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Cap Livro

O capítulo discute a transição do paradigma iluminista para um paradigma pós-moderno na teologia da missão cristã, destacando a influência do contexto histórico nas práticas missionárias. A emergência do novo paradigma é marcada por uma crítica ao racionalismo iluminista, que está sendo contestado por novas abordagens que reconhecem a importância da história e da comunicação intersubjetiva. O ressurgimento das religiões, incluindo o cristianismo, sugere que a crença na extinção da religião é uma ilusão, e que uma ampliação da racionalidade é necessária para lidar com as complexidades da vida contemporânea.

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O capítulo discute a transição do paradigma iluminista para um paradigma pós-moderno na teologia da missão cristã, destacando a influência do contexto histórico nas práticas missionárias. A emergência do novo paradigma é marcada por uma crítica ao racionalismo iluminista, que está sendo contestado por novas abordagens que reconhecem a importância da história e da comunicação intersubjetiva. O ressurgimento das religiões, incluindo o cristianismo, sugere que a crença na extinção da religião é uma ilusão, e que uma ampliação da racionalidade é necessária para lidar com as complexidades da vida contemporânea.

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Parte 3

Rumo a uma
missiologia relevante
Capítulo 10

A emergência de um paradigma pós-moderno

o fim da era moderna


Nos capítulos precedentes deste estudo, tentei esboçar o desenvolvi-
mento da teologia da missão cristã desde os tempos neotestamentários até a
era moderna. Ficou bem claro que, em cada época histórica dos últimos dois
milênios, a idéia missionária foi profundamente influenciada pelo contexto
geral em que os cristãos viviam e trabalhavam.
No capítulo 5, sugeri que a era "moderna" ou "iluminista" não seria a
última época da história mundial a exercer influência sobre o pensamento e
a prática missionários. Seguir-se-ia um paradigma mais que, por ora, estou
denominando paradigma "pós-moderno"!. Todas as outras épocas discuti-
das aqui, inclusive a "moderna", pertencem ao passado; poderíamos então,
de certa forma, olhar retrospectivamente para elas. A situação do paradig-
ma pós-moderno é muito diferente. Novos paradigmas não se firmam de
um dia para outro. São necessárias décadas, às vezes até séculos, para que
desenvolvam contornos nítidos. O novo paradigma ainda está, pois, emer-
gindo, e, por enquanto, não está claro que configuração final assumirá. Ge-
ralmente estamos, no momento, pensando e trabalhando em termos de
dois paradigmas.
Um período de mudança de paradigma constitui um período de pro-
funda incerteza - e essa incerteza parece ser uma das poucas constantes
da era contemporânea e um dos fatores que geram fortes reações no senti-
do de se permanecer com o paradigma iluminista, a despeito de todos os
sinais que apontam para seu esboroamento.
Não é possível delinear com detalhes os desdobramentos que condu-
ziram a essa fragmentação do paradigma iluminista. Teremos que satisfa-
zer-nos com um esboço muito amplo e geral.
Descartes, largamente aclamado como o pai do iluminismo, fez do
princípio da dúvida radical o cerne de seu método. Ele acreditava que so-
mente a dúvida expurgaria a mente humana de todas as opiniões baseadas
apenas na confiança e a capacitaria para um conhecimento firmemente
ancorado na razão (para uma discussão perspicaz da "doutrina da dúvida",
cf. Polanyi 1958:260-298). Com esse postulado epistemológico, Descartes
420 - Rumo a uma missiologia relevante

deu o tom para virtualmente todos os desdobramentos subseqüentes na ci-


ência, filosofia, teologia, etc. É claro que muitos estudiosos foram além da
posição de Descartes, sem, contudo, alterá-la fundamentalmente. O que em
verdade aconteceu foi que o princípio da dúvida e o da supremacia da razão
se sofisticaram cada vez mais na medida em que eram reafirmados. O
próprio Descartes enfatizou um método racional e dedutivo (ou "matemáti-
co") na ciência. Seu contemporâneo um pouco mais velho, Francis Bacon
(1561-1626), advogava uma abordagem indutiva, enquanto que Isaac Newton
(1642-1717) foi o primeiro a introduzir uma combinação dos dois métodos
(cf. Capra 1983:65). Mas as duas abordagens jamais foram combinadas de
maneira completa e permaneceram, na melhor das hipóteses, dois modelos
complementares de fazer ciência (cf. Bernstein 1985:5). O positivismo lógi-
co do século 20, por exemplo, refletia a tendência indutiva, enquanto que a
teoria da falsificação de Karl Popper pode ser vista como um prolongamen-
to da tradição dedutiva.
Em ambas as tradições, portanto, a premissa da superioridade da
razão permaneceu inabalada. O racionalismo fazia sentido de maneira tão
soberba, especialmente porque suas conquistas científicas e tecnológicas
eram tão evidentes, que parecia absurdo questioná-lo. Não é de se admirar,
pois, que seus pressupostos tenham sido logo adotados também pelas ciên-
cias humanas (incluindo a teologia). A própria palavra "ciência" passou a
significar conhecimento exato, dados absolutamente confiáveis, etc. Teólo-
gos e outros estudiosos das ciências humanas adotaram essa visão e aplica-
ram-na meticulosamente à sua disciplina - como o atesta boa parte da teo-
logia, em todas as suas subdisciplinas, do século 19 e início do século 20.
Atualmente, esse edifício todo está sendo contestado. O primeiro ata-
que decisivo a ele não proveio (como se poderia esperar) das ciências hu-
manas. Ele se originou, para grande surpresa, exatamente da disciplina onde
os cânones cartesianos e newtonianos pareciam ser de todo invioláveis: o
campo da física, onde estudiosos como Albert Einstein e Niels Bohr introdu-
ziram uma revolução no pensamento, tanto que Werner Heisenberg pôde
afirmar que os próprios fundamentos da ciência começaram a abalar-se e
que havia quase uma necessidade de iniciar tudo de novo (ap. Capra 1983:77).
Com o passar do tempo, é natural que se seguissem reações similares em
outras disciplinas, incluindo as ciências humanas.
Eventos da história geral, particularmente duas guerras mundiais de-
vastadoras (1914-1918; 1939-1945) e tudo o que as acompanhou, também
colaboraram para a constante erosão do "realismo ingênuo" do paradigma
convencional. Na teologia, Karl Barth, com sua "teologia da crise", foi o
primeiro a romper fundamentalmente com a tradição teológica liberal e a
inaugurar um novo paradigma teológico. Deveras, não foi diferente em ou-
tras disciplinas. Tomou-se claro que o Ocidente, junto com a compreensão
de realidade que herdara, estava em dificuldades. Entre a Primeira e a Se-
A emergência de um paradigma pós-moderno - 421

gunda Guerra Mundial, filósofos da história como Oswald Spengler e Ptirim


Sorokin tentaram esboçar as alterações radicais que começavam a ocorrer
na cultura ocidental"
Aquilo que ainda estava apenas implícito em Spengler e Sorokin tor-
nou-se explícito em Das Ende der Neuzeit, de Guardini, publicado pela
primeira vez em 1950; a "era moderna" - e, com ela, toda a cosmovisão
sobre a qual se encontrava fundamentada - estava ruindo. Emergindo da
mesma crise de onde surgiu o livro de Guardini, ou seja, o horror da Segunda
Guerra Mundial e do nazismo, temos Dialética do Esclarecimento (1947),
escrito por dois dos principais representantes da Escola de Frankfurt, Max
Horkheimer e Theodor Adorno. A semelhança de Guardini, os autores ain-
da não discerniram uma saída para o impasse. Eles apresentaram seus pon-
tos de vista, nessa ocasião, unicamente como "fragmentos" (cf. o subtítulo
do livro). Reconheceram que a ciência em si, da forma como era praticada
segundo o paradigma iluminista, tornara-se questionável (p. 5) e que o ilumi-
nismo estava se autodestruindo (p. 7). O progresso se convertia em retro-
cesso (p. 10). A preocupação deles, no entanto, limitou-se a uma operação
de salvamento - eles desejavam resgatar o iluminismo da autodestruição e
do "irracionalismo" (p. lOs.). O problema, identificado por Jürgen Haber-
mas (um colega mais jovem dos autores de Dialektik der Aujkliirung),
era que eles se recusavam (ou eram incapazes) de abrir mão da idéia de
que a razão e tão-somente ela, em sua forma tradicional, capacita-nos a
emitir afirmações normativas - embora admitissem que a razão, conforme
a compreendia o iluminismo, estava essencialmente corrupta.
Está claro que se fazia necessária uma crítica mais fundamental do
paradigma iluminista. Isso aconteceu. quando pesquisadores começaram a
encarar mais seriamente o papel da história, do sujeito humano e do grupo
social. Duas publicações pioneiras nesse sentido foram Personal Knowledge
(1958), de Michael Polanyi, e A estrutura das revoluções científicas ([1962]
1982), de Thomas Kuhn. A primeira frase do livro de Kuhn documenta a
influência da história e do contexto sobre todo o conhecimento humano: "Se
a História fosse vista como um repositório para algo mais do que anedotas
ou cronologias, poderia produzir uma transformação decisiva na imagem de
ciência que atualmente nos domina" (1982: 19).
Apesar das diferenças entre eles, é lícito sustentar que existe um
grau de convergência entre as teorias propostas por Kuhn e aquelas espo-
sadas por Polanyi. Habermas, Paul Ricoeur e, mais recentemente, John
Thompson e Charles Taylor elaboraram idéias semelhantes (cf. NeI1988).
Em todas essas concepções, a teoria científica, a história, a sociologia e a
hermenêutica andam de mãos dadas (cf Küng 1987: 162). Uma nova visão
está emergindo, e ela afeta todas as ciências, tanto as humanas quanto as
naturais. Habermas sustenta que, além da razão "instrumental" do iluminis-
mo, deveríamos criar um espaço para o que ele chama de razão "comunica-
422 - Rumo a uma missiologia relevante

tiva", E Kuhn afirma que o conhecimento científico não é o resultado de


uma pesquisa objetiva, "instrumental" ou "mecanicista", mas o produto de
circunstâncias históricas e da comunicação intersubjetiva. Dessa maneira,
ele contesta a tese iluminista da prioridade do pensamento sobre o ser e da
razão sobre a ação (cf. Lugg 1987:176).

A contestação do iluminismo
Depois desse sucinto levantamento dos desdobramentos recentes na
teoria da ciência, gostaria agora, uma vez mais, de retomar as sete princi-
pais características do iluminismo mencionadas no capítulo 9 e refletir bre-
vemente sobre como cada uma delas tem sido contestada pela mais recente
mudança de paradigma. Neste estágio, não tentarei expor em detalhes as
implicações dessa mudança para o pensamento e a prática missionários
(isso será feito no próximo capítulo); as considerações tecidas aqui, não
obstante, são importantes para o que se segue.

A expansão da racionalidade
No capítulo anterior, delineei cinco "respostas" teológicas ao enalte-
cimento iluminista da razão como única faculdade pela qual o ser humano
pode chegar ao conhecimento e discernimento (cf. p. 328 acima). Todas
essas respostas foram experimentadas no programa missionário da igreja
cristã, especialmente durante o século 20: o cristianismo foi propagado como
uma experiência religiosa ímpar; como algo destinado apenas à vida priva-
da; como mais racional que a ciência; como uma norma para toda a socie-
dade; como o que liberta a humanidade de qualquer fixação religiosa redun-
dante. De uma ou outra maneira, todos esses modelos ainda estão sendo
defendidos no pensamento e na prática missionários. Além disso, parece
haver uma ansiedade básica, compartilhada por todas as cinco abordagens,
de que, apesar de todas as tentativas de rechaçar o ataque da razão ou de
se aliar a ela, o futuro da religião está em perigo. Devido a isso, cada uma
dessas abordagens, de certa maneira, parece uma espécie de ação de reta-
guarda. Há uma crença bastante difundida, antecipada com alegria por uns
e com apreensão por outros, de que a religião, mais cedo ou mais tarde,
desaparecerá.
Porém, exatamente o oposto parece estar ocorrendo em nossos dias.
Não a própria religião, mas a crença que predisse sua extinção demonstrou
ser uma ilusão (cf. Lübbe 1986:14; Küng 1987:23). As religiões "não-cris-
tãs" não desapareceram, como o havia sugerido J. Warneck (1909). O sé-
culo 20 presenciou um vigoroso ressurgimento das chamadas religiões mun-
diais: islamismo, budismo e hinduísmo. O mesmo pode ser dito do cristianis-
mo, e boa parte disso ocorreu precisamente em comunidades onde o ilumi-
A emergência de um paradigma pós-moderno - 423

nismo reina há séculos, como o comprova uma rápida consulta à World


Christian Encyclopedia (1982), de David Barrett. No início do século 20,
surgiu uma nova e robusta versão do cristianismo, o movimento pentecostal,
que desde então prosperou e tomou-se o maior grupo protestante, superan-
do as comunidades luterana, reformada e anglicana (Barrett 1982:838).
Apesar de a religião ter sido freqüentemente suprimida de forma brutal na
União Soviética e na China, está se tomando hoje cada vez mais claro que
o cristianismo se encontra em expansão e não em declínio nesses e noutros
países. Na Polônia, a despeito de quase meio século de governo marxista, a
Igreja Católica Romana parece receber mais apoio da população do que em
qualquer época da história recente. Na América Latina, onde (assim se
afirma) a cristianização do povo foi bastante superficial", parece haver um
vigor incrível no catolicismo, manifestado, entre outras coisas, nas comuni-
dades eclesiais de base. Predições sobre o crescimento numérico do cristi-
anismo na África precisam ser revistas com freqüência, visto que logo se
mostram demasiadamente modestas.
Não é fácil encontrar uma explicação adequada para esse fenôme-
no. Grande parte dele deve ser avaliado, indubitavelmente, de forma bas-
tante negativa, pois patenteia uma incapacidade de lidar com as pressões da
sociedade, o que resulta então em uma fuga para a religião (ou pseudo-
religião), em uma individualização ou privatização da fé (engendrando, com
freqüência, uma religião do tipo à la carte ou "faça-o você mesmo") ou
então na utilização da religião como escora para uma sociedade que apa-
renta estar ruindo.
O ressurgimento da religião não se limita, todavia, a isso. Um motivo
básico reside no fato de a estreita compreensão iluminista da racionalidade
ser vista, finalmente, como um fundamento inadequado para que sobre ele
se construa a vida. A estrutura objetivista que se impôs à racionalidade teve
um efeito mutilador sobre a necessidade indagatória do ser humano; ela
levou a um reducionismo desastroso e, por conseguinte, a um crescimento
humano enfezado.
É preciso que a racionalidade se amplie. Uma forma de realizá-lo é
reconhecer que a linguagem não pode ser absolutamente exata, que, enfim,
não é possível "definir" nem leis científicas nem verdades teológicas. Se-
gundo Gregory Bateson, nem a ciência nem a teologia "provam" ["prove"];
é mais pertinente dizer que elas "sondam" ["probe"]. Esse reconhecimento
levou a uma nova avaliação dos papéis da metáfora, do mito, da analogia e
afins, e à redescoberta do senso de mistério e encantamento. Quanto a esse
aspecto, a obra The Great Code (1982), de N. Frye, é especialmente im-
portante para a teologia (e, em particular, para a missiologia, em vista de
todo o novo campo da inculturação e contextualização do evangelho). As
doutrinas centrais do cristianismo tradicional, afirma Frye, somente podem
ser expressas em forma de metáfora; qualquer tentativa de ir além disso e
424 - Rumo a uma missiologia relevante

"explicar" doutrinas traz consigo "um forte traço de mortalidade intelectu-


al" (1983, p. 55). Deveras, quando a idolatria é condenada na Bíblia, ela "é,
muitas vezes, considerada uma projeção 'literal' sobre o mundo externo de
uma imagem que poderia ser bastante aceitável como metáfora poética" (p.
61). Frances Young (1988:308) apresenta argumentos similares, isto é, que
os primeiros pais da igreja, mormente Gregório Nazianzeno (330-389 d.C.),
muitas vezes declararam como heréticas exatamente aquelas pessoas que
haviam reivindicado "ter se assenhoreado de Deus por meio dos poderes da
razão humana".
Metáfora, símbolo, ritual, sinal e mito, desde longa data caluniados
pelas pessoas que se interessam unicamente por expressões "exatas" da
racionalidade, hoje em dia estão sendo reabilitados; eles criam formas que
"sintetizam e evocam a integração de mente e vontade"; "não só tocam a
mente e suas concepções e evocam ação com um propósito, mas também
compelem o coração" (Stackhouse 1988: 104). Assim, vemos rebrotar o in-
teresse, especialmente em igrejas do Terceiro Mundo, pela "teologia narra-
tiva", pela "teologia como estória" e por outras formas não-conceituais de
teologizar.
É importante que se reconheça que essas formas de pensamento e
expressão não são irracionais ou anti-racionais. O problema com o cientifi-
cismo é que ele agrilhoa o pensamento humano de maneira tão cruel como
o tem feito qualquer sistema autoritário de crença, pois "não oferece espaço
para novas crenças mais vitais e (...) nos obriga a dissimulá-las em termos
burlescamente inadequados" (Polanyi 1958:265). O melhor teólogo, segun-
do Gregório Nazianzeno, não é aquele que pode expor de maneira inteira-
mente lógica sua matéria, mas aquele que "congrega mais da imagem e
sombra da Verdade" e, assim, transpõe os limites da nacionalidade "pura"
(Young 1988:308). A verdadeira racionalidade, portanto, engloba também a
experiência. É nisso que reside a importância da abordagem teológica de
Schleiermacher, assim como a validade do movimento pentecostal, da Re-
novação Carismática (cf. Lederle 1988) e de muitas outras manifestações
da religião "experiencial".
Não estou, pois, sugerindo o abandono da racionalidade. Necessita-
mos recolher o melhor da ciência moderna, da filosofia, da crítica literária,
do método histórico e da análise social, e "refletir e repensar constantemen-
te nossa compreensão teológica à luz dela" (Young 1988:311). Deveríamos,
de fato, reter e defender o poder crítico do iluminismo, mas deveríamos
rejeitar seu reducionismo. Somos conclamados a re-conceber a racionalida-
de expandindo-a de modo a incluir muito mais do que ares cogitans. Isso
significa que a dimensão religiosa precisa ser integrada à nossa visão geral
da realidade. Essa é, paradoxalmente, a única forma pela qual o próprio
iluminismo pode ser salvo (cf. Lübbe 1986: 18). Sem o elemento religioso,
diz Guardini (1950: 113), a vida é uma máquina funcionando sem óleo -ela
A emergência de um paradigma pós-moderno - 425

grimpa. Quando a religião "se desfaz ou fenece, não apenas as pessoas


sofrem de sem-sentido, mas a civilização se esboroa" (Stackhouse 1988:82).
A alma humana abomina o vácuo. Se a fé em Deus se dissolve, seu lugar é
tomado por outros deuses: "os poderes da Natureza, Razão, Ciência, Histó-
ria, Evolução, Democracia, Liberdade Individual e Tecnologia..." (West
1971:99), ou por outras manifestações da religião secular, como a ideologia.
Os desdobramentos pós-modernos têm demonstrado que a ciência
não é inerentemente adversária da fé cristã. Essa observação, contudo, não
nos deveria fazer postular que deixou de existir qualquer tensão entre fé e
razão, entre a religião e o mundo da ciência. É isso que faz Fritjof Capra, a
partir de uma perspectiva da Nova Era, especialmente em O ponto de
mutação (1982) e em O Tao da Física ([1976] 1984). Segundo Capra, a
religião e a ciência estão abraçadas e se encontram em harmonia perfeita,
sem tensões. É significativo, porém, que Capra não recorra à fé cristã em
sua tentativa de sustentar seu ponto de vista, mas às religiões orientais,
principalmente ao taoísmo e ao budismo. Ele crê que o conceito chinês de
yin e yang e sua relação mútua seja particularmente responsivo à tese dele.
Tais pontos de vista são muitíssimo atraentes, mormente à luz da
longa animosidade existente entre ciência e religião. Agora que nos esta-
mos libertando dos grilhões do pensamento racionalista e entrando no perí-
odo pós-moderno, parece que as duas podem selar a paz e viver doravante
em completa harmonia! Josuttis (1988) faz, todavia, uma advertência, pelo
menos quanto ao que concerne à fé cristã. Com a fácil integração da reli-
gião a seu sistema, o paradigma pós-moderno ingeriu um veneno que lhe
será de difícil digestão (p. 16). A religião autêntica põe em perigo a cosmo-
visão emergente, assim como o fez em relação a todas as anteriores (p. 17).
Quem quer que se envolva verdadeiramente com a fé cristã, com os textos
bíblicos e a tradição eclesiástica, deparar-se-á com fenômenos muito mais
complicados e resistentes do que o esperado. A fé cristã sempre designou
como mal tudo o que destrói a vida. Elajamais expressou sua confiança em
Deus sem contestar o poder de antideuses. Preocupou-se com as vítimas
da sociedade, mas não sem chamar ao arrependimento os perpetradores de
injustiça (p. 19; cf. Daecke 1988).
Não causa surpresa, por conseguinte, que, naquelas sociedades onde
prevalece a injustiça estrutural e várias teologias de protesto estão se de-
senvolvendo, haja pouco entusiasmo pelo integracionismo e fuga ao conflito
de Capra. Portanto, mesmo que atualmente se possa dizer com convicção
que muitas das antigas batalhas entre a ciência e a religião perderam seu
sentido e que a religião efetivamente pode esperar que vá desempenhar um
papel mais vital na sociedade do que foi possível quando o paradigma ilumi-
nista ainda reinava de forma absoluta, é preciso que se admita que as ten-
sões permanecerão e que o papel da religião no futuro será difuso (cf. Küng
1987:26). Não há mais qualquer espaço para as afirmações maciças de fé
426 - Rumo a uma missiologia relevante

que caracterizaram o empreendimento missionário dos tempos anteriores,


apenas para um testemunho singelo e humilde da ultimidade de Deus em
Jesus Cristo.

Além do esquema sujeito-objeto


O domínio sobre a natureza e sua objetivação e a sujeição do mundo
físico à mente e à vontade humanas - como foram propugnados pelo ilumi-
nismo - tiveram conseqüências desastrosas. O resultado foi um mundo "cer-
rado, essencialmente concluído e imutável (...) simples e raso, e, fundamen-
talmente, desprovido de qualquer mistério - uma máquina programada com
rigor" (H. Schilling, ap. Hiebert 1985b: 13).
Ao mesmo tempo, e de maneira paradoxal, em vez de libertar as
pessoas, ele as escravizou. Primeiro, a máquina substituiu o escravo huma-
no, e, em seguida, os seres humanos passaram a ser escravos da máquina.
A produção tornou-se o maior objetivo da vida humana, e isso resultou em
pessoas obrigadas a prestar culto no altar da autonomia tecnológica.
Outra conseqüência desastrosa do modelo cartesiano se verifica no
que, atualmente, é denominado de crise ecológica. Degradamos a Terra
tratando-a como um objeto insensível; agora ela está agonizando diante de
nossos próprios olhos. Danificamos a camada de ozônio e, com isso, talvez
tenhamos assinado nossa própria sentença de morte. Constituímos a primei-
ra geração que, com a ajuda da energia nuclear, tem condições de destruir a
si mesma. A cultura iluminista - ciência, filosofia, educação, sociologia, lite-
ratura, tecnologia - interpretou mal tanto a humanidade quanto a natureza, e
não apenas em alguns aspectos, mas de uma forma radical e completa.
Faz-se necessária, pois, uma reorientação básica. Deveríamos, de
novo, ver-nos como filhos e filhas da Mãe Terra e como irmãos e irmãs de
outros seres humanos. É preciso pensar holisticamente, e não analiticamen-
te, enfatizar a proximidade em vez da distância, romper o dualismo de corpo
e mente, sujeito e objeto, e sublinhar a "simbiose?'.
Para a existência missionária da igreja no mundo, tudo isso acarreta
conseqüências profundas e amplas. Implica que a natureza e, em especial,
as pessoas não podem ser encaradas como meros objetos, manipuláveis e
exploráveis por outros. Essa nova epistemologia para a missão significa,
também, que a tecnologia deve ser confrontada com uma realidade fora
dela que não depende de seus cânones de racionalidade e que, portanto, não
se submeterá a seu poder determinista. Essa realidade pode ser identificada
com o reinado de Deus, o qual se encontra em uma tensão polêmica com o
sistema fechado deste mundo.
A emergência de um paradigma pós-moderno - 427

Redescoberta da dimensão teleológica


A eliminação do propósito e a sustentação do raciocínio linear e cau-
sal do paradigma iluminista fizeram, em última análise, com que o universo
perdesse o sentido. Mas os seres humanos não conseguem viver sem sen-
tido, propósito e esperança. Talvez a Europa e os Estados Unidos do século
19, pelo menos quanto ao que se refere às classes privilegiadas, pudessem
permitir-se viver assim. Podiam olhar para as forças inerentes ao universo
que garantiam progresso e aperfeiçoamento e adotar a teoria da evolução
de Darwin, a qual sugeria que, seguindo leis biológicas inerentes à natureza,
as sociedades e os indivíduos, gradualmente, se aperfeiçoariam; dessa ma-
neira, os privilegiados podiam esperar soluções para outros enigmas, subju-
gar a natureza e, de fato, o mundo todo, e contar com mais e mais privilégi-
os. Em círculos teológicos, isso significava, entre outras coisas, que se podia
pensar em categorias exclusivamente pós-milenaristas, segundo as quais o
mundo seria, de forma sistemática, aperfeiçoado até que, quase impercepti-
velmente, o reino de Deus despontaria na Terra.
No fim do século 19, porém, e mais claramente no século 20, ocorreu
uma mudança radical da teologia não-escatológica para a escatológica (cf.
Martin 1987:373s.). Isso acarreta uma ruptura fundamental com a idéia de
que tudo deva ser predizível ou conseqüência natural de alguma lei, de algo
que está imutavelmente dado. Reintroduziu-se a categoria da contingência
e da imprevisibilidade. A noção de mudança - a crença de que as coisas
podem ser diferentes, de que não é preciso viver conforme modelos antigos
e estabelecidos, de que nem tudo funciona de acordo com leis imutáveis de
causa e efeito - foi de novo reconhecida como categoria tanto teológica
quanto sociológica e está criando uma esperança quase ilimitada nos cora-
ções de milhões, especialmente entre as pessoas menos privilegiadas. As
noções de arrependimento e conversão, de visão, de responsabilidade, de
revisão de realidades e posições anteriores, há muito soterradas pela lógica
sufocante de um rígido raciocínio de causa e efeito, vieram de novo à tona e
estão inspirando pessoas que desde longo tempo não alimentavam qualquer
esperança (p. 373s., 384) e, concomitantemente, conferindo uma nova rele-
vância à missão cristã.

