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ROCHA e TOSTA - Antropologia e Educação

Este livro explora a relação entre antropologia e educação, enfatizando a importância de compreender o sujeito em suas dimensões sociais e culturais. Os autores discutem temas como aprendizagem, currículo e pluralidade cultural, propondo uma reflexão sobre como a educação transcende os limites físicos da escola. A obra é um convite ao diálogo entre educação e cultura, destacando a antropologia como uma forma de produzir sentido humanista nas experiências cotidianas.
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
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ROCHA e TOSTA - Antropologia e Educação

Este livro explora a relação entre antropologia e educação, enfatizando a importância de compreender o sujeito em suas dimensões sociais e culturais. Os autores discutem temas como aprendizagem, currículo e pluralidade cultural, propondo uma reflexão sobre como a educação transcende os limites físicos da escola. A obra é um convite ao diálogo entre educação e cultura, destacando a antropologia como uma forma de produzir sentido humanista nas experiências cotidianas.
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/ Integrante da Coleção Temas & Educação,

este livro contribui para ampliar o significado da an-


tropologia como forma de educação. A proposta
aqui é discutir questões cruciais para a educação e a
escola; portanto, para alunos, professores, gestores,
pesquisadores e formadores de opinião pública. O
ambiente escolar tomado como campo para múl-
tiplas interações estabelecidas cotidianamente entre
seus atores, nos sugere a importância de se enxergar
o sujeito em suas dimensões sociais e culturais.
Com um olhar que incide sobre aprendizagem,
currículo, avaliação, formação docente e relaciona-
mento interpessoal, o livro alerta, ainda, para a ne-
cessidade de se avaliarem os Parâmetros Curriculares
Nacionais e seus temas que se propõem a tratar de
questões como a pluralidade cultural, bem como ou-
tros assuntos em sua relevância pedagógica. Dessa
maneira, contempla-se a educação para além dos li-
V mites físicos de uma escola.
o que especifica o tipo de co~
nliecimento produzido pela antro-
COLEÇÃO
pologia? Com esse questionamento,
TEMAS & EDUCAÇÃO
que sugere a complexidade dessa
ciência, este livro pretende ser um
convite à reflexão sobre o diálogo
rico e revelador entre a educação e
a cultura. Para os autores, Gilmar Ro-
cha e Sandra Pereira Tosta, a antro-
pologia é mais do que uma disciplina
académica, capaz de fornecer uma
explicação sobre as representações
da alteridade e/ou das práticas do
outro, contendo em si uma definição
que mais a aproxima de uma forma
de produzir sentido humanista às
nossas experiências no mundo da
vida cotidiana.
Com o entendimento de que a
antropologia é uma forma de educa-
ção, bem como de que a educação
só é possível como prática antropo- Antropologia & Educação
lógica, os autores tecem nas páginas a
seguir um estudo denso e bem-articu-
lado sobre a relação entre essa ciên-
cia - que carrega em si uma mudança
de paradigma na compreensão e na
definição do estatuto do homem - e
a educação. O leitor carrega em suas
mãos um trabalho motivado pelo es-
pírito pedagógico que se enriquece
pela proveitosa indicação de livros
e outras fontes destinadas a quem,
desafiado e instigado pela leitura dos
capítulos aqui apresentados, queira
percorrer outros caminhos em que
termos como "interdisciplinaridade"
e "multiculturalismo" se entrelaçam.
Assim, este livro evita tanto ser um
manual quanto se limitar a questões
situadas entre a didática de sala de
.lula e a política de educação.
C o p y r i g h t © 2 0 0 9 Os a u t o r e s

COORDENADOR DA COLEÇAO TEMAS S EDUCAÇÃO ' • : . ^


Alfredo Veiga-Neto

CONSELHO EDITORIAL
Alfredo Veiga-Neto-UFRGS, Carlos Ernesto Noguera-UniM. P e d a g ó g i c a Nacional
de Colonnbia, Edla Eggert-UNISINOS, Jorge Ramos doÓ- Universidade de Lisboa,
Júlio Groppa Aquino - USP, Luis Henrique Sommer - U n i s i n o s , Margareth Rago
- U N I C A M P , Rosa Bueno Fischer - umGS, Silvio D. Gallo - U N I C A M P

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Luiz Flávio Pedrosa

REVISÃO
Ana Carolina Lins Brandão

EDITORA RESPONSÁVEL
Rejane Dias UNIVERSIDADE F E D E R A L
DO AMAZONAS
Revisado conforme o Novo Acordo Ortográfico.
c
Todos os direitos reservados pela A u t ê n t i c a Editora.
Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida,
seja por meios mecânicos, eletrônícos, seja via cópia
xerográfica, sem a autorização prévia da Editora. 000^ 5 9 7 0
AUTÊNTICA EDITORA LTDA.
Rua Aimorés, 9 8 1 , 8° andar. Funcionários
30140-071. Belo Horizonte. M G
Tel: (55 31) 3222 68 19
TELEVENDAS: 0800 283 13 22
vww.autenticaeditora.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro) Aos meus pais, in memoriam.
Gilmar Rocha
Rocha, Gilmar

A n t r o p o l o g i a & E d u c a ç ã o / G i l m a r Rocha & Sandra Pereira T o s t a . - Belo


Aos meus filhos, Thiago e Filipe,
Horizonte : Autêntica Editora, 2 0 0 9 . - (Coleção Temas & Educação; 10)
e à minha neta, Maria Clara.
Bibliografia. Sandra Pereira Tosta
ISBN 9 7 8 - 8 5 - 7 5 2 6 - 3 9 7 - 6

1 . A n t r o p o l o g i a e d u c a c i o n a l 2 . E d u c a ç ã o m u l t i c u l t u r a l I. T o s t a ,
Sandra Pereira. II. T í t u l o . III. Série.

09-04394 CDD-306.43

(ndices para c a t á l o g o s i s t e m á t i c o :
1. A n t r o p o l o g i a e d u c a c i o n a l 306.43
.'AR"

[...] aquele que apenas conhece a sua terra


arrisca-se sempre a confundir cultura e natureza,
a erigir o hábito em norma,
a generalizar a partir de um único exemplo
que é ele mesmo.

Tzvetan Todorov
SUMÁRIO

Algumas palavras sobre a cultura e a educação .; ,


Carlos Rodrigues Brandão 11

Introdução à antropologia como educação 17

CAPÍTULO I - A modernidade da antropologia 21

Mito de fundação 21

A herança iluminista e a crítica romântica 23

As ciências do homem no século XIX 29

A antropologia social em tempos de guerra 33

A crítica cultural da antropologia 42

A antropologia da críança e da educação 45

CAPÍTULO II - O sentido da etnografia 51

Fenomenologia do conhecimento 51

Ocularcentrísmo 55

O olho do furacão 60

A arte de viajar 64

A educação dos sentidos 69

Uma experiência indisciplinada 74


CAPÍTULO III - Cultura como teoria e método 79
Cultura e educação 79

Cultura e paradigma 85 ALGUMAS PALAVRAS SOBRE A


Cultiu^ e história 87 CULTURA E A EDUCAÇÃO
Cultura e estrutura 94

Cultura e personalidade 102

Cultura e invenção 107 Carlos Rodrigues Brandão

CAPÍTULO IV - Para uma antropologia da educação 113


Caminhos cruzados 113

A interdisciplinaridade como vocação 115


Não somos seres humanos porque somos racionais. Essa
Superando a distância 120
ideia proveniente de filósofos do passado e que até hoje com
O culturalismo no Brasil 125 Irequência é lembrada para nos qualificar pode ser correta,
A educação como cultura 131 mas não é completa nem a melhor. Somos humanos por-
que, ao contrário dos outros seres com q u e m compartimos
Do cotidiano da educação para a educação do cotidiano 136
a experiência da vida no planeta Terra, somos seres que se
alçaram do sinal ao signo e dele ao símbolo. E por esse caminho
Fontes multimídia 141
aparentemente simples, mas sinuoso, e que custou aos nossos
ancestrais poucos milhões e muitos milhares de anos, somos
Referências 153
lambem seres que saltaram do mundo da naaireza - de que
Sobre os autores 158 ainda somos parte e do qual ainda dependemos bastante -
para o mundo da cultura. "Somos seres naturais", lembra Karl
Marx em algum de seus momentos, "mas somos naturalmente
humanos", completa ele. O que significa que sobre a natureza
que nos é dada, construímo-nos a nós mesmos e aos nossos
mundos. Por esse caminho nascemos u m indivíduo biológico
e nos tomamos - na medida em que somos socializados em
L i m a cultura - pessoas sociais.

O suporte material disto em que se lê estas palavras -


uma folha branca de papel... espero, reciclado - foi u m dia
parte natural de uma árvore. Por uma série de transformações
(algumas delas lastimáveis) veio a ser u m artefato cultural
apto a receber letras. Natureza intencionalmente transfomiada
em cultura. E as palavras que escrevi na tarde de u m dia, e
que você lê agora, são fragmentos de u m dos muitos alfabetos

11
COLEÇAO "TEMAS & EDUCAÇÃO"
ALGUMAS PALAVRAS SOBRE A CULTURA E A EDUCAÇAO

que a espécie humana soube criar e transformar. Sistemas culturais", da "educação inclusiva", do "multiculturalismo",
arbitrários de signos que, reunidos de diferentes formas uns do "direito à diferença" representam apenas uma parcela de
aos outros, geram sílabas, fonemas, palavras e, afinal, frases.
u m tardio, mas sempre oportuno reencontro entre a educa-
Geram dizeres que contêm e transportam feixes de símbolos,
ção e a cultura. Logo, entre a antropologia e a pedagogia,
de sentidos, de saberes, de significados, de sensibilidades e
compreendida aqui como a ciência da educação.
de sociabilidades.
E a própria antropologia defronta-se desde alguns anos
Mas não somos humanos apenas porque somos racio-
com a reflexão crítica de sua parte de responsabilidade em
nais ou simbólicos. Somos humanos porque somos seres
tudo isso. Na verdade, se tomarmos os livros clássicos dos
"aprendentes". Os animais pertencem ao primado do con-
"pais fundadores" da moderna antropologia, de Franz Boas a
dicionamento genético, da instrução, do treinamento, do
Rronislaw Malinowski, e deles a Radcliffe-Brown e a Edmund
adestramento, e esses são os limites de seu aprendizado.
Leach ou a Ruth Benedict, veremos nos índices onomásticos
Nós, os humanos, somos seres disso tudo também. Mas, para
ao final de cada livro que o verbete "educação", assim como
além "disso tudo", somos seres de algo bem mais complexo.
os seus derivados ou próximos, aparece em segundo plano.
Algo que ao longo da história f o i recebendo nomes como
Durante muito tempo, enquanto a antropologia ignorava as
capacitação, educação, formação humana. Afinal, os animais
formas nativas ou populares de educação de suas crianças
sabem e sentem. E nós sabemos e sentimos. Mas a diferen-
e jovens, a educação a eles dirigida procurava civilizá-los,
ça está em que nós sabemos que sabemos, e nos sabemos
tornando-os uma meia figura híbrida e marginalizada, "nem
sabendo (ou não sabendo); e nos sentimos sabendo e nos
ainda u m índio e nem já u m branco".
sabemos sentindo. •;: . j.ijvj. ,

Em parte, isso se deve ao fato de que uma primeira an-


A relação entre a educação e a cultura é, portanto, mais
do que apenas próxima. Ela é absolutamente íntima, interati- tropologia - e a de hoje em dia também, em boa medida - f o i
va, inclusiva. Muitas vezes, tal como acontece em outras áreas quase insensível ao m u n d o de crianças e de adolescentes, a
de práticas sociais vizinhas - como a saúde, a comunicação, não ser em momentos de estudos de ritos de passagem. Nesse
a ação ambiental, etc. - costumamos separar "a parte do sentido, a obra de Margareth Mead é uma salutar exceção.
todo". E, assim, pensamos, por exemplo, que a educação, a Em parte porque a antropologia que nos formou foi, em
pedagogia, o ensinar-e-aprender possuem uma relativa ou sua maior escala, praticada com sociedades e comunidades
mesmo uma ampla autonomia. Essa será a razão pela qual tribais ou populares de territórios e nações por muito tempo
em todo o m u n d o tardamos tanto em compreender o que a submetidos ao poder do colonialismo europeu. Eram povos
educação é - como tudo o mais que é humano e é criação "subordinados", "colonizados", "primitivos" e "selvagens",
de seres humanos - uma dimensão, uma esfera interativa e antes de mais nada.
interligada com outras, u m elo ou uma trama (no b o m sen- De outro lado ainda de nossa questão, a formação de
tido da palavra) na teia de símbolos e saberes, de sentidos e uma educadora, de u m educador, passava por diferentes
significados, como também de códigos, de instituições que disciplinas centrais ou afluentes da pedagogia, da história da
configuram uma cultura, uma pluralidade interconectada (não educação, ao lado de algumas esparsas psicologias centradas
raro, entre acordos e conflitos) de culturas e entre culturas,
na questão da aprendizagem. Uma formação precária em
situadas em uma ou entre várias sociedades.
sociologia da educação completava o quadro.
Nos últimos anos estamos recuperando esse "esqueci- Não devemos esquecer que b e m antes de haver sido
mento", e toda a discussão mundial ao redor das "diferenças descoberta pela academia, pela pedagogia das universidades

12 13
COLEÇÃO "TEMAS & EDUCAÇÃO" ALGUMAS PALAVRAS SOBRE A CULTURA E A EDUCAÇÃO

e pela própria antropologia a relação entre a educação e a do ensinar-e-aprender, existem dentro de redes e teias de
cultura f o i descoberta e fortemente enfatizada pelos movi- símbolos, de significados, de instituições sociais, de formas
mentos de cultura popular da década de 1960. Uma releitura (evidentes o u camufladas) de poder e assim por diante.
dos trabalhos de Paulo Freire seria aqui u m exercício de Mais do que nunca vivemos u m tempo em que tudo o
justificada revanche da memória. E gosto de lembrar que eu que nos envolve, do berço à cova, existe em u m plano da
mesmo trabalhei no Movimento de Educação de Base-MEB. realidade intensa e intimamente interconectado com outras
Nele, já em 1962, líamos Leslie White e outros antropólogos esferas, c o m outras dimensões da própria vida social coti-
de então. E o MEB, ao que eu saiba, foi a primeira instituição diana. Logo, com tudo o que, dentro e fora da escola e dos
dedicada à educação a contratar u m profissional da antropo- domínios da educação, tem a ver com feixes de saberes, de
logia para o seu quadro de educadores. sentidos de vida, de significados para o mundo, de gramáticas
No momento presente, assistimos a uma feliz inversão do culturais e de opções de identidade e de destino.
quadro esboçado linhas acima. Nunca como agora a educação E uma das maiores (e eternas) polémicas entre educa-
e a pedagogia abriram-se - em tempos de teorias e propostas dores e entre eles e outras pessoas motivadas ao estudo da
de multiculturalismo, de holismo e de transdisciplinaridade - pessoa, da sociedade e da cultura está contida na pergunta:
a todos os campos do saber e da ciência com os quais ela "e agora, no presente e complexo momento de história que
estabelece u m diálogo que, em todas as suas dimensões, a compartimos, qual a função, a missão e o alcance da educa-
fertiliza internamente, e a aprofunda, e a estende de forma ção?". Buscar respostas a essa e a outras perguntas derivadas
interativa e conectiva. Tal como sempre acontece com pes- olhando apenas o m u n d o que vai dos portões da escola para
soas, sociedades, artes e ciências, a educação descobre o seu dentro, o u da mente dos estudantes para a sensibilidade da
verdadeiro rosto ao deixar de olhar-se e ao proctirar ver-se pessoa que (também) estuda pode ser u m b o m começo. Mas
entre e através de outros rostos. situar-se apenas nele é, hoje, justamente u m deixar-se ficar
Precisamos c o m urgência compreender não apenas "no começo d o caminho".
educandos - crianças, adolescentes, jovens e adultos - em Na introdução a Antropologia & Educação, os autores
suas dimensões e com os seus rostos mais individuais e indi- Gilmar Rocha e Sandra Pereira Tosta lembram ao leitor que o
vidualizados - o que sempre f o i e segue sendo algo de suma propósito do livro, escrito no intervalo entre a antropologia,
importância - , mas também como sujeitos sociais e enquanto a filosofia, a história e a educação, é trazer "uma pequena
atores culturais. Saber vê-los e os compreender como pessoas contribuição para ampliação do significado da antropologia
que trazem à escola as marcas identitárias de seus modos como forma de educação". Seus quatro capítulos vão além da
de vida e das culturas patrimoniais de suas casas, famílias, modesta proposta que motiva a sua escritura. O livro reúne
parentelas, vizinhanças comunitárias, grupos de idade e de capítulos cujos títulos "A modernidade da antropologia";
interesse. Meninos e meninas que "são quem são" ou que "O sentido da etnografia"; "Cultura como teoria e método"
"são como são" porque habitam mundos culturais que o e "Para uma antropologia da educação" são u m convite ex-
mundo escolar tendeu durante muito tempo a invisibilizar, o u tremamente convincente e equilibrado a u m diálogo entre
a perceber de longe, envolto em uma confusa penumbra. a cultura e a educação. Logo, a uma reflexão no intervalo
Precisamos também compreender que a escola ou qual- entre uma e outra. Seu alcance é, na realidade, algo mais
quer outra instituição pedagógica, tal como as políticas públi- amplo e arrojado do que o propósito apresentado na "Intro-
cas de educação e tudo o mais que configura o lugar essencial dução à antropologia como educação" que, ao ver de seus

14 15
COLEÇÃO "TEMAS & EDUCAÇÃO"

autores, "tem como objetivo discutir questões cruciais para


a educação e a escola, portanto, para alunos, professores,
gestores, pesquisadores e formuladores de políticas públicas
INTRODUÇÃO À ANTROPOLOGIA
que pensam a diferença cultural como dimensão presente no
cotidiano do mundo escolar e incidindo sobre aprendizagens, COMO EDUCAÇÃO
currículos, avaliações, formação docente, etc."
Pois as "questões cruciais" envolvem uma reflexão sobre
a cultura, sobre suas relações com o "trabalho de aprender",
com a antropologia e algo de sua história e de suas variantes.
Assim, bem distante de ser mais u m manual, como os que
hoje em dia lastimavelmente proliferam em todas as áreas,
entre receitas fáceis e métodos de trabalho superficialmente
apresentados e operacionalmente discutíveis, o que se lerá
em Antropologia & Educação são questões que convidam, Este livro representa uma pequena contribuição para
primeiro, a u m conhecimento ainda distante da imensa ampliação do significado da antropologia como forma de
maioria dos educadores e, depois, a uma reflexão alargada educação. Tem como objetivo discutir questões cruciais para
a respeito de suas próprias ideias e práticas. a educação e a escola, portanto, para alunos, professores,
gestores, pesquisadores e formuladores de políticas públicas
Assim, Antropologia & Educação evita tanto o ser "um ma-
que pensam a diferença cultural como dimensão presente no
nual", quanto evita limitar-se a questões situadas entre a didática
cotidiano do mundo escolar e incidente sobre aprendizagens,
de sala de aulas e a política da educação. A respeito dessas
currículos, avaliações, formação docente, etc. Além disso, a
questões - o direito à diferença, o multiculturalismo, a diversi-
dimensão da cultura como instituinte do m u n d o do humano
dade culmral, a educação inclusiva - temos já uma diversidade
está presente nos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais),
de bons trabalhos, em Português e em outras línguas.
especialmente no tema da "Pluralidade Cultural", e daí a sua
Antropologia & Educação deve ser lido - e refletido - , relevância pedagógica.
portanto, como uma espécie de densa e fecunda leitura
A antropologia é uma forma de educação, bem como
prévia a tais questões. Talvez esse deva ser o sentido das
a educação só é possível como prática antropológica. Eis o
"questões cruciais" prenunciadas já no primeiro parágrafo
pressuposto a partir do qual apresentamos, aos profissionais
da obra. U m trabalho motivado pelo espírito pedagógico
da educação (professores de todas as modalidades de ensino,
que se completa com uma proveitosa indicação de livros e
especialmente os formadores de professores e os agentes
outras fontes destinadas a quem, desafiado pela leitura dos
sociais que trabalham com projetos socioeducativos) e aos
capítulos de seus autores, queira ensaiar outros passos. Passos
estudantes das licenciaturas e de outras áreas em geral, a
que em uma leitura cruzada, aberta e multicultural ajudam a
maneira como pensamos a antropologia. A antropologia
conduzir quem educa - sem deixar de desejar estar sempre
não é somente uma disciplina académica capaz de fornecer
aprendendo - do "começo do caminho" até pelo menos " u m
pouco mais perto do seu final". uma explicação sobre as representações da alteridade e/
ou as práticas do "outro", mas uma forma de produzir u m
Rosa dos Ventos - Sul de Minas sentido humanista ãs nossas experiências no m u n d o da
Verão de 2009 vida cotidiana. Assim, p o r sua "natureza" e sua vocação

16 17
COLEÇAO " T E M A S & EDUCAÇÃO" INTRODUÇÃO À A N T R O P O L O G I A C O M O EDUCAÇÃO

interdisciplinar, na medida em que visa apreender o "homem O segundo capítulo explora do ponto de vista epistemológico
total", segundo a feliz expressão de Mareei Mauss (2003), a (do conhecimento) a função pedagógica inscrita na experiência
antropologia exige de nós uma atitude pedagógica aberta ao etnográfica na prática do trabalho de campo antropológico.
aprendizado, ã curiosidade, ã criatividade e ao diálogo. Com A fenomenologia do olhar como parte do processo de cons-
efeito, antes de ensinar, cabe ao antropólogo e ao estudante trução do olhar antropológico tem importância capital nesse
de antropologia querer aprender. momento. A Cultura como teoria e método constitui na refle-
Aprender é sempre mais difícil do que ensinar, pois é xão sobre o conceito de cultura à luz de várias abordagens
preciso disposição para reavaliar conceitos, modelos e teorias. desenvolvidas pela antropologia ao longo do tempo. Assim,
É preciso se consentir e querer se "reeducar". A especificidade os modos como as perspectivas evolucionista, difusionista,
da antropologia reside no fato de, por meio do trabalho de estrutural-funcionalista, estruturalista, culturalista e interpretati-
vista analisam a cultura é o objeto do terceiro capítulo. Por fim,
campo, o antropólogo passar por u m processo constante de
a reflexão desenvolvida no último capítulo, não contrariando
"reeducação". Evidentemente, isso não exclui o aprendizado
o princípio defendido nesta introdução de que a antropologia
a partir da análise de outros estudos antropológicos. A dife-
é uma forma de educação, bem como a boa educação exige
rença é que, no trabalho de campo, embora a experiência
uma prática antropológica, pretende contribuir para a consti-
etnográfica seja sempre motivo de muitas controvérsias, o
tuição de "Uma Antropologia da Educação" enquanto campo
antropólogo tem a oportunidade de aprender com a alteri-
especial de investigações no contexto da sociedade brasileira
dade o significado de humanidade, além de poder realizar a
contemporânea. Embora os capítulos f o r m e m u m todo,
boa etnografia. Assim, nas palavras do antropólogo Roberto
coerente e integrado, cada qual pode ser lido separadamente,
DaMatta (1987, p. 173),
garantindo assim sua relativa autonomia.
[...] em Antropologia, é preciso recuperar esse lado extraordiná-
Em suma, pode-se dizer, este livro é uma introdução à
rio e estático das relações pesquisador/nativo. Se este é o lado
menos rotineiro e o mais difícil de ser apanhado da situação antropologia como educação, ou seja, se pretende u m ins-
antropológica, é certamente porque ele se constitui no aspecto trumento capaz de somar para u m ensino mais humanista,
mais humano da nossa rotina. melhor e mais eficiente no cenário das instituições formadoras
(públicas e privadas) no Brasil hoje, em todas as modalidades
Neste momento, além de vivermos, então, de maneira
de educação. Exato momento em que o País passa por u m
densa e dramática a nossa própria experiência de aprendiz,
processo de culturalização e onde a educação e a própria
somos colocados à prova por nossos próprios "objetos" de
cultura são usadas como mecanismos de desenvolvimento
estudos, ou seja, os nossos anfitriões. Assim, tanto do ponto
social e transformação política da sociedade.
de vista teórico quanto do metodológico, o antropólogo se
Nesse sentido, nos parece bastante oportuna a proposta
vê na obrigação de repensar, reavaliar, reinterpretar seus
deste livro considerando tratar-se de uma pequena contribui-
próprios modelos, teorias e métodos, além de aprender com
ção para a formação de uma "educação antropológica" capaz
a diferença do "outro".
de, efetivamente, ampliar o sentido da educação, ultrapas-
Com efeito, podemos aprender com a própria história da sando as fronteiras da escola formal, b e m como repensando
antropologia. Tal é o objetivo do primeiro capítulo, na medida o campo das relações institucionais e não institucionais entre
em que destaca a constituição moderna da antropologia, sua professores, estudantes, gestores escolares, agentes adminis-
herança humanista e suas transformações de sentido ao longo trativos e considerando, ainda, o contexto no qual a escola
do século XX, com destaque especial para a educação infantil. se situa. Temos sempre como pressuposto que educação e

18 19
COLEÇÃO " T E M A S & EDUCAÇÃO" "

escola, assim como todos os seus sujeitos, se constituem nas CAPÍTULO I


múltiplas interações que são estabelecidas cotidianamente,
marcadas por relações de reciprocidade ou de disputa.
A MODERNIDADE DA ANTROPOLOGIA
O estudo da antropologia é também uma forma de
educação na medida em que nos convida a ver no outro
e em suas diferenças, muitas vezes, formas alternativas de
sociabilidade ou de resolução de conflitos entre os homens.
Q u e m sabe, assim, nos possibilitando maior abertura (visual,
dialógica, intelectual, cognitiva e afetiva) para enfrentar os
problemas da vida cotidiana. Nesse sentido, considerando os
desafios vividos na educação, escolarizada ou não, como os
fenómenos sociais totais - ao mesmo tempo sociais, culturais,
morais, económicos, políticos - pode-se tomar emprestado
M i t o d e fundação
do antropólogo Mareio Goldman (2006, p . 37-38) a sua ob-
servação acerca da política como válida para o campo da Estabelecer a origem de uma ciência é, até certo ponto,
educação, posto que é lugar comum. Nessa perspectiva, a antropologia não foge à
regra e, por isso mesmo, não foge à crítica. Quando vista fora
[...] estritamente necessário passar a encarar as práticas nativas
(discursivas e não-discursivas) sobre os processos políticos do contexto social e histórico em que, efetivamente, se ins-
dominantes como verdadeiras teorias políticas produzidas por tituiu como disciplina científica, a antropologia corre o risco
observadores suficientemente deslocados em relação ao objeto de não se deixar compreender (afinal, qual a sua importância
para produzir visões realmente alternativas, e usar essas práticas sociológica no quadro das ciências sociais e humanas?) e, ao
e teorias como guias para a análise antropológica.
mesmo tempo, não poder explicar seu significado e diferença
Isso nos leva a reafirmar o princípio segundo o qual a (portanto, qual a sua relevância histórica?).
antropologia deve ser pensada como uma forma de edu- Quanto às origens "míticas" da antropologia, há quem
cação, b e m como a educação deve ser vivida como uma veja em Heródoto, o "Pai da História", também o "Pai da Et-
prática antropológica. nografia". A justificativa para essa dupla paternidade decorre
da confusão feita entre a maneira como Heródoto fez História
e a maneira do que hoje os antropólogos chamam Etnografia.
Para Jean-Marie Auzias (1978, p. 13, grifo nosso), Heródoto
pode ser considerado o "pai da antropologia" porque:
O fundador do estudo dos sistemas culturais é Heródoto. Nunca
se dirá o quanto esse bom historiador compensa, a nossos olhos,
certos defeitos da sociedade grega. Afirma-se sua curiosidade, seu
interesse pelas diversidades humanas como se estas fossem qua-
lidades especiosas. Mas sua curiosidade toma-o um verdadeiro
génio investigador. Unindo teoria e prática, ele viaja e documenta-
se. Esse grego de Halicamasso intitula sua obra de Inquérito. Na
verdade, elefunda a Antropologia por meio de um grande número

20 21
COLEÇAO "TEMAS & EDUCAÇÃO" A MODERNIDADE DA ANTROPOLOGIA

de diligências que fazem de seu inquérito um verdadeiro manual No entanto, não se pode deixar de mencionar as rele-
de Antropologia regional da Antiguidade. Viaja pelo Egito, Pérsia, vantes contribuições de outros antropólogos nesse processo.
Lídia. Conta as fábulas admiravelmente, dando também títulos
Antropólogos como Franz Boas (1858-1942) e William Rivers
de nobreza ao estudo da tradição oral. Aproxima mitos entre si,
(1864-1922) anteciparam em alguns anos à Malinowski na
o que é uma Etnologia comparada bem compreendida. Consulta
fontes, documentos, monumentos e pessoas. É um homem de prática do trabalho de campo. E mesmo u m antropólogo
missão cumprida. Que importa seus erros ao lado deste legado como Mareei Mauss (1872-1950), embora não tenha realizado
do mais anti-racista dos gregos? Tudo o interessa. o trabalho de campo no sentido estrito do termo, produziu
obra etnográfica de maior relevância, tendo como objeto de
Assim como Heródoto, viajantes, cronistas, administra-
análise sua própria sociedade (ROCHA, 2006).
dores coloniais, missionários e militares também deixaram
A partir de então, a antropologia passou a desenvolver
registros importantíssimos acerca da vida e dos costumes de
seus próprios relatos, teorias e métodos, sem deixar também
outros povos ao longo do tempo. Isso em u m período em
de questioná-los. Daí, talvez, u m dos sentidos da recente afir-
que ainda não existia "oficialmente" a figura d o antropólogo.
mação de Clifford Geertz (1926-2006), segundo a qual "agora
Somente no limiar do século XX, através do trabalho de
somos todos nativos..." ( 1 9 9 8 , p . 2 2 6 ) . Com efeito, as práticas
campo, a antropologia sc afirmaria gradativamente como
e os discursos da antropologia não se limitam somente à com-
u m novo campo de conhecimento científico. A experi-
preensão e interpretação do outro, do nativo, do selvagem,
ência etnográfica de Bronislaw M a l i n o w s k i (1884-1942), d o primitivo, que habita as longínquas terras das florestas
c o m os Trobriandeses, na Nova Guiné, durante o período tropicais o u as montanhas e/ou desertos da África e Ásia, mas
da Primeira Guerra, f o i parcialmente descrita no clássico culmina por refletir sobre o próprio campo da antropologia.
Argonautas do Pacífico Ocidental, originalmente publicado Desde os problemas relativos às teorias, aos métodos, aos
e m 1922. Na verdade, para muitos esse texto etnográfico objetos, aos relacionados a autoria, autoridade, legitimidade,
pode ser visto como u m "mito de fundação" da antropologia criação, estilo narrativo dos textos antropológicos.
moderna, na medida em que "canonizou" u m novo m o d o
de escrita e método de pesquisa antropológica. Desde os A herança i l u m i n i s t a e a crítica romântica
anos 1 9 2 0 , tem servido de modelo e fonte de inspiração
Sem pretender realizar uma história da antropologia, vale
para o trabalho de campo, não sendo exagero dizer que a
destacar dois o u três momentos em que alguns renomados
experiência etnográfica tornou-se a partir de então sinónimo
pensadores se debruçaram sobre temas e problemas relativos
de "observação participante".'
ao campo da antropologia. Nesse sentido, poder-se-ia começar
lembrando o clássico "Dos Canibais", texto que compõe os
' Também é comum certa confusão em torno dos termos etnografia, etno- Ensaiosde Michel de Montaigne (1533-1592). Apoiando-se em
logia e antropologia. Seguindo as observações do antropólogo Claude informações de viajantes, exploradores e de u m informante
Lévi-Strauss em sua Antropologia estrutural0967), a etnografia pode ser que viveu por mais de dez anos nas terras descobertas por
vista como a observação sistemática e particular de um grupo social, ao Colombo, Montaigne, após tecer longos comentários elogio-
passo que a etnologia, termo em de.suso na tradição anglo-saxã, representa sos à natureza tropical d o Novo Mundo, passa a descrever
um momento posterior da análise do grupo social, cuja característica
os hábitos e os costumes dos selvagens. O ponto alto de sua
principal é a comparação dos fenómenos sociais e culturais a partir dos
dados fornecidos pelas etnografias. Esses procedimentos ou momentos narrativa é o assunto que dá título ao texto sobre o canibalis-
constituem o que Lévi-Strauss entende ser o ofício do antropólogo, por- mo. É a partir do canibalismo que o filósofo passa a relativizar
tanto, o que caracteriza a antropologia social e cultural. a sua própria cultura quando as compara:

22 23
COLEÇÃO " T E M A S & EDUCAÇÃO' A MODERNIDADE DA ANTROPOLOGIA

Não me parece excessivo julgar bárbaros tais atos de cruelda- E por muito tempo, o pensamento ocidental procurou
de, mas que o fato de condenar tais defeitos não nos leve à estabelecer as leis que definem a natureza humana. A busca
cegueira acerca dos nossos. Estimo que é mais bárbaro comer
de u m consensus gentium ( u m consenso de toda a huma-
um homem vivo do que o comer depois de morto; e é pior
nidade) acerca de u m princípio universal capaz de unificar
esquartejar um homem entre suplícios e tormentos e o queimar
aos poucos, ou entregá-los a cães e porcos, a pretexto de devo- a espécie humana ante o inventário dos costumes humanos
ção e fé, como não somente o lemos mas vimos ocorrer entre sobre a face da terra, teve como modelo de investigação a
vizinhos nossos conterrâneos; e isso em verdade é bem mais concepção estratigráfica do homem. Concepção essa postu-
grave do que assar e comer u m homem previamente executado lada pelo Iluminismo e parte das ciências naturais e sociais
(MONTAIGNE, 1980, p. 103). d o século XIX. Ainda nas palavras de Geertz (p. 49),

Depois de questionar vários assuntos acerca da vida, da De acordo com essa concepção o homem é um composto de
morte e da guerra, o cético filósofo Michel de Montaigne conclui, "níveis", cada um deles superposto aos inferiores e reforçando

jocosamente, dizendo: "Tudo isso é, em verdade, interessante, os que estão acima dele. À medida que se analisa o homem,
retira-se camada após camada, sendo cada uma dessas camadas
mas, que diabo, essa gente não usa calças" (p. 106). Com efeito,
completa e irredutível em si mesma e revelando uma outra es-
a leitura de Montaigne sugere que o relativismo, antes de ser u m
pécie de camada muito diferente embaixo dela. Retiram-se as
"fato natural" perante u m mundo plural, consiste numa atitude variegadas formas de cultura e se encontram as regularidades es-
epistemológica com fins a compreensão do "outro". truturais e funcionais da organização social. De,scascam-se essas,
Passado o período de crise que marca o Barroco e cuja por sua vez, e se encontram debaixo os fatores psicológicos - "as
necessidades básicas" ou o-que-tem-você - que as suportam e
imagem predominante será a de u m "mundo às avessas", o
as tornam possíveis. Retiram-se os fatores psicológicos e surgem
tempo do Iluminismo representou u m período de relativa
então os fundamentos biológicos - anatómicos, fisiológicos,
estabilidade no qual será predominante u m conjunto de neurológicos - de todo o edifício da vida humana.
ideias e representações desenvolvidas sob a inspiração do
racionalismo científico e portadoras de uma concepção so- Numa linguagem figurada, é como se o homem fosse
uma espécie de "cebola" que pudesse ser descascada e sob
bre o homem, a natureza e a cultura moderna. Resulta daí
cada fina camada retirada se descobrisse u m nível mais pro-
que essas concepções concorrem para a definição de u m
fundo d o que o h o m e m é. No nível mais profundo, reside
paradigma: a identidade. Múltiplas são as vozes em torno da
o biológico; no mais superficial, o cultural. Ao final, a visão
unidade natural do homem, concorrendo para a formação
d o homem como uma só peça da natureza antes de promo-
de uma íinica visão "naturalista". Clifford Geertz (1989, p .
ver uma interaçào c o m a cultura aumenta a distância entre
46) nos chama a atenção para o fato de que:
elas, exatamente porque vê no homem u m ser estratificado
A perspectiva iluminista do homem era, naturalmente, a de composto de níveis diferenciados e pouco integrados "orga-
que ele constituía uma só peça com a natureza e partilhava
nicamente". No Iluminismo seriam aprofundadas as distinções
da uniformidade geral de composição que a ciência natural
entre o sujeito e o objeto do conhecimento, a natureza e a
havia descoberto sob o incitamento de Bacon e a orientação
de Newton. Resumindo, há uma natureza humana tão regular-
cultura, com base no triunfo do racionalismo científico. São
mente organizada, tão perfeitamente invariante e tão maravi- ilustrativas d o pensamento iluminista ideias como:
lhosamente simples como o universo de Newton. Algumas de
suas leis talvez sejam diferentes, mas existem leis; parte da sua
1. O homem não é naturalmente depravado.
imutabilidade talvez seja obscurecida pelas armadilhas da moda 2. A boa vida na Terra pode ser não só definida mas tam-
local, mas ela é imutável. bém alcançada. ,,,,

24 25
COLEÇÃO " T E M A S & EDUCAÇÃO" A MODERNIDADE DA ANTROPOLOGIA

3 A Razão é o instrumento supremo d o homem. Pensadores como Montesquieu (1689-1755) forneceram


4. O conhecimento libertará o homem da ignorância, da elementos teóricos para a futura constituição da antropologia,
superstição e dos males sociais. sendo o principal deles o questionamento sobre a própria
5. O Viniverso é ordenado. natureza "cultural" do homem. No entanto, para Lévi-Strauss,
o "Pai Fundador das Ciências do Homem" o u , mais especifi-
6. Essa ordem do universopoáe ser descoberta pelo homem e
camente, o fundador da etnologia será Jean-Jacques Rousseau
expressa por meio de quantidade e relações matemáticas.
(1712-1778). No Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da
7. Embora haja muitas maneiras de perceber a natureza,
Desigualdade entre os Homens, originalmente publicado em
como, por exemplo, a arte, a poesia, a música, etc, só a
1755, Rousseau (1978, p. 240-241) questiona o valor da civili-
ciência pode chegará verdade, que permitirá ao homem
zação quando se refere aos seus males sobre o Ocidente:
dominar a natureza.
A extrema desigualdade na maneira de viver; o excesso de
8. A observação e a experimentação são os únicos meios ociosidade de uns; o excesso de trabalho de outros; a facilidade
válidos de descobrir a ordem da natureza. de irritar e de satisfazer nossos apetites e nossa sensualidade;
9. Os fatos observados são independentes do observador. os alimentos muito rebuscados dos ricos, que os nutrem com
sucos abrasadores e que determinam tantas indigestões; a má
10. As qualidades secundárias não são suscetíveis de medida
alimentação dos pobres, que frequentemente lhes falta e cuja
e, por isso, não são reais.
carência faz que sobrecarreguem, quando possível, avidamente
11. Todas as coisas da Terra são para uso do homem. seu estômago; as vigílias, os excessos de toda sorte; os transpor-
tes imoderados de todas as paixões; as fadigas e o esgotamento
12. A ciência é neutra, livre de valores e independente da
do espírito, as tristezas e os trabalhos sem-número pelos quais
moralidade e da ética (SCHWARTZ apud MORAIS, 1988, p.
se passa em todos os estados e pelos quais as almas são perpe-
40-41, grifos nosso).
tuamente corroídas - são todos, indícios funestos de que maioria
A busca iluminista da natureza (imutável) do H o m e m de nossos males é obra nossa e que teríamos evitado quase

esbarra-se no problema da diversidade cultural dos homens. todos se tivéssemos conservado a maneira simples, uniforme
e solitária de viver prescrita pela natureza. Se ela nos destinou
Relativiza-se, então, a perspectiva absolutista sobre o homem.
a sermos sãos, ouso quase assegurar que o estado de reflexão
Em consequência, também as concepções sobre natureza e
é um estado contrário ã natureza e que o homem que medita
cultura serão relativizadas, reafirmando a complexidade da
é um animal depravado.
ideia de Homem. ^
Assim, contrariando a perspectiva racionalista e que
serviu de base para o desenvolvimento do evolucionismo
^ "A própria ideia da natureza, como pólo oposto a cultura, é com efeito, social na antropologia e do positivismo na sociologia, a visão
em si mesma, um produto cultural" (LEACH, 1985, p. 78). Culturalmente,
romântica de Rousseau contribuiu para o desenvolvimento
a ideia de natureza varia de acordo com as particularidades com que cada
grupo humano estabelece uma relação com seu meio natural. Por sua vez, de uma concepção sobre a cultura e o homem mais relati-
o conceito de cultura expressa a consciência do europeu com seu meio vista cujo foco é a educação.^ Pode-se sugerir que o próprio
social. De um modo geral, a partir do século XVI, o conceito de cultura
passaria a dividir a atenção dos homens com o conceito de civilização
que designa, antes de tudo, basicamente o estágio de desenvolvimento ' Rousseau aparece como o mais "autêntico" intérprete da teoria da bon-
alcançado pelas sociedades europeias via progresso científico e tecnoló- dade natural por duas razões: 1) a força de seu estilo literário; 2) sua
gico. A relação entre Civilização/Iluminismo versus íTM/tor/Romantismo crença "pessoal" ao imaginário mítico da bondade e inocência natural
será analisada no Capítulo 3. do homem. O homem bom por natureza de que fala Rousseau é o índio.

