TANATOLOGIA E A AFIRMAÇÃO DA EXISTÊNCIA EM NIETZSCHE E VIKTOR
FRANKL1
Ísis Lopes d’Oliveira Zisels∗
RESUMO:
O presente artigo concebe a tanatologia a partir da afirmação da existência
evidenciada no pensamento trágico de Friedrich Nietzsche e no existencialismo de
Viktor Frankl. Destarte, defende a ressignificação da morte mediante a valorização
da vida, elucidando, para tanto, a ideia nietzschiana de saúde superior e a proposta
frankliana referente à busca por um sentido transcendente no próprio sofrimento. A
pesquisa contribui para a compreensão dos processos relacionados à morte por
meio das ferramentas da Logoterapia e da dinâmica da vontade de potência. Toma
como principais referências as seguintes obras: Em busca de sentido e A vontade
de sentido, de Viktor Frankl, e O nascimento da tragédia no espírito da música,
Humano, demasiado humano, Assim falou Zaratustra, Além do bem e do mal e
Crepúsculo dos ídolos, de Friedrich Nietzsche. Por conseguinte, promove um
diálogo entre a perspectiva ética e antropológica de ambos os autores.
Palavras-chave: Logoterapia. Saúde superior. Tanatologia. Vontade de potência.
Vontade de sentido.
1 NIETZSCHE: VONTADE DE POTÊNCIA E SAÚDE SUPERIOR
O alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche2, além de filólogo e crítico cultural, é
também conhecido como o “filósofo da suspeita”, pois desacredita das verdades
consideradas inabaláveis pela tradição filosófica ocidental, entre as quais: a
dicotomia essência/aparência presente, sobretudo, na metafísica platônica; os ideais
ascéticos do cristianismo e a fé aclamada por boa parte dos modernos na suposta
onipotência da razão. Com efeito, desconstrói, através de seu “martelo
epistemológico”, o arcabouço teórico dos ídolos3 que encarnam a decadência
cultural de uma época, posicionando-se como uma figura antípoda, isto é: alguém
que se opõe a determinados tipos intelectuais, ressaltando-lhes características
específicas de maneira caricaturada para destituí-los de seriedade. Ademais,
1
Artigo recebido em 10/08/2016 e aprovado, após correções, em 1/11/2016.
∗
Graduada em Filosofia (UFJF), especialista em Filosofia (UFOP), Mestre em Estética e Filosofia da
Arte (UFOP), graduanda em Psicologia pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora.
@:[email protected]
2
Röcken, 15 de outubro de 1844 – Weimar, 25 de agosto de 1900.
3
Sócrates, cujo pensamento dialético procurava apreender e corrigir o Ser, aparece como o alvo mais
bombardeado pela crítica nietzschiana: “O moralismo dos filósofos gregos desde Platão está
condicionado patologicamente; do mesmo modo que sua avaliação da dialética. A equação Razão =
Virtude = Felicidade diz meramente o seguinte: é preciso imitar Sócrates e estabelecer
permanentemente uma luz diurna contra os apetites obscuros – a luz diurna da razão. É preciso ser
prudente, claro, luminoso a qualquer preço: toda e qualquer concessão aos instintos, ao inconsciente
conduz para baixo [...]” (NIETZSCHE, 2008, p.21)
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Nietzsche autodenomina-se um discípulo de Dionísio4 e elucida que sua tarefa é
uma “anti-filosofia”, porque, sendo dionisíaca, por excelência, procura dignificar os
instintos e as motivações mais inconscientes do ser humano. Destarte, o
racionalismo é fortemente rechaçado pelo pensador, embora o mesmo não se faça
um inimigo da razão, mas um amigo da vida, repleta de mistério, devir e
multiplicidade, que o raciocínio lógico, por si só, não justifica (NIETZSCHE, 2008).
