MORANGOS MOFADOS (1982)
CAIO FERNANDO ABREU (1948 – 1996)
Obra de Caio Fernando Abreu, publicado em 1982, período caracterizado pela abertura política e
pelo início de um processo de democratização em consequência do fim da Ditadura Militar no Brasil. Trata-
se de um livro de contos onde, em quase todos eles, o escritor aborda seus temas preferidos: o
estranhamento, a solidão, a dor e o sentimento de marginalização.
Mergulhada no espaço contaminado da pós-modernidade, sua narrativa representa seres
degradados pelas drogas, paranoias, AIDS, esquizofrenia, desencanto, muita procura e muito desamparo.
São vítimas de uma sociedade massificada, dominada pelos símbolos de sua indústria cultural.
A cidade é o cenário preferido dos seus personagens, que embora tratem de narrativas onde a
temática social predomina, esta é filtrada pela interioridade das figuras humanas, que reagem de várias
maneiras aos fatos. Por isso a literatura de tema urbano tende a aprofundar a análise da vida interior das
personagens. Assim, sua narrativa pode ser classificada de psicológica, porque enfatiza o prisma intimista
com que os eventos externos são percebidos; e estes deixam de ter sentidos predominantemente social,
para se confundirem com problemas do inconsciente, produtos de traumas pessoais e de relações
insatisfatórias na infância ou em determinado momento da vida.
A literatura urbana de Caio incorpora ao espaço urbano novos significados, ampliando o repertório
e o alcance da literatura, representando seres diversificados ou muitas vezes melancólicos.
Morangos Mofados é estruturado em três partes: “O Mofo”, constituída de nove contos;
“Morangos”, de oito; e um último conto que dá título ao livro: “Morangos Mofados”. Na primeira parte está
representada ainda a ditadura militar, o processo de desumanização e asfixia da liberdade que foi tema do
livro anterior, tudo isso revestido de uma ótica esvaziada e nauseabunda. Esta parte contém narrativas mais
sombrias e de caráter crítico elevado. Na segunda parte, “Morangos”, e no último conto, as sementes que
frutificam no asfalto, o fiapo de esperança que diferencia Morangos Mofados dos livros anteriores e
posteriores. A obra consegue traduzir a atmosfera tensa, de incerteza e agonia vivida na época – entre o
fim da ditadura e o início da reabertura política. Este livro de contos pode ser lido como um romance não-
linear.
Em contos como “Além do Ponto” esta mescla de sentimentos ambíguos se faz bastante clara. O
personagem do conto desprende uma louca jornada em busca de um amante que nunca é encontrado. A
narrativa representa bem a desilusão sentida pelos jovens da época, que não sabiam para que lado olhar. O
futuro era uma incógnita e Caio sabia disso. Não tinha a resposta para as perguntas, mas sabia quais eram
as indagações que cada um deveria fazer a si mesmo.
Nascido em meio à revolução sexual e ao desbunde do final dos anos 60, o escritor deixou em seu
trabalho a marca das mudanças radicais que o mundo vivia. O cinema, a TV e a cultura de massa são
influências bastante perceptíveis em sua prosa. As referências à música pop estão lado a lado com os
elementos cósmicos, que o autor estudou profundamente durante muitos anos. A isso se junta ainda à
obsessão pela morte, o sombrio e o nebuloso. A esperança da desesperança.
Como as notas musicais de uma canção, os contos de Caio estão sempre em constante mudança. O
linear é sempre abortado. Quando se está acostumando com a narrativa, o autor nos surpreende ao
recortar
o texto, colocar um poema ou uma letra de música para surpreender o leitor.
É assim com “O dia que Júpiter encontrou Saturno”, uma das últimas histórias do livro. Entre
diálogos alucinantes e pensamentos incoerentes, um casal divaga sobre coisas aparentemente
insignificantes, sem chegar a lugar algum.
O conto “Diálogo” (título irônico) é uma conversa entre duas personagens, A e B, na qual uma
pergunta insinua um comprometimento que tanto pode ser ideológico quanto afetivo, ficando pautados o
medo e a insegurança de ser denunciado ou ser amado, sem abdicar do desejo de ver-se como um igual e
sem a coragem de assumir-se como tal. Os personagens revelam a total incapacidade de entendimento e
compreensão entre duas pessoas, mesmo quando o objetivo de ambos aparentemente é o mesmo. A
multiplicidade de sentidos da mensagem torna impossível a comunicação entre as personagens, que, sem
serem um nome, podem ser qualquer um, homem contemporâneo. Estes vazios prenunciados no conto de
abertura, o dito e o não-dito, marcarão as personagens dos contos seguintes. Ressaltando a dificuldade de
entendimento através da linguagem, Caio Fernando Abreu traz à tona o processo de escrita, reconhecendo
o leitor como um parceiro que vai ajudar a preencher os vazios do texto.
