmeros povos trouxeram consequências: leis
e normas sociais, escritas ou não, passaram a integrar essas sociedades mais complexas porque era e
é importante organizar a convivência social dos indivíduos, definir o papel dos sujeitos no grupo,
bem como o que é aceitável ou não em termos morais e assim por diante. Portanto, há séculos temos
exemplos que evidenciam como o Estado tratava seu súdito ou cidadão e como percebia seus direitos e
deveres perante essa instituição. Passaremos a tratar de alguns desses exemplos na sequência.

LEIS E DEVERES NA ANTIGUIDADE


Por volta do século XVIII a.C., na Mesopotâmia (atual Iraque), teve origem o Código de Hamurábi
(de influência suméria) na primeira dinastia babilônica. Uma das prerrogativas do Código era a Lei
de Talião, ou seja, o autor de um crime deveria ser punido da mesma maneira que o crime por ele
cometido; era a ideia do ‘olho por olho, dente por dente’. Embora essa concepção pareça brutal para
os dias de hoje, é preciso entender o contexto histórico no qual leis assim eram toleráveis: não existia a
ideia do direito à vida ou mesmo a noção do outro como semelhante com direitos a serem respeitados
(como veremos adiante, isso começou a mudar na Idade Moderna europeia e, principalmente após a
Revolução Francesa de 1789). As relações eram extremamente violentas e, na maior parte das vezes, o
governante agia de forma autoritária. O Código de Hamurábi tinha 281 leis que procuravam regular
o cotidiano da sociedade e tratavam de falso testemunho, roubo, estupro, família, escravos, ajuda a
fugitivos. De acordo com Perry,

Embora as mulheres tivessem papel secundário em relação aos homens, o código mostra que houve
esforços no sentido de protegê-las, e às crianças, contra os abusos. Estabelecendo a pena de morte para
o adultério, ele buscava preservar a vida familiar. As punições eram geralmente rigorosas [...]. Crimes
como violação de domicílio, rapto de crianças, ajuda a escravos fugitivos, receptação de mercadorias
roubadas e falso testemunho eram punidos com a morte, embora se levassem em conta circunstâncias
atenuantes. O código expressava também as diferenças de classe. Por exemplo, a punição era mais
severa quando se prejudicava um nobre do que quando a vítima era um plebeu. (2002, p. 12-13).

Também a corrupção de funcionários do governo era severamente punida.


O próprio rei Hamurábi, no Epílogo do Código, escreve sobre seu objetivo: “para que o forte não
prejudique o mais fraco, a fim de proteger as viúvas e os órfãos” (2019, p. 23) e “para resolver todas as
disputas e sanar quaisquer ofensas”. (2019, p. 1).

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Como outro exemplo de corpo de leis para regular a sociedade podemos citar a Torá (contemporânea
ao Código de Hamurábi), livro sagrado dos judeus, é composto pelos livros de Gênesis, Êxodo,
Levítico, Números e Deuteronômio. Seu conteúdo é formado por mandamentos, ordens e proibições
que regulam o relacionamento do homem com Deus e com o próximo. Dentre as recomendações
do Decálogo encontramos: não matar, não roubar, não furtar, não dizer falso testemunho. Essas e
diversas orientações regulam as relações na sociedade civil e reconhecem a necessidade de mediar as
relações entre os indivíduos e grupos. De acordo com Perry, “Libertos da escravidão por um Deus
justo e compassivo, os israelitas tinham a responsabilidade moral de sobrepujar a injustiça e proteger
os pobres, os fracos e os oprimidos”. (2002, p. 34).
Nessa linha da legalidade e do uso da religião como orientadora e manual de conduta também é
possível considerar o Código de Manu, de origem hindu e redigido em sânscrito, possivelmente entre
200 a.C. e 200 d.C., que estabelece o sistema de castas da sociedade. No código constam diversos
valores como verdade, justiça e respeito sem perder de vista a divisão entre as castas e a relação de
superioridade/inferioridade entre elas.

CIDADANIA NA ANTIGUIDADE CLÁSSICA


Tendo em vista a herança greco-romana para o mundo ocidental, vale ressaltar algumas características
sobre o conceito de cidadania advindo dos gregos e romanos que podemos identificar como uma influência
no caminho percorrido pelos Direitos Humanos alguns séculos depois e que, evidentemente, foi muito
ampliado a partir do século XIX. Na Grécia antiga, ser cidadão era um privilégio destinado a poucos e
estava atrelado à lógica da cidade-Estado; as leis excluíam estrangeiros, povos submetidos, mulheres e
escravos, sendo que estes estavam sujeitos às imposições particulares de seus senhores. Já as mulheres viviam
à margem da sociedade, tendo seus direitos bastante limitados ao espaço doméstico e pela dominação
masculina. Na pólis grega o homem (cidadão) se realizava; de acordo com Quintão (2001) ela tornava os
homens cidadãos iguais, e perder o espaço de participação nesse espaço público significava ficar restrito à
esfera privada juntamente às mulheres, aos escravos e aos filhos nascidos de um casamento, ou seja, com
os não cidadãos. Segundo Cortina, ser um cidadão grego significava ser “membro de uma comunidade
política” (2005, p. 34), ou seja, a cidadania estava ligada ao espaço público e não aos assuntos privados.
Usamos aqui o termo ‘cidadania’ pela primeira vez porque essa expressão, historicamente, nasce com os
gregos e no futuro estará ligada ao nascimento dos Direitos Humanos.
Já em relação à cidadania romana percebemos um quadro um pouco diferente: por exemplo, a
participação das mulheres era mais ampla, podendo elas assistir aos espetáculos e jogos, participar de
banquetes e também ser retratadas nas artes. Em relação às classes sociais, a sociedade dividia-se, grosso
modo, entre patrícios e plebeus, sendo que os primeiros tinham direitos civis, políticos e religiosos. Os
plebeus, mesmo sendo homens livres, não eram contemplados pela cidadania, o que gerou inúmeros
conflitos na sociedade romana. Lentamente foram feitas reformas que ampliaram a participação deles,

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porém, somente com a promulgação da Lei das Doze Tábuas (nos anos de 451 e 450 a.C.) assegurou-
-se aos plebeus uma participação política mais expressiva. No final do Império Romano já era possível
vislumbrar noções daquilo que seria a cidadania moderna.

DEVERES NA SOCIEDADE MEDIEVAL


Com o declínio do Império Romano, outros tempos foram inaugurados na Europa, ocorrendo
o declínio do uso da mão de obra escrava e a lenta constituição do sistema de servidão: os servos
tinham acesso à terra, mas eram obrigados a reverter parte da produção agrícola para os senhores
feudais e, ao mesmo tempo, trabalhar nas terras dos senhores sem receber qualquer pagamento; tendo
em vista essas profundas transformações, ao longo da Idade Média foram constituídas três classes
principais: dos servos, da nobreza e do clero, além dos homens livres e vilões. Cabia aos senhores
feudais exercer as funções de Estado, bem como elaborar leis, julgar causas, cobrar impostos e mesmo
formar exércitos. Tendo em vista que a riqueza e a participação social estavam ligadas à propriedade da
terra, o campesinato ficava excluído de direitos mais amplos.
Por isso, usar o termo ‘cidadania’ para a Idade Média não é recomendável, pois a rígida sociedade
estamental desse período, distribuída entre relações de suserania e vassalagem, limitava uma discussão
pública de fato (no sentido da polis grega) sobre direitos. Mesmo assim, a despeito da falta de mobilidade
entre as classes sociais e de um ethos social mergulhado no sagrado (com a efetiva participação da Igreja
Católica na construção de normas sociais e comportamentais para os diversos grupos formadores da
sociedade medieval que pretere o caráter mais secular dos direitos em função da mentalidade cristã e do
universo teocrático), a Idade Média recuperou o Direito Romano: “Os intelectuais passaram a insistir,
cada vez mais, na análise racional das evidências e em decisões judiciais baseadas em procedimentos
racionais”. (PERRY, 2002, p. 195). Era a Renascença chegando.

DIREITOS ECONÔMICOS E POLÍTICOS: A IDADE


MODERNA
Diversos fatores, entre eles a decadência do mundo feudal, colocaram a Europa numa rota de
mudança radical a partir do século XVI. Nos séculos XIV e XV os europeus enfrentaram inúmeros
problemas de ordem econômica, política, social e religiosa, a saber: crises na agricultura e escassez
de alimentos; guerras envolvendo Estados como França, Inglaterra e Espanha; revoltas camponesas
e urbanas em busca de melhores salários e disputa por poder político; proliferação da peste negra;
crises na Igreja Católica e as tentativas internas de reformá-la. Todos esses problemas, juntamente à
perspectiva renascentista, alteraram a mentalidade europeia e das diversas classes sociais, principalmente
da burguesia em ascensão, que almejava participação econômica e política na sociedade.

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É possível também falar de uma maior racionalidade com o movimento humanista e de uma
lenta mudança para uma mentalidade antropocêntrica, que não significa descrença, mas uma releitura
do mundo ao redor, incluindo nele o indivíduo como sujeito com direito à liberdade e à dignidade
humana. Mesmo assim, de acordo com Burns,

[...] a época não era absolutamente de igualdade social. Na verdade, a aristocracia, que auferia da terra
a maior parte de seus rendimentos, ocupava ao fim do período uma posição econômica e social mais
elevada do que em seu começo. (2005, p. 421).

As classes mais abastadas não nutriam nenhum sentimento de compaixão ou piedade cristã em
relação ao menos afortunados. Sobre esse quadro ainda citamos Burns:

Conta-se que em 1552, tendo escutado um alarido do lado de fora do palácio, o imperador Carlos V
perguntou quem estava causando a agitação. Ao saber que eram soldados pobres, respondeu: ‘Que
morram’ e comparou-os a centopeias, gafanhotos e besouros que devoram as boas coisas da terra.
Via de regra, a pior sorte estava reservada aos escravos e servos. Com vistas a altos lucros, caçavam-se
negros na costa da África; aprisionados em masmorras, eram depois embarcados para as colônias das
Américas. (2005, p. 422).

Ou seja, era um período de contradições: enquanto as classes mais abastadas ‘corriam’ para
firmar suas conquistas econômicas e almejavam maior participação política, o discurso sobre liberdade
não atingia as classes pobres, os servos e os escravos. Obviamente se corria o risco de esses excluídos
lutarem por direitos, como de fato o fizeram nas Idades Moderna e Contemporânea, o que resultou no
reconhecimento dos Direitos Humanos após a Revolução Francesa. A partir do século XIX essa busca
foi ampliada, ainda que a realidade social fosse adversa.
Fator também muito importante ao longo da Idade Moderna foi a difusão do livro, o que permitiu
maior alfabetização e expansão dos meios de comunicação. Isso levou a uma importante difusão de
ideias que, na Idade Média, seriam facilmente debeladas e proibidas.
Nos Estados de caráter moderno havia a censura, mas efetivá-la, na prática, era muito mais
difícil do que no passado medieval. Os jornais tornaram-se mais rotineiros na sociedade europeia e os
incrementos dados ao mesmo, como a fotografia no início do século XIX, atraíram cada vez mais o
público leitor. Saber e entender o que se passava em outros lugares, alguns deles longínquos, tornou o
mundo menor e mais próximo.
Todas essas mudanças na sociedade europeia não poderiam abrir mão da influência da Reforma
Protestante, uma vez que essa nova perspectiva religiosa também mudou a esfera política e econômica,
principalmente com o calvinismo e o puritanismo. Acumular riqueza material e exigir governantes
justos passou a fazer parte das discussões do Velho Mundo que se espalharam pela América.
Portanto, é preciso refletir sobre a Idade Moderna europeia e americana (devido à Revolução de
1776) como a fase que encaminhou governos e sociedades para a aceitação, não sem conflitos, dos
direitos do homem e do cidadão, declarados na Revolução Francesa de 1789.

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A partir daí nasceram as Gerações dos Direitos Humanos, como veremos a seguir.

DIREITOS HUMANOS: PRIMEIRA GERAÇÃO


A Primeira Geração de Direitos Humanos está relacionada à Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão gerada pela Revolução Francesa de 1789 e à Constituição dos Estados Unidos da América
de 1787. Ela trata dos direitos civis ou individuais. Nessa categoria constam liberdade expressão,
presunção da inocência, inviolabilidade de domicílio, proteção à vida privada, liberdade de locomoção
etc. São direitos sociais, econômicos e culturais.
A Primeira Geração é resultado das lutas sociais pela cidadania e contra o poder absolutista
dos reis. Por isso, dentre os direitos proclamados pela Revolução Francesa – ‘liberdade, igualdade e
fraternidade’ – a Primeira Geração é a da liberdade.

DIREITOS HUMANOS: SEGUNDA GERAÇÃO


A Segunda Geração de Direitos Humanos diz respeito à igualdade e está relacionada à busca pelas
condições materiais de uma sociedade: não basta somente ter liberdade e conseguir limitar o poder
abusivo dos governantes, é necessário que os Estados ofereçam à população saúde, educação, habitação,
transporte, trabalho, lazer etc., por meio de políticas públicas inclusivas. A busca pela igualdade nas
condições materiais e de educação surgiu com a Revolução Russa de 1917 e com o Estado de Bem-
-Estar Social originado após a Primeira Guerra Mundial, principalmente nos países europeus.
Ainda nessa geração (e que consagrou os Direitos Humanos antecipando, inclusive, os direitos da
terceira geração), temos a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948.
Nesse documento internacional foram fixados direitos a homens e mulheres, independentemente de
classe social, raça ou idade.

DIREITOS HUMANOS: TERCEIRA GERAÇÃO


A Terceira Geração de Direitos Humanos diz respeito à fraternidade. Eles foram consagrados após
a década de 1960 e buscam garantir a proteção de grupos sociais vulneráveis e a preservação do meio
ambiente ecologicamente equilibrado.
Tendo em vista as Gerações de Direitos Humanos e a discussão contemporânea sobre a importância
da sustentabilidade desde o final do século XX, percebemos sua importância para garantir que as
gerações futuras possam desfrutar de todas essas buscas sociais, políticas e econômicas que têm sido
alvo de discussão desde a Revolução Francesa.

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Porém, toda luta para a concretização dos Direitos Humanos e a preocupação com uma sociedade
sustentável e que possa continuar existindo no futuro também precisam considerar a questão dos
Direitos Humanos no Brasil, como veremos a seguir.

DIREITOS HUMANOS NO BRASIL


Após caracterizar o processo histórico que possibilitou as atuais discussões sobre os Direitos
Humanos no mundo, resta-nos pensar de que forma tais discussões se encontram refletidas ao longo
da história do Brasil.
A relevância de apresentar, no Programa Agrinho, o contexto histórico brasileiro associado ao
desenvolvimento das discussões em torno dos Direitos Humanos encontra-se no fato de que a educação
é uma forma privilegiada de promover bases seguras para as discussões acerca dos Direitos Humanos se
tornarem realidade, garantindo a existência da plena cidadania a todos os brasileiros.

Brasil Colônia (1500-1822)


Logo nos primeiros contatos entre os portugueses e os indígenas que ocupavam o território
brasileiro podemos perceber uma relação de fascínio por parte dos portugueses, registrado na carta de
Pero Vaz de Caminha para o rei D. Manuel. O escrivão, de acordo com uma percepção advinda do
final da renascença, enfatiza o que era exótico aos olhos dos europeus, deixando entrever um grande
potencial para a região recém-descoberta. Infelizmente, não ficaram registros das impressões que os
indígenas tiveram dos portugueses.
Após esses primeiros contatos, o ‘recém-descoberto’ território brasileiro foi integrado ao Império
Ultramarino Português, refletindo ao longo de sua formação colonial os problemas e mecanismos de
conjunto que agitaram a política imperial lusa. Iniciou-se assim, a partir de 1530, a produção da cana-
-de-açúcar em larga escala, a fim de suprir a demanda pelo açúcar que vinha da Europa. A grande
questão era ‘onde conseguir mão de obra para trabalhar na lavoura?’, e havia os indígenas e os africanos.
Nesse ponto é relevante pensar acerca das justificativas para a escravidão: a suposta ‘guerra justa’
continuava a servir de justificativa para os portugueses, pois a influência do Direito Romano fez a
escravidão ser aceita como natural. Havia ainda a justificativa religiosa, presente nas bulas pontifícias
de 1452, que concediam

ao rei de Portugal o direito de conquista sobre todos os muçulmanos, pagãos e outros infiéis inimigos
de Cristo, e sobre os respectivos reinos, senhorios, territórios e quaisquer possessões e bens, autoriza,
além disso, a reduzir à escravidão esses mouros, pagãos e demais infiéis. (GODINHO, [s.d.], p. 181).

O autor Vitorino Magalhães Godinho aponta direitos e deveres atribuídos aos senhores e escravos.
Estes tinham direito à vida: o senhor não podia matar seu escravo, mesmo sendo ele sua propriedade,

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nem se opor ao fato de o escravo constituir família ou ser batizado – entretanto, na prática havia
uma série de restrições por receio de que tivesse de libertá-los. O senhor tinha ainda a obrigação de
sustentar o escravo e a família dele, ou deixar-lhe livre o tempo necessário para que pudesse conseguir
seu sustento. Transparece nesse caso que “os chamados direitos dos escravos são antes obrigações dos
senhores que aqueles não dispõem dos meios de fazer cumprir e, portanto dependem inteiramente do
‘bel-prazer’ e dos interesses dos últimos”. (GODINHO, [s.d.], p. 186).
Os senhores de escravos sabiam que lidavam com seres humanos e não com coisas ou animais. Um
cavalo pode ser adestrado, já um homem deve ser convencido a se comportar como escravo. O chicote,
o tronco, os ferros, o pelourinho, a concessão de pequenos privilégios e a esperança de um dia obter
uma carta de alforria ajudaram o domínio senhorial no Brasil, alcançado assim por meio da habilidade
do senhor em infundir o medo e o terror no espírito do escravo.
Os homens e mulheres escravizados, por sua vez, lutaram por melhores condições de vida, não
se conformando com a condição em que viviam. O sistema escravista se mantinha graças ao exercício
constante da violência, da parte dos

proprietários a sanha contínua que visava à sujeição e obediência cegas para o trabalho. Da parte
dos escravos, a reação se dava a partir de gradações que iam das pequenas insubordinações diárias e
persistentes até as grandes revoltas e os quilombos. (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 92).

A fuga para os quilombos tinha como objetivo alcançar a liberdade, tarefa difícil em função de que
implicava em viver perseguido dali em diante, não somente como escravo fugitivo, mas como um criminoso.
Foram mais de trezentos anos de escravidão no Brasil, do século XVI até o final do século XIX,
como instituição legal, social e econômica que determinou o estilo de vida do Brasil colônia e império.
Ela representa uma realidade fundamental para se compreender as desigualdades raciais no país e o
aprofundamento da hierarquização dos direitos e da própria definição de humanidade, do humano
associado a direitos e das escalas de valor social da pessoa.
Outro ponto a ressaltar acerca da vida no Brasil colônia está ligado à atenção dispensada às crianças,
meninos e meninas abandonados/órfãos, vinculados à pobreza, escravidão ou aos códigos morais que
não admitiam mães solteiras.
Os padres jesuítas foram os primeiros a se ocupar das crianças indigenas, abandonadas depois
que seus pais eram mortos ou escravizados. Além delas, acolhiam filhos e filhas de colonos, bem como
mestiças pobres. As crianças abandonadas, segundo a lei, deveriam ser acolhidas pela municipalidade,
sendo essa tarefa assumida pela Irmandade da Santa Casa de Misericórdia.
No século XVIII, com o crescimento das cidades, aumentou o número de crianças abandonadas,
superando a assistência que as Câmaras ou Casas de Misericórdia podiam oferecer. Começava então
a prática de abandonar recém-nascidos em locais públicos – eram os expostos, que só podiam contar
com a compaixão das famílias que os encontravam.
No início do século XVIII a Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro adotou o sistema da
‘roda dos expostos’, já utilizado na Europa desde a Idade Média e que viria a ser empregado em outras

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Santas Casas. As crianças recém-nascidas contavam com o auxílio de amas de leite contratadas pelas
Santas Casas de cada cidade. A roda, que continuou a ser empregada até 1949, constituía a maior
esperança de sobrevivência para os ‘enjeitados e expostos’.

Brasil Império (1822-1889)


Já no final do período colonial começaram a chegar ao país notícias da Revolução Francesa e da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, introduzindo no país o ideário liberal juntamente a
suas concepções de Estado de Direito e Cidadania, culminando em movimentos nativistas anticoloniais.
Além disso, as revoluções inglesa e norte-americana em muito influenciaram a reorganização pela qual
passou o país ao longo do século XIX.
Após a Declaração de Independência em 1822 era necessário dar ao novo país uma Constituição.
Foi convocada então uma Assembleia Constituinte, que acabou sendo dissolvida, prevalecendo versão
outorgada por D. Pedro I em 1824. Nessa Constituição estava garantida a inviolabilidade dos direitos
civis e políticos, tendo por base a liberdade, a segurança individual e, como não poderia deixar de
ser, a propriedade. Ao longo do texto podem-se perceber influências recebidas do que ocorrera pouco
tempo antes na França, com destaque para os ideais presentes na Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão.
O texto francês, elaborado após a queda da Bastilha, se concentra mais nos direitos civis, que
garantem a liberdade individual – os direitos do homem – e nos direitos políticos, relativos à igualdade
de participação política, de acordo com a defesa dos revolucionários do sufrágio universal, o que
corresponde aos direitos do cidadão. Não há espaço, no texto, para a discussão dos direitos sociais, pois
em muitas oportunidades, ao longo do processo revolucionário, a liberdade foi sacrificada em nome
da igualdade.
O texto constitucional brasileiro foi instituído de cima para baixo. Foi imposto pelo rei ao ‘povo’,
embora, segundo coloca Boris Fausto, “devamos entender por povo a minoria de brancos e mestiços
que votava e que de algum modo tinha participação na vida política”. (2010, p. 149). A maioria da
população, formada por escravos, via-se excluída de seus dispositivos.
Esse texto foi marcado, ainda, pela distância entre seus princípios teóricos e a prática. Representou
um avanço em função de propor a organização dos poderes, definir atribuições e garantir direitos
individuais, no entanto, a aplicabilidade de seus princípios era relativa. A realidade brasileira era
marcada pela dependência da população livre frente aos grandes proprietários rurais, e apenas pequena
parcela da população tinha instrução, sem falar na forte tradição autoritária, que marcava a sociedade.
O texto constitucional, com algumas modificações, vigorou até o fim do império.
O que se pode perceber é que a herança colonial pesou mais na área dos direitos civis, que podem
ser entendidos, segundo coloca José Murilo de Carvalho, como “direitos fundamentais à vida, à
liberdade, à propriedade, à igualdade perante à lei, e se desdobram na garantia de ir e vir, de escolher
o trabalho, de manifestar o pensamento, de organizar-se, de ter respeitada a inviolabilidade do lar e da

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correspondência, de não ser preso a não ser pela autoridade competente e de acordo com as leis, de não
ser condenado sem o processo legal regular”. (CARVALHO, 2003).
A sociedade brasileira do período imperial foi marcada pela violação aos direitos civis, pois não
foram universais. Os escravos, que não eram considerados cidadãos, não contavam com direitos civis
básicos que lhes garantissem a integridade física. A grande propriedade rural permanecia fechada à
ação da lei, e os grandes proprietários e coronéis políticos agiam como se estivessem acima da lei.
Completando o quadro estava o Estado comprometido com o poder privado. Dessa forma, o período
imperial foi marcado por uma série de lutas de segmentos sociais destituídos (escravos e homens livres
pobres) contra privilégios, injustiças sociais e violência.
São inúmeras as revoltas que marcaram o período, assim como a forma dura e até brutal como
foram combatidas pelo Estado. Durante o período regencial (de 1831 a 1840) os regentes até tentaram
implementar algumas reformas, no sentido de adotar uma política liberal que fugisse das características
absolutistas ainda presentes na realidade brasileira, no entanto encontraram forte resistência entre os
grandes proprietários de terras e nos interesses dos grupos locais. Buscaram dar às províncias certa
autonomia, e assim acabaram por incentivar as disputas entre forças regionais pelo controle delas,
gerando muitas das revoltas do período.
Com a antecipação da maioridade do infante Pedro de Alcântara (1840), houve um regresso
político marcado por medidas centralizadoras, e todo o aparelho administrativo e judiciário passou para
as mãos do governo central novamente. Como resposta a isso, novas revoltas se alastraram pelo país,
com destaque para a Revolução Praieira, ocorrida em Pernambuco em 1848. A revolta foi fortemente
influenciada pelas revoluções democráticas que varriam a Europa no período, assim como pela difusão
da crítica social e de ideias socialistas. Não se trata, segundo coloca Boris Fausto, de uma revolução
de esquerda, pois ela teve como base senhores de engenho ligados ao Partido Liberal que se rebelavam
contra a perda do controle da província para os conservadores.
O segundo período imperial foi marcado por forte pressão pelo fim do tráfico de escravos, fazendo
com que em 1850 fosse proclamada a Lei Eusébio de Queiros, que colocava fim ao tráfico de escravos.
Fortalecia-se nesse momento o comércio interno de escravos, a fim de suprir a crescente demanda
por mão de obra nas lavouras de café. A partir da década de 1870, diante do aumento da pressão
escrava, da deslegitimação da escravidão junto à sociedade brasileira e da imagem internacional do
Brasil como um país escravista, teve início uma política estatal de emancipação dos escravizados por
meio da promulgação das leis do Ventre Livre e dos Sexagenários, culminado com a libertação dos
escravos promulgada pela Lei Áurea de 1888.
No contexto pós-Lei Áurea discutiu-se no meio político o destino dos ex-escravos. Segundo coloca
Angela Alongo, havia duas correntes que se destacavam no cenário abolicionista brasileiro: a conversão
do ex-escravo

em cidadão de uma sociedade Liberal e capitalista, com direitos civis e políticos, e em pequeno proprietário
no campo, célula da nova economia, em par com imigrantes, [...] outro futuro lhe acenava com direitos
sociais e o convertia em proletário urbano da sociedade industrial que se acenava. (2015, p. 363).

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Havia consenso entre os abolicionistas acerca do papel da educação para os ex-escravos e do papel
tutelar a ser desempenhado pelo Estado, pois não se cogitava deixar os ex-escravos gerentes do próprio
futuro. (ALONSO, 2015, p. 363).
O fim da escravidão não trouxe melhoria nas condições de vida dos agora ex-escravos. A opção
pelo trabalho do imigrante nas áreas mais dinâmicas da economia resultou em escassas oportunidades
de trabalho a eles, sem falar da profunda desigualdade social da população negra. Essa desigualdade
“acabou por reforçar o próprio preconceito contra o negro. Sobretudo nas regiões de forte imigração,
ele foi considerado um ser inferior, perigoso, vadio e propenso ao crime, mas útil quando subserviente”.
(FAUSTO, 2010, p. 221).
Os ex-escravos, por gerações a fio, foram privados de educação formal, tendo seu trabalho em
geral mal remunerado. Diversos estudos vinculados à concepção de ciência vigente à época mostravam

que os afro-brasileiros acusavam níveis mais altos de analfabetismo, subnutrição e criminalidade do que
a população como um todo. Estatísticas desse tipo contribuíam para o argumento usado na formulação
das políticas públicas, de que os brancos eram melhores que os negros. (LESSER, 2015, p. 42).

Tais estudos fundamentavam as chamadas ‘políticas de branqueamento’, que influenciavam a


entrada de imigrantes europeus no Brasil ao longo do século XIX.
O ano que se passou entre a abolição dos escravos e a proclamação da República foi de
insatisfações. A sociedade escravocrata que esperava ser indenizada após a libertação dos escravos não
obteve sua ‘recompensa’, e os abolicionistas que esperavam reformas que seguissem a Lei Áurea não
foram contemplados. Não se aprovou a indenização aos ex- proprietários nem projetos como a Lei para
Educação, Instrução e Elevação do nível moral dos libertos, proposta pelos abolicionistas. (ALONSO,
2015). O destino dos ex-escravos estava agora nas mãos da República recém-proclamada.

Primeira República (1889-1930)


A proclamação da República em 1889 reabriu a discussão acerca de quem seria o cidadão brasileiro.
O conceito de cidadania moderno está atrelado aos direitos dos cidadãos universalizados com base na
Revolução Francesa e em seus desdobramentos. No período anterior a esta, os direitos ‘do homem e
do cidadão’, tal como expresso pela síntese da declaração francesa, inscreveram-se na Declaração da
Filadélfia, que afirmou a independência dos Estados Unidos da América do Norte em 1776.
O movimento republicano, que vinha se fortalecendo desde 1870, defendia abertamente a
bandeira da cidadania, tal como fora formulada desde a vitória das revoluções burguesas ao longo do
século XIX. O que se viu nas discussões acerca da cidadania, no entanto, foi a permanência da questão
da escravidão, como uma sombra: como construir a cidadania e a nação em um país de ex-escravos?
Aqui não podemos perder de foco o contexto do período, marcado pelo paradigma científico no
campo das ciências humanas, fundamentado no positivismo e no evolucionismo social. Era difícil para
os intelectuais da época ver positivamente o futuro de uma nação marcada pela escravidão.

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A Constituição republicana de 1891 é tida como de inspiração liberal e usa o conceito de


cidadania apropriado da cultura política burguesa. No entanto, ela foi precedida por duas legislações
que contrariam o paradigma moderno de que a Constituição deve preceder as demais legislações: o
Código Penal de 1890 e a lei do registro e do casamento civil, regulamentando o direito de família.
A codificação penal serviu para efetivar o controle social, garantindo práticas repressivas e autoritárias
sobre os trabalhadores livres.
O contraste assim era claro. Enquanto a Constituição, com feições liberais, garantia autonomia
aos Estados, estabelecia os três poderes, fixava o sistema de voto direto e universal, estabelecia o direito
dos brasileiros e estrangeiros residentes no país à liberdade, segurança individual e à propriedade, o
Código Penal permitia um controle efetivo sobre os trabalhadores, limitando assim as prerrogativas
presentes na Constituição.
Muitos brasileiros excluídos da cidadania e do acesso à terra vagavam pelos sertões do país em
busca de trabalho, dentre eles ex-escravos, grupos indígenas e sertanejos, numa clara oposição, segundo
Thomas Skidmore, entre o litoral, densamente povoado, e o interior. Nesse contexto se insere o povoado
de Canudos, que representava uma oportunidade de vida nova.
A população do povoado crescia à medida que a fama do Beato Antônio Conselheiro corria sertões
adentro ganhando adeptos junto a vaqueiros, agricultores e artesãos que estavam dispostos a construir
uma nova sociedade, na qual pudessem se inserir. No entanto, segundo as doutrinas racistas em voga
na época, os canudenses “eram vistos como mestiços cuja natureza instável era um mau presságio para
o futuro do Brasil”. (SKIDMORE, 2003, p. 115). Foram três anos de guerra até a destruição total do
povoado, que ficou imortalizado na obra Os sertões, de Euclides da Cunha.
Esse período foi marcado pela resistência ao Estado Oligárquico por meio das greves operárias,
do cangaço e do messianismo. As péssimas condições de trabalho nas fazendas de café levaram os
trabalhadores a se organizar e promover greves por melhores condições de trabalho, sem que resultados
efetivos fossem alcançados. Já nas cidades, onde se concentravam as fábricas e os prestadores de serviços,
as condições de vida não eram muito melhores do que no campo. Isso levou a um ciclo de greves de
grandes proporções, entre 1917 e 1920, nas principais cidades do país, especialmente Rio de Janeiro
e São Paulo, geradas pelo agravamento da carestia, em decorrência da Primeira Guerra Mundial e
pela influência do processo revolucionário russo de 1917. O principal objetivo dos trabalhadores era
melhorar as condições de vida e conquistar um mínimo de direitos.
Nesse contexto, muitas famílias encontraram no trabalho infantojuvenil um meio de sobreviver
em um ambiente marcado por baixos salários e um custo de vida elevado. Para os industriais, o
emprego da mão de obra infantojuvenil representava a possibilidade de reduzir os custos de produção,
incorporando crianças e adolescentes no processo produtivo como se fossem adultos.
As primeiras décadas republicanas foram marcadas pela utilização do trabalho de crianças e
adolescentes como forma de reduzir os custos de produção, acentuando dessa forma “a espoliação
dos trabalhadores nos estabelecimentos industriais e, num verdadeiro círculo vicioso, manteve-se,
praticamente, como recurso do qual a classe trabalhadora dificilmente poderia abrir mão, no afã de
sobreviver”. (MOURA, 2004, p. 273).

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Nesse contexto, o ‘problema da criança’ adquiriu uma dimensão política relacionada ao ideal
republicano vigente: não se tratava mais de ressaltar a importância, mas sim a “urgência de se intervir,
educando ou corrigindo os menores para que se transformassem em cidadãos úteis e produtivos para o
país, assegurando a organização moral da sociedade”. (PILOTTI; RIZZINI, 1995, p. 112).
Em 1927 foi elaborado então o primeiro Código de Menores do Brasil, constituindo-se como o
elemento de sistematização de uma política voltada à regulamentação da infância em geral, visando
organizar as formas de trabalho, a educação, a prevenção e a recuperação dos ‘criminosos’ e ‘delinquentes’.
Com o Código de Menores, reafirmaram-se as formas de atendimento baseadas na internação das
crianças em instituições, distantes do convívio social, e a posição do Juiz de Menores como autoridade
máxima no assunto, podendo inclusive suspender ou retirar o pátrio poder, no sentido de intervir no
abandono físico e moral das crianças.
Com o Código de Menores, a atuação do Estado se fez de maneira mais manifesta e atuante
na área da infância, demonstrando assim o enfraquecimento das posições liberais que marcaram a
Primeira República, quando a visão liberal defendia a não intervenção do poder instituído na área
social. Emergia nesse momento uma nova obrigação para o Estado: cuidar da infância pobre no tocante
à educação, à formação profissional e ao encaminhamento a pessoal competente para lidar com a
realidade dela. Começou ainda a tomar forma a estratégia dos Direitos da Criança (no caso, o ‘menor’),
já que o Estado passou a ter obrigações de proteção.
Politicamente, a Primeira República foi marcada pelo predomínio do poder por parte de um
reduzido grupo de políticos em cada estado, favorecido pelo fato de que o voto não era obrigatório e
havia um desinteresse por parte dos possíveis eleitores em participar da política em função de acreditarem
que ela era um ‘jogo’ entre os grandes ou uma troca de favores. Além disso, havia manipulação dos
resultados das eleições por meio de fraudes, falsificação de atas, votos de mortos e estrangeiros.
As relações de poder eram fortemente marcadas pelo clientelismo, tanto no campo quanto na
cidade, resultante “da desigualdade social, da impossibilidade de os cidadãos efetivarem seus direitos,
da precariedade ou inexistência de serviços assistenciais do Estado, da inexistência de uma carreira
no serviço público”. (FAUSTO, 2010, p. 263). Os coronéis controlavam os votantes, muitas vezes
fazendo uso da troca de favores, e forneciam assim os votos necessários aos chefes políticos dos estados
em troca de vantagens políticas e econômicas que asseguravam, por sua vez, os meios de barganhar
votos junto aos eleitores.

Estado Getulista e Período Democrático (1930-1964)


Esse período da história política brasileira foi marcado por uma nova formatação social e política
construída por meio da consolidação de uma sociedade urbana, industrial e capitalista. Essa nova
configuração foi fruto de um processo contraditório em que modernidade e conservadorismo se
mesclaram, contexto no qual o Estado brasileiro adquiriu contornos intervencionistas.
A liderança política de Getúlio Vargas, à frente do aparelho estatal, se fez presente também no
desenvolvimento dos direitos humanos. Cabia ao Estado novamente discutir quem seria o cidadão

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brasileiro e quais seriam seus direitos. Nesse contexto, os trabalhadores urbanos ascenderam à categoria
de cidadãos, sendo-lhes reconhecidos determinados direitos e garantias sociais.
Se no período anterior houve esporádica atenção aos trabalhadores urbanos, a partir de 1930
verificou-se uma política governamental específica para essa camada da sociedade. Como primeira
medida, houve a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Seguiram-se leis de proteção
ao trabalhador, de enquadramento sindical pelo Estado, e foram criados órgãos para arbitrar conflitos
entre patrões e operários, além de uma série de leis de proteção ao trabalhador, culminando, em 1943,
na Consolidação das Leis Trabalhistas. Cabe destacarmos aqui que essas medidas não derivaram de
pressão social, mas apareceram como fruto de uma ação do Estado, comum a vários governantes da
época, os ditos ‘populistas’.
Ainda em 1930 foi criado o Ministério da Educação e Saúde com a finalidade de promover
reformas educacionais. Desde os anos 1920 elas vinham sendo realizadas de forma isolada pelos estados,
mas agora as determinações partiam diretamente do Governo central para os estados. Na medida em
que o modelo trabalhista avançava, estabelecendo direitos aos trabalhadores, crescia também a pressão
pela ampliação dos direitos sociais.
Em 1934 foi promulgada a terceira Constituição brasileira, motivada pela Revolução
Constitucionalista de 1932. Ao estabelecer em seu preâmbulo que

Nós, os representantes do povo brasileiro, pondo a nossa confiança em Deus, reunidos em Assembleia
Nacional Constituinte para organizar um regime democrático, que assegure à Nação a unidade, a
liberdade, a justiça e o bem-estar social e econômico. (BRASIL, 1934, p. 1).

Ela demonstrava estar em consonância com as duas gerações dos Direitos Humanos. Outro ponto
a destacar é o fato de que ela estendia o direito de voto a brasileiros de qualquer sexo, e portanto a
igualdade jurídico-formal passava a se fazer presente no campo eleitoral, tornando cidadãos tanto
homens quanto mulheres.
Mas ao permitir o voto a homens e mulheres, o processo de implantação da cidadania foi freado pelo
Estado Novo (1937-1945), comandado por Getúlio Vargas. A instalação desse estado no Brasil aconteceu
ao mesmo tempo em que uma série de transformações políticas tomava conta da Europa, instaurando
governos autoritários e reforçando a versão de que a democracia liberal estava fadada ao fracasso.
O governo de Getúlio foi centralizador ao concentrar no Governo Federal a tomada de decisões
e empregar a propaganda e a educação como instrumentos de adaptação do homem à nova realidade
social. Destacamos nesse sentido a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda, com o intuito
de doutrinar e controlar as manifestações do pensamento no país.
Em 1937 foi promulgada a quarta Constituição brasileira, cuja essência, autoritária e centralista, a
colocava em sintonia com os modelos fascistas de organizações político-institucionais implantadas em
outras partes do mundo, rompendo assim com a tradição liberal presente nas Constituições anteriores.
Entretanto, segundo levantamento realizado por Mário Fabrício Fleury Rosa, entre os anos de
1930 a 1945 foram criadas treze agências voltadas à proteção social brasileira. Essa sequência demonstra

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os avanços na área social promovidos durante o governo de Getúlio Vargas. No período em que as
liberdades políticas foram suprimidas (1937 a 1945) é que as conquistas sociais foram ampliadas.
Após a queda do Estado Novo em 1945 inaugurou-se o chamado ‘período democrático brasileiro’,
que se encerrou com a instauração da Ditadura Militar em 1964. Ele foi marcado pela redemocratização
constitucional do país, e já no preâmbulo a nova Constituição 1946 deixava clara a intenção de que sua
promulgação visava à instauração de um regime democrático no país.
Politicamente, o período foi marcado pelo controle político das massas, realizado por líderes
populistas e grupos oligárquicos. Destacamos ainda os movimentos de resistência dos trabalhadores
urbanos e rurais, e ressaltamos nesse contexto a criação do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa
Humana (CDDPH), por meio da Lei nº 4.319, de 16 de março de 1964, com membros de setores
representativos ligados aos direitos humanos, e com importância fundamental na promoção e defesa
dos direitos humanos no país.
A principal atribuição desse Conselho era receber denúncias e investigar, em conjunto com as
autoridades competentes locais, violações de direitos humanos de especial gravidade com abrangência
nacional, como chacinas, extermínios, assassinatos de pessoas ligadas à defesa dos direitos humanos,
massacres, abusos praticados por operações das polícias militares, entre outros.
O projeto de lei para que o Conselho fosse criado foi apresentado à Câmara em 1956, no entanto,
ele foi aprovado e sancionado pelo presidente João Goulart somente no dia 16/03/1964, ironicamente,
quinze dias antes do golpe militar.

Ditadura Militar (1964-1985)


A deflagração do golpe militar em 31 de março de 1964 acabou por fornecer um terreno fértil
para a ‘modernização conservadora’ que vinha sendo implementada no país desde 1930. O período
foi marcado pela supressão das garantias de direitos alcançados até então. Foram realizadas prisões,
torturas e mortes de opositores. A Constituição do período ditatorial, proclamada em 1967, não previa
a pena de morte para nenhum tipo de crime, no entanto, em 1969, sofreu uma alteração no Parágrafo
11 do Artigo 150, Capítulo IV, onde passou a constar o seguinte:

não haverá pena de morte, de prisão perpétua, de banimento, ou confisco, salvo nos casos de
guerra externa psicológica adversa, ou revolucionária ou subversiva nos termos que a lei determinar.
Esta disporá também, sobre o perdimento de bens por danos causados ao Erário, ou no caso de
enriquecimento ilícito no exercício de cargo, função ou emprego na Administração Pública, Direta ou
Indireta. (BRASIL, 1967, p. 49).

Destacamos aqui a palavra ‘salvo’ colocada após a menção de que não haveria pena de morte.
Por meio dessa Constituição foram suprimidos quase todos os partidos políticos, restando apenas
duas: a Aliança Renovadora Nacional (Arena), como partido governista, e o Movimento Democrático
Brasileiro (MDB), como oposição consentida.

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Ao longo do período ditatorial foram promulgados dezessete Atos Institucionais, dentre eles o
de número 5 (AI5). promulgado em 13/12/1968. Ele suspendeu a garantia de habeas corpus para
determinados crimes e assegurou ao presidente o poder de decretar estado de sítio, intervir nos Estados
sem limites constitucionais, suspender direitos políticos e restringir o exercício de qualquer direito
público ou privado, cassar mandados eletivos, decretar o recesso do Congresso Nacional, assim como
das Assembleias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, e excluir da apreciação judicial atos praticados
de acordo com suas normas e atos complementares.
Conforme citado anteriormente, em março de 1964 foi sancionada a criação do Conselho de
Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (5CDDPH). Ele foi instalado pelo presidente Arthur da Costa
e Silva em 1968, 50 dias antes da promulgação do AI5. Durante os governos dos generais Emílio
Garrastazu Médici e Ernesto Geisel, os membros do CDDPH chegaram a se reunir em sigilo, mas a
simples menção aos Direitos Humanos soava como contestação ao regime instalado.
No campo econômico deve-se destacar o chamado ‘milagre brasileiro’. Por meio da combinação
de um extraordinário progresso econômico com taxas relativamente baixas de inflação, foi possível um
crescimento médio do PIB de 11,2% ao ano. Esse desenvolvimento econômico acelerado trouxe consigo
a concentração de renda. Segundo coloca Boris Fausto, a política econômica de Delfim Netto estava
baseada na premissa de primeiro promover o crescimento do bolo, para depois reparti-lo. Dessa forma,
os aspectos negativos do ‘milagre’ foram principalmente de natureza social: os salários diminuíram
consideravelmente, mas em contrapartida havia mais postos de trabalho a fim de contrabalancear a
situação. Além disso, os programas sociais do governo foram praticamente abandonados.
O país destacava-se externamente por uma posição privilegiada, alcançada por seu potencial
industrial e indicadores muito baixos de saúde, educação e habitação, fatores esses que medem o
índice de qualidade de vida do povo. Como forma de ‘ocultar’ esses índices negativos, os governos
militares empregaram a propaganda como fator decisivo para divulgar suas ações e conquistas; para
tanto, aproveitaram o grande avanço nas telecomunicações, verificadas no país após 1964. Dentre as
músicas divulgadas merecem destaque Este é um país que vai pra frente e Prá frente Brasil, música
que embalou a vitória brasileira na Copa de 1970.
Merecem destaque ainda as instituições da sociedade civil que se organizaram e atuaram nesse
período: Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB), Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB),
União Nacional dos Estudantes (UNE), além de vários sindicatos e do Movimento Operário. Tais
instituições cumpriram um papel importante na mediação das demandas oriundas dos opositores ao
regime, contribuindo decisivamente para os anseios de redemocratização do país.
Três acontecimentos merecem destaque a partir do final dos anos 1970: a Lei da Anistia de 1979,
a campanha pelas Diretas Já e a convocação da Constituinte em 1987. A primeira, aprovada pelo
Congresso, continha restrições e abrangia também os que haviam praticado a tortura, entretanto
permitiu o retorno de grande contingente de exilados políticos e possibilitou o início da apuração do
que aconteceu com os presos políticos, mortos e desaparecidos, dando um passo importante para a
ampliação das liberdades públicas.

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Os anos 1980 foram marcados pela campanha em prol das eleições diretas. Foi o momento em que
milhões de pessoas tomaram as ruas, expressando a vitalidade da manifestação popular. A manifestação
aglutinava diferentes esperanças: a expectativa de uma representação autêntica e a resolução de muitos
problemas, como baixos salários, falta de segurança e inflação, que a eleição direta de um presidente
por si só não resolveria.
A Assembleia Constituinte convocada em 1987 iniciou seu trabalho com uma grande
responsabilidade: esperava-se que pudesse fixar os direitos dos cidadãos e as instituições básicas do
novo país, assim como resolver problemas fora de seu alcance. A nova Constituição, promulgada em
1988, acabou por refletir as pressões dos diferentes grupos da sociedade e avançou na área da extensão
dos direitos sociais e políticos dos cidadãos em geral e às chamadas ‘minorias’. Seu texto aglutinou os
princípios mais

progressistas das tradições políticas liberal-democráticas e social-democráticas, sem desprezar as


demandas de caráter multifacetário apresentadas pelos chamados novos movimentos sociais, ou seja,
a defesa do bem comum no respeito à diversidade de origem, raça, sexo, cor, idade. (MONDAINI,
2009, p. 68).

Em seu preâmbulo está o projeto de sociedade que espera construir:

um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade,
a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na
ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias. (BRASIL, 1988, p. 1).

Importante destacarmos aqui o papel que a Comissão Nacional da Verdade (CNV) teve ao
trazer à tona a discussão acerca das ações cometidas pelo Estado ao longo da Ditadura Militar
Brasileira. Essa Comissão começou a ganhar corpo durante a 11.ª Conferência Nacional de Direitos
Humanos realizada em 2009, que recomendou a criação da CNV com a tarefa de promover o
esclarecimento público das violações de direitos humanos por agentes do Estado na repressão aos
opositores. Por ato presidencial de 13 de janeiro de 2010, foi instituído grupo de trabalho com
a finalidade de elaborar o anteprojeto de lei para a criação da CNV. A instalação da Comissão
aconteceu em 16 de maio de 2012.
Como resultado de todo o trabalho realizado pela CNV temos a publicação de um relatório das
atividades desenvolvidas por ela, composto por três volumes e publicado em 2014. Marcos Napolitano,
ao discutir o motivo das Comissões de Verdade terem se popularizado, ressalta que

era preciso produzir uma verdade que correspondesse aos fatos objetivos da repressão, e não aos
fatos alegados pelas verdades oficiais das ditaduras, que sempre negaram qualquer tortura ou
desaparecimentos forçados de militantes. (2014, p. 320).

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Nova República (Desde 1985)


O Brasil que surgiu a partir do final da Ditadura Militar precisou se repensar em termos políticos,
econômicos, sociais e educacionais. Foi e é necessário empreender mudanças a fim de colocar o país
diante do embate entre os que defendem a supressão dos direitos e os que os desejam seu alargamento.
É imperativo, portanto, preocupar-se com a melhoria da qualidade de vida da população, com a
equidade na distribuição de renda e com a diminuição das diferenças sociais, abrindo espaço para a
participação e organização popular, garantindo dessa forma a sustentabilidade social do país.
Nesse sentido, medidas estão sendo tomadas, como as Diretrizes Nacionais para a Educação das
relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, o Estatuto da
Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso, o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos,
a Lei Maria da Penha, além da Comissão Nacional da Verdade – que tem por finalidade apurar graves
violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988.
Destacamos aqui o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei 8.069, de 13 de julho de
1990, que revogou o Código de Menores de 1979 e a lei de criação da Funabem. Ele apresenta de
maneira detalhada os direitos da criança e do adolescente, em forma de diretrizes gerais para uma
política nessa área. Em suas disposições preliminares, o ECA define a garantia de proteção integral à
criança e ao adolescente. A Doutrina de Proteção Integral, personificada no Estatuto, estabelece que
crianças e jovens em condição peculiar, devido ao fato de se encontrarem em desenvolvimento, são
sujeitos de direito. O Estatuto tem caráter universalizante por estabelecer que todos são sujeitos de
direito, sem fazer distinção quanto à classe social nem estigmatizá-los. As questões relativas às crianças e
aos adolescentes deixam de ser vistas como problemas de polícia e justiça. É garantida ainda, por meio
da Constituição, a descentralização do atendimento e a municipalização, garantindo dessa forma uma
participação mais atuante da comunidade na tomada de decisões de acordo com sua realidade.
Muito ainda deve ser feito no sentido de promover a sustentabilidade econômica do país,
superando graves dificuldades que acompanham o desenvolvimento histórico brasileiro. É necessário
encontrar formas de compatibilizar padrões de produção e consumo, garantir o acesso à ciência e
tecnologia. Segundo coloca Miriam Leitão, os brasileiros, nos poucos anos dessa nossa ainda jovem
democracia, já fizeram muito.

Saíram da mais completa desordem nas contas públicas para a Lei de Responsabilidade Fiscal.
Sanearam bancos, criaram instituições modernas, abriram a economia, conquistaram uma moeda
estável, fizeram um pacto político em torno da estabilidade que tem atravessado governos, superaram
crises que pareciam insuperáveis. (2011, p. 21).

No entanto, ainda há muito por fazer.


Outro ponto a destacar nessa caminhada democrática está ligado à garantia da sustentabilidade
cultural, respeitando os diferentes valores entre os muitos brasis dentro do país, incentivando processos
de mudança que acolham as especificidades locais e culturais. Nesse sentido, é importante destacar as

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campanhas que vêm sendo lançadas pela diversidade sociocultural, pela construção de um Brasil sem
homofobia, além de ações afirmativas, que vêm sendo tomadas a fim de combater o racismo.
Tais programas e ações não sairão do papel se não houver instituições efetivas e transparentes que
assegurem sua aplicabilidade, alcançando assim a sustentabilidade política do Brasil. Nesse sentido,
é necessário trabalhar para que a ‘Constituição Cidadã’ de 1988 não esteja somente no papel, mas
seja aplicada de maneira prática a fim de tornar o Brasil uma ‘nação cidadã’, onde todos os habitantes
possam ser reconhecidos como portadores de direitos, verdadeiros cidadãos, e não apenas, como coloca
Marco Mondaini, habitantes de um território, meros citadinos.
Ao abordar o exercício da cidadania, não poderíamos nos isentar de falar sobre Direitos Humanos
e Bioética, a seguir.

DIREITOS HUMANOS E BIOÉTICA


Como vimos, os Direitos Humanos constituíram-se, ao longo da história, da junção de inúmeros
fatores de ordem social, cultural, jurídica, política e filosófica. E porque ele se alimenta de tantas
vertentes nos propomos a concluir este texto discutindo o nascimento e a importância da Bioética,
conceito pensado com base nas atrocidades cometidas durante o período nazista – portanto, questões
históricas propiciadoras da terceira geração de Direitos Humanos –, quando inúmeras experiências
médicas foram feitas utilizando vidas humanas. De acordo com Oliveira,

O termo ‘bioética’ foi empregado pela primeira vez na década de 70 por Potter, cuja preocupação central
era o desenvolvimento tecnológico e suas consequências ambientais para o planeta. Para ele, as ciências
deveriam estar acompanhadas de uma reflexão ética para que as intervenções na natureza não ocorressem
de forma inconsequente. Assim, apesar do vocábulo ‘bioética’ ter surgido como proposta de junção das
ciências exatas e biomédicas com as humanas, alguns autores sustentam a ideia de que, sem uma reflexão
ética, essas ciências podiam ser aplicadas de forma a causar males para os seres humanos e o planeta
advém de um período histórico anterior. Segundo Annas, as atrocidades praticadas por médicos nazistas
nos campos de concentração, com a utilização de prisioneiros como sujeitos de pesquisa, revelam que
a prática da medicina e a ideia da inexorabilidade do desenvolvimento científico podem, em certas
circunstâncias, levar à violação de direitos básicos, como a integridade física e psíquica. (2007, p. 171).

Diversos autores conceituaram e ainda conceituam o termo ‘bioética’, pois é fruto da nossa
sociedade pluralista, democrática e que, cada vez mais, tem clareza de sua diversidade e de seus direitos.
Tendo isso em vista, utilizamo-nos aqui do conceito de Motta, Vidal e Siqueira-Batista:

[...] pode-se também conceber a Bioética como a mais desenvolvida das éticas aplicadas ou como
o estudo sistemático das dimensões e argumentos morais a favor e contra determinadas práticas
humanas que interferem e afetam a qualidade de vida de todos os seres vivos e as condições ambientais
do Planeta Terra. (2012, p. 434).

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Embora num primeiro momento a Bioética tenha nascido de uma preocupação específica com a
pesquisa médica envolvendo seres humanos, ao longo de décadas sua reflexão se expandiu para questões
que emergem da própria sociedade, como o transplante de órgãos, a produção de transgênicos, o uso
de animais e de seres humanos em experimentos, o uso de células-tronco, a aplicação da eutanásia, o
suicídio, a fertilização in vitro e muitas outras.
No âmbito mais amplo da sociedade, sustentabilidade e meio ambiente tornaram-se alvo do
debate bioético, e ao refletirmos sobre o conceito de Motta (2012) percebemos sua amplitude e relação
direta com os Direitos Humanos, pois é preocupação da Bioética, também, a vida humana e sua
preservação ética.
Cada vez mais avançamos para uma sociedade complexa, que lida com realidades e problemas
complexos, e isso exige de cada cidadão uma reflexão histórica profunda sobre que tipo de convivência
humana e com o meio ambiente nós desejamos. Portanto, cabe a nós mantermos viva a chama do
debate sobre a dignidade da pessoa humana.

BIBLIOGRAFIA
ALENCASTRO, L. F. de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São
Paulo: Companhia das Letras, 2000.
ALONSO, A. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-88). São Paulo: Companhia
das Letras, 2015.
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DEFINIÇÕES
Censura: ação de controlar qualquer tipo de informação, geralmente por meio de repressão à imprensa.
Cidade-Estado: cidade autônoma que, na Antiguidade, funcionava como o mais importante centro político,
cultural e financeiro, com poder absoluto sobre as demais cidades. Pólis.
Constituição Cidadã: Constituição brasileira de 1988.

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Decálogo: os dez mandamentos da lei de Deus, que segundo a Bíblia foram dados a Moisés no Monte Sinai.
Estado de Bem-Estar Social: organização ou sistema político e econômico que vê o Estado como protetor e
defensor social e organizador da economia. Diferentemente do Estado mínimo postulado pelo neoliberalismo,
nesse modelo o Estado é o regulador de toda vida e saúde social, política e econômica do país e faz isso em
parceria com várias outras forças, sobretudo dos sindicatos e das empresas privadas. O que o distingue de forma
clara é o fato de assumir o papel de garantidor dos serviços públicos de qualidade e de proteção da população.
Esse modelo de Estado teve origem na Europa, sob o império da ideologia da social-democracia, que se distinguia
antigamente tanto do capitalismo liberal confiante no mercado como do socialismo real (comunismo).
Evolucionismo social: oriundo da antropologia, esse termo se refere à corrente de pensamento antropológica
que incorpora os princípios do darwinismo nos estudos sobre a evolução das sociedades. Ele defende que as
sociedades surgem primitivas e se tornam civilizadas com o tempo.
Guerra justa: permanência de elementos ligados ao período das Cruzadas, ocorridas na Idade Média. A guerra
só era permitida se fosse o último recurso para alcançar a paz. Deve ser declarada, supostamente, com base em
uma causa justa, por uma autoridade legítima, com um bom propósito de quem a declara e ser desenvolvida
com retidão.
Herança greco-romana: as civilizações grega e romana influenciaram a formação do mundo ocidental no que
diz respeito às instituições políticas, ao pensamento filosófico, às artes, à ética e às leis, entre outros elementos.
Oligárquico: forma de governo em que o poder é exercido por um grupo restrito de pessoas, geralmente, do
mesmo partido, família, classe etc.
Paradigma científico: durante o percurso histórico da ciência, no processo de construção de conhecimento
e análise de fenômenos, várias foram as lentes utilizadas em sua observância. A peculiar forma de como se
estabeleceu essa construção nos diferentes contextos da história se caracteriza por diferentes métodos de se fazer
ciência, constituindo assim diferentes paradigmas (estruturas mentais compostas por teorias, experiências e
métodos que serve para organizar a realidade e seus eventos no pensamento humano).
Período Regencial: período posterior à abdicação de D. Pedro I do trono brasileiro, em favor de seu filho,
então com seis anos incompletos, no dia 7 de abril de 1831. Nesse período o Brasil foi governado por líderes
políticos em nome do imperador até a maioridade antecipada deste, em 1840. A princípio, os regentes eram três,
passando a ser apenas um a partir de 1834.
Populista: ‘amigo do povo’. Diz-se do partido político que defende ou diz defender as classes populares, que diz
respeito à doutrina literária ou artística do populismo ou que dele é adepto.
Positivismo: doutrina filosófica criada por Auguste Comte (1798-1857) que sugere fazer das ciências
experimentais o padrão ou modelo por excelência do conhecimento humano, substituindo com isso as teorias
metafísicas ou teológicas. Também conhecido como comtismo ou filosofia positiva. Cada uma das doutrinas
que se baseiam no comtismo (sec. XIX e XX), definidas pela utilização de uma metodologia quantitativa, pelo
cientificismo e pela hostilidade ao idealismo.
Racionalidade: particularidade ou característica do que é racional. Qualidade daquilo que se baseia na razão,
que se encontra em conformidade com a razão. Compreensível logicamente. Capacidade de raciocinar ou
praticar a própria razão. Tendência para entender (compreender) os fatos e/ou ideias tendo em conta a razão.

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Reforma Protestante: movimento religioso de renovação da Igreja iniciado no século XVI por Martinho Lutero,
monge alemão pertencente à Ordem dos Frades Agostinhos e que conduziu à cisão da Igreja Cristã ocidental.
Esta foi dividida em Igreja Católica Romana, por um lado, e em várias igrejas reformadas ou protestantes (Igreja
Luterana, Igreja Calvinista e Igreja Anglicana), por outro.
Salvo: exceção.
Sexagenários: apelidada de Lei dos Sexagenários (1885), ela é menos conhecida do que a Lei do Ventre Livre
(1871), que concedeu liberdade aos filhos de escravos nascidos a partir de sua promulgação, e do que a Lei Áurea
(1888), que finalmente acabou com a escravidão no Brasil. Não é, no entanto, menos importante. A medida
resultou de uma intensa luta política travada entre os parlamentares e foi uma resposta das instituições e das
elites brasileiras ao clamor pela abolição da escravatura que tomava as ruas e ameaçava comprometer a ordem
social, política e econômica. Coube à Lei dos Sexagenários manter a discussão sobre o fim da escravidão acesa
e conceder tempo para uma solução negociada que pusesse fim ao sistema escravagista de forma não violenta,
como aconteceu nos Estados Unidos com a Guerra de Secessão (1861-1865).
Sociedades primitivas: sociedades baseadas na coleta, na pesca e na caça.
Suserania: território ou propriedade governado(a) por um suserano, aquele que tinha o domínio do feudo.
Conjunto das funções, poderes e obrigações desenvolvidas pelo suserano. Direito ou poder para exercer
autoridade.
Vassalagem: estado de submissão ou sujeição de alguém em relação a outra pessoa ou coisa. Relação de obediência
que o vassalo deveria manter em relação ao senhor feudal. Imposto, preito, pago pelo vassalo ao senhor feudal,
suserano. Reunião, grupo ou conjunto de vassalos.
Ventre Livre: no dia 28 de setembro de 1871 foi assinada a Lei n° 2.040, conhecida como “Lei do Ventre
Livre”. Considerada um marco no processo de abolição da escravidão no Brasil, está inserida no conjunto de
medidas que buscavam atenuar a questão escravista no império, como a Lei Euzébio de Queiroz (1850) e a Lei
dos Sexagenários (1885). Ela declarava livres os filhos de mulheres escravas nascidos no Brasil a partir da data
da aprovação da lei.
Teocrático: relativo à teocracia (forma de governo em que os membros da Igreja interpretam as leis e têm
autoridade tanto em assuntos cívicos quanto religiosos). A palavra vem do grego theos, que significa Deus, e
kratein, que significa governar. Poder teocrático.
Treze agências: são elas: Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (MTIC), criado em 1930; Instituto de
Aposentadoria e Pensões dos Marítimos (IAPM), criado em 1933; Instituto de Aposentadoria e Pensões dos
Comerciários (IAPC) e Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários (IAPB) – ambos criados em 1934.
Em 1938, foram criados dois outros: o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Empregados em Transportes
e Cargas (APETC) e o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI). Em 1940 foi criado o
Serviço de Alimentação da Previdência Social (SAPS). A Legião Brasileira de Assistência (LBA) e o Serviço
Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) foram criados em 1942. Já o Serviço Nacional de Aprendizagem
Comercial (SENAC), o Serviço Social da Indústria (SESI), o Serviço Social do Comércio (SESC) e a Fundação
Cultural Palmares (FCP) foram criados em 1946.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
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UMA JORNADA HISTÓRICA PELO PARANÁ: TERRA,


HOMENS E VIDA MATERIAL

Etelvina Maria de Castro Trindade

INTRODUÇÃO
O termo sustentabilidade1 pode soar anacrônico2 em um texto histórico que se ocupa do
povoamento de um território cujas origens remontam há mais de trezentos anos. No entanto se, por
um lado, as ações dos colonizadores e as políticas governamentais foram extremamente agressivas e
dominadoras em relação ao espaço conquistado e as populações a elas submetidas; por outro, essas
mesmas iniciativas podem ser vistas como o germe de algumas práticas que, mesmo sendo meramente
utilitárias, acabaram resultando numa conscientização – que é inclusive mundial – sobre os efeitos
danosos de se ignorar as consequências de uma exploração desordenada das dimensões econômicas,
sociais e culturais dos recursos naturais e humanos.
Assim, um estudo sobre a ocupação de qualquer território habitado, inclusive do que posteriormente
se chamaria Paraná, pode debruçar-se sobre questões cruciais. Dentre elas, o demorado despertar das
autoridades públicas, dos cientistas e dos cidadãos comuns para problemas que envolvem, não só a
preservação dos recursos naturais – como queriam os ambientalistas3 de primeira hora4 –, mas também
tudo aquilo que diz respeito à sustentação da vida humana em sociedade. Como bem lembra Richard
Rogers: significa “encontrar meios socialmente mais consistentes, economicamente mais eficientes e
ecologicamente mais corretos de produzir e distribuir os recursos existentes”. (2001).
O caso do Paraná não foge das circunstâncias universais, desde a sua colonização pelos europeus,
numa época em que as relações homem-ambiente, eu e o ‘outro’, estavam pautadas por uma concepção

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de mundo em que a natureza era subordinada aos interesses humanos, até chegar ao tempo presente
quando se busca, em termos globais, permitir o acesso aos recursos naturais, culturais e econômicos
com vistas a um futuro sustentável.
Primeiramente, o território praticamente desabitado passou pelo estágio predatório e socialmente
injusto do início da ocupação, dando origem a um longo período de hibernação em que a Metrópole5
organizou a nova conquista, ao seu ‘bel’ prazer, sem cogitar no que hoje se coloca como proteção dos
ecossistemas6 e equilíbrio das desigualdades sociais.
Em um segundo momento, vivenciou a conjuntura7 em que tiveram início, mundialmente,
medidas que visavam sanar os males que afligiam as populações citadinas8, como os surtos epidêmicos
e as moléstias crônicas. Métodos pontuais adotados em âmbitos nacionais e local e, atualmente,
considerados insuficientes diante das novas descobertas da ciência e da tecnologia em prol da saúde e
da qualidade de vida humanos.
O terceiro patamar foi aquele em que o mundo acordou para uma nova concepção da relação entre
o homem e seu meio, diante das ameaças à vida do planeta, para criar políticas que, segundo a definição
de Kazazian, geram um “desenvolvimento que concilia crescimento econômico, preservação do meio
ambiente e melhora das condições sociais”. (2005). No Paraná, políticas de preservação ambiental
desenvolveram-se em contraponto a práticas que geravam poluição9 e promoviam desmatamentos10.
Finalmente, o presente estágio quando governos e sociedades tomam consciência da necessidade
de promover iniciativas de cunho político, socioeconômico, educativo e ecológico que permitam
à humanidade acessar os recursos atuais, sem privar seus descendentes da possibilidade de usufruir
livremente dessas riquezas naturais. Um projeto adequado ao pensamento de Morin, que propõe
“desenvolver uma ética do gênero humano, para que possamos superar esse estado de caos e começar,
talvez, a civilizar a terra”. (2007).
É essa trajetória que se procurará abordar nas páginas seguintes.

EUROPEUS E INDÍGENAS: VIVÊNCIAS E


ESTRATÉGIAS DE SOBREVIVÊNCIA11
No início do século XVI, ao sul do extenso território que começava a ser ocupado por portugueses
e espanhóis, a oeste da linha de Tordesilhas, estendia-se uma região coberta por planaltos e montanhas
e entrecortada por inúmeros cursos d’água. Nesse amplo espaço natural, favorecidos pela relativa
amenidade do relevo e do clima, perambulavam, há milênios, grupos humanos de coletores e caçadores.
Migrados de diversos lugares em diferentes períodos, acabaram por definir-se, há cinco ou seis mil
anos, em duas grandes famílias linguísticas: a dos Macro-Jê e, posteriormente, a dos Tupi.
Alguns desses povos eram pré-ceramistas e nômades12, organizavam-se em pequenas comunidades
e viviam da exploração dos recursos naturais. Outros, semi-nômades ou sedentários, tornaram-se
ceramistas, instalando-se prioritariamente na região, por volta de dois mil anos atrás. Os vestígios

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dos utensílios que esses grupos utilizavam denotam seu estilo de vida e sua organização social: vasos
e vasilhas de barro, com desenhos geométricos coloridos em vermelho e branco; artefatos13 em
sílex14, arenito15 e quartzo16; estatuetas antropomórficas17. As engenhosas armadilhas para aprisionar
animais indicam esforços para garantir a sobrevivência e as armas elaboradas com sofisticadas técnicas
de lascamento18, bem como os artefatos de madeira e couro trabalhados por instrumentos líticos19,
mostram um certo grau de refinamento. Para aqueles que praticavam o roçado de subsistência20, esse
apuro técnico permitia a confecção de ferramentas adequadas ao plantio e de recipientes para conservar
e transformar os grãos.
No conjunto, apesar das atividades exploratórias por eles praticadas, esses grupos mantinham uma
simbiose21 positiva com seu ambiente, na medida que suas comunidades instalavam-se em função da
utilização dos recursos necessários à sua sobrevivência, sem deixar de levar em conta a preservação dos
ciclos da natureza. Respeitavam, consequentemente, o tempo necessário para que o território, virgem e
escassamente povoado, se recuperasse das pequenas agressões a que o manejo da subsistência daquelas
populações o submetia. Essa relativa harmonia foi quebrada pelo advento do homem branco.
A chegada dos europeus promoveu também deslocamentos espaciais, alterou as condições
socioeconômicas daquelas populações. Os primeiros contatos com o gentio22, levou os Jê, refratários
ao encontro com outras culturas, a afastarem-se para locais onde mantiveram-se isolados; dentre os
Tupi-Guarani, os que se concentravam na parte que cabia ao reino espanhol foram, em grande parte,
aldeados23 e forçados a adaptar-se ao modo de vida europeu nas reduções24 jesuíticas. Nelas, a vida
dos índios catequizados transcorria entre as orações e o trabalho agrícola, pastoril e artesanal, o que
os transformava, segundo o ideal jesuíta, ‘de gente rústica em cristãos civilizados’. Tanto esses grupos
como os que ocupavam o primeiro planalto e a região litorânea, e praticavam a ‘coivara’25, tornaram-
-se alvo dos interesses econômicos do adventício que buscava braços para o cultivo, sendo caçados por
sertanistas26, a partir do século XVI.
Até a assinatura do Tratado de Madri, em 1750, Portugal e Espanha não tinham entrado em
acordo sobre a posse oficial das terras situadas a oeste do Tratado de Tordesilhas. Disso se aproveitaram
os portugueses para transgredir aquela linha imaginária, ocupando, por meio de diversas estratégias,
inclusive a da força, os territórios em questão. Essa incorporação das terras brasileiras ao Império
português assinalou o início de seu processo de ocidentalização. O resultado desse fenômeno, em todos
os locais em que ocorreu, foi a destruição das demais formas de organização econômico-social.
A relação entre o português e o indígena no novo território causou, então, um impacto resultante
do total desrespeito à autonomia dos seres humanos, às suas condições de vida, bem como à conservação
de seu espaço vital.
No caso dos lusitanos27, porém, a relação com o gentio foi fundamental para a sobrevivência
naquelas regiões inóspitas, pois o empreendimento português, notadamente no sul da zona colonial,
teria sido impossível sem ele. Essa convivência, à medida que inseriu o índio nos interesses da
Metrópole28, estabeleceu condições para a troca de elementos da cultura material e simbólica entre
ambos os povos.

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Mediante a inevitável miscigenação29 dos lusos com as mulheres indígenas, houve uma interação
dos costumes diferenciados do índio, do europeu e, mais tarde, do negro, fazendo que, naquela
sociedade, coexistissem múltiplos arranjos domésticos e familiares e várias formas de trabalho. Do
contato entre as nativas e os portugueses advieram os ‘mamelucos’30, híbridos culturais31, que foram
agentes da circulação de hábitos, técnicas e conhecimentos do universo cultural de suas mães indígenas.
A composição e reelaboração das tradições lusitana e autóctone32 originou uma outra forma de
viver – o modo ‘caipira’33 –, que passou a ser o substrato econômico e cultural da população livre e
pobre; uma massa anônima que lentamente se desenvolveu nos séculos XVI e XVII e cujos traços ainda
estão presentes nos usos, nas falas e nas crenças dos habitantes do que mais tarde seria chamado de
Paraná Tradicional – denominação que abrange o litoral e os dois primeiros planaltos de seu território,
até a região de Guarapuava e Palmas. A formação da cultura caipira e a utilização dos costumes e do
idioma autóctone não significaram, porém, hegemonia34 do nativo, pois toda a formação colonial
expressava uma relação de subordinação do indígena ao europeu. Assim, intensificou-se a exploração
do homem pelo homem, consagrando uma desigualdade social que se perpetuaria em solo brasileiro
pelos séculos seguintes.
A população resultante da miscigenação manteve, entretanto, a forma itinerante35 do roçar indígena
e incorporou, para fins alimentares ou medicinais, os frutos da terra; adotou ao costume de transportar
e guardar alimentos em cestos de fibras ou taquara, utilizando-se também das técnicas indígenas para
a confecção de armadilhas. Diferentemente das populações de outros pontos do território brasileiro,
gradativamente fixada em determinados locais em decorrência da produção e da comercialização de certos
produtos, as atividades coloniais na região sul foram marcadas pela mobilidade, em grande parte facilitada
pela existência das rotas há muito utilizadas pelos silvícolas e denominadas caminhos do Peabiru.
A interação do português com o modo de vida do indígena era tal que – conforme o que era
reportado à Coroa – aos brancos bastavam alguma roupa e armas de manejo36, vivendo com a sobriedade
do gentio; o mel, o pinhão e a caça, produtos de fácil armazenamento, garantiam o sustento de cada
dia. (TRINDADE; ANDREAZZA, 2001).
Ao mesmo tempo em que a população que se utilizava do saber indígena e sobrevivia às margens
da organização colonial, a ação oficial ocupava-se em reproduzir o modelo português de sociedade,
com vistas à ocupação do território. Assim, desde o século XVII, já estavam presentes na região sul
instituições portuguesas, – e também espanholas, durante a união das duas Coroas37, entre 1580 e 1640.
Tais instituições tinham o objetivo de regulamentar o funcionamento das novas povoações, sem que se
atentasse minimamente para uma relação equilibrada com a natureza embora inadvertidamente acabassem
propiciando alguma forma de proteção ao ambiente circundante, tais como a preservação das florestas,
das águas correntes, a limpeza das ruas e a proibição da presença de animais no perímetro da povoação.
Findo o período da dominação espanhola, começaram a ser divulgadas as primeiras notícias sobre
o ouro em território brasileiro ao sul de São Vicente, repetindo-se a ocorrência serra acima, em regiões
até então descuradas pelos ibéricos. O ‘achamento’38 ocorrido em tais locais, tornava urgente medidas
que reforçassem a hierarquização da empresa colonial.

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Com o intuito de tornar mínimo o dispêndio de homens e recursos, as iniciativas da Coroa


portuguesa foram acompanhadas pelo conhecido expediente dos empreendimentos particulares, já
utilizado nas expedições de reconhecimento da costa brasileira e na criação do sistema de capitanias.
Foram também estabelecidas as Administrações Gerais das Minas, as Intendências39, e as Provedorias40 e
instituídos cargos como os de capitão-povoador41, capitão-mor42, lugar-tenente43 e ouvidor44, entregues
a representantes avançados do soberano.
Foi igualmente importante arregimentar a diminuta população das paragens onde surgiu o
metal precioso para que, motivada pela ideia de enriquecimento, pudesse colaborar com obediência,
trabalho e escravos, índios ou negros, para o bom termo da empreitada. Em troca, os governantes
deveriam prover os mineradores com o pouco necessário para o seu assentamento em vilarejos situados
nas cercanias dos arraiais auríferos45. De certa forma, o uso dessa mão de obra privada não deixava
de ser um investimento da Metrópole com a intenção de buscar, sem muito esforço, os lucros do
empreendimento, em detrimento do pouco que as categorias exploradas poderiam auferir.
Esses agrupamentos iniciais tinham como marco referencial pequenas capelas criadas por
iniciativas de leigos em torno de devoções particulares, só mais tarde referendadas pelo catolicismo
oficial. Nelas está a origem das futuras povoações, cuja institucionalização46 se daria, muitas vezes, a
pedido dos moradores.
Para estabelecer a ocupação e consolidar o povoamento, a próxima iniciativa seria a fundação oficial
de vilas – o que se realizou conforme instruções emitidas no Reino. Derivou daí, a criação da povoação
de Nossa Senhora do Rosário de Paranaguá, a primeira da localidade a ser elevada à vila, em 1648.
Os procedimentos oficiais para a instituição de um município eram acompanhados, normalmente,
pela criação da freguesia47, significando que o lugar passava a contar com assistência religiosa permanente.
Além das atribuições religiosas específicas como registrar nascimentos, casamentos e óbitos, os párocos
eram encarregados da cobrança de dízimos48 e das desobrigas49; e mais tarde, de efetuar recenseamentos,
e evidentemente, de cobrar impostos.
Ao sabor dessa forma de colonização, décadas após a instalação de Paranaguá, em 1693, foi criado,
serra acima, outro município, o da Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba. Para esse
novo povoamento, em 1721, a Coroa Portuguesa enviou como seu representante o ouvidor Raphael
Pires Pardinho, encarregado de organizar o espaço da nova povoação. Dentre as instruções emanadas
pela nova autoridade algumas, embora não intencionalmente, preocupavam-se com a higiene e a
proteção dos recursos naturais, instruindo os juízes e oficiais da Câmara que “obrigassem todos os anos
ao povo a limpar o ribeiro que corre por meio da vila para ter boa correnteza, e a façam ter águas das
chuvas nas mais ruas para que não haja charcos na vila, principalmente ao pé da matriz”. (Provimentos
do Ouvidor Pardinho para Curitiba e Paranaguá: 1721).
As instalações de novas vilas e sua regimentação50 só iriam ocorrer na segunda metade do século
XVIII. Já em 1711, o litoral de Paranaguá e os campos de Curitiba que, desde 1660, constituíam a
Capitania de Paranaguá, passaram a integrar a Capitania de São Paulo, como sua Segunda Comarca51.
Seus habitantes permaneciam em estado de pobreza, e as diligências para a busca de riquezas minerais

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tinham obtido pouco sucesso. O final do século chegava sem que as esperanças dos governos e dos
particulares se realizassem, sobrando aos moradores poucos recursos de subsistência. Dentre esses
desfavorecidos, muitos vagavam desocupados pelo território fazendo com que as Câmaras Municipais
os obrigassem “a escolherem lugares acomodados para viverem junto a povoações civis”. (Sessão da
Câmara Municipal de Curitiba, 04 de dezembro de 1766). Uma iniciativa que visava, pela força, a
inserção social dos chamados ‘vagabundos’ para evitar-se a perturbação da ordem vigente.
Em tais condições, restava a muitos viver da extração de produtos locais como a congonha –
palavra que, à época, designava a erva-mate –, produto nativo, de fácil acesso, e há muito conhecido
e utilizado como bebida ou remédio. Apesar de a Coroa interessar-se logo por sua exploração, foi
somente ao final do século XVIII que ela passou a ter peso na economia regional e envolver boa parte
da população em sua extração, beneficiamento52 e comércio.
Prosseguia também a produção e comercialização da farinha de mandioca, acrescida do plantio
do trigo, que era exportado para Santos, do arroz pilado e do feijão; estava presente uma pequena
exploração de madeiras e iniciava-se a criação de gado em currais53 esparsos. Plantações de cana foram
introduzidas no litoral, dando início à produção de açúcar e aguardente54. A pesca era igualmente
importante na faixa marítima, devidamente vigiada pela ‘governança’55 da capitania56 de São Paulo que,
em 1730, proibia essa atividade no distrito e nas enseadas da vila de Paranaguá, durante determinados
meses do ano, para não prejudicar a reprodução dos peixes.
Nesse quesito, as preocupações imediatistas da Coroa acabaram por criar inadvertidamente uma
cultura preservacionista57 que iria disseminar-se de uma forma empírica58 e quase intuitiva nas populações
litorâneas, criando práticas que permaneceram através do tempo em suas atividades econômicas. Em
épocas muito mais recentes, legislações específicas viriam regulamentar períodos determinados para
caça e a pesca em todo o território nacional.
Em contrapartida, importava-se o sal, que era tão escasso, a ponto de, ainda em 1763, devido à
grande falta do produto, a câmara de Curitiba ter deliberado a compra de algumas porções para serem
distribuídas entre os moradores. Juntamente com o sal, eram ainda importadas do exterior ferragens e
peças de algodão. (TRINDADE; ANDREAZZA, 2001).

INSTALA-SE UMA SOCIEDADE CAMPEIRA


Ao raiar do século XVIII, finalmente se dera a descoberta de ouro na região das Minas Gerais
e surgiram consequentemente exigências daquele mercado por animais de corte e, sobretudo de
transporte, o que incentivou o crescimento de fazendas de criação nos Campos Gerais. Cabeças de gado
vacum59, vindas do litoral, já existiam na localidade, mesmo antes da oficialização da vila de Curitiba
de onde, no início do século XVIII, uma quantidade considerável de bois e cavalos era exportados para
Minas, São Paulo e Rio de Janeiro.

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Todavia, com a intenção de reduzir o preço do gado e das cavalgaduras60 de Curitiba, o Capitão
General da Capitania de São Paulo ordenou a abertura da estrada do Viamão, que ligaria os campos
desse nome, no Rio Grande, a Sorocaba, em São Paulo. Depois de muitas delongas, em 1731, Cristovão
Pereira de Abreu inaugurou o caminho, com uma tropa de aproximadamente 3.000 cavalgaduras e 500
cabeças de gado. A atividade criatória61 ainda precária que se desenvolvia nos campos locais foi, então,
substituída, em boa parte, pelas invernadas62 que produziram nova fonte de renda para os fazendeiros.
Para preservar essa atividade, o poder vigente estabeleceria regras para proteger as terras adequadas a
essas práticas: “e o cercado que há ao pé desta vila entre o ribeiros dela, não farão data (doação63) dele a
nenhuma pessoa, antes o farão guardar; e aos seus pastos, para que os vizinhos que vêm dos seus sítios
possam nele meter seus cavalos e bois carreiros a pastar, enquanto assistirem na vila”. (Provimentos do
Ouvidor Pardinho para Curitiba e Paranaguá: 1721).
Atentava-se igualmente à necessidade de manter intacta a madeira para finalidades práticas, com
algumas normas expressas na legislação da época: “E sempre se darão as terras no rocio com obrigação
de nelas se fazerem casas cobertas de telha e outras benfeitorias64, com que os sítios permaneçam em
aumento da terra, e não as darão a pessoas que destruindo-lhes os matos e terras lavradias65 as larguem
depois”. (Provimentos do Ouvidor Pardinho para Curitiba e Paranaguá: 1721).
Sob a benevolência da Coroa, o movimento de condução das tropas, denominado ‘tropeirismo’66,
rompeu o isolamento dos que viviam no território então denominado ‘os sertões de Curitiba’67, pois
seu trânsito modificou a paisagem e a sociedade da época. Nas ‘paradas’68 dos tropeiros formaram-se,
gradativamente, pequenos núcleos, pontos de reabastecimento e de encontro, onde se traziam e levavam
notícias e onde havia oportunidade para tomar um bom trago69, ou realizar contatos fortuitos com as
meretrizes. Era também nas vendas e nas bodegas que se firmavam, muitas vezes, acordos políticos,
pagavam-se contas e renovava-se o crédito. Dali nasceram vilas, depois convertidas em cidades, que
ainda hoje pontuam o caminho então tomado pelos animais e seus condutores.
A atividade tropeira deu condições para os habitantes dos Campos Gerais integrarem uma
economia interna partilhada por grupos dispersos em amplo espaço, que ia da região do Prata até
São Paulo. Introduziu também um modo de vida que se diversificou no vocabulário, na culinária, no
vestuário, nas construções e nos hábitos pessoais.
A sociedade que se organizou em função do tropeirismo fundamentava-se na relação senhor-
-escravo, como toda a formação tradicional brasileira. As famílias dos fazendeiros desenvolveram,
nas propriedades campeiras, uma economia quase autônoma70 de sobrevivência: da alimentação ao
vestuário, da fabricação de utensílios ao convívio cotidiano.
No espaço da fazenda, a vida era pacata e rústica, as casas, feitas de taipa de pilão71, tinham poucos
cômodos onde conviviam a família, escravos e índios ‘administrados’72. A mobília, quase inexistente,
compunha-se de uns poucos catres73, baús, mesas, bancos e redes.
A ida às vilas se dava por conta das festas, das funções religiosas e da compra do sal. Por outro lado,
muitos proprietários eram absenteístas74 e visitavam muito pouco suas terras, e eram seus capatazes75,
responsáveis pela vigilância das propriedades, que assumiam o status de ‘fazendeiros’.

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Dessa forma, persistia nessa organização social a separação campo-cidade, enquanto no mundo
ocidental iniciava-se, contrariamente, um movimento pela conservação de bosques e matas e pela integração
da paisagem natural e de animais de estimação ao convívio doméstico, muito em consequência dos avanços
trazidos pela evolução da história natural e as descobertas científicas sobre as diversas espécies vivas.
Paralelamente à economia do gado, as atividades voltadas para a subsistência e a exportação para
outras regiões prosseguia no planalto curitibano, com a produção da farinha de trigo que complementava
a de mandioca, há bastante tempo produzida no litoral. Na faixa da marinha76, também fora iniciado o
beneficiamento do arroz visando, da mesma forma, à exportação. O movimento do porto de Paranaguá
era, todavia, muito fraco, apesar da entrada de vinhos, pólvora, chumbo e chapéus, além de produtos
de pequeno porte, que se acrescentavam às importações já existentes.
A formação da nova cultura campeira, mesmo configurando uma economia interna – que se
mantinha de uma forma que se poderia denominar como autossuficiente e relativamente não
predatória77 –, não impedia a ascendência dos costumes lusos, nem a ingerência dos representantes
da Coroa portuguesa na vida da colônia. Assim, a organização do cotidiano das vilas era preocupação
do Reino e, consequentemente, das câmaras municipais, às quais cabia ordenar78 e retificar79 o
comportamento da população.
Ao final do século XVIII, medidas da Câmara já começavam a apontar para o problema da
salubridade e do abastecimento de água potável, determinando obras para a limpeza das fontes na
vila e em seus arredores “para evitar o uso das imundas águas que correm pelos rios mestres que
por admitirem imundos e perniciosos cheiros muitas vezes acontecem ocasionar doenças”. (Sessão da
Câmara Municipal de Curitiba, 09 de janeiro de 1779).
Como visto, nada se deixava de prever ou de corrigir, desde o arruamento80, as normas para a
construção de casas, os festejos religiosos e profanos81, a limpeza da vila, os hábitos da população, o
alistamento82 militar e, evidentemente, a organização das atividades comerciais.
Na sua função de organizar o mercado, cabia às câmaras expedir alvarás83 de funcionamento para
estabelecimentos de comércio. Em 1769, por exemplo, foi autorizado em Curitiba, o funcionamento
de vinte e sete lojas entre secos e molhados84, carpintaria, alfaiataria, serralheria85, sapataria e ferraria. A
leitura dessas licenças permite entrever, inclusive, que a organização do trabalho nas vilas paranaenses
tinha semelhanças com as corporações da Europa medieval86, em que os mestres de ofício repassavam
seus conhecimentos aos seus auxiliares. Em suas pequenas oficinas, os artesãos produziam ainda artigos
ligados à economia do gado, em couro, chifre87 ou prata, como facas, punhais, esporas e chilenas88,
pinguelins89, talas90, chicotes, copos e guampas. Muitos desses adereços, ostentados por tropeiros de
maior cabedal91, indicavam a prosperidade que seu comércio lhes trazia.
Além da população de origem europeia, da nativa e do contingente92 de mestiços derivados do
contato entre esses segmentos, a estrutura econômica e social da então Comarca de Paranaguá incluía
contingentes de escravos. Em 1780, em um total de aproximadamente 18 mil habitantes, um terço era
composto por negros cativos. Eles estavam presentes em todas as tarefas, fossem domésticas, no campo
ou nas cidades. (TRINDADE; ANDREAZZA, 2001).

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Além dos indígenas, os negros eram o segundo grande grupo explorado pelos colonizadores.
Privados de todos os seus direitos legais e humanos, foram, porém, mais resistentes do que se supõe,
organizando-se após a fuga em comunidades rebeldes (os quilombos93) existentes também no Paraná.
Nesses locais, criaram sociedades autônomas economicamente e comunitárias socialmente que
sobreviviam do cultivo da terra e do manejo94 de animais.
Com base nessa mão de obra, no cômputo geral, o incremento trazido pelo tropeirismo foi muito
produtivo para a economia da região, na medida que, em 1769, já existiam nela 88 fazendas e 131
sítios de criação, com um total de 25.826 cabeças de gado vacum e 5.219 de gado cavalar.
Tal foi a sociedade que, no decorrer do século seguinte, oportunizou ao espaço que seria
posteriormente o Paraná, uma ocupação gradativa que demarcaria, de maneira específica, seu território
no cenário do Brasil colonial. Uma situação que teria continuidade no regime imperial estabelecido
após a independência de Portugal, em 1822.

O MATE E O GADO: PILARES DE UMA ECONOMIA


REGIONAL
Mesmo antes da Independência, as mudanças ocorridas no Brasil com a transferência da corte
real portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, introduziram o livre comércio nos portos do país, o
que incrementou as atividades importadoras e exportadoras em todo o litoral. Ao sul, desde o final do
século XVIII e início do XIX, a economia da Comarca girava em torno da extração e comercialização da
erva-mate. Viajantes do período observavam que a população daquelas paragens adotara com tamanha
intensidade o hábito dos indígenas de consumir o ‘maté’, que o costume passou a merecer descrições
detalhadas sobre aspectos da colheita, do tratamento e do consumo da erva. Relatavam como a árvore
nativa era podada e limpa, e depois secada à moda paraguaia; e como as folhas eram trituradas para,
mergulhadas em água fervente, serem tomadas com bombas95, em cuias96 de sassafrás97.
Com a abertura dos portos brasileiros, a navegação de longo curso com o Rio da Prata permitira,
desde 1810, a exportação regular da erva-mate, bem como de alguma madeira, para o exterior. O
transporte do produto era feito primeiramente em surrões98 de couro e, posteriormente, em barricas,
mercê do desenvolvimento das serrarias, das carpintarias e do artesanato, até chegar aos portos de
Antonina e Paranaguá, rumo a Montevidéu e Buenos Aires. Morretes acompanhava a movimentação,
uma vez que nela se concentravam os soques99 daquele produto, rapidamente disseminados serra acima.
Além de incrementar o comércio do couro para confeccionar os surrões, a economia do mate
incentivava a confecção de cuias e outros utensílios, como bombas de chá, em prata e ouro. Em
meados da década de 1830, já eram identificados 34 ‘engenheiros’100 do mate na comarca, estando a
maior parte dos engenhos localizados nos arredores de Curitiba. Desde o final do século anterior, o
beneficiamento do mate apresentava um caráter quase fabril, desenvolvido em ambiente fechado e sob
supervisão, sendo gradativamente aprimorado pela utilização de tecnologias inovadoras, como o uso da

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tração hidráulica101. No afã do lucro, os comerciantes do mate acabavam interferindo nesse trabalho,
entrando em concorrência com os produtores.
O interior da região também transformou-se com a crescente importância dessa verdadeira
indústria, pois a intensificação do extrativismo favoreceu a ocupação de áreas basicamente inexploradas.
Muito consumida era igualmente a aguardente, produção subsidiária102 dos engenhos de açúcar da
faixa litorânea, atestando o grande consumo daquela bebida em épocas em que a vida era árdua e os
víveres103 escassos. (TRINDADE; ANDREAZZA, 2001).
Por ser a erva-mate de origem nativa, sua exploração, em si, não trazia grandes agressões ao solo,
porém, o desenvolvimento dessa economia acabou por ocasionar, no decorrer do século XIX, impactos
no ordenamento sociopolítico da sociedade local. Isso porque o incremento da atividade exploratória
resultou no abandono, pela população rural, das demais atividades econômicas. Por outro lado, o
crescimento progressivo dessa produção e sua conversão em sistema fabril104 fez surgir a figura do
operário, determinando novas formas de exploração da mão de obra laboral105, contrária à convivência
saudável entre os grupos sociais.
A emergência da economia ervateira fez-se sem prejuízo da pecuária que se manteve no decorrer
do século XIX. O tropeirismo, que já iniciara um movimento de expansão territorial no século anterior,
consolidou, nas primeiras décadas do oitocentos, a ocupação dos campos de Palmas e de Guarapuava.
Naquele período, as fazendas dedicavam-se muito mais às atividades de invernagem do que às criatórias,
definindo uma tendência que se esboçara desde a abertura da estrada do Viamão. Não obstante, a
‘lide’106 com o gado continuava a caracterizar o cotidiano do planalto onde, conforme as observações do
viajante francês Auguste de Saint-Hilaire, todos os homens ‘úteis’ ocupavam-se em perseguir vacas ou
touros, o que chegava a ser ‘uma espécie de divertimento’. Mas, na verdade, a faina do gado era árdua
para os adultos, e eram as crianças que nela encontravam significados lúdicos107. O mesmo viajante
relatava que ‘meninos, ainda pequenos, aprendem a atirar o laço, a formar rodeio e a correr atrás dos
cavalos e dos bois’. Esse envolvimento das crianças nas atividades do mundo adulto lembra igualmente
os traços da sociabilidade pré-industrial europeia, com que o mundo do trabalho local se identificava,
sem atentar para problemas de ordem moral e para as desigualdades sociais que o sistema propiciava.
Por outro lado, as transformações, políticas e econômicas, ocorridas no Brasil nas primeiras décadas
do século XIX trouxeram outras novidades ao cotidiano da comarca. A crescente importância assumida
pelo cultivo do café nas regiões fluminense e paulista propiciou, desde o início, o deslocamento de
contingentes de escravos para as regiões cafeeiras. Mas se a proporção de escravos efetivamente diminuiu
no Paraná, isso não significa que eles deixaram de compor a população regional que, na primeira metade
do século XIX, manteve-se assemelhada à setecentista: portugueses e castelhanos, índios ‘administrados’,
escravos negros e descendentes e mestiços de todos esses grupos. Esse estrato da população era
normatizado108 pela legislação de então que proibia os jogos de azar, o porte de armas e as danças e cantos
populares (Posturas Municipais. Paraná, 1829 a 1895), em total desrespeito aos direitos individuais.
Em 1812, a sede da comarca foi transferida para Curitiba, sob a alegação de estar aquela localidade
mais próxima do caminho das tropas. Todavia, uma crescente insatisfação já grassava entre os habitantes

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de Paranaguá, – e posteriormente de Curitiba e das demais vilas de alguma importância – com o


descaso da política adotada por São Paulo em relação à sua agora Quinta Comarca. Nasceu daí um
movimento de emancipação109 que percorreu toda a primeira metade dos oitocentos até concretizar-se,
em 1853, com a desejada criação da mais recente província110 do Império. Surgia, finalmente, o Paraná.
Entretanto, conquistada a emancipação, muito pouca coisa se alterou na sociedade e na economia
da nova Província. Na segunda metade do século XIX, viajantes, como o francês Avé-Lallemant ou
o inglês Bigg-Wither, descreviam Curitiba, agora capital da nova divisão administrativa, e as cidades
litorâneas, como verdadeiros ‘acampamentos’ que a insalubridade111 e a morbidade112 tornavam
extremamente desagradáveis. Em 1858, Lallemant estabelecia diferenças entre uma Curitiba que
tentava ‘regenerar-se’, com novos serviços e novas construções, e a antiga, na qual “há muita coisa em
ruína e não se pode deixar de reconhecer evidente decadência e atraso”.
As constantes observações dos visitantes estrangeiros sobre a precariedade das cidades brasileiras,
inclusive as da região do Paraná, denunciavam condições de cunho ambiental, econômico e social que
só começariam a ser revertidas no final do século XIX e início do XX.
Tal situação repetia-se em vários pontos do território paranaense, e ao final período, as cidades de
algum destaque, com melhores condições de conforto e população superior a 10.000 habitantes, mal
ultrapassavam uma dezena.
Ao norte, ainda muito pouco ocupado, foram instaladas até 1860, a colônia militar do Jataí
e os aldeamentos indígenas de São Pedro de Alcântara e de São Jerônimo. Foi por volta dessa data
que cafeicultores paulistas e fazendeiros mineiros, e também migrantes nordestinos, penetraram em
terras paranaenses, fazendo surgir ali pequenos núcleos agrícolas, conformando o que mais tarde seria
chamado Norte Velho. No entanto, tratava-se de uma ocupação reduzida, visto que, pelo censo de
1900, o número de moradores do norte não ultrapassava 16.000 habitantes, o que deixava incultas a
maioria das terras disponíveis.
Nesse panorama precário, a política imigratória113, que, sob o incentivo do governo central,
encontrou eco nas iniciativas da administração local, tornou-se fator determinante de transformação
econômico-social. Nas três últimas décadas do XIX, várias colônias foram instaladas no Paraná, muitas
delas próximas aos sítios urbanos114. Alemães, poloneses, italianos, entre outros, chegaram em grandes
levas, destinados preferencialmente ao trabalho na lavoura.

O RURAL E O URBANO: INÍCIO DA MODERNIZAÇÃO


Dentre as motivações imigrantistas da Província do Paraná destacou-se, a princípio, a baixíssima
densidade demográfica115. A recente elite provincial excluía de seus planos povoadores o concurso
da população nativa116, nutrindo – assim como as demais províncias – a certeza de que a imigração
europeia era o único caminho para a regeneração do povo brasileiro. Par e passo117 com a preocupação
populacional, a política imigratória brasileira, e paranaense, orientou- se pelas necessidades de promover

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a agricultura de subsistência e as obras públicas. A despeito do entusiasmo em torno da imigração, o


processo sofreu inúmeros revezes. No Paraná, como em São Paulo e outras partes do país, algumas
colônias fracassaram, na medida que foram instaladas em terras impróprias para o cultivo e onde era
impossível comercializar a produção. O governo brasileiro, a partir década de 1870, preocupou-se,
então, em fixar os imigrantes em terras de melhor qualidade, em prestar-lhes assistência nos primeiros
tempos e em garantir o escoamento do excedente dos víveres produzidos para os centros urbanos.
Tais políticas mostraram as primeiras preocupações com a qualidade da produção agrícola e o devido
suporte aos habitantes do campo.
Mas a Província do Paraná quase não dispunha de recursos para sustentar tais iniciativas e enfrentava
a oposição de sua elite econômica, contrária à ocupação das ricas terras de pastagens dos Campos Gerais,
pelos imigrantes. Na prática, a pequena propriedade dos colonos foi estabelecida em zonas recobertas
por florestas, em torno de cidades do litoral e do primeiro planalto e, somente a partir da década de
1890, houve um avanço destas colônias no sentido do interior. Desde os anos 1870, porém, elas haviam
propiciado uma parte do pessoal empregado nas atividades ervateiras, desde a coleta e o preparo da erva
cancheada118, até seu transporte para os portos de embarque, já que, segundo documentos da época,
homens, mulheres, crianças, ricos e pobres, homens livres e escravos, brancos e negros, todos participavam
daquela economia. De certa forma, estavam todos juntos em uma causa comum que atenuava os limites
das diferenças sociais. Os imigrantes, além do cultivo e da venda de produtos de primeira necessidade119,
trabalhavam, igualmente, na abertura de estradas e construção de ferrovias, e toda sorte de trabalho braçal.
No entanto, se o estado buscara atrair principalmente ‘cultivadores úteis’ para povoar o Paraná, os
navios que aqui aportaram também trouxeram europeus ligados às atividades urbanas. Algum tempo
após sua chegada, muitos deles, insatisfeitos com a vida rural, transferiam-se – sozinhos ou com suas
famílias – para as cidades. Essa desconcentração dos colonos em busca de melhores oportunidades nos
meios urbanos possibilitou que ocorresse um certo equilíbrio populacional entre o campo e a cidade.
Italianos, alemães, poloneses, ucranianos, franceses e indivíduos de outras etnias vieram dar
uma nova feição às urbes. Até então constituídas como centros administrativos e políticos, já que
quase a totalidade da população brasileira vivia na área rural, nelas começou a florescer uma economia
tipicamente urbana, causando o aumento da população residente. Na capital paranaense essa presença
foi tão significativa que, em 1872, Bigg-Wither já anotava que a cidade possuía 9.500 habitantes,
sendo 1.500 imigrantes.
Atribui-se aos imigrantes importante papel na diversificação da atividade artesanal120, no comércio
e no desenvolvimento de pequenas e médias indústrias de caráter familiar presentes no Paraná, desde
meados do século XIX e início do XX. Divididas entre os elementos locais e as várias etnias, as fábricas
espelhavam a nova hierarquia socioeconômica: brasileiros e imigrantes disputavam a área nobre da
madeira, do mate e dos cereais; os alemães predominavam nas bebidas, nas fundições121, nos móveis,
couros, vestuário; e estavam, de resto, presentes na maioria das atividades fabris; italianos e poloneses
concorriam na área de alimentos.
A presença imigrante foi muito significativa também para as melhorias urbanas em diversas
localidades paranaenses, onde se disseminaram construções inspiradas nas técnicas e nos estilos

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europeus. Alteraram, ainda, a arquitetura religiosa de estilo colonial122 que passou a refletir o ecletismo123
dominante na época e a nova feição multicultural da sociedade. Apesar de diversos atritos entre
nacionais e imigrantes, a presença desses nas cidades propiciou o início de uma convivência profícua124
entre as diversas culturas – o que, no Paraná, iria ser traço marcante de sua identidade. A edificação
da atual Catedral de Curitiba, no último quartel do século XIX, é uma síntese dessa plurietnicidade.
Contou com o trabalho de um arquiteto francês, engenheiros italianos e alemães, além de mestres-de-
-obras, artífices125 e operários de diversas nacionalidades.
De toda maneira, nas diversas regiões em que se instalaram, os estrangeiros foram agentes de
transformação. Nas cidades, porém, contribuíam de forma peculiar para a construção de uma nova
forma de viver urbano que iria caracterizar o cotidiano dos paranaenses daí em diante. Muitas
dessas transformações espelhavam as ocorridas na Europa ocidental e nos Estados Unidos, onde o
crescimento das cidades e a insalubridade126 criada pelas aglomerações populacionais traziam riscos à
vida humana. Políticos e cientistas implementaram, então, medidas sanitárias127 – que contavam com
os conhecimentos de médicos, engenheiros e higienistas128 para combater os males que acometiam os
habitantes das urbes129 – e terapêuticas130 – que garantissem o equilíbrio do espaço citadino.
Toda essa renovação acontecia concomitantemente às transformações radicais por que passava a
sociedade brasileira nas duas últimas décadas do século XIX, em função da abolição da escravidão e da
proclamação da República. Nessa nova conjuntura haviam-se alterado significativamente as relações de
trabalho, bem como os rumos políticos da nação. Foi também nesse período que começaram a estabelecer-
-se, no novo estado do Paraná, interesses capitalistas sob a influência progressiva de uma elite econômica
ligada às indústrias ervateira, madeireira e, em menor grau, ao setor agropecuário131. Esses grupos,
formados por elementos nacionais ou estrangeiros, iriam deter a força política no Paraná republicano,
substituindo os fazendeiros tradicionais ligados ao tropeirismo, que entrava em fase de retração, sobretudo
após o desenvolvimento das vias férreas. A alternância dos grupos economicamente dominantes no quadro
político do estado, em período de longa duração, consagrava um processo que impedia – como em todo
o Brasil – a evolução para uma convivência participativa, como viria a ser desejável em tempos futuros,
além de impedir o acesso das classes subordinadas a uma condição mais igualitária.
Um episódio marcante do período republicano no Paraná foi a chegada das tropas gaúchas da
Revolução Federalista de 1893, em cidades situadas na rota que levava a São Paulo e Rio de Janeiro.
Uma conjuntura que gerou desordem, desunião e oposições na política e nas sociedades locais, além de
desorganizar, por um tempo, suas atividades econômicas.
Na virada para o século XX, porém, a exploração da erva-mate que gradativamente adotara um
caráter fabril pelo aperfeiçoamento tecnológico132 e por uma nova organização social do trabalho133
atingiu seu auge; o mesmo aconteceu com a indústria madeireira que se desenvolveu acompanhando
o curso dos rios e os trilhos das ferrovias, atingindo a cifra de mais de meia centena de serrarias134 em
produção, por volta de 1900. Em consequência, as florestas paranaenses quase intocadas até a segunda
metade do XIX, foram sendo exploradas e lentamente substituídas por pastos e capoeiras.
Nessa época, acompanhando as novas concepções sobre campo e cidade, crescia no mundo
ocidental uma valorização dos contatos com a natureza e da sua preservação. Nos Estados Unidos foi

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importante a disseminação de uma visão que preconizava a preservação da fauna, flora, cursos d’água e
solos, construindo pressupostos que ficaram conhecidos como ‘conservacionismo’ e geraram políticas
que, em 1890, criaram reservas florestais de domínio público federal. No Brasil, tais políticas vieram a
dar origem, no início do século XX, a uma legislação voltada às mesmas preocupações. Foi o começo
de um pensamento que se dirigia a determinadas ações sobre os ambientes rural e urbano.
O Paraná Tradicional ainda que fortemente ligado à hegemonia econômica das grandes fazendas,
assistiu ao desenvolvimento das várias atividades fabris e de um movimentado comércio que se opunha
à tendência que antecipava a preocupação ambiental. No campo socioeconômico, configurou-se uma
classe operária nos núcleos urbanos de maior porte. ‘Grosso modo’, por volta de 1910, o Paraná possuía
mais de 300 estabelecimentos onde trabalhavam cerca de 5.000 operários, ocupando o estado o quinto
lugar no incipiente135 setor industrial do Brasil. Os principais ramos dessa indústria eram a ervateira e
a madeireira, além da carpintaria, da fabricação de fósforos, da fiação e da tecelagem. Os trabalhadores
atuavam, ainda, nas fábricas de sabão, velas, vidros, barricas e estabelecimentos manufatureiros de
calçados, chapéus e na fabricação de queijos. Nesse mundo laboral ocorriam, com certa frequência,
movimentos reivindicatórios derivados de desentendimentos entre patrões e empregados. A greve geral
de 1917 constituiu, em todo o Brasil, um marco da organização da classe trabalhadora que, em defesa
dos seus interesses, saiu às ruas em luta contra o empresariado e o governo. A presença pública dessas
pessoas, antes relegadas às margens do sistema, desencadeou confrontos com a polícia que fizeram
aflorar136 tensões há muito represadas, marcando a presença de reivindicações por igualdade social que
perdurariam no Brasil até os dias atuais.
No conjunto desse desenvolvimento econômico e social do início do Brasil republicano, o trem
funcionou como mensageiro do progresso. No Paraná, abriu caminho entre Curitiba e Paranaguá,
em 1885, estendendo-se depois a Ponta Grossa e atingindo o sul e o norte, integrando as regiões.
Nas terras do norte – onde se completava a ocupação dos vales dos rios das Cinzas, Itararé e
Paranapanema –, chegava a Ourinhos, em 1908, com a construção da Estrada de Ferro Sorocabana,
destinada a atingir o oeste do Estado de São Paulo, via norte do Paraná. Entretanto, as melhorias de
transporte e comunicação não se esgotaram com as ferrovias; desenvolveram-se ainda as estradas de
rodagem que, em 1917, iriam atingir 6.000 quilômetros em tráfego. No entanto, grande parte do
transporte, sobretudo o do mate, ainda sofria a concorrência das carroças dirigidas pelos imigrantes,
sobretudo russos brancos137 que, malsucedidos nas atividades agrícolas, encamparam138 esse setor de
prestação de serviços.
A dilatação, cada vez maior da rede ferroviária esteve articulada aos propósitos de companhias
particulares, nacionais e estrangeiras, ocupadas em explorar a madeira das regiões dos rios Iguaçu e
Paraná, como foi o caso da Southern Brazil Lumber and Colonization e da Brazil Railway (estrada de
Ferro São Paulo-Rio Grande). A presença das duas empresas implicou a expulsão de posseiros e o
empobrecimento de pequenos madeireiros, somando-se a eles os empregados dispensados pela Estrada
de Ferro, estimados em cerca de oito mil trabalhadores. Daí nasceu um exército de desocupados que se
tornaram presa fácil de líderes pseudorreligiosos.

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Essa situação ativou o messianismo presente na religiosidade popular levando os caboclos139,


despojados de condições de sobrevivência, a deflagrar140, em 1912, a guerrilha da região do Contestado,
com o objetivo de instaurar uma nova sociedade fundamentada em princípios místico-religiosos,
movimento duramente reprimido pelas forças do governo.
A exclusão social e econômica advinda dos interesses do governo paranaense e das companhias
estrangeiras trouxe, assim, resultados danosos à organização da sociedade e ao equilíbrio ambiental
no estado.
Além das ferrovias, foi no setor dos serviços públicos – eletricidade, carris141 urbanos e telefonia –
e no financiamento das exportações primárias que se deram os investimentos estrangeiros por meio do
London & River Plate Bank e do London & Brazilian Bank, posteriormente, Bank of London & South
America. Enquanto isso, o setor industrial nascente ficava a cargo dos investidores locais.
Paralelamente ao avanço da modernização, houve um rápido crescimento populacional no estado.
De 126.722 em 1872, o número de habitantes aumentou para 327.136, em 1900. No município142 da
capital, estimava-se já uma população de 53.928, em 1905. No censo de 1920, o Paraná ocupava o 13º
lugar no país e sua população atingia 685.711 habitantes, 2,2% da população brasileira.
Enquanto isso, ao levar o progresso para o interior, o trem revelava as carências naquelas regiões.
Insalubres, mórbidas e despidas de infraestrutura até a última década do século XIX, a maioria das
cidades paranaenses apresentava-se como palco de epidemias143, endemias144 e desconforto. Além de
atender às necessidades da população relativas à higienização145 e ao saneamento146, a modernização dos
maiores centros urbanos não se dava apenas no âmbito das políticas de governo e na nova disposição
dos espaços privados, mas também no aprimoramento dos ambientes públicos, inclusive nas áreas de
lazer, como cinemas, teatros e confeitarias.
Os novos lazeres opuseram-se às formas tradicionais de divertimento, caso do fandango, que
tenderam a isolar-se nas cidades do interior. Delineava-se, cada vez mais, a oposição cidade-campo,
criando-se a alteridade147 que permitiu a discriminação da população rural pelos citadinos148, em
desacordo com uma prática que visaria ao equilíbrio entre esses dois espaços.
Paralelamente, as cidades paranaenses do início do novo século foram incorporando alguns signos
da então moderna tecnologia que, em nível universal, manifestavam-se por meio do telégrafo, do
telefone e da luz elétrica; depois, dos automóveis e bondes. Cientes também das intervenções sanitaristas
que eram realizadas nas capitais europeias, os governantes dirigiram sua atenção para temas como o
tratamento das águas, o escoamento de dejetos149 e a purificação do ar por meio da vegetação.
A administração pública dedicou, assim, crescente atenção aos procedimentos de embelezamento
das cidades mediante a arborização de ruas e praças e a criação de parques destinados à fruição de seus
usuários. Medidas ainda incipientes, já que a mentalidade da época não alcançara os patamares de uma
real preocupação com o entorno. (TRINDADE; OLIVEIRA; SANTOS, 1997).
Em consequência, o desenvolvimento das cidades no Paraná da Primeira República trouxe consigo
não apenas a reformulação dos hábitos das camadas privilegiadas. Ele impôs um novo ritmo às relações
urbanas e conduziu à cena novos grupos que modificaram seus espaços e deram vida ao seu cotidiano,

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enquanto outros ficavam isolados em sua invisibilidade, já que a desigualdade de condições financeiras e
a ausência de uma política de boa convivência comunitária os afastava dos demais setores da sociedade.

DO PARANÁ DO CAFÉ AO PARANÁ INDUSTRIAL150


Os anos 1930 e a presença de Vargas na presidência da República inauguraram, para todo o Brasil,
um período de centralização e nacionalização que tentava controlar a influência das forças regionais.
O campo econômico foi marcado pelo esforço do desenvolvimento pela via da industrialização, em
oposição às tendências com base na atividade agroexportadora151 que, embora amparada pela política
do governo, teve de abandonar seu papel predominante no conjunto da economia brasileira. Durante
todo o período, seguido da fase de ‘redemocratização’152 após o final do Estado Novo (1937-1945), a
organização do aparelho do Estado153 tentou adequar- se às variações dos rumos tomados pela produção
nacional e pelas relações comerciais com o exterior nas diversas conjunturas154 por que passou o país.
Ao mesmo tempo, no que se referia à produção e comercialização dos recursos naturais, sobretudo
quando se tratava da ocupação e exploração do solo, as relações do Brasil com o exterior refletiam-
-se em medidas atreladas ainda aos pressupostos da corrente conservacionista155 norte-americana.
Nesse sentido, foram implementadas no país políticas relativas à proteção do patrimônio artístico e
nacional que incluíam a preservação dos monumentos naturais, bem como os agenciados pelo trabalho
humano. Com essa intenção, criaram-se dois parques naturais, o da Serra do Itatiaia e do Parque
Nacional do Iguaçú, esse último no Paraná. O Código Florestal e o Código das Águas, ambos de 1934,
são igualmente exemplo dessa atitude inovadora. No entanto, foi para as cidades que se dirigiram,
sob a égide156 do governo central, as medidas mais efetivas voltadas à higiene, ao sanitarismo e ao
lazer, na medida que esses espaços urbanos deveriam tornar-se expressão de uma sociedade moderna e
industrializada.
Em contraste com o restante do território nacional, no âmbito paranaense, o início do período
encontrou uma economia que ainda se mantinha em torno de dois setores: o ervateiro, com uma
trajetória de expansão a que se seguiu um período de desaceleração, e o madeireiro, em crescimento
constante no comércio interno e externo.
Em outras regiões do estado ainda desocupadas, um fator de grande magnitude veio cumprir o
mesmo papel desbravador157 que as ferrovias haviam desempenhado ao final do século XIX e início do
XX: tratava-se da agricultura do café e sua consequente marcha através do estado.
Efetivamente, ao norte do Paraná, o contato cada vez maior com a cafeicultura paulista e a
expansão das ferrovias entre os dois estados havia criado o que pode ser chamada a ‘corrida do café’,
concluída às margens do rio Paraná, em meados da década de 1930, configurando o povoamento de
um território que passaria a chamar-se Norte Novo, em oposição ao Norte Velho, já ocupado. Em
função dessa atividade, entre 1940 e 1960, a participação do Paraná na produção cafeeira aumentou
de 7% para 52%, fenômeno que lhe trouxe um grande aporte de capitais158, não só para a agricultura

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como também para a indústria. Essa prosperidade, com raízes na economia paulista, organizou-se
a partir dos excedentes de um sistema de produção adaptável aos férteis terrenos paranaenses, da
construção de uma rede de estradas de ferro que ampliou as fronteiras de ocupação e da organização
das companhias particulares que exploraram a colonização da região.
Naquela época, os sucessivos governantes do estado tiveram que enfrentar, em seu projeto
administrativo, o desafio desse fenômeno e de suas contradições. Efetivamente, entre os fatores básicos
a serem considerados pela administração estavam as inúmeras frentes pioneiras que começavam a
ocupar vastos territórios do Norte, compostas por contingentes nacionais e estrangeiros das mais
diversas origens. Tal explosão demográfica, que caracterizava a busca pelo ‘ouro verde’, seduzia os
migrantes com a miragem159 da propaganda. Nesse contingente, foram atraídos pequenos proprietários,
grandes e médios empresários e inúmeros despossuídos que forneceram a mão de obra necessária para o
trabalho de desbravamento, plantio e construção de cidades. Em consequência, houve um crescimento
populacional acelerado na região, quando o número de habitantes saltou de 340.000 para 2.681.000.
Todo esse processo de urbanização intensiva e de migração sem controle ocasionou um desequilíbrio
estrutural, pois esse movimento se dava sem que houvesse uma política que protegesse as terras de práticas
agrícolas nocivas à saúde e ao meio e desse, aos habitantes da região, condições igualitárias de vida. Tratava-
-se de uma agricultura invasiva, que provocava o desmatamento e a poluição do solo, par e passo com
crescimento intenso das concentrações urbanas com suas consequências para o ambiente e a vida humana.
A diferenciação entre a ocupação do Norte Velho, nos períodos anteriores, e a do Norte Novo, foi
o caráter induzido160 dessa última.
A recém-formada burguesia cafeeira não podia assumir sozinha a formação dos novos cafezais,
tarefa que teve que ser conduzida pela união dos fazendeiros com as grandes empresas imobiliárias.
O esforço resultou numa expansão crescente da área dedicada à cafeicultura. Na década de 1950,
foram sucessivamente ocupadas as regiões Noroeste e Oeste, até os rios Ivaí e Piquiri. Para além da
iniciativa privada, foi também marcante o papel do governo na gestão161 desse processo, por meio
do loteamento162 e da venda de extensos territórios, em favor de empresas como a Paraná Plantation
Limited e a Companhia de Terras do Norte do Paraná, depois Companhia Melhoramentos do Norte
do Paraná. A união dos investimentos públicos e privados sem regulamentação adequada à organização
social e econômica dos locais então ocupados viria a causar inúmeros problemas que se refletiriam no
futuro de todo o Paraná. Dentre eles, os efeitos nefastos163 da poluição e da explosão demográfica ao
equilíbrio ambiental.
Efetivamente, o plantio acelerado do café atingiu um ritmo intenso, dominando a paisagem e
estendendo-se a perder de vista. E se, no final do século anterior, a diversificação do Paraná dera-
-se, sobretudo, devido à contribuição da cultura notadamente camponesa trazida pelos imigrantes,
nesse momento o mosaico cultural164 ampliava-se, em função do deslocamento de mineiros, paulistas
e nordestinos em direção ao Norte do Estado.
As cidades que se multiplicavam apresentaram, nos primeiros tempos, um aspecto de faroeste
americano e os novos habitantes trouxeram para elas hábitos e costumes de homens da zona rural. Esses

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pioneiros vieram a exercer uma ação dominante sobre a cultura tradicional da região, em detrimento
do estabelecimento de uma diversidade enriquecedora para ambos os lados.
Logo, porém, o crescimento vertiginoso da cultura cafeeira, nas décadas de 1950 e 1960, introduziu
nas cidades, sobretudo em Londrina, a chamada capital do Norte, os signos do progresso e da euforia
que acompanham esse tipo de ocupação. De tal forma que, segundo o noticiário local, para ela e outras
cidades da região, ‘as estatísticas já nasciam velhas’.
Em contraste com a região Norte, salvo por alguns terrenos em que se desprezou o perigo das
geadas e se tentou a cultura do café, o Oeste não recebeu o influxo165 dos capitais e da ação dos
cafeicultores paulistas, sendo porém alvo de um planejamento de ocupação por parte do governo
paranaense. Ali, companhias concessionárias166, sobretudo estrangeiras, praticavam desordenadamente
a extração do mate e da madeira, utilizando como mão de obra a população local. Essas atividades,
além de causarem a destruição das matas nativas e das pequenas agriculturas de subsistência, resultavam
no empobrecimento dos habitantes da região, sem que se atentasse aos prejuízos causados à própria
sustentação de sua qualidade de vida. Em contrapartida, a política do governo atraiu uma frente
povoadora constituída de migrantes de origem alemã e italiana oriundos do Rio Grande do Sul e de
Santa Catarina que se instalaram no local, desenvolvendo o cultivo de cereais e oleaginosos167 e a criação
de porcos o que, de certa forma, pela via da diversificação provocada por sua presença, minimizou o
estado de carência econômica da região.
No entanto, por bastante tempo, a insuficiência de transportes na região retardaria sua integração
ao conjunto do estado. Outro fator considerado desfavorável foi a preferência pelo regime de pequena
propriedade e pela colonização de origem sulina que marcavam as ações administrativas naquele
momento e seriam apontadas, posteriormente, como indutores de desorganização e atraso. Além
disso, a instalação dos novos grupos acentuou a situação de miséria da população local que passou a
vagar desamparada por toda a extensão do território, em sentido contrário ao que seria desejável para
equilíbrio dos movimentos migratórios.
Da mesma forma, no Sudoeste, a alienação de glebas para empresas particulares, como a
Maripá, realizadas pelos governos federal e estadual fez com que terras fossem novamente ocupadas
por milhares de ‘posseiros’168, desencadeando tensões e confrontos. Daí decorreram anos de luta que
acabaram, em 1957, num conflito armado, acompanhado por mortes e destruição. Cenas de tortura,
abuso das viúvas dos camponeses mortos e cobrança indevida de impostos e contribuições marcaram
a ação dos jagunços das companhias, e até da polícia local, contra os habitantes da região. Foi uma
campanha encabeçada pelos detentores do capital e do poder que, pela força, calaram as vozes dos
menos favorecidos impedindo-os de reagir à situação de exclusão a que foram submetidos e de pôr em
ação o pleno exercício de sua cidadania.
Apesar do advento da agricultura cafeeira e da colonização de várias porções de áreas devolutas,
a industrialização paranaense ocupava, à época, uma posição diminuta no contexto nacional – 3,06%
do total, em 1950 –, mesmo tendo apresentado um crescimento interno de 850% em relação à década
de 1940. A torrefação169 e a moagem170 do café ocupavam ainda 53% da transformação dos produtos
alimentares que era a grande atividade industrial.

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Todavia, curiosamente, a exploração do mate e da madeira havia dado origem a uma burguesia
industrial, em oposição ao que ocorrera no restante do Brasil onde a classe economicamente dominante
era tradicionalmente formada por proprietários de terra ou comerciantes. Essa burguesia agia ativamente
nas atividades exportadoras, investia no exterior e estendia seus interesses a outros setores industriais,
bancários, de seguros e empresas aéreas.
No início da década de 1960, a economia paranaense mantinha ainda sua base econômica na
agroindústria171 apresentando, porém, uma política de governo que agia de forma oposta ao que
se fizera nas gestões anteriores, quando os pontos-chave da administração eram o povoamento e a
colonização. Os dirigentes do novo período iriam considerar as correntes povoadoras que ocuparam
todo o território paranaense como fator indesejável, por serem introdutoras da pequena propriedade
e da policultura, agora consideradas obstáculos ao desenvolvimento, por provocarem, muitas vezes,
a formação de minifúndios172 considerados prejudiciais ao progresso econômico. O acesso a certos
princípios considerados científicos e tecnológicos conduziu as políticas econômicas de então a
implementar padrões de produção, consumo e investimento que desconsideravam a equidade que
traria uma possibilidade de melhor distribuição de renda e a execução de melhores projetos sociais.
O tema da industrialização substituiu, portanto, o da ‘vocação agrícola’ do estado e apresentava-
-se a necessidade da ampliação da infraestrutura173 básica, sobretudo rodovias e energia elétrica. O
aumento da malha viária174 integrou o porto de Paranaguá e a capital ao Norte e, à medida que
Curitiba tornou-se centro industrial de certa importância no Sul do país, estreitaram-se seus laços
econômicos com as diversas regiões do estado e com São Paulo. Naquele momento, sua população
havia atingido os 4.200.000 habitantes, o que representava uma marca verdadeiramente inusitada175
de 102% em seu crescimento.
Ao lado da diversificação da agricultura176, o Censo Industrial de 1960 mostrou um Paraná que
apresentava três regiões industriais: a do norte; o madeireiro, a oeste; e a do sul, centrada basicamente em
Curitiba. No transcorrer daquela década, embora a capital continuasse a ser a região mais desenvolvida
industrialmente, houve uma significativa incrementação desse setor na região Norte. O fenômeno era
reflexo dos problemas da superprodução177 e das ‘geadas negras’178 que reduziram significativamente a
cultura do café, trazendo novas formas de exploração agrícola e industrial à região. De qualquer forma,
o auge do ‘ouro verde’ fora decorrência de uma mudança conjuntural da economia agroexportadora
que teve uma trajetória breve, apesar de deixar marcas indeléveis naquela sociedade fronteiriça179.
Com o declínio da cafeicultura, dentre os produtos agrícolas como o trigo, o milho, o feijão, o
amendoim, e a criação de suínos que compunham a base da economia paranaense, a cultura da soja
foi a que se impôs aos mais importantes proprietários rurais, pelo seu valor no mercado exportador
e pelo seu grande efeito na indústria e na urbanização180. O apogeu da soja não eliminou, porém, a
necessidade de aumentar as possibilidades do estado no setor industrial, o que foi implementado em
1972, com a criação da cidade industrial de Curitiba, (a CIC), em Araucária, município vizinho da
capital, com vistas à ampliação de bens de consumo181 duráveis e bens de capital. Duas décadas depois,
outra investida do governo na área industrial projetou a instalação de um polo automotivo182 no estado
pela atração de montadoras, algumas das quais se fixaram nos arredores de Curitiba.

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Justamente no momento em que o Paraná começava a se afirmar como polo industrial no cenário
nacional, em nível internacional surgiam alertas quanto ao uso desordenado dos produtos químicos
sobre a saúde das pessoas e na reprodução de animais. E, mais que isso, sobre os perigos trazidos pela
poluição hídrica e atmosférica e pelo desmatamento resultante das estratégias de ocupação da terra. A
Primeira Conferência das Nações Unidas Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada em 1972
na Suécia, divulgou outra corrente de pensamento que veio substituir o conservacionismo até então
pioneiro: o ambientalismo, cuja proposta seria adotarem-se políticas dirigidas à utilização dos recursos
naturais e ao controle de processos poluitivos, visando conciliar meio ambiente e desenvolvimento
econômico. Novos conceitos como ecologia e ecossistema começaram a ser conhecidos, sobretudo, no
que se referia ao planejamento urbano – a ecologia urbana – definida como um sistema que englobava
as condições naturais e socioeconômicas que agiam sobre os organismos vivos, as atividades humanas
e o meio físico.
No Brasil, desde o final da década de 1960 o governo militar, no poder desde 1964, tomou
algumas medidas para atender às mais recentes abordagens relativas ao meio ambiente: um novo
Código Florestal (1967) e a criação da SEMA (Secretaria Especial do Meio Ambiente, 1975); das
CETESB (Centro Tecnológico de Saneamento Básico, 1968), em São Paulo, e da SUREHMA
(Superintendência dos Recursos Hídricos, 1978), no Paraná. Por outro lado, a devastação e poluição
criadas pela atuação do Proálcool e a ocorrência de diversos desastres ambientais contribuíram para
o surgimento de uma consciência ambientalista no país, mercê das pressões internacionais. Para as
aglomerações urbanas, o movimento ambientalista gerou políticas como os Planos de Desenvolvimento
Integrado que buscavam, entretanto, aplicar modelos exógenos183 sem preocupação com as condições
locais. (TRINDADE; OLIVEIRA; SANTOS, 1997).
No Paraná, a força da influência econômica e cultural emanadas da capital e das regiões
circunvizinhas184 permaneceu, no entanto, como um dos fatores que deram continuidade às diferenças
culturais que, no início dos anos 1970, ainda marcavam o seu cenário. E, mesmo que as diversas ondas
de povoamento houvessem introduzido a integração de todo o território e propiciado êxitos no campo
econômico e político; ou que se tenha formado um determinado tipo de sociedade e oportunizada a
fundação de muitas cidades, a metropolização185 de várias regiões do estado trouxe novos desafios em
áreas como meio ambiente186, saúde, educação e segurança pública.
A resposta a esses desafios deu-se exemplarmente na capital pela introdução do Plano Diretor de
Curitiba, seguido de projetos de ordem social e ambiental que reuniram ações práticas, legislação e
conscientização popular que tornaram realidade a sua implantação. Como resultado, a cidade passou
a ser vista internacionalmente como a ‘Capital Ecológica’ e sediou, em 1992, o Fórum Mundial das
Cidades. Por outro lado, a integração completa do estado e a aplicação das políticas ambientais em
todo o seu território ainda não haviam acontecido até o final do segundo milênio.
Esse foi também o período em que a comunidade mundial chegou à conclusão de que as mais
consistentes políticas ambientais não seriam suficientes para garantir a sobrevivência da espécie
humana no planeta. Um novo desafio que se colocava em vista da necessidade, sempre presente, de se

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conciliar meio ambiente e crescimento econômico, já que a percepção da possibilidade de esgotamento


das reservas naturais e hídricas187 tornava premente a organização de um movimento em favor da
consolidação de medidas de caráter geral. Assim, na década de 1980, a Organização das Nações Unidas
(ONU) propôs uma série de restrições à expansão dos diversos países, mediante o relatório Brundtland
que forjou o princípio de ‘desenvolvimento sustentável’, entendido como a inter-relação harmônica
entre economia e meio ambiente. Conceito aprofundado na Conferência das Nações Unidas sobre o
meio ambiente e desenvolvimento, realizada em 1992 (ECO 92), no Rio de Janeiro, que propôs o
estabelecimento de compromissos de responsabilidade social a todos os países participantes.
O novo milênio concretizou uma inquietação ainda maior quando se verificou que medidas paliativas
não solucionariam as probabilidades de desastres ecológicos de cunho universal. De ‘desenvolvimento
sustentável’ passou-se, por conseguinte, ao conceito de ‘sustentabilidade’, entendido como um modelo
de espectro amplo e equilibrado, destinado não só à preservação das necessidades das gerações atuais,
como às de sua descendência. Dentre as deficiências a serem eliminadas estariam a desigualdade política,
econômica, social e cultural; o descaso com a saúde; a desinformação; e a pobreza extrema.
O Brasil acompanhou a passos relativamente lentos essa trajetória, com políticas voltadas, na
década de 1980 após a redemocratização do país, à minimização do impacto ambiental das obras
públicas e privadas sobre o espaço natural, caso da criação do Conselho Nacional do Meio Ambiente
(CONAMA) e do artigo 225 da Constituição de 1988, que preconiza o direito de cada cidadão a um
“meio ambiente ecologicamente equilibrado”. Tais propostas abrangiam o âmbito nacional com ênfase
nas grandes, médias e pequenas cidades, mediante a ação das diversas esferas do governo, considerando-
se especificidades regionais que, por vezes, estariam presentes dentro de um mesmo espaço territorial –
caso do Paraná. (TRINDADE; OLIVEIRA; SANTOS, 1997).
Com efeito, nas últimas décadas do século XX, persistiram, como persistem ainda, as diferenças
que sempre marcaram o velho e o novo Paraná. Em consequência, no raiar do século XXI o estado
contempla ainda as marcas desse passado, em suas diferentes culturas regionais. Elas refletem a interação
de momentos diversos e de contingentes populacionais de origens plurais. O litoral, os três planaltos,
os nortes, Velho e Novo, o oeste e o sudoeste, as faixas de fronteira, o mate, o café, os novos produtos
agrícolas e as novas indústrias, estão aí delineados no solo paranaense. Toda essa diversidade tem sido
levada em consideração pelos governos estaduais das últimas décadas, quando se procurou conciliar
políticas públicas de desenvolvimento e sustentabilidade, com ações voltadas não só à recuperação das
coberturas vegetais, como também à preservação da biodiversidade188 e o gerenciamento de recursos
hídricos e sólidos. Para isso, foram adotados uma filosofia de descentralização e monitoramento
administrativo e um programa de educação ambiental estendido a toda população, com vistas à sua
mobilização, apoiados no tripé sugerido por Rogers (2001): participação, educação e inovação. Só
assim, a cidadania poderia ser exercida por todos, ao sentirem envolvidos nas tomadas de decisão sobre
o seu ambiente e seu porvir.
Tal é o resultado atual de tudo o que foi gestado no decorrer da trajetória histórica do Paraná,
conforme o modelo de ocupação espacial que o marcou, tornando-o único no conjunto da nação.

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Todas as iniciativas que minimamente preocuparam-se com a manutenção de sua integridade através
dos tempos contam a história de uma unidade territorial, independente há pouco mais de 150 anos,
que traz consigo os problemas e as esperanças das contínuas mudanças que a história da sobrevivência
da espécie humana na terra apresenta.

BIBLIOGRAFIA
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NOTAS EXPLICATIVAS
1 Sustentabilidade: a capacidade de o ser humano interagir com o mundo preservando o meio ambiente para
não comprometer os recursos naturais das gerações futuras.
2 Anacrônico: que está em desacordo com os usos e costumes de uma época.
3 Ambientalista: movimento social que tem na defesa do meio ambiente sua principal preocupação.
4 De primeira hora: pioneiros.
5 Metrópole: nação, considerada relativamente aos países/colônias que dela dependem.
6 Ecossistema: conjunto formado por todas as comunidades que vivem e interagem em determinada região.
7 Conjuntura: encontro de determinadas circunstâncias que se considera como o ponto de partida de uma
evolução.
8 Citadina: pessoa que habita uma cidade.
9 Poluição: a introdução pelo homem, direta ou indiretamente, de substâncias ou energia no ambiente,
provocando um efeito negativo no seu equilíbrio.
10 Desmatamento: desaparecimento de massas florestais, fundamentalmente causada pela atividade humana.
11 Maiores detalhes sobre informações contidas no presente texto encontram-se em: TRINDADE, E.M.C.;
ANDREAZZA, M. L. Cultura e educação no Paraná. Curitiba: SEED, 2001.
12 Nômade: indivíduo ou povo sem moradia fixa que se desloca constantemente em busca de alimentos e
pastagens.

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13 Artefato: qualquer objeto feito ou modificado pelo homem.