Segundo Nietzsche, o racionalismo moral é a moral dos fracos, elaborada
para reprimir o impulso dos fortes. O autor detecta fraqueza naqueles que não
suportam vivenciar as próprias paixões; nos que suprimem as experiências e
abstêm-se do mundo ante o medo do sofrimento. Em contrapartida, detecta força
nos indivíduos de espírito livre, capazes de transgredir normas ultrapassadas,
tornando-se artistas de si mesmos. Os fortes corajosamente enfrentam suas
sombras: crescem com os desafios e afirmam suas paixões, reconhecendo-as como
emanações da natureza (NIETZSCHE, 2001). Com efeito, o filósofo alemão enfatiza
como meta constante a autossuperação, enaltecendo todo o ensinamento
decorrente do desejo:
Aniquilar os sofrimentos e os desejos, apenas para evitar sua estupidez e
as consequências desagradáveis de sua estupidez, se nos apresenta hoje
como sendo mesmo apenas uma forma aguda desta última. Não passamos
a admirar mais os dentistas que arrancam os nossos dentes, para que eles
não doam mais [...] (NIETZSCHE, 2008, p.12)
Nesse sentido, o moralismo dos pensadores ascetas promove o adoecimento
da vontade de viver e a negação da existência, vislumbrando a domesticação do
homem e o amansamento de seus instintos. Em vista disso, em O Nascimento da
Tragédia, Nietzsche retoma Aristófanes e refere-se a Sócrates como uma
“aberração”, alguém cuja consciência crítica opera como instinto, subvertendo os
impulsos criativos da natureza. Por conseguinte, abre as portas para a elaboração
de uma moral fisiológica, fundamentada na superioridade da vida, iluminada em seu
aspecto mais trágico (NIETZSCHE, 1992).
Nietzsche compreende e valoriza a vida a partir da metáfora vontade de
potência5, que abarca a luta, o devir, a variedade e a busca por expansão inerente
4
Divindade grega associada ao êxtase da embriaguez, ao prazer da inconsciência, à desmesura dos
instintos e à celebração da existência.
5
“[...] o instinto mais geral e mais profundo em toda ação, em toda vontade permaneceu o mais
desconhecido e o mais oculto, porque na prática nós obedecemos sempre à sua ordem. Todas as
escalas de valores nada mais são do que consequências diretas a serviço dessa única vontade: a
própria escala de valores não é mais que essa vontade de poder.” (NIETZSCHE, 2002, p.44).
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ao universo. Vontade, nesse caso, em nada se assemelha à consciência moral.
Alude, inversamente, ao desejo múltiplo, caótico e inconsciente que movimenta o
mundo. É o ímpeto criador e dionisíaco presente na physis e no homem, este ser
inacabado. É a força motora que viabiliza, em cada um, a afirmação da
individualidade e a construção da história. A potência, a saber, é a possibilidade de
crescimento ou a acumulação de um quantum de força que se dá pela atividade
incessante do querer. Todavia, nem sempre a vontade fortalece. Quando isenta de
foco, a mesma se dispersa e se fragiliza; quando adoecida, é conduzida à tentativa
passiva-niilista de supressão pela razão, tornando-se vontade de nenhuma vontade
ou negação do viver (NIETZSCHE, 2005). Desta forma, Nietzsche sugere uma nova
medicina, em que a doença é considerada como tal somente ao acarretar
passividade da vontade, sinalizando fadiga dos impulsos vitais, submissão,
dispersão e medo. Em contrapartida, a saúde encontra-se naqueles que,
independentemente das mazelas físicas, mantêm o espírito robustecido,
descobrindo, em meio ao sofrimento, um sentido para a existência.
Existe uma certa maneira de enfrentar o mal físico, fazendo o doente tomar
consciência de que ele é ‘fundamentalmente sadio [im Grundegesund]’, e
capacitando-o, quando convalescer, a considerar a vida com ‘novos olhos’.
Em nome dessa ‘saúde superior’, que resistiu à angústia e ao sofrimento,
lança-se um novo olhar sobre as avaliações anteriormente feitas.
(LEBRUN, 1988, p.123).
