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O artigo discute a relação entre Literatura e História, focando na reescrita de narrativas históricas através da ficção, com base na teoria de Saidiya Hartman sobre o arquivo e a fabulação crítica. Analisando os romances 'Beloved' de Toni Morrison e 'The Invention of Wings' de Sue Monk Kidd, o estudo evidencia como a literatura pode ajudar a reconstruir a história da população negra escravizada nos Estados Unidos, preenchendo lacunas deixadas pela documentação histórica. A pesquisa sugere que a narrativa ficcional é uma ferramenta essencial para contar histórias de grupos marginalizados e reimaginar a história oficial.

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O artigo discute a relação entre Literatura e História, focando na reescrita de narrativas históricas através da ficção, com base na teoria de Saidiya Hartman sobre o arquivo e a fabulação crítica. Analisando os romances 'Beloved' de Toni Morrison e 'The Invention of Wings' de Sue Monk Kidd, o estudo evidencia como a literatura pode ajudar a reconstruir a história da população negra escravizada nos Estados Unidos, preenchendo lacunas deixadas pela documentação histórica. A pesquisa sugere que a narrativa ficcional é uma ferramenta essencial para contar histórias de grupos marginalizados e reimaginar a história oficial.

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ESCREVENDO COM E CONTRA O ARQUIVO: A

FABULAÇÃO CRÍTICA EM BELOVED, DE TONI


MORRISON, E THE INVENTION OF WINGS, DE
SUE MONK KIDD

Giséle Manganelli Fernandes* 1


*Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho (UNESP IBILCE)
e-mail: [email protected]

Jéssica Marroni Fortuna* 2


*Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho (UNESP FCL)
e-mail: [email protected]

Resumo: Este artigo visa discutir as possibilidades relacionais entre Literatura e História,
principalmente no que diz respeito a uma reescrita da narrativa histórica com o auxílio da narrativa
ficcional. Para tanto, este trabalho se aprofunda na teoria de Saidiya Hartman (2020; 2021) sobre o
arquivo e a fabulação crítica. Segundo Hartman, muito pouco se registrou a respeito da população
negra trazida do continente africano para o trabalho escravo no continente americano e, por isso,
preencher as lacunas na história dessa população é um grande desafio (2020). Desse modo, neste
artigo, a narrativa imaginada, é uma ferramenta capaz de recontar a história dessa população ao
trabalhar com múltiplas perspectivas. Neste estudo, são analisados os romances Beloved (1988), de
Toni Morrison, e The Invention of Wings (2014), de Sue Monk Kidd, obras cujo plano de fundo é a
escravidão nos Estados Unidos e mesclam fatos históricos a suas narrativas ficcionais. A análise dos
romances evidencia como a narrativa literária pode ajudar a reconstruir e a reimaginar a História
oficial. Outros textos que fundamentarão a nossa análise são a obra ensaística de Toni Morrison
(2019) e os escritos de Hutcheon (1991), Scott (2011) e Figueiredo (2017) a respeito das aproximações
entre Literatura e História.

Palavras-chave: Literatura Norte-americana. Literatura e História. Arquivo. Toni Morrison. Sue


Monk Kidd.

Writing with and against the archive: critical fabulation in Beloved, by Toni
Morrison, and The Invention of Wings, by Sue Monk Kidd
Abstract: This study aims at discussing some issues as far as the relationhip between Literature and
History is concerned, mainly related to the rewriting of historical narrative with the help of ficction.
In order to do so, this paper delves into Saidiya Hartman's (2020; 2021) theory of the archive and
critical fabulation. According to Hartman, there is not a lot of material on the records about the black
population brought from Africa to work as slaves in the American continent and, for this reason,

1 Doutora em Letras. Docente do Programa de Pós-Graduação em Letras da UNESP, Campus São José do Rio Preto. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/8253780888713594. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4194-3414.
2 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Letras da UNESP, Campus Assis. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/1429874163026218. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2533-2031.

Ao citar este artigo, referenciar como: FERNANDES, Giséle M.; FORTUNA, Jéssica M. Escrevendo
com e contra o arquivo: a fabulação crítica em Beloved, de Toni Morrison, e The invention of wings,
de Sue Monk Kidd. Revista de Literatura, História e Memória. Cascavel. v. 20, n. 36, p. 1-17,
dez/2024.
2 ►Escrevendo com e contra o arquivo...

filling in the gaps in the history of this population is a major challenge (2020). Thus, the imagined
narrative is an important tool capable of retelling the history of this population by working with
multiple perspectives. This paper addresses the novels Beloved (1988), by Toni Morrison, and The
Invention of Wings (2014), by Sue Monk Kidd, both focusing on slavery in the United States and
mixing historical facts with their fictional narratives. The analyses show how Literature can help
reconstruct and reimagine official History. Other texts which will be used for our analysis are essays
by Toni Morrison (2019) and writings by Hutcheon (1991), Scott (2011) and Figueiredo (2017) on the
similarities between Literature and History.

Keywords: American Literature. Literature and History. Archive. Toni Morrison. Sue Monk Kidd.

Introdução

Literatura e História são áreas do conhecimento que frequentemente se entrelaçam.