26 Universidade Fe3
27
B I B L I O i cK^r.
A MODERNIDADE DA ANTROPOLOGIA
COLEÇÃO " T E M A S & EDUCAÇÃO"

Rousseau forneceria uma versão civilizada para o seu bon A s ciências d o h o m e m n o século XIX

sauvage, n o caso Emílio. Afinal, sem perder de vista as Etimologicamente, antropologia significa o estudo do
transformações que v i n h a m se desenvolvendo em torno homem. Antbropos = homem; logos = estudo. Mas a verdade
da infância e da pedagogia moderna, Rousseau escreveu é que as ciências humanas e sociais, isto é, todas as outras
e p u b l i c o u Emílio ou Da Educação em 1762, livro que disciplinas que compõem as chamadas ciências humanas
será p r o i b i d o e condenado à fogueira. Ele confere à edu- e sociais também estudam o homem. Pode-se dizer que a
c a ç ã o valor semelhante ao atribuído à cultura, declara o psicologia estuda o h o m e m nos seus aspectos psíquicos; a
filósofo: "moldam-se as plantas pela cultura, e os homens sociologia estuda as ações e as relações sociais humanas; a
pela educação" (1995, p. 8). Com a ideia de modelagem economia estuda o homem através das formas de produzir,
dos homens pela educação, Rousseau ultrapassa a "visão trabalhar e trocar; e, mesmo a biologia, uma ciência dita natu-
naturalista" do I l u m i n i s m o do desenvolvimento humano ral, estuda o homem na sua dimensão orgânica; enfim, regra
como se fosse uma planta que obedece ao ciclo de evolu-
geral, as ciências estudam o homem sob vários aspectos e
ção natural das Leis d o Espírito sem, c o n t u d o , abandonar
concepções. O que, então, especifica o tipo de conhecimento
o desejo romântico de educar para a liberdade.
produzido pela antropologia?
A superação da visão iluminista sobre o homem signifi-
Acontece que, diferentemente das ciências que tratam
cou uma abertura para o desenvolvimento da antropologia
de aspectos específicos da "natureza humana" (psicolo-
física e, posteriormente, da social e da cultural. Contudo,
gia, linguística, economia, biologia, e t c ) , a antropologia
coube ao autor da famosa teoria da Paz Perpétua, Immanuel
parece ter, ao menos inicialmente, a aspiração ou pre-
Kant (1724-1804), a produção de u m dos primeiros estudos
tensão de estudar o h o m e m e m sua totalidade. Significa
de antropologia, de inspiração filosófica.''
isso não mais pensar o h o m e m d i v i d i d o entre o corpo e
a alma, entre a natureza e a cultura, mas, como sugere
principalmente, o índio brasileiro que lhe serve de modelo e inspiração. Mareei Mauss (2003), enquanto "homem total', isto é, u m
A força simbólica dessa personagem ficaria patente, logo depois, na ser ao mesmo tempo biológico, psíquico e sócio-histórico.
literatura romântica na fase de construção do Estado Nacional brasileiro. É b e m verdade que, p o r muito t e m p o , a antropologia se
O guarani, de José de Alencar (1857), condensa de forma exemplar a v i u limitada n o esforço de apreender o h o m e m em sua
teoria da bondade natural do índio, sobretudo, quando convertido ao totalidade. Limites esses decorrentes de posturas e con-
cristianismo como é o caso de "Peri". Diante de um mundo dominado
c e p ç õ e s teóricas fechadas, presas a certos paradigmas que
pelo ideal de progresso, restava a construção de um mundo futuro sem
serviram de camisa-de-força ao pensamento antropológico.
os males da civilização. Essa parece ter sido a lição extraída de Rousseau
pelos socialistas utópicos e por Marx, e até mesmo no Brasil. A figura Só mais recentemente, c o m a crise dos paradigmas da
do índio brasileiro é tão importante que serviu de inspiração inclusive a ciência moderna é que a antropologia parece resgatar sua
Daniel Defoe, na criação de Sexta-Feira em Robinson Crusoé (1719).
^ A Antropologia de um ponto de vista pragmático, de Immanuel Kant, está
intimamente relacionada às suas reflexões sobre a Filosofia da História em civil e da construção do Direito Internacional. No curso da História Uni-
vista do proces.so de con,stituição dos Estados Nacionais no concerto interna- versal, Kant compreende a cultura como o caráter de cada Estado-Nação,
cional pós-We,stiphalia (1648). Assim, os estudos sobre o caráter do homem a Civilização corresponde à natureza intemacional da modernidade, e a
e dos povos (franceses, ingleses, alemães, italianos, russos, poloneses, turcos) moralização a consolidação da Paz Perpétua. De certa forma, o filósofo de
representam, de um lado, uma crítica à crítica rousseauniana da civilização; Koniesberg prenuncia a perspectiva de uma antropologia social e cultural
do outro lado, a afirmação do projeto iluminista de constituição da sociedade que se desenvolveria, principalmente, no contexto do século XX.

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COLEÇÃO " T E M A S & EDUCAÇÃO" A MODERNIDADE DA ANTROPOLOGIA

promessa inicial de apreender o h o m e m em sua comple- objecto é o mais complexo de todos, e que se assustava ao
xidade e totalidade.^ mais pequeno contacto com a biologia, a qual, com objectos
menos complexos, se funda em princípios de conhecimento
Recentes são as considerações de Edgar Morin, para
mais complexos.
quem o homem é u m ser bioantropossociológico ou biopsi-
Dobram os sinos por uma teoria fechada, fragmentária e sim-
cossociocultural, ou seja, o homem se constitui u m sistema
plificante do homem. Começa a era da teoria aberta, multidi-
hipercomplexo capaz de auto-organizar-se, sendo-lhe com-
mensional e complexa.
plementar os seguintes poios sistémicos:
[...] se se pretende uma teoria verdadeiramente aberta, multi-
O ecossistema "controla" o código genético (a "seleção na- dimensional e complexa, nesse caso precisamos de ir procurar
tural", que nós consideramos como um aspecto da interaçào os fundamentos numa lógica da complexidade e da auto-
natural complexa), co-organiza e controla o cérebro e a socie-
organização, quer dizer, numa neguentropologia. (p.l93)
dade. O sistema genético produz e controla o cérebro, o qual
condiciona a sociedade e o desenvolvimento da complexidade Portanto, somente se tomarmos como premissa a ideia
cultural. O sistema sociocultural actualiza as competências e de uma incompletude antropológica d o h o m e m e, portanto,
aptidões do cérebro, modifica o ecossitema e desempenha da própria antropologia é que podemos pensá-los como
mesmo o seu papel na selecção e na evolução genética. (MO-
u m campo do conhecimento em infinita construção, mas
RIN, s.d., p. 194-195)
que nem por isso deixa de apresentar significativas con-
Nessa perspectiva, o homem não pode ser visto separado tribuições para o pensamento humano em geral e para o
ou fragmentadamente senão enquanto u m sistema complexo conhecimento de determinadas realidades sociais e culturais
de cérebro, ecologia, genética e cultura. Mas, ainda assim, em particular.
não se pode dizer que essa seja uma prática comum e esta- Mas, hoje, o conhecimento antropológico parece abrir-se
belecida nos quadros d o pensamento antropológico. Morin cada vez mais a vários campos de esmdos. Assim, falamos de
chega mesmo a anunciar uma nova era para antropologia, antropologia filosófica, antropologia social, antropologia cultu-
uma "Scienza Nuova" em que: ral, antropologia psicológica, antropologia da educação etc, que
por sua vez se desdobram em estudos de vários temas e objetos
Dobram os sinos por uma antropologia reduzida a uma faixa
estreita psicocultural, flutuando como um tapete voador sobre específicos como, por exemplo, música e linguagem, ciência
o universo natural. Dobram os sinos por uma antropologia e crenças, saúde e doença, percepção e sentidos, consumo e
que não teve a noção de complexidade, enquanto o seu cidades, e outros. A verdade é que, tempos atrás, a antropologia
parecia muito bem definida e, até certo ponto, circunscrita aos
estudos de caráter social e cultural, principalmente nas socie-
A ideia de totalidade deve ser vista à luz da teoria do "fato social total", de
dades primitivas, nas quais todos os aspectos que envolvem a
Mareei Maus, desenvolvida no Ensaio sobre a Dádiva (2003), devendo-se
lembrar ainda que a totalidade não significa abarcar tudo, mas descobrir
vida em coletivo eram tratados: os estudos monográficos clás-
o fato privilegiado ao mesmo tempo político, económico, cultural, etc. sicos envolviam desde os sistemas de parentesco, produção e
Essa perspectiva será desenvolvida nos experimentos monográficos consumo, ritos e mitos religiosos até as questões relacionadas
dos antropólogos do início do século, quando buscavam apreender e ao corpo, ã identidade, etc. Por sua vez, tudo aquilo que diz res-
compreender a estrutura e os mecanismos de funcionamento de uma
peito ao processo de hominização e/ou "evolução do homem"
determinada sociedade "primitiva" através da interligação de seus diversos
e as expressões de culmra material desenvolvidas em épocas
elementos constitutivos (economia, política, religião, simbolismos, etc.)
enquanto sistema. Os estudos monográficos produzidos pela perspectiva remotas por sociedades já desaparecidas ficaram confinados aos
da antropologia estrutural-funcionalista são exemplares. estudos da antropologia física, através dos paleontólogos e/ou

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COLEÇÃO " T E M A S & EDUCAÇÃO" A MODERNIDADE DA ANTROPOLOGIA

da arqueologia. Aos poucos se acentuaria a distinção entre Nessa perspectiva, a especificidade das ciências huma-
antropologia física, de u m lado, e a antropologia social e nas e sociais no m u n d o moderno f o i tomar o h o m e m não
cultural, de outro lado.'^ mais como u m ser transcendental (ontológico-filosófico),
Assim, a institucionalização da antropologia a partir da mas como u m ser empírico em sua positividade; u m ser
segunda metade do século XIX, representou uma mudança que vive, fala e produz/troca. Nesse sentido, ela se dedica
de paradigma na compreensão e definição do estatuto do ho- a conhecer o que pensa o h o m e m (inclusive, sobre o ho-
mem. A partir desse momento, o homem deixa de ser o sujeito mem), sua produção simbólica e económica, seus ritos e
transcendental da filosofia metafísica para tornar-se objeto de mitos, etc. Assim, desloca-se a análise do que o h o m e m é
investigação científica. "O homem é uma inovação cuja data (por "natureza") para a análise do h o m e m em sua positi-
recente a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente. vidade (ser que vive, fala e trabalha). Em outras palavras,
E talvez o f i m próximo" (FOUCAULT, 1987, p. 4 0 4 ) . Com essa a análise desloca-se para o campo das representações do
afirmação Michel Foucault conclui As palavras e as coisas - h o m e m . Acontece que, ao menos desde René Descartes
uma arqueologia das ciências humanas, ao mesmo tempo ( 1 5 9 6 - I 6 5 O ) , o h o m e m pensa contra a natureza, certo de
que renova o próprio campo da ciências do homem.^ que sua missão é dominá-la, subjugá-la e conquistá-la.
Assim, uma das questões centrais que têm dominado o
pensamento ocidental sobre o h o m e m é a dicotomia natu-
" Advertimos que as divisões e subdivisões no campo da antropologia nem reza/cultura. Aos poucos, a cultura f o i sendo separada da
sempre se mostram consensuais. Assim sendo, e a título de exemplo, se, de
um lado, Ashley Montagu admite uma divisão entre antropologia cultural natureza, porém, miiltiplas vozes ainda reclamam a unidade
e antropologia física, sendo que na subdivi.são da primeira encontramos a natural do homem. U m sensível deslocamento da passa-
arqueologia, do outro lado, Ralph Linton, também divide a antropologia gem da natureza física para a natureza humana começa a
em física e cultural, porém, coloca a arqueologia ao lado da primeira. A
antropologia biológica ocupa hoje o lugar da antiga antropologia física. ser implantando, mesmo que durante o Iluminismo essas
Não se trata somente de uma mudança de nomes, mas também de orien- duas ordens da natureza se confundissem. Contudo, após
tação teórica-metodológica. Enquanto antropologia física fazia as famosas as reflexões iniciais da antropologia filosófica no século
medições de crânios e esqueletos e recolhia-os aos ambientes soturnos
dos museus de história natural, servindo na maioria das vezes como sinais X V I I I e o desenvolvimento posterior da antropologia física
diacriticos das diferenças raciais de superioridade ou inferioridade entre no contexto do século XIX, estava aberto o caminho para
os homens, a antropologia biológica, mais interdisciplinar, dedica-se não a institucionalização da antropologia social e cultural no
só aos estudos da "evolução da espécie humana", mas, com o apoio da
genética, da etologia, da nutrição, analisa o desenvolvimento do cérebro, do
início do século XX.
sistema nervoso, das dietas, na constituição do homem e na diferenciação
das populações, tomando às vezes por comparação o comportamento dos
A a n t r o p o l o g i a social e m t e m p o s d e g u e r r a
animais, principalmente, os primatas. Essas distinções também têm impli-
cações para o conhecimento sobre o homem. Assim, um estudo sobre o Frequentemente, a antropologia é criticada por sua
homem coloca-nos, de imediato, ao menos duas possibilidades distintas
de leitura, mas que no fundo são complementares: 1) quanto ao processo participação n o jogo d o imperialismo colonial no século
de hominização stricto senso; 2) quanto à ideia de homem, isto é, a ideia X I X / X X . Destaca-se, nesse caso, a crítica contundente de
que o homem faz de si mesmo ao longo do tempo. Gerard Leclere sobre a antropologia colonialista. Contudo,
' Ratificando essa ideia, de acordo com Morin, "o que está a morrer não alguns historiadores da antropologia sugerem cautela, uma
é a noção do homem, mas sim a noção insular do homem, separado da vez que, a julgar pela experiência de alguns antropólogos
natureza e da sua própria natureza; o que deve morrer é auto-idolatria
ingleses em determinados momentos, pouca ou quase
do homem, a maravilhar-se com a imagem pretensiosa da sua própria
racionalidade" (p. 193). nenhuma informação etnográfica f o i utilizada a serviço do

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COLEÇÃO " T E M A S & EDUCAÇÃO" A MODERNIDADE DA ANTROPOLOGIA

imperialismo.** Avaliando a "antropologia aplicada" inglesa, até o período da Segunda Guerra a ideologia do racismo
Adam Kuper (1978, p. 140) adverte: tivesse claramente lastro c o m a teoria evolucionista, a ins-
A conclusão inevitável é que nunca houve muita demanda titucionalização da antropologia social e cultural ao tempo
de Antropologia Aplicada tanto por parte de Whitehall [nome da Primeira Guerra sinaliza para a crise d o pensamento
de avenida londrina onde se situa parte dos órgãos de admi- evolucionista. Afinal, não à toa a antropologia se institu-
nistração pública] como dos governos coloniais. Mesmo nos cionaliza nesse m o m e n t o , pois os efeitos devastadores da
tempos do CS.S.R.C. [Colonial Social Science Research Council], Primeira Guerra p õ e m em dúvida o sentido d o progresso
quando os membros da Comissão falavam esperançosamente apregoado pelos evolucionistas.
sobre pesquisas relevantes, os antropólogos, de u m modo
As teorias do determinismo biológico (raça) e geo-
geral, mantinham-se em sua própria e amena postura acadé-
mica. Talvez u m tipo diferente de potência colonial pudesse
gráfico (clima) começam a perder força perante o desen-
ter sido imensamente ajudado pelos antropólogos - como volvimento das ciências humanas e sociais. Em oposição
alguns afirmam que os americanos os são na América do Sul e ao conceito de raça, se levantaria Franz Boas (1858-1942),
no Sudeste Asiático. Os Estados Unidos sempre se mostraram considerado o "pai da antropologia culturalista norte-ame-
mais dispostos do que os britânicos a levar a sério as teses dos ricana", sugerindo em seu lugar o conceito de cultura. Sem
cientistas sociais, mas, enquanto que alguns antropólogos se dúvida nenhuma, a luta contra o conceito de raça desen-
venderam a interesses sinistros, nem sempre é fácil ver como volvida por Boas ao longo da vida é uma das mais impor-
suas pesquisas poderiam ser de muita ajuda. Em qualquer caso,
tantes conquistas modernas na luta contra o preconceito, o
a realidade é que os antropólogos britânicos foram pouco usa-
xenofobísmo, a discriminação racial, além, é claro, de ser
dos pelas potências coloniais e, apesar de sua retórica, quando
u m dos fundamentos teóricos da antropologia moderna.
empenhados na angariação de fundos, tampouco se mostraram
Nessa perspectiva, cada vez mais se torna explícito que
particularmente ansiosos por serem usados.
muitos dos problemas vividos no m u n d o contemporâneo
A antropologia que se desenvolve a partir dos anos relacionados à economia, ã política, à religião não têm
1 9 2 0 , sob o signo do culturalismo norte-americano, do f u n - origem nas raças n e m n o clima, como se supunha então,
cionalismo inglês e d o estruturalismo francês representou mas sim na o r d e m histórica e cultural. Contrariando a su-
u m avanço teórico em direção ao relativismo cultural e, posição da pureza racial de alguns grupos humanos, assim
p o r conseguinte, a uma visão mais democrática da cultura mantida em função do isolamento cultural. Boas observa
- considerando o direito de autodeterminação política dos que os grupos mestiços apresentam melhores qualidades
povos primitivos na medida em que estabelece uma ruptura "raciais" do que sinais de degeneração quando se mistu-
c o m o paradigma evolucionista. Esse, sim, essencialmente, ram, por exemplo:
etnocêntrico e imperialista, uma vez que só admite u m Os descendentes mestiços de europeus e índios norte-ameri-
único caminho para a humanidade, logicamente, sob a con- canos são mais altos e mais férteis que os índios puro-sangue.
dução dos países considerados evoluídos. Muito embora. São mais altos ainda que as raças de seus pais. Os mestiços
de holandeses e hotentotes do sul da África e os mestiços
malaios da ilha de Kisar são de tipo intermediário entre as
' De um modo geral, as ciências humanas e sociais não fogem à crítica duas raças e não exibem qualquer traço de degeneração.
pós-colonial, pois quando não se estava a serviço do imperialismo, (BOAS, 2004, p. 73)
estava-se a serviço dos nacionalismos. Em outras palavras, disciplinas
como história, geografia, sociologia tiveram um papel fundamental no Daí Gilberto Freyre (1900-1987), ex-aluno de Boas, na
processo de construção dos Estados Nacionais. sua interpretação do Brasil ã luz da antropologia cultural.

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COLEÇÃO " T E M A S & EDUCAÇÃO"
A MODERNIDADE DA ANTROPOLOGIA

destacar o valor positivo do mestiço na nossa formação cul- da antropologia social francesa e inglesa. De certa forma,
tural.' Aos poucos a cultura assume o lugar da raça. pode-se considerar As formas elementares da vida religiosa
Os estudos de Caráter Nacional desenvolvidos pela (1912), o último estudo de Emile Durkheím (1858-1917),
antropologia cultural norte-americana ilustram claramente u m livro seminal. Primeiro, porque representa u m experi-
essa mudança de perspectiva, pois, embora não se despre- mento do "pai da sociologia francesa" no campo da etnolo-
zem os elementos constituintes da biologia, a explicação gia religiosa - ao lado do parentesco, a religião é u m dos
para a formação dos padrões de personalidade e tempera- temas principais n o campo de estudos da sociologia, da
mento baseia-se nos condicionantes da cultura, da história antropologia e da filosofia da época; segundo, porque esse
e da psicologia. Some-se a isso o fato de a antropologia trabalho irá influenciar profundamente a própria constitui-
adquirir uma dimensão política "aplicada", o u seja, no ção da antropologia francesa b e m como da antropologia
plano interno da nação, a antropologia deveria contribuir social inglesa pós-malinowskiana. Na Inglaterra, A l f r e d
para a "solução prática" de problemas relacionados ã saú- Radcliffe-Brown (1881-1955) não só daria continuidade
de, à educação, à alimentação, e t c ; n o plano da política ã abordagem sociológica de Durkheím c o m o a ampliaria
externa, deveria fornecer subsídios para o conhecimento significativa e definitivamente para a institucionalização da
dos "outros" povos e nações em tempos de guerra. É dentro antropologia Social, fazendo-a uma área de conhecimento
desse quadro de referências que aparece, em 1947, o be- respeitada e m t o d o m u n d o . O conceito de estrutura cons-
líssimo trabalho de Ruth Benedict sobre o padrão cultural titui n o p o n t o de convergência das antropologias inglesa
japonês, O crisântemo e a espada. A n o ç ã o de "padrão e francesa, embora tenha assumido significados diferentes
cultural", em Ruth Benedict t e m uma importância capital nas respectivas tradições, como será visto adiante.
na explicação dos estilos de personalidades desenvolvi-
Atenção especial deve ser dada a Mareei Mauss (1872-
das nas culturas humanas. Em Padrões de cultura, livro
1950) neste momento. Afinal, o sobrinho de Durkheím é
de 1936, a antropóloga chega a sugerir a existência de
mais do que u m continuador secundário da obra iniciada
padrões "apolíneos" e "dionisíacos" de personalidades.
pelo "pai da sociologia francesa"; na verdade, pode ser visto
Sem considerar as polémicas que e n v o l v e m a experiência
como u m precursor da antropologia social francesa e uma
da antropologia cultural norte-americana no contexto da
das principais fontes de inspiração de Claude Lévi-Strauss
Segunda Guerra, os estudos antropológicos produzidos
(1908-) no desenvolvimento da antropologia estrutural a partir
naquele m o m e n t o entrarão para a história da disciplina
dos anos 1950. Mauss estabeleceu as bases para a nascente
sob a rubrica da "Escola de Cultura e Personalidade", cuja
antropologia francesa bem como abriu a possibilidade de
caracterização será vista ã frente.
renovação teóríco-metodológica para o campo das Ciências
Enquanto o conceito de cultura constitui o tropos d o m i - Sociais com a publicação de estudos seminais, tais como:
nante do discurso antropológico na tradição norte-americana, Esboço de uma teoria da magia (1904), As técnicas corporais
do outro lado do Adântico o conceito de estrutura, oriundo (1936), A noção de pessoa, a noção de 'eu'(19òS), para citar
da tradição sociológica francesa, configura-se no paradigma alguns dos principais. Esses estudos sugerem uma teoria da
ação social no pensamento de Mauss, na maioria das vezes
classificado como pensador holista herdeiro da tradição so-
' Assim, não se deve à incapacidade mental ou em razão das misturas raciais ciológica durkheimiana.
o baixo desenvolvimento industrial do Brasil na virada do século passado.
As razões para o atraso, Gilberto Freyre identificou-a na formação histórico- Em 1925, Mauss trouxe a público o mais famoso de
cultural do Brasil apresentadas em Casa-Grande & Senzala, livro de 1933. seus estudos: o Ensaio sobre a dádiva - razão e troca nas

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COLEÇÃO " T E M A S & EDUCAÇÃO" A MODERNIDADE DA ANTROPOLOGIA

sociedades arcaicas, texto que, na avaliação de Alain Caille, como uma dessas rochas sobre a qual se erige o edifício
representa o único estudo verdadeiramente sociológico que social chamado Humanidade.
se pode defender como tal. Partindo do estudo comparati- A antropologia que se desenvolve posterior a Mauss na
v o dos sistemas de trocas rituais da polinésia e dos índios França e na Inglaterra terá como preocupação fundamen-
americanos, ou seja, o "kula" e o "potlach", estudados por tal a sua institucionalização e, consequentemente, a sua
M a l i n o w k i e Boas, respectivamente, Mauss observou a exis- legitimação perante a opinião pública como u m campo de
tência de sistemas equivalentes em outras sociedades, em conhecimento científico mesmo não sendo uma "ciência
outros tempos, o que lhe permitiu formular a teoria da dádi- normal", no sentido atribuído a esse termo por Thomas
va. Trata-se de uma estrutura universal, portanto, comum a K u h n . Com a eclosão da Segunda Guerra nos anos 1940, a
inúmeros sistemas de trocas simbólicas cuja regra básica é a visão estática e orgânica inerente ao paradigma estrutural-
obrigação de dar, receber e retribuir. Com essa formulação, funcionalista começa a abrir espaço para uma visão mais
Mauss contribuiu para ampliar e aprofundar a compreensão dinâmica onde o conflito torna-se u m elemento fundamental
da estrutura dos sistemas sociais. Nos termos do próprio na transformação e na mudança social. Nesse sentido, os
Mauss, a "dádiva" é u m "fato social total", ou seja, é u m estudos desenvolvidos na Inglaterra sob a inspiração de
fenómeno ao mesmo tempo político, jurídico, económico, Max Gluckmann (1911-1975) e, na França, com George
religioso, estético e moral. Balandier (1920-), são exemplares." A antropologia se volta,
O que faz da "troca" u m fato privilegiado, pois, me- então, para a análise situacional na qual ganha destaque o
todologicamente, condensa a totalidade do sistema social, m u n d o da vida cotidiana c o m seus conflitos e dramas so-
e não tudo do sistema social. E mais, considerando que ciais. Embora longa, vale destacar a síntese de Van Velsen
o observador é parte da observação, o Ensaio representa, (1987, p. 369-370):
do p o n t o de vista político, uma dupla resposta, de u m Uma das suposições na qual a análise situacional está baseada
lado, uma crítica à visão economicista de que o h o m e m é a de que as normas da sociedade não constituem u m todo
é, em última instância, m o v i d o p o r uma racionalidade coerente e consistente. São, ao contrário, frequentemente va-
utilítarísta - a euforia economicista pós-primeira guerra gas e discrepantes. É exatamente este fato que permite a sua
manipulação por parte dos membros da sociedade no sentido
não demoraria m u i t o para ser arranhada c o m a crise
de favorecer seus próprios objetivos sem necessariamente
económica de 1929 nos Estados Unidos; do outro lado,
prejudicar sua estrutura aparentemente duradoura de relações
uma espécie de "manifesto pela paz", afinal, a lembrança sociais. Por isso, a análise situacional enfatiza o estudo das nor-
recente do fim da guerra, abria a possibilidade de uma mas em conflito. Previsivelmente, a fonte de informações mais
interpretação segundo a qual a não troca pode ser uma frutífera sobre normas conflitantes é constituída por disputas,
outra via para a g u e r r a . E m suma, o sistema de prestação expostas ou não dentro de u m tribunal. As descrições sobre a
total (a obrigação de dar, receber e retribuir), presente "lei primitiva" frequentemente sugerem que todas as disputas
são simples casos de "tran.sgressão da lei" e que, portanto,
em inúmeros rituais e momentos rotineiros da vida das
sociedades primitivas e das contemporâneas pode ser vista
Por exemplo, o conceito de "situação colonial", desenvolvido por Balan-
dier, para analisar os conflitos colonialistas na África, exerceria grande
Na verdade, essa teoria será discutida por Lévi-Strauss, posteriormente, influência no pensamento dos intelectuais do Instituto Superior de Estudos
nos idos de 1942. Ao mesmo tempo os Estados Unidos caminliavam para Brasileiros (ISEB), posteriormente batizado de "fábrica de idelogias" do
uma crise económica que afetaria o si.stema capitalista governo JK.

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COLEÇAO " T E M A S & EDUCAÇÃO" A MODERNIDADE DA ANTROPOLOGIA

a discussão está baseada nos "fatos" do caso, enquanto existe que contribuíram para fazer da a n t r o p o l o g i a uma das
uma concordância silenciosa ou expressa entre todas as partes áreas mais bem-sucedidas das ciências sociais, tais como:
interessadas com referência ã norma ou às normas aplicáveis.
Evans-Pritchard (1902-1973), Edmund Leach (1910-1989),
Estas descrições ignoram o fato de que pode-se encontrar, em
Pierre Clastres (1934-1977), Claude Lévi-Strauss (1908-),
qualquer sociedade, uma grande categoria de disputas onde a
discussão gira principalmente em torno da que.stão sobre quais Mary Douglas (1921-), Marshall Sahlins (1930-). Os trabalhos
normas, entre um número de normas mutuamente conflitantes, desses antropólogos continuam inspirando novas gerações
deve ser aplicáveis aos "fatos" indiscutíveis do caso. A partir de antropólogos, b e m como têm contribuído para enrique-
deste ponto de vista, torna-se mais importante obter diferentes cer os estudos de outras áreas do conhecimento, tais como
avaliações e interpretações sobre disputas, ou outros eventos história, economia, teatro, educação, etc.
específicos, de várias pessoas, do que procurar a avaliação e
interpretação correta destes eventos. O enfoque situacional vai Em suma, o processo de institucionalização e desen-
muito além daquele que tenta saber o que pensam "os sábios v o l v i m e n t o da antropologia moderna ao longo do século
; homens velhos da vila", da escola e o advogado. Para o soci- X X demonstra claramente u m m o v i m e n t o de ampliação d o
ólogo interessado em processos sociais, não existem pontos "campo" acompanhado da descoberta de novos "objetos"
de vista "certos" ou "errados"; apenas existem pontos de vista
e "métodos". Assim, sem esquecer a contribuição dos estu-
diferentes representando diferente grupos de interesse, status,
dos de parentesco d o antropólogo norte-americano Lewis
personalidade e assim por diante. Como corolário, deve-se do-
cumentar o máximo que for possível sobre o contexto geral - os Morgan (1818-1881), ainda na perspectiva evolucionista, e
casos devem ser apresentados situacionalmente - e os atores dos trabalhos de campo realizado por Boas, 30 anos antes
devem ser especificados. Por exemplo, disputas sobre dotes de M a l i n o w s k i , entre os esquimós ( I n u i t ) e a concentração
podem envolver muito mais que meramente a demanda pelo dos estudos sobre sistema de parentesco na região da Ásia
dote que não foi pago. Podem ser o veículo para uma disputa e Oceania, c o m a eclosão da Segunda Guerra, vemos u m
em outro campo (exemplo político) que, por uma outra razão,
deslocamento para a África, c o m ênfase nos estudos de
não podem ser tratados como sendo uma disputa política [...]
magia e bruxaria além de uma forte ênfase na análise de
Finalmente, durante o trabalho de campo, devem-se procurar
casos inter-relacionados dentro de uma pequena área que situações de conflitos; posteriormente, a renovação nos
envolva somente um número limitado de dramatis personae. estudos da etnologia ameríndia, a partir dos anos 1970,
Tais casos devem ser, mais tarde, apresentados na análise em trouxe para o centro d o pensamento antropológico os
seu contexto social, como parte de um processo social e não estudos de cosmologia e corporalidade. De certa forma,
como casos ilustrativos que são razoavelmente convenientes é assim que Seeger, DaMatta & Viveiros de Castro (1987,
para uma generalização específica.
p . 11), veem o m o v i m e n t o da antropologia ao longo do
século XX:
Curiosamente, o teatro serviria de modelo e fonte de inspi-
ração para a antropologia e a sociologia que se desenvolveriam Cada região etnográfica do mundo teve o seu momento na
a partir dos anos 1950. Não ã toa Victor Turner (1920-1983), história da teoria antropológica, imprimindo seu selo nos
na antropologia, e Erving Goffman (1922-1982) na sociologia, problemas característicos de épocas e escolas. Assim, a Mela-
nésia descobriu a reciprocidade, o sudeste asiático a aliança
tomam a ideia de "drama" para explicar os processos de inte-
de casamento assimétrica, a África as linhagens, a bruxaria e a
ração e conflito social no mundo da vida cotidiana.
política. As sociedades indígenas da América do Sul, após os
Não sendo possível explorar todas as grandes con- canibais de Montaigne e a influência Tupi nas teorias políticas
tribuições da antropologia no contexto do m u n d o pós- do Iluminismo, só muito recentemente vieram a contribuir para
guerra, basta destacar os nomes de alguns antropólogos a renovação teórica da Antropologia.

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COLEÇAO " T E M A S & EDUCAÇÃO" A MODERNIDADE DA ANTROPOLOGIA

Esse movimento é importante para se ter claro o mo- Rowland chama a atenção para a crença, partilhada pela
mento de crítica cultural vivido pela antropologia a partir antropologia do século XIX, de que os sistemas culturais
dos anos 1980. É também nesse contexto que a observação não ocidentais não correspondem a uma mentalidade lógica.
do antropólogo norte-americano Clifford Geertz (1926-2006), Contudo, se se aceita essa tese tem-se u m paradoxo etno-
segundo a qual "agora somos todos nativos", deve ser con- cêntrico que só pode ser superado a partir da crítica episte-
templada em sua profundidade. mológica da antropologia, pois:
[...] face à tendência etnocêntrica do pensamento europeu
A crítica c u l t u r a l d a a n t r o p o l o g i a oitocentista - que utilizava a sua própria cultura como medida
de todas as outras - argumentou [-se] que era preciso com-
U m dos exercícios mais comuns ã chamada antropolo-
preender cada cultura nos seus próprios termos. Isto exige
gia pós-moderna tem sido o trabalho de releitura de alguns um conhecimento 'por dentro' da cultura alheia, e pareceria
clássicos da disciplina. Gregory Bateson (1904-1980), Lucién que o trabalho de campo antropológico proporcionaria uma
Levy-Bruhl (1857-1939), Carios Castafieda (1935-1998), só oportunidade linica para adquirir esse conhecimento e essa
para citar alguns, têm sido objeto de profundas análises, compreensão. Mas o trabalho de campo antropológico é es-
configurando aquilo que o antropólogo (e epistemólogo) sencialmente um exercício de tradução, e exige que a cultura a
Roberto Cardoso de Oliveira (1928-2006) chama de etnogra- traduzir seja coerente e não-contraditória. Isto equivale a exigir
dos nativos que partilhem a nossa racionalidade (ocidental).
fia do pensamento antropológico. Por exemplo, o caso de
Se tentarmos levar esta exigência até às suas últimas conse-
Lévy-Bruhl é exemplar, pois o antropólogo francês da virada
quências seremos forçados a concluir que as outras culturas
do século, tendo abraçado a filosofia positivista de Comte, não poderão ser compreendidas - pelo menos por nós. Mas
não conseguiu superar de todo o inconveniente evolucionis- se formos a admitir que as suas culturas são constituídas, em
mo a ela inerente. O fato é que sua "teoria da mentalidade boa parte, por crenças cujos conteúdos não nos parece racio-
primitiva" coloca alguns desafios epistemológicos para a nalmente compreensível e que, por isso, classificamos como
antropologia ainda hoje.^^ Se, do ponto de vista da história 'crenças rituais'. E acabaremos, mais uma vez, por invocar a
da antropologia, o estrutural-funcíonalísmo representou uma cultura europeia e os seus critérios como medida das outras
• culturas. (ROWLAND, 1987, p. 28)
crítica e uma tentativa de superação da perspectiva evolu-
cionista, isso não impediu que as concepções de Lévy-Bruhl
Assim, u m dos limites dessa concepção reside no fato
acerca da "mentalidade pré-lógica" dos selvagens ou dos
de a antropologia por muito tempo ter se definido como a
grupos primitivos provocasse u m profundo mal-estar antro-
ciência das sociedades primitivas, sua aceitação significava
pológico na medida em que contribuiu para reforçar certas
"jogar fora a água junto com a criança". Esse problema tem
imagens e representações negativas extensivas às culturas
mobilizado inúmeros antropólogos ao longo da história da
consideradas primitivas. Afinal, se a mentalidade primitiva
disciplina, contudo, mais recentemente, posterior aos esforços
é mística e pré-lógica e opõe-se a uma mentalidade lógica,
antropológicos de Claude Lévi-Strauss em identificar as "es-
a do civilizado, então o risco colocado pela primeira é o
truturas elementares do pensamento (espírito) humano", que
da "impossibilidade de se deixar compreender", pois por
antropólogos como Clifford Geertz entraram em cena visando
princípio são incompatíveis, sugere Paul Mercier. Também
se não superar, ao menos qualificar o debate e as reflexões
em torno da prática e do pensamento dos antropólogos.