Nietzsche, ao adotar como parâmetro para o bem-estar a força referente à
dinâmica criativa da vontade6, inaugura o conceito de grande saúde ou saúde
superior. A força em questão é o que produz resiliência7, capacitando o indivíduo a
suportar as dores, incluindo as doenças físicas. Ela abrange o entusiasmo para/com
a vida e a disposição afirmativa diante do elemento da fatalidade. A força opõe-se à
desistência, ao pessimismo e ao ressentimento, revelando uma nova dimensão do
homem, artesão de si. Existe possivelmente no mais profundo sofrimento, quando a
alma é cindida para que nesta caiba mais mundo: “[...] da escola de guerra da vida:
o que não me mata, torna-me mais forte.” (NIETZSCHE, 2008, p.46).
6
“A doutrina da vontade criadora privilegia a atividade. É uma nova maneira de pensar que se aplica
ao devir, opõe-se à metafísica, que busca o estável e a permanência. O perene não é o sujeito
criador, nem o objeto criado, mas uma ação, uma ação contínua, um fluxo de vida constante.” (DIAS,
2011, p.65).
7
“A resiliência e a autoeficácia percebida atuam como forma do sujeito obter uma melhor qualidade
de vida na superação da adversidade, envolvendo o contexto, a cultura e a responsabilidade coletiva,
sendo capaz de responder de diferentes formas ante um fracasso.” (BARREIRA; NAKAMURA, 2006,
p. 78).
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O pensamento nietzschiano enfatiza as polaridades que permeiam a
existência e acolhe a realidade tal como ela se apresenta em sua totalidade: repleta
de contradição e mudança; prazer e dor; alegria e tristeza. É saudável, pois, desejar
a vida, tomando-a para si, reconhecendo-a em sua exuberância trágica:
Dissestes sim, algum dia, a um prazer? Ó meus amigos, então o dissestes,
também, a todo sofrimento. Todas as coisas acham-se encadeadas,
entrelaçadas, enlaçadas pelo amor. — E se quisestes algum dia duas vezes
o que houve uma vez, se dissestes algum dia: “Gosto de ti, felicidade! Volve
depressa, momento!”, então quisestes tudo — tudo de novo, tudo
eternamente, tudo encadeado, entrelaçado, enlaçado pelo amor, então,
amastes o mundo. — Ó vós, seres eternos, o amais eternamente e para
todo o sempre; e também vós dizeis ao sofrimento: “passa momento, mas
volta!” Pois todo prazer quer eternidade! (NIETZSCHE, 2003, p.36)
2 VIKTOR FRANKL: A AFIRMAÇÃO DA EXISTÊNCIA E A BUSCA DE SENTIDO
O aforismo a seguir, da escritora brasileira Clarice Lispector (1920-1977),
reconhecida no meio literário como uma das mais importantes escritoras do século
XX, traduz a angústia do Ser lançado ao mundo, atravessado em sua jornada pela
dor inerente à vida e por todos os outros sofrimentos que assolam o homem,
projetados por ele e sobre ele no universo contemporâneo: “Eu antes vivia de um
mundo humanizado, mas o puramente vivo derrubou a moralidade que eu tinha. É
que um mundo todo vivo tem a força de um Inferno!” (LISPECTOR, 1998).