Um dos melhores contos do livro é “Além do Ponto”. Nele é narrada a incursão de um homem rumo
ao seu amor ou ao encontro de alguém que ele julga ser o seu amor, expondo toda a sua fragilidade e o
desejo de proteção oriundo de todos nós, desde que deixamos o ventre materno. A beleza deste conto é
comovedora. A linguagem toma forma do fluxo de pensamento e não sabemos se a personagem é louca ou
incrivelmente sincera na sua consciência do ser.
Morangos Mofados atravessou o tempo contingente de sua criação para perpetuar-se nas dobras da
memória, fertilizando o pensamento, estimulando sucessivas releituras, ato criativo de resignação da obra
original. E desta forma tornou-se um clássico, um objeto da história e da reflexão do autor.
Seus contos estão recheados de poesia, lirismo e sonhos. Entretanto, esses elementos estão
presentes como pano de fundo, como recheios que ajudam a enriquecer a narrativa. O elemento
predominante que ocupa a maior parte dos contos é a dor. Seja através da repressão política, ou através da
repressão sexual, onde o homoerotismo se sobressai como grito de reação que clama por liberdade, as
personagens centrais estão condicionadas ao julgamento de valores da sociedade, que, numa postura
maniqueísta, determina o comportamento a ser seguido, condenando às transgressões essa forma
engessada de ver o mundo.
Os contos “Terça-feira gorda” e “Aqueles dois” têm como mote central a discriminação a
personagens marginalizados, social e sexualmente, e revelam situações, onde a intolerância se sobrepõe à
liberdade de amar.
O homoerotismo é a temática dos dois contos, embora o desenvolvimento das relações seja feito
por pinceladas diferentes. Num, a atração sexual explícita, com a relação carnal sendo a mola propulsora
do desenvolvimento do drama. No outro, a atração sexual está em segundo plano, com o afeto e o carinho
entre dois homens, questionando os padrões vigentes de uma sociedade preconceituosa e implacável na
defesa de sua moral.
Em Terça-feira gorda, o autor põe em destaque a voz de um personagem masculino que vivencia
uma experiência erótica com um homem. O conto é narrado em primeira pessoa, o personagem carrega
de subjetividade o texto, acentuando o impacto de, ao mesmo tempo, sentir um grande prazer, resultado
de seu envolvimento afetivo e sexual, e assistir a uma condenação social, representada pela ação dos
“outros” que agridem os dois e repreendem a sua relação. A atração sexual entre dois homens se dá num
baile de carnaval. Curiosamente, o carnaval é uma festa pagã, onde por tradição o desregramento é a
tônica da festa. No entanto, é durante o baile de carnaval que começam as primeiras manifestações de
intolerância e agressão.
O texto é carregado de subjetividade. O prazer da atração e do envolvimento afetivo e sexual é
confrontado com a repressão a uma relação que ousa ser diferente, quebrando os rígidos costumes,
ditados por valores de moral e ética. Mais uma vez, o diálogo não consegue se estabelecer. A relação
“anormal” é punida com violência.
A cena de envolvimento entre os personagens é relatada logo no início do conto, quando é sugerido
um “reconhecimento” entre os dois futuros amantes:
De repente ele começou a sambar bonito e veio vindo para mim. Me olhava nos olhos quase sorrindo, uma
ruga tensa entre as sobrancelhas, pedindo confirmação. Confirmei, quase sorrindo também, a boca
gosmenta de tanta cerveja morna, vodca com Coca-Cola, uísque nacional, gostos que eu nem identificava
mais, passando de mão em mão dentro dos copos de plástico.
A identificação entre os personagens se dá tanto no plano do prazer quanto no do sexual. Como já
visto, ambos vivenciam uma relação homoerótica em meio a uma festa de carnaval:
Na minha frente, ficamos nos olhando. Eu também dançava agora, acompanhando o movimento dele.
