Marília Costa Morosini (Org.
) l Silvia Maria de Aguiar Isaia l Rafael Porlán Ariza l José Martín Toscano
Maria Isabel da Cunha l Denise Leite l Maria Estela Dal Pai Franco l Marlene Correro Grillo
PROFESSOR DO ENSINO SUPERIOR
IDENTIDADE, DOCÊNCIA E FORMAÇÃO
Brasília, abril de 2000
1
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Coordenador de Produção Editorial
Jair Santana Moraes
Coordenador de Programação Visual
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Revisão
Jair Santana Moraes
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Normalização Bibliográfica
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Projeto Gráfico e Arte-Final
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Capa
F. Secchin
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais.
Professor do ensino superior: identidade, docência e formação / Marília Costa Morosini
(Org.). Brasília : Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, 2000.
80 p. : il. tab.
1. Professor de ensino superior. I. Morosini, Marília Costa. II. Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais.
CDU 378.124
2 PROFESSOR DO ENSINO SUPERIOR: IDENTIDADE, DOCÊNCIA E FORMAÇÃO
Sumário
Apresentação 5
Parte I Professor do Ensino Superior: identidade e desafios 9
Docência universitária e os desafios da realidade nacional 11
Marília Costa Morosini (Ulbra)
Professor universitário no contexto de suas trajetórias
como pessoa e profissional 21
Silvia Maria de Aguiar Isaia (UFSM)
El saber práctico de los profesores especialistas: aportaciones
desde las didácticas específicas 35
Rafael Porlán Ariza (Universidade de Sevilha, Espanha)
José Martín Toscano (Universidade de Sevilha, Espanha)
Parte II Ensino e pesquisa como mediação da formação
do professor do Ensino Superior 43
Ensino como mediação da formação do professor universitário 45
Maria Isabel da Cunha (UFPel)
Conhecimento social na sala de aula universitária
e a autoformação docente 53
Denise Leite (UFRGS)
Comunidade de conhecimento, pesquisa e formação
do professor do ensino superior 61
Maria Estela Dal Pai Franco (UFRGS)
O lugar da reflexão na construção do conhecimento profissional 75
Marlene Correro Grillo (PUCRS)
3
4 PROFESSOR DO ENSINO SUPERIOR: IDENTIDADE, DOCÊNCIA E FORMAÇÃO
Apresentação
O presente texto visa cobrir uma instância do ensino brasileiro vulnerável e merecedora de
uma atenção toda especial o professor do ensino superior, sua identidade, formação e docência. A
produção científica sobre o tema tem se caracterizado por poucos estudos, isolados e descontínuos.
Pode-se afirmar que o tema do professor do ensino superior não se constitui área de sólida produção
científica. Agravando essa carência de produção no Brasil, ocorre uma expansão acelerada do Sistema
de Educação Superior, em que projeções governamentais alertam para a presença de três milhões de
alunos em 2004. Esse aumento já vem sendo registrado quando se examina a trajetória no número de
professores universitários. Outro fato que tende a ressaltar a importância do tema aqui em discussão é a
presença, na década de 90, do olhar avaliativo do Estado e, conseqüentemente, da sociedade civil
sobre a educação e sobre o desempenho do docente.
A realidade acima sintetizada nos aponta para a necessidade de refletirmos sobre a temática
e potencializarmos a construção de propostas inovadoras, sendo esse o propósito deste número. As-
sim, o estudo se divide em dois blocos. O primeiro trata do Professor do ensino superior: identidade e
desafios, e o segundo, do Ensino e pesquisa como mediação da formação do professor do ensino superior. No
primeiro bloco, estão reunidos os seguintes textos:
Docência universitária e os desafios da realidade nacional, escrito pela professora Marília
Costa Morosini, da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), no qual é analisada a docência univer-
sitária frente aos limites da realidade nacional, no contexto dos desafios propostos pelo mundo
globalizado. A autora destaca que o mundo globalizado tem priorizado a internacionalização baseada
na sociedade da informação, em padrões de excelência e na presença do Estado Avaliativo. Marca este
contexto a influência do mercado sobre a docência universitária, exigindo permanente capacitação dos
recursos humanos, a flexibilização das organizações de aprendizagem e a intensificação da
competitividade. No plano da realidade nacional, são destacados os limites de legislação de educação
superior referenciados pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e pelo Sistema
Nacional da Avaliação, os quais orientam a demanda, pressionam as instituições universitárias e, por
conseqüência, os professores a seguirem os ditames internacionais. É definida a identidade do profes-
sor universitário e, a formação didática, que anteriormente se caracterizava pelo laissez-faire, tende a
ocupar papel importante no desempenho acadêmico. São discutidas tais determinações ante o sistema
de educação superior através da análise do Censo de Ensino Superior do Brasil (Inep/MEC, 1998), no
tocante à distribuição de docentes segundo as IES, à formação escolar, ao regime de trabalho, etc.
Como conclusão, são apontados os desafios da docência universitária num contexto de transforma-
ções aceleradas, em que a identidade da universidade está sendo posta em xeque, e em que o docente,
que nela atua, defronta-se com um contexto institucional extremamente competitivo por um lado e,
por outro, com novos padrões de docência definidos pelo mercado de trabalho/governo.
Professor universitário no contexto de suas trajetórias como pessoa e profissional, escri-
to pela professora Silvia Maria de Aguiar Isaia, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). O
artigo, de caráter teórico, busca subsídios para a discussão sobre a formação de professores, delimitan-
do seu interesse aos docentes do ensino superior. Tal delimitação é justificada não só pela pesquisa
incipiente nesta área como também pela constatação da perplexidade dos professores quando indaga-
dos sobre sua prática educativa e a solidão que sentem em relação à condução da mesma. Diante deste
quadro, instaura-se a temática da formação do professor universitário, que, no artigo, é ressignificada
a partir da perspectiva do professor como pessoa. O interesse pela pessoa do professor não é inseparável
do estudo da dinâmica dos acontecimentos internos e externos que contribuem ou não para a sua
constituição como profissional e pessoa. Neste sentido, temas como mal-estar docente, mundo interi-
5
or, eu profissional individual e coletivo, processo identitário, entre outros, constituem-se os focos de
análise da contextualização da trajetória de constituição/construção dos docentes do ensino superior,
tendo por horizonte a inerente relação pessoa/profissão. Os temas acima constituem-se o contraponto
às questões de fundo que permeiam a discussão proposta pelo texto: Quem forma o professor univer-
sitário? Quem é este sujeito pessoa e profissional? É possível ajudá-lo em sua trajetória de formação
sem entendê-lo como unidade pessoa/profissional?
El saber práctico de los profesores especialistas: aportaciones desde las didácticas especí-
ficas, escrito pelos professores Rafael Porlán Ariza, visitante do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Ulbra e José Martín Toscano, ambos docentes da Universidade de Sevilha. Destaca a
constituição do conhecimento desejável dos professores. A partir da análise das características do
conhecimento que de fato possuem os professores, e levando em conta os aportes que, durante os
últimos anos, vêm sendo desenvolvidos pelas diferentes didáticas específicas, os autores esboçam uma
proposta do que deveriam conhecer e saber fazer os professores especialistas.
O segundo bloco, Ensino e pesquisa como mediação da formação do professor do ensino superior,
reúne os seguintes textos:
Ensino como mediação da formação do professor universitário, escrito pela professora
Maria Isabel da Cunha, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), no qual ela destaca que, no
âmbito da universidade, tomando como base o Brasil, o desencadear de distintas formas de avaliação,
especialmente as externas, representa movimentos conformadores da profissão e da profissionalidade
docente. Considera que é possível haver distintas concepções do papel docente, que tem variação
espacial e territorial. A idéia do professor desejado está sempre configurada a partir de um projeto de
sociedade e de educação. A autora defende a avaliação institucional numa perspectiva acadêmico-
crítica, mas percebe que a comunidade docente, submetida aos processos de avaliação oficiais, começa
a redimensionar, por forças das circunstâncias, o sentido da sua profissionalidade, a qual é presidida
pela racionalidade técnica, baseada na produtividade e na competição. Em que pese ao fato de mani-
festações de resistência, tanto individuais como grupais, essas forças não têm sido suficientes e acabam
engolidas pela ordem dominante. O que é ser professor de sucesso para esse parâmetro avaliativo?
