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Rainhas Do Insólito

O documento apresenta 'Rainhas do Insólito', uma coletânea de contos de autoras anglo-saxãs, destacando a importância da literatura de gênero escrita por mulheres. O prefácio discute a invisibilidade histórica dessas autoras e a relevância de suas obras na ficção especulativa, enquanto os contos abordam temas como horror, patriarcado e a condição humana. A edição é organizada por Lucas Marchetti e inclui obras de Marie Corelli, Marjorie Bowen, entre outras.

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xismarchetti
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Rainhas Do Insólito

O documento apresenta 'Rainhas do Insólito', uma coletânea de contos de autoras anglo-saxãs, destacando a importância da literatura de gênero escrita por mulheres. O prefácio discute a invisibilidade histórica dessas autoras e a relevância de suas obras na ficção especulativa, enquanto os contos abordam temas como horror, patriarcado e a condição humana. A edição é organizada por Lucas Marchetti e inclui obras de Marie Corelli, Marjorie Bowen, entre outras.

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Versão 1.2.5b.

Apenas para divulgadores.


Proibida a comercialização e distribuição.
Rainhas do Insólito
Contos Esquecidos - Volume 1

Alicia Ramsay, D.K. Broster,


Florecence Marryat, Marie Corellie,
Marjorie Bowen
Copyright © 2024 Lucas Marchetti

Todos os direitos reservados.

Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, distribuída ou transmitida por qualquer forma
ou por qualquer meio, incluindo fotocópia, gravação ou outros métodos eletrônicos ou mecânicos,
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Ao editor da obra pertecem todos os direitos autorais, conforme os dizeres da Lei n. 9.610 de 19 de
fevereiro de 1998 (Lei dos Direitos Autorais).

Edição: Lucas Marchetti / @olucasmarchetti


Tradução: Lucas Marchetti / @olucasmarchetti
Preparação e revisão: Úrsula Antunes / @ursulaantunes_cl
Revisão de provas: Mariana Elis / @marianaelis
Capa e ilustração: Carolina Mancini / @carolina_mancini_
ÍNDICE

Prefácio: “Em busca de uma literatura de gênero”


O Motor do Diabo: Uma Fantasia (1910)
Seda Desbotada (1918)
À Espreita (1933)
O Cavaleiro Negro (1926)
O Baú com Braçadeiras de Ferro (1868)
Prefácio: “Em Busca De Uma Literatura De
Gênero”
Úrsula Antunes

A té não muito tempo atrás, falar de ficção especulativa nos remetia


a um recorte canônico de escritores homens, abrindo-se a
exceção à Mary Shelley — mãe e pai de uma das criaturas mais
conhecidas e reinventadas do insólito. Aos leitores que se aprofundavam
mais, havia outra escritora reconhecida, Ann Radcliff, uma das grandes
expoentes — tanto na escrita de ficção quanto na teórica — da literatura
gótica. Isso significaria que a escrita do insólito estava distante do universo
das mulheres ou de seu interesse?
Através de iniciativas, por vezes de pesquisadores independentes, de
se fazer um resgate da literatura escrita por mulheres, chega-se a um
número impressionante de autoras que, sim, escreveram e foram bastante
prolíficas na ficção especulativa. E, se permitem que a prefaciadora diga,
tão ou mais dotadas de uma verve horrorífica e alucinada que os homens.
Afinal, desde que se tem notícia na História do Mundo Ocidental, a
experiência de não ser homem/masculino (e deixo essa dicotomia como
uma provocação — a prefaciadora gosta de polêmicas!) é atravessada pela
vivência do horror em múltiplos aspectos: do nascimento à maturidade; no
casamento, na maternidade, na sexualidade.
Mesmo em histórias cujo foco narrativo é de um homem, vê-se que as
preocupações — temáticas e estilísticas — se propõem a vieses mais
holísticos e emocionais, contestando a visão limitada de que “literatura
escrita por mulheres não é universal”. Bom, em um mundo no qual o
universal se refere às preocupações de manutenção do patriarcado, de fato,
essa literatura holística parecerá estranha, alheia e marginal; espaço que,
bem sabemos, foi onde se solidificou a ficção de gênero.
Nesta brilhante seleção feita por Lucas Marchetti, conheceremos a
escrita de cinco autoras anglo-saxãs em contos que trazem um panorama
amplo de temas e formas de escrita, mostrando, como mencionado antes, a
capacidade abrangente dessas autoras no que diz respeito ao
desenvolvimento narrativo.
Em “O Motor do Diabo”, de Marie Corelli, acompanhamos uma
história apocalíptica em que o próprio Diabo grita palavras de ordem e
aponta a hipocrisia da humanidade moderna, que em suas vicissitudes e
pressa, esqueceu-se de cuidar do que é importante: da alma e da casa-mãe
de todas as casas, que é o planeta. Em um momento no qual a ideia de crise
climática e Antropoceno eram temas ainda bem distantes, Corelli, em 1910,
deu corpo — ainda que salpicado por juízo de valor cristão — a uma
preocupação que, um século depois, se tornou mais do que urgente.
Já no conto “Seda Desbotada”, somos levados a um mistério familiar
que se mostra macabro e doentio. O que poderia haver de tão hediondo
numa casa aconchegante da Inglaterra do século XVIII, cujo dono era um
homem intelectual aparentemente cordial e recluso? Eis o que a sua futura
segunda esposa, a jovem Elisa, descobrirá, expondo uma das faces mais
abjetas do patriarcado. Marjorie Bowen consegue nos entreter, chocar e
refletir ao longo das páginas em que acompanhamos Elisa em sua busca
incômoda.
“Se procederes bem, não é certo que serás aceito? Se, todavia,
procederes mal, eis que o pecado espreita à porta; o seu desejo será contra
ti, mas a ti cumpre dominá-lo.” Esses versículos bíblicos dão o tom da
noveleta “À Espreita”, de Dorothy Kathleen Broster, na qual
acompanhamos Augustine Lemarchant, um literato soberbo e cínico, que
passeia pela alta sociedade conservadora por conta de seu nome e posição,
mas que escreve o que seria considerado sujo e chocante: ele é visto como
um “escritor diabólico”. Sua ganância e covardia o levará a um jogo
perigoso e cruel para manter sua glória e sua alma.
Apesar de escrito em 1926, “O Cavaleiro Negro”, de Alicia Ramsay,
evoca elementos e paisagens comumente associadas aos contos góticos do
fim do século XVIII e início do século XIX. A trama, que se passa em uma
cidadela britânica, se desenvolve em torno da morte de um dos homens da
linha do Cavaleiro Negro de seu título e uma suposta maldição relacionada
aos tesouros escondidos pelo primeiro de seu nome. Será isso verdade?
Arrematando o volume, temos a noveleta “O Baú com Braçadeiras de
Ferro”. A escolha por finalizar o livro com essa narrativa será perfeitamente
entendida pelos leitores ao chegar às suas linhas finais. Florence Marryat
expõe um universo de horror em um locus que, aprioristicamente, seria
visto como acolhedor: a família e o lar. O que era para ser um Natal
agradável na casa de campo da família Clayton acaba se tornando um
desenrolar de eventos funestos, mórbidos e pavorosos logo após a chegada
da frágil Blanche Damer, prima da anfitriã. Ao longo da trama, o baú do
título aparece como ponto de grande curiosidade e incômodo, mas o que
nós leitores não imaginamos é que, mais pesado do que o peso do baú, está
o peso de uma memória e uma culpa. Ao encampar temas e situações
rigorosamente sensíveis à experiência da mulheridade — não me
aprofundarei nessa questão para evitar revelar demais —, Marryat não tem
medo de explorar, mesmo na segunda metade do século XIX, as feridas
abertas e as marcas dos grilhões sociais sempre impuseram a quem não
fizesse parte do "centro do mundo visível”: o homem.
Rainhas do Insólito é uma iniciativa que merece ser celebrada e
reverberada. Ela mostra, em um recorte de meio século, o quanto a
produção de literatura de gênero foi prolífica nas mãos das mulheres. Se
nesses cinco contos notamos o brilhantismo e a excelência dessas autoras,
imaginem se elas não tivessem sido invisibilizadas e — confortavelmente
— esquecidas?
É pela determinação de editores, pesquisadores e leitores que autoras,
antes perdidas na obscuridade, chegam a nós e, ainda bem, tem ganhado fãs
(Charlotte Perkins Gilman e Edith Nesbit que o digam!).
Ainda há muitas minas de ouro a serem exploradas, e o esforço
continua sendo necessário. E é com essas pepitas de ouro, garimpadas e
traduzidas por Lucas Marchetti, que os deixo, após esse (entusiasmado)
texto introdutório.

Boa leitura!

Úrsula Antunes é editora, preparadora, revisora, redatora e escritora; atua como assistente editorial
na Editora Bandeirola. Tem mais de 40 contos publicados em antologias e de maneira independente.
Escreveu a coletânea "Desilusão de Ótica", publicada pela Urutau (no prelo, 2024) e em breve
lançará também seu primeiro livro de poesia: "Para tudo que nasce e morre, o interlúdio é o
presente infinito" pela Mondru. Em 2021, foi agraciada com o prêmio Grand ABERST pelo conto
"Só o fogo purifica".
O MOTOR DO DIABO: UMA FANTASIA (1910)
Marie Corelli

N a meia-noite morta, no momento supremo em que as horas que já


passaram escapam do alcance das horas ainda por vir, rompeu,
entre a Terra e o Paraíso, o estrondo de rodas gigantes — o clarão
de grandes luzes —, o fedor e o rugido abafado de um enorme Carro,
rasgando, em alta velocidade, a linha pálida que divide a escuridão da
aurora.
E Aquele que estava dentro do carro, guiando-o adiante, vestido de
preto e coroado com fogo; com grandes asas semelhantes às de morcego
que o ladeavam, desdobrando-se em teias de fumaça e chamas, e seu rosto
era branco como osso alvejado. Como brasas incandescentes, os olhos
queimavam em suas cavidades cavernosas, lançando olhares terríveis
através do espaço salpicado de estrelas, e em seus lábios finos havia uma
sombra congelada de um sorriso mais cruel que o ódio — mais mortal que o
desespero.
“Avante!”, ele gritou; “Sempre avante! Avante com impulso e
estrondo sem fim! Sobre as planícies do mundo que já se foi, sobre as
alturas do mundo por vir — avante, sempre avante! Sem pausa, sem
piedade, sem amor, sem arrependimento! Segui-me, todas as forças
destinadas a causar a ruína da humanidade — segui! Avante, por sobre toda
beleza, toda ternura, toda verdade, eu corro — eu, o vingador, o destruidor,
o torturador de almas, o arqui-inimigo de Deus! O Reino do Inferno se
expande amplo e profundo; louvado seja o homem que o cria! Conto
minhas crescentes possessões na prole sempre próspera da luxúria e avareza
humanas; respiro e vivo e me alegro nos vapores venenosos do egoísmo
humano! Os homens destes últimos dias são meu alimento e sustento; as
mulheres, minhas iguarias escolhidas, meus delicados petiscos! Bestas
brutas e cegas, eles agarram cada mentira que eu lhes obsequio; rejeitando a
vida eterna, escolhem a morte perpétua e, em verdade, terão sua
recompensa! Como uma praga, meu Espírito os cercará! E quem quer que
deseje percorrer o ar e queimar a terra deve seguir comigo o caminho reto
do desejo!”
O grande Carro avançou com rodas rangentes e trovejantes, e à
medida que voava, enormes formas fantasmagóricas o seguiram, como
nuvens rolando, recortadas pelo relâmpago; a beleza do mundo escureceu e
chamas sulfurosas apagaram toda doçura do ar.
As florestas caíram como caniços quebrados, as montanhas se
desintegraram em abismos e pedreiras, os mares e rios, lagos e cachoeiras
secaram em águas negras e lamacentas, e toda a terra ficou desprovida de
beleza. No lugar de campos verdes e bosques frondosos, surgiram cidades
gigantescas, construídas por todos os lados e repletas de milhares e milhares
de chaminés exalando fumaça nauseante para a penumbra que escondia os
céus; e as cidades estavam cheias de um barulho ensurdecedor e confusão
estrondosa como dez milhões de martelos batendo incessantemente,
afastando toda paz, toda solidão, toda saúde, todo repouso.
Avante, avante — e dentro dessas inúmeras prisões de pedra e
argamassa, o Demônio do Carro arrastou vastas multidões de seres
humanos apressados, com a força furiosa de um poderoso redemoinho
levando folhas mortas para o mar.
“Sem espaço para respirar — sem tempo para pensar — sem bem
para servir!” ele gritou. “Agora vocês esquecerão que Deus existe! Agora
vocês todos seguirão o caminho selvagem, pois o vosso caminho é o meu
caminho! Agora vocês se transformarão de volta em embriões de vermes e
macacos, e ninguém os resgatará. Não, ninguém! Pois os sete anjos do Dia
do Juízo estão tocando suas trombetas de terror, e quem silenciará suas
vozes ou deterá os trovões e relâmpagos, ou o grande terremoto?"
“Granizo e fogo! — E as árvores, e o verde da grama queimados e
destruídos! O sol e a lua, o dia e a noite feridos em uma única negridão!
Não teremos mais virtudes! Nem mais esperanças do Paraíso! A honra será
como um trapo nas costas de um tolo, e o ouro será o pulso da vida! Ouro,
ouro, ouro! Lutem por ele, roubem-no! Acumulem-no, guardem-no,
contem-no, abracem-no, comam-no, durmam com ele, morram com ele! Eis
que eu o dou a vocês aos milhões, compactado e prensado em medida cheia
e transbordante, eu o espalho entre vocês como uma chuva destruidora!
“Construam com ele, comprem com ele, apostem com ele, vendam
suas almas e corpos por ele: há demônios suficientes no Inferno para
negociar todos os seus acordos! Zombem da verdade, vençam a justiça,
arranquem a máscara da virtude para cobrir o vício, droguem a consciência,
alimentem-se e engordem com as luxúrias do animalismo até que o câncer
do pecado faça de vocês uma putrefação e uma ferida aberta aos olhos do
sol! Venha, aprendam comigo tal sabedoria que levará à vossa própria
destruição! Para vocês serão desvendados os mistérios ocultos da natureza e
os segredos do ar superior — vocês dobraram o raio a seu favor, e o raio
matará! Vocês escavaram o solo e abriram uma estrada rápida através dele
para si mesmos em presumida e orgulhosa segurança, e a terra desmoronará
sobre vocês como uma sepultura, e as cidades que vocês construíram os
esmagarão em sua queda! Vocês tentaram amarrar os ventos e navegar pelos
céus, e a morte esperará por vocês nas nuvens, regozijando-se com vossa
queda! Venham, amarrem seus carrinhos pigmeus ao sol e assim sejam
arrastados para o vórtice flamejante da perdição! Toda a Criação se
regozijará em ser purificada da poluição da presença de vocês, pois Deus
jurou me dar todos aqueles que O rejeitam, e a hora do presente chegou!”
Cada vez mais rápido voava o Carro — meteoros vermelhos
piscavam em seu caminho —, e as formas fantasmagóricas que seguiam seu
voo se aglomeravam em uma multidão cada vez mais densa, cada vez mais
escura, enquanto estrelas brilhantes eram sacudidas do céu como flocos de
neve rodopiando em uma rajada de inverno. E, misturando-se com o rugido
estridente de suas rodas, surgiram outros sons — sons de risos ferozes e
maldições altas; berros e gritos e gemidos de tortura; os gritos dos
sofredores, os soluços dos moribundos —, e enquanto o Demônio dirigia-se
com fúria célere e crescente, homens, mulheres e crianças eram pisoteados
uns sobre os outros e mortos aos milhares, e o Carro ficou ensopado de
sangue humano. E Aquele que estava vestido de preto e coroado com fogo
gritou triunfantemente avançando sobre montanhas de nações mortas e
restos despedaçados de tronos.
“Avance e acelere!” ele gritou. “Corra, mundo, comigo! Corra! Só
há um fim, apressemo-nos para alcançá-lo! Sem paradas no caminho para
colher as flores do pensamento, os frutos do sentimento; sem pausa para
levantar os olhos para o amplo firmamento, onde milhões de esferas, mais
belas do que esta que os homens tornam miserável, navegam em seus
cursos como belos navios rumo aos portos dourados de Deus! Sem tempo
para ouvir o canto dos pássaros da esperança, o murmúrio das doces águas
refrescantes, o cicio das ervas frescas que ondulam no campo da paz; sem
tempo, sem parada, sem pausa para respiração tranquila, avante! Para
sempre, avante!
“Subam e cavalguem comigo todos vocês que querem alcançar o
objetivo! Venham, tolos da avareza! Venham, bolsas de vento infladas e
estourando de vaidade e pretensão mundana! Venham, bocarras gananciosas
da glutonaria; vocês, recipientes humanos de bebida; vocês, lobos do vício!
Venham, mulheres sem vergonha de luxúrias, mentiras e vaidades! Venham,
corações falsos e línguas traiçoeiras e rostos pintados! Venham, queridos
demônios todos, e cavalguem comigo! Venham, vocês que fingem
santidade; vocês, ladrões de virtude, que dão 'caridade' aos pobres com a
mão direita e enganam o próximo com a esquerda! Venham, vocês,
jogadores com a honra de uma nação, apostem sua última jogada! Venham,
todos vocês, vampiros alimentados com morfina e escravos do veneno!
Agarrem-se às minhas rodas e segurem! Avante, avante, sobre os
fragmentos de impérios poderosos, sobre os corações de reis e rainhas,
sobre as vidas dos bravos, dos bons e dos sábios! Pisoteiem todos eles e
esmaguem-nos em pó e cinzas! O que faremos com a sabedoria, nós que
acabamos com Deus? O que faremos com a pureza? O que faremos com a
coragem? Nada disso é senão reprovação e amargura: meros obstáculos no
caminho que leva à destruição; destruam-nos! Avante, avante! Até o fim
destinado! Em frente com pressa e ansiedade ofegante para alcançar o único
objetivo, o último dos postos vencedores, o fim das certezas — o
ᴛᴜ́ᴍᴜʟᴏ!”
Como um borrão fulgurante de rodas flamejantes, o Carro agora
girava na escuridão da noite, e os fantasmas flutuantes ao seu redor eram
como grandes velas cinzentas enchendo-se com a rajada furiosa e levando-o
adiante através da escuridão.
“Não ore mais, não espere mais, não ame mais!”, exclamou o
Demônio. “Sejam como as areias movediças ou como o mercúrio trêmulo
— inconstantes, caprichosos, sempre em movimento, nunca em repouso!
Mudem, mudem e se revoltem! Todos vocês que estão cansados das coisas
antigas, vejam, eu lhes dou o novo! Os corpos serão mimados e as almas,
mortas para o seu prazer; as piores vilezas serão chamadas simplesmente de
'sensações', cada uma a ser experimentada, desculpada e condenada por sua
vez, e as virtudes não terão mais lugar na balança de sentimentos! A música
da vida se chocará em desacordo selvagem; o amor pelo lar será uma glória
perdida; a ternura pelos jovens e a reverência pelos velhos serão os
sentimentos desbotados do passado, apenas adequados para uma brincadeira
tola! Mudança — mudança e sensação! Desenrolem suas colunas de
notoriedade vaporosa, vocês, prensas de impressão do mundo! Espalhem a
fama do anarquista e da cortesã, zombem e difamem os espíritos sábios e
verdadeiros, divulguem o nome do assassino e tratem o poeta com escárnio,
deem bajulação aos ricos e desprezo aos humildes, ensinem apenas a arte da
mentira, acrescentem veneno à língua da fofoca, desenterrem os túmulos
dos grandes e matem a reputação dos bravos e puros!
“Não ajudem nada que seja nobre, nada que seja honesto, nada que
seja de Deus ou para Deus; imprimam cada mentira, invejem cada verdade
e que o som de sua trombeta seja o do ateísmo estridente e da perversidade
até o fim! Coloquem o comércio contra o comércio, comunidade contra
comunidade, nação contra nação, até que, com sua fanfarronice vazia e
conversa sem sentido, vocês encham seu caldeirão de bruxas de maldade e
contenda até transbordar! Subam e cavalguem comigo, vocês,
conspiradores contra a paz! Vocês cujas mãos estão contra todos os
homens! Não há tempo a perder — para o alto e para longe com ímpeto e
estrondo! —, pois a Grande Estrela caiu do Paraíso à Terra, e a Ele foi dada
a chave do abismo sem fundo! O abismo está aberto, o portão está
escancarado: subam e acelerem comigo!”
Como um relâmpago, agora o grande Carro rasgou o espaço — suas
lâmpadas fulgurantes piscando, suas rodas rangendo com o estrondo
sombrio de um vulcão em erupção —, e no meio de gritos e berros
indescritíveis, ele saltou, como se fosse de pico a pico das nuvens
cambaleantes que se erguiam acima e ao redor dele como montanhas
poderosas. E logo parecia que uma fina e pálida linha de fogo roxo brilhava
ao longe, e por essa luz se via um monstruoso cume de escuridão densa
projetando-se abruptamente sobre alguma vasta profundidade incalculável
de horror. Avante — ainda avante — o Carro corria; e Aquele das vestes
negras e coroa flamejante acelerava sua velocidade imprudente com gritos
selvagens de riso ainda mais selvagem.
“O mundo todo com tanta pressa de morrer!”, ele exclamou. “Todo
o mundo enlouquecido com a loucura do movimento! Lá em cima no ar,
aqui embaixo na terra — todos transformados em átomos giratórios,
voadores e arremessados no meio de uma tempestade de poeira, e eis o fim!
Sejam pacientes agora, pois vocês nunca mais vagarão! Fiquem em silêncio
agora, pois oração e maldição, riso e lágrimas estão encerrados! Deixem o
ouro acumulado escorregar de suas mãos, ele não pode comprar mais nada!
Valeu a pena, vocês acham, essa corrida desenfreada para serem lançados
ao silêncio?
“Valeu a pena deixar a luz do sol por esta escuridão? A beleza por
esta decadência? Os doces sons do amor e da ternura por este brilho eterno
da chama que não se apaga, esse roer do verme eterno cujo apetite nunca se
satisfaz? Eis que vocês incendiaram um mundo para iluminar o Inferno com
sua chama! Mas o mundo florescerá novamente como uma flor brotando do
pó, e vocês, cujas vidas sem alma foram uma maldição e um ultraje à sua
beleza, não mais percorrerão seus caminhos agradáveis!
“Regozije-se, ó terra! Regozije-se, ó mar! Por se libertarem do fardo
da humanidade! Regozijem-se, ó pássaros, pois a mão do saqueador não
ferirá nem matará mais! Regozijem-se, ó árvores, pois o machado do
destruidor não mais os derrubará! Regozijem-se, ó todas as criaturas vivas
do campo e da floresta, pois a traição não mais percorrerá o mundo
disfarçada de homem! Reclama de volta teu planeta, ó grande Deus,
purificado de uma raça diminuta! Cria uma nova humanidade! — esta já
passou!”
Avante — ainda avante — ao longo do cume negro projetando-se
sombriamente sobre a imensidão silenciosa, com um turbilhão de fogo e um
rugido de trovão, o Carro voou, e então, como se por uma breve fração de
segundo ele pausou!
Como uma vasta sombra entre a Terra e o Paraíso, o Demônio parou
— sua mão ossuda no volante —, e cada ponto de sua coroa flamejante
cintilava com o brilho de um milhão de estrelas. Ao seu redor voavam e se
curvavam inúmeras formas terríveis de fantasmas: alguns como navios
naufragados, outros como bandeiras de honra rasgadas; alguns como
guerreiros montados, outros como reis entronados; alguns como mulheres
belas envoltas em uma névoa de lágrimas; e sob suas asas semelhantes às de
morcego, estendidas de norte a sul, havia uma multidão pálida de rostos
brancos, olhos selvagens e mãos suplicantes — todos esmagados juntos em
uma massa contorcida de agonia! Mas nenhum som saía daquelas bocas
mudas escancaradas de terror, todos estavam silenciosos como a própria
morte, e apenas o rugido trovejante do Carro ecoava pelo espaço, quando,
após aquela pausa infinitamente breve, ele avançou, furioso, adiante e
abaixo! Abaixo, abaixo, direto sobre a beira daquele precipício místico, no
abismo insondável do invisível e desconhecido!
Mil relâmpagos saltaram atrás dele, mil ecos estrondosos vibraram
através do Universo com sua queda; um grito humano horrível estremeceu
até o Paraíso, e então: silêncio.
Gradual e gentilmente, por débeis graus, um brilho dourado pálido
dividiu a escuridão com o lânguido surgir da alvorada; um vento fresco
separou o ar em doces sopros fragrantes e, no centro da terrível quietude,
um sol escarlate se ergueu lentamente, imprimindo o selo vermelho de Deus
na história encerrada de um mundo!
SEDA DESBOTADA (1918)
Marjorie Bowen

E sta é uma história que pode ser contada de muitas maneiras e de


vários pontos de vista; ela precisa ser reunida de fragmentos —
uma carta, um relato, um diário, uma referência casual; em sua
época, o acontecimento foi mais do que uma maravilha passageira,
deixando uma marca de horror duradouro na vizinhança.
A casa em que o Sr. Orford morava finalmente foi destruída, e a
placa memorial na Igreja de St. Paul, em Covent Garden, pode ser
procurada em vão pelos curiosos, mas pouco resta da antiga praça onde o
tranquilo estudioso fazia suas caminhadas diárias. Os próprios registros
daquilo que já foi tão real se tornaram embaçados, quase incoerentes, em
suas súplicas às coisas esquecidas; mas o fato aconteceu com pessoas reais,
em uma Londres real, há um tempo não tão distante que a geração atual não
tivesse conversado com aqueles que conviviam com alguns dos atores nesse
terrível drama.
É em torno da pessoa de Humphrey Orford que esta história gira,
pois, na época, todo o mistério e horror se concentravam nele; no entanto,
até que sua personalidade fosse trazida tão tragicamente à fama, ele não era
objeto de muito interesse para a maioria; talvez tivesse uma leve reputação
de excentricidade, mas isso se baseava apenas no fato de se recusar a
participar dos divertimentos de seus vizinhos e mostrar aversão à
companhia.
Contudo, isso era desculpado com base em suas predileções
acadêmicas: sabia-se que ele estava traduzindo em versos, de maneira
tranquila e adequada a um cavalheiro, o grande romance de Ariosto em
inglês, e que estava escrevendo ensaios sobre assuntos recônditos
relacionados à gramática e à linguagem, não sendo menos valorizados por
nunca terem sido publicados.
Seu retrato mais autêntico, feito em 1733 e destinado a ser uma
ilustração para o Ariosto quando este fosse impresso, mostra um homem
magro de cabelos avermelhados, penteado de forma bastante austera, casaco
marrom e gravata de musselina; ele olha diretamente para fora do quadro, e
o rosto é longo, bem desenhado e refinado, com sobrancelhas um pouco
mais grossas do que se esperaria de tal delicadeza de traços.
Quando esse quadro foi pintado, o Sr. Orford estava morando
próximo de Covent Garden, perto da mansão que outrora pertenceu ao
famoso Dr. Radcliffe, uma casa de fachada reta e escura, de óbvia distinção,
com um pequeno umbral sobre a porta e alguns degraus levando a ela; uma
casa com janelas arrumadas e uma atmosfera sombria, como todas as outras
residências naquela rua e na maioria das outras ruas da mesma categoria em
Londres.
E, se não havia nada notável sobre o lugar de moradia ou a pessoa
do Sr. Orford, não havia, até onde seus vizinhos sabiam, nada notável sobre
sua história também.
Ele veio de uma boa família de Suffolk, no condado em que se
acreditava ter consideráveis propriedades — embora fosse fato notório que
ele nunca as visitava —, e não tinha parentes, sendo o filho único de um
único filho, e seus pais, já falecidos; seu pai havia comprado a casa na
cidade no reinado do Rei William, quando a vizinhança estava muito na
moda, e há vinte anos ele havia chegado lá — e nunca mais a deixou.
Trouxera consigo uma esposa doente, uma governanta e um criado, e
para as poucas famílias de sua convivência que o visitavam, ele explicou
que desejava dar à jovem Sra. Orford, de disposição melancólica, a diversão
de alguns meses na cidade.