Assim: quadris, coxas, pés, onda que desce, olhar para baixo, voltando pela cintura até os ombros, onda
que sobe, então sacudir os cabelos molhados, levantar a cabeça e encarar sorrindo. (…) Eu queria aquele
corpo de homem sambando suado bonito ali na minha frente. Quero você, ele disse. Eu disse quero você
também.
A postura dos personagens permite reconhecer que não há nenhum tipo de preconceito quanto a
envolvimentos entre pessoas do mesmo sexo, o que nos direciona a pensar numa total liberdade de opção
sexual. Esta liberdade é mais bem apreendida nesta passagem do conto:
Tínhamos pelos, os dois. Os pelos molhados se misturavam. Ele estendeu a mão aberta, passou no meu
rosto, falou qualquer coisa. O quê, perguntei. Você é gostoso, ele disse. E não parecia bicha nem nada:
apenas um corpo que por acaso era de homem gostando de outro corpo, o meu, que por acaso era de
homem também. Eu estendi a mão aberta, passei no rosto dele, falei qualquer coisa. O quê, perguntou.
Você é gostoso, eu disse. Eu era apenas um corpo que por acaso era de homem gostando de outro corpo, o
dele, que por acaso era de homem também.
Se, por um lado, a postura dos personagens desestabiliza qualquer tipo de pensamento
conservador, por outro lado, o comportamento dos “outros” manifesta uma tentativa de impor regras de
conduta baseadas na oposição binária homem/mulher como padrão legítimo de relação sexual. Esses
outros, cujas vozes aparecem embutidas na fala do próprio narrador, representam uma voz social da
estrutura de macro poder, já que é dela que partem as regras. O fragmento a seguir ilustra o “olhar”
desses que julgam e condenam:
“Passou a mão pela minha barriga. Passei a mão pela barriga dele. Apertou, apertamos. As nossas carnes
duras tinham pelos na superfície e músculos sob as peles morenas de sol. Ai-ai, alguém falou em falsete,
olha as loucas, e foi embora. Em volta, olhavam.”
As vozes que, irônicas e maldosas, manifestam indignação e preconceito revelam também uma
incapacidade de aceitar uma ruptura com códigos repressivos e conservadores, fazendo com que numa
festa onde o “desregramento” é a tônica maior, como no carnaval, a postura de liberdade e ousadia,
própria da cultura carnavalesca, seja abolida. Esse rompimento com tudo o que, à primeira vista, é
permitido no carnaval leva à constatação de um paradoxo de nossa sociedade, uma vez que aceita um
desregramento nas festas e condena atitudes de liberdade, no caso a sexual. O carnaval, neste conto,
alegoriza a própria tessitura de violência sombria mesclada a explosões circunstanciais de euforia e
aparente desregramento que caracterizam um modo de ser ‘alegre’, irresponsável e brutal. O lado avesso
da sociedade é reconhecido pela ironia de a repressão acontecer justamente no carnaval. O carnaval
torna-se, no conto, signo de uma ironia amarga: a intolerância tropical manifesta-se nele e, mais, por
meio dele. Repressiva e dissimulada, a sociedade que celebra o Momo é a mesma que, ambivalente com a
identificação de limites, reage violentamente quando, por alguma razão, os limites tornam-se claros.
A representação da repressão sexual no carnaval torna a narrativa ainda mais crítica porque
questiona o conservantismo social e uma liberdade previamente garantida nas festas populares do
Carnaval. O fragmento a seguir ilustra tal característica do conto, ao propor a inversão de máscaras:
Veados, a gente ouviu, recebendo na cara o vento frio do mar. A música era só um tumtumtum de pés e
tambores batendo. Eu olhei para cima e mostrei olha lá as Plêiades, só o que eu sabia ver, que nem raquete
de tênis suspensa no céu. Você vai pegar um resfriado, ele falou com a mão no meu ombro. Foi então que
percebi que não usávamos máscara. Lembrei que tinha lido em algum lugar que a dor é a única emoção
que não usa máscara. Não sentíamos dor, mas aquela emoção daquela hora ali sobre nós, eu nem sei se
era alegria, também não usava máscara. Então pensei devagar que era proibido ou perigoso não usar
máscara, ainda mais no carnaval.
