Francisco de Oliveira
questões, diálogos, depoimentos
Organizadores
Carlos Alberto Bello
Cibele Saliba Rizek
Joana Barros
Leonardo Mello E Silva
São Paulo, 2022
Catalogação na Publicação (CIP)
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
Maria Imaculada da Conceição – CRB-8/6409
F819 Francisco de Oliveira [recurso eletrônico] : questões, diálogos, depoimentos
/ Organização: Carlos Alberto Bello, Cibele Saliba Rizek, Joana Barros,
Leonardo Mello e Silva. -- São Paulo : FFLCH/USP, 2022.
3.173 Kb ; PDF.
Vários autores.
ISBN 978-85-7506-423-8
1. Intelectuais – Brasil. 2. Sociólogos – Brasil. 3. Política social – Brasil.
I. Oliveira, Francisco Maria Cavalcanti de (1933-2019). II. Bello, Carlos Al-
berto. III. Rizek, Cibele Saliba. IV. Barros, Joana. V. Mello e Silva, Leonardo.
CDD 338.981
Esta obra é de acesso aberto. É permitida a reprodução parcial
ou total desta obra, desde que citada a fonte e autoria
e respeitando a Licença Creative Commons indicada
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Mª. Helena G. Rodrigues – MTb n. 28.840
Projeto gráfico e Diagramação
Marcos Eriverton Vieira
Capa e Desenhos das Aberturas
Janice de Piero
O ornitorrinco virou um monstro:
e agora, Chico?
Paulo Eduardo Arantes1
Agradeço o convite de me associarem a esta homenagem ao
meu querido amigo Chico de Oliveira, de quem tive a honra de pu-
blicar alguns livros nas coleções que dirigi2.
O tema é “O Brasil Ornitorrinco”, e pretendo fazer uma breve
exposição em três partes. Vou primeiro traçar uma pequena história
intelectual da origem do texto “O ornitorrinco”3 e da sua intuição
teórica. Será uma história, paralela e comparativa, feita na minha
condição de cronista (não digo oficial, mas oficioso) da Tradição
Crítica brasileira. Afinal, estamos falando de um dos últimos gran-
des dessa Tradição Crítica que nos deixou ano passado. Em seguida,
apresento uma breve opinião a respeito do que foi o Ornitorrinco
1 Paulo Eduardo Arantes é filósofo, professor aposentado sênior da Departa-
mento de Filosofia da FFLCH-USP.
2 Pela coleção Zero à esquerda: Os direitos do antivalor (Petrópolis, Vozes, 1998).
Pela coleção Estado de sítio: Francisco de Oliveira e Cibele Rizek (orgs.), A era da
indeterminação (São Paulo, Boitempo, 2007) e Francisco de Oliveira, Cibele Rizek
e Ruy Braga, Hegemonia às avessas (São Paulo, Boitempo, 2010).
3 Francisco de Oliveira, “O ornitorrinco”, em Crítica à razão dualista/O orni-
torrinco, São Paulo, Boitempo, 2003.
88 francisco de oliveira
ontem, isto é, há vinte anos. Por fim, enfrento a pergunta óbvia (por
conta daquilo que estamos atravessando mundial e nacionalmente):
que figura o Ornitorrinco da vez assumiria hoje? Isto é, se Chico
estivesse acompanhando no detalhe, de que forma ele encararia a
atual metamorfose do Ornitorrinco que nos coube viver nesta quadra
histórica? São estes os três pontos que eu gostaria de abordar.
1.
A deixa para nossa breve história intelectual e política do
Ornitorrinco foi dada pelo próprio Chico de Oliveira, que, em um
colóquio de 2004 sobre a obra de Roberto Schwarz4, diz textualmente
que a intuição por trás da comparação zoomórfica entre aquele ani-
malzinho simpático e ao mesmo tempo grotesco e o Brasil daquele
momento remonta a um texto de Roberto: “devo dizer que o Orni-
torrinco muito deve a ele. Em ‘Fim de século’, ensaio que está em
Sequências brasileiras, o animal está lá”5. Valendo-me desse mote,
vou me centrar em uma espécie de estudo comparativo desses dois
grandes clássicos da Tradição Crítica brasileira.