Apesar das inúmeras críticas feitas à abordagem de


Sobretudo a sua teoria ou "lei da participação" inscrita na mentalidade
primitiva. Geertz como, p o r e x e m p l o , a de que ele fala por sobre os

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ombros de seus nativos em Um jogo absorvente-Notas sobre atualmente tem correspondência com o destaque dado às
a briga de galos Balinesa, contrariando sua intenção de res- essas em anos recentes. Embora, desde 1959, a Organização
gatar a interpretação em primeira mão do nativo da sua cul- das Nações Unidas tenha aprovado a Declaração Universal
tura, ainda assim é inegável a contribuição do antropólogo dos Direitos das Crianças, sob a orientação do UNICEF
norte-americano para, ao menos, a qualificação de duas (United Nations Children's Fund), a aprovação do A n o
importantes categorias do pensamento antropológico; de Internacional da Criança, em 1979, deu u m novo impulso ãs
u m lado, o conceito de cultura, d o o u t r o o conceito de
políticas públicas de proteção e assistência às crianças, aos
etnografia. Nesse sentido, a publicação nos anos 1980
adolescentes e aos jovens no m u n d o a partir de então. Sem
dos livros Writing culture - The poetics and politics of
dúvida, esse acontecimento contribuiu para que antropólogos
ethnography, editado por James Clifford e George Marcus,
e outros cientistas sociais tivessem a atenção voltada para
e Anthropology as cultural critique - An experimental
crianças e a educação. Mas, curiosamente, a contribuição da
moment in the human sciences, sob a organização de
antropologia norte-americana para o estudo da criança e da
George Marcus e Michael Fischer, representa u m marco
educação pode ser datada de anos atrás.
na história da disciplina. Dentre as muitas razões, talvez,
a principal parece ser o fato de esses trabalhos colocarem
A a n t r o p o l o g i a d a criança e d a educação
no centro das reflexões contemporâneas da antropologia
o problema da escrita antropológica. Dizer que o antro- Com a Primeira Guerra o m u n d o toma consciência
pólogo escreve é u m truísmo, a questão é saber o que ele da destruição em massa; cresce a apreensão c o m rela-
inscreve quando escreve." , .,. ção ao futuro. Essa situação l e v o u alguns antropólogos

Também é inegável o alcance e a influência da antro- apregoarem a necessidade de investigar c o m urgência as


pologia interpretativa de Geertz em outras áreas das ciências culturas primitivas espalhadas pelo m u n d o ante a ameaça
sociais e humanas como, por exemplo, no campo da história, do desaparecimento, da extinção, frente a ideia de u m
da literatura e da pedagogia. Com efeito, inúmeros proble- progresso inelutável. Assim, se n o plano internacional, os
mas relacionados ã autoria e ã autoridade etnográfica dos antropólogos dirigem seus olhares e interesses cada vez
antropólogos, o estatuto científico do conhecimento antro- mais para o m u n d o das sociedades primitivas, no plano
pológico, as relações entre estrutura e cultura, identidade e interno das nações cresce a preocupação dos intelectuais
diferença, estilos de antropologia têm despertado a atenção (sociólogos, pedagogos, filósofos) com as crianças e a edu-
dos antropólogos hoje. E mais. "Novos" objetos e métodos cação. Contribui para esse processo o fato de que, desde
têm sido discutidos e experimentados ampliando, assim, o fins do século XIX, o folclore surge c o m a promessa de
"campo" da antropologia. resgatar as tradições populares e o evolucionismo aproxi-
Não por acaso, a antropologia retoma em novas bases a ma as sociedades primitivas da infância da humanidade,
criança e a educação como "culturas" a serem investigadas. o que torna mais fácil a compreensão da valorizaçãao da
Em particular, o interesse pelas crianças e pela educação criança e/ou da infância nesse contexto e, por conseguinte,
da e d u c a ç ã o . " Franz Boas e a então nascente antropologia

De certa forma, as preocupações antropológicas em torno da escrita


parecem encontrar ressonância na noção de escritura do filósofo Jacques É suficiente lembrar o lugar de importância das crianças na literatura de
Derrida na medida em que evoca não simplesmente o ato da escrita, Charles Dickens ou, então, as preocupações anarquistas com a educação
mas, no âmbito da antropologia, inclusive a dimensão oral. no processo de industrialização das sociedades modernas. De resto, vale

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COLEÇÃO "TEMAS & EDUCAÇÃO"

cultural estava em sintonia com as preocupações de seu tem- filósofo e pedagogo, publicava Le Dessin Infantin (1927),
po. Em Anthropology in modem life, originalmente publicado u m dos primeiros trabalhos sobre o desenho infantil; es-
em 1928, Boas destacava a "aplicabilidade" da antropologia tratégia metodológica também utilizada por Mead em seu
à compreensão dos problemas sociais: trabalho de campo c o m as crianças Manus. A aproximação
da antropologia com a psicologia fez c o m que muitos psi-
O curso do desenvolvimento de um grupo de crianças de-
cólogos lançassem mão dos métodos e técnicas de trabalho
pende de sua descendência racial, das condições económicas
de seus pais e de seu bem-estar geral. Um conhecimento da
de campo utilizadas pelos antropólogos, a f i m de desen-
interaçào destes fatores pode nos dar o poder de controlar o volver estudos sobre amamentação, etc. Nesse momento,
crescimento e assegurar melhores condições possíveis para ficaria famosa nos Estados Unidos a chamada "Escola de
a vida do grupo. Todas as estatísticas vitais e sociais estão Cultura e Personalidade" que abrigaria o nome de inúmeros
então intimamente relacionadas ãs políticas a serem adotadas antropólogos e psicólogos e m torno de temática, principal-
ou a serem descartadas não sendo totalmente fácil de ver que
mente, dos estudos de formação do "caráter nacional' de
o interesse nesses problemas, quando considerado de u m
ponto de vista científico, não está relacionado aos valores
u m p o v o o u país.^*"
práticos que nós atribuímos aos resultados. (BOAS, 1986, p. O que se observa é que a educação recebe, a partir dos
16-17, tradução livre). . , , anos 1930, cada vez mais atenção especial. Em particular, no
Brasil, o projeto da chamada "Escola Nova", encabeçada por
Diferentemente da antropologia desenvolvida na I n -
Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo, exercerá u m papel
glaterra e França, cuja influência da sociologia é notória, a
fundamental na renovação da percepção e dos instrumentos
antropologia norte-americana estabeleceu profundas relações
com a história e a psicologia social. Em particular, é bastante
ilustrativo o trabalho de Margaret Mead (1901-1978) com "• Embora o tema da cnança e o da educação não tenham saído definiti-
adolescentes das ilhas Samoa e Manu.^' Com efeito, pode-se vamente do campo de interesses dos antropólogos norte-americanos,
dizer que com Coming of age in Samoa (1928) e Growing up pois os estudos de Caráter Nacional englobam tal área, a eclosão
in New Guinea-A comparative study of primitive education da Segunda Guerra ampliou o foco de interesses para outros "ob-
(1930), Margaret Mead antecipava o que hoje se considera o jetos" e "problemas". Isso fica claro, por exemplo, com Balinese
character- Aphtographic analysis, obra de 1942, de Margaret Mead
campo de estudos tanto da antropologia da criança quanto
e Gregory Bateson, considerado um marco para o desenvolvimento
da antropologia da educação.
da antropologia visual. Também é o caso de The study of culture at
D o outro lado do Atlântico, n o exato momento e m que a distance, editado por Margaret Mead e Rhoda Metraux, publicado
Margaret Mead publicava Coming of Age in Samoa, sem originalmente em 1953, que explora "novos métodos" de investigação
frente a impossibilidade do antropólogo ir a campo; problema este já
perder de vista a epistemologia genética de Jean Piaget
enfrentado por Ruth Benedict em O crisântemo e a espada - padrões
(1896-1980), na França, George-Henri Luquet (1876-1965),
da cultura japonesa, de 1947. Em paralelo aos estudos de caráter
nacional, a antropologia cultural norte-americana se dedicaria à área
destacar os esforços de Durkheim, com a criação da disciplina "Moral e de estudos dos contatos culturais. Nomes como Robert Redfield,
Cívica", visando a consolidação do campo de estudos da educação como Oscar Lewis e, principalmente, Melville Herskowitz desenvolveram
parte do processo de construção da nação moderna. inúmeros trabalhos sobre processos de aculturação. Sem perder de
vista o papel político e contracultural dos jovens e estudantes nos
Na verdade, Margaret Mead nunca deixou de se preocupar com a
anos 1960, somente nos últimos anos o interesse pela educação, por
questão da infância e da educação. Isso é visível com seus trabalhos
crianças, adolescentes e juventude parece ganhar um novo impulso,
posteriores: Sexo e temperamento, de 1935, e Macho efêmea, de 1947,
até seus últimos escritos. sobretudo em países como o Brasil.

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de ensino no país. Esse projeto contou com a participação de mensuração na pesquisa educacional, que, situada no
e a colaboração de intelectuais como, de u m lado, Cecília campo das ciências humanas, não poderia passar imune ao
Meireles (1901-1964), mesclando poesia, folclore e educação; desenvolvimento e às inflexões ocorridas nessa área. Assim,
e, do outro lado, Mário de Andrade (1893-1945), promoven- o fenómeno educacional foi investigado por longo tempo
do pesquisas, estimulando a criação de parques infantis e na perspectiva das análises das ciências físicas e naturais,
recolhendo desenhos de crianças quando esteve ã frente da buscando-se isolar variáveis que pudessem dizer da compo-
Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. sição do fenómeno como se fossem dados naturais. Dito de
Dando u m salto no tempo, somente nos idos dos anos outro modo, acreditava-se que a mensuração quantitativa de
1980, a antropologia retomou o curso dos estudos sobre varáveis básicas do fenómeno educativo seria suficiente para
criança e educação. Neste momento, é impossível não fazer a explicação de sua totalidade. Rapidamente, constatou-se
referência ao trabalho do historiador Phillippe Aries, História que poucos problemas poderiam ser esgotados pela pesquisa
Social da Criança e da Família, originalmente publicado em quantitativa, dado que pensar a educação requer entendê-la
1 9 6 0 , que, ao lado dos estudos de Margaret Mead, pode ser como fenómeno dinâmico, complexo e mutável, além de
visto como u m marco para a antropologia da criança e da datado historicamente. É evidente que não se tira o valor
educação. Por outro lado, tal estudo também sinaliza para o da pesquisa quantitativa, e os indicadores estatísticos sobre
processo de reaproximação da história com a antropologia a sociedade estão aí amplamente divulgados e são absolu-
em anos recentes.^** tamente indispensáveis para a compreensão dos problemas
da educação, pois são fontes geradoras de questões a serem
Como nos tempos áureos da Segunda Guerra, em que investigados e aprofundados.
a antropologia cultural norte-americana ganha explicita
Enquanto procedimento predominante na pesquisa
conotação política e significativa dimensão prática ("antro-
educacional até meados dos anos de 1980, a orientação
pologia aplicada"), as preocupações e o interesse dos cien-
quantitativa começa a gerar certo incómodo em estudiosos
tistas sociais brasileiros pelo tema da juventude, educação e
com os métodos e com os dados obtidos. Os recorrentes
cultura têm como aliado hoje o Estado. A onda de políticas
resultados sobre déficit de aprendizagem, evasão e repe-
píiblicas voltadas para jovens em situação de risco e projetos
tência em determinados setores da população necessitavam
sociais de incentivo à cultura e de promoção da cidadania
de esclarecimentos que a pesquisa quantitativa, pelas suas
dispensa maiores comentários. Some-se a isso a mudança de
características, não respondia.''^ Tornou-se necessária, então,
perspectiva metodológica no tratamento e compreensão do
a articulação de novas propostas de abordagem com alter-
fenómeno da educação no Brasil.
nativas metodológicas também distintas para se superar, se
Mesmo que tardiamente, a pesquisa qualitativa encontra não no todo, ao menos parcialmente, limitações percebidas
forte receptividade por parte dos cientistas e, já na década na pesquisa quantitativa. Aos poucos, novas estratégias
de 1980, observam-se indicadores de u m movimento que vai metodológicas são adotadas na investigação educacional,
gradativamente interpelando a predominância dos métodos como, por exemplo, as pesquisas-ação, os estudos de caso

" As ciências sociais estão ã espera de um "novo" Florestan Fernandes para Sobre a abordagem do tipo experimental, Giroux (1983, p. 63) emitiu o
retomar os estudos sobre o folclore infantil, realizado por aquele no início seguinte parecer: a pesquisa e seus resultados deveriam ser vistos não
dos anos 1940, em comparação com os processos de educação. somente pelos "princípios que governam as questões que propõe, mas
A este respeito ver: SILVA (2002); COHN (2005); BURKE (2005). também pelos temas que ignora e pelas questões que não propõe".

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COLEÇÃO " T E M A S & EDUCAÇÃO'

e as pesquisas etnográficas (ANDRÉ; LUDKE, 1986). Essa última,


contudo, tem sido utilizada de maneira pouco rigorosa. Daí
a necessidade de se esclarecerem o sentido da etnografia e
O SENTIDO D A ETNOGRAFIA
o seu significado pedagógico para a educação.^" Esse é o
assunto do próximo capítulo.

Fenomenologia d o conhecimento

Estamos presos aos nossos sentidos. Eles são fontes de


conhecimento, o que não exclui a possibilidade de gerarem
enganos. O fato de não vermos algo o u sentirmos alguma
coisa não significa que essa não exista o u que não seja
verdadeira. Freud nunca v i u o inconsciente e, no entanto,
foi capaz de formular a sua existência. Também os físicos
nem sempre veem os elementos com os quais pensam a
constituição da realidade, tal é o caso dos átomos. Mons-
tros, demónios, fantasmas e outros seres sobrenaturais co-
locam em dúvida o limite entre a realidade e o imaginário,
entre conhecimento verdadeiro e falso conhecimento. Em
verdade, a ideia segundo a qual existe u m conhecimento
verdadeiro em detrimento de outros considerados falsos é
relativa. O que existe são conhecimentos diferentes com
verdades diferentes para realidades diferentes e válidos em
momentos diferentes. O conhecimento de senso c o m u m
não é falso; responde a propósitos diferentes aos de outras
realidades. Mesmo o conhecimento científico não pode ser
visto como uma verdade absoluta, apesar de os cientistas
trabalharem o tempo todo objetivando atingir o "Real" sem
Há uma certa profusão de investigações que revelam, nos últimos anos,
perderem de vista tratar-se isso de u m ideal. A história das
a predominância da pesquisa qualitativa. Basta percorrer as centenas
de trabalhos apresentados nas reuniões anuais da ANPEd, nos anos de ciências nos mostra quão cheia de acasos e erros ela se
1990 em diante, para se ter uma ideia da larga apropriação de métodos faz. A propósito, em ciência não podemos nunca afirmar
como a história oral, as representações sociais, a etnometodologia, além de m o d o categórico e absoluto a verdade de u m fato ou
da etnografia, ancorados nos estudos de caso. teoria, só podemos provar a sua "falsificabilidade", propõe

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COLEÇÃO " T E M A S & EDUCAÇÃO' o SENTIDO D A ETNOGRAFIA

O filósofo da ciência Kad Popper, Assim, os sentidos inter- será padronizada social e culturalmente. Por exemplo, isso
ferem na produção do conhecimento científico colocando pode ser observado no universo dos índios Suyá. De acor-
novos problemas, sugerindo novas questões. Eles não são do com o antropólogo Anthony Seeger (1980, p. 46-47), os
somente objetos passivos do conhecimento, mas também ornamentos corporais (disco labial e auricular) expressam a
fatores ativos e constitutivos da realidade do sujeito do inscrição física de uma concepção sobre a pessoa Suyá por
conhecimento. Com isso, a noção de conhecimento deve meio de suas faculdades perceptivas (audição e fala) e seu
ser questionada, segundo Lanternari (1997, p. 62): sistema cognitivo e moral: "Uma pessoa que ouve e compre-
O conhecimento, entendido na tradição empirista como reflexo
ende mal, também age mal [...]. Quando os Suyá aprendem
passivo das "coisas existentes", na nova perspectiva antropológi- alguma coisa, mesmo algo visual como, por exemplo, u m
ca-crítica conflgura-se como "complexo de símbolos intelectuais padrão de tecelagem, dizem; 'está no meu ouvido'". De resto,
livremente criados", e as próprias "coisas existentes", antes vistas pode-se lembrar ainda a famosa sentença de Boas segundo
como objecto inerte de percepção dos sentidos, perdem o seu a qual "o olho é u m órgão da tradição".
carácter objectivo de mero "em si", para assumirem o valor de
outras tantas representações filtradas através da intuição simbóli- Também em nossa cultura, a maneira como percebe-
ca própria do indivíduo como componente de uma dada cultura. mos as coisas está relacionada ã distância que assumimos
Assim como o conhecimento, também a percepção sensorial, perante elas. Nesse caso, a experiência etnográfica dos
que é o seu suporte primário, longe de apreender e reproduzir antropólogos constitui-se n u m momento privilegiado na
directamente o real, revela-se como mediação de uma peculiar
compreensão das verdades e da produção do conhecimento
estrutura simbólica, própria da psique humana enquanto tal, e
social. O trabalho de campo como u m "rito de passagem"
a imagem perceptiva (espacio-temporal, auditiva, visual, táctil,
etc.) em vez de se reduzir a representação apartada da coisa exige uma reeducação dos sentidos acompanhada de uma
através da reflexão do observador, manifesta-se como parte, atitude fenomenológica, cuja profundidade Merleau-Ponty
ela mesma, da sua realidade [...]. (1989, p. 146-148) assinala c o m precisão:
[...] Ora, em antropologia, a experiência é nossa inserção como
O conhecimento considerado verdadeiro nos dá a co-
sujeitos sociais num todo cuja síntese já está feita, e que é labo-
nhecer mais sobre o sistema intelectual de uma época his-
riosamente procurada por nossa inteligência, pois vivemos na
toricamente determinada do que efetivamente a crença na
unidade de uma só vida todos os sistemas de que é feita nossa
existência de uma razão transcendental e livre dos fantasmas cultura. Há algum conhecimento a tirar desta síntese que somos
da imaginação, ainda que essa seja uma crença c o m u m ao nós. Mais ainda: o aparelho de nosso ser social pode ser desfeito e
pensamento ocidental. Vê-se, então, que o problema do refeito pela viagem, assim como podemos aprender a falar outras
conhecimento é uma questão relacionada ao estatuto da línguas. Há aí uma segunda via rumo ao universal: não mais o
verdade. Por outro lado, se não podemos compreender o universal de sobrevoo de um método estritamente objetivo, mas
mundo sem antes detectá-lo por meio dos sentidos, faz-se como que um universal lateral, cuja aquisição é pos.sível através
da experiência etnológica, incessante prova de si pelo outro e
necessário, então, buscar compreender qual a importância
do outro por si. Trata-se de construir um sistema de referência
dos sentidos no processo de conhecimento.
geral onde possam encontrar lugar o ponto de vista do indígena,
Verdade, conhecimento e percepção sensorial (visual, o do civilizado e os erros de um sobre o outro, construir uma
olfativa, gustativa, auditiva e tátil) estão relacionados a siste- experiência alargada que se tome, em princípio, aces.sível para
mas culturais historicamente determinados. A maneira como homens de um outro país e de um outro tempo. A etnologia
a verdade e o conhecimento são institucionalizados depende não é uma especialidade definida por um objeto particular - as
sociedades "primitivas" - , é a maneira de pensar que se impõe
em grande medida da maneira como a percepção sensorial

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COLEÇÃO " T E M A S & EDUCAÇÃO" o SENTIDO D A ETNOGRAFIA

quando o objeto é "outro" e que exige nossa própria transfor- Também a compreensão do significado do conhecimento
mação. Assim, também viramos etnólogos de nossa própria
passa pela compreensão do modo como organizamos nossos
sociedade, se tomarmos distância com relação a ela. [...) Método
sentidos. Nesses termos, conhecimento tem menos a ver com
singular: trata-se de aprender a ver o que é nosso como se fôs-
semos estrangeiros, e como se fosse nosso o que é estrangeiro. E inteligência, competência, eficácia, tecnologia, do que com
não podemos sequer fiar-nos em nossa visão de despatriados: a o próprio sentido instituído culturalmente.
própria vontade de partir tem motivos pessoais, podendo alterar
o testemunho. Se quisermos ser verdadeiros, deveremos dizer Ocularcentrismo «
também esses motivos, não porque a etnologia seja literatura,
mas porque, ao contrário, não deixa de ser incerta a menos que o Em particular, no Ocidente, o olhar adquiriu ao longo
homem que fala deixe de cobrir-se com uma máscara. Verdade e do tempo u m status filosófico e cultural superior em relação
erro habitam juntos na intersecção de duas culturas, seja porque aos outros sentidos. Assim é que precisamos "ver para crer",
nossa formação nos esconde aquilo que há para conhecer, seja como São Tomé precisou tocar as chagas de Cristo para
porque, ao contrário, ela se toma, na pesquisa de campo, um
acreditar no que via. Temos "visões de m u n d o " . As expres-
meio para situar as diferenças do outro. Quando Prazer dizia, a
sões "ã primeira vista" ou "haja vista" reforçam o sentido
respeito do trabalho de campo, "Deus me livre", não estava se
privando apenas dos fatos, mas de um modo de conhecimento. da visão. Para nós, uma coisa ou pessoa quando estimada
Claro que não é possível, nem sempre necessário, que o mesmo é "bem vista". É preciso "ver claramente", quando se busca
homem conheça por experiência todas as verdades de que fala. compreender algo, dizemos. Depende da "perspectiva" que
Basta que tenha, algumas vezes e bem longamente, aprendido a se olha para se ver alguma coisa. "Em terra de cego quem
deixar-se ensinar por uma outra cultura, pois, doravante, possui
tem u m olho é rei". Os olhos carregam invejas, ciúmes, enfim,
um novo órgão de conhecimento, voltou a se apoderar da região
"mau olhado". Os olhos mentem ou dizem a verdade, daí
selvagem de si mesmo, que não é investida por sua própria cultura
e por onde se comunica com as outras [...]. a necessidade de se olhar no olho c o m "olhos nos olhos".
"Os olhos são o espelho da alma, janela do m u n d o " , decla-
De fato, a experiência etnográfica representa uma oportuni- ram os filósofos. Com "medo nos olhos", "jogo de olhares",
dade única e singular no processo de compreensão do "outro", "menina dos olhos", "olhar de peixe morto", "olhar frio",
de u m lado exigindo do antropólogo u m esforço constante de "olho gordo", "olho comprido", tudo isso e muito mais,
estranhamento e conjugação do universal com o particular na "só não vê quem não quer" quão importante é a visão no
análise cultural, do outro possibilitando uma "fijsão de horizon- imaginário cultural ocidental. Na modernidade tudo deve
tes" entre os pontos de vista do nativo e do antropólogo, propõe ser visto, tudo é "espetáculo".^
a fenomenologia. Mas, não se trata aí de uma fusão espiritual
entre antropólogos e nativos, como se fosse uma única pessoa
partilhando de uma mesma visão de mundo, uma única voz. estudos em antropologia da performance demonstrem quão pequena é
ou mesmo que não há distância entre o dizer e o fazer.
Ao contrário, o processo de interpretação do significado de uma
^ Isso não elimina, evidentemente, a importância dos outros sentidos. Da
cultura corresponde na verdade a u m processo de compreen-
mesma forma que o olhar, também o olfato nos sugere muitas imagens
são do que as pessoas dizem, pensam e acreditam que estão como, por exemplo, quando uma coisa "não cheira bem" ou "cheira a
fazendo quando realizam uma ação social.^ confusão", etc. Ou então, o fato de que é a "vida amarga", brincamos
com "língua de sogra", é "cuspir no prato que se comeu" é sinal de
ingratidão e remete ao paladar. "Entrar por um ouvido e sair pelo outro",
' Há uma distância entre aquilo que as pessoas fazem e aquilo que elas "fazer ouvido mouco"; "pessoa sem tato", "pegar no pesado", etc. são
dizem e pensam que fazem quando realizam um ato, muito embora os algumas outras imagens associadas ao paladar, à audição e ao tato.

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COLEÇAO " T E M A S & EDUCAÇAO' o SENTIDO D A ETNOGRAFIA

De fato, uma longa história que vai dos gregos aos an- Desde o Renascimento, no século X V I , uma nova cul-
tropólogos d o século X X ressalta a importância que o olhar tura da sensibilidade é, paulatinamente, posta em prática.
assumiu na cultura ocidental. Entre os gregos, os olhos estão Em O processo civilizador, Norbert Elias nos mostra que, já
associados ao conhecimento. Em Édipo Rei, de Sófocles (496- desde os primeiros sinais da época moderna, o Ocidente
406 a.C), Tirésias, apesar de cego, vê aquilo que o filho de encontrou na ideia de "Civilização" seu empreendimento
Jocasta não consegue ver. Por isso mesmo, ao descobrir a mais bem acabado e m termos de uma nova formação social
verdade sobre a morte d o pai e o casamento c o m a mãe, que atinge tudo e todos ao longo d o tempo. A civilização
Édipo se pune vazando os olhos. Também o Mito da caverna, designa não só u m estágio de desenvolvimento material da
de Platão (428-347 a.C), é ilustrativo da importância do olhar, sociedade, mas também as maneiras de comportamento, a
pois se trata de uma alegoria pedagógica da "iluminação" (no educação das pessoas, o desenvolvimento do individualismo,
sentido de razão iluminadora) sobre o conhecimento obtido as ideias religiosas e os costumes. Elias (1990, p. 79) lista as
pela consciência racional através da experiência d o olhar. "maneiras rudes" e mais comuns de comportamento à mesa
Disso tudo extraímos uma lição antropológica: em geral, so- presente ainda à época do Renascimento, sob o signo de
mos "cegos", se não "míopes" quando se trata de olharmos uma vigilância civilizadora:
para a nossa própria realidade social e/ou cultural. É, nessa
Uma vez após outra, encontramos advertências para que cada
perspectiva, que o Mito da caverna nos parece ser uma boa um ocupe o lugar que lhe foi designado e não toque, à mesa,
metáfora para a educação do olhar.' no nariz e orelhas. Não ponha os cotovelos em cima da mesa,
dizem frequentemente. Mostre um rosto alegre. Não fale demais.
São frequentes os lembretes para não se coçar ou cair vorazmente
A diferença é que o olhar é classificado como sendo hierarquicamente sobre os alimentos. Nem deve o indivíduo pôr o que teve na
superior aos outros sentidos. boca de volta na travessa comum. Este conselho é repetido com
' Do diálogo entre Glauco e Sócrates, Platão chega à conclusão de que o frequência. Não menos frequente é a instrução de lavar as mãos
homem (filósofo) deve libertar-se das amarras e cadeias do mundo .sensível antes de comer ou tocar no saleiro com pedaços de comida. A
para, então, após contemplar a luz do Sol, fonte de "iluminação", atingir recomendação seguinte é repetida muitas vezes: não limpe os
o mundo das Ideias. O interessante é que toda essa operação é alcançada dentes com a faca. Não cuspa em cima ou por cima da mesa.
pela transformação do olhar. Segundo Novaes (1988, p. 10), "quando Não peça repetição de um prato que já foi tirado da mesa.
Platão propõe, no mito da caverna, que, por uma operação do olhar, o
homem se afaste do mundo sensível, estava ao mesmo tempo dirigindo
o olhar para 'um ver concentrado no mundo da Ideia"'. Ao distinguir o passividade e conformidade ante a realidade. De acordo com Cardoso,
inteligível e o sensível (visível), Platão promoveu uma ruptura na qual a "diríamos mesmo que aí o olho se turva e se embaça, concentrando sua
Ideia se autonomiza em relação ao mundo sensível. Portanto, o verdadeiro vida na película lustrosa da superfície, para fazer-se espelho..." (1988, p.
conhecimento para Platão só pode ser alcançado pela visão dirigida ao 348). Em contrapartida, o olhar questiona, investiga, movimenta-se bus-
mundo das Ideias. Em outras palavras, o conhecimento sensível obtido cando novos ângulos e perspectivas, sempre atento a "ver de novo" para
pela visão é fonte de erros e sombras, míope e "prisioneiro da caverna", "olhar bem". De resto, o que Platão descobre à luz do Sol é a distinção
isto é, das sombras e trevas. Assim, o olhar, que num primeiro momento entre aparência e realidade. Aparência como aquilo que aparece aos
é fonte enganadora de erros, também é fonte de libertação da razão. O olhos criando a ilusão e a realidade como o que precisa ser iluminado
olhar fixo, restrito ao mundo sensível, domesticado e embalado pelo ritmo para ser bem visto porque é próprio do mundo verdadeiro. Permitindo-
das imagens na parede da caverna, é míope porque prisioneiro das som- nos um certo trocadilho, podemos dizer que em Platão o olhar que se
bras (de si mesmo). Daí a necessidade de se dirigir os olhos ao sol, à luz, limita ao mundo visível perde de vista a visibilidade das coisas, isto é,
para libertar-se. Para tanto, primeiro, é preciso educar a visão, ensiná-la a possibilidade de ver as coisas de modo mais profundo. Assim é que
a ver a luz. Uma coisa é ver, outra é olhar, pois o ver conota uma certa muitas vezes dizemos que não vemos o que está a um palmo do nariz.

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Uma instmção comum é não soltar gases à mesa. Enxugue a Mas é com o Iluminismo que o olhar atinge a mais
boca antes de beber. Não faça pouco da comida nem diga coisa clara formulação de uma necessária pedagogia capaz de
alguma que possa irritar os demais. Não limpe os dentes com a
combater a própria cegueira provocada pela educação, isto
toalha da mesa. Se molhou o pão no vinho, beba-o ou derrame o
é, os preconceitos. A crença na universalidade do homem
resto. Não ofereça aos demais o resto de sua sopa ou do pão que
torna-se coextensiva à visibilidade do olhar; eis o preceito da
já mordeu. Não se assoe com barulho excessivo. Não adormeça
ã mesa. E assim por diante.
Ilustração. Concordamos com Rouanet (1988, p. 147) quando
destaca, "o Iluminismo quer ver tudo, porque o que se es-
Uma nova economia das palavras, dos gestos, dos atos, quiva ã visão está sob a suspeita a priori de servir propósitos
se desenvolve na Sociedade de Corte. Assim, uma nova anti-humanos, e quer olhar corretamente, porque de outro
sensibilidade dos sentidos é posta em ação desde então. modo a noite não seria verdadeiramente devassada". Não ã
Aos poucos, uma atitude mais objetiva vai tomando lugar na toa uma das principais imagens que simbolizam o m u n d o
vida cultural da Sociedade de Corte. Ainda de acordo com iluminista da Revolução Francesa é a alegoria do brilho re-
Elias (1999, p. 90), sultante da razão e da filosofia, ou então, o vigilante "Olho
[...] o novo código da cortesia e sua representação, sumariados do ser supremo", a quem o sans-cullote se curva segundo
no conceito de civilité, está estreitamente vinculado a essa uma iconografia de época.
maneira de ver, e aos poucos, isto se acentua ainda mais. A A verdade é que de Platão a Merleau-Ponty, passando por
fim de ser realmente "cortês" segundo os padrões da civilité, Aristóteles, Descartes, Galileu, até chegar a Foucault, no século
o indivíduo é até certo ponto obrigado a observar, a olhar em
XX; da invenção do telescópio e do microscópico ã câmera
volta e prestar atenção ãs pessoas e aos seus motivos.
de vídeo e ã realidade virtual, na sociedade informatizada; da
Portanto, não é somente com a renovação dos conhe- perspectiva renascentista na pintura ã cultura do simulacro,
cimentos filosóficos e científicos que se erigem a partir do no mundo pós-moderno; enfim, intimeros objetos e pensa-
século X V I , por exemplo, a renovação da geometria e da mentos lançados na história recente indicam u m processo
perspectiva nas ciências e artes, que vemos a mudança no de canonização do olhar, se não de espetacularização das
status dos sentidos, mas também nas maneiras à mesa, na imagens, no mundo ocidental moderno. No centro de tudo,
educação das crianças (puericultura), no desenvolvimento o olhar. A antropóloga Anna Grimshaw (2001), parafraseando
da literatura e das óperas que marcarão profundamente a Martin Jay, chama esse processo de canonização do olhar
vida cultural do Ocidente até hoje."* de "ocularcentrismo". Mas não é sem crítica ou crise que

Com o Barroco acentua-se o processo de domesticação dos sentidos. Segundo as personagens. Sem dúvida, Las Meninas con.stitui-,se em uma das mais
Neves (1986, p. 117), até o século XVI, o olhar não atingira o statusàe meio expressivas representações da própria representação barroca. Subvertendo
privilegiado da investigação do universo, porque a prática da leitura era o primado da perspectiva introduzida pelo Renascimento, o Barroco explora
extremamente rara até então. Contudo, "no século XVI, a difusão do texto o Imnipe-Voeil ("enganar o olho"), isto é, retórica da ilusão de óptica em
escrito apresentou-se como geradora de um sistema de reflexos em que a que o irreal ou ideal ganha consistência de real. O Barroco não representa
visão comanda a compreensão; o século XVII viu expandir e se difrindir somente uma nova visão expressa nos espaços da pintura e da arquitetura,
esse sistema graças aos progressos da tipografia". O barroco expressa uma mas uma nova visão do próprio homem que põe em dúvida as certezas
vi.são de mundo e um estilo de vida no qual o olhar toma-se o mecanismo do período renascentista. Manifestação artística original da cultura barroca,
principal de leitura e interpretação do mundo. Vale lembrar a análise de- a ópera é uma síntese de várias outras artes, como a música, a literatura
.senvolvida por Michel Foucault sobre o quadro Las Meninas, de Velasquez, (poesia), a pintura, o vesmário, arquitetura, o teatro. Aqui a exigência do
no qual se erige um verdadeiro espelho a refletir um jogo de olhares entre
olhar, do espetáculo, toma-se, no mínimo, privilegiada.

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o SENTIDO D A ETNOGRAFIA
COLEÇÃO " T E M A S & EDUCAÇÃO"

essa canonização se instaura. Como será visto mais à frente, U m relâmpago e após a noite! - Aérea beldade,
o campo da antropologia é ilustrativo nesse caso. Por ora, é E cujo olhar me fez renascer de repente,
necessário ver a importância do olhar no século XIX. Só te verei u m dia e já na eternidade?

Bem longe, tarde, além, jamais provavelmente!