Entretanto, logo deixou de haver motivo para permanecer em


Londres, pois a esposa, raramente vista por alguém, adoeceu rapidamente e
faleceu — apenas algumas semanas depois que ele a trouxera de Suffolk.
Ela foi sepultada de forma muito simples em St. Paul’s, e a placa memorial
foi colocada junto de uma urna envolta em mármore, contendo apenas seu
nome e a data, assim descrita:

ғʟᴏʀᴀ, ᴇsᴘᴏsᴀ ᴅᴇ ʜᴜᴍᴘʜʀᴇʏ ᴏʀғᴏʀᴅ, ᴇsǫ.,


ᴅᴇsᴛᴀ ᴘᴀʀᴏ́ ǫᴜɪᴀ,
ғᴀʟᴇᴄᴇᴜ ᴇᴍ ɴᴏᴠᴇᴍʙʀᴏ ᴅᴇ 1713, aos 27 ᴀɴᴏs.

O Sr. Orford não fez esforços para sair da casa; as pessoas pensavam
que ele ficara bastante atordoado por sua perda, pois manteve-se recluso na
casa e guardou luto profundo por um tempo considerável.
Contudo, isso havia sido vinte anos antes, e todos haviam esquecido
a figura enigmática da jovem esposa, que tão poucos haviam visto e sobre a
qual ninguém sabia ou se interessava, e todo traço dela parecia ter
desaparecido da vida tranquila, regular e fácil do Sr. Orford, quando um
acontecimento que deu origem a alguns comentários fez com que a
existência anterior de Flora Orford fosse lembrada e discutida entre os
curiosos. Esse acontecimento não foi outro senão o repentino noivado do Sr.
Orford e o anúncio de seu quase imediato casamento.
A noiva era uma jovem tagarela quando o noivo chegou pela
primeira vez a Londres. Uma senhora idosa, que estava sempre à janela
observando os pequenos humores da rua, recordou como havia visto Flora
Orford descendo da carruagem que a trouxera do campo. Ela se parecia com
essa jovem que a observava da grade da casa vizinha e tocava
carinhosamente seus cachos soltos com um gesto triste.
E foi a única vez que alguém viu Flora Orford, pois ela logo ficou
doente; e a próxima vez que a senhora curiosa a viu foi no esbelto caixão
marrom sendo carregado ao entardecer em direção à Igreja de St. Paul.
Mas isso havia sido vinte anos antes, e agora essa jovem havia se
tornado a Srta. Elisa Minden, uma moça muito atraente, prestes a se tornar
a segunda esposa de Humphrey Orford. Claro que não havia nada de muito
notável na combinação; o pai de Elisa, o Dr. Minden, fora o melhor amigo
do Sr. Orford — pelo menos o mais próximo que ele poderia ter de um
melhor amigo, ou mesmo qualquer amigo — há muitos anos; ambos
pertenciam ao mesmo círculo tranquilo, ambos sabiam tudo sobre o outro.
O Sr. Orford tinha pouco mais de quarenta e cinco anos, um homem
elegante e bem-apessoado, rico, sem vícios e temperamento calmo e
equilibrado; enquanto a Srta. Elisa, embora bonita e bem-educada, tinha um
dote insuficiente, não tinha mãe para cuidar dela e tinha irmãs mais novas
para dividir seus escassos privilégios. Então, o que alguém poderia dizer,
senão que o bom doutor havia feito um bom casamento para sua filha, e que
o Sr. Orford havia tido a sorte de conquistar uma moça tão jovem e capaz
como esposa?
Dizia-se que o estudioso pretendia abandonar seus hábitos de
bibliotecário, que até falava em viajar para o exterior por um tempo, de
preferência para a Itália; é claro, ele estava ansioso para ver a Itália, pois
toda a sua vida tinha sido dedicada a preparar a tradução de um clássico
italiano.
O tranquilo noivado estava chegando à sua conclusão decorosa
quando, um dia, o Sr. Orford levou a Srta. Minden para dar um passeio e a
trouxe de volta à praça de Covent Garden, depois a conduziu pela rua de
paralelepípedos, passando pelas bancas de flores da primavera — era o fim
de março — sob o pórtico construído pelo grande Inigo Jones e, assim,
entraram na igreja.
— Quero mostrar onde minha esposa Flora está enterrada — disse o
Sr. Orford.
E esse é realmente o começo da história.
A Srta. Minden havia frequentado essa igreja todos os domingos de
sua vida e muitos dias da semana, e estava acostumada desde criança a ver a
placa memorial para Flora Orford; mas quando ouviu essas palavras na voz
tranquila de seu amado e o sentiu conduzindo-a para a escuridão da igreja,
experimentou uma grande aversão que beirava o medo.
Parecia-lhe uma coisa curiosa e desagradável para ele fazer, e ela
retirou o braço dele ao responder.
— Ah, por favor, vamos para casa! — ela disse. — Meu pai estará
nos esperando, e sua boa Sra. Boyd ficará chateada se o chá estiver amargo
demais.
— Mas, primeiro, eu preciso mostrar isso — ele insistiu e segurou o
braço dela novamente e a conduziu pela igreja, passando por seus assentos,
até que ficassem entre o fim de um banco e a placa de mármore na parede,
que ficava a apenas um palmo acima de suas cabeças. — Essa é a memória
dela — disse o Sr. Orford. — E você percebe que nada é dito sobre suas
virtudes.
Elisa Minden nada sabia sobre sua antecessora e não conseguia
dizer se essas palavras eram faladas com reverência ou ironia, então ela
nada disse, mas olhou timidamente para cima, sob a sombra de seu chapéu
florentino, para a alta figura de seu amado, que estava olhando com
severidade para a placa de mármore.
— E o que você tem a dizer a respeito de Flora Orford? — ele
perguntou, olhando de súbito para ela.
— Por favor, senhor, ela era uma estranha para mim — respondeu a
Srta. Minden. O Sr. Orford apertou seu braço.
— Mas para mim ela era uma esposa — disse ele. — Ela está
enterrada sob seus pés. Bem perto de onde você está parada. Pense nisso,
Lizzie, se ela pudesse se levantar e estender a mão, poderia agarrar seu
vestido... ela está tão perto assim!
As palavras, e a maneira como ele as disse, encheram a Srta. Minden
de um terror arrepiante, pois ela era uma garota sensível e fantasiosa, e lhe
pareceu uma coisa terrível estar parada sobre os ossos da pobre criatura que
havia amado o homem que agora seria seu marido, e horrível pensar que o
punhado em decomposição tão próximo deles já havia pertencido a esse
homem e o amado.
— Não trema, minha querida — disse o Sr. Orford. — Ela está
morta.
Lágrimas surgiram nos olhos de Elisa Minden, e ela respondeu com
frieza:
— Senhor, como você pode falar assim?
— Ela era uma mulher perversa — ele respondeu —, uma mulher
muito perversa.
A garota não pôde responder a isso; essa revelação repentina de um
segredo doloroso a deixou embaraçada.
— É necessário que falemos disso? — ela perguntou e, em voz
baixa, acrescentou: — Nós precisamos nos casar nesta igreja, senhor?
— Claro — ele respondeu bruscamente —, tudo está arranjado.
Daqui a uma semana.
A Srta. Minden não respondeu; até então, ela havia gostado da
igreja, mas agora parecia arruinada para ela; manchada pelo pensamento de
Flora Orford.
Seu companheiro parecia adivinhar que reflexão estava por trás do
seu silêncio.
— Você não precisa ter medo — ele disse com aspereza. — Ela está
morta. Morta.
Estendeu a bengala que carregava, bateu na pedra acima do túmulo
de sua esposa e sorriu devagar enquanto o som ecoava oco nas câmaras
abaixo.
Então, ele permitiu que Elisa o conduzisse para longe, e eles
voltaram para a confortável casa do Sr. Orford, onde, no andar de cima, o
Dr. Minden os aguardava, junto com sua irmã e seu filho, um primo militar
que os amigos perspicazes da juventude acreditavam estar apaixonado por
Elisa Minden. Eles formaram um grupo agradável com as cortinas
vermelhas fechadas e o fogo crepitando entre as elegantes trempes, e todo o
serviço de chá preparado com bolinhos e bolo napolitano, enquanto a Sra.
Boyd ia e vinha com pratos e bandejas. E todos estavam animados,
amigáveis e alegres por estarem juntos em casa, com uma tempestade de
neve chegando e as pessoas se apressando para casa com a cabeça inclinada
contra o vento cortante.
Mas um pensamento não convidado surgiu na mente de Elisa:
Não gosto desta casa — é onde Flora Orford morreu.
Então ela se perguntou em qual quarto, e também por que isso nunca
lhe ocorreu antes, e olhou pensativa para o rosto jovem do primo militar
enquanto ele estava em pé ao lado do fogo, com seu uniforme branco e
escarlate, e o olhar nas chamas.
Foi uma festa animada, e Elisa sorriu e brincou com os demais
enquanto servia as xícaras de chá.
Há um retrato dela pintado nessa época, e pode-se ver como ela era,
com seus cabelos e olhos castanhos brilhantes, tez rosada, nariz e boca
bonitos, e seu melhor vestido de tafetá azul lavanda com babado e capuz de
cambraia amarrado sob o queixo com laços franzidos, mostrando que então
o grande chapéu florentino com fitas de veludo estava guardado.
O Sr. Orford também parecia bem naquela noite; à luz das velas
rubras, não aparentava toda a sua idade, os fios grisalhos não apareciam em
seus cabelos abundantes, nem as rugas em seu rosto fino, mas a elegância
de sua figura, a graça de seu porte e a riqueza de suas roupas simples eram
exibidos ao máximo; o Capitão Hoare parecia rígido e quase desajeitado em
comparação.
No entanto, de vez em quando, os olhos de Elisa Minden pousavam
com uma certa melancolia no rosto jovem desse homem que não tinha uma
esposa morta em sua vida. E algo foi despertado em sua juventude dócil e
inocente, e ela se perguntou por que havia aceitado tão tranquilamente o
arranjo de casamento com esse velho erudito, e por que Philip Hoare a
deixou fazer isso. Seus pensamentos eram vagos e não passavam de uma
sensação confusa de que algo estava errado, mas ela perdeu o interesse no
chá e na agradável companhia, na sala aquecida com as cortinas fechadas e
o fogo brilhante, e se levantou dizendo que precisavam ir embora, pois
havia uma grande quantidade de reparos em que ela havia prometido ajudar
a tia; mas a Sra. Hoare não facilitou, protestou, rindo, que havia tempo
suficiente para isso, e o bom doutor, que estava de bom humor e não tinha
ânimo para sair para as ruas frias, mesmo até sua própria porta, declarou
que agora era a hora em que eles deveriam ser apresentados à casa.
— Sabe, Humphrey — ele disse —, você prometeu muitas vezes
fazer isso, mas nunca o fez, e, todos os anos em que te conheço, nunca vi
nada além desta sala e da sala de jantar abaixo; e quanto ao seu abinete
particular...
— Bem — disse o Sr. Orford, interrompendo com tranquilidade —,
ninguém entra lá, exceto a Sra. Boyd de vez em quando, para anunciar um
visitante.
— Ah, vocês estudiosos! — sorriu o médico. — Uma tribo secreta e
afortunada; em meu humilde quarto, tive três meninas correndo para lá e
para cá!
O soldado indagou, não tão gentilmente quanto seu tio:
— O que você tem de tão misterioso, senhor, nesse gabinete, que
deve ser tão zelosamente guardado?
— Nada misterioso — sorriu o estudioso —, apenas meus livros,
papéis e quadros.
— Você os mostrará para mim? — perguntou Elisa Minden, e seu
amado deu um consentimento gracioso; houve mais conversas amigáveis,
então todo o grupo, guiado pelo Sr. Orford segurando uma vela, fez uma
visita à casa e conheceu os belos quartos.
A Sra. Hoare aproveitou a oportunidade para sussurrar para a futura
noiva que muitas alterações eram necessárias antes que o lugar estivesse
pronto para o uso de uma dama, e que já era hora de que isso fosse
providenciado — afinal, o casamento seria daqui a menos de uma semana!
E Elisa Minden, que não tinha uma mãe para aconselhá-la nessas
questões, de repente sentiu que a casa era sombria e antiquada, e um lugar
impossível de se viver; os próprios cômodos que tanto haviam agradado a
seu bom pai — um conjunto de aposentos para uma dama — eram os mais
odiosos da casa para ela, pois, segundo seu amado, haviam sido mobiliados
e preparados para Flora Orford, vinte anos atrás.
Ela estava pensando que, quando se casasse, precisaria partir
imediatamente e que a casa teria que ser reformada antes que ela pudesse
retornar a ela, quando o grupo se aglomerou na entrada da biblioteca, ou
gabinete privado, e o Sr. Orford, segurando a vela no alto, conduziu-os para
dentro. Como essa iluminação não era suficiente, ele rapidamente acendeu
as duas velas sobre a lareira.
Era um agradável aposento, forrado de livros do chão ao teto, livros
antigos, valiosos e ricamente encadernados, exceto no espaço acima da
lareira, que era ocupado pelo retrato de uma dama e o painel atrás da
escrivaninha; esta estava situada em uma posição estranha, no canto mais
distante do cômodo voltado para a parede, de forma que qualquer pessoa
sentada ali estaria de frente para a porta com o espaço do cômodo entre
eles; a escrivaninha estava bem próxima à parede, de modo que havia
apenas espaço suficiente para a cadeira em que o escritor se sentaria, e para
acomodá-la, não havia prateleiras de livros atrás, mas um painel liso de
madeira em que pendurava-se um pequeno quadro; era uma pintura rústica
e escura, representando um homem pendurado na forca em uma charneca
selvagem; um tema que não combinava com o quarto luxuoso e sua
atmosfera de conforto e erudição, e enquanto o Sr. Orford mostrava suas
primeiras edições, seus Elzevires e Aldinos, Elisa Minden estava olhando
fixamente para o pequeno quadro feio.
Enquanto olhava, sentiu um arrepio de horror e desespero que quase
a fez gritar. O quarto parecia cheio de uma atmosfera de terror e maldade
inexprimíveis. Nada como isso jamais havia acontecido com ela antes; sua
visita à sepultura na tarde daquele dia tinha sido insignificante em
comparação a isso. Ela se afastou, mal conseguindo disfarçar o pânico que
estava sentindo. Ao se virar, quase tropeçou em uma cadeira, segurou-a e
percebeu que, pendurado sobre o encosto, havia uma saia de seda cor-de-
pêssego. Elisa, sem controle de si mesma, pegou a peça de roupa.
— Mas, senhor — exclamou histérica —, o que é isso?
Todos se viraram para olhar para ela; seu tom, seu óbvio espanto,
estavam fora de proporção com a descoberta.
— Ora, querida — disse a Sra. Hoare —, é uma saia de seda
desbotada, como todos podem ver.
— Um presente para você, minha amada — disse o alegre doutor.
— Um presente para mim? — bradou Elisa. — Mas essa saia foi
lavada, remendada e consertada cem vezes!
Ela ergueu a saia, que de fato estava como uma estopa e parecia
prestes a se desfazer.
E o estudioso se pronunciou.
— Pertence à Sra. Boyd — disse em tom calmo. — Suponho que ela
tenha estado aqui para limpar e tenha deixado algumas roupas para
consertar.
Duas coisas sobre esse discurso causaram uma estranha impressão a
todos; em primeiro lugar, era manifestamente impossível que a boa
governanta algum dia tivesse possuído uma peça de roupa como essa, que
era um vestuário de dama e como tal seria usado para um baile; em segundo
lugar, pouco antes, o Sr. Orford havia declarado que a Sra. Boyd só entrava
em seu quarto quando ele estava presente e, mesmo assim, por apenas
alguns minutos.
Todos tiveram a mesma impressão, de que essa era uma roupa que
pertencia à sua falecida esposa e, como tal, era preciosa para ele; todos,
exceto Elisa, que o ouvira chamar Flora Orford de mulher perversa.
Ela largou rapidamente a saia — havia uma agulha espetada nela e
um carretel de linha no chão sob a cadeira — e olhou para o retrato acima
da lareira.
— Essa é a Sra. Orford? — perguntou.
Ele a olhou de forma estranha.
— Sim — ele disse.
Em um silêncio estranho, todos olharam para o retrato.
Mostrava uma mulher jovem em um vestido branco, segurando um
coração de cristal que pendia ao redor do pescoço; tinha cabelos escuros e
um rosto bonito; ao olhar para os dedos apontando para o belo adereço,
Elisa pensou no monumento na Igreja de St. Paul e nas palavras do Sr.
Orford — “Ela está tão perto de você que, se esticasse a mão, poderia
tocá-la” — e, sem fazer nenhum comentário sobre o retrato ou a pessoa
retratada, sugeriu à tia que era hora de ir embora. Então os quatro partiram,
e o Sr. Orford os viu sair, enquadrado na luz quente do corredor,
observando-os desaparecer na escuridão cinzenta da rua.
Foi pouco mais de uma hora depois que Elisa Minden desceu a
escadaria de sua casa e abordou o primo, que estava prestes a sair.
— Ah, Philip — disse ela, juntando as mãos —, se a sua diligência
não for muito importante, peço-lhe uma hora do seu tempo. Eu estava
esperando você sair, para poder segui-lo e falar com você em particular.
O jovem soldado olhou para ela atentamente enquanto ela ficava à
luz da lâmpada do corredor, e viu que ela estava muito agitada.
— Claro, Lizzie — respondeu de forma gentil, e a levou para a
pequena sala de estar ao lado do corredor, onde não havia nem velas nem
fogo, mas, sim, paz e tranquilidade para conversar.
Elisa, sendo dona de casa, encontrou uma lâmpada e a acendeu,
pedindo desculpas pelo frio, mas disse que não voltaria para cima, pois a
Sra. Hoare, as duas moças e o doutor estavam todos tranquilos na grande
sala de estar, e ela não tinha vontade de incomodá-los.
— Você está com problemas — disse o Capitão Hoare com
tranquilidade .
— Sim — respondeu ela de maneira assustada —, quero que você
venha comigo agora para a casa do Sr. Orford... quero falar com sua
governanta.
— Por que isso, Lizzie?
Ela não tinha uma explicação muito boa; havia apenas a visita à igreja
naquela tarde, sua impressão de horror no gabinete e a descoberta da saia
desbotada.
— Preciso saber algo sobre sua primeira esposa, Philip — ela
concluiu. — Eu jamais poderia prosseguir... senão eu... algo aconteceu
hoje... eu odeio aquela casa, eu quase odeio... ele.
— Por que você fez isso, Lizzie? — demandou severamente o
jovem soldado. — Que belo retorno para mim foi esse... um homem que
poderia ser seu pai... um solitário... alguém que te assusta.
A Srta. Minden encarou o primo; não sabia por que havia feito
aquilo; a situação toda parecia subitamente impossível.
— Por favor, você precisa vir comigo agora — ela disse.
Ela estava tão nervosa que ele não teve coragem de recusar seu
pedido, e pegaram seus casacos quentes no corredor e saíram pelas ruas
escuras.
Estava nevando e o chão estava escorregadio, e Elisa segurou-se no
braço do primo. Não queria ver o Sr. Orford ou sua casa nunca mais, e
quando chegaram à porta, ela estava trêmula; mas tocou a campainha com
firmeza.
Foi a própria Sra. Boyd quem veio à porta; ela começou a explicar
que o patrão estava trancado em seu gabinete, mas o soldado a interrompeu.
— A Srta. Minden deseja vê-la — ele disse —, e eu esperarei no
corredor até que ela esteja pronta.
Então, Elisa seguiu a governanta até a sala de estar; o criado estava
ausente, e as duas criadas foram rapidamente dispensadas para a cozinha.
A Sra. Boyd, uma alma serena, com quase setenta anos, esperou que
a jovem senhora explicasse o motivo de sua visita, e Elisa Minden, corando
e empalidecendo alternadamente, e sentindo-se tola e tímida, expressou o
objetivo de sua vinda.
Ela queria ouvir a história de Flora Orford — não havia mais
ninguém a quem pudesse perguntar — e achava que tinha o direito de saber.
— Suponho que tem mesmo, minha querida — disse a Sra. Boyd,
olhando para o fogo —, embora não seja uma história bonita para você
ouvir... e nunca pensei que a estaria contando para a segunda esposa do Sr.
Orford!
— Ainda não sou sua esposa — retorquiu a Srta. Minden.
— Ora, ora, seria melhor você perguntar ao mestre diretamente —
respondeu a Sra. Boyd com o olhar sereno —, mas ele ficaria furioso se
você o fizesse, pois não acho que ele tenha mencionado nada sobre isso, e
já se passaram vinte anos, é melhor esquecer, minha querida.
— Conte-me, e depois eu esquecerei — implorou a Srta. Minden.
Então, a Sra. Boyd, que era uma alma quieta e inofensiva, sem
aversão a contar uma história — embora não fosse dada a mexericos, como
os acontecimentos haviam provado, pois ela havia mantido a língua quieta
sobre esse assunto por tanto tempo —, contou a história da esposa de
Humphrey Orford; e foi narrada em poucas palavras.
— Ela era filha do guarda-caça dele, minha querida, e ele se casou
com ela impulsivamente, apenas por causa de seu belo rosto. Mas eles não
foram muito felizes juntos, pelo que pude ver; ela tinha medo dele e isso a
fazia se humilhar, e ele odiava isso, e ela o envergonhava com seus modos
ignorantes. Então, um dia, ele a encontrou com um amante... com todo
respeito, senhora, um homem de sua própria classe, apenas um homem
comum. E ele ficou como uma criatura possuída; fechou a casa e mandou
embora todos os criados, exceto eu, e trouxe sua senhora para Londres, para
esta casa aqui. E o que aconteceu entre ela e ele ninguém sabe, mas ela
sempre parecia alguém morrendo de terror. Então o médico começou a vir,
o Dr. Thursby, e logo depois ela faleceu, e ninguém conseguiu vê-la, nem
mesmo quando ela estava em seu caixão, nem enviar uma flor. É provável
que ela tenha morrido de tristeza, pobre mulher apaixonada. Mas, é claro,
ela era uma mulher perversa, e não havia nada a fazer a não ser ter pena do
mestre.
E essa era a história de Flora Orford.
— E o homem? — perguntou a Srta. Minden, após um tempo.
— O homem que ela amava, minha querida? Bem, o Sr. Orford o
mandou prender como ladrão por invadir sua casa; ele estava selvagem,
aquele sujeito, não tinha o melhor dos caracteres; bem, ele não quis dizer
por que estava na casa, e o Sr. Orford, sendo um juiz de paz, tinha algum
poder, então ele foi condenado como um ladrão comum. E poucos até hoje
sabem a verdade da história, pois ele guardou seu segredo até o fim, e
ninguém soube dele por que o homem havia sido encontrado na casa
grande.
— Qual foi o fim dele? — perguntou a Srta. Minden com voz
calma.
— Bem, ele foi enforcado — disse a Sra. Boyd —, sendo pego em
flagrante, o que se poderia esperar?
— Então aquele é um quadro dele no gabinete! — exclamou Elisa,
tremendo apesar do grande fogo; então ela acrescentou desesperada: —
Diga-me, Flora Orford morreu naquele gabinete?
— Oh, não, minha querida, ela faleceu em um grande quarto nos
fundos da casa que tem estado fechado desde então.
— Mas o gabinete é horrível — disse Elisa —; talvez seja o retrato
dela e aquele quadro.
— Eu mal estive lá — admitiu a Sra. Boyd —, mas o mestre vive
lá... ele sempre janta lá e fala com aquele retrato, minha querida... “Flora,
Flora”, ele diz, “como você está esta noite?”, então imita a voz dela,
respondendo.
Elisa Minden levou a mão ao coração.
— Não me conte essas coisas, ou eu vou pensar que você também é
odiosa, por ter ficado nesta casa terrível e suportado essas coisas!
A Sra. Boyd ficou surpresa.
— Calma, minha querida, não se exalte — protestou. — Eles eram
pessoas perversas, ambos, e tiveram o que mereciam, e é uma história
antiga que é melhor esquecer; e quanto ao mestre, ele tem sido apenas uma
boa pessoa desde que estamos aqui, e não vai falar com nenhum retrato
quando tiver uma doce jovem esposa para lhe fazer companhia.
Elisa Minden se levantou e colocou os dedos na maçaneta da porta.
— Uma coisa mais — disse a idosa sem fôlego —, aquela seda
desbotada... de cor-de-pêssego... por que ele ainda a tem? A Sra. Orford
usou-a na noite em que ele a encontrou com o amante. Lembro-me que
estava com ela quando a comprou, uma seda fina por quarenta xelins o
metro. Se eu fosse você, minha querida, eu a queimaria quando fosse dona
aqui.
A Srta. Minden correu escada acima até o corredor frio.
Seu primo não estava lá; ela ouviu vozes irritadas acima e viu as
duas criadas assustadas na escada; uma perturbação até então desconhecida
naquela casa.
Enquanto Elisa ficava perplexa, uma porta bateu, e o Capitão Hoare
desceu vermelho de raiva; ele pegou o braço da prima e a apressou para
fora da casa.
Com a voz zangada, contou sobre o comportamento injustificável do
Sr. Orford, que o encontrara no corredor e o chamara de “intruso” e
“espião” sem esperar por uma explicação; o soldado o seguiu até seu
gabinete, e houve uma discussão acalorada sobre motivo algum, como disse
o Capitão Hoare.
— Oh, Philip — irrompeu a pobre Elisa enquanto eles se
apressavam pela fria escuridão —, eu nunca, nunca poderei me casar com
ele!
E contou a ele a história de Flora Orford. O jovem segurou o braço
dela através do pesado manto.
— E como tal pessoa conseguiu te envolver? — perguntou com
ternura. — Não, você não se casará com ele.
Eles não falaram mais nada, mas Elisa, feliz com a presença
protetora e saudável de seu parente, chorou com um sentimento de alívio e
gratidão. Quando chegaram em casa, descobriram que tinham sido notados
e tiveram que dar explicações; Elisa disse que havia algo que ela desejava
dizer à Sra. Boyd, e Philip contou sobre a grosseria do Sr. Orford e a briga
que se seguiu.
Os dois mais velhos estavam perturbados e consideraram o
comportamento de Elisa estranho, mas sua agitação manifesta fez com que
eles evitassem pressioná-la por uma explicação; e não adiantava se dirigir a
Philip, pois ele já havia saído às pressas para seu encontro com os
companheiros em uma cafeteria.
Naquela noite, Elisa Minden foi para a cama sentindo mais emoção
do que jamais sentira em sua vida: medo e repulsa pelo homem a quem até
então havia considerado placidamente como seu futuro marido, e desejo
pela gentil presença de seu companheiro de infância se uniram nas palavras
resolutas que ela sussurrou em seu travesseiro durante aquela noite amarga.
“Eu nunca poderei me casar com ele!”
No dia seguinte, houve uma nevasca intensa, mas uma estranha
euforia estava no coração de Elisa quando ela desceu para o cálido salão,
iluminado pelo fogo e pelo brilho da neve lá fora.
Ela iria contar ao pai que não poderia prosseguir com seu
compromisso com o Sr. Orford e que não queria mais entrar em sua casa.
Todos estavam reunidos em volta da mesa do café da manhã quando
o Capitão Hoare chegou — ele tinha saído para pegar o jornal — e trouxe
as notícias mais inesperadas que se poderia conceber e que logo iriam
surpreender toda Londres.
O Sr. Orford foi encontrado assassinado em seu gabinete.
Essa notícia, apesar de ser transmitida com o máximo cuidado
possível, jogou o pequeno lar na maior consternação e agitação; houve
gritos, choro e correria.
Apenas a Srta. Minden, embora com uma cor espectral, não
demonstrou sinal de luto; ela estava pensando em Flora Orford.
Quando o médico conseguiu se afastar das mulheres agitadas, foi
com seu sobrinho para a casa do Sr. Orford.
A história do assassinato era um mistério. O estudioso foi
encontrado na cadeira em frente a sua escrivaninha com uma de suas
próprias facas de pão cravada entre seus ombros; e não havia nada que
pudesse lançar luz sobre como ou por meio de quem ele havia sido morto.
A história, extraída da confusão atordoada da Sra. Boyd, das
histerias das criadas, dos comentários dos guardas e da conversa dos
vizinhos, correu assim:
Às nove e meia da noite anterior, a Sra. Boyd havia enviado uma das
criadas com o jantar de seu mestre; era um capricho dele que fosse sempre
assim, servido em uma bandeja no gabinete. Havia vinho e carne, pão e
queijo, frutas e bolos — os pratos e talheres habituais —, entre eles a faca
que matara o Sr. Orford.
Quando a criada saiu, o estudioso a seguiu até a porta e a trancou;
esse também era um hábito comum dele, uma precaução contra qualquer
possível interrupção, pois, segundo ele, ele fazia a melhor parte do seu
trabalho à noite.
Na manhã seguinte, descobriu-se que ele não havia dormido na
cama e que a porta da biblioteca ainda estava trancada; como a alarmada
Sra. Boyd não conseguiu obter resposta aos seus chamados, a criada
mandou alguém arrombar a fechadura, e Humphrey Orford foi encontrado
em sua cadeira, inclinado sobre seus papéis com a faca cravada até o cabo
entre os ombros; ele deve ter morrido instantaneamente, pois não havia
nenhum sinal de luta, nem desarranjo em sua pessoa ou seus papéis. O
primeiro médico a vê-lo, um passante, atraído pela agitação em torno da
casa, disse que ele deveria estar morto há algumas horas — provavelmente
desde a noite anterior; as velas haviam queimado até o fim, e havia
respingos de gordura na mesa; a bandeja do jantar estava do outro lado da
sala, a maioria da comida tinha sido comida, a maioria do vinho, bebido, os
utensílios estavam todos lá em ordem, exceto, apenas, a faca cravada entre
as omoplatas do Sr. Orford.
Quando o Capitão Hoare passou pela casa em seu retorno da compra
do jornal, ele viu a multidão e entrou, e pôde dizer que havia sido a última
pessoa a ver, com vida, o homem assassinado, pois havia tido seu encontro
tenso com o Sr. Orford por volta das dez horas, e se lembrou de ver as
coisas do jantar na sala. O estudioso o ouviu lá embaixo, destrancou a porta
e expressou ressentimento impaciente com sua presença, fazendo com que
Philip subisse as escadas irritado e o seguisse para o gabinete; algumas
palavras irritadas foram trocadas, quando o Sr. Orford basicamente
empurrou seu visitante para fora, trancou a porta na cara dele e o mandou
levar a Srta. Minden para casa.
Isso não lançou luz alguma sobre o assassinato; só provou que, às
dez horas, o Sr. Orford estava vivo em seu gabinete.
Aqui estava o mistério; de manhã, a porta ainda estava trancada por
dentro, a janela estava, como havia sido desde o início da noite, fechada e
presa com uma barra de ferro, também por dentro, e, como o quarto ficava
em um andar superior, o acesso teria sido, de qualquer forma, quase
impossível pela janela, que dava para a sutil alvenaria da frente da casa.
Tampouco havia qualquer lugar possível no quarto onde alguém
pudesse se esconder: era apenas uma sala quadrada com prateleiras rasas de
livros, as duas imagens — a sombria e a estranha acima das costas curvadas
do homem morto —, a escrivaninha, uma ou duas cadeiras e mesas laterais;
não havia sequer um armário ou cômoda; não havia esconderijo para um
gato sequer.
Então, como o assassino entrou e saiu do quarto?
Suicídio, é claro, estava fora de cogitação, devido à natureza do
ferimento, mas o assassinato parecia igualmente impossível; o Sr. Orford
estava tão próximo da parede que o cabo da faca encostava no painel atrás
dele. Teria sido impossível para alguém ter ficado entre ele e a parede; atrás
do encosto de sua cadeira, não havia espaço suficiente para colocar uma
bengala.
Então, como o golpe foi desferido com tamanha precisão e força
mortal?
Não por alguém que estivesse em frente ao Sr. Orford, primeiro
porque ele certamente o teria visto e se levantado; e segundo, porque,
mesmo que estivesse dormindo com a cabeça abaixada, ninguém, nem
mesmo um homem muito alto, poderia se inclinar sobre a mesa e enfiar a
faca, pois foi feito um experimento e descobriu-se que nenhum braço
poderia alcançar tal distância.
A única teoria que restou foi que o Sr. Orford havia sido assassinado
em alguma outra parte da sala e, em seguida, arrastado para sua posição
atual.
Contudo, isso parecia mais do que improvável, pois significaria
mover a escrivaninha, um móvel pesado que não parecia ter sido tocado, e
também havia um papel sob a mão do homem morto, uma caneta em seus
dedos, um borrão de tinta onde ela havia caído e uma frase inacabada. O
mistério permanecia completo e medonho, um mistério que capturou a
imaginação das pessoas; o assunto era o tema de todas as conversas nas
cafeterias e clubes.
O assassinato parecia absolutamente sem motivo, pois o homem
morto não era conhecido por ter inimigos no mundo, e roubo estava fora de
cogitação, pois nada havia sido tocado.
A tragédia precoce foi amplamente discutida. A Sra. Boyd contou
tudo o que sabia, que era, com exatidão, o que ela havia contado a Elisa
Minden: o caso aconteceu há vinte anos, e o pombinho do cadafalso não
tinha parentes vivos.
Elisa Minden entrou em um estado desesperador de agitação, uma
mudança rápida de sua calma desolada inicial; ela queria que a casa do Sr.
Orford fosse demolida, a biblioteca e todo o seu conteúdo, queimados; ela
própria queimou seu vestido de casamento, em silêncio frenético, e
ninguém ousou detê-la; resistiu aos apelos de seu pai para que fosse embora
logo após o inquérito; disse que ficaria no local até que o mistério fosse
resolvido.
Nada a contentaria, exceto uma visita ao gabinete do Sr. Orford; ela
estava decidida, disse descontrolada, a chegar ao fundo desse mistério e,
naquela sala, que ela havia entrado uma vez e que a havia afetado tão
terrivelmente, ela acreditava poder encontrar alguma pista.
O médico achou melhor permitir que ela fosse; ele e seu primo a
escoltaram até a casa da qual agora ninguém passava em frente sem
arrepios e entraram na câmara que todos temiam entrar.
A boa Sra. Boyd estava soluçando atrás deles; a pobre mulher estava
completamente atordoada com esse fim repentino e horrível para sua vida
ordeira; ela falou tudo de forma incoerente, explicando, se desculpando e
lamentando em um único fôlego; no entanto, através de toda a sua aflição,
ela mostrou clara e ingenuamente que não tinha qualquer afeto pelo seu
mestre, e que foi o costume e o hábito que foram feridos, não o amor.
De fato, parecia que não havia ninguém que amasse Humphrey
Orford; os advogados já estavam ocupados procurando um parente mais
próximo; parecia provável que essa propriedade e as terras em Suffolk
fossem para a Chancelaria.
— Você não deveria entrar, minha querida, não deveria entrar —
soluçava a idosa, segurando o vestido preto da Srta. Minden; ela estava de
luto pelo homem assassinado, mas, ao mesmo tempo, espiando com uma
assustada curiosidade para dentro do gabinete.
Elisa parecia abatida e perturbada, mas também resoluta.
— Me diga, Sra. Boyd — disse ela, parando na porta —, o que
aconteceu com a saia de seda desbotada?
A atônita governanta manifestou que nunca mais a tinha visto; e
aqui estava outro toque de mistério: a saia de seda desbotada cor-de-
pêssego, que quatro pessoas tinham observado no gabinete do Sr. Orford na
noite de seu assassinato, havia desaparecido por completo.
— Ele deve tê-la queimado — disse o Capitão Hoare e, embora
parecesse improvável que ele pudesse ter consumido tantos metros de
tecido sem deixar vestígios na lareira, ainda assim, era a única solução
possível.
— Não consigo entender por que ele a guardou por tanto tempo —
murmurou a Sra. Boyd —, pois não poderia ser senão o melhor vestido da
Sra. Orford.
— Uma relíquia macabra — observou o jovem soldado
sombriamente.
Elisa Minden adentrou o centro da sala e olhou ao seu redor; nada
no lugar havia mudado, nada estava desarrumado; a escrivaninha havia sido
movida para permitir que o estudioso fosse retirado, sua cadeira estava
afastada, de modo que o longo painel no qual pendurava o retrato do
enforcado estava mais à vista.
Para a agitada imaginação de Elisa, esta parte da parede afundada
nas estantes de livros ao redor, longa e estreita, parecia a tampa de um
caixão.
— Já é hora desse retrato ser retirado — disse ela —, ele não pode
mais interessar a ninguém.
— Lizzie, querida — sugeriu o pai, gentil, —, você não prefere ir
embora? Este é um lugar triste e horrível.
— Não — respondeu. — Eu preciso descobrir algo sobre isso...
precisamos saber.
Ela se virou e olhou para o retrato de Flora Orford.
— Ele a odiava, Sra. Boyd, não é? E ela deve ter morrido de medo...
pense nisso! Morreu de medo, pensando o tempo todo naquele pobre corpo
na forca. Ele era um homem perverso, e quem quer que o tenha matado
deve tê-lo feito para vingar Flora Orford.
— Minha querida — disse o médico, apressado —, tudo isso foi há
vinte anos, e o homem estava totalmente justificado no que fez, embora eu
não possa dizer que eu teria ficado tão satisfeito com a união se tivesse
conhecido essa história.
— Como é que gostávamos dele antes? — murmurou Elisa Minden.
— Se eu tivesse entrado nesta sala antes, nunca teria prometido me casar
com ele... há algo terrível nisso.
— E o que mais você esperava, minha querida? — choramingou a
Sra. Boyd. — Em uma sala onde um homem foi assassinado.
— Mas já era assim antes — respondeu a Srta. Minden. — Isso me
assustou.
Ela olhou para o pai e o primo, e seu rosto estava completamente
distorcido.
— Há algo aqui, agora — disse —, algo nesta sala.
Eles se aproximaram dela, pensando que seus nervos, muito tensos,
haviam cedido; mas ela deu um passo à frente.
Grito após grito saíam de seus lábios.
Com um dedo trêmulo, apontou à sua frente para o longo painel
atrás da mesa.
De início, eles não conseguiram ver para o que ela apontava; então o
Capitão Hoare viu a causa do seu desespero.
Era um pequeno pedaço de seda desbotada, cor-de-pêssego,
aparecendo acima da linha estriada do lambril, saliente da parede, como
uma peça de vestuário presa numa porta.
— Ela está lá dentro! — gritou a Srta. Minden. — Lá dentro!
Um certo frenesi os tomou; estavam confusos, sem saber o que dizer
ou fazer. Apenas o Capitão Hoare manteve alguma presença de espírito e,
indo até o painel, percebeu uma pequena rachadura por toda a região.
— Acredito que seja uma porta — disse ele —, e isso explica como
o assassino deve ter atacado, a partir da parede.
Ergueu o retrato do enforcado e encontrou um pequeno botão, que,
como esperava, ao ser pressionado, recuou o painel para dentro da parede,
revelando uma câmara secreta não maior do que um armário.
E imediatamente dentro dessa sala oculta, escura aos olhos e
malcheirosa para o olfato, estava o corpo de uma mulher, apoiado contra a
parede interna, com um lenço branco, apertado, amarrado em torno de seu
pescoço, mostrando como ela havia morrido; ela usava a saia de seda
desbotada, cuja extremidade estava presa no painel, e um antigo corpete de
linho esfarrapado que parecia um pergaminho sujo; seu cabelo estava
grisalho e ralo, seu rosto, sem qualquer semelhança com a humanidade, e
seu corpo, magro e seco.
A sala, que era iluminada apenas por uma janela de poucas
polegadas quadradas que dava para o jardim, estava mobiliada com uma
cama suja de trapos e um banco com algumas roupas rasgadas; uma cesta
com sobras estava no chão.
Elisa Minden se aproximou mais.
— É Flora Orford — disse ela, falando como alguém em um sonho.
Eles desceram com o pobre corpo para a sala, então ficou claro que
essa criatura desvanecida e terrível tinha semelhança com a garota retratada
que sorria na tela acima da lareira.
E outra coisa ficou clara e, por um momento, não ousaram falar uns
com os outros.
Durante vinte anos, essa mulher suportou seu castigo na câmara da
parede, naquela biblioteca em que apenas seu marido entrava; durante vinte
anos, ele a manteve ali, atrás do quadro de seu amante, alimentando-a com
restos, permitindo que ela saísse apenas quando a casa estava dormindo,
divertindo-se com seu tormento: ela costurando a seda desbotada que usava
há vinte anos, sentada lá, encurvada na escuridão quase completa, a poucos
metros de onde ele escrevia seus elegantes poemas.
— É claro que ela ficou louca — disse o Capitão Hoare, enfim —,
mas por que ela nunca gritou?
— Por um bom motivo — sussurrou o Dr. Minden, quando fez um
sinal para que a Sra. Boyd levasse sua filha desmaiada para longe. — Ele
tomou providências para isso... ela não tinha língua.
O caixão com a placa “Flora Orford” foi exumado e encontrado
contendo apenas chumbo; este foi substituído por outro contendo o corpo
emaciado de uma mulher que morreu por suicídio vinte anos após a data da
placa memorial.
Por que ou como essa criatura, com certeza se tornando idiota e
dominada inteiramente pelo homem que a manteve prisioneira, de repente
encontrou a resolução e habilidade para matar seu tirano e depois tirar a
própria vida — algo que ela poderia ter feito a qualquer momento antes —,
é uma questão que nunca foi resolvida.
Supunha-se que ele havia planejado o horrendo esquema para
completar sua vingança deixando-a na parede para morrer de fome
enquanto partia com sua nova noiva para o exterior, e que ela, sabendo
disso, o impediu; ou, então, que seu pobre cérebro lunático foi despertado
pelo som da voz de uma mulher enquanto ela manuseava a seda desbotada
que a prisioneira era permitida remendar quando a porta da biblioteca era
trancada. Mas sobre esses assuntos e os detalhes de seus vinte anos de
sofrimento, é decente ficar em silêncio.
Lizzie Minden casou-se com seu primo, mas não na Igreja de St.
Paul, em Covent Garden. E eles nunca mais voltaram para perto da casa de
Humphrey Orford.
À ESPREITA (1933)
D. K. Broster

