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Entre o Aconchego e Os Detalhes Do Cotidiano

A tese de doutorado de Celia Regina Henriques investiga a relação entre pais e filhos adultos que coabitam, destacando a dinâmica interativa e os ajustes cotidianos que ocorrem nesse contexto familiar. Utilizando uma abordagem interdisciplinar, a pesquisa revela como essas interações estabelecem limites entre espaços pessoais e coletivos, promovendo um ambiente propício para a reconstrução de significados familiares. Quatro temas principais emergem das entrevistas realizadas: ajustes na convivência, jogo interativo, lógicas em ação e o sentido de ser família.

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Entre o Aconchego e Os Detalhes Do Cotidiano

A tese de doutorado de Celia Regina Henriques investiga a relação entre pais e filhos adultos que coabitam, destacando a dinâmica interativa e os ajustes cotidianos que ocorrem nesse contexto familiar. Utilizando uma abordagem interdisciplinar, a pesquisa revela como essas interações estabelecem limites entre espaços pessoais e coletivos, promovendo um ambiente propício para a reconstrução de significados familiares. Quatro temas principais emergem das entrevistas realizadas: ajustes na convivência, jogo interativo, lógicas em ação e o sentido de ser família.

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Celia Regina Henriques

Entre o aconchego e os detalhes do cotidiano:


a relação pais e filhos adultos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510404/CA

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação


em Psicologia do Departamento de Psicologia da
PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para
obtenção do título de Doutor em Psicologia Clínica.

Orientadora: Profa. Terezinha Féres-Carneiro

Rio de Janeiro
Março de 2009
Celia Regina Henriques

Entre o aconchego e os detalhes do cotidiano:


a relação pais e filhos adultos

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do


grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em
Psicologia Clínica do Departamento de Psicologia do Centro
de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela
Comissão Examinadora abaixo assinada.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510404/CA

Profª. Terezinha Féres-Carneiro


Orientadora
Departamento de Psicologia - PUC-Rio

Profª. Andrea Seixas Magalhães


Departamento de Psicologia – PUC-Rio

Prof. Bernardo Jablonski


Departamento de Psicologia - PUC-Rio

Profª. Teresa Cristina Othenio C. Carreteiro


Departamento de Psicologia – UFF

Profª. Maria Lúcia Rocha Coutinho


EICOS - UFRJ

Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade


Coordenador Setorial de Pós-Graduação
e Pesquisa do Centro de Teologia
e Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de Janeiro, / /2009


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização da autora, da orientadora e
da universidade.

Celia Regina Henriques

Graduada em Psicologia Clínica pela Universidade Santa Úrsula


(RJ). Especialização em Terapia Familiar pelo Instituto Mosaico
(RJ) e Minuchin Center (NY). Membro titular da Associação de
Terapia Familiar do Rio de Janeiro, ATF-RJ. Mestre em
Psicologia Clínica pela PUC-Rio. Bolsista por seis meses na
Université Paris 5-Descartes (Paris, Fr.). Trabalha como
terapeuta de famílias e casais em clínica privada (RJ)

Ficha Catalográfica
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Henriques, Celia Regina

Entre o aconchego e os detalhes do cotidiano: a relação


pais e filhos adultos / Célia Regina Henriques ; orientadora:
Terezinha Féres-Carneiro. – 2009.

248 f. : il. ; 30 cm

Tese (Doutorado em Psicologia) – Pontifícia


Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2009.

Inclui bibliografia

1. Psicologia – Teses. 2. Relação pais e filhos adultos.


3. Coabitação intergeracional. 4. Cotidiano familiar. 5.
Dinâmica de convivência. I. Féres-Carneiro,Terezinha. II.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de Psicologia. III. Título.

CDD: 150
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Para todas as famílias entrevistadas, que comigo compartilharam suas histórias,


suas visões de mundo e família.
Agradecimentos

À minha orientadora Terezinha Féres-Carneiro pelo incentivo, estímulo e


generosidade com que compartilhou seu conhecimento no percurso desta tese.

À PUC-Rio e ao CNPq, pelos auxílios concedidos, sem os quais este trabalho não
poderia ter sido realizado.

À todos os professores do Programa de Pós-graduação em Psicologia da PUC-


Rio, em especial aos professores Andréa Seixas Magalhães e Bernardo Jablonski.

Às funcionárias da secretaria do Departamento de Psicologia da PUC-Rio,


Marcelina Andrade e Vera Silva.
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À professora Elsa Ramos do Centre des Recherches sur les Liens Sociaux,
CERLIS, Université Paris 5-Descartes, pelas importantes contribuições para esta
tese, assim como ao professor François de Singly.
À funcionária da secretaria do Departamento de Sociologia da Université Paris 5-
Descartes, Françoise Tréguer.

À professora Marlize Linhares pelo suporte na língua francesa.

Aos colegas Carolina Borges, Fernanda Travassos, May-Lin Wang e Maria Lúcia
Miguel pelo apoio, paciência e troca.

Ao meu marido Hélio Renato, pelo carinho e compreensão de todas as horas.


Resumo

Henriques, Celia Regina; Feres-Carneiro, Terezinha (Orientadora). Entre


o aconchego e os detalhes do cotidiano: a relação pais e filhos adultos.
Rio de Janeiro, 2009. 248p Tese de Doutorado – Departamento de
Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

O prolongamento da convivência familiar é uma construção da


modernidade e configura um momento potencialmente rico de trocas mútuas e
relações próximas da simetria, no domínio familiar. O objetivo desta tese é
investigar a relação entre pais e filhos adultos coabitantes, na esfera doméstica
familiar. Para tal empreendimento, elaboramos uma rede teórica interdisciplinar,
que integrou conhecimentos provenientes do campo das terapias familiares, da
sociologia, da antropologia e da psicanálise de Donald Winnicott. Construímos
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esse objeto de estudo, a partir do interesse em analisar os ajustes cotidianos


realizados na dimensão relacional entre pais e filhos, ressaltando a dinâmica
interativa vivida nesse espaço, que visa garantir o equilíbrio da convivência.
Pesquisamos esse universo através de um estudo de campo, realizando
entrevistas semiestruturadas com sete mães, um pai, quatro filhos e quatro filhas.
Das análises dos discursos desses sujeitos, quatro temas emergiram: os ajustes
cotidianos na convivência, o jogo interativo, duas lógicas em ação e o sentido de
ser família. Constatamos que nessa dinâmica interativa, vivida na vida cotidiana
da família, um jogo relacional é estabelecido. Através de pequenas negociações no
dia a dia, esses pais e filhos instituem os limites entre os espaços pessoais e os
coletivos na relação e, ao mesmo tempo, mostram-se capazes de alternar suas
posições nesse domínio, de forma a acomodar os interesses do momento. Nessa
medida, estabelecem um contexto propício para um interjogo, um ir e vir nas
dimensões relacionais, que transforma o espaço familiar em um espaço que faz
sentido e gera reconstruções de significados.

Palavras-chave
Relação pais e filhos adultos, coabitação intergeracional, cotidiano
familiar, dinâmica de convivência.
Résumé

Henriques, Celia Regina; Feres-Carneiro, Terezinha (Conseiller). Entre l’


accueil et les petits détails quotidiens: la relation parents et enfants
adultes. Rio de Janeiro, 2009. 248p. Thèse de Doctorat – Departamento de
Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Le prolongement de la convivivialité familiale est une construction


contemporaine et il répresente un moment potentiellement riche d’ échanges
mutuels et des relations proches de la symétrie dans le domaine familial. L’
objectif de cette thèse est l’ analyse de la relation entre parents et ses enfants
adultes en situation de cohabitation dans le monde doméstique familial. Dans ce
but, nous avons élaboré un réseau théorique interdisciplinaire, qui a intégré les
connaissances issues du champ des thérapies familiales, de la sociologie, de l’
antropologie et aussi de la psychanalyse de Donald Winnicott. Nous avons
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construit cet objet d’ étude à partir de notre intérêt sur les ajustements quotidiens
entre les parents et ses enfants, en soulignant la dynamique interrelationnelle
vécue dans cet espace qui essaie d’ assurer l’ équilibre convivial.
Nous avons recherché cet univers à partir d’ un étude du terrain. D’
ailleurs, nous avons réalisé des entrétiens semi-structurés auprès de 7 mères, 1
père, 4 fils e 4 filles. À partir de l’ analyse des discours, quatre thèmes ont été
dévoilé : les ajustements quotidiens au domaine convivial, le jeu intératif, deux
logiques en action et le sens d’ être famille. Nous avons rémarqué que cette
dynamique interactive, vécue dans la vie quotidienne familialle se montre comme
un jeu relationnel. Ces parents et enfants construisent les limites entre les espaces
personnels et les colectifs dans la relation et, au même temp, ils se montrent
capables d’ alterner leurs positions, de façon à sauvegarder les intérêts du
moment. Ainsi, ils établissent un context propice à l’ apparition d’ un interjeu,
« un aller et venir » dans les dimensions relationelles, transformant l’ espace
familial dans un espace de sens qui engendre des réconstructions des signifiants.

Mots-clés
Relations parents et enfants adultes, cohabitation intergénérationnelle, le
quotidien familial, la dynamique conviviale.
Sumário

1. Introdução 10

2. O prolongamento da convivência familiar 18


2.1. A esfera do trabalho como indicador de transformações na
convivência familiar 19
2.1.1. O mundo do trabalho e suas repercussões na família de adultos
coabitantes 24
2.2. O adiamento do casamento nos dias atuais 28
2.2.1. As experiências amorosas contemporâneas 29
2.2.2. “Viver juntos”, a conjugalidade em questão 34
2.3. A revalorização do espaço familiar 40
2.4. A metáfora do acolhimento, a transicionalidade no âmbito das
relações 48
2.5. A cultura da juventude eterna, o mundo das sensações e efemeridade 53

3. A dinâmica interativa entre pais e filhos adultos coabitantes 61


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3.1. O Ciclo vital familiar, um percurso de ressignificações 66


3.2. A diferença: quando a independência e a autonomia se apresentam 72
3.3. Flexibilizando a hierarquia e as regras de convivência 79
3.4. Múltiplas realidades, as realidades construídas na vida do dia-a-dia 89
3.5. As histórias contadas, expressões de concepções de mundo, de si e da
relação 98

4. O cotidiano: a edição e a reedição de contextos na dinâmica relacional 110


4.1. Uma perspectiva histórica, considerações sobre a prática familiar 111
brasileira
4.2. Um espaço entre quase iguais 120
4.3. O reverso da moeda: a saída dos filhos da casa parental 127
4.4. O espaço negociado, o ambiente familiar 137
4.5 Construindo uma distância suficiente na relação 147

5. Estudo de campo 153


5.1. Metodologia 153
5.2. Sujeitos 159
5.3. Coleta de dados 160
5.4. Apresentação das famílias 163
5.5. Análise das entrevistas 167
5.5.1. Ajustes cotidianos na convivência 167
As regras que são cumpridas 168
Rupturas e elasticidade das regras 175
Acordos, negociações e reformulações 180
5.5.2. O Jogo interativo 187
A experiência de separação na família 188
O quarto na casa dos pais, portas abertas ou fechadas 190
As dimensões de poder e controle: distribuições e disfarces 194
Diferentes formas de comunicações na rotina 197
Tateando em busca da distância apropriada na relação 200
5.5.3. Duas lógicas diferentes em ação 207
O mundo do trabalho sob a ótica da relação 208
O uso do dinheiro 213
A dimensão da vida afetiva dos filhos na perspectiva relacional 216
A saída negociada 219
5.5.4. O sentido de ser família 222
Um ambiente “familiar” 224
A ótica da parceria 227

6. Considerações finais 232

Referências bibliográficas 239

Anexo 1 246
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1
Introdução

As reflexões desenvolvidas nesta tese iniciaram-se no ano de 1998, instigadas pela


apresentação de um caso clínico a um grupo de estudos de terapia familiar, em
uma instituição social que oferecia atendimentos a famílias. O interesse
despertado pelo tema e a ausência de uma literatura a respeito levaram-nos a
realizar um projeto de estudo sobre a convivência entre os membros das famílias,
que se encontravam no mesmo ponto do ciclo vital familiar do caso apresentado,
ou seja, filhos formados e trabalhando e pais na meia-idade vivendo em
momentos próximos da aposentadoria.
Em sua primeira fase, o projeto desdobrou-se em uma dissertação de
mestrado e em dois artigos publicados em revistas científicas de nosso país. Estes
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apresentaram o fenômeno do prolongamento da convivência familiar como uma


construção contemporânea, forjada na conjugação de fatores intrafamiliares – a
ambivalência de sentimentos em relação à partida e à perda dos papéis
conquistados – e extrafamiliares, fruto de um contexto social fortemente marcado
por instabilidade e incerteza. Fatores estes obtidos através da análise de dados de
um estudo de campo com sete famílias, cujos membros eram coabitantes.
A segunda fase desse estudo, exposta nesta tese, dá prosseguimento à
pesquisa original e concentra-se na dinâmica interativa vivida por esses pais e
filhos adultos, nos limites do espaço doméstico familiar. Entre as considerações
iniciais que serviram de base às primeiras questões norteadoras do percurso
reflexivo atual, uma refere-se ao dilema do viver junto e do viver só, uma
incerteza colocada pelo individualismo da atualidade. De acordo com Singly
(2005), o processo de individualização, vivido na sociedade ocidental, vem se
constituindo como um paradoxo para o indivíduo contemporâneo, pois o autoriza
a sonhar com uma vida que congregue, ao mesmo tempo, estar só e estar junto.
Dessa forma, este indivíduo tenta se acomodar em uma dupla vida, que associe
uma esfera pessoal a uma coletiva.
A outra questão inicial a orientar nossas reflexões consiste em um
desdobramento da primeira. A vivência da conciliação entre as duas esferas, a
11

pessoal e a coletiva, processa-se na dinâmica interativa: assim, sublinhar o


contexto de interações entre esses indivíduos, as suas formas de se relacionar e de
ajustar os interesses mútuos é fundamental para o conhecimento dessa dinâmica.
Desse modo, nos interessaremos, especificamente, por uma dimensão interativa,
que, segundo nosso olhar, se constitui através de cada diálogo travado nas
circunstâncias da convivência. Watzlawizcky (1967) nos diz que interação é uma
série de mensagens trocadas entre pessoas, entendendo mensagem como um
complexo fluido e multifacetado de diversos tipos de comportamentos, sejam eles
verbais, tonais, posturais, contextuais, entre outros. Nessa medida, a interação
pode acolher duas formas de relacionamento. Uma, a interação simétrica, supõe
um nível de igualdade relacional calcado na confiança, mutualidade e
reciprocidade. A outra, a interação complementar, abarca a idéia de que
comportamentos dessemelhantes, porém ajustados, se provocam mutuamente.
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Ao lado dessa concepção, apresentamos a idéia de Schnitman (1994), que


considera que aquilo que se constrói em um diálogo “não é homogêneo e nem é o
resultado de uma consciência singular” (p. 248), e sim, um campo de sentido
polifônico, ou seja, constituído de vozes provenientes de diversas esferas, como a
cultura, o gênero, a localidade, entre outras. Nessa medida, conscientes da
complexidade do nosso objeto de estudo, passamos a nos concentrar na idéia da
importância da vida cotidiana, como um reduto de expressão de conversas casuais
e banais, porém ricas de conteúdo para uma análise da interação.
A dimensão interativa, ao ocorrer no ambiente doméstico familiar, leva-
nos a considerar a relevância dos pequenos detalhes da convivência do dia-a-dia,
que expõem os ajustes realizados na relação, necessários para o prosseguimento
da vida em comum. Esses ajustes seriam a construção, a reconstrução ou a ruptura
das regras familiares, organizadoras das vidas desses membros, que irão, nessa
medida, legitimar seus interesses pessoais e coletivos. Entre esses interesses,
destacamos a validação da autonomia dos filhos e a ressignificação da relação
como aspectos significativos da convivência nesse momento do ciclo vital das
duas gerações.
Neste ponto, lançamos mão do pensamento de Gilberto Freyre (1933;
1936), que esclarece-nos sobre a importância de se investigar a vida cotidiana das
famílias, atribuindo a ela o valor de matéria-prima fundamental para a
12

compreensão das relações humanas. Assim, acreditamos que a informação de


quem paga uma conta, ou como é negociada uma ida ao supermercado, as
refeições em família, as programações para o fim de semana podem nos abastecer
de recursos valiosos para a análise da nossa questão.
Assim, pretendemos expor a importância das pequenas atitudes e das
minimanifestações expressas nas interações e vividas no cotidiano da família.
Entendemos que o processo de interação se faz a partir de pequenos gestos e
palavras pronunciados na relação. E ainda, que o poder destes instantes reforça o
valor da análise da vida doméstica como recurso de compreensão da dinâmica
familiar e, especificamente, da relação entre pais e filhos adultos.
Através do entendimento de pequenas transformações e do processo de
negociação envolvido na constituição das mesmas, viabilizaremos a possibilidade
de uma reflexão sobre os sentimentos vividos pelos membros dessas famílias e a
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sua capacidade de reestruturação, advinda da construção de acordos na


convivência. A observação da dinâmica interativa vivida nessas circunstâncias
pode nos revelar a potencialidade de alguns mecanismos, utilizados para enfrentar
os impasses experimentados no processo de diferenciação no seio familiar.
Consideramos que unir-se para depois se separar ou, mais especificamente, se
separar e ficar junto, são ações contraditórias que requerem arranjos específicos
na relação.
O conceito de diferenciação para Bowen (1988) se refere a um processo,
no qual a “individualidade e o togetherness são utilizados pelo indivíduo em um
sistema relacional.” (p. 95) A maior parte das pessoas almeja alcançar uma maior
individualidade e, no entanto, “resiste em abandonar o togetherness requerido
para essa aquisição.” (1988, p. 107) Dessa forma, nos permitimos considerar que
as famílias, em suas práticas da vida cotidiana, vivenciam essa tensão entre forças
opostas no universo de suas interações, isto é, oscilam entre a fusão e a
diferenciação, de acordo com a pauta do momento. Acreditamos que pais e filhos
adultos busquem dimensões de proximidade e afastamento apropriadas na esfera
relacional, para que suas conquistas pessoais, nesse terreno, possam ser
garantidas.
Para tanto, de acordo com Minuchin (1974), são necessárias delimitações
de fronteiras, suficientemente nítidas entre esses membros da família, de modo a
13

assegurar o respeito às conquistas pessoais. No que se refere às regras familiares,


por exemplo, estabelecidas pelos próprios membros, acreditamos que elas possam
ser rompidas pelos filhos e colocadas em negociação, no intuito de favorecer o
fortalecimento da autonomia. Nesse caso, seria necessária uma estrutura familiar
mais aberta e, assim, propícia à criação de um espaço flexível. Portanto, conhecer
as micromudanças ocorridas no cotidiano familiar é fundamental para desvendar a
potencial capacidade da família em guardar os espaços de seus membros. A
investigação dos acordos e dos interesses mútuos, negociados pelos membros da
família, nos informarão a respeito desta dinâmica interativa.
Ao lado disso, Minuchin (1993) nos fala da flexibilidade no espaço
familiar, isto é, a família tem a seu dispor uma forte capacidade de utilização dos
múltiplos selves dos membros, que podem ser mobilizados em função das
circunstâncias. Concebida dessa forma, a dinâmica interativa pode abarcar um
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interjogo, no qual os participantes defendem seus interesses através da construção


de alternativas, forjadas na flexibilidade da dimensão interacional.
Esse espaço flexível, pleno de recursos criativos, edificados ou reciclados
a partir da história de cada uma dessas relações, permite a visão de um lugar
potencialmente concebido como uma área de transicionalidade, capaz de oferecer
experiências subjetivas importantes para esses indivíduos. Para que essas
experiências possam acontecer é necessário o estabelecimento de um ambiente de
confiança e apoio. Para Winnicott (1971), o conceito de espaço potencial une as
dimensões subjetiva e objetiva, de modo que o subjetivamente concebido e o
objetivamente percebido se alternem, sobreponham-se ou se integrem.
“Experimentamos a vida na área dos fenômenos transicionais, no excitante
entrelaçamento da subjetividade e da observação objetiva, e numa área
intermediária entre a realidade interna do indivíduo e a realidade compartilhada do
mundo externo aos indivíduos.” (1971, p. 93) Dessa forma, a experiência de
transicionalidade vivida na interação entre pais e filhos adultos constitui-se como
possibilidade de reconstrução constante para ambas as gerações, por mobilizar a
experiência de alguns estados psicológicos que a caracterizam, como a regressão a
alguns momentos de dependência ou a necessidade de expansão do self.
Assim, nos limites do espaço relacional em questão, o fato de o indivíduo
poder experimentar, ao mesmo tempo, estar só e estar junto, pode resultar na
14

constituição de um “fundo” relacional extremamente ambíguo. Por outro lado,


estas duas opções podem funcionar em um jogo de ir e vir, no qual os membros da
família podem definir, escolher ou hierarquizar o que lhes é mais conveniente. De
toda forma, existe uma tensão constante. Poder estabelecer qual é a dimensão
desejável, para um determinado contexto, parece ser a meta e tal meta é
conquistada no convívio, sob o nosso ponto de vista. A vida cotidiana pode
traduzir as diferentes formas de engajamento, priorizadas pela dimensão
interacional. Dessa maneira, reafirmamos que observar a vida cotidiana mostra-se
como um recurso valioso de apreensão das intersubjetividades envolvidas nesta
investigação.
Ao olharmos a relação entre pais e filhos adultos coabitantes, deparamo-
nos com a complexidade do nosso objeto. As regras e a hierarquia, por exemplo,
não sendo categorias a priori, são construídas, sustentadas, questionadas e
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negociadas na relação. E nesse processo de construção colaboram a cultura, a


singularidade, o gênero, os imperativos sociais e outros, que se constituem em
uma rede de múltiplos atravessamentos. Pretendemos, neste estudo, evocar
construções inusitadas, a fim de obtermos uma percepção inédita da realidade
vivida nesse espaço relacional. Aspiramos compreender como pais e filhos
adultos rompem e negociam suas regras e como, em um campo mais horizontal de
poder, poderiam recuperar uma “suposta” hierarquia desautorizada.
Sabemos que o poder parental vem sendo desmontado por uma visão de
relação estabelecida entre iguais, norteada pela ideologia individualista-igualitária.
Giddens (1999) afirma que à medida que os filhos se aproximam da vida adulta, a
relação familiar tende a acercar-se da “relação pura”. Entretanto, Minuchin (1974)
questiona que a família seja uma sociedade de iguais. Em suas palavras “mesmo
uma sociedade democrática não se faz sem liderança.” (p. 63) Dentro dessa
perspectiva, talvez seja possível pensar em uma liderança discutida nesse contexto
interacional, negociada segundo as pautas do momento. Essa ótica, também, inclui
a idéia de que na dinâmica interacional, alguns dispositivos de poder e controle
apresentem-se e que os membros em questão mobilizem seus recursos para lidar
com tal situação.
Consideramos importante ressaltar que, visando desenvolver um trabalho
que não perca de vista a complexidade envolvida no seu objeto, é nossa intenção
15

adotar um enfoque interdisciplinar que se valha de contribuições da história, das


ciências sociais, da psicologia, da psicanálise de Donald Winnicott e do campo
das terapias familiares. Essa opção tem como base a constatação de que o tema de
estudo é atravessado por diferentes dimensões: a individual, a familiar e a social,
todas elas a serem examinadas na sua historicidade.
O primeiro capítulo desta tese visa refletir sobre o tema do prolongamento
da convivência familiar e foi concebido segundo nossa compreensão do mesmo.
Pensamos esse fenômeno contemporâneo a partir de cinco eixos, que, a nosso ver,
se articulam e compõem essa configuração familiar. Iniciamos com o debate sobre
a esfera do trabalho e seu contexto de instabilidade e insegurança, característico
de uma sociedade globalizada e de risco. Para tanto, utilizamos as visões de
diversos autores que refletem sobre esse tema na atualidade, entre os quais
destacamos Richard Sennett, Zygmunt Bauman e Christopher Lasch. Em seguida,
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abordamos a questão do adiamento do casamento na sociedade contemporânea,


focalizando as experiências amorosas nos dias de hoje, assim como a noção atual
de conjugalidade. Para tal, os autores selecionados foram: Zygmunt Bauman,
Anthony Giddens, Bernardo Jablonski, Andréa Seixas Magalhães e Terezinha
Féres-Carneiro. O terceiro eixo trata da revalorização da instituição familiar na
sociedade ocidental contemporânea e se propõe a discutir tal noção, através dos
pensamentos de François de Singly e Gilles Lipovetzky. A metáfora do aconchego
familiar vem a ser o quarto eixo, no qual buscamos edificar a idéia de um espaço
de confiança e apoio na família, suficiente para acolher a espontaneidade e
sentimentos ligados à expansão do self. Para tal empreendimento, utilizamos o
conceito de espaço potencial de Donald Winnicott. Finalizamos o capítulo com
considerações acerca de uma sociedade voltada para o culto da beleza, da saúde e
do efêmero, contando com o suporte de Jurandir Freire Costa e Gilles Lipovetzky.
Ao longo do segundo capítulo, procuramos pensar na dinâmica interativa
entre pais e filhos adultos, defendendo a criação de uma quase-teoria. A partir da
articulação de diferentes conceitos provenientes do campo das terapias familiares,
elaboramos um corpo teórico para tal reflexão, tendo em vista a articulação da
prática clínica com o referencial de um fenômeno psicossocial. Dessa forma,
constituímos um percurso de pensamento que se inicia com a perspectiva
sistêmica de primeira ordem, através dos conceitos de diferenciação do self
16

familiar, de Bowen, e dos conceitos de estrutura familiar e recursos múltiplos do


self na interação, de Salvador Minuchin. Em seguida, através da noção de
comunicação na interação, de Paul Watzlawick, seguimos em direção ao
paradigma da segunda ordem sistêmica, enfatizando que a internalização do outro
ocorre através de interações, que vão se modificando e se reconstruindo em cada
novo encontro interativo. Para fundamentar essa última noção, recorremos à
Sheila McNamee, Dora Schnitman, Kenneth Gergen, entre outros autores.
O terceiro capítulo deste estudo se propõe a explorar a convivência entre
pais e filhos adultos no reduto doméstico, ressaltando as microexperiências
cotidianas como potencialmente transformadoras da dimensão relacional. A
relação de forças na interação será privilegiada, ao nos concentrarmos nas
experiências de conquista de maiores espaços de autonomia, no que concerne ao
universo dos filhos e à manutenção dos espaços designados como parentais, na
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esfera dos pais. Assim, nos habilitaremos a discutir a construção dos acordos de
convivência, isto é, o processo de negociação no domínio relacional, que
estabelece os compromissos ou a ruptura dos mesmos. Assim como julgamos
poder entender qual seria a distância suficiente entre pais e filhos, para que a
coesão seja mantida na família e para que os interesses de cada um possam ser
legitimados. Para tanto, utilizaremos os aportes teóricos fornecidos por François
de Singly, Elsa Ramos e Jean-Claude Kauffmann. Ainda buscamos na história da
família brasileira, alguns subsídios sobre a prática cotidiana das mesmas,
contando com as contribuições de Gilberto Freyre, Maria Beatriz Nizza da Silva e
Roberto DaMatta.
O quarto capítulo apresenta o estudo de campo realizado com sete pais,
uma mãe, quatro filhos e quatro filhas, todos coabitantes e residentes na cidade do
Rio de janeiro. Como critério de escolha dos participantes, optamos por definir a
priori, somente, o perfil dos filhos, que seria: terem idade igual ou superior a 26
anos, serem solteiros e estarem trabalhando. Realizamos entrevistas
semiestruturadas e seus dados foram tratados pelo método de análise de discurso.
Dessa análise emergiram quatro temas principais: os ajustes cotidianos na
convivência, o jogo interativo, duas lógicas em ação e o sentido de ser família.
O percurso que aqui se inicia abarca a riqueza das histórias contadas pelos
participantes de nossa pesquisa. Esperamos que a relação entre pais e filhos
17

adultos, experimentada na convivência cotidiana, seja visitada e revisitada, através


de uma ação conjunta entre investigador, participantes e leitores, com a finalidade
de buscar os recursos do novo e do criativo nessas conversações.
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2
O prolongamento da convivência familiar

A perspectiva de durabilidade dos eventos que nos cercam, de acordo com grande
parte dos pensadores contemporâneos, está sendo sempre permanentemente
desmontada. As experiências de vida são quase sempre temporárias e a sociedade
moderna, até pouco tempo marcada por instituições tradicionais como o Estado, a
Igreja e a Família, sucumbe diante da fragilização dessas instituições. Dessa
forma, abre-se espaço para um viver no qual valores e referências estáveis
confrontam-se com a rapidez e a provisoriedade dos fatos.
O processo de individualização, vivido nos limites da sociedade ocidental,
vem se constituindo como um paradoxo para o indivíduo contemporâneo, pois
autoriza-o a sonhar com uma vida que congregue, ao mesmo tempo, estar só e
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estar junto. Assim, ele tenta se acomodar com uma vida dupla, que associe uma
vida pessoal a uma vida coletiva. A angústia decorrente desta desorientação tem
sido objeto de reflexões de muitos pensadores, entre os quais destacamos
Lipovetsky (2002) e Costa (2005). Estes autores admitem que os impasses
provocados por alguns dos ideais contemporâneos corroem os valores
tradicionais: contudo, também argumentam a existência de um fortalecimento de
novas formas de participação e de interação por parte do indivíduo, hoje.
O paradoxo da família que prolonga a convivência consiste em manter a
dependência ou as dependências quando o que se espera desta instituição, neste
momento da família, é a promoção da autonomia e da independência, qualidades
que incentivam a maturidade do indivíduo. Singly (2000) afirma que a construção
de negociações efetuadas por filhos adultos que moram com os pais leva-os a
tornarem-se “autônomos em uma relação de dependência” (p. 248). O espaço
colocado à disposição do filho adulto vem a ser o exercício de um paradoxo, por
permitir a autonomia sem suprimir os laços de dependência.
Abraçar essas idéias – e expor ainda outras, que a elas se articulem e
suscitem o confronto e desdobramentos – é o que temos a intenção de apresentar
nesse capítulo. Para abordar o prolongamento da convivência familiar nos dias
atuais, ou seja, a permanência dos filhos adultos na casa dos pais, privilegiaremos
19

a discussão de cinco eixos principais: a esfera do trabalho, o adiamento do


casamento, a revalorização do espaço familiar, a metáfora do acolhimento e a
cultura contemporânea voltada para os cultos da juventude, saúde e beleza.
Segundo nossa concepção do tema, estes eixos se integram e constituem o
fenômeno sobre o qual nos propomos a refletir.

2.1
A esfera do trabalho como um indicador de transformações na
convivência familiar

Este início de terceiro milênio indica um menu de opções no qual a instabilidade,


a incerteza e a insegurança se apresentam como fatores constitutivos do indivíduo
contemporâneo. No âmbito da família, esses sentimentos permeiam as relações e
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provocam mudanças que se fazem sentir nas atitudes e comportamentos frente a


situações do domínio social, entendida a família como a instância mediadora entre
esse domínio e o indivíduo. Esses sentimentos são efeito de algumas perdas de
referências fundamentais instituídas pelas condições de vida nos grandes centros
urbanos, pela globalização e o avanço da tecnologia, o desemprego e as novas
relações de trabalho, pelo ideal do individualismo, entre outros fatores que
compõem o painel da contemporaneidade ou do mundo na pós-modernidade.
Bauman (2000) nos fala a respeito de uma nova modalidade da ordem
capitalista, o capitalismo leve, marca registrada da pós-modernidade. O pós-
fordismo “é um viver num mundo cheio de oportunidades, cada uma mais
apetitosa e atraente que a anterior, cada uma compensando a anterior e preparando
o terreno para a mudança da próxima”. (p.74) O capitalismo leve e flutuante é
marcado pelo desengajamento e pelo enfraquecimento dos laços que prendem o
capital ao trabalho, instaurando uma nova liberdade de movimentos impensáveis
no passado. “A reprodução e o crescimento do capital, dos lucros e dos
dividendos e a satisfação dos acionistas se tornaram independentes da duração de
qualquer comprometimento local com o trabalho”. ( p.171) Em suma, o novo
capitalismo ou capitalismo avançado move-se rapidamente, evita o enraizamento,
pressupondo que a sobrecarga advinda da formação de laços ou
20

comprometimentos possa tornar-se prejudicial aos seus objetivos, tendo em vista


as novas oportunidades que surgem.
Outro elemento, sustentamos, ser tecido na conjunção do capitalismo leve
consiste nas novas bases das relações de trabalho e no emprego assalariado. No
ponto de vista de Giannotti (2002), a questão do emprego torna evidente a visão
da sociedade de riscos em que vivemos. O fato de a sobrevivência física do
indivíduo depender de um salário torna previsível o sentimento de ameaça
constante com que ele se depara, considerados a precariedade dos empregos
formais, a instabilidade dos informais e o desemprego efetivo ou possível que se
observam em tempos de capitalismo leve.
O capitalismo contemporâneo, com a configuração que vem assumindo ao
longo dos últimos tempos, traz a reboque uma lógica destrutiva. Antunes (2003)
sustenta essa afirmação, colocando em evidência a importância da ascensão das
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formas produtivas flexibilizadas e desregulamentadas, das quais a chamada


acumulação flexível e o toyotismo seriam exemplos. Essas seriam respostas do
capital à sua própria crise estrutural. De acordo com o autor, o modelo japonês
originado na fábrica Toyota baseia-se na produção vinculada à demanda e na
terceirização, dentre outras características. A fim de facilitar nossa compreensão,
contrapomos esse modelo ao fordismo e observamos que ao reduzir violentamente
a produção no interior da empresa, o toyotismo cria uma legião de terceirizados,
sub-contratados, free-lancers e ainda outras formas laborativas, que fazem surtir
conseqüências enormes no mundo do trabalho.
Kurz (2003) acrescenta a essa conjunção o surgimento de uma nova classe
social, a classe global, construída a reboque dos avanços da tecnologia na década
de 1990. Essa classe, segundo o autor, teria sido a grande ganhadora com o
implemento da globalização, uma vez que foi forjada entre os avanços do
conhecimento e do acesso à tecnologia da informação, estabelecendo-se num
locus social privilegiado. Seria uma geração fundadora da sociedade
informatizada e “constituiria um novo paradigma de dominação social, uma vez
que ela dá o tom em termos culturais, generaliza seus valores e faz de suas
inclinações específicas o sonho de muitos”. (p.10) A classe global, por suas
características flexíveis e desenraizadas, vem a ser cultuada pelo universo jovem
como modelo identificatório calcado em sua extrema mobilidade, domínio da
21

informação e construção de um universo virtual de diversão colocado à venda


pelo mercado de consumo.
Esse universo jovem, orientado pela globalização e informação em tempo
real, ao adentrar o mundo do trabalho, traz consigo essa mentalidade e, dessa
forma, segundo Tapscott (1998), pressiona por mudanças na noção tradicional de
uma empresa, movida por comando e hierarquia de poder. “O antigo modelo de
empresa não pode funcionar em uma economia direcionada pela inovação,
imediatismo e interconexão” (p.202). Sendo assim, diante das possíveis oposições
encontradas, os jovens podem decidir que a melhor maneira de lutar contra o
status quo é deixá-lo e sair em busca de seu próprio negócio, o seu
empreendimento, o que, de acordo com a pesquisa de uma rede de televisão
brasileira acerca do universo jovem (realizada em 1999), constitui o ideal da
grande maioria desse segmento. Essa geração, afetada pelo desemprego e aliada
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aos recursos da informação em tempo real, investe em um empreendedorismo que


constitui uma grande reviravolta no mundo do emprego.
Esse quadro de instabilidade e incerteza, associado ao novo paradigma
econômico, se reflete não só na vida pessoal do indivíduo, como também em seus
relacionamentos sociais. A esse respeito, Giannotti (2002) assinala que os sentidos
vagos e às vezes contraditórios empregados pelas instituições contemporâneas,
encarregadas de vigiar o exercício das normas sociais, inviabilizam a formação de
uma identidade do trabalhador. Nas sociedades tradicionais, em que as relações de
parentesco ou pertencimento a um grupo ou classe social asseguravam a matriz
dessa identidade, isso não acontecia. O que se observa hoje, segundo o autor, é
que o capital, ao explorar as diferenças de produtividade do trabalho coletivo,
transforma o companheiro de trabalho em um virtual concorrente, uma ameaça à
existência do indivíduo como um empregado. Esses seriam os efeitos perversos do
processo de assalariamento instável que atinge a sociedade contemporânea como
um todo.
Simmel, ao analisar os primórdios desse processo, chama a atenção para o
dilema enfrentado pelo indivíduo, no âmbito do trabalho, ao lidar com a extrema
competição nas metrópoles. A conquista de um lugar, de uma fonte de renda que
ainda não esteja exaurida e de uma função em que não possa ser rapidamente
substituído constitui uma luta diária para esse indivíduo urbano, e a metrópole é a
22

arena desse combate. Para isso, é necessário que o indivíduo se especialize em


seus serviços.

A especialização do trabalho reclama do indivíduo um aperfeiçoamento cada vez


mais unilateral. E um avanço grande no sentido de uma busca unilateral com
muita freqüência significa a morte para a personalidade individual. O indivíduo
se tornou um mero elo em uma enorme organização de coisas e poderes que
arrancam de suas mãos todo o progresso, espiritualidade e valores, para
transformá-los de sua forma subjetiva na forma de uma vida puramente objetiva.
Não é preciso mais do que apontar que a metrópole é o genuíno cenário dessa
cultura que extravasa de toda a vida pessoal. (Simmel, 1976, p.23)

Sennett (1998), comentando o novo capitalismo, também ressalta o efeito


desorientador, na vida do indivíduo, dessa economia baseada no princípio do não-
comprometimento a longo prazo. Na visão do autor, esse princípio afeta a
personalidade do indivíduo devido às suas características de não-durabilidade e
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prazos curtos. O indivíduo necessita de virtudes estáveis como confiança, lealdade


e comprometimento para o desenvolvimento de seu caráter, o que é de certa forma
inviabilizado pelas características dos ambientes de trabalho contemporâneos.
Sennett argumenta que as atuais transformações no setor produtivo estão
originando uma “sociedade de ovos quebrados”, em que as perdas produzidas são
irreparáveis para a qualidade do convívio social e para a produtividade
econômica. O fim do emprego estável e o enxugamento das empresas provocam
um efeito perverso ao multiplicar os excluídos do mercado e levar os
remanescentes a um crescente desânimo e a um descomprometimento com a
empresa.
O sinal mais tangível da mudança da rigidez para a flexibilidade, na esfera
da economia, vem a ser uma nova noção de tempo. O fato de haver um
esmaecimento na concepção de longo prazo altera a relação do indivíduo com o
trabalho.

No trabalho, a carreira tradicional que avança passo a passo pelos corredores de


uma ou duas instituições está fenecendo; e também a utilização de um único
conjunto de qualificações no decorrer de uma vida de trabalho. Hoje, um jovem
americano com pelo menos dois anos de faculdade pode esperar mudar de
emprego pelo menos onze vezes no curso do trabalho, e trocar sua aptidão básica
pelo menos outras três durante os quarenta anos de trabalho. (Sennett, 1998, p.23)
23

Assim, as qualidades do compromisso, da lealdade e da confiança,


associadas à durabilidade, entram em conflito com as características da nova
realidade conectada à flexibilidade e inerente ao sistema de curto prazo. As novas
relações de trabalho operam em bases móveis, episódicas e fragmentadas, criando
dessa forma a instabilidade tanto no domínio do trabalho quanto no da família,
pelo fato de que o tipo de comprometimento fundamentado nessa última é oposto
ao descompromisso efetivado fora dela. Vale lembrar que a família é percebida
como um santuário do compromisso e da lealdade.
A ascensão da ideologia de mercado é também um importante aspecto
contemporâneo a influenciar os comportamentos humanos e, como tal, se afirma
como uma das forças de transformação das relações afetivas e sociais. Sem
dúvida, num mundo onde a ideologia dominante é a disputa de mercado, o
indivíduo, transformado em consumidor e incumbido de manter o fluxo em
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andamento, vivencia experiências de fragmentação e superficialidade. Bauman


(2000), ao dissertar acerca da problemática da sociedade de produtores versus
sociedade de consumidores, ressalta que a pós-modernidade envolve seus
membros na condição de consumidores e não de produtores. Para ele, a sociedade
produtora é fixa, sólida e pesada, obedece à conformidade, assim como protege os
limites entre as normas e as anormalidades. Por outro lado, a vida organizada em
torno do consumo deve se bastar sem normas, referências ou comparações, e deve
ser orientada pela sedução e pelo desejo sempre crescentes. O consumidor deve
ser flexível e ajustável para enfrentar e absorver o novo e o surpreendente que são
exaltados nas condições de vida postuladas por essa ordem.
Em última instância, talvez possamos dizer que a insegurança afeta o
indivíduo na medida da sua imersão num mundo que não oferece proteção, não
auxilia o enraizamento e o compromisso através dos laços afetivos e sociais, e que
a sensação de deriva representa o estar em uma sociedade em movimento. Tanto a
incerteza quanto a instabilidade completam esse cenário contemporâneo e
constituem o solo fértil para o aparecimento do já conhecido mal-estar da pós-
modernidade.
24

2.1.1
O mundo do trabalho e suas repercussões na família de adultos
coabitantes

Primeiramente pretendemos destacar algumas tensões existentes entre a


geração dos pais e a geração dos filhos na atualidade. A geração dos pais, também
conhecida como “geração paz e amor” ou “geração maio de 68”, teve como
principais atores os jovens, e a sua filosofia foi a das ruas. Idéias pichadas em
muros sintetizavam o sentido do movimento: “é proibido proibir”, “fora
burguesia”, “sexo livre”. A atmosfera da época era exaltante, tinha algo de
político, mas foi essencialmente marcada pela ânsia de liberdade, de fraternidade e
de festa. A pluralidade das correntes de pensamento, que a atravessaram, iam do
marxismo ao anarquismo, passando ainda pelo surrealismo.
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Na esfera familiar, essa geração travou verdadeiras lutas para a conquista


de seus ideais libertários, sexuais e ideológicos. Os aspectos que melhor
caracterizavam essa família eram a rejeição do novo pelos pais e o baseamento
das relações familiares numa hierarquia rígida e com fronteiras bem demarcadas.
Os diálogos guardavam o respeito às noções hierárquicas e as obrigações
evoluíam no sentido da busca e da garantia de ascensão social, características da
época do milagre econômico. Os conflitos advindos dessa configuração
provocavam nos jovens a necessidade de diferenciação em relação aos pais, e para
isso a saída de casa se verificava como condição de uma vida coerente em relação
aos ideais que permeavam esse universo juvenil.
O pano de fundo da geração dos filhos varia da revolução da comunicação
à clonagem, da AIDS à derrocada do ideal socialista, da internet à ecologia. Para
Lasch (1977), o culto das relações interpessoais pouco exigentes ou das relações
igualitárias que se baseiam ou incorporam a ideologia dos compromissos não-
obrigatórios representa, bastante fielmente, as necessidades psicológicas do
indivíduo contemporâneo. De fato, o tipo de relação afetiva produzida entre
jovens fora da esfera familiar baseia-se nesta ideologia. O universo das relações
afetivas dos jovens se constitui a partir das vicissitudes da contemporaneidade no
que concerne à excessiva valorização do eu nos tempos atuais, configurando uma
verdadeira cultura narcísica.
25

No âmbito familiar, a horizontalização das relações interpessoais


inaugurou o conceito de família igualitária. Esta noção, em linhas gerais, foi
forjada em um reino de pluralidade de escolhas no qual as diferenças individuais
são percebidas como mais importantes que as diferenças sexuais e de idade.
Sendo assim, os papéis familiares sofreram mudanças expressivas: o território
familiar deixou de ser uma microarena, como na geração passada, e tornou-se um
espaço democrático e privilegiado no qual sobressaem a segurança, a confiança e
o apoio entre os membros.
O prolongamento da convivência familiar, observado nos dias atuais,
requer uma renegociação de papéis, uma vez que a interação entre pais e filhos,
nesse caso, abarca uma relação de adultos na qual a função hierárquica ganha
novos contornos. As relações se desenvolvem num sentido mais horizontal, como
já visto, e a hierarquia pode ser assumida de forma mascarada, não explícita, uma
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vez que entre iguais ela pode significar autoritarismo, o que não estaria de acordo
com as propostas contemporâneas de relacionamento. A família se acomoda e se
adapta a essa realidade, visando uma convivência razoável para os seus membros.
Com isso, queremos dizer que existe uma complementaridade funcional entre os
papéis familiares, pela qual tanto os pais quanto os filhos se beneficiam da
convivência.
Contudo observamos, nas famílias de adultos, diferenças na percepção a
respeito do mundo do trabalho, e essas diferenças podem produzir um terreno de
ambigüidade no espaço familiar, trazendo desconforto na relação entre pais e
filhos. A geração dos pais, no que concerne à dimensão do público, é fortemente
marcada pelas relações de compromisso e lealdade, valores associados à noção de
durabilidade e de política de longo prazo. São característicos desta geração termos
como segurança, visibilidade e amplitude, que denotam o quão importante, para
quem pertence ao estrato social médio, é a idéia de uma carreira e da realização
através do trabalho.
A geração dos filhos representa o mundo do trabalho em uma perspectiva
de curto prazo e da provisoriedade das experiências sociais, características do
momento contemporâneo. A tática que se afigura como mais adequada para lidar
com estas questões, como também com o imediatismo e com a velocidade da
informação, segundo Tapscott (1998), consiste na atitude empreendedora. O
26

empreendedorismo vem a ser, de acordo com o autor, a forma mais adequada de


trabalho para esta geração informatizada. Além disso, o autor assinala que as
relações de trabalho que incluem uma hierarquia não se ajustam às mentalidades
práticas, imediatistas e altamente informadas dos jovens dessa geração. O modelo
de empresa tradicional – no qual existe hierarquia, controle e comando e metas
que consistem em subir na estrutura empresarial – não se encaixa nas mentalidade
desses jovens que buscam liberdade e ausência de hierarquia.
Como podemos perceber essas representações foram forjadas em cenários
bem diferentes e, como tal, constituem visões distintas de uma mesma realidade.
Se, por um lado, os pais vislumbram um futuro para os filhos em termos da
construção de uma carreira, por outro lado os filhos descrêem em um futuro nesse
sentido, temerosos da instabilidade e da insegurança geradas pelas transformações
operadas nesse domínio. Assim, é comum encontrarmos nos discursos dos pais
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referências à acomodação dos filhos diante de suas dificuldades de inserção no


mercado de trabalho: e nos discursos dos filhos, identificarmos em suas
percepções sobre os pais, expressões como “parados no tempo” (Henriques, C. R.
2004). À guisa de ilustração, consideramos pertinente comparar as percepções
acerca do mundo do trabalho entre estas duas gerações com o filme E o vento
levou, representando o universo dos pais, e Matrix, representando o dos filhos. A
discrepância estética equivaleria ao contraste entre dois tipos de pensamento: um,
linear, o outro, fragmentado.
No entanto, a sociedade em que vivemos é plural e abarca a diversidade de
modos de pensar e agir. Certamente, para aplacar a instabilidade e a incerteza
geradas pelas condições de trabalho em nosso país, observamos que no campo da
educação, o setor que mais cresceu nas últimas décadas foi o de cursos
preparatórios para concursos públicos. O crescimento, de acordo com a
Associação Nacional de Proteção e Apoio aos Concursos, foi de 20% no ano de
2005.1 Isto mostra que, no imaginário de parte da população jovem em relação ao
trabalho, habitam sentimentos de pertença e de busca de laços mais sólidos.
Paralelamente, também, pode nos indicar o grau de influência dos pais na escolha
e no direcionamento profissional dos seus filhos.

1
Rocha, F. Quando a estabilidade é o que conta. Caderno Especial de Domingo. Jornal do Brasil.
Rio de Janeiro, 23/07/2006, p. 8.
27

Féres-Carneiro (1996) afirma que as famílias funcionais, de modo geral,


expressam seus conflitos e têm recursos para resolvê-los, sendo que a
comunicação é clara e direta. Entretanto, nas famílias de adultos, observamos uma
certa disfuncionalidade no que tange à dimensão desta expressão na vivência do
cotidiano. O controle parental, exercido explicitamente nos ciclos de vida familiar,
referentes à infância e à adolescência, experimenta uma grande transformação. As
questões da hierarquia e do controle dos pais sobre os filhos se presentificam
como inadequadas, e atreladas a princípios preestabelecidos, em desacordo com a
ideologia do igualitarismo, que norteia as relações. Portanto, talvez possamos
dizer que uma boa parte dos conflitos forjados na interação deste tipo de família
pode não se dar a ver, mascarando-se ou mesmo sendo evitada pelos seus
membros, como forma de neutralizar o estresse da relação.
Parece que a família da qual falamos se refugia em sua própria estrutura, e
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esmaecendo as possibilidades de crise. Configura, assim, uma dinâmica calcada


em padrões de interação que estabelecem uma espécie de pacto de convivência
entre seus membros, criando um lugar onde os conflitos tornam-se silenciosos e
velados. Entendemos que os mecanismos e acordos estabelecidos pelos membros
da família visam a garantir o prolongamento da convivência familiar de uma
forma confortável para todos. No interior dessas famílias, em que convivem na
mesma casa adultos em diferentes posições pais e filhos, a lógica da segurança e
do pertencimento parece encobrir as tensões da sociedade contemporânea, regida
pela lógica da desterritorialização globalizada e do risco. A metáfora do lar como
lugar de tranquilidade e permanência representa o convívio desse adultos de
diferentes gerações.
No que tange ao universo do trabalho, todavia, consideramos que essa
convivência pode ser permeada pelo mal-estar. Em outras palavras, a família
deixa transparecer contrastes e ambigüidades quando o foco de discussão vem a
ser a esfera do trabalho, pois os valores e ideais envolvidos em seu discurso se
constituem como duas lógicas contraditórias. Esta esfera remete os sujeitos ao
deslocamento constante e instável. A ambição e o empreendedorismo são
prerrogativas do domínio público, enquanto no domínio privado familiar, em
especial no tipo de família ao qual nos referimos, parece que os sujeitos se
recusam a deslocar-se, ambicionar novas posições ou empreender mudanças.
28

A família, um espaço privilegiado de convivência intergeracional,


apresenta-se como um lugar de troca e diálogo. Ao mesmo tempo, define-se como
um território, no qual diferentes concepções de vida e mundo – fundadas a partir
da especificidade cultural de cada uma das gerações em questão – se dão a ver.
Assim, o encontro intergeracional de pais e filhos adultos pode indicar uma
descontinuidade de valores e comportamentos de uma geração para a outra no que
concerne à dimensão do trabalho.
Contudo, essa descontinuidade pode estar camuflada por uma atmosfera de
proteção familiar que não permite sua revelação de modo imediato ou espontâneo.
Em face das diferentes lógicas simultâneas, coexistentes, a exemplo do que
desenvolvemos nesse item, tomamos as dimensões da convivência familiar e do
trabalho, a fim de evidenciar algumas questões representativas das mudanças
ocorridas na família contemporânea, o que vai permitir avançar na discussão e na
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compreensão das novas configurações familiares e dos novos modos de ser e estar
em família hoje.

2.2
O adiamento do casamento nos dias atuais

A falência das instituições tradicionais tem sido indicada por muitos autores como
uma marca de transição do moderno para o contemporâneo. Os compromissos
duráveis – sejam eles afetivos ou relacionados ao sistema social mais amplo,
como o trabalho, por exemplo – parecem não combinar com a velocidade da
experiência cotidiana. Em Lasch (1984), encontramos uma interessante versão do
indivíduo contemporâneo pela qual este é admitido como um sobrevivente e adota
impulsos defensivos associados a esse estado. O autor ressalta que os
compromissos de longo prazo e as ligações emocionais trazem certos riscos num
mundo instável e imprevisível.

Na medida em que os homens e mulheres comuns não tenham confiança na


possibilidade de uma ação política coletiva, não tenham esperança de reduzir os
perigos que os cercam, eles acharão custoso ir adiante, sem adotar algumas das
táticas do sobrevivencialismo. (Lasch, 1984, p.83)
29

O indivíduo como sobrevivente do cotidiano desliza entre um sentimento


permanente de crise e uma impotência e desinteresse em relação às questões
públicas. O risco de guerra nuclear, a ameaça de catástrofe ecológica, ou
simplesmente o medo do envelhecimento, da doença, da dificuldade em se manter
um relacionamento estão presentes na vida diária e geram comportamentos
próprios de situações extremas, como “uma individualidade multiforme e uma
anestesia emocional” (Lasch, 1984, p.84). É como se fosse um sentimento
permanente de espanto diante da constatação de que nada deverá durar.
As táticas de sobrevivência referidas por Lasch, tais como as evitações de
compromissos a longo prazo e de formação de vínculos afetivos duradouros,
podem sintetizar a problemática das relações interpessoais contemporâneas
presentes na esfera social. A esfera familiar pode ser pensada como uma tática de
sobrevivência de extrema importância na medida em que ela constitui, para todos
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os seus membros, um refúgio contra os “perigos que os cercam”. É nesse sentido


que o fenômeno geração canguru – uma construção das individualidades
contemporâneas vivida na esfera familiar – reflete a trajetória do indivíduo em
circunstâncias históricas que, por sua grande incerteza, instabilidade e
insegurança, levam-no ao desenvolvimento pessoal de táticas defensivas contra o
risco e a ameaça constantes.
O tipo de relação afetiva produzida entre os jovens fora da esfera familiar
baseia-se na ideologia do não-compromisso e abarca esse conjunto de
transformações que podem ser observadas no processo de subjetivação dos
indivíduos jovens. Os relacionamentos afetivos atuais se mostram sujeitos à
exacerbação do individualismo. Se concordarmos com Lasch, esse universo de
relações afetivas ao se constituir a partir das premissas da pós-modernidade
confirma uma excessiva valorização do eu, e configurando, nos termos do autor,
uma verdadeira “cultura narcísica”.

2.2.1
As experiências amorosas contemporâneas

Articulando essas idéias ao universo jovem, deparamos com um tipo de


relacionamento característico dessa geração, o “ficar com”, no qual não existe o
30

compromisso; o momento e o prazer imediato são as bases desse código. Para


Chaves (2001), o “ficar com” é o fast-food das relações afetivas. O indivíduo
ingere o relacionamento de forma voraz, fica com vários parceiros, numa troca
infindável de objetos sem identidades definidas, na esperança de não sentir um
vazio, uma falta interna. Em alguns momentos ele se dá conta de que ficar é um
paliativo, uma ilusão; em outros se deixa levar pelo prazer imediato da
experiência. Sendo assim, as características das experiências subjetivas do
momento presente se baseariam em uma economia de contato, bastante difundida
entre os grupos jovens.
De acordo com Ventura (2008), em sua obra 1968 O que fizemos de nós, o
advento da AIDS teria posto um fim à revolução sexual, caracterizando uma
verdadeira “contra-revolução”. O depoimento de Marília Carneiro, na obra citada,
complementa esta idéia: “transar, que no nosso tempo era uma coisa saudável, é
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hoje uma aventura perigosíssima. Tem o risco de HP não sei o quê, uma hepatite
não sei das quantas, esses vírus todos” (p. 18) A insegurança transformou as
relações entre os jovens e o “ficar com” teria muito a ver com isso, embora o
descompromisso se agregue a essa atitude.
Tomando o quadro de mudanças contemporâneas e a velocidade das novas
formas de experiência social e afetiva como referenciais, podemos então destacar
a ideologia do descompromisso, na qual estariam pautadas as relações afetivas
atuais. Percebemos, apoiados pelos autores acima citados, que os jovens adultos
deslizam pelo descompromisso tanto social quanto afetivo, parecendo não se
preocupar com o compromisso de uma vida fora dos muros familiares, ou com os
seus relacionamentos afetivos.
Ventura aponta que a atual geração jovem, a “geração do milênio” se
depara com a descontinuidade em relação à geração dos pais, a “geração maio de
68”. Seria algo surpreendente, da ordem do sonho da era de Aquário ao pesadelo
do aquecimento global. A geração maio de 68 queria tudo a que não tinha direito,
a atual tem tudo que precisa e, talvez, por isso se revele ambígua e paradoxal.

Num tempo em que a obsolescência planejada atinge todas as áreas, inclusive a


das idéias e dos sentimentos, predomina nesses jovens a busca meio agônica do
paroxismo – a vertigem, o risco e o transe. Em uma palavra, o êxtase, ou melhor,
ecstasy, a droga-símbolo dessa geração. Não estão a fim de fazer uma revolução
para mudar o mundo, mas de criar o seu próprio, o de sua tribo. Em vez de uma
31

nova vida, um substituto a ela, um universo paralelo, ainda que artificial. Mas que
isso não signifique viver à margem, à maneira dos hippies. Eles são capazes de
passar a noite embalados por drogas e, no dia seguinte, ir trabalhar ou estudar.
(Ventura, 2008, p. 23)

Na perspectiva do autor, a “geração-ecstasy” vive um tempo menos


crédulo e, possivelmente, menos ingênuo que a de seus pais. Neutralizados pela
ausência ou pela pouca intensidade repercursiva de ideais de ordem comunitária,
essa geração jovem vive o coletivo de uma forma diferenciada, compartilha um
momento de sensações que pode durar uma noitada e se prolongar com o
planejamento da próxima. Possivelmente, crêem que regar o próprio quintal seja o
que pode ser feito em termos de bem comum.
Alertamos, contudo, que o universo da categoria denominada geração é
múltiplo e diverso, abarca inúmeras composições, tais como, tribos, galeras,
dentre outras. Conforme Groppo (2000) a noção de geração deve também incluir
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outras categorias sociais como classe, gênero, etnia e outras mais, para que se
possa examiná-la em toda a sua abrangência. De toda a maneira, essa visão
apresentada por Ventura situa-se na contracorrente do pessimismo a respeito do
indivíduo jovem contemporâneo.
Bauman (2003), em Amor líquido nos fala de um indivíduo
contemporâneo que deseja relacionar-se e, no entanto, teme a condição de estar
ligado, assim como, a experiência do permanente, que pode acompanhar o
relacionamento. No cenário líquido da modernidade, os relacionamentos
representam, categoricamente, o sentido pleno da ambivalência. O amor é um
terreno ambíguo, uma vez que oscila entre o sonho e o pesadelo e “não há como
determinar quando um se transforma no outro”. (p. 8) Esses dois pólos convivem,
em diferentes graus de consciência, ou talvez possamos dizer, como Simmel
(1912), que eles se interpenetram: não existem um sem o outro. O triunfo do amor
carrega a sua derrota, o embate é permanente e a disposição para a luta vai
depender da sua vulnerabilidade.
Relacionar-se é se expor ao risco e à ansiedade. Talvez, a problemática
dessa condição seja mesmo a noção de relacionamento. Esta comporta a
perturbação, o vago e o sombrio, revela o prazer e o fechamento nos limites do
convívio. Entendemos que se trata de uma idéia em aberto, em busca de
32

redefinição. “O conjunto de experiências as quais denominamos amor, expandiu-


se muito”. (Bauman, op. cit. p.19) Atualmente, os indivíduos não consideram a
experiência amorosa como minimamente possível em suas vidas. A expectativa é
a de viver grandes amores ao longo da existência, “mais estimulantes que os
anteriores”.
Assim, o amor pode se constituir como eventos curtos, porém, intensos e
impactantes, pois, ao se ingressar em uma terra inexplorada e não mapeada tudo
pode acontecer. O amor significa “ingerir, absorver e assimilar o sujeito no
objeto”. “Todo amor é matizado pelo impulso antropofágico”, os parceiros
querem esmaecer ou expurgar a alteridade que os separa, como também mitigar a
dor da despedida e da separação. O amor revela a domesticação, no sentido de
abrigar, alimentar, mas também, no de guardar e encarcerar, e digerir e aniquilar.
Dessa forma, a fusão ocorre ao lado da recusa em se deparar com a fragilidade do
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sentimento. O desencanto surge dessa experiência dual do amor, aponta Bauman.


Quando os parceiros reconhecem o nós, ou seja, quando o outro é visto
como segundo, aí reina a indeterminação, pois “onde há dois não há certeza”.
Entre “acorrentar o nômade” e se “aventurar em um novo pasto” não existe um
precipício.

A promessa de aprender a amar é a oferta (falsa, enganosa, mas que se deseja


ardentemente que seja verdadeira) de construir a experiência amorosa à
semelhança de outras mercadorias, que fascinam e seduzem exibindo todas essas
características e prometem desejo sem ansiedade, esforço sem suor e resultados
sem esforço. (Bauman, 2003, p. 22)

O relacionamento amoroso situa o desejo e o amor em lugares opostos.


Enquanto o amor se esforça em manter o desejo, este tenta se livrar da prisão do
amor. A sociedade consumista alimenta a perpetuação do desejo e dessa forma,
detém os avanços do compromisso. O indivíduo se encontra entre a cruz e a
caldeirinha e pode se confundir no que tange ao ato de fechar ou abrir as portas
para novas possibilidades amorosas.
O contraponto a essa versão instantânea do amor pode se manifestar no
samba de Noel Rosa, Silêncio de um minuto:
33

Não te vejo e não te escuto


O meu samba está de luto
Eu peço o silêncio de um minuto
Homenagem à história
De um amor cheio de glória
Que me pesa na memória.

Toda a solidez do sentimento transborda na canção e expõe as raízes do


investimento. Nos dias atuais, isso significa estar na contramão da história.
Assim, sob o ponto de vista da liquidez e da instantaneidade, viver junto
abarca a idéia de uma luta diária para se manter a afinidade viva. Não existe
certeza e os laços são como fios soltos, prontos a se dissolverem e a se juntarem
em uma nova possibilidade vislumbrada.
Nesse ponto, consideramos importante apresentar uma versão menos
contundente das relações humanas contemporâneas. Lipovetsky (2002), por
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exemplo, nos mostra um paradoxo vivido na atualidade, calcado em sua


concepção de ruptura do ideal de moral tradicional. O autor se refere à nossa
“sociedade pós-moralista”. Em uma sociedade que endeusa o prazer, a
sexualidade, a satisfação do desejo, entre outros, não se encontram contextos
sociais entregues às orgias ou anarquias sexuais. Na realidade a vida sexual
continua a se dar de acordo com limites precisos.