O olho do furacão Não sabes aonde v o u , eu não sei aonde vais.
Pode se dizer que o século XIX constitui o cenário Tu que eu teria amado - e o sabias demais!
cultural no qual se dá o "triunfo do olhar". U m conjunto de
Paris criou o flâneur, que se transformou em uma das
transformações sociais, políticas, económicas, culturais e es-
principais personagens de sua mitologia urbana moderna.
téticas promovem uma verdadeira alteração no campo visual
Vivido e imortalizado por Charles Baudelaire (1821-1867) e,
da sociedade moderna. Por exemplo, isso fica claro quando
posteriormente, pelo filósofo e historiador alemão Walter
se toma a constituição do fenómeno urbano no espaço das
Benjamin (1892-1940), o flâneur è u m observador do cená-
cidades modernas. Também as experiências do realismo na
rio urbano. Assim, por meio da escrita, o olhar e a cidade
literatura, do impressionismo na pintura, do olhar disciplina-
operam uma fusão formando u m único corpo. Surgem os
dor e vigilante das ciências modernas, do observador urbano,
detetives da ficção moderna; Sherlock Holmes e C. Auguste
da invenção da fotografia e do cinema e da institucionalização
D u p i n , respectivamente imortalizados na escrita de Arthur
dos museus podem ser vistas como importantes manifesta-
Conan Doyle (1859-1930) e de Edgar Allan Poe (1809-1849).
ções dessa cultura d o olhar. Tudo isso compõe u m cenário
Aos poucos, a cidade vai se tornando u m m u n d o de sinais,
importante para a formação da antropologia.
u m cenário exótico, povoado de detetives e semiólogos, que
É dentro desse quadro de mudanças e transformações descobrem nas ruas o seu "laboratório natural". Parafraseando
sociais que a antropologia produzida no século XIX encontra Helévy, diz Benjamin (1984, p. 221), "em nosso mundo uni-
no olhar u m de seus principais mecanismos de legitimação formizado, é ao lugar em que estamos, e em profundidade,
e constituição identitária. No extremo, pode se dizer que a que precisamos ir; o mudar de país e a surpresa, o exotismo
antropologia é uma ciência do olhar. Não se trata de u m olhar mais cativante, estão b e m perto", basta dobrar a rua. Eis, aí,
distante e passivo, ao contrário, o olhar designa uma ação a máxima do flâneur.
voltada ã compreensão da diferença e de seus significados. De
O detetive não se acha confinado ã literatura, sua
certa forma, o papel desempenhado pela literatura na socieda-
presença será inspiradora também no campo da história.
de moderna serve de testemunha disso. É suficiente lembrar, o
rápido e fugaz olhar de "A Uma Passante", instante eternizado O historiador Carlo Ginsburg extrai das observações da
pela pena do poeta d'^5 flores do mal(1895, p. 236); medicina, da história da arte e da literatura (através das
personagens detetives) uma lição; n o século XIX, se dá
A rua em derredor era u m ruído incomum, a emergência de u m paradigma semiótico indiciário que
Longa, magra, de luto e na dor majestosa, modela a produção d o conhecimento das ciências sociais
Uma mulher passou e com a mão faustosa e humanas e que t e m na leitura dos "sinais" a sua força
Erguendo, balançando o festão e o debrum; epistemológica. A observação de pequenos sinais, sob a
Nobre e ágil, tendo a perna assim de estátua exata. exigência de uma visão microscópica, em conformidade
Eu bebia perdido em minha crispação c o m a disciplinarização d o corpo, denunciada por Foucault
No seu olhar, céu que germina o furacão em seus trabalhos sobre a medicina e psiquiatria e, par-
A doçura que embala e o frenesi que mata. ticularmente, sobre as prisões, iriam revelar uma cultura

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do olhar cuja melhor expressão é o modelo do panóptico, avançado, aquele que até aqui aprendeu e representou as
proposto por Jeremy Bentham (1748-1832). combinações das mais complicadas nuanças conhecidas",
O panóptico, de certa forma, é a reatualização moderna declara Serullaz (1965, p. 12). Caracterizando-se pela busca da
do Mito da caverna, com o agravante de não ser mais u m sensação visual, o cenário da pintura impressionista começa
metáfora da prisão dos homens em u m m u n d o de sombras e e termina na superfície da tela, isto é,
aparências, mas de ser a sua metonímia. Agora, a consciência Não se trata de representar algo que está fora e trazê-lo para
da realidade obtida pela liberdade cede lugar à consciência da dentro do quadro, mas de transportar a consciência imediata
liberdade aprisionada pela realidade da prisão. Bentham, tal da percepção de uma imagem para o gesto pictórico. Daí o
como Platão acerca da alegoria da caverna, vê no panóptico abandono da técnica do impasto pelas pinceladas curtas e
u m instrumento pedagógico orientado pelo olhar da disci- imprecisas, tão incertas e fugidias quanto as luzes refletidas,
seja pelas mudanças atmosféricas, seja pelo simples passar das
plina e vigilância. O panóptico, mais do que u m modelo de
horas e a mudança da posição do sol. O que alcança o olhar
prisão, é u m sistema de disciplina e vigilância cujo efeito é
não são linhas, traços ou manchas de cor, mas relações cro-
produzir no indivíduo uma sensibilidade vigiada pelo exer- máticas que serão transferidas através da pintura para a tela.
cício do olhar. Nessa perspectiva, o processo de construção (DUARTE, 1988, p. 248)
do indivíduo moderno corresponde à afirmação de uma nova
O que o impressionismo nos fornece são paisagens
organização dos sentidos e das emoções.'
como impressões da realidade. As experiências impres-
Paralelamente, o Impressionismo nas artes plásticas se
sionistas realizadas na série áA Catedral, como fez Monet
consolida como u m movimento moderno par excellence.
(1840-1926), são bastante expressivas dessa estética visual.
Efemeridade, velocidade, individualidade, são algumas das
Contudo, sobrepondo-se ao instante fixado pelo instante da
características da modernidade e que serão incorporadas
paisagem, a eficácia da percepção visual é garantida pelo jogo
pelo Impressionismo. A revolução estética introduzida pelo
das cores, luminosidade, movimento, enfim, do pontilhismo
impressionismo acentua sobremaneira o sentido do olhar.
e das pinceladas rápidas inscritas nas telas. Nesse processo,
"O olho impressionista é, na evolução humana, o olho mais
o Impressionismo abre outros espaços ã visão quando busca
inspiração na cultura oriental. Pode-se dizer mesmo que certo
' Não é nosso propósito aqui extrair todas as consequências teóricas e me- exotismo toma conta dos impressionistas a ponto de levar
todológicas que esse sistema de vigilância implica nas relações sociais, mas alguns artistas a procurá-lo bem longe. Haja vista o caso de
tão somente ressaltar seu caráter paradigmático no cenário das sociedades Paul Gauguin (1848-1903) que, passou a viver no Taiti, em
modemas do século XIX/XX. De fato, o panóptico parece atualizar-se,
função de dificuldades financeiras, bem como movido pelo
como .sugeria Bentham, em várias áreas da vida social sendo, sem dúvida,
sua forma mais acabada os sistemas de circuito interno de shopping centers, entusiasmo das inovações impressionistas. Em entrevista de
aeroportos, lojas de departamento. Mas não faltam também sugestões, críti- 1895, Gauguin (1982, p. 8) explica sua aventura ao Taiti,
cas a esse sistema, tanto que 1984, romance de George Orwel (1903-1950), narrada em Noa Noa:
foi transformado em filme, o que mais se aproxima de uma sociedade da
vigilância, "totalitariamente" observada pelas "teletelas" do "Grande Irmão" Uma vez fui seduzido por essa terra virgem e pela sua raça
(BigBrother). Aqui, a análise do Processo civilizador, de Elias, converge com primitiva e simples. Lá voltei e tornarei a voltar. Para fazermos
as análises da Arqueologia do saber, de Michel Foucault, particularmente, algo novo, é preciso regressar ãs origens, ã humanidade na
nos trabalhos sobre o surgimento das prisões e das clínicas. Por meio desses infância. A Eva da minha escolha é quase u m animal. For isso
"objetos" Foucault re.ssalta a importância do olhar no processo de discipli- é casta, apesar de nua. Todas as Vénus expostas no Salão são
narização e produção do "Eu" nos indivíduos modernos. indecentes, odiosamente lúbricas [...].

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COLEÇÃO " T E M A S * EDUCAÇÃO" o SENTIDO DA ETNOGRAFIA

Aqui a concepção das sociedades primitivas como "infân- Pode se começar com o sentido da viagem realizada em nos-
cia da humanidade", segue menos uma visão evolucionista so próprio mundo, "quando, saindo de u m prédio do século
predominante no século XIX do que uma visão primitivista X V I I I , entramos em outro do século X V I , precipitamo-nos
valorizada nas artes plásticas. Também a antropologia nas- numa vertente do tempo...", dirá Benjamin (1994, p. 209).
cente não fugiria ã lógica do evolucionismo social, funcio- Será andando pelas ruas de nossas cidades que realizamos
nando muitas vezes como "olhos do império" em territórios o sentido das viagens e da aventura no m u n d o cotidiano.
coloniais. Esse processo promoveu mesmo uma nova maneira Por outro lado, será viajando para o distante mundo das
("científica") ao homem europeu de olhar para as colónias sociedades primitivas que os antropólogos objetivam "res-
da África, da Ásia e da América.'' gatar" tais culturas, registrando seus costumes e hábitos,
ameaçadas de desaparecimento em face das transformações
O fato é que a partir do século XIX, com o nascimento
urbanas do século XIX deflagradas pelo "inelutável" processo
das primeiras escolas de antropologia, na França, na Inglaterra
civilizatório ocidental.
e nos Estados Unidos, aos poucos os antropólogos passaram
a participar de viagens de expedições com a finalidade de Se fizermos uma pequena viagem às origens da antropo-
se estudar determinadas sociedades primitivas como, por logia moderna, vemos uma estreita relação das expedições
exemplo, a pesquisa sobre populações do Canadá Ocidental etnológicas e missões científicas com os movimentos artísticos
organizada pela British Association for the Advancement of e culturais de fins do século XIX e início do século XX, na -
Sciences, em 1884, o u então a famosa Expedição ao Estreito constituição da disciplina. Isso fica claro a partir das análises
de Torres, em 1898. Simbolicamente, essas expedições mar- de James Clifford (1994, p. 73) sobre literatura e etnografia e/
cam o nascimento da antropologia moderna. ou sobre as "coleções de artes" e "coleções etnográficas" as
quais, diz o antropólogo, "a história das coleções (não limitada
A arte de viajar aos museus) é fundamental para uma compreensão da maneira
como os grupos sociais que inventaram a antropologia e a
A antropologia não é uma disciplina ligada somente ao arte moderna apropriaram-se das coisas exóticas, dos fatos e
olhar, também as viagens são de fundamental importância significados". O que se observam nessas histórias de apropria-
na definição de seu campo epistemológico. Os relatos de ções não são somente apropriações das coisas exóticas, mas,
viagens e as descrições de costumes culturais realizados por sobretudo, u m processo de "invenção do exótico".^
viajantes, colonizadores, missionários, militares, diplomatas,
Na França, o "exotismo" também representou u m estímu-
etc. estão na origem da disciplina. São os registros etnográ-
lo para muitas atividades ligadas ao surrealismo e ã nascente
ficos de uma época e/ou de uma sociedade e, como tal,
etnografia moderna. A criação do Instituí d'Ethnologie, por
representam fontes primárias de informação histórica para
Mareei Griaule, Mareei Mauss e Lucien Levy-Bruhl em 1925, e
os estudos de antropologia.
do Musée de LHomme, em 1934, até sua inauguração em 1938,
A viagem faz parte do éthos antropológico, desde que
se veja nela não só u m deslocamento n o espaço, mas tam-
b é m no t e m p o e na hierarquia social, propõe Lévi-Strauss. A maneira como os museus dispunham seus objetos de artes e artefatos
etnográficos no século XIX, sob muitos aspectos, contribuiu sobrema-
neira para uma visão "exótica" do "outro". Na medida em que os objetos
Os sistemas de classificação da história natural são o melhor exemplo coletados eram transferidos de seu contexto cultural específico para os
de um novo olhar que se desenvolvia desde o século XVIII, e que no museus, onde eram organizados com base em sistemas de classificação
século XIX, será incorporado pela antropologia. da história natural, eles sofriam um processo de "objetificação".

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COLEÇÃO " T E M A S & EDUCAÇÃO' o SENTIDO DA ETNOGRAFIA

por iniciativa de P. Rivet, a revista Docament, editada expressa o ideal de objetividade na medida em que reduz o
por Georges Bataille desde fins dos anos 1920 e a famosa mundo visível a u m esquema abstrato de funcionamento. A
Missão Dakar-Djibouti entre 1931-1933, ainda que repre- influência d o primitivismo pode ser vista no quadro de Pablo
sentassem esforço académico orientado pelo humanismo Picasso (1881-1973) Les mademoiselles d'Avignon (1907),
de uma ciência em formação, não conseguiram fugir com- considerado o deflagrador do movimento.**
pletamente à encenação do exótico inscrito no "surrealismo Nos Estados Unidos, até certo p o n t o , as coisas não
etnográfico". De acordo c o m Clifford (1998, p. 160), o são m u i t o diferentes. Pode-se identificar certo espírito
Musée de L'Homme, forneceu u m m o d o de representação "romântico primitivista" na "antropologia apolínea" (assim
mais consoante c o m os moldes da ciência, embora tenha batizada por Stocking Jr.) de Ruth Benedict, Edward Sapir,
permanecido "congruente, em importantes aspectos, c o m Robert Redfield, Margareth Mead e outros. Os Estados U n i -
o surrealismo etnográfico". Também o aparecimento d o dos viviam u m ambiente de questionamentos intelectuais
Collège de Sociologie, em fins dos anos 1930, cujo propó- e performances culturais como as experiências dadaístas
sito era estabelecer o rigor científico c o m as experiências de Mareei Duchamp (1887-1968) em 1917, em Nova Y o r k .
pessoais dos etnógrafos, fez acentuar os ecos d o surrea- Paralelamente, grupos de artistas como "Os O i t o " , que
lismo na etnografia francesa em formação. T u d o isso fica pintavam cenas da vida urbana, ou o grupo liderado por
claro nos textos etnográficos, paradigmaticamente represen- Alfred Stieglitz (1864-1946), denunciando os efeitos perver-
tados pela "etnografia surrealista" de Michel Leiris em África sos da industrialização sobre as individualidades, o u ainda
fantasma; ele que seria u m dos principais protagonistas a realização das exposições de artes modernas em 1913,
do Collège. De u m m o d o geral, a experiência etnográfica o "Armory Show", u m evento de caráter internacional, são
francesa nos anos 1920/1940, seria profundamente marcada alguns dos exemplos de efervescência cultural no cenário
pelo surrealismo. O resultado é uma representação etnográ- norte-americano da primeira década do século XX. Nos anos
fica em que se acusa a presença da "collagé\o é, uma 1930, seria a vez d o "realismo social", movimento artístico
montagem na qual os elementos, não estando totalmente que chegou a ser incorporado pelo governo em anos de
integrados, não atingem o mesmo efeito realista ã maneira depressão, fornecendo emprego a artistas para decora-
do "realismo etnográfico" de Malinowski. rem edifícios públicos.' O p o n t o em c o m u m que parece
De fato, o movimento histórico da antropologia parece orientar esses movimentos artísticos b e m como a crítica
em sintonia com os movimentos que se desenvolveriam nas
artes plásticas. Assim, no exato momento em que o impres-
" o cubismo representou uma experiência renovadora nas artes na medida
sionismo começa a ganhar destaque na pintura, também os em que rompeu com a representação da arte como imitação da nature-
antropólogos se lançam ao campo, nas sociedades primitivas. za. Se, inicialmente, isso é visto como estímulo ã liberdade de criação
Na medida em que a antropologia se desenvolve, o olhar dos do artista, nem por isso deixou de influenciar a antropologia nascente
artistas muda de foco com as experiências d o cubismo. Anna que procurava desenvolver rigorosos e objetivos modelos científicos de
Grimshaw traça u m paralelo entre o trabalho etnográfico do análise e acabou encontrando inspiração na proposta de geometrizaçào
da pintura cubista. Esse movimento também influenciaria Lévi-Strauss no
antropólogo inglês Rivers e o nascimento do cubismo no
início de sua carreira.
início do século XX. As "árvores genealógicas" dos estudos de
' Não se pode esquecer ainda a experiência surrealista em solo nova-
parentesco têm como referência o diagrama (representação iorquino acompanhada de perto por Lévi-Strauss. A ideia de Nova York
gráfica de fatos ou relações que expressam a organização e o funcionando como um cronotopo, sugerida por James Clifford, dá bem
funcionamento das máquinas, instituições, etc.) cujo modelo o tom da simultaneidade de experiências culturais nesse momento.

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COLEÇÃO " T E M A S & EDUCAÇÃO'
o SENTIDO DA ETNOGRAFIA

cultural p r o m o v i d a pelos intelectuais da época consiste na As viagens podem ser vistas como experiências relacio-
valorização dos aspectos da vida urbana cotidiana aliada a nadas não só ao deslocamento no espaço e no tempo, mas,
uma crítica da civilização moderna. sobretudo, como experiências do o l h a r . A s s i m , em conti-
Creio que o melhor exemplo dessa crítica ã civilização nuidade a nossa viagem, a observação de uma outra cultura
moderna será fornecida anos mais tarde, p o r Lévi-Strauss, exige do antropólogo, a exemplo dos ritos de passagem, u m
em Tristes trópicos (1919, p . 32), originalmente p u b l i c a d o processo de "educação dos sentidos" no qual o olhar, o ouvir
em 1955. "O que vós, viagens, nos mostrais actualmente e o escrever se destacam no trabalho de campo.
e m primeiro lugar são os nossos excrementos lançados à
face da humanidade" diz o antropólogo. Nessas viagens A educação dos sentidos
pelos "tristes trópicos", nesse " o u t r o " que somos nós, De acordo c o m Roberto Cardoso de Oliveira em O
Lévi-Strauss denuncia não só o f i m d o exótico, mas, de trabalho do antropólogo, o olhar, o ouvir e o escrever repre-
maneira metafórica, o f i m da própria civilização. Como sentam não só três momentos importantes, mas também três
que assumindo uma postura benjaminiana, o antropólo- "faculdades de entendimento" fundamentais no trabalho de
go confere aos trópicos o sentido da "ruína", haja vista a campo do antropólogo. Tanto que se pode sugerir através
sentença lévi-straussiana: " u m espírito malicioso definiu dessas faculdades o sentido da própria constituição histó-
a América como sendo uma terra que passou da barbárie rica da disciplina antropológica. Assim, o olhar designa os
à decadência sem conhecer a civilização" ( p . 89). Triste momentos iniciais de constituição da própria antropologia,
lição a dos trópicos, pois: quando a viagem se torna uma exigência n o deslocamento
do antropólogo para as sociedades primitivas. Com isso,
Ao fim e ao cabo, estou prisioneiro duma alternativa: ora viajante
antigo, confrontado com um espetáculo prodigioso ao qual tudo se legitimava e justificava em parte a própria existência da
ou quase tudo passaria despercebido - ou pior, inspiraria troça disciplina. Mesmo viajando para as distantes sociedades
e desprezo-; ora viajante moderno, correndo atrás dos vestígios primitivas, mesmo que fosse realizando a "observação
duma realidade desaparecida. Fico a pender em qualquer destes participante", o antropólogo garantia a objetividade do co-
; ' dois quadros, e mais do que poderia parecer; porque não serei nhecimento científico por meio de u m olhar disciplinado e
eu quem geme diante de sombras, impermeável ao verdadeiro relativamente distante. O ouvir não está restrito ã prática do
espetáculo que toma forma neste momento, mas para a ob-
trabalho etnográfico, mesmo que tenha no encontro etnográ-
servação do qual meu grau de humanidade não possui ainda
fico do antropólogo c o m o nativo sua melhor possibilidade
a sensibilidade necessária? Dentro de alguns centos de anos,
outro viajante, tão desesperado como eu teria podido ver e que
de realização através do exercício do diálogo. É preciso
não aprendi. Vítima como sou duma dupla enfermidade, tudo ouvir o que o outro tem a dizer, seja ele o nativo da socie-
o que vejo me fere, e censuro-me sem cessar de não observar dade primitiva, seja ele o "nativo" de uma "tribo urbana" nas
o suficiente, (p. 3 8 )

" Uma das coisas que fazem do livro de Lévi-Strauss um marco na antropologia
Embora publicado em fins do século XIX, a crítica cultural de Veblen modema é o fato de ele ultrapassar o projeto biográfico e invadir o campo
(1965), a cultura do "consumo conspícuo" sinaliza para uma visão crítica epistemológico da ciência antropológica. Mas será em tomo do sentido das
da civilização moderna em geral e da cultura norte-americana em parti- viagens que a reflexão de Lévi-Strauss oferece uma significativa contribui-
cular. De certa forma, Veblen parece antecipar muito do que viria a ser ção ao entendimento da etnografia. A etoografia deve ser vista como uma
a crítica de Sapir em Culture, genuine and spourius (1924). Também é experiência complexa e profunda que envolve tanto o trabalho de campo
oportuno lembrar-se de Malestarna civilização, de Freud (1936). stricto sensu quanto o processo de escrita do texto etnográfico.

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COLEÇÃO " T E M A S & EDUCAÇÃO" o SENTIDO D A ETNOGRAFIA

sociedades contemporâneas e, sobretudo, quando o "outro" é e são mesmo a maior parte; vivem longe da cidade nas mon-
u m membro da "tribo académica". De fato, no momento em tanhas. As caudas são grossas como as dos cães; têm muitos
que a antropologia passa a anunciar o desaparecimento das unicórnios, muita caça e muitas aves (s.d., p. 124). Ou ainda, a
sociedades primitivas, os antropólogos viram-se obrigados a respeito da ilha de Madagáscar, relata Marco Polo (p. 142)
"dar ouvidos" a outras vozes nem sempre vindas dos lugares [...] dizem alguns [mercadores] que há lá pássaros fabulosos e
mais longínquos da terra, às vezes muito próximas, vindas do que estes pássaros aparecem em certa época do ano; mas não
interior de sua própria sociedade. Escrever, Geertz já o disse, são feitos como se diz por cá, ou seja, meio pássaro meio leão,
é o que o antropólogo faz. O antropólogo escreve. Haja vista mas são feitos como as águias e são grandes como contarei.
que uma das preocupações constantes do próprio saber/fazer Apanham o elefante e levam-no pelo ar e depois deixam-no
cair e esse fica todo desfeito e depois comem-no. , , < . •.
da antropologia na atualidade é justamente com a escrita,
com o próprio texto etnográfico. Assim, repensar a escrita Em termos convencionais, é difícil estabelecer e saber
da antropologia é repensar própria trajetória da disciplina, aqui onde termina a ficção e onde começa a realidade. Talvez
suas práticas, suas estratégias, seus objetos, seus enunciados; seja mesmo impossível e, provavelmente, isso nem é mesmo
no dizer de Foucault, é repensar sua formação discursiva. o mais importante.
Com efeito, é fazer u m exercício de autorreflexào, exercício
À pergunta "como provar a existência dos impérios po-
hermenêutico, o qual nem sempre os antropólogos dizem
derosos, de suas riquezas infinitas, dos monstros inconcebí-
coisas novas, mas nem por isso menos inovadoras.
veis?", presentes nos relatos dos viajantes, Guillermo Giucci
Muitas vezes o sentido do "ouvi dizer..." constitui-se na (1992, p. 98), responde o seguinte:
única e principal fonte de referências das informações con-
O aventureiro recorre a uma estratégia narrativa frequente nos
tidas nos relatos de viagens, o que tem contribuído para a
discursos do maravilhoso: a paralipse. Aparenta omitir as des-
proliferação de representações exóticas de povos e culturas
crições das coisas inconcebíveis, que indiretamente sugere com
espalhados pela terra desde os gregos. O historiador Heródoto frases como "o que ali vi não vos poderia contar", "não tem par
realiza u m trabalho até certo ponto próximo daquilo que os neste mundo". Simultaneamente, liberta a imaginação do leitor
antropólogos designam por etnografia. Enquanto viajante do e ressalta a "honestidade" do narrador. Essa defesa da ficção
mundo grego, Heródoto relata várias vezes em sua História se completa com distinções que separam o visto do ouvido.
que ouviu dizer entre os habitantes de u m determinado país Em várias passagens Mandeville não assevera, e sim transfere
que as coisas se passaram daquela maneira; em seguida passa a responsabilidade. O uso de fórmulas tais como "dizem", "eu
ouvi dizer", "porque eu não estive ali" garante, por via indireta, a
a relatá-las. Em outras passagens ele deixa margens a dúvidas
verdade dos enunciados anteriores, destaca o empirismo do tes-
quanto aquilo que acredita e não acredita a partir do que lhe
temunho ocular e constitui critério de objetividade. Legitimação
contam. A verdade é que as narrativas ou relatos de viagens pela autoridade, paralipse, distinção entre o visto pessoalmente
são recheados de curiosidades, maravilhas e imagens difíceis e o ouvido de outros, as diversas estratégias utilizadas ao longo
de se acreditar, quiçá provar. Mas, apesar de nos apresentar, do texto contribuem para a manutenção do inadmissível da
às vezes, seres que parecem ter saído de uma ficção científica, narração dentro dos limites da verossimilhança.
como nos mostram as narrativas de viagens de Marco Polo
pelo Oriente, elas são significativas na medida em que revelam Se os relatos de viagens não atestam a verdade dos fatos,
o imaginário social de uma época. Assim é que, no Reino de atestam, por outro lado, a realidade do imaginário. Como diz
Lambri, diz o viajante veneziano: "Neste reino há homens que Alfredo Bosi (1993, p. 176), "é próprio da imaginação histó-
têm uma cauda com u m cumprimento de mais de u m palmo. rica edificar mitos que, muitas vezes, ajudam a compreender

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C O L E C A O "TEMAS & EDUCAÇAO"
o SENTIDO D A ETNOGRAFIA

antes o tempo que os forjou do que o universo remoto É que nos relatos antropológicos busca-se dialogar com certa
para o qual foram inventados". Nesse sentido, tais relatos problemática, enquanto na viagem encontra-se uma série de
são reveladores muito mais de certo imaginário social do aventuras (episódios inesperados que permeiam o texto e pro-
que efetivamente de uma realidade que se pode dizer "re- vocam a imaginação do leitor); nela, o narrador é um autor,
almente" verdadeira. gozando como tal a liberdade individual de alterar a ordem de
certos eventos e até mesmo da realidade que está visitando. É
Os relatos de viagens nos ajudam a compreender não
essa possibilidade que engendra o sentido da aventura e mantém
só os limites entre o olhar, o ouvir e o escrever inscritos nas
o clima de exotismo. Assim, as passagens mais emocionantes do
narrativas etnográficas, mas também as diferenças entre as
seu texto são aquelas nas quais as coisas "acontecem" com ele.
narrativas dos viajantes e a dos antropólogos profissionais. A
etnografia realizada pelo antropólogo no trabalho de campo A etnografia antropológica parte de u m problema que
difere das etnografias desenvolvidas pelos viajantes ao menos orienta o olhar do antropólogo ao mesmo tempo que rela-
em dois pontos básicos. Primeiro, a etnografia realizada pelos tiviza o sentido do "ouvi dizer". Com os olhos e os ouvidos
viajantes são narrativas de viagens cujo objetivo maior consiste disciplinados pelas exigências d o trabalho científico, no
em descrever a experiência da própria viagem. Ainda que campo o que é visto e ouvido é fundamental para a inter-
em antropologia a viagem seja fundamental porque é parte pretação antropológica e torna-se fonte de legitimidade e
da profissão, pois o antropólogo ao deparar-se com o "ou-
objetividade. A diferença em relação ã etnografia dos relatos
tro", o diferente, o exótico, ganha em experiência aquilo que
de viagens é que, o que é puramente episódico ou exótico,
também vivem os viajantes, a verdade é que as monografias
fica em segundo plano na monografia antropológica, e em
antropológicas suspendem a aventura da jornada e priorizam
seu lugar busca-se atingir as estruturas e os sistemas sociais.
o momento de chegada quando muito o momento de saída
Por isso, quando Evans-Pritchard estuda os nuer, mais do
de suas sociedades em estudo. Segundo, a etnografia realizada
pelo antropólogo em seu trabalho de campo é motivada pela que apreender os aspectos exóticos da cultura, previamente
colocação de u m problema, isto é, o antropólogo busca res- orienta suas observações de campo ao estudo do sistema
ponder uma questão ou problema previamente levantado por político daquela sociedade o u povo; o mesmo aplica-se
ele e/ou sugerido por outros autores. Assim, o que caracteriza a Raymond Firth quando estuda os tikopia, o u melhor, a
o trabalho etnográfico do antropólogo é a compreensão e a estrutura social daquela comunidade; ou ainda a Bronislaw
interpretação do padrão de u m sistema ou estrutura social. Malinowski quando estuda os trobriandeses através de seus
De acordo com Roberto DaMatta (1993a, p. 39), a diferença sistemas de trocas condensado no ritual do kula.
entre os relatos de viagens da etnografia antropológica pro-
Uma reflexão antropológica sobre os significados do
priamente dita
olhar e do ouvir no processo de constituição do conhe-
cimento científico nos chama a atenção para u m duplo
" E bem verdade que muitos antropólogos reconhecem que tal problemática aspecto: primeiro, os sentidos do olhar e do ouvir assumem
pode ser repensada a partir de sua presença em campo, por exemplo, importância significativa na prática etnográfica do trabalho
o caso clá.ssico de Evans-Pritchard (1985, p. 84) que sugere priorizar o de campo do antropólogo na medida em que problematiza o
que encontra na sociedade que escolheu esmdar, pois o antropólogo próprio processo de conhecimento do campo antropológico;
"trabalha também dentro dos limites impostos pela cultura do povo que
segundo, a maneira como esses sentidos são revelados
investiga. Se são pastores nómades, tem de estudar o nomadismo pastoril.
Se andam obcecados pela feitiçaria, tem de estudar a feitiçaria. Não tem
encontra-se inscrita na escrita do texto etnográfico ou da
outra saída senão a de seguir os padrões culturais locais". narrativa monográfica realizada pelo antropólogo, portanto,

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COLEÇÃO " T E M A S & EDUCAÇÃO" o SENTIDO D A ETNOGRAFIA

O campo do conhecimento antropológico está relacionado aspirante a antropólogo. Então, qual é a especificidade do
com a forma da escrita. trabalho de campo?
A escrita antropológica ganhou nos últimos tempos gran- Não existe receita para se fazer trabalho de campo,
de relevância nas reflexões sobre o fazer da antropologia. É embora tenham sido produzidos vários manuais ou guias
por meio da escrita que, em última instância, o antropólogo de estudos que buscam orientar o "olhar do etnógrafo" d u -
organiza as culturas que estuda e, também, a sua própria. rante o trabalho de campo. São exemplares, nesse caso, o
Como nos lembra o antropólogo Roy Wagner, a cultura é uma Guta prático de antropologia, publicado pela primeira vez
"invenção" cuja função principal é a de produzir u m sentido, em 1874, preparado por uma comissão do Real Instituto de
tornar inteligível nossas ações e representações, auxiliando Antropologia da Grã-Bretanha e da Irianda, e o Manual de
no processo de compreensão das nossas experiências sociais etnografia, de Mareei Mauss, originalmente publicado em
e das dos outros. Nesses termos, cultura é uma categoria do 1 9 4 7 . A título de exemplo, na introdução do Guia prático
pensamentos antropológico. encontramos a seguinte advertência:
Com variados graus de liberdade, o olhar, o ouvir e o Os amadores sem adestramento antropológico, que se interes-
escrever guardam uma estreita relação com o éthos científico sam pelas áreas em que vivem e desejam dedicar suas horas
na medida em que são informados e orientados pelos paradig- de lazer à observação antropológica, tendem a presumir-se
isentos de preconceitos. Isto, contudo, está longe de ser exato;
mas, pelas teorias e pelos métodos da disciplina antropológica.
todo indivíduo é o produto de uma tradição cultural e de uma
Assim a realidade passa a ser vista sob u m certo prisma, as
educação particular e, por isso mesmo, já está social e psicolo-
pessoas são ouvidas com mais atenção, a escrita inscreve o
gicamente condicionado. A menos que esteja cientificamente
dito por meio da interpretação antropológica. Em suma, sem treinado, sua observação será, sem dúvida, prejudicada por
u m olhar, u m ouvir e uma narrativa reflexiva que caracteriza atitudes mentais preconcebidas. Além disso, é tão comum
a observação antropológica, capaz de dar vida e voz a u m considerarem-se "naturais" os hábitos e costumes normais do
"outro", o antropólogo corre o risco de não superar a "teoria ambiente cultural da pessoa, que o observador pode ser levado
nativa" nem de superar-se em seu etnocentrismo. a julgar indignas de registro algumas formas de comportamento
semelhantes, e anormais quando acentuadamente diferentes do
que é costumeiro em sua própria cultura. Isto ocorre sobretudo
Uma experiência indisciplinada
quando se trata de ideias morais e religiosas. E precisamente
Se, inicialmente, o trabalho de campo representou para contornar esses obstáculos que se elaboraram as notas e

uma oportunidade de se ultrapassar os limites teóricos e problemas deste volume, assim como para indicar as linhas de
investigação que merecem ser seguidas e o método de obter e
metodológicos impostos pela "antropologia de gabinete" (o
registrar os fatos pertinentes. (REAL..., 1973, p. 46)
antropólogo não vai ao campo), na medida em que abriu
a possibilidade de se estudar in loco a vida, os costumes, O trabalho de campo é sempre uma "experiência indis-
os mitos, os ritos, as formas de estruturação e organização ciplinada", muito embora desde a etnografia de Malinowski
das sociedades primitivas, cujo risco eminente de desapare- realizada com os trobriandeses do Pacífico Ocidental, entre
cimento f o i alertado por vários antropólogos desde o início os anos de 1914-1915 e 1917-1918, institucionalizando a
do século passado, com o tempo tornou-se uma quase exi- observação participante no campo da antropologia, os an-
gência na produção de conhecimento e desenvolvimento tropólogos posteriores passassem a seguir certo "modelo
da própria disciplina b e m como passou a designar uma malinowskiano" de fazer etnografia. A famosa descrição de
espécie de rito de passagem (iniciação), em especial, para o sua chegada ãs ilhas Trobriand, já revela as dificuldades a

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COLEÇÃO " T E M A S & EDUCAÇÃO" o SENTIDO DA ETNOGRAFIA

serem enfrentadas e a falta de controle completo quando se conquistaram os noticiários dos mass media. U m bom exemplo
está no campo: é o sucesso editorial do antropólogo Carlos Castaiieda (1935-
Imagine-se o leitor sozinho, rodeado apenas de seu equipa- 1998) nos anos I 9 6 O com A erva do diabo, livro no qual narra
mento, numa praia tropical próxima a uma aldeia nativa, vendo suas experiências com alucinógenos pelas mãos do bruxo D o n
a lancha ou o barco que o trouxe afastar-se no mar até desa- Juan, no México, e ao qual se seguiram outros.'* No entanto, o
parecer de vista. Tendo encontrado u m lugar para morar no trabalho de campo não é garantia, por si só, de u m prestigiado
alojamento de algum homem branco - negociante ou missioná- exotismo, no sentido de uma aventura romântica no estilo
rio - você nada tem para fazer a não ser iniciar imediatamente cinematográfico de Indiana Jones. A o contrário, mais próximo
seu trabalho etnográfico. Suponhamos, além disso, que você
de Robinson Crusoé, o antropólogo, uma vez longe de casa,
seja apenas um principiante, sem nenhuma experiência, sem
do conforto, da família e dos amigos, vive "dramaticamente"
roteiro e sem ninguém que o possa auxiliar - pois o homem
a solidão, a saudade, o desconforto, o preconceito, a falta de
branco está temporariamente ausente ou, então, não se dispõe
a perder tempo com você. Isso descreve exatamente minha
privacidade. Evans-Pritchard (1978a, p. 18) em seu esmdo
iniciação na pesquisa de campo, no litoral sul da Nova Guiné. sobre os nuer, povo nilótico, do Sudão, relata:
Lembro-me bem das longas visitas que fiz ãs aldeias durante
Os Nuer são peritos em sabotar uma investigação e, enquanto
as primeiras semanas; do sentimento de desespero e desalento
não se morou com eles por algumas semanas, ridicularizam
real com os nativos e deles conseguir material para a minha
firmemente todos os esforços para extrair os fatos mais corri-
pesquisa. Passei por fases de grande desânimo, quando então
queiros e para elucidar as práticas mais inocentes. Na terra dos
me entregava à leitura de um romance qualquer, exatamente
zande, obtive mais informações em alguns dias do que obtive
como um homem que, numa crLse de depressão e tédio tropical,
na terra dos Nuer em igual número de semanas. Depois de al-
se entrega ã bebida. (MAUNOWSKI, 1978, p. 19)
gum tempo, as pessoas estavam preparadas para me visitar em
Antes de mais nada, é preciso estar atento às consequ- minha barraca, fumar meu tabaco e mesmo fazer brincadeiras

ências dessa descrição, pois ela anuncia a primeira grande e bater papo, mas não estavam dispostas nem a me receber
em seus abrigos contra o vento, nem a discutir assuntos sérios.
barreira a ser ultrapassada no trabalho de campo, isto é, o
Perguntas sobre costumes eram bloqueadas com uma técnica
fato de que muitas vezes ele é visto como "uma experiência
que posso recomendar aos nativos que são incomodados pela
aureolada com os prestígios do exotismo", denuncia Copans
curiosidade dos etnólogos.
(1981, p. 59). Exotismo esse que muitas vezes assume feições
de u m mito.'^ Não se nega a importância do trabalho de cam- Evans-Pritchard chega a dizer que após se viver algum
po, seu caráter extraordinário e, sem dúvida, a experiência tempo com os nuer, sofrendo toda espécie de sabotagem, logo
exótica que ele encerra, contudo o significado mítico da aven- o antropólogo passa a sofrer de "nuerose", pois quase se fica
tura malinowskiana está longe de ser plenamente realizado e louco com eles. Mais do que exceção, esses sentimentos são
ritualizado pela maioria dos antropólogos. É bem verdade que constitutivos da rotina do trabalho de campo e confirmam o
vários antropólogos e várias comunidades estudadas por eles seu lado extraordinário e, ao mesmo tempo, o mais humano.
ganharam notoriedade na medida em que saíram do completo Esses aspectos designam aquilo que o antropólogo Roberto
anonimato para as páginas especializadas ou simplesmente DaMatta (1987, p. 169) chama "antbropological blue^':

" Evidentemente que o sucesso editorial de Castaiieda se deve ao seu


" Em parte, muito do exotismo que povoa o trabalho de campo deve-se estilo literário, mas, sobretudo, ao movimento da contracultura nos
ã carreira e aos trabalhos de campo de vários antropólogos, sendo a anos 1960. Contudo, isso não elimina o brilho exótico da experiência
experiência de Malinowski uma espécie de "mito de fundação". antropológica do autor.

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Seria possível dizer que o elemento que se insinua no trabalho


I CAPÍTULO MI
de campo é o sentimento e a emoção. Estes seriam, para pa-
rafrasear Lévi-Strauss, os hóspedes não convidados da situação
CULTURA C O M O TEORIA E MÉTODO
etnográfica. E tudo indica que tal intrusão da subjetividade e da
carga afetiva que vem com ela, dentro da rotina intelectualizada
da pesquisa antropológica, é u m dado sistemático da situação.
Sua manifestação assume várias formas, indo da anedota infame
contada pelo falecido Evans-Pritichard, quando diz que estudando
os Nuer pode-se facilmente adquirir sintomas de "Nuerosis", até
as reações mais viscerais, como aquelas de Lévi-Strauss, Chag-
non e Maybury-Lewis quando se referem à solidão, à falta de
privacidade e ã sujeira dos índios.

O trabalho de campo é parte de u m campo epistemológico


no qual estão envolvidos não só o trabalho da escrita, mas Cultura e educação
também o significado do ofício do etnólogo em campo. Haja
vista o que nos diz o antropólogo Evans-Pritichard (1978b, p. A história do conceito de Cultura remonta ao pensa-
305), sobre o significado de suas experiências etnográficas em mento greco-latino clássico. Para os romanos, cultura (do
outra cultura: "eu diria que aprendi mais sobre a natureza de latim colere = cultivar) significava o ato de cultivar o espírito
Deus e nossa condição humana com os nuer do que com tudo (cultura animt). Assim, o cuidado com as plantas e o cultivo
que me ensinaram em casa". E, acrescenta Geertz (2001, p. 43), da terra (agricultura), com os deuses e o sagrado (culto),
"o trabalho de campo é uma experiência educativa completa. estendia-se também às crianças (puericultura), no sentido
O difícil é decidir o que f o i aprendido". Não há como negar amplo de educação (Paideia). Durante o período medieval,
o valor dessas lições antropológicas a todo aquele que queira a forte presença da religião vinculou a cultura ao processo
aprender u m pouco mais da sua própria sociedade e cultura. de formação das almas.
Para tanto precisamos sair delas, mesmo de modo imaginário, A partir do século X V I , o conceito de cultura passou a
se quisermos realmente compreendê-las e, assim, quem sabe, articular-se, ora positiva ora negativamente, com o conceito
podermos exercer a arte de viajar e praticar o ofício do olhar de civilização. Inicialmente, o conceito de civilização referia-
antropológico. Nesse sentido, devemos lançar u m olhar so- se ao que era "civil", entendido como ordem social composta
bre o fazer antropológico a f i m de se observar até que ponto de homens educados e polidos. Mas não demorou muito
aquilo que dizem que fazem está em sintonia com aquilo que, para que o termo civilização passasse também a designar u m
efetivamente, fazem quando fazem antropologia. Então, à estágio ou uma etapa do desenvolvimento histórico ocidental
pergunta de Geertz, o que o antropólogo faz(?): é etnografia. equivalente a progresso. Desde então, ao aproximar-se do
Mais do que uma resposta pronta e acabada, representa u m conceito de civilização, cultura passou a exprimir os aspectos
esforço de problematização em tomo do pensamento e da do desenvolvimento material da sociedade ocidental modema.
prática antropológica. Nesse contexto, cultura era entendida como expressão livre
Igual atenção deve ser dispensada ao conceito de cultura; da razão e da vontade esclarecida, algo separado do reino na-
objeto do próximo capítulo. tural, do mundo das causas e das leis mecânicas que o regem.
Operava-se, a partir desse momento, uma distinção entre a
matéria e o espírito, inversa ao pensamento greco-romano.