A contestação do pensamento baseado no progresso


Foi, em grande parte, o pensamento iluminista orientado pelo pro-
gresso que engendrara o projeto de expansão colonial. A política do "coloni-
alismo benevolente", todavia, foi criada, em parte, pelo empreendimento
missionário cristão. O mesmo aplicava-se ao projeto de "desenvolvimento".
Ele refletia, quanto ao que conceme às missões cristãs, uma evolução que
se distinguia por ir além de abordagens anteriores.
428 - Rumo a uma missiologia relevante

Originalmente, o envolvimento das sociedades missionárias com as


necessidades do dia-a-dia das pessoas se dava, quase que com exclusivida-
de, no nível da caridade: auxílio em desastres, cuidado de órfãos, a provisão
de assistência básica de saúde e afins. Durante a terceira década deste
século e, particularmente, na Conferência do Conselho Missionário Interna-
cional realizada em Jerusalém (1928), propagou-se a idéia de uma "aborda-
gem abrangente". A igreja deveria fazer mais do que apenas proporcionar
um "serviço de ambulância"; ela deveria envolver-se na "reconstrução ru-
ral", na solução de "problemas industriais", etc. Depois da Segunda Guerra
Mundial, a "abordagem abrangente" foi recauchutada e substituída pela noção
de "desenvolvimento". Tanto católicos romanos quanto protestantes aderi-
ram com entusiasmo ao novo projeto.
Portanto, não deveríamos ficar surpresos se nos é dito que os anos
sessenta - a "década do secular" - constituiu também o período dos planos
de desenvolvimento febricitamente executados, tanto na esfera governa-
mental quanto na eclesiástica. Uma verdadeira enxurrada de folhetos, livros e
artigos sobre o assunto inundaram o mercado. O desenvolvimento soluciona-
ria os problemas do Terceiro Mundo! Havia otimismo no ar. Gutiérrez
(1988:xvii) cita o documento de Medellín, da Conferência Latino-America-
na de Bispos (1968), que, embora tivesse rompido, em alguns aspectos, com
o modelo de modernização, acreditava, não obstante, que a América Latina
se encontrava "no umbral de uma nova época", que conduziria as pessoas
"progressivamente a um domínio sempre maior da natureza". Tais declara-
ções lembram aquelas formuladas dois anos antes na Conferência de Igre-
ja e Sociedade do CMI, realizada em Genebra, em que Mesthene (1967 :484)
aplaudiu as novas "maciças mudanças físicas deliberadamente induzidas",
por meio das quais as pessoas poderiam "literalmente extrair novas alterna-
tivas da natureza" e "gerar novas possibilidades quase que à vontade".
As conseqüências do modelo de desenvolvimento foram, porém, opos-
tas às que haviam sido esperadas. Os países ricos ficaram mais ricos e os
pobres, ainda mais pobres. Nestes últimos, parecia que os já privilegiados
eram os que mais se beneficiavam dos programas. Em termos sociais e
ecológicos, os resultados, muitas vezes, beiravam o desastre (cf. Bragg
1987:25-27). Num retrospecto, os motivos disso estão se tomando claros.
Ficou evidente que a aplicação de tecnologia não é uma questão apenas
técnica, mas que ela é profundamente influenciada pelas disposições sociais
e religiosas subjacentes (Nürnberger 1982:240-248).
O processo teve como agravante o fato de que as pessoas freqüente-
mente foram encaradas como meros objetos em uma rede de planejamento,
transferência de mercadorias e coordenação logística em que o agente de
desenvolvimento era o iniciador, o planejador e o senhor. Mais importante
ainda era toda a área de poder. Ficou claro que, no fundo, esse era o pro-
blema real e que um desenvolvimento autêntico não poderia ocorrer sem a
A emergência de um paradigma pós-moderno - 429

transferência de poder. Os agentes ocidentais do desenvolvimento, contudo,


pareciam ou não estar dispostos ou ser incapazes de transferir poder aos
povos pobres do Terceiro Mundo.
Talvez fosse mais correto dizer que o Ocidente não tinha nem dispo-
sição nem capacidade para tal. A teoria era que o Terceiro Mundo seria
fortalecido sem que o Ocidente tivesse que abrir mão de qualquer poder e
privilégio. Mas, mesmo que o Ocidente tivesse tencionado ceder poder em
favor do Terceiro Mundo, isso teria sido impossível, devido à atual relação
assimétrica entre o Norte e o Sul (para uma discussão detalhada, cf. Nürn-
berger 1987a, passim). Por causa dos desdobramentos tecnológicos que se
ha viam processado durante os últimos dois ou três séculos e da forma como
eles modificaram os povos ocidentais, o Ocidente (e isso inclui tanto os
países capitalistas quanto os socialistas) estava num estágio de desenvolvi-
mento que virtualmente impossibilitava que outros países o alcançassem.
Em realidade, esses projetos de desenvolvimento, muitas vezes, apresenta-
vam um resultado exatamente oposto ao que haviam pretendido: os países
ocidentais que queriam fomentar o desenvolvimento tomaram-se ainda mais
poderosos que antes, e o "abismo de poder" entre o Norte e o Sul, em vez
de diminuir, em verdade se ampliou.
Não surpreende, pois, que um número crescente de países do Tercei-
ro Mundo tenha rejeitado todo o conceito de desenvolvimento e seus pres-
supostos iluministas. O termo desarrollismo ("desenvolvimentismo") é
empregado pejorativamente na América Latina; o desenvolvimento não ata-
cou as raízes do mal prevalecente e apenas gerou confusão e frustração
(Gutiérrez 1988:16s.). Sua obsessão pela "racionalidade" e sua crença em
eficácia e evolução cegaram-no para os poderes integrais da cultura e hu-
manidade no Terceiro Mundo. O desenvolvimento não era, como Paulo VI
o esperara, um novo termo para designar a paz, mas um outro para designar
exploração. O subdesenvolvimento não era um estágio preliminar para o
desenvolvimento, mas a conseqüência dele. Essa abordagem não resultou
apenas em sobriedade; ela foi catastrófica. Os "humanistas tecnológicos"
(como West [1971] denomina aqueles ocidentais que acreditavam que o
desenvolvimento era capaz de modernizar o Sul) estavam equivocados. O
inimigo não era a natureza ou a ignorância quanto ao know-how tecnológi-
co, mas uma estrutura de poder humano que explorava e destruía a humani-
dade de outros (p. 32). A lei da história não é o desenvolvimento, mas a
revolução (West 1971:113, interpretando Karl Marx).
Assim, propôs-se um novo modelo. O problema não era a relação
entre atraso e modernidade, como o haviam crido os que estavam imersos
no pensamento iluminista, mas a relação entre dependência e libertação
(Nümberger 1982:292-349;Bragg 1987:28-31;Gutiérrez 1988:13-25).Aeqüi-
dade não seria alcançada por intermédio de um "gotejar" da riqueza dos
ricos em direção aos pobres, mas pela subversão do atual sistema internaci-
430 - Rumo a uma missiologia relevante

onal. As nações industrializadas acumularam sua riqueza explorando os países


não-ocidentais durante o período colonial. De fato, existe pobreza porque há
riqueza (Gutiérrez).
Este não é o lugar para submeter o modelo da libertação à crítica.
Isso será feito num estágio posterior de nosso estudo. Por ora, porém, dese-
jo apenas sugerir que o modelo da libertação não está completamente isento
de algumas das influências debilitantes do iluminismo das quais padece o
modelo da modernização. Mesmo que o modelo da libertação seja plena-
mente justificado, considerando a triste história do domínio, expansão e ex-
ploração ocidentais, ele ainda se encontra, em larga escala, alicerçado nos
pressupostos iluministas do bem inato em (alguns) seres humanos que, uma
vez que o poder lhes tenha sido transferido, servirão unicamente ao bem
comum. Não se deveria, contudo, esquecer jamais que o Reinado do Terror
na França foi instituído pelas mesmas pessoas que haviam apoiado a con-
vicção dos filósofos do iluminismo francês de que a revolução inauguraria a
verdadeira humanidade, algo que fora impedido por preconceito, supersti-
ção e autoridade arbitrária (cf. West 1971:73), e que essa história se repetiu
várias vezes desde então, não só na Revolução Russa e na subseqüente era
stalinista, mas também em outros casos.

Uma estrutura fiduciária


Fundamental para o paradigma iluminista era a distinção radical entre
fatos e valores. Esse edifício todo, porém, ruiu. Os muros que o positivismo
e o empirismo erigiram entre sujeito e objeto e entre valor e fato começa-
ram a esboroar-se (cf. Lamb 1984: 124s.). Descobriu-se que não é possível
observar a realidade sem, de certa forma, alterar o que se vê. Cada ato de
conhecimento, afirma Polanyi (1958: 17), inclui uma valoração.
Toda essa questão se tornou imensamente mais complexa pela cir-
cunstância de a ciência moderna ter disponibilizado aos seres humanos po-
deres antes inimagináveis - poderes que não se podem mais encarar como
neutros ou isentos de valores e para os quais as pessoas estão totalmente
despreparadas (cf. Guardini 1950:94). As últimas ilusões quanto à inocência
da ciência, diz M. Wartofski, foram arrastadas pelos ventos radioativos que
varreram Hiroshima e Nagasaki (ap. Lamb 1984: 123). Deveras, a distinção
feita pela ciência entre fato e valor conduziu ao suicídio da mesma (cf.
BIoom 1987:38s.). "O objetivismo", assevera Polanyi (1958:286), "falsificou
totalmente nosso conceito de verdade".
Não foram apenas os monstros criados e então desatados pela ciên-
cia que ajudaram a ciência iluminista a cair em si. Porta-vozes do Terceiro
Mundo também começaram a questionar a neutralidade dela perguntando a
serviço de quais interesses se encontrava. Eles salientaram que a ciência,
longe de ser imparcial, estava erigida sobre as presunções culturais e impe-
A emergência de um paradigma pós-moderno - 431

rialistas do Ocidente e que ela representava, particularmente, um instru-


mento de exploração e deveria ser investigada em relação à práxis donde
provém.
Sabemos, pois, agora que não existem "fatos brutos", mas apenas
fatos interpretados e que a interpretação é condicionada pela estrutura de
plausibilidade do cientista, que, em grande parte, é engendrada social e cul-
turalmente. Um exemplo está no papel que a ideologia exerceu no Ociden-
te. As grandes ideologias do século 20 - marxismo, capitalismo, fascismo e
nacional-socialismo - só foram possíveis devido ao cientificismo iluminista.
É da natureza da ideologia apresentar-se disfarçada de ciência e apelar
para a razão objetiva. Lübbe sustenta que as ideologias estão empregando
todas as técnicas da ciência com o intuito de convencer a todos de que elas
são objetivamente verdadeiras (1986:54).
A despeito de (ou, talvez, por causa de) sua alegada base científica,
as ideologias funcionam, contudo, para todos os efeitos práticos, como reli-
giões (cf. Lübbe 1986:53-73). Mais exatamente, elas são religiões ersatz-
substitutas da religião (p. 57) - e tendem a assumir formas explicitamente
religiosas e até mesmo rituais (p. 58s., 62). Elas são, segundo Raymond
Aron, "o ópio dos intelectuais" (ap. Lübbe 1986:63).
Tudo isso - a física desde Einstein, a descoberta da ambigüidade do
poder, a crítica implacável do Terceiro Mundo quanto às tradicionalmente
sacrossantas presunções da ciência, a forma como as ideologias usurparam
o lugar ocupado por tradição pela religião - sublinha a crise em que o ilumi-
nismo se encontra. A objetividade, como geralmente tem sido atribuída às
ciências "exatas", demonstrou ser uma ilusão e, de fato, um ideal falso (Po-
lanyi 1958:18). A estrutura objetivista impôs mutilações incapacitadoras à
mente humana (p. 381). Assim, Polanyi (p. 266) advoga o ponto de vista de
que deveríamos, uma vez mais, reconhecer a crença como a fonte de todo
conhecimento e adotar conscientemente uma "estrutura fiduciária". "Toda
verdade", diz ele (p. 286), "é apenas o pólo externo da crença, e destruir a
crença seria negar toda a verdade". Polanyi então promove (p. 266), como
ponto de partida para a pesquisa cient(fica, a máxima de Agostinho: nisi
credideritis, non intelligitis (se não creres, não entenderás)",
Dessa forma, Polanyi espera reequipar-nos com as faculdades de
que séculos de pensamento crítico nos ensinaram a desconfiar (p. 381). Ele
advoga a primazia do compromisso, do conhecimento "tácito" ou "pessoal"
(cf. o título de seu livro) sobre o conhecimento "objetivo", o conhecimento
sem um sujeito conhecedor (Popper 1979: 109). Um compromisso pode, na-
turalmente, mudar; é possível converter-se de um a outro. Mas a questão é
que ninguém (e certamente não o cientista iluminista) está, deveras, com-
pletamente isento de um compromisso. Enquanto alguém viver e pensar
dentro do padrão de um determinado paradigma, este lhe proverá a estrutu-
ra de plausibilidade de acordo com a qual toda a realidade é interpretada. O
432 - Rumo a uma missiologia relevante

paradigma pode ser uma certa cosmovisão científica, ou uma religião, ou


uma ideologia; em qualquer caso, a estrutura conceitual tem poderes inter-
pretativos quase englobantes. Só quando se perde a fé em uma estrutura de
plausibilidade percebe-se que seus poderes eram excessivos e ilusórios (Po-
lanyi 1958:288). Nesse sentido, Polanyi cita Arthur Koestler, que, só depois
de ter abandonado o marxismo, foi capaz de escrever: "Minha educação
partidária havia equipado minha mente com pára-choques tão esmerados e
defesas tão elásticas, que tudo que eu via e ouvia era automaticamente
transformado para adequar-se a um padrão preconcebido". O que Polanyi
está afirmando é que a cosmovisão adotada pode não ser "verdadeira". É
possível, em realidade, que ela seja a Grande Mentira. Ainda assim, ela
permanece "irresistivelmente persuasiva, já que remove todos os critérios
de validade existentes e os repõe para que lhe forneçam esteio" (p. 318).
Não significa isso que meramente pulamos da frigideira para o fogo,
que, tendo (corretamente) rejeitado o mito da objetividade, tomamo-nos ví-
timas de um subjetivismo desenfreado? Superficialmente, isso, deveras,
parece ser o caso, mormente quando alguém como Kuhn (1970:94), em sua
ânsia de repudiar o pensamento objetivista do positivismo e seus sucesso-
res, afirma que "como em revoluções políticas, assim também na escolha de
um paradigma, não há critério maior que o assentimento da comunidade
pertinente", e quando ele ainda sustenta (p. 103) que um novo paradigma "é
não apenas incompatível, mas, muitas vezes, efetivamente incomensurável
com aquilo que o precedeu." Isso não são exemplos de completo relativismo?
A alternativa para o objetivismo ou o absolutismo não tem que ser,
porém, o subjetivismo ou o relativismo. O próprio Kuhn modificou, mais
tarde, sua posição original, que sugerira um subjetivismo extremo (cf. Kuhn
1970:205-207). E Polanyi sustentou que aceitar uma "estrutura fiduciária"
não significa adotar uma posição irracional. Não deveria, pois, causar sur-
presa que, depois de quase nos intoxicarmos com a posição historicista ou
relativista na década de sessenta e setenta, os anos seguintes tenham teste-
munhado um retomo para uma posição realista (modificada) em que con-
ceitos como verdade e racionalidade estejam novamente sendo defendidos.
Trata-se, porém, de um realismo moderado que permanece consciente da
contextualidade das convicções e opera em todas as disciplinas. Talvez ele
signifique ater-se a "crenças não-provadas" (Polanyi 1958:268) ou correr
"riscos" (p. 318), mas não representa um caso de ação irracional. Pelo
contrário, a autêntica posição cristã nesse sentido é de humildade e de auto-
crítica. Depois do iluminismo, seria irresponsável não submeter nossa "es-
trutura fiduciária" a uma crítica severa ou não continuar ponderando a pos-
sibilidade de que a Verdade seja, deveras, diferente do que nós pensávamos
que fosse. Se estamos conscientes ou não, os desdobramentos dos últimos
três séculos aumentaram em muito nossos poderes de crítica, e não há como
retomar ànossa inocência anterior. Polanyi o expressa da seguinte maneira:
A emergência de um paradigma pós-moderno - 433

[Nossos poderes críticos] dotaram nossa mente de uma capacidade de auto-


transcendência a que jamais podemos renunciar de novo. Colhemos da Ár-
vore uma segunda maçã que colocou em perigo, para sempre, nosso conhe-
cimento do Bem e do Mal, e precisamos aprender a conhecer essas qualida-
des doravante à luz ofuscante de nossos novos poderes analíticos. (1958:268).
Ainda assim, exatamente quando estamos "humildemente reconhe-
cendo a incerteza de nossas próprias conclusões" (p. 271), pois uma "estru-
tura fiduciária não elimina a dúvida" (p. 318), o cristão continua a ater-se a
crenças não-provadas. É precisamente essa postura autocrítica da fé que
nos pode proteger contra a natureza "cega e falaz" de um "credo converti-
do em uma ciência" (p. 268). Um posicionamento cristão autocrítico pós-
iluminista talvez constitua, no mundo moderno, o único meio de neutralizar
as ideologias; só ele nos pode salvar da auto-ilusão e libertar-nos da depen-
dência de sonhos utópicos (cf. Lübbe 1986:63).
Sabendo agora que os chamados fatos não são realmente neutros ou
isentos de valores e que a linha que soía separar fatos e valores se tomou
tênue, encontramo-nos muito mais expostos que costumávamos estar. Tam-
bém sabemos, melhor que antes, que, embora o futuro permaneça aberto e
nos convide à liberdade, estamos acautelados contra novas tiranias e en-
frentando novas ansiedades. Ao mesmo tempo, estamos cientes do fato de
que foram exatamente os prolongados ataques à religião por parte dos raci-
onalistas que nos forçaram a renovar os fundamentos da fé cristã (Polanyi
1958:286). Essa consciência é de importância vital para a atitude da missão
e da missionária cristã para com adeptos de outros credos.

Otimismo moderado
Como outros elementos da cosmovisão iluminista, a crença de que
todos os problemas têm, em princípio, solução também se encontra sob cres-
cente pressão. Os grandes esquemas do Ocidente, em casa e no Terceiro
Mundo, virtualmente fracassaram todos de maneira melancólica. O sonho
de um mundo unificado em que todas as pessoas desfrutariam de paz, liber-
dade e justiça transformou-se em um pesadelo de conflito, servidão e injus-
tiça. Esse desapontamento é tão radical e difundido que é impossível ignorá-
lo ou suprimi-lo.
A aclamação acrítica de qualquer manifestação de renovação, mu-
dança e libertação, assim chamadas, durante a década de sessenta e no
início da de setenta (Conferência da FMEC, 1960; Conferência Igreja e
Sociedade, 1966; Assembléia do CMI em Uppsala, 1968; Conferência dos
Bispos Católicos em Medellín, 1968; Conferência da CMME, em Bangkok,
1973) foi a última e quase convulsiva ilustração da incapacidade do Ociden-
te de crer que uma era, a de sua hegemonia, tinha passado. Desde os anos
setenta, o horizonte está cada vez mais sombrio. As pessoas estão de novo
434 - Rumo a uma missiologia relevante

tomando consciência da realidade do mal- nos seres humanos e nas estru-


turas da sociedade. O horizonte não mais se mostra ilimitado. Compreende-
mos novamente, como nossos antepassados, que não estamos em condi-
ções de conhecer mais do que uma fração da realidade. Foi em vão que a
humanidade tenha se exaurido na tentativa de construir a torre de Babel.
Tudo isso, contudo, não sugere que devamos capitular ao pessimismo
e ao desespero. À nossa volta, todos estão à procura de um novo sentido
para a vida. Esse é o momento em que a igreja cristã e a missão cristã
podem uma vez mais, humilde mas resolutamente, apresentar a visão do
reinado de Deus - não como uma bela promessa de cumprimento incerto,
mas como uma realidade escatológica que lança seus raios, embora foscos,
para dentro do presente sombrio, iluminando-o e conferindo-lhe sentido. É
um caminho que vai além do otimismo iluminista e do pessimismo antiilumi-
nista.

A caminho da interdependência

O credo iluminista ensinava que cada indivíduo era livre para procu-
rar sua felicidade, independentemente do que outros pensassem e disses-
sem.
Toda essa abordagem teve conseqüências desastrosas. A chamada
abertura do liberalismo moderno significa, em verdade, que as pessoas não
levam as outras a sério - deveras, que elas não necessitam das outras (Bloom
1987:34). Segue daí que os indivíduos não mais podem levar-se a sério a si
mesmos e que, a despeito do fato de possuírem agora a liberdade de crer e
fazer o que desejam, muitos já não crêem em coisa alguma, e todos passam
suas vidas "em trabalho e lazer frenéticos para não se confrontar com o
fato, para não olhar para dentro do abismo" (Bloom 1987: 143, valendo-se
de Nietzsche). Demasiadamente autoconfiantes para reconhecer ou recor-
rer a suas raízes religiosas, urbanos demais para serem enganados pelo
engodo de alguma ideologia irracional, a alternativa que lhes resta, em últi-
ma análise, é o niilismo. Livres para usarem seu poder da maneira que
quiserem, as pessoas modernas não têm ponto de referência fora de si mes-
mas, nenhuma garantia de que empregarão sua liberdade responsavelmente
e para o bem comum. A autonomia do indivíduo, tão alardeada nas últimas
décadas, acabou na heteronomia; a liberdade para crer no que quer que se
decida crer resultou em crença alguma; a recusa de arriscar a interdepen-
dência terminou na alienação também de si próprio.
Duas coisas se fazem necessárias a fim de romper os grilhões da
espúria doutrina da autonomia e de reaver o que é essencialmente humano.
Em primeiro lugar, é preciso que reafirmemos a indispensabilidade da con-
vicção e do compromisso. A longo prazo, ninguém realmente consegue so-
breviver sem eles. O que se faz necessário é a vontade de tomar uma
A emergência de um paradigma pós-moderno - 435

posição, mesmo que seja impopular ou até perigosa. A tolerância não é uma
virtude desprovida de ambigüidade, especialmente do tipo "Eu estou o.k.,
você está o.k.", que não deixa espaço para um questionamento recíproco.
Em segundo lugar, precisamos recuperar a proximidade, a interde-
pendência, a "simbiose" (cf. Sundermeier 1986, passim). O indivíduo não é
uma mônada, mas parte de um organismo. Vivemos em um só mundo, em
que o resgate de alguns a expensas de outros não é possível. Só juntos nos
salvaremos e sobreviveremos. Isso envolve não só uma nova relação com a
natureza, mas também entre os seres humanos. A "psicologia da separa-
ção" precisa ser reposta por uma "epistemologia da participação". A "gera-
ção do eu" deve ser substituída pela "geração do nós". A razão "instrumen-
tal" do iluminismo tem que ser suplementada pela razão "comunicativa"
(Habermas), visto que a existência humana é, por definição, existência in-
tersubjetiva. Aqui reside a pertinência da redescoberta da igreja como cor-
po de Cristo e da missão cristã como edificação de uma comunidade das
pessoas que partilham um destino comum.
Capítulo 11

A missão em um período de testes

Nunca antes na história da humanidade, os estudiosos em todas as


disciplinas (incluindo a teologia) estiveram tão preocupados quanto hoje,
não com o estudo de suas disciplinas em si, mas com as metaqeestões rela-
tivas a essas disciplinas (cf. Lübbe 1986:22). Essa situação, por si, sinaliza a
presença de uma crise de grandes proporções ou, segundo as palavras de
Kuhn, o advento de uma significativa "mudança de paradigma" em todas
as áreas da ciência. E como todas as disciplinas acadêmicas modernas são,
essencialmente, fenômenos e produtos ocidentais, pode-se inferir, com na-
turalidade, que é, sobretudo, o Ocidente que se encontra em meio a uma
crise de proporções gigantescas. Está ficando cada vez mais evidente que
os modernos deuses do Ocidente - ciência, tecnologia e industrialização -
perderam seu fascínio (KuscheI1984:235). Eventos da história mundial aba-
laram a civilização ocidental até seu âmago: duas devastadoras guerras
mundiais; as revoluções russa e chinesa; os horrores perpetrados pelos go-
vernantes de países comprometidos com o nacional-socialismo, o fascismo,
o comunismo e o capitalismo; o colapso dos.grandes, impérios coloniais oci-
dentais; a rápida secularização não só do Ocidente mas também de grandes
partes do resto do mundo; o crescente abismo.emnível internacional, entre
ricos e pobres; a percepção de que estamos nos encaminhando para um
desastre ecológico de escala cósmica ede que o progresso era, efetivamen-
te, um deus falso.
Não era concebível que a igreja, a teologia e a missão cristãs perma-
necessem incólumes. Por um lado, os resultados de várias outras disciplinas
- das ciências naturais e sociais, da filosofia, da história, etc. - influencia-
ram profunda e duradouramente o pensamento teológico. Por outro lado,
desdobramentos engendrados na igreja, na missão e na teologia (muitas
vezes precipitados, sem dúvida, pelos momentosos eventos e revoluções em
outras disciplinas) tiveram igualmente conseqüências de longo alcance. Ele-
mentos teológicos que, durante séculos, haviam estado ausentes das igrejas
ou encontrado acolhida em movimentos cristãos marginais voltaram de novo
à tona na vertente principal do cristianismo e induziram, de certa maneira,
um retorno a uma posição pré-constantiniana (cf. BoerwinkeI1974:50-81).
Os adventistas recuperaram a longamente negligenciada expectativa da pa-
A missão em um período de testes - 437

rúsia. Grupos pentecostais e carismáticos protestaram contra a perda dos


dons do Espírito na vertente principal do cristianismo. Os Irmãos desenvol-
veram um modelo de igreja sem quadros institucionalizados ou hierárquicos.
Grupos batistas rejeitaram o batismo de infantes, pois este sugeria a idéia de
uma filiação automática à igreja e a ausência de uma decisão pessoal. Os
menonitas e quacres distanciaram-se do apoio eclesiástico à violência e à
guerra. O marxismo (em grau significativo, uma "heresia" cristã) contestou
a sanção eclesiástica das diferenças de classe e sua tendência a alinhar-se
com os ricos e os poderosos. E, atualmente, muitos desses elementos, de-
sencadeados por movimentos de protesto na periferia da igreja "oficial",
foram admitidos por esta, mesmo que não ao ponto de excluir outros ele-
mentos.
A igreja também perdeu sua posição privilegiada. Em muitas partes
do mundo, inclusive em regiões onde a igreja esteve estabelecida como um
fator poderoso por mais de um milênio, não representa, em nossos dias, urna
vantagem ser cristão, pelo contrário. A relação outrora tão próxima entre
"trono" e "altar" (por exemplo, em todo o projeto da expansão colonialista
do Ocidente) deu lugar, em alguns casos, a uma tensão, em constante cres-
cimento, entre a igreja e as autoridades seculares. E o perseguidor de ontem
(ou, pelo menos, cúmplice na perseguição) de judeus, "seitas" cristãs e se-
guidores de outros credos mantém agora um diálogo com esses grupos. De
forma similar, a tendência de uma denominação a evitar o contato com
outras (ou, em alguns casos, até mesmo a anatematizar os membros destas
ou encará-los como alvos de missão) foi substituída pelo contato e pela
cooperação ecumênicas.
Nos "campos de missão" tradicionais, a posição de agências missio-
nárias e missionários ocidentais sofreu uma revisão fundamental. Os missi-
onários não vão mais como embaixadores ou representantes do poderoso
Ocidente a territórios submetidos a nações brancas e "cristãs". Eles se
dirigem atualmente a países, muitas vezes, hostis a missões cristãs. David
Barrett calcula que, a cada ano, uma média de dois a três países fecham as
portas para os missionários do exterior. As grandes religiões mundiais, antes
consideradas moribundas, tomaram-se missionárias em um grau até mais
agressivo do que o foi o cristianismo em qualquer época. O islã, em particu-
lar, constitui hodiemamente uma força extraordinária em muitas áreas do
mundo e mostra-se mais resistente a influências cristãs do que jamais o foi.
E no contexto da atual atitude de diálogo com adeptos de outros credos,
cresce o número de missionários que se indaga se ainda faz sentido ir até os
confins da terra por causa do evangelho cristão. Por que, realmente, alguém
deveria "sofrer as angústias do exílio e as picadas de mosquitos" (Power
1970:8) se as pessoas serão salvas de qualquer maneira? Afmal de contas,
já é "suficientemente ruim ter um trabalho árduo a realizar, mas muito pior
quando é discutível se esse trabalho vale a pena ser feito" (p. 4).
438 - Rumo a uma missiologia relevante