O apogeu do individualismo pós-moralista coincide, certamente, com a ascensão


dos “prazeres privados” e das preocupações lancinantes com o eu, mas,
paradoxalmente, em paralelo com a vontade de ajuda mútua, sem obrigações, sem
coerção, livremente, sem exigência de regularidade e disciplina. (Lipovetsky,
2002, p. 33)

Certamente esse autor apresenta uma visão menos apocalíptica da


realidade, sem, no entanto, discordar do enfraquecimento dos laços sociais nos
dias de hoje. Entretanto, reitera uma nova forma de relacionamento interpessoal,
menos colada aos deveres e mais ligada à realização pessoal. Em suma, o
indivíduo de hoje busca mais independência, mais autonomia, é mais crítico no
que concerne à esfera de seus relacionamentos e esta atitude mais livre implica em
menos permanência, volubilidade e muitas incertezas.
34

2.2.2
“Viver juntos”, a conjugalidade em questão

A despeito das grandes transformações envolvendo as relações afetivas, alguns


autores apontam para a relevância do lugar privilegiado ocupado, hoje, pela
conjugalidade na sociedade ocidental igualitária. A temática da conjugalidade
vem adquirindo uma grande força, como nos informa a bibliografia sobre famílias
e casais. Lasch (1977) nos diz que em tempos de sociedade norteada pela ótica
igualitária, a conjugalidade aparece como elemento essencial no universo das
relações interpessoais:

Se o industrialismo exigiu que a família fosse reduzida de sua forma extensa a


sua forma nuclear, então, o “superindustrialismo requer uma maior aerodinâmica,
uma redução da família ao casamento. (Lasch, 1977, p. 180)
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O primado da conjugalidade também é apontado por Singly (1993) como


característica do contemporâneo: “a relação conjugal tem mais valor que todas as
outras, tanto para o marido quanto para a mulher” (p. 80). Dentro desta
perspectiva e ao lado da dimensão de provisoriedade que marca as relações
afetivas atuais, temos que o laço conjugal, apesar de prevalente, é frágil, como nos
atestam as pesquisas sobre a conjugalidade em Féres-Carneiro (2003).
Sobre esta fragilidade, Giddens (1992) mostra que o “amor confluente”,
significando um vínculo amoroso próximo e continuado com outra pessoa, é um
amor ativo e contingente que entra em choque com o “para sempre” e “único”.
Dessa forma introduz na noção de conjugalidade uma nova perspectiva, baseada
no princípio de que a relação só se mantém enquanto for prazerosa para ambos.
Conforme esse autor, o amor romântico abriu o caminho para o amor
confluente. O amor romântico implica em uma sensação de totalidade com o
outro, nascida a partir da identificação projetiva, na qual os parceiros se atraem e
se unem, configurando a busca de uma pessoa especial. O amor confluente se
afasta desse tipo de busca e privilegia o relacionamento especial. Nele se presume
que haja igualdade no doar e receber. O amor confluente não é necessariamente
monogâmico, pode não incluir a idéia de exclusividade sexual. O que mantém o
35

relacionamento é o que os parceiros consideram como “desejável e essencial”, ou


seja, o suficiente para que se justifique a continuidade da relação.
Visto sob esse prisma, o compromisso é uma questão problemática. A
conjugalidade contemporânea poderia se afigurar como ameaçadora – em seu
aspecto de vínculo, ainda que não duradouro – para a geração jovem. No entanto,
de acordo com uma pesquisa de campo sobre as atitudes de jovens solteiros diante
da família e do casamento, Jablonski (2005) enfatiza que apesar da tão difundida
crise anunciada do casamento, os jovens continuam desejando se casar. De acordo
com os resultados obtidos ao longo de sua pesquisa, destacamos duas questões em
relação ao casamento.
A primeira diz respeito às respostas referentes à perda de liberdade e
privacidade imposta pela vida a dois. Isto quer dizer que o espírito do
individualismo se sobrepõe ao que é esperado de uma vida em comum. A segunda
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se refere à grande importância dada ao amor. O autor avalia este resultado como
indicativo de um processo de idealização deste sentimento, uma vez que ele é
priorizado na relação, a despeito de outros fatores, igualmente importantes na
constituição do casamento, como o companheirismo, a parceria. O imaginário dos
jovens estaria impregnado da visão hollywoodiana do mito do amor eterno e da
paixão avassaladora.
De todo o modo, este autor aponta transformações no horizonte do
casamento contemporâneo e atribui ao fato, alguns fatores que contribuiriam para
a sua configuração. Dentre eles, destacamos a expansão do individualismo, o
aumento da longevidade, a forma de valorização do amor e da sexualidade em
nossa cultura e o processo de secularização. Acrescentamos a esses fatores, a
questão do gênero, muito discutida atualmente nos casamentos e nos
relacionamentos afetivos.
Conforme o censo de 2005, relativo ao estado civil da população brasileira
e realizado pelo IBGE, a idade média ao casar era a de 30 anos para os homens e
de 27 para as mulheres, ou seja, 3 anos a mais do que em 1984 para ambos os
lados. A esses dados adicionamos as taxas, apontadas por esse mesmo censo, de
casamentos e divórcios, para que possamos refletir sobre essas realidades. Em
2005, houve um divórcio para cada três casamentos. Segundo os gráficos da
pesquisa e tomando um grupo de mil jovens e adultos como amostra da
36

população, em 1984, 11, 4 indivíduos se casaram legalmente; em 1994, 7,3 e em


2005, 6,3. Em relação ao divórcio e para o mesmo grupo citado, em 1984, 0,5
indivíduos se divorciaram; em 1994, 1,1 e, em 2005, 1,3.
Por outro lado, as taxas de recasamento nos informam que em 1984, 5,0 %
da população recasou-se; em 1994, 8,3 % e em 2005, 14,1 %, sendo que, de
acordo com a amostra, ao menos um dos cônjuges era divorciado ou viúvo. Esses
dados demonstram que dissolver a primeira união e realizar um novo matrimônio
são gestos cada vez mais freqüentes na sociedade brasileira contemporânea. Ao
lado disso, a pesquisa do IBGE aponta que as uniões não formalizadas, em 1960,
representavam 6,5 % dos casais e em 2005, 28,5 %. Ao refletirmos sobre esses
números, percebemos que a curva decrescente só vale para a primeira união
formal, ou seja, o casamento no grupo dos solteiros.
Para Mello (2006) a introdução do novo Código Civil, em 11 de janeiro de
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2003, mudou a postura dos indivíduos em relação ao casamento. Com as novas


normas, o casamento de “papel passado” e as uniões consensuais não
formalizadas acabaram se tornando iguais no que concerne os direitos e deveres.
Paralelamente, o que antes era um fenômeno das classes sociais mais baixas da
sociedade, hoje pode ser visto como um estilo de vida e plenamente difundido nas
classes médias e altas. De toda maneira, 49 % da população brasileira se
denomina como casada: entre o restante 37 % são solteiros, 9 % são separados e 6
% são viúvos, como sublinha a pesquisa nacional do Datafolha 2007.
Se quisermos nos aventurar, em uma breve incursão, nas diferenças de
gênero em relação à esfera do casamento, a pesquisa da demógrafa Elza Berquó
da UNICAMP nos será útil. O percentual de mulheres casadas na faixa etária dos
20 aos 29 anos é de 31,7 % e o de homens, na mesma faixa etária, 21,3 %. Nessa
população há um excedente de 1,4 milhão de jovens solteiros, viúvos ou
divorciados. Já na faixa dos 30 aos 40 anos, 54 % dos homens estão casados e
55,7 % das mulheres estão casadas e o excedente das não-casadas em comparação
com os não-casados é de apenas 99 mil.
Nas faixas etárias subseqüentes, o IBGE aponta que há um excedente de
mulheres não-casadas, expressivamente superior aos dos homens não casados. Por
exemplo, a partir dos 70 anos, 26,5 % de mulheres estão casadas, assim como
62,9 % dos homens, ou seja, há 38 homens não-casados para 100 mulheres não-
37

casadas. Talvez esses números revelem uma longevidade menor no gênero


masculino aliada a uma maior possibilidade, para os homens, de morte violenta,
ou, ainda, a ocorrência de uma chance menor para as mulheres de encontrarem
parceiros, à medida que envelhecem.
Todo o interesse e o debate da sociedade em relação ao casamento
atravessam e bombardeia o imaginário dos nossos jovens adultos. Essa instituição
é discutida por inúmeros veículos midiáticos, é capa de revista, tema de
telenovela, assim como está presente na universidade, nos grupos de pares, nos
relacionamentos afetivos e nas conversações no mundo privado familiar. Enfim, é
um tema debatido em quase todos os setores da esfera social. A pesquisa do
Datafolha 2007 aponta que, entre a população masculina na faixa etária
compreendida entre 16 e 25 anos, 92 % consideram a instituição do casamento
ótima; e a diferença em relação às mulheres é de apenas três pontos percentuais:
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89 %. A partir dos 41 anos, observa-se a mesma opinião para 87 % dos homens e


77 % das mulheres.
Goldenberg (2001) afirma que, atualmente, os casamentos são desfeitos
com mais facilidade e que, em compensação novos casamentos se realizam em
sucessão. Nessa perspectiva, compreendemos que alguns falsos mitos de união e
divisão sexual possam ter caído por terra, deixando lugar para a invenção do casal
que se deseja construir. Para tanto, de acordo com a autora, “novas idéias
expressam melhor o que efetivamente ocorre no cotidiano de um casal, como
respeito às diferenças e ao espaço do outro, negociação diária, diálogo
permanente, troca, crescimento mútuo” (p. 101). Assim, a invenção da parceria
amorosa seria uma batalha diária e permanente, sem segurança nem estabilidade.
Essa autora focaliza, em sua discussão acerca da invenção do casal,
algumas noções elaboradas por Simone de Beauvoir na obra O Segundo Sexo, as
quais consideramos de suma importância para a compreensão do que seja o
casamento na atualidade. Aqui, destacamos aquela em que a autora francesa expõe
sua aversão à idéia de indissolubilidade da união, ou seja, a prerrogativa de que os
indivíduos devem se bastar por toda a vida. Beauvoir admitia que este imperativo
vem a ser um impasse gerador de hipocrisias e infelicidade na união.
Goldenberg nos esclarece acerca da sobrevivência em cada indivíduo, de
um modelo de família nuclear, assim como de diferentes modelos de
38

masculinidade e feminilidade. Diante disso, compreendemos que possa não existir


muita clareza no domínio do que seria norma ou desvio na conjugalidade. A essas
questões se somam ainda outras e, no entanto, destacamos a noção da sexualidade
na relação conjugal, que se delineia como hiper-valorizada na cultura brasileira. A
norma balizadora da vida sexual dos casais prescreve a atração e a satisfação
nesse domínio, compelindo os indivíduos a se obrigarem ao exercício de uma vida
de eternamente recém-casados. Segundo a autora, essa imposição instiga, entre os
parceiros, o questionamento de sua felicidade sexual. “Comparando-a com a de
outros casais imaginários” criam uma fantasia mais real que a realidade, o que
pode desequilibrar a relação.
Se concordarmos com Giddens (1992) quanto à continuidade da relação
estar atrelada ao que os parceiros consideram prazeroso no âmbito do
relacionamento, as questões da fidelidade e da infidelidade se afiguram como
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pontos nodais na avaliação do casamento. A pesquisa do Datafolha 2007 nos


mostra que tanto para os homens quanto para as mulheres, a fidelidade é o item
mais importante da união, mais ainda que o amor. Para a pergunta, “o que é mais
importante no casamento?”, 38 % responderam a fidelidade e 35 %, o amor.
Podemos pensar que a fidelidade tornou-se tão importante, em função da
facilidade do laço conjugal ser desfeito, e o casamento só é bom quando há
confiança e prazer na convivência. Parece que não se espera mais a tolerância
diante da traição, como em momentos anteriores da nossa história.
De acordo com Magalhães e Féres-Carneiro (2003) a conjugalidade
representa uma oportunidade de recriação dos eus e a sua transformação em um
“nós” conjugal. Esse ponto de vista é bastante adequado à nossa discussão, por
instaurar no convívio conjugal, a possibilidade de expansão das subjetividades
envolvidas. A nosso ver, essa visão oferece uma versão menos sombria da
conjugalidade e, assim, mais otimista no que tange a seus aspectos ampliadores e
facilitadores do crescimento dos eus em questão. A conjugalidade, compreendida
como o nós conjugal, mobiliza nos cônjuges reestruturações subjetivas, fundadas
no compartilhamento e no entrelaçamento vivido na experiência amorosa. Dessa
forma, a conjugalidade se apresenta como um valor estruturante, “os parceiros se
transformam, a partir da utilização do outro como instrumento de recriação do eu”
(p. 50).
39

A noção de conjugalidade em Magalhães (2003) surge da experiência de


ilusão e se direciona à experiência de integração. Isso quer dizer que o eu é
instaurado a partir de um nós primitivo. Para tal afirmação, a autora recorre à obra
de Winnicott, que discorre com imensa competência sobre a construção da
subjetividade humana. Como esse autor escreve, em Da Pediatria à Psicanálise
(1952), a “primeira mamada teórica” configura o potencial criativo do indivíduo,
surgido da necessidade, a um estado propício à alucinação. Trocando em miúdos,
a mãe providencia tudo que o bebê precisa nesse momento de fusão com o mesmo
e essa repetição de situações dá início a uma capacidade especial deste bebê, a de
usar a ilusão. Se no lugar dessa ilusão puder existir “um polegar, a ponta de um
cobertor e, sucessivamente, uma boneca de pano ou um ursinho, teremos um
objeto transicional” (p. 311).
Esse objeto transicional acontece em uma realidade compartilhada, que
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supõe a existência de um espaço intermediário, no qual tanto a realidade subjetiva


quanto a objetiva podem se integrar, discriminar e se reintegrar. Assim,
Magalhães propõe que na vivência da conjugalidade, essa experiência de
transicionalidade encontra um terreno bastante favorável. A alternância entre as
realidades subjetiva e objetiva, vivida na experiência amorosa, proporciona
possibilidades de expansão e reestruturação dos eus.
Winnicott em Tudo começa em casa (1970), discorre acerca do viver
criativo nos limites do casamento. Esse autor afirma que se o indivíduo “já foi
feliz”, pode suportar a dificuldade em relação à curva decrescente do amor na
relação conjugal e dispor de uma capacidade de fluidez e flexibilidade na
condução da vida a dois. Isso quer dizer que o indivíduo só passa para a desilusão
e a aceitação do princípio da realidade a partir da base da ilusão, da experiência de
onipotência e de criação de um mundo segundo suas necessidades e em seus
primeiros momentos de vida. Após viver a onipotência ele pode experimentar as
limitações que o mundo impõe.
Na vida a dois o indivíduo pode experimentar a dependência e
independência, a diferenciação e a indiferenciação, configurando um jogo
dinâmico ou um brincar, estabelecido na alternância entre os mundos subjetivo e
objetivo. A experiência amorosa é vivida no espaço transicional, ela não é nem
fantasia e tampouco realidade.
40

Quero esclarecer que uma dúvida filosófica está envolvida até o último detalhe da
experiência do viver criativo – isso porque, quando estamos em gozo de nossa
sanidade, realmente só criamos aquilo que descobrimos. Até mesmo nas artes não
podemos ser criativos no vácuo, a menos que sejamos solistas num hospício ou
no asilo de nosso próprio autismo. (Winnicott, 1970, p. 38)

Portanto, no cotidiano da vida conjugal é possível exercer a capacidade de


surpreender o outro, ou seja, entre frigideiras e gravatas pode-se ampliar o campo
para um viver criativo.

2.3
A revalorização do espaço familiar

Quando nos vem à mente o termo família, uma das primeiras associações
vislumbradas pode vir a ser a hereditariedade, a herança, aquilo que se recebe dos
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pais e das gerações anteriores. A opção por iniciar esse item abordando tal tema
baseou-se, também, em sua possibilidade de viabilizar um debate, colocando em
pauta o viés cultural implícito e o peso dessa bagagem na subjetividade
contemporânea. Entendendo que é na esfera da intersubjetividade, ou no campo
das relações, que os herdeiros decidem o que vale a pena manter do que foi
recebido.
Apesar de estarmos conscientes e bem informados por todo um conjunto
de pensamento crítico em relação ao modus vivendis contemporâneo, acreditamos
que o mundo que nos antecedeu não era o melhor dos mundos. Também não
temos motivos para crer que o mundo atual seja melhor, porque o anterior não era
bom. Assim, indecisos, realizamos nossas escolhas. Lipovetsky (1997) afirma que
continuamos guiando nossas ações, classificando-as e hierarquizando-as, segundo
suas potencialidades de gerar o bem e o mal, à moda da tradição. Nessa
perspectiva a idéia de herança implica em uma espécie de filtragem, de escolhas e
de estratégias.
Podemos partir do princípio de que o que recebemos não é uma escolha, de
que somos passivos diante da herança. De certa forma, somos obrigados a receber
algo que é mais antigo, mais poderoso e duradouro do que aquilo que é visto à
nossa frente. Entretanto, para que possamos reafirmar o que herdamos ou trilhar
outros caminhos é preciso agir ativamente, e por isso escolhemos, preferimos,
41

sacrificamos, excluímos, deixamos de lado etc. A responsabilidade perante o que


herdamos se desdobra na responsabilidade daquilo que está por vir, do que é
escolhido.
Derrida (2001) afirma que a herança é uma dupla lei, que nos coloca em
uma injunção contraditória: “receber e, no entanto, escolher, acolher o que vem
antes de nós e, no entanto, reinterpretá-lo”. (p. 14) Em outras palavras, para que a
herança se mantenha viva, há que se reinterpretar, se criticar, se deslocar no
sentido da busca de transformação: é preciso condenar para salvar. Assim, ela
ordena dois gestos ao mesmo tempo, nos elege e nos faz escolher preservá-la.
Pensando desse modo, o herdeiro não é somente aquele que recebe, é alguém que
escolhe e que trabalha arduamente para decidir. Nesse sentido, a vida em família
coloca essa questão de uma forma definitiva.
A vida em família, de um modo geral, foi severamente criticada nas
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décadas de 1960 e 1970 pela contracultura, pelo feminismo e pela anti-psiquiatria,


por representar uma arena de conflitos na qual os sentimentos do indivíduo eram
violentados. Na qualidade de herdeiros, os filhos viam seus horizontes de escolha
mais reduzidos. E foi nesse cenário de ataque à família que a geração de pais por
nós focalizada viveu os seus tempos de juventude. Essa geração de pais
estabeleceu uma ruptura em relação a seus pais. O espaço familiar destes
coabitantes constituía uma espécie de campo de batalha no qual eram vividos
conflitos e coexistiam diferentes visões de mundo. A partir desta ruptura e ao lado
dos seus ideais libertários, parece que aqueles jovens traçaram para si um projeto
de vida familiar oposto ao de seus pais.
Paralelamente, muita coisa mudou no campo sociocultural a partir da
década de 1970 até os dias de hoje. No plano das relações interpessoais, por
exemplo, sob a influência do individualismo e do igualitarismo, a própria idéia de
família foi reinventada. A noção de família igualitária, em linhas gerais, foi
forjada em um reino de pluralidades de escolhas no qual as diferenças individuais
são percebidas como mais importantes que as diferenças sexuais e de idade.
Assim submetidos ao princípio da igualdade, os papéis e os relacionamentos
familiares sofreram mudanças expressivas.
Em estudo anterior (Henriques, 2004), apontamos a amizade e a
cumplicidade, como normatizadoras das relações entre os pais e os filhos adultos
42

entrevistados. De tal forma essas qualidades afetam os relacionamentos, que


podemos dizer que imprimem a esse universo familiar um percurso rumo ao
igualitarismo relacional, ao mesmo tempo que esmaecem a hierarquia parental de
outros tempos. As relações se processam entre “quase-iguais” e parecem ser
regidas pelas mesmas normas que norteiam as relações interpessoais de um modo
geral, isto é, sem exigências e expectativas. No entanto, percebemos nas falas de
nossos informantes um jogo inter-relacional que consiste no exercício de certo
controle por parte dos pais, realizado de forma invisível, porém percebido pelos
filhos. Estes participam desse jogo aceitando as regras no plano do discurso e não
no da ação. Isso quer dizer que pode existir uma hierarquia velada e não praticada.
DaMatta nos fala de uma prática hierárquica não descolada da sociedade e
da família brasileira de hoje, assim como, de uma herança do sistema patriarcal
que confere à esfera relacional, um território de contradições, que “assombra a
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nossa existência”. Acreditamos que os mecanismos e acordos estabelecidos entre


os membros da família visam a criar uma prática que garanta a continuidade, o
prolongamento da convivência de uma forma confortável para todos. Todavia, a
democracia familiar é, também, feita de paradoxos, ambigüidades e incertezas.
Existe um paradoxo em nossa sociedade, aponta DaMatta (1978), um
descompasso entre o mundo das regras e leis e a prática cotidiana, esta calcada no
modelo hierárquico.
Nesse sentido, ampliando o nosso olhar, existem duas atitudes distintas
coexistindo no sistema de relações sociais: a atitude igualitária e a hierarquizada.
Esta coexistência parece admitir que as práticas a elas relacionadas se alternem de
acordo com o contexto em que atuam. Uma capa igualitária encobre um corpo
ainda hierarquizado no sistema social. Em alguns rituais, o autor sublinha:

(...) nos colocamos muito mais ao lado das escalas hierárquicas e dos caxias – que
sistematicamente queremos esconder ou, o que dá no mesmo, achamos que não
devemos mostrar, pois cada qual deve saber o seu lugar – do que das associações
espontâneas, livres e amorosas dos futebóis, cervejas na praia, carnavais e samba.
(DaMatta, 1978, p. 182)

Sem dúvida, um dos desafios de nossos tempos é o convívio entre os


valores tradicionais e a modernidade. A perda de valores, ou mesmo uma idéia de
perda, leva à angústia e à perplexidade. Os prenúncios de catástrofes e profecias,
43

sempre habitaram o imaginário do indivíduo, e contudo, hoje, este vaticínio


muitas vezes coloca o mundo de pernas para o ar, o que é altamente desorientador.
Neste contexto, Lasch (1977) se alinha aos pensadores que apresentam um
mundo em processo de decomposição, no qual não há lugar para a coexistência
dos valores familiares e rituais e tradições.

Os mesmos acontecimentos históricos que tornaram necessário estabelecer uma


vida privada – especialmente a família – como refúgio do mundo cruel da política
e do trabalho, como santuário emocional, invadiram este santuário e o
submeteram ao controle externo. O retraimento à privacidade já não serve para
sustentar os valores ameaçados de extinção. (Lasch, 1977, p. 24)

Sendo assim, a tentativa de consertar a família, impetrada pelo mundo


público, traria consigo o germe da destruição. A família, vista dessa maneira, se
apresentaria como uma instituição sitiada, em um processo de erosão.
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Por outro lado, Costa (2004) nos lembra que, querendo, ou não, somos
todos contemporâneos e não há como recuar na história. Mas aceitar que tanto os
ideais de felicidade quanto os da vida como entretenimento causaram profundas
marcas na dimensão dos valores, não quer dizer que devamos nos submeter às
idéias de desmoronamento do que é tradicional. “A tradição não se perdeu. Nós,
contemporâneos, é que lutamos para retirá-la de seus nichos seculares...” (p. 16)
Uma versão do universo familiar menos drástica e mais amena nos é
apresentada por Lipovetsky (2002). Esse autor nos informa sobre uma família
reinventada, diante das condições vividas na modernidade. Lipovetsky ressalta
que a sociedade atual traduz o apagamento da moral tradicional, dos deveres, das
obrigações e dos sacrifícios. Essa lógica de reinvenção encontra eco na família,
pois, apesar do grande número de divórcios, uniões livres e filhos fora do
casamento, a família se encontra novamente no pedestal, segundo sua visão.

O novo sopro ideológico da família não significa de forma alguma uma


reabilitação dos deveres familiares, ou seja, submissão do indivíduo aos deveres
em relação à coletividade representada pela família, mas ascensão de uma família
psicologizada, à la carte, emocional, gerida segundo os princípios da autonomia
individualista. (Lipovetsky, 2002, p. 28)
44

Dessa forma, o individualismo não significaria o fim da responsabilidade e


da solidariedade e sim implicaria em uma nova forma de participação, mais livre e
menos rígida.
Cabe aqui introduzir o pensamento de Singly acerca do individualismo
contemporâneo e dos seus raios de ação sobre a esfera das relações. Esse autor em
Les uns avec les autres (2003), sublinha a importância do laço, seja ele social,
político ou afetivo, no debate sobre o mundo contemporâneo. Nos dias atuais,
para Singly, o laço é “leve” (souple): contudo, afirma que o indivíduo verbaliza o
desejo de obter um laço mais forte. Por outro lado, esse indivíduo não quer abrir
mão do que poderia significar uma diminuição de sua liberdade. Essa
discontinuidade no plano do discurso resvala em possíveis reflexões sobre os
constrangimentos e obrigações de um laço consistente e na escolha e eleição de
um laço mais leve, porém mais afeito às intenções do indivíduo de hoje. Esse tipo
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de laço se define a partir de suas características de liberdade, eleição e ruptura. “O


laço será composto de fios menos sólidos que os fios anteriores, todavia,
significará mais.” (Singly, 2003, p. 21)
Para aprofundar o seu ponto de vista sobre o laço, Singly recorre a uma
esquematização do conceito de modernidade, a qual divide em dois momentos
históricos. O primeiro período da modernidade se situa entre a revolução francesa
e a metade do século XX e, nele, o indivíduo surge como um ser dotado de duas
dimensões essenciais para a sua vida em sociedade. Uma diz respeito ao seu
pertencimento à comunidade humana: a outra, ao seu pertencimento a uma nação.
Ou seja, o indivíduo se define como “homem e cidadão”. “Ele deve também se
emancipar de si mesmo, renunciar a suas paixões, seus amores, seus afetos, ou ao
menos, os deslocar para a sua vida privada”. (p. 25)
O segundo período da modernidade, situado após a década de 1960, é o
tempo da diferenciação pessoal. O indivíduo não aceita mais uma identidade tão
fixa, ele deseja conhecer partes de si distintas e reivindica a originalidade. A
psicologização da sociedade contribuiu para essa versão do indivíduo. Singly
declara que entre essas duas posições não existe ruptura.
45

A diferenciação dos traços pessoais (que podem ser traços estatutários ou um


pertencimento a um grupo ou outro) só faz sentido se for associada à
emancipação. As dimensões pessoais não podem, em princípio, serem dimensões
herdadas, impostas, elas se submetem a um trabalho crítico e a uma confirmação
eventual. (Singly, 2003, p. 236)

Dessa forma, se concordarmos com o autor, essas duas versões do


individualismo são complementares, não há uma hierarquização.
Já para Dumont (1983), o individualismo é o valor fundamental da
sociedade moderna. É o conceito de indivíduo que, na esfera da ideologia,
inaugura a modernidade.

Distinguimos dois sentidos da palavra indivíduo: o sujeito “empírico” da palavra,


do pensamento, da vontade, amostra indivisível da espécie humana, tal como o
observador encontra em todas as sociedades; o ser moral, independente,
autônomo e, assim (essencialmente), não social, tal como se encontra, sobretudo,
em nossa ideologia moderna do homem e da sociedade. (Dumont, 1983, p.75)
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O autor conecta essa concepção de indivíduo como ser uno, autônomo e


responsável por seus próprios atos à constituição do cidadão moderno, remetendo
assim o conceito de individualismo às origens do pensamento democrático,
baseado nos direitos iguais para todos. Dessa forma, articula a noção de indivíduo
a um contrato social garantido pelo Estado e pelo qual este direciona direitos e
deveres. Segundo sua visão, existe uma correlação entre os ideais igualitários e
libertários experimentados a partir da Revolução Francesa e o surgimento e a
hegemonia do conceito de indivíduo como valor social.
Também Simmel (1917) nos apresenta duas noções de individualismo. A
primeira, a de singleness – tal como em Dumont inspirada no iluminismo –,
baseia-se numa revolução quantitativa ou numérica, na qual o indivíduo se destaca
do todo social como uno e se faz representar na idéia de igualdade, na crítica à
hierarquia, entre outros. A segunda noção – embalada no contexto do romantismo
alemão de fins do século XVIII, e indo além da visão de Dumont – é a de
uniqueness, a qual diz respeito ao individualismo da singularidade, da diferença
ou da qualidade. Voltado para a exploração das paixões, da interioridade, da
idiossincrasia, esse individualismo prega que “cada um é singular”.
Assim, segundo Simmel, pode-se identificar uma trajetória histórica no
conceito de individualismo, embora essas duas noções não tenham sido
46

excludentes, uma vez que coexistiram no século XIX. Para Coutinho (2002) as
duas revoluções individualistas apontadas por Simmel são atualíssimas no mundo
de hoje, onde a falência do ideal universalista presente no contrato social contribui
para a instauração de um novo modelo de individualismo.
Singly (2005) renomeia os dois tipos de individualismo, um é classificado
como abstrato e o outro, como concreto. O primeiro, o abstrato, designa tudo que
é comum a todos os seres humanos, ou seja universal. O segundo, o concreto,
busca o que é diferente em cada um, a originalidade, as características únicas que
requerem um tratamento diferenciado; nesse sentido, ele é particular. De acordo
com nosso ponto de vista, Singly ao renomear os dois tipos de individualismo,
busca romper com a hierarquização que subjaz essa discussão. A tensão entre
esses dois termos, um que une e outro que separa, “é respeitável e uma exigência
moral”. Não se busca, somente, a igualdade, mas também o reconhecimento da
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diferença. Por isso, o individualismo só pode ser um humanismo se conseguir


conservar certo equilíbrio entre o universal e o particular.
Dessa forma, o indivíduo individualizado busca suas dimensões de
pertencimento segundo sua escolha e reivindica um tratamento que respeite e
assegure suas conquistas pessoais. Nesse caso, ele procura viabilizar laços – ainda
que menos fortes e consistentes – que possam unir sem enclausurar e, assim,
permitir novas possibilidades de viver junto. Acreditamos que no âmbito da
convivência familiar prolongada, aqui focalizada, os indivíduos em suas esferas
relacionais exercitem essas prerrogativas democráticas acima expostas.
Paralelamente, entendemos que o risco e a incerteza, aspectos colados aos laços
contemporâneos, possam ser relativizados nos limites da convivência em família,
sobretudo nesta, da qual falamos.
Vaitsman (1994), em sua pesquisa sobre as novas identidades familiares
nas circunstâncias da pós-modernidade, enfatiza que as transformações
observadas no âmbito do casamento e da família se devem às aspirações
individualizantes da atual geração, em contraste com a visão de mundo e de
diferenças de gênero da geração anterior, as quais se baseavam na rigidez e na
padronização de papéis. A classe média urbana brasileira, foco do estudo da
autora, reduto de normas rígidas e papéis sexualmente hierarquizados, foi
atravessada pela heterogeneidade e diversidade dos comportamentos
47

contemporâneos que construíram profundas mudanças nos padrões do casamento


e da família.
Essas transformações foram calcadas nos novos posicionamentos
femininos, conquistados sob a perspectiva do individualismo, e na flexibilização
dos papéis e comportamentos tanto do homem quanto da mulher, observados nas
práticas familiares e conjugais atuais.

Aprofundando a flexibilização dos comportamentos, observou-se a tendência a


que homens e mulheres desenhassem mais claramente os contornos de suas
individualidades e de suas diferenças. Redefinindo permanentemente suas
prioridades, quebram ainda mais a rigidez do discurso. Nos anos 90, a
participação nos domínios públicos e privados não se coloca mais como uma
coerção. (Vaitsman, 1994, p.174)

De forma que podemos dizer que a família vivenciou o conflito entre a


proposta igualitária e a prática hierárquica e pôde então transformar-se em função
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dessas novas realidades. Isso não quer dizer que a família estruturada em posições
hierárquicas não exista mais; ela convive com outras alternativas de convivência
baseadas na pluralidade e heterogeneidade. No entanto, os primeiros tempos do
individualismo e do igualitarismo resvalaram num discurso rígido de diferença
hierarquizante entre os sexos, o que, em termos de convivência familiar, provocou
um alto nível de conflitos. Esses momentos iniciais do processo desdobraram-se
então em uma flexibilização maior de posicionamentos, permitindo assim que as
diferenças individuais pudessem ser mais claramente delineadas. Com isso, ao
lidar com situações cambiantes e transitórias o indivíduo pôde mudar sua visão de
mundo e criar novas possibilidades na prática relacional.
Terminamos esse item com uma citação de Roudinesco (2002), que
resume a sua concepção sobre o valor perpetrado à família nos dias de hoje. A
autora afirma não adotar as visões apocalípticas da destruição ou da dissolução da
família, comum a um grande número de pensadores contemporâneos. Pelo
contrário, considera que a família vem enfrentando a desordem e se tornando um
lugar de resistência. Em suas palavras.

para os pessimistas que pensam que a civilização corre o risco de ser engolida por
clones, bárbaros bissexuais ou delinqüentes da periferia, concebidos por pais
desvairados e mães errantes, observamos que essas desordens não são novas –
mesmo que se manifestem de forma inédita – e sobretudo que não impedem que a
48

família seja atualmente reinvindicada como o único valor seguro ao qual ninguém
quer renunciar. Ela é amada e sonhada e desejada por homens, mulheres e
crianças de todas as idades, de todas as orientações sexuais e de todas as
condições. (Roudinesco, 2002, p. 198)

2.4.1
A metáfora do acolhimento, a transicionalidade no âmbito das
relações

A concepção do território familiar, como o lugar de acolhimento, confiança e


apoio, nos leva a associá-la a algumas das contribuições da psicanálise de
Winnicott. Essa abordagem, consoante com alguns pontos da teoria do autor,
indica o ambiente familiar como fundamental na construção da subjetividade do
indivíduo, entendendo essa construção como aberta, incompleta e em pleno devir.
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Uma vez que esse indivíduo incompleto interage nesse espaço, buscando sua
continuidade de ser, entendemos a relação interativa entre ele e seus pais, como o
lugar no qual se desenvolvem trocas de dimensões subjetivas e objetivas, que
permitem a expansão desses selves.
Encontramos no vocabulário do autor a ênfase na importância fundadora
do ambiente na vida humana. Através das relações com este ambiente o indivíduo
forma sua identidade e integra o seu self: dessa maneira se torna apto ou não a
lidar com a realidade ao seu redor. Para Martins (2002), uma relação
psiquicamente saudável com o ambiente se dá pela expressão criativa de si, pelo
brincar com a realidade. Sendo assim, recria-se esta realidade, no sentido de estar
nela de um modo singular.
Winnicott, ao falar da relação analítica, descreve um lugar, o setting, no
qual se estabelece um ambiente de sustentação, em que o paciente se sente em
confiança para readquirir sua espontaneidade, sem esperar por isso retaliações,
dessa maneira ele pode reencontrar uma posição criativa de vida. Esse lugar de
confiança se transforma em um espaço potencial, de fenômenos transicionais e de
recriação de mundo, no qual o indivíduo modifica o seu ambiente ao mesmo
tempo que se modifica neste processo de interação.
Talvez possamos nos permitir associar esse espaço potencial do setting
com certos momentos vividos no espaço relacional familiar, no qual o indivíduo
49

pode viver e expressar seus sentimentos na situação interativa, em um clima de


confiança e apoio. Esses seriam momentos especiais que, raros ou não, podem ser
observados na dimensão interacional no cotidiano familiar. O autor, ao falar de
seu trabalho clínico na conferência Formas Clínicas da Transferência (1955-6),
sustenta que:

O comportamento do analista, representado pelo que chamei de contexto, por ser


suficientemente bom em matéria de adaptação à necessidade, é gradualmente
percebido pelo paciente como algo que suscita a esperança de que o verdadeiro eu
poderá finalmente correr os riscos implícitos em começar a experimentar viver.
(Winnicott, 1955-56, p. 395)

Em família e em se tratando de um ambiente suficientemente bom, o


indivíduo poderia se manifestar de uma forma espontânea e expressar, mesmo que
seja em raros momentos, seus sentimentos reais e verdadeiros.
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De acordo com Armony (1997), Winnicott introduz um novo paradigma


ao pensamento humano quando discorre sobre o conceito de espaço potencial. O
espaço potencial é também intermediário, pois é o lugar onde se pode perceber a
objetividade das coisas sem perder a noção da subjetividade. O menino que brinca
de bombeiro é exemplar neste caso: ele é menino e bombeiro, habitando assim um
espaço que é objetivo e subjetivo, intermediário ou potencial. No contexto teórico
winnicottiano, há variações no que se refere à nomeação deste espaço e cada uma
delas incorpora diferenças sutis: área da cultura, área de repouso, área de brincar,
espaço intermediário, espaço transicional e talvez ainda outros.
De início, o bebê é o mundo, tudo acontece na experiência de onipotência
na qual é preciso a colaboração do ambiente, ou seja, da mãe. A mãe advinha o
que o bebê precisa e comparece com o seio: o bebê, então, tem uma experiência
de ilusão, uma forma vigorosa de conexão com o mundo, ele se sente ligado ao
mundo por ser seu criador. Ele o criou, assim como criou a mãe: esse mundo não
é o não-eu. Contudo, é preciso que a mãe falhe, frustre, desiluda, para que seu
bebê possa adquirir um eu (Winnicott, 1962).
Portanto, é preciso que a mãe falhe e se afaste para que o ursinho possa
aparecer, esta seria a primeira posse do não-eu, um objeto de transição entre o
subjetivo e o objetivo. No início, este objeto transicional é mais subjetivo que
objetivo, porém aos poucos esta proporção vai mudando. À medida que a criança
50

cresce, o objeto vai caminhando em direção a um limbo, vai sendo desinvestido e


essa área ocupada por ele passa a abrigar interesses culturais, artísticos,
religiosos2. Do ursinho à cultura, assim segundo Winnicott (1971), pode ser
descrito o caminho do bebê, desde o puramente subjetivo até a objetividade, da
relação mãe-bebê à vida adulta e o viver adulto.

Introduzi os termos objetos transicionais e fenômenos transicionais para designar


uma área intermediária de experiência, entre o polegar e o ursinho, entre o
erotismo oral e a verdadeira relação de objeto. (p. 14) ... a terceira parte da vida
de um ser humano, parte que não podemos ignorar, constitui uma área
intermediária de experimentação, para a qual contribuem tanto a realidade interna
quanto a vida externa. Trata-se de uma área que não é disputada, porque nenhuma
reinvindicação é feita em seu nome, exceto que ela exista como lugar de repouso
para o indivíduo empenhado na perpétua tarefa humana de manter as realidades
interna e externa separadas, ainda que inter-relacionadas. (Winnicott, 1971, p. 15)

O autor aponta uma tensão no relacionamento entre a realidade interna e


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externa: contudo reitera que o alívio para esta tensão se encontra no espaço
intermediário, um espaço que vivemos em situação de saúde. Essa tensão
apontada revela uma noção de paradoxo como um valor na dimensão da
subjetividade, um paradoxo que deve ser tolerado e não considerado como uma
tendência a pensar de um modo que privilegia a clivagem das coisas. Dessa
forma, a dinâmica transicional implica na noção de que a mãe incentiva a
separação e ao mesmo tempo impede que ela aconteça, no espaço potencial.
“Poder-se-ia dizer que com os seres humanos, não pode haver separação, apenas
uma ameaça dela, e essa ameaça é máxima ou minimamente traumática, conforme
a experiência das primeiras separações”. (1971, p. 150)
Comentando Winnicott, Costa (2004) sublinha que a idéia de separação e a
ameaça de separação não são disjuntivas por serem “disposições mentais relativas
ao escoamento do tempo e não descrições de posições ocupadas pelo sujeito e o
objeto em diversos lugares do espaço geométrico”. (p. 101) Sendo assim, seriam
estados diferenciados da dimensão do tempo e não do espaço, pois a ruptura
remete ao fato de que o bebê espera reencontrar o objeto desaparecido e a ameaça
se impõe como uma angústia de não reencontrá-lo.

2
É preciso destacar que o desinvestimento do objeto transicional se opõe ao conceito de
sublimação em Freud, segundo Armony, pois a criatividade emerge diretamente da área ocupada
por ele.
51

Nesse sentido, o espaço potencial diz respeito ao tempo em que a mãe está
ausente do mundo do bebê. A noção de família como possibilidade de um espaço
de acolhimento e confiança ganha, assim, mais consistência com a idéia de espaço
potencial, lugar no qual se pode obter um relaxamento, um alívio de tensões e a
capacidade de fantasiar. Para tal, este espaço estabelece um ambiente de
sustentação, em que o indivíduo se sente em confiança para um viver espontâneo.
O conceito de holding complementa essa percepção do espaço familiar como um
espaço de potência, pois a noção de sustentação e acolhimento, envolvidas em seu
significado, torna possível a existência do espaço potencial. Em sua genealogia, o
holding remete à fase de dependência absoluta do bebê, Winnicott a chama de
fase de holding. É a partir de um holding suficientemente bom que o bebê
desenvolve a capacidade de integrar a experiência e desenvolver o eu.
No entanto, este conceito ultrapassa a relação mãe-bebê, se referindo,
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também, à relação com o ambiente. Para Abram (1996), a idéia de Winnicott de


um ambiente de holding suficientemente bom inaugura-se com a relação mãe-
bebê dentro da família e expande-se para outros grupos sociais. Assim, para
Winnicott (1958), além de acolher, o holding limita e contém. (p. 411) “Dos
braços da mãe até os braços da lei”: com essa idéia, Winnicott introduz um novo
paradigma, que escapa de uma conceituação fixa e se amplia em uma nova forma
de relação, isto é, do holding da mãe ao holding dos limites sociais.
Winnicott (1965), em A Família e o Desenvolvimento Individual, propõe
um outro conceito, bastante relevante para o contexto de discussão da família e
das noções de autonomia e dependência. Este seria o conceito de maturidade
relativa. Conforme o autor, o adulto maduro tem a seu dispor todos os estados
passados de imaturidade, e pode fazer uso deles por necessidade, por diversão, nas
experiências secretas de auto-erotismo ou nos sonhos.

Há assim duas tendências. A primeira é a tendência de o indivíduo afastar-se da


mãe, do pai e da família, adquirindo a cada passo maior liberdade de pensamento
e ação. A outra tendência, que atua no sentido oposto, é a necessidade de
conservar ou retomar o relacionamento com o pai e mãe. E esta segunda
tendência que permite que a primeira constitua uma etapa do crescimento e não
uma desarticulação da personalidade do indivíduo. (Winnicott, 1965, p.134)
52

Assim, no decorrer do seu desenvolvimento emocional, o indivíduo pode


transitar entre a dependência e a independência. O indivíduo sadio é capaz de ir e
vir livremente de um estado para o outro. De modo que a maturidade é algo que
não se completa: é um devir.
Winnicott (1965) estabelece um elo entre a maturidade relativa e a saúde.
Afirma que o indivíduo só atinge a maturidade emocional relativa, em um
contexto no qual a família possa proporcionar o caminho de transição, entre seus
cuidados e a vida social. E nesse sentido, a família tem duas funções: a de
possibilitar que ele, indivíduo, volte a ser dependente quando precise e a de
permitir a sua expansão no mundo, em círculos cada vez maiores. O indivíduo
adulto, entendido em sua maturidade relativa, é capaz de se identificar com grupos
sociais sem perder o sentido de sua continuidade de ser e sem sacrificar a sua
espontaneidade: aí reside a possibilidade do viver criativo.
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“Do homem do dever ao homem criativo”, através dessa assertiva,


Armony (2006) propõe uma transição na qual o dever é substituído pelo prazer e
aí se instala a noção de criatividade. A criatividade envolve a idéia de equilíbrio
entre o subjetivo e o objetivo, é uma forma de se relacionar com o mundo, de
sentir-se vivo e libidinalmente ligado a este mundo. De acordo com o autor o
indivíduo já nasce criando: cria o seio, cria a mãe, cria o mundo. Dentro deste
mundo de ilusão, a criança faz uso do objeto transicional, que a ajudará na
passagem à desilusão: este processo é possível se o ambiente se apresentar como
facilitador: ou seja, a atitude dos pais, no que concerne o objeto transicional é
fundamental.
Para Abram (1996), dentro do pensamento de Winnicott, a posição
ocupada pela experiência cultural se deve à capacidade do indivíduo de lembrar-
se, de forma inconsciente, da proteção e apresentação do objeto bom pela mãe, em
momentos iniciais da vida. “É precisamente esta experiência de “retenção da mãe
na mente” que evolui até chegar às lembranças, tornando-se o lugar da experiência
cultural.” (Abram, 1996, p. 89) Esta experiência é internalizada e proporciona a
viabilidade do viver criativo, de forma que o viver criativo se faz no âmbito da
relação precoce mãe-bebê. Assim, a genealogia da criatividade descreve uma
criatividade primária que ainda é puramente subjetiva, que ainda não encontrou o
objeto e busca o caminho da saúde, como um impulso inato.
53

Uma relação saudável com o ambiente é possibilitada ou possibilita um


viver criativo. O brincar com a realidade é uma recriação, compreende o
movimento constante de transformação. O viver criativo é, assim, uma forma
ativa de participação no mundo. Quando falamos do espaço familiar, no qual a
convivência é constantemente transformada através de mecanismos ou padrões
que a reeditam, reinventam ou até mesmo rompem para recriar, referimo-nos,
também, à espontaneidade e ao impulso criativo que direcionam a nossa
existência e nossos relacionamentos.
Por isso, a experiência de transicionalidade vivida na interação entre pais e
filhos adultos, sobre a qual nos propomos a refletir, se constitui como
possibilidade de reconstrução constante dos mecanismos psicológicos que a
caracterizam. A integração ou a alternância entre os estados objetivos e subjetivos
proporciona a capacidade de expansão e reestruturação desses selves.
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2.5
A cultura da juventude eterna, o mundo das sensações e a
efemeridade

A ambrosia servida por Hebe, filha de Hera, aos convivas do Olimpo, lhes
proporcionava a eterna juventude. O mito grego reatualizou-se na
contemporaneidade configurando a assertiva de que, em tempos de Narciso, a
beleza da juventude é fundamental. Os modelos culturais deslocaram-se das
imagens tradicionalmente privilegiadas da família e dos ancestrais para
assentarem-se em novos padrões e, como nos diz Morin (1962), “o novo modelo é
o homem em busca de sua autorealização, através do amor, do bem-estar, da vida
privada.” (p. 152)
A juventude, maleável e plástica por excelência, é o objeto preferido da
cultura de mercado, e, complementarmente, os jovens experimentam de forma
mais intensa esse apelo cultural, orientando a produção dos bens a ela destinados.
Assim, essa cultura desqualifica a velhice e desvaloriza a maturidade ao promover
valores associados à idéia de juventude. “Sociologicamente, a cultura de massa
contribui para o fenômeno do rejuvenescimento da sociedade.” (ibid., p.157)
54

Dessa forma, o estilo de vida jovem passa a representar os ideais que


regem a vida social. O mundo adulto absorve esses valores e se identifica com os
mesmos, constituindo o que Khel (1998) denomina de “teenagização da cultura”:
todos querem ser jovens, belos, saudáveis e felizes. Segundo a autora, esse
processo inverteu valores, ou seja, adolescentes que queriam ser adultos num
passado recente, hoje prolongam sua adolescência e tudo o que não querem é ser
adultos. E estes querem deixar a sua condição e serem reconhecidos como
adolescentes.
Por outro lado, Calligaris (2000) sustenta que a finalidade da adolescência
é clara: o adolescente quer tornar-se adulto; contudo, apesar de estar maduro no
corpo e no espírito para alçar-se a essa condição, é impedido de fazê-lo por uma
“moratória”. Ao adolescente é imposto um tempo de espera para o
reconhecimento de sua condição de adulto. No entanto, segundo o autor, um
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“problema lógico complicado” se apresenta nesse contexto. Ao prescrever as


palavras de ordem “seja independente” e “prove sua autonomia”, bem de acordo
com o pensamento individualista, a sociedade induz à desobediência da moratória,
ou seja, o adolescente, para ser reconhecido, precisa transgredir, não se
conformar. Portanto, “desobedecer pode ser uma forma de obedecer, e obedecer
talvez seja o jeito certo de não se conformar.” (p.31)
Acreditamos que a adolescência possa representar a interpretação de
sonhos adultos, incluindo a transgressão, pois o não-conformismo adolescente
alimenta a fantasia adulta de liberdade. Dito de outro modo, o adulto se identifica
com o movimento libertário da transgressão e o paradoxo de tal situação se
insinua na colocação da adolescência numa espécie de limbo e, ao mesmo tempo,
na sua encenação como espaço dos sonhos adultos. Verifica-se dessa forma que a
adolescência desponta como um ideal do mundo adulto contemporâneo no qual a
rebeldia e o gozo da liberdade, valores exaltados na nossa cultura, se sobressaem
como modelos identificatórios, configurando o “estilo de vida” jovem.
O neologismo adultescente revela o lugar ocupado pela adolescência como
ideal cultural. Curiosamente, as representações da adolescência apropriadas pela
indústria cultural, não se referem ao indivíduo desajeitado e em plena vivência de
crise: pelo contrário, o representam exaltando seu corpo delineado e sua
capacidade de busca constante do prazer. As estratégias de marketing comandam
55

esse mercado de consumo, comercializando os traços de identidade desses grupos


e vendendo-os aos adultos, o que em última instância constitui uma verdadeira
indústria da adolescência.
Ariès (1973) declarou que vivemos num mundo obcecado pelos temas da
infância e da adolescência, no qual “todos querem prolongar a adolescência.” A
adolescência, em particular, começa a ser vista como uma fase diferenciada da
infância somente no início do século XX. Ela abrangia o intervalo dos 12 aos 18
anos, período claramente delimitado por rituais sociais e culturais. Em tempos
atuais, o que existe é uma indefinição de suas fronteiras e uma ausência de rituais
de iniciação para a vida adulta, o que vem ocasionando a protelação da sua
consolidação e o conseqüente alargamento do seu tempo de duração.
Entendemos que o término da adolescência, sob a perspectiva
psicanalítica, se constitui como um processo complexo de individuação que
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envolve a separação das figuras parentais e a vivência concomitante dos lutos a


elas referidos. A fase final da adolescência vincula-se a uma maior integração
social, a uma escolha amorosa e ao estabelecimento de novas pautas de
convivência familiar. A consolidação dessa etapa, portanto, é um acontecimento
vivido dentro da família, envolvendo todos os seus membros como atores
principais.
Dolto (1988) nos diz que a adolescência é um estado psíquico amplamente
influenciado por fatores psicológicos e socioculturais, podendo ser prolongada em
função das projeções que os adultos e a sociedade lhe direcionam. “O papel de
adolescente tardio é assumido a partir de uma imposição dos adultos e das
restrições que lhe são feitas pelos mesmos, para a sua atuação na rede social.”
(p.17-18) Dessa forma, o prolongamento da adolescência é um estado que se
constrói a partir do momento histórico contemporâneo, que alimenta o imaginário
do indivíduo com promessas que, caso sejam seguidas, podem garantir um lugar
na comunidade dos jovens e saudáveis.
Conforme já dito, a fragilização dos laços voltados para as instituições
tradicionais – como o trabalho, a religião, a família, entre outras – trouxe a
reboque as condições para a instauração de sentimentos de identidade calcados no
narcisismo e no hedonismo na atualidade. Narcisismo, no sentido da indiferença
do indivíduo a compromissos com o outro e hedonismo, como recusa a projetos
56

pessoais duradouros. O cenário contemporâneo ainda conta com os ideais de


felicidade, das sensações e da vida como entretenimento, para corroer os valores
assentados pela tradição. Paralelamente, surge uma nova moralidade que
acompanha os fatos com os quais deparamos.
A sociedade do espetáculo, proferida por Debord (1967), traduz a essência
dessa premissa. Nessa sociedade, o indivíduo é um expectador passivo em um
mundo de aparências, do qual de fato está excluído e onde nada lhe é garantido,
além da fantasia de pertencer a um mundo espetacular. Vinte anos depois de
formular essa teoria crítica, Debord (1987) afirmaria que:

A mudança de maior importância, em tudo o que aconteceu há vinte anos, reside


na própria continuidade do espetáculo. Essa importância não decorre do
aperfeiçoamento de sua instrumentação midiática, que já havia atingido um
estágio de desenvolvimento muito avançado; decorre do fato de a dominação
espetacular ter podido educar uma geração submissa a suas leis. As condições
extraordinariamente novas em que viveu essa geração constituem um resumo
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exato e suficiente de tudo o que doravante o espetáculo impede; e também de


tudo o que ele permite. (Debord, 1987, p. 171)

Essa visão do mundo como espetáculo, que segundo o autor ainda não se
expôs ao risco de ser desmentida pela seqüência dos fatos históricos, reflete uma
reordenação das coisas: o filtro midiático decide o que deve ser visto, significado
e admirado. Através de mecanismos de diluição de imagens há o convite
subjacente ao não pensar. Por exemplo, o indivíduo pode ser instigado a imitar o
estilo de vida de uma celebridade: contudo, ao não conseguir se aproximar dessa
“realidade”, deve se contentar com as partes acessíveis dessa personagem, para ser
participante desse mundo.
Na esteira dessa moralidade, os ideais das sensações e do bem estar físico,
incluindo aí a saúde, a beleza e a juventude se apresentam com alguma
previsibilidade. Tomemos como exemplo os corpos, sobretudo os das elites
privilegiadas social e economicamente: estes se tornaram alvo do ideal de
felicidade sensorial. Na medida em que o mundo se transforma em algo distante,
de difícil possibilidade de satisfação na esfera da ação, há um retorno à
proximidade do corpo, pelo qual se pode obter a dita felicidade sensorial. Isto
configura um círculo vicioso.
57

Costa (2004) ressalta que o ideal do prazer sensorial comporta uma


contradição implícita, fundada no sentimento de passividade e impotência criado
pela moral do espetáculo e pelo descaso e o desprezo da moral do entretenimento.
Esse prazer, tanto em sua forma extática quanto mitigada, desencadeia a
ambigüidade na vida do indivíduo. Parece-nos bastante útil avançar na discussão
dessas duas formas de prazer, desenvolvida pelo autor em seu texto sobre o uso do
corpo como objeto transicional. Uma das propriedades do prazer sublinhada por
Costa é a intensidade. “Dizemos que um prazer é intenso se consegue, em
condições e momentos precisos, acaparar a atenção do eu para si, às expensas do
investimento em outros prazeres.” (ibid., p. 91) No aspecto da intensidade do
prazer, podemos distingui-lo sob duas formas: o extático e o mitigado.
O prazer extático é efêmero, passivo, fugaz e situacional. Efêmero ele é
por durar o tempo entre o início e o fim de um processo de excitação crescente. A
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passividade diz respeito à dependência completa em relação ao objeto de


estímulo, segundo o autor: a auto-estimulação é um evento inexpressivo se
comparado ao êxtase provocado por um agente extrapessoal. O lado fugaz do
êxtase remete à sua capacidade de se tornar rapidamente familiar e, desta forma,
perder o atrativo. Já o aspecto da situacionalidade coloca em relevo a dependência
do êxtase em relação ao contexto no qual ocorre: ele raramente pode ser
reproduzido em sua forma original, uma vez que não se pode fixar a disposição
físico-mental do indivíduo.
De acordo com a noção de moral das sensações em vigor entre os
pensadores da atualidade, o prazer extático corresponde, aproximadamente, à
cultura do narcisismo ou hedonismo contemporâneo. Costa relativiza essa visão,
afirmando que não se pode mostrar que os indivíduos de hoje sejam mais
narcisistas ou hedonistas do que os indivíduos em outros momentos da história da
cultura. E ainda ressalta que o prazer extático é constituinte de rituais legitimados
ou de rebeldias transgressoras, em diversos tipos de sociedades.
Essa visão de cultura narcísica seria um pouco generalista, pois,
encontramos também, nos momentos atuais, indivíduos que buscam o oposto, ou
seja, um controle entre corpo e espírito e uma vida continente. Todavia, esse autor
concorda com a idéia, abraçada pelos críticos da moral das sensações, de que a
“felicidade erguida sobre o êxtase é precária e vacilante.” (Costa, 2004, p. 235)
58

Ainda sublinha que o prazer extático não seria possível sem a indulgência da
moral do entretenimento, que “transforma a realidade em um faz-de-conta com o
qual ninguém quer se comprometer”. (ibid., p.235)
Por outro lado, o prazer mitigado é mais duradouro e pode se manter com
mais estabilidade. Os exemplos desse tipo de prazer seriam os sentimentos ternos,
as atividades lúdicas e esportivas, o prazer ao criar, o conforto e a serenidade, a
alegria, o entusiasmo, dentre outras formas de fruição. De acordo com Costa
(2004), a peculiaridade da nova educação dos sentidos é a de sistematizar e
regular os prazeres sensoriais e colocá-los no ápice dos ideais de felicidade. Dessa
forma, satisfazer-se com a sua própria imagem significa trazer o corpo para o
lugar antes ocupado pelos ideais, sentimentos, ações. O corpo físico desloca os
ideais e se estabelece em um primeiro plano da vida cultural.
Sendo assim, ocorre a virada somática na cultura e, de acordo com o autor,
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a noção de moral do espetáculo é ultrapassada por um prazer que, ao se situar


mais distante da inconseqüência, revela-se mais próximo do prazer sentimental,
sem no entanto guardar as características intimistas do sentimento burguês. A
cultura somática, nessa perspectiva, seria menos um aspecto da dominação da
moral do espetáculo e mais uma forma de resistir à obrigação do prazer extático
imposto pelos agentes midiáticos. Seria um estilo de vida que mesmo tendo como
referente o bem-estar do corpo, traz a reboque uma preocupação com o cuidar de
si, uma ética de existência voltada para um viver com mais qualidade. “Quanto
mais a personalidade somática se impõe como norma do ideal do eu, mais
revelamos a nossa alma ao outro, sem chances de ocultação.” (ibid., p. 199)
De tudo isso, entendemos que o indivíduo de hoje vive na era da
coexistência dos contrários e de uma forma pacífica. Parece que assistimos, nos
dias atuais, a uma retradução ou redescrição das coisas, e uma delas seria o
cuidado de si referido por Costa (2004). Antes colado ao referente da alma, dos
sentimentos, das paixões e da moral, hoje o cuidar de si está voltado para a saúde,
beleza, juvenilidade, etc. A boa forma se afirma como uma virtude suprema, e
corremos o risco, contudo, de não visualizar outras formas de expectativas de
felicidade. Como também, pode-se incluir no risco, o tempo destinado aos rituais
de beleza e saúde na vida cotidiana, que trazem desconforto e stress na dimensão
das relações com os parceiros de afeto.
59

Paralelamente, Lipovetsky (1987) contribui para esse debate


contemporâneo, ao ressaltar o desprezo que o indivíduo de hoje manifesta em
relação aos objetos, as mercadorias oferecidas pelo consumo de massa. A sua tese
a respeito do papel histórico da moda na cultura conduz à reflexão sobre a
institucionalização do efêmero na trajetória da autonomia individual. Para o autor,
o “desprendimento sem dor dos objetos” ocorre pelo fato desses estarem
descolados do valor de estatuto social ou signo de classe a eles conferidos
anteriormente. Hoje, o objeto é valorizado pelo prazer que se possa retirar dele,
por sua “funcionalidade perfeitamente mutável”, pela qualidade de sonho e
sensação que ele produz.
Essa efemeridade é endossada pela multiplicidade de escolhas
proporcionada pela moda, que faz do indivíduo um ente aberto e móvel e sempre
pronto a se informar, acolher o novo e buscar suas preferências individuais nos
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objetos. Se o indivíduo não é mais, ou somente, movido pela lógica social da


diferença e distinção em relação ao outro, o que estaria em jogo seria o seu
direcionamento para a autonomia plena, o novo, o sonho e o universo das
sensações. Enfim, reduz-se a importância do outro nesse processo e o que passa a
contar é o prazer e tudo o que se deve fazer em nome dele, ou seja, a
administração do tempo e do entorno no qual ele, prazer, se situa.
O autor, ao relativizar a força dos códigos de diferenciação social pelo
meio indireto do objeto mercadológico, reitera o poder do reino do prazer para si
mesmo. “Compreende-se por que, numa sociedade de indivíduos destinados à
autonomia privada, o atrativo do novo é tão vivo: ele é sentido como instrumento
de liberação pessoal, como experiência a ser tentada e vivida, pequena aventura
do eu.” (Lipovetsky, 1987, p. 183) Segundo essa perspectiva, depreendemos que
exista um elo entre o gosto pela novidade e o individualismo contemporâneo, um
individualismo narcísico ou, nas palavras do autor, um neonarcisismo.
Dessa maneira, a euforia da moda e o império de seus instrumentos seria o
“abre-alas” para a trajetória secular da conquista de autonomia individual.
Configura uma era que proporciona a extravagância e a excelência das coisas,
uma satisfação privada que dispensa o olhar do outro. No entanto, conforme
Lipovetsky, se esse domínio da sedução permite mais liberdade individual,
60

engendra mais dificuldade de viver. Ou seja, em um reino de estimulações


exacerbadas há mais inquietude de viver.
Ao lado disso, impõe-se a reflexão sobre a forma como esses paradigmas
de consumo e transitoriedade infiltram-se na cultura em geral e afetam o indivíduo
em relação a eles próprios e aos outros. A lógica desses modismos talvez possa
ser nomeada como totalitária, uma vez que, praticamente, pode ocorrer uma
impossibilidade de se escapar dela em nossa vida social. Nesse sentido, a
compreensão dessa lógica permite a observação de que ela seja um mecanismo
social com uma espantosa capacidade de transformar aquilo com o qual estabelece
contato.
Voltando-nos para a esfera das relações, podemos pensar que o universo
interacional entre pais e filhos adultos – alavancado pela horizontalização das
relações e inflado pelos imperativos da saúde, da juventude e pelo contexto da
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efemeridade – experimente um descompasso nesse domínio relacional. Ao mesmo


tempo que se pode compartilhar pensamentos íntimos e secretos, se aventurar
juntos, azarar e zoar juntos, a cotidianidade da convivência faz lembrar as antigas
posições, ou seja, as dimensões minimamente hierárquicas. Tensões e conflitos
são possíveis em face dessa indefinição. As diferentes dimensões de
pertencimento se confundem, ou seja, “ser filho de” ou “ser parceiro de”. A
questão é saber como hierarquizar os momentos da relação e saber avaliar o seu
peso. Diante disso, acreditamos que a família possa apresentar dificuldades em
definir um posicionamento diante do tecido social e também, em se preparar para
a consolidação da separação entre seus membros.
3
A dinâmica interativa entre pais e filhos adultos
coabitantes

Este capítulo visa articular bases conceituais, com o objetivo de compreender uma
dinâmica familiar específica, a relação entre pais e filhos adultos coabitantes.
Entendemos que essa dinâmica seja um lugar no qual os indivíduos vivem um
interjogo, calcado em suas experiências, em suas próprias histórias de sucessos e
fracassos e em suas buscas constantes de um espaço maior de autonomia
relacional. A dimensão relacional entre pais e filhos adultos será, aqui,
privilegiada e tecida a partir de múltiplos olhares, sobretudo daqueles oriundos do
campo teórico das terapias familiares.
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O campo teórico formado por diferentes vertentes do domínio das terapias


familiares nos fornecerá uma ampla rede conceitual. Nesta esfera, pretendemos
realizar um rastreamento, uma escavação, um garimpo de idéias e conceitos que
se desdobrarão em outros, provenientes de outras dimensões do conhecimento,
compondo, assim, um espaço suficiente de reflexão e discussão de nosso
complexo tema.
Pretendemos expor esses conceitos, contextualizando-os em nossa área de
interesse, para não perder de vista o cenário histórico, sociocultural e o
pensamento da atualidade. Sem o entrecruzamento dessas dimensões, acreditamos
não poder dispor de um conjunto circunstancial para realizar o debate entre as
idéias e os novos conceitos que irão surgir à medida que avançamos em nossa
meta. Essa dinâmica será apreendida em seu aspecto psicológico e sob a
perspectiva da interação. Concentrar-nos-emos, como já dito, na interação entre
pais e filhos adultos e em todo o contexto de sua emergência.
Articulando essas diferentes visões a respeito da dinâmica familiar,
acreditamos poder organizar as bases conceituais selecionadas e,
simultaneamente, refletir sobre o nosso tema. Sendo assim, criaremos, sobretudo,
um contexto de reflexão e compreensão sobre essa dinâmica, enfatizando como
ela é construída na vida doméstica em família. Em outras palavras, nos
concentraremos em estabelecer um percurso teórico que nos permita jogar luz
62

sobre esse universo relacional, tanto no que concerne ao conhecimento de sua


estrutura e os aspectos psicológicos que a norteiam, quanto no que diz respeito ao
processo de transformação das subjetividades, desencadeado na situação
interativa.
Consideramos relevante iniciar essa abordagem com a formação do casal
conjugal, que nos termos de Puget e Berenstein (1993), se apresenta como uma
estrutura vincular entre duas pessoas, que estabelecem o compromisso de fazer
parte dela, em toda a sua amplitude, cumprindo ou não os seus acordos. Os
autores apontam que a primeira dificuldade em viver essa estrutura, denominada
convencionalmente casal conjugal, vem a ser o desprendimento dos vínculos
parentais de cada um dos membros. Isso quer dizer que a constituição do casal
implica a resolução ou não da separação destes vínculos familiares originais e o
enfrentamento da dor dessa descontinuidade.
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Lévi-Strauss (1983) nos fala do paradoxo constituído pelo fato de que é


preciso uma família morrer para que outra possa nascer:

A sociedade não permite às famílias restritas que durem senão por um


determinado espaço de tempo, mais curto ou mais longo segundo os casos, mas
com a condição imperativa de que seus membros, quer dizer, os indivíduos que as
compõem, sejam, sem tréguas, deslocados, emprestados, apropriados, cedidos ou
devolvidos, por forma a que com os bocados das famílias desmanteladas, outras
possam ser construídas antes de, por seu turno, caírem em pedaços. (Lévi-Strauss,
1983, p. 97)

A relação da família com a sociedade é dinâmica, tensa e contornada por


oposições que variam de acordo com “as épocas e os lugares”. O sistema social
impõe aos indivíduos que dele fazem parte e aos grupos familiares a eles
vinculados por nascimento, “contínuas contradanças”.
O viés antropológico do autor pode ser matizado pela vertente psicanalítica
com casais, que nos mostra a constituição de um casal conjugal como uma
estrutura inédita. “É o resultado das transformações dos modelos parentais de cada
um na nova unidade representável no próprio casal”, ressaltam Puget e Berenstein.
(1993, p. 4) A conjugalidade, para esses autores, é apresentada da seguinte forma:
63

O casal é uma estrutura vincular entre duas pessoas, isto é, uma relação
intersubjetiva estável entre um ego e outro ego, onde tem cabimento o mundo
intra-subjetivo de cada um, e onde o vínculo, por sua vez, ocupa uma área
diferenciada da estrutura objetal. A estrutura vincular complexa de casal, embora
concebida geralmente como fechada, contém uma zona dotada de capacidade
virtual de abertura para o sociocultural, para dar lugar ao desdobramento do
vínculo com os filhos, passando a ser uma estrutura familiar. (Puget e Berestein,
1993, p. 18)

Nesta visão de estrutura vincular confluem dois modelos teóricos, um


advindo das ciências sociais e outro da psicanálise, ou, mais especificamente, do
conceito de aparelho psíquico. Podem ser distinguidas, então, em tal estrutura,
duas representações: uma do contexto macrossocial e outra orientada pelo desejo e
pelo complexo de Édipo. Iremos destacar a representação sociocultural,
enquadrada pelos autores na estrutura conjugal em quatro especificações, que eles
denominam de parâmetros definitórios. Estes parâmetros são provenientes do
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mundo social3 que normatizam o campo do permitido, assim como o do proibido.


São eles: a cotidianidade, o projeto vital compartilhado, as relações sexuais e a
tendência monogâmica.
A cotidianidade, para o espaço vincular, é um organizador dos ritmos de
encontros e desencontros. Define um espaço-tempo, intercâmbios diários, e
propõe aos egos lugares vinculares e mentais, de uma certa forma fixos, como, por
exemplo, os lugares estáveis em que se sentam à mesa, em que ocupam a cama, o
armário, entre outros. Dessa forma, a cotidianidade se constitui como um aspecto
organizador da relação, ao propor uma estabilidade aos egos, criando lugares
estáveis no dia-a-dia da esfera relacional.
O projeto vital compartilhado se situa na dimensão do futuro e se inicia
com a aquisição de uma linguagem em comum com significado compartilhado. O
modelo paradigmático de projeto futuro do casal passa pela criação de filhos, reais
ou simbólicos. O casal requer um enquadramento, uma estabilidade, para
sustentar o projeto, renegociá-lo ou partir para um novo. Caso haja a perda do
projeto, podem não saber o que foi perdido com ele.