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Rompia-se assim c o m a ideia de uma harmonia cósmica, com a formação do indivíduo. Assim, na perspectiva desen-
na qual os contrários estabeleciam a harmonia d o m u n - volvida por Norbert Elias, o processo civilizatório pressupõe
do, idealizada pelos gregos. De acordo c o m Muniz Sodré a formação de u m amplo e complexo sistema cultural a partir
(1983, p. 21-22). do qual se desenvolve uma nova sensibilidade. Trata-se de
A moderna (pós-renascentista) noção de cultura é retomada u m processo de domesticação das paixões e dos costumes
de paideia, gerada pelos sofistas no século IV a . C , com o envolvendo desde as maneiras de sentar-se ã mesa, passando
sentido de educação do homem, enquanto indivíduo-cidadão, pelos hábitos de higiene e privatização do sexo, ao desenvol-
ajustado à Polis. A paidéia - conjunto da poesia, artes, ciências, vimento de regras de sociabilidade altamente desenvolvidos
leis - , dos solistas equivale ao que os romanos chamariam na forma da etiqueta social durante as sociedades de corte
depois de cultura animi, o processo de formação humanística
do Antigo Regime na Europa. O resultado será, em longo
do indivíduo. A noção, vê-se, faz parte de uma ratio que não
prazo, a produção de u m novo homem, o homem moderno
é mais a razão cósmica de Heráclito, mas a razão do Estado,
medida ideal de toda educação para os sofistas. Poder de e civilizado, que, além de ter em mente o desenvolvimento
Estado e ação pedagógica constituem agora o campo cultural, aguçado das regras de comportamento na vida social, também
isto é, compõem as condições de admissão de um fato como desenvolve uma aguda autoconsciência de si e autocontrole
pertencente à paideia. de suas emoções e paixões em público. No conjunto, civili-
zação expressa não somente o desenvolvimento intelectual
Coube a Erasmo de Rotterdam (1467-1536) o desenvol-
ligado às boas maneiras na educação e na formação do ho-
vimento da ideia de "civilidade" como expressão de bons
mem, mas também o desenvolvimento material da sociedade
costumes, regras de comportamento, enfim, etiqueta social,
em direção ao progresso. Assim, civilização é u m conceito
preconizando o início da pedagogia infantil em sua época.
que será empregado para "expressar a consciência que o
Embora a criança não fosse desconhecida e estranha ao
Ocidente tem de si mesmo", salienta Elias (1990, p. 23). Em
imaginário medieval, Philippe Aries observa em sua História
outras palavras, todo esse processo civilizatório de consti-
social da criança e da família que "no século XV surgiram
dois tipos novos de representação da infância: o retrato e o tuição de uma nova sensibilidade e produção de u m novo
putto. A Criança [...] não estava ausente da Idade Média, ao homem corresponde, na verdade, ao processo de consolida-
menos a partir d o século XIII, mas nunca era o modelo de ção da racionalidade no mundo moderno. Mas, em oposição
u m retrato, de u m retrato de uma criança real..." (1986, p. 56). ao conceito de civilização tal como os ingleses e franceses
A criança era até então imaginada como anjo ou santo. Não o concebiam, enquanto referência ao progresso alcançado
por acaso, ã descoberta da infância, logo surgiriam as escolas pelo ocidente e pela humanidade, os alemães tomariam para
com ensino laico e divididas por idade, bem como as preo- si a ideia de Kultur, como expressão de orgulho em suas
cupações científico e pedagógicas com o método visando u m próprias realizações e no próprio ser. Norbert Elias resume
melhor processo de conhecimento e ensino-aprendizagem. essa discussão apontando para o fato de que:
Nesse caso é suficiente lembrar os nomes de René Descartes Até certo ponto, o conceito de civilização minimiza as diferenças
(1596-1650) com o seu Discurso do método no campo nacionais entre os povos: enfatiza o que é comum a todos os
seres humanos ou - na opinião dos que o possuem - deveria
da ciência, e Didáctica magna (1657), de Comenius (1592-
sê-lo. [...] Em contraste, o conceito alemão de Kultur dá ênfase
1670), considerado o "pai da pedagogia moderna".
especial às diferenças nacionais e à identidade particular de
A cultura, em sentido amplo do termo, carrega em sua grupos. [...] Enquanto o conceito de civilização inclui a função
história uma estreita associação com a educação e, portanto. de dar expressão a uma tendência continuamente expansionista

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de grupos colonizadores, o conceito de Kultur reflete a consci- tal é o que nos sugere Raymond Williams (1969, p. 18) em
ência de si mesma de uma nação que teve de buscar e constituir
Cultura e sociedade: 1780-1950.
incessante e novamente suas fronteiras, tanto no sentido político
como espiritual, e repetidas vezes perguntar a si mesma; Qual Anteriormente significara, primordialmente, tendência de
é, realmente, nossa identidade?. (ELIAS, p. 2 5 ) crescimento natural e, depois, por analogia, um processo de
treinamento humano. Mas este último emprego, que impli-
O quadro abaixo sintetiza a concepção de identidade cava, habitualmente, cultura de alguma coisa, alterou-se, no
embutida nos conceitos de civilização e cultura, dentro século dezenove, no sentido de cultura como tal, bastante
das tradições inglesa e francesa e, em oposição ã alemã, por si mesma. Veio significar, de começo, um estado geral
respectivamente: ou disposição de espírito, em relação estreita com a ideia de
perfeição humana. Depois, passou a corresponder a estado
Conceitos Tradições Movimentos Concepção geral de desenvolvimento intelectual no conjunto da sociedade.
Mais tarde, correspondeu a corpo geral das artes. Mais tarde
Civilization/ Inglaterra e ainda, no final do século, veio a indicar todo um sistema de
Iluminismo Universal
Civilisation França vida, no seu aspecto material, intelectual e espiritual Veio a
ser também, como sabemos, palavra que frequentes vezes
Kultur Alemanha Romantismo Particular
provoca hostilidade ou embaraço.

Ambas as tradições, desde cedo, contaram com a colabo- Posteriormente, o conceito de cultura ganharia ainda inú-
ração de outros conceitos que, aqui, só podemos indicar sua meros outros significados, ao mesmo tempo em que assumia
relevância. Trata-se dos conceitos de nação e de identidade. diversas distinções teóricas a partir do trabalho analítico de
Epistemologicamente, o conceito de identidade parece estar antropólogos, sociólogos e historiadores como, por exemplo:
cognitivamente em sintonia com o espírito modernista do folclore, cultura subjetiva e cultura objetiva, cultura material
Estado-Nação regido por princípios científicos (abstratos) e cultura não material, cultura erudita e cultura popular,
racionais (consciente) e universais (igualitário), ao passo que cultura de massa e subcultura, etc. Conceito privilegiado no
a cultura remete para os motivos da "cor local", do éthosáe campo da investigação antropológica, a cultura erige-se em
u m povo, do plano das experiências cotidianas, enfim, para o "conceito totêmico", símbolo distintivo da própria antropo-
campo da tradição. Quando aplicados a contextos históricos logia. A cultura, no sentido amplo, significa a maneira total
específicos, descobrimos o quanto é difícil a compreensão de viver de u m grupo, uma sociedade, u m país ou uma pes-
de casos como o da sociedade brasileira cuja influência das soa. No entanto, não se trata aqui de uma defesa da posição
tradições é incontestável.' segundo a qual cultura é tudo. Mas sim a ideia de que, à
exemplo de u m "fato social total", impõe-se a exigência de
Apesar de tudo, o conceito de cultura permaneceu si-
buscar a totalidade do fenómeno cultural, seja a partir das
nónimo de civilização por muito tempo. Mas os inúmeros
relações entre o antropólogo e o nativo, seja nas múltiplas
sentidos atribuídos à cultura no contexto histórico do século
relações que se estabelecem entre a cultura, a economia, a
XIX apontam para a sua abertura de sentido desde então.
política, a religião, etc. No estudo de u m fenómeno cultural
qualquer, tudo deve ser observado, anotado, vivido, anali-
sado, mesmo aquilo que não está (direta e aparentemente)
' o Brasil moderno viverá um dilema entre o ideal civilizacional estabele-
cido pelo iluminismo francês e a experiência de uma realidade cultural ligado ao fenómeno em estudo. Por outro lado, a ideia
que sob muitos aspectos identifica-se com aquela protagonizada pelo de totalidade representa em relação ã cultura uma estreita
romantismo alemão. relação de identidade na medida em que se mostra capaz

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de eliminar as diferenças internas de u m grupo, permitindo disciplinar da antropologia se constituiu historicamente. Se,
traduzir melhor as diferenças entre "nós e os outros" e, assim por u m lado, cultura revela uma concepção teórica sobre
resgatar a nossa humanidade no outro e a do outro em nós a organização, a estrutura e o funcionamento dos sistemas
mesmos. Nesse sentido, a cultura pode ser pensada como simbólicos e de significados produzidos socialmente, por
u m "modo de relacionamento humano com seu real"; sen- outro lado também representa u m m o d o de conhecimento,
do que o real, "resistindo a toda caracterização absoluta, se pode-se dizer, u m método de pensamento, na medida em
apresenta como estritamente singular, como único", salienta que garante a coerência e produz sentido para as ações
Sodré (1983, p. 48-49). Numa definição, em antropologia sociais desenvolvidas no âmbito fenomenológico da vida
social e cultural, "a cultura é u m mapa, u m receituário, u m cotidiana. Quando colocada sob o prisma de algumas das
código através do qual as pessoas de u m dado grupo social principais correntes teóricas do pensamento antropológico,
pensam, classificam, estudam e modificam o mundo e a si cultura adquire uma significativa importância cognitiva e
mesmas" (DAMATTA, 1986, p. 123). Para usarmos de uma epistemológica, como será visto a seguir.
metáfora, a cultura é uma espécie de óculos por meio do
qual enxergamos o mundo, vemos o "outro" e olhamos para Cultura e paradigma

nós mesmos, dando sentido ã nossa existência e ãs nossas Esse exercício de reflexão epistemológica sobre o
experiências de vida. Em resumo: conceito de cultura pode ser realizado a partir da análise
A Cultura é a lente humana por excelência, e ser antropocên- antropológica de Roberto Cardoso de Oliveira proposta
trico é enxergar o mundo através dela. [...] Por conseguinte, em seu livro Sobre o pensamento antropológico, de 1988.
o próprio dessa lente antropocêntrica é ser multifocal. Não Neste trabalho, o antropólogo acompanha o m o v i m e n t o
existe rigorosamente A Cultura, que é apenas um conceito
histórico de constituição da antropologia desde o século
totalizador, um artifício de raciocínio; mas miríades de cultu-
passado até o m o m e n t o atual de sua pós-modernidade.
ras, correspondentes à multiplicidade dos grupos humanos e
os seus momentos históricos. A Cultura é uma abstração, um O resultado é a elaboração de uma matriz disciplinar
artefato de pensamento por meio do qual se faz economia da ( m o d e l o analírico) onde estão representados os principais
extraordinária diversidade que os homens apresentam entre si paradigmas da antropologia moderna:
e com o auxílio do qual se organiza o que os homens têm de
semelhantes. A Cultura é também o que os distingue das demais Matriz disciplinar da antropologia
formas vivas; a capacidade de diferir de seus coespecíficos.
(RODRIGUES, 1989, p. 132) Tradição
Intelectualista Empirista
Tempo
Em suma, antes de se falar em Cultura, c o m letra
maiúscula e c o m o u m f e n ó m e n o único e h o m o g é n e o , II
I
Paradigma estrutural- ,
devemos pensar em culturas, n o plural, enquanto sistemas Sincronia Paradigma racionalista
funcionalista
de significados e símbolos desenvolvidos historicamente. Escola Francesa
Escola Britânica
Afinal, o significado de cultura não é o mesmo de sem-
pre, a compreensão dessa mudança pode ser conquista- IV III
da por meio da comparação entre culturas e da análise Diacronia Paradigma hermenêutico Paradigma culturalista
histórica. Como categoria do pensamento antropológico, 7\ntropologia Interpretativa Escola Norte-Americana
Cultura revela a maneira como o campo do conhecimento

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A leitura do quadro implica o reconhecimento da coexis- contemporânea quando reintroduz no campo das reflexões
tência de duas grandes tradições (intelectualista e empirista) epistemológicas a tríade conceituai da individualidade, subje-
da antropologia conjugada a duas formas polarizadas de tividade e historicidade, além de abrir espaço para a reflexão
temporalidade (sincronia e diacronia). No cruzamento dessas de outros conceitos. Acreditamos ser possível aplicar o mesmo
tradições e temporalidades aparecem quatro grandes escolas princípio analítico ao conceito de cultura.^
marcadas por quatro paradigmas, respectivamente. O primei- Porém, antes de passarmos ã análise dos conceitos de
ro, o paradigma racionalista, cruza os elementos da tradição cultura no âmbito dos paradigmas racionalista, estrutural-
intelectualista e do tempo sincrônico no desenvolvimento da funcionalista, culturalista e interpretativista, faz-se necessário
1II' I Escola Francesa de Sociologia e Antropologia Social; o se- uma pequena nota sobre o sentido dado à cultura no contexto
' m:' gundo, o paradigma estrutural-funcionalista, cruza a tradição dos paradigmas evolucionista e difusionista.
I '* empirista e o tempo sincrônico no desenvolvimento da Escola
Britânica de Antropologia Social; o terceiro, o paradigma C u l t u r a e história
J culturalista, cruza os elementos da tradição empirista e do
O evolucionismo social e o difusionismo cultural repre-
(;;;| tempo diacrónico no desenvolvimento da Escola Culturalista
sentam dois modos de abordagem teórica sobre o desenvol-
!; 11"! Norte-Americana; e por fim, o paradigma hermenêutico, cruza
vimento das sociedades ao longo da história. No entanto,
j -"l a tradição intelectualista e a perspectiva temporal diacrônica,
mais do que explorar o sentido desse suposto desenvolvi-
'" • sendo seu desenvolvimento no cenário dos centros univer-
mento histórico da humanidade, aqui nos interessa observar
J"" sitários norte-americanos bastante recente.^
o quanto tais modos de abordagem teórica valorizam uma
I Roberto Cardoso de Oliveira observa que no processo certa concepção de história e de cultura.*
i< ;-«| de constituição disciplinar da antropologia moderna os pa-
Pode-se começar lembrando a contribuição de Edward
[I "'1' radigmas racionalista, estrutural-funcionalista e culturalista,

S
B. Tylor (1832-1917), na definição da cultura, para o desen-
'Z desempenharam u m papel de normalização científica onde a
volvimento da antropologia. Para ele, "cultura ou civilização,
tomada em seu mais amplo sentido etnográfico, é aquele todo
l*; individualidade, a subjetividade e a historicidade são domes-
complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei,
ticadas, no interior das produções etnográficas. O paradigma
costume e quaisquer outras capacidades e hábitoslidquiridos
hermenêutica provoca uma relativa desordem na antropologia
pelo h o m e m na condição de membro da sociedade" (TYLOR,
^ A cada um desses paradigmas e suas respectivas escolas estão asso- 2005, p. 69). Assim, quando Tylor sugeriu que se visse na
ciados alguns dos nomes mais importantes da antropologia moderna. cultura u m fenómeno de natureza extragenética, era dado u m
Mareei Mauss, Lévy-Bruhl e, principalmente, Lévi-Strauss estão entre os
antropólogos que contribuíram para a formação e o desenvolvimento da
j antropologia social na França. Por sua vez, na antropologia social inglesa ' o conceito de estrutura divide com o de cultura a concepção temporal
I encontramos os nomes de Radcliffe-Brown, E. E. Evans-Pritchard, Max (sincrônica e diacrônica, respectivamente) que caracteriza os paradigmas
Gluckaman, Edmund Leach, Mary Douglas e Victor Turner. Franz Boas e da matriz disciplinar, ao mesmo tempo que apontam para o significado
j seus discípulos, Margareth Mead, Ruth Benedict, A. L. Kroeber e Edward das classificações antropologia social e antropologia cultural, a primeira
Sapir - são alguns dos maiores protagonistas da formação e desenvol- portadora de uma forte influência sociológica, e a segunda, histórica e
vimento da antropologia cultural norte-americana. Clifford Geertz é um psicológica, como será visto no próximo tópico.
nome paradigmático, quando se trata da comunidade dos antropólogos ^ O evolucionismo e difusionismo cultural antecedem, historicamente, o
,: interpretativistas; outros que despontam nessa comunidade são George momento de constituição disciplinar da antropologia quando vistos na
' Marcus, James Clifford e Stephen Tyler. perspectiva da "matriz disciplinar" em foco.

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enorme passo na compreensão da constituição da sociedade. e, por isso mesmo, deveriam ser conduzidas e preparadas
Mas a suposição da cultura como algo adquirido traz implícita para o futuro por serem incapazes de atingir sozinhas a
a ideia de sua perda. Essa condição irá marcar, profundamen- boa ordem social.'' Haja vista o que diz Prazer (2005, p.
te, os momentos iniciais da antropologia, sendo inúmeras as 107-108) ao proferir aula inaugural na Universidade de
considerações dos antropólogos que viram na expansão do Liverpool em 1908:
processo civilizatório u m perigo iminente ã sobrevivência das Assim, o estudo da vida selvagem é uma parte muito importante
sociedades primitivas. De certa forma, essa é uma visão marca- da Antropologia Social. Pois, em comparação com o homem
da pela lógica evolucionista, na medida em que se imaginava civilizado, o selvagem representa um estágio estacionado, re-
haver uma lei universal e natural do desenvolvimento humano tardado do desenvolvimento social, e, portanto, um exame de
à qual todos os grupos sociais estão submetidos. Por isso, o seus costumes e crenças fornece o mesmo tipo de evolução
da mente humana que o exame de um embrião fornece da
conceito de cultura, embutido nas abordagens evolucionista e
evolução do corpo humano. Em outras palavras, um selvagem
difusionista, se confundia ainda com o conceito de civilização,
está para um homem civilizado assim como uma criança está
exatamente porque compreendem as sociedades humanas para um adulto; e, exatamente como o crescimento gradual da
numa perspectiva universal.' inteligência de uma criança corresponde ao crescimento gradual
Isso é bastante claro em alguns dos principais trabalhos da inteligência da espécie e, num certo sentido, a recapitula,
assim também um estudo da sociedade selvagem em vários
da época. O ramo de ouro, de 5/r James George Prazer,
estágios de evolução permite-nos seguir, aproximadamente -
originalmente publicado em 1890, e posteriormente reedi-
embora, é claro, não exatamente - , o caminho que os ancestrais
tado em versão resumida em 1922, quando então alcançou das raças mais elevadas devem ter trilhado em seu progresso
grande êxito editorial, é normalmente lembrado como u m ascendente, através da barbárie até a civilização. Em suma, a
dos mais ilustrativos exemplos do evolucionismo social na selvageria é a condição primitiva da humanidade, e, se quiser-
antropologia. A visão da magia como forma primitiva e mos entender o que era o homem primitivo, temos que saber
anterior à religião, considerada superior, está na base do o que é o homem selvagem hoje.

argumento de Prazer.
Julgando os costumes do "outro" a partir dos valores de
A crença, de origem iluminista, na existência de u m sua sociedade, supostamente superior, o evolucionista imagina
H o m e m Universal é u m dos pressupostos fundamentais haver sempre u m "fim" a alcançar. Na perspectiva evolucionista,
do evolucionismo. Pensava-se haver, então, uma unidade a história é pensada como uma projeção para o futuro.^
psíquica de toda espécie humana e, por conseguinte, uma
uniformidade do pensamento. Com efeito, as sociedades d i -
Além de espécie de "museu vivo" da história da humanidade, também
tas primitivas eram consideradas a "infância da humanidade"
são comuns as associações das sociedades primitivas com as mulheres, as
crianças e os loucos, como se todos fossem desprovidos de maturidade e
Embora a concepção evolucionista fosse anterior a Darwin, pois pensadores racionalidade; ou, então, são consideradas sociedades deficientes porque
como Condorcet, Bachofen, Maine, Comte e outros tivessem prenunciado as sociedades "sem": sem história, sem Estado, sem escrita.
ideias evolucionistas, serão as formulações do cientista natural que, apoiadas ' Não à toa a tecnologia aparece como um dos elementos mais valorizados
no campo da biologia e da história natural, tomaram-se paradigmáticas, até quando se trata de pensar ou falar em evolução, servindo como índice de
mesmo servindo de modelo ao campo das ciências sociais que nasciam em civilização e de progresso. Isso porque a tecnologia é vista como um dos
fins do século XEX. Nesse sentido, mesmo quando o desaparecimento de uma valores mais caros à sociedade moderna e, por isso mesmo, um de seus
cultura se dá por meio de ações violentas e imperialistas, a justificativa para símbolos principais. A verdade é que a modernidade está comprometida com
isso era a teoria da "luta das espécies" na qual sempre vence o mais forte. o futuro, e sendo o evolucionismo uma teoria moderna, logo é prospectiva.

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Não demorou muito para que o evolucionismo recebesse ter uma importância capital no processo de constituição
inúmeras críticas sendo a principal a acusação de etnocen- cultural. A noção de "círculo cultural", enquanto complexo
trismo.^ Mas, como será visto ã frente, a principal crítica viria de elementos culturais característicos de uma determinada
da perspectiva estrutural funcionalista desenvolvida a partir região, é ilustrativa dessa perspectiva. Movidos por uma
dos trabalhos clássicos de Bronislaw Malinowski (1884-1942). perspectiva das origens de u m determinado hábito e costume
No entanto, o chamado difusionismo cultural representou, e sua difusão e m certas áreas e/ou regiões culturais, alguns
no século XIX, já u m movimento de reação ao evolucionis- difusionistas chegaram a sugerir o Egito como berço de toda
mo. Diferentemente da perspectiva temporal predominante vida social humana. O modelo dos círculos concêntricos
no evolucionismo em direção ao futuro, n o difusionismo pode ser utilizado para explicar esse processo: a exemplo
cultural, além de uma visão comprometida com a busca das de uma pedra lançada na água, as ondas circulares tendem
origens (passado), também há uma abertura para a dimensão a enfraquecer na medida em que se distanciam do centro.
espacial (geográfica). Assim, a presença de u m costume em No contato das culturas se verificaria o mesmo processo,
mais de uma sociedade não deve ser vista com a finalidade dizem os difusionistas. Guerras, festas, transações comerciais,
de justificar uma suposta escala de evolução, mas sim u m modismos são alguns dos principais mecanismos de trocas
processo de difusão. culturais. Tomando como exemplo u m pequeno trecho do
livro do antropólogo Ralph Linton, O homem - uma intro-
Os estudos de difusão cultural serão profundamente
dução ã antropologia, escrito em 1936, podemos observar a
marcados pelas contribuições oriundas da história e da
complexidade dos sistemas de trocas simbólicas que consti-
geografia. C o m os difusionistas o meio geográfico passa
tuem a vida d o homem médio americano, diz ele:

O cidadão norte-americano desperta num leito construído se-


O exemplo mais bem-sucedido de evolucionismo aplicado à hLstória das gundo padrão originário do Oriente Próximo, mas modificado
sociedades humanas é, sem dúvida, o positivismo. A "Lei dos Três Estados"
na Europa setentrional, antes de ser transmitido à América. Sai
postulada por Auguste Comte (1798-1857) previa uma linha de progresso
debaixo de cobertas feitas de algodão cuja planta se tornou do-
do pensamento humano em que, no primeiro estágio, predominava o
méstica na índia; ou de linho ou de lã de carneiro, um e outro
pensamento teológico, segundo o qual o mundo era explicado em razão
domesticados no Oriente Próximo; ou de seda cujo emprego foi
da intervenção de seres mágicos, míticos e sobrenaturais; no segundo, o
pensamento metafísico representava um avanço em vista de sua capacida- descoberto na China. Todos estes materiais foram fiados e tecidos
de de abstração e imaginação, pois buscava atingir a "natureza íntima" das por processos inventados no Oriente Próximo. Ao levantar da
coisas; no terceiro estágio, o pensamento positivo representava o triunfo da cama faz uso dos mocassins que foram inventados pelos índios
ciência por meio da razão cartesiana. Nessa escala de evolução, o pensa- das florestas do leste dos Estados Unidos e entra no quarto de
mento humano progride na medida em que cada vez mais se distancia do banho cujos aparelhos são uma mistura de invenções europeias
"mundo concreto das sensações" para atingir o "mundo abstrato das ideias". e norte-americanas, umas e outras recentes. Tira o pijama, que é
Supostamente evoluímos quando passamos do mais simples ao mais com- vestuário inventado na índia e leva-se com sabão que foi inventa-
plexo, do primitivo ao civilizado. O problema dessa concepção é que ela é do pelos antigos gauleses, faz a barba que é um rito masoquístico
vista como o resultado de um processo inexorável do qual a humanidade que parece provir dos sumerianos ou antigo Egito.
não pode fugir. Evidentemente, a .sociedade que serve de parâmetro nesse Voltando ao quarto, o cidadão toma as roupas que estão sobre
julgamento é a sociedade do observador, é a sociedade burguesa, branca, uma cadeira do tipo europeu meridional e veste-se. As peças
machista, cristã, enfim, europeia do século XDC.
de seu vestuário têm a forma de vestes de pele originais dos
" Engana-se quem pensa que o evolucionismo está superado. Alguns dos nómades das estepes asiáticas; seus sapatos são feitos de peles
mais ilustres representantes do evolucionismo contemporâneo na antro- curtidas por um processo inventado no antigo Egito e cortadas
pologia são: Gordon Childe, Leslie White, Julian Steward. segundo um padrão proveniente das civilizações clássicas do

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Mediterrâneo; a tira de pano de cores vivas que amarra ao destaque especial deve ser dado aos nomes de Alfred Kroeber
pescoço é sobrevivência dos xales usados aos ombros pelos (1876-1960) na antropologia cultura norte-americana, e de W.
croatas do século XVII. Antes de ir tomar seu breakfast, ele olha H . R. Rivers (1864-1922) na antropologia britânica.^ O Méto-
a rua através da vidraça feita de vidro inventado no Egito; e se
do genealógico proposto por Rivers no estudo dos sistemas
estiver chovendo, calça galochas de borracha descoberta pelos
de parentesco representa o melhor exemplo dessa volta ao
índios da América Central e toma um guarda-chuva inventado
passado, pois, de certa forma, ele pode ser visto como u m
no sudoeste da Ásia. Seu chapéu é feito de feltro, material
inventado nas estepes asiáticas. De caminho para o breakfast, momento inaugural da antropologia social na medida em que
pára, para comprar um jornal, pagando-o com moedas, invenção a sua aplicação exige a presença do antropólogo no campo.
da Líbia antiga. No restaurante, toda uma série de elementos Nesse sentido, segundo a perspectiva de Rivers, ele representa
tomados de empréstimo o espera. O prato é feito de uma o meio de entrada do antropólogo no trabalho de campo e
espécie de cerâmica inventada na China. A faca é de aço, liga também de construção científica do "campo" da antropolo-
feita pela primeira vez na índia do Sul; o garfo é inventado na gia moderna. A complexidade dos sistemas de parentesco,
Itália medieval, a colher vem de um original romano. Começa
dispostos em sofisticados diagramas, confere à antropologia
seu breakfast com uma laranja vinda do Mediterrâneo oriental,
a objetividade e a racionalidade exigidas pela ciência.
melão da Pérsia, ou talvez uma fatia de melancia africana. Toma
café, planta abissínia, com nata e açúcar. A domesticação do Assim, se a perspectiva evolucionista aponta para o futu-
gado bovino e a ideia de aproveitar seu leite são originários do ro e a perspectiva difusionista volta os olhos para o passado
Oriente Próximo, ao passo que o açúcar foi feito pela primeira das culturas, com o estrutural-funcionalismo a antropologia
vez na índia. Depois das frutas e do café, vêm waffles, que
conquista o tempo presente. U m dos efeitos mais notáveis
são bolinhos fabricados segundo uma técnica escandinava,
dessa conquista foi a desvalorização atribuída a uma certa
empregando como matéria-prima o trigo, que se tornou planta
concepção de história, marcada pela perspectiva evolucionista
doméstica na Ásia Menor. Rega-se com xarope de maple, in-
ventado pelos índios das florestas do leste dos Estados Unidos.
Como prato adicional talvez come o ovo de uma espécie de
' o difusionismo não é homogéneo, embora há quem diga ter existido
ave domesticada da Indochina ou delgadas fatias de carne de
uma "Escola dos Círculos Culturais", constituída pelos alemães Frobenius,
um animal doméstico da Ásia oriental, salgada e defumada por
Gtabner, Schmidt e Koppers, sendo Ratzel (1844-1904) considerado o
um processo desenvolvido no norte da Europa.
seu fundador. É preciso cautela, prova disso é encontrarmos em meio
Acabando de comer, nosso amigo se recosta para fumar, hábito
aos difusionistas os nomes de Franz Boas e Mareei Mauss. Sem dúvida
implantado pelos índios americanos e que consome uma planta alguma. Boas reconheceu a importância do meio, dos fatores extemos, do
originária do Brasil, fuma cachimbo, que procede dos índios da relativismo na constituição das culturas, assim como Mauss, em seu estudo
Virgínia, ou cigarros, provenientes do México. Se for fumante clássico sobre a morfologia das sociedades esquimós. Mas isso não significa
valente, pode ser que fume mesmo um charuto, transmitido ã que fossem "difusionistas" no sentido de pertencerem a uma escola. Uma
América do Norte pelas Antilhas, por intermédio da Espanha. análise mais acurada da obra de alguns antropólogos mostra a fragilidade
Enquanto fuma, lê notícias do dia, impressas em caracteres in- das chamadas "escolas" antropológicas (vide o caso da "escola de cultura e
ventados pelos antigos semitas, em material inventado na China personalidade"). A classificação de difusionista aplica-se, talvez, aos casos
e por um processo inventado na Alemanha. Ao inteirar-se das de Melville Herskovits e Roger Bastide, com seus estudos sobre contatos
narrativas dos problemas estrangeiros, se for um bom cidadão culturais entre América-África a partir dos anos 1930. O estudo de Câmara
conservador, agradecerá a uma divindade hebraica, numa língua Cascudo sobre a "rede de dormir" constitui um dos mais significativos
indo-européia, o fato de ser cem por cento americano. exemplos do difusionismo cultural em solo brasileiro. Recentemente,
o antropólogo Ulf Hanners destacou o quanto determinados conceitos
Se os nomes de Morgan, Tylor e Fraser aparecem as- contemporâneos, tais como fluxos, margens, fronteiras, híbridos e outros,
remetem ã problemática enfrentada pelos difusionistas tempos atrás.
sociados ao evolucionismo social, no difusionismo cultural

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e difusionista, tal como seria denunciado pelos antropólogos até a cultura distante e "primitiva", aqui e agora; contudo,
Radcliffe-Brown e Lévi-Strauss, posteriormente. Por outro lado, mesmo aí é impossível não se viver a experiência de u m
tudo isso aponta para outra questão: a importância da insti- outro sentido de tempo. Afinal, ensina a antropologia, outras
tucionalização da "observação participante" na experiência culturas, outras histórias. ^
etnográfica do trabalho de campo do antropólogo.
Acreditando ter criado uma nova disciplina académica,
a antropologia funcionalista, Malinoswki (1975) concebe a
Cultura e estrutura
antropologia como uma ciência social que tinha como objeto
Foi com Bronislaw Malinowski (1884-1942), u m polonês privilegiado de estudo a cultura, e o antropólogo deveria ser
naturalizado inglês, doutor em matemática e convertido ã capaz de reunir uma dupla qualidade:
antropologia, que o trabalho de campo, entendido como
ele deve ser ao mesmo tempo perito na arte de observação, isto
"observação participante", passou a fazer parte do ofício de é, no trabalho de campo etnológico e na teoria da cultura. Em
antropólogo. Conta-se que f o i após leitura de O ramo de seu trabalho de campo e na sua análise comparativa da cultura,
ouro que Malinowski decidiu pela antropologia social indo aprendeu que nenhum dos dois objetivos tem qualquer valor
realizar u m trabalho de campo junto a uma comunidade do a menos que sejam executados conjuntamente. Observar sig-
Pacífico Sul, mais precisamente, no Arquipélago Trobriand, nifica selecionar, classificar, isolar com base na teoria. Elaborar
na Melanésia, entre os anos de 1914-1918. Tal experiência teoria é resumir a relevância de observações passadas e prever
se tornou u m modelo de referência para o campo antropo- a confirmação ou refutação empírica dos problemas teóricos
lógico, pois, de certa forma, representou para a antropo- apresentados, (p. 21)
logia uma espécie de "regras do método antropológico" ã Assim, Malinowski definia o ofício do antropólogo e o
exemplo do que D u r k h e i m p r o p u n h a à sociologia. Se, até
sentido da antropologia como ciência social moderna em
aquele momento, os antropólogos evolucionistas e alguns
seu estudo Uma teoria científica da cultura, originalmente
difusionistas se limitavam a colher informações a partir de
publicado em 1944. A compreensão da teoria de Malinowski
terceiros (missionários, viajantes, administradores coloniais,
deve começar pela data de publicação do livro, pois o antro-
e t c ) , caracterizando u m m o d o de fazer antropologia que
pólogo escreve ao tempo da Segunda Guerra e sua visão de
ficou conhecido como "antropologia de gabinete", c o m
cultura está profundamente relacionada a uma perspectiva
Malinowski, embora não tenha sido o primeiro nem o único
biológica.'^ O u , nos termos do próprio antropólogo:
a fazer trabalho de campo, sua experiência representou a
inauguração de u m novo estilo de se fazer antropologia. Os problemas apresentados pelas necessidades nutritivas, repro-
Argonautas do Pacífico Ocidental, livro no qual Malinowski dutivas e higiénicas do homem devem ser resolvidos. Eles são
analisa o sistema ritual do kula (sistema de troca de bens) solucionados pela constmção de um novo ambiente, secundário

nas ilhas Trobriandesas, f o i publicado em 1922 e tornou-se ou artificial. Esse ambiente, que não é mais nem menos do
que a cultura propriamente dita, tem de ser permanentemente
imediatamente u m exemplo de etnografia a ser seguido."'
reproduzido, mantido e administrado, (p. 43)
Agora, a novidade era deslocar-se espacial e horizontalmente

" Não é preciso lembrar que a principal justificativa da Segunda Guerra, do


Embora a qualidade etnográfica de Malinowski seja inquestionável, não se ponto de vista nazista, tive.sse motivação racista (biológica). Sem dúvida,
pode dizer o mesmo de sua capacidade teórica. "Pobreza das formulações uma das tentativas mais bem sucedidas de superação desse quadro seria
teóricas", a.ssim .se refere o antropólogo Adam Kuper (1978, p. 11) logo dada por Lévi-Strauss em "Raça e história", um texto encomendado pela
no início de sua análise da antropologia desenvolvida por Malino.swki. Unesco em 1952.

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Desde 1927, com Sexo e repressão na sociedade selvagem, B) É um sistema de objetos, atividades e atitudes, no qual cada
parte existe como um meio para um fim.
Malinowski enfrentava a relação biologia/cultura, analisando
as relações entre psicanálise e antropologia, tendo como foco C) É uma integral [totalidade] na qual os vários elementos são

o Complexo de Édipo - sugerido por Freud em Totem e tabu interdependentes.