Estudá-las em consonância há muito tempo interessa à crítica literária, e os paradigmas a
respeito de suas relações estão sempre sendo revisitados e atualizados. Linda Hutcheon, por
exemplo, é uma autora de destaque na contemporaneidade ao tratar dessa temática. No
livro A Poética do Pós-Modernismo: História, Teoria, Ficção (1991), ela contesta algumas ideias
do professor Gerald Graff sobre a relação entre as duas áreas e aponta que:

O que a escrita pós-moderna da história e da literatura nos ensinou é que a ficção e


a história são discursos, que ambas constituem sistemas de significação pelos quais
damos sentido ao passado (“aplicações da imaginação modeladora e
organizadora”). Em outras palavras, o sentido e a forma não estão nos
acontecimentos, mas nos sistemas que transformam esses “acontecimentos”,
passados em “fatos” históricos presentes. Isso não é um “desonesto refúgio para
escapar à verdade”, mas um reconhecimento da função de produção de sentido dos
construtos humanos (Hutcheon, 1991, p. 122).

A partir de um enfoque pós-moderno, Hutcheon afirma que o discurso histórico se


assemelha ao literário, uma vez que também é interpretação e ressignificação daquilo que
já aconteceu. Assim, a maneira como um suposto fato passado é contado no presente
depende da perspectiva e da intenção de quem o conta. A autora questiona, ainda, a própria
definição de fatos históricos, dizendo que os acontecimentos transformados em fatos são
selecionados e interpretados previamente por alguém.
Em uma linha de pensamento semelhante, a historiadora Joan Scott, no ensaio A
História das Mulheres (2011), questiona a exclusão da perspectiva feminina dos
acontecimentos, afirmando que a História entendida como “universal” não abarca

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diferentes perspectivas, servindo ao interesse de um grupo que procura se firmar como


universal (p. 80).
A autora propõe que apresentar a perspectiva de outro grupo — o grupo das
mulheres, por exemplo — é importante para questionar os acontecimentos entendidos como
absolutos. Neste mesmo texto, Scott também questiona o fato de o grupo das mulheres
abarcar, na verdade, uma diversidade enorme de mulheres, de diferentes raças, etnias e
classes sociais (2011, p. 92). Desse modo, quando se fala em “mulheres”, é preciso entender
quem são elas e quais são suas possíveis diferentes perspectivas sobre um mesmo momento
histórico.
A História, portanto, assim como a Literatura, pode ser considerada uma narrativa
partindo de um determinado ponto de vista, interpretando o mundo e garantindo
significado aos acontecimentos. Mas, apesar de suas semelhanças, História e Literatura
permanecem sendo campos distintos. É a partir das proximidades e distanciamentos entre
essas duas áreas que surgem os seguintes questionamentos: de que modo a Literatura pode
ajudar a forjar outras perspectivas sobre a História? Como essas duas áreas do
conhecimento se entrelaçam para que histórias de diferentes grupos possam ser contadas?
E ainda: é realmente possível recontar a História por meio da Literatura?
Para tentar responder essas questões, buscamos auxílio na teoria de Saidiya Hartman,
escritora e professora estadunidense que escreve especialmente sobre as relações entre o
arquivo e a Literatura (2020). O arquivo em Hartman se assemelha ao foucaultiano (2020, p.
157), que o entende como um construto discursivo: o arquivo é aquilo que pode ser dito
sobre determinada situação. Ou seja, não é imparcial; ele visa contar uma história a partir
de um ponto de vista.
Em seu livro Perder a Mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão (2021), Hartman
escreve sobre a jornada da população africana trazida forçadamente para o continente
americano. Um dos aspectos apresentados na obra é a dificuldade em retraçar a história de
seu povo e de sua família, pois as narrativas a respeito das pessoas trazidas para o trabalho
escravo foram quase completamente apagadas. Segundo Hartman:

O arquivo dita o que pode ser dito sobre o passado e os tipos de histórias que podem
ser contadas sobre pessoas catalogadas, embalsamadas e lacradas numa caixa de
pastas e fólios. Ler o arquivo é adentrar um necrotério, que permite uma visão final
e um último vislumbre de pessoas prestes a desaparecer no porão de escravos
(Hartman, 2021, p. 33).

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Hartman afirma ainda que a visão a respeito da história da população negra no


continente americano está repleta de sofrimento, violência e morte. O arquivo em torno da
escravidão é majoritariamente composto de narrativas desse tipo, as quais focam
quantitativamente em uma população que viveu e ainda vive as consequências do tráfico
de pessoas escravizadas. A autora, entretanto, questiona como seria possível romper com
essa lacuna no arquivo e buscar outra história — ou, pelo menos, uma história mais
completa — a respeito de seu povo.
Nesse sentido, no ensaio Vênus em Dois Atos (2020), Hartman propõe que a chamada
fabulação crítica (p. 28) permite recriar a história da população negra escravizada. A
fabulação crítica consiste em imaginar o que poderia ter sido a respeito dessas pessoas
catalogadas, usando de um arquivo impessoal para construir uma narrativa mais fiel ao que
elas viveram. A autora, em suma, visa reconstruir o arquivo em torno da população
escravizada por meio de uma narrativa imaginada. Ela aponta:

A intenção dessa prática não é dar voz ao escravo, mas antes imaginar o que não
pode ser verificado, um domínio de experiência que está situado entre duas zonas
de morte — morte social e corporal — e considerar as vidas precárias que são visíveis
apenas no momento de seu desaparecimento. É uma escrita impossível que tenta
dizer o que resiste a ser dito (uma vez que garotas mortas são incapazes de falar). É
uma História de um passado irrecuperável; é uma narrativa do que talvez tivesse
sido ou poderia ter sido; é uma História escrita com e contra o arquivo (Hartman,
2020, p. 29).

