Faculdade Pernambucana de Saúde
GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Ana Tereza Olimpio da Silva
Resenha crítica do documentário Estamira
Recife
2025.1
Resenha Crítica: Estamira
O documentário "Estamira” (2004), dirigido por Marcos Prado, é uma obra brutalmente
honesta sobre a vida de Estamira Gomes de Sousa, uma mulher que vivia e trabalhava no
lixão de Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro. Mais do que um retrato pessoal, o
documentário levanta questões profundas sobre saúde mental, exclusão social e o modo como
a sociedade trata aqueles que fogem das normas estabelecidas. Estamira, diagnosticada com
esquizofrenia, nos confronta com um paradoxo que nos faz refletir se ela seria apenas uma
mulher à margem, vítima de sua própria mente, ou alguém que enxerga o mundo com uma
lucidez que poucos conseguem suportar.
Desde o início, a aparição de Estamira causa impacto. Ela tem uma fala forte, poética, e
erudita, cheia de críticas ao sistema, apresentando uma visão filosófica sobre a existência,
denunciando a hipocrisia da sociedade ao descartar pessoas como ela. Seu discurso, ainda que
aparentemente desconexo para quem está acostumado com o pensamento convencional, traz
reflexões profundas sobre o abandono, a desigualdade e o destino dos que não se encaixam
nesse mundo capitalista.
O que mais impressiona é a forma como o documentário desconstrói a ideia de loucura.
Ao longo dele, Estamira parece alternar entre momentos de delírio e clareza, apresentando
falas sobre o poder, a verdade, sobre Deus e sobre a forma como os humanos tratam o
planeta, que revelam uma percepção aguçada da realidade. Isso nos leva a questionar: quem
realmente está fora da razão, Estamira, que é uma vítima de sua insanidade e da sociedade, ou
nós, que em tese temos nossa sanidade preservada, mas cometemos tantas atrocidades contra
os outros e contra o nosso planeta. É muito interessante, porque o filme nos força a confrontar
o preconceito e o medo que temos da loucura, que historicamente foi tratada como algo a ser
isolado, domesticado e silenciado.
A trajetória de Estamira reflete um problema estrutural no Brasil: o descaso com a
saúde mental e a forma cruel como tratamos aqueles que apresentam qualquer tipo de
transtornos psiquiátricos. A sociedade, ao longo da história, preferiu esconder a loucura em
manicômios, prisões ou, como no caso de Estamira, no lixo, apesar da reforma psiquiátrica
brasileira, que ganhou força nos anos 1980, ter buscado romper com esse modelo
manicomial. Porém, a realidade ainda mostra que o preconceito e a negligência permanecem.
Além disso, a assistência psiquiátrica, muitas vezes, se reduz a uma prescrição de
remédios sem uma preocupação real com a qualidade de vida do paciente. Mas, a
marginalização dos doentes mentais não é um fenômeno isolado. Quantas pessoas em
situação de rua não sofrem de transtornos psiquiátricos e são completamente ignoradas pelo
poder público e pela sociedade? Quantos indivíduos são taxados como “loucos” apenas por
pensarem ou se comportarem de maneira diferente? O documentário nos obriga a encarar
essa realidade incômoda e nos faz perceber que, muitas vezes, a loucura não está na mente
dos indivíduos, mas na forma como a sociedade os trata.
Outro ponto interessante que o documentário escancara é a relação entre saúde mental e
condições de vida. O sofrimento de Estamira não surgiu isoladamente; ele foi intensificado
por uma vida marcada pela miséria, pelo abandono e pela violência. É impossível dissociar
sua condição da realidade brutal em que estava inserida. O abandono do pai, que a deixou
ainda na infância; a traição do marido, que levava as amantes para dentro de casa, colocando
Estamira em uma posição humilhante; a separação forçada dos filho; o estupro por ela
sofrido. Tudo isso são eventos que intensificam o sentimento de desamparo, sua visão de
mundo fragmentada e seu discurso pessimista em relação à sociedade. A maneira como
Estamira percebe o mundo é impactante. Ela fala sobre manipulação, falsidade e dominação
como se enxergasse além do que nos é permitido ver.
Ainda, a construção visual do documentário reforça ainda mais o impacto da história. A
fotografia, que é crua e sem filtros, nos coloca cara a cara com a realidade de Estamira, sem
nos dar espaço para desviar o olhar. Não há romantização da pobreza ou da loucura; há
apenas a verdade brutal, tornando o documentário não confortável de assistir, e essa é
justamente sua força. Ele nos tira da nossa zona de conforto e nos obriga a questionar nosso
olhar sobre a loucura, a exclusão e a forma como lidamos com a diferença.
Estamira não é apenas um documentário sobre uma mulher com transtornos mentais; é
um retrato cruel da forma como a sociedade descarta aqueles que não consegue entender ou
aceitar. O grande mérito do filme está em mostrar que Estamira não era apenas uma vítima,
mas também uma pensadora à sua própria maneira. Suas palavras, por mais desconexas que
pareçam, trazem verdades profundas sobre o mundo e sobre nós mesmos. No fim, Estamira
nos mostra que a loucura talvez esteja menos nela e mais na forma como escolhemos tratar os
que consideramos diferentes.
Referência:
PRADO, Marcos. Estamira. Direção: Marcos Prado. Produção: Zazen Produções. Rio de
Janeiro: Zazen Produções, 2004. 1 DVD (115 min), son., color.
MIRANDA, Anne Crystie da Silva; CABRAL, Barbara Eleonora Bezerra.
Vozes da loucura: reflexões críticas a partir de narrativas de pessoas que viveram uma
internação psiquiátrica. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental,Florianópolis, v. 8, n. 19, p.
42-66, 2016.