14 Sílex: mineral duro e cortante, formado por carapaças de organismos marinhos.
15 Arenito: rocha constituída por grãos de dimensão da areia.
16 Quartzo: mineral duro de estrutura semelhante ao cristal.
17 Antropomorfo: que tem ou representa a forma humana.
18 Lascamento: ato de partir em pedaços finos e longos.
19 Lítico: relativo à pedra.
20 Roçado de subsistência: terreno onde se roçou ou queimou o mato para cultivar alimentos indispensáveis
à manutenção da vida.
21 Simbiose: associação e entendimento íntimo entre pessoas.
22 Gentio: pessoa que não professa o cristianismo.
23 Aldeado: dividido em aldeias; confinado em aldeias.
24 Redução: aldeamento autossuficiente, onde os indígenas eram agrupados e submetidos a vários tipos de
trabalho, sob o controle dos padres jesuítas.
25 Coivara: ramagens não atingidas pelas queimadas que são transformadas em cinzas para adubar a terra.
26 Sertanista: pessoa que se embrenhava no sertão em busca de riquezas; bandeirante.
27 Lusitano, luso: da Lusitânia; relativo a Portugal.
28 Metrópole: nação que exerce domínio sobre uma ou várias colônias.
29 Miscigenação: cruzamento entre indivíduos de raças diferentes; mestiçagem.
30 Mameluco: mestiço de índio com branco.
31 Hibridismo cultural: cruzamento entre culturas diversas.
32 Autóctone: natural da região em que vive; nativo.
33 Caipira: habitante da área rural, de modos considerados grosseiros.
34 Hegemonia: supremacia; superioridade.
35 Itinerante: em constante deslocamento.
36 Arma de manejo: arma manual.
37 Coroa: poder ou dignidade real.
38 Achamento: achado.
39 Intendência: órgão da administração colonial encarregado de serviços administrativos, judiciários e fiscais,
além de orientação e fomento da produção, particularmente nas zonas de mineração.
40 Provedoria: instituição de origem portuguesa, encarregada dos serviços fiscais e tributários.
41 Capitão-povoador: denominação dada, no período colonial brasileiro, à pessoa encarregada da organização
ou criação de povoações e da manutenção da ordem nas mesmas.
42 Capitão-mor: autoridade com amplos poderes civis e, sobretudo, militares em uma capitania.
43 Lugar-tenente: pessoa que exerce temporariamente a função de outra. No Império português, representante
de várias autoridades em questões jurídicas e militares.
44 Ouvidor: funcionário da administração colonial, muitas vezes ligado diretamente à Metrópole, encarregado
de dar instruções sobre o correto funcionamento das instituições municipais, das funções religiosas e da
justiça.
45 Arraial aurífero: povoação de caráter temporário, geralmente formada em função de atividades extrativas,
como a busca de metais preciosos ou minérios.
46 Institucionalização: ato de dar o caráter de uma instituição.
47 Freguesia: unidade administrativa de caráter eclesiástico.

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48 Dízimo: imposto que consiste na décima parte das rendas.


49 Desobriga: quitação de uma dívida de caráter material ou espiritual, como confissão e comunhão anuais.
50 Regimentação: regulamentação.
51 Comarca: divisão administrativa que compreende um território e sua população.
52 Beneficiamento: intervenção que visa submeter um produto agrícola a processos que lhe dão condições de
consumo.
53 Currais: lugares onde se junta e recolhe o gado.
54 Aguardente: bebida de elevado teor alcoólico obtida por destilação de frutos, cereais, raízes, sementes ou
tubérculos; tipo de cachaça.
55 Governança: governo.
56 Capitania: divisão administrativa do Brasil colonial.
57 Preservacionista: corrente preocupada em manter os recursos naturais mediante o uso racional e
sistematizado.
58 Empírica: que se apoia exclusivamente na experiência e na observação, e não em uma teoria.
59 Gado vacum: gado constituído de vacas, bois e novilhos.
60 Cavalgadura: animal que se pode cavalgar: cavalo, mula ou asno.
61 Atividade criatória: criação de animais para fins de comercialização.
62 Invernada: pastagem rodeada de obstáculos, naturais ou artificiais, onde se guardam cavalos, mulas e bois,
para repousar e recobrar as forças.
63 Doação: ato de dar um bem próprio a outra pessoa.
64 Benfeitorias: melhoramentos.
65 Lavradias: terras próprias para o plantio.
66 Tropeirismo: atividade de transporte, compra e venda de tropas de gado, mulas ou éguas.
67 Sertões de Curitiba: amplo espaço que compreendia a região do planalto de Curitiba e dos Campos Gerais,
delimitado apenas por Sorocaba, ao norte, e Paranaguá, a leste.
68 Parada: local rústico que abrigava os tropeiros e suas tropas; pouso.
69 Trago: ato de beber uma bebida alcoólica.
70 Autônomo: que existe sem intervenção de forças ou agentes externos.
71 Taipa de pilão: parede feita com uma argamassa de areia, argila e lascas de pedra, sustentada por uma
armação de madeira.
72 Índio administrado: ameríndio subordinado à tutela de um homem livre, encarregado de 'civilizá-lo' por
um tempo determinado, porém prorrogável.
73 Catre: leito tosco e pobre.
74 Absenteísta: quem vive ou está comumente ausente.
75 Capataz: administrador de fazenda ou sítio.
76 Faixa da marinha: litoral; beira-mar.
77 Predatória: atividade que conduz à destruição.
78 Ordenar: organizar, colocar ordem.
79 Retificar: corrigir.
80 Arruamento: traçado, demarcação e abertura de ruas.
81 Profano: que não é sagrado; secular, leigo.
82 Alistamento: recrutamento para o serviço militar.

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83 Alvará: documento passado a favor de alguém por autoridade judiciária ou administrativa, que contém
ordem ou autorização para a prática de determinado ato.
84 Secos e molhados: designação que separa os mantimentos sólidos ou secos dos molhados, compostos por
substâncias líquidas como vinho e azeite.
85 Serralheria: oficina onde se fabricam ou consertam objetos de ferro.
86 Corporação medieval: associação civil com autonomia para a organização e execução de determinados
ofícios.
87 Chifre: tipo de osso.
88 Chilenas: grandes esporas cujas rosetas às vezes têm mais de meio palmo de diâmetro.
89 Pinguelim: chicote fino e comprido, usado para incitar os animais.
90 Tala: chicote feito de uma só tira de couro.
91 Cabedal: o conjunto dos bens que formam o patrimônio de alguém; riqueza, acervo.
92 Contingente: número de pessoas que executam determinadas tarefas.
93 Quilombos: comunidades autônomas de escravos fugitivos.
94 Manejo: manuseio.
95 Bomba: canudo de metal ou de madeira para tomar o chimarrão e em cuja extremidade inferior há uma
espécie de ralo, destinado a evitar a passagem do pó da erva; bombilha.
96 Cuia: recipiente, quase sempre prateado e lavrado, em que se prepara e se bebe o mate por meio de uma
bombilha.
97 Sassafrás: madeira levemente perfumada usada em marcenaria de luxo.
98 Surrão: bolsa ou saco de couro.
99 Soque: lugar onde o mate é socado ou pilado.
100 Engenheiro: proprietário de engenho.
101 Tração hidráulica: ação que desloca um objeto móvel por meio da força da água.
102 Subsidiário: elemento que reforça outro, de maior importância.
103 Víveres: gêneros alimentícios; comestíveis; mantimentos.
104 Fabril: relativo à fábrica.
105 Laboral: relativo ao trabalho.
106 Lide: trabalho/ocupação.
107 Lúdico: que tem o caráter de jogo, brinquedo e divertimento.
108 Normatizado: cujas normas/regras foram estabelecidas.
109 Emancipação: ato pelo qual se adquire a liberdade ou a independência político-administrativa.
110 Província: divisão administrativa que faz parte de um Estado.
111 Insalubridade: condição prejudicial à saúde ou ao bem-estar.
112 Morbidade: capacidade de produzir doenças.
113 Política imigratória: iniciativa legal mediante a qual se promove a entrada de estrangeiros em um país.
114 Sítio urbano: local em que a cidade se desenvolve, em contraposição a áreas naturais ou rurais.
115 Densidade demográfica: relação entre a superfície e a quantidade de habitantes de uma região, por metros
quadrados.
116 População nativa: habitantes naturais de um lugar.
117 Par e passo: algo que é levado no mesmo passo.
118 Canchear: cortar ou picar o mate, reduzindo-o a pequenos pedaços.
119 De primeira necessidade: o que é absolutamente indispensável.

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120 Artesanal: arte ou técnica de produzir objetos com trabalho manual.


121 Fundição: oficina em que se trabalha com metal fundido.
122 Estilo colonial: arquitetura da época colonial que consistia em construções de pedra e cal, de taipa de pilão
ou de estuque, cobertas por telhas, com altura de 18 a 20 palmos.
123 Ecletismo: reunião de elementos de origens diversas que não chegam a uma unidade.
124 Profícua: proveitosa.
125 Artífice: operário ou artesão que trabalha em determinado ofício.
126 Insalubridade: estado de algo que não é salubre/saudável.
127 Sanitaria: relativa à saúde pública; higiênica.
128 Higienista: indivíduo que possui conhecimentos e técnicas para evitar doenças infecciosas usando
desinfecção, esterilização e outros métodos de limpeza com o objetivo de conservar e fortificar a saúde.
129 Urbes: cidades.
130 Terapêutica: o tratamento de uma determinada doença pela medicina tradicional.
131 Agropecuário: setor que estabelece as relações entre agricultura e pecuária.
132 Aperfeiçoamento tecnológico: aplicação de princípios, sobretudo científicos, a um determinado ramo de
atividade.
133 Organização social do trabalho: sistema pelo qual as formas úteis de trabalho são distribuídas e efetuadas.
134 Serraria: estabelecimento onde se cortam madeiras.
135 Incipiente: que está no começo
136 Aflorar: esboçar; delinear.
137 Russo branco: indivíduo nascido na Bielo-Rússia ou Rússia Branca.
138 Encampar: tomar posse; apoderar-se.
139 Caboclo: mestiço de branco com índio.
140 Deflagrar: Acontecer repentinamente; provocar.
141 Carril: trilho.
142 Município: circunscrição administrativa autônoma do estado, governada por um prefeito e uma câmara
de vereadores.
143 Epidemia: doença que surge rapidamente num lugar e acomete, ao mesmo tempo, grande número de
pessoas.
144 Endemia: doença que existe constantemente em determinado lugar e ataca número maior ou menor de
indivíduos.
145 Higienização: conjunto de medidas que visam tornar um local ou alguma coisa saudável; tornar higiênico.
146 Saneamento: conjunto de medidas que visam assegurar as condições sanitárias necessárias à qualidade de
vida de uma população, sobretudo por meio da canalização e do tratamento dos esgotos.
147 Alteridade: reconhecimento recíproco das diferenças culturais entre o 'eu' e o 'tu'.
148 Citadino: habitante da cidade.
149 Dejetos: fezes.
150 Informações sobre ambientalismo, ecologia, sustentabilidade e políticas públicas de preservação ambiental
tomaram como base: TRINDADE, E.M.C.; OLIVEIRA, D.; SANTOS, A.C.A. Cidade, homem e
natureza: uma história das políticas ambientais de Curitiba. Curitiba: Unilivre, 1997.
151 Agroexportadora: setor agrícola destinado à exportação.
152 Redemocratização: ação que visa à volta das instituições democráticas.
153 Aparelho do Estado: conjunto de órgãos públicos que asseguram ao governo o seu funcionamento.

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154 Conjuntura: período de tempo de média duração, no qual é possível encontrar coerência e periodicidade
nos movimentos histórico-econômicos e sociais.
155 Conservacionista: movimento político, social e científico que tem como objetivo a proteção dos recursos
naturais do planeta, incluindo espécies animais e vegetais, assim como os seus habitats para o futuro.
156 Égide: proteção.
157 Desbravador: aquele que explora sertões; o primeiro que abre ou descobre caminho através de região mal
conhecida; pioneiro.
158 Aporte de capitais: investimento financeiro com alguma finalidade.
159 Miragem: visão enganosa e fantástica.
160 Induzido: intencional.
161 Gestão: gerência, administração.
162 Loteamento: parcelamento da terra em lotes.
163 Nefastos: que acarretam a ruína.
164 Mosaico cultural: conjunto heterogêneo de práticas e vivências diversas que convivem em um determinado
espaço.
165 Influxo de capitais: afluência, convergência financeira.
166 Concessionária: empresa a que foram concedidos determinados direitos.
167 Oleaginoso: que contém óleo ou é da natureza do óleo.
168 Posseiro: o que está na posse, legal ou ilegalmente, de uma propriedade.
169 Torrefação: ato ou efeito de torrefazer os grãos de café.
170 Moagem: ato ou efeito de moer os grãos de café.
171 Agroindústria: indústria relacionada com a agricultura ou dependente dela.
172 Minifúndio: pequena propriedade rural, voltada à agricultura de subsistência, com uso de técnicas
rudimentares e baixa produtividade.
173 Infraestrutura: base material ou econômica de uma sociedade.
174 Malha viária: conjunto de estradas ou serviços de transporte interconectados numa área ou região.
175 Inusitado: incomum; estranho.
176 Diversificação da agricultura: introdução de novas culturas agrícolas ou recriação das já existentes.
177 Superprodução: produção de mercadorias em quantidade superior às possibilidades de absorção do
mercado consumidor, nos preços em vigor.
178 Geada negra: depósito de gelo intenso sobre a vegetação, devido a baixas temperaturas em contato com
chuvas ou chuviscos.
179 Fronteiriço: espaço que fica na fronteira de dois ou mais territórios.
180 Urbanização: concentração cada vez mais densa de população em aglomerações de caráter urbano.
181 Bens de consumo: conjunto de mercadorias destinadas a atender às necessidades econômicas das pessoas.
182 Pólo automotivo: agrupamento de empresas destinadas a produzir meios de transporte.
183 Exógenos: por causas externas.
184 Circunvizinho: que está próximo ou em redor.
185 Metropolização: crescimento de cidades com significativa influência funcional, econômica e social sobre
cidades menores.
186 Meio ambiente: conjunto de interações físicas, químicas e biológicas que permitem, abrigam e regem a
vida em todas as suas formas.
187 Hídrico: que diz respeito à água.
188 Biodiversidade: diversidade das espécies vivas e suas características genéticas.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
631

TRÂNSITOS ATLÂNTICOS: HISTÓRIA, CULTURA


E SENSIBILIDADES AFRICANAS NO BRASIL

Maria Cecilia Barreto Amorim Pilla


Wilson Maske

INTRODUÇÃO
A Lei Federal n.º 10.639/2003 alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB 9.394/96) e tornou obrigatório o estudo sobre a cultura e história da África, dos africanos e
afrodescendentes no Brasil nas instituições públicas e privadas de ensino. O principal intuito dessa lei
foi estabelecer formas de combater o racismo. No entanto, o que ainda se vê são ações muito incipientes
em termos práticos, pelo menos é o que parece revelar o discurso de Munanga, que considera urgente
que essa implementação se faça no país. Diz ele que se devem efetivar “políticas que visem ao respeito
e ao reconhecimento das diferenças centradas na formação de uma nova cidadania por meio de uma
pedagogia multicultural” (2015, p. 21) para a construção de uma educação para a paz.
Dessa forma, é preciso reconhecer a multiplicidade das culturas e sua diversidade como uma
vantagem e também como antídoto contra um universalismo redutor que estabelece um único
padrão, relegando ao esquecimento tradições culturais como religião, comidas, tecnologias diversas,
conhecimentos da flora e fauna, especificidades geográficas, entre outras, adquiridas pelos diversos
grupos humanos no decorrer de sua história e que poderiam ser utilizadas para o benefício de toda a
humanidade.
Para Senra, Moreira e Santos (2017), a Lei n.º 10639/2003 abriu caminho para a inclusão de
temas que por essa lei são tratados, inspirando assim a construção de itens incluídos nas provas do
Enem. Com base nessa premissa os autores analisaram as provas do citado exame, entre os anos

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de 1998 a 2015, para aferição dos conteúdos a respeito da temática abordada nas provas. Disso
consideraram a presença de: a) questões de abordagem que chamaram de ‘tradicionais’, que segundo
eles não transmitem ideias racistas e preconceituosas, mas sugerem “subalternidade ou reatividade
a um contexto opressivo”. (2017, p. 1001). Exemplificam com uma questão referente à legislação
do século XIX, mais precisamente sobre as leis relacionadas à abolição da escravatura, como a Lei
Eusébio de Queirós, a Lei do Ventre Livre, a Lei dos Sexagenários e a Lei Áurea; b) e as que eles
chamam de ‘renovadoras’, relacionadas à Lei n.º 10.639/2003. Para os autores, essas são questões
que nos moldes da lei avançaram e conquistaram espaço mais representativo no universo do Enem,
especialmente a partir de 2011. No entanto, perceberam que questões sobre o negro e a África foram
praticamente inexistentes “nos anos iniciais do exame, e a pós a promulgação da lei, seus pressupostos
foram confundidos com a abordagem das mazelas da escravidão e do período posterior à Abolição”.
(2017, p. 1009). Com resultados positivos, os mesmos autores consideram que os conteúdos têm sido
paulatinamente acolhidos, tanto na Educação Básica quanto nas licenciaturas e na formação docente.
Diante dessa difícil tarefa, os meios escolares têm sido tomados por muitas dúvidas e inquietações,
tais como: ‘O que sabemos sobre a África? O que sabemos sobre a história do negro e dos afrodescendentes
no Brasil? Por que estudar tais temáticas?’.
Pesquisadores e educadores passaram então a pensar em estratégias de estudos para que muitos dos
questionamentos sobre esses temas pudessem ser abordados e colocados em prática. O presente artigo
representa uma partícula da busca em trazer ferramentas e suscitar novas abordagens para o estudo
da história da África, dos africanos e dos afrodescendentes no Brasil, especialmente em seus aspectos
políticos, sociais e culturais. Nesse sentido também é possível reconhecer essa temática relacionada
a outros temas emergentes no momento, principalmente à sustentabilidade de maneira abrangente,
envolvendo seus aspectos social, econômico, cultural, político, ambiental e espacial.
A sala de aula não pode ser um lugar no qual as desigualdades sociais e raciais sejam perpetuadas.
Os professores têm a responsabilidade de romper com os parâmetros sociais estabelecidos desde o
período colonial e que podem ser sentidos ainda claramente no início do século XXI. Isso porque as
práticas de exclusão arraigadas na sociedade podem marcar a subjetividade de alunos de diferentes
extratos sociais. Além disso, essas práticas podem ser reforçadas em vários outros ambientes sociais,
além da própria instituição escolar.
A cada dia os meios de comunicação apresentam novos episódios sobre discriminação racial no
país. A par disso, qualquer um de nós poderia relatar um evento que ocorreu consigo ou lhe fora
relatado por outrem.
A prática da discriminação racial faz parte do cotidiano e, muitas vezes, podemos verificá-la no
ambiente escolar. De qualquer forma, ela é decorrência, como a maior parte dos preconceitos, da
ignorância e da falta de conhecimento acerca das condições que fundamentam aquele encontro com
o diferente e o desconhecido – que muitas vezes é o excluído, como no caso do negro, da mulher, do
homossexual, entre outros.
Tais fatos fazem muito mal à sociedade como um todo e têm sérias consequências ao longo do
tempo. Para ilustrar isso, um “estudo recente feito por pesquisadores da Universidade do Texas mostra

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que pessoas que sofreram com discriminação estavam sujeitas a desenvolver alcoolismo e depressão”.
(SANZ, 2017).
A escola, em seu papel de formadora para a vivência na sociedade e para a prática plena da
cidadania, poderá ajudar na adoção de posturas políticas contra a discriminação das minorias étnico-
-raciais e sociais, pois somente assim poderá oferecer uma educação verdadeiramente de qualidade para
toda a sociedade brasileira.
A inclusão, no Brasil, de estudos sobre a história e a cultura da África, dos afrodescendentes e
africanos não visa à substituição da visão eurocêntrica pela afrocêntrica, mas à ampliação da base de
conhecimentos para que permitam identificar e valorizar o papel que as minorias, no caso a africana,
tiveram na formação da sociedade brasileira. Somente assim o preconceito e a discriminação histórica
no Brasil poderão ser superadas.
Com base nessa premissa, escolhemos estruturar este estudo da seguinte forma: num primeiro
momento, apresentaremos a legislação brasileira sobre o tema, abordando também sua urgência e
necessidade em aplicá-la, e em um segundo momento partiremos para uma viagem ao grande continente
africano. Por fim, focaremos na história do Brasil para conhecer um pouco mais sobre a chegada dos
primeiros africanos em nosso país e o regime de escravidão a que foram submetidos.

LEI n.º 10.639/03: UM MARCO HISTÓRICO


A Lei n.º 10.639/2003 alterou a LDB (9.394/1996), que estabelece as diretrizes e bases
da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da
temática ‘História e Cultura Afro-Brasileira’ e incluir o dia 20 de novembro como Dia Nacional da
Consciência Negra.
A referida lei prevê expressamente no caput do artigo 26-A que “Nos estabelecimentos de ensino
fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura
Afro-Brasileira”. (BRASIL, 2013). O parágrafo primeiro da mesma lei afirma o seguinte:

O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e
dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade
nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política, pertinentes
à História do Brasil. (BRASIL, 2013).

Já no segundo parágrafo consta que "Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira
serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e
de Literatura e História Brasileiras". (BRASIL, 2013).
Depois dessa lei, por meio da Resolução CNE/CP 1/2004, publicada no Diário Oficial em 22 de
junho do mesmo ano, foram instituídas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-raciais e para o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. As diretrizes devem ser

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desenvolvidas por instituições em todos os níveis de ensino, tanto públicas como privadas, tornando
obrigatório o ensino sobre história e cultura afro-brasileira e africana em todo o território nacional.
Visando ao cumprimento pleno do Art. 205 da Constituição Federal de 1988, que ressalta ser dever
do Estado garantir indistintamente, por meio da educação, iguais direitos para o pleno desenvolvimento
de todos e de cada um, enquanto pessoa, cidadão ou profissional, a Lei n.º 10.639/2003 e as Diretrizes
Nacionais sobre o tema pretendem proporcionar meios para a superação dos resultados históricos
nefastos oriundos do regime escravista. Por meio dessas medidas, pretende-se concretizar ações para o
combate ao racismo e a toda sorte de discriminações.
É importante frisar que a Lei n.º 10.639/2003 e todos os instrumentos legais que a ela se referem,
reforçam e proporcionam meios para seu cumprimento não têm somente o intuito de combater a
discriminação, mas devem ser considerados também como medidas formais afirmativas, no

sentido de que reconhecem a escola como lugar da formação de cidadãos e afirmam a relevância de
a escola promover a necessária valorização das matrizes culturais que fizeram do Brasil o país rico,
múltiplo e plural que somos. (BRASIL, 2009).

Cabe também destacarmos a Lei n.º 11.645/2008, que nesse contexto de viabilizações para a
aplicabilidade da legislação tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana
em todas as escolas, públicas e particulares, do Ensino Fundamental e Médio.

UMA VIAGEM AO CONTINENTE AFRICANO


O continente africano, apesar de sua antiguidade de povoamento e de ter sido base ou parte de
civilizações antigas como Egito, Cartago ou Roma, é um local cuja história ainda demanda pesquisas
básicas, em especial na região subsaariana. No entanto, há um avanço bastante considerável nos tempos
atuais acerca da evolução e construção da trajetória histórica do homem na África.
Para tal se faz necessário construir uma noção das condições geográficas gerais do continente
africano1, que é o terceiro maior do mundo, com uma área de cerca de 30 milhões de quilômetros
quadrados, 20,3% da terra firme do planeta, e uma população de 1 bilhão e quase 278 milhões em
2018, além de ter 54 países independentes e soberanos reconhecidos pela Organização das Nações
Unidas (ONU) atualmente.
A África pode ser dividida de duas formas:
a) critério regional: divide o continente de acordo com as características regionais: África
Setentrional, África Ocidental, África Oriental, África Central e África Meridional;
b) critérios étnicos e culturais: divide o continente em África Branca ou Setentrional (formada
por oito países da África do Norte mais a Mauritânia e o Saara Ocidental); e a África Negra
ou subsaariana, composta pelos outros 44 países).

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Figura 1 – Mapa político da África.

Fonte – Guia Geográfico, [s.d.].

Os africanos que moram ao norte do Saara são predominantemente brancos, e os que vivem ao
Sul são negros. Mas tanto ao sul quanto ao norte os povos são bastante diferentes entre si. Segundo
Costa e Silva, “uma amara da Etiópia é tão distinto de um ambundo de Angola, quanto, na Europa,
um escandinavo de um andaluz. E um jalofo do Senegal é diferente de um xona de Zimbábue como
um russo de um siciliano”. (2008, p. 16). E ainda na região meridional africana há os bosquímanos e
os hotentotes, muito diferentes de outros africanos.
O maior país da África é a Argélia e o menor é Seychelles. As religiões principais do continente
são a islâmica, predominante na chamada África Branca e nos países da África Subsaariana próximos
ao deserto do Saara; a cristã, distribuída em grandes grupos esparsos por todo o continente ao sul do
Saara; e o animismo, composto por religiões politeístas tradicionais espalhadas por todo o continente.

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Em termos linguísticos, a África pode ser caracterizada por três áreas: aquelas onde predomina
o árabe, as regiões onde prevalecem as línguas africanas e as regiões nas quais imperam as línguas
introduzidas pelos colonizadores europeus, como o inglês, o francês, o português e o africâner.
Apesar de vários conflitos políticos que assolaram e assolam o continente africano ao longo de
sua história, atualmente grande parte de seus países tem governos relativamente democráticos com
eleições regulares, ainda que muitas vezes haja suspeitas em relação a sua idoneidade. A maior parte dos
países são repúblicas presidencialistas, mas existem alguns que adotam o parlamentarismo, assim como
permanecem ainda algumas pequenas e poucas monarquias2.
Contudo, é importante ressaltar que o processo de independência dos países africanos aconteceu
em grande parte a partir do final da Segunda Guerra Mundial e que alguns territórios ainda não
alcançaram a independência política, como as ilhas de Santa Helena, Ascensão e Tristão da Cunha,
que pertencem à Grã-Bretanha; a Ilha Bouvet, que pertence à Noruega; e o Saara Ocidental, que foi
ocupado irregularmente pelo Marrocos, o que é atualmente contestado pelas Nações Unidas.
A África é o segundo continente mais populoso, e 63% de sua população mora no meio rural,
portanto é uma região majoritariamente agrária. No geral seus países são considerados subdesenvolvidos,
apresentando uma renda per capita de $ 850,00, e seu Produto Interno Bruto (PIB) corresponde a
apenas 1% do PIB mundial.
Além de se sobressair na agricultura, vários países africanos destacam-se pela exploração de
recursos minerais como ouro e diamante. Assolados também por grandes epidemias, dentre as quais a
mais preocupante tem sido a Aids, os africanos passam por muitas dificuldades.
No entanto, é preciso ressaltar que em meio a grandes desafios a África não é uma só, e sua
diversidade é justamente sua riqueza, representada, por exemplo, por suas belíssimas paisagens naturais
e sua vasta e variada vida selvagem. Agraciada por grandes vales férteis e desertos gigantes, o continente
comporta cerca de 8% das reservas de petróleo e gás natural, com destaque para o Congo. Nas grandes
extensões de savanas, há regiões com clima temperado, outras com clima de calor úmido e ainda outras
onde a umidade é quase zero, caso do deserto do Saara.
Por todo lado há a ação do homem africano sobre a natureza. Há roças, grandes cidades, plantações
e campos para pastoreio. A fauna é riquíssima, com destaque para os grandes felinos, como leão,
leopardo e guepardo. Há também outros grandes animais, como elefante, zebra, girafa e búfalo, e aves
como cegonha, flamingo, pelicano e avestruz.
A África, portanto, é um país fascinante, de extremos, que nos instiga à pesquisa.

OS AFRICANOS E A COSTA ATLÂNTICA DA ÁFRICA


Não é possível compreender a empresa de colonização e exploração das Américas, em especial
daquelas regiões onde predominou a agricultura tropical de exportação, sem se fazer uma forte relação
com as regiões fornecedoras de mão de obra para esse empreendimento.

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Nas regiões dos principais empreendimentos colonizadores da América, em especial o sul dos atuais
Estados Unidos, as Antilhas e o Brasil, predominou o elemento africano como principal força de trabalho.
Dessa forma, podemos apresentar uma questão instigante: de onde vinham esses africanos que
tomaram parte na colonização do continente americano? Em geral, podemos considerar que a maioria
é originária da costa atlântica africana, geograficamente localizada desde a costa do Senegal e se
estendendo até o sudoeste da África, mais definidamente, em Angola.
No caso brasileiro, houve uma concentração, conforme nos explicam Luna e Klein (2010), de
cerca de 70% provenientes da região de Angola e do Congo, cujo destino principal foram as províncias
do Rio de Janeiro e de São Paulo, além das províncias produtoras de açúcar do Nordeste, em especial
Pernambuco. Aproximadamente 18% eram originários do Golfo de Benim, cujo destino final foi
principalmente a Bahia, mas outras províncias também recebiam cativos dessa origem. Observe na
Figura 2 um mapa do mundo atlântico de meados do século XVIII.

Figura 2 – A África e o tráfico de escravos.

GRÃ-BRETANHA

EUROPA
AMÉRICA DO Liverpool Londres
NORTE
Bristol FRANÇA
Nantes
Providence Bordéus
Boston PORTUGAL
Newport ESPANHA
Nova Iorque Açores Lisboa
Charles Town Filadélfia Ilha da
Savannah Madeira
OCEANO Ilhas Canárias
GOLFO DO St. Augustine ATLÂNTICO
MÉXICO
Cabo Verde
MAR DO CARIBE
ÁFRICA
Veracruz
Cartagena Goreia
Castelo da Costa do Cabo
ÍNDIAS OCIDENTAIS Christianborg
Axim
AMÉRICA DO SUL
Velha Calabar
Fernando Po
Principé
PERNAMBUCO São Tomé Loango
Recife
Cabinda
BAHIA Salvador Mpinda
Luanda
Rio de janeiro

Fonte – Adaptado de New Perspectives on the Transatlantic Slave Trade, 2001.

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Minas Gerais foi um caso especial. Como não dispunha de portos marítimos, acabou recebendo
africanos de várias outras províncias, fazendo com que nessa região houvesse um equilíbrio na origem
dos cativos, o que não ocorria em outros lugares.
A origem dos africanos que foram estabelecidos no Brasil não se restringe a Angola e Benim.
Outras regiões que também forneceram cativos foram Moçambique, Golfo de Biafra, Senegâmbia, entre
outras. Isso, no entanto, não significa que houvesse uma preferência dos proprietários e comerciantes
por essa ou aquela etnia. Eles não podiam se dar a esse luxo.
A região entre a Senegâmbia e Angola, de acordo com Del Priore e Venâncio (2002), caracterizava-
-se por uma intensa natureza hostil, que apresentava grande variedade de obstáculos à sobrevivência
humana. A crescente desertificação da região do Saara e o desflorestamento de áreas ao sul do
deserto levou a uma ocupação dispersa, mas não sem planejamento. Também doenças endêmicas
atingiam pessoas e animais, como as temíveis moscas tsé-tsé, portadoras da tripanossomíase. A
malária apresentava-se com frequência, assim como uma forma benigna da varíola e também doenças
deformativas, como indicam achados de cultura material, impressos em esculturas de terracota, feitas
pelos iorubás. Também assolavam doenças causadas pelo consumo de água imprópria, ou sofrimentos
descritos pelos portadores do chamado ‘verme da Guiné’. Associado a todos esses flagelos, soma-se a
fome, que torna todas as enfermidades ainda mais devastadoras.
A fome promovia uma completa desestruturação social, como exemplificam Del Priore e Venâncio:
“elas empurravam os grupos a trocar crianças por comida, famílias a vender seus filhos e dependentes
por um alqueire de sorgo ou milhete, e a homens e mulheres a se deixar escravizar para não morrer de
inanição”. (2004, p. 9). Todavia, algumas regiões, em alguns períodos, eram poupadas desses flagelos,
como foi o caso da Bacia do Lago Chade, no século XVI.
Há de se destacar que os flagelos climáticos e as hecatombes da natureza também tinham o efeito
de promover mudanças radicais na sociedade, tais como a conversão ao Islã ou a venda de si mesmo
para a escravidão, com o objetivo de fugir do canibalismo e da morte. Podemos ressaltar o quanto isso
influenciou a forma de organização familiar, visto que frente a esse desafio de sobrevivência os filhos
acabaram por ser o maior bem que alguém poderia ter, pois se esperava que cuidassem dos pais na
velhice e assegurassem a segurança da família.
A mortalidade era tão alta na Costa do Marfim, conforme Del Priore e Venâncio, que era preciso
que uma criança fosse a quarta da mesma mãe a morrer para ter direito a funerais. (2004, p. 13). Esses
eventos também tiveram como consequência a promoção da prática poligâmica, pois como na maioria
das vezes o único alimento da criança era o leite materno, isso levava as mulheres a amamentar seus
filhos até os quatro anos de idade. Com o tabu que proibia a prática sexual durante o aleitamento, a
poligamia se instalou como prática aceitável.
Em tal diversidade de cenário, frente aos grandes desafios para a sobrevivência, há de se abordar
a questão do trabalho. De maneira geral, a organização social africana girava em torno de uma casa
grande, dirigida por um chefe cercado de várias esposas, diversos filhos, irmãos e outros dependentes.
Os agrupamentos desse tipo de família formavam as aldeias. Muitas delas tinham como atividade

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principal o comércio ambulante. Havia também uma modalidade de agricultura extensiva, em que se
cultivavam produtos diversos para garantir a subsistência do grupo.
Ao contrário da realidade do Ocidente, onde o direito à propriedade chegava a se constituir como
cláusula pétrea, na África, em geral, a terra era abundante, mas em grandes extensões pouco fértil, e
por isso a propriedade privada não era considerada como um bem maior. Em grande medida, a riqueza
dos reinos se dava por meio de um sistema de taxas, extração e guerra, sendo esta última a principal
fonte de riqueza, pois as guerras de conquista poderiam resultar no acesso a bens materiais e fontes de
mão de obra, visto que, como já falamos, a taxa de mortalidade era muito alta e por isso o número de
trabalhadores era escasso.
Nesse ponto tocamos em um tema delicado e polêmico em relação à existência da escravidão
entre os africanos antes da chegada dos europeus. Essa escravidão anterior não se dava da mesma forma
entre todos os povos africanos, da mesma forma que não era semelhante à escravidão praticada pelo
capitalismo europeu em seus empreendimentos coloniais na América.
Segundo Del Priore e Venâncio (2004), na antiga África atlântica a escravidão era doméstica,
enquanto que depois da chegada dos europeus ela se tornou comercial. Nesse sentido, devemos destacar
que houve uma conveniente adesão a uma prática anterior que foi convertida em modelo fornecedor
eficiente de ‘peças’ para a engrenagem do tráfico internacional atlântico de escravos, que perdurou até
meados do século XIX.
Conforme Luna e Klein (2010), muitos africanos foram enviados para Ásia, Europa e Oriente
Médio como escravos, muito antes da chegada dos europeus. No entanto, não devemos confundir os
motivos e as formas dessa migração forçada com os milhões de escravos enviados para as Américas
desde o século XVI até o XIX. Até porque havia uma preferência, no tráfico pré-colonização, por
mulheres e crianças, ao contrário do tráfico atlântico, que dava preferência para homens adultos.
Antes do descobrimento da América, o principal intuito dos exploradores portugueses na África
não era especificamente o comércio de escravos ou produtos para o mercado europeu. Seu objetivo
principal em relação à África era a busca de ouro e outros metais preciosos. Mas o comércio de escravos
não foi desprezado, pois poderia atender uma demanda europeia por escravos domésticos. Sabe-se que
em algumas cidades portuguesas, no final da Idade Média, os escravos domésticos de origem africana
chegaram a compor de 10% a 15% da população local. Também no próprio mercado africano os
portugueses chegaram a fornecer escravos, levando cativos de uma região a outra, dentro da África.
Somente em fins do século XV é que o interesse por esses cativos foi renovado, pois havia então
uma nova demanda, fomentada pela introdução do plantio da cana nas ilhas do leste do Atlântico,
como os Açores e a Ilha da Madeira. Nelas se introduziu o sistema de agricultura plantation e se
associou a cultura da cana com a escravidão africana, posteriormente adotada nas regiões de agricultura
tropical nas Américas (sul dos Estados Unidos, Antilhas e Brasil).
O processo de adoção da escravidão africana no Brasil está firmemente ancorado na economia
de cultivos tropicais, em especial a cana, mas também do tabaco e do algodão, adotados no Nordeste
do Brasil nas primeiras décadas após o descobrimento. Ainda que a escravidão do indígena tenha sido

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tentada e tenha permanecido por mais tempo, em especial em regiões mais pobres do Brasil da época,
como São Paulo e Sul do Brasil, a escravidão africana foi o modelo de trabalho consolidado no período
colonial e no Império.
Para além dessa visão puramente econômica, o tráfico de escravos do Atlântico manteve o Brasil
fortemente conectado à África até muito depois da própria independência, pois o país continuou a
receber grandes contingentes populacionais que ajudaram a formar o que seria depois o povo brasileiro.
Existem, segundo Luna e Klein (2010), muitos motivos para o êxito da importação de escravos
africanos no Brasil. No período de 1570-1620, quando ocorreu o abandono da mão de obra indígena e a
transição para o trabalho africano, os cativos trabalhavam mais nas funções especializadas nos engenhos,
como no beneficiamento do produto, e menos no cultivo da cana. Isso se deve ao fato de que muitos
escravos eram provenientes da África Ocidental, região onde já haviam sido desenvolvidas técnicas
avançadas de agricultura e metalurgia do ferro, o que os tornava mais qualificados profissionalmente
em comparação aos indígenas brasileiros.
No que concerne às doenças, os africanos eram originários de ambientes nos quais as moléstias que
também afligiam os europeus eram conhecidas e endêmicas. Isso não resultou em ondas epidêmicas,
que foram fatais para os índios, uma vez que europeus e africanos estavam mais acostumados com os
agentes patogênicos.
Assim, em termos de qualificação, saúde e experiência em trabalho agrícola mais elaborado,
os africanos eram considerados superiores aos escravos indígenas. Disso resultou o fato de que um
escravo africano era três vezes mais caro que um indígena. E de acordo com o crescimento e a
consolidação da economia açucareira, emergiu um maior capital que possibilitou um incremento no
comércio de escravos.
Quando os traficantes portugueses chegavam à África para fazer comércio, eram recebidos por
soberanos cuja corte era regida por severa etiqueta. Esses reis africanos não tinham a menor dúvida de
sua importância e de sua igualdade em relação aos reinos europeus, como diz Câmara Cascudo: “ombro
a ombro, como quem se considerava, no mínimo, primo d’El-Rei de Portugal”. (1983, p. 185).

UM PASSADO, MUITAS HERANÇAS


A história dos africanos no Brasil vem sendo construída desde as primeiras levas de escravos
negros que chegaram a nossas terras. Nesses quase quinhentos anos de sua presença, muitas foram as
contribuições que nos legaram.
Grupos oriundos da África Atlântica dominavam as técnicas de fundição de metal. Os sossos
da Guiné, por exemplo, sabiam “operar um forno ou uma forja”. (COSTA; SILVA, 2012, p. 19).
Desde pelo menos o ano 600 a.C., os africanos conheciam a metalurgia do ferro. Mas tinham uma
desvantagem: não tinham grandes fornos capazes de fazer grandes barras de ferro, por isso, na forja,
faziam enxadas e facas, mas não conseguiam fazer grandes espadas, capacetes ou couraças.

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De acordo com Del Priore e Venâncio, o trabalho com o ferro envolvia um saber que beirava o
campo da magia: “Os ferreiros forneciam objetos indispensáveis ao caçador, ao guerreiro, ao lavrador,
ao feiticeiro”. (2004, p. 97). Nas regiões onde predominavam os islâmicos, como na Senegâmbia,

os ferreiros eram temidos e viviam apartados, por vezes, até viviam até em vilarejos especiais. Não
bebiam água em poços comuns, não compartilhavam comida com qualquer pessoa, não tinham
relações sexuais fora do grupo. Não podiam pegar em armas, nem ser escravizados. (2004, p. 97)

Aqueles que pertenciam às regiões auríferas trouxeram consigo técnicas de batera e de escavação
de minas. Alguns eram ourives em sua terra natal, e aqui introduziram modelos de joias adaptadas aos
novos materiais e pedrarias encontrados por aqui e que faziam o gosto dos brasileiros mais abastados.
Na África também havia aqueles que criavam gado, solto no campo, e aqui o fizeram de forma
semelhante. Muito antes de o Brasil ser encontrado, na África o gado bovino estava espalhado
do Senegal até o finisterra negro. Mas os animais daquelas terras eram usados essencialmente em
funções religiosas, como sacrifícios ou oblações, ou utilizados como dote, presentes aos soberanos.
O gado era força econômica muito mais no sentido de posse do que de consumo.
A caça para os africanos era um ofício, mas também era fonte de divertimento, orgulho e
dignidade. De acordo com Cascudo (1983), a palavra ‘Congo’ quer dizer caçador. Nessa região se
caçavam elefantes, búfalos, gazelas, antílopes e os elefantes eram considerados uma iguaria cobiçada.
Sua tromba era o bocado de maior prestígio, e o estufado de suas patas também era apreciado.
Faziam assados com carneiros, porcos (consumidos apenas por não islamizados), roedores, lagartas
e até mesmo cães.
No que diz respeito às práticas agrícolas, segundo Costa e Silva (2012) pouco puderam contribuir,
não porque não as dominassem, mas porque os portugueses não lhes permitiram. Acostumados a
plantar em pequenas roças, os africanos tiveram de se adaptar ao grande latifúndio monocultor.
O aprendizado ibérico na produção do açúcar dos portugueses nos Açores e na Ilha da Madeira
deu familiaridade ao trato com os africanos e destacou as aptidões que estes demonstravam no
cultivo e beneficiamento desse produto, diz em Schwarcz e Starling (2015). Segundo as autoras,
já no século XVI as habilidades de muitos povos da África, em especial os da Guiné e Angola (que
mais vieram para o Brasil nesse período, pois já eram de domínio português desde o século XV),
conheciam técnicas do fabrico de açúcar conforme documentação portuguesa na época. Assim, ao
chegarem ao Brasil “imediatamente exerciam funções especializadas como purgadores, mestres de
açúcar, ferreiros e caldeireiros”. (2015, p. 66). Aliás, diversos cativos originários da África Ocidental
eram experientes na arte da agricultura e no manejo do gado. Evidencia-se essa situação em Alencastro
quando comenta que a importância, nos anos 1400-1450, do

primeiro sistema atlântico formado pelos enclaves íbero-africanos nas Canárias, em Cabo-Verde, na
Madeira, nos Açores e em São Tomé, que seria uma adaptação prévia aos trópicos e ao escravismo

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de técnicas portuguesas e luso-africanas desenvolvidas em larga escala na América Portuguesa.


(2000, p. 68)

No entanto, trouxeram consigo muitos vegetais, como o dendê, a malagueta, o maxixe, o quiabo.
E assim como na África, as mulheres os vendiam nas ruas pelo Brasil afora.
Os africanos não conheciam a mandioca, o milho americano, o amendoim, que seriam tão comuns
mais tarde em sua cultura. Fabricavam manteiga e se untavam com ela. Também produziam vinho de
palma, vinho de mel e vinho de milho com o sorghum, vindo da Guiné.
Interessante é que atualmente o cultivo de milho ou mandioca na África Central é capaz de ‘matar’
parte da fome (porém não nutrir com a qualidade necessitada) grande parte da população que mora
no campo. Caparrós (2016) nos descreve um triste quadro sobre famílias famintas, que têm como
único alimento diário farinha de milho ou mandioca que elas mesmas cultivam para produzir comida.
Mesmo sendo um fato que nos aperta o coração, ilustra bem o fato de a viagem dos alimentos, em
especial, da América do Sul para a África, atenuar, mas não resolver, quadros de fome endêmica.
Os inhames eram consumidos em toda a África Ocidental e Equatorial. Favoritos dos nagôs da
Nigéria, vinham da Gâmbia para Angola. Os africanos colhiam e cultivavam menos hortaliças do que
os ameríndios. Não tinham os ensopados, guisados e também não faziam frituras. Como diz Câmara
Cascudo (1983), assavam, tostavam e cozinhavam. Usavam féculas para fazer papas e pirão com farinha
de sorgo, e só aqui no Brasil passaram a utilizar a farinha de mandioca ou de milho. Usavam também
bastante pimenta, mastigada ou na comida, no caldo de carne ou de peixe.
Tinham menos vinhos fermentados do que no Brasil. Segundo Câmara Cascudo, a influência do
Islã proibia a ingestão de bebidas alcoólicas, “o negro bêbado de cachaça foi uma figura made in Brazil.
Os soberanos embriagados e truculentos eram infiéis a Maomé”. (1983, p.188).
Além disso, cultivavam arroz, e talvez seu primeiro contato com esse cultivo se deu com os árabes
no século VII. Com o arroz veio a fórmula do kuz-kuz, ainda presente nas áreas da África Setentrional e
Atlântica. Até a chegada do milho americano, Zea mays, os africanos faziam o kuz-kuz com arroz, sorgo
ou trigo. Também cultivam feijões brancos, vermelhos, grandes e pequenos, pela extensão do golfo da
Guiné. Os africanos escravizados trouxeram de Moçambique, das águas de Zambeze, um tipo de feijão
chamado nhamudoro. O limão-rosa também veio para nossas terras pelas mãos dos africanos, apesar de
nunca terem alcançado a preferência da maioria da população brasileira, como o limão trazido da Ásia.
Interessante é que não há notícia do uso de óleo vegetal ou animal na alimentação africana durante
os séculos XV e XVI. No Brasil, no mesmo período, o azeite era remédio.
Com a intensificação do tráfico de escravos no século XVIII até a primeira metade do
século XIX, a permuta de produtos entre a África e o Brasil foi facilitada. Os descendentes de
africanos no Brasil tinham recebido de seus ancestrais o gosto por muitos alimentos que vinham da
África. Câmara Cascudo (1983) nos fala dos hibiscos3; quiabo, quingombó, vinagreira4; inhame-
-liso, inhame-da-índia, inhame-da-costa, inhame-casco, inhame-de-angola5; erva-doce; açafrão da terra

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ou gengibre amarelo6; gergelim da Guiné; melancias, belancias; jiló de Angola; e a pimenta africana,
conhecida como malagueta.

Figura 3 – Quiabo – Hibiscus esculentus.

             Fonte – Plantillustrations, 2019a.

Figura 4 – Gengibre amarelo.

              Fonte – Plantillustrations, 2019b.

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Nesse período, ao mesmo tempo em que o Brasil trazia alimentos da África, mandava para lá
especialmente o ananás, que segundo Câmara Cascudo era encontrado nos mercados públicos do
litoral africano, bem como o mamão, as batatas7, os magarás, as goiabas e os araçás.
Nesse contexto, para Del Priore (2016, p.129) a abolição da escravidão trouxe consigo os
encaminhamentos que levariam à diversificação agrícola, pois o regime escravocrata estava associado
à crise de exportação dos produtos da agricultura tradicional. A autora afirma ainda que o quadro
econômico da segunda metade do século XIX era bastante prosaico. O açúcar tinha perdido mercado
para seu congênere, produzido com base na beterraba, que foi alvo de brutal protecionismo fiscal por
parte dos países europeus, que tentavam proteger esse novo produto da concorrência do mais antigo
originário açúcar produzido na América Tropical. De forma semelhante, o algodão brasileiro sofreu
progressiva marginalização frente à produção dos Estados Unidos, do Egito e dos países asiáticos. A
produção tabaqueira, por sua vez, sofreu com o fim do tráfico e da escravidão, pois o tabaco foi privado
do mercado africano, onde era utilizado como moeda na aquisição de escravos.
Para a mesma autora, a grande crise econômica que a abolição presidiu revelou uma crise da
monocultura que permitiu uma sensibilidade relacionada à convicção de abrir as portas à policultura
e ao incentivo para a produção para o mercado interno. Reforçando essa ideia havia o temor das
revoltas internas urbanas, geradas pelo aumento contínuo dos preços dos alimentos. “O grande vilão
da carência de fornecimento interno era a economia de exportação, devoradora de terras férteis e de
recursos econômicos”. (DEL PRIORE, 2016, p. 130). Para os paulistas e cariocas, o culpado era o café.
Para os baianos e pernambucanos, era o açúcar. Mesmo fora das áreas que não ocupavam um lugar
central no sistema econômico brasileiro os resultados não eram bons. No caso do Paraná, que era o
maior exportador de erva-mate do Brasil no século XIX, os preços de gêneros alimentícios de primeira
necessidade chegaram a subir mais de 200% na década de 1870, o que gerou inclusive a necessidade
do governo provincial de patrocinar a vinda urgente de imigrantes europeus para colônias ao redor de
Curitiba para atender à demanda alimentar.
A banana foi outra oferta africana para nós. Trazida para a África da Índia, em Moçambique era
chamada de ‘figo’. Popular por lá, acabou por popularizar-se por aqui também, chegando ao ponto de
a maior parte das pessoas imaginarem que ela é originária da América.
Por meio dos africanos chegou também ao Brasil, segundo Dean, o congênere tropical do cânhamo,
com sementes e folhas de qualidades alucinógenas, “que adaptou-se [sic] com muita facilidade no
Brasil”. (2013, p. 147). O objetivo dos portugueses em plantar o cânhamo no Brasil era o fato de este
ser o melhor material para a manufatura da cordoalha naval, e desde os anos de 1620 houve a tentativa
de aclimatar o cânhamo europeu na Bahia e no Rio de Janeiro, de forma que esse produto de origem
africana pudesse substituir o europeu com maior sucesso. Além disso, o cânhamo também foi usado no
Brasil para a produção de tecidos para uso dos escravos, apesar da proibição dos portugueses.
No reino do Congo eles faziam um tecido feito de palmeiras. Segundo relatos, ele era tão sofisticado
que sua superfície se parecia com do veludo, e talvez fosse até mais sofisticado do que muitos tecidos
feitos na Itália. Desde o século XII os africanos exportavam para a Europa um tecido de algodão de
excelente qualidade, que passou a ser exportado para o Brasil a partir do século XVI.

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No campo do imaginário, do fantástico e do lazer, contaram histórias fantásticas, que aos poucos
foram se incorporando ao grande universo europeu e indígena. Como bem afirma Costa e Silva,

Vindos da África, bichos-papões, jogos e brinquedos desembarcaram no Brasil. E lembranças de


desfiles de reis, com seus enormes guarda-sóis coloridos, que no Brasil se reproduziram nos maracatus,
nas congadas e nos reisados. (2012, p. 20).

Também foi imensa a contribuição africana para a nossa língua portuguesa. Os aproximadamente
quatro milhões de africanos trazidos para cá ao longo do tempo precisaram se comunicar, e ao fazê-lo
não só aprenderam o português como nos ensinaram suas mais variadas línguas.
Conforme Castro,

aquelas vozes são perceptíveis na pronúncia rica em vogais da nossa fala (ri.ti.mo, a.di.vo.ga.do), na
nossa sintaxe – tendência a não marcar o plural do substantivo (os menino, as casa), na dupla negação
(não quero não), no emprego preferencial da próclise (eu lhe disse, me dê) –, e se revelam de modo
inequívoco nas centenas de palavras que enriquecem o patrimônio linguístico do português no Brasil.
(2012, p. 36).

E como marca Castro, o desempenho da mulher negra como ama de leite e criadeira, foi
fundamental na introdução de termos e palavras africanas no vocabulário brasileiro, “que até hoje
chamamos o filho mais jovem pelo termo angolano caçula em lugar de ‘benjamin’, como se diz em
Portugal”. (2012, p. 37).

ESCRAVISMO NO PARANÁ
Apesar de o Paraná somente se constituir em uma província autônoma em 1853, a presença
de escravos africanos ou afro-brasileiros é bem mais antiga, tanto no litoral, na região de Paranaguá,
quanto na região dos Campos Gerais. Esta se integrou na economia brasileira por meio da atividade
pecuarista, assim como o Rio Grande do Sul.
Luna e Klein (2010, p. 73) nos explicam que enquanto os trabalhadores das fazendas de gado
da região do Rio Grande do Sul eram principalmente livres e índios, mais ao norte, na chamada área
de Campos Gerais, ao redor de Curitiba, fazendas de criação de bois, mulas e cavalos empregavam
trabalhadores livres e cativos. Escravos também eram usados em vários ofícios necessários nas fazendas,
bem como no transporte dos produtos comprados e vendidos por elas.
Segundo os mesmos autores, em toda essa região meridional de São Paulo conhecida como Paraná
a porcentagem de escravos na população global era de 20%, segundo o censo de 1798, enquanto
nos distritos pecuaristas de Castro e Palmeira as porcentagens de domicílios com escravos eram,
respectivamente de 52% e 39%. Nessas fazendas, e em outras mais ao sul, também havia grande

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número de agregados, empregados e familiares que trabalhavam em propriedades geralmente não


voltadas para a exportação. Finalmente, em todas as vilas dos sul, algumas das quais chegando à faixa
de 10 mil habitantes em fins do século, os escravos formavam o elemento mais numeroso na força de
trabalho e a maioria dos artesãos qualificados.
As três áreas meridionais do Brasil – Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná – tinham juntas
uma população cativa de aproximadamente 27 mil escravos, além de aproximadamente 13 mil pessoas
livres de cor em 1811. (LUNA; KLEIN, 2010). Isso também demonstra um aumento substancial na
população escrava, pois segundo o censo realizado em 1772 na Comarca de Paranaguá, que abrangia o
território da futura Província do Paraná, a população total chegava a “7.627 moradores, sendo 2.936
homens, 2.979 mulheres e 1.712 escravos”. (CARDOSO, 1986, p. 48).
Segundo este autor, durante o período do Brasil independente, a região do Paraná tinha em
média uma população escrava, composta por negros africanos, afro-brasileiros e mulatos da ordem de
30%, com tendência à diminuição, tendo em vista a política que tendia a abolir o tráfico negreiro e o
crescente interesse dos governos imperial e provincial de incentivar o desenvolvimento da imigração
europeia. Esse processo foi amplificado com o declínio e definhamento dos campos e dos gados
do Paraná, sentido desde 1860. Associado ao processo, podemos verificar um gradual declínio da
população escrava no Paraná, que graças ao fim do tráfico internacional de escravos e ao aumento do
tráfico interprovincial, que deslocava população escrava de regiões menos dependentes da mão de obra
cativa ou decadentes economicamente, como Pernambuco, Bahia, Paraná, para regiões onde havia
aumentado a demanda, como é o caso de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Disso resultou uma
diminuição expressiva da população escrava no Paraná.
Segundo o Censo Nacional de 1872, o primeiro do país, os resultados para a Província do Paraná
apontam que de uma população de 126.692 habitantes apenas 10.560 eram compostos por escravos,
ou seja, 8,3%. Uma grande diminuição em comparação com a média de 30% até 1860.
Por outro lado, o grande impulso que a imigração ganhou no Paraná, em especial a partir de 1870,
promoveu também a ação do poder público contra a instituição da escravidão. Conforme Ferrarini, o
presidente Taunay comentou o fato em um relatório a seu sucessor, em 1886:

A escravidão em toda a província se acha muito limitada, segundo se vê na relação abaixo publicada,
fornecida pelas coletorias, e com pequeno esforço ficará ela toda expurgada da terrível e desastrosa
instituição. De todos os lados a iniciativa e generosidades particulares se empenham nisso de coração
para glória dos brasileiros, e uma das lembranças mais gratas de minha viagem aos Campos Gerais, e
ao Sertão de Guarapuava, é ela ter se tornado motivo para que 15 escravos na flor da idade gozassem
dos benefícios da liberdade.
Relação dos escravos existentes na Província do Paraná, 1886
Capital – 579
Arraial Queimado – 21
Votuverava – 120
Assunguy – 6
Campina Grande – 34

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Antonina – 335
Paranaguá – 183
Porto de Cima – 42
Morretes – 172
Guaraqueçaba – 57
São José dos Pinhais – 293
Lapa – 490
Palmas – 227
Guarapuava – 259
Ponta Grossa – 454
Palmeira – 183
Castro – 298
Tibagi – 156
Piraí – 42
Campo Largo – 241
Total: 4.192 (1971, p. 138)

Com base no exposto, podemos verificar que havia uma movimentação oficial para a extinção do
regime escravista, anterior à própria assinatura da Lei Áurea, em 1888. Isso se deve não apenas à ação
de sociedades de apoio à emancipação, mas também ao forte interesse de amplos setores da sociedade
paranaense de tirar os entraves para uma imigração europeia em larga escala, o que era em parte
retardado devido à permanência da instituição escravocrata.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesses dez anos da Lei n.º 10.639/2003 muitos foram os esforços para sua aplicação nas escolas, mas
ainda há muito a ser feito. E os avanços só serão realmente percebidos à medida que as pesquisas e os estudos
a respeito da história e cultura da África e dos africanos e afrodescendentes no Brasil sejam conhecidos. Por
isso a importância da publicação de artigos que possam trazer informações sobre essa temática.
A escola ainda é o lugar por excelência do conhecimento, portanto ela deve estar preparada para
instigar, fomentar, fornecer e instrumentalizar professores e alunos para o estudo do passado africano
no Brasil. É preciso para isso romper o óbvio, ir além do senso comum e ver a África como um
continente meramente exótico, longínquo e pobre. É urgente que se quebrem esses paradigmas há
tanto tempo construídos. A história da África e da presença dos africanos e seus descendentes no Brasil
deve ir além da história do escravismo, do sofrimento, das mazelas desse passado, pois como bem
preveem os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)

O estudo histórico do continente africano compreende enorme complexidade de temas do período


pré-colonial, como arqueologia; grupos humanos; civilizações antigas do Sudão, do sul e do norte
da África; o Egito como processo de civilização africana a partir das migrações internas. Essa

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complexidade milenar é de extrema relevância como fator de informação e de formação voltada para
a valorização dos descendentes daqueles povos. Significa resgatar a história mais ampla, na qual os
processos de mercantilização da escravidão foram um momento que não pode ser amplificado a ponto
que se perca a rica construção histórica da África. O conhecimento desse processo pode significar o
dimensionamento correto do absurdo, do ponto de vista ético, da escravidão, de sua mercantilização e
das repercussões que os povos africanos enfrentam por isso. (1998, p. 130-131)

Apesar de ser um tema em discussão no presente momento, a Medida Provisória 746/2016, que
alterou trechos da Lei de Diretrizes e Bases (Lei n.º 9.394/1996) pode trazer impactos negativos ao ensino
de História em geral, e em particular, dificultar o cumprimento do previsto na Lei n.º 10.639/2003.
Em artigo recente, Bittencourt afirma que tal medida revoga essa lei, e com isso distancia “professores
e alunos de referências teóricas relativas à cultura negra e à diversidade cultural, que caracteriza o nosso
país”. (2016). Seus conteúdos deixam de ser obrigatórios e com isso uma educação voltada para a
diversidade fica em segundo plano.

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NOTAS EXPLICATIVAS
1 Se considerarmos que as Américas são dois continentes, a África se torna o segundo maior. Existem várias
formas de se categorizar os continentes, inclusive alguns critérios incluem questões culturais e não apenas
físicas.
2 Lessoto e Suazilândia são duas monarquias, encravadas na África do Sul, remanescentes dos Estados
Africanos pré-era do imperialismo. Esses países permaneceram com seus regimes originais em função de
acordos que foram estabelecidos com a potência colonial da região, no caso, a Grã-Bretanha.
3 São vários os tipos de hibisco que eram apreciados pelos africanos, como hibiscus esculentus, hibiscus
sabdariffa, entre outros.
4 Esse tipo de hibisco é muito encontrado atualmente no Maranhão, e estudos têm comprovado seu alto
teor de ferro e fibras.
5 Seu nome oficial é cará-inhame.
6 O africano tinha o hábito de mastigar o gengibre.
7 Em finais do século XVIII, no interior de Moçambique as batatas eram de subsistência comum.

DEFINIÇÕES
Africâner: essa língua se desenvolveu por meio da colonização holandesa na África do Sul, ocorrida em meados
do século XVII. A integração dos colonos holandeses, que também tiveram influências dos huguenotes franceses
e alemães, resultou numa língua com características relativamente diversas daquela da original. A partir do
início do século XX esses colonos passaram a se identificar como uma categoria diversa daquela dos holandeses
e passaram a se denominar de africâners, e assim também o nome de sua língua.
Plantation: sistema agrícola tropical utilizado na América para produção de produtos tropicais voltados à
exportação. Utilizava latifúndios e mão de obra escrava e podia ser encontrado no Sul dos Estados Unidos da
América, nas Antilhas e no Brasil, entre outros países.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
651

PLURALIDADE CULTURAL – O CONCEITO


DE CULTURA1

Márcia Scholz de Andrade Kersten

“Um dos fatos mais significativos a nosso respeito (o autor refere-se à humanidade) pode ser,
finalmente, que todos nós começamos com o equipamento natural para viver milhares de espécies de
vidas, mas terminamos por viver apenas uma espécie”. (GEERTZ, 1979, p. 57).
Os conceitos de cultura e o de sustentabilidade são de uso frequente nos dias atuais e definem
inúmeras características ou situações socioeconômicas e ou culturais. No arcabouço socioantropológico,
a definição de cada um desses conceitos sustenta-se em referências teóricas específicas. Se sustentabilidade
originou-se da Teoria Econômica Neoclássica (1870) e se referia à utilização e à preservação da natureza,
na década de 1980 (Lester Brown – Instituto Worldwatch), o conceito foi expandido para a noção de
sociedade sustentável: aquela capaz de satisfazer as necessidades de seus componentes sem comprometer
suas chances de sobrevivência futura. Para a discussão que importa aqui se considera que o conceito
de sustentabilidade social merece a mesma importância dada ao de sustentabilidade ambiental, pois
as sociedades e culturas humanas são parte de uma paisagem que construíram e ajudaram a modelar.
Diante do enfoque dominante que privilegia uma abordagem de ‘conservação’ da natureza, interessa
reintegrar as noções de dinâmica e de mudança, pois “a sustentabilidade não pode [...] significar um
congelar da história – a reprodução incomensurável de um equilíbrio impossível. Implica, ao contrário,
uma capacidade de mudar constantemente, em função de um enfrentamento sem trégua, renovado
entre as exigências de reprodução da natureza e das sociedades”. (RAYNAUT, 1997, p. 370).
Sustentabilidade é, pois, uma noção que não pode ser reduzida à combinação de somente duas
exigências: a de controle das perturbações (imediatas ou de longo prazo), sofridas pelo meio físico
e natural e a da manutenção da viabilidade econômica das formas de exploração dos recursos desse
meio. Trata-se, ao contrário, de abordá-la sob uma perspectiva global que considere a diversidade e a

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complexidade das relações cultura/sociedade/natureza, integrando em particular as dimensões ligadas


à reprodução material e imaterial das comunidades humanas. Mas a discussão central que faremos
aqui é sobre o conceito de cultura na Antropologia. Portanto, comecemos por um alerta feito pelos
antropólogos sobre a ampla utilização do termo cultura, que define inúmeras situações ou qualidades.
A definição do senso-comum credita cultura à erudição. Por exemplo, ao se referir a uma pessoa com
conhecimentos enciclopédicos costumamos dizer que é uma pessoa culta. Por outro lado, também
quando nos referimos a um determinado sistema numa empresa, falamos sobre cultura empresarial. O
termo parece ser muito conhecido, pois todos acreditam saber do que ele trata ou a que se refere. Mas
não é isto o que acontece quando falamos do conceito utilizado pela Antropologia, que entende que
cultura define mais do que isso tudo.
Mas vamos ver como se inicia esta história. O termo ‘cultura’, tal como empregado pela
Antropologia, começou a ser cunhado na Alemanha, no final do século XVIII, em contraposição
às pretensões globais da expansão anglo-francesa, que considerava as outras sociedades como
um estágio, cujo ápice seria a sua própria ‘civilização’2. Para os intelectuais burgueses alemães,
as diferenças culturais eram essenciais na defesa de sua unidade política. Assim, o Movimento
Romântico defendeu a ideia de Kultur em contraposição à de civilização. Para eles, o conceito de
cultura identificaria e diferenciava um povo e deveria ser compreendido no plural. Não se concebia a
existência de povos incultos. A cultura era vista como um legado ancestral, transmitido por conceitos
distintivos de uma determinada língua e adaptada a condições de vida específica. Sustentado por essas
concepções, o conceito antropológico de cultura foi marcado por aquela realidade e pelas exigências
nacionalistas alemãs contrárias às ambições da Europa ocidental. Daquele ponto de vista, cultura
definia uma unidade e demarcava as fronteiras de um povo e, como já foi dito, se contrapunha
ao conceito de civilização. Este conceito sustenta-se no postulado da unidade do Homem como
espécie e foi herança do Iluminismo, nascido também no século XVIII. Nesse raciocínio, cultura,
por oposição à natureza, consistiria no caráter distintivo da espécie humana em relação aos animais:
a soma de saberes acumulados e transmitidos pela humanidade considerada em sua totalidade, ao
longo de sua história, as diferentes formas de sustentabilidades das culturas humanas. Englobaria,
portanto, o conjunto integrado de conhecimentos, crenças, sentimentos, regras e comportamentos
que balizariam as ações e atitudes dos indivíduos. Sempre empregada no singular – civilização –
significa que entende a cultura como própria da humanidade, e está associada à ideia de progresso,
evolução, educação e razão. O progresso nasceria da instrução capitaneado pela civilização, como
um processo de evolução linear da humanidade, que levaria os povos considerados primitivos – as
formas mais simples de organização social – a evoluírem para alcançarem as formas mais complexas
– a sociedade europeia. A ideia era a de que sociedades poderiam ser comparadas entre si por meio
de seus costumes, isolados de seus respectivos contextos. E que esses costumes teriam uma origem
e, evidentemente, um fim. Todo esse aparato conceitual de certa forma justificou o colonialismo, a
expansão do modo de vida ocidental e até mesmo ideologias nazi-fascistas que se espraiaram pelo
mundo na primeira metade do século XX.

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Para se contrapor a esta visão evolucionista e etnocêntrica, temos o exemplo do continente


Americano, cuja população nativa havia atingido, antes da conquista europeia (1498-1500), grande
desenvolvimento cultural independente. Espécies animais e vegetais (a batata, o tabaco, o cacau, o
tomate, dentre outros alimentos) haviam sido domesticadas, produziam-se medicamentos, indústria
de tecelagem e cerâmica, trabalhavam-se metais com perfeição. Os Maias haviam chegado à noção de
zero, pelo menos 500 anos antes de ter sido descoberta pelos Hindus, e construído um calendário até
o ano 2000. Além disso, havia o avançado sistema político dos Incas3. Apesar de desconsiderar essas
condições, a ideia de civilização teve seu lado positivo ao propor o postulado da unidade do Homem
como espécie.
Mas voltemos à ideia de Kultur. Então, o Movimento Romântico alemão, ao enfatizar os
costumes e as artes qualitativamente diversas, tornou-se uma das primeiras formulações importantes
de expressões culturalmente variáveis da vida humana. A partir de então, passou-se a pensar civilização
como a expressão de uma forma material e exterior de desenvolvimento, sem relação necessária com o
progresso da vida interior e espiritual do Homem.
É nesse contexto que é construído o conceito antropológico que enfatiza a cultura como
substantivo coletivo, um processo social que modela diferentes modos de vida. Supraindividual,
aprendida, partilhada e adquirida. Mas a ideia de cultura como um meio específico, que surge como
o resultado da incompletude do ser humano em sua capacidade puramente biológica permanece.
Cultura também corresponde à capacidade do gênero humano em criar um meio artificial, como
a linguagem humana que combina símbolos capazes de expressar relações entre coisas, indivíduos e
acontecimentos e torna os humanos capazes de invenção e criatividade, de estruturar e desestruturar, de
formar sínteses com o material fornecido pelo meio natural e social. (SCHELLING, 1990, p. 31-32).
Esse atributo humano é a base do entendimento da cultura como prática. A espécie humana, além de
se adaptar instrumentalmente à natureza, transforma-a e ao mesmo tempo transforma a si mesmo. As
pessoas não descobrem simplesmente o mundo, ele lhes é ensinado. (SHALINS, 1997, p. 48). Nesse
contexto, encontramos semelhanças entre os conceitos de cultura e o de sustentabilidade, também
ele um processo no qual as diferentes sociedades e culturas humanas se relacionam com a natureza
e se equilibram nesta convivência. A diversidade de formas de conviver com o planeta enriquece o
conhecimento sobre ele e sobre a humanidade, tão igual e tão diferente.

O CONCEITO ANTROPOLÓGICO DE CULTURA


Ao final do século XIX, importantes etnólogos4 e antropólogos continuavam a (re)formular o
conceito de cultura. A primeira definição elaborada por um antropólogo inglês, E. B. Tylor (1871-
-1917), buscou uma sinonímia parcial entre cultura e civilização afirmando: cultura e civilização,
tomadas em seu sentido etnológico mais vasto, são um conjunto complexo que inclui o conhecimento,
as crenças, a arte, a moral, o direito, os costumes e as outras capacidades ou hábitos adquiridos pelo

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homem como membro da sociedade. Essa definição enfatiza que a cultura é adquirida e não depende
da hereditariedade biológica.
A hereditariedade biológica, noção das ciências biológicas formada pelas ciências naturais,
corresponde a uma hipótese dotada de alta probabilidade, mas a noção de evolução social ou cultural
somente se constitui como uma analogia, uma forma sedutora de apresentar os fatos. A genética ensina
que raças são populações mais ou menos isoladas, que diferem de outras populações da mesma espécie,
pela frequência de características hereditárias. (FREIRE-MAIA, 1973, p. 23). E aponta a falácia do
uso socioantropológico deste conceito, pois o que define uma raça é a frequência de traços genéticos
transmitidos como herança biológica. E, como afirma Lévi-Strauss, “um ser humano dá origem a
outro, mas um machado de pedra, por si só, nunca originaria a serra elétrica. As diferenças genéticas
são as bases do conceito de raça, as diferenças culturais não contam”. (FROTA-PESSOA, 1996, p. 29).
Além do que, existem muito mais culturas humanas do que raças humanas, pois que enquanto umas
se contam por milhares, as outras contam-se pelas unidades: duas culturas elaboradas por homens de
uma mesma raça podem diferir tanto ou mais que duas culturas provenientes de grupos racialmente
afastados. (LÉVI-STRAUSS, 1976, p. 54).
Para não dizer que falamos somente de uma forma genérica ou de um passado longínquo, existem
222 povos indígenas no Brasil contemporâneo, que falam mais de 180 línguas diferentes e têm diversas
formas de se relacionar com o meio ambiente. São aproximadamente 350.000 índios que ocupam terras
administradas pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI)5. E, segundo estimativas, cerca de 60 grupos
estão na região amazônica e ainda poucos convivem com o chamado ‘mundo dos brancos’ 6. Somente
no Estado do Paraná, de acordo com dados oficiais, estão aldeados cerca de 9.000 indígenas, a maioria
da etnia7 Kaingang, somados a uma parcela menor de Guarani. Com religião, línguas, sustentabilidades,
crenças e costumes diferenciados, muitos destes povos, à época do ‘descobrimento’, diferenciavam-se
mais entre si do que com os ‘descobridores’. Enquanto os Xetá, que habitavam a região do Paraná,
eram caçadores-coletores, os Guarani eram agricultores e criadores de animais e por essas condições
aproximavam-se muito mais do colonizador português do que de seus conterrâneos Xetá.
Mas voltemos às concepções elaboradas ao final do século XIX e início do XX. Cultura passa a
ser definida como uma configuração particular de crenças, costumes formas sociais e tratos materiais
de um grupo religioso, étnico ou social. Com Émile Durkheim (1858-1917) começam a se definir os
fenômenos sociais como objetos de investigação socioantropológica, e a partir de suas análises começa-se
a pensar que os fatos sociais seriam muito mais complexos do que se pretendia até então. Na Inglaterra,
nasce o Funcionalismo que enfatiza o trabalho de campo e a observação participante, uma reação ao
Evolucionismo. O pesquisador vai deslocar-se de seu gabinete para ir viver com e como os nativos.
Malinowiski (1884-1942) é considerado o criador da etnografia, que foi incorporada como o método
próprio da antropologia na coleta de dados. Baseia-se no contato intersubjetivo entre o antropólogo e seu
objeto, seja ele uma tribo indígena ou qualquer outro grupo social sob qual o recorte analítico seja feito.
Segundo essa metodologia, para sistematizar o conhecimento acerca de uma cultura é preciso
apreendê-la em sua totalidade. As sociedades humanas são entendidas como muito mais que a simples

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soma dos indivíduos que as compõem. As sociedades passam a ser estudadas como um sistema coerente
e integrado de relações sociais. Nela podemos distinguir unidades sociais mais ou menos permanentes,
mais ou menos institucionalizadas, que estabelecem entre elas relações funcionais e estruturais. As
instituições sociais centralizam o debate, a partir das funções que exercem na manutenção da totalidade
cultural. Malinowiski, Radcliffe-Brown (1881-1955) e Evans-Pritchard (1902-1973) estudaram
principalmente diferentes culturas africanas compreendendo-as como organizações sociais, um todo
coerente, com lógica e racionalidade próprias.
Esses estudiosos sustentavam a universalidade e a equivalência das instituições (família e religião,
por exemplo), que consideravam responder às necessidades humanas universais. Em resposta,
antropólogos americanos (RUTH BENEDICT, 1887/1948) afirmaram que as instituições sociais são
formas vazias de conteúdo e que cada sociedade as preenche diferentemente e que o enfoque dos
antropólogos deve ser o estudo das particularidades de cada uma delas.
O grande mestre dessa concepção foi o antropólogo Franz Boas (1858-1942), alemão naturalizado
norte-americano. Ele construiu a concepção antropológica do ‘relativismo cultural’ que considerou
um princípio metodológico a fim de escapar do etnocentrismo: uma atitude coletiva que consiste em
repudiar outras formas culturais, religiosas, estéticas, sociais e morais mais afastadas daquelas com as
quais nos identificamos. (LÉVI-STRAUSS, 1976, p. 59).
Para Boas, cada cultura é única e específica e representa uma totalidade singular. Seu esforço
foi o de pesquisar o que fazia a unidade da cultura. Daí sua preocupação em não apenas descrever os
fatos culturais, mas de compreendê-los juntando-os ao conjunto ao qual estavam ligados. Considerava
que cada cultura adota um ‘estilo’ próprio que se exprime pela língua, crenças, costumes, arte e no
comportamento dos indivíduos.
Boas foi um forte crítico das explicações das diferenças entre os seres humanos que tinham por
base a caracterização biológica da raça, que resultou nos grandes conflitos do século XX. Seu objetivo
foi o de eliminar qualquer traço de determinismo. Essa eliminação o conduziu ao realce da cultura,
pois afirmou que deduzir formas culturais de uma única causa está fadada ao fracasso. Para ele, as várias
expressões da cultura estão inter-relacionadas, e uma não pode ser alterada sem que cause um efeito
sobre as restantes.
Essa definição pressupõe que as várias expressões da cultura sejam a base de modos de vida
particulares (BONTE; IZARD, 1992, p. 193) e que a produção simbólica é imanente a qualquer
sociedade humana. É assim que o conceito de cultura surge como um instrumento capaz de pensar
a enorme diversidade cultural da humanidade. Pois demonstra a heterogeneidade cultural como o
resultado da capacidade especificamente humana de criar diferentes soluções para a manutenção
da vida.
Ao observar as diversas sociedades, vemos a multiplicidade de práticas, processos de sustentabilidade,
instituições, normas, valores e crenças que dão colorido e significação à vida social de cada uma
delas. Daí, podemos dizer que o conjunto de atitudes, crenças, maneiras de se comportar à mesa e os
conhecimentos, mais ou menos compartilhados pelos seus membros, compõem sua cultura. Até mesmo

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tendências individuais, por exemplo, o dogmatismo ou a tolerância, a indiferença ou a rigidez são


partes constitutivas e características de cada cultura, assim como os direitos e deveres, a linguagem e os
símbolos. O que determina, em nossa sociedade, que o uso de calças seja preferencialmente masculino
e o de saias feminino não tem necessariamente conexão com as características físicas de cada sexo, ou
com a relação que advém dessas características. Existem roupas para a noite, para o dia, para as tarefas
domésticas e para as festas e comemorações. Cada uma delas remete para a natureza da atividade a ser
desenvolvida, para os determinantes de faixa etária e de grupo social. É por se relacionar ao sistema
simbólico que uma veste é preferencialmente dirigida a um grupo sexualmente definido, não pela
natureza do objeto em si, nem pela sua capacidade de satisfazer uma necessidade material. (SHALINS,
1979, p. 189). As vestes, assim como os modos de falar e se comportar, reproduzem a distinção entre
os indivíduos numa determinada sociedade e entre esta e as outras.
Se cada agrupamento humano é, a um só tempo, produtor e produto da cultura pode-
-se interpretá-la como uma das características da espécie humana, ao lado do bipedismo e de um
adequado volume cerebral. Cultura que se desenvolve simultaneamente com o próprio equipamento
biológico. (LARAIA, 1988, p. 59). Sob essa perspectiva, a cultura não foi acrescentada a um animal
acabado ou virtualmente acabado, foi um ingrediente, e um ingrediente essencial, na produção deste
mesmo animal. (GEERTZ, 1979, p.59).
Do conjunto do reino animal, o ser humano é o que nasce menos desprovido da capacidade de
sobreviver às suas próprias custas. É um animal incompleto e inacabado que se completa por meio de
formas particulares de cultura. O bebê depende de quem cuide dele, alimente-o, agasalhe-o e o proteja
por um longo período de tempo. Mesmo adulto, seu equipamento físico é muito pobre. É incapaz de
correr como um antílope, não tem a força do leão, nem a acuidade visual de um lince. (LARAIA, 1988,
p. 40). No entanto, para suprir tudo isso, é dotado de um instrumental extraorgânico de adaptação, que
não trouxe modificação anatômica significativa e que, de certa forma, o auxiliou a libertá-lo da natureza.
É o único animal a transformar toda a Terra em seu habitat. (LARAIA, 1988, p. 42). Construiu o avião
e conseguiu voar; o submarino, e mergulhou no profundo oceano; adaptou lentes; conteve a força das
águas e dos ventos. Para isso dependeu de um aprendizado codificado por conceitos e sistemas simbólicos
específicos. Castores constroem diques; os pássaros, seus ninhos; as abelhas constroem suas colmeias.
Todos os seres vivos buscam seus alimentos, alguns deles de forma organizada e em grupos com base em
um aprendizado essencialmente codificado em seus genes e evocado por estímulos externos.
Para o ser humano é diferente. Ele é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Aprende
com a experiência acumulada, reflete e recria constantemente formas de entender e agir sobre o mundo.
Seus sentidos e instintos são conduzidos pelos padrões culturais. Sorrir ante um estímulo agradável ou
franzir o cenho ao desagradável são, até certo ponto, determinações genéticas, mas o sorriso sardônico
e o franzir caricato são, com certeza, culturais. (GEERTZ, 1979, p. 62).
É aqui que começamos a perceber o sentido do conceito cultura como um sistema simbólico que
define mecanismos de controle, regras e instruções que indicam o que o nativo daquela sociedade deve
ou não fazer e como se comportar. Dessa perspectiva, cultura é vista como um código de símbolos
partilhados e toda prática social é relativa, provida de sentido e lógica para aqueles que a praticam.

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Assim, o modo de ver o mundo, os diferentes comportamentos e até mesmo a postura corporal,
ou os alimentos de que se gosta ou os que se rejeita são produtos de uma determinada herança cultural
recebida e ressignificada todo o tempo. Indivíduos de uma mesma cultura podem ser identificados
por algumas características semelhantes: o modo de vestir-se, comer, caminhar, agir, além é claro do
uso da mesma língua. Marcel Mauss (1872-1950), importante antropólogo francês, afirmou que cada
sociedade tem hábitos que lhe são próprios e que se pode falar até mesmo de técnicas corporais, para se
referir às maneiras como os Homens sabem servir-se de seus corpos. Para ele, o corpo é o primeiro e o
mais natural instrumento do homem. (MAUSS, 1974, p. 217). Oferece exemplos interessantes, como
quando diz que as crianças acocoram-se normalmente, o que é uma difícil posição para os adultos em
nossa sociedade, mas postura considerada natural entre os australianos que repousam sobre os seus
calcanhares. Nossa cultura enfatiza o uso da mão direita, sem considerar o ambidestrismo. Entre os
mulçumanos, a mão esquerda jamais deve tocar na comida, assim como à direita é interditado o toque
de certas partes do corpo. Outro exemplo relacionam às técnicas do parto. Entre as mulheres hindus o
parto é feito com as mulheres em pé, pois acreditam que Buda nasceu estando sua mãe agarrada, reta,
a um ramo de árvore. (MAUSS, 1974, p. 223). Interessante saber que os Massai (um povo africano)
dormem em pé, enquanto Hunos e Mongóis dormiam a cavalo sem interromper a marcha.
Os usos do corpo reafirmam as diferenças sexuais, associam-se ao gênero feminino e masculino
condicionados socialmente. Maneiras de se expressar, enfeites corporais, normas e regras definem
socialmente o gênero masculino e o feminino e marcam as diferenças. Entre os povos indígenas do
Brasil, o uso de enfeites e de pinturas corporais é, prioritariamente, campo do masculino. Mulheres
raramente usam cocares, enfeites auriculares ou labiais e se os utilizam, é em menor quantidade ou
diversidade que os homens.
Podemos ainda citar as diferentes maneiras à mesa e os hábitos alimentares, o que é definido como
alimento bom ou ruim, forte ou fraco, a forma como se come. Às vezes o ato de comer é público,
às vezes privado. Algumas culturas consideram o arroto uma forma de demonstrar satisfação com a
comida, outras uma indelicadeza. O comer envolve muito mais que ingerir nutrientes. Determina
e é determinado por seleções, rituais, significados, sociabilidades. Definições de cru e cozido, de
forte ou fraco, de bom e ruim são escolhas, em certo sentido, arbitrárias. O que será comido por
membros de uma sociedade humana é sempre selecionado, preparado, processado e classificado. Ideias
e significados, muitas vezes, alteram o gosto ou a finalidade e interditam o alimento. Sendo assim, as
comidas e os modos de consumi-las pertencem ao âmbito da cultura e dão o senso de identidade, são
representados e identificados com base em crenças e no imaginário. É a cultura quem impõe as normas
que prescrevem, proíbem ou permitem comer. (CANESQUI; GARCIA, 2005, p. 10). A alimentação
também está articulada à sociedade em que se vive, a forma como ela se estrutura, produz e distribui os
alimentos. Existe ainda um condicional importante, o que se come está determinado pelas condições
de acesso ao alimento. Classes e grupos sociais, nas sociedades contemporâneas, têm diferentes estilos
de comer, elegem diferentes alimentos possibilitados também por suas condições de compra.
Aqui entra a relação entre o indivíduo e sua cultura, que é sempre limitada. Quer seja por não ser
capaz de participar de tudo o que acontece, quer por enfrentar limites nessa participação, muitos deles

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impostos pela própria cultura. Nas sociedades contemporâneas que se distinguem pela especialização
e pela divisão de trabalho e classe social, é quase impossível que um indivíduo possa dominar todos
os aspectos de sua cultura. Um médico, por exemplo, domina o funcionamento do corpo humano,
mas pode nada entender do movimento dos astros celestes ou dos procedimentos necessários para a
alfabetização de crianças e adultos. Mesmo que o indivíduo domine um aspecto de sua cultura a fundo,
pode ser totalmente ignorante em outro. No entanto, sempre existe um mínimo de conhecimento
comum que permite a articulação entre os membros de uma sociedade para que seja possível a
convivência. Todos os que habitam uma grande cidade, por exemplo, conhecem o funcionamento dos
semáforos e a função de suas cores vermelha, amarela e verde; também nunca se atirariam de janelas de
prédios altos, a menos que sua vontade fosse o suicídio; em toda sociedade, todos sabem e devem saber
ou aprender aquilo que devem fazer em todas as condições. (MAUSS, 1974, p. 230).
Apesar de ser um referencial dominado, em parte, pelos indivíduos que o recebem das gerações
passadas, há consenso entre os estudiosos que existe uma dinâmica e que as culturas estão em constante
transformação. A permanência cultural acontece pela mudança e pouco tem a ver com a manutenção da
pureza ou autenticidade das tradições. (MONTEIRO, [s.d.], p. 5). Mais recentemente a Antropologia
começou a tomar consciência de que o binômio resistência/aculturação (ou desenraizamento) não
constitui um quadro de referência satisfatório para compreender os fenômenos culturais no contexto da
incorporação progressiva das sociedades na economia do mercado mundial. (MONTEIRO, [s.d.], p. 3).
Enfim, pode-se considerar que o conceito de cultura é utilizado sob algumas acepções: a capacidade
de simbolização própria da espécie humana; que esta simbolização é uma entidade social relativamente
autônoma e complexa; e que o sistema de símbolos é coletivo. De fato, a cultura diz respeito à ordem
simbólica e exprime a forma como os seres humanos estabelecem relações entre si e com o mundo
e interpretam estas relações. Assim, a pluralidade cultural é indicativo da singularidade histórica
e social de uma cultura. Quanto ao sentido, um gesto não é imediatamente visível na ação social,
mas está codificado e é público, porque é acessível a todos. A ação é simbólica, pois condensa toda
uma mistura de significados que remete a outros contextos, além do específico do comportamento
observado. (GEERTZ, 1989). Portando, para se entender um gesto não basta somente conhecer a
fisiologia ou a psicologia, é preciso também conhecer as tradições e crenças de um povo. (MAUSS,
1974, p. 221). Por isso mesmo concordamos com a afirmação que diz que o conceito de cultura
nomeia e distingue um fenômeno único: a organização da experiência e da ação humanas por meio de
símbolos. (SHALINS, 1997, p. 41). E reforçamos aqui a afirmação de que a diversidade cultural, uma
das principais características das sociedades humanas, não se encontra definida no seu código genético.
É voz corrente que a humanidade é, a um só tempo, produto e produtora de cultura, pois a partir de
regras e interdições ela atua sobre o mundo, sobre ela mesma como um todo e sobre os indivíduos.
A noção de etnia, ao contrário da de raça, ao enfatizar aspectos culturais homogêneos no conjunto
de pessoas, não desconsidera a miscigenação. Ela enfatiza as semelhanças culturais dentro de uma
população. O uso da mesma língua, a ocupação de um território comum, os modos de agir e se
comportar, as mesmas crenças e tradições, são as bases que constituem as relações da vida cotidiana e
definem cada grupo étnico, mesmo que a cor da pele, o formato do rosto ou os cabelos sejam diferentes.

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Esta abordagem possibilita compreender a enorme diversidade de costumes, regras, interdições e


relações de parentesco que marcam a humanidade com esta característica particular: uma mesma
espécie, mas tão diferentes. E nos leva a pensar na misturada realidade brasileira, a mistura biológica,
a dos costumes, a da religião.
O Brasil é um país continental, como costumamos dizer. De Norte a Sul, de Leste a Oeste
diferentes grupos étnicos misturaram-se nestes mais de 500 anos após a chegada dos portugueses.
Antes disso, centenas de povos indígenas percorriam todo o Continente Americano, desbravando
caminhos, mais tarde usados pelos colonizadores. Neste caldo efervescente, moldou-se o brasileiro, que
não se define pelo biótipo. Somos brancos, somos negros, somos amarelados. Temos cabelos pretos,
loiros, avermelhados. Olhos amendoados, repuxados, azuis, verdes, castanhos, pretos, amarelados. A
língua, herdada dos portugueses, é uma só. Sotaques mil, quase diferentes dialetos. O guri paranaense,
o menino paulista, o garoto carioca. A religião, também marcada pela diferença, é Católica, Evangélica.
São o Candomblé e outras inúmeras seitas, que cobrem nossa rica heterogeneidade.

FOLCLORE, LENDAS E SUPERSTIÇÕES


Tentativas de criar referência histórica e identidade às nações emergentes levaram estudiosos a
recolher e registrar rituais, versos, melodias, cantos, danças, costumes, festas, crenças, lendas, superstições
e mitos transmitidos pela tradição oral, que pareciam representar uma herança antiguíssima. Caso bem
conhecido é o dos célebres versos épicos creditados falsamente a Ossian, personagem inventado por
James MacPherson (1762), que misturou mitologias e atribuiu a Escócia glórias do passado da Irlanda,
na tentativa de criar uma identidade nacional. Ossian era um suposto guerreiro, que reafirmava valores
tradicionais que deveriam ser ‘resgatados’, com o objetivo de criar ‘raízes culturais’ nacionais para a
Escócia, diferenciadas da Inglaterra. A fraude só foi provada no final do século XIX. Outro caso é o
da suavização do Conto Chapeuzinho Vermelho, coletado pelos irmãos Grimm na Alemanha (1806-
-1810), também conservado pela tradição oral. A história, devido ao seu trágico final, era originalmente
destinada ao público adulto, não a crianças8.
Esses estudiosos ficaram conhecidos como folcloristas e foram os primeiros a construir um discurso
sistemático sobre a chamada ‘cultura popular’. Mas a palavra folclore foi empregada pela primeira vez
por Williiam J. Thoms, em 1842. Composta pelos vocábulos folk – povo, e lore – conhecimento ou
ciência, passou a designar o estudo das manifestações do saber popular.
A maioria dos folcloristas buscava no ‘povo’ raízes autênticas que permitissem definir uma
‘autêntica cultura nacional’. O interesse pelos camponeses justificava-se pelo seu pretenso isolamento.
O grande equívoco conceitual foi, na tentativa de encontrar inúmeros aspectos da vida cultural, definir
estas manifestações como do ‘povo’ ou ‘popular’.
No século XIX, essas definições tendiam a convergir para um purismo, segundo o qual o camponês
idealizado (entendido como o ‘povo’) preservaria seus costumes, pois viveria mais perto da natureza
e, portanto, estaria menos marcado pelo modo de vida da elite ou do estrangeiro. Os termos povo e

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popular são muito vagos e foram definidos de variadas formas pelos folcloristas. Por princípio negava-
-se a condição de ‘popular’ às outras camadas sociais que não as camponesas.
O fato é que existe uma afinidade eletiva entre o popular e o nacional. Na Alemanha o interesse
pela cultura popular vinculou-se ao nacional e seu estudo buscou uma forma de identificar-se como
alemão. Na Itália, o movimento conhecido por Ressurgimento, que culminou com a unificação do país
em 1870, também descobriu o folclore como elemento de consciência nacional.
Na Inglaterra, o já citado Tylor introduziu a noção de sobrevivência para entender a permanência
de certas formas de compreender, manifestar-se ou explicar o mundo, que, segundo ele, se aproximariam
do pensamento do homem primitivo: canções infantis, jogos de azar ou o que definiu como ocultismo.
As sobrevivências seriam vestígios de hábitos milenares que permaneceriam preservados.
No Brasil, a produção folclorística não fugiu à regra e enfatizou os aspectos ‘autênticos’ e
‘comunitários’ das chamadas ‘culturas do povo’, como base para definir o caráter nacional. Dentre
os intelectuais que pensaram o Brasil podemos citar Silvio Romero (1851-1914), que apesar de seus
argumentos racistas foi considerado por Câmara Cascudo (1898-1986) um dos fundadores da tradição
dos estudos folclóricos no país. O brasileiro é caracterizado como homem sincrético, constituído pelo
elemento popular oriundo da miscigenação cultural. Associam-se, assim, identidade nacional e cultura
popular. Mesmo mais tarde, com Mário de Andrade (1893- 1945), em pleno Modernismo, voltou-se
a enfocar o folclore como expressão da identidade nacional. Buscavam-se estórias e lendas, cantos e
danças, músicas e performances que seriam expressão da brasilidade ou que ajudassem a compô-la.
Temos, então, um traço comum com as experiências alemãs e italianas: a questão nacional.
Mas, existe um problema conceitual, o da legitimidade do termo ‘folclore’. Advoga-se contra ele
apontando-se o empiricismo que caracterizaria essa tradição e que “proviria em parte da coincidência
entre o termo que identifica o objeto – mais especificamente o tipo de ‘manifestação cultural’ estudada –
e o que nomeia seu estudo”. (VILHENA, 1997, p. 30). O empiricismo viria da coleta de dados
sem a orientação de uma metodologia elaborada, a veracidade da técnica estaria contida no olho do
observador. Outro argumento aponta a pretensão de o folclore constituir-se em disciplina à parte, e
não um campo de estudo frequentado por especialistas de diferentes disciplinas. Imputa-se, ainda,
a ele o presentismo, isto é, a incapacidade de conseguir estabelecer uma distância adequada entre a
perspectiva do pesquisador e a do objeto estudado ou, o contrário, tratar o objeto como inteiramente
alheio.
Temas abordados pelos folcloristas são tratados pelas Ciências Sociais, particularmente pela
Antropologia e a Etnologia, num quadro conceitual regido por metodologias próprias. Essas
metodologias enfocam a totalidade das relações sociais e culturais em seus contextos. No caso do
estudo dos mitos, por exemplo, vê-los como próprios de sociedade outras que não as nossas, sem
fundamento objetivo ou científico, histórias de um universo puramente maravilhoso, é entendê-los de
forma equivocada e preconceituosa. Mitos são formas discursivas fundadoras de uma sociedade. São
sistemas de comunicação, são mensagens. Explicam a origem da sociedade, seus sentidos e apontam
para um futuro. Os Kaingang9, por exemplo, afirmam que os primeiros indivíduos da sua nação saíram

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do solo; por isso mesmo têm a cor de terra. Numa serra, não sei bem onde, no sudeste do Estado
do Paraná, dizem eles que ainda podem ser vistos os buracos pelos quais subiram. (VIVEIROS DE
CASTRO, 2006). Ou o mito de Adão e Eva, entre nós, fundador da humanidade.
As sociedades humanas referem-se, de maneira geral, a mitos fundadores, que agiriam como
amálgamas que justificariam uma determinada unidade sociocultural. O mito fixa modelos exemplares
das funções e atividades humanas. Mas é, por vezes, utilizado de forma pejorativa para se referir às
crenças comuns.
Nesta mesma linha explicativa enquadra-se o que definimos por superstição. Quem pode afirmar
nunca ter batido na madeira por três vezes para afastar uma notícia ruim? Parece irracional que
continuemos, em momentos especiais, a fazer promessas, a oferecer prendas a santos ou a pedir que
Santo Antônio nos arrume um namorado(a). Mas continuamos a fazê-lo. Afinal, o que definimos por
superstições? Antes das religiões monoteístas, o que atualmente chamamos de magia e superstição
eram formas de as pessoas interagirem com o cosmos, com seus deuses e intervirem no transcurso da
vida. Interpretadas como paganismo e feitiçaria, essas crenças passaram a ser sinônimo de ignorância.
Em geral, a crença do outro é sempre supersticiosa, nunca a nossa. O pior bárbaro é aquele que
crê na barbárie, já diziam os filósofos. Entretanto, continuamos a creditar ignorância, primitivismo
ou subdesenvolvimento àqueles que não comungam das nossas crenças. Mas apelamos para algumas
daquelas que repudiamos quando nos sentimos acuados pela racionalidade e a impessoalidade que
comandam as sociedades contemporâneas: o trevo de quatro folhas, a ferradura usada, o vaso com
diferentes tipos de ervas ‘curativas’, e uma lista que se estenderia por inúmeras páginas.
O que devemos considerar é que manifestações culturais têm sentido por estarem referenciadas
a contextos sociais, históricos e culturais. Não são meras sobrevivências de um tempo remoto, que
insistem em permanecer em sua forma ‘original’. As expressões e manifestações culturais são dinâmicas
e como tal são ressignificadas a todo momento. Tentar preservá-las, tal qual animais num zoológico,
seria privá-las de vida e da possibilidade de continuar a ressignificar-se. E, além disso tudo, o processo
de rememorização não pode ser pensado como estático, a tradição nunca é mantida integralmente.
(ORTIZ, 1985, p. 132). No entanto, se tomarmos um evento folclórico em particular, podemos
considerar que sua memória existe como tradição e se encarna num grupo social determinado e é
realimentada mediante sucessivas reapresentações. Como no caso da Congada, por exemplo, que se
manifesta como vivência de um grupo social. De acordo com que afirma Carlos Rodrigues Brandão
(1981), o saber popular não existe fora das pessoas, mas entre elas.
Retomando o conceito de cultura, vemos que ele nos permite entender que características
universais da humanidade, tais como comer, reproduzir, falar, educar as crianças, dentre outras,
adquirem particularidades em cada grupo humano. Mas devemos também ficar alertas para o fato
de que ao enfocarmos uma cultura particular, elegemos uma particularidade dela para que possamos
defini-la. Por exemplo, falamos que todos os brasileiros falam português. Mas não podemos esquecer
que o falam de maneiras diferentes. Elegemos a carne como um alimento preferencial, mas nem todos
os brasileiros comem carne. Capturamos as semelhanças e as privilegiamos para apontar determinadas

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particularidades, isso não quer dizer que não haja diferenças. É importante precisar esta especificidade
do uso do conceito cultura.
Sem desconsiderar o ambiente ecológico, todas essas contribuições de origens culturais heterogêneas
formaram o alicerce cultural brasileiro, e deram condições para que o país se assentasse numa base de
unidade cultural plural pelas e apesar das diversidades regionais. Pois a cultura não flutua ‘no ar’, ela é
dinâmica e, consequentemente, as práticas culturais se modificam e modificam o contexto social em
que se inserem.
Assim, podemos afirmar que cultura, como um conceito antropológico, vive a tensão de conciliar
a diversidade, a hierarquia e a unidade existentes entre as sociedades humanas. E, mais que isso, que
o plano da cultura é recheado por contradições e fragmentações, pois, como um processo sustentável,
implica trocas que não excluem a dominação, a violência ou a resistência cultural que caracterizam a
sociedade brasileira. Discutir as peculiaridades de nossa sociedade é estudar suas zonas de encontro e
mediação, as praças e os adros10 das igrejas, os carnavais, as procissões e as malandragens, o ‘jeitinho
brasileiro’ (MATTA, 1976), mas também não perder de vista suas contradições e diferenças. Pois a
sociedade se constrói por distintas tradições culturais em um mesmo espaço político, onde a diferença
é um valor positivo e vital. (VIVEIROS DE CASTRO, 2006).

BIBLIOGRAFIA
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ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo:Brasiliense, 1985.


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TORRES, Patrícia Lupion (org.). Alguns fios para entretecer o pensar e o agir. Curitiba: Senar-PR, 2007.

NOTAS EXPLICATIVAS
1 Este texto foi publicado anteriormente, modificado, em TORRES, Patrícia Lupion (Org.). Alguns fios
para entretecer o pensar e o agir. Curitiba: Senar-PR, 2007.
2 ‘Civilização’ foi um termo cunhado na França na década de 1750 e adotado pela Inglaterra. Tornou-
-se popular em ambos os países, pois explicou suas realizações e justificou as explorações imperialistas.
(SAHLINS, 2001, p. 22)
3 Para maiores referências, leia Lévi-Strauss, 1976.
4 Etnologia: principalmente na França, o termo ganhou amplitude para designar o estudo das sociedades
tribais ou povos indígenas.
5 FUNAI – Fundação Nacional de Apoio aos Índios.
6 Sessenta e um povos (28.2%) têm uma população de até 200 indivíduos; 50 (23.1%) entre 201-500; 37
(17.1%) entre 501-1.000; 43 (19.9%) entre 1.001-5.000; 09 (4.1%) entre 5.001-10.000; 05 (2.3%) entre
10.001-20000; 01 entre 20001-30000; e 02 com mais de 30.000. In: http://www.socioambiental. org/
pib/portugues/quonqua/quantossao/popindig.shtm.
7 Etnia designa um conjunto linguístico, cultural e territorial de um certo tipo.
8 Na versão original, o lobo devora Chapeuzinho e sua avó. Na versão suavizada, o caçador liberta as duas
da barriga do lobo, enche-a com pedras, o que faz com que o lobo mau morra.
9 Os Kaingang, até o presente, formam grupos espalhados pelo oeste dos estados do Paraná, Santa Catarina,
São Paulo, norte do Rio Grande do Sul e leste das Missões argentinas.
10 Terreno em frente ou ao lado de igrejas.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
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ARTE EM TODO LUGAR: CAMINHOS DO


COTIDIANO E HISTÓRIA DAS ARTES VISUAIS
DO PARANÁ

Dra. Elisabeth Seraphim Prosser

Em cada localidade ou período da história, a arte se manifesta de modo diferente. Atualmente,


entre os principais propósitos da arte estão nos mostrar o mundo da vida, da sociabilidade, das cores
e formas, mas também nos inquietar sobre fatos do nosso tempo e nos alertar sobre os perigos a que
estamos sujeitos. Ela quer nos fazer pensar.
Entre seus muitos temas estão memórias, pessoas, relacionamentos, coisas e cenas alegres, agradáveis
ou engraçadas, vitórias e outros aspectos positivos da existência. De outro lado, expressa também
tristezas, anseios, conflitos, angústias, perigos, derrotas, decepções e medos. Outras vezes, ocupa-se da
natureza, com sua beleza e seus dramas, de certo contexto, do modo como as pessoas se relacionam
com o meio ambiente natural e com a paisagem urbana, muitas vezes abordando sua fragilidade.
Dentro do grande universo representado na arte, neste texto abrangemos o terceiro grupo: a
relação entre os vários grupos humanos e o meio ambiente natural e urbano. Enfatizamos especialmente
o que a arte nos mostra sobre a busca pela sustentabilidade da vida no planeta e como ela nos ajuda
a perceber isso e a contribuir para a preservação da vida. O pano de fundo para este estudo é uma
caminhada por alguns momentos da história das artes visuais no Paraná, especialmente em períodos
em que os temas da natureza e do meio ambiente estiveram em maior evidência. Vamos focar nossa
atenção na visão de alguns artistas sobre os aspectos fundamentais da vida que abordam, sobre o
impacto da ação humana no mundo e sobre as consequências de cuidar ou não do meio ambiente
natural e de tudo o que o envolve.
Ao pensar em arte, esquecemos que ela está presente nos nossos caminhos diários. Frequentemente
passamos por ela, mas não a vemos. Ela está em rochas e cavernas, em estruturas arquitetônicas, dentro

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de museus, galerias e casas, nos imensos painéis existentes em muitas cidades, nas praças, nas igrejas, nas
calçadas, nos muros, nos gibis, nas revistas, na publicidade, no graffiti, na mídia, nos filmes, enfim, em
todo lugar! Por isso é tão importante ter ferramentas para compreender o que está nas suas entrelinhas.
Esse é um dos objetivos maiores deste trabalho.

PRIMEIROS TEMPOS

A arte pré-histórica no Paraná


A presença humana nas Américas, antes estimada em cerca de 30.000 anos, de acordo com as
mais recentes pesquisas ocorre desde aproximadamente 130.000 anos, conforme estudos realizados em
um sítio arqueológico encontrado na década de 1990, na Califórnia, EUA. (HOLEN et al., 2017).
Os artefatos e as manifestações artísticas pré-históricas no Novo Continente nos legaram vestígios que
permitem conhecer alguns hábitos e crenças de vários grupos humanos que viveram ali milênios atrás,
e um pouco da sua cultura e da sua organização social. Diretamente dependentes do meio ambiente
natural, esses grupos, segundo o que se vê na sua arte, ao mesmo tempo que viviam do extrativismo,
da caça e da pesca, veneravam a natureza.
No Paraná, de acordo com Araujo, “destacam-se, sobretudo, três grandes segmentos: no litoral,
grande profusão de sambaquis; na região mais central, sobretudo no Segundo Planalto, pinturas
rupestres [...]; e no centro-sul, a presença de petroglifos”. (2006, p. 2). Há ainda outros achados,
como urnas funerárias, potes, gamelas, jarros, tigelas em cerâmica, além de pequenas figuras em pedra,
representando animais (os zoolitos).

A pintura rupestre no Paraná (a arte está nas rochas)


Arte rupestre quer dizer ‘arte pintada’ ou ‘gravada na rocha’ (do grego, rupes = rocha) e é uma das
formas de arte do homem pré-histórico de todos os continentes. Certamente, havia, ainda, arte sobre
outros suportes (madeira, couro, folhas, tecidos, plumas etc.) que, por serem perecíveis, não deixaram
rastro.
Nos pictogrifos de todos os continentes (do grego, picto = pintar; e graphein = grafar, pintar,
desenhar), são constantes a representação de animais e o uso dos pigmentos vermelho, marrom e preto.
Aparecem, também, desenhos com o ser humano, figuras geométricas, pontos, imagens que lembram
o sol. Além disso, há mãos espalmadas e pegadas humanas deixadas propositalmente em alguns sítios.
Provavelmente, cada uma dessas figuras está envolta em um universo de rituais e de significados.
No Paraná, as pinturas datam de 10.000 a 300 anos atrás: algumas remontam a bandos1 de
humanos pré-ceramistas, portanto, de caçadores e coletores de alimento; e outras a “grupos ceramistas
ancestrais dos indígenas Jê” (PARELLADA; LICCARDO, [s.d.]), que acumulavam alimento em

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tigelas, jarros e potes, o que implica uma transição para o sedentarismo. Para Igor Chmyz, “as pinturas
rupestres do Vale do Iapó foram feitas por ancentrais dos Kaingangue pré-ceramistas. Sua idade é
estimada em 7.000 anos e pertencem à chamada tradição Umbu”. (apud SOARES, 2003, p. 73).
Atualmente, no Paraná, “são conhecidos cerca de 70 abrigos, lapas e/ou cavernas com pinturas
rupestres. A maioria está no Segundo Planalto, junto aos vales dos rios Iapó, Tibagi, Cinzas, Jaguaricatu
e Itararé, e na escarpa de São Luiz do Purunã” (PARELLADA; LICCARDO, [s.d.]) e formam “um
semicírculo que se inicia em Ponta Grossa, passando por Castro, Tibagi, Piraí do Sul, Jaguariaíva e
Sengés”. (BARBOSA, 2004, p. 14). Estão presentes também, em menor quantidade, no Primeiro
Planalto, no alto Rio Ribeira, e no Terceiro Planalto, em áreas de rochas básicas da Formação Lavas da
Serra Geral.
São três os grupos temáticos que vemos nessas pinturas: animais, seres humanos e desenhos
geométricos/grafismos. Foram, geralmente, pintados em locais altos e impróprios para a habitação, o que
mostra que não tinham função decorativa. De modo geral, são desenhos em uma só cor, na maioria em
vermelho, marrom ou preto. Predominam representações de animais da fauna local (veados galhados,
corças, roedores, lagartos, tatus, porcos do mato, peixes, aranhas e aves), mas há também desenhos
esquemáticos e estilizados da figura humana, além de sinais e elementos geométricos, compostos por
pontos, círculos e linhas. Em alguns paredões há pontos dispostos em linhas retas, circulares ou com
o desenho do contorno de uma figura, feitos provavelmente com a ponta de um dedo, mergulhado
em tinta vermelha. Muitas vezes há imagens sobrepostas, o que aponta para conteúdos ritualísticos.
(ARAUJO, 2006, p. 2-3). Estudiosos não descartam a possibilidade de muitas dessas pinturas serem
sinais de orientação para os povos pré-coloniais que, de acordo com os primeiros exploradores, viajavam
muito a pé, de leste a oeste no Estado, na grande rede de caminhos do Peabiru.
Para Araujo, “tais pinturas possuem o mesmo espírito narrativo, dinâmico e esquemático,
tendendo à estilização” (2006, p. 2-3) que caracteriza a arte rupestre da Espanha e do Continente
Africano. Apesar da recorrência dos temas e da proximidade estilística, observam-se diferenças nos
signos pictóricos entre um abrigo e outro.

No centro-leste do Paraná, em Ponta Grossa, Tibagi e Piraí do Sul, como é o caso do Guartelá, as
pinturas geralmente têm cores vermelhas e marrons, sendo raras as pretas. Predominam as figuras de
animais, principalmente cervídeos, em perfil, e pássaros, tanto em perfil como de frente, ocorrendo
com menor frequência lagartos, cobras, batráquios e peixes. As figuras humanas aparecem em menor
quantidade, associadas muitas vezes a animais e sinais geométricos. Existem várias representações
de animais enfileirados, sobrepostos ou próximos a grades, além de cena de pesca. Em vários sítios
verifica-se a superposição de pinturas geométricas abstratas, mais recentes, geralmente em vermelho
e caracterizadas por sucessões de pontos e grades [...]. No nordeste paranaense, principalmente nos
municípios de Sengés e Jaguariaíva, existem muitos abrigos com pinturas em vermelho e marrom, onde
a maioria das representações é geométrica. Predominam os círculos, raiados ou não, traços, pontos e,
com menor frequência, motivos geométricos elaborados; a cor das pinturas alterna-se entre o vermelho
e o marrom. As pinturas localizam-se nas paredes e tetos dos abrigos, situados preferencialmente no
topo das escarpas areníticas e nas proximidades da borda dessas escarpas. [...] Nas margens do canyon

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Chapadinha, em Piraí do Sul, existem vários abrigos areníticos com pinturas, inclusive com figuras de
animais e seres fantásticos. (PARELLADA; LICCARDO, [s.d.]).

Ainda não se sabe ao certo o significado dessas pinturas; mas, por analogia com outras civilizações
pré-históricas e pelos animais e possíveis armadilhas ou cercas (grades quadriculadas) representados,
pode-se inferir que em parte estão ligadas a rituais de caça.

Petroglifos
Os petroglifos (do latim: petra = rochedo, pedra; e do grego: glifo = esculpir, gravar) são desenhos
feitos nas rochas, mediante a incisão, o riscar, o picar ou o desgastar, com o uso de instrumentos
pontiagudos e duros como ossos, pedras ou pedaços de madeira dura. (GOMES, 2011). A quase
totalidade dos petroglifos encontrados no Paraná está em rochas a céu aberto, cavernas e abrigos no
Médio e no Baixo Iguaçu2. Em Vargem Grande, União da Vitória, Cruz Machado, Ivaiporã e outras
localidades há numerosos sítios arqueológicos com incisões feitas por humanos, dos quais foram
retirados, recentemente, objetos de pedra e cerâmica.
A maioria das incisões é de figuras geométricas: linhas (simples, bi e tripartidas), pontos,
círculos concêntricos ou não, triângulos, ‘escadas’, linhas onduladas, grades, com raras representações
figurativas. Há ainda geometrismos que lembram patas de animais, de aves e pés humanos; e linhas,
que remetem à estilização do movimento do corpo humano e de animais, entre outros. Em alguns
painéis há sobreposição de incisões, algumas feitas em época mais recente. (LANGER; SANTOS,
2013). Sobre sua interpretação há várias possibilidades, todas elas, hipóteses a examinar: ritualística,
sinalização de posse territorial, sacralização, domínio do espaço e outras. (GOMES, 2011).

Sambaquis (a arte está na pedra, na areia e na cerâmica)


No litoral do Paraná foram catalogados quase duzentos sambaquis que, para Andrade Lima,
“guardam resquícios de sociedades que viveram há quase 8.000 anos”. (2005, apud BIGARELLA,
2011, p. 12). São montes estratificados construídos pelo acúmulo de conchas de moluscos. Sua base
é geralmente oval, irregular, ora mais ora menos alongada. Variam de 0,5 a 15 metros de altura e
alguns apresentam uma circunferência na base de até 200 metros e um volume de até 90.000 m3
de material (BIGARELLA, 2011, p. 24) – os maiores constituem verdadeiras montanhas. Quanto
mais abundantes os moluscos em certos locais, maior a incidência de sambaquis, o que mostra serem
construídos nos lugares em que os humanos viviam e onde obtinham seu alimento. Há sambaquis no
interior do Estado, perto de rios, mas a maioria está no litoral.
Além de várias espécies de conchas de moluscos, os sambaquis contêm espinhas de peixes, vértebras
de baleia, ossos de animais e vestígios de atividades cotidianas como sinais de fogueira, artefatos
esculpidos em pedra e osso (lâminas de flecha e machado, anzóis, colares, enfeites labiais, peitoris e

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discos perfurados), seixos não trabalhados, ferramentas de caça e de pesca e utensílios de cerâmica,
ossadas humanas cuidadosamente dispostas e oferendas. Para Bigarella (2011, p. 12), os sambaquis
estavam próximos aos locais de moradia e eram, provavelmente, lugares de práticas rituais e túmulos.
Tudo isso sugere uma aproximação entre as concepções de vida e morte naquele grupo humano
relativamente sedentário e um longo período para a construção de um sambaqui, cujo término poderia
constituir o fechamento de um ciclo.
Algumas pequenas esculturas encontradas nos sambaquis, os zoolitos ou figuras zoomorfas (zoo =
= animal; litos = pedra; morfo = forma), são bem elaboradas na técnica da pedra polida (raramente, em
osso) e contrastam com a simplicidade dos outros objetos. Para Bigarella (2011, p. 12-13), constituem
uma arte refinada e rara. Em muitas há, no lugar do ventre do animal, uma grande cavidade em forma
de tigela. Foram encontradas principalmente junto a ossadas, com vestígios da tinta vermelha com a
qual pintavam os corpos que iriam sepultar e, por isso, podem estar ligadas a práticas rituais. Alguns
desses sepultamentos apresentam oferendas mais elaboradas e em maior quantidade, o que indica a
morte de uma pessoa com status mais alto no grupo e, portanto, uma sociedade hierarquizada. Para
Araújo, os zoolitos são esculturas, ao mesmo tempo figurativas e esquemáticas de aves, peixes e cetáceos
“que revelam conhecimento intuitivo da morfologia animal, vigoroso sentido plástico e pureza de
concepção”. (2006, p. 2).
Muitos sambaquis foram destruídos pela ação humana para a construção de prédios, estradas e
calçadas. De outros, estudiosos preservaram objetos e documentaram vestígios que mostram, além
dos objetos citados, pontas de machado (em pedra lascada, semipolida e polida), objetos cortantes
(lâminas), pedras para bater (instrumentos de percussão?, quebra-cocos?), adornos, colares de conchas
e caramujos e outros artefatos de pedra, dentes e ossos de animais (trabalhados ou não), em forma de
instrumento cortante e pontas de flechas, agulha, anzol, ponta de arpão ou furadores etc.
Foram encontrados, ainda, fragmentos de peças de cerâmica rudimentar, feitas de argila misturada
à areia, mal queimada, não glasurada, a maioria sem ornamentação, em forma de copo, bacia, tigela,
cuia, vaso, jarro e outras. “A argila era moldada em rolos grossos, dispostos em espiral até dar a forma
e o tamanho desejado. O alisamento rudimentar permite reconhecer a técnica de sua elaboração”.
(BIGARELLA, 2011, p. 192-193, 229). Os diâmetros mais frequentes desses recipientes eram de 10 a
80 cm.
Em algumas peças de cerâmica há vestígios de ornamentação em relevo feita por reentrâncias
regulares, levemente arredondadas ou retilíneas realizadas, talvez com gravetos, com a ponta de uma
casca de molusco ou com a lateral de uma concha, em linhas horizontais sobrepostas. No sambaqui de
Matinhos, no Paraná, foi encontrada uma pedra com desenho geométrico gravado: um ‘zigue-zague’
feito de três linhas paralelas. (BIGARELLA, 2011, p. 214, 230 e 247). No interior do Estado, foram
encontradas tigelas de cerâmica em vários tamanhos, muitas com esse mesmo tipo de ornamentação,
oriundas de tribos indígenas. As urnas funerárias eram comuns em tribos indígenas do noroeste do
Paraná. Ornamentos podem significar preocupações estéticas, ou, se constantes, significados simbólicos,
o que não parece ser o caso.

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A preservação depende de cada um (a arte depende de você)


Seja pela ação do tempo, da erosão ou de fungos típicos de regiões úmidas, seja pela ação destrutiva
do ser humano, as expressões de arte pré-histórica encontradas no Paraná são parte de um conjunto
muito maior, de culturas anteriores à nossa e dispersas em todo o globo. Por desconhecimento da
importância dessa herança, por vandalismo ou por irresponsabilidade de pessoas e instituições, muitas
pinturas rupestres, petroglifos e sambaquis são destruídos ou danificados por rabiscos, pichação, roubo,
reaproveitamento do material ou outro tipo de agressão.
Apenas a consciência do seu valor como patrimônio cultural, arqueológico e universal pode ajudar
a preservar o que restou deles e permitir seu estudo. Preservar a memória permite conhecer pistas dessas
culturas e compreender maneiras de viver diferentes da nossa, com as quais podemos aprender; é cuidar
da nossa herança cultural, da nossa própria história. E o grande contato que esses povos pré-históricos
tinham com o meio ambiente natural, do qual dependiam para sobreviver e que retratavam na sua arte,
pode nos servir de alerta e inspiração sobre como cuidar dos animais, das plantas e do lugar em que
vivemos. Permite pensar sobre a biodiversidade e a importância de zelar por ela.
Na escola, podem ser organizadas visitas a locais onde há vestígios desses grupos ou observadas
imagens dessas manifestações, que podem ser relacionadas a conteúdos de história, geografia,
biologia, antropologia, entre outros. Explorar temas como a preservação do ecossistema e dos sítios
arqueológicos é abordar tanto questões da sustentabilidade no planeta, quanto aspectos da ética, do
respeito à natureza e às manifestações de outros povos, antigos ou atuais. É valorizar tanto a vida
quanto a alteridade.

OS INDÍGENAS E AS MISSÕES JESUÍTICAS

A arte dos povos indígenas (a arte está no cotidiano dos


indígenas)
A arte e a cultura dos indígenas brasileiros tiveram seu apogeu muito antes da descoberta do
Novo Continente, pelos europeus: “O que impressiona é que o índio pré-histórico e histórico já havia
chegado, muito antes da vinda dos portugueses, a um alto grau de cultivo artístico, tendo intuitivamente
descoberto muitas das leis fundamentais da composição decorativa e da modelagem”. (BLASI apud
ARAUJO, 2006, p. 5).
São esses povos que portugueses e espanhóis encontraram na região que hoje compreende grande
parte do Paraná, a Província do Guairá, densamente povoada pelos Carijós, ramo dos Guaranis. O
Tratado de Tordesilhas tinha como limite, ao sul, a cidade de Paranaguá e, assim, por quase dois
séculos, quase toda a Província constituiu domínio espanhol. Foi ali que os padres jesuítas, a partir de

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1610, construíram as Missões Jesuíticas do Guairá, que chegavam até os Campos Gerais, no Paraná.
Mais tarde as Missões foram destruídas pelos bandeirantes escravagistas, que dizimaram os jesuítas e
os indígenas.
Escavações nas cidades fundadas nessa época mostram que muitas Missões tiveram início nas
próprias aldeias indígenas. Como se sabe, o propósito dos jesuítas era converter os índios ao cristianismo,
aculturando-os a um fazer e a um saber europeus. Nas ruínas das Missões foi achado grande número
de peças da cultura indígena, em pedra e em cerâmica, ao lado de objetos de tradição europeia como
fusos e castiçais, travessas e moringas, cruzes e outros materiais de ferro fundido. Os muitos cachimbos
evidenciam o uso do tabaco e os fusos apontam para a tecelagem (os tecidos eram frequentemente
tingidos com urucu) e a fiação (redes, redes de pesca). Contudo, houve tribos que se mantiveram com
pouco ou nenhum contato com a civilização ocidental, mantendo, assim, suas tradições ancestrais.
Hoje muitos saberes antigos desses povos são protegidos como Patrimônio Imaterial da Humanidade
e estudados/comprovados pelas ciências.

Arte indígena – tradição que se mantém (a arte está nos


símbolos e na memória)
Quanto à arte indígena, as manifestações mais relevantes são a arte plumária, a cestaria, a cerâmica,
a pintura corporal, a pintura sobre artefatos de madeira, tecidos e cuias, além de adornos, objetos
ritualísticos, vestes cerimoniais, máscaras e instrumentos musicais. (MUSEU DE ARTE INDÍGENA,
2019). Todas essas formas de arte ocorrem sobre materiais perecíveis ou, como acontece na pintura
corporal, são apagadas pelo suor, pela água ou intencionalmente. São, portanto, uma arte efêmera.
Além disso, estão geralmente associadas a elementos rituais e à vida diária, o que faz com que, para esses
grupos, sua permanência material não seja necessária (ao contrário de sua memória e da sua tradição).
A arte indígena considera belo ou bom tudo aquilo que é útil. Assim, a arte não é bela ou boa
por si só, mas por carregar significados mágicos, simbólicos, identitários e cosmológicos da tribo. As
pinturas, tanto sobre objetos quanto sobre a pele, representam a ‘identidade’ do grupo ou da pessoa: os
símbolos contêm informações sobre a etnia do grupo, a posição e o prestígio social do indivíduo, seu
sexo, sua idade, a que família pertence etc. Cada família e cada tribo desenvolvem padrões de pintura
próprios, mantidos no decorrer do tempo.
Desse modo, as linhas, as figuras da fauna e da flora, os círculos, pontos e outros elementos têm
cada um o seu sentido e mudam de acordo com a tribo e a ocasião: são diferentes em um dia qualquer,
em uma cerimônia ou em uma festa, por exemplo. Os objetos decorados e entalhados, as cerâmicas e
cestarias, os ornamentos corporais, as pinturas, as músicas, as danças e os instrumentos musicais, todos
eles têm funções bem definidas, como se fossem uma linguagem não verbal. Em suma, “esses objetos
artísticos são dotados de simbologias, sejam sociais ou ritualísticas, de caráter sobrenatural e sagrado”.
(ARTES INDÍGENAS BRASILEIRAS, 2019).

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A arte indígena, portanto, não se preocupa com o novo, mas com a tradição, com os conhecimentos
antigos e com os significados, herdados das gerações passadas. E também com o ambiente natural, com
o qual o índio se identifica e que faz parte desse sagrado.
Os materiais utilizados

são os que a natureza oferece: madeiras diversas, caroços, fibras, sementes, cipós, folhas de palmeiras,
frutos, palhas, resinas, couro de animais, plumas coloridas, ossos, dentes, garras e conchas, entre
outros. Essa quantidade de matéria-prima abre um leque de possibilidades e variações de criação,
desde um cocar até o remo de um barco, um arco para flechas, estacas, chocalhos e máscaras. (ARTES
INDÍGENAS BRASILEIRAS, 2019).

Aqui, examinaremos apenas as artes visuais, deixando de lado a música e a dança, que serão
estudadas em outra oportunidade.

Pintura corporal
Os indígenas “pintam o corpo para enfeitá-lo, para defendê-lo contra o Sol, os insetos e os espíritos
maus” e, sobretudo, para revelar de quem se trata, como estão se sentindo e o que pretendem. “As cores
e os desenhos ‘falam’, dão recados”. Além disso, para eles, “caprichar na tinta, nas cores e nos desenhos
garante boa sorte na caça, na guerra, na pesca, na viagem”. Nos dias comuns, a pintura pode ser
bastante simples, “porém, nas festas ou nos combates, mostra-se requintada, cobrindo também a testa,
as faces e o nariz”. (HISTÓRIA DAS ARTES, 2018).
As cores usadas são extraídas da natureza, o que confere ao índio um sentido de pertencimento
a ela: ele se vê como parte da terra, da mata, do céu, da água, do vento e de toda a natureza que o
cerca; ele é apenas mais um habitante de certo território, como qualquer animal ou planta com os
quais convive. Assim, do urucum ele extrai o vermelho, do jenipapo um azul escuro quase preto,
do açafrão o amarelo e da tabatinga o branco. Usa ainda pó de carvão para o preto e pó de calcário
para o branco.
A pintura corporal é em geral uma atribuição da mulher, que pinta os corpos dos filhos, do marido
e das outras mulheres. As cores são aplicadas com os dedos, hastes de palha, caroços de frutas ou outros
materiais. Para desenhar padrões repetidos nos corpos, usam carimbos esculpidos em madeira. Para o
indígena, a pintura corporal é a sua roupa.

Arte plumária
Ana Itália Paraná Mariano, do Museu de Arte Indígena, recentemente inaugurado em Curitiba,
explica que, assim como a pintura corporal, a arte plumária tem para os povos indígenas “não apenas
a função de adorno, mas funções socioculturais profundas e bem definidas que regulam seu uso em
rituais e cerimônias ligadas à morte, às crenças, à vida”. (MUSEU DE ARTE INDÍGENA, 2019).

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A plumária brasileira apresenta adornos corporais (cocares, colares, braceletes, brincos, mantas,
gorros etc.) máscaras e vestes rituais, artefatos (pentes, abanadores, furadores etc.), brinquedos, armas
(arcos, flechas, machadinhas), cestos, instrumentos musicais (flautas, maracas etc.), entre outros. Há
uma escolha intencional de espécies de aves, de acordo com as tonalidades, tamanhos e formatos das
penas, que

misturadas a outros elementos, como o cipó, cabelos humanos, sementes, garras, taquaras, cordéis,
fitas de palmeiras e contas, se amalgamam em peças de um preciosismo que converge para soluções
estéticas e técnicas engenhosas, aliadas a uma manifestação máxima de expressividade. (MUSEU DE
ARTE INDÍGENA, 2019).

Dentre toda a arte plumária indígena, as peças que mais chamam a atenção, por sua imponência,
são os cocares, que indicam a posição de chefe dentro do grupo e simbolizam a própria ordenação da
vida em uma aldeia. “A disposição e as cores das penas do cocar não são aleatórias. Em forma de arco,
[representam] uma grande roda a girar entre o presente e o passado”. (HISTÓRIA DAS ARTES, 2019).

Trançados e cestaria
A floresta dá ao índio uma imensa variedade de plantas apropriadas ao trançado. Mas ele também
trança cabelos humanos, cordéis, fitas, pelos de animais...

É trançando que o índio constrói a sua casa e uma grande variedade de utensílios, como cestos para
uso doméstico, para transporte de alimentos e objetos trançados para ajudar no preparo de alimentos
(peneiras), armadilhas para caça e pesca, abanos para aliviar o calor e avivar o fogo, objetos de adorno
pessoal (cocares, tangas, pulseiras), redes para pescar e dormir, instrumentos musicais para uso em
rituais religiosos etc. (HISTÓRIA DAS ARTES, 2019).

Os objetos trançados, que incluem a abundante cestaria, assim como os de cerâmica, apresentam
os mesmos desenhos e símbolos da pintura corporal, com os mesmos significados e características de
cada grupo ou pessoa.

Cerâmica
A cerâmica indígena apresenta utilitários, como panelas, tigelas, vasos, muitos deles adornados
com figuras geométricas, outros com formas de animais. De cerâmica são feitos, também, animais em
pequenas dimensões, provavelmente usados como brinquedos.
A cerâmica permeia toda a vida da tribo, desde a fixação da aldeia próxima a reservas naturais de
argila, até a divisão do trabalho: os homens trazem a argila à aldeia e, em algumas tribos, confeccionam
cachimbos; mas são as mulheres casadas que modelam as vasilhas, os vasos e as panelas. Porém, “mulheres
grávidas ou mães de crianças pequenas da tribo Waurá, do Mato Grosso, são proibidas de trabalhar

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com a argila por acreditarem que algo de ruim possa acontecer com os seus filhos”. (ANDRADE
LIMA, 1987).
Na cerâmica indígena mais recente, a argila selecionada tem pouca ou nenhuma areia, para que as
peças não quebrem. Além disso, muitas vezes, a mulher lhe adiciona matéria orgânica (raízes moídas,
ossos triturados etc.) ou inorgânica (mica, feldspato etc.) para ‘temperá-la’, para que não rache ou se
deforme. Como mencionado, o processo de moldagem mais usual é o da sobreposição de rolinhos: a
ceramista faz o fundo da peça, achatando a argila em formato de placa circular. Depois, faz cilindros,
que alisa nas coxas ou sobre uma tábua. Então os dispõe um por cima do outro sobre o fundo, formando
a peça e, em seguida, alisa a superfície no sentido vertical, com a ponta dos dedos. A vasilha moldada
é posta para secar, à sombra, por uns dias. Quando parcialmente seca, as imperfeições da superfície
são raspadas com conchas, pedaços de cabaças, facas ou colheres. Então é feito o polimento com
seixos rolados, sementes etc., usando saliva ou água, o que melhora a impermeabilidade, pois fecha os
poros da argila. Nessa fase se adicionam alças, bicos etc., bem como eventuais incisões com objetos
pontiagudos. Ela é posta novamente para secar e, então, são aplicados pigmentos; depois é levada para
queima. Os Kaingangue, por exemplo, presentes no Paraná, esfregam na peça hematita, dando-lhe
uma cor vermelha. Para fixar esse pigmento, esfregam na superfície sementes de inajá. (ANDRADE
LIMA, 1987).
Andrade Lima (1987) explica que a queima ocorre ao ar livre, em fogueiras de galhos arranjados
em forma cônica, o que uniformiza a temperatura. As peças ficam totalmente envoltas nas chamas por
uma ou duas horas. Às vezes, são reviradas para regular a queima e, em outras, são colocadas brasas no
seu interior. Esse processo, como tudo na vida da aldeia, é cercado de comportamentos rituais, cheios
de sentido e misticismo.
Ainda segundo Andrade Lima (1987), a peça não está completa sem a pintura, que é realizada
depois da queima. Nessa etapa, a divisão de trabalho não é tão marcante e as tintas podem ser tanto de
origem orgânica (extraídas do jenipapo, urucum etc.) ou inorgânica (caulim, hematita etc.). As pinturas
são feitas com os dedos ou com gravetos envoltos em chumaços de algodão, sendo menos frequente o
uso de penas de aves, cabelo humano e outros instrumentos. É comum o uso de resinas após a queima,
como a de jatobá, acácia, simaneiro, o emprego do breu de jutaí, do leite da sorva, entre outros, o que
aumenta a impermeabilidade e a resistência do utilitário. Alguns grupos realizam nova queima, com
folhas de mamão e de outras plantas, impregnando a superfície de elementos impermeabilizantes.

Máscaras e vestes cerimoniais


As máscaras e as vestes cerimoniais têm caráter duplo, já que são usadas por homens, mas
representam entidades sobrenaturais. Geralmente são feitas “com troncos de árvores, cabaças e palhas,
mas podem apresentar plumagens também. São usadas em danças, festas e rituais, seja para comemorar
algo, seja para afastar espíritos malignos, ou até mesmo para manter a ordem no mundo”. (ARTES
INDÍGENAS BRASILEIRAS, 2019).

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A visão de mundo indígena (a arte faz parte da vida)


Para os vários povos indígenas brasileiros, a floresta, a terra, o sol, os rios, o vento, o céu, o ser
humano, a flora, os animais e todas as ações de cada um fazem parte da vida e formam um todo
indivisível. Também os objetos e as manifestações artísticas não estão separados do meio natural, não
existem por si mesmos, mas compõem esse universo. Os índios acreditam que fazem parte da Terra,
que a Terra faz parte deles e que suas ações ocorrem em comunhão com ela.
O site História das Artes, ao tratar da arte indígena, afirma que “a maior contribuição que os povos
da floresta deixaram ao homem branco é justamente essa prática de ser uno com a natureza interna de
si”. (2019). A Tradição do Sol, da Lua e da Grande Mãe (Terra)

ensina que tudo se desdobra de uma fonte única, formando uma trama sagrada de relações e inter-
-relações, de modo que tudo se conecta a tudo. O pulsar de uma estrela na noite é o mesmo que do
coração. Homens, árvores, serras, rios e mares são um corpo, com ações interdependentes. (HISTÓRIA
DAS ARTES, 2019).

É essa a maneira de o indígena ver também a arte, envolta em mitos, tradições, significados e
simbolismos, em um contato quase mágico com o meio ambiente natural. Sabemos que o indígena
cuida da natureza e apenas pesca, caça ou colhe o que precisa para comer, deixando tudo o mais para
seguir o ciclo da vida. O indígena respeita e ama esse ambiente, zela por ele e se move nele como se
fosse sagrado.

A arte indígena e a escola (a arte está na sala de aula)


O que podemos aprender estudando as culturas indígenas?
Em março de 2008, com a modificação da Lei n.º 10.639, de 2003, “as escolas brasileiras passam
a incluir em seus currículos, além da história e da cultura afro-brasileira, também a história e a cultura
indígena”. (PEREIRA, 2008).
Mas para conhecer qualquer manifestação de uma sociedade, é preciso conhecê-la em profundidade.
Para Pereira, trata-se de conhecer aquela cultura “do ponto de vista antropológico, isto é, de conhecer
os mitos fundantes da etnia, [...] suas formas de organização social, de produção de alimentos, os jeitos
de morar, dentre outras singularidades” (2008), pois a ‘arte indígena’ não está separada dessas outras
formas de ser e de estar no mundo, ou seja, não está isolada das outras esferas da existência. Ainda para
Pereira, o que é relevante sobre as práticas artísticas é “a dimensão de vida que elas carregam, pois estão
impregnadas da vida das pessoas que as produzem”. Estão “ligadas à vida de maneira tão orgânica que
são uma extensão dela”. (2008).
Assim, estudar a arte dos nossos índios é, antes de tudo, tentar vê-la como eles a enxergam; é
tentar compreender sua maneira de olhar, pensar e ser. É aproveitar a chance de aprender com eles,

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especialmente na sua relação com o planeta. Seu respeito e seu cuidado com a natureza para que a vida
prossiga se renovando e, assim, ser sustentável, pode inspirar tanto o aluno quanto o docente, a ter uma
visão mais responsável sobre a ação humana no meio ambiente natural. Replantar, cuidar dos animais,
da limpeza das águas, da reciclagem do lixo, economizar água e energia elétrica, só gastar e usar o que é
necessário, evitando o desperdício, tudo isso são coisas que podemos aprender ao estudar a cultura dos
povos indígenas brasileiros. Aprendemos também a respeitar outros modos de viver e, tão importante
quanto o estudo do nosso ecossistema, a respeitar o outro e o diferente.