A primeira antecipação que Augustine Marchant teve sobre o


fenômeno foi em uma bela manhã de verão, cerca de três semanas
após sua visita a Praga, ou seja, em junho de 1898. Ele estava
deitado, como era de costume, em sua biblioteca em Abbot’s Medding, ao
escrever seus poemas, no sofá confortável perto das janelas francesas, uma
das quais estava aberta para o jardim. Fazendo uma pausa em busca de
inspiração — ele estava quase no fim de seu poema Saudação a Todas as
Descrenças —, deixou seus olhos passearem pelo ambiente ricamente
decorado, com seus objetos de cloisonné e Satsuma, Buhl e primeiras
edições, e depois os deixou vagar em direção à luz do sol lá fora. E assim,
entre a borda do caro tapete de Herat e o peitoril da janela aberta, através da
faixa de piso de carvalho polido, observou o que achou ser um pequeno
pedaço de fiapo escuro soprando na corrente de ar; e logo fez uma nota para
falar com sua governanta sobre a arrumadeira. Algo estava sendo
negligenciado; e na casa de Augustine Marchant, a ninguém além dele
próprio era permitido ser negligente.
Houve um tempo em que o poeta não teria sido recebido, nem de
longe, na sociedade rural e até mesmo na do condado, aqueles dias, antes
mesmo do surgimento d’O Livro Amarelo e d’O Savoy, quando ele morava
em Londres, escrevendo peças e poemas que haviam chocado e
escandalizado a todos, exceto aos “decadentes” e os “avançados” — Romãs
do Pecado, Rainha Teodora e Rainha Marozia, As Noites da Torre de Nesle,
Amor Cipriota dentre outros. Contudo, quando, conforme os anos 90
findavam, herdou Abbot’s Medding de um primo distante e foi morar lá,
estando então no auge de uma reputação quase internacional, a sociedade de
Wiltshire o tolerou inicialmente por causa de sua ligação com o falecido
Lorde Medding, e depois, apaziguada pela excelência de seus jantares e
ainda mais aplacada pela sobriedade patente de sua vida privada, decidiu
que, pelo menos em sua conduta pessoal, devia ter mudado de rumo. Talvez,
de fato, ele nunca tenha sido tão mal quanto o pintaram, e se seus escritos
continuassem tão escandalosamente libertinos como antes e precisassem ser
mantidos rigorosamente fora do alcance dasjovens moças; bem, nenhum
cavalheiro da região era obrigado a lê-los!
E de fato, Augustine Marchant, com seus cinquenta e um anos,
estava muito consciente do valor da boa opinião da sociedade local para se
arriscar a chocá-la com quaisquer ações públicas. Ele reservava suas
ousadias para a pena. Quando viajava para o exterior, o que fazia pelo menos
duas vezes por ano, mas isso era outra questão completamente diferente. O
nariz da Sra. Grundy não era sensível o suficiente para detectar suas
atividades em Varsóvia, Berlim ou Nápoles, nem seus olhos eram
perspicazes o bastante para perceber que tipo de sociedade ele frequentava,
mesmo tão perto de casa como Paris. Em Abbot’s Medding, sua reputação
de “perverso” estava se transformando rapidamente em algo apenas
suficiente para aguçar a curiosidade durante um jogo de críquete. Ele tinha
maneiras encantadoras, podia ser espirituoso em certos momentos —
embora não pudesse mantê-lo por muito tempo —, ainda conservava suas
mechas jacintinas — graças a tônicos capilares —, usava casacos de veludo
cortados com excelência e gravatas esvoaçantes com a dose certa de ar meio
poeta, meio homem do mundo e, na verdade, não tinha, em Abbot’s
Medding, nenhum segredo obscuro para esconder, exceto o fato, oculto com
cuidado por vinte e cinco anos, de que nunca havia sido batizado como
Augustine. Entre Augustus e Augustine, quanta diferença! Mas ele havia
atravessado essa lacuna, e seus poemas franceses — que precisavam ser
contrabandeados para sua terra natal — eram assinados como Augustine —
Augustine Lemarchant.
Ao afastar seu olhar da evidência objetável da negligência doméstica
no chão, o Sr. Marchant agora fixava seus pensamentos na extremidade do
lápis de ouro cravejado de rubi que estava usando. Rossell e Ward, seus
editores, estavam prestes a lançar uma edição de luxo de Rainha Teodora e
Rainha Marozia com ilustrações de um jovem artista até então desconhecido
— se não fossem muito ousadas. Seria uma publicação suntuosa em edição
limitada. E ao pensar nisso, a lembrança de sua recente estadia em Praga
voltou ao poeta. Ele sorriu consigo mesmo, como alguém sorri ao
contemplar um vinho raro, e pensou: sim, se esses fariseus tacanhos ao
redor de Abbot’s Medding soubessem!. Era uma sorte que os defensores da
mesquinha moralidade britânica raramente fossem grandes viajantes; uma
dispensação da — ahem — providência divina!
Brincando com o lápis de ouro entre os dedos rechonchudos,
Augustine Marchant voltou sua atenção para o poema, pesando um epíteto
contra outro. Exceto no verão, ele não era defensor das janelas abertas, e
mesmo no verão ele considerava que, para obter o máximo de seu delicado e
precioso instrumento, o cérebro, seus pés deveriam sempre estar bem
aquecidos; portanto, antes de se acomodar em sua posição semi-inclinada,
envolveu-os com uma bela sári indiana de seda pura e espessa cor de areia
deixando as pontas arrastando-se pelo chão. E percebeu, com surpresa e
irritação, que o pedaço de fiapo marrom, ou seja lá o que fosse, lá embaixo,
seguindo a corrente de ar da janela, havia alcançado a ponta mais próxima
da sári e agora estava subindo impulsionado pela mesma corrente.
O dono de Abbot’s Medding apanhou o sino de prata que estava na
mesa ao seu lado. Parecia haver mais brisa entrando do que ele havia
percebido, e ele poderia pegar um resfriado, uma catástrofe contra a qual ele
se protegia como se fosse uma praga. Então viu que o avanço ascendente da
mancha escura, que tinha o tamanho de um centavo, não podia ser atribuído
a qualquer outra coisa senão a si mesmo. Era, claramente, algum tipo
horrível de inseto, algum tipo asqueroso de aranha quase sem pernas e muito
peluda, de forma arredondada e indistinta. O poeta sentou-se e sacudiu a sári
com violência. Quando olhou novamente, o invasor havia desaparecido.
Óbvio, ele o havia sacudido no chão e em algum lugar lá ele ainda deveria
estar. A ideia o perturbou, e ele decidiu levar seus escritos para o chalé de
verão e, mais tarde, ordenar que a biblioteca fosse completamente limpa.
Ah! Era bom estar ao ar livre em um jardim tão maravilhosamente
arrumado e cuidado como o dele! Na bacia da fonte, nereidas em mármore
de veios rosa cercavam uma Tétis tão bela quanto Afrodite, as acácias mais
leves e esvoaçantes balançavam próximas. E enquanto o dono de tudo isso
passava pelo gramado sem ervas daninhas, repetia trechos de Verlaine para
si mesmo sobre “jatos d'água esbeltos” e “soluços de êxtase”.
Então, virando a cabeça para olhar para trás da fonte, percebeu um
pequeno objeto marrom escuro, do tamanho de uma moeda de meio centavo,
correndo em sua direção sobre a grama aveludada e lisa...
Ele acreditou, posteriormente, que deve ter tido um vislumbre da
verdade naquele instante no jardim, ou não teria agido de modo tão
instintivo e com tanta rapidez. Pois, um momento depois, ele estava parado
na beira da bacia de Tétis, com o rosto descorado ao sol e a mão firmemente
cerrada. Dentro daquela mão fechada, algo pulsava, tão suave como uma
pena... Segurando o nojo e algo mais que o tomou, Augustine Marchant se
curvou e mergulhou toda a mão na água borbulhante da fonte, deixando a
corrente levar o que ele havia pegado. Então, com passos incertos, sountou-
se no banco mais próximo e fechou os olhos. Depois de um tempo, sacou o
lenço de linho e secou com cuidado a mão com o anel de intaglio, então
olhou curiosamente para a palma. Eu não sabia que tinha tanta coragem,
pensava ele; tanta coragem e bom senso!... É provável que se afogue rápido.
Burrows, seu mordomo, estava atravessando o gramado.
— O Sr. e a Sra. Morrison chegaram, senhor.
— Ah, sim; havia esquecido por um momento. — Augustine
Marchant levantou-se e caminhou em direção à casa e seus convidados,
jogando os ombros para trás e praticando seu famoso sorriso enigmático,
pois a Sra. Morrison era uma mulher que valia a pena impressionar.
Mas o que tinha sido exatamente? Porque era propriamente o que
parecia: um tufo de pelos soprando sobre a grama, um tufo de pelos! Mera
imaginação que ele tenha se movido em sua mão fechada com vida própria...
Então, por que ele fechou os olhos quando se curvou e agarrou aquilo?
Graças a Deus, graças a Deus, não era mais nada além de uma mancha
encharcada girando em torno das nereidas de Tétis!
— Ah, querida senhora, você deve me perdoar! Imperdoável de
minha parte não estar presente para recebê-la! — Estava na sala de estar
agora, perfumada com seus bancos de flores de estufa, inclinando-se sobre a
mão da convidada elegantemente vestida no sofá, com um corpete justo e
mangas volumosas, e um chapéu de abas largas colocado em um ângulo
desafiador em seu cabelo castanho-ouro.
— Seu criado nos disse que você estava escrevendo no jardim —
disse o marido de olhos esbugalhados, com reverência.
— Cher maître, somos nós que não deveríamos estar interrompendo
seu encontro com a Musa — respondeu a Sra. Morrison com sua doce voz
aguda. — Terrível trazê-lo de tão boa companhia para a de meros visitantes!
Passando a mão pelos cabelos cuidadosamente tratados, o cher
maître respondeu:
— Entre uma visita da Musa e uma visita da própria beleza, nenhum
verdadeiro poeta hesitaria! Além disso, o almoço nos aguarda, e espero que
seja bom.
Gostava de chocar com sutileza suas belas admiradoras admitindo
que apreciava o prazer da mesa; era totalmente seguro fazer isso, já que
nenhuma delas tinha discernimento suficiente para perceber que era verdade.
O almoço foi excelente, pois Augustine tinha uma excelente
cozinheira. Depois, ele mostrou aos convidados a biblioteca — sim, mesmo
que ela não tivesse sido varrida, o que não seria necessário agora — e o
jardim; e, no chalé de verão, ele foi convencido a ler em voz alta alguns
trechos de Amor Cipriota. Depois, a Sra. Frances — agora Francesca —
Morrison pôde contar a amigos invejosos como o próprio Poeta leu para ela
estrofe após estrofe daquele poema mais ousado; e como o pobre Fred,
abanando-se enquanto isso com seu chapéu de palha — não por causa do
fervor do verso, mas por causa do calor da tarde —, disse depois que não
havia entendido uma única palavra. Talvez seja melhor assim...
Quando eles partiram, Augustine Marchant refletiu de forma bastante
cínica: Tudo isso foi pura farsa quando o escrevi. Pois, há dez anos, apesar
daquelas estrofes audaciosas e vibrantes, ele era um neófito ignorante. Claro,
desde então... Ele sorriu, um sorriso privado, astuto e satisfeito consigo
mesmo. Certamente era agradável saber que não era mais um fraudador!
Ao retornar ao chalé para pegar seus poemas, viu o que acreditava
ser a estola de pele de Sra. Morrison caída no chão, perto da cadeira onde ela
havia se sentado. Estranho que não tenha notado que a perdeu na partida —
talvez fosse uma homenagem aos seus versos. Sua governanta deveria enviá-
la pelo correio. Mas, naquele momento, o jardineiro-chefe se aproximou,
desejando algumas instruções, e quando o assunto foi resolvido, Augustine
Marchant voltou-se mais uma vez para entrar no chalé e descobriu que tinha
se enganado sobre a estola caída, pois não havia nada no chão.
Além disso, ele se lembrou que a estola da Sra. Morrison era uma
corda de penas cinzentas, não de pele escura. Enquanto pegava Amor
Cipriota, perguntou-se com desleixo o que o teria levado a imaginar uma
estola de mulher ali, e ainda mais uma de pele.
De repente, soube o porquê. Uma janela na casa da memória se
abriu, e ele permaneceu rígido, olhando para os jatos da fonte subindo e
descendo sob o sol da tarde. Sim, daquela noite glamorosa, maravilhosa e
abominável em Praga, a parte que ele menos desejava recordar estava
conectada — incidental, mas inegavelmente — com uma estola de pele...
uma longa estola de pele escura...
Ele precisava ir para Londres no dia seguinte para um jantar em sua
honra. Então decidiu ir na mesma noite em um trem tardio, uma atitude
muito incomum e perturbadora para seu criado, que sabia que seria duvidoso
conseguir um compartimento de primeira classe para ele sozinho com tão
pouco tempo de antecedência. No entanto, Augustine Marchant foi, e até
mesmo, para espanto do homem, escolheu deliberadamente um
compartimento com outro ocupante quando poderia, afinal, ter um vazio só
para si.
O jantar foi brilhante: Augustine nunca havia falado tão bem. No dia
seguinte, ele foi à pequena rua perto do Museu Britânico, onde encontrou
Lawrence Storey, seu novo ilustrador, trabalhando com fervor em seus
desenhos para Rainha Teodora e Rainha Marozia, completamente estupefato
com a honra de uma visita pessoal. Augustine foi muito gentil com ele e,
enquanto oferecia algumas críticas, elogiou bastante sua representação das
duas Messalinas de Roma do século X, suas mãos longas e flexíveis, olhos
pesados, bocas cheias e quase repulsivas. Storey havia seguido o mesmo tipo
para mãe e filha, mas com uma sutil diferença.
— Elas certamente eram duas mulheres muito más, em especial a
mais jovem — observou, ingênuo. — Mas suponho que, do ponto de vista
artístico, isso não importa nos dias de hoje!
Augustine, fumando um de seus charutos especiais, fez um gesto
delicado.
— Meu caro rapaz, a arte não tem nada a ver com o que é chamado
de “moralidade”; felizmente sabemos disso, enfim! Mostre-me como você
imaginou representar a cena em que Marozia ordena a execução do amante
papal de sua mãe. Bom, muito bom! Sim, as linhas ali, até mesmo a queda
da manga solta do braço estendido, expressam com clareza o que eu tinha
em mente. Você tem grandes talentos!
— Tentei fazê-la parecer má — disse o jovem homem, ruborizando
de prazer. Mas — acrescentou com modéstia — é muito difícil para uma
pessoa ridiculamente inexperiente como eu ter a visão artística correta. Para
você, Sr. Marchant, que se aprofunda nos arcanos maravilhosos do proibido,
seria tolo fingir ser diferente do que sou.
— Como você sabe que me aprofundei em tais arcanos? —
perguntou o poeta, semicerrando os olhos e parecendo, embora não para o
olhar quase adorador de Storey, como um grande gato sendo acariciado.
— Bem, basta ler você!
— Você deveria vir e ficar comigo em breve — foram as palavras de
despedida de Augustine Marchant. Ele daria ao rapaz alguns dias de boa
vida, o que não lhe faria mal; deixe-o beber um bom vinho. — Quão breve
você acha que conseguirá terminar os esboços para o restante e os desenhos
para as ilustrações? Duas semanas ou três? Ótimo, vou aguardar para vê-lo
então. Adeus, meu caro; estou muito, muito satisfeito com o que você me
mostrou!
A pior parte de ir de Londres ao campo era que se corria o risco de
pegar um resfriado na cidade. Quando voltou, Augustine Marchant estava
quase certo de que esse infortúnio havia acontecido com ele, então pediu
para acenderem a lareira em seu quarto, apesar da estação, e desfrutou de um
pequeno jantar requintado em isolamento. E, como o resfriado se mostrou
imaginário, estava muito confortável, sentado ali com seu roupão de seda,
aquecendo os dedos dos pés e erguendo uma taça de Tokay dourado para as
chamas. De fato, Teodora e Marozia causariam tanto alvoroço quando
saíssem com essas ilustrações como quando foram publicadas pela primeira
vez!
De repente, ele pousou o copo. Não muito longe à sua esquerda havia
um grande espelho de corpo inteiro, como o de uma mulher nobre, onde uma
boa parte da cama atrás dele era refletida. E, nesse espelho, ele acabara de
ver a cabeceira da cama se mover. Não poderia haver uma corrente de ar
significativa no quarto quente, ele nunca permitia gatos na casa, e era
completamente impossível que houvesse um rato por perto. Se por acaso
algum gato vadio tivesse entrado, deveria ser expulso imediatamente.
Augustine se virou em sua cadeira para olhar para o dossel da cama.
Sim, o dossel de seda cor de topázio balançou, sútil, mais uma vez,
como se estivesse sendo empurrado. Augustine se inclinou para puxar a
corda do sino e chamar o criado. Então, o frasco de Tokay rolou sobre a
mesa quando ele saltou da cadeira de repente. Algo parecido com uma
enorme lagarta escura emergia lentamente de baixo da cama, movendo-se
como uma larva, com ondulações percorrendo seu corpo. Onde deveria estar
a cabeça, havia apenas uma extremidade afilada menor do que o resto, mas
da mesma substância. Era uma estola de pele escura.
Augustine Marchant sentiu que gritou, mas não conseguiu fazê-lo,
pois sua língua grudou no céu da boca. Ele apenas ficou parado, olhando
fixamente, todo o sangue desaparecendo de seu coração. Ainda muito
devagar, a coisa continuou a se arrastar para fora do dossel, balançando a
extremidade sem olhos e afilada de um lado para o outro, como se estivesse
incerta sobre para onde ir. Estou ficando louco, louco, louco!, pensou
Augustine, e depois, com uma reviravolta, não, não pode ser! É uma
serpente de verdade!
Isso pode ser resolvido. Ele pegou a pá de lareira enquanto a coisa
continuava a sair de debaixo da franja amarela levantada, até que cerca de
um metro estava para fora da cama. Então, caiu furiosamente sobre ela,
golpe após golpe.
Entretanto não surtiram efeito na coisa peluda e sem espinha; ela
apenas cedia e se movia para outro lugar. Augustine acertou a cama, o chão;
por fim, gritando de verdade, ele jogou a arma no chão e caiu sobre a
espessa corda peluda com as duas mãos, esmagando-a em uma massa — ela
ofereceu pouca ou nenhuma resistência — e a atirou no fogo e, ofegante, a
manteve lá com a pá e as pinças. As chamas crepitaram imediatamente e,
com um rugido, fizeram um trabalho rápido, embora parecesse haver algum
pequeno esforço de fuga, que talvez fosse apenas o efeito do calor. Um
momento depois, havia um cheiro muito forte de cabelo queimado, e isso foi
tudo.
Augustine Marchant pegou o frasco caído de Tokay e tomou o pouco
que restava no fundo antes de, cambaleando até a cama, se jogar sobre ela e
enterrar o rosto nos travesseiros, amontoando-os sobre a cabeça como se
pudesse sufocar a memória do que havia visto.
Permaneceu na cama na manhã seguinte; o suposto resfriado era uma
boa desculpa. Muito antes da criada entrar para reacender o fogo, saiu
engatinhando para garantir que não houvesse vestígios do que havia
queimado lá. Não havia nenhum. Um pesadelo não poderia ter deixado um
vestígio, ele pensou. Mas ele sabia muito bem que não era um pesadelo.
Agora ele só conseguia pensar naquele quarto em Praga e na longa
estola de pele daquela mulher. Alguma parte de sua mente, ele supunha,
deve ter projetado aquela coisa, mal notada na época, mal lembrada, para o
aqui e agora. Era terrível pensar que sua mente possuísse poderes obscuros e
desconhecidos. Contudo, não tão terrível como se a “aparição” tivesse uma
existência objetiva completamente separada. Em um ou dois dias,
consultaria seu médico e pediria um tônico.
Mas, argumentou uma parte desconfortavelmente lúcida de seu
cérebro, você está tentando correr com a lebre e caçar com os cães. Não é
melhor acreditar que a coisa tinha uma existência objetiva, pois você a
queimou até desaparecer? Muito bem! E se é apenas uma projeção de sua
própria mente, o que impede que ela reapareça, como a fênix, das cinzas?
Não parecia haver resposta para isso, exceto a tentativa de persuadir
a si mesmo de que estava febril na noite anterior. O trabalho era o melhor
antídoto. Então, Augustine Marchant levantou-se e ficou surpreso e
satisfeito ao descobrir que a atmosfera de seu estúdio estava incomumente
tranquila e inspiradora, e que naquele dia, contra todas as expectativas,
Saudação a Todas as Descrenças foi concluído com algumas estrofes com
as quais ele não ficou muito descontente. Percebendo, no entanto, que se
alegraria com uma companhia naquela noite, enviou uma nota mais cedo ao
consultor local, um bom sujeito, para jantar com ele; depois jogou uma
partida de bilhar com o advogado e foi dormir após um pouco de vinho
vintage e um bom uísque com soda, mal pensando no visitante da noite
anterior.
Acordou na hora em que os tordos no início do verão
cumprimentavam pontualmente o novo dia — três horas. Eles o
cumprimentavam com bastante entusiasmo, e Augustine Marchant estava
irritado com o entusiasmo deles. Suas cortinas de damasco dourado
impediam que toda a luz do novo dia entrasse, mas, deitado de costas, o
poeta abriu os olhos por um momento e seu sentido de visão, apenas meio
acordado, relatou algo balançando de um lado para o outro na penumbra
como um pêndulo de corda. Era indistinto, mas parecia estar pendurado no