Com um pouquinho de espírito de porco, no entanto, eu diria
que, embora seja bem possível que o Ornitorrinco já estivesse mesmo
lá no texto do Roberto, quando Chico o leu pela primeira vez, em
4 Os resultados do colóquio “Um crítico na periferia do capitalismo”, realizado
em agosto de 2004, na Universidade de São Paulo, foram posteriormente reunidos
em livro: Maria Elisa Cevasco e Milton Ohata (orgs.), Um crítico na periferia do
capitalismo: reflexões sobre a obra de Roberto Schwarz (São Paulo, Cia. das Letras,
2007).
5 Francisco de Oliveira, “Um crítico na periferia do capitalismo”, em: Um crítico
na periferia do capitalismo, cit., p. 149.
89 o ornitorrinco virou um monstro: e agora, chico?
1994, ele não o reconheceu. E que quando, num segundo momento,
o identificou, não gostou do que viu – achou um bicho feio, de maus
bofes – e virou a cara. Esse o desencontro que me interessa explorar.
Há uma espécie de percurso intelectual paralelo entre nossos
dois autores, Roberto Schwarz e Chico de Oliveira. Um primeiro mar-
co nessas trajetórias paralelas – que em um determinado momento
ameaçam convergir, e finalmente convergem lá no início do século
XXI – se encontra na última palavra dada numa polêmica da nossa
Tradição Crítica. Refiro-me ao famoso debate a respeito do dualismo
brasileiro: isto é, a coexistência ou coabitação desconforme entre o
moderno e o arcaico, como se dizia desde que o país é país. A reflexão
que encerrou esse debate – ou que lhe abriu portas novas – foi dada
simultaneamente pelos nossos dois autores no ano de 1972.
Foi o ano em que Chico de Oliveira publicou um texto que foi
um epitáfio da visão dualista do Brasil e ao mesmo tempo uma es-
pécie de certidão de nascimento de uma possibilidade de superação,
em virtude da recém-identificada simbiose demoníaca entre o antes
e o depois na história econômica e social do Brasil – afinal, ambas
estavam conjugadas e uma poderia servir de escada para a outra em
uma eventual superação, ao lançar a luta de classes na formação
da nacionalidade a outro patamar. Era essa a esperança política do
diagnóstico da “Crítica à razão dualista”6, quando Chico criticou toda
a tradição cepalina, inclusive do seu querido mestre Celso Furtado,
e mudou o debate a respeito dessa dualidade clássica.
Sem que tivesse a menor notícia de que a “Crítica à razão dua-
lista” estava sendo concluída e publicada no Brasil naquele momento,
6 OLIVEIRA, F. de. A economia brasileira: crítica a razão dualista. Cadernos
CEBRAP. Centro Brasiliero de análise e planejamento: São Paulo, v. 2, p. 4-82, 1972.
90 francisco de oliveira
Roberto meditava em Paris sobre essa mesma tradição e chegava à
mesmíssima conclusão sobre a curiosa circulação e determinação
recíproca entre esses dois polos em torno dos quais, alternadamente
ou paralelamente, o país gravitava – que no caso eram liberalismo
e escravidão – desde ao menos o Brasil Independente, para não
remontar à Colônia. Isto é, decifrando a forma literária de Machado
de Assis, Roberto também sepultava – ou dava por encerrado
e passava para uma nova etapa – esse debate sobre a dualidade
brasileira: éramos contemporâneos do capitalismo e o capitalismo
era contemporâneo daquilo que aparecia como uma anomalia
estritamente periférica, que havia contribuído funcionalmente para
a acumulação primitiva.
Ao fecharem seus respectivos diagnósticos, ambos estavam
criticando a razão dualista exatamente na mesma época, sem que
um soubesse o que o outro estivesse fazendo7. Os dois começaram
juntos, fizeram o mesmo diagnóstico do Brasil naquele momento,
viraram a página da ideia de dualidade e cravaram que estávamos
em um rumo diferente. É certo que essa página já havia sido virada
em parte pelo próprio golpe de 1964, que à sua maneira havia anun-
ciado que a ideia de acumulação endógena – geração endógena de
tecnologia, de moeda conversível, que nos tornaria uma espécie de
nação salarial autônoma – tinha sido passada para trás. Mas por mais
7 Aliás, sou testemunha ocular da história, pois, assim que o Roberto terminou
o capítulo “As ideias fora do lugar” – que é justamente a pedra fundamental do
raciocínio vindouro, o início do seu ciclo machadiano – ele veio em casa e leu pa-
chorrentamente durante duas horas a prosa daquele primeiro capítulo. Eu e Otília
escutamos, e quando a gente escuta de supetão um texto daquele calibre a gente
perde metade do que estava em jogo, as coisas vão sedimentando aos poucos.