A arte sacra luso-hispânico-brasileira (a arte está nos objetos


dos ritos religiosos)
Voltando aos colonizadores espanhóis e portugueses, achados arqueológicos mostram que eles
trouxeram suas crenças e vários objetos que consideravam essenciais para a sua prática religiosa nas
casas e nas igrejas que construíram, entre eles, crucifixos, cálices, bíblias, missais, hinários, imagens,
objetos para a realização da missa. Nas escolas jesuíticas, além de ensinar os indígenas a ‘ler, contar
e cantar’, ensinavam-lhes carpintaria, pintura, escultura, a construção de instrumentos musicais
(violinos, flautas, harpas, órgãos), a fiação e a tecelagem, sempre nos padrões europeus. Esse processo
de ensinar uma nova cultura, tentando apagar a anterior, se chama ‘aculturação’. Foi uma tentativa
de substituir a cultura autóctone pela importada. Assim, muitas imagens e objetos encontrados em
igrejas de cidades próximas às Missões, mesmo que pertencentes à cultura europeia, foram, certamente,
esculpidos, pintados ou modelados por mãos indígenas.

A aculturação é benéfica? (a preservação de saberes,


ecossistemas e biomas)
Aculturar é impor uma cultura sobre a outra, é tentar substituir velhos saberes e hábitos por
novos, é passar por cima da sabedoria e da tradição construídas e passadas de geração em geração por
longo tempo, condenando-as ao esquecimento.
Muitos dos saberes dos povos indígenas são, hoje, estudados nas universidades e laboratórios
nacionais e internacionais. Um exemplo disso é a comprovação, pelas ciências, de que muitas plantas
usadas pelos índios na cura de várias doenças têm realmente ação sobre determinados vírus, bactérias
e enfermidades. Muitos pesquisadores procuram tribos remanescentes, que ainda mantêm seus
conhecimentos e fazeres ancestrais, para saber como elas tratam seus doentes. Esses conhecimentos são
muitas vezes levados para a indústria farmacêutica que, por meio da comprovação laboratorial, passa
a usar essas substâncias em remédios que disponibiliza comercialmente. Quem nunca ouviu falar da
pirataria da biodiversidade? Ela se ocupa exatamente disso: de descobrir, roubar e registrar plantas,
animais e substâncias para a produção industrial, principalmente de medicamentos.

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O termo ‘biodiversidade’ diz respeito às diferentes categorias biológicas da Terra e à sua


abundância, incluindo “sua variabilidade ao nível local, a complementaridade biológica entre habitat
e a variabilidade entre paisagens. Por tudo isso, o valor da biodiversidade é incalculável”. (BRASIL,
2019).
O Brasil abriga a maior biodiversidade do planeta, com mais de 20% do número total de espécies
da Terra, com uma enorme variedade de biomas e ecossistemas3, o que reflete a riqueza da nossa flora
e fauna. Só no Paraná, temos parte de um grande bioma, a Mata Atlântica, e vários ecossistemas: a
floresta ombrófila densa, a mata de Araucária, a restinga, os campos, os pântanos, as lagoas, os rios, os
estuários, os manguezais, o mar e outros.
Na Mata Atlântica, a vegetação nativa está reduzida a cerca de 22% de sua cobertura original e
se encontra em diferentes estágios de regeneração. Mesmo reduzida, estima-se que nela existam cerca
de 20.000 espécies vegetais (cerca de 35% das existentes no Brasil), incluindo várias ameaçadas de
extinção. “Essa riqueza é maior que a de alguns continentes inteiros [...] e por isso a região da Mata
Atlântica é altamente prioritária para a conservação da biodiversidade mundial”. Nesse contexto, “as
áreas protegidas, como as Unidades de Conservação e as Terras Indígenas, são fundamentais para a
manutenção [...] da diversidade biológica e cultural”. (BRASIL, 2019).
A Mata Atlântica, além de ser uma das regiões mais ricas do mundo em biodiversidade, juntamente
a outras regiões de florestas do território paranaense, regula o fluxo dos rios, garante a fertilidade do
solo, controla o equilíbrio climático e protege escarpas e encostas das serras, além de preservar um
patrimônio histórico e cultural imenso. (BRASIL, 2019).
Como vemos, a biodiversidade do nosso estado (e temos de considerar ainda todos os outros
biomas, tanto no Primeiro quanto no Segundo e no Terceiro Planaltos) é um tesouro imenso,
reconhecido internacionalmente, que precisa ser protegido e mantido. Nossos índios viveram nesses
ecossistemas mantendo seus ciclos e seu equilíbrio. Assim, ao estudarmos sua cultura, seus modos
de vida e sua compreensão da natureza, estamos frente a um saber ancestral que nos ensina aspectos
fundamentais sobre a vida no planeta e sua sustentabilidade. Ao observarmos a visão de mundo dos
indígenas, aprendemos com eles a viver melhor e a cuidar de maneira mais adequada de nossas matas e
de nossos campos, rios e mares, mantendo-os limpos, vivos e generosos. Mas seu cuidado depende de
cada um de nós, nas nossas atitudes e escolhas diárias.

A ARTE NO PARANÁ TRADICIONAL

Os exploradores e os pintores itinerantes


Vários exploradores vieram desde o século XVI para o território onde hoje está o estado do Paraná,
em busca de aventura, poder e ouro. Por vezes, um soldado integrante de alguma expedição, hábil nas
artes visuais, registrava a fauna, a flora, a paisagem e os habitantes dessas terras, seus usos e costumes,

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suas guerras e sua cultura. Em outras expedições, era enviado um artista com essa função. Além disso,
do século XVII ao XIX havia artistas viajantes estrangeiros que, atraídos pelo desconhecido e pelo
exótico, viajavam para ‘terras distantes’, para retratar e documentar a vida nessas regiões, levando à
Europa as primeiras impressões e notícias sobre os habitantes e a paisagem desses territórios.
Foram esses desenhistas, ilustradores e pintores que documentaram, principalmente por meio
de desenhos, aquarelas e ilustrações, o que existia no atual Paraná. Ao voltarem ao Velho Continente,
muitos publicaram suas obras em livros, acompanhadas de crônicas de viagem, com a descrição
detalhada do que viram. Pintaram a exuberância da paisagem natural e aspectos da vida em sociedade
dos indígenas e dos europeus e, mais tarde, dos africanos trazidos na época da escravidão. Foram os
responsáveis, inclusive, por representar os aspectos geográficos das terras que percorreram, elaborando
seus primeiros mapas.

Primeiros artistas estrangeiros (a arte está nos documentos históricos)


Soares (2001) relata que, ainda no século XVI, histórias sobre o ouro dos Incas, contadas por
indígenas, viajantes e náufragos, atraíram muitos aventureiros europeus, que acreditavam poder
localizar esse El Dorado navegando para o sul do Brasil, para além da Ilha de Santa Catarina (atual
Florianópolis). Um pouco adiante, encontrariam o Rio La Plata e, adentrando o continente, poderiam
alcançar (e saquear) aquela terra. Para encurtar a distância, alguns, como o espanhol Cabeza de Vaca
e seus homens, usaram ramificações do Caminho de Peabiru, transitado pelos indígenas desde muito
antes do descobrimento do Brasil, e que vai do litoral de Santa Catarina, Paraná e São Paulo até o Peru.
De acordo com os Guaranis, não foram eles que abriram esse caminho, mas sim um ‘deus ancestral’.
Como os Incas chamam seu império de biru, historiadores, hoje, creem que esse caminho foi aberto
pela civilização incaica, com o intuito de ampliar seu domínio ou difundir sua cultura para o sul, tendo
encontrado o Atlântico pelo Caminho de Peabiru (pê = caminho; biru = peru). Partes dessa via e suas
ramificações cortam as terras paranaenses e foram trilhadas por Cabeza de Vaca, em sua viagem de
1540 a 1545 e por outros exploradores.
O soldado alemão Ulrich Schmidl (Schmidel), que viera antes, na expedição de Pedro de Mendoza,
descobriu o caminho para o Peru e fundou três fortalezas para a defesa do território. (SOARES, 2001,
p. 45). Schmidel permaneceu no Prata por dezenove anos, percorrendo o mesmo caminho que Cabeza
de Vaca. Ao retornar à Alemanha, publicou, em 1557, o livro Verdadeira história de uma viagem
extraordinária feita por Ulrich Schmidel von Straubingen, na América ou Novo Mundo, de 1534
a 1554, sobre todos os seus sofrimentos de 19 anos, e a descrição dos países e povos estranhos
que ele viu, escrita por ele próprio. O livro contém ilustrações suas que retratam indígenas nos
seus encontros ou batalhas com os europeus, naufrágios de caravelas, a fortificação da recém-fundada
Buenos Aires, batalhas entre diferentes tribos, a fauna, as terras e as aldeias indígenas, com cercado
circular e tabas redondas e outros temas. Porém, retrata o índio de modo idealizado (europeizado),
como era comum nessa época.

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Outro ilustrador, ainda em meados do século XVI, no Paraná, foi o também soldado alemão Hans
Staden. Fez duas viagens ao Brasil: uma de 1547 a 1548 e outra de 1549 a 1555. Por volta de 1550, o
navio em que viajava foi arrastado por uma tempestade à Baía de Superagui, no litoral do atual Paraná,
onde ficou por algum tempo. Depois, em São Vicente, no atual Estado de São Paulo, foi capturado
pelos antropófagos Tupinambás, que o levaram para o sul. Só conseguiu se salvar da morte por sua
astúcia, pois usou seus conhecimentos para curar alguns índios de certas doenças. Foi considerado um
deus pelos índios que, a partir de então, não o deixaram partir. Fugiu em 1555, a bordo de um navio
francês, que o levou de volta à Alemanha. Em 1557, publicou o livro Verdadeira história e descrição
de uma terra de pessoas selvagens, nuas, cruéis, devoradoras de gente, situada no novo mundo,
a América, com descrições detalhadas da vida dos Tupinambás, ilustradas por xilogravuras, e uma
ilustração com detalhes geográficos da costa, o primeiro mapa da baía de Paranaguá. (PICANÇO;
MESQUITA, 2011, p. 4).
O ciclo do ouro no litoral paranaense, iniciado cerca de 1570, foi responsável pela povoação da
baía e pelo surgimento e fortalecimento das primeiras vilas: Ararapira, Paranaguá, Porto de Cima,
Antonina, Guaratuba, Morretes e Curitiba. (SCHMIDLIN et al., 2009, p. 12). Seu enriquecimento
possibilitou o florescimento da arte e da cultura nos séculos seguintes.
Com a descoberta de ouro em Minas Gerais, em torno de 1680, e o seu decréscimo no Paraná,
foi preciso suprir as Gerais com gado muar e vacum vindo dos Andes. As tropas entravam pelo Rio
Grande do Sul e passavam por territórios hoje catarinenses, paranaenses e paulistas. Surgiram fazendas
de invernada (engorda) e criação de gado, cuja maior concentração ocorreu

na Região dos Campos Gerais, especificamente por onde passava o Caminho de Viamão. Estabelecem-se
sítios e fazendas, gerando o tropeirismo, que constitui o segundo grande ciclo econômico do Paraná,
de fundamental importância para o surgimento de pousadas e vila, – hoje prósperas cidades como
Ponta Grossa, Castro, Palmeira, Jaguariaíva e Lapa, entre outras –, bem como para sedimentar uma
identidade própria ou tradição cultural regional. (ARAUJO, 2006, p. 11).

Nos Campos Gerais, região de Ponta Grossa e Curitiba, cruzavam-se os caminhos de Viamão (no
Rio Grande do Sul, a Sorocaba, em São Paulo) e do Peabiru, permitindo a comunicação e o comércio
nesse território. Enquanto os muares faziam o trajeto sul-norte, vinha do oeste a erva-mate, apreciada
pelos indígenas desde tempos pré-cabralinos. Trazida do território paraguaio, a erva-mate foi primeiro
cultivada no litoral paranaense e, logo, na região de Curitiba, constituindo um ciclo comercial relevante
da economia local no século seguinte. Em 1750, pelo Tratado de Madri, a Espanha reconheceu “a posse
de Portugal sobre o território paranaense onde as Bandeiras haviam expulsado os jesuítas hispânicos”
(ARAUJO, 2006, p. 11), agora parte da capitania de São Paulo.
Muitos artistas pintaram, geralmente em aquarela ou em bico de pena e nanquim, cenas das
viagens dos tropeiros, mostrando a paisagem com suas montanhas, florestas, fauna, flora e os indígenas.
Era uma arte que retratava a realidade, que documentava cenas, traços físicos dos índios, paisagens e
espécies da fauna e da flora que os europeus nunca haviam visto.

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Pintores itinerantes do século XIX (a arte está nas aquarelas, nos


primeiros mapas e nos desenhos antigos)
No século XIX, havia especial curiosidade europeia em relação aos territórios além-mar. O
Romantismo4 predominava nos países europeus, principalmente germânicos, idealizando a aventura, as
viagens, o desconhecido e o retorno. A ânsia por conhecer as novas terras levou ao envio de expedições
científicas, como a que trouxe o jovem Darwin, de 1831 a 1836, da Inglaterra às Ilhas do Cabo Verde,
ao litoral sul do Brasil e à Patagônia e, depois, por vias fluviais, até o Peru e de volta ao seu país de
origem. Muitas das imagens e dos relatos apresentados nas publicações desses viajantes são responsáveis,
juntamente à escassez vivida na Europa, pelas várias ondas de imigrantes que vieram mais tarde para o
Brasil e outros países. Alguns desses artistas itinerantes acabaram por radicar-se aqui.
Quanto à situação política, apesar de ser criada, em 1811, a Comarca de Paranaguá e Curitiba,
com capital em Paranaguá, ela ainda pertencia à Capitania de São Paulo. Apenas em 1853 foi criada a
Província do Paraná, com capital em Curitiba.
O primeiro pintor da paisagem paranaense no século XIX foi Jean-Baptiste Debret. Integrou a
Missão Artística Francesa, que queria fundar no Rio de Janeiro a Academia Real de Belas Artes, quando
da estada de D. João VI na então Colônia. Debret desembarcou no Rio em 1816 e logo documentou
a paisagem, o ser humano e a sociedade. Para “acumular esboços para o seu livro Voyage pittoresque
et historique au Brésil, percorreu o território paranaense em 1827, produzindo número considerável
de desenhos e aquarelas [...] de extraordinário valor documental para o Paraná”. (CARNEIRO, 2001,
p. 13). Retornou à França em 1831 e publicou seu livro entre 1834 e 1839. Para Carneiro,

o roteiro seguido pelo artista-viajante [Debret] é o do velho caminho das tropas até Curitiba (desde
Itararé, na divisa de São Paulo), descendo a Paranaguá e Guaratuba para alcançar o litoral norte de
Santa Catarina. Visita não só localidades já importantes, como Castro, mas também pequenos centros
que apenas surgiram, como Jaguariaíva, Ponta Grossa ou Palmeira. Com o objetivo de completar a
cobertura iconográfica da região, como já o fizera em todo o vale do Paraíba e no sudeste da Província
de São Paulo, vai à Lapa. (2001, p. 13-14).

Há ainda obras de Debret que retratam, além das cidades citadas, Guarapuava e Curitiba,
comprovando sua passagem também por essas localidades.
Araujo e Carneiro mencionam outros artistas viajantes estrangeiros, que registraram a paisagem
local: o Pastor Fletcher, em 1855, permaneceu três dias em Paranaguá e “fixou em croquis cenas
da Serra do Mar e do Ancoradouro de Cotinga, posteriormente aproveitados para ilustrar a obra
Braziland Brazilians”; a senhora Liais, em 1858, registrou “aspectos da flora tropical e da sociedade
de Paranaguá – particularmente importante por seu valor etnográfico”; Julius Platzmann, de 1858 a
1864, colaborou como ilustrador da obra Flora Brasiliensis; João Leão Palilère passou pelo litoral
paranaense em 1860 e publicou, depois, entre suas 52 obras, duas em território paranaense; o engenheiro
Gustavo Rumpelsberger, radicado na Colônia Tereza, nos sertões do Ivaí de 1847 a 1869, “durante

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sua permanência no Paraná remeteu grande número de desenhos de animais e plantas à Corte”; o
engenheiro William Lloyd, que percorreu o Paraná de 1873 a 1875, a trabalho da estrada de ferro
Curitiba-Miranda (Mato Grosso), deixou dez paisagens do Paraná de inestimável valor iconográfico;
o também engenheiro Thomaz Bigg Whiter, nos dois anos em que trabalhou na mesma ferrovia,
documentou “em croquis aspectos do Paraná: vinte desses desenhos serviram de ilustração à sua obra
Pioneering in South Brazil”, publicada em Londres em 1878; Hugo Calgan, em 1881, “deixou
preciosa documentação iconográfica”; Caroline Maxwell Templin, em 1852, pintou principalmente a
fauna e paisagens; e outros. (ARAUJO, 2006, p. 30; CARNEIRO, 2001, p. 13-22).

Uma natureza exuberante e quase intocada (a arte retrata a


fauna, a flora, as pessoas e a paisagem)
Em suma, uma das principais funções da arte, desde os primeiros exploradores dos territórios
recém-descobertos até os artistas itinerantes do século XIX, era retratar a paisagem, as pessoas, a
sociedade, a flora e a fauna, documentando a realidade. A Europa queria saber o que havia nas terras
do Novo Continente. Por isso, esses artistas vieram para as Américas, pintaram em detalhes o que
viram e voltaram ao Velho Mundo levando suas ilustrações e aquarelas, com base nas quais publicaram
livros de grande sucesso de venda5.
O que esses artistas viram e descreveram foi uma natureza exuberante, cheia de vida, repleta de
insetos, mamíferos, peixes, répteis e outros animais que não conheciam, de árvores, folhagens, flores
e frutas surpreendentes pelas suas cores e formas, cheiros, sabores etc. Uma terra quase intocada, com
povos extremamente estranhos: os índios, seminus, que falavam línguas curiosas e tinham hábitos, para
eles, ainda mais esquisitos. Também viram as aldeias e pequenas cidades construídas pelos portugueses
e espanhóis e, a partir de meados do século XIX, pelos imigrantes que começariam a chegar em maior
quantidade. E viram ainda escravos, negros que haviam sido capturados na própria terra e forçados
a virem para o Brasil (e outros países), obrigados a trabalhar de maneira desumana, de sol a sol, sem
descanso, sem conforto e sem amparo.
É em parte graças a esses artistas que sabemos como eram as cidades, a sociedade e a natureza,
desde a descoberta do Brasil até fins do século XIX. No Paraná, pintaram sobretudo o litoral, onde
se fixaram primeiro, e logo a Mata Atlântica, pois os caminhos que levavam do litoral a Curitiba e ao
planalto passavam sempre pela Serra do Mar. Mas pintaram também os nossos três planaltos, chegando
até as Cataratas do Iguaçu. A mata, densa, quente e úmida, era rica em variedades de plantas e animais
inimagináveis para o europeu. O mar, os rios, as praias e as montanhas eram cheios de vida e isso
certamente deslumbrou os artistas, que retrataram esse ambiente.
Hoje, nossas florestas e outros tipos de vegetação estão ameaçados pela ação destrutiva do ser
humano. Mas há organizações, como o SOS Mata Atlântica e outras, que, ao lado de iniciativas
governamentais, incentivam o plantio de plantas nativas para a recuperação de cada tipo de vegetação.
Em 2017, por exemplo, estudos por satélite mostraram que a Mata Atlântica aumentou nos estados

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do Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro! “Na contramão de tanto desmatamento, o único bioma que
registrou aumento da área verde foi a Mata Atlântica. Em 16 anos, ganhamos quase uma Bélgica de
novas florestas. Destaque para os estados do Rio de Janeiro (18%), São Paulo (13%) e Paraná(11%)”.
(MATA ATLÂNTICA, 2017). Ela teve uma expansão, porque, além de programas de preservação
governamentais, essas organizações e outros voluntários doaram seu tempo, seus conhecimentos e sua
energia para replantar espécies características daquela região muitas vezes em perigo de extinção. E
com as plantas, voltaram também os animais que, sem o seu habitat, haviam deixado aquele território.
Vemos, assim, como a atuação de uma pessoa ou de uma equipe pode fazer diferença! Além de não
destruir e preservar, podemos recuperar!
Outra notícia boa é o fato de que várias reservas estaduais têm ajudado na preservação das nossas
riquezas naturais e geográficas. Pesquisar sobre elas, falar delas em sala de aula e conhecê-las um pouco mais
nos fará mais conscientes do nosso papel na preservação e na recuperação do nosso patrimônio natural.

Os primeiros artistas nascidos em terras paranaenses e os


que ficaram

Imigrantes
A política imigratória brasileira incentivou e patrocinou a vinda dos imigrantes europeus, voltada
para a colonização dos ‘vazios demográficos’. Foi assim que, em 1808, Dom João VI baixou um
decreto tornando possível a propriedade da terra aos estrangeiros e o Paraná passou a contar, cada vez
mais, com a mão de obra do imigrante europeu, livre, assalariado, pequeno proprietário. Surgiram
então os primeiros núcleos de origem europeia não portuguesa, dos quais alguns se tornaram, mais
tarde, cidades: Rio Negro e Mafra, onde se fixaram alemães (1829); Teresa Cristina, franceses (1847);
Superaguí e Guaraqueçaba, suíços, alemães e franceses (1852); Assunguí, ingleses, franceses e alemães
(1859); Morretes, italianos (1877); e outros, como poloneses, ucranianos etc.
A precariedade da vida nos núcleos não litorâneos deu início, porém, a um movimento espontâneo
de reimigrantes dessas localidades e de Santa Catarina para pequenas chácaras nos arredores de Curitiba.
(FUGMANN, 2008). Ao mesmo tempo, o fim do ciclo do ouro no litoral, as dificuldades com o clima,
“o desconhecimento do mal causado pelas picadas dos mosquitos, a falta de orientação sobre como
prevenir-se das doenças tropicais e a falta de assistência médica e medicamentos” e os impedimentos
para voltarem aos seus países de origem “levaram o governo imperial a permitir sua transferência para
os planaltos de Curitiba e dos Campos Gerais”. (TURIN, 1998, p. 22). Os imigrantes que assim
desejassem poderiam se fixar no Primeiro Planalto, já que ali o clima mais frio era mais próximo ao que
conheciam na Europa.
Os imigrantes logo se tornaram personagens típicos da região: criaram a agricultura de
abastecimento, a pequena propriedade e participaram da economia da madeira, do gado e do mate,

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além de concorrerem para a modificação do aspecto urbano. Muitos eram pedreiros, carpinteiros,
sapateiros, padeiros, salsicheiros, relojoeiros, ferreiros etc., e várias de suas ‘oficinas’ evoluíram para
a indústria. Em 1877, já era cerca de 6.000 o número de imigrantes estabelecidos nos arredores de
Curitiba.
Entre eles, havia muitos artistas, intelectuais, professores e profissionais liberais, que exerceram
grande influência na construção da sociedade e da identidade do curitibano, pois, “como é costume dos
europeus, são acompanhados pelos homens de ‘letras e ciências’ preocupados com o preparo intelectual
dos jovens e o estudo do meio”. (BINI, 1986, p. 40). Foi por meio deles que, ao se integrarem ao
contexto luso-brasileiro local e ao tomarem parte ativa no cotidiano das cidades, formou-se uma
sociedade com vida e interesses próprios quanto à educação e à cultura, dando origem a escolas para
suas crianças, igrejas para suas manifestações religiosas e associações recreativas para seu lazer.

Artistas
Assim, o século XIX contou, além dos artistas viajantes, apenas de passagem no território
paranaense, com outros que acabaram por ficar – nossos primeiros artistas imigrantes – que tiveram
papel relevante, não apenas na documentação e no registro da paisagem natural e humana, mas também
no desenvolvimento de uma arte local. Seu estilo naturalista6 se justificava pelo caráter documental das
suas obras.
O litoral paranaense foi o primeiro território do Paraná colonizado por portugueses e brasileiros
atraídos pela descoberta do ouro. Paranaguá era a vila mais importante da região, na qual transitavam
os nobres que o ouro forjou. Em consequência dessa riqueza, de acordo com Bini, foi esta “a primeira
vila que apresentou as condições para o desenvolvimento artístico”. (1986, p. 40). Entre 1791 e 1808,
já atuavam o mestre Amaral Gurgel, professor de desenho, e o importante pintor Noel Guillet.
Entre os artistas nascidos no estado, temos João Pedro, O Mulato, “artista curitibano, primeiro
desenhista de humor atuante no Brasil” e que registrava cenas em Curitiba, Paranaguá e Desterro
(Santa Catarina), “nos idos de 1817”; e Iria Correia, primeira pintora paranaense, que estudou em
Paranaguá com as irmãs James e com as irmãs Toulois. (BINI, 1986, p. 40-41).
Entre os artistas-imigrantes, temos Frederico Guilherme Virmond, talvez o primeiro a se radicar
no Paraná, em 1833 – zoólogo, pintor, miniaturista, retratista; John Henry Elliot, topógrafo, “um dos
primeiros paisagistas paranaenses e um dos primeiros nativistas7 em território nacional” (ARAUJO,
1980, p. 20) – pintou Curitiba, São José dos Pinhais e os indígenas; e o suíço William Michaud, que
se radicou em Superagui a partir de 1854 e que pintou a paisagem. Os únicos artistas desse grupo que,
depois de cerca de vinte anos no Brasil, voltaram para a Europa foram Joseph e Franz Keller, pai e filho.
Engenheiros alemães, eles chegaram ao Brasil em 1856 para trabalhar nas novas estradas de ferro e de
rodagem. Vieram ao Paraná em 1865 e suas obras ultrapassam o registro iconográfico, pois constituem
meticulosa documentação científica, etnográfica e arqueológica, publicada na Alemanha, em 1874.
(CARNEIRO, 2001).

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Como se pode perceber, a arte destes pintores continuava sendo documental, valorizando
sobretudo a beleza, a exuberância e as particularidades da fauna, da flora e do ambiente natural,
inclusive das matas e da paisagem. Alguns deles retratavam também os indígenas, registrando seus
traços, seus hábitos e costumes.

Os ciclos do mate e da madeira


A pecuária e o tropeirismo permaneceram até a década de 1860, quando as ferrovias substituíram
os muares no transporte de cargas. O ciclo do mate, com suas atividades de exploração, fabrico e
comércio, perdurou de 1820 a 1920 aproximadamente. (LINHARES, 1969, p. 195).
Os ervais cobriam extensas terras paranaenses, respondendo, em certos períodos, por 85% da
economia da província. (WACHOWICZ, 2001, p. 96). Com isso, desenvolveram-se, no decorrer
do século XIX: “as estradas de rodagem, as estradas de ferro, a navegação fluvial, o povoamento,
a colonização, a fundação de cidades, uma melhor representação política, a fortuna das principais
famílias paranaenses”. (LINHARES, 1969, p. 195).
O declínio do mate como produto hegemônico no Paraná foi consequência da I Guerra Mundial,
com as dificuldades dos países importadores e a concorrência de países como a Argentina e o Uruguai.

A emancipação da Província do Paraná, em 1853


Apesar de Curitiba ser escolhida oficialmente como a capital da nova Província do Paraná, quando
da sua emancipação, em 1853, Paranaguá continuava ainda sua capital cultural e econômica. É o que
se vê nas ilustrações de bailes, nas escolas e nos nomes das famílias abastadas da época, com seus títulos
de nobreza. Porém, aos poucos, a atividade do mate foi transferida para o planalto, desenrolando-se ali
um processo de crescimento econômico, intelectual e cultural.
Desde que Curitiba se tornou capital, “políticos, imprensa, letrados e professores começam a ir à
nova terra. O curitibano, ainda de feição roceira, procurava ilustrar-se, lustrar-se e aprumar-se à moda,
usos e costumes civilizados”. E nessa busca por instrução e cultura, a cidade atraia também importantes
figuras parnanguaras: “Pianos subiam, em lombadas de burros o Itupava [caminho do litoral para
Curitiba, pela Serra do Mar] e mestres músicos, os mais notáveis, como Bento Menezes e Jacinto
Manuel, deixavam sua velha e querida Paranaguá pela nova terra do futuro”. (SANTOS FILHO, 1979,
p. 98-99).
O mate daria ao Paraná “uma aristocracia de viscondes e barões, a exemplo do que ocorreu com a
cana-de-açúcar no nordeste”. (LINHARES, 1969, p. 194). No mais,

atraiu o imigrante que se adaptou facilmente à exploração da erva; foi um fator de fixação do homem
à terra; reativou o setor comercial, fazendo surgir atividades paralelas: a fabricação de barricas, a
criação de animais para o transporte e uma nova categoria social: os produtores e os comerciantes.
(VALENTE, 1997, p. 54).

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Além disso, permitiu o florescimento de uma arte mais comprometida com a sociedade e com o
desenvolvimento econômico da região do que com o meio ambiente natural.

Barão do Serro Azul, o mate e a litografia (a arte está nos rótulos)


A partir de 1875, a maioria dos engenhos já estava no planalto. Algumas fases da comercialização do
mate fomentaram o desenvolvimento em outras áreas, inclusive na arte. Ildefonso Pereira Correia, o Barão
do Serro Azul, importante ervateiro e líder político, contratou dois artistas catalães, Narciso Figueiras e
Folch, para elaborar “os rótulos, impressos inicialmente por litografia8 para identificar o produto das
barricas” (CAROLLO, 1993, p. 44) usadas no transporte e na comercialização do mate. A contratação
desses pioneiros da litografia no Paraná mostra quanto os ervateiros, também grandes compradores de
obras de arte dos pintores e escultores, contribuíram para a evolução das artes gráficas no Paraná.

A estrada de ferro e a visita do imperador (a arte está no humor)


Muitos autores citam a inauguração da Estrada da Graciosa (em 1873) e da Estrada de Ferro entre
o litoral e o planalto (em 1880) como a principal causa do desenvolvimento da região. Comentam o
surgimento de várias associações literárias no Paraná, de teatros e clubes e um entusiasmo quanto à
palavra escrita e à arte em geral: “alargaram-se os horizontes intelectuais de 1873 em diante. Os jornais
e revistas literárias monopolizavam o entusiasmo dos intelectuais que dão na prosa e no verso nomes de
grande valor para a literatura nacional”. (RODERJAN, 1967, p. 24). Até mesmo o Imperador Pedro II
e a Imperatriz Thereza Christina vieram a Curitiba para a inauguração da Estrada de Ferro!

Por detrás das festas, do beija-mão, do derrame de comendas, do Te Deum, dos bailes imperiais, da
visita às colônias, transpiram os anseios econômicos do Paraná que começava, os primórdios da nossa
indústria, a consolidação da agricultura, o apogeu da elite ervateira, os fundamentos do corredor de
exportação que é a ferrovia Curitiba-Paranaguá, a consolidação da imperial política de imigração –
responsável maior pela nossa herança cultural multivariada. (CARNEIRO, [s.d.]).

Os jornais locais e do Rio de Janeiro publicaram várias caricaturas retratando a visita do Imperador
à distante Província do Paraná, especialmente na Revista Ilustrada, semanário impresso no Rio, em
diferentes datas. (CARNEIRO, [s.d.]). Sua visita influiu grandemente no desenvolvimento artístico
de Curitiba.

Mariano de Lima e sua escola (a arte está nos cenários dos teatros)
Foi nessa atmosfera de entusiasmo, que, em 1884, chegou a Curitiba o cenógrafo, pintor e
escultor português Mariano de Lima (1858-1942). Veio a trabalho para o Rio de Janeiro e, logo, foi
contratado para executar a decoração e os cenários do Theatro São Theodoro (depois, Theatro Guayra),

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em Curitiba. Criou, em 1886, a que veio a ser a Escola de Belas Artes e Indústrias9. Apesar de sinais de
uma atividade pictórica de porte razoável no litoral do Paraná, desde a década da emancipação, 1886
tornou-se o marco inicial da pintura na capital.
A criação da escola de Lima teve ampla repercussão na imprensa, o engajamento de muitos homens
da cultura da cidade como seus professores e um número expressivo de alunos, proporcionando-lhes
formação de qualidade. Curitiba era a terceira cidade no Brasil a ter uma escola de arte, atrás apenas
do Rio de Janeiro e Salvador. (ARAUJO, 2006, p. 41). A Escola desempenhou um papel decisivo
tanto no desenvolvimento das artes plásticas e da música quanto no impulso que levou à fundação da
futura Universidade do Paraná. Dois modelos lhe serviram de base: de um lado, as escolas de ensino
profissional do interior da França e o Conservatório Nacional de Artes e Ofícios de Paris, com a
aplicação das ciências ao trabalho industrial; e, de outro, o Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro.
A Escola divulgava o ensino acadêmico10, portanto de modelo europeu. (BAPTISTA, 1988, p. 6).
Mariano de Lima pintou retratos a óleo de vários aristocratas e líderes da cidade. Entre os alunos
da sua escola destacaram-se especialmente os jovens escultores João Turin e João Zaco Paraná, que
viriam a ser os mais expressivos escultores atuantes no estado na primeira metade do século XX.
Um dos ex-alunos de Mariano de Lima, Paulo Ildefonso D’Assumpção, após estudar no Rio
de Janeiro, voltou e, depois, criou o Conservatório de Belas Artes, inaugurado em 1894, mais tarde
chamado de Escola de Aprendizes e Artífices11. Isso causou o declínio e o posterior fechamento da
Escola de Mariano de Lima.
Nessa época, a arte era considerada um ofício e seu aprendizado como base para um melhor
desempenho em várias profissões. Assim, não estava presente a preocupação com o meio ambiente, mas
sim com a preparação dos futuros profissionais para várias ocupações que exigissem conhecimento e
habilidades artísticas: arquitetura, engenharia, mídia impressa, fabricação de móveis etc.

PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX

Alfredo Andersen e a pintura (a arte está nos ateliês)


O pintor norueguês Alfredo Andersen (1860-1935), considerado o ‘pai da pintura paranaense’,
chegou ao Brasil em 1871 e retornou em seguida à Noruega. “Em 1893, fez uma segunda viagem ao
Brasil. Retido em Paranaguá por avaria do navio em que viajava, residiu por cinco anos nesta cidade”,
onde se casou. (CARNEIRO, 2001, p. 24).
Esteve em Curitiba, em 1893, quando conheceu a Escola de Belas Artes e Indústrias de Mariano
de Lima e expressou sua admiração por ela. Em 1903, foi convidado para pintar alguns retratos para
famílias ricas da capital. Logo fez exposições, pintou outros retratos e vendeu vários quadros, fixando-se
definitivamente na cidade. Araujo comenta que quando ele chegou ao Paraná,

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encontrou o caminho aberto por Mariano de Lima. [...] Em 1902, desgostoso, Lima deixou
definitivamente o Paraná, cabendo a Andersen lançar os alicerces da criação de uma escola de pintura
paranaense, baseada no objetivismo visual12 que, sem estar presa ao formalismo acadêmico, oscilaria
entre o realismo13 e o impressionismo14. (1980, p. 15).

Andersen logo daria aulas particulares de desenho e pintura, criando uma escola livre no seu ateliê,
em Curitiba, onde se reuniam inúmeros jovens, alguns dos quais se tornaram grandes nomes da arte.
Lecionou ainda na Escola Alemã, no Colégio Paranaense e na Escola de Belas Artes e Indústrias. (BINI,
1986, p. 42). Um dos seus maiores ideais era criar uma Academia de Belas Artes, de ensino superior,
ou uma Escola Profissional de Desenho para Operários, profissionalizante, ambas nos mais atuais
modelos europeus de então, subsidiadas pelo governo. Foram muitas as promessas das autoridades
nesse sentido, com o objetivo de o manterem no Paraná, todas elas não cumpridas.

Uma guinada para o retrato e para o social (a arte e a sociedade)


Andersen continuou pintando paisagens, mas dedicou-se muito aos retratos e, mais ainda, às
cenas de gênero, registrando o dia a dia das pessoas comuns. Essas cenas estavam sempre inseridas em
uma paisagem, ou ocorriam em um cenário de trabalho ou de família: os marinheiros no barco, as
lavadeiras na beira do rio, grupos familiares em suas casas ou jardins. Porém, os marinheiros eram mais
importantes que o barco, as lavadeiras que o rio, as famílias que suas casas e jardins. Ele valorizava o
contexto, mostrava o meio ambiente, mas sua preocupação maior era com a vida cotidiana e com o
convívio humano – um enfoque mais social. (ARAUJO, 2006, p. 45).
Sua pintura, de características realistas-impressionistas, marcou a arte paranaense por quase meio
século. Andersen era chamado ‘pai da pintura paranaense’, tanto por trazer ao Paraná uma linguagem,
na época, revolucionária, quanto pelo nível dos seus discípulos. Dentre eles, destacam-se Lange de
Morretes, João Ghelfi, Estanislau Traple, Waldemar Curt Freyesleben, Gustavo Kopp, Theodoro De
Bona, Maria Amélia D’Assumpção, Inocência Falce, Isolde Hötte, Augusto Pernetta, Silvina Bertagnoli,
Thorstein Andersen e José Daros, entre outros. Todos, apesar de muitos estudarem posteriormente na
Europa, mantiveram a pincelada quase impressionista andersista, apoderando-se, uns mais, outros
menos, de elementos do expressionismo. Estes, ao lado de Turin e Zaco Paraná, são os nomes que
predominariam nas artes visuais no Paraná nas primeiras décadas dos anos 1900, desenhando, pintando,
esculpindo e ensinando. (ARAUJO, 1980, p. 24-27).
Podemos afirmar que, desde a chegada de Mariano de Lima e, depois, com Andersen, o foco principal
da atividade artística estava mais nas pessoas que no meio ambiente. Ela continuava a imitar os modelos
europeus. Não havia ainda uma arte tipicamente brasileira ou mesmo característica do Paraná. Tanto o
país quanto o estado olhavam para a Europa e queriam ser ‘civilizados’ e ‘iguais’ a ela. Mesmo os temas
que os artistas enfocavam eram gerais, chamados de universais, com influência europeia. Eles não mais
se preocupavam em retratar a fauna, a flora, os tipos humanos que havia nestas terras. Mas isso mudaria
nas primeiras décadas do século XX, com o Nacionalismo e o Paranismo, que estudaremos mais adiante.

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Principais discípulos da escola de Mariano de Lima

O desenho de humor (a arte está na caricatura)


Depois de João Pedro, O Mulato, de inícios do século XIX, apenas em 1870 foi que surgiu o
“primeiro e efêmero periódico humorístico e de caricaturas15 da Província, O barbeiro”, de iniciativa de
João Antonio de Barros Jr., que criticava os “poderosos da cidade, todos arraigadamente conservadores e
escravocratas”. Dada a imensa reação, foi obrigado a fechá-lo, lançando o jornal Operário da liberdade,
“primeiro periódico republicano do Paraná e um dos primeiros do Brasil”. (CARNEIRO, 1975, p. 28-31).
Somente cerca de duas décadas depois, o Paraná teve outro caricaturista: o litógrafo e proprietário
da Litografia do Comércio, que trabalhava, entre outros, para o Barão do Serro Azul, na rotulagem
dos produtos de erva mate, Narciso Figueras. Professor da Escola de Mariano de Lima, levava seus
alunos para estagiarem na sua empresa, o que explica “o surgimento de toda uma geração de excelentes
caricaturistas e ilustradores em Curitiba, no final do século XIX e início do século XX” (ARAUJO, 2006,
p. 42), como Mariano Antonio de Barros [Mario Barros] (Heronio), Aureliano de Azevedo Silveira
(Sylvio) e Manoel Azevedo Silveira Netto (Silveira Neto). De fato, a arte de humor, em Curitiba, teve
uma primeira fase de ouro de final do século XIX até a década de 1930. Outros caricaturistas da época
foram Coelho Junior, Darvino Saldanha (K. Brito), Olávio Dietzsch (Olávio), Otávio Guimarães (O.
Guimarães), Pedro Macedo (Macedo), Euclides Chichorro (Félix, Paulo), J. Lopes (Sepol), Simeão,
Heltius e Columeno, entre outros.
Com a I Guerra Mundial, houve um hiato na história da caricatura no Paraná, até 1921, quando
Alceu Chichorro (Eloy) criou a revista O anzol. Ele estudou na Escola de Artífices, de Paulo Ildefonso
D’Assumpção, ex-aluno de Mariano de Lima. Seus personagens, Chico Fumaça, Dona Marcolina,
Totó, Tancredo, Pascoalino e Minervino, entre outros, faziam parte da vida da cidade. Suas charges
tinham sabor político e criticavam a sociedade e a economia de modo satírico. Eram usadas, também,
para a publicidade de certas empresas e produtos. (CARNEIRO, 1975, p. 51-55; BÓIA, 1994, p. 1).
Como podemos notar, a caricatura e o desenho de humor tinham como foco a política, as relações
sociais, a crítica. Estavam muito mais ligados à vida urbana, à sociedade e aos conflitos de opinião e,
portanto, distantes no meio ambiente natural.

A escultura – uma volta a temas locais e da natureza (a arte está


nos monumentos)
João Zaco Paraná (Jan Zac) (1884-1961), polonês naturalizado paranaense, adotou esse nome
em homenagem ao estado. Frequentou a Escola de Mariano de Lima a partir de 1898. “Nestes anos
produziu muitos trabalhos e bustos de madeira de grande valor expressivo, uma vez que representavam
o homem popular e nativo”. Depois de estudar no Rio de Janeiro, em Bruxelas e em Paris, fixou-se
nesta última, lecionando na Escola Nacional de Belas Artes. Tem esculturas em vários museus e cidades

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europeias. (BINI, 1986, p. 41-42). É sua a estátua O semeador, colocada na Praça Eufrásio Corrêa, em
Curitiba – homenagem do imigrante polonês à cidade que o acolheu.
Já se nota em sua obra a preocupação com o homem popular e nativo, isto é, com temas mais
locais (paranaenses) que universais (europeus). Vale dizer que na própria Europa havia uma onda de
nacionalismos, enfatizando o que era típico de cada região.
João Turin (1878-1949)16, escultor, retratista e animalista, depois de estudar na Escola de Mariano
de Lima, estudou em Bruxelas e viveu em Paris até 1922. Novamente radicado em Curitiba, criou o
Movimento Paranista17, com Lange de Morretes e João Ghelfi. (BINI, 1986, p. 41-42). Tem obras
expostas em vários países. São suas as esculturas Luar do sertão, colocada em frente à Prefeitura de
Curitiba; Tigre esmagando a cobra, na entrada da Secretaria de Estado do Meio Ambiente do Paraná; e
Águia, na Praça Santos Andrade, também em Curitiba. É de sua autoria a obra Frade lendo, doada pelo
Governo brasileiro ao Papa Francisco, em visita ao Brasil em julho de 2013. A obra, que mede 44 cm de
altura, 18 cm de largura e 26 cm de profundidade, como todas as esculturas de Turin, foi feita do original
em gesso. É da segunda metade da década de 1930 e foi fundida em bronze pela primeira vez em 2012.

Turin e Zaco Paraná – uma arte genuinamente paranaense (de novo,


animais e índios)
Nas primeiras décadas do século XX, percebia-se uma inquietação em alguns artistas mais jovens
quanto à construção de uma arte tipicamente paranaense, isto é, que se dedicasse a temas do homem
e da natureza do nosso estado. De fato, enquanto muitos continuavam a pintar a paisagem, retratos e
cenas da vida cotidiana, conforme o modelo europeu, João Turin se dedicou em especial à escultura de
animais das nossas matas e a outros temas da nossa terra. Desenhou também o índio que observou nas
tribos do Paraná. Ele os retratou em sua relação com os animais e em ações de subsistência, luta etc.
Valorizava a natureza local, com seus bichos e índios, habitantes da floresta, primeiros a ocuparem essas
terras e que chegaram aqui muito antes dos europeus.
Como mencionado, Turin e outros dois artistas que examinaremos adiante, João Ghelfi e Lange
de Morretes, criaram nas artes visuais um movimento chamado Paranismo, que valorizava a natureza
local e o genuinamente paranaense, em oposição à cultura europeia ou europeizada, vigente então.
O movimento paranista tinha um dos ideais defendidos pela Semana de Arte Moderna, realizada em
1922, em São Paulo, que também queria uma arte local, uma arte brasileira, com temas, formas e cores
que refletissem e retratassem a vida deste lado do Atlântico.

Principais discípulos de Alfredo Andersen (a arte está nos


museus, nas galerias de arte e nas praças)
[Frederico] Lange de Morretes (1892-1954) estudou pintura com Andersen e, depois, zoologia
na Alemanha. Adotou seu pseudônimo em homenagem a Morretes, cidade do litoral do Paraná, onde

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nasceu. Retornou ao Brasil em 1920, fixando-se em Curitiba. Em sua casa manteve um ateliê, no
qual deu aulas gratuitas de desenho anatômico, pintura e escultura. (SALTURI, 2007, p. 28). Foi
o mais carismático dos discípulos de Andersen, o que explica sua atuação na criação e na liderança
do paranismo nas artes visuais, com Turin e Ghelfi. Desgostoso com a política, mudou-se para São
Paulo, onde se dedicou à paleontologia e à malacologia. Ao retornar a Curitiba em 1946, continuou
seu trabalho científico no Museu Paranaense, com relevantes pesquisas sobre os sambaquis, com João
José Bigarella e outros. Em sua coleção estão preservados importantes exemplos da arte pré-histórica
paranaense. (BIGARELLA, 2011). Foi um dos fundadores da Escola de Música e Belas Artes do Paraná
(EMBAP), em 1948, onde lecionou Anatomia e Fisiologia. Considerado grande paisagista e retratista,
seu papel na formação de novos artistas e no paranismo foi essencial para a história da arte no Estado.
João Ghelfi (1890-1925), um dos primeiros alunos de Andersen, era boêmio, brincalhão e
irreverente. Além de pintor, era escultor e crítico de arte, sob o pseudônimo Ghibellinus. Estudou em
Paris entre 1913 e 1914 e, ao voltar, transformou seu ateliê em um ponto de encontro de artistas e
intelectuais. Segundo Freyesleben, trouxe entre suas obras uma série de ‘homens e mulheres quadrados’,
o que indica ser ele um dos primeiros cubistas18 brasileiros. Grande parte das suas obras foi destruída,
talvez por sua viúva (ARAUJO, 2006, p. 52), mas as que restam mostram uma visão do conjunto, do
jogo de cores e da iluminação. (CARNEIRO, 2001, p. 27). Como mencionado, com Turin e Lange de
Morretes, criou o paranismo nas artes visuais.
Estanislau Traple (1898-1958) iniciou seu aprendizado com a litografia. Em 1916, frequentou
as aulas de Andersen, revelando aptidão para o retrato, a figura humana e a paisagem. No ateliê que
mantinha com De Bona e frequentado por Freyesleben, Kopp e outros, era comum pintarem retratos
uns dos outros. Em 1948, passou a lecionar Desenho e Pintura na recém-criada EMBAP. (PEDROSO,
[2006?], p. 13-14). Para Araujo, dentre os alunos de Andersen “era o melhor retratista e o mais próximo
do realismo visual do mestre”. (2006, p. 52).
Waldemar Curt Freyesleben (1988-1970) era um grande paisagista, retratista e autor de vários
autorretratos. Para João Osório Brzezinski, era o mais original discípulo de Andersen. Algumas obras
demonstram finura dos matizes e exatidão de proporções, outras revelam “equilíbrio entre a simplicidade
do desenho e euforia no empastamento, com uma liberdade de tons, cujo exemplo maior é a célebre
pincelada verde” (JUSTINO, 2002, p. 29), que leva a considerá-lo precursor do expressionismo19
no Paraná. Um dos fundadores da EMBAP, lecionava Perspectiva e Sombras. Nas suas paisagens,
valorizava as matas e o meio ambiente natural, com pinturas vibrantes e espontâneas.
José Daros (1898-1981) estudou na Escola de Aprendizes e Artífices e, depois, com Andersen. Em
1918, partiu para o Rio de Janeiro, “onde se tornou grande amigo de Portinari e frequentou o ateliê
de Oswaldo Teixeira, de quem recebeu orientação”. Logo, em Ponta Grossa, “assumiu a cadeira de
Desenho no Ginásio Regente Feijó, tendo exercido grande influência local”. (ARAUJO, 2006, p. 53).
Theodoro De Bona (1904-1990), após aprender com Andersen, estudou em Veneza por dez anos,
participando dos movimentos artísticos da época. Paisagista e retratista, foi fundador da EMBAP, onde
lecionou Pintura. Para Araujo, é “um dos mais significativos artistas paranaenses do século XX. [...] Ao

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regressar para o Brasil em 1936, sua pintura foi considerada avançadíssima para a época, [...] vibrante
de movimento e respirando uma liberdade insólita, já neoexpressionista20”. (2006, p. 53). Justino
afirma que “De Bona nunca se permitiu a diluição da forma; a destruição é insinuada sem, contudo,
romper a estrutura”. É visível na sua obra “a vontade de uma arte universal. [...] A vontade de ultrapassar
o efêmero assemelha-se à paixão pela arte duradoura, universal e singular, reconstituição da forma,
todavia distante do acadêmico”. (2002, p. 23). Ao retornar de Veneza, realizou uma exposição dos seus
trabalhos feitos na Itália, a qual, segundo Araujo, “modificaria os destinos da pintura paranaense”. Suas
obras “respiram uma liberdade insólita para a época” (ARAUJO, 2006, p. 80), causando profunda
impressão nos espectadores, entre eles, Guido Viaro.

Principais discípulos de Lange de Morretes


Lange de Morretes é descrito como muito preparado, grande e apreciado líder, temperamental,
que defendia com força e vigor os ideais de uma arte paranaense. Assim, não é de estranhar que à sua
volta, tanto na escola que criou quanto na EMBAP, se agrupassem vários jovens artistas, entre eles,
Arthur Nísio, Oswald Lopes, Augusto Conte, Kurt Boiger, Erbo Stenzel e Waldemar Rosa. Os temas
da natureza e do índio paranaenses influenciaram muitos de seus alunos.
Arthur Nísio (1906-1974) frequentou o ateliê de Lange de Morretes de 1924 a 1928, e o de
escultura, de João Turin, entre 1925 e 1927. Em 1928, foi estudar na Alemanha com os mais renomados
animalistas21 da época, além de cursar pintura de figuras, paisagens, nus e natureza-morta. Artista
de sucesso, naquele país, perdeu tudo durante a guerra, retornando ao Brasil em 1946. Foi um dos
fundadores da EMBAP. Dedicou-se especialmente à pintura de animais: cavalos, bois e vacas, galinhas,
patos e perus, em um contexto bucólico da paisagem com lagos, campos, montes, matas, ou no jardim
da sua casa, vez ou outra com a presença do pinheiro. “O que pinta [é] tão belo que afronta, tão
simples que comove. Ao escolher animais como tema, empenhou-se em compreendê-los”. (SANTOS
apud JUSTINO, 2002, p. 32). Tornou-se um dos mais importantes pintores animalistas do Brasil e do
mundo. “Suas obras refletem uma cultura pictórica romântico-naturalista, com certas características
impressionistas”. (ARAUJO, 2006, p. 55). Com sua pincelada única, mistura as tintas na própria tela,
o que confere leveza, volume e espontaneidade às obras.
As pinturas de Nísio, assim como as esculturas de Turin, nos remetem à beleza e à diversidade
da vida animal do Paraná. Enquanto Turin representa a fauna selvagem e o índio, Nísio retrata a
vida animal doméstica e das fazendas. Ambos, porém, demonstram grande paixão pelos bichos, sem
esquecer do homem local típico, seja ele indígena (Turin), colonizador, caboclo ou imigrante.
Oswald Lopes (1910-1964), filho de Cândido Lopes, um dos fundadores da imprensa no Paraná,
teve formação cultural de peso e era afinado com as questões do seu tempo. Pintor e escultor, estudou
com Andersen, Lange de Morretes e Turin, adotando tanto o realismo/impressionismo dos seus
mestres pintores, quanto o paranismo, de Morretes e Turin, refletindo “em suas opções temáticas e em
sua experiência pessoal, as ideias do movimento paranista”. (CARNEIRO, 2001). Junto ao pinheiro,

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sempre presente em suas telas, retratou o casario dos imigrantes nos arredores da cidade. Fundador da
EMBAP, lecionou Desenho Geométrico e, mais tarde, Modelagem. (ARAUJO, 2006, p. 55).
Erbo Stenzel (1911-1980), descoberto por Lange de Morretes, seguiu para o Rio de Janeiro para
estudar escultura, tornando-se assistente de Zaco Paraná. Quando Turin faleceu, voltou a Curitiba e
assumiu a disciplina de Anatomia Artística na EMBAP. (ARAUJO, 2006, p. 102-103). Em 1952, foi
convidado pelo governador para projetar um monumento para o Centenário da Emancipação Política
do Estado, construído na Praça Dezenove de Dezembro, em Curitiba. O homem (de 8 m de altura
e 70 toneladas) representa o Paraná: dá um passo à frente, destacando-se dos demais estados. Atrás
dele estão um obelisco e um painel horizontal em baixo-relevo. Este conta a história do Estado (o
outro lado recebeu painel de Poty). A figura feminina que está na mesma praça, Justiça, foi projetada
para o Tribunal de Justiça. Por não pertencer ao mesmo grupo, é flagrante a diferença de tamanho
entre as duas figuras. Porém, todas as partes do conjunto são obras monumentais, de caráter sintético,
inspiradas na arte egípcia.

Outros artistas estrangeiros atuantes no Paraná de 1900 a


1950
Outros artistas, na maioria alemães, italianos, portugueses e poloneses, radicaram-se no Estado na
primeira metade do século XX. Tiveram atuação relevante na arte paranaense e, conforme Araujo (2006,
p. 56-59), estão ligados ao objetivismo visual realista/impressionista. Entre eles, Hermann Schiefelbein,
Guilherme Matter, Egidio Tonti, Pedro Macedo, João e Genee Woisky, Czeslaw Lewandowski e Emma
e Ricardo Koch.
Dentre eles, destaca-se Hermann Schiefelbein (1885-1933), um dos maiores nomes da pintura no
Paraná, ao lado de Andersen e Viaro (FERREIRA, 2006, p. 36), estrangeiros como ele. Estudou na
Alemanha, especializando-se em desenho de animais. Emigrou para o Brasil devido à guerra, radicando-se
em Porto Vitória, próximo a União da Vitória. Com uma pincelada livre, tratou a natureza com fluidez,
transparência, sensibilidade e sutileza. (ARAUJO, 2006, p. 57). Para Justino, “é um pintor seguro,
trabalhando com igual competência a paisagem e os animais, [com] pinceladas soltas”. (1986, p. 70).

Paranismo

Regionalismo: um elemento novo e revolucionário (a arte está nos


móveis, nas molduras, nas colunas, nas fachadas das casas, nas capas de
revistas)
Romário Martins foi o idealizador e o autor dos manifestos paranistas, ideias que defendeu desde
finais do século XIX. Historiador, dedicou-se à pesquisa das culturas dos índios, anotando suas lendas,

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costumes, tradições, modos de ser, viver e pensar. Descobriu, a partir da tradição oral deles, o massacre
sofrido pelas várias etnias indígenas do Paraná pelos espanhóis nos anos 1600 e o guerreiro Guairacá,
herói da resistência indígena, que também é citado na literatura Argentina do século XVII. Uma das
mais marcantes características do paranismo é a defesa da causa indígena.
Portanto, desencadeado na literatura por Romário Martins, o paranismo consistia na valorização
do tipicamente paranaense, em especial o índio, suas lendas, o pinheiro e o pinhão. Foi fruto de uma
reação contra a cultura estrangeira colonizadora vigente. Nas artes plásticas, seus maiores representantes
foram Ghelfi, Turin e Lange de Morretes. O auge do movimento ocorreu na década de 1920.
Araujo afirma ter sido Ghelfi “o inspirador do Estilo Paranista” (1980, p. 25) nas artes plásticas,
adotando motivos da região como as araucárias, o pinhão, os rostos de caboclos e a paisagem paranaense
como temas. Mas Turin, até o fim da sua vida, afirmava ter sido ele o idealizador desse novo estilo
arquitetônico que descartava ornamentos de tradição europeia, substituindo-os por elementos da
vegetação local nas fachadas e do interior de casas. Elisabete Turin (1998, p. 44) comenta que, ainda
na Itália, Turin já pensava em um estilo marcadamente paranaense, tendo o pinheiro como inspiração.
De acordo com Turin, ao regressar a Curitiba, em um encontro com Lange de Morretes no ateliê de
Ghelfi, este, “sempre entusiasmado e sonhador, tomou um pedaço de carvão e na parede do seu ateliê
traçou, do tronco do pinheiro, um fragmento de fuste [coluna], sobre o qual compôs um grupo de
pinhas como capitel” (MORRETES, 1953, p. 168), concretizando a ideia de Turin.

Além do pinheiro, ícone do ‘paranismo’, outros elementos da flora paranaense, entre os quais a guabiroba,
a pitanga, o maracujá, o café e o mate, fazem parte do estilo paranaense. Animais e índios também se
incluem. Alguns projetos em que figurava essa preferência – como a decoração do Salão Paranaense do
antigo Clube Curitibano na Rua XV de Novembro, a casa do Dr. Leinig, na Rua José Loureiro e a casa-
-ateliê do artista, na Rua Sete de Setembro – não foram preservados. (TURIN, 1998, p. 44).

Turin executou inúmeras esculturas em que retratou onças e outros felinos da região, painéis com
a presença de cenas indígenas ou com motivos paranaenses, colunas com capitéis de pinhas e pinhões,
além de bustos e figuras de pessoas representativas da sociedade de então. Afirmou:

quantas vezes ouvi dizer por pessoas de destaque e cultas, que acham banalíssimas as decorações de
nossa flora e preferem essas ornamentações deturpadas e antiquíssimas da Europa. Todo povo que vive
copiando não pode amar a terra em que vive porque vive escravo espiritualmente de outros povos.
(TURIN, 1998, p. 123).

São de Lange de Morretes estudos sobre a estilização da pinha e do pinheiro, com base nos quais
até a atualidade se veem desenhos em calçadas de Curitiba:

Centenas de pinhões foram estudados em suas proporções, até que uma bela noite me foi dado fixá-
-las numa fórmula geométrica, saindo assim do empirismo em que até então se encontrava a nossa
ornamentação paranista. Finalmente tinha conseguido o que, a meu ver, era de utilidade imediata. De

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posse do segredo desdobrei a fórmula para a forma plana e ornamentei-a com a caruma22, obtendo
assim a sequência que forneciam os elementos para serem aplicados nos mais diferentes ramos da arte
aplicada23. (MORRETES, 1953, p. 224).

A década de 1920 foi o auge da visibilidade do movimento paranista, uma onda regionalista
que alcançou todos os setores da sociedade curitibana. Em meados da década, muitos dos discípulos
de Andersen e de Lange de Morretes aderiram, uns mais, outros menos, ao Movimento Paranista,
entre eles, Kopp, Freyesleben, De Bona, Nísio, Conte e Oswaldo Lopes. (MORRETES, 1953, p.
168). Estilizavam pinhas, pinhões, pinheiros, “aplicando-os em adornos arquitetônicos, nos entalhes
de madeira em móveis e molduras, nas vinhetas e ilustrações de livros e revistas e nos desenhos padrão
das calçadas do Paraná”. (RODERJAN, 1969, p. 193).

De como o paranismo, de revolucionário, tornou-se permanência


Mesmo com a tentativa do governo Vargas de terminar com os regionalismos, substituindo-os
por uma centralização nacional, o paranismo persistiu, ainda, nas décadas de 1930 e 1940. Porém,
se inicialmente foi inovador, seguindo as tendências nacionalistas europeias existentes no começo do
século XX e presentes, também, no nacionalismo brasileiro, do qual a Semana de Arte Moderna, de
192224, foi um marco, o paranismo tornou-se altamente conservador, pois rejeitava as ideias modernistas
contidas no movimento da Semana.
De fato, os idealizadores do evento em São Paulo lutavam por uma renovação em todas as
linguagens artísticas e no pensamento com base em dois aspectos igualmente relevantes: o nacionalismo
e o modernismo. O paranismo era a concretização do primeiro desses aspectos, traduzido em termos
locais. Quanto ao modernismo, a ruptura ocorreria no Paraná apenas em meados dos anos 1940. Até
lá, nossos artistas, não acadêmicos, mas ainda realistas-tradicionais, continuavam com suas pinceladas
impressionistas-expressionistas.
Araujo afirma que “seria temerário tentar explicar todo o modernismo brasileiro tomando por
base a experiência paulista. A verdade é que cada Estado viverá à sua maneira, o seu próprio processo
evolutivo”. (1980, p. 33). A autora relaciona o Paranismo mais ao Movimento Pau-Brasil25 (1924)
que à Semana de 1922: no Paraná, na mesma época do Movimento Pau Brasil, surgiria o Paranismo,
que, “sem ter o mesmo sentido renovador do primeiro, representou, contudo, um primeiro sintoma
da plástica local, de uma consciência nativista”. (ARAUJO, 1980, p. 33). O Movimento Pau-Brasil
tinha consciência de que, sim, a herança cultural brasileira é, sobretudo, de país colonizado, mas que
em vez de apenas copiar os modelos europeus, devemos nos apropriar e nos ‘alimentar’ deles, para
então traduzi-los à nossa maneira, de acordo com a nossa realidade, nossa paisagem social, cultural e
geográfica. Contudo, nossos artistas rejeitavam o Modernismo, considerando-o decadente.
Sabe-se, porém, que apesar da exposição a essas novas linguagens, também em São Paulo e no
restante do país eram relativamente poucos os adeptos às ideias da Semana de Arte Moderna. No
Paraná, mantinham-se as tendências impressionistas e pré-expressionistas que, apesar de naturalistas,

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não eram rigidamente acadêmicas. Tinham uma linguagem própria, característica e, inicialmente,
inovadora. No entanto, alguns artistas nessa época já respiravam outros ares.

Do universal ao regional (de volta aos índios, às matas, ao caboclo – uma


arte local)
O paranismo constituiu, portanto, uma volta às temáticas do indígena, das matas, da flora,
da fauna, do homem típico da região, mas desta vez não com o intuito de documentar a natureza,
reproduzindo-a de maneira naturalista, mas com o objetivo de revelar uma identidade local. E muitos
dos artistas envolvidos tinham uma pincelada ou um traço que se desprendia em certa medida desse
naturalismo, apesar de não aderirem ao modernismo da Semana de 1922. Viam-se nas suas obras a
pincelada impressionista de Andersen ou certas tendências ao expressionismo e à estilização.
Mais importante que isso era o uso de temas locais: estes deixavam de significar uma diferença
cultural em relação à Europa, certo atraso e até um sentimento de inferioridade do colonizado em
relação à metrópole, para assumir um sentido de afirmação. Os aspectos locais agora denotavam
orgulho e autonomia. Tratava-se da aceitação do fato de ser diferente ou de estar em um lugar diverso.
De novo podemos aprender algo com isso. Em um mundo globalizado como o nosso, é frequente
ignorarmos o que temos de bom. Como turistas, conhecemos outras cidades, mas não a nossa, outras
regiões ou países, mas não o nosso. Não visitamos os arredores da nossa cidade, nem nossos museus,
monumentos ou parques de onde moramos. Porém, se queremos conhecer o mundo, devemos começar
por ‘nossa aldeia’! Se queremos cuidar do planeta, devemos começar por ‘nosso quintal’, nosso entorno.
A sustentabilidade e a preservação, tanto da nossa cultura quanto do nosso meio ambiente, dependem
de nós os conhecermos, estarmos atentos às suas necessidades e nos engajarmos no seu cuidado.

Ares de mudança
Para Araujo (2006, p. 79), dois artistas foram especialmente importantes como precursores do
Modernismo no Paraná, especialmente pelo impacto que suas obras causaram: Theodoro De Bona,
já citado, e Bruno Lechowsky. Mas foram Guido Viaro e Poty Lazzarotto os verdadeiros primeiros
modernos no Estado. Os dois últimos foram também “pioneiros da tendência expressionista dominante
na Curitiba dos anos 1950, ligados à figuração subjetiva, centrada no homem, e tratam com violência
formal os fatos do cotidiano”. (BINI, 2001).
Bruno Lechowski (1887-1941), pintor polonês, residiu em Curitiba de 1926 a 1929. Próximo à
Praça Zacarias, montou sua ‘exposição portátil’, uma grande barraca onde expunha e vendia suas obras
e em que se entrava com o pagamento de um ingresso, com direito ao sorteio de uma obra. Participou
de mostras na capital e no interior com os jovens artistas locais, que, ao lado dos intelectuais da época,
aplaudiam e assimilavam seu ousado uso das cores e pinceladas e seu descomprometimento com a
pintura acadêmica: sua presença era “quase mágica, sendo suas obras vistas por todos, na época, como
revolucionárias em cores e na total liberdade de interpretação da natureza”. (ARAUJO, 2006, p. 79).

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Guido Viaro (1897-1971) foi pintor, desenhista, gravador, escultor e professor italiano, radicado
em Curitiba a partir de 1928. Para Ferreira (2006, p. 36-39), sua fonte de inspiração era o ser humano
e o que o rodeia, desenvolvendo na sua arte um humanismo social, com ênfase na subjetividade da
figura humana. Para Ayala, suas figuras obedeciam a um “corte quase escultórico e surgiam iluminadas
de uma dramaticidade contida. Num expressionismo filtrado por uma consciência pungente do real,
ele observou a natureza humana, a paisagem, os símbolos religiosos, [...] a responsabilidade do homem
frente à vida”. (1981, p. 82). A subjetividade é a essência da sua obra, o que o tornou um dos mais
importantes impulsionadores do modernismo26 no Paraná.
Como Lange de Morretes e Traple, Viaro criou uma escola e acabou interferindo no comportamento
do próprio artista: ‘abria-lhe a cabeça’. O ateliê de Guido Viaro era então frequentado por Osvaldo
Pilotto, Nelson Luz, João Turin e Dalton Trevisan. (JUSTINO, 1986, p. 72). É lembrado como
professor e mestre de grande número de artistas de peso das gerações seguintes.

A Escolinha de Artes e outras instituições de ensino de arte (a arte está


na escola)
É relevante o fato de Viaro fundar, em 1937, uma Escolinha de Arte no Colégio Belmiro César,
dez anos antes do movimento pelas Escolinhas de Artes, deflagrado em todo o Brasil. Criou, também, o
Centro Juvenil de Artes Plásticas, no subsolo da Biblioteca Pública do Paraná. A Escolinha de Artes do
Colégio Estadual do Paraná, que funciona ainda hoje, é fruto da sua atuação na instituição. Além disso,
participou do grupo que fundou a Embap, ministrando aulas de Desenho, Composição e Pintura.
De outro lado, o trabalho artístico e pedagógico de Andersen fora tão consistente que, depois da
sua morte, o seu filho, Thorstein, continuou seu trabalho no ateliê que passou a chamar-se Casa de
Alfredo Andersen e, atualmente, Museu Alfredo Andersen. Dentre os muitos professores que por ali
passaram estão Guido Viaro e Luiz Carlos Andrade Lima, “muitos deles no âmbito do CAPE – Curso
de Artes Plásticas na Educação – um dos pontos altos da atividade educacional da instituição. No mais,
serviu como laboratório para significativo número de artistas e teóricos”27. (KIRDZIEJ, 1986).
Outras importantes iniciativas nos anos 1940 que concorreram para a consolidação das artes no
Paraná foram a criação do Salão Paranaense de Belas Artes, em 1944, nos quais começaram a surgir
novos movimentos artísticos, com a presença, lado a lado, do acadêmico e do moderno; e da Escola de
Música e Belas Artes do Paraná, em 1948.
Quanto ao modernismo, foi necessária uma ruptura com as linguagens tradicionais, o que ocorreu
apenas em 1946, com Joaquim, um jornal lançado por Dalton Trevisan.

‘Joaquim’ (a arte está na revista)


Até a década de 1940, excetuando-se Viaro, prevaleciam no Paraná os alunos de Andersen e
um ou outro pintor de tendência mais moderna, com produção isolada, como Isolde Hötte. A real

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ruptura com o passado teve como veículo a revista Joaquim, de propriedade de Dalton Trevisan,
dirigida por Erasmo Pilotto e cujo ilustrador foi Poty, com Guido Viaro como colaborador. Joaquim
surgiu em 1946, como reação contra a permanência do simbolismo e do paranismo, rompendo
com a ‘mitificação’ dos poetas simbolistas e da pintura dos andersistas. Trevisan, o jovem contista,
“reage contra a falta de sintonia da produção curitibana com as ideias modernas”, afirma Carollo:

Poty e Viaro são propostos como a nova expressão do tempo, e a mesma revista defende o fim do ‘mito
Andersen’. [...] O espírito irreverente da revista inspira outras revistas de jovens brasileiros, e o ‘grupo’
ganha notoriedade, promovendo edições especiais dos textos de Dalton Trevisan, publicadas em forma
de cordel, enquanto Poty inicia sua carreira de gravurista e ilustrador capaz de reproduzir com traços
fortes o conteúdo denso dos textos do contista. Decididamente, após Joaquim o panorama das artes
em Curitiba já não é o mesmo, e o Paraná encontra a expressão capaz de sintonizá-lo com o século
XX. (1993, p. 34-35).

No âmbito das artes plásticas, Araujo complementa: Viaro e Poty são

os mais autênticos Joaquins das artes plásticas paranaenses. Embora cronologicamente mais velho do
que a ‘Geração de 45’ – pela renovação que introduziu, pelo diálogo que soube manter com as novas
gerações, pelo vigor de sua obra – Viaro até o fim da vida manteve-se mentalmente jovem. […] A ele
o Paraná deve a introdução de uma corrente subjetiva-expressionista, que se contrapôs ao realismo-
-objetivo da Escola de Andersen. [...] Poty, o mais criativo artista plástico paranaense de sua geração, é
o primeiro a abandonar a estética europeia para aderir visceralmente ao bugrismo28. Sua ação é decisiva
pela abertura que provocou não só em nosso estado como em todo o sul do país. Estes dois artistas são
verdadeiros alicerces da Renovação da Arte Paranaense. (1980a, p. 41).

A revista foi editada apenas até 1948, mas nesses dois anos trouxe à discussão os aspectos mais
novos do que acontecia nas artes no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Paris, oxigenando o debate local
e instituindo quase que uma revolução cultural. As propostas modernistas introduzidas no Paraná por
Joaquim permitiram que elementos de contestação e de renovação se desdobrassem em uma linguagem
modernista que se consolidaria em Curitiba na década de 1950, somando-se às tendências existentes.

Poty (a arte está no jornal e no painel)


Poty (1924-1998) é o nome artístico de Napoleon Potyguara Lazzarotto. Dedicou-se ao desenho,
à gravura, à ilustração de livros e jornais e à realização de grandes murais. Desenhava desde pequeno.
Aos 14 anos, publicou histórias em quadrinhos no jornal Diário da Tarde; aos 15-16, ilustrou contos
de Edgar Allan Poe e fez retratos de amigos, a lápis ou nanquim. Aos 18, foi estudar no Rio de
Janeiro. Aos 19, foi convidado para ilustrar um primeiro livro, seguido de muitos, inclusive de Carlos
Drummond de Andrade, Dalton Trevisan, Guimarães Rosa, Gilberto Freire, Valêncio Xavier e Jorge
Amado. Poty tinha 24 anos, quando, em 1946, Dalton Trevisan criou a revista Joaquim, na qual

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atuou como ilustrador, ao lado de Viaro. Nesse ano, mudou-se para Paris, onde conheceu a litografia
e de onde enviava suas contribuições para a revista. Retornou ao Brasil em 1948, trabalhando como
ilustrador em vários jornais do Rio de Janeiro. (JUSTINO, 1986, p. 72).
O desenho era o seu principal meio de expressão, contudo, seria pelas suas obras monumentais, seus
painéis e vitrais presentes em várias cidades do Brasil e da Europa, que seria mais conhecido. Para seus
murais empregava materiais como madeira, vidro, cerâmica, azulejo e concreto aparente. Mantendo-se
em uma linguagem figurativa-expressionista29, seu primeiro mural em azulejos foi executado em 1953,
na face oposta ao mural de Stenzel, na Praça Dezenove de Dezembro, em Curitiba. Depois deste foram
mais de oitenta obras e grupos de obras monumentais, a maioria espalhada pelo Paraná e pelo Rio de
Janeiro. No Paraná, há murais seus em Curitiba, Lapa, Foz do Iguaçu, Paranaguá, São José dos Pinhais,
Maringá e Londrina, entre outras cidades. Seu interesse pelos murais deveu-se à possibilidade de fazer
uma arte que estivesse ao alcance de todos: queria estar perto das pessoas: “Me interessa o mural,
assim como a gravura, pela oportunidade de alcançar bastante gente”. (POTY apud NICULITCHEFF,
1994, p. 106).
Em Poty, vê-se um grande poder de síntese, exigência das histórias em quadrinhos, da gravura e da
ilustração, em que deixava o detalhe para apresentar o essencial, de rápida leitura. Assim são suas obras:
desenhos estilizados, traços econômicos, que mais sugerem do que retratam, dando pistas por meio da
combinação de elementos soltos, em cuja relação está a narrativa. Nos seus murais, painéis e vitrais,
cria uma espécie de história em quadrinhos sem palavras, construindo o discurso sequencialmente ou
pela simples justaposição dos elementos.
Suas obras dialogam com o espaço em que estão inseridas: a história da aviação, no Aeroporto
Afonso Pena, em São José dos Pinhais; São Francisco de Assis e a religiosidade, no Hospital de Clínicas
de Curitiba; a Curitiba antiga, na região central da cidade; os tropeiros, na Lapa; os trabalhadores
da usina de Itaipu, em Foz do Iguaçu; o café, na Rodovia do Café; a água e seus trajetos, no mural
para a Sanepar; e assim por diante. Em Curitiba, são de Poty os vitrais da Biblioteca da Pontifícia
Universidade Católica do Paraná (PUCPR), da Sinagoga Maurício Frischmans e da Igreja Cristo Rei.
Sua obra “ainda que retratando com frequência a paisagem urbana, os tipos, os hábitos e os costumes
populares de sua terra, adquiriu uma incontestável dimensão universal, dificilmente igualada pelo
trabalho de qualquer outro dos nossos grandes artistas”. (FERREIRA, 2006, p. 167).
Nos desenhos estilizados de Poty, a paisagem natural e urbana, bem como os temas locais, tornam-
-se um pretexto para explorar a condição, as emoções e a ação do homem sobre o território e sua
história. As cenas que retrata não buscam enfatizar elementos da natureza ou da cidade por si mesmos,
mas pelos significados que carregam, pelos seus conteúdos expressivos, pelos contextos que deixam
reconhecer. Por exemplo: no painel situado atrás da Catedral de Curitiba, que mostra a carroça dos
colonos poloneses, perto do bebedouro, com um pinheiro e uma casa com lambrequins, podem-se
quase que sentir as sensações e a rotina da mulher que, cansada, vem vender os produtos da sua pequena
chácara no centro da cidade. A paisagem urbana situa o local em que a cena ocorre. Os lambrequins e
a carroça, típicos dos imigrantes poloneses, informam sobre a pessoa de que a cena trata. O bebedouro
é o mesmo que se pode ver entre os prédios, no Largo da Ordem, ao se contemplar o painel.

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A Escola de Música e Belas Artes do Paraná (a arte está


na universidade)
Andersen propôs ao governo do Estado, inúmeras vezes, a criação de uma escola superior de ensino
de arte, tendo como modelos as mais importantes instituições da Noruega e do Rio de Janeiro. Foram
décadas de lutas e promessas. Após seu falecimento e o fim da Era Vargas, porém, vários intelectuais e
artistas da cidade, acompanhados por instituições de arte e cultura e liderados por Fernando Corrêa de
Azevedo, conseguiram que o sonho do mestre e de tantos outros fosse concretizado. Foi no Governo
Dutra, que promoveu um verdadeiro Ciclo das Universidades, que foi possível fundar a tão sonhada
Escola de Música e Belas Artes do Paraná. (PROSSER, 2004).
Os artistas plásticos que se uniram ao grupo que fundou em 1948 a EMBAP eram, na maioria,
ex-alunos de Andersen, com exceção de Viaro, que tinha uma linguagem mais avançada. Portanto,
prevaleciam os artistas cuja linguagem era, ainda, a realista-tradicional. Nesse contexto, foi Viaro quem
apontou para uma nova maneira do fazer artístico. Bini comenta que “apesar de Andersen e alguns de
seus alunos já haverem demonstrado certa inquietude com relação à arte acadêmica, indo em direção
a caminhos inovadores, [...] é principalmente com Guido Viaro que tem início a nossa modernidade”.
Ele e seus alunos é que “começam a dissolução da forma convencional; o uso abstrato da cor; o primado
da emoção e o distanciamento da ‘imitação’”. (2010, p. 38).
Em um depoimento, Fernando Velloso, aluno das primeiras turmas da EMBAP, afirma:

tínhamos em Viaro um professor extraordinário. [...] Deu-nos aquele impulso, aquela palavra de ordem
que faltava, que era: “Procurem, pesquisem, façam o que quiserem”. Ele praticamente oficializava e
incentivava a quebra de tabus e a indisciplina contra certos professores que nada viam além dos cânones
fixos. Foi assim que nós começamos a procurar, desacomodando-nos dos figurinos da academia. [...]
Esse inconformismo culminou com o chamado Movimento de Renovação, que [...] foi um momento
histórico na pintura paranaense, da ruptura com um passado já esgotado em termos de criatividade,
onde se buscou pesquisar novas formas de arte. (apud ARAUJO, 2006, p. 86).

Assim, a mudança se consolidaria em Curitiba na década de 1950, com Poty, Viaro, o grupo
‘Garaginha’, de Violeta Franco, Alcy Xavier, Fernando Vellozo, Paul Garfunkel, Loio Pérsio, Previdi,
Domício Pedroso e outros. Nas décadas seguintes, os movimentos da vanguarda se fizeram sentir com
os discípulos de Guido Viaro e outros.

O ciclo do café e as novas cidades no Norte do Estado


Araujo comenta que, “embora haja registros de cultivo do café no Paraná desde início do século
XIX, apenas a partir de 1860 é que a riqueza da ‘terra roxa’ começou a atrair mineiros e paulistas que
se estabeleceram no Norte Pioneiro” (2006, p. 37-38), depois chamado de Norte Velho.

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Jacarezinho (a arte está nas catedrais e igrejas)


Num primeiro momento da ocupação do Norte do Paraná, a partir de 1910, seu principal centro
era Jacarezinho. Essa cidade abriga na sua catedral, “um dos mais importantes conjuntos de arte religiosa
do Estado, composto por murais de autoria de Eugênio Proença Sigaud e escultura do espanhol Blasco
y Vaquet, executados entre 1954 e 1957”. (BEM PARANÁ, 2013).

Londrina (a arte está em monumentos)


Atualmente, o principal polo do chamado Norte Novo é Londrina, fundada em 1934, também
como consequência do incentivo ao plantio do café na região. Nessa cidade atua Sassá que, trabalhando
por três anos para o Jornal de Londrina, faz críticas e crônicas dos principais acontecimentos da sua
cidade, com suas charges, sempre com humor perspicaz.
Em Londrina estão monumentos de Henrique Aragão. Nascido na Paraíba, em 1931, na infância
desenhava histórias em quadrinhos com tijolo, telha e carvão pelas calçadas e muros da cidade. Estudou
primeiro em Recife, depois na Europa. De volta ao Brasil, mudou-se para São Paulo e, desde 1965, optou
por morar em Ibiporã, no Paraná, para dar continuidade à sua arte. Conhecido internacionalmente,
é autor de centenas de obras espalhadas por igrejas e espaços públicos do norte do Paraná. Escultor,
pintor, desenhista, dramaturgo, poeta e animador cultural, desenvolveu extraordinário trabalho, não
só como pioneiro no ensino da arte, mas se impondo como um dos grandes renovadores da arte sacra
nacional. (BEM PARANÁ, 2013).
Seu O Cristo libertador, encomendado em 1975 para a Igreja Matriz, é uma grande escultura
em latão, em três grandes peças: o Cristo nu, de 4 m de altura; o sol, ao redor de sua cabeça, com 3,60
m de diâmetro; e um pássaro de 2 m de envergadura. Em 1984 a obra foi doada ao museu da cidade e
encaminhada para a Universidade Estadual de Londrina, onde está exposta ao ar livre. Outra escultura
de Aragão em Londrina é O passageiro (de 1987), de 15 m de altura, realizada em concreto e latão.
Segundo seu autor, “as duas figuras humanas simbolizam os viajantes que procuram uma integridade
interior e a unidade entre Eros (desejo) e Tânato (morte). Assim o artista procurou retratar o que ele
chama de ‘homem completo’”. (BEM PARANÁ, 2013).
Outras igrejas de Londrina em que obras de Aragão podem ser vistas são Sagrados Corações e
Capela do Seminário São Vicente Palotti. Há obras suas também em Abatiá, Ibiporã e outras cidades.
Nesta última, criou a Casa de Artes e Ofícios Paulo VI, que oferece cursos de dança e teatro, um
minimuseu, teatro ao ar livre, além de um laboratório e ateliê de escultura. Foi, ainda, o responsável
pela instalação do Museu da Escultura ao Ar Livre do Norte do Paraná, também em Ibiporã.

Maringá (a arte está nos shoppings, nos viadutos e nos painéis)


Em 1947 nasceu Maringá. A conclusão da fase de concretagem da Catedral de Maringá, em 1972,
a fez surgir como o maior ícone não apenas da cidade, mas de uma nova fase, de diversificação agrícola,

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pecuária e industrial. Ela é a mais alta igreja da América Latina, com seus 114 m, de uma arquitetura
arrojada, e é inspirada na palavra escandinava 'poustinikki', que se refere a alguém que se afasta do
mundo para ficar mais perto de Deus.
Em Maringá estão dois painéis de Poty: um no Teatro Calil Haddad e o outro na entrada principal
do Shopping Cidade, que, “feito em 1992, é mais uma homenagem a importantes personagens da
história de Maringá, principalmente aos pioneiros, quando estavam em atividades urbanas ou ligadas
ao café”. (MAIA; BULGARELLI, 2011, p. 45). Outra artista que assina seis painéis em Maringá é
Deborah Kemmer, nas paredes do viaduto da Av. Tuiuti: é um resumo da história da cidade.
Estão em Maringá algumas obras de Henrique Aragão, como a da Igreja São Francisco de Assis e o
monumento O desbravador, no qual, “abandonando a figura tradicional do pioneiro com um machado
na mão, representa-o como o ser que tenta romper os limites para alçar voo”. (ARAUJO, 2006).
Outros painéis existentes em Maringá são o do Fórum de Maringá e o do Atacadão, de Zanzal
Mattar; o de Eder Portalha, no Colégio Santa Cruz; o painel de azulejos construído em 1952 e que hoje
está nos fundos do Mercadão Real; o painel indígena na Associação Indígena de Maringá (Assindi) e os
do supermercado Super Muffato, a maioria feita por artistas de Maringá ou da região.
O ciclo do café, assim, foi ‘semeador’ de novas cidades, cada qual com suas próprias características,
hoje importantes centros de arte e de cultura. Sua arte e seus artistas contam os percursos percorridos
para sua construção, retratam a paisagem natural, urbana e social, e revelam partes da vida de cada um.

NOVAS LINGUAGENS

As décadas de 1950 e 1960 – transição e abertura


Nos anos 1950, ocorreu o que Araujo chamou de Revolução Modernista. Na EMBAP, os alunos
de Viaro buscavam novas maneiras de expressão artística, mais sintonizadas com o seu tempo e com
outros centros, experimentando rupturas em direção à abstração.
Decisivo para as artes plásticas no Paraná foi o ano de 1957, com a criação da Galeria Cocaco de
Arte, por Ennio Marques Ferreira e Manuel Furtado, cujo lema era ‘Revolução’. É a primeira no Paraná
a trabalhar com arte moderna, atraindo um grupo de artistas e intelectuais. “Seus principais objetivos:
tornar a Cocaco uma galeria de grande expressão e reformular o Salão Paranaense” (ARAUJO, 2006,
p. 86), até então mais ligado à arte realista-impressionista da pintura local até então. Devido à sua
grande cobertura jornalística, pelas novas propostas e por um dos seus membros ser jornalista do
Diário da tarde, a Cocaco teve grande projeção e impacto. (ARAUJO, 2006).
Também a criação do Círculo de Artes Plásticas, em 1957-1958, em torno do lema ‘Ação’, foi
decisiva para as novas linguagens na pintura. Entre seus fundadores estavam ex-alunos da EMBAP:
Adalice Araujo, Constantino Viaro, Luiz Carlos Andrade Lima, Jair Mendes e outros, “quase todos
influenciados em suas obras iniciais por Guido Viaro, de quem haviam sido alunos”. (ARAUJO,

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2006, p. 87). Além do seu trabalho artístico individual, ministravam conferências, projeções de
documentários, exposições e cursos. Lá foram descobertos artistas como Helena Wong e Érico da
Silva. (ARAUJO, 2006).
Ainda em 1957 e de “fundamental importância como fator de ruptura com a longa tradição do
objetivismo visual no Paraná, foi o protesto verificado no XIV Salão Paranaense de Belas Artes, por
parte de um grupo de artistas inconformados com as decisões do júri”. (ARAUJO, 2006, p. 87). A
maioria dos artistas das novas linguagens retirou suas obras do Salão e organizou o Salão dos Pré-
-Julgados, no saguão da Biblioteca Pública.
No entanto, como aponta Justino (1986, p. 70-71), apesar de muitos artistas paranaenses terem
estudado na Europa, “é interessante a preferência da maioria pelo expressionismo”. Para a autora, essa
inclinação não se deu por acomodação, mas é “algo bem mais forte e profundo. Toda a concepção de
arte que norteia nossos artistas, desde o início, repousa na estética clássica, mas interpretada muito à
vontade”, o que “favoreceu um ecletismo nos valores artísticos”. O impressionismo “agradava enquanto
resultado. [...] Todavia, os princípios ou o imaginário impressionista não foram suficientes para vergar
a estrutura acadêmica de Andersen” e seus discípulos. Van Gogh, que libertou a cor e a pincelada,
resultou no Paraná da década de 1950, em um “expressionismo bastante rico e alegre em muitos”,
como Viaro e Poty, que exerceram forte influência sobre os demais, “triste em Bakun, nostálgico em
Botteri, displicente em Jair Mendes”, com certo tratamento cubista, em Alcy Xavier, ligado ao social
em Nilo Previdi e dramático em Helena Wong e Luiz Carlos Andrade e Lima. Especialmente na década
de 1960, “enquanto o abstrato seduz fortemente grande parte de nossos artistas, outro grupo continua
a aprofundar a linguagem expressionista. E alguns atingirão, mais tarde, outras linguagens: fantástico30,
fauve31, tachismo32, conceitual33 etc.”. (JUSTINO, 1986, p. 71).
Outros artistas desta década foram Paul Garfunkel, que capta o instante, a luz, as atmosferas,
em uma linguagem que permanece impressionista; Fernando Calderari, um dos introdutores da arte
abstrata no Paraná, hoje dedicado às marinhas; Fernando Velloso, que optou pela arte abstrata e usa a
cor como elemento primordial, com a qual trabalha planos e formas; Domício Pedroso, cujos velhos
casarios e favelas tendem ao abstracionismo; João Osório Brzezinski, irreverente, contestador, satírico e
crítico, usou em suas obras a colagem de tecidos, estopa, fios, letras e palavras, criando volume sobre a
superfície plana. Usa também o plástico e elementos kitsch34 em obras tridimensionais. Seus elementos
verbo-visuais, muitas vezes, são apenas palavras soltas, que sugerem a falta de sentido das coisas; e João
Genehr hábil vitralista35 e mosaicista36. São dele os vitrais e mosaicos do Santuário Nossa Senhora do
Perpétuo Socorro e da Paróquia Cristo Rei, em Curitiba (a arte está nos vitrais).
Enquanto alguns artistas desta geração se dedicaram a aspectos sociais, ou ao abstracionismo, três
pintoras usavam flores, paisagens e formas da natureza para traduzir seu pensamento e sua visão de arte.
São elas Ida Hanemann de Campos, Violeta Franco e Elza Weimar Müller, todas ex-alunas de Viaro,
entre outros mestres.
Ida Hanemann de Campos (1922), aluna de Viaro na década de 1940, se ocupou da paisagem
e de elementos locais, como o índio, a pinha, o pinhão e a gralha azul, entre outros. Manteve-se

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“ligada a uma figuração lírica, chegando algumas vezes à abstração, quando os elementos vegetais
de suas paisagens se fundem com outros ou com figuras humanas criando imagens simbólicas de
intenso e vibrante colorido”. (BINI, 2010, p. 40). Ao mesmo tempo, “revela profunda identificação
com a terra”, num quase novo paranismo, encontrado em seus desenhos sobre lendas indígenas,
nas suas peças de tapeçaria e nos seus murais. Além disso, “capta a natureza como um movimento
contínuo, em expansão, servindo-se dos elementos-símbolos do pinheiro, desde sua germinação,
a pinha, o sol, até o próprio pinheiro”, o galho, o pinhão e a gralha azul. Seus elementos “criam
uma composição ao mesmo tempo movimentada e equilibrada, em que os diversos elementos são
unidos por curvas e contracurvas, visíveis inclusive nas espirais que formam”. (ARAUJO, 2006,
p. 94).
Violeta Franco (1931-2006) dedicou-se à pintura, à gravura e ao desenho. Ex-aluna de Viaro e
de Poty na década de 1940, fundou em Curitiba, em 1949, a Garaginha, um centro irradiador do
modernismo no Paraná. Este deu lugar em 1953 ao Clube de Gravura do Paraná, que dirigiu até
1956. Geometrizava, coloria e sobrepunha formas de flores e outros elementos da natureza, em uma
linguagem lírica e espontânea, forte, vibrante e esfuziante, enquanto brincava com a transparência. Ela
define seu estilo e suas motivações em um depoimento que deu, por ocasião de uma exposição sua no
Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP), em 1984:

Apenas em 68 começo o estudo da flora, para simbolizar a cor e a atmosfera, a inquietação e a


exuberância do mundo brasileiro. A princípio, eram plantas enormes, ainda com grandes camadas
de tinta; pouco a pouco vou simplificando e limpando a cor. Passo a estudar e transpor pequenos
fragmentos de planta. Só mais tarde, porém, viria a fazer um trabalho de contexto, em que os detalhes
desaparecem, a cor é fortemente depurada, as formas se definem e a flora acaba sendo apenas uma
referência. As folhas se vinculam com pássaros e a fauna e a flora vão se fundindo. Eventualmente, a
figura humana entra no contexto onde não há luta, mas complementaridade, onde a cor, o grafismo
e a composição se complementam num universo de símbolos e formas. Não tenho a intenção de
reproduzir uma realidade, senão a minha conturbada realidade, moldada pela realidade que aí está.
(FRANCO, 1984).

Vemos, assim, como a natureza é elemento fundante da sua obra.


Elza Weimar Müller (1907-2000), nascida na Alemanha, mas naturalizada brasileira durante a
I Guerra Mundial, foi aluna de Oswaldo Teixeira e Isabela Sá Pereira, no Rio de Janeiro, e depois de
Viaro, Violeta Franco e Kurt Boiger, em Curitiba. Com estilo vigoroso e repleto de energia, de cores
fortes e usando a distorção, suas paisagens retratam principalmente a Lapa, Curitiba e Caiobá, com a
valorização da cor e com pinceladas impressionistas-expressionistas. Na composição de motivos vegetais
ou geométricos brinca com cores e formas. Pintou também retratos, figura humana e utensílios do
cotidiano, nos quais explora ora o desenho rápido e distorcido, ora a transparência das formas, sempre
com cores vibrantes e fortes. Suas obras com motivos florais, muitas espatuladas, mostram a mesma
ousadia, numa valorização da natureza. (PROSSER, 2010).

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Já Antonio Arney (Arte Pop37, Arte Povera38 e Objets Trouvés39) e Waldemar Roza (arte ecológica40),
entre outros, se dedicaram, o primeiro, à arte com sucata, e o outro, à arte feita com materiais da
natureza, tendências que serão estudadas adiante.
São ainda muitos os artistas que atuaram nessa década, seguindo diferentes tendências, como Jair
Mendes, Franco Giglio e Alcy Xavier (os três expressionistas, mas o último com incursões ao cubismo),
René Bittencourt e Luiz Paulo Gnecco (transitam entre o expressionismo e outras tendências), Thomaz
Wartelsteiner e Mário Rubinski (influência raionista41 e arte metafísica42), Sofia Dyminski, Loio Persio,
Jorge Carlos Sade (Arte Conceitual), Cleto de Assis (Neoconcretismo43 e Arte Povera), Alberto Massuda
e Nelson Luz (o Fantástico), entre outros.

Década de 1970 – explosão criativa (a arte está nas ruas)


A abertura para a arte contemporânea no Paraná se consolidou somente na década de 1970,
com os Encontros de Arte Moderna, projeto de Adalice Araujo e coordenação e design gráfico de
Ivens Fontoura, ambos professores da EMBAP, e organização do Diretório Acadêmico Guido Viaro,
do qual participam Maria José Justino e Fernando Bini, entre outros, “guerrilha saída de uma escola
tradicional de arte”. Os Encontros “permitiram a circulação de informações e a atualização estética [...],
fizeram transitar em Curitiba críticos e artistas dos mais arrojados, provocando debates, workshops e
happenings44”. (JUSTINO, 2010, p. 70-71).
Araujo (2006, p. 128-129) comenta que, em torno dos Encontros, formaram-se dois grupos.
O primeiro utilizava “propostas experimentais, produzindo as obras polêmicas da década de 1970”,
com performances45, happenings e instalações46. Esses novos modos do fazer artístico nas artes visuais
transcendem a tela, o papel, a escultura, de certa maneira estáticas no tempo e acabadas, para incluir
parâmetros como espaço e tempo, em que o espectador não apenas percorre a obra (na instalação);
ou assiste ao seu desenrolar (na performance); mas participa dela (no happening). Nessas obras ditas
abertas, a percepção, a perspectiva, o olhar e a ação do observador/ator interferem nelas. Alguns artistas
desse grupo são Ivens Fontoura, Fernando Bini e Lauro Andrade.
O segundo grupo, afirma Araujo, servia-se “do desenho como veículo principal de expressão,
adotando um caráter altamente crítico em relação ao establishment, principalmente no que dizia
respeito à censura imposta pelo Regime Militar, bem como uma posição de denúncia”. (2006, p.
128-129). Faziam parte desse grupo Márcia Simões, Margarida Weisheimer, Mazé Mendes, Sônia
Gutierrez e outros. Dessa época, uns mais outros menos vinculados a essas ideias, eram também Elvo
Benito Damo, Maria Ivone Bergamini, Suzana Lobo, Retamozzo, Rogério Dias, e os independentes,
como Carlos Eduardo Zimmermann, Bia Wouk, Rones Dumke, Ruben Esmanhoto, Marcos Bento,
Ricardo Krieger. Nessa década de indignação e protesto contra a Ditadura, o desenho de humor teve
um desenvolvimento singular, com artistas como Miran, Juarez Machado, Solda, Key Imagire, Guinski
e Sérgio Kirdziej. (ARAUJO, 2006, p. 128-129).

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Destes, Erico da Silva e Sérgio Kirdziej foram os que optaram pela paisagem local, com pinceladas
que lembram Paul Cézanne, o precursor da pintura impressionista.
De fato, em uma época em que vigia o modernismo, com sua abstração e sua quase negação das
questões locais, em que o tradicional era quase que proscrito no mundo artístico, alguns artistas ainda
pintavam a paisagem, agora com outras leituras. Era nítido o conflito entre o local e o universal, o
tradicional e o moderno, como vemos na afirmação de Aristides Vinholes, ao referir-se à obra de Erico
da Silva:

Num país de natureza exuberante como o Brasil, é incrível que a maioria dos nossos pintores esteja
preocupada com construtivismos e outras tendências estranhas à formação e à sensibilidade do
brasileiro. Não se trata de considerar válida só a pintura de paisagens. O importante é que se faça arte
com fundamentos na realidade nacional. Do contrário, o que se fizer será simples transplante. Por isso,
inautêntico. (1978 apud KRIEGER, 2010).

Erico da Silva (1949-1991) retratou de maneira livre e intensa a paisagem paranaense, envolvendo
matas, campos, bosques, casebres, pinheiros, o litoral, com pinceladas espessas e colorido vibrante,
permitindo que a cor se misturasse de modo não homogêneo no próprio pincel, o que conferia à
sua obra um caráter de espontaneidade e personalidade forte. Nos “faz mergulhar na natureza, seja
ao pintar araucárias, os reflexos nas águas ou as diversas tonalidades do céu”. (KRIEGER, 2010). Já
em 1978, o crítico de arte Aristides Vinholes escreveu: “nesta época, quando a destruição da natureza
ganha aspectos brutais, pintar paisagens parecerá uma atividade anacrônica. Porém, estudando a sua
pintura, observamos que não tem nada de anacrônica. Pelo contrário, é moderna”. O artista afirmou
certa vez: “Sou um pintor que adotou a Paisagem do Paraná, tanto a do litoral como a do planalto
e a dos arredores de Curitiba, como pretexto para a revisão da essência da pintura. Pois o que faço é
pintura, pura e simples, emotiva, intelectual e sensitiva ao mesmo tempo”. (KRIEGER, 2010).
Sérgio Kirdziej (1949) é desenhista de humor, pintor, crítico de arte e professor universitário.
Como crítico, “analisa a importância das artes plásticas no Paraná, discutindo a desconfiança do
curitibano, sua antropofagia e a necessidade de resgatar os fatos importantes ao longo da história”.
(ARTES NA WEB, 2015). Como pintor, entre os muitos temas que aborda em suas telas estão a
paisagem local e a relação do homem com a natureza. Enfatiza a naturalidade e o lirismo com suas
pinceladas cezannianas cheias de poesia.
Os demais pintores da época, cada um à sua maneira, uns mais críticos e contestadores, outros
mais líricos, ou, ainda, dedicados ao humor; uns atuantes no ensino, outros à organização cultural; uns
ainda com opção pelo figurativo, outros pelo abstrato; quase todos se mantêm ativos até a atualidade.
Nos anos 1970 foram criadas instituições importantes para o desenvolvimento da arte e para a
preservação da memória, que se somaram às já existentes e cuja atuação perdura até a atualidade: a
Fundação Cultural de Curitiba, o Museu de Arte Contemporânea do Paraná e os Cursos de Desenho
Industrial, Comunicação Visual e Educação Artística na Universidade Federal do Paraná.

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Ennio Marques Ferreira, Eduardo Rocha Virmond, Adalice Araujo, Maria José Justino e Fernando
Bini assumiram para si o registro escrito do que ocorria nas artes visuais locais e sua relação com o
panorama nacional e mundial, como o fizera anteriormente Nelson Luz. Tornaram-se, os três últimos,
professores, críticos e historiadores da arte, com escritos e análises lúcidos, profundos e reveladores.
Quanto às artes visuais, de modo geral, para Ivens Fontoura (1986, p. 138-139), os anos 1970
marcaram o início de uma explosão criativa, que perduraria pelas décadas seguintes. Devido a fatores
culturais e ao inquietamento de alguns artistas e professores de arte, Curitiba tornou-se um ‘centro
criativo’ comparável a outras cidades de destaque – “um polo de convergências e divergências”. A marca
da década foi o “forte convívio com os companheiros de criação, entre o cinema e cartunistas, arquitetura
e poetas, compositores e urbanismo, escritores e publicidade, ingredientes adequados para fazer ferver o
caldeirão da criatividade”, adentrando-se a década seguinte com muitas experiências de arte na rua47 e
vários grupos que se dedicaram a certas temáticas e modos de fazer. (FONTOURA, 1986, p. 138-139).

Década de 1980 – a arte como símbolo da liberdade


Os anos 1980 comemoraram a abertura política brasileira (com a queda da Ditadura Militar) e a
abertura no sistema artístico internacional. O pós-modernismo, também chamado hipermodernismo,
é um novo conceito, “que corresponde a um tempo pós-industrial, ocupado pela cibernética, pela
informática e pelos computadores, correspondendo a uma aceleração do tempo e a um novo modo de
saber e de ser. [...] Ecletismo e pluralismo entram em cena”. Até mesmo a pintura volta a ter um lugar
entre as linguagens artísticas, deixando de ser obrigatório ‘ser moderno’ para ser respeitado no universo
da arte. Também no Paraná “se festejava um funeral: o de todas as proibições, tanto na política como
na arte”. (JUSTINO, 2010, p. 9-10).
Para Araujo, a partir de 1981, romper

uma nova geração mais inquieta e questionadora; mais preocupada com a reflexão do que com a beleza
estética; mais liberatória do inconsciente, caracterizando-se pela gestualidade ou pelo símbolo ou,
ainda, pela união dos dois e, observe-se, nem um pouco preocupada com o problema da marchandise,
mas, ao contrário, encontrando na Arte sua razão de ser. (2006, p. 148).

Na pintura, sobressaem Schwanke (com seu gestual selvagem); Osinski (com seu neoexpressionismo);
Esmanhotto (com seu silêncio); e Dumke (com seu mistério). Conforme Justino (2010, p. 10-11),
renderam-se também à pintura Susana Lobo, Rogério Dias, Guilmar Silva, Leila Pugnaloni, Jussara
Age, Teca Sandrini, Mohamed, Geraldo Leão, Beatriz Nocera, Bia Wouk, Zimmermann, Edilson
Viriato, Ingo Moosburger, Sérgio Kirdziej, Ricardo Carneiro, Sérgio Moura e Chromiec, entre outros.
Dedicam-se à escultura e outros suportes Carla Vendramini, José Antonio de Lima, Espedito Rocha,
Eliane Prolik, Cláudio Alvarez, Sônia Gutierrez, Hélio Leites, Elizabeth Titton, Lígia Borba; e ao corpo
Didonet Thomaz e Denise Bandeira, para citar apenas alguns. Pela cerâmica optam, entre outros, Alice
Yamamura, Lirdi Jorge e Marilia Diaz.

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Em meio a tantos artistas com tantas poéticas, a década de 1980 se caracterizou pelo surgimento de
vários coletivos: Convergência, Bicicleta, Moto-contínuo, Sensibilizar, Caixa de Bixo e PH4 (Curitiba);
O Gato Morreu (Maringá); Sucateando (Ponta Grossa); Grupo Atelier Letícia Faria (Londrina), entre
outros, “que tinham a característica comum de reagirem contra a apatia, a insolvência e a alienação da
cultura local”. Além do trabalho pessoal de cada um, “todos eram convocados a refletir e a fazer suas
propostas a partir de um tema comum, que podia se referir à ecologia, à cultura, às tradições nacionais
ou a grandes catástrofes”. (ARAUJO, 2006, p. 148).
Em 1980 foi criada a Casa da Gravura, no Solar do Barão, que permitiu o surgimento de uma
escola curitibana de gravura (ARAUJO, 2006, p. 160), com artistas como Ana Gonzales, Andréia Las,
Bernadette Panek, Carlos Henrique Túlio, Denise Roman, Guita Soifer, Juliane Fuganti, Raul Cruz,
Rosane Schlögel, Rossana Guimarães, Uiara Bartira e outros.
À fotografia dedicaram-se Eduardo Nascimento, de Antonina, e Rogério Ghomes, de Ponta Grossa
e Londrina. Ambos ampliaram-na com o uso de outros materiais e técnicas para sua criação artística.
São também da década de 1980 os primeiros graffiti48, em forma de estêncil49, realizados em
Curitiba por Alex Cabral, por muitos reconhecido como precursor do graffiti na cidade, e o desenho
de mangás, história em quadrinhos japonesa introduzida no Brasil por Claudio Seto (a arte está no
mangá).
No campo das instituições, podem-se citar a criação do Museu de Arte do Paraná, em 1986, e o
Museu de Arte Municipal, o Muma, em 1988, em Curitiba.
De modo geral, os artistas desta década, inconformados com o status quo, iniciaram um
movimento que se caracterizou por querer ‘acordar’ as pessoas, que consideravam apáticas, indiferentes
e acomodadas, para que atuassem de maneira produtiva em relação à cultura com a quebra de tradições,
ao ser humano com a busca de justiça social e contra os impactos da ação humana sobre o planeta,
entre outros temas.
Com ênfases que perpassavam a irreverência, a crítica, o humor, a política e o erotismo e um
comprometimento com a Arte Povera, com a sucata, em que o desprezado (o lixo) é levado à condição
de nobre (que será estudado adiante) e com toda a conotação social que essa atitude encerrou, além
da preocupação com o meio ambiente, esses grupos desenvolveram uma arte comprometida com seu
tempo. Performances, happenings e instalações eram levados às ruas, trazendo a arte ao transeunte e ao
público em geral. A preocupação com temas sociais e ecológicos permaneceu nas décadas seguintes.

A década de 1990 e os anos 2000 – além da arte nas galerias,


nos museus e na rua, uma nova arte de rua
Os anos 1990 e os anos 2000, tanto para Adalice Araújo quanto para Maria José Justino, foram
de consolidação da arte dos artistas mencionados e do surgimento de novos meios, como os fornecidos
pelas tecnologias digitais. Para Justino, trata-se de uma época “de maturidade, de afirmação das
linguagens as mais diversas, dos suportes, da arte corporal, das intervenções urbanas, das poéticas

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digitais”. (2010, p. 17). Surgiram, ainda, artistas como Newton Goto, Carina Weilde, Fábio Noronha,
Marcelo Conrado, Brugnera, Maria Cheung, Tânia Bloomfield, Octavio Camargo e muitos outros,
alguns envolvidos em novos coletivos, como o Couve-flor, o Interlux, o E/Ou etc. Muitos atuaram
essencialmente com intervenções urbanas, explorando a cidade como suporte da sua arte e os trajetos
como lugares da afetividade (a arte está na intervenção urbana).
Nessas décadas, foram criados, também, novos espaços museais e expositivos. Estes, porém, agora
expandidos pela atuação nos espaços urbanos de artistas vindos da academia e dos circuitos oficiais
da arte. Como mencionado, a ‘arte na rua’ (em oposição à ‘arte de rua’) oferece o ver e o participar de
performances, instalações e happenings a quem quiser, a quem estiver ali naquele momento, a quem
passar.
Já a arte multimídia invadiu os espaços da arte, tratando isoladamente ou combinando em maior
ou menor grau a fotografia, o vídeo, o cinema e a arte computacional. Trouxe um novo fazer artístico e
rompeu com velhas fronteiras da visualidade e das linguagens artísticas. Integraram-se à criação da arte
as novas tecnologias e as novas possibilidades (a arte está nas novas tecnologias).

A arte de rua – o modern graffiti

Graffiti (a arte está nas paredes, nos muros, nas portas de garagem)
O graffiti surgiu primeiramente em Filadélfia e depois em Nova Iorque, em finais dos anos 1960
e inícios dos 1970. Nasceu espontaneamente uma nova maneira de expressão, entre adolescentes e
jovens que riscavam as paredes com seus nomes e codinomes. Marcavam sua passagem, comunicavam-
-se entre si e apropriavam-se do espaço público. Logo esse fenômeno se espalharia por quase todo o
mundo. (PROSSER, 2009, p. 117-125).
Nos anos 1980 o graffiti foi trazido ao Brasil, mais especificamente a São Paulo, e nos anos 1990
chegou a Curitiba. É a arte de rua50, disseminada inicialmente nas periferias das grandes cidades e nos
segmentos de menor poder aquisitivo, mas que, depois, foi apropriada por adolescentes e jovens de
todas as idades e camadas sociais das cidades. Espontânea, inorgânica, propositalmente à margem dos
sistemas oficiais e institucionais da cultura, seus atores são adolescentes e jovens, em uma faixa etária
que vai, em geral, dos 10 aos 40 anos ou mais, em que os mais experientes ensinam os mais jovens.
Sua base é a assinatura de um apelido ou codinome (a tag), conhecido apenas pelos seus pares, o
que ajuda a manter o anonimato, já que a prática de riscar ou pintar suportes do meio ambiente urbano
é ilegal se não for autorizada. Nos EUA, na origem do movimento, essas assinaturas em pequenas
dimensões e em apenas uma linha, geralmente feitas com canetões pretos (posteriormente com tinta
em spray) foram chamadas de graffiti, graças à sua semelhança com as pinturas rupestres. No Brasil,
essas mesmas assinaturas receberam o nome de picho ou pichação.
Ainda nos EUA, as assinaturas gradualmente ganharam em tamanho e criatividade no uso das
letras, que passaram a ser pintadas em duas dimensões (um contorno preenchido), os throw-ups51 e as

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bubble-letters52. Mais tarde, as letras dos codinomes receberam flechas, estrelas, coroas e outros signos, e
um tratamento cada vez mais complexo, até chegarem no wild-style53, cheio de linhas, flechas, ângulos,
prolongamentos e entrelaçamentos, tornando-se muitas vezes difícil ler o que está escrito. Ao mesmo
tempo, alguns escritores de graffiti (como preferem ser chamados) passaram a grafar suas assinaturas
em três dimensões (graffiti 3D) e outros adotaram personagens como sua marca. Assim, o graffiti é
composto essencialmente por assinaturas e personagens. (PROSSER, 2010, p. 41-52). Há quem faça
distinções entre o simples throw-up, o wild-style e os personagens, considerando esses dois últimos
como graffiti-arte, diferenciação que, no mundo dos artistas de rua, não é bem vista, pois consideram
arte desde a mais simples pichação até o graffiti mais elaborado. Outras técnicas adotadas por esses
novos interventores urbanos são o estêncil, o lambe-lambe54 e o sticker55.
Entre os mais importantes artistas de rua de Curitiba, na atualidade, estão Café, Siel, PauloAuma,
Cimples, Dose, Thiago Syen, Cínico, Aus, Galvão, Heal, Bolacha, Case, Veio, Noodle, Japen, Destak,
Amen, Iago, Ser, Conde, Mães, Porquê e outros. Sua arte pode ser vista por toda a cidade. Mas é no
bairro Sítio Cercado que está a maior galeria a céu aberto de arte urbana da cidade, pois, além das
muitas paredes e muros disponíveis, as pessoas dessa parte da cidade valorizam e incentivam essa arte.
Outras cidades são igualmente grandes polos da arte de rua no Paraná: em Ponta Grossa atuam
Farinha e Leboard; em Londrina, Carão, Hugo e Napa; em Maringá, Skor; em Cianorte, Tody; em
Guarapuava, Aaron; em União da Vitória, Tiago, além de muitos outros grandes artistas.
Para Paulo Auma, o graffiti não é um estilo de arte: é um estilo de vida, uma cultura. Por isso,
graffiti é somente o que se faz na rua, entre amigos, espontaneamente. Todo o restante é arte na rua ou
são painéis no estilo do graffiti. Mesmo ao se pretender trazer a arte de rua para dentro da galeria, ali ela
não é mais graffiti: é uma pintura no estilo do graffiti. Na sua essência, o graffiti é uma arte que ocorre
nos espaços urbanos, é democrática porque está próxima das pessoas e do público passante, para a qual
não se precisa pagar ingresso: está ao alcance de todos e é feita para todos.
Muitos dos artistas de rua que começaram a pichar ainda na adolescência, ‘aprimoraram seu
traço’, como descrevem sua trajetória, e acabaram ingressando em cursos superiores afins, como artes
visuais, publicidade, design gráfico e arquitetura, profissionalizando-se. Mas, ao voltarem ao pintar na
rua, muitas vezes sentem as mesmas emoções de quando pintavam sem autorização, colocando-se em
situação de risco.
Porém, o aspecto mais importante da arte de rua é o seu lema: ‘Atitude!’. Ela chama a atenção para
a tomada de posição e de ação sobre diversos temas importantes para a vida social e ambiental.

Arte de rua e meio ambiente (a arte e a crítica)


Na sua tese de doutorado, Prosser (2009) realizou uma análise temática de conteúdo56 do graffiti em
Curitiba. Queria compreender a arte de rua sob a perspectiva dos seus autores e em suas relações com a
cidade, o meio ambiente e a sociedade, bem como os significados que ela expressa. Foram examinados
o discurso desses atores, as representações veiculadas na sua arte e os conflitos socioambientais que ela

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aponta. Esta análise foi realizada a partir de 5 mil fotografias registradas pela autora entre 2004 e 2009,
aleatoriamente, nos seus caminhos pela cidade.
Prosser (2009) notou, ao lado de graffiti que expressavam crítica, protesto e agressão, temas que
diziam respeito à sociabilidade, ao humor, aos relacionamentos. Para ter uma ideia do peso de cada
um desses grupos no universo dessas manifestações, foi necessário ir do particular ao geral: primeiro,
avaliar cada intervenção sob a ótica de uma unidade de sentido – cada imagem foi classificada apenas
uma vez, de acordo com o significado predominante. As unidades de sentido foram agrupadas em
categorias, que, por sua vez, confirmaram a existência de três grandes grupos temáticos. A exposição a
seguir faz o caminho inverso: parte da totalidade para as partes:
• O Grupo Temático I representa 45% da amostra (2.228 intervenções). Apresenta o graffiti como
expressão de angústia, protesto e crítica social, política, ambiental e urbana. Mostra o escritor
de graffiti em sua relação com o meio ambiente, a cidade e a sociedade. As intervenções deste
grupo revelam angústia, protesto, reivindicação, crítica, agressividade ou ironia. Demonstram
muitas vezes indignação e inconformismo; outras vezes dor e sofrimento; e outras, ainda,
propostas e sugestões para mudanças, como é o caso das questões ambientais e urbanas ou das
reivindicações por paz.
• O Grupo Temático II compõe 43% das intervenções (2.155 imagens). Mostra o graffiti como
manifestação identitária, lúdica e da sociabilidade. Trata-se da maneira como o artista de rua
se coloca no espaço urbano e como percebe a si próprio e à sua arte. Sobressaem elementos
como humor, identidade, jogo e atitude, num clima de convívio. A cidade torna-se seu lugar
do encontro e da comunicação, do riso e do compartilhar.
• O Grupo Temático III, com 12% do total (617 imagens), traz o graffiti como expressão da
afetividade e da sexualidade, refere-se à imagem da mulher na intervenção urbana. Discute
componentes das estruturas sociais e retrata papéis representados pela mulher e pelo homem
nas suas relações. (PROSSER, 2009, p. 180-181).

Chama a atenção o fato de que a maior categoria encontrada e que está no Grupo I se refere à
concepção e à crítica sobre o meio ambiente natural e urbano, com 14% de todas as imagens analisadas.
Isso demonstra a inquietação do artista de rua com a preservação do meio ambiente e com a qualidade
de vida na cidade e no planeta.
Ao comparar estes resultados com os do estudo de Imaguire Jr. (1983, p. 26-45), que examinou
a pichação em Curitiba de 1979 a 1982, nota-se que o universo de representações dos artistas de rua
tornou mais complexo. As preocupações dos escritores de graffiti da época, apesar de quase coincidirem
com as dos atuais, adquiriram, nesses mais de trinta anos, novas ênfases. O exemplo mais claro disso
é a questão do meio ambiente, que na análise anterior constituía cerca de 1% da amostra (a menor
categoria) e no estudo atual atinge 14% (a maior). De fato, são muitas as intervenções em que se
percebe a mensagem: o planeta pede socorro! Isso mostra não só as mudanças ocorridas nas prioridades
dos nossos jovens, mas o sentido de urgência que essa questão tem. (PROSSER, 2009, p. 398).

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Prosser (2009, p. 396-398) concluiu, nas cerca de 400 páginas que compõem seu estudo,
que o artista de rua é profundamente comprometido com o meio ambiente natural, a cidade e a
sociedade, denunciando riscos, vulnerabilidades e injustiças nelas existentes; que busca transformar a
visão da sociedade acomodada e consumista; que a arte de rua é uma manifestação política, um fator
identitário e uma expressão constitutiva do ambiente natural e urbano; e que a sua prática e a cidade
são intimamente ligadas, transformando-se o espaço em um lugar significativo. É uma arte que vai do
inconformismo à chamada para a ação, da irreverência à revolta, do humor à crítica, da denúncia à
tomada de consciência e da brincadeira ao comprometimento.
Ao perceber que o meio ambiente e a natureza são a principal preocupação do jovem de hoje,
voltamos às questões iniciais deste trabalho. A arte não apenas registra a beleza e a pujança do meio
ambiente natural, mas denuncia os perigos que corremos se não cuidarmos dele, preservando-o e
recuperando-o. Como querem os jovens escritores de graffiti: Vamos tomar uma atitude agora mesmo
para ajudar a salvar nosso habitat!

TRÊS PERSONAGENS ÚNICOS NA ARTE PARANAENSE


QUE FALAM DA NATUREZA E DE COMO CUIDAR
DELA: O GRALHA, HÉLIO LEITES E EFIGÊNIA ROLIM

O Gralha

Um dos primeiros super-heróis brasileiros (a arte está no gibi)


No início da década de 1940, na pacata e tradicional Curitiba, Francisco Iwersen criou um
dos primeiros super-heróis brasileiros: o Capitão Gralha, fugitivo de um planeta de homens-
-pássaros, “regido pelo terrível Thagos, o usurpador”. O Capitão Gralha “encontrou refúgio na Terra,
onde utilizava seus poderes alienígenas no combate ao crime no Paraná”. (O GRALHA, 2018). O
personagem foi inspirado na gralha azul, pássaro típico da região e que ‘esconde’ o pinhão na terra, para
comê-lo depois, contribuindo para sua germinação e essencial para a renovação das matas de araucárias.
O Capitão Gralha teve vida breve, pois foram lançados apenas dois números de suas aventuras.
Seu ‘retorno’ ocorreu em outubro de 1997, em comemoração aos 15 anos da Gibiteca de Curitiba,
criada por Key Imaguire. “Para confeccionar a revista, foram convidados vários quadrinistas da cidade”,
que decidiram homenagear aquele ícone esquecido dos quadrinhos curitibanos, o Capitão Gralha.
Criaram uma versão atualizada do super-herói: Alessandro Dutra bolou o visual; Gian Danton e José
Aguiar, a história; Antonio Eder, Luciano Lagares, TakoX, Edson Kohatsu, Augusto Freitas, Dutra e
Aguiar encarregaram-se da arte, enquanto Nilson Müller tratou de preparar a capa da edição. E assim
foram editados vários números. (AGUIAR, 2001, p. 3-4).

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Agora, descendente do Capitão Gralha original, o herói iniciante convive com as agruras do
combate às injustiças e os dilemas da adolescência numa metrópole que é a Curitiba do futuro. Os
personagens são inspirados em pessoas ou ícones locais. Alguns o são na natureza, como o próprio
Capitão Gralha, a Araucária e o pinhão; outros em pessoas e aspectos típicos da paisagem urbana local,
como a Polaquinha, o Café Expresso e o Homem Lambrequim (como mencionado, os lambrequins
compunham as fachadas das casas dos colonos poloneses radicados no Paraná), entre outros.

A araucária (a lei de preservação)


Assim, mesmo em lugares impensáveis como em um gibi, estão presentes símbolos que fazem
parte não apenas da paisagem natural do Paraná, mas da identidade do paranaense, como a gralha azul,
a araucária e o pinhão. A araucária, e consequentemente os outros dois, é preservada por uma legislação
severa. Por ter uma madeira muito usada para o fabrico de casas, móveis, portas e outros produtos,
foram cortadas tantas destas árvores que a espécie estava em perigo de extinção.
Por isso, em 1995, foi assinada a Lei n.º 11054, que nos seus primeiros artigos diz:

Art. 1.º As florestas existentes no território paranaense e as demais formas de vegetação, reconhecidas
de utilidade às terras que revestem, são bens de interesse comum a todos os habitantes do Estado,
exercendo-se os direitos de propriedade com as limitações que a legislação em geral e especialmente
esta Lei Florestal do Estado estabelece.
Art. 2.º A atividade florestal deverá assegurar, além de seus objetivos socioeconômicos, a manutenção
da qualidade de vida e o equilíbrio ecológico.
Art. 11. Qualquer árvore poderá ser declarada imune de corte por ato do poder público, ouvida a
autoridade florestal, por motivo de sua localização, raridade, beleza, importância científica ou interesse
cultural e histórico. (PARANÁ, 1995).

O IBAMA (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente), órgão governamental do Ministério do


Meio Ambiente, fiscaliza com rigor o corte de árvores e a modificação dos biomas e ecossistemas,
inclusive mediante satélites e drones. Desse modo, Araucárias, outras espécies arbóreas e outros tipos
de vegetação, tanto no ambiente natural quanto nas cidades, estão protegidos e seu número e área
voltaram a aumentar. Certamente, as multas pesadas para quem corta uma delas ajudaram a preservar
as árvores que restaram e a recuperar parte do que se perdeu!

Hélio Leites

Um minimuseu educativo (a arte está no botão, na caixa de fósforos,


no boné)
Hélio Leites nasceu na Lapa, em 1951. Para Paulo Leminski (1944-1989), um dos mais importantes
poetas do estado, “Hélio Leites é o significador de insignificâncias”, se ocupa com as “miudezas da

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vida”. (BEM PARANÁ, 2017). É poeta, performer e bottom-maker. Trabalha com pequenos objetos,
especialmente botões, mas também com caixinhas de fósforo, rolhas, latas, tampinhas de garrafas,
palitos de sorvete, retrós de linha, madeira, restos de material entalhado, embalagens vazias etc., que,
em suas mãos, se transformam em personagens que contam histórias, prendendo a atenção de crianças
e adultos. Ele conta: “Comecei a trabalhar com esses materiais no dia em que eu descobri o que havia
sobrado pra mim. Mas sempre tive interesse por esse ‘lixo’”. (PARANÁ, 2019).
É possível encontrá-lo aos domingos de manhã, em uma barraca na Feirinha do Largo da Ordem,
em Curitiba, no setor histórico. Seu espaço é mais que um balcão para expor suas criações: é “um
pequeno palco de onde é possível ouvir histórias e fábulas a respeito das pequenas peças que produz”.
(BEM PARANÁ, 2017). “Eu faço meus inutensílios, na verdade inutencélios, porque eu me chamo
Hélio”. (ARTE DO BRASIL, 2019).
Miniaturista, suas criações falam de sentimentos, de ecologia, “ensinam literatura, discutem
valores, educam, emocionam e criam laços entre as pessoas, por meio de objetos feitos a partir de lixo”,
que ele transforma em objetos com novos sentidos, sempre com humor. “É possível conhecer a história
da humanidade nos botões pendurados, chamados carinhosamente por Leites de parangohélicos”57. Em
um dos espetáculos “manipula bonequinhos que ficam na aba do seu boné e contam, por exemplo, a
história do descobrimento do Brasil”. (PARANÁ, 2019).
Outro projeto de Hélio é a sua galeria ambulante, que fundou em 1984: o Museu Casa do Botão,
sem prédio fixo e portátil, pois cabe em uma mala e o acompanha quando vai a escolas, praças, feiras
e a outros lugares. Suas histórias carregam grande potencial educativo. Mínimos, por exemplo, retrata,
nas suas palavras, “a história de um artesão lutando com caixinhas de fósforo, palitos de sorvete e outras
miudezas, tentando consertar o jeito do mundo se enxergar e se aceitar”. (PARANÁ, 2019).
Além disso, se envolveu com várias entidades, a maioria criada por ele, e que mostram como
valoriza as coisas simples e pequenas da vida, consideradas inúteis pela maioria das pessoas: criou o
Assintão (Associação Internacional dos Colecionadores de Botão), é secretário geral do Fiu Fiuuu Sport
Club (já gravou mais de 100 mil assobios de todas as partes do Brasil e do mundo), é secretário geral
da Associação Internacional dos Kinderovistas, curador dos museus dos Óculos, da Caixa de Fósforos,
do Lápis e do Minipresépio, também respondendo pela coordenação do Espaço Lilituc – Galeria de
Miniaturas, entre outras. (ACERVO OLHO LATINO, 2018).
Em síntese, como aponta Marília Diaz, trabalha com “coisas que estiveram sempre ali – figuras
extremamente presentes, mas pouco sentidas e contempladas”. (2010, p. 7). Transforma pequenos
objetos insignificantes e descartados (lixo) em material significativo e educativo, aspecto que transparece
especialmente nas histórias que se ocupam com questões sociais e ambientais que conta para as crianças.
Vemos, assim, como por meio da arte se pode educar e contribuir para uma vida melhor, mais
preocupada com as questões da sociabilidade e da natureza e com a sustentabilidade da vida. O fato de
Leites fazer arte com sucata remete à questão do desperdício, do consumo desenfreado, da reciclagem
de materiais, contribuindo para a conscientização de que precisamos cuidar do nosso planeta. Ele
mostra que os recursos da natureza são finitos e que o lixo pode ser reutilizável e ressignificado. Muitos

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artistas no mundo todo trabalham com sucata com este objetivo. Em outras palavras, reutilizar e
reciclar é preciso!

Efigênia Rolim

A rainha do papel de bala (a arte está no papel de balas, nas roupas, no lixo)
A sucata é também a matéria-prima da arte de Efigênia Rolim. Nascida no interior de Minas
Gerais, em 1931, veio com o marido e seus nove filhos trabalhar na lavoura do café, no norte do
Paraná, como boia-fria, até que a geada dizimou os cafezais, nos anos 1960. Com a família, veio para
Curitiba, sem nada, onde foi moradora de rua e passou por muita pobreza. Efigênia, uma sobrevivente,
tornou-se artista plástica, poeta e contadora de histórias. Mesmo “sem tecido nem máquina de costura,
salvou a si e a sua prole confeccionando roupas de papel”. (LOPES apud PINHEIRO, 2012, p. 13).
Sua matéria-prima? Papéis de bala, coloridos e esvoaçantes, que achava pelas ruas, além de outros
materiais colhidos no lixo.
Efigênia conta que, no início da década de 1990, ela andava pela Rua XV de Novembro, quando
foi surpreendida por uma lufada de vento e um redemoinho, que fizeram voar para ela papéis de bala
que estavam jogados no chão. Um deles a encantou especialmente: verde, reluzente, que ela achou
que era uma pedra preciosa. Dele fez uma flor. Então, com pouco mais de 60 anos, gostou tanto de
transformar aqueles papéis brilhantes e coloridos em figuras que nasciam de sua imaginação, que logo
procurou um suporte para suas criações. Encontrou uma sandália havaiana, também largada na rua.
Com a sandália e outros papéis, criou sua primeira ‘árvore de sonhos’. “Ali nascia, como ela mesma
gosta de contar, rindo, ‘a rainha do papel de bala pé de chinelo’, que ganharia o mundo com suas
criações e sua personalidade singular”. Essa história é “uma entre tantas que se entrelaçam na verdadeira
epopeia que tem sido a vida da artista”. (CAMARGO, 2012). Nesses aproximadamente 25 anos,
Efigênia se transformou em uma referência no universo da arte popular no Brasil.
Foi catando o que tinha sido descartado,

juntando uma peça na outra, que novas peças foram surgindo. Brinquedos destruídos ganharam
outro significado. Depois de transformadas, sombrinhas desmontadas viraram saias rodadas. [...] Fios,
tampas de plástico, miçangas, retalhos, bijuterias, botões, fivelas, pregos, tudo virou acessório. [...] As
girafas, cavalos, reis, rainhas, anjos, árvores, pássaros e trajes, que saem da sua fábrica de sonhos, falam
e cantam – cada uma tem sua história. (PINHEIRO, 2012, p. 61).

Mas sua maior preocupação é com o meio ambiente. Para Adélia Lopes, “a estética de Efigênia é a
da fome. Quanta ironia: seu design valeu-se de um papel que embala caramelos e chocolates. E ela deu
um destino fashion aos lixos de Curitiba!”. (apud PINHEIRO, 2012, p. 13). Além de vestidos, saias,
chapéus e adornos, Efigênia teceu com seus papéis de bala bonecas, bichos de brinquedo e outros objetos.
Sempre coloridos, sempre em meio aos seus poemas e na sua simplicidade. Sua risada e sua dança ecoam
aos domingos no Largo da Ordem em Curitiba, onde vende suas peças, na Feirinha. Obras suas foram

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compradas também por museus e colecionadores de várias cidades mundo afora. Entre outros prêmios,
recebeu das mãos do então Ministro da Cultura, Gilberto Gil, a Comenda do Mérito Cultural, além de
ser a personagem central de vários filmes, documentários, livros, teses e dissertações.

Efigênia, a natureza e as crianças (uma educadora)


Essa figurinha pequena e franzina, de aspecto frágil, “se autodenomina ‘guardiã do planeta’”. Para
Dinah Ribas Pinheiro, “tem toda legitimidade para isso ao utilizar na sua produção somente material
refugado pela sociedade de consumo”. (2012, p. 22).
Depois de considerar o lixo como o maior bandido do planeta e de saber que é o próprio homem
que comete esse crime contra a natureza, ela resolveu criar novos personagens, mais pesados e trágicos,
feitos com massa do isopor – um material que, segundo ela, é a maior desgraça do planeta, porque não
se decompõe. São figuras que ela chama de carrancas, seres imaginários.
Além de suas histórias e poemas, Efigênia tem também canções ao som da viola. Nelas fala dos
seres vivos “que estão sob ameaça de um mundo inclinado à destruição e ao desperdício. [...] Sua
inquietação, a certeza de sua missão salvacionista, se resume na frase: ‘faço paz, não faço a guerra: estou
defendendo o planeta terra’”. (VALDECK apud PINHEIRO, 2012, p. 81).
Efigênia gosta muito de conversar e de se ocupar com crianças, seja nas praças ou nas escolas.
Ela “sempre teve certeza de que as crianças de todas as classes sociais, na sua inocência, têm todas as
ferramentas para ajudar na transformação do mundo”. Árvores, flores e animais são recorrentes das
suas obras. “O fato de ter nascido no dia 21 de setembro, no Dia da Árvore e prenúncio da primavera,
reforça ainda mais a sua vocação para interagir com a biodiversidade”, como fica claro em muitas de
suas exposições, como Árvore de Mil Poemas, e nas diversas oficinas de arte que ministra. O que
mais gosta é “ensinar para as crianças o reaproveitamento do material descartado e sua transmutação
em folhas, troncos, galhos, caules e flores”. O resultado são mais florestas, plenas de verde, oxigênio e
poesia. (PINHEIRO, 2012, p. 81).
Para Efigênia, as pessoas se preocupam com a riqueza, mas não escutam a voz do planeta. (ROLIM,
2018). Essa é a maneira que Efigênia encontrou para nos alertar e nos mostrar caminhos que podem
nos ajudar a cuidar do planeta.

TRÊS MOVIMENTOS ARTÍSTICOS QUE FALAM


DA ECOLOGIA

Arte Povera – arte pobre (arte feita do lixo, da sucata)


Como mencionado, são muitos os artistas que desde a segunda metade do século XX fizeram sua
arte a partir do lixo, da sucata. O termo Arte Povera – em português, arte pobre – foi usado pela primeira

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vez na Itália, em 1967, para caracterizar a exposição de um grupo de artistas que queria “dessacralizar
a arte [antes considerada nobre] e aproximá-la da vida”. (DALCOL, 2014). O movimento nasceu em
meio a grandes mudanças sociais, conflitos entre gerações e tendências radicais de emancipação. Havia
no ar a vontade de uma mudança revolucionária e a ideia de uma relação de pertencimento à natureza.
Esses artistas criticavam a tradição, a riqueza e o convencional, a sociedade de consumo, a
comercialização da obra de arte, o artificial, a sociedade de consumo etc. Por isso, usavam materiais
simples e naturais (sucatas, papel, vegetal, terra, metal, comida, sementes, areia, pedra, tecido
etc.), valorizando materiais ‘pobres e marginais’. Desafiavam os limites e passaram a usar materiais
descartáveis, ‘sem valor’ (o próprio lixo), portanto, ‘pobres’. Criaram obras que misturam técnicas
e elementos, instalações e intervenções. Trabalhavam “em aberta polêmica com a prática tradicional
da arte, da qual rejeitam técnicas e suportes. Descobrem as potencialidades expressivas dos materiais
'pobres', como terra, madeira, ferro, panos, plástico, refugos industriais”. (MARTINS, 2015).
Os elementos usados, ao serem combinados com outros, perdiam seu sentido e sua função
anteriores para assumir novos significados. Essa tendência foi assimilada por outros movimentos e
permeiam a arte até a atualidade, agora com outros sentidos. Um desses temas é a sustentabilidade do
mundo em que vivemos, bem como o fato de que a arte pode ser feita com materiais baratos e fáceis
de encontrar, portanto acessíveis a todos. Pode ser elaborada a partir de coisas que estão ao nosso redor,
no nosso dia a dia, descartadas e para as quais muitas vezes não damos a menor importância.
Além disso, a arte feita da sucata e do reaproveitamento de objetos que já não nos são úteis é uma
maneira de chamar a atenção para sua reutilização. Cada vez mais, essa atitude atinge outras esferas da
nossa vida. São inúmeras as pessoas comuns, os artesãos ou as cooperativas que reutilizam materiais
recicláveis para uso próprio ou para a venda de suas criações. Desse modo, contribuem para que menos
matéria-prima seja retirada da natureza e menos energia seja usada para o fabrico de muitos produtos.
Também fazem com que menos lixo seja jogado no entorno, o qual iria parar, quase sempre, nos rios,
campos, matas, mares e oceanos.
Ao lado da busca por possibilitar a conscientização de que é possível produzir menos lixo e de que
rejeitos jogados no chão – seja na grama, no mato, na praia ou num ‘cantinho’ qualquer da cidade –
acarretam a poluição do meio ambiente e a impossibilidade da sustentabilidade da vida, seja animal ou
vegetal. Mesmo os aterros sanitários precisam ter um aproveitamento o mais adequado possível, pois
têm uma vida útil determinada e o espaço físico para a criação de novos locais para o descarte do lixo
está cada vez menor. As cidades estão crescendo e terras férteis deveriam servir à criação ou manutenção
de áreas verdes ou à produção de alimentos, mesmo que seja doméstica, e não a novos lixões ou aterros.