Hartman, ao buscar imaginar o que poderia ter sido, constrói uma narrativa sobre
essa população que não está na história oficial. Assim, ela realiza algo parecido com o que
faz a Literatura: elabora uma narrativa imaginada a respeito de determinado momento e de
determinadas pessoas. Essa imaginação, porém, não recai somente do mundo da fantasia,
mas na experiência de pessoas que tiveram elas mesmas ou seus antepassados em situações
de escravidão. Essa experiência coletiva, passada adiante apenas oralmente, serve como
combustível para a fabulação de um momento que não foi devidamente documentado.
Corroborando essa aproximação, Toni Morrison, em sua produção ensaística, trata
de maneira similar à de Hartman dos entrelaçamentos entre a História e a Literatura no que
diz respeito à população negra escravizada. No ensaio O Sítio da Memória, presente na
coletânea de ensaios chamada A Fonte da Autoestima (2019) a autora reflete sobre seu

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processo de escrita ficcional aliado à memória e sobre o modo como a escravidão é


representada em suas obras:

Se escrever é pensamento, descoberta, seleção, ordem e significado, é também


admiração e reverência e mistério e mágica. Suponho que eu poderia dispensar os
últimos quatro ingredientes se não levasse mortalmente a sério a fidelidade ao
ambiente a partir do qual escrevo e no qual meus ancestrais de fato viveram.
Infidelidade àquele ambiente — a ausência da vida interior, sua extirpação
deliberada dos registros que os próprios escravizados redigiram — é precisamente
o problema nos discursos que se desenrolavam sem nós. O modo como entro em
contato com aquela vida interior é o que me move e é parte dessa conversa que tanto
estabelece distinções entre minha ficção e as estratégias autobiográficas como
também se apropria dessas estratégias. É um tipo de arqueologia literária: com base
em certas informações e um pouco de indução, você viaja para um sítio para ver que
vestígios nos alcançaram e para reconstruir o mundo que esses vestígios nos
sugerem. O que faz disso ficção é a natureza do meu ato imaginativo: minha
confiança na imagem — nos vestígios — aliada à lembrança, para alcançar uma
espécie de verdade (Morrison, 2019, p. 104).

A autora reitera, portanto, o que Hartman propõe com sua fabulação crítica ao dizer
que, em seu processo de escrita, ela une tanto os vestígios que tem sobre determinado fato
à lembrança e à imaginação. Morisson define sua escrita como uma espécie de “arqueologia
literária”, indo ao encontro do processo de escrita de Hartman, que afirma escrever “com e
contra o arquivo” (2020, p. 29). Ora, ambas se utilizam da história que conhecem e imaginam
uma história que não foi contada: aquela apagada em detrimento de outro ponto de vista.
Essas duas escritoras afirmam, cada uma a seu modo, que a narrativa ficcional é importante
— e muitas vezes a única possibilidade — para que a história completa de uma população
seja escrita.
Aproveitamos, desse modo, para nos aprofundar ainda mais no porquê de a
Literatura ser o meio pelo qual a reescrita da História é proposta e levantar mais algumas
questões. Afinal, por que o discurso ficcional se mostra necessário — ou, pelo menos, se
mostra a melhor alternativa — nessa empreitada? A professora e pesquisadora Eurídice
Figueiredo, no livro A Literatura Como Arquivo da Ditadura Brasileira (2017) traz reflexões
importantes para responder a esses questionamentos.
Em um importante trabalho sobre as obras literárias que abordam a ditadura militar
brasileira em suas narrativas, a professora questiona a relação complexa entre o papel
jornalístico-documental e literário a respeito desse período, e afirma:

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E, no entanto, a despeito do enorme trabalho realizado por historiadores e


jornalistas, só a literatura é capaz de recriar o ambiente de terror vivido por
personagens afetados diretamente pela arbitrariedade, pela tortura, pela
humilhação [...]. Numerosos críticos e pensadores tem salientado tanto a
necessidade quanto as possibilidades da ficção em recriar, através da imaginação e
da liberdade composicional, não aquilo que realmente aconteceu, o que é
impossível, como já aprontava Walter Benjamin no seu seminal texto sobre os
conceitos da História, mas algo que possa evocar o que pensaram, sentiram ou
sofreram (Figueiredo, 2017, p. 43).

A autora, assim, vai ao encontro da teoria de Toni Morrison a respeito de seu trabalho
ficcional, apontando que apenas a Literatura é capaz de recriar subjetivamente um
acontecimento, não apenas relatando o que se passou, mas provocando emoções e
sentimentos capazes de imprimir uma marca mais duradoura nos leitores. Dessa forma, sem
a Literatura, a narrativa histórica não daria conta de compreender aquilo que não pode ser
documentado, não poderia preencher de fato as lacunas e os silêncios do arquivo.
Figueiredo continua abordando um aspecto importante da narrativa ficcional, que é
a capacidade de provocar identificação e estranhamento no leitor, de mostrar aquilo que
existe em comum entre todos os seres humanos e que é, ao mesmo tempo, diferente para
cada um. Ela afirma que “só a Literatura é capaz de suscitar a figuração do Outro, do
diferente, aquele que não podemos conhecer se não sairmos de dentro de nós mesmos.”
(2017, p. 45).
Assim, com a ajuda de Hartman, Morrison e Figueiredo, é possível responder a uma
das questões propostas por este artigo: a Literatura pode, de algum modo, ajudar a recontar
a História. Os tópicos seguintes são exemplos de como narrativas literárias contribuíram
com o tecido da narrativa histórica na contemporaneidade. As obras em foco neste estudo
são Beloved (Amada), romance de Toni Morrison publicado em 1987, e The Invention of Wings
(A Invenção das Asas)3, romance de Sue Monk Kidd, publicado em 2014.
Os romances, além de abordarem a escravidão nos Estados Unidos, trazem duas
figuras reais da história para a ficção como personagens principais: em Beloved, uma mulher
escravizada que foge para alcançar sua liberdade, e em The Invention of Wings, uma
abolicionista e pioneira na luta pelo direito das mulheres no país. Tanto Morrison quanto
Kidd utilizam do arquivo já existente para compor suas narrativas ficcionais. Assim, ambos