Que conhecimentos, habilidades, valores e compromissos se requer deste professor? Qual a sua prin-
cipal tarefa para ser bem avaliado? Que lógica preside a sua formação? Que racionalidade está confor-
mando o seu fazer? Como ele mesmo está construindo seu imaginário docente? Essas não são ques-
tões discutidas e suficientemente explicitadas da mesma forma como não o é o projeto político-peda-
gógico para a universidade brasileira. Paradoxalmente, porém, há um esforço na literatura internacio-
nal e nacional para redimensionar a condição da profissão docente num sentido mais autônomo e
ético, preocupado com uma profissionalidade reflexiva, produtora de uma profissionalidade docente
emancipatória, distinta da racionalidade técnica. A contradição é portentosa. Enquanto estamos en-
volvidos com nossas pesquisas e tentando elaborar projetos de formação que contribuam para a que-
bra da racionalidade técnica, submetemo-nos, sob a batuta dos programas avaliadores, à lógica dessa
mesma racionalidade. Os saberes constitutivos da profissão docente implicam consciência, compreen-
são e conhecimento. Sobre essas bases, é que se pode estabelecer a reflexividade e, com ela, uma
perspectiva mais emancipatória da profissão. O objetivo do texto foi aprofundar a contradição que
estamos vivendo enquanto professores universitários e ajudar na explicitação das demandas dos pro-
cessos avaliativos e na conformação da professoralidade no ensino superior.
Conhecimento social na sala de aula universitária e a autoformação docente, escrito pela
professora Denise Leite, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), no qual ela discu-
te a prática da construção de um conhecimento social na sala de aula universitária e os processos de
qualificação e autoformação docente. Destaca a autora que essa possibilidade foi identificada naquelas
salas de aula e nos processos educativos micro e macroinstitucionais que fizeram parte do estudo
Inovação como fator de revitalização do ensinar e do aprender na universidade. Nessa investigação, foram
estudados casos inovadores em quatro universidades públicas do Brasil e da Argentina: aula universi-
tária convencional e não-convencional, centro de estudos multidisciplinares, novas tecnologias, nú-
cleo de educação popular, avaliação institucional integrada e vestibular dissertativo. Esses casos foram
intencionalmente selecionados por apresentarem alguma característica visível de ruptura com os
paradigmas de uso tradicional na pedagogia universitária. A metodologia inclui, além de estudos de
casos, inúmeras entrevistas presenciais e eletrônicas, observações, questionários e análises de docu-
mentos. Foram destacadas análises transversais dos casos, com a metodologia da pesquisa em parce-
6 PROFESSOR DO ENSINO SUPERIOR: IDENTIDADE, DOCÊNCIA E FORMAÇÃO
ria. A autora analisa alguns desses encaminhamentos de pesquisa, destacando a emergência do conhe-
cimento social e suas potencialidades para a autoformação docente. Destaca, ainda, que o caminho
percorrido na investigação se mostrou fértil. Seu início, no entanto, foi trilhado com esforço em meio
a um campo de extensa produção teórica e prática.
Comunidade de conhecimento, pesquisa e formação do professor do ensino superior,
escrito pela professora Maria Estela Dal Pai Franco, da UFRGS, no qual ela discute o trinômio comu-
nidade de conhecimento, pesquisa e formação do professor de ensino superior, problematizando a
questão sob a perspectiva de uma prática social e investigativa. A autora parte da constatação de que
o professor de ensino superior integra uma comunidade de conhecimento e, sob tal fundante, discute
a pesquisa como mediação da formação do professor. Duas categorias são utilizadas na análise do
professor de ensino superior: a identidade e a racionalidade. A identidade é discutida na embocadura
da complexidade da formação, tomada como problema social e problema de investigação. São anali-
sadas múltiplas identidades situacional, institucional, política, profissional e de avanço do conheci-
mento , perpassadas pela de partícipe em uma comunidade de conhecimento. A racionalidade é
buscada nos vetores da formação para a pesquisa (acesso ao conhecimento sistematizado numa área
de conteúdo e sua produção) e da formação para o ensino (acesso ao conhecimento sistematizado na
área pedagógica). A autora discute, posteriormente, a comunidade do conhecimento em sua compo-
sição e características, destacando a tendência da pesquisa como prática social. A associação entre
pesquisa e docência é analisada enquanto formação na ação, sendo objetivada em três pontos: a cres-
cente consciência da pesquisa para a sociedade hodierna, a pesquisa em sua inserção política e de
mudança e a associação ensino-pesquisa na formação. Essa associação é discutida no plano organizativo
(aproximação graduação/pós-graduação pela continuidade e multidisciplinaridade do conhecimen-
to), no plano contextual (problemas educacionais e investigativos) e no plano da ação pedagógica
(partilha de saberes). Finalmente, são apresentadas duas práticas sociais de pesquisa, interinstitucionais,
que fazem uso de modalidades cooperativas de redes de pesquisa. A conclusão sugere que o pesquisa-
dor lide com elementos necessários para o desempenho do professor numa sociedade em constante
mudança, destacando-se o acesso ao conhecimento sistematizado e à produção de novos conhecimen-
tos. Ressalta a importância da formação pedagógica e da pesquisa nessa área, pois as mesmas forne-
cem uma dimensão crítica e técnica que as tornam únicas e imprescindíveis, forjando a identidade do
professor como partícipe crítico da comunidade do conhecimento, empenhado na busca e na dissemi-
nação de valores relevantes para a formação das novas gerações e para a sociedade da qual fazem parte.
O lugar da reflexão na construção do conhecimento profissional, escrito pela professora
Marlene Correro Grillo, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), que
discorre sobre a importância da reflexão na construção do conhecimento prático, um forte integrante
do conhecimento profissional docente. Apóia-se nos estudos de autores reflexivos (Dewey, Schön,
Zeichner, Zabalza, entre outros), destacando conceitos básicos encontrados na produção teórica dos
mesmos. Apresenta a questão da transposição didática como uma possibilidade de prática reflexiva,
tendo em vista que o professor cria e recria quotidianamente sua ação pedagógica a partir do diálogo
com situações diversificadas da sala de aula. Conclui, recomendando a vivência de seminários reflexi-
vos como um espaço de diálogo e de abertura às peculiaridades das práticas, o que leva à (re)construção
do conhecimento profissional.
Os temas anteriormente discutidos sobre o professor do ensino superior, sua identidade,
docência e formação, foram resultantes do I Simpósio de Educação Superior, promovido pelo Progra-
ma de Pós-Graduação em Educação (PPGEdu) da Ulbra, com a cooperação e participação das uni-
versidades PUCRS, UFPel, Universidade da Região da Campanha (URCamp), Universidade de Caxias
do Sul (UCS), Universidade de Ijúi (Unijuí), Universidade do Vale dos Sinos (Unisinos), UFSM,
UFRGS, Universidade do Vale do Taquari (Univates), Universidade Regional Integrada do Alto
Uruguai e das Missões (URI) e Centro Universitário La Salle.
Pelo teor dos textos abordados neste estudo, pode-se afirmar que a docência universitária,
oscilante entre os pólos do laissez-faire e das pressões do Estado Avaliativo, merece reflexões não só no
plano teórico, mas também no da prática, onde as rupturas silenciosas já vêm ocorrendo. Nessas refle-
xões, não podem ser esquecidas as especificidades do local ante as determinações do global. A caminhada
já começou. Urge que a docência universitária, como foco de discussão, reflexão e inovação, seja abraçada.
A Organizadora
7
8 PROFESSOR DO ENSINO SUPERIOR: IDENTIDADE, DOCÊNCIA E FORMAÇÃO
Parte I Professor
do Ensino Superior:
identidade e desafios
9
10 PROFESSOR DO ENSINO SUPERIOR: IDENTIDADE, DOCÊNCIA E FORMAÇÃO
Professor universitário Silvia Maria de Aguiar Isaia*
no contexto de suas trajetórias
como pessoa e profissional
Apresentando o tema
No presente artigo, a preocupação de base é com a constituição do docente universitário e,
em especial, com o de licenciatura, responsável pela formação de futuros professores para o ensino
básico e médio.