Reutilizar ou reciclar?
A grande produção de lixo nos vários setores da sociedade é um dos maiores problemas ambientais da
atualidade, pois, se não tiver uma destinação apropriada, além de degradar o solo, a água e o ar, favorece
a transmissão de doenças. Tanto a reutilização quanto a reciclagem diminuem o acúmulo de rejeitos, o
desperdício de materiais e a exploração desenfreada de recursos naturais (que são finitos e não renováveis).

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Até pouco tempo, mesmo nos grandes centros urbanos, o lixo era composto basicamente de restos
de alimentos. Com o crescimento acelerado das metrópoles e do consumo de produtos industrializados
e com o surgimento dos produtos descartáveis, os resíduos sólidos aumentaram excessivamente e se
diversificaram. (JÓIA; SILVA, 2004, p. 1).
Por isso é tão importante separar o lixo orgânico do reciclável (tirando o excesso de sujeira dele),
seja em casa, seja na escola, no trabalho ou em qualquer outro ambiente. Reutilizar e reciclar não apenas
reduz o volume de rejeitos, mas transforma os materiais recicláveis em matéria-prima novamente.
Separar o lixo ajuda, ainda, a criar uma consciência ambiental nas pessoas e contribui para a redução
da degradação ambiental.
Cada brasileiro gera, diariamente, entre 500 gramas e 1 quilo de lixo. Em algumas cidades, metade
dos rejeitos é jogada em rios, terrenos baldios ou no mar, o que mata plantas e animais, destrói a vida
nos muitos ecossistemas. A primeira lição que isso nos mostra é que nunca – NUNCA! – devemos jogar
lixo fora das lixeiras. A segunda é que podemos reutilizá-lo ou reciclá-lo. De todo o lixo produzido no
país, aproximadamente 40% tem origem em residências. Por isso, é preciso começar nas nossas casas.
E de todo o lixo das casas, cerca de 35% é orgânico e pode ser transformado em adubo. O restante,
se bem separado e encaminhado, pode ser reciclado, isto é, transformado em novos objetos e produtos.
Separar papel, plástico, vidro, metal e resíduos orgânicos, além de produtos eletrônicos, pilhas,
lâmpadas, óleo de cozinha e remédios, e depositá-los nos lugares apropriados que os encaminham para
a reciclagem ou para o descarte adequado, ajuda a aumentar a vida dos aterros sanitários e a diminuir a
poluição do ar, do solo e dos lençóis freáticos. Se cada um separar o lixo e lhe der o destino certo estará
contribuindo para a preservação ambiental, o desenvolvimento sustentável e a manutenção da vida no
nosso planeta. Novamente, isso depende de cada um de nós!
Scarlato (1992) enfatiza que muitos produtos levam anos para se decompor: papel comum, 2-4
semanas; vidro, 4.000 anos; tecidos, 100-400 anos; ponta de cigarro, 10-20 anos; couro, 30 anos;
embalagem de plástico: 30-40 anos; chicletes: 5 anos; lata de alumínio, 80-100 anos; e o isopor não
se decompõe. (FROSIO, 2014). Por isso é tão importante abordar os temas do lixo, da reutilização e
da reciclagem na escola. É preciso criar projetos, oportunidades e debates nos quais os alunos possam
desenvolver a consciência de que, ao jogar o lixo nos lugares certos, separá-lo e reciclá-lo contribuem
para o desenvolvimento sustentável e para a melhoria da qualidade de vida no mundo em que vivemos.
Mas sempre é preciso começar pela nossa casa, ‘pela nossa aldeia’! E a arte feita de sucata é um ótimo
meio para essa conscientização.

Arte ecológica (arte na natureza ou a partir de elementos


naturais)
A arte ecológica é tanto a arte que trata de temas ecológicos quanto a que usa como matéria-prima
terra, areia, galhos, flores, folhas, pedras, conchas, penas e outros materiais orgânicos e inorgânicos
encontrados na natureza. Outro tipo do que chamamos de arte ecológica é a que usa a paisagem como
suporte, a Land Art, que veremos adiante.

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A arte ecológica que usa materiais naturais como elemento expressivo chama a atenção para a
fragilidade da natureza, para a preservação do meio ambiente. Ela aponta para a simplicidade e a
beleza estética do natural, para os diversos ecossistemas, para o fluxo da natureza com seus ciclos
e para a fortuidade da vida, já que seus materiais são perecíveis. O registro desta arte é geralmente
fotográfico ou fílmico, para que não se perca. Trata-se de um “movimento global cuja filosofia se baseia
na proteção do meio ambiente, na conservação da flora e da fauna e na coexistência harmoniosa entre
seres humanos e natureza”. (BIANCO, 1997).
São pinturas, esculturas, instalações e colagens feitas com elementos colhidos diretamente do meio
ambiente natural, às vezes, combinados com outros objetos do cotidiano, reutilizados. No trabalho de
muitos destes artistas, o ambiente natural, a flora e a fauna são tratadas com certo caráter sagrado.
Outros fazem uma crítica à exploração desenfreada do petróleo, do carvão e de outros minerais com
a poluição ambiental que dela decorre. Outros, ainda, querem ‘trazer’ a natureza para dentro da vida
urbana, chamando nossa atenção para o quanto esquecemos dela, que fervilha de vida e generosidade,
ao mesmo tempo que pede socorro!

Land Art – a arte da terra


Outro exemplo de arte ecológica é a Land Art, ou Arte da Terra, que discute o lugar apropriado
para a arte, que ocorria, antes, dentro do museu, da escola e da galeria. Na busca de aproximação da
arte com a vida, com o cotidiano ou com o território vivido, ela intervém na paisagem, modifica o
território, dando-lhe novos significados. A maioria dos artistas que faz esse tipo de arte se preocupa
com a crítica ambiental, social ou cultural, enfatizando a responsabilidade do ser humano perante o
meio ambiente, a igualdade entre as pessoas na alteridade e suas relações com a terra-mãe.
A paisagem deixa de ser apenas representada sobre um suporte qualquer, para ser, ela própria,
o lugar onde a arte acontece. Ao mesmo tempo que a Land Art transforma a natureza, é por ela
modificada, já que está sujeita à ação da chuva, do sol, dos ventos etc. “Os artistas que criavam dentro
do contexto da Land Art buscavam na grandiosidade da natureza a reflexão sobre o fazer artístico sempre
completado pelo tempo e pelo espaço em que se inseria”. (COSTA, 2004). Tratava-se de questionar
a “institucionalização da arte pelos museus” e discutir “o espaço de fora, em oposição aos espaços de
dentro”. Assim, os artistas ocuparam o espaço externo, que muitas vezes coincidia com o espaço da
natureza. (COSTA, 2004). Essas obras também envolvem o seu entorno e são mostradas mediante
fotos e filmes, já que cada experiência é única e de grandes dimensões.
E mais: para eles, a natureza não é apenas o meio e o lugar em que se dá a experimentação artística,
mas é “o verdadeiro agente da obra de arte, pois, com o tempo (erosão, chuva, estações), ela acaba
por modificar o caráter primeiro da proposta de trabalho. Ao operar com o tempo, tais proposições
rompem com a noção de perenidade”. (CAETANO, 2013).
Essa ‘volta à natureza e aos espaços primordiais’ é, também, uma reação às guerras, à indústria
bélica, ao plástico, à televisão, ao aumento do consumo, ao descarte, ao desperdício e à poluição. É

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uma crítica ao ser humano, desconectado da natureza. A Land Art busca uma nova relação entre o ser
humano e o meio ambiente natural.

O MEIO AMBIENTE E A 32.ª BIENAL DE SÃO PAULO,


2016
Para Marcelo Calero, “é por meio da arte que logramos romper a indiferença, estimular a
reflexão e o espírito crítico”. (apud VOLZ; REBOUÇAS, 2016). Essa é a primeira frase do catálogo
da 32.a Bienal de São Paulo, realizada em 2016. O tema da Bienal, ‘Incerteza viva’, ligado às questões
mais urgentes do nosso planeta, partiu, das incertezas que parecem “controlar os modos pelos quais
entendemos ou não nosso modo de estar no mundo hoje”. Entre elas estão a degradação ambiental,
as ameaças à diversificação cultural, o aquecimento global, alterações climáticas e catástrofes
naturais. Outros temas da Bienal referem-se à alteridade, à violência, às ameaças a comunidades e à
diversidade cultural, aos colapsos econômicos e políticos, à vida devastada por atrocidades, doenças
e fome (VOLZ; REBOUÇAS, 2016, p. 21-24), mas a maior parte dos trabalhos apresentados,
sejam instalações, sejam performances, pinturas, esculturas ou vídeos gira em torno das questões
ambientais.
Para Volz, mesmo que as predições de eventos futuros no globo tenham contradições, pensadores
de todos os campos clamam por ação imediata e para a conscientização dos desafios que enfrentamos.
A concepção de que a natureza é apenas um recurso natural sem valor, a ser simplesmente explorado,
domina o mundo moderno. Aumenta, assim, a incerteza quanto à sustentabilidade da vida, já que o
ser humano está destruindo progressivamente seu próprio habitat.
Uma das obras apresentadas é de Carolina Caycedo, artista inglesa que vive na Colômbia e nos
EUA. Ela investiga contextos, grupos e comunidades afetadas por projetos desenvolvimentistas, como
a construção de barragens e suas consequências na vida das comunidades ribeirinhas, entre outros
temas. “Como empreendimentos de infraestrutura, as barragens e hidrelétricas surgem como promessa
de progresso” (ZUKER apud VOLZ; REBOUÇAS, 2016, p. 116-119) e geração de energia, mas
submergem culturas, tradições, moradias, terras férteis e inúmeros ecossistemas e seres vivos. Muitos
dos desabrigados viviam da pesca dos rios que antes corriam ali. A pesquisa de Caycedo para esta Bienal,
‘A Gente Rio’, percorre a Usina Hidrelétrica de Itaipu, a segunda maior do mundo; a de Belo Monte,
no Rio Xingu, cujo processo de licenciamento ambiental apresenta “uma série de irregularidades e
profunda resistência indígena”; a represa de Bento Rodrigues, que se rompeu causando um desastre
ambiental sem precedentes; e os sistemas hídricos do Vale da Ribeira, “onde as comunidades caiçaras,
quilombolas e indígenas resistem à construção de barragens há anos”. (ZUKER apud VOLZ;
REBOUÇAS, 2016, p. 116-119). Seu trabalho chama a atenção para o impacto causado por essas
imensas alterações da natureza pelo homem e pela destruição que promovem.

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São muitas as obras apresentadas nesta Bienal que falam sobre o meio ambiente, a vulnerabilidade,
os riscos a que o comportamento humano está nos levando e a necessidade de cada um se engajar na
manutenção da sustentabilidade da vida no nosso planeta. Ao escolher e selecionar tantos trabalhos
referentes às questões ambientais, o evento mostra mais uma vez quanto esses problemas são urgentes
e quanto é preciso que cada um se engaje e participe da tarefa de cuidar do nosso habitat.
Apesar de o tema Incerteza Viva adotado pelos curadores da Bienal não se restringir apenas a
questões ambientais, a maioria dos mais de oitenta artistas que participaram do evento abordou esse
assunto, mostrando, revelando, denunciando e nos chamando à ação. Esta é a função da arte: fazer
as pessoas refletirem por meio da tomada de consciência e, assim, fazê-las tomar uma atitude, como
sugere a arte de rua, com seu lema ‘Atitude!’.

UM MOSAICO ABERTO
Quanto aos artistas e movimentos, atualmente, são tantas as questões abordadas na arte, tantos os
estilos e maneiras de se expressar, que, para Maria José Justino, “os artistas paranaenses, nesses últimos
quarenta anos, reacenderam o princípio modernista do direito de errar: todo experimentalismo está
autorizado. Arte como pesquisa, jogo, contaminação, existencial, guerrilha, atitude, pensamento,
conhecimento, prazer. Arte comprometida com a vida”. (2010, p. 7). Assim é a arte paranaense na
atualidade. É também um cenário em que todos os estilos e linguagens convivem, cada um com
sua especificidade e como uma das múltiplas possibilidades desse grande caleidoscópio, que é a
contemporaneidade.
Muitos mais são os artistas, os grupos, os personagens e os movimentos que constroem, dia a dia,
a história da arte Paraná afora. Fica aqui esse ponto de partida, para que nós procuremos a arte em
cada cidade, praça ou muro, em cada museu, galeria ou território, na arquitetura dos prédios públicos,
casas e igrejas, no traçado urbanístico das cidades e no paisagismo, na fotografia, na videoarte, na
publicidade... buscando entender seus significados. E que olhemos ao nosso redor e enxerguemos a
arte que está ali, mas que, em meio à correria diária, muitas vezes olhamos sem realmente ver. Vamos
procurar os artistas que estão próximos, continuando a escrever e a completar esse mosaico que é
uma pequena amostra de um todo muito maior. Esse texto é um convite para que nós continuemos a
escrevê-lo com a arte que encontrarmos nas esquinas dos nossos trajetos, refletindo sobre seus temas e
conteúdos.
Neste texto, buscamos um enfoque mais preocupado com as questões ambientais e da
sustentabilidade refletidos na arte paranaense, pinçando alguns artistas e movimentos que se dedicaram,
ora mais ora menos, a temas socioambientais e relacionados à preservação da cultura e da natureza. Há
muitas questões que emergem do exposto, pistas e direções a serem seguidas. Fica a certeza de que a
arte, ao abordar o meio ambiente e a sustentabilidade, pode levar à conscientização e incitar discussões
e, principalmente, tomadas de decisão e atitudes. A arte cumpre, então, seu objetivo maior que é
inquietar, levar ao pensar e, consequentemente, ao agir.

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WACHOWICZ, R. História do Paraná. 9. ed. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2001.

NOTAS EXPLICATIVAS
1 Walter Neves afirma: “os grupos humanos, em termos de subsistência e de organização social, são
geralmente classificados em bandos, tribos, cacicados e estados. Estes últimos também conhecidos como
sociedades complexas. Com raríssimas exceções, grupos que sobrevivem de caça e coleta e que, portanto,
não produzem comida, dificilmente ultrapassam o estágio de bando. [...] Os bandos clássicos de caçadores-

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coletores caracterizam-se, sobretudo, pelo acesso igualitário aos recursos da paisagem”. (apud BIGARELLA,
2011, p. 9).
2 As três sub-bacias que compõem a Bacia do Iguaçu formam uma larga faixa ao longo da fronteira de Santa
Catarina, que vai da nascente, a leste do estado, na região de Curitiba, até as Cataratas do Iguaçu, a oeste,
isto é, até a fronteira com a Argentina e o Paraguai.
3 Um ecossistema é um conjunto formado pelas interações entre organismos vivos: plantas, animais e
micróbios; e elementos químicos e físicos, como o ar, a água, o solo e minerais. Estes interagem por
meio de transferências da energia dos organismos vivos entre si e entre estes e os demais elementos de
seu ambiente. Então, “ecossistemas aquáticos são os lagos, naturais ou artificiais (represas), os mangues,
os rios, mares e oceanos. Os ecossistemas terrestres são as florestas, as dunas, os desertos, as tundras,
as montanhas, as pradarias e pastagens”. Um bioma, na definição do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE), é o “conjunto de vida (vegetal e animal) definido pelo agrupamento de tipos de
vegetação contíguos e identificáveis em escala regional, com condições geoclimáticas similares e história
compartilhada de mudanças, resultando em uma diversidade biológica própria”. Em outras palavras, um
bioma é uma grande área de vida formada por vários ecossistemas. (DICIONÁRIO AMBIENTAL, 2014).
4 Romantismo: movimento artístico e filosófico que surgiu em finais do século XVII na Europa, perdurando
até as décadas finais do século XIX. Opõe-se ao Racionalismo, ao Classicismo e ao Iluminismo, que
enfatizam a razão. Ao contrário, o romantismo centra-se no indivíduo em seu lirismo, subjetividade,
emoções, sonhos, fantasias, paixões, religiosidade, intuição, saudade, identificação com a natureza e com os
nacionalismos. Na pintura, as telas apresentam muito movimento, retratam uma realidade emocionalmente
intensa e plena de sensibilidade. Outros termos relacionados a ele: exagero, pessimismo, busca pelo exótico,
a felicidade jamais atingida.
5 A fotografia foi inventada no decorrer do século XIX, mas apenas no final desse século ‘substituiu’ a
pintura e a ilustração na função de retratar fielmente a realidade. Ao ser aperfeiçoada e difundida, essa
nova tecnologia acabou por ‘libertar’ as artes visuais, que passaram a representar não mais o que o artista
vê, mas o que pensa ou sente e sua visão de mundo, o que, afirmam alguns, colaborou para o surgimento
das vanguardas artísticas.
6 Naturalismo: baseia-se na observação e na representação fiel da natureza. Na pintura, é relacionado ao
conceito de imitação objetiva da natureza. Diz-se que as artes visuais apenas se libertaram da função de imitar
a realidade visível depois do desenvolvimento da fotografia, mais acessível a partir de fins do século XIX,
quando passaram a representar também realidades subjetivas, o que em parte é verdadeiro, em parte não.
7 Nativista: artista que se ocupa das populações nativas, nesse caso, dos indígenas.
8 Litografia: técnica de reprodução mecânica de uma imagem, com base em uma matriz desenhada com lápis
gorduroso sobre uma superfície plana de pedra calcária (lito = pedra). Depois de pronto e seco o desenho,
mediante um processo químico, a gordura é fixada na superfície da pedra. A entintagem é feita com um
rolo e a tinta, também gordurosa, adere somente nas partes engorduradas. A impressão é feita colocando-
se uma folha de papel (ou outro suporte) sobre o desenho e pelo uso de uma prensa. São possíveis várias
cópias de uma mesma matriz. Já na xilogravura (xilo = madeira) e na gravura em metal as imagens são
obtidas por meio de sulcos feitos nas matrizes, depois entintadas e passadas na prensa. Até o século XIX,
esses eram os meios mais comuns de reprodução de imagens.
9 Em 1886, sob a direção de Antônio Mariano de Lima, estabelece-se a Escola de Desenho e Pintura, depois
chamada Escola de Artes Industriais do Paraná e, finalmente, Escola de Belas Artes e Indústrias do Paraná.

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10 Academicismo: o termo referia-se a um método de ensino da arte, ministrado nas academias de arte
europeias, que apresentava uma pedagogia sistemática, hierarquizada, ortodoxa e rígida, que desprezava a
criatividade e a originalidade. Era calcada na imitação da natureza, mas com concepções, teorias e modelos
pouco flexíveis e que valorizavam os grandes mestres e o passado. O termo ‘academicismo’ tem, hoje,
uma conotação pejorativa e é usado para indicar tendências retrógradas, retóricas, artificiais, tecnicistas,
ortodoxas, tradicionalistas ou conservadoras.
11 Sua escola, depois chamada de Escola Técnica de Curitiba, mais tarde transformada no Centro Federal de
Educação Tecnológica do Paraná (CEFET), constitui hoje a Universidade Tecnológica Federal do Paraná
(UTFPR).
12 Objetivismo visual: relativo ao Naturalismo, em que as artes visuais (especialmente o desenho, a pintura e
a escultura) representam e imitam a realidade objetiva visível.
13 Realismo: movimento que surgiu nas últimas décadas do século XIX, na França. Apesar de ainda se filiar ao
objetivismo-visual, tinha como tema a vida dos pobres, dos camponeses, com seus problemas e costumes.
Queria-se mostrar a pobreza e o homem comum. Constituiu uma reação contra o Romantismo, que
retratava os ricos, a nobreza, os grandes eventos e uma vida idealizada.
14 Impressionismo: com base na pesquisa ótica no campo da Física, o impressionismo prioriza a incidência da
luz e das cores nas superfícies das coisas. Assim, “começa por iniciar uma destruição da forma, que já não é
contorno, recorte no espaço, mas névoa, diluição. Os impressionistas buscavam a natureza – não como os
naturalistas – como ‘mediação’ técnica”. (JUSTINO, 1986, p. 71). Pintavam suas impressões.
15 Caricatura: é um desenho que retrata um personagem real, enfatizando ou exagerando determinadas
características peculiares a ele. Geralmente envolve humor ou crítica.
16 Datação de Elisabete Turin, pesquisadora e Diretora da Casa João Turin. (TURIN, 1998, p. 16 e 40).
17 O Paranismo será estudado mais adiante, em item específico.
18 Cubismo: movimento surgido no início do século XX, teve como principais expoentes Picasso e Braque,
que ‘segmentavam’ as figuras em várias formas geométricas sobrepostas e justapostas, para adicionar
movimento e ou tridimensionalidade à imagem.
19 Expressionismo: “O expressionismo é um movimento tipicamente alemão, com um caráter metafísico
transcendente. Seus temas são dramáticos, a vontade junto ao social, [ao psicológico e ao onírico (dos sonhos
e dos pesadelos)]. O resultado é um tratamento brutal, destruidor, com cores fortes, sem a preocupação
da ‘beleza’, antes, da arte como verdade, como ética, política. Na maneira como o expressionismo nega o
naturalismo e o realismo, acaba abrindo as portas para a abstração”. (JUSTINO, 1986, p. 71).
20 Neoexpressionismo: novo-expressionismo.
21 Animalista: artista plástico especializado em animais.
22 Caruma: ramas dos pinheiros com suas folhas resistentes em forma de agulha.
23 Arte aplicada: arte útil, arte utilitária, arte encontrada no design. No caso do paranismo, pinhas e pinhões
esculpidos em molduras, em móveis, em utilitários domésticos, em porta-retratos etc.
24 A Semana de Arte Moderna de 1922 ocorreu em São Paulo. Trouxe, como afirmou Mário de Andrade,
um sentido de modernidade à cultura brasileira, o direito a uma criação artística própria e autêntica e o
direito à atualização da inteligência artística brasileira. Apesar de, por parte do público paulistano em geral,
a Semana ter sido um escândalo, pois conforme escritos da época a plateia a vaiou, a ampla divulgação
pela imprensa contribuiu para criar e manter um debate duradouro e para levar, lentamente, a discussão a
outras regiões do país. Na imprensa curitibana, as primeiras alusões à Semana ocorreram dois anos depois,
em 1924. Eram breves e esparsas e as linguagens do modernismo rejeitadas pela maioria dos artistas locais
e pela sociedade.

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25 O Manifesto Pau-Brasil foi escrito por Oswald de Andrade e publicado no Correio da Manhã, Rio de
Janeiro, a 18 de março de 1924. Ao analisar o modernismo como um todo, distingue três linhas principais:
a) o Movimento Verde-Amarelo, no qual a parte pretende dispensar o todo, que tem como proposta
abandonar as influências europeias, fixar-se na originalidade brasileira, voltar aos mitos fundadores,
ao mito tupi. Dentre seus principais representantes estão Cassiano Ricardo, Menotti del Picchia e
Plínio Salgado, que buscam a alma brasileira no passado histórico ou mitológico. Aceitam a vida do
interior, regional, como a que teria se mantido mais autêntica em oposição à do litoral, vista como falsa
e enganadora. A corrente ‘verde-amarela’ enfatiza a reflexão da brasilidade, isolando o Brasil da relação
com o mundo e propondo o abandono de todas as influências estrangeiras. Vários dos verde-amarelos
vão participar da organização da Ação Integralista Brasileira (AIB) em 1932 e do Estado Novo no
Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP);
b) o Movimento Antropofagia (Pau-Brasil), no qual a parte pretende deglutir o todo, e que propõe a
apropriação das influências europeias pelo canibalismo cultural (metáfora utilizada no sentido em que
o antropófago come a carne dos seus inimigos para captar suas energias), com Oswald de Andrade; e
c) um terceiro grupo, em que a parte pretende se incorporar ao todo. Esta corrente propõe incorporar os
valores culturais universais. Nesse grupo destaca-se Mário de Andrade e é dessa vertente que sairá o
grupo que mais tarde criará o Serviço do Patrimônio Histórico Nacional, o SPHAN, com Rodrigo Melo
Franco. (PENNA, 1999, p. 152; OLIVEIRA apud LORENZO et al. 1997, p. 191).
26 Modernismo e subjetividade: “Se compreendermos que o subjetivismo é uma das principais características da
Arte Moderna, poderemos também facilmente entender a importância de Guido Viaro para a evolução da
Arte Paranaense”. (ARAUJO, 2006, p. 84). O Modernismo tenderá ao abstracionismo e à diluição da forma.
27 Que a partir da experiência aí recebida passaram a atuar em outras instituições, como a Universidade
Federal do Paraná, a Escola de Música e Belas Artes do Paraná (depois, Unespar), a Faculdade de Educação
Musical do Paraná (depois, Faculdade de Artes do Paraná e Unespar) e o Centro Federal de Educação
Tecnológica (depois, Universidade Tecnológica Federal do Paraná). (KIRDZIEJ, 1986).
28 Bugrismo: relacionado à representação do indígena, seus traços fisionômicos, sua vida e seus costumes.
29 Linguagem figurativa: tem como referência o mundo real, visível, mesmo que não o represente de maneira
detalhada e convencional. Pode ser naturalista ou estilizada, mas sempre se refere ao que se vê no mundo
exterior. O impressionismo e o expressionismo ainda são figurativos, apesar de menos preocupados com a
verossimilhança. Seu oposto seria a linguagem abstrata, que trata de formas, cores, linhas, manchas, sem
referência ao mundo natural.
30 Fantástico: arte baseada no mundo onírico, dos sonhos e dos pesadelos, da fantasia, particularmente
importantes para a arte no Romantismo, no Simbolismo e no Surrealismo. A arte fantástica celebra a
fantasia, a imaginação, o mundo do inconsciente, o grotesco.
31 Fauve (lê-se fôve): o fauvismo foi um movimento do início do século XX, com influências de Van Gogh
e de Gaugin. Seus artistas usavam nos seus quadros cores fortes e contrastantes, de modo arbitrário
(fauves = feras) e intenso. Criavam impulsivamente, libertando-se do real e desobedecendo às regras
tradicionais da pintura. A realidade era deformada com a movimentação dos reflexos e dos retorcidos. O
novo espírito de síntese deixava de lado o desenho e a forma e criava contrastes e coloridos inexistentes na
realidade do mundo visível.
32 Tachismo: estilo de pintura abstrata que se caracteriza por pinceladas vigorosas e espontâneas, manchas,
pingos e escorridos (do francês, tache = mancha).
33 Conceitual: movimento de meados do século XX até a década de 1970, valoriza mais a ideia e as concepções
que envolvem certa obra do que o produto finalizado. Sua intenção é fazer as pessoas pensarem e refletirem
sobre um conceito, uma crítica ou denúncia.

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34 Kitsch: refere-se a uma arte propositalmente de mau gosto e em forma de crítica, que usa objetos e ícones
comuns do cotidiano, não refinados, para se opor a uma arte de drama e melodrama.
35 Vitral: usado principalmente nas igrejas, é composto de vidros coloridos que geralmente representam
cenas, personagens ou determinados símbolos.
36 Mosaico: é uma obra formada por inúmeras pequenas peças de pedra, pastilhas de vidro, seixos e outros
materiais que formam uma figura ou cena sobre uma superfície. Atualmente é feito também de outros
materiais, como plástico, papel, conchas, azulejos etc.
37 Arte Pop: “vale-se de elementos tomados da moderna civilização mecânica, sobretudo produzidos em
série em seu aspecto mais trivial de objetos de consumo”. (DORFLES, apud ARAUJO, 2006, p. 110).
“Discute a cultura de massa oriunda do cinema, da propaganda, de objetos de consumo gerados pela
industrialização, decorrentes das novas tecnologias que invadem o Ocidente como fruto direto da
americanização”. (ARAUJO, 2006, p. 110).
38 Arte Povera: “busca uma linguagem de conscientização sobre o empobrecimento moral que subverte a
sociedade de consumo [... e] uma linguagem emotiva mediante a adoção de materiais ‘pobres’, em um
mundo tecnologicamente rico”. (ARAUJO, 2006, p. 112).
39 Objets Trouvés: uso de objetos pré-existentes cujos significados são alterados quando usados como obra de
arte. Os objets trouvés têm sua identidade como arte derivada do sentido dado por eles pelo artista e com
base na história social do próprio objeto.
40 Arte ecológica: é tanto a arte que trata de temas ecológicos quanto a obra que é realizada no entorno
natural, usando como matéria-prima terra, areia, galhos, folhas, pedras etc.
41 Raionismo: estilo de arte abstrata russa, que procura uma arte que flutue para além da abstração, fora do
tempo e do espaço. Quer quebrar as barreiras entre artista e público, usando traços que são como raios
dinâmicos de cores contrastantes que representam linhas de luz refletida e cruzamento de raios refletidos
a partir de vários pontos.
42 Arte metafísica: representação de um mundo visionário relacionado ao inconsciente, para além da realidade
física e visível.
43 Neoconcretismo: busca novos caminhos, afirmando que a arte não é um mero objeto, mas incorpora
efetivamente o observador, que pode tocar a obra, percorrê-la, tornando-se parte dela. Assim, introduz a
subjetividade onde havia apenas objetividade (o objeto em si).
44 Happening: une as artes visuais e um teatro sem texto nem representação. Nos espetáculos, distintos materiais
e elementos são combinados de forma a aproximar o espectador, fazendo-o participar da cena proposta
pelo artista (o happening se distingue da performance, na qual não há participação do público). “Os eventos
apresentam estrutura flexível, sem começo, meio e fim. As improvisações, o acaso e a espontaneidade
conduzem a cena em ruas, antigos lofts, lojas vazias e outros. O happening ocorre em tempo real, [...] mas
recusa as convenções artísticas. Não há enredo, apenas palavras sem sentido literal, nem separação entre
o público e o espetáculo. Os ‘atores’ não são profissionais, mas pessoas comuns. O happening é gerado
na ação e, como tal, não pode ser reproduzido. Seu modelo primeiro são as rotinas e, com isso, ele borra
deliberadamente as fronteiras entre arte e vida”. (ENCICLOPÉDIA ITAU, 2013).
45 Performance: “forma de arte que combina elementos do teatro, das artes visuais e da música. Nesse sentido,
a performance liga-se ao happening [...], sendo que neste o espectador participa da cena proposta pelo artista,
enquanto na performance, de modo geral, não há participação do público”. (ENCICLOPÉDIA ITAU, 2013).
46 Instalação: surge, inicialmente, “sob o título de Arte Ambiental, vinculando-se aos environnements, que
nascem da necessidade de ultrapassar os limites objetuais para ocupar todo o espaço. Já as instalações

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contemporâneas abrangem uma grande gama de conceitos. Todavia, em linhas gerais, podem ser
compreendidas como um conjunto de materiais, objetos e aparelhos de multimídia ocupando um espaço
em relação a um conceito formulado pelo artista”. (ARAUJO, 2006, p. 115). O público deixa de apenas
observar para participar da obra, andando dentro dela e ao seu redor, observando-a dos inúmeros ângulos
possíveis e, até mesmo, tocando-a e transformando-a.
47 ‘Arte na rua’: com forte predomínio de instalações, performances e happenings, é realizada por artistas e
estudantes de arte, que optam por executá-la em espaços urbanos públicos, envolvendo o transeunte, o
homem comum, a comunidade como um todo. Ainda assim, é a arte da academia, da galeria e do museu,
que vai para a rua, portanto, acontece na rua. Difere da ‘arte de rua’, que é feita por adolescentes e jovens
sem formação artística e que brota de maneira espontânea e inorgânica, propositalmente fora do sistema
instituído de artes. A ‘arte na rua’ faz parte desse sistema. A ‘arte de rua’, não. Esta, na atualidade, envolve
todos os estilos do graffiti, do picho ao graffiti-arte, passando pelo estêncil, pelo lambe-lambe e pelo sticker.
Tanto a ‘arte na rua’ quanto a ‘arte de rua’ são ‘arte urbana’ e ‘intervenção urbana’.
48 Graffiti: a definição de graffiti, em sentido amplo, inclui qualquer tipo de inscrição, escrita ou desenho.
O modern graffiti, de origem estadunidense, envolve especialmente assinaturas (tags) de variados níveis de
complexidade e personagens.
49 Estêncil: “recorte em negativo em folha de papel, papelão ou plástico resistente, também chamado máscara,
colocado contra a parede a ser marcada. A máscara e a parede recebem um jato de tinta monocromática,
deixando, mediante os recortes, a marca, os dizeres e o desenho, como um carimbo”. (PROSSER, 2010, p. 49).
50 Arte de rua: ver nota 52.
51 Throw-up ou bomb: “assinatura rápida, simples, com poucos traços, geralmente em duas cores e duas
dimensões”. (PROSSER, 2010, p. 52).
52 Bubble letters: throw-up ou bomb com letras arredondadas.
53 Wild-style: “assinatura em várias cores, em três dimensões, cujas letras são complexizadas e entrelaçadas”.
(PROSSER, 2010, p. 52).
54 Lambe-lambe: “desenhos, poemas, manifestos ou colagens reproduzidos em papel, geralmente mediante a
serigrafia, o estêncil ou a fotocópia (há alguns feitos à mão) e então colados sobre paredes e outros suportes
urbanos. Além das mensagens do lambe-lambe em si, altamente críticas, líricas ou politizadas, a combinação
de vários em um conjunto cria um mundo específico de significados”. (PROSSER, 2010, p. 49).
55 Sticker: “pequeno adesivo criado artesanalmente, em série ou não. É colado em placas de sinalização,
lixeiras, portas de garagem e outros suportes geralmente em metal, pelas suas dimensões e pela sua fácil
aderência”. (PROSSER, 2010, p. 52).
56 Para Bardin, fazer uma análise temática “consiste em descobrir os ‘núcleos de sentido’ que compõem
a comunicação e cuja presença ou frequência podem significar alguma coisa” com referência ao objeto
escolhido. Isso, porque “o tema é a unidade de significação que se liberta naturalmente de um texto” ou
de uma imagem e é “geralmente utilizado como unidade de registro para estudar motivações de opiniões,
atitudes, valores, crenças, tendências etc.”. (BARDIN, 2007, p. 111).
57 Parangohélicos – termo que se refere aos parangolés, criados pelo artista plástico brasileiro Hélio Oiticica,
na década de 1960.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
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TECENDO UMA REDE DE RELAÇÕES:


INTERCULTURALIDADE E O ENSINO DAS
ARTES VISUAIS

Marília Diaz

A ARTE E SEU ENSINO


As manifestações artísticas originaram-se com a vida inteligente sobre o planeta, e estavam
imbricadas com outras atividades do dia a dia. A expressão, o exercício da pintura, do desenho, o
ato de esculpir não era separado da vida, mas fazia parte da vida. A industrialização e os avanços
tecnológicos propiciaram a democratização de inúmeros produtos, porém afastaram o homem do ciclo
produtivo, subtraindo conhecimentos inerentes a ele. Alheio ao convívio com os materiais, perdeu o
conhecimento de suas propriedades, qualidades e defeitos. Quando não vivenciamos a materialidade,
torna-se impossível ter noção do processo. (OSTROWER, 1984, p. 35).
No percurso histórico entre o tempo das pinturas rupestres e as possibilidades de acessar
virtualmente a produção artística, exposta nos museus mais importantes do mundo, a relação do ser
humano com o seu fazer foi perdida e muita história foi construída. Hoje é comum pensar e verbalizar
que a arte é um adereço, produto da elite e para a elite. Assim, circunscrita a espaços culturais a
maior parte da produção de arte está desconectada da vida de grande parte da população. Somente
uma pequena parcela das pessoas visita com regularidade museus e espaços culturais e efetivamente se
constitui público das artes visuais. E pensar que, ao adentrar a um museu, ao ver exposições de arte,
podemos nos aproximar e entender muito da cultura de um país, de um povo!

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Na contemporaneidade também é bastante comum o entendimento de que os artistas são


pessoas desequilibradas, loucas, à margem da sociedade e que o processo de criação e seus resultados
não são trabalhos.
Arte é uma área do conhecimento humano e como tal passível de ser ensinada e aprendida, pois
tem conteúdo. Arte é expressão, linguagem, cultura, criação e é trabalho, muito trabalho. “A arte
promove o desenvolvimento de competências, habilidades e conhecimentos necessários a diversas áreas
de estudo; entretanto, não é isso que justifica sua inserção no currículo escolar, mas seu valor intrínseco
como construção humana, como patrimônio comum a ser apropriado por todos”. (IAVELBERG,
2003, p. 9). Na perspectiva da democratização desses saberes, da acessibilidade aos códigos da arte,
nas últimas décadas o ensino da arte incorporou ao seu universo a expressão ‘alfabetização visual’
para determinar o domínio dos códigos para a decodificação e a compreensão das obras de arte. Em
função de suas necessidades, apropriou-se de palavras de outras áreas de conhecimento. Sendo assim,
foi emprestado, recentemente, da Linguística o termo leitura como forma de redescobrir significados.
A leitura do mundo pode se dar de forma espontânea, como faz a pessoa simples que intuitivamente
sabe ler o céu e reconhece de onde vem a chuva ou de forma sistematizada em que se estabelece um
método para tirar partido das descobertas. A leitura é um processo cultural e interativo, pois o sentido
da mensagem não está só na mente do escritor, do produtor, do artista visual, mas também na mente
do espectador, e no significado do próprio objeto observado. O ser humano constrói sentido a partir
da imagem e de suas experiências prévias. Dessa forma, quando acontece a experiência da leitura, ela
não está isolada do entendimento de mundo construído, dos aspectos culturais, históricos, do tempo
vivido e de como tudo isso se incorpora à história pessoal, configurando assim um espectro imenso
de possibilidades. Dentro dessa perspectiva, podemos ampliar o entendimento de leitura para todo o
mundo imagético, sonoro, olfativo, gustativo, táctil entre outros. Ou seja, cada campo, cada referência,
cada objeto citado é um sistema aberto, um tecido de significações com variações de interpretações
únicas, pois depende do referencial, do olhar, da percepção e das conexões estabelecidas por cada
sujeito. Esse processo não se dá sozinho, espontaneamente. Na escola, a partir de processos de ensino,
cabe ao professor facilitar, mediar, dar a conhecer os significados da leitura e da compreensão profunda
do universo posto ao alcance do alunado.
Hoje no ensino da arte na ‘perspectiva cultural’ as camisetas e suas estampas, as capas dos cadernos,
os cartazes e a publicidade de forma geral, as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC), os
videoclips, a moda entre outros, são passíveis de análise e podem se constituir em temas, assuntos
tratados lado a lado com a produção artística mundial. “os objetos da cultura visual que maior presença
têm entre os meninos, as meninas e os adolescentes são os que recobrem as paredes dos quartos,
as imagens das pastas da escola, as revistas que lêem, os programas de televisão a que assistem, as
apresentações dos grupos musicais, os jogos de computador, suas imagens na internet, a roupa, seus
ícones populares etc.”. (HERNÁNDEZ, 2000, p. 136).
A intenção maior em abrir as possibilidades imagéticas é observar e usar essas referências para a
estruturação do saber, a contemplação, a educação dos sentidos, a ampliação do espaço perceptivo, a
reflexão, a interpretação sobre o conhecimento estético e crítico.

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Para Hernández, que trabalha nessa linha, a cultura é tema central das ciências sociais. O professor
e escritor entende que todas as culturas são produtoras de imagens e que conhecer os significados
dessas produções é importante para reconhecer o valor cultural de cada uma delas. A cultura visual
por sua vez é interdisciplinar e se apresenta perante as mudanças vividas nas últimas duas décadas na
arte, cultura, imagem, história, educação e esta vinculada à noção de mediação, de representações,
valores e identidades. Todos os atores implicados nesse campo de saberes são “construtores e interpretes
na medida em que a apropriação não é passiva nem dependente, mas interativa e de acordo com as
experiências que cada indivíduo tenha experimentado fora da escola”. (HERNÁNDEZ, 2000, p. 136).

CULTURA
Falar de cultura é entrar em uma seara ampla e complexa, praticamente inesgotável com a
possibilidade de inúmeras abordagens.
A etimologia da palavra cultura surge

do verbo latino ‘colere’, cultura era o cultivo e o cuidado com as plantas, os animais e tudo que se
relacionava com a terra; donde, agricultura. Por extensão, era usada para referir-se ao cuidado com
as crianças e sua educação, para o desenvolvimento de suas qualidades e faculdades naturais; donde
puericultura. O vocábulo estendia-se, ainda, ao cuidado com os deuses; donde culto. A cultura, escreve
Hanna Arendt, era o cuidado com a terra para torná-la habitável e agradável aos homens, era também
o cuidado com os deuses, os ancestrais e seus monumentos, ligando-se à memória e, por ser o cuidado
com a educação, referia-se ao cultivo do espírito. Em latim ‘cultura animi’ era o espírito cultivado para
a verdade e a beleza, inseparáveis da Natureza e do Sagrado (CHAUI, 1996, p. 11, grifo do original).

Se tomarmos esses entendimentos e dados históricos, podemos perceber que na sua origem a
educação e cultura são indissociáveis.
O conceito de cultura não é passivo e requer entendimentos diversos sobre o ser humano, seu
contexto e o tempo histórico, enfim se constitui em um território móvel.
A cultura deve ser considerada como o conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais,
intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abrange, além das artes e
das letras, os modos de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de valores, as tradições e as crenças1.
Muito além de uma simples definição, a cultura faz parte do nosso dia a dia quando repetimos
palavras como califom – sutiã, bureau – escrivaninha ou cachette – comprimido, termos de origem
francesa ou corruptela do francês utilizados no Estado da Paraíba ou a expressão brostolar a polenta,
comumente utilizada entre os descendentes de italianos. Cultura também está representada nas roupas
utilizadas pelos russos, que começaram a chegar ao Sul do Brasil no ano de 1878. Independente dos
anos terem se passado, os descendentes dos russos vestem, até os dias de hoje, as roupas assemelhadas
à de seus avós. Os homens mantêm a tradição do uso da barba e se trajam com calças de suspensório

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bordado e as mulheres e crianças, com vestidos longos, de cores vibrantes e cabelos presos dentro de
uma touca do mesmo tecido do vestido. Na região dos Campos Gerais no Paraná, em especial em
Palmeiras, é comum encontrá-los no comércio ou pelas ruas.
Cultura é cobrir o corpo todo com argilas coloridas diluídas em água, só pelo prazer de fazê-lo,
escolher elementos vegetais e somar a pintura corporal como fazem os Homens de Kibish das tribos
africanas da Etiópia, Sudão e Quênia no Vale do Rio Omo.
Cultura é o ato de fazer o seu próprio instrumento musical e saber tocá-lo, tanto quanto saber
compor ou ouvir música clássica. Está explicitada nos ditos populares pintados na traseira dos
caminhões, nas esculturas das figuras humanizadas nos canos de escape das oficinas mecânicas, nos
apelidos inventados pelo interior do nosso país, que por vezes são mais empregados que os próprios
nomes. No artesanato em capim dourado do Jalapão no Tocantins, nas xilogravuras de Bezerros em
Pernambuco. No tacacá de Belém do Pará, na moqueca capixaba de Guarapari no Espírito Santo ou
no modo de preparar a carne de sol em Campina Grande, na Paraíba.
Em sala de aula, se fizermos uma pesquisa sobre as brincadeiras de infância dos avós, pais e dos
próprios alunos, estaremos levantando um universo que vai entrelaçar costumes culturais indígenas,
africanos, portugueses, mas também costumes, modos de fazer de muitos outros contextos. Das negras
que cuidavam das crianças ficaram as lendas, as histórias carregadas de valores, misticismo e emoções.
Tema gerador para outros conhecimentos sobre a África, africanos, raças, negritude, racismo, o que é
ser negro e os modos de estar no mundo.
Dos chineses fica a eterna gratidão pela invenção, do que por aqui convencionamos chamar de
papagaio, pipa, pandorga, raia, nomes diferentes do brinquedo, que confeccionado em papel de seda
ou papel assemelhado e varetas finas, ganham os céus de vários continentes, excelente brinquedo para
trabalhar em consonância com a matemática. A amarelinha, jogo da tradição francesa é vivido pelas
crianças que nem sabem onde a brincadeira se originou. Cada pessoa ou coletividade que se apropria
de algum saber soma a este novo entendimento o seu referencial. Sendo assim, a cultura é viva e está
em constante movimento no bojo do patrimônio cultural.
Para perceber melhor como vem se processando no Brasil este entendimento, tomemos a
Constituição da República Federativa do Brasil no seu artigo 216, no qual o conceito de Patrimônio
Cultural foi ampliado:
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I. as formas de expressão;
II. os modos de criar, fazer e viver;
III. as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV. as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-
culturais;
V. os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico,
ecológico e científico. (BRASIL, 1988).

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Em face das infindáveis possibilidades apresentadas na Constituição Federal cabe aos professores
e a equipe pedagógica da escola oportunizar processos educativos em que o aluno viva intensamente os
bens de natureza material e imaterial, a fim de criar pertença, construir valores e ampliar o seu campo
de referências tornando a sua bagagem cultural muito mais abrangente.
Na escola cabe também instigar situações problemáticas para a realização de projetos que partam
do interesse, por exemplo, dos alunos adolescentes com temas como a cultura Hip Hop. Essa maneira
de viver com o emprego de gírias – códigos específicos de comunicação, formas de vestir, dançar e se
expressar na linguagem do grafite é também uma forma de se impor no espaço do mundo circundante.
Promover discussões, análises sobre a estética do que se produz nesta linha, coloca o jovem como partícipe
da construção da cidadania e da cidade. Conhecer a obra de Jean-Michel Basquiat, artista plástico afro-
-americano e a sua história de vida, estabelecer pontes com a criação do rap nacional, pesquisa sobre
grafite × pichação, também podem contribuir para o entendimento dos papéis sociais para muito além
dos conceitos de cultura, pluralidade cultural, arte e ou cidadania, mas da vida vivida pelos alunos, de
identidade, dos links possíveis com o mundo, imbricando áreas de conhecimento e outros saberes.

É necessário reconhecer, com efeito, que esta ordem humana da cultura não existe em lugar nenhum
como um tecido uniforme e imutável, mas que ela se especifica, ao contrário, numa diversidade de
aparências e de formas segundo os avatares da história e as divisões da geografia, que ela varia de uma
sociedade a outra e de um grupo a outro no interior de uma mesma sociedade, que ela não se impõe
jamais de forma certa, incontestável e idêntica para todos os indivíduos, que ela está submetida aos
acasos das ‘relações de forças simbólicas’ e a eternos conflitos de interpretação, que ela é imperfeita,
lacunar, ambígua nas suas mensagens, inconstante nas suas prescrições normativas, irregular nas
suas formas, vulnerável nos seus modos de transmissão e perpetuação. (FORQUIN, 1993, p.14).

Desse modo, a cultura, uma espécie de matriz, é inerente ao homem que é aperfeiçoado quando
cria relações de pertencimento, fortalecido pelo grupo social em que está inserido quando transmite
suas experiências, quando estrutura o conhecimento produzido pela sociedade de origem e organiza-o,
e principalmente quando se humaniza na descoberta do vivido.

MULTICULTURALISMO
A Inglaterra dos idos de 1970 foi o berço do entendimento e organização dos pressupostos sobre
o multiculturalismo em relação ao ensino. Em face do número elevado de estrangeiros no país, a
escola sofreu muitas dificuldades, pois a adaptação à cultura local era complexa e a delinquência se
disseminava. Era preciso diminuir a evasão escolar e aproximar culturalmente os entendimentos
dispares dos imigrantes, bem como prepará-los para o mercado de trabalho.
Nesse contexto, Raquel Mason foi a primeira educadora a sistematizar esses entendimentos com
a intenção de compreender os preceitos e o manejo das diferenças nas sociedades, desenvolver uma

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visão crítica e antiracista, bem como abarcar a pluralidade de diferentes culturas, religiões, etnias e as
relações de gênero.
Partindo da realidade sociocultural dos alunos, do pressuposto da inclusão e da importância
da participação de todos no processo educativo, o fundamento da proposta era o diálogo entre as
diferentes culturas. Considerando que o professor ao adentrar a sala de aula leva com ele todo o seu
referencial, a sua história de vida, o perfil esperado para colocar em prática esses entendimentos era de
um profissional que trabalhasse conceitos e soubesse lidar com preconceitos, no sentido de extingui-
-los ou, se impossível, minimizá-los. Um professor capaz de trabalhar conflitos, mediar situações e
apto para lidar com o progresso, com o crescimento de cada aluno, acreditando sobremaneira no
desenvolvimento humano. Por sua vez a escola deveria oportunizar espaço para a comunicação e
promover discussão em campo neutro, em uma atmosfera real e aberta. Já naquele momento histórico o
foco era propor atividades abertas tais como: debates, pesquisas, registros escritos, falados, observações
em loco, vivências entre outras.
Em arte, como procedimentos metodológicos, era importante que o professor fizesse uso de
um referencial imagético ampliado com emprego de imagens tanto do país de origem quanto de
outras culturas, fora do eixo da eurocultura, tais como tribos e etnias distantes, bem como a arte
das minorias. Pretendia-se contextualizar as obras de arte geograficamente, antropologicamente e
em seu tempo histórico com o intuito de favorecer a produção e a reflexão. Assim, era empregado
o cruzamento de diversos códigos da produção artística em sintonia com o contexto em que foram
idealizados e produzidos. (DIAZ; LIBLIK, 2006, p. 57-59). Hoje sabemos que, dependendo da
forma de atuar, o fato de super valorizar ou defender um bolsão de produção pode isolá-lo ainda mais.
Organizar exposições com a produção de artistas naif2, como se estes não estivessem inseridos no aqui
e no agora, não vivessem a atualidade ou não pudessem representar a sua arte junto de produções
contemporâneas, pode ser um exemplo de exclusão do macro-contexto da arte. O que não é possível
perder de vista é o fato do valor estético, histórico da obra, o que vai torná-la atemporal e dar-lhe um
lugar além da linguagem da pintura, instalação, performance ou, ainda, de uma categoria como arte
popular, erudita, argumentação que apenas separa por classes sociais e condições socioeconômicas os
fazeres do ser humano.
Os países com maior experiência na perspectiva multicultural foram a Suécia, Canadá, Austrália,
Nova Zelândia, Holanda e, independente de Mason ter sistematizado estas ideias para o ensino, a
Inglaterra e parte dos Estados Unidos realizaram menos experiências na área. Por outro lado Índia,
Malásia, Austrália, África do Sul, Europa Meridional e América Latina, cada um com a sua realidade,
iniciaram o seu processo nas últimas décadas, sendo que o Brasil, após a década de 1990; ambos Brasil
e Argentina empregam o termo diversidade (SANSONE, 2007) ou pluralidade cultural.
A ênfase na construção do conhecimento, na apreciação e na compreensão estética da arte, a
relação pendular entre conteúdo e cultura, bem como as questões da identidade e o desenvolvimento
da consciência crítica, faz com que o Multiculturalismo ainda tenha eco no ensino da arte, na

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contemporaneidade, como um procedimento metodológico que pode estabelecer sentido e significado


à práxis escolar, somados os ajustes necessários ao momento histórico em que estamos vivendo.
Em qualquer contexto cabem exposições de objetos de etnias diferentes, tais como utilitários,
roupas, gincanas com provas em que é preciso descobrir o modo de se empregar determinado artefato.
Mostras de fotografias, pinturas de tempos idos sobre a cidade, o bairro ou ainda conversas com familiares
que narrem histórias sobre diferentes costumes como a comemoração da Páscoa entre os ucranianos, a
festa do Divino Espírito Santo ou a Cavalhada de Pirenópolis em Goiás, a Festa de Nossa Senhora dos
Navegantes em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, do Círio de Nossa Senhora de Nazaré em Belém do
Pará ou no Festival Folclórico de Parintins na Amazônia. Todas essas referências podem criar interfaces
com o ensino das artes visuais, seja na contemplação das imagens das festas, seja nas representações
passíveis de serem realizadas com a iconografia da cultura em questão, seja no reconhecimento da
palheta de cores empregada na festa, seja no contato com fotografias, seja no levantamento das diferenças
culturais perante o mesmo gesto, o mesmo fazer, o mesmo rito de passagem, entre outros.
Hoje consumimos produtos estrangeiros de toda ordem, quer seja em itens de vestuário, na
alimentação, na edificação de casas, no consumo de medicamentos, e quem efetivamente se apresenta
como o estrangeiro é o vizinho que reside ao lado. Raramente encontramos com ele, não interagimos,
dele nada sabemos. No processo de construção de um multiculturalismo adaptado à brasilidade e
aos problemas brasileiros, faz-se necessária a visão ampliada que vislumbra a extensão territorial e a
pluralidade cultural de cada região, e também o que é contemplado no contexto de cada instituição e na
relação pessoa a pessoa. Apresentam-se desafios de humanização tanto na esfera individual, social quanto
na esfera política. “Quiçá o Brasil de hoje possa ser visto como uma caixa de Pandora, com relação à
incorporação de políticas públicas referentes a grupos populacionais específicos com base na valorização
de sua distinção cultural, após séculos de esquecimento”. (SANSONE, 2007). A sala de aula, o espaço
escolar, as abordagens empregadas podem nos auxiliar neste caminho para resgatar, restituir e construir
saberes sobre a arte plumária, sobre as ideias do colonizador em relação aos indígenas nas pinturas de
Albert Eckhout em sintonia com o que é ser índio e como vivem os índios de hoje como, por exemplo,
no filme A’UWÊ UPTABI – o povo verdadeiro.
No que concerne à arte africana, cabe lembrar que é importante ir além dos processos de fabrico
dos instrumentos de ferro empregados para domesticar os negros no Brasil Colônia, da arte das máscaras
ou das esculturas de madeira, para destacar, dar ênfase, valorizar sobremaneira a estética da arte africana.
Na cantaria e na azulejaria portuguesa, tanto no tempo pregresso como nas interfaces com
o hoje, um arquétipo pode ser contemplar imagens da azulejaria portuguesa nas paredes do Centro
Cultural de São Francisco em João Pessoa na Paraíba, nas igrejas de Pernambuco, da Bahia e de Minas
Gerais e em muitas outras cidades brasileiras. Posteriormente apreciar a obra de Adriana Varejão que
congrega pintura, escultura e arquitetura na desconstrução da azulejaria portuguesa. Contextualizar
historicamente, demonstrar técnicas produtivas, entender quem é o ser humano através do tempo e das
culturas, investigar, pode auxiliar a expressar conflitos na esfera pedagógica e a reduzi-los na esfera social.

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PLURALIDADE CULTURAL
No ano de 2001 a Declaração Universal da Organização das Nações Unidas para a Educação,
a Ciência e a Cultura (UNESCO) sobre diversidade cultural foi aceita e assinada por 185 Estados
membros, mas sabemos que efetivamente existe uma distância em assinar e concretizar ações para
a “conversão de nossos hábitos cotidianos e políticos, privados e públicos, culturais e espirituais”.
(BOFF,1999, p. 17). No seu artigo primeiro, que trata sobre Identidade, Diversidade e Pluralismo,
aponta-se que “Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para o
gênero humano, tão necessária como a diversidade biológica para a natureza”. (ABRINDO, 2008).
O entendimento do termo diversidade, bastante empregado pelas Nações Unidas, pelo Banco Mundial
e o Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) está relacionado aos costumes
de uma sociedade, diferenças climáticas, econômicas, sociais e culturais.
Uma expressão muito recorrente nessas esferas é a tolerância mútua, mas será que basta
simplesmente tolerar o outro, os seus hábitos e ou a sua presença? Tolerar pressupõe apenas admitir
modos diferentes de pensar, de agir e de sentir. Existe uma medida subentendida na palavra tolerância,
uma linha divisória, um afastamento. Será que não precisamos reconhecer o outro, aceitar, acolher,
compreender e aprender com ele? Só vamos ser porosos a este entendimento quando o outro for
compreendido no seu contexto, dentro da sua própria óptica. Esta postura implica nos despirmos de
pré-conceitos, exercitarmos a escuta e o diálogo, atitudes libertadoras, e nos colocarmos frente a frente,
na perspectiva do que somos iguais, a humanidade, e no que temos de diferente, a cultura.
Também na perspectiva da heterogeneidade os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN),
editados em 1997, abriram espaço para o movimento de inclusão e da diversidade no contexto escolar
brasileiro. Como o próprio termo parâmetro já indica, ele é um norte, um horizonte e não uma lei.
Os PCN enfatizam a importância de aprender, garantir a equidade ou igualdade de oportunidades e
socializar os direitos humanos, levando a compreensão de que as pessoas não são desfavorecidas, mas
as situações a elas impostas é que não são igualitárias. Há críticas por parte de alguns professores a
tudo o que nos vem das instâncias superiores e por certo esta deve ser a postura do professor, mas não
podemos negar que os PCN propuseram avanços no que diz respeito às relações humanas, às relações
de poder e também no âmbito do reforço a identidade. Na categoria dos temas transversais, o caderno
que contempla a Pluralidade Cultural, entendida como multiplicidade, heterogeneidade, variedade,
tem mais proximidade com os conteúdos do ensino da arte. Nele são listados conteúdos passíveis de
serem trabalhados em sala de aula estabelecendo diálogo dos conteúdos próprios da arte com temas
tais como: pintura corporal, indumentária, vestuário, utensílios, decoração de moradias, culinária,
brinquedos, brincadeiras, festas, linguagem oral e escrita, rezas, crenças, plantas, receitas e outros.
(PCN, Diversidade Cultural, 1997).

Para definir diversidade cultural, alguns falam sobre multiculturalismo, outros sobre pluriculturalismo
(PCN), e temos ainda o termo mais apropriado –Interculturalidade. Enquanto os termos ‘Multicultural’

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e ‘Pluricultural’ pressupõem a coexistência e mútuo entendimento de diferentes culturas na mesma


sociedade, o termo ‘Intercultural’ significa a interação entre as diferentes culturas. Esse deveria ser
o objetivo da Arte- Educação interessada no desenvolvimento cultural. Para alcançar tal objetivo, é
necessário que a escola forneça um conhecimento sobre a cultura local, a cultura de vários grupos que
caracterizam a nação e a cultura de outras nações. (BARBOSA, 2003, p. 19).

Na perspectiva da interculturalidade podemos relacionar o que a princípio não parece compatível,


estabelecer pontes com arte, cultura, moda, vestuário e muitos outros saberes de distintos continentes
e povos.
Uma unidade em arte pode ser iniciada com o filme Patchwork em que a protagonista, uma noiva
norte-americana, participa da feitura de uma colcha, na técnica de trabalho com retalhos de tecido
junto com suas parentas. O presente destinado a ela e ao futuro marido é carregado de sentidos e
significados quando durante o trabalho as parentas relatam suas histórias amorosas, fazendo com que a
nubente questione o seu próprio rito de passagem. A partir do filme é possível estabelecer pontes com
os fazeres especiais das próprias parentas dos alunos no levantamento dos familiares que trabalham com
ofícios assemelhados – costureiras, alfaiates, artesãos ou até pescadores –, visto que também utilizam
instrumentos parecidos como as agulhas para consertar redes. Novos encadeamentos podem desdobrar-
-se com a demonstração de obras de Leonilson, Lígia Clark, Leda Catunda, Ernesto Neto, os irmãos
Campana que são designers e (ou) o artista textil Meiji Uchida de Kyôto.
Para ampliar ainda mais a problemática, pode-se pesquisar o uso de recicláveis na área têxtil,
conhecer empresas como a Catarinense Fibrasca, entre outras, que está reutilizando as garrafas PET –
polietileno tereftalato – na produção de linha para costura de calçados, produção de cordas e fibras, bem
como enchimentos de travesseiros. Torcido e emaranhado, o material pode formar fibras para serem
tecidas, voltando ao consumidor como camisetas, blusas, pijamas, mantas e outros itens que podem
materializar objetos e propostas de arte. Ou ainda se aproximar dos entendimentos de Lipovetsky, que
afirma que

o surgimento e desenvolvimento das fibras artificiais e sintéticas, bem como os artigos ditos inteligentes
ocasionaram pesquisas avançadas na área dos têxteis como os tecidos que não amassam, à prova
de bala, que se adaptam a mudanças climáticas, tem ação anti-bacteriana e anti-fogo. Igualmente
surpreendentes, são os tecidos utilizados para as roupas de mergulho que se assemelham ao couro dos
animais marinhos, facilitando os movimentos e auxiliando a velocidade na água. (1989, p. 5).

A associação desses conhecimentos tecnológicos pode auxiliar na compreensão das dificuldades


encontradas pelo artista Cyril Christo ao embalar edifícios monumentais ou interferir na paisagem do
deserto, de ilhas, parques na modalidade da land art.
No universo da história da arte possivelmente Frida Kahlo foi uma das artistas que mais tentou
salvaguardar as suas raízes, seja na sua produção de pinturas polvilhadas com temas nacionalistas, seja
na luta política como militante do partido comunista, seja principalmente no uso constante de trajes

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típicos mexicanos. A obra de Frida merece estudo, mas seus trajes também podem se converter em
pesquisa e entendimento cultural.
A boneca Barbie e seu guarda-roupa diverso e plural, ícone da cultura norte-americana, também
pode ser outro exemplo a ser tratado nas aulas de arte. Na contemporaneidade Barbie é suporte e aporte,
tema em diferentes modalidades de arte: montagens, desenhos, pinturas, instalações, ourivesaria,
fotografia, entre outras. Na internet é possível encontrar mais de 179.000 imagens da boneca, muitas
representações alvo de críticas, sátiras, desmitificando uma série de estereótipos quando apresentada
como uma pessoa idosa, gorda ou separada. A Revista ISTO É de 11 de abril de 2012 publicou uma
matéria sobre a produção da boneca Barbie careca. A empresa americana Mattel, que produz a boneca,
cedeu aos apelos de um grupo que a partir do Facebook insistiu na importância da boneca para elevar
a autoestima de meninas com câncer. (DAUDÉN; PRADO, 2012, p. 24). Uma das artistas mais
polêmicas, que explora montagens dramáticas com a boneca, é a fotografa Mariel Clayton. Assunto
que por certo vai interessar pré-adolescentes e adolescentes.
Na indústria de brinquedos muitos países ocidentais produzem bonecas de papel, quase sempre
figuras femininas acompanhadas por uma coleção de vestidos, camisolas, roupas de praia e adereços.
Este brinquedo ainda causa ternura entre as mulheres como objeto da memória.
Instituir relações entre o filme Patchwork, o acervo do Museu da Moda em Paris, o acervo de
vestuário tradicional do Museu de Antropologia da cidade do México, permeados pela obra de Frida,
Minie Sardinha, bonecas de papel e ou obras que usam a boneca Barbie, além de temas, modalidades
ou períodos da história da arte podem se constituir em momentos para discutir cultura, o papel da
mulher, questões de gênero ou outro tema afim. Qualquer fazer especial como as rendas, bordados,
crochet, tricot pode ser exposto na escola, na sala de aula para motivar discussões estéticas e oportunizar
o conhecimento sobre as obras de Rosana Paulino e ou Rosana Palasyan, que buscam inspiração e
referência nestes temas, ou ainda estabelecer analogia com os fractais produzidos no gelo do sul do
país ou na arquitetura da Alhambra em Granada – Espanha. Importante destacar que independente
da riqueza que nos cerca constata-se que estamos vivendo uma pasteurização cultural. Exemplos dessa
homogeneização cultural podem ser observados na forma de vestir nos grandes centros urbanos, nas
comidas fast food, nas construções padronizadas dos shoppings em âmbito mundial.
Clark alerta que a homogeneização cultural a que estamos submetidos deforma as ideias e os
conceitos e que certamente acabará com a diversidade de padrões culturais, bem como com a dignidade
do ser humano. Sem a diversidade, as entidades são destruídas e os homens ficam com sua humanidade
comprometida e sua vida empobrecida. (1985, p. 153).
Perante essas evidências, o papel do corpo docente das escolas é criar um currículo que contemple
a pluralidade cultural não como um apêndice, como um conteúdo desprovido de sintonia com outros
saberes ou afastado, isolado no tempo histórico. Essa responsabilidade pode ser agravada se somarem-
-se “As mudanças crescentes no mundo e nas nossas formas de entendê-lo, devido à compreensão das
tecnologias do espaço e do tempo, o que supõe uma ameaça à estabilidade e permanência de nosso
conhecimento, tornando-os frágeis e provisórios”. (HERNÁNDEZ, 2000, p. 137).

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O ‘currículo’ é uma teia móvel que deve sofrer ajustes permanentes e que é peculiar a cada contexto.
A flexibilização da legislação vigente é um anseio para que este documento complexo, que mostra
muito mais que o elenco de disciplinas de um curso, seja adequado às necessidades de cada região,
contemplando o período de colheita, período de cheia dos rios e outras características das localidades.
A falta dessa adequação continuará determinando a manutenção de erros históricos, afastando o aluno
da escola para auxiliar a família no trabalho da agricultura, no plantio e ou colheita, no transporte
da produção entre muitos outros motivos. Assim, a realidade escolar e a sua história, a cultura, as
possibilidades humanas e físicas, o perfil do alunado, os equipamentos, instrumental disponível na
escola, entre outros dados, devem urdir essa teia e dar o norte ao tipo de educação que desejamos e ao
tipo de ser humano que ansiamos educar.
“O volume de informações é dobrado a cada 10 anos e 90% do que uma criança terá que dominar
ao longo de sua vida ainda não foi produzido, enquanto a escola gira em torno de disciplinas estabelecidas
há um século”. (GIORDAN apud HERNÁNDEZ, 2000, p. 163). No que tange à subdivisão do
currículo em saberes engessados, cabe lembrar que “As propriedades das partes não são necessariamente
propriedades extrínsecas, mas precisam ser vistas e entendidas dentro do contexto do todo, visando
chegar em algo comum, pensando na busca da verdade, do todo”. (CAPRA ,1996, p. 51). Os saberes
são interdependentes e a ciência sistêmica mostra que não podem ser compreendidos por meio da
análise individual. Sendo assim, não é possível construir esses entendimentos na perspectiva da ciência
tradicional, que impõe barreiras rígidas entre as disciplinas, em conteúdos extracurriculares estanques
e destituídos de sentido e significado para todos os implicados. Edgar Moran em entrevista concedida
ao Serviço Social do Comércio (SESC) São Paulo, no ano de 2007, nos diz “No lugar de separar o
conhecimento em compartimentos, devemos pensar como a complexidade pode levar a uma conexão
entre vários modos de pensar”. (In: SOUZA, 2010, p. 16).
Os conteúdos e as estratégias metodológicas usadas em sala de aula precisam valorizar a variedade
de formas culturais e os processos identitários, a pluralidade cultural como um fator de força e
criatividade para caminhar na perspectiva intercultural. Esse entrelaçamento pode se dar dentro da sala
de aula, na estrutura escolar, no diálogo entre cidades na troca de correspondências, sejam elas virtuais
ou não. Podem ocorrer na pesquisa sobre os fazeres, nos costumes, no conhecimento do artesanato de
cada estado da federação, mas também na compreensão de quem são os nossos vizinhos e os lapões, o
que produzem e como vivem.

SUSTENTABILIDADE
A Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, organizada pelas Nações Unidas,
para discutir e propor meios de harmonizar o desenvolvimento econômico e a conservação ambiental,
criou o conceito de sustentabilidade. Esse entendimento pressupõe novas formas de pensar a vida sobre
o planeta, não mais explorando-o, como vimos fazendo desde o início da vida na Terra, mas empregando

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formas de energia inesgotáveis como a energia do vento, da água, do sol, revendo processos produtivos,
reciclando materiais, evitando desperdício, sanando as diferenças sociais, contendo a poluição, enfim
vivendo um paradigma diferente do que ora experimentamos.
Entender que a Terra é uma estrutura finita parece ser ainda hoje uma questão distante para alguns
segmentos preocupados tão somente com questões de produção e valores econômicos. O planeta,
celeiro constantemente saqueado, outras vezes mal explorado, vem há algum tempo dando indícios de
estresse, de finitude de alguns tipos de vida e riquezas apresentando alterações climáticas, catástrofes
naturais, quer em função do desgelo, quer do desmatamento. Faz-se necessário rever valores, construir
outros mais amplos, para muito além das questões econômicas. Na perspectiva da sustentabilidade,
vislumbra-se um entendimento sistêmico3 sobre a existência no planeta com opções políticas mais
acertadas, parcerias entre a cultura erudita, cultura popular e seus saberes, a formação de novas
mentalidades para que se “inaugure um novo pacto social entre os povos no sentido de respeito e de
preservação de tudo o que existe e vive”. (BOFF, 1999, p. 18).
Nesse norte, qual seria o papel do professor de artes visuais, dos alunos e de todo o complexo
escolar nos dias de hoje?
Obviamente estar em sintonia com o novo paradigma de vida sobre o planeta e viver com ética
e adequação às necessidades da contemporaneidade em nosso microcosmos. Nesse enfoque uma das
questões que cabe destacar é o uso dos materiais menos poluentes e a reutilização do maior número
possível de materiais para a produção plástica.
Nos dias de hoje uma lista infindável de possibilidades construtivas e de problemáticas também
pode surgir a partir do emprego de materiais naturais, tais como penas, terras, areia, água, fogo, plantas –
sementes, cascas, folhas, raízes mortas. Muitos são os usos, e só precisamos fazer as adequações ao
grupo humano, à faixa etária a ser trabalhada, bem como ao conteúdo e objetivos da prática artística.
Nos centros urbanos, com qualquer faixa etária que se atue, é possível fazer uso de sucata doméstica
como caixas de papel de diferentes tamanhos – fogão, geladeira, remédios; embalagens de isopor, de
plástico como a de salgadinhos e tampas de pasta de dentes ou as próprias escovas de dente velhas,
rolinhos de papel, embalagens de leite, latas, objetos como sombrinhas quebradas, eletrodomésticos ou
ainda cabos de vassoura, vidros com tampas, papéis como os sacos de pão, jornais, revistas, godês de
frutas e ovos, retalhos de tecidos ou similares.
Para as escolas desprovidas de mídias contemporâneas, a busca por figuras em folhinhas, revistas,
encartes, folders, cartões postais pode estruturar um rico banco de imagens.
Muitos outros materiais podem ser coletados no comércio como as embalagens de filmes, estruturas
tubulares do interior das peças de tecido, tambores de papelão utilizados para a comercialização de
tintas, fios de telefone, carretéis de madeira de diferentes tamanhos e usos, serragem e cepilho entre
outros. A indústria pode contribuir com restos de vime, plástico, couro, camurça, louça quebrada,
formas de gesso, entre outros.
Devemos convir que este país nem parece atravessar por tantos problemas de subsistência se
considerarmos o que as pessoas jogam fora, a abundância de materiais que encontramos no lixo.

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Computadores, móveis, materiais de construção, isso sem falar nos alimentos que poderiam ser
encaminhados para pessoas famintas ou reaproveitados em outro momento. Óbvio que na área de arte
é preciso comprar materiais, e isso é correto e desejável, mas quantos itens poderiam ser suprimidos
das listas enviadas aos pais ou instituições? Como seria diferente se a escola se dispusesse a mudar o
ponto de vista e até mesmo a acomodação não só em relação ao reaproveitamento dos materiais, mas
a maneira de interagir nos contextos! “para aprender os contextos culturais e naturais, a sobreposição e
os sentidos da realidade são requeridas ações que permitam interpretar e trazer identidade aos espaços
de vivência escolar”. (CAMPOS, 2002, p. 84).
Uma escola no meio da floresta, em um barco, uma classe multisseriada pode estabelecer pontes
com arte e cultura com o que vê e conhece sobre rituais, festas, entretenimentos. Com o que vê e
vive nos mercados, feiras, santuários, praças. Com os personagens que aqui e acolá andam pelas ruas
inventam formas de se locomover em carros a manivela, de vestir-se com papéis de bala, de falar e
de trabalhar imitando estrelas do rock. Atuar nessa perspectiva vai ajudar a criar espaço para trocas,
transferências, intercâmbios e prioritariamente construir saberes, identificar sabores ao ato de ensinar
aprender em uma escola viva.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não é mais possível resistir à mudança. Não é mais possível vivermos como temos vivido. A
transformação de paradigma é responsabilidade de todos nós habitantes que tecemos juntos este
planeta TERRA, sistema aberto, porém finito. É inimaginavelmente difícil fazer tudo isso, permanecer
consciente e vivo no mundo adulto dia após dia. O que significa que a educação realmente é o trabalho
de toda uma vida e que precisamos rever entendimentos dados como certos, olhar o horizonte e
mudar o rumo muitas e muitas vezes ao longo de nossa existência como professores, como habitantes
deste planeta.
O que podemos fazer no nosso microcosmo? Produzir menos lixo, cuidar da água, caminhar
e andar de bicicleta em pequenos trechos ou até longos? Pintar com tintas naturais? Comer mais
alimentos orgânicos? Produzir polímeros com milho e penas de aves? Usar energia solar, eólica?
Fotografar com o olho que vê? Produzir sem esgotar as reservas naturais? Trabalhar com as mãos para
desenvolver a inteligência? Viver para muito além da tolerância acolhendo, respeitando e aprendendo
com o diferente? Aprender a escolher os representantes políticos? Lutar pela justiça e igualdade? Viver
com ética?
É necessário paciência e método, para reforçar a compreensão sobre a importância da arte na
perspectiva da quebra do senso comum e esforço para ver a arte como disciplina, conteúdo trabalhado
em todos os níveis de ensino e em todas as áreas do conhecimento humano. “A arte, por si só, não
opera transformações na educação, mas a experiência com os processos de criação pode reorientar o
sentido de ensinar, o papel do professor, a imagem da escola, bem como o valor das práticas culturais

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nas comunidades e na vida pessoal e profissional dos professores e nas relações entre as escolas e as
instituições que promovem ações sociais”. (IAVELBERG, 2003, p. 23).
Outro grande desafio está em promover o convívio, o respeito, de forma natural, de maneira sistêmica,
entendendo que existe uma inter-relação entre os saberes e nas formas de viver e agir no mundo.
O ano de 2010 foi batizado de Ano Internacional para a aproximação das culturas e se faz premente
trabalhar a cultura como “uma matriz, uma memória e uma promessa fundadora”. (FORQUIN, 1993,
p. 14), o que em sintonia com a interculturalidade pode nos oferecer subsídios para a construção de
padrões interacionais com vínculos mais saudáveis e satisfatórios, humanizando e sensibilizando os
indivíduos no ato de construir conhecimento.

BIBLIOGRAFIA
ABRINDO espaços: educação e cultura para a paz. Brasília: UNESCO, 2008. Disponível em: http://unesdoc.
unesco.org/. Acesso em: 09 maio 2012.
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Ministério da Educação e do Desporto. Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília, 1997.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em:
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BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis: Rio de Janeiro, Vozes, 1999.
CAMPOS, Neide P. A Construção do Olhar Estético-Crítico do Educador. Florianópolis: UFSC, 2002.
CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Editora Cultrix,
1996.
CHAUI, Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. 6.ed. São Paulo:
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DAUDÉN, Laura; PRADO, Antonio C. 2012. Surge uma nova versão da Barbie com câncer. ISTO É, São
Paulo, v. 36, n.2213, p. 24, 11 abr. 2012.
DIAZ, Marília; LIBLIK, Ana Maria. A avaliação em artes visuais no ensino fundamental. Curitiba. Ed. UFPR,
c2006.
FORQUIN, Jean-Claude. Escola e cultura: as bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar. Porto
Alegre: Artes Médica, 1993.
HERNÁNDEZ. Fernando. Cultura visual, mudança educativa e projeto de trabalho. Porto Alegre: Artes
Médicas Sul, 2000.
IAVELBERG. Rosa. Para gostar de aprender arte: sala de aula e a formação de professores. Porto Alegre: Artmed,
2003.

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LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Cia
das Letras, 1989.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. Petrópolis: Vozes, 1984.
SANSONE, Livio. Que Multiculturalismo se quer para o Brasil? Cienc. Cult., São Paulo, v. 59, n. 2, apr.jun.
2007.

NOTAS EXPLICATIVAS
1 Definição conforme as conclusões da Conferência Mundial sobre as Políticas Culturais (MONDIACULT,
México, 1982) da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento (Nossa Diversidade Criadora, 1995) e
da Conferência Intergovernamental sobre Políticas Culturais para o Desenvolvimento (Estocolmo, 1988).
2 Pintura naif: arte ingênua, espontânea, realizada por artistas, geralmente sem formação acadêmica que
pintam com cores intensas, sem preocupação com perspectiva, temas como fauna e flora, sincretismo
religioso, cenas interioranas, costumes étnicos. Um dos seus maiores representantes é o pintor francês
Henri Rousseau e no Brasil Heitor dos Pazeres. A França, o Haiti, a Itália, o Brasil e os países, hoje
independentes, que compunham a ex-Iugoslávia – Eslovênia, Croácia, Sérvia, Bósnia-Herzegovina,
Montenegro e Macedônia são os maiores representantes deste tipo de arte. O Brasil concentra 6.000 obras,
a maior coleção do mundo, no Museu Internacional de Arte Naif – MIAN no Rio de Janeiro.
3 Pensamento sistêmico: é uma forma de abordagem da realidade que surgiu no século XX, em contraposição ao
pensamento reducionista ou cartesiano, que visava à fragmentação. É visto como componente do paradigma
emergente, que tem como representantes cientistas, pesquisadores, filósofos e intelectuais de vários campos.
Por definição, o pensamento sistêmico inclui a interdisciplinaridade. (BEHRENS, 2005, p. 53).

LINKS
• http://etnoconverse.punt.nl/
• www.jusbrasil.com.br/
• http://unesdoc.unesco.org /
• http://200.144.190.194/celacc/ ojs/index.php/extraprensa/article/view/epx4-a1.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
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LAZER, MOTRICIDADE HUMANA E INTELIGÊNCIA


EMOCIONAL NO DESENVOLVIMENTO DE
POSTURAS INOVADORAS E ÉTICAS

Antonio T. Camilo Cunha


Márcio J. Kerkoski

INTRODUÇÃO
O objetivo do presente texto é realizar uma abordagem introdutória sobre a perspectiva do lazer,
da (livre) motricidade e da inteligência emocional, como caminhos férteis para o desenvolvimento de
valores e posturas inovadoras e éticas.
Vivemos em um contexto de pós-modernidade (corpo e espírito sujeito a novas tensões) e, ao
mesmo tempo, presenciamos uma crise antropológica e ontológica profunda. O desaparecimento
do bom exemplo e o relativismo dos valores ou substituição rápida de valores levaram ao paradoxo
presente – viver entre a felicidade (‘efêmera’?!) e a infelicidade com medo do futuro. (CAMILO
CUNHA, 1999a). A esse propósito, Sennet refere que

assiste-se à inquietação dos mais velhos que reclamam da destruição daquilo que lhes permitiu
constituírem-se enquanto pessoas: relações e profissões definidas e estáveis; vidas estruturadas e
organizadas em forma de rentabilizar o tempo, a única coisa que realmente possuíam. Valores como
a lealdade, a solidariedade, a cooperação, o investimento recíproco, o prosseguimento de objetivos a
longo prazo… resultavam experiências ricas e compensadoras…. por seu lado, os mais novos também
se sentem inquietos, porque receiam viver num mundo que não lhes dá a segurança, que estruturou a

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vida dos seus pais… Neste sentido a vida Social, Profissional, Familiar (EDUCATIVA), desenrola-se
segundo valores pouco sólidos. (2000, p. 126).

É esse progressivo apagar de valores e emoções que orienta a vida dos cidadãos que Sennett
chama de ‘corrosão do caráter’. Nessa direção, pretendemos fazer um exercício teórico e recuperar
a memória antropológica e ontológica ao enfatizar a livre motricidade, o lazer e a inteligência
emocional como instrumentos da ‘naturalidade humana’ que sempre estiveram a serviço de seu
equilíbrio (emocional) e sua felicidade e também posicionar a educação emocional no contexto do
núcleo familiar, uma vez que o lazer, assim como o esporte, resultam em uma agradável excitação
mimética capaz de controlar as tensões ligadas ao dia a dia tornando-se parte fundamental da
sobrevivência social. (ELIAS; DUNNING, 1992).

SOBRE O LAZER
Renunciamos ao tempo livre. Não ao tempo cronológico (o do lazer), mas ao descanso interior,
à libertação total, ao distanciamento mental do mundo de que necessitamos para arranjar espaço para
os elementos mais delicados da nossa vida. Deixamo-nos guiar pela velocidade, pelo movimento (tudo
acontece já) e pelos impulsos. Já nada é duradouro. (RIEMEN, 2012, p. 27). Essa afirmação diz bem
sobre onde estamos hoje.
Sobre o lazer encontramos diferentes concepções. Com base na revisão apresentada por Almeida
e Gutierrez (2005), podemos encontrar de acordo com o período histórico diferentes tendências de
lazer. Partimos de uma definição clássica de Dumazedier, que demonstra a dicotomia entre trabalho e
lazer, posicionando este como

um conjunto de ocupações às quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja para repousar,
seja para divertir-se, recrear-se e entreter-se ou, ainda para desenvolver sua informação ou formação
desinteressada, sua participação social voluntária ou sua livre capacidade criadora após livrar-se ou
desembaraçar-se das obrigações profissionais, familiares e sociais. (2000, p. 34).

Já as definições contemporâneas discutem o lazer no mundo globalizado, a exclusão das classes


menos favorecidas e as opções de lazer para a população, como veremos a seguir.
No mundo globalizado, segundo os autores, as opções de lazer estão concentradas nas classes mais
altas da sociedade em parques temáticos, estruturas de turismo, academias de ginástica e escolas de
esportes, espetáculos de teatro, cinemas, apresentações nacionais e internacionais de música, bares e
restaurantes finos. Notoriamente, o esporte e o lazer foram, desde o princípio, utilizados como símbolo
de distinção social. (ELIAS; DUNNING, 1992). Algumas práticas eram destinadas a determinadas
classes sociais.
Como tendência atual na discussão sobre o tema do lazer, os autores utilizam a “definição da
decisão individual do lazer e não mais vinculado diretamente há um tempo determinado socialmente”.

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(ELIAS; DUNNING, 1992). Destacam que “além da associação do lazer à educação e controle da
criminalidade, sua aproximação com temas como qualidade de vida, incentivo à atividade física,
valorização da cultura” (ELIAS; DUNNING, 1992) são eminentes e porque não dizer também sobre
posturas inovadoras, uma vez que o processo de inovação parte de um momento de criação, muitas
vezes repousado nos momentos de lazer.
Segundo Lombardi (2005, p. 14), o lazer é tão fundamental quanto o transporte, a educação,
a moradia, a saúde, o saneamento básico e a alimentação são para a vida de todo e qualquer ser
humano. O lazer tem como funções para o ser humano, independentemente do meio em que esteja
inserido e vivendo, o descanso, o divertimento e o desenvolvimento humano – pessoal, social e
ético. Dessa forma, a vivência de um lazer de qualidade pode proporcionar a emancipação de um
homem crítico, criativo, capaz de gerar e vivenciar normas e valores, portanto a emancipação de
um homem ético.
Nessa lógica do lazer como instrumento de desenvolvimento humano e como decisão individual
é que se pauta a ligação do lazer e da (livre) motricidade, como caminhos para o desenvolvimento
de posturas inovadoras e éticas. Pois é na busca de seres humanos mais desenvolvidos, no sentido
da ‘naturalidade humana’ com autonomia de decisões, que podemos encontrar uma forma de
desenvolvimento de pessoas emocionalmente mais inteligentes, que saibam interagir melhor com seus
pares e com o ambiente onde vivem e que, portanto, entenderão muito bem o valor e o direito de todos
os seres à conservação do meio ambiente e a sustentabilidade.

SOBRE A LIVRE MOTRICIDADE


Tomamos também como referência a atividade física natural, ou naturalista, homem e natureza,
materializada na livre motricidade. Esse conceito parte do pressuposto de que aí se encontram as
premissas de um desenvolvimento motor e emocional saudável e de uma vida motora, educativa,
social, ética e emocional de qualidade. O sentido da livre motricidade agrega as atividades reconhecidas
como de aventura, radicais e abertas (ecológicas), atividades típicas e abundantes no meio do campo,
próximo às raízes humanas, que o meio urbano tenta de diversas formas recuperar. São matérias motoras
que, em sua essência, estão enquadradas numa abordagem pós-estruturalista próxima da subjetividade
das emoções e da imaginação. (CAMILO CUNHA, 1999b).
Por meio das atividades de aventura, radicais e abertas (ecológicas), ocorre a instrumentalização
do corpo pela ação das práticas de significação, dando suporte a um paradigma a que poderemos
chamar de um movimentar-se cognitivista, desenvolvimentista, ético e qualitativo pelas emoções que
possibilitam uma abertura às experiências com diferentes interações entre o humano e a natureza.
Talvez esteja mais de acordo com um conceito de movimento e formação e intervenção social, como
• função do conhecimento;
• estético/expressivo;

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• comunicação/relação;
• higiene/saúde – abordagem médica quer na escola, quer na sociedade;
• compensação;
• egoística – auto e heteroemulação;
• catarse;
• inteligência emocional, como ‘almofada’ desses sentidos e abrangências de movimento.

Daqui resulta ‘certa prudência’ na defesa do movimento construído pela racionalidade (por
exemplo: Educação Física na escola no meio rural ou urbano). São atividades que, em sua essência,
estão enquadradas numa abordagem estruturalista, fechada, de racionalidade curricular e social e ainda
próxima do rendimento, da objetividade, do desempenho, da racionalidade técnico-táctica. Nesse
contexto escolar, as emoções são ‘modeladas’ pela racionalidade, dessa forma as emoções/inteligências
poderão não se efetivar em sua essência. (CAMILO CUNHA, 1999c).
Com base nessas perspectivas, não queremos deixar de referir outro conceito teórico, o do
movimentar-se. Esse conceito fundamenta dois outros: de escola móvel e de sociedade móvel, seja no
meio urbano, seja no meio rural. Em uma rápida análise sobre a escola/sociedade de hoje, facilmente
constatamos que ela evoluiu ou pelo menos é diferente das anteriores. Essa evolução é resultado do
desenvolvimento social interno e externo, tecnológico, cultural e multicultural. Em parte esse avanço
foi, mesmo que singelo, produto da capacidade e necessidade humana de inovação.
Constata-se que o discurso teórico/prático, o pensamento e a ação curricular sobre o movimento
e o discurso político têm insistido na ruptura da concepção clássica de escola e sociedade. A escola e a
sociedade da racionalidade técnica, dos modelos padronizados (memória), das disciplinas e horários
rígidos, do desempenho e da eficácia, dá lugar à escola (sociedade) pós-moderna da inteligência, da
inovação, do ser ético, do agir, da emoção, da imaginação, da criatividade, do ‘sujar as mãos’.
Contudo, apesar de existirem novos olhares sobre a escola social e de exercício da cidadania, sobre a
motricidade, o lazer e as emoções, esses olhares não têm tido uma correspondência praxiológica, que essa
evolução diz protagonizar. Quando se faz uma análise empírica da motricidade, constatamos que continua
‘ancorada’ na lógica do movimento – normas, técnicas e táctica de jogar/movimentar, como já tivemos
oportunidade de referir anteriormente – e que é um grande entrave ao desenvolvimento da inteligência
emocional. Desse fato, reforçamos a defesa efetiva de escola/sociedade pós-moderna (modernidade tardia),
em que há lugar (aliás, a escola/social será todo o lugar) para o movimentar-se. Lugar de experiências,
reflexão, autoconhecimento, autoeducação, desenvolvimento pessoal, vivências e aprendizagem. A escola/
/sociedade como lugar de vida, cultura, lazer e movimento, orientada para a resolução de problemas,
inovação, necessidades, expectativas, objetividade e subjetividade disciplinada e ancorada nas emoções.
Nesse contexto, e na lógica de Hildebrandt-Stramann (2002), a escola/sociedade transforma-
-se numa parte construtiva de aprendizagem e vivência escolar/social. Em nosso entender, cognição,

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emoção e motricidade constituem a trilogia perfeita para a concepção do movimentar-se. De fato, esse
envolvimento poderá:
• contribuir para a efetivação dos princípios de escola e de sociedade democrática. Aquela (escola
de massas – eclética, inclusiva, com direito de acesso e sucesso), ao preconizar a defesa de sua
autonomia, potencializando as culturas de cada região/escola, encontrará no movimentar-se
um aliado de peso;
• tornar visíveis as características e, consequentemente, as culturas locais, uma vez que cada
região/escola/meio tem características e movimentos (emoções próprias) materializados no
movimentar-se;
• estender o movimento para além dos muros da escola. O movimentar-se não fica ancorado
nas aulas de Educação Física de cada escola. Ele vai mais além. Faz a ‘ruptura’ com os
métodos tradicionais e ‘sobe as paredes’ da escola, diluindo-se na comunidade/social. Está em
condições de reconhecer, experimentar, inovar, participar de forma ética. A escola alarga-se, e
a comunidade parte do pressuposto de que para educar uma criança é preciso toda uma cidade
(escola/sociedade móvel).

Observando a reflexão de Hildebrandt-Stramann:

Uma escola/sociedade móvel, para mim é uma escola/sociedade que reflete, conscientemente, o
processo de desenvolvimento de uma cultura escolar/social/meio e que, dentro do possível, o controla
e o guia com as suas próprias forças. (2002).

Podemos perceber que sua compreensão de formação parte de dois princípios superiores:
• em primeiro lugar, ela se esforça por uma cultura de aprendizagem e educação que permite às
crianças e aos jovens refletir a realidade de maneira produtiva, apoiando assim o processo de
desenvolvimento na tentativa de uma autogênese e de uma autoformação criativa, respeitando
seus desejos e emoções;
• em segundo lugar, ela está convicta de que esse processo só terá sucesso quanto mais a cultura
de ensino e aprendizagem for caracterizada por diferentes maneiras corporais de abertura ao
mundo e à transmissão de conhecimentos. Um desses tipos de cultura escolar seria o contraste
dos programas escolares, em que os mais variados eventos estão orientados para o aumento do
aproveitamento, baseados nos mais variados indicadores de rendimento, medidos por meio
de testes e acionados posteriormente ao aproveitamento geral. Esse modo subordinado de
intermediar movimento, para o qual, no contexto das discussões sobre um conceito de uma
escola móvel existem muitos exemplos, não se presta para o alcance de uma biografia do
movimento. (HILDEBRANDT-STRAMANN, 2002).

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E não se presta (dizemos nós) para a evolução da inteligência emocional, que tem na criatividade
e na imaginação seus grandes suportes. A esse propósito, gostaríamos de citar o professor Agostinho da
Silva, quando afirma que a imaginação está para além da filosofia e da ciência.
A primeira tem um perigo terrível, que é o de cada homem, por esse pensamento filosófico,
acabar de construir uma verdade e achar que é o senhor da verdade e, portanto, ter quase à mão uma
inquisição pronta a agir.
Quanto à segunda, existe também o perigo de pensarmos que o universo é inteiramente matemático,
que tudo está determinado logicamente quando, hoje, a própria Física Quântica está quase a ponto de
concordar que a vida tem mais de imaginação (e emoção, grifo nosso) do que a matemática.
A Filosofia e a Ciência foram bons instrumentos para evoluirmos, como são os degraus da escada
e o corrimão, mas talvez não um patamar em que fiquemos nem um terraço para contemplarmos o
verdadeiro céu. (MENDANHA, 2002).

SOBRE A INTELIGÊNCIA EMOCIONAL


Analisando a palavra ‘emoção’, encontramos dois derivados do latim: e e movere, que significam
afastar-se – mover-se –, e nessa ação está implícita uma emoção (GOLEMAN, 1995) ou, como apontam
Martin e Boeck (2004), mover-se para fora, para o movimento e a mudança. Nesse sentido, podemos
entender que não existem emoções sem ocorrer o sentido de movimento ou livre motricidade. Esse
movimento pode ser entendido na tradução literal como uma ação motora ou, em outra interpretação,
como oposição ao conformismo, à estagnação, ao parar no tempo e no espaço e, na perspectiva da
sustentabilidade, o movimento em busca da melhoria da qualidade de vida (sustentabilidade social),
respeitando os diferentes valores entre os povos e as especificidades locais (sustentabilidade cultural),
em direção à integração social e ao respeito ao próximo (sustentabilidade ambiental).
Dentre as várias definições sobre o termo ‘inteligência emocional’, Greenberg e Snell (1999, p.126)
argumentam que as emoções têm várias facetas, incluindo pelo menos quatro consideradas básicas.
A primeira é composta por um componente expressivo e motor e se refere ao fato de o ser humano
expressar suas emoções por meios motores mediante a linguagem corporal. É nessa faceta que o
movimento explicita ou representa os valores sociais globais e locais.
A segunda faceta, um componente sentimental, refere-se ao estado de espírito interno ou a
sentimentos derivados de diferentes situações vivenciadas. Nessa faceta o movimento exala sentimentos,
entre eles os da união e do respeito ao próximo.
A terceira faceta, um componente controlador, indica a capacidade de controlar os sentimentos.
Por meio do movimento experimentado ou vivenciado contextualmente, nessa faceta o ser humano
olha para dentro de si, percebe-se como ser único e ao mesmo tempo social, portanto consegue controlar
suas emoções, entre outras razões, para a busca da melhor qualidade de vida.
A quarta faceta indica a capacidade de processar as informações transmitidas pelos outros ou
aquelas que fazem parte dos três primeiros componentes. Nessa faceta o movimento é utilizado como

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meio de interpretações e aprendizados, por meio dos gestos, olhares, sorrisos, esforços. Também é nela
que as interpretações são contextualizadas e ao observar e entender o que o outro quer transmitir com
o movimento, o gesto e o olhar, se está no caminho do respeito ao outro, à cultura e história do outro.
É nesses pontos que observamos a ligação entre movimento, inteligência emocional e sustentabilidade.
Conforme a definição clássica de Dumazedier (2000), o lazer é um conjunto de ocupações às
quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se
e entreter-se ou, ainda, para desenvolver sua informação ou formação desinteressada, sua participação
social voluntária ou sua livre capacidade criadora após livrar-se ou desembaraçar-se das obrigações
profissionais, familiares e sociais.
Encontramos portanto um cruzamento entre os conceitos de emoção, inteligência emocional,
lazer, sustentabilidade, ética e inovação, ou seja, um comportamento humano em oposição ao
conformismo do mundo profissional, da falta de tempo e do estresse da sociedade pós-moderna, um
movimento humano em busca da própria sustentabilidade no sentido de garantir e melhorar para o
futuro as condições que permitem os processos no presente.
O comportamento livre, voluntário, com o objetivo de repousar, divertir-se, recrear-se, entreter-se
e ser criativo assegura as condições futuras ideais. Tal comportamento é mais facilmente adotado
por aqueles que conseguem expressar suas emoções, entendem seu estado de espírito interno ou os
sentimentos derivados de diferentes situações vivenciadas, culturais e sociais, têm a capacidade de
controlar seus sentimentos e processar as informações transmitidas pelos outros.
Se considerarmos o desenvolvimento do ser humano como preconiza Gardner (1994) para
o desenvolvimento e o relacionamento das inteligências múltiplas, entendendo que o ser humano
desenvolve-se pela interação e interligação entre todas as suas inteligências, o resultado final, ou melhor
colocado, o resultado momentâneo do indivíduo em determinado tempo de sua vida, é o resultado
das interações e interligações entre os diferentes tipos de inteligências ou comportamentos que o
envolvem, ou seja, entre a interação e interligação de tudo aquilo que faz parte do humano, entre eles,
o movimento, o esporte, a cultura, o meio social, o meio ambiente, o lazer e a inteligência emocional.
Kerkoski (2001 e 2009) encontrou indicações de que o contexto do esporte, que envolve
o movimento humano, até certo ponto espontâneo, livre e criativo, é um campo fértil para o
desenvolvimento de aptidões da inteligência emocional, ou seja, parece haver uma ligação entre
o movimento e o desenvolvimento da inteligência emocional e, por que não, em um sentido
especulativo, o desenvolvimento da sustentabilidade. Ainda em relação ao esporte e à inteligência
emocional, Dobersek e Arellano (2017) indicaram uma relação positiva entre empatia, autoconfiança
e desempenho acadêmico. Além disso, observaram que estudantes atletas demonstraram conceitos
maiores (notas) em comparação com não atletas.
Especificamente observando o desenvolvimento da inteligência emocional, entendendo
que esta afeta e é afetada pelas ações de lazer, como preconizado por Gardner (1995), para as
inteligências múltiplas a infância e a adolescência são as fases de aprendizado emocional que vão
determinar os hábitos, as emoções básicas ou as competências ao longo de toda a vida subsequente.
(GOLEMAN, 1995).

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Como verificaram Oliveira e Kerkoski (2017) em estudo sobre a adolescência e o autodomínio


emocional, existe a necessidade de orientar ou treinar o adolescente para momentos difíceis, buscando
integrar estratégias autorreguladoras para exercitar melhores respostas ao ambiente. Apesar de as
mudanças decorrentes do desenvolvimento biológico acarretarem no sujeito maiores influências para
comportamentos negativos, as experiências positivas, o bem-estar, a aprendizagem socioemocional e o
apoio de adultos e pais podem contribuir para o desempenho ótimo do indivíduo em todos os aspectos
de sua vida, possibilitando ao aprendiz o acesso pleno à cidadania e a ética.
A importância dos primeiros anos de vida também é observada ao longo da obra de Shapiro
(2002) no que se refere à inteligência emocional das crianças. O autor, ao descrever os aspectos que
envolvem a educação emocional nas crianças, enfatiza as características ou competências do quociente
emocional, que são desenvolvidas desde o nascimento. Segundo ele, dependendo dessas características,
parece haver uma idade ótima de desenvolvimento, que pode variar desde o nascimento até a idade de
6 a 7 anos e de 11 a 13 anos.
Como afirmou Goleman (2014), já aos 2 ou 3 anos de idade as crianças são capazes de relacionar
palavras a sentimentos e nomear uma expressão facial como ‘feliz’ ou ‘triste’. Na adolescência esses
processos de ler os sentimentos de uma pessoa ficam mais fortes, construindo o caminho para as
interações sociais mais consistentes e, por que não dizer, mais éticas.
Dessa forma, as competências emocionais são desenvolvidas essencialmente nas primeiras idades
e parece que muitas dessas características acompanham a pessoa no decorrer da idade adulta; em outras
palavras, aprender a ser emocionalmente inteligente é uma forma de preparar-se para o futuro ou
sustentar o aprendizado das primeiras idades para a fase adulta.
Nas estratégias de ensino, as figuras dos pais servem de exemplo, num primeiro momento,
dividindo esse papel mais tarde com os professores e adultos do ambiente escolar urbano ou rural que,
segundo Brenner e Salovey são aqueles “que socializam as emoções ao expor as crianças às suas interações
com outros alunos e professores, ao ensinar e instruir e ao controlar as oportunidades oferecidas pelo
ambiente”. (1999, p. 226).
Segundo estudo realizado por Oliveira e Kerkoski (2014), a prática docente tem responsabilidade
pelo desenvolvimento do educando no ambiente escolar. Cabe ao professor favorecer um clima
agradável, apoiar os alunos durante as atividades propostas e influenciá-los positivamente. Por isso a
grande importância, como referido anteriormente, da noção de um novo conceito de escola. Assim
como salientou Goleman e Senge (2015), a aprendizagem de modo geral prospera quando existe um
ambiente de calor humano e apoio em sala de aula, pois assim os alunos sentem segurança e sabem que
são amados.
Entenda-se, também, que dentre as várias oportunidades oferecidas pelo ambiente escolar que
estimulam e desenvolvem a inteligência emocional estão as atividades e os meios oportunizados para
o lazer e o esporte. O ensino do primeiro, sob a perspectiva da inteligência emocional, inicia-se com
o aprendizado das competências emocionais por meio das oportunidades ofertadas e dos exemplos
dados pelos pais, e continua se desenvolvendo e aperfeiçoando conforme as oportunidades ofertadas
e os exemplos dados pelos professores, de acordo com uma visão de escola/sociedade pós-moderna,

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na qual há lugar para movimentar-se, viver experiências, refletir, autoconhecer-se, autoeducar-se,


desenvolver-se pessoalmente e aprender.
Dessa forma, parece ser emergente e necessário discutir a escola/sociedade no contexto de
pós-modernidade, como lugar de vida, cultura, ética, sociedade, lazer e movimento, orientada para
a resolução de problemas, necessidades, expectativas, objetividade, subjetividade, sustentabilidade,
disciplinada e ancorada nas emoções ou na inteligência emocional.

BIBLIOGRAFIA
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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
757

SAÚDE COLETIVA

Eleusis Ronconi de Nazareno

O QUE É SAÚDE? E SAÚDE COLETIVA?


Quando pensamos em saúde, quase imediatamente nos lembramos daqueles que não a têm ou
a perderam, isto é, pessoas que ficaram ou estão doentes. Lembramo-nos inclusive dos que ficaram
incapacitados ou com complicações e dizemos que eles não têm saúde. O caso extremo lembrado é dos
que não resistiram e morreram.
Em festas de aniversário, Natal, Ano Novo e outras recebemos muitas vezes cumprimentos como:
‘O importante é ter saúde, o resto, a gente dá um jeito’, ou então ‘Saúde e felicidades’, ‘Desejos de paz,
saúde e alegria’, ‘Muita saúde pra você, meu irmão’, e assim por diante. Com certeza você já recebeu
mensagens semelhantes e já expressou desejos em que a saúde é valorizada.
E o que dizer do hábito de dizer ‘Saúde’ logo que alguém espirra? Muito comum, não é? Temos
então compreensão da saúde como algo imponderável, que alguns têm mais, outros menos (parece
depender da sorte), mas que é fundamental para uma vida boa e produtiva.
Ao longo do tempo, houve várias explicações sobre a saúde e a doença. Essa diversidade persiste até
hoje, basta conversarmos com pessoas que moram no mesmo território que nós ou então observarmos
pessoas que moram em locais distantes, por meio dos meios de comunicações ou de viagens. Ao
perguntarmos sobre as causas de certos acometimentos de saúde a avós, religiosos, professores de ciências
ou curandeiros, receberemos tantas respostas quantas forem as perguntas, e cada resposta corresponde a
uma forma de compreensão do mundo e da vida, e também ao momento histórico em que se encontra.

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No sentido de produzir uma única definição, várias tentativas foram feitas. Muito conhecida é a
definição de saúde proposta pela Organização Mundial da Saúde (OMS) que foi inserida em seu texto
original, de 1946: “Saúde é um completo estado de bem-estar físico, mental e social e não meramente
a ausência de doenças”. (WHO, 2006. p. 1).
Entretanto, por mais que o bem-estar seja facilmente compreendido como estado do qual
usufruímos quando temos saúde, é muito difícil estarmos permanentemente em ‘completo estado de
bem-estar’, pois o enfrentamento das mudanças do corpo, suas inadequações quanto à alimentação,
seus problemas de funcionamento quando acometido por indisposições, cansaço, desgastes, lesões e as
mais diversas doenças nos tornam pessoas vulneráveis e sujeitas a muitas adversidades.
Assim, é preferível pensar que tudo o que ocorre a cada um deve ser enfrentado e superado da
melhor maneira possível. Para isso, buscaremos uma nova visão, que nos permita olhar para a saúde
de outra forma, sem nos preocuparmos em atingir um estado permanente de bem-estar, no qual tudo
esteja perfeito, mas nos concentrando no que precisamos fazer para enfrentar os fatos de nossas vidas
que podem afetar esse bem-estar.
Propomos para isso pensar em uma concepção mais dinâmica de saúde:

SAÚDE é a capacidade de lidar com as adversidades da vida, sejam elas físicas ou psíquicas. Ou seja,
uma capacidade que cada um tem e pode desenvolver para enfrentar o que desafia a plenitude da vida
do ponto de vista biológico e mental afetando o potencial que todos têm de agir e interagir no mundo.
(NAZARENO, 2012. p. 3).

Essa visão nos coloca o desafio de desenvolver capacidades e também de superar dificuldades para
que possamos atingir o potencial que temos de viver uma vida mais plena. Do mesmo modo que a
saúde depende de uma dimensão biológica, que poderíamos definir como uma regularidade anatômica
e funcional, ela também depende de uma possibilidade sócio-histórica de participar ou usufruir daquilo
que a humanidade já produziu, como conhecimento, tecnologias, políticas públicas etc.
A doença, nessa perspectiva dinâmica, seria aquilo que impõe barreiras, atrapalha o fluxo tranquilo
da vida. Sua dimensão individual não é difícil de ser vista: quantas vezes vimos pessoas sofrendo do
mesmo acometimento, como uma gripe, e reagindo de formas diferentes? Ou então conhecemos uma
pessoa que tem uma doença crônica, como diabetes mellitus, e leva sua vida normalmente. E ainda
outra cujo grau de sofrimento emocional a impede de viver plenamente.
Da mesma maneira, podemos pensar que a saúde de muitas pessoas vivendo juntas, numa
comunidade ou sociedade, deve caracterizar muito mais do que um estado de bem-estar coletivo como
um fim em si mesmo, mas o desenvolvimento das capacidades dessas comunidades ou sociedades para
trabalhar com todos os elementos que podem afetar a saúde dos seus membros.
Portanto, podemos conceber saúde coletiva conforme essa perspectiva, e não apenas como a soma
da saúde de cada indivíduo da coletividade:

SAÚDE COLETIVA é o desenvolvimento da capacidade coletiva, isto é, de grupos de pessoas,


comunidades ou populações de lidar com as adversidades que afetam o conjunto social de modo a

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enfrentar os desafios e ameaças à saúde que impedem o desenvolvimento pleno da vida social, seja
em relação ao conjunto dos indivíduos no aspecto de saúde individual, seja em relação aos processos
coletivos que atingem a sociedade como um todo. (NAZARENO, 2012. p. 5)

Como nos alerta Rosen, os maiores problemas de saúde que os homens enfrentaram ao longo da
história humana sempre estiveram relacionados à vida em comunidade: “Por exemplo, o controle das
doenças transmissíveis, o controle e a melhoria do ambiente físico (saneamento), a provisão de água e
comida puras, em volume suficiente, a assistência médica, e o alívio da incapacidade e do desamparo”.
(1994, p. 31).
No Brasil, a saúde coletiva se apresenta como um “campo de produção de conhecimentos voltados
para a compreensão da saúde e a explicação de seus determinantes sociais, bem como um âmbito de
práticas direcionadas prioritariamente para a sua promoção, além de voltadas para a prevenção e o
cuidado a agravos e doenças”. (SILVA; PAIM; SCHRAIBER, 2014, p. 3).
Ou seja, devemos compreender as características sociais da região em que as pessoas vivem e
propor intervenções para que sua vida seja mais plena. A seguir, falaremos mais dessas dimensões.

DETERMINAÇÃO SOCIAL DA SAÚDE


Você alguma vez já se perguntou
• Por que alguns indivíduos são mais saudáveis que outros?
• Por que a expectativa de vida varia nas regiões do Brasil?
• O local onde as pessoas vivem pode influenciar na sua saúde?
• Temos o mesmo risco de adoecer ou de morrer cedo?
• Como as doenças se distribuem nas populações?

É interessante percebermos que as pessoas e os grupos se diferenciam entre si, e isso nos ajuda a
responder a algumas das perguntas anteriores. Por exemplo, existem algumas doenças, como o câncer
de próstata, que vão acometer exclusivamente indivíduos do sexo masculino; do mesmo modo há o
câncer de colo de útero, que acomete indivíduos do sexo feminino. Outras situações são específicas de
determinadas faixas etárias ou ocorrem apenas em pessoas que têm determinada herança genética. A
situação de saúde, nessa ótica, se explica por meio das diferenças naturais entre os indivíduos/grupos.
Mas existem algumas divergências que não se explicam por sexo, idade, genética ou outro
fator natural. São as chamadas diferenças sociais, relacionadas a posições sociais distintas, com suas
correspondentes condições de vida e trabalho.
Observe o Gráfico 1, elaborado com dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade do
Ministério da Saúde.

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Gráfico 1 – Taxa de mortalidade de homens e mulheres de 20 a 59 anos.

Taxa (óbitos por mil habitantes)


12,0
10,0
8,0
6,0
4,0
2,0
0,0
20 a 29 30 a 39 40 a 49 50 a 59
Idade (anos)

Masculino Feminino

       Fonte – Moura, 2012, p. 20 .

Segundo Moura (2012), a taxa de mortalidade (óbitos por mil habitantes) geral no Brasil nessa
faixa etária é igual a 3,5 óbitos para cada mil habitantes. Porém, se considerarmos separadamente
homens e mulheres, a taxa de mortalidade de homens é 2,3 vezes maior que a de mulheres, e nos
grupos mais jovens pode chegar a quatro vezes.
Será que podemos explicar essa diferença de mortalidade entre os sexos como algo natural ou
precisaríamos recorrer a um padrão de comportamento masculino, ao tipo de trabalho, à escolarização etc.?
Uma explicação mais completa da situação exemplificada e de outras, passa pela compreensão
das chamadas diferenças sociais dos indivíduos e grupos. São as chamadas ‘iniquidades em saúde’,
vinculadas a posições sociais diferentes.

As iniquidades em saúde são causadas pelas condições sociais em que as pessoas nascem, crescem,
vivem, trabalham e envelhecem, as quais recebem a denominação de determinantes sociais da saúde.
Esses determinantes incluem as experiências do indivíduo em seus primeiros anos de vida, educação,
situação econômica, emprego e trabalho decente, habitação e meio ambiente, além de sistemas
eficientes para a prevenção e o tratamento de doenças. Estamos convencidos de que as intervenções
sobre esses determinantes – para os grupos vulneráveis e a população como um todo – são essenciais
para que as sociedades sejam inclusivas, equitativas, economicamente produtivas e saudáveis. (OMS,
2011, p. 1).

Existem tentativas para relacionar os fatores que influenciam o estado de saúde dos indivíduos e
grupos. Já se sabe, por exemplo, que quanto mais rica a região ou país, melhores são os indicadores de
saúde. Entretanto, há um limite que pode ser verificado ao se comparar países com rendas semelhantes
e indicadores de saúde distintos. A explicação se dá, então, pelo grau de distribuição interna da riqueza.
Até aqui pudemos compreender que o estado de saúde não se reduz a um plano biológico e
individual, mas ultrapassa em muito esses planos, incluindo fatores subjetivos, como a percepção do

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estar saudável; diferenças naturais, como sexo; diferenças sociais, como o pertencimento a dadas classes
sociais; e até a economia de um país. Mas como poderíamos agrupar todas essas informações?
Há várias tentativas de elaborar modelos explicativos. Iremos adotar o modelo de Dahlgren e
Whitehead, conforme Figura 1. Embora seja uma análise focada no indivíduo, ela nos permite visualizar
o conjunto.

Figura 1 – Determinação da saúde e da doença.

lturais e ambi
icas, cu entai
econôm s ge
rais
c io
s o
õ es Condições de vida

nd e de trabalho
Co
Ambiente
Desemprego
de trabalho
om
iais e c unitárias
s soc
de
Re da dos indivíduo Água e esgoto
Educação
d e vi s
o
il
Est

Serviços
sociais de
Produção saúde
agrícola e de
alimentos
Habitação
Idade, sexo e fatores
hereditários

       Fonte – Adaptado de Buss e Pelegrini Filho, 2007, p. 84.

Esse modelo explicativo parte de um nível mais próximo ao indivíduo e considera fatores naturais,
como idade e sexo, e fatores hereditários. Segue para um nível acima, trabalhando com os chamados
‘estilos de vida’ dos indivíduos. Devemos considerar que esse nível, embora vinculado aos indivíduos,
carrega em si muito da determinação social, pois é fortemente influenciado pelo tipo de emprego,
renda, moradia, propaganda e publicidade etc.
A partir daí chega-se a um nível intermediário, no qual se consideram as redes sociais e comunitárias.
Incluem relações familiares, grupais, redes de apoio. Já é sabido que comunidades bem organizadas e coesas
têm melhores indicadores de saúde. Além disso, basta recorrermos à nossa experiência concreta: é comum,
diante de dificuldades ou adoecimentos, buscarmos apoio em pessoas próximas, na família, não é mesmo?
Em um nível seguinte, chegamos às chamadas ‘condições de vida e de trabalho’, que incluem
produção agrícola e de alimentos; educação; ambiente de trabalho; desemprego; água e esgoto; serviços
de saúde; habitação. Por fim, temos os macrodeterminantes, que embora mais distantes do indivíduo,
influenciam todos os fatores situados abaixo deles. São as condições econômicas, culturais e ambientais
da sociedade.
Em seguida, para ficar mais claro, vamos detalhar mais alguns desses fatores.

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Saneamento e higiene
As doenças que se transmitem pela contaminação de água, alimento ou solo pelas fezes vão atingir
muito mais pessoas onde não há saneamento básico adequado, isto é, em locais sem abastecimento de
água tratada, sem coleta e tratamento de esgoto.
Aqueles locais onde as casas têm água de torneira e banheiros são melhores para se morar.
Entretanto, se depois de usadas essas águas (também chamadas águas servidas ou residuais) são jogadas
em valetas a céu aberto, córregos ou mesmo em rios que passam próximo a elas está-se criando um
problema de sustentabilidade ambiental, poluindo os rios, que assim não terão mais condições de ter
vida – os peixes morrerão, seu cheiro será desagradável e suas águas ficarão cheias de micróbios que
podem causar doenças se forem bebidas ou usadas para banho.
Além da falta de saneamento básico, sabemos que essas doenças vão acometer mais as pessoas
que não têm hábitos de higiene adequados. E onde muitas pessoas se expõem a essas condições, surtos
ocorrem frequentemente, como de:
• diarreias infecciosas;
• verminoses;
• amebíases;
• hepatite A;
• infecções de pele.

Veja que aqui existem dois fatores: um ligado ao ambiente, o saneamento, e outro relacionado
aos comportamentos, a higiene. Ambos se somam quando faltam, gerando mais exposição às doenças.
Mas pode ocorrer que, na falta de um ambiente adequado, a higiene pessoal seja protetora e o contrário
também, na falta de higiene pessoal as condições adequadas de saneamento ambiental consigam
proteger em certo grau as pessoas e menos casos ocorrem.
De qualquer modo, ambos devem ser incentivados em qualquer lugar onde haja muitas pessoas
morando, trabalhando, estudando, se divertindo. Mas não se pode ter a ilusão que só um ou outro
desses fatores, isoladamente, seja suficiente para evitar totalmente essas doenças.

Cuidado com os alimentos


Outro elemento, geralmente esquecido na prevenção dessas doenças na coletividade, são os
cuidados com os alimentos, tanto para se evitar as contaminações na produção, no preparo e na
manipulação quanto em sua conservação em ambientes limpos e em temperaturas adequadas.
Desse modo, podem ocorrer surtos de infecções alimentares, mesmo que o saneamento e a higiene
estejam conforme o recomendado. Isso porque quando não se observa a higiene dos alimentos, os
agentes de doenças podem encontrar um ambiente propício a sua proliferação e se disseminar a um
grande número de pessoas que os consomem.

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Essa também é uma preocupação da saúde coletiva. Se isso acontecer é preciso avisar ao pessoal da
Vigilância Sanitária para verificar o problema e evitar que ele aconteça novamente. Os fiscais da vigilância
vão então aos locais onde os alimentos foram produzidos, preparados, vendidos e consumidos para
investigar em que ponto houve falhas e assim orientar os responsáveis para prevenir novas ocorrências.
Eles podem até recolher alimentos e aplicar multas, se for necessário.

HÁBITOS
Normalmente as pessoas, mesmo aquelas que não trabalham com saúde, percebem que alguns
comportamentos, especialmente aqueles que se tornam hábitos, influenciam a saúde positiva ou
negativamente.
É mais fácil observar os hábitos alimentares, de consumo de álcool e outras drogas, relacionados
à atividade física, bem como os modos de relacionamento interpessoal, que podem ser mais ou menos
respeitosos.
Algumas vezes é possível relacionar certos comportamentos à maior probabilidade de doenças
crônicas e cânceres. Exemplos:
• a diabetes em adultos é mais comum em pessoas com mais peso, que comem mais doces e
massas e são sedentárias;
• a hipertensão arterial aparece com mais frequência em pessoas acima do peso, que são muito
estressadas e interagem com os outros de forma tensa;
• o enfisema e a bronquite crônica são mais comuns em fumantes;
• os fumantes apresentam mais cânceres.

Assim, é importante que em uma sociedade onde essas doenças acontecem cada vez mais que as
mudanças sejam feitas no conjunto. Isso porque as pessoas não conseguem mudar sua forma de agir,
se alimentar e trabalhar sem que existam condições favoráveis na sociedade que estimulem hábitos e
comportamentos saudáveis. Por exemplo, praticar atividades físicas e não ficar parado a maior parte do
tempo é algo fácil para pessoas cujo trabalho exige mais esforço ou para crianças e adolescentes, para
os quais é natural estar sempre brincando, correndo, andando de bicicleta etc., gastando muita energia
do corpo.
Mas com o tempo nos habituamos a uma vida mais cômoda, a andar de carro ou ônibus, a passar
a maior parte do tempo sentados, sem precisar nos esforçar porque as máquinas fazem a parte pesada
do trabalho (máquina de lavar roupas, cortar grama, automóveis, tratores etc.), e a vida vai ficando
mais sedentária.
O sedentarismo não é uma opção unicamente pessoal, mas um comportamento socialmente
produzido por um estilo de vida que incorpora mais mobilidade por veículos sem gasto energético

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pessoal, em função de distâncias, trânsito, concentração urbana; trabalho progressivamente menos


dependente do esforço físico humano; lazer crescentemente realizado de forma passiva; enfim,
contribuições da modernidade para o bem-estar do ser humano que o torna cada vez menos agente de
força física no mundo com consequente menor gasto energético.
Então, é importante o papel de todos – trabalhadores e patrões; os que produzem e os que
consomem; os que vivem com mais recursos e os que vivem com menos – para contribuir com a
criação de um meio e uma forma de vida socialmente mais saudáveis em todos esses pontos. Exemplos
1. Se as escolas e cantinas só venderem doces, frituras e outros alimentos pouco saudáveis, vai
ser difícil os estudantes conseguirem matar sua fome sem adquirir hábitos prejudiciais. As
merendas escolares também precisam ter cardápios atrativos com alimentos saudáveis para
estimular a aquisição de melhores hábitos. Consumir só batata frita, salgadinhos gordurosos,
refrigerante e doces é o começo de vícios alimentares que podem afetar precocemente a saúde
cardiovascular e induzir a obesidade com todas as suas consequências.
2. A necessidade de preparar cada vez mais rápido as refeições tem feito as pessoas consumirem
alimentos cada vez mais industrializados e com substâncias químicas, conservantes etc. Em longo
prazo, não se sabe a consequência disso para a saúde. Então, é importante estimular o consumo
de alimentos frescos ou semi-industrializados com um mínimo de aditivos químicos e sódio.
3. Se o trabalho, estudo, deslocamento e lazer são passivos, é preciso repensar o modelo de
organização das cidades, das escolas, dos ambientes de trabalho manual e intelectual, e sem
dúvida os modos de produção e consumo, visando a uma sociedade com alternativas para a
ação humana que envolva o corpo na produção de mais movimento sem desgaste. Ou seja,
são necessárias políticas públicas que reorientem o foco da vida social.

Tabagismo
O hábito de fumar está relacionado a várias doenças do pulmão, em especial o enfisema; a doenças
do coração, principalmente o infarto; a doenças da circulação, como derrames; e também a muitos
tipos de câncer.
Sabe-se que o consumo de maior quantidade de cigarros aumenta a ocorrência dessas doenças.
Também se sabe que fumantes costumam apresentar os casos mais graves de tais moléstias. Além disso,
aqueles que convivem com os fumantes acabam se tornando fumantes passivos e têm mais chance de
desenvolver doenças respiratórias, especialmente as crianças.
O hábito tabágico já foi considerado a epidemia da segunda metade do século XX, e embora sua
frequência esteja diminuindo, ainda existem pessoas com dificuldades e que precisam de apoio para
parar de fumar.
A saúde coletiva, além de desestimular o consumo de cigarros e educar a população sobre as
consequências danosas do fumo, pode organizar serviços de fácil acesso aos que precisam de apoio e
tratamento da dependência.

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Sexualidade
A prática da sexualidade sem segurança, isto é, sem proteção contra infecções, com múltiplos
parceiros ou parceiros desconhecidos, certamente aumenta a probabilidade de se contrair as chamadas
Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs).
A mais conhecida delas é a Aids ou Sida, cuja sigla significa Síndrome da Imunodeficiência Adquirida
e é causada pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV). Transmissível pelo sangue e por seus derivados,
ela tem tratamento, mas não cura. É um problema mundial, uma pandemia ou epidemia que está assolando
o mundo todo desde 1980, quando foi identificada, e deve ser enfrentada com medidas de saúde coletiva.
A sífilis, por sua vez, é uma doença conhecida há muito tempo. Seu tratamento pode levar à cura,
mas nem sempre ele é iniciado a tempo e de forma adequada. Em caso de gestantes com sífilis, a doença
pode se transmitir à criança e se tornar congênita (doença muito grave) se a mãe não se tratar durante
a gestação. Essa doença é um problema de saúde pública ou coletiva, porque pode e deve ser prevenida.
Além dessas DSTs existem outras, como gonorreia, cancro mole, infecções por clamídia, e as
hepatites B e C, que também podem ser transmitidas pelo contato sexual.
As mudanças de comportamento ligadas à sexualidade foram muito acentuadas nas últimas
décadas e sem dúvida novas concepções de relações sexuais, mais livres e menos fixas, desvinculadas
de compromissos conjugais, formam um cenário de alerta para os riscos e consequências em termos
de saúde. Por isso chamamos a atenção de todos em termos de uma prevenção para conseguir reduzir
a transmissão e facilitar o diagnóstico e tratamento precoce das DSTs. Como já dissemos, muitas
têm cura, e mesmo que a Aids ainda seja incurável, o tratamento contínuo reduz a probabilidade da
transmissão e a pessoa vive mais.
A organização de serviços que permitam esse trabalho, a divulgação de informações e o estímulo
à educação para uma sexualidade segura é campo de atuação da saúde coletiva.

RELAÇÕES INTERPESSOAIS E EM GRUPO


O modo como nos relacionamos influencia diretamente na saúde mental. Viver em sociedade
significa que precisamos uns dos outros, mas sabemos que algumas pessoas conseguem se relacionar
melhor do que outras.
Morar, trabalhar e estudar em sociedade implica conviver com outras pessoas, se relacionar com
elas para trocar ideias, trabalho, comida, dinheiro etc., o que implica conhecer os interesses de cada um,
dos grupos e os próprios interesses.
Sabe-se, por exemplo, que o fato de alguém conversar de forma confiante com outra pessoa pode
auxiliá-lo a expor problemas e trocar ideias que o ajudem a superá-los, e que isso é significativo na
prevenção de transtornos mentais; já o isolamento social não permite que essa habilidade se desenvolva.
Desenvolver relações para satisfazer nossas necessidades afetivas de amor, amizade, companheirismo,
parceria implica respeitar as diferenças e buscar relacionamentos positivos e estimulantes.

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É claro que isso não é fácil, pois nem sempre as coisas caminham nesse sentido saudável; por vezes
as relações humanas estão permeadas de violência, exploração, desrespeito, abusos, desvalorização etc.
O fato de pessoas com mais poder abusarem física ou psicologicamente de outras mais vulneráveis, é
considerado uma violência. E quando esses comportamentos são frequentes, tolerados e estimulados
nos grupos sociais e comunidades, tem-se um problema de saúde coletiva que merece uma abordagem
preventiva educacional.
Pessoas que vivem em ambientes de abuso e/ou violência, dependendo de sua capacidade de
superação acabam tendo dificuldades de lidar com o que acontece e apresentam alterações, transtornos
mentais e comportamentais que podem ser leves, outras vezes graves e incapacitantes. Se há uma
predisposição individual, esse ambiente pode potencializar o agravo ou servir como gatilho para a
eclosão de sintomas mais graves.
Pode-se entender que essas alterações muitas vezes são uma forma de resposta, isto é, o modo
como elas conseguem lidar psiquicamente com situações bastante aflitivas ou angustiantes, e nem
todos têm a capacidade de achar saídas que não sejam prejudiciais a si mesmo e/ou aos outros.
Os transtornos mentais e comportamentais são considerados a ‘epidemia do século XXI’.
Depressão, abuso de drogas, alcoolismo, transtornos obsessivo-compulsivos e tantos outros têm sido
exaustivamente relatados e indicados como um problema de saúde pública.
O estímulo aos fatores protetores da saúde mental, em todos os ambientes de convivência (no
trabalho, na escola, no esporte e na sociedade em geral), é uma necessidade a ser contraposta ao modelo
de sociedade competitiva e intolerante que predomina.
O crescimento e o desenvolvimento de crianças e adolescentes em ambientes psicologicamente
favoráveis a relações respeitosas e igualitárias, embora sabidamente preventiva de transtornos mentais,
é um caminho ainda a ser explorado em termos de saúde coletiva.

CONDIÇÕES DE VIDA: MORADIA, TRABALHO E


DESLOCAMENTO
Os lugares onde as pessoas vivem ou trabalham podem contribuir e muito para seu estado de
saúde, tanto por serem ‘insalubres’ quanto por nelas existirem relações sociais pouco saudáveis.
Ambientes insalubres geralmente são úmidos, escuros, pouco ventilados, sujos, que sofrem
inundações ou não oferecem proteção adequada para mudanças do clima, como chuvas, ventos, luz do
sol intensa, temperaturas extremas e, portanto, são ambientes sem conforto adequado para moradia,
estudo, trabalho e lazer.
Exemplos dos problemas ligados à falta de saneamento básico e higiene são inúmeros, como estes:
• tuberculose (doença da pobreza); • verminoses;
• diarreias; • leptospirose.

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Muitas vezes, no ambiente onde passamos muito tempo, ficamos expostos a poeira, ruídos, calor,
frio, luz, substâncias químicas e até radiações que afetam a integridade do organismo e provocam
alterações que, se forem persistentes, geram doenças. Outras vezes, algumas atividades humanas
provocam lesões, acidentes e doenças chamadas de ocupacionais devido à repetição ou exposição a
forças mecânicas presentes em máquinas, por exemplo.
Ao verificar a enormidade de pessoas feridas, mutiladas e mortas em acidentes de trânsito,
percebemos que a forma como construímos nossas cidades e meios de transporte, bem como
organizamos a mobilidade dentro e entre os agrupamentos humanos, resulta em condições que podem
propiciar esses problemas, dependendo da organização dos transportes nesses meios.

CONSUMO E RESÍDUOS
Uma vez que vivemos em sociedade e construímos um meio ou uma sociosfera que permite
o estabelecimento de relações sociais de produção e consumo, estas, bem como todas as condições
materiais geradas no meio, podem e devem ser analisadas como produtoras de mais ou menos saúde
para os indivíduos e para as coletividades humanas.
Na sociedade o consumo é crescente. Há muito estímulo para aumentar a produção de bens, que
duram cada vez menos e são descartados rapidamente. O uso de embalagens para conter quantidades
cada vez menores de mercadorias estimula o comércio de produtos que são fabricados em longas
distâncias, mas não a produção local, o que se torna sem dúvida pouco sustentável.
Isso cria cada vez mais problemas para manejar os resíduos sólidos, pois não se tem onde colocá-
-los depois de descartados. Os impactos no ambiente estão se acumulando, repercutindo também na
saúde das populações humanas.
Exemplo disso é a dengue, cujo vetor, o mosquito Aedes aegypti, já tinha sido erradicado no Brasil
entre as décadas de 1950 e 1960 e que reentrou no início da década de 1980, disseminando-se para
quase todo o país, provocando uma série de epidemias sucessivas e que continua sendo um enorme
problema de saúde pública, com mais de um milhão de casos notificados em vários dos últimos anos no
Brasil. O controle da proliferação do mosquito no meio ambiente é hoje muito mais difícil, tendo em
vista o tipo de resíduos encontrados no ambiente (garrafas PET, embalagens plásticas ou de longa vida,
pneus e outros artefatos), que acumulam água de chuva e servem de criadouros em vastos ambientes
urbanos, impedindo que o controle pelas vistorias domiciliares seja efetivo na redução da infestação.

DISTRIBUIÇÃO DAS DOENÇAS


Uma das áreas de conhecimento da saúde coletiva é a Epidemiologia, que estuda a frequência, a
distribuição e os determinantes de saúde das populações. Por meio do conhecimento produzido por ela

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é possível pensar em formas de atuar para evitar, controlar ou mesmo erradicar os problemas de saúde.
Existem alguns conceitos que são importantes na epidemiologia, como epidemia, surto e endemia.
Quando ocorre uma epidemia, todos têm de se mobilizar. O pessoal da saúde coletiva precisa
então passar informações à população sobre como evitar a doença (isto é, como não ‘pegar’ a doença)
e como impedir que ela passe para outras pessoas, além de orientar quem adoece como se cuidar e
procurar cuidados de saúde, médicos ou hospitais quando necessário.
Nos últimos tempos, o Brasil tem enfrentado diversas epidemias que requerem medidas de saúde
coletiva. Citam-se como exemplo as epidemias de:
• gripe A (H1N1) 2009-2010 – ocorrida em todo o mundo, inclusive no Brasil, especialmente
na região Sul;
• dengue – desde os anos 1980 acomete pessoas em diversos estados, principalmente Sudeste (Rio
de Janeiro, Minas, São Paulo), Nordeste, Norte, Centro-Oeste e, mais recentemente, no Sul;
• zika – ocorreu de forma epidêmica no Brasil no final de 2015 e em 2016. Quando ocorrida
no início da gestação, foi associada a malformações do sistema nervoso do feto ou recém-nato,
como a microcefalia.

Também há doenças cujas epidemias não têm grandes proporções, ocorrendo em lugares menores,
como cidades, escolas, creches, asilos, fábricas. É o chamado surto, que é uma epidemia localizada.
Há vários exemplos de surtos, tais como de meningite, hepatite a, leptospirose, infecções alimentares,
e muitas outras.
As endemias, por sua vez, referem-se aos casos que se mantêm constantes no mesmo local e
tempo, isto é, que ocorrem de modo rotineiro, como a malária na Amazônia, algumas verminoses em
locais com pouco saneamento e higiene etc.

SAÚDE OU DOENÇA? SAÚDE E DOENÇA!


Podemos ter mais, menos ou pouca saúde e ao mesmo tempo adquirir ou ter doenças. Afinal,
saúde não é o contrário ou a ausência de doença. Isso parece ser complicado de entender, mas a seguir
apresentaremos vários exemplos sobre isso.
Existem pessoas que quase nunca ficam doentes e, quando ficam, têm manifestações mais leves da
moléstia. Por exemplo, quando são acometidas de certas infecções como a gripe, melhoram rapidamente,
não têm complicações e logo voltam a suas atividades. Dizemos então que essas pessoas são saudáveis
ou mais saudáveis do que outras que pegam a mesma gripe e por causa dela ficam um longo tempo de
cama, demoram a se recuperar e às vezes têm complicações e precisam tomar antibióticos, chegando
em alguns casos, a ir para o hospital com pneumonia.
O mesmo podemos dizer sobre outras doenças, como gastroenterites, que causam diarreias. Essas
doenças são muito comuns, e a maioria das pessoas tem várias vezes ao ano o que chamamos de episódios

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de infecções intestinais. Entretanto, é importante saber que existem grupos na população que têm maior
facilidade para sofrer complicações no caso de infecções agudas como essas; normalmente são pessoas
com mais idade ou que já têm uma doença crônica para a qual precisam tomar remédios e devido a isso,
têm imunidade mais baixa e resistência menor aos agentes de infecções, como os micróbios.
Outro grupo muito suscetível a ter infecções são as crianças pequenas, pois seu organismo precisa
ter contato com diversos agentes de doenças infecciosas, como vírus, bactérias, fungos e outros, para
desenvolver a imunidade de dois tipos: celular (produzir células de defesa) ou humoral (produzir
anticorpos). Então vemos que crianças pequenas e saudáveis que têm febre nem sempre sofrem
complicações. Isso porque seu sistema imune e seus mecanismos de resistência funcionam bem; já
as crianças menos saudáveis, por exemplo, as desnutridas ou portadoras de outras doenças, seja de
nascença, seja adquiridas, sofrem mais complicações.
Resumindo:
• crianças pequenas são mais infectadas por ainda estarem desenvolvendo seus mecanismos de
defesa (imunidade e resistência);
• idosos quando sofrem infecções, podem ter mais complicações porque com a idade seus
mecanismos de defesa diminuíram;
• idosos portadores de doenças prolongadas (crônicas e degenerativas) também adoecem mais
e têm mais complicações;
• crianças com doenças de nascença ou adquiridas debilitantes também sofrem mais de
complicações.