3No decorrer do texto, utilizaremos citações dos livros traduzidos para o português brasileiro. O romance de Morrison foi
publicado pela Companhia das Letras sob o título de Amada (2011), com tradução de José Rubens Siqueira. Já o romance
de Kidd foi traduzido por Flavia Yacubian e publicado pela editora Paralela com o título de A Invenção das Asas (2014).

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os livros ajudam a entender na prática como a fabulação crítica de determinados momentos


históricos permite alcançar novos e relevantes pontos de vista.

Beloved: a História recontada

Uma das personagens centrais em Beloved, de Toni Morrison, é Sethe, inspirada na


figura real de Margaret Garner, uma mulher escravizada nos Estados Unidos do século XIX
que fugiu da plantation onde vivia em busca de liberdade para sua família. Garner se tornou
conhecida no noticiário da época, pois, certo dia, quando seus antigos donos a encontraram
e tentaram levá-la de volta, ela decidiu matar seus filhos na tentativa de não os deixar voltar
para a condição de escravos.
Ela conseguiu, porém, tirar a vida de apenas uma de suas filhas, sendo contida pelas
pessoas que se encontravam por perto. Seu caso se tornou amplamente conhecido e
Morrison se deparou com ele, séculos depois, enquanto editava um livro sobre a população
africana nos Estados Unidos chamado The Black Book (1974). Garner aparece no relato de um
reverendo quando a visita na prisão e a questiona sobre seus atos, recebendo a resposta de
que ela não havia se arrependido do que fizera (Basset, 1856, n.p.).
No prefácio de Beloved, Morrison tece alguns comentários a respeito da inspiração na
história de Garner para criar seu romance:

A Margaret Garner histórica era fascinante, mas, para um romancista, era


limitadora. Muito pouco espaço imaginativo para o que eu queria. Então eu
inventaria seus pensamentos, prenderia esses pensamentos a um subtexto que fosse
historicamente verdadeiro em essência, mas não estritamente factual, a fim de
relacionar sua história com questões contemporâneas sobre a liberdade, a
responsabilidade e o “lugar” da mulher. A heroína representaria a aceitação
indesculpada da vergonha e do terror; assumiria as consequências de escolher o
infanticídio; reclamaria a própria liberdade. O terreno, a escravidão, era formidável
e sem trilhas. Convidar os leitores (e eu própria) a percorrer a paisagem repelente
(oculta, não completamente; deliberadamente enterrada, mas não esquecida) era
armar uma tenda num cemitério habitado por fantasmas muito eloquentes
(Morrison, 2011, p. 14).4

4 The historical Margaret Garner is fascinating, but, to a novelist, confining. Too little imaginative space there for my
purposes. So I would invent her thoughts, plumb them for a subtext that was historically true in essence, but not strictly
factual in order to relate her history to contemporary issues about freedom, responsibility, and women’s “place.” The
heroine would represent the unapologetic acceptance of shame and terror; assume the consequences of choosing
infanticide; claim her own freedom. The terrain, slavery, was formidable and pathless. To invite readers (and myself) into
the repellant landscape (hidden, but not completely; deliberately buried, but not forgotten) was to pitch a tent in a cemetery
inhabited by highly vocal ghosts (Morrison, 2004, p. XVII).

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Morrison menciona, no trecho acima, um exemplo de sua “arqueologia literária”, ao


percorrer o terreno da escravidão — um passado existente e documentado — imaginando
o que poderia ter significado para Garner ser mulher e mãe naquela época e naquele
contexto. A autora exemplifica, desse modo, a proposta de Hartman em Vênus em Dois Atos
(2020), ao mostrar o nosso desconhecimento acerca dos pensamentos e dos sentimentos da
população escravizada, ou seja, não sabemos nada além da violência quantificada.
Morrison, em Beloved, reconstrói a História das mulheres escravizadas nos Estados Unidos
do século XIX, utilizando da licença poética da Literatura para percorrer o terreno da
escravidão de maneira imaginativa, ficcional.
Beloved não é apenas um romance sobre a história de Margaret Garner, é também, e
sobretudo, um romance sobre os fantasmas da violência. Garner, personificada em Sethe,
convive com a presença da filha que matou. Essa presença é bastante material: “O 124 era
rancoroso. Cheio de um veneno de bebê” (Morrison, 2011, p. 19)5, é a primeira linha do
romance e mostra a convivência de Sethe e de seus familiares com o fantasma da bebê
assassinada, Amada (Beloved) nome dado a ela no momento em que foi sepultada. O
fantasma vive na casa 124 da rua Bluestone, junto de Sethe e Denver, sua filha mais nova.
Tanto Sethe e Denver quanto outras personagens, como Baby Suggs e Paul D, têm
sua parcela de convívio com Amada, todos com suas particularidades e cada um com
sentimentos diversos em relação a ela. Enquanto Sethe a quer por perto a qualquer custo,
Paul D a repele e Denver deseja conhecê-la melhor. É possível entrever na poeticidade de
Morrison que Amada não é somente uma personagem, é também um símbolo: ela é a
personificação de um passado, de algo que todos aqueles personagens têm em comum.
Ashraf Rushdy, em um ensaio acerca da obra, comenta:

Amada é mais que apenas uma personagem na obra. Ela é a incorporação do


passado que deve ser lembrado para que possa ser esquecido; ela simboliza o que
deve ser reencarnado para que possa ser devidamente enterrado: “Todos sabiam
como era chamada, mas ninguém em lugar algum sabia seu nome. Esquecida e
desaparecida, ela não pode ser perdida porque ninguém está procurando por ela.”
(Rushdy, 1992, p. 571, tradução nossa). 6

5 124 was spiteful. Full of a baby’s venom (Morrison, 2004, p. 4).


6
Beloved is more than just a character in the novel, though. She is the embodiment of the past that must be remembered
in order to be forgotten; she symbolizes what must be reincarnated in order to be buried, properly: “Everybody knew what
she was called, but nobody anywhere knew her name. Disremembered and unaccounted for, she cannot be lost because
no one is looking for her.” (Rushdy, 1992, p. 571).

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Amada pode ser a incorporação da violência, da escravidão e do sofrimento causado


por ela. Ela é, mais do que tudo, um passado que deve ser lembrado para poder ser
esquecido. Deparamo-nos, portanto, com um ponto substancial a respeito de Beloved: a
importância da memória. Conforme atestado por Hartman, a memória a respeito da
escravidão é muito fragmentada e escassa. Do mesmo modo, é preciso acessar essa memória
para que ela possa surtir efeito no presente, para que o passado não volte a se repetir.
Assim, Morrison acessa a memória da escravidão por meio de seus personagens. Ao
colocá-los — e a si — em convívio com Amada, ela reitera a importância de buscar essas
lembranças e memórias cobertas por um véu que objetiva esconder ou apagar as pessoas
pela dor e pela violência (Morrison, 2019, p. 104).
Em uma passagem de Beloved, Denver precisa sair de casa a procura de ajuda, mas
ela hesita em se afastar do 124, pois teme não conseguir descer os degraus da varanda.
Denver já nasceu em liberdade, longe, de certo modo, dos horrores mais pungentes da
escravidão. O contato de Denver com esse período sombrio da história de sua família se dá
na convivência com as pessoas que passaram por ele, mas que insistem em não o mencionar.
Como Hartman comenta em Perder a Mãe, o “silêncio no arquivo” acontece, também,
pela recusa das pessoas que viveram em determinado momento histórico a falar sobre ele,
como é o caso da tataravó da autora, apresentado no trecho: “Seriam as palavras que ela se
recusava a compartilhar as que eu deveria lembrar? Seria a experiência da escravidão
melhor representada por todas as histórias que eu jamais conheceria?” (Hartman, p. 31,
2021).
Não é por acaso que é a avó de Denver, Baby Suggs, quem aparece nos pensamentos
da menina e insiste para que ela conheça sua própria história: “Saiba, e saia desse quintal.
Vá.” (Morrison, 2011, p. 347)7. Essa passagem é semelhante ao que a tataravó de Hartman
não pôde, ou não conseguiu, fazer. Quando Baby Suggs diz “saiba”, ela está se referindo a
todo o passado de seus familiares, como Rushdy coloca a seguir:

“Saiba”: conhecimento histórico, se não é a defesa, é pelo menos o único caminho


para a integridade. É um conhecimento de um coletivo maior — de seu pai, sua mãe,
sua avó, Carolina, Doce Lar, escravidão. É entender as forças da escravidão que
compeliram sua mãe a fazer o que ela fez. Há uma outra história além da história de

7 “Know it, and go on out the yard. Go on.” (Morrison, 2004, p. 244)

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Amada, uma narrativa maior além daquela de sua família, uma dor mais profunda
que a suspeita e o medo e o rancor (Rushdy, 1992, p. 582, tradução nossa).8

A história além da história, desse modo, é o contexto histórico em que Beloved está
inserida e que a autora busca recontar. É o terreno no qual Morrison adentrou para fazer
com que não apenas seus personagens e ela mesma lembrem como também toda uma
população não se esqueça.
É interessante, também, observar como esse processo de relembrar e recontar está
centrado nas personagens femininas do romance e, mais especificamente, na relação entre
mãe e filha. O fantasma de Amada é quem faz Sethe reviver sua culpa e seu passado de
violência; entretanto, Denver é quem sai de casa e procura auxílio no momento em que Sethe
mais precisa. Além de tudo, é impossível não considerar Baby Suggs, que vive nas memórias
de todas as personagens da obra, ainda lhes aconselhando, mesmo que indiretamente.
O exercício de contar a história, de reviver as lembranças e passá-las adiante é feito
principalmente por essa rede de mulheres: Baby Suggs, Sethe, Amada e Denver. A tradição
oral, elemento tão importante da cultura africana, como aponta Amadou Hampâté Bâ
(2010), está relacionado às mulheres do romance, que transmitem a história de mãe para
filha e conseguem manter vivo esse passado tão fundamental para a construção do presente.
A tentativa de Morrison de recontar a história por meio dessa linhagem de mulheres
negras é um ato imaginativo ainda mais significativo, por serem elas as mais prejudicadas
pelo silenciamento do arquivo, pelo apagamento da história. Beloved, portanto, ao voltar ao
passado a partir da perspectiva de suas personagens, também procura subverter a narrativa
oficial da formação de uma nação como os Estados Unidos, a qual tantas vezes ignorou a
população negra escravizada, tão importante para sua construção. A memória da nação,
dessa maneira, é revisitada e reconstruída, agora com a perspectiva daquelas que não
venceram na História oficial.