dossel da cama. E, de repente, acordando instantaneamente, com uma
angústia indescritível de premonição rasgando-o, sentiu, no momento
seguinte, um leve golpe no lençol, aproximadamente na altura dos joelhos.
Algo havia chegado à cama...
E Augustine Marchant nem gritou nem pulou da cama; ele não
conseguia. No entanto, agora que seus olhos se acostumaram à penumbra do
quarto, viu com clareza: a estola de pele que ele havia queimado até a
extinção duas noites atrás, escuro e brilhante como antes, ondulando com
um movimento suave enquanto se enrolava com elegância no lugar onde
havia batido na cama, e se acomodou ali em um círculo simétrico, apenas a
extremidade afilada, ligeiramente erguida e, por assim dizer, olhando para
ele — ainda que, sem olhos e sem características para tal, não pudesse olhar.
Sentiu um alívio repugnado ao perceber que, pelo menos, não estava prestes
a atacá-lo, e Augustine Marchant desmaiou.
No entanto, seu desmaio deve ter se transformado em sono, pois ele
acordou de maneira mais ou menos normal e encontrou seu criado
colocando a bandeja de chá ao seu lado, perguntando quando deveria
preparar seu banho. Não havia nada na cama.
Vou trocar de quarto, pensou Augustine consigo mesmo, olhando
para o homem cansado e com olhos caídos que o encarava no espelho
enquanto se barbeava. Não, melhor ainda, irei embora por um tempo. Assim,
não terei esses sonhos. Irei para a casa do velho Edgar Fortescue por
alguns dias; ele me pediu novamente não muito tempo atrás para ir a
qualquer hora.
Então foi para a casa daquele velho mecenas. Ele agora era um
homem grande demais para precisar do patrocínio de Sir Edgar. Era
homenagem que recebia lá, tanto do anfitrião quanto dos convidados. A
estadia fez muito para acalmar seus nervos feridos. Infelizmente, o último
dia desfez todo o bem de todos os dias anteriores.
Sir Edgar possuía uma jovem e bonita esposa — sua terceira — e,
entre outros encantos de sua propriedade em Somerset, havia um pomar de
macieiras com flores plantadas ao redor das raízes. E, no frescor da noite,
Augustine caminhou até lá com seu anfitrião e sua esposa, quase como se
fosse o Todo-Poderoso com os habitantes do Éden. Logo depois, sentaram-
se em um banco rústico — mas muito confortável — à sombra dos galhos
das macieiras, entre os parterres incongruentes, mas agradáveis.
— Você veio na estação errada para essas macieiras, Marchant —
observou Sir Edgar depois de um tempo, tirando seu charuto. — Na época
da florada ou da colheita, elas são impressionantes, apesar do subplantio. O
que está atraindo sua atenção naquela árvore... um chapim? Temos todos os
tipos aqui, pequenos pedintes belos e destrutivos!
— Eu não sabia que estava olhando... não é nada... estava pensando
em outra coisa — balbuciou o poeta. Estaria enganado em pensar que havia
visto uma coisa sinuosa e escura se movendo como uma lagarta no caule
daquela macieira a poucos metros de distância?
A conversa prosseguiu, inclusive a dele; era seguro assim. Era
apenas a brisa que fazia um leve ruído ao mexer nas flores de heliotrópio
atrás do banco. Augustine queria desesperadamente levantar-se e sair do
pomar, mas nem Sir Edgar nem sua esposa pareciam dispostos a se mover, e
assim o poeta permaneceu em sua ponta do banco, sua mão esquerda
brincando, nervosa, com uma haste de grama que escapara da foice.
De repente, sentiu uma sensação de formigamento nas costas da mão,
olhou para baixo e viu uma extremidade sem forma de pelo se projetando
para cima do banco rústico e se movendo para frente e para trás contra sua
mão com um movimento quase afetuoso. Levantou-se súbito.
— Vocês se importam se eu entrar? — perguntou, exasperado. —
Não estou me sentindo muito bem.
Se a criatura pudesse segui-lo, não adiantaria ir embora. Voltou para
Abbot’s Medding parecendo ainda pior depois de sua mudança de ares, e
Burrows expressou respeitosamente a esperança de que ele não estivesse
indisposto. E a primeira coisa que ocorreu quando Augustine se sentou à
mesa para cuidar da correspondência foi que a coisa se desenrolou de uma
das pernas curvas da cadeira, como uma serpente oscilante de pelos macios,
e acenou lentamente para ele, como que em saudação...
Em saudação, sim, era isso! A criatura, embora incrível, parecia feliz
em vê-lo! De pé, no outro extremo do cômodo, com as mãos pressionadas
sobre os olhos — pois de que adiantava tentar machucá-la ou destruí-la —,
Augustine Marchant pensou com arrepios que, como o gato de uma bruxa,
um “familiar” não estaria, presumivelmente, indisposto em relação ao seu
mestre. Seu mestre! Oh, Deus!
A histeria que ele estava tentando controlar começou a aumentar sem
controle quando, retirando a mão, Augustine olhou novamente para sua
mesa de trabalho e viu que a estola tinha se enrolado em sua cadeira e estava
movendo sua extremidade para frente e para trás sobre o encosto, como um
gato que, enquanto ronrona, se esfrega em móveis ou na perna de um ser
humano em sinal afeto real ou simulado.
— Oh, vá embora daí! — gritou de repente para ela, avançando com
a mão estendida. — Em nome do diabo, saia daqui.
Para sua surpresa total, foi obedecido. Os movimentos rítmicos
cessaram, a serpente de pelos desceu da cadeira e se contorceu em direção à
porta. Aventuresco, voltando à sua mesa depois de um momento, Augustine
a viu enrolada no batente, com a extremidade cega virada para ele como
sempre, como se estivesse observando. E começou a rir. O que aconteceria
se chamasse alguém e a porta se abrisse; ela se afastaria? Desapareceria?
Será que tinha uma existência para mais alguém além dele?
Mas não ousava fazer o experimento. Deixou o quarto pela janela
francesa, sentindo que nunca mais poderia entrar na casa novamente. E
talvez, se não fosse pelo horrível conhecimento adquirido de que ela poderia
segui-lo, poderia facilmente ter partido para sempre de Abbot’s Medding,
deixando para trás todas as suas riquezas e confortos. Mas de que adiantaria
isso — e como explicar uma ação tão extraordinária? Não, ele precisava
pensar e planejar enquanto ainda estava são.
A que poderia recorrer? A magia negra, na qual ele se envolvera com
consequências desastrosas, talvez pudesse ajudá-lo. Sozinho, ele era apenas
um amador, mas tinha vários livros... Havia também aquele outro reino cujas
fronteiras às vezes se confundiam com a magia — a religião. Mas como ele
poderia rezar a um Deus em que não acreditava? Seria melhor orar para o
mal que havia enviado essa maldição sobre ele, para mostrar-lhe como bani-
la. No entanto, uma vez que deliberadamente havia seguido o que a religião
estigmatizava como pecado, o que até mesmo o mundo rotularia como
luxúria e necromancia, a súplica aos poderes sombrios não o livraria deles.
Eles precisavam ser ludibriados de alguma forma.
Manteve seus grimórios e livros do tipo em uma estante de livros
trancada em outra sala, não em seu escritório; nessa sala, ficou acordado até
a meia-noite. No entanto, os feitiços que leu eram inúteis; além disso, ele
não acreditava de fato neles. A ironia da situação era que, de certa forma, ele
havia apenas brincado com a bruxaria; ela apenas emprestara um tempero à
sensualidade. Ele andava miseravelmente pelo quarto, temendo a qualquer
momento ver seu “familiar” enrolado em algum objeto ali. Enfim, parou em
uma pequena estante que continha alguns livros antigos e esquecidos de sua
mãe — Longfellow e Sra. Hemans, John Halifax, Gentleman, e vários
volumes de sermões e ensaios suaves. E quando olhou para aquela
assembleia inofensiva, uma nuvem pareceu passar diante da visão de
Augustine Marchant, e ele viu sua mãe, gentil e de touca de renda, como há
anos, sentada para ouvir suas lições, em uma poltrona com antimacássar. Ela
tinha sido tudo para ele então, o menino cuja alma não estava manchada. Ele
a chamou silenciosamente: "Mamãe, mamãe, você não poderia me ajudar?
Você não poderia mandar essa coisa embora?".
Quando a nuvem passou, ele percebeu que havia estendido a mão e
retirado um grande livro. Ao olhar para ele, viu que era a Bíblia dela, com
“Sarah Amelia Marchant” escrito na folha amarelada. O espírito dela estava
prestes a ajudá-lo! Virou algumas páginas e, das letras grandes, surgiu
imediatamente para ele: Ora, a serpente era mais astuta que todos os
animais do campo. Augustine estremeceu e quase colocou a Bíblia de volta,
mas a convicção de que havia ajuda ali o instigou a continuar. Ele virou mais
algumas páginas de Gênesis, e seus olhos foram atraídos por este versículo,
que ele nunca tinha visto antes em sua vida:
Se procederes bem, não é certo que serás aceito? Se, todavia,
procederes mal, eis que o pecado jaz à porta; o seu desejo será contra ti,
mas a ti cumpre dominá-lo.
Que palavras estranhas! O que poderiam possivelmente significar?
Haveria alguma luz para ele nelas? E o desejo de quem seria contra ele?
Aquela coisa, aquela repugnante semelhança de afeto que a cercava... a ti
cumpre dominá-lo. Ela o havia obedecido, até certo ponto... Estaria esse
livro, dentre todos os outros, mostrando-lhe o caminho para a liberdade?
Mas o significado do versículo era tão obscuro! Ele não tinha, naturalmente,
nada como um comentário bíblico em casa. No entanto, ao pensar nisso, ele
se lembrou de que alguém piedoso e anônimo, logo após a publicação de
Romãs do Pecado, havia lhe enviado uma Bíblia na Versão Revisada, com
uma inscrição recomendando-lhe que a lesse. Ele a tinha em algum lugar,
embora sempre tivesse pensado em se livrar dela.
Depois de procurar por vinte minutos pela casa adormecida, ele a
encontrou em um dos quartos de hóspedes. Contudo, ela não o deu muita
iluminação, pois havia pouca diferença na tradução, exceto que para “jaz à
porta”, essa versão usava “estará à espreita”, e que a margem continha uma
tradução alternativa para o final do versículo: o seu desejo será contra ti,
mas tu deverias dominá-lo.
No entanto, Augustine Marchant permaneceu acordado depois da
meia-noite nesse silencioso quarto de hóspedes coberto de lençóis,
repetindo: mas tu deverias dominá-lo. E de repente pensou em uma maneira
de escapar.

✽ ✽ ✽

S eria uma experiência maravilhosa, ficar com Augustine Marchant.


Às vezes, Lawrence Storey esperava que não houvesse outros
hóspedes em Abbot’s Medding; outras vezes, esperava que
houvesse. Um tête-à-tête de quatro dias com o grande Poeta — conseguiria
comportar-se dignamente? Para Lawrence, apesar dos notáveis dons
artísticos que estavam encontrando seu primeiro florescimento real nessas
ilustrações para o poema de Augustine, ele ainda era inconspurcado, capaz
de maravilhar-se e admirar, humilde e quase ingênuo. Ainda o surpreendia
que ele, um assistente de arquiteto, tivesse sido levado, como Ganimedes
pela águia, do mundo inferior de elevações e esgotos para servir no Olimpo.
Não foi, de fato, Augustine Marchant quem o descobriu, mas seria
Augustine Marchant quem o tornaria famoso.
Os postes telegráficos passavam rapidamente pela janela do
compartimento de segunda classe, e mais de um viajante olhava com certa
inveja e admiração para o jovem bonito e de boa aparência, que transmitia
uma impressão de felicidade e candura, e tinha um sorriso encantador nos
lábios juvenis. Carregava um portfólio que nunca deixava fora do alcance da
mão; o casal idoso à sua frente, especulando sobre seu conteúdo, talvez
tivesse mudado de opinião sobre ele se tivesse visto o que havia lá dentro.
Mas nenhum vestígio de cansaço sombrio das coisas corrompidas
repousava sobre Lawrence Storey; conhecer Augustine Marchant, ilustrar
seu grande poema, aprender com ele que arte e moralidade não tinham
parentesco, isso era mergulhar em um novo reino de liberdade e experiência
ampliadora. A poesia de Augustine Marchant, sentia, já havia ensinado sua
mão o que seu cérebro e coração ainda não conheciam.
Havia uma pequena carruagem esperando por ele na estação, e na
noite de junho perfumada, ele foi levado com o coração acelerado por
campos de feno até seu destino.
O Sr. Marchant, esperando por ele no saguão, estava em seu
momento mais encantador.
— Meu querido amigo, são esses os desenhos? Vamos, vamos
trancá-los imediatamente no meu cofre! Se você tivesse me trazido
diamantes, não estaria um quarto tão preocupado com ladrões. Fez uma
viagem confortável? Eu o acomodarei no quarto laranja; é ao lado do meu.
Não há mais ninguém hospedado aqui, mas algumas pessoas virão ao jantar
para conhecê-lo.
Mal houve tempo para se vestir para o jantar, então Lawrence não
teve oportunidade de estudar seu anfitrião até vê-lo sentado à cabeceira da
mesa. Nesse momento, foi logo surpreendido pelo fato de que ele parecia
curiosamente doente. Seu rosto — que geralmente não era de forma alguma
atenuado — parecia ter caído, havia círculos escuros sob os olhos, e o
inquieto Lawrence, observando-o durante a refeição, pensou que seu
comportamento também parecia estranho e, por vezes, distraído. Houve um
momento em que, embora a senhora à sua direita estivesse falando com ele,
virou bruscamente a cabeça para o lado e olhou para baixo ao lado de sua
cadeira, como se visse algo no chão. Então se desculpou, dizendo que tinha
horror a gatos, e que às vezes também do animal aborrecido nos estábulos...
Mas depois disso, continuou a entreter seus convidados à sua maneira
inimitável, e até para o tímido Lawrence, a noite foi muito agradável.
Os três dias seguintes foram maravilhosos e emocionantes para o
jovem artista — dias de contato ininterrupto com uma mente de mestre que
não reconhecia, como o próprio poeta admitia, nenhuma das pequenas
barreiras que o homem, por sua própria conveniência, havia estabelecido
entre o suposto certo e errado. Lawrence havia descoberto por que seu
anfitrião não parecia bem; era a falta de sono, o preço exigido pela
inspiração. Ele tinha um novo drama poético se formando em sua mente, que
iria alcançar alturas que ele ainda não havia tentado.
Havia quase um toque febril nos sonhos do jovem hoje à noite, sua
penúltima. Teve vários sonhos. Primeiro, estava em pé na beira de um tipo
de lagoa, inexprimivelmente desolada e hostil, um lugar que ele nunca tinha
visto em sua vida, mas que de alguma forma parecia familiar; e algo lhe
disse: "Você nunca vai sair daqui!". Ficou alarmado e acordou, mas dormiu
novamente quase de imediato, e dessa vez estava de volta, de forma
estranha, na igreja onde, nos primeiros anos, tinha sido levado para a missa
pela tia que o havia criado — uma grande igreja cheia de bancos de pinho
com estreitas prateleiras para hinários, que ele secretamente lambia durante
os longos períodos monótonos ajoelhado. Entretanto, acima de tudo,
lembrou-se do vitral com Adão e Eva no Jardim do Éden, de cada lado de
uma macieira em torno da qual estava enrolada uma serpente monstruosa
com uma cabeça semi-humana. Lawrence odiava e temia aquele vitral e, por
causa dele, nunca se aproximava de um pomar e não tinha tentação de
roubar maçãs... Agora estava de volta àquela igreja, olhando para o vitral,
iluminado por um brilho infernal. Acordou de novo, quase aterrorizado —
ele, um homem adulto! Mas, mais uma vez, adormeceu rapidamente.
O terceiro sonho tinha como cenário, como acontece às vezes em
pesadelos, o próprio quarto em que ele estava deitado. Ele sonhou que uma
porta se abria na parede, e na entrada, bem visível contra a luz de outro
quarto atrás dele, estava Augustine Marchant em seu roupão. Ele estava
olhando para algo no chão que Lawrence não via, mas sua mão apontava
para Lawrence na cama, e ele dizia com voz de comando: "Vá até ele, está
me ouvindo? Vá até ele! Vá até ele! Não sou eu seu mestre?"
E Lawrence, que não conseguia se mover ou emitir uma sílaba
sequer, perguntava-se com desconforto o que aquilo poderia ser, sendo assim
ordenado, mas sua atenção estava principalmente focada no rosto de
Augustine Marchant. Depois de dizer essas palavras várias vezes,
aparentemente sem resultado, uma mudança terrível veio sobre ele, uma
expressão de desespero indescritível. Pareceu envelhecer e murchar de
maneira notável; e disse, em um sussurro alto e penetrante: Então não há
escapatória?, e cobriu seu rosto arrasado por um momento com as mãos e
depois voltou e fechou suavemente a porta. Nisso, Lawrence acordou; mas,
na manhã seguinte, havia esquecido todos os três sonhos.
O jantar tête-à-tête na última noite de sua estadia teria permanecido
na memória de um gourmet, foi uma pena que o jovem não soubesse o que
estava comendo. Finalmente, estava acontecendo o que ele mal ousava
esperar; o grande poeta dos sentidos estava revelando a ele algumas das
fontes inimaginavelmente estranhas e secretas de sua inspiração. À luz suave
e rosada das velas, com os cotovelos na mesa entre trilhas de flores, ele, que
nem sequer era um iniciado, ouvia como um homem aprendendo pela
primeira vez algum feitiço ou fonte que o tornaria mais que mortal.
— Sim — disse Augustine Marchant, após uma longa pausa —, sim,
foi uma experiência maravilhosa, uma experiência imortal... uma que não é
dada a muitos. Abriu portas, mas temo não ser capaz de fazer justiça a ela
apenas com palavras.
Seu olhar estava transfigurado, quase sonhador.
— Mas ela... a mulher... como você... ? — perguntou Lawrence
Storey em voz baixa.
— Oh, a mulher? — disse Augustine, terminando de um gole seu
vinho. — A mulher era apenas uma prostituta comum.
Um momento depois, Lawrence olhava para seu anfitrião com
admiração e desejo.
— Mas isso era em Praga. Praga está muito longe.
— Na verdade, não é preciso ir tão longe. Mesmo em Paris...
— Pode-se... ter essa experiência em Paris?
— Se você soubesse para onde ir. E, é claro, é necessário ter
credenciais. Quero dizer que, como todas essas iluminações, isso deve ser
mantido em segredo, muito secreto, longe das mentes vulgares que impõem
suas restrições ao mais refinado. Isso é óbvio.
— Claro — disse o jovem, suspirando.
Seu anfitrião olhou para ele com afeto.
— Você, meu querido Lawrence... posso chamá-lo de Lawrence?...
quer apenas aquele toque do que eu chamaria de “les choses cachées” para
liberar seus imensos dons artísticos das amarras que ainda os prendem.
Através dessa porta, você encontraria a possibilidade de sua plena
realização! Isso fertilizaria ainda mais o seu gênio... Mas você teria
escrúpulos, e você é muito jovem."
— Você sabe — disse Lawrence com a voz baixa e trêmula — o que
sinto sobre a sua poesia. Você sabe como anseio depositar o melhor de mim
aos seus pés. Se ao menos eu pudesse tornar meus desenhos para as Duas
Rainhas mais dignos... Já é uma honra esmagadora que você tenha me
escolhido para fazê-los... mas ainda não são o que deveriam ser. Eu não sou
suficientemente liberto...
Augustine se inclinou sobre a mesa enfeitada de flores. Seus olhos
estavam brilhando.
— Você deseja mesmo ser?
O jovem assentiu, emocionado demais para encontrar sua voz.
O poeta se levantou, foi até um armário em um canto e o abriu.
Lawrence observou sua figura esbelta como em transe. Então se levantou
meio assustado.
— O que é isso? — perguntou Augustine muito rapidamente,
virando-se.
— Oh, nada, senhor... apenas acreditei que você odiasse gatos, e
acho que vi um, ou melhor, sua cauda, desaparecendo naquele canto.
— Aqui não tem gato — disse Augustine, assertivo. Seu rosto tinha
ficado todo brilhante e manchado, mas Lawrence não percebeu. O poeta
ficou um momento olhando para o tapete; poder-se-ia quase pensar que ele
estava reunindo coragem para atravessá-lo; então ele voltou com passos
rápidos para a mesa.
— Sente-se novamente — ordenou ele. — Você tem um caderninho
com você, um caderninho que nunca deixa por aí? Ótimo! Escreva isso em
um lugar; e isso em outra página... escreva pequeno, entre outras anotações é
melhor... não em uma página em branco... escreva em caracteres gregos se
você os conhecer...
— O que, o que é isso? — perguntou Lawrence, de súbito,
intoleravelmente excitado, seus olhos fixos no pedaço de papel na mão de
Augustine.
— As duas metades do endereço em Paris.
Naqueles dias, Augustine Marchant mantinha um diário, um diário
trancado, escrito em cifras. E por mais de um mês após a visita de Lawrence
Storey, o teor das entradas lá foi quase idêntico:
Nenhuma mudança... sempre comigo... Até quando posso suportar
isso? A alteração em minha aparência está sendo comentada na minha
frente. Terei que me livrar de Thornton [seu empregado] com alguma
desculpa, pois começo a pensar que ele viu a coisa. Não é de se
admirar, já que ela me segue como um cachorro. Quando todos puderem
vê-la, será o fim... Eu o encontrei na cama comigo esta manhã,
agarrada a mim como se precisasse de calor...