3
Esses parâmetros definitórios possuem um registro no mundo psíquico, provenientes das
primeiras experiências do indivíduo em interação com os pais, que podem ser observados nos
acordos e pactos inconscientes do casal.
64

Quanto às relações sexuais, o sistema social as prescreve ou as proíbe,


como o caso das relações não-matrimoniais, entendendo esta questão em um
contexto tradicional de sociedade. E a tendência à monogamia, segundo os
autores, deve ser tomada como classificatória e definitória de uma marca
simbólica, a preferência. Nas sociedades que prescrevem a exogamia, um parceiro
pode adquirir a qualidade de único.
Identificamos nos dois primeiros parâmetros definitórios de Puget e
Berenstein (1994) – o projeto vital compartilhado e a cotidianidade – uma fértil
possibilidade articulatória direcionada ao nosso texto. A estabilidade adquirida no
ritmo da cotidianidade, remete a espaços fixos e rígidos na dinâmica familiar,
espaços estes complementares e sustentados por acordos e interesses dos
membros. O projeto de vida compartilhado pode funcionar como um relato
dominante e gerar uma incapacidade de negociar um novo momento do ciclo vital
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familiar.
Paralelamente, uma outra questão apresenta-se como bastante profícua
nesses momentos iniciais de nosso debate: a parentalidade. Para Lévi-Strauss
(1983), na sociedade contemporânea, a família é caracterizada pelo casamento
monogâmico, pela residência independente do casal, pelas relações afetivas entre
pais e filhos. Todavia, existem sociedades, culturalmente mais rudimentares, nas
quais as mesmas características são encontradas. Este é o caso dos Nambikwara,
do Brasil central, em cuja estrutura social o autor observou e identificou os pares
casados, estreitamente unidos por laços sentimentais, por uma cooperação
econômica e por um interesse comum que prestavam aos seus filhos. Estas
características poderiam levar-nos a um julgamento errôneo acerca da
universalidade desta formação, nos diz Lévi-Strauss.

A família conjugal não é a expressão de uma necessidade universal nem está


inscrita no âmago da natureza humana: ela representa uma solução intermediária,
um certo estado de equilíbrio entre fórmulas que se opõem a ela e que outras
sociedades preferiram. (Lévi-Strauss, 1983, p. 83)

Entendemos a função da parentalidade, na família, como uma forma de


relacionamento interno instituída por investimento afetivos. Esta economia define
diferentes desenhos familiares, que a configuram de maneiras distintas.
Evidentemente, a noção de parentalidade comporta a díade pais e filhos e a
65

dinâmica interativa envolvida, em todos os níveis. Esta parentalidade, no entanto,


parece não se colocar disponível ao desinvestimento, em alguns casos.
Certamente, a experiência do ninho vazio é fator de grande carga emocional para
a família e manter os papéis familiares preservados se mostra como possibilidade
de evitar a dor da separação.
Podemos pensar que a família da qual falamos constitui um território
privilegiado no qual coexistem “acordos” e “interesses” que garantem a
convivência. O alto investimento afetivo feito pelos pais no exercício de suas
funções de pais provoca, como ação recíproca, a atitude dos filhos de
corresponder a esse investimento mantendo as funções de filhos. A noção de
complementariedade de funções é determinante para o estabelecimento dessa
premissa, uma vez que é através da vivência dessas dimensões interativas que
compreendemos a dinâmica dos investimentos afetivos a que nos reportamos.
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Entretanto, nem sempre foi assim, Delumeau e Roche (2000) informam


que foi na “época das luzes” que se intensificou a afetividade no lar. E essa
afetividade deve muito à transformação da imagem do pai, que da figura de
potência divinal passa a estar a serviço da transmissão patrimonial e cultural, a
qual permite aos filhos o ingresso na sociedade. O amor aos filhos se torna um
sentimento legitimado e público. A noção de paternidade seria, então, construída
pelo amor e proteção, tanto física quanto moral. Portanto, foi preciso o
nascimento de um novo pai para que os sentimentos afetivos se tornassem uma
norma familiar, aceita e reivindicada. As mães já ocupavam o lugar de portadoras
“naturais” de afeto aos filhos, embora acolhamos a idéia de que esses sentimentos
sejam socialmente construídos.
De toda maneira, as transformações no reduto familiar se efetivaram nos
limites da casa e centradas na vida doméstica, como, também, fundadas no
casamento por escolha e no amor aos filhos. A casa separou-se da comunidade e
as crianças tornaram-se um dos organizadores dos sentimentos familiares. As
relações humanas se privatizaram e se processaram no sentido de conferir à
família uma responsabilidade maior no que tange o universo infantil. A família
passou a concentrar um pouco de tudo, o cuidado com as crianças, o amor entre os
cônjuges, o afeto entre todos, a preparação dos filhos para a vida e o trabalho,
66

entre outras atribuições. Enfim, na intimidade da casa, é que deveriam ser


cumpridas estas expectativas.
Posteriormente, um movimento contrário passou a nortear a sociedade, já
desta feita industrializada: a invasão da dimensão familiar pelo mundo público.
Foi através da regulação das relações familiares por especialistas da esfera
pública, que esta invasão se concretizou. De acordo com Lasch (1977) a cisão
entre estas duas dimensões – a pública e a privada, uma característica da
sociedade moderna – provocou um impasse na família. Fragilizada pelo controle
social e não encontrando no mundo público uma “compensação”, observa-se,
segundo o autor, a desintegração lenta e irrestrita da família. Por outro lado – e o
que nos interessa nesta discussão – todo um peso é dado à relação pais e filhos
nesta passagem da sociedade pré-industrial para a industrial.
Entre a responsabilidade total pela educação dos filhos e o controle
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exercido pelo mundo dos especialistas, os pais, diante das exigências externas,
perderam uma função ou tiveram-na relativizada. O aspecto protetor da função,
segundo Lasch, foi profundamente abalado pela saída da mãe de casa para
trabalhar, pela crise do casamento, pelas condições do mundo do trabalho. A rede
social que deveria dar o suporte protetor é, então, descrita como contraditória.
Após essa apresentação ao capítulo, ressaltamos que os conceitos a serem
organizados em seqüência, foram selecionados segundo nossa familiaridade com
os mesmos na prática clínica. Igualmente, foram escolhidos levando-se em
consideração a sua potencial capacidade articulatória, em prol da constituição de
um território fértil de reflexões, acerca da relação entre pais e filhos adultos
coabitantes.

3.1
O Ciclo vital familiar, um percurso de ressignificações

De acordo com Nichols & Schwartz (1998), o conceito de ciclo de vida familiar
tem suas bases na sociologia, especificamente, na escala da socióloga Evelyn
Duvall, desenvolvida nos anos de 1940. Esta escala consistia de diferentes
estágios normativos – 8 no total – referentes à familiar nuclear e presentes no
processo de desenvolvimento da família. Para cada um destes estágios são
67

prescritas tarefas a serem realizadas. No caso do estágio 6, são consideradas a


liberação dos filhos, jovens adultos, através de rituais apropriados e a assistência
aos mesmos neste processo. Já no estágio 7, é incentivada a reconstrução do laço
matrimonial do casal parental e a ampliação deste sistema, através de uma maior
rede de relacionamentos, incluindo as gerações mais velhas e mais novas.
Carter e McGoldrick (1989), terapeutas familiares, vão mais além e
adicionam aos estágios de desenvolvimento familiar, o ponto de vista
multigeracional, que coloca em evidência as situações de divórcio e recasamento,
bem como questões sobre gênero e etnia, doença crônica e morte e lembram aos
terapeutas a importância da história dos eventos familiares. Para as autoras, a
perspectiva do ciclo vital familiar envolve a consideração de três aspectos. O
primeiro se refere aos estágios predizíveis da família tradicional de classe média
americana, no apagar das luzes do século XX e as específicas dificuldades que
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elas encontram na transição de um momento para o outro. O segundo diz respeito


às mudanças referentes aos padrões deste ciclo, no que concerne à ordem da
“normalidade”. O terceiro carrega uma perspectiva clínica, ou seja, vê a terapia
como uma possibilidade de reconduzir as famílias ao seu ciclo vital natural.
Os estágios do ciclo de vida familiar para as autoras são seis e envolvem
um processo emocional de transição e mudanças de segunda ordem no status
familiar, necessárias para se prosseguir desenvolvimentalmente.
Estágios:
1 – Saindo de casa: jovens solteiros
2 – A união de famílias no casamento: o novo casal
3 – Famílias com filhos pequenos
4 – Famílias com filhos adolescentes
5 - Lançando os filhos e seguindo em frente
6 – Famílias no estágio tardio da vida
No estágio 1, o processo emocional de transição vem a ser aceitar a
responsabilidade emocional e financeira pelo eu. No que tange às mudanças na
família são delimitadas as seguintes características: diferenciação do eu em
relação à família de origem; desenvolvimento de relacionamentos íntimos com
adultos iguais; estabelecimento do eu com relação ao trabalho e independência
financeira.
68

No estágio 5, o processo emocional consiste em aceitar várias saídas e


entradas no sistema familiar. As mudanças familiares envolvem: renegociar o
sistema conjugal como díade; o desenvolvimento de relacionamentos de adulto
para adulto entre pais e filhos; realinhamento dos relacionamentos para incluir
parentes por afinidade e netos; lidar com incapacidade e morte dos pais (avós).
Os dois estágios descritos acima, como pode ser observado, são
proposições marcantes em relação ao foco desta tese. No primeiro, o jovem
adulto, segundo as autoras, teria a tarefa de se separar de sua família de origem
sem no entanto romper esta relação e sem buscar um refúgio substituto. Nessa
perspectiva desenvolvimentista, seria conotada de forma positiva a sua capacidade
de escolha dos bens emocionais que fariam parte de sua herança familiar de
origem e o abandono do que deveria ser deixado para trás. Assim, estaria
adquirindo uma identidade própria e podendo assumir as rédeas de sua vida,
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responsabilizando-se emocional e financeiramente pelos seus atos. Porém, para


que esta transição possa ocorrer, é preciso que haja, na dinâmica familiar, uma
mudança em direção a uma forma menos hierárquica de se relacionar, por se tratar
de um universo de adultos. Assim, as autoras colocam em relevo uma dinâmica
interativa propícia, ou seja, o reconhecimento do novo status dos filhos adultos e
uma reformulação da hierarquia, para a família prosseguir em seu ritmo de
desenvolvimento.
Já no estágio considerado como o meio da vida, o 5, lançar os filhos e
seguir em frente requer uma reestruturação do relacionamento conjugal, uma vez
que não são mais necessárias as responsabilidades parentais. Considerado desta
forma, este seria um momento familiar de força e recurso para o prosseguimento
do ciclo vital. Contudo, sob a perspectiva da clínica, se este casal não consegue
renegociar o novo status, esta fase pode se tornar depressiva e sem significado,
um ninho vazio. Sendo assim, o casal teria dificuldade de se descolar da função
parental para reorganizar suas vidas de casal, assim como de reelaborar a relação
com os filhos adultos, como já dito acima. A presença dos filhos, normalmente,
traz vitalidade e movimento ao espaço familiar: na ausência deles, e sobretudo
quando há uma estagnação no sistema conjugal, pode ocorrer uma certa
disfuncionalidade.
69

Cerveny (1997) traz esta discussão para a realidade brasileira, ampliando


os horizontes do conceito de ciclo vital através das particularidades da nossa
cultura. Em sua pesquisa, focada na classe média paulista, aponta para as
contradições vividas no espaço familiar deste estrato social. O contraste
estabelecido entre a modernidade e o modelo patriarcal, ainda presente na
estrutura familiar, se torna visível na abordagem de critérios socioculturais,
históricos, étnicos, entre outros, colaborando para uma visão mais particular e
menos generalista do conceito de ciclo vital familiar. Assim, a autora propõe
quatro etapas, não rigidamente demarcadas, que abarcariam a família em seu
processo de desenvolvimento: a fase de aquisição, a fase adolescente, a fase
madura e a fase última.
A fase madura, de acordo com Carbone e Coelho (1997) agrega um nível
maior de experiências de transição que as outras. A família apresenta
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características como: a saída do primeiro filho de casa; a possível inclusão da


terceira geração ou somente os cuidados e a preocupação com a mesma e o
significado e função de casamento.
As autoras chamam a atenção para aspectos da dinâmica intergeracional
vivida entre os membros, que colocam em pauta a perpetuação de lealdades de
afeto e sangue e transmissão de legados culturais. Esses aspectos incrementam a
convivência da família com possibilidades de conflitos e ambigüidades diversas,
transformando a fase em um momento delicado e difícil do desenvolvimento.
Berthoud (2003) se refere a um ciclo de parentalidade, abordando a relação
entre pais e filhos como uma constante resignificação da interação entre estes. Ao
pesquisar grupos parentais de classe sociocultural média e de diversas faixas
etárias estabelece um ciclo de parentalidade caracterizado por estágios e fases,
que se transformam através de uma resignificação desta parentalidade. O quinto
estágio deste ciclo corresponde ao momento de vida em que o filho é um adulto e
é nomeado como o filho-outro.
Este quinto estágio se caracteriza por uma relação de iguais vivida em
família, uma relação de equilíbrio e troca.
70

A função parental passa a ser exercida de uma maneira transformada, pois agora
as antigas tarefas – cuidador, educador, orientador e apoio – passam a ser
esporadicamente exercidas, e deflagradas muito mais por sinais do filho do que
pelo desejo dos pais. (Berthoud, 2003, p. 142)

Assim, é construída uma relação de iguais com o filho-outro, baseada em


parceria e amizade. Esta mudança na estrutura da relação envolve a percepção de
outros sistemas que interagem no relacionamento: as modificações ocorridas nos
filhos, nos pais e no contexto social favorecem esta transformação. Assim, a
ressignificação desta relação é considerada como de segunda ordem sistêmica,
concebida segundo a ótica de que um necessita do outro para construir
significados quando se trata de buscar sentido para uma experiência. A
parentalidade vista sob uma perspectiva de primeira ordem envolve apenas os
comportamentos dos pais, que têm como objetivo direcionar ou alterar o
comportamento dos filhos em um movimento linearmente vivido, de acordo com
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a autora.
A saída do primeiro filho e a ressignificação do casamento são as
características deste momento da família que mais nos interessam e entendemos
que é a articulação das mesmas que torna esta ocasião uma experiência marcante
no processo desenvolvimental. De acordo com a nossa cultura de classe média, os
filhos, ao saírem de casa, deverão construir seu espaço no mundo social de forma
independente dos pais, e estes ressignificarão sua função parental, agora em uma
situação menos protetora e de maior distanciamento. No entanto, diante do
fenômeno do prolongamento da convivência familiar, deparamos com a
construção de um espaço geográfico independente dentro do próprio território da
família. Os filhos adultos, em seus quartos, que seriam espaços inventados para
garantir sua autonomia, alteram o significado cultural da distância física. Os pais,
assim, deverão ressignificar sua função parental sem distanciamento e,
provavelmente, irão resvalar em questões como controle e proteção na prática
cotidiana.
Esta situação também coloca em questão a renegociação do casamento do
casal parental. Os pais, ainda envolvidos com suas funções iniciais de pais,
poderiam protelar o foco sobre o casamento, nesta fase de vida ainda atravessada
71

por fatores socioeconômicos como a aposentadoria, as dificuldades em relação à


nova ordem da economia e suas perdas.
Destacamos ainda uma outra característica de extrema relevância para o
entendimento desta fase, o fato de pais e filhos poderem se reconhecer como
pares, isto é, como adultos e iguais. Dentre as tarefas básicas desta etapa, se
encontra o preparo dos filhos para sair de casa com senso de independência e
possibilidade de constituir família. Para tanto, os filhos deverão alcançar o status
de adulto e a capacidade de gerir sua própria vida, sendo, então, reconhecidos
pelos pais como tal. No caso da família que prolonga a convivência, pais e filhos
se relacionam sob esta perspectiva de igualdade, contudo a vivenciam de forma
ambígua, uma vez que existe um descompasso entre o tratamento e o controle
exercido de forma invisível, uma hierarquia velada.
Sob o ponto de vista evolutivo, a fase do ninho vazio está sendo adiada e,
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em conseqüência, a fase anterior está sendo alargada, por conta do prolongamento


da convivência. No entanto, como nos apontam Wagner e Silveira (2006), o
fenômeno do ninho cheio se constitui como realidade nos dias atuais. Este seria
uma nova forma de organização familiar, que surge em resposta às condições
contextuais contemporâneas. Reveste-se de uma idéia de variação da etapa do
ninho vazio e como tal, segundo as autoras, deveria ser acrescida às tradicionais
fases do ciclo vital familiar. Portanto, as autoras propõem uma nova fase “que
tenha como tarefa a emancipação física e emocional do adulto jovem em relação à
família.” (p. 452)
A perspectiva desenvolvimentista de ciclo vital familiar, a nosso ver,
estabelece normas generalistas para a família e, dessa forma, introduz “ruídos” na
apreensão desse momento familiar que descrevemos. Há uma dessincronização de
etapas neste tipo de família, se tomarmos como referência o modelo tradicional
familiar, que cumpre as tarefas de cada estágio. Sendo assim, podemos pensar que
a dimensão do coletivo que institucionaliza os patamares de passagem de uma
etapa a outra ceda seu lugar para uma outra dimensão.
Essa dimensão, de acordo com Ramos (2006), é a do próprio indivíduo,
que constrói um sentido referente ao momento vivido por ele, sentido esse forjado
na interação através de micromudanças no território familiar. Com isso, o que
passaria a valer seria aquilo que é fabricado no cotidiano familiar, discutido,
72

inventado, reapropriado, enfim, um saber comum da família, que definiria o


momento em que vivem. Os aspectos da autonomia e dependência ganhariam um
novo sentido, pois seriam constante ou diariamente avaliadas e reavaliadas, tanto
em um contexto de ganhos quanto de perdas. Esse ir e vir dinâmico, dos aspectos
em questão, se instala na complexidade dos contextos de vida contemporâneos,
que inviabilizam uma versão “evolutiva” do ciclo vital familiar.

3.2
A diferenciação: quando a independência e a autonomia se
apresentam

Sob o nosso ponto de vista, conhecer os diferentes graus de diferenciação ou o


limiar de fusão manifestos na dinâmica interativa das famílias compostas por pais
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e filhos adultos pode ser de grande utilidade. Essa afirmação tem como base a
compreensão do nível de proximidade emocional ou o distanciamento, suficiente
ou não, no processo de desenvolvimento da dinâmica em questão. A escala de
diferenciação do self, uma proposta de Murray Bowen, proporciona uma visão
clara da luta constante entre o indivíduo e seu desejo de autonomia e a família, um
domínio que demanda uma noção de coletivo.
Bowen representou uma das grandes influências na primeira década do
movimento de terapia familiar. Fez parte de um grupo pioneiro que partindo da
clínica e da pesquisa construiu um arcabouço teórico de peso para o tratamento de
famílias. O autor pensa a família como uma variedade de sistemas e subsistemas,
nos quais existe uma flexibilidade de funcionamento, de forma que um subsistema
pode atuar em excesso para compensar o mau funcionamento de outro. É um
mecanismo recíproco e flexível. No entanto, o sistema pode vir a perder essa
característica de flexibilidade, quando um membro diante de um aumento de
tensão, ansiedade ou mesmo pânico, tem sua função limitada ou paralisada,
constituindo, então, uma disfunção no espaço familiar.
Segundo Nichols e Schwartz (1998), um dos conceitos fundamentais da
teoria de Bowen é a noção de undifferentiated family ego mass. Trata-se de uma
identidade emocional, aglutinada e referente a um sistema de relações entre os
membros da família nuclear, na qual predomina a indiferenciação, a fusão do ego
73

e uma escassa diferenciação do self. Segundo esses autores, foi o interesse pela
relação simbiótica entre mãe e filho que levou o autor a formular o conceito. Esse
seria uma massa central, fonte de um determinado grau de compromisso básico
emocional, que marca determinadas respostas emocionais. Bowen caracteriza este
sistema de relação, em sua fase aguda, como folie à deux. A proximidade
emocional é de tal ordem que os membros da família percebem sentimentos,
pensamentos, fantasia e sonhos de forma recíproca, seria um estado clínico de
grande fusão de ego.
A partir destas noções, Bowen (1988) formulou a escala de diferenciação
do self. Em um extremo da escala se encontra a intensidade máxima da massa
indiferenciada do ego familiar. No outro, predomina a diferenciação do self. O
autor pontua que esta conceituação não requer um critério de normalidade e a
medida que serve de base é a equivalente a uma maturidade emocional completa,
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que seria o nível 100 da escala, sendo que o 0 seria o da não-diferenciação. Essa
escala seria uma invenção teórica, um constructo norteador, limitando-se,
portanto, a uma importância teórica.
O nível mais baixo da escala, de 0 a 25 abarca as pessoas com um alto
grau de fusão de ego e baixa diferenciação do self. Elas vivem em um mundo de
sentimentos e são pouco capazes de diferenciar o sistema afetivo do intelectual.
Mantêm ao longo de suas vidas um alto grau de dependência da massa de ego
familiar, em conseqüência, buscam outros vínculos de dependência que lhes
permitam funcionar de forma satisfatória. Bowen coloca o esquizofrênico grave
no nível 10 da escala e seus pais, no nível 20.
Entre 25 e 50 se situam aqueles que apresentam uma fusão de ego menos
intensa e um self ainda pouco definido. Segundo o autor, o self destas pessoas tem
uma característica embrionária e muito fusionada com os sentimentos. Em
decorrência disto, seu mundo intelectual tem pouca força, transformando-as em
pessoas com pequena capacidade de dispor de opiniões e convicções próprias.
Assim, elas seriam mais afeitas a uma adaptação maior às ideologias dominantes,
podendo se valer da ciência, de valores culturais, religião, leis e regras, dentre
outros, para sustentar seu sistema emocional. Há uma maior probabilidade de
diferenciação nas famílias que se situam entre os níveis 35-50, de acordo com
Bowen.
74

Os níveis que variam de 50 a 75 da escala concentram os que possuem um


maior grau de diferenciação e um nível muito mais baixo de fusão de ego. Estas
pessoas empregam mais energia em ações com metas específicas do que em seu
mundo emocional. No entanto, caso funcionem sob pressão, podem tomar
decisões emocionais para não desagradar seus pares, não mantendo suas próprias
convicções.
No que concerne aos últimos níveis da escala, de 75 a 100, Bowen
considera como exemplares destes graus aqueles que se situam na faixa de 85-95,
uma vez que nunca teve oportunidade de lidar, em sua clínica, com pessoas no
nível 100. O autor se refere a estas pessoas, as de nível 85-95, como possuindo a
maior parte das características de uma pessoa diferenciada. Elas, desde a infância,
conseguiram a diferenciação de seus pais no processo de desenvolvimento.

Graças a sua capacidade de manter para si o seu funcionamento emocional, são


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livres para o envolvimento em qualquer sistema de relação, inclusive as intensas,


sem a necessidade de dominar ou prejudicar o seu funcionamento. Neste tipo de
relação, o outro não se sente usado. (Bowen, 1988, p. 107)

Em suma, são capazes de manter o self bem definido em uma relação


emocional. Na perspectiva de diferenciação do self, Bowen (1988) afirma que o
indivíduo leva este self, programado em sua família de origem, para os seus
relacionamentos íntimos. Se a questão da fusão na família foi bem resolvida, ele
poderá desenvolver intimidade em seus relacionamentos de uma forma mais livre
da projeção da família de origem. O autor chama a atenção para os rompimentos
de relações que os filhos adultos impetram aos pais, pois, considera-os como
reativos e reveladores de um grau de dependência do sistema nuclear da família.
Essa forma de agir estaria vinculada emocionalmente ao programa familiar.
Assim, os filhos levariam para suas relações amorosas, os mecanismos do
processo de projeção familiar, dificultando, então, o compartilhamento de seu self
com o parceiro. (p. 97)
A teoria de Bowen assume a existência de duas linhas de força que se
contrabalançam, uma com tendência ao coletivo (togetherness) e outra à
individualidade (individuality). Idealmente, essas forças deveriam estar em um
nível de estabilidade. Contudo, quando não o estão e se voltam para o
togetherness, há a fusão ou indiferenciação. Essa tensão resulta do processo de
75

experiência simbiótica vivida na relação mãe-bebê e da capacidade de


diferenciação dessa massa indiferenciada de ego familiar.
O conceito de diferenciação, para Bowen (1988), se refere a um processo
no qual a “individualidade e o togetherness são utilizados pelo indivíduo em um
sistema relacional.” (p. 95) A maior parte das pessoas almeja alcançar uma maior
individualidade, no entanto, “resiste em abandonar o togetherness requerido para
essa aquisição.” (ibid, p. 107) Dessa forma, as famílias, na prática cotidiana,
vivenciam essa tensão entre forças opostas no universo de suas interações. Da
fusão à diferenciação, de acordo com a pauta do momento. O autor reforça essa
noção ao comentar que o resultado do contrabalanceamento entre essas forças
vitais é que “ninguém consegue completar a separação emocional da família de
origem.” (1988, p. 95) Sendo assim, mesmo as famílias com altos níveis de
diferenciação de self estariam sujeitas a momentos de vivência de fusão e
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indiferenciação.
A experiência nesse embate de forças no domínio da dinâmica familiar
pode supor uma alternância de estados de fusão e diferenciação emocional, de
acordo com as circunstâncias. Uma mesma família poderia reagir de uma ou de
outra forma: em face de uma questão particular, o determinante seria o quanto o
tema abordado estaria vinculado às reminiscências emocionais do togetherness.
“Existe uma linha instintiva de base, o togetherness, que impulsiona a criança ou
a família a permanecer conectada emocionalmente e a operar reativamente entre
si.” (1988, p. 95) Por outro lado, quando os membros da família são capazes de
distinguir um processo emocional de um processo intelectual, podem reagir de
forma a diferenciar o sentir e o pensar, na dinâmica interativa.
O nível de estabilidade, coesão e cooperação em um grupo é influenciado
pelo interjogo (interplay) entre individualidade e togetherness. A capacidade dos
grupos de estarem próximos e cooperativos está ligada tanto à habilidade dos
componentes em seguir suas próprias diretrizes, quanto ao grau de direcionamento
das próprias orientações comuns. Esse jogo, em um plano de relacionamentos
emocionais significativos e em condições satisfatórias, se dá em um estado de
equilíbrio.
76

Relacionamentos em condições de equilíbrio existem devido ao fato de que cada


indivíduo investe uma quantidade de energia em uma relação, ao mesmo tempo
em que direciona, igualmente, a mesma quantidade de energia, na vida separada
de seu relacionamento. Se não for assim, o relacionamento não se desenvolve.
(Bowen, 1988, p. 65)

Dessa forma, percebemos que esse jogo supõe uma dinâmica calcada em
contínuos ajustes, a fim de se garantir um equilíbrio na relação.
Essa dinâmica está atrelada, de acordo com Bowen, aos níveis de
diferenciação do self. Ao lado da escala, o autor ainda distingue dois níveis de
diferenciação, o básico (basic) e o funcional ( functional). O nível básico é
amplamente determinado pelo grau de separação emocional que uma pessoa
adquire em relação a sua família de origem, configurando um percurso
multigeracional, pois a cadeia é alimentada pelo que se transmite desse processo
de uma geração a outra. Esse nível funciona de uma forma independente do
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processo relacional. Já o nível de diferenciação funcional é dependente do


processo relacional, influenciado pelo nível de ansiedade crônica da pessoa e
associado aos seus relacionamentos mais próximos e significativos.
Dessa forma, pessoas situadas em um determinado nível básico na escala
de diferenciação podem ter níveis funcionais mais altos ou mais baixos,
dependendo das interações com os outros significativos. Por exemplo, o nível
funcional de uma pessoa com um baixo grau de nível básico pode aumentar ou
cair várias vezes em um espaço de poucas horas. Outro exemplo, o nível funcional
de um casal pode crescer ou diminuir com o nascimento de um filho. No entanto,
pessoas com um nível básico alto podem se adaptar com mais facilidade às
mudanças, sem que seus níveis funcionais se alterem significativamente.
Segundo Bowen (1988), isso ocorre em função do nível baixo de stress no
domínio das relações e a capacidade de neutralidade emocional da pessoa. Essa
capacidade, própria de pessoas com nível alto de diferenciação, consiste na
habilidade em tomar contato com um problema, em conseguir manter uma postura
de calma e entendimento da situação, diferenciando os componentes emocionais e
agindo em direção à solução da dificuldade. Seria uma capacidade importante e
operacionalizada pelo autor em situações de terapia familiar.
O nível de diferenciação cai quando a ansiedade crônica aumenta no
universo das relações.
77

A forma de se pensar isso é que quanto menos a pessoa se diferenciou da família


(separação emocional) mais ansiedade ela porta ao estar só e ter que assumir suas
responsabilidades. Algumas pessoas lidam com isso não deixando a casa paterna,
outros saem e fingem que cresceram. O grau de fingimento é percebido pela
ansiedade associada às responsabilidades de adulto. (Bowen, 1988, p. 117)

Entendemos que quanto mais ansioso se encontra o indivíduo, mais a


pressão rumo ao togetherness aumenta: isto é há uma necessidade maior de
contato e proximidade emocional. Por outro lado, Bowen adverte que quanto mais
o indivíduo responde com base na ansiedade, menos tolerante ele se torna diante
do outro, como também se apresenta mais irritado com as diferenças.
Lyman Wynne, assim como Bowen, formulou seus conceitos e concebeu
sua prática clínica a partir de famílias com um membro esquizofrênico. Também,
da mesma maneira que Bowen, Wynne era psiquiatra e partia de conceitos
psicanalíticos. Ainda, participaram como colegas no National Institute of Mental
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Health, NIMH, ao longo da década de 1950. Wynne, contudo, no início de sua


carreira, teve um contato mais estreito com Talcott Parsons, em Harvard, do quem
incorporou a noção de família como um sistema estrutural, em algumas de suas
formulações. E essas seriam: a personalidade do indivíduo vista como um
subsistema do sistema familiar, que por sua vez faz parte de um sistema mais
amplo, que vem a ser a sociedade.
Os pontos interessantes de seus aportes teóricos e, também, os aspectos
que o colocam alinhado às suposições de Bowen seriam a pseudomutualidade e a
pseudo hostilidade (1958; 1961). A pseudomutualidade distorce a comunicação e
reduz a percepção da realidade e o pensamento racional, no que tange aos
relacionamentos. Ela seria uma “fachada” para o togetherness, mascara os
conflitos e bloqueia a intimidade. Essas famílias têm um medo exacerbado da
separação e se aglutinam de tal modo que não há lugar para os interesses pessoais.
A pseudomutualidade, de acordo com Wynne, impede a emergência de afetos
mais profundos e sentimentos sexuais, bem como, os conflitos.
A pseudohostilidade é um diferente disfarce de um conluio similar, com o
intuito de não deixar aparecer os alinhamentos e as rupturas4 na interação. Essas
coalizões nas relações familiares se mantêm encobertas por suas características

4
Alignements and splits, no texto original.
78

ameaçadoras da relação e, como a pseudomutualidade, impedem a apresentação


da intimidade e da hostilidade profunda.
Wynne também acrescenta o conceito de rubber fence, que seria uma
barreira invisível, destinada a afastar os possíveis envolvimentos provenientes do
mundo situado fora dos limites da família. Essa barreira se caracteriza por uma
certa abertura em relação aos envolvimentos sociais básicos e obrigatórios na vida
da família, tais como a escola ou o trabalho: todavia, se fecha quando há uma
proximidade ameaçadora. A rígida estrutura dessas famílias seria mantida através
desta fronteira, em um contexto no qual o togetherness é a realidade e as relações
exteriores ao universo da família são desencorajadas.
Voltando a Bowen, uma outra grande contribuição conceitual para o
campo da terapia familiar foi a percepção de que, diante de um conflito não
passível de resolução, existe a tendência de se buscar uma terceira pessoa. Assim,
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a triangulação passa a ser a menor unidade estável do relacionamento. Triangular


na dinâmica familiar pode significar uma tentativa de restabelecer o equilíbrio. O
autor parte da suposição de que a relação entre duas pessoas abarca um ciclo de
proximidade e distância, e é justamente quando a distância predomina que a
triangulação ocorre. Bowen alerta que nem sempre a triangulação é danosa para a
relação; ela o é somente quando se torna crônica e inviabiliza o relacionamento.
Dessa forma, entendemos que a diferenciação, nos termos de Bowen, seria
atingida quando o relacionamento é mantido sem fusão emocional e sem
triangulação. Adicionamos que na dinâmica interativa familiar, o caminho em
direção à diferenciação é um devir, é um trabalho inacabado, a ser completado, se
pensado sob uma perspectiva de continuidade de existência. Nesse processo, as
recaídas para o togetherness constituem o interjogo relacional: separar-se ou ficar
junto, eis a questão. Acreditamos que pais e filhos adultos busquem uma
dimensão de proximidade e afastamento apropriada na esfera relacional, na vida
do dia-a-dia da família, para que suas conquistas pessoais nesse terreno possam
ser garantidas.
79

3.3
Flexibilizando a hierarquia e as regras de convivência

Para examinarmos uma das questões propostas nesta tese – a existência de uma
hierarquia velada na família de adultos e a possibilidade de as regras familiares
serem constantemente negociadas pela família e algumas serem rompidas pelos
filhos – optamos por introduzir nesse item os principais conceitos do corpo teórico
da terapia estrutural de famílias proposta por Salvador Minuchin (1974,1981).
Esse autor tem como afiliação teórica, conforme Nichols & Schwartz (1998), o
modelo organicista de Bertalanffy e o modelo estrutural funcionalista de
Radcliffe-Brown, Malinovsky, Lévi-Strauss e Parsons. Acrescentamos a essa
afiliação, a teoria de construção social da realidade (Berger e Luckmann, 1966)
que irá influenciar Minuchin no início da década de 1980.
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Objetivando uma maior clareza na abordagem da perspectiva estrutural


proposta por Minuchin, iniciaremos este item com algumas considerações sobre a
família nuclear, papéis e funções, conceitos propostos por Talcott Parsons. Esse
autor, no domínio sociológico, estabeleceu um conjunto de construções teóricas
de relevante importância e influência, em um sentido mais largo, no campo de
estudos da terapia familiar e, especificamente, na obra de Minuchin. No entanto,
estamos atentos ao fato de ser a sociedade norte-americana a sua referência
principal, como também levamos em conta a crítica de Lasch (1974) à sua teoria.
Esse último a considera como aliada, se não propulsora, dos revisionistas sociais5,
“ávidos em esfolar sem piedade a família” (p. 193). Ainda assim, consideramos os
conceitos já mencionados e formulados por Parsons, como relevantes por
servirem de base às reflexões e sustentações de grande parte dos teóricos da
terapia familiar.
Parsons (1964) assevera que o isolamento da família nuclear em relação a
outras unidades de parentesco e a perda de algumas de suas funções pela invasão
de especialistas do mundo médico, psicológico, entre outros, possibilitou uma
maior especialização de suas funções, a criação dos filhos e o conforto emocional.
Dito de outro modo, “aliviada” das funções educativas, econômicas e sociais que

5
Lasch (1974) cita Kenneth Keniston, Philip Slater, Arlene & Jerome Skolnick como
representantes desse revisionismo social da família.
80

a condição moderna retirou do seu espaço, a família foca seus objetivos na função
de abrigo para os sentimentos de seus membros.

Enquanto o principal conteúdo da estrutura da personalidade é derivado do


sistema social e cultural através da socialização, a personalidade se torna um
sistema independente através das suas relações com seu próprio organismo e
através da “uniqueness” da sua própria experiência de vida. Ela não vem a ser um
mero epifenômeno da estrutura da sociedade. No entanto, não há somente
interdependência entre o indivíduo e a sociedade mas interpenetração. (Parsons,
1964, p.82)

Uma das funções da família é possibilitar a expansão de personalidades


capazes de enfrentar os rigores do mundo contemporâneo. A noção de “produção”
de personalidades é conotada positivamente pelo autor, que a vê de forma a
favorecer o desenvolvimento da autonomia individual. A família “treina” a
capacidade de desempenhar papéis que garantiriam a habilidade de inserção no
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mundo social.
Indivíduo e sociedade são mais do que interdependentes, eles se
interpenetram. Do ponto de vista sociológico, essa área de interpenetração é
construída pelos papéis, ao longo de todo o processo de socialização. A estrutura
social é um sistema de expectativas padronizadas do comportamento de
indivíduos que ocupam um status específico no sistema social. Esse sistema de
expectativas padronizadas é o próprio sistema de papéis. Os papéis são
interdependentes, o indivíduo exerce diversos papéis que determinam sua
participação numa coletividade. A coletividade, por sua vez, é composta por uma
cultura normativa que define valores, objetivos, normas, direções, ordens de
papéis que serão desempenhados nas situações específicas do indivíduo.

Há várias definições para o conceito de “papéis” na literatura sociológica.


Contudo, considero como mais adequado às minhas proposições a concepção de
que um papel é um sistema organizado de participação de um indivíduo no
sistema social, entendendo organização do sistema social como coletividade. Os
papéis constituem o foco básico da articulação e da interpenetração entre
personalidades e sistemas sociais. (Parsons, 1964, p.261)

Do ponto de vista psicológico, os papéis teriam duas funções, segundo o


autor. A primeira função seria a de estruturar a realidade de ação do indivíduo
para que ele pudesse tomar atitudes adequadas ao interagir com outros indivíduos,
81

definir os padrões de atitudes e sinalizar as conseqüências do contato com o outro.


A segunda função seria a de estruturar os padrões morais introjetados no processo
de socialização, os quais seriam os conteúdos do superego.
Segundo Parsons (1964), a estrutura da família nuclear se diferencia em
quatro papéis – mãe, pai, irmão e irmã –, não existindo nenhum sistema social
conhecido em que esses papéis não se encontrem discriminados uns dos outros. A
eficiência dessa família depende do desempenho das funções desses papéis e da
posse dessas características.

O critério mínimo de família nuclear vem a ser, sugiro, que, primeiro, exista uma
relação sólida entre uma mãe e uma criança que perdure por um certo número de
anos e transcenda os cuidados básicos fisiológicos. Em segundo, em sua
maternagem, a mulher deve ter um relacionamento especial com um homem, que
vem a ser, sociologicamente, o pai da criança. Essa relação é o foco de
legitimação da criança e seu status referencial no sistema social mais amplo.
(Parsons, 1964, p.59)
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Ao definir a família nuclear, Parsons considera relevantes as suas


seguintes características: ser um grupo pequeno com uma média de sete membros;
diferenciar-se estruturalmente em torno dos eixos de poder ou hierarquia e de uma
distinção de papéis instrumentais e expressivos; e representar essa distinção sob a
forma de liderança, que deverá ser marcada por uma forte coalizão. O grupo
familiar ainda apresenta outras características marcantes, como a de ser um grupo
de auto-destruição – ou seja, quando os filhos atingem a maioridade tendem a
formar uma nova família, deixando de ser membros da original; e a de que essa
nova família deve se estruturar sob um signo de alto nível de envolvimento
afetivo.
Essas duas características, de autodestruição e de alto envolvimento
afetivo compõem um fator de grande relevância na estruturação social mais
ampla. Na medida em que as famílias são sistemas que interagem com outros
sistemas, há a necessidade de que os papéis exercidos tanto dentro quanto fora
dela mobilizem seus membros a formarem alianças para a sua sobrevivência. Da
mesma forma, é preciso que desempenhem a função de motivar a aquisição de
laços não-familiares, para que seja possível a sua perpetuação, isto é, a formação
de novas famílias nucleares. Esse jogo de papéis é facilitado, segundo o autor, por
uma necessidade de gratificação erótica que permeia as relações familiares.
82

O erotismo também é apontado por Parsons (1964) como fio condutor das
relações familiares. O componente motivacional erótico se constrói na criança a
partir da relação de prazer que se estabelece entre a mãe, o pai e a criança, uma
relação de reciprocidade erótica.

(...) o objeto erótico primeiro da criança de ambos os sexos é a mãe; quando esse
vínculo deixa de ser útil para o desenvolvimento da personalidade, ele tende a ser
reprimido como um todo. Não só o objeto original é negado, mas todos os
membros da família nuclear original tornam-se tabus. (Parsons, 1964, p.124)

A esse respeito, Parsons acrescenta que o tabu do incesto constitui um foco


fundamental na regulação do fator erótico, pois a sua interdição permitindo que o
processo de autodestruição da família nuclear seja possível. Com a interdição da
motivação erótica no âmbito familiar ocorre o deslocamento de interesses da
criança para o grupo de amigos. Como esse grupo não é calcado na hierarquia de
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liderança, característica da esfera familiar, ele inaugura uma fase de maior


autonomia, de exercício de papéis não-familiares e de pertencimento a um grupo
de “iguais”. Mais tarde, a adolescência reintroduz o erótico, só que voltado para
um outro que é “igual”, constituindo uma atração simétrica. O autor faz algumas
considerações sobre soluções inadequadas nesse processo do componente erótico,
como assumir papéis de dependência em relação ao outro, ou assumir um papel
parental na relação.
Como podemos observar na trajetória das idéias de Parsons, a construção
dos componentes não-eróticos da personalidade em interação familiar permite o
desempenho de papéis não-familiares, fundamentais para que um sistema social
possa funcionar. Toda essa interessante argumentação funcional do processo de
construção de papéis familiares e não-familiares nos permite visualizar a estrutura
e organização da família e sua posição numa estrutura mais ampla, o sistema
social. Os papéis são interdependentes, e o indivíduo os exerce a partir das
prescrições do sistema social e cultural ao qual pertence. Estabelece-se assim uma
relação complementar na qual um indivíduo necessita do outro. Essa relação é
norteada por uma lógica que podemos sintetizar, nas palavras de Parsons, como
uma lógica de obtenção constante de objetivos e desejos ou uma tendência à
“otimização de gratificações”.
83

Em Famílias, funcionamento & tratamento (1974) Minuchin afirma que a


família se estrutura de forma hierarquizada e que em cada um dos diferentes
subsistemas que a compõem, existem manifestações de poder e exercício de
hierarquia. A perspectiva estrutural define, por exemplo, a função parental ou o
subsistema parental como uma competência específica, uma direção executiva,
articulada a um papel que exige a responsabilidade de quem o exerce. Contudo,
para um melhor entendimento da noção de hierarquia na obra do autor, faz-se
necessário examinar, mesmo que de forma breve, os quatro conceitos básicos da
abordagem estrutural de famílias, ou seja, a estrutura, as regras, os subsistemas e
as fronteiras.
A estrutura da família é constituída por interações familiares que se
inserem em uma moldura pré-organizada. “A estrutura familiar é o conjunto
invisível de exigências funcionais que organiza as maneiras pelas quais os
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membros da família interagem.” (Minuchin, 1974, p.57) As interações repetidas


estabelecem padrões interacionais que regulam o comportamento dos membros da
família, “uma família é um sistema que opera através de padrões transacionais.”
(p. 57) Estes padrões são mantidos por dois sistemas de repressão. O primeiro é de
uma ordem mais genérica e envolve as leis universais que instituem a organização
familiar. O segundo é mais particular e diz respeito às expectativas mútuas de
membros específicos da família. Estas expectativas se fundam nos contratos
originais da família, porém podem ser esquecidas ou não explicitadas e estão
constantemente sendo negociadas.
Estes sistemas de repressão constituem as regras, que são configurações
transacionais que exercem uma regulação sobre os comportamentos dos membros
da família.

A origem dessas expectativas está mergulhada em anos de negociações explícitas


e implícitas entre os membros da família, frequentemente em torno de pequenos
eventos cotidianos. Frequentemente, a natureza dos contratos originais foi
esquecida e eles podem jamais ter sido alguma vez explícitos. Mas os padrões
permanecem – como se fossem um piloto automático – como uma questão de
acomodação mútua e de eficácia funcional. (Minuchin, 1974, p. 57)

A respeito das regras familiares, Colapinto (1991) afirma que elas se


estabelecem a partir da mutualidade desenvolvida na interação entre dois
84

membros da família. O ajuste de interesses, ou seja, a complementaridade vem a


ser o terreno dentro do qual elas se desenvolvem. Dito de outra forma, quando um
membro da família expressa um aspecto de si próprio, provocará no outro um
aspecto complementar a este, criando assim uma regulação na interação.
Cada membro da família pertence a um diferente subsistema, a que
correspondem diferentes níveis de poder e competência. Os subsistemas podem
ser formados por sexo, geração, interesse e função. Dessa forma, o indivíduo é um
subsistema dentro da família e as díades conjugal, parental e fraternal constituem
outro subsistema. Nestes subsistemas, o membro da família ingressa em diferentes
relações complementares, dentro das quais experimenta diversas formas de poder
e hierarquia.
As fronteiras de um subsistema são as regras que definem quem participa e
como, são as regras que delimitam as trocas, são os limites que permitem aos
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membros desempenhar suas funções sem interferência indevida. As famílias


podem se situar em dois pólos quanto à natureza de suas fronteiras, que são um
modo transacional e não se referem a uma qualidade disfuncional da família. Em
um pólo, as fronteiras são difusas ou emaranhadas e compõem um sistema voltado
para si mesmo, com limites individuais pouco respeitados. No outro, as fronteiras
são rígidas e distanciadas e se caracterizam pela pouca capacidade de
interdependência e apoio entre os membros. Nestes dois sistemas relacionais,
podem surgir dificuldades quando são evocados mecanismos adaptativos.
Cada família deverá responder de acordo com suas características: a
emaranhada reagirá com rapidez e intensidade excessiva; a distanciada tenderá a
não responder. O autor ressalta que emaranhamento e desligamento se referem a
um estilo transacional ou à preferência por um tipo de interação, e não a uma
característica de funcionalidade ou disfuncionalidade. Contudo, Minuchin afirma
que para um mais apropriado funcionamento familiar, as fronteiras dos
subsistemas devem ser nítidas, bem definidas, para que os membros possam
efetivar suas interações sem interferência indevida.

A composição de subsistemas, organizada em torno das funções familiares, não é


especialmente tão significativa quanto à nitidez das fronteiras do subsistema. (...)
o desenvolvimento de habilidades interpessoais, conseguidas nestes subsistemas
85

está baseado na liberdade do subsistema das interferências de outros subsistemas.


(Minuchin, 1974, p. 59)

Sendo assim, a inclusão de outros membros em um subsistema pode


funcionar, desde que haja nitidez nas regras de convivência.
Sublinhamos os pontos de contato entre Bowen e seu conceito de
diferenciação do self, o togetherness e individualidade, e Minuchin, com o de
famílias emaranhadas e desligadas. Ambos se referem ao nível de fusão e
diferenciação emocional na dinâmica familiar. Bowen, ao construir uma escala de
diferenciação de self, pontua a verticalidade no percurso de aquisição da
individualidade. Um processo iniciado com a relação mãe-bebê e que culmina
com a autonomia do indivíduo adulto. Percebe-se a influência das perspectivas
desenvolvimentistas e das noções da psicanálise. Minuchin caminha ao lado da
antropologia e da sociologia.
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Minuchin representa horizontalmente esses níveis, colocando nos pólos,


respectivamente, o emaranhamento ou superenvolvimento e o desligamento ou
desapego, sendo que no centro dessa representação linear estariam as famílias
com graus de nitidez de fronteiras suficientes para exercerem suas funções. Nos
pólos se situam as famílias disfuncionais e, no centro, encontram-se os limites da
normalidade, observando-se, assim, o processo entre a individuação e a
mutualidade na família. Além disso, o autor pontua que os membros da família
desenvolvem, ao longo de sua convivência, um senso da “distância apropriada”
que devem manter um do outro. Isso constitui um jogo dinâmico de avanço e
retrocesso, a fim de se manter uma distância psicológica suficientemente correta:
nem muito próximos, nem muito distantes.
Em Técnicas de Terapia Familiar (1981), Minuchin aprofunda suas
concepções teóricas e reflexões acerca das técnicas terapêuticas. Talvez possamos
dizer que essa obra evidencia a transição para o novo paradigma sistêmico, ou, ao
menos, indica o grau de influência que essas novas proposições assumirão em sua
obra. Tomemos como exemplo a introdução da noção de holon, o todo-parte e
como essa idéia se desdobra na contestação de uma realidade pré-existente. “Parte
e todo contêm um ao outro num processo contínuo, atual e corrente de
86

comunicação e interrelação.” (p. 23) Essa noção não substitui, mas prevalece
sobre a noção de subsistemas.
A respeito do holon indivíduo e o holon família, Minuchin diz que as
pessoas funcionam com uma parte de suas possibilidades, entre inúmeras outras.
Essas possibilidades de ação variam de acordo com o contexto no qual se
realizam. Assim, um jovem filho superenvolvido com a mãe pode agir de forma
carente para obter seus cuidados, ao mesmo tempo que com um irmão ou seu
grupo de pares, possa agir de forma competitiva e decidida. Contextos diferentes
requerem partes de si diferentes.
Dessa forma, não existe uma realidade, uma história ou uma verdade,
existe uma multiplicidade de emergências no domínio da dinâmica familiar. “As
famílias funcionais são sistemas complexos constituídos por um grande número
de partes que interatuam de uma maneira complicada.” (p. 142) Os padrões de
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interação dentro do holon familiar são fortes, significativos e interrelacionados em


uma ordem hierárquica, constituindo transações mais fortes do que as que ligam
outros holons entre si. A terapia familiar proposta por Minuchin desafia a
estrutura do holon, holon esse que funciona dentro de seus limites e pertinência e
não funciona em holons diferentes e com novas regras. Assim, a terapia se propõe
a desconstruir uma estrutura ou a buscar sua flexibilidade, para que outros
repertórios possam emergir na convivência.
Em A Cura da Família (1993), Minuchin questiona o uso da palavra
“estrutura” em sua obra. Justifica a necessidade e a utilidade do termo, a partir da
sua formação médica, que focaliza as estruturas físicas e as funções biológicas dos
organismos. Tenta encontrar essa concepção no domínio familiar, ressalvado,
porém, que a entende como uma indicação de limitação funcional. Ressalta que o
significado de estrutura remete a um estado fixo, embora entenda a família como
uma entidade flexível. “Hoje, penso que uma metáfora fisiológica, tal como
manter a temperatura corporal, teria sido melhor, porque indicaria flexibilidade
perante a mudança”. (p. 42)
Embora afirme não ter abandonado o conceito de estrutura e de
desenvolvimento familiar, Minuchin passa a se concentrar na verdade narrativa da
família, em detrimento da sua verdade histórica. Com isso quer dizer que a família
cria uma história específica, que dá sentido à sua vida. Essa história é uma
87

realidade compartilhada entre os membros, de forma que quando se escuta uma


história, compreende-se as coalizões e os padrões de tal família. Os fatos
apresentados quando a história é contada são parcialmente construções e
parcialmente acontecimentos históricos. E assim, o autor se afastou do ensino de
técnicas e se concentrou em um pensar sobre a família e suas interações.
A forma de compreender a função do terapeuta também passou por
transformações. Já em Técnicas de Terapia Familiar (1981), Minuchin constrói a
noção de terapeuta espontâneo. O terapeuta ainda é visto como observador, como
aquele que ocupa uma posição de saber, e no entanto:

(...) ser um terapeuta espontâneo... significa utilizar a coparticipação para tornar-


se um agente de mudança, que trabalha dentro das regras do sistema familiar,
com modalidades de intervenção. (...) Suas ações, ainda que reguladas pelas
metas da terapia são o produto de seu vínculo com a família cliente. (Minuchin,
1981, p. 12-13)
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Essa posição, ainda que estabelecida sob uma perspectiva hierárquica, se


desprende da responsabilidade total da posição anterior, uma vez que “o terapeuta
pode trabalhar tranqüilo sabendo que não precisa estar correto.” (p. 13) De todo o
modo, Minuchin fez de seu campo teórico um lugar poroso, flexível, deixando a
prática clínica indicar os percursos. Essa capacidade de transformação é
fundamental para quem lida com sistemas diversos e plurais como a família.
“Mesmo uma sociedade democrática não se faz sem liderança”, afirma
Minuchin. (1981) Dentro da proposta de se conhecer a hierarquia e as regras
familiares, no contexto de adultos, ressaltamos a assertiva do autor de que
somente a família ideal é frequentemente definida como democrática. O autor
questiona que a família seja uma sociedade de iguais. Sob seu ponto de vista, o
uso diferenciado de autoridade é necessário para o subsistema parental. “O apoio à
responsabilidade e obrigação dos pais de determinar regras familiares assegura o
direito e a obrigação dos filhos de crescer e de desenvolver autonomia.” (p. 28)
No entanto, o autor descreve – e não o faz de uma forma especificamente referida
à disfuncionalidade – famílias com um filho parental. Os pais concedem este
poder a um filho, que deverá ter desenvolvido responsabilidade, competência e
88

autonomia para exercê-lo. O contexto deste consentimento poderá ser natural em


famílias grandes, ou nas que um dos pais, ou ambos, trabalham.
Concordamos com Minuchin, quando este se refere à hierarquia e poder
parental nas famílias cujos filhos ainda não atingiram a idade adulta. A
diferenciação de funções com a aceitação de expertise e autoridade de um
membro pode ser necessária e útil. Féres-Carneiro (1996) chama a atenção para a
ineficácia do funcionamento da família em que os pais assumem uma posição
autocrática ou uma posição inadequadamente igualitária, deixando o grupo
familiar sem liderança. No sistema familiar, pode-se esperar que o subsistema
parental assuma certa autoridade e liderança e que esta possa ser compartilhada
com os filhos de forma diferenciada e democrática. Para tanto, as regras familiares
devem ser explícitas, coerentes, flexíveis e democráticas, pois, segundo a autora,
tais regras facilitam o desenvolvimento dos membros da família.
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Dessa forma, entendemos que o contexto atual esmaeceu e flexibilizou as


fronteiras, os subsistemas, as regras, a estrutura da família. A família é hoje um
território complexo no qual coexistem diversas formas e possibilidades de
interação – a pluralidade qualifica esse momento em que vivemos. No entanto, e
apesar da considerável flexibilização dos papéis de gênero e das metamorfoses
impostas pelo sistema social, sobretudo em relação à relevante proximidade entre
pais e filhos, não acreditamos que exista uma nova família. Padrões tradicionais
de comportamento permanecem no espaço familiar, como podemos constatar no
conjunto de pesquisas reunidas em Família e Casal, efeitos da
contemporaneidade6 organização de Féres-Carneiro (2005). Esta convivência
entre a tradição e o contexto de mudanças da atualidade propicia a multiplicidade
de arranjos familiares e nos fornece os elementos para a compreensão da família
da qual nos ocupamos neste estudo, a família que não deseja se separar.
Existe um paradoxo em nossa sociedade, nos termos de DaMatta (1978),
um descompasso entre o mundo das regras e leis e a prática cotidiana, esta calcada
no modelo hierárquico. Dessa forma, existem duas atitudes distintas coexistindo
no sistema de relações sociais: a atitude igualitária e a hierarquizada. Esta
coexistência parece admitir que as práticas a elas relacionadas se alternem de

6
Pesquisas apresentadas no X Simpósio Brasileiro de Pesquisa e Intercâmbio Científico da
ANPEPP – Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia.
89

acordo com o contexto em que atuam. “O igualitarismo individualista quase


sempre se choca de modo violento com o esqueleto hierarquizante de nossa
sociedade.” (p. 184)
No que concerne à questão específica da hierarquia e regras, entendemos
que diante da complexidade do terreno familiar, precisamos ultrapassar a visão de
linearidade e previsibilidade nas interações entre os membros da família. Como
nos apontou Minuchin em Técnicas de Terapia Familiar (1981) e em A Cura da
Família (1993), o campo teórico da terapia familiar deve ser um lugar poroso,
flexível, deixando a prática clínica indicar os seus percursos. Essa capacidade de
reformulação e mudança na família e a utilização dos múltiplos selves de acordo
com os interesses do contexto interacional, a nosso ver, se apóia na colaboração e
troca interdisciplinar entre Minuchin Berger & Luckman. Essa colaboração entre
teorias proporcionou um arejamento na proposta estrutural.
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Acreditamos que a idéia da construção social da realidade tangenciasse a


forma de pensar de Minuchin. Dessa maneira, a questão da hierarquia e das regras
de convivência, flexíveis para dar conta das necessidades de mudança nessa
dinâmica familiar, ganha novos contornos. As regras familiares e a hierarquia não
são categorias a priori, mas sim construídas, sustentadas, questionadas e
negociadas nas relações entre os membros da família em suas vidas cotidianas. E
nesse processo de construção colaboram a cultura, a singularidade, o gênero, os
imperativos sociais e outros, que se constituem em uma rede de múltiplos
atravessamentos.

3.4
Múltiplas realidades, as realidades construídas na vida do dia-a-dia

A transição entre os paradigmas de primeira e segunda ordem comporta a


afirmação da não-existência de uma realidade fora do indivíduo. Watzlawick
(1999) nos diz que se a solução de um problema residir fora do repertório interno
da família, as mudanças de primeira ordem sistêmica não permitem que se
encontre a solução. Na visão do autor, a mudança de primeira ordem é a mudança
de um sistema que passa de um estado a outro. A mudança opera no interior deste
sistema, dentro de seu repertório ou capacidade de resolver suas questões. Por
90

outro lado, a mudança de segunda ordem envolve a necessidade de mudar a


estrutura do sistema, esse sistema requer um aporte do exterior.
Maturana (1999) oferece um interessante e apropriado exemplo de
mudança de segunda ordem, ao expor o seu conceito de autopoiese nos sistemas
sociais. Trata-se de uma partida de futebol ocorrida em 1823, em Rugby, que se
desenrolava normalmente segundo as regras desse esporte, quando um jogador
tomou a bola com as mãos e correu para colocá-la na trave de gol do espaço do
adversário. Nesse momento, os outros jogadores o perseguiram e um combate por
sua posse se iniciou. A interação entre esses jogadores provocou uma mudança,
produzindo uma forma diferente de jogar, que, por sua vez, tornou possível o
rugby. Com esse exemplo, entendemos que o sistema, a partir de interações
recorrentes, cria uma rede de ações coordenadas que engendra um novo
comportamento social. Nas palavras de Maturana:
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No decorrer dessa transformação, um sistema particular de ações coordenadas,


constituinte do futebol, sofreu uma mudança repentina, quando o novo
comportamento de um jogador – por um conjunto de ações coordenadas que
provocaram um novo comportamento nos outros jogadores – possibilitou uma
configuração de ações coordenadas inéditas que se tornou o rugby. (p. 147)

Entendendo a família como um sistema social, essa compreensão de


mudança, fora das regras habituais desse grupo, faz do terapeuta, do acaso ou de
um agente qualquer, um instrumento de mudança na família. À medida que um
membro muda, os outros também o fazem. Isso significa, em um contexto de
terapia familiar, que cada mudança na família passa necessariamente por uma
mudança individual dos membros. Essa ação se efetua através de um processo de
interações entre o terapeuta com um ou com a maior parte dos membros da
família, de modo que a intenção de instigar a mudança através de ações
coordenadas encontre um eco.
Tudo se passa através da linguagem e a noção de que sujeito e objeto
constituem-se um ao outro tem como base a ótica da linguagem como construtora
da realidade. A introdução ou importação de teorias da comunicação na terapia
familiar nos habilita a iniciar essa discussão sobre a construção da realidade,
remetendo-nos às contribuições dos primeiros teóricos a utilizá-las como
pressupostos básicos. Watzlawick (1967), por exemplo, destaca a comunicação
91

como um processo de interação e sublinha a importância da linguagem analógica


e da digital na interação humana. O indivíduo combina essas duas linguagens
como emissor ou receptor. O autor assevera que a interação é uma série de
mensagens trocadas entre pessoas, entendendo mensagem como um complexo
fluido e multifacetado de diversos tipos de comportamento, sejam eles verbais,
tonais, posturais ou contextuais.

Os seres humanos se comunicam digital e analogicamente. A linguagem digital é


uma sintaxe lógica sumamente complexa e poderosa mas carente de adequação
semântica no campo das relações, ao passo que a linguagem analógica possui a
semântica mas não tem uma sintaxe adequada para a definição não-ambígua da
natureza das relações. (Watzlawick, 1967, p. 61)

Assim, o indivíduo implica-se em um compromisso ao se comunicar. A


troca de mensagens entre os comunicantes está, intimamente, articulada à natureza
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da relação, isto é, a simetria e, ou, a complementaridade. Dessa maneira, segundo


Watzlawick, a interação pode ser compreendida de duas formas. A primeira, a
interação simétrica, expõe a tendência, entre os parceiros, a refletirem o
comportamento um do outro, com também há a característica da igualdade e a
minimização da diferença. A segunda, a interação complementar, baseia na
maximização da diferença, ou seja, os comportamentos dessemelhantes, porém
ajustados, provocam-se mutuamente. O parceiro comporta-se de forma a
pressupor o comportamento do outro ao fornecer razões para tal, por isso, as
definições deste tipo de interação se encaixam.
A distinção entre comunicação digital e analógica nos parece relevante não
só no campo terapêutico, como também, fora desses limites. As declarações
contraditórias, as incoerências, as mudanças bruscas de assunto, as
tangencializações, as frases incompletas, o estilo obscuro, as interpretações literais
de metáforas remetem às conversações que acontecem nos diferentes redutos da
vida cotidiana.
A tradução do material analógico para o digital e vice-versa é fonte de
desacordos. Watzlawick afirma que a digitalização do material analógico será
sempre sujeita à controvérsia, pois esse último presta-se a interpretações digitais
diferentes e determinadas vezes incompatíveis. Ao digitalizar, o indivíduo
procede de acordo com sua concepção da natureza da relação, que pode não
92

coincidir com a do outro. Ressaltamos que a comunicação analógica ou não-


verbal tem como ponto central, segundo o autor, o aspecto de acentuar e definir a
natureza da relação.
Nesse ponto, permitimo-nos uma breve referência ao grupo de Gregory
Bateson que, conforme Nichols & Schwartz (1998), é considerado o fundador da
terapia familiar. Watzlawick é afiliado teoricamente a Bateson. A afirmação do
primeiro – a saber, de que “toda comunicação tem um aspecto de conteúdo e um
aspecto de comunicação de forma que o segundo classifica o primeiro e é,
portanto, uma metacomunicação” (Watzlawick, 1967, p. 50) – tem como base o
conceito de metacomunicação proposto pelo segundo. Bateson, um antropólogo
com histórico de trabalho de campo em Bali e Nova Guiné com Margareth Mead,
interessou-se, também, pelas idéias oriundas da cibernética e as articulou ao seu
saber antropológico. O grupo de Bateson introduziu – além do aspecto da
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comunicação acima citado através do olhar de Watzlawick – a noção dos efeitos


do paradoxo na interação humana, o que o levou a formular o conceito de duplo
vínculo.7 Os seguidores de Bateson, dentre eles Watzlawick (1967), redefiniram
alguns desses conceitos.
Conforme este último, “o paradoxo não só pode invadir a interação e afetar
o nosso comportamento e a nossa sanidade mental, mas também, desafia a nossa
crença na coerência e, portanto, na solidez fundamental do nosso universo.”
(Watzlawick, 1967, p. 168) O autor enfatiza as conseqüências comportamentais,
isto é, pragmáticas do paradoxo. Os paradoxos pragmáticos, dentro do
vocabulário do autor, se constituem de injunções paradoxais. As injunções
paradoxais ou duplas vinculações têm como característica fundamental ocorrerem
em um universo de forte relação complementar. Nessa relação o que é transmitido
deve ser obedecido, como também deve ser desobedecido para que seja
obedecido. A posição do indivíduo que ocupa um lugar de inferioridade na
relação é paralisante, pois ele é incapaz de sair dessa posição por não conseguir
fazer um comentário sobre a injunção, ou seja, metacomunicar, o que seria
desobedecer. Esse comportamento paradoxal gera, também, um duplo vínculo
para quem o iniciou – a teia fica, então, estabelecida.