E existem ainda as novas relações com as "igrejas jovens". Onde os


missionários ocidentais ainda são bem-vindos (ou tolerados), tratam-nos como
"obreiros fraternos" a serviço de igrejas autônomas já estabelecidas. Os
vigorosos heróis da fé de antanho, que "levaram" o "evangelho" aos confins
da terra e que, quase solitários (pelo menos, em sua própria avaliação),
edificaram novas comunidades de fé, tomaram-se "parceiros" que freqüen-
temente são vistos, de forma condescendente, como "estepes" prescindí-
veis. Ficou claro que o missionário não é essencial à vida e ao futuro das
igrejas jovens; em um número crescente de países (e especialmente na
China), ficou demonstrado que o missionário não apenas não é central, mas
pode ser, em realidade, um embaraço e uma desvantagem. Muitas das gran-
des instituições construídas por agências missionárias, freqüentemente a
grandes custas e com tremenda dedicação - hospitais, escolas, faculdades,
editoras e afins - mostraram ser obstáculos em vez de fatores positivos
para a vida e o crescimento das igrejas jovens.
No decorrer deste século, o empreendimento missionário e a idéia
missionária têm sofrido algumas modificações profundas. Estas se proces-
saram, em parte, como resposta ao reconhecimento de que a igreja é, deve-
ras, não só recipiente da misericordiosa graça de Deus, mas, às vezes, tam-
bém de sua ira (Paton 1953:17), que boas intenções não são suficientes, que
cada um de nós é, segundo a famosa formulação de Lutero, sempre simul
justus et peccator ("simultaneamente justificado e pecador"). Os missio-
nários, talvez mais do que outros, tenderam a considerar-se imunes às fra-
quezas e aos pecados dos cristãos "comuns"; levaram muito tempo para
descobrir que não eram diferentes das igrejas donde haviam provindo, que,
como o diz Stephen Neill (1960:222), eles, "no todo, foram pessoas fracas,
não muito sábias, não muito santas, não muito pacientes. Transgrediram a
maioria dos mandamentos e incidiram em todos os erros imagináveis". De
fato, em muitos lugares do mundo, inclusive em sua tradicional base domés-
tica, a missão cristã aparenta ser não o objeto da graça e da bênção de
Deus, mas de seu juízo (cf. o título de Paton, 1953).
Escrevendo após a revolução comunista na China, Paton afirma cla-
ramente: "Quando ocorre um desastre, nada é realmente sábio, ou até mes-
mo gentil, exceto o exame implacável das causas" (1953:34). A partir dessa
premissa, algumas pessoas, inclusive muitas cristãs, sacaram a conclusão
de que a missão cristã e tudo que ela defendia pertencem agora ao passado.
Ela deveria ser encomiada e, então, enterrada; constituiu um episódio, e
nada mais, da história do cristianismo e pode ser agora tranqüilamente bani-
da para os arquivos. Tais pontos de vista são expressos em muitos círculos
cristãos, mas, especialmente, entre católicos romanos e aqueles protestan-
tes que, muitas vezes, são designados como "ecumênicos". Gómez (1986:28)
escreve que, após o Vaticano Il, sacerdotes e religiosos abandonaram a
vida consagrada, as vocações definharam, tradições veneráveis foram de-
A missão em um período de testes - 439

molidas freneticamente e a roupa suja da história da missão católica foi


lavada em público com um prazer masoquista; a missão deixou de ser uma
questão para as massas e representa um contra-senso nos círculos intelec-
tuais, inclusive entre clérigos.
Outros, em contraste, sustentam que a igreja cristã "é, por sua pró-
pria natureza, missionária" (cf. AG 9) e que, portanto, é totalmente impossí-
vel abandonar a idéia da missão e deixar de praticá-la de uma forma ou
outra. Arrepender-se de equívocos do passado não equivale a abrir mão da
essência daquilo que se estava realizando; nas palavras de Paton (p. 75),
"um chamado ao arrependimento não é um chamamento para renunciar a
uma obra importante, mas para fazê-la diferentemente. A Missão da Igreja
permanece".
De que forma a igreja pode arrepender-se de erros passados? Como
pode tentar redescobrir a essência de sua natureza e vocação missionárias?
Ela deve fazer isso apenas numa postura defensiva? Precisa capitular dian-
te das pressões de um mundo radicalmente diferente daquele em que ela
iniciou seu empreendimento missionário? Ou tem condições de responder
criativamente aos desafios com os quais está se confrontando? Essas são
algumas das perguntas e questões para as quais somos convocados a arris-
car uma resposta.
O arrependimento tem que começar com um reconhecimento intré-
pido de que a igreja-em-missão está hoje diante de um mundo fundamental-
mente distinto de tudo que enfrentou antes. Esse fato, por si só, demanda
uma nova compreensão de missão. Vivemos em um período de transição,
na zona limítrofe entre um paradigma que não mais satisfaz e um outro que
ainda é, em grande parte, amorfo e opaco. Uma época de mudança de
paradigma constitui, por sua própria natureza, um tempo de crise - e crise,
lembremo-nos, é o ponto em que o perigo e a oportunidade convergem (Koya-
ma). Trata-se de uma época em que várias "respostas" nos acossam, em
que muitas vozes clamam por nossa atenção.
A tese deste estudo é que, no campo da religião, uma mudança de
paradigma sempre significa continuidade e câmbio, fidelidade ao passado e
coragem para enfrentar o futuro, constância e contingência, tradição e trans-
formação. Isso se aplica a cada uma das cinco mudanças de paradigma
investigadas até o momento: elas eram tanto evolucionárias quanto revolu-
cionárias. É claro que por ocasião de praticamente cada mudança de para-
digma - mormente naquelas que se processaram de uma forma mais dra-
mática, como o paradigma do cristianismo primitivo e o da Reforma protes-
tante - sempre houve a tendência de reagir de duas maneiras completa-
mente opostas. Algumas pessoas tentaram resistir à mudança ou, ao me-
nos, neutralizar o câmbio que parecia estar irrompendo em toda parte em
volta delas; outras tendiam a reagir desproporcionalmente, a fazer uma rup-
tura total com o passado e a negar a continuidade com o que lhes fora
440 - Rumo a uma missiologia relevante

legado. Durante os anos de formação da igreja primitiva, a primeira respos-


ta se manifestou, inter alia, no movimento conhecido como ebionitismo,
para quem Jesus era apenas um outro profeta; a segunda resposta pode ser
vista no gnosticismo, uma heresia que desdenhava o Antigo Testamento
assim como grande parte da estória de Jesus. De forma semelhante, duran-
te a época da Reforma, a parte da reação católica oficial aos esforços de
Martinho Lutero foi expressa em termos de contra-reforma e não de refor-
ma; por seu turno, algumas seitas extremistas tentaram ignorar 15 séculos
de história cristã, recomeçar da estaca zero e inaugurar o reinado de Deus
sem qualquer postergação.
Causaria estranheza se o atual período de incerteza tampouco susci-
tasse candidatos que propagam ou um apego convulsivo ao passado, ou um
retruque até mesmo mais "conservador" (como acontece em algumas ma-
nifestações atuais do fundamentalismo), ou, pelo contrário, uma abordagem
do tipo "terra arrasada", oferecendo, por exemplo, alternativas para a fé
cristã como única maneira de responder com eficácia aos desafios que es-
tão diante de nós. Um candidato a essa última abordagem é o Movimento
da Nova Era com seu coquetel de mito e magia e sua inclinação por religi-
ões e sistemas de pensamento orientais. Em seus escritos, Capra tornou-se
um dos principais protagonistas de uma mudança de paradigma, distancian-
do-se da cosmovisão cartesiano-newtoniana, mas também da cristã, e vol-
tando-se para uma compreensão taoísta ou budista da realidade. Ele advoga
uma visão em que todos os opostos são cancelados, todas as barreiras são
eliminadas, todo dualismo é superado e todo individualismo é dissolvido em
uma unidade universal, homogênea e panteísta.
Em meu entendimento, nem as abordagens reacionárias em extremo
nem as revolucionárias em demasia vão ajudar a igreja e a missão cristã a
alcançar uma maior clareza ou a servir melhor a causa de Deus. O tipo de
mudança de paradigma discutido neste estudo propõe um modelo radical-
mente distinto. Em todas as mudanças de paradigma revistas até agora,
permaneceu uma tensão criativa entre o novo e o velho. A proposta era
sempre - consciente ou inconscientemente - de reforma, não de substitui-
ção. O mesmo valerá para minhas reflexões sobre o paradigma ecumênico
emergente. Não se tentará advogar uma completa substituição do paradig-
ma anterior, como se fosse de todo inútil. Pelo contrário, argumentar-se-á
que - à luz de uma situação bem nova e exatamente para permanecer fiel à
verdadeira natureza da missão - esta deve ser compreendida e empreendi-
da, em nossos dias, de uma forma imaginativamente nova. Nas palavras de
João XXIII, proferidas em 1963, pouco antes de sua morte: "As circunstân-
cias atuais, as exigências dos últimos cinqüenta anos, o aprofundamento
doutrinal nos conduziram a ralidades novas, como disse no discurso de aber-
tura do Concílio. Não é o Evangelho que muda, nós é que começamos a
compreendê-lo melhor" (cit. ap. Gutiérrez, 2000:49s. - grifos meus).
A missão em um período de testes - 441

Isso significa que tanto as forças centrífugas quanto as centrípetas


do paradigma emergente - diversidade versus unidade, divergência versus
integração, pluralismo versus holismo - terão de ser levadas em considera-
ção do começo ao fim. Uma noção crucial será, nesse sentido, a de tensão
criativa: só no campo de força de aparentes opostos começaremos a acer-
car-nos de uma forma de teologizar relevante para nossa época.
No que se segue, tentarei sublinhar alguns dos elementos de um mo-
delo emergente de missão. Minhas reflexões permanecerão sempre tentati-
vas, constituindo-se em sugestões e não em definições dos contornos de um
novo modelo. O paradigma pós-moderno emergente proclama uma visão de
unidade ou de diversidade? Ele enfatiza a integração ou a divergência? É
holístico ou pluralista? Caracteriza-se por um retomo a um consenso religi-
oso ou por uma filosofia segundo a qual o supermercado de religiões dispo-
nibilizará seus produtos a clientes num esquema de self-service (cf. Dae-
cke 1988)? É obvio que, em um período de transição, é perigoso empregar
uma linguagem apodíctica. Lograremos, na melhor das hipóteses, esboçar a
direção para a qual nos deveríamos movimentar e identificar a tendência
geral do paradigma emergente.
Capítulo 12

Elementos de um paradigma
missionário ecumênico emergente

Tendo em mente as restrições mencionadas no capítulo anterior, con-


centro-me agora nos elementos abrangidos pelo paradigma missionário
emergente. Faz-se necessária, porém, ainda uma outra advertência. Os ele-
mentos examinados abaixo não deveriam ser, de forma alguma, vistos como
componentes distintos e isolados de um novo modelo; eles se encontram
todos inter-relacionados. Isso significa que, ao abordarmos um elemento
específico, todos os outros estarão sempre presentes de alguma maneira. A
ênfase deveria estar, portanto, constantemente na integralidade e indivisibi-
lidade do paradigma, e não em seus ingredientes separados. Ao focalizar-
mos um elemento de cada vez, todos os outros igualmente estarão presen-
tes e visíveis, embora à margem da linha focal.
Inicio com algumas reflexões sobre o papel da igreja na missão.
Esta seção será mais extensa que as demais, principalmente porque todas
as questões que vão emergir nas seções subseqüentes já se encontram, de
uma maneira ou de outra, presentes aqui. Uma vez discutido o lugar da
igreja na missão, poderemos abreviar a abordagem dos outros elementos do
paradigma emergente.

A missão como a igreja-com-os-outros


Igreja e missão
Em um estudo discernente, Avery Dulles (1976) identificou cinco ti-
pos eclesiais principais. A igreja, propõe ele, pode ser vista como institui-
ção, como corpo místico de Cristo, como sacramento, como arauto ou
como servo. Qualquer uma dessas concepções implica uma interpretação
diferente da relação entre igreja e missão.
Os católicos sempre tiveram a igreja em elevado conceito. Isso expli-
ca por que os dois primeiros modelos de Dulles tendem a predominar na
eclesiologia católica. Realçando o primeiro deles, Neill (1968:74; cf. Hastings
1968:28-31) afirma que, desde a Contra-Reforma até a segunda metade do
século 19, a ênfase prevalecente estava no externo, no jurídico e no institu-
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 443

cionaI. Durante o século 20, o conteúdo das asserções sobre a igreja come-
çou gradualmente a mudar. Via-se a igreja agora como corpo de Cristo, e
não, primordialmente, como uma instituição divina. Esse desenvolvimento
culminou na promulgação da encíclica Mystici Corporis Christi, em 1943.
Mas não rompeu com a eclesiologia que a precedeu; a encíclica deixa trans-
parecer uma identificação incondicional do corpo místico de Cristo com a
Igreja Católica Romana empírica. Ela fortaleceu ainda mais a tendência de
absolutizar e divinizar a igreja e exibi-la como uma societas perfecta (cf.
Haight 1976:623; Michiels 1989:90). A encíclica serviu como expressão
maior, deveras como a definição da igreja até o Vaticano 11 (Michiels
1989:90). Outros modelos de igreja eram rejeitados (p. 91). Isso não signifi-
cava, contudo, que se compreendesse a igreja como sendo, por sua nature-
za, missionária (cf. NeillI968:71-74). Como o evidenciou van Winsen (1973:3-
12; cf. também Gómez 1986:46) e foi expresso no antigo Código de Direito
Canônico, "a preocupação universal com a missão para não-católicos (esta-
va) reservada exclusivamente à Sé Apostólica". Os agentes papais nessa
tarefa eram as ordens e congregações missionárias.
A situação não se mostrava essencialmente diversa na Ortodoxia
Oriental. Os protestantes, por seu turno (excetuados os anglicanos da Igreja
Alta e alguns luteranos), inclinavam-se por um conceito menos elevado de
igreja. Muitas vezes, distinguia-se a "igreja verdadeira" - a ecclesiola ou
pequena igreja - dentro da ecclesia, a igreja grande e nominal; essa eccle-
siola, e não a igreja oficial, tendia a ser vista como a verdadeira portadora
da missão. Aqui havia um apreço ainda menor pela idéia da igreja como
portadora da missão. Seguia-se amplamente o "princípio do voluntariado"
(examinado no capítulo 9). Grupos de indivíduos - às vezes, membros de
uma denominação, outras vezes, crentes de várias denominações - reuni-
am-se em sociedades missionárias que eles consideravam as portadoras da
missão.
Paulatinamente, no entanto, apareceu uma mudança fundamental na
percepção da relação entre igreja e missão, tanto no catolicismo quanto no
protestantismo, de modo que Moltmann (1977:7) pode afirmar: "Atualmen-
te, um dos impulsos mais vigorosos para a renovação do conceito teológico
de igreja provém da teologia da missão".

Mudanças no pensamento missionário


Para compreender os câmbios no pensamento protestante quanto à
relação entre igreja e missão, são extremamente importantes as contribui-
ções das conferências missionárias mundiais (cf., por exemplo, Günther 1970,
que examina as "reflexões eclesiológicas" das conferências missionárias de
Edimburgo, em 1910, até a da Cidade do México, em 1963). Em Edimburgo,
uma preocupação maior foi a ausência de entusiasmo missionário nas igre-
jas do Ocidente; quase não se abordou a questão teológica da relação entre
444 - Rumo a uma missiologia relevante

igreja e missão (cf. Günther 1970:24-26). Mas na Conferência do CoMIn


de Jerusalém (1928), a relação entre igrejas "velhas" e "jovens" recebeu
uma atenção considerável e tomou-se uma questão proeminente, ainda que
a subdivisão do mundo em duas grandes áreas geográficas - uma, cristã, e
a outra, "não-cristã" - permanecesse incontestada (p. 35-42).
Tambaram (1938) debateu as relações entre igreja e missão assim
como entre igrejas "velhas" e "jovens" de uma forma mais teológica. Aban-
donou-se, em princípio, a distinção entre países cristãos e não-cristãos. Isso
significava que também a Europa e a América do Norte deveriam ser en-
tendidas como campos de missão. A linha divisória não se estendia mais
entre "cristianismo" e "paganismo", entre a igreja e o mundo, mas perpas-
sava igualmente a própria igreja. Nós todos somos, no melhor dos casos,
"cristopagãos". Em uma Europa traumatizada pela Primeira Guerra Mundial
e desafiada pela ascensão de ideologias totalitárias como o nacional-socia-
lismo, o fascismo e o marxismo, a teologia antropocêntrica do protestantis-
mo liberal, sintetizada nas concepções de Adolf Hamack e Emst Troeltsch,
revelava-se insatisfatória. Palavras como pecado, alienação e juízo, assim
como conversão, perdão, regeneração e justiça tomaram-se de novo signi-
ficativas em discussões sobre a missão e em outras (cf. Scherer 1968:34-
37; van 't Hof, 1972:108s.).
Isso não poderia deixar de repercutir profundamente na percepção
de igreja e missão. Pela primeira vez, o reconhecimento de que a igreja e a
missão constituem uma unidade indissolúvel começou a patentear-se de tal
maneira que não mais podia ser ignorado. E mesmo que o famoso E. Stan-
ley Jones tenha dito que Tambaram perdera o rumo, porque havia usado a
igreja e não o reino de Deus como ponto de partida (ap. Anderson 1988:107;
cf. também Günther 1970:64-66), é impossível negar que Tambaram tenha
registrado um avanço significativo em relação a posições anteriores.
A reunião de Willingen, em 1952, realizada na esteira da Segunda
Guerra Mundial e do "debacle" missionário na China (cf. Paton 1953:50),
retomou o mesmo tema. Nos anos precedentes, houve uma quase imper-
ceptível mudança de ênfase na missão centrada na igreja (Tambaram) para
uma igreja centrada na missão. Em 1948, criou-se o Conselho Mundial de
Igrejas, e em breve percebeu-se a incongruência de existirem paralelamen-
te um conselho de igrejas e um conselho missionário.
Em Willingen, começou a engendrar-se um novo modelo. Reconhe-
ceu-se que a igreja não poderia ser nem o ponto de partida nem o alvo da
missão. A obra salvífica de Deus precede tanto a igreja quanto a missão.
Não se deveria subordinar a missão à igreja e, tampouco, a igreja à missão;
pelo contrário, ambas deveriam ser inseridas na missio Dei, que se tomou
então o conceito abrangente. A missio Dei institui as missiones ecclesiae.
A igreja passa de remetente a remetida (cf. Günther 1970: 105-114). A nova
disposição foi expressa nas palavras de abertura da Declaração recebida
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 445

pela próxima assembléia do CoMIn, realizada em Achimota, Gana, em 1958:


"A missão mundial cristã é de Cristo, não é nossa". Em folheto publicado
logo após a assembléia de Gana, Newbigin resumiu o consenso que então
fora alcançado: 1) "a igreja é a missão", o que significa que é ilegítimo falar
de uma sem, ao mesmo tempo, falar da outra; 2) "a base doméstica está em
toda parte", ou seja, cada comunidade cristã se encontra em uma situação
missionária, e 3) "missão em parceria", denotando o fim de qualquer forma
de tutela de uma igreja sobre outra (1958:25-38).
Nessa época, já se decidira integrar o CMI e o Colvlln, Isso aconte-
ceu na reunião do CMI em Nova Délhi (1961). A Comissão e a Divisão de
Missão e Evangelização Mundial da Assembléia expressaram da seguinte
maneira seu ponto de vista sobre a integração da preocupação missionária
nas estruturas do CMI:
Esse legado espiritual não deve ser dissipado; ele precisa permanecer, cons-
tantemente renovado na vida oculta de oração e adoração, no âmago do
Conselho Mundial de Igrejas. Sem ele, o movimento ecumênico se paralisa-
ria. A integração deve significar que o Conselho Mundial de Igrejas leve a
tarefa missionária ao próprio cerne de sua existência. (WCC, 1961:249s.; cf.
NeilI,1968:108s.).
Toda essa evolução significou realmente uma enorme mudança na
compreensão de igreja e missão. Mas antes que recapitulemos seus ele-
mentos com maiores detalhes, vamos analisar rapidamente os desdobra-
mentos que se deram no catolicismo.
As encíclicas missionárias do século 20 anteriores ao Concílio Vati-
cano II - especialmente Maximum Illud (1919), Rerum Ecclesiae (1926),
Evangelii Praecones (1951) e Fidei Donum (1957) - registraram os pri-
meiros passos hesitantes em direção a uma compreensão missionária da
igreja (cf. também Auf der Maur 1970:82-84). Na véspera do Concílio, a
situação, porém, estava bastante confusa; as interpretações salvacionista
(Escola de Münster), eclesiocêntrica (Escola de Lovaina), sacramentalista
(M.- J. le Guillou) e escatológica (Y. Congar) da missão ainda não estavam
integradas (cf. Dapper 1979:63-66). Contribuições de teólogos franceses-
como Yves Congar, que baseava seu trabalho em Godin e Daniel 1943 -
catalisaram a abertura para uma compreensão totalmente nova de igreja e
missão. De primordial importância, nesse sentido, foi um novo interesse
pela concepção neotestamentária e, mais especificamente, paulina de igreja
(cf. Power 1970:17-27; Dapper 1979:66-70).
A realização do Concílio em si foi crucial. Pela primeira vez, reunira-
se um concílio verdadeiramente global, e não apenas ocidental. A afirma-
ção de que a "Igreja de Cristo está verdadeiramente presente em todas as
legítimas comunidades locais de fiéis" (LG 26) e que é nessas igrejas parti-
culares e por elas que "existe" a Igreja Católica una e única (LG 23) sugeriu
446 - Rumo a uma missiologia relevante

uma ruptura importante com a compreensão eclesiológica do Vaticano I


(1870), exclusivamente centrada no papa. Isso levaria à redescoberta de
uma eclesiologia missionária da igreja local e à instituição de conferências
episcopais (LG 37s.), assim como de sínodos de bispos (cf. Fries 1986:755;
Gómez 1986:38). Mas esse resultado não foi alcançado sem luta. As pri-
meiras redações do Decreto sobre a Missão foram preparadas por repre-
sentantes da Congregatio de Propaganda Fide e revelaram uma postura
muito tradicional. A esta se opuseram os bispos africanos e asiáticos; eles
preferiam ficar sem um decreto sobre a missão a assinar um que se recusa-
va a inovar (cf. Hastings 1968:204-209; Glazik 1984b:50-56). Por conse-
guinte, o decreto foi completamente reescrito.
Mesmo assim, a ruptura efetiva em termos de missão não ocorreu no
decreto missionário, mas em Lumen Gentium (Constituição Dogmática so-
bre a Igreja). Desde o início, LG se dissocia da eclesiologia tradicional. A
igreja não mais é descrita como uma entidade social à semelhança de outras
estruturas sociais, por exemplo, o estado, mas como o mistério da presença
de Deus no mundo, "como que" o sacramento, sinal e instrumento da comu-
nhão com Deus e da unidade entre as pessoas. O conteúdo inteiro da argu-
mentação é novo. A igreja não se apresenta soberba e orgulhosamente,
mas de forma humilde; ela não se define em categorias jurídicas ou como
uma elite de almas enaltecidas, mas como uma comunidade que existe para
servir. A eclesiologia da LG é missionária do princípio ao fim (cf. Power
1970:15s.; Auf der Maur 1970:88s.; Glazik 1979:153-155).
O Vaticano II também reflete uma convergência dos pontos de vista
católico e protestante quanto à natureza missionária da igreja, embora se
deva acrescentar de imediato que os documentos católicos mostram uma
consistência e uma lucidez bem maiores que aqueles produzidos por confe-
rências protestantes. Michiels (1989:89) sugere que as eclesiologias moder-
nas (católicas e protestantes) empregam sete expressões metafóricas prin-
cipais para designar a igreja, cada uma delas implicando uma perspectiva
singular quanto à compreensão de missão. São as seguintes: igreja como
"sacramento da salvação", "assembléia de Deus", "povo de Deus", "reino
de Deus", "corpo de Cristo", "templo do Espírito Santo" e "comunhão dos
fiéis" (cf. também Dulles 1976). Gostaria de examinar alguns aspectos des-
sas metáforas como tentativa de esboçar as características de uma eclesi-
ologia missionária emergente.