A problemática ilustrada captura o interesse do psiquiatra austríaco Viktor
Frankl8, fundador da escola da Logoterapia9, que incorpora a filosofia existencialista
à prática terapêutica. Assim como Nietzsche, Frankl rompe com os paradigmas de
sua época. Em seu pensamento, o homem deixa de ser concebido apenas como
produto do ambiente ou do inconsciente e torna-se livre para autoconstruir-se,
apesar das influências externas. Nesse sentido, é facultada ao indivíduo a
8
Viktor Emil Frankl nasceu em 26 de março de 1905 em Viena. O neurologista, psiquiatra, filósofo e
judeu é conhecido por fundar a terceira escola vienense de psicoterapia: a Logoterapia, que
considera o ser humano na totalidade tridimensional de corpo, psiquismo e espírito. Em 1942, Frankl
foi preso com sua família e mandado para o gueto de Theresienstadt (República Tcheca). Após 25
meses, foi transferido para o campo de extermínio de Auschwitz (Polônia), sendo, ainda, prisioneiro
em Kaufering e Turhein. Em condições desumanas, Frankl comprovou sua teoria: subtraído de tudo,
ao perceber os horrores que precisaria enfrentar, decidiu que, apesar das circunstâncias, o novo
sentido de sua vida seria sobreviver. Doravante, ao ser libertado, descobre que a esposa, a mãe, o
pai e o irmão morreram, porém sua irmã Estela sobreviveu, fugindo para a Austrália. Em julho de
1947, Frankl casa-se com a enfermeira não judia Eleonore Katharina Schwindt (Elly), com quem tem
uma filha, e vive feliz por 50 anos, até sua morte por falência cardíaca, em 2 de setembro de 1997,
em Viena (FRANKL, 1997).
9
“Para a Logoterapia, a busca de sentido na vida da pessoa é a principal força motivadora do ser
humano [...]. A Logoterapia é considerada e desenhada como terapia concentrada no sentido. Vê o
homem como um Ser orientado para o sentido.” (FRANKL, 1997, p.92).
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responsabilidade da escolha, inclusive, da forma como este vivenciará seu
sofrimento.
O ser humano surge, na antropologia frankliana, como um conquistador de si
mesmo e de suas riquezas interiores. De um jeito semelhante, a presente busca é
ressaltada no pensamento nietzschiano, em que a noção de vontade de potência
conduz à ampliação das vivências. Ambos os autores vislumbram a
autossuperação, o devir e a afirmação da existência. Frankl, todavia, compreende o
homem como uma unidade tridimensional (corpo, mente e espírito), enquanto
Nietzsche destitui o Ser do aspecto essencial, chamando por espírito os instintos, as
ideias e as paixões, evidentemente particulares. Posto isto, a humanidade à qual se
refere o filósofo alemão é fundamentalmente instintiva e provida de um caráter
plástico, experimental e exclusivamente imanente.
Frankl, em sua perspectiva logoterapêutica, destaca a dimensão espiritual
(noética) do Ser ao lado da intencionalidade que lhe é atribuída. A vivência do
espírito é postulada como a mais importante de todas, refletindo a dignidade
adquirida a partir da vontade de sentido (necessidade humana de encontrar um
propósito maior para a existência, capaz de preencher o vazio significativo do
Dasein10). Nesse âmbito, cabe ao homem a realização de valores mais elevados em
face de qualquer circunstância (FRANKL, 2011).
A intencionalidade da consciência, propriamente humana, é compreendida, a
saber, em sua aplicação na esfera afetiva, já que se faz presente em forma de amor
mais do que de conhecimento. Por outro lado, Frankl, inspirado em Hartmann,
aborda a liberdade a partir da responsabilidade discernida, razão pela qual a
intencionalidade é justamente o modo como a dimensão noética de cada um
expressa-se frente aos outros e ao mundo. O espírito, nessa lógica, sempre
necessita apontar para além de si, uma vez que representa não a imaterialidade da
alma, mas a liberdade da consciência moral intencionada para ações que
beneficiam o outro e não apenas o próprio indivíduo. É no caminho alegado,
precisamente, que o sujeito consegue encontrar aquilo que é verdadeiramente
valioso para sua vida.
10
O filósofo alemão Martin Heidegger (Messkirch, 26 de setembro de 1889 — Friburgo em Brisgóvia,
26 de maio de 1976) utiliza este termo, traduzido como "Ser-aí", para exaltar o Ser lançado e
misturado ao mundo; isto é, o homem repleto de angústia mediante as possibilidades de escolha e a
responsabilidade pela própria existência. O Dasein está em construção permanente, atravessado
pelo devir e por todas as coisas a ele conectadas. Deste modo, o homem é um projeto em aberto que
só se finaliza com a morte.