8“Know it”: historical knowledge, if it isn’t the defense, is at least the only way to integrity. It is a knowledge of the larger
collective — of her father, her mother, her grandmother, Carolina, Sweet Home, slavery. It is understanding the forces of
slavery that compelled her mother to do what she did. There is another story besides Beloved’s, a larger narrative besides
her family’s, a deeper pain than suspicion and fear and spite (Rushdy, 1992, p. 582).

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The Invention of Wings: a colcha de retalhos da História

Sue Monk Kidd traz para a ficção a figura histórica de Sarah Grimké, uma
abolicionista que lutou pelo fim da escravidão junto de sua irmã mais nova, Angelina. As
duas ficaram conhecidas nos Estados Unidos como as irmãs Grimké. Além de defenderem
o fim da escravidão, elas foram pioneiras na luta pelo direito das mulheres no país, afinal,
para que pudessem ministrar palestras e estar à frente da luta abolicionista, elas tiveram de
enfrentar muitas limitações impostas por serem mulheres. A filósofa Angela Davis, em
Mulheres Raça e Classe (2016), aponta as irmãs Grimké como figuras de destaques do
movimento abolicionista no século XIX:

De entre as mulheres abolicionistas pioneiras, as irmãs Grimké da Carolina do Sul,


Sarah e Angelina, foram as que mais consistentemente ligaram a questão da
escravatura à opressão das mulheres. Desde o início da sua tumultuosa carreira de
conferencistas, que se sentiram compelidas a defenderem os seus direitos como
mulheres para serem defensoras da abolição — e através da defesa dos direitos de
todas as mulheres publicitaram a sua oposição à escravatura (Davis, 2016, p. 37).

Davis destaca o fato de as irmãs ligarem a questão abolicionista à opressão das


mulheres, algo muitas vezes negligenciado pelo movimento antiescravidão. Entender a rede
de opressão relacionada a diversos grupos foi um feito bastante relevante para a época.
Entretanto, segundo Sue Monk Kidd, pouco se conhecia a respeito delas na história
estadunidense.
A autora comenta, no posfácio de The Invention of Wings (2014, p. 315), que tomou
conhecimento das irmãs Grimké apenas alguns anos antes de escrever o romance, ao se
deparar com seus nomes durante uma visita à instalação The Dinner Party, de Judy Chicago,
localizada no Brooklyn Museum9. Importante para a estética feminista, a obra de Chicago
consiste numa mesa de jantar com lugar para 39 mulheres de grande importância histórica.
Além dos 39 lugares, os nomes de outras 999 mulheres aparecem inscritos no chão da
instalação. Conterrânea de Sarah e Angelina, também nascidas em Charleston, Carolina do
Sul, Kidd se sentiu compelida a contar a história tão pouco conhecida das irmãs Grimké.

9
The Dinner Party, de Judy Chicago. Instalação permanente no Brooklyn Museum. Disponível em:
https://www.brooklynmuseum.org/exhibitions/dinner_party/. Acesso: 11 de mai. de 2024.

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A autora escolheu, entretanto, dar voz a apenas uma das irmãs, Sarah, e trazer outra
personagem para dividir o protagonismo com ela: Encrenca (Handful), uma mulher
escravizada que vivia na fazenda da família Grimké e foi destinada a ser dama de
companhia de Sarah quando as duas eram ainda crianças. A autora afirma que Encrenca
realmente existiu, mas faleceu ainda jovem, de causas desconhecidas, e havia sido nomeada
Hetty pelos pais de Sarah. Kidd comenta:

O modo mais amplo e notável que divergi do histórico de Sarah foi por meio de sua
relação imaginária com o personagem fictício de Hetty Encrenca. A partir do
momento em que decidi escrever sobre Sarah Grimké, me senti motivada a também
criar a história de um personagem escravizado, lhe dando uma vida e uma voz que
pudessem ser entrelaçados a de Sarah. Senti que não poderia escrever o romance de
outro modo, ambos os mundos teriam de ser representados aqui. Então, me deparei
com um detalhe irresistível. Quando criança, Sarah tinha recebido uma jovem
escrava chamada Hetty para ser sua dama de companhia. […] Eu soube
imediatamente que a outra metade de história pertencia a ela. Eu tentaria trazer
Hetty de volta à vida. Eu imaginaria o que poderia ter sido (Kidd, 2014, p. 317).10

Kidd faz com a personagem de Encrenca algo semelhante ao que Morrison realiza
com a história de Sethe: para dar vida às personagens, as autoras imaginaram o que poderia
ter sido além do registrado. Segundo os documentos oficiais, Hetty Encrenca havia falecido,
mas Kidd imaginou sua vida, sua relação com Sarah e com todo o seu entorno. Portanto, a
autora executa uma fabulação crítica, um exercício imaginativo sobre acontecimentos não
documentados pelo arquivo da escravidão.
Uma diferença entre os romances Beloved e The Invention of Wings é que Kidd
apresenta outro ponto de vista: o das mulheres brancas engajadas na luta abolicionista e,
remetendo ao ponto trazido por Davis anteriormente, alia a opressão às mulheres ao sistema
escravocrata e patriarcal. Além disso, se em Beloved Morrison deu vida aos fantasmas da
violência sofrida pela população escravizada, Kidd escreve a história de seu romance por
meio de linhas e agulhas. A autora inclui na narrativa uma tradição muito comum entre
mulheres da época, a técnica de confeccionar colchas de retalhos (quilting), baseando-se nas