Mas também havia um tipo diferente de entrada, que aparecia em


intervalos com uma nota crescente de impaciência:
L.S. irá lá?... Quando vou ter notícias de L.S.?... A
experiência fará o que penso? É a minha última esperança.

E então, de repente, após cinco semanas, uma entrada com a mão


trêmula:
Por vinte e quatro horas, não vi sinal da coisa! Será possível?

E no dia seguinte:
Nada ainda. Começo a viver novamente. Esta noite chegou uma
carta extasiada de L.S., de Paris, me contando que ele “apresentou
suas credenciais” e teria a experiência no dia seguinte. Ele já deve
ter tido agora... ontem, na verdade. Será que realmente me libertei?
Parece que sim!

Uma semana após a data da última entrada, foi notado em Abbot’s


Medding que o Sr. Marchant estava parecendo muito melhor novamente.
Nos últimos tempos, não parecia nada bem; suas bochechas haviam
afundado, as roupas pareciam pendurar soltas sobre ele, que geralmente as
preenchia tão bem, e parecia nervoso. Agora estava como antes, alegre,
cortês, galante. E no último domingo, você não vai acreditar, foi à igreja! O
pároco ficou tão espantado quando o viu no púlpito que quase esqueceu de
anunciar o texto. E o poeta cantou os hinos também! Vários observaram esse
fenômeno surpreendente.
No dia após essa aparição incomum em St. Peter’s. Augustine
passeava em seu jardim. O ar tinha um novo sabor, o sol uma nova luz; ele
podia olhar de novo com prazer para Tétis e suas nereidas na fonte, podia
trabalhar sem ser perturbado no chalé de verão. Livre, livre! Todo o mundo
era bom para os sentidos mais uma vez, e as cores e os cheiros do início do
outono eram melhores, na verdade, do que o brilho daquele mês de verão
que viu essa maldição cair sobre ele.
O mordomo lhe entregou uma carta com um selo francês. De
Lawrence Storey, é claro; para contar o quê? Onde ele teve seu primeiro
vislumbre daquilo? Em um daqueles quartos franceses opressivamente
mobiliados? E como ele reagiu?
No entanto, de início, Augustine não tinha certeza se a carta era de
Storey. A caligrafia era muito diferente, apertada em vez de fluente e, em
alguns lugares, borbulhante, como se a caneta tivesse cavado no papel como
se a mão que a segurava não estivesse totalmente sob controle — quase
como, Augustine pensou, seus olhos brilhando de excitação, quase como se
algo tivesse sido enrolado, como uma liana, em torno do pulso. Teve uma
lembrança repentina e doentia de um dia em que isso aconteceu com ele,
submerso em um jorro vertiginoso de expectativa ávida. Sentando-se à beira
da fonte, ele leu... não exatamente o que esperava:
Não sei o que está acontecendo comigo [começava a carta sem uma
saudação], ontem eu estava sozinho em um café e tinha acabado de
pedir um absinto, embora eu não goste. E de repente, embora eu
soubesse que estava no café, percebi que também estava de volta
àquele quarto. Eu podia ver todos os detalhes, mas também podia ver
o café, com todas as pessoas dentro dele; um estava, por assim
dizer, sobreposto ao outro, o quarto, que era muito menor que o
café, estava dentro deste último, como uma caixa pode estar dentro
de outra maior. E o tempo todo o quarto estava ficando mais claro, o
café desaparecendo. Vi o copo de absinto de repente apoiado em nada,
por assim dizer. Todos os móveis do quarto, todos os acessórios que
você conhece, estavam misturados com as cadeiras e mesas do café.
Não sei como consegui encontrar o caminho de volta ao balcão, pagar
e sair. Peguei um fiacre de volta ao meu hotel. Quando cheguei lá,
estava tudo bem. Suponho que tenha sido apenas o efeito residual de
uma experiência emocional muito estranha e violenta. Mas peço a Deus
que não aconteça de novo!

Que interessante!, disse Augustine Marchant, mexendo a mão na água


agitada onde, uma vez, afogou um pedaço de pelo escuro. E por que, de fato,
eu deveria esperar que aquilo estivesse à sua espreita da mesma forma que
à minha?
Quatro dias mais de paz recém-encontrada, e ele estava lendo o
seguinte:
Em nome de Deus, ou do Diabo, venha me ajudar! Mal tenho uma
hora, de dia ou de noite, em que tenha certeza de onde estou. Eu não
poderia arriscar a jornada de volta para a Inglaterra sozinho. É
como estar aprisionado em algum tipo de caixa infernal meio
transparente, que fica um pouco menor a cada momento. Aonde quer que
eu vá agora, carrego isso comigo; quando estou na rua, mal sei qual
é a calçada e qual é a estrada, porque sempre estou pisando nesse
carpete preto com desenhos cabalísticos; se falo com alguém, eles
podem desaparecer repentinamente da vista. Tentar trabalhar é
naturalmente inútil. Eu consultaria um médico, mas isso significaria
contar tudo para ele...

"Rogo a Deus que ele não faça isso!", murmurou Augustine,


inquieto. "Ele não pode... jurou segredo absoluto. No entanto, eu não tinha
previsto que ele pararia de trabalhar. Supondo que ele se veja incapaz de
concluir os desenhos para Teodora e Marozia! Isso seria sério... contudo, me
libertar vale qualquer sacrifício... Storey não pode, claro, continuar vivendo
de modo indistinto em dois planos ao mesmo tempo... Artisticamente,
porém, isso pode inspirá-lo a algo completamente sem precedentes. Vou
escrever para ele e apontar isso, pode incentivá-lo. Mas me aproximar dele
pessoalmente... é provável!".
No dia seguinte, houve uma grande atividade literária. Augustine
estava tão imerso em seu novo drama poético que negligenciou sua
correspondência e quase suas refeições — exceto o jantar, que naquela noite
parecia ser compartilhado de forma muito agradável e emocionante por essas
novas criações de sua mente. Na verdade, sua mente estava tão ocupada com
elas que foi apenas depois de terminar o prato principal e servir um copo de
seu excelente vinho do Porto que ele lembrou de um telegrama que lhe havia
sido entregue enquanto entrava para o jantar. Ele ainda estava fechado ao
lado do prato. Rasgando o envelope, leu com crescente perplexidade as
palavras acima dos nomes de seus editores:
Por favor, informe-nos imediatamente quais medidas tomar,
estamos preparados para enviá-lo à França para recuperar os
desenhos, se possível. Que sugestões você pode dar quanto ao
substituto? Rossell e Ward.

Augustine estava mais do que perplexo; estava estupefato. Teria


acontecido algum acidente com Lawrence Storey do qual ele não sabia? Ele
havia aberto todas as suas cartas essa manhã, embora não tivesse respondido
a nenhuma. Preso a uma ansiedade repentina e muito desagradável, ele se
levantou e tocou a campainha.
— Burrows, traga-me o The Times da biblioteca.
O jornal chegou, ainda fechado. Augustine, agora em um frenesi de
inquietação, examinou as páginas rapidamente. Mas levou alguns segundos
até encontrar a manchete: “ᴛʀᴀ́ ɢɪᴄᴀ ᴍᴏʀᴛᴇ ᴅᴇ ᴜᴍ ᴊᴏᴠᴇᴍ ᴀʀᴛɪsᴛᴀ
ɪɴɢʟᴇ̂s” e ler o seguinte, fornecido pelo correspondente de Paris:

Os connoisseurs que estavam ansiosos pela aparição da magnífica


edição ilustrada de Rainha Theodora e Rainha Marozia do Sr.
Augustine Marchant ficarão muito tristes com a morte por afogamento
do talentoso jovem artista, Sr. Lawrence Storey, que estava
envolvido nos desenhos para a obra. O Sr. Storey havia estado há
pouco em Paris, mas saiu um dia na semana passada para um local
remoto na Bretanha, supostamente para continuar seu trabalho. Na
sexta-feira passada, seu corpo foi encontrado flutuando em um lago
solitário perto de Carhaix. É difícil entender como o Sr. Storey
poderia ter caído ali, já que esta área — o Mare de Plougouven — tem
uma costa completamente plana cercada por juncos e não é muito
profunda, nem há algum barco nela. Diz-se que o infeliz jovem inglês
havia se comportado de maneira estranha recentemente e reclamado de
alucinações; portanto, é possível que sob a influência delas ele
tenha se afastado deliberadamente para o Mare de Plougouven. Uma
característica estranha do caso é que ele tinha preso sob o casaco
os desenhos acabados para o livro do Sr. Marchant, que é claro foram
estragados por completo pela água antes que o corpo fosse
encontrado. Espera-se que não fossem os únicos...

Augustine jogou, furioso, o The Times longe e bateu na mesa de


jantar com o punho cerrado.
— Pela minha alma, isso é demais! É criminoso! Minha
propriedade... e eu que fiz tanto por ele! Amarrou-os ao redor de si... deve
ter ficado louco!
Mas ele realmente estivera louco? Quando sua ira se acalmou um
pouco, Augustine não pôde deixar de se perguntar se o jovem artista não
tinha, em alguma percepção terrível, adivinhado a verdade, ou parte dela:
que seu patrono o havia corrompido deliberadamente. Parecia quase isso.
Mas, se ele de fato levara todos os desenhos acabados com ele para esse
lugar na Bretanha, que truque terrivelmente mesquinho de vingança para
destruí-los de tal modo!... Mesmo que fosse assim, ele devia considerar a
perda deles como o preço de sua própria libertação, pois, do seu ponto de
vista, o expediente desesperado de passar sua “entidade” para outra pessoa
havia sido um sucesso completo. Ao fazer com que outra pessoa
mergulhasse ainda mais fundo do que ele na ilegalidade — pois ele tinha se
certificado de que Lawrence Storey faria isso —, havia provado, como dizia
aquele versículo em Gênesis, que havia dominado o que o perseguia em
forma tangível como consequência de sua própria noite em Praga. Ele não
poderia estar mais agradecido. O mundo literário também poderia ser grato.
Pois sua própria arte era de importância infinitamente maior do que a arte
subserviente e parasita de um ilustrador. Ele poderia, com uma pequena
pesquisa, encontrar meia dúzia de pessoas tão talentosas quanto o pobre
Lawrence Storey, assolado por alucinações, para terminar Teodora e
Marozia e, se necessário, começar um novo conjunto completo de desenhos.
E, enquanto isso, com o novo arrendamento de energia criativa que esse
sacrifício infeliz, mas necessário, tornou possível para ele, começaria a
colocar no papel a obra-prima que agora estava tomando forma brilhante em
sua mente liberta. Uma taça final e, em seguida, uma noite no ateliê!
Augustine serviu um pouco de vinho do Porto e estava levantando o
copo, preparado para brindar ao seu próprio sucesso, quando pensou ter
ouvido um som perto da porta. Olhou por cima do ombro. No instante
seguinte, o pé do copo de vinho quebrou em sua mão, e ele saltou para trás
no limite mais distante do cômodo.
Erguido a cerca de dois metros de altura contra a porta, enorme,
escuro, com água escorrendo sobre ele e fragmentos de algas verdes, havia
algo meio estola, meio serpente gigantesca, sua cabeça recuada como se
fosse atacar — sua cabeça, pois em sua extremidade, antes sem
características, agora havia dois olhos avermelhados, como os que os
peleiros colocam nas cabeças de animais empalhados. Estavam fixos com
um olhar inflexível e malévolo sobre ele enquanto se encolhia, segurando a
taça quebrada, e o exemplar amassado do The Times caído aos seus pés.
O CAVALEIRO NEGRO (1926)
Alicia Ramsay

O Cavaleiro Negro descansava sob o dossel de pedra, enquanto o


sino fúnebre ecoava do campanário uma solene despedida ao
penúltimo de sua linhagem.
Blem! Blem! Blem!
O som estremeceu o ar noturno silente. As corujas, perturbadas de
seu descanso, cercavam o campanário, chirriando uma estranha ladainha
aos mortos. Os aldeões, caminhando cansados para casa, perguntavam uns
aos outros se o filho do Escudeiro chegaria a tempo do funeral no dia
seguinte. O Sacristão que tocava o sino olhou para o Cavaleiro Negro e riu.
No centro da igreja jazia o Escudeiro. Quatro velas, sentinelas insones
com olhos de fogo, estavam aos pés e à cabeceira dele. Uma mortalha
imperial púrpura cobria seu rosto. O perfume das flores que ele amava
impregnava a igreja, um silencioso tributo funesto ao defunto.
Na escuridão adiante, cinco homens — sombras brancas recortadas
contra um círculo de luz trêmula — se moviam preparando a cama de pedra
perecível para seu ocupante de poeira imperecível. O arrastar de seus pés e
os sussurros roucos subiam e desciam com o golpear das picaretas e o soar
do sino.
Por mais uma noite, o Escudeiro repousaria entre os vivos. No dia
seguinte, tomaria seu lugar junto a seus antepassados, ao lado do Cavaleiro
Negro.
O Cavaleiro Negro era o remoto e glorioso fundador da linhagem do
Escudeiro. Os fólios empoeirados na biblioteca do Escudeiro provavam de
forma conclusiva que ele fora ao menos um grande e nobre homem, se não
bom e virtuoso. Havia roubado e furtado, festejado e esbanjado e se
entregado à devassidão junto com os melhores. Havia esgotado a taça do
prazer até a última gota, então, ao lado do Rei Ricardo, havia cruzado os
mares para lutar por seu rei, sua pátria e seu Deus. Na terra dos pagãos e do
sol, ele, que fora tão grandioso, caíra ao pó. Havia prestado o juramento do
Cavaleiro. E quebrou tal juramento. Retornou à Inglaterra, renunciou ao
mundo, dedicou-se à religião e construiu a igreja normanda como
penitência por seus pecados. Por vontade própria, decretou que, como
punição por toda a eternidade, sua efígie seria esculpida em turmalina
negra, e um manto cobriria a boca que havia renegado seu Deus.
Ninguém sabia qual tinha sido a tentação do Cavaleiro Negro,
tampouco a história registrou tal pecado. O segredo jaz trancado em seus
lábios de pedra, conhecido somente pelos mortos que repousam ao lado do
Cavaleiro Negro, pelo Escudeiro que ali descansava, e pelo Sacristão que
ria enquanto tocava o sino.
Blem! Blem! Blem!
Houve o som de arrastar, de erguer, de esforçar, de ofegar... então,
silêncio. O bater das picaretas dos pedreiros cessou com o repicar do sino.
Os homens, em círculo, enxugaram o suor das testas enquanto avisavam
baixinho ao Sacristão que o trabalho estava pronto. Noutro instante, o
Sacristão emergiu da escuridão e ficou ao lado dos pedreiros.
Era um homem de aparência incomum. Seu rosto era branco. Seu
cabelo, ruivo. Sobre os cabelos ruivos, usava um gorro de pano vermelho.
Quando olhava para baixo, parecia uma criança. Quando olhava para cima,
parecia um demônio; toda a perversidade do mundo parecia ter encontrado
morada em seus olhos maliciosos.
— Está tudo pronto? — perguntou ele.
— Sim, Sacristão — respondeu o chefe dos pedreiros. — Tudo está
pronto. É hora de partirmos.
— Neste caso —garantiu o Sacristão —, permitirei que saiam.
— Você não vai conosco, Sacristão? — questionou o chefe dos
pedreiros.
— Depois — replicou o Sacristão, sucinto —, quando meu trabalho
estiver pronto.
Os homens pegaram suas ferramentas, carregaram suas bolsas e
arrastaram os pés pelo corredor. Na porta, hesitaram.
— Você não tem medo de ficar aqui sozinho, Sacristão? — indagou o
chefe dos pedreiros, apontando com o polegar na direção do Escudeiro
morto.
— De modo algum — retornou o Sacristão. — Por que eu deveria ter
medo? Não há ninguém vivo para prejudicar a mim ou aos mortos.
Observou os pedreiros seguindo pela estrada, então fechou a porta e
voltou para a igreja.
Rapidamente, em silêncio, protegendo a chama da lamparina em sua
mão com um dobrar do manto, o Sacristão subiu o corredor e espiou a
tumba do Cavaleiro Negro. O dossel de pedras trabalhadas permanecia, mas
o leito com a figura recumbente de pedra havia desaparecido. O Cavaleiro
Negro, novamente de pé, apoiava-se contra a parede.
Pela luz tremeluzente da lamparina, era possível contar os degraus
que levavam à câmara abaixo. Lá, eles jaziam: incontáveis descendentes do
Cavaleiro Negro, incontáveis antepassados do Escudeiro adormecido, cada
um em sua tumba, com seu nome, idade e virtudes escritos na porta. Ali
repousavam, uma corrente inquebrável de poeira ligando o honrado
presente ao glorioso passado. Contudo, pouco tempo atrás, eles haviam
estado escondidos; inaudíveis ao ouvido mais sensível, invisíveis ao olhar
mais perspicaz. Amanhã, estariam escondidos novamente, seu sono
protegido pelo fundador de sua linhagem... mas hoje à noite! Hoje à noite!
Seu guardião havia ido embora; suas portas estavam abertas. Os mortos
estavam livres para receberem os vivos, caso alguém desejasse entrar em
suas casas de pedra.
O Sacristão afastou-se da tumba, ergueu a lamparina e olhou para o
Cavaleiro Negro apoiado contra a parede. A luz incidia na placa polida
pregada no peito do Cavaleiro Negro com sua lenda fantástica:

“ᴀǫᴜᴇʟᴇ ǫᴜᴇ ᴘʀᴏғᴀɴᴀʀ ᴇsᴛᴇ ᴛᴜ́ᴍᴜʟᴏ ᴘᴏʀ ɢᴀɴᴀ̂ ɴᴄɪᴀ


sᴏᴀʀᴀ́ ᴏ sɪɴᴏ ᴅᴇ sᴇᴜ ᴘʀᴏ́ ᴘʀɪᴏ ғᴜɴᴇʀᴀʟ.”

O Sacristão olhou nos olhos do Cavaleiro Negro e riu.


— Hoje à noite — sussurrou —, hoje à noite!
Então seguiu pelo corredor em direção à nave da igreja.
Ao lado do Escudeiro adormecido, parou e, com mão firme,
levantou o pano e olhou para o rosto céreo.
— Aguardei por oito longos anos — ele disse —, mas hoje à noite é
minha vez. Oito longos anos foram seus. Mas hoje a noite será minha! Hoje
à noite!
O Sacristão deixou o pano cair novamente sobre o rosto ceroso e riu.
— Hoje à noite — sussurrou novamente —, hoje à noite!
Fechou a porta da igreja e saiu na escuridão.

✽ ✽ ✽

A casa do Sacristão era uma pequena cabana próxima à igreja. Ele


vivia lá desde que chegara ao pequeno vilarejo de Ampthill vinte
anos antes. Durante vinte anos, “Geoff, o Ruivo”, como os
aldeões o chamavam, havia vivido entre eles, comido com eles, bebido com
eles, cavado suas sepulturas e tocado o sino fúnebre. De onde ele vinha ou
quem ele era, ninguém sabia. Chegou certo dia ao vilarejo, pediu uma
cerveja no pequeno pub e perguntou sobre a possibilidade de trabalho.
Coincidentemente, a vaga de Sacristão estava disponível, e “Geoff, o
Ruivo” entrevistou-se com o Escudeiro e obteve o cargo. Um dia depois,
mudou suas pobres posses para a pequena casa destinada ao uso do
Sacristão e, em uma semana, já era tão conhecido quanto o habitante mais
antigo do lugar.
Havia bastante curiosidade sobre o Sacristão, não apenas sobre sua
chegada, mas a respeito de toda sua vida. Ele era um daqueles homens que
atraem e repelem a atenção, e estimulam o apetite da imaginação,
permitindo-a morrer de fome. Os moradores da vila, pessoas honestas e
comuns, ressentindo a intrusão em seu meio de uma personalidade tão
estranha à deles, resumiam-no em uma única palavra: “incomum”. Os
visitantes que ele guiava pela igreja normanda, notando suas mãos delicadas
e o inesperado refinamento de sua fala, consideravam-no um homem que já
vivera dias melhores. Entretanto, para moradores e visitantes, o Sacristão
nunca disse uma palavra sequer. Mesmo em seus momentos de embriaguez,
ele conseguia segurar a língua.
Muitos visitantes passavam pela igreja normanda. Sua arquitetura
era única, os vitrais, uma revelação, a vista da torre do sino, incomparável e
a tumba do Cavaleiro Negro, com sua lenda pitoresca, cheia de charme
antiquado.
Antes da chegada do Sacristão, a história do Cavaleiro Negro era
considerada bastante comum, mas “Geoff, o Ruivo” havia percebido as
possibilidades daquela personalidade histórica e as explorou. O Escudeiro,
homem bom e generoso, lisonjeado pelo interesse do Sacristão no orgulho
de sua linhagem, concedeu-lhe livre acesso aos livros necessários. Um
pequeno folheto sobre o Cavaleiro Negro foi o resultado das pesquisas do
Sacristão, que, a pedido do Escudeiro, foi impresso e vendido por seis
centavos para centenas de pessoas que, durante o ano, chegavam ao
pequeno vilarejo de Ampthill para contemplar e especular sobre o túmulo
do Cavaleiro Negro.
Qual era o significado da lenda? Qual “pilhagem” ele guardava tão
zelosamente e protegia com baluartes de medo? Seria um tesouro escondido
de documentos e escrituras ou um montante acumulado de joias e ouro?
Todos se perguntavam. Ninguém sabia. Apenas o Cavaleiro Negro e
seus irmãos em seus jazigos de pedra; o Escudeiro, repousando solitário,
guardado por sentinelas de fogo; e o Sacristão, que ria enquanto caminhava
pela estrada noite adentro.
Ele sabia. Não era à toa que havia estudado durante tantas horas
tediosas os livros empoeirados do Escudeiro. Ele sabia. Soube por oito
anos. Por oito longos anos, esperara por uma chance de transformar seu
conhecimento em lucro. A morte lhe proporcionara essa oportunidade nessa
noite.
Enquanto caminhava pela estrada na escuridão, o Sacristão começou
a pensar. Seus pensamentos eram tão sombrios quanto a noite. Pensou na
injustiça das leis dos homens, que o haviam impedido desde seu
nascimento. Pensou em uma infância infeliz, em uma esposa traiçoeira, em
aspirações frustradas, em um coração esvaído. Pensou na crescente avidez
pelo ouro, que se tornara a paixão dominante de sua vida.
Ouro! Como o amava! Como ansiava por ele! Como havia passado
fome por sua causa! Como havia passado a noite toda cantarolando para ele,
conversando com ele, acariciando-o, beijando-o com a paixão de uma mãe
por seu recém-nascido. Como amava sentir as brilhantes moedas escorrendo
pelas mãos; mãos que eram como as de uma mulher apesar de todo seu
trabalho, ágeis, macias e brancas. Mãos de um avarento, como uma garota
cigana lhe dissera uma vez em uma feira. Recordando a memória, o
Sacristão olhou para suas mãos na escuridão e riu. Estava animado hoje à
noite. Como poderia estar diferente? Não havia esperado por oito longos
anos? Sua chance não havia finalmente chegado?
Os moradores dormindo, a igreja solitária, o túmulo aberto, o
conhecimento secreto e o ouro escondido!
Por que apenas ouro? Por que não joias? Esmeraldas bárbaras, rubis
não lapidados, pérolas de valor incalculável! Tudo esperando! Seu brilho
escondido na escuridão, esperando por ele.
Quanto? Quanto? Essa era a questão. Centenas! Milhares! Dezenas
de milhares! Milhões! Um pouco de coragem, um pouco de determinação, e
amanhã ele poderia sentar-se sozinho na escuridão e lavar suas mãos
sedentas, não em um pequeno monte de soberanos, mas em um mar ardente
de ouro.
Como as estrelas no firmamento sombrio acima dele, o devaneio do
tesouro escondido brilhou na escuridão dos pensamentos do Sacristão.
Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito!
O Sacristão contou as notas doces enquanto elas se dissipavam no ar
da noite silenciosa. Oito horas. Isso significava mais quatro horas, pois
pretendia esperar até a meia-noite. À meia-noite, o mundo estaria
dormindo; à meia-noite, o fantasma do ouro se levantaria e caminharia; à
meia-noite, o túmulo restituiria os seus mortos.
Conforme o Sacristão cruzava o batente da cabana — um palácio de
Creso em seus sonhos — pela última vez na vida, ele riu.