Contudo, o desvelamento dessa constituição parte do enfoque que privilegia o professor
como um ser unitário, entretecido pela trajetória pessoal e profissional, pressupondo que o mesmo é
uma pessoa que se constrói nas relações que estabelece com os outros que lhe são significativos, com
a história social que o permeia e com sua própria história.
Neste sentido, aponta-se a importância de pesquisas e estudos voltados para as trajetórias de
vida dos professores, contemplando o modo como articulam o pessoal e o profissional e, conseqüen-
temente, como vão se (trans)formando, ao longo do tempo, contribuindo assim para o conhecimento de
ser professor (Nóvoa, 1992).
Entende-se que a concepção de trajetória de vida, seja pessoal ou profissional, encontra
fundamento em Ortega y Gasset (1970). Vida, para este autor, é tempo, duração e, como tal, finitude.
A idade dos homens se deve ao fato de estes estarem sempre situados em uma porção de seu tempo,
que é finito. Portanto, a vida ocorre em fases, etapas, idades, que não só se sucedem, mas principal-
mente se enlaçam, convivendo em uma mesma duração histórica.
A idade, fase ou etapa, por marcar porções de tempo vivido, não compreende apenas um
ano, mas um conjunto de anos vivenciados por um conjunto de pessoas que compartilham, entre si,
valores, crenças, convicções, estilos de vida, constituindo o que Ortega y Gasset denomina geração e
que contempla simultaneamente uma comunidade temporal e espacial. Por isso, para o autor (Ortega
y Gasset, 1970, p. 37-38): Hoy es para uno veinte años; para outros, cuarenta; para outros sesenta...
Todos somos contemporáneos, vivimos en el mismo tiempo y atmósfera en el mismo mundo , pero contribu-
ímos a formarlos de modo diferente. (Hoje é para alguém vinte anos; para outros, quarenta; para
outros, sessenta... Todos somos contemporâneos, vivemos em um mesmo tempo e atmosfera em
um mesmo mundo , mas contribuímos para formá-los de modo diferente).
Desse modo, a trajetória, tanto pessoal quanto profissional, envolve uma multiplicidade de
gerações que não só se sucedem, mas se entrelaçam na permanente tarefa de produzir o mundo. Assim
cada uma, em um mesmo percurso histórico, possui papel diferenciado nessa tecitura. Metaforica-
mente, Ortega y Gasset apresenta as cinco idades do homem, entendendo-as em termos geracionais.
Assim, as duas primeiras têm por função inteirar-se do mundo que lhe é dado pelas gerações anterio-
res; a terceira tem por tarefa gestar uma nova concepção de mundo; a quarta volta-se para a efetiva
concretização do que estava sendo gestado, envolvendo predomínio e mando; a última cabe desvestir-
se do mundo, entregando seu governo para a geração que a sucede.
Em termos de trajetória pessoal, estas idades corresponderiam às fases de desenvolvimento
pelas quais cada pessoa passa de acordo com determinados parâmetros de tempo, espaço e estilo de vida.
O caminho do desenvolvimento pessoal, contudo, não pode ser visto apenas em termos individuais,
mas sim grupais, pois, no seu percurso, cada sujeito interage com todos aqueles que com ele compar-
tilham os mesmos parâmetros geracionais, constituindo uma geração.
Em termos de trajetória profissional e, no presente caso, a dos professores, estas idades
corresponderiam às diversas gerações pedagógicas, cujas funções, voltadas para a produção do mundo
*Doutora em Ciências Humanas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); professora do Programa de Pós-
Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
PROFESSOR UNIVERSITÁRIO NO CONTEXTO DE SUAS TRAJETÓRIAS COMO PESSOA E PROFISSIONAL 21
educacional, abarcariam o modo peculiar de inteirar-se sobre ele, gestá-lo, governá-lo e finalmente
entregá-lo às novas gerações.
A trajetória profissional é vista como um processo complexo, um conjunto de movi-
mentos em que revolução e involução estão presentes, em que fases da vida e da profissão se
entrecruzam, mas não são uma só e, fundamentalmente, em que grupos geracionais de diferentes
constituições encontram-se em uma mesma duração histórica, podendo interagir, repelir-se ou
mesmo se desconhecer mas, mesmo assim, sendo responsáveis pela trama de uma trajetória que
em muitos aspectos é única.
Tecendo o tema
O tema do professor universitário, no contexto de suas trajetórias, enfatiza sua condição de
sujeito e como um dos atores do processo educativo superior.
Sem desconsiderar as condições intra e interpessoais que o cercam, busca-se contemplá-las a
partir da ótica de como estas são vividas e percebidas pelo docente, concedendo-lhe um papel ativo na
elaboração e interpretação de seu mundo. Assim, o interesse que orienta este estudo, volta-se para a
compreensão da dinâmica dos acontecimentos que contribuem para contextualizar a trajetória de
constituição/construção desse professor, tendo por horizonte a inerente relação percurso pessoal/pro-
fissional.
A trajetória pessoal é entendida como o transfundo a partir do qual a vida dos professores
adquire consistência e significado existencial. Para sua configuração, optou-se pela concepção de de-
senvolvimento para toda a vida, tendo por base o ideário de Riegel (1979), Erikson (1981, 1985) e
Levinson (1982, 1986).
Para contemplar-se o percurso existencial dos professores do ensino superior, o foco é a vida
adulta, por ser o momento deste desenrolar em que eles se encontram. Nesta etapa da vida, segundo
Isaia (1992), transformações e mudanças continuam a ocorrer, alterando o modo como os adultos e
o mundo transacionam, influenciando-se mutuamente. Dessa forma, eventos concretos como saída
de casa, formação acadêmica, carreira profissional, casamento, cuidado com os filhos etc., envolvem
desafios, crises e transtornos que surgem a partir de uma combinação de necessidades e expectativas
pessoais com normas e exigências sociais, bem como a capacidade de enfrentá-las e gerenciá-las dentro
de determinado marco geracional e histórico.
Buscando-se a contextualização da vida adulta dentro da perspectiva dialética, tem-se as
contribuições de Riegel (1979), segundo as quais o desenvolvimento adulto é o resultado do entrejogo
de quatro níveis desenvolvimentistas: biológico-interno, psicoindividual, sociocultural e físico-exter-
no. A dinâmica entre estes quatro níveis decorre da busca de sincronia entre eles, o que nem sempre é
possível, levando a ocorrência de crises ou conflitos, vistos como confrontações construtivas que
fornecem a fonte para novas transformações, tanto do indivíduo quanto da sociedade com a qual ele
interage.
Partindo do enfoque rigeliano, pode-se inferir que os adultos estão em constante trans-
formação, mas estas só podem ser apreendidas a partir do estudo de eventos concretos ocorridos
interativamente em dois ou nos quatro níveis do desenvolvimento. Dessa forma, eventos inter-
nos ou externos, isoladamente, pouco dizem, sendo importante levar-se em conta o modo como
os indivíduos, no caso os professores, enfrentam esses eventos, mais ainda, considerá-los na inter-
seção das interações do mundo interno (biológico e psíquico) e do mundo externo (sociocultural
e físico).
Devido aos posicionamentos acima, a preocupação de Riegel não está em estabelecer estágios
universais de desenvolvimento, mas em explicitar a mecânica através da qual este desenvolvimento de ser
analisado é compreendido. Como para ele, este envolve uma seqüência de eventos que ocorrem em um
processo transacional indivíduo/mundo, as pautas desenvolvimentistas irão depender da conjugação
entre diversos componentes de uma determinada situação. Nesse sentido, Riegel elabora uma estratificação
do ciclo adulto, através de níveis conectados com idades e eventos que provavelmente são responsáveis
pela incidência de determinadas mudanças em relação a estes níveis. Exemplificando, tem-se conforme
Riegel (1979), o Quadro 1.