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Segundo a Logoterapia, a autotranscendência do existir humano consiste
no fato essencial de o homem sempre “apontar” para além de si próprio, na
direção de alguma causa a que serve [...]. E é somente na medida em que o
ser humano se autotranscende que lhe é possível REALIZAR-SE – tornar
REAL – a si mesmo. (SBRAGIA, 2003, p. 93).
O tema da intencionalidade é a chave para o entendimento da antropologia
frankliana, pois, ao mesmo tempo, contempla o sujeito e os seus objetivos; é a
direção que volta o indivíduo para dentro, para si, mas que também o conduz para
fora, para um sentido e realização que o transcendem. Essa orientação impulsiona
cada pessoa rumo à construção de um projeto, que implica ter uma meta a alcançar,
um objetivo a cumprir. Ao longo do processo, o próprio caminhar, com suas
experiências e vivências, revela-se a maior fortuna do homem, a verdadeira e única
satisfação que jamais se perde, mesmo quando não se alcança o êxito naquilo que,
a princípio, almejava-se. Deste modo, é na intenção da consciência e no esforço
disponibilizado ao longo da jornada que o homem pode tornar-se a melhor versão de
si mesmo.
De acordo com a Logoterapia, podemos descobrir este sentido na vida de
três diferentes formas: 1. Criando um trabalho ou praticando um ato; 2.
Experimentando algo ou encontrando alguém; 3. Pela atividade que
tomamos em relação ao sofrimento inevitável. (FRANKL, 1997, p. 100).
Viktor Frankl, em sua sabedoria, percebe que quanto mais se busca a
felicidade, mais dela se afasta. Entretanto, quando o homem deixa de persegui-la,
saindo de si ao encontro com o outro, consegue experimentar as possibilidades
existentes para o desenvolvimento de suas potencialidades. De maneira
equivalente, a filosofia trágica de Nietzsche vislumbra o alastramento das
experiências e o cuidado com a autoconstrução. Reconhece, ademais, que cabe ao
sujeito, emaranhado ao mundo, ressignificar a existência. Todavia, o filósofo da
suspeita afirma a vida mediante a vontade de potência, não compartilhando do
mesmo ideal ético de Frankl, uma vez que problematiza a consciência moral e
desconstrói o valor do altruísmo, postulando que toda ação é egoísta e volta-se ao
desejo do próprio indivíduo, mesmo quando a satisfação do outro é tomada por
objeto. Nesse viés, adota como parâmetro de seus escritos a elaboração de uma
moral fisiológica, independente, lançada para os instintos e paixões, para o corpo e
sensações (que, aos olhos de Frankl, compõem o âmbito menos significativo do ser
humano, porque imediato e efêmero).
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Considerando as perspectivas apresentadas, outro tema necessita ser
elucidado por suas diferentes abordagens: a questão responsabilidade. Quando
Nietzsche atenta-se à importância desta no processo de autoconstrução,
compreende-a como o ato de cuidar de si mesmo, de assumir suas paixões sem
arrependimentos ou ressentimentos, desejando, com o peso da eternidade, não
apenas o prazer, mas também a dor que possibilita o robustecimento do espírito.
Frankl, por sua vez, estende a responsabilidade à consciência moral e à liberdade
concedida ao homem de eleger valores capazes de orientá-lo em sua busca por
sentido.
3 TANATOLOGIA E A AFIRMAÇÃO DA EXISTÊNCIA EM NIETZSCHE E VIKTOR
FRANKL
Segundo Viktor Frankl, o que é mais fundamental ao ser humano ao longo da
existência é desenvolver-se como tal mediante a construção de si mesmo, norteado
pelos valores aprendidos com as experiências. Os valores relacionam-se àquilo que
a vida traz e que o sujeito abraça por sentir-se responsável, incumbido de um dever
ou missão diante de momentos decisivos. Nessa ótica, a humanidade é alcançada
através da dimensão noética e da transcendência; somente assim é possível
descobrir a “razão” de viver. Enquanto o indivíduo se perde na contemplação de si
mesmo, remoendo seus problemas e martirizando-se com sua dor, paralisando-se e
mantendo o ciclo pernicioso de autoflagelação, nada advém de positivo. Destarte, a
transcendência caracteriza o grande salto para as mudanças necessárias e
possíveis. Apesar de qualquer circunstância árida, ao olhar mais além, o homem
consegue identificar possibilidades e elegê-las, encontrando um propósito mediante
o qual consegue reconfigurar sua existência, recriando-se e desenvolvendo-se em
sua integralidade, promovendo a congruência do Ser e do Dever-Ser (FRANKL,
1992).