A imposição de regras de comportamento implica também exclusão do ser diferente ou do ser que
não se adequa às normas. No conto, um dos personagens é espancado e morto pelos ”outros”, por aqueles
que não toleram a relação homoerótica. O narrador descreve da seguinte forma o espancamento:
Quis tomá-lo pela mão, protegê-lo com meu corpo, mas sem querer estava sozinho e nu correndo pela
areia molhada, os outros todos em volta, muito próximos. Fechando os olhos então, como um filme
contra as pálpebras, eu consegui ver três imagens se sobrepondo. Primeiro o corpo suado dele, sambando,
vindo em minha direção. Depois as Plêiades, feito uma raquete de tênis suspensa no céu lá em cima. E
finalmente a queda lenta de um figo muito maduro, até esborrachar-se contra o chão em mil pedaços
sangrentos.
A representação da morte através da metáfora da fruta que se despedaça no chão conduz ao
desnudamento de uma “política da sexualidade” contrária às relações homoeróticas. A morte do
personagem impossibilita a transcendência e assegura uma finitude provocada pela agressão violenta de
um grupo de pessoas. O final trágico do relacionamento entre os dois homens deixa transparecer uma
visão negativa da percepção da sociedade sobre as sexualidades excêntricas, acentuando um sentimento
de desconforto e isolamento daqueles que sofrem a repressão.
Há possibilidade ou garantia de liberdade sexual? O conto mostra que não e, por isso, percebemos
uma perspectiva melancólica na narrativa. Uma leitura do conto indica que há motivos para se projetar
uma tristeza, só que neste caso não são motivos de crise existencial, mas razões de cunho moral, social,
ideológico. A imagem do corpo morto na areia também sugere falta de humanidade. Separado de seu
companheiro e esmagado por “os outros todos que estavam em volta”, o suplício enfrentado pelo
personagem ultrapassa os limites da tolerância. O conto sugere uma inversão da construção ideológica que
associa uma das festas mais populares à liberdade em suas múltiplas formas. A opção por representar a
repressão sexual no carnaval é também significativa para a percepção do teor melancólico do conto. O
conto de Caio Fernando Abreu situa a percepção sobre a moralidade burguesa, que considera intolerável
a adoção de papéis sexuais contrários ao padrão dominante imposto. Considerando a conjuntura sócio-
histórica brasileira, é possível reconhecer na mensagem sombria do conto um outro indício de melancolia,
que agora aparece em decorrência de uma experiência problematizada pelo próprio protagonista do texto.
A narrativa de Caio Fernando Abreu pinta uma morte sofrida, mas o faz de maneira a reavaliar a vida.
O conto Aqueles dois, de Caio Fernando Abreu, é narrado em terceira pessoa, e apresenta em sua
composição aquilo que convencionou designar como “duplo por complementação”. Conta a história de
Raul e Saul, colegas de trabalho que encontram na amizade que sentem um pelo outro a companhia
necessária ao preenchimento de suas decepções amorosas, de suas frustrações sociais e de uma rotina de
trabalho enfadonha. Os protagonistas de Aqueles dois parecem buscar, ainda que inconscientemente, a
sua metade faltante ou “alma gêmea”, acabando por encontrá-la.
No texto não é explícita a relação homoerótica. Ela é apenas sugerida, mas a intolerância e
crueldade são os mesmos agentes, em defesa dos bons costumes. Do ponto de vista da diegese, a
narrativa de Caio Fernando Abreu, parece apresentar um enredo aparentemente simples. Raul e Saul são
dois jovens que chegam a uma grande cidade cosmopolita e acabam se encontrando: ambos haviam
passado no mesmo concurso e, incidentalmente, acabam por dividirem a mesma sala na firma onde
passam a trabalhar. O primeiro aspecto que chama a atenção neste conto, diz respeito à semelhança do
nome dos personagens e às características físicas contrárias que eles apresentam.
Passaram no mesmo concurso para a mesma firma, mas não se encontraram durante os testes. Foram
apresentados no primeiro dia de trabalho de cada um. Disseram prazer, Raul, prazer, Saul, depois como é
mesmo seu nome? Sorrindo divertidos da coincidência. Mas discretos, porque eram novos na firma
e a gente, afinal, nunca sabe onde está pisando. *…+ Ao contrário dos outros homens, alguns até mais
jovens, nenhum tinha barriga ou aquela postura desalentada de quem carimba ou datilografa
papéis oito horas por dia. Moreno de barba forte azulando o rosto, Raul era um pouco mais definido,
com sua voz de baixo profundo, tão adequada aos belos boleros amargos que gostava de cantar. Tinham a
mesma altura, o mesmo porte, mas Saul parecia um pouco menor, mais frágil, talvez pelos cabelos claros,
cheios de caracóis miúdos, olhos assustadiços, azul desmaiado.