22 PROFESSOR DO ENSINO SUPERIOR: IDENTIDADE, DOCÊNCIA E FORMAÇÃO
Quadro 1 Níveis e eventos da vida adulta
Níveis (anos) Modificações graduais Modificações
súbitas
Homens Mulheres
Psicossocial Biofísica Psicossocial Biofísica
Colégio/ 1º Trabalho/ 1º Filho
I 1º trabalho Colégio Casamento
(20-25) Casamento
1º Filho
2º trabalho Perda do trabalho Outro filho
II Outro filho Crianças na pré-escola
(25-30) Crianças na pré-escola
Mudança Mudança
III Promoção Ausência de trabalho
(30-35) Filhos na escola Filhos na escola
Segundo lar Segundo lar
IV Promoção Segunda carrreira
(35-50) Partida dos filhos Partida dos filhos
Desemprego Incapacitação Desemprego Menopausa Perda do trabalho
V Isolamento Avó Perda dos pais
(50-65) Avô Chefe de família Perda de amigos
Chefe de família Doença
Privação Deficiências Viuvez Aposentadoria
VI sensorio-motoras Incapacitação Perda
(65 + ) do companheiro
Morte
Fonte: RIEGEL, 1979, p. 139.
Partindo-se de uma abordagem psicossocial, a trajetória pessoal será entendida, na perspec-
tiva de Erikson (1981, 1985), como um ciclo formado pela inter-relação de oito etapas ou idades,
cada uma conectada ao contexto da totalidade do ciclo vital e vice-versa. Assim, a adultez é compreen-
dida em relação a todas as outras fases e não apenas como um fim maduro e acabado do ciclo de vida.
A abordagem eriksoniana, não desconsiderando o processo orgânico, privilegia a interação
entre processo psíquico e social, concebendo o fator psicossocial como aquele capaz de explicar a
dinâmica do transcurso existencial. Este se dá ao longo de etapas, representando as oito idades do
homem, desde o nascimento até a velhice. Cada idade está associada a um marco existencial que a
separa das demais, consubstanciado na noção de crise e sendo expressado em termos de uma polarida-
de formada por um elemento sintônico (positivo ajustamento) e distônico (negativo transtorno).
A dinâmica do desenvolvimento, tendo em vista esta noção de crise, não é linear e ascendente; ao
contrário, é permeada pelo positivo e pelo negativo, em um jogo de figura/fundo, em que não há a
supremacia total de um sobre o outro, mas um equilíbrio móvel entre eles. Assim, as pessoas, de
acordo com as circunstâncias que enfrentam ao longo da vida, podem oscilar para cima ou para baixo
na escala do amadurecimento; contudo, se possuírem um saldo positivo de suas crises, os movimentos
descendentes serão menos destrutivos.
Da luta entre as tendências sintônicas e distônicas, inerentes a cada etapa vivencial, emergem
forças psicossociais, entendidas como qualidades ou virtudes básicas, relativas às estratégias de ajusta-
mento da pessoa e ao sistema de valores da cultura a que esta pertence. Buscando-se configurar o
desenvolvimento psicossocial, tem-se o Quadro 2 elaborado por Erikson (1985).
Tendo por foco de interesse o percurso de vida dos professores de licenciatura, considera-se
relevante a explicitação da sexta e sétima etapa psicossocial, ou seja, juventude e vida adulta. A primei-
ra corresponde ao pórtico de entrada no mundo adulto, sendo que a crise que a caracteriza envolve a
dialética intimidade versus isolamento. A intimidade corresponde à capacidade do adulto jovem, mais
PROFESSOR UNIVERSITÁRIO NO CONTEXTO DE SUAS TRAJETÓRIAS COMO PESSOA E PROFISSIONAL 23
seguro de sua identidade, experimentar sua própria vida interior e afiliações concretas de amizade e de
amor com outras pessoas, desenvolvendo força moral para cumprir os compromissos assumidos,
mesmo que estes exijam sacrifícios pessoais. Como qualidade decorrente dessa fase, tem-se o amor,
visto como sentimento maduro, implicando uma relação de reciprocidade com outros significativos.
No pólo oposto à intimidade e ao amor, encontra-se o isolamento, caracterizado pelo impulso a evitar
contatos em que o traço distintivo é a mutualidade, a reciprocidade e o compromisso.
A segunda corresponde à antítese crítica, geratividade versus estagnação, sendo que a pecu-
liaridade distintiva da mesma situa-se na dimensão da geratividade, entendida não só como a capaci-
dade de gerar novos seres, produtos e idéias, mas também como autogeração. Neste sentido envolve,
além do componente biológico, uma necessidade psicológica de sentir-se responsável pelo desenvolvi-
mento de outras pessoas e do seu próprio. Coerente com o impulso à geratividade, a qualidade pró-
pria dessa etapa é o cuidado, ou seja, o compromisso que o adulto estabelece de cuidar das pessoas,
dos produtos e idéias com os quais está vinculado e pelos quais se sente responsável. O rechaço, pólo
negativo do cuidado, implica a resistência do adulto em se comprometer com as obrigações advindas
de seu vínculo com outros significativos, revertendo na antítese da geratividade que é a estagnação.
Esta expressa-se em uma necessidade obsessiva de autocentralização e autopreocupação, levando a um
empobrecimento da personalidade.
Quadro 2 Crises psicossociais
Velhice V Integridade
I x desesperança,
I desgosto
I SABEDORIA
Adultez V Geratividade
I x estagnação
I CUIDADO
Juventude V Intimidade
I x isolamento
AMOR
Adolescência V Identidade
x confusão
de identidade
FIDELIDADE
Idade escolar I Indústria
V x inferioridade
COMPETÊNCIA
Idade do jogo I Iniciativa
I x culpa
I FINALIDADE
Infância inicial I Autonomia
I x vergonha,
dúvida
VONTADE
Infância I Confiança básica
x desconfiança
básica
ESPERANÇA
1 2 3 4 5 6 7 8
Fonte: ERIKSON, 1985, p. 72-73.
24 PROFESSOR DO ENSINO SUPERIOR: IDENTIDADE, DOCÊNCIA E FORMAÇÃO
Já em uma perspectiva evolutivo-estrutural, como é a de Levinson (1982, 1986), a dinâmi-
ca existencial adulta, para ser compreendida, envolve a interdependência entre as noções de curso de
vida, ciclo vital e estrutura de vida. A primeira refere- se ao caráter concreto de uma vida em sua
evolução, indicando seqüência, fluxo temporal e desdobramento múltiplo através dos anos, compre-
endendo todos os componentes do viver: história ocupacional; mudanças físicas; desejos; relaciona-
mentos de amor, de trabalho e familiares; bons e maus momentos; participações de outras pessoas,
instituições e grupos, enfim, tudo o que é significativo para uma pessoa. A segunda sugere uma
seqüência básica do curso da vida, que é compartilhada por todas as pessoas, apesar do caráter
idiossincrático deste curso para cada uma. Assim, o ciclo vital é concebido como um desenrolar
seqüencial de épocas ou eras, tendo cada uma seu caráter biopsicossocial próprio. Cada época, embora
diferente da anterior, não é nem melhor, nem mais importante do que aquela. A terceira corresponde
a um padrão básico, dado no tempo, formado pela interação de componentes internos (valores, dese-
jos, conflitos, competências, noção de eu, etc.) e externos (pessoas, grupos, instituições sociais, even-
tos, objetos, produtos culturais, etc.). Dentre os componentes centrais da adultez tem-se a família, o
casamento e a ocupação. Esta estrutura, assim constituída, determina a natureza e o padrão de relaci-
onamento de um adulto com todos os outros com os quais se relaciona, bem como a evolução deste
relacionamento. Em linhas gerais, o desenvolvimento adulto delineia-se para Levinson (1986), no
Quadro 3 abaixo.