A perspectiva existencialista de Frankl contribui de maneira expressiva à
tanatologia, ciência que investiga os processos relacionados à morte e que
apresenta em comum com a Logoterapia a valorização do sentido e da capacidade
humana de transcender e ressignificar as situações pesarosas.
A morte é uma etapa que faz parte da vida. Deste modo, o homem que
desvela um sentido maior ao longo de sua existência também encontra sentido para
sua morte, porque sabe que não passou pela vida em vão. O sujeito que viveu como
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deveria, em sua singularidade, está mais apto a desapegar-se, enfrentando com
tranquilidade o término de sua jornada. Ao lançar um olhar para o passado, sente
que foi consciente, responsável e que soube aproveitar grande parte das
oportunidades que lhes foram oferecidas.
Nos últimos dez anos, mais ou menos, tenho ficado cada vez mais
consciente das mortes dos meus contemporâneos. Minha geração está de
saída, e sinto cada morte como uma ruptura, como se dilacerasse um
pedaço de mim mesmo. Não vai haver ninguém igual a nós quando
partirmos, assim como não há ninguém igual a nenhuma outra pessoa.
Quando as pessoas morrem, não podem ser substituídas. Elas deixam
buracos que não podem ser preenchidos, porque é o destino – o destino
genético e neural – de cada ser humano ser um indivíduo único, achar seu
próprio caminho, viver sua própria vida, morrer sua própria morte. (SACKS,
2015).
Através da consciência responsável, das vivências significativas, dos vínculos
emocionais e do legado que deixa ao mundo, o homem torna-se apto a harmonizar a
dinâmica da vida com a sua finitude, aceitando seu destino.
A finitude, a temporalidade não é apenas, por conseguinte, uma nota
essencial a vida humana, é, também, constitutiva de seu sentido. O sentido
da existência humana funda-se no seu caráter irreversível. Daí que só se
possa entender a responsabilidade que o homem tem pela vida quando
compreendemos como responsabilidade por uma vida que só se vive uma
vez. (FRANKL, 1992, p.109).
Para o filósofo Friedrich Wilhelm Nietzsche, o amor à vida, tal como ela se
apresenta, concede significado à morte. Nesse ponto, concorda com Frankl,
sobretudo porque, ao saber-se finito, o ser humano necessita assumir, diante da
angústia, a responsabilidade em relação à própria existência. Nessa lógica, somente
aquele que abraça, com resiliência, a tragicidade de seu destino ou de sua história
(amor fati) fortalece-se com o sofrimento. Para tanto, cabe ao indivíduo afirmar sua
vontade de potência que o torna senhor de si mesmo (NIETZSCHE, 1995). Junto à
autossuperação, o homem que conquista o estado de alegria e satisfação em
relação ao mundo, com suas dores e bálsamos, alcança o que Nietzsche chama de
saúde superior, mesmo em situação de doença ou frente ao falecimento.
Segundo a tanatologia, ao enfrentar a morte, o sujeito experimenta diferentes
estágios psicológicos. A negação diante da realidade que se contrapõe a idealidade
de valores pessoais é a primeira etapa que ocorre quando o homem se depara com
a certeza de sua finitude próxima. Esse é um mecanismo de defesa do Eu para
tentar criar resistência à possibilidade que surge de vigorar o que lhe ameaça. Os
desdobramentos que se seguem à negação refletem a constatação da dor
relacionada à condição mórbida. Nessa ocasião, é comum o indivíduo expressar
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raiva, ressentimento e indignação, uma vez que deseja agarrar-se à vida. Tais
sentimentos direcionados aos demais e/ou refletidos contra si mesmo podem ser
trabalhados por meio do suporte terapêutico oferecido pela Logoterapia e pela
tanatologia. Isso porque tais aportes chamam o paciente para a assunção do
sofrimento e revelam uma oportunidade do exercício da liberdade mediante a
atribuição de um novo significado para o momento.