Por isso, em uma comunidade as crianças, os idosos e os doentes crônicos são considerados uma
população que precisa de cuidados especiais.
Quando pensamos assim e organizamos os serviços de saúde pensando nessa necessidade, atuamos
em termos de saúde coletiva e nos propomos a oferecer atenção a esses grupos prioritários quanto às
doenças infecciosas mais comuns. Para algumas delas já existem vacinas que conseguem prevenir, isto
é, evitar as doenças.

VACINA, A PREVENÇÃO MELHOR E MAIS


CONHECIDA
Segundo o Ministério da Saúde, “as vacinas são consideradas um dos principais fatores contribuintes
para a redução de doenças imunopreveníveis na população mundial”. (BRASIL, 2012).
Nosso país tem realizado muitas campanhas de vacinação nos últimos anos e com isso tem
conseguido controlar muitas doenças e até erradicar outras. A varíola foi erradicada no Brasil em 1969

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e no mundo em 1973. A poliomielite ou paralisia infantil está erradicada desde 1989 e o sarampo
estava controlado até recentemente, não ocorrendo mais casos por transmissão dentro do país, só
mediante casos que vêm de fora. Entretanto o país perdeu o certificado de erradicação da transmissão
autóctone porque voltaram a ocorrer surtos no país.
Isso é muito importante para todos nós, pois muitos ficavam paralíticos e até morriam no passado
por conta dessas doenças, que hoje são preveníveis por vacina. Cabe esclarecer que para muitas doenças
a vacinação não consegue erradicar, mas protege as pessoas e reduz enormemente a quantidade de casos
e mortes decorrentes de doenças, como estas:

TÉTANO, POLIOMIELITE,
DIFTERIA, FEBRE AMARELA,
COQUELUCHE, HEPATITE A,
SARAMPO, HEPATITE B,
CAXUMBA, TUBERCULOSE.
RUBÉOLA,

Essas são as principais doenças para as quais dispomos de vacinas que são aplicadas de rotina
em crianças menores de 5 anos e que ajudaram a diminuir muito os casos e as mortes. Existem ainda
outras vacinas, mais recentes, que também são aplicadas de rotina em crianças menores de 5 anos e que
ajudaram a diminuir infecções graves, conforme podemos ver no Quadro 1.

Quadro 1 – Agentes de doenças e respectivas doenças evitadas.

AGENTE DOENÇAS EVITADAS

Pneumococo Pneumonias, meningites, otites por pneumocco

Meningococo C Meningite por meningococo C

Haemophylus influenzae tipo b Meningites, pneumonias, otites por Hib

Rotavírus Diarreias por este vírus

Vírus varicela-zoster Varicela e herpes-zoster

Papilovírus humano (HPV) Câncer de colo de útero

Fonte – Adaptado de Brasil, 2019.

Mesmo contra a gripe existe uma vacina que é aplicada todo ano em idosos, gestantes, profissionais
de saúde, indígenas e alguns outros grupos.
Na opinião de Barbosa, que foi secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, a
vacina é um promotor da igualdade:

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Toda a população brasileira incluída nos grupos alvos de vacinação, independentemente da sua situação
econômica ou local de residência, pode ser vacinada nas 34 mil salas de vacina em todo o país. Todo
e qualquer cidadão brasileiro tem acesso à vacina, seja ele morador do Acre ou do Rio Grande do Sul,
seja rico ou pobre. (BARBOSA, 2012).

QUEM DEVE TOMAR VACINA?


Pessoas de todas as idades devem ser vacinadas, conforme as recomendações do Ministério da
Saúde. As crianças devem tomá-las porque têm de se proteger de mais doenças, algumas próprias da
infância, como a coqueluche, o sarampo, a paralisia infantil ou poliomielite, mas também devem ser
protegidas contra doenças que atingem mais os adultos, como a tuberculose e a febre amarela.
Em seguida, apresentamos no Quadro 2 a lista de vacinas que são recomendadas para crianças.

Quadro 2 – Vacinas recomendadas para crianças.

Vacina Doses Idade Protege contra


BCG 1 dose Ao nascer Tuberculose grave
Hepatite B 1 dose Ao nascer Hepatite B
3 doses 2, 4 e 6 meses Difteria, tétano, coqueluche, infecções
Pentavalente (DTP + Hib + HB)
por Haemophylus influenza b e hepatite B

Tríplice bacteriana (DTP) 2 reforços 15 meses e 4 anos Difteria, tétano e coqueluche

Injetável contra poliomielite (VIP) 3 doses 2, 4 e 6 meses


Poliomielite ou paralisia infantil
Oral contra poliomielite (VOPb) 2 reforços 15 meses e 4 anos
2 doses + 2 e 4 meses Pneumonia, otite, meningite causada por
Pneumocócica 10 valente
1 reforço 12 meses pneumococo
2 doses + 3 e 5 meses Meningite e doença grave causada por
Meningocócica C
1 reforço 12 meses meningococo C
1 dose 9 meses
Febre amarela Febre amarela
1 reforço 4 anos
Hepatite A 1 dose 15 meses a 5 anos Hepatite A

Tríplice viral (SCR) 1 dose 12 meses Sarampo, caxumba e rubéola

Tetra viral (SCR+V) 1 dose 15 meses Sarampo, caxumba, rubéola e varicela

Varicela monovalente 1 dose 4 a 7 anos Varicela


1 a 2 doses 6 meses a 5 anos
Gripe ou influenza Gripe ou influenza sazonal
anuais

Fonte – Adaptado de BRASIL, 2020.

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Os adolescentes também devem ser vacinados contra hepatite B, febre amarela, sarampo, caxumba e
rubéola (se não foram anteriormente quando crianças) e para fazer reforços, isto é, aumentar a imunidade
que cai com o tempo contra difteria e tétano. Confira no Quadro 3 quais vacinas eles devem tomar.

Quadro 3 – Vacinas recomendadas para adolescentes.

Vacina Doses Faixa de Idade Protege contra

Tríplice viral (SCR) 2 doses Até 29 anos Sarampo, caxumba e rubéola

Febre amarela 1 dose 11 a 19 anos Febre amarela

1 dose de reforço
Dupla tipo adulto (dT) 11 a 19 anos Difteria e tétano
a cada 10 anos

2 doses com intervalo de 9 a 14 anos (meninas)


Papilovírus humano (HPV) Câncer de colo de útero
6 meses 11 a 14 anos (meninos)

Meningite e doença grave


Meningocócica ACWY 1 dose 11 a 12 anos causada por meningococo
ACWY

Hepatite B 3 doses ou completar* 11 a 19 anos Hepatite B

Fonte – Adaptado de BRASIL, 2020.

Os adultos de 20 a 59 anos também devem ser protegidos caso ainda não tenham sido vacinados
contra hepatite B*, sarampo, caxumba e rubéola e fazer os reforços contra difteria e tétano. Confira no
Quadro 4 quais vacinas eles devem tomar.

Quadro 4 – Vacinas recomendadas para adultos.

Vacina Doses Faixa de Idade Protege contra

Tríplice viral (SCR) 1 dose 30 a 49 anos Sarampo, caxumba e rubéola

Febre amarela 1 dose Até 59 anos Febre amarela

Dupla tipo adulto (dT) 1 dose a cada 10 anos 20 a 59 anos Difteria e tétano

Hepatite B 3 doses ou completar* 20 a 59 anos Hepatite B

Fonte – Adaptado de BRASIL, 2020.

As gestantes devem ser vacinadas para completar o esquema de três doses da vacina contra hepatite
B e contra difteria e tétano, se não foram vacinadas quando crianças e fazer o reforço com a dupla tipo

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adulto ou com a dTpa (dupla tipo adulto mais a vacina contra coqueluche) se já tiverem se passado mais
de 10 anos da última dose. Isso vai protegê-la contra essas doenças e ao mesmo tempo evitar o tétano
neonatal, a hepatite B e a coqueluche da criança. Observe no Quadro 5 quais vacinas elas devem tomar.

Quadro 5 – Vacinas recomendadas para gestantes.

Vacina Doses A cada gestação Protege contra

Dupla tipo adulto (dT) 2 doses ou reforço Difteria, tétano e tétano neonatal

A partir da 20ª semana até


dTpa 1 dose Difteria, tétano e coqueluche
45 dias após o parto

3 doses ou
Hepatite B Hepatite B
completar*

Gripe ou influenza 1 dose (campanhas) Gripe ou influenza

Fonte – Adaptado de BRASIL, 2020.

E os idosos? Com certeza devem ser vacinados, assim como os adultos, caso ainda não tenham sido
vacinados contra a hepatite B, porém não precisam mais proteção contra sarampo, rubéola e caxumba.
Por outro lado, precisamos protegê-los contra a gripe, que é mais grave entre eles. O médico deve avaliar
as condições de saúde e de risco de exposição à febre amarela, para somente então indicar a vacina.

Quadro 6 – Vacinas recomendadas para idosos.

Vacina Doses Faixa de idade Protege contra

Dupla tipo adulto (dT) 1 dose a cada 10 anos Difteria e tétano

1 dose se em risco
Febre amarela Febre amarela
após ‘avaliação médica’
60 anos ou mais
Gripe ou influenza Dose anual (campanhas) Gripe ou influenza sazonal

Hepatite B 3 doses ou completar* Hepatite B

Fonte – Adaptado de BRASIL, 2020.

Anteriormente se recomendava a vacina contra hepatite B acima de 50 anos apenas para grupos
vulneráveis. Porém, mais recentemente houve a extensão dessa recomendação para todas as faixas
etárias com a indicação universal. Pessoas de todas as idades devem tomar ou completar o esquema de
três doses, caso ainda não o tenham feito, conforme o Quadro 7.

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Quadro 7 – Vacinação universal contra hepatite B*

Vacina Doses Faixa de idade Protege contra

Hepatite B 3 doses com intervalo de Todas as idades Hepatite B


1 mês entre a 1ª e 2ª
5 meses entre a 2ª e 3ª

Fonte – Adaptado de BRASIL, 2020.

DOENÇAS CRÔNICAS
Doenças crônicas, como derrames, paralisias, asma, doenças do coração, cânceres outras, são
males que fazem as pessoas ficarem debilitadas, sem conseguir fazer bem o que faziam normalmente e
algumas vezes as deixam acamadas.
Elas são muito comuns em pessoas de mais idade, mas podem acometer adultos, jovens e até
crianças. As famílias precisam dedicar um cuidado maior a pessoas acometidas por tais doenças,
principalmente quando ficam sem condições de fazer o que faziam antes, ou seja, trabalhar, estudar,
andar, comer, se relacionar normalmente. Por inspirarem muitos cuidados, esses pacientes devem ser
levados aos serviços de saúde para consulta médica, a laboratórios para exames, a farmácias para obter
remédios. Felizmente, em alguns casos os tratamentos são bons e tais pessoas se recuperam quase
totalmente, devendo manter o acompanhamento e o tratamento indicado.
Nas Unidades de Saúde existem programas para controle da hipertensão arterial, controle do
diabetes e alguns outros lugares oferecem programas voltados a pacientes de doenças frequentes, como
asma, epilepsia e transtornos mentais.
Ao conhecer alguém que possa se beneficiar desses programas, é importante orientá-lo a procurar
a Unidade de Saúde mais próxima do município onde reside.

ATENÇÃO À SAÚDE
Como surgiu nas sociedades a necessidade de alguns membros cuidarem de outros quando estes
estão doentes, do pajé das tribos indígenas até ao mais sofisticado neurocirurgião que manipula algo
tão precioso quanto o cérebro humano?
O desenvolvimento da Assistência à Saúde na história humana levou ao surgimento dos profissionais
médicos e dos hospitais e hoje contamos com enorme quantidade de profissionais: enfermeiros,
dentistas, nutricionistas, psicólogos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, entre outros. Atualmente

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é preciso organizar sistemas de saúde públicos para que todas as pessoas possam ter acesso à atenção
adequada à saúde, com os profissionais mais capacitados para cada caso.
Eis um grande desafio da saúde coletiva: a organização dos sistemas e serviços de saúde. Podemos
definir um sistema de saúde como uma resposta social deliberada às necessidades de saúde da população.
Existem ao menos três principais formas de organizar os sistemas de saúde mundo afora. Dentre outras
coisas, elas dependem da concepção de cidadania que o país pactuou com seus membros, ou melhor,
entre seus cidadãos. (LOBATO; GIOVANELLA apud GIOVANELLA, 2012).
Alguns países definiram que os serviços de saúde são diferenciados conforme o poder de compra de
seus cidadãos. Com isso, têm direito a uma atenção à saúde gratuita apenas aqueles que não conseguem
adquirir esses serviços no mercado. Desse modo, a saúde é tida como uma mercadoria, e não como um
direito do cidadão, configurando o chamado modelo residual, orientado pela concepção de cidadania
invertida (requer comprovar a impossibilidade financeira). Esse modelo é o que organiza o sistema de
saúde dos Estados Unidos da América. (FLEURY, OUVERNEY apud GIOVANELLA, 2012).
Já outros países compreendem a saúde como um direito a ser experimentado por todos os
habitantes, independentemente de qualquer fator de restrição, como renda. São chamados de sistemas
de acesso universal à saúde. Nesse modelo, basta estar vivo e necessitar dos serviços para ser atendido.
É o caso da Inglaterra e do Brasil.
No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS), já pensado em décadas anteriores, foi incluído na
Constituição de 1988 e instituído legalmente em 1990 pela Lei n.º 8.080. Ele é um sistema público
universal, isto é, a que todos têm direito, e contempla a concepção ampliada de saúde, que já discutimos
anteriormente, e que ultrapassa o limite do biológico ou da ausência de doenças. Vejam o que diz o
artigo 3º desta lei:

Os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do País, tendo a saúde como
determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio
ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e
serviços essenciais. (BRASIL, 1990).

Mas como organizar os serviços de saúde? Por muito tempo, o principal local de atenção à saúde
eram os hospitais. Vamos pensar sobre isso? Quem procura um hospital? Alguém que está se sentindo
bem ou alguém que está com algum problema? Será que uma pessoa com ‘boa saúde’ não requer
intervenções de atenção à saúde?
Com base no que vimos até aqui, pudemos perceber que alguns hábitos podem promover saúde
ou prevenir doenças e que algumas doenças podem se agravar ou mesmo requerer ações de reabilitação.
Uma vacina, por exemplo, pode ser administrada em uma pessoa saudável com o objetivo de prevenir
determinada doença. Por isso é que organizar os serviços de saúde centrados em hospitais é algo restrito,
ou seja, acaba resolvendo apenas problemas já instalados, desconsiderando ações de promoção de saúde
e prevenção de doenças. Do mesmo modo, doenças crônicas como a hipertensão arterial sistêmica se

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não for acompanhada adequadamente e controlada, pode evoluir para um acidente vascular cerebral e
deixar sequelas motoras, entre outras.
Tendo em vista isso tudo, o SUS se propôs a organizar seus serviços em rede assistencial, cujo
centro não é o hospital, mas as Unidades Básicas de Saúde (UBSs), que estão distribuídas em todas
as cidades, bem próximas aos cidadãos. Em cidades muito pequenas pode até ser que não exista um
hospital, mas certamente haverá uma Unidade Básica de Saúde (UBS).
Desse modo, o SUS é organizado para que as pessoas tenham como porta de entrada, a Atenção
Básica das Unidades Básicas de Saúde e dos Serviços de Urgência e Emergência sob responsabilidade
dos municípios.
As Unidades de Saúde atendem os casos que não são urgentes nem emergentes, por isso
podem aguardar atendimento de médicos e dentistas que não dependem de exames especializados
ou tratamentos mais complexos. Esse nível é também chamado de Atenção Primária ou Básica de
Saúde mas caso necessário as pessoas podem ser encaminhadas para especialidades de segunda linha na
chamada atenção secundária e até mesmo para nível terciário, mais complexo.
Um exemplo seria o caso de atendimento a pacientes com problemas comuns, como infecções
respiratórias agudas, resfriados, gripes, otites, traqueobronquites, pneumonias simples, que são
perfeitamente atendidos no nível básico. Porém, se um paciente apresentar uma insuficiência respiratória
aguda ou uma complicação que o serviço básico não tenha como avaliar, ele precisará ser internado,
atendido por especialista e realizar exames e outros procedimentos, que só podem ser realizados por
serviços secundários, como clínicas de especialidades, hospitais, serviços de imagem, laboratórios e até
Unidades de Terapia Intensiva (UTI), que fazem parte do nível terciário.
Também é importante lembrar que as Unidades Básicas de Saúde são os serviços que se encontram
mais próximo de onde as pessoas moram e por isso, podem ter uma relação mais estreita com a
comunidade. Nelas as pessoas podem ser mais bem acompanhadas no caso de doenças crônicas, de longa
duração, e mais facilmente atendidas em problemas agudos, menos graves. No Brasil, desde a década de
1990, existe o programa de Saúde da Família, que é uma estratégia para a organização da atenção básica.
Na Saúde da Família, a população que mora próximo às UBSs é dividida em áreas, e cada qual
conta com uma equipe de Saúde da Família com os seguintes profissionais:
• um médico;
• um enfermeiro;
• um auxiliar e/ou técnico de enfermagem;
• agentes comunitários de saúde;

As equipes que têm a parte de Odontologia também contam com:


• um dentista;
• um auxiliar ou técnico em saúde bucal.

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Esses profissionais devem trabalhar em equipe, como o próprio nome diz. O mais importante é
que nessa divisão de áreas eles trabalham com uma população definida não muito grande, em torno de
100 a 1.200 famílias, e no máximo 4.000 a 5.000 pessoas.
Tais áreas são subdivididas em microáreas menores, sendo que em regiões de grande dispersão
territorial, de risco e vulnerabilidade social, cada agente comunitário de saúde deve ser responsável por
no máximo 750 pessoas. Eles devem visitar periodicamente as famílias para conhecer os problemas e
as necessidades das pessoas e servir de ligação com a UBS e o restante da equipe. Os demais membros
da equipe, como médicos e enfermeiros, também realizam visitas domiciliares de casos indicados e
podem selecionar as famílias que precisam de um acompanhamento mais frequente, seja para controle
de doenças, seja para necessidade de tratamento domiciliar, problemas sociais ou situação. As consultas
médicas e odontológicas na UBS são marcadas por procura direta e também por meio das visitas.

COMO MUDAR
Ora, se a gente pensar, desejar saúde para uma pessoa que está trabalhando em condições precárias
ou vivendo numa habitação inadequada ou, ainda, que está enfrentando situações estressantes de
relacionamento pessoal, soa até como ironia, não é?
Aí é que entra o entendimento de que muitas das situações de vida em que as pessoas se encontram
não são, única e exclusivamente, questões de escolhas ou opções pessoais, mas condições objetivas
encontradas em seus caminhos que precisam ser enfrentadas e cuja mudança não depende somente dos
indivíduos, mas sim do coletivo, que pode ser um grupo, uma comunidade ou a sociedade em geral.
Então vemos que, embora seja possível as decisões individuais afetarem a saúde, nem sempre as
mudanças que precisam ser feitas dependem das pessoas isoladamente, mas sim do seu conjunto, ou
seja, do coletivo. É disso tudo que trata a saúde coletiva.
Os seres humanos diferenciam-se dos outros animais, embora estes também apresentem relações
de sociabilidade (que estão sendo cada vez mais estudadas) pela sua capacidade de dar um sentido
à sua existência individual e coletivamente. Como esses sentidos partilhados socialmente afetam e
condicionam o desenvolvimento da vida dos grupos humanos e, portanto, a saúde das coletividades,
ou seja, da sociedade, essa é uma tarefa de saúde coletiva.

BIBLIOGRAFIA
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recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências.
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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
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ETAPAS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO

Luiz Carlos Bleggi Torres


Fernanda Marder Torres

A criação de uma vida nova é um momento mágico, que jamais se repete. Cumprindo a fantástica
missão da espécie humana, o espermatozoide e o óvulo são os primeiros personagens da história
humana. Eles se interpenetram e se fundem dando origem à vida e nesse momento único escrevem o
primeiro capítulo do nosso destino.
Até a ocasião do nascimento, a única realidade do feto é o universo vibracional da mãe. O
nascimento sem violência começa antes do parto propriamente dito. Inicia-se no instante em que a
mulher sabe que está grávida. Ela precisa manter, além de hábitos saudáveis, uma atitude positiva, segura
e instintiva. O papel da mãe é importante para a formação do psicológico do bebê. Os acontecimentos
que ocorrem entre mãe e filho são fundamentais para a adequada estruturação da personalidade do bebê
e extremamente essenciais para seu desenvolvimento emocional, social e cognitivo saudável. A gestação
não pode ser algo mágico apenas para a mãe. É extremamente necessário que o pai também participe e,
com a mãe, compartilhe sentimentos de alegria, tristeza, preocupação, medo, sonhos e angústias.
Tão logo saiba da gravidez, a mulher deve procurar um posto de saúde para fazer uma consulta
com um obstetra, iniciando o acompanhamento pré-natal que durará todo o tempo de gestação até o
parto. Quanto mais precoce for o início do acompanhamento da gestante, melhor será a assistência e
mais satisfatório será o desfecho da gestação. No pré-natal, o obstetra irá avaliar as condições físicas da
mãe e o desenvolvimento do bebê por meio de exames clínicos, laboratoriais e/ou ultrassonografias.

PRIMEIRA INFÂNCIA: DO NASCIMENTO ATÉ 3 ANOS


Cada criança que nasce é a perpetuação do projeto divino – e o bebê que nasce feliz forjará a nova
imagem do mundo. É desejável que os pais permaneçam junto ao seu filho tão logo ele nasça. Essa

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interação é muito importante para atender às necessidades do bebê e permitir que um vínculo maior
seja estabelecido. Assim, o bebê crescerá e se desenvolverá em meio a uma família e apresentará os
resultados de seu crescimento e desenvolvimento baseados nos cuidados físicos que receberá (aleitamento
materno até dois anos de idade, estimulação, higiene e alimentação), associados ao desenvolvimento
dos sentimentos que os pais lhe proporcionarão.
Ao nascer, o recém-nascido inicia o ‘reconhecimento’ da mãe, por isso a importância de já nos
primeiros minutos de vida haver o contato entre eles por meio do colo materno. Tanto a Organização
Mundial da Saúde (OMS) quanto o Ministério da Saúde recomendam o contato pele a pele na 1.ª
hora de vida, sempre que as condições de saúde da mãe e do bebê permitirem. O vínculo mãe-filho é
descrito como o laço emocional que une a mãe e o seu bebê, que se fortalece com o passar do tempo
e persiste mesmo à distância. Esse vínculo é formado pelo contato olho a olho, pelo toque, pela voz,
pelo cheiro e pelo calor materno, e tudo isso pode ser posto em prática no momento da amamentação,
quando há maior contato da mãe com seu bebê, possibilitando uma vivência única, especial e prazerosa
à mãe. À medida que o tempo passa, o bebê ganha confiança e tranquiliza-se ao perceber que suas
necessidades são atendidas (por exemplo, ser alimentado sempre que surge fome).
O vínculo pai-filho não é menos importante, e para ele ocorrer, temos de ter a ajuda da mãe, pois
o vínculo afetivo homem-mulher é a base para o início de uma família. O bom relacionamento do
casal, assim como o total apoio do pai à mãe, é determinante para o fortalecimento do vínculo entre
os três (pai, mãe e bebê). Nos primeiros meses de vida, a participação do pai enriquece as experiências
vividas pelo bebê.
Após o nascimento, os bebês já apresentam algumas habilidades de interação com o mundo exterior,
como seguir um estímulo visual colocado próximo a seu rosto, sorrir, responder a alguns ruídos e abrir
e fechar os braços. Ao final do primeiro mês de vida, ele já é capaz de estender as pernas, girar a cabeça
para os lados, fixar o olhar na luz e ter movimentos corporais de acordo com a voz que o estimula.
O aleitamento materno é também um fator muito importante nessa fase e deve ser iniciado
tão logo for possível. O leite materno é um ‘líquido vivo’, completo (contém substâncias bioativas,
vitaminas, proteínas, açúcares e água), de fácil digestão, limpo e está sempre pronto, na temperatura
adequada, sendo capaz de suprir as necessidades calóricas e nutricionais do bebê, além de trazer vários
benefícios para ele, a mãe, a família e a sociedade como um todo. Ele protege o bebê contra infecções,
alergias, desnutrição, obesidade e doenças crônicas, além de contribuir para o desenvolvimento
cognitivo, emocional, psicomotor e a inteligência, melhorar o desenvolvimento da cavidade bucal, ser
econômico e promover o vínculo afetivo entre mãe e filho. Além disso, contribui para reduzir os casos
de internações hospitalares e a mortalidade infantil em crianças menores de cinco anos de idade.
Para a mãe, o aleitamento materno logo após o nascimento faz o útero voltar ao tamanho anterior
mais rapidamente, reduzindo o sangramento pós-parto e evitando as anemias. Ajuda também na
prevenção da depressão pós-parto, na perda do peso que ganhou durante a gravidez e na diminuição
do risco de câncer de mama, endométrio e ovário.
Segundo a OMS e o Ministério da Saúde do Brasil, bem como a Sociedade Brasileira de Pediatria
(SBP), recomenda-se o aleitamento materno por dois anos ou mais, sendo de forma exclusiva nos seis

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primeiros meses. A amamentação por dois anos ou mais pode ser vantajosa em razão do valor nutritivo
do leite materno e da proteção contra doenças infecciosas. Para manter uma boa produção de leite, a mãe
deve amamentar com frequência, deixando o bebê esvaziar bem o peito. Quanto mais o bebê mamar,
mais leite a mãe irá produzir. Ela não deve dar a seu filho chás, água, sucos ou outros leites nos primeiros
seis meses, exceto se houver recomendação médica. Se por algum motivo ela não puder amamentar, não
deve oferecer o peito de outra mãe, mas procurar um profissional da saúde para lhe dar orientações.
O controle do desenvolvimento físico e mental deverá ser acompanhado por profissionais, médicos
e psicólogos em intervalos regulares preestabelecidos – as chamadas ‘consultas’ nos postos de saúde.
A vigilância do desenvolvimento infantil é fundamental em toda consulta, quando as crianças serão
avaliadas, vacinadas e orientadas, caso haja a necessidade de quaisquer encaminhamentos a outros
profissionais para avaliação.
O conhecimento do desenvolvimento normal da criança possibilita a identificação de atrasos,
desvios e transtornos que permeiam o processo biopsicossocial. Para tal, foi criado pelo Ministério
da Saúde em 2017 a Caderneta de Saúde da Criança, para o acompanhamento dos marcos do
desenvolvimento da criança de zero a dez anos de vida. Caso aconteça falha em alcançar algum marco,
deve-se iniciar uma investigação quanto ao ambiente em que a criança vive e sua relação com os
familiares. O objetivo inicial é orientar a família a estimular a criança, com foco em atividades que a
ajudem a superar as dificuldades observadas. O contato com professores de Educação Infantil, creches
ou escolas também é muito importante, porque ajudará as famílias a aprender como melhor estimular
a criança, o que acarretará crescimento e desenvolvimento adequados à realidade de um mundo atual
e o melhor momento para a interferência, se necessária, visando sanar as falhas no ambiente familiar.
O objetivo é preparar melhor a criança para que chegue à pré-escola, ao redor dos 3-4 anos, sem
maiores problemas físicos ou mentais que possam retardar seu crescimento e desenvolvimento, pois o
diagnóstico precoce favorece o tratamento com sucesso e, na maioria das vezes, sem sequelas.
Ao final da primeira infância, percebe-se se a criança de 3-4 anos de idade não adquiriu qualidades
de sociabilidade para brincar muito bem em conjunto. De fato, as tentativas nesse sentido costumam
ser problemáticas, em virtude das ‘regras de propriedade da criança’ nessa fase, que são:
1. o que eu vejo é meu;
2. se é seu e eu quero, é meu;
3. se é meu, é meu para sempre.

Devemos saber que isso não é fruto de mesquinharia. Apenas exprime o crescente senso de
individualidade da criança, que nessa idade só é capaz de considerar os próprios pontos de vista e não
consegue entender que as outras pessoas sentem de outra forma. Consequentemente, o conceito de
compartilhar não faz sentido nenhum para ela.
Além da crescente conscientização de si mesma como um ser separado dos outros, nessa idade ela
aumenta seu interesse por brincadeiras simbólicas e de faz de conta.

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A partir dos 2-3 anos de idade, cresce progressivamente sua habilidade de guardar lembranças de
atos e fatos, para depois recuperá-los e imitá-los. É engraçado ver uma criança de 2-3 anos ‘fingindo’
que está cozinhando, fazendo a barba, varrendo o chão ou falando ao telefone. E vê-la dando um
carinhoso beijo de boa noite no ursinho de pelúcia ou censurando rispidamente o mau comportamento
das bonecas nos faz lembrar que é observando as pessoas que as cercam que as crianças aprendem sobre
como lidar com suas emoções.

SEGUNDA INFÂNCIA: DOS 3 AOS 6 ANOS


Aos quatro anos, em geral, a criança está completamente desenvolta, fazendo amigos, vivendo em
ambientes diferentes, aprendendo milhares de novidades excitantes. É o final do pensamento mágico
e início do pensamento lógico, que é acompanhado de complicações: ‘a escola é divertida, mas os
professores logo querem que a gente fique sentado, em grupos, calados e prestando atenção. A gente
em geral sabe lidar com os amigos, mas eles ainda nos irritam e magoam de vez em quando. E agora
que a gente já tem idade para compreender tragédias como incêndios, guerras, assaltos e morte, não
pode deixar que o medo de que elas aconteçam nos perturbem’.
Para vencer esses desafios, ela precisa aprender a regular as emoções (um dos mais importantes
avanços no desenvolvimento da criança) que sente em seu relacionamento com os colegas. Ela aprende a
comunicar-se com clareza, trocar emoções, ceder a vez de falar e brincar. Aprende ainda a compartilhar,
aceitar regras para suas brincadeiras, ter conflitos e resolvê-los, bem como compreender os sentimentos,
as vontades e os desejos do outro.
Nascem as amizades, que proporcionam um terreno fértil para o desenvolvimento emocional
da criança pequena, o que deve ser estimulado pelos pais e professores. Com um amigo, formam-se
laços fortes e duradouros, pois a criança, na segunda infância, tem certa dificuldade em administrar
ao mesmo tempo mais de uma relação. Além de ensinar importantes habilidades sociais, as amizades
entre crianças pequenas também estimulam a fantasia, permitindo que elas desenvolvam a criatividade,
inventando personagens e dramatizando situações.
Os amigos recorrem à fantasia para ajudarem-se mutuamente a enfrentar problemas complicados,
a lidar com as tensões da vida diária. Brincar de faz de conta propicia o desenvolvimento emocional
da criança, ajudando-a a ter acesso a sentimentos recalcados, pois também intercala conversas sobre
situações da vida real. A intimidade e a espontaneidade do faz de conta dão uma sensação de segurança
e acolhimento à criança, que aprende a lidar com uma infinidade de ansiedades que aparecem na
segunda infância e geram ‘medos’ (medo da impotência, do abandono, do escuro, dos pesadelos, dos
conflitos entre os pais, da morte e outros).
Sejam quais forem os medos de nossos filhos e alunos, devemos lembrar que são emoções naturais
que podem gerar uma função saudável na vida dos pequeninos. O medo não deve tolher a curiosidade
da criança, mas ela precisa saber que às vezes o mundo é perigoso. Nesse aspecto, o medo serve para
torná-la uma pessoa cuidadosa.

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Devemos fazer a criança sentir-se segura mostrando amor e afeição e ao mesmo tempo deixá-la
exercitar sua independência e autonomia.

TERCEIRA INFÂNCIA: DOS 6 AOS 11 ANOS


Nessa fase, a criança está começando a conviver com mais pessoas e a saber o que é influência
social. Às vezes, fica cheia de exigências sobre o estilo de suas roupas, de sua mochila e das atividades
que os outros estão vendo que ela pratica. E por isso faz o impossível para evitar chamar atenção sobre
si, especialmente para não atrair a implicância e a crítica dos colegas; isso significa que a criança está se
especializando em interpretar insinuações sociais, uma técnica que lhe será útil pela vida afora.
Nessa fase, a criança pode ser impiedosa em suas implicações e humilhações. De fato, a implicância
forja muitos padrões de comportamento nessa idade. As meninas são tão implicantes quanto os meninos,
embora a implicância dos meninos às vezes chegue ao enfrentamento físico. A criança logo aprende que a
melhor forma de reagir é não demonstrar qualquer emoção. ‘Proteste, chore, vá fazer queixa ao professor
ou fique irritado quando o líder da turma estiver roubando o seu boné ou xingando-o e você corre o risco
de ser mais humilhado e rejeitado. Dê a outra face e tem boas chances de conservar a dignidade’.
Por causa dessa dinâmica, a criança realiza uma espécie de cirurgia, cortando a emoção e extraindo
os sentimentos das relações com os colegas. Muitas crianças dominam essa técnica, mas as mais
competentes são as que aprendem mais cedo a regular as emoções.
Ao mesmo tempo em que está tentando abafar as emoções, a criança nessa fase está adquirindo mais
noção do poder do intelecto. Por volta dos dez anos, o raciocínio lógico desenvolve-se consideravelmente
em muitas crianças. Na atualidade, elas gostam de reagir como se raciocinassem como um computador.
Essa arrogância para enfrentar o mundo dos adultos é típica da criança que está encarando a vida em
termos de preto e branco, certo ou errado, constatando de uma hora para outra a arbitrariedade e a falta de
lógica no mundo. O pré-adolescente pode começar a achar que a vida é uma grande revista em quadrinhos.
Para ele, os adultos são hipócritas, e zombar deles e ridicularizá-los passa a ser sua ‘emoção’ predileta.
Desse criticismo exacerbado emerge o senso de valores da criança. Você pode reparar que nessa
idade seu aluno ou filho começa a preocupar-se muito com o que é moral e justo. Ele pode conceber
mundos puros, onde as pessoas sejam tratadas como iguais, as guerras jamais poderão surgir e a tirania
jamais poderá existir. Do mesmo modo, pode desprezar um mundo capaz de permitir atrocidades
como o tráfico de drogas, os roubos, a fome, a injustiça... Começa a ter dúvidas, a desafiar, a pensar
por si mesmo...

A ADOLESCÊNCIA
A adolescência é a fase do desenvolvimento entre a infância e a vida adulta cujos limites cronológicos
costumam ser definidos entre 10 e 19 anos. Nos programas comunitários atuais, como as diretrizes do

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Ministério da Saúde do Brasil, engloba-se também a chamada faixa de adultos jovens, que vai até os 24
anos. É uma fase marcada por grande preocupação com questões de identidade como: ‘Quem sou eu?
O que estou me tornando? Quem devo ser?’.
Não se espante, portanto, se seu filho ou aluno adolescente lhe parecer exageradamente preocupado
consigo mesmo. Ele vai perdendo o interesse pela família, enquanto o relacionamento com os amigos
passa ao primeiro plano, na medida em que é no contato com eles que vai descobrir quem ele é fora do
âmbito familiar. No entanto, mesmo no âmbito da turma, o foco do adolescente costuma estar voltado
para si mesmo.
O adolescente está numa viagem de descobertas e sempre mudando de rumo, tentando encontrar
o caminho certo. Faz experiências com novas identidades, novas realidades, novos aspectos de sua
personalidade. Essa exploração é saudável na adolescência. Mas o caminho nem sempre é fácil para o
adolescente e, por isso, a adolescência não deve ser considerada um período de transição, pois isso leva
à despriorização da atenção à saúde do jovem, menosprezando suas necessidades e direitos.
As mudanças hormonais podem causar inesperadas alterações de humor. As forças negativas do
ambiente social podem explorar a vulnerabilidade do jovem, ameçando-o com problemas decorrentes
de drogas, violência ou sexo sem segurança. Entretanto, a exploração prossegue como uma parte natural
e inevitável do desenvolvimento humano. Entre as empreitadas importantes que o adolescente enfrenta
nessa exploração está a da integração da razão com a emoção.
O jovem está sempre tendo de tomar decisões em que seu lado humano e altamente sensível é
confrontado com sua tendência para o raciocínio lógico e empírico. Obviamente, nós, pais e professores,
gostaríamos que nossos jovens adolescentes usassem isso em situações em que o coração ouve um apelo
e a cabeça, outro. Isso os levaria ao equilíbrio, que será atingido plenamente apenas com a maturidade.
O adolescente fatalmente deverá tomar decisões desse tipo em questões envolvendo sexualidade e
autoaceitação. ‘Uma garota sente atração sexual por um garoto por quem ela não tem muito respeito
(ele é uma gracinha – pena que, quando abre a boca, estraga tudo)’. Um garoto percebe que está
emitindo as opiniões do pai que ele tanto criticava: ‘Que incrível. Estou falando igual ao meu pai’. De
repente, o adolescente percebe que o mundo não é tão preto e branco. É feito de muitos tons de cinza
e, quer ele goste, quer não, todas essas tonalidades estão contidas nele próprio.
Como professores e orientadores, precisamos ter em mente que se é difícil para o adolescente
encontrar seu caminho, também é difícil ser pai ou mãe de adolescente, porque este precisa conhecer-se
basicamente sem a ajuda dos pais. Os marcos de desenvolvimento do adolescente, incluindo atitudes
desafiadoras e certo grau de exposição a riscos, precisam ser vistos como normais e não como desafios.
Pais e professores, até a adolescência, fazem o papel de administradores da vida dos jovens,
organizando quem os leva aos lugares e quem os busca, marcando consultas médicas, planejando
passeios, procurando a melhor maneira de não os sobrecarregar com deveres e estudos, poupando-os
de sofrer.
Os pais mantêm-se informados sobre a vida escolar, e o professor costuma ser a primeira pessoa
a quem os filhos recorrem para as grandes questões. Repentinamente, tudo muda. Sem aviso prévio

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e sem consenso, somos demitidos do cargo de administradores. Precisamos, então, correr e preparar
nova estratégia.
Se quisermos ser uma pessoa importante para nossos filhos e alunos na adolescência e pela vida
afora, precisamos batalhar para ser contratados novamente, mas dessa vez como consultores. Essa
pode ser uma transição extremamente delicada. Um adolescente não contrata um consultor que o faça
sentir-se incompetente ou ameace usurpar-lhe o negócio. Um adolescente quer um consultor em quem
possa confiar, que compreenda sua missão e dê conselhos que o ajudem a atingir seus objetivos. E nessa
altura da vida, o principal objetivo do adolescente deve ser tornar-se independente. Por isso, escutar
sempre o que o jovem tem a dizer é ponto-chave para a aproximação e o estabelecimento de um bom
vínculo. É fundamental saber ouvir e olhar nos olhos do jovem, pois nem sempre a queixa verbalizada
exterioriza sua verdadeira preocupação.
Então, como poderíamos exercer o cargo de consultor continuando como preparadores e, ao
mesmo tempo, dar aos adolescentes a autonomia que um adulto completamente desenvolvido exige?
Em primeiro lugar, aceite que a adolescência é a época em que os filhos se separam dos pais,
buscam privacidade e respeito ao seu direito à inquietação e ao descontentamento.
Dê espaço para que o adolescente sinta emoções profundas, evitando perguntas óbvias como: ‘O
que há com você?’. Ele pode estar irritado, nervoso ou triste, e esse tipo de pergunta apenas mostra ao
jovem que você não aprova esses sentimentos. Tente não agir como se entendesse tudo imediatamente.
Por estar começando a viver, o adolescente costuma achar que suas experiências são únicas. Ouça-o
com calma e de cabeça aberta. Por ser a adolescência uma fase de individualização, o jovem pode
escolher um estilo de roupa, penteado, música, arte, comportamentos e gírias. Saiba que você não
precisa aprovar as escolhas do seu aluno/filho, basta aceitá-las. Todo atendimento do adolescente deve
ser baseado no que ele tem de positivo, com apoio para que se desenvolva como um ser autônomo,
capaz de decisões responsáveis.
Em segundo lugar, mostre respeito pelo adolescente.
Não fique sempre o corrigindo, apontando suas falhas, complicando, dando lições de moral,
humilhando-o perante os outros. Ele invariavelmente se afastará de você. Procure transmitir seus
valores de forma breve, sem ser moralista, pois ninguém gosta de receber sermão. É importante não
colocá-lo na posição de réu ou vítima e tratá-lo sempre com respeito, sem rotulá-lo.
Em terceiro lugar, permita a participação de seu filho/aluno em uma comunidade
Há um ditado popular que diz: “Para educar uma criança é preciso uma aldeia inteira”. Em
nenhuma época da vida isso é mais verdadeiro do que na adolescência. Por isso é importante aos
professores e orientadores que conheçam os pais dos adolescentes, as pessoas que convivem com ele,
inclusive os amigos e pais dos amigos.
Em quarto lugar, estimule o adolescente a decidir sozinho e continue sendo seu preparador emocional.
Permita que o jovem faça o que ele está preparado para fazer. Essa é a época de ele tomar
decisões sobre coisas importantes. É um excelente momento para praticar a afirmação ‘A escolha é
sua’. Manifeste confiança nos critérios dos jovens e não fique especulando. Estimular a independência

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também significa permitir que o jovem tome decisões insensatas de vez em quando. Lembre-se de
que o adolescente pode aprender com os erros tanto quanto com os acertos. Melhor se o jovem puder
recorrer a um adulto que se interesse por ele e o aprove, alguém que lhe ensine a lidar com as emoções
negativas que o fracasso desperta e a pensar em maneiras de fazer as coisas mais bem-feitas no futuro.
Em quinto lugar, saiba que o jovem com preparo emocional é mais bem-sucedido.
É este o jovem que será mais inteligente emocionalmente, compreendendo e aceitando
seus sentimentos. Terá mais experiência em solucionar problemas sozinho ou em conjunto.
Consequentemente, é o que se sairá melhor nos estudos e no relacionamento com a turma ou grupo.
Com esses fatores de proteção, esse adolescente apresentará maior imunidade aos riscos que todos os
pais e professores temem quando seus filhos entram na adolescência – drogas, delinquência, violência
e comportamento sexual de risco.
Desde o nascimento até os 9-10 anos de idade, o menino e a menina permanecem fisicamente
muito semelhantes, diferenciando-se apenas pelas roupas, pelo corte de cabelo e por algumas atividades
que exercem. Principalmente após os nove anos de idade, as crianças investem a maior parte de sua
energia na aprendizagem, nos jogos e em brincadeiras. A sexualidade, durante esse período, emerge de
forma mais sutil. O desenvolvimento dos órgãos sexuais, por sua vez, acompanha o dos outros órgãos
do corpo, proporcionando harmonia ao crescimento. O corpo, até esse momento, é para a criança algo
familiar, do qual tem certo domínio e conhecimento.
A criança chega, no entanto, a uma fase em que têm início algumas expectativas e curiosidades
em relação a si mesmo e ao outro (trata-se da pré-adolescência). Ela já detém alguns conhecimentos a
respeito da vida e do ser humano e começa a interessar-se um pouco mais pelo mundo adulto.
Sabe que seu mundo (o infantil) está sujeito a sofrer transformações. Embora tenha a percepção
dessa transição criança-adulto, tal processo é ainda nebuloso e desconhecido para ela.
Começa, então, a observar mais a si mesma e aos companheiros. A palavra ‘sexo’ e tudo a que ela
possa estar ligada chama-lhe a atenção de imediato. Portanto, seu próprio sexo e seu corpo passam a ter
importância crucial, transformando-se em alvo de observação a cada mudança que possa acontecer – é
a adolescência.
As principais características do desenvolvimento corporal nessa faixa etária são o estirão puberal
(crescimento acelerado), o ganho ponderal (aumento do peso) e a maturação sexual, que possibilitarão
a ovulação/espermatogênese e a fecundação. O desenvolvimento psicossocial pode ser didaticamente
resumido na busca de identidade pessoal e sexual, na separação dos pais e papéis infantis, na consolidação
da personalidade e na busca de independência econômica e participação social.
A puberdade é o componente biológico que antecede a adolescência. É o período no qual surgem
a maturação fisiológica e o funcionamento dos órgãos da reprodução acompanhado do crescimento
estatural, o que dura cerca de dois anos. Durante esse período, ocorre um fenômeno marcante: a
menarca na mulher e a semenarca no homem.
O início dessa fase tem nítida influência sobre o desenvolvimento do organismo, ocorrendo
substanciais transformações orgânicas, funcionais e psíquicas em que se afirmam os atributos de cada
sexo – os hormônios passam a atuar fortemente.

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A época da puberdade varia enormemente dos 8½ aos 15 anos em ambos os sexos, havendo
tendência a ser mais tardia no homem. Essas variações estão relacionadas com o clima, o grupo étnico,
o estado nutritivo, a constituição física, o nível de vida e doenças crônicas.
O surgimento dos primeiros pelos no púbis ou nas axilas é admirado, contemplado. O garoto
e a garota contam esses pelinhos com orgulho e prazer. Em contrapartida, sentem certa vergonha e
perplexidade diante do corpo que começa a se modificar, o que culmina com a gostosa sensação de que
‘eu estou crescendo, transformando-me de menino ou menina, em homem ou mulher’.
É quando passam a se comparar uns com os outros. Pequenas diferenças, como o número de
pelos, o tamanho do pênis ou da mama, são minuciosamente observadas, provocando emoções
constantes, intensamente vividas. Essa hipersensibilidade é característica do adolescente. Esse tipo
de reação ocorre por volta dos 12 anos de idade no sexo masculino, e na mulher, em torno de 9 a
10 anos.
É a idade em que os jovens passam horas diante do espelho, observando a aparição de um cravo
ou espinha. O pênis do garoto vai adquirindo tamanho, e isso é para ele uma glória.
É interessante observar como as transformações do corpo são ansiosamente esperadas,
principalmente quando o garoto percebe que os amigos já ‘estão à sua frente’ (pênis maior ou mais
pelos, por exemplo), pois sente muita vontade de tornar-se ‘gente grande’. Tudo isso vem permeado de
romantismo. Iniciam-se, então, os primeiros namoros, as primeiras paixões que marcam a entrada na
adolescência (status de adulto).
A menina repara que seu mamilo vai se tornando mais saliente e mais escuro, provocando certa
dor quando a região é tocada de forma mais brusca, como num abraço muito apertado, por exemplo. A
menina curva as costas, para retrair o busto, tentando proteger-se, e muitas vezes o objetivo é também
o de esconder aquilo que a ‘denuncia’ agora como mocinha capaz de seduzir e amar. Ao mesmo tempo,
fica muito feliz, pois há muito tempo espera a ocasião de poder comprar seu sutiã e sentir que está
começando a ser mulher. Mostra-se com orgulho às amigas. Evita contatos íntimos, assim como não se
despe mais na frente de outras pessoas, mesmo dos pais.
Simultaneamente a esse desenvolvimento, vão surgindo os pelos axilares. A bacia da menina
alarga-se e sua cintura torna-se mais fina; as coxas e as nádegas ficam mais roliças e torneadas.
Com essas mudanças, vêm a vaidade e uma nova preocupação com o corpo. O processo atinge o
ápice com a chegada da menstruação, um grande marco: ‘Agora eu já sou mocinha’. Sonha muito a
respeito de como será o primeiro beijo. A garota muitas vezes sente necessidade de entender o que
ocorre em seu organismo.
É importante saber que seu ciclo pode não ser regular, ou seja, que não menstrue exatamente
a cada 28 ou 30 dias. Deve estar consciente também de que seu útero leva um tempo de mais ou
menos dois anos para amadurecer e estar pronto para uma gravidez. Há um período chamado fértil,
isto é, pode ocorrer a fecundação (gravidez), se houver relações sexuais. Esse período fértil se dá na
metade do ciclo, ou seja, por volta do 14.º dia após a menstruação – nas adolescentes, o período fértil
nunca ocorre no 14.º dia, devido à irregularidade menstrual ocasionada pela imaturidade biológica.

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É necessário conhecer o funcionamento deste corpo, pois existem meninas que nada sabem a respeito
da existência da menstruação. Chegam, muitas vezes, a pensar que estão doentes ao ver, pela primeira
vez, as manchas de sangue na calcinha. É preciso saber antecipadamente que o escoamento do sangue
menstrual tem uma duração variável de três a sete dias e é normal.
As mulheres, por trazerem culturalmente entre si uma relação mais íntima, em que se falam
de assuntos pessoais, ainda conversam mais com suas filhas do que os pais com seus filhos. Por
formação, o homem apresenta uma maneira mais reservada de ser, de relacionar-se e, principalmente,
de manifestar seus sentimentos e revelar sua intimidade. Por isso, normalmente os pais não conversam
com os garotos, mas cobram que eles sejam ‘machos’, que provem ser homens, fortes, espertos e
conquistadores. Assim, muitas vezes o menino vivencia sua primeira polução noturna (ejaculação)
com curiosidade, medo e insegurança. Fica sem saber o que isso significa. Ainda não estabelece
relação entre esse líquido pegajoso e o prazer sexual. Sente que está se tornando homem e começa
a prestar uma atenção mais sensual à menina, criando muitas expectativas. Nessa fase os meninos
ficam desajeitados, parecem embaraçados. Os braços e pernas se alongam, ao mesmo tempo em
que os ombros se tornam mais largos, provocando a perda da noção do espaço que ocupam e dos
movimentos que realizam. O timbre vocal torna-se mais grave, passando, porém, por diversas fases
de irregularidade.
O conhecimento do próprio corpo é muito sadio e favorece a vida sexual adulta. Quanto
melhor e mais livre o contato com o corpo, melhor e mais livre o contato com o corpo do outro.
Se transcorrer em clima repressivo, essa fase será permeada de ansiedade e sentimento de culpa,
originados de desejos sexuais.
Como a autoafirmação se dá muito por intermédio do outro – ‘eu sou o que os outros pensam
de mim’ –, surge a paixão como uma busca de identidade e amor, ou seja, o ‘desejo de ser amado’. Ela
emerge como um vulcão, extravasando toda a energia que até então fora reprimida. Esse período da
vida é muito importante para todos nós.
Para os pais, significa ‘a perda’ da criança. O filho, que até então vivia sob seu domínio, começa
agora a ter opiniões próprias, a exigir maior autonomia e poder de decisão.
No núcleo social que é a família, nem sempre as dificuldades dos adolescentes são trazidas à
tona, para que possam ser mais bem compreendidas. Como consequência, vão buscar fora de casa
as respostas para muitas dúvidas. Conversando com os amigos, recebem informações desviadas, com
malícia, medos e fantasias. Cabe aos pais e educadores orientá-los e esclarecê-los.
Para auxiliar os jovens adolescentes nessa fase tão importante e cheia de mudanças, o Ministério
da Saúde lançou em 2009 a Caderneta de Saúde do Adolescente, em edição diferenciada para meninos
e meninas. Ela foi desenvolvida com o intuito de ajudar o adolescente a acompanhar as transformações
que ocorrem em seu corpo, bem como se informar sobre seus direitos, saber como evitar doenças e
falar sobre os cuidados com o corpo. Estas cadernetas são gratuitas e podem ser obtidas pelo site do
Ministério da Saúde1.

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A ALIMENTAÇÃO, O DESENVOLVIMENTO E A
OBESIDADE INFANTIL
A boa nutrição é muito importante em todas as idades. Uma boa alimentação consiste em
oferecer alimentos adequados em quantidade, qualidade e consistência para suprir as necessidades
básicas e proporcionar o desenvolvimento e o crescimento saudáveis. Para isso, tente seguir as
seguintes recomendações.
• Procure variar os alimentos, para que a criança coma um pouco de tudo (proteínas, carboidratos,
gorduras e vitaminas) de forma balanceada.
• Equilibre as comidas que soltam ou prendem o intestino (por exemplo, mamão e folhas
soltam o intestino, banana e arroz e prendem o intestino).
• Adote horários regulares para as refeições.
• Ofereça comida sempre fresquinha e logo depois de ter sido preparada.
• Mantenha o local em que a criança vai se alimentar sempre limpo.
• Lave as verduras, legumes e as cascas das frutas antes de cortá-las.
• Ofereça novos alimentos aos poucos, de acordo com a fase de desenvolvimento da criança.
• Ajude a criança a aceitar bem os alimentos. O vínculo afetivo tem ligação direta com isso.
Lembre-se: a criança começa a conhecer o mundo pela boca.
• Os bons hábitos alimentares também dependem do equilíbrio emocional entre pais e crianças.
Se mantiver a calma, a hora da refeição será tranquila para todos.
• Ofereça a alimentação sem rigidez de horários, respeitando sempre a vontade da criança.
• Evite açúcar, café, enlatados, frituras, refrigerantes, balas, salgadinhos e outras guloseimas nos
primeiros anos de vida.
• Use o sal com moderação.
• Não brigue com seu filho para que coma tudo o que você quer ou o obrigue a comer tudo
até o fim. Se perceber que não quer mais, insista uma ou duas vezes, mas não o force a comer.
• Não ‘presenteie’ seu filho se ele comer tudo nem o puna quando não o fizer, senão ele irá
aprender que suas emoções serão compensadas por meio da alimentação, o que pode prejudicar
seu desenvolvimento físico, nutricional e emocional.

Essas recomendações são importantes para evitar obesidade infantil que, atualmente, é um
dos mais graves problemas de saúde pública. Nos últimos 50 anos, observou-se rápido declínio da
desnutrição em crianças e aumento em ritmo acelerado de sobrepeso/obesidade.

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Estima-se que dois terços de todos os brasileiros estão com sobrepeso ou sofrem de obesidade. Isso
significa que quando saímos à rua, de cada dez pessoas que vemos, seis sofrem de sobrepeso ou estão
obesos. O mais impressionante é que esse número está aumentando e muito rapidamente passará de
seis em dez para sete em dez pessoas sofrendo desse problema.
A etiologia da obesidade é multifatorial, com a participação de fatores genéticos, comportamentais
e ambientais. Nas últimas décadas, o sedentarismo, a disponibilidade de alimentos e a mudança dos
hábitos alimentares favoreceram o aumento do peso, que está associado a maior risco de eventos adversos
na vida adulta. É, portanto, uma doença crônica grave, que deve ser reconhecida e precocemente
prevenida desde os primeiros anos de vida.
O excesso de peso pode provocar o aparecimento de várias complicações, como alterações nos níveis
de colesterol, intolerância à glicose, apneia de sono, problemas cardíacos e ortopédicos, hipertensão
arterial, dislipidemias, resistência insulínica e diabetes melito tipo 2, além do comprometimento
psicossocial como o isolamento social, depressão, ansiedade e discriminação, além do principal, a
maior chance de se tornar um adulto obeso.
Criança gordinha NÃO é sinônimo de criança saudável. Infelizmente, hoje em dia ainda há esse
mito de que criança só é considerada saudável se for gordinha. A mãe confunde gordura com saúde
e acredita que se o filho comer bastante poderá ficar mais ‘forte’ e menos suscetível a doenças. Na
verdade, a superalimentação pode levar a criança a desenvolver obesidade, doença grave e cada vez mais
comum, reconhecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como o principal desafio nutricional
do século 21.
Nos últimos anos, numerosos estudos têm sido realizados para descobrir as verdadeiras causas da
obesidade infantil. As crianças em geral ganham peso com facilidade devido a fatores como hábitos
alimentares errados, inclinação genética, estilo de vida sedentário, distúrbios psicológicos e problemas
na convivência familiar. Na maioria das vezes, as crianças não ingerem grande quantidade de comida,
mas alimentos de alto valor calórico, por exemplo, os famosos sanduíches (hambúrguer, misto-quente)
que as mamães adoram preparar para o lanche, as batatas fritas e os bifes passados na manteiga. Esses
são os verdadeiros vilões da alimentação infantil. As crianças costumam também imitar os pais em tudo
que eles fazem, assim sendo, se os pais têm hábitos alimentares errados, acabarão induzindo seus filhos
a se alimentarem do mesmo jeito.
Por isso, é fundamental que a criança coma apenas o que consegue e conheça seus limites físicos
e psíquicos. É de extrema importância também que os pais coloquem limites àquelas crianças que
querem comer muito mais do que necessitam, explicando sempre os problemas que a ingestão excessiva
de alimentos pode acarretar. E caso necessitem, devem sempre procurar ajuda profissional para auxiliar
na orientação de seus pequenos. Todos nós desejamos que as nossas crianças tenham tudo o que é bom.
Portanto, o melhor tratamento para a obesidade infantil é a prática de exercícios físicos em conjunto
com uma alimentação saudável, balanceada e de qualidade.
Além disso, a falta de atividade física (sedentarismo) tem sido identificada como um dos principais
agravantes por trás do ganho de peso repentino em crianças. O sedentarismo veio juntamente aos
avanços tecnológicos, como televisores, computadores, tablets e videogames, fazendo as crianças e os

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adolescentes ficarem cada vez mais inertes fisicamente, por passarem horas em frente a esses dispositivos
sem praticar qualquer atividade física, agravando os quadros de obesidade infantil.
A vida sedentária, facilitada pelos avanços tecnológicos (computadores, televisão e videogames), faz
com que as crianças não precisem se esforçar fisicamente a nada. Hoje em dia, ao contrário de alguns anos
atrás, muitas crianças ficam dentro de casa realizando atividades que não as estimulam a praticar exercícios
físicos como correr, jogar bola, brincar de pique. Passam horas paradas em frente à televisão ou a outro
equipamento eletrônico, o que se torna um fator preocupante para o desenvolvimento da obesidade.
Praticar qualquer atividade física na infância e adolescência auxilia no equilíbrio do balanço
energético e, consequentemente, na prevenção e tratamento da obesidade e de doenças relacionadas
à obesidade nessa fase da vida. Os jovens ativos tendem a se tornar adultos ativos, aumentando o
gasto energético durante todo o ciclo de vida, assim como têm menor probabilidade de desenvolver
obesidade e doenças relacionadas à obesidade na fase adulta. Outros benefícios da atividade física para
a saúde são o aumento do volume de ejeção cardíaca, dos parâmetros ventilatórios funcionais e do
consumo de oxigênio, redução da pressão arterial, aumento da sensibilidade à insulina e da tolerância à
glicose, melhoria do perfil lipídico, aumento da mineralização óssea, melhora da cognição, autoestima,
sentimento de bem-estar e socialização.
Professores e educadores físicos podem desenvolver estratégias para aumentar a prática de
atividades físicas das crianças nas escolas, como:
• intensificar as atividades que estimulem e criem condições para praticar atividades físicas tanto
durante as aulas quanto aquelas extracurriculares;
• promover ações pedagógicas criativas que envolvam toda a escola na discussão da promoção
da atividade física (oficinas, palestras, debates, peças teatrais, entre outras atividades);
• promover encontros com os pais visando dar orientações e trocar experiências para estimular
a adoção de hábitos saudáveis;
• produzir material didático informativo sobre a promoção de prática de atividade física;
• desenvolver um plano de avaliação periódica das atividades físicas, visando refletir sobre a
eficácia delas;
• realizar festivais de jogos esportivos e populares, valorizando a cultura local, implantar o
‘recreio ativo’ e desenvolver jogos escolares interclasses e/ou interescolas;
• produzir com os alunos materiais educativos e proativos sobre os benefícios da prática de
atividade física. O envolvimento dos alunos é fundamental para o sucesso das ações.

BULLYING
É um termo da língua inglesa que se refere a todas as formas de atitudes agressivas verbais ou
físicas, intencionais e repetitivas que ocorrem sem motivação evidente e são exercidas por um ou mais

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indivíduos, causando dor e angústia com o objetivo de intimidar ou agredir outra pessoa sem que ela
tenha a possibilidade de se defender.
Segundo o Guia Prático de Atualização redigido pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) em
2017, existem diversos tipos de bullying, dentre eles:

• Físico: inclui batidas, chutes, empurrões, lesões ligadas a atos de pressão e contato, beliscões;
• Verbal: apelidos, intimidação, provocação, observações homofóbicas ou racistas, muitas vezes com
início mais leve e discreto, até atingir o alvo;
• Escrito: que inclui bilhetes, cartas, pichações, cartazes, faixas, desenhos depreciativos;
• Moral, social ou psicológico: inclui difamar, caluniar, espalhar boatos, intimidar, ignorar, fazer
pouco caso, imitar desfavoravelmente, usando trejeitos e fazendo piadas, excluir ou incentivar a
exclusão social com objetivo de humilhar. É mais difícil de reconhecer, pois pode ser praticado de
modo indireto;
• Material: que inclui estragar, danificar, furtar os pertences ou atirá-los contra a vítima;
• Cyberbullying: inclui a utilização de mídia eletrônica, por intermédio de e-mails, postagens, imagens
ou vídeos. Tem o potencial de, em segundos, alcançar um número muito grande de pessoas e, em
alguns casos, anonimamente, podendo causar danos psicológicos mais acentuados e negativos. O
cyberbullying ocorre por meio de computadores ou celulares e tem aumentado muito com o uso da
internet. (SOCIEDADE BRASILEIRA DE PEDIATRIA, 2017b, p. 2-3).

Hoje o bullying é um fenômeno relativamente comum em escolas, universidades e ambientes de


trabalho. A pessoa vítima de bullying poderá desenvolver sentimentos negativos e baixa autoestima,
além de ter problemas de relacionamento, o processo de aprendizagem comprometido e sintomas e
doenças de fundo emocional.
A melhor forma de evitar é prevenir. Um passo importante é discutir esse problema com a
comunidade escolar, alertando pais, alunos e profissionais sobre essa forma de violência e, principalmente,
diferenciando-a das brincadeiras habituais e da indisciplina.

As escolas e a sociedade devem estar capacitadas a intervir adequadamente em cada caso, não sendo
mais aceitável que estejam alheias ao fenômeno ou que tenham apenas atitudes punitivas, pontuais.
Tanto os alvos quanto os autores têm um risco maior de desenvolver problemas de saúde mental e
problemas sociais ao longo da vida. Por isso requer-se a atenção das famílias, das escolas e dos médicos
(pediatras em especial) para identificar o problema e agir a tempo de evitar ou minimizar suas graves
consequências.
É importante ressaltar que o bullying pode ocorrer em todas as escolas, independentemente das
características socioeconômicas e culturais dos alunos e não existe solução rápida para esse problema.
É preciso enfrentá-lo para que seja interrompido com a maior brevidade possível, deixando claro que
essa prática, em qualquer situação, não é tolerada pela escola. Para enfrentar esse desafio é necessário
um trabalho que envolva a sensibilização e a capacitação de todos os envolvidos, professores e demais
funcionários da escola, alunos e pais/responsáveis, visando a uma conjugação de forças capazes de
superar as diversas barreiras que possam surgir pelo caminho.
As escolas devem desenvolver pactos de convivência saudável e dispor de serviço de apoio psicológico.
Também cabe a ela realizar encontros informativos sobre o tema durante todo o ano letivo, fazer

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campanhas informativas com participação ativa da comunidade escolar, identificar os casos e intervir
imediatamente evitando novas ocorrências, informar às famílias, dos alvos e autores, sobre a ocorrência
e esclarecer as possíveis consequências, aplicar medidas educativas aos agressores, realizar ações
integralizadas entre educação, saúde e justiça da infância e adolescência e envolver toda a sociedade no
combate a este mal. (SOCIEDADE BRASILEIRA DE PEDIATRIA, 2017b, p. 2-3).

PAPEL DA SUSTENTABILIDADE, DA INOVAÇÃO,


DA CIÊNCIA E DA ÉTICA NO DESENVOLVIMENTO
HUMANO DO SÉCULO XI
Nos dias de hoje, primeiras décadas do século 21, devemos tomar atitudes e ter ações que visem
ao cuidado com o meio em que vivemos. O uso do termo ‘sustentabilidade’ para descrever a forma
como devemos agir é cada vez mais utilizado e estudado. A base de toda a sustentabilidade é o
desenvolvimento humano, que deve contemplar um melhor relacionamento do homem com seus
semelhantes e com a natureza.
No decorrer deste capítulo, falamos sobre as etapas do desenvolvimento humano desde o
nascimento até a adolescência, fundamentais para desenvolver em nossas crianças uma consciência
voltada para os reais problemas que estão surgindo no Brasil e no mundo.
Buscar ajuda com as entidades existentes revela a preocupação da sustentabilidade social. Muitas
empresas multinacionais e organizações não governamentais (ONGs) – que podem estar instaladas
em sua cidade ou próxima a ela – têm projetos voltados a auxiliar na formação de nossas crianças. Eles
levam às escolas orientações sobre os principais problemas que podem vir a ser enfrentados pelas crianças
em alguma fase de suas vidas, como o bullying, a obesidade infantil, a inclusão social de crianças que
apresentam algum tipo de deficiência, dentre outros. Por isso, procure se informar sobre essas empresas e
seus projetos e busque fazer uma parceria para complementar a educação das crianças. Palestras, teatros,
debates, material educativo, tudo isso pode ser incluído para auxiliar na formação de nossos pequenos.
A escola tem um papel fundamental na formação da personalidade de cada criança, e esse é o maior
exemplo de sustentabilidade que podemos dar. Discutir assuntos ligados aos temas abordados neste
capítulo, perguntar a opinião das crianças, pedir para que tragam exemplos de seu dia a dia e incluir os
pais nessas discussões vão fazer com que os professores conheçam e possam ajudar seus alunos.
É importante também pedir auxílio à prefeitura de seu município, bem como ao governo, para
que as campanhas existentes cheguem à sua escola. Existem inúmeros projetos que podem ser levados
até seus alunos, como a Semana de Mobilização Saúde na Escola e as campanhas de vacinação, ambas
realizadas pelo Ministério da Saúde. O mesmo também disponibiliza em seu site diversas informações
auxiliares para essa fase de desenvolvimento e descobertas, como a Caderneta de Saúde da Criança
(versões menino e menina), que pode ser baixada e impressa. Outro projeto que também pode ser
trazido é o Justiça na Escola, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça, que orienta sobre como lidar
com o bullying e suas consequências.

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A base de toda sustentabilidade começa nas pequenas ações que vão levar ao desenvolvimento
consciente e humano de nossas crianças. A importância do debate de temas atuais desde os primeiros
anos de vida fará com que as crianças cresçam zelando pelo meio em que vivem.
A humanidade tem a habilidade de desenvolver-se de uma forma sustentável, entretanto é preciso
garantir as necessidades do presente sem comprometer as habilidades das futuras gerações em encontrar
as próprias necessidades. Além disso, o acompanhamento das etapas do desenvolvimento de crianças e
adolescentes é crucial para que se tornem adultos com princípios éticos e morais.
A sociedade atual tem sido marcada por um acelerado desenvolvimento tecnológico que origina
vários questionamentos de ordem ética. Os dilemas vivenciados diariamente demonstram a importância
de se ter profissionais capazes de reflexão ética, valorização do indivíduo e de suas relações. A ‘bioética’,
como ficou conhecida, tem a finalidade de auxiliar os profissionais a atuar de forma equilibrada ante
as transformações ambientais e comportamentais advindas da evolução tecnológica, cada vez mais
presente em nossas vidas.
Quando se trata de crianças e adolescentes, a bioética envolve o sigilo e atendimento a adolescentes,
a comunicação de más notícias, a violência contra crianças e adolescentes, o limite de autonomia
dos pais/responsáveis, os cuidados paliativos, o aconselhamento genético e principalmente a relação
médico-paciente, baseado no respeito pelas pessoas (autonomia), na beneficência e na justiça.
A autonomia é a capacidade de fazer as próprias escolhas ou buscar o que julga ser o melhor
para si em assuntos que afetem a saúde, a vida, a integridade física, psíquica e as relações sociais.
Cabe ao profissional de saúde ou educador fornecer as informações necessárias, auxiliar a criança e
o adolescente a hierarquizar seus valores e discutir qual a melhor opção para aquele problema. Para
que haja respeito nessa relação, é fundamental que o profissional aceite o pluralismo ético-social,
preservando os direitos fundamentais e garantindo o direito à verdade plena. Em crianças, o poder
decisório é delegado aos pais ou responsáveis legais, porém, dependendo da idade, da capacidade
intelectual, do desenvolvimento cognitivo e emocional, esta pode (e deve!) participar do processo
decisório, expressando sua opinião.
Com relação à beneficência, que se caracteriza pela ação positiva benéfica a outra pessoa, são
consideradas ações prioritárias não ferir, não prejudicar, não fazer mal, promovendo o bem-estar e
a qualidade de vida. Ou seja, o profissional deve buscar o melhor para a criança e o adolescente do
ponto de vista técnico-assistencial e ético, com enfoque na saúde física, emocional e mental. Já com
relação à justiça, o indivíduo deve ajustar-se a um modelo, ao que é conveniente, correto e digno. Os
direitos dos indivíduos incluem a garantia de igualdade, equidade na distribuição de bens, riscos e
benefícios, respeito às diferenças individuais e busca de alternativas para atendê-las. Não pode haver
discriminação por sexo, raça, religião ou idade. Cabe aos profissionais de saúde e educadores não
permitir que problemas decorrentes de recursos econômicos limitados entrem em conflito com o
tratamento indicado, sendo sempre as decisões tomadas com base médica e não econômica.

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VACINAÇÃO
A vacinação é uma das medidas mais importantes de prevenção contra doenças, pois não apenas
protege aqueles que a recebem, mas também ajuda a comunidade como um todo. Quanto mais pessoas
de uma comunidade ficarem protegidas, menor é a chance de qualquer uma delas (vacinadas ou não)
ser contaminada. Segundo dados do Programa Nacional de Imunização (PNI) do Ministério da Saúde,
criado em 1973, “mais de 300 milhões de doses de vacinas são disponibilizadas por ano para os estados
e municípios visando à imunização de crianças, adolescentes, adultos e idosos”. (MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2017). As 19 vacinas recomendadas pela OMS são oferecidas pelo Sistema Único de Saúde
(SUS) de forma gratuita.
As vacinas são uma forma de defesa do organismo. Ao tomar a vacina, o organismo vai detectá-la
e reconhecê-la, produzindo anticorpos que permanecerão no organismo para evitar que a doença se
manifeste. Esse processo é o que chamamos de ‘imunidade’. Por isso, segundo o site do Ministério da
Saúde, este, junto ao Ministério da Educação, irão agir nas escolas para ampliar a vacinação em crianças
e adolescentes, garantindo maior proteção a todos.
Infelizmente, mesmo com todas as campanhas e informações que são disseminadas, é cada vez mais
crescente o movimento de alguns pais em não vacinar seus filhos (chamado de movimento antivacina).
Isso se deve a diversos fatores, como a desconfiança com relação aos possíveis efeitos das vacinas, seus
possíveis efeitos colaterais e a quantidade de vacinas existentes.
A SBP vê como irresponsável essa decisão de não dar as doses às crianças, pois orientados de
maneira errônea, esses pais põem em risco não apenas a própria criança, mas toda a população, uma
vez que doenças já erradicadas podem voltar.
As vacinas são uma forma de imunização completamente segura, baseada em estudos e testes e,
portanto, os pais e responsáveis legais devem seguir à risca o calendário de vacinação disponibilizado pelo
Ministério da Saúde e pela SBP. Os calendários de vacinação devem ser consultados constantemente,
uma vez que sofrem frequentes modificações, seja pela inclusão de novas vacinas, seja em decorrência
da alteração nos esquemas já existentes. Essas informações são disponibilizadas constantemente pelo
Programa Nacional de Imunizações (PNI) do Ministério da Saúde, pela SBP e pela Associação Brasileira
de Imunizações.

Calendário de vacinação
O calendário de vacinação brasileiro é definido pelo Programa Nacional de Imunizações do
Ministério da Saúde (PNI/MS) e corresponde ao conjunto de vacinas consideradas de interesse
prioritário à saúde pública do país. Este é o Calendário Nacional de Vacinação de 2018.

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Grupo Idade BCG Hepatite Penta/ VIP/ Pneumocócia Rotavírus Meningocócia Febre Hepatite Tríplice Tetra Varicela HPV Dupla dTpa
alvo B DTP VOP 10V humano C (conjugada)* amarela ** A **** viral viral ****** ******* adulto ********
(conjugada)* *****

Agrinho-Tecnicos_BOOK.indb 796
Dose Dose ao
Ao nascer
única nascer

1ª dose
2 meses 1ª dose (com 1ª dose 1ª dose
VIP)

3 meses 1ª dose

2ª dose
4 meses 2ª dose (com 2ª dose 2ª dose
VIP)

5 meses 2ª dose

3ª dose
6 meses 3ª dose (com
VIP)

***Dose
9 meses
única

Crianças
12 meses Reforço Reforço 1ª dose

1º reforço 1º reforço
Uma
15 meses (com (com Uma dose
dose
DTP) VOP)

2º reforço 2º reforço
4 anos (com (com Uma dose
DTP) VOP)

2 doses
(meninas
de 9 a 14
9 anos anos e
meninos
de 11 a 14
anos)

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Grupo Idade BCG Hepatite Penta/ VIP/ Pneumocócia Rotavírus Meningocócia Febre Hepatite Tríplice Tetra Varicela HPV Dupla dTpa
alvo B DTP VOP 10V humano C (conjugada)* amarela ** A **** viral viral ****** ******* adulto ********

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(conjugada)* *****

2 doses
Dose
(meninas
3 doses 01 reforço ou dose única (não 2 doses
de 9 a 14 Reforço
10 a 19 (verificar única (verificar a vacinado (verificar
anos e a cada
anos situação situação vacinal – ou sem a situação
meninos 10 anos
vacinal) 11 a 14 anos) comprovante vacinal)

Adolescente
de 11 a 14
de vacinação)
anos)

Dose 2 doses
3 doses única (não (20 a 29
Reforço
20 a 59 (verificar vacinado anos)
a cada
anos situação ou sem 1 dose

Adulto
10 anos
vacinal) comprovante (30 a 49
de vacinação) anos)

Dose
3 doses única (não
Reforço
60 anos (verificar vacinado
a cada

Idoso
ou mais situação ou sem
10 anos
vacinal) comprovante
de vacinação)

Uma dose
3 doses 3 doses a cada
(verificar (verificar gestação
situação situação a partir

Gestante
vacinal) vacinal) da 20º
semana

Nota: *Administrar uma dose da vacina Pneumocócia 10V (conjugada) e da vacina Meningocócica C (conjugada) em crianças entre 2 e 4 anos, que não tenham recebido
o reforço ou que tenham perdido a oportunidade de se vacinar anteriormente.
** Indicada às pessoas residentes ou viajantes para as áreas com recomendação de vacina. Atentar às precauções e contraindicações para vacinação.
*** Indicada para os residentes dos municípios das áreas ampliadas para vacinação que anteriormente eram áreas SEM recomendação para vacinação dos estados de SP,
RJ, PR, SC, RS, BA e PI.
**** Administrar uma dose da vacina hepatite A, em crianças entre 2 e 4 anos, que tenham perdido a oportunidade de se vacinar anteriormente.
***** A vacina tetra viral corresponde à segunda dose da tríplice viral e à dose da vacina contra varicela. Esta vacina está disponível para crianças até 4 anos, 11 meses e
29 dias não oportunamente vacinadas aos 15 meses.
****** Corresponde à segunda dose da vacina contra varicela. Esta vacina está disponível para crianças até 6 anos 11 meses e 29 dias.
******* A vacina HPV também está disponível para mulheres e homens de 9 a 26 anos de idade vivendo com HIV/AIDS, transplantados de órgãos sólidos, de medula
óssea ou pacientes oncológicos, sendo o esquema vacinal de três doses (0, 2 e 6 meses)
******** Gestantes que perderam a oportunidade de serem vacinadas durante o período gestacional, administrar uma dose de dTpa no puerpério, o mais precocecemente
possível. A vacina dTpa também será ofertada para profissionais da saúde que atuam em maternidade e em unidade de internação neonatal (UTI/UCI convencional e
UCi canguru) atendendo recém-nascidos e crianças menores de 1 ano de idade.
Fonte – Ministério da Saúde, 2018.
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CONCLUSÃO
Os acontecimentos que ocorrem entre mãe e filho desde o início da gravidez são fundamentais para
a adequada estruturação da personalidade do bebê e extremamente essenciais para seu desenvolvimento
emocional, social e cognitivo saudável. É muito importante iniciar o pré-natal o mais cedo possível,
para se ter o controle da saúde da mãe e do bebê, visando prevenir e tratar quaisquer intercorrências
que atrapalhem o bom desenvolvimento da gestação.
O aleitamento materno deve ser exclusivo até os 6 meses e mantido junto à alimentação
complementar até os 2 anos de idade. A amamentação traz benefícios tanto para a mãe quanto para o
bebê, e todo esse processo deve ser acompanhado por profissionais de saúde preparados.
Devemos também ficar atentos ao que está acontecendo na vida de nossos filhos e alunos, bem
como aceitar e legitimar suas experiências emocionais. Quando surgir um problema, devemos escutar
com empatia e sem críticas. Quando eles nos pedirem ajuda, devemos ser seus cúmplices e aliados.
Embora esses passos sejam simples, hoje sabemos que são fundamentais para a formação da base de
uma vida emocional equilibrada entre pais e filhos, professores e alunos.
Problemas atuais que atrapalham o bom desenvolvimento da criança devem ser sanados para que
não haja consequências importantes em sua vida adulta. Todo o processo de desenvolvimento humano
é um conjunto de ações que devem ser tomadas concomitantemente pelos pais e educadores, visando
ao desenvolvimento de uma consciência humana, social, cultural e ambiental, baseada na ética, na
ciência e na inovação, que possa ser transmitida por meio de gerações, fazendo com que todos reflitam
sobre a própria existência e suas relações com a sociedade e o planeta.

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NOTAS EXPLICATIVAS
1 Disponível em: http://portalms.saude.gov.br/saude-para-voce/saude-do-adolescente-e-do-jovem/caderneta-
do-adolescente.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
801

ALIMENTAÇÃO E NUTRIÇÃO

Antonio Carlos Pinto Jachinoski

A alimentação é uma das maiores preocupações de pais e responsáveis por crianças de todas as
faixas etárias. Existe uma grande procura por parte dessas pessoas por informações quanto à quantidade
e à qualidade do que se consome e, em contrapartida, há uma enorme exposição de informações em
todos os tipos de mídia, veiculadas por anunciantes e fabricantes nem sempre preocupados com a sua
veracidade.
O objetivo deste texto é esclarecer e desmistificar algumas das dúvidas mais frequentes com
relação à alimentação e à nutrição, porém sem ter a pretensão de esgotar esse assunto, que é muito
amplo e complexo. Talvez um dos primeiros pontos a ser abordado é a facilidade da formação de
hábitos em crianças, principalmente por meio de bons exemplos, administração de horários e
incentivos à manutenção de hábitos saudáveis. É bastante comum os pais cobrarem que os filhos
comam determinados tipos de alimentos, mas eles mesmos não os consomem; se na família não existe
o hábito, dificilmente a criança irá desenvolvê-lo.
Exemplos típicos são os pais que exigem que os filhos comam saladas e legumes, mas eles não o
fazem; ou aqueles que dizem para os filhos que poderiam trocar doces por frutas, mas não facilitam o
acesso das crianças a esse alimento.
É importante salientar que também devemos nos preocupar com a formação desses hábitos,
inclusão de ideias, como a escolha de alimentos in natura, sazonais e de produção regional, pois além
de obtermos preços mais acessíveis, ainda diminuímos de forma considerável o impacto sobre nosso
planeta. Por exemplo:
• todo alimento que não precisa ser cozido antes do consumo, além de manter suas propriedades
nutricionais ainda reduz a emissão de carbono na atmosfera, seja pela queima de gás de cozinha
ou pela queima de lenha, ainda tão comum nas áreas rurais;

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• quando utilizamos alimentos sazonais, evitamos o gasto de energia utilizada para manter tais
alimentos até o consumo;
• a valorização de alimentos produzidos na região, além de favorecer seus produtores, dando
condições de sua permanência na atividade rural, ainda evita o transporte desses alimentos,
reduzindo também a emissão de poluentes na atmosfera.

É preciso ter em mente que se desejamos ter filhos saudáveis, devemos deixar o comodismo de
lado e trabalhar diariamente na construção de hábitos saudáveis em nossas crianças. É importante nos
conscientizarmos de que um pacote de salgadinho e um refrigerante não substituem uma refeição e
que quem pode decidir sobre o que é bom ou não comer, não é a criança, mas sim seus responsáveis.
Isso pode ser trabalhoso, mas é o que trará os resultados que buscamos para a saúde de nossos filhos.
Não espere desenvolver em seus filhos esses hábitos somente quando eles já tiverem vontade
própria. Uma criança que desde a mais tenra idade tem uma alimentação saudável e bem balanceada
com toda a certeza levará esses benefícios para o resto de sua vida. Também não é correto pensarmos
que uma alimentação saudável está na relacionada à condição financeira. Nem sempre caros biscoitos
recheados são mais saudáveis que uma fatia de pão coberto com um doce caseiro, ou que achocolatados
substituem uma boa xícara de café com leite.
Os alimentos que são submetidos a processamento industrial de uma maneira geral são mais
pobres do ponto de vista nutricional que os naturais, e geram mais danos ao nosso planeta, seja pela
emissão de carbono durante a produção ou pela poluição formada pelos seus resíduos, transporte e lixo
gerado pelas embalagens após o consumo. Não pretendemos ser contra a indústria e o progresso, mas
talvez resgatar antigos hábitos mais saudáveis de alimentação, prestigiando uma alimentação natural,
evite, por exemplo, o consumo exagerado de conservantes, já sabidamente tão deletérios à nossa saúde.
A predileção por alimentos orgânicos animais ou vegetais além de serem mais saudáveis e seguros,
já que são isentos de hormônios e defensivos, causam menos impacto à natureza.
A nutrição humana tem muitos componentes: os macronutrientes são as proteínas, os carboidratos
e as gorduras; os micronutrientes são todos os demais componentes, inclusive vitaminas, eletrólitos
e oligoelementos. Todos eles são vitais, sendo assim a ausência de qualquer um dos nutrientes será
prejudicial e pode até mesmo causar grandes problemas.

PROTEÍNAS
As proteínas são o material de construção da estrutura corpórea. Elas são formadas por partes
menores, os aminoácidos, e estes, por sua vez, são a base da síntese corporal, ou seja, formam ossos,
músculos, pele e o cérebro. São também os responsáveis pelo nosso código genético, já que são os
formadores dos ácidos nucleicos – o DNA e o RNA –, bem como as moléculas que são responsáveis
pelo armazenamento de energia em nosso corpo. Somos basicamente feitos de proteínas.

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A proteína é o menos disponível e o mais dispendioso dos macronutrientes. Pelo alto custo,
as populações de regiões mais pobres normalmente não têm a quantidade suficiente de proteínas
em suas dietas, e o baixo teor delas na alimentação resulta, por exemplo, em crianças com baixo
desenvolvimento, sendo consequentemente mais frágeis e suscetíveis a doenças.
As fontes de proteínas mais conhecidas são as carnes, peixes, ovos, leite e queijo. As melhores fontes
vegetais são as leguminosas, como o feijão, amendoim, ervilhas e derivados de soja. Muitos cereais contêm
proteínas, e as frutas e verduras são fontes moderadas. Algumas dessas fontes são complementares, por
exemplo, os cereais não têm proteínas de alta qualidade, mas quando adicionamos leite, as proteínas se
complementam, ou seja, o cereal com leite é uma fonte muito melhor de proteína que o cereal sozinho.
Como alguns aminoácidos não podem ser produzidos pelo nosso corpo, eles necessariamente
têm de ser obtidos da nossa alimentação. Esses aminoácidos são chamados de essenciais, ou seja, não
podemos viver sem eles, e esse é um dos motivos para não privar as crianças de nenhuma fonte de
proteína, isto é, não se pode oferecer uma dieta vegetariana para elas, pois estaríamos correndo o risco
de privá-las de alguns tipos de aminoácidos que são encontrados apenas na carne, comprometendo seu
desenvolvimento normal.
Um ponto fundamental, portanto, é que não podemos substituir alimentos sem que tenhamos
certeza absoluta de que essa troca realmente é eficaz.

CARBOIDRATOS
Mais conhecidos como açúcares, os carboidratos são a principal fonte de energia da dieta humana.
Dentre eles, o mais abundante encontrado na natureza é a glicose, que por sua vez é o principal
combustível para a manutenção da vida na maioria das espécies. Os açúcares são normalmente
encontrados na forma de monossacarídeos (glicose, frutose e galactose) ou dissacarídeos – dois
monossacarídeos reunidos, como a sacarose (açúcar de mesa), a maltose e a lactose. Na natureza, a
maioria dos carboidratos encontra-se na forma de polissacarídeos, que são, na realidade, uma união de
vários monossacarídeos – essa união recebe o nome de polímero.
O amido é a forma de depósito polimérico da glicose encontrada nas plantas. Nos animais, a
glicose é armazenada como glicogênio. Os carboidratos são um importante combustível dos seres
vivos, mas para serem utilizados devem ser quebrados por nosso organismo da sua forma de depósito
polissacarídeo (amido e glicogênio) em açúcares mais simples (monossacarídeos).
Na maioria das dietas ocidentais, mesmo aquelas consideradas ricas em gorduras, os carboidratos
compreendem de 50% a 60% das calorias totais. O restante é fornecido pelas gorduras (30% a 40%) e
proteínas (10% a 20%). Em algumas culturas agrárias, como na Ásia e na África, 80% da energia total
da dieta é fornecida por carboidratos. Por ser uma fonte rápida de energia, é muito importante para
todos, principalmente para as crianças que têm uma necessidade energética muito grande, tanto pelo
fato de serem extremamente ativas como para o seu crescimento. Porém, devemos selecionar o tipo de

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carboidrato que iremos oferecer aos nossos filhos, para que seu desenvolvimento seja normal e não haja
problemas como obesidade juvenil e cáries. Muitas frutas são excelentes fontes de carboidratos, então
podemos incentivar o consumo delas ao invés de doces industrializados, ricos em sacarose (açúcar de
mesa), que é prejudicial para o nosso organismo.

GORGURAS E LIPÍDIOS
Os lipídios constituem uma classe grande de compostos que incluem as gorduras, os óleos e as
ceras, além de uma variedade de outros compostos como o colesterol, os fosfolipídios e as lipoproteínas.
As suas propriedades comuns são a insolubilidade em água, a solubilidade em solventes orgânicos e a
capacidade de utilização pelos organismos vivos.
As gorduras podem ser definidas de três modos diferentes. Comumente, uma gordura é qualquer
substância oleosa ao toque e insolúvel em água. Quimicamente, as gorduras são ácidos graxos, a
maioria na forma de triglicérides, mas também são encontradas como monoglicérides, diglicérides,
triacilgliceróis e ácidos graxos livres. Por razões nutricionais, as gorduras incluem outros lipídios que são
nutricionalmente importantes, quais sejam: compostos lipídicos, como os fosfolipídios e os glicolipídios;
os esteróis, como o colesterol; e os lipídios sintéticos, que incluem triglicérides de cadeia média, lipídios
estruturados e substitutos das gorduras. Apesar de a nomenclatura ser bastante complexa, conhecê-los
e familiarizar-se com eles é fundamental para futuras pesquisas e aprofundamentos sobre o assunto.
Existem ácidos graxos saturados e insaturados, mas os poli-insaturados são os de nosso maior interesse,
pois dois deles, e felizmente os mais comuns, são essenciais para nossa dieta e não podem ser formados
pelo nosso organismo: o ácido linoleico e o ácido a-linoleico. Temos de necessariamente obtê-los de
alguma fonte externa, como óleo de milho, soja, canola, nas nozes, gérmen de trigo etc. Sem eles
o corpo irá sofrer deficiência de ácidos graxos essenciais. Por meio deles, o corpo pode sintetizar os
ácidos graxos biologicamente ativos e os eicosanoides ou prostaglandinas. Eicosanoides são hormônios
lipídicos que afetam a pressão sanguínea, a reatividade vascular, a coagulação sanguínea e o sistema
imunológico. Com isso, é possível afirmar que não se pode retirar totalmente as gorduras de nossa
dieta, pois isso traria problemas ao funcionamento normal de vários sistemas do nosso organismo, e
isso também explica por que dietas para perda de peso que são radicais na exclusão de certos grupos de
alimento podem ser consideradas suicídio. Muitos lipídios são importantes no controle da quantidade
de outros lipídios, como o bom colesterol (HDL), que ajuda a controlar o mau colesterol (LDL), e, ao
contrário do que se pensa, ambos são muito importantes para o funcionamento de nosso organismo e
não podem ser totalmente eliminados da nossa dieta. Assim como os chamados ácidos graxos ômega-3
e ômega-6, que são encontrados nos óleos de peixes e são cardioprotetores, ou seja, protegem nosso
coração de várias doenças, existem as lipoproteínas, que são importantes por fazer com que gorduras,
que são insolúveis, tornem-se solúveis em água, permitindo que nosso organismo possa melhor utilizá-
-las ou até excretá-las. Ou, ainda, os fosfolipídios e os glicolipídios, que são compostos presentes nas
paredes de nossas células, fazendo a união entre elas.

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As gorduras devem perfazer menos de 30% das calorias de nossa dieta, e embora isso seja claramente
uma boa ideia, devem ser feitas algumas advertências. Somente reduzir a porcentagem de gorduras não
é muito eficaz, a não ser que a ingestão de calorias totais seja adequadamente controlada, ou seja, uma
pessoa pode tornar-se tão obesa com arroz integral quanto com batatas fritas; falando claramente, é
preciso ter bom senso: uma travessa de arroz integral é muito mais calórica do que uma porção pequena
de batatas fritas. E, sempre que possível, substituir alimentos gordurosos por outras fontes de lipídios
mais saudáveis, como a troca de frituras por saladas temperadas com azeite de oliva.

VITAMINAS
São nutrientes essenciais para a manutenção do funcionamento normal do nosso organismo,
inclusive para a formação do sangue e de suas células de defesa. Nosso organismo não pode sintetizá-
-las, portanto precisamos buscá-las em variadas fontes que necessariamente devem ser incluídas em
nossa dieta. Elas funcionam como cofatores nas reações enzimáticas, ou seja, são necessárias para que
outras substâncias (as enzimas) possam cumprir seu papel no funcionamento do nosso organismo.
Como exemplo, podemos citar os mecanismos de respiração celular, cicatrização e reparação de nossos
tecidos, transporte e utilização de energia e oxigênio pelas células, absorção de minerais, eletrólitos etc.
Suas fontes são muito variadas, e as dosagens necessárias dependem de vários fatores, como a
idade, por exemplo, já que algumas são mais importantes na infância e outras na maturidade.
A deficiência crônica de diversas vitaminas tem sido associada com câncer, doenças cardiovasculares,
catarata, artrite, distúrbios do sistema nervoso e fotossensibilidade (sensibilidade à luz). Pessoas muito
jovens, de muita idade, com grande carga de estresse e os doentes crônicos apresentam um maior risco
de deficiências vitamínicas.
Dê preferência às fontes naturais de vitaminas, como frutas, verduras, castanhas e cereais, pois
além de facilitar sua absorção pelo nosso organismo, a quantidade de que precisamos é pequena, e nas
fontes naturais podemos obtê-las com facilidade. Deixe as reposições artificiais ou farmacológicas para
tratamentos acompanhados e orientados por médicos.

Quadro 1 – Vitaminas.

NOME FUNÇÃO NO ORGANISMO DEFICIÊNCIA FONTES

Vitamina A (Retinol) Importante para a visão, a integrida- Xeroftalmia, cegueira notur- Gema de ovos, fígado, leite,
de da pele e o crescimento. Antioxi- na, cegueira. legumes (cenoura e abóbora)
dante. e frutas (mamão).

Vitamina B1 Metabolismo energético dos carboi- Beribéri, mio cardiopatia, Germes de cereais, leveduras,
(Tiamina) dratos e gorduras. neuropatia, deficiência imu- carnes vermelhas, legumes e
nológica. ovos.

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NOME FUNÇÃO NO ORGANISMO DEFICIÊNCIA FONTES

Vitamina B2 Metabolismo oxidativo. Lesões em lábios, língua e Fígado, carnes vermelhas, ce-
(Riboflavina) pele. Possível deficiência reais integrais.
imunológica.

Vitamina B3 Síntese de NAD*/NADP**. Ajuda Pelagra, rash, adinamia, diar- Carne, peixe, cereais inte-
(Niacina) a manter a integridade da pele e do reia. grais, leveduras.
cérebro.

Vitamina B5 Participa de reações metabólicas. Carnes vermelhas, miúdos e


(Ácido pantotênico) cereais integrais.

Vitamina B6 Participa de reações metabólicas Carnes vermelhas, fígado,


(Piridoxina) como coenzima e ajuda a manter a cereais integrais, ervilhas, ce-
integridade das mucosas e dos nervos noura, banana.
periféricos.

Vitamina B7 Ajuda a manter a integridade da pele Dermatite esfoliativa. Maior parte dos alimentos.
(Biotina) e dos músculos. Alopecia. Bactérias intestinais.

Vitamina B9 Metabolismo de purinas e pirimidi- Anemia megaloblástica. Re- Vegetais verdes, fígado, ce-
(Ácido fólico) nas. Importante para o metabolismo tardo de crescimento. Pan- reais e frutas.
hematológico e para a imunidade ce- citopenia. Defeitos no tubo
lular. neural no feto.

Vitamina B12 Metabolismo do DNA. Importante Anemia megaloblástica. Des- Somente produtos de origem
(Cianocobalamina) para o metabolismo hematológico e mielinização de neurônios. animal.
cerebral.

Vitamina C Síntese de colágeno, ação antioxi- Escorbuto. Frutas cítricas como laranja,
(Ácido ascórbico) dante e como auxiliar na absorção do Retardo na cicatrização. limão, caju, acerola, goiaba,
ferro. maracujá.

Vitamina D Essencial para absorção de cálcio e Raquitismo. Óleos de peixes, fígado, leite,
(Colicalciferol) fósforo e formação dos ossos e dentes. Deficiência imunológica. ovos, manteiga e margarinas.
Síntese pela pele.

Vitamina E Antioxidante. Anemia hemolítica, neuro- Óleos vegetais, cereais, no-


(Tocoferol) Auxilia no metabolismo das gorduras patia central ou periférica. zes, castanhas, espinafre e
e integridade da pele. Miopatia, aumenta o risco brócolis.
de aterosclerose.

Vitamina K Auxilia na produção de fatores de Distúrbios hemorrágicos. Vegetais de folhas verde, fí-
coagulação. gado.
Flora intestinal.

Fonte – O autor.
* NAD – Nicotinamida adenina dinucleotídeo.
** NADP – Nicotinamida adenina dinucleotídeo – P.

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OLIGOELEMENTOS
Inúmeros elementos estão presentes no organismo em pequenas quantidades, mas são essenciais
para o funcionamento do corpo. Ao contrário dos macrominerais como o sódio e o potássio, as
necessidades de oligoelementos são inferiores a 100 mg/dia. A maioria dos oligoelementos é formada
por metais. Eles são, frequentemente, componentes das enzimas.
Muitos são os componentes essenciais na dieta humana, e como são necessários em pequenas
quantidades, dificilmente é caracterizado um estado de deficiência. Outros, como o iodo e o ferro, são
tão importantes que sua deficiência não só é notada rapidamente, como sua falta causa sérios danos em
nosso organismo. Isso é tão sério que, por lei, na composição do sal de cozinha deve ser acrescentado
iodo para evitar uma doença chamada bócio nos adultos e retardo mental (cretinismo) em crianças,
causados justamente pela falta de iodo na dieta. Já a carência de ferro está diretamente ligada a um
componente do sangue, a hemoglobina, e sua falta causa um tipo de anemia que é muito prejudicial à
nossa saúde e ao desenvolvimento normal das crianças.
Atualmente, os oligoelementos essenciais são o ferro, zinco, cobre, manganês, cromo, cobalto,
molibdênio, selênio, flúor e iodo, e as doses diárias recomendadas não foram ainda estabelecidas
para todos eles. Alguns dos oligoelementos que antes se desconheciam como essenciais agora são
reconhecidos como importantes na dieta humana. Boas fontes de ferro são o fígado, ostras, mariscos,
carnes, aves e peixes; cereais integrais e vagens secas são boas fontes vegetais.

MINERAIS E ELETRÓLITOS
Os nutrientes estão divididos em macronutrientes e micronutrientes (oligoelementos). Os minerais
são considerados substâncias para as quais a necessidade é maior do que 100 mg/dia. A maioria dos
minerais é encontrada nos líquidos corporais como soluções eletrolíticas.
Os principais minerais são o sódio e o potássio, responsáveis pelo equilíbrio dos líquidos em nosso
corpo, que participam na contração muscular, no equilíbrio ácido-básico, na permeabilidade celular,
no metabolismo de carboidratos etc. Portanto, esses sais têm inúmeras funções no funcionamento das
variadas partes do organismo, sendo essenciais para nossa vida.
Tanto a falta como o excesso de qualquer um dos dois podem levar a inúmeros problemas e até
mesmo à morte.
Outros minerais têm funções específicas, como o cloro, principal componente do suco gástrico,
que é obtido do cloreto de sódio, o sal de cozinha.
O cálcio é essencial para nossos ossos e dentes, bem como para funções vitais como os impulsos
eletroquímicos nas membranas, a condução dos impulsos nervosos e a coagulação sanguínea. Ele é
encontrado em laticínios, vegetais folhosos, legumes, nozes e cereais integrais. A quantidade de cálcio
que deve ser ingerida diariamente é de 400 mg a 1.200 mg e as mulheres precisam de mais dele do que

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os homens. É provável que a osteoporose, bastante prevalente em mulheres de mais idade, possa ser
prevenida pela administração de suplementos de cálcio durante os anos férteis e após a menopausa, por
isso, o cálcio deve estar presente sempre na dieta de mulheres grávidas e lactentes.
O magnésio está intimamente relacionado com o cálcio. Ele age como um componente do osso e
é importante na contração muscular e na propagação do impulso nervoso, além de ser um cofator em
mais de 300 reações enzimáticas.
O magnésio é amplamente encontrado, especialmente em alimentos não processados, como
vegetais e nozes, e a quantidade que deve ser ingerida diariamente é de 250 mg a 300 mg.
O fósforo está presente em nosso organismo na forma de fosfato. Ele entra na formação do nosso
esqueleto combinado com o cálcio na forma de fosfato de cálcio. É encontrado no leite, nas carnes, no
peixe e nos cereais.

Quadro 2 – Oligoelementos, minerais e eletrólitos.

Nome Função Deficiência Fontes

Cálcio Importante para a manutenção e o Raquitismo. Leite e seus derivados, peixes, fo-
crescimento dos ossos e dentes, fun- Osteopenia e osteoporose. lhas verdes escuras e nozes.
ção dos músculos e dos neurônios. Fraqueza muscular e arritmias
cardíacas e convulsões tetânicas.

Fósforo Importante para a manutenção e Raquitismo e osteoporose. Leite e seus derivados, peixes, car-
o crescimento dos ossos, formação Fraqueza muscular e arritmias nes, ovos, cereais.
dos dentes e como auxiliar no ar- cardíacas.
mazenamento de energia.

Potássio Importante para a função das célu- Fraqueza muscular e arritmias Frutas (banana, acerola, laranja,
las musculares. cardíacas. goiaba, abacaxi), tomate, repolho,
couve-flor, nozes.

Zinco Importante na síntese proteica. Faz Retardo de crescimento, alopecia, Carnes vermelhas, frutos do mar,
parte de várias enzimas do organis- rash cutâneo, deficiência imuno- fígado, ovos, cereais integrais e le-
mo. lógica, hipogonadismo, intole- guminosas.
Diferenciação de tecidos. rância à glicose.
Antioxidante.

Ferro Transporte de oxigênio e de elé- Anemia ferropriva. Miúdos, carnes, peixes, leites enri-
trons. Déficit de crescimento. quecidos, leguminosas, ovos.

Cobre Sínese de colágeno e da elastina. Arritmia cardíaca. Vegetais verdes, peixes e fígado.
Auxilia o crescimento, a tolerância Anemia e neutropenia.
à glicose e melhora a imunidade.

Selênio Antioxidante. Miocardiopatia, miopatia. Ma- Cereais, peixes, carnes.


Função imunológica. crocitose.

Manganês Antioxidante Alterações lipídicas. Chás, cereais, vegetais verdes.


Anemias.

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Nome Função Deficiência Fontes

Cromo Metabolismo de carboidratos. Intolerância à glicose, perda de Levedura, carne, grãos.


peso.
Neuropatia periférica.

Molibdênio Metabolismo de aminoácidos e de Intolerância a aminoácidos sulfu- Carnes, vegetais.


purinas. rados.

Iodo Metabolismo energético. Atua no Hipotireoidismo. Leite, peixes, frutos do mar, sal io-
funcionamento da glândula tireoi- Ganho de peso. dado.
de.

Flúor Mineralização de ossos e dentes. Cáries dentárias. Água potável enriquecida.

Fonte – O autor.

FIBRAS
Material da parede celular das plantas resistente à digestão por enzimas do intestino delgado
humano. As fibras da dieta promovem uma função normal do intestino, pois estimulam a sua
movimentação; já as insolúveis aumentam o tempo de trânsito e o volume do bolo fecal, tendo assim
um efeito laxativo. Porém, é importante salientar que a ingestão de fibras com aumento do consumo
de água pode resultar em constipação em pacientes com longa história de constipação crônica. Um
aumento de fibras na dieta pode ajudar a prevenir doenças cardíacas e o câncer, particularmente o de
intestino (cólon).
Foi comprovado que a ingestão de fibras em maior quantidade aumenta o controle glicêmico
e a sensibilidade à insulina, em pacientes portadores de diabete melito, permitindo uma redução na
medicação. Para o tratamento da obesidade, uma dieta rica em fibras fornece uma sensação de plenitude
gástrica e pode auxiliar no manejo do peso em longo prazo. A adição de fibras como a aveia (de 2/3 a
1 xícara) na dieta pode reduzir as lipoproteínas de baixa densidade (LDL) em 10% a 20% no sangue
para pacientes com altos níveis de colesterol.
Para uma dieta rica em fibras, basta incentivar alguns hábitos como o de comer pelo menos cinco
frutas e vegetais ao dia, preferir pães e cereais integrais, ingerir cereais com farelo de trigo e comer
feijão pelo menos duas vezes por semana. Sempre que aumentamos o consumo de fibras em nossa dieta
devemos aumentar a ingestão de água em um mínimo de dois copos por dia.
Conhecendo todos os componentes principais que devem fazer parte da dieta de um ser humano,
como desenvolver uma fórmula para uma alimentação correta? Existem vários métodos e autores
que tentaram descrever uma maneira correta e ideal de se alimentar, como, por exemplo, a pirâmide
alimentar. Ela é um recurso educacional que mostra as diretrizes dietéticas em uma forma gráfica
facilmente compreensível, e tem sido utilizada para orientar a quantidade e os diferentes tipos de

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alimentos a serem incluídos na dieta diária. A pirâmide alimentar foi desenvolvida para ser utilizada
por uma população saudável, com a finalidade de ensinar conceitos de variedade, moderação, além da
inclusão de tipos de alimentos em proporções adequadas na dieta total. Ela deve ser modificada para
diferentes idades e grupos étnicos, sendo, assim, adequada a diversas realidades e costumes. Por isso,
precisamos de um grande conhecimento em nutrição para podermos utilizá-la com eficiência.
Então, como proceder para nutrir adequadamente nossas crianças? Qual método ou fórmula
utilizar para alimentá-las de forma ideal?
Quase tudo em nossas vidas mostra que qualquer tipo de excesso é prejudicial, então devemos ter
uma dieta constituída de um cardápio variado, pois ingerindo uma variedade de alimentos dificilmente
teremos deficiência de algum componente essencial. Ao invés de nos fartarmos de um único tipo de
alimento, o ideal é nos alimentarmos de pequenas e diversificadas porções.
A quantidade de alimento ou calorias que se ingere deve ser equilibrada com a quantidade de
atividade física, pois dessa maneira podemos manter ou equilibrar o nosso peso.
Escolha uma dieta pobre em gorduras saturadas e colesterol, moderada em açúcares, sal e sódio,
porém com muitos grãos, vegetais e frutas. Se você ingere bebidas alcoólicas, faça-o moderadamente.
Talvez a melhor maneira de ensinarmos nossas crianças seja por meio da formação de hábitos,
com bons exemplos desde pequenas, pois elas se espelham nos adultos. Manter horário de alimentação,
reunir sempre que possível toda a família nas refeições e aproveitar esse tempo para ensinar as vantagens
de bem alimentar-se, valorizar os alimentos e o quanto são importantes para uma vida saudável e um
crescimento normal.
Muitas crianças são incentivadas a consumir alimentos de baixo valor nutritivo por modismo
criado pelas propagandas veiculadas na mídia ou por comodismo dos pais que preferem não se aborrecer
com esses assuntos desde que seu filho coma ‘alguma coisa’, mesmo que isso leve a algum tipo de
deficiência ou desnutrição. Não faça substituições de alimentos sem ter a certeza de que a troca tem o
mesmo valor nutricional; também não permita que se alimentem entre as refeições principais, pois essa
é uma das principais causas das frases ‘não estou com fome!’, ‘não quero comer nada disto!’, ‘não gosto
de nada que tem aqui!’. Uma criança que se alimenta nos horários corretos sempre se alimentará bem
e dificilmente terá problemas de obesidade.
Lembre-se sempre que nossas crianças facilmente nos manipulam, seja com manhas e choros
ou com sorrisos e rostinhos meigos. Porém, quem pode definir um futuro melhor para elas somos
nós, adultos. Não troque a saúde de seu filho por um pouco de sossego, incentive-o a bem alimentar-
-se para ser uma pessoa mais forte e inteligente, pois os danos causados pela desnutrição durante o
desenvolvimento de uma criança, na maioria das vezes, são irreversíveis. O uso de artifícios como
contar ‘boas’ mentiras pode ajudar. Uma mãe certa vez contou-me que sua filha, hoje uma linda moça,
adquiriu o hábito de comer saladas verdes por acreditar que assim teria mais chances de ter olhos bem
verdinhos. Assim como incentivar a comer determinado alimento porque o atleta de sucesso só ficou
daquela forma porque também tinha esse hábito.
Devemos ainda valorizar a nossa cultura, com a manutenção de receitas típicas de cada região,
explorando as diferenças gastronômicas de nosso país continental em detrimento de modismos tão

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frequentemente impostos pela mídia globalizada. Por que dar preferência a salgadinhos e refrigerantes
industrializados, cheios de conservantes e sem valor nutricional, ao invés de alimentos puros e cheios
de energia viva, muitas vezes produzidos em nossos próprios quintais? Temos de aprender a não ser
manipulados por propagandas enganosas que apenas visam o consumo exagerado e inescrupuloso,
buscando apenas lucros em suas vendas e não a saúde de nossos filhos.
Use sua criatividade e permita que nossas crianças sejam saudáveis e bem desenvolvidas. Incentive
as atividades físicas em substituição ao videogame e ao computador, e não correremos o risco de sermos
chamados de ‘pais de Primeiro Mundo’, cujas crianças não passam fome, mas são desnutridas por
substituir alimentos saudáveis por salgadinhos, desenvolvendo problemas graves de obesidade infantil
por falta de atividades físicas.
Hoje podemos encontrar com facilidade inúmeras fontes de aproveitamento integral dos alimentos,
como cascas, sementes, talos e folhas, que anteriormente eram descartados ou, no máximo, utilizados
para alimentação de animais de criação, como, as folhas da beterraba, a casca do maracujá etc.
Portanto, uma receita infalível para um crescimento sadio é formar bons hábitos, preparar e
oferecer uma dieta rica e variada, incentivar atividades físicas e, principalmente, envolver-se com o
desenvolvimento mental e corporal, dando atenção e carinho, que são também componentes essenciais
para o crescimento de nossas crianças.
E como saber se a quantidade de alimentação está sendo satisfatória na nutrição de uma criança?
Existem dois momentos em que o crescimento e o metabolismo exigem uma maior ingestão
de alimentos durante nossa vida, isto se dá no primeiro ano de vida, pois crescemos em torno de
25 centímetros, e mais tarde durante a puberdade no pico de crescimento, em que um adolescente
pode crescer até 10 centímetros por ano, o que representa o dobro do crescimento médio que ocorre
na infância. E ainda a ação dos hormônios esteroides que seu corpo começa a produzir e que são
anabolizantes e aumentam o apetite.
Portanto, é absolutamente normal e compreensível que bebês e adolescentes comam muito e
isso não deve preocupar os pais. A partir do segundo ano de vida o ritmo de crescimento cai e as
necessidades fisiológicas diminuem, ou seja, a necessidade de energia e nutrientes são inferiores ao
que a criança consumia em seu primeiro ano de vida. Logo, a diminuição do apetite nessa fase pode
ser considerada normal, visto que surge o interesse pelo ambiente que a cerca e com o aumento da
independência passam também a exercer a opção de escolha, o que torna importante a oferta de
alimentos que despertem interesse na criança.
Não se deve comparar o apetite de uma criança em relação à outra, visto que existem diferenças
de constituição física, do ritmo de atividades físicas e, consequentemente, das necessidades nutricionais
e energéticas.
Entretanto, comer demais em outras faixas etárias deve ser encarado como preocupante, pois
pode demonstrar um desequilíbrio da saúde física ou emocional e levar a um ganho excessivo de peso.
Normalmente a criança que come demais para a sua idade deve ser avaliada por um médico pediatra.
Crianças que têm um comportamento bem ativo, muitas vezes podem gastar muita energia e,
por isso, precisam ingerir maiores quantidades de calorias, pois se gastam muito, consequentemente,

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precisam repor o que foi consumido. Esse perfil de comportamento normalmente representa as crianças
chamadas de ‘gastadoras de energia’, que são aquelas que apesar de comer muito, gastam muita energia
em atividades físicas e com isso mantêm seu peso e ritmo de crescimento normais.
Mas se a criança realmente come muito e está ganhando peso excessivamente, deve-se avaliar
com regularidade sua alimentação e estilo de vida. Existem crianças que têm um grande apetite,
comem muito, mas não gastam bem as calorias que ingerem, ou por ter um baixo metabolismo
ou por ter pouca disposição para realizar atividades físicas, são as chamadas de ‘poupadoras de
energia’. Esse fato não caracteriza uma patologia, pois temos que avaliar as características genéticas
e familiares, mas um acompanhamento e aconselhamento nutricional são indispensáveis para evitar
a obesidade infantil.
Outro fator importante que devemos avaliar em nossas crianças é o nível de estresse a que elas
estão sendo submetidas em suas atividades diárias, ele pode tanto aumentar quanto diminuir o apetite.
Tanto o excesso de atividades e cobranças quanto o desinteresse pelas suas atividades por parte dos
responsáveis, podem gerar alterações no equilíbrio emocional das crianças.

PRINCIPAIS IDEIAS
Estimular na criança o desenvolvimento de uma alimentação saudável por meio da formação
de bons hábitos como: comer na hora certa, no local certo, preferencialmente com a família. Evitar
a ingestão de guloseimas entre as refeições, bem como a substituição de alimentos nutritivos por
salgadinhos e refrigerantes.
Aprender a fazer uma correta seleção dos alimentos, dando preferencia aos orgânicos, em natura
ou que necessitem o mínimo de processamento. Fazer o uso de alimentos sazonais e regionais. Evitar a
utilização de alimentos industrializados, enlatados e com excesso de conservantes. Procurar realizar o
aproveitamento integral dos alimentos.
Conhecer os nutrientes de uma forma mais aprofundada é importante para poder utilizar todos os
grupos alimentares de uma forma equilibrada, tornando a dieta balanceada e diversificada, e entendendo
que toda alimentação deve ser nutritiva.
Empregar o exemplo de hábitos e atitudes como espelho na formação das crianças, estimular a
educação do ‘não desperdício’, do aproveitamento integral dos alimentos, partindo de ações integradas
casa/escola, para a formação de um adulto saudável e consciente.

BIBLIOGRAFIA
BANCO de Alimentos e Colheita Urbana. Aproveitamento Integral dos Alimentos [on-line]. Rio de Janeiro:
SESC/DN, 2003. p. 45. (Mesa Brasil SESC- Segurança Alimentar e Nutricional). Programa Alimentos Seguros.
Convênio CNC/CNI/SEBRAE/ANVISA.

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813

BON, A. M. X. Atendimento nutricional a crianças e adolescentes: visão prática. Rio de Janeiro: Guanabara
Koogan, 2014.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Guia alimentar
para a população brasileira. 2. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2014.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Política de Saúde. Organização Pan Americana da Saúde. Guia
alimentar para crianças menores de dois anos [on-line]. Brasília: Ministério da Saúde, 2002. [Secretaria de
Políticas de Saúde, Organização Pan Americana da Saúde].
DALMOLIN, T. A.; PILLA, M. C. B. A. Alimentação Adequada e a declaração dos direitos das crianças: os
manuais de puericultura – Brasil (1930 – 1970). 2017. 85f. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade
Católica do Paraná, Curitiba, 2017.
MCARDLE, W. D. Nutrição para o esporte e o exercício. 4. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2016.
VELTRINI, C. P.; RIBEIRO, C. S. G. Publicidade, obesidade infantil e violação do direito humano à
alimentação adequada: uma análise à luz da bioética. 2017. 123 [14] f. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia
Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2017.
WAKSMAN, R. D.; SCHVARTSMAN, C.; TROSTER, E. J.; ABRAMOVICI, S. (coord.). A saúde de nossos
filhos. 3. ed. São Paulo: Manole, 2012.
WAY III, C. W. V. Segredos em nutrição: respostas necessárias ao dia a dia: em rounds, na clínica, em exames
orais e escritos. Tradução de Jussara N. T. Burnier. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.

LINKS
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Aproveitamento integral dos alimentos. Disponível em: https://www.sescpr.com.br/servico/mesa-brasil.
Acesso em: 10 nov. 2019.
CGAN – Coordenação Geral de Alimentação e Nutrição. Disponível em: http://nutricao.saude.gov.br/pas.
php?conteudo=guia. Acesso em: 10 nov. 2019.
Conselho Nacional de Segurança Alimentar. Disponível em: http://www4.planalto.gov.br/consea; www.
brasil.gov.br/sobre/saude/cuidados-e-prevencao. Acesso em: 10 nov. 2019.
Departamento de Atenção Básica (DAB). Disponível em: www.saude.gov.br. Acesso em: 10 nov. 2019.
Ministério da Saúde. Disponível em: www.saude.gov.br. Acesso em: 10 nov. 2019.
Organização Mundial da Saúde. Disponível em: www.who.int. Acesso em: 10 nov. 2019.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
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SAÚDE BUCAL

Antonio Carlos Pinto Jachinoski


Simone Tetu Moysés
Julio Cesar Bisinelli

CONHECENDO NOSSA BOCA


Nossa boca não é somente a porta de entrada para os nutrientes que nos mantêm vivos e ativos,
mas também é nossa principal ferramenta de comunicação com o mundo. Ela nos permite isso não
somente pelo uso das palavras, mas também pelo conjunto de expressões que, unidas a outros elementos
de nossa face, muitas vezes nos possibilitam dizer muito mais e/ou de maneira mais clara.
Quantas vezes já escutamos a expressão ‘O sorriso é o nosso cartão de visitas’? Nosso sorriso é
constituído por vários elementos, como dentes, lábios, a musculatura que os movimenta etc. Portanto,
é fundamental conhecermos a anatomia de nossa boca, pois somente sabendo o que é normal
conseguiremos notar alguma coisa que fuja da normalidade.
Como a musculatura que envolve nossa boca é um dos constituintes de nosso rosto, é fácil
notarmos alguma alteração como cor, aumento de volume, dificuldade de movimentação, ausência ou
diminuição de sensibilidade. Já a parte interna de nossa boca é para nós pouco conhecida, e por esse
motivo daremos mais ênfase na anatomia dos elementos que a compõem.

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Mucosa
Dessa forma é chamada a camada que reveste (epitélio de revestimento) nossa boca. Ela é diferente
da pele, pois é destinada ao revestimento de regiões úmidas e, dependendo da localização e da função,
recebe uma nomenclatura diferente:
• mucosa jugal: reveste nossa bochecha (internamente). Na região em que os dentes se tocam
ela é extremamente queratinizada1 para aumentar sua resistência e não sofrer injúrias durante
a mastigação;
• gengiva livre: não deixa de ser uma mucosa, porém é responsável pelo revestimento da transição
entre a mucosa jugal e o osso alveolar (no qual os dentes se fixam);
• gengiva inserida ou marginal: recobre o osso alveolar e margeia nossos dentes e tem
características muito especiais. Ao contrário da gengiva livre, ela é ligada ao osso alveolar
por meio de milhares de fibras, o que lhe confere seu nome e a aparência de casca de laranja.
Ela também é altamente queratinizada para suportar os esforços durante a mastigação e tem
coloração rósea pálida;
• epitélio sulcular: revestimento do sulco gengival, que é uma pequena abertura ao redor de
nossos dentes.

Dentes
Os dentes podem ser considerados como pequenos órgãos, pois são formados por diferentes tecidos.
Cada um deles recebe pelo menos um feixe vásculo-nervoso, que assegura sua nutrição e sensibilidade.
O dente é formado de duas partes: a coroa, que é visível na boca, e a raiz, responsável por sua
fixação no osso alveolar. A linha de união entre essas duas partes é conhecida por colo.
Os dentes têm a consistência de osso compacto, e a coroa é ainda envolta por uma camada de
esmalte, que é o tecido mais duro de todo o nosso organismo.
Os dentes têm como principal função a desintegração mecânica dos alimentos e desempenham
também importante papel na dicção das palavras e na estética facial.
Em virtude de a espécie humana se alimentar de substâncias de diversas naturezas, as pessoas
apresentam dentes de diversos formatos, para diferentes funções: incisivos para cortar; caninos para
dilacerar; pré-molares para esmagar e os molares para moer os alimentos.
O ser humano apresenta duas dentições completas durante seu desenvolvimento. A primeira,
conhecida como decídua, temporária ou de leite, em geral começa a aparecer ao 6.° mês e se completa por
volta dos dois anos de vida. A segunda, conhecida como permanente ou definitiva, surge aproximadamente
aos 6 anos de idade e se completa aos 18 anos de vida do indivíduo. A dentição decídua é constituída por
20 dentes, e a permanente, por 32 dentes.

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Quadro 1 – Cronologia de erupção ou ‘nascimento’ dos dentes decíduos.

DENTE SUPERIORES INFERIORES

Incisivos centrais 7 meses 6 meses

Incisivos laterais 9 meses 8 meses

Caninos 18 meses 16 meses

Primeiros molares 14 meses 12 meses

Segundos molares 24 meses 20 meses

Fonte – Os autores.

Quadro 2 – Cronologia de esfoliação ou ‘queda’ dos dentes decíduos.

DENTE SUPERIORES INFERIORES

Incisivos centrais 7 – 8 anos 6 – 7 anos

Incisivos laterais 8 – 9 anos 7 – 8 anos

Caninos 11 – 12 anos 9 – 10 anos

Primeiros molares 10 – 11 anos 10 – 11 anos

Segundos molares 11 – 12 anos 11 – 12 anos

Fonte – Os autores.

Quadro 3 – Cronologia de erupção ou ‘nascimento’ dos dentes permanentes.

DENTE SUPERIORES INFERIORES

Incisivos centrais 7 – 8 anos 6 – 7 anos

Incisivos laterais 8 – 9 anos 7 – 8 anos

Caninos 11 – 12 anos 9 – 11 anos

Primeiros pré-molares 10 – 11 anos 10 – 12 anos

Segundos pré-molares 10 – 12 anos 11 – 13 anos

Primeiros molares (*) 6 – 7 anos 6 – 7 anos

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DENTE SUPERIORES INFERIORES

Segundos molares 12 – 13 anos 12 – 13 anos

Terceiros molares 17 – 30 anos 17 – 30 anos

Fonte – Os autores.

(*) Observe que os primeiros molares permanentes nascem aproximadamente aos 6 anos de idade da criança e que nenhum
dente ‘cai’ para eles nascerem. Por esse motivo, são normalmente confundidos com dentes decíduos e são perdidos por falta
de cuidado dos pais.

Estrutura dos dentes


Os dentes são constituídos de diferentes tecidos, os calcificados – como o esmalte, a dentina e o
cemento – e os não calcificados – como a polpa dentária ou o nervo.

Esmalte
É altamente mineralizado, recobre toda a coroa do dente e sua espessura varia de 0,2 a 2,5 mm. É
translúcido, ou seja, reflete a cor da dentina, mas sua cor original varia de branco-amarelado a branco-
-acinzentado, com superfície lisa e brilhante.
A composição do esmalte é de 92 a 96% de matéria inorgânica, 1 a 2% de matéria orgânica e 3 a
4% de água. Devido a seu grande conteúdo de sais minerais e a forma como está arranjado, o esmalte
é o mais duro tecido calcificado do corpo. Sua função é revestir o dente, tornando-o apropriado para
a mastigação. Entretanto, apesar de sua dureza o esmalte é muito frágil e quebradiço devido a suas
características estruturais e não suporta esforços onde não haja dentina subjacente ou quando em
camadas muito finas.
Podemos compará-lo a uma parede, na qual os cristais seriam os tijolos e a parte orgânica e a água
seriam o cimento. Devido a essas características, podemos explicar as alterações que ele sofre com o
envelhecimento.
Quando o dente ‘nasce’, ele tem uma camada de ‘cimento’ mais espessa, juntando seus cristais que
são pequenos e imaturos, ainda em desenvolvimento. Com o passar do tempo, essas características vão se
alterando e a camada de cimento (parte orgânica) vai diminuindo, tornando-se mais delgada, e os cristais
vão se avolumando. Essa maturação do esmalte normalmente tem um período de aproximadamente
30 meses. A porção orgânica do esmalte, provavelmente mais próxima da superfície, também sofre
modificações com a idade, tornando o dente mais escuro e com maior resistência às cáries.
O esmalte sofre atrição ou desgaste com o passar dos anos, principalmente nas superfícies usadas
na mastigação, devido aos esforços da própria mastigação ou a disfunções, como o hábito de ranger
dentes. Esse fato é visível mediante a redução do tamanho das coroas dentais, muitas vezes expondo a
dentina ou até mesmo a polpa dentária.

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Dentina
É um tecido duro, formado por aproximadamente 70% de matéria inorgânica, 18% de matéria
orgânica e 12% de água. A dentina constitui a maior parte do dente e determina a forma da coroa, o
número e o tamanho das raízes. É produzida por células especiais chamadas de odontoblastos. Sua cor
normalmente é amarelo-claro, tornando-se mais escura com a idade.
A dentina não é tão dura nem quebradiça quanto o esmalte; ao contrário, ela é elástica e passível
de deformação.
Sua estrutura é diferente da do esmalte. Ela é constituída de inúmeros canalículos que partem
da polpa dentária e seguem até o esmalte e o cemento. Em 1 mm2 temos aproximadamente 30 a
40 mil túbulos dentinários, e dentro de cada canalículo há um prolongamento celular responsável
principalmente pela sensibilidade desse tecido. Ou seja, por meio desse mecanismo a dentina é passível
de ‘sentir’ estímulos e consequentemente se defender.
Sua principal defesa é a dor, mas ela também é capaz de se proteger formando uma nova camada
de tecido conhecida como dentina reacional ou terciária, que funciona como um escudo ou uma
barreira aos agentes que estão ‘agredindo’ o dente.
De acordo com a agressividade do estímulo, a dentina também pode obstruir esses canalículos por
meio de fibras colágenas e cristais de apatita, preenchendo-os totalmente. Esse processo dá origem à
dentina esclerosada, que protege não só a polpa dentária, mas também a própria dentina.
Portanto, a exposição da dentina ao meio bucal é a principal causa da sensibilidade que ocorre
quando nos expomos a alimentos ácidos, doces e frios.

Polpa dentária (nervo)


Constitui-se de um tecido conjuntivo frouxo, rico em nervos, vasos sanguíneos, fibras e células.
Dentre as células estão os odontoblastos, que são formadores da dentina.
Na coroa, a polpa ocupa a cavidade pulpar; na raiz, o canal radicular. Ela apresenta saliências
chamadas de cornos pulpares, que normalmente têm a mesma forma da anatomia externa do dente,
porém, com a contínua deposição de dentina, a polpa torna-se menor com o passar do tempo.
A polpa tem inúmeras funções: indutora – na formação do dente, ela induz a transformação do
epitélio bucal em lâmina dentária para formar o órgão do esmalte, que por sua vez irá se transformar em
determinado tipo de dente; formadora – a polpa dentária tem células, os odontoblastos, que produzem
dentina; nutriente – ela nutre a dentina por meio de seu sistema vascular sanguíneo; protetora – pela
inervação sensitiva, a polpa ‘alerta’ quanto à presença de estímulos nocivos, que podem lhe causar
danos; defesa – responde às irritações mecânicas, térmicas, químicas ou bacterianas produzindo dentina
reparadora e mineralizando os túbulos dentinários afetados, a fim de isolá-la da fonte de irritação.

Cemento
Considerado como parte do periodonto (vide descrição no próximo tópico), é um tecido
mineralizado, não vascularizado, que recobre a raiz do dente. Entretanto, é menos mineralizado que

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o esmalte e a dentina. Sua cor é, geralmente, amarelo-claro; é mais escuro que o esmalte e não tem
brilho. A composição química do cemento varia de 45% a 50% de matéria inorgânica e 50% a 55%
de matéria orgânica e água.

Periodonto
Conjunto de estruturas responsáveis pela fixação e sustentação dos dentes, é formado por osso
alveolar, gengiva marginal, cemento e fibras periodontais.
O osso alveolar2 é um tecido especializado cuja existência depende da presença dos dentes, ou seja,
se perdemos nossos dentes, perdemos também o osso alveolar.
Fibras periodontais são feixes de fibras colágenas que ligam o dente ao osso alveolar. Se este
é ligado por meio de fibras, essa união não é rígida e sim móvel; se é uma união móvel, pode ser
denominada também de articulação do tipo ‘gonfose’. Esses feixes se organizam de diferentes maneiras
para executarem diferentes funções, retendo o dente e sustentando-o nas mais diferentes condições de
esforços a que ele pode ser submetido.
Essas fibras, além de ligarem o dente (cemento) ao osso alveolar, também o ligam à gengiva
marginal e à gengiva ao osso alveolar, bem como por meio de uma rede liga a gengiva a ela mesma,
aumentando assim sua união ao dente e melhorando sua resistência.
Esse conjunto de fibras ajuda o dente a se proteger de agressões dos mais diferentes tipos: mecânicas,
químicas e bacterianas.
Ao redor de cada dente existe o sulco gengival, que em estado normal deve apresentar uma
profundidade de 1 a 3 mm, sem secreções ou sangramentos espontâneos.

PREVENÇÃO EM ODONTOLOGIA
É fundamental termos conhecimento das doenças que mais comumente acometem nossa boca
para podermos evitá-las e/ou prevenir seu desenvolvimento. Mas não são somente as doenças que
devemos conhecer para termos mais saúde. Alguns hábitos errados, que muitas vezes passam de pai para
filho e continuam sendo perpetuados por gerações, podem trazer consequências graves, incorrigíveis
ou de correção dispendiosa e difícil. Por isso, existe a necessidade de conscientizar pais e responsáveis
sobre a importância de preservar tanto os dentes decíduos (leite) quanto os permanentes.
São vários os motivos para isso, entre os mais importantes podemos citar.
1. Os dentes decíduos servem de guia para a erupção (nascimento) dos dentes permanentes.
2. Eles também mantêm o espaço para os dentes permanentes, pois sua perda prematura
normalmente leva os dentes permanentes a nascerem em posições incorretas ou mesmo à
impossibilidade de eruptar, ficando, dessa maneira, retidos e necessitando de processos

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cirúrgicos para serem removidos. A perda de espaço ocorre porque os dentes vizinhos, ao
perder o contato, tendem a se mover, pela perda de apoio que o dente retirado executava. Essa
movimentação também ocorre na perda de dentes permanentes, muitas vezes impossibilitando
a execução de trabalhos protéticos na região dos dentes ausentes.
3. Os dentes decíduos estimulam o crescimento em altura e manutenção do osso que sustenta os
dentes. A perda prematura deles faz com que o osso alveolar seja reabsorvido pelo organismo,
já que serve para sustentar os dentes. A perda desse osso posteriormente dificulta a confecção
de próteses parciais e totais (dentaduras), pois ambas se apoiam sobre esse osso.
4. Esses dentes são úteis no corte e na correta mastigação, auxiliando assim na digestão dos
alimentos. Uma pessoa com ausência de um elemento dentário já tem um decréscimo
acentuado no poder de mastigação, tendo, dessa forma, uma chance maior de desenvolver
doenças no aparelho digestivo. É incorreto pensar que a simples recolocação protética dos
elementos dentários faltantes vai resolver o problema, pois, por exemplo, uma pessoa que use
prótese total (dentadura) tem seu coeficiente de mastigação reduzido em mais de 50%, pois
nada se compara ao poder de mastigação dos dentes naturais.
5. Esteticamente, a maioria das pessoas que têm dentes destruídos ou ausentes apresenta
dificuldades de socialização, problemas psicológicos, é mais retraída e, é lógico, quase não
sorri.
6. A boa dentição é importante para o convívio social, pois a boca e o sorriso são nosso cartão de
visitas. Como querer que alguém converse conosco se nossos dentes estão destruídos e com o
odor (mau hálito) característico dessa destruição?
7. A presença de todos os dentes também é essencial para a fonação das palavras. Todos sabemos
que os dentes participam diretamente na articulação de certos grupos de palavras. Com
a ausência deles torna-se difícil ou até impossível a pronúncia correta de alguns fonemas.
Em crianças essa falta causa atraso de aprendizagem, pois se a criança não consegue falar
corretamente também não escreve de maneira correta.
8. A perda parcial ou total dos dentes pode acarretar problemas nas articulações do osso da
mandíbula com o crânio, levando a alterações patológicas do sistema (doenças musculares,
deformações ósseas, alterações de crescimento etc.)

Esses são apenas alguns motivos para que preservemos nossos dentes. Ainda assim, existem pessoas
que por falta de conhecimento não se preocupam com isso, trazendo sequelas para si e seus filhos que
dificilmente poderão ser corrigidas, ou que não devolverão a totalidade de suas funções.
Portanto, o conhecimento é um dos meios mais eficazes de que dispomos para a manutenção de
nossa saúde.

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Cárie
A cárie dental é uma doença infecciosa, crônica, transmissível e de origem bacteriana. Os
microrganismos causadores da cárie formam colônias que são semelhantes a uma geleia espessa, a
placa bacteriana, que aderem à superfície dos dentes. Sob condições favoráveis, os microrganismos
cariogênicos podem fermentar açúcares (e também outros carboidratos, mais lentamente) para produzir
ácido, que por sua vez têm a capacidade de desmineralizar o esmalte adjacente.
O mecanismo etiológico da cárie dental pode ser resumido na fórmula.

Microrganismos da placa (baixo ph) + Carboidratos = Ácidos → Desmineralização do esmalte.

Em estágios iniciais, o processo de desmineralização pode ser revertido, mas caso isso não ocorra
ele se torna irreversível e a cárie se instala, formando uma cavidade.
A doença ocorre pela interação de quatro fatores principais: hospedeiro suscetível, dieta cariogênica,
tempo e ação de microrganismos orais.
A Figura 1 ilustra essa interação de fatores causal.

Figura 1 – Fatores que causam a cárie.

Hospedeiro Dieta

Cárie

Tempo Microrganismo

Fonte – Newbrun, 1988.

Cada um desses fatores tem um desempenho diferente na formação da cárie, como comentaremos
a seguir.

O hospedeiro: dente
A formação de nossos dentes está diretamente relacionada com as condições de nutrição e de
saúde do indivíduo durante seu desenvolvimento. Se elas forem favoráveis, teremos um dente bem
formado e resistente ao ataque da cárie; ao contrário, o dente será mais frágil.
Esse é um momento para retomarmos o tema nutrição e a importância de uma alimentação
correta durante o desenvolvimento do indivíduo, no qual é fundamental a ingestão de cálcio para uma
formação correta de nossos ossos e dentes.

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Os microrganismos: bactérias
Existem milhares de bactérias em nossa boca. Algumas são inofensivas e outras, em situações
especiais, podem se tornar prejudiciais, como as que formam a placa bacteriana. Por isso, se não fizermos
uma higiene adequada da boca regularmente elas poderão se multiplicar e provocar danos em nossa boca.