"Missionária por sua própria natureza"


Na eclesiologia emergente, a igreja é vista como essencialmente
missionária. O modelo bíblico que está por trás dessa convicção e que tem
sua expressão clássica em AG 2 ("A igreja peregrina é missionária por sua
natureza"), é aquele que encontramos 1 Pedro 2.9. Aqui a igreja não é a
remetente, mas a remetida. Sua missão (o fato de "ser enviada") não é
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 447

secundária em relação à sua existência; a igreja existe ao ser enviada e


edificar-se visando à sua missão (Barth 1956:725 - estou me baseando aqui
no original alemão, e não na tradução inglesa). A eclesiologia, portanto, não
precede a missiologia (cf. Hoedemaker 1988:169s., 178s.). A missão não
constitui "uma atividade periférica de uma igreja firmemente estabelecida,
uma causa piedosa que [pcx:le] ser atendida quando o fogo doméstico já
[está] queimando fulgurantemente (...) A atividade missionária não é tanto
uma ação da igreja, mas é simplesmente a igreja em ação" (Power 1970:41,
42; cf. vanEngelen 1975:298; Stransky 1982:345; Glazik 1984b:51s.; Küster
1984: 166-170). Trata-se de um dever "que é de toda a Igreja" (AG 23).
Visto que Deus é um Deus missionário (como se sustentará na seção sobre
a missio Dei), O povo de Deus é um povo missionário. A pergunta "Por que
ainda missão?" evoca uma outra: "Por que ainda igreja?" (Glazik 1979:158).
Tomou-se impossível falar sobre a igreja sem, concomitantemente, falar de
missão. Não se pode mais falar de igreja e missão, apenas da missão da
igreja (Glazik 1984b:52). É, inclusive, possível dizer, com as palavras de
Schumacher (1970: 183), que "o reverso da tese 'a igreja é essencialmente
missionária' é 'a missão é essencialmente eclesial"'. Já que a igreja e a
missão constituem uma unidade desde o início, "uma igreja sem a missão ou
uma missão sem a igreja constituem contradições. Elas existem, mas ape-
nas como pseudo-estruturas" (Braaten 1977:55). Essas perspectivas têm
implicações para nossa compreensão da catolicidade da igreja. Sem a mis-
são, a igreja não pode ser chamada de católica (cf. Glazik 1979:154; Berkou-
wer 1979:105-109).
Tudo isso não significa que a igreja esteja sempre e em toda parte
abertamente envolvida em projetos missionários. Newbigin (1958:21, 43) foi
feliz em introduzir a distinção entre a dimensão missionária da igreja e sua
intenção missionária: a igreja é tanto "missionária" quanto "missionante"
(cf. também Gensichen 1971:80-95, 168-186; Mitterhõfer 1974:93, 97). A
dimensão missionária da vida de uma igreja local manifesta-se, inter alia,
quando ela é verdadeiramente uma comunidade de culto; é capaz de aco-
lher pessoas de fora e fazer com que se sintam em casa; é uma igreja em
que o pastor não possui o monopólio e os membros não são meramente
objetos da assistência pastoral; seus membros são equipados para exercer
sua vocação na sociedade; ela se mostra estruturalmente maleável e inova-
dora, e não defende os privilégios de um grupo seleto (cf. Gensichen 1971:170-
172). Mas a dimensão missionária da igreja evoca um envolvimento inten-
cional, ou seja, direto na sociedade; ela efetivamente transpõe os muros da
igreja e se engaja em "pontos de concentração" missionários (Newbigin),
como a evangelização e o trabalho em prol da justiça e da paz.
Pelo menos um teólogo desenvolveu toda a sua eclesiologia em ter-
mos das observações acima: Karl Barth. Johannes Aagaard (1965:238) clas-
sifica-o como "o missiólogo protestante mais importante desta geração". À
448 - Rumo a uma missiologia relevante

luz da magnífica e consistente eclesiologia missionária de Barth, talvez exis-


ta, de fato, alguma justificativa para tal classificação. Sob a abrangente
rubrica da soteriologia, Barth desdobra sua eclesiologia em três fases. Suas
reflexões sobre a soteriologia como justificação (1956:514-642) são segui-
das por uma seção sobre "O Espírito Santo e a reunião da comunidade
cristã" (p. 643-749). Sua exposição sobre a soteriologia como santificação
(1958:499-613) leva a um discurso sobre "O Espírito Santo e a edificação
da comunidade cristã" (p. 614-726). E à sua discussão da soteriologia como
vocação (1962:481-680) segue-se um tratado sobre "O Espírito Santo e o
envio da comunidade cristã" (p. 681-901). Analisa-se, pois, todo o campo
da eclesiologia a partir de três perspectivas; cada uma delas evoca, pressu-
põe e ilumina as outras duas (cf. Blei 1980: 19s.).

o povo peregrino de Deus


A igreja é vista como o povo de Deus e, implicitamente, como uma
igreja peregrina. No protestantismo contemporâneo, essa idéia aflorou, pela
primeira vez, claramente na teologia de Dietrich Bonhoefer (cf. Lochman
1986:58s.) e na Conferência do CoMln de Willingen, em 1952 (cf. van 't
Hof 1972: 167). No catolicismo, essa noção foi promovida por Yves Congar
desde 1937 (cf. Power 1970:17), mas teve pouca receptividade entre a hie-
rarquia no período pré-conciliar. As referências conciliares clássicas são
LG 48-51 e AG 9; de fato, a igreja como povo de Deus pode ser entendida
como o modelo conciliar de igreja (cf. Michiels 1989:90-92).
O arquétipo bíblico, neste caso, é o do povo peregrino de Deus, tão
proeminente na Carta aos Hebreus. A igreja é peregrina não apenas pela
razão prática de que, na era moderna, ela não mais dá o tom e, em todas as
partes, encontra-se numa situação de diáspora; pelo contrário, ser um pere-
grino no mundo faz intrinsecamente parte da posição ex-cêntrica da igreja.
Ela é ek-klesia, "chamada para fora" do mundo, e enviada de volta para
dentro do mundo. O forasteirismo representa um elemento de sua constitui-
ção (Braaten 1977:56).
O povo peregrino de Deus necessita unicamente de duas coisas: apoio
para a jornada e um destino no fim dela (Power 1970:28). Ele não tem
residência fixa aqui; trata-se de uma paroikia, uma residência temporária.
Ele está permanentemente a caminho, dirigindo-se aos confins do mundo e
ao fim do tempo (cf. Hoekendijk 1967b:30-38). Mesmo que haja uma dife-
rença intransponível entre a igreja e seu destino - o reinado de Deus -, ela
é chamada a encarnar, já no aqui e agora, algo das condições que hão de
prevalecer no reinado de Deus. Proclamando sua própria transitoriedade, a
igreja peregrina em direção ao futuro de Deus (cf. Kohler 1974:475; Collet
1984:264-266).
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 449

Sacramento, sinal e instrumento


Na eclesiologia contemporânea, a igreja é cada vez mais percebida
como sacramento, sinal e instrumento (cf. Dulles 1976:58-70). No capítulo
4 deste estudo, mostrou-se que Paulo viu sua própria missão como "serviço
sacerdotal do evangelho" (Rm 15.16) e desafiou a comunidade cristã a
oferecer a si mesma como um "sacrifício vivo, santo e agradável a Deus"
(Rm 12.1). Os livros neotestamentários enumeram muitos dons conferidos
a indivíduos para o benefício de todos: o ensino, a cura, o apostolado, etc. O
dom do sacerdócio, contudo, jamais é mencionado; em vez de um indivíduo
(cf. 1 Pe 2.9), Deus concedeu esse dom à comunidade como um todo (cf.
Piet 1970:64). Outras imagens neotestamentárias de igreja representativas
da mesma idéia são sal, luz, fermento, servo e profeta. Nos séculos seguin-
tes, todavia, essas noções desapareceram quase sem deixar vestígios. Só
em nossa época elas reapareceram e originaram a idéia da igreja como
sacramento, sinal e instrumento.
A nova terminologia é, talvez compreensivelmente, empregada de
forma mais extensiva no catolicismo do que no protestantismo. Uma vez
mais o Vaticano II foi o catalisador. Em seu primeiro parágrafo, LG afirma
que a igreja é "como que o sacramento ou o sinal e instrumento da íntima
união com Deus e da unidade de todo o gênero humano". Alhures denomi-
na-se a igreja "o sacramento visível da (...) unidade salutífera" (LG 9) e,
inclusive, "o sacramento universal da salvação" (LG 48). Documentos ca-
tólicos subseqüentes seguiram na mesma direção. A Exortação Apostólica
Evangelii Nuntiandi, de 1975, assevera: "Enquanto a igreja está procla-
mando o reino de Deus e o está edificando, ela está se estabelecendo em
meio ao mundo como o sinal e o instrumento desse reino (EN 59; grifos
meus). Em uma consulta realizada em Roma, em 1982, "a comunidade cris-
tã concreta (koinonia), em sua vida cotidiana", foi identificada como sinal
e instrumento da salvação (Memorandum 1982: 462).
Gassmann (1986) mostrou que a mesma terminologia também está
sendo, mais e mais, usada em círculos protestantes, principalmente na Co-
missão de Fé e Constituição (FC). Isso está acontecendo, de forma clara,
desde a Assembléia do CMI de Uppsala (1968), embora referências embri-
onárias já possam ser encontradas na reunião da FC de Lausanne, em 1927,
e na de Oxford (p. 3), em 1937. A formulação-chave, muitas vezes citada,
é aquela redigida em Uppsala: "A Igreja ousa ver a si mesma como o sinal
da unidade vindoura da humanidade". Conferências e documentos posteri-
ores da FC tentaram esclarecer o que se queria dizer com essa terminologia
(p. 4-7). Dois dos relatórios seccionais da Conferência da CMME em Mel-
bourne (1980) também aludiram à igreja nestes termos: como sacramento,
sinal ou instrumento do Reino (p. lOs.). Gassmann conclui:
A maneira notavelmente ampla com que se adota o emprego ecIesiológico
450 - Rumo a uma missiologia relevante

dos termos sacramento, sinal e instrumento no debate ecumênico sugere


que essa terminologia é considerada útil para descrever o lugar e a vocação
da igreja e de sua unidade no plano salvífico de Deus. (p. 13).
Essas imagens deram articulação à idéia, tão bem formulada pelo
arcebispo William Temple (cf. Neill 1968:76), de que a igreja constitui a
única sociedade no mundo que existe por causa daqueles que não são mem-
bros dela. A expressão clássica dessa percepção da igreja foi "a igreja para
os outros". Quem a arquitetou foi Dietrich Bonhoeffer, que escreveu o se-
guinte desde uma prisão nazista em 1944 (1971:382s.): "A igreja é a igreja
somente quando ela existe para outros... A igreja deve compartilhar os pro-
blemas seculares da vida humana comum, sem dominar, mas ajudando e
servindo".
"A igreja para os outros" representou uma expressão poderosa e
extremamente atraente e foi adotada de maneira ampla e entusiástica (cf.
Sundermeier 1986:62), principalmente quando se considera que ela ecoava
de forma tão clara a figura neotestamentária de Jesus, particularmente do
Jesus que lavou os pés de seus discípulos (cf. também Kohler 1974:473).
West (1971:262) e Sundermeier (1986:62-65) alertaram-nos, porém, para o
fato de que tamanho entusiasmo pela fórmula de Bonhoeffer pode, eventu-
almente, esconder de nós a realidade de que seu pano de fundo é a típica
atmosfera burguesa e liberal-humanista em que Bonhoeffer se criara, em
especial a idéia de que os cristãos do Ocidente sabem o que é melhor para
os outros e, conseqüentemente, tendem a proclamar a si próprios como os
tutores dos outros. Essa síndrome assistencial da "pró-existência", diz Sun-
dermeier, ameaça a possibilidade de uma verdadeira coexistência. Em vez
de falarmos da "igreja para os outros", deveríamos falar da "igreja com os
outros".
As observações de Sundermeier revelam que o discurso da "igreja
para os outros", da "igreja como sacramento", etc. não está deveras isento
de risco. Em uma conferência da PC realizada em Salamanca, Espanha, em
1973, Emst Kâsemann (1974) criticou essa terminologia. À luz da ausência
de intercomunhão entre os cristãos, ele considera "quase frívolo" chamar a
igreja um sacramento (p. 125s.). Essa "expressão perigosa" não incrernen-
ta o diálogo e deveria ser evitada (p. 126). Kãsernann teme, além disso, que
esse tipo de terminologia possa embaciar a permanente diferença entre Cristo
e a igreja (p. 127). Denominar a igreja de sinal é igualmente problemático,
uma vez que não pode haver dúvida de que o único sinal legítimo da igreja é
a cruz de Cristo (p. 130).
As objeções de Kãsernann devem ser levadas a sério. Portanto, se
continuarmos a empregar essa terminologia, é mister que se façam algumas
precisões importantes. Assim o expressa a reunião da PC em Lovaina (1971):
"A igreja (...) é um sinal. Mas ela também não passa disso. O mistério do
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 451

amor de Deus não é esgotado por esse sinal, mas é apenas, na melhor das
hipóteses, sugerido a distância"; e acrescenta: "Esse sinal de unidade é
quebrado pelas tensões e divisões em que vivem as igrejas" (ap. Gassmann
1986:4). Um documento preparatório para a reunião de Salamanca, em 1973,
afirma que a igreja ousa fazer a reivindicação de ser um sinal "ou até sacra-
mento" da unidade vindoura da humanidade "tão-só devido à sua relação
com Cristo", que é o sinal real de unidade. Palavras como "sacramento"
não constituem, ademais, atributos que a igreja arroga a si mesma: "Deus
mesmo escolheu (a igreja) para ser, em Cristo, o sinal ou o sacramento da
unidade em seu reino" (p. 5). Além disso, esses termos, em certo sentido,
efetivamente ajudam a evitar uma identificação total da igreja com Cristo
(p. 13): todas as três expressões apontam, claramente, para além de si
mesmas. Elas também evocam vigorosamente a questão do tipo de corres-
pondência que existe entre Cristo e as pessoas que se declaram suas segui-
doras. O cristianismo pretende ser uma religião da graça, mas, nesse caso,
devemos lembrar que uma religião da graça é mais vulnerável que uma
religião da lei. John Baker o formula assim:
Quanto mais enfatizarmos, em nossa descrição da natureza essencial da
igreja, a divina vida sacramental e santificadora dentro da comunidade, tanto
mais legítimo se torna para o mundo exigir resultados discerníveis (...) Não
adianta compor descrições domésticas da igreja, por mais fiéis que sejam à
escritura e à tradição, se, dentro da igreja, elas têm o efeito fatal de proporci-
onar aos crentes uma cálida ilusão de que tudo está bem, enquanto que,
quando lidas por pessoas que não pertencem à igreja, parecem estar divorci-
adas da realidade. (1986: 155,158).
Quando a igreja, em sua missão, ousa referir-se a si mesma como
sacramento, sinal ou instrumento da salvação, ela não está, pois, se enalte-
cendo como um modelo a ser emulado. Seus membros não estão procla-
mando "Venham a nós!", mas "Sigamos a ele!"

A igreja e o mundo
A compreensão da igreja como sacramento, sinal e instrumento re-
sultou em uma nova percepção da relação entre a igreja e o mundo. A
missão é vista como "o voltar-se de Deus para o mundo" (cf. o título de
Schmitz 1971). Isso representa uma abordagem radicalmente nova na teo-
logia (W. Kasper, ap. Kramm 1979:266; cf. Hoedemaker 1988:168).
Durante séculos, prevalecera uma concepção estática de igreja; o
mundo fora da igreja era encarado como um poder hostil (Berkhof 1979:411).
Ao lermos tratados teológicos de séculos anteriores, temos a impressão de
que só existia a igreja; não existia o mundo. Em outras palavras, a igreja era
um mundo em si mesma. Fora da igreja, só havia a "igreja falsa". O minis-
tério e a vida cristãs eram definidas, exclusivamente, em termos de prega-
452 - Rumo a uma missiologia relevante

ção, culto público, pastorado e caridade. Os cristãos "praticantes" eram


definidos (e, muitas vezes, ainda o são!) como freqüentadores regulares da
igreja (Schmitz 1971:52s.). A igreja preenchia o horizonte todo. As pessoas
que se encontravam fora constituíam, no máximo, "membros em potencial"
a serem ganhos (Snyder 1983: 132). A missão representava um processo de
reproduzir igrejas, e, uma vez que essas tivessem sido reproduzidas, toda a
energia gasta visava à sua manutenção. Barth pergunta: "A obra desse
mensageiro e embaixador divino (Cristo) não terminou efetivamente no beco
sem saída da igreja como uma instituição salvífica para as pessoas que
pertencem a ela?" (1962:767).
Lentamente, contudo, processou-se uma mudança. Karl Barth
(1961:18) a considera uma restauração da doutrina do ofício profético de
Cristo e da igreja. Ele delineia seis fases desse câmbio na história do protes-
tantismo (p. 18-38). Mas apenas depois da Segunda Guerra Mundial é que
a orientação essencial da igreja para o mundo foi sendo adotada mais am-
plamente no protestantismo. A igreja conquistadora do mundo (Edimburgo,
1910) tomou-se a igreja solidária com o mundo (Whitby, 1937; cf. van 't
Hof 1972: 140s.). A "teologia do apostolado" holandesa, que se desenvolveu
no fim da década de 40 e no início da de 50, também começou a perceber a
igreja primordialmente em termos de sua relação com o mundo (cf. Berkhof
1979:411-413). Assim como não se podia falar da igreja sem falar de sua
missão, era impossível pensar na igreja sem, concomitantemente, pensar no
mundo para o qual ela é enviada (cf. Glazik 1984b:53). Redescobriu-se que
ekklesia representava, desde seu surgimento, uma "categoria teopolítica"
(Hoekendijk 1967a:349).
No catolicismo, o verdadeiro avanço quanto à relação entre a igreja e
o mundo aconteceu com o Vaticano 11. Os alicerces teológicos foram colo-
cados na LG. Mas a real amplitude do câmbio no pensamento católico so-
bre essa relação só se toma patente quando analisamos Gaudium et Spes,
a Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo de Hoje. Em seu período
introdutório, ela reconhece um vínculo estreito - que vai muito além da
evangelização e da implantação de igrejas - entre a igreja e o mundo da
humanidade: "As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias das
pessoas de hoje, sobretudo das pobres e de todas que sofrem, são também
as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de
Cristo".
Desdobramentos subseqüentes revelam uma convergência dos pon-
tos de vista católicos e protestantes ligados ao CMI sobre a inevitável cone-
xão entre igreja e mundo, assim como um reconhecimento das atividades de
Deus no mundo fora da igreja (cf., por exemplo, Evangelii Nuntiandi [1975]
e Missão e evangelização [1982]).
Como se deve compreender essa nova concepção?
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 453

Primeiramente, ela sugere que, se a igreja não pode ser percebida


como o fundamento da missão, também não é viável considerá-la o objeti-
vo desta, certamente não o único objetivo. A igreja deveria estar sempre
consciente de seu caráter provisório. "A palavra final da igreja não é 'igre-
ja', mas a glória do Pai e do Filho no Espírito da liberdade" (Moltmann
1977:19).
Em segundo lugar, a igreja não é o reino de Deus. A igreja "constitui,
na terra, o germe e o início desse reino" (LG 5), "o sinal e o instrumento do
reino vindouro de Deus" (EN 59). A igreja só pode ser um sacramento
fidedigno de salvação para o mundo quando mostra à humanidade um vis-
lumbre do reinado iminente de Deus - um reino de reconciliação, paz e vida
nova (cf. Schmitz 1971:58). No aqui e agora, esse reinado se faz presente
sempre onde Cristo vence o poder do mal. Isso acontece (ou deveria acon-
tecer!) da forma mais visível na igreja. Mas acontece igualmente na socie-
dade, porque Cristo também é o Senhor do mundo.
Em terceiro lugar, o envolvimento missionário da igreja sugere mais
que o chamamento de indivíduos para dentro da igreja como ante-sala do
além. As pessoas a serem evangelizadas encontram-se, com outros seres
humanos, sujeitas a condições sociais, econômicas e políticas deste mundo.
Há, portanto, uma "convergência" entre a libertação de indivíduos e povos na
históriae a proclamaçãodo advento [mal do reinado de Deus (Geffré 1982:491).
Nessa perspectiva, a igreja é "o povo de Deus no acontecimento mundial"
(Barth 1962:681-762) e a "comunidade para o mundo" (p. 762-975).
Em quarto lugar, a igreja deve ser vista pneumatologicamente, como
"uma habitação de Deus no Espírito" (Ef 2.22), como um movimento do
Espírito em direção ao mundo rumo ao futuro (Memorandum 1982:461s.).
Quando entendemos a igreja como "comunidade do Espírito Santo", nós a
identificamos proeminentemente como comunidade missionária, pois o Es-
pírito é o "Deus intermediário" (Taylor 1972; cf. Boer 1961).
Em quinto lugar, caso a igreja tente manter-se alheia ao envolvimento
no mundo e se suas estruturas são tais que obstaculizem qualquer possibili-
dade de prestar um serviço relevante ao mundo, é necessário que se reco-
nheçam essas estruturas como heréticas. Os ministérios, as ordens e as
instituições eclesiásticas deveriam ser organizadas de forma que sirvam a
sociedade e não alienem o crente da história (Hoekendijk 1967a:349; Rütti
1972:311-315). Sua vida e obra estão intimamente vinculadas ao plano cós-
mico-histórico de Deus para a salvação do mundo. Somos chamados, por-
tanto, a ser "pessoas do reino", não "pessoas de igreja", afirma Snyder
(1983: 11). Ele prossegue:
Pessoas do reino procuram, em primeiro lugar, o reino de Deus e suajustiça;
pessoas de igreja, freqüentemente, antepõem o trabalho da igreja às preocu-
pações com a justiça, a misericórdia e a verdade. Pessoas de igreja pensam
em como trazer outras para dentro da igreja; pessoas do reino se preocupam
454 - Rumo a uma missiologia relevante

em inserira igreja no mundo.Pessoas de igreja se inquietamcom a possibi-


lidade de o mundo mudar a igreja; pessoas do reino trabalham para que a
igrejatransforme o mundo.
E, por último, devido a seu relacionamento essencial com o mundo, a
igreja não pode jamais se comportar como timorato guarda fronteiriço, mas
sempre como portador de novas alvissareiras (Berkouwer 1979:162). Sua
vida-em-missão vis-à-vis ao mundo constitui um privilégio (cf. Rm 1.5).

Redescobrindo a igreja local


A igreja-em-missão é, primordialmente, a igreja local em qualquer
parte do mundo. Essa perspectiva, assim como a suposição de que nenhu-
ma igreja local deveria colocar-se em uma posição de autoridade frente a
outra igreja local, ambas fundamentais no Novo Testamento (cf. At 13.1-3
e as cartas paulinas), foi, para todos os efeitos práticos, ignorada durante
grande parte da história cristã. No catolicismo, tanto a igreja quanto a mis-
são se tomaram cada vez mais claramente centradas no papa. Na superfí-
cie, pelo menos, a fórmula protestante dos "Três-Auto" (autogoverno, auto-
sustento e autopropagação) parecia ser mais razoável; em breve, igrejas
"jovens" seriam, em todos os sentidos, iguais a igrejas "velhas". A realida-
de, porém, mostrou-se diferente. As igrejas jovens continuaram a ser vistas
de maneira condescendente e como imaturas e extremamente dependentes
da sabedoria, experiência e ajuda das igrejas velhas ou de sociedades missio-
nárias. O processo rumo à independência era um processo pedagógico; ao
cabo deste, o tutor autodesignado decidiria se o momento do "governo do-
méstico" havia chegado ou não. Igrejas e agências missionárias no Oci-
dente compreendiam a si mesmas como igrejas para outros.
A primeira pessoa a atacar frontalmente toda essa estrutura foi Ro-
land Allen ([1912] 1956). Ele alertou seus leitores para as gritantes diferen-
ças entre os métodos missionários de Paulo e os das agências missionárias
contemporâneas. Talvez, sugeriu Allen (p. 107), a diferença básica estives-
se no fato de Paulo ter fundado "igrejas", enquanto nós fundamos "mis-
sões" no sentido de organizações dependentes. Paulo escreveu a primeira
de suas cartas para a igreja de Tessalônica - onde permanecera apenas uns
cinco meses - só aproximadamente um ano depois que saíra de lá, e ele a
escreveu não para uma missão, mas para uma igreja (p. 90; cf. também o
capítulo 4 deste estudo). Em momento algum, Antioquia, a igreja que o en-
viara, possuiu qualquer autoridade sobre as incipientes comunidades de fé
em Éfeso, Corinto e alhures. Desde os primórdios, elas constituíam igrejas
completas, com a Palavra e os sacramentos, o que era tudo de que neces-
sitavam para serem verdadeiramente a igreja de Cristo. O sucesso de Pau-
lo, sugere Allen, deveu-se ao fato de haver confiado tanto no Senhor quanto .
nas pessoas às quais se dirigia. Em ambos esses sentidos, missionários mo-
dernos se diferenciavam enormemente de Paulo (p. 183-190).
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 455

Uma mudança gradual começou a ocorrer nas missões protestantes.