Quadro 3 Fases da vida adulta
Transição adultez tardia: idade 60-65
Culminância da adultez média: 55-60 Fase da adultez tardia: 60-f
Transição anos 50: 50-55
Entrada na adultez média: 45-50
Transição da adultez: idade 40-45
Culminância da adultez inicial: 33-40 Fase da adultez média: 40-65
Transição anos 30: 28-33
Entrada na adultez inicial: 22-28
Transição da adultez inicial: 17-22
Fase da adultez inicial: 17-45
Fase da pré-adultez: 0-22
Fonte: LEVINSON, 1986, p. 8.
Em termos levinsonianos, a era da adultez inicial estende-se se dos 17 aos 45 anos, caracte-
rizando-se por ser a fase de maior energia e contradição. Isto porque envolve de modo geral: o cume
do ciclo vital, compreendendo dos 20 aos 30 anos; a formação e perseguição das aspirações elabora-
das nos seus anos iniciais; o estabelecimento de um lugar na sociedade adulta e o início da vida
profissional, o que determina um misto de grandes satisfações e grandes tensões. As primeiras, relati-
vas ao amor, à sexualidade, à progressão profissional, à vida familiar e à realização de muitos dos
objetivos buscados. As últimas, devido à carga de compromissos decorrentes das novas responsabili-
dades profissionais, familiares e econômicas, sem ter ainda uma experiência vivencial adequada para
tanto.
A era da adultez média situa-se entre os 40 e os 65 anos, caracterizando-se fundamental-
mente pelo papel de geração dominante, ou seja, o adulto médio não é só responsável por sua vida e
por seu mundo, como também engaja-se na orientação de uma geração de jovens adultos que logo
estarão buscando o lugar que ele ocupa em termos de comando e liderança. Nesse sentido, é estabelecida
uma luta de gerações, isto é, entre os que no momento são os donos do mundo (adultos médios) e os
que querem atingir este domínio (adultos jovens).
PROFESSOR UNIVERSITÁRIO NO CONTEXTO DE SUAS TRAJETÓRIAS COMO PESSOA E PROFISSIONAL 25
Assim, como a trajetória pessoal do professor foi especificada, cabe agora demarcar
conceitualmente a noção de trajetória profissional, entendendo-a, a partir de Ortega y Gasset (1970),
não só como uma sucessão de gerações, mas principalmente como o entrelaçamento de várias gera-
ções pedagógicas em determinado momento histórico. Nesse sentido, a compreensão dessa trajetória
deveria levar em conta como diferentes gerações encontram eco ou dissonância em um dado percurso
profissional.
A idéia de trajetória como carreira pedagógica encontra suporte em Hubermam (1989),
sendo entendida como um processo que envolve o percurso de professores em uma ou várias institui-
ções de ensino, nas quais estiveram ou estão engajados. Este processo é influenciado tanto pela traje-
tória pessoal, quanto pelo contexto institucional e social em que estão inseridos. Assim, apesar de
envolver a idéia de sucessão (Hubermam, 1986, 1989; Cavaco, 1991; Abraham, 1986), não apresen-
ta linearidade seqüencial absoluta, compreendendo arrancadas, recuos, caminhos sem saída (labirin-
to), mudanças repentinas de rota, etc.
Mesmo que haja uma certa estandartização seqüencial, os acontecimentos dentro de deter-
minada etapa são percebidos e enfrentados de forma idiossincrática. Nesse sentido, o estudo da traje-
tória profissional do professor procura compreendê-lo como pessoa (Hubermam, 1986, 1989; Holly,
1992; Cavaco, 1991) ao longo da carreira, sendo esta permeada pela tensão entre:
centração na própria pessoa e a problemática dos alunos;
inventividade e conformismo;
aspirações, necessidades, valores pessoais e estruturas institucionais;
sentimento e razão;
cultura institucional e social;
investimento afetivo e desinvestimento;
fases da vida adulta e fases da carreira docente.
Tanto o desenvolvimento pessoal quanto profissional podem ser concebidos como um pro-
cesso dialético (Riegel, 1979), integrando forças internas e externas, importando, para sua compreen-
são, o modo como estas forças são enfrentadas concretamente ao longo da vida e da carreira.
Na perspectiva acima, Cavaco (1991), em sua pesquisa sobre o desenrolar da vida pessoal e
profissional de professores, detectou linhas de força ao longo de seus percursos profissionais. Embora
se refira aos professores do ensino secundário, suas constatações são significativas para a compreensão
da trajetória dos professores de licenciatura. As linhas de força encontradas são:
expectativas pessoais e familiares relacionadas a oportunidades e a condições institucionais;
tensão e sentimentos que acompanham as primeiras experiências profissionais, contribu-
indo para a elaboração da identidade profissional;
progressivo amadurecimento profissional, envolvendo a relação com os alunos, com os
colegas, com o conhecimento e a própria profissão;
dificuldades relativas à articulação com a dimensão familiar e profissional;
mudança de expectativas decorrentes de alterações institucionais, podendo levar a maior
ou menor investimento pessoal.
Para Cavaco, da interação dessas forças surgem duas linhas que orientam o sentido dado à
profissão. Uma voltada para a burocracia e aceitação da hierarquia, levando ao isolamento na ação
pedagógica, fechamento à mudança, ceticismo e ressentimento em relação aos outros e, conseqüente-
mente, amargura em relação à profissão. A outra, centrada na inovação, na diversidade, na partilha de
experiências, na aceitação do desafio, na sensibilidade ao outro, possibilitando permanente abertura
ao desenvolvimento profissional.
A compreensão sobre a trajetória profissional, além de incluir a idéia de uma trama de
percursos, precisa incorporar a noção de eu profissional, a fim de realmente contemplar o professor
em sua unidade (pessoa/profissional).
De acordo com Abraham (1987), o eu profissional é concebido como mundo interior, ou
seja, um complexo subjetivo (consciente e inconsciente), formado no jogo de influências inter-huma-
nas, envolvendo significantes positivos ou negativos, objetos amados ou odiados, representando as-
pectos da pessoa e do grupo. Assim, o que acontece no mundo interior do professor está em
interdependência com o que acontece com o mundo interior coletivo (grupo de professores).
26 PROFESSOR DO ENSINO SUPERIOR: IDENTIDADE, DOCÊNCIA E FORMAÇÃO
Na base deste mundo interior, individual e coletivo, encontram-se mecanismos de defesa
estruturados socialmente, assegurando proteção contra a ansiedade que, ao se tornar permanente,
impede o contato direto com a realidade. Esses mecanismos de defesa são constantemente alimenta-
dos pelo sistema de defesa social de cada profissão e reprimidos tanto no inconsciente individual,
quanto no coletivo.
O eu profissional constitui-se a dinâmica entre o eu individual e o eu coletivo.
O eu profissional individual envolve um complexo subjetivo formado pelo eu real, eu ideal
e eu idealizado. O primeiro decorre da possibilidade de o professor dar-se conta de suas reais possibi-
lidades e perceber-se de forma autêntica. O segundo compreende o que o professor gostaria de ser,
mas sabe que não é, segundo seus valores, ideais e aspirações, compartilhados com o grupo. O terceiro
advém da ilusão de ser perfeito. O eu idealizado, quando reforçado ou ameaçado pelas exigências
sociais e profissionais, pode debilitar o eu real, levando a que o professor não tenha condições de
recriá-lo, conforme suas experiências reais.
O eu profissional coletivo é formado pelos professores vistos como classe e pertencentes a
determinadas instituições de ensino, cuja força motriz está na noção coletiva de eu. Compreende o
complexo subjetivo grupal, formado pelo eu coletivo real e o eu coletivo ideal ou oficial. As tensões
experimentadas estão relacionadas com as variações entre as diversas imagens que o grupo tem de si
mesmo. Quando o eu ideal ou oficial sobrepuja o real, ocorre um distanciamento das experiências vivi-
das pelo grupo, impedindo inter-relações autênticas, levando fatalmente à alienação e ao conformismo.
Para as intrincadas relações entre o eu profissional, individual e coletivo, Abraham (1986)
cria a idéia de labirinto. Este representa o difícil e tortuoso caminho a ser percorrido pelos professores,
na busca de deslindar as situações confusas, conflitantes e alienantes em que se encontram ao longo de
suas trajetórias, como indivíduos e grupo.