7
Bateson, G.; Jackson, D. ; Weakland, J. 1956 Toward a theory of schizophrenia. Behavioral
Sciences. 1: 251-264.
93

O nível de patogenicidade da dupla vinculação consiste na sua


continuidade e no fato de poder transformar-se em uma expectativa habitual,
tornando-se um padrão de comunicação que se perpetua a si mesmo. Lembramos
que essa concepção teve como origem a prática com famílias de esquizofrênicos.
Os duplos vínculos seriam então verdadeiros paradoxos e não injunções
contraditórias ou contradições. O uso do termo injunções contraditórias seria mais
apropriado para os contextos não-patológicos. As contradições impostas pela vida
cotidiana e o viver contemporâneo são habituais: a grande diferença reside no fato
de que uma escolha lógica ou uma solução para sair de sua esfera é totalmente
possível, ao contrário da injunção paradoxal, na qual ocorre a falência da própria
escolha.
Consideramos importante a idéia de rede comunicacional e a noção de
“jogo” que ela comporta na experiência vivida na dinâmica familiar. Todos jogam
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de forma a criar uma rede na qual todos compartilham as regras estabelecidas. No


domínio da terapia familiar, Cecchin (1994) ressalta que essa visão, conhecida
como a metáfora do jogo e desenvolvida ao longo da década de 1970 e 1980 no
Centro de Terapia Familiar de Milão, conduzia a uma compreensão da família
como “quase mecanicista”. O jogo apontado pelo autor aproxima-se da idéia de
uma batalha, de um jogo estratégico, em que alguém vai ganhar.
Os questionamentos a respeito desta posição levaram Cecchin e sua equipe
a entender que esse jogo não se restringia somente à família, pois também incluía
o terapeuta e, além disso, “emergia da relação entre o terapeuta e a família”. A
partir daí, a idéia de co-construção eclode no contexto terapêutico proposto pelo
autor e seus colaboradores, de maneira que a metáfora comunicacional diversifica-
se e passa a ser considerada como um espaço social, articulado com narrativas e
práticas não só dominantes como alternativas.
Paralela ao campo das terapias familiares, a visão da sociologia, sobre o
uso da linguagem na construção do mundo, se enriquece a partir da perspectiva de
Berger e Luckman (1966). A linguagem da vida cotidiana e seu poder contínuo de
prover as necessárias objetificações, no intuito de ordenar e fornecer sentido para
a experiência do dia-a-dia, constitui-se como foco de análise para esses autores. A
realidade do dia-a-dia é tomada como objeto de estudo, ou, mais precisamente, o
conhecimento que guia a vida cotidiana torna-se o ponto principal de uma análise
94

sociológica, conforme os autores propõem. A realidade mais “real” para o


indivíduo é a do dia-a-dia, ela se impõe à consciência de forma imperativa,
apresentando-se “de uma maneira impactante, urgente e intensa”. (p. 35) Essa
realidade não é a que os filósofos elegem como status de reflexão, assim como
não diz respeito ao indivíduo comum: “o homem na rua não se importa,
normalmente, com o que é real para ele, a não ser que ele seja surpreendido por
um problema”. (p. 14) Ela interessa aos estudiosos dos processos sociais e de seus
efeitos no indivíduo.
A realidade da vida comum do dia-a-dia é vivida em termos de diferentes
graus de proximidade e distância, ambos espacial e temporalmente organizados.
No entanto, os autores asseveram que o aspecto temporal tem mais relevância em
suas abordagens. Com isso, querem dizer que o indivíduo está mais
pragmaticamente interessado no que é possível apreender no “aqui e agora”,
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embora essa realidade, também, compreenda fenômenos que não estão presentes
nesse aqui e agora. “Toda a minha existência no mundo é continuamente ordenada
pelo tempo e englobada por ele”. (p. 41) Dessa forma, o relógio, a agenda, o
calendário são recursos de avaliação a respeito da maneira como o indivíduo
ordena sua realidade, como também, fonte de avaliação da intersubjetividade que,
outrossim, possui uma dimensão temporal.
A linguagem na situação interativa da vida cotidiana possui uma inerente
qualidade de reciprocidade, conforme Berger e Luckman (1966). “A produção de
signos vocais pode ser sincronizada com a produção de intenções na
conversação.” (p. 52) Se concordarmos com esses autores, podemos admitir que
as qualidades objetivas e subjetivas se justapõem na interação, criando e recriando
realidades. Assim, quando falamos de nós mesmos, ou nas palavras dos autores,
“quando nos ouvimos falar de nos mesmos”, o nosso mundo subjetivo torna-se
mais compreensível nesse processo de objetificação e passa a ser mais real para
nós. De modo que, “a linguagem torna a minha subjetividade mais “real” não
somente na conversação, mas também para mim mesmo.” (p. 53) Ao falar de si
próprio, o indivíduo cria uma narrativa sobre si, em uma “reflexão espontânea,
não deliberada”, ao mesmo tempo que a compartilha com o outro, na interação.
A linguagem transcende o “aqui e agora” na vida cotidiana. Por exemplo,
objetos e pessoas espacial, temporal e socialmente ausentes podem se tornar
95

presentes. Um vasto acúmulo de experiências e significados podem ser


objetivados nesse “aqui e agora”, em que as ausências são relembradas e
reconstruídas. Através das objetivações lingüísticas o indivíduo pode “falar
consigo mesmo”. A linguagem pode transcender, ainda, a realidade da vida de
todo o dia, ao dispor da capacidade de transpor a esfera de um sonho, para integrá-
lo na ordem da linguagem habitual. “Eu posso interpretar um sonho integrando-o
linguisticamente na ordem da linguagem da vida cotidiana.” (p. 55) Em um nível
simbólico, como pudemos observar, a linguagem pode construir representações
com forte presença no mundo cotidiano. A religião, a filosofia, a arte, a ciência
seriam, historicamente, os sistemas simbólicos mais importantes dessa dimensão.
Consideramos muito úteis para as nossas articulações conceituais sobre a
dinâmica familiar, as proposições de Berger e Luckmann (1966) acerca do
processo de internalização da realidade. Antes de tudo, faz-se importante ressaltar
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que adotamos como pressuposição a idéia de que a forma como a sociedade


legitima e valida suas instituições é análoga ao processo em que a família valida e
legitima sua estrutura. Esta noção se apóia, também, no texto de Minuchin (1981)
sobre a concepção de mundo da família, no qual esse autor incorpora tal suposição
teórica de Berger e Luckmann. Posto isso, podemos iniciar a discussão, afirmando
que o indivíduo se torna um membro da sociedade através de um percurso que
engloba tanto a realidade objetiva quanto a subjetiva. Um processo dialético, em
que “estar na sociedade é participar dessa dialética.” (Berger e Luckman, 1966, p.
149) Contudo, os autores pontuam que a socialização nunca é total ou acaba em
determinado momento, ela é um processo pelo qual a realidade vai sendo
reconstruída na prática da vida.
A internalização da realidade é um processo de participação social que se
inicia pela aquisição de um mundo básico, a socialização primária. Os outros
significativos – ou seja, a família ou representantes da mesma – mediam a entrada
do filho no mundo social, eles filtram ou selecionam aspectos desse mundo e o
transmitem para o seu bebê.8 A socialização primária não acontece sem um forte

8
No entanto, alertamos para o fato de que essa internalização não é uma via de mão única,
entendemos que existe todo um processo de subjetivação constituído a partir da relação com a mãe
e seu ambiente.
96

vínculo da criança com seus outros significativos, a criança internaliza o mundo


dos pais como sendo “o mundo”. É algo da ordem do inevitável, e contudo esse
status começa a ser questionado e a declinar quando na vigência da internalização
secundária, a relação com os outros significativos e com os outros um pouco
menos significativos, passa a ser possível.
A socialização primária termina quando o conceito do outro generalizado e
tudo que o acompanha é estabelecido na consciência do indivíduo. Nesse ponto,
ele já pertence à sociedade, possui um self e um mundo internalizado. A
socialização secundária é a internalização das instituições ou dos submundos.
Estes últimos entendidos como realidades parciais, contrastadas com o mundo-
base adquirido na socialização primária. Nesse tipo de socialização, a relação com
outros significativos não é requerida: “é necessário amar a mãe, mas não o
professor”. (p. 161)
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O fato do processo de socialização secundária não pressupor um alto grau de


identificação e seu conteúdo não possuir a qualidade da inevitabilidade pode ser
pragmaticamente útil, pois, permite apreender seqüências que são racionais e
emocionalmente controláveis. Também, o conteúdo desse tipo de internalização
tem uma frágil e duvidosa realidade subjetiva, se comparado à internalização da
socialização primária. (Berger e Luckmann, 1966, p. 164)

Assim, entendemos que possa ser mais fácil colocar de lado a realidade da
internalização secundária, em função de suas características de parcialidade, de
envolver conhecimentos específicos de áreas institucionais específicas como
também de papéis específicos. O indivíduo pode utilizar partes de si próprio na
interação, de acordo com a necessidade do contexto em que se encontra. Essa
compreensão, baseada na capacidade do indivíduo mudar seu comportamento em
função do tipo de interação que ocorre no subsistema é bastante explorada por
Minuchin (1981) em sua prática clínica. Esse seria mais um ponto em comum
entre a terapia estrutural e a teoria da construção social da realidade de Berger e
Luckmann.
Minuchin afirma que os indivíduos funcionam com uma parte de suas
possibilidades, dentre inúmeras outras. Essas possibilidades de ação variam
conforme o contexto no qual se realizam. Dentro do vocabulário de Berger e
Luckmann, citamos o exemplo destacado por eles da capacidade múltipla do self:
97

a criança que, quer queira quer não, vive em um mundo definido pelos pais, mas
que pode, de bom grado, deixar a matemática para trás, tão logo saia da sala de
aula.
A internalização da realidade requer uma manutenção constante ao longo
da vida cotidiana. Essa manutenção se sustenta na rotina da vida de todos os dias e
é mantida na consciência pelo processo social. Ela é reafirmada constantemente
na interação com o outro, sobretudo com o outro significativo.
A forma mais importante de manutenção da realidade é a conversação, é
através dela que a realidade é mantida, modificada e reconstruída.

É importante realçar que a manutenção da realidade na conversação é implícita,


não explícita. A maioria das conversações não definem a natureza do mundo. Se
isso é entendido, podemos observar que grande parte, senão toda, da conversação
do dia-a-dia mantém a realidade. Realmente, o seu peso é adquirido pelo acúmulo
e consistência da conversa casual, uma conversação que pode ser considerada
como casual, precisamente, porque se refere à rotina de um mundo dado como
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certo. (Berger e Luckmann, 1966, p. 172)

Assim, a realidade é confirmada no dia-a-dia, sendo, através da linguagem,


atualizada na interação. A possibilidade de modificação e reconstrução ocorre pela
ruptura, pela quebra, pela discontinuidade dessa rotina banal. E a realidade
subjetiva que geralmente não está em questão, pode ser alcançada.
Disso tudo, entendemos que a internalização do mundo social se dá como
uma “incorporação sem digestão” e pode ser expressa, neste estado bruto, sob a
forma da linguagem casual ou das frases banais. Kaufmann (2007) realça que de
início podemos não compreender as frases banais, elas passam desapercebidas em
meio às conversações. Mas se, como pesquisadores, nos interessarmos por elas, a
fim de compreendermos uma determinada concepção de mundo, deveremos
rastreá-las em seus aspectos recorrentes e contraditórios nos discursos dos
indivíduos.
98

3.5
As histórias contadas, expressões de concepções de mundo, de si e
da relação

Vimos acima que a transição entre os paradigmas de primeira e segunda ordem


comporta a afirmação da não-existência de uma realidade fora do indivíduo.
Acrescentamos, ao iniciar esse item, que a passagem para a pós-modernidade
envolve o conhecimento como uma prática discursiva polifônica, que emerge da
qualidade relacional e da linguagem compartilhada. Isso quer dizer que a
construção do discurso ocorre na interação e através da linguagem.
A dinâmica familiar, nesta investigação, será, também, compreendida sob
esta perspectiva. Adotaremos a lógica da transformação, sem desprezar o
conhecimento produzido sob a lógica da manutenção, proposta na primeira ordem
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sistêmica. A “virada” da pós-modernidade vincula-se, definitivamente, ao nosso


texto como um conhecimento que, longe de ser disjuntivo, agrega e nos coloca em
uma posição mais “humilde” em relação ao nosso saber e mais reflexiva em
relação às famílias investigadas. Assim, questionaremos o lugar do observador
como exterior ao sistema e incluiremos as emergências de perspectivas
multidimensionais e complexas; a pluralidade e o entendimento de uma
construção social da realidade, bem como o recurso do novo e do criativo nas
histórias contadas.
Schnitman (1996; 2006) sublinha que a noção de complexidade, como
princípio epistemológico do novo paradigma, permite transcender as visões
unidimensionais e hegemônicas na esfera familiar. Considerando que a realidade
como construída, não podemos encontrar um lugar específico para observá-la. A
autora propõe, então, que o observador ou terapeuta de famílias preste particular
atenção às flutuações e variações ocorridas no contexto familiar, com o objetivo
de utilizá-las como potencialidades para gerar novas alternativas ou para recuperar
e reciclar o já existente. Uma dimensão estética emerge a partir do incentivo de
busca da criatividade, apoiada na capacidade de encontrar ou recuperar ações e
sínteses de significados, de visões e versões inéditas.
As possibilidades de encontrar e recuperar significados nos levam a buscar
em Gergen (1998) e sua perspectiva construcionista social os subsídios para
99

efetuar o transporte do pensamento pós-moderno, ou de uma epistemologia


construtivista, para uma prática construcionista. Esse autor pontua que uma
terapia obriga-se a permitir que as construções narrativas dos participantes sejam
fluidas o suficiente, para a emergência da construção e reconstrução de
significados, através do diálogo. O construcionismo seria uma consciência
compartilhada. A sua emergência começa quando ocorre o desafio do conceito de
conhecimento como uma representação mental e a abordagem de um
conhecimento construído fora do sujeito. O autor, na defesa de sua visão de
construcionismo social, se refere a uma metateoria:

O desafio do construcionismo social é o de transcender o dualismo tradicional


sujeito-objeto e todos os seus problemas concomitantes e desenvolver um novo
sistema de análise baseado em uma teoria alternativa, não-empírica. (...) se
houvesse um diálogo entre psicólogos e colegas de mesma mentalidade em
sociologia, antropologia, história, filosofia e literatura poderíamos antecipar o
desenvolvimento de novos rumos teóricos, de uma metateoria para uma nova
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concepção de ciência e de uma renovação dos recursos intelectuais. (Gergen,


1993, p.15; 20)

Abrimos aqui um espaço para situarmos o construtivismo, de uma forma


breve, enquanto perspectiva teórica norteadora da prática terapêutica familiar.
Conforme Nichols & Schwartz (1998), o pensamento construtivista que
influenciou radicalmente o campo das terapias familiares tem como principais
mentores: Maturana e Varela e suas afirmações de que os sistemas vivos são
unidades neurais autocontidas que não dependem de seus ambientes; o ponto de
vista de Foerster baseado na constatação de que os observadores influenciam os
sistemas por eles interpretados; a proposição de Glasserfeld de que não podemos
conhecer o mundo “real”, pois dele só temos nossas imagens internas. Essas
seriam as idéias mais importantes a orientar a esfera das terapias familiares
Dessa maneira, o construtivismo, ao propor a não-existência a priori da
realidade e asseverar que a mesma era uma construção do observador, indicou aos
terapeutas ou investigadores o caminho da não consideração de que o que viam na
família era algo que “existia” na família. Deveriam, então, entender o que viam
como uma produção de suas visões particulares do que seria um indivíduo, uma
família e seus problemas: o que percebiam era o resultado de suas interações com
essa família.
100

Na visão de McNamee (2001) o construcionismo social se apresenta sob


um conjunto de práticas em uma perspectiva relacional, na qual é focalizada a
construção do significado compartilhado. Tudo aquilo que é significativo emerge
das relações, das comunidades e das práticas locais. No plano das formas
relacionais, a autora distingue uma inteligibilidade relacional que propõe que
“tudo que adquire sentido é dotado de significado para os atores sociais, emerge e
se torna inteligível nas relações”. (p.114) A inteligibilidade relacional envolve a
compreensão de que o importante e significativo tem como origem as relações e,
assim, nossa atenção se desloca do que acontece dentro da pessoa para se
concentrar no que acontece entre elas.
Em decorrência do fato de estarmos sempre relacionados, a autora sugere
como recurso ampliador das capacidades relacionais o outorgar espaço às “vozes
internas” na prática psicoterápica. O que significa, assim o entendemos, que
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internalizamos o outro através de interações, que vão se modificando e se


reconstruindo em cada novo encontro interativo, ao longo de nossas vidas. Essas
múltiplas vozes podem permitir “notáveis explorações de multiplicidade” na
esfera investigativa, aventurar-se no percurso dessas vozes internas pode conceder
a possibilidade de reconhecer e legitimar as inteligibilidades disponíveis para o
enfrentamento de situações problemáticas.
Elkaïm (1995) também sublinha a importância das vozes internas e propõe
que o terapeuta escute as suas próprias vozes, a partir da narrativa do paciente.
Este seria um importante recurso de reflexão, uma vez que, ao escutar o paciente,
ele se escuta. O autor afirma que, para interromper um padrão repetitivo, no
contexto terapêutico, é preciso se abster de emitir o que é esperado e buscar
alternativas inteligíveis em seu repertório interno. Essa forma de agir sustenta o
que McNamee denomina de responsabilidade relacional, que consiste “em criar
um cenário particular que favoreça tais ações” (p. 120)
O self, para McNamee (2001), não é a fonte originária de todo o
pensamento e ação, pois “não se pode criar significado, nem eleger racionalmente
entre várias opções que competem entre si, sem absorver, antes, as
inteligibilidades de uma comunidade” (p. 115). Em suma, as ações de um
indivíduo nunca são independentes. Gergen, em O self saturado (1991), afirma
que os indivíduos internalizam as conversações que se passam ao seu redor como
101

esponjas; como indivíduos, somos facilmente atingidos por comunicações que nos
bombardeiam no dia-a-dia. Embora não concordemos com essa visão do self
esponja, no que concerne à noção de que não seríamos afetados pelas primeiras
experiências da infância, concordamos com a visão de que o self é construído
socialmente, nas conversações.
Adicionamos que a internalização primária, com seu enraizamento
profundo, tem uma importância fundamental na construção do diálogo do dia-a-
dia. Todavia, estamos de acordo com Gergen, quando este diz que a noção que
temos do nosso próprio self é possível através da narrativa interna ou do diálogo
consigo mesmo, nesse ato percebe-se a construção narrativa, internalizada a partir
das conversações interpessoais. Aqui, incluímos a diferença existente nesse
processo, quando ele ocorre com os outros significativos ou com os outros nem
tão significativos. Essa noção de self é fundamental para a ótica narrativa –
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lembremos a visão do autor pela qual o construcionismo é definido como uma


consciência compartilhada. Gergen liga, definitivamente, o self às práticas
discursivas.
Goolishian e Anderson (1994) propõem que não formulemos a pergunta “o
que é o ‘self’”, porque assim não nos implicaríamos em uma discussão positivista
a respeito de uma realidade em si, característica do pensamento moderno.
Argumentam, então, que a noção de self como “narrador” nos habilitaria a
compreender o papel da linguagem e da narração, entendendo que a produção de
significado se dá através da ação da linguagem. O self seria uma expressão de um
ser através da linguagem e da narração. Ao narrarmos histórias uns aos outros,
formamos “uma rede de narrativas que é produto de intercâmbio e práticas sociais,
do diálogo e da conversação.” (p. 195) Portanto, somos co-autores das nossas
narrativas. Dessa forma, o significado está sempre em processo, surge da
reconstrução e da redescrição.
Para Shotter (1996), o self se manifesta no contato entre o nós e os outros.
O autor destaca que nossa vida interior não é exatamente privada, lógica e
ordenada. Ao contrário, caso pudéssemos falar do self como entidade, ele melhor
se encaixaria em uma dimensão de incompletude, de construção e de emergência
criativa.
102

De acordo com a argumentação de Travassos-Rodriguez (2007), o self


deixa de ser uma descrição de um mundo mental interno e passa a ser concebido
dentro de uma visão socialmente contextualizada a partir das interações e práticas
sociais vigentes. De modo que as narrativas seriam organizadoras de nossas
concepções de mundo e de nós mesmos, sendo que o seu foco não estaria na
mente, como tradicionalmente concebido, mas nos significados gerados nas
conversações. Nessa perspectiva, o indivíduo só adquire uma voz interior, um
sentido identitário, se inserido no mundo da linguagem. A escrita seria uma
prática cultural e historicamente contingente do uso efetivo de uma língua.
Desse modo, entendemos que a conversação gera significado e o modo
como os indivíduos interpretam suas experiências tem o poder de influenciar suas
vidas. Os indivíduos interpretam suas experiências sob a forma de histórias
coerentes que lhes facilitam a tarefa de dar sentido aos acontecimentos que
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ocorrem em suas vidas. Gergen (1997) privilegia a dimensão relacional e o seu


domínio de abordagem, o campo das narrativas. Para melhor compreendermos a
estrutura da narrativa, lançaremos mão da afirmação desse autor de que essa
estrutura tem como base as convenções sociais. Para alcançar sentido, a narrativa
deve se alinhar às formas convencionais antecedentes e não à verdade dos fatos
que ordenam o relato: portanto, o aspecto da coerência é privilegiado em relação
aos eventos históricos, na visão do autor.
O autor distingue três aspectos da narrativa, no que tange à sua
inteligibilidade, em nossa cultura: a narrativa estável, a progressiva e a regressiva.
A narrativa estável é um formato pelo qual os eventos se referem à história do
protagonista de uma maneira equilibrada, em relação ao alcance das metas
estabelecidas: ou seja, há pouca alteração no desenrolar dos acontecimentos. Não
há altos ou baixos na narração. Já a narrativa progressiva, envolve, ao contrário da
anterior, uma tendência à evolução dos acontecimentos: eles crescem
continuamente, tornam-se mais intensos, marcantes, no sentido de inclinação
narrativa positiva. Por último, a narrativa regressiva é um formato de narração
decrescente, no sentido do negativo e da falha. Segundo o autor, esses formatos
podem se combinar e constituir narrativas mais complexas, como por exemplo a
comédia romântica, que pode abarcar uma inclinação regressiva e posteriormente,
uma progressiva.
103

Assim, entendemos que as narrativas se desenvolvem em contextos de


diferentes exercícios de dramaticidade, alternam-se os heróis e os vilões, bem
como os fracassos e os sucessos ou, ainda, as previsibilidades do dia-a-dia.
Terapeutas e pesquisadores podem reconhecer que as histórias contadas pelos
pacientes ou investigados afetam suas percepções e a interpretação dessas
percepções. A concepção de um self maleável ou plástico, constantemente exposto
às narrativas provenientes do contexto em que se vive, leva o terapeuta ou o
investigador a refletir sobre esse contexto, cujos discursos oficiais podem excluir
ou marginalizar alguns grupos sociais.
O processo conversacional é adotado por Shotter (2003) como foco de
investigação construcionista e, ao se concentrar no momento interativo, estabelece
descrições detalhadas da dinâmica envolvida nessas transações. Por exemplo, sua
descrição do discurso corporificado corresponde a uma ampliação da concepção
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de linguagem na interação face a face. Nesse tipo de discurso, a linguagem se dá,


também, pelo corpo, por gestos e expressões que por sua vez estão também
vinculados a outros significados sociais. Assim, “as respostas das pessoas umas às
outras são vividas, sentidas, no interior da conversação e podem ressentir
significados passados.” (p. 446) Dessa forma, trata-se de um discurso espontâneo
e não convencional, que amplia a descrição do entendimento na conversação. Esse
uso corporificado da linguagem ocorre em função da característica de vivermos
em um constante movimento de espontaneidade e reciprocidade em relação ao
outro e ao mundo.
Encontramos, ainda, em Shotter (2003), a descrição de ação conjunta que
estaria intimamente vinculada à intencionalidade no diálogo. Quando dizemos
algo, podemos acreditar que conseguimos expressar nossa intenção: contudo, se
pensarmos como o autor, essa intenção vai depender do contexto em questão, pois
o que antecipamos depende da troca interativa, do momento interativo. Portanto,
nossas conversações podem produzir resultados imprevisíveis e não-intencionais
e, assim, o significado pode ser produzido a partir da incerteza.
Acreditamos que o contexto social, cultural e histórico tem importância
fundamental na emergência de qualquer significado. White (1990) afirma que a
externalização do problema é um instrumento terapêutico que visa instigar o
paciente a coisificar ou personificar o problema que o oprime. Para o investigador,
104

esse processo é, também, uma ferramenta de escuta bastante útil, uma vez que
proporciona uma apreensão aprofundada de concepções de mundo e de si dos
participantes, por meio de suas narrações. White apresenta o processo de
externalização do problema como uma possibilidade de reconstituição de si
próprio, do outro e das relações. A partir de sua prática clínica, o autor sistematiza
formas de abordagem ou de incentivo à fala dos pacientes, que os incitam a relatar
o problema e a recontá-lo sob novas perspectivas. Os pacientes levam ao terapeuta
uma descrição saturada do problema: esse seria o “discurso dominante da vida
familiar”. (p. 54) A externalização do problema ajuda os indivíduos a se
separarem desses discursos dominantes, que moldam suas vidas. Ao relatarem,
entram em contato com “aspectos ignorados, porém cruciais” (p. 55), que se
encontravam imperceptíveis em função da pregnância do relato dominante.
Esses aspectos, então ignorados, são denominados por White como
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acontecimentos extraordinários que passam a compor um relato extraordinário, ou


seja, uma história ressuscitada que organiza esses novos elementos e redescreve o
relato inicial. Para tanto, o autor se ampara em perguntas encadeadas, que
convidam ao rastreamento da questão.

Então, se pode introduzir perguntas que levam as pessoas a um aprofundamento


na aplicação destas histórias alternativas. Essas perguntas levam a investigar
algumas das “possibilidades extraordinárias” e novas, que acompanham o relato
extraordinário e as redescrições extraordinárias das pessoas e das suas relações.
(White, 1990, p. 56)

White fala de perguntas de influência relativa, que seriam colocadas logo


na primeira entrevista e que teriam como objetivo “separar a pessoa do problema”.
Esta conduta também se mostra frutífera fora do contexto terapêutico. No âmbito
da investigação exploratória de campo com famílias, essa abordagem pode gerar
uma descrição saturada pelo problema, na vida familiar. Seria um relato mais
extenso do problema em si, ou da questão em si, que o oferecido habitualmente.
Vejamos como esse autor propõe as perguntas iniciais. Em um primeiro momento,
estimula as pessoas a compor um mapa da influência do problema sobre suas
vidas e relações. Após o quê, compele-as a descrever suas próprias influências
sobre a “vida” do problema. Dessa forma, promove a conscientização dos efeitos
105

que o problema tem sobre suas vidas e relações e a exposição de contradições em


relação ao relato dominante.
Conforme Epston (1998), contar uma história significa oferecer uma
estrutura para a experiência vivida: “nossas vidas são modeladas ou constituídas
pelo próprio processo da interpretação, dentro do contexto das histórias nas quais
entramos e nas quais somos incluídos pelos outros.” (p. 120) Interpretamos as
interpretações dos outros, confiando em nossa experiência e em nossa
imaginação: assim, imprimimos sentido às nossas vidas, tanto para os outros,
quanto para nós mesmos. Isso constitui um processo de interpretação baseado na
organização e na estruturação das experiências, as quais necessitam serem
ordenadas, por meio da padronização de experiências já conhecidas. Em outras
palavras, a “história é uma unidade de sentido que oferece uma estrutura para a
experiência vivida (...) e vivemos nossas vidas através dessas histórias”. (Epston,
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1998, p. 119)
No entanto, como argumenta o autor, não basta sermos autores do nosso
texto: precisamos colocá-lo em cena, atuá-lo, para que seja possível o efeito
transformador. É na atuação que se pode reescrever experiências e
relacionamentos, em uma continuidade de existência que supera a encenação
anterior: um processo de reautoria do próprio relato. Epston esclarece que as
histórias, de início, são dadas, determinadas, pré-figurada por narrativas já
existentes, nas quais certos eventos não são considerados por carecerem de
sentido. Entretanto, em função da ambigüidade e incerteza que encontramos nos
relatos cada vez que os contamos, somos instados a preencher essas lacunas
através de nossa experiência e imaginação. Isso constitui o que o autor designa
como processo de originação, ou seja, tornar original o que antes era uma cópia.
Essa reautoria poderia ter algo em comum com a literatura de auto-ajuda?
Epston argumenta que a diferença entre esse processo e a auto-análise da
psicologia “popular” consiste na condição imperativa de um processo dialógico,
ou seja, a encenação diante de um outro significativo ou legitimado, na qual a
“nova” história irá alcançar sua autenticidade reconhecida. Portanto, o significado
emerge da conversação e a mudança necessita de legitimação.
De acordo com Guanaes (2006) a perspectiva da mudança em um contexto
construcionista envolve os “processos discursivos e relacionais locais em que a
106

construção dinâmica de sentidos de mundo, de problema e de si se dá.” (p.68) Ela


seria, assim, uma condição imanente ao diálogo. Dialogar é estar aberto à
influência do outro, apresentando e mudando descrições de mundo e de si.
Portanto, a mudança, sob esse olhar, só é possível na prática discursiva e “só pode
ser avaliada a partir dos discursos construídos sobre ela no contexto de
relacionamentos e não, como propõem algumas terapias modernas, como
aquisição estável, individual e interna.” (p. 68)
Uma outra questão se impõe para o prosseguimento de nossas articulações
de bases conceituais no campo da terapia familiar: a formulação de “perguntas
circulares” que propiciam a expressão de narrativas dos participantes. Os autores
citados neste item, no domínio das terapias narrativas, parecem unânimes em
apontar que as “perguntas que geram perguntas” são fundamentais para a
produção da história contada. Cecchin (1994), ao falar da curiosidade do terapeuta
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de famílias, expõe, a partir de Maturana e Varela, que o que se percebe em um


sistema é um encaixe de seus membros entre si e qualquer tentativa de explicá-lo,
por via causal, resulta em uma história construída por um observador. A
curiosidade do terapeuta a respeito desse encaixe pode gerar uma nova forma de
ação e interpretação e uma multiplicidade de outras histórias.
O autor nos fala de um terapeuta “artífice da conversação”: “o terapeuta
tenta desbloquear as constrições lógicas que mantêm o estado estanque do
sistema; seguidamente este objetivo é alcançado com perguntas circulares sobre o
futuro ou condicionais.” (p. 220) Goolishian e Anderson (1994) afirmam que a
tarefa do terapeuta é encontrar a pergunta para a qual o recontar imediato da
experiência e da narração apresente uma resposta. As perguntas não dependem de
uma metodologia e sim da interação. “A narração codesenvolvida propõe ao
terapeuta, incessantemente, qual será a próxima pergunta.” (p. 197) Sendo assim,
cada história contada na conversação requer novas e diferentes perguntas. A
formulação dessas perguntas permite o alcance das subjetividades narradas.
De acordo com Goolishian e Anderson (op. cit.) essas perguntas são
emitidas a partir de uma posição de não-saber do terapeuta, em função da
premissa de que não se pode saber o que não foi dito no diálogo. A respeito dessa
posição de não-saber, consideramo-la uma afirmação controversa, uma vez que
não compartilhamos da idéia de que sejamos uma tela em branco.
107

Retornando à discussão inicial deste item, acerca da pós-modernidade no


campo da terapia familiar, sublinhamos os esclarecimentos de ElKaïm (1994) a
respeito da quebra de paradigma teórico nesse domínio. De acordo com o autor, a
proposta de entender os sistemas, inclusive o familiar, como abertos e distantes do
equilíbrio – ou seja, a proposta sistêmica de segunda ordem – concede à prática
clínica de famílias uma evolução, no sentido de que ao agregar a noção de tempo
e história o sistema pode escolher seu funcionamento. Esta abordagem sugere que
a ligação entre o passado e o contexto presente dá lugar a uma transformação, a
um novo estado, qualitativamente diferente do anterior, possibilitando que o
sistema se modifique em sua totalidade.
A partir de sua prática clínica, ElKaïm (1995) recoloca em seus termos, o
dito salto qualitativo no âmbito do sistema, ao afirmar que a família, abordada
como distante do equilíbrio, ganha “pouco a pouco flexibilidade”. Para o autor, o
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estudo da função acrescido do estudo do sentido – uma dupla perspectiva


sistêmica – é capaz de levar em conta a riqueza da realidade do campo familiar.
O conceito de agrupamento resolve esta parcialidade, segundo o autor:

Essa incapacidade da abordagem sistêmica em se aperceber, entre outras, da


emoção estética ou das mudanças bruscas de estados afetivos me levou a passar
de uma leitura que enfatizava os sistemas a uma visão que privilegiava os
agrupamentos. A riqueza do conceito, a meu ver, decorre de sua capacidade de
refletir a inesgotável riqueza da realidade. Na verdade, permite que se relacionem
os elementos genéticos, biológicos ou sistêmicos aos elementos de uma ordem
totalmente diversa: elementos de comunicação de massa ou sociais, homogêneos,
sérios e esperados ou surpreendentes pelo aspecto derisório que demonstram etc.
(Elkaïm, 1995, p. 325)

Dessa forma, o autor afirma que a experiência não é só uma questão de


sentido e de função: ela ultrapassa essas dimensões, na medida em que o conceito
de agrupamento propõe uma justaposição ou integração de elementos inusitados
que permitem uma nova percepção da realidade.
Ao olharmos as famílias de adultos, vemo-nos diante da complexidade do
nosso objeto. As regras familiares e a hierarquia, por exemplo, não são categorias
a priori, são construídas, sustentadas, questionadas e negociadas nas relações
entre os membros da família. E nesse processo de construção colaboram a cultura,
a singularidade, o gênero, os imperativos sociais e outros, que se constituem em
uma rede de múltiplos atravessamentos. Pretendemos, neste estudo, evocar
108

construções inusitadas, a fim de obtermos uma percepção inédita da realidade


vivida no espaço familiar a ser investigado. Aspiramos compreender como pais e
filhos adultos negociam ou rompem suas regras e como, em um campo horizontal
de poder, poderiam recuperar uma hierarquia desautorizada.
Para tanto, as histórias que nos serão contadas, pelos participantes da
investigação, passarão pelo crivo da desconstrução dos relatos dominantes. As
ambigüidades e as incertezas serão rastreadas, para encontrarmos o desapercebido
nesses discursos e, assim, obtermos possibilidades de expressões reformuladas
dos significados atribuídos a essas experiências relacionais. Dessa maneira, essa
relação entre pais e filhos adultos, experimentada na convivência cotidiana, será
revisitada através de uma ação conjunta entre investigador e os participantes, com
a finalidade de localizar os padrões interativos, que estruturam e organizam esse
universo relacional. A dinâmica interacional será, então, observada, através desses
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relatos, e os participantes serão incentivados a refletir acerca do momento em que


vivem na relação. Isso quer dizer que serão instados a refletir sobre como
constroem e reconstroem, na vida do dia-a-dia, a convivência e quais mecanismos
utilizam para garantir a preservação de seus espaços pessoais e dos espaços
comuns na relação.
Após essas considerações, concordamos com Schnitman (1994) quando
diz que no campo da psicologia e em particular, na psicoterapia, perdemos a
ilusão de que podemos contar com uma narrativa ou um discurso capaz de
fornecer uma diretriz para as formas de vida contemporânea. Para analisar as
relações humanas de uma forma mais enriquecida, precisamos de mais
ferramentas, de múltiplos focos e de um posicionamento criativo.
Enfatizamos que os conceitos expostos e organizados neste capítulo foram
aqueles com os quais temos mais familiaridade e que utilizamos em nossa prática
clínica com famílias. Desse modo, eles se articulam, mais intimamente, em função
de um objetivo específico que vem a ser construir um domínio teórico norteador,
para o empreendimento de uma análise de pesquisa de campo com família de
adultos. Assim, dispomos de uma quase-teoria, aberta e passível de transformação
ao entrar em contato com os textos produzidos, a partir das histórias contadas
pelos participantes. De uma potencial teoria poderá se fundamentar uma teoria
construída, especificamente, para analisar a relação pais e filhos adultos
109

coabitantes, em um contexto de vida cotidiana familiar. Entendemos que, no


confronto com as histórias relatadas, esses conceitos, compreendidos como “fios
soltos”, se transformem e nos orientem em nossa navegação, a fim de construir
um corpo teórico de análise.
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4
O cotidiano: a edição e a reedição de contextos na
dinâmica relacional

A nossa intenção não é tratar a prática familiar como vivida em um ambiente


fechado, ao contrário, planejamos compreendê-la em suas justaposições com o
mundo social. Neste capítulo, pretendemos explorar o cotidiano das famílias em
seu espaço doméstico, acreditando que desta forma, ampliemos as possibilidades
de discussão acerca da dinâmica relacional entre pais e filhos adultos e os
mecanismos estabelecidos pela família, para a manutenção de um equilíbrio em
seus limites.
Iniciamos esse percurso, citando Gilberto Freyre (1933; 1936), que ao
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longo de sua obra esclarece-nos da importância de se investigar a vida cotidiana


das famílias, atribuindo a ela o valor de matéria-prima fundamental para a
compreensão do domínio relacional do indivíduo e suas intersecções nas relações
sociais. Assim, a informação de quem paga uma conta, de como é negociada uma
ida ao supermercado, de como são as refeições em família e as programações para
o fim de semana podem fornecer recursos valiosos para a análise de nossa
questão.
Nesta investigação, pretendemos expor a importância das pequenas
atitudes e das minimanifestações expressas no jogo interacional e vividas no
cotidiano da família. Entendemos que o processo de interação se faz a partir de
pequenas moléculas, de pequenos gestos e palavras pronunciados na relação. E
ainda que o poder destes instantes da ordem do minúsculo reforça o valor da
investigação da vida doméstica como recurso de compreensão da dinâmica
familiar e, especificamente, da relação entre pais e filhos adultos.
Com o entendimento dessas pequenas transformações e o processo de
negociação envolvido na constituição, viabilizaremos a possibilidade de uma
reflexão efetiva sobre os sentimentos vividos pelos membros dessas famílias.
Esses sentimentos se relacionam de forma íntima com a convivência do dia-a-dia
e também com a idéia que subjaz, a ela, a separação. Reiteramos que o destaque
dado ao convívio íntimo entre os sentimentos e a prática relacional entre pais e
111

filhos ancora-se no elo estabelecido por Giddens (1984). Este elo se institui a
partir de uma formulação indicativa de que a análise das rotinas, inscritas na vida
cotidiana, contém vários elementos psicológicos, que jogam luz sobre as
interações. O autor estabelece um elo entre o que se passa em um contexto de
interação e as experiências primárias vividas pelo ser humano.
Dessa forma, a rede de afetos envolvida nesse momento da família –
quando a separação e a reorganização do espaço familiar fazem parte do
imaginário de cada um dos membros – pode se revelar e constituir um importante
pilar para o prosseguimento de nossa discussão. Ao lado dessa perspectiva de
exploração da prática cotidiana, pretendemos abordar a dinâmica familiar,
amparados pela noção da existência de um jogo constante entre as investidas de
conquista de espaços pessoais e a preservação ou a recriação dos espaços
coletivos no seio da família.
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Visando um aprofundamento do nosso objeto de estudo, enveredaremos,


no primeiro item deste capítulo, pelos caminhos da história da família brasileira,
com o objetivo de buscar alguns fundamentos relativos às práticas relacionais.
Essa via em muito se deve ao entendimento de que, nas interações, aspectos da
herança cultural recebida de nossos ascendentes estejam presentes na prática
familiar. A modernização, apesar de trazer a novidade e a possibilidade de
mudança, não apaga, totalmente, o passado.

4.1
Uma perspectiva histórica, considerações sobre a prática familiar
brasileira

Algumas das práticas cotidianas do Brasil colonial podem nos oferecer a


possibilidade de esboçar as subjetividades daquele tempo e, sobretudo, fazer
tentativas de desenhar as relações familiares de então. Em um primeiro momento,
podemos citar como exemplo, a afetividade de um pai que transparece nos
inventários que protegem seus filhos e filhas ilegítimos, as suas filhas solteiras; e
também a preocupação com a ocupação dos seus filhos menores. Estas
interpretações têm como base o estudo de Nizza da Silva (1998) sobre doações e
112

testamentos no início do século XIX.9 Essas práticas nos levam a pensar sobre tais
subjetividades que, mesmo em dramáticas condições de vida social, nos deixaram
as marcas de seus imaginários, fantasias, emoções e desejos, no que tange à
família, como legado e fonte para o entendimento de alguns fenômenos do
presente.
DaMatta (1985) assevera que a sociedade brasileira apresenta uma
peculiaridade que é a de ter desenvolvido, ao longo dos séculos, formas de
hierarquizar e manter essa hierarquia no mundo social. Atitudes como o já tão
citado “jeitinho” brasileiro são exemplares da ojeriza à impessoalidade, contida no
tratamento igualitário referido às relações sociais de hoje. Assim, podemos
concordar com o autor a respeito de sua afirmação de que o modelo patriarcal
permanece enraizado na cultura brasileira até os dias atuais. O exercício da
história deste ideal nos leva a pensar que tal tipo de mentalidade e o modelo
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hierárquico possam estar presentes, ao menos de forma invisível, nas famílias de


hoje.
O mesmo autor defende essa noção mostrando como atitude exemplar o
modo como nos dias atuais nomeamos, tal qual nossos antepassados, a medida
elétrica das lâmpadas de “vela” e a potência dos motores dos carros,
ultramodernos, de “cavalos”. Se, em nossos discursos, nos referimos dessa forma
“antiga” ao mundo dos objetos, poderia ser possível dizer que, as sombras de
velhas posições hierárquicas, remanescentes do universo patriarcal, continuam
afetando as relações no contexto familiar. Seguindo esse raciocínio, o processo de
modernização, apesar de colocar em evidência o novo e proporcionar
possibilidades de mudança, não elimina, totalmente, o arcaico e a herança
recebida de nossos ascendentes. Conforme essas considerações, julgamos
oportuno incluir essa breve revisão bibliográfica acerca da história da família
brasileira.
A díade pais e filhos, assim como a díade marido e mulher, nos tempos
coloniais era pautada por uma relação assimétrica de deveres e obrigações.
Campos (2003, p. 438) formula que a vida familiar, ao se apresentar ao homem
como uma atividade da ordem do poder sobre os outros, aí incluído o fato de que
é o pai quem pune, provocava uma atitude complementar de distância emocional e

9
ANRJ, Desembargo do Paço, Caixa 136, pac. 4, doc. 48.
113

de formalismo, que parece ter sido intrínseca à institucionalização da autoridade


paterna.
A relação entre pai e filho, vista por Freyre (1936) espelhava um abismo
na sociedade patriarcal. Até os seis ou sete anos o menino era considerado um
anjo, “andando nu pela casa.” (p.178) Após esta idade, transformava-se na
encarnação do demônio, idade teologicamente imunda, de acordo com a visão dos
clérigos. O menino era, então, essencialmente tolerado pelo pai e a uma distância
de subordinado e inferior. Segundo o autor citado, a educação jesuítica exercia
sobre o menino a mesma dominação do pai no reduto da família patriarcal, ou
seja, visava produzir “adultos passivos e subservientes através da quebra da
individualidade da criança.” (p. 181)
A iaiazinha, descrita pelo autor em Sobrados e Mucambos (Freyre, 1936)
é um exemplo da severidade disciplinar no âmbito doméstico. Obrigada ao bom
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comportamento, era privada da liberdade de brincar e de ar livre. Desde os treze


anos era habituada ao vestuário de moça, constituído do arrocho do espartilho e de
trajes inadequados ao calor dos trópicos.

(...) menina aos onze anos, já iáiázinha era, desde idade ainda mais verde,
obrigada a bom comportamento tão rigoroso que lhe tirava, ainda mais que o
menino, toda a liberdade de brincar, de pular, de saltar, de viver no fundo do sítio,
de correr no quintal e ao ar livre. (Freyre, 1936, p.234)

Confinada à casa, enfraquecida por uma dieta que visava evitar a robustez,
em razão da vida excessivamente sedentária que levava, esta era a mocinha
casadoira dos tempos descritos pelo autor.
Na São Paulo colonial, de acordo com Campos (2003), uma das
especificidades desta sociedade era a de que os maridos, em face das dificuldades
econômicas, podiam passar longas temporadas afastados da casa, muitas vezes
longos anos, nos sertões, povoados, fazendas, em conquistas de terras. Com isso,
ocorria um “matriarcado ocasional” (p.440), no qual a ausência do marido
transformava a mulher em depositária da autoridade da família. No entanto, o
símbolo da autoridade continuava sendo o homem, mesmo estando ausente, pois a
autoridade era um atributo masculino. À mulher cabia o papel de mediadora das
relações entre o pai e os filhos.
114

Os sentimentos filiais em relação à mãe eram de confiança e atração; em


relação ao pai eram de respeito misturado com agressividade, conforme
descrevem os testemunhos da época.

O filho-famílias, isto é, o filho que vivia com seus pais, investia-se de uma
identidade diminuída, ensombrecida pelo vulto paterno. Leis e costumes velavam
pela obediência filial, manifestada por um respeito ritualizado. O tratamento
distanciado, de senhor e senhora, mantinha-se até o final da vida. O pedido
humilde de bênção aos pais, conferia a estes um status sagrado, como sacerdotes
do grupo doméstico. A negação da bênção e a ameaça de maldição funcionavam
como instrumentos controladores de poder dos pais sobre os filhos. (Campos,
2003, p. 446)10

Em casa, a despeito da idade que pudessem ter, a hierarquia paterna


transformava os filhos em humildes servos, sujeitos aos constrangimentos das leis
internas à família. Ao filho não-submisso, como atestam os arquivos, só restava a
fuga.
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A educação no Brasil colonial era privilégio de poucos e exclusiva do


sexo masculino, como ressalta Nizza da Silva (1998). Até a metade do século
XVIII, a educação se concentrou nos colégios jesuítas, sendo que o objetivo da
Companhia era o da catequese dos meninos índios e o da formação para a carreira
eclesiástica. Após a sua expulsão do Brasil, foram substituídos pelos mestres
régios, que ensinavam gramática latina, filosofia e retórica aos estudantes de
famílias privilegiadas. Ao lado deste ensino, de aulas régias, começaram a surgir
os primeiros colégios pagos e privados. Das primeiras letras até uma possível
matrícula na Universidade de Coimbra, o caminho de investimento intelectual do
menino dependia da capacidade do pai em arcar com as grandes despesas.
O caderno de assentos do coronel Francisco Xavier da Costa Aguiar11,
negociante em Santos (SP) no final do século XVIII, revela as despesas com o seu
segundo filho, então em formação universitária em Coimbra, no período entre
1804 e 1810. O negociante anotou todos os gastos, desde a viagem de navio,
incluindo livros, roupas, mesadas, até o transporte de volta para o Rio de Janeiro,

10
Conclusões de Campos, a partir da leitura do processo de divórcio entre partes de João Simões
da Silva e Ignácia Correa de Castro. Curitiba, 1749. 15-10-163. Arquivo da cúria Metropolitana de
São Paulo.
11
Nizza da Silva, 1998, p. 226. Documento transcrito por A. J. R. Russel-Woods em Educação
universitária no império português. Relato de um caso luso-brasileiro do século XVII, Studia:
Lisboa 36: 7-38, 1973.
115

a compra do cargo de juiz de fora e provedor dos defuntos e ausentes no Pará. O


total da despesa correspondia aos gastos de manutenção anual de toda a sua casa
na vila de Santos.
A política da Coroa era o casamento para as meninas de etnia branca, em
razão do seu reduzido número. Assim, não era incentivada a criação de conventos
em terras brasileiras. Para os pais que não conseguiam um casamento para as
filhas, de acordo com a condição social da família, a solução priorizada era
assegurar a sobrevivência delas entre as paredes de conventos ou das casas de
reclusão. Estas, então, foram criadas para, ao lado dos poucos conventos,
acolherem as meninas e moças que não se destinavam ao casamento.
A reclusão das filhas em conventos era símbolo de prestígio social. Em
fins do século XVIII eram várias as petições de pais para fazerem entrar as filhas
em conventos.
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Em 1777, Paulo de Argolo pedia num só requerimento a reclusão de 4 das 10


filhas que tivera; em 1780, o ensaiador da prata António José Fróes e a viúva do
coronel José Rodrigues Pinheiro requeriam a aceitação das suas filhas na vida
conventual. Mas nem todas podiam ser atendidas dado o escasso número de
vagas”. (Nizza da Silva, 1993, p. 64)

Para tanto, era preciso um elevado dote, sendo que o dote religioso
equivalia a um dote de casamento; assim, era restrito às famílias de elite e um
símbolo da nobreza.
De início, as casas de reclusão não tinham a preocupação com a instrução
das moças. Todavia, em fins do ano de 1798, o bispo de Olinda (PE) Azeredo
Coutinho desenvolveu um plano de estudos, adequado aos papéis e funções das
mulheres, a ser realizado nas casas de recolhimento (Freyre, 1936; Nizza da Silva,
1998). A educação feminina se basearia no aprender a ler, escrever, contar, bordar
e costurar, habilidades suficientes para desempenhar suas funções. “As mulheres
têm uma casa que governar, marido que fazer feliz e filhos que educar na virtude,
na casa paterna desenvolvem a ociosidade que as leva a uma perniciosa
sensibilidade para divertimentos e curiosidade pela vida alheia.” (Nizza da Silva,
1998, p. 235)
Quanto aos meninos, quando uma família destinava um filho a “tomar o
estado eclesiástico” (Nizza da Silva, 1998, p. 69), poderia fazê-lo já aos 7 anos de
116

idade, e este poderia ser aceito desde que a família tivesse limpeza de sangue, de
vida e de costumes e que pudesse arcar com um dote. A ocupação dos filhos, a
garantia de seu futuro, era uma das preocupações dos pais. Ter um filho padre,
juiz ou militar fazia parte dos projetos da família colonial brasileira. Ser professor
era uma opção que se apresentava apenas quando não havia outra possibilidade,
por trata-se de atividade pouco rendosa. Os filhos de pequenos lavradores
raramente poderiam ter acesso a uma educação deste tipo, pois em geral viviam
em locais mais isolados e desde pequenos eram destinados à agricultura, como os
pais.
O menino que passava rapidamente de anjo para demônio, de acordo com
Freyre (1936), se transformava em rapaz, também rapidamente, já querendo
cultivar as barbas e os bigodes, como os mais velhos. O prestígio do homem
adulto era inegável nesse sistema, e o culto ao senhor patriarcal era requerido de
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todos. Dessa forma, percebemos a intenção da educação dos meninos: domar o


demônio que existia dentro deles, atropelando a infância.

(...) os jesuítas valorizavam o menino inteligente (...) mas essa valorização


artificial era conseguida, sacrificando-se na criança sua meninice, abafando-se
sua espontaneidade, secando antes do tempo sua ternura de criança (...) os jesuítas
em parte falharam na sua brava oposição ao sistema patriarcal das casas-grandes:
aos excessos de absorção do filho pelo pai, do indivíduo pela família. (Freyre,
1936, p.185)

Freyre, assim, sublinha a força do modelo patriarcal, um modelo que


asfixiava as tentativas de oposição ao poder total do pai.
No entanto, com a presença da corte portuguesa no Rio de Janeiro,
mudanças expressivas ocorreram no cenário da educação. Segundo Costa (1979),
a visão higienista, na educação das crianças procurava corrigir os hábitos
coloniais do ócio. A recreação deveria ser formativa; para tanto, exercícios físicos
eram prescritos. Às meninas, recomendavam o canto, a declamação e o piano. Aos
meninos, salto, corrida, natação e esgrima. No entanto, a dança era aconselhada a
ambos os sexos, em razão de sua qualidade de criar atitudes respeitosas. Um outro
aspecto da educação, moldada pela visão médica de então, era a masturbação.
Concebida como uma grande fonte de risco para a saúde da criança, era prevenida,
combatida e sujeita a constante vigilância por parte da instituição escolar.
117

Mudanças no cenário da educação feminina foram introduzidas logo após


a instalação da corte no Rio de Janeiro. Anúncios de colégios particulares na
Gazeta do Rio de Janeiro (n. 52, 1819) atestam essa realidade. De acordo com
eles, havia preços diferenciados em função do número de atividades disponíveis
para as moças.
Como pudemos observar, existia uma história “ideal” e um conjunto de
convenções, regras e leis que se constituíam com base em um discurso oficial da
época colonial. Entretanto, pelo que pode ser percebido, este discurso não era
extensivo na prática, a todo o conjunto social. Especificidades regionais garantiam
diferenças nas organizações familiares e nos papéis desempenhados por seus
membros. Essas constatações foram suficientes, por exemplo, para o
questionamento do padrão patriarcal generalizante e para a visão da mulher como
submissa e dócil (Samara, 1986). Com isso, percebemos as diversificações tanto
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nos modelos familiares quanto no exercício dos papéis e funções dos indivíduos
no universo da família colonial brasileira. Outra referência exemplar da prática
familiar da elite de então era a da colocação das filhas solteiras em casa de
recolhimento, devido à preocupação dos pais com seus destinos, diante da falta de
opções através do casamento.
Em razão dessas breves apreciações históricas, tivemos a oportunidade de
entender, além das práticas familiares, os comportamentos que fugiam aos ideais
das convenções sociais. O abandono dos filhos ilegítimos, por exemplo, revelava
que o discurso oficial não se fazia como prática social. Da mesma forma, o
abandono das esposas em conventos ou casas de reclusão pelos maridos, que eram
apoiados extra-oficialmente pelas estruturas de poder de então. Aliada a estes
fatores havia a discriminação sexual na criação e educação dos meninos e das
meninas.
De acordo com o romance de Mário de Andrade, Amar, verbo intransitivo
(1927), que relata o relativo fechamento de uma família de São Paulo e o
sentimento de mal-estar vivido em relação aos estranhos a ela, percebemos a
constituição de uma nova rede de emoções. Essa constatação é exposta por
D’Incao (1995), cuja pesquisa apresenta uma importante investigação sobre a
construção dos sentimentos modernos na família brasileira, observados com base
na literatura do final do século XIX e o início do século XX.
118

Mário de Andrade, na obra acima citada, realça os novos sentimentos que


passaram a habitar o mundo familiar urbano, o mundo burguês. Esses sentimentos
referem-se ao estranhamento do indivíduo em relação à comunidade, ao privilégio
dado à privacidade e à constituição da família como um grupo nuclear.
Paralelamente, o autor sublinha a divisão de papéis em torno da figura da mãe e
esposa dedicada, assim como o de um pai autoritário e responsável. D’Incao, com
base nessas observações, afirma: “As emoções comuns acabam por serem
controladas, civilizadas; quando isso ocorre, a sensibilidade burguesa está
instituída.” (1995, p.132)
DaMatta (1985) vai alem de uma visão dual da família brasileira ao
afirmar que ao lado das duas entidades consideradas fundamentais na sociedade, a
casa e a rua, existe uma outra: o outro mundo. Esses três espaços, em relação
permanente, “são modalidades de relacionar conjuntos separados e
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complementares de um mesmo sistema social”. (p. 61) A casa, metáfora da


família, é o lugar dos laços de afeto e lealdade; a rua revela o mundo com seus
imprevistos e paixões, é um palco de luta, onde todos estão contra todos. Este
mundo – a casa e a rua – se relaciona com o outro mundo por meio de preces,
milagres e graças, uma ligação complexa e forte. Esse espaço, domínio dos
mortos, permite a apreensão de uma realidade social marcada pela esperança e
potencialidade. Expressa a idéia de renúncia do mundo com suas dores e ilusões e
tenta relativizar ou sintetizar os outros dois.
De acordo com a lógica da casa, a rua é vista como o lugar do cada um por
si, percepção que revela uma noção negativa do individualismo, do conflito aberto
e da discussão. Em casa, imperam a intimidade, os afetos e o respeito, definidos
pelos sexos e as idades. A lógica da autoridade e da hierarquia conforma a família
como um espaço moral. No entanto, DaMatta afirma que estes discursos se
relativizam em razão da classe social em questão. Por exemplo: as classes mais
populares têm tendência a por em relevo a lógica da casa, e as superiores, a da rua.
Ainda segundo DaMatta (1978), o sistema hierárquico é compreendido
como o lugar no qual um sujeito tem precedência sobre o outro. O sistema
hierárquico brasileiro é fundado nas idéias de respeito, favor, honra e
consideração, dentre outras. No Brasil existe uma sociedade com dois ideais, o da
igualdade e o da hierarquia, diz DaMatta. Acrescentamos a essa formulação, o
119

impressionante embate entre os valores tradicionais de uma sociedade e uma nova


moral, introduzida pela juventude, pela nova geração. O conflito tem lugar na
Rússia dos czares e é brilhantemente descrito por Turguéniev (1862), em Pais e
Filhos. Em um determinado momento da obra, o autor descreve um diálogo entre
Páviel Píétrovitch, representante da tradição e o jovem Bázarov. Nesse diálogo, a
vestimenta de cada um dos personagens serve de instrumento para o autor
expressar a luta entre dois ideais contrastantes, o velho e o novo, o sentimento do
dever e o questionamento do que seria um princípio ou uma moral.
Voltando a DaMatta (1978), este assevera que o rito autoritário indica uma
situação de conflito, e o brasileiro é avesso a crises. O conflito aberto seria um
traço do igualitarismo, marcado pelo pressuposto da diferença de opiniões, por
isso é evitado, assim como é visto como um sentimento que deve ser reprimido.
Não pode ser visto como uma crise no sistema, pois requereria uma modificação
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no próprio sistema, na teia das relações. Por isso, o conflito é pessoalmente


circunscrito e tende a ser resolvido em âmbito pessoal.
Existe, assim, um paradoxo em nossa sociedade, nos termos de DaMatta.
Esse paradoxo refere-se ao descompasso entre o mundo das regras e leis e a
prática cotidiana, esta calcada no modelo hierárquico. Dessa forma, existem duas
atitudes distintas coexistindo no sistema de relações sociais: a atitude igualitária e
a hierarquizadora. Essa coexistência parece admitir que as práticas a elas
relacionadas se alternem de acordo com o contexto em que atuam. “O
igualitarismo individualista quase sempre se choca de modo violento com o
esqueleto hierarquizante de nossa sociedade.”(1978, p. 184)
Acrescentamos que outros estudos sobre a família brasileira, como o de
Figueira (1986), Salem (1986), Ramos (2006), reiteram a importância das
contradições vividas no espaço familiar no que tange a coexistência dos modelos
tradicionais e dos igualitários. Essas conclusões significam que a hierarquia tem
seu lugar na família contemporânea brasileira. Para ilustrar tal afirmação,
recorremos a um relato de nossa pesquisa anterior (Henriques, 2004):

O filho adulto tem uma visão diferente de pai e mãe; ele se vê de igual para igual
com o pai, em termos de trabalho, conhecimento, isso incomoda a ambos, quando
há divergência, o Bruno fica parado, não ganha o espaço que gostaria de ganhar,
por uma questão de respeito, talvez. (Beatriz, mãe de Bruno)
120

4.2
Um espaço entre quase iguais

A esfera das relações interpessoais sofreu grandes alterações no panorama


contemporâneo. Com isso, as interações vividas entre os cônjuges e entre pais e
filhos se reeditaram. As transformações vividas no domínio familiar têm como
mola mestra a ideologia do igualitarismo nas relações. Assim, os relacionamentos
vivenciados em família, antes submetidos a uma hierarquia caracterizada pela
rigidez, agora se flexibilizam e são normatizados pelos ideais igualitários. As
diferenças de sexo e idade se esmaecem e passam a incorporar o diálogo, a troca e
a cooperação.
Encontramos em Giddens (1999) o conceito de “relação pura”, que em
muito esclarece a forma como os relacionamentos atuais vêm sendo vividos ou
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desejados. Dessa maneira, o entendemos como fundamental para esta discussão


sobre a convivência intergeracional no território familiar contemporâneo. Para o
autor, as transformações na vida cotidiana familiar, observadas na atualidade,
dizem respeito a uma transição básica em relação à natureza dos laços envolvidos.
Estes, nas sociedades pré-modernas baseadas no sistema de parentesco,
apresentavam-se como naturalmente outorgados por se constituírem por meio de
elos biológicos e pelo casamento. A confiança nos relacionamentos, por exemplo,
era aceita implicitamente, o que não ocorre nas relações atuais.
Hoje, as relações não estão mais ancoradas na vida social e econômica, e
sim na sua própria capacidade de produzir satisfação de modo recíproco: ela
existe por si mesma, e se algo vai mal entre os parceiros, este fato é suficiente
para abalar a relação. O que define a relação é que ela é pura por estar atrelada
somente ao que pode trazer de satisfatório aos envolvidos – este é o seu critério.
Sem as referências externas advindas de outros indivíduos, grupos ou instituições,
as relações surgem como uma trajetória relacionada acima de tudo aos projetos
individuais. O compromisso é a sua base e substitui o anterior endossamento dos
laços externos preexistentes, como é o caso do sistema de parentesco. O
compromisso deve ser entendido sob uma perspectiva histórica nova; ele faz parte
de uma troca de esforços. Sendo assim, não é “dado”, é construído na relação.
121

A relação pura tem sua gênese, sobretudo na esfera da sexualidade, do


casamento e da amizade, para Giddens (1999). É, contudo, no âmbito da relação
pais e filhos, que ela ganha contornos mais específicos. Nesse caso, observamos
uma relação assimétrica quando referida a famílias com filhos pequenos ou
adolescentes. Há um desequilíbrio de poder, uma relação mais desigual, em razão
da demanda de deveres e obrigações esperados dos pais. Existe um contexto de
dependência infantil referendado pelo processo de socialização, mas o
relacionamento é desenvolvido de uma forma mais suave e mais igualitária, que
em momentos tradicionais anteriores. Assim, a transformação das relações na
esfera interpessoal se verifica na relação entre pais e filhos, só que de uma forma
diferenciada. À medida que os filhos crescem e vão ganhando autonomia, mais o
relacionamento vai se aproximando do que Giddens defende como relação pura.
A família cujos membros são todos adultos e convivem cotidianamente
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constitui um espaço inédito para se pensar a questão proposta pelo autor.