91 o ornitorrinco virou um monstro: e agora, chico?
que com o Golpe a ideia dessa construção a ser concluída já estivesse
aposentada, ainda era necessário esse arremate teórico final.
Passa-se o tempo e Roberto completa o seu ciclo machadiano
com a publicação de Um mestre na periferia do capitalismo, em
1990, sem que a hipótese que mais adiante será apropriada pelo
Chico sob o nome de Ornitorrinco fosse formulada. Isto é, sem
que fossem tiradas as devidas consequências da revelação de que
a reestruturação produtiva do capitalismo global e inclusive a Ter-
ceira Revolução Industrial haviam de certa forma não só fechado
as portas para o progresso técnico gerado endogenamente num
país periférico como o Brasil, como ainda haviam mudado subs-
tancialmente seu teor da reprodução social em um momento no
qual as forças produtivas e a produtividade do trabalho davam um
salto exponencial que era então selado (uma verdadeira enclosure)
por patentes, grandes corporações e países centrais – feito que de
certa maneira teria abolido o nosso futuro, ou a nossa expectativa
desenvolvimentista e de superação possível de todas as anomalias
e barbaridades do Brasil, marcando a despedida da perspectiva de
que ainda pudéssemos ingressar em uma sociedade coesa num
certo sentido, em que a luta de classes pudesse ser conscientemente
impulsionada como criadora de instituições democráticas. É uma
concepção que se revelou ilusória a posteriori, mas naquela época
era uma forte convicção política.
Essa revelação veio para Roberto no fim dos anos 1980 e início
dos anos 1990, muito antes da leitura da “crítica do valor dissociação”,
como gostam de dizer os adeptos do seu xará alemão Robert Kurz: a
intuição de que o barco tinha naufragado pode ser rastreada na pró-
pria obra do Roberto. Mas quando ele terminou seu ciclo machadiano
com a interpretação do Brás Cubas, a ideia de que o Brasil tinha se
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inviabilizado (a expressão não é das melhores) nos termos em que
até então nós o costumávamos pensar, não havia pintado ainda. Para
uma contraprova dessa convicção de que continuávamos ainda no
rumo para o qual nos empurrava a História e a história do capitalismo
(periférico inclusive), cito apenas como exemplo um livro de 1987
chamado Que horas são?, no qual se encontra um capítulo decisivo
chamado “A Santa Joana dos Matadouros”. No comentário introdu-
tório ao trecho de Brecht que ele está traduzindo e apresentando ao
distinto público, Roberto escreve que, entre todas as virtudes daquela
peça, que é absolutamente genial – fazer poesia, raciocinando sobre
crise econômica, não é para qualquer um –, está o fato de que ela
tinha tudo para ecoar naquela sua conjuntura atual. De fato, tra-
tava-se de mais do que uma conjuntura qualquer – ele escrevia no
início dos anos 1980, quando o processo de abertura se acelerava, a
ditadura estava se esboroando, o Partido dos Trabalhadores havia
sido fundado dois anos antes –, de modo que nosso crítico ainda
podia dizer com todas as letras que, agora que a classe trabalhadora
voltou à cena e terá voz política nesse capítulo, nós teremos todo
interesse em reler essa peça, em que a classe trabalhadora aparece
como a massa coral literariamente decisiva:
“Hoje o ponto de vista dos trabalhadores volta a integrar – e per-
turbar, pela natureza das coisas – o nosso espectro político legal.
Ora, como nenhum outro, o teatro de Brecht fixou as dissonâncias
e contorções que transfiguram a cultura burguesa sempre que os
explorados têm a palavra, a qual por sua vez é interesseira, con-
traditória, inautêntica, frustra etc., pois o autor não é populista.