A experiência labiríntica, no que tem de positivo e criadora, é vivida por poucos professores
ao longo de suas trajetórias. Para tanto, precisariam sentir-se seguros como pessoa e grupo, mas
principalmente encontrar no centro do labirinto o eu verdadeiro, responsável por sua motivação como
docente, sua diferenciação, permanência e unicidade. Só assim eles seriam capazes de se aventurar nos
diversos caminhos do labirinto, constituindo-se como professores autênticos, conscientes das tensões
e grilhões pessoais e grupais, permanecendo abertos à inovação e ao desafio, compartilhando desco-
bertas e possibilidades de crescimento com os outros significativos de seu campo profissional.
Infelizmente, a grande maioria dos professores seguem trilhas equivocadas:
ao se encontrarem nos caminhos sem saída do labirinto, não percebem que têm de tomar
decisões, experimentar novos caminhos, pois o eu inautêntico aciona mecanismos de defesa que ne-
gam a problemática vivida e a ansiedade dela decorrente;
ou ainda, passam pelo labirinto sem nem ao menos vivê-lo, usando a máscara de que tudo
sabem, de que o caminho é linear, consagrado pela norma, abafando seu mal-estar, seu desejo de abandonar
o campo educativo, sua profunda ansiedade ante o desconhecido e a necessidade de tomar decisões.
O estudo de Huberman (1989), sobre o percurso profissional ou ciclo de vida dos professo-
res, é considerado um clássico na área. Mesmo referindo-se a professores secundários e da cultura
francesa, o modelo, por ele apresentado, contempla percursos possíveis de serem percorridos por
professores universitários da cultura brasileira.
Seu modelo, visando abarcar percursos variados, apresenta sucessão de anos combinados
com fases que podem apresentar mais de uma temática, permitindo entradas e saídas diversificadas ao
longo da carreira, rompendo assim, com a idéia de modelo linearmente monolítico. Contudo, enfatiza
a ocorrência de tendências centrais capazes de dar conta de sua idéia de ciclo de vida dos professores,
conforme Quadro 4 (Huberman, 1989).
O modelo hubermaniano apresenta as seguintes peculiaridades ao longo de suas fases:
Entrada na carreira (1-3 anos): contato inicial com a sala de aula, envolvendo dois com-
ponentes: sobrevivência e descoberta. O primeiro, ligado ao que se pode chamar de choque do real; e
o segundo, vinculado à idéia de entusiasmo inicial por estar finalmente exercendo a profissão. Ambos
são vivenciados paralelamente, mas o segundo permite agüentar o primeiro. Esta fase pode envolver
variadas combinações com estes dois componentes ou apresentar outros, mas a temática central está
na possibilidade de exploração que pode se apresentar de múltiplas maneiras, sendo favorecida ou não
por condições pessoais e institucionais.
PROFESSOR UNIVERSITÁRIO NO CONTEXTO DE SUAS TRAJETÓRIAS COMO PESSOA E PROFISSIONAL 27
Quadro 4 Ciclo de vida dos professores
Anos da carreira Fases/Temas da carreira
13 Entrada, Tateamento
46 Estabilização, Consolidação
de um repertório pedagógico
7 25 Diversificação Ativismo Questionamento
25 35 Serenidade, Distância afetiva Conservadorismo
35 40 Desinvestimento
(sereno ou amargo)
Fonte: HUBERMAN, 1989, p. 23.
Estabilização (4-6 anos): implica pertencer a um grupo docente, acompanhando ou prece-
dendo um sentimento de competência pedagógica crescente. Nesta fase, o professor passa a preocupar-
se menos consigo e mais com os objetivos pedagógicos, sentindo-se mais à vontade para enfrentar
situações complexas ou inesperadas. Esta fase envolve o estabelecimento de um estilo próprio como
professor e a consolidação de um repertório pedagógico que lhe traz crescente confiança.
Diversificação (7-25 anos): o estabelecimento de percursos individuais decorre da possibi-
lidade de o professor, mais estabilizado, iniciar novas experiências pedagógicas. Motivação e dinamis-
mo são a tônica, envolvendo a busca de ascensão pessoal, tanto administrativa, quanto acadêmico-
científica, bem como a necessidade de contribuir para a reformulação do sistema, convergindo para o
otimismo próprio a este período.
Questionamento (7-25 anos): temática paralela à diversificação e que tem por base um
balanço da vida profissional percorrida, em face dos ideais e objetivos do início da carreira. Este
período trabalha com componentes psicológicos e sociais, sendo que estes últimos envolvem, entre
outros, características da instituição, contexto político e econômico e vida familiar. O questionamento
parece ser de natureza diferente para homens e mulheres. Para os primeiros, liga-se ao sucesso pessoal
na carreira enquanto que para as segundas, relaciona-se a condições desfavoráveis de trabalho.
Serenidade Distanciamento afetivo (25-35 anos): compreende fundamentalmente um
estado de espírito. A serenidade é possibilitada pela menor vulnerabilidade ao julgamento dos outros
(alunos, colegas, superiores), devido ao maior equilíbrio entre o eu ideal e o real. O distanciamento
afetivo em face dos alunos pode estar nas diferenças de geração entre os professores e seus alunos.
Como diz Ortega y Gasset (1970), cada geração apresenta convicções, valores e expectativas diferen-
tes sobre o mundo e sobre si mesma.
Conservadorismo (25-35 anos): é a temática paralela à serenidade/distanciamento afetivo.
Envolve um engessamento pessoal e profissional, no sentido de maior resistência à inovação, ou seja,
dificuldade em mudar e aceitar a mudança dos outros, seja em termos de alunos, colegas ou do
próprio sistema. Tal posicionamento é propício às lamentações, principalmente em termos de nostalgia
do passado.
Desinvestimento (35-40 anos): nesta fase, os professores passam a libertar-se progressiva-
mente do investimento feito no trabalho pedagógico, preparando-se para encerrar a carreira. Este
afastamento pessoal do horizonte docente pode ser sereno ou amargo, dependendo da história de vida
pessoal e profissional do professor.
Cabe destacar que o modelo de Huberman ultrapassa os anos da trajetória profissional dos
professores universitários brasileiros que, pela legislação anterior, podiam aposentar-se após 25 anos
de carreira (sexo feminino) e 30 anos (sexo masculino) o que, na legislação atual foi estendido respec-
tivamente para 30 e 35 anos. Contudo, no contexto universitário, os professores com maior titulação
28 PROFESSOR DO ENSINO SUPERIOR: IDENTIDADE, DOCÊNCIA E FORMAÇÃO
e engajados em Programa de Pós-Graduação, mesmo após a aposentadoria, continuam atuando em
sua própria instituição ou em novos contextos institucionais, mantendo atividades de ensino, orienta-
ção e pesquisa, prolongando, assim, sua permanência no espaço acadêmico e aproximando-se dos
anos de carreira apresentados por Huberman.
Neste sentido, Mizukami (1996), em um estudo realizado com professoras aposentadas,
visando rastear suas trajetórias profissionais, aponta que o desinvestimento, constatado por Huberman,
não fez parte do percurso destas docentes, uma vez que todas investiram em novas atividades pedagó-
gicas. Contudo, é importante salientar a inexistência de estudos sistemáticos, no Brasil, sobre o ciclo
de vida de professores universitários, o que demonstra uma lacuna de pesquisa nesta área.