(1913) - , no universo cultural trobriandês. Malinowski não ' . D) Essas atividades, atitudes e objetos estão organizados em tomo

descarta a base psicológica sobre a qual se assenta o Com- de tarefas importantes e vitais, em instituições tais como a família,
o clã, a comunidade local, a tribo e as equipes organizadas de
plexo de Édipo (supostamente o filho deseja a mãe e vê no
cooperação económica, política, legal, atividade educacional.
pai o seu rival), no entanto, questiona sua universalidade.
E) Do ponto de vista dinâmico, ou seja, no tocante ao tipo de
Nas ilhas Trobriand predomina o direito matrilinear, em que
atividade, a cultura pode ser analisada numa série de aspectos
a figura do pai não tem o mesmo reconhecimento dado pelo
tais como educação, controle social, economia, sistemas de
sistema patrilinear, típico da civilização ocidental. No sistema conhecimento, crença e moralidade, e também modos de ex-
matrilinear trobriandês quem exerce a autoridade na educa- pressão criadora e artística. (MALINOWSKI, 1975, p. 140)
ção da criança é o seu tio materno (o irmão da mãe), e não
A despeito dos esforços de Malinowski em garantir ao
o pai; este, na verdade, é visto e considerado u m amigo. O
conceito de cultura u m prestígio científico na antropologia
antropólogo não abandona o fundo biológico e psicológico
funcionalista, não demorou muito para que o conceito de
do complexo, porém descobre na cultura local uma resposta
estrutura ganhasse a atenção das gerações seguintes. Com
para o que é "universal" (a família). A cultura passa a ser
Alfred Radcliffe-Brown (1881-1955), antropólogo com forte
vista como uma forma de institucionalização e organização
influência do pensamento de Durkheim, o conceito de es-
do comportamento humano, sendo sua função fornecer res-
trutura social seria elevado ã condição de "paradigma" do
postas satisfatórias ao que se impõe como necessidade vital
pensamento antropológico inglês e francês."
do homem. A cultura é, então, funcionalmente, produtora
de integração, equilíbrio e manutenção da ordem social. Eis Sem pretender aprofundar as implicações o conceito
aí o segundo ponto fraco do modelo funcionalista, já que o de estrutura social no pensamento de Radcliffe-Brown, vale
primeiro pressupõe a cultura como resposta funcional a uma
necessidade biológica. Na sequência, o problema agora é não Muito embora termos como função e sistema apresentem parentesco com
contemplar as disfunções, os distúrbios, admitindo pouca a linguagem matemática, em Radcliffe-Brown, assim como em Malinowski,
possibilidade de mudança social dos sistemas culturais.'^ Em a analogia da sociedade com o organismo vivo não deixa dúvidas quanto
suma, a perspectiva funcionalista então, considera que: à inspiração biológica na concepção estmtural-funcionalista. O destaque
dado aos conceitos de estmtura e função social fez com que os teóricos
A) A cultura é, essencialmente, um aparato instrumental pela
da antropologia pós-malinowskiana muitas vezes fossem batizados como
qual o homem é colocado numa posição melhor para lidar com
estmtural-funcionalistas, quando não funcionalistas e, em alguns casos até,
os problemas específicos concretos que se lhe deparam em seu
estmturalistas. De fato, não há uma homogeneidade conceituai em tomo da
ambiente, no curso da satisfação de suas necessidades.
estrutura social. Conceito polissêmico, "para Evans-Pritchard, por exemplo, a
estmtura social é a configuração de gmpos estáveis; para Talcott Parsons, é
Um ano após o lançamento de Uma teoria científica da cultura, Mali- um sistema de expectativas normativas; para Leach, um conjunto de regras ou
nowski publica The dynamics of culture change-An inquiry into race normas ideais; e, para Lévi-Strauss as estmturas .sociais .são modelos", observam
relations in Africa, livro no qual apresenta de maneira mais sofisticada Kaplan e Manners (1981, p. 155). Além de Radcliffe-Brown e Evans-Pritchard,
sua teoria da cultura e, como sugere o título, contemplando processo a influência do pensamento de Durkheim sobre a antropologia ingle.sa pode
de mudança social. ser sentida, ainda hoje, entre antropólogas como Mary Douglas.

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destacar que para o antropólogo inglês, estrutura social atitude estruturalista, no sentido lévi-straussiano do ter-
implica o reconhecimento empírico de uma "complexa m o . Nessa perspectiva, o totemismo é antes u m método
rede de relações sociais" cuja base sociológica envolve i n - classificatório do pensamento do que u m sistema social
teresses, valores, instituições, poder. Essa perspectiva seria, de identificação psicológica dos "nativos" c o m as espécies
posteriormente, criticada por outro eminente antropólogo naturais. A q u i , as espécies animais antes de serem boas
social, o "francês" Claude Lévi-Strauss (1967, p. 316) para para comer são "boas para pensar", conclui Lévi-Strauss
quem estrutura social consiste em u m modelo que para c o m uma fórmula que se consagraria n o campo da antro-
"existir" (já que não existe empiricamente) deve satisfazer pologia estruturalista.
quatro condições, a saber:
U m exemplo, talvez, nos ajude a apreender melhor o sen-
Em primeiro lugar, uma estrutura oferece um caráter de sistema. tido da cultura na perspectiva da antropologia funcionalista
Ela consiste em elementos tais que uma modificação qualquer de Malinowski à antropologia estruturalista de Lévi-Strauss.
de um deles acarreta uma modificação de todos os outros. Enquanto para Malinowski a comida corresponde a uma
Em segundo lugar, todo modelo pertence a um grupo de trans-
função metabólica de manutenção da vida da espécie huma-
formações, cada uma das quais corresponde a um modelo da
na, a partir de Radcliffe-Brown poder-se-ia sugerir a comida
mesma família, de modo que o conjunto destas transformações
constitui um grupo de modelos.
como u m mecanismo de estruturação social, e com Lévi-
Strauss a comida nos revela u m sistema de códigos culturais.
Em terceiro lugar, as propriedades indicadas acima permitem
O famoso "triângulo culinário" do autor, sugere u m gradiente
prever de que modo reagirá o modelo, em caso de modificação
de um de seus elementos. de relações que pode ser expressa da seguinte forma:

Enfim, o modelo deve ser construído de tal modo que seu fun-
cionamento possa explicar os fatos observados.
" o parentesco é o tema mais estudado na história da antropologia social
Embora a teoria de Lévi-Strauss pareça evocar o moderna e, talvez, por is.so mesmo, seja o mais ilustrativo quando se
m o d e l o f u n c i o n a l de M a l i n o w s k i , a diferença entre essas trata de demarcar as diferenças de concepção e tratamento dispensa-
c o n c e p ç õ e s de estrutura social consiste na tentativa de do por essas correntes antropológicas na análise da estrutura social
Lévi-Strauss em ultrapassar a "teoria nativa" inscrita na nos sfstemas de parentesco. Nesse sentido, vale ressaltar a crítica de
Lévi-Strauss a certa concepção de família, presente no pensamento
interpretação empirista de Radcliffe-Brown. A análise do
de Radcliffe-Brown, segundo a qual; "Um sistema de parentesco não
totemismo se mostra u m objeto privilegiado desse confli-
consi.ste nos elos objetivos de filiação ou consaguinidade dados entre
to de interpretações. Lévi-Strauss, em O totemismo hoje, os indivíduos; só existe na consciência dos homens, é um sistema
mostra a existência de duas teorias sobre o totemismo em arbitrário de representações, não o desenvolvimento espontâneo de
Radcliffe-Brown. Na primeira, de 1929, intitulada A Teoria uma situação de fato" (1967, p. 69). O interesse de Lévi-Strauss em
Sociológica do Totemismo, Radcliffe-Brown atribui ãs espé- apreender as estruturas do pensamento humano levou-o aos poucos
cies animais u m valor ritual em razão da sua função natural. para o campo de estudos do totemismo e dos mitos, território no
Para Radcliffe-Brown, declara Lévi-Strauss, "o animal se qual se consagraria no campo da antropologia simbólica. Em outras
palavras, além de Lévi-Strauss buscar ultrapassar o nível empírico da
torna 'totêmico' quando, em primeiro lugar, é ' b o m para
consciência atingindo o plano inconsciente do espírito (pensamento)
comer'" (1980, p . 143). Posteriormente, Radcliffe-Brown,
humano, também propõe, no caso do parentesco, uma abordagem
na formulação de uina segunda teoria d o t o t e m i s m o ,
centrada nas relações de afinidade (sistemas de aliança) e não nas
apresentada na conferência "O método comparativo em relações de consaguinidade (sistemas de filiação), característica da
antropologia social", de 1951, ficaria m u i t o perto de uma antropologia social inglesa.

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•••CRU'-' gradiente que vai d o quente ao frio, dos legumes crus aos
Assar pratos cozidos. Na hora de se arrumar o prato, procuramos
conjugar determinados elementos, por exemplo, salada
. O (-)
c o m bife grelhado. Nada impede que alguém se sirva de
Ar Água
feijoada com maionese, o problema é que isso não é usual,
culturalmente não combina. A etiqueta culinária francesa é
Defii- , ^ ,
macib Cozido exemplar nesse caso. E o mesmo acontece com vestuário,
COZIDO onde também os franceses são, tradicionalmente famosos
PODRE
pelas suas grifes. N o vestuário, as cores, a espessura dos
tecidos, o conjunto do figurino, tudo importa no sentido
A leitura desse triângulo deve ser feita em u m duplo
de produzir a "moda". As roupas, em geral, expressam gé-
movimento, vertical e horizontal. Na vertical, de cima para
neros (há roupas de h o m e m e roupas de mulher, dizem),
baixo, assistimos a u m processo de transformação que,
expressam profissões (uniformes), expressam sentimentos
dependendo dos elementos inseridos no diagrama nos
(luto, sedução). Em suma, sem cair no empirismo estreito
leva para uma mudança do estado normal (cru) para o
do funcionalismo, para Lévi-Strauss a culinária, o vestuário,
cozido quando se tem a presença do fogo, podre quando
são sistemas culturais que dizem mais do que se imagina à
a presença é da água. Em sentido horizontal, da esquerda
primeira vista, pois dizem que o homem, como ser simbólico,
para a direita, a transformação designa uma mudança da
antes de ser u m animal " b o m por natureza" o u que é "lobo
cultura para a natureza. Intermediando os extremos, estão
de outros homens", como pensavam Rousseau e Hobbes, é
os estados de assado, defumado e cozido, conforme mais
o único animal que cozinha os seus alimentos ou então é o
ou menos a presença da água ou do ar, no caso, o fogo.
único animal que produz suas vestes."
Na verdade, o que esse diagrama sugere é que a culinária
A cultura existe como sistema de códigos que comunicam
também tem a sua "estaitura elementar". Evidentemente que
o sentido das regras que orientam as relações sociais entre
todo sistema não se reduz a isso, mas a combinação desses
os homens e as coisas. "Em toda sociedade, a comunicação
elementos vistos em relação c o m o líquido e o sólido, o
se opera ao mesmo tempo em três níveis: a comunicação de
cru e o cozido, o quente e o frio, o salgado e o doce, etc.
mulheres, comunicação de bens e serviços, comunicação de
formam u m "cardápio cultural" da comida. Nesse sentido,
mensagens", declara Lévi-Strauss (1967, p. 336), para logo
mais do que comemos alimentos, comemos símbolos. Na
em seguida sugerir que a cultura, para além dos "jogos de
verdade, comidas e bebidas são fontes de prazer o u dor,
comunicação" empíricos como a linguagem, deve ser vista
são perigosas ou benfazejas, são afrodisíacas ou inebrian-
como uma espécie de metalinguagem. A propósito esta é,
tes, enfim, são fontes de representações e valores sociais.
exatamente, a proposta metodológica do estruturalismo e,
Q u a n d o comemos, obedecemos a códigos de etiqueta;
talvez, por isso mesmo, se apresente como " b o m para pen-
por exemplo, a comida que se come n o almoço servida
sar" sobre o próprio sentido que damos ã cultura em nossas
em u m jantar para convidados exigirá u m conjunto de re-
gras e comportamentos diferentes. Assim, combinamos os
alimentos na medida em que buscamos conjugar por razões '5 Segundo Sperber (1992, p. 99), "Claude Lévi-Strauss é, simultaneamente,
estéticas e morais aquilo que comemos. Imagine uma mesa um dos mais célebres e dos mais difíceis antropólogos". Não há dúvida
quanto a isso. Assim, analisar o trabalho de Lévi-Strauss é sempre um
de self-service onde estão dispostos inúmeros pratos n u m
desafio e um risco.

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sociedades. Mais do que a natureza, talvez a cultura sim, é numa sequência hierárquica; por outro lado, a elaboração do
o que se tem de mais universal."^ conceito de cultura como uma estrutura relativista, pluralista,
holística, integrada e historicamente condicionada para o es-
Cultura e personalidade tudo da determinação do comportamento humano" (ROCHA,
2004, p. 36). Doutorado em Física com uma tese sobre a
A partir dos anos 20 do século XX desenvolveu-se nos
percepção do olho humano na observação dos fenómenos
Estados Unidos u m conjunto de trabalhos antropológicos
físicos {Contribuição ao Estudo da CordaÃgua) f o i o que lhe
que ficariam conhecidos na história da disciplina como a
permitiu dialogar c o m as ciências da cultura, tendo em vista
"Escola de Cultura e Personalidade", ou, em termos menos
glamurosos, simplesmente: "culturalismo". Os manuais de a afinidade com o campo fenomenológico da experiência
antropologia, comumente, apresentam como características Cerfhrung) e da compreensão (verstehen). Em 1883, Franz
principais dessa "escola": Boas desembarcou no Porto de Anarnitung, na Terra de Baffin
(Canadá), para realizar sua etnografia sobre os esquimós e
1) ênfase no estudo das especificidades culturais locais em
começar a sua conversão ã antropologia.
termos de uma totalidade coerente e integrada, mas não ne-
cessariamente funcional; 2 ) ênfase na estratégia metodológica Com efeito, o conceito de cultura representa sem dúvida
de comparação de sistemas culturais diferentes; 3) ênfase na uma das principais contribuições dadas por Boas ã antropolo-
interdisciplinaridade, sobretudo com a psicologia, sem despre- gia, na medida em que por meio dele produziu uma profunda
zar, todavia, a importância da história e da sociologia; 4 ) ênfase
crítica ao evolucionismo social que, como já se viu antes, além
na relação indivíduo/sociedade transposta para os termos da
de pensar as diferenças culturais numa escala de progresso
cultura e personalidade resultando na caracterização de confi-
gurações culturais e tipos psicológicos; 5 ) ênfase nos processos imaginava haver uma correlação entre raça, cultura e língua.
de socialização, em particular, a educação infantil; 6) ênfase no Boas argumenta não haver evidências antropológicas e históri-
trabalho de campo enquanto metáfora de "laboratório natu- cas dessa correlação, ao contrário, as evidências apontam para
rat do antropólogo; 7 ) ênfase, em menor grau, na dimensão as diferenças entre essas três instâncias. Em razão de processos
político-ideológica do "caráter nacional' no contexto da IP
de difusão e invenção ou criação humana, a cultura, a língua
Guerra Mundial. (ROCHA, 2004, p. 108)
e os "tipos humanos" - com esse conceito Boas pretendeu
Na base do desenvolvimento da antropologia norte-ame- evitar o sentido negativo inscrito na ideia de raça - mais do
ricana encontra-se, sem dúvida nenhuma, u m dos principais que justificarem uma escala de evolução, ajudam a mostrar as
construtores da antropologia cultural moderna: Franz Boas inúmeras possibilidades de variação cultural produzidas social
(1858-1942). Esse alemão radicado na América é considerado, e historicamente. Assim, pensa o antropólogo:
por muitos, o "pai" da antropologia cultural norte-americana,
Pode se definir a cultura como a totalidade das reações e
e o seu legado, avalia Stocking Jr., consiste em: "por u m atividades mentais e físicas que caracterizam a conduta dos
lado, a rejeição da ligação tradicional entre raça e cultura indivíduos componentes de um grupo social, coletiva e in-
dividualmente, em relação ao seu ambiente natural, a outros
grupos, aos membros do mesmo grupo e de cada individuo
"' Cultura como pensa Lévi-Strauss é uma forma de encurtar o distanciamento
consigo mesmo. Também inclui os produtos destas atividades
entre os homens. Embora o conceito compreenda o sentido da diferença,
e sua função na vida dos grupos. A simples enumeração destes
na verdade ela não é natural, sendo produzida social e historicamente.
Nesse sentído, talvez, o melhor exemplo para mostrar a universalidade da vários aspectos da vida não constituem, entretanto, a cultura. E
cultura seja, exatamente o texto "Raça e história". Os estudos po.steriores algo mais que isto, pois seus elementos não são independen-
de Lévi-Strauss acerca dos mitos parecem confirmar essa suspeita. tes, formam uma estrutura (BOAS, 1947, p. 155, tradução livre).

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E Boas fez "escola". Nomes como Ruth Benedict (1887- antropólogos norte-americanos e, ao mesmo tempo repre-
1948), Margaret Mead (1901-1978), Eward Sapir (1884-1939), senta uma severa crítica à ideia de progresso e civilização
Alfred Kroeber (1876-1960), Clyde K l u c k h o h n (1905-1960), industrial que se consolidava em ritmo frenético nos anos
Paul Radin (1883-1959), Melville Herskovits (1895-1963), 1920. U m exemplo, entre outros, dado por Sapir (1946, p.
Ruth Bunzel (1898-1990), Cora D u Bois (1903-1991), Leslie 292), é o caso da
Spier (1893-1961), Robert Lowie (1883-1957), Ralph Linton
1...] telefonista que empresta a sua capacidade, durante a maior
(1893-1953), Ruth Landes (1908-1991) e muitos outros de parte de cada dia de sua existência, à manipulação de uma
algum m o d o sofreram a influência d o "Bruxo de Colúmbia". rotina técnica que tem afinal valor de eficiência, mas que não
Em particular, e em vista de nosso propósito (o conceito corresponde a nenhuma necessidade espiritual dela mesma,
de cultura e sua relação c o m a educação), destacam-se os representa um espantoso sacrifício à civilização.
trabalhos de Kroeber, O superorgânico, de 1917; Sapir,
Embora, hoje, sejam feitas sérias reservas a essa pers-
Cultura autêntica e espúria, de 1924; o livro de Benedict,
pectiva de Sapir, ela tem o mérito de pôr em destaque o
Padrões de cultura, de 1934, e os estudos de Margaret Mead
problema da ameaça produzida pela civilização ocidental
sobre educação e crianças.
a outras formas de culturas e também de chamar a atenção
Rompendo c o m a premissa evolucionista da corre- para os processos de "autenticidade" embutidos na cultura
lação entre o nível mental e a organização biológica (a quando elegemos determinados fenómenos como exemplares
mentalidade lógica é correspondente ao grau de evolução de uma "espiritualidade", "harmonia", "originalidade", enfim,
racial), o ensaio de Kroeber (1993) p r o m o v e uma dupla falando em termos benjaminiano, portadores de "aura".
alteração epistemológica na maneira de se pensar a cultura:
Por sua vez, Benedict imagina a cultura como u m
a civilização enquanto u m sistema regido por leis próprias
"grande arco" sob o qual se colocam os interesses e as
requer uma outra ciência, diferente daquela voltada para
possibilidades humanas. O sentido dado aos fenómenos
a compreensão dos fenómenos naturais. Não se nega a
depende da escolha e da organização produzida pelos ho-
importância do fator biológico do homem, no entanto, sua
mens, dos elementos e instituições depositados no fundo
determinação é relativizada.
d o arco. Pode se dizer que Padrões de cultura, de certa
Aos poucos, o conceito de cultura f o i sendo revela- forma, revolucionou a antropologia, inais pela sua forma de
do como algo mais profundo e complexo na constituição apresentação e escrita do que pela "autoridade etnográfica"
das sociedades e para a compreensão do comportamento da autora. Em outras palavras, Benedict, se comparada a
social d o homem. Considerando a polissemia d o concei- Margaret Mead, realizou pouco trabalho de campo, porém
to, Sapir identifica pelos menos três sentidos usuais para a sua forma de fazer e pensar a ciência da antropologia
o termo: 1) quando a palavra é utilizada para expressar a teve repercussão profunda e duradoura no trabalho de
tradição material e espiritual herdada a todos os homens muitos antropólogos.'-' Tal é o caso d o antropólogo inglês
n o sentido de patrimônio; 2) a valorização de u m certo
tipo de conhecimento e/ou experiência que caracterizam o
refinamento intelectual e educacional do indivíduo moderno, Na verdade, a contribuição do trabalho de Benedict se faz presente ainda
hoje, afmal o antropólogo Clifford Geertz (1997), sem dúvida um dos nomes
ficando próxima da erudição; 3) mais difícil de apreender,
mais importantes da antropologia no mundo contemporâneo, coloca-a ao
que pode ser traduzido pelo sentido vo/kgeist dXemSiO, ou
lado de Malinowski, Evans-Pritchard e Lévi-Strauss como uma das "funda-
seja, o "génio do p o v o " ou "espírito do povo; é uma clara doras de discursividade" da antropologia moderna. Aliás, como será visto
referência à influência romântica n o pensamento de alguns a seguir, o próprio Geertz não ficaria imune à influência de Benedict.

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Gregory Bateson (1904-1980), que admite ter modificado crescer e minguar da lua, desova dos peixes e as épocas de
sua c o n c e p ç ã o de cultura após a leitura de alguns textos migração dos animais e pássaros. Sua própria natureza física
que c o m p õ e m Padrões de cultura. Esse fato é importante forneceu-lhe outros pontos importantes: idade e sexo, ritmo
e m razão da definição d o conceito proposto por Benedict de nascimento, maturação e velhice, a estrutura do parentesco
consanguíneo. Diferenças em ferocidade ou em mansidão, em
(s.d., p. 59), para q u e m "uma cultura, como u m indivíduo,
coragem ou em esperteza, em riqueza de imaginação ou em
é u m m o d e l o mais o u menos consistente de pensamento
perseverante obtusidade - todas proporcionaram sugestões a
e ação". As implicações metodológicas desse conceito são
partir das quais foi possível desenvolver as ideias de categoria
enunciadas logo depois, continua Benedict: e casta, de sacerdócios especiais, do artista e do oráculo. Tra-
[...] se o que nos interessa são os processos na cultura, a única balhando com novelos tão universais e tão simples como esses,
forma de podermos conhecer o significado do pormenor de o homem construiu para si mesmo uma trama de cultura em
cujo interior cada vida humana foi dignificada pela forma e
comportamento escolhido é vê-lo contra o fundo de motivos e
pelo significado. O homem não se tomou simplesmente mais
emoções e valores institucionalizados nessa cultura, (p. 63)
um dos animais que se acasalavam, lutavam por seu alimento
Assim, mais do que costumes e tradições, cultura envolve e morriam, mas um ser humano, com um nome, uma posição
pensamentos, ações e emoções. Eis aí uma das principais e um deus. Cada povo constrói essa tessitura de maneira dife-
contribuições de Benedict para o campo da antropologia rente, escolhe alguns novelos e ignora outro, acentua um setor
cultural. Cremos ter sido essa a base a partir da qual Bate- diferente da gama total das potencialidades humanas. Onde uma
cultura emprega, por trama principal, o ego vulnerável, pronto
son se inspirou para a conceituação de éthos cultural como
a sentir-se insultado ou a sucumbir de vergonha, outra escolhe
"padrões de sentimentos e sensibilidade".^**
a coragem inflexível e mesmo, de forma que não haja covardes
Alguns "estudos de cultura e personalidade" realizados reconhecidos, pode, como os Cheyenne, inventar uma posição
no período entre guerras se aproximam do que hoje consi- social especialmente complicada para os supermedrosos. Cada
deramos "objeto" de uma antropologia das emoções e uma cultura simples e homogénea pode dar largas somente a alguns
antropologia da educação e/ou da criança. Nesse caso, a dos diversos dotes humanos, desaprovando ou punindo outros
antropologia de Margaret Mead deve ser vista como u m caso demasiado antitéticos ou por demais desvinculados de seus
acentos principais para que encontrem lugar entre suas paredes.
especial dada sua contribuição singular para o campo de
Tendo originalmente tirado os seus valores dos valores caros a
estudos da infância e da educação hoje. De resto, pode-se
alguns temperamentos humanos e estranhos a outros, a cultura
concluir, lançando mão das palavras iniciais de Mead em Sexo
incorpora es.ses valores cada vez mais firmemente à sua estrutura,
e temperamento, com o objetivo de abrirmos ao problema da
a seus sistemas político e religioso, à sua arte e .sua literatura; cada
invenção da cultura, último tópico deste capítulo: geração nova é amoldada, firme e definitivamente, às tendências
Quando estudamos as sociedades mais simples, não podem dominantes (MEAD, 1976, p. 19-20, grifo nosso).
deixar de nos impressionar as muitas maneiras como o
homem tomou umas poucas sugestões e as trançou em belas e C u l t u r a e invenção
imaginosas texturas sociais que denominamos civilizações. Seu
ambiente natural muniu-o de alguns contrastes e periodicidades Herdeiro da tradição cultural norte-americana de Boas,
notáveis: o dia e a noite, a mudança das estações, o incansável Benedict e Mead, Clifford Geertz (1926-2006), o principal
representante da antropologia hermenêutica (ou interpretati-

A noção de éthos, desenvolvida por Bate.son em Naven parece estar na con- va), compreende a cultura como u m "conjunto de textos, eles
fluência das concepções de cultura de Benedict e Sapir Posteriormente, éthos mesmos conjuntos, que o antropólogo tenta ler por sobre os
passaria a integrar o vocabulário de Geertz em sua concepção de cultura. o m b r o s daqueles a q u e m eles p e r t e n c e m " (1989, p- 321).

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COLEÇÃO "TEMAS & EDUCAÇÃO"
C U L T U R A C O M O T E O R I A E MÉTODO

O conceito de cultura em Geertz - como teoria e método - porque a cultura enquanto texto se realiza nas praças, nos
é, essencialmente, semiótico:
mercados, nos pátios familiares, enfim, tudo o que de alguma
Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal tbrma ou maneira remete a uma significação é intersubjetivo
amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo e, como tal, público, pois acessível a uma interpretação em
a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não plein air. Assim, a busca do significado conduz a interpreta-
como uma ciência experimental em busca de leis, mas como
ção antropológica a u m mundo de representações, ideias e
uma ciência interpretativa ã procura do significado. (p.l5)
valores constituídos socialmente n u m determinado momento
O significado é u m elemento de v a l o r . " A cultura en- histórico, o u seja, sobre o que os homens pensam de e sobre
quanto teia de significados é tanto reprodução quanto criação si mesmos e dos outros.
de sentidos. Os significados estão agarrados ã linguagem Em seu estudo mais conhecido, A interpretação das
como representações sobre homens e coisas, subvertendo os culturas, originalmente publicado em 1973, Geertz, defende
signos por serem carregados de sentido subjetivo, ainda que que a interpretação etnográfica de uma cultura é sempre
submetidos a u m sistema de ideias e valores de uma cultura. uma interpretação de segunda e terceira mão, pois, por
De acordo com a sociologia weberiana, o significado é atri- definição, somente ao "nativo" pertence a interpretação de
buído socialmente a partir do sentido subjetivo que orienta primeira mão, que é a sua cultura. Porém, descobrir o acesso
as ações e as relações dos homens entre si e a realidade da às interpretações de uma cultura é como tentar ler as dife-
vida cotidiana. O sentido subjetivo inscrito n o significado de renças sensíveis entre uma piscadela de olho e a imitação de
uma ação representa a maneira como os homens experimen- piscadela de olho, da farsa de imitação de uma piscadela de
tam de maneira individual, portanto, de maneira específica e olho. Na verdade, o que o antropólogo faz é uma descrição
singular, a sua cultura.^° Entretanto, o significado é público densa, ou seja, descreve de maneira microscópica (detalhada
e profunda) u m fato da vida social. Significa fazer uma i n -
' Na Linguística saussuriana, o significado corresponde ao conceito que terpretação, sendo que o que ele interpreta é o significado
juntamente com o significante, a imagem acústica, formam o signo. Se- inscrito n o fluxo d o discurso social, isto é, o que os homens
gundo Roland Barthes, os estóicos ao estabelecerem uma distinção entre sentem e dizem a si e sobre si mesmos, apreendendo aí as
a representação psíquica, a coisa real e o dizível, definiam o significado "estruturas de significação" (códigos historicamente construí-
a partir do último termo. Assim, o significado - não .sendo então, nem
dos) presentes em uma dada cultura. Tomando emprestado a
representação nem coisa, mas o dizível sobre algo ou alguma coisa -,
constitui-se num elemento de valor porque dependente do processo de
significação, isto é, o ato que une a representação ã coisa, o significado
princípio de seleção nem conhecimento sensato do real singular e, assim
ao significante. O significado como valor sociológico designa a capa-
cidade de improvisação semântica dos homens na ordem da cultura. como sem a crença do pesquisador na significação de um conteúdo
Marshall Sahlins (1990, p. 11) acrescenta que: "os significados são, em cultural qualquer resultaria completamente desprovido de sentido todo
última instância, submetidos a riscos subjetivos, quando as pessoas, à o estudo do conhecimento da realidade individual, também a orienta-
medida que se tornam socialmente capazes, deixam de ser escravos de ção da sua convicção pes.soal e a difração dos valores no espelho da
seus conceitos para .se tomarem seus senhores". sua alma conferem ao seu trabalho uma direção. E os valores a que o
génio científico refere os objetos da sua investigação poderão determi-
Na perspectiva da sociologia compreensiva de Max Weber (1864-1920),
nar a 'concepção' que se fará de toda época. Isto é, não só poderão ser
o valor do significado não está inscrito somente nas ações dos indivíduos
decisivos para aquilo que, nos fenómenos, se considera 'valiosos', mas
ou do "nativo", mas também na do próprio cientista social, pois: "Por
ainda para o que passa a ser significativo ou insignificante, 'importante'
certo que sem as ideias de valor do investigador não existiria qualquer
ou 'secundário'" (WEBER, 1986, p. 98).

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Paul Ricouer o que a escrita fixa, Geertz (1989) salienta que Wagner é cultura na medida em que consiste numa invenção
"o que escrevemos é o noema ("pensamento", "conteúdo", conceptual, u m recurso teórico, utilizado pelos antropólogos
substância") do falar. É o significado d o acontecimento de (i- outros cientistas sociais de u m modo geral) com a finali-
falar, não o acontecimento como acontecimento" (p. 29). i latle de produzir u m sentido, fornecendo inteligibilidade aos
Daí a importância d o registro etnográfico d o que "o homem fenómenos sociais que buscamos compreender. Nessa pers-
falou". Como exemplo, o texto cultural sobre a briga de pectiva, a importância d o conceito de cultura reside menos na
galos em Bali é paradigmático, apesar de não ser a "chave sua eficácia teórica e explicativa do que na sua significação
principal" para a vida cultural balinesa, diz Geertz: metodológica: cultura é u m caminho ou via de acesso à com-
preensão do outro e seu "mundo de significados". •
O que coloca a briga de galo.s à parte no curso ordinário da vida,
que a ergue do reino dos assuntos práticos cotidianos e a cerca Dessa maneira, a escrita etnográfica de uma cultura é
com uma aura de importância maior, não é, como poderia pensar também cultura. O modo como os antropólogos apresentam
a sociologia funcionalista, o fato de ela reforçar a discriminação os resultados de sua investigação representam modos de
do status (esse reforço não é necessário numa sociedade em que representação cultural. Assim a descrição da cultura de uma
cada ato proclama essa discriminação), mas o fato de ela fornecer sociedade primitiva é também uma fonte de representação
um comentário metassocial sobre todo o tema de distribuir os sobre os modos de representação escrita da cultura do an-
seres humanos em categorias hierárquicas fixas e depois organizar
tropólogo. Uma etnografia fala tanto de uma cultura nativa
a maior parte da existência coletiva em tomo dessa distribuição.
quanto da cultura do antropólogo. Por outro lado, radicalizan-
Sua função, se assim podemos chamá-la, é interpretativa: é uma
leitura balinesa da experiência balinesa, uma estória sobre eles do o projeto de uma antropologia hermenêutica, a proposta
que eles contam a sim mesmos, (p. 315-316) de Wagner amplia e aprofunda o sentido da invenção da
cultura como uma cultura da invenção, ou seja, mais do que
A briga de galos constitui-se, portanto, n u m fato privilegia- fruto da imaginação ociosa dos homens, cultura e invenção
do a partir do qual Geertz analisa a experiência balinesa e seus consistem no resultado de uma convenção. Em outras pala-
significados políticos e morais (como dramatização de status), vras, entendemos o sentido da invenção da cultura porque
sociais e económicos (enquanto teatro de apostas), culturais e experimentamos o significado da cultura da invenção. As
estéticos (referentes ao simbolismo do animal galo), cognitivo palavras de ordem inventar, criar e construir aparecem como
(enquanto uma metáfora de uma "educação sentimental"). Em resultado de uma convenção social. Assim, da mesma forma
Bali, Geertz descobre que na briga de galos não são os galos que se espera dos cientistas sociais capacidade interpretativa,
que brigam, mas os homens através de seus símbolos. Cabe, reflexiva e criativa, o mesmo princípio se aplica aos "nativos".
então, ao antropólogo dar voz ao "nativo", deixando que ele Não ã toa, assistimos, na última década, a u m movimento
nos fale de u m mundo até certo ponto estranho no tempo e no sentido de conferir ãs crianças, aos adolescentes, enfim,
no espaço e determinar a sua importância social. aos jovens a capacidade de produzir culturas.
Muito embora haja inúmeras críticas ã eficácia da antropo- A cultura, mais do que u m conceito pronto e acabado,
logia interpretativa de Geertz, não se pode perder de vista o designa u m "campo cognitivo", o u , em termos antropológi-
fato de suas análises terem possibilitado u m profundo e "den- cos, uma categoria do pensamento antropológico reveladora
so" exercício de reflexidade epistemológica na antropologia da maneira como os antropólogos ao longo do tempo e em
contemporânea. E nessa linha de reflexões epistemológicas condições históricas e sociais variadas pensam e explicam o
que acreditamos poder incluir a abordagem de Roy Wagner m o d o de organização e funcionamento das sociedades que
com seu estudo The invention of culture. A cultura para estudam. Mas, como se disse anteriormente, por meio da

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COLEÇÃO " T E M A S & EDUCAÇÃO"

cultura também podemos atingir a maneira como os antropó-


I CAPÍTULO IV
logos pensam. Na verdade, como sugere o antropólogo J o s é
Reginaldo Gonçalves, a história da antropologia moderna
nos revela uma verdadeira "obsessão pela cultura" da parte PARA U M AANTROPOLOGIA D A EDUCAÇÃO

dos antropólogos, sendo possível identificar duas grandes


formas de abordagem d o tema: uma de caráter mais teórico
e universalista; outra, de natureza mais narrativa, que busca
nos casos empíricos aquilo que é específico, singular, local
de uma cultura. Entre uma e outra, encontramos alguns
antropólogos que buscam ã sua maneira superar tais dico-
tomias epistemológicas.

Caminhos cruzados .

No quadro das ciências humanas e sociais, antropolo-


gia e educação, necessariamente, cruzam caminhos: ambas
tomam o h o m e m como base c o m u m de reflexão. O h o m e m
e seus embates para fazer valer sua natureza distinta da
de outros animais, o u em suas ações pelas quais procura,
cotidianamente, reafirmar sua condição de ser único que se
distingue radicalmente de todos os outros no mundo da na-
tureza. Essa ação, lembrando Paulo Freire, não é outra senão
o exercício da cultura e da educação. Ambas, podendo ser
entendidas, a priori, como condição e produto da natureza
do homem, de sua capacidade de criar símbolos, significar
e (re)significar nos seus processos de interação com o meio
e de reflexão sobre si mesmo (TOSTA, 1999). Nesses termos,
também salienta Brandão (2002, p . 139),

[...] olhada desde o horizonte da antropologia, toda a educação é


cultura. Toda a teoria da educação c uma dimensão parcelar de al-
guns sistemas motivados de símbolos e de significados de uma dada
cultura, ou do lugar social de um entrecruzamento de culturas.

Com efeito, podemos falar de possibilidades de interação


entre antropologia e educação considerando que a interdisci-
plinaridade revela tensões permanentes que não podem ser
desconsideradas ou diluídas. Dentre essas tensões, podemos
lembrar os modos como campos científicos carregando o
peso de sua tradição, de implicações históricas - conceituais e

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COLEÇÃO " T E M A S & EDUCAÇÃO" PARA U M A A N T R O P O L O G I A D A EDUCAÇÃO

metodológicas são apropriadas fora de seu campo de origem, devida concorre para os "usos e abusos" conceituais ou, nos
destituindo - de sua constituição científica, das categorias que termos de Durham, o perigo do "deslize semântico".^
fundamentam seu pensar e o seu fazer. Nesses casos, quase O que se constata, nesses casos, é a redução de toda uma
sempre o resultado é uma articulação teórica em que o campo epistemologia a u m conjunto mais ou menos ordenado de
que tomou o outro de empréstimo pouco se desloca de seu técnicas de investigação com variadas denominações. Não se
lugar e faz uso meramente instaimental do primeiro. pode perder de vista que metodologia compreende atividade
Quando esse movimento envolve a antropologia os reflexiva de natureza teórica. Longe se ser, simplesmente,
resultados não têm sido diferentes, como revelam pesquisas sinónimo de técnica de pesquisa, metodologia requer sempre
que tomam como objetivo compreender esse trânsito entre uma atitude reflexiva, pois implica crítica epistemológica.
campos ou essas tomadas de empréstimo, Para usar uma Contra o mau uso da "interdisciplinaridade", na medida em
categoria elaborada na própria antropologia, o célebre ensaio que o diálogo entre disciplinas e discursos científicos não
de Mareei Mauss sobre a dádiva nessa relação científica na elimina as fronteiras ou competências específicas referentes
qual deveria, pensamos, ocorrer uma relação de reciproci- a uma área de conhecimento partilhada, portanto, os campos
dade - ao ato de dar e receber, espera-se a retribuição tão científicos se retroalimentam, é indispensável ao diálogo
plena de significados como o ato que lhe precedeu - , o que entre as ciências, antes, o exercício de uma reflexividade
se pode constatar é u m fechamento ou uma indisponibili- epistemológica que, tomando de empréstimo da fenome-
dade à troca ou ao diálogo. Metaforizando, percebe-se certa nologia, espera-se obter a "fusão de horizontes". Antropo-
despreocupação daquele que entra na casa do outro sem logia e educação, por princípio, gozam de uma vocação
atentar para a obrigação de receber e retribuir como fun- interdisciplinar. Vejamos.
damento de trocas não só económicas, mas também como
fundamento de diálogos, de interações no campo da ciência, A i n t e r d i s c i p l i n a r i d a d e c o m o vocação
arriscamos a dizer. Desse modo, as "relações de empréstimo"
A interdisciplinaridade, entendida como os saberes co-
da educação na antropologia não se situam em u m cenário
muns a uma ou mais matrizes do conhecimento, vem sendo
muito diferente desse.
colocada como dimensão necessária a qualquer projeto
U m ponto de partida para se refletir sobre essa relação científico que se queira implementar com vistas a obter avan-
no campo da antropologia é, sem dúvida, o modo recorrente ços teóricos e empíricos mais consistentes e de relevância
com o qual se dá a tentativa de dialogar com a antropologia social. No campo educacional, seja o da educação escolar,
pela apropriação da etnografia. Apropriação que, como seja o da educação não formal, cremos não ser diferente. E
entendemos, não deve desconsiderar a etnografia enquanto as possibilidades de interiocução entre educação e outros
dimensão metodológica que constitui e institui o conheci- saberes, no âmbito das ciências humanas o u da natureza,
mento antropológico em sua intencionalidade histórica de têm sido tema de constantes diálogos entre pesquisadores
conhecer o outro e fazer desse encontro uma possibilidade de diversos matizes. Haja vista, por exemplo, os inúmeros
de reflexão sobre si mesmo. Seja a etnografia clássica, seja estudos que têm procurado abordar o fenómeno educacional
a etnografia mais contemporânea, c o m todo o debate que
a cerca. Em outros termos, afirmaríamos que técnicas que
' Sobre esse movimento, conferir os artigos de VALENTE (1996); TOSTA (2007)
não carregam teorias esquecem-nas. Assim, a apropriação e DURHAM (1988), que, de certo modo, orientaram todos esses trabalhos
de qualquer "método" sem a crítica epistemológica e cultural ao colocar em questão essas trocas supostamente interdisciplinares.