As conferências do CoMln em Jerusalém e Tambaram (1928 e 1938) prin-
cipiaram a reconhecer as igrejas jovens como iguais. A Conferência de
Whitby (1947) cunhou a expressão "Parceria em Obediência" na tentativa
de manifestar a convicção de que era teologicamente ilógico distinguir entre
igrejas "autônomas" e "dependentes". A Conferência do CoMln em Gana
(1958) concluiu apropriadamente "que a distinção entre igrejas velhas e
jovens, qualquer que tenha sido sua utilidade em anos passados, não apre-
senta mais validade ou serventia" (ap. Orchard 1958:12). E mesmo que, em
tudo isso, a prática ainda estivesse muito distante da teoria, não podiam
existir dúvidas de que a sorte fora lançada e que uma alteração de ingente
importância havia sido encetada. A igreja-para-outros tomava-se, paulati-
namente, a igreja-com-outros; pró-existência passava a ser coexistência
(cf. Sundermeier 1986:65). Não era mais possível conceber a missão como
uma rua de mão única que levava do Ocidente para o Terceiro Mundo; toda
igreja, em qualquer lugar, era compreendida como estando em missão.
No catolicismo, os desdobramentos foram ainda mais marcantes e
dramáticos. Durante muitos séculos, não existiram "igrejas locais", nem na
Europa nem nos "campos da missão". O que havia, na melhor das hipóte-
ses, eram afiliadas da igreja universal. As "igrejas da missão", especifica-
mente, tinham que assemelhar-se à igreja de Roma em quase todos os deta-
lhes; elas "eram 'missões', igrejas de segunda classe, igrejas filiais, crianças
imaturas, vicariatos apostólicos e dioceses ainda não autônomas" (Bühl-
mann 1977:45).
Após a Primeira Guerra Mundial, porém, descobriu-se a igreja local.
Maximum Illud (1919) e Rerum Ecclesiae (1926) abriram o caminho para
uma nova compreensão, mas foi só Fidei Donum (1957) que constituiu
um verdadeiro momento decisivo (van Winsen 1973:77, 81-83) sobre a
qual o Vaticano II pôde construir. Mesmo esse concílio, todavia, ainda se
baseou muito nos pressupostos da tradicional igreja ocidental. Foi, de fato,
apenas nas séries de Sínodos de Bispos - uma estrutura eclesiástica que
surgiu após o Concílio - que os bispos de igrejas locais! do Terceiro Mun-
do realmente começaram a influenciar o pensamento católico de forma
profunda.
O aspecto fundamentalmente inovador do novo desdobramento foi a
descoberta de que a igreja universal encontra deveras sua existência autên-
tica nas igrejas locais, que essas, e não a igreja universal, constituem a
expressão primitiva de igreja (cf. LG 26). Descobriu-se que essa era a
compreensão primordial de igreja no Novo Testamento e que ela também
representou, durante os primeiros séculos de nossa era, a maneira como se
entendia a igreja; que o papa, igualmente, era, em primeiro lugar, o pastor da
igreja local de Roma. Percebeu-se que uma igreja universal vista como
precedendo igrejas locais era pura abstração, uma vez que a igreja univer-
456 - Rumo a uma missiologia relevante

sal existe unicamente onde há igrejas locais, que a igreja é a igreja pelo que
acontece na igreja local em termos de martyria, leitourgia, koinonia e
diakonia. Compreendeu-se que a igreja é um evento entre pessoas e não
uma autoridade que discursa para elas, ou uma instituição proprietária dos
elementos de salvação, de doutrinas e ministérios (cf. van Engelen 1975:298s.;
Glazik 1979:155s.; Küster 1984:169,176-184; Fries 1986:755s.; Michiels
1989:100s.).
Ao mesmo tempo, é preciso que se diga que os católicos tendem a
prezar, mais claramente que os protestantes, a inter-relação essencial entre
a igreja universal e as igrejas locais. A igreja é, de fato, uma familia de
igrejas locais em que cada uma deveria estar aberta para as necessidades
das outras e disposta a compartilhar seus bens espirituais e materiais com
elas. É através do ministério recíproco de missão que a igreja se toma real,
em comunhão com a igreja universal e como concretização local da mesma
(Stransky 1982:349; Fries 1986:756).
A redescoberta da igreja local como agente primordial da missão
resultou em uma interpretação fundamentalmente nova do objetivo e da
função dos missionários e das agências missionárias. Em 1969, o papa Pau-
lo VI disse a cristãos em Kampala, Uganda: "Vocês são missionários de si
próprios!" E, em 1985, João Paulo 11 afirmou a crentes de lugares tão dis-
tantes e diferentes como Camarões e Sardenha: "Como a igreja toda, vocês
se encontram em missão" (cf. Gómez 1986:47s.). É à luz dessa nova reali-
dade e compreensão que a Igreja Católica aboliu o ius commissionis; não é
mais possível que ordens e sociedades missionárias estrangeiras ditem o
modelo de evangelização no Terceiro Mundo. O mundo inteiro é um campo
de missão, e a distinção entre igrejas "remetentes" e "destinatárias" não faz
mais sentido. Cada igreja ainda se encontra em uma situação de diáspora ou
retomou a ela (AG 37). E as igrejas, em qualquer parte, necessitam umas
das outras (cf. Bühlmann 1977:383-394).
Em meio a essas novas circunstâncias e relações, ainda existe espa-
ço e necessidade de missionárias individuais, mas apenas na medida em que
todas reconheçam que sua tarefa é pertinente à igreja inteira (cf. AG 26) e
as missionárias entendam que são enviadas como embaixadoras de uma
igreja local para outra igreja local (onde tal igreja local já existe), como
testemunhas de solidariedade e parceria e como expressões de encontro,
intercâmbio e enriquecimento mútuos",
Grande parte do que foi esboçado acima é, indubitavelmente, ainda
um ideal e não uma realidade. Em ambas as confissões, persiste, muito
manifesta, uma síndrome de doador nas igrejas ricas do Ocidente, e uma de
dependência nas igrejas do Terceiro Mundo. A Congregação para a Evan-
gelização dos Povos (a nova denominação para a reestruturada Congrega-
tio de Propaganda Fide) continua exercendo autoridade sobre igrejas na
África e em outros lugares (cf. Rosenkranz 1977:431-434). Um quarto de
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 457

século após o Vaticano Il, a Igreja Católica na África ainda não realizou
uma Conferência Episcopal (quanto a isso, cf. Shorter 1989:349-352). Não
é muito diferente no mundo protestante. A despeito de toda a bela e amigá-
vellinguagem ecumênica, parece que as decisões finais ainda são tomadas
nas igrejas e cidades do Ocidente, principalmente porque é de lá que pro-
vêm muitos dos subsídios necessários para que as igrejas do Terceiro Mun-
do "funcionem". Mesmo assim, a mudança fundamental em favor da igreja
local, em todo lugar, como o agente da missão, tanto em seu próprio ambien-
te como em outros, não pode ser negada e constitui um avanço decisivo
quanto a posições vigentes durante muitos séculos.

Tensão criativa
O novo paradigma resultou em uma tensão permanente entre duas
concepções de igreja que parecem ser fundamentalmente irreconciliáveis.
De um lado do espectro, a igreja se percebe como a única portadora de uma
mensagem de salvação da qual detém o monopólio; do outro lado, a igreja se
vê, quando muito, como uma ilustração - em palavras e atos - do envolvi-
mento de Deus com o mundo. Quando se opta pelo primeiro modelo, a
igreja é vista como concretização parcial do reinado de Deus na terra, e a
missão como aquela atividade através da qual conversos individuais são
transferidos da morte eterna para a vida. Onde se faz a opção pela percep-
ção alternativa, a igreja é, na melhor das hipóteses, tão-somente algo que
aponta para a maneira como Deus age em relação ao mundo, e a missão é
encarada como uma contribuição para a humanização da sociedade - um
processo em que a igreja está, talvez, envolvida no papel de conscientizador
(cf. Dunn 1980:83-103; Hoedemaker 1988:170s.).
A questão é se essas duas imagens de igreja precisam ser mutua-
mente exclusivas. Talvez sejam oportunas algumas reflexões sobre esse
assunto. Aparentemente, o problema ocorre quando se é incapaz de inte-
grar as duas visões de forma que a tensão entre elas se tome criativa em
vez de destrutiva. Essa integração raramente é alcançada. Estudiosos cató-
licos apontaram, nesse sentido, para a incapacidade de Ad Gentes de man-
ter viva a tensão construtiva que era tão patente em Lumen Gentium (cf.
van Engelen 1975:299-309; Weber 1978:87; Kramm 1979:36s.; Dunn
1980:58-64; Glazik 1984b:54-56). Tendo iniciado com uma visão dinâmica e
nova da igreja, AG deu uma reviravolta no Artigo 6 e passou a esposar uma
percepção pré-Vaticano II de igreja e missão: a missão era novamente uma
rua de mão única do Ocidente para o Oriente, e o objetivo predominante
permaneceu a plantatio ecclesiae.
Em grande parte do catolicismo e protestantismo contemporâneos,
permanecem vivas, pois, as velhas imagens, quase incontestadas. Agências
tradicionais de envio - sejam sociedades ou estruturas denominacionais -
estão sendo absolutizadas e seduzidas a servir como agentes ou legitimado-
458 - Rumo a uma missiologia relevante

res do status quo. Isso ainda é mais exacerbado pela preocupação com o
crescimento numérico da igreja em alguns círculos. Donald McGavran, por
exemplo, quer destacar o crescimento da igreja como "meta principal e
insubstituível da missão" (1980:24). Ele acredita que "a abordagem numéri-
ca é essencial a fim de compreender o crescimento da igreja", pois a igreja
"é constituída de pessoas contáveis" (p. 93). Define o crescimento da igreja
como a "soma de muitos crentes batizados" (p. 147) e declara que "o estu-
dioso do crescimento da igreja (...) pouco está preocupado se uma igreja é
fidedigna; ele pergunta o quanto ela cresceu" (p. 159).
Nesse modelo, a "realização" na área da missão ou da evangelização
mede-se, muitas vezes, exclusivamente em termos de atividades "religio-
sas" ou "transcendentes" ou de conduta no nível microético, como a absti-
nência do tabaco ou de um linguajar blasfemo. Freqüentemente, isso tam-
bém significa um abandono do engajamento nas questões sociais predomi-
nantes em uma determinada comunidade. Onde isso acontece, uma explo-
são do número de conversos pode, de fato, constituir uma forma velada de
escapismo e, assim, zombar das verdadeiras reivindicações da fé cristã.
Mas o conteúdo de um evangelho que não demanda justiça, paz e equanimi-
dade sugere
um Jesus que seda a consciência, uma cruz que não causa escândalo, um
reino sobrenatural, um espírito privado, voltado para o íntimo, um Deus de
bolso, uma Bíblia espiritualizada e uma igreja escapista. Sua meta é uma vida
feliz, confortável e exitosa, que pode ser alcançada através do perdão de uma
"pecaminosidade" abstrata mediante a fé em um Cristo a-histórico. (Costas
1982:80).
O primeiro modelo, então, priva o evangelho de seu impulso ético; o
segundo, porém, deixa-o sem sua profundidade soteriológica (Costas 1982:80).
Esse segundo modelo manifesta-se de uma ou de outra forma: como identi-
ficação quase total da igreja com o mundo e sua ordem do dia ou, em casos
extremos, como descarte virtualmente completo da igreja. Ambos os mode-
los - que também eram mutuamente dependentes - estiveram em voga
mormente na década de sessenta e no início da de setenta e refletem uma
avaliação extremamente otimista do mundo e da humanidade. Façamos um
rápido exame dessas duas estratégias.
A idéia de que o mundo provê a ordem do dia para a igreja e de que
a igreja deve identificar-se completamente com essa ordem do dia aflorou,
pela primeira vez, de maneira clara na Conferência da FMEC realizada em
Estrasburgo (1960). Oradores como D. T. Niles, Newbigin, Barth e Visser 't
Hooft pareciam incapazes de falar para e pelos estudantes; apenas Ho-
ekendijk, com sua ênfase na vocação e papel seculares do cristianismo, foi
aplaudido (cf. Bassham 1979:47s.). Três anos depois, na Conferência da
CMME na Cidade do México, afirmou-se que os cristãos precisam "desco-
brir uma forma de obediência cristã que está sendo redigida para eles por
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 459

aquilo que Deus já estava realizando ativamente nas estruturas da vida ur-
bana fora da igreja" (cit. ap. Bassham 1979:65; essa sentença, contudo, não
fazia parte, como Bassham parece inferir, da Mensagem da Conferência).
Em 1961, a Assembléia do CMI em Nova Déli autorizou um projeto
de estudos sobre a "Estrutura Missionária da Congregação". Wieser editou
um relatório provisório sobre o projeto em 1966. Um ano mais tarde, e a
tempo para a Assembléia em Uppsala, foi publicado o relatório final, de
duas partes, elaboradas respectivamente pelo Grupo de Trabalho da Europa
Ocidental e pelo Grupo de Trabalho da América do Norte (WCC 1967).
Ambos os relatórios (que, em última análise, pouquíssimo tinham a dizer
sobre a "estrutura missionária da congregação") influenciaram profunda-
mente o encontro de Uppsala. O objetivo da missão foi identificado como
shalom pelo grupo europeu e como humanização pelos norte-americanos.
Hoekendijk denominou shalom um conceito secularizado, um acontecimen-
to social, um evento em relações inter-humanas (ap. Wieser 1966:43). "O
que as igrejas podem fazer além de reconhecer e proclamar o que Deus
está fazendo no mundo?", perguntou o grupo europeu (WCC 1967: 15), já
que "é o mundo a quem se deve permitir que proveja a ordem do dia para as
igrejas" (p. 20). A conversão era algo que acontecia em nível coletivo, na
forma de transformação social, e não no nível individual-pessoal. Tudo isso
culmina na seguinte declaração do relatório norte-americano:
Salientamos a humanização como objetivo da missão porque acreditamos
que, mais do que outras, ela transmite, em nosso período histórico, o signi-
ficado do objetivo messiânico. Em outra época, é possível que o propósito
da obra redentora de Deus tenha sido descrito melhor em termos de o homem
voltar-se para Deus (...) A questão fundamental era a do Deus verdadeiro, e
a igreja respondia a essa questão apontando para ele. Supunha-se que a
meta da missão fosse a cristianização, fosse conduzir o homem a Deus atra-
vés de Cristo e sua igreja. Atualmente, a questão fundamental é muito mais
a do homem verdadeiro, e a preocupação dominante da congregação missi-
onária deve ser, por conseguinte, apontar para a humanidade de Cristo como
o objetivo da missão. (WCC 1967:78).
De modo geral, a assembléia de Uppsala endossou essa teologia. A
abordagem de Hoekendijk tomara-se a "concepção recebida" nos círculos
do CM!. Missão passou a ser um termo que englobava assistência social e
sanitária, projetos para a juventude, atividades de grupos com interesses
políticos, projetos de desenvolvimento econômico e social, aplicação cons-
trutiva da violência, etc. Missão se tomou "o termo abrangente para desig-
nar todas as formas concebíveis mediante as quais as pessoas podiam coo-
perar com Deus em relação a este mundo" (Rütti 1972:307). Na realidade,
abolira-se completamente a distinção entre igreja e mundo. Segundo 1. B.
Metz, "em última análise, a diferenciação abstrata entre igreja e mundo não
faz sentido" (cit. ap. Rütti 1972:274).
460 - Rumo a uma missiologia relevante

É possível entender essa preocupação com o mundo durante a déca-


da de sessenta e o otimismo em relação ao que poderia ser alcançado em
breve mediante a completa reestruturação das realidades sociopolíticas e as
tentativas de identificar os "sinais dos tempos". Antigas colônias ocidentais
estavam se tomando independentes num ritmo deveras surpreendente (só
no ano de 1960, 18 países africanos obtiveram sua independência). Lança-
vam-se programas imaginativos de desenvolvimento e acreditava-se que,
em pouco tempo, eles alterariam permanentemente o destino dos países em
desenvolvimento (embora alguns, como Richard Shaull, na Conferência de
Igreja e Sociedade realizada em Genebra [1966], tenham sugerido que os
revolucionários, e não os tecnólogos, introduziriam a ansiada reestruturação
da realidade sociopolítica e econômica; cf. Shaull 1967 e Dunn 1980:183-
193). Em círculos eclesiásticos e missionários, a integração do CoMIn ao
CMI em Nova Délhi (1961) parecia prometer uma relação totalmente nova
entre igrejas velhas e jovens. E, no que diz respeito aos católicos, esses
eram os anos subseqüentes ao Vaticano 11 (1962-1965); muitos saudavam
"o novo Pentecostes, o derramamento de esperança, as janelas abertas e o
rejuvenescimento da igreja" (Gómez 1986:26).
Mas, na realidade, a missão - em sua nova definição - foi sobrecar-
regada; esperava-se demais da igreja e de sua influência; grande parte da
euforia originava-se do otimismo humano e não da fé. A igreja era uma
espécie de posto de gasolina espiritual do qual tudo e todos podiam obter
combustível para uma grande variedade de projetos meritórios. Às vezes, a
igreja devia fornecer o incentivo para grandiosos projetos de desenvolvi-
mento; outras vezes, ela tinha que tomar-se fonte de insatisfação e ruptura.
Talvez fosse natural esperar que a quase completa identificação da
igreja e de sua vocação com o mundo e sua ordem do dia levasse, finalmen-
te, a tal embaraço e frustração com a incapacidade da igreja de concretizar
a ordem do dia do mundo, que muitas pessoas se desesperaram com a igreja
e a consideraram dispensável. Essa concepção - em graus diferentes - tem
sido advogada por Hoekendijk, Aring e Rütti (se bem que Rütti, contrarian-
do em muito a tendência geral de sua argumentação, admita que um "cristi-
anismo totalmente desprovido de natureza institucional não está em condi-
ções de oferecer qualquer alternativa genuína" [1972:343]). Para Hoeken-
dijk, em particular, a igreja tem pouco mais que o caráter de um "interme-
zzo" entre Deus e o mundo. Outros lhe fizeram eco. A igreja é "uma reali-
dade de importância secundária", diz Rütti (1972:280), e conclamar as pes-
soas a se tomarem membros da igreja é "uma forma de proselitismo" (WCC
1967:75). O mundo, e não a igreja, é "o local do encontro permanente entre
Deus e a humanidade" (Aring 1971:83). E Deus se faz presente no mundo
através de pessoas que não o conhecem e não podem ser consideradas
membros da "igreja" (Rütti 1971:281).
O embaraço com a igreja e, especificamente, com a congregação
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 461

local atingiu proporções de crise nas conferências de Uppsala e Bangcoc


(1968 e 1973). Hoekendijk afirmou que o sistema paroquial era imóvel, cen-
trado em si mesmo e introvertido, "uma invenção da Idade Média" (cit. ap.
Hutchison 1987:185). O famoso adágio católico extra ecclesiam nulla sa-
lus ["fora da igreja, nenhuma salvação"] aparentemente se converteu em
seu oposto - dentro da igreja não havia salvação. Ao refletir sobre o tema
da reunião da CMME em Bangcoc, "Salvação hoje", um grupo de estudo
canadense perguntou: "A igreja não é arrogante quando pensa que pode
oferecer a salvação ao homem?" (cit. ap. Wieser 1973:176). Em ambas as
reuniões, a igreja sofreu críticas inclementes. Scherer (1974: 139) sintetizou
o ambiente que prevaleceu em Bangcoc: "A igreja precisa justificar-se pela
participação no esquema messiânico de salvação ou ela se torna irrelevan-
te". A própria igreja necessita de salvação, disse Bangcoc, para que possa
tornar-se uma comunidade salvífica: "Se as igrejas não se salvarem de seu
cativeiro nos interesses de classes, raças e nações dominantes, não pode
haver igreja salvífica" (WCC 1973:89). As igrejas careciam de "uma con-
versão da auto-absorção provinciana para uma conscientização do que Deus
estava fazendo para salvar os homens na vida do mundo" (p. 100).
Em ambas as conferências, havia delegados que apoiaram a posição
de Hoekendijk, não porque endossassem suas nuanças mais extremas, mas
porque desejavam expressar sua frustração com a natureza burguesa da
igreja e sua convicção de que uma nova compreensão e práxis de missão
resultariam em uma renovação da própria igreja. Considerando as terríveis
condições de vida de milhões de pessoas famintas, oprimidas e exploradas,
Uppsala e Bangcoc mostraram uma impaciência sagrada com qualquer
complacência por parte da igreja. Pela primeira vez, uma instituição cristã
de nível mundial se confrontou com o mal estrutural e não tentou, com sub-
terfúgios espirituais, fugir de suas responsabilidades procurando refúgio em
uma instituição sacrossanta.
Não restava dúvida: tornara-se moda menosprezar as igrejas-como-
elas-existem-na-história. As pessoas deixaram de confiar na igreja. Após o
Vaticano Il, a Igreja Católica sofreu defecções de sacerdotes, um definha-
mento de vocações e uma frenética demolição de instituições veneráveis.
Atacou-se, principalmente, o empreendimento missionário, e, muitas vezes,
isso foi feito com um prazer masoquista (Gómez 1986:28). Visser 't Hooft
(1980:393) observa, contudo, que essa ridicularização constitui uma forma
de ingratidão. Paulo, que conhecia tanto as debilidades das igrejas às quais
destinava suas cartas, começava-as, quase sempre, agradecendo a Deus
pela existência, fé e lealdade delas.
Portanto, é necessário dizer que os ataques à igreja institucional, des-
fechados por Hoekendijk e outros, são pertinentes somente na medida em
que expressam um ideal teológico alçado ao nível de um julgamento profé-
tico (Haight 1976:633). Mas um exame mais acurado mostra que eles re-
462 - Rumo a uma missiologia relevante

presentam um ponto de vista que leva ao absurdo. É impossível falar sobre


o envolvimento da igreja no mundo quando se contesta, a priori, seu próprio
direito à existência (cf. Gensichen 1971:168). Uma "abordagem puramente
apostolar da igreja é insustentável" (Berkhof 1979:413).
Em meados da década de setenta, a euforia que caracterizava a dé-
cada anterior havia evaporado por completo. Houve uma espécie de revira-
volta. Muitos dos mesmos teólogos que criticavam a igreja empírica defen-
dem agora, com firmeza, a opinião de que é impossível falar de missão
como responsabilidade e solidariedade para com o mundo a não ser que se
entenda a mesma também em categorias eclesiais (cf. Schumacher
1970:183; Mitterhõfer 1974:81s.; van Engelen 1975:309). A missão cristã é
sempre cristológica e pneumatológica, mas o Novo Testamento não conhe-
ce uma cristologia ou uma pneumatologia que não seja eclesial (cf. Kramm
1979:212,218; Memorandum 1982:461). A missão está ancorada no culto
da igreja, em seu encontro em tomo da palavra e dos sacramentos. "'O
encontro visível de pessoas visíveis em um lugar especial para fazer algo
específico' (Otto Weber) está no centro da igreja. Sem o procedimento
efetivo e visível do encontro, não existe igreja" (Moltmann 1977:334).
Pode-se, portanto, compreender a igreja como uma elipse com dois
focos (Crum 1973:288s.). No primeiro e em tomo dele, ela reconhece e
desfruta a fonte de sua vida; é onde se enfatizam o culto e a oração. A
partir do segundo foco e mediante ele, a igreja se engaja no mundo e o
desafia. Esse é o foco que sai de si e se doa e em que se sublinham o
serviço, a missão e a evangelização (cf. também Gensichen 1971:210; Bria
1975; Stransky 1982:349). Nenhum dos focos deveria existir em detrimento
do outro; pelo contrário, cada um está a serviço do outro. A identidade da
igreja sustenta sua relevância e seu envolvimento (Moltmann 1975:1-4).
A reunião da PC em Lund (1952) expressou isso bem: "A igreja é, sempre
e ao mesmo tempo, chamada para fora do mundo e enviada para dentro do
mundo". A pregação e a celebração dos sacramentos convocam as pesso-
as ao arrependimento, ao batismo, à filiação à igreja e à participação na
atividade de Deus no e com o mundo (Mitterhõfer 1974:88). A igreja se
reúne para louvar a Deus, usufruir a comunhão e receber sustento espiritu-
al, e se dispersa para servir a Deus onde quer que seus membros estejam.
Ela é vocacionada a manter em "tensão redentora" (Snyder 1983:29) sua
orientação dual. O relatório do grupo que discutiu "Passos em Direção à
Unidade" na Assembléia de Vancouver expressa a convicção de que
a igreja é chamada ser um "sinal" profético, uma comunidade profética atra-
vés da qual e pela qual a transformação do mundo pode se concretizar.
Unicamente uma igreja que parte de seu centro eucarístico, fortalecida pela
palavra e pelo sacramento e, portanto, fortalecida em sua própria identidade,
tem condições de colocar o mundo em sua ordem do dia. Jamais haverá um
tempo em que o mundo, com todas as suas questões políticas, sociais e
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 463

econômicas, cessará de ser a ordem do dia da Igreja. Ao mesmo tempo, a


igreja pode sair para as margens da sociedade, sem temer que seja distorcida
ou confundida pela ordem do dia do mundo, mas confiante e capaz de reco-
nhecer que Deus já se encontra lá. (WCC 1983:50).
Segue-se que a igreja só pode ser missionária se seu estar-no-mundo
é, concomitantemente, um ser-diferente-do-mundo (Berkhof 1979:415 -
baseio-me aqui no original em holandês, e não na tradução para o inglês).
Precisamente por causa do mundo, a igreja tem que ser única, no mundo
sem ser do mundo (cf. van 't Hof 1972:206s.). O corpo de Cristo, sua
própria "forma terreno-histórica de existência", é "a una santa igreja católi-
ca e apostólica" e, como tal, "a representação provisória do mundo todo da
humanidade justificada nEle" (Barth 1956:643), "o jardim experimental da
nova humanidade" (Berkhof 1979:415). Há, pois, uma preocupação legíti-
ma com a identidade inalienável da igreja, e não deveria haver qualquer
amalgamação e confusão prematura entre ela e o mundo. Uma igreja de
testemunho e de serviço "só pode existir se for intensivamente impulsionada
pelo Espírito. Ela só pode dar na medida em que ela própria receber" (p.
413s.). Por conseguinte, é notável que inclusive Hoekendijk, o qual ao longo
de toda a sua vida castigou implacavelmente a igreja e sustentou que não
havia espaço para uma "eclesiologia", tenha concluído ser impossível virar
as costas para ela. Fustigou a igreja, mas por amor a ela. Ele pôde, por
exemplo, afirmar que "a igreja é (nada mais, mas também nada menos!)
um instrumento nas mãos de Deus a fim de estabelecer o shalom neste
mundo" (1967b:22 - grifo meu; cf. também Blei 1980:5-7).
Isso não significa que meramente aceitemos, de maneira positivista,
a comunidade concreta de fé e nos resignemos com seu modus vivendi
efetivo (cf. também Lochman 1986:71). Sabemos hoje - o que muitos de
nossos antecessores espirituais teriam dificuldade em aceitar - que a igreja
empírica sempre será imperfeita. Qualquer membro da igreja que ame a
igreja também será profundamente afligido por ela. Isso não implica, porém,
descartar a igreja, e sim reformá-la e renová-la. A própria igreja é um obje-
to da missio Dei, em constante necessidade de arrependimento e conver-
são; deveras, todas as tradições apóiam atualmente o adágio ecclesia sem-
per reformanda est (cf. Rickenbach 1970:70; Memorandum 1982:462). A
cruz proclamada pela igreja também a julga e censura qualquer manifesta-
ção de complacência quanto a suas "realizações". Uma igreja que se auto-
congratula frustra o poder da cruz em sua vida e seu ministério.
A cruz, todavia, não transmite apenas uma mensagem de juízo, mas
também de perdão e esperança, inclusive para a igreja. É, portanto, incorre-
to que a igreja permita ser constantemente incitada à ação, como se tenha
que provar algo, seja obrigada a alcançar sua credibilidade através de seus
próprios esquemas impositivos e, dessa maneira, assegurar sua salvação.
Flagelar a si mesma e, incansavelmente, aguilhoar-se para fazer mais e
464 - Rumo a uma missiologia relevante

mais apenas intensifica a culpa, a frustração e o desespero. Se a injunção


para arrepender-se não for acompanhada pela oferta gratuita do perdão e
da vida nova, nós teremos lei sem evangelho, juízo sem misericórdia e obras
sem graça. Há uma tensão permanente entre a comunidade cristã pela qual
ansiamos e a comunidade cristã que realmente existe. Entretanto, o sonho ou
ideal e a comunidade factual constituem uma unidade. Conforme Bonhoeffer,
"aquele que ama o sonho de uma comunidade cristã mais do que a própria
comunidade, freqüentemente causa grande dano a essa comunidade, por
mais bem intencionado esteja" (cit. ap. Michels 1989:84).
Há outro aspecto a ser considerado. Às vezes, quando os cristãos
dizem o que pensam que deve ser feito em termos de transformação do
mundo, eles correm o risco de exceder a competência da igreja, falando e
agindo pretensiosamente em relação a assuntos dos quais os cristãos não
entendem mais que o mundo fora da igreja (cf. Rickenbach 1970:78). Há,
pois, tanto algo cativante como algo problemático quando cristãos se empe-
nham em discernir os "sinais dos tempos" e, assim, verificar onde exata-
mente Deus está agindo na história", Deveríamos estar sempre conscientes
dos riscos que corremos e abster-nos de afirmar sem hesitação: "Assim diz
o Senhor!" Mesmo que a história secular e a história da salvação sejam
inseparáveis, elas não são idênticas, e a construção do mundo não conduz
diretamente ao reino de Deus; como o formula M. D. Chenu, "a graça é a
graça, e a história não é a fonte da salvação" (cit. ap. Geffré 1982:490).
Outra maneira de expressar isso é afirmar que a igreja, uma vez que
constitui uma comunidade escatológica, não pode se comprometer, sem
restrições, com qualquer projeto social, político ou econômico. Como primí-
cias do reinado de Deus, ela antecipa esse reinado no aqui e agora. É o
conhecimento disto que lhe dá a confiança de trabalhar pelo avanço do
reinado de Deus no mundo, mesmo que o faça com modéstia e sem que
reivindique ter todas as respostas. Embora circunstâncias opressivas e pe-
caminosas não sejam abolidas como que por um toque de varinha mágica,
as pessoas cristãs confessam que essas circunstâncias já foram trazidas
para dentro do campo de força do reinado de Deus, já foram relativizadas e
privadas de sua validez derradeira (Lochman 1986:67). É esse conhecimen-
to que nos confere a certeza de que não mais somos prisioneiros de um
destino onipotente. A "igreja no poder do Espírito" ainda não é o reinado de
Deus; ela, muitas vezes, mostra-se disparatada e infiel, mas, a despeito dis-
so, constitui a antecipação desse reinado na história. O cristianismo não é
ainda a nova criação, mas ele é a obra do Espírito da nova criação; ele ainda
não é a nova humanidade, mas constitui sua vanguarda (cf. Moltmann
1977:196;Collet 1984:262s.).
A percepção da igreja como urna entidade completamente separada
da comunidade humana - o que, por exemplo, ainda predominava nas deli-
berações da Conferência do CoMln realizada em Willingen (1952) - mos-
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 465