Com relação aos professores universitários, a trajetória profissional é contemplada por Riegel
(1979) em termos de carreira acadêmica. Esta é descrita através de cinco níveis, dos quais serão
salientados os aspectos mais pertinentes. Assim tem-se:
Nível I: alonga-se dos 20 aos 25 anos e corresponde ao período de tempo em que as bases
da carreira acadêmica são assentadas, envolvendo os anos de formação universitária e aquelas após a
sua conclusão. Na visão do autor, este nível é decisivo porque, ao longo de seu percurso, é que se
forma a imagem filosófico-científica de uma nova geração de acadêmicos, dando, assim, origem a
uma orientação paradigmática inicial. Esta é alcançada pelos futuros professores sem que estes tenham
passado por um profundo processo de estudo, reflexão e questionamento. Contudo, apesar de seu
caráter relativamente superficial, servirá de base para uma nova orientação paradigmática, mais cons-
ciente e consistente em termos de elaboração pessoal, que poderá surgir nos anos vindouros;
Nível II: compreende dos 25 aos 35 anos, fase em que os professores, por estarem inician-
do sua carreira, muitas vezes precisam engajar-se em atividades de pesquisa e de ensino, cuja temática
nem sempre fecha com seus interesses paradigmáticos. Entretanto, através do ensino, da pesquisa e da
apresentação de trabalhos é que eles tentarão divulgar sua própria orientação em confrontação com as
existentes. Contudo, para Riegel, neste nível, normalmente, os docentes ainda não propõem uma
orientação, mas a pressupõem. Logo, eles são mais seguidores do que iniciadores de uma orientação
paradigmática;
Nível III: abrange dos 30 aos 35 anos, correspondendo ao período em que os docentes já
se estabeleceram na carreira, atuando como professores efetivos e podendo dedicar-se ao estudo de
temas que fecham com seu campo de especialização. Entretanto, apesar de publicarem vários traba-
lhos explicando sua orientação, nem sempre recebem a atenção que esperavam do meio acadêmico.
Em termos de pesquisa, adquirem maior autonomia, recebendo auxílio econômico e podendo contar
com um pequeno grupo de trabalho no qual constam estudantes, assistentes e candidatos a doutora-
do. Para Riegel, estes são os anos mais efetivos da carreira, durante os quais o professor tem a oportu-
nidade de propor e explicar sua própria orientação paradigmática;
Nível IV: vai dos 35 aos 50 anos, englobando os anos em que os professores estão firme-
mente estabelecidos em sua carreira, ou seja, são professores plenos, têm laboratórios e temas de
pesquisa próprios e são nacionalmente conhecidos, sendo freqüentemente convidados para falar em
encontros científicos. Continuam fazendo conferências em seminários avançados e lecionando em
classes de graduação, porque estas atividades lhes ajudam na elaboração de textos sobre tópicos de sua
especialização. É exatamente através de livros-texto que seus temas científicos tornam-se aceitos e
confirmados pela comunidade acadêmica;
Nível V: abrange dos 50 aos 65 anos, correspondendo ao final da carreira. É o período em
que o professor passa a dedicar mais tempo aos encargos administrativos em detrimento do trabalho
de pesquisa e de ensino. Pouco interage com estudantes e, mesmo com seus assistentes, mantém
contato através de intermediários. Passa a ocupar cargos de chefia, seja na universidade, seja em orga-
nizações profissionais. Em termos de produção, dedica-se à elaboração de capítulos de livros
especializados e a preparar novas edições de seus textos. Seu status e papel continuam inalterados até
sua aposentadoria. Em relação a esta última, Riegel considera que o docente não é tão afetado quanto
os profissionais de outras carreiras, porque ele pode continuar atuando e produzindo, tanto em ter-
mos quantitativos (número de trabalhos) quanto qualitativos (aperfeiçoamento e aprofundamento
dos conhecimentos elaborados). Entretanto, não se pode esquecer que este profissional, mesmo con-
tinuando engajado no trabalho que desenvolveu ao longo de sua carreira, é afetado pela mesma se-
qüência de eventos próprios à velhice.
PROFESSOR UNIVERSITÁRIO NO CONTEXTO DE SUAS TRAJETÓRIAS COMO PESSOA E PROFISSIONAL 29
As progressões da carreira acadêmica, propostas por Riegel, distanciam- se, em muitos as-
pectos, da percorrida por professores brasileiros, pois o percurso destes abarca níveis e condições
próprias à cultura universitária nacional. Por exemplo, com respeito ao nível II de Riegel, Isaia (1992)
constatou que os professores da instituição estudada, mesmo que em termos de idade e de progressão
funcional, estivessem próximos a níveis posteriores da escala riegeliana, continuavam responsáveis por
disciplinas que muitas vezes não contemplavam suas temáticas de pesquisa, levando a que poucos
utilizassem sua produção pessoal nas aulas que ministravam. No mesmo estudo, a autora pode cons-
tatar que, em relação ao nível V de Riegel, os docentes não se distanciavam das atividades de ensino
e de orientação de pesquisa, sendo que os cargos de chefia podiam ser ocupados desde os primeiros
níveis da carreira. Contudo, em termos de expectativas, os professores em final de carreira demonstra-
ram o desejo de se dedicar mais à produção acadêmica do que à docência.
Refazendo a tecitura do professor e suas trajetórias
Depois de um giro teórico sobre a questão das trajetórias de vida dos professores, instaura-
se como necessário desvelar o horizonte das reais dificuldades que estes sujeitos enfrentam ao longo da
carreira pedagógica, acrescidas dos percalços inerentes ao percurso pessoal.
Cabe aqui situar o professor universitário brasileiro e mais especificamente o de licenciatura,
resgatando as questões relativas à destinação de sua profissionalização e quais as condições concretas
que enfrenta para realizá-la.
Os contextos social, cultural, político e educacional aos quais se atrela sua constituição como
profissional da educação, permitem entendê-la em uma flagrante crise, tanto em termos de expectati-
vas e valorização social, condições formativas iniciais e continuadas, respaldo econômico, quanto
reconhecimento de uma identidade coesa e autêntica.
As trajetórias pessoal e profissional dos professores circunscrevem-se a um cenário em que
aparecem como fomentadores da crise dos cursos de licenciatura, quanto à sua vocação de formar
docentes para o ensino básico e médio, os seguintes indicadores:
precária formação inicial, bem como futura recapacitação;
baixo rendimento escolar apresentado pelos alunos do sistema de ensino fundamental e
médio;
desprestígio socioprofissional dos docentes do ensino fundamental e médio, acarretando o
crescente desinteresse pelos cursos de licenciatura;
fato de o professor (de 5ª a 8ª série do fundamental e de todo o ensino médio) atender a
várias escolas simultaneamente, não podendo identificar-se com nenhuma e muito menos com seus
cursos;
lugar pouco privilegiado que as licenciaturas ocupam nas políticas das universidades,
frente aos demais cursos;
distanciamento entre formação inicial oferecida e a realidade escolar a ser empregada
(Gatti, 1992, 1997; Weber, 1996).
Além dos indicadores acima apresentados de cunho contextual, considera-se indispensável a
referência a indicadores de caráter constitutivo ou estrutural, responsáveis por essa crise. Tais indica-
dores circunscrevem-se à polêmica sobre o tipo de profissionais que as licenciaturas devem formar, ou
seja: especialistas em áreas específicas do conhecimento; professores voltados para a tradução dos
conhecimentos de sua área de conhecimento para o ensino; profissionais integrando simultaneamente
a função de especialistas e professores.
Mazzotti (1993) delineia com clareza a disputa travada sobre a destinação dos cursos de
licenciatura, mostrando que essa envolve racionalidades divergentes em termos pragmáticos e que,
conseqüentemente, seria necessário aos cursos de licenciatura o redimensionamento de sua voca-
ção, sob a orientação da lógica voltada para a formação do especialista ou para a do professor,
entendendo ser impossível atender simultaneamente a ambas, devido a racionalidades pragmáticas
diferentes. Considera-se que, na explicitação da lógica que norteia os cursos de licenciatura, está um
dos elementos-chave, responsáveis pelo possível equacionamento de uma formação adequada a
futuros professores.
30 PROFESSOR DO ENSINO SUPERIOR: IDENTIDADE, DOCÊNCIA E FORMAÇÃO
Das possibilidades levantadas por Mazzotti, considera-se que a pertinente se direciona para o
saber pedagógico, ou seja, para o conhecimento de como ser professor. Assim, os cursos de licenciatura
encontram sua destinação em formar professores para atuarem no ensino básico e médio e, para tanto,
como coloca Gatti (1992), precisam articular adequadamente disciplinas específicas e formativas (pro-
fissional-educacional) com a realidade concreta das escolas e as experiências e o conhecimento de que
dispõem os professores a partir de sua prática.