O tempo
As bactérias em geral necessitam de um tempo para se organizarem e começarem a produção de
ácidos, que serão responsáveis pela desmineralização de nosso esmalte e pela produção da cárie, bem
como de toxinas que irão causar danos e doenças em nossa gengiva. Se escovarmos nossos dentes de
maneira correta pelo menos uma vez ao dia dificilmente teremos cáries. Mas essa limpeza precisa ser
muito bem executada, com fio dental e escova macia.

A dieta
A ingestão de grandes quantidades de açúcares por períodos muito longos, como ‘chupar balas o
dia todo’, permitem que a placa bacteriana já organizada tenha melhores condições de produzir uma
quantidade maior e mais concentrada de ácidos, para assim destruir mais facilmente nossos dentes.
Por isso, sempre que possível substitua doces por frutas, e inclua na dieta alimentos que ajudam
a limpar os dentes, como maçã, cenoura e demais alimentos fibrosos, que também auxiliam no
massageamento das gengivas.
Apesar de estes serem considerados os principais fatores envolvidos com a cárie, outros também
podem ocasionar seu desenvolvimento, como a carência de flúor. Esse elemento pode proteger os
dentes, fazendo com que a cárie não aconteça de forma tão agressiva. O mecanismo principal de ação
do flúor está em sua capacidade de repor minerais nos tecidos duros dos dentes quando estes são
atacados por ácidos produzidos pelas bactérias.
Outros fatores, como o nível socioeconômico, o comportamento, as atitudes perante a vida
e o nível de conhecimento também podem influenciar o desenvolvimento da cárie. A melhoria da
condição de vida, com acesso à boa alimentação, a emprego, à educação, a cuidados com a saúde e
ao saneamento são aspectos importantes que podem diminuir o risco de as pessoas desenvolverem
qualquer tipo de doença, inclusive a cárie.

Promoção da saúde bucal: um caminho para a sustentabilidade


Doenças bucais como a cárie dental, as doenças gengivais e o trauma dental ainda são causa de
dor, perda de sono, falta ao trabalho e à escola, além de provocar impacto sobre atividades diárias
como comer, falar, sorrir e se relacionar. (PETERSEN et al., 2005). Entretanto, já existe conhecimento
disponível sobre seus principais determinantes e formas de controle. O desafio é criar oportunidades e
condições para que indivíduos e comunidades tenham boa saúde bucal.

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Nas últimas décadas, uma ampla discussão em todo o mundo tem reconhecido a importância de
se promover a saúde como uma estratégia para garantir o direito à saúde, incluindo a bucal. Durante a
primeira Conferência Internacional de Promoção da Saúde promovida pela Organização Mundial da
Saúde (OMS), realizada em 1986 na cidade de Ottawa, no Canadá, foi definido que promover saúde
“é proporcionar às pessoas os meios necessários para melhorar sua saúde e exercer maior controle sobre
ela”. (OMS, 1986). Para isso, é importante as pessoas reconhecerem o que as torna saudáveis ou as
adoece para, apoiadas pelo ambiente onde vivem, construírem sua saúde.
Reconhecer que a saúde de nossa boca não depende apenas de aspectos biológicos, como a presença
de microrganismos nesse espaço do corpo, ou de dentes ‘mais frágeis’, é um primeiro passo para se
promover a saúde bucal. Muitos estudos têm demonstrado que a saúde da boca depende também do
ambiente onde vivemos, dos comportamentos que assumimos, de nossas relações familiares, do acesso
à informação e ao cuidado em saúde e das políticas públicas voltadas para a proteção da saúde em nossa
cidade e em nosso país.
Promover saúde bucal significa, portanto, colocar a boca dentro do corpo e reconhecê-lo como
parte de uma pessoa inserida em determinado contexto social que pode aumentar sua vulnerabilidade
a doenças ou dar suporte para a construção de sua saúde. (MOYSÉS; KUSMA, 2008).
Dessa forma, ações de promoção da saúde se aproximam de princípios e valores como equidade,
sustentabilidade, participação, empoderamento e autonomia, pois estão voltadas para a justiça social,
a dignidade e os direitos humanos. (OMS, 2005).
A promoção da saúde bucal, portanto, visa alcançar melhoras sustentáveis em saúde bucal e reduzir
iniquidades por meio de ações direcionadas a seus determinantes. (WATT, 2007).

O que pode funcionar...

As evidências sobre os resultados de ações de promoção da saúde bucal têm demonstrado


que

1. o uso de água fluoretada e pasta de dente com flúor pode prevenir cárie dental;
2. informações sobre saúde bucal por si só não produzem mudanças de comportamento sustentáveis;
é preciso informar e também facilitar as mudanças de comportamento, como orientar sobre a
importância de limpar os dentes, mas garantir o acesso de todos a escovas de dente;
3. a prevenção de acidentes e violência é uma estratégia importante para prevenir trauma dental;
4. ações de promoção de saúde bucal desenvolvidas ao mesmo tempo na escola, no trabalho e na
família podem ter melhores resultados.

Fonte – Adaptado de Brown, 1994; Schou e Locker, 1994; Kay e Locker, 1996; Kay e Locker, 1997; Sprod et al., 1996.

Cinco campos de ação são propostos para promover a saúde bucal (Figura 2) (OMS, 1986):
o desenvolvimento de políticas públicas saudáveis, como a fluoretação das águas de abastecimento

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público; a construção de ambientes saudáveis, como a oferta de alimentos seguros e saudáveis nas
escolas e locais de trabalho; o desenvolvimento de habilidades pessoais, com a disponibilidade de
informações sobre como cuidar da saúde bucal; o fortalecimento da ação comunitária, favorecendo que
a população participe da definição de prioridades para o cuidado da saúde bucal; e a oferta de serviços
de saúde bucal adequados para atender as necessidades das pessoas.

Figura 2 – Campos de ação para promoção da saúde bucal.

Políticas públicas
saudáveis

Serviços de saúde Ambientes


adequados favoráveis à
saúde
Promoção
da saúde
bucal

Fortalecimento Desenvolvi-
da ação mento de habilidades
comunitária pessoais

Fonte – OMS, 1986.

Melhoras sustentáveis em saúde bucal requerem, portanto, ações efetivas direcionadas para a
criação de um ambiente social, como a escola, que facilite a manutenção da saúde. Exemplos de ações
de saúde bucal desenvolvidas em escolas podem fazer parte de estratégias ampliadas de promoção da
saúde e favorecer a saúde bucal (Quadro 4).

Quadro 4 – Estratégias ampliadas de promoção da saúde.

Ambiente escolar saudável


• Edificações e áreas de lazer seguros para prevenir acidentes.
• Disponibilidade de água tratada e fluoretada.
• Proibição da venda de alimentos não saudáveis nas imediações da escola.

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• Ambiente psicossocial de cuidado e respeito.


• Envolvimento de estudantes, professores, funcionários, famílias e membros da comunidade
no desenvolvimento de ações de promoção da saúde.
• Encontros frequentes entre a direção da escola, a Associação de Pais e Mestres, os conselhos
comunitários e os gestores da educação e da saúde.
Alimentação saudável

• Disponibilidade de alimentos saudáveis na cantina escolar.


• Bebedouros de água potável na escola.
• Treinamento para cozinheiras e fornecedores de alimentos sobre alimentação saudável.
Açúcar, álcool e tabaco

• Proibição de alimentos e bebidas à base de açúcar nas dependências da escola.


• Proibição do uso de álcool e tabaco nas dependências da escola.
• Disponibilidade de serviços de aconselhamento e suporte para parar de fumar.
Educação para saúde bucal

• Educação para saúde bucal como parte do conteúdo do currículo.


• Escovação dentária supervisionada diária.
• Capacitação de pais sobre saúde bucal e estímulo a seu envolvimento em ações de promoção
da saúde.
• Capacitação de professores e funcionários.
Serviços de saúde bucal

• Garantia de acesso aos serviços de saúde locais.


• Resposta a urgências odontológicas.
Trauma bucal

• Prevenção de acidentes.
• Protocolo para primeiros socorros.
Atividade física na escola

• Prática segura de esporte.

Fonte – Kwan et al., 2005.

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Os esforços dirigidos à promoção da saúde nos ambientes onde as pessoas vivem devem, portanto,
considerar o contexto social, a segurança ambiental, os serviços de saúde oferecidos, as parcerias com
a comunidade, criando assim oportunidades para o desenvolvimento de potencialidades e habilidades
para escolhas individuais e coletivas que promovam saúde.

CÂNCER BUCAL
O câncer da boca (também conhecido como câncer de lábio e cavidade oral) é um tumor
maligno que afeta os lábios e as estruturas da boca: gengivas, bochechas, palato (céu da boca), língua
(principalmente as bordas) e a região embaixo da língua. A parte posterior da língua, as amígdalas e o
palato fibroso fazem parte da região chamada orofaringe e seus tumores têm comportamento diferente
do câncer de cavidade de boca.
O câncer de boca é mais comum em homens acima dos 40 anos, sendo o quarto tumor mais frequente
no sexo masculino na Região Sudeste. A maioria dos casos é diagnosticada em estágios avançados.
Estima-se que a cada ano do triênio 2020-2022 serão registrados no Brasil 625 mil novos casos de
câncer. Entre os principais fatores de risco para o desenvolvimento de 11 dos 19 tipos mais frequentes
na população brasileira é a obesidade.
Depois do câncer de pele não melanoma (177 mil casos novos), os mais incidentes serão os
de mama e de próstata (66 mil cada), cólon e reto (41 mil), pulmão (30 mil) e estômago (21 mil).
Separados por sexo, os tipos mais ‘frequentes’ nos ‘homens’, excluindo-se pele não melanoma, serão
próstata (29,2%), cólon e reto (9,1%), pulmão (7,9%), estômago (5,9%) e cavidade oral (5,0%). Nas
‘mulheres’, também sem contar o não melanoma, os mais incidentes serão os de mama (29,7%), cólon
e reto (9,2%), colo do útero (7,4%), pulmão (5,6%) e tireoide (5,4%).

Importância da prevenção e do diagnóstico precoce


(reconhecimento antecipado)
O câncer bucal tem critério de cura? Sim, existe o critério de cura e de controle da doença, desde
que detectada e tratada precocemente (reconhecimento antecipado).
Por isso a necessidade da avaliação rotineira, pelo menos uma vez ao ano, por um profissional de
saúde. No caso da boca, quando ocorrer qualquer alteração em boca, língua e lábios ou mesmo em
regiões peribucais, recomenda-se a visita a um cirurgião-dentista.
Dos tumores malignos (câncer) que acometem a boca, o carcinoma espinocelular ou epidermoide
representa mais de 95% dos casos registrados. Ele acomete um grupo de risco: indivíduos do gênero
masculino, acima de 40 anos de idade, tabagistas, etilistas e que na atividade que desempenham ficam
expostos aos raios solares. Indivíduos acometidos por essa doença ficam impedidos de desenvolver suas
atividades rotineiras (profissionais ou rotineiras), trazendo grave ônus social e financeiro ao Estado,
além de ser de difícil solução.

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Diagnóstico precoce
Quando se observam alterações nas lesões (diferença de cor, volume, consistência), as mais
comuns e importantes são as manchas avermelhadas, brancas avermelhadas e eventualmente escuras.
O aparecimento de lesões ulceradas (feridas) nos lábios, mais comumente no inferior, ocorre pela
incidência dos raios solares, que atingem mais essa região da boca. Quando elas não cicatrizam
(melhoram/curam) entre 10 a 15 dias, devem passar por avaliação (diagnóstico) e tratamento o
mais rápido possível. Então, frente ao aparecimento de alguma lesão com tais características, deve-se
procurar um profissional de saúde (médico ou dentista) para a realização do exame completo da boca.
A visita periódica ao dentista favorece o diagnóstico precoce do câncer de boca porque por meio dela é
possível identificar lesões suspeitas. Pessoas com maior risco para desenvolver câncer de boca (fumantes
e consumidores frequentes de bebidas alcoólicas) devem ter cuidado redobrado. (INCA, 2018a).
Com a evolução da doença (passar do tempo), outros sinais e sintomas podem aparecer, como dor,
sangramento espontâneo, dificuldade de abrir e fechar a boca, mobilidade e mudança na posição dos
dentes, salivação intensa, entre outros.
Todas essas alterações nem sempre são devidas a um câncer bucal. Inúmeras doenças podem se
iniciar e evoluir com essas mesmas características, mas também devem ser diagnosticadas e tratadas
convenientemente.

Autoavaliação (autoexame)
A autoavaliação é de grande importância, principalmente para o diagnóstico precoce do câncer
bucal. Para realizá-la, deve-se seguir uma sequência:
1. posicionar-se diante de um espelho, com boa iluminação;
2. examinar toda a face (rosto);
3. examinar e sentir a textura dos lábios (inferior e superior);
4. abrir a boca afastando com o dedo indicador as bochechas para melhor visualização (observar
alteração de cor normal, consistência, forma);
5. projetar a língua pra fora da boca examinando a parte de cima, de baixo e dos lados;
6. examinar o palato duro/mole e a região de garganta – úvula (céu da boca e campainha);
7. caso haja diferença de consistência (mole/duro), o toque dos dedos indicador e polegar pode
provocar dor e sangramento;
8. caso se note alguma alteração na boca ao realizar esses passos, é preciso procurar imediatamente
um profissional capacitado (cirurgião-dentista ou médico) para que ele possa avaliar e esclarecer
o problema.

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SUSTENTABILIDADE E VIDA SAUDÁVEL


Sustentabilidade é um conceito sistêmico, relacionado à continuidade dos aspectos econômicos,
sociais, culturais e ambientais da sociedade humana. Propõe-se a ser um meio de configurar a civilização
e as atividades humanas, de tal forma que a sociedade, seus membros e suas economias possam
preencher suas necessidades e expressar seu maior potencial no presente e ao mesmo tempo preservar
a biodiversidade e os ecossistemas naturais, planejando e agindo de forma a atingir proficiência na
manutenção indefinida desses ideais. A sustentabilidade abrange vários níveis de organização, desde a
vizinhança local até o planeta inteiro.
Vimos que os bons hábitos relacionados a melhor acesso aos serviços de saúde, melhor
distribuição de renda diminuindo as diferenças sociais foram fatores relevantes na melhoria da
qualidade de vida da população. Além disso, fatores econômicos, respeito aos diferentes valores
entre os povos e incentivo aos processos de mudança que acolham a cultura e as especificidades locais
associados à sustentabilidade política com uma democracia representativa traduzem uma em uma
vida mais saudável.
Além disso, recomenda-se uma alimentação saudável, balanceada, com um consumo mais
consciente de frutas e verduras, preferencialmente coloridas, que realizam papel de antioxidantes
(betacaroteno).

PREVENÇÃO
Quais são as atitudes positivas para uma melhoria no processo de prevenção do câncer de boca?
São elas:
1. ter uma alimentação saudável, balanceada, evitando o consumo excessivo de açúcar e ingerindo
frutas e verduras coloridas;
2. evitar o consumo de álcool e fumo;
3. evitar exposição continuada aos raios solares (irradiação solar);
4. manter bons hábitos de higiene (escovação dos dentes, uso de fio dental) e realização do
autoexame;
5. realizar avaliações periódicas por um cirurgião-dentista, principalmente por pessoas que usam
próteses;
6. controlar cáries, doenças gengivais (sangramento de gengiva) e cuidar de traumas provocados
pela má posição dos dentes ou de dentes ou coroas dentárias fraturadas.

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DOENÇAS EMERGENTES E REEMERGENTES


O aumento da perspectiva de vida em todo mundo levou os cientistas da área de saúde a pesquisarem
novos métodos de prevenção, diagnóstico e tratamento das diversas condições de alterações e afecções
bucais.
A saúde bucal do indivíduo, além de sofrer as modificações próprias do processo de envelhecimento,
pode apresentar interações derivadas de inúmeras doenças crônicas, como hipertensão, diabetes,
distúrbios cardiovasculares, insuficiência renal, variações psicológicas, menopausa, entre outras, bem
como sofrer efeitos colaterais de vários medicamentos utilizados no tratamento das mesmas.
Além disso, temos de considerar a influência do meio no desenvolvimento e na manutenção do
quadro de doença, pois o estresse diário (físico e/ou emocional), o risco ocupacional levando a quadros
de ansiedade e depressão, o aumento dos hábitos deletérios (nocivos) na população como o etilismo e
o tabagismo geram situações transitórias ou oportunistas de imunossupressão.
Os problemas relacionados à saúde pública são de etiologia multifatorial, ou seja, dependem de
várias ações conjuntas e integradas e de investimento nas áreas de saneamento básico.
Faz-se necessário, portanto, implementar uma política de saúde mais abrangente, que vise ao
reforço da importância dos estudos sobre a distribuição espacial dos problemas de saúde, considerando
as necessidades de cada região, as características regionais e culturais da população-alvo e levando
em conta ações pragmáticas da vigilância da saúde, de modo a contemplar determinantes estruturais
socioambientais na tentativa de produzir e aplicar conhecimento na busca da equidade social, visando
à qualidade a assistência da saúde das populações.

Envelhecimento
A existência de pessoas idosas é registrada em toda história da humanidade e aponta para o desejo
de se viver cada vez mais, com saúde, independência funcional e qualidade de vida. A evolução do
conhecimento, a melhoria das condições sanitárias aliadas às medidas de prevenção, o desenvolvimento
social e econômico, bem como o avanço da ciência e da tecnologia fizeram com que a humanidade
registrasse um aumento significativo em seu tempo de sobrevivência, ou seja, uma melhoria no processo
de sustentabilidade, que se traduz em melhor qualidade na vida do indivíduo.
O envelhecimento não é apenas uma passagem pelo tempo, mais um acúmulo de eventos
biológicos que ocorrem ao longo da vida. No início do século passado, a longevidade do homem era
bem menor, em torno de 50 anos. Hoje, um número cada vez maior de pessoas chega à terceira idade.
Enquanto os japoneses são os campeões do mundo em longevidade, com expectativa média de
vida ao nascer em torno dos 82 anos (devido a sua condição de sustentabilidade, que envolve hábitos
saudáveis de alimentação, políticas públicas, fatores econômicos, sociais e culturais e ambiente com
preocupações ecológicas que levam à equidade da população), muitos habitantes do continente africano

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sequer alcançam a metade dessa idade. Nos países mais atingidos pela Aids a expectativa de vida vem
sendo reduzida drasticamente em torno de 14 anos.
No Brasil, a expectativa média de vida ao nascer, avaliada entre 2015 e 2016, passou de 75,5 para
75,8 anos, o que representa um acréscimo de três meses e onze dias. Dentre os estados brasileiros,
Santa Catarina é o que apresenta a maior esperança de vida (79,1 anos), logo em seguida estão Espírito
Santo (78,2 anos), Distrito Federal (78,1 anos) e São Paulo (78,1 anos). Além desses, Rio Grande
do Sul (77,8 anos), Minas Gerais (77,2 anos), Paraná (77,1 anos) e Rio de Janeiro (76,2 anos) são os
únicos que apresentam indicadores superiores à média nacional. No outro extremo, com as menores
expectativas de vida, estão os estados do Maranhão (70,6 anos) e do Piauí (71,1 anos). (IBGE, 2017).

Mulheres vivem em média mais do que os homens


A pesquisa mostrou também que a expectativa de vida dos homens (72,9 anos) foi menor do que
a das mulheres (79,4 anos). Esse comportamento nacional se repetiu em todos os estados, sendo que a
maior diferença foi no estado de Alagoas (9,5 anos a favor das mulheres), seguido pela Bahia (9,2 anos)
e por Sergipe (8,4 anos). Nos estados de Santa Catarina, Espírito Santo, Distrito Federal, São Paulo,
Rio Grande do Sul, Paraná e Minas Gerais a expectativa de vida das mulheres ultrapassou os 80 anos.
Já nos estados do Maranhão, Alagoas e Piauí a expectativa de vida masculina foi de 66,9 anos, valor
bem inferior à média nacional.
A diferença nas expectativas de vida entre homens e mulheres reflete os altos níveis de mortalidade,
principalmente de jovens, por causas violentas, que incidem diretamente na esperança de vida ao
nascer da população masculina.

De 1940 a 2016, expectativa de vida do brasileiro subiu mais de 30 anos


Segundo Fernando Albuquerque, pesquisador do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), a partir de 1940, com a incorporação dos avanços da medicina às políticas de saúde pública, o
país experimentou uma primeira fase de sua transição demográfica, caracterizada pelo início da queda
das taxas de mortalidade. Um pouco mais a frente fatores como campanhas de vacinação em massa,
atenção ao pré-natal, incentivo ao aleitamento materno, contratação de agentes comunitários de saúde
e programas de nutrição infantil contribuíram para o aumento da expectativa de vida do brasileiro ao
longo dos anos. (IBGE, 2017).
De 1940 até 2016, o aumento foi de 30,3 anos. Apesar do crescimento contínuo na expectativa de
vida, o Brasil ainda está muito distante de países como Japão, Itália, Singapura e Suíça, que em 2015
tinham o indicador na faixa dos 83 anos. Uma pessoa nascida no Brasil em 2018 tinha expectativa de
viver, em média, até os 76,3 anos. Isso representa um aumento de três meses e quatro dias em relação
a 2017. A expectativa de vida dos homens aumentou de 72,5 anos em 2017 para 72,8 anos em 2018,
enquanto a das mulheres foi de 79,6 para 79,9 anos.

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A probabilidade de um recém-nascido do sexo masculino em 2018 não completar o primeiro ano


de vida era de 13,3 a cada mil nascimentos. Já para as recém-nascidas, a chance era de 11,4 meninas
não completarem o primeiro ano de vida. A mortalidade na infância (de crianças menores de cinco
anos de idade) caiu de 14,9 por mil em 2017 para 14,4 por mil em 2018. Das crianças que vieram a
falecer antes de completar os cinco anos de idade, 85,5% teriam a chance de morrer no primeiro ano
de vida e 14,5% de vir a falecer entre um e quatro anos de idade. Em 1940, a chance de morrer entre
um e quatro anos era de 30,9%, mais que o dobro do que foi observado em 2018. (IBGE, 2018).
No Brasil, o número de idosos (≥ 60 anos de idade) passou de três milhões em 1960, para sete
milhões em 1975, e 14 milhões em 2002 (um aumento de 500% em quarenta anos) e deverá alcançar
32 milhões em 2020. Em países como a Bélgica, por exemplo, foram necessários cem anos para que a
população idosa dobrasse de tamanho. Um dos resultados dessa dinâmica é a demanda crescente por
serviços de saúde. (CLOSS; SCHWNAKE, 2010).
O envelhecimento é caracterizado pelo desgaste de vários setores do organismo, gerando com isso
alterações em seu funcionamento, com perda das habilidades de adaptação ao meio. Então as idades
biológica e funcional tornam-se um fator importante para medir o processo do envelhecimento e suas
adaptações.
Um dos grandes desafios a serem enfrentados ante o processo de envelhecimento populacional é
a avaliação de indicadores que permitam dar conta da qualidade de vida dessa parcela da população,
pois não basta viver mais, é preciso viver bem, e este é o grande paradigma deste novo século, levando
em conta a sustentabilidade em seu valor integral para atingirmos tais valores.
O envelhecimento é, portanto, pura expressão do estilo de vida, das atitudes positivas que com
o passar dos anos tomamos. Ele é ainda uma expressão do organismo e diferente em cada indivíduo,
podendo começar em qualquer órgão no sistema, partindo para a totalidade.

EXPECTATIVA DE VIDA
A velocidade de declínio das funções fisiológicas com o passar dos anos é exponencial, e as
gradativas perdas funcionais são aceleradas com o aumento da idade. Fatores inerentes ao processo de
envelhecimento determinam um limite à duração de vida de todas as espécies de animais.
A tendência normal do organismo à estabilidade interna, ajustando processos metabólicos e
fisiológicos com respostas a agressões, é chamada de homeostase. Quando ela é perdida, a adaptabilidade
do individuo ao estresse interno e externo decresce e a susceptibilidade a doenças aumenta.
Quanto à influência genética, embora o envelhecimento seja uma fase previsível da vida, seu
processo não é geneticamente programado, como se acreditava antigamente. Não existem genes que
determinam quando e como envelhecer. Há, sim, genes variantes, cuja expressão favorece a longevidade
ou reduz a duração da vida. Estudos genéticos acerca de pessoas centenárias têm contribuído para a
identificação desses alelos de genes normais que podem estar associados com a longevidade.

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Além disso, os hábitos alimentares, o estilo de vida, os hábitos nocivos como o etilismo e o
tabagismo, a maior incidência de radiações, as alterações hormonais e a falência ou deficiência do
sistema endócrino participam das alterações próprias do envelhecimento.
Com o advento dos antibióticos, entre outros avanços das ciências da saúde, os países desenvolvidos
conseguiram retardar o processo do envelhecimento e aumentar assim a expectativa média de vida
humana no início do século passado.
Hoje o grande desafio não é apenas conseguir adiar o envelhecimento e aumentar a expectativa de
vida, mais sim prolongá-la com qualidade.
Outro fator a considerar é que o aparecimento de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT),
como diabetes, hipertensão, problemas respiratórios, doenças autoimunes etc., muitas vezes causadoras
de limitações funcionais e de incapacidades, podem comprometer a qualidade da vida do indivíduo.
No Brasil, observa-se progressiva queda na taxa de mortalidade em todas as faixas etárias e o
consequente aumento da expectativa de vida da população. Isso se deve ao maior acesso da população
ao sistema de saúde, bem como à melhoria deste.
Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), a proporção de pessoas no mundo com mais
de 60 anos, atualmente em 10%, aumentará para 21% em 2040. Inevitavelmente, o envelhecimento
não poupará nenhuma região do globo.
Portanto, torna-se imperativo investir na implementação de políticas públicas para propiciar
condições de vida saudáveis e de qualidade para a população de idosos que cresce progressivamente,
para que não apenas viva mais, mas viva melhor.
Nesse sentido, a vigilância epidemiológica é uma ação especializada de grande relevância para a
sociedade, pois tem como objetivos o monitoramento e a análise de possíveis mudanças no perfil das
enfermidades, com isso contribuindo para o planejamento de ações governamentais, de educação e de
ações preventivas ou de tratamento.

VIGILÂNCIA DO CÂNCER E SEUS FATORES DE RISCO


Segundo o INCA, A vigilância epidemiológica é uma ação de especializada de grande relevância
para a sociedade, pois tem como objetivos o monitoramento e a análise de possíveis mudanças no perfil
das enfermidades com isso contribuindo para o planejamento de ações governamentais, de educação e
de ações preventivas ou de tratamento. (INCA, 2018a).
As ações nacionais de vigilância do câncer têm como objetivo conhecer com detalhes o atual
quadro da doença no Brasil. Elas são realizadas por meio da implantação, do acompanhamento e
do aprimoramento dos Registros de Câncer de Base Populacional e dos Registros Hospitalares de
Câncer (centros de coleta, processamento, análise e divulgação de informações sobre a doença, de
forma padronizada, sistemática e contínua). Esses dados possibilitam conhecer os novos casos e realizar
estimativas de incidência do câncer, subsídios fundamentais para o planejamento das ações locais de
prevenção e controle da doença de acordo com cada região.

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CUIDADOS PALIATIVOS
Devido à melhora no acesso a saúde, a exames de ponta e a diagnósticos cada vez mais precisos,
os portadores de câncer atualmente têm uma perspectiva de vida muito maior do que em décadas
passadas.
Segundo o INCA, nas fases iniciais do câncer o tratamento geralmente é agressivo, com objetivo
de cura, remissão e/ou controle, e isso é compartilhado com o paciente e sua família de maneira
otimista. Quando a doença já se apresenta em estágio avançado ou evolui para esta condição, mesmo
durante o tratamento com intenção de melhora e/ou cura, a abordagem paliativa deve entrar em cena
no manejo dos sintomas de difícil controle e de alguns aspectos psicossociais associados à doença. Na
fase terminal, em que o paciente tem pouco tempo de vida, o tratamento paliativo se impõe para, por
meio de seus procedimentos, garantir qualidade de vida ao paciente. (INCA, 2018d).
Segundo o INCA (2018a), cuidados paliativos são cuidados de saúde ativos e integrais prestados à
pessoa com doença grave, progressiva e que ameaça a continuidade de sua vida. O objetivo é promover
a qualidade de vida do paciente e de seus familiares por meio da prevenção e do alívio do sofrimento,
da identificação precoce de situações possíveis de serem tratadas, da avaliação cuidadosa e minuciosa e
do tratamento da dor e de outros sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais.
Podem vir associados ao tratamento com objetivo de cura da doença a fim de auxiliar no manejo dos
sintomas de difícil controle e melhorar as condições clínicas do paciente. À medida que a doença avança,
mesmo em vigência do tratamento com intenção curativa, a abordagem paliativa deve ser ampliada
visando também cuidar dos aspectos psicológicos, sociais e espirituais. Na fase terminal, em que o
paciente tem pouco tempo de vida, o tratamento paliativo se torna prioritário para garantir qualidade de
vida, conforto e dignidade. A transição do cuidado com objetivo de cura para o cuidado com intenção
paliativa é um processo contínuo e sua dinâmica difere para cada paciente. (INCA, 2018a).
Os cuidados paliativos devem incluir as investigações necessárias para o melhor entendimento e
manejo de complicações e sintomas estressantes tanto relacionados ao tratamento quanto à evolução
da doença. Apesar da conotação negativa ou passiva do termo ‘paliativo’, a abordagem e o tratamento
devem ser eminentemente ativos, principalmente em pacientes portadores de câncer em fase avançada,
nos quais algumas modalidades de tratamento cirúrgico e radioterápico são essenciais para o controle
de sintomas. Considerando a carga devastadora de sintomas físicos, emocionais e psicológicos que se
avolumam no paciente com doença terminal, faz-se necessário um diagnóstico precoce e condutas
terapêuticas antecipadas, dinâmicas e ativas, respeitando-se os limites do próprio paciente.

Princípios dos cuidados paliativos


São eles:
• fornecer alívio para dor e outros sintomas estressantes, como astenia, anorexia, dispneia e
outras emergências oncológicas;

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• reafirmar vida e a morte como processos naturais;


• integrar os aspectos psicológicos, sociais e espirituais ao aspecto clínico de cuidado do paciente;
• não apressar ou adiar a morte;
• oferecer um sistema de apoio para ajudar a família a lidar com a doença do paciente, em seu
próprio ambiente;
• oferecer um sistema de suporte para ajudar os pacientes a viverem o mais ativamente possível
até sua morte;
• usar uma abordagem interdisciplinar para acessar necessidades clínicas e psicossociais dos
pacientes e suas famílias, incluindo aconselhamento e suporte ao luto.

Pontos considerados fundamentais no tratamento


São eles:
• a unidade de tratamento compreende o paciente e sua família. Os sintomas do paciente devem
ser avaliados rotineiramente e gerenciados de forma eficaz por meio de consultas frequentes e
intervenções ativas. As decisões relacionadas à assistência e a tratamentos médicos devem ser
feitos com base em princípios éticos;
• os cuidados paliativos devem ser fornecidos por uma equipe interdisciplinar, fundamental na
avaliação de sintomas em todas as suas dimensões e na definição e condução dos tratamentos
farmacológicos e não farmacológicos imprescindíveis para o controle de todo e qualquer
sintoma;
• a comunicação adequada entre equipe de saúde e familiares e pacientes é a base para o
esclarecimento e favorecimento da adesão ao tratamento e aceitação da proximidade da morte.

Os cuidados paliativos modernos estão organizados em graus de complexidade e se somam em


um cuidado integral e ativo. Os gerais referem-se à abordagem do paciente com base no diagnóstico de
doença em progressão, atuando em todas as dimensões dos sintomas que vierem a se apresentar. Já os
específicos são requeridos ao paciente nas últimas semanas ou nos últimos seis meses de vida, quando
se torna claro que o paciente encontra-se em estado progressivo de declínio. Todo o esforço é feito para
que ele permaneça autônomo, com preservação de seu autocuidado e próximo de seus entes queridos.
Os cuidados ao fim de vida referem-se, em geral, aos últimos dias ou às últimas 72 horas de vida. O
reconhecimento dessa fase pode ser difícil, mas é extremamente necessário para o planejamento do
cuidado e preparo do paciente e de sua família para perdas e óbito. Mesmo após a morte do paciente
a equipe de cuidados paliativos deve dar atenção ao processo: como ocorreu o óbito, qual o grau de
conforto e que impactos trouxe aos familiares e à própria equipe interdisciplinar. A assistência familiar
pós-morte pode e deve ser iniciada com intervenções preventivas.

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NOTAS EXPLICATIVAS
1 Queratina é uma proteína presente também em nossos cabelos e unhas.
2 Alveolar porque as cavidades que alojam as raízes dos dentes são chamadas de alvéolos.

DEFINIÇÕES
Anorexia: falta ou perda de apetite.
Astenia: fraqueza, perda ou diminuição da força física.
Dispneia: dificuldade em respirar.
Emergência: situação grave e/ou perigosa com risco eminente de morte.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
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ACIDENTES NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA1

Luiz Carlos Bleggi Torres


Fernanda Marder Torres

Toda criança vive constantemente exposta a perigos. Negar a existência deles é fugir da realidade.
Criar um meio ambiente artificial, isento de perigos, é impraticável e até mesmo impossível. Os pais
e/ou responsáveis, bem como os professores, devem tornar-se atentos aos fatores que podem levar a
acidentes e aprender como preveni-los.
A proteção passiva por si só não é suficiente. A criança, tão cedo quanto possível, deve ser ensinada
a compreender os riscos que corre. As lesões não intencionais ou os acidentes acontecem durante um
lapso de supervisão ou porque um mecanismo de segurança não foi utilizado (cinto de segurança,
capacete etc.). Nesse sentido, dois erros são frequentemente cometidos pelos adultos:
1. atribuir à criança mais inteligência do que ela tem;
2. achar que ela é incapaz de pensar e aprender por si própria.

No grupo de crianças de 1 a 14 anos, lesões envolvendo veículos automotores, afogamento,


quedas e queimaduras provocam, no Brasil, cerca de 5.000 mortes e mais de 119 mil hospitalizações
anualmente, segundo dados do Ministério da Saúde, o que se configura como uma séria questão de
saúde pública. Estima-se que 90% dessas lesões possam ser prevenidas por meio da combinação de
educação, de modificações no meio ambiente e de engenharia, assim como da criação e cumprimento
de legislação e regulamentações específicas.

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ACIDENTES COM VEÍCULOS E ATROPELAMENTO


No mundo inteiro, o trânsito ocasiona, a cada ano, mais de 1 milhão de mortes e cerca de 10
milhões de lesões incapacitantes e permanentes. O aumento progressivo do número de automóveis
circulantes, o crescimento urbano-industrial da população, a falta de cultura popular voltada para
a segurança, a impunidade, a falta de legislação efetiva e as más condições das vias de circulação são
fatores diretamente relacionados ao aumento do número de mortes. Os fatores que sabidamente estão
relacionados ao risco de atropelamentos são: número de ruas que a criança atravessa, atravessar a rua
fora da faixa de pedestre, horários escolares e moradias sem quintal ou área de recreação.
Segundo dados do Ministério da Saúde,

o acidente de trânsito é a principal causa de morte acidental de crianças e adolescentes com idades de
um a 14 anos no Brasil. Em 2015, 1.389 crianças desta faixa etária morreram vítimas de acidentes
de trânsito e, em 2016, 12.288 foram hospitalizadas. Do total de mortes de crianças em acidentes de
trânsito, 34% (471) ocorreram quando elas estavam na condição de ocupantes de veículo e 30% (414)
foram devido a atropelamentos. (BRASIL, 2017).

A criança, pelas características próprias de falta de noção de perigo – por sua curiosidade,
autonomia, controle motor ainda em desenvolvimento, inexperiência, falta de preocupação com o
próprio corpo e vontade de imitar os mais velhos –, está sujeita frequentemente ao risco de sofrer
acidentes. A independência faz parte do desenvolvimento da criança, e muitas vezes os adultos querem
apoiar essa crescente autoestima. No entanto, na hora de atravessar a rua, crianças não devem ser
deixadas sozinhas. O risco de ocorrer um acidente pode ser reduzido com o exemplo dos adultos e o
ensino de um comportamento seguro para pedestres.
Além disso, poucas crianças menores de 14 anos de idade podem lidar seguramente com o trânsito de
veículos e de outros meios de transporte (carros, motos, bicicletas, skates, patinetes, carroças etc.) porque
1. têm dificuldade de estimar a velocidade com que os veículos e os demais meios de transporte
estão se movendo, a que distância eles estão e quanto tempo levam para alcançá-las, criando
problemas para o reconhecimento e para a reação ao perigo;
2. crianças entre 5 e 9 anos de idade são atropeladas nas ruas e entradas de garagens próximas às
suas casas, quando correm entre carros estacionados, caminham na beira da rua ou atravessam
no meio da quadra ou na frente de um carro em manobra, principalmente na execução da
marcha à ré, pois a altura delas está no ponto cego do motorista.

Medidas preventivas para evitar atropelamentos

• O mais importante ao ensinar um comportamento de pedestre seguro é praticá-lo você mesmo:


atravessar as ruas olhando para ambos os lados, respeitar os sinais de trânsito e faixas para

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pedestres e, antes de atravessar na frente dos veículos, fazer contato visual com os motoristas
para ter certeza de que você foi visto.
• Não permitir que uma criança menor de 10 anos atravesse a rua sozinha. A supervisão de
um adulto é vital até que ela demonstre habilidade e capacidade de reconhecer o perigo do
tráfego de veículos. Sempre segurar firme a mão da criança pelo pulso enquanto estiverem
caminhando na rua.
• Proibir que crianças brinquem nas entradas de garagens, nos quintais sem cerca ou muro, nas
ruas ou estacionamentos, principalmente ao entardecer e anoitecer.
• Fazer com que as crianças sempre usem o mesmo trajeto para destinos comuns, como a escola.
Caminhar com seu filho ou alunos para encontrar o caminho mais seguro, com menos ruas
para atravessar e menor fluxo de automóveis.
• Para evitar atropelamentos à noite, use lanternas ou materiais refletivos nas roupas da criança.
• Não deixar a criança atravessar a rua saindo por entre os carros estacionados ou após descer
do ônibus ou carro nem sair de trás de árvores, arbustos, muros e portões (os motoristas não
enxergam as crianças).
• Conscientizar a criança de que não deve correr atrás da bola, do cachorro ou de alguém
diretamente para a rua, sem parar no meio-fio ou na beira da rua.
• Orientar a criança a caminhar de frente para o sentido do tráfego nas calçadas ou nos caminhos,
o mais à esquerda possível.
• Observar os carros que estão virando ou em marcha à ré.
• Caminhar em fila única sempre que estiver com mais crianças.
• Ao desembarcar do ônibus, esperar que o veículo pare totalmente para descer e aguardar que
ele se afaste para atravessar a rua.
• Ensinar o seguinte para as crianças:
– parar no meio-fio ou na margem da rua;
– olhar para os dois lados antes de atravessar, acelerar o passo e continuar olhando para os
lados enquanto atravessa;
– atravessar nas esquinas usando os sinais de trânsito e as faixas de pedestres.

A maneira como a criança viaja no carro é tão importante quanto a velocidade do veículo, as
condições da estrada e as condições do motorista.
Por isso, houve a necessidade da criação de regras para o transporte das crianças no país. A
Resolução 277 do Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN), publicada em maio de 2008,

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regulamentou o transporte de crianças em veículos. Segundo a norma, crianças de até 7 (sete) anos e
meio devem ser transportadas, obrigatoriamente, no banco traseiro e em dispositivos de retenção de
acordo com a idade. Em 2010, no dia 1.º de setembro, iniciaram-se as ações de fiscalização por parte
dos órgãos de trânsito.

Medidas preventivas para uso de veículos

• Para transitar em veículos automotores, os menores de dez anos deverão ser transportados nos
bancos traseiros, usando individualmente cinto de segurança ou sistema de retenção equivalente.
• Nunca sair de carro com crianças sem usar o bebê conforto, a cadeirinha ou o assento de
elevação, nem mesmo para ir apenas até a esquina. Deve-se estar sempre atento, pois muitas
colisões acontecem próximo à área de destino e à de origem ou em ruas com baixo limite
de velocidade.
• Uma cadeirinha de má qualidade ou instalada de modo inadequado é ineficiente. Em um
acidente, provavelmente ela não terá utilidade alguma. Somente fazer uso do bebê conforto,
cadeirinha e assento de elevação que tenham o selo do Instituto Nacional de Metrologia,
Qualidade e Tecnologia (INMETRO) ou a certificação americana ou europeia.
• Não basta apenas comprar um desses artigos para garantir a segurança da criança. É essencial
usar cadeiras certificadas, apropriadas ao peso da criança, que se adaptem devidamente ao
seu veículo.
• É importante instalar o equipamento de acordo com as instruções do manual. A maioria das
cadeiras e dos assentos de segurança é instalada de forma incorreta.
• Os manuais de instrução dos dispositivos de retenção veicular devem sempre ser lidos
e seguidos, verificando se são apropriados para a idade da criança e adaptam-se, de forma
adequada, ao interior do veículo.
• Quando a criança não tiver a altura mínima de 1,45 m, ela não poderá usar o cinto de
segurança, devendo sentar-se em um assento de elevação.

Dispositivos de retenção veicular (assentos de segurança)


Existem 3 (três) tipos de assentos de segurança para os carros de passeio brasileiros:
• bebê conforto ou conversível: para crianças desde o nascimento até 13 kg (aproximadamente
um ano de idade);
• cadeiras de segurança: para crianças de 9 a 18 kg (aproximadamente de um a quatro anos de
idade);

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• assentos de elevação ou boosters: para crianças de 15 a 36 kg (aproximadamente de quatro a


dez anos de idade);
• cinto de segurança de três pontos do veículo: para crianças acima de 36 kg e no mínimo
1,45 metros de altura (aproximadamente dez anos de idade);

Tabela 1 – Cadeiras de segurança para crianças.

Fonte – Criança Segura Brasil, 2016.

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MEDIDAS PREVENTIVAS PARA USO DE BICICLETA,


SKATE OU PATINS
Segundo as orientações da Organização Não Governamental (ONG) Criança Segura Brasil,
as crianças devem sempre brincar com suas bicicletas, skates ou patins sob os olhares cuidadosos e
permanentes de um adulto ou responsável. Essas atividades devem ser realizadas em locais apropriados e
seguros, como ciclovias, praças ou parques, onde o fluxo de veículos não é permitido. O uso de joelheiras,
capacetes e cotoveleiras também é indicado para mais segurança. Outras medidas importantes são:
• no momento da compra de um equipamento de segurança, deixar a criança escolher o modelo
e a cor que mais lhe agrada. Isso fará com que seu uso seja mais prazeroso;
• deve-se verificar se o capacete está devidamente ajustado à cabeça da criança. O ideal é ficar
centrado na parte de cima da cabeça, sem balançar para frente, para trás ou para os lados.
Deve-se ajustar as correias para que ele fique firme, mas não apertado;
• verificar atentamente se os equipamentos são certificados pelo INMETRO (mediante selo);
• ao andar de bicicleta, deve-se sempre fazer o uso de sapatos fechados, evitando cadarços
frouxos ou desamarrados;
• se andar de bicicleta ao anoitecer, recomenda-se acrescentar equipamentos refletores a ela e às
próprias roupas, além de utilizar espelhos e buzinas;
• ensinar às crianças regras básicas, como: sempre pedalar ao lado direito dos veículos no sentido
do trânsito, fazendo sinais próprios com as mãos, parando em sinais vermelhos e olhando para
os dois lados antes de atravessar ou entrar em uma rua;
• deve-se realizar, constantemente, a manutenção da bicicleta, verificando o estado dos pneus,
dos freios, das marchas e dos equipamentos acessórios.

MEDIDAS PREVENTIVAS PARA O USO DO


TRANSPORTE ESCOLAR

• Ao fazer a contratação de um transportador escolar, certificar-se de que a documentação do


condutor e a do veículo estejam em dia, além de fazer uma inspeção nas condições do veículo.
• Procure levantar informações sobre o prestador de serviço contratado, na escola, com outros
pais e responsáveis ou por meio do Departamento Estadual de Trânsito de sua cidade.
• Verifique se a entrada e a saída das crianças no veículo é realizada com o acompanhamento de
um monitor (responsável), pela calçada e certifique-se de que as crianças sejam entregues bem
na frente da escola, sem ter de atravessar qualquer rua.

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• Inspecione as condições higiênicas do veículo e averigue se há o número correto de cintos de


segurança (um para cada criança) ou dispositivo de segurança adequado à idade de cada uma.
• Sempre orientar as crianças, antes do embarque a permanecerem sentadas e com o cinto de
segurança afivelado durante todo o trajeto, a nunca levantarem-se quando o veículo estiver
em movimento, a obedecerem ao monitor e a saírem somente quando forem autorizadas e o
veículo estiver totalmente estacionado.
• Sempre conversar com a criança sobre o que acontece durante a viagem para avaliar se todas
as medidas de segurança estão sendo realizadas.

CRIANÇA SOZINHA NO CARRO


Para a criança, o carro pode ser um verdadeiro brinquedo a ser explorado e o porta-malas pode
tornar-se o local perfeito para a brincadeira de esconde-esconde. Porém, o acesso da criança ao veículo
quando está sozinha e sem supervisão ativa de um adulto pode colocá-la em sérios riscos, pois a criança
pode ficar presa no veículo, correndo sérios perigos, como asfixia e queimaduras, ou acabar provocando
e sofrendo um acidente, se soltar o freio de mão intencionalmente.
A mudança de rotina também pode levar o adulto a esquecer o bebê (ou a criança) dentro do
carro por horas, gerando consequências muito graves. Um bebê (ou criança) esquecido dentro de um
carro, a uma temperatura externa de 38 °C, pode ficar exposto a uma temperatura de até 60 °C dentro
do veículo. Essa criança pode sofrer queimaduras graves e paradas cardíaca e respiratória. Por isso, é
importante adotar medidas de prevenção para evitar essa situação perigosa.

Medidas preventivas para crianças no interior dos carros

• Nunca deixar a criança sozinha dentro do carro, mesmo com o vidro levemente aberto.
• Colocar algo que você vá precisar em sua próxima parada, como bolsas, o almoço, uma
mochila ou uma maleta, no chão do banco de trás onde a criança está sentada. Esse simples
ato pode prevenir o esquecimento acidental da criança, caso ela esteja dormindo.
• Ao mudar sua rotina para deixar as crianças na creche ou na escola, seja cuidadoso. Peça para
a creche avisar caso seu filho não chegue ao local após alguns minutos do horário que você
costuma deixá-lo.
• Sempre trancar as portas e o porta-malas dos veículos, especialmente em casa. Mantenha as
chaves e os controles automáticos do carro fora do alcance das crianças.
• Observar as crianças de perto quando próximas a veículos, especialmente no momento de
carregar e descarregar o carro.

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• Certificar-se de que todas as crianças já estão devidamente acomodadas nos dispositivos de


retenção (bebê conforto, cadeirinha, assento de elevação) quando o motor do carro estiver em
funcionamento. Isso limitará o acesso das crianças ao controle das janelas. Nunca deixar as
crianças sem supervisão.
• Certificar-se de que todas as crianças deixaram o veículo quando chegar ao seu destino.
Supervisionar também as crianças que estiverem dormindo.
• Nunca deixar o carro sozinho com o motor ligado e as portas destravadas. Crianças curiosas
podem entrar e engatar o veículo.
• Assim como qualquer corda ou cabo, os cintos do carro também podem representar riscos
para a criança. Não permitir que elas brinquem com eles.
• Acionar as travas de segurança resistentes a crianças.
• Manter o encosto do banco de trás travado para ajudar a prevenir o acesso das crianças ao
porta-malas por dentro do carro.
• Se uma criança sumir, verificar o carro e o porta-malas em primeiro lugar.
• Se você vir uma criança sozinha dentro de um carro, ligue para o 190 imediatamente.
• Ensinar as crianças a nunca brincarem dentro de veículos, pois ele serve exclusivamente
para transporte.
• Orientar as crianças que os porta-malas são usados apenas para o transporte de carga e não são
locais seguros para brincar.
• Ensinar as crianças mais velhas a desabilitar as travas das portas de trás pela porta do motorista,
caso fiquem acidentalmente presas no veículo. Uma criança que está aprendendo a andar não
saberá deslocar-se para o banco da frente para sair do carro.
• Mostrar para as crianças mais velhas como localizar e utilizar a trava de emergência do porta-
-malas, existente nos modelos de carros mais modernos.

AFOGAMENTO
A temperatura no nosso país é amena ou quente durante boa parte do ano, e existem muitos
rios, represas, lagos, lagoas e praias, além de piscinas localizadas em parques, clubes, condomínios e
casas. Portanto, o cuidado com as crianças frequentadoras desses espaços deve ser reforçado. Em 2015,
segundo dados do ONG Criança Segura, 943 crianças de até 14 anos morreram afogadas no Brasil.
Os afogamentos podem ocorrer em diversos locais, como rios, piscinas, mar, valetas, poços, bacias,
baldes e vasos sanitários. Esses acidentes ocorrem de forma rápida e silenciosa, quando as crianças são

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deixadas soltas, sem supervisão. Entretanto, é importante salientar que também há perigos em ambientes
familiares, como piscinas, baldes e banheiras. Uma criança que começou a andar recentemente, por
exemplo, pode afogar-se em 2,5 cm de profundidade de água. Uma grande parte das crianças que se
afoga em piscinas estava em casa ou em clubes e ficou fora da vista dos pais ou responsáveis por menos
de cinco minutos.
As crianças pequenas pertencem a um grupo de risco para afogamento, principalmente quando a
residência está localizada nas imediações de águas naturais (açudes, lagos, poços) ou piscinas, acrescido
da desatenção dos responsáveis pela segurança da criança.
Os fatores de risco para afogamentos são:
• o contato frequente com a água;
• nadar ou praticar atividades esportivas sob efeito do álcool;
• nadar desacompanhado por outras pessoas.

Medidas preventivas para evitar o afogamento

• Esvaziar baldes, bacias e piscinas plásticas imediatamente após o uso. Guardá-los virados para
baixo e fora do alcance de crianças.
• Despejar a água antes de retirar a criança da banheira e esconder a tampa de modo que a
criança não possa preparar o próprio banho.
• Nunca deixar uma criança com menos de três anos sozinha na banheira, mesmo quando ela já
souber sentar-se bem. Durante o banho, não atender ao telefone nem à porta.
• Manter a tampa do vaso sanitário fechada e usar trancas nos banheiros e ‘casinhas’.
• Não deixar as crianças mergulharem sem antes terem aprendido técnicas de mergulho. Crianças
devem aprender a nadar com instrutores qualificados ou em escolas de natação especializadas.
Se os pais ou responsáveis não sabem nadar, devem aprender também.
• Caso na residência exista uma piscina, ela deve ser cercada por todos os lados.
• Cobrir cisternas, poços e reservatórios de água e, se possível, cercá-los.
• Cuidar com troncos e galhos escondidos no fundo dos lagos e lagoas, assim como com a
profundidade local.
• Crianças devem aprender a nadar e usar sempre coletes salva-vidas.
• Procure saber quais amigos da criança ou vizinhos têm piscina. Certifique-se de que a criança
seja cuidada por um adulto enquanto visita o amigo.
• A criança deve sempre nadar com um companheiro. Nadar sozinha é muito perigoso.

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• Evitar locais com aglomerações na água para que ninguém caia ou mergulhe em cima dos outros.
• Nunca deixar uma criança sem supervisão dentro ou próximo à água, mesmo em piscinas
rasas. Um adulto deve sempre supervisioná-las de forma ativa e constante.
• As piscinas devem ser protegidas com cercas de, no mínimo, 1,5 metros que não possam
ser escaladas, bem como portões com cadeados ou trava de segurança que dificultem o
acesso dos pequenos.
• Grande parte dos afogamentos com bebês acontece em banheiras. Na faixa etária até os dois
anos, vasos sanitários e baldes podem ser igualmente perigosos. Nunca deixar as crianças, sem
vigilância, próximas a pias, vasos sanitários, banheiras, baldes e recipientes com água.
• Evitar brinquedos e outros atrativos próximos a piscinas e reservatórios de água.
• Boias e outros equipamentos infláveis passam uma falsa segurança. Eles podem estourar, virar
a qualquer momento e serem levados pela correnteza. O ideal é a criança usar sempre um
colete salva-vidas quando estiver em embarcações, próxima a rios, represas, mares, lagos e
piscinas bem como durante a prática de esportes aquáticos.
• Muitos casos de afogamentos aconteceram com pessoas que achavam que sabiam nadar. Não
superestime a habilidade de crianças e adolescentes.
• Respeitar as placas de proibição nas praias, os guarda-vidas e verificar as condições das
águas abertas.
• Não brincar de empurrar, ‘dar caldo’ dentro da água ou simular que está se afogando.
• Saber ligar para um número de emergência e passar as informações de localização e informar
o que está acontecendo em caso de perigo.

SUFOCAÇÃO OU ENGASGAMENTO
Em 2015, segundo dados da ONG Criança Segura, 810 crianças de até 14 anos foram vítimas
deste tipo de acidente. Até os quatro anos de idade, a criança está muito exposta a esse risco, pois é
nessa fase que se inicia a exploração do entorno por meios dos cinco sentidos (tato, audição, olfato,
paladar e visão). Entre os acidentes, a sufocação (obstrução das vias aéreas) é a primeira causa de morte
em bebês de até um ano.

Medidas preventivas para evitar sufocação ou engasgamento

• Bebês devem dormir em colchão firme, ‘de barriga para cima’, cobertos até a altura do peito
com lençol ou manta presos por debaixo do colchão, mantendo os bracinhos para fora. O

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colchão deve estar bem preso ao berço (não mais que dois dedos de espaço entre o berço e o
colchão), sem qualquer embalagem plástica.
• Na hora de dormir, evitar o excesso de roupas e fraldas no bebê. Remover do berço todos os
brinquedos, travesseiros e objetos macios quando o bebê estiver dormindo, para reduzir o
risco de asfixia.
• Ter muita cautela em relação ao berço. Procurar berços certificados pelo Inmetro, conforme
as normas de segurança da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Ficar atento às
grades de proteção do berço, que devem estar fixas e não devem ter mais que 6 cm de distância
entre elas.
• Comprar somente brinquedos apropriados para a criança. Verificar as indicações de idade
no selo do INMETRO. Tenha certeza de que o piso está livre de objetos pequenos, como
botões, colar de contas, bolas de gude, moedas, tachinhas. Tirar todos esses, assim como
outros pequenos itens, do alcance do bebê.
• Considerar a utilização de um testador para determinar essas partes pequenas de brinquedos
que oferecem risco de engasgamento para crianças de até quatro anos. Utilizar uma embalagem
plástica de filme fotográfico como referência, pois ela conta com o diâmetro (3 cm) aproximado
da garganta da criança e poderá servir de alerta para o risco de forma bastante visual.
• Considerar a compra de cortinas ou persianas sem cordas para evitar que crianças menores
corram o risco de estrangulamento.
• Na hora da alimentação, cortar os alimentos em pedaços bem pequenos.

QUEDAS
As quedas representam a principal causa de internação entre os acidentes com crianças e
adolescentes de até 14 anos no Brasil. Isso quer dizer que a queda se caracteriza como o acidente que
mais gera hospitalização de nossas crianças.
A maior parte dos acidentes é resultante de quedas de escadas, telhados, muros, cercas, cavalos,
carroças, tratores e carretas, bicicletas, patins, patinetes e skates. Características físicas próprias do
desenvolvimento da criança favorecem as quedas, tais como o tamanho e o peso da cabeça em relação
ao corpo, que acabam facilitando o desequilíbrio.

Medidas preventivas para evitar quedas


Cada criança necessita de um tipo de prevenção de acidentes de acordo com alguns fatores que podem
interferir, tais como: tipo de casa e localização, cercanias da casa, nível socioeconômico, com quem ela fica,
seu trajeto para a escola, como é a sua escola, seu estágio de desenvolvimento e seu nível de atividade.

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Entre crianças de um a quatro anos, acontecem com frequência razoável quedas de móveis, a
exemplo da cama, de equipamentos de recreação, de degraus, de escadas e de altura. Entre os cinco e
14 anos, são mais frequentes os acidentes relacionados a atividades recreativas e esportivas.
Em grande parte das cidades brasileiras existem edificações cobertas apenas por laje. Essas lajes
são extremamente atrativas a crianças de diferentes faixas etárias, constituindo local de execução de
diversas atividades e brincadeiras. Contudo, a laje é um local muito perigoso para a realização dessas
brincadeiras, pois ocorrem quedas com traumatismos variados com frequência, que geram lesões graves
e alta taxa de mortalidade.
A queda de objetos pesados em cima da criança, como televisores, também pode causar lesões
graves e ocasionar a morte. A televisão costuma ser muito atrativa aos pequenos, com tantos botões,
imagens e sons. A criança pode tentar mexer por conta própria no referido eletrodoméstico ou mesmo
equilibrar-se nele para levantar-se do chão, causando a queda do televisor, bem como de qualquer
outro objeto pesado, em cima dela. Por isso, supervisione sempre a criança, ainda que durante uma
atividade a princípio sem riscos como assistir à TV. Certifique-se de que os móveis, além de afixados e
estáveis, possam suportar bem o peso do aparelho. Assim:
• as crianças devem brincar em locais seguros. Escadas, sacadas e lajes não são lugares para
brincar;
• deve-se explicar às crianças os perigos de andar em tratores, carretas e carroças sem a supervisão
de adultos e ensinar-lhes como se comportar;
• usar portões de segurança no topo e na base de escadas. Caso a escada seja aberta, instalar
redes ao longo dela;
• instalar grades ou redes de proteção nas janelas, sacadas e mezaninos;
• crianças com menos de 6 anos não devem dormir em beliches. Se não houver escolha, colocar
grades de proteção nas laterais;
• manter camas, armários e outros móveis longe das janelas, pois podem facilitar que crianças
os escalem e se debrucem para fora do prédio ou casa;
• cuidar com pisos escorregadios e colocar antiderrapante nos tapetes;
• deve-se sempre observar as crianças quando estiverem brincando nos parquinhos. Verificar se
os brinquedos estão em boas condições e se são adequados à idade da criança;
• não permitir que a criança pule dos equipamentos recreativos. Alerte-a para a função do
brinquedo, por exemplo, escalar e descer pelo lado correto;
• manter uma mão segurando o bebê durante a troca de fraldas. Nunca deixar um bebê sozinho
em mesas, camas ou outros móveis, mesmo que seja por pouco tempo;
• não permitir que crianças brinquem perto de barreiras e barrancos;

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• em caso de acidente, deve-se acionar a emergência no caso da perda de consciência; se a criança


apresentar sonolência, irritabilidade, alteração de comportamento, convulsão, vômitos; se a
criança reclamar de dor, especialmente no pescoço ou no dorso; se a criança persistir chorando,
inconsolável; se a criança estiver sangrando ou com escorrimento de outro fluido do nariz,
ouvidos ou boca; se a criança apresentar sinais sugestivos de fraturas e/ou se houver qualquer
dúvida quanto aos sintomas apresentados, as lesões ou o comportamento após a queda.

QUEIMADURAS
O Brasil segue registrando um número elevado de crianças que sofrem queimaduras. O pior é
que esse problema ‘mora’ dentro de casa: 45% dos casos acontecem dentro do próprio lar, sendo que a
maioria poderia ter sido evitada caso houvesse a adoção de métodos simples de segurança.
O fogo exerce uma atração quase mágica na infância – uma curiosidade que pode ser fatal. A
‘brincadeira’ começa no quarto, quando estão sozinhos com fósforos ou isqueiros, e pode transformar-
-se em um incêndio de grandes proporções. Uma tomada sem proteção, o cabo da panela virado para
fora do fogão e materiais inflamáveis perto do fogo também representam sérios riscos para a criança.

Medidas preventivas para queimaduras

• Manter a criança longe da cozinha e do fogão, principalmente durante o preparo de refeições.


• Cozinhar nas bocas de trás do fogão e sempre com os cabos das panelas virados para trás para
evitar que as crianças entornem os conteúdos sobre elas. O uso de protetores de fogão é um
cuidado a mais para evitar que a criança tenha acesso às panelas.
• Evitar carregar as crianças no colo enquanto mexe em panelas no fogão ou manipula líquidos
quentes. Ainda, quando estiver tomando ou segurando líquidos quentes, faça-o longe das crianças.
• Não utilizar toalhas de mesa compridas ou jogos americanos. As mãozinhas curiosas podem
puxar esses tecidos, causando escaldadura ou queimadura de contato.
• Durante o banho do bebê, colocar primeiro a água fria e verificar a temperatura da banheira
com o cotovelo ou dorso da mão.
• Não deixar as crianças brincarem por perto quando você estiver passando roupa nem largar o
ferro elétrico ligado, sem vigilância.
• Cuidar com os fios dos outros eletrodomésticos. Se possível, mantenha-os no alto.
• Não existem fogos de artifícios inofensivos. Esses produtos causam geralmente queimaduras
graves. Além disso, eles podem explodir ocasionando mutilações nas mãos e na face. Cuidado

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com as festas juninas e com a imprudência no uso desses materiais. Fogos de artifício devem
ser manipulados por profissionais e NUNCA por crianças.
• Nas festas juninas, não permitir brincadeiras com balões ou de saltar fogueira. Não deixar
que a criança faça parte da brincadeira, principalmente quando já houver fogueira, chama ou
braseiro em uso por perto.
• Certificar-se de que os adultos não estejam ensinando maus hábitos para as crianças, como
fumar na cama ou manusear fogos de artifícios e álcool para acender o fogo.

Medidas preventivas para eletricidade


• Brincadeiras com pipas devem ocorrer somente longe dos fios de alta tensão, de modo a evitar
o risco de queimaduras graves e até mesmo a morte instantânea.
• Somente permitir que as crianças empinem pipas em campos abertos, com boa visibilidade,
sem a presença de fios e postes de eletricidade.
• Verificar sempre o estado das instalações elétricas. Fios desencapados podem ser muito
perigosos.
• Evitar ligar vários aparelhos eletrônicos em uma mesma tomada.
• As tomadas devem estar protegidas por tampas apropriadas, esparadrapo, fita isolante ou
mesmo cobertas por móveis.
• Fios elétricos devem estar isolados e longe do alcance de crianças.
• Deve-se ter cuidado com eletrodomésticos em mau estado de conservação, como ventiladores
e geladeiras, que podem causar choque e curto-circuito.
• Não colocar objetos metálicos (facas, garfos etc.) dentro de equipamentos elétricos.

Medidas preventivas para materiais inflamáveis


• Não deixar fósforos, isqueiros e outras fontes de energia ao alcance das crianças.
• Guardar todos os líquidos inflamáveis em locais altos e trancados, longe do alcance de crianças.
• Deve-se tomar muito cuidado com o álcool. Ele é responsável por um grande número de
queimaduras graves em crianças. Guardar o produto longe do alcance delas. O mais seguro
é substituir qualquer versão de álcool por outros produtos de limpeza doméstica, como água
e sabão.
• Nunca jogar álcool engarrafado em chamas ou brasas nem utilizá-lo como produto para
cozinhar. O álcool poderá explodir, provocando queimaduras graves ou até fatais.

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• As velas devem ser acesas em recipientes fundos, como jarros de vidro, ou em um prato fundo
com água.
• Retirar todos os aquecedores portáteis do alcance de crianças.
• Caso um acidente ocorra, ainda que se tome todos esses cuidados, levar a criança imediatamente
ao posto de saúde ou hospital mais próximo para que seja orientada, avaliada e tratada.

ENVENENAMENTOS
O ambiente doméstico, onde acontecem a maior parte dos acidentes, apresenta vários tipos de
‘venenos’ em potencial. A exploração do espaço é uma atividade importante para o desenvolvimento
infantil. Colocar objetos na boca ou tentar pegar frascos com líquidos coloridos são comportamentos
característicos das crianças, mas que também podem colocá-las em grande risco de envenenamento e
intoxicação não intencional.
O envenenamento é a quinta causa de hospitalização por acidentes com crianças de um a
quatro anos. Por isso, é necessário adaptar a casa para proteger as crianças, além de vigiá-las em todos
os lugares.

Medidas preventivas para envenenamentos


Com relação aos medicamentos, deve-se:
• guardar em armários altos e trancados à chave, em suas embalagens originais e com a bula,
longe do alcance das crianças;
• armazenar em lugares diferentes os remédios de uso adulto e de uso infantil que têm embalagem
semelhante;
• sempre ler os rótulos e seguir exatamente as instruções ao medicar as crianças, considerando
o peso e a idade, sob orientação médica e usando o medidor que acompanha o medicamento;
• conferir a data de validade e a dose antes da administração de remédios;
• manter os produtos nas suas embalagens originais, bem como jogar fora o remanescente do
remédio ao fim do tratamento;
• evitar tomar medicamentos na frente das crianças.

Com relação a cosméticos e produtos de higiene, deve-se:


• sempre manter esses produtos fora da vista e do alcance de crianças;
• sempre manter os produtos nas embalagens originais;

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• dar preferência a embalagens com tampas à prova de abertura por crianças. Essas tampas
de segurança não garantem que a criança não abrirá a embalagem, mas podem dificultar
bastante, a tempo de que alguém intervenha.

Com relação a produtos de limpeza, deve-se:


• guardá-los em armários altos, trancados com chave ou travas especiais, fora da vista e do
alcance de crianças;
• evitar misturar soluções de limpeza, pois podem produzir vapores tóxicos;
• saber quais produtos domésticos são venenosos e nunca deixá-los sem supervisão durante o
uso. Bastam alguns segundos para que um envenenamento ocorra;
• manter os produtos em suas embalagens originais. Nunca colocar um produto tóxico em
outra embalagem que não aquela de origem. Isso pode confundir a criança;
• jogar fora as embalagens de substâncias potencialmente tóxicas;
• evitar criar novas soluções de limpeza misturando diferentes produtos designados para outro
fim. Essa nova mistura pode ser nociva e mais tóxica;
• desfazer-se dos produtos de limpeza que não se utiliza mais.

Com relação a plantas, deve-se:


• ensinar às crianças desde cedo que não devem tocá-las ou levá-las à boca;
• informar-se das espécies venenosas mais comuns, dentro e fora de casa;
• saber quais plantas ao redor de própria casa são venenosas, removendo-as ou deixando-as
inacessíveis às crianças;
• jogar fora embalagens de venenos e agrotóxicos.

Em caso de suspeita de envenenamento, entrar em contato imediatamente com um pronto-


-socorro ou Centro de Controle de Toxicologia de sua cidade para receber as orientações adequadas.
Para tanto, deixar anotado os números de telefones de emergência em local próximo ao telefone (posto
de saúde, pronto-socorro, bombeiros e/ou centro de informações toxicológicas).

ARMAS DE FOGO
As crianças têm uma atração impressionante por armas de fogo. Há um contexto mágico, heroico,
aventureiro em torno delas. Quando se interessam por algo, os pequenos descobrem como consegui-lo.

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Normalmente, por mais que os pais escondam, as crianças sabem onde está a arma. Quando descobrem,
chamam o amiguinho para ver.
Cerca de dois terços dos pais com posse de armas de fogo e com filhos em idade escolar acreditam
que guardam suas armas seguramente, longe das crianças. No entanto, um estudo em uma escola
descobriu que, quando havia arma em casa, boa parte dos alunos do primeiro e segundo grau sabia
onde ela estava guardada.
Poucas crianças com menos de oito anos podem seguramente distinguir entre armas reais e de
brinquedo ou entender completamente as consequências das próprias ações. Crianças de três anos de
idade são fortes o suficiente para puxar o gatilho de muitos revólveres. Por isso, guardar armas de fogo
em lugares seguros e fora do alcance das crianças é primordial.

Crianças versus riscos


Alguns pais pensam que suas crianças não estão em risco porque eles não possuem armas. Outros
pais pensam que seus filhos estão seguros porque eles possuem armas e supõem que as crianças sabem
das ‘regras’. Uma subestimação da capacidade da criança para ganhar acesso a uma arma de fogo
em casa é um problema comum. Além disso, ao contrário dos adultos, as crianças são incapazes de
distinguir entre uma arma real e armas de brinquedo.
A verdade é que todas as crianças estão potencialmente em risco de acidentes com armas de fogo.
No entanto, sabendo como e por que ocorrem, é possível reduzir substancialmente esse risco. Quase
todos os tiros fatais acidentais ocorrem dentro da casa da vítima ou na casa de um amigo ou parente.
A maioria dessas mortes envolve armas que foram guardadas carregadas e em locais de fácil acesso para
as crianças quando estavam brincando.
Para a segurança de sua criança com relação a armas de fogo, você deve considerar se vale a pena
manter uma arma de fogo em casa. Se você optar por mantê-la, armazene-a com segurança e fora do
alcance das crianças e mantenha a munição em um local separado. Além disso, você deve conversar
com seu filho sobre os perigos de armas de fogo, ensinando-o a nunca tocar ou brincar com elas.
A casuística de acidentes com armas de fogo é mais alta nas áreas rurais, onde provavelmente haja
mais pessoas com armas de fogo, utilizando-as ao ar livre para caçar ou exercitar tiro ao alvo.
As situações de alto risco com armas de fogo devem-se ao fato de haver armas de fogo acessíveis
em casa ou em outra casa (vizinhos, amigos, parentes), de as armas e munições estarem armazenadas
juntas e por causa da falta de supervisão.

Medidas preventivas para armas de fogo

• De preferência não ter armas. A menos que sua profissão exija esse tipo de equipamento,
desarme-se.

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• Deve-se guardar as armas de fogo descarregadas, travadas e fora do alcance das crianças.
• Guardar as munições em um lugar separado e trancado.
• Manter as armas guardadas com chaves e lacres de combinação escondidos em lugares separados.
• Fazer um curso de uso, manutenção e armazenamento seguro de armas.
• Ainda que a própria casa seja livre de armas de fogo, a criança pode visitar outra casa, onde
armas de fogo são mantidas. Verificar, com os vizinhos, amigos e parentes, se estes possuem
ou não armas de fogo em casa. Em caso afirmativo, averiguar se eles as armazenam com
segurança, fora do alcance de crianças.
• Conversar com as crianças do grande perigo das armas.
• Ensinar as crianças a nunca tocar ou brincar com armas.
• Ensinar as crianças a contar a um adulto onde se encontra uma arma.

ACIDENTES COM BRINQUEDOS E ATIVIDADES DE


LAZER
O crescimento e desenvolvimento das crianças podem ser apoiados e reforçados por meio de jogos e
brincadeiras. Estas são importantes para todas as áreas de desenvolvimento, a saber, cognitiva, linguagem,
social, física e emocional. No entanto, deve-se ter muita atenção com relação aos brinquedos oferecidos.
Os tipos de lesões mais comuns ocasionados por acidentes com brinquedos e lazer são perfurações,
cortes, contusões, sufocação, asfixia, afogamentos, intoxicações, acidentes de captação (dedos, roupas e
cabelos) e queimaduras. Além disso, os especialistas em segurança têm chamado atenção para questões
relacionadas aos componentes presentes na fabricação de alguns brinquedos, como ímãs, metais
pesados e os ftalatos.

Medidas preventivas para o uso de brinquedos


• Ao adquirir um brinquedo, certificar-se de que ele é atóxico, ou seja, não contém componentes
tóxicos para a criança.
• Procurar sempre adquirir brinquedos com o selo de aprovação do INMETRO.
• Orientar os pais a procurarem atendimento médico imediato para qualquer criança que tenha
ingerido, ou esteja sob suspeita de ingestão, de um ou mais ímãs.
• Brinquedos que contenham ímãs, metais pesados e/ou ftalatos devem ficar fora do alcance
de crianças de todas as idades, e os pais devem supervisionar cuidadosamente as crianças
enquanto brincam.

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• Procurar atendimento médico imediato para qualquer criança que tenha ingerido, ou esteja
sob suspeita de ingestão, de um ou mais brinquedos que contenham essas substâncias.

Medidas preventivas para o uso de parquinhos (playgrounds)


A Associação Brasileira de Normas e Técnicas (ABNT), por meio da Comissão de Estudos Especiais
de Segurança, elaborou normas para garantir a segurança das crianças. Em 2012, foram reeditadas as
normas para playground, a fim de garantir sua segurança e diversão.
Os riscos potenciais relacionados a brinquedos e equipamentos de playground são as quedas
(50%), seguidos por riscos relacionados ao próprio equipamento, como quebra e montagem (23%).
Outros tipos de lesões são decorrentes de encarceramentos e colisões com outras crianças ou contra
o equipamento estático. Por isso, a melhor medida de prevenção contra acidentes em playgrounds é a
supervisão atenta dos pais, que devem manter uma visão direta e próxima das crianças, sem obstruções
e sempre monitorar as brincadeiras para o uso correto dos brinquedos. Além disso, deve-se:
• visualizar o ambiente como um todo. Os brinquedos e equipamentos devem ser separados
por faixa etária, de modo que é fundamental haver sinalização para qual idade determinado
brinquedo é apropriado;
• dividir e separar as faixas etárias em três grupos: menores de dois anos, de dois a cinco anos e
de cinco a 12 anos;
• utilizar diferentes tipos de material para a confecção do playground, dependendo da faixa
etária. Para crianças pequenas, recomendam-se os brinquedos de plástico rotomoldados, em
local coberto com ampla área externa, sem cobertura, uma vez que estes absorvem muito
calor. Para os maiores de sete anos, os brinquedos podem ser de madeira e aço, sobretudo o
balanço, o escorregador, o gira-gira, a gangorra e o tanque de areia;
• os pisos devem ser de material resistente à abrasão, apresentar estabilidade química, oferecer
boa manutenção, alto desempenho na absorção de impacto da queda, sistema antiderrapante
adequado, além de uma composição que não agrida a criança e o meio ambiente.

SEGURANÇA NA ERA DIGITAL


Atualmente, cada vez mais cedo, as crianças e os adolescentes têm contato com a tecnologia
presente no dia a dia de todos, e o mundo virtual vai progressivamente confundindo seus limites
com os do mundo real em seus cotidianos. A internet, o telefone celular, as mídias sociais e muitos
novos equipamentos de tecnologia da informação vão transformando os comportamentos e as formas
de relacionar-se com a família, com os amigos e com as novas possibilidades de vivenciar o mundo.

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Porém, todo excesso de estímulos virtuais pode gerar malefícios e, por essa razão, faz-se necessário que
os pais e os educadores fiquem atentos a diversos fatores ligados a essas tecnologias e, principalmente,
ao conteúdo acessado.
Estudos científicos comprovam que a tecnologia influencia comportamentos através do mundo
digital, modificando hábitos desde a infância, que podem causar prejuízos e danos à saúde. O uso
precoce e de longa duração de jogos on-line, redes sociais ou diversos aplicativos com filmes e vídeos na
internet pode causar dificuldades de socialização, conexão com outras pessoas e dificuldades escolares.
A dependência ou o uso problemático e interativo das mídias pode causar problemas mentais, aumento
da ansiedade, violência, cyberbullying, transtornos de sono e alimentação, sedentarismo, problemas
visuais, problemas posturais e lesões de esforço repetitivo (LER). Além disso, pode gerar problemas
que envolvem a sexualidade, como maior vulnerabilidade à pornografia, acesso facilitado às redes de
pedofilia e de exploração sexual on-line, compra e uso de drogas, pensamentos ou gestos de autoagressão
e suicídio, além de ‘brincadeiras’ ou ‘desafios’ on-line que podem ocasionar consequências graves e levar
ao coma por anoxia cerebral ou à morte.
Segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), que lançou em 2016 o Manual de Orientação
em Saúde de Crianças e Adolescentes na Era Digital, as seguintes medidas preventivas devem ser
adotadas para o melhor uso da internet e de outras tecnologias.
• Deve haver um limite de tempo de uso diário ou o tempo total por dia que a criança ou o
adolescente pode usar a tecnologia digital. Este deve ser estabelecido de acordo com a idade e
a etapa de desenvolvimento mental e cognitivo.
• Crianças pequenas, menores de dois anos, não devem ser expostas às telas digitais enquanto
fazem suas refeições ou até duas horas antes de irem dormir.
• Crianças com idades entre dois e cinco anos devem ter contato com as mídias por no máximo
uma hora/dia e nunca devem fazê-lo em seus quartos. Também devem ser constantemente
monitoradas, pois nessa faixa de idade ainda não conseguem fazer a distinção entre a fantasia
e a realidade.
• Jogos que contenham cenas de violência, mortes e tiroteios, nos quais o jogador ganhe
pontos por isso, devem ser evitados. É muito importante haver um equilíbrio entre as horas
dispensadas com os jogos on-line e as horas dispensadas em brincadeiras, atividades esportivas
assim como o contato direto com outras crianças e com a natureza.
• Os pais devem sempre conversar e deixar claro as regras para uso da internet assim como
devem explicar sobre segurança e privacidade (não compartilhar informações, fotografias,
senhas ou se expor em conversas através de webcams com pessoas que não conhecem ou em
redes sociais).
• Deve sempre haver um monitoramento rigoroso dos aplicativos, sites, programas, filmes e
vídeos a que as crianças e os adolescentes têm acesso, por meio da utilização de antispams,

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antivírus e antimalwares. Além disso, os dispositivos digitais devem sempre estar em locais
seguros e ao alcance dos pais e responsáveis.
• É de extrema importância conversar e explicar às crianças e aos adolescentes dos reais perigos
existentes na internet e nos mundos virtuais, onde as coisas podem ser falsas e inventadas,
não sendo o que parecem ser. Também reforçar com eles os pilares da educação e os valores
familiares, ensinando-os a não enviar ou postar mensagens desrespeitosas, discriminantes,
intolerantes ou que incitem o ódio.
• Sempre que possível, organizar os finais de semana e as férias como um período de convivência
familiar e com os amigos, aproveitando a oportunidade para fazer atividades que dispensem a
tecnologia e tragam prazer de outras formas, que não as digitais.
• Lembrar-se sempre de que a tecnologia deve ser utilizada de forma positiva, com horários
programados que devem ser respeitados por todos. Por isso, nunca levar seus dispositivos
digitais para a mesa enquanto faz suas refeições e nunca esquecer de praticar esportes,
atividades ao ar livre e entrar em contato com a natureza, pois isso alimenta a saúde física
e mental.

SEGURANÇA NO MEIO RURAL


O cenário rural apresenta inúmeras situações de riscos de acidentes para crianças, podendo
ocorrer traumas graves, capazes de levá-las à morte ou deixar sequelas. Nesse ambiente, há necessidade
de supervisão cuidadosa e da existência de áreas seguras para as brincadeiras, separadas das inúmeras
ameaças presentes no campo, no ambiente de trabalho agrícola, como afogamentos, queimaduras,
lesões causadas por animais, intoxicações e picadas por animais peçonhentos.
A dificuldade de avaliar os perigos, aliada à procura por novas emoções, leva as crianças a
vivenciarem frequentes situações de risco, tornando-as vulneráveis a acidentes. No caso dos adolescentes,
que desempenham algumas atividades laborais nesse meio, é necessário que recebam orientação com
relação à atividade exercida, de maneira que inicie o trabalho em local adequado e com a supervisão
presencial de um adulto responsável.

ACIDENTES DE TRANSPORTE
As estradas rurais, em geral de terra, estreitas, sem sinalização e sem conservação adequada, podem
ter curvas que limitam o alcance da visão. Além disso, animais soltos representam um risco a mais. Um
fator agravante para as vítimas de acidentes de transporte no ambiente rural é a dificuldade de acesso
ao atendimento médico rápido e adequado. As medidas preventivas recomendadas são:

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• motoristas devem evitar o uso de álcool e drogas, não devem dirigir se estiverem cansados e/
/ou com sono, não devem utilizar celular, mesmo no modo ‘viva-voz’ e não devem exceder
a velocidade permitida. Na área rural a velocidade precisa ser consideravelmente baixa por
conta das condições das vias;
• não se deve permitir que adolescentes conduzam carro ou motocicleta sem habilitação;
• deve-se sempre utilizar os equipamentos de proteção. Para carros, cinto de segurança. Para as
crianças, assento adequado à idade, peso e estatura. Para os ciclistas e motociclistas, capacete.

Acidentes com equipamentos de uso rural


As crianças não estão aptas a utilizar instrumentos, equipamentos e máquinas agrícolas. Tratores
e demais veículos agrícolas podem causar traumas graves, mortes por queda e atropelamento. Por isso,
seguem algumas recomendações para a prevenção de acidentes com os equipamentos de uso rural:
• antes de ligar qualquer equipamento agrícola, recomenda-se verificar se há crianças por perto;
• quando não estiverem em uso, a chave deve ser retirada da ignição.

INTOXICAÇÃO

Pesticidas
No ambiente rural, é muito comum o uso de fungicidas, herbicidas, inseticidas e rodenticidas.
O contato com essas substâncias pode resultar em agravos agudos à saúde de crianças e adolescentes,
havendo inclusive ligação entre o contato de alguns pesticidas e o aparecimento de neoplasias, prejuízo
do desenvolvimento cognitivo e alterações comportamentais. Assim, recomendam-se algumas ações
preventivas que devem abranger uma série de cuidados imprescindíveis, visando evitar agravos à saúde
das pessoas que tem contato profissional com esses produtos assim como das crianças, adolescentes e
adultos que residem e/ou visitem o meio rural. Estas medidas são:
• seleção dos produtos a serem adquiridos e cuidados no transporte e armazenamento dos
mesmos, seguindo as normas estabelecidas;
• o manuseio deve ser feito somente por pessoas devidamente treinadas, que estejam utilizando
os equipamentos de proteção recomendados;
• as vestimentas utilizadas devem ser lavadas e guardadas em locais apropriados, separados das
roupas pessoais;

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• os pesticidas devem ser armazenados longe da moradia, em local adequado, trancado com
chave e inacessível à criança;
• crianças e adolescentes não podem ter contato com produtos tóxicos e devem ser mantidos à
distância durante e logo após a aplicação.

PLANTAS TÓXICAS
No meio rural, é muito comum a existência de plantas tóxicas espalhadas em áreas de fácil acesso
à crianças e adolescentes. Por isso, deve-se ensinar-lhes a reconhecer essas plantas, orientando-os do
perigo que representam e instruindo-os a não brincarem nem as colocarem na boca. Alguns exemplos
de plantas tóxicas são: bico-de-papagaio, comigo-ninguém-pode, copo-de-leite, coroa-de-cristo,
espirradeira, mamona, mandioca-brava, tinhorão e trombeteira.

ANIMAIS – CAVALO E GADO


A convivência entre crianças/adolescentes e animais, como cavalo e gado, é muito intensa no meio
rural. Os acidentes que ocorrem, geralmente, podem ser prevenidos. A maioria decorre de queda e por
coice, mordedura e pisoteamento, além de chifrada, no caso do gado.
Em virtude dos diversos mecanismos envolvidos, deve-se otimizar a segurança e os recursos
preventivos, como o uso de capacetes (que reduz a gravidade dos traumas cranianos), a restrição do
tempo em que a pessoa está montada e o tempo em que fica próxima ao animal. As crianças não devem
ficar por perto enquanto os adultos trabalham com esses animais. Em pastos, as crianças devem sempre
estar acompanhadas por adulto ou responsável.

Animais peçonhentos – acidentes ofídicos e por picada


de escorpião
As picadas de cobras, habitualmente graves, acometem principalmente pés e pernas, seguidos por
mãos e antebraços. Considerando a localização anatômica dessas picadas, recomenda-se o uso de botas
de cano alto ou botinas com perneira de couro, o uso de luvas de couro para lidar com folhas secas,
lenha, lixo acumulado e palha. Não se deve introduzir as mãos em locais cujo interior não se pode ver
claramente. Além disso, deve-se cuidar da área em torno da casa. O abrigo de cobras é, geralmente, um
local escuro, quente e úmido.
Com relação às picadas de escorpião, estas ocorrem geralmente nos membros superiores, atingindo
mãos e antebraços. Os cuidados preventivos consistem em manter a área em volta da residência

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sempre limpa, sem entulho, folhas secas, lixo, madeira, pedras e tijolos. A grama deve ser aparada
frequentemente, e deve-se usar luvas e calçados apropriados ao meio rural.

USO DA TECNOLOGIA, DA CIÊNCIA E DA


INOVAÇÃO NAS CAMPANHAS EDUCATIVAS
PREVENTIVAS
A tecnologia existente nos dias de hoje foi a grande responsável por aproximar o campo da cidade.
Hoje, tem-se qualquer informação nas pontas dos dedos e pode-se ter acesso a inúmeros lugares sem
sair de casa. Mas, independentemente se vivemos no campo ou na cidade, as crianças e os adolescentes
acabam correndo os mesmos riscos com relação a acidentes, dentro ou fora de casa. Por isso, em ambos
os casos, a melhor forma de garantir a segurança é a prevenção.
No campo, a segurança das crianças e dos adolescentes deve ser tratada com atenção pelos
responsáveis pela saúde da coletividade rural. Os pais devem ter acesso à educação preventiva e dispor
de condições para oferecer à criança supervisão necessária, a fim de que haja oportunidade de viver
de forma segura no ambiente rural, desfrutando de inúmeras oportunidades para o crescimento e
desenvolvimento saudáveis.
Há evidências crescentes de que a supervisão mais constante e de melhor qualidade diminui o
risco e a frequência dos acidentes, mas também de que certos atributos do comportamento de crianças
diferentes em ambientes variados. De semelhante modo, a capacidade dos pais de assimilarem o
conhecimento e reconhecerem a vulnerabilidade de seus filhos, interferem com o nível de supervisão e
a efetividade da proteção.
Estudos comprovam que 90% dos acidentes podem ser evitados com medidas simples de mudança
de comportamento bem como mediante a promoção da prevenção. Para seguir com este tema tão
importante, é necessária uma combinação de fatores, como investimentos públicos, parcerias público-
-privadas que levem a coleta de dados e estatísticas atualizadas. Esses dados estatísticos precisam ser
divulgados com agilidade e praticamente em tempo real, com a ajuda das redes sociais e da internet,
que conectam todos em qualquer lugar.
Ainda assim, não se pode esquecer que as crianças devem ser supervisionadas de forma ativa e
constante, pois muitos acidentes ocorrem rapidamente e de forma silenciosa. Deve-se ensinar as crianças,
quanto mais cedo possível, a compreenderem os riscos aos quais estão expostas, suas consequências
e a importância da prevenção. Esta começa dentro de casa e, principalmente, com a participação e
o exemplo dos pais e, por extensão, dos professores e educadores. Os programas educativos devem
ser promovidos tanto dentro como fora das escolas, pois eles são uma ferramenta muito importante.
Ainda, esses programas devem ser realizados nas escolas, promovendo a própria iniciativa do aluno na
manutenção das condições de segurança tanto na escola como fora dela. Esses programas visam educar

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a criança com vistas a uma maior atenção ao atravessar a rua, ciente dos riscos de brincar com objetos
perigosos, ao lidar com jogos e brincar próximo a montes de lixo, tijolos, lenha ou próximo a rios e lagos.
As campanhas educativas, com dicas de prevenção de acidentes, assim como uma série de ações
que fortaleçam a cultura de prevenção em todo país, podem e devem ser realizadas com base em
experiências de outras cidades, culturas ou até mesmo países, pois a tecnologia e a ciência estão ao
alcance de todos através dos ‘cliques’ de celulares, tablets e computadores. Por isso, deve-se usar e abusar
dos artifícios que a tecnologia, a inovação e a ciências nos dispõe para divulgar aquilo que vai fazer a
diferença no dia a dia de nossas crianças e adolescentes. Esses programas educativos podem ser feitos
por meio de histórias, teatros, cartilhas e murais envolvendo todos os alunos da escola e também com
a apresentação aberta aos familiares. Cabe aos pais promover a educação de seus filhos, informando-os
da responsabilidade pessoal na defesa contra os acidentes e orientá-los a se informarem de situações
potencialmente perigosas, como: encontrar tambores de agrotóxicos espalhados, deparar-se com rios
contaminados, armas de fogo, ninho de aranhas, cobras, lagartos etc.
Para tanto, é muito importante que as escolas busquem parceiros na realização de campanhas
informativas. Existem muitos programas estaduais e federais, organizações não governamentais (ONGs)
e empresas multinacionais (parcerias privadas) que contam com programas voltados para a orientação
da segurança na infância e na adolescência. Por meio de palestras e materiais didáticos, como filmes,
sites na internet, livros ilustrados, essas empresas revertem à sociedade um pouco da responsabilidade
social, isto é, um dos pilares da sustentabilidade.

BIBLIOGRAFIA
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TORRES, G. T. Interrelações entre a violência na infância e adolescência e o uso de armas de fogo.


Disponível em: http://www.uff.br/mmi/ped/Adolescentes%20e%20armas%20de%20fogo.pdf. Acesso em: 19
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WAKSMAN, R. D; GIKAS, R. M. C; BLANK, D. Crianças e adolescentes em segurança. 1. ed. Barueri:
Manole, 2014.

NOTAS EXPLICATIVAS
1 A maioria das informações contidas neste texto foram retiradas do site da ONG Criança Segura Brasil ou
embasadas nele, conforme já citado na Bibliografia.

Agrinho-Tecnicos_BOOK.indb 865 13/04/2021 11:14:09


Agrinho-Tecnicos_BOOK.indb 866 13/04/2021 11:14:09
CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
867

EXPERIÊNCIAS AFETIVO-SEXUAIS DE
ADOLESCENTES PELA INTERNET: O QUE OS
ESTUDOS REVELAM?

Roberta Matassoli Duran Flach


Suely Ferreira Deslandes

INTRODUÇÃO
Neste capítulo buscaremos discutir como a internet, especialmente após a criação das redes
sociais, se tornou um importante espaço de sociabilidade, onde se propagam relações comerciais, de
amizade, de defesa de ideologias políticas ou religiosas e também se estabelecem laços afetivo-sexuais.
Pela internet, milhares de pessoas de todas as idades relacionam-se diariamente. Especialmente os
jovens utilizam a rede mundial de computadores e suas diversas mídias para se comunicar, expressar
sentimentos, construir identidades e se relacionar com parceiros amorosos.
Discutiremos então as características da cibercultura e como ela afeta a sociabilidade contemporânea,
especialmente a dos jovens. Foco especial será dado às expressões da sexualidade dos adolescentes
mediadas pela internet, os principais tipos de abusos entre parceiros/namorados já apontados pela
literatura científica e as consequências à saúde dos que sofrem essas formas de violência. Trataremos
como essas práticas são vistas pela lei e quais ações de prevenção realizadas pelas escolas têm sido
relatadas pelos estudos.

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868

INTERNET E CIBERCULTURA
Com o advento da internet (abreviação de Interconnected Networks) observamos, especialmente
nas últimas três décadas, uma transformação radical na maneira como as pessoas se relacionam.
A expansão do uso e do acesso à internet possibilitou um novo espaço para trocar informações,
comercializar produtos e serviços, fomentar ativismo político, recuperar o contato de antigos amigos,
como também para estabelecer novas amizades e relacionamentos afetivo-sexuais. (CASTELLS,
2003).
As primeiras conexões em rede foram criadas em 1969 com fins de pesquisa militar. Anos depois,
tais conexões se tornaram mais complexas, dando origem a recursos tecnológicos de busca inteligente
(conexões de links de busca – a chamada www ou world wide web), que entendemos por internet. Logo,
incorporada às universidades, alcançou, a partir dos anos 1990 maior penetração junto ao consumidor
comum.
Todavia, foi a partir dos anos de 2000 que se observou uma larga disseminação em massa. Tal
fase de popularização, chamada de web 3.0, refere-se à implementação de plataformas digitais voltadas
às redes sociais, especialmente do Facebook (2004) e de outras plataformas semelhantes, facilmente
acessadas por aparelhos de telefonia móvel (smartphones) e tablets, via conexões de internet cada vez
mais velozes e sem fio (wi-fi). (BOLESINA; GERVASONI, 2015; LEMOS, 2005b).
A virtualidade possibilitou que nos conectássemos instantaneamente a qualquer hora, em
qualquer lugar, permitindo-nos estar ‘presentes’ sem a necessidade da presença física. A ruptura com
parâmetros conhecidos de tempo e espaço, até então essenciais para nossa sociabilidade, contribuiu,
drasticamente, para a expansão de uma nova forma de nos relacionarmos, forjando um conjunto
diferenciado de valores e condutas, consolidando o que os autores denominam de ‘cultura digital’ ou
‘cibercultura’.
A cibercultura seria o conjunto de valores, atitudes, modos de pensamento e práticas que se
desenvolvem, justamente, com a expansão da conectividade, via uso da internet. (LÉVY, 2010).
Na cibercultura, a simulação é tomada como via de apropriação do real (realidade virtual) na
qual deixamos de ser meros observadores maravilhados com a obra – como era quando os meios
de comunicação se restringiam ao rádio, à televisão, ao teatro e ao cinema – para sermos agentes da
obra, como navegadores, exploradores e atores. Estamos vivendo então uma ‘sociedade da simulação’
(LEMOS, 2015a), cuja expressão de sociabilidade (LEMOS, 2015a) nos convida à (hiper)exposição
de nossa identidade e espetacularização das nossas intimidades, com consequências à imagem pessoal
e à privacidade. (BOLESINA; GERVASONI, 2015; ABREU, 2015).

Nesse contexto, no dia a dia, os sujeitos acabam naturalizando a prática de postar para uma multidão
de espectadores todo tipo de informação, como acidentes, manifestações, passeios realizados, amores
correspondidos ou não, relações afetivo-sexuais iniciadas e desfeitas, fotos e vídeos íntimos. (FLACH;
DESLANDES, 2017, p. 2).

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Essa sociabilidade também se caracteriza por um conjunto de práticas cotidianas e experiências


coletivas, em rede, contribuindo para um processo chamado de ‘retribalização do mundo’, ou seja,
um forte movimento de agremiação por ‘tribos’ de afinidades. Nesse contexto, as pessoas se agregam
por meio de interesses comuns, ainda que efêmeros, independentemente de fronteiras ou demarcações
territoriais fixas. (LEMOS, 2015a; MAFFESOLI, 2014). Podemos participar de comunidades, jogar,
flertar ou conversar com qualquer pessoa do planeta ou com várias ao mesmo tempo. Essa nova forma
de sociabilidade nos convida, cotidianamente, à publicização coletiva e voluntária de fatos e aspectos
da vida íntima, especialmente, os relativos à sexualidade e corporalidade.
Essa exposição quase narcísica de promoção pessoal se materializa na busca ininterrupta pelo
reconhecimento e pela aprovação do olhar do outro, fabricando a própria ‘fama’, em que para uma
pessoa existir é preciso que seja ‘vista’, ‘curtida’ e ‘compartilhada’ nas diferentes mídias digitais. Nessa
fase, conhecida como ‘era do exibicionismo’ ou do ‘voyeurismo simulado’ (KEEN, 2012; BRUNO,
2013; LEMOS, 2015a), os segredos pessoais perdem espaço para a ‘publicalidade’.
Dessa forma, a internet e as redes sociais digitais se consolidam como um tipo de esfera pública
virtual, colaborando paulatinamente para a fusão público-privada. (PRIMO et al., 2015).

Raras vezes na história o corpo foi tão exposto como na atualidade pelas redes sociais. O que antes
ficava privado a um álbum de família guardado a sete chaves, hoje é disponibilizado em fotoblogs,
Facebook, Instagram, álbuns virtuais de todos os gêneros. Não é difícil se deparar com perfis abertos
onde meninos e meninas se exibem em fotografias em variadas situações. Seja em eventos públicos
ou na intimidade do quarto, em poses sensuais, às vezes demonstrando atributos de beleza, força,
virilidade, ou de posicionamentos ideológicos (político, esportivo, étnico etc). [...] É a plataforma no
qual a subjetividade, os corpos e a sexualidade são expostos de forma cada vez mais comum [...] uma
ferramenta apenas para expressão das vontades e desejos pessoais, uma via de expressão das fantasias
[...]. (SANTOS; RIBEIRO, 2017, p. 260).

Tamanha exposição propicia os meios necessários ao desenvolvimento de uma ‘ética ou estética da


vigilância’ (BRUNO, 2013), onde todos são ao mesmo tempo controladores e controlados, vigilantes
e vigiados.
Atualmente, a imagem de si exteriorizada não necessariamente é aquela que se é de verdade, mas
sim aquela que se quer ser. (BRUNO, 2013). Na sociabilidade digital, não basta mudar a aparência ou
o corpo, é preciso que essa transformação seja vista e aprovada por milhões de expectadores. Assim, a
verdade passa a ser aquilo que se mostra, por meio do convite voluntário ao outro de invadir a própria
intimidade.
E, assim como essa nova forma de se conectar com o mundo afeta a vivência dos adultos, também
o faz aos jovens, reconhecidos como nativos digitais­1, já que sua autoestima não mais será construída
somente por meio de processos de interiorização de valores e da construção do eu, mas cada vez
mais com base no olhar do outro, na aceitação externa, no ser aprovado no universo das ‘curtidas’.
(BRUNO, 2013).

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Segundo a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios – PNAD (IBGE, 2015), no Brasil cerca
de 102,1 milhões de pessoas de 10 anos ou mais de idade tiveram acesso à internet em 2015. Dos
adolescentes, 82% daqueles que tinham entre 15 a 17 anos usavam a internet e dentre aqueles com 18
e 19 anos, 82,9% eram usuários digitais.
A atual geração de adolescentes utiliza o espaço digital de forma tão intensa quanto o espaço real.
A internet é utilizada por eles com objetivos distintos e diversos, que vão desde testar os limites dos
relacionamentos, até mesmo como forma de superar dificuldades sociais, conflitos emocionais, timidez,
contribuindo para que tenham mais liberdade de comunicação, proporcionando formas alternativas de
se expressar e se relacionar com os amigos. (SPIZZIRRI et al., 2012).

TIPOS DE ABUSOS DIGITAIS NOS


RELACIONAMENTOS ÍNTIMOS
Nesse contexto, o abuso ocorrido nos relacionamentos íntimos também encontra espaço no meio
digital. Apesar disso, não pode nem deve ser entendido como uma forma de cyberbullying, mas como
uma nova expressão da violência entre parceiros íntimos (VPI). (DICK et al., 2014; LUCERO et al.,
2014; ZWEIG et al., 2014; SCHNURR; MAHATMYA; BASCHE, 2013).
Sem negar o fato de existir uma inter-relação entre esses dois fenômenos, cabe ressaltar que o
cyberbullying está circunscrito às relações entre pares (SHARIFF, 2011; SMITH, 2010) e o abuso
digital nos relacionamentos íntimos não se limita a relações ‘horizontais’, afinal há namorados com
grande diferença etária. É uma forma de abuso estabelecida, especificamente, entre parceiros ou ex-
-parceiros afetivo-sexuais, o que implica relações de intimidade e confiança de outra ordem que aquela
entre pares/colegas.
Outro aspecto que difere a prática do cyberbullying do abuso digital nos relacionamentos íntimos
é a audiência (pessoas que assistem e até incentivam os atos abusivos). No cyberbullying, a audiência
tem papel importante nas dinâmicas de poder e humilhação, o que não ocorre necessariamente no
abuso digital nos relacionamentos afetivo-sexuais, pois quando um parceiro afetivo monitora, controla,
rastreia e espiona, na verdade não quer ser descoberto, porque afetaria sua possibilidade de saber
secretamente mais da vida do outro.
Os quatro principais tipos de abusos apontados pela literatura científica são: 1) agressão direta;
2) revenge porn (pornografia de vingança); 3) sexting (termo sem tradução para o português) não
consentido e 4) controle e monitoramento do parceiro sem consentimento.
A agressão direta2 é praticada por meio de ameaças, insultos e disseminação de informações de
ordem privada usando, para tal, alguma mídia digital ou rede de relacionamento social do (ex) parceiro
íntimo com o propósito de humilhar, envergonhar e causar danos a este. Estudos como os realizados
por Borrajo, Gámez-Guadix e Calvete (2015b) destacam que mais de 50% desses abusos digitais

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ocorridos nos relacionamentos íntimos foram praticados via WhatsApp, 40% via Facebook e cerca
de 7% por e-mail, demonstrando a magnitude desse tipo de prática e os meios digitais mais usados.
Revelam ainda que os mais jovens pouco usam e-mail e preferem mídias digitais rápidas e interativas.
Apesar da alta prevalência reconhecida pelos estudos – jovens chegam a experimentar até
23 incidentes diferentes de abuso digital nos relacionamentos afetivo-sexuais em um intervalo
de apenas seis meses –, a literatura vem destacando que essa prática é muitas vezes naturalizada e
confundida pelos adolescentes como ‘prova de amor’ e cuidado. (LUCERO et al., 2014; BORRAJO
et al., 2015; BORRAJO; GÁMEZ-GUADIX; CALVETE, 2015a; BORRAJO; GÁMEZ-GUADIX;
CALVETE, 2015b).
O controle e os ciúmes por parte das meninas, por exemplo, não é percebido pelos meninos como
um comportamento abusivo, mas como forma de proteção da relação amorosa, como algo positivo e
normal na relação, uma demonstração de amor. (LUCERO et al., 2014).
O revenge porn (pornografia de vingança) se caracteriza pelo compartilhamento na internet de
fotos e vídeos íntimos recebidos e criados durante a vigência do relacionamento, mas divulgados sem o
consentimento de um dos envolvidos, com o intuito de difamar, humilhar, chantagear e/ou se vingar.
(MARTSOLF; COLBERT; DRAUCKER, 2012). Frequentemente, tal fato ocorre na fase de término
dos relacionamentos.
A prática consensual do sexting – termo que surgiu nos Estados Unidos da América pela combinação
de duas palavras, ‘sexo’ (sex) e ‘mensagem’ (texting) – não é designada como uma violência. O sexting
consiste no envio de mensagens de texto, fotografias e/ou vídeos de conotação sexual, com nudez, para
determinada pessoa. (VENTURA, 2014; BARROS; RIBEIRO; QUADRADO, 2014). Todavia, sua
postagem não consentida constitui como forma de revenge porn, um tipo de abuso digital nas relações
afetivo-sexuais.
O controle e monitoramento de parceiros tratam das práticas de rastrear e monitorar as mensagens
e demais ações feitas pelo parceiro nas mídias digitais sem seu consentimento. Pode ser realizada de
diversas maneiras, seja roubando a senha de acesso do parceiro sem que ele saiba, seja por meio de
aplicativos especializados.
Os aplicativos de controle e monitoramento do parceiro são facil e gratuitamente acessados tanto
no sistema Android quanto no iOS. Para tal, basta o(a) parceiro(a) desbloquear a tela principal do
celular e em poucos segundos baixar o aplicativo via AppStore (Android) ou PlayStore (iOS).
Existem dezenas de aplicativos gratuitos que oferecem como serviço o controle, monitoramento e
rastreamento de parceiros íntimos, tais como: rastreamento por telefone3, rastreador de celular detetive/
/Anytracking4, Mobile SMS Tracker5, Randoms6, WhatsCan7 e Trust Mate App8.
Os desenvolvedores desses aplicativos utilizam enunciados bastante atrativos, adotando verbos
no imperativo, tais como: ‘acompanhe’, ‘monitore’, ‘rastreie’, ‘controle’, ‘previna-se’, ‘espione’ e ‘seja
notificado’, buscando convencer o usuário quanto à eficiência e eficácia instrumental de controle do
produto.

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O desenvolvedor afirma e assegura que seu aplicativo pode informar com precisão tudo o que a
pessoa monitorada está fazendo, sem que para isso o contratante necessite sair de sua residência. Um
discurso extremamente atrativo é acionado, prometendo fornecer ‘paz mental’ ao controlar/monitorar
o outro, buscando convencer que tal atitude seria um ato de proteção, invocando sentidos de uma ética
de cuidado sob a justificativa de estar zelando pela integridade física de pessoas queridas e próximas.
Com relação às consequências à saúde dos adolescentes que experimentam abusos digitais
em seus relacionamentos afetivo-sexuais, a literatura já nos alerta para a presença de altos níveis de
estresse pós-traumático9, seguidos do uso abusivo de substâncias psicoativas10, sintomas depressivos11,
ansiedade12, agressividade/hostilidade13, distúrbios do sono14, violência autoinfligida15, ideações e
tentativas de suicídio16.
Jackson et al. (2016) e Miller e McCauley (2013) reforçam ainda que o abuso digital ocorrido
nos relacionamentos afetivo-sexuais e a coerção reprodutiva são as mais recentes formas de abuso
no relacionamento íntimo, gerando danos significativos não só à saúde mental como também à
saúde sexual e reprodutiva17 desses jovens, podendo acarretar, inclusive, no aumento da incidência de
comportamentos delinquentes e no baixo rendimento escolar18.
Como é possível observar nos estudos apontados pela literatura, o ambiente escolar, bem como
sua equipe técnica-pedagógica são, inúmeras vezes, chamados a intervir em situações de abuso sofrido
por esses jovens.
A instituição de ensino, devido ao seu papel de formadora de opinião e de sua busca incessante pela
equidade via formação crítica do indivíduo, faz do ambiente escolar um local vital ao estabelecimento
de vínculos, e da equipe técnica-pedagógica, parceira fundamental à identificação de práticas abusivas,
à promoção de ações que visem ao enfrentamento de tais práticas e à prevenção de futuros casos.

(I)LEGALIDADE
Trabalharemos a seguir dois aspectos relacionados à legalidade de determinadas práticas na
internet: 1) monitoramento não consentido e 2) ausência de legislação específica que coíba esse tipo
de crime.
Começaremos falando da legalidade em baixar um aplicativo com o propósito de espionar alguém
sem conhecimento e consentimento de quem está sendo vigiado. Observamos em nossos estudos
que a maioria dos aplicativos disponíveis gratuitamente nos sistemas Android e iOS sequer falam da
ilegalidade desse ato e outros, apesar de reconhecerem que o ato é ilegal, não criam mecanismos para
garantir à pessoa que vai ser rastreada consentir nesse ato.
O fato de o Brasil não ratificar a Convenção de Budapeste sobre Cibercrimes, ocorrida em 2001,
já assinada por 43 países, gera uma sensação coletiva de impunidade no meio digital, pois muitas
das condutas abusivas não estão tipificadas (BARRETO, 2017) e judicialmente vão depender da
interpretação do magistrado para que seja tipificado ou não como crime.

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Com a expansão tecnológica aliada à maior difusão do acesso à internet e sua conectividade, há
maior exposição ao risco de atos denominados ‘crimes cibernéticos’, dada a capacidade de causar danos
a outra pessoa via meio digital.
Violar o sistema de segurança de outra pessoa com o intuito de obter dados informáticos, bem
como interceptar indevidamente dados informáticos com a intenção de danificar, apagar, deteriorar,
alterar, eliminar ou ainda obstruindo, intencionalmente, o funcionamento do sistema eletrônico são
considerados cibercrimes. (BRASIL, 2001).
Diante desse quadro, o monitoramento não consentido no Brasil figura um terreno ambíguo,
tendo no país, no máximo, o status de uma conduta ‘moralmente reprovável’ dada a ausência de
amparo jurídico nacional, ao mesmo tempo em que, segundo parâmetros jurídicos internacionais, é
uma prática considerada ‘ilegal’.
Nesse ínterim, houve diversos debates entre a sociedade civil organizada e parlamentares,
culminando na aprovação da Lei n.º 12.965/14, ou Marco Civil da Internet. (BRASIL, 2014a).
Longe de ser a solução para os abusos cometidos nos meios digitais, essa lei estabelece princípios,
garantias, direitos e deveres relativos ao uso da internet no Brasil e se apresentou como uma primeira
iniciativa governamental brasileira, na busca por coibir os excessos cometidos no meio digital e evitar
novas violações, reduzindo à sensação de inimputabilidade penal.
Paralelamente a isso, há um grande movimento ocorrendo no Congresso Nacional brasileiro
desde 2013 com vistas à criação de uma legislação específica que possa normatizar e punir exageros
praticados no âmbito digital, materializada sob a forma de inúmeros projetos de lei (PL) ao curso dos
últimos 5 anos19, sem lograr êxito até o presente momento.
Tais PL têm por objetivo a aprovação de uma tipificação específica para os casos de violência digital
cometidos contra as mulheres, colocando-as em situação de vulnerabilidade, dada a exposição íntima,
física e sexual sem consentimento, configurando-se em dano a sua imagem pública e numa violação de sua
privacidade. Elas se dividem com base em duas legislações, o Código Penal brasileiro (1940) e a Lei Maria
da Penha (2006), porém dada a morosidade do sistema jurídico brasileiro, seguem aguardando deliberação
da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados para serem aprovadas.

O PAPEL DA ESCOLA DIANTE DOS ABUSOS


DIGITAIS ENTRE ADOLESCENTES
Os estudos científicos apontam a necessidade de abordagens que priorizem o enfrentamento dessa
nova modalidade de violência perpetrada por parceiros íntimos que é o abuso digital ocorrido nos
relacionamentos afetivo-sexuais adolescentes.
Como discutimos, meninos e meninas chegam à adolescência completamente inseridos numa
cultura digital, cuja exclusão significa isolamento social e apagamento de identidades. Tal fato nos leva
a problematizar criticamente propostas de prevenção de práticas abusivas na internet que optam apenas
pela proibição do uso das mídias digitais ou pelo rígido controle de seu uso.

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Dentre as inúmeras estratégias de prevenção destacadas estão a criação de programas voltados


aos meninos e às meninas antes de entrarem na adolescência, priorizando debates que visem trabalhar
questões relativas ao ‘ciúme’, ao ‘uso da agressão como brincadeira’, ou ainda ‘o revide’, nos casos em
que o(a) parceiro(a) pratica a violência porque o outro também a cometeu. (BORRAJO et al., 2015a).
Estudos como o realizado por Dank et al. (2014) recomendam a priorização de ações que levem em
consideração a condição de vulnerabilidade de determinados grupos de jovens, tais como aqueles que se
assumem lésbicas, gays, bissexuais (LGB) e transgêneros, já que os mesmos têm uma prevalência maior de
sofrer abuso digital nos relacionamentos afetivo-sexuais do que aqueles declaradamente heterossexuais.
Outras pesquisas, como as realizadas por Sánchez, Muñoz-Fernández e Vega (2015) e Walrave et
al. (2015), reforçam a necessidade de ações que visem ampliar o conhecimento dos jovens quanto às
condutas sexuais de risco e as consequências legais envolvidas na prática do sexting no namoro. Todavia,
Foshee et al. (2015) e Van Ouytsel et al. (2016b) avançam para além da realização de ações pontuais e
sugerem a criação de programas de prevenção à violência no namoro nas escolas.
Já Dank et al. (2014) e Murray, King e Crowe (2016) sugerem a capacitação de profissionais com o
perfil necessário à identificação, orientação, prevenção e intervenção nos casos de abuso na abordagem
realizada junto às famílias e nas escolas, e destacaram a relevância dos conselheiros familiares e escolares
para orientar as famílias e os estudantes quanto ao risco do namoro violento na adolescência, muitas
vezes naturalizado pelos pais e minimizados como eventos de pouca importância.
Tais propostas nos apontam o imenso potencial de trabalho e apoio que a escola tem no debate acerca
de tipo de abuso, seja por ser o espaço onde esses adolescentes permanecem boa parte do dia, seja por
ser o local onde há maior possibilidade de estabelecimento de vínculos que auxiliarão na identificação,
captação, discussão e participação desses jovens e familiares no enfrentamento desse fenômeno.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste capítulo buscamos pontuar como a expansão do acesso ao uso da internet
contribuiu para a promoção de novas formas de sociabilidade on-line, bem como para a banalização
de práticas abusivas via uso dessas mesmas mídias digitais. No Quadro 1 trazemos uma síntese dos
aspectos conceituais trabalhados.

Quadro 1 – Caracterização do marco teórico sobre sexualidade na internet.

Internet e cibercultura Tipos de abusos digitais nos (I)legalidade


relacionamentos íntimos

1. Web 3.0 1. Cyberbullying X abuso digital nos 1. Monitoramento não


relacionamentos íntimos consentido

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Internet e cibercultura Tipos de abusos digitais nos (I)legalidade


relacionamentos íntimos

2. Sociedade da simulação 2. Agressão direta 2. Crimes cibernéticos

3. Retribalização do mundo 3. Revenge porn (pornografia de vingança) 3. Legislação específica

4. Era do exibicionismo/ 4. Sexting não consentido


Voyeurismo simulado

5. Ética/Estética da vigilância 5. Controle e monitoramento sem


consentimento

6. Consequências à saúde

Fonte – As autoras.

O uso da internet marca a expressão da sociabilidade das juventudes contemporâneas. As trocas


digitais são de ordens diversas e abrangentes, variando desde o câmbio de conhecimentos, informações
e influências até as trocas de afeto.
As trocas amorosas e afetivas pela internet também são expressões legitimadas na cibercultura
e por seus nativos digitais. Enraizadas no cotidiano dos relacionamentos afetivo-sexuais, as práticas
digitais abusivas reiteram antigas violências, por meio do uso de argumentos retóricos que enaltecem
desigualdades de gênero sob um viés que justifica a prática do controle do outro. Tais práticas podem
levar a sérias consequências e afetarem negativamente a saúde dos adolescentes.
Esse é um tema a ser debatido pela comunidade escolar, visando tanto a problematização do uso
ético da internet, regulado pelo respeito aos direitos do outro, quanto por um exercício empático e
guiado por princípios de não maleficiência. Cabe ainda alertar sobre os riscos de compartilhar senhas
e mesmo imagens íntimas. Por outro lado, importa também discutir com os alunos as relações afetivas
e a inadmissibilidade das práticas abusivas e de objetificação e controle do outro.

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NOTAS EXPLICATIVAS

1 Na tentativa de caracterizar o fenômeno das rela­ções diante da virtualidade, o sociólogo canadense


Tapscott (1998) denominou essa geração como ‘Net­ Generation’, ‘Geração Y’, ‘Geração digital’, entre
ou­tras denominações. Esses jovens são caracterizados por estarem sempre conectados a alguma mídia,
muitas vezes, a mais de uma simultaneamente. En­tretanto, existem muitas diferenças quanto à forma de
utilização, comportamento e tipos de uso entre eles que variam de acordo com fatores socioeconô­micos,
culturais, emocionais, entre outros. (SPIZZIRRI et al., 2012, p. 328-329).
2 (LUCERO et al, 2014); (BORRAJO et al, 2015); (BORRAJO; GÁMEZ-GUADIX; CALVETE, 2015a);
(BORRAJO; GÁMEZ-GUADIX; CALVETE, 2015b); (DURÁN; MARTÍNEZ-PECINO, 2015);
(JACKSON; RANDELL; MILLER, 2016); (MARGANSKI; MELANDER, 2015); (MILLER et al., 2015);
(MARTINEZ-PECINO; DURÁN, 2016); (MURRAY; KING; CROWE, 2016); (REED; TOLMAN;
WARD, 2016); (VAN OUYTSEL; WALRAVE; PONNET, 2016a); (VAN OUYTSEL, PONNET,
WALRAVE, 2016b).
3 Intercepta mensagens de texto, bem como todas as chamadas de celular recebidas e enviadas.
4 Fornece serviço de telemetria completa, permitindo que se monitore/rastreie pessoas em tempo real e de
forma oculta.

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5 Não só monitora a localização da pessoa, como também suas mensagens de texto (SMS), de WhatsApp e
registros de chamada.
6 Monitora o smarthphone em tempo real. Acompanha até cinco dispositivos Android ao mesmo tempo.
7 Permite acessar múltiplas contas em um único dispositivo, além de clonar, acessar e espionar outra conta e
também monitorar mensagens de chat, imagens e vídeos.
8 Monitora mensagens de texto, histórico de chamadas e a localização GPS em tempo real.
9 BORRAJO et al., 2015; STONARD et al., 2014.
10 VAN OUYTSEL et al., 2016b; VAN OUYTSEL et al., 2016a; MORELLI et al., 2016; PATTON et al.,
2014.
11 VAN OUYTSEL et al., 2016b; JACKSON et al., 2016; WOLFORD-CLEVENGER et al., 2016;
MORELLI et al., 2016; WRIGHT, 2015; BORRAJO et al., 2015; ZWEIG et al., 2014; DANK et al.,
2014; STONARD et al., 2014.
12 VAN OUYTSEL et al., 2016b; MORELLI et al., 2016; WRIGHT, 2015; BORRAJO et al., 2015; ZWEIG
et al., 2014; DANK et al., 2014; STONARD et al., 2014.
13 VAN OUYTSEL et al., 2016b; ZWEIG et al., 2014; DANK et al., 2014; STONARD et al., 2014.
14 STONARD et al., 2014.
15 JACKSON et al., 2016.
16 TEMPLE et al., 2016; STONARD et al., 2014.
17 MORELLI et al., 2016; VAN OUYTSEL et al., 2016a; VAN OUYTSEL et al., 2016b; JACKSON et al.,
2016; MILLER et al., 2015; DICK et al., 2014; PATTON et al., 2014; ZWEIG et al., 2014; ZWEIG et
al., 2013; MILLER; MCCAULEY, 2013
18 TEMPLE et al., 2016; DaANK et al., 2014; ZWEIG et al., 2014.
19 PL 5555-A/13, PL 5822/13, PL 6630/13, PL 6713/13, PL 6831/13, PL 7377/14, PL 170/15, PL
3158/15, PL 5647/16, PL 5862/16, PL 5632/16 e PL 4527/16.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
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GRAVIDEZ NA ADOLESCÊNCIA

Darci Vieira da Silva Bonetto

Gravidez na adolescência sempre existiu quando a vida sexual após a menarca iniciava muito cedo
com intuito de preservação da espécie, uma vez que o tempo de vida era muito curto.
Na rede pública nos últimos anos, houve um decréscimo no número de partos na adolescência,
isso se deve ao trabalho contínuo de prevenção a gravidez na adolescência. (YAZAKI, 2008).
O Ministério da Saúde mostra que a quantidade desses procedimentos em adolescentes de 10 a
19 anos caiu em 22,4% de 2005 a 2009. Em 2005, foram registrados 572.541, enquanto, em 2009,
foram realizados 444.056 partos em todo o país. (BRASIL, 2010).
Ainda assim no Brasil tem ocorrido um significativo aumento da fecundidade no grupo de 15 a
19 anos em relação ao grupo de mulheres adultas. O aumento do gravidez ocorre mais em algumas
regiões, nelas estão incluídas as mais pobres e de baixa escolaridade.
Apesar da diminuição de partos na adolescência, a gravidez nesta faixa etária ainda é um dos
maiores problemas sociais e de Saúde Pública de alguns países desenvolvidos, como os Estados Unidos
e a Inglaterra. (MELHADO, 2008).
A gravidez na adolescência tem contribuído para aumentar a população mundial, consequentemente,
contribui para o impacto ambiental. Quanto mais seres humanos nascem mais lixo é produzido, e
maior a degradação ambiental.
É preciso levar em conta os resíduos produzidos pelas indústrias ao se fabricar materiais que serão
utilizados desde o parto e no decorrer da vida desta criança, por exemplo:

Resíduos sólidos
Resíduos sólidos são materiais não degradáveis utilizados em parto normal ou não de adolescente
(seringas, luvas, frascos, agulhas equipo, frascos de soro etc.), assim como resíduos resultante da
fabricação de brinquedos e outros produtos utilizados por crianças, como, por exemplo, fraldas.

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O material das fraldas levam de 400 a 500 anos para se degradar; enquanto se desfazem,
contaminam lençóis de água potável, com micro-organismos, que estão presente nas fezes e urina. Ao
serem destinadas aos lixões, oportunizam vetores a transportar bactérias, fungos, vírus, disseminando
doenças, criando de imediato um problema de saúde pública.

Resíduos líquidos
Líquidos utilizados durante o parto e para desinfecção do ambiente interno.
• Água sanitária.
• Detergente.
• Litros de vircon.
• Álcool.

Os detergentes impedem a decantação e a deposição de sedimentos e, como reduzem a tensão


superficial, permitem a formação de espuma na superfície da água. Tal fato impede o desenvolvimento
da vida aquática. (POLUIÇÃO, 1988).

NECESSIDADES ESSENCIAIS
As necessidades essenciais do ser humano são: vitais, psicossociais e espirituais, e estão fortemente
presentes na adolescência.

Necessidades vitais
As necessidades vitais estão relacionadas à sobrevivência do indivíduo, tais como alimentos, sono,
lazer, atividades físicas, meio ambiente, sexo, proteção física. Dentro dessas necessidades, o sexo na
adolescência é vivenciado por curiosidade, pressão do grupo e para suprir outras necessidades físicas
e psíquicas. Como exemplo pode ser citada a carência afetiva que leva os adolescentes a afirmarem-
-se mediante relações sexuais superficiais, nas quais prevalece apenas o contato físico, resultando em
gravidez inoportuna. A falta de projeto de vida e de estímulo faz com que os adolescentes, às vezes,
busquem o sexo como forma de colorir a vida. (AUGUSTO, 2012).

Necessidades psicossociais
As necessidades psicossociais são complexas e nem sempre satisfeitas totalmente, trazendo
angústias, ansiedade, insatisfações e conflitos. A gravidez vem somar conflitos aos que são próprios da

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adolescência. Algumas vezes a gravidez é a forma encontrada para aliviar o sentimento de solidão e ter
alguém para amar e cuidar.
As necessidades de encontrar-se e de ser reconhecida como pessoa passam pela ideia inconsciente
de que o papel de mãe é amplamente valorizado e desejado, e que a gravidez aparece como uma forma
de mudar o destino.
Conclui-se que a gravidez pode ser uma tentativa de conquistar a tão desejada emancipação, de
fugir do núcleo familiar de origem e constituir sua própria família. Com a gravidez, a emancipação
almejada dá lugar à dependência ditada pela própria gestação, impedindo a jovem de continuar a vida
de antes.
É necessário mencionar que a dependência materna, independente da sua vontade, ainda é muito
forte, impedindo que a adolescente desempenhe essa função com tranquilidade e discernimento.
Existe também a vontade de ser mãe para testar a fecundidade e feminilidade, além do próprio
desejo de ter o filho.

Necessidades espirituais
A espiritualidade oferece conforto e significado para aquilo que está além da compreensão,
passando por afeição, amor, compreensão, perdão e aceitação. Adolescentes vivem crises religiosas, e
nem sempre a espiritualidade está presente nessa fase da vida, mas na gestação ela ajuda a conviver com
dúvidas, incertezas do presente e do futuro.

CAUSAS DE GRAVIDEZ NA ADOLESCÊNCIA

Menarca precoce
A menarca precoce ocorre num momento de grande imaturidade psicossocial, tornando a jovem
mais suscetível ao início do exercício sexual. (AUGUSTO, 2012). A iniciação sexual pode ocorrer
levada pela curiosidade própria da idade, como meio de expressão de amor e confiança, mas também
pode estar relacionada à solidão, carência afetiva e necessidade de autoafirmação.

Mídia
Os meios de comunicação estimulam o erotismo1, valorizam o sexo repassando mensagens
fantasiosas. A mídia não mostra, nem ensina que o sexo desprotegido pode resultar numa gravidez,
assim como a gravidez das suas consequências.

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Idade
As probabilidades de gravidez inoportuna serão maiores quanto menor for a idade da adolescente.
(AUGUSTO, 2012).

Condição econômica
As adolescentes com piores condições socioeconômicas são as que saem da escola em busca do
mercado de trabalho, portanto perde oportunidade de conhecimento e são as que mais levam adiante
a gravidez.

Maturidade
O raciocínio de causa e efeito é abstrato e hipotético. Assim, o adolescente é incapaz de imaginar-
-se em situações de longo prazo. O pensamento concreto é caracterizado por resoluções de problemas
de curto prazo, ou seja, não é capaz de elaborar uma responsabilidade de longo prazo, como usar
anticoncepcionais para prevenir uma gravidez. Além disso, muitas adolescentes têm a maternidade
como única expectativa alcançável, repetindo o modelo da mãe e da avó que tiveram filhos ainda
adolescentes. (BOUZAZ, 2004).
Na adolescência, é frequente o predomínio do impulso sexual sobre a capacidade cognitiva de
programação. (VIMMER, 1999).

Educação
A desinformação com relação à contracepção2 retarda o início do uso de contraceptivo em torno
de um ano após o início da atividade sexual, e mesmo quando usado, se faz de forma inadequada.
(AUGUSTO, 2012). O desconhecimento das funções corporais quanto à capacidade reprodutiva
contribui para que ocorra atividade sexual desprotegida e despreocupada. Outras causas: abuso de
drogas, falta de diálogo entre pais e filhos, ausência de projeto de vida.

MATERNIDADE, PATERNIDADE E GESTAÇÃO


A gravidez na adolescência é um fenômeno desestabilizador. (LIMA, 2010).
Segundo Motta, adolescente vive um período de desenvolvimento e imaturidade, e ser pai e mãe
nesse momento termina sendo um grande desafio. Paternidade e maternidade implicam em condições
emocionais, físicas e econômicas para as quais não estão preparados. A perspectiva da mudança de vida
gera conflito. A gravidez resulta em consequências como: abandono escolar, dificuldade para arrumar

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emprego, possibilidade de segunda gravidez, probabilidade de não estar mais com o companheiro no
primeiro ano de vida após o parto. (HERCOWITZ, 2012).

CONSEQUÊNCIAS PARA O FILHO DA MÃE


ADOLESCENTE

• Prematuridade3.
• Mortalidade infantil: a taxa de mortalidade aumenta com a ordem e o intervalo de nascimento
dos filhos.
• Abandono.
• Recém-nato de baixo peso.
• Elevação do índice de mortalidade infantil no primeiro ano de vida.
• Maior número de reinternações.
• Violência.

CONSEQUÊNCIAS PARA A GESTANTE


Riscos perinatais. (MIRANDA, 1994).

Consequências orgânicas
• Hipertensão.
• Anemias, encontradas em situações de pobreza, subnutrição e desnutrição crônicas.
• Maior índice de cesárias.
• Lacerações perineais envolvendo vagina e períneo.
• Infecções urinárias e genitais.
• Mortalidade materna: o risco aumenta quanto menor for a idade cronológica e com gestações
sucessivas em intervalos curtos.
• Abortos espontâneos e clandestinos, levando a complicações e morte.
• Intervalo gestacional pequeno.
• Doenças sexualmente transmissíveis.

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Consequências psicossociais

• Tensão emocional, que eleva a probabilidade de desenvolver problemas físicos e mentais.


• Rejeição familiar.
• Perda da autonomia.
• Vergonha.
• Baixo nível socioeconômico representa maiores probabilidades de desnutrição materna, que
pode levar a maior incidência de patologias na gestação.
• Baixa escolaridade, associada ao baixo nível socioeconômico, é causa de maior absenteísmo no
pré-natal, havendo dificuldade de retorno escolar.
• Os sonhos podem ser interrompidos pelo despreparo para arrumar trabalho no futuro com
melhor remuneração.
• Sentimento de insegurança.
• Maior risco de depressão e suicídio.
• Maior risco de exploração sexual.

ALEITAMENTO MATERNO
Deve-se incentivar o aleitamento materno para a mãe adolescente, conscientizando-a dos
benefícios tanto para o bebê quanto para ela (é mais barato, aumenta a imunidade do bebê, diminui
a morbimortalidade4 infantil etc.). A adolescente deve receber informações sobre a importância de
alimentar o bebê no seio por no mínimo quatro meses, mas de preferência que esse tempo seja maior.
Deve-se orientar que não existe leite fraco, que a cor é clara porque a gordura nele existente é insaturada
e mais presente no final da mamada, quando o leite é mais calórico. A orientação sobre o aleitamento
ao seio deve ser iniciada precocemente. A baixa escolaridade é um fator para o desmame precoce.
(ESCOBAR, 2002).

SAÚDE REPRODUTIVA
Para compreender os métodos contraceptivos, é necessário saber como ocorre a reprodução humana.

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Reprodução feminina
O corpo da mulher sofre a ação de vários hormônios, os quais são produzidos na hipófise5,
localizada no cérebro, e estimulam os ovários a produzir o estrogênio. Sob a ação desse hormônio, o
óvulo amadurecido desce até a trompa e aguarda a fecundação. Esse é o período fértil, de ovulação, que
ocorre na metade do ciclo. (AUGUSTO, 2012). Se houver relação sexual, pode acontecer gravidez.
Após a ovulação, o ovário passa a produzir outro hormônio, a progesterona, que prepara o endométrio
para receber o óvulo fecundado. Quando não há fecundação, o óvulo é eliminado com parte do
endométrio. Isto é a menstruação.

Reprodução masculina
Sob a ação dos hormônios masculinos, os testículos produzem os espermatozoides6, que são
liberados com o esperma durante a ejaculação. Uma gota de secreção espermática contém milhões de
espermatozoides, os quais correm a uma velocidade de 300 quilômetros por hora. (GOMES, 2011).
Após a ejaculação, correm em direção ao óvulo, que está na trompa. A penetração do espermatozoide
no óvulo chama-se fecundação, formando-se nesse momento o ovo, que é um novo embrião que se
desloca para fixar-se na parede do útero. A partir de então, haverá o desenvolvimento da gravidez.
Garotos e garotas descobrem que seus corpos lhes proporcionam prazer, é a fase do despertar para
a sexualidade e para o interesse pelo outro. Acontece o ‘ficar’, o ‘rolo’, o namoro, e surge a vontade
de experimentar o sexo. E quando isso ocorre sem prevenção, acontece a gravidez. Para impedir que
ocorra a gravidez, é necessário evitar o processo da ovulação, da fecundação, ou a implantação do ovo
no útero. Para isso existem anticoncepcionais que atuam em cada uma dessas fases. É importante o
adolescente conhecer todos os métodos contraceptivos e escolher o que mais se adapte ao seu corpo.

MÉTODOS CONTRACEPTIVOS
Segundo Dias (2010), a ausência de um comportamento contraceptivo em jovens se encontra
associada à ambiguidade de valores sociais em relação ao corpo, à sexualidade e ao gênero transmitidos
aos adolescentes.
Tabelinha é um método natural, mas não muito indicado para a adolescente, devido aos ciclos
serem comumente irregulares nessa faixa etária. Esse método consiste em evitar relações sexuais no
período da ovulação.
Dificilmente a adolescente sabe quando se dá o período ovulatório.

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Diafragma é um dispositivo de borracha que deve ser colocado na vagina antes de cada relação,
impedindo que o espermatozoide chegue até o útero. Devem ser retirados somente 4 a 6 horas depois.
Diu (dispositivo intrauterino) é uma haste de polietileno, mais indicado para quem já teve filho.
Apresenta maior risco de doenças inflamatórias pélvicas.
Vasectomia7 e laqueadura são métodos cirúrgicos, definitivos, não recomendados para adolescentes.
Coito interrompido (‘gozar fora’) é pouquíssimo eficaz e requer muito autocontrole do homem, o
que não ocorre com os adolescentes (GOMES, 2011), pois estes têm ejaculação precoce decorrente da
imaturidade física. Ainda assim é um método usado entre os jovens.
Camisinha (condom masculino) é o único método indicado para os homens. Faz dupla proteção
e deve sempre ser usado associado à pílula ou diafragma.
Nunca usar duas camisinhas para garantir proteção e não a utilizar com lubrificante, pois já
contém espermicida. É o único método que protege contra as Doenças Sexualmente Transmissíveis
(DSTs) e Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS). Verificar a data de validade antes do
uso da camisinha e se tem a marca do Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia
(INMETRO)8. Ela deve ser colocada antes de qualquer contato sexual. Após a ejaculação, retirá-la
imediatamente, pois a partir desse momento o pênis começa a ficar flácido, e haverá possibilidade dela
ficar dentro da vagina no momento da retirada do pênis. Camisinha feminina tem proteção contra
gravidez e DSTs/AIDS.
Anticoncepção hormonal. (MONTEIRO, 2009).
A pílula anticoncepcional é considerada o método mais eficaz, desde que utilizada corretamente.
É recomendada sempre associada ao condom para prevenção de DSTs/AIDS. O uso do contraceptivo
oral ou injetável deve ser iniciado após consulta e orientação médica.
Alguns fatores contribuem para não utilização dos métodos contraceptivos:
• dificuldade econômica;
• dificuldade de acesso ao serviço de saúde;
• medos (de que descubram a atividade sexual, de infertilidade, aumento de peso, surgimento
de estrias);
• pensamento mágico (“comigo nada acontece”);
• relações não planejadas;
• falta de colaboração do companheiro.

O anticoncepcional oral (pílulas) que é tomado diariamente não deve ser esquecido. Tem alta eficácia.
Pílulas pós-coito ou contracepção de emergência (pílula do dia seguinte) são utilizados para os
casos de estupro, relações sexuais não protegidas, não programadas e com risco de gestação. Devem ser
usadas até 72 horas após a relação.

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O anticoncepcional injetável é eficaz, e uma opção para a adolescente que esquece de tomar a
pílula ou tem intolerância gástrica, com o uso por via oral. Existem ainda outros métodos, como
adesivo, pílula vaginal etc. O melhor anticoncepcional oral é aquele que tem baixo custo, é de fácil
acesso, e tem menos efeitos colaterais9.