Entendemos o caráter generalista do conceito e a diferenciação que ocorre quando
a relação se processa no domínio pais e filhos. Muitos elementos entram em jogo
quando se trata de tal relacionamento e apontamos o nexo psicológico como co-
participante na construção da relação.
Seguindo com Giddens, podemos admitir que o relacionamento entre pais
e filhos adultos é normatizado pela relação pura, e só se mantém porque é
satisfatório para ambas as partes. No entanto, pressupondo que exista dependência
emocional na relação, encontramos uma desigualdade. Ainda uma outra questão
seria a hierarquia na família. Essa, por mais que tenha se flexibilizado, existe e
deve ser considerada na compreensão da dinâmica familiar: assim, um certo
desequilíbrio de poder se configura neste universo. Portanto, a relação contém
tensões internas e contradições, porém não é vulnerável. O horizonte da lealdade –
não só com o outro, mas com a relação – é uma importante fonte de apoio neste
contexto familiar. Nesse caso, não há a exclusão de critérios morais externos, uma
vez que a relação pais e filhos é um referencial da cultura tradicional.
Por sua vez, o discurso igualitário se dá mais no âmbito das idéias do que
nos termos da prática cotidiana, se pensarmos como Kaufmann (1992). O
discurso pode se dar no domínio do ideal; no entanto, os gestos e os atos podem se
revelar profundamente desiguais. Um exemplo desta descontinuidade poderia ser
122

a divisão de tarefas domésticas entre cônjuges, prevista nos moldes igualitários. O


autor não nega a potência do ideal igualitário, contudo o relativiza ao evidenciá-lo
como um imperativo social, que obriga o indivíduo a se posicionar e se justificar
diante de tal ideal. A regra da igualdade perde sua força no cotidiano, nas
desigualdades inscritas na concretude das práticas. A idéia de igualdade, todavia
funciona de modo operacional; constitui uma forma essencial de estruturação dos
papéis domésticos no presente e no futuro da vida em comum.
A diferença entre o ideal e a prática remete à evidência de contradições e
impasses vividos na esfera doméstica, quando o tema em questão é a divisão das
tarefas da casa, no caso dos cônjuges apontados por Kaufmann. Acrescentamos
que essa mesma discontinuidade possa se dar na esfera da convivência entre pais e
filhos, na atualidade. Os discursos tradicionais e igualitários convivem na prática
cotidiana da família e se expressam como dois registros diferentes e construídos
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em momentos históricos e socioculturais diferentes. Assim, podem trazer ao


espaço familiar situações de mal-estar e impasses na relação entre pais e filhos, ao
criar um ambiente de contrastes e ambiguidades na comunicação da família. A
idéia é fluida em suas aplicações no domínio familiar de adultos, uma vez que
existe a hierarquia parental – esmaecida, porém, presente nas relações.
Voltando a Giddens, este autor nos diz que a autonomia significa “a
capacidade de auto-reflexão e autodeterminação dos indivíduos: um movimento
em direção a mesma inclui deliberar, julgar, escolher e agir diante de diferentes
cursos de ações possíveis.” (1992, p. 202) A autonomia e a autoridade são
categorias indispensáveis em uma discussão que tenha o propósito de
compreender a dinâmica interna destas famílias. Assim, o autodesenvolvimento
deve ser livre e igual, como também deve haver limitação de poder. Este deve ser
distribuído como em uma democracia, em seu sentido de esfera pública. Todavia,
essa contenção de poder não significa uma negação da autoridade: segundo
Giddens, esta só se justifica até o ponto em que reconhece o princípio de
autonomia. Segundo a noção de relação pura na esfera de adultos, a autoridade
existe como um aspecto de especialização. Em outras palavras, uma pessoa
desenvolve habilidades específicas que a outra não possui; não seria exatamente
autoridade sobre o outro, e sim uma sabedoria a mais. Em uma relação, como a de
pais e filhos, em que a autoridade se faça presente, de modo explícito ou não, a
123

suposição é a de que haja espaço para a exposição de argumentos em um mesmo


nível de igualdade.
Singly (2005) afirma que a independência adquirida com a emancipação
deve ser associada à autonomia, à capacidade de dispor de seu próprio mundo. A
independência deve servir à edificação de um mundo pessoal, autônomo, no qual
o indivíduo cria suas próprias normas. Em um plano ideal, o individualismo é uma
forma de vida em sociedade que permite a cada um delinear os reconhecimentos
necessários para a produção de sua vida, para o que deseja realizar. No entanto,
segundo o autor, o individualismo é um horizonte político, em razão de não ser
acessível a todos.
De acordo com Ramos (2006), para um filho adulto que mora com os pais,
a questão da definição de si próprio como adulto é menos importante que a noção
de autoria de sua própria vida, ou seja, a sua autonomia, sobretudo no terreno das
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relações intergeracionais. Parece haver uma discrepância entre a definição do que


é ser adulto e a concepção de autonomia, no momento atual. A ausência de rituais
de passagem promovidos pelo coletivo, observada na sociedade contemporânea,
dificulta a visão cíclica do desenvolvimento. As etapas de vida sincronizadas não
se coadunam com as mudanças, prolongamentos e adiamentos destes estágios
evolutivos, presentes no contexto contemporâneo.
Ramos (2002) propõe uma nova perspectiva, a de que a autonomia desses
filhos é construída na relação com os pais e se processa através de micromudanças
vividas no espaço familiar, como o lugar de cada um na relação, o
estabelecimento de novas regras de convivência, a utilização do espaço físico da
casa, entre outras. Estas microtransformações na vida cotidiana são acompanhadas
de ações, que permitem a elaboração de um sentido de autonomia e de definição
de si:

Enquanto nos ritos o sentido vem do coletivo e é predeterminado, nesse caso o


sentido é definido pelo indivíduo e fabricado na interação em que cada um dos
pais é um interlocutor singular e em que a dimensão do grupo familiar cede lugar
às negociações interindividuais. (Ramos, 2002, p. 46)

Assim, a autonomia é forjada na interação e independe da normatização


dos contextos externos. Dessa forma, a relação pais e filhos põe em relevo o que
124

faz sentido para ambas as partes, as negociações se estabelecem em função das


demandas cotidianas e podem conferir ao espaço familiar um ambiente de
parceria.
Sendo a autonomia construída na relação, através de pequenos
movimentos que levam à mudança e a promovem, faz sentido pensar na
importância do espaço físico da casa. A vida em família carrega a dualidade dos
territórios coletivos e individuais, oscila entre a vida em comum e os espaços
pessoais. Singly (2000) afirma que o temor do indivíduo contemporâneo é perder
sua independência ou, ainda mais, perder a si próprio, em situação de coabitação.
O autor se reporta ao paradoxo do individualismo, o fato do indivíduo adulto
desejar “viver com”, estar junto e estar só, uma vida dupla que acumula ao mesmo
tempo essas duas possibilidades. A divisão do espaço físico da casa é então
fundamental para os coabitantes.
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A função da sala da casa da família, por exemplo, é a de promover os


encontros e a proximidade entre os membros da família, em função de sua
característica de espaço comum. No entanto, esse campo é um território regulado
pela ordem parental, ou seja, o acento é colocado na dimensão dos pais, no que
concerne às regras de utilização deste espaço coletivo. É uma peça comum,
porém, predominantemente parental; portanto, cabe aos filhos o ajustamento nesse
domínio assimétrico. Em geral, esse cômodo da casa é decorado pelos pais e a
historia dos objetos e móveis passa a fazer parte da memória familiar. O espaço
físico deste ambiente é estreitamente vinculado à representação da família.
Por outro lado, a sala pode significar para os filhos uma área de passagem,
um lugar desprovido de referências próprias ou marcas pessoais. Um terreno
habitado na ausência dos pais ou, então, no caso da presença destes, guardando a
característica de utilização por pequenos espaços de tempo. O tempo das
conversações, das refeições, do uso de um sofá para a leitura do jornal, assistir a
um programa de televisão em conjunto, ouvir música, por exemplo. Dessa forma,
a sala se constitui como um espaço comum, ordenado por regras parentais e,
assim, utilizado pelos filhos de formal pontual. No entanto, pode ser instituído um
espaço de transição entre a sala “dos pais” e o quarto dos filhos, um espaço obtido
pela negociação, que pode ser um outro ambiente da casa, como um hall de
entrada, o quarto de televisão da família, por exemplo. Esses espaços poderiam
125

abrigar alguns objetos pessoais dos filhos e um pouco da “desordem” associada a


eles. Entendemos que se um espaço da casa é defendido como estritamente
pessoal, com uma dominância de ordem parental ou filial, esse espaço perde suas
características de “ambiente” familiar.
O quarto é o espaço da casa que pode ser representativo de um “pequeno
mundo”. A esse respeito, Ramos (2000) ressalta o significado de um quarto com
frigobar e cama de casal, para um filho adulto, como sinal de reconhecimento de
sua independência e que funciona como um ritual de passagem para a saída da
casa dos pais. Esses objetos podem simbolizar uma ruptura com a vida cotidiana
familiar; o quarto se torna um espaço mais distanciado do coletivo. No entanto,
para que este fato possa se concretizar, talvez seja preciso que os pais percebam,
ao mesmo tempo que os filhos, que uma distância apropriada deve ser construída
nesta relação.
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Um dos rituais de passagem à vida adulta refere-se concretamente ao sair


de casa, ou simbolicamente sair, ao assumir uma postura independente em relação
aos pais, sustenta Berthoud (2003) Nesse caso, mesmo sendo coabitantes, pais e
filhos poderiam viver o impacto deste movimento em rumo à autonomia. Esse
momento de vida, em que o filho é adulto e poderia ser nomeado como “o filho-
outro”, se caracteriza por uma relação de iguais vivida em família, uma relação de
equilíbrio e troca. Assim, é construída uma relação de iguais com o filho-outro,
baseada em parceria e amizade. Essa mudança na estrutura da relação envolve a
percepção de outros sistemas que interagem no relacionamento, ou seja: as
modificações ocorridas nos filhos, nos pais e no contexto social favorecem esta
transformação. Assim, a ressignificação dessa relação é considerada como de
segunda ordem sistêmica, concebida segundo a ótica de que um necessita do outro
para construir significados, quando se trata de buscar sentido para uma
experiência.
A ressignificação da relação entre pais e filhos adultos passa pelo
reconhecimento dos espaços pessoais e coletivos, no que concerne aos membros
da família. Vem a ser a construção de um novo espaço, o “espaço familiar” no que
era antes um espaço parental. A compreensão deste espaço familiar está vinculada
ao princípio de uma relação entre iguais. O que resulta da construção deste
ambiente familiar é a convivência, o cotidiano da família, entendido como
126

território da mutualidade, da troca, da possibilidade de compartilhar sentimentos e


da cooperação.
A produção do espaço familiar é evidenciada e construída nos espaços
comuns da casa da família, ou seja, na sala, na cozinha, na varanda ou no quintal.
Essa zona de relações favorece a edificação do espaço familiar. O fato de
compartir interações em um espaço comum da casa pode permitir a construção de
sentimentos de um viver compartilhado. A instituição do espaço familiar é
possível a partir da integração das diferentes participações dos membros. Essa
convivência é mais do que um tempo passado em comum no exercício de uma
atividade; ela é a possibilidade de experimentar os sentimentos de um conviver
prazeroso, produzidos pelos laços afetivos estabelecidos nas zonas de interação.
Dessa forma, a convivência é forjada na proximidade física e afetiva, e motivada
pelo prazer de partilhar interações.
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O fato de deixar os espaços individuais para se encontrar no espaço


familiar pode ser convencionado, pelos membros da família, por atividades
triviais, como tomar um café juntos, para dessa maneira, poder comentar ou trocar
impressões sobre outros assuntos. Esse simples momento porta o significado de
integrar as participações de cada um e, paralelamente, conotá-las como válidas.
Esse momento é reconhecido como integrador e é estimulado e instigado pela
família, como um modo de promover a utilização do espaço familiar.
Por outro lado, algumas atividades habituais – que poderiam ser
consideradas como obrigatórias e não prazerosas pelos membros da família –
poderiam carregar uma “dupla mensagem”, no que concerne a uma virtual
participação no contexto do espaço familiar. Elas podem também conter a
possibilidade de se transformarem em um momento de mutualidade e do
sentimento de estar junto. Ocasiões exemplares seriam as refeições da família ou
os comentários sobre a administração da casa, envolvendo a economia dos bens
comuns, o pagamento das contas, entre outros. Estes momentos podem portar as
duas dimensões, obrigação e prazer, dependendo da singularidade de cada família.
Contudo, todo esse espaço-ambiente familiar só vai ser possível se a relação entre
pais e filhos for flexível o suficiente para comportar uma ressignificação
relacional. Isso quer dizer que é preciso que ocorram os reajustes necessários na
127

relação, para que os espaços pessoais de cada um dos membros sejam respeitados
e o ambiente familiar possa ser constituído.
O prolongamento da proximidade afetiva, sob o ponto de vista relacional,
inscreve as relações entre pais e filhos adultos em uma dinâmica de
individualização e não de dependência dos filhos, de acordo com Maunaye
(2001). A prova disso é que as regras e normas que regem a dinâmica familiar
podem ser quebradas e negociadas pelos filhos, o que demonstra o
reconhecimento das aquisições de autonomia pessoal dos últimos. Estudos sobre a
decoabitação ou a vida fora da casa dos pais (Maunaye, 2001 ; Heath, 2003)
mostram que as negociações continuam nas relações entre pais e filhos e ainda se
tornam mais harmoniosas em razão de uma mudança relacional. Após a saída dos
filhos, as relações dão continuidade às ações de orientação e suporte relacional
entre pais e filhos.
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Ao esperar a saída dos filhos da casa, a vida familiar se organiza de forma


a deixar espaço para a expressão de autonomia dos filhos. Os pais entendem que
este acolhimento atenua os efeitos dos obstáculos produzidos pelas dificuldades
do mundo do trabalho, sendo assim, uma estratégia diante de uma inserção
profissional em um prazo maior. Além disso, a coabitação prolongada pode ser
também considerada como uma estratégia em função da economia e do acúmulo
de recursos que permitem aos filhos ter acesso mais facilmente à independência.

4.3
O reverso da moeda: a saída dos filhos da casa parental

Para Singly (1996), a prova socialmente estabelecida do sucesso da construção


identitária, é a saída da casa dos pais. O ato da saída, em geral, é uma iniciativa do
jovem. É esperado que comunicar este fato faça parte do processo de aquisição de
autonomia. Essa comunicação é parte de um processo, iniciado na esfera
relacional, no qual o incentivo dos pais impulsiona as atitudes do filho, no sentido
de tomar a decisão.
No caso da coabitação prolongada, duas questões se colocam aos pais,
explica Maunaye (2001): quando intervir na decisão da saída e como intervir.
Algumas mães, de acordo com a pesquisa da autora, realizada na França em 1997,
128

dizem “que dão a entender” aos filhos sobre as vantagens de construir uma vida
“solo”. O sub-entendido poderia ter um valor de injunção, de mandato, em tais
circunstâncias; sendo assim, os filhos entenderiam essa comunicação? De acordo
com Maunaye, as intenções escondidas nas comunicações não explícitas ajudam o
filho a tomar a decisão. Ele pode perceber a mensagem, caso ela se desdobre em
atos, como a compra de um objeto para a futura casa ou a abordagem de um
assunto ligado às vantagens da vida independente, fora do reduto familiar. No
entanto, se pensarmos como Singly (1996), a eficácia do ato de sair de casa, tanto
para os pais como os filhos, está intimamente vinculada ao fato de a comunicação
partir dos filhos. Estes ressaltariam, com essa decisão, a necessidade do
alargamento de seus domínios pessoais, conquistada por uma relação suficiente
com os pais e com a vida social, em termos de aquisição e construção de
autonomia.
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Assim, orientar ou dar a entender sobre a saída – por parte dos pais – pode
ser visto como um ato de desvalorização da capacidade de emancipação do jovem.
Poderia construir uma imagem negativa do filho, aos seus próprios olhos e aos dos
outros. E ainda poderia constituir uma injunção contraditória: tornar o campo
relacional ambíguo, uma vez que as vozes contrastantes implicam desorientação.
Portanto, diante de um contexto ambíguo em ação nos limites da família,
ressaltamos a importância do interjogo vivido na dinâmica familiar, referente à
saída dos filhos.
A enunciação do momento da partida se apresenta como difícil para todos
os membros. As mães podem se sentir com poucas possibilidades de manejo da
situação, diante das razões acima descritas. Os filhos precisam comunicar a saída
em seus próprios termos, sendo cuidadosos com o conteúdo de seus discursos, de
forma que este não repercuta no futuro da relação com os pais. O jogo relacional é
representado em um contexto de dissimulações, objetivando não ferir as
sensibilidades de cada um dos envolvidos. Assim, a enunciação pode vir
acompanhada de explicações atenuantes – seriam precauções, com o intuito de
evitar problemas diante de um tema tão sensível para todos.
Diante da situação de decoabitação exposta acima, acreditamos que ela
possa ser um evento importante, mas não o bastante para a conquista de uma
autonomia básica. Dependendo do tipo de saída, que pode ser motivada por
129

múltiplas razões, entre as quais os estudos, trabalho, vida a dois ou outras,


entendemos que a independência pessoal possa não estar a ela atrelada. Por
exemplo: o filho que parte para uma vida conjugal pode despertar na mãe uma
atitude mais cautelosa em relação à continuidade de orientação e suporte na
relação pais-filho. Em contra partida, o filho que vai morar sozinho pode autorizar
maior proximidade com os pais, dificultando, assim, a representação de si, como
separado da família de origem. Assim, a saída de casa, em si, pode não provocar
uma transformação identitária no jovem, em relação ao ambiente familiar.
Existem diferenças observáveis no processo em direção a autonomia entre
os jovens franceses e os espanhóis, no ponto de vista de Gaviria (2001), e
evidenciado em sua pesquisa com jovens de 25 a 29 anos. Os jovens franceses se
inscrevem em uma lógica de experimentação de modos de vida e os espanhóis, em
uma lógica de estabilidade. Isso quer dizer que os jovens franceses, ao saírem da
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casa dos pais, se deixam levar por um percurso incerto, podendo viver em
concubinato, sós, em um ir-e-vir mais solto. Os espanhóis, ao contrário, saem da
casa dos pais quando se percebem em situação de estabilidade, podendo dar
continuidade ao conforto vivido na casa paterna, em razão disso, buscam um
emprego estável e uma moradia confortável.
Na França, tornar-se adulto significa se desvencilhar do estatuto de filho
para poder desenvolver cada vez mais sua identidade pessoal. Os franceses
alcançam mais cedo do que outros, o estatuto de “companheiro de”; assim deixam
de lado sua identidade filial. Para compreender essa transformação, segundo
Gaviria, é preciso dirigir o olhar à separação dos territórios íntimos entre pais e
filhos no espaço familiar, ou seja, as zonas comuns da casa e o quarto do jovem.
Ao fazer de seu quarto um pequeno mundo, no qual se refugia para conquistar um
território pessoal e ganhar mais autonomia na relação com os pais, delimita a
proximidade física e afetiva, com o apoio dos pais.
Os jovens espanhóis experimentam sociabilidades que se sobrepõem, de
forma que têm a tendência de integrar em si mesmos, os estatutos de
“companheiro de”, “amigo de”, “filho de”. A vida cotidiana da família se
entrecruza constantemente, e não são estabelecidos limites rígidos nos espaços da
casa. Assim, na França, deixar a casa dos pais tem uma importância simbólica
para a conquista de autonomia. Para os espanhóis, o casamento representa essa
130

conquista. De acordo com Gaviria, 70% dos jovens na Espanha saem da casa dos
pais para se casar.
Em relação ao momento de ser considerado como adulto, na França ele é
compreendido em uma lógica de autonomia. Os pais fazem o possível para que
este processo seja educativamente realizável. Na Espanha, os pais defendem a
idéia de que para se tornar adulto bem-sucedido é preciso um forte sentimento de
pertencimento familiar. Os bons pais são aqueles que oferecem um bom ambiente
familiar, no qual os filhos podem encontrar seu equilíbrio até que tenham
condições financeiras para deixar a casa paterna.
Segundo Gaviria (2001), os jovens espanhóis dizem se sentir bem no
espaço familiar e que não se sentem atraídos por um modo de vida solitário, por
isso é comum deixarem a casa dos pais no ato do casamento. Dizem ainda que não
compreendem porque os franceses julgam mal, ou consideram anormal, o jovem
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que trabalha e tem um bom salário morar com os pais, se não for casado.
De acordo com um estudo sobre as transformações das relações entre
jovens e seus pais na Itália, realizado por Santoro e Rebughini (2003), a família
italiana é caracterizada pelo excesso de proteção exercido pelas famílias. O
prolongamento da convivência familiar é um hábito nacional. Normalmente, a
decoabitação se dá por volta dos 30 anos, com os jovens já independentes
financeiramente. Tal situação não é vista com maus olhos pela sociedade italiana,
pois a saída de casa está associada ao casamento, a mudanças profissionais, assim
como, ao estatuto de adulto. “O retardo na decisão de sair da casa dos pais e se
tornar independente da família é o resultado de um conjunto de orientações
culturais e sociais compartilhadas e que se manifestam e legitimam no interior da
família.” (Santoro e Rebughini, 2003, p. 120)
A saída não é vista como uma exigência, nem como uma etapa inevitável
de emancipação. A família é um espaço protetor por excelência, no qual se pode
viver o conforto afetivo e o relaxamento do stress cotidiano. Assim, o viver em
família, para os jovens, é uma escolha “estratégica e instrumental”. As autoras
pontuam a dificuldade do jovem em se imaginar só. A solidão é considerada como
uma condição a ser evitada e eliminada do horizonte existencial. Nessa
perspectiva, sair de casa se justifica somente no caso de uma transformação no
status do filho, como o casamento ou o trabalho.
131

Diante da evidência de um possível fechamento da família e da


exacerbação de seu lado protetor, as autoras recorrem ao conceito de
“familialismo”, como um recurso de compreensão para um estereótipo típico
italiano. Esse conceito poderia ser definido como o fechamento do indivíduo em
seu espaço familiar privado, caracterizando-se pela falta de interesse por tudo que
seja do mundo social, que não seja uma referência à própria família. As autoras
relacionam essa noção ao comportamento instrumental12 do jovem adulto
coabitante, ou seja, a sua falta de interesse em criticar a ordem pública ou apelar a
ela, em favor de uma política voltada ao jovem que quer se emancipar. A
centralização na família se daria em face da ausência de um Estado presente na
vida dos indivíduos. No entanto, as autoras esmaecem as tintas com as quais
desenham o conceito de familialismo e o estereótipo da família italiana, ao
afirmarem que nesta as relações tem como base o igualitarismo e se constituem
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como uma importante rede de apoio e proteção para os seus membros.


Heath (2003) realizou um estudo na Inglaterra com jovens adultos solteiros
– situados em uma faixa etária média de 25,5 anos – que saíram da casa parental
para viverem em moradias compartilhadas. A saída, de acordo com a pesquisa,
configurou-se por motivos socialmente legítimos, ou seja, estudos e trabalho. Em
um primeiro momento, a autora pontua a ausência de alguns importantes
elementos de análise em pesquisas com essa faixa etária, como o registro de que
após a saída da casa parental, a família pode continuar mantendo laços afetivos,
materiais e econômicos por um determinado tempo, ou mesmo ao longo da vida.
De acordo com Heath, existe entre esses jovens a percepção da vida
familiar como ontologicamente associada à idéia de lar, apoio e referência básica.
Esses jovens continuam mantendo um forte sentimento de vinculação familiar. O
tema é visto pela autora, como uma idealização de memórias da infância, muito
ligadas ao espaço físico da casa. Alguns desses jovens relataram o desconforto
vivido quando os pais, após sua saída, mudaram de residência; algumas
lembranças de infância se desmaterializaram. De qualquer forma, a casa parental
se afirma como um lugar estável, que fornece um pertencimento imutável.

12
Segundo as autoras, o comportamento instrumental, nesse contexto, é um comportamento
caracterizado pelo interesse na economia de gastos quando se mora com os pais.
132

Uma outra importante conclusão dessa pesquisa refere-se à mudança na


relação entre pais e filhos após a separação. Estes últimos testemunham a tomada
de consciência dessa realidade. Os jovens, em seus depoimentos, relatam que em
seus retornos à casa parental, se sentem como visitantes. Esse sentimento teria a
ver com a mutação gradual do relacionamento com os pais, que é declarada como
não deliberadamente prevista. Heath sublinha que em alguns relatos percebeu
como a forma de vinculação à casa parental está implicada na noção de
permanência do ninho familiar. Alguns jovens declaram que seus quartos são
deixados intactos pelos pais, prontos a recebê-los a qualquer momento. Dessa
forma, entendemos que a dimensão de proximidade e afastamento relacional é
apresentada como um objeto a ser negociado.
Embora esses jovens tenham uma moradia considerada como transitória, a
maior parte deles a percebe como “sua casa”, revelando que a saída da casa dos
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pais constitui uma grande aquisição de autonomia. Em conseqüência, os


entrevistados, em sua maioria, declaram, também, não considerar mais a casa dos
pais como “sua casa”. Acreditamos que essa noção tenha se desenvolvido a partir
de uma nova forma de se relacionar com os pais, conquistada em razão de um
contexto de delimitação de espaços pessoais, validados e legitimados por ambas
as gerações.
Uma outra pesquisa sobre o tema, realizada por Mitchell (1998), refere-se
à tendência recente de retorno à casa parental de jovens adultos no Canadá. A
autora, apoiando-se no campo teórico de ciclo vital familiar, investigou o nível de
satisfação parental em relação à volta dos filhos. Esse grau de satisfação parental
envolveu a busca de esclarecimentos relativa à qualidade da relação entre pais e
filhos jovens adultos, no que concerne aos fatores sociodemográficos e
socioeconômicos, que estão intimamente ligados a essa relação, de acordo com
Mitchell.
A pesquisa de Mitchell (1998) envolveu 420 famílias que foram
entrevistadas separadamente, por telefone. Cada entrevista telefônica teve a
duração média de 30-45 minutos por membro da família. A discussão dos
resultados se inicia com a afirmação de que os maiores benefícios produzidos pela
relação, na visão dos pais, vêm a ser a companhia, a amizade, a ajuda instrumental
na casa e ter a família recomposta em sua forma original. E o grau de satisfação
133

está fortemente vinculado à reciprocidade, a uma menor relação de dependência e


a uma maior autonomia dos filhos. Na perspectiva dos pais, essa geração
boomerang não é necessariamente acomodada e chegada ao conforto da casa dos
pais, e as relações intergeracionais não são tensas, conflituosas ou insatisfatórias.
A autora propõe, como um campo fértil de continuidade de pesquisa, a
investigação do nível de encorajamento disponibilizado pelos pais, a fim de que
seus filhos possam sair de casa e seguir suas vidas fora do espaço familiar e sobre
quais seriam os efeitos dessas negociações sobre a vida dos membros da família.
Carbone A. e Coelho M. R. (1997) ampliam essa discussão, investindo em
uma particularização rumo ao universo da família brasileira, especificamente a
realidade da família paulista. As autoras analisam a família de adultos sob a
perspectiva de ciclo vital, denominando esse momento de “fase madura”. Dessa
maneira, delimitam algumas questões de notória relevância do ponto de vista de
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nossa cultura. Como exemplo, destacamos que entre essas famílias predomina o
padrão da saída do filho da casa dos pais para casar, estudar ou trabalhar.
Essas autoras chamam a atenção para aspectos da dinâmica intergeracional
vivida entre os membros, que põem em pauta a perpetuação de lealdades de afeto
e sangue e transmissão de legados culturais. Esses aspectos incrementam a
convivência da família com possibilidades de conflitos e ambiguidades diversas,
transformando a fase madura em um momento delicado e difícil do
desenvolvimento.
Outro aspecto sublinhado nesse estudo refere-se ao fato de 57% dos casais
parentais alegarem que a principal característica do casamento, nessa fase madura,
seja o companheirismo. Segundo as autoras, essa percepção em muito tem a ver
com a liberação das responsabilidades e cuidados com os filhos. Nesse ponto,
concordamos com essa interpretação. Se levarmos em conta a premissa de que nas
famílias brasileiras de classe média, raramente, os filhos são incluídos na divisão
de tarefas comuns, a suposição de que o casal possa usufruir um tempo maior para
sua relação faz bastante sentido.
A maior parte dos entrevistados de Silveira e Wagner (2006), jovens
adultos entre 27 e 35 anos e morando com os pais na cidade de Porto Alegre (RS),
ressaltou que não fazia uma boa avaliação do casamento dos pais. As autoras
sublinharam, com base nessaa evidência, que esses jovens teriam uma concepção
134

diferente de casamento de seus pais. Assim, ressaltaram que, apesar de esses


jovens terem o casamento como meta, como tarefa evolutiva a ser cumprida, essa
instituição não se constitui como o principal projeto de suas vidas.
No domínio da dinâmica familiar, as autoras pontuam um
hiperinvestimento na relação entre pais e filhos nesta fase de vida, e,
consequentemente, um desinvestimento nos outros subsistemas, como, por
exemplo, entre o casal conjugal e na relação entre os irmãos. Entenda-se que o
excesso, de um lado, e a falta, de outro, possam criar um terreno propício ao
favorecimento da dependência e sejam um dos fatores dificultadores do processo
de emancipação.
De acordo com nossa pesquisa anterior (Henriques, 2004), o tema da saída
da casa dos pais pode resvalar em um impasse, pois diz respeito a um objeto de
conversação constantemente visitado pela ambiguidade. Esse ambiente de
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contraste desvela a dificuldade dos pais e dos filhos em colocar em palavras o


assunto da separação na família. Fábio, 30 anos, engenheiro e solteiro diz:

Não vejo sentido em sair de casa simplesmente pra ter o meu espaço, não tenho
essa motivação. (...) Eles iriam sentir muito no início, eu acho, eles nunca
comentam o que vão fazer mais adiante. (...) Nunca se fala diretamente sobre
isso, deve ser pra evitar falar sobre isso né?

Vejamos o relato de Fernando, 58 anos, engenheiro, casado e pai de Fábio:

Eu sei que um dia ele vai sair, a gente tem que esperar o dia chegar pra ver o que
vai acontecer, mas vai demorar, as coisas estão bem estáveis por aqui,
instabilidade só lá fora, por enquanto tudo está normal.

Na argumentação de Fábio percebe-se a “invisibilidade” do tema sair de


casa que permeia as relações de sua família; ao não se falar no assunto,
escamoteia-se essa realidade e posterga-se o sofrimento atrelado a ela. Esse
sofrimento, do nosso ponto de vista, refere-se à perda de função dos papéis
parentais, que vem a ser evidenciada na fala de Fernando “por enquanto tudo está
normal”, ou seja, o seu lugar de pai ainda está garantido.
135

A visão de Dora, 27 anos, economista, solteira e morando com os pais, é a


de que quando um filho sai de casa quem perde são os pais, eles são a parte
fragilizada da relação familiar nesse momento. “Quando eu sair vai ser uma
grande mudança pra eles, eles vão sentir, porque eles vão estar perdendo a filha,
pra mim não, vai ser tudo novo, vai compensar”. Sem dúvida, a perda do papel
parental parece ter mais peso na dinâmica familiar; contudo, chamamos a atenção
para o fato de que a perda do papel de filho se apresenta como invisível nessa
estrutura, sendo portanto mais difícil de ser verbalizada. Dora, por exemplo, assim
como outros dos nossos entrevistados, não pretende deixar o seu papel de filha
que mora com os pais “nem tão cedo”. “Eu não pretendo sair nem tão cedo, por
enquanto está bom assim”.
O depoimento de Ana, 48 anos, casada e mãe de Alexandre, 27 anos,
designer e solteiro, em nosso olhar sublinha a questão da ambiguidade implicada
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no tema da separação entre pais e filhos.

Chega uma hora que a gente tem que ser muito clara com eles, explicar que os
atritos que rolam, é porque já está na hora de virar adulto mesmo, cuidar da
própria vida. (...) aí a gente fica martelando na cabeça deles que tem que ter casa
direita pra morar, um trabalho estável aí eles retrocedem.

Eis o relato de Alexandre:

Tem uma cobrança da sociedade pra se sair de casa, está em novela, tirinhas de
cartoon, às vezes eu acho que eu é que sou o errado, fico meio confuso. (...) Eu
acho que os meus pais gostam de eu estar em casa, se eu tivesse que sair agora, a
minha vida ia ser mais difícil, sem contar com a solidão.

O discurso de Ana torna evidentes os sentimentos ambivalentes que


habitam o território familiar. Assim como autoriza a autonomia do filho, ela o
desautoriza ao “martelar na cabeça dele” as dificuldades que vai encontrar. É
como se ela dissesse, simultaneamente, “seja autônomo” e “não saia de perto de
mim” – o que vem a ser uma forma, mesmo que altamente desorientadora, de se
manterem os papéis familiares preservados. A confusão de Alexandre em muito se
136

deve ao contexto de ambiguidades e invisibilidades que cerca a saída da casa dos


pais.
Assim, nos apoiando nesses relatos, podemos concordar com Kaufmann
(1996), quando este afirma que o princípio da autonomia pode invalidar a noção
de transmissão, pois pode constituir um paradoxo, e ser paralisante. “Não se pode
impor orientações aos filhos e pedir que sejam autores de sua própria vida.” (p.
39) Esse ato seria uma injunção paradoxal. Para este autor (1992), a injunção é
uma construção social, histórica, familiar e pessoal, que produz a evidência da
ação. Ela é o resultado de uma história social complexa, concretizada na
transmissão dos bens culturais do indivíduo. A injunção perfeita seria forjada fora
do pensamento, na forma de um automatismo adquirido e expresso na interação.
Dessa forma, ela é silenciosa e invisível, guia os passos sem que esteja ao alcance
imediato da consciência.
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A injunção está fortemente presente nas práticas relacionais e é mantida


pelos hábitos cotidianos. Podemos ter, como exemplo, o dever de agir dos pais e o
“é preciso obedecer” dos filhos; em qualquer um dos casos são imposições que se
insinuam como uma evidência, não são questionáveis. Se, por acaso, a injunção
for posta em questão e romper sua invisibilidade, pode ocorrer uma luta interior
que resvala na relação. Nesse caso pode haver o desgaste relacional e/ou um
primeiro passo para a ressignificação desses atos, ou seja, uma reflexão sobre o
que é necessário para um ajuste na relação.
Na prática, é possível dizer que a saída da casa dos pais autoriza o
distanciamento da família de origem. De um lado, ela implica a aquisição de uma
liberdade maior de movimentos, e de outro, a apropriação dos encargos da vida
doméstica cotidiana. Assim, ela designa um afastamento em relação ao grupo
familiar e um direcionamento a um outro contexto de regras. Esse afastamento
pode não significar ruptura ou corte; a independência pode se dar no estilo de
vida, permitido o abrigo de uma proximidade afetiva e encontros freqüentes.
137

4.4
O espaço negociado, um ambiente familiar

Encontramos no dicionário Houaiss as seguintes definições para o termo


negociação: transação, entendimento sobre tema polêmico ou controverso,
conversação diplomática entre duas ou mais nações, visando a tratado ou
convenção. Verificando que essas designações conferem um espaço mais amplo
ao termo, sugerimos abordá-la em sua relação com o contexto em que se inscreve
e nas condições em que ocorre. Trazendo o termo negociação para o campo
familiar, estabelecemos que os membros da família, por meio de suas interações,
constroem uma forma de se relacionar no âmbito doméstico. Esse formato de
relacionamento é constituído por uma rede de regras de convivência, que podem
ser flexíveis e abertas à mudança, em razão das necessidades pessoais ou coletivas
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dos membros da família. Assim, negociar significa estabelecer transações, no


intuito de romper ou reeditar algumas regras familiares que possam estar em
desacordo com um dos membros da família ou com o grupo familiar como um
todo. Portanto, o lugar da negociação é a própria relação; esta é o terreno no qual
ocorrem as transações, que têm como objetivo ganhar espaço na esfera
interacional.
Consideramos oportuno incluir as idéias de Strauss (1992) sobre a
negociação, vista na perspectiva das ciências sociais e considerada como um
processo. Esse autor se propõe a formular uma teoria da negociação que se baseia,
sobretudo, na distinção entre o contexto da negociação e o contexto estrutural a
ela associado, entendendo este último como um conjunto de propriedades do
sistema, no qual se estabelece a negociação. O contexto estrutural é mais amplo e
mais abrangente que o contexto da negociação e se relaciona, com esse último, de
forma recíproca. Assim, a mudança de um repercute no outro e o altera. O
resultado da negociação pode afetar o contexto em questão e contribuir para a
mudança, assim como para as futuras negociações.
Strauss afirma que uma ordem social ou organizacional é uma ordem
negociada. Ao utilizar o termo ordem social, ele se refere, em um senso mais
amplo, aos grupos, organizações, nações, sociedades, por exemplo, que produzem
condições estruturais nas quais as negociações de um tipo particular possam
138

ocorrer. Ao se referir a negociações específicas, diz que elas estão subordinadas a


condições específicas, como: quem negocia com quem, quando e a propósito de
quê. Assim, a negociação obedece a um esquema e não se dá ao acaso. A
negociação é concebida como uma relação complexa entre um processo de
negociação cotidiano e um processo de avaliação periódico; este último estabelece
os limites da negociação e alguns de seus direcionamentos. Os resultados da
negociação, de acordos, regras e contratos, por exemplo, têm limites temporais, ou
seja, deverão ser revistos, reavaliados e renovados.
Entre as dimensões do acordo e da negociação existe uma diferença
crucial, segundo Strauss (1992). Pode-se ter um acordo sem que haja negociação,
como também pode-se chegar a um acordo deixando espaço para a negociação,
caso o acordo se rompa. A negociação acontece quando existe certa tensão entre
as partes envolvidas; na falta desta tensa, não se negociará.
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Na esfera da negociação estão envolvidas as interações específicas, os


indivíduos que vão negociar, as estratégias e as táticas. Não se pode deixar de lado
as consequências da negociação e seus processos secundários. Estes últimos, por
exemplo, se referem aos ganhos, às vantagens obtidas, aos pagamentos de dívidas
e estabelecimentos de acordos. O contexto da negociação é de grande importância
para a sua compreensão. Strauss (1992) identifica algumas características desse
contexto. 1) os negociadores e quem eles representam; 2) o ritmo da negociação, o
seu tempo, repetições e sequências; 3) o equilíbrio de poder entre as partes
envolvidas; 4) A natureza dos desafios (enjeux) respectivos na negociação; 5) a
visibilidade das transações; 6) a complexidade do que é negociado; 7) a
legitimidade da questão a ser negociada; 8) as opções que podem ser colocadas
em ação para evitar ou rejeitar a negociação. Em relação a essa última
característica, o autor pontua que quando as partes envolvidas percebem tentativas
de manipulação, persuasão ou apelo a autoridades, as opções podem impedir a
efetivação ou afetar o curso da negociação.
Como pudemos perceber, o conhecimento do contexto da negociação
permite a revelação de uma análise microscópica das interações ocorridas em seu
processo. A opção por dar relevância à negociação em si mesma se deve ao peso
que ela exerce na dinâmica familiar. O território da negociação familiar é a esfera
relacional, a dinâmica interativa da família. Nas famílias cujos filhos são adultos,
139

é esperado que a negociação faça parte do contexto familiar, de forma que as


necessidades de cada membro da família possam ser constantemente revistas,
facilitando o percurso para o consenso. Para que isso possa ocorrer, é necessário
que a família disponha de uma capacidade suficiente de flexibilidade, no que
concerne ao universo de suas regras de convivência.
“Uma relação de forças”, desta forma, Ramos (2002) se refere às
estratégias utilizadas pelos membros da família, que objetivam romper ou
esgarçar as regras instituídas. Para tanto, nessa esfera de relação de forças, eles
vão negociar formas de convivência suficientes para garantir a manutenção de
seus espaços pessoais. De um lado, os pais vão procurar conservar as
características do espaço comum familiar, e, de outro, os filhos vão buscar
margens de manobra para a conquista de mais espaço em relação à ordem inicial.
É importante insistir que a negociação deve ser cuidadosa, a fim de não colocar
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em risco o equilíbrio da relação – de forma que, à medida que os filhos forçam ou


vão longe demais em suas demandas, os pais podem fazê-los recuar por meio de
estratégias que visam o apelo à ordem e à reafirmação do espaço da casa como
parental. No entanto, pode-se chegar a um meio-termo que redefina o contexto
original. Isso não impede que os filhos continuem insistindo em suas formas de
esgarçar esse contexto, por meio de pequenos atos que se infiltram no corpus
parental. Eles “jogam com as regras”, de acordo com Ramos (2002).
Chamamos a atenção para um fato: os termos das negociações nem sempre
ocorrem em um contexto de diálogo explícito, nos quais os membros apresentam
os seus termos de forma clara e com um objetivo delimitado. Baseando-nos em
nossa pesquisa anterior (Henriques, 2004), sublinhamos que uma família pode
chegar a um consenso sobre uma determinada questão sem que haja uma
negociação clara. Vejamos o exemplo da família A, referente à não-permissão,
para os filhos, de trazer namoradas ou namorados para o sexo em casa. Essa
família é composta pela díade parental e por dois filhos adultos: Ana, psicóloga,
36 anos, solteira; e André, analista de sistemas, 34 anos e solteiro, todos
coabitantes.
Uma das regras de convivência dessa família, estabelecida pelos pais –
portanto, uma regra parental – no momento em que os filhos, já universitários,
começaram a ter relacionamentos afetivos mais duradouros, interditava a prática
140

do sexo no domicílio familiar. Os (As) namorados (as) poderiam dormir na


residência, desde que em quartos separados. No entanto, André, aos 30 anos,
levou a namorada para passar a noite com ele em seu quarto, sem que o assunto
tivesse sido discutido com os pais. Após o fato, o pai não quis comentá-lo e a mãe
propôs uma conversação, afim de que André explicasse o ocorrido. A semana
decorreu e o diálogo foi “evitado” pela família. No fim-de-semana seguinte,
André levou a namorada, outra vez, para passar a noite com ele. A resposta dos
pais a esse fato foi um “belo” café da manhã para o novo casal, servido na mesa
da sala de jantar da família. Os pais disseram que a regra foi “quebrada no tranco”
por André e que isso os fez refletir sobre a necessidade de rever a proibição.
Nesse caso, podemos perceber que a negociação ocorreu de uma forma
não explícita e que o estabelecimento de um acordo foi possível, em razão dos
comportamentos dos membros da família. Estes mobilizaram ações que colocaram
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à prova uma regra rígida e não revista pela família, ao longo da sua própria
história. Assim, a negociação passa também pela comunicação não-verbal. Esta
comunicação permite muitas vezes dizer o que não pode ser dito, ou seja, a
palavra explícita é crítica, expõe a evidência e as confrontações. Portanto,
algumas vezes, podem ser escolhidas formas mais amenas e implícitas de lidar
com as insatisfações, que seriam as comunicações sem palavras, as quais
permitem resguardar os espaços pessoais, optando pelo terreno da ambiguidade e
guardando para si seus desprazeres.
Destacamos que a pragmática das relações interpessoais familiares
comporta não só as palavras, suas configurações e significados, mas também seus
concomitantes não-verbais e a linguagem corporal. Ainda chamamos a atenção
para o fato de que as omissões, o silêncio e as não-representações no contexto
interacional familiar podem constituir uma estratégia de evitação de conflitos,
com o propósito de preservar a relação entre os membros da família.
A expressão verbal é uma poderosa forma de administração das
insatisfações no domínio interacional. No entanto, ela pode se apresentar como
fonte de dificuldades, em razão da sua capacidade de se engajar explicitamente em
uma espécie de “prestação de contas”, em um caminho cujos efeitos podem ser
fatigantes e custosos. Dessa forma, é comum que os integrantes das famílias
escolham os percursos mais silenciosos nas suas transações, muitas vezes
141

omitindo ou até mesmo mentindo para evitar os conflitos abertos. No que tange ao
universo dos filhos adultos, concordamos com Ramos (2002), quando diz que a
estratégia da omissão, do silencio e da mentira visa regular a autonomia destes e o
resguardo de seus espaços pessoais na relação com os pais. E acrescentamos que a
mesma tática pode ser utilizada pelos pais, que por meias palavras, mímicas
corporais e outras formas de comunicação podem expressar seus sentimentos e
inquietações.
Contudo, as negociações no terreno familiar podem ser instigadas por um
conflito explícito. Os membros podem dizer claramente seus desapontamentos
diante de regras rompidas, espaços invadidos, criticar e reivindicar transformações
que possam culminar em acordos ou compromissos também explícitos. Essa seria
a forma mais adequada de negociação em um contexto familiar suficientemente
igualitário. Lembremo-nos de que à medida os filhos crescem e vão ganhando
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autonomia, mais o relacionamento vai se aproximando do que Giddens (1992)


defende como relação pura. O que define essa relação é que ela é pura por estar
atrelada somente ao que pode trazer de satisfatório aos envolvidos – este é o seu
critério. O compromisso é a sua base e deve ser entendido na perspectiva de que
faz parte de uma troca de esforços; sendo assim, não é “dado”, é construído na
relação.
Para Simmel (1912), em O conflito, o compromisso é uma das maiores
invenções da humanidade e faz parte das estratégias que utilizamos em nossa vida
cotidiana. Segundo esse autor, o conflito acaba em um compromisso, que não é
nem uma vitória nem uma derrota, e sim, uma conquista, um processo de
negociação. Toda a troca de opiniões geradas pelo conflito porta a noção de que
os valores e os interesses em pauta têm uma característica puramente objetiva e
concretizável no compromisso.
O conflito é uma dimensão positiva para Simmel. O erro de sua
incompreensão como instância positiva vem a ser a dualidade como forma de
pensamento. De acordo com esse autor, o mundo precisa de certas doses de forças
repulsivas e atrativas, para aceder a uma forma definida. Portanto, amor e ódio,
harmonia e dissonância, associação e competição, simpatia e antipatia não são
simplesmente duplas de contrários; são categorias interativas que compõem o
142

corpo social. Assim, são importantes e positivas para a sociedade, há


reciprocidade entre os opostos; o conflito seria uma forma de unificação.

Em si mesmo, o conflito já é a resolução da tensão entre os contrários; o fato de


que ele visa a paz é só uma expressão dentre outras, particularmente evidente, do
fato que ele é uma síntese de elementos, um pró o outro e um contra o outro, que
é preciso classificar sob uma só concepção. Este conceito é definido pela
oposição comum a estas duas formas de relação, contra a simples indiferença
mútua desses elementos... (Simmel, 1912, p.20)

Este jogo de pró e de contra existente no conflito se torna uma estratégia,


um objeto tático, assim como põe em evidência o duplo movimento de ofensiva e
defensiva que possa haver na relação. Se um lado tomar a ofensiva e outro se
colocar na defensiva e se o conflito durar um certo tempo, os dois lados podem
adotar sucessivamente ou alternadamente as duas atitudes – o que, segundo
Simmel (1912) é positivo e contribui para a regulação das relações. Tomando
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como exemplo um embate entre adversários, a solução tanto pode consistir na


vitória de um, na resignação ou no cansaço do outro, ou ainda na busca de um
consenso entre os participantes, ou seja, o compromisso.
Assim, o conflito não é um “acidente” na vida cotidiana; ele é integrante
dela, não tem um papel unilateral, mas sim polivalente. Simmel nos esclarece a
respeito do hábito em se qualificar o conflito como algo que deva ser excluído das
relações ou evitado na medida do possível. Pelo contrário, ele põe em evidência a
positividade do conflito como forma de socialização e põe um acento na sua
capacidade de contribuir para a integração.
Entendemos que o conflito e o compromisso são formas de negociação e
estão presentes nas interações cotidianas da família. Dessa forma, quando
acontece o conflito no domínio familiar, pais e filhos põem em prática algumas
estratégias, com o propósito de ganhar espaço em seus territórios pessoais, no que
concerne ao objeto de disputa. O acordo ou compromisso resultante desta
negociação, provavelmente, dirá respeito à reedições de regras familiares, rígidas,
que serão revistas e assim, transformadas ou não, dependendo da disponibilidade
da família para a mudança, no momento.
Por outro lado, insistimos na noção de conflito defendida por Simmel
(1912) e buscamos articulá-la ao contexto relacional familiar delimitado nesta
143

tese. Na esfera de interações familiares, sentimentos como a irritação ou as trocas


jocosas e risíveis são fartamente vividas e podem mascarar uma circunstancia
conflituosa. Esses dois sentimentos constituem os pólos do conflito, se
entrelaçam, constituindo a unidade, proclamada por Simmel. Essa forma de
comunicação evidencia uma particularidade de linguagem na prática familiar, uma
linguagem paradoxalmente atrelada ao domínio conflituoso. De modo que a
irritação pode levar ao riso, o que seria uma forma de esmaecer o conflito ou
neutralizá-lo. É bastante comum encontrarmos relatos de episódios de irritação
que são recontados de forma cômica; é criado um outro contexto de realidade para
este evento, uma realidade mais suave e menos tensa.
Essas pequenas tensões podem esconder um conflito maior subjacente.
Seriam pequenas incursões pelo domínio das emoções que visam abrandar,
ironizar, como também manter o conflito na ordem do dia, ou seja, fora da zona
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do esquecimento. Essas minimanifestações de humor têm a função, igualmente,


de manter na memória dos membros da família em interação algo que os inquieta
secretamente. Tais atitudes podem se repetir no cotidiano, de forma a relembrar o
desconforto que o outro provoca. Situações exemplares são as reclamações das
mães em relação à arrumação dos quartos dos filhos; são expressões que liberam
um pouco da carga inicial do conflito, ou seja, a não-observação de uma regra de
convivência da parte dos últimos.
Quando os pais de André13 recontam o episódio da regra familiar quebrada
no tranco, o fazem de uma forma jocosa, formulam uma história recheada de
elementos irônicos e cômicos. Apesar de relativizarem o fato, consideram
importante enfatizar o sentimento de desconforto inicial; este seria um modo de
manter ao alcance da memória, a origem do conflito. Nesse relato observamos as
influencias mútuas e complementares de sentimentos em oposição - a narração
irônica e cômica e a irritação – e intimamente vinculados.
Assim, a negociação revela um processo que abarca duas realidades, a dos
pais e a dos filhos. Talvez possamos dizer que esse processo constitui uma
desconstrução de uma realidade comum, de um estatuto familiar. Desta
desconstrução surge a construção de uma nova realidade, que ganha terreno nas
conquistas pessoais dos filhos e na redefinição dos papéis de pais. Estes, ao

13
Referência da família A, citada na página 21.
144

recuarem com relação a seus posicionamentos, validam os ganhos e as


competências dos filhos. E estes, mais autônomos e competentes, contribuem para
a reatualização dos estatutos familiares.
Enfatizamos, dessa maneira, a importância do minúsculo no jogo
interacional vivido no cotidiano e afirmamos que o processo de interação se faz a
partir de pequenas moléculas, de pequenos gestos e palavras expressos na relação.
A força dos momentos da ordem do infinitesimal reitera e reforça a grandeza da
vida doméstica como recurso de compreensão da dinâmica familiar. Nesse ponto,
Giddens (1984) acrescenta mais um pilar a essa discussão. Trata-se de uma
formulação indicativa de que a análise das rotinas, inscritas na vida cotidiana,
contém vários elementos psicológicos, que jogam luz sobre as interações.

A vida social comum, aquela de todos os dias, põe em cena a segurança


ontológica, baseada na autonomia do controle corporal e nos limites das rotinas e
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dos encontros previsíveis. A característica rotineira dos caminhos tomados pelos


indivíduos (agentes)14, que se deslocam no tempo reversível da vida cotidiana,
não sobrevém destes: é produzida pelos modos de controle reflexivo de ação, que
os indivíduos exercem em situação de co-presença. (Giddens, 1984, p. 113)

No decorrer de suas atividades cotidianas, os indivíduos se encontram em


determinados contextos de interação, nos quais estão fisicamente em co-presença.
Isto quer dizer que, quando os indivíduos se encontram em um conjunto de
condições de co-presença, eles têm o sentimento de estarem “perto o suficiente
para serem percebidos no que fazem, incluindo as suas próprias experiências do
outro, como também, perto o suficiente para serem percebidos como portando o
sentimento de serem percebidos.” (p. 117) Ou seja, os posicionamentos de cada
um diante do outro, incluindo suas expressões faciais ou gestos – as propriedades
sensoriais dos corpos transmitidas diretamente de um para o outro –, variam de
acordo com as circunstâncias, com o espaço e o tempo. Portanto, o modo como os
indivíduos vivem cotidianamente é construído na interação, de acordo com o
autor, e é inerente à continuidade da vida social. E se considerarmos assim,
podemos compreender as subjetividades na rotina de todos os dias.

14
O autor utiliza os termos agente e ator alternadamente, mas ambos os termos, segundo ele, são
suficientes para expressar a compreensão de que eles são capazes de compreender que “sabem o
que fazem e porque o fazem” em suas condutas. (p. 33)
145

Esse autor estabelece um elo entre o que se passa em um contexto de


interação e as experiências primárias vividas pelo ser humano. Para tanto, recorre
a Erikson (1963), cuja obra, inscrita na Psicanálise, integra contribuições das
ciências sociais. Giddens (1984) sublinha a relevância do conceito de Erikson de
etapas de desenvolvimento da personalidade para a constituição desse elo, assim
como destaca a relação mãe e bebê. A respeito dessa relação, ele ressalta que a
noção de que a mãe, já em seus primeiros cuidados com o seu bebê, o inscreve em
um mundo social, caracterizado por normas que o acompanharão nas relações
sociais ulteriores. Esta afirmação é fundamental para o entendimento da
correlação proposta por Giddens. Assim, a angústia da ausência da mãe,
neutralizada pelas gratificações da co-presença, prepara o terreno para os futuros
engajamentos e desengajamentos das interações.
Para melhor compreendermos essa correlação indicada por Giddens
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(1984), seguiremos algumas pistas conceituais presentes na obra de Erikson


(1963). Esse autor apresenta uma escala representada em fases de
desenvolvimento da personalidade, fases essas estreitamente ligadas ao
crescimento físico e social da criança. Cada fase formaliza uma progressão no
tempo e uma gradual diferenciação de partes componentes da “vitalidade mental”.
Erikson afirma:

Pode-se dizer que a personalidade se desenvolve de acordo com uma escala


predeterminada na prontidão do organismo humano para ser impelido na direção
de um círculo cada vez mais amplo de indivíduos e instituições significantes, ao
mesmo tempo que está cônscio da existência desse círculo e pronto para a
interação com ele. (Erikson, 1963, p. 92)

Nós nos concentraremos nas três primeiras fases, em razão de serem as


mesmas destacadas por Giddens (1984), para fundamentar o elo entre o
psicológico e o social. Cada uma das fases propostas por Erikon inclui polaridades
que podem ser distintas, de forma sucessiva, ao longo da transformação do corpo
como instrumento de ação no mundo. A primeira é a confiança e a desconfiança
de base. A confiança, assegurada pela mãe, permite ao bebê não perceber a
ausência da mãe como um abandono. Assim, essa dinâmica psicológica vem
acompanhada do primeiro triunfo social dessa relação, pois de acordo com
Giddens, o consentimento do afastamento da mãe se torna uma certeza interna
146

para o bebê, ao mesmo tempo que se afirma como uma previsibilidade em relação
ao mundo externo.
A segunda fase proposta por Erikson indica uma polaridade referente à
autonomia: a vergonha e a dúvida. “Reter e “deixar sair” são os correlatos
comportamentais dessa polaridade, que seriam expressões tradutoras do controle
dos dejetos corporais, como também de movimentos corporais como o dos braços
e mãos do bebê. As tensões vividas nessa etapa podem colocar em evidencia um
aspecto da angústia referente à aparência corporal. Ficar envergonhado ou sentir-
se humilhado podem ser indicadores da existência de sentimentos de vergonha ou
dúvida de si. Esses sentimentos, segundo Giddens (1984) estão presentes nas
interações e podem estar associados a um outro sentimento, o constrangimento,
sendo que todos estariam intimamente ligados aos engajamentos dos encontros.
A terceira fase, descrita por Erikson, coincide com a aquisição da
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linguagem e se expressa em uma polaridade que estabelece a oposição entre a


iniciativa e a culpabilidade. Vem a ser uma fase de iniciativa, por colocar em cena
a transição edipiana e a capacidade de controle interno, necessária para que a
criança se aventure fora dos limites da família. No entanto, esses controles
internos são obtidos por meio do recalque, o que para certos indivíduos pode
significar uma angústia engendrada pela culpa. No ponto de vista de Giddens
(1984), o desenvolvimento da capacidade de agir de forma autônoma está
estreitamente ligado ao reconhecimento do outro como indivíduo, e a resolução
dessa fase supõe a exploração do corpo como um mediador da ação.
Esse elo – entre a psicodinâmica e os mecanismos sociais da interação,
indicado por Giddens – põe em evidência o inconsciente como uma entidade
presente nas interações e nos conjuntos de condições de co-presença. “Os
componentes da motivação da personalidade infantil e adulta derivam de uma
tendência geral a evitar a angústia e a preservar a auto-estima contra os
transbordamentos da vergonha e da culpabilidade.”(1984, p.106). De acordo com
este autor, esses sentimentos, sujeitos à trama do registro inconsciente, subjazem,
em termos de desenvolvimento, a aquisição da competência lingüística –
competência esta, necessária à “consciência discursiva” (Giddens, 1984, p. 34),
que pressupõe que o indivíduo possa comunicar de forma coerente suas
atividades, assim como, definir suas razões.
147

Assim, o autor liga a psicodinâmica aos caracteres rotineiros da vida


social. A rotinização seria essencial aos mecanismos psicológicos, que asseguram
a manutenção dos sentimentos de confiança, a segurança ontológica nas
atividades cotidianas. Sendo que, a rotina é capaz de conter as fontes de tensões
inconscientes, que podem estar presentes na “quase totalidade de nossos
momentos de vigília.” (p. 34)

4.5
Construindo uma distância suficiente na relação

A ressignificação da relação entre pais e filhos adultos desempenha um


papel fundamental no reconhecimento e na validação dos espaços pessoais e
coletivos, no ambiente familiar. Ela permite a construção de um novo espaço: o
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ambiente familiar no que era antes um espaço parental, um lugar vinculado ao


princípio de uma relação entre iguais. Esse ambiente familiar é a própria
convivência, o cotidiano da família, o território da mutualidade, da possibilidade
de compartilhar sentimentos e da cooperação. Assim, a família de adultos
constitui seu habitat, forjado em um conjunto de regras que estruturam a
convivência. Essas regras, como vimos, foram negociadas explicita ou
implicitamente pelos membros da família, visando garantir a autonomia de seus
membros em seus espaços pessoais e coletivos. Assim, o espaço geográfico da
casa equivale ao espaço afetivo; este último encontra sua representação nos
limites físicos do primeiro. A utilização pelos membros da família destes espaços
manifesta o nível de proximidade ou de afastamento relacional, que também
expressa uma conquista ou um fracasso de seus intentos de negociação.
Instituir uma boa distância se afigura como o eldorado da relação pais e
filhos. Para isso eles não medem esforços, silenciam diante dos assuntos não
negociáveis, agem com paciência na busca de soluções para os impasses, utilizam
as cansativas pequenas argumentações que aliviam as tensões, ou ainda, em casos
extremos, usam o grito para manifestar suas irritações. Nesta última ocorrência,
costumam se mobilizar para a negociação, através de palavras ou de gestos.
Dessa forma, o movimento é constante e sem fim, posto que o indivíduo é
um ser em acabamento, em devir. A dinâmica familiar possui esse constante
148

movimento interno, um jogo de ir-e-vir, responsável pelo estímulo e pela


evolução de algo da ordem da continuidade de ser, como nos diz Winnicott, ao
longo de sua obra.
Esse ambiente familiar torna-se propício para o estabelecimento das
fronteiras individuais, adequadas para a convivência relacional. Para cada
conversação ou gesto existe uma distância funcional, suficientemente boa para a
continuidade das relações. Nem muito perto, nem muito longe, algumas vezes
perigosamente muito perto ou arriscadamente muito longe, as famílias descobrem
essas possibilidades na prática, nos detalhes do cotidiano, de maneira que, o
simples planejamento das refeições do fim de semana pode ser exemplar da
distância funcional. Quem participa das decisões do que vai ser feito, quem faz a
lista de compras, quem compra, quem faz a comida, quem está presente, quanto
tempo dura a refeição, o tema das conversações à mesa, estas e ainda outras
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indagações podem ser formuladas e consideradas como pistas para a investigação


do tema.
Acreditamos que para constituir um ambiente familiar, com o sentido
especial de um momento de convivialidade, seja preciso que os espaços pessoais
dos membros da família concedam um campo ao sentimento compartilhado, ao
coletivo. É essencial que haja porosidade nesses espaços individuais para que o
ambiente possa emergir, revelando suas características singulares de abrigar o
prazer de todos estarem juntos e da mutualidade. Dito de outra forma, a fluidez
dos espaços pessoais dos membros da família concede a prevalência do ambiente
familiar. Esses momentos podem ser simples atividades cotidianas.
A hora do “cafezinho” pode ser convencionada pelos membros da família
como o momento de deixar os espaços pessoais para se encontrar no ambiente
familiar, com o objetivo de fazer comentários ou trocar impressões sobre outros
assuntos. Nessa atividade doméstica cabe o significado de integração das
participações individuais, que passam para o registro coletivo, ou espaço
potencial, de acordo com o vocabulário de Winnicott (1971). Esse momento é
reconhecido como integrador e é estimulado e instigado pela família, como um
modo de promover o encontro nessa área de integração.
Na situação de ambiente familiar, é possível que a proximidade alcance
um nível suficiente para o compartilhamento e que os membros da família façam
149

circular a intimidade, forjada na confiança e na validação dos comportamentos. O


jogo de afastamento e proximidade vai ser vivido intensamente; ora se está em
uma dimensão e ora na outra. A fim de efetivar esta interatuação, é preciso saber
dosar os níveis de proximidade e de afastamento, para que a conversação possa
fluir. Tudo vai depender do assunto em pauta e de qual membro o aborda, para
quem o dirige e em que contexto relacional se apóia, ou seja, pai/filho(a); mãe/pai;
irmão/ irmão(a); mãe/filho(a). As coalizões são importantes neste jogo, pois
realçam a posição do membro da família no momento da conversação.
O afastamento proporciona o resguardo dos espaços pessoais. Em uma
conversação pode se manifestar através do silêncio, da argumentação pela
preferência em não se posicionar ou até mesmo da retirada física do campo de
ação, dentre outras formas de expressão. Na família com filhos adultos é
observado, com bastante frequência, o recolhimento destes em seus espaços
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privados, seus quartos. Os momentos coletivos seriam especiais, reduzidos a


poucos períodos de duração. Esse fato pode nos indicar o quanto é importante
para esses jovens a privacidade, o resguardo do olhar parental, o exercício da
liberdade e da autonomia de gestos e palavras.
A questão que se pode colocar vem a ser: o quanto de afastamento os
membros da família suportam em sua convivência, sem que ocorra desgaste
relacional? E ainda pode se desdobrar na seguinte indagação: o afastamento e o
desgaste relacional são suficientes para que a questão da separação possa se impor
como um fato, ou ao menos como objeto de reflexão?
Para compreender a dimensão destes opostos, proximidade e afastamento
e a complementaridade existente entre eles, retornamos a Simmel (1912). Esse
autor chama a atenção para as duplas de contrários, que menos que oposição,
reivindicam o estatuto unitário, de reciprocidade. “A relação, ela tem por assim
dizer, em um primeiro momento, certa temperatura, que não é produzida somente
pela compensação entre um pouco mais de calor ou um pouco mais de frio” (p.
30). Não existe indiferença entre estas dimensões, elas se interpenetram formando
um acordo entre as partes, um acordo simétrico, no qual a qualquer momento
pode se insinuar a alternância. Essas dimensões, na relação, “são a tal ponto
misturadas que não se pode distingui-las em suas energias específicas” (p. 32).
Portanto, o antagonismo e a decomposição podem ser utilizados para nos ajudar a
150

descrever ou a classificar. Contudo, devemos compreender que tais qualidades


não são só distintas e justapostas, mas miscíveis.
À unidade proximidade/afastamento, adicionamos uma outra,
profundamente imbricada a anterior, a dimensão do pertencimento e autonomia. A
questão de pertencer a um grupo familiar e se tornar independente dele,
autônomo, no sentido dado a este conceito por Singly constitui um paradoxo: unir
para se separar.