Corroborando com as colocações acima, Bicudo (1996) ressalta a perda do espaço relativo
à preocupação com os aspectos pedagógicos dos cursos de licenciatura, nas IES, substituído pela visão
meramente administrativa dos departamentos, voltados apenas para o gerenciamento da lotação de
disciplinas e dos professores responsáveis pelas mesmas. Tal configuração explica a ausência de articu-
lação, entre disciplina de conteúdo específico e de conteúdo pedagógico na estrutura curricular dos
cursos de licenciatura.
Neste contexto desarticulado e fragmentado, situa-se o professor de licenciatura, sendo visto
ora como vítima, ora como vilão de um sistema que não responde às reais demandas de sua formação.
Partindo deste contexto problematizador, a tecitura da trajetória de vida (pessoal/profissional) deste
sujeito, responsável pela formação de futuros professores, adquire nova configuração.
Cabe agora discutir os parâmetros vivenciais responsáveis pelo percurso dos professores,
tendo por norte os achados teóricos e, na medida do possível, o horizonte indicativo do contexto real
em que estes se encontram. Assim, evidenciam-se os seguintes parâmetros:
Entrada no mundo adulto, envolvendo as primeiras conquistas próprias a esta fase, quais
sejam: parceria de amor, construção de um lar próprio, início da vida profissional, pertença a um
grupo profissional definido, todas mescladas à busca da concretização dos sonhos e ideais próprios da
juventude. Entretanto, estes mesmos são desafiados por demandas existenciais e profissionais nem
sempre promissoras. Distingue-se aqui: a luta por um lugar no mercado de trabalho; a busca de
respaldo econômico para o início de uma vida independente da família original; a adaptação inicial às
demandas profissionais específicas à carreira docente; a luta por ajustar-se ao novo papel de professor,
envolvendo as angústias inerentes à busca de domínio de classe, competência pedagógica e entrosamento
com os colegas e, paralelamente, a gratificação por estar exercendo uma profissão.
As tarefas existenciais e profissionais, próprias a este período, envolvem percurso labiríntico
duplo, centrado na busca do eu verdadeiro, pessoal e docente, a fim de que o professor possa progredir
e realizar-se em ambas as dimensões. A energia, a força e o entusiasmo sentidos são contrabalançados
pelo choque da realidade em que os contextos institucional e existencial apresentam exigências conflitantes,
tanto em termos de despreparo profissional quanto pessoal. Muitas vezes, é difícil selecionar o grau de
investimento necessário às realizações de ambos os mundos, pois eles podem cobrar, simultaneamente,
decisões que requeiram a escolha de um em detrimento de outro.
Consolidação no mundo adulto: compreende um espaço-tempo formado por múltiplas
questões, diversificação de caminhos e tarefas variadas. Em termos profissionais envolve, aparentemen-
te, uma maior estabilização, no sentido de que o ajustamento básico à docência está em curso. Contudo,
esta estabilização não impede novos movimentos em direção à ascensão profissional, compreendendo a
luta por liderança pedagógica e administrativa e o reconhecimento acadêmico-científico por parte de
seus pares, implicando a idéia de geração dominante. Conseqüentemente, os sentimentos de ansiedade,
rivalidade e responsabilidade podem formar um complexo capaz de obscurecer o eu profissional verda-
deiro, alimentando o eu idealizado, responsável pela crescente alienação do professor diante das reais
experiências docentes. Neste caso, é possível um certo engessamento profissional, levando o professor de
licenciatura a perder de vista que seu verdadeiro papel é formar futuros professores para o ensino básico
e médio. Simultânea e paradoxalmente, o professor pode sentir-se profundamente implicado na forma-
ção da nova geração de profissionais (alunos), concretizando o sentido de geratividade próprio a esta
etapa de seu percurso.
No plano pessoal, a característica mais marcante é o sentimento ambivalente de potência e
impotência, relativo ao sentido de geratividade e geração dominante, representado pela consciência de
que a responsabilidade pela condução da geração mais velha e da mais nova é de sua competência.
Assim, o adulto não só se preocupa com os problemas inerentes às gerações mais jovens (filhos,
alunos, parentes, colegas iniciantes), como também com aqueles decorrentes da geração mais velha
(familiares, antigos professores, colegas mais velhos, etc.), encontrando-se no centro de uma luta
PROFESSOR UNIVERSITÁRIO NO CONTEXTO DE SUAS TRAJETÓRIAS COMO PESSOA E PROFISSIONAL 31
geracional. Esta, por sua vez, é responsável pelos sentimentos de ansiedade, angústia e frustração, bem
como um certo sentido de perda de liberdade pessoal, ocasionada pela pesada carga de responsabilida-
des, relativas à tentativa de equacionar demandas, muitas vezes conflitantes, de gerações com proble-
máticas e funções existenciais diferenciadas.
Diante desse panorama vivencial, o adulto depara-se com uma nova crise de identidade,
decorrente do questionamento que faz de sua própria vida, ao inventariar se os caminhos percorridos
ao longo do labirinto da vida apontam para a possibilidade de realização ou alienação. A inter-relação
de acontecimentos, pessoais e profissionais, resultantes de crises e desafios, configurados a partir da
dinâmica entre necessidades individuais e expectativas sociais, implica o aproveitamento ou não das
oportunidades, especificando, assim, o drama do professor como pessoa e profissional.
Preparação para o desinvestimento no mundo adulto: pode envolver um longo e produti-
vo tempo em que o adulto orienta, produz, engaja-se em novos projetos, mas simultaneamente come-
ça, aos poucos, a distanciar-se do mando efetivo do mundo.
Inicia-se um novo tempo em que se pode instalar um novo sentimento de serenidade,
devido à percepção de que as tarefas existenciais (pessoais/profissionais) foram cumpridas a contento
e pelo fato de o adulto tornar-se menos vulnerável ao julgamento da comunidade em que vive. As
grandes conquistas ou já foram realizadas ou tornaram-se vagas aspirações. O balanço da vida começa
a ser mais realista, levando em conta o que realmente pode ser feito de acordo com as reais condições
de cada um.
Em termos acadêmicos e pessoais, o reconhecimento tão arduamente batalhado na etapa ante-
rior adquire uma nova dimensão, passando a ser o possível e não mais o desejável. A hierarquia de
valores é refeita, dando novo significado às relações interpessoais e às tarefas realizadas. Alarga-se e se
reconfigura o espaço geracional entre o adulto e aqueles que lhe são significativos (filhos, familiares,
alunos, jovens colegas), permitindo que o primeiro sinta-se mais distanciado afetivamente dos demais,
pois estes pertencem a gerações com valores, convicções e estilos de vida cada vez mais distantes da sua.
Entretanto, este cenário de pretensa serenidade pode ser estilhaçado se o adulto não souber
construir, para si, uma vida e uma carreira gratificantes. Como conseqüência, os sentimentos de amar-
gura e frustração nortearão suas relações com os demais, levando-o a enclausurar-se na lamentação e
no rechaço ao mundo a que ainda pertence. O isolamento e a intransigência perante as novidades e as
mudanças podem encerrá-lo num mundo vazio e, portanto, alienado de todo sentido humano.
É importante salientar que os parâmetros vivenciais, apresentados acima, podem combinar-
se de inúmeras maneiras, sendo que a trajetória de vida de cada professor é construída de modo
idiossincrático, tendo como pano de fundo seu grupo geracional e como interpreta os acontecimen-
tos de seu mundo.
Dentro deste quadro é que se pode enfocar o professor universitário, passando a entender
que as transformações pelas quais passa ao longo da carreira docente estão ligadas a alterações vivenciais
mais amplas, envolvendo a dimensão pessoal e profissional. O professor e a pessoa do professor não
podem estar dissociados sob pena de fragmentar-se a compreensão que dele se possa ter.
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PROFESSOR UNIVERSITÁRIO NO CONTEXTO DE SUAS TRAJETÓRIAS COMO PESSOA E PROFISSIONAL 33