Tais peculiaridades, relativas aos caracteres físicos dos personagens e à semelhança que os
protagonistas revelam em seus nomes, – fato que inicialmente soa apenas como mera curiosidade –
acabam funcionando, no desenrolar da narrativa, como índices referencializadores de que algo existe (ou
existirá) entre estes dois sujeitos cujo encontro parecia ser trama do destino.
Ambos são seres solitários e produtos de grandes desilusões amorosas e profissionais,
acontecimentos que ficamos sabendo à medida que o narrador se encarrega de revelar lentamente o
passado de Raul e Saul.
Raul vinha de um casamento fracassado, três anos e nenhum filho. Saul, de um noivado tão interminável
que terminara um dia, e um curso frustrado de Arquitetura. Talvez por isso, desenhava. Só rostos, com
enormes olhos sem íris nem pupilas. Raul ouvia música e, às vezes, de porre, pegava o violão e cantava,
principalmente velhos boleros em espanhol. Eram dois moços sozinhos. Raul tinha vindo do norte, Saul
tinha vindo do sul. Naquela cidade, todos tinham vindo do norte, do sul, do centro, do leste *…+. *…+ Eles
não tinham ninguém naquela cidade — de certa forma, também em nenhuma outra —, a não ser a si
próprios.
O sentimento de fracasso e de intensa solidão desperta nos dois jovens a mesma percepção do
espaço de trabalho, reconhecendo-o como um “deserto de almas”. Insígnia que, à medida que intensificam
os laços de amizade, reconhecem como sendo ponto-de-vista de ambos. Tal sentimento e percepção,
desencadeados em ambos pela atmosfera do espaço, os diferenciam daqueles seres autômatos e
destituídos de alma que dividiam com eles o mesmo ambiente de trabalho. Acabam, então, por se
reconhecerem um no outro:
*…+ Meses depois, não no começo, um deles diria que a repartição era como um “deserto de almas”. O
outro concordou sorrindo, orgulhoso, sabendo-se excluído. *…+ Num deserto de almas também desertas,
uma alma especial reconhece de imediato a outra — talvez por isso, quem sabe? *…+.
Os pequenos e fortuitos encontros na copa, para tomar um cafezinho e fumar um cigarro, acabam
se tornando momentos prazerosos, os melhores de todo o expediente. Entre um encontro e outro, vão
estreitando a relação e acabam descobrindo afinidades, dentre as quais uma espécie de paixão
pelo cinema. Trocam telefones e se sentem aflitos com a ausência um do outro, durante os fins de semana.
Começam a se falar constantemente pelo telefone, intensificam os encontros, agora intencionais na hora
do cafezinho, frequentam as festas da repartição, unidos, assim como se fossem, agora, “sombras”
um do outro.
Durante esse período, acontece uma fatalidade. A mãe de Raul morre e este viaja para o norte para
acompanhar o seu funeral. Nos intermináveis dias da ausência do amigo, Saul parece incompleto e ansioso
pela sua volta. Parece destituído de uma parte de si mesmo. Quando Raul chega da viagem, que pareceu
longa demais aos olhos e sentimentos de Saul, o doloroso acontecimento parece aproximar mais ainda os
amigos. Entre um abraço apertado, que durou o tempo de um cigarro se consumir sem ser tragado, Raul
parecia inconsolável nos braços acalentados de Saul.
Afastaram-se, então. Raul disse qualquer coisa como eu não tenho mais ninguém no mundo, e Saul outra
coisa qualquer como você tem a mim agora, e para sempre. Usavam palavras grandes — ninguém,
mundo, sempre — e apertavam-se as duas mãos ao mesmo tempo, olhando-se nos olhos injetados de fumo
e álcool.
Esse primeiro contato mais íntimo entre os dois, em uma situação dolorosa, parece intensificar
ainda mais a relação dos protagonistas. Com o término da primavera e a chegada das festas de fim de ano,
ambos trocam presentes e acabam exagerando no álcool. Na noite de trinta e um, após vários
champanhes, uma espécie de “desejo” parece tomar forma e se impor de modo grande demais entre
aqueles dois.