Livre! A palavra mágica das sociedades modernas é pronunciada. Palavra que


abriga um problema, pois vivemos em uma sociedade composta de indivíduos,
cujo sonho é, tanto, ser livre, em seus movimentos, em seus corpos, em seus
amores, quanto não se encerrar em papéis, lugares e esperas. (...) como os laços
podem ser compatíveis com a liberdade das pessoas ... ( Singly, 2003, p. 11-12)

É preciso que a família saiba promover o seu encontro no ambiente


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familiar, para que os membros possam se situar em um terreno menos ambíguo. O


entendimento de que é possível se afastar e ao mesmo tempo pertencer ao grupo
familiar de origem é uma questão que se coloca na esfera da ressignificação da
relação entre pais e filhos e possibilita a separação de fato, a saída dos filhos da
casa dos pais. A busca de um acordo é a tentativa de estabelecer uma distância
suficiente entre pais e filhos; o ajuste dessa distância deve prever a coesão da
família, ao mesmo tempo que imprime os interesses de cada um.
Essa área de negociações pode ser compreendida como um processo de
desconstrução de uma realidade comum. A realidade desconstruída é a realidade
instituída em momentos anteriores da família, uma realidade construída pelos
pais, que se esforçaram ao longo dos tempos em mantê-la. A “nova” realidade é
baseada no consenso, é uma conquista na interação, na qual a visão dos filhos
provoca uma transformação nos pais. Transformação, que ao legitimar o novo
status do filho, ganha as características de uma nova realidade.
A noção de filho-outro está intimamente vinculada a de pais-parceiros. A
redefinição desses lugares foi forjada na interação entre estas duas partes,
mediante negociações que alargaram seus espaços pessoais, ao mesmo tempo que
os validaram. Ambos alcançaram estas condições juntos; a mudança de um gerou
a transformação do outro. A distância apropriada, uma invenção da família, pode
assegurar a manutenção deste espaço com potencial transformador, ou seja, o
151

ambiente familiar. No entanto, como nada é definitivo, é preciso que ocorram


negociações constantes, a fim de equilibrar a interação, que está sempre em
movimento.
Um outro aspecto da convivência diz respeito aos constrangimentos
impostos pelo campo social. O viver em família é fortemente afetado pelo
processo de individualização da sociedade contemporânea. Em um sentido mais
largo, a dosagem do estar só e do estar junto constitui uma grande fonte de
angústia para o indivíduo, por se mostrar estreitamente atrelada aos cânones
daquele processo. Singly (2005) afirma que o individualismo é aprovado por cada
um de nós a título pessoal e recusado no nível coletivo. Entendemos a contradição
que vigora na atualidade da seguinte forma: o indivíduo defende o individualismo
para si próprio, ao mesmo tempo em que critica os seus efeitos no universo social.
Ele pode até desejar o pertencimento, o laço; porém, em contrapartida, não
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pretende reduzir a sua cota de liberdade. Esta seria a clivagem demonstrada por
Singly, o drama da contemporaneidade – ou segunda modernidade de acordo com
o vocabulário de Giddens (1999) – reside na seguinte injunção paradoxal: “para
ser membro da sociedade, seja um indivíduo individualizado” (Singly, 2003, p.
240).
Dessa forma, esse indivíduo pode escolher pertencer a esse mundo
coletivo de um modo mais tênue, ou mesmo escolher ter vários pertencimentos ao
invés de um único, mais forte. De outro ângulo, o indivíduo pode se habilitar, por
meio da escolha, na arte de colocar a distância, diferentes dimensões de
pertencimento. Em outras palavras, ele escolhe o que deseja ter mais perto de si
ou mais afastado, conforme o grau de constrangimento da dimensão em questão.
Singly (2007) esclarece essa noção através do exemplo da bolsa ou mochila (sac),
que, metaforicamente, contém diversas dimensões identitárias, construídas ao
longo da vida. A vida se constituiria em um jogo de colocar e tirar dimensões
desses espaços, de acordo com as prioridades do momento. O conteúdo dos
mesmos não é o que importa e, sim, o poder de escolher o que entra e o que sai.
Esse processo representaria a idéia do individualismo nos dias de hoje, segundo
Singly.
No universo familiar, sobretudo, o fato de o indivíduo poder se autorizar a
sonhar com uma vida que congregue, ao mesmo tempo, estar só e estar junto pode
152

configurar-se como extremamente ambíguo. No entanto, essas duas opções podem


funcionar em um jogo de ir-e-vir, no qual o membro da família pode definir,
escolher ou hierarquizar o que lhe é mais conveniente. Se for mais apropriado ser
“filho de”, ou “pais de” em um contexto, em outro, pode ser mais eficaz ser
“companheiro de”, “parceiro de”. De toda forma, existe uma tensão constante.
Poder estabelecer qual é a dimensão desejável, para um determinado contexto,
parece ser a meta e tal meta é conquistada no convívio, sem dúvida alguma. A
vida cotidiana pode traduzir as diferentes formas de engajamento, priorizadas ou
“hierarquizadas”, segundo o vocabulário de Singly (2007), pela dimensão
interacional. Assim, a possibilidade de objetivar a vida cotidiana se afirma como
um recurso valioso de apreensão das intersubjetividades.
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5
Estudo de campo

5.1
Metodologia

Nesse item, apresentaremos considerações sobre alguns instrumentos de


investigação de ordem qualitativa. A partir de uma pesquisa bibliográfica sobre
esse tipo de metodologia, alguns instrumentos de pesquisa foram previamente
estipulados e identificados como adequados aos objetivos desta tese. Tais
instrumentos e seus potenciais articulatórios com este texto serão abaixo
explorados, em seus aportes de recursos teóricos.
Em função das características de nosso objeto de estudo, a convivência
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entre pais e filhos adultos na esfera cotidiana, julgamos que seria fundamental
encontrar pistas e subsídios que nos habilitassem a melhor compreender essa
convivência em seu locus de ação, o ambiente doméstico. Acreditando que essas
pistas, por suas características simples, concretas e banais, facilitariam o acesso a
uma fala mais profunda dos pais e dos filhos a respeito de suas interações no
espaço familiar, bem como, sobre os ajustes cotidianos mobilizados em prol de
uma convivência mais confortável para todos, nos empenhamos em uma busca
interdisciplinar de instrumentos metodológicos.
Assim, a idéia de ampliar nosso campo de instrumentos de pesquisa
baseou-se na demanda de uma abordagem mais eficaz, tanto no que concerne à
formulação dos roteiros de entrevistas e todo o planejamento teórico e prático
subjacente a elas, quanto na condução da análise do material obtido nas mesmas.
Esse procedimento estabeleceria o status de uma coerência teórica em nosso
trabalho, desde as pressuposições iniciais, até os momentos finais da investigação.
Para tanto, encontramos na Sociologia Compreensiva métodos de entrevista e de
análise de dados que corresponderiam às expectativas deste estudo.
De acordo com Kauffmann (2007), a entrevista compreensiva consiste em
um cruzamento de influências diversas se constituindo como um instrumento
específico e com uma forte consistência interna. Ela deriva de diversas técnicas de
154

pesquisas qualitativas e empíricas e, principalmente, tem como raízes as técnicas


etnológicas de trabalho de campo com informantes. Sendo que difere da última,
por se concentrar mais especificamente na palavra, que é recolhida diretamente do
contexto em questão. A metodologia de pesquisa da Sociologia Compreensiva
tem como interesse maior a linguagem ordinária do indivíduo, suas frases banais e
as palavras mais simples.
O indivíduo é moldado pela sociedade de sua época e traz em si,
estruturado de uma forma particular, todo o sistema social de seu tempo, segundo
Kauffmann (2007). Esse indivíduo incorpora fragmentos de idéias, imagens,
modelos, expressões, entre outros, “sem os digerir e os expressa em estado bruto,
tal qual os assimila.” (p.95) Assim, a linguagem do dia-a-dia pode esclarecer a
respeito do trabalho do social no indivíduo, ou seja, informa a maneira como ele
incorporou as normas sociais.
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Consideramos, dessa forma, que a expressão do banal na linguagem do


dia-a-dia pode desnudar esse indivíduo e trazer em estado bruto a noção das
convenções sociais que o marcaram. Ao lado disso, acreditamos que, ao mesmo
tempo, essas palavras usuais podem ser reveladoras de sua potência criativa, de
sua capacidade de subjetivação, de criar-se e recriar-se, em seu devir permanente.
Lembramos que Giddens (1992) institui um elo entre o psicológico e o
social, ao afirmar que a mãe, já em seus primeiros momentos com o bebê,
transmite-lhe sua cultura. A partir desse elo, estabelecemos uma conexão entre
esse autor e a perspectiva winnicottiana, pois essa última, ao concentrar-se na
dimensão do psicológico, nos fornece a base da constituição da subjetividade.
Esse bebê, então, sob a ótica de Winnicott, incorpora a mãe e todo o ambiente que
o cerca, em sua fase de não-integração, e, se as circunstâncias são favoráveis,
posteriormente torna-se capaz de iniciar o processo de integração e constituir-se
como sujeito.
Nessa medida, o objetivo do pesquisador é fazer o entrevistado falar o
máximo possível e o mais profundamente possível. O informante sucumbe à
armadilha de suas próprias palavras, pois, ao falar sobre algo, fala de si. Ao
engajar-se em um assunto, coloca em certa ordem as suas palavras, criando, dessa
forma, uma nova realidade e sendo assim, a sua narrativa ganha novas proporções.
Kauffmann (2007) assevera que é mais fácil falar de si pela via do concreto e das
155

atividades cotidianas, pois são vias que, através da linguagem ordinária e habitual,
permitem ao entrevistado uma narrativa mais livre, menos abstrata e generalista e,
ao pesquisador, uma possibilidade maior de aprofundamento.
Para iniciar o percurso da metodologia compreensiva, de acordo com esse
autor, é preciso definir uma questão de partida para a entrevista. Essa definição,
ancorada em reflexões sobre o tema e por um vasto conhecimento do campo a ser
investigado, permite deflagrar todo o processo de construção do objeto a ser
analisado, desde os primeiros instantes da pesquisa. O roteiro de entrevista deve
ser flexível e simples, de forma a incentivar a fala em torno do tema. Questões
precisas e concretas devem ser propostas, objetivando evitar respostas generalistas
e abstratas da parte do informante, que poderiam dificultar o aprofundamento da
narração.
A perspectiva compreensiva, conforme Kauffmann, estabelece que o
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campo, o terrain, vai nos fornecer o corpo e o volume da teoria. Os princípios do


percurso da metodologia compreensiva “não são mais que a formalização de um
savoir-faire pessoal oriundo do campo.” (p. 11) O campo não é visto como uma
instância de verificação de uma problemática pré-estabelecida, mas o ponto de
partida da própria problematização. Sendo assim, tais bases conceituais propõem
o inverso de outras metodologias. Este autor afirma que em uma entrevista
compreensiva, o entrevistador deve engajar-se, ter uma conduta mais ativa e partir
do princípio de que a empatia permite a entrada no mundo do entrevistado.
Considerando a obra de Bardin (1977) como um clássico da análise de
conteúdo em pesquisas em ciências humanas, concordamos com Kauffmann
quando este diz que o processo da metodologia compreensiva inverte a ordem da
planificação de pesquisa. Essa inversão se dá em razão deste instrumento se
propor a construir o objeto e o corpo teórico da pesquisa no momento da análise
do material recolhido nas entrevistas, ou seja, no momento final. Os momentos
iniciais da elaboração da pesquisa seriam flexíveis e concebidos espontaneamente,
calcados em um grande conhecimento, da parte do pesquisador e do campo a ser
estudado.
Bardin afirma que a organização da análise qualitativa se baseia,
primeiramente, em uma pré-análise. Na pré-análise, segundo esta autora, é
estabelecido um plano de análise preciso e com três missões diferentes. A
156

primeira consiste na escolha de documentos ou em uma leitura flutuante sobre o


tema, que seria um aprofundamento paulatino de informações, uma imersão em
impressões iniciais, que progrediriam em função das hipóteses emergentes. Em
um segundo momento ocorre a formulação de hipóteses e objetivos e em um
terceiro, a elaboração dos indicadores sobre os quais se apoiará a interpretação
final.
Observamos que as proposições de Bardin são amplas e abertas a
adaptações, em função dos objetivos das pesquisas.

De fato, as hipóteses não são sempre estabelecidas na pré-análise. Não é


obrigatório ter um corpo de hipóteses como guia para proceder a análise.
Algumas análises se fazem ‘às cegas’, sem idéias pré-concebidas. (Bardin, 1977,
p. 97)

A partir desta afirmação, entendemos que Bardin e Kauffmann possam ter


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alguns pontos de vista em comum.


Blanchet e Gotman (2007) sugerem que a elaboração de um roteiro de
entrevistas é o primeiro passo da transformação das hipóteses de pesquisa em
indicadores concretos. O plano de entrevista seria, então, a interface do trabalho
de conceitualização da pesquisa com o campo. Os autores indicam que a execução
de uma entrevista exploratória é importante nesse processo, pois a questão de
partida colocada ao entrevistado permitirá precisar os operadores e os indicadores
mais adequados para a elaboração do roteiro. E ainda sublinham que esse tipo de
entrevista, pouco estruturada, visa desempenhar um primeiro confronto de
sentidos entre o entrevistador e o entrevistado, uma familiarização com o
vocabulário e os códigos verbais. Essa etapa de experimentação de entrevista
contém dois elementos: uma instrução inicial e a pré-figuração de eixos temáticos.
Esse tipo de entrevista supõe a constituição de uma instrução inicial
definidora do tema a ser colocado ao entrevistado, a consigne initiale.

A ‘consigne initiale’ inaugura toda a entrevista da pesquisa, ela deve ser clara,
não-contraditória com o contrato inicial e mais precisa do que este último, quanto
ao objeto de demanda. Essa instrução inaugural dá ao entrevistado o contexto
temático e a lógica da entrevista. (Blanchet e Gotman, 2007, p. 78)
157

Após esse procedimento, são estabelecidas as séries de temas a serem


explorados ao longo da entrevista, ou seja, os eixos temáticos. Esses eixos
desdobram-se em operadores e em indicadores, e esses últimos seriam os fatos
concretos, as pistas a serem utilizadas.
No domínio da análise do material das entrevistas, Blanchet e Gotman
(2007) ponderam que a entrevista não fala por si mesma e, portanto, é preciso
efetuar uma operação essencial denominada análise de discurso, entendendo essa
análise como “uma produção de um locutor em toda a situação de interlocução.”
(p. 89) Os autores fazem a distinção entre a análise de discurso e a análise de
conteúdo: esta última seria um sub-conjunto da primeira. Sendo assim,
sublinhamos a definição dos autores que melhor se encaixa nos propósitos de
nossa pesquisa:

A análise de discurso concerne à análise de todos os componentes da linguagem e


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recobre essencialmente, dois tipos de abordagens: de uma parte as análises


lingüísticas que estudam e comparam as estruturas formais da linguagem; e de
outra parte, as análises de conteúdo que estudam e comparam o sentido dos
discursos, com o objetivo de estabelecer os sistemas de representações veiculados
por estes discursos. (Blanchet e Gotman, 2007, p. 89)

De acordo com esses autores, a análise de conteúdo é a mais utilizada em


pesquisas nos campos da Sociologia e da Psicologia Social. Seguindo uma
hierarquia formal, o primeiro passo da análise de conteúdo é o procedimento de
análise de entrevista por entrevista. Cada entrevista é confrontada com a lógica
referencial descrita pelas hipóteses de partida. Nesse ponto, fragmentos do
discurso, portadores de significado, são delimitados como unidades de decupagem
que os representam. Este modo de decupagem varia de entrevista para entrevista.
Em seqüência, os temas são identificados e é construída uma grade de análise
temática. Essa grade de análise, como o roteiro de entrevista, deve ser
hierarquizada em temas principais e em temas secundários, que serão os
instrumentos de produção dos resultados.
Análise de conteúdo é um termo que Kauffmann (2007) prefere evitar em
seu aporte metodológico, substituindo-o pela noção de construção do objeto. Essa
abordagem, de acordo com o autor, exige um savoir-faire do pesquisador e uma
boa capacidade analítica e reflexiva, de acordo com o autor, pois ela se baseia em
158

um ir e vir entre fatos e hipóteses, sendo que essas últimas se reformulam


continuamente, até que o objeto possa aparecer como construído.
Ao invés da utilização de grades temáticas para a análise do material, o
autor propõe várias escutas das fitas gravadas, antes de transformá-las em texto. A
respeito disso, Kauffmann afirma: “a escuta oral é bem mais viva, permite um
acesso mais direto à emoção e um mergulho mais profundo na história de vida (...)
“É assim que são amalgamadas as categorias conceituais da pesquisa...” (p.7-8) A
proposta é a de que o objeto vai sendo construído aos poucos nesse ir e vir entre
hipóteses e dados.
Para organizar o material, o autor propõe a execução de fichas, para cada
entrevista uma ficha, na qual ele privilegia uma ou algumas frases recolhidas na
fase de escuta. Cada uma dessas fichas é dividida em duas partes: além das frases
que chamaram sua atenção e que ele sugere que se situem na parte superior,
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Kauffmann tece comentários e interpretações na parte inferior, separada por um


traço. Na organização dessas fichas, observamos um mecanismo de inversão
teórica: o autor inverte a ordem clássica, em um primeiro plano encontra-se o
material, a frase, depois, a hipótese reformulada. Dessa forma, a hierarquia de
procedimentos é rompida, para que a história contada possa ser continuamente
reformulada e religada aos fatos.
Assim como Kauffmann (2007), Blanchet e Gotman (2007), Ramos
desenvolve pesquisas baseadas na perspectiva compreensiva. Destacamos, pela
afinidade com o nosso tema, a sua pesquisa (Ramos, 2002) sobre a coabitação
intergeracional, vivida entre pais e filhos adultos. Para construir seu objeto de
investigação, a autora baseou-se na análise de 50 entrevistas, por ela denominadas
de semi-diretivas15. Desenvolveu sua pesquisa no universo de estudantes com
idades entre 19 e 27 anos, residentes na casa dos pais, de onde nunca haviam
saído para viver em outro local. Esses entrevistados viviam em Paris ou na área
metropolitana de Paris, e pertenciam a uma classe social relativamente
homogênea. Ramos estabeleceu como questão de partida para a referida pesquisa,
a indagação sobre a maneira como o jovem adulto constrói a sua casa na casa dos
pais e como se define nessa relação entre a dependência e o desejo de autonomia.
15
Kauffmann (2007) também denomina dessa forma as suas entrevistas, ao contrário de Blanchet e
Gotman (2007), que as designam como pouco estruturadas. Portanto, dentro do campo de
orientação compreensiva, encontramos variações.
159

Ramos, da mesma forma que Kauffmann, relata que suas hipóteses


nasceram com a escuta e a leitura das entrevistas e o corpo da pesquisa
transformou-se em objeto teórico, ao término do processo de análise. E, também
como o segundo reitera que essa abordagem supõe um savoir-faire do
pesquisador, calcado em uma prática de trabalho que leva em conta o constante
vai-e-vem entre fatos e hipóteses. Este movimento contínuo propicia a
reformulação das hipóteses de partida e a construção final do objeto.
Refletindo sobre as visões metodológicas expostas nestas apreciações,
acreditamos poder edificar pontes suficientes para a construção de nosso objeto de
investigação, progressivamente, até o fim desta jornada.

5.2
Sujeitos
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Para atingir nossos objetivos, estabelecemos como sujeitos da pesquisa famílias


dos estratos sociais médio e médio alto, residentes no Rio de Janeiro, cujos
membros a serem entrevistados, pais e filhos adultos, sejam coabitantes. Como
critério de características individuais dos participantes, optamos por definir a
priori somente o perfil dos filhos adultos. Eles deveriam ser solteiros, graduados
em nível universitário, estar trabalhando e ter idade superior a 26 anos. Nossos
sujeitos são 8 famílias, compostas por 7 mães, 1 pai, 4 filhos e 4 filhas.
Nossos entrevistados compõem uma amostra não-probabilística de
conveniência, o que faz com que os dados colhidos não possam ser generalizados
para a totalidade da população, sobre a qual incide o tema da pesquisa.
Acrescentamos que, em virtude do tamanho e da natureza da amostra, a pesquisa
pretende ser exploratória, e os dados colhidos serão representativos de um
pequeno segmento de nosso objeto de estudo.
As famílias foram selecionadas a partir do perfil dos filhos, como já dito, e
através de indicações geradas pelos próprios entrevistados, snowball sampling.
160

5.3
Coleta de dados

Como instrumento de pesquisa, adotaremos o conceito de entrevista semi-diretiva,


elaborada de acordo com as proposições de Kauffmann (2007) e Ramos (2002),
isto é, com a participação ativa do pesquisador, de forma livre e descontraída, de
modo a permitir que a empatia abra as portas do mundo dos entrevistados. Quanto
à afinidade com o campo de estudos, apregoada por esses autores, reiteramos que
a presente investigação iniciou-se no ano de 1998, prosseguindo até os dias atuais
de forma ininterrupta. Ao lado disso, a nossa experiência na clínica com família
de adultos permite-nos olhar para essa relação com “familiaridade”.
Quanto ao plano de entrevista, seguiremos as orientações de Blanchet e
Gotman (2007), que afirmam ser o mesmo, a interface do trabalho de
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conceitualização da pesquisa com o campo. Dessa forma, para elaborar um roteiro


adequado aos objetivos da pesquisa, executamos as entrevistas exploratórias. A
questão de partida16 colocada aos entrevistados tornou mais precisos os
operadores e os indicadores para a elaboração do roteiro final. Esse tipo de
entrevista visou desempenhar um primeiro confronto de sentidos entre o
entrevistador e os entrevistados, proporcionando uma familiarização com seu
vocabulário e seus códigos verbais.
Sendo assim, realizamos seis entrevistas exploratórias, com duas famílias
franco-brasileiras, escolhidas de acordo com os objetivos da pesquisa, ou seja,
pais e filhos adultos coabitantes. As entrevistas foram realizadas na cidade de
Paris. Em um primeiro momento foi entrevistada, separadamente, a mãe e, após, o
filho. Em uma segunda etapa, foi construído um novo roteiro de entrevistas,
baseado nos temas repetitivos e ou contraditórios das duas anteriores e
apresentado à mãe e ao filho em conjunto.
O objetivo da realização dessa segunda etapa foi o de introduzir os temas
através dos indicadores e estimular a fala interativa entre mãe e filho. Esses temas
foram obtidos através da análise da cada um dos discursos dos entrevistados,
assim como foram eles comparados entre si, em um procedimento intertextual.
Com a posse desses temas de análise, construímos um novo roteiro e, em

16
Anexo 1
161

consequência, cada uma das famílias entrevistadas se deparou com um roteiro


diferenciado e original, calcado em sua própria narrativa.
Dessa forma, utilizando o procedimento de uma entrevista interativa,
acreditamos poder melhor compreender essas narrações, observando as
singularidades, as possíveis afirmações ou contradições que poderão se repetir em
outros contextos familiares e, sobretudo, abordar e estimular os sentimentos
advindos das repercussões da fala de um ao outro. Essa justaposição de falas,
possível em função da situação interativa, nos abrirá um caminho reflexivo mais
coerente com o nosso objetivo de investigar a relação entre pais e filhos adultos
coabitantes, uma interação que é vivida no ambiente doméstico familiar.
A execução das entrevistas exploratórias nos apontou a eficácia de alguns
indicadores e a insuficiência de outros. Nesse ponto, entendemos que a
singularidade de cada família possa determinar que um mesmo indicador seja útil
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para uma e impróprio para outra. Isso não impede que todos os indicadores
possam ser mencionados, o seu aprofundamento e rastreamento é que vai
depender da repercussão obtida e da intuição do entrevistador.
Ainda constatamos que diante de uma pergunta mais aberta ou mais
abstrata, a tendência é a de obtermos uma resposta mais concisa e generalista. Ao
passo que, quando um indicador concreto é colocado, as respostas tendem a ser
mais objetivas, detalhadas, suscetíveis ao aprofundamento desejado e a liberarem
expressões de sentimentos concomitantes.
Também, observamos que as entrevistas com as mães, sempre as
primeiras, foram menos ricas em material e aprofundamento dos indicadores que a
dos filhos, que as sucediam. Entendemos que na entrevista com os jovens adultos
já dispúnhamos de alguma familiaridade com os códigos da família, como
também já conhecíamos a potencialidade de alguns temas a serem explorados.
Após algumas reflexões sobre a ordem das entrevistas, concluímos que a segunda,
sempre, portaria uma virtualidade de aprofundamento maior em relação à anterior.
A troca na seqüência não significaria uma mudança dessa realidade e, no entanto,
inferimos que a alternância dessas etapas poderia melhor calibrar a nossa atuação
como entrevistador.
A partir dessa experiência exploratória, os indicadores da pesquisa da tese
foram definidos da seguinte forma: 1) A lista de compras; 2) Refeições durante a
162

semana; 3) Refeições no fim de semana; 4) O pagamento das contas da casa; 5)


Presença dos namorados/as na casa; 6) O quarto do filho(a) e a sala da casa. Estes
são os elementos concretos que, como sustenta a orientação compreensiva,
possibilitarão a compreensão de como o indivíduo dá sentido às suas ações, às
suas relações e a forma como vivem essas relações. Acrescentamos a esse rol de
possibilidades a manifestação de sentimentos vividos na interação, que no nosso
entender se integram, se amalgamam, a essas ações cotidianas. Dessa forma, será
possível expor as diversas versões para um mesmo fato ou atitude, algumas delas
contraditórias entre si e, entretanto, todas dotadas de verdades parciais.
A pesquisa abarcou um universo de oito famílias, em entrevistas gravadas
com a permissão dos entrevistados, perfazendo um total de 24 entrevistas e cerca
de 32 horas de gravação. As entrevistas foram realizadas em diferentes locais,
previamente escolhidos pelos entrevistados, que variaram desde a residência das
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famílias, ou a seus espaços de trabalho, até locais como restaurantes e cafés –


estes últimos, selecionados pelos nossos falantes em razão de suas rotinas de
trabalho. Os depoimentos foram colhidos em três momentos diferenciados para
cada uma das famílias. Foi realizado um encontro com um representante do casal
parental, ou seja, entrevistamos ou o pai ou a mãe; depois ouvimos o filho ou a
filha – não necessariamente nessa ordem – e, finalmente, ocorreu a entrevista
interativa entre o pai ou a mãe e o filho ou a filha.
Todo o material em áudio dos entrevistados foi submetido a uma escuta
atenta e transcrito na íntegra pela entrevistadora, lido e relido diversas vezes. A
análise dos dados das entrevistas dividiu-se em dois momentos. No primeiro,
foram analisados os textos provenientes das entrevistas individuais, identificados
os fragmentos de discursos portadores de significado e, em seqüência, foram
constituídos os temas iniciais. Após esse procedimento, foi construído o roteiro da
entrevista interativa.
O segundo momento da análise de dados diz respeito ao exame do texto
interativo, no qual foram demarcados os fragmentos de discursos significativos
que deram origem aos temas de análise. Em seguida, procedemos ao cruzamento
desses temas entre todos os textos interativos e, a partir dessa ação, chegamos aos
temas principais de análise, que se desdobraram em subtemas. Esse conjunto de
163

temas passou pelo processo progressivo de vai-e-vem entre si, reformulando-se e


norteando-nos na busca da construção de nosso objeto de investigação.

5.4
Apresentação das famílias17

Famílias Pai Mãe Filho(a)

A Alice 55 anos, divorciada, Amanda 29 anos,


administradora, dona de jornalista
casa
B Berenice 59 anos, Breno 30 anos,
divorciada, economista advogado, funcionário
público
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C Carlos 58 anos, Cláudia 59 anos, Caio 29 anos, médico


economista psicóloga, dona de casa
D Denis 54 anos, Doris 51 anos, analista de Diana 26 anos,
engenheiro sistemas engenheira
E Elton 60 anos, Eva 60 anos, professora Elisa 32 anos, psicóloga
administrador aposentada
F Frederico 58 anos, Flávia 56 anos, Filipe 30 anos,
engenheiro professora, dona de casa comunicação, produção
cultural
G Gilberto 59 anos, Gilda 61 anos, engenheira Gabriela 31 anos,
engenheiro publicitária, professora
de inglês
H Helena 59 anos, Henrique 30 anos,
divorciada, médica, Advogado, funcionário
aposentada público

Diante da decisão de entrevistarmos somente um representante do casal


parental, defrontamo-nos com o fato da presença esmagadora de mães em nosso
conjunto de entrevistados, o que reforça a visão do lugar ocupado por elas na
estrutura familiar brasileira de estrato social médio e médio alto. Parece notório
que elas estejam sempre à frente e disponíveis para tratar de assuntos referentes a
seus filhos. Somente um pai explicitou a intenção de participar da pesquisa. Dessa
17
Os nomes em negrito referem-se aos membros da família entrevistados
164

forma, nossa investigação contou com sete mães, um pai, quatro filhos e quatro
filhas, todos coabitantes.
A família A é composta por Alice, mãe, 55 anos, administradora de
formação e dona de casa há 11 anos. Divorciada há 27 anos do primeiro
casamento com o pai de Amanda e recasada há 14 anos com Antônio, 58 anos,
médico, divorciado. Amanda, 29 anos, filha única de Alice, é solteira, jornalista,
trabalha em uma grande empresa nacional e namora há 3 anos André, 30 anos,
solteiro, advogado, que mora com a mãe.
A família B é constituída por Berenice, mãe, 59 anos, economista
aposentada, trabalha como assistente financeiro de uma confecção de roupas
femininas. Divorciada há 12 anos, Berenice é mãe de três filhos com o ex-marido:
as duas filhas mais velhas já saíram de casa e moram com seus companheiros.
Breno reside com Berenice, tem 30 anos, é solteiro, advogado e funcionário
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público federal e namora Bianca há 1 ano.


A família C conta com Cláudia, 59 anos, psicóloga de formação (nunca
exerceu a profissão) casada com Carlos há 34 anos. Este é economista, tem 58
anos e trabalha em uma empresa multinacional. O casal tem três filhos, Carlos Jr.
e Cristiano, gêmeos, os quais moram sozinhos desde que retornaram ao país, após
um período de estudos de pós-graduação no exterior, além de Caio, o filho mais
novo, que tem 29 anos, é médico residente e mora com os pais.
A família D é formada por Denis, Doris, Diana e Daniel. Denis é
engenheiro civil, trabalha em sua própria empresa, tem 54 anos e é casado com
Doris há 28 anos. Doris, 51 anos, é analista de sistemas e trabalha em uma
empresa estatal. Daniel é o filho mais novo do casal, solteiro, tem 23 anos e mora
no exterior, onde termina sua graduação universitária; ele visita a família duas
vezes por ano, durante as férias escolares. Diana tem 26 anos, é solteira,
engenheira, trabalha como consultora do mercado financeiro em um banco de
investimentos e, atualmente, está sem namorado. Morou sozinha durante seis
meses no exterior, período de uma pós-graduação, e reside com os pais no
momento.
Na família E, todos os membros são coabitantes. Elton, pai, 60 anos,
administrador de formação e funcionário público estadual. Eva, mãe, 60 anos,
professora de literatura aposentada, dá aulas de português duas vezes por semana
165

em um curso de línguas. Elisa, a filha mais velha do casal, tem 32 anos, é


psicóloga, trabalha em consultório clínico próprio e dá aulas de psicopedagogia
em uma faculdade da rede de ensino privada. Eduardo tem 28 anos, é museólogo,
faz uma nova graduação em Ciências Contábeis e é estagiário de uma pequena
empresa.
A família F é constituída por Frederico, pai, 58 anos, engenheiro, trabalha
em uma empresa estatal e é casado com Flávia há 34 anos. Flávia, 56 anos,
professora de português de formação, trabalhou como tradutora e, atualmente, é
dona de casa. O casal tem dois filhos: Fabrício, 31 anos, advogado, mora com a
namorada há 1 ano e Filipe, 30 anos, graduado em Comunicação Social, trabalha
como produtor cultural, mora com os pais e, no momento, não tem namorada.
Na família G, Gilberto, Gilda e Gabriela residem juntos e Giovana saiu de
casa recentemente para casar. Gilberto, pai, 59 anos, engenheiro civil e Gilda,
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mãe, 61 anos, engenheira civil são casados há 36 anos e trabalham juntos em uma
empresa própria. Gabriela, a filha mais velha, solteira, 31 anos, é formada em
publicidade e, atualmente, dá aulas de inglês em um curso de línguas, além de
estudar para um concurso público que deverá ocorrer no final de 2008. Gabriela
saiu de casa há 3 anos para morar sozinha: entretanto, foi demitida do emprego e
voltou para a casa dos pais a fim de reformular sua vida profissional. Giovana, a
outra filha, é casada, tem 29 anos e é arquiteta.
Finalmente, apresentamos a família H, composta por Helena, Heloísa e
Henrique. Helena, a mãe, tem 59 anos, é médica, aposentada recentemente e
divorciada há 21 anos do pai de seus filhos. Heloísa, a filha mais velha, é solteira,
tem 31 anos, graduou-se em Comunicação Social, não trabalha no momento e
estuda para um concurso público. Henrique, 30 anos, advogado, é funcionário
público estadual e não tem namorada.
À guisa de conclusão desse subitem, teceremos comentários breves e mais
gerais acerca das famílias entrevistadas. Dentre as oito famílias entrevistadas,
somente a D e a H contam com uma empregada doméstica, que executa todos os
serviços da casa ao longo de todos os dias da semana. As outras recorrem aos
serviços de diaristas, que trabalham em suas casas duas vezes por semana, em
média.
166

A única família intacta, com o formato original, é a família E. A família A


é a única na qual houve recasamento. Nas famílias B e H houve divórcio dos pais
e, no entanto, as mães não recasaram. As famílias que mantêm o subsistema dos
filhos intacto são a A, a E e a H, as outras já viveram a saída de outros filhos.
As famílias D e G têm a experiência da saída temporária dos filhos, a D
para estudos no exterior e com possibilidade de retorno: a G, diferentemente, foi
uma saída negociada entre pais e filha: esta já era independente financeiramente e
objetivava conquistas pessoais.
A única representante dos filhos em situação de dependência financeira
relativa dos pais é Gabriela. Esta refere-se ao trabalho como professora de inglês
em meio período como apenas uma forma de não precisar de fato da ajuda
financeira deles. No entanto, precisa do suporte dos pais para a compra de alguns
livros importados, necessários à sua preparação para as provas do concurso
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público e para os deslocamentos a Brasília, também em função das provas.


Todos os pais trabalham, nenhum optou pela aposentadoria até o
momento. Por outro lado, dentre as mães aposentadas, somente Berenice trabalha
regularmente com emprego fixo. Eva, professora aposentada, dá aulas
eventualmente e não conta com uma fonte de renda regular proveniente desse
trabalho. Já Helena, de acordo com seu relato, vive a depressão da aposentadoria
recente, declara estar dividida diante da possibilidade de conseguir um emprego
alternativo ou adaptar-se às perdas financeiras da aposentadoria. Alice e Cláudia
são donas de casa assumidas e parecem gostar de serem chamadas de coronel pela
família. Já Flávia aponta que gostaria de se aposentar das funções ligadas às
tarefas de casa, embora encontre dificuldades, tanto pela falta de apoio do marido
e do filho, quanto pelas atitudes contraditórias que fazem parte de seu discurso.
No universo dos filhos, a questão do trabalho atual que realizam se mostra
bastante variável. No caso de Amanda e Henrique, estes o vêem como objeto de
frustração, no caso da primeira, e de acomodação, no do segundo. Ambos
trabalham em condições de estabilidade e, no entanto, não se sentem satisfeitos
com o que produzem. Para Breno, Caio, Elisa e Filipe, suas carreiras e trabalhos
fluem de forma satisfatória, e encaram a “batalha” por dias melhores. Diana lida
com a instabilidade do mercado financeiro, tem receio de assumir compromissos
que envolvam despesas a longo prazo, apesar de ter um ótimo salário, de acordo
167

com sua narração. Gabriela dedica-se com muito empenho aos preparativos de
uma nova carreira e reclama da tensão e da competição dos ambientes ligados ao
concurso: ao lado disso, ressalta a expectativa dos pais em relação ao seu futuro
profissional como fonte de estresse.

5.5
Análise das entrevistas

Dos discursos dos entrevistados emergiram os seguintes temas para análise e


discussão: ajustes cotidianos na convivência, o jogo interativo, duas lógicas em
ação e o sentido de ser família.

5.5.1
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Ajustes cotidianos na convivência

Nas famílias por nós entrevistadas, observamos que as regras parentais são, de
uma forma mais ampla, reformuladas constantemente em razão das demandas de
cada uma das gerações. São reatualizações necessárias para o prosseguimento da
vida em família. Os pais, de início, instituem as ordens relativas ao espaço físico
de convivência, assim como o fazem em relação ao tempo, ou seja, o ritmo de
vida dos membros da família, o controle sobre as saídas dos filhos, etc. Cada
família dispõe de suas próprias estratégias de manutenção dessas ordens: em
geral, o apelo a essas disposições é desempenhado pelos pais, podendo, no
entanto, ser também evocado por avós, empregados, filhos com funções parentais
e ainda outros. Esses apelos à ordem podem variar de simples lembranças
anunciadas oralmente, bilhetes, e-mails, ou podem adquirir um status de cobrança,
ou, ainda, repreensões com forte tendência ao atrito e ao conflito. 18
As normas domésticas aparecem como regras parentais, mas são,
sobretudo, instituídas pelas mães. Sendo assim, a ordem de organização da vida
cotidiana que impera na casa é a ordem materna. As normas iniciais são tomadas

18
O uso dos termos atrito e conflito, nesse momento do texto, baseia-se nas visões dos mesmos
pelos nossos entrevistados. Atrito é percebido como uma divergência natural na relação, quando há
discordância; conflito é entendido como uma ausência de consenso mais séria, um
desentendimento.
168

como referência imperativa na convivência e incluem em sua noção, a idéia do


oposto, ou seja, a desordem. A partir da desordem são fixadas as normas de
utilização dos espaços comuns e pessoais da casa, baseadas na noção de ordem da
mãe. Essas ordens iniciais da mãe, quando são endossadas pelo pai, se mostram
como regras com forte capacidade de serem obedecidas e cumpridas pelos filhos.
Acrescentamos que, no caso do prolongamento da convivência familiar,
deparamos com uma coabitação baseada em contatos mais reduzidos entre pais e
filhos. Em nossa pesquisa, todos os filhos entrevistados trabalham a saber: saem
de manhã e retornam à noite. Portanto o tempo é uma dimensão importante nesta
análise.
Esse primeiro tema desdobrou-se nos seguintes subtemas: as regras que
são cumpridas; rupturas e elasticidade das regras; acordos, negociações e
reformulações.
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. As regras que são cumpridas

“Aqui tem uma espécie de lei, a gente avisa um para o outro quando sai e dá uma
idéia da hora em que vai voltar, todos fazemos isso ... Outra coisa é se for fazer
alguma coisa na cozinha tem que lavar o que usou e não deixar nada sujo na pia
para lavar depois.” (Flávia)

“Por exemplo, ninguém deixa prato sujo na mesa, não precisa lavar porque tem a
máquina, mas tem que deixar dentro da pia, e as toalhas de banho todos estendem
na área de serviço.” (Cláudia)

O apelo à ordem é, portanto, uma constante afirmação do poder dos pais


sobre os espaços da casa. Ele funciona como uma tentativa de conservar os
lugares coletivos, de validá-los como um direito de todos, mas, também, como
uma reafirmação da ordem parental sobre esses espaços.

“Ela é organizada, eu também sou assim, então é tranqüilo, eu procuro me


lembrar sempre das coisas, por exemplo, tomo o meu café, leio o jornal e deixo
ele direitinho do jeito que ela gosta.” (Breno)

O jeito de dobrar o jornal é apontado por Breno como uma exigência da


mãe, embora não tenha a lembrança de ter ouvido essa imposição da parte dela.
Berenice, da mesma maneira, não identifica essa origem e inclusive tece um
169

comentário a esse respeito, de que “tem coisas que não precisam ser faladas, o
importante é que a gente se lembra do outro.” Existe uma paisagem relacional
plena de silêncios, pausas e noções claras do que deve ser feito. São as regras da
interação (Kauffmann, 1992), que se estruturam nas trocas e se reforçam na rotina.

“Eu vejo na casa dos meus amigos coisas como: cheguei e não tinha nada para
comer, porque alguém comeu... aqui existe um respeito a isso, há um respeito
natural quanto a isso, a gente pergunta sempre se pode comer, se falta alguém
para comer.” (Elisa)

Para Elisa, essa ordem se tornou “natural”: ela a sublinha como o direito
de todos à igualdade de tratamento na convivência. É uma regra inquestionável,
um imperativo familiar, que funciona entre os irmãos mesmo na ausência dos
pais. Eva, sua mãe, aponta: “Não sei dizer como começou isso, é difícil dizer.”
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Também, para a dupla Flávia e Filipe aparece uma não consciência em relação à
regra básica de avisar um ao outro que vão sair e dar uma idéia da hora que vão
voltar. Diante da indagação de como combinaram isso, disseram: “Foi sempre
assim”.
Acreditamos que a dificuldade em responder a uma pergunta referente à
origem desse comportamento se deva ao trabalho da rotinização nas interações
entre esses membros da família. As palavras e os comportamentos parecem
constituir um terreno relacional, inscrito na repetição do dia-a-dia. Esse fato,
segundo Berger e Luckmann (1966), se deve à internalização primária da
realidade.
Essa internalização requer uma manutenção constante ao longo da vida
cotidiana. Manutenção que se sustenta na rotina da vida de todos os dias e é
mantida na consciência pelas narrativas, dentro e fora do ambiente familiar. Ela é
reafirmada constantemente na interação com o outro, sobretudo com o outro
significativo, ou seja, os pais. E a forma mais importante de manutenção da
realidade é a conversação: por meio dela a realidade é mantida, modificada e
reconstruída.
Na presença dos pais, Filipe cumpre a norma de lavar a louça. Entretanto,
quando os pais viajam, ele cria suas próprias regras, junta a louça do dia na pia e
lava no dia seguinte. “Vou juntando tudo e depois lavo”. Diana raramente faz uma
170

refeição em casa, argumentando que nesses momentos os pais aproveitam para


falar de assuntos desagradáveis, de cobranças e, portanto, ela os evita. “Quando
meus pais viajam, eu peço comida no restaurante e durmo na sala até de
madrugada.” Dessa forma, extrapola os limites de seu espaço físico na casa, o
quarto, e se apossa do espaço comum, que na presença dos pais é regulado de
acordo com a ordem dos mesmos.
O afastamento dos pais permite o exercício de um ganho maior de espaço
de manobra, sem ameaçar o equilíbrio da relação. Nesse sentido, concordamos
com Ramos (2002), quando esta afirma que o filho adulto sempre está tentando
ampliar seu círculo de ação e ganhar progressivamente mais independência e
autonomia na relação, mesmo que essas ações sejam estratégias fora do âmbito
relacional de fato. Entendemos que essa experimentação de burlar as regras dos
pais seja um passo inicial para a reformulação das mesmas, para a negociação de
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novos acordos.
Por outro lado, Breno, mesmo na ausência da mãe, relata que cumpre todo
o ritual de arrumação do seu quarto: “incorporei sair e deixar tudo direitinho, faço
a minha cama e não deixo roupa jogada, gosto assim...” Essa atitude revela o peso
desse imperativo familiar, embora possamos perceber que este seja menos
rigoroso do que o seria na presença da mãe: “Se for fim de semana, deixo meio
bagunçado quando saio para a praia, mas arrumo quando volto.”
Algumas regras parecem ter uma existência virtual. Vejamos a
conversação de Elisa e Eva:

“Nunca houve uma cobrança real para se lavar a louça, foi realmente um hábito
que não se criou... Você reclama que eu não faço nada, daí eu fui fazer o pudim
diet, aí a frase foi: mas não lavou a louça... numa brincadeira eu disse que nunca
fiz nada, não é só porque eu não gosto de fazer, mas porque não vem um reforço
disso.” (Elisa)

“É verdade, a gente só comenta que não foi feito, mas nunca houve uma cobrança
mesmo...” (Eva)

“Nunca exigiram da gente fazer as coisas de cozinha ....”(Elisa)

“Eu também não era exigida da minha mãe.” (Eva)

“Meu pai meio que assumiu essa função de lavar a louça da casa.” (Elisa)

“Ele se incomoda com a louça acumulada, eu não...” (Eva)


171

As regras de convivência do cotidiano são “light” para essa dupla de mãe


e filha. As cobranças não são vistas como reais e efetivas, apenas insinuadas,
como comentários, e não há um apelo claro à ordem. No entanto, essa falta de
clareza não nos parece uma ausência de ordem e, sim, uma dificuldade real da
relação. Percebemos isso quando Elisa declara que não faz coisas na cozinha por
sentir a falta de um retorno, de um incentivo da parte da mãe. O reforço positivo e
o encorajamento para prosseguir parecem constituir o terreno dos possíveis
acordos a serem confirmados na relação, sob o ponto de vista de Elisa.
A mutualidade, a troca recíproca é esperada para um fluir interativo,
sobretudo, no universo de adultos. No entanto, estamos atentos à questão singular
que se mostra nessa relação, o desejo de parceria e de compartilhamento de Eva
em relação à filha, que esbarra na rejeição desta última no que concerne aos
serviços e à organização de suas vidas domésticas. Acreditamos que certas
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situações forjadas na infância e ancoradas nos hábitos impetrem aos filhos adultos
uma situação de pouco investimento nas tarefas domésticas.

“A única cobrança mesmo efetiva que já houve, mas que também se perdeu, foi a
de arrumar a cama... foi a única coisa que foi um esforço dela ...” (Elisa)

“Mas eu desisti, não adianta...” (Eva)

Há somente a repetição e não são esboçadas tentativas de negociação de


novas posições. A relação pode se tornar uma presa de sua própria incapacidade
de lidar com a rigidez dos padrões interacionais. Esse desengajamento é vivido
em um ambiente de ambigüidade, de falta de clareza, no qual os envolvidos se
sentem desmotivados para a busca de soluções.
Por outro lado, Elisa renomeia o controle da mãe em relação às suas saídas
noturnas como um cuidado. Dessa forma, acolhe a preocupação da mãe e esmaece
o tom reprovador de suas palavras quando chega à casa de manhã, após sair com
amigos ou com o namorado: “Não sinto como cobrança é mais um cuidado
mesmo.” O que depreendemos disso é a existência de um jogo de forças, em prol
de tentativas de convivência mais calcadas na parceria, em um nivelamento de
posições no qual a cobrança de fato parece ser inaceitável.
Acreditamos que tenha ocorrido a desconstrução da ordem original e um
novo sentido tenha surgido a partir dessa redefinição. Eva reitera: “São coisas que
172

eu faço sempre, que é isso de cuidar, eles ligam para mim também quando eu
demoro, eles se preocupam, é só para acalmar, não é controle.” Esse novo sentido
comporta uma forma de mascarar o controle, inaceitável ou rejeitável nesse
momento do ciclo vital. Reforçando isso, Minuchin (1974) nos fala de padrões
interacionais que permanecem no continuum familiar de forma rígida, “como se
fossem um piloto automático, como uma questão de acomodação mútua e de
eficácia funcional”. (p. 57) Dessa maneira, não há uma flexibilidade na interação,
necessária para a reformulação discutida.
Percebemos a dificuldade presente na voz de Flávia, quando apresenta a
Filipe seus argumentos relativos aos gastos excessivos de energia da casa.

“Acho que tem a dificuldade natural, é de adulto para adulto, é bem mais difícil
colocar as coisas ... ou a pessoa compreende ou não compreende, não tem como
provocar uma situação forçada, a pessoa tem que ter essa consciência, se não tem,
tem que esperar a hora que vai ter... vai viver se atritando? Qualquer discussão
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mais impositiva pode virar uma coisa mais séria...” (Flávia)

É bem possível que essa dificuldade em instituir uma ordem desejada


também tenha a ver com o que Giddens (1999) diz das relações norteadas pelo
igualitarismo. Essa ideologia não tolera a desigualdade de poder na relação.

Hoje, as relações não estão mais ancoradas na vida social e econômica, e sim, na
sua própria capacidade de produzir satisfação de modo recíproco; ela existe por si
mesma, e se algo vai mal entre os parceiros, este fato é suficiente para abalar a
relação. (Giddens, 1999, p. 87)

Além disso, a premissa de que os membros da família desenvolvem, ao


longo de sua convivência, um senso de “distância apropriada”, que devem manter
um do outro, nos auxilia na compreensão desse relato. Percebe-se a indefinição de
lugares na relação, o que dificulta a instauração de um jogo dinâmico de avanço e
retrocesso, que representa um terreno fértil no que tange à manutenção de uma
distância psicológica suficientemente correta, ou seja, nem muito próximos, nem
muito distantes.
Por outro lado, Diana declara, de início, que em sua casa não existem
regras. Entretanto, em outros momentos da narração interativa, encontramos
indícios que nos levam a novas versões para essa afirmação. Por exemplo, Diana
afirma que as regras da casa dependem do humor da mãe. Dessa forma, cobrar ou
173

não o cumprimento de determinada situação é decisão da última. Doris argumenta


que a filha utiliza a casa como um hotel de luxo, sai de manhã cedo e volta na
hora de dormir. Essa visão é relativizada por Diana, que diz preferir se ausentar a
ter que ouvir as reclamações da mãe. Doris contra-argumenta, ressaltando que
essas reclamações dizem respeito à falta de participação da filha no contexto da
família. “Eu dou muito valor a sentar, comer junto, conversar e a vida dela não
permite isso.” Essa é uma ordem colocada em questão pela mãe, um apelo de
troca, que diz respeito à relação das duas.
Colapinto (1991) afirma que as regras familiares se estabelecem a partir da
mutualidade desenvolvida na interação entre dois membros da família. O ajuste de
interesses, ou seja, a complementaridade vem a ser o terreno dentro do qual elas
se desenvolvem: dito de outra forma, quando um membro da família expressa um
aspecto de si próprio, provocará no outro um aspecto complementar a este,
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criando assim, uma regulação na interação. Dessa forma, o comportamento de


Diana, calcado na evitação de contato com a mãe, realça a relação de forças entre
as duas e a impede de perceber o apelo da mãe. As regras da casa, nessa medida,
seriam fluidas, em função do comprometimento da mutualidade, da incapacidade
de um equilíbrio de trocas na dimensão relacional.
Uma regra que é uma “lei”, envolvendo Alice e Amanda, é a lavagem das
peças de roupas íntimas. Alice revela que o momento no qual instituiu e
direcionou tal comportamento à Amanda, o início da adolescência, está presente
de forma bastante clara em sua lembrança. Desde então há o respeito a essa
ordem, quebrada somente por Alice quando Amanda, por distração, esquece a
peça no local de lavagem. Alice lava e diz que o faz sem o sentimento de peso do
ter que suprir a falha da filha. Aliás, Alice faz quase tudo para Amanda: “Ela é o
‘coronel’ da casa, cuida de tudo, faz tudo, é responsável por tudo, eu e o Álvaro
(padrasto), a gente demora, pensa, ela não, resolve logo.” Dessa maneira, a lei de
Alice é rompida por ela mesma.
Assim, as regras parentais gerem a coabitação e conduzem a vida
doméstica da família. Essas regras podem ser explícitas, mais ou menos explícitas
ou não-explícitas. O conhecimento das mesmas e de suas variações é uma
conquista da relação, ao longo da sua história. Os nossos entrevistados em muitos
momentos relatam: “eu sei que tenho que fazer” ou “ele ou ela sabe o que tem que
174

fazer”, o que aponta para o respeito a uma ordem que não é enunciada
explicitamente, ou o é mais ou menos explicitamente, em razão de seu
conhecimento prévio.
Quando Flávia vai para a cozinha preparar o almoço em um fim de
semana, espera que Filipe, considerado pela família um ótimo cozinheiro, se
apresente para ajudá-la.

“Acho que não preciso dizer com todas as letras, ele deveria saber, se tocar: eu
falo, mas eu tenho dúvida se falo ou se penso.” (Flávia)

“Ela fala?” (Pesquisadora)

“Para dentro (risos). Eu fico esperando, porque não sei o que fazer.” (Filipe)

Esse contexto de indefinição pode ser paralisante. Watzlawick (1967)


destaca a comunicação como um processo de interação e sublinha a importância
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das linguagens analógica e digital no contexto interacional. A tradução do


material analógico para o digital e vice-versa pode ser sempre fonte de
desacordos. Ao digitalizar, o indivíduo procede de acordo com a sua concepção da
natureza da relação, o que pode não coincidir com a do outro. A comunicação
analógica ou não-verbal tem como ponto central, segundo o autor, o aspecto de
acentuar e definir a natureza da relação. Nesse sentido, a conversação de Flávia e
Filipe aponta para um campo de injunções contraditórias que acentuam o terreno
de ambigüidades, do “não saber o que fazer” e o “não saber se falou ou pensou”.
Nessa medida, as incoerências, as mudanças bruscas de assunto, as
tangencializações, as frases incompletas, o estilo obscuro, as interpretações literais
de metáforas remetem às conversações que se passam nos diferentes redutos da
vida doméstica. As injunções contraditórias são habituais na vida cotidiana e no
viver contemporâneo. A grande diferença entre ela e a injunção paradoxal reside
no fato de que uma escolha lógica ou uma solução para sair de sua esfera é
totalmente possível, ao contrário da última, na qual ocorre a falência da própria
escolha.
As regras familiares se constituem a partir da dinâmica desenvolvida na
interação. O ajuste de interesses vem a ser o fundo no qual elas se desenvolvem.
Assim, no momento em que um desses membros expressa um aspecto de si
175

próprio, provocará no outro um aspecto complementar a este, instituindo um


equilíbrio na esfera interativa. Como nos diz Minuchin (1974), a estrutura
familiar é um conjunto invisível de exigências funcionais, ou seja, um universo de
regras que organiza as maneiras pelas quais os membros da família interagem. As
regras dizem respeito às expectativas mútuas de membros específicos da família.
Estas expectativas se fundam nos contratos originais da família, porém podem ser
esquecidas ou não explicitadas, ou, ainda, podem estar constantemente sendo
negociadas.

. Rupturas e elasticidade das regras

As ordens ou os apelos à ordem são imposições dos pais ou como vimos acima,
das mães. Tomam a forma de um dever a ser cumprido que se impõe de forma
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simples e, às vezes, indubitável. Para Kauffmann (1992), essa atitude é uma


injunção, uma evidência que leva à ação e que é socialmente construída. “A
injunção perfeita é sedimentada fora do pensamento, nos automatismos
adquiridos, ela é o resultado de uma história social complexa e concretizada na
herança dos gestos do indivíduo.” (p. 18) No entanto, é justamente a consciência
desse sentimento de um dever a cumprir que, paradoxalmente, inicia seu
enfraquecimento. Em outras palavras, a injunção é silenciosa e invisível e a sua
visibilidade a torna suscetível ao questionamento. Quando essa tomada de
consciência é possível, as tarefas domésticas se apresentam como desagradáveis
ou objeto de rejeição. O esforço para levar adiante a execução de tais tarefas
parece se apoiar na interação, no grau que essas referências incitam ao dever de
agir.
As normas consideradas injustas pelos filhos são explicitadas nos
seguintes depoimentos:

“Argumento com eles como é injusto reclamar que chego tarde durante a semana,
eu acordo na hora e vou trabalhar.” (Caio)

“Quando eu tiver a minha casa vai ser limpeza zero no fim de semana, nada do
exagero da minha mãe, só vou relaxar no fim de semana.” (Breno)

“Não faz sentido eu dizer tudo que eu vou fazer para eles.” (Gabriela)
176

Assim, a consciência de que o espaço da casa é parental parece ser


suficiente para a aceitação das regras, como forma de evitar desequilíbrios na
relação. Entretanto, essa aceitação não condena ao silêncio, não impede o direito
de expressar o incômodo diante de certas imposições dos pais. A possibilidade de
viver uma relação mais simétrica parece habitar os imaginários desses filhos, pois
ela representa a condição de um ganho maior de autonomia. Segundo Ramos
(2002), quando os filhos adultos afirmam um direito igual àquele de seus pais, as
regras parentais passam a apresentar um peso menor.

“O pai dele e eu, também, insistimos nos horários da semana, por uma questão de
lembrá-lo que ele tem que se comprometer com o trabalho, com as obrigações,
isso é de lei, ir trabalhar cansado pode atrapalhar.” (Cláudia)

“Quero saber para onde vai, com quem vai e a que horas volta, isso é errado? Só
porque é adulta não tem mais que dar satisfações?” (Gil)
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Caio e Gabriela não acatam essas ordens dos pais: o lado injusto das
mesmas parece ser suficiente para a contestação. Essa atitude não encontra uma
barreira sólida no contexto parental, embora não tenha sido mencionada nenhuma
tentativa de ajuste desses interesses divergentes. A situação provoca incômodo na
relação e permanece de forma rígida, sem perspectivas de acordo. Em suma, uma
luta começa a ser travada quando a ordem se submete a uma análise crítica.
Por outro lado, Berenice não permite o confronto: “Eu gosto da casa limpa
e organizada todos os dias e isso inclui o fim de semana, por que não?” O peso
desse imperativo impele Breno à aceitação do mesmo e, assim, à decisão de
manter a relação em equilíbrio: “A casa é dela, eu respeito isso.” Dessa maneira, o
espaço de Berenice é preservado e o seu poder é confirmado, a despeito do
sentimento de falta de eqüidade, proveniente de Breno. Apesar de questionar a
legitimidade da ordem da mãe, percebendo-lhe a rigidez, ele se submete e se cala
para evitar a possibilidade de conflito. A resistência à submissão, no entanto,
acentua o sentimento de desgaste e de fragilização da relação.
Outras regras parentais são constantemente rompidas pelos filhos na
convivência. Aquelas referentes à arrumação dos quartos, por exemplo, estão
constantemente sujeitas aos jeitinhos.
177

“Eu sei que tenho que dar um jeito no meu quarto, mas acaba que eu não faço
isso, faço muita bagunça, mas ela arruma para mim.” (Amanda)

“Aguentar a bagunça depende da minha fase. Quando está demais eu falo, se não
arrumo ...Ela acorda muito cedo e sai, não me custa ajudar com isso.” (Alice)

A ordem inicial parece ter sido desconstruída por ambas, e talvez


possamos dizer que a crítica e as novas necessidades da relação forneceram o
material para um fazer reconstrutivo. No caso, Amanda se apóia na relação com a
mãe para escapulir de sua obrigação. Alice, por sua vez, coloca um acento mais
igualitário na relação, embora o seu lado “coronel” possa aparecer, eventualmente,
para cobrar a obrigação da filha.

“De vez em quando ele não arruma a cama... ele tenta enrolar se puder, joga a
colcha por cima de qualquer jeito, joga as almofadas.” (Cláudia)

“Dia de semana eu acordo quase de madrugada, então... mas no final de semana


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eu faço.” (Caio)

“Primeiro lê jornal, toma banho, e a arrumação vai ficando para trás.” (Cláudia)

Acreditamos que esse jeitinho ou a “enrolação”, na definição de Cláudia,


tenha a ver com uma atitude de experimentação na rotina, de ir além dos limites
impostos pela mãe, ousar transgredir de uma forma leve e, assim, esticar o espaço
em direção a um ponto maior de amplitude.

“E as roupas passadas quem guarda? É a mamãe... As blusas ficam dando sopa na


sala uns 3 dia ..." (Eva)

“Em algum momento eu vou chegar e vou encontrar as roupas no meu quarto, eu
fico na esperança que ela guarde no armário, mas nem sempre ela faz isso.”
(Elisa)

Elisa sabe o que a mãe vai fazer, é só uma questão de saber esperar. Eva
não sustenta a sua própria ordem, provavelmente por tê-la submetido a uma crítica
prévia, nos termos de Kauffmann (1992), ou seja, o enfraquecimento da injunção
diante da consciência. Com isso, Elisa aumenta a sua área de atuação.

“Avisar quando vai sair não é cumprido, a semana passada mesmo ele fez isso.”
(Cláudia)
178

“Às vezes saio sem avisar e ela não reclama, às vezes extrapola.” (Caio)

“Não reclamo quando tenho uma idéia de onde você foi, conheço seus horários.”
(Cláudia)

O controle de Cláudia sobre as saídas de Caio é visível, este destaca que se


incomoda com isso e sua forma de protestar diante dessa atitude da mãe é não se
submeter. Entretanto, Caio conhece seu território relacional e sabe que o não
cumprimento da ordem não lhe traz consequências mais graves na relação e,
portanto, a transgressão não significa ameaça.

“Eu arrumo a minha cama todos os dias.” (Felipe)


“Você arruma a cama, certo, mas deixa roupa suja no chão.” (Flávia)

Nesse caso, na visão de Flávia, Filipe cumpre pela metade a sua obrigação.
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Entendemos que acatar a ordem completa significa uma perda da possibilidade de


ir mais além, de experimentar um ganho a mais, nessa relação de forças com a
mãe.
Assim, percebemos, por um lado, a possibilidade, na relação, de se burlar
e, por outro, a capacidade desta relação oferecer um espaço de rompimento de
forma velada, atitudes complementares que proporcionam o espaço de troca.
Filhos e pais constroem e são construídos por uma rede de normas, relativas aos
pequenos momentos do cotidiano, calcada em tentativas e acomodações, que
permitem o fluir relacional. De acordo com Minuchin (1993), o grau de
flexibilidade das atitudes dos membros da família nos mostra a capacidade de
mudança e, em conseqüência, a possibilidade de reconstrução de alguns padrões
rígidos de interação. Os esgarçamentos, as rupturas e, também, a elasticidade das
regras apontam para uma realidade em movimento, cada dia minimamente
diferente.
Os discursos de nossos entrevistados nos levam a refletir sobre essa
extraordinária capacidade de inventar, que habita o território da família de adultos.

“Não acho que tenha que dizer para onde eu vou e com quem eu vou.” (Gabriela)

“Não concordo, por isso saio e chego tarde quando tenho essa oportunidade.”
(Caio)
179

Ambos quebram as normas dos pais, têm uma atitude de enfrentamento e,


ao nosso olhar, o fazem com o consentimento velado dos pais. A partir da análise
dos discursos desses últimos, percebemos que muitas atitudes atreladas à
manutenção das regras podem ser percebidas como manifestações de
características defensivas da função parental, assim como da responsabilização do
espaço da casa. Em suma, a defesa de uma posição de poder e do uso diferenciado
da autoridade representaria um “último suspiro” no universo relacional. No
entanto, o aspecto poroso da relação alivia essa rigidez e constitui o terreno
apropriado para as rupturas demandadas pelos filhos.
As embromações de Caio e Felipe revelam a elasticidade das regras e
explicitam a experimentação dos filhos. No intuito de ganhar mais terreno, eles
testam diferentes investidas e argumentações para esticar seus espaços pessoais.
Os comentários das respectivas mães deixam claras as intenções dos filhos:
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“Você arruma a cama, certo, mas deixa roupa suja no chão.” (Flávia)

“Ele tenta enrolar se puder, joga a colcha por cima de qualquer jeito, joga as
almofadas...” (Cláudia)

Elisa, por seu turno, também utiliza os mesmos recursos: “Em algum
momento eu vou chegar e vou encontrar as roupas no meu quarto, eu fico na
esperança que ela guarde no armário, mas nem sempre ela faz isso.”
É como se fosse um jogo com as regras: são estratégias de apropriação do
espaço e de afirmação de autonomia em relação a casa, e essas estratégias se dão
em um campo de relação de forças, no qual cada geração defende suas áreas de
ação. Para mudar esse quadro, constituído de lugares mais ou menos fixos, os
filhos desenvolvem subterfúgios para atingir suas metas de independência na
relação.
Também podemos observar o esgarçamento das regras em conjunto, pelas
duas gerações, nas vozes de Amanda e Alice e de Elisa e Eva.

“Faço muita bagunça, mas ela arruma para mim.” (Amanda)

“Agora eu interiorizei: antes isso me tirava do sério, eu vou lá e arrumo.” (Alice)


180

“Quando eu tiro uma roupa do armário, eu tenho que passar, porque fica muito
cheio e amassa, eu pego e vou passar, mas antes eu dou uma cantadinha: quem
vai passar a roupa da filhinha? As vezes eu começo e ela termina.” (Elisa)

“Faço isso mesmo, tenho medo que ela queime a tábua.” (Eva)

O campo de avanços e recuos na dinâmica relacional constitui o jogar com


as regras. Cada um vai até determinado ponto, observa, reconhece a área e atua,
em prol de ganhar espaço em relação à ordem inicial. O passo de um indica a
direção do passo do outro e, com isso, novas regras poderão vir a ser
estabelecidas.

. Acordos, negociações e reformulações

As ordens iniciais, para Strauss (1992), estão sujeitas regularmente a negociações


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ou fricções. O autor afirma que uma ordem social ou organizacional é uma ordem
negociada. Ao utilizar o termo ordem social, Strauss se refere, em um sentido
mais amplo, aos grupos (organizações, nações, sociedades, entre outros) que
produzem condições estruturais nas quais as negociações de um tipo particular
possam ocorrer. A negociação é concebida como uma relação complexa entre um
processo de negociação cotidiano e um processo de avaliação periódico: este
último estabelece os limites da negociação e alguns de seus direcionamentos. Os
resultados da negociação (acordos, regras, contratos) têm limites temporais, ou
seja, deverão ser revistos, reavaliados e renovados.
O território de negociações da família é o contexto relacional. Em tal
terreno acomodam-se: a defesa dos pais em garantir seus espaços de poder e
controle e o desejo dos filhos de alcançar mais autonomia, visando uma
perspectiva mais igualitária. Minuchin (1993) acrescenta que a capacidade de
reformulação e mudança na família se dá a partir da possibilidade de utilização
dos múltiplos selves de cada um, de acordo com os interesses do contexto
interacional. Dessa forma, a reformulação de ordens é possível, através do
empenho de cada um na dinâmica relacional, em um suceder de passos, calcados
nos sentimentos e interesses dos membros em interação.
O baú no qual Elisa guarda as suas bolsas se apresenta como objeto de
negociação no espaço de convivência com a mãe.
181

“Qual foi o trato de arrumação do baú de bolsas? Só comprar bolsa nova se


eliminar uma antes.” (Eva)

“Ela sugeriu, eu concordei, mas é difícil, ela quer eliminar coisas e eu sou
apegada, fora o tempo que leva para fazer isso: mas já tirei uma e vou dar para a
filha da diarista.” (Elisa)

O processo de negociação de novas regras de convivência é pautado por


avanços e recuos. Um acordo pode existir sem que haja negociação, como,
também, pode-se chegar a um acordo que permita o espaço para uma nova
negociação, diante da possibilidade de ruptura do acordo.
No diálogo acima, observamos o processo de arrumação do baú de bolsas.
Estabeleceu-se um consenso sobre a quantidade de bolsas dentro do mesmo e a
necessidade de se retirar uma, no que uma nova é comprada. O sentimento de
apego revelado por Elisa sublinha sua dificuldade em levar adiante o processo.
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Contudo, diante da consciência do consenso construído com a mãe, realiza um


esforço e doa uma das suas bolsas. Pode ser que a arrumação do baú envolva
outras eliminações de bolsas, isso vai depender do seguimento do processo entre
as duas.
Um processo de negociação pode ser compreendido como o
estabelecimento de novas regras de convivência, a partir de um conflito entre as
partes. A negociação acontece quando existe certa tensão entre as partes
envolvidas. Na falta desta tensão, não há negociação. No caso de ela acontecer, o
compromisso, resultante do processo, tem a função de consolidar a relação. Nesse
sentido, o conflito pode ser visto como uma forma de negociação. Nesse ponto,
recorremos a Simmel19 (1912), que ressalta a condição de um conflito acabar em
um compromisso, que não é nem uma vitória, nem uma derrota e sim uma
conquista, um processo de negociação. “Toda a troca de opiniões, gerada pelo
conflito, porta a noção de que os valores e os interesses em pauta têm uma
característica puramente objetiva e concretizável no compromisso.” (p. 144)
A negociação entre Doris e Diana, referente ao pagamento de uma das
linhas telefônicas da casa, se apresenta sob a forma de um consenso inicial

19
O termo conflito, nesse momento do texto, é compreendido como um sinal de oposição e
dissenso, nos termos de Simmel (1912)
182

originado a partir das palavras da mãe, assim como a do relato anterior, ou seja,
entre Eva e Elisa.

“As contas de telefone agora vão ser discriminadas e ela vai pagar uma das
linhas. Antes estava muito desorganizado, mas agora vamos tentar mudar. Ela
precisa ter essa conscientização, falar horas no telefone não dá.” (Doris)

“Está certo, vou pagar o que eu falar, mas eu acho justo que essa linha fique no
meu quarto.” (Diana)

A construção desse consenso tem como origem o conflito resultante, das


discussões a respeito das contas altas de telefone. “A minha filha é espaçosa, ela
precisa ser contida”, diz Doris. Assim, a decisão da discriminação e do pagamento
das contas de telefone foi uma determinação parental, com o suporte do pai. A
aceitação do consenso inicial, da parte de Diana, seria, simplesmente, a instituição
de uma nova regra parental, se Diana não inaugurasse os primeiros passos de uma
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negociação. Negociação que intenta atender, também, aos seus interesses.


Presumimos que um acordo sem negociação dificilmente terá vida longa, pois não
abarca um histórico de conversações, necessário para a construção progressiva da
reformulação. Já o chegar a um acordo deixando espaço para uma negociação
posterior, significa que houve negociação.
Nesse sentido, o processo se inicia com uma meta explícita de Diana, de
ter o telefone em seu quarto, e essa disposição coloca os negociadores em
equilíbrio de forças. E, ainda, a constituição dessa possibilidade de acordo valida
sua posição na relação e legitima suas aspirações de um espaço pessoal, também
discriminado. Se os pais acolherem essa modificação do consenso inicial, isto
pode significar que eles reconheceram sua nova posição na relação. Se não, será
um acordo unilateral, sem parceria, e, assim, parecerá um castigo.
O diálogo entre Berenice e Breno explicita que os resultados da
negociação, acordos, regras, contratos, entre outros, portam limites temporais, ou
seja, deverão ser revistos, reavaliados e renovados.

“A gente combina tudo de novo quando ele traz uma namorada nova, é só para
lembrar.” (Berenice)

“Isso, a gente faz o combinado.” (Breno)


183

O acordo entre os dois, no que concerne à presença da namorada na casa, é


reatualizado quando uma nova candidata se apresenta. Berenice “lembra” ao filho
o antigo acordo e, provavelmente, não espera modificações. Todavia, apesar de
dizer que faz o combinado, encontramos no discurso de Breno uma referência a
uma possível modificação do estatuto acordado.