É certo que a Alemanha de Weimar não é o Brasil da abertura,
mas este quadro, com os esvaziamentos e as relativizações que
ocasiona, está na ordem do dia entre nós”8.
8 SCHWARZ, R. Que horas são? São Paulo: Cia. das Letras, 1987, p. 88.
93 o ornitorrinco virou um monstro: e agora, chico?
Portanto, nossos sujeitos monetários sem dinheiro, ex-pro-
letários virtuais, não tinham entrado ainda em cena – pelo menos
não na cena mental dos nossos dois heróis pensadores. Naquele
mesmo momento, voltando de uma longa estadia na França, Chico
de Oliveira havia redescoberto a socialdemocracia e aquilo que ele
chamou de antivalor9, e, portanto, uma possibilidade de que a dis-
puta política por fundos públicos de acumulação pudesse mudar
o rumo de estruturação de uma sociedade de classes em luta. Pois
a luta consciente e o esforço coletivo que emanam dessa dinâmica
política poderiam ensejar instituições cada vez mais inclusivas, de
modo que seus protagonistas poderiam então assumir seu próprio
destino. Esse é o projeto do Chico nos anos 1980 e eu diria, mutatis
mutandis – o Roberto poderia concordar com isso ou com aquilo, aí
todo mundo brigava com a teoria do valor –, todos nós estávamos
de acordo, era possível.
Até que as coisas começaram a piorar. O que facilitou para
nosso crítico literário naquele momento a percepção de que havia
uma virada – aquela anunciada pelo seu xará alemão foi a confluên-
cia de várias coisas. Havia como que um lado A e um lado B: Chico
olhou para o primeiro, Roberto para o segundo. O lado A para o
qual Chico estava olhando era uma espécie de ressurgência demo-
crática, uma espécie de primavera democrática que nós vivemos
nos anos 1980 – do ponto de vista econômico todo mundo chama
de “década perdida” por conta da hiperinflação, da dívida externa
incontrolável etc. Mas do ponto de vista da cultura política e da
democracia foi uma das décadas mais animadas e importantes da
9 OLIVEIRA, F. de. O surgimento do antivalor: capital, força de trabalho e
fundo público. Novos Estudos, CEBRAP, n. 22, p. 8-28, out. 1988.
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história do Brasil contemporâneo, que viu a formação do PT, do
MST, da CUT e por aí vai. Por outro lado, sobretudo para quem
tem olho literário e olho literário social, já era possível vislumbrar
uma sociedade em decomposição acelerada – naquele momento,
pela regência fisiológica Sarney, que representava um regime militar
que ainda não havia saído inteiramente de campo, e que depois é
sucedida pelo mandato destrutivo das elites encarnadas pelo Collor
em um cenário marcado por hiperinflação, o narcotráfico comendo
solto e o surgimento de uma nova figura da violência urbana em
um Brasil democrático. Esse lado é registrado em um romance cha-
mado Estorvo10, e Roberto, com o olho clínico dele, identificou que
algo ali estava dando para trás. Ele estava com o espírito armado e
as categorias mais ou menos encaminhadas, de modo que, quando
leu essa triste notícia de que a decomposição havia começado, essa
ficha caiu: ela começa não pelo centro, como havia imaginado o
“barbudo”, mas pela periferia, e da periferia transborda para outra
semiperiferia que era a União Soviética, e mais cedo ou mais tarde vai
bater no centro – essa estruturação produtiva vai inviabilizar países
e sociedades inteiras, essa inviabilização de sociedades fracassadas,
derrotadas, as obrigará a se reproduzir de outra maneira11.
Quando Roberto anunciou essa visão, Chico inicialmente a
repudiou, insistindo que o processo continua. Afinal, ainda haveria
para ele uma revolução democrática em marcha no Brasil, a luta de
classes no país não deixara de comportar uma espécie de fermento
de autossuperação para um patamar institucional superior, em que
10 Chico Buarque, Estorvo (São Paulo: Companhia das Letras, 1991).
11 SCHWARZ, R. O livro audacioso de Robert Kurz. Folha de S. Paulo, 17 mai.
1992.