trou ser falsa e insustentável. A igreja só existe como parte orgânica e


integrante da comunidade humana. Tão logo que tente ver sua própria vida
como sendo significativa fora da comunidade humana global, ela trai o obje-
tivo maior de sua existência (Baker 1986: 159). De forma análoga, a tendên-
cia de desmerecer a igreja como sendo completamente irrelevante ou de
obliterar qualquer diferença entre a igreja e sua ordem do dia e o mundo e
sua ordem do dia parece estar em declínio; a igreja deve permanecer clara-
mente distinta do mundo, se não perderá sua capacidade de estar a serviço
dele.
Para o protestantismo histórico, foi a Assembléia do CMI realizada
em Nairóbi (1975) que, por primeiro, registrou claramente uma atitude para
com a igreja distinta daquela de encontros anteriores. Muitos agora esta-
vam prontos a admitir que a realidade era mais complexa e diversificada do
que delegados de conferências anteriores haviam imaginado. O tom do en-
contro foi mais ameno e as discussões, mais sóbrias que aquelas que carac-
terizaram Estrasburgo (1960), Genebra (1966), Uppsala (1968) e Bangcoc
(1973). Talvez por isso a mensagem de Nairóbi tenha adotado a forma de
uma oração pelas igrejas em vez de uma conclamação ao mundo (Vischer
1976: 10, 61, 63). Novamente se criticou a igreja, mas não de uma forma tão
arrogante como em Bangcoc. A noção prevalecente foi, pelo contrário, a
idéia bíblica de que chegara o tempo de "começar o juízo pela casa de
Deus" (1 Pe 4.17). Fazia-se necessário que a igreja fosse purificada para
poder servir ao mundo de uma maneira mais relevante. De fato, as modifi-
cações cataclísmicas que ocorriam no mundo demandavam a conversão da
igreja (Vischer 1976:27; cf. também o título de seu livro). Assim, reafirmou-
se, em Nairóbi, a validade permanente da igreja; a ordem do dia da assem-
bléia foi provida pela igreja e não pelo mundo (como acontecera em Upp-
sala).
Também no encontro da CMME realizado em Melbourne (1980) le-
vou-se a igreja mais a sério do que antes. Aparentemente ela fora reabilita-
da, em círculos do CMI, como um instrumento da missão (Scherer 1987:44).
Isso não sugere, contudo, um retorno à posição anterior (aproximadamente
de Tambaram [1938] até Willingen [1952]), quando a integração de igreja e
missão, em verdade, fortalecera a natureza institucional da missão em vez
de impregnar a igreja com um caráter missionário. Pelo contrário, Melbourne
(a despeito dos protestos de ortodoxos) fez uma distinção clara entre a
igreja e o reino de Deus. O tema da Seção III, por exemplo, era "A igreja
testemunha o Reino". O relatório da seção (III.I) afirma que "a igreja toda
de Deus, em qualquer lugar e época, é um sacramento do reino que veio
na pessoa de Jesus Cristo e virá em sua plenitude quando ele retornar em
glória" (WCC 1980:193 - grifo meu). Também a seção II.13 se refere à
igreja como "um sinal do reino de Deus" e diz que ela é chamada "a ser um
instrumento do reino mediante a continuação da missão de Cristo para o
466 - Rumo a uma missiologia relevante

mundo" (p. 193s. - grifo meu). Uppsala e Bangcoc se inclinaram a ver as


igrejas como parte da corte do faraó; pelo menos as Seções III e IV em
Melbourne consideraram-nas, apesar dos múltiplos defeitos, essencialmen-
te como aliadas de Moisés. A igreja, capaz, pela graça de Deus, de arrepen-
der-se, de ser renovada e equipada para o serviço missionário, conquistou
seu justo espaço, não como expressão final do reinado de Deus, mas como
sua serva e seu arauto (Scherer 1987:144).
A mesma nota ecoou no documento do CMI, de 1982, intitulado Mis-
são e evangelização. Ele afirma, de forma inequívoca, a centralidade da
igreja na economia divina; a unidade da igreja é julgada indispensável (ME,
20-27), não apenas, mas certamente também, para a "missão em seis con-
tinentes" (ME, 37-40). Um ano mais tarde, a Assembléia do CMI realizada
em Vancouver endossou o novo consenso ecumênico quanto à importância
crucial da igreja na missão. Isso aflora, entre outros dados, nas sutis dife-
renças entre sua linguagem e a de Uppsala 1968 (cf. WCC 1983:50). As
deliberações do encontro da CMME ocorrido em San Antonio (1989) segui-
ram um padrão semelhante, particularmente na Seção I.
Reconhecemos agora que a igreja é uma entidade tanto teológica
quanto sociológica, uma união inseparável do divino e do terreno. Um auto-
exame pelas lentes do mundo mostra à igreja que ela não merece crédito e
é esfarrapada, sujeita a todas as tibiezas humanas; vendo a si pelos olhos
dos crentes, ela se percebe como um mistério, como o incorruptível Corpo
de Cristo na terra. Nós podemos ficar, às vezes, extremamente desgostosos
com a terrenalidade da igreja, mas também é possível que sejamos transfor-
mados, de guando em quando, pela consciência do divino na igreja (Smith
1968:61). E essa igreja, ambígua ao extremo, que é "missionária por sua
própria natureza", o povo peregrino de Deus, "como que" um sacramento,
sinal ou instrumento (LG 1) e "germe firrníssimo de unidade, esperança e
salvação para todo o gênero humano" (LG 9).

Missão como missio Dei


Durante o último meio século, aproximadamente, houve uma sutil,
porém decisiva mudança no sentido de se entender a missão como missão
de Deus. Nos séculos precedentes, a missão foi compreendida de várias
maneiras. Às vezes, ela foi interpretada primordialmente em termos soteri-
ológicos: como salvar indivíduos da condenação eterna. Ou foi entendida
em termos culturais: como apresentar pessoas do Oriente e do Sul às bên-
çãos e privilégios do Ocidente cristão. Freqüentemente, ela foi vista em
categorias eclesiásticas: como expansão da igreja (ou de uma denominação
específica). De quando em quando, foi definida em termos de história da
salvação: como um processo através do qual o mundo - pela evolução ou
por um evento cataclísmico - seria transformado no reino de Deus. Em
todos esses casos e de maneiras diversas, muitas vezes conflitantes, a inter-
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 467

relação intrínseca entre cristologia, soteriologia e doutrina da Trindade, tão


importante para a igreja primitiva, foi gradualmente substituída por uma das
diferentes versões da doutrina da graça (cf. Beinert 1983:208).
Após a Primeira Guerra Mundial, porém, os missiólogos começaram
a atentar para recentes desdobramentos que ocorriam na teologia bíblica e
sistemática. Em um trabalho lido na Conferência Missionária de Brandem-
burgo, em 1932, KarlBarth ([1932] 1957) tornou-se um dos primeiros teólo-
gos a articular a missão como atividade de Deus mesmo. Em Die Mission
als theologisches Problem (1933), Karl Hartenstein manifestou uma con-
vicção similar. Alguns anos mais tarde, na reunião do CoMIn realizada em
Tambaram (1938), uma declaração feita pela delegação alemã tornou-se
outro catalisador no desenvolvimento de uma nova compreensão de missão.
A delegação confessou que só "através de um ato criativo de Deus, Seu
Reino será consumado no estabelecimento final de um Novo Céu e uma
Nova Terra", e: "Estamos convictos de que unicamente essa atitude esca-
tológica pode impedir que a Igreja se secularize".
Do início ao fim, a influência de Barth foi crucial. De fato, Barth pode
ser visto como o primeiro expoente claro de um novo paradigma teológico
que rompeu radicalmente com uma abordagem iluminista da teologia (cf.
Küng 1987:229). Sua influência no pensamento missionário atingiu o auge
na Conferência do CoMIn ocorrida em Willingen (1952). Foi lá que a idéia
(não o termo) da missio Dei emergiu, pela primeira vez, de maneira clara.
Compreendeu-se a missão como derivada da própria natureza de Deus. Ela
foi colocada, pois, no contexto da doutrina da Trindade, não da eclesiologia
nem da soteriologia. A doutrina clássica da missio Dei como Deus, o Pai,
enviando o Filho, e Deus, o Pai e o Filho, enviando o Espírito foi expandida
no sentido de incluir ainda outro "movimento": Pai, Filho e Espírito Santo
enviando a igreja para dentro do mundo. Quanto ao que concerne o pensa-
mento missionário, essa vinculação com a doutrina da Trindade constituiu
uma inovação importante (Aagaard 1974:420). A imagem de missão de
Willingen era a da missão como partícipe no envio de Deus. Nossa missão
não tem vida própria: só nas mãos do Deus que envia pode-se denominá-la
verdadeiramente de missão, mormente porque a iniciativa missionária pro-
vém apenas de Deus (cf. van 't Hof 1972:158s.). Mas não se compreendeu
a missão em categorias triunfalistas. Willingen reconheceu uma estreita re-
lação entre a missio Dei e a missão como solidariedade com o Cristo encar-
nado e crucificado. Enquanto o encontro de Willingen se reuniu sob o tema
"A Obrigação Missionária da Igreja", as palestras dadas no encontro foram
publicadas com o título Missões sob a cruz (1953). Assim, anexa à afirma-
ção de que a missão pertencia a Deus, a ênfase sobre a cruz impedia qual-
quer possibilidade de complacência missionária (van 't Hof 1972:160s.; cf.
Dapper 1979:27).
Na tentativa de concretizar o conceito de missio Dei, poder-se-ia
468 - Rumo a uma missiologia relevante

dizer o seguinte: na nova imagem, a missão não é primordialmente uma


atividade da igreja, mas um atributo de Deus. Deus é um Deus missionário
(Aagaard 1973:11-15; Aagaard 1974:421). "Não é a igreja que deve cum-
prir uma missão de salvação no mundo; é a missão do Filho e do Espírito
mediante o Pai que inclui a igreja" (Moltmann 1977:64). Compreende-se a
missão, desse modo, como um movimento de Deus em direção ao mundo; a
igreja é vista como um instrumento para essa missão (Aagaard 1973: 13).
Existe igreja porque existe missão, não vice-versa (Aagaard 1974:423).
Participar da missão é participar do movimento de amor de Deus para com
as pessoas, visto que Deus é uma fonte de amor que envia.
Desde Willingen, a compreensão da missão como missio Dei foi ado-
tada praticamente por todas as ramificações cristãs - primeiro pelo protes-
tantismo ligado ao CMI (cf. Bosch 1980:179s., 239-248; LWF 1988:5-10),
mas, subseqüentemente, também por outros agrupamentos eclesiásticos, como
os ortodoxos orientais (cf. Anastasios 1989:79-81,89) e muitos evangelicais
(cf. Costas 1989:71-87). Ela também foi endossada na teologia missionária
católica, particularmente em alguns dos documentos do Concílio Vaticano
Segundo (1962-1965) (cf. Aagaard 1974). Após afirmar que a igreja é mis-
sionária por sua própria natureza, pois "ela se origina da missão do Filho e
da missão do Espírito Santo", o Decreto sobre missão do Concílio define a
atividade missionária como "nada mais nada menos que a manifestação ou
epifania do plano divino e seu cumprimento no mundo e em sua história"
(AG 2, 9). Define-se a missão aqui em termos trinitários, cristológicos, pneu-
matológicos e eclesiológicos (Schumacher 1970:182s.; cf. Snijders 1977:171s.;
Fries 1986:761; Gómez 1986:31).
Para as missiones ecclesiae (as atividades missionárias da igreja), a
missio Dei acarreta conseqüências importantes. "Missão", no singular, per-
manece primordial; "missões", no plural, constitui um derivativo. Referindo-
se ao período pós-Willingen, Neill (1966a:572) afirma audaciosamente: "A
era das missões chegou ao fim; iniciou-se a era da missão". Conclui-se que
precisamos distinguir entre missão e missões. Somente de forma afoita po-
deríamos reivindicar que aquilo que fazemos é idêntico à missio Dei; nossas
atividades missionárias só são autênticas na medida em que refletirem a
participação na missão de Deus. "A igreja está a serviço do voltar-se de
Deus para o mundo" (Schmitz 1971:25). O propósito primeiro das missio-
nes ecclesiae não pode, por conseqüência, ser simplesmente a implantação
de igrejas ou a salvação de almas; pelo contrário, ele deverá ser o serviço à
missio Dei, representar a Deus no e diante do mundo, apontar para Deus,
expor o Deus-criança aos olhos do mundo em uma incessante celebração
da Festa da Epifania. Em sua missão, a igreja é testemunha da plenitude da
promessa do reinado de Deus e é partícipe da batalha contínua entre esse
reinado e os poderes das trevas e do mal (Scherer 1987:84).
Depois de Willingen (e já em Willingen, no relatório americano), o
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 469

conceito de missio Dei sofreu uma gradual modificação - um processo


descrito minuciosamente por Rosin (1972). Como Deus se preocupa com o
mundo inteiro, esse também deveria ser o escopo da missio Dei. Ela afeta
todas as pessoas em todos os aspectos de sua existência. A missão é o
voltar-se de Deus para o mundo em relação à criação, conservação, reden-
ção e consumação (Kramm 1979:210). Ela se realiza na história humana
comum, não exclusivamente na igreja e por meio dela. "A missão do próprio
Deus é maior que a missão da igreja" (LWF 1988:8). A missio Dei é ativi-
dade de Deus, a qual abarca tanto a igreja quanto o mundo e na qual a igreja
tem o privilégio de poder participar.
Em Gaudium et Spes, a "Constituição Pastoral sobre a Igreja no
Mundo de Hoje" do Vaticano Il, essa compreensão mais ampla de missão é
exposta pneumatologicamente, e não cristologicamente (cf. Aagaard
1973: 17s.; Aagaard 1974:429-433). A história do mundo não constitui ape-
nas uma história do mal, mas também de amor, uma história em que o reina-
do de Deus está sendo levado adiante pela obra do Espírito. Assim, em sua
atividade missionária, a igreja se defronta com uma humanidade e um mun-
do em que a salvação de Deus já está operando em secreto por meio do
Espírito. Isso poderá, pela graça de Deus, resultar em um mundo mais hu-
mano, que jamais, contudo, pode ser compreendido como um produto mera-
mente humano - o autor efetivo dessa história humanizada é o Espírito
Santo. Por isso, Gaudium et Spes 26 tem condições de afirmar, quando se
refere à ordem social e a seu desenvolvimento no sentido de servir o bem
comum, que "o Espírito de Deus, que dirige o curso da história com provi-
dência admirável e renova a face da terra, está presente a esta evolução".
E mesmo que o parágrafo 39 faça uma advertência de que devemos ser
cautelosos para "distinguir cuidadosamente entre o progresso terreno e o
aumento do reino de Cristo", ele acrescenta que esse progresso "é de gran-
de interesse para o reino de Deus, na medida em que pode contribuir para
organizar a sociedade humana".
Indubitavelmente, essa compreensão mais abrangente do escopo da
missio Dei significou uma evolução contrária às intenções de Barth e tam-
bém de Hartenstein, os primeiros a empregar o termo. Ao introduzir essa
expressão, Hartenstein esperava proteger a missão contra a secularização
e a horizontalização e reservá-la exclusivamente a Deus. Isso não aconte-
ceu. Outros, seguindo os passos de Barth e Hartenstein, mostraram-se igual-
mente desconcertados com os desdobramentos posteriores. Rosin (1972:26)
chama missio Dei de um "cavalo de Tróia através do qual levou-se a visão
'americana' (não-assimilada) para dentro dos bem guardados muros da te-
ologia ecumênica da missão".
As pessoas que apoiavam a compreensão mais ampla do conceito
tenderam a radicalizar o ponto de vista de que a missio Dei era maior que a
missão da igreja, mesmo a ponto de sugerir que ela excluía o envolvimento
470 - Rumo a uma missiologia relevante

da igreja - como vimos na seção anterior. No volume preparado por uma


comissão de estudo do CMI sobre "A estrutura missionária da congrega-
ção" (Wieser 1966), afirmou-se, por exemplo, que "a igreja serve a missio
Dei no mundo (...) [quando] aponta para Deus agindo na história mundial e
o nomeia ali" (p. 52). Parecia que Deus estava primordialmente "executan-
do seu propósito em meio ao mundo e a seus processos históricos" (p. 53).
Pode-se discernir claramente a influência de Hoekendijk em formulações
como essas. As opiniões de Hoekendijk também caracterizam a posição
teológica de Aring (1971). Aparentemente, a igreja se tomou desnecessária
para a missio Dei: "Nós não podemos 'articular' a Deus. Em última análise,
'missio Dei' significa que Deus articula a si mesmo, sem necessidade algu-
ma de que o auxiliemos nesse sentido através de nossos esforços missioná-
rios" (p. 88). De fato, é prescindível que o mundo "se torne o que já é desde
a Páscoa: o mundo reconciliado de Deus" (p. 28). Portanto, ele não tem
qualquer necessidade da contribuição missionária dos cristãos. Afinal, Deus
não é concebível sem o mundo reconciliado, nem o mundo sem a presença
dinâmica de Deus (p. 24).
Desdobramentos como esses induziram Hoedemaker (1988: 171-173)
a contestar a utilidade do conceito de missio Dei. Ele argumenta que esse
conceito pode ser utilizado por pessoas que sustentam posições teológicas
mutuamente excludentes. Hoedemaker talvez tenha razão - pelo menos até
certo ponto. Por outro lado, não é possível negar que a noção de missio Dei
tenha ajudado a articular a convicção de que nem a igreja nem qualquer
outro agente humano pode, alguma vez, ser considerado o autor ou o porta-
dor da missão. Ela é, primordialmente e em última análise, a obra do Deus
Triúno, Criador, Redentor e Santificador por amor ao mundo, um ministério
do qual a igreja tem o privilégio de participar (cf. LWF 1988:6-10). A missão
possui sua origem no coração de Deus. Deus é uma fonte de amor que
envia. Esse é o manancial mais profundo da missão. É impossível penetrar
mais fundo; existe missão porque Deus ama as pessoas.
Reconhecer que a missão é de Deus representa um avanço crucial
em relação aos séculos precedentes (van 't Hof 1972: 177). É inconcebível
que pudéssemos voltar de novo a uma concepção estreita e eclesiocêntrica
de missão.

Missão como mediação da salvação"

Interpretações tradicionais de salvação


Há alguns anos, o periódico católico Studia Missionalia dedicou dois
volumes consecutivos (vol, 29,1980, e vol, 30,1981) ao tema "salvação nas
religiões mundiais". A salvação é, efetivamente, um assunto fundamental
para qualquer religião. Para os cristãos, a convicção de que Deus operou,
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 471

de forma decisiva, a salvação para todas as pessoas em e através de Jesus


Cristo constitui o âmago de suas vidas. Afinal, o próprio nome Jesus signifi-
ca "Salvador" (cf. Wiederkehr 1976:9s.; 1982:329s.; Beinert 1983:217s.;
Greshake 1983:15).
Dessa convicção decorre que o movimento missionário cristão foi
motivado, ao longo de sua história, pelo desejo de mediar a salvação a todos.
Realmente se pode designar o "motivo" soteriológico como o "coração pu1-
sante da missiologia", uma vez que concerne à "mais profunda e fundamen-
tal questão da humanidade" (Gort 1988:203). Portanto, faz sentido que con-
ferências missionárias internacionais se dedicassem integralmente a esse
tema. Pode-se citar, por exemplo, a Conferência da CMME realizada em
Bangcoc, em 1973, cujo tema foi "Salvação hoje". Mais recentemente, em
outubro de 1988, a Congregação Católica Romana para a Evangelização
dos Povos, reunida na Universidade Urbana de Roma, devotou uma consul-
ta de toda uma semana ao mesmo assunto? É bastante lógico que essas
tenham sido consultas missionárias, uma vez que nossa teologia da missão
sempre mostra uma estreita dependência de nossa teologia da salvação.
Seria, pois, correto dizer que o escopo da salvação - como quer que se
defina salvação - determina o escopo do empreendimento missionário.
Assim como houve mudanças de paradigma quanto à compreensão
da relação entre igreja e missão, ocorreram também câmbios na compreen-
são da natureza da salvação que a igreja tinha que mediar em sua missão.
Nossas reflexões sobre a missão na igreja primitiva revelaram que a salva-
ção foi interpretada em termos abrangentes. Isso não significa que todos os
autores neotestamentários tenham exatamente a mesma compreensão do
assunto. Lucas, por exemplo, emprega uma "linguagem de salvação" quan-
to a um espectro muito amplo de circunstâncias humanas - o fim da pobre-
za, discriminação, doença, possessão demoníaca, pecado, etc. - ou, como o
expressa Scheffler (1988), quanto ao sofrimento econômico, social, político,
físico, psicológico e espiritual. Além disso, para Lucas a salvação é, sobre-
tudo, algo que se realiza nesta vida, hoje (cf., especificamente, as palavras
de Jesus registradas em 4.21; 19.9; 23.43). Para Lucas, a salvação é salva-
ção presente (cf. Stanley 1980:74s.).
Em Paulo, a ênfase parece ser distinta; ele acentua mais a natureza
incoativa da salvação - ela apenas começa nesta vida (cf. Stanley 1980:63-
69). A salvação é um processo, encetado pelo encontro da pessoa com o
Cristo vivo, mas a salvação completa ainda está pendente. O Espírito Santo
constitui somente o primeiro dom conferido a nós por Deus (Rm 8.23).
Estamos salvos na esperança (8.24). A reconciliação (um conceito bási-
co em Paulo) ocorre deveras aqui e agora, mas Paulo normalmente se refe-
re à salvação no tempo futuro: "Porque se nós, quando inimigos, fomos
reconciliados com Deus (...) muito mais, estando já reconciliados, sere-
mos salvos por sua vida" (Rm 5.10). Essas sutis nuanças certamente se
472 - Rumo a uma missiologia relevante

devem ao fato de Paulo pensar em categorias apocalípticas e desejar en-


fatizar que a salvação abrangente está reservada para o triunfo vindouro de
Deus (Beker 1984). Por ora, Paulo ainda espera Jesus Cristo como Salva-
dor (Fp 3.20). Mas isso não diminui a realidade da renovação radical- tanto
pessoal quanto social- que a pessoa crente pode experimentar já no aqui e
agora (cf. Rm 8.14s. e 2 Co 5.17). Isso tampouco vale unicamente para a
vida "religiosa" do crente. A experiência da reconciliação com Deus e o
renascimento têm profundas conseqüências sociais (cf. a Carta de Paulo a
Filemom) e políticas (Cristo é chamado de Kyrios e Soter em face da
confissão pública de que César é senhor e salvador). Tudo isso, todavia,
permanece no contexto de uma efervescente expectativa escatológica.
No período da patrística grega, contudo, a expectativa escatológica
desvaneceu. A salvação assumiu agora a forma da paideia, de uma gradu-
al "elevação" dos crentes um status divino (a theosis). Enfatizava-se a
"origem" de Cristo. A encarnação encontrava-se no centro, como instru-
mento da paideia divina (cf. Lowe 1982:200; Beinert 1983:204).
Enquanto que a igreja bizantina entendia a salvação como uma pro-
gressão "pedagógica", o Ocidente (católico e protestante) sublinhava o efeito
devastador do pecado assim como a restauração do indivíduo caído através
de uma experiência de crise mediada pela igreja. Nem a preexistência de
Cristo nem sua encarnação, mas sua morte vicária na cruz (uma doutrina
aprimorada pela teoria de Anselmo sobre a satisfactio vicaria) encontra-
va-se agora no centro (cf. Beinert 1983:203-205). A salvação representava
a redenção de almas individuais no além, o que aconteceria por ocasião do
apocalipse miniaturizado da morte do crente individual.
Nesse modelo, a "pessoa" e a "obra" de Cristo foram cada vez mais
separadas uma da outra. Por fim, a cristologia tomou-se subserviente à
soteriologia (Lowe 1982:219; Greshake 1983:72s.; Beinert 1983:202,205,
208). Seguindo o mesmo caminho, as atividades "salvíficas" de Deus se
distinguiram mais e mais de suas atividades "providenciais" em relação ao
bem-estar dos indivíduos e da sociedade. Dessa maneira, mesmo que -
durante todos os séculos da história da missão cristã - se tenha prestado
sempre um serviço notável no que concerne o cuidado de doentes, pobres,
órfãos e outras vítimas da sociedade, e igualmente quanto à educação, à
instrução agrícola e afins, percebiam-se esses ministérios quase sempre
como "serviços auxiliares" e não como autenticamente missionários. Seu
objetivo era criar nas pessoas uma disposição favorável para com O evan-
gelho, "abrandá-las" e, desse modo, preparar o terreno para o trabalho do
verdadeiro missionário, ou seja, daquele que proclamava a palavra de Deus
sobre a salvação eterna. Na maioria dos casos, mantinha-se, por conseguin-
te, uma distinção rígida entre as ênfases "horizontais" e "externas" (carida-
de, educação, assistência médica), por um lado, e os elementos "verticais"
ou "espirituais" da ordem do dia missionária (tais como a pregação, os sa-
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 473

cramentos e o comparecimento à igreja), por outro lado. Somente os últimos


eram relevantes para a apropriação da salvação.
Essa definição diluída de salvação levou inevitavelmente a uma pre-
ocupação com atividades eclesiásticas estreitamente definidas, que, por seu
turno, complicaram, de forma severa, o envolvimento dos crentes na socie-
dade, visto que tal envolvimento não tinha nada a ver com a salvação, a não
ser no sentido de atrair as pessoas para a igreja onde poderiam ter acesso à
salvação em si.