“Às quartas-feiras a Bianca [namorada nova] dá plantão de manhã cedo aqui


perto de casa, ela acabou que dormiu aqui, porque ia ficar tarde para ir e voltar no
dia seguinte.” (Breno)

O acordo entre mãe e filho abriga a noção de que a namorada só pode


dormir na casa nos finais de semana: esta foi uma deliberação de Berenice com a
aceitação de Breno. Entretanto, o consenso inicial pode estar perto de ser
reformulado, por conta do sinal positivo de Berenice, diante da argumentação do
filho pela ruptura do acordo naquela noite. Essa atitude entre mãe e filho de rever
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um acordo abre uma brecha para a legitimação dos interesses do filho, no âmbito
da relação.
Também Filipe esgarça a rede de regras da casa. No que concerne ao
acordo de arrumação de seu quarto, conseguiu, por meio de pequenas rupturas
cotidianas, iniciar um processo de negociação com a mãe, no qual benefícios
pessoais seus vêm sendo aceitos e constituindo um novo acordo de arrumação.
“Arrumo o meu quarto e ponho a roupa suja para lavar no dia da diarista. Nesse
dia fico em casa e oriento ela.”
Nesse caso, foi Filipe quem iniciou o processo de negociação e coube à
mãe aceitar os termos dele: “Achei razoável”, completou Flávia. Segundo Ramos
(2002) o filho adulto pode brincar com as regras da casa, até o ponto de torná-las
mais leves e prontas para um novo acordo.
A camisa manchada de Henrique nos serve de exemplo sobre a forma pela
qual os acordos familiares – e, especificamente, os referentes à relação entre mãe
e filho – são revistos e reformulados, em função do ciclo vital familiar.

“Eu mostrei a mancha para ela e ela falou, “Vai ver que foi você mesmo que fez
isso”, eu argumentei que não e ela falou, “Então manda lavar na lavanderia”, eu
disse, “É, essa é a coisa mais fácil para você, em vez de disciplinar a empregada”.
(Henrique)
184

“A solução tem que ser dele, tem que vir dele, ele que tem que mandar lavar as
roupas fora.” (Helena)

O consenso em torno da criação de um espaço relacional igualitário e de


uma relação menos assimétrica foi decisão da dupla. Contudo, Henrique recorre
ao antigo lugar de filho para fazer valer seu direito de ter uma mãe responsável
pelas atividades domésticas da casa, ou seja, por disciplinar e controlar a
empregada. Essa atitude de Henrique é oposta às novas combinações da relação,
propostas e acordadas em conjunto pelos dois. Diante disso, Helena o recoloca no
lugar de filho parceiro e, assim, defende seu próprio lugar de mãe,
descompromissada da vigilância do cotidiano da casa. Nesse sentido, reitera e
reforça o acordo inicial, apesar dos protestos do filho.
Alice e Amanda realizaram um acordo que explicitava a responsabilidade
da última por alguns itens das compras de supermercado. Esse consenso baseou-se
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nas freqüentes divergências entre as duas, a respeito das marcas dos produtos de
preferência de Amanda. Combinaram então que Amanda assumiria o
compromisso de comprar pessoalmente os itens em questão e Alice não mais o
faria.

“Sou péssima de organização financeira, não tenho o nível de organização da


minha mãe. Comia todos os dias na rua, inclusive no fim de semana, almoço e
jantar, faço cursos caros de línguas e fotografia, acabo chegando ao fim do mês
sem dinheiro. A gente conversou, eu falei dos meus gastos e ela resolveu me
ajudar, sugeriu mudanças. Agora janto em casa e não compro as coisas que eu
comprava no supermercado.” (Amanda)

A negociação e a construção de um acordo entre as duas não impediu que


houvesse espaço para uma nova negociação, caso o acordo não funcionasse. Dessa
maneira, chegaram a um novo acordo, através da conversa, que exime Amanda do
compromisso anterior e reporta a Alice a responsabilidade da compra dos
produtos de preferência de Amanda. “Eu acho que devo ajudá-la nesse momento”,
diz Alice.
Gabriela saiu da casa dos pais para morar sozinha, quando conseguiu seu
primeiro trabalho estável. A saída foi negociada com os pais, que a apoiaram e
validaram seu desejo de mais independência e autonomia. Entretanto Gabriela foi
demitida. Fez outras tentativas de inserção em sua área, até decidir que seria
185

melhor mudar de campo de atuação e fazer um concurso público. Para tanto,


recorreu aos pais e, em conjunto, negociaram o seu retorno ao domínio parental.

“No início foi muito difícil, tive que negociar tudo com a minha irmã, a gente
teve que dividir o mesmo quarto... Com os meus pais foi mais tranqüilo, eles me
apoiaram muito na minha decisão.” (Gabriela)

“A volta dela foi muito boa para nós, eu gosto de poder ajudar a minha filha e ela
é supercompanheira.” (Gil)

Dessa forma, a família precisou renegociar os lugares de cada um, tanto no


espaço da casa quanto no das relações. De acordo com Minuchin (1981), quando
um membro da família deixa a casa, há uma reestruturação no espaço familiar. O
organismo familiar demanda, então, transformações em sua configuração prévia,
em função da prevalência de um conjunto de procedimentos entre os membros,
fundado em regras acordadas a partir de tal configuração. Por outro lado, o retorno
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de Gabriela mobilizou, entre os membros de sua família, uma necessidade de


retransformação e a revisão dos acordos posteriores à sua saída de casa. “Tive que
discutir com a minha irmã, desde a luz do meu abajur aceso para ler, até o volume
da televisão do quarto...”
Em relação aos pais, as conversas que mantiveram ao longo do processo
de retorno a casa foram suficientes para que as negociações dos detalhes do
cotidiano se tornassem minimamente resolvíveis. Por meio de comunicações
rápidas pelo telefone, por exemplo, Gabriela e os pais tomam decisões a respeito
do cotidiano da convivência. “Quando ela chega cedo, prepara o jantar, nos avisa
e trazemos um complemento.” (Gil) Dessa maneira, conseguem soluções
dinâmicas, calcadas em posições mais igualitárias e condizentes com as novas
posturas acordadas.
Flávia não consegue negociar com Filipe a divisão das contas de energia
da casa.

“Às vezes eu mostro para ele a conta de luz, é um absurdo de alta, mas ele não se
manifesta ... o meu marido não sustenta isso, não acha que haja necessidade no
momento ... há acomodação, o evitar atrito com coisas materiais, nem precisamos
de fato disso, seria mais pelo lado educativo.” (Flávia)
186

A noção de construção de um acordo, nesse relato, permite-nos observar a


demanda por um engajamento mais amplo na idéia de um projeto familiar. Uma
relação que tende ao igualitarismo requer a participação do filho no seio do
coletivo familiar, através do empenho pessoal e acolhimento de uma proposta, que
diz respeito aos interesses de todos. A indiferença de Filipe, aliada à não
participação do marido, parece afetar a idéia de Flávia a respeito de um sentido de
ambiente familiar baseado na cumplicidade e na troca.
Esse consenso seria fundamental para a construção de um sentido de estar
em família, atrelado a um significado mais profundo da concepção do viver junto,
que possa habitar o imaginário dos membros da família nesse ponto do ciclo vital
familiar. O sentimento de acomodação, revelado por essa mãe, pode ser conectado
a certa paralisia, compatível com os terrenos ambíguos nos quais as contradições
são abundantes. Dimensões como os sentimentos de pertencimento e de lealdade
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ao grupo familiar parecem, também, estar implicadas nesse depoimento. Levar a


diante um processo de negociação passa, igualmente, por esses sentimentos.
As negociações ocorrem também na comunicação não-verbal e na crítica
indireta. Podemos partir do princípio de que algumas vezes os indivíduos
preferem funcionar de forma implícita, por meio de uma comunicação silenciosa,
que permita resguardar suas insatisfações. Amanda, quando chega do trabalho, vai
à cozinha, prepara seu lanche e, normalmente, come ali mesmo, conversa um
pouco com a mãe e em seguida vai para o seu quarto. “Às vezes percebo que ela
está cansada, abatida, daí lavo a louça para ela.” Nesse caso, Alice, a mãe, não
verbaliza seu pedido de ajuda: no entanto, sua expressão é um sinal enviado para
Amanda.
Caio verbaliza suas intenções de mudança, através da ironia: “Falo com
ela: Ih a geladeira está fraca de suco da fruta tal, da marca tal...” Cláudia diz que
responde no mesmo tom: “Ih é... Está na hora de você fazer um passeio no
supermercado.” Assim, a dupla se comunica de forma a evitar um conflito direto,
a mensagem é transmitida e as decisões são tomadas. De acordo com Cláudia, nas
manhãs de sábado ou domingo, nas quais o filho não trabalha, ela e o marido o
convidam para tomar um café da manhã em um conhecido supermercado da zona
sul da cidade. Após essa refeição em conjunto, fazem as compras, os três, para o
abastecimento da geladeira, ao longo da semana que se inicia.
187

O processo de negociação pode ser entendido como uma tentativa de


reequilibrar os equilíbrios instáveis da relação. Em prol de evitar uma ameaça ao
equilíbrio relacional, busca-se o acordo que é uma forma de estabelecer uma
distância suficiente entre esses indivíduos.

5.5.2
O Jogo interativo

Diante das regras familiares e das dimensões hierárquicas envolvidas em seu


contexto, visualizamos a complexidade do terreno familiar e a necessidade de
ultrapassar a visão de linearidade e previsibilidade nas interações entre os
membros da família. Para tanto, nos valemos da noção que privilegia a capacidade
de reformulação e mudança na família e a utilização dos múltiplos selves de cada
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indivíduo, de acordo com os interesses e possibilidades do contexto interacional


(Berger e Luckman, 1966; Minuchin, 1993).
Adicionamos a esses fundamentos, as contribuições de Schnitman (1994)
e Goolishian e Anderson (1994), defensores da noção de que a produção de
significado se dá através da ação da linguagem, na esfera da narrativa. Uma rede
de narrativas consiste em um produto de intercâmbio e práticas sociais, de diálogo
e de conversações, sendo assim, somos co-autores das nossas narrativas e o
significado está sempre em processo, surgindo da reconstrução e da redescrição.
As regras familiares e a hierarquia não sendo categorias a priori e, sim,
construções sustentadas, questionadas e negociadas nas relações entre os membros
da família em suas vidas cotidianas nos dão a base para as reflexões necessárias.
Nessa medida, a realidade é construída no dia a dia, é atualizada na interação,
através da comunicação e da linguagem. A possibilidade de modificação e
reconstrução ocorre pela ruptura, pela quebra, pela discontinuidade dessa rotina
banal e, dessa forma, a realidade subjetiva pode ser alcançada.
Na verdade, observamos a existência de um jogo interativo na dimensão
relacional. O esforço de “equilibrar os equilíbrios instáveis” da relação parece
provocar uma dinâmica, calcada em um ir e vir das esferas relacionais. Essa
movimentação tem como objetivo assegurar os interesses que se apresentam, em
determinados contextos da interação.
188

A partir desse tema, o jogo interativo, distinguimos os seguintes subtemas:


a experiência de separação na família; o quarto na casa dos pais, as portas abertas
ou fechadas; as dimensões de poder e controle: distribuições e disfarces;
diferentes formas de comunicações na rotina; tateando em busca da distância
apropriada na relação.

. A experiência de separação na família

Sabemos que a saída de um filho de casa deixa marcas no terreno familiar e


contribui para a reformulação dos lugares de cada um nas relações. As famílias B,
C, D, F e G viveram essa realidade e a família H se prepara para a saída da filha
mais velha, no final do ano de 2008. Correlacionamos esse marco na família com
algumas situações apontadas pelos nossos entrevistados, tais como o peso de
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desinvestimento da mãe na vida cotidiana da casa após a saída de um dos filhos; o


distanciamento na relação no momento atual e a retomada de um novo projeto de
vida no contexto parental. Essas situações se mostram de tal forma implicadas
umas nas outras, que decidimos discuti-las em conjunto.
Essas situações aparecem nos relatos de Berenice, Doris e Diana, Flávia e
Filipe e Helena. Começaremos nossa análise pela narrativa de Berenice: ela
afirma que a saída da filha mais nova, que foi morar com o namorado, foi
tranqüila para ela e lhe possibilitou a vivência de um sentimento maior de
liberdade e mais coragem para pensar o seu futuro. “Minha vida foi uma ralação,
agora estou me sentindo no ponto para realizar algumas coisas diferentes, quero
cuidar mais de mim.” Berenice deu um prazo de dois anos ao filho Breno para
este sair de casa e viver a própria vida, independente dela. “O prazo que eu dei
não tem dia certo, mês certo, não é assim... É mais para ele se programar, se
planejar e cuidar da própria vida.” Por outro lado, Breno considerou a proposta da
mãe injusta: “Não conheço nenhum caso como esse meu.... Eu entendo os
argumentos dela, mas no fundo fico muito incomodado.”
Para Singly (1996), a eficácia do ato de sair de casa, tanto para os pais
como para os filhos, está intimamente vinculada ao fato da comunicação partir
dos filhos. Estes ressaltariam, através da decisão, a necessidade do alargamento de
seus domínios pessoais, conquistada por uma relação suficiente com os pais e com
189

a vida social, em termos de aquisição e construção de autonomia. Quando ocorre


o contrário, essa situação pode ser vista como um ato de desvalorização da
capacidade de emancipação do jovem, podendo construir uma imagem negativa
do filho aos seus próprios olhos e aos dos outros. E ainda poderia constituir uma
injunção contraditória (Kauffmann, 1996, p. 36), tornar o campo relacional
ambíguo, uma vez que as vozes contrastantes implicam em desorientação.
Diana se refere a um sentimento parecido com o de Breno, quando percebe
na fala da mãe, os elementos que a levam a concluir que ela atrapalha a vida dos
pais: “Eu devo atrapalhar a vida deles, às vezes eu tenho essa impressão: é
desagradável, me sinto meio mal com isso.” E Doris relata: “Os nossos atritos
atrapalham a minha relação com o marido... Vejo como o meu filho se vira bem
sozinho, ela também poderia...” Embora não tenha falado em prazo para sair de
casa, como Berenice, Doris sugeriu à filha que fosse morar sozinha e até mesmo,
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ofereceu-lhe um complemento financeiro, para que esta se sentisse mais segura.


Contudo, Diana argumenta que prefere esperar mais um pouco: “O meu
relacionamento afetivo foi para o espaço, não estou em um bom momento.”
Nesse sentido, a saída de um dos filhos abre uma nova perspectiva no que
tange à elaboração de projetos pessoais ou daqueles que envolvem a família como
um todo. Flávia reitera que tenta se “aposentar” das atividades de dona de casa:
“Eu tento, mas... se eu não fizer, ninguém faz: o jeito é se abstrair...” Filipe contra
argumenta: “Ela deixa rolar, meio que desistiu.” Percebemos a tentativa de Flávia
de interromper ou diminuir seus afazeres domésticos, ou até de direcionar essa
energia para fora do eixo familiar. Por sua vez, seu filho se ressente desse
“abandono” e se refere à diferença, no ambiente familiar, quando o irmão mais
velho participa de uma refeição na casa. “Não só a comida é mais caprichada,
como a gente conversa mais, fica mais animado,” diz Filipe.
Observamos que o maior envolvimento da mãe na presença do irmão
chama a atenção de Filipe para o distanciamento relacional que ronda a sua
experiência com a mesma. Em seqüência, Flávia afirma: “Você fica no seu quarto
e nem sabe o que se passa.” Dessa maneira, entendemos a turbulência silenciosa
que ocorre na família, quando esta vivencia tal evento. Diana, por exemplo,
admite que em sua casa a cozinha só fica “abarrotada de coisas deliciosas” quando
o irmão vem visitar a família nas férias. Por outro lado, Doris ressalta que o filho
190

gosta de fazer refeições com a família, ao contrário da filha, e por isso a cozinha
da casa fica melhor abastecida nessas ocasiões.
Helena, vivendo uma aposentadoria do trabalho recente e a realidade da
saída de casa da filha mais velha, admite que chegou a hora de cuidar de si
própria. Para tanto, tenta engajar Henrique em seu projeto, o que se mostra difícil,
em virtude da recusa do mesmo, percebida em suas constantes reclamações
quanto à falta de ordem da casa. Essa atitude de Henrique instiga uma maior
participação da mãe na vida doméstica da família, o que não representa o desejo
atual da mesma: “Agora eu quero mais tranqüilidade emocional.”
Assim, o distanciamento relacional poderia ser visto como o resultado de
projetos de investimentos emocionais de outras ordens, fora do campo das
relações em questão, no que concerne ao universo parental. Contudo, entendemos
esse processo de desinvestimento como abrigando as duas gerações e atuando de
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forma complementar: de modo que o desinvestimento de um contribui para o


investimento do outro em outros setores e relacionamentos. Assim, há a
alternância de desinvestimentos, ora dos filhos, ora dos pais. Essa alternância
pode permitir a existência de um ambiente mais arejado na família e facilitar as
entradas e saídas de seus membros, isto é, garantir a continuidade do ciclo vital
familiar (Carter e MCGoldrick, 1989). De todo o modo, a experiência de
separação abala a família, introduz sentimentos novos ou diferentes e promove a
percepção de sentidos diferenciados no continuum familiar.

. O quarto na casa dos pais, as portas abertas ou fechadas

A cultura dos estratos sociais médios brasileiros preconiza que os filhos, ao


saírem de casa, deverão construir seu espaço no mundo social de forma
independente dos pais. Estes últimos, por seu turno, irão ressignificar, segundo
Berthoud (2003), suas funções parentais de uma forma menos protetora e com um
maior distanciamento. Entretanto, face ao prolongamento da convivência familiar,
deparamos com a idéia da construção de um espaço geográfico independente
dentro do próprio território da família. Os filhos adultos, em seus quartos, que
seriam espaços inventados para garantir sua autonomia, alteram o significado
cultural da distância física, fato que nos leva a refletir sobre as dimensões de
191

proximidade e autonomia na relação. Os pais, assim, deverão ressignificar suas


funções parentais sem o distanciamento e, dessa forma, poderão resvalar em
mecanismos de controle e proteção na prática cotidiana com os filhos. E estes
terão que lidar com esses dispositivos.
Ramos (2002) afirma que a construção do si (soi) se realiza, em parte, na
apropriação do quarto, “na edificação de um mundo material que supõe a
mobilização de certas facetas de si.” (p. 121) No âmbito da casa, os espaços
parentais são dominantes e incluem um conjunto de normas que define as
fronteiras entre as duas gerações, a conservação de certas distâncias, enfim, o
lugar de cada um nessa dinâmica intergeracional. Dentro dessa perspectiva, o
quarto adquire uma noção de lugar no qual se configura a posse e a manutenção
dos espaços pessoais do filho, na casa dos pais.
Por outro lado, os pais são soberanos na normatização dos lugares da casa.
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Inclusive em relação ao quarto dos filhos, os pais fixam ordens para esse espaço,
segundo seus próprios critérios. Nesse sentido, os quartos de Amanda, Caio,
Henrique, Breno, Diana e Elisa podem ser vistos como uma extensão do espaço
parental. Como passam o dia todo fora, no trabalho, as mães ou as diaristas
entram e saem, mexem, remexem, empilham sobre a cama ou guardam nos
armários as roupas limpas e trocam objetos de lugar, ao fazerem a limpeza.
O quarto de Amanda está sempre aberto, mesmo à noite, quando ela está
em casa. “Quando eu quero ficar sozinha, vou para o meu quarto, leio ou fico no
computador, mas não tenho essa de fechar a porta, só quando vou dormir.” Alice
entra, conversa, “mostro para ela onde coloquei uma determinada coisa...” Nos
fins de semana, Amanda raramente fica em casa, indo para a do namorado.
Todavia, quando recebe o mesmo, mantém a porta do quarto fechada.
Ao sair para o trabalho, Caio frequentemente deixa a porta do quarto
aberta. Logo que ele sai, Cláudia entra para apagar a luz do abajur e se irrita com a
cama feita de qualquer jeito, segundo ela: “Joga a colcha e finge que arrumou a
cama”. Caio, quando está em casa, prefere ficar no quarto: “Tenho o péssimo
hábito de comer vendo televisão, então como no meu quarto”. “A porta do quarto
dele só fica fechada quando ele está dormindo, ou no fim de semana, quando a
namorada está. Se eu quiser falar, bato e ele abre, falamos, eu nem entro”, conclui
Cláudia.
192

“A bagunça do quarto dela é ostensiva, todo mundo pode ver, a porta fica
sempre aberta, entro para dar um jeito”, declara Eva. Elisa, de modo muito
infreqüente, fecha a porta de seu quarto: “Quando vou me vestir, eu fecho, mas
durmo de porta aberta.”
A empregada da casa entra, diariamente, no quarto de Henrique para fazer
a cama, deixar as roupas passadas e levar as sujas. Durante a noite, ele mantém a
porta fechada. Assim, quando Helena precisa lhe falar, deve bater na porta e ouvir
um sinal positivo para entrar. Caso contrário, aguarda que Henrique abra e
conversam. “O meu quarto é o meu mundinho, tenho tudo lá, meu computador,
minha televisão, telefone... Minha mãe usa meu computador às vezes, sem
problemas.” Helena diz: “Normalmente uso o computador à tarde, quando ele está
no trabalho: à noite, respeito a privacidade dele.” Henrique não leva a namorada
para dormir com ele em seu quarto: “Levo ela, fazemos um lanchinho e saímos.”
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Breno fecha a porta do quarto ao sair, mas é suposto que a diarista ou a


mãe lá entrarão para a limpeza. Berenice esclarece: “Observo todas as posições,
dos porta-retratos, dos livros, ensino a diarista como fazer, para que fique tudo do
jeito que ele gosta e deixou, a única coisa que eu faço é ajeitar as almofadas da
cama como eu gosto e ele sempre reclama disso. (risos)” “Eu sei se foi ela ou a
diarista que entrou no meu quarto pela posição das almofadas”, relata Breno.
Mesmo respeitando a ordem dos objetos pessoais de Breno, Berenice dá um
“toque pessoal”, deixa a sua marca, através da arrumação das almofadas da cama
do filho.
Na sexta-feira à noite, a namorada vai para a residência dos dois e dorme
no quarto com Breno. Normalmente, ficam com a porta fechada, mas, segundo
Berenice “entram e saem o tempo todo, circulam, vão à cozinha preparar um
lanche...”
As coisas de Diana não cabem em seu quarto e, portanto, se apossou do
armário do quarto do irmão, que mora no exterior, e do quarto de empregada.
“Meu quarto não é grande e tenho coisa demais, preciso de mais espaço.” Nesse
caso, alguns espaços da casa foram reformulados para acomodar as suas
exigências e seus passos em direção ao questionamento e ao rompimento dos
limites parentais. Doris percebe essa situação como difícil: “Ela não tem mais
193

limites nem no espaço: eu e meu marido estamos com dificuldades em relação a


isso.”
Quando está em casa, Diana se fecha no quarto, de forma que a mãe não
sabe se ela vê televisão ou fica no computador. “Ouço muito o telefone celular
tocando e ela falando”, diz Doris. “Minha mãe respeita quando eu estou no quarto.
Se ela quer falar comigo, escreve um bilhete e pendura no espelho do banheiro.”
(Diana) A filha demarca rigidamente as fronteiras entre ela mesma e a mãe e
amplia seus horizontes físicos no espaço da casa. Como os pais viajam quase
todos os fins de semana, Diana se “espalha pela casa”: “Peço comida de
restaurante, durmo na sala...”
Filipe não deixa a mãe entrar em seu quarto quando ele está presente: “Ele
me barra na porta com o corpo e pergunta o que eu quero.” No entanto, ao sair
para trabalhar, deixa a porta aberta. “Deixo a porta do quarto aberta: pode entrar à
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vontade, só não gosto que entrem quando estou trabalhando em casa.”


O quarto de Gabriela é ignorado pelos pais: “Não entramos, só se ela
pedir”, diz Gil, “ela sai e fecha a porta, só a faxineira entra”. Gabriela relata que
às vezes esquece a janela aberta e pede para o pai ou mãe entrarem e fecharem.
“Se ela arruma a cama ou se não arruma, é problema dela” ressalta Gil. “Eu passo
a maior parte do dia fora, às vezes almoço em casa, mas não é certo... à noite fico
na sala com meus pais, vemos televisão, conversamos, depois vou dormir”, relata
Gabriela.
Em função dessas narrações, percebemos que somente Filipe e Gabriela
mantêm um controle sobre o espaço de seus quartos e assumem a sua organização,
independente dos pais. Filipe faz questão de separar o seu espaço do resto da casa
e luta, diariamente, pela privacidade, pela não intrusão da mãe: ou seja, estabelece
as fronteiras individuais e impede a mãe de controlá-lo em sua presença. Por outro
lado, Gabriela, em virtude de já ter conquistado, ampliado e validado seu espaço
pessoal na relação, conta com o respeito dos pais às decisões comuns. Ao mesmo
tempo, beneficia-se de outros espaços da casa, como a sala e a cozinha, como
extensões de seu espaço pessoal: isso quer dizer que esses espaços, antes
parentais, agora são coletivos.
Nos outros relatos, entendemos que, de portas abertas ou fechadas, os
quartos dos filhos, com algumas pequenas variações, podem ser vistos como
194

extensões do domínio parental e não são conotados, pelos filhos, como um


território pessoal a ser preservado do controle dos pais. Sendo assim, os quartos
podem ser entendidos como territórios flexíveis dentro do espaço familiar. Essa
constatação surpreende, pois, de acordo com a bibliografia estudada (Ramos,
2002; Berthoud, 2003), seria esperada uma defesa mais intensa desse espaço
pessoal, a fim de evitar o controle parental. Diante disso, argumentamos que o
processo de autonomia, no universo desses filhos, pode se encontrar em um nível
tal de conquista e legitimação, que as variações invasivas que identificamos, por
parte dos pais, sejam percebidas como “ajuda”, “contribuição à falta de tempo”,
nos limites da interação. Nessa medida, entendemos que a “presença” do jovem
em seu quarto seja o norteador da noção de privacidade, como observado nas
famílias B, C, D, G e H.
Acrescentamos que a defesa desse espaço, também, pode ser conotada
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como mais intensa no plano do imaginário do que no do concreto. Dessa forma, a


percepção do termo privacidade, vivida no espaço físico do quarto, pode ter se
tornado elástica e integrada às noções de trocas mútuas, simetria e mutualidade:
em outras palavras, vem sendo reformulada na cotidianidade.

. As dimensões de poder e controle: distribuições e disfarces

A família ideal é frequentemente definida como democrática. No entanto,


Minuchin (1974) questiona que a família seja uma sociedade de iguais. O autor
sublinha que “mesmo uma sociedade democrática não se faz sem liderança.” (p.
63) Sob seu ponto de vista, o uso diferenciado de autoridade é necessário para o
subsistema parental. Essa afirmação do autor diz respeito à família, em um sentido
mais largo. E, contudo, no que concerne ao prolongamento da convivência
familiar, observamos que, ainda que a liderança ou o poder na família de adultos
exista, ele é todavia relativizado e distribuído pelo constante processo de
negociação nas instâncias relacionais. Esse processo, apontado no item anterior,
visa à simetria de posições entre as duas gerações, ou seja, ao uso de uma
liderança discutida.
Mesmo que relativizado, o uso do poder, sob a forma do privilégio à
palavra parental, existe e resiste nos limites da família de adultos. Embora só o
195

tenhamos reconhecido de uma forma explícita na família B, identificamos seus


mecanismos nas outras, igualmente. A seguinte frase, retirada do discurso de
Berenice, representa a sua versão explícita: “A casa é minha, eu que coordeno.”
Encontramos, também, no relato de Flávia, a mesma referência, mesmo que de um
modo menos enfático: “A casa é nossa [dela e do marido]: é nossa
responsabilidade o pagamento das contas.”
Por outro lado, é possível ter a noção do poder que a posição parental pode
conferir e, todavia, falhar no controle. Esse é o caso de Doris, que não consegue
“controlar” a filha e, assim, utiliza a figura do marido e pai de Diana para agir em
seu lugar. Dessa forma, tenta exercer o poder por meio de um mecanismo de
controle alternativo, ou seja, constrói uma relação triangular para validar a sua
liderança. “Minha mãe manda o meu pai me ligar para saber onde eu estou”, diz
Diana.
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Observamos uma redistribuição de poder entre as duas gerações, de forma


ora discutida, ora silenciosa. Um controle percebido como companheirismo: é
assim que Alice e Amanda se referem às conversas sobre o relacionamento afetivo
e as questões do trabalho da última. Amanda sublinha a competência da mãe, sua
experiência de vida e, sobretudo, sua cumplicidade, uma conquista da relação.
Dessa forma, Amanda permite que Alice pergunte e dê sugestões nesses dois
setores de sua vida pessoal. “Eu entendo o que ela passa, já passei por isso, isso de
você querer estar satisfeito com o que faz, ninguém está satisfeito cem por cento,
eu ajudo a ver as coisa como elas são”, comenta Alice.
“Cuidado e proteção”, dessa forma, Elisa define o controle da mãe que,
assim, escapa da conotação de um “vigiar” e possibilita uma visão mais igualitária
dos lugares na relação. Elisa, quando chega à casa de manhã, após sair com
amigos ou com o namorado, renomeia o interesse da mãe, que insiste em saber
onde e com quem estava: “Não sinto como controle é mais um cuidado mesmo.”
Nesse universo de poder, é possível que ocorra uma inversão de papéis.
Elisa, através da sua competência, legitimada pela mãe e pelo pai, limita a mãe em
alguns momentos da relação e sugere mudanças de atitude: “Eu tenho uma postura
mais ríspida, acho que tem a ver com a coisa de colocar limites, dar um toque,
quando está demais.” Contudo, o poder simbólico continua nas mãos dos pais:
“Eu cobro coisas, ela não faz, mas, mesmo assim, eu cobro”, diz Eva. Assim, o
196

suposto lugar de exercício de poder, o domínio parental, é ocupado por um filho,


dependendo do contexto interacional.
Se tomarmos como exemplo o controle dos pais na arrumação dos quartos
dos filhos, poderíamos inferir que, pelo lado dos últimos, se trata de uma
submissão proveitosa diante desse mecanismo utilizado pelos pais. Uma situação
na qual pode haver um ganho secundário, ou seja, tempo para outras atividades
que pode indicar um mecanismo de resistência ao poder. Esse contexto, sob a
perspectiva da complementaridade, pode revelar que pais e filhos se encontram
em uma situação pouco flexível, e pouco sujeita à reciclagem (Schnitman,1994).
O jogo pode ser criativo se os participantes, ao observarem as flutuações ao redor,
conseguem utilizá-las para obter novas possibilidades ou para recuperar e reciclar
o que já existe.
De toda a forma, percebemos que ocorrem, nesse campo relacional,
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verdadeiras minilutas pelo poder, nas quais se sobressaem aqueles que


demonstram suas competências e as têm como legitimas e válidas. Nesse sentido,
podemos dizer que o poder é distribuído, redistribuído e disfarçado nas diferentes
instâncias competentes da relação. A hierarquia do poder, vivida em momentos
em que pais e filhos se mantinham em um nível de diferentes lugares de decisões,
abre espaço, esmaece os tons e incorpora a flexibilidade. Acreditamos que tudo
isso configure uma estratégia de lidar com a possibilidade de conflito e os riscos
que este traz a reboque, pois se de um lado encontramos a possibilidade de uso do
poder, atributo dos pais, de outro, contudo, identificamos a disposição do uso de
mecanismos de revide, no caso dos filhos. Essa seria uma conotação da troca
simétrica da relação.
A máxima popular, de outros tempos da nossa cultura, “Manda quem pode
e obedece quem tem juízo”, pertence aos legados da história e serve de referência
para compreendermos alguns deslizes no universo da família. O poder e o
controle, na família brasileira, foram temas amplamente discutidos por Freyre
(1933). Este, compreendendo a família nos limites da visão patriarcal, coloca uma
ênfase maior em sua esfera institucional, em detrimento do sistema relacional dos
seus membros.
Em um estudo posterior, DaMatta (1978) defende que o sistema
hierárquico seja compreendido como o lugar no qual um sujeito tem precedência
197

sobre o outro. Esse autor nos fala de uma prática hierárquica não descolada da
sociedade e da família brasileira de hoje, assim como de uma herança do sistema
patriarcal que transforma a esfera relacional em um território de contradições que
“assombra a nossa existência”. A democracia familiar é, também, feita de
paradoxos, ambigüidades e incertezas. É possível a existência de uma hierarquia
de poder disfarçado, isto é, o “companheirismo e o cuidado” podem mascarar a
manutenção do exercício do controle. Por outro lado, a distribuição e a
redistribuição do poder esmaecem os tons hierárquicos e autorizam a vivência de
uma liderança discutida.

. Diferentes formas de comunicações na rotina

Entendemos que muitas vezes a palavra envolvida na negociação possa ter certo
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custo e, por esse motivo, os indivíduos em interação podem tender a usá-la com
moderação. Assim, podemos identificar outras maneiras de dizer algo ao outro, de
comunicar uma intenção. Observamos nas conversações de nossos entrevistados o
uso constante, ao longo de suas narrativas, de pequenas frases que, apesar de
curtas e breves, dizem muito. Estas são verdadeiras frases de efeito, quase
imperativas, são frases cotidianas, veladamente ameaçadoras, que precisam ser
remarcadas e não podem deixar de ser ditas.
“A palavra representa um papel importante, apesar do peso do silêncio no
campo das relações e para compreendê-la é preciso selecionar suas expressões
sutis.” (Kauffmann, 1992, p. 145) De acordo com essa afirmação, entendemos que
o essencial em uma conversação pode não acontecer nas discussões “oficiais”,
mas se insinuar na banalidade, ou seja, nas conversas corriqueiras ou triviais e na
comunicação não-verbal.
Acreditamos na possibilidade da pequena frase emergir a partir do conflito
ou da contradição. Ela teria uma função liberalizante para quem a pronuncia e de
apelo a quem ela é dirigida, apelo no sentido de “lembrar” que a situação na qual
ela nasceu está, ainda, presente. Assim, ela se inscreve em um contexto ambíguo e
pode se desdobrar em várias mensagens. Dessa maneira, frases como “cuide-se”,
“leva o casaco”, “não lavou a louça”, normalmente proferidas pelas mães na
interação, são carregadas de sentido, apesar da aparência banal.
198

Gabriela relata que, invariavelmente, quando sai de casa, a mãe Gilda lhe
fala: “cuide-se”. Ao ouvir essa frase, Gabriela denomina o que sente como
estranho, que essa recomendação tem um tom deslocado e não a compreende.
“Ela fala um ‘cuide-se’ com uma gravidade, que eu fico nervosa”, ressalta a
mesma. Apesar de não podermos cotejar essa afirmação com a versão de Gilda,
pois o representante do casal parental nessa família foi o pai, nos aventuramos a
refletir sobre a mesma. É provável que exista a possibilidade de que essa pequena
frase carregue uma complexa rede de mensagens, calcada, como já dito, em um
fundo de conflito.
Assim, a intensa repercussão da frase em Gabriela reforça a noção de que a
mesma revele mais do que o simplesmente dito. Os termos destinados aos
sentimentos por ela percebidos, tais como “estranho” e “nervosa”, permitem a
visão do contexto ambíguo envolvido na afirmação da mãe.
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Caio se refere à “forma irritante da mãe” de dizer “leva o casaco”, quando


ele sai de casa, como algo que “meio que me incomoda.” Isso quer dizer que não
incomoda muito, mas incomoda mesmo assim. Caio comenta que não responde a
essa fala da mãe, que se acostumou, “é sempre assim”: contudo, quando pensa
sobre ela, não compreende a sua função.
Talvez, nesse caso, a frase esteja atrelada, somente, à sua função de
liberar, “de soltar a palavra”, como ressalta Kauffmann (1992, p. 153). Sendo
assim, Cláudia não conseguiria manter o silêncio diante das saídas do filho da
residência, e a frase possibilitaria um esvaziamento temporário da angústia. Seria
suficiente que o filho entendesse, mesmo que vagamente, a sua mensagem.
Da mesma forma, Eva não consegue deixar de dizer “não lavou a louça”
para Elisa, mesmo sabendo que ela nunca o faz. Como Cláudia, ela não consegue
deixar de dizer, e o efeito desejado poderia ser o de remarcar uma obrigação da
filha, não realizada. Por seu turno, Elisa comenta: “Eu nunca faço nada na
cozinha, quando eu faço, não vem um reforço disso, é um ‘mas não lavou a
louça’”.
Eva argumenta: “É mesmo, falo isso, mas ela não lava mesmo...” Tal
situação desperta nas duas a mesma circunstância de uma injunção contraditória:
ambas parecem se enredar nessa variedade de mensagens e não vislumbram uma
199

possibilidade de saída. Nesse caso, entendemos que a mensagem da frase é


lembrar o conflito.
O uso da ironia na interação é, também, uma modalidade de comunicação
do tipo indireta, não explícita, que pode ter a função de proteger a relação da
possibilidade de conflito. Ela permite um falar sem risco de atrito e libera a
mensagem de incômodos e desconfortos na relação. Uma conversa entre Cláudia e
Caio na cozinha da residência expõe esse contexto.

“Essa geladeira está fraca de suco de tal fruta e de tal marca.” (Caio)

“É, ela está magra, mas você pode fazer um passeiozinho no supermercado para
ela ficar mais gordinha.” (Cláudia)

A utilização da ironia e da brincadeira disfarça a seriedade da


circunstância. Mascara a intenção de controle e regulação. Nesse diálogo, estão
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expressas a crítica indireta e irônica e a resposta na mesma medida. Cláudia


percebe a ironia, contudo, é capaz de esboçar um raciocínio a respeito e responde
de forma condizente. Ambos utilizam essa forma de comunicação para atenuar um
conflito que poderia surgir da cobrança e do controle.
Também Eva e Elisa valem-se desse tipo de comunicação. Elisa quando
retira uma peça de roupa de seu armário abarrotado, comenta com a mãe:

“Quem vai passar a roupa da filhinha?” (Elisa)

“Eu acabo passando, ela pode queimar a tábua de passar...” (Eva)

A dupla revela a brincadeira como, de certa forma, institucionalizada na


relação. Trata-se de um padrão de interação nesse contexto estrutural. Nesse
sentido, ambas, ao utilizarem tal recurso, se tornam capazes de contar de uma
forma divertida algo que poderia ter sido o motivo de um atrito. Trata-se de uma
representação que atenua o confronto e, todavia é incapaz de mantê-lo fora da
ordem do dia.
O diálogo entre Flávia e Filipe, igualmente, revela a alternativa da
comunicação indireta e sob a forma irônica, entendendo essa modalidade como
uma afirmação por meio da qual se diz o contrário do que se quer dar a entender.
200

“Eu digo para ela, a pilha de camisetas está maior que o Everest!” (Filipe)
“Eu entendo que alguém tem que passar, mas quem?” (Flávia)

Flávia demonstra que compreendeu a mensagem, porém remarca seu


desacordo. Entretanto, isso não a impede de, posteriormente, passar, ela mesma,
algumas camisetas do filho: “Acaba que eu passo umas duas ou três, até o dia que
a diarista vem para passar.” Assim, os objetivos da comunicação por via irônica
são alcançados e torna evidente o poder desse tipo de linguagem em momentos
precisos da interação. Esses dois formatos de comunicação revelam o peso das
palavras e as diferentes possibilidades de lidar com o conflito. A pequena frase de
efeito o atualiza e a ironia o mascara.

. Tateando em busca da distância apropriada na relação


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O indivíduo pode se habilitar, através da escolha, na arte de colocar à distância


diferentes dimensões de pertencimento. Em outras palavras, ele escolhe o que
deseja ter mais perto ou mais afastado de si, conforme o grau de constrangimento
da dimensão em questão. Singly (2007) esclarece essa noção por meio do
exemplo da mochila que, metaforicamente, contém diversas dimensões
identitárias, construídas ao longo da vida. A vida se constituiria em um jogo de
colocar e tirar dimensões da mesma, de acordo com as prioridades do momento. O
conteúdo da mochila não é o que importa e sim o poder de escolher o que entra e
o que sai.
Entretanto, no âmbito familiar, o fato de o indivíduo poder se autorizar a
sonhar com uma vida que congregue, ao mesmo tempo, estar só e estar junto,
pode configurar-se como extremamente ambíguo. Por outro lado, estas duas
opções podem funcionar em um jogo de vai-e-vem, no qual esses indivíduos
definem, escolhem ou hierarquizam o que lhe é mais conveniente. Se for mais
apropriado ser filho de ou pais de em um momento, em outro pode ser mais eficaz
ser companheiro de ou parceiro de. Essa dinâmica representa a possibilidade de
reinvenção das relações entre esses pais e filhos, forjada em passos mais voltados
à simetria e conquistada nas microexperiências da vida cotidiana. As negociações
que irão alargar os espaços pessoais dos filhos – e, da mesma forma, viabilizam
201

um gradual desinvestimento das funções parentais – transformam o ambiente


relacional.
O contexto relacional ora apresentado pode, alegoricamente, ser
explicitado através da idéia dos movimentos das marés: a maré montante e a maré
vazante. Na esfera dessas interações, diferentes dimensões podem ser
hierarquizadas, priorizadas, de acordo com as necessidades do momento. Pode-se
ir e vir, mais próximo ou mais distante, sem que tal movimento possa,
necessariamente, trazer mal-estar. Trata-se de experimentar na prática, avaliar o
que funciona e o que não funciona naquele momento na relação.
Caio tenta escapar do controle da mãe, que quer saber aonde ele vai e a
que horas vai voltar, saindo sem avisá-la. Assim, possibilita que apareça uma mãe
poderosa para cobrar dele essa “falta de consideração”. Por outro lado, essa mãe
controladora e poderosa muda de posição quando Caio, incomodado com a
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intrusão da mesma em seu quarto, devolve as almofadas que ela colocou em sua
cama, dizendo: “Não quero almofadas, põe na sua cama.” Cláudia aceita as
almofadas de volta e tenta repassá-las para o outro filho, que mora sozinho.
Caio, também, muda de posicionamento quando a mãe aventura-se a
aconselhá-lo sobre o seu trabalho: essa “invasão” de seu espaço pessoal o impele
a enquadrá-la em seu posto de mãe de filho adulto.

“Ela não gosta do meu emprego, mas ela não pode dizer nada, não é o fato de ela
não gostar que vai fazer eu mudar alguma coisa.” (Caio)

“Está certo, mas é só preocupação, interesse, nada mais que isso.” (Cláudia)

Entre Helena e Henrique ocorre um intenso movimento de mudanças de


posições, que se alternam em função das provocações do último. Helena é
favorável a um ambiente familiar aberto, igualitário e evita a tomada de decisões
unilaterais, defendendo a co-participação. Henrique, todavia, provoca o
surgimento de uma mãe tradicional e disciplinadora.

“Eu quero que ela me lembre as coisas que eu devo fazer, estou desconcentrado
nos estudos, preciso do reforço dela.” (Henrique)

“Ele que tem que saber isso, é a vida dele...” (Helena)


202

Observamos nesse diálogo que Henrique não se conforma com essa


posição da mãe e apela para uma situação de atrito doméstico (por exemplo, as
roupas mal passadas pela empregada) para instigá-la a exercer o seu papel
tradicional. Dessa maneira, consegue que a mãe se aborreça com ele, embora a
mesma se refira em outro momento da entrevista, à evitação de situações que
possam deflagrar o conflito.
Nesse ponto, lembramos de DaMatta (1978), que, em um sentido mais
amplo, afirma que o rito autoritário indica uma situação de conflito e que o
brasileiro é avesso a crises. O conflito aberto seria um traço do igualitarismo,
marcado pelo pressuposto da diferença de opiniões, e por isso é evitado, assim
como é visto como um sentimento que deve ser reprimido. Não pode ser visto
como uma crise no sistema, pois requereria uma modificação no próprio sistema,
na teia das relações. Por isso, o conflito é pessoalmente circunscrito e tende a ser
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resolvido a nível pessoal. Entendemos que essa herança cultural pode estar
presente nas relações e coexiste com as premissas igualitárias. Ressaltamos que,
nas famílias entrevistadas, encontramos uma forte tendência à evitação de
situações sujeitas ao conflito e, todavia, apesar disso, o conflito insinua-se.

Batemos boca, às vezes, por causa de bobagens dele.” (Helena)

“É, às vezes dou uma de reizinho, de mimadinho, mas ela fala, manda, então,
lavar a roupa fora.” (Henrique)

Assim, Helena o recoloca no lugar de filho adulto e ele reconhece a


situação. Notamos que o vai-e-vem das posturas dos dois se conforma com um
verdadeiro ensaio geral das distâncias apropriadas na relação. À medida que
contam a situação, ao longo das entrevistas, percebem os contornos do relato e se
vêem às voltas com possíveis interpretações para a narrativa: “viro filhinho” e
“não quero mais isso para mim”, dizem, respectivamente, Henrique e Helena.
O conflito pode ser o desencadeador de uma negociação, como também,
da alternância de posições na relação. Simmel (1912) defende a idéia de conflito
como uma forma de unificação e aponta para a reciprocidade entre os opostos.
Portanto, amor e ódio, harmonia e dissonância, associação e competição, simpatia
e antipatia não são simplesmente antípodas, são categorias interativas e, portanto,
importantes e positivas para o indivíduo.
203

Diante de uma situação conflitante, Elisa se transforma em mãe de sua


mãe.

“Quando ela fica irritada, eu me irrito também, ela fala muito, eu falo: pára de
falar, ela fala mais alto.” (Elisa)

“Ela é intolerante e ríspida, eu me aborreço muito com isso, mas é do momento,


eu cedo.” (Eva)

“É a forma dela de ser, não tem muito jeito, a gente pontua e tal, eu peço o apoio
do meu pai.... ah, com um “Né pai?” Ele não entra na coisa, mas sinto que
concorda.” (Elisa)

Elisa tenta enquadrar a mãe e utiliza o pai como o vértice de um triângulo,


contando com o seu apoio, não declarado verbalmente. Eva se cala diante da filha.
Observamos que essa atitude tem a ver com o reconhecimento da competência de
Elisa na relação. Essa competência, legitimada na convivência, transforma o olhar
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da mãe sobre a filha.


A respeito da formação triangular na dinâmica familiar, Bowen (1988)
ressalta que, diante de um conflito não passível de resolução, existe a tendência de
se buscar uma terceira pessoa. Assim, a triangulação passa a ser a menor unidade
estável do relacionamento. Triangular na dinâmica familiar pode significar uma
tentativa de reestabelecer o equilíbrio. O autor parte da suposição de que a relação
entre duas pessoas abarca um ciclo de proximidade e distância, e é justamente
quando a distância predomina que a triangulação ocorre.
Vejamos outra situação em que ocorre uma alternância de dimensões
pessoais, iniciada pelo conflito e transformada pelo reconhecimento da
competência.

“Brigamos quando eu já sei o que ela está falando, me irrita, ela fica repetindo
uma coisa que eu falei primeiro que ela, que eu coloquei antes, que eu questionei
antes dela.” (Henrique)

“Ele tem razão, mas aí, eu paro.” (Helena)

Todos os relatos desse subtema expõem fronteiras suficientemente nítidas


entre os membros, para proporcionarem a proteção necessária de cada espaço
pessoal na relação. Por isso, esses indivíduos são capazes de alternarem suas
posições, de acordo com as necessidades do momento, sem a ameaça de perda de
204

autonomia. Ao contrário, nos relato de Alice e Amanda encontramos o oposto, ou


seja, fronteiras difusas, características dos emaranhamentos familiares.
Duas questões se distinguem, nesse caso, em função da proximidade e da
distância, na relação de ambas. Quando estão no espaço da casa, lembramos que o
quarto de Amanda é uma extensão da casa e não um território privado, Amanda e
Alice se encontram em um nível de proximidade que as impede de experimentar o
jogo de ir-e-vir relacional. A escrivaninha antiga de Alice que pode ser entendida
como metáfora do poder da mãe, “passeou” por vários espaços da casa, até se
enraizar no quarto de Amanda, apesar de seus protestos.

“Se eu quisesse dar um jeito na minha bagunça, arrumar melhor, eu até poderia
sugerir de tirar ela de lá, encontrar outro lugar para ela.” (Amanda)

“O quarto dela é grande.” (Alice)

“Ela gosta de coisa entulhada, eu não, eu gosto de espaço, mas isso foi ficando
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esquecido no dia-a-dia, vai ficando.” (Amanda)

Amanda precisa fazer um “esforço” para se distanciar da mãe e assegurar


sua autonomia. Por outro lado, Alice não demonstra facilitar esse empreendimento
da filha e parece não identificar as competências da mesma. Assim, a
incapacidade em abrandar o grau de proximidade torna-se real e dificulta o
distanciamento suficiente e necessário para um nível maior de autonomia e à
possibilidade de validação de habilidades na relação. O jogo relacional não pode
acontecer desse modo.
Por outro lado, diante da conversação mantida entre Berenice e Breno,
apontamos para uma comunicação baseada em padrões de interações rígidos e um
sentido frouxo de pertencimento. Com isso, percebemos o distanciamento e a
pouca capacidade de funcionarem de um modo interdependente. Iguais parecem
ser as atitudes de Doris e Diana em sua convivência: ambas demonstram manter
autênticas barreiras entre si, as quais dificultam as trocas e a possibilidade de
atuarem na base da cumplicidade e do apoio. Observamos, nos dois exemplos, que
as relações travadas entre esses membros encontram-se bastante afetadas por
conflitos, ora explícitos, ora silenciosos, e calcados em transações invisíveis.
Segundo Bowen (1988), se os membros da família são capazes de
distinguir um processo emocional de um processo intelectual, poderiam reagir de
205

forma a diferenciar o sentir e o pensar na dinâmica interativa. Poderiam, assim,


alternar a vivência da autonomia e do pertencimento de acordo com a pauta do
momento. A maior parte das pessoas almeja alcançar uma maior individualidade,
no entanto “resiste em abandonar o togetherness requerido para essa aquisição”.
(p. 107)
O que nos parece é que, nessas condições ocorre um verdadeiro paradoxo
na relação. A dinâmica interativa, afetada pela situação de conflito, perde a
capacidade de refletir e negociar as diferenças. Assim, esses indivíduos estão tão
próximos que não percebem formas alternativas para, nesse contexto, se
diferenciarem um do outro. Na presença do conflito, ocorre uma intensa
proximidade, apesar da rigidez e do distanciamento.
Ainda tendo as famílias B e D como pontos de reflexão, destacamos pistas
retiradas de seus discursos, que demonstram as lutas, os ajustes e as estratégias, no
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âmbito da relação, em prol da diminuição do distanciamento e do aumento do


pertencimento. Na família B, tanto Berenice quanto Breno utilizam um mesmo
cartão de crédito, sendo que Berenice é a titular e Breno, seu dependente. As
faturas para o pagamento vêm discriminadas individualmente, porém são dirigidas
à Berenice. Esta, quando chega a fatura, destaca a parte de Breno e a coloca no
quarto do mesmo. No dia do pagamento, Berenice lembra o filho de deixar um
cheque e ela o deposita em sua conta bancária. No dia seguinte, Breno pergunta à
mãe se ela depositou e se tudo correu bem. Com isso, percebemos a sequência de
movimentos que aproxima a dupla, incrementando-lhes a comunicação por meio
do uso do cartão.

“Eu não preciso desse cartão dela, tenho outros, mas é como um terceiro braço, se
ela precisa de alguma coisa, me pede, eu compro e a gente acerta depois, o
mesmo ela faz por mim, quando é aniversário dos meus sobrinhos, ou qualquer
outra coisa, peço a ela para comprar o presente e pago depois.” (Breno)

“É, acho isso bom, eu telefono ou ele me telefona da rua, combinamos, depois
acertamos.” (Berenice)

Na família D, identificamos, na intensa discussão sobre o lugar onde ficará


o ponto da Net20 na residência, uma forma de manter os membros ligados e se
comunicando.

20
Canal de televisão via cabo.
206

“O ponto da Net na casa tem que ser discutido, não pode ficar no quarto dela,
acho que deva ficar na sala e beneficiar a todos.” (Doris)

“Essa discussão não existe, porque não põe dois pontos?” (Diana)

“Nós quase nunca assistimos televisão...” (Doris)

O consenso sobre o local do ponto da Net, embora possa explicitar o


sentido de um controle parental, também revela a estratégia de manter a
comunicação entre os membros na ordem do dia. Essas tentativas de conversas e
possíveis combinações, em torno do assunto, vêm se arrastando há alguns meses,
de acordo com Doris. Enquanto não resolvem tal situação, asseguram
minimamente a comunicação entre si.
De toda a maneira, as referências às famílias A, B e D nos apontam a
dificuldade em alternar posições e a vivência dos jogos relacionais de ir e vir, que
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permitem a descoberta de novas possibilidades na relação. Por outro lado, ao nos


ocuparmos do diálogo entre Gabriela e Gil, identificamos a experiência plena da
dimensão do companheirismo e da cumplicidade na relação. A lista de compras é
feita em conjunto, igualmente os almoços de fins de semana, assim como as
saídas para degustação de vinhos, que mobilizam os três.
Todavia, explicitamos o seguinte diálogo:

“Às vezes não sei o que dá nele, por exemplo, outro dia, eu estava na sala vendo
televisão e coloquei os pés na mesa de centro, ele teve um ataque.” (Gabriela)
(risos) “É um deslize, eu sei que não tem nada demais isso...” (Gil)
“Eu fiquei danada, briguei que nem adolescente e fui para o quarto.” (Gabriela)

Pais e filhos transitam de uma dimensão à outra, permitindo-se o interjogo.


Os deslizes e as recuperações são possíveis, em virtude de ocorrerem em uma
circunstância dinâmica que suporta essas situações. Tal condição é alcançada por
meio de negociações e manifesta-se em um contexto de confiança e favorável à
espontaneidade.
A alternância no campo das dimensões relacionais – em função da escolha
do que seria mais adequado para o momento ou nos termos de Singly (2007), a
hierarquização identitária – desdobra-se em uma mobilidade contínua. Trata-se de
207

uma sucessão de avanços e recuos, que se constituem como estratégias de


convivência. Dessa maneira, observamos que as famílias C, E, H e G, em suas
dinâmicas interativas, evoluem no sentido de alternar as dimensões relacionais. As
famílias A, B e D não apresentam essa alternância, dentro dos limites observáveis
nessa pesquisa, em virtude da rigidez das fronteiras que demarcam seus espaços
individuais. Esses membros da família não flexibilizam suas atitudes, estando ora
muito próximos, ora muito distanciados, o que inviabiliza o jogo interativo.

5.5.3
Duas lógicas diferentes em ação

A prática cotidiana no universo interacional entre pais e filhos adultos é


provocante e instiga questionamentos, quando não deflagra confrontos. As
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diferentes concepções de mundo e de vida, decorrentes das experiências de cada


uma dessas gerações21, podem ser mobilizadas e tornarem-se suficientes para uma
possível eclosão de conflito ou para a emergência de seu oposto, o silêncio, isto é,
o não-enfrentamento.
A vivência do cotidiano põe em cheque essas questões, como pudemos
identificar nas conversações de nossos entrevistados. Estes deixam transparecer
contrastes e ambigüidades, quando o foco de discussão vem a ser a esfera do
trabalho e a vida afetiva dos filhos, pois os valores e ideais envolvidos em seus
discursos se constituem como duas lógicas contraditórias. Estas esferas remetem
os membros em questão a deslocamentos constantes e instáveis, por serem regidas
pela incerteza e instabilidade, tensões comuns à sociedade contemporânea.
Assim, esse encontro intergeracional indica uma descontinuidade de
valores e comportamentos de uma geração para outra, no que concerne às esferas
apontadas. Desse modo, duas lógicas simultâneas e coexistentes se dão a ver, em
um lugar onde convivem, no mesmo espaço, adultos em diferentes posições – pais

21
É importante esclarecer que, ao longo desse item, utilizaremos os termos geração ou dimensão
geracional, sempre relacionando-os à experiência social. Esta é compreendida como vivida e
ligada a uma conjuntura histórica e a determinadas particularidades do estrato social em questão.
Dessa maneira,a experiência social marcaria, profundamente, as concepções de mundo e de
sociedade dos entrevistados.
208

e filhos –, e que, quando possível, podem experimentar a alternância dessas


posições. No caso das posições serem rígidas, o conflito pode aparecer. Contudo,
se houver flexibilidade, sabemos que o caminho em direção ao consenso é uma
variação factível.
Esse tema desdobra-se nos seguintes subtemas: o mundo do trabalho sob a
ótica da relação; o uso do dinheiro; a dimensão da vida afetiva dos filhos na
perspectiva relacional e a saída negociada.

. O mundo do trabalho sob a ótica da relação

A partir dos discursos de nossos entrevistados, percebemos que as diferenças na


percepção da esfera do trabalho entre pais e filhos podem produzir um terreno de
ambigüidades no espaço relacional. A geração dos pais, no que tange à esfera da
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vida pública, é notoriamente influenciada pelas noções de compromisso e


lealdade, valores vinculados à idéia de durabilidade e de política de longo prazo.
São característicos desta geração termos como segurança, visibilidade e
amplitude, que denotam o quanto importa para quem pertence ao estrato social
médio e médio alto a idéia de uma carreira e da realização através do trabalho.
A geração dos filhos, por outro lado, pode representar o mundo do
trabalho em uma perspectiva de curto prazo e da provisoriedade das experiências
sociais, características do momento contemporâneo. A tática que se afigura como
mais adequada para lidar com estas questões, como também com o imediatismo e
a velocidade da informação, segundo Tapscott (1998), se converte na atitude
empreendedora. O modelo de empresa tradicional – no qual existe hierarquia,
controle, comando e metas que consistem em subir na estrutura empresarial –
pode não se encaixar nas mentalidades destes jovens que buscam liberdade e
ausência de hierarquia, ou apresentam atitudes reveladoras de ousadia e inovação,
que contrastam com tal estrutura.
Se por um lado os pais vislumbram um futuro para os filhos em termos da
construção de uma carreira, por outro os filhos descrêem em um futuro nesse
sentido, temerosos da instabilidade e insegurança geradas pelas transformações
operadas nesse domínio. Assim, é comum encontrarmos nos discursos dos pais
209

referências à “acomodação” dos filhos diante de suas dificuldades de inserção no


mercado de trabalho: e, nos discursos dos filhos, identificarmos em suas
percepções sobre os pais, expressões como “parados no tempo.” (Henriques,
2004)
O diálogo entre Gil e Gabriela nos aponta o nível, as marcas, das
repercussões do ambiente cultural sobre os discursos de cada uma das duas
gerações.

“Eu comecei a trabalhar com 18 anos em uma estatal, trabalhava como


desenhista, depois fiz escola técnica e depois fiz engenharia, eu tive a
oportunidade de ver um campo profissional na minha frente.” (Gil)

“Eu acho difícil de se ter uma consciência como essa hoje.... O mercado é
complicado, às vezes temos que mudar de especialidade, tem que ralar e aceitar
estágio sem remuneração, ganhar pouco para depois poder ganhar decentemente,
a minha geração precisa muito mais dos pais do que a sua.” (Gabriela)
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Ambos relatam suas visões do campo, refletindo sobre as possibilidades


reais de cada uma das gerações, em direção à conquista de um lugar no mercado
de trabalho. Gabriela aponta as adaptações ou as mudanças de percurso
necessárias para um jovem ingressar nesse mundo. Essa reflexão vai ao encontro
da afirmação de Sennett (1998), que pontua a morte lenta da carreira tradicional e
a utilização de um único conjunto de qualificações no decorrer de uma vida de
trabalho. Hoje, um jovem americano, segundo o autor, pode esperar mudar de
emprego pelo menos onze vezes no curso de sua vida, e “trocar sua aptidão básica
pelo menos outras três durante os quarenta anos de trabalho”. (p.23)
Prosseguindo em nossa análise, identificamos nas famílias A, C, D, F e H
o confronto entre as duas lógicas apontadas e a dificuldade no reconhecimento
dessas variações. Os posicionamentos parecem ser rígidos e em conseqüência
percebemos pouca flexibilidade.
O diálogo entre Amanda e Alice reflete essa realidade:

“Sei que tenho um emprego estável, mas no momento o que está pegando é que
eu não estou satisfeita com o meu trabalho, queria procurar outro emprego e
ganhar melhor, não gosto do que faço, hoje para mim é um suplício agüentar.”
(Amanda)
210

“Eu entendo, mas isso de você querer estar satisfeita com o que faz eu não
acredito, ninguém está satisfeito na profissão real, no princípio é bom, mas depois
vem a rotina.” (Alice)

“Ela diz que eu estou numa grande empresa, talvez das melhores do país, mas,
pode ser que eu consiga trabalhar em uma empresa pequena e ficar bem.”
(Amanda)

“Vai ser a mesma coisa.” (Alice)

Amanda demonstra dificuldade em expor a sua idéia de trabalho aliada a


uma prática prazerosa: o fato de estar em uma estrutura tradicional, estável e
previsível a paralisa. Nessa medida, revela que nesse campo, não contraria as
expectativas familiares concernentes à sua prática profissional. Evidencia,
igualmente, ter internalizado a ideologia da produtividade, embora possa
vislumbrar outros projetos, antagônicos aos propostos pela geração mais velha. A
mãe remarca a idéia de trabalho descolado do prazer, endossa a tradição e nesse
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confronto, observamos que não há lugar para a troca criativa, tampouco para a
busca de alternativas para essa imobilidade.
Doris e Diana entram em um debate direto e sujeito a conflito, em função
das diferenças de opiniões a respeito da carreira de Diana. Esta trabalha em um
banco de investimentos financeiros e a mãe a reprova por não cuidar do
desenvolvimento de sua carreira, se preparando para um concurso público, pois o
seu trabalho, de acordo com Doris, pertence à categoria dos empregos voadores,
sujeitos aos humores do mercado global das finanças. No conceito de Doris,
Diana estaria acomodada em um emprego que não valoriza seus investimentos
acadêmicos.

“Ela precisa parar e pensar no futuro dela, na carreira dela, ela está super
preparada para isso, estudou fora, investiu....” (Doris)

“Eu ganho bem, estou satisfeita e gosto do meu trabalho, sei que é instável, mas
tudo bem....” (Diana)

Diana, por seu lado, descarta os projetos da mãe em relação à sua carreira,
para ela basta o “aqui e agora”. Para Sennett (1998), as qualidades do
compromisso, da lealdade e da confiança, associadas à durabilidade, entram em
conflito com as características da nova realidade conectada à flexibilidade e
211

inerente ao sistema de curto prazo. As novas relações de trabalho operam em


bases móveis, episódicas e fragmentadas, criando dessa forma a instabilidade e o
descompromisso.
A partir dessas diferenças, ambas se envolvem em constantes atritos,
quando o assunto é o trabalho. O terreno é movediço, em virtude da ambigüidade
que ronda essas posições, defendidas por cada uma delas. Doris, por exemplo,
sugere à filha que faça um concurso público, ao mesmo tempo que a incentiva a
sair do país e fazer uma carreira no exterior. Uma dupla mensagem altamente
desorientadora.
Para Helena, o filho também está acomodado, visão similar a de Doris,
sendo que a diferença entre Diana e Henrique consistiria no fato do último ser
funcionário público. De acordo com Helena, o filho deveria focar mais na carreira
e se preparar para concursos de um nível salarial maior. Henrique pensa da mesma
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forma que a mãe e, contudo, se diz “desconcentrado” e despreparado para um


concurso de tal nível, ressaltando que a mãe não conhece a realidade dessas
provas.

“Eu sou muito dedicado ao meu trabalho, gosto dos desafios, trabalho mais com
indivíduos carentes no social e a minha mãe não entende que me sobra pouco
tempo para o estudo e que é dificílimo passar nesses funis de concursos.”
(Henrique)

“Você já passou em um, porque não vai passar em outro? É só se concentrar, sair
menos nos fins de semana....” (Helena)

A pequena frase final desse diálogo expõe a intenção da mensagem e exibe


o conflito entre os dois, no que concerne às diferentes maneiras de perceber o
mundo e a vida, em um sentido mais largo. Helena discorda do jeito hedonista de
ser do filho: “deveria buscar menos o prazer pessoal, do momento e focar no
futuro.” Mãe e filho não escapam da polarização de opiniões. Aos olhos de
Henrique, a mãe não valoriza a qualidade e o alcance de seu trabalho, assim como
as repercussões do mesmo em sua auto-estima. Em um plano mais abrangente,
trata-se de uma visão, pela qual um valor como sucesso econômico se sobrepõe ao
retorno no plano pessoal e a realização profissional se encontra discriminada do
êxito econômico. De toda forma a polarização de opiniões acerca do trabalho,
entre Helena e Henrique, é atravessada pela crítica da primeira à postura do
212

último, que consiste em privilegiar o momento e buscar o prazer a todo o preço,


em detrimento da responsabilidade.
Os pais de Caio e Filipe não compreendem a lógica que rege o campo de
trabalho de seus filhos. A fala de Caio ilustra, sob seu ponto de vista, o nível de
incompreensão do pai a respeito do que faz profissionalmente.