95 o ornitorrinco virou um monstro: e agora, chico?
haverá cidadania ou capitalismo com direitos e cidadania. Chico
continuou nessa toada durante todos os anos 199012, até que em
determinado momento ele olhou de lado, tirou da estante o livro de
seu grande amigo, releu o artigo no início dos anos 2000 e começou
a enxergar aquele bichinho curioso, mistura de ave, mamífero e
réptil, resultado de diversos tipos de evolução e que não é passagem
para nada. Não cabe aqui esmiuçar o diagnóstico do “Ornitorrinco”,
que todo mundo conhece de trás para frente, apenas sublinhar que
naquele momento Chico o reconhece nos escritos de seu amigo,
ao lado de quem caminhava politicamente junto esse tempo todo.
Aqui chegamos ao nosso mistério. Pois mesmo depois de ter
feito esse diagnóstico no início dos anos 1990, Roberto sustentou sua
nota teórica sem contudo abrir mão da nota prática, acompanhando
politicamente as esperanças do Chico de Oliveira, de que ainda pu-
desse haver uma superação milagrosa nessa luta de classes travada
pela degradação do mundo do trabalho que ele começa a descrever
em “O ornitorrinco” a partir da famosa e enigmática universalização
do trabalho abstrato – que até agora ninguém sabe o que é –, essa
fusão de trabalho formal e informal e de todos os tipos de degradação
no mundo do trabalho, sem falar na degradação do mundo político.
É nesse momento que nossos dois autores convergem e
começam a tirar conclusões diferentes a respeito dessa identificação
de zoologia aplicada que está aí viva e saltitante de um lado para
o outro13. Chico começa uma espécie de anatomia daquilo que
12 OLIVEIRA, F. de. Os direitos do antivalor: a economia política da hegemonia
imperfeita. Petrópolis: Vozes, 1998.
13 Já aviso que não posso me estender sobre isso, mas é um assunto sobre o
qual recomendo que os futuros pesquisadores da história política intelectual da
Tradição Crítica brasileira se debrucem.
96 francisco de oliveira
pedantemente se chamaria de “biopolítica”, “biopoder” ou “admi-
nistração de populações supérfluas numa sociedade derrotada”,
como ele diz. E Roberto, por sua vez, de maneira mais cética, à la
Montaigne, segue por comparação de desgraças – a desgraça da “ad-
ministração da pobreza” que estamos administrando agora é menor
do que a desgraça eventual sem essa administração – e, por assim
dizer, baixa suas expectativas políticas sem abrir mão das suas con-
vicções teóricas a respeito dessa implosão. De modo que, do ponto
de vista político, a conclusão mais contundente é do Chico, porque
ele já está anunciando que essa gestão da pobreza deve estar gerando
um monstro que não sabemos ainda o que é.
2.
Aqui entramos propriamente no nosso segundo ponto, a saber,
a enormidade do raciocínio do Chico de Oliveira naquele momento,
ao fazer o diagnóstico do “Ornitorrinco”. Chico tem o topete (isso
é com ele mesmo), a ousadia, a desinibição de lançar essa pequena
bomba seis meses depois da inauguração do novo governo demo-
crático e popular que muitos imaginavam ser uma espécie de enca-
minhamento de uma eventual redenção nacional. Mal inaugurado
o primeiro mandato do presidente Lula, Chico já dizia que aquilo ali
não iria dar certo. Comete, na verdade, duas heresias. Com poucos
meses de governo ele já vislumbrava uma estratégia assentada: não
cavalgávamos nenhum tigre, mas um bichinho estranhíssimo, que
não é nada, nem desenvolvido nem subdesenvolvido, nem pobre
nem rico, em um cenário no qual o trabalho está assumindo tais e
tais formas, e portanto o que virá pela frente será tudo, menos aquilo
que se esperava nos anos 1990. Não só ele diz essa enormidade, como
97 o ornitorrinco virou um monstro: e agora, chico?
emenda a segunda heresia: a Era Lula e a Era FHC que a precedeu
compõem juntas um só período ornitorrínquico.