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PARA U M A A N T R O P O L O G I A D A EDUCAÇÃO
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a partir de outros enfoques que não os tradicionais oriundos interdisciplinaridade, uma vez que, como definiu Cyril
da pedagogia, da psicologia, da economia.^ Em termos gerais, Belshaw, "as relações interdisciplinares são corpúsculos es-
observa Brandão (2002, p . 137), senciais no sistema vital da antropologia; sem eles perderia
ela sua eficácia" (DAMATTA, 1993b, p. 35-36). Se reconhecer-
Vivemos afortunadamente tempos em que em todos os campos
mos, por u m lado, que tal vocação é problemática porque
da criação do saber, há um crescente reconhecimento de que
diz respeito, por exemplo, a certa dificuldade de demarcação
uma integração entre as ciências e, até mesmo, entre elas e outras
identitária da antropologia, por outro, a torna uma ciência
esferas humanas de razão e de sensibilidade, parece ser a tinica
saída em direção à descoberta do novo. Da astrofísica ã psicologia social, possivelmente a primeira, como defende DaMatta, a
estamos cada vez mais mergulhados no desafio de buscar pensa- ter consciência dessa canónica qualidade.^
mentos, pesquisas e teorias mais e mais interdisciplinares.
Outro aspecto importante que esclarece sobre a na-
Pensando assim, diremos que a ciência antropológica tureza interdisciplinar da antropologia é seu trabalho de
se constitui numa esfera privilegiada e que muitas possibi- campo - a Etnografia. T o d o antropólogo sabe e nós discu-
lidades oferece para o aprofundamento desses debates, por timos isso no segundo capítulo deste livro, das exigências
sua reconhecida capacidade de privilegiar e bem abordar a de conhecer o "outro", de embrenharmos n o "fato social
cultura como dimensão fundadora da sociedade d o humano total" e de como essa tarefa exige a busca de aportes em
e, historicamente, tomar como objeto de estudo o homem e outros campos disciplinares. U m e x e m p l o clássico é o
entendimento do código linguístico do nativo que coloca
a cultura. O que significa dizer que o conhecimento acumu-
para o pesquisador a busca do conhecimento necessário a
lado pela antropologia ao longo de sua história possibilita
esse domínio imprescindível na comunicação com o sujeito
u m olhar mais alargado e descentrado, permitindo captar
de sua pesquisa.
dimensões da condição humana que exigem uma percepção
mais cautelosa e atenta sobre a complexidade da trama social, Se quisermos desde já pensar nos termos da educação,
tal como se apresenta na contemporaneidade. não é difícil imaginar a importância da língua em seus estudos
e em seu objetivo de escolarizar e socializar os indivíduos em
A natureza desse conhecimento pode ser explicada como
sua cultura. E nesse sentido, ainda que tardiamente, é verdade,
bem coloca Roberto DaMatta (1993b), exatamente por ter a
mas a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996
antropologia desde seus primórdios a marca da interdiscipli-
definiu que, para a educação indígena, deverão ser formados
naridade. O u seja, essa ciência é interdisciplinar por natureza,
professores índios ou pertencentes à cultura na qual serão
desde que definiu u m ambicioso programa que tem como
escolarizados os alunos. Entre outras razões, está o esforço
meta conhecer o h o m e m em todas as suas dimensões ou,
de preservar e vivificar a língua nativa. Em outros termos, em
como diz Mauss, o "homem total".
nossas viagens à "aldeia", necessitamos ter o domínio dos
Realizar tarefa tão ambiciosa colocou em pauta c o m o diversos aspectos da cultura d o outro, se pretendemos.
questão fundamental para a antropologia o desafio da

^ Vale ohservar, não somente interdisciplinar, como também transdisciplinar,


^ Para isso basta verificar os gmpos de trabalho que se constituíram nos últimos
pela divisão intema da ciência antropológica em diversos ramos como:
anos na ANPEd e que discutem a educação sob o prisma da cultura, do
antropologia fisica, biológica, linguística, entre outros, com os quais os
trabalho, das linguagens, da literatura. E, ainda, as pesquisas filiadas à nova
antropólogos sempre tiveram que se haver em seus estudos. Pois a investi-
sociologia e à nova história com suas diversas interpretações e orientações.
gação de fenómenos humanos complexos e em toda .sua totalidade reciuer
Um bom livro que faz um excelente inventário de pesqui.sa educacional e
sempre um olhar aberto a diversas possibilidades de interpretação.
sistematiza tais tendências é o trabalho organizado por FORQUIM (1995).

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efetivamente, formular uma explicação ética e consistente contra modelos que lhes explicavam e participando, a seu
sobre o seu mundo, que é, também, o nosso mundo. m o d o , do m u n d o globalizado.^
Entendemos, então, que para bem estabelecer conversa- Se essa tensão diz de consequências indiscutíveis para
ções entre campos do conhecimento é necessária a adoção os modelos explicativos das ciências do homem sobre o "ou-
de uma abordagem interdisciplinar mais integradora de que tro", que interrogam não somente modelos explicativos, mas
costumeiramente se fala. O u seja, não no sentido de simples- também certo enrijecimento dos campos científicos confina-
mente tentar unir a antropologia ã educação, ou qualquer outra dos ao seu discurso, a educação não passaria iinune a essa
área que seja, mas que essa parceria se faça como resultado de inquietação. Pensamos que não é mais possível permanecer
u m esforço intelectual, com a consciência de que problemas pensando a educação com práticas embasadas por visões
e temas educacionais e escolares, mesmo sendo apresentados "primárias", monodisciplinares e descoladas da realidade social
em formatos distintos e tratados, também, de maneiras distin- na medida em que ela demanda uma visão multifacetada e
tas, podem encontrar-se no caminho dessas duas ciências. E mais polissêmica do que sejam os processos educacionais, a
que adotar tal postura exige u m ir e vir analítico entre os dois escola, o conhecimento, as práticas pedagógicas, os curriculos,
campos a fim de formular essas questões que são importantes a formação e a profissão, o professor, o aluno, entre outros.
e que podem ser mais bem tratadas por ambos. Consideramos também que o contexto histórico, social
e informacional no qual estamos envolvidos recoloca outras
Movimento que nos remete ao antropólogo Nestor Garcia
mediações para se entender tais questões, e uma delas, por
Canclini (1989) em sua discussão sobre hibridação cultural quan-
exemplo, é a constatação, nem sempre consensual, de que a
do afirma a necessidade de desenvolvemos "ciências nómades"
escola não é a única depositária de saberes elaborados ou de
a fim de melhor compreender tais dinâmicas culturais, exigindo
elaboração de saberes, de formação e socialização. Além da
maior permeabilidade ou capacidade de transitar de modo mais
família e da religião, que, juntamente com a escola, são tidas
flexível por domínios que se comuniquem horizontalmente.''
historicamente como local dessa formação, outras instituições,
Problematizando a cultura na sociedade complexa
como a mídia, o trabalho, as entidades da sociedade civil orga-
alguns antropólogos argumentam que "em tempos de nizada, entre outras, também são depositárias dessa função.
g l o b a l i z a ç ã o e c o n ó m i c a e de t r a n s n a c i o n a l i z a ç ã o de
Aceitar tal proposição é reconhecer que as relações so-
bens materiais e simbólicos", exige-se u m outro tipo de
ciais na escola e fora dela se apresentam de modo muito mais
entendimento das dinâmicas sociais. Inclusive da própria
complexo e mudam com muito mais velocidade e intensidade
antropologia, que se vê diante de u m quadro em que o
quando comparadas a períodos anteriores. Fato que implica
"que (hoje) espanta os que estudam a globalização é a
uma compreensão mais abrangente e sempre renovada da
persistência, e mesmo a renovação, das diferenças em con-
totalidade da qual a educação e a escola são parte.
textos de intensa interação social" (MONTERO, 1997, p . 59).
O u seja, à antropologia não cabe mais hoje discutir modelos Nessa mesma perspectiva, outro desafio se coloca: o de
entender que nessa dinâmica social constata-se, em u m mes-
de sociedades primitivas em busca da coerência interna, pois
mo movimento, que, se a sociedade contemporânea adquire,
o que assistimos são essas mesmas sociedades se "rebelando"
por u m lado, ares de mundialização, ela assiste, por outro, ao

o termo híbrido é elaborado em relação a outros similares, pois pode


abranger diversos matizes culturais, e não apenas aqueles que decorrem de ^ A esse respeito ver o excelente balanço de Sahlins (1997a; 1997b) sobre
questões raciais - mestiçagem - , ou de questões religiosas - sincretismo. as reinvenções culturais contra a hegemonia da globalização.

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crescimento da reivindicação pela autonomia contra formas de entre ambas tem sido marcada por certo distanciamento espa-
massificação. Em outros termos, diríamos que, em contrapartida çotemporal. Assim, não é demais lembrar que o pioneirismo
a uma suposta homogeneização cultural, cresce o desejo de d o diálogo entre antropologia e educação remonta ao final
afirmação de singularidades de cada região, como língua, emia, do séc. XIX, quando a antropologia tentava compreender
crença, geração, género, religião, entre outros elementos das uma cultura da infância e da adolescência. Processos i n -
culturas nas quais são forjadas identidades de grupos sociais/' terculturais infantis e m sistemas educativos informais numa
O que nos permite afirmar que as culturas, enquanto concepção alargada de educação que teve a participação
expressões simbólicas se constituem n u m campo tensionado de antropólogos e m definições de como educar e para que
por disputas e alianças que conformam historicamente as educar o outro. Décadas mais tarde, nos anos 20 e 50 do
sociedades. Diferenças culturais aparecem recorrentemente século XX, debates de antropólogos e m torno das ideias de
como u m "problema" quando movimentos de integração Piaget e Freud forneceram maior visibilidade ã importância
homogeneizadora procuram suprimi-las o u mantê-las sob da cultura nos processos de socialização e aprendizagem.
controle. O u ainda tenta desconsiderar contradições polí- A participação de antropólogos e m programas de reformas
ticas e económicas e "naturalizar" o campo cultural. Desse curriculares promovidas nos Estados Unidos, nessa mesma
cenário não podemos "expurgar" a educação, sob o risco época, também é dado importante para entendermos as
impensado de purgá-la dos males da sociedade e cair na origens d o diálogo.
armadilha da naturalização de processos (educacionais) que Importa recordar que após a Segunda Guerra Mundial
são constituídos na e pela cultura. há certa popularização dos trabalhos de Margaret Mead e
Em vista disso, neste capítulo temos o objetivo de si- Ruth Benedict, discípulas de Franz Boas, que contribuiu para
nalizar alguns ângulos através dos quais as relações entre que sociólogos, economistas, educadores e outros estudio-
antropologia e educação, em meio a conjuntura atual, podem sos começassem a conceber a cultura como o fundamento
ser refletidas e dimensionadas a partir da efetiva interação de das estruturas sociais; e que toda estrutura se define, e m
seus campos nos cursos de formação de educadores e nas última instância, por u m sistema de comportamentos impos-
práticas e saberes docentes p o r nós compreendidas como tos aos indivíduos que, por sua vez, precisam compartilhar,
aquisições que são feitas cotidianamente nas relações que aprender e transmitir.
esses profissionais estabelecem e m suas instituições, c o m Essa é uma perspectiva de interesse particular à edu-
seus pares, com seus alunos e com o próprio conhecimento. cação, já que aprendizagem e transmissão são constitutivas
Mais particularmente temos a intenção de enfocar a questão do ato de educar, o que permite compreender, de início, de
das culturas na escola como uma realidade cambiante que que modo a antropologia pode contribuir com o pensamento
permeia os seus saberes e fazeres. educacional e vice-versa. Se a antropologia tem a ambição
de abarcar a cultura o u a sociedade e m sua totalidade, é evi-
S u p e r a n d o a distância dente que esse é u m campo, historicamente, multidisciplinar;
e para a educação, que tem na cultura sua principal fonte de
Muito embora a interdisciplinaridade seja u m tópico transmissão, é inquestionável a importância desse diálogo.
c o m u m à antropologia e à educação, ainda assim a relação Sobretudo se pensarmos na educação mais d o que como
u m sonho sobre uma abstração construída pela filosofia o u
Entre inúmeros exemplos de títulos que reúnem tais questões, ver:
por estudiosos d o assunto, e sim como a construção de u m
ESTERCI et al. (2001). processo concreto que trata de homens concretos, e m carne

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COLEÇÃO " T E M A S & EDUCAÇÃO" PARA U M A A N T R O P O L O G I A D A EDUCAÇÃO

e osso, que refletem sobre seu próprio pensamento. O u seja, Nesse caso, interessa particularmente reter uma reflexão
são todos eles capazes de aprender. antecipada por Boas, ainda no século XX, o qual, rompendo
Nesse sentido, sem pretender recuar tanto no debate com pressupostos do mestre Morgan, e abrindo as portas
sobre natureza e cultura, mas apenas pontuar alguns aspectos da antropologia para a defesa da alteridade, já prenunciava
dessa questão, vale lembrar com Camilleri (1985, p. 8), que "el a existência de u m modelo ocidental de pedagogia que,
hombre es distinto de la 'naturaleza', es decir lo construído. por desconhecer a diferença, levaria fatalmente a uma peda-
Por el mismo según Herskovitz: 'la cultura es la parte dei gogia da violência. Nada mais contemporâneo considerando
meio ambiente fabricado por el hombre'". Em outros termos, o fato de que vivemos em uma sociedade marcada por violên-
a ideia geral é que o homem, diferentemente do animal, não cia, indisciplina, desvalorização material e simbólica da escola
está encerrado em sua estrutura biológica, ele é produtor de por parte de governantes, alunos, famílias e a sociedade em
suas próprias experiências. ' • geral, cabendo, pois, a nós, mais do que antes, indagar sobre
a natureza das preocupações daquele pesquisador.
Assim, se é certo que a culmra representa acúmulo de expe-
riência, de experiências mutantes potencialmente transmissíveis, A instituição escola antevista por Boas é, em geral, persis-
e os mecanismos de transmissão não são genéticos, mas parte de tentemente atual e parece pouco preocupada em desenvolver
u m processo de aprendizagem ou de "endoculturação", afirma- mecanismos efetivamente democráticos de participação diante da
remos, então, que a ideia de cultura interessa à educação. Mais diversidade cultural por ela historicamente negada, em favor de
que isso, a educação, traduzida como endoculturação, implica uma pretensa homogeneização de suas estmmras em todos os
a afirmação de aprendizagens adquiridas e não inatas. aspectos, desde suas edificações ao conteúdo a ser ministrado.

Desse modo, toda análise consistente da cultura é sus- Boas é u m dos precursores da etnografia, e toda a sua
cetível de uma incidência direta na educação, portanto, deve obra é uma tentativa de pensar a diferença que é fundamen-
interessar ao educador. Por exemplo, é importante para o talmente de ordem cultural e não racial. É antirracista por
profissional da educação conhecer que aspectos psíquicos excelência e desmontou o conceito citado em u m estudo de
que se crêem, não apenas no senso comum, mas também em grande repercussão feito com populações de imigrantes nos
pseudodiscursos científicos, como "naturais e humanos" - e, EUA, entre 1908 e 1910. Pesquisando cerca de 18 mil pessoas.
como tais, tratados como instintos, na realidade são resultados Boas demonstrou, recorrendo a métodos estatísticos de extre-
de elaborações sociais expressas na cultura e por ela. ma rapidez (de uma geração, no caso) a variação de traços
morfológicos sob a pressão de u m ambiente novo. Mostrou
Não desconhecendo os entraves e os obstáculos ã con-
que o conceito pseudocientífico de "raça humana" concebido
vergência entre antropologia e educação, nossa proposta,
como u m conjunto permanente de traços físicos e específicos
desde o início deste livro e no caminhar para seu encerramen-
de u m grupo não resistiria a u m exame rigoroso.
to, é falar de tal possibilidade e da necessidade de educadores
e antropólogos intensificarem o diálogo em torno que lhes é
comum, ou seja, o próprio mundo do humano. diferentes. Não por acaso que os discursos multiculturais, tão em voga hoje em
dia, tenham florescido também em solo norte-americano. G. Spindler é consi-
derado o fundador desse discurso que conduziria, mais de 20 anos depois a um
' Vale registrar que a tentativa de estabelecimento de uma cultura antropológica marco da pesquisa antropológica na educação: o Council in Anthropology and
no âmbito educacional .surge, primeiramente, nos E.stados Unidos, por volta Educación - um braço da Associação Estadunidense de Antropólogos. Em 1955,
dos anos 1940. Uma das grandes razões, certamente, é a particularidade Spindler reuniria em Stanford, o primeiro simpósio dedicado à antropologia na
histórica desse país, povoado por imigrantes provenientes de culturas educação (CAMILLERI, 1985; BOGDAN; BIKLEN, 1994).

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A característica do humano n o plano físico é sua plas- inexistia como instituição independente como o ideário
ticidade, instabilidade e mestiçagem, e Boas antecipou norte-americano, queria fazer crer. E como tal, a escola
descobertas de hoje da genética de populações humanas, não estava orientada em sua organização administrativa e
recusou e denunciou o absurdo da ideia da ligação entre curricular para práticas que contribuíssem para a autonomia
traços físicos e mentais e adotou o conceito de cultura que dos sujeitos. Ao contrário, a escola centrava-se em u m aluno
lhe parecia mais apropriado para explicar a diversidade modelo, desconsiderando a diversidade da comunidade
humana. Para Boas não há diferença de natureza biológica escolar e seu entorno, e, para controlá-lo, aluava de forma
entre primitivos e civilizados; as diferenças são de culturas autoritária (GUSMÃO, 1997). . ,
adquiridas, logo não inatas.
Essa marca libertária fortemente impressa no pensamento
Cético com as grandes sínteses explicativas, tanto dos boasiano é traduzida de modo muito peculiar na educação
evolucionistas, quanto dos difusionistas. Boas f o i mais ana- brasileira nos anos de 1930, quando estava colocada ã ci-
lista do que teórico. É, para a antropologia e para a história, ência e ã política a questão de uma identidade nacional e
u m precursor no método indutivo e intensivo de campo, os modos como essa ideia seria operada e repercutiria nas
tendo defendido a etnologia como uma ciência da obser- políticas educacionais da época. Como explica Consorte
vação direta. A ele devemos a concepção antropológica (1997, p . 27-28),
de "relativismo cultural", mesmo que não tenha sido ele o
Na década de 30, marco da reflexão culturalista no Brasil,
primeiro a pensar nisto.
são duas as fontes de diversidade cultural que preocupam os
Boas defendeu que o relativismo é, antes de tudo, u m antropólogos mas, sobretudo os políticos e educadores; os
princípio metodológico a fim de escapar de qualquer forma numerosos descendentes dos imigrantes italianos, alemães e
de etnocentrismo no estudo de uma cultura particular, a qual japoneses, concentrados em sua quase totalidade nos estados do

ele recomendava abordar sem u m a priori, sem empregar sul, e os descendentes africanos, disseminados por todo o país,
contingentes profundamente diversos, física e culturalmente, e
suas próprias categorias para interpretá-la, sem compará-la
que colocavam problemas bastante específicos, em relação ao
prematuramente a outras culturas. Cada cultura é dotada de
nosso presente e ao nosso futuro.
"estilo" particular que se exprime através das crenças, dos
costumes, da arte, mas não apenas dessa maneira. Que problemas essa realidade suscitava aos idealizadores
e gestores da política educacional e como as respostas ou
O culturalismo é, assim, a linhagem do pensamento
soluções foram encontradas e operacionalizadas, e, dessa ma-
antropológico que primeiro confere à cultura o primado da
neira, como o culturalismo f o i "lido" em terras tupiniquins?
explicação da diversidade humana. E, desde essa perspec-
tiva. Boas se colocou como u m crítico atuante do sistema
O c u l t u r a l i s m o n o Brasil
educacional norte-americano, denunciando, entre outros
aspectos, a ideologia que a sustentava a cultura centrada na Duas preocupações principais p o d e m ser apontadas
liberdade, mas que, contraditoriamente, apresentava uma no referido contexto: a o abrasileiramento dos imigrantes
prática educativa mais do que conformista, coercitiva, com o e seus descendentes de modo a não se constituírem em
objetivo de criar sujeitos para o sistema produtivo de acordo u m obstáculo e uma ameaça de ordem cultural ao projeto
com u m modelo ideologizado de cidadão. de unidade nacional e a ideologia do embranquecimento
Boas demonstrava, assim, através de inúmeros estudos da raça que levou à tentativa de erradicação das tradições
realizados diretamente no campo educacional, que a escola culturais de origem africana tidas como ameaça ao projeto

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de construção de u m país "branco, ocidental e cristão". O u O fato é que, apesar dessa peculiar e interessada re-
seja, se está na cultura a explicação da diversidade social, a cepção do culturalismo no Brasil, pouco o u quase nada
erradicação de traços culturais indesejáveis é a solução para do pensamento boasiano se conhece no meio educacio-
a integração nacional. Por esta lógica, em lugar da valoriza- nal, e a atualidade de sua proposição sobre u m pensar
ção da diferença cultural, as políticas são de supressão de antropológico na educação revela que tal diálogo f o i ini-
matrizes culturais oriundas dos estrangeiros, particularmente, ciado, mas não concluído, sequer continuado.'^ Quais as
os africanos (ORTIZ, 1 9 8 6 ) .

Assim é que as ideias de Boas, ferrenho defensor da cultura


abrigo de ambíguas e inusitadas experiências, concedendo-lhes o mínimo
e de suas diferentes histórias como forma de democracia, foram
de dignidade intelectual - a noção de sincretismo (ARAÚJO, 2004).
apropriadas como uma espécie de não antropologia no Brasil. Sem incorrer nos riscos da generalização é necessário não esquecer de
Haja vista as políticas educacionais de cunho higienista orienta- antropólogos como Melvin Herskovits e Robert Redfield que, nas férteis
das pelo empreendimento de abrasileiramento embranquecedor trilhas do pensamento de Franz Boas, pesquisaram o papel do professor na
da população brasileira, tais como "o plano para auxílio federal mediação de conflitos entre a tradição e as experiências dos estudantes.
Sobre uma leiaira da antropologia da educação como setor académico nos
aos estados onde mais premente se encontrava o 'problema da
Estados Unidos, que remonta aos anos de 1970, recomendamos a leitura do
nacionalização do ensino', elaborado na gestão Lourenço Filho, artigo de Ana Maria Gomes (2006), que aborda, numa linha de continuidade
ã frente do Instituto Nacional de Estudos Pedagógico (Inep)" aos estudos da corrente conhecida como "Cultura e Personalidade", as "des-
(CONSORTE, 1997, p. 2 8 ) , criado por Getúlio Vargas em 1 9 3 8 . E, continuidades culmrais" vivenciadas pelas comunidades. Ou seja, o forte
na sequência, a perseguição aos centros de culto das tradições contraste e conflitos nos modos como se estmturam as culturas locais e "as
orientações que estmturavam as relações das atividades didáticas desenvolvidas
africanas, especialmente os candomblés da Bahia, aos catimbós
na escola" (p. 3). Para isso, a autora aponta e explica as duas grandes linhas
dos estados do Nordeste e ãs macumbas do Rio de Janeiro, que se desenvolveram a partir dessa temática: 1) a análise microemográfica,
interpretadas por algims discípulos da "escola" Nina Rodrigues de Erickson e Mahatt; 2) a análise macroetaográflca, de Ogbu.
como manifestações de atraso, ignorância e feitiçaria. Nessa linha e mais contemporaneamente, é preciso fazer algumas ressalvas,
dentre elas o enorme e consistente trabalho da chamada antropologia indí-
Portanto, u m projeto educacional e cultural que servisse
gena. Essa é uma das divisões do campo da antropologia que, historicamente,
ã nação brasileira pressupunha o conhecimento dessas formas tem se debmçado sobre as que.stões específicas da educação nas sociedades
primitivas de pensamento (das culturas negras), de modo a indígenas, em defesa de seu patrimônio e respeito à interculturaiidade, ao
definir mecanismos de correção e de assepsia desses verda- multilinguismo e ã etnicidade. Prova disso é a conquista de uma legislação
deiros entraves ao progresso e futuro do País. Fazendo uso específica .sobre a educação indígena, que, em grande medida, foi elaborada
e promulgada em face das pressões de movimentos de defesa da cultura
ideológico de u m discurso de reconhecimento e respeito ãs
indígena com ampla participação de antropólogos e de suas pesquisas. O
diferenças sociais, tal projeto procurou, na verdade, a supres-
Decreto Presidencial 26/91, em articulação com as secretarias estaduais e
são dessas diferenças em nome do progresso nacional. O u municipais de Educação, vem implementando uma política nacional de
seja, estudos realizados revelando a existência de diferentes e educação e.scolar indígena que inclui a formação de professores indígenas
desiguais modos de vida serviram, na verdade, para sustentar atendendo a preceitos legais estabelecidos na Constituição de 1988, na Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e no Plano Nacional editada
o princípio da educação como forma de controle social.*
em 1996. Isso tomou possível o programa de implantação de escolas es-
taduais indígenas no País a partir de 1997. Igualmente podemos dizer da
Lei Federal 10.639, de 2003, que obriga o ensino da história da África e dos
" Não podemos deixar de anotar que outra leitura do culturalismo no Brasil
afro-brasileiros em todas as e.scolas do País, públicas ou particulares, e que
vai ser feita com Gilberto Freyre, que, como Boas, recusa o conceito de
contou com a ampla participação de antropólogos na sua elaboração.
cultura como "uma segunda natureza" e pensa o processo cultural como

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implicações da retomada dessa conversa hoje, no âmbito e acaba sendo deixado muito mais aos cuidados da psicologia
de uma sociedade complexa e que muda numa velocidade e de ciências afins, inclusive a pedagogia. Como afirma o
nunca antes vista? ,! < .-, referido autor:
Quando afirmamos essa incipiente e descontínua conver- Uma das dimensões mais essenciais de tudo que envolve a
sa entre a antropologia e a educação, não podemos deixar educação foi tornada opaca, sem sentido, isenta de perguntas,
de notar que, também, no campo antropológico, pouco se vazia de respostas. Do tripé em que ela deveria e.star assentada:
sabe ou se pesquisou sobre a instituição escolar, suas dinâ- a pessoa humana, a sociedade e a cultura, faltou um dos pés

micas e os demais processos de aprendizagem que ocorrem de apoio. (p. 144)

de forma paralela ou concorrencial a ela. Pois bem, retomar uma conversa entre antropologia e
Recorremos novamente ao mestre Cados Rodrigues educação^" pode passar pela escolha de diversas chaves:
Brandão para bem lembrar que o mundo da educação é u m teorias antropológicas e teorias educacionais, recortes
mundo ainda por demais estranho ao mundo de estudiosos conceituais que interessam à educação, como é o caso da
da cultura, o que soa paradoxal, se afirmamos reiteradamente ideia de cultura, por ser ela a categoria fundante do pen-
a educação como cultura. samento antropológico, como já destacamos neste texto.
Bem como pelo eixo metodológico, c o m a realização de
Mas a verdade é que, na atualidade, poucos antropólo-
algumas etnografias. : • ?
gos das diversas linhagens de pensamento se interessaram
pela educação e pela escola como Boas e seus seguidores. E mais, se considerarmos a literatura educacional nas
Desde a criação da moderna antropologia persiste u m relativo últimas décadas fica por demais evidente a incidência de
distanciamento de "tudo que tem a ver com as estruturas e tentativas de reflexão e elaboração de u m pensamento edu-
processos intencionais e agenciados de socialização peda- cacional orientado pela antropologia, que apropria desta os
gógica de crianças, de adolescentes e de jovens" (BRANDÃO, modos como ela sistematizou seu olhar sobre o outro o u
2002, p. 141).

Uma primeira explicação para essa constatação pode É notável o esforço de antropólogos em tomar educação e escola como
campos de investigação. Um exemplo são os trabalhos desenvolvidos no
residir na própria antropologia, afirma Brandão, nosso ofício,
Núcleo de Antropologia Urbana (NAU), da USP, sob a coordenação do Pro-
de antropólogas e antropólogos, é muito mais dirigido ao
fessor José Guilherme Cantor Magnani, que vem desenvolvendo pesquisas
mundo dos adultos do que ao de crianças e jovens apren- sobre jovens em seus vários trajetos, inclusive a escola e a educação de
dizes. "Crianças e jovens atraem nossa atenção mais como pessoas portadoras de deficiências. Já do lado da educação, vale registrar
participantes de rituais de passagem, do que como lentos os esforços de Marília Sposito, da Faculdade de Educação da Universida-
sujeitos submetidos a u m 'longo trabalho de saber'" (p. 142). de de São Paulo (USP) - no Observatório da Juventude, com pesquisas
A comparação do autor é exemplar: socioantropológicas envolvendo, principalmente, jovens e escolas.
Destacamos, também, o esforço empreendido desde a década de 1980 por
Guardadas as proporções, é como se uma antropologia nascida um gmpo de pesquisadoras mexicanas do Departamento de Investigación
da pesquisa de observação participante junto a comunidades Educativa (DIE), da Universidade Autónoma do México, que introduzem no
tribais, interessassem muito mais os ritos de formatura e o destino campo da educação o conceito de cotidiano e de vida cotidiana de Agnes
social do "formado", do que o trabalho escolar cotidiano de sua Heller, propondo o estudo do cotidiano escolar como um caminho para
formação através da aprendizagem, escolar ou não. (p. 142) compreender a natureza da relação entre o Estado e as classes populares. E
como metodologia propõem uma "emografia da escola". Tal gmpo está sendo
A bem da verdade, todo o mundo da cultura, no qual estudado por Rocha e Tosta (2009), em projeto de pesquisa financiado pela
educação e escola estão imersos, adquire vida e plasticidade FAPEMIG nos termos de uma apropriação da antropologia pela educação.

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elaborou meticulosamente uma tensa e densa fenomenologia A educação c o m o c u l t u r a


do olhar como vimos antes.
Claro que ao falar de cultura, estamos sempre a consideran-
Passamos, então, a falar da convergência entre antropo- do no plural, reconhecendo com Forquim (1993) que a cultura
logia e educação, conscientes de que o que aqui está sendo da escola é constituída de u m mundo social que tem caracterís-
dito é tão somente uma possibilidade entre muitas. Parece ticas próprias, seus ritmos e seus próprios ritos, sua linguagem,
evidente que se as práticas educacionais escolares ou não seu imaginário, seus modos de regulação e de transgressão, seu
são construídas na cultura, isto é, se observamos, registramos regime próprio de produção e de gestão de símbolos.
e interpretamos u m cenário no qual o conhecimento, sua
No mesmo tempo e espaço da cultura da escola, outras
produção, reprodução, transmissão e circulação, a apren-
tantas cores podem ser vistas e apreciadas: processos mais
dizagem, a socialização e outras tantas interações ocorrem,
particulares e contingentes das diversas culturas presentes no
assim devem ser tratadas como fatos da cultura.
cotidiano da escola, nas interações e nas redes de sociabili-
Essa já seria uma primeira categoria a reorientar e en-
dade que ali são trançadas. E que, multicoloridas, carregam
riquecer estudos sobre educação. E a partir dessa categoria
tons e variações de outros tempos lugares o u de bricolagem
central e vital à antropologia, outras dela decorrentes como
desses outros tempos e lugares, oferecendo outras tessituras
os estudos de identidade e seus congéneres: etnia, raça, gé-
que traduzem as experiências dos diferentes sujeitos e parti-
nero, religião, geração, necessidades especiais, entre outras,
cipantes das dinâmicas educacionais na escola."
tidas como marcadores identitários estão presentes e tornam
visível o m u n d o do humano em suas diferenças; portanto, Considerando, assim, que não existe uma cultura única
atravessam o mundo da educação e da escola. na escola, temos, então, que as normas escolares (o institu-
cional) passam por u m viés que leva em conta sua outra face,
Outro ângulo para pensarmos a referida convergência
ou seja, os modos como elas são assumidas cotidianamente
entre os campos da antropologia e da educação seria o reco-
(o "vivencial"). Em outros termos, é dar conta de perseguir
nhecimento da escola como lugar de produção de significados
e receptora de significados extemos. Em outros termos, pensar e realizar, ainda que parcialmente, a meta da antropologia
as culturas na escola - o que envolve o reconhecimento de como disciplina consagrada ao estudo do h o m e m no exercí-
dinâmicas externas ao éthos escolar e que na escola atuam cio permanente da alteridade. Essa "alteridade que, acima de
nos múltiplos modos como os sujeitos pensam e agem. E as tudo", como bem sublinha DaMatta, "interessa ã antropologia
culturas da escola como aquelas expressões que configuram e se tornou sua preocupação central. Esta nova identidade,
na história esta instituição e que não nos permite imaginar que faz dela a ciência dos 'gaipos', das 'tribos', dos 'primiti-
que toda escola é igual (MEDEIROS, 2006). vos'" (1993b, p . 43) e que marca a história da disciplina.

Há que se entender que para além de uma aparente O que esse discurso diz à educação e às práticas esco-
uniformidade, a instituição escolar assim como os sujeitos lares? Certamente muito, se tomarmos os inúmeros espaços
que a fazem existir, carregam experiências e saberes que os educativos e, por suposto, espaços de socialização e de
singularizam. sociabilidades como lugares de diferentes gaipos, diferentes
necessidades que se definem no plano das identidades, cujo
Partiremos, então, reafirmando a proposição já anunciada
na introdução deste livro, ou seja, da educação como cultura, da
"cor local e da culaira escolar", sugerindo, ao final, alguns desa-
" Sobre a noção de bricolagem e os rearranjos culturais na escola, sugeri-
fios investigativos a partir da temática culmra e identidade mos, entre outros, TOSTA (2005).

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significado no m u n d o contemporâneo está aberto e polissê- correspondem às expectativas da escola, mas que respondem
mico, assim como cultura, porque e expressam necessidades próprias, tanto no nível biológico
quanto cultural, de q u e m busca seu lugar no mundo.
[...] são conceitos que remetem a uma mesma realidade, vista
por dois ângulos diferentes. Uma concepção essencialista da Por exemplo. Freire (2004) ao observar atentamente os
identidade não resiste mais a um exame do que uma concepção alunos de uma escola da rede particular na região norte de
essencialista da cultura. A identidade cultural de um grupo só Minas Gerais pôde apreender e identificar no cotidiano dos
pode ser compreendida ao se estudar suas relações com os
adolescentes os mecanismos de participação e criação de-
grupos vizinhos. (CUCHE, 1999, p. 14)
senvolvidas, rotineiramente, com relação ao uso do uniforme
Em outros termos, a identidade, seja individual, seja escolar. Nesse processo de (re)significação da "farda", o que
coletiva, pressupõe sempre a dimensão da alteridade como está sendo dramatizado é o processo de constmção de u m
uma categoria social e relacional. Ela se constrói a partir de estilo cultural próprio que se estende, até mesmo, a outros
experiências comuns com as quais os indivíduos se defrontam espaços {pedaços) nos quais os alunos tomam parte, tais
e confrontam entre si. É u m movimento constimtivo de dupla como a sala de aula, o pátio, a entrada e a saída da escola.
dimensão: se perceber semelhante aos outros - reconhecer e ser Em outras palavras, o desenvolvimento dessas estratégias
reconhecido e, ao mesmo tempo, afirmar a diferença enquanto evidenciavam claramente uma conexão do mundo da escola
indivíduo ou gmpo. Isto é, acolher igualdade e reciprocidade, com outros tantos espaços extemos a ela. Nesse caso, além
n u m mesmo movimento. Nesses termos, o conceito antropoló- das categorias de cultura escolar e culturas na escola - as cores
gico de identidade a caraaeriza como u m fenómeno emergente locais - , Freire reconstitui a ideia genericamente hegemónica
da dialética entre indivíduo e sociedade, distanciando-se dos de "aluno" e de adolescente para tomá-la uma ideia revestida
essencialismos ou da fixidez. Ressonância dessa atitude teórica de carne, osso e sangue, aproveitando bem os ensinamentos
pode ser encontrada na educação via estudos da psicologia, do polonês Malinowski, para mostrar práticas que produzem
pois, a dimensão interativa na qual podemos pensar as identi- "adolescentes alunos".
dades já é, há muito tempo, temática privilegiada nos esmdos O u c o m o a pesquisa recente de Ferreira (2008), a
de Vygotsky (1989). Para esse psicólogo, o homem é u m ser qual, investigando o uniforme como artefacto das culturas
que se forma a partir das interações sociais que experimenta
presentes na escola, toma uma dessas instituições como
(com os outros) ao longo de sua vida.
locus privilegiado de sentidos e representações que nos
Pois bem, assumindo essa categoria construída na antro- permitem dialogar c o m modelos éticos e estéticos na cons-
pologia, mas não só, podemos pensá-la como uma "chave" trução possível por alunos adolescentes de suas formas de
que abre à educação a percepção sobre as múltiplas ex- subversão e ressignificação do uniforme escolar na procura
pressões culturais que atravessam o cotidiano escolar. Nesse de afirmação de identidade. . , i
sentido, podemos compreender, por exemplo, como alunos
Foi também dialogando com a antropologia que Pinheiro
adolescentes usam seu uniforme e faz dele outras roupagens
(2008) deu conta de bem interpretar como adolescentes de uma
através de uma "customização"'^ criativa e, muitas vezes, irre-
escola pública se apropriavam e que usos faziam dos tempos
verente, revelando modos de pensar e agir que nem sempre
e dos espaços escolares externos ã sala de aula. Ela pode
perceber como a escola podia ser pensada para além da sala
"Customização", do original inglês custom made ("feito sob medida"), de aula, quando se consideravam os inúmeros territórios que
designa um processo de "estilização' individual da moda. eram demarcados, vividos e comunicados pelos alunos que se

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declaravam pertencer a diversas "tribos". Tribos lá de fora que [...] a experiência profunda da antropologia permitiu estabelecer que
assumiam outros coloridos dentro da escola. Esses modos como a significação das in.stituiçôes sociais não reside nelas mesmas, mas

ocupam e recriam tempos e espaços na cultura da e.scola podem em suas relações. As realidades sociais .são constmçòes que, enquan-
to tal, não têm substância nem essência. Na vida social, a significação
ser lidos como u m texto com lógicas construídas para fazer
(e tudo o que a acompanha; capacidade, poder de coerção e de
frente às normas e interdiçóes da instituição. Ou simplesmente
evocação etc) é obtida em contexto e em situação relativa.
como u m texto que aponta para o "empoderamento" desses
adolescentes de tempos e espaços in.stimcionalizados com de- Evocando Van Gennep, em seu clássico Rites depassage,
terminadas funçóes, no mais das vezes, alheias às necessidades DaMatta (1962, p . 45) nos diz que,
que penneiam as aprendizagens desses meninos. [...] descobrir o que ,se produz antes ou depois, observar a
Essas são algumas leituras de dinâmicas educativas sequência de "inícios, de meios e de fins" de uma ação, é um
que optaram por dialogar c o m a antropologia (não só, problema fundamental no estudo das culturas. A.ssim se explica
que uma fragmentação desordenada ou um isolamento demasia-
mas principalmente) articulando teoria e empiria e fazer
do rígido possam ser verdadeiros inimigos dos estudos sociais
a viagem em busca da reeducação do próprio sentido de
justos, claros e originais.
sua condição de professores, para responder à questão da
diferença e do direito à diferença como marcas das políticas Pois bem, com a antropologia é possível compreender,
de identidade d o tempo presente; tempos de multicultura- ainda, que as instituições sociais se realizam nos modos como
lismo! - uma noção tão presente no discurso educacional. E os sujeitos as pensam e as vivenciam em seus contextos.
buscar elementos para repensar os modos como a educação Apreender o contexto é estudar globalidades, modalidades de
se organiza (em termos políticos e pedagógicos) tendendo ação, estruturas de posicionamento e de poder, a polissemia
a desconhecer a diferença como u m traço que atravessa discursiva, os sentidos produzidos por e sobre u m mesmo
vida escolar, como de resto a totalidade social. objeto ou fenómeno, a instituição de papéis sociais.