Se a negação suaviza os efeitos do primeiro choque, tentando se sobrepor
a uma realidade muito dolorosa para o Eu suportar, a raiva é a
manifestação de toda a dor que a possibilidade de aceitação dessa
realidade provoca na pessoa enquanto realidade possível. Kübler-Ross
afirma que é o momento em que o paciente percebe a rotina de todos ao
seu redor, toda a vida e os projetos dos outros se realizando, dando-se
conta de sua real situação de finitude e adoecimento, e, por meio de atos
agressivos e grosseiros, ele expressa seu grito de vida, afirma que ainda
está vivo e não quer ser esquecido. (NETO, 2012).
Após a fase elucidada, o paciente recobra a calma e inaugura uma tentativa
de negociação ou barganha, frequentemente direcionada a Deus. Nessa
circunstância, a vida é suplicada mediante pactos que, não raramente, vinculam-se à
culpa e ao arrependimento. Ao conscientizar-se da adversidade, posteriormente, o
sujeito percebe-se impotente e devastado pela perda das pessoas queridas e de
tudo que construiu ao longo dos anos. É sumamente importante o acompanhamento
psicológico durante essa etapa quando a depressão se inclui, pois o indivíduo
necessita desenvolver resiliência para aceitar a tragicidade da morte, aprendendo a
lidar com a situação da melhor maneira possível (NETO, 2012).
Aqueles que, natural e genuinamente, confiam na providência divina criam
uma nova perspectiva sobre a proximidade da morte que, de certa maneira, oferece
conforto e permite ressignificar o sofrimento, transcendendo ao sagrado. Entretanto,
nem sempre dessa forma o homem encontra alento. A Logoterapia, cujas raízes
penetram o solo do existencialismo, atua como ferramenta eficiente para que o
sujeito desvele o sentido de cada experiência. Esse processo toma por objeto não
apenas a crença religiosa, mas também os valores, os vínculos emocionais e as
obras humanas. As pessoas a quem o paciente se liga afetivamente, sobretudo, são
coautoras de sua vida e, assim como seu legado e sua historicidade, representam
valores imanentes que podem oferecer-lhe uma perspectiva realizadora de sua
finitude.
Contudo, é preciso considerar a singularidade do ser humano, ou seja, o fato
de que cada um é irrepetível, paradoxal e aberto a infinitas possibilidades, tanto na
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vida, como na morte. Nesse viés, nem sempre a questão da fé é exercida, na
prática, em congruência à teoria. Alguém extremamente religioso, por exemplo, pode
apresentar mais dificuldade ao enfrentar o momento derradeiro do que um ateu que
articula, ao seu modo, representações deveras autênticas para o seu sofrimento. O
que deve ser ressaltado em ambos os casos é que a roda da vida, enquanto gira,
sempre oferece a possibilidade de crescimento conforme a expressão afirmativa da
vontade (seja ela de potência ou de sentido).
Outro aspecto relevante da tanatologia refere-se aos principais cuidados
paliativos oferecidos ao indivíduo em processo de desfalecimento, bem como aos
seus familiares. É estimado o aprimoramento da qualidade de vida dos envolvidos e
a promoção de medidas capazes de aliviar, de algum modo, os sintomas do enfermo
e as repercussões psicológicas negativas que possam ocorrer ao mesmo, em caso
de consciência. Outrossim, as questões emergentes sobre a doença devem ser
elucidadas pelo profissional da saúde com clareza, honestidade e humanidade, já
que “[...] a tentativa de esconder a verdade do paciente só pioraria a relação que
este tem com os familiares e com a equipe de cuidadores, impossibilitado um
ambiente de confiança onde possa se desenrolar qualquer tipo de terapêutica.”