Nada mais equivocado, portanto, do que dizer que o Ornitor-
rinco nascia na véspera de publicação de seu artigo. Pelo contrário,
Chico reconhecia que aquela anomalia zoomórfica vinha de longe e
coincidia com o diagnóstico daquele seu amigo crítico literário que
em princípio não entendia das coisas que se passam no mundo real,
como diziam seus desafetos: abrange o período que vai de 1994, ou,
se quisermos recuar até Itamar, quando tudo começa em 1992, desde
o impeachment de Collor até o impeachment da Dilma, quando tem
início nosso último capítulo. A cifra desse mesmo período, entendi-
do como um bloco só, é a constituição de uma nova classe dirigente
que tem um lado A e um lado B – um lado tecnocrático banqueiro
financista e um lado sindical, que tem acesso ao mapa da mina dos
fundos públicos, nos termos de Chico. É essa nova classe, que em
parceria alternada governa a sociedade aberrante, sem perspectiva
de saída endógena, que era ali batizada de Ornitorrinco.
3.
Citadas essas duas constatações chocantes que o Chico fez
naquele momento, passo a concluir com uma terceira, que agora
aplico ao nosso tempo. Trata-se do período em que Chico já não está
mais presente e poderíamos consagrar toda uma sessão para discutir
como é que se deu a metamorfose do Ornitorrinco nisso que ele se
tornou agora. Afinal, como foi que aquele bichinho simpático, que
já era um fim de linha, se transformou agora numa monstruosidade
social? O que é esse monstro? Ele atende ainda pelo nome de Or-
nitorrinco? É o Ornitorrinco plenamente realizado? É o que temos
que discutir neste momento.
98 francisco de oliveira
Ora, se os intérpretes do Ornitorrinco têm razão, o bichinho
traria consigo a lógica de sua própria metamorfose. Um economista
(Daniel Feldmann) e um cientista político internacional (Fábio Luis
Barbosa dos Santos) escreveram recentemente um artigo que traz
um conceito muito interessante: a ideia de contenção que acelera14.
Eles entendem, tal como Chico, que falava em gestão das popula-
ções descartáveis e controle do mundo de trabalho degradado, e
tal como Roberto, que falava em administração da pobreza, que o
modelo de administração de uma sociedade à beira da desintegra-
ção resumia-se a comprar tempo com dinheiro. Não vou retomar
aqui a origem deste termo15, mas basta lembrar o já citado artigo de
1994, “Fim de século”16, em que Roberto Schwarz descreve a “lógica
da desintegração” que caracteriza nosso atual modo de reprodução
social. Pois justamente segundo o esquema mencionado, de Gabriel
Feltran, passamos a adiar a desintegração social comprando tempo
com dinheiro, isto é, irrigando as periferias – e não só as periferias
sinistradas – com transferências monetárias diretas e indiretas.
14 Daniel Feldmann e Fábio Luis Barbosa dos Santos, O médico e o monstro (no
prelo).
15 Título de um livro de Wolfgang Streeck, Tempo roubado: a crise adiada do
capitalismo democrático (trad. Marian Tordy e Teresa Toldy, São Paulo, Boitem-
po, 2018), que, no entanto, não estou empregando em sua acepção original, mas
torcendo-o na direção do argumento desenvolvido pelo sociólogo Gabriel Feltran,
no artigo “O valor dos pobres: a aposta no dinheiro como mediação para o conflito
social contemporâneo”, Caderno CRH, v. 27, n. 72, set./dez. 2014, p. 495-512.
16 Roberto Schwarz, “Fim de século”, comunicação apresentada no colóquio
sobre “As culturas do fim do século na América Latina”, na Universidade de Yale,
em abril de 1994. Publicado originalmente em Josefina Ludmer (org.), Las culturas
de fin de siglo en América Latina (Rosario: Beatriz Viterbo Editora, 1994) e depois
colhido no volume do próprio autor Sequências brasileiras (São Paulo: Companhia
das Letras, 1999).
99 o ornitorrinco virou um monstro: e agora, chico?
Endividamento, consumo endividado, capital humano endividado,
microempreendedor endividado irrigado por crédito a perder de
vista: essa é a maneira de conter a desintegração, essa é a política
de controle do Ornitorrinco. Ora, ela gera um dique de proteção, e
esse dique ao mesmo tempo estava acelerando essa sua metamor-
fose monstruosa, que nós estamos vendo agora. Essa é uma possível
explicação para a mutação com a qual nos defrontamos hoje.