✽ ✽ ✽

S entado à mesa, sem tocar a comida e o vinho, estava o filho mais


velho do falecido Escudeiro. Suas botas estavam enlameadas; as
mãos sujas; o rosto estava pálido. Em seu caminho, quatro dias e
noites sem dormir; chegara apenas a tempo de ouvir, apesar de toda a sua
pressa, que estava três dias atrasado. O pai que ele amara e honrara se fora,
e seu filho, um herdeiro relutante, reinava em seu lugar.
O novo Escudeiro afastou seu prato intocado, olhou para a cadeira
vazia que doravante seria ocupada por ele, e sua imaginação evocou o rosto
gentil, o olhar brilhante e a mão acolhedora. Tarde demais! Tarde demais!
Ele havia partido para a escuridão e o silêncio, clamando por seu filho. O
novo Escudeiro cobriu o rosto com as mãos e chorou como uma criança
pequena.
No andar de cima, as mulheres chorosas realizavam suas tarefas; lá
embaixo, os criados aglomerados na cozinha já planejavam a desintegração
do antigo lar. Na biblioteca, com papéis e canetas, o advogado esperava a
disposição do novo Escudeiro.
Deixe-o esperar. Amanhã haveria tempo suficiente para ouvir sobre
as terras hipotecadas, as colheitas fracassadas, a venda necessária, a entrega
do querido lar a mãos estranhas. Amanhã pertenceria a tais coisas; hoje à
noite, pertencia a ele próprio.
O novo Escudeiro se levanto e chamou o mordomo que o conhecia
desde criança.
— Diga ao Sr. Creighton que não espere mais — decidiu. — Não
posso ver ninguém esta noite.
— Mas é muito importante, Mestre John — argumentou o velho
homem, o nome familiar da infância escapando de seus lábios trêmulos.
— Não posso evitar — respondeu o mestre. — Nada é tão
importante que não possa esperar até a manhã. Eu não posso ficar mais
tempo na casa, James, o lugar me sufoca. Estou voltando.
— Mas você já esteve com ele, Mestre John — insistiu o velho
homem. — Não deve voltar. Está cansado. Está doente. Ele seria o primeiro
a dizer para você não voltar se pudesse falar.
— Eu tenho que ir — afirmou o Escudeiro. — É a última chance que
terei de passar algumas horas ao lado dele.
— Então eu irei com você — replicou o velho homem.
— Não — disse o Escudeiro. — Eu tenho que ir sozinho.
Conforme se dirigia à porta, o velho homem jogou-se em seu
caminho.
— Deixe-me ir com você, Mestre John. Você não pode ir sozinho.
Olhe... — Apontou com um dedo trêmulo para o relógio.
— Quinze para a meia-noite — observou o Escudeiro. — E daí?
— Pelo menos espere até a hora ter soado — implorou o velho
homem. — Você sabe o que os moradores dizem por aqui, Mestre John —
sua voz diminuiu para um sussurro —, que à meia-noite o Cavaleiro Negro
caminha.
O jovem homem afastou a mão do servo com um gesto de desprezo.
— O que acha que ele diria se ouvisse você falando tanta bobagem?
Por um instante, servo e mestre se olharam, então o velho homem
abriu a porta.
— Se tiver que ser, senhor, que seja. Esperarei até você voltar.
O jovem Escudeiro pegou um chapéu, jogou o casaco sobre o braço
e saiu para a noite.
O ar estava frio, mesmo sendo verão, e o jovem homem tremia
enquanto caminhava através do gramado. Enfiou o braço no casaco. Para
sua surpresa, por mais que tentasse, não encontrava a manga. Percebeu
imediatamente que havia pegado a capa de seu pai. Enrolou-a em volta dos
ombros com uma sensação tão aguda que quase parecia o toque da mão do
homem morto. Querido pai, pensou ele, quantas vezes eu ri de você por
usar essa velha capa surrada; agora a estou usando e você não está aqui
para rir de mim.
Suavemente, entrou na igreja pela porta do vestiário com a pequena
chave que o Vigário havia deixado no saguão caso ele chegasse e precisasse
usá-la naquela noite. Em silêncio, caminhou pelo corredor estreito, levantou
a cobertura, se curvou e beijou o rosto pálido do homem morto.
— Por que você não esperou um pouco mais, pai? — balbuciou. —
Apenas algumas horas a mais, para que pudéssemos pelo menos dizer
adeus.
Colocou sua jovem mão quente sob a mortalha, repousando-a com
carinho sobre os dedos gélidos do defunto e ajoelhou-se ao seu lado.
Por quanto tempo ele ficou ajoelhado ali, nunca soube. Foi um
momento? Foi uma hora? Em retrospectiva, pareceu-lhe como se tivesse
ajoelhado ali por toda a eternidade. Exausto por falta de comida, cansado
por falta de sono, enquanto ajoelhado ali, ele perdeu toda a consciência de
tudo, exceto que segurava a mão de seu pai. O presente parecia lhe escapar.
O futuro não existia. Apenas o passado era real — o passado vivo com o
espírito do morto. Memórias meio esquecidas dos dias da infância, nomes
ternos e familiares que há muito não eram mais usados, palavras ociosas,
risos alegres, tudo ressurgia e vivia mais uma vez. Como haviam saído de
manhã entre os campos alegres e as flores coloridas. Como brincaram
juntos na luz da lua. Como, quando o crepúsculo chegava, eles se sentavam
lado a lado no grande saguão, observando a luz do fogo saltando dentro das
chamas, enquanto o mais velho contava ao mais novo histórias sobre
familiares. Como ele havia colocado sua mãozinha na mão protetora do pai,
assim como agora — igual, ainda que diferente —, e desse refúgio seguro
desafiava o medo escondido nos cantos sombrios enquanto falavam do
Cavaleiro Negro e sussurravam misteriosamente sobre os possíveis tesouros
em seu túmulo.
O Cavaleiro Negro!
O jovem Escudeiro levantou a cabeça e ouviu. O que era aquele
barulho?
Algo se moveu. Algo se remexeu. O que poderia ser?
Seriam as corujas na torre, ratos nas criptas, ou James que, apesar do
medo e das instruções de seu mestre, veio buscá-lo para casa?
Prendeu a respiração e ouviu.
Silêncio. O terrível e aterrorizante silêncio da morte.
Nenhum movimento. Nenhum som. Era sua própria imaginação
exaltada. Seu próprio cérebro sobrecarregado. E, no entanto, de novo, algo
se movendo. Havia alguém na igreja.
Num instante, o jovem Escudeiro estava de pé. Para sua surpresa,
descobriu que, de súbito, estava sem ar. Seu coração batia ensandecido no
peito. Os olhos, vasculhando a escuridão, de repente ficaram cegos. Os
ouvidos, tensos de expectativa, ficaram repentinamente surdos. Colocando a
mão na testa, descobriu que estava completamente molhada.
O que era aquilo? Quem era aquilo?
Neste lugar assim, a essa hora? Quem, ou o quê?
Pela terceira vez e, desta vez, não havia engano. O jovem Escudeiro
virou a cabeça na direção do ruído e viu um ponto de luz. Com o choque
que ruborizou seu rosto, ocorreu-lhe que a luz estava queimando na tumba
do Cavaleiro Negro.
Com uma reviravolta abrupta de sentimentos, o jovem Escudeiro
olhou para seu pai morto e sorriu.
Claro que devem ser os pedreiros que ainda estão trabalhando. E
ainda assim.... trabalhando à meia-noite, com as portas da igreja trancadas!
Quem os deu permissão para ficarem tão tarde? Se as portas estão
trancadas, quem os deixou entrar? Se estão trabalhando para preparar a
cripta para o dia seguinte, por que não fazem barulho?
Ainda assim... lá estava a luz; queimando, piscando, movendo-se,
como se alguém lá embaixo a estivesse carregando. Provavelmente o
Sacristão, um homem excessivamente cauteloso, voltou para verificar se
tudo estava certo. Mas... tão tarde... O Escudeiro prendeu a respiração
bruscamente; a luz se apagou.
Escuridão! Silêncio! Morte! Nenhuma luz, exceto as velas
queimando, nenhum som, exceto o batimento de seu próprio coração,
nenhuma presença humana, exceto ele mesmo e o homem morto.
Ele estava dormindo ou sua imaginação superexcitada o enganara?
No entanto, há apenas um instante, a luz estava lá, e agora já não estava. Os
nervos do jovem, tensionados ao limite, começaram a ceder. Então, seus
olhos desceram ao rosto do defunto e a tensão se dissipou.
Você não acreditaria se eu lhe contasse, pensou ele, mas é verdade,
querido pai. Estou com medo!
Virou a cabeça bruscamente. A luz estava queimando mais uma vez.
Num instante, toda a hesitação do jovem Escudeiro desapareceu. Quem
quer que fosse, o que quer que fosse, ele deveria ver, ele deveria saber.
Curvou-se, desamarrou as botas, puxou mais firmemente a capa do pai em
torno de si e, de meias, deslizou, silencioso, pela igreja.
Havia a escuridão. Havia a cripta aberta. Havia a luz acesa. Pela
primeira vez em sua vida, o jovem Escudeiro olhou para o túmulo de seu
grande ancestral.
Uma escadaria de pedra levava à cripta. A luz, que bruxuleava e
desaparecia, não era brilhante o suficiente para permitir que ele distinguisse
qualquer outra coisa. Apenas uma coisa era certa: havia alguém na cripta.
Alguém que se movia cautelosamente, alguém que estava fazendo algo que
não queria que fosse descoberto.
Ele estava prestes a descer correndo quando um pensamento
repentino atravessou sua mente. Alguém que conhecia a lenda estava
aproveitando a abertura da cripta para procurar os supostos tesouros
enterrados na tumba do Cavaleiro Negro!
O simples pensamento o acalmou imediatamente. Ao primeiro sinal
de perigo prático e tangível, ele retomou o controle. Protegendo o rosto com
a capa, afastou-se para a sombra. Alerta, seus olhos fixos na luz que
oscilava, permaneceu parado e se encostou- na parede.
Silêncio! Um silêncio enlouquecedor e ensurdecedor, seguido por
um som de pedra caindo sobre pedra e um grito abafado. O jovem
Escudeiro conteve-se com ferenha determinação para não se jogar escada
abaixo e ver o que estava acontecendo.
Mais uma vez, silêncio impiedoso, um silêncio doloroso que agarra
o homem pela garganta e interrompe o fluxo de sangue em seu coração.
Silêncio! E, então, um som como o de lágrimas caindo. Um som estranho,
como se lamentos e soluços estivessem misturados a outro som, como o de
amantes se beijando, seguido de uma voz murmurando palavras carinhosas
conhecidas na linguagem do amor. E, em seguida, o som de moedas de ouro
tilintando umas nas outras.
Encontraram, pensou o jovem Escudeiro, na escuridão. Quantos
deles estão lá? O que devo fazer?
Chamar por ajuda seria inútil, partir era impossível, não havia nada
a fazer além de esperar.
Um! Dois! Três! Ao soar do relógio, todos os outros sons cessaram.
A luz, que por algum tempo havia diminuído, como se tivesse sido movida
mais para dentro da tumba, cintilou intensa por um momento e, em seguida,
voltou a emitir um brilho constante, como se estivesse protegida por uma
mão cautelosa.
Enfim estão vindo, pensou o Escudeiro, e elevou a capa sobre o
rosto. Ao fazer isso, seus braços bateram bruscamente contra a pedra
saliente, e ele percebeu, pela primeira vez, que estava ao lado do Cavaleiro
Negro, a quem os pedreiros haviam, com esmero, apoiado contra a parede.
Mesmo naquela situação, a ideia o emocionou profundamente, ele e seu
grande antepassado estavam ali, de pé, lado a lado como guardiões.
A luz começou a se mover. Lentamente, alguém estava subindo as
escadas. Em mais um segundo, um rosto branco, cercado por cabelos
vermelhos e coroado por um gorro vermelho, apareceu.
Era “Geoff, o Ruivo”.
O Sacristão subiu as escadas. Uma lamparina estava presa ao seu
peito, uma sacola pendia em suas costas arqueadas, e suas mãos estavam
cheias de pedras preciosas.
Por um instante, lembrando-se de toda a bondade de seu pai falecido
para com o homem, uma onda de indignação o manteve em silêncio. Então,
uma paixão raivosa tomou conta dele, e avançou até o lado da tumba aberta
e ficou esperando o Sacristão, com o braço cobrindo o rosto.
— Diamantes, rubis e esmeraldas — balbuciou o Sacristão — e
pérolas, pérolas de grande valor! Um resgate digno de rei!...
— Geoffrey — chamou o Escudeiro.
O Sacristão parou no último degrau e escutou com atenção. Seu
rosto estava lívido de medo.
— Quem falou? — sussurrou roucamente.
O jovem Escudeiro saiu da sombra para o círculo de luz.
— Sou eu.
O Sacristão olhou vagamente para cima, na direção da escuridão, e
então soltou um grito como o de um animal ferido, que ecoou pela noite.
— O Cavaleiro Negro! — gritou. — Me ajude, me ajude, me ajude!
— disse correndo, descontrolado, para dentro da igreja.
— Você não pode me escapar assim — asseverou o Escudeiro,
começando a persegui-lo.
— Me ajude, me ajude, me ajude! — clamou o Sacristão. — O
Cavaleiro Negro voltou à vida.
— Pare! — ordenou o Escudeiro com uma voz trovejante. — Sou
eu.
Por um momento, o rosto branco do Sacristão olhou para trás, por
cima do ombro, e, então, sua lamparina apagou. A igreja toda ficou escura,
exceto pelas quatro altas velas ao redor do caixão, sentinelas adormecidas
com olhos de fogo.
De um lado para o outro, em círculos, para dentro e para fora, os
dois homens se perseguiram; os gritos do Sacristão, de maneira
desagradável e imprópria, perturbando o repouso sagrado dos mortos.
De um lado para o outro! Em círculos! Para dentro e para fora! Por
um triz, a uma distância de um fio, estavam quase alcançando um ao outro,
no momento seguinte, separados por quase todo o comprimento da igreja.
Uma visão estranha, de fato! O Sacristão de cabelos vermelhos e
rosto branco, suas mãos cheias de joias, o saco com o tesouro roubado
erguendo-se como uma protuberância em suas costas, encurvado, saltando,
correndo, gritando; e o alto Escudeiro, de pés descalços, rastreando-o
silenciosamente através da escuridão, com a capa, que pertencia ao pai
falecido, ondulando atrás dele como asas negras fantasiosas.
De um lado para o outro! Em círculos! Para dentro e para fora! Por
alguns minutos, que pareciam eternidades, perpetraram essa corrida,
perseguindo e sendo perseguidos, e, em seguida, com um movimento de
destreza inesperada, os dois se encontraram cara a cara.
A mão do jovem Escudeiro saltou como um relâmpago para agarrar
o Sacristão. O Sacristão dobrou-se como uma lebre e correu para cima das
escadas do campanário. O Escudeiro, incerto sobre onde o Sacristão estava
na escuridão, parou e gritou enfurecido para que ele parasse.
O campanário era construído de forma a ter duas escadas. A
intenção do Sacristão, ao chegar ao topo, era atravessar a estreita plataforma
roída pelos ratos e escapar pelo outro lado.
Em frente, em frente, em frente. Subindo, subindo, subindo. Ofegante,
escorregando, gritando, com o instinto infalível da caça, o Sacristão correu
em direção ao alto na escuridão.
Virou a esquina, atravessou a plataforma, desceu do outro lado.
Cric! CRIC! Cric!
O Sacristão cessou bruscamente sua corrida, cara a cara com o jovem
Escudeiro, que estava subindo, protegendo uma tocha acesa com sua capa.
— Finalmente te peguei, não é? — gritou o Escudeiro.
Para o Sacristão aterrorizado, aquela era a voz de alguém
ressuscitado dos mortos. Sem hesitação, o Sacristão virou e fugiu de volta
pelo caminho que havia vindo.
Subindo! Subindo! Subindo! Ele nunca alcançaria o topo? As
escadas, que seus pés haviam pisado tantas vezes, não teriam fim?
Vacilando, escorregando, ofegando, gritando, ele avançava como um
homem perseguido por um sonho horrível; e sempre em seus calcanhares,
cada vez mais perto, a terrível presença o ordenando a parar.
Em frente! Em frente! Em frente! Subindo! Subindo! Subindo!
Enfim, o topo.
Meio paralisado com o esforço incomum, o Sacristão se apoiou no
frágil corrimão, parou por um instante e olhou para baixo. No patamar logo
abaixo dele, surgiu o brilho que o perseguia. Apenas alguns degraus os
separavam. Apenas alguns segundos o separava do terror sobrenatural que
ele temia mais do que a própria morte.
Esperar e lutar contra esse assaltante temido era impossível. Correr
ainda mais não era uma opção; havia esgotado suas forças. Para onde se
virar? O que fazer? Como escapar?
Muitas vezes, para evitar o trabalho de subir a escadaria íngreme,
ele havia se deixado descer pela corda. Com esse pensamento, o Sacristão
avançou ansiosamente na escuridão, e a corda com a qual havia prendido o
sino ao patamar, naquela mesma tarde, após repicar os ritos funerais do
falecido Escudeiro, bateu em suas mãos, que estavam cheias de joias! A
paixão avassaladora e a avareza ainda o faziam segurar as joias como um
vício.
Mais forte que o terror, mais enlouquecedor que o medo, veio o
pensamento de que, se ele segurasse a corda com as mãos, as joias cairiam.
— Finalmente te peguei, não é?
Apenas três degraus o separavam do Cavaleiro Negro!
O Sacristão, gritando de terror, colocou a cabeça na corda e pulou
para a escuridão.
Blem! Blem! Blem!
Enquanto o jovem Escudeiro olhava por cima do corrimão,
petrificado de horror, o grande sino, liberado de sua prisão, ecoou as
primeiras notas do repique fúnebre do Sacristão.
Assim, a lenda se cumpriu.
✽ ✽ ✽

Q uando as pessoas, despertadas pelo repicar, correram para a


igreja, encontraram o jovem Escudeiro, como um homem em um
sonho, observando o corpo do Sacristão morto, preso em uma
corda que ele mesmo havia feito, balançando lentamente, de um lado para o
outro
O BAÚ COM BRAÇADEIRAS DE FERRO
(1868)
Florence Marryat