Em outros termos, a exemplo dessas, são inúmeras as Ora, com a educação e a escola não seria diferente, dado
pesquisas que vêm sendo realizadas em programas de pós- que se estmturam, contextualmente, no tempo e no espaço. Nes-
graduação em educação no Brasil, nas quais a escola e seus ses termos, a história é uma grande aliada para interpretarmos
sujeitos são enfocados a partir de categorias antropológicas. como os sentidos das coisas são encontrados, afinal, "na dialética
Neste caso dos usos dos uniformes, dos tempos e espaços do objeto isolado e do tecido de possibilidades contextuais que
escolares por adolescentes, esse diálogo interdisciplinar fez rege sua significação" (DAMATTA, 1993b, p. 45).
emergir temáticas presentes no cotidiano das escolas e que Em uma instituição que, historicamente, emerge como
ainda têm muito pouca visibilidade, mas, nem por isso, de lugar do homem, para mais tarde, tomar-se espaço de mulher,
menor importância para a compreensão dos processos edu- principalmente nas séries iniciais, a presença do homem nessa
cacionais no interior dessa instituição, tomando-a sempre de modalidade de ensino, hoje, "é boa para pensar" relações de
modo relacional e em interação com a realidade social na qual género ou como a atribuição de papéis sociais é definida na
está situada.'^ De resto, como tentamos mostrar inspirados em cultura e, muitas vezes, em relações de disputa e de poder.
DaMatta (1993b, p. 45),
Buscando a construção dessa lógica do ponto de vista de
indivíduos e suas subjetividades na relação com a estrutura
" Novamente remetemos o leitor à consulta dos anais da ANPEd, espe-
social é que Melo (2002), Ramalho (2002) e Silva (2006), em
cialmente a partir dos anos 1990 e ao relatório de pesquisa "Os usos da suas pesquisas em escolas, nos oferecem leituras originais
etnografia na pesquisa educacional" (TOSTA, 2007). de como homens e mulheres se constituíram professores e

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PARA U M A A N T R O P O L O G I A D A EDUCAÇÃO
COLEÇÃO " T E M A S & EDUCAÇÃO"

professoras. E problematizam, o u melhor, trazem novos ele- socioeducativos, não os abandonamos como nossa principal
mentos para os estudos já consagrados de "feminização d o referência empírica. Ao contrário, o movimento ora proposto
magistério", como a questão d o corpo e das masculinidades quer busca ampliar a escola observando-o d o exterior, do seu
constmídas nas interações com crianças na educação infantil, entorno, d o contexto macro, nas articulações que mantém
a condição docente como uma que é elaborada nem sempre a com a realidade, seja pela presença o u , paradoxalmente,
partir de uma escolha racional, senão que de uma imposição pela ausência.'^ Daí nossa opção por ter sempre como eixo
conjuntural e cultural. Dito de outro modo, não nascemos de estudos a observação d o e n o cotidiano.
ou somos professores, tornamo-nos professores! O cotidiano considerado por nós como u m lugar privi-
Em u m universo p o r demais psicologizado e peda- legiado de análise social, pois é nele que se aprende o irra-
gogizado, outros olhares e outros ângulos de interesse na cional, o não racional, o não lógico, a desordem, o acaso, a
investigação educacional apontam a emergências de sujeitos diferença - tudo que não pode ser quantificado no vir-a-ser
que, tornados professores, alunos, gestores, animadores social, diremos que estudar o cotidiano requer u m treino
socioculturais, educadores sociais, enfim, são convocados a teórico e metodológico por parte d o pesquisador. Falamos
falar de suas vidas, de seus sonhos, suas realizações e seus ou retornamos aqui com a ideia central de uma antropologia
fracassos, como pessoas totais que são (BRANDÃO, 2002). da educação como uma fenomenologia d o olhar: de uma
"sensibilização d o olhar", usando a expressão de Geertz, para
Experiências como essas carregam nitidamente as cores
quem a realidade é u m texto confuso a ser decifrado.
interdisciplinares envolvendo múltiplos e consistentes enten-
dimentos teóricos e metodológicos e que ampliam o foco Dito de outro modo, o cotidiano não se manifesta o u se
sobre a realidade educacional e escolar e nos possibilitam dá a conhecer ã primeira vista, é preciso tempo, maturação
ensaiar outras críticas, outros olhares, outras alternativas ãs do olhar e u m "inevitável" envolvimento c o m seus sujeitos.
instituições que aí estão. Condições que não podem ser simplificadas o u desprezadas
dada a sua implicação, replicação e repercussão no processo
D o c o t i d i a n o d a educação para de pesquisa como uma apropriação e interpretação da expe-
a educação d o c o t i d i a n o riência humana e m temios holísticos.
Assim é que pensar o cotidiano é sempre pensar a
Finalmente, diríamos que a experiência de uma antropo-
realidade de m o d o interdisciplinar o u nas fronteiras de
logia da educação, conforme sistematizada e apresentada aos
campos d o conhecimento como a história e a antropologia,
nossos pacientes leitores, coloca uma exigência: o trabalho
por exemplo. Dado que investigar a vida n o fluxo de sua
de campo, em geral, traduzido nos estudos sobre o cotidiano,
cotidianidade é tomar o real e m suas múltiplas e complexas,
ou seja, estudos que buscam investigar o cotidiano de uma
escola, de espaços educativos não formais, de u m grupo,
de uma comunidade, de uma aldeia, de u m gueto, de uma Nossa referência apoia-se em estudos que incluem, por exemplo, grupos
instituição, enfim. culturais, novos movimentos sociais, trajetórias pessoais e profissionais
de professores e professoras, saberes docentes e discentes, ciberespaço,
Em outros termos, queremos reafirmar nossa opção por
interações em lugares de aprendizagem, sociabilidades, observando-os
não confinar estudos no espaço escolar - passar do estudo do de dentro e de fora da escola. O livro de Brandão (2002) aqui por mais
cotidiano na escola para e educação d o cotidiano que cerca de uma vez referenciado. Educação como cultura, traz eixos e ideias de
a escola. Pois, mesmo quando nos afastamos da instituição pesquisa sobre educação e escola nessa perspectiva também externa aos
escolar, formal ou não formal, como as ONGs e seus projetos tempos e aos espaços escolares. ,, ,

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136
COLEÇÃO " T E M A S & EDUCAÇÃO" PARA U M A A N T R O P O L O G I A D A EDUCAÇÃO

porém, integradas dimensões, que não autorizam u m ponto Tudo isso exige observação ampla da cultura e da vida
de vista fragmentado, por mais que tenhamos consciência dos social que não é "dada" em crenças, sentimentos, normas
limites da ciência e dos limites d o pesquisador na pretensa legais e costumeiras. Apreender o "fato social total" na concei-
atitude de conhecer u m fenómeno social total. tuação de Mareei Mauss, para quem, ao exercer a etnografia,
A metodologia, necessariamente qualitativa, e as fontes do- mais que ideias o u regras, precisamos apreender homens,
cumentais para o esaido da vida cotidiana implicam afirmar que grupos e seus comportamentos, ratifica Berreman (1979).
não se desprezam os dados quantitativos, pois tais dados servem Desse modo, se a observação participante coloca a ques-
para ampliar o entendimento e o uso sensato de procedimentos tão da totalidade no campo tendo em vista sua complexidade,
metodológicos qualitativos não descolados dos indicadores e isso não elimina o trabalho laborioso de coleta de dados, a
datas relativos ao macro espaço e acontecimentos. rigorosa interpretação e integração das evidências empíricaí
Fato que, em geral, implica estudos de caso bem delimi- de modo a recriar essa totalidade.
tados e a conjunção de técnicas e instrumentos de pesquisa Cremos ser esse trabalho de campo sistemático e pro-
úteis, como procedimentos relativos à história oral, ãs repre- longado inerente à abordagem do cotidiano que pode sei
sentações sociais, e, claro o trabalho de campo mediante ob- adotada pelos pesquisadores em antropologia da educação
servação participante, preferencialmente em u m grupo social pois é dessa vivência densa que damos conta de aspecto;
de dimensões reduzidas, traço paradigmático na pesquisa de centrais da realidade. Aspectos tais que, muitas vezes
campo antropológica em sua busca pelo outro. ficam e n v o l v i d o s na sombra daqueles acontecimento;
A aceitação dessas condições teóricas e metodológicas geralmente considerados relevantes p o r sua dimensão í
implica, desse modo, a aquisição de determinadas condições repercussão. Com efeito, esperamos ratificar o juízo que
materiais e simbólicas, o u seja, estudar o cotidiano é ter em antropologia constitui n o exercício mais usual da dis
claro que o tempo pode operar ou não a nosso favor! U m ciplina, mas nem por isso menos fecundo e eficaz, que (
intervalo de tempo que dificilmente se precisa, mas sabe- a capacidade de podermos ver n a q u i l o que é familiar c
se que não pode ser tão curto como aquele que remete exótico (desconhecido), e, n o exótico, o familiar. Afinal
ã aplicação de u m questionário e análise de dados, por é preciso lembrar, sugere V e l h o (1987, p . 126), "o qut
exemplo, considerando que o tempo no cotidiano não é, sempre vemos e encontramos pode ser familiar mas nãc
necessariamente, o tempo administrado e controlado pelos é necessariamente conhecido e o que não vemos e encon
nossos recursos e desejos. tramos pode ser exótico mas, até certo p o n t o , conhecido"
Há que se pensar e mergulhar n u m tempo de espera em Nesse sentido, o fato muitas vezes de estarmos imerso
que a observação, participante é u m recurso indispensável. na realidade cotidiana das escolas, o que nos é familiar
Como ensina Malinowski (1978), a grande atitude é observar acaba p o r p r o d u z i r uma relativa " m i o p i a etnográfica" qui
participando, não significando isso somente interrogar e/ou nos impede de ver o que está muito próximo e, por iss(
perguntar; a particularidade está nessa relativa "passividade", mesmo, não nos permite u m distanciamento sociológicc
no mergulhar na realidade sem ser inquiridor, mas ser capaz "O meu conhecimento pode estar seriamente comprome
de suscitar conversas, diálogos, enfim, trocas simbólicas. t i d o pela rotina, hábitos, estereótipos. Logo, posso ter un
Sendo mais receptivo no ouvir, no ver e no escrever, para- mapa mas não compreendo necessariamente os princípio
fraseando Oliveira (2000) em sua brilhante lição de pesquisa e mecanismos que o organizam" ( p . 128). A solução, s
para antropólogos e outras áreas das ciências sociais. é que se trata de uma solução, consiste e m vestir a cap

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COLEÇÃO "TEMAS & EDUCAÇÃO" -ia

de antropólogo e tentar descobrir para além d o que está


aparente u m m u n d o de significados encobertos pelos es-
tereótipos, pelos hábitos e pelas rotinas, jinji.x!^ HÍ . ' F O N T E S MULTiMÍDiA
i..... .

Essa preocupação com questões miúdas da cultura dos


gmpos e das instituições estudadas estão sempre no foco da
atenção dos pesquisadores, alertando-os para a importância de :j.b;viji) m-, > » "•> "> > '
se analisar as situações micro do cotidiano em estreita conexão
com os determinantes macroestruturais. Nessa necessidade
dialógica que se impõe sobre nós, pesquisadores, está uma
das maiores tensões e dilemas ã investigação do cotidiano. , , , j Mt '<sí'i »rii t h i.íii !
Pois é no exercício competente e constante da articulação das
relações dialéticas entre a micro, a meso e a macroanálise,
no estudo de comportamentos e estmturas sociais, das sub-
O b r a s científicas
jetividades e objetividades que demonstramos a acuidade do
olhar, do ouvir e do escrever, oferecendo uma, das possíveis ARIES, Philippe. História social da criança e da família. 2.
interpretações da realidade social (CALDEIRA; TOSTA, 2 0 0 8 ) . ed. Rio de Janeiro, Guanabara, 1 9 8 6 .

Dessa maneira, pesquisar o cotidiano exige, ainda, constmir Obra de referência sobre o processo de produção do indi-
relações de interação que envolvem, também, o pesquisador; víduo modemo desde a Idade Média, Aries nos brinda com u m
trata-se de uma constmção gradativa de comportamentos que belíssimo livro de história das mentalidades (história de longa
vão se desvelando e outros que vão se estmturando, quando de duração) no qual se revela a constmção do sentimento de
uma observação sensível e sistemática no campo da pesquisa. infância na sociedade moderna acompanhado das mudanças
na estmtura da educação e da família. Explorando o cotidiano
Assim entendemos que o investigador ocupa u m papel
das crianças na família e na escola, o historiador analisa temas
chave na pesquisa, pois cabe a ele observar, sistematizar e
como o traje das crianças, as brincadeiras e jogos hodiemos, a
interpretar a realidade pesquisada identificando ao menos
vida no intemato, os sistemas de castigo e punição, etc. Esse
duas dimensões: a pública, portanto, o lado manifesto e
livro é u m marco na historiografia moderna contemporânea
explícito das relações sociais, e a privada, o lado ao qual se
na medida em que não só renova no estudo de novos objetos
referem os elementos constitutivos e atuantes dos bastidores,
como, por exemplo, a criança, mas também na utilização de
aquilo que está, aparentemente, implícito e subsumido pela
novos métodos na aproximação do cotidiano.
realidade enfocada. Fato que requer saber que no social o
cotidiano é composto de mundos interdependentes aos quais
BRANDÃO, Carios Rodrigues. A educação como cultura. São
o acesso depende do nível de interação que se estabelece
Paulo: Mercado de Letras, 2 0 0 2 .
entre o investigador e o grupo social pesquisado. E que
O livro teve sua primeira edição em 1 9 9 5 e, certamente, é
evidencia que qualquer grupo humano tem regras próprias -
pioneiro no debate sobre educação e antropologia, assim como
traços culturais peculiares e nem sempre aparentes.
seu autor é u m incansável e "desbravador" dessa interface, ainda
em constmção. Em u m conjunto de textos, alguns deles revistos
para a edição de 2002, Brandão expressa o seu compromisso com
a tarefa de esclarecer questões cujo conhecimento desvendaria

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COLEÇÃO "TEMAS & EDUCAÇÃO" F O N T E S MULTIMÍDIA

problemas vividos pelo educador e antropólogo de nosso e no jogo do jongo com as crianças; analisa o projeto de
tempo. Apresenta e discute pesquisas de campo que tematizam implantação da educação sexual pare os alunos do ensino
culmra e as teias do aprender e ensinar, a culmra na educação médio; descreve o cotidiano de uma professora d o ensino
e a cultura popular nos anos 1960 e, especialmente, nos oferece fundamental; enfim, toma os cineastas e sua formação como
textos sobre a infância na culmra. Leitura indispensável para objeto de investigação. De u m m o d o geral, a etnografia
educadores e antropólogos, sem dúvida! entendida como observação participante acompanhada de
entrevistas, conversas, estudos de casos é o método privi-
DAMATTA, Roberto. Relativizando - uma introdução ã an- legiado utilizado pelos pesquisadores.
tropologia social Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
ERIKSEN, Thomas Hylland; NIELSEN, Finn Sivert. História
Uma das melhores introduções ã antropologia produzida
da antropologia. Petrópolis: Vozes, 2007.
por u m antropólogo brasileiro. O livro, dividido em três par-
tes, apresenta, primeiramente, a antropologia no quadro das Livro de introdução ã antropologia que foge u m pouco
aos manuais convencionais. A partir da perspectiva histórica da
ciências sociais e humanas destacando a sua especificidade
disciplina, os autores apresentam de maneira concisa e precisa
epistemológica no conhecimento do social e do cultural; em
alguns dos principais temas, problemas, dilemas, movimentos e
seguida, discute as relações da antropologia com a história ao
tendências vividas pela antropologia ao longo de sua história.
longo da própria história da antropologia moderna; por fim, o
Trata-se de u m livro que, apesar da pretensão em realizar uma
autor discute a natureza do trabalho de campo na prática da
História da antropologia, fornece uma visão ampla e relativa-
antropologia tomando como exemplo sua própria trajetória
mente de qualidade para o iniciante em antropologia.
biográfica e etnográfica nas comunidades indígenas.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro:


DAUSTER, Tânia (Org.). Antropologia e educação- um saber
de fronteira. Rio de Janeiro: Forma & Ação, 2007. LTD, 1989.
Clifford Geertz é u m dos mais originais e estimulantes
A coletânea organizada p o r Dauster consiste numa
antropólogos do mundo contemporâneo, sendo considerado
contribuição significativa para ampliar o entendimento e o
o "pai" da antropologia hermenêutica. Livro lançado nos idos
campo das relações entre antropologia e educação. Os tex-
de 1970, A interpretação das culturas apresenta a cultura como
tos, em sua maioria, são oriundos das dissertações e teses de
sistema complexo de símbolos e significados que o antropólogo
doutorado defendidas no Programa de Pós-Graduação em
deve apreender a partir do sentido atribuído pelos indivíduos
Educação da PUC-Rio. O livro é composto de nove artigos
ã sua culmra. Numa tentativa de esclarecimento sistemático do
dentre os quais se destaca o de Dauster na medida em que próprio conceito de culmra em suas relações com o comporta-
discute as interfaces da antropologia c o m a educação ao mento real de indivíduos e dos gmpos sociais, Geertz defende
mesmo tempo que sua experiência académica de ensino, a emografia como uma forma de "descrição densa" sendo o
pesquisa e orientação serve de fio condutor. Abordando melhor exemplo por ele fomecido a sua análise da briga de
temas referentes tanto à educação formal quanto a informal, galos em Bali. Mas Geertz também analisa a religião, a política,
os textos exploram processos de formação d o éthos do pro- a ideologia, mostrando que ele não se alheia ã problemática
fessor a partir da leitura; analisa as representações em torno de outras áreas afins como: a história comparada, a ciência
d o ser universitário, apresenta a trajetória escolar de técnicos política e a ecologia culmral. Trata-se de u m livro de extrema
de ensino médio, seus problemas e sonhos de vida, inves- importância para se compreender o sentido da antropologia
tiga a prática pedagógica embutida na arte dos grafiteiros produzida nas últimas décadas. .

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COLEÇAO "TEMAS & EDUCAÇÃO" F O N T E S MULTIMÍDIA

GUSMÃO, Neuza M. Mendes de; CONSORTE, Josildeth Gomes Livro imprescindível para quem busca apreender a formação
et al. Antropologia e educação: interfaces do ensino e da pes- das crianças e dos jovens desde a família, passando pela escola
quisa. Cadernos CEDES, n. 43, Campinas: Unicamp, 1997. • •> à sociedade em geral.
Este número dos Cadernos CEDES (Centro de Esmdos Edu-
cação e Sociedade da Universidade Federal de Campinas), reúne MEAD, Margaret. Educación y cultura. Buenos Aires: Editorial
um conjunto de textos de pesquisadoras de várias universidades Paidos, 1962. .... ..jn<.J . . O C Í O J ./ ..j,

do Brasil que, de certa forma, são pioneiras - como é o caso Educación y culmra é a versão espanhola de Growing up
de Josildeth Gomes Consorte, na apresentação do debate sobre in Guinea, de 1930. Livro no qual Mead analisa a formação
antropologia e educação. Os artigos tematizam encontros e de- da personalidade dos Manus, tribo lacustre da Nova Guiné.
sencontros nas relações entre essas duas disciplinas no campo Os manus apresentam acentuado apego à tradição cultural,
das ciências humanas, colocados nos termos da reflexão e da sendo uma espécie de versão primitiva do homo aeconomicus
problematização de alguns caminhos percorridos pelas autoras tal é a dedicação com que cumprem a pontualidade, a regula-
em suas respectivas práticas docentes e de investigação. ridade do trabalho, o respeito ã propriedade, deixando pouco
espaço livre para o ócio e a imaginação. O foco nas crianças
GUSMÃO, Neuza M . Mendes de (Org.). Diversidade, cultura levou Mead a experimentar o desenho infantil como uma
e educação. Olhares cruzados. São Paulo: Bimta, 2003. metodologia inovadora de pesquisa. Mead ainda lança mão
O livro reúne trabalhos de u m gmpo de pesquisadoras que da comparação dos manus com, principalmente, os norte-
se propõem a refletir sobre as possibilidades do conhecimento americanos a f i m de alargar a compreensão de ambos.
antropológico no campo específico da docência e da pesquisa
em educação. Dividido em três partes, a primeira trata de diversi- OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O trabalho do antropólogo.
dade, culmra e educação; a segunda, de diversidade e educação 2. ed. São Paulo: UNESP-Paralelo 15, 2000. .rjitntxrXI
escolar; e a terceira, de diversidade e práticas educativas. Roberto Cardoso de Oliveira é, sem dúvida, u m dos
expoentes da antropologia brasileira, e sua obra inspirou e
MEAD, Margaret. Adolescência y cultura en Samoa. 2. ed. inspira a nós, antropólogos, e outros pesquisadores do campo
Buenos Aires: Editorial Paidos, 1961, 194p. das ciências sociais. Nesse livro, o autor reuniu u m conjunto
Adolescência y cultura en Samoa é a versão espanhol de ensaios em três partes que sustentam a sua arquitetura:
do clássico de Mead, Corning of age in Samoa, originalmen- 1-) O Conhecimento antropológico, no qual reflete sobre
te publicado em 1928. Inicialmente resultado de sua tese de a constituição do conhecimento científico, especificamente
doutoramento, o livro se tomou u m marco na antropologia a epistemologia das ciências sociais e particularmente o
cultural norte-americana e u m exemplo bem-sucedido de conhecimento produzido pelo exercício da antropologia
etnografia da chamada "escola de culmra e personalidade". social e cultural; 2-) Tradições intelectuais, o autor identifi-
Mead toma os adolescentes samoanos como objeto privilegiado ca as raízes das antropologias "periféricas", comparando-as
de sua investigação sobre o papel da culmra na constimição c o m as "centrais", procurando elucidá-las reciprocamente;
e formação do "caráter" samoano. Entendendo a educação e 3*) Etnicidade e moralidade é a última parte d o livro, e
a adolescência como processo cultural, contrariando alguns Oliveira volta sua reflexão para o trabalho d o antropólogo
defensores da época que viam nesses fenómenos o resultado circunscrito ãs questões de etnicidade e de moralidade.
de herança biológica, Mead antecipa inúmeras questões que Destacamos, dentre os valiosos artigos deste livro, o texto
ainda hoje despertam a atenção de antropólogos e pedagogos. "O trabalho d o antropólogo: olhar, ouvir, escrever", e m

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COLEÇÃO " T E M A S & EDUCAÇÃO" F O N T E S MULTIMÍDIA

que, a partir de uma aula magistral. Oliveira nos faz pensar ILHA
sobre a prática da pesquisa de campo como a educação do Revista de Antropologia Social do Programa de Pós-
olhar, do ouvir, do escrever com três atos cognitivos que não Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal
se separam e que constimem nosso saber.
de Santa Catarina

SILVA, Aracy Lopes; GRUPIONI, Luis Donisete. A temática


MANA
indígena na escola - novos subsídios para professores de 1°
Estudos de Antropologia Social do Programa de Pós-
e 2-graus. São Paulo: Global.
Graduação em Antropologia Social (Museu Nacional) da
Este livro reúne artigos de vários autores sobre mais
Universidade Federal do Rio de Janeiro
de 200 povos indígenas que habitam o Brasil. Tais artigos
examinam as condições necessárias para a constmção de PONTOURBE
relações interétnicas na população brasileira. U m dos grandes
Revista eletrônica do Núcleo de Antropologia Urbana
méritos da obra é revelar a riqueza e os problemas relativos
(NAU) do Departamento de Antropologia da Universidade
ã educação nas culturas indígenas a partir das experiências
de São Paulo.
etnográficas dos autores.

REVISTA DE ANTROPOLOGIA
Periódicos
Revista do Departamento de Antropologia da Universi-
ANUÁRIO ANTROPOLÓGICO dade de São Paulo
Revista do Núcleo de Pesquisas Etnológicas Comparadas
do Departamento de Antropologia Universidade de Brasília REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCLVS SOCLMS
Revista da Associação Nacional de Pós-Graduação e
ANTHROPOLÓGICAS Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS)
Revista do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social da Universidade Federal de Pernambuco. REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO
Revista da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-
CADERNOS DE CAMPO Graduação em Educação (ANPEd).
Revista dos alunos de Pós-Graduação do Departamento
de Antropologia da Universidade de São Paulo. Sites

ENFOQUES Associação Brasileira de Antropologia (ABA)


([email protected])
Revista eletrônica dos alunos do Programa de Pós-Gradu-
ação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação
Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. (ANPEd)
([email protected])
HORIZONTES ANTROPOLÓGICOS
Revista do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino (ENDIPE)
Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. (www.endipe.org.br) , ' ' . > • .•.-> •

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Filmes e documentários I! suas alunas, ouvidas em Paris entre os anos de 1987 e 1989,
Denise Paulme, Germaine Dietrien e Germalline Tilion.
MARGARET MEAD, UMA OBSERVADORA OBSERVADA
(Margaret Mead, an observer observerd)
SOCIEDADE DOS POETAS MORTOS . ; jc . -
Categoria: Documentário
(Deadpoets society) -o f^ í ! • •
Direção; Virgínia Yans-McLaughlin /,l-/íí
Categoria: Filme s;!) <:j;r » i
Produção: EUA .h |j;b"^- • i- . ^
Produção: EUA
Ano: 1996 ')/) 'tí / ' . • ' , , ,;
Direção: Peter Weir .j >,-,.,, ,J5
Duração: 85' - >n , ; •, , ,, . '
Ano: 1989 - "•:'«:! -j ^•i^.^jKHdaú /rtt
Sinopse: Fascinante retrato de uma das mulheres mais i m - Duração: 129' '^''^> '"-"Mtumoú coqmji
portantes do século XX, pode-se dizer uma celebridade
Elenco: Robin Williams, Robert Sean Leonard, Ethan Ha-
americana reconhecida mundialmente. Ambientando nos
w k e , Josh Charies, Gale Hansen, Dylan Kussman e Allelon
anos 1920 e 1930, o documentário apresenta o contexto
Ruggiero.
histórico-cultural de formação da antropologia, os temas
Sinopse: Em 1959 na Welton Academy, uma tradicional escola
e problemas principais discutidos naquele momento, bem
preparatória, u m ex-aluno (Robin Williams) se torna o novo
como as experiências etnográficas de Mead nas sociedades
professor de literatura, mas logo seus métodos de incentivar
primitivas da Nova Guiné, Samoa, Bali e outras. O docu-
os alunos a pensarem por si mesmos cria u m choque com
mentário lança mão de atores para reconstituição de certos
a ortodoxa direção do colégio. Principalmente quando ele
diálogos, depoimentos de outros antropólogos, e filmes
fala aos seus alunos sobre a secreta "Sociedade dos Poetas
etnográficos para retratar a "aventura" de uma das maiores
Mortos". O filme soa como uma alerta para a violência sim-
antropólogos norte-americana.
bólica que habita as escolas. ^ ^

MAUSS - SEGUNDO SUAS ALUNAS ai.iA ij'HÍ5-!i;n.y<] , b ; ! . " t è O : o u í » H


A GUERRA DO FOGO , , ' ,, , ...
Categoria: Documentário , (Laguerre dufeu) , ,' , . i ri r i//
Produção: Níicleo de Antropologia Audiovisual e Estudos
Categoria: Filme ,,,, .-.-'^v' -imiA .--xlo-nm •h.ú'f. J^rr^mú
da Imagem
Produção: Franco-canadense , o aííqoiUf'
Programa de Pós- Graduação em Antropologia Social da
Direção: Jean^acques Annaud A 01 i í i i io:) OÍÍVOJ^ÍU
Universidade Federal de Santa Catarina
Ano: 1981 '"''^^ "'^''f'^'
Direção: Carmen Rial; Miriam Grossi ; 1,; ^ ,
Duração: 100'
Ano: 2002
>•'••••' •>•'!•!.;.• •.:/••: t.
Elenco: Everett McGiU, Rae D a w n Chong, Ron Perlman e
Duração: 46' — Nameer El Kadi.
Sinopse: Trata-se da biografia e das ideias de Mareei Mauss, Sinopse: O filme explora, com base em estudos paleantropo-
considerado o fundador da Antropologia francesa, que viveu lógicos, o processo de hominização iniciado há aproximada-
e escreveu durante a primeira metade do século XX. O do- mente mais de 100 m i l anos quando o h o m e m desenvolvia
cumentário f o i realizado a partir do depoimento de três de os mdimentos da linguagem. Naquele momento, grupos

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COLEÇAO " T E M A S & EDUCAÇÃO" F O N T E S MULTIMÍDIA

de hominídeos vagavam pela terra em busca de melhores Literatura


condições de vida em u m meio relativamente adverso. A ANDRADE, Mário de. Amar, verbo intransitivo. 16. ed. Belo
posse do fogo representou nesse processo uma conquista Horizonte: Villa Rica, 1995.
tão espetacular quanto representou a conquista do espaço
Ambientando na São Paulo dos anos 1920, o romance
em anos recentes. A importância do filme está em estimular
narra a estória da "educação sexual" de u m adolescente por
nossa imaginação para inúmeras questões relacionadas ã
sua governanta alemã. O pai, u m rico empresário a contrata
formação da cultura humana como, por exemplo, o domínio
Frâulein Elza para ensinar alemão aos quatro filhos, e o adoles-
da técnica de produzir fogo, o processo de aprendizado da
cente Carlos acaba se envolvendo sexual e sentimentalmente
linguagem, a padronização dos sentimentos e das emoções,
com a govemanta. Embora classificado por Mário de Andrade
a constmção das primeiras habitações e bens culmrais. É no
como idílio, estória de amor leve e poética, trata-se de uma
encontro dos gmpos hominídeos que a cultura humana se
temática forte para os padrões de moralidade da época. Pu-
desenvolve. Na produção cinematográfica, este filme é, sem
blicado originalmente em 1927, posteriormente o romance
dúvida, uma das mais significativas narrativas sobre nosso
seria levado adaptado para o cinema em 1975, com o tímlo
passado pré-histórico.
de Lição de amor, sob a direção de Eduardo Escorei.

1492 - A CONQUISTA D O PARAÍSO DICKENS, Charies. David Copperfield. 2. ed. São Paulo: Abril
(1492-Conquest ofParadise) Cultural, 1972. • - • ^" 'ÍVK'. />

Categoria: Filme A Revolução Industrial produziu profundas transforma-


Direção: Ridley Scott ções sociais na vida das grandes cidades inglesas do século
XIX. Junto com a opulência e a produção, os movimentos
Produção: EUA / Inglaterra / França / Espanha
operários, a criminalidade, as doenças, entre outras coisas,
Ano: ; 9 9 2
tornam-se fenómenos constantes na vida moderna. Charles
Duração: 155' Dickens deu atenção especial ãs crianças da Inglaterra mise-
Elenco:Gérard D e p a r d i e u , A r m a n d Assante, Sigourney rável da Era Vitoriana. Romance de 1850, David Copperfield
Weaver, Loren Dean, Ângela Molina, Fernando Rey, Michael narra a história de u m órfão que sofre terríveis maus tratos
Wincott, Tchéky Karyo, Kevin Dunn, Frank nos internatos, nas fábricas, nas mãos pessoas inescmpulosas
LangellA, Mark Margolis, Kario Salem e A r n o l d Vosloo. e dispostas a explorá-lo. Retrato de uma época que, infeliz-
Sinopse: O filme trata de u m período de 20 anos da vida de mente, não parece muito distante da realidade de milhões
Cristóvão Colombo. Acreditando que a terra não era plana, de crianças no Brasil de hoje. Existe uma versão feita para o
Colombo se lança na aventura de conseguir financiamen- cinema {As aventuras de David Copperfield), de \9(i9.
to da Coroa Espanhola para sua expedição de descoberta
de novas terras. O encontro da América resultou em uma GOETHE, Johann Wolfgang v o n . Os anos de aprendizado
grande tragédia, dadas as dificuldades de comunicação com de Wilhelm Meister. São Paulo: Ensaio, 1994.
os ameríndios e até o genocídio no qual se transformou a Publicada originalmente em 1796, essa estória obteve reco-
expedição. O comportamento que os europeus tiveram com nhecimento social imediato, dando origem a u m novo género
os habitantes do Novo Mundo f o i pautado pela incapacidade literário: o Bildungsroman ou romance de formação. Goethe
de compreensão da diferença e de reconhecimento do outro narra as avenmras do jovem Wilhelm Meister, que contrariando
como ser humano. os desejos dos pais sai em viagem com uma tmpe de artistas

150 151
COLEÇÃO " T E M A S & EDUCAÇÃO"

de teatro, condição que o possibilita viver situações inusitadas


e com pessoas de lugares e posições sociais diferenciadas. Tais
experiências fornecem a base de sua formação voltada para
REFERÊNCIAS
u m ideal de vida estético e culmral característico d o imaginário
romântico d o século XVIII/XIX.

POMPEIA, Raul. O Ateneu (crónica de saudades). 8 . ed. São


Paulo: Ática, 1984.
Romance "memorialístico", narra a estória de Sérgio e
sua experiência dramática n o intemato O Ateneu. Dirigido
pelo severo pedagogo Aristarco, o Ateneu era uma espécie de
"instimição total", de disciplina rígida, mas reconhecido nacio- ARAÚJO, R. B. Nossa história, ano 1, n. 3, jan. 2004.
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Sandra Pereira T o s t a

É docente titular da Pontifícia Universidade Católica


SOBRE O S AUTORES de Minas Gerais (PUC Minas), onde se graduou em Comu-
nicação Social (Relações Públicas e Jornalismo). É mestre
em Educação pela UFMG e doutora em Antropologia Social
pela USP. Atua como pesquisadora/professora no Programa
de Pós-Graduação - Mestrado em Educação, Faculdade
de Comunicação e Artes e Departamento de Educação da
PUC Minas.
Coordena o G m p o de Pesquisas Educação e Culmras
(EDUC) e o projeto de pesquisa "Uma etnografia para a Améri-
ca Latina: u m outro olhar sobre a escola no Brasil". É autora do
G i l m a r Rocha livro Pedagogia e Comunicação no registro da liberdade {^à.
PUC Minas, 2005) e coorganizadora dos seguintes livros: Ber-
É doutor em Antropologia Cultural pelo Instituto de
nardino Leers: um jeito de viver- Religião, Sociedade e Política
Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio
(Vozes, 2000), Educação, Cidade e Cidadania - Leituras de
de Janeiro e professor de Antropologia do Departamento
experiências socioeducativas{Autênúca, 2006), A síndrome do
de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de
medo contemporâneo e a violência na escola (Autêntica, 2008).
IVIinas (PUC Minas). Atua nas áreas de Teoria Antropológica,
Publicou artigos e capítulos de livros, dentre os mais recentes:
Simbolismo Corporal, Pensamento Social Brasileiro e Culmra
"Jovens em Escolas: sociabilidades contemporâneas" (em A
Popular. Nos últimos anos tem realizado pesquisas no campo
escola e seus atores. Autêntica, 2005), "A praça é do povo como
da educação e da religião, com destaque para as seguintes
o céu é do avião!" (em Educação, Cidade e Cidadania, A u -
publicações: "A fala ensimesmada - para uma sociologia
têntica, 2006), "2006 - Uma Odisseia das Culturas" (em Revista
afetiva da escola" (em A escola no singular e no plural- um
do Instituto de Ciências Humanas, v. 12, n. 2, set. 2007) e é
estudo sobre a violência e drogas nas escolas, Autêntica, 2006),
coautora de "Violência escolar: percepção e repercussão no
"Complexo de Emílio - da violência na escola à síndrome do
cotidiano da escola" (em A síndrome do medo contemporâneo
medo na sociedade contemporânea" (em A síndrome do medo
e a violência na escola, Autêntica, 2008).
contemporâneo e a violência na escola. Autêntica, 2008) e "A
consciência ecocosmológica na perspectiva ameríndia e no
imaginário religioso afro-brasileiro" {Religião e consciência
planetária, Paulinas, 2009). Amalmente é membro do Conselho
Técnico do Instituto da Criança e do Adolescente e profes-
sor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião
da PUC Minas e participa da seguinte pesquisa coletiva: "Et-
nografia para a América Latina: u m outro olhar sobre a escola
no Brasil", do Programa de Pós-Graduação em Educação da
PUC Minas. É autor do livro O Rei da Lapa - Madame Satã e
a Malandragem Carioca (7 Letras, 2004).

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