Nossa primeira tarefa para levar essa investigação a cabo co-
meçaria pela morfologia, pela anatomia dessa nova reencarnação
do Ornitorrinco: onde está a patinha dele espalmada, onde está o
bico de pato, onde está o rabo de pato, onde está o ferrão do macho,
tudo aquilo que é descrito na epígrafe do Chico. Onde é que eles
estão? Teremos assim uma fusão patológica ou teratológica de um
bico militar, uma patinha miliciana, uma mama teocrática da qual
escorre leite e os filhotes são alimentados, e um ventre dilatado que
é o fisiologismo, chamado “centrão” – fisiologismo juntando com
milícias, militares, teocracia e uma família reinante delinquente.
O que é esse monstro? Como ele foi gerado? Ora, ele foi gera-
do no ventre do Ornitorrinco: trata-se do Ornitorrinco 2.0, não há
a menor dúvida. Chico diagnosticou isso. Ele só não imaginava que
fosse possível que esse mecanismo de controle de populações pudesse
sair do controle. Acontece que esse controle de populações é tão forte
que ele se reconfigura. Por mais monstruosa que seja a configuração
atual, ela é uma espécie de decalque demoníaco da forma anterior do
Ornitorrinco. Tanto é que hoje já está se falando em microcrédito,
microcrédito para os microempreendedores, transferência de renda
e por aí vai. Portanto, não conseguimos romper esse ciclo infernal
que agora assume a forma de uma espécie de mimetismo satânico
da fase ornitorrínquica anterior, que não começou na Era Lula, já
se fazia presente na Era FHC e cuja sementinha – claro, descontada
100 francisco de oliveira
a dinâmica das forças produtivas capitalistas que degradaram e
tornaram possível essa reprodução do trabalho como estamos
vendo agora – já tinha sido plantada pelo Banco Mundial com suas
chamadas políticas compensatórias.
Uma das profecias controversas do Chico a respeito do Ornitor-
rinco é justamente o que ele chamava de universalização de trabalho
abstrato, que se tornava portanto indistinto, tanto faz se formal
ou informalizado. Ora, há dois artigos muito bons de dois jovens
sociólogos que nos dão pistas para desvendar o que está ocorrendo
nesse sentido. O primeiro, de uma pesquisadora chamada Ludmila
Abílio, que tem escrito muito sobre uberização e capitalismo de
plataforma17. O segundo, de um pesquisador chamado Henrique
Costa, que escreveu sobre trabalho e empreendedorismo dos pobres
na pandemia18. Referindo-se diretamente ao modelo do Ornitor-
rinco, ele aponta como na crise que estamos vivendo atualmente
estaríamos constatando uma centralidade negativa do trabalho,
tornada visível como uma espécie de retrato negativo, justamente
quando se retira o trabalho das pessoas, seja por infecção, seja por
contágio, seja por shut down de todas as atividades econômicas.
O trabalho abstrato, portanto, se universalizou, mas nessa forma
“sem forma” que estamos vendo, e nisso se confirma pela pesquisa
de Henrique Costa uma das profecias de Chico de Oliveira. Isto é,
17 ABÍLIO, L. C. Plataformas digitais e uberização: a globalização de um Sul
administrado? Revista Contracampo, v. 39, n. 1 (2020): Trabalho de Plataforma. Rio
de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal
Fluminense, 2020, p. 13-26.
18 COSTA, H. Entre o home office e a vida loka: o empreendedorismo popular na
pandemia. DILEMAS – Revista de estudos de conflito e controle social, Reflexões na
pandemia de 25/09/2020. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
2020. p. 1-19.
101 o ornitorrinco virou um monstro: e agora, chico?
se antes, na época da “Crítica à razão dualista”, Chico mostrava a
funcionalidade do chamado “atraso” em relação ao moderno, no
ornitorrinco de agora vemos uma nova dinâmica que não reproduz
o que era herdado, mas antes produz essa nova selvageria de um
mundo do trabalho caracterizado por uma intensificação de um
trabalho aparentemente supérfluo, na medida em que a criação do
valor já não depende essencialmente dele – e daqui outra corrente
vai também tirar suas próprias conclusões desse mesmo esquema.
Bom, vou ficar por aqui. É isso. É a minha homenagem ao
Chico, meu tributo ao Chico: o Ornitorrinco virou um monstro – a
ponto de acharmos que o anterior era um bichinho simpático. Chico,
se você estivesse vivo, o que você faria?