M olton Chase é uma encantadora casa de campo antiga, que tem


estado na posse da família Clayton por séculos; e como Harry
Clayton, seu atual proprietário, possui bastante dinheiro e,
tendo provado os prazeres do matrimônio por apenas cinco anos e ainda não
tem conhecimento dos deleites das contas da faculdade e da escola
chegando no Natal, é sua vontade encher a granja nesta época do ano com
convidados, a quem ele estende um convite tão caloroso quanto sincero.
— Bella! Não vai se juntar ao grupo de cavalgada esta tarde? —
perguntou à esposa, à mesa do almoço, um dia em um dezembro não muito
distante.
Bella era uma mulherzinha de rosto afável, cuja expressão sincera
poderia ser facilmente comparada à face honesta e genial de seu marido, e
ela respondeu de imediato:
— Não! Não esta tarde, Harry, querido. Você sabe que os Damers
podem chegar a qualquer momento entre agora e sete horas, e não gostaria
de estar fora quando eles chegarem.
— E posso perguntar à Sra. Clayton quem são os Damers? —
indagou um amigo de seu marido, que, por ser bonito, considerava-se
autorizado a ser insolente. — De quem a chegada deveria ser a causa de
perdermos o prazer da sua companhia esta tarde?
Mas a última coisa que Bella Clayton faria era se ofender.
— Os Damers são meus primos, Capitão Moss — respondeu —,
pelo menos Blanche Damer é.
Nesse momento, um homem de olhos escuros que estava sentado na
outra extremidade da mesa interrompeu o galanteio que mantinha com uma
irmã mais nova da Sra. Clayton e pareceu se interessar pelo que sua anfitriã
estava dizendo.
— O Coronel Damer — ele continuou —, esteve na Índia nos
últimos doze anos, e retornou à Inglaterra apenas um mês atrás; portanto,
seria cruel, em sua primeira visita aos parentes, não ter ninguém em casa
para recebê-lo.
— A Sra. Damer também esteve fora por tanto tempo? — continuou
o questionador, visualizando uma mulher de cor amarela e sapatos surrados
em sua mente.
— Oh, não mesmo! — respondeu a anfitriã. — Blanche veio para a
Inglaterra cerca de cinco anos atrás, mas sua saúde tem estado muito
delicada para se juntar ao marido na Índia desde então. Terminamos todos,
Harry, querido? — E em mais um minuto a mesa do almoço foi limpa.
Enquanto a Sra. Clayton atravessava o saguão logo em seguida para
visitar o berçário, o mesmo homem de olhos escuros que a havia a
observado fixamente quando mencionou o nome de Blanche Damer a
seguiu e abordou.
— Já faz muito tempo desde que você viu sua prima Sra. Damer,
Sra. Clayton?
— Eu a vi cerca de três anos atrás, Sr. Laurence; mas logo depois
ela teve uma doença grave e tem vivido no continente desde então. Por que
pergunta?
— Sem um motivo especial — respondeu sorrindo. — Talvez eu
esteja um pouco ciumento de que essa recém-chegada, pela qual você
espera com tanto interesse, possa usurpar mais do seu tempo e atenção do
que nós, menos favorecidos, podemos dispensar.
Ele falou com um certo grau de sarcasmo, real ou fingido, que a Sra.
Clayton imediatamente ressentiu.
— Não tenho conhecimento de negligenciar meus convidados, Sr.
Laurence — argumentou. — Mas minha prima Blanche é mais propensa a
me lembrar de meus deveres do que me tentar a esquecê-los.
— Me perdoe — disse ele com sinceridade. — Você interpretou mal
o que pretendi dizer. Mas você é muito íntima dessa senhora?
— Muito — foi a resposta. — Fomos criadas juntas e nos
amávamos como irmãs até que ela se casou e foi para a Índia. Por alguns
anos após seu retorno ao lar, nossa convivência foi retomada, e só foi
interrompida quando ela ficou doente e foi para o exterior, como eu lhe
descrevi. Quanto ao marido dela, tenho, é claro, visto menos dele, mas
gosto do que conheço e estou ansiosa para mostrar a ambos toda a
hospitalidade que posso. Ela é uma pessoa encantadora, e tenho certeza de
que você a admirará.
— Sem dúvida — ele respondeu —, contanto que ela não
reivindique todo o interesse da Sra. Clayton nos assuntos de Molton Chase.
— Não se preocupe com isso — riu a animada senhora enquanto
subia as escadas, deixando o Sr. Laurence parado no saguão abaixo.
— Clayton — observou aquele cavalheiro, ao voltar para a sala de
almoço e levar seu anfitrião para a privacidade de uma janela em baía —,
eu realmente temo que terei que partir esta noite, se você não achar rude de
minha parte ir tão repentinamente.
— Mas por que, meu caro? — perguntou Harry Clayton, enquanto
seus olhos azuis sondavam a alma do outro. — Que motivo você poderia ter
para ir embora, quando seu plano era ficar conosco até o dia de Natal?
— Bem, há muito trabalho esperando por mim, sabe; e realmente o
tempo passa tão rápido, e tempo é dinheiro para um serviçal como eu que...
— Ora, meu caro Laurence — disse Harry Clayton conclusivamente
—, você sabe que está apenas inventando desculpas. Todo o trabalho que
era absolutamente necessário fazer antes do Natal foi concluído antes de
você vir para cá, e você havia dito que se sentia autorizado a tirar um mês
inteiro de férias. Não foi isso?
O Sr. Laurence não pôde negar o fato e, assim, pareceu indeciso e
ficou em silêncio.
— Não quero mais ouvir nada sobre você partir antes do dia de
Natal — proclamou o anfitrião —, ou ficarei ofendido, assim como Bella;
para não mencionar a irmã de Bella, não é mesmo, Laurence?
Então, o Sr. Laurence sentiu-se obrigado a ficar; e dizendo em sua
mente que o destino estava contra ele, abandonou completamente o assunto
de sua partida.
Uma hora depois, com o grupo de cavaleiros já a algumas milhas de
Molton Chase, uma carruagem de viagem carregada com malas chegou à
casa, e a Sra. Clayton, toda corada e sorridente, ficou nas escadas da entrada
para receber seus convidados esperados.
O Coronel Damer foi o primeiro a descer. Era um homem de meia-
idade, mas com uma postura militar elegante, que tirava alguns anos de sua
aparência; e estava tão ansioso para garantir a saída segura de sua esposa da
porta da carruagem que não teve tempo de fazer mais do que tirar o chapéu
para a radiante Bella nas escadas.
— Agora, meu amor — ele exclamou quando a forma da dama
apareceu —, por favor, tenha cuidado; dois degraus: isso mesmo... aqui
está, em segurança.
E então a Sra. Damer, estando devidamente aterrissada, foi autorizada
a voar para os braços afetuosos da prima que se abriam para recebê-la.
— Minha querida Bella!
— Minha mais querida Blanche, estou tão encantada em vê-la
novamente. Mas você está completamente congelada! Por favor, entre
imediatamente para junto da lareira. Coronel Damer, meus empregados
cuidarão da bagagem, deixe-as, e venham se aquecer.
Dois criados se aproximaram e ofereceram-se para cuidar do
desembarque da carruagem, mas a Sra. Damer não se moveu.
— Você não vai entrar, meu amor, como sua prima sugere? —
arguiu o marido. — Posso cuidar das caixas se você quiser que eu o faça.
— Não, obrigada — foi a resposta suave; e havia um tom de
melancolia na voz da Sra. Damer que atrairia a atenção de um estranho. —
Prefiro esperar até que a carruagem seja descarregada.
— Não se preocupe com a bagagem, Blanche — sussurrou a Sra.
Clayton, com seu jeito persuasivo. — Venha para dentro, perto do fogo,
querida, tenho tanta coisa para lhe contar.
— Espere um minuto, Bella — pediu a prima; e o pedido foi tão
firme que não houve mais oposição.
— Um, dois, três, quatro — exclamou o Coronel Damer, enquanto
as malas eram sucessivamente retiradas da carruagem. — Receio que você
pensará que estamos tomando de assalto sua casa, Sra. Clayton; mas talvez
você saiba da preferência de minha esposa por levar um grande conjunto de
viagem antigo. Isso é tudo, Blanche?
— É tudo, obrigada — nos mesmos baixos e melancólicos tons com
que falara antes. — Bella, querida, qual será meu quarto?
— Você prefere ir para lá primeiro, Blanche?
— Sim, por favor... estou cansada. Você pode levar esse baú para
mim? — continuou ela, apontando uma das caixas para o criado.
— Imediatamente, madame — ele respondeu, enquanto procurava
troco para um soberano para pagar ao Coronel Damer, mas a senhora
esperou até que ele estivesse desocupado. Então ele carregou o baú ao lado
do que ela tinha indicado, e ela chamou sua atenção para o fato e o fez
mudar de carga.
— Todos irão subir em seu devido tempo, madame — comentou o
homem, mas a Sra. Damer, não respondendo nada, não pôs o pé na escada
até que ele já estivesse a meio caminho, com o baú que ela desejara que ele
levasse primeiro.
Então, apoiou-se cansada no braço de Bella Clayton, apertando-o
carinhosamente, e as duas foram juntas para o quarto que havia sido
designado para a recepção dos novos hóspedes. Era um quarto grande e
confortavelmente mobiliado, com um closet a partir dele. Quando as
senhoras chegaram lá, encontraram o criado esperando por elas com a mala
em questão.
— Onde você gostaria que ela fosse colocada, madame? —
perguntou à Sra. Damer.
— Debaixo da cama, por favor.
Mas a cama era uma cama francesa, e as laterais de mogno eram tão
profundas que nada poderia ser colocado embaixo delas além de poeira; e o
baú, embora pequeno, era robusto e pesado, com fechos de ferro,
definitivamente não era do tipo que caberia em qualquer lugar.
— Nada vai caber embaixo da cama, madame! — argumentou o
criado em resposta.
A Sra. Damer mudou ligeiramente de cor.
— Não se preocupe, então: deixe-o aí. Ah, que conforto é uma boa
lareira — continuou ela, virando-se para o tapete da lareira e se jogando em
uma poltrona. —Fizemos uma viagem tão fria desde a estação.
— Mas e o seu baú, Blanche? — perguntou a Sra. Clayton, que não
tinha ideia de que sua amiga estivesse sendo incomodada. — Você não vai
desfazê-lo? Ou devo mandá-lo para o corredor?
— Oh, não, obrigada, Bella. Deixe-o onde está, por favor; estará
bem assim.
— O que estará bem assim? — indagou o Coronel Damer, que
entrou no quarto naquele momento, seguido por um criado com outra caixa.
— Só o baú da Blanche, Coronel Damer — explicou Bella Clayton.
— Ela não quer desfazê-lo, e acho que vai atrapalhar aqui. Talvez possa
colocá-lo em seu closet — ela disse isso como mera tentativa, sabendo que
alguns homens não gostam de ser incomodados, mesmo em seus camarins.
Mas o Coronel Damer era tão altruísta quanto possível para um
veterano das Índias.
— Claro que pode — assentiu. — Aqui — para o criado —,
carregue esse baú, por favor, e leve-o para o próximo quarto.
O criado pegou o objeto de forma meio descuidada e quase o deixou
cair. A Sra. Damer se adiantou como se quisesse salvá-lo.
— Por favor, coloque-o no chão — pediu ela, nervosa. — Não quero
que o movam, vou precisar dele mais tarde; não vai atrapalhar...
— Como você preferir, querida — concordou a Sra. Clayton, que
estava ficando um pouco cansada da pequena discussão. — Agora tire suas
coisas, querida Blanche, e vou pedir chá.
O Coronel Damer foi para seu closet e deixou as duas senhoras
sozinhas. O restante da bagagem foi trazido para cima; o chá foi pedido e
servido, e enquanto a Sra. Clayton se ocupava em servir, a Sra. Damer se
acomodou em um sofá ao lado do fogo e conversou com sua prima.
Havia sido bonita, essa mulher, em sua juventude, embora ninguém
pensasse assim ao vê-la agora. Ao entregar o chá, Bella olhou para a mão
magra estendida para recebê-lo e dali para o rosto abatido e os olhos
fundos, mal podendo acreditar que era a mesma pessoa de quem havia se
despedido três anos antes.
Mas não eram tão íntimas ultimamente, e tinha quase medo de
comentar sobre a aparência alterada de sua prima, com medo de magoá-la;
tudo o que ela disse foi:
— Você ainda parece muito frágil, querida Blanche; eu esperava que
a mudança para o continente a tornasse mais forte do que quando você saiu
da Inglaterra.
— Oh, não; nunca mais ficarei bem — foi a resposta indiferente da
Sra. Damer. — Essa já é uma história antiga, Bella, e não adianta falar
sobre ela. Quem está hospedado na casa agora, querida?
— Bem, estamos quase cheios — respondeu a Sra. Clayton. — Está
aqui meu velho padrinho, General Knox, você se lembra dele, eu sei, e seu
filho e filha; e os Ainsleys e sua família; os Bayleys e os Armstrongs, e,
para os homens solteiros, temos o jovem Brooke, e o velho amigo de Harry,
Charley Moss, e Herbert Laurence, e... você está se sentindo mal, Blanche?
Uma exclamação havia escapado da Sra. Damer — malmente uma
exclamação, mais como um grito abafado —, mas se era de dor ou medo,
era difícil determinar.
— Você está se sentindo mal — repetiu a Sra. Clayton, cheia de
preocupação por sua prima de aparência frágil.
— Não — respondeu Blanche Damer, pressionando a mão no peito,
ainda pálida pelo efeito da emoção pela qual havia passado —, não é nada;
sinto-me fraca após nossa longa viagem.
O Coronel Damer também ouvira o som, e agora aparecia na entrada
de seu closet. Era um daqueles homens bem-intencionados, mas agitados,
que não conseguem deixar duas mulheres sozinhas por um quarto de hora
sem invadir sua privacidade.
— Você chamou, meu amor? — perguntou à esposa. — Precisa de
alguma coisa?
— Nada, obrigada — respondeu Bella por sua prima. — Blanche
está apenas um pouco cansada e abalada pela viagem.
— Acho que, afinal, vou mover aquela caixa para o meu quarto —
considerou, avançando em direção à caixa que já havia sido objeto de
discussão. A Sra. Damer levantou-se do sofá com o rosto vermelho.
— Imploro que deixe minha bagagem em paz — exclamou ela, em
um tom suplicante na voz que não era adequado à ocasião. — Não trouxe
mais do que preciso e quero que elas permaneçam sob o meu olhar.
— Deve haver algo muito valioso naquele receptáculo — murmurou
o Coronel Damer, de forma brincalhona, enquanto batia em retirada para
seus próprios aposentos.
— É a sua caixa de linho? — perguntou a Sra. Clayton à prima.
— Sim — de forma hesitante —; contém várias coisas que uso
diariamente; mas continue falando sobre seus visitantes, Bella: tem mais
alguém?
— Acho que não: onde eu parei? Ah! Nos solteiros. Bem, temos o
Sr. Brooke e o Capitão Moss, e o Sr. Laurence... o poeta, sabe? Harry o
conheceu na última temporada através do Capitão Moss, e meu irmão
Alfred; e é só.
— Uma lista muito respeitável — avaliou a Sra. Damer,
languidamente. — Como é o... o poeta do qual você falou?
— Laurence? Ah, ele parece ser uma pessoa muito agradável; mas é
muito silencioso e distante, como um poeta deveria ser, eu acho. Minha
irmã Carrie está aqui, e eles já começaram um flerte; no entanto, não
acredito que vá levar a algo.
— E o berçário?
— Prosperando, obrigada; acho que você ficará surpresa ao ver meu
filho. A Sra. Clayton disse que ele é duas vezes maior do que o Harry era
naquela idade; e as meninas pequenas podem correr e falar quase tão bem
quanto eu. Mas não espero, Blanche, que você tenha o mesmo interesse por
bebês que eu.
Isso ela acrescentou lembrando-se de que a mulher diante dela não
tinha filhos. A Sra. Damer se mexeu desconfortável no sofá, mas não disse
nada; e logo em seguida, o som de um gongo ressoando pelo saguão alertou
a Sra. Clayton de que o jantar estava prestes a começar e o grupo de
cavalgada deveria ter retornado; então, deixando sua amiga cuidar de sua
toilette, se despediu.
Enquanto saía do quarto, a Sra. Damer ficou sozinha. Não tinha uma
criada própria e recusou a ajuda da Sra. Clayton, assegurando que estava
acostumada a se vestir sozinha; no entanto, fez pouco progresso nessa tarefa
enquanto estava deitada no sofá, à luz do fogo, com o rosto entre as mãos e
pensamentos passando por sua mente, cujo verdadeiro propósito só o céu
sabia.
— Venha, minha querida — chamou a voz gentil e persuasiva de seu
marido, quando, após bater mais de uma vez sem receber resposta, ele
entrou em seu quarto, completamente vestido e a encontrou ainda trajando
suas roupas de viagem e sem nenhuma de suas malas desfeitas. — Você
nunca ficará pronta para o jantar desse jeito. Devo arranjar uma desculpa
para você não aparecer à mesa esta noite? Tenho certeza de que a Sra.
Clayton desejará que você descanse em seu quarto se estiver muito cansada
para se vestir.
— Não estou tão cansada assim, Harry — respondeu a Sra. Damer,
levantando-se do sofá —, e estarei pronta em dez minutos — enquanto
destrancava e revirava o conteúdo de um baú enquanto falava.
— Melhor não, talvez, meu amor — interveio o coronel, com
branda repreensão —, você estará melhor na cama e poderá ver seus
queridos amigos amanhã de manhã.
— Eu vou descer para jantar esta noite — retorquiu, gentil, mas
decididamente.
Agora em pé, era uma mulher graciosa, com uma figura esguia e a
tez quase transparente em sua delicadeza; porém seu rosto estava muito
magro, e os grandes olhos azuis carregavam um olhar assustado e
angustiado, que era tão doloroso de testemunhar quanto a ansiedade
expressa pelas sobrancelhas franzidas acima deles. Enquanto ela levantava
as mãos justas e atenuadas para rearrumar seu cabelo, que costumava ser
abundante e brilhante, seu marido não pôde deixar de notar a mudança que
havia ocorrido.
— Eu não tinha ideia de que você havia perdido tanto cabelo,
querida — observou —; nunca o vi solto antes desta noite. Mas para onde
foi todo ele? — continuou, enquanto segurava a pequena mecha em suas
mãos, lembrando-se do comprimento e do peso que costumava ter quando
se viram pela última vez.
— Oh, eu não sei — ela respondeu com tristeza—; foi embora,
assim como minha juventude, eu suponho, Henry.
— Minha pobre menina! — ele disse, gentil —, você sofreu muito
com essa separação. Eu não deveria tê-la deixado sozinha por tantos anos.
Mas agora acabou, querida, e eu cuidarei tão bem de você que você será
obrigada a ficar bem e forte novamente.
Ela se afastou subitamente do espelho e pressionou os lábios na mão
que segurava seu cabelo.
— Não — murmurou ela —; por favor, não me fale assim, Henry!
Eu não aguento; eu realmente não aguento!
Ele pensou que ela falava movida pelo excesso de emoção, e de
certa forma estava, mas não como ele imaginava. Então, ele mudou de
assunto levianamente e a aconselhou a não ser preguiçosa por mais tempo,
mas a se vestir, se ela de fato estava determinada a participar do jantar
naquela noite.
Em mais um minuto, a Sra. Damer havia arrumado seu cabelo
reduzido no penteado que geralmente usava; vestiu um traje noturno preto
que contrastava bem com sua pele clara, mas também revelava o quanto ela
havia emagrecido; e estava pronta para acompanhar seu marido até o andar
de baixo.
Ao chegarem à porta da sala de estar, foram recebidos pelo anfitrião,
que estava ansioso para mostrar cordialidade em relação aos convidados tão
estimados por sua esposa e tendo também encontrado a Sra. Damer após
seu retorno a Inglaterra. Ele a conduziu até o sofá onde Bella estava
sentada; e, como o jantar foi anunciado quase imediatamente, a anfitriã
ocupou-se em combinar os pares.
— Sr. Laurence! — ela exclamou; e depois olhando ao redor da sala
—, onde está o Sr. Laurence? — Então o cavalheiro foi forçado a sair de
trás das cortinas da janela, onde se escondera, e avançou para o centro da
sala. — Ah, aqui está você finalmente; você jantaria com a Sra. Damer? —
E logo prosseguiu com a apresentação usual: — Mr. Laurence, esta é a Sra.
Damer.
Eles se cumprimentaram com um aceno de cabeça, mas no rosto da
senhora, enquanto ela passava por sua parte na apresentação, houve uma
mudança indescritível e inconfundível, que a Sra. Clayton, embora não
muito sagaz, não pôde deixar de observar, e disse, involuntariamente:
— Você já conhecia o Sr. Laurence, Blanche?
— Acredito que tive esse prazer em Londres, há muitos anos.
As últimas palavras saíram tão fracas que quase não puderam ser
ouvidas.
— Por que você não me contou? — disse Bella Clayton,
repreendendo o Sr. Laurence.
Ele começava a balbuciar alguma desculpa por ter sido há tanto
tempo, quando a Sra. Damer veio em seu auxílio, com sua voz calma e fria:
— Foi há muito tempo; ambos devemos ser perdoados por termos
esquecido o acontecimento.
— Bem, vocês devem renovar a amizade durante o jantar — sugeriu
a Sra. Clayton, alegremente, enquanto se afastava para tornar as coisas
agradáveis para o restante dos convidados.
Enquanto o fazia, o Sr. Laurence permaneceu em pé ao lado do sofá,
mas não tentou se dirigir à Sra. Damer. Apenas quando a sala estava quase
vazia, ele a ofereceu o braço, e ela se levantou para aceitá-lo. Contudo, no
minuto seguinte, ela havia se recostado novamente no sofá, e a Sra. Clayton
estava ao lado dela. A Sra. Damer havia desmaiado.
— Pobre querida! — exclamou o Coronel Damer, ao se aproximar
da esposa. — Eu temia que descer esta noite fosse demais, mas ela insistiu;
ela tem tanto espírito. Por favor, não atrase o jantar, Sra. Clayton; eu ficarei
com ela, se você desculpar a aparente grosseria, até que se recupere o
suficiente para ir para a cama.
Mas enquanto ele falava, sua esposa se ergueu entre os muitos
braços que a apoiavam e tentou se levantar.
— Bella, querida! Estou bem de novo. Por favor, se você me ama,
não faça um alarde por causa de um pouco de cansaço. Eu desmaio com
frequência agora: deixe-me ir para o quarto e deitar, como deveria ter feito
desde o princípio, e estarei completamente bem amanhã de manhã.
Ela não aceitou a ajuda de ninguém, nem mesmo do marido, embora
isso o tenha deixado muito preocupado, e saiu da sala por vontade própria e
com esforço subiu a escada que a levou aos andares superiores; mais de um
par de olhos a observavam enquanto subia, e mais de um apetite foi
arruinado para a refeição.
— Você não acha que Blanche está parecendo muito doente? —
perguntou Bella Clayton ao Coronel Damer, na mesa do jantar. Ela mesma
havia ficado muito impressionada com a grande alteração na aparência de
sua prima e achou que o marido não estava tão alarmado quanto deveria.
— Sim, de fato — respondeu —, mas é a última coisa que ela vai
admitir. Está com muito mau humor e pouco apetite; parece sempre febril e
nervosa, e qualquer coisa mínima a assusta. Isso, para mim, é a pior e mais
surpreendente mudança de todas: ela costumava ser uma pessoa de
temperamento forte.
— Sim, de fato — concordou a Sra. Clayton —, mal posso imaginar
Blanche nervosa com alguma coisa. Isso deve ter acontecido durante sua
visita ao continente, pois ela não estava assim quando esteve aqui antes.
— Quando foi isso? — indagou o coronel, ansioso.
— Há exatamente três anos, no Natal — foi a resposta. — Eu não a
vi com uma aparência melhor do que naquela época, e ela era a alegria da
casa. Mas, logo depois, ela foi a Paris, então soubemos de sua doença, e
este é o meu primeiro encontro com ela desde então. Fiquei muito chocada
quando ela desceu da carruagem: mal a reconheceria — a Sra. Clayton
parou, percebendo que a atenção do Sr. Laurence, que estava sentado em
frente a ela, parecia estar fixada em suas palavras, e o Coronel Damer caiu
em pensamentos e não falou mais.
Enquanto isso, a Sra. Damer havia chegado ao seu quarto. Mulheres
vieram para cuidar dela, enviadas por sua anfitriã, carregando ofertas de
refrescos e ajuda de todos os tipos, mas ela as dispensou e preferiu ficar
sozinha. Sentia-se muito fraca para estar tão inquieta, e havia chorado junto
à lareira até ficar tão exausta que sua cama lhe pareceu o melhor lugar em
que poderia estar; então, ao se levantar para se despir, quase caiu, e errou ao
tentar segurar-se no batente do dossel, caindo ao lado do sólido baú preto
com braçadeiras de ferro, trancado com um cadeado, que havia sido objeto
de sua atenção poucas horas antes. Ela sentia como se estivesse morrendo e
como se esse fosse o lugar mais apropriado para morrer. Não há nada em
minha posse, ela exclamou, que realmente me pertença além disso... isso
que eu detesto e abomino, que amo e me faz chorar ao mesmo tempo. E,
estranhamente, a Sra. Damer virou-se de lado e, ajoelhando-se ao lado do
baú com braçadeiras de ferro, pressionou seus lábios contra a superfície
rígida, como se ele tivesse vida para retribuir seu abraço. Então, a exausta
mulher se levantou novamente, em uma posição instável, e conseguiu
mantê-la até estar pronta para deitar na cama.
Na manhã seguinte, estava muito melhor. O Coronel Damer e Bella
Clayton se reuniram para decidir que ela deveria permanecer na cama até
depois do café da manhã, portanto, ela foi poupada de encontrar os
estranhos reunidos até a hora do jantar, já que o almoço era uma refeição
desordenada em Molton Chase, e quase nenhum dos homens estava
presente naquele dia. Após o almoço, a Sra. Clayton propôs levar a Sra.
Damer para dar uma volta em sua charrete.
Eu não acho que você vai sentir frio, querida, e podemos voltar
pelos arbustos inferiores e encontrar os homens voltando da caçada, sendo
o Coronel Damer um dos que estavam caçando. Mas a Sra. Damer recusou
o passeio e deixou claro que preferia ficar sozinha, e a Sra. Clayton não
teve escrúpulos em concordar com seus desejos e se esforçar para agradar
as outras senhoras que estavam hospedadas na casa.
E a Sra. Damer queria ficar sozinha. Queria pensar sobre os
incidentes da noite anterior e elaborar um plano para convencer seu marido
a deixar a granja o mais rápido possível sem provocar perguntas que
poderia achar difícil de responder. Quando o som das rodas da charrete da
prima se dissipou e o grande silêncio que pairava sobre Molton Chase
anunciou que ela era a única moradora que havia ficado para trás, ela se
vestiu com um casaco quente e, com um capuz na cabeça, preparou-se para
dar uma volta pelos jardins. Pensou que um pequeno passeio a faria bem e
com essa intenção saiu da casa. Os jardins da granja eram extensos e
curiosamente dispostos, e havia muitos caminhos sinuosos de arbustos ao
redor deles, dos quais os estranhos costumavam encontrar mais facilidade
para entrar do que para sair. Nesse momento, a Sra. Damer desviou seus
passos para um deles, em busca de privacidade e abrigo, mas não havia ido
longe antes de, ao virar uma curva brusca, deparar-se subitamente com o Sr.
Laurence, o homem a quem havia sido apresentada na noite anterior, que
ela imaginava estar na caçada. Ele estava meio deitado, meio sentado, em
um banco rústico que cercava o enorme tronco de uma árvore antiga, com
os olhos fixos no chão e um charuto entre os lábios. Era um homem mais
intelectual e elegante do que bonito, mas possuía dois atributos que eram
muito mais cativantes que a beleza: uma mente poderosa e a arte da
fascinação. Conforme a Sra. Damer apareceu diante dele, apressada demais
para parar ou recuar, ele se levantou rapidamente da posição em que se
encontrava quando considerou estar seguro contra interrupções e ficou em
seu caminho. Ela tentou passar por ele com uma inclinação de cabeça, mas
ele estendeu a mão e a deteve.
— Blanche! Você precisa falar comigo; você não pode passar assim;
eu insisto! — Ela tentou em vão se soltar do aperto dele em seu braço.
— Sr. Laurence, que direito você tem de me segurar assim?
— Que direito, Blanche? O direito de todo homem sobre a mulher
que o ama!
— Esse direito sobre mim não existe mais. Eu tentei evitar você.
Você tanto viu quanto sabe disso! Nenhum cavalheiro se imporia à minha
atenção dessa maneira.
— Sua provocação não me afeta. Busquei em vão uma explicação
sobre seu comportamento extraordinário. Minhas cartas ficaram sem
resposta, minhas súplicas por um último encontro foram ignoradas; e agora
que o destino nos reuniu novamente, devo ter o direito de perguntar aos
seus próprios lábios. Eu não planejei esse encontro; nem mesmo sabia que
você tinha retornado à Inglaterra até ontem, e então tentei evitar você; mas
estava destinado que nos encontrássemos, e é destinado que você satisfaça
minha curiosidade.
— O que você quer saber? — ela perguntou, com a voz baixa.
— Primeiro, você deixou de me amar?
A luz raivosa que atravessou seu rosto quando ele a deteve
desapareceu; os lábios pálidos começaram a tremer, e nos olhos fundos,
grandes lágrimas surgiram e penduraram-se tremulando nos longos cílios.
— Chega, Blanche — o Sr. Laurence continuou, com uma voz mais
suave. — A natureza me responde. Não quero lhe causar a dor
desnecessária de falar. Então, por que você me abandonou? Por que você
deixou a Inglaterra sem uma palavra de despedida, e por que você se
recusou a ter qualquer comunicação comigo desde então?
— Eu não podia — ela murmurou. — Você não sabe; você não pode
sentir; você nunca poderia entender meus sentimentos naquela ocasião.
— Isso não é uma resposta à minha pergunta, Blanche — disse com
firmeza —, e uma resposta eu terei. Qual foi a causa imediata de você
romper nossa relação? Eu te amei, você sabe o quanto. O que te afastou de
mim? Foi medo, indiferença ou um arrependimento repentino?
— Foi... — ela começou devagar, e então, como se reunindo uma
grande resolução, exclamou de repente. — Você realmente deseja saber o
que nos separou?
— Eu realmente pretendo saber — afirmou, e o antigo poder que ele
tinha sobre ela recomeçou a exercer sua influência. — Seja qual for o
motivo, isso não tem contribuído para sua felicidade — continuou ele —, se
posso julgar pela sua aparência. Você mudou terrivelmente, Blanche! Acho
que até mesmo eu poderia tê-la feito mais feliz do que parece ter sido.
— Eu tive o suficiente para me mudar — ela respondeu. — Se você
quer saber, venha comigo e eu vou te mostrar.
— Hoje?
— Imediatamente; amanhã pode ser tarde demais. — Ela começou a
andar em direção à casa enquanto falava, rápida e irregularmente, seu
coração batendo acelerado, mas sem sinal de fraqueza em suas pernas; e
Herbert Laurence a seguiu, sem saber exatamente por que, mas esperando
que ela o tivesse desejado.
Ela entrou em Molton Chase, subiu a ampla escadaria e chegou à
porta do seu quarto antes de parar para ver se ele a estava seguindo. Quando
o fez, encontrou-o logo atrás dela no amplo corredor.
— Você pode entrar — ela disse, abrindo a porta do quarto —, não
tenha medo; não há nada aqui além da causa pela qual nos separamos.
Em sua agitação, mal parou para trancar a porta atrás dela. A Sra.
Damer se ajoelhou diante do pequeno baú preto com braçadeiras de ferro e
um pesado cadeado; e tirando uma chave do peito, aplicou-a à fechadura e,
em mais um minuto, havia levantado a pesada tampa. Depois de deslocar
algumas roupas que estavam no topo, ela cuidadosamente removeu alguns
materiais mais leves e, em seguida, chamando o homem atrás dela, pediu
que ele olhasse e ficasse satisfeito. O Sr. Laurence avançou para a caixa,
completamente ignorante quanto à razão de seu pedido, mas ao ver o que
ela continha, deu um passo para trás e cobriu o rosto com as mãos. Quando
as abaixou, de novo, lentamente , encontrou o olhar triste e sério com que a
mulher ajoelhada o saudava, e por alguns momentos ficaram olhando um
para o outro em completo silêncio. Então, a Sra. Damer desviou os olhos
dele e rearranjou o conteúdo da caixa preta; a tampa pesada se fechou com
um estrondo, o cadeado estava novamente trancado, a chave em seu peito, e
ela se levantou e se preparou para deixar o quarto em completo silêncio.
Mas ele a deteve uma vez mais, e dessa vez sua voz estava rouca e mudada.
— Blanche! Me diga, isso é real?
— Tanto quanto acredito no paraíso — garantiu.
— E essa foi a razão de nossa separação, a única causa de nosso
afastamento?
— Não foi suficiente? — questionou. — Eu errei, mas foi como
alguém em um sonho. Quando acordei, não podia mais errar e estar em paz.
Em paz, eu disse? Não tenho paz desde que te conheci, mas eu teria
morrido e acordado no inferno se não tivesse me separado de você. Essa é
toda a verdade, acredite ou não; não pode, não deve haver nada no futuro
entre você e eu. Por favor, deixe-me partir.
— Mas aquele, aquele baú, Blanche! — exclamou Herbert
Laurence, com gotas de suor, apesar da temperatura amena do dia, em sua
testa. — Foi um acidente, um infortúnio; você fez isso?
Ela o encarou com olhos cheios de horror e desprezo.
— Se fui eu que fiz? — inquiriu ela. — Você está sonhando? Eu
estava louca, mas não tão louca assim! Como você pode pensar isso? — e
as lágrimas surgiram em seus olhos, mais pela suposição que sua pergunta
havia levantado do que pela ideia de que ele poderia julgá-la tão mal.
— Mas por que você guarda isso? Por que você carrega isso com
você, Blanche? É pura insanidade de sua parte. Quanto tempo faz que você
viaja em companhia desse terrível baú?
— Há mais de dois anos — respondeu em um sussurro temeroso. —
Tentei me livrar dele, mas sem sucesso; sempre havia alguém no caminho.
Eu argumentei comigo mesma e orei para ser libertada dele, mas nunca
encontrei uma oportunidade. E agora, o que importa? O fardo e o calor do
dia já passaram.
— Deixe-me fazer isso por você — suplicou Sr. Laurence. — Seja
qual for nossa futura relação um com o outro, não posso consentir que você
corra um risco tão terrível por minha culpa. O fardo em sua mente já foi
grande demais. Quem dera eu pudesse tê-lo carregado por você! Mas você
me negou até o privilégio de saber que estava sofrendo. Agora que eu
soube, será minha responsabilidade garantir que a causa de nossa separação
viva apenas em sua memória.
Ao terminar de falar, ele tentou levantar o baú, mas a Sra. Damer
avançou rapidamente e o impediu.
— Deixe isso! — ela gritou. — Não ouse tocar nisso; é meu! Para
onde quer que eu tenha ido nos últimos anos, isso foi junto comigo. Você
acha que, por causa do pouco tempo que me resta, eu me separaria do único
elo com meu terrível passado?
Dizendo isso, se jogou sobre o baú preto e começou a chorar.
— Blanche! Você me ama como antes — concluiu Herbert
Laurence. — Essas lágrimas confessam. Deixe-me compensar isso; deixe-
me tentar fazer a felicidade da sua vida futura!
Mas antes que ele concluísse sua sentença, a Sra. Damer havia se
levantado de sua postura abatida e ficado diante dele.
— Compensar! — ela ecoou com desprezo. — Como você pode
compensar? Nada pode apagar a memória da vergonha e da miséria que
passei, nada pode restaurar a consciência tranquila que perdi. Eu não sei se
ainda te amo ou não. Quando penso nisso, minha cabeça gira e só me sinto
confusa e ansiosa. Mas tenho certeza de uma coisa, o horror do meu
remorso por ter sequer ouvido você tem o poder de superar qualquer
arrependimento que possa estar persistindo em meu indigno coração, e o
mero fato de sua presença física é uma agonia para mim. Quando o
encontrei hoje, estava lutando com minha imaginação para inventar algum
meio de sair do lugar onde você estava sem despertar suspeitas. Se você já
me amou, tenha piedade de mim agora; tome a iniciativa e me livre de você.
— Esta é sua decisão final, Blanche? — perguntou pausadamente.
— Você não vai se arrepender disso quando for tarde demais e estiver
sozinha apenas com aquilo?
Ela estremeceu, e ele captou esse fato como um sinal de ceder.
Minha mais querida e encantadora, ele começou a falar. Essa
mulher tinha sido a mais encantadora para ele em dias passados, e embora
ela estivesse tão terrivelmente mudada aos olhos de quem a olhava com
menos afeto, Herbert Laurence, seu antigo amante, ainda conseguia
vislumbrar acima da languidez, debilidade e angústia de sua aparência
atual, a mulher jovem e radiante que se sacrificara por ele. E embora seu
modo de abordá-la significasse mais do que ele de fato pensava dela, o
conhecimento de quanto ela havia sofrido desde a separação teve o poder de
fazê-lo imaginar que essa parcial reanimação de uma antiga chama era uma
prova de que o fogo que a acendeu nunca perecera. Portanto, não lhe
pareceu absurdo introduzir seu apelo a Sra. Damer assim: minha mais
querida e encantadora..., mas ela se virou contra ele como se ele a tivesse
insultado.
— Senhor Laurence! — exclamou enfática. — Eu lhe disse que o
passado é passado; seja gentil o suficiente para aceitar minhas palavras.
Você acha que vivi mais de dois anos de vergonha e tristeza solitárias para
partir o coração que agora confia em mim? Se eu tivesse algum desejo ou
pensamento contrário, seria impossível. Estou envolta por palavras e atos
gentis, por cuidado e atenção, que me prendem à minha casa como se eu
fosse uma prisioneira entre quatro paredes. Eu não poderia me libertar,
mesmo que quisesse — continuou, estendendo os braços como se tentasse
quebrar uma corrente invisível. — Eu teria que morrer primeiro; os laços de
gratidão estão amarrados em volta de mim com muita força. Isso está me
matando, como nada mais poderia — acrescentou em um tom mais baixo.
— Eu vivi sob sua ausência e o conhecimento da minha própria desgraça,
mas não posso suportar sua bondade e confiança perpétuas. Isso não pode
durar muito mais: pelo amor de Deus, me deixe em paz até o fim!
— E o baú? — ele argumentou.
— Vou cuidar do baú até que o fim chegue — ela respondeu, triste
—, mas se você tem algum receio, fique com a chave: a fechadura não pode
ser forçada.
Enquanto falava, tirou a chave de seu peito, onde pendia em uma
larga fita preta, e entregou a ele. Ele a aceitou sem objeções.
— Você é tão imprudente — ele provocou —, estará mais segura
comigo; deixe-me levar o baú também!
— Não, não! — discordou a Sra. Damer apressada. — Você não
pode; e não adiantaria de nada. Se ele estivesse fora de vista, eu sonharia
que foi encontrado e falaria dele enquanto durmo. Muitas vezes me levanto
à noite para ver se está seguro. Nada pode levá-lo. Se você o enterrasse,
alguém desenterraria; se o jogasse na água, ele boiaria. Ele só ficaria quieto
no meu coração, onde deve estar! Onde deve estar!
Seus olhos recuperaram a expressão selvagem e inquieta que
assumiam quando falava do passado, e sua voz baixou para um sussurro
baixo e temeroso.
— Isso é loucura — murmurou Herbert Laurence; e ele estava certo.
Em relação ao baú preto, a mente da Sra. Damer estava perturbada.
Ele estava prestes a falar novamente e tentar convencê-la de sua
loucura, quando vozes foram ouvidas alegremente conversando no saguão,
e seu rosto se contorceu com o medo de ser descoberta.
— Vá! — ela ordenou. — Por favor, vá imediatamente. Eu contei
tudo para você. — E em um instante, Herbert Laurence saiu correndo pelo
corredor para a privacidade de seu próprio quarto; e a Sra. Clayton, radiante
com seu passeio e com um belo bebê corado em seus braços, entrou no
quarto de sua prima.
II