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MELHADO. A., SANT’ANNA, M. J. C.; PASSARELLI, M. L. B. Veronica. Coates V. Revista


MELHADO. A., SANT’ANNA, M. J. C.; PASSARELLI, M. L. B. Veronica. Coates V. Revista
YAZAKI, L. M. Maternidades sucessivas em adolescentes no Estado de São Paulo. (2008). Anais do Encontro
Nacional de Estudos Populacionais. Recuperado em 20 junho 2009.

NOTAS EXPLICATIVAS
1 Erotismo: paixão, amor sensual.
2 Contracepção: infecundidade resultante do uso de anticoncepcional.
3 Prematuridade: aquilo que acontece antes do tempo determinado.
4 Morbimortalidade: doenças e mortalidade.
5 Hipófise: glândula de secreção interna situada no cérebro.
6 Espermatozoide: célula reprodutora masculina.
7 Vasectomia: cirurgia que faz o homem ficar estéril, corta os canais deferentes por onde passa o espermatozoide,
não interfere na potencia sexual.
8 INMETRO: Instituto Nacional de Metrologia: Responsável pela normalização e qualidade de produtos.
9 Efeito colateral: efeito indesejável após uso de medicamento.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
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O ADOLESCENTE E A FAMÍLIA

Elza Sbrissia Artigas


Marisa Atsuko Toyonaga
Vera Maria Gilberti Rocha

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA FAMÍLIA


A Família, como ser vivo, cresce, desenvolve-se, age, transforma-se, recebe e transmite estímulos
e, no decorrer do tempo, organiza o seu ciclo de vida e desenvolvimento, garantindo a continuidade
e a evolução de seus integrantes. Lewis Thomas pontua que “Há uma tendência das coisas vivas a se
unirem, a estabelecerem vínculos, a viverem umas dentro das outras, a retomarem a arranjos anteriores,
a coexistirem enquanto é possível. Esse é o caminho do mundo”. (THOMAS, 1974).
No contexto das sociedades, a família representa um de seus pilares de fundamento, e da relação
pai-mãe-filhos aí vivenciada deriva a sustentabilidade emocional de todo ser humano. Nesse sentido,
trata-se de um elemento constitutivo do sistema1 biopsicossocial, com cultura própria, valores, religião
e história, transmitidos através das intergerações.
A organização ativa da vida e as evoluções sob os mais diversos aspectos levam os membros da
família a estar continuamente avaliando seus conceitos e pontos de equilíbrio mediante os mais diversos
padrões existentes no grupo. Fritjof Capra ratifica a relevância da questão do equilíbrio interno e externo
ao afirmar: “Com efeito, a experiência de nos sentirmos saudáveis envolve a sensação de integridade
física, psicológica e espiritual, um sentimento de equilíbrio entre os vários componentes do organismo
e entre o organismo e seu meio ambiente”. (CAPRA, 1982).

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Dentre as muitas maneiras de conceituação da família, a de abordagem social a define como ‘um
sistema sociocultural aberto e em transformação’.
Esses conceitos, estabelecidos por meio da abordagem social, definem a família como um ‘sistema
sociocultural aberto e em transformação’. Tal definição é traduzida pela certeza de que o desenvolvimento
implica mudanças e estágios sob os quais emergem novos critérios para a reorganização, com o
surgimento de novas alterações, caracterizando diversas transformações.
Antropologicamente, e tendo como referência a análise de Dupuis (1989), verifica-se que há seis
ou mais milênios os egípcios e indo-europeus descobriram a relação entre o ato sexual e a procriação,
o que inaugura a conscientização da humanidade a respeito da paternidade, uma vez que até então
imperava a estruturação familiar centrada na sociedade matrilinear2.
A história do processo de evolução da família e da sociedade dá a saber que o homem primitivo
buscou a mulher com as finalidades de relacionar-se sexual e emocionalmente e procriar; esta o
acompanhou, desde o período Paleolítico, em estilo de vida nômade. O pai ausentava-se para longos
períodos de caça e retornava ao seu local de partida com o suficiente para garantir a sobrevivência
familiar; à mulher competia o cuidado da prole e dos alimentos. Mesmo com a divisão de trabalho,
homem e mulher compartilhavam o poder, e havia igualdade na contribuição da economia doméstica.
No período posterior, o Neolítico, surge o primeiro agrupamento tribal de cunho familiar,
sob a égide do domínio masculino, originando o patriarcado; o homem deixa de ser caçador para
tornar-se fazendeiro; sedentariza-se, fixa a família em um determinado espaço, acumula suprimentos e
torna-se menos envolvido nas questões dos filhos e da casa, as quais se tornam de responsabilidade da
mulher. Com a atribuição de poder e autoridade sobre as decisões importantes e drásticas, instaura-se
a onipotência masculina3. (MARQUES; BERRUTI; FARIA, 1991).
O homem vivia com sua família, mas tinha medo que alguém se aproximasse e roubasse seus
filhos, seu afeto, seu espaço e seus bens. Na sua ausência, um outro homem poderia aproximar-se de
sua mulher, mostrando-se mais forte, mais interessante e melhor protetor. Naquele tempo, os riscos de
perder a família eram grandes, portanto, deveriam ser eliminados.
A esse respeito, afirma Bottura Júnior (1994): “Podemos deduzir que o abrigo e a casa foram uma
conquista natural e necessária à ideia de proteção da mulher e dos filhos. O homem procurou fixar-se
para estar mais perto da família e, ao mesmo tempo, controlar melhor sua paternidade.”
Assim, a sociedade foi se organizando, mediante o controle da paternidade, da família, da
propriedade e da criação de meios que facilitassem esse tipo de vida. Os papéis4 do casal parental
estabeleceram-se baseados na complementaridade5, cada um no seu território específico de atuação:
o homem no papel econômico e social relacionado à produção, e a mulher, com a reprodução e suas
contingências.
A família detém o conceito de “unidade básica de desenvolvimento emocional” e abriga conceitos
de origem emocional, cujo “desenvolvimento estabelece tipos de comportamento, os quais regulam suas
atividades sociais e culturais, em que o ciclo de vida é contemplado como uma conexão intergeracional
na família, na perspectiva de um fenômeno natural de vida com pelo menos três gerações que envolvem
através do tempo”. (PACCOLA, 1994).

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Há muitos fatores envolvidos para compor o Universo Familiar, fatores esses de tal complexidade
que tornam a família um sistema totalmente diferente de qualquer outro, com leis e regras de
funcionamento peculiares. É um sistema, que embora se movimente, não exclui seus integrantes, o
que, sem dúvida, muitas vezes, aumenta o nível de tensão interna.
Não podemos entender a família separada do contexto histórico e cultural em que se encontra. Ela
precisa de sua história anterior e fará projeções no seu futuro; como se o que foi e o que virá estivessem
juntos, criando a possibilidade do presente.
Pela compressão de Carter e McGoldrick, (1995), a família está sujeita a estressores verticais e
horizontais que interferem na sua dinâmica. O vertical compõe-se com o padrão de funcionamento das
gerações anteriores: mitos, tabus, segredos, histórias e legados familiares. O fluxo horizontal caracteriza-
-se pelos estressores e ansiedades oriundos da família conforme ela avança no tempo e vivencia as
transições do ciclo. Esses estressores são compostos por fatores predizíveis e impredizíveis como morte
precoce, doença crônica, acidente ou outra alteração abrupta no ciclo.
Ao administrar as ansiedades, a família apresenta suas habilidades em realizar as mudanças
necessárias e, ao mesmo tempo, conservar suas estruturas básicas já organizadas.
Não podem ser ignoradas as circunstâncias externas que têm o poder de modificar o contexto
interno da família, como, por exemplo, a violência, a condição social, as drogas, a cultura, que fazem
parte de um conjunto de dificuldades que agitam as estruturas e bases familiares.
Há uma diversidade de classificação das fases que caracterizam os movimentos da família; o ciclo
descrito por Cerneny e Berthoud (1997) compreende:
• fase de aquisição – busca de um modelo de família próprio;
• fase adolescente – período de vivência do ciclo familiar no qual grandes dificuldades e alterações
são sofridas e vividas, tanto pelo jovem quanto pelos familiares que o rodeiam;
• fase madura – início das perdas na geração mais velha. Elaboração dos lutos e consequente
perda da segurança que essa geração proporcionava;
• fase última – aposentadoria; retorno à vida a dois. Balanço intergeracional.

No período em que o adolescente busca fundamentar sua identidade, sua personalidade, sua
estrutura sociocultural, a família dá a ele o sentido de ‘pertencer’, de fazer parte integrante de um
sistema, de um contexto, o que estabelece um ponto de contato entre a realidade que vive e os ideais
que alimenta. Mas, ao mesmo tempo, ela é um elemento que pode contribuir na superação de suas
ansiedades e conflitos, na manutenção destes, ou, ainda, como uma fonte geradora de tais dificuldades.
A fase adolescente envolve ainda a família, que também adolesce; os pais reveem e resgatam
aspectos de sua própria adolescência e os filhos vivem todas as mudanças e transformações da fase.
Há uma exigência do sistema para mudar, mas nem sempre é claro para que direção. Os pais têm
uma ação externa limitada em relação aos filhos; estes não estarão tão disponíveis para aceitar os limites

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e as imposições e muitas vezes trarão questões que os pais não podem resolver sem uma recíproca perda
de confiança.
Não há rituais que marquem o período e o definam de forma clara. Não se sabe exatamente
quando começa nem quando termina essa fase.
O desempenho dos papéis de cada membro da família, em especial de pais e mães, é decisivo para
estabelecer o clima emocional do grupo familiar. Esse desempenho determinará o papel dos filhos e
também a capacidade de satisfação das expectativas de cada membro, uma vez que, comumente, todo
processo de distribuição de gratificações na família é governado pelos pais. Portanto, se o desempenho
de papéis de pais e mães não for satisfatório, a família fica predisposta a lacunas emocionais que
trarão como consequência, insegurança e carência afetiva aos integrantes. Na criança e também no
adolescente, o desenvolvimento afetivo fica comprometido, uma vez que não encontra ambiente
favorável que estimule a desenvolver sua personalidade e as ações sociais.
É importante mencionar que o adolescente e sua família não são elementos à parte que começam
e terminam em si mesmos, mas sim são partes de um todo, que é o sistema familiar (e o sistema
biopsicossocial), e para compreendê-los faz-se necessário ter uma visão global familiar.
Para um bom relacionamento nessa fase, é necessário haver flexibilidade de entendimento e ação, pois
a participação do adolescente traz novas determinações aos mitos familiares mediante questionamentos
de estilo de vida, conceitos, regras e imposições existentes e contra as quais ele se levanta.
Essa flexibilidade se manifesta de tal forma que os mitos existentes podem sofrer transformações
e os conflitos podem gerar novas posições dentro do sistema familiar.
É importante a promoção constante do fortalecimento afetivo e o estabelecimento de uma relação
autêntica e satisfatória entre os integrantes do sistema familiar.
Ao mesmo tempo em que se reconhece a identidade familiar no desenvolvimento do adolescente,
faz-se necessário ressaltar que esse processo não ocorre apenas no seio familiar (pai, mãe e filhos), mas
se projeta por meio de sua participação em diversos outros subsistemas familiares (avós, tios, primos) e
extrafamiliares dos quais ele participa (escola, clube, amigos, vizinhos etc.)
Ao atingir a adolescência, a família encontra-se com posições e hierarquias relativamente definidas,
com cada membro assumindo e desempenhando suas funções e papéis.
O crescimento dos filhos e suas consequências (questionamentos, contestações) revolucionam a
ordem e os princípios vigentes até então, e o grupo familiar se desestabiliza, ocasionando incertezas,
dúvidas, inseguranças, temores, que cada pessoa vive de acordo com seu momento existencial.
Os pais veem-se na desconfortável posição de ter que reconhecer que o tempo passou, que já não
são ‘a geração do momento’, que o ritmo de vida é outro, que é preciso mais esforço, mais tempo, para
correr atrás de tudo o que surge e não se deixar ultrapassar tão rapidamente.
As mudanças ocorridas nos filhos obrigam os pais a uma reavaliação, muitas vezes temida. Esse
temor deriva da constatação de que também será preciso mudar, e isso implica suportar a incerteza das
coisas não definitivas. Como refere Kalina: “Aceitar proposta de mudança do adolescente é aceitar a
perspectiva de incerteza do que virá”. (KALINA; LAUFER, 1986).

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A família contemporânea defronta-se com uma situação altamente complexa, mesclando valores
pós-modernos e tradicionais. Há uma indefinição e mutação nos papéis tradicionalmente exercidos e
vividos pelo homem e pela mulher como pai e mãe.
Revendo aspectos da família tradicional, constata-se que o pai encarnava uma autoridade altamente
poderosa e incontestável. Houve tempo na História em que ele era possuidor até do direito de decisão
sobre a vida e a morte dos filhos (DELUMEAU; ROCHE, 1990). A relação com a criança estava
circunscrita ao processo de socialização, cuja finalidade era provê-la das relações entre a própria família
e a do marido, ao lado das funções procriativas e educacionais.
Desse modo, vê-se configurada a já citada complementaridade de papéis distintos: o homem
como responsável pela produção e pelo status social e a mulher, pela reprodução e relação humana.
Momento singular da história ocorre nos anos 1960-75, quando emerge uma espécie de hostilidade
ao princípio da família patriarcal, evidenciada pela revolta contra a autoridade, por parte de estudantes
universitários americanos e europeus, contra professores, nações, pátrias, e se origina uma outra forma
de autoridade, mais adequada a um período de mudanças profundas da sociedade. Nesse momento
surgem o feminismo; a modificação das normas há muito vigentes no seio das famílias; uma nova
realidade das relações entre homens e mulheres; o divórcio, não mais encarado como transgressões dos
bons costumes, passa a ser cada vez mais corrente e aceito; levantamentos realizados a respeito apontam
que os divórcios sucedem 30% dos casamentos, levando, na maioria deles, a mulher à situação da
‘monoparentalidade’.
Progressivamente e paralelamente vão ocorrendo modificações nos casamentos tradicionais, que
na atualidade ganham espaço como novas maneiras de ‘ser família’. A esse respeito, escreve Elizabeth
Roudinesco “o surgimento da noção da ‘família recomposta’, que remete a um duplo movimento de
dessacralização do casamento e de humanização dos laços de parentesco”. (2003).
Decorrência dessa recomposição é a modificação da dinâmica dos núcleos familiares, com a
possibilidade de serem agora integrados por apenas um dos progenitores – e aqui nos referimos à
chamada ‘família monoparental’; ou os lares onde há dois pais ou duas mães; assim como se torna cada
vez mais frequente a convivência de filhos de uniões anteriores dos pais que se tornam ‘irmãos’, ao lado
de também meio-irmãos advindos da presente composição familiar.
Na atualidade, à paternidade impõe-se a necessidade de adaptação ao estágio do contexto social de
pós-modernidade, muito relacionada à transformação por que tem passado a condição feminina. Essas
adaptações incluem a compreensão de que a sociedade de hoje privilegia a superioridade intelectual,
valoriza a vivência comunitária e a performance tecnológica.
A complementaridade tradicional alterou-se a partir da ascensão social e econômica das mulheres:
a parceria, o intercâmbio de papéis, as negociações. O casal de hoje forma-se a partir de escolhas que
priorizam a afetividade, e a relação prossegue na busca pela revolução das identidades pessoais.
Já não há a questão fundamental do ‘dever’ de fundar uma família, criar uma instituição, e sim
viver da maneira mais enriquecedora possível, em nível individual e de casal. Advém desse fato que
a relação torna-se mais vulnerável a rupturas, na medida em que tende a desfazer-se com relativa

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facilidade quando não satisfaz mais às expectativas de um dos dois ou de ambos. Surge nova situação: a
necessidade de preservar a dupla pais/filhos quando se dissolve o casal parental, para garantir questões
fundamentais como o sentido de filiação, a história pessoal e a relação com cada um dos pais.
Não tem sido fácil ao homem e à mulher construir seus lugares de pai e mãe na sociedade pós-
-industrial, especialmente quando se percebe que a redefinição de papéis encontra-se vinculada à
disposição da mulher em conceder ao homem espaço para exercer a paternidade na vida dos filhos.

ESTRUTURAÇÃO DOS VÍNCULOS FAMILIARES


Segundo Brazelton (1988), os vínculos começam a ser desenvolvidos em período anterior
à concepção, no desejo do imaginário da mulher e do homem que vão formar a família, que vão
estruturar um espaço para o recebimento de um novo sujeito, e que vão demarcar o papel, o lugar e a
função6, seus significantes7 e significados8 na relação. Essa demarcação vai delimitar a função paterna e
a materna; nesse momento, se estabelece o significado da família e sua rede de parentesco. Inicialmente
surgem os vínculos biológicos para, posteriormente, no processo de crescimento, se estabelecerem
vínculos simbólicos, afetivos e sociais.
Segundo Melo (1991), a partir da estruturação de vínculos familiares, torna-se possível a
estruturação de vínculos nos espaços amplos do grupo social, como nas comunidades e no entorno
da sociedade, pois, no contato com seu grupo, os vínculos vão demarcar os lugares, os papéis e as
fronteiras9 que contornam quem é o outro no universo das relações, dentro da interdição (ou restrição)
da cultura a que o sujeito pertence.
Um adolescente já foi um bebê, e esse processo inicial marcará certamente sua identidade. Mahler
(1982) estudou com profundidade o processo de separação/individuação10 e crê na interação circular
como facilitador para moldar a personalidade do bebê e de sua mãe, seu parceiro adulto.
Portanto, quando se pensa no adolescente, deve-se ter em mente o que ele foi e o que poderá
ser, buscando conhecer todo o processo pelo qual passou o indivíduo, para compreender melhor as
expectativas acerca do que pretende ser.
Mahler (1982) postula que a fase simbiótica11 e o processo de individuação/separação estão
diretamente ligados às questões de identidade. Melhor que ela mesma o faz não é possível descrever o
aporte, inclusive filosófico, que nos traz no âmago de sua obra, quando toca na comumente chamada
angústia existencial humana “a eterna luta do homem contra a fusão12 e o isolamento... Pode-se julgar
todo o ciclo vital como um processo mais ou menos bem sucedido de distanciamento da mãe simbiótica
e de introjeção13 de sua perda”. Todavia acrescente-se que isso é possível, desde que ele tenha uma
segurança maternal como retaguarda.
Essa busca de independência e individuação faz com que a mãe também precise ajustar-se ao
acontecimento decisivo da separação inevitável, uma vez que, com o passar dos dias, o bebê, dependente
desce do colo, inicia seus primeiros passos, movimenta-se e vai adquirindo autonomia. A participação

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emocional da mãe vai facilitar ao bebê o desenvolvimento de seus processos mentais, o crescimento
diante da realidade e, após uma ‘perseguição’ materna que perdura entre os quinze e os vinte meses, ele
busca satisfazer e realizar suas próprias aspirações de forma independente.
A disponibilidade emocional da mãe é essencial para que o ego14 autônomo do bebê alcance
capacidade ótima. Se a mãe estiver ‘tranquilamente disponível, com imediata oferta de libido objetal, se
compartilhar das explorações aventurosas do filho’, se corresponder e o auxiliar em sua busca de imitação
e identificação, ele corresponderá por meio do progresso da comunicação, não somente pela mímica, mas
também verbalizando e fazendo com que seu relacionamento cresça para a busca de novas realidades.
Mahler (1982) acredita que já provou clinicamente a dependência emocional da mãe em relação
ao filho, que estabelece um vínculo libidinal facilitador do desenvolvimento das potencialidades
inatas da criança. As mães, apesar de viverem seus próprios conflitos inconscientes acerca do papel
a desempenhar na maternidade, suas fantasias sobre o filho, seu desenvolvimento e futuro, acabam
por corresponder aos “dominados e mutantes códigos do processo primário do seu bebê quando este
rompe a membrana simbiótica para tornar-se um bebê individuado”.
Muitas vezes, por imaturidade emocional, alguns pais tendem a prolongar a dependência afetiva
dos filhos e as tentativas de independência. Esses indivíduos chegam então à adolescência com a noção
de ‘eu’ fragmentada, fusionada muitas vezes com a mãe ou outra figura dominante importante.
O pai – cuja função resulta de um processo intencional de acolhimento emocional que um
homem faz de uma criança, tendo ele sido seu gerador biológico ou não – introduz a Lei no vínculo
dual, e determina sua ruptura. Perante essa interdição, mãe e filho defrontam-se com a necessidade de
aceitar a impossibilidade de satisfazer a ilusão de preencher o vazio inerente à condição humana. É,
portanto, o pai a pessoa diferenciada da triangulação que adquire o caráter de autoridade proibidora.
De acordo com Beatriz Breteau, citada por Capra (1982), “a paternidade caracteriza-se pela separação”.
O pai, em momento nenhum, está fisicamente unido ao filho, e a relação tende a ser de confrontação
e amor condicional.

Lacan chama de ‘pai idealizado’ a esta imagem de um pai autor das leis, princípio das mesmas, temido
e admirado, ao qual o menino delega a onipotência de seus pensamentos, um poder ilimitado, ainda
que obscuro em suas razões, protetor e castigador. (ABERASTURY; SALAS, 1984).

Em relação ao social, o papel do pai assume particular valor, pois é uma de suas funções constituir-
-se mediador entre o sistema de parentesco e outros sistemas mais abrangentes. Desse modo, o
rompimento do vínculo dual propicia a liberação da criança para o mundo.
Dor (1991) oferece fundamentais contribuições ao afirmar que a função paterna pode ser
potencialmente exercida por outra pessoa – mesmo que não idealmente – que a cumpra na qualidade
de representante da realidade; isso porque a função paterna mantém a virtude simbólica estruturante
mesmo na ausência do Pai real, quando algum outro incumbe-se de representar a figura de lei.
Assim, a dimensão do Pai simbólico transcende a contingência do homem real. Sobre essa questão,
considera Pontes (1998):

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Na função paterna atuam também as mulheres, como as avós e as tias que ajudam mães solteiras
ou separadas a cuidar das crianças. Até irmãos e irmãs acabam exercendo essa função em muitas
famílias em que falta o pai – seja porque morreu, seja porque não quer ou não sabe exercê-la. E isso
é comum, infelizmente. Seja quem for, essa terceira pessoa é indispensável. Pela própria natureza
da relação da mãe com o filho, ela não pode ser também a personificação dos limites. Ela inicia esse
processo quando nega leite ao bebê que pede sem ter fome, mas precisa de alguém que seja a imagem
dessa regra afetiva.

Assim, no aspecto afetivo o adulto exerce papel fundamental na estruturação da capacidade


da criança para o estabelecimento de vínculo. As experiências positivas produzem sentimentos de
segurança, apego às pessoas e atitude positiva em direção à atividade correspondente.
As experiências desfavoráveis resultam em sentimentos de insegurança ou hostilidade em relação
às pessoas e retraimento ou rejeição. A família é importante tanto ao nível da estruturação da vida
emocional quanto no que diz respeito às relações sociais na qual ela se inscreverá. É na família,
mediadora entre o indivíduo e a sociedade, que aprendemos a perceber o mundo e a nos situarmos
nele. Conforme o indivíduo cresce e diferencia seu ser separado dentro da matriz de sua experiência
familiar da infância, ele gradualmente estabelece sua identidade pessoal e social.
Para entender o grupo familiar, é importante considerá-lo dentro da complexa trama social e
histórica que o envolve. A família não é somente algo natural, biológico, mas pode ser uma instituição
criada pelos homens em relação, que se constitui de formas diferentes em situações e tempos diferentes,
para responder às necessidades pessoais e sociais.
A família é uma instituição extremamente poderosa e diferente de qualquer outra rede relacional,
por ter características e formas peculiares. Nela os novos membros são incorporados apenas pelo
nascimento, por adoção, casamento, e os membros podem ir embora somente pela morte, se é que
então. Nenhum outro sistema está sujeito a essas limitações. (CARTER; GOLDRICK, 1995).
Estamos longe de acreditar hoje que há apenas uma forma, a mais correta, de ser família. Um
casal homossexual, pais solteiros, filhos adotivos, todas essas são possibilidade de existência da família.
Dentro desse contexto, surge a necessidade de garantir questões fundamentais, como o sentido
de filiação, a história pessoal, reprodução e a relação com cada um dos pais, mesmo que seja mediante
filiação e paternidade adotiva.
A instituição familiar tem sido estabelecida em nossa cultura fundamentada nos ‘laços de sangue’.
Quando tratamos da família com filhos adotivos, surgem, naturalmente, questionamentos sobre a
conveniência ou não de incluir no grupo familiar uma pessoa ‘estranha’ na condição de filho. Na
relação parental adotiva, não existe a ligação hereditária na quase totalidade dos casos e, em nossa
sociedade, ela é um pressuposto indiscutível que dita as normas de valorização e continuidade familiar.
As relações familiares, no seu aspecto emocional, não são garantidas pelas ligações sanguíneas ou
pelas características que passam de pais para filhos por hereditariedade, mas sim pelos vínculos afetivos
que se estabelecem.
Ao analisarmos determinados aspectos da maternidade-paternidade como, por exemplo, pais
que geram filhos e não os amam ou pais que, por qualquer circunstância, têm dificuldade de amá-

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-los, percebemos a complexidade da relação de amor e descobrimos que amar sem conviver torna-se
extremamente difícil. O amor pede uma relação de presença e aconchego. A convivência familiar é,
de fato, um componente fundamental para o estabelecimento da relação de afeto; é no dia a dia que
se percebe que a maternidade-paternidade transcende a área restrita da procriação biológica, porque

“ser pai ou mãe não significa, a nível emocional e psicológico, conceber, gerar e dar à luz uma criança,
mas sim um desejo e uma capacidade de se envolver afetivamente, em imensa profundidade com
o outro ser humano que representaria a continuidade de seus pais. A paternidade é essencialmente
afetiva e pode ou não se estabelecer na paternidade biológica ou na adoção”. (BERTHOUD, 1997).

O filho adotivo surge como um agente de realização e de prazer, mesmo quando sua trajetória é
tumultuada e difícil. A decisão de adoção precisa ser alicerçada em uma segura consciência parental.
Faz parte das expectativas das pessoas a identificação nos filhos de alguma característica sua, como
a comprovação de que estão cumprindo um rito de continuidade, o que lhes dá uma sensação de estar
realizando sua missão e seu desejo de perpetuação. Nesse caso, a semelhança dos filhos com os pais produz
nestes uma sensação de normalidade, por estarem desempenhando sua inquestionável função reprodutiva.
A observação de Dolto (1985) nos orienta: “A exigência inconsciente do filho adotivo, de ser ainda
mais carnalmente e mais visivelmente filho deles do que teria sido dos pais de nascimento, encontra
correspondência nos pais adotivos, que depositam todas as suas esperanças nessa criança, destinada a
perenizar-lhes o nome e a fazer frutificar o amor e os esforços que fazem por ela”.
Quando buscamos compreender a verdadeira filiação, colocamos a consanguinidade em segundo
plano, uma vez que o espiritual e o afetivo é que comandam a relação familiar. Sobre esse aspecto,
Frankl (1978) oferece uma ideia para ser pensada: “Pode-se, afinal, afirmar com razão: o filho é bem
‘carne da carne’ de seus pais, mas não ‘espírito de seu espírito’. Ele é sempre e somente um filho
‘físico’, e isto na mais verdadeira acepção do termo: no sentido fisiológico. Pelo contrário, no sentido
metafísico, cada filho é propriamente filho adotivo; adotamo-lo no mundo, dentro do ser”. Essa visão
do homem como ‘filho’ acentua a compreensão de que o componente fisiológico não sobressai ao
aspecto metafísico (espiritual). A adoção suplanta o fato biológico para concretizar a condição de filho.
Dentro da diversidade, as famílias podem encontrar a unidade, criando, assim, um ambiente em que
cada um de seus membros, com a sua história, escreve a história do grupo.
Filhos que não receberam de seus pais biológicos ou adotivos boa qualidade de amor tendem
a apresentar, na adolescência, problemas, tais como: confusão quando à identidade sexual; falta de
amor-próprio; repressão à agressividade e, em consequência, a necessidade de afirmação; ambição e
curiosidade exploratória; bloqueios relativos à sexualidade; problemas de aprendizagem; dificuldade
em assumir valores morais e responsabilidades, e em desenvolver senso do dever e de obrigações perante
os outros. A ausência de limites acarreta dificuldade em exercer autoridade e em respeitá-la. Pode
colaborar para maior suscetibilidade a problemas psicológicos, e mesmo à drogadição, delinquência,
sendo todos esses sintomas envolvidos por grande revolta contra a sociedade patriarcal, como reflexo
do ressentimento pelo pai faltoso.

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Segundo Schettini (1998), a efetivação da adoção é o resultado de um processo intencional de


acolhimento emocional que os pais ou pai e (ou) mãe proporcionam ao adotado. Trata-se, portanto,
de uma adoção, que tem duplo sentido, uma vez que o filho também adota seus pais. Esse vínculo
que une o adotante ao adotado é tão real como o que une o pai ao filho de sangue, e os efeitos que do
primeiro emergem são tão reais como os que decorrem do segundo, apenas o que une as partes não é
biológico, mas psicológico-social.
A decisão de adotar é fundamentalmente uma decisão de ter um filho, é um processo que abrange
a pessoa na sua subjetividade, isto é, fundamenta-se nos conteúdos racionais e emocionais, o que nem
sempre acontece com as pessoas que geram seus próprios filhos.

Adotar é engendrar o filho dentro de si. Ele não está longe, distante, nem com outra pessoa. Está dentro de
quem o quer, a inexistência dos laços genéticos não invalida as ligações parentais. (SCHETTINI, 1998).

Portanto, o crescimento e o desenvolvimento do filho dependem da boa organização do grupo familiar,


seja ele biológico ou substituto. Entendemos que para a formação emocional satisfatória do indivíduo são
necessários, no início, proteção e aconchego; e em fases posteriores, autonomia e independência.

VIVÊNCIA DA ADOLESCÊNCIA DOS FILHOS


A adolescência dos filhos é vivenciada pelos pais com lutos, medos, conflitos, num processo
pautado por ambivalências e resistências.
Se o adolescente percorre um penoso caminho rumo ao desprendimento dos pais, também esses
têm que se desprender do filho-criança e evoluir para uma relação com o filho adulto, o que impõe
renúncias de parte a parte.
Ao perder para sempre o filho-criança, veem-se diante da imperiosa necessidade de aceitar o
devenir, o envelhecer, a finitude.

Mas a travessia maior, sem dúvida, é aceitar a passagem do tempo. Os filhos crescidos, em luta por
sua autonomia, são quase sempre a lembrança de nossa finitude. A consciência, muitas vezes, do
tempo perdido. A constatação de que imaginávamos, também estamos sujeitos ao ciclo da vida: nascer,
crescer, reproduzir e morrer. (KALINA; LAUFER, 1986).

Têm que abandonar a imagem de si mesmos que seu filho criou – para a qual colaboraram – e na
qual se instalam.
Já não podem funcionar como líderes ou ídolos; ao contrário, impõe-se-lhes aceitar uma nova
relação, permeada de ambivalências e críticas.
As capacidades e conquistas emergentes do filho obrigam os pais a enfrentar suas próprias
capacidades e avaliar seus sucessos e fracassos. Nessa ‘prestação de contas’, o filho acaba por assumir o
lugar de testemunha implacável do realizado e do frustrado.

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As mudanças corporais do adolescente, que sinalizam sua capacidade procriativa, produzem


situação conflituosa nos pais. Podem coincidir no mesmo momento familiar marcos da história pessoal
de seus membros: a menarca e a menopausa, o auge e o declínio da virilidade.
Tentando negar a realidade do tempo, os pais podem tornar-se bastante repressores:

é como se, conseguindo controlar os filhos, conter sua ideias, impedir suas expectativas, deter e modificar
suas necessidades, estivesse contendo o próprio movimento da vida. (KALINA; LAUFER, 1986).

Ainda segundo Kalina, a direção que toma o sentimento gerado pelo crescimento dos filhos
vai indicar em que medida este se tornará produtivo ou não para a vivência dos pais. Entendo e
nomeando esse sentimento como inveja, poderá ser perniciosa se pretender paralisar e (ou) destruir as
possibilidades de ser e agir; e será positiva se impulsionar para tentativas de reformular a maneira de ser,
mediante alternativas novas para suprimento de necessidade desse momento especial de vida.
Na prática do relacionamento pais-filhos, a vivência inadequada da inveja conduzirá à repressão, à
desvalorização do que for feito pelos filhos, estimulando e reforçando nelas dependência e incapacidade.
Ao contrário, lidando de maneira saudável com esse sentimento, os pais podem ter a oportunidade
de incorporar em sua própria vivência características presentes na de seus filhos adolescentes, como,
por exemplo, a coragem renovada para lutar por seus direitos e ideais, reformular metas, recriar suas
verdades, desafiar a vida.
Há, no entanto, aqueles que reagem à juventude dos filhos de maneira derrotista, geralmente
quando não conseguem atingir a perspectiva necessária para ‘acompanhar’ o processo; é como se
assumissem para si os lutos e perdas inerentes ao despertar da vida adulta.
O fato torna-se observável quando os adolescentes ‘descobrem’ seus pais como falíveis, incompletos,
imperfeitos; a desidealização das figuras parentais é acompanhada pela respectiva recíproca, pois os pais
passam pela sensação de que, de certa maneira, também estão perdendo seus filhos.
Ao movimento de afastamento progressivo do adolescente rumo a seus próprios caminhos
corresponde a necessidade dos pais de redefinirem seus papéis, funções e projetos; o adolescer dos filhos
oferece ao casal a oportunidade de retomar a vida a dois, com o enfrentamento e aproveitamento das
perdas e dos ganhos pessoais acumulados.
A fase final da adolescência marca a reorganização da estrutura familiar, pela flexibilização de
preceitos, tais como autoridade e poder decisório, que até então regeram sua dinâmica.

CONCLUSÃO
A família muda e se adapta de acordo com os movimentos históricos, convivendo com alterações
de valores, de padrões éticos, econômicos, políticos e ideológicos, cuja finalidade é acompanhar as
transformações da sociedade. A importância da família, segundo Melo (1991), está em valorar a
construção da identidade, destacando os aspectos históricos e culturais, criando espaço para afirmar a

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autoridade dos pais no contexto de possibilitar a introdução da disciplina e ou limites no processo da


educação nos diferentes espaços privados e públicos.
A família contemporânea apresenta tendência a horizontalizar suas relações, com participação
igualitária dos cônjuges nas questões da criação e educação dos filhos, no provimento financeiro, nas
decisões condensadas, e mesmo nas trocas de valores e ideais entre pais e filhos, a exemplo do que
ocorre a respeito da conscientização e vivência de práticas de sustentabilidade, quando filhos alertam
para a importância da preservação do meio ambiente para a geração atual e as futuras.
Aqui se observa o movimento que diferencia a atualidade das gerações anteriores, pois como
consequência da tecnologia, do progresso dos meios de comunicação e da facilidade de acesso entre os
membros da família, inaugura-se uma nova realidade, que envolve a troca de informações, já que agora
há muitas coisas da pós-modernidade, tão corriqueiras aos filhos, que eles podem ‘ensinar’ aos pais, e
não só, como sempre, serem os que recebem ensinamentos.
Constata-se que apesar de todas as inovações e revoluções, a família permanece reivindicada
como “o único valor seguro ao qual ninguém quer renunciar. Ela é amada, sonhada, desejada por
homens, mulheres, crianças, de todas as idades, de todas as orientações sexuais e de todas as condições”.
(ROUDINESCO, 2003).

BIBLIOGRAFIA
ABERASTURY, A.; SALAS, E. J. A paternidade: um enfoque psicanalítico. 2. ed. Porto Alegre: Artes Médicas,
1984.
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BRAZELTON, T. B. O desenvolvimento do apego: uma família em formação. Porto Alegre: Artes Médicas,
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DUPUIS, J. Em nome do pai – Uma historia da paternidade. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

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903

ERIKSON, E. H. Identidade, juventude e crise. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.


ERIKSON, E. H. Infância e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.
FRANKL, V. E. Fundamentos antropológicos da psicoterapia. Tradução Renato Bittencourt. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1978.
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Margaret. O processo de separação – individuação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1982.
MARQUES, A.; BERRUTI, F.; FARIA, R. Os caminhos do homem. Belo Horizonte: Lê, 1991.
MELO, Z. M. Violência y família: supervivencia em la casa y en la calle (Tese de doutorado em Psicologia)
Universidad de Deusto, Bilbao: 1991
PACCOLA, M. K. Leitura e diferenciação do mito. São Paulo: Summus, 1994.
PONTES, D. De pai para mães. Gazeta do Povo, Curitiba, 10 maio 1998.
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SCHETTINI FILHO, L. Compreendendo os Pais adotivos. Recife: Edições Bagaço, 1998.
THOMAS, L. The lives of a cell: notes of a biology watcher. Toronto; New York: Batan Books, 1974.

NOTAS EXPLICATIVAS
1 Sistema: segundo Ludwig Von Bertalanffy, é um complexo de elementos em interação; segundo Hall e
Fagen, é um conjunto de objetos e de relações entre os objetos e seus atributos.
2 Matrilinear: em que a sucessão se faz por linha materna. Comunidade matrilinear.
3 Onipotência masculina: poder absoluto e infinito. Autoridade ou soberania absoluta.
4 Papel: é a parte que se espera que cada indivíduo desempenhe numa situação social. Isto tem sido estudado
particularmente em grupos em que é possível distribuir um papel a cada membro: líder, mediador, palhaço,
membro fiel etc. Qualquer indivíduo pode desempenhar diferentes papéis, e pode, por isso, experimentar
conflito de papéis, quando dois grupos entram em contato. Por exemplo: adolescentes que encontram sua
família quando estão em companhia de sua turma.
5 Complementaridade: termo criado pelo físico N. Bohr e adaptado por N. Ackerman. O termo
complementaridade faz referência aos padrões específicos das relações e dos papéis dos membros da família,
que permitem a expressão dos afetos, dos cuidados e da lealdade, da incompletude e das diferenças às quais
é confrontado cada membro da família.
6 Função: ação própria ou natural de um órgão, aparelho ou máquina; cargo, serviço, ofício; o conjunto de
direitos, obrigações e atribuições duma pessoa em sua atividade profissional específica.
7 Significantes: representação psíquica do som e imagem.
8 Significados: representação psíquica de um conceito.
9 Fronteira: é um limite de território físico, psíquico ou material.
10 Individuação: processo de se tornar um indivíduo único, diferenciado de sua família de origem.

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11 Simbiose: significa vida em comum com os outros. Em Psicanálise é usado para descrever a condição
psicológica em que ocorre uma associação entre duas mentes, podendo ou não haver benefícios. Trata- se de
uma peculiaridade das relações interpessoais, que é a necessidade que cada um tem do outro e as diferentes
gratificações que um proporciona ao outro e dele obtém. Relacionamento mutuamente reforçado entre
duas pessoas dependentes uma da outra. Uma característica normal do relacionamento entre uma figura
maternal e um bebê.
12 Fusão: união, aliança, mistura, liga. Estado de interdependência psicológica, entre duas pessoas e com
importantes implicações no processo de separação individuação.
13 Introjeção: mecanismo psicológico pelo qual um indivíduo, inconscientemente, incorpora e passa a
considerar como seus objetos características alheias e valores de outrem (termo psicanalítico).
14 Ego: Princípio da Realidade. Segundo a Psicanálise, no processo de satisfação do libido (pulsão do ID), o
organismo biológico se confronta com o Real, neste momento constitui-se o Ego. O Princípio da Realidade
começa a se formar quando o bebê passa a se reconhecer como sujeito (fase do espelho) e não mais como
uma extensão do corpo da mãe, passando à controlar corretamente e decidindo quais instintos podem
ser satisfeitos (controle das esfíncteres, repertório social, por exemplo) e de que forma. O ID (forma mais
primitiva, instintos e pulsões) se orienta pelo princípio do prazer/desprazer, o Ego pelo real.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
905

NOÇÕES SOBRE DROGAS PSICOTRÓPICAS

Dilermando Brito Filho

Drogas psicotrópicas são substâncias naturais ou sintéticas que atuam seletivamente sobre
as células nervosas que regulam o psiquismo, ou seja, afetam os processos mentais. São quaisquer
substâncias capazes de modificar funções orgânicas, resultando em mudanças fisiológicas e/ou
comportamentais. Elas agem no Sistema Nervoso Central (SNC) produzindo alterações de humor,
cognição, comportamental, entre outras.
Didaticamente podemos dividi-las em três grupos.
1. Psicolépticas – substâncias que diminuem a atividade mental e do SNC, que passa a funcionar
mais lentamente. Assim, reduz o tônus psíquico, seja deprimindo as tensões emocionais,
seja diminuindo a vigília, estreitando a faixa do poder intelectual, produzindo geralmente
relaxamento e movimentos lentos. Fazem parte desse grupo os derivados barbitúricos (por
exemplo, Gardenal), os tranquilizantes benzodiazepínicos (como o Valium) e os neurolépticos
(cloropromazina, por exemplo).
2. Psicoanalépticos – substâncias que elevam o tônus psíquico, ou seja, a atividade mental,
estimulando o sistema nervoso central, a vigília, o humor diminuindo a fadiga momentânea
(são exemplo os derivados anfetamínicos), levando à euforia.
3. Psicodisléticos – substâncias desestruturantes da atividade mental que levam a quadros
de psicose, delírios e alucinações. Fazem parte desse grupo os embriagantes (inalantes químicos,
como o clorofórmio) e os alucinógenos ou despersonalizantes (por exemplo a maconha e a LSD).

Podemos afirmar que qualquer produto que provoque no ser humano sensação diferente do
normal, como euforia, delírio, alucinação, forte tranquilização e tolerância é uma droga psicotrópica e
pode causar dependência orgânica e/ou psicológica.

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DEPENDÊNCIA PSICOLÓGICA
É aquela caracterizada por forte desejo de usar a droga para obter prazer, aliviar desconforto e sentir
bem-estar. Sua supressão não acarretará a síndrome de abstinência (alterações orgânicas com transtornos
insuportáveis, obrigando o usuário a usar mais produto). Portanto é possível, com tratamento psicológico e
força de vontade, que o vício seja superado, já que o organismo não sofre alterações profundas de adaptação.

DEPENDÊNCIA ORGÂNICA
Caracterizada por distúrbios físicos, às vezes insuportáveis, que levam o usuário a buscar a droga
a qualquer custo quando da interrupção do uso. Isso ocorre geralmente porque neurotransmissores
orgânicos são afetados até com sutis anomalias sobre eles. A supressão da droga levará a forte resposta
orgânica, com mal-estar, transtornos insuportáveis, dolorosos, levando o usuário a procurar mais droga
para aliviar esses sintomas. A degradação orgânica é muito alta.
Deve-se levar em conta o cuidado a ter com as chamadas drogas lícitas ou permitidas, como o
álcool etílico e o tabaco, pois são perigosas e podem inclusive levar à dependência, além de uma série
de consequências danosas ao organismo humano, com transtornos vários, podendo levar até a morte.
É claro que pais fumantes e usuários de bebidas alcoólicas dão péssimo exemplo aos seus filhos.
Em ambas as dependências poderá ocorrer a síndrome de abstinência (muito mais séria e
pronunciada na dependência orgânica), caracterizada por sinais e sintomas físicos insuportáveis,
como dores, calafrios, mal-estar generalizado, delírios, transtornos psicossomáticos, ou seja, uma
forte inter-relação entre processos mentais, emocionais e sintomatológicos. Essa síndrome é de
difícil reversibilidade.

ALGUMAS DROGAS DE ABUSO

Maconha
É uma planta do gênero Cannabis, cuja espécie mais comum é a sativa, também conhecida por
cânhamo ou por vários nomes típicos, a saber, diamba ou liamba (Brasil), marijuana (México), Mary
Jane e Pot (EEUU) e outros, como charas, bjang, erva etc. Segundo a Organização Mundial de Saúde
(OMS), a maconha continua sendo a droga mais consumida no mundo.
Estudos apontam que a planta já era conhecida muito antes de 5000 anos a.C. Em sua famosa
obra Odisseia, o poeta Homero fez referência a ela, na passagem em que Helena de Troia dá para o rei
Menelau, seu marido, um chá feito com folhas de maconha, o Nephentes, que o faz adormecer, e então
foge facilmente com o príncipe Páris para Troia, originando a épica ‘Guerra de Troia’.

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Modernamente, consegue-se por meio de culturas inovadoras várias produções anuais de maconha,
além de modificações genéticas que permitem o aumento de princípios psicoativos, especialmente o
tetra-hidrocanabinol (THC), responsável pelos efeitos eufomânicos do produto. Nas últimas décadas,
o teor de THC nas plantas passou de 3-4% para 8-10%.
Há alguns anos, na Holanda, foi desenvolvida uma forma híbrida de maconha com uma variedade
que chega a mais de 36% em THC. Pelo seu forte odor repugnante, ela ganhou o nome de skunk (gambá);
ela é muito perigosa para o ser humano devido à paranoia irreversível que pode provocar no usuário.
O uso constante da maconha provoca modificação da fisionomia, do pulso, da pressão arterial, da
diurese, da glicemia, do sono, do apetite e da estabilidade do sistema neurovegetativo, com perturbação
na percepção de tempo e espaço. Também se pode observar midríase (dilatação da pupila, que vai de
moderada a grande), sensação de leveza, alteração de personalidade, congestão da conjuntiva, dilatação
dos vasos sanguíneos dos olhos, que se apresentam avermelhados, devendo ser levada em conta ainda a
ação irritativa da fumaça sobre eles. Em muitos usuários ocorre o estreitamento das fendas palpebrais,
levando-os a apresentar um olhar semelhante a sonolento. Sob efeitos contínuos da droga, o indivíduo
pode ser levado à deterioração psíquica, chegado à insanidade.
Não há dúvidas de que a maconha afeta as atividades cerebrais mais refinadas e as funções cognitivas
ligadas ao processo do conhecimento. Se usada por muito tempo, ela produz crise amotivacional, e
tudo fica sem graça e a pessoa não sente vontade de fazer nada.
No início de uso pode ocorrer tontura, vertigens, náuseas e até vômitos, enquanto muitos acusam
sensação de euforia, capazes de grandes esforços sem muita fadiga. Podem ser manifestadas ainda
despersonalização e imaginação erótica, porém com incapacidade progressiva para o ato sexual. Devido
a seu poder desinibitório, pode apresentar uma falsa ação afrodisíaca.
A atenção é comprometida. Avalia-se atualmente que é capaz de destruir neurônios da memória
imediata, deixando o usuário com problemas mentais irreversíveis.
Fato marcante é que o produto causa ao usuário a impressão de que seus sentidos ficaram mais
aguçados, quando na realidade foram distorcidos e diminuídos.
Alguns dos sistemas mais importantes são altamente afetados.
• Sistema respiratório: em médio e longo prazo, a droga age sobre os pulmões, inicialmente
dilatando os brônquios, porém após algum tempo o efeito se inverte, levando à bronquite,
faringite e até asma. Além disso, o aumento de células macrófagas compromete o funcionamento
pulmonar, levando à bronquite obstrutiva crônica, inclusive percebendo-se ronco típico.
Some-se a isso o desenvolvimento de aspergilose, grave micose que pode afetar os pulmões
produzindo neles verdadeiras cavernas, disseminando-se por sangue, coração, meninges e
ossos, devido à contaminação da erva pelo fungo Aspergillus fumigatus, que é encontrado em
mais de 50% do material para uso de abuso. Além disso, pela queima, gases tóxicos como
benzopireno e benzantraceno serão formados entre outros carcinogênicos, e contribuem para
a formação de lesões malignas ou pré-malignas, células com metaplasia escamosa (que estão a
um passo de se tornarem células cancerosas).

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• Sistema imunológico: um dos efeitos em longo prazo é a redução dos mecanismos de defesa,
pois, os canabinoides constituintes da erva inibem os ácidos nucleicos, como também agem
diretamente sobre o DNA alterando sua síntese e prejudicando a produção de anticorpos.
Estudos realizados há algum tempo sobre os linfócitos T, como o desenvolvido pelo doutor
Akira Morishima, geneticista da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, revelaram
anormalidades cromossômicas causadas pelo uso da maconha, com cerca de 30% dos genes
contendo menos da metade dos 46 pares normais.
• Sistema reprodutor: um bilionésimo de grama de THC no cérebro é capaz de agir sobre
o hipotálamo, que por sua vez atua sobre a glândula pituitária, a qual regula as funções
endócrinas e os hormônios sexuais e da reprodução. Desse modo, a produção de hormônios
masculinos tende a diminuir, nos homens, especificamente a testosterona, podendo ocasionar
aumento proporcional de hormônios femininos, em especial o estrogênio. No mais se observa
espermatogênese e deformidade de espermatozoides e ainda redução do tamanho e peso da
próstata e testículos. A maconha diminui a fertilidade do homem. Em gestantes, a droga
pode interferir no desenvolvimento do feto e provocar aborto. Estudos provaram rupturas
cromossômicas que alteram a herança genética, divisão grosseira e crescimento lento do núcleo
das células. Do normal de 46 cromossomos (23 masculinos e 23 femininos), em usuários
crônicos foram encontrados cerca de 1/3 das células com 8 a 38 cromossomos.
• Sistema nervoso central: age sobre a mente comprometendo a atenção, que não se fixa nem
mantém a percepção espacial, o que torna perigoso dirigir automóveis, por exemplo. Produz ainda
crise de desmotivação, que inclui falta de memória imediata, impossibilitando o armazenamento
de fatos e dados vistos momentos antes. Esse problema está relacionado com a destruição de
neurônios, frouxidão emocional chamada de Síndrome Orgânica Cerebral (SOC).
• Sistema cardiovascular: é extremamente comprometido, pois pela liberação de neurotrans-
missores excitatórios a maconha produz intensa taquicardia, aumento de pulsação e da
quantidade absorvida de monóxido de carbono, com consequente redução de oxigênio. Com
o tempo, ela enfraquece o músculo cardíaco, agravando o problema de quem sofre do coração.

Há pouco tempo, descobriu-se um novo neurotransmissor responsável pela alegria e pelo bem-estar
ao qual se deu o nome de anandamida (do sânscrito ananda, que quer dizer ‘felicidade’). O THC imita
a molécula de anandamida nos neurônios, ocorrendo uma falsa quantidade desse neurotransmissor,
com alteração dos impulsos elétricos cerebrais que provoca bem-estar, porém tem graves repercussões,
como insanidade e paranoia, entre outras.
De algum tempo para cá se tem falado novamente em legalização da maconha. Dentre os vários
argumentos a seu favor, apontam-se propriedades benéficas de alguns de seus componentes, mais
precisamente o canabidiol (CBD), que apresenta propriedades antieméticas e anticonvulsivas, podendo
também diminuir a pressão intraocular. Não se conhece a totalidade de efeitos de seus mais de 500

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constituintes, suas interações. Mesmo em relação ao CBD, pouco realmente se sabe em relação a seu
uso contínuo e quais são as consequências desse uso em longo prazo. Outras dúvidas relacionadas se
referem ao tipo de cultivo que a maconha demandaria e quais insumos seriam utilizados para isso.
Embora nem todos os efeitos da cannabis no ser humano sejam unanimidade, fato inconteste é que
se trata de uma droga extremante perigosa e que estudos sérios, certamente onerosos, são necessários
para avaliar seu real potencial medicamentoso.

Cocaína
De nome científico benzoilmetilecgonina, é o principal alcaloide extraído das folhas da planta
Erythroxylon coca, originária dos países andinos. Na Amazônia brasileira cultiva-se, não oficialmente,
uma variedade de coca, o Epadu, que naturalmente apresenta menores teores de princípios ativos.
É chamada ‘droga da euforia’. Pode ser fumada como pasta básica (1.º estágio da produção)
ou como crack (sua versão mais barata). Em forma purificada como cloridrato, diluída geralmente
em água, pode ser injetada ou cheirada (aspirada) na forma sólida, incutindo nos usuários fantasias
de força, poder e sedução. É conhecida por muitos nomes peculiares, como pó, neve, branquinha,
novidade, cristal, farinha etc. A merla, outra versão mais barata e impura em forma de pasta, tem os
mesmos efeitos da cocaína, porém menos intensos, e é menos usada em nosso país. Por não serem
solúveis em água, merla e crack são consumidas por meio do fumo.
Seu efeito estimulante já era conhecido pelos indígenas dos Andes há muitos séculos. Eles seguiam
rituais religiosos de uso das folhas, permitindo aos mensageiros, que eram obrigados a percorrer longas
distâncias a pé, que mascassem folhas com cinzas para suportarem a jornada.
Em épocas mais recentes, o produto purificado foi utilizado como anestésico local, por atuar sobre
as fibras nervosas, impedindo a origem e a transmissão dos impulsos nervosos, além de ser poderoso
agente vasoconstritor. Face aos efeitos colaterais, essa prática foi abandonada em favor dos anestésicos
sintéticos. Atualmente, a cocaína existe unicamente como droga de abuso.
Ao ser absorvida pela mucosa do nariz quando aspirada, a droga produz anestesia local,
vasoconstrição e, como geralmente é acompanhada de produtos cáusticos que entram na extração, a
agressão à mucosa nasal pode ser séria, provocando, pelo uso contínuo, perfurações e até destruição do
septo nasal, processo esse geralmente acompanhado por sangramento, servindo como evidência de uso.
A cartilagem interna sofre um processo de erosão conhecido como ‘nariz de rato’, por deixar esse órgão
com marcas semelhantes a mordidas deste roedor.
Quando injetada, a cocaína pode causar abscessos, necrose e posteriormente cicatrizes no corpo
do usuário.
Os transtornos psicomotores denominados ‘ebriedade cocaínica’ provocam forte excitabilidade,
tornando o usuário sob a ação da droga alegre, loquaz, agitado, às vezes mais audacioso e mais disposto
contra a fadiga. É possível ainda que ele se torne extremamente irritado e agressivo, cometendo atos
impensados e até crimes violentos.

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No homem, a capacidade genética se perde pelo uso contínuo, porém ele mantém a apetência
sexual e o erotismo. Por não obter satisfação fisicamente se inclina à patologia sexual. A mulher passa
por um estado de exaltação erótica com perda do pudor e também insatisfação. Em ambos há perda de
inibições. Os usuários encontram no vício uma fuga da realidade, desinibindo-se e ganhando coragem,
sentindo euforia e êxtase, muitas vezes atingindo raízes da paranoia, quando se tornam preguiçosos,
indolentes, apáticos, hipócritas, com laços afetivos degradados.
Podem-se observar no usuário sintomas como anorexia, alterações de olfato, audição com zumbidos,
visão com diplopia e diminuição da agudeza visual, sendo o usuário acometido por forte insônia.
A sensibilidade cutânea também fica alterada, com pruridos, formigamentos e a sensação de que
pequenos insetos caminham sobre a pele (fenômeno conhecido por microzoopsia); muitos usuários, ao
tentar ‘caçá-los’, cutucam-se com agulhas, ocasionando lesões e ferimentos.
Podem ocorrer ainda alucinações, delírios com gritos, prantos, reações rapidíssimas, raciocínio
confuso e falta de bom senso, ilusões confusionais, ansiedade, mórbida predisposição para o crime e até
suicídio. No vício mais profundo, cronicamente os usuários envelhecem prematuramente, morrendo
com aparência de velhos, secos, em osso e pele.
Os casos mais sérios evoluem para transtornos mentais, nervosos, circulatórios e respiratórios,
podendo o usuário apresentar calafrios, desmaios, alteração da frequência respiratória, que por sua vez
origina parada respiratória, ocorrendo no início, em geral, severa hipertensão caindo após até colapso.
Em doses superelevadas leva à morte de maneira quase fulminante por síncope respiratória ou
circulatória, atribuída à ação direta da droga sobre o miocárdio.
Em realidade, a cocaína altera o mecanismo de produção de neurotransmissores, impedindo que a
dopamina (responsável pelo prazer orgânico) seja reabsorvida, e assim doses elevadas desse constituinte
orgânico ficam excitando os neurônios com fortes doses de prazer. Esgotando-se a produção deste, ainda
que momentaneamente, haverá depressão, quando então o usuário buscará absorver novas quantidades
da droga para que a depressão desapareça e assim sucessivamente, formando uma verdadeira roda viva.
Também interfere em outro neurotransmissor, a norepinefrina, não permitindo sua devolução ao
nervo. Assim há acréscimo dos níveis de NE no SNC, com perigoso aumento da frequência cardíaca,
sendo a fibrilação ventricular a causa de morte.
Hiperatividade, irritabilidade, dificuldade no aprendizado, insuficiência hepática, cérebro menor,
baixo peso ao nascer, aparelho respiratório comprometido, entre outros, são problemas comumente
encontrados em filhos de usuários de cocaína e de seus produtos mais brutos, como a merla e o crack.

Inalantes
Muitos agentes químicos voláteis são capazes de entorpecer reações emocionais, distorcendo a
consciência. Os mais comuns são os hidrocarbonetos (solventes), como tolueno (um dos produtos
da cola de sapateiro), tíner, benzeno, gasolina, clorofórmio, éter, acetona, fluido de isqueiro (cloreto
de metileno), cloreto de etila (lança-perfume) etc. Pelo fato de serem relativamente baratos e de fácil
acesso, os inalantes têm um alto potencial de abuso.

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Os jovens tratam esses produtos como ‘loló’, e a prática de usá-los como ‘cheirinho de loló’.
No organismo, eles afetam tecidos ricos em gordura e dissolvem membranas do tecido nervoso,
alterando seu funcionamento. Quase todos atuam na membrana dos neurônios.
No início da gravidez, o uso da droga pode causar efeitos adversos ao feto, como malformação física
ou deficiências funcionais, redução do tamanho, do peso e do QI do feto, podendo ainda interromper
a gravidez e danificar células reprodutivas.
Como são inalados, passam dos pulmões ao sangue e daí para o cérebro, agindo com seu potencial
máximo, sem formar no organismo produtos menos tóxicos. São depressores do SNC, e alguns, como
o benzeno, levam à anemia aplástica, por depressão da medula.
Durante seu consumo ocorre inicialmente excitação, euforia, agressividade, tontura, fraqueza,
dor de cabeça, marcha cambaleante (como do ébrio), visão embaçada, perturbações auditivas e visuais,
arritmia, labilidade emocional e dificuldade de respiração (quase sempre provoca edema pulmonar).
Ocasionalmente acontecem vômitos, náuseas, inconsciência e até paralisia, que pode levar ao coma
e à morte, assim como a fibrilação ventricular. Na segunda fase, de depressão do SNC, ocorre forte
desorientação, dor de cabeça, palidez, e a pessoa passa a ver e a ouvir coisas.
Não raro, os usuários desenvolvem características psicóticas, como também a droga deprime a
capacidade de concentração do músculo cardíaco.
Pressão baixa, emagrecimento, estreitamento das fendas palpebrais, zumbidos nos ouvidos,
sensação de insetos coloridos (borboletas) sobrevoando a cabeça são sintomas paralelos, enquanto o
delírio quase sempre precede a inconsciência.
Pelo contato, os inalantes lesam a pele com irritação, descamação e rachaduras. Pelo uso crônico,
provocam lesões irreversíveis no SNC, ocasionando apatia, dificuldade de atenção, déficit de memória,
taquicardia pronunciada, lesão na medula óssea, no fígado, nos rins e nos nervos periféricos que
controlam os músculos.
Nas necropsias de vítimas dessas drogas encontram-se petéquias (pontos hemorrágicos múltiplos)
nos pulmões, no coração e no cérebro, bem como se observa degeneração gordurosa de órgãos como
coração, fígado, rins e suprarrenais.
Até o momento, poucos esforços têm sido feitos para combater o consumo de inalantes, apesar
dos danos que provocam nos usuários.

Lysergsäurediethylamid (LSD)
A dietilamida do ácido lisérgico foi obtida acidentalmente pela primeira vez por Albert Hoffman,
nos laboratórios Sandoz, na cidade de Basileia, na Suíça, em 1938. Após absorção acidental da substância
pelo próprio Hoffman em 1943, suas propriedades alucinógenas foram registradas.
Usada geralmente por via oral pelo fato de ser muito solúvel em água, a LSD também pode ser
injetada, inalada ou absorvida pela pele. Cerca de 20 microgramas já provocam efeitos marcantes,
como alterações do humor e emotividade. Os usuários riem ou choram mediante leve provocação, têm

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distorções ou alterações da percepção visual e tátil, além de delírios, distúrbios de afetividade, do estado
de ânimo e dos padrões motores, incluindo a catatonia. Pode-se afirmar que esse e todos os demais
alucinógenos são verdadeiros perturbadores mentais.
É um dos psicogênicos mais potentes conhecidos, perturbando os processos intelectuais e levando
à confusão e dificuldade de raciocínio.
Segundo os consumidores, os efeitos mais frequentes da droga são a sensação de despersonalização
(perda da imagem do corpo) e desrealização (não saber se as coisas estão acontecendo de verdade ou
não), bem como alterações na percepção de formas, tamanhos, cores e distâncias.
A LSD pode provocar ainda sinestesia, fenômeno pelo qual a pessoa pode ‘ver’ sons, ‘cheirar’ cores
e ‘ouvir’ objetos.
A fisiologia da droga não está perfeitamente esclarecida, mas sabe-se que ela atua inibindo a
serotonina no nível dos centros subcorticais (hipotálamo e hipocampo), provocando importantes
efeitos cerebrais e sendo um verdadeiro transformador mental por promover fortes alucinações, que
podem se assemelhar a reações esquizofrênicas agudas. Embora a psicose possa ser reversível, há casos
relatados de que a reversibilidade não foi possível.
Os efeitos citogenéticos como dano aos cromossomos estão confirmados, com risco de aborto e
alta taxa de anomalia fetal.
Um sintoma marcante do uso da droga é a midríase a qual perdura por muito tempo. Também
ocorre forte taquicardia, hipo e após hipertensão, salivação intensa, resultante da descarga do sistema
nervoso autônomo, além de tremores, náuseas, dores pelo corpo, aumento de reflexos orgânicos,
congestão de face e mucosas.
A noção de tempo e espaço pode ficar distorcida, não havendo distinção entre acontecimentos
presentes, passados e futuros. Os usuários crônicos apresentam déficit intelectual e de memória, além
de extrema passividade. Muitos acusam sensação de leveza, de flutuação, e em alguns casos ‘pensam’
que podem voar e se projetam de locais elevados para a morte.
As ocorrências somáticas e psíquicas são assim observadas:

a) fase de latência: compreendida entre a utilização e o surgimento dos sintomas psíquicos;

b) fase da psicose: quando surgem as verdadeiras perturbações psicóticas;

c) fase do declínio: ocorre dissolução gradual da sintomatologia até seu desaparecimento, em


aproximadamente 12 horas.

Muitos usuários sofrem experiências aterrorizantes, chamadas badtrip (viagem ruim), em que
sentem perder o controle de suas emoções. Muitos têm a sensação de que se transformam em répteis
que lentamente engolem a si mesmos.
A dependência psicológica da droga pode se instalar, porém não a orgânica.
Muitos usuários, ainda que a utilizem por poucas vezes, podem manifestar um efeito de flashback,
ou seja, mesmo não usando a droga, manifestam sensações de estarem sob o efeito do produto.

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Outras drogas, menos comuns em nosso país

Mescalina
Alcaloide extraído do cacto Lophophora wiliansii, nativo do México e de alguns estados norte-
-americanos vizinhos a esse país. É conhecido popularmente como peyote, que na arcaica língua asteca
significa ‘manjar ou carne dos deuses’. Acreditavam eles que por meio do consumo da droga podiam
fazer contato com divindades (fruto das alucinações produzidas), por isso a veneravam. Os sacerdotes
espanhóis chamavam-no de ‘raiz maldita’.
De forte sabor nauseante e desagradável, é tomado em decocção, como também se podem ingerir
fatias (secas) da raiz e do cacto em si.
É um potente alucinógeno, que inicialmente excita e em seguida deprime o SNC, produzindo
forte ansiedade, hiper-reflexia dos membros, alterações psíquicas, vívidas alucinações táteis e visuais
(com exaltação de cores e luzes, como se fosse um caleidoscópio com milhares de pedrinhas coloridas),
acompanhadas de náuseas e vômitos.
Seus efeitos se iniciam pela fase da excitação, que é semelhante ao início da embriaguez alcoólica,
passando para a fase sensorial, que dependendo da personalidade do usuário é marcada por sedação e
visões coloridas (motivo pelo qual a mescalina é conhecida por ‘droga que faz os olhos maravilhosos’,
tal a intensidade de cores e luzes que se manifestam). Outros sintomas são a sinestesia entre o sentido
auditivo e visual, imaginado o consumidor ter audição colorida, e ainda marcante alteração do humor.
Em alguns casos percebe-se paranoia com mania de perseguição e catatonia com sensação de
preguiça, deixando o indivíduo contrário a todo e qualquer movimento, em estado psicótico, vivendo
em um mundo criado por sua mente alterada.
Outros sintomas incluem secura de boca, diminuição do volume urinário, insônia, anorexia
e inquietude.
Por depressão do SNC, a morte pode ocorrer por parada respiratória ou cardiovascular.

Cogumelos alucinógenos
Os mais conhecidos são o Psilocybe heim, originário do México e do sul dos Estados Unidos, e
o Stropharia cubensis, originário das ilhas do sul do Pacífico, ambos contendo psilocibina e psilocina,
poderosos psicodélicos.
Povos indígenas os consomem há milhares de anos durante práticas religiosas. Há um ditado
mexicano que diz: “qualquer coisa que uma pessoa queira saber os espíritos do cogumelo responderão”.
Na década de 1960 jovens europeus e norte-americanos visitavam tribos indígenas mexicanas em
busca dos cogumelos para terem visões coloridas.
No Brasil, existe um cogumelo que nasce sobre o excremento do gado e é chamado de ‘estercomina’
devido a sua origem. Ele contém pouca quantidade de psilocibina e menos ainda de psilocina, porém
suficiente para provocar alucinações.

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Esses dois princípios são corpos indólicos que na esfera psíquica originam extroversão, falhas de
atenção, modificação na percepção de tempo e espaço, vívidas alucinações coloridas, além de alterações
olfativas. Percebe-se também a sinestesia, semelhante a outros alucinógenos.
Em geral a midríase é acentuada, percebendo-se também aceleração caleidoscópica dos
movimentos, euforia, loquocidade, riso fácil, podendo transformar-se em disforia com angústia,
apreensão e perplexidade.
Em geral seus efeitos se assemelham com os da serotonina (assim como a LSD e a mescalina), por
isso muitos atribuem à acumulação de serotonina os efeitos psicóticos desses produtos.
Sua ação no organismo se resume em:
a) efeito somático – em geral precoce são as perturbações neurovegetativas, como pulso lento,
neurológicas em geral, alterações sensitivas, vertigens, entre outras;
b) efeitos psíquicos – latência inicial, fadiga, sonolência, mal-estar. Em seguida ocorre excitação,
euforia, distorções de percepções visuais e táteis, alucinações, modificação na percepção de
tempo e espaço, alterações olfativas, falhas de atenção (fruto da ação psicotomimética).
Muitas vezes ocorrem visões fantásticas, cheias de colorido e significado simbólico. Objetos
parecem alterados em sua forma, com cores acentuadas, contornos iridescentes e sons
intensos (hiperacusia).

O ciclo termina entre oito e dez horas, tempo após o qual a consciência volta ao nível normal,
conservando sua recordação da experiência, ainda que parcial.
Os usuários crônicos podem apresentar déficit de memória.
Quase sempre há forte tolerância aos efeitos psicológicos, que desaparecem em poucos dias pela
supressão de uso, não desenvolvendo o usuário dependência orgânica, mas psicológica, talvez pela
busca de visões coloridas.

Ópio e derivados
Ópio é uma palavra que vem do grego e significa ‘suco’. É obtido da cápsula verde da papoula da
espécie Papaver somniferum L.
O suco leitoso (seiva) obtido das cápsulas é secado ao ar, transformando-se numa massa marrom
escura, fruto da oxidação pelo oxigênio do ar. Após moagem, o produto vira um pó amarronado (como
é conhecido o ópio), o qual contém vários alcaloides muito importantes, merecendo destaque o mais
usado como droga medicamentosa e psicotrópica, a morfina, e seu derivado, a heroína.
Em geral, o ópio é fumado. No século XIX, existiam na China e em alguns países da Europa,
principalmente na Inglaterra (primeiro país a ser contaminado em massa pela droga) inúmeras casas
próprias para se fumar o produto. Também se vendiam em Londres pílulas ou tabletes de ópio para
consumo. Seu principal apologista foi o escritor Thomaz de Quincey, que chegou a publicar um livro

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intitulado Confissões de um inglês comedor de ópio, no qual narra experiências com o produto,
desventuras e agruras do vício e da tentativa de libertação deste (alguns de seus alcaloides estão entre as
piores drogas apara aprisionar os usuários).
Pela proibição do governo devido à percepção de que provocava efeitos danosos, aos poucos, o
hábito de fumar ópio foi deixado de lado.
Os efeitos e consequências da droga sobre o organismo são devidos principalmente à morfina.

Morfina
Seu nome derivada denominação do deus grego do sono, Morfeu, devido as suas propriedades
sedativas. Ela tem uma excelente ação terapêutica, suprimindo a dor, e como droga de abuso causa uma
multiplicidade de efeitos.
É introduzida no organismo pelas vias oral, retal e parenteral, sendo esta a mais comum como
droga de abuso.
Age sobre o SNC com uma ação narcótica de supressão à dor, analgesia, sonolência, além de
obnubilação mental e alterações do humor, podendo ainda ocorrer disforia com fortes náuseas e até
vômitos. Ocasiona prejuízo da disposição física e mental e incapacidade de concentração, distúrbios do
intelecto, apatia, letargia e baixa acuidade visual.
O usuário pode apresentar prurido na face (em particular no nariz) e secura de boca.
O ópio interage com neurotransmissores imitando a endorfina (analgésico natural do cérebro) ao
ocupar os receptores naturais daquela, dando a ilusão de uma enxurrada desse analgésico natural, quando
então os neurônios cortam a produção de endorfina, provocando grande mal-estar e dores insuportáveis,
que são aplacadas com nova dose e assim sucessivamente, produzindo rápida tolerância. As doses
aumentadas para os mesmos efeitos levam a crises pronunciadas de sonolência e depressão respiratória.
Os centros psíquicos são os primeiros a serem afetados, com perda de atenção, de autodomínio e
falta de coordenação de ideias. Os centros inibidores são paralisados, tornando-se um ser reflexo.
Pequenas doses já manifestam sintomas como ataxia, pupilas puntiformes (tamanho de cabeça de
alfinete), palidez, cianose, excitação passageira, sudorese, náuseas, entre outros. Após novas doses ocorrem
oligúria (diminuição do volume urinário), dores nas pernas e costas, múltiplas feridas nos locais de aplicação,
debilidade orgânica, diminuição do apetite, emagrecimento, constipação intestinal, problemas respiratórios.
As mulheres apresentam irregularidades no ciclo menstrual, e os homens manifestam impotência sexual.
Por parada respiratória ou complicações pulmonares, como edema ou pneumonia, a droga pode
levar à morte.

Heroína
Droga derivada obtida da morfina cuja ação é semelhante à desta, porém com ação analgésica
mais curta e euforizante maior.

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Provoca rápida dependência orgânica devido à maior interação com receptores químicos orgânicos.
A síndrome de abstinência desta droga é a pior dentre todas as outras, daí porque o aprisionamento de
usuários que passam a buscar a heroína a qualquer preço, com índice de recuperação muito pequeno,
mesmo com tratamentos adequados, que parecem melhores quando se usa a gradual substituição por
outro alcaloide com menos efeitos colaterais e vício.
Durante a ação da droga o dependente desliga-se do mundo exterior, acompanhado de extremo
prazer. A diminuição dos batimentos cardíacos traz graves problemas, inclusive com produção excessiva
de noradrenalina, que na falta momentânea da droga faz o coração disparar, com risco de ataque
cardíaco. A heroína provoca perda da sensibilidade, anestesia, cólicas abdominais com prisão de ventre
e diminuição da libido.
Na abstinência, as dores são insuportáveis, alternando entre constipação e diarreia. Além disso,
como o corpo é incapaz de regular sua temperatura, o usuário sua muito ou tem calafrios e fica com a
pele eriçada, chamada de cold turquey (peru frio).
Infecções decorrentes da aplicação de material não esterilizado corretamente, Aids por seringas
compartilhadas, septicemia, hepatite, tromboses, acidentes vasculares estão entre as complicações
observadas.
Deve-se levar em conta que drogas ilícitas geralmente vêm acompanhadas de impurezas, como
fungos, bactérias, produtos químicos residuais, podendo causar tétano, graves infecções e até a morte.

Psicofármacos – depressores
Podem ser administrados via oral, retal ou parenteral. Muitos consomem esses produtos sem
critério, mesmo quando são receitados como medicamentos. Deve-se levar em conta, também, que
nem sempre o profissional que os receita toma o devido cuidado de orientação de uso.
Os depressores são drogas que diminuem a atividade mental, a vigília e deprimem as funções
emocionais, entre outros efeitos. Merecem destaque dentre eles os derivados barbitúricos e os derivados
benzodiazepínicos. Em geral, os primeiros provocam depressão e sonolência, e em muitas ocasiões os
usuários esquecem que ingeriram o produto e tomam nova quantidade, produzindo uma dose elevada
que pode trazer sérias consequências. Além disso, a associação deles com outros depressores, como o
álcool etílico, provoca complicações ainda maiores, muitas vezes fatais.
Muitas pessoas usam esses produtos como droga de abuso para contrabalançar os efeitos dos
estimulantes e dos alucinógenos, porém eles podem causar tolerância orgânica por adaptação do tecido
nervoso.
A supressão da droga leva à síndrome de abstinência, problema sério em virtude de convulsões
generalizadas e todas suas consequências. Sobre o SNC produz vários graus de depressão, variando da
sedação leve ao coma. Por isso, o usuário pode apresentar marcha semelhante à do ébrio, titubeante e
com ataxia.

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Muitas vezes notam-se nos usuários movimentos oscilatórios do globo ocular (nistágmo). Eles
podem apresentar ainda faces congestas, sudorese, lentidão de reflexos, vertigens (portanto, por lei,
quem os consome não pode dirigir veículos), eventuais náuseas e vômitos. Os efeitos também incluem
sonolência, relaxamento, depressão, confusão mental, vertigens, zumbidos etc.
Podem manifestar-se também problemas respiratórios, como apneia, taquipneia, edema pulmonar
agudo, asfixia, choque e até parada cardíaca.
Depressão bulbar, fibrilação ventricular, broncopneumonia (complicação temida em altas doses)
e uremia com grave lesão renal são causas de morte.
Os derivados benzodiazepínicos guardam alguma semelhança com os barbitúricos, mas seus
efeitos não são tão agudos, variando muito com a dose utilizada e susceptibilidade individual. Atuando
sobre a ansiedade e a tensão, também são chamados de ansiolíticos.
A retirada desses produtos deve ser lenta e gradual, para se evitar manifestação de supressão.

Estimulantes
Sem sombra de dúvida, a anfetamina e substâncias quimicamente semelhantes são os produtos
mais utilizados como drogas de abuso e ‘recreativas’.
A anfetamina é uma substância sintética com forte ação sobre o SNC. Há muitos anos foi
largamente utilizada como droga contra a fadiga e utilizada em larga escala por militares durante a
Segunda Guerra Mundial. Ao retornarem desta para casa, muitos soldados espalharam a fama de
produto revigorador, e ao se perceber que ela diminuía a vontade de comer, foi explorada pela indústria
farmacêutica a partir da década de 1950.
Na década de 1960 muitos viciados em heroína foram erroneamente tratados com injeções de
anfetamina na esperança de substituição, pois se acreditava que esta não viciava e curaria os usuários
sem problemas. Triste engano. Na época, ela era conhecida no Brasil como ‘bolinha’.
Muito comum, por algum tempo, foi o ice (gelo, em inglês), quimicamente a metedrina, uma
variedade de anfetamina produzida em forma de pequenas pedrinhas cristalinas.
A anfetamina provoca euforia, inapetência, diminui a sensação de cansaço e leva a uma hiperestesia
sensitiva, deixando os sentidos mais aguçados, a luz mais intensa e as cores mais vivas. Os reflexos
do usuário ficam mais rápidos, daí porque são apreciadas por internautas, os quais passam várias
horas navegando na internet, o que pode causar sérios problemas decorrentes de lesões da vista e
descolamento da retina, levando até à cegueira. Crises de paranoia, ansiedade e taquicardia são algumas
das consequências de seu uso.
Atualmente, jovens usam muito o ecstasy, que é a metilenodioximetanfetamina (MDMA),
poderoso estimulante com ação prolongada. Conhecido pelos usuários como E, bala, Adam etc., é
consumido em festas para garantir muitas horas de euforia, porém tem consequências devastadoras.
Os anfetamínicos, em face de seus efeitos prejudiciais ao ser humano, como alucinações e
descontrole emocional, deixaram de ser usados como moderadores de apetite.

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O MDMA aumenta a quantidade de dopamina no organismo e de norepinefrina no cérebro,


mexendo com os níveis de serotonina e alterando o funcionamento do córtex sensorial, daí as alucinações,
a alteração de percepção, o efeito pró-social, a empatia. A droga deixa os sentidos, em especial o tato, mais
aguçados, dando vontade de tocar nas pessoas, daí porque também é conhecida como ‘droga do amor’.
Sendo os anfetamínicos desativados lentamente, é necessário mais tempo para que excessos de
dopamina e noradrenalina sejam consumidos, tendo como resultado um efeito mais prolongado. Em
muitos homens a capacidade de manter ereção se reduz, e mesmo quando induzidos ao sexo ficam
distraídos, dificilmente chegando ao final. Em muitos casos, na tentativa de conseguirem satisfação,
recorrem a anomalias sexuais.
Pode-se dizer, de modo geral, que os anfetamínicos são inibidores do apetite, dilatadores dos
brônquios, estimulantes respiratórios, perturbam inibições, com lapsos de confusão e amnésia,
aumentam a autoconfiança, são hipertensores e aumentam a atividade psicomotora (durante o efeito
produzem menos cansaço, porém se segue forte sensação de fadiga e depressão).
Muitos utilizam o produto como doping na tentativa de aumentar seus rendimentos esportivos,
porém, ainda que ele lhes dê mais fôlego, a distração provocada pela droga atrapalha e os usuários não
conseguem melhorar suas qualidades atléticas.
Motoristas usam produtos estimulantes (os chamados ‘rebites’) para dirigir por muitas horas e
espantar o sono e o cansaço, podendo em muitas ocasiões largar o volante estando certos de que
alguém irá dirigir em seu lugar, daí porque esses produtos são chamados também de copilotos.
Possíveis crises de ausência provocam graves acidentes. Os sintomas de loucura, induzidos por
doses repetidas, são o início de uma psicose paranoica com mania de perseguição, alucinações auditivas
e visuais. Ao contrário do esquizofrênico, o usuário tem consciência de que os sintomas são provocados
pela droga. Violência e agressão são comuns. Na depressão física ou mental, resultado de largas doses,
o suicídio é comum.
Após uso prolongado nota-se nervosismo acentuado, irritabilidade, vertigens, náuseas, midríase,
tremores, loquacidade, alucinações, euforia, delírios, insônia, anorexia, taquicardia, bruxismo,
hipertensão, hiperglicemia, anúria (líquidos se acumulam no organismo e por isto, nos medicamentos
de manipulação se misturam diuréticos, que sem controle ou necessidade, podem trazer danos
cardíacos), alteração de percepção, prazer em tocar pessoas, empatia. Por provocar alta excitação, forte
sudorese, agitação, sensação de aumento da capacidade física, poderá levar a forte hipertermia, e se a
temperatura corpórea chegar de 41 °C a 43 °C pode causar coma e até a morte.
Os efeitos iniciais anorexígenos são marcantes, com inicial diminuição da motilidade gástrica
(após haverá adaptação), depressão central da fome, aumento do gasto de energia pelo aumento de
atividade física e queima de calorias.
Outros efeitos são verbosidade acelerada, eloquência inesgotável, fala rápida, mudando de um
assunto para outro com difícil compreensão, instabilidade psicomotora, ranger de dentes, pruridos,
sudorese intensa (fétida), secura de mucosas, boca com mau hálito, contrações musculares com dores,
hiperacusia, má formação no início da gravidez.
O uso contínuo e prolongado leva a psicoses com verdadeira mudança de personalidade.

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Pode provocar tolerância em relação à euforia e ao bem-estar, e por isso com o tempo os usuários
terão de aumentar dose da droga para obter os mesmos efeitos.
Na supressão de uso o indivíduo manifesta angústia, paranoia, pânico, dúvida, levando à procura
desesperada de novas doses.
Doses muito altas podem causar danos permanentes aos vasos sanguíneos que irrigam o cérebro
pelo aumento da pressão arterial, podendo levar a um derrame com risco de paralisia permanente ou
mesmo de morte.
O uso médico dos anfetamínicos está restrito ao tratamento da obesidade (por atuarem no
hipotálamo ventrolateral, facilitando a liberação de noradrenalina e inibindo a ingestão de alimentos),
porém esse uso é bastante questionável face aos problemas já mencionados.
Há dois padrões de uso: diário, como medicamento, tendendo a aumentar com o tempo;
intermitente, alternado altas doses diárias, até exaustão, com período de depressão, falta de energia,
anedonia (falta de prazer), sonolência e prostração.
Fórmulas farmacêuticas associam ansiolíticos e sedativos para compensar os efeitos da
superestimulação ou mesmo para o paciente descansar e até dormir, sendo que o próprio usuário pode
fazer uso desses depressores por conta própria. Isso chega a evoluir para a chamada ‘síndrome do efeito
múltiplo do uso de drogas’, podendo desenvolver vício em depressores.
Os mecanismos que criam tolerância às drogas psicotrópicas são complexos e nem sempre
bem compreendidos, quase sempre refletindo mudanças nos neurônios do cérebro que apresentam
dificuldade de serem ativados, com necessidade de aumentar a dose para reprodução da resposta até
nas enzimas hepáticas.
Além disso, influenciam no ciclo menstrual e podem causar problemas irreversíveis com o embrião
nas primeiras semanas de gravidez.

Plantas alucinógenas
As sociedades primitivas sempre consumiram produtos naturais com efeitos psicotrópicos, como
plantas, geralmente usadas em cerimoniais religiosos pelos xamãs. A fumaça de muitas plantas era
considerada alimento dos espíritos nos ritos religiosos.
Os incas, por exemplo, mascavam folhas de coca com cinzas durante seus ritos religiosos.
A planta Cathaedulis (Kath), usada em sais de banho, repelentes e odoríferos de ambientes, tem
como princípio ativo a catinona, potente estimulante alucinatório de difícil detecção. As folhas são
usadas em forma de chá, mas modernamente também se utiliza sua forma sintética, muito mais potente.
Os índios do alto Xingu, em caráter religioso, usam o caapi, bebida preparada com a casca de um
cipó conhecido como jagube ou mariri (Banisteriopsis caapi), que tem alto poder alucinógeno. Indígenas
bolivianos e peruanos usam o mesmo cipó, conhecido por eles como ayahuasca, que em quíchua
significa ‘cipó das almas’ ou ainda yagé (sonho azul), além de outros nomes como: nihi, dapa, pinde,
matema, hoasca. Se misturado com folhas da planta conhecida como rainha ou chacrona (Psychotria

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viridis), o caapi tem os efeitos aumentados. A droga ainda pode ser misturada a outros produtos, como
a maconha.
Essas plantas ajudaram a fundar no Brasil seitas religiosas, adoradoras da bebida, como o Santo
Daime, a União do Vegetal e a Barquinha, que acreditam em seus efeitos divinatórios.
A primeira se originou no século XIX com seringueiros do Acre, na região amazônica. Seu
fundador, o seringueiro Irineu Serra, foi apresentado à bebida em 1914 e em 1930 teria tido, sob a
ação da beberragem, uma visão de Nossa Senhora, que lhe ordenou o nome da seita (exortação de dai-
-me luz, ou dai-me felicidade) e que criasse a mesma em torno do produto, usando uma base cristã.
O princípio ativo do cipó é o alcaloide harmina, alucinógeno potente que contém ainda, em menor
quantidade, outro alcaloide, a harmalina, também com as mesmas propriedades. Já o princípio ativo
da planta rainha é a dimetiltriptamina (DMT), poderosa substância psicoativa de efeitos semelhantes
a alucinógenos como LSD, mescalina, psilocibina, entre outros.
O excesso de DMT no cérebro traz graves consequências: inibe a serotonina dos centros
subcorticais, produz euforia, distorção das percepções visuais e táteis e até estados de pré-esquizofrenia,
com surtos psicóticos, podendo mesmo levar à esquizofrenia aguda.
A ação da droga é muito rápida, com efeitos visuais coloridos, sono profundo e agitado, com
visões místicas de fatos pré-concebidos. Exemplificando, os usuários indígenas podem sonhar com
elementos da selva, que estão dominando animais ferozes, sobrepujando inimigos, conversando com
ancestrais, enquanto o homem branco tem sonhos alucinatórios envolvendo poder, riqueza, visões
místicas chamadas de ‘miração’, pode imaginar ter contato com espíritos etc.
Pelo uso contínuo a droga ocasiona não só alterações no SNC, mas também séria irritação gástrica1,
inflamação no fígado, entre outros problemas.

Drogas sintéticas
Há alguns anos, em muitos países estão sendo produzidos produtos sintéticos quase exclusivamente
para utilização como droga de abuso, com um aumento espantoso de produção. Ainda há poucas
informações, para a maioria das pessoas, sobre os efeitos de seu consumo em longo prazo. Além disso,
existem dificuldades legais de se conter a produção dessas substâncias. Algumas imitam compostos
naturais e outros têm estruturas químicas de difícil eliminação pelo organismo, de metabolização e até
de identificação.
A seguir serão apresentados exemplos de drogas sintéticas.

Canabinoides sintéticos
São muito mais potentes que os canabinoides naturais constituintes da maconha. Só em 2014 na
Europa ocorreram 23 intoxicações severas e 13 fatais decorrentes do uso desses produtos. Conhecidos
por spice, dream e K2, eles têm efeitos semelhantes aos da maconha, mas muito mais intensos,

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provocando grave insuficiência renal, hiperglicemia acentuada, xerostomia (secura anormal da boca) e
todas as consequências já apontadas para o uso da maconha.
Como são produtos de difícil identificação, não são detectados em testes usuais de maconha.

Catinonas
São encontradas naturalmente nas folhas da planta Cathaedulis (como já colocamos anteriormente)
e sinteticamente são vendidas como substitutas legais da anfetamina, da MDMA e da cocaína. Sua
potência é devastadora, com efeitos muito maiores do que o dessas drogas, trazendo riscos eminentes
aos usuários. Elas inibem fortemente a recaptação da dopamina, noradrenalina e serotonina.
Desde 2011 até 2016 foram contabilizadas 200 intoxicações agudas com estupendos surtos
psicóticos e pelo menos 100 casos fatais. Isso foi o que se conseguiu provar, pois como já foi colocado
aqui, nem sempre se consegue detectar o produto e/ou seus metabólitos.

Opiáceos sintéticos
Na atualidade, o Afeganistão é o maior produtor mundial de ópio. A forma sintética dessa droga é
tão ou mais perigosa do que ela. O consumo do fentanil, por exemplo, ocasiona todas as consequências
do uso da morfina, só que mais severas quanto à analgesia e prostração.
O risco de overdose também é maior. Nos Estados Unidos e no Canadá foram relacionadas ao uso
deste produto 20.000 mortes somente em 2016.
Outros opiáceos sintéticos como a oxicodona, feita com base na tebaína e de utilização terapêutica,
a codeína, a hidrocodona, a hidromorfina e a meperidina estão entre os derivados sintéticos mais
consumidos no mundo.

Mefidrona
Potente estimulante conhecido como ‘miau miau’ ou ‘droga dos zumbis’ em virtude do estado em
que ficam os usuários, que podem apresentar quadro semelhante à catatonia.
Podem-se citar ainda compostos derivados da feniletilamina, alguns com características da
anfetamina e de alucinógenos, no caso específico a língua dormente, o formigamento pelo corpo e a
forte agitação psicomotora, que a diferencia da LSD.
Alguns estão proscritos como medicamentos, mas sobrevivem clandestinamente, por exemplo:
• quetamina – anestésico de uso veterinário usado como droga de abuso por provocar euforia
e alucinações;
• ácido gama-hidroxibutírico(GHB) – produzido desde a década de 1960 inicialmente como
anestésico, mas abandonado pelos efeitos alucinógenos que provocava. Continua sendo
produzido clandestinamente;

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• gama-butirolactona (GLB) – idem ao GHB;


• cloridrato de fenciclidina (PCP) – surgiu nos anos 1970 como anestésico para animais de
grande porte. Ao ser usado por humanos produz intensas e duradouras alucinações. Seu uso
foi oficialmente abandonado cerca de uma década depois de iniciado;
• 2,5-dimetoxi-4-bromoanfetamina (DOB) – derivado da anfetamina, é mais potente que esta
e pode ser usado como base para a fabricação do ecstasy. Por ter os mesmos efeitos estimulantes
deste e ainda reações alucinógenas, seu consumo pode provocar forte pânico e surtos psicóticos,
por isso é chamada também de ‘droga do medo’;
• 1-metil-4 fenil-1,2,3,6-tetrahidropiridina (MPTP) – surgiu na década de 1980 para usos
análogos, mas logo foi abandonada por provocar sintomas semelhantes aos do mal de Parkinson.

CONCLUSÃO
Nunca devemos banalizar nem dramatizar o poder das drogas psicotrópicas, devendo pais e
responsáveis estarem atentos, impondo limites aos jovens e, sempre que for necessário, procurarem
ajuda especializada.
A luta da sociedade moderna deve ser eficaz, com políticas sérias de combate e rigor no cumprimento
de leis, pois a cada dia surgem novas drogas ou antigas retornam à cena com outra roupagem, mais
atrativa, e assim pessoas influenciáveis, principalmente os jovens, se tornam presas fáceis em face de sua
complexidade e fragilidade diante delas.
Devemos educar as novas gerações sobre o perigo das drogas com orientações abalizadas,
mostrando que se deve viver a realidade e não um mundo artificial, irreal, com sonhos impossíveis, à
custa da saúde ou da vida, pois ainda que consigam se livrar delas após ajuda e muita força de vontade,
terão perdido muito tempo sem que os problemas reais tenham sido resolvidos, além de terem causado
danos à saúde irreversíveis.
É preciso ser radical e dizer não, mostrando o valor da vida e o que de bom ela pode oferecer
naturalmente, dando aos jovens segurança e amor e lhes mostrando que é melhor viver com saúde e
lucidez do que doente e perturbado. É preciso fugir das drogas psicotrópicas.

NOTAS EXPLICATIVAS
1 Nas primeiras vezes em que consomem o chá do Santo Daime, as pessoas geralmente têm cólicas
abdominais, vômitos intensos e até diarreia, porém os condutores das sessões atribuem isso ao fato de o
corpo estar sendo limpo das impurezas.

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DEFINIÇÕES
Anúria: diminuição ou supressão da secreção urinária.
Crack: o nome se deve ao barulho que as pedras da droga fazem ao serem queimadas. Feito
geralmente da pasta básica, por não sofrer processos de purificação é ainda mais perigoso, pois contém
muitos resíduos químicos, como os cáusticos.
Linfócitos T: grupo de glóbulos brancos que constitui cerca de 70% dos linfócitos do sangue
responsáveis pelas defesas orgânicas.
Merla: sobra da primeira purificação na produção de cocaína, portanto com muitas impurezas.
Sinestesia: interferência entre diferentes modalidades sensoriais.
Xamã: espécie de feiticeiro ou líder espiritual.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
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USO, ABUSO OU DEPENDÊNCIA DE ÁLCOOL

Dagoberto Hungria Requião

O tema ‘álcool’ assume cada vez mais grande importância e relevância social do ponto de
vista da sociedade como um todo, mas especialmente na comunidade escolar, pelos seus aspectos
socioeconômicos, de saúde e de segurança, sendo talvez um dos mais desafiadores tanto para quem
escreve quanto para quem se dispõe a estudá-lo.
Todos nós, professores, alunos e familiares, de alguma forma, já tivemos, temos ou teremos de
enfrentar situações que envolvam o uso ou o abuso do álcool, em todas as fases de nossas vidas. O
álcool e seus efeitos é uma das drogas mais antigas que o homem conhece, vide no livro do Gênesis,
“ E como Noé era lavrador, começou a cultivar a terra, e plantou uma vinha. E tendo bebido do vinho,
embebedou-se e apareceu nu na sua tenda”. (Gen. 8,20-22).
Desde a antiguidade o álcool está vinculado a comemorações, festas, rituais religiosos, mistérios de
fé etc. Apesar disso, poucos países proíbem o fabrico e o consumo do álcool, sem conseguir impedir seu
consumo por parte da população, com todas as implicações decorrentes do seu uso ou abuso. Como
veremos adiante, a presença universal do álcool não significa que quem o usa seja considerado um
alcoólico, pois a maior parte da população mundial faz uso não abusivo do álcool, sendo por diversos
motivos uma substância considerada legal e de uso social. O álcool não é considerado droga pela
sociedade, mas é uma droga muito perigosa, geralmente quando apresentada às crianças no próprio
seio familiar.
A sociedade comporta-se de forma bastante cínica em relação ao álcool, pois ao mesmo tempo em
que incentiva o uso, com maciças propagandas na mídia, rejeita totalmente os indivíduos que abusam
do álcool ou mesmo adoecem por causa dele. Essa não aceitação faz com que essas pessoas sejam
consideradas fracas de caráter, malandras, insensíveis, perigosas, rejeitadas e excluídas do convívio
social de forma estigmatizante e preconceituosa, diferentemente do que acontece com a maioria das
patologias, que cursam com alterações comportamentais.

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Poucas doenças estigmatizam tanto quanto o portador de problemas com o álcool, assim como
rejeitam e pré-julgam o doente. Essa rejeição social traz enormes entraves ao enfrentamento desse
problema, tanto por parte da família quanto da sociedade e da própria medicina, pois as famílias
relutam durante muito tempo a procurar ajuda especializada. Os portadores do alcoolismo, ou
também chamado pelos especialistas de Síndrome de Dependência ao Álcool, quando diagnosticados
são profundamente desacreditados em virtude da aparência física e do grau no qual o comportamento
possa representar risco aos outros. Violência, agressões e tumultos sempre estão associados à
intoxicação alcoólica.
Assim, compreender a doença alcoólica exige de cada um o desprendimento da postura
preconceituosa e moralista existente e a aceitação de que o alcoolismo é uma doença incurável,
progressiva e fatal, mas que pode ser detida e controlada.
O professor irá abordar, na maioria das vezes, não os alunos já portadores da doença, que serão
minoria, mas sim jovens que estão bebendo de forma absolutamente prejudicial e que precisam de
orientação precisa, compreensiva e assertiva sobre os riscos para a sua saúde.
Os comportamentos desses indivíduos estão sempre associados a medo, raiva, revolta, violência,
agressividade e tumultos. Esse tipo de ação não acontece obrigatoriamente em situações comuns na
escola, mas estarão sempre dependendo do grau de intoxicação que o jovem possa apresentar.
Com base nessas informações básicas, fundamentadas cientificamente, os mestres se sentirão
muito mais seguros e confiantes, não hesitantes, e assertivos em lidar com alunos em situação de crise.
Álcool é a droga, entre as lícitas e ilícitas, que mais avança no consumo entre jovens, apesar
de muitas pessoas acreditarem que não. Atualmente, os jovens bebem muito e de forma altamente
prejudicial e não há mais distinção entre o beber dos meninos e o das meninas. Elas bebem hoje
as mesmas quantidades e tipos de bebidas que os meninos. Nos últimos anos houve significativas
mudanças no contexto familiar, com evidentes modificações nos relacionamentos entre pais e filhos.
Com essa cisão da família, muitos valores foram alterados, e a linha que separa o ‘muito absurdo’ do
‘muito normal’ está cada vez mais tênue: jovens bebem com o estímulo dos pais, e estes têm dificuldade
em impor limites. A apresentação dos jovens às bebidas alcoólicas é muitas vezes servida pelos próprios
pais, pois ‘uma espuminha da cerveja não vai fazer nenhum mal’. A sociedade em ‘modernização’ e mais
liberada está abrindo mão de muitos valores e deixando de cumprir algumas normas preestabelecidas,
prejudicando principalmente a juventude.
As pesquisas feitas no Brasil entre estudantes do ensino fundamental e do ensino médio de escolas
públicas e particulares vêm apontando o início da experimentação de álcool em faixas etárias cada vez
mais precoces.
Na década de 1970, o primeiro uso de álcool acontecia entre os 16 a 18 anos, sendo que duas
décadas após a faixa de início de uso caiu para 12 a 13 anos. Atualmente, pesquisas têm mostrado
que a faixa etária de uso experimental está diminuindo, mesmo com a proibição de venda de bebidas
alcoólicas para menores. Outro dado bastante preocupante (citado em Congresso de Psiquiatria On
Line,2020) é que devido à pandemia do Covid-19 neste ano de 2020, já são percebidos em consultórios

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médicos, ambulatórios, serviços de emergência, um aumento significativo de pessoas abusando do


álcool. Da mesma forma, dados da FIOCRUZ (ConVid) mostram que, entre as pessoas entrevistadas
(44.062), 53% responderam ter se sentido mais ansiosas e deprimidas após o início da pandemia,
inclusive aumentando o consumo de álcool em 18%. Entre os jovens de 18 a 29 anos, 70% informou
que tem estado mais ansioso e nervoso. Entre os fatores já identificados relacionados ao consumo
abusivo de álcool que levam à dependência são: a mudança de estilo de vida exigida por estes novos
tempos; a permanência maior das famílias dentro de casa; o trabalho à distância (homeworking); o
afastamento dos grupos de seus convívios sociais; a persistente tensão pelo risco da perda do emprego.
Muitos indivíduos que conseguiam manter-se abstêmios em relação ao álcool, recaíram.

Gráfico 1 – Porcentagem de uso de álcool, maconha e tabaco no último mês, em 2005.

40

35

30

25

20

15

10

0
Bebidas Cigarro Maconha
alcoólicas
Fonte – Adaptado de Carlini, 2005.

De acordo com o gráfico anterior, em levantamento domiciliar feito em 2005 em 108 das maiores
cidades do país com indivíduos de 12 a 65 anos, verificou-se que 35,3% dos entrevistados tinham feito
uso de álcool no último mês, 0,6% tinham feito uso de maconha e 19,8% de tabaco, respectivamente.
(CEBRID; SENAD; UNIFESP, 2005).
Diferentemente do que é noticiado na mídia, as drogas mais consumidas pela população adulta
são o álcool e o tabaco. Pela forte pressão que essas indústrias exercem sobre as pessoas, levam-nas a
acreditar que o álcool e o tabaco, que são consideradas drogas socialmente aceitas, não causam danos à
saúde. Não se deve esquecer que os pais têm enorme responsabilidade na conduta que os filhos possam
ter com alguma experiência com bebidas alcoólicas.
O Brasil nas últimas décadas, por meio de organizações governamentais, centros de excelência
e universidades, tem podido avaliar, mediante levantamentos epidemiológicos que fornecem dados
diretos do consumo de drogas, a real situação das drogas em uma determinada comunidade. Diversos
levantamentos têm propiciado uma radiografia do comportamento das drogas, quais os tipos mais

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prevalentes, quais as populações em condições de risco etc. Esses levantamentos envolvem diversos
setores da comunidade, pesquisas com estudantes de ensino fundamental, médio e universidades, tanto
públicas quanto privadas, pesquisas nas residências dos entrevistados, crianças em situação de rua, entre
outros. O Primeiro Levantamento Domiciliar (2001) sobre uso de drogas psicotrópicas foi obtido
em questionários que foram entregues a cidadãos das 107 maiores cidades do país. Considerando
somente o álcool, a pesquisa mostrou que 68,7% das pessoas já tinham experimentado álcool pelo
menos uma vez na vida. Evidenciou também que pessoas que preenchiam os critérios diagnósticos para
dependência chegavam a 11,2% dos pesquisados.
Quatro anos após (2005), no Segundo Levantamento familiar, 75% das pessoas já tinham
experimentado álcool pelo menos uma vez na vida e 12,3% foram diagnosticados como dependentes
do álcool. As idades pesquisadas variavam dos doze aos dezesseis anos, e surgiram então os primeiros
indícios de que as crianças em idades mais precoces já se relacionavam com o álcool de forma prejudicial.
O V Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas entre Estudantes do Ensino
Fundamental e Médio da Rede Pública das 27 Capitais Brasileiras (2004) revelou dados preocupantes
encontrados nos questionários. É importante salientar que esses levantamentos são feitos de forma
absolutamente confidencial, sendo que os alunos não fornecem nenhuma informação que permita
que sejam identificados. Isso faz com que a veracidade das informações fornecidas seja considerada de
absoluta confiança.
A pesquisa identificou que o início da experimentação do álcool aconteceu em média aos doze
anos de idade, e que esse uso foi feito em suas casas, com bebidas usadas pelos próprios pais. Apesar
disso, não são encontrados relatos de intoxicações sérias ou ‘beber prejudicial’ nessa faixa etária.
Demonstrou, contudo, que 65,2% dos entrevistados já haviam experimentado álcool pelo menos por
uma vez na vida, que 63,3% já haviam feito algum uso no último ano e que 44% haviam usado
bebidas alcoólicas no último mês. Chama a atenção, de forma bastante preocupante, que 11,75%
relataram uso de bebidas seis ou mais vezes no último mês e 6,7% fizeram uso de bebidas vinte ou
mais vezes no mês. Esses dois índices revelam características de ‘beber frequente’ e ‘beber pesado’. A
reflexão necessária aqui, é que, apesar de não termos uma epidemia de drogas, conforme apregoado,
não podemos minimizar as relações que os jovens vêm tendo com as bebidas alcoólicas. A participação
da família e principalmente da escola é de extrema importância. Atualmente, é crescente o número de
alunos que são flagrados em pleno colégio, e mesmo em sala de aula, fazendo uso de bebidas (tubão)
em atitudes desafiadoras. É importante anotar que nos últimos anos têm havido um crescimento no
consumo de bebidas energéticas. Essas bebidas, longe de parecerem seguras para a saúde, associadas
ao álcool trazem problemas sérios para o organismo humano, tanto físico quanto mentalmente. Os
componentes contidos nesses energéticos são: vitaminas, cafeína, taurina (desintoxicante), suplementos
de ervas e açúcar ou adoçantes. Como se trata de uma bebida doce, ela mascara o sabor do álcool que
é ingerido junto, contribuindo para o maior consumo de bebidas alcoólicas, colocando os jovens,
perigosamente, na direção do alcoolismo. A cafeína, que é um estimulante da atividade cerebral, quando
usada em excesso, determina o aumento da sensação de euforia e diminui a percepção da embriaguez.

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Esse fato estimula os jovens a terem conduta de risco, tanto físicos quanto comportamentais. Por isso,
o uso frequente de energéticos está associado a um risco significativamente maior de desenvolver a
dependência do álcool.
A compreensão deste artigo exige a necessidade do conhecimento de termos que são usados
na problemática do álcool e que permitem uma compreensão mais adequada do que é essa grave
condição médica.
Sendo assim, vamos aos termos:
• droga: é toda substância natural ou sintética que, introduzida no organismo vivo, modifica
uma ou mais de suas funções, produzindo alterações em seu funcionamento. Diferentemente
do que se pensa, o álcool é uma potente droga que age sobre o sistema nervoso cerebral.
• síndrome de dependência ao álcool: é um conjunto de elementos, como tolerância, sintomas
de abstinência, dificuldades em controlar o consumo, gasto de muito tempo e dinheiro para
conseguir a bebida, e tentativa frustrada de tentar diminuir ou parar o consumo do álcool.
• síndrome de abstinência: são sinais e sintomas que aparecem quando o indivíduo dependente
diminui as doses ou tenta parar de usar o álcool. Esses sintomas vão se agravando até a
possibilidade de causar a morte do usuário. São sintomas da abstinência: suores, frequência
cardíaca maior do que 100 batimentos por minuto, tremores de extremidades, insônia, náusea,
vômitos, ilusões, alucinações (tácteis, visuais, auditivas), agitação, convulsões.
• tolerância: é quando o organismo necessita de doses cada vez maiores de álcool para conseguir
determinado efeito. Com o tempo há uma adaptação do cérebro a essa quantidade e então são
necessárias várias doses a mais para se atingir o mesmo efeito que se conseguia anteriormente.
• intoxicação: mudanças físicas e psicológicas decorrentes do uso intensivo de álcool em curto
período de tempo.
• uso problemático: é o uso de álcool de forma a causar problemas para si mesmo ou para os outros.
• uso abusivo: qualquer consumo que cause ou ameace causar danos à saúde física e mental do
indivíduo, e consequências sociais. Pode ser confundido com uso problemático.
• uso experimental: experimentação de álcool ou outro tipo de droga alguma vez na vida, o uso
é feito em situações específicas, sem continuidade.
• uso moderado: muito difícil de definir, pois ele se confunde com o beber social. Segundo a
Organização Mundial de Saúde (OMS), é aceitável o uso de até 15 doses por semana para
os homens e 10 doses para as mulheres, sendo que uma dose equivale a 40 mL de destilado,
350 mL de cerveja ou 150 mL de vinho.

Não há mais nenhuma distinção entre homens e mulheres de todas as raças e classes socioeconômicas
que estejam fazendo uso ou abuso do álcool.

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ENTENDENDO O DESENVOLVIMENTO DA
PERSONALIDADE
O período de latência inicia-se por volta dos 7 a 8 anos em uma primeira fase e dos 9 aos 11
anos em uma segunda fase, e aproxima a criança muito perto da fase da adolescência. A característica
principal dessa fase é a subordinação total aos pais. A criança passa a conhecer o que é ser adulto por
intermédio dos pais, professores e outras pessoas significativas ao seu redor. Os pais podem explicar
tudo, existe uma confiança de que eles, como adultos, sabem tudo. Essa tentativa de compreender
o adulto do ponto de vista da criança determina um predomínio do interesse do aprendizado.
Consolida-se então o interesse pelo mundo que a cerca. Nessa fase, ainda pelo não desenvolvimento
da sexualidade, a criança tende a reunir-se em grupos do mesmo sexo, na sequência, o interesse em
participar de grupos com o sexo oposto caracteriza a segunda fase desse período, onde as ansiedades
pré-adolescentes se manifestam.
Falamos, então, na Síndrome da Adolescência Normal. No desenvolvimento dessa síndrome,
podemos identificar cada passo em direção à vida adulta. Assim, a primeira manifestação é a busca de
seu verdadeiro ‘eu’ e de sua identidade como pessoa. Não podendo ainda identificar claramente sua
nova condição, é preciso ‘renascer’, e tal qual um segundo parto, o filho nasce da família para entrar
na sociedade.
O despertar para a adolescência é de difícil compreensão e convivência, tanto para o jovem quanto
para seus pais. Muito grande para ser criança e muito pequeno para ser adulto, o jovem se coloca em
situação de indiferenciação tal qual aconteceu nos primeiros anos de sua vida. O seu novo eu e a sua
identidade representam um processo de busca e paixões repentinas, transições bruscas de motivações
dão colorido a esses momentos.
As modificações corporais e de personalidade, originadas das alterações hormonais, vão
determinando a necessidade de constantes adaptações. Em uma velocidade muito grande, essa ‘explosão’
em seu desenvolvimento é atordoante.
É preciso lidar com suas primeiras perdas, como a do corpo infantil, depois de muito tempo
convivendo com uma estrutura física a qual estava acostumado, o jovem vai percebendo as mudanças
em seu esquema corporal. Além disso, tem o despertar da sexualidade, determinado pelas modificações
hormonais. É muito grande a defasagem entre o desenvolvimento físico e o emocional.
Os jovens apresentam grandes oscilações de humor nessa fase, às vezes agitados, depressivos,
com choro fácil, lamúrias e tendências ao isolamento. Em determinados momentos agem, decidem e
argumentam como adultos, fazem planos mirabolantes, para já, no momento seguinte, serem inseguros,
indecisos e incapazes de tomar decisões. Exprimem seus pensamentos de forma clara, raciocínios
lógicos, contestações apropriadas e partem de um pensamento concreto para um raciocínio hipotético.
É comum a necessidade de o jovem fantasiar e questionar suas crenças religiosas. Parece que o
mundo ao seu redor não o compreende, então busca uma dimensão religiosa e espiritual que o ajuda
a experimentar novas experiências, com um objetivo mais claro e possíveis definições para melhor

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compreendê-lo. Não estabelece, contudo, vínculo duradouro com nenhuma profissão religiosa, pois
nada o satisfaz, mas no futuro tende a seguir a religião dos pais.
Os jovens também apresentam condutas contraditórias, passando da agressividade à amabilidade
em poucos minutos. Agressivos e gentis, desenvolvem intensas atividades reivindicatórias. Não
conseguem compreender o que está acontecendo. Além disso, a jornada é bastante penosa. Os desafios
que estão enfrentando geram tal sofrimento que a solução inconsciente para esse alívio é o sono. Toda
realidade que eles estão enfrentando torna-se tão angustiante que é necessário ‘fugir’, dormindo. Há
uma espécie de bloqueio com o jovem se fechando em si mesmo que dificulta, inclusive, a comunicação.
A insegurança faz com que passe a se preocupar com o seu corpo e com a sua aparência, com isso
procura moldá-los praticando exercícios físicos intensos, musculação etc., pois tem dificuldade em se
reconhecer, não se vendo criança nem adulto.
Nas meninas, esse comportamento é muito mais característico. Elas antecipam comportamentos
imitados de mulheres com as quais se identificam. Nada parece bem, mudam o corte de cabelo e as
roupas frequentemente, mas nunca estão satisfeitas, é uma busca por saber ‘quem sou’. Mas, como
agora os jovens dispõem de mais liberdade, partem em busca de amenizar suas ansiedades em relação à
própria falta de referência e identificação, procurando tudo isso em seu grupo de amigos.
Quando os jovens fazem parte de um grupo que os aceitam como eles são, e que se identificam
pelos modismos, posições políticas, ideologias e visões filosóficas da existência, sentem-se amparados.
Por fim, suas atitudes sociais passam a ser reivindicatórias, pois se percebem como parte integrante de
uma coletividade. Por isso, querendo ser diferente, mas acabam como todos os demais jovens de seu
convívio. A observação de um grupo de jovens prova esse fato. O crescente interesse pelo sexo oposto,
as primeiras experiências com a sexualidade e a necessidade de autoafirmação deixam o jovem confuso.
Outro luto a ser elaborado é a perda dos pais infantis. Aqueles pais que eram o máximo, que
sabiam tudo, que tinham respostas para tudo, que eram a fonte de solução de todas as suas dúvidas,
precisam ser desvalorizados, pois é a única forma de se tornar independente. O diálogo se complica,
pois os desejos de independência se reforçam com as críticas que recaem sobre os pais. Estes se obrigam,
então, a concordar com as exigências de autonomia, que são aceitas com facilidade. Os pais fantasiam
que adotar uma postura dura e intransigente faria com que o filho, pela impulsividade, saísse de casa.
O equilíbrio e o bom senso nas ações dos pais no relacionamento com o adolescente devem seguir
uma estratégia de ‘solta e puxa’, ou seja, dizer ‘sim’ sempre que possível, mas não hesitar quando o ‘não’
for preciso. Essa flexibilidade, tanto do pai quanto da mãe, é necessária e útil para que não se estabeleça
um afastamento emocional do jovem com os pais.
Nessa fase todos os padrões estabelecidos são questionados, bem como criticadas todas as escolhas
de vida feitas pelos pais, buscando assim a liberdade e autoafirmação. A ruptura é traumatizante para os
pais que precisam entender essa necessidade. O relacionamento com a família e com a escola torna-se
mais conflitivo, pois há a necessidade de provar a ele mesmo e aos outros que ele sabe tudo, que já é
adulto, apesar de ainda não o ser.

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Pertencer a um grupo passa a ser fundamental para seu desenvolvimento, pois é muito gratificante
a sensação de fazer parte de amigos que compartilham de seus interesses. Para quem está perdendo sua
identidade infantil e evoluindo para uma identidade adulta, usar álcool, fumar e usar outras drogas é sinal
de maturidade. É aí, ‘junto aos seus’, que repartirá suas dúvidas de quem sou eu? Para onde vou? Por que
existo? etc. O fato de o álcool ser considerado socialmente legal diminui a preocupação pelo seu uso.
Com a intensidade das emoções desse período conturbado – pelas culpas, vergonhas e indefinições – a
presença de uma substância que desinibe (no caso o álcool) faz esquecer as ‘dores’, melhora a
autoconfiança, relaxa nos contatos sociais, principalmente com o sexo oposto, encontrando no beber
social um alívio para sua confusão.
Estar no grupo é ‘estar na onda’ e passar a usar o álcool com significado ritualístico representa
a possibilidade efetiva de ter um passaporte para a aceitação de todos, principalmente dos colegas,
professores e demais, pois agora se considera adulto. A imagem mais forte desse momento é o jovem ou
a jovem fazendo uso provocativo e acintoso de bebidas, em público. Esse comportamento desafiador
faz parte de sua convicção de ter a liberdade de fazer suas próprias escolhas. A relação estabelecida
com o álcool pode – dependendo da história familiar, uso de bebidas pelos pais, carga hereditária
etc. – colocar o jovem em perigo. Quanto mais precocemente ele começar a beber, mais probabilidade
terá de se tornar no futuro um dependente alcoólico. Na sua conduta ‘adulta’ o jovem acredita que
conseguirá parar de beber quando quiser, pensa ter domínio total sobre sua ingestão, mas corre muito
risco com a probabilidade de não conseguir. Assim, o inocente ‘beber socialmente’ pode se transformar
rapidamente em beber problemático.

O PROBLEMA ALCOÓLICO
Figura 1 – Esquema da evolução da doença alcoólica.

+ PROBLEMAS

– +
D D
E Bebedor E
Dependente
P problema P
E E
N B C N
D D
Ê A D Ê
N N
C Bebedor C
I social I
A A

– PROBLEMAS
Fonte – Adaptado de Ramos e Bertolote, 1997.

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Vamos aprender agora como acontece com a ‘marcha’ da doença alcoólica a partir do momento
em que uma pessoa experimenta bebida alcoólica pela primeira vez. Vamos acompanhar essa evolução
seguindo a imagem anterior.
Observe as duas linhas que se cruzam, uma vertical com uma horizontal:
• na linha horizontal (da esquerda para a direita) há ausência de qualquer sinal de dependência
e no seu extremo oposto há presença de sinais de dependência;
• na linha vertical, da mesma forma, na parte inferior não há existência de problemas e na
superior há presença de problemas.

Não importa aqui que tipos de problemas, pois esses serão vistos na sequência deste capítulo.
Identificamos então quatro quadrantes, representados pelas letras A, B, C e D:
a) são colocados no primeiro quadrante (A) aqueles indivíduos que bebem, mas não apresentam
problemas nem têm sintomas de abstinência, poderíamos chamá-los de bebedores sociais ou
bebedores normais, o que aliás não é fácil caracterizar claramente devido à ampla variação de
formas de beber. A maior parte das pessoas bebe moderadamente e representa a maior parte da
população adulta, sem que essas pessoas sejam rotuladas como doentes alcoólicas. A cultura
de determinada população, a influência desta no ambiente familiar, as práticas religiosas
menos tolerantes em relação ao beber, estão associadas a um consumo mais moderado de
bebidas alcoólicas;
b) no quadrante (B) estão os indivíduos que, sem apresentarem sintomas de abstinência, já passam
a apresentar problemas comportamentais, por exemplo, beber e dirigir, complicações clínicas
etc., esses podem ser chamados de bebedores problema. A quantidade de bebida ingerida e
o padrão de uso são levados em consideração para essa caracterização de beber problemático.
Supõe-se que fatores ambientais (ambiente familiar com eventos estressantes frequentes) e
genéticos estejam envolvidos nesse padrão de beber. Em relação à genética, estudos tendem a
confirmar a existência da predisposição genética para os comportamentos de consumo. Filhos
de pais alcoólicos têm probabilidade de 25% de desenvolverem a doença;
c) no quadrante (C) estão, então, os dependentes, que apresentam problemas mais graves do que
os bebedores problema e têm evidentes sinais de dependência ao álcool.

Note que não existe nenhuma categoria de bebedor no quadrante (D), pois seria incompatível
com a ausência de problemas, sendo o indivíduo portador dos sintomas de dependência.
Ainda referente ao gráfico, observe que os chamados de bebedores sociais podem, no correr do
tempo, evoluir para bebedores problemas e que, com a aceitação de tratamento ou mesmo por decisão
própria, podem voltar a beber socialmente. O mesmo não acontece com os bebedores que evoluem
para dependentes do álcool, pois essa condição diagnosticada por médico especialista implica na

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impossibilidade de jamais voltar a beber socialmente, caracterizando, dessa forma, a abstinência total,
condição obrigatória para o resto da vida.
A evolução do beber social até a dependência não acontece de uma forma sequencial, não é como
se o gráfico fosse o mostrador de um relógio. Um indivíduo pode ser um bebedor social durante toda
a sua vida mesmo que em determinados períodos faça uso abusivo de álcool. O bebedor problema não
conseguirá permanecer nessa condição por muito tempo sem ajuda médica.
Não é possível estabelecer por quanto tempo um indivíduo que tenha uma história familiar de
alcoolismo, e as vulnerabilidades – sociais, psicológicas e biológicas – permanecerá em cada uma dessas
fases. Existem estudos que estimam que a partir do momento em que um indivíduo inicie sua vida
alcoólica e que tenha esses fatores desencadeantes, leve de 9 a 12 anos para desenvolver a doença.

FATORES DE RISCO E FATORES DE PROTEÇÃO


Quando falamos em fatores de risco e fatores de proteção estamos na realidade estabelecendo
quais parâmetros que pais e professores devem usar para acompanhar a vida de seus filhos e alunos no
tocante ao risco de uso ou abuso do álcool e de outras drogas.
Fatores de risco:
• um ambiente familiar desestruturado, com conflitos de relacionamento, agressividade, com
uso de álcool pelos pais ou pessoas que convivem nesse ambiente com o jovem aumentam os
risco de seu envolvimento com o álcool;
• dificuldades de aceitação do ‘eu’, parte indissolúvel da fase de desenvolvimento em que o jovem
se encontra. As modificações físicas decorrentes das alterações hormonais criam insatisfações
e não aceitação de seu próprio corpo;
• os relacionamentos conflitivos com os familiares que não entendem o seu comportamento e
as constantes reprovações dos pais determinam revoltas e culpas, modificando a imagem que
tem de si mesmo, fazendo-o sentir-se desrespeitado, desconsiderado, com reflexos em sua
autoimagem e autoestima;
• as exigências frequentes e o consumismo encontram resistência dos pais, que negando seus
pedidos acabam desencadeando reações incontroláveis, mostrando as dificuldades em lidar
com as frustrações;
• a falta de habilidade de circulação nos meios sociais, mesmo de jovens de sua idade, pode, por
características de sua personalidade (timidez), dificultar suas relações sociais;
• próprio da fase da vida, a busca e a necessidade de ‘emoções fortes’ podem facilitar o acesso
ao uso ou abuso do álcool ou outras drogas. Essa fase torna a criança ou o jovem impulsivo,
desafiador de perigos e sem medo;

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• a convivência nos grupos, que nessa etapa da vida é necessária para a consolidação de sua
personalidade, pode representar risco intenso de envolvimento com drogas se estas são aceitas
e usadas pelos seus grupos;
• a atividade cada vez mais intensa dos pais no trabalho, cada vez mais exigente, dificulta
grandemente o estabelecimento de diálogos com os filhos;
• a sociedade moderna cria condições de acesso fácil e disponibilidade da droga de forma
intensiva e praticamente sem controle das autoridades. Mesmo o álcool, proibido para
menores, é facilmente adquirido. A tolerância do ambiente ao uso de drogas, uma cultura
permissiva de uso de droga, coloca o jovem como presa fácil para o envolvimento danoso com
qualquer tipo de droga.

Fatores de proteção:
• um ambiente familiar sadio, com estreitos laços familiares, com seus membros em
relacionamento harmônico e pais muito próximos de seus filhos, acompanhando-os na dura
‘travessia’ do ‘ser criança para ser adolescente’ e mesmo depois na fase de adulto jovem, um
ambiente tanto em casa quanto na escola de regras claras, coerentes, constantes e universalizadas;
• a busca de oportunidades de lazer e inserção social, em que possa realizar seu projeto de vida;
• o jovem precisa saber exatamente o que se espera dele e que o consumo de álcool não é
tolerado;
• o envolvimento dos pais com as atividades da escola, com participação ativa e voluntária, faz
o aluno também ser participante ativo;
• vinculação com associações esportivas que estimulem práticas esportivas sadias, e que
promovam socialização saudável em grupos que não façam uso de álcool e outras drogas;
• o estímulo à participação e ao envolvimento em projetos comunitários;
• a busca e o conhecimento de informações técnicas confiáveis, para sobrepor-se às informações
correntes distorcidas e preconceituosas.

EVOLUÇÃO DO PROBLEMA ALCOÓLICO


A experiência humana na sua relação com o álcool geralmente começa com o uso aleatório de
algum tipo de bebida, geralmente em ambiente social.
Considere hipoteticamente que um jovem que tenha seu primeiro contato com bebida alcoólica
pode de início estranhar o gosto, a ‘queimação’ na garganta e estômago, tontura e certa sonolência. Essa
experiência é única. O álcool ingerido promove relaxamento, desinibição, melhora da autoconfiança

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e diminuição da ansiedade. Faz a pessoa sentir-se muito bem. Experiências com os mais variados tipos
de bebidas vão estabelecendo qual a sua preferência, que efeitos mais intensos ou não são sentidos. Esse
aprendizado é por experimentação e o acompanhará pelo resto de sua vida.
Quando aprendemos a andar de bicicleta, não temos um manual de como fazê-lo. É com insistência,
receios, medo de quedas, insegurança que vamos tentando acertar o equilíbrio até conseguirmos
pedalar. Com a bebida, comparativamente, é também com essa experimentação prática que os receios
com o contato com o álcool vão sendo superados. Essa experiência, tal qual com a bicicleta, é levada
por toda a vida do indivíduo.
Aprendido, o uso inicial é absolutamente ocasional. Não representa que após essa descoberta
ele passe a iniciar uma sequência de ingestão frequente. A participação em eventos com os amigos e
a facilidade com que consegue ‘se enturmar’ colocam-no na cultura do beber e no happy hour, que é
o encontro de amigos para aliviar o estresse após um dia de escola ou trabalho. Beber passa a ser um
componente indispensável nas suas participações sociais e esportivas, pois é extremamente gratificante
sentir-se bem e feliz.
Os ocasionais usos do álcool fazem com que superestime os períodos em que se sente feliz sob o efeito
da droga. Eventuais excessos, desconfortos físicos ou psicológicos fazem com que beba sem remorsos.
Diz-se que ele pode ‘pagar o custo’ dos eventuais problemas que possa ter tido após um evento em que
tenha bebido. Os maus momentos passados, a lembrança de eventuais inadequações de comportamento,
discussões mais acaloradas ou mesmo tentativas de confronto físico são minimizados ou negados.
O jovem não percebe que algo de errado possa estar acontecendo com sua saúde. Considera que
os porres que tem tomado não tem significado maior do que ‘não consegui dizer chega’. Esses porres
podem se caracterizar pela ingestão de grandes quantidades de bebidas alcoólicas em curto espaço de
tempo. Cinco ou mais doses para homens ou quatro a cinco doses para as mulheres.
Esse tipo de beber é muito prejudicial, pois não se conhece ainda quais efeitos serão desencadeados
no bebedor, como a agressividade, impulsividade e violência. Em média, e dependendo de fatores
como o peso, ter ingerido alimentos ou não, tipo de bebida, velocidade da ingestão e outros, leva mais
de uma hora para que o organismo processe e elimine uma dose de bebida.
Observe a seguir as equivalências em unidades de álcool em cada tipo de bebida.

Unidades de álcool em cada dose de bebida


Considera-se uma unidade para cada 10 gramas de álcool. Lembre-se: uma dose é igual a uma lata
de 330 a 350 mL de cerveja, 140 mL de vinho ou 40 mL de pinga, uísque ou vodca. Considerando
então os volumes equivalentes a uma dose, sua concentração, quantidade de álcool puro em cada dose,
é possível estabelecer quais as concentrações de álcool no sangue, após o uso de bebida. (FORMIGONI
et al.,1992).

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Concentração de álcool nos diversos tipos de bebida


É muito importante entender a quantidade de álcool encontrada em cada tipo de bebida, pois
cada uma apresenta uma quantidade de álcool diferente a cada dose ingerida. Assim:
• cerveja ou cooler têm uma porcentagem de 3,5% de álcool;
• vinho tem, em média, uma porcentagem de 12% de álcool;
• vinhos fortificados têm uma porcentagem de até 20% de álcool;
• uísque, vodca e pinga têm uma porcentagem de 40% de álcool.

Quando nos referimos ao álcool, estamos falando da substância química etanol, que é obtida por
processos de destilação, sendo extremamente tóxica para o nosso organismo. Sendo assim, temos de
entender o que é chamado de dose dose-padrão. Como a densidade do álcool é de 0,79 g/ mL, em
17 mL de álcool (etanol) puro existem 14 gramas de álcool.
Compare o quadro a seguir:

Quadro 1 – Uma dose-padrão de álcool equivalente.

340 mL de cerveja
40 mL de pinga, 85 mL de vinho do Porto, 140 mL de 600 mL (uma garrafa de
ou chopp = 1 lata de
vodca, uísque etc. vermutes ou licores. vinho de mesa. cerveja contém duas doses).
cerveja.

Fonte – Supera, [s.d.], p. 14.

Quadro 2 – Concentração sanguínea equivalente à dose de álcool de acordo com o peso corporal.

Concentração 30 minutos 60 kg 70 kg 80 kg
após a ingestão

1 lata de cerveja (350 mL)


1 dose de vinho tinto (140 mL) 0,27 g 0,22 g 0,19 g
1 dose de uísque (40-50 mL)

2 latas de cerveja
2 doses de vinho tinto 0,54 g 0,44 g 0,38 g
2 doses de uísque

3 latas de cerveja
3 doses de vinho tinto 0,81 g 0,66 g 0,57 g
3 doses de uísque

Fonte – Formigoni et al., 1992.

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É importante também conhecer os padrões de uso que um indivíduo pode ter e quais são as
evidências físicas e comportamentais às quais ele está sujeito, dependendo da quantidade de doses que
ingeriu. Observem no quadro a seguir.

Quadro 3 – Relação entre dose de bebida alcoólica e efeitos no organismo.

- SINTOMAS
1 a 2 doses Euforia, sensação de bem-estar, desinibição, sociabilidade, sensação de
prazer, alegria desproporcional, leve comprometimento da autocrítica,
comportamentos de risco.
3 a 5 doses Fala arrastada, lentificação dos movimentos, reflexos diminuídos, andar
hesitante e incoordenado, dificuldades de concentração, atenção dispersa,
lentificação de pensamento.

Mais de seis doses Diplopia, náuseas e vômitos, dificuldades de raciocínio, agravamento da


concentração, piora acentuada da capacidade de responder adequadamente a
estímulos, comprometimento sério da autocrítica, tendência à violência.
Fonte – Adaptado de Gigliotti; Guimarães, 2011.

A Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997 (Código de Trânsito Brasileiro), foi criada e aprovada
para reduzir os acidentes causados por motoristas dirigindo sob efeito de álcool. Antes da criação da
Lei Seca, a ingestão de álcool permitida era de até 6 decigramas por litro de sangue, o que equivale
aproximadamente a dois copos de cerveja, por exemplo. Quando sancionada, a lei permitia 0,1 mg
de álcool por litro de sangue dos motoristas. Essa lei também proíbe a venda de bebidas alcoólicas ao
longo de rodovias federais. As alterações nos artigos dessa lei foram, com o passar dos anos, sendo cada
vez mais aperfeiçoadas. Assim, a lei atual em vigor modifica o artigo 145, que trata do dirigir sob efeito
do álcool, mas não menciona a quantidade de álcool na corrente sanguínea, diferentemente do que
havia na redação original de 1997, portanto a tolerância é zero. (BRASIL, 1997).
Diversas iniciativas têm sido tomadas para o efetivo cumprimento da lei. A prevenção é um dos
elementos mais importantes para o alcance desse objetivo e é na educação, em todos os seus níveis, que
acontece a conscientização da comunidade escolar. A realização das blitz rotineiras no trânsito, com
o uso do etilômetro, cujo apelido é bafômetro, têm mostrado também sua efetividade. Campanhas
permanentes na mídia reforçariam os esforços para diminuir os custos gerados pelo beber e dirigir.
As formas de beber, as quantidades, os eventuais complicadores, tanto físicos como
comportamentais, determinam no bebedor uma reação absolutamente emocional. Ele tem
dificuldade em lidar racionalmente com as consequências de seu comportamento. Em qualquer
uso, mesmo ocasional, pelas alterações no funcionamento cerebral causadas pelo álcool, o indivíduo
já começa a ‘pagar’ um preço que pode ser muito caro (acidentes, alterações físicas e mentais,
agressividade, violência).
É importante entender que essa maneira de beber, que obrigatoriamente não se repete todos os
dias, não nos permite afirmar que a dependência do álcool esteja em desenvolvimento. A maioria da

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população tem essa relação com as bebidas alcoólicas. Na sequência desse relacionamento, mesmo que
após beber sinta-se fisicamente mal, o desconforto é superado e muitas vezes percebido como algo
que está fugindo do controle, então o indivíduo passa um período de parada completa de beber ou
de redução drástica do uso. Com frequência ele pode fazer reflexões sobre seu atual relacionamento
com as bebidas alcoólicas, o que pode modificar seu padrão de uso para aquela fase em que beber não
determinava nenhum tipo de desconforto.
Na continuação do uso e dos eventuais abusos, cresce a dificuldade de perceber o que está
acontecendo e é cada vez mais difícil parar ou diminuir o consumo. Para fins didáticos, dizemos que a
transformação do bebedor social para bebedor problema começa a se caracterizar. O hábito até então de
não ter preferência específica para determinado tipo de bebida, indiferente ao teor alcoólico de cada uma,
passa a ser mais frequente pela busca por bebidas com maior teor alcoólico. Por exemplo, abandonar
as bebidas ‘mais fracas’ (fermentadas) como cerveja, vinho etc., trocando-as por bebidas mais ‘fortes’
(destilados), como uísque ou cachaça. A modificação do padrão de uso das bebidas, acompanhada
por um crescimento na frequência da ingestão, leva a um aumento do custo emocional. Existe ainda
a percepção de que algo de ruim possa estar acontecendo. Há um aumento do custo emocional, com
eventuais períodos de tristeza ou períodos mais longos de desânimo, apatia e desinteresse. Nessa fase a
pessoa tenta diminuir o uso, mas já não consegue. Então, angustia-se com a compulsão para beber.
São evidentes também as modificações na personalidade do bebedor, no trabalho ou na
escola, ele torna-se mais arredio, desconfiado, tende ao isolamento, evita contato com os colegas ou
superiores e professores. É comum ouvir-se: ‘Ele mudou demais seu jeito de ser’. Entretanto, tanto
a frequência das alterações de humor, sintomas depressivos, cansaço frequente, desânimo, quanto
irritabilidade, agressividade, impaciência, respostas inapropriadas a estímulos mínimos são sintomas
que obrigatoriamente não significam um quadro de depressão clássico, mas sim uma resposta negativa
às modificações que estão ocorrendo em sua vida. Cada vez mais ele vai reagir de forma intelectualizada,
buscando maneiras de explicar racionalmente o que se passa com sua vida. Esse comportamento
caracteriza o aperfeiçoamento dos chamados mecanismos de defesa.

MECANISMOS DE DEFESA
Todos os seres humanos, durante seu desenvolvimento emocional, desenvolvem formas de
prevenção contra o sofrimento emocional, consciente ou inconscientemente. Desde criança usamos
esses mecanismos como forma de evitar o sofrimento psíquico, real ou imaginário. Os mecanismos
de defesa são inconscientes e de diversos tipos. Para nosso entendimento, vamos nos fixar em três
deles, mais usados por aqueles com problemas relacionados com o álcool, além da repressão que mais
adiante será comentada, são eles: negação, racionalização e projeção. Durante todo o processo que
se iniciou nas primeiras experimentações com o álcool, alguns mecanismos já vinham funcionando
inconscientemente.