10The most expansive and notable way that I’ve diverged from Sarah’s record is through her imaginary relationship with
the fictional character of Handful. From the moment I decided to write about Sarah Grimké, I felt compelled to also create
the story of na enslaved character, giving her a life and a voice that could be entwined with Sarah’s. I felt I couldn’t write
the novel otherwise, that both of their worlds would have to be represented here. Then I came upon a tantalizing detail.
As a girl, Sarah was given a Young slave named Hetty to be her waiting maid. [...] I knew right away that hers was the
other half of the story I would try to bring Hetty to life again. I would imagine what could have been (Kidd, 2014, p. 363).

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colchas feitas por Harriet Powers, uma mulher escravizada na Geórgia que ficou famosa
pelos seus trabalhos com a costura. Sobre as colchas de Powers, Kidd escreve:

Suas duas colchas que sobreviveram estão arquivadas no Museu Nacional de


História Americana, Washington D.C., e no Museu de Belas-Artes, em Boston.
Peregrinei até Washington para ver a colcha de Powers e, depois de vê-la, pareceu-
me plausível que mulheres escravizadas, proibidas de ler e escrever, tivessem
inventado um meio subversivos de dar voz a si mesmas, de manter sua memória
viva e preservar a herança de tradições africanas (Kidd, 2014, p. 321).11

Assim como o fantasma de Amada, as colchas (quilts) são um grande símbolo em The
Invention of Wings e também uma maneira significativa encontrada pelas personagens para
lembrar-se de suas histórias, registrá-las e, consequentemente, não se deixarem dominar
pela opressão que sofriam. Assim como Morrison, Kidd corrobora a questão de que saber
sua própria história é uma importante ferramenta de resistência.
Na obra de Kidd, portanto, o modo encontrado pelas personagens de não deixar que
o passado seja esquecido é por meio da costura. Linda Pershing, em um ensaio acerca das
artes manuais na Literatura, afirma que muitas mulheres, impedidas de aprender a ler e a
escrever, utilizavam da costura como forma de comunicação, para contar suas histórias, e
até mesmo como forma de protesto. Partindo de uma atividade tipicamente relacionada ao
universo feminino, elas eram capazes de subverter o significado da costura e criar uma
linguagem própria (1993, p. 338).
Indo ao encontro do que imaginou Kidd ao ver as colchas de Harriet Powers,
Pershing reafirma que a costura pode ser uma forma de comunicação e também um ato
político, de subversão de sua própria realidade. Esse fato está presente em The Invention of
Wings, em passagens entre Encrenca e sua mãe, Charlotte. A mãe, personagem que não
aparece no arquivo, mas foi imaginada por Kidd a partir dele, costurava para a família
Grimké e por isso tinha acesso a tecidos, linhas e agulhas. Vez ou outra, ela pegava esses
itens escondidos e costurava para si e para a filha, confeccionando as colchas de retalhos.
A colcha mais significativa produzida por Charlotte é a colcha de histórias (the story
quilt), que ela costura para contar a história de toda a sua vida, desde os seus antepassados

11Her two surviving quilts are archived at the National Museum of American History in Washington, D.C., and the
Museum of Fine Arts, Boston. I made a pilgrimage to Washington to see Powers’ quilt, and after viewing it, it seemed
plausible that enslaved women, forbidden to read and write, could have devised subversive ways to voice themselves, to
keep their memories alive and to preserve the heritage of their African traditions (Kidd, 2014, p.368).

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no continente africano até a vida que levava como escrava, por meio de formas geométricas
costuradas lado a lado ao longo do tecido.
A costura, desse modo, une mãe e filha, como se Charlotte estivesse contando para
Encrenca toda a sua história por meio das linhas. A superação do sentimento de impotência
diante de um sistema como a escravidão é mantida por elas, que encontram uma forma de
perpetuarem-se e afirmarem-se como seres humanos com um passado e com direito a um
futuro. Essa atividade silenciosa, aparentemente inofensiva, é uma das maiores ferramentas
que essas personagens possuem contra a opressão.
Além disso, a obra é composta por capítulos narrados de maneira intercalada entre
Encrenca e Sarah, como se as duas estivessem colocando suas histórias lado a lado e unindo-
as com uma linha invisível, como se a própria narrativa fosse uma colcha de retalhos feita
de palavras. Desse modo, podemos deduzir que a maneira encontrada por Kidd de
reescrever a História por meio de seu romance foi o resgate desse símbolo tão importante
que é a costura.
Focando, assim como Morrison, numa linhagem feminina — de mãe para filha —, ela
ficcionaliza as histórias de Encrenca e de Sarah e as une à história de outras mulheres reais,
como Harriet Powers, por exemplo, que utilizaram da costura como forma de sobrevivência.
Ao narrar as vidas de suas personagens, Kidd agrega mais um quadrado à colcha de retalhos
da História, ampliando o que se sabe sobre as mulheres que viveram a escravidão, cada uma
a sua maneira.