“Eu argumento com ele como é injusto ele reclamar quando eu chego tarde, eu
acordo na hora e vou trabalhar. Eu estou acostumado a trabalhar virado, faço
muito plantão, entre os meus colegas, até o meu chefe, existe cumplicidade nesse
quesito, a gente apóia um ao outro. Sempre tem um cansado e estressado na
equipe. Ele não entende porque não é a realidade dele, ele é economista, trabalha
há anos na mesma empresa...” (Caio)

A ótica vertical de relacionamento acolhe a lógica tradicional, que orienta


o mundo do trabalho desses pais. Dessa forma, uma perspectiva calcada em
relações horizontais e não-hierarquizadas pode ficar distante da realidade dos
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mesmos. Os passos em direção a uma simetria na relação apresentam-se contidos,


assim, as diferenças aparecem soberanas.
Igualmente, Filipe narra a dificuldade da mãe em compreender o seu
trabalho. O mesmo é produtor cultural e trabalha por contratos de projetos curtos.
Como seu trabalho envolve filmagens, parte dele é realizado em casa, onde edita
as imagens no computador. A partir da entrevista entre mãe e filho, cujo assunto,
no momento, versava sobre o fato de Filipe, quando está em casa, ficar fechado
em seu quarto a maior parte do tempo, identificamos o seguinte material.

“Você poderia sair um pouco do quarto, saber das coisas...” (Flávia)

“Às vezes estou trabalhando... Para falar a verdade eu acho que no fundo, eles
pensam que eu estou vendo televisão... Não sei ... Vejo pelos olhares,
comentários dias depois, não sei se entendem, mas também, não tem como, eu
vou continuar, eu vou fazer assim porque acredito que é melhor para mim. Mas
eu acho até que, às vezes, eles entendem, mas sei que é difícil para eles, é meio
fora do mundo deles, meu pai sempre trabalhou em estatal e minha mãe quase
nunca trabalhou.” (Filipe)

A geração dos pais, de acordo com Ventura (2008) “é dogmática, apostólica,


cheia de crenças e de fé.” (p. 27) Como podemos perceber, essas representações
foram forjadas em cenários bem diferentes e, como tal, constituem visões distintas
de uma mesma realidade, o trabalho de Filipe. Essa situação assenta-se sobre um
213

fundo de conflito, de diferenças não negociadas. Talvez a dificuldade maior em


sair do impasse esteja no fato de essas noções integrarem parte da bagagem
cultural de cada uma das gerações. São crenças e as mesmas podem ser
inegociáveis, pois associam-se a questões como mérito, esforço, responsabilidade,
entre outras. Na qualidade de herdeiros, os filhos esforçam-se em priorizar,
descartar, ou até mesmo manter esses imperativos.

. O uso do dinheiro

Opinar sobre os destinos dos salários dos filhos parece constituir uma realidade na
dimensão parental, de acordo com as narrações de nossos entrevistados. Essa
atitude, todavia, pode desqualificar a competência da geração mais nova, o que
nos leva a refletir sobre os mecanismos de poder e de controle dos mais velhos
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utilizados na interação. Mesmo que tenham as melhores das intenções e adotem


uma perspectiva de “ajuda e cuidado”, essa dinâmica pode interferir na autonomia
dos filhos.
As famílias B e E não revelam diferenças em relação às escolhas no
domínio do trabalho. Berenice, por exemplo, ressalta que Breno, ao incorporar-se
nas Forças Armadas como assessor jurídico, deu continuidade à tradição de sua
família, já que seu pai e seu avô eram militares. Berenice diz: “Não falo nada a
respeito da carreira dele, os rumos que ele quer seguir, ele que sabe.” De toda a
forma, dentro do programa da carreira militar, ela não vê motivos de preocupação
com a estabilidade financeira do filho.
Eva diz que respeita muito a escolha da filha e aprecia o seu percurso
profissional: “Ela é guerreira, trabalha muito, não tenho dúvida que ela vai se dar
bem na profissão.” Entretanto, discorda da filha quanto ao uso do dinheiro que a
mesma ganha com o seu trabalho. “Ela não guarda, gasta muito, ela podia poupar,
pensar mais no dia de amanhã: hoje ela tem tudo aqui, mas no futuro...”
Berenice vai um pouco mais além. Não só discorda da forma como o filho
se organiza financeiramente, como também, do ponto de vista de Breno, ela teria
sentimentos ambivalentes em relação aos gastos dele. Vejamos o diálogo entre os
dois:
214

“É muito fácil para o filho que trabalha, ficar na casa dos pais e aproveitar o seu
dinheiro em seu próprio benefício, trocando de carro, comprando, viajando,
comendo em bons restaurantes e os pais bancando todas as despesas da casa.”
(Berenice)

“Eu queria que ela mensurasse o que eu dou de gastos aqui, garanto que não é
uma quantia ...” (Breno)

“Mas não é isso...” (Berenice)

“Ela não acha correto eu trocar de carro e ela não, é um ciúme da minha mãe
comigo.” (Breno)

Berenice aponta a desigualdade na relação, no que tange à destinação dos


recursos para o bem comum, isto é, as contas da casa, o abastecimento etc. No
caso de Flávia e Filipe, a primeira afirma que desconhece a vida financeira do
filho, o quanto ganha e gasta. Percebemos através da sua fala sobre os gastos e as
contas da casa, a presença de um sentimento de desigualdade de investimentos
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nos assuntos de família, uma vez que ela relata que o filho conhece o orçamento
da família, o valor das contas e tem uma idéia da renda dos pais.

“Os gastos com luz, telefone, a conversa não surte efeito, o que fazer, cobrar
dele? Não temos essa iniciativa, é difícil, no fundo temos a consciência que a
casa é nossa, é nossa responsabilidade. Ele deve gastar o dinheiro que ganha com
as coisas dele. Ele tem uma idéia, deve ter, do nosso orçamento, a gente comenta,
mas ele é muito fechado quanto a isso.” (Flávia)

“É, a casa é deles, eu estou me esforçando para juntar dinheiro para poder sair em
boa condição.” (Filipe)

Filipe opta por manter seu lado financeiro longe dos olhos dos pais e esse
distanciamento provoca ruptura e desligamento do projeto familiar. O
compartilhamento e as trocas ficam comprometidas, daí o sentimento de
desigualdade de investimento percebido no discurso de Flávia. Por outro lado, não
podemos deixar de remarcar o fato dos pais não colaborarem no engajamento de
Filipe na gestão do cotidiano da casa. Ao enfatizarem o tanto de responsabilidade
que lhes cabe nessa gestão, uma atitude complementar pode ser esperada pelo lado
do filho, isto é, a não-responsabilização.
Nas famílias A, D e H identificamos a visão da incompetência na
administração do dinheiro, na perspectiva das mães.
215

“No setor financeiro eu lido bem, estou segura nisso, tenho um nível de
organização e planejamento... Quando ela me ouve, ela tem uma prova de como é
bom saber controlar, se a pessoa sabe administrar, facilita muito a vida.” (Alice)

“Sou péssima em finanças, mas estou melhorando, não cheguei ao nível dela, mas
eu quero isso, quero ter isso.” (Amanda)

“Tenho a impressão que ela gasta quase todo o salário dela em shoppings, compra
muito, não existe mais lugar na casa para as coisas dela ... pelo menos, eu sei que
ela investe algum dinheiro no mercado financeiro, mas podia ser menos
consumista, guardar um pouco, ela não sabe o dia de amanhã.” (Doris)

“Eu estou aproveitando que eu sou jovem e não tenho muitos compromissos.”
(Diana)

“Eu acho que ele encara o salário dele como uma mesada, não encara como
salário de um homem da idade dele.” (Helena)

“É a primeira vez que ela fala isso comigo, mas não posso discordar, não guardo
dinheiro e não faço planos, esse emprego que tenho para mim é passageiro, devo
ir para um melhor, então me divirto, não me imagino casado com esse dinheiro
que eu ganho, me imagino solteiro e filho da minha mãe.” (Henrique)
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Diante desses diálogos, percebemos que, sob o ponto de vista dos pais, a
sua lógica não está em questão, e talvez possamos dizer que ela seja
inquestionável aos seus olhares. O grau de intensidade de suas perspectivas a esse
respeito pode ser incrementado por padrões interativos rígidos, calcados no poder
hierárquico e ainda não negociados, que as suas posições lhes conferem. Ainda
podemos refletir sobre a possibilidade dessa rigidez se fundar na defesa dos papéis
ativos de pais, isto é, no estatuto antigo da função. Nesse momento de suas vidas
pode ser esperado um início de reversão, ou seja, a possibilidade de em um futuro
próximo, as palavras dos filhos, além de validadas, alcançarem a preponderância
na relação. Nesse sentido, manter um ponto de vista pode significar “agarrar-se” a
uma posição de poder, poder de pais, mesmo que atenuado, discutido ou
disfarçado.
Dessa forma, observamos que, em relação ao tema do uso do dinheiro, os
pais deslizaram entre o sentimento de desigualdade na relação e a versão da
incompetência dos filhos. A desigualdade seria compreendida como falta de
engajamento dos filhos no projeto familiar, e a outra percepção, conotaria os
filhos como incompetentes no destino de seus salários. Agindo dessa maneira, as
suas visões tendem a rigidez e a unilateralidade. Sendo assim, acreditamos que
216

nas trocas próximas da simetria, características dessas relações, existe espaço para
a tensão, para a ambivalência e para o conflito, em virtude da presença das
diferentes lógicas que orientam as duas gerações.

. A dimensão da vida afetiva dos filhos na perspectiva relacional

Nesse subtema, pretendemos expor o confronto entre as diferentes noções, acerca


da vida afetiva da geração mais nova que povoam o imaginário de nossos
entrevistados de ambas as gerações. As famílias A, B, E, H e G narram suas idéias
sobre tal assunto, revelando as singularidades de suas visões e, ao mesmo tempo,
os pontos de contato com as premissas culturais contemporâneas.
Alice, constantemente, opina sobre a vida afetiva de Amanda.

“Eu falo para ela, relacionamento e casamento é que nem trabalho, uma hora você
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conhece tudo, é a rotina... Eu procuro mostrar para ela como o namorado dela é
devagar, acomodado, ela tem que ir trabalhando isso com ele.” (Alice)

“Ela fala em perda de tempo, não usaria essa palavra, mas não sei o que usar, não
acho perda de tempo.” (Amanda)

A visão de Alice revela uma perspectiva sólida, controlável, e que faz


parte de um conjunto de “verdades” por ela construído ao longo de sua
experiência de vida. Essa visão contrasta com a da filha e, contudo, essa não
encontra palavras que revelem a oposição ou que relativizem o rígido ponto de
vista da mãe. De toda a forma, identificamos o confronto de idéias. Ventura
(2008) aponta que a atual geração jovem, a “geração do milênio”, se depara com a
descontinuidade em relação à geração dos pais, a “geração maio de 68”. Algo da
ordem do sonho da era de Aquário ao pesadelo do aquecimento global. A geração
maio de 68 queria tudo a que não tinha direito, a atual tem tudo que precisa e
talvez por isso, se revela ambígua e paradoxal.
Nessa medida, a ambiguidade apontada remete a uma idéia de falta de
bússola que indique uma opção, entre tantas possíveis. Amanda não se considera
perdendo tempo com um namorado “devagar”: sua noção de tempo baseia-se no
“aqui e agora”, em um fluir no relacionamento que possibilite o retorno desejado.
Giddens (1992) mostra que o “amor confluente”, significando um vínculo
217

amoroso próximo e continuado com outra pessoa, é um amor ativo e contingente


que entra em choque com o “para sempre” e “único”, máximas da tradição.
Breno retoma o discurso, por ele considerado injusto, de Berenice sobre o
prazo para ele sair de casa, a fim de falar da sua dificuldade em morar sozinho e
da ansiedade em relação ao sucesso de seus relacionamentos afetivos.

“Quando te dei o prazo, eu não pensei em casamento, pensei que você teria mais
de 30 anos e poderia morar sozinho.” (Berenice)

“Eu não quero morar sozinho, quero dividir com namorada, de preferência
casado, não sou que nem ela (mãe) que quer morar sozinha. O meu
relacionamento com a ex não deu certo, agora estou começando com a Bianca,
espero que agora eu acerte, não sei, tomara que sim, é difícil, mas uma hora a
gente acerta.” (Breno)

Relacionar-se é uma exposição ao risco e à ansiedade. Talvez a


problemática dessa condição seja mesmo a noção de relacionamento, que
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comporta a perturbação, o vago e o sombrio, revela o prazer e o fechamento nos


limites do convívio. Entendemos que se trata de uma idéia em aberto, em busca de
redefinição. “O conjunto de experiências as quais denominamos amor, expandiu-
se muito” (Bauman, 2003, p.19)
Dentro de um panorama mais amplo, a sociedade consumista alimenta a
perpetuação do desejo e dessa forma, detém os avanços do compromisso. O
indivíduo se encontra entre “a cruz e a caldeirinha” e pode confundir-se diante do
ato de fechar ou abrir as portas para novas possibilidades amorosas.
Eva demonstra sua preocupação diante da troca constante de parceiros de
Elisa, e esta se preocupa com o apego da mãe aos seus namorados. A idéia de
futuro não está na ordem do dia da última, ao contrário da mãe, que cobra os
netos. “Eu quero netos!” diz Eva à Elisa, em um tom sério e impositivo,
percebido, também, por meio da expressão de sua face de “cenho franzido” e
olhos marejados. Elisa tenta desanuviar o momento, através de uma brincadeira:
“Só aceito essas chantagens no Natal!”

“A gente fica mais tempo na casa dos pais, acaba que eles conhecem mais nossos
parceiros, se você não tivesse casado cedo aconteceria o mesmo... e tem a coisa
de poder ser ficante, adia um pouco fazer os vínculos.” (Elisa)
218

“Eu entendo, há um tempo eu não entendia, mas agora aceito, mas me preocupo
que ela não faça família, desse jeito fica difícil, varia muito.” (Eva)

“Essas preocupações estão distantes para mim, acho que tudo tem um tempo, as
coisas podem ir fluindo.” (Elisa)

Elisa pontua todo o contexto na compreensão de sua atitude do momento,


a de ser “ficante”. Uma atitude, sob a ótica de alguns autores como Lasch (1974),
Chaves (2001) e Bauman (2003), que reflete o descompromisso, uma
característica contemporânea. O indivíduo ingere o relacionamento de forma
voraz, fica com vários parceiros, numa troca infindável de objetos sem
identidades definidas, na esperança de não sentir um vazio, uma falta interna. Em
alguns momentos ele se dá conta de que ficar é um paliativo, uma ilusão; em
outros se deixa levar pelo prazer imediato da experiência.
A variabilidade de parceiros de Elisa se choca com o projeto de vida
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familiar desenhado por Eva. Se a filha não lhe der netos será uma falha no
desempenho de seu papel de mãe? Essas diferenças colocam em jogo não só o
não-enfrentamento direto, ou seja, a “aceitação” como recurso de convivência,
como também o aspecto de perda ou fracasso no decurso do ciclo vital familiar.
Henrique se refere à observação da mãe, em relação a cada namorada que
leva para conhecê-la, como sempre a mesma: “Ah meu filho, essa é a certa!”
Ressalta que após esse comentário, ou se diverte e brinca ou se irrita e faz planos
de não apresentar mais nenhuma parceira à mãe. Helena, dentro de sua
perspectiva de sentimentos sólidos e duradouros, tenta enquadrar o filho sob a
mesma ótica.
Gil e Gabriela travam o seguinte diálogo em seqüência:

“Ela terminou o namoro há um mês e pouco atrás, foi uma pena, eu gostava dele,
ele era ótima pessoa, agora vai começar de novo, as saídas até tarde...” (Gil)

“Terminei um namoro que não estava me dando o retorno que eu queria, vou
buscar outras coisas, outras pessoas.” (Gabriela)

Atualmente, de acordo com Lipovetsky (2002), existe uma nova forma de


relacionamento interpessoal, menos colada aos deveres e mais ligada à realização
pessoal. Em suma, o indivíduo de hoje é mais crítico no que tange o universo de
seus relacionamentos. Esta atitude mais independente provoca menos
219

permanência nos relacionamentos e muitas incertezas, no âmbito da relação com


os pais.
Assim, ao adotar essa ótica nos relacionamentos afetivos, os filhos
promovem a insegurança nos pais. Tal sentimento perturba o fluir dos projetos
pessoais dos últimos, sobretudo aqueles referentes à vida conjugal.. Os pais,
acomodados ao exercício da parentalidade, não dispõem de um distanciamento
suficiente para o desinvestimento nesse campo e o conseqüente desvio de olhar
para as questões pessoais ou de casal. Nessa medida, há a predominância de
indefinição, enquanto os filhos buscam seus parceiros ideais, os pais esperam.

. A saída negociada

Após essa exposição sobre o confronto entre as diferentes noções acerca da vida
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afetiva dos filhos, apontamos um desdobramento do mesmo, igualmente visível


nesses discursos. O ato de sair de casa aparece nos relatos, como um tema
associado à fala sobre o namoro. É um tema que se inicia e se esgota, ao longo das
entrevistas interativas, sem a intervenção das mães, com exceção da família B.
Trata-se de um tema que emergiu dos discursos individuais dos filhos de
forma espontânea, e atrelado, como já dito, à narrativa das experiências afetivas
com os parceiros atuais. Entendemos que a não intervenção das mães, em tal
assunto, na medida em que ele surgiu nas entrevistas interativas, se deva à
dificuldade em abordá-lo. As mesmas manifestam-se de forma livre nas
conversações e, às vezes o fazem de um modo intrusivo, em outros momentos, ao
longo das entrevistas.
Dentre os cinco filhos que abordaram o tema, Amanda, Elisa e Breno o
vincularam ao ato de “morar junto” ou casar, enquanto Henrique e Caio o ligaram
a “morar sozinho”.

“O meu atual relacionamento flui normal, mas não tenho grandes expectativas, eu
falo isso meio que comparando com minhas amigas, que moram com os pais e
têm a minha idade e que têm a expectativa de sair de casa e casar. Isso não é uma
coisa que eu queira para ontem, um dia vai acontecer, isso pode ter um tempo,
por mais que eu já tenha 32 anos e algumas pessoas pensem que já está mais do
que na idade... gente jovem, eles são mais preconceituosos, é curioso isso, porque
pressão dos pais não tem... Eu fico tranqüila porque eu acho que as minhas
escolhas podem ser tranqüilas, se eu namoro uma pessoa e não dá certo eu não
220

preciso achar que o mudo acabou, eu tenho tempo de conhecer outra pessoa e dar
certo, pode ser uma coisa sonhadora de achar que tudo dá tempo, mas acho que é
possível, é um processo normal, eu conhecer alguém e aí então casar, construir
família...” (Elisa)

“A gente vive num mundo capitalista, não vou sair de casa pra passar maus
pedaços, quero manter o padrão, só saio quando tiver essa certeza, condições para
isso com duas fontes de renda vai dar, eu não moraria sozinho, você chega é
aquele silêncio, eu gosto de ter alguém, e segundo, tem a questão financeira, hoje
pra manter um apartamento, razoavelmente bom, eu sozinho como única fonte de
renda, fica difícil. Combinei com a minha mãe 2 anos, tem que correr atrás,
comecei a trabalhar com 17 anos em uma casa de festas, comprei meu primeiro
carro lá....quero comprar e montar um apartamento junto com a minha namorada
nesse bairro que eu moro e casar. Vou sentir falta do condomínio, que tem tudo ...
mas vou ganhar em liberdade, vou decorar do meu jeito, não gosto do jeito da
minha mãe, nada aqui eu escolhi, é tudo da minha mãe...” (Breno)

“Eu quero morar com o meu namorado, a gente tem uma relação legal, mas ele é
muito inseguro, acomodado mesmo, não vejo ele se movimentando para isso, só
eu que abordo, ele fica na dele, acho que está distante, vou ficando por aqui, estou
bem aqui, a minha relação com ela é boa, a gente se entende bem... Mas é uma
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coisa que eu sei que eu quero, morar com alguém, ter a minha casa, do meu
jeito.” (Amanda)

“Estou ficando com uma menina, mas não temos planos de compromisso ainda.
No momento, preciso me focar em um concurso que vai ter daqui a uns meses,
vou estudar e daí vou poder morar sozinho, se não tiver alguém, consigo me ver
morando sozinho. Aí vem essa sensação de que eu estou atrasado nas coisas....
mas eu me adapto, não dá pra ficar assim revoltado. A tendência é a relação com
a minha mãe ficar melhor quando eu sair, a rotina pesa muito, desgasta muito, vai
sobrar para as coisas mais agradáveis, minha mãe vai fazer 60 anos, se aposentou,
não dá para conversar sobre determinados assuntos. Tem coisas que não vão mais
mudar, que você tem que passar ao largo, driblar, a tendência é ter conversas mais
leves, acabando a rotina, você pode sair para almoçar junto, conversar....”
(Henrique)

“O meu namoro não é um compromisso para um futuro assim... falamos dos


nossos planos pessoais, tipo estudar fora, morar sozinho, ela já mora sozinha, eu
gostaria de morar sozinho, minha mãe não gosta muito da idéia não, mas o meu
pai pensa diferente... ela acha que tem que sair quando casar, é mais debaixo da
asa dela mesmo, é mãezona..... meu pai é mais tranqüilo nisso...O meu ponto de
vista é o seguinte, tem uma hora que a gente tem que sair de casa mesmo, tem
que viver a vida por si. Eu tenho essa idade e morar com os pais é estranho,
realmente, quase 30 anos, estava já na hora de sair, não me soa muito bem isso...
Mas, não moraria no lugar onde eu moro, não sairia como eu saio, não teria os
hábitos que eu tenho, ia sobrar muito pouco, pagar luz, gás, telefone... Eu não
almejo ser um cara rico, mas quero ter uma casa boa, viajar nas férias, ter um
bom carro. Acho que levo uns 2 anos para sair, nesse tempo minha condição
financeira vai melhorar muito... O tempo de formação de um médico é o maior de
todas as profissões, é muito longo...Se colocar numa balança de vantagens e
desvantagens de morar com eles, hoje em dia tem mais vantagens, muito mais
que desvantagens, as desvantagens acabam pesando menos....” (Caio)
221

Sem dúvida, os filhos se sentiram mais confortáveis, na abordagem da


futura saída de casa, na ausência das mães. Diante dessa constatação,
consideramos a possibilidade de apresentar as narrativas na forma de relato
individual, na contramão de nossa perspectiva relacional. Tal atitude se justifica
em virtude de podermos refletir sobre a saída de casa a ser negociada na relação.
É possível que esta saída esteja sendo construída, diariamente, sob a forma de
minúsculos detalhes da vida cotidiana. Percebemos, entre os entrevistados,
expressões como: “dois anos”, “está distante”, “um dia vai acontecer”, “atrasado
nas coisas”, para dar conta do sentido da dimensão temporal na construção da
saída negociada.
A saída negociada contrasta com a ruptura intempestiva da relação, com o
“ser expulso” ou com a saída à revelia dos pais. Portanto, a saída negociada é um
acordo, fruto de negociações e renegociações cotidianas, que de certa forma
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estabiliza a relação. O compasso de espera da saída é vivido de forma singular:


todavia, podemos afirmar que se trata de uma convivência fundada em minilutas
diárias, travadas para garantir a continuidade, até que a saída possa ser enunciada.
A saída negociada implica a idéia de que ambas as gerações conhecem
suas reais possibilidades de romper o acordo. De um lado, os filhos podem a
qualquer momento sair, a despeito das perdas financeiras ou emocionais
envolvidas nesse ato. Por outro, esse é um processo no qual os pais não podem
recorrer, sendo que seus únicos recursos seriam o consentir.
Entendemos que, em um ambiente familiar situado em condições
favoráveis à saúde mental de seus membros, a saída negociada é um processo
apoiado sobre o incentivo explícito ou não explícito por parte dos pais. De acordo
com Maunaye (2001), as intenções escondidas nas comunicações não explícitas
ajudam o filho a tomar a decisão. Ele pode perceber a mensagem, caso ela se
desdobre em atos, como por exemplo a compra de um objeto para a futura casa ou
a abordagem de um assunto ligado às vantagens da vida independente, fora do
reduto familiar. Para Singly (1996), no entanto, o ato da saída, em geral, é uma
iniciativa do jovem. Esta comunicação é parte de um processo iniciado na esfera
relacional, no qual o incentivo dos pais à autonomia impulsiona as atitudes do
filho, no sentido de tomar a decisão. Essa seria uma visão de incentivo explícito.
222

Dessa forma, o ato de orientar ou dar a entender sobre a saída, por parte
dos pais, pode ser visto como uma atitude de desvalorização da capacidade de
emancipação do filho, como também pode construir uma imagem negativa do
mesmo aos seus próprios olhos e aos dos outros. Além disso, poderia constituir
uma injunção contraditória, tornar o campo relacional ambíguo, uma vez que as
vozes contrastantes implicam em desorientação.
Portanto, a saída negociada se insinua como um possível e futuro fruto de
um interjogo dinâmico, vivido no espaço da relação, e situado no microcosmo da
cotidianidade. A dimensão temporal assume importante lugar nesse contexto, ela
tenta fixar uma ordem no ritmo da vida dos envolvidos e distinguir o tempo
individual do tempo familiar. Este último estaria atrelado à noção de projeto
familiar, no qual os membros compartilham um programa, não só espacial, como
temporal.
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5.5.4
O sentido de ser família

Diante das visões contrastantes de pais e filhos analisadas e discutidas acima e da


noção de que ambas as gerações dispõem de recursos próprios de poder e
barganha, de que forma poderíamos entender a escolha de permanecerem juntos?
Simplesmente aceitaríamos o discurso sobre as perdas financeiras dos filhos ou
poderíamos levar em conta que esses membros possam perceber a família como
um lugar de pertencimento, no qual a autonomia não aparece como um oposto?
Isto é, pode-se pertencer e ser autônomo ao mesmo tempo, sem comprometer o
equilíbrio familiar. Nesse ponto, nos reportamos a Minuchin (1974) que nos alerta
para o fato de que, no contexto familiar, tanto o pertencimento quanto a
autonomia se situam nos pólos de um sistema de diferenciação, e se referem mais
a um estilo interativo que a uma diferença qualitativa entre o funcional e o
disfuncional. Nesse sentido, e dentro do continuum familiar, entendemos que
essas posições possam alternar-se de acordo com as necessidades do momento.
Assim, o espaço familiar, além de ser um lugar de apoio privilegiado e de
trocas mútuas, também possibilita os conflitos e, em conseqüência, disponibiliza
modos de lidar com os mesmos: os acordos e as negociações. Nesse sentido,
223

entendemos que esse espaço contrastante seja visto de uma forma muito peculiar.
A perspectiva do “familiar”, do estar à vontade e do aconchego sobrepõe-se ao
mal-estar.
A ótica do “familiar” se estrutura, para DaMatta (1985), na lógica da casa.
A rua é vista como o local do “cada um por si”, percepção que revela uma noção
negativa do individualismo, do conflito aberto e da discussão. Em casa, imperam
a intimidade, os afetos e o respeito, definido pelos sexos e as idades. A lógica da
autoridade e da hierarquia conformam a família como um espaço moral. No
entanto, DaMatta relativiza estes discursos, em função da classe social em
questão. Assim, as classes mais populares teriam tendência a pôr em relevo a
lógica da casa, e as mais privilegiadas, a da rua. Entendemos que os segmentos
médios e médios altos das camadas urbanas da sociedade brasileira sejam muito
influenciados pela ideologia individualista, o que neutraliza um pouco essa
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polarização entre as esferas privada e pública.


De todo o modo, nos diz DaMatta (1978), em nossa cultura, antes de ser
indivíduo, se é uma pessoa, e, com isso, a família e a casa se transformam em
eixos dos relacionamentos pessoais e de ligação com o mundo de fora.
Acreditamos que essa ótica possa ainda estar presente no imaginário do brasileiro
e funcione como uma espécie de sombra, diante dos norteadores ideológicos
contemporâneos, sobretudo o individualismo. Uma visão que auxilia na
compreensão dessa perspectiva de convivência entre a tradição e a novidade nos é
fornecida por Costa (2004). Esse autor comenta que “a tradição não se perdeu, nós
é que lutamos para retirá-la de seus nichos seculares” (p. 16). Entendemos que
todo um conjunto de pensamento crítico em relação ao modus vivendis
contemporâneo aponte para as perdas de referências ocasionadas pelo
desmoronamento das instituições tradicionais. Apesar disso, acreditamos que o
mundo que nos antecedeu não era o melhor dos mundos, como também não temos
motivos para crer que o mundo atual seja melhor. Assim, titubeantes, realizamos
nossas escolhas.
Lipovetsky (1997) afirma que continuamos guiando nossas ações,
classificando-as e hierarquizando-as, segundo suas potencialidades de gerar o bem
e o mal, à moda da tradição. Nessa perspectiva a idéia de herança implica em uma
espécie de filtragem, em escolhas e estratégias. Podemos partir do princípio de
224

que somos passivos diante da herança. De certa forma, somos obrigados a receber
algo que é mais antigo, mais poderoso e duradouro do que aquilo que é visto a
nossa frente. Todavia, para que possamos reafirmar o que herdamos ou trilhar
outros caminhos é preciso agir ativamente e, então, vamos escolher, sacrificar,
preferir ou excluir. A perspectiva do familiar, da intimidade, dos afetos e do
respeito pode assumir um nível variável de importância nas escolhas pessoais.
Essa estrutura pode permitir a um filho adulto e em processo de saída negociada
um bom terreno de apoio.
Dessa forma, encontramos no espaço familiar os “nichos da tradição”, bem
como as repercussões das mudanças culturais contemporâneas sobre os membros
da família. O viver em família é atravessado por esses eixos, que instigam a um
constante movimento de ir e vir na dimensão relacional. Paralelamente, o
prolongamento da convivência confere a esse espaço um sentido de trocas mútuas,
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permanentemente negociadas no cotidiano, ou seja, confirmadas e reconfirmadas


ao longo do tempo. Esses membros atualizam, em suas conversações, os limites
da convivência: a saída negociada ou a possibilidade de ruptura. Sendo assim, as
esferas espaciais e temporais são constantemente discutidas no âmbito da relação.
A opção por permanecerem juntos, apesar da consciência de poderem se separar,
parece ser “finamente” articulada nos detalhes da convivência.

. Um ambiente “familiar”

A perspectiva do “familiar” é forjada na confiança e na certeza de que se pode ser


espontâneo sem medo de retaliação. É uma certeza e uma confiança básica que
asseguram ao indivíduo o poder de expressar seus sentimentos na situação
interativa, em um ambiente de apoio. É importante ressaltar que esses seriam
momentos especiais que, raros ou não, podem ser observados na dinâmica entre
pais e filhos adultos.
A ótica do “familiar” abarca uma via de mão dupla. Isto é, o contexto de
vantagens e desvantagens na convivência é válido para ambas as gerações, de
forma que tanto uma quanto outra podem experimentar altos e os baixos da
mesma.
225

“Filho é sempre bom, cada época tem seu encanto...O encanto dessa? Ah, as
idéias, os projetos, isso anima a gente, ouvir isso é bom, estimula....Eles estão
sempre criando coisas, fazendo, com energia....” (Eva)

“Sair de casa só casando e assim mesmo se eu puder manter esse padrão, se não,
se for para viver mal e controlando dinheiro, nem pensar... Assim vou viver
namorando....” (Elisa)

“Acho que ela deve gostar muito daqui, né? (Eva)

“É, eu disse isso, eu tento fazer isso, me aposentar dessas tarefas de dona de casa,
mas nem sempre consigo.... As coisas fogem do que deveriam ser, aí eu volto aos
afazeres...” (Flávia)

“Ah tem uma pressão, mas eu faço as coisas, posso não fazer na hora que ela
quer, mas faço ...” (Filipe)

Os relatos acima corroboram com a visão de que, mesmo não sendo uma
convivência completamente agradável, uma unanimidade, ela pode proporcionar
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um conforto. O conforto do “familiar” pode se sobrepor ao conforto em outras


dimensões, que se situem fora desse domínio. Isso pode querer dizer, também, que
entre a pressão, o atrito ou a divergência em casa e a mesma situação no ambiente
externo, a primeira condição, pelo menos, é mais “familiar”, mais conhecida, além
de ser temperada pela incondicionalidade de afeto.
Essas afirmações nos levam a pensar sobre a forma como esse conforto
“familiar” privilegia o aparecimento ou a oportunidade de expressão de
experiências emocionais, importantes para a continuidade de ser, nos termos de
Winnicott. Dentre as famílias entrevistadas, seis delas, A, B, C, E, F e G
referiram-se a um momento especial de convívio, no qual o aconchego familiar
aparece de forma clara e desejada.

“Temos uns momentos bem gostozinhos, nas sextas, comemos sanduíche vendo
novela, depois vemos um filme comendo pipoca...” (Amanda)

“É mesmo, sentamos as duas no mesmo sofá e ficamos falando, comendo e


assistindo, na verdade, acho que falamos muito, comemos mais ou menos e
assistimos pouco ...” (Alice)

“Nos almoços de fim de semana, ele é um bom parceiro na cozinha, eu começo e


ele finaliza. (Flávia)

“Modéstia à parte, faço ótimos grelhados e ela é boa no risoto.” (Filipe)


226

Estas famílias parecem provocar o aparecimento desses momentos


especiais. Acreditamos que para um “ambiente familiar” emergir seja requerida a
porosidade dos espaços individuais. Dessa forma, há possibilidade de fluidez,
necessária para a passagem aos sentimentos compartilhados.

“Nos almoços de final de semana, em geral, estamos todos, eu faço a comida,


ponho a mesa e eles ajudam a tirar, quando terminamos. Sai muita brincadeira,
reclamam, se servem um antes do outro, sai piada, sai história de trabalho, sai de
tudo, é ótimo, temos um ambiente muito liberal.” (Cláudia)
“A gente faz brincadeira de tudo, muita gozação.” (Caio)

Nesta atividade doméstica cabe o significado de integração das


participações individuais, que passam para o registro coletivo, ou espaço
potencial, de acordo com o vocabulário de Winnicott. Esse momento é
reconhecido como integrador e é estimulado e instigado pelos membros da
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família, como um modo de promover o encontro nessa área de convívio.

“Domingo, logo de manhã meu pai está lendo jornal eu sento do lado dele, me
encosto nele leio junto, ela está por perto...” (Elisa)

“É realmente uma leitura de jornal democrática, lemos ao mesmo tempo e sem


falar, fica todo mundo quietinho...” (Eva)

A dinâmica familiar permite essa movimentação, um exercício constante


de vai-e-vem que, como nos diz Winnicott, viabiliza o estímulo e a evolução de
algo da ordem da continuidade de ser. Acolhimento e confiança ganham, assim,
uma especial proporção se referidos a idéia de família como possibilidade de um
espaço potencial. Winnicott (1971) diz que este espaço se inicia a partir de um
estado de confiança “que se desenvolve quando a mãe pode desempenhar de
maneira suficiente essa difícil tarefa.” (p.70) Nesse espaço se pode brincar, passar
da dependência para a independência, em um fluir constante, “como a maré
montante e a maré vazante.” (p. 66)
Winnicott, ao criar o conceito de espaço potencial, une as dimensões
subjetiva e objetiva, de modo que o subjetivamente concebido e o objetivamente
percebido se alternem, sobreponham-se ou se integrem. “Experimentamos a vida
na área dos fenômenos transicionais, no excitante entrelaçamento da subjetividade
e da observação objetiva, e numa área intermediária entre a realidade interna do
227

indivíduo e a realidade compartilhada do mundo externo aos indivíduos.” (1971,


p. 93)

“No sábado tento acordar mais tarde, mas sinto o cheiro ou imagino, não sei, do
café na cozinha e saio da cama, tomo um cafezinho com a minha mãe e volto para
a cama, adoro isso.” (Breno)

“Gostamos de café forte, tomamos em pé mesmo, nem sentamos.” (Berenice)

De acordo com Winnicott (1965), afastar-se da dependência e a ela poder


retornar leva a concepção de que a maturidade é algo que não existe, não se
completa, a maturidade seria relativa. Conforme o autor, o adulto maduro tem a
seu dispor todos os estados passados de imaturidade, e pode fazer uso deles por
necessidade, por diversão, nas experiências secretas de auto-erotismo ou nos
sonhos.
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“Há assim duas tendências. A primeira é a tendência de o indivíduo afastar-se da


mãe, do pai e da família, adquirindo a cada passo maior liberdade de pensamento
e ação. A outra tendência, que atua no sentido oposto, é a necessidade de
conservar ou retomar o relacionamento com o pai e mãe. É esta segunda
tendência que permite que a primeira constitua uma etapa do crescimento e não
uma desarticulação da personalidade do indivíduo.” (Winnicott, 1965, p.134)

Assim, no decorrer do seu desenvolvimento emocional, o indivíduo sadio é


capaz de ir e vir livremente de um estado para o outro: a maturidade se torna um
devir. Para Armony (2006), o brincar no espaço potencial pode permitir o alcance
de uma “dependência madura”. A experiência de transicionalidade vivida na
interação entre pais e filhos adultos abarca, dessa maneira, a idéia de reconstrução.
A integração ou a alternância entre os estados objetivo e subjetivo propiciam o
movimento de expansão e reestruturação destes indivíduos.

. A ótica da parceria

A redefinição dos estatutos da relação é uma conquista vivida na interação. As


negociações ampliaram os espaços individuais e os legitimaram. Dessa forma, a
idéia de filho-outro está intimamente vinculada a de pais-parceiros. As duas
gerações atingiram estas circunstâncias em paralelo, por meio de transformações
228

que as afetaram de forma complementar. Acreditamos que a boa distância, uma


invenção da família, possa preservar este espaço potencialmente reestruturador,
assegurando a existência do ambiente familiar.

“Eu começo a cozinhar, o meu pai abre uma cerveja.... Se for fazer um risoto abre
um vinho .... A gente vai conversando, vai bebendo .... (Gabriela)

“Eu corto cebola..... Eu faço isso com a minha esposa normalmente.... Eu lavo a
louça, a esposa corta os legumes,... A comida da Gabriela é maravilhosa, é
diferente , somos auxiliares de cozinha dela ....” (Gil)

Nesse ambiente, uma proximidade suficiente permite o compartilhamento


e a circulação da intimidade. A dinâmica de afastamento e proximidade é
estabelecida de acordo com as prioridades que se apresentam. Esta interatuação é
possível em função do manejo preciso dos níveis das dimensões em questão.
Talvez possa ser útil, na tarefa de refletir sobre a parceria na relação,
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pensá-la sob a perspectiva de seu contrário, ou seja, a falta dela. Na família F,


como já mencionado22, Flávia assume uma posição hierarquizada na relação com
o filho: “A casa é nossa, é nossa responsabilidade o pagamento das contas.” O
desequilíbrio de poder, como já dito, pode gerar conflito, como também
desligamento, afastamento. Dessa forma, Filipe se mantém fechado em seu quarto
e pouco participa da rotina da casa. Não se manifesta diante das contas altas de luz
da residência, que a mãe lhe apresenta. “Eu não digo que é para ele pagar, ou
rachar, é simplesmente ajudar, economizando”, diz Flávia.
Todavia não podemos deixar de ressaltar que nessa relação existe um
ganho secundário: um gozo da situação. Flávia precisa que Filipe não obedeça e
este que a mãe reclame, nessa medida ambos mantêm seus papéis inalterados.
Esse tipo de relação complementar é bastante comum de acordo com Minuchin:
“As ações e transações de cada membro da família não são entidades
independentes, porém, parte de um movimento necessário na coreografia de um
ballet.” (1981, p. 185)
Por outro lado, se essa concentração de poder cerceia uma possibilidade
maior de negociação entre eles, o desengajamento de Filipe na vida doméstica
pode ter a ver com essa polarização de posições? É possível que sim, mas não

22
Item Acordos, negociações e reformulações
229

podemos deixar de sublinhar que Flávia queixa-se da falta de apoio do marido nas
questões relacionadas à vida doméstica da família. Nesse sentido, as posições de
Flávia, diante de Filipe, representam a versão dela e não a do casal parental.
Frente a isso, Filipe pode não saber como agir.
Na família D, acontece a mesma falta de parceria na relação, de acordo
com Doris. Diana não se engaja no ritmo da família. Todavia, identificamos em
seus discursos, vestígios de um processo em andamento, quando se referem ao
acordo em torno do pagamento da conta de telefone. “Ela vai pagar uma das
linhas, a conta vai chegar para ela, eu e o marido expusemos, e ela concordou.”
Diana aceita pagar a conta, mas faz as suas exigências: “Quero que essa linha
fique no meu quarto...” Assim, dois aspectos diferentes entram em jogo nessa
abordagem da família D, o apoio do marido e pai e uma redistribuição de poder,
no que tange esse tema, isto é, há a concordância no pagamento, desde que seja
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respeitada a cláusula da filha.


O não pagamento das contas da casa, por exemplo, poderia nos servir
como indicador de falta de parceria, caso o considerássemos como um ato
“natural” e condizente com a prática simétrica na relação. Dentre os nossos
entrevistados da geração mais nova, somente Breno participa, financeiramente, do
orçamento da casa. Este contribui com uma quantia fixa, depositada todo mês na
conta bancária da mãe, destinada a ajudar nas despesas em geral.
Os outros filhos não contribuem para as despesas da casa, com exceção de
Diana, que começará a pagar uma das linhas de telefone da residência. Falta de
parceria? Talvez possamos tentar pensar sobre essa questão, a partir de dois
aspectos estreitamente articulados, entretanto, deixemos claro que a parceria não é
uma dimensão fixa, ela faz parte do interjogo relacional.
O primeiro diz respeito ao sentimento de pais provedores e o significado
que esse papel pode ter assumido em suas trajetórias, no sentido de investir na
felicidade dos filhos, uma característica dessa geração, fortemente marcada pelas
circunstâncias do “maio de 68”. O segundo reporta-se à necessidade de manter
esse status, em um momento do ciclo vital familiar, ligado à separação. Dessa
forma, expressões como “somos os donos da casa”, “é nossa responsabilidade”,
“não precisamos”, “ele ganha pouco”, “ajudo dessa forma”, revelam o significado
imputado às suas funções.
230

Numa atitude complementar a esses dois aspectos, os filhos acomodam-se


a uma situação que, ao menos em sua aparência, parece ser confortável. Contudo,
o ato de não participar no pagamento das contas da casa é revelado pelos filhos de
forma que sugere desconforto e, portanto, parece que estamos diante de um
terreno ambíguo. Paira no ar um clima de cobrança proveniente da esfera social,
algo da seguinte ordem: “minha família não cobra, mas o social reage”. A
repercussão do tema nas mídias impressas e televisivas endossa essa percepção,
pois o assunto é abordado, sempre, de forma a chamar a atenção para o fato de
essas famílias manterem os filhos como “hóspedes” de “hotéis de luxo”. Alguns
títulos de artigos nos servem de suporte para essa afirmação, como “Na casa da
mamãe”; “Eu sou da mamãe, sair de casa para quê?”; “Daqui não saio: a “Geração
Canguru””, dentre outros23.
Assim, entendemos que o não pagamento de contas da casa pelos filhos
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representa, por um lado, a atitude protetora dos pais e a respectiva posição


complementar dos últimos e, por outro, indica a manutenção dos papéis de ambos,
revelando uma prática assimétrica nesse campo da relação. Mesmo assim, diante
das incertezas do mundo de fora, do desconforto frente aos preconceitos sociais,
entre outros, a perspectiva do familiar ainda assume um lugar relevante e a ótica
da parceria indica a mutualidade.
Os momentos nos quais identificamos a ótica da parceria, se referidos a
uma atividade doméstica, convergem para as refeições em comum. Sejam elas
formais, com mesas arrumadas, ou mesmo informais, como os sanduíches no sofá,
são momentos em que o companheirismo se faz presente, mesmo que destacado
da idéia da co-participação concreta na realização da refeição.
Ao lado disso, o sentido de parceria parece estar muito ligado às atividades
prazerosas em comum, como conversar, viajar, ler jornal, ou tomar um cafezinho.

“Eu adoro conversar com ele, sobre tudo, ele é meio filósofo ... (Helena)

“É bom conversar com ela, ela tem um lado meio dramático...” (Henrique)

“Eles adoram viajar, sempre que posso, vou junto, é ótimo, temos tempo para
conversar, ficar juntinho...” (Elisa)

23
“Na casa da mamãe”, revista Época, São Paulo, 27/09/2004; “Eu sou da mamãe, sair de casa
para quê? Jornal da Tarde-Domingo, O Estado de São Paulo, 30/04/2006; Daqui não saio: a
“Geração Canguru”, Jornal Zero Hora, revista Donna, Porto Alegre, 30/04/2006.
231

“Acho isso precioso, porque eu amo viajar e a minha filha é uma grande
companheira.” (Eva)

Lipovetsky (2002) ressalta que a sociedade atual traduz o apagamento da


moral tradicional, dos deveres, das obrigações e dos sacrifícios. Essa lógica
encontra eco na família, pois, apesar do grande número de divórcios, uniões livres
e filhos fora do casamento, a família, hoje, se encontra novamente no pedestal,
segundo sua visão.

O novo sopro ideológico da família não significa de forma alguma uma


reabilitação dos deveres familiares, ou seja, submissão do indivíduo aos deveres
em relação à coletividade representada pela família, mas ascensão de uma família
psicologizada, à la carte, emocional, gerida segundo os princípios da autonomia
individualista. ( p. 28)

Nessa medida, entendemos que o individualismo, tomado como ideal


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norteador de nossa sociedade, não significaria o fim da responsabilidade e da


solidariedade e, sim, implicaria em uma nova forma de participação, mais livre e
menos rígida. Na família de adultos, essa participação seria flexibilizada ao ponto
de poder abrigar a alternância de dimensões relacionais. Sendo assim,
reafirmamos que a parceria é uma conquista, constitui-se na dinâmica da relação,
no jogo interativo.
Considerações finais

Nesta investigação, apresentamos a importância das pequenas atitudes e das


minimanifestações expressas no jogo interativo e vividas no cotidiano da família.
Julgamos que o processo de interação se faz a partir de pequenas moléculas, de
pequenos gestos e palavras pronunciados na relação. E, ainda, que o poder destes
instantes, da ordem do minúsculo, reforça o valor da análise da vida doméstica
como recurso de compreensão da dinâmica familiar e, especificamente, da relação
entre pais e filhos adultos, objeto desse estudo.
A organização da vida doméstica é estabelecida por normas, que se
constituem a partir da dinâmica desenvolvida na interação. O ajuste de interesses
na dinâmica relacional vem a ser o fundo no qual elas se desenvolvem. Dessa
maneira, quando um dos membros expressa um aspecto de si próprio, provocará
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no outro um aspecto complementar a este, instituindo um equilíbrio na esfera


interativa. Observamos que as regras da casa são instituídas pelos pais e são
reformuladas, constantemente, em função das demandas de cada uma das
gerações: são reatualizações necessárias para o prosseguimento da vida em
família. E, ainda, que as normas domésticas aparecem como regras parentais,
sendo, sobretudo, instituídas pelas mães. Assim, a ordem de organização da vida
cotidiana que impera na casa é a ordem materna.
O apelo à ordem é uma reafirmação do poder dos pais sobre os espaços em
questão. Ele funciona como uma tentativa de conservar os espaços comuns para
todos, de legitimá-los como um direito de todos, mas, também, de reafirmação
desse espaço como parental. Todavia, a “lei” desse espaço parental é
frequentemente rompida ou esticada pelos filhos, a fim de ganhar terreno na
dimensão relacional. Constitui-se um campo de avanços e recuos na dinâmica
relacional, configurando um jogar com as regras. Cada um vai até determinado
ponto: observa, reconhece a área e atua para modificar seu contorno inicial. O
passo de um indica a direção do passo do outro e, com isso, novas regras poderão
vir a ser estabelecidas. Elas são estratégias de apropriação do espaço e de
afirmação de autonomia em relação a casa, e essas estratégias se dão em um
campo de relação de forças, no qual cada geração defende suas áreas de ação. Para
233

mudar esse quadro, constituído de lugares mais ou menos fixos, os filhos


desenvolvem subterfúgios para atingir suas metas de independência na relação.
Os filhos, ao quebrarem as normas dos pais, têm uma atitude de
enfrentamento e, ao nosso olhar, o fazem com o consentimento velado dos
últimos. Os pais autorizam a ruptura e a elasticidade das regras, revelando o
aspecto poroso da relação. Aliviada da rigidez das posições iniciais, essa atitude
acobertadora instiga a criação de um terreno apropriado para as rupturas
demandadas pelos filhos. Estes, no intuito de ganhar mais espaço, testam
diferentes investidas e argumentações para esticar seus domínios pessoais. Esses
passos em direção a um alargamento do campo de ação constituem um processo
de negociações com o objetivo de se firmarem acordos. O território de
negociações da família é o contexto relacional. Em torno desse lugar dinâmico
apresentam-se: a defesa dos pais em assegurar seus espaços de poder e controle e
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o desejo dos filhos de ganhar terreno, em uma perspectiva mais igualitária.


O processo de negociação de novas regras de convivência é pleno de
avanços e recuos, tendo em vista que ele deve atender às expectativas de ambas as
gerações. Pode-se ter um acordo sem que haja negociação, como, também, pode-
se chegar a um acordo, que deixe espaço para a negociação, caso ele se rompa.
Observamos que a negociação acontece quando existe certa tensão entre as partes
envolvidas: na falta desta tensão não se negociará. Nesse caso, o compromisso,
resultante do processo, tem a função de consolidar a relação. Dessa forma, o
conflito pode ser percebido como uma forma de negociação. Simmel (1912)
destaca o fato do conflito acabar em um compromisso, que não é nem uma vitória
nem uma derrota e sim, uma conquista, um processo de negociação. O processo
de negociação verificado na dinâmica relacional pode ser compreendido como
uma tentativa de reequilibrar os equilíbrios instáveis da relação. A busca do
acordo é uma forma de estabelecer uma distância suficiente entre os membros,
para que não haja ameaça ao equilíbrio relacional.
Observamos que existe um jogo interativo na dimensão relacional. A
tentativa de “equilibrar os equilíbrios instáveis” da relação provoca uma dinâmica,
baseada em um vai-e-vem das instâncias relacionais. Esse movimento visa
garantir os interesses que se apresentam, em determinados contextos da interação.
Nesse jogo de ir e vir, os membros da família podem definir, escolher ou
234

hierarquizar o que lhes for mais conveniente. Se é mais apropriado ser filho de ou
pais de em um contexto, em outro, pode ser mais eficaz ser companheiro de ou
parceiro de. Esse jogo de ir e vir representa a reformulação das relações entre pais
e filhos adultos, calcada em uma relação mais próxima da simetria, conquistada
nas microexperiências da vida cotidiana. As negociações que permitem mais
autonomia aos filhos – e, da mesma forma, viabilizam um gradual
desinvestimento das funções parentais – transformam o ambiente relacional.
Pode-se ir e vir, mais próximo ou mais distante, em um movimento contínuo, sem
que tal alternância possa, necessariamente, trazer desconforto. Trata-se de
experimentar na prática e avaliar o que funciona e o que não funciona na relação.
Cada dia pode ser o cenário de pequenas mudanças que, construídas em conjunto
nas conversações, irão modificar o ritmo da convivência.
A vivência desses jogos relacionais de ir e vir permitem a descoberta de
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novas possibilidades na relação. Trata-se de uma sucessão de avanços e recuos


que se constituem como estratégias de convivência. Ambos, pais e filhos,
transitam de uma dimensão à outra, permitindo-se o interjogo. Os deslizes e as
recuperações são autorizados, em função de se realizarem em um contexto
dinâmico que pode suportar essas situações. Esse contexto é possível devido ao
fato de que as condições negociadas e estabelecidas por esses indivíduos
manifestarem-se em um ambiente de confiança e propício à espontaneidade.
Assim, observamos que as famílias C, E, H e G, em suas dinâmicas
interativas, alternam as dimensões relacionais de acordo com os interesses do
momento. As famílias A, B e D não conseguem essa alternância, dentro dos
limites observáveis nessa pesquisa, em virtude da rigidez das fronteiras que
distinguem seus espaços pessoais. Esses indivíduos não conseguem flexibilizar
suas atitudes, estando ora muito próximos, ora muito distanciados, o que
inviabiliza o jogo interativo. O que nos parece é que, nessas condições, a dinâmica
interativa, afetada pela situação de conflito, perde a capacidade de refletir e
negociar as diferenças. Os membros estão tão próximos que não percebem formas
alternativas para se distinguirem um do outro, nesse contexto. Na presença do
conflito, ocorre, apesar da rigidez e do distanciamento, uma intensa proximidade,
configurando um verdadeiro paradoxo na relação.
235

A democracia familiar é, também, feita de paradoxos, ambigüidades e


incertezas. É possível a existência de uma hierarquia de poder disfarçada, isto é,
as demonstrações de “companheirismo e cuidado” podem mascarar a manutenção
do exercício do controle. Assinalamos que esse contexto de disfarce revela um
“ganho” secundário na relação: esses comportamentos se provocam mutuamente,
de forma a constituir um jogo no qual os participantes “fingem” não perceber as
intenções mascaradas em tais atitudes. Por outro lado, a distribuição e a
redistribuição do poder podem esmaecer os tons hierárquicos e autorizar a
vivência de uma liderança discutida.
Observamos nas entrevistas que as diferenças na percepção da esfera do
trabalho entre pais e filhos podem produzir um terreno de ambiguidades no espaço
relacional. A geração dos pais, no que concerne à dimensão do público, é
fortemente marcada pelas relações de compromisso e lealdade, valores associados
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à noção de durabilidade e a uma política de longo prazo. A geração dos filhos, por
outro lado, pode representar esse mundo em uma perspectiva de curto prazo e da
provisoriedade de experiências sociais, características do momento
contemporâneo.
A perspectiva vertical de relacionamento engloba a lógica tradicional, que
norteia o mundo do trabalho desses pais. Uma ótica baseada em relações
horizontais e desierarquizadas pode ficar distante da realidade dos mesmos.
Assim, a possibilidade de simetria na relação, nesse campo, torna-se mais difícil
de ser atingida e as diferenças aparecem soberanas. Em relação ao destino do
salário dos filhos, os nossos entrevistados mais velhos se dividiram entre o
sentimento de desigualdade na relação e a incompetência dos filhos. A primeira
seria percebida como falta de engajamento dos filhos no projeto familiar e a outra
conotaria os filhos como incompetentes na gestão de suas vidas financeiras:
assim, reafirmam as suas visões sobre as deles. Daí podemos sustentar que, nas
trocas próximas da simetria, características dessas relações, existe lugar para a
tensão, para a ambivalência e para o conflito, em razão das diferentes idéias e
valores que norteiam cada uma das gerações.
Também encontramos essas visões contrastantes no universo de discussão
sobre a vida afetiva dos filhos. De acordo com Bauman (2003), os indivíduos não
consideram mais a experiência amorosa como minimamente possível em suas
236

vidas. A expectativa é a de viver grandes amores ao longo da existência, “mais


estimulantes que os anteriores”. O indivíduo de hoje busca mais independência,
mais autonomia e é mais crítico no que concerne à esfera de seus relacionamentos.
Esta atitude mais livre implica em menos permanência nos relacionamentos e em
muitas incertezas no âmbito da relação com os pais. Identificamos, nessa posição
dos filhos, um dispositivo que instiga a insegurança nos pais. Esse sentimento
impede ou perturba a construção dos projetos pessoais dos últimos, sobretudo
aqueles referentes à vida de casal. A geração mais velha, ainda ativa na função da
parentalidade, não possui o distanciamento suficiente para o desinvestimento
nessa área e o conseqüente desvio de olhar para as questões pessoais e conjugais.
Nessa medida, a paisagem relacional torna-se indefinida, os filhos buscam seus
parceiros ideais e os pais esperam.
A partir da noção de que ambas as gerações dispõem de recursos próprios
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de poder e barganha, passamos a levar em conta que esses membros percebem a


família como lugar de pertencimento, no qual a autonomia não aparece como um
oposto. Pertencer e ser autônomo parece não comprometer o equilíbrio familiar.
Dentro dessa perspectiva, o espaço familiar pode ser percebido como um lugar de
apoio privilegiado, de reciprocidade e de troca, assim como, pode propiciar a
divergência, o atrito, o conflito e, em conseqüência, mobilizar estratégias para
lidar com os mesmos, a fim de conciliar os interesses, isto é, os acordos e as
negociações. Frente a essas afirmações, podemos pensar que esse espaço, apesar
de contrastante, seja visto de uma forma muito peculiar. A perspectiva do
“familiar”, do estar à vontade e do aconchego sobrepõe-se ao mal-estar ou ao
embaçamento das trocas, que algumas vezes pode se fazer presente nos limites
desse domínio interativo. Em outras palavras, a balança tende para o lado do
habitual, do conhecido e da intimidade.
Ao lado disso, a convivência prolongada confere, a esse espaço, um
sentido de trocas mútuas, permanentemente negociadas no cotidiano, ou seja,
confirmadas e reconfirmadas ao longo do tempo. Sob a dimensão temporal, esses
membros definem e redefinem para si próprios os limites da convivência, ou seja,
a saída negociada dos filhos ou mesmo a possibilidade de ruptura da relação.
Assim, discute-se, simultaneamente, no âmbito da relação, as esferas espaciais e
temporais. Nessa medida, a escolha de permanecerem juntos, apesar da
237

consciência de poderem se separar, parece ser “finamente” articulada nos detalhes


da convivência. Essa articulação cotidiana permite aos membros, a conciliação
entre o sentimento de pertencer e a singularidade de cada um. E essa conexão
pode abrir espaço para o sentido da convivialidade, e para um significado de
fruição dos sentimentos familiares.
No âmbito da dinâmica relacional, a ótica do “familiar” se constitui a
partir da certeza e de uma confiança básica que serve de sustentação a um
ambiente no qual o indivíduo pode viver e expressar seus sentimentos na situação
interativa, em um clima de apoio. Esses seriam momentos especiais que, raros ou
não, podem ser observados na dimensão interacional no cotidiano familiar.
Cada família parece ter um encontro marcado com o seu “momento
família”. Acreditamos que para constituir um “ambiente familiar” com o sentido
de convivialidade, seja necessária a fluidez dos espaços pessoais dos membros da
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família, que concedem a prevalência ao sentimento compartilhado, ao coletivo. É


essencial que haja porosidade nestes espaços individuais para que o ambiente
possa emergir, revelando suas características singulares de abrigar o prazer de
estarem juntos e da mutualidade.
A dinâmica familiar possui esse constante movimento interno, um jogo
de vai-e-vem, responsável pelo estímulo e pela evolução de algo da ordem da
continuidade de ser, como nos diz Winnicott. A noção de família como
possibilidade de um espaço de acolhimento e confiança ganha, assim, mais
consistência com a idéia de espaço potencial (Winnicott, 1971), lugar no qual se
pode obter um relaxamento, um alívio de tensões e a capacidade de fantasiar.
Dessa forma, a experiência de transicionalidade vivida na interação entre
pais e filhos adultos constitui-se como possibilidade de reconstrução, para ambas
as gerações, de alguns estados psicológicos que a caracterizam. E esses seriam a
regressão a estados de dependência e a necessidade de expansão pessoal, entre
outros. Assim, a integração ou a alternância entre os estados objetivo e subjetivo
proporcionariam a capacidade de expansão e reestruturação desses selves.
A noção de filho-outro está intimamente vinculada a de pais-parceiros. A
redefinição destes estatutos foi forjada na interação entre estas duas partes, através
de negociações que alargaram seus espaços pessoais, ao mesmo tempo em que os
validaram. Ambos alcançaram estas condições juntos: a mudança de um gerou a
238

transformação do outro. A boa distância, uma invenção da família, pode assegurar


a manutenção deste espaço com potencial transformador, ou seja, o ambiente
familiar. No entanto, como nada é definitivo, é preciso que ocorram negociações
constantes, a fim de equilibrar a interação, que está sempre em movimento.
Na situação de ambiente familiar é possível que a proximidade alcance um
nível suficiente para o compartilhamento e que os membros da família façam
circular a intimidade, forjada na confiança e na validação dos comportamentos. O
jogo de afastamento e proximidade vai ser vivido intensamente, e ora se está em
uma dimensão e ora na outra, dependendo das necessidades do momento. A fim
de efetivar esta interatuação, é preciso saber dosar esses níveis, para que a
conversação possa fluir.
Finalizando, mesmo diante do desconforto frente aos impasses
provenientes das visões contrastantes entre as duas gerações, o familiar assume
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um lugar preponderante e a parceria apresenta-se como uma conquista da relação.


Na família de adultos, uma convivência mais livre e menos rígida, pode abrigar a
alternância de dimensões relacionais, isto é, pode-se ser parceiro em uma situação
e em outra, ser pouco recíproco.
Assim, reafirmamos que a parceria constitui-se na dinâmica da relação, no
jogo interativo. A noção de construção de um acordo permite-nos observar a
demanda por um engajamento mais amplo na idéia de um projeto familiar. Esse
consenso seria fundamental para a construção de um sentido de estar em família,
atrelado a um significado mais profundo da concepção do viver junto, que possa
habitar o imaginário dos membros da família nesse ponto do ciclo vital familiar.
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Anexo 1

Questão norteadora da entrevista:

“Os membros da família moram juntos, convivem no mesmo espaço, como é essa
convivência no dia a dia, quais seriam as condições colocadas por eles para
tanto?”

Guias Temáticos

1. O peso da gestão do cotidiano e a reformulação das regras familiares.


2. As estratégias para regular a tensão na convivência.
3. Os critérios hierárquicos nas interações entre pais e filhos.
4. O controle sob o ponto de vista dos pais e dos filhos.
5. O sentido das contradições e das recorrências para ambas as gerações.

Decupagem dos guias temáticos:


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1.Conversação dos membros sobre os gastos.


.Freqüência deste assunto.
.O momento da conversa e as atitudes em relação a ela.
.A existência de compromissos.

2. Diálogo a respeito das tarefas e seu estabelecimento.


. As combinações não cumpridas e suas reações de ambas as partes.
. A existência de negociações entre os membros.

3. Autonomia
. Atitudes previstas e não previstas em face da privacidade nos espaços pessoais e
coletivos.
. A forma de utilização dos outros espaços da casa e seus horários.

4. A intimidade e reação dos membros da família.


. Controle da vida sexual e afetiva e suas reações.

5. Presença e solidariedade
. Atitude igualitária.
. Resolução de tensões.
. Proximidade e afastamento nas interações.
. A saída da casa por parte dos filhos.

Indicadores

1 . A lista de compras
2 . Refeições durante a semana
3 . Refeições no fim de semana
4 . O pagamento das contas da casa
5 . Presença dos namorados/as na casa
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6. O quarto do filho e a sala da casa

Decupagem dos indicadores

1. A lista de compras

1. Quem faz a lista de compras?


2. Quem faz as compras?
3. Todos estão de acordo com a lista?
4. A lista é sempre a mesma?
5. Quando muda?
6. Quando há a presença de amigos a lista muda? O que muda?
7. Quando há parentes da família, avós, tios, primos, há mudança na lista? O
que muda? Quem faz as sugestões?

2. Refeições da família

1.Vocês fazem alguma refeição juntos durante a semana?


2. Qual? Consideram isso importante?
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2. Quem está presente?


3. Qual é o local da refeição?
4. Quem decide o que vai ser servido? É sempre a mesma pessoa?
5. Quem prepara a comida?
6. Alguém ajuda?
6. Quem põe a mesa? Quem tira a mesa?
7. Quem lava a louça?
8. Quanto tempo demora a refeição?
9. Conversam? Sobre o que conversam?
10. Ouvem música ou vem televisão durante a refeição?
11. E o horário?
12. É preciso avisar quando não pode estar presente?
13. É preciso que estejam todos presentes para que haja a refeição?
14. Como se decide se vai haver ou não a refeição? Quem toma a frente disso?

3. Refeições do fim de semana

1. Fazem refeições juntos no fim de semana? Dão importância para esse fato?
2. Há planejamento do que vai ser servido e o horário?
3. Quem faz isso? É sempre a mesma pessoa?
4. Como combinam o prato principal?
5. Quem cozinha? Quem lava os pratos?
6. Como decidem o horário?
7. Quando um membro ou mais de um não está presente, como é que fica a
refeição?
8. É preciso avisar com antecedência a ausência?
9. São servidos vários pratos ou há um principal e os acompanhamentos?
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10. Qual é o tempo, na media, desta refeição?


11. Conversam? Quais são os temas preferidos?
12. Após a refeição, o que gostam de fazer?

4. Pagamento de contas da casa

1. As contas da casa, quem paga?


2. Conversam sobre a administração financeira da casa?
3. Quando fazem isso?
4. Quem toma a frente do assunto?
5. Quando as contas chegam, quem abre o envelope?
6. Os gastos, são assunto de conversação?
7. Quem inicia esta conversa?
8. Como ela termina?
9. A família se preocupa com os gastos?
10. Quem se preocupa mais?
11. Quais são as contas mais pesadas?
12. A família fala em economizar?
13. Como é essa conversa?
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14. Quem paga uma conta o faz sempre?


15. Há mudanças no compromisso do pagamento?
16. Como é o compromisso?

5. A presença dos namorados/as em casa

1 Pode levar o namorado quando os pais não estão?


2 Pode trazer o namorado para dormir em casa?
3 Pode dormir no mesmo quarto?
4 Como se combinou isso?
5 Quem tomou a iniciativa?
6 Todos estão de acordo?
7 E a família do namorado?
8 Existem ocasiões em que não pode levar o namorado para dormir?
9 Durante o dia, podem ficar no quarto com a porta fechada?
10 Isso incomoda alguém?
11 A roupa de cama usada pelos namorados, ela é retirada nos dias normais
de troca ou a troca se dá em seguida da utilização?

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