*…+ Na hora de deitar, trocando a roupa no banheiro, muito bêbado, Saul falou que ia dormir nu. Raul olhou
para ele e disse você tem um corpo bonito. Você também, disse Saul, e baixou os olhos. Deitaram ambos
nus, um na cama atrás do guarda-roupa, outro no sofá.
Aparentemente uma mera observação, o elogio dirigido de um a outro, parece não significar mais
que uma simples constatação referente ao aspecto físico dos dois amigos. Entretanto, o comportamento
de ambos, após o comentário, parece evidenciar um algo mais.
Quase a noite inteira, um conseguia ver a brasa acesa do cigarro do outro, furando o escuro feito um
demônio e olhos incendiados. Pela manhã, Saul foi embora sem se despedir para que Raul não percebesse
suas fundas olheiras.
Intriga o motivo da ansiedade, evidenciada pelo excesso de cigarros, e a insônia que acomete
aqueles dois durante toda a noite. Qual a razão de tanta preocupação? Seriam, de fato, almas gêmeas na
eminência de se fundirem novamente, apesar do peso social e individual que tal processo acarretaria? A
resposta, apesar de evidente, fica ao cargo do leitor. Apesar de se considerar um escritor pouco
comprometido com a realidade social, Caio Fernando Abreu, no conto Aqueles dois apresenta uma espécie
de confirmação das circunstâncias que envolvem qualquer tipo de relação homoafetiva ou homoerótica,
por meio, inclusive, do subtítulo conferido ao conto: “História de aparente mediocridade e repressão”.
Quando começa o novo ano, os dois rapazes são surpreendidos com a notícia de suas demissões. O chefe
justifica:
Tinha recebido algumas cartas anônimas. Recusou-se a mostrá-las. Pálidos, ouviram expressões como
“relação anormal e ostensiva”, “desavergonhada aberração”, “comportamento doentio”, “psicologia
deformada”, sempre assinadas por Um Atento Guardião da Moral.
Apesar do enorme desapontamento, ambos parecem maiores e mais altivos diante daquele sujeito
que os acusa. Apressam-se em esvaziar as gavetas e retirar os seus pertences daquele “deserto de almas”.
Saem juntos, seguidos pelo olhar dos colegas que os acompanham, também, pelas janelas do prédio.
Entram em um táxi, “Raul abrindo a porta para que Saul [entre]”, enquanto alguns outros se encarregam
de tecer maldosos comentários. Deixam para sempre aquele lugar “parecido com uma clínica ou uma
penitenciária”.
Os colegas de repartição, após a partida de Raul e Saul, pareciam perdidos sem a presença daqueles
dois que se assemelhavam a um só — os únicos especiais, possuidores de almas, naquele deserto de seres
estranhos e destituídos de sensibilidade. Nas palavras quase proféticas do narrador, aqueles autômatos
parecem, agora, punidos pelo destino: “Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro *…+. Quase todos
ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram”.
Vê-se, portanto, ao longo do texto, o narrador fazer sugestões de uma possível atração física que
surgiu entre os dois colegas. O que mais se destaca na narrativa é o fato de a relação entre os dois rapazes
não chegar a se concretizar. O que importa não é se de fato há uma atração sexual entre os dois homens.
Como o enigma de Dom Casmurro, não se sabe se o amor entre os iguais é concreto. O que se tem certeza
é da intolerância da sociedade, que não pode suportar um comportamento diferente e reage com toda a
violência. Entretanto, ao contrário dos agressores do conto “Terça-feira gorda”, que assumem sua
violência, esses agem através de cartas anônimas para o chefe da sessão, levando-o a despedir os rapazes,
que não se defendem. O próprio subtítulo do conto (“História de aparente mediocridade e repressão”) é
uma pista sobre o que, na verdade, Caio Fernando Abreu quer denunciar.
Portanto, que a obra tem em sua estrutura uma narrativa fragmentada, que aparentemente não
aponta para unidades de sentido e de significado totalizantes. O autor apresenta uma obra rica em sua
estrutura de formas, estilos e linguagem diferentes, onde o contraponto entre a ditadura militar e o desejo
de liberdade serve como pano de fundo para questões que, se por um lado são muito representativas de
uma época, por outro lado são questões inerentes a toda sociedade contemporânea.