Considerações Finais

Walter Benn Michaels, em um ensaio sobre Beloved, traz a seguinte reflexão:

“História é para a nação”, Arthur Schlesinger Jr. recentemente escreveu, “assim


como a memória é para o indivíduo. Assim como um indivíduo privado da memória
fica desorientado e perdido… também uma nação a qual é negada uma concepção
de seu passado não conseguirá lidar com seu presente… Como uma forma de definir
identidade nacional, a história se torna uma forma de moldar a história” (20). A
memória, aqui, é tida como capaz de constituir o cerne da identidade individual;
memória nacional é entendida como capaz de constituir o cerne da identidade
nacional (Michaels, 1996, p. 3, tradução nossa). 12

12
“History is to the nation”, Arthur Schlesinger Jr. has recently written, “rather as memory is to the individual. As an
individual deprived of memory becomes disoriented and lost… so a nation denied a conception of its past will be disabled
in dealing with its present… As the means of defining national identity, history becomes a means of shaping history” (20).

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Um indivíduo sem memória, sem consciência de sua história, pode ter a sua
identidade comprometida. Do mesmo modo, uma nação sem consciência de seu passado,
sem memória do que já aconteceu, é passível de cometer os mesmos erros do passado no
presente. Quando não há informações sobre seu próprio passado, como é possível constituir
um presente e um futuro para si? Esse questionamento é central para Saidiya Hartman, que
na afirmação abaixo complementa as palavras de Michaels:

Mas seu silêncio instigou minhas próprias dúvidas sobre memória e


escravidão: o que escolhemos lembrar sobre o passado e o que desejamos
esquecer? Minha tataravó acreditava que esquecer ensejava a possibilidade
de uma nova vida? Não havia nada a ganhar ao focar no passado? Seriam as
palavras que ela se recusava a compartilhar as que eu deveria lembrar? Seria
a experiência da escravidão melhor representada por todas as histórias que
eu jamais conheceria? Eram os buracos e silêncios e espaços vazios a
substância da minha história? (Hartman, 2021, p. 31).

Os silêncios e os espaços vazios são aquilo que não se registrou sobre a história da
população escravizada no continente americano, e aquilo sobre o qual não se fala. É o
silêncio do arquivo, como define Hartman, aquilo que o discurso dominante não visou
relatar. Desse modo, a autora responde a seus questionamentos partindo do pressuposto de
que é preciso preencher as lacunas do arquivo, resgatar a memória dessa população.
Entretanto, como fazê-lo se não há material com o qual podemos contar? Um dos modos de
fazê-lo, como discutido neste trabalho, é por meio da narrativa literária.
Por sua vez, a fabulação crítica (2020) proposta por Hartman consiste em imaginar o
que poderia ter sido. Isso é realizado por Morrison não apenas em Beloved, mas em toda sua
vasta obra literária e, também, o efetuado por Kidd em The Invention Of Wings. Por meio de
personagens como Sethe, Amada, Denver, Sarah e Encrenca, a ficção e a história se
entrelaçam e é possível vislumbrar como viveram milhares de mulheres e homens que
foram submetidos à escravidão nos Estados Unidos do século XIX.
Beloved e The Invention of Wings, portanto, são obras que utilizam da memória de
indivíduos para acessar a memória de uma nação. Em Beloved, as lembranças que as

Memory is here said to constitute the core of individual identity; national memory is understood to constitute the core of
national identity (Michaels, 1996, p. 3).

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personagens desejam permanecer esquecidas são revisitadas e recontadas de mãe para filha,
e só assim elas são capazes de curar as feridas causadas por um passado violento e seguir
em frente. Em The Invention of Wings, a história das personagens é perpetuada por meio da
colcha de histórias, pela atividade da costura, que se assemelha à tradição oral presente em
Beloved. Costurar torna-se, também, uma forma de contar.
Na mesma linha de Hartman, ao mencionar sua tataravó e a vida que ela escolheu
não relatar, Morrison reflete sobre a relação de outros autores com seus antepassados e sobre
sua própria relação com seus avós. A autora remete à construção de uma memória contada
e passada adiante. Morrison escreve:

Como Frederick Douglass falando da avó, e James Baldwin falando do pai, e Simone
de Beauvoir falando da mãe, essas pessoas são meu acesso a mim mesma; são minha
entrada na minha própria vida interior. E é por isso que as imagens que flutuam ao
redor deles — os vestígios, por assim dizer, no sítio arqueológico — emergem
primeiro, e emergem tão vividamente e de modo tão imperioso que as reconheço
como meu caminho para uma reconstrução de um mundo, para uma exploração de
uma vida interior que não foi registrada e para a revelação de uma espécie de verdade
(Morrison, 2019, p. 105).

A verdade de Morrison é constituída da memória de seus antepassados, e essa


verdade se torna sua e, apesar de ter vivido experiências diferentes, a autora pode imaginar
as vidas interiores que não foram registradas tampouco selecionadas para compor o
arquivo. A partir dessas vidas imaginadas, Morrison constrói suas narrativas e, dessa forma,
constrói uma nova “espécie de verdade”.
Para responder, por fim, aos questionamentos iniciais desse trabalho, é possível ver
a Literatura como instrumento valioso para preencher as lacunas de um arquivo
propositalmente incompleto e, assim, originar uma nova narrativa histórica a partir da
junção dos documentos com aquilo que se pode deduzir do arquivo. Tendo isso em vista, é
necessário levar em conta que os registros a respeito de um determinado acontecimento são
sempre enviesados, pois o arquivo não está separado do jogo do sistema vigente em uma
determinada época (Hartman, 2021, p. 27). Portanto, imaginar o não registrado é um ato
importante de resgate da história de um povo e de uma nação. Beloved e The Invention of
Wings são apenas alguns exemplos do poder da Literatura nesse exercício de resgate e de
reescrita.

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