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A negação é o processo inconsciente em que o indivíduo tenta descaracterizar um fato acontecido,


não levando em consideração a sua inteligência. Por exemplo, um aluno sendo flagrado em um teste
usando métodos ilícitos, ao ser abordado pelo professor, geralmente iniciará a frase com: ‘Não, eu não
estava colando’. É importante lembrar que essa resposta não implica em que o aluno esteja mentindo. A
reação imediata e instantânea é a manifestação da defesa psíquica contra as consequências que advirão
de seu comportamento.
Da mesma forma, o mecanismo de racionalização implica no fato de ser tentada uma explicação,
uma razão para o que aconteceu. No caso do aluno citado anteriormente, esse mecanismo poderia se
manifestar como: ‘Eu estou com uma gripe muito forte e somente olhei para o lado para espirrar’.
Note que, logo após a abordagem, a frase acontece imediatamente, não havendo tempo para se pensar
em uma resposta. Novamente não se trata de uma mentira. A projeção tem como função aliviar o
sofrimento que está por vir, isentando o indivíduo de qualquer responsabilidade sobre o fato que lhe
está sendo imputado, ‘jogando a culpa’ ou projetando ela a outro. No caso do aluno, a resposta seria:
‘Era o meu colega ao lado que estava colando’.
A repressão é o mecanismo inconsciente que impede o psiquismo de acesso a componentes
ameaçadores. Reprimir sentimentos de um bebedor é quando ele não consegue perceber a sua condição
de perder progressivamente o controle sobre seu trabalho, família e de sua própria maneira de beber.
Esses mecanismos não acontecem obrigatoriamente nessa ordem.
Voltando ao nosso bebedor, entendemos então que todo seu comportamento será baseado em
mecanismos quando confrontado com a alteração de sua relação com a bebida. É evidente que esse
sistema de defesa opera contra o indivíduo, pois impede a percepção óbvia das modificações que
estão ocorrendo em sua vida. Mesmo com todo esse processo em andamento, ainda não temos como
caracterizá-lo como doente alcoólico.
Ao observar o gráfico anterior, ainda estamos identificando um bebedor problema, que mesmo
nas atuais condições da vida, mesmo na presença de algum acontecimento estressante, como a perda
de trabalho, separação conjugal etc., ainda terá condições de reverter o quadro, voltando a beber
socialmente. A capacidade de resgatar a saúde física e mental são fatores positivos para a sua recuperação.
A relação danosa com o álcool continua crescente, o sofrimento emocional piora e o indivíduo
tem cada vez mais dificuldade em se sentir bem. As mudanças que ocorrem em seu comportamento,
na sua personalidade e, a piora na intensidade de seu humor vão escapando do controle. Apesar do
reforço na ação dos mecanismos de defesa, passa a maior parte do tempo intelectualizando em vez de
estabelecer uma crítica adequada de sua condição. Não se pode negar que o quase incontrolável desejo
de beber (compulsão), um sentimento invasivo e indesejado, ocupa o centro de suas experiências.
Sem que possamos estabelecer um momento exato em que o indivíduo se torna um dependente,
como se em uma escala de cores pudéssemos saber quando a cor vermelha se transforma em cor rosa,
temos que considerar o progressivo comprometimento de suas relações familiares, sociais e escolares,
além de evidentes manifestações e queixas clínicas. Cada vez mais cego contra a razão, a pessoa pode

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passar um período breve de abstinência e começar a questionar-se e a perceber o que está acontecendo.
Não conseguindo, e forçado pela compulsão, volta a beber.
Esse beber passa a ter características especiais que vão pavimentado o caminho para a dependência
estabelecida. Nessa fase, uma série de evidências vai tomando forma.
Em um indivíduo normal tanto o consumo como a escolha da bebida variam de tipo, de formas
de beber, de quantidade e locais. Ele bebe em determinadas situações, nega bebida em outras etc.
O comportamento de beber é modelado pelas circunstâncias. Quanto mais a dependência avança,
tais elementos vão se relacionando mais com o alívio ou com o evitar a presença dos sintomas de
abstinência do que pelo simples prazer de beber. Fala-se em estreitamento do repertório. O indivíduo
que não tinha um padrão de beber, que bebia qualquer tipo de bebida, em qualquer ocasião ou não,
com a piora do quadro, vai deixando que o álcool assuma um papel de aliviar os desconfortos e evitar
os sintomas de abstinência (tremores, sudorese, náusea, ânsia de vômito, palpitação, agitação, dores de
cabeça, mal-estar geral, fraqueza, alucinações ou até convulsões).
Seu padrão de uso torna-se muito mais rígido, previsível em relação à hora para beber, quantidade
etc., e a bebida passa a ter prioridade sobre todas as outras obrigações sociais, de trabalho e mesmo
familiares. Beber torna-se cada vez mais gratificante, pois não consegue perceber o que está acontecendo.
O custo emocional é maior, há perda progressiva do controle sobre sua vida e um desgoverno total de
seu comportamento.
O álcool, sendo uma droga depressora da atividade mental, determina o processo de tolerância,
então surgem as frases: ‘Sou muito forte para a bebida, mas atualmente bebo bem menos e já me sinto
muito ruim. Parece que a bebida não faz mais efeito’. O dependente começa a perder a tolerância e
torna-se incapacitado de beber a quantidade que antes aguentava sem que lhe cause algum problema.
O agravamento do quadro desencadeia sintomas clínicos como tremores, principalmente no período
da manhã, náuseas (há dificuldade em sentir cheiro, como o do café matinal, ou a impossibilidade
de escovar os dentes), vômitos matinais, sudorese, irritabilidade. Todos esses sintomas fazem parte de
seu sofrimento, assim como a raiva, as implicâncias com as mínimas contrariedades, os medos por
reações de espanto aos menores ruídos, as ilusões, a interpretação inadequada de objetos ou mesmo as
alucinações (percepções sem objeto estimulante).
Pela incapacidade de modificar o uso da bebida, o indivíduo vai perdendo o contato com a
realidade e tendo um progressivo comprometimento do julgamento. Não podemos, contudo, esquecer
que a síndrome de dependência ao álcool é maleável, muitas vezes surpreendente, não imutável. Esse
verdadeiro ‘caleidoscópio de sintomas’, como alterações físicas, emocionais e comportamentais que
compõem a síndrome exigem dos profissionais uma experiência ampla de todas as nuances dessa doença,
possibilitando que a avaliação da história de cada paciente possa definir qual procedimento médico
deve ser aplicado, a avaliação da necessidade ou não de internamento em clínica de desintoxicação,
visando protegê-lo de complicações clínicas e psiquiátricas.

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IDENTIFICAÇÃO DE UM USUÁRIO
Pode parecer muito fácil a identificação de um jovem que esteja se envolvendo com álcool, mas
não podemos negar que a presença de outros tipos de drogas podem também fazer parte da vida do
adolescente ou adulto jovem. Familiares e professores têm grande importância e responsabilidade na
percepção de que algum problema possa estar acontecendo. Os indicativos de que o jovem apresenta
podem, muitas vezes, ser confundidos com comportamentos absolutamente normais, próprios da fase
da adolescência, por exemplo, agressividade, alterações de comportamento etc. Não cabe nunca aos
pais ou aos professores tentarem fazer um diagnóstico do que está se passando, pois esse somente
poderá ser feito por um profissional especializado.
Vamos apresentar a seguir alguns indicativos de possível envolvimento do jovem com alguma
substância lícita ou ilícita:
• cansaço frequente, mudanças nos hábitos alimentares, perda ou aumento do apetite (períodos
de intensa ingestão de alimentos);
• uso de óculos escuros para esconder os olhos avermelhados, possível indicativo de abuso de
álcool ou outra droga;
• uso de camisas de mangas compridas nos dias de calor para esconder marcas de uso de seringas
de drogas injetáveis;
• uso de disfarçadores de hálito alcoólico, como dropes, balas de hortelã e pedaços de jornal
mastigados (o papel absorvente do jornal e a tinta são potentes diminuidores do hálito alcoólico);
• mudanças físicas, falhas na memória, baixa concentração, descoordenação motora, fala
pastosa, discurso desconexo, andar cambaleante, boca seca, pupilas dilatadas ou contraídas,
sudorese, corrimento nasal, emagrecimento acentuado, rosto edemaciado e avermelhado;
• mudanças bruscas de hábitos, passando de sempre ativo e interessado para constante sonolência,
principalmente em sala de aula, e desinteresse por suas coisas;
• é bastante evidente que o uso ou abuso de substâncias lícitas ou ilícitas compromete
significativamente o desempenho escolar e é indicador de aumento da evasão escolar;
• atrasos constantes nas primeiras aulas do dia acompanham também aumento exagerado de
faltas para as atividades escolares;
• mudanças bruscas na conduta, explosões emocionais, em que mínimas contrariedades
determinam reações desproporcionais ao fator precipitante;
• pode apresentar quadros psiquiátricos concomitante, como depressões e estados de angústia
sem motivo aparente;
• insônia rebelde (denunciada por ele mesmo ou percebida pelos familiares);

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• fortes reações a críticas reais ou imaginárias;


• afirmações não confiáveis, e a mentira passa a fazer parte de seu cotidiano;
• irritabilidade sem motivo aparente, inquietação motora, impaciência, agressividade e atos de
violência;
• comprometimento nas relações sociais, familiares e escolar, principalmente isolando-se de
seus colegas e familiares, como trancando-se em seu quarto;
• dificuldade para encarar familiares, professores e colegas, passando a ter um comportamento
evasivo;
• abandono das antigas amizades ‘sadias’ e ligação a um novo grupo, relutando em apresentá-lo
aos familiares;
• reclamações dos colegas sobre o comportamento não confiável, desafiador, desinteressado;
• desaparecimento de objetos de valor, seus ou de seus familiares e amigos, incessantes pedidos
de dinheiro, gastos excessivos de suas economias etc.

Encarando o problema
O aprendizado que tivemos até agora estabelece uma base sólida de conhecimentos a respeito
das drogas. Sua compreensão e principalmente a superação dos preconceitos em relação a um possível
usuário, ou até mesmo um dependente, deixa-nos muito mais à vontade e tranquilos quando estamos
à frente do problema. Tanto a família quanto a escola se superpõem e somam suas responsabilidades na
educação e formação dos jovens, tendo as mesmas possibilidades de intervenção e ação nesse processo
preventivo às drogas e outros comportamentos nocivos.
Na teoria tudo parece fácil, os fatos têm lógica, a emoção é controlada, a visão de sucesso se reforça
a cada novo aprendizado, mas quando nos defrontamos com a realidade em um evento na escola ou na
comunidade em de temos que entrar em ação, podemos sucumbir.
Várias considerações serão feitas adiante, como normas básicas que podem ser seguidas na
eventualidade de uma abordagem. Quase sempre o medo, as fantasias de agressões e a insegurança de
como se deve agir determinam grande ansiedade, porém quanto mais conhecimento das regras, menos
difícil será sua ação.
Assim, para abordar um jovem que esteja apresentando evidências de comportamento induzido
por alguma substância, aja de forma natural, não querelante, não demonstre sua frustração, raiva ou
decepção com o que está se passando. Em vez disso, é importante:
• tomar atitude imediata e franca perante qualquer ocorrência, evitando algum tipo de
abordagem em meio a estranhos. Adotar uma postura ética. Procurar um local isolado, como

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a sala da direção ou da orientação, para poder conversar e nunca sala de aula, mesmo que
esteja vazia. Não poderá haver interrupções durante esse contato;
• manter a calma sempre, ser franco, assertivo e falar com objetividade. Esse é um momento de
tensão em que a postura do jovem que está sendo abordado é a de que ele está correndo risco
de punição imediata;
• garantir-lhe que a conversa é sigilosa, que não será comentada com ninguém além dos
responsáveis pela condução posterior do caso. Deixar claro que os pais serão chamados;
• deixá-lo falar, adotando postura de bom ouvinte;
• manter postura firme, não acusatória nem discriminatória, pois um clima de inquisição, além
de não funcionar, pode atrapalhar;
• entender o que se passa, procurar esclarecer pontos que não ficaram claros e principalmente
não compactuar. Qualquer pacto assumido pode ter consequências trágicas;
• criar um bom vínculo afetivo que permita se aproximar precocemente e abrir as portas para o
início de possível ajuda;
• passar informações reais, falando do compromisso do não uso de álcool e outras drogas, e o
respeito à família e à comunidade;
• estimular seus valores positivos;
• oferecer ajuda de maneira firme, direta, objetiva, sem jamais firmar algum tipo de pacto com
o aluno, como não comunicar aos pais o que está acontecendo com ele;
• agir de maneira afetiva, isto é, não ameaçando, não criticando, mostrar-se interessado em
ajudá-lo e apresentar as opções que a comunidade lhe oferece para poder ser encaminhado
para ajuda;
• manter acompanhamento permanente sobre o comportamento e a evolução apresentada,
mesmo em caso de estar em tratamento.

Dicas para um bom entendimento com um adolescente

Diálogo
Reflita como está seu relacionamento com os jovens. Converse sempre com eles, não importa
o assunto. Conte-lhes histórias, brinquem. O diálogo fornece uma relação de confiança entre eles
e você. Se houver entraves no relacionamento, discuta com eles e nunca aja pela emoção ou de
forma precipitada.

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Responsabilidade
Ensine a eles o conceito de responsabilidade, a capacidade de responder por seus atos, pagar por
seus erros e cumprir com suas obrigações. Mostre também, pelo seu exemplo, a importância de se
responsabilizar pelas suas coisas, mesmo as mais simples.

Limites
Os jovens precisam aprender que não podem fazer tudo o que querem. Estabeleça limites do que
é aceitável para a família, mas em algumas situações seja flexível, mostrando a eles uma disposição.

Disponibilidade
Mesmo com a frenética atividade que a vida nos impõe, considere que você precisará estar
disponível para ajudá-los em suas solicitações, dúvidas e sentimentos. Ajude-os, mas não resolva o
problema por eles.

Frustração
Desde o início de nosso desenvolvimento emocional convivemos com a frustração. Uma carência
emocional, material ou desejo não cumprido desencadeia sentimentos de injustiça ou mesmo de raiva.
Ensine-lhes a receber um ‘não’, pois é importante que aprendam que não se pode ter ou fazer tudo,
principalmente quando se tratar de questões que envolvem liberdade.

Respeito e serenidade
Trata-se de sentimento interno de consideração e estima positiva por uma pessoa, associação,
propriedades etc. Aprender o que é respeito é fundamental para a construção de um jovem de bem.
Ao dizer-lhes um não ou repreendê-los não se culpe, você quer sempre o melhor para eles. Eles sabem
disso, mesmo não admitindo.

Espiritualidade
Independentemente da orientação religiosa, procurar incutir nos jovens os princípios e práticas da
espiritualidade, transformando-os em pessoas melhores.

Admissão de falhas
Não negue, minimize ou finja que não percebe seus erros. Converse francamente, mostre que você
identificou a conduta inadequada, cobre os limites e dê as orientações necessárias.

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Valores positivos
Incentive os jovens para atividades que valorizem a vida, como o esporte e as artes.

Futuro
Procure gradativamente encaminhá-los para atividades que futuramente os auxiliem na escolha da
profissão. Motive-os a buscar informações a respeito de sua provável profissão.

E AS JOVENS?
O presente texto tem usado o termo ‘jovens’ como se estivéssemos tratando da relação com as
bebidas alcoólicas somente entre o sexo masculino. Assistimos nos últimos anos as profundas alterações
pelas quais a sociedade tem passado, tanto comportamentais quanto sociais e culturais, pois as jovens
têm apresentado novas tendências no padrão de uso de bebidas alcoólicas, aumentado as quantidades
ingeridas e a frequência de uso. Isso tem preocupado seriamente as autoridades de saúde pública.
Comparativamente com o organismo masculino, o corpo da mulher é muito mais sensível à ação das
bebidas alcoólicas, tem menor quantidade de enzimas (fermentos) responsáveis por metabolizar o
álcool e isso faz com que a eliminação do álcool seja mais demorada. Da mesma forma, o organismo
feminino tem menor quantidade de água, fazendo com que haja uma maior concentração de álcool
circulante. A mesma quantidade de álcool ingerida, comparativamente, entre homens e mulheres é
muito mais danosa para elas.
O I Levantamento Domiciliar Sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil, em 2001, apontou
que 60,6% das mulheres tinham usado álcool. A faixa etária entre 18 e 24 anos mostrou que 68,2%
das jovens já tinham usado. Segundo o mesmo estudo, 5,7% da população feminina do Brasil acusava
diagnóstico de dependência de álcool. No ano de 2005, com a realização do II Levantamento Domiciliar
no Brasil, o diagnóstico de dependência de álcool, por sua vez, foi confirmado em 6,9% das mulheres
entrevistadas. Fica evidente o aumento no consumo de álcool entre as mulheres no Brasil nesse período
de quatro anos.
De acordo com a OMS, estima-se que em 2010, no Brasil, o padrão de risco Beber Pesado
Episódico (BPE), ou Uso Pesado Episódico de álcool, é definido pelo National Institute on Álcool
abuse and Alcoholism (NIAAA) com o consumo de 5 ou mais doses de álcool por homens ou 4 ou
mais doses por mulheres, num período de duas horas, ou consumo de 60 gramas ou mais de álcool em
uma única ocasião, apesar de ser mais comum entre homens, esteve presente em 11% das mulheres
que consomem álcool.
Segundo o relatório nacional divulgado em 2014 (II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas –
Lenad II), houve aumento importante do consumo de álcool entre as mulheres ao longo dos anos
anteriores. Como se pode verificar no quadro a seguir, entre os anos de 2006 e 2012, houve aumento

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tanto no uso regular como no BPE, que foi definido para mulheres como o uso de quatro ou mais doses
em aproximadamente 2 horas.

Quadro 4 – Comparação entre 2006 e 2012 do uso regular e uso em BPE de álcool.

2006 2012

Mulheres (%) Homens (%) Mulheres (%) Homens (%)

Uso regular 27 54 38 63
(1 x ou mais por semana)

Uso em BPE (4/5 doses em 2h) 36 51 49 66

Fonte – Laranjeira, 2012.

Esses dados desafiam a sociedade a estabelecer formas de impedir o aumento progressivo do


consumo de bebidas alcoólicas pelas mulheres, por meio de campanhas de esclarecimento. Pelas
vulnerabilidades do organismo feminino, o abuso do álcool eleva o risco para doenças cardíacas,
gravidez não desejada, câncer de mama, doenças sexualmente transmissíveis, além de malformações
nos fetos, como a Síndrome do Alcoolismo Fetal.
Chegamos ao final deste capítulo esperando que tenha contribuído para o aprendizado de como
pode um indivíduo, com o passar do tempo, tornar-se um dependente do álcool, portanto um alcoolista
ou alcoólico, com grande probabilidade de vir a morrer. Pudemos rever também que nossos preconceitos
podem estigmatizar um abusador de álcool, tornando quase impossível o seu encaminhamento para
ajuda. Aprendemos ainda que existem fatores que protegem o jovem de envolver-se perigosamente
com o álcool e fatores que facilitam o desencadear da doença alcoólica.
E, por último, lembramos que a família sofre muito a cada evolução da doença de seu familiar
e várias vezes passa a ter comportamentos muito parecidos aos do bebedor, uma vez que ela nega,
racionaliza e culpa pessoas e situações que seriam responsáveis pelo drama que se desenrola.
O que um familiar de um bebedor pode fazer? Diferentemente do que se pensa: ‘não adianta
ajudar se ele não concordar’, os familiares podem usar estratégias para motivá-lo a aceitar ajuda.
Existem grupos de autoajuda, sendo o mais conhecido o Alcoólicos Anônimos, que é uma irmandade
de bebedores que tem como objetivo a manutenção da sobriedade e o compartilhamento em conjunto
de sofrimentos e mudanças necessárias para retomarem suas vidas, recuperando a saúde, a família, o
emprego etc. Fazer um bebedor ou bebedora aceitar comparecer a um grupo não é tarefa fácil. Como
agir então? Familiares são muito bem recebidos no grupo de familiares de alcoólicos, chamado de
Al-Anon. Aqui além de aprenderem o que é o alcoolismo, aprendem a controlar suas ansiedades e
discutem temas relativos ao relacionamento que os familiares podem ou não ter com seus bebedores.
Como agir, por exemplo, para motivá-los na busca do tratamento.
Para não esquecer jamais: alcoolismo é uma doença de evolução crônica, progressiva, incurável e
fatal, mas que pode ser DETIDA.

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DEFINIÇÕES
Abuso: padrão desajustado de uso indicado pela continuação do uso do álcool apesar do reconhecimento da
existência de um problema social, ocupacional, psicológico ou físico, que é causado pelo uso recorrente.
Adolescência: fase mais crítica do desenvolvimento da personalidade do ser humano, representa um verdadeiro
rito de passagem da infância para a vida adulta.
Alcoolista ou alcoólico: é o termo mais correto para ser usado, em vez de alcoólatra. Esse termo além de
estigmatizante significa, pelo sufixo ‘latra’, que o indivíduo é um adorador do álcool.
Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:
Assertividade: capacidade de expor de maneira clara, honesta e firme o que se pensa, sente ou quer, de modo a
não desrespeitar o direito das outras pessoas em relação aos seus próprios direitos.
Autocrítica: dificuldade que alguém tem de fazer uma avaliação crítica correta de seu comportamento ou obras.
Beber Pesado Episódico (BPE) ou Uso Pesado Episódico de Álcool: consumo de 5 ou mais doses de álcool
por homens ou 4 ou mais doses por mulheres, num período de duas horas, ou consumo de 60 gramas ou mais
de álcool em uma única ocasião.
Crise: comportamentos inadequados, provocativos e com dificuldades em aceitar limites.
Cursam: apresentam sintomas durante a evolução da doença.
Destilados: bebidas alcoólicas purificadas por meio de processo de destilação a partir de uma substância
fermentada, como frutas, grãos etc.
Diplopia: perturbação da visão pela percepção de imagens duplas de um só objeto.
Dose-padrão: quantidade de bebida alcoólica com cerca de 14 gramas de etanos puro.

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Drogas psicotrópicas: são drogas que alteram o funcionamento da atividade cerebral.


Epidemiológico: pesquisas que estudam a ocorrência, a prevalência e a distribuição de doenças em determinado
grupo ou comunidade.
Estigma: diminui o caráter ou a reputação de uma pessoa ou grupo; uma marca ou sinal, indicando que alguma
coisa não é considerada normal ou padrão.
Fator de risco: condição que possa aumentar a probabilidade da ocorrência de um perigo ou danos ou o
agravamento de uma condição preexistente.
Fatores protetores: são aqueles que protegem o indivíduo de fatos que poderão agredi-lo física, psíquica ou
socialmente, garantindo um desenvolvimento saudável.
Fermentadas: preparadas pelo processo de fermentação, por meio de reações espontâneas de um composto
orgânico, pela presença de um fermento que a decompõe.
Happy hour: reunião de confraternização com a finalidade de uso ou abuso de bebidas alcoólicas após o período
dos estudos ou do trabalho.
Induzido: causado ou determinado pelo uso da bebida alcoólica.
Ingestão: ato de um organismo ingerir pela boca alguma substância líquida ou sólida.
Intoxicação: mudanças físicas e psicológicas do uso intensivo de álcool em curto período de tempo.
Mecanismos de defesa: ações psicológicas que têm como finalidade reduzir qualquer manifestação que pode
colocar em perigo a integridade do psiquismo, em que o indivíduo não consiga lidar com situações que por
algum motivo considere ameaçadoras. São processos subconscientes ou mesmo inconscientes que permitem à
mente encontrar uma solução para conflitos não resolvidos no nível da consciência.
Período de latência: depois da agitação dos primeiros anos de vida, segue-se uma fase mais tranquila no
desenvolvimento da personalidade da criança que se estende até a puberdade. Nesse período, sua autoestima
já não depende exclusivamente da aprovação externa, desenvolvendo a crítica ao proceder de ‘forma certa e ou
errada’.
Síndrome de abstinência: grupo de sintomas de configuração e gravidade variáveis que ocorrem após a cessação
ou redução do uso do álcool que vinha sendo usado repetidamente e geralmente após um longo período e em
altas doses. É um dos indicadores de Síndrome de Dependência.
Síndrome de dependência ao álcool: conjunto de elementos como tolerância, sintomas de abstinência e
dificuldades em controlar o consumo. Gasta muito tempo e dinheiro para conseguir a bebida. Tenta parar ou
diminuir o consumo, mas sem sucesso.
Síndrome de dependência ao álcool: conjunto de fenômenos comportamentais, cognitivos e fisiológicos que
podem se desenvolver após uso repetido do álcool. Representa um forte desejo de utilizar o álcool, controlar o
uso e o uso persistente, apesar dos prejuízos causados por esse comportamento. A prioridade do uso sobrepõe-se
às suas responsabilidades familiares, de trabalho e sociais. Quando o uso do álcool é interrompido, aparecem os
sintomas característicos da síndrome.
Síndrome do alcoolismo fetal: mães que fazem uso pesado de álcool durante a gravidez, que pode ser considerada
de risco, afetam o feto, que pode apresentar alterações morfológicas faciais, baixo peso ao nascer, microcefalia,

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anomalias cardiológicas, incoordenação motora, fenda labial, alterações oftalmológicas, falha no controle de
impulsos, baixo rendimento escolar, entre outros.
Sintomas de abstinência: suores, frequência cardíaca aumentada (maior do que 100 batimentos por minuto),
tremores finos ou grosseiros de extremidades, insônia, náuseas, vômitos, alucinações visuais, auditivas ou táteis,
agitação, convulsões.
Tolerância: diminuição de resposta a uma dose determinada de uma substância que ocorre com o uso continuado
da mesma. No bebedor frequente ou no de grandes quantidades, são necessárias doses mais elevadas de álcool
para alcançar os efeitos originalmente produzidos por doses mais baixas. Serve como um dos critérios para a
síndrome de dependência.
Tubão: mistura de bebida alcoólica com refrigerante ou similar, geralmente em garrafas PET e compartilhado
em grupo.
Uso experimental: uso de álcool algumas vezes na vida, sem continuidade.

LINKS
Todos os links a seguir apresentam informações sobre drogas em geral, com características próprias de cada uma,
a história das drogas, orientações para pais, educadores e jovens.
A Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) disponibiliza diversos materiais relacionados a drogas
em geral que são gratuitos e estão disponíveis para download.
SENAD. Disponível em: www.senad.gov.br. Acesso em: 17 nov. 2019.

• Curso de prevenção ao uso de drogas para educadores de escolas públicas;


• Fé na prevenção;
• Série por dentro do assunto (cartilhas).

SUPERA. Material impresso e em CD-ROM. s.d. Disponível em: www.supera.org.br/senad. Acesso em: 17
nov. 2019.
VIVAVOZ. É uma central telefônica (0800-510-0015) de orientações e informações sobre a prevenção ao uso
indevido de drogas. O telefonema é gratuito e o atendimento é sigiloso, atendendo das 8 horas às 24 horas, de
segunda a sexta-feira. A pessoa não precisa se identificar.
Para contatos com os Conselhos Estaduais e Municipais sobre Drogas, as informações podem ser obtidas por
meio de seus sites. E:
AA – Alcoólicos Anônimos do Brasil. Disponível em: https://www.aa.org.br. Acesso em: 17/11/2019. Atende
os portadores de problemas com o álcool, presta informações, orienta os possíveis participantes da Irmandade
fornecendo endereços das reuniões em todo o Brasil.
ABEAD – Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas. Disponível em: http://www.abead.com.
br. Acesso em: 17 nov. 2019.

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Al – Anon do Brasil. Disponível em: http://www.al-anon.org.br. Acesso em: 17 nov. 2019. Informações,
atendimento e orientações para familiares de alcoólicos, fornecendo endereços das reuniões em todo o Brasil.
Albert Einstein – Sociedade Beneficente Israelita Brasileira. Disponível em: http://www.einstein.br/
alcooledrogas. Acesso em: 17 nov. 2019.
Álcool e mulheres: cenário atual. Disponível em: http://www.cisa.org.br/artigo/6771/alcool-mulheres-cenario-
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UNIAD – Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas. Disponível em: https://www.uniad.org.br/interatividade/
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Pesquisa FIOCRUZ https://saudemental.blogfolha.uol.com.br/2020/05/21/pesquisa-da-fiocruz-mostra-
aumento-de-depressao-ansiedade-e-consumo-de-cigarro-e-de-alcool-na-pandemia/

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
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TABAGISMO: UMA DOENÇA CRÔNICA EVITÁVEL

Marcos Henrique Sant’Ana do Nascimento, MD.


Paulo Sandoval, MD.

TABAGISMO UMA DOENÇA CRÔNICA?


Muito embora a Organização Mundial de Saúde (OMS) tenha feito inúmeros alertas, um fato que
tem passado ligeiramente despercebido são os impactos e as consequências provocadas pelas doenças
crônicas tanto no presente como nos próximos 20 anos.
A prevalência de fumantes no mundo é de 1,3 bilhão, considerando-se pessoas de 15 ou mais anos
constituindo um terço da população global. Destes, 900 milhões estão em países em desenvolvimento
e 250 milhões são mulheres. O consumo anual é de 7 trilhões e 30 bilhões de cigarros, correspondendo
a 20 bilhões por dia; cerca de 75.000 toneladas de nicotina são consumidas por ano, das quais 200
toneladas são diárias. No Brasil, há 27,9 milhões de fumantes, consumindo 110 bilhões de cigarros por
ano, acrescidos de 48 bilhões procedentes de contrabando. (AMB/ANSS, 2011).
Doenças crônicas constituem prolongadas condições que muitas vezes não melhoram e raramente
são curadas completamente.
Há aquelas que são transmissíveis, como tuberculose, doença de Chagas, hepatites, Aids etc.,
e aquelas denominadas não transmissíveis, entre as quais se incluem diabetes, demência, câncer,
insuficiência cardíaca congestiva, asma brônquica, Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC),
mais conhecida como bronquite crônica ou enfisema pulmonar.

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DOENÇA PULMONAR OBSTRUTIVA CRÔNICA


(DPOC)
Atualmente, podemos considerar a DPOC como uma doença multifatorial, tendo em vista
as diversas fontes de consumo de tabagismo, desde cigarros tradicionais, passando pelo impacto da
poluição ambiental, até os cigarros eletrônicos (e-cigs ou vapings).
Nesse contexto, a DPOC já é considerada a terceira causa de óbito global, configurando um grave
problema de saúde pública inclusive no Brasil, onde dados recentes do Ministério da Saúde alertam
para a existência de cerca de cinco milhões de pacientes. Entre os brasileiros maiores de 40 anos, a
DPOC é hoje a quinta maior causa de internação de pacientes no Sistema Único de Saúde (SUS) nos
últimos dez anos.
As indústrias de tabaco sempre tiveram uma estratégia global, o que explica a grandeza dos
números associados tanto à prevalência como à taxa de mortalidade mundial da DPOC. Essa
doença é responsável por um óbito a cada 10 segundos, de tal sorte que é responsável por mais
óbitos que todas as causas de câncer associado ao tabagismo juntas. Esses números continuam a
alertar as autoridades em saúde pública, tanto as internacionais quanto as brasileiras, mesmo apesar
dos registros de queda global no consumo de fumo nos últimos vinte e cinco anos, ainda mais
acentuados no Brasil.
Alguns fatores associados podem ser responsabilizados pelo fato de a DPOC permanecer como
líder em óbitos no mundo. Entre eles se destacam os chamados smart cigs, ou e-cigs, que ilustram
uma nova estratégia das indústrias tabagistas para a conquista de novos clientes em todos os países,
particularmente nas nações em desenvolvimento e com grandes populações, como Brasil, China e
Índia. Por conta disso, acredita-se que a DPOC continuará sendo, nas próximas décadas, uma das
líderes em morbimortalidade do planeta.
Sabe-se que a baixa disponibilização da espirometria1 em todo o país e a baixa conscientização dos
clínicos e médicos generalistas pode contribuir para o subdiagnóstico da DPOC e suas consequências,
além do não reconhecimento desta doença como verdadeira causa de óbito.
O tabagismo atinge proporções de pandemia mundial. Ele é hoje a principal causa de morte
evitável em todo o mundo, segundo a OMS. Ações nacionais nas últimas décadas têm tido grande
efeito na diminuição da mortalidade, mas esta ainda apresenta proporções inaceitáveis.
Ainda há grandes desafios, principalmente quando se trata de mulheres e jovens. No entanto, o
direcionamento de ações globais pela OMS, como MPOWER e Plain packaging of tobacco products,
podem ajudar o Brasil e outros países a diminuir a carga do tabaco e, consequentemente, a taxa de
mortalidades por doenças relacionadas ao tabaco nas próximas décadas. (SÃO JOSÉ et al., 2017).
As causas mais frequentes de doenças crônicas no Brasil estão listadas na Figura 1.

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Figura 1 – Mortes projetadas por doenças crônicas no Brasil.

Fonte – Adaptado de OMS, 2011.

CARGA DAS DOENÇAS RELACIONADAS AO TABACO


NO BRASIL E NO MUNDO
É preciso lembrar que o tabagismo, por si só, é considerado uma patologia e tem inclusive um
Código Internacional de Doença (CID) próprio para designá-la, o F17.2.
O tabagismo é responsável por gerar outras 52 doenças, de maneira que se pode ilustrar seu poder
de dano ao constatar que ele é o principal causador de doenças não comunicantes; provoca 30% de
todas as mortes por câncer (inclusive o de pulmão); é o líder de óbitos decorrentes dessa patologia
tanto entre homens quanto em mulheres; é responsável por 80% dos óbitos decorrentes da DPOC,
popularmente conhecida como enfisema pulmonar e bronquite crônica.

Carga das doenças relacionadas ao tabaco no Brasil


O estudo Carga das doenças tabaco-relacionadas para o Brasil, realizado pela pesquisadora
da Fiocruz Márcia Pinto com base nos valores monetários de 2011, estimou o custo atribuível ao
tabagismo em 21 bilhões de reais por ano para o sistema de saúde. O estudo analisou um total de
2.442.038 doenças; destas, 34% foram atribuíveis ao tabagismo.
Os dados dessa pesquisa foram atualizados em 2015, e seus resultados apontaram que o tabagismo
gerou custos para a assistência médica brasileira na casa de 40 bilhões de reais, ou seja, 8,04% de todo
o gasto em saúde. Por conta da produtividade perdida devido à morte prematura e a incapacidades
decorrentes do tabagismo, os custos indiretos atingiram mais de 17 bilhões de reais. Os resultados totais
apontam uma perda anual de 56 bilhões de reais, equivalente a 0,96% do PIB nacional. (INCA, 2018).

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Isso decorre do fato de o tabagismo estar relacionado a diversas outras patologias, gerando outros
52 códigos internacionais de doenças. O fumo leva a óbito cerca de 200 mil pessoas por ano no Brasil,
matando mais que a malária, a varíola e a Aids juntas, segundo dados do Instituto Nacional do Câncer
(INCA) e do Ministério da Saúde do Brasil. (OMS, 2011).
Em 2011, o Governo brasileiro adotou uma medida histórica para proteger a saúde pública de
mais de 190 milhões de brasileiros ao promulgar uma lei de controle abrangente do tabaco que ficou
conhecida como Lei Antifumo, (n.o 12.546/2011). Essa nova lei tornou o Brasil o maior país do
mundo completamente livre do fumo ativo e passivo. (BRASIL, 2011).
Entrementes, vale ressaltar que outros ajustes ainda são necessários, como a proposição para se
proibir a venda de cigarros em perímetros escolares, popularizar a espirometria, assim como uma
maior vigilância para coibir a venda avulsa de cigarros tradicionais e/ou ilegal de cigarros eletrônicos,
o que poderia em muito melhorar a proteção junto a crianças e adolescentes. Afinal, a nicotina
comprovadamente é a droga que provoca mais mortes no mundo e é diretamente responsável por mais
de 90% dos casos de câncer de pulmão, doença com prognóstico ruim e extremamente letal.

TABAGISMO ATIVO: UMA RECEITA PERIGOSA


Convidamos você a um exercício de imaginação para que possamos lhe informar sobre os
significados e riscos envolvidos no fumo. Se fôssemos reproduzir a criação de um cigarro tal qual a
realização de uma receita culinária, teríamos de conseguir mais de 4 mil produtos químicos. Destes,
cerca de 2 mil vêm in natura na folha do tabaco, e os outros 2 mil são produzidos espontaneamente
por meio da combustão do produto.
Outros ingredientes são ‘gentilmente’ associados ao produto pelos fabricantes para conquistar os
clientes para o resto da vida. São produtos associados ao sabor que imprimem uma espécie de ‘selo’ a
cada marca.
Tal qual receita de bolo, nesses ingredientes há porções generosas de:
• arsênico, benzeno, amoníaco, tolueno e metais como cádmio e chumbo;
• gases venenosos, como monóxido de carbono (eliminado pelos escapamentos dos veículos);
• várias outras substâncias cancerígenas, entre elas o polônio 210, que também é radioativo.

A nicotina, tal qual a cereja do bolo, serve como um ímã para atrair e fixar os consumidores e
torná-los dependentes, dado seu potencial de viciar.
Ao ser inalada, a nicotina presente no cigarro produz alterações no Sistema Nervoso Central (SNC),
modificando o estado emocional e comportamental dos indivíduos, da mesma forma como ocorre com
a cocaína, a heroína e o álcool. Depois que a nicotina atinge o cérebro, entre 7 a 19 segundos, libera
várias substâncias (neurotransmissores) responsáveis por estimular a sensação de prazer que o fumante
tem ao fumar. Com a inalação contínua da nicotina, o cérebro se adapta e passa a precisar de doses cada

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vez maiores para manter o mesmo nível de satisfação que tinha no início. Com o passar do tempo, o
fumante passa a ter necessidade de consumir cada vez mais cigarros. Com a dependência, cresce também
o risco de contrair doenças crônicas, que podem levar à invalidez e à morte. (ROSEMBERG, 2004).
Agora, olhe ao seu redor e perceba: quantos fumam alguma forma de tabaco ao seu redor? E no seu
trajeto para o trabalho? E no próprio local de trabalho? No colégio ou na universidade? Na hora do almoço?
Na volta para casa e na saída aos restaurantes, clubes e locais fechados como danceterias? Parece bastante?
A Organização Mundial de Saúde (OMS), também acha!
A OMS estabelece que não há níveis seguros para a nicotina, pois é uma droga mais letal que a
maconha e vicia com mais facilidade que a heroína. Esses dados explicam o porquê de precisarmos de
um controle maior sobre o tabaco, por meio da instituição de ambientes tanto fechados como abertos
livres de tabaco com base no Projeto de Lei n.º 315/2008, da regulamentação dos pontos de venda e
proibindo a venda avulsa de cigarros, especialmente a menores de idade. (BRASIL, 2008).
Após apresentar esse cenário inicial, que invoca informações a princípio surpreendentes, mas que
lamentavelmente apenas espelha a realidade a respeito da exposição ao fumo ativo, passaremos a tratar
do fumo passivo, responsável também por várias doenças não cancerígenas, como a bronquite crônica
e o enfisema pulmonar, doenças cardiovasculares, catarata, acidente vascular cerebral, aterosclerose,
aneurisma de aorta, entre outras.
Entre as doenças cancerígenas há o câncer de pulmão, laringe, esôfago, pâncreas, estômago, fígado,
pâncreas, rim, útero, ureter e bexiga, além da leucemia.

Uma fumaça e duas correntes


Enquanto uma pessoa fuma, dois tipos de fumaça são produzidas: aquela inalada e exalada pelo
fumante, chamada de corrente primária (CP) e que equivale a 25% do total, e a corrente secundária
(CS), responsável pelos outros 75%, decorrente da queima direta do cigarro.
O Quadro 1 enumera os quatro grupos que categorizam uma substância química como cancerígena.
Derivados de tabaco como o cigarro contêm 70 substâncias classificadas como cancerígenas. (HECHT,
2012).

Quadro 1 – Quatro grupos que categorizam um agente químico como carcinogênico em humanos.

Categoria Definição
Grupo 1 A substância química (SQ) é carcinogênica em humanos.
Grupo 2A A SQ provavelmente é carcinogênica.
Grupo 2B A SQ possivelmente é carcinogênica.
Grupo 3 A SQ não é classificada como carcinogênica.
Grupo 4 A SQ provavelmente não é carcinogênica em humanos.

Fonte – Adaptado de Canadá, [s.d.];

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O Quadro 2 apresenta uma lista das mais importantes substâncias carcinogênicas contidas na
fumaça do cigarro e de derivados de tabaco.

Quadro 2 – Exemplos de carcinogênicos na fumaça de cigarros/tabaco.

Grupo 1 Grupo 2A Grupo 2B


Arsênico Chumbo Acetaldeído
Benzeno Acrilonitrila
Benzo[a]pyreno Isopreno
Cádmio Estireno
Crômio
Formaldeído
4-(N-Methylnitrosoamina)-1-(3-pyridyl)-1-butanona (NNK)
Níquel
N'-Nitrosonornicotina (NNN)

Fonte – Adaptado de Canadá, [s.d.].

O fato de essas inúmeras substâncias estarem presentes na corrente primária (tabagismo ativo)
explica porque a fumaça proveniente da queima do tabaco está intimamente relacionada com as
doenças provocadas e com uma substancial proporção de mortes prematuras.
Outro ponto importante a se considerar é o risco provocado pelo tabagismo passivo, oriundo
da inspiração da corrente primária da fumaça. Sabidamente, a fumaça dita secundária ou passiva
contém, em menor quantidade, as mesmas substâncias do fumo ativo. Logo, o tabagismo passivo
também constitui uma das principais causas de doenças, incluindo as cardiovasculares, como a doença
coronariana, o infarto do miocárdio e o câncer do pulmão. (WHO, 2007).

Quadro 3 – Quanto fumamos ‘sem querer’ (tabagismo passivo).

Local Permanência Número de cigarros

Bar 2 horas 4

Restaurante (área para não fumantes) 2 horas 1 + 1/2

Escritório (livre) 8 horas 6

Presença de alguém fumando 1 maço ao dia 24 horas 3

Carro (janelas fechadas) 1 hora 3

Fonte – Adaptado de Price, 2001.

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Embora felizmente no Brasil o fumo seja proibido por lei em bares e restaurantes, lembramos que
nosso país é continental e por isso nem sempre as leis são cumpridas.

Como calcular sua exposição


Como qualquer outra substância, a nicotina é absorvida e metabolizada em nosso corpo. Seu
produto final é a ‘cotinina’, que pode ser medida no sangue, na saliva e na urina.
Outra maneira de medir a exposição é por meio de um aparelho portátil chamado monoxímetro,
que mede a concentração de monóxido de carbono no sangue sem a necessidade de testes laboratoriais.
A respeito desse equipamento, leia a notícia a seguir.

Medidor do nível de monóxido de carbono


será usado em tratamento contra tabagismo

Os níveis de monóxido de carbono que são detectados são utilizados no processo de


aconselhamento do fumante quanto à intensidade. E à medida que o paciente vai diminuindo
o cigarro e parando de fato, esses níveis vão chegando aos níveis normais e isso sinaliza de
forma objetiva os benefícios do tratamento.

Fonte – G1-CE, 2018.

O problema do não fumante que fuma...


Embora nosso objetivo neste projeto seja dar ênfase à ‘saúde’, não podemos deixar de lembrar o
tamanho do prejuízo em todos os sentidos dos quais estamos sendo vítimas.

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Acredita-se que o fumante passivo está exposto a 1/3 do risco que o tabagista ativo está vivendo. O
número de mortes em incêndios causados por bitucas de cigarro chega a 250 casos ao ano nos Estados
Unidos. Imagine: se você está em um prédio em que haja alguém fumando a chance de o prédio pegar
fogo é três vezes maior.
Nos Estados Unidos, estima-se que morram, por ano, 440.000 pessoas vitimadas por doenças
relacionadas ao tabagismo ativo, 53.000 delas como consequência da exposição passiva à fumaça do
tabaco. Assim, para cada oito mortes causadas pela forma ativa do vício, uma pessoa morre pela sua
forma dita ‘passiva’.

Poluição Tabágica Ambiental (PTA) no ambiente de trabalho


A exposição ocupacional à PTA afeta até 80% de todos os trabalhadores, o que significa um risco
para a saúde. Estima-se que a prevalência de fumantes na maioria das empresas é de 18% a 24% da
força de trabalho. Observe no Quadro 4 os níveis de nicotina em determinados ambientes de trabalho,
segundo a European Network for Smoking Prevention 2001.

Quadro 4 – Níveis de nicotina em ambientes de trabalho.

Área Nicotina no ar (mcg/m3)

Clubes noturnos 37,1

Serviços 3,0

Indústria 2,7

Escritórios 0,6

Ambientes de trabalho

>> Proibição para fumar 0 – 0,39

>> Restrição para fumar 1,3 – 5,9

>> Permissão para fumar 8,6 – 10

Fonte – US Department of Health and Human Services, 1986.

O tabagismo passivo não revela um bom negócio para as empresas, pois impacta diretamente na
produtividade, acrescenta custos com seguro de saúde, gera absenteísmo e causa riscos de acidentes.
Por essas razões, a OMS determina que a única maneira eficaz de proteger o trabalhador é aplicando
medidas de restrição ao fumo, visando eliminar a fumaça do tabaco de todos os locais de trabalho e
lugares públicos. (GLOBAL VOICES FOR A SMOKEFREE WORLD, 2007; WHO, 2007).

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Como resolver?
A ideia é propiciar tratamento para os dependentes abandonarem o vício, conscientizar não
fumantes para que o mesmo não se desenvolva e criar locais livres do cigarro. Programas de saúde
devem ser desenvolvidos considerando os seguintes propósitos:
• programas integrados à prevenção e ao tratamento do tabagismo como dependência química
são mais efetivos que a realização de intervenções separadas ou isoladas;
• a discussão sobre tabagismo deve ser incluída entre os objetivos de saúde e segurança no
trabalho das Cipas, Sipats e em outras atividades proativas;
• a integralidade de ações e a participação de todos os setores envolvidos nos processos garante
o alcance e a manutenção do programa;
• a implementação do ambiente livre do cigarro é o primeiro passo para prevenir o tabagismo
passivo e estimular os fumantes a deixar de fumar.

Vantagens de parar de fumar


Em quanto tempo após parar de fumar o tabagista terá benefícios? Essa é uma pergunta intrigante
e tem dois lados:
1. O lado das reações que se seguem ao interromper o tabagismo, em decorrência da dependência
provocada pela nicotina (síndrome de abstinência);
2. O lado dos benefícios de fato.

É preciso, em primeiro lugar, esclarecer que fumar não é um mau hábito. Então só força de
vontade não é suficiente!
Tabagismo é uma doença que provoca dependência e isso passa despercebido pela maioria das
pessoas em todo o mundo. De maneira alguma o tabagismo pode ser associado à fraqueza de caráter ou
à falta de vontade por parte de quem fuma, como se fazia erroneamente até pouco tempo. Ele precisa
ser encarado definitivamente como uma doença grave.
Diferentemente do que acontecia no passado, hoje a medicina dispõe de um verdadeiro arsenal
de medicamentos para tratar a dependência tabágica. E isso constitui uma grande vantagem. Alguém
que queira parar de fumar, seja bem abordado pelo médico e receba uma assistência diferenciada,
certamente terá maior chance de êxito em sua empreitada.
Por isso a primeira medida é exatamente essa: procurar por auxílio médico.
Cabe esclarecer que o profissional médico, independentemente de ser pneumologista, psiquiatra,
cardiologista ou clínico, estará apto a tratar os sintomas.

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Sintomas que surgem logo após interromper o tabagismo


Esses sintomas são decorrentes da falta ou abstinência da nicotina e surgem algumas horas logo
após parar de fumar. São eles:
• fissura, que é o desejo incontrolável de voltar a fumar;
• irritabilidade e falta de concentração, levando a pessoa a ter dificuldade para escrever e
trabalhar. Ela ainda pode apresentar choro, dificuldades motoras e desatenção;
• reflexos motores lentos. Isso acontece porque a nicotina está em falta, é uma reação provocada
pela falta de uma substância que se tornou infelizmente crucial ao funcionamento cerebral,
caracterizando a dependência.

Quando se fala em medicação para tratamento do tabagismo, isso quer dizer usar medicamento
para tratar exatamente os sintomas da síndrome de abstinência. Uma vez que o indivíduo decida parar
de fumar, o medicamento irá ajudá-lo a fazer isso com mais tranquilidade.

Benefícios de se livrar do tabaco


Os benefícios podem ser resumidos a uma palavra: liberdade. Junto à saúde, podem resumir outra
palavra: VIDA!

Minutos e horas após parar de fumar


O corpo do ex-fumante irá se beneficiar passadas as primeiras horas após o indivíduo deixar de
fumar. Já se perceberão benefícios à saúde, como a redução da tosse, logo nas primeiras semanas.
Nas primeiras horas após ter parado de fumar, os níveis de monóxido de carbono, um produto
químico nocivo presente no fumo do cigarro, começam a cair. O alto nível de monóxido de carbono
acumulado no sangue de quem fuma é tóxico porque limita a quantidade de oxigênio que se pode
carregar no sangue.
Fumar aumenta a pressão sanguínea e faz o coração bater mais rápido. No entanto, tanto a pressão
arterial, quanto os batimentos cardíacos vão começar a cair para níveis normais logo depois da pessoa
parar de fumar.
Após dois minutos, a pressão arterial e a pulsação voltam ao normal; após duas horas, a nicotina
será filtrada pelo rim e não haverá mais nicotina no sangue. Esse fato leva à síndrome de abstinência
descrita anteriormente.
Após oito horas, o nível de oxigênio no sangue, conhecido como saturação de oxigênio, tende a se
normalizar, e após 12 a 24 horas os pulmões já funcionam melhor.
Em cerca de dois dias, o olfato já percebe melhor os odores e o paladar já sente melhor o sabor da
comida. A pessoa começa então a voltar a perceber que a vida tem cheiro, e que ele é bom.

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Em um ano, o risco de morte por infarto do miocárdio se reduz à metade do que um fumante
apresentava quando ainda fumava. Essa é uma vantagem inquestionável, e constitui um grande marco
para a saúde.
Entre cinco e dez anos, o risco de sofrer infarto será igual ao de quem nunca fumou, e após 20
anos o risco de contrair câncer de pulmão será um pouco maior em comparação ao das pessoas que
nunca fumaram.
Parar de fumar é a atitude mais importante que o fumante pode ter com si mesmo, em termos de
viver melhor. Não só no aspecto de saúde, como também para a autoestima.
Procure informar sobre a necessidade de se recorrer ao auxílio médico, afinal há como se livrar da
dependência da nicotina de uma vez por todas. Estimule um tabagista a procurar tratamento.
Parar de fumar devolve à pessoa sua liberdade. E isso não tem preço.

TRATAMENTOS DO TABAGISMO
O objetivo deste item é esclarecer que existe possibilidade de o tabagista abandonar o vício, ao
esclarecermos que hoje em dia existem vários tratamentos disponíveis para o tabagismo. Educativamente,
é preciso saber que todos nós podemos colaborar para a realização desse desejo.
Os tratamentos mais eficazes unem apoio medicamentoso (síndrome de abstinência) com
mudanças de hábitos (manter-se abstinente). A combinação é importante porque o tabaco causa
dependência física, psicológica e comportamental, conforme os detalhes a seguir.
• Física: cada tragada tem 4.730 substâncias e, com o tempo, o corpo do fumante habitua-se
ao cigarro para funcionar. Quando essas substâncias são tiradas, particularmente a nicotina, o
corpo vive uma espécie de curto-circuito e entra na chamada síndrome ou crise de abstinência.
• Psicológica: o cigarro torna-se uma ‘bengala’ para o dependente, que passa a fumar mais
quando está estressado, triste e se sentindo sozinho.
• Comportamental: o fumante tem uma rotina com o cigarro. Há momentos em que fumar é
um hábito automático, como depois da refeição, com o cafezinho, após ir ao banheiro etc.

Marcar uma data para parar de fumar


Especialistas aconselham as pessoas a marcar uma data para largar o vício. O dia ‘D’, aquele a
partir do qual não vai mais fumar.
Há dois métodos para parar de fumar: imediatamente ou gradualmente. O mais adequado é a
parada imediata, no qual a pessoa marca uma data e, a partir desse dia, não fuma mais nenhum cigarro.
Outra possibilidade é parar gradualmente, reduzindo o número de cigarros ou retardando a hora do
primeiro cigarro do dia. Mas não se deve levar mais de duas semanas para isso, pois pode se tornar uma
forma de adiar, e não de parar de fumar.

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Para reduzir o número de cigarros, é importante diminuir um pouco a cada dia. Por exemplo, uma
pessoa que fuma 30 cigarros por dia, no primeiro dia fuma os 30 cigarros usuais, no segundo dia 25,
no terceiro 20, no quarto 15, no quinto 10 e no sexto fuma apenas 5 cigarros. O sétimo dia é a data
para deixar de fumar e o primeiro dia sem cigarros.
Ao retardar a hora do primeiro cigarro, o fumante deve proceder com o mesmo método gradual.
Por exemplo, no primeiro dia começa a fumar às 9h, no segundo às 11h, no terceiro às 13h, no quarto
às 15h, no quinto às 17h e no sexto às 19 h. O sétimo dia é a data para deixar de fumar e o primeiro
dia sem cigarros.
Para obter mais informações sobre o tratamento tabagismo, consulte o site do Instituto Nacional
de Câncer (INCA), órgão do Ministério da Saúde responsável por coordenar e executar o Programa de
Controle do Tabagismo no Brasil. Ou ligue para o Disque Saúde (136).

A ATIVIDADE FÍSICA E O TABAGISMO


O tabagismo determina a redução de desempenho na vida de um atleta, decorrente da respiração
mais curta, lentidão e redução do tempo para atingir o nível de exaustão. Para esse grupo específico os
malefícios do tabagismo são mais claramente percebidos.

Principais prejuízos do tabagismo na vida de um atleta


As principais consequências do fumo que afetam a performance de atletas são a diminuição da
capacidade aeróbica, a aceleração dos batimentos cardíacos e o prejuízo da absorção de nutrientes e
suplementos. Esses fatores combinados prejudicam o desempenho esportivo. É, portanto um erro
considerar que a atividade esportiva possa compensar os prejuízos do hábito de fumar.
Embora alguns suplementos possam reduzir os danos causados pelo tabagismo, como é o caso da
vitamina E, o hábito de fumar compromete os resultados da suplementação.

CONSEQUÊNCIAS DO TABAGISMO NA NUTRIÇÃO


Segundo Dorazio (2017), o medo de ganhar peso ao parar de fumar tem sido um argumento
para manter este pernicioso hábito. Isso pode realmente acontecer, pois quando se para de fumar
percebe-se melhor o sabor dos alimentos, que parecem mais saborosos. Associado a esse fato, alguns ex-
-fumantes comem compulsivamente como forma de compensação da ansiedade causada pelo abandono
do hábito de fumar.
Para evitar essa consequência, recomenda-se uma dieta equilibrada e o consumo de alimentos
de baixo teor calórico, como frutas e legumes, que devem ser consumidos em pequenas quantidades

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entre as refeições. Além disso, deve-se incluir alimentos antioxidantes, como azeite de oliva e castanhas,
observando-se, contudo seu poder calórico. Recomenda-se ainda evitar o consumo de álcool e café,
especialmente quando estão associados ao consumo de cigarro.

TABAGISMO E MEIO AMBIENTE: O CIGARRO É


AMBIENTALMENTE INSUSTENTÁVEL
Componentes tóxicos do cigarro prejudicam não apenas fumantes, mas também a natureza.
Estima-se que dois terços dos 15 bilhões de cigarros vendidos por dia são lançados no solo.

Poluição domiciliar e urbana


Conforme já abordado, um grande problema associado ao uso de cigarro são os chamados fumantes
passivos: aqueles que não fumam, mas que convivem com tabagistas. A fumaça do cigarro contamina
os ambientes, especialmente os menos ventilados, como residências, locais de trabalho e restaurantes.

Nos ambientes fechados em que se fuma, o nível de partículas suspensas no ar costuma ser bem superior
ao limite aceitável (60 mcg/cm3). Em uma festa pode atingir 200 mcg/cm3; em bares e restaurantes,
400 mcg/cm3; sala de jogos, 600 mcg/cm3.
O nível de monóxido de carbono pode atingir limites absurdos (mais de três vezes o limite máximo
aceitável) quando pessoas fumam em recintos fechados. (CAMPOS, [s./d.]).

Problemas ambientais causados pelo cigarro


Além de afetar a saúde das pessoas, o cigarro também causa problemas ao meio ambiente, alerta
OMS. Estima-se que os restos de cigarros jogados no solo a cada ano geram uma massa de resíduos
entre 340 e 690 milhões de toneladas. Esse problema é agravado pelo fato de que um filtro de cigarro
demanda cerca de 5 anos para se decompor.
A produção do tabaco é realizada predominantemente pela agricultura familiar, envolvendo
trabalho infantil. Estudos desenvolvidos no sul do país demonstram que 55% dos trabalhadores
envolvidos na produção de fumo não utilizam equipamentos de proteção adequados para a aplicação
de agrotóxicos, causando problemas de saúde como vômito e dor de cabeça crônica. O mesmo
estudo revelou que 80% das famílias não faz a destinação adequada das embalagens dos pesticidas
utilizados.
A produção do tabaco também tem influência no desmatamento. Estima-se que 5% do
desmatamento em países em desenvolvimento são decorrentes dessa cultura.

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Programas que podem ajudar na escola


A seguir, apresentaremos dois programas que podem ajudar a reduzir o impacto do tabagismo
na saúde do corpo e do planeta. Recomenda-se uma visita aos sites dos programas Saber Saúde e
Saúde na Escola, que são voltados especificamente a orientar atividades coordenadas pelos professores,
profissionais capazes de apresentar a problemática que envolve o consumo de cigarros, podendo
contribuir para a prevenção do tabagismo.
O Programa Saber Saúde é voltado para alunos do primeiro e segundo segmento do Ensino
Fundamental. Por meio dele são disponibilizados materiais didáticos como vídeos, revistas e jogos, que
podem ser aplicados também para alunos da Educação Infantil e do Ensino Médio, com as devidas
adaptações.
No portal do MEC, está apresentado o Programa Saúde na Escola, produto de uma ação integrada
dos ministérios da Saúde e da Educação, é voltado à saúde e à educação integral, com foco nos alunos
da rede básica de ensino. O programa inclui ações de prevenção ao uso de álcool e ao tabagismo.
O professor desempenha um papel fundamental no espaço escolar, estimulando a problematização
e a visão crítica dos alunos. Ao abrir um debate sobre esse vício, que infelizmente é normalmente aceito
no meio social, o professor pode alertar os estudantes sobre os malefícios e os riscos do tabagismo,
contribuindo assim para a prevenção do hábito, bem como levar essa informação por meio do estudante
ao âmbito familiar, permitindo uma ampliação do papel da escola na qualidade de vida dos alunos e de
suas famílias, com reflexos em toda a sociedade.

BIBLIOGRAFIA
AMB/ANSS – Associação Médica Brasileira/Agência Nacional de Saúde Suplementar. Tabagismo. [S.l.: s.ed.],
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https://www.terra.com.br/noticias/tabagismo-causa-enorme-dano-ao-meio-ambiente-alerta-oms,809cf31647d
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who_protection_exposure_final_25June2007.pdf. Acesso em: 2 dez. 2019.

NOTAS EXPLICATIVAS
1 Exame de sopro que avalia a função pulmonar e permite fazer diagnósticos mais precoces e definitivos
da DPOC.

LINKS

• https://www.terra.com.br/noticias/tabagismo-causa-enorme-dano-ao-meio-ambiente-alerta-oms-809cf316
47dac5e6466f8deff994aeaf3xt17lot.html.

• http://portal.mec.gov.br/expansao-da-rede-federal/194-secretarias-112877938/secad-educacao-continuada-
223369541/14578-programa-saude-nas-escolas

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
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VISÃO EDUCACIONAL DAS DROGAS: ORIENTAÇÃO


PARA PAIS E PROFESSORES

Araci Asinelli-Luzs

INTRODUÇÃO
Leonardo Boff, em seu livro Saber cuidar: ética do humano, compaixão pela terra
(2011), entre tantas ideias, apresenta-nos a seguinte reflexão, própria da era da complexidade: “A
sociedade contemporânea, chamada sociedade do conhecimento e da comunicação, está criando,
contraditoriamente, cada vez mais incomunicação e solidão entre as pessoas”.
Como decorrência desse status quo surge o descaso/descuido/negligência/abandono de nossos
ideais de liberdade, igualdade, fraternidade e respeito para conosco, com nossa família, nossas crianças,
nossos adolescentes, nossa casa, nosso Estado-Nação e a Terra enquanto Gaia. É nesse contexto
de contradições entre conhecimento e ignorância, comunicação e isolamento, prazer e violência,
cuidado e abandono que trazemos a temática das substâncias psicoativas de abuso (SPA), comumente
denominadas drogas. Vale lembrar que consumir drogas é uma prática milenar a ponto de podermos
afirmar que não existe sociedade sem drogas. Seus padrões de consumo são importantes reveladores
antropológicos e nos ajudam a conhecer e compreender culturas, mitos, ritos e crenças, bem como
sistemas de referências existenciais e religiosas das diferentes sociedades.
Se em determinado momento as sociedades conviviam com suas drogas e estabeleciam seus
padrões e normas morais e éticas de consumo, com a globalização as drogas tornaram-se universais e a
mais democrática das substâncias, tornando-se acessíveis aos diversos públicos, sem restrição de gênero
ou classe social. Assistimos seu surpreendente processo de adaptação a inúmeras realidades, tendo

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impacto na economia, na saúde, na educação, na segurança pública, na política, nos espaços de (con)
vivência, portanto, na concepção de sustentabilidade em suas múltiplas facetas.
Se para o conjunto de usuários o consumo de drogas parece agregador (vide a organização de
tribos, gangues, patotas, galeras e os espaços sociais de uso, como mocós, parques, praças, ‘cracolândias’
e, porque não dizer, escolas), para muitas famílias, professores, profissionais da saúde e da segurança
pública o uso de drogas desagrega, é um risco real de dano eminente em muitas dimensões da
vida humana, com especial ênfase na infância e adolescência, tendo em vista o “estágio peculiar de
desenvolvimento”. (BRASIL, 1990).
Nesse sentido, é importante ampliarmos o conceito de sustentabilidade, tendo em vista o
desenvolvimento sustentável da vida humana, que requer condições biopsicossociais próprias a
cada indivíduo, bem como circunstâncias ambientais que envolvem o caráter coletivo e social e a
identidade planetária.
Leonardo Boff apresenta uma concepção de sustentabilidade integradora, que nos ajuda a
compreender a droga como componente cultural que, por sua ação no sistema nervoso central
(SNC), altera as funções vitais, a capacidade perceptiva e de comportamento, colocando em risco a
sustentabilidade da vida:

Sustentabilidade é toda ação destinada a manter as condições energéticas, informacionais, físico-


-químicas que sustentam todos os seres, especialmente a Terra viva, a comunidade de vida, a sociedade
e a vida humana, visando sua continuidade e ainda atender às necessidades da geração presente e das
futuras, de tal forma que os bens e serviços naturais sejam mantidos e enriquecidos em sua capacidade
de regeneração, reprodução e coevolução. (2013, p. 107).

Ao nos referirmos anteriormente ao termo ‘droga’, por sua história focada nos modelos clínico e
repressor, normalmente esperamos relatos de suas características, fisiologia, respostas comportamentais
e consequência social, dada a ampla bibliografia bioquímica, médica, psicologizante e legal disponível
nos vários idiomas, incluindo as específicas às drogas mais consumidas no mundo. Neste capítulo,
no entanto, daremos ênfase aos aspectos educacionais ligados ao tema, ou seja, privilegiaremos as
informações básicas que mães, pais, professores(as) devem saber para atuarem como agentes ativos
na prevenção do uso de drogas em casa e na escola, tornando-se presença educativa na vida de
crianças e adolescentes, como propõe Antônio Carlos Gomes da Costa (1997)1. Esse papel exige
intencionalidade, de modo a fazer diferença na vida do outro, impregnando de sentido a relação,
ressignificar os vínculos.
Nesse sentido, destacamos que o foco da ‘prevenção’ é a pessoa, não a droga. Por isso precisamos
ser experts em gente antes de querer saber tudo sobre drogas. Daí a importância de pais ou mães
conhecerem de fato seus filhos(as), suas características de personalidade, saberem quem são seus amigos,
seus talentos, os lugares onde gostam de estar. Do mesmo modo, professore(as) devem se interessar
pelas narrativas de vida dos(as) estudantes, contextualizando os conteúdos da aprendizagem e variando
as situações de estímulo-aprendizagem. Família e escola devem e podem estimular o prazer de estudar

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em substituição ao prazer fugaz da droga. Não negligenciaremos, no entanto, as informações sobre as


drogas, em especial as que constituem a realidade brasileira, mantendo viva a discussão para o desafio
educacional para a prevenção de seu uso.

DESENVOLVIMENTO HUMANO: MÚLTIPLAS


POSSIBILIDADES DE RELAÇÃO
Embora nasçamos Homo sapiens, só nos tornamos homens e mulheres no convívio social. Weber
argumenta que a possibilidade de nos tornarmos humanos ocorreu “com a prevalência do investimento
parental” decorrente do “arranjo familiar de nossos ancestrais”. (2008). Com isso, o que poderia ser
considerado desvantagem, a ‘absoluta dependência’ de crianças e adolescentes, permitiu múltiplas
possibilidades de educação e desenvolvimento, mesmo que sob os cuidados permanentes dos adultos.

Acredita-se que, independentemente do modelo de família existente na qual se inclui a pessoa em


desenvolvimento, a relação entre os seus membros de maneira ativa e compartilhada permitirá estruturar
alicerces mais consistentes para as experiências futuras que surgiram ao longo da convivência, estendendo-
-se em condições mais seguras para o enfrentamento de dificuldades. (WEBER, 2008, p. 34).

Muitas são as concepções de desenvolvimento humano. No contexto da prevenção, interessa-nos


o sentido e o significado que a droga exerce na vida da pessoa para melhor entendermos a relação de
vínculo que possa estabelecer com ela. Por isso, adotamos o desenvolvimento na concepção bioecológica
da evolução humana de Bronfenbrenner, que o define “como uma mudança duradoura na maneira
pela qual uma pessoa percebe e lida com seu ambiente” (2011), podendo ser “afetado pelos eventos
que ocorrem em ambientes nos quais a pessoa nem sequer está presente” (2011), onde “as capacidades
humanas e sua realização dependem em grau significativo do contexto social e institucional mais amplo
da atividade individual” (2011), na perspectiva da sustentabilidade.
No paradigma bioecológico, a presença da droga no ambiente de desenvolvimento diretamente
ligado à vida da pessoa em desenvolvimento, em qualquer etapa, como a família e a escola,
caracterizaria uma transição ecológica com impactos significativos no desenvolvimento dela. Na
perspectiva da sustentabilidade, envolveria inúmeras questões ambientais, de direitos humanos,
econômicas, de relações socioambientais, em processos complexos, como deve ser entendida a
sustentabilidade da vida no planeta, o desenvolvimento humano, a cultura do consumo da droga
(desde sua produção), bem como a prevenção na família e na escola. Portanto, compreender o
uso de drogas requer analisar o contexto numa “perspectiva multidisciplinar, sistêmico-relacional”
(CALIMAN; PIERONI, 2015, p. 85), levando-se em conta todas as pessoas presentes nos ambientes
e a qualidade das relações que aí acontecem. Nesse sentido, os fatores de risco para o uso de drogas
presentes no ambiente podem ser modificados.

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O desenvolvimento da criança e do adolescente depende das condições de proteção em sua rede


primária básica – no microssistema familiar e também da interação com o mesossistema. Este último
se localiza nas redes de serviços sociocomunitários, como a creche, a escola, as igrejas, as organizações
sociais não governamentais, os grupos organizados e as demais iniciativas não formais de proteção que lhes
dão sustentabilidade. Faz parte desse contexto ressaltar os valores que a escola consegue proporcionar nas
atividades educativas que oferece, seja nos espaços formais, seja em ambientes não formais de aprendizagem.

VISÃO EDUCACIONAL DAS DROGAS NA


PERSPECTIVA DA COMPLEXIDADE
Para Morin, “A ética do conhecimento e a ética da responsabilidade não são soluções, e sim
caminhos”. (2010, p. 120). Assim, tomar consciência sobre os possíveis caminhos a percorrer supõe a
“reforma das estruturas do próprio conhecimento” (2010, p. 122) em busca do pensamento complexo,
que pressupõe a existência de grande quantidade de interações e interferências em diversos níveis
nos sistemas vivos; seu aumento com a diversidade de elementos que constitui o sistema complexo;
a complexidade como princípio articulador e organizador do pensamento; e a relação entre família e
escola (mesossistema), inseridas estas em um contexto do qual são dependentes.
Reformar o próprio conhecimento exige conceber o ser humano em diversas dimensões que se
entrelaçam e constroem sua complexidade, considerando o conjunto de papéis que representa na
vida; a rede de interações de todas as pessoas com as quais está em relação; seu átomo social (seu
mundo pessoal e afetivo) e seu status sociométrico (sua cota de amor nos grupos a que pertence).
(FONSECA FILHO, 1980).
Dessa forma, a droga, antes de ser uma escolha pessoal, pode ser compreendida como sintoma de
uma doença social, sinalizando uma sociedade em crise de valores socioambientais (ausência de cuidados).
A sociedade doente permite o abuso como forma de expressão de sua contribuição ao
desenvolvimento humano e ambiental sem modelos referenciais, com dificuldades de resolver seus
conflitos, com pouca ou nenhuma opção de prazer, falsa noção de poder e ausência de projetos de vida.
Como estimular projetos de vida em nossos filhos(as) e nos(as) estudantes quando a própria
família e a escola se sentem inseguras e, cada vez mais, com dificuldades de resolver seus problemas
existenciais? Nesse sentido, Morin afirma:

Viver é uma aventura. Desde a infância, da escola à adolescência, idade das grandes aspirações e
das grandes revoltas, no momento de fazer as grandes escolhas da vida, amor, família, trabalho, e
em todas as idades até o fim da vida, cada ser humano se depara com o risco do erro e da ilusão, do
conhecimento fragmentário ou parcial. (2015, p. 16).

Nessa perspectiva, a droga pode ser entendida como toda substância psicoativa, natural ou sintética
que, disponibilizada para uso/abuso, interfere no comportamento humano (sensação, percepção,

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estado emocional) causando prejuízos nas áreas individual, familiar, social e de trabalho, porque expõe
a diferentes situações de risco quem dela se utiliza, podendo causar dependência. Seu uso, sua inserção
nas diferentes culturas, seus rituais, seus pressupostos e suas decorrências caracterizam-na como um
fenômeno complexo. Sobre ela, como em tudo, “é preciso tomar decisões e, para isso, fazer escolhas”
(MORIN, 2015, p. 25), e toda escolha é sempre um desafio.
A droga, suas formas, tipos, modalidades e padrões de consumo, soma-se aos fatores agressores
e estressores da vida, como fome, poluição ambiental, violências, desigualdade social, trânsito,
agrotóxicos, competitividade, consumismo, vida sedentária, exclusão social, esgotamento dos recursos
do planeta, superpopulação mundial, enquanto buscamos a sustentabilidade social e planetária.
Diante disso, a forma mais usual de referenciar a droga é relacionando os efeitos que provoca no
organismo e no comportamento humano, em detrimento de outras formas de representá-la, tais como
a legalidade ou ilegalidade, a forma de consumo, origem, produção ou manipulação.
O conhecimento sobre as drogas durante a prevenção visa conhecer melhor o contexto em que
vive a criança, o adolescente, o adulto e suas características e personalidade, bem como facilitar o
diálogo entre pais ou mães e filhos(as) e entre estudantes e professores(as). Por isso, usaremos neste
texto a classificação mais genérica sem, contudo, ferir o rigor técnico-científico que o tema exige.
As drogas ou substâncias psicoativas de abuso, com base em seus efeitos no sistema nervoso central,
podem ser classificadas em três grandes grupos:
1. Depressoras do Sistema Nervoso Central (psicolépticas): diminuem a capacidade de resposta
da atividade mental, reduzindo as possibilidades e competências relacionadas às atividades
psíquicas e motoras, tais como vigília, atenção, fala, movimentos, poder intelectual, memória,
prontidão, controle das emoções e reações. Geralmente produzem sonolência, relaxamento e
sedação. São exemplos os barbitúricos, os tranquilizantes e o álcool.
2. Estimulantes do Sistema Nervoso Central (psicoanalépticos): incitam o sistema nervoso central
aumentando sua capacidade de resposta, tendo como consequência o aumento da vigília, o
tônus psíquico, a diminuição da fadiga (momentânea), a alteração na noção de força e poder.
São exemplos as anfetaminas, a nicotina, o ecstasy e os ‘rebites’ usados por caminhoneiros.
3. Alucinógenos ou desestruturantes da atividade mental (psicodislépticos): interferem na
percepção da realidade produzindo delírios, alucinações e manifestações semelhantes a psicoses
e/ou neuroses. São exemplos os inalantes, a maconha, o ácido lisérgico (LSD), a cocaína, o
crack e a heroína. Aliadas à resposta despersonalizante ocorrem reações depressoras (maconha)
ou estimulantes (crack), conforme a droga.

Embora o álcool seja a droga que, por seu uso legalmente aceito, seja a mais relacionada aos danos
sociais (violência, acidentes de trânsito, absenteísmo, separações, decorrências de saúde), no âmbito
da escola, pais ou mães e professores(as) têm seus cuidados relacionados à prevenção e controle do uso
das drogas ilícitas (na legislação brasileira), em especial a maconha e o crack, por serem de fácil acesso
a jovens e até mesmo crianças.

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Importante lembrar que tanto o consumo quanto o discurso sobre as drogas sempre fizeram
parte da história da humanidade, variando com o tempo e as culturas, mudando seus significados e
sentidos em cada contexto. A maconha, por sua prevalência entre adolescentes e a danosa síndrome
amotivacional2, ganha na atualidade novo destaque na polêmica discussão sobre a possibilidade do uso
medicinal de alguns de seus componentes. Já o crack preocupa pelo efeito devastador no organismo
humano e nos comportamentos sociais.
Tavares (2014), na apresentação de sua obra A adolescência e o consumo de drogas, chama
a atenção para o fato de nas abordagens voltadas aos jovens manterem o foco nas drogas como “um
mal em si, em detrimento de um olhar mais cuidadoso em relação aos jovens e seus determinantes
de consumo”.
No campo da prevenção, a visão educacional das drogas facilita o diálogo e o diagnóstico precoce
de problemas, auxilia na compreensão dos efeitos e fatores ligados ao consumo de drogas e não deve ser
utilizada para destacar nem banalizar as substâncias psicoativas e seus efeitos, e sim problematizá-las.
Isso porque os efeitos de uma droga nem sempre são os mesmos para diferentes pessoas. Seus efeitos
dependem da droga (características, grau de pureza, outros componentes da mistura, quantidade de
uso, forma de utilização, legalizada ou ilegal), do usuário (características, idade, relação entre altura
e peso, estado emocional, expectativas, condições de consumo, grau de dependência, companhias)
e local, ou seja, o ambiente em que o uso acontece (lugar público ou privado, com maior ou menor
disponibilidade da substância, permissibilidade ou repressão, tempo de disponibilidade para o consumo,
companhia de amigos etc.).

QUEBRANDO PARADIGMAS
Na visão educacional, não existem ‘drogas leves’ e ‘drogas pesadas’. Por isso devemos nos referir
a ‘uso leve’ e ‘uso pesado’ de drogas, mesmo que a farmacologia indique maiores ou menores riscos
relacionados a algumas substâncias psicoativas.
Vimos anteriormente que os efeitos da droga dependem das condições de uso, de quem a usa e
o motivo do consumo naquele momento. Da mesma maneira, as drogas legalizadas não representam
menor risco que as drogas consideradas ilegais em cada país, até porque as leis que proíbem ou
regulamentam o uso de drogas variam de um país para o outro, bem como de uma droga para outra. Da
mesma forma, devemos evitar comparar uma substância com outra, evitando construir representação
de que há uma escala de maior ou menor gravidade ligada ao uso/abuso.
Para a prevenção, evitar o uso ou prorrogar o primeiro consumo é tarefa primordial da educação
familiar e escolar. Por isso costumamos ressaltar que a ‘pior droga é a nossa’, ou seja, aquela de que
fazemos uso, independente de qual seja, pois sempre estaremos sujeitos a situações de risco relacionadas
ao seu consumo, bem como vulneráveis a ‘novas’ substâncias, geralmente sintéticas, disponibilizadas
pela sociedade. Nesse sentido, o exemplo ainda é o melhor procedimento para educar.

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Ressaltamos que as substâncias psicoativas sempre estiveram ligadas à história das civilizações,
associadas à busca de melhor desempenho (nas guerras, no trabalho, na vida sexual, na atividade
intelectual e na produção artística), à cura de doenças, à transcendência, a rituais religiosos, ao desejo
de poder e a formas originais de prazer. Além disso, estudos mostram que pessoas sem adequadas
informações sobre os efeitos das drogas, com saúde deficiente, insatisfeitas com sua qualidade
de vida, com personalidade deficientemente integrada, que tenham fácil acesso às drogas, ideia de
invulnerabilidade e de impunidade são mais propensas ao abuso de drogas.
Assim, a visão educativa sobre as drogas nega-se à ideia de improviso, de fazer qualquer coisa de
qualquer jeito. Ela exige sim o acesso aos materiais pedagógicos e propõe a análise crítica dos mesmos.
Tarefa que é desafiadora para pais ou mães e professores(as).

RELEMBRANDO CONCEITOS
Ao abordarmos as drogas e seus efeitos, uma palavra-chave sempre está sempre presente:
‘dependência’. Trata-se de um conceito ligado ao campo da saúde pública que isenta o dependente
químico da responsabilidade por sua história de abuso que antecede a doença, assim como coloca
a família e a escola em posição de guardiãs da possibilidade da abstinência, na medida em que são
setores importantes da rede de (re)inserção social do dependente químico. No consumo de drogas há
o fenômeno da tolerância, que ajuda a família a perceber a alteração do padrão de consumo de droga,
alertando sobre a possibilidade da dependência.
Edwards e Lader, em sua obra A natureza da dependência de drogas, trazem interessante
abordagem dos conceitos de adição, dependência e abuso de drogas que demonstram o caráter
político destes, “expressando os relacionamentos do poder dominante”. (1994, p.28). Foi por meio
do entendimento do alcoolismo enquanto doença, no entanto, que em 1962 o Ministério da Saúde
“justificou o aprimoramento do tratamento médico especializado”. (1994, p. 28).
No contexto educativo, a dependência é entendida em sua concepção una, sem a dicotomia
dependência física e dependência psicológica, necessária no campo clínico para dar suporte às intervenções.
Compreender a dependência como doença crônica, incurável, mas tratável, apesar dos possíveis deslizes e
recaídas, ajuda a família e a escola a entenderem a dificuldade do dependente em controlar o consumo de
drogas e a reestruturar a dinâmica da casa, do estudo e do trabalho, evitando a codependência.
Do mesmo modo, a escola pode ensinar a prevenção, desenvolvendo nos estudantes o sentimento
de solidariedade, possibilitando o retorno e a manutenção dos sujeitos aos estudos, usuários ou não,
dependentes ou não, em seu espaço, promovendo a sustentabilidade pessoal e social em seu cotidiano.
Reforçamos que isso é possível na concepção de mesossistema, ou seja, família, escola e saúde interagindo
em prol de um objetivo comum.
No tratamento da dependência, a abstinência da droga provoca um quadro de mal-estar intenso e
persistente, principalmente no início, necessitando, muitas vezes, de intervenção medicamentosa para

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minimizar os sintomas, sob o risco de provocar a recaída. É a síndrome de abstinência, que varia em
função dos efeitos da falta.
Os sinais e sintomas que provocam o mal-estar dependem do tipo de droga, do padrão de
dependência e surgem algumas horas ou alguns dias após o último consumo. A família cuidadora é
essencial para dar suporte à abstinência. A síndrome de abstinência é relativa a cada uma das drogas.
Outro aspecto importante do olhar educativo sobre as drogas é discriminar quem é quem na
rede de relações que permeia o abuso de drogas. O usuário (experimentador, ocasional, frequente ou
habitual, problema) e o dependente são os personagens, foco da ação nos campos da educação, da
saúde, do serviço social e do direito, enquanto o traficante é o contraventor, de responsabilidade da
segurança pública e da justiça.

ORIENTAÇÃO A PAIS OU MÃES E PROFESSORES(AS)


Investir em prevenção do abuso de drogas é optar pela vida, contribuindo para o desenvolvimento
humano na perspectiva da sustentabilidade, isto é, cuidar de si, do outro e do planeta. Paulo Freire,
em Pedagogia da autonomia, nos convida a exercer a ética:

Mulheres e homens, seres histórico-sociais, nos tornamos capazes de comparar, de valorar, de intervir,
de escolher, de decidir, de romper, por tudo isso nos fizemos seres éticos. Só somos porque estamos
sendo. Estar sendo é a condição, entre nós, para ser. Não é possível pensar os seres humanos longe,
sequer da ética, quanto mais fora dela. [...] é uma transgressão. (1996).

Educar para a prevenção é fazer escolhas e ter como foco a pessoa. É compreender os fatores e
processos que promovam o desenvolvimento humano integral, responsáveis por fortalecer e construir
habilidades e competências nas pessoas. Trata-se do estudo das forças e virtudes do ser humano comum.
Assim, o termo ‘prevenir’ pode ser considerado sinônimo de ‘educar’.
A prevenção promove o autoconhecimento e autoestima, o fortalecimento da identidade pessoal
e cultural e o desenvolvimento da comunicação interpessoal. Propicia a vivência e reflexão a respeito de
valores éticos universais e a sensibilização em questões de gênero e étnicas, além da resolução pacífica
de conflitos.
No campo da prevenção, acolher as estratégias de redução de danos abre perspectivas de
acolhimento para sujeitos que não pretendem ou ainda não conseguem interromper o uso de drogas.
Nesse caso, a redução de danos permite o uso de “medidas que diminuem os danos provocados pelo
uso de drogas”. (CRUZ, 2006, p. 15). A redução de danos é uma proposta de saúde pública que
ultrapassa a visão linear do abuso de drogas e atinge o patamar dos direitos humanos. Possibilita que o
dependente grave seja reconhecido como sujeito de direitos e (re)inserido no sistema de saúde, sendo-
-lhe permitido repensar sobre sua (in)capacidade de abstinência das drogas e as outras possibilidades de
consumo, reduzindo danos à saúde e potencializando a sustentabilidade pessoal e do sistema.

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A redução de danos, como outra intervenção no campo do consumo e da dependência de drogas,


envolve aspectos técnicos, éticos, sociais, culturais, educacionais, espirituais, legais, no âmbito de
cada área do conhecimento, exigindo a atuação de múltiplos profissionais. São muitas as experiências
humanas que estão em jogo, iniciando pelo fracasso das iniciativas de prevenção.
Alguns exemplos de procedimentos de redução de danos: oferecer, junto ao tratamento da
dependência, o acesso a exames clínicos para doenças transmissíveis por via venosa ou sexual para quem
faz uso de drogas injetáveis, as terapias de substituição (uso da metadona aos dependentes de heroína, uso
de benzodiazipínicos no tratamento da dependência do álcool, por exemplo), as campanhas de trânsito
que propõem a dissociação do ato de beber do ato de dirigir e a proibição do fumo em lugares públicos
e fechados. Vale destacar que esses procedimentos não impedem nem contradizem as possibilidades
de agir em prol de diminuir o consumo e controlar a oferta de álcool e outras drogas. Atualmente, a
redução de danos é uma das bases que fundamentam a assistência aos usuários de drogas no Brasil.
O Art. 227 da Constituição Federal: Doutrina da Proteção Integral assim expressa:

É dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar, com absoluta prioridade, o direito à vida, à
saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito,
à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988).

Em que pese a importância da família e do papel do pai ou mãe no desenvolvimento saudável


de crianças e adolescentes, as pesquisas relacionadas a álcool e drogas costumam mostrar a dinâmica
familiar como um fator determinante para o consumo de drogas e, por esse motivo, a família tem sido
chamada para participar ativamente do tratamento das dependências químicas. Nogueira, ao se referir
à droga na família, afirma “A droga é um significante que ocupa um lugar para o sujeito que faz uso
dela, bem como para cada membro da família”. (2006, p. 153). E continua, auxiliando-nos a refletir
sobre a importância do exemplo para determinar o lugar que a droga ocupa na estrutura dos filhos: “o
filho cujo pai se alcoolizava muito pode desenvolver horror ao álcool, ou se identificar a esse traço do
pai, repetindo um modo de gozo inscrito pelo outro paterno”. (2006, p. 153).
Pelo exposto, na visão sistêmica pais ou mães e professores(as) devem nortear sua atuação no
cuidado por meio de fatores de proteção e de risco:

O conhecimento de possíveis aspectos relacionados à presença de rede de apoio social e afetiva, coesão
ecológica na família, escola instituição e até mesma na rua, bem como aspectos pessoais como valores/
moralidade, autoestima, criatividade, sentido para vida e para realização, bem-estar, otimismo, humor,
altruísmo, sociabilidade, autoeficácia e perspectivas de futuro podem servir como fatores de proteção
e busca de alternativas para um desenvolvimento mais saudável. (LIBÓRIO; KOLLER, 2009, p. 23).

São fatores de proteção na família em relação à prevenção do abuso de drogas:


• Investir no diálogo entre pais ou mães e filhos(as) (porque assim fica mais fácil detectar
mudanças no comportamento do(a) filho(a));

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• Ênfase no afeto paterno, principalmente em organizações socioculturais em que o papel


materno é definido como provedor de afeto e carinho e o papel paterno como provedor
econômico da família;
• Interesse de pais ou mães na ocupação do tempo livre dos(as) filhos(as) e desenvolver vínculos
familiares fortes;
• Apoio da família no processo de aquisição da autonomia;
• Monitoramento parental aos diversos processos de crescimento e desenvolvimento;
• Normas claras para os comportamentos sociais, incluindo-se o uso de drogas, ou seja, ensinar
a vivenciar limites. Pais e mães que não ensinam limites não preparam seus filhos(as) para a
vida em sociedade.

Ainda na família deve-se conhecer os(as) amigos(as) do(a) filho(a) e os pais ou as mães destes, ter
exigências e expectativas quanto ao desempenho na escola e incentivar o engajamento em atividades
comunitárias e de movimentos sociais ou de solidariedade.
Quanto ao comportamento de pais ou mães, estes devem estabelecer comunicação livre e
fluente, fazer elogios às conquistas, colocar expectativas claras aliadas à educação com autoridade,
compartilhamento de valores, atitudes e crenças sobre drogas.
São fatores de risco em relação ao abuso de drogas:
• Conflitos familiares graves, ausência de diálogo e de interação afetiva entre os membros da
família e baixo envolvimento dos(as) filhos(as) nas atividades familiares;
• Suscetibilidade herdada ao uso e vulnerabilidade ao efeito das drogas; tabagismo, alcoolismo
e uso de outras drogas dos pais ou mães;
• Pouco controle dos pais sobre amizades e atividades desenvolvidas pelos(as) filhos(as), bem
como dificuldade dos pais ou mães em passar normas e ensinar limites, provocando no(a)
filho(a) falta de assertividade e ambiguidade em relação a normas e leis;
• Pais ou mães que se apresentam como ‘amigos’ e não se posicionam como pai/mãe,
educadores, figuras de autoridade e referência, de confiança e respeito, apresentando em vez
disso envolvimento materno insuficiente e ausência paterna.

Acrescente-se aos fatores de risco estilo de criação autoritário (pais ou mães autocráticos, muito
exigentes e pouco responsivos; filhos(as) obedientes às regras, porém com baixa autoconfiança); estilo
de criação permissivo (pais ou mães indulgentes ou negligentes). No primeiro caso, haverá maior
probabilidade de uso de drogas e desengajamento escolar. No segundo, problemas de várias ordens e
em diversas áreas, desde o autoconceito até a competência. (WEBER, 2008).
São fatores de proteção na escola:

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• Verbalização de expectativas positivas com relação ao aluno(a);


• Estímulo à continuidade dos estudos dos(as) estudantes, possibilitando encaminhamentos;
• Professores(as) bem preparados(as), que demonstrem prazer em ensinar e satisfação frente ao
sucesso dos(as) estudantes;
• Atividades complementares criativas e promotoras de vínculos entre estudantes, pais ou mães,
comunidade, escola e sociedade;
• Normas claras, limites bem colocados e combinados em lugar de regras impostas;
• Presença de associação de pais ou mães e professores(as), além de conselho escolar atuante;
• Adequação curricular;
• Presença de programa de prevenção como parte do projeto político-pedagógico da escola.

Além disso, a escola deve cuidar de sua infraestrutura, da mobilidade e da inclusão de estudantes,
respeitar a diversidade em todas as suas formas de manifestação, manter diálogo permanente com a
família e a comunidade e se destacar pelo padrão de relacionamento humano e índice de aprovação de
seus estudantes.
São fatores de risco relacionados ao microssistema escola:
• Indefinição de normas e imposição de regras autoritárias;
• Ausência de projeto político-pedagógico adequado à realidade da comunidade e ao momento
histórico;
• Relação conflitante entre família e escola;
• Desvalorização dos professores(as) e demais profissionais da educação;
• Tolerância ao uso de cigarros e bebidas alcoólicas;
• Utilização de rótulos para identificação do aluno como forma de punição ou de exclusão;
• Inexistência de programa de prevenção;
• Inadequação curricular;
• Forma conflituosa e discriminatória para tratar os conflitos;
• Descuido com o patrimônio e infraestrutura escolar.

É fundamental que a família e a escola compreendam a importância do diagnóstico precoce,


considerando relevante todo e qualquer sinal ou mudança de comportamento significativo em seus
filhos(as) ou estudantes para, de imediato, pedir ajuda especializada e agir preventivamente. Em um
primeiro momento, o diálogo sempre é a melhor forma de mostrar que reconhecem e acolhem seus
filhos(as) ou estudantes como eles(as) são e estão dispostos a ouvi-los(as) e ajudá-los(as).

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Também é importante saber que a dependência pode e deve ser tratada, sendo possível seu
controle quanto mais cedo for diagnosticada. Nesse sentido, é bom conhecer os serviços disponíveis
em sua cidade e região e os diversos tipos de intervenção clínica, a saber: psicoterapias individuais e
grupais; tratamento em regime ambulatorial; tratamento em regime de internação; grupos de mútua
ajuda (Alcoólicos Anônimos – AA, Narcóticos Anônimos – NAA, Amor Exigente) e para os familiares;
tratamento farmacológico (para os casos de intoxicação, síndrome de abstinência, período pós-abstinência
e craving, manutenção) e terapia breve Alcohol, Smoking and Substance Involvement Screening Test
(ASSIST – Teste para Identificação de Problemas Relacionados ao Uso de Álcool e Substâncias), entre
outros métodos de enfrentamento da dependência química.
Pais ou mães e professores(as) precisam saber que a busca por prazer e curiosidades acerca da
sexualidade e das drogas são legítimas, lícitas e fazem parte da cultura dessa civilização. Por isso, é preciso
manter a relação de confiança entre adolescentes, educadores, Pais ou mães, profissionais de saúde e
comunidade, bem como o compromisso de fornecer informações corretas do ponto de vista científico e
evitar emitir valores pessoais (por exemplo, idade para a primeira relação sexual, o que é droga leve e o que
é droga pesada). Eles devem expressar claramente os valores que regem os próprios comportamentos e
orientam sua visão de mundo, exercendo, sem medo, suas funções paterna ou materna e de educador(a).
Reafirmando o foco da prevenção na pessoa em desenvolvimento, autores sugerem que a
motivação da prevenção deve estar focada na realidade dos adolescentes (em especial) e, sobre isso,
apresentam algumas razões, tais como a redução das emoções negativas, o estímulo a emoções positivas
e à criatividade, o aumento da coesão social e o sentimento de coletividade e solidariedade como forma
de superação dos problemas diários. (CALIMAN; PIERONI, 2015).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Resistir às drogas em um mundo estressante e desafiador é uma decisão complexa mesmo
para um adulto. Como não o ser para crianças, adolescentes e jovens que são vulneráveis frente
às experiências diferenciadas que trazem, como valor agregado, a ideia de poder e de prazer? Se a
informação ajuda, por outro lado sua ausência fragiliza ainda mais quem dela necessita para uma
tomada de decisão. Muitas são as fontes de informação, embora poucas sejam direcionadas para pais
ou mães e professores(as). Os livros técnicos ‘assustam’ e dificultam a aproximação afetiva e o diálogo
prazeroso entre pais ou mães e filhos (as).
Os motivos pelos quais os jovens usam drogas já são bem conhecidos: fuga de problemas com
a família e os pais ou mães; desejo de serem aceitos num grupo de amigos; vontade de experimentar
sensações novas e gostosas, de se sentirem mais soltos, menos tímidos, de irem contra as regras da
sociedade, escaparem de pensamentos e sentimentos ruins, ficarem mais à vontade em festas e programas,
estudarem e aprenderem com mais facilidade, fazerem alguma coisa no tempo livre, aumentarem a
criatividade, se conhecerem.

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Nesse contexto, uma pergunta silenciosa explode no ar: como uma relação de amor incondicional
entre pais ou mães e filhos(as) pode ser também a causa de tanto dano?
Educar é uma prática quase impossível, que exige muita paciência e perseverança, da qual pais
ou mães não podem se furtar. “Implica uma sintonia fina entre o que se deve permitir no incentivo
à liberdade e o que se deve reprimir para facilitar a inclusão na vida societária”. (FREITAS, 2002, p.
46). Daí a importância dos limites e a educação em valores como medidas essenciais de prevenção,
não só em relação ao abuso de drogas, como também no processo de desenvolvimento da resiliência,
superando diferentes dificuldades e conflitos, comuns na vida em sociedade, em especial na fase escolar.
Tomar decisões e fazer escolhas são, por sua vez, exercícios cotidianos de extrema complexidade.
Talvez porque negamos o que sempre soubemos: “cada um de nós é habitado por múltiplos personagens,
abrigados dentro de uma só pele, atendendo por um único nome. E nem sempre esses personagens
estão todos de acordo, diante de uma decisão importante”. (ARATANGY, 1998, p. 10-110).
Rever posições, ressignificar conceitos e resgatar valores exigem coragem e discernimento. Mais
do que isso, requer desejo e intencionalidade. Nossos(as) filhos(as) dependem de nós tanto quanto
dependemos deles para exercermos nossa maternidade/paternidade. Da mesma forma, professores(as)
não são educadores sem seus complementares: os(as) estudantes.
Façamos de nossas casas e escolas espaços e lugares de vida plena, de relação verdadeira pelo afeto.
Amar é preciso, prevenir é necessário. Sonhemos com outro mundo possível para nossos jovens, em
nosso lar, em nossas escolas, em nosso país e em nossa casa Terra.
Parafraseando Mário Quintana, “Não corra atrás das borboletas. Cuide do jardim que elas virão
até você”. (RECANTO DAS LETRAS, 2017).

BIBLIOGRAFIA
ARATANGY, L. R. O desafio da prevenção. In: AQUINO, J. R. G. (Org.). Drogas na escola: alternativas
teóricas e práticas. São Paulo: Summus, 1998.
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(Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação da USP, São Paulo, 2000.
BEATTIE, M. Codependência nunca mais. 15. ed. Rio de Janeiro: Nova Era, 2011.
BOFF, L. Saber cuidar: ética do humano, compaixão pela terra. 17. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 12 nov. 2019.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o
Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF: Senado Federal, 1990.
BRASIL. Secretaria Nacional Antidrogas. Um guia para a família. Brasília: SEDH; UNDCP, [s.d.]

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BRONFENBRENNER, U. A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados.


Porto Alegre: Artmed, 2002.
CALIMAN, G.; PIERONI, V. Sociologia e drogadição. Guarapuava: Unicentro: UAB, 2015.
COSTA, A. C. G. da. Pedagogia da presença. Belo Horizonte: Modus Faciendi, 1997.
CRUZ, M. S. Considerações sobre possíveis razões para a resistência às estratégias de redução de danos. In:
CIRINO, O.; MEDEIROS, R. (Org.). Álcool e outras drogas: escolhas, impasses e saídas possíveis. São Paulo:
Autêntica, 2006.
EDWARDS, G.; LADER, M. A natureza da dependência das drogas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
FONSECA FILHO, J. S. Psicodrama da loucura: correlações entre Buber e Moreno. São Paulo: Ágora, 1980.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 30. ed. São Paulo: Paz e
Terra, 1996.
FREITAS, L. A. P de. Adolescência, família e drogas: a função paterna e a questão dos limites. Rio de Janeiro:
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GIGLIOTTI, A.; CARNEIRO, E.; ALELUIA, G. Drogas sem: aprenda a ajudar pessoas a se livrar de
dificuldades com álcool e drogas. Rio de Janeiro: Best Seller, 2008.
KOSSOBUDZKI, L. A.; CARAZZAI, L. R.; FREGA, O. A. Guia de identificação das drogas. Curitiba:
Editora da UFPR, s.d.
LARANJEIRA, R.; JUNGERMAN, F.; DUNN, J. Drogas: maconha, cocaína e crack. São Paulo: Contexto, 1998.
LIBÓRIO, R. M. C.; KOLLER, S. H. (Orgs.). Adolescência e juventude: risco e proteção na realidade
brasileira. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.
MORIN, E. Ciência com consciência. 14. ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 2010.
MORIN, E. Ensinar a viver: manifesto para mudar a educação. Porto Alegre: Sulina, 2015.
NOGUEIRA, C. S. P. A família na toxicomania. In: CIRINO, O.; MEDEIROS, R. (Orgs.) Álcool e outras
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POLETTI, R.; DOBS, B. Resiliência: a arte de dar a volta por cima. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
RECANTO DAS LETRAS. Mario Quintana. Correndo atrás das borboletas. 2017. Disponível em https://
www.recantodasletras.com.br/analise-de-obras/6158952. Acesso em: 9 abr. 2020.
ROBAINA, J. V. L. Drogas: o papel do educador na prevenção ao uso. Porto Alegre: Mediação, 2010.
SOUZA, O. A.; ASINELLI-LUZ, A. Família e escola em rede de proteção. Curitiba: Base, 2010. v. 4. (Coleção
Família & Escola).
TAVARES, L. A.; MONTES, J. C. (Orgs.). A adolescência e o consumo de drogas: uma rede informal de
saberes e práticas. Salvador: Edufba/Cetad, 2014
WEBER, L. (Org.). Família e desenvolvimento: visões interdisciplinares. Curitiba: Juruá, 2008

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NOTAS EXPLICATIVAS
1 Pedagogo e educador brasileiro, foi presidente da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor de Minas
Gerais (Febem-MG) e responsável pela extinção e substituição desta pelas instituições socioeducativas para
crianças e adolescentes em conflito com a lei. Teve importante participação na redação do Estatuto da
Criança e do Adolescente e foi o grande incentivador do protagonismo juvenil. Faleceu em 4 de março de
2011 em decorrência de uma queda.
2 O usuário com essa síndrome perde o interesse pela vida, pelas atividades e relacionamentos familiares e
escolares. Seu interesse fica direcionado exclusivamente ao consumo da maconha e há um nítido declínio
em relação aos cuidados pessoais, incluindo a higiene.

Links
1. Associação Brasileira de Estudos de Álcool e outras Drogas (ABEAD):
www.abead.com.br
2. Associação Brasileira Multidisciplinar sobre Drogas (ABRAMD):
www.abramd.org.br
3. Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID):
www.cebrid.epm.br
4. Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas (OBID):
www.obid.senad.gov.br
5. Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD):
www.obid.senad.gov.br
www.senad.gov.br
6. Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas:
www.uniad.org.br
7. Federação de Amor Exigente:
www.amorexigente.org.br
8. Cruz Azul do Brasil:
www.cruzazul.org.br
9. Alcoólicos Anônimos (AA):
www.alcoolicosanonimos.org.br

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10. Al-Anon e Alateen:


www.al-anon.org.br
11. Narcóticos Anônimos (NA):
www.na.org.br
12. Associação Parceria contra as Drogas:
www.contradrogas.org.br
13. Secretaria Nacional de Direitos Humanos:
www.youtube.com/user/unaids ou www.onu.brasil.org.br.

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CIÊNCIA, INOVAÇÃO E ÉTICA Tecendo Redes e Conexões para a Sustentabilidade
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CENTRO DE ESTUDOS PARA UMA


EDUCAÇÃO AMBIENTAL RENOVADA

Lucia Santaella

INTRODUÇÃO
O texto que se segue teve sua origem em uma experiência vivida nos anos 2002 a 2010. Nesse
período ocupei o cargo de coordenadora científica de um projeto coletivo de pesquisa junto ao Centro
de Pesquisa da Petrobrás (Cenpes). Esse projeto se enquadrava no setor de Geologia e Meio Ambiente
e tinha como objeto a região amazônica.
Sem mencionarmos as mazelas das diferenças sociais e culturais, da miséria que ainda assola nosso
país e dos escândalos de corrupção das mais diversas ordens, foram três as metonímias, partes pelo
todo, que tornaram o Brasil conhecido no mundo: o café, o carnaval e o futebol. De uns anos para cá,
entretanto, a Amazônia tem de longe suplantado esses elementos a ponto de podermos afirmar que os
olhos do mundo estão hoje voltados para esse local do planeta.
No contexto dos dilemas ecológicos que hoje atingem uma escala planetária, o Brasil tem estado
no centro não apenas da inquietação dos leigos por todo o mundo, mas também das preocupações
dos ambientalistas internacionais. Afinal, no território desse país se encontra a Bacia Amazônica,
nada mais nada menos do que um dos maiores tesouros ecológicos de inestimável valor para a
sobrevivência do planeta.
O ecossistema amazônico hipercomplexo é realmente privilegiado. A espantosa biodiversidade da
maior floresta tropical do mundo apresenta uma maravilhosa disposição para funcionar como um dos
mais importantes reservatórios para a continuidade vital da biosfera. Não foi difícil imaginar que no

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subsolo dessa potente biodiversidade houvesse petróleo. De fato, havia e, desde que esse petróleo foi
encontrado, cruzaram-se os destinos da Amazônia e da Petrobrás. É bastante conhecido o fato de que
que a Petrobrás construiu um gasoduto na Amazônia Ocidental para o transporte de óleo cru da região
de produção de Urucu ao terminal do rio nas proximidades de Coari, uma cidade situada na margem
direita do Rio Solimões. Petroleiros, em seguida, enviam o óleo para outro terminal em Manaus.
Entre as estações seca e úmida, o nível da água muda dramaticamente no Rio Solimões, chegando
a subir 14 metros. Esse caráter sazonal do clima amazônico dá origem a quatro cenários distintos no
ciclo hidrológico anual: água baixa, água, água de alta recuando e água subindo.
Esses cenários constituem o enquadramento para a definição de planejamento de resposta a
derrames de petróleo na região, já que floresta inundada e vegetação inundada são os ambientes
mais sensíveis fluviais para derramamentos de óleo. A metodologia que era utilizada na Amazônia
para avaliar o risco ambiental de derrames de petróleo incluía sistemas de informação geográfica,
processamento de imagem de dados de sensoriamento remoto e de conversão cartográfica e geração
de valor agregado do produto utilizando visualização 3D. Esses procedimentos eram realizados a fim
de melhorar a análise de dados topográficos digitais e gerar mapas de sensibilidade para regiões fluviais
do Rio Solimões.
Quando a metodologia National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA) foi
aplicada na região, revelou que os pontos de maior sensibilidade ambiental nos meses de cheias
ocorrem em 57,60% da raiz de transporte fluvial de petróleo do Terminal de Solimões, em Coari,
para o Terminal de Manaus.
Embora essa metodologia tenha fornecido informações cruciais sobre a sensibilidade ambiental
de derramamento de óleo na Amazônia Ocidental, ela não foi capaz de nos dar uma compreensão
mais refinada da variação sazonal do rio, que é representado por um arranjo complexo de canais que
mudam com o tempo.
O ciclo hidrológico produz e elimina manchas enormes de floresta inundada, um tipo de paisagem
que regula a distribuição espacial da flora e fauna, bem como os hábitos sociais das aldeias ribeirinhas.
Essa teia de relações é progressiva, e abordagens evolutivas e convencionais não eram robustas o
suficiente para lidar com a complexidade de padrões espaciais e temporais na planície aluvial do Rio
Solimões. Por isso, uma abordagem científica mais ampla e complexa mostrou-se necessária. Disso
nasceu o projeto de que tomei parte, sob o nome Cognitus, novas ferramentas cognitivas para a
Amazônia. Os principais propósitos do projeto eram os seguintes:
a) conceber uma metodologia científica inovadora para identificar os ecossistemas a serem
prioritariamente protegidos na planície inundável do Solimões, na eventualidade de acidentes
com derrame de óleo;
b) desenvolver tecnologia inovadora para a coleta de dados;
c) desenvolver interfaces humano-computador para responder às exigências de integração,
visualização e interpretação de dados apresentadas pela complexidade ecológica da Amazônia;

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d) estabelecer bioindicadores e biomarcadores capazes de contemplar desde a escala de observação


planetária (imagens de satélites) até a nanoescala (processos bioquímicos).

Depois de oito anos de execução, quando contava já com 46 pesquisadores, esse projeto foi
abalroado pelo Pré-Sal, que retirou da Petrobrás o interesse prioritário na Amazônia. O projeto
Cognitus foi então descontinuado da noite para o dia, e o que me restou da experiência foi a reflexão
sobre as condições da biosfera e a busca por uma concepção da ecologia mais consciente e ética quanto
ao processo evolutivo da presença humana na Terra. O texto a seguir nasceu dessa reflexão.

DIAGNÓSTICO DE QUESTÕES ECOLÓGICAS


CRUCIAIS
Todo pensamento sobre o meio ambiente é inevitavelmente suportado por alguma concepção
da natureza que, via de regra, tem base filosófica no cartesianismo. De acordo com essa doutrina,
a natureza é uma matéria estranha à mente. De um lado, está a interioridade do sujeito, senhor do
pensamento e do conhecimento; do outro lado, está a natureza, o exterior sólido e extenso. Essa
dissociação entre interior e exterior, que deu suporte à filosofia durante séculos, acabou também por
conduzir o modo como a ciência passou a conceber sua tarefa: esquadrinhar a natureza e amoldá-la,
domá-la por meio do conhecimento. Essa concepção casou-se à perfeição com a lógica industrial da
conquista irrestrita e exploração muitas vezes predatória do mundo natural.
Desde o século XIX, a sociedade industrial está organizada segundo o modelo mecanoprodutivista
do positivismo: progresso científico = progresso técnico = desenvolvimento econômico = progresso
sociocultural. Tal modelo parece vestir como uma luva os interesses profundos do capitalismo que,
longe do progresso linear preconizado tem, na realidade, colocado a humanidade diante de dilemas
econômicos, demográficos, epidemológicos, sociais, éticos e, sobretudo, ambientais.
Esses dilemas foram se intensificando no decorrer do século XX a ponto de ameaçar o equilíbrio
ecológico e, consequentemente, a própria sobrevivência das espécies no planeta, inclusive a humana.
Jean-Paul Deléage (2002, p. 120), físico e historiador das ciências, professor no departamento de
Geografia na Universidade de Orléans, onde dirige o DEA ‘Meio ambiente, tempos, espaços,
sociedades’, em artigo sobre os desafios da biosfera e biodiversidade, diz que temos de distinguir pelo
menos quatro níveis de biodiversidade:
a) o nível genético, que corresponde à diversidade dos genes no interior de uma espécie;
b) o específico, que corresponde à diversidade das espécies propriamente ditas;
c) o ecossistêmico, que corresponde à diversidade das interdependências próprias a cada
ecossistema;

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d) o bioesférico, enfim, que corresponde à totalidade das espécies que vivem sobre o planeta.

Nos três últimos níveis (b, c, d) a biodiversidade sofre uma erosão extremamente brutal como
efeito da destruição rápida e em grande escala dos meios de vida, como a floresta tropical. A erosão
genética não é menos importante como resultado dos procedimentos de manipulação dos seres vivos –
que conhece hoje um salto qualitativo com as novas técnicas de acoplamento de genes e fusão nuclear.
Como consequência disso, fala-se não só sobre a passagem da agricultura para a molecultura, como
também se fala sobre o fim da natureza.
Os trabalhos recentes, que se preocupam com a tradição evolucionária catastrofista na história
da vida sobre a Terra, evocam, a propósito do desmoronamento atual da biodiversidade, a hipótese da
sexta grande crise de extinção biológica da vida na Terra. Diante disso, sob o nome de Antropoceno,
o novo período geológico do planeta, existe um consenso sobre a amplitude do fenômeno e sobre a
exclusividade da responsabilidade do Homo sapiens faber como força geológica planetária. (STENGERS,
2015; SANTAELLA, 2015). De fato, as ameaças ecológicas mudaram de escala, tornaram-se mais
planetárias que locais ou regionais, mais meteorológicas ou biológicas em suas bases e a angústia que
acompanha tudo isso cresceu à altura. (PARIKKA, 2014). O ser humano civilizado das complexas
sociedades contemporâneas tornou-se uma força geológica planetária suscetível de provocar tanto a
destruição quanto um verdadeiro salto evolutivo no planeta. Os dados estão lançados.

VISÃO INGÊNUA DA NATUREZA COMO SANTUÁRIO


INTOCÁVEL
Nesse contexto, as reações defensivas contra as ameaças iminentes levaram à consolidação da
ecologia e do meio ambiente como campos do saber, e ações políticas foram se instaurando tendo em
vista a proteção da biosfera. Entretanto, a concepção da natureza que suporta esse saber e essas ações é,
via de regra, também cartesiana, colocando-se como o outro lado da moeda das tendências predatórias.
Embora aparentemente protecionista, a maior parte dos ecologistas ainda raciocina de acordo
com a mesma lógica do esquema mecanoprodutivista, apenas invertendo a face da moeda. Por
isso mesmo, para os mais radicais, a ciência e a tecnologia seriam a fonte de todos os males. Daí
preconizarem o retorno a uma economia patriarcal pré-industrial, privilegiando uma vida monacal
que suprima todos os produtos da tecnologia. Ecologistas desse tipo são tão perigosos para o meio
ambiente quanto os predadores, pois conduzem a ecologia ao isolamento. Presas fáceis das seitas,
acabam por dar razão às declarações dos técnicos imbuídos de cientificismo cego que gostam de
acusar os ecologistas de retrógrados.
Radicalismos à parte, infelizmente, não há como negar que as ameaças ecológicas que pesam sobre
o planeta induzem como resultado uma idealização coletiva da natureza. O que está faltando como via
para a superação da perversidade destrutiva, de um lado, e do idealismo ingênuo, de outro, é uma visão

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da realidade coevolutiva da natureza-humanidade e do papel mediador desempenhado pela ciência e


tecnologia nessa dinâmica coevolutiva. (MAZLISH, 1993).
Muito longe das visões puristas da natureza que pretendem mantê-la em uma lata de conserva,
desenvolvimentos científicos deram conta de evidenciar, acima de quaisquer controvérsias, que a
natureza evoluiu sem o ser humano e que este é justamente fruto dessa mesma evolução. Esse processo
evolucionário é, entretanto, ainda mais complexo. Ao emergir na natureza como ser pensante, o ser
humano acabou por se tornar seu principal agente transformador. A marca especificamente humana
está nas transformações que a humanidade imprime sobre a natureza, uma transformação que também
se volta sobre si mesma: transformando a natureza, o ser humano transforma a própria natureza. Aí está
o processo de coevolução indissolúvel entre o humano e a natureza.

PRINCÍPIO DA RESPONSABILIDADE
Não parece haver dúvida, contudo, de que essa coevolução se encontra hoje em estado de risco.
Os ataques globais à biosfera (desde o relatório Brundtland: Our common future1) vêm colocando
em perigo os mecanismos reguladores que comandam a perenidade da vida no planeta. A intensidade
da irrupção da questão ambiental no palco da ciência é emblemática da propagação e da globalização
da crise ecológica. A irreversibilidade e a aceleração do desaparecimento das espécies, bem como a forte
inércia dos sistemas sociais e ecológicos, obrigam a uma tomada de decisão. É urgente, portanto, que
comecemos a operar o princípio da responsabilidade proposto pelo filósofo Hans Jonas (1984), que se
refere à responsabilidade ética na conscientização das relações de força que existem entre a humanidade
e seu meio ambiente.
A ecologia social e política frente à questão do desenvolvimento durável tornou-se uma necessidade
premente da qual a espécie humana não pode se safar. Para isso, o ser humano deve lançar mão de
sua cria mais dileta, a tecnociência, pois ela faz a mediação mais fina entre o ser humano e a natureza.
Há mais de um século, o matemático, cientista e filósofo norte-americano Charles Peirce, criador da
moderna semiótica, declarou:

Por que o homem, um ser no qual o impulso natural está primeiro na sensação, depois na razão, depois
na imaginação, então no desejo, então na ação, teve de parar na razão, como ele tem feito a 2.500 anos?
Isso é inatural e não pode durar. O homem deve continuar para usar todos esses poderes e energias que
lhe foram dadas, a fim de que ele possa imprimir a natureza com seu próprio intelecto, conversar com
a natureza e não meramente ouvi-la. (1973, p. 13).

Se há um século tal declaração soava como um ideal ainda inalcançável, o impressionante


desenvolvimento científico e tecnológico do último século nos fornece hoje evidências inegáveis de
que o ser humano já está dotado e equipado dos meios necessários para conversar com a natureza.
Como um eco hodierno a essa afirmação de Peirce, Michel Cassé, astrofísico que trabalha no Instituto

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de Astrofísica de Paris, declarou que “vivemos agora no tempo abençoado em que a matéria fala”.
(MORIN, 2002, p. 35). Isso quer dizer que os mais recentes conhecimentos já alcançados e aqueles
que poderemos alcançar sobre a Terra, a vida e o ser humano nos acenam agora com a chance de a
humanidade poder e dever se posicionar diante de seu destino.

TECNOCIÊNCIA E DIÁLOGO COM A NATUREZA


No final do século XX presenciamos um desenvolvimento considerável das técnicas de observação
e manipulação dos átomos ou moléculas um a um, graças, por um lado, à invenção do microscópio de
efeito de túnel e de seus derivados e, de outro, aos progressos da ótica quântica. A via está agora aberta
ao estudo e à utilização de objetos físicos de tamanho muito reduzido, construídos átomo a átomo,
e também ao estudo das propriedades da matéria biológica na escala da molécula, campo em plena
revolução há alguns poucos anos.
Enfim, o ser humano dotou-se de próteses que lhe permitem, de um lado, perscrutar o céu
pelo registro das ondas (rádio, infravermelhas, ultravioleta, X e gama). De outro lado, por meio da
nanobiotecnologia, ele pode hoje penetrar e manipular a filigrana mais ínfima da matéria da vida.
O invisível não apenas se tornou o visível mais próximo, mas também acessível a transformações
imprimidas pela vontade e necessidade humanas.
À medida que amplia seu alcance, a ciência vai criando novos instrumentos, cada vez mais delicados
e precisos, que lhe permitem penetrar no âmago do real, aprimorando os meios para o diálogo homem-
-natureza. Se a ecologia tem em mira as regras da mais fina adaptação do ser humano a seu meio de vida,
podemos dizer que a tecnociência está hoje preparada para promulgar a coevolução mais harmoniosa
entre homem-natureza, orientando as ações científicas e políticas rumo ao desenvolvimento sustentável.
A evolução do conhecimento multiplica as possibilidades de escolhas tecnológicas e, assim, permite
encontrar as tecnologias que se adaptam melhor às circunstâncias locais e gerais, ecológicas e humanas.

DESAFIOS PARA AÇÕES CIENTÍFICAS


E POLÍTICAS RELEVANTES
Os desafios que se apresentam começam no inevitável dilema epistemológico. A filosofia dualista,
que vem de Descartes, acompanhada da lógica clássica, da causalidade linear e da abordagem analítica,
revela-se das mais limitadas. As noções de espaço, energia, tempo, matéria etc. foram questionadas no
decorrer do século que passou. A energia pode tornar-se matéria, o tempo pode contrair-se, o espaço
é curvo, a velocidade é relativa, o elétron torna-se uma onda ou uma partícula segundo o observador,
o caos pode ser organizador, o universo não é permanente e nós não ocupamos seu centro. Devemos,
portanto, forjar novas representações de mundo.

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Fontes para isso podem ser buscadas na filosofia científica de Charles Sanders Peirce, criador
da moderna semiótica, concebida como uma lógica extensiva que tem bases no princípio de que
todo pensamento se dá em signos dos mais variados tipos, do que decorre que qualquer modo
de acesso que o ser humano pode ter à realidade é mediado por signos. (SANTAELLA, 2016).
Relevante para todos os campos das ciências, a semiótica se revela especialmente promissora aos
estudos biológicos, geológicos e ambientais em geral. Ela nos permite perceber que a natureza
também se estrutura como uma linguagem, pois os sinais que ela emite se configuram em sistemas
dinâmicos complexamente codificados.
Mais relevantes são os fundamentos semióticos, quando se sabe que deles se extrai o conceito
anticartesiano de sinequismo que, longe da oposição tradicional entre mente e matéria, propõe
a continuidade entre esses dois polos da biosfera. Suportada pelas ferramentas da semiótica, essa
continuidade pode ser perscrutada de modo a propiciar uma concepção da atividade científica como
conversação e diálogo que o ser humano estabelece com a natureza bioecológica e sociocultural.
Outro desafio encontra-se na inadequação cada vez mais ampla, profunda e grave entre um saber
fragmentado em elementos desconjuntados e compartimentados nas disciplinas, de um lado, e, de
outro, entre as realidades multidimensionais, transnacionais, planetárias e os problemas cada vez mais
transversais, polidisciplinares e até mesmo transdisciplinares. As ciências, tal como se apresentam, só
sabem separar, despedaçando o complexo do mundo em fragmentos desconjuntados e fracionando os
problemas. Assim, quanto mais os problemas se tornam multidimensionais, maior a incapacidade para
pensar a multidimensionalidade, quanto mais eles se tornam hipercomplexos, menos são pensados
enquanto tais.
As condições atuais da biosfera desafiam todas as setorizações científicas, demonstrando a
incapacidade das diferentes disciplinas, desde que simplesmente justapostas umas às outras, para tratar
cientificamente o contexto global, híbrido e complexo da biosfera. Diante disso, proponho a seguir
o esboço de estrutura para um Centro Interdisciplinar de Meio Ambiente, uma proposta que visa
contribuir para renovar o pensamento sobre a educação ambiental.

PROPOSTA PARA A ESTRUTURAÇÃO DE UM


CENTRO INTERDISCIPLINAR DE MEIO AMBIENTE
(CIMA)
Em vez de pensar na mera justaposição de disciplinas desconectadas, esse Centro se estrutura na
interpenetração dos grandes campos do saber que hoje se apresentam com potencial para responder
aos desafios do presente em direção ao futuro. A topologia do Centro assemelha-se a uma caixa
chinesa dinâmica de saberes mais gerais e abstratos que contêm em si saberes cada vez menos
abstratos e mais empíricos.

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Semiosfera e tecnoesfera
Envolvendo e, ao mesmo tempo, sustentando epistemologicamente todos os estudos, encontra-se
o campo da semiosfera, entendida como a esfera que penetra cada canto da bioesfera, hidrosfera,
atmosfera, incorporando todas as formas de comunicação: sons, cheiros, movimentos, cores, formas,
campos elétricos, radiação térmica, ondas de todos os tipos, sinais químicos, toques e assim por diante.
Enfim, a biosfera deve ser vista à luz da semiosfera e não o contrário, especialmente porque o conceito
de semiosfera nos permite enxergar a impossibilidade de se separar a biosfera da tecnosfera, o que nos
leva à compreensão do processo coevolutivo natureza-humanidade.
O conceito que sustenta essa visão ampla da semiosfera é o de semiose. À luz do conceito metafísico
de sinequismo, que propõe uma continuidade graduada entre matéria e mente, a noção de semiose
aparece como uma noção-síntese que integra em um mesmo tecido lógico as distintas substâncias
do mundo físico, do ecobiológico, do tecnológico e do antropológico. Isso nos permite questionar
o cartesianismo que ainda está implícito em quaisquer oposições entre fisio e biosfera, entre bio e
semiosfera, entre fisio e semiosfera. Isso sem mencionarmos as arraigadas oposições entre essas esferas
da natureza e a antroposfera, assim como as ferozes oposições entre ambas e a tecnosfera.
Longe das simples oposições, o conceito peirceano de semiose nos leva a entender as dessemelhanças
entre essas esferas como diferenças de grau e não de essência, o que faz jus à afirmação peirceana de
que o universo está permeado de signos, constituindo-se, portanto, em uma vasta semiosfera, prenhe
de diferenciações, mas todas elas unidas pelos fios lógicos da semiose.

Geosfera, biosfera e antroposfera


A interpenetração indissolúvel dessas três esferas, sem que se perca a especificidade de cada uma,
está baseada na unificação conceitual transdisciplinar da biologia, geologia e química em biogeoquímica
para servir o estudo do conceito de biosfera. Tal conceito leva em consideração as interações recíprocas
que unem seres vivos, o meio terrestre dos mesmos e a energia vinda do cosmos. Tendo como operador
relacional central a energia geoquímica da vida na biosfera, nessa última a vida é pensada sob a forma
de uma multiplicação permanente dos organismos mais diversos.
A geosfera, o conhecimento da Terra, necessita do recurso a todas as diversas partes que a
constituem, ou seja, para compreender a Terra é preciso passar das partes ao todo e do todo às
partes. É precisamente isso que é ilustrativo e exemplar, hoje, no campo da ciência. Para isso, quatro
importantes grupos de ciência, cada qual polidisciplinar, devem ser mobilizados: as ciências da Terra,
a ciência da evolução, a ecologia e a geografia humana, esta aqui pensada, em termos muito mais
amplos, como antroposfera.
As ciências da Terra articulam-se umas às outras desde 1960 e permitiram demonstrar o quanto as
disciplinas tornam-se fecundas quando se conectam em volta de um núcleo conceitual transformado
em sistema evolutivo e autotransformador. As ciências da Terra desenvolvem a competência geofísico-

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-química. A biosfera é uma entidade levada em conta pela ciência ecológica; componente da ecologia,
a geografia humana passa a ser pensada também como parte da antroposfera. Esta, concebida à luz
do conceito unificador de antropossemiose, permite uma visão conjugada das ciências humanas,
fornecendo-nos os ferramentais conceituais necessários para pensar os processos coevolutivos entre o
ser humano e a geobiosfera pela mediação da tecnosfera.
Enfim, as ciências da Terra revelam nosso modo de inserção no planeta e no seio da biosfera. As
ciências biológicas permitem situarmo-nos na evolução da vida. No seio dessas complementaridades,
a dominação absoluta da visão molecular na biologia deve ceder lugar a uma visão mais global dos
seres vivos, ao mesmo tempo que o papel sui-generis desempenhado pela antroposfera é realçado pela
camada tecnosférica que o ser humano gerou como mediação entre a semiosfera e as demais esferas.

O núcleo duro das pesquisas empíricas e experimentais:


nanobiotecnologia, robótica avançada e laboratório cognitivo

Nanobiotecnologia
A nanobiotecnologia pode ser definida como um corpo de tecnologias na qual produtos e outros
objetos são criados por meio da manipulação de átomos e moléculas. ‘Nano’ se refere à bilionésima
parte do metro, que corresponde ao tamanho de cinco átomos de carbono. Apesar do enorme
potencial de manipulação molecular e atômica para o desenvolvimento de novos produtos, o efetivo
aproveitamento desse potencial só deve ser alcançado em curto prazo por meio da interface com o
mundo macro proporcionada pela microtecnologia como supridora de ferramentas e infraestrutura.
(RAMSDEN, 2011).
As pesquisas em nanobiotecnologias podem ser aplicadas ao desenvolvimento e capacitação em
micro e nanotecnologias para a geração de inovações na área ambiental. Por exemplo, as empresas
de petróleo enfrentarão, nas próximas décadas, desafios relativos à redução das reservas de petróleo
e a crescente pressão pela utilização de energias limpas e da preservação da ecologia para atender à
demanda ambiental.
Dentre as tecnologias com potencial para resolver os problemas impostos por esses desafios, a
nanobiotecnologia, por sua abrangência e multidisciplinaridade, apresenta-se como possível resposta a
essa e outras questões. A nanotecnologia pode ajudar a revolucionar a indústria de energia produzindo
inovações como novas membranas para células de combustível, células solares fotossintéticas feitas de
plástico, armazenadores de energia solar ou bactérias inteligentes. Outra aplicação potencial para a
nanotecnologia envolve a utilização de pó de nanopartículas que podem ser utilizadas como aditivos
em combustíveis e catalisadores para recuperação de energia.
Talvez o mais significante desenvolvimento em tecnologia de nanomateriais esteja relacionado
aos nanotubos. Materiais produzidos em nanotubos apresentam impressionante lista de atributos. Eles

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podem se comportar como semicondutores, conduzir eletricidade melhor do que o cobre, transmitir
calor melhor do que o diamante e estão entre os materiais mais fortes conhecidos.
Um dos campos mais desafiadores da nanotecnologia encontra-se no desenvolvimento de
bionanossensores. O programa de pesquisa para isso envolve:
• o entendimento fundamental dos fenômenos de biossensoriamento em nanoescala;
• o projeto de fabricação de interfaces sensoras biologicamente ativas;
• o projeto de fabricação de estruturas transdutoras de estado sólido capazes de detectar
simultaneamente múltiplas substâncias e processos biológicos: chips biossensores, arrays
biossensores etc.;
• novas técnicas experimentais e ferramentas teóricas para o rápido desenvolvimento da
tecnologia em bionanossensores;
• integração dos componentes biológicos, físicos (mecânico, óptico, acústico);
• componentes eletrônicos em sistemas biossensores multifuncionais: novas técnicas de
imobilização, tecnologias de micro/nanofabricação de transdutores, sistemas microfluídicos,
circuitos integrados para condicionamento e processamento de sinais, biossensores inteligentes
e sistemas biossensores.

Robótica avançada
Os robôs constituem ferramentas para amparar os estudos que tentam compreender como
funcionam a inteligência, a cognição e a adaptação ao ambiente em seres humanos e em animais.
Robôs podem apoiar o estudo de comportamento animal. Conseguimos, no estado atual,
utilizar robótica como um modelo de determinados sistemas que envolvem seres vivos, e utilizá-los
para testar e validar estes modelos. Ganhamos com isso maior compreensão sobre fenômenos
observados nos animais. Outra faceta importante da pesquisa em robótica está voltada para a criação
de sistemas robóticos humanoides, que possam desempenhar algumas das funções dos seres humanos
e fazer a eles companhia.
Uma tendência presente em robótica avançada, e que deve ser reforçada pelo avanço no
conhecimento em bio e nanotecnologia, é a criação de sistemas robóticos híbridos entre artificial/
/mecânico e vivos. Essa tendência já se apresentava em experimentos preliminares dos anos 1980 (como
é o caso do robô-borboleta) e há avanços significativos obtidos na última década, como o controle de
robôs com tecido neural vivo alimentado por sensores artificiais; o treinamento de uma cultura de
células neurais para desempenhar funções em sistemas robóticos; o uso de músculos de animais como
atuadores para robôs controlados por computadores; robôs que tiram sua energia de material orgânico,
como vegetais em decomposição ou pequenos insetos, por meio da tecnologia de célula de combustível
microbial. Esses avanços tecnológicos apontam no sentido de termos robôs cada vez mais autônomos e

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capazes de se adaptar a ambientes cada vez mais diversificados, com competência para se autorreparar
e regenerar e com autonomia operacional elevadíssima. (FLOREANO; NOLFI, 2000).
A necessidade de preservação do meio ambiente e a busca de modelos de desenvolvimento
sustentável fazem com que busquemos entender cada vez mais a biosfera e seus ecossistemas para
que consigamos medir os efeitos da atividade humana e regulá-la para evitar danos irreversíveis ao
ambiente. Nesse contexto, percebemos que a compreensão que se tem sobre diversos ecossistemas,
espécies e organismos ainda é de natureza taxonômica. Sabemos de sua existência, mas seus aspectos
dinâmicos são pouco compreendidos. Para o caso de muitos organismos, nem mesmo a informação
taxonômica é conhecida, pois grande parte dos seres vivos ainda é desconhecida pela ciência.
Um passo fundamental para compreendermos os aspectos dinâmicos é a coleta de dados nos
ecossistemas de forma mais sistemática e abrangente. Os robôs podem ser uma ferramenta fundamental
para viabilizar essa empreitada, porque podem permitir o monitoramento contínuo de determinados
ambientes, carregando sensores que podem medir desde simples elementos físico-químicos, como pH
da água de rios e lagos, temperatura do ambiente, direção e velocidade do vento, até parâmetros
biológicos de medição mais difícil, como RNA de determinadas espécies (o projeto Environmental
Sample Processor, por exemplo, do Monterey Bay Aquarium Research Institute, tem dispositivos
especializados na deteção do RNA de algas tóxicas2).
As possibilidades e implicações do uso de robôs em monitoramento ambiental já são bem estudadas.
Uma iniciativa que merece ser lembrada é o projeto Center for Embedded Network Sensing (CENS),
um convênio firmado entre diversas universidades da Califórnia (UCLA, UCR, Caltech, USC, CSU,
JPL, UC Merced)3 que realiza a instrumentação completa de áreas nos EUA, como a reserva James e
San Jacinto, com redes de sensores e robôs. Nessa aplicação, dados sobre parâmetros que caracterizam
microclimas e imagens estão sempre disponíveis em tempo real sobre o que acontece no habitat, e séries
históricas das leituras dos diversos equipamentos de monitoração passam a figurar num repositório que
pode ser usado a posteriori por cientistas em suas pesquisas.
Algumas das vantagens dos robôs para aplicações ambientais incluem a possibilidade de
monitoramento contínuo sem intervenção humana e telepresença. Como aplicações deste último tipo
podemos citar a empreitada da Rutgers University – Coastal Ocean Observation Lab [Rutgers], que
envolveu a criação de robôs submarinos para o levantamento de curvas de parâmetros físico-químicos
da água marinha como salinidade, pH e condutividade em função da profundidade e de sua posição
(os robôs são equipados com GPS), e também uma das pesquisa do CENS, em que um robô autônomo
na forma de um barco carregava alguns sensores em uma sonda, utilizando um algoritmo inspirado em
mecanismos de rastreamento de substâncias químicas encontrados em bactérias para encontrar fontes
de calor ou de substâncias químicas em lagos.

Fábrica cognitiva
A relação do ser humano com a realidade sempre foi mediada por algum tipo de técnica, sendo a
primeira delas a própria fala e a capacidade manual para a produção de objetos. Todas as tecnologias

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tornam mais complexa nossa visão de mundo. A escrita, a imprensa, o carro, os satélites, o telefone, o
rádio e a televisão são tecnologias ou complexos tecnológicos que mudaram para sempre o modo de
vida do ser humano no planeta. Hoje, no estágio em que estamos da segunda idade da internet, da
realidade aumentada e da explosão da inteligência artificial, essas condições se exponenciaram.
De fato, quanto mais o universo sensorial e cognitivo foi se estendendo e se amplificando em
tecnologias, mais o cérebro humano foi extrassomatizado e objetivado em cultura, fazendo crescer a
complexidade do real que se adensa e se alarga cada vez mais: o mundo dos utensílios e objetos foi
alargado pelas máquinas de extensão da força muscular humana. Estas foram alargadas nas máquinas
replicadoras das experiências visuais e auditivas que, por sua vez, foram amplificadas nas máquinas que
aumentam a capacidade do cérebro. Essas mesmas máquinas estão criando rebentos que realizam a
façanha de aumentar a própria realidade, como é o caso do ciberespaço, da telepresença e RV.
A fábrica cognitiva do Cima teria por finalidade acompanhar pari-passu as transformações que as
extensões sensoriais e mentais vão trazendo para a paisagem do mundo e para o potencial cognitivo
da humanidade com aplicações especialmente voltadas para os processos de formação educacional
sincronizados com os avanços cognitivos propiciados pelas tecnologias finas nas quais estamos
atualmente mergulhados.

BIBLIOGRAFIA
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século XXI. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. p. 35-42.
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-organizing machines. Cambridge: MIT Press, 2000.
JONAS, H. The imperative of responsibility. In search of an ethics for the technological age. Chicago: The
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SANTAELLA, L. A grande aceleração & o campo comunicacional. Intexto [on-line], n. 34, p. 46-59, set./dez. 2015.
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WIENER, P. P. (ed.). Charles Peirce: selected writings. Londres: Dover, 1973.

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NOTAS EXPLICATIVAS
1 Disponível em: http://www.kdp.org/initiatives/pdf/BrundtlandReport.pdf. Acesso em: 21 out. 2019.
2 Disponível em: https://www.mbari.org/technology/emerging-current-tools/instruments/environmental-
sample-processor-esp/. Acesso em: 21 out. 2019.
3 Disponível em: http://auvac.org/people-organizations/view/386. Acesso em: 21 out. 2019.

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