Salvação no paradigma moderno


A constelação teológica que acabamos de delinear só poderia per-
manecer ilesa enquanto as pessoas continuassem vivendo no contexto da
cristandade e se sentissem integralmente dependentes da atividade abran-
gente e transcendente de Deus como única explicação para tudo que ocor-
ria no mundo. Com o advento do iluminismo, toda essa interpretação de
salvação passou a ser pressionada intensamente, resultando numa crescen-
te contestação da soteriologia tradicional. A idéia de uma salvação vinda de
fora, de Deus, totalmente inacessível ao poder e à capacidade humanas,
tomou-se muito problemática (cf. Wiederkehr 1976:77-122; 1982:331-336;
Beinert 1983:209; Greshake 1983:26, 74; veja também o capítulo 9 deste
estudo).
A crítica moderna da religião teve aqui seu ponto de partida. A reli-
gião como expressão da completa dependência de Deus e como salvação
eterna no além constituía um anacronismo e um remanescente do estágio
infantil da humanidade. Salvação agora significava libertação da supersti-
ção religiosa, preocupação com o bem-estar humano e o melhoramento
moral da humanidade. Emergiu uma soteriologia alternativa, uma compre-
ensão de salvação em que as pessoas eram agentes ativos e responsáveis
que utilizavam a ciência e a tecnologia para realizar melhorias materiais e
induzir câmbios sociopolíticos no presente. Nesse sentido, a crítica da reli-
gião tomou-se, essencialmente, crítica da soteriologia (Wiederkehr 1982:331-
333). A salvação permaneceu a força motivadora na vida das pessoas mo-
dernas, mas foi redefinida de forma radical.
As reações da igreja e da missão ao desafio do modernismo foram -
dito de uma forma muito genérica - duas. A primeira - tanto em círculos
católicos quanto protestantes - foi as pessoas continuarem a definir a salva-
ção em termos tradicionais, como que ignorando as contestações do ilumi-
nismo e seguindo em frente como se nada tivesse mudado.
A segunda reação foi tentar levar a sério os questinamentos do mo-
dernismo, também quanto à sua compreensão de salvação. Uma maneira
em que o cristianismo foi "salvo" deu-se pela rejeição da concepção segun-
do a qual Jesus morreu uma morte substitutiva pela humanidade e, assim,
474 - Rumo a uma missiologia relevante

propiciou a Deus. Jesus representava, antes, o ser humano ideal, um exem-


plo a ser imitado, um mestre moral. Aqui o centro não era a pessoa de
Jesus, mas a causa de Jesus; o ideal, não Aquele que incorporou o ideal; o
ensinamento (especialmente o Sermão da Montanha), não o mestre; o rei-
no de Deus, mas sem o Rei (cf. Greshake 1983:76).
Nesse paradigma, portanto, a culpa e a salvação não mais dividem e
unem, primordialmente, Deus e os seres humanos, mas a estes entre si. A
exclamação de Lutero: "Onde posso encontrar um Deus misericordioso?"
converte-se em: "Como podemos ser próximos misericordiosos uns para os
outros?" O advento "vertical" de Deus a este mundo manifesta-se em rela-
cionamentos transformados, adequados, "horizontais": a relação salvífica
do ser humano com Deus se concretiza em sua conversão para o irmão ou
a irmã. O pecado é - em categorias emprestadas de Marx - a alienação
entre os humanos. A salvação não vem mediante a transformação de indi-
víduos, mas pela erradicação de estruturas pervertidas e injustas (cf.
Greshake 1983:26-29; Gründel1983: 113-115, 122). Refuta-se o pessimismo
apocalíptico do fundamentalismo com o auxílio do otimismo evolucionário.
Acredita-se que as pessoas serão, em breve, libertadas de qualquer coisa
que as agrilhoe à ignorância, fome, miséria e opressão. O "paraíso do futu-
ro" é pintado em vivas cores utópicas, principalmente no "Evangelho Soci-
al" americano. A salvação, definida à americana, precisava ser exportada
para os "campos de missão" (cf. Dennis 1897, 1899, 1906). Nesse paradig-
ma, define-se o pecado eminentemente como ignorância. Só era preciso
informar as pessoas sobre o que era de seu próprio interesse. A missão
ocidental representava o grande educador que iria mediar a salvação aos
não-iluminados.
Depois que o "interlúdio barthiano" (da década de 20 até a de 50)
provocou uma interrupção nessa tendência geral, uma nova era de otimismo
raiou na década de 60. Para Johannes Hoekendijk, shalom constituía uma
noção mais abrangente que salvação, e se fosse necessário escolher, não
seria, em absoluto, óbvio que se optasse por salvação. Afinal de contas,
impomos uma antropologia antiquada a nossos contemporâneos se continu-
amos a agir como se tivessem que estar alerta para um Deus misericordioso
que poderia perdoar os pecados deles (Hoekendijk 1967a:348).
Na Conferência de Igreja e Sociedade realizada em Genebra em
1966, tanto Emmanuel Mesthene quanto Richard Shaull se serviram das
categorias de salvação de Hoekendijk, embora o fizessem de formas muito
distintas. Ambos concordavam que este mundo é a principal arena da ativi-
dade de Deus e o (único?) lugar em que a salvação pode se tomar concreta.
Enquanto o contexto referencial de Mesthene era o moderno Ocidente in-
dustrializado e secularizado, e enquanto ele via as soluções para os proble-
mas do mundo no progresso tecnológico, o quadro de referência de Shaull
era o Terceiro Mundo, mais especificamente sua experiência de injustiça,
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 475

exploração e pobreza. A teologia de Mesthene tentava responder aos desa-


fios do iluminismo, a de Shaull aos questionamentos de Karl Marx e da
exploração colonialista. Para Mesthene, salvação significava a expansão,
em larga escala, do desenvolvimento tecnológico, a fim de que todos pudes-
sem compartilhar da riqueza do Ocidente; para Shaull, salvação era liberta-
ção, que só poderia ser alcançada com a subversão da ordem existente.
A Assembléia do CMI ocorrida em Uppsala (1968) tentou, em certo
sentido, reconciliar essas duas posições, como o demonstram os dois relató-
rios sobre as "Estruturas para Congregações Missionárias" (WCC 1967).
Mas foi a próxima conferência da CMME (Bangcoc, 1973, com o tema
"Sal vação hoje") que teve de tentar determinar, de uma vez por todas, o que
significava salvação. O "espírito" da conferência aflora, assim parece, onde
se define a salvação exclusivamente em termos deste mundo. A Seção II
descreve a salvação em quatro dimensões. Ela se manifesta na luta por (1)
justiça econômica contra a exploração; (2) dignidade humana contra a opres-
são; (3) solidariedade contra a alienação; e (4) esperança contra o desespe-
ro na vida pessoal (WCC 1973:98). No "processo de salvação", faz-se ne-
cessário relacionar (apenas?) essas quatro dimensões entre si (p. 90).
O pensamento missionário católico sobre a salvação caminhou para-
lelamente ao do protestantismo, especialmente depois que o papa João XXIII
anunciou, em 1959, o Segundo Concílio Vaticano. Como no protestantismo,
acreditava-se que a salvação não podia ser definida unicamente em termos
"religiosos" (ou "eclesiais"), mas também em termos do que acontecia em
outros lugares. Gaudium et Spes emprestou atenção especial a isso (por
ex., no parágrafo 4). Além disso, foi especialmente na teologia da liberta-
ção católica romana que surgiu uma interpretação mais ampla de salvação.
Não pode restar dúvida de que a interpretação de salvação que emergiu
no pensamento e prática missionários recentes introduziu nessa definição
elementos sem os quais ela seria perigosamente estreita e anêmica. Num
mundo em que as pessoas dependem umas das outras e cada indivíduo
existe em uma rede de relacionamentos inter-humanos, é de todo inviável
limitar a salvação ao indivíduo e a seu relacionamento pessoal com Deus.
Ódio, injustiça, opressão, guerra e outras formas de violência constituem
manifestações do mal; a preocupação com a humanidade, a vitória sobre a
fome, a doença e a falta de sentido fazem parte da salvação pela qual
esperamos e trabalhamos. Os cristãos oram que o reino de Deus venha e
que a vontade de Deus seja feita assim na terra como no céu (Mt 6.10);
conclui-se daí que a terra é o loeus da vocação e santificação da pessoa
cristã.
476 - Rumo a uma missiologia relevante

Crise na compreensão moderna de salvação


No decurso da década de 70, porém, as definições "secularista" e
"libertacionista" de salvação começaram a ser colocadas em xeque. Já alu-
di à atmosfera mais sóbria que caracterizou os encontros do CMI desde a
Assembléia de Nairóbi (1975). Boa parte disso também vale para o catoli-
cismo desde o Sínodo dos Bispos de 1974 e a publicação de Evangelii
Nuntiandi (1975). Tomou-se gradualmente claro que o modelo "horizonta-
lista" estava crivado de inconsistências, tanto teológicas quanto práticas.
Era auto-ilusão começar a pensar e a agir como se a salvação estivesse ao
nosso alcance, à nossa disposição, ou que ela fosse algo que nós tivéssemos
condições de concretizar. Principiamos a compreender, uma vez mais, que,
a despeito da profundamente arraigada convicção herética de que podemos
alcançar a salvação por meio de nossas próprias boas obras, mesmo as
pessoas cristãs não têm respostas à mão para as necessidades da socieda-
de. Os cristãos prometeram demais a si mesmos, por exemplo, em Uppsala
e Medellín (ambos em 1968), quando se afirmou que, em um futuro próxi-
mo, toda injustiça, toda pobreza e qualquer forma de servidão fariam par-
te do passado e que a salvação já estava na volta da esquina. Thomas
Wieser, o membro da equipe do eMI responsável pela coordenação do pro-
jeto "Salvação hoje", faz, sensatamente, a seguinte advertência:
A tarefa de identificar o propósito salvífico de Deus em meio a eventos
históricos requer sólidos critérios teológicos sobre cuja base se possam
formar juízos críticos. Aqui é necessário realizar uma importante tarefa rema-
nescente para assegurar que a credibilidade da igreja não se perca novamen-
te em um impulso visando a obter uma fugaz "relevância". (1973: 177).
De fato, a sensação eufórica de ruptura ou avanço experimentada,
na época, pelos delegados à Assembléia de Bangcoc era ilusória. As decla-
rações retumbantes sobre o significado da salvação suscitaram, em verda-
de, mais perguntas do que proporcionaram respostas. Isso se ratificou quando
nos conscientizamos, durante as duas últimas décadas, dos "limites do cres-
cimento". O desenvolvimento tecnológico desenfreado tomou-se insensato,
porque os recursos não-renováveis da terra estão se esgotando, enquanto
os ricos ficam mais ricos e os pobres, mais pobres. Mesmo que as pessoas
pudessem viver apenas de pão, simplesmente não existe mais pão para to-
das, devido a estruturas que parecem ser inalteráveis. Além disso, consci-
entizamo-nos da real possibilidade de nosso know-how tecnológico e cien-
tífico nos levar eventualmente à ruína irreversível do ecossistema. Estamos,
relutantemente, chegando à conclusão de que nem tudo que é tecnologica-
mente possível deveria ser fabricado. A moderna estória de sucesso tende
a converter-se em uma estória de catástrofe, e algumas pessoas inclusive
tentam retirar-se para um ilusório mundo pré-tecnológico. Entrementes, os
sonhos de um paraíso do futuro estão se desfazendo na fumaça de guerras
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 477

intermináveis e, muito pior, nos ventos radioativos de explosões nucleares


que ameaçam destruir toda a vida do planeta. O otimismo e a euforia da
década de sessenta não fazem mais parte de nossa experiência.
Além disso, os cristãos são obrigados a perguntar se a tendência de
permitir que a teologia e a missão sejam submersas na ética social não
acarreta inevitavelmente uma relativização da pessoa de Jesus Cristo. Bei-
nert observa corretamente que "o indispensável elemento cristológico da
soteriologia não é (muitas vezes) tomado suficientemente claro" (1983:215).
O resultado inevitável de grande parte do paradigma moderno é que as
necessidades e soluções do mundo são descritas em termos que, até certo
ponto, são independentes de Jesus Cristo (Lowe 1982:220). A igreja, contu-
do, é conclamada em sua missão a testemunhar o que Deus "realizou de
uma vez por todas, de modo absolutamente novo, irrepetível e final, em
Jesus Cristo para a salvação do mundo" (Glazik 1979:160). É Jesus Cristo
que "leva a termo toda a salvação. Ninguém pode terminar sua obra se ele
próprio não o faz" (Memorandum 1982:459).
Em resumo, a salvação e o bem-estar, embora estejam estreitamente
conectados, não coincidem de maneira integral. A fé cristã é um fator críti-
co, o reinado de Deus, uma categoria crítica, e o evangelho cristão não é
idêntico à ordem do dia de movimentos modernos de emancipação e liberta-
ção (cf. Beinert 1983:214s.; Gort 1988:213s.).
Não nos é possível, todavia, simplesmente retomar à interpretação
clássica de salvação, embora essa posição sustente e defenda elementos
que permanecem indispensáveis para uma compreensão cristã da salvação.
Seu problema reside, primeiro, no fato de que ela estreita perigosamente o
significado de salvação, como se esta se limitasse exclusivamente à fuga da
ira de Deus e à redenção da alma individual no além, e, em segundo lugar,
no fato de tender a uma distinção absoluta entre a criação e a nova criação,
entre o bem-estar e a salvação. É isso, por exemplo, que Donald McGravan
faz quando escreve:
Salvação é uma relação vertical (...) que acarreta relacionamentos horizontais
(...) O vertical não deve ser substituído pelo horizontal. Por mais desejáveis
que sejam as melhorias sociais, o empenho por elas não deve substituir as
exigências bíblicas da/pela "salvação". (1973:31).
Em contraposição a esse tipo de abordagem, precisamos afirmar que
a redenção jamais é salvação para fora deste mundo (salus e mundo),
mas sempre salvação deste mundo (salus mundi) (Aagaard 1974:429-431).
A salvação em Cristo é salvação no contexto da sociedade humana rumo a
um mundo íntegro e curado.
478 - Rumo a uma missiologia relevante

Rumo a uma salvação abrangente


Não se podem simplesmente ignorar os desafios que o mundo mo-
derno apresenta à missão da igreja quanto à interpretação da salvação.
Novos questionamentos pedem novas respostas. As circunstâncias nos obri-
gam a refletir de novo sobre todo esse assunto. Talvez uma releitura das
noções bíblicas de salvação, feita a partir da percepção de que as interpre-
tações tradicional e moderna da salvação se mostraram inadequadas, aju-
de-nos aqui.
Para compreender a salvação, o primeiro modelo - o da missão da
patrística grega - estava voltado para a origem e o início da vida de Jesus
- para sua preexistência e encarnação. A missão ocidental orientava-se
para o fim da vida de Jesus - sua morte na cruz (formulada classicamente
na teoria de Anselmo sobre a satisfação). Em ambos os casos, colocou-se a
salvação nas extremidades da vida de Jesus (Wiederkehr 1976:34; Beinert
1983:211). O terceiro modelo, i. é, a interpretação ética da salvação, con-
centrava-se na vida terrena e no ministério de Jesus. Ele introduziu reco-
nhecidamente um elemento mais dinâmico em nossa compreensão da sal-
vação, mas de tal forma que, em última análise, tomou o próprio Cristo
redundante.
Nós necessitamos de uma interpretação de salvação que opere den-
tro de um quadro cristológico abrangente, que tome o totus Cristus - sua
encarnação, vida terrena, morte, ressurreição e parúsia - indispensável para
a igreja e a teologia. Todos esses elementos cristológicos tomados em con-
junto constituem a práxis de Jesus, aquele que inaugurou a salvação e igual-
mente nos proveu de um modelo a emular (cf. Wiederkehr 1976:39-43).
Por isso, faz sentido que, hoje, em círculos missionários, mas também
alhures, a mediação de uma salvação "abrangente", "integral", "total" ou
"universal" seja cada vez mais identificada como o propósito da missão,
superando, assim, o dualismo inerente aos modelos tradicionais e aos mais
recentes (cf., por exemplo, os títulos de Waldenfels 1977; Müller 1978; e
Weber 1978)8. A literatura missionária, mas também a prática missionária,
enfatiza que deveríamos encontrar um caminho para além de toda posição
esquizofrênica e assistir as pessoas em sua necessidade global, que deve-
ríamos envolver o indivíduo e a sociedade, a alma e o corpo, o presente e o
futuro em nosso ministério de salvação.
Em momento algum da história precedente os problemas sociais da
população foram tão vastos como o são no século 20. Mas jamais antes os
cristãos estiveram numa posição melhor do que hoje para fazer algo quanto
a essas necessidades. Pobreza, miséria, doença, criminalidade e caos social
assumiram proporções inauditas. Em uma escala inédita, pessoas tornaram-
se vítimas de outras pessoas; homo homini lupus ("o ser humano é um lobo
para outros seres humanos"). Grupos marginalizados em muitos países do
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 479

mundo carecem de qualquer forma de participação ativa e, inclusive, passi-


va na sociedade; as relações inter-humanas estão se desintegrando; as pes-
soas são prisioneiras de um modelo de vida do qual possivelmente não se
conseguem libertar; a marginalidade caracteriza todo aspecto de sua exis-
tência (cf. Müller 1978:90). Para as pessoas cristãs, introduzir mudança em
toda essa situação significa mediar salvação; afinal- citando GS 1 nova-
mente - "as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias das pesso-
as de hoje, sobretudo das pobres e de todas as que sofrem, são também as
alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cris-
to". Precisamente porque nossa preocupação é a salvação, já não necessi-
tamos ver a nós e a outros como prisioneiros de um destino onipotente; em
sua missão, a igreja constitui um movimento de resistência contra qualquer
movimento de fatalismo e quietismo.
Por outro lado, já que nunca devemos superestimar nossas próprias
capacidades ou as de outros, temos de questionar criticamente todas as
teorias atuais de auto-redenção humana. A salvação final não será produto
de mãos humanas, nem mesmo de mãos cristãs. A visão escatológica cris-
tã da salvação não se concretizará na história. Por esse motivo, os cristãos
jamais deveriam identificar qualquer projeto específico com a plenitude do
reinado de Deus. Estamos, no máximo, erigindo cabeças de ponte para o
reinado de Deus (cf. Geffré 1982:490; Beinert 1983:215, 218; Beker
1984:86s.; Gort 1988:213). Atemo-nos, portanto, também ao caráter trans-
cendente da salvação e à necessidade de chamar as pessoas à fé em Deus
através de Cristo. A salvação não advém senão pela via do arrependimento
e do compromisso pessoal de fé (cf. Wiederkehr 1982:334).
O caráter integral da salvação demanda que o escopo da missão
eclesiástica seja mais abrangente do que o tem sido tradicionalmente. A
salvação é tão coerente, ampla e profunda quanto o são as necessidades e
as exigências da existência humana. Missão significa, por conseguinte, es-
tar envolvido no diálogo contínuo entre Deus, que oferece a salvação, e o
mundo, que - enredado em toda espécie de mal - anela por essa salvação
(Gort 1988:209). "Missão significa ser enviado para proclamar, com ações e
palavras, que Cristo morreu e ressuscitou para dar vida ao mundo, que ele
vive para transformar vidas humanas (Rm 8.2) e vencer a morte" (Memoran-
dum 1982:459). Da tensão entre o "já" e o "ainda não" do reinado de Deus, da
tensão entre a salvação indicativa (a salvação já é uma realidade!) e a salva-
ção subjuntiva (a salvação abrangente ainda está por vir!), emerge a salva-
ção imperativa - Envolva-se no ministério da salvação! (Gort 1988:214).
Aqueles que sabem que Deus, um dia, enxugará todas as lágrimas não aceita-
rão resignadamente as lágrimas dos que sofrem e são oprimidos agora. Toda
pessoa que sabe que, um dia, não existirá mais enfermidade pode e deve
antecipar ativamente a subjugação da enfermidade em indivíduos e na socie-
dade agora. E qualquer pessoa que crê que o inimigo de Deus e dos seres
480 - Rumo a uma missiologia relevante

humanos será derrotado se oporá a ele agora em suas maquinações na famí-


lia e na sociedade. Porque tudo isso tem a ver com a salvação.

Missão como busca por justiça

o legado da história
Em nossa próxima seção (sobre evangelização), sustentar-se-á que a
evangelização, embora jamais se possa simplesmente equipará-la ao traba-
lho pela justiça, tampouco pode ser divorciada dele. A relação entre as
dimensões evangelística e social da missão cristã constitui uma das áreas
mais difíceis da teologia e da prática da missão. Nas seções subseqüentes,
voltaremos reiteradamente a ela.
Sem dúvida alguma, a justiça social era central na tradição profética
do Antigo Testamento. Já que a maioria dos reis de Israel pelo menos pro-
fessavam acreditar em Javé, profetas como Amós e Jeremias podiam, em
nome de Deus, contestá-los na medida em que houvessem tolerado ou per-
petrado a injustiça em seus reinados. Mas o contexto sociopolítico em que a
igreja primitiva começou a se engajar na missão era fundamentalmente ou-
tro. O cristianismo era uma religio illicita no Império Romano. Ele era, na
melhor das hipóteses, tolerado; na pior delas, perseguido. Nenhum cristão
podia dirigir-se às autoridades com base numa fé compartilhada. Essa cir-
cunstância induziu muitos cristãos de gerações posteriores à opinião equivo-
cada de que o Novo Testamento é mais "espiritual" que o Antigo e é, por
isso, superior a ele. Ao mesmo tempo, a dimensão inata de justiça da fé
cristã foi, freqüentemente, negligenciada, máxime porque ela se expressava
- nas circunstâncias prevalecentes - em termos que diferiam substancial-
mente daqueles que encontramos no Antigo Testamento (cf. também os
capítulos 2 a 4 deste estudo).
Durante o reinado de Constantino, o cristianismo não apenas se tor-
nou uma religio licita, mas, em breve, era efetivamente a única religião
legítima no império. A situação era similar à que prevaleceu em certos pe-
ríodos da história de Israel como nação independente. Como acontecera
então, também agora a nova situação resultou em soluções conciliatórias. E,
muitas vezes, a solução conciliatória se dava no âmbito da justiça social; os
"profetas da corte" consideravam impossível ou imprudente criticar as au-
toridades quando estas haviam sido coniventes com a injustiça ou, até mes-
mo, cúmplices dela. Contudo, uma vez que ser membro da igreja e ser membro
do estado se sobrepunham, para todos os propósitos práticos, durante todo o
período desde Constantino até o início da era moderna e visto que os gover-
nantes reconheciam explicitamente que eram tão responsáveis pela vida
religiosa e moral de seus súditos quanto o eram pela política, os âmbitos da
religião e da política eram, de alguma forma, mantidos juntos.
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 481

Já na época de Agostinho, porém, houve uma tendência no sentido de


dividir a realidade rigidamente em dois opostos irreconciliáveis, o que foi
expresso de forma inequívoca em A cidade de Deus, livro 4, capítulo 28
(cf. também o capítulo 6 deste estudo); Apesar de contracorrentes (no ca-
tolicismo medieval tardio, pode-se mencionar o nome de Tomás de Aquino),
sempre existiu, desde Agostinho, uma tendência de erigir um contraste "en-
tre (...) a radiância da santidade divina e a tenebrosidade do mundo" (Nie-
buhr 1960:69). Esse legado foi passado do catolicismo ao protestantismo em
todas as suas formas (embora se manifestasse mais claramente nas tradi-
ções luterana e anabatista que no calvinismo). O mundo era mau e não
havia como salvá-lo; mudar suas estruturas não pertencia realmente à esfe-
ra de responsabilidade da igreja.
Com o advento do iluminismo e sua radical diferenciação entre o
mundo público de fatos e o mundo privado de idéias, a política e o estado
foram enquadrados no primeiro, a religião e a moral, no segundo. Desfez-se
o vínculo orgânico entre igreja e estado, e a igreja não mais podia apelar ao
estado com base num compromisso de fé compartilhada. O ministério da
igreja - fora de seus muros - foi, em geral, limitado à caridade e ao desen-
volvimento. Contestar estruturas sociais injustas não era de sua alçada e
também seria totalmente inaceitável para os governantes políticos. Quando,
em 1926, um grupo de dez bispos (um dos quais era William Temple, mais
tarde arcebispo de Canterbury) tentou intermediar um litígio entre mineiros
de carvão, proprietários de minas e o governo britânico, Stanley Baldwin,
então primeiro ministro, perguntou, irado, se os bispos gostariam que ele
encaminhasse à Federação do Ferro e do Aço a revisão do Credo Atanasi-
ano (cf. Temple 1976, p. 30)!
A "interferência" dos bispos na política constituiu uma das primeiras
manifestações de uma igreja "estabelecida" abandonando o modelo de har-
monia e clara divisão de trabalho entre igreja e estado", Grande parte das
sinuosidades nas relações entre igreja e estado no século 20 se originaram
de tentativas de redefinir essa relação.

A tensão entre justiça e amor


Com o intuito de avaliar adequadamente as questões implicadas, tal-
vez seja útil realçar uma observação feita por Reinhold Niebuhr (1960).
Uma ética racional, sugere Niebuhr, objetiva ajustiça, enquanto que uma
ética religiosa tem o amor como ideal (p. 57). Este último ideal está apoia-
do no fato de se ver a alma de outro ser humano "a partir da perspectiva
absoluta e transcendente" (p. 58). Isso implica a presença - em qualquer
religião vital- de uma esperança milenar de uma sociedade em que o ideal
do amor e da eqüidade se realize plenamente (p. 60s.). Mas isso se compli-
ca pelo fato de existir, dentro do ideal religioso, uma ênfase "mística" lado a
lado com uma ênfase "profética" (p. 64). A dimensão mística tende a fazer
482 - Rumo a uma missiologia relevante

com que um indivíduo ou um grupo se retraia do mundo, deprecie a história,


sustente que seu verdadeiro lar não é aqui, mas no céu, e procure a comu-
nhão com Deus sem atentar para seu próximo (cf. Haight 1976:623). A
dimensão profética instiga o crente a se envolver na sociedade por amor a
seu próximo.
Tentativas de lidar com essa tensão não-resolvida na ética cristã as-
sumiram, em geral, duas formas diferentes.
No movimento ecumênico protestante e, em grau menor, no catoli-
cismo contemporâneo, parece predominar o motivo profético. Em algumas
manifestações do ecumenismo, todavia, aparentemente a ética racional, que
objetiva a justiça, é mais forte que a ética religiosa do amor. O Evangelho
Social, por exemplo - especialmente depois de 1900 - "enfatizou a preocu-
pação social de uma forma exclusivista que pareceu minar a relevância da
mensagem da salvação eterna" (Marsden 1980:92), alijando, assim, aparen-
temente, qualquer idéia de transcendência no cristianismo. O mesmo pare-
ce valer, em geral, para a maior parte do que se disse e fez no cristianismo
histórico durante a "secular década de sessenta". A Conferência Igreja e
Sociedade em Genebra (1966), a Assembléia do CMI em Uppsala (1968) e
o encontro da CMME em Bangcoc (1973) mais uma vez nos vêm à mente
como manifestações da tendência de fornecer "um endosso geral de qual-
quer movimento político" (Wieser 1973:177) sem identificar adequadamen-
te critérios para julgar se ele pertence verdadeiramente à missão de Deus
(cf. Bassham 1979:94).A ética religiosa do amor, afirma Niebuhr (1960:80s.),
sempre tentará impregnar a idéia da justiça com o ideal do amor; impedirá
que ele se tome puramente político, privado do elemento ético. O amor
demanda mais que justiça (p. 75). As "esperanças ultra-racionais" na reli-
gião provêem a coragem e mantêm vivo o amor.
É a isso que EN 27 se refere quando adverte contra a redução da
missão eclesiástica "às dimensões de um simples projeto temporal". De um
modo semelhante, Bonhoeffer ([ 1932] 1977) alude à "tentação secularista"
de identificar o reinado de Deus, consciente ou inconscientemente, com
alguma meta terrena, de tentarmos ser os arquitetos não apenas de nosso
próprio futuro mas também do de Deus. Aqui a "reserva escatológica" qua-
se que desapareceu por completo. Mas Bonhoeffer menciona também o
outro extremo onde - na piedosa radiância de realidades "sobrenaturais" -
o mundo perde sua importância e, em última análise, seu sentido. Esse é o
perigo da posição evangelical sobre a vocação da igreja no tocante à justi-
ça social. O problema, diz Niebuhr (1960:74), é que o ideal religioso tende a
estar mais interessado no motivo perfeito do crente do que na concretiza-
ção das conseqüências do amor. Tal preocupação com a motivação - que
possui suas próprias virtudes - é perigosa para a sociedade. Como o de-
monstra a instituição da escravidão, cristãos sinceros, motivados pelo amor,
poderiam não agir de forma vigorosa contra as injustiças sociais na socieda-
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 483

de mais ampla, o que, sabidamente, conflita com seus ideais religiosos e


morais (p. 77s.). O dualismo consistente de Deus-mundo, espírito-corpo,
herdado de Agostinho e dos gregos e reforçado pela mentalidade iluminista,
derrota o ideal do amor.