(NETO, 2012, p. 40).
É pertinente destacar que sempre há, dentro dos núcleos familiares, alguém
mais apto a lidar pessoalmente com o momento de transição correspondente ao
período que antecede à morte. Posto isto, é valioso oferecer companhia e
solidariedade ao paciente, ouvindo-o com atenção e transmitindo-lhe segurança e
afeto. Tocar fisicamente quem está partindo, principalmente quando seus demais
sentidos já estão comprometidos, é assaz recomendado aos entes queridos, uma
vez que propaga a sensação de conforto e acolhimento.
A tanatologia e a Logoterapia aguçam a percepção da singularidade do ser
humano em seu sofrimento emocional, espiritual e físico. Apesar da existência de
sintomas e observações comuns a muitos doentes terminais, cada um possui sua
própria maneira de ser, de sentir, de viver e de morrer. Essa natureza única, alusiva
ao indivíduo em sua órbita, necessita, acima de tudo, ser respeitada e considerada
por todos aqueles que o cercam.
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Logoterapia e a tanatologia oferecem uma visão que prioriza o sentido de
todas as situações; esta é uma ideia mais construtivista do que determinista, que se
volta a tudo aquilo que nos cabe viver. Desse modo, se, por um lado, a finitude nos
faz olhar a vida com maior profundidade, chamando-nos aos compromissos maiores
de nossa existência, por outro, é a vida que oferece significado à morte, tal como o
repouso merecido e natural de um guerreiro.
Mediante o aporte logoterapêutico, é possível refletir: o que é capaz de nos
oferecer maior alento na hora da despedida do que a certeza de que nos
entregamos a outros seres com amor, respeito, consideração e generosidade? Do
que a constatação de que realizamos ou tentamos realizar, ao longo de nossa
jornada, tudo da melhor maneira possível, dentro de nossa condição de
imperfeição? O que é mais estimulante do que o amor e o aprendizado? Do que a
oportunidade de mudarmos de posição para não cometermos os mesmos
equívocos? Do que o ensejo de realizarmos as tarefas relativas às nossas
potencialidades, sabendo que somos responsáveis apenas por nossas atitudes,
intenções e pensamentos? Tais valores traduzidos em ação permitem que
enxerguemos a morte como o fechamento inexorável de um ciclo, um processo de
transformação coerente com a dinâmica da própria existência e sua impermanência.
Segundo Frankl, a dimensão valorativa da intencionalidade concede conforto,
tranquilidade e gratidão aos que elegem morrer com a mesma dignidade com a qual
viveram. Assim como Nietzsche, o autor alerta à necessidade de se dizer sim à vida,
apesar de qualquer circunstância ou sofrimento. Porém, o faz não pelo viés da
vontade de potência, mas da vontade de sentido. O Ser, consciente da morte, tece
sua história sabendo que o tempo não é eterno, portanto é seu dever construir-se
com toda a excelência praticável, adaptando-se aos desafios que surgem como
oportunidades de crescimento.
THANATOLOGY AND THE AFFIRMATION OF EXISTENCE IN NIETZSCHE AND
VIKTOR FRANKL
ABSTRACT:
This presente paper analyzes thanatology second the affirmation of the existence in
Friedrich Nietzsche’s tragical thought and Viktor Frankl’s theory. Thus, defends the
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reinterpretation of death by valuing life, and elucidates Nietzschean idea of superior
health next to the search for greater meaning in suffering, as Frankil proposed. The
research helps to understand the processes related to death by logotherapy and the
will of power. It takes as principal references the works: Man’s search for meaning
and The will to meaning, by Viktor Frankl, and The birth of tragedy in the spirit of
music, Human, all too human, Thus spake Zarathustra, Beyond good and evil and
Twilight of the idols, by Friedrich Nietzsche. Therefore it promotes a dialogue
between the ethical and the anthropological perspective of both authors.
Keywords: Logotherapy. Superior health. Thanatology. Will to Power. Will to
meaning.
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