B ella encontrou sua prima sentada em uma poltrona, com o casaco


ainda sobre os ombros e um rosto pálido, resultado da excitação.
— Querida, como você está pálida! — foi sua primeira
exclamação. — Você esteve fora?
— Fui um pouco para o jardim — disse a Sra. Damer —, mas o dia
ficou muito frio.
— Você acha mesmo? Todos nós estávamos falando de como a tarde
estava agradável, mas certamente parece que não fez bem para você. Olhe
para o meu filho: ele é um garotão, não é? Passou o dia todo no jardim.
Muitas vezes desejo que você tivesse um filho, Blanche.
— Você acha, querida? É mais do que eu desejo.
— Ah, mas você não pode saber, até que eles sejam realmente seus,
o quanto de prazer eles lhe proporcionam; ninguém sabe, a menos que tenha
sido mãe.
— Não, suponho que não.
Enquanto dizia essas palavras, a Sra. Damer estremeceu e olhou
para o rosto rechonchudo e sem significado do bebê, com olhos de triste
importância. A Sra. Clayton pensou que tinha magoado sua prima e se
inclinou para abraçá-la, mas achou que Blanche quase se encolheu de seu
abraço.
Ela deve estar realmente doente, pensou a bondosa e pequena Bella,
que não tinha noção do que era a profunda aflição de uma mulher
aparentemente feliz no casamento. Ela precisa ver um médico: vou dizer
isso ao Coronel Damer.
Em meia hora, os dois estavam ao lado dela, instando-a a seguir seu
conselho.
— Ora, minha querida — insistiu o coronel, quando a Sra. Damer se
opôs fracamente a preocupação que estavam tendo —, você tem que ficar
boa na minha opinião. Você sabe o quanto é preciosa para mim e como
ficaria triste se ficasse doente. Deixe-me mandar chamar o Dr. Barlow,
como sua prima aconselha. Você ficou muito abalada com a longa viagem
até aqui, e tenho medo de que a subsequente emoção de ver seus queridos
amigos tenha sido demais para você. Não tem ideia de quanto é querida
para mim, Blanche, ou não recusaria um pedido tão simples. Estive
esperando por cinco anos, querida, apenas olhando para frente a cada dia
para reencontrar minha querida e amada esposa; então, vê-la tão doente
como está no primeiro mês do nosso reencontro é um grande sofrimento
para mim. Por favor, deixe-me chamar o Dr. Barlow.
Mas a Sra. Damer pediu que adiassem. Ela tinha ficado com frio
quando saiu para o jardim; ainda não tinha se recuperado da fadiga da
viagem; tinha pegado um resfriado ao atravessar de Havre para Folkestone;
era qualquer coisa, menos uma doença que requereria atendimento médico.
Se não estivesse melhor pela manhã, ela prometeu não se opor aos desejos
deles.
Então, forçou-se a se levantar e se vestir para o jantar. Ela apareceu
calma e tranquila, e assim permaneceu durante toda a noite, conversando
com o Sr. Laurence tanto quanto com o resto da companhia; e foi para a
cama na mesma hora que os outros hóspedes de Molton Chase, recebendo
com o boa noite de sua prima os parabéns pela evidente melhora de sua
saúde.
— Não consigo entender o que aconteceu com sua prima, Bella —
confessou Harry Clayton à esposa quando eles também foram para a cama
—, ela não parece metade da mulher alegre que costumava ser.
— Com certeza ela mudou muito — foi a resposta de Bella —, mas
acho que deve ser principalmente por causa de sua saúde; a sensação de
debilidade é tão deprimente.
— Suponho que não possa ser nada na mente dela, Bella — sugeriu o
marido, após uma pausa.
— Na mente dela, Harry? — disse Bella, sentando-se na cama,
surpresa. — Claro que não; como poderia ser? Ela tem tudo o que pode
desejar; e, tenho certeza, nenhuma mulher poderia ter um marido mais
devotado que o Coronel Damer. Ele falou muito sobre ela para mim hoje, e
sua ansiedade é enorme. Na mente dela! Que ideia engraçada, Harry; o que
pode ter colocado isso em sua cabeça?
— Eu realmente não sei — foi a resposta do marido, dada um tanto
lamentosa, como se tivesse cometido um grande erro.
— Você é um tolo — brincou a esposa, com um beijo empático,
enquanto se acomodava para seu sono inocente.
Mas antes que seus sonhos fossem interrompidos pela natureza, na
manhã cinzenta, a Sra. Clayton foi despertada por batidas na porta do
quarto; batidas para as quais todos os gritos do Sr. Clayton para “entrar” só
serviram para renovar.
— Quem será, Harry? Vá ver — solicitou Bella.
Então Harry se levantou, como um marido devotado, e abriu a porta,
e a figura do Coronel Damer, vestido com um roupão e parecendo muito
sombrio e irreal no amanhecer, se apresentou no batente da porta.
— Sua esposa está aqui? — exigiu o Coronel, de forma breve.
— Claro que está — respondeu o Sr. Clayton, perguntando-se o que
o Coronel queria com ela.
— Ela poderia ver a Sra. Damer? Ela está muito doente — foi a
próxima frase, dita tremulamente.
— Muito doente! — exclamou Bella, pulando da cama e enrolando-
se em um roupão. — O que você quer dizer, Coronel Damer? Quando isso
aconteceu?
— Só Deus sabe! — balbuciou com a voz agitada. — Mas por
algum tempo depois de adormecer ela estava febril e agitada, e falou muito.
Acordei de repente durante a noite e percebi que ela não estava lá; fui
procurá-la com uma luz e a encontrei caída no corredor.
— Desmaiou? — surpreendeu-se Bella.
— Não sei se foi um desmaio ou um ataque — respondeu ele —,
mas inclino-me a acreditar na última possibilidade. Eu a levei de volta para
a cama e dei-lhe alguns estimulantes, não querendo incomodar você...
— Oh! Por que não, Coronel Damer? — interrompeu sua anfitriã.
— ...e achei que ela estava melhor, até agora, quando teve outro
ataque de inconsciência, e está tão fraca que não consegue se mover. Tenho
certeza de que ela está com febre, pelo ritmo acelerado de seus batimentos
cardíacos, e não acho que esteja completamente lúcida.
— Harry, querido, chame o Dr. Barlow imediatamente — colocando
os pés descalços em chinelos —, e volte comigo, Coronel Damer; ela não
deve ficar sozinha nem por um minuto.
E ela passou rapidamente pelo corredor até o quarto de sua prima.
Ao se aproximar do quarto do Sr. Laurence, a porta se abriu um pouco, e
uma voz perguntou com rouquidão:
— Tem alguma coisa errada, Sra. Clayton? Tenho ouvido barulhos
na casa há uma hora.
— Minha prima, a Sra. Damer, ficou doente, Sr. Laurence, mas já
chamamos o médico; estou indo para lá agora.
E enquanto a porta se fechava de novo, ela imaginou ter ouvido um
suspiro.
Blanche Damer estava deitada em seus travesseiros, muito quente e
ruborizada, com aquele olhar ansioso e perturbado que os olhos assumem
quando o cérebro está apenas meio obscurecido e pode sentir que está
divagando.
— Blanche, querida — clamou Bella, ao avistar seu rosto —, o que
está acontecendo? Como isso aconteceu?
— Eu sonhei que ele o tinha levado — disse a Sra. Damer, lenta e
tristemente —, mas foi um engano: ele não deve tê-lo ainda, não ainda! Só
mais um pouco de espera! Mas ele tem a chave.
— Sua mente está divagando no momento — observou o Coronel
Damer, que havia seguido a Sra. Clayton até o quarto.
— Oh, Coronel Damer — exclamou Bella, chorosa —, que horrível!
Ela me assusta! Será que ela bateu a cabeça ao cair? Você não tem ideia do
porquê de ela ter levantado e ido para o corredor?
— Não tenho a menor ideia — respondeu ele. E agora que o
examinava sob a luz da manhã, que agora estava entrando pelas persianas
abertas, Bella Clayton viu como sua noite de ansiedade o deixara
envelhecido e esgotado. — Minha esposa tem sido muito suscetível a falar e
andar enquanto dorme desde que voltei da Índia, e algumas vezes a
encontrei, como fiz na noite passada, andando pelo quarto enquanto dormia,
mas ela nunca esteve assim antes. Quando a encontrei no corredor,
perguntei por que ela tinha ido lá ou o que queria, e ela disse “a chave”.
Quando a coloquei de volta na cama, encontrei seu molho de chaves, como
sempre, na mesa de cabeceira, então imagino que ela não devia saber o que
estava dizendo naquele momento. Espero que o Dr. Barlow não demore a
chegar; estou profundamente ansioso.
Ele parecia acreditar na verdade do que dizia, enquanto a pobre Sra.
Clayton só podia apertar sua mão e implorar para que ele tivesse esperança;
a esposa permanecia deitada em seus travesseiros, olhando, silenciosa, para
o vazio.
Assim que o médico chegou, ele diagnosticou que a paciente estava
sofrendo de uma pressão no cérebro e quis saber se ela não havia sido
submetida a algum grande choque ou tensão mental.
Nesse momento, o Coronel Damer avançou e negou
categoricamente a possibilidade de tal coisa. Ele se juntara à esposa vindo
da Índia há um mês, e nesse momento sua saúde estava, embora frágil, não
muito debilitada, e ele nunca a havia deixado desde então. Eles haviam
cruzado de Havre para Folkestone três dias antes, e a Sra. Damer não havia
reclamado de qualquer doença ou fadiga incomum. Ela era uma pessoa de
temperamento deveras excitável e nervoso, e seu apetite e ânimo eram
variáveis; de resto, não havia nada em seu estado de saúde que justificasse
preocupação por parte de seus amigos.
O Dr. Barlow ouviu todas essas declarações e acreditou tanto nelas
quanto achou conveniente. No entanto, ele evitou o assunto da causa do
desastre; o fato de que isso ocorreu era inegável; e os remédios para tais
emergências foram imediatamente utilizados. Mas todos se mostraram
igualmente ineficazes, pela simples razão de que o veredicto irrevogável já
havia sido proferido, e Blanche Damer estava destinada a morrer.
À medida que o dia avançava e o quadro se tornava mais sombrio, e
as previsões do médico menos esperançosas, o Coronel Damer entrou em
um frenesi de medo.
— Salve-a, Dr. Barlow — implorou ele ao médico, de maneira
insana, como as pessoas costumam se dirigir aos profissionais da saúde,
como se estivesse em seu poder fazer mais do que ajudar os esforços da
natureza. — Salve sua vida, pelo amor de Deus! E não há nada que eu possa
fazer materialmente por você que não seja seu. Devo ouvir outra opinião?
Devo enviar um telegrama para Londres? Existe alguém lá que possa salvá-
la? É minha vida também que está tremendo na balança. Pelo amor do céu,
não se preocupe com formalidades, apenas me diga o que é melhor fazer!
É claro que o Dr. Barlow disse a ele que, se ele não estivesse
perfeitamente satisfeito, deveria pedir que enviassem um telegrama para
obter outra opinião, e mencionou vários nomes célebres em tais casos; ao
mesmo tempo, ele assegurou ao Coronel Damer que não acreditava que
nenhum número de médicos pudesse fazer mais pela paciente do que ele já
estava fazendo, e que era impossível prever o desfecho provável da doença
nos próximos dias.
Bella Clayton abriu mão do dever de divertir seus convidados e se
posicionou ao lado da cama de sua prima; e o infeliz marido perambulava
pelo quarto como um fantasma; tentando pensar, a cada visita, que havia
uma leve melhora nos sintomas, e passando o tempo entre as visitas em
oração pela vida que ele imaginava ter sido dedicada a ele. Enquanto isso,
sempre que a Sra. Damer abria a boca, era para delirar dessa maneira:
— Morrendo! — exclamava sua voz oca. — Esmagada até a morte
sob o peso de uma pirâmide de bênçãos que pesa como chumbo em meu
peito e chega ao teto. Palavras gentis, cuidado amoroso e atenções doces me
curvam para a terra! Estou sufocando sob o fardo de suas reprovações
silenciosas. Dois e dois são quatro; e quatro e quatro são oito; oito vezes
trancado deveria ser seguro, mas há um verme que não morre e um fogo
que não se apaga.
— Oh! Não entre aqui, Coronel Damer — exclamava a pobre Bella,
enquanto o infeliz homem se aproximava da cabeceira da cama e ficava
ouvindo, com as faces pálidas, as delirantes divagações de sua esposa. —
Ela não sabe o que está dizendo, lembre-se disso; e amanhã, sem dúvida,
estará melhor. Não se angustie mais ouvindo todo esse absurdo.
— Não acredito que ela vá melhorar, Sra. Clayton — respondeu ele,
em uma dessas ocasiões.
Isso foi no terceiro dia.
— Querido! — a doente continuou, com uma voz suavemente
queixosa, sem se perturbar minimamente pela conversa ao seu redor — Se
você já me amou, acreditará agora que eu também o amo. Se você me deu o
seu amor, eu lhe dei mais do que a minha vida.
— Ela está falando de mim? — perguntou o Coronel Damer.
— Eu acho que sim — respondeu Bella Clayton, tristemente.
— Leve-o! Leve-o! — gritou a Sra. Damer, assustada. — Este baú...
este baú com braçadeiras de ferro que pressiona minha alma. O que eu fiz?
Para onde devo ir? Como vou encontrá-lo novamente?
— O que ela está dizendo? —indagou o Coronel, tremendo.
— Coronel Damer, peço que deixe o quarto — suplicou Bella,
chorando. — Eu não consigo suportar ficar aqui com os dois. Por favor, me
deixe sozinha com Blanche até que ela fique mais calma.
E assim o marido deixou o quarto com lágrimas nos olhos, e Bella
Clayton se dedicou à dolorosa tarefa de tentar acalmar a mulher delirante.
— Se ele apenas me repreendesse — gemia a Sra. Damer — ou
ficasse com raiva de mim, ou me dissesse que estou mentindo, eu
conseguiria suportar melhor; mas ele está me matando com gentileza. Onde
está o baú? Abra-o, deixe-o ver tudo. Estou pronta para morrer. Mas eu
esqueci, não há chave, e ninguém a tocará: ela é minha... minha. Ouço!
Ouço! Como pude colocá-la lá? Deixe-me ir... ninguém pode me segurar!
Deixe-me ir, eu digo, eu ouço isso; e... e... o mundo não significa nada para
mim!
Finalmente, quando quase haviam desistido de vê-la dormir
novamente, veio uma hora de repouso ininterrupto devido ao puro cansaço;
então olhos vazios e abertos, e uma voz alterada soando com a pergunta:
Bella! Estive doente? e o delírio da Sra. Damer acabou.
Acabou com sua vida. Pois em sua visita seguinte, o Dr. Barlow a
encontrou consciente, mas fria e sem pulso, e informou aos amigos que em
doze horas ela não existiria mais.
O Coronel Damer ficou desesperado e logo enviou um telegrama
para Londres por homens que chegaram quando sua esposa estava pronta
para ser colocada no caixão. Bella ouviu o decreto e chorou em silêncio; e
uma grande sombra caiu sobre os convidados de Molton Chase, que foram
deixados completamente nas mãos do pobre Harry desde a doença da Sra.
Damer.
A moribunda ficou muito silenciosa e exausta por algum tempo
depois de acordar daquela breve e memorável noite de sono. Quando ela
falou novamente, observou os olhos inchados de sua prima:
— Estou morrendo, Bella?
A pobre Sra. Clayton não sabia de todo o que responder a uma
pergunta tão direta, mas conseguiu balbuciar algo que, qualquer que fosse
sua intenção, foi interpretado como afirmativo pela pessoa mais interessada.
— Eu sabia. Nunca serei capaz de sair da cama de novo.
— Receio que não, querida... você está tão fraca!
— Sim, estou... mal consigo levantar a mão. E ainda assim devo me
levantar se puder. Tenho algo tão importante para fazer.
— Não posso fazer isso por você, Blanche?
— Você faria isso, Bella?
— Qualquer coisa... tudo, querida! Como pode duvidar?
— E você prometerá segredo? Deixe-me olhar em seu rosto. Sim, é
um rosto verdadeiro, como sempre foi, e posso confiar em você. Faça o baú
preto ser removido do meu quarto antes que eu morra, Bella... lembre-se,
antes que eu morra, e coloque-o em seu próprio closet.
— O quê, querida, seu baú de linho?
— Sim, meu baú de linho, ou como quer que você a chame. Leve-o
embora imediatamente, Bella. Não conte a ninguém; e quando eu morrer,
enterre-o em minha sepultura. De certo você pode fazer isso por mim!
— E o Coronel Damer?
— Se você falar com ele sobre isso, Bella, ou com seu marido, ou
com qualquer pessoa, eu nunca a perdoarei, e estou morrendo! — cravou a
Sra. Damer, quase se levantando em sua excitação. — Oh! Por que eu adiei
isso por tanto tempo, por que não vi isso antes? Nem posso morrer em paz.
— Sim, sim, querida Blanche, eu farei isso, eu prometo — afirmou
a Sra. Clayton, alarmada com sua emoção —, e ninguém além de mim
saberá disso. Posso mandá-lo para o meu quarto imediatamente? Você pode
confiar inteiramente em minha discrição. Por favor, não tenha medo!
— Sim! Imediatamente; não pode ser rápido demais! — disse a Sra.
Damer, caindo exausta em seu travesseiro. Assim, um criado foi chamado, e
o baú com braçadeiras de ferro foi retirado do quarto doente e escondido no
quarto particular da Sra. Clayton. A Sra. Damer parecia tão fraca que sua
prima sugeriu chamar o marido para o lado dela, mas ela pareceu se
esquivar de um encontro com ele.
— Não tenho nada a dizer além do que o deixaria triste ao pensar
depois — murmurou ela. — Deixe-me morrer com você sozinha, querida
Bella. É melhor assim.
Então o Coronel Damer, embora fosse e viesse durante toda a noite,
não foi chamado em nenhum momento específico para ver os últimos
momentos de sua esposa, e Blanche realizou seu desejo. Morreu sozinha
com sua fiel prima antes que o dia amanhecesse. Quando estava prestes a
partir, ela disse, de maneira vaga:
"Diga a ele, Bella, que eu o perdoo, assim como espero ser
perdoada. E que eu vi o paraíso se abrir para mim esta noite, e um espírito
de criança pleiteando por nós com aquele que nasceu de uma mulher; e que
o fardo foi retirado de minha alma, afinal". Então acrescentou, solene: "Eu
me levantarei e irei ter com meu Pai...", e partiu antes de poder terminar a
frase.
A inocente Bella repetiu sua última mensagem com total fidelidade
ao Coronel Damer.
— Ela me disse para dizer que ela se sentia perdoada, e que viu o
paraíso se abrir para ela, e o peso de seus pecados foi retirado de sua alma.
Oh! Coronel Damer, pense nisso e conforte-se. Ela está mais feliz do que
você poderia torná-la.
Mas o pobre e fiel marido estava, por enquanto, além de qualquer
consolo.
Os médicos de Londres chegaram com a luz do dia e tiveram que ser
solenemente entretidos no café da manhã, aquecidos e reconfortados antes
de serem enviados de volta para casa. Os convidados de Natal estavam
arrumando suas malas, preparando-se para deixar Molton Chase, pois era
impossível pensar em festividades com um luto na casa. E Harry Clayton
disse à sua esposa que estava muito grato por terem pensado em fazer isso.
— Tem sido um negócio muito infeliz, Bella, e é claro que todos
sentiram isso, coitados; ainda mais porque não puderam participar
ativamente. A casa ficou pesada na última semana; e teria sido pior ainda se
tivessem permanecido. Quanto a Laurence, nunca vi um homem tão
abalado. Ele não comeu nada desde que sua pobre prima ficou doente.
Parece que ela era sua irmã ou sua amiga mais querida.
— Ele vai embora com os outros, Harry?
— Não, ele vai ficar até depois do funeral; depois, ele vai para o
exterior. Ele sente muito por você, Bella, e pediu para eu te dizer isso.
— Ele é muito gentil... agradeça em meu nome.

III

C ontudo, liberta do cuidado de pensar em seus convidados e


sentada sozinha chorando em seu quarto, a pobre Sra. Clayton não
sabia o que fazer com o baú preto com braçadeiras de ferro. Ela
havia prometido a Blanche não confiar em seu marido ou no Coronel
Damer. Este último, não tendo um jazigo familiar, queria enterrar os restos
de sua esposa junto aos dos Claytons no cemitério rural de Molton; mas
como fazer com que o baú preto fosse levado para o túmulo sem o
conhecimento dos principais enlutados era um mistério além da
compreensão do coração aberto de Bella. Mas no meio de sua perplexidade,
o destino enviou ajuda. No segundo dia após a morte de sua prima, ouviu-se
uma batida suave na porta de seu quarto e, ao ser convidado a entrar, ela
ficou surpresa ao ver o Sr. Laurence no umbral, vindo, como ela imaginava,
para oferecer suas condolências pessoalmente.
— Isto é muito gentil da sua parte, Sr. Laurence — disse ela.
— Eu dificilmente posso reivindicar sua gratidão, Sra. Clayton.
Procurei você para falar sobre um assunto muito importante, mas doloroso.
Posso pedir sua atenção por alguns momentos?
— Claro que pode! — Ela o convidou a sentar-se.
— Tem a ver com aquela que perdemos. Sra. Clayton, diga-me,
sinceramente, você amava sua prima?
— Muito, muito mesmo, Sr. Laurence. Crescemos juntas.
— Então posso contar com sua discrição; e se você deseja preservar
sua memória, deve exercê-la em seu favor. Há um pequeno baú preto com
braçadeiras de ferro entre sua bagagem, que não deve cair nas mãos do
Coronel Damer. Você poderia fazer com que esse baú fosse levado do
quarto dela para o seu próprio quarto e, se você confiar em minha honra até
certo ponto, entregá-lo a mim?
— A você, Sr. Laurence, o baú com braçadeiras de ferro? Que
possível conhecimento você poderia ter sobre o segredo da minha prima?
— O segredo dela?
— Sim, ela confiou essa caixa aos meus cuidados na noite em que
morreu. Ela me fez prometer que o faria, sem perguntas, o que você acabou
de me pedir para fazer, e eu fiz. O baú já está aqui.
E abrindo um armário ao lado do quarto, ela mostrou a ele o baú que
ele havia mencionado.
— Vejo que está mesmo — concordou. — Como você pretende se
livrar dele?
— Ela queria que fosse enterrado em seu túmulo.
— Isso é impossível em seu estado atual. O conteúdo deve ser
removido.
— Mas como? — perguntou a Sra. Clayton, surpresa. — Está
duplamente trancado, e não há nenhuma chave.
— Eu tenho a chave — revelou com gravidade.
— Oh, Sr. Laurence — bradou sua anfitriã, tremendo —, há algum
terrível mistério aqui. Pelo amor de Deus, me diga o que é! Que conexão
você pode ter com esse baú da minha pobre prima, se você só a encontrou
uma vez na vida?
— Ela disse isso? — ele perguntou.
— Não, mas eu imaginei isso. Você a conhecia? Quando? Onde? E
por que você não nos contou antes?
— Como posso te contar agora? — ele ponderou, olhando para o
rosto puramente feminino apontado para o seu próprio, exibindo uma
expressão que era meio de surpresa e meio de medo, mas que parecia nunca
poder sonhar com algo como a vergonha. — Você é boa demais e feliz
demais, Sra. Clayton, para conhecer, ou ser capaz de simpatizar, com os
problemas e tentações que precederam nossa amizade fatal e a queda dela.
— A queda de Blanche! — exclamou Bella Clayton, com voz de
horror.
— Não me interrompa, por favor, Sra. Clayton — pediu ele,
apressado, cobrindo o rosto com as mãos —, ou nunca conseguirei contar a
você essa história miserável. Eu conheci sua prima há muitos anos. Você
tinha alguma suspeita de que ela estava infeliz em seu casamento?
— Nenhuma! Nenhuma! — respondeu Bella, com expressão de
surpresa.
— Ela estava então completamente infeliz, como muitas mulheres
estão, apenas porque os corações dos homens aos quais estão ligadas são
opostos aos delas em todos os gostos e sentimentos. Eu a conheci quando
ela voltou para a Inglaterra pela primeira vez, e é a velha história, Sra.
Clayton: eu a amava e fui louco o suficiente para lhe dizer isso. Quando um
homem egoísta e uma mulher altruísta confessam mutuamente sua
preferência um pelo outro, o resultado é facilmente antecipado. Eu a
arruinei, perdoe a minha franqueza, e mesmo assim ela continuou a me
amar e me perdoou.
— Oh, Blanche! — suspirou Bella Clayton, escondendo o rosto
quente entre as mãos.
— Nós vivemos num paraíso tolo por alguns meses, e então, um dia,
ela saiu de casa e foi para o continente, sem me dar nenhum aviso de suas
intenções. Fiquei atordoado quando soube disso, e profundamente
magoado, e assim que a encontrei em Paris, segui e exigi uma explicação
para o seu comportamento. Mas ela se recusou a me ver, e quando percebeu
que eu estava insistente, deixou a cidade de modo tão repentino quanto
deixara Londres. Desde então, ela não respondeu a nenhuma de minhas
cartas, e nunca mais nos encontramos até que, de forma inesperada, eu a
encontrei em sua casa. Meu orgulho, depois de suas primeiras recusas em
me ver, foi muito grande para me permitir renovar minhas súplicas, e então
a chamei de coquete e inconstante. Tentei banir a lembrança dela do meu
coração... e pensei que tinha conseguido.
— Oh, minha pobre querida! — murmurou a Sra. Clayton. — Isso
explica então o motivo dela se afastar de todos os seus parentes por tanto
tempo, o que a distanciou de muitos deles. Ela estava sofrendo sua
penitência e profundo remorso em miséria solitária; e ela nem mesmo me
permitiu compartilhar sua confidência. Mas sobre baú, Sr. Laurence; o que
tudo isso tem a ver com o baú preto?
— Quando a encontrei em seu jardim outro dia e a repreendi por ter
me abandonado, insistindo para que ela me dissesse a razão de sua mudança
de ideia, ela me pediu para segui-la até seu quarto. Lá, destrancando o baú
que está diante de você, ela me mostrou seu conteúdo.
— E qual é o conteúdo? — sondou ansiosa a Sra. Clayton.
— Você gostaria de ver? — ele perguntou, tirando uma chave do
bolso. — Tenho tanto direito de mostrar a você quanto ela teria tido. Mas o
seu amor pela memória e reputação dela é forte o suficiente para garantir o
seu eterno segredo sobre o assunto?
— É — afirmou Bella Clayton, decidida.
— Esta caixa — continuou o Sr. Laurence, aplicando a chave que
ele segurava à fechadura do baú preto com braçadeiras de ferro —
acompanhou minha pobre garota em todas as suas viagens nos últimos dois
anos. O terrível segredo de seu conteúdo, que ela suportou em silêncio e
miséria solitária durante todo esse tempo, foi, acredito, a causa final de sua
morte, provando ser um fardo muito pesado para o espírito sensível e
orgulhoso que foi forçado a suportar o conhecimento de sua vergonha. Ela
foi morta por seu remorso. Se você tiver coragem, Sra. Clayton, para ver,
olhe para isto, e compadeça os sentimentos que devo suportar enquanto fico
de joelhos aqui olhando com você.
Ele abriu a tampa de linho enquanto falava, e Bella Clayton avançou
sofregamente para ver, disposto com cuidado entre flores murchas e dobras
de cambraia, o esqueleto de um recém-nascido cujo anjo já estava vendo a
face de seu pai celestial.
Ela cobriu os olhos com as mãos unidas, não apenas para evitar a
visão, mas também para conter as lágrimas mulheris que jorravam, e então
gritou entre soluços...
— Oh! Minha pobre, pobre Blanche, o que ela não deve ter sofrido!
Deus tenha misericórdia de sua alma!
— Amém — disse Herbert Laurence.
— Você vai me permitir levar o baú comigo, Sra. Clayton? —
perguntou gentilmente.
Ela olhou para cima quando ele falou, e lágrimas estavam nos olhos
dele.
— Sim, sim — concordou —, leve-o embora; faça o que quiser com
ele, apenas nunca mais fale disso comigo.
Ele nunca falou, exceto uma vez, e foi apenas uma alusão. Na noite
em que eles sepultaram os restos de Blanche Damer, ele esperou pela Sra.
Clayton no corredor.
— Tudo foi feito como ela desejava — sussurrou ele; e a Sra.
Clayton não pediu mais explicações. O segredo do qual ela havia sido feita
uma receptora involuntária pesou tanto em sua consciência que ela ficou
agradecida quando ele deixou Molton Chase e foi para o exterior, como
havia expressado ser sua intenção.
Desde então, ela nunca mais viu Herbert Laurence; e o Coronel
Damer, cujo sofrimento no funeral e por algum tempo depois foi quase
frenético, tendo, como a maioria dos homens que lamentam muito
externamente, encontrado uma fonte de consolo na forma de outra esposa, e
a história da vida e morte de Blanche Damer é lembrada, pelo que a prima
sabe, apenas por ela mesma.
Sinto que algumas pessoas levantarão objeções a esse episódio por
considerá-lo pouco natural; a essas pessoas, posso apenas dizer que o
incidente principal em que o interesse se baseia, o da infeliz Sra. Damer ter
se acovardado tanto pela consciência que carregava a prova de sua
fragilidade consigo por anos, com medo demais de ser descoberta para
permitir que saísse de sua vista, é um fato.
Para variar, as circunstâncias em que a descoberta do conteúdo do
baú preto foi, enfim, feita, e alterar os nomes de lugares e pessoas para
evitar reconhecimento geral, isso compete a mim: relatar a história em si, já
que, na forma como a apresento agora aos meus leitores, ela não pode
causar dor a ninguém, considero meu privilégio.

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