Os dois mandatos
Uma tentativa de decifrar o enigma da relação entre evangelização e
responsabilidade social é a distinção entre dois mandatos diferentes, o espi-
ritual e o social. O primeiro se refere à incumbência de anunciar a boa nova
da salvação através de Jesus Cristo; o segundo conclama os cristãos a
participar responsavelmente da sociedade humana, incluindo o trabalho em
prol do bem-estar humano e da justiça (cf. Bassham 1979:343). Talvez essa
distinção - no que concerne o protestantismo norte-americano - tenha sua
origem em Jonathan Edwards (1703-1758). Segundo Edwards, a obra de
Deus na redenção tem duas facetas. Uma consiste em converter, santificar
e glorificar indivíduos; a outra diz respeito ao grande plano de Deus na
criação, história e providência (cf. Chaney 1976:217). Mas, para Edwards,
esses dois "mandatos" eram inseparáveis. O mesmo é válido para as pesso-
as que haviam sido tocadas pelos Reavivamentos Evangelicais. O compro-
misso evangelical com a reforma social era um corolário do entusiasmo pelo
despertar religioso (Marsden 1980: 12).
Gradualmente, porém, pôde-se discernir uma sutil mudança em dire-
ção à primazia do "mandato evangelístico". Isso coincidiu com a ascensão
do pré-milenarismo no que ficou conhecido posteriormente como funda-
mentalismo e com o crescente protesto deste contra a "terrenalidade" do
Evangelho Social. Entre 1865 e 1900, diminuiu o interesse pela ação social e
política, embora não tenha cessado por completo entre os evangelicais rea-
vivamentistas. Mas entre 1900 e 1930, qualquer preocupação social pro-
gressista tornou-se suspeita em seu meio e desapareceu drasticamente
(Marsden 1980:86-90). A larga abrangência do envolvimento e interesse
dos Reavivamentos dos séculos 18 e 19 reduzira-se a um sectarismo estrei-
to e intolerante. A "Grande Reversão" (Timothy Smith - cf. Marsden
1980:85) havia começado. O Reavivamento, diz Lovelace (1981), jamais
fora levado a termo.
Grande parte dessa mentalidade ainda prevalece em círculos funda-
mentalistas em todo o mundo. Mas no segmento principal do evangelicalis-
mo principiou uma mudança. Catalisador, nesse sentido, foi The Uneasy
Conscience of Modem Fundamentalism, de Carl F. H. Henry (1947). Ele
escreveu (cit. ap. Bassham 1979: 176):
O evangelho redentor, que era outrora uma mensagem que visava à transfor-
mação do mundo, estreitou-se agora a uma mensagem de resistência ao
mundo. (...) O fundamentalismo, ao rebelar-se contra o Evangelho Social,
484 - Rumo a uma missiologia relevante

aparentemente também se revoltou contra o imperativo social cristão C... ) Ele


não questiona as injustiças dos totalitarismos, os secularismos da educação
moderna, os males do ódio racial, os erros das atuais relações entre emprega-
do e empregador e as bases inadequadas do comércio internacional.
Henry conclui que "não há espaço (...) para um evangelho que seja
indiferente às necessidades do homem integral ou do homem global". Le-
vou algum tempo para que essa perspectiva começasse a fazer eco, princi-
palmente porque nessa época grande parte da energia evangelical era dissi-
pada em tentar atacar o jovem e vigoroso CM!. A "Declaração de Whea-
ton" (redigida por uma conferência evangelical que se reuniu em Wheaton,
Illinois, em 1966) reconheceu que evangelicais dos séculos 18 e 19 foram
líderes na preocupação social e enfatizou a importância de se atender as
necessidades físicas e sociais, mas afirmou que isso deveria acontecer "sem
minimizar a prioridade de pregar o evangelho da salvação individual" (Lind-
sell1966:234). Doravante, sempre que se enfatizava o "mandato social" no
evangelicalismo, isso sempre seria acompanhado por uma declaração sobre
a primazia da evangelização. O Congresso de Berlim, também realizado em
1966, alguns meses após o Congresso de Wheaton, reafirmou a "inabalável
determinação" dos participantes "em cumprir a missão suprema da Igreja"
(Henry e Mooneyham 1970a:S). Em sua alocução, Billy Graham foi porta-
voz de muitos evangelicais quando inseriu uma dimensão social na evange-
lização, agregando, porém, que a melhora das condições sociais era um
resultado da evangelização exitosa Cp. 28):
Estou convencido de que, se a igreja voltasse à sua tarefa primordial de
proclamar o evangelho e de converter pessoas a Cristo, ela teria um impacto
muito maior nas necessidades sociais, morais e psicológicas dos homens do
que qualquer outra coisa que pudesse fazer. Alguns dos maiores movimen-
tos sociais da história se tornaram realidade porque homens se converteram
a Cristo.
De acordo com essa definição, a evangelização se relaciona com a
responsabilidade social como a semente o faz com o fruto; a evangelização
permanece primordial (a "tarefa principal" da igreja), mas engendra envol-
vimento social e melhores condições sociais entre as pessoas que foram
evangelizadas (cf. McGavran 1973:31).
Todas essas e outras interpretações similares da relação entre evan-
gelização e responsabilidade social só poderiam terminar sofrendo pressões
cada vez maiores. Vários estudiosos evangelicais reencetaram as reflexões
sobre essas questões, baseando-se na ética social do século 19 e retomando
alguns dos desafios articulados por Henry em seu livro de 1947 10• Os assim
chamados evangelicais radicais - menonitas e outros - começaram a sair
de seu secular e auto-imposto isolamento do cristianismo dominante e de-
ram contribuições vitais ao pensamento e à prática sociais entre os evange-
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 485

licais (cf. Yoder 1972). Assim, por volta de 1974, quando o Congresso Inter-
nacional de Evangelização Mundial se reuniu em Lausanne, muitos evange-
licais, especialmente aqueles do Terceiro Mundo, estavam prontos para um
novo avanço. John Stott, em um livro publicado logo após a conferência de
Lausanne, confessou francamente que mudara de idéia quanto à interpreta-
ção da "Grande Comissão": em Berlim, em 1966, ele a interpretara exclusi-
vamente em termos de evangelização (ap. Henry e Mooneyham 1967a:37-
56). Agora preferia expressar-se de outra forma:
Agora vejo mais claramente que não apenas as conseqüências da comissão,
mas a comissão em si precisam ser entendidas no sentido de incluir a respon-
sabilidade tanto social quanto evangelística, para que não nos tomemos
culpados de distorcer as palavras de Jesus. (Stott 1975:23).
Foi em consonância com essa nova interpretação que PL 5 afirmou
que o
envolvimento (sociopolítico e a evangelização) fazem ambos parte de nosso
dever cristão. Pois os dois são expressões necessárias de nossas doutrinas
de Deus e do homem, de nosso amor ao próximo e de nossa obediência a
Jesus Cristo.
Mas tanto o Congresso quanto o Pacto continuaram a operar em
termos da abordagem dos dois mandatos e a sustentar a prioridade da evan-
gelização. Afirmou-se que "na missão de serviço sacrificaI da igreja, a evan-
gelização é primordial". Também se disse explicitamente que "a reconcilia-
ção com o homem não significa reconciliação com Deus", que "ação social
não é evangelização" e que "libertação política não é salvação".
Apesar das vantagens dessa abordagem sobre a estratégia de um só
mandato ("apenas evangelização"), que reinou na evangelicalismo por tanto
tempo, a compreensão de Stott da missão como "evangelização mais res-
ponsabilidade social" sofreu pressões desde seu início. No momento em
que se considera que a missão consiste de dois componentes separados,
admite-se, em princípio, que cada um deles possui vida própria. Isso, então,
implica dizer que é possível ter evangelização sem uma dimensão social e
envolvimento social cristão sem uma dimensão evangelística. Além disso,
se sugerimos que um componente é primordial e o outro, secundário, dize-
mos implicitamente que um é essencial e o outro, opcional. Foi exatamente
o que ocorreu. A Declaração da Tailândia, emitida pela conferência do
CLEM realizada em Pattaya (1980), corroborou o compromisso do movi-
mento com a ênfase do PL tanto na evangelização quanto na ação social,
mas também afirmou que "nada do que está contido no Pacto de Lausanne
deixa de nos concernir, contanto que esteja claramente relacionado à
evangelização mundial" (grifo meu). A importância dessa sentença resi-
de no que ela não diz - que nada no PL nos deixa de concernir, contanto
que fomente claramente o engajamento cristão na sociedade.
486 - Rumo a uma missiologia relevante

Em 1982, dois anos após a conferência de Pattaya, aproximadamen-


te 40 estudiosos se reuniram em Grand Rapids, Michigan, em uma "Consul-
ta sobre a Relação entre Evangelização e Responsabilidade Social" (CRESR),
promovida pelo CLEM e a CEM. O relatório da consulta admitiu que alguns
participantes "sentiram-se incomodados" com a posição do PL quanto à
primazia da evangelização e tentaram explicar que sua prioridade pode nem
sempre ser cronologicamente anterior ao engajamento social. Ele afirma
ainda que
raras serão as ocasiões, se é que elas ocorrerão, em que nós teremos que
optar entre satisfazera fome física e a espiritual,entre curar o corpo ou salvar
a alma, pois um amor autêntico pelo próximo nos levará a servi-lo como um
ser integral.No entanto, se tivermos que fazer esta opção, é bom lembrarque
a necessidade suprema e máxima de todo o ser humano é a graça salvadora
de Jesus Cristo. Portanto, a salvação espiritual e eterna de uma pessoa é de
maiorimportância doqueo seubem-estar temporal e material. (CRESR 1982:25;
grifomeu).
Sustentou-se, pois, a dicotomia na CRESR. Permaneceu a posição
evangelical oficial: a evangelização é primordial, e, onde ela foi exitosa, pro-
duziu "frutos" na forma de justiça social. De fato, esse pensamento de cau-
sa-efeito (um legado do iluminismo?) ainda continua muito forte dentro do
evangelicalismo. O maior passo que a igreja pode dar no sentido de criar uma
nova ordem mundial, diz McGavran (1983:21), é multiplicar, na sociedade,
"células de redimidos". Depois que isso tiver acontecido, Deus "inevitavel-
mente (...) fará com que eles busquem uma ordem social melhor" (p. 28).
A questão é se esse pensamento de causa-efeito pode realmente ser
sustentado. Além de ser lícito argüir, em base empírica, que indivíduos con-
vertidos não se envolvem "inevitavelmente" (expressão de McGavran) na
reestruturação da sociedade, é preciso perguntar se essa abordagem é teo-
logicamente defensável. É interessante mencionar que essa pergunta é
formulada cada vez mais pelos próprios evangelicais. Já no Congresso de
Lausanne, várias centenas de delegados apoiaram uma declaração intitula-
da Uma resposta a Lausanne, em que se criticou o PL nesse item. A
resposta afirma, entre outras coisas, que
não há dicotomia bíblica entre a palavra falada e a palavra que se faz visível
na vida do povo de Deus. Os homens olharão ao escutarem, e o que eles
virem deve estar em consonância com o que ouvem (...) Há tempos em que
nossa comunicação pode dar-se apenas por atitudes e ações, e há outros em
que a palavra falada estará só: mas precisamos repudiar como demoníaca a
tentativa de meter uma cunha entre a evangelização e a preocupação social.
Essa vigorosa resposta ressoou na reunião do CLEM ocorrida em
Pattaya (1980), quando cerca de 200 participantes assinaram uma "Decla-
ração de preocupação quanto ao futuro do CLEM"; nela se criticava a
liderança da conferência, em termos inequívocos, pela maneira como enfa-
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 487

tizara O mandato evangelístico ao ponto de excluir quase totalmente a voca-


ção da igreja na área da justiça e da paz. No mesmo ano, e pouco antes da
Conferência de Pattaya, a unidade da CEM da área de Ética e Sociedade
realizou dois encontros em High Leigh, perto de Londres, um sobre desen-
volvimento e outro sobre estilo de vida 11. Ambas as consultas foram além
dos temas e do escopo que caracterizaram as reuniões evangelicais dos
anos 60 e 70, também motivadas pela forte representação do Terceiro Mun-
do. Scherer comenta a segunda dessas consultas:
O conteúdo efetivo da consulta de Londres foi muito além do tema da vida
simples, mordomia ou caridade, e tocou precisamente na opção preferencial
de Deus pelos pobres, no juízo divino sobre os opressores, no padrão da
identificação do próprio Cristo com os pobres, no risco de sofrer por causa
de Cristo e no apoio cristão a mudanças nas estruturas políticas - temas
raramente articulados com tal paixão em círculos missionários evangelicais.
(1991:133s.).
Em 1983, deu-se outro passo significativo na consulta da CEM em
Wheaton, dedicada a "A igreja responde à necessidade humana':". Pela
primeira vez, superou-se, em uma declaração oficial emanada de uma con-
ferência evangelical internacional, a intermitente dicotomia. Sem atribuir
prioridade à evangelização ou ao envolvimento social, a Declaração de
Wheaton 83, parágrafo 26, assevera:
O mal não está apenas no coração humano, mas também em estruturas soci-
ais. (...) A missão da igreja inclui tanto a proclamação do evangelho quanto
sua demonstração. Precisamos, pois, evangelizar, responder a necessidades
humanas imediatas e pressionar por transformações sociais.
No início da década de 80, parecia, pois, que um espírito novo estava
se estabelecendo no evangelicalismo dominante. Grupos evangelicais regio-
nais seguiram a mesma senda. Um dos mais notáveis documentos foi, nesse
sentido, o Testemunho evangelical na África do Sul, produzido por um
grupo de "Evangelicais Engajados", em 1986 13 • No contexto do sistema de
apartheid e da experiência de repressão e brutalidade policial durante um
estado de emergência, evangelicais se sentiram obrigados a responder e
articular suas posições sobre a evangelização, a missão, o mal estrutural e a
responsabilidade da igreja quanto à justiça na sociedade. Eles não tinham
dúvida de que eram chamados a proclamar Cristo como o Salvador e a
convidar pessoas a depositarem sua confiança nele, mas também estavam
igualmente convictos de que o pecado era tanto pessoal quanto estrutural,
que a vida constituía uma unidade, que o dualismo se opunha ao evangelho
e que seu ministério deveria ser tanto ampliado quanto aprofundado. Isso
representa uma importante alteração no evangelicalismo e não, simples-
mente, um retomo a uma posição do século 19. Naquela época, e devido à
prevalência de um estado de espírito otimista, os cristãos tendiam a crer em
uma melhora "natural" e evolutiva das condições sociais. Atualmente, tanto
488 - Rumo a uma missiologia relevante

evangelicais quanto ecumênicos compreendem, de uma maneira mais pro-


funda do que jamais antes, algo da profundidade do mal no mundo, da inca-
pacidade dos seres humanos de introduzir o reino de Deus e da necessidade
tanto de uma renovação pessoal através do Espírito de Deus quanto de um
compromisso resoluto no sentido de contestar e transformar as estruturas
da sociedade 14.

Uma convergência de convicções


Em muitos aspectos, portanto, um segmento importante do evangeli-
calismo parece disposto a inverter a "Grande Reversão" e corporificar de
novo um evangelho integral do reinado de Deus que irrompe não apenas em
vidas individuais, mas também na sociedade. Um câmbio semelhante, mas
na direção oposta, evidencia-se em círculos ecumênicos desde a metade da
década de 70, mais especificamente desde a Assembléia do eMI realizada
em Nairóbi (1975). Isso se manifesta, em especial, no documento Missão e
evangelização, de 1982. Ele afirma, entre outras coisas:
Não há evangelização sem solidariedade; não existe solidariedade cristã que
não implique compartilhar o conhecimento do reino que é a promessa de
Deus aos pobres da terra. Ocorre aqui um duplo teste de credibilidade: uma
proclamação que não exiba as promessas de justiça do reino aos pobres da
terra caricaturiza o evangelho, mas uma participação cristã nas lutas por
justiça que não aponte para as promessas do reino também torna caricatural
a compreensão cristã de justiça. (parágrafo 34).
Uma convergência semelhante de idéias testemunha-se no catolicis-
mo. Evangelii Nuntiandi, em especial, corrobora o importante avanço no
pensamento católico que ocorreu desde o Vaticano lI. Recusando-se a limi-
tar o ministério da igreja às dimensões da vida econômica, política ou cultu-
ral, o papa, contudo, não permite um retrocesso a uma posição pré-conciliar,
mantendo que a salvação, com toda a certeza, inicia nesta vida para encon-
trar sua plenitude na eternidade (EN 27; cf. também Snijders 1977:172s.).
Muitas ambigüidades permanecem, e muito há por fazer ainda no
sentido de esclarecer a natureza do envolvimento da igreja na sociedade;
isso se deve também ao "insucesso geral dos teólogos em lidar adequada-
mente com esse problema" (Snijders 1977: 173). Mas as igrejas - católica,
protestante e ortodoxa - estão reaprendendo "a superar as velhas dicotomi-
as entre evangelização e ação social. O 'evangelho espiritual' e o 'evange-
lho material' representavam, em Jesus, um só evangelho" (ME 33). A alter-
nativa "entre evangelização e humanização, entre conversão interior e me-
lhoria da situação ou entre a dimensão vertical da fé e a dimensão horizontal
do amor" é insustentável (Moltmann 1975:4). Falando à Assembléia de
Uppsala, Visser 't Hooft lamentou a "oscilação um tanto primitiva em ir de
um extremo a outro" e acrescentou:
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 489

Um cristianismo que perdeusua dimensão vertical carece de sal e não ape-


nas é insípido em si, masinútilpara o mundo. Um cristianismo, porém,que
usasse a preocupação vertical para evadir sua responsabilidade pela e na
vidacomumdo homem é umanegação da encarnação. (WCC1968:318).

Missão como evangelização"

Evangelização: uma pletora de definições


Nossa discussão sobre o significado e o escopo da salvação e sobre
a missão da igreja em relação à justiça social leva-nos, de uma forma quase
automática, a refletir sobre a natureza da evangelização. O conceito "evan-
gelizar" e seus derivados já existem, de fato, há muito mais tempo que a
palavra "missão" e, é óbvio, ocorrem com relativa freqüência no Novo Tes-
tamento (euangelizein [ou euangelizesthai] e euangelion). Mas esses
termos caíram quase em completo desuso durante a Idade Média (Barrett
1987:21s.). Mesmo hoje eles dificilmente são empregados em traduções
inglesas da Bíblia; euangelion geralmente se traduz como "gospel" [evan-
gelho] e euangelizesthai/euangelizein como "preach the gospel" [pregar
o evangelho]. Desde o início do século 19, o verbo "evangelizar" e seus
derivados "evangelismo" e "evangelização" foram, porém, reabilitados em
círculos da igreja e da missão. Eles se destacaram, especialmente, em torno
da virada do século devido ao slogan "A evangelização do mundo nesta
geração" (p. 30).
Após um declínio temporário de seu uso, da década de 20 até a de 60,
os termos tiveram de novo uma grande proeminência e têm sido amplamen-
te empregados desde 1970 em círculos protestantes (ecumênicos e evange-
licais) assim como católicos (Barrett 1987:60-66). Um "divisor de águas
decisivo" (p. 66) foi, nesse sentido, a publicação, em 1975, da Exortação
Apostólica Evangelii Nuntiandi, do papa Paulo VI; igualmente significati-
vas foram a Assembléia do eMI em Nairóbi, realizada no mesmo mês em
que se publicou a EN, e a publicação, em 1982, de Missão e evangeliza-
ção: uma afirmação ecumênica (ME). De fato, esses encontros e docu-
mentos marcam um importante reavivamento do interesse católico e pro-
testante na evangelização (cf. Gómez 1986:35).
No que conceme ao substantivo, vale observar que o movimento evan-
gelical protestante e os católicos romanos parecem preferir "evangeliza-
ção", enquanto que protestantes ecumênicos favorecem "evangelismo".
Empregarei "evangelismo" para me referir (a) às atividades implicadas na
difusão do evangelho (como quer que desejemos definir essas; veja abaixo)
ou (b) à reflexão teológica sobre essas atividades. "Evangelização" será
usada para designar (a) o processo de propagação do evangelho ou (b) a
extensão em que ele se encontra propagado (por exemplo, na frase "a evan-
490 - Rumo a uma missiologia relevante

gelização do mundo ainda não foi concluída") (cf. também Barrett 1982:826;
1987:25s.; Watson 1983b:7).
Permanece difícil, todavia, determinar com exatidão o que os autores
querem dizer com evangelismo ou evangelização. Barrett (1987:42-45) enu-
mera 79 definições, às quais se poderiam somar muitas outras. Falando em
termos genéricos, a controvérsia prevalece em duas áreas: as diferenças
(se existem) entre "evangelismo" e "missão", e o escopo ou a abrangência
do evangelismo. Além disso, essas questões apresentam uma estreita vin-
culação.
Em primeiro lugar, alguns sugerem que "missão" tem a ver com o
ministério dirigido a pessoas (especialmente àquelas do Terceiro Mundo)
que ainda não são cristãs, e "evangelismo" com o ministério àquelas (em
especial, no Ocidente) que não mais são cristãs. A existência desses "não
mais" cristãos reflete uma situação nova. Antes do iluminismo e da Era das
Descobertas, qualquer pessoa fora do Ocidente era pagã, enquanto que
todos no Ocidente eram considerados cristãos. Agora existem "não-cren-
tes" também no Ocidente. Sustenta-se, porém, que é necessária uma termi-
nologia diferente quando designamos o trabalho eclesiástico entre esses dois
grupos. A missão, sugere-se, está preocupada com a primeira conversão,
com a cristianização, com vocare, com um primeiro início, com o estrangei-
ro distante; o "evangelismo" lida com a reconversão, com a recristianiza-
ção, revocare, um novo começo, o próximo afastado (cf. Barth 1957). Den-
tro da cristandade (ocidental), pois, requer-se o evangelismo, não a missão.
As "missões domésticas" (evangelismo) são consideradas teologicamente
distintas da missão (no exterior). A diferenciação é, ao mesmo tempo, geo-
gráfica. Segundo Margull, "o traço distintivo da missão no exterior é pro-
clamar o evangelho onde ainda não existe igreja, onde o senhorio de Deus
jamais foi - historicamente - proclamado, onde pagãos constituem o alvo
do trabalho" (1963:275). A missão, portanto, ocorre em um ambiente pré-
cristão. Em contraposição a isso, Margull define o evangelismo, que ele
também distingue nitidamente da pregação "regular" da igreja a seus mem-
bros, como a proclamação do evangelho entre as pessoas que abandonaram
a igreja e estão vivendo em um ambiente pós-cristão, por exemplo, na Euro-
pa oriental (1962:277s.).
Margull reflete um amplo consenso existente em círculos católicos
romanos e protestantes (cf. Barth 1962:872-874; Ohm 1962:53-58; Ad Gen-
tes; Verkuyl1978b, passim). Concomitantemente, ele sustenta (p. 275-277)
que o "evangelismo" jamais deveria ter vida própria, porque é derivado da
realidade da missão no exterior e sempre é preciso vê-lo em estreita cone-
xão com esta. A "missão" permanece primordial, o "evangelismo", secun-
dário. Uma razão para essa "sincronização" entre missão e evangelismo
(Margull1962:274) reside no fato de a distinção entre o trabalho entre "não
ainda cristãos" ("missão") e "não mais cristãos" ("evangelismo") estar se
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 491

tomando cada vez mais tênue; existem agora também "ainda não cristãos"
(pessoas que não só estão distantes da igreja, mas que jamais tiveram vín-
culo com ela) no Ocidente, assim como há "não mais cristãos" (pessoas
que, uma vez, eram cristãs, mas se afastaram da igreja) nos tradicionais
territórios de "missão" (cf. também Gensichen 1971:237-240; Verkuyl
1978b:72-74).
Em segundo lugar, e somando-se à distinção que acabamos de iden-
tificar, há freqüentemente uma tendência de definir "evangelismo" de ma-
neira menos ampla do que "missão". E como católicos romanos e protes-
tantes ecumênicos se inclinaram a usar a palavra "missão" para designar
uma gama cada vez maior de atividades eclesiásticas (isso aconteceu, es-
pecialmente, na Assembléia do CMI em Uppsala), os evangelicais começa-
ram a evitar o termo "missão" e a usar apenas "evangelismo", também para
designar o empreendimento "no estrangeiro". Esse uso polêmico de "evan-
gelismo" pelos evangelicais sugeria que, na opinião deles, o CMI havia equi-
vocadamente ampliado o escopo do empreendimento original para o que é
hoje. Johnston (1978: 18), por exemplo, afirma: "Historicamente, a missão
da igreja se resume no evangelismo" (cf. McGavran 1983:17 - "Teologica-
mente, a missão era evangelismo mediante qualquer meio possível"). A
compreensão mais "inclusiva" do empreendimento, diz Johnston (p. 36),
começou efetivamente com a Conferência de Edimburgo, em 1910.
Em terceiro lugar, tem havido, nas últimas quatro décadas, mais ou
menos, uma tendência de entender "missão" e "evangelismo" como sinôni-
mos. A tarefa da igreja, seja no Ocidente ou no Terceiro Mundo, é uma só
e é secundário que a denominemos de "missão" ou de "evangelismo". No
que conceme aos evangelicais, isso já emerge nas definições de Johnston e
McGavran, os quais acabamos de citar". Nos círculos católicos romanos e
do CMI, existe uma tendência similar. Isso é atestado pela formação da
Comissão para a Missão Mundial e Evangelização, depois da Assembléia
do CMI realizada em Nova Délhi (1961); Philip Potter estava, portanto,
correto ao dizer que, na literatura ecumênica, "missão", "evangelismo" e
"testemunho" são, por via de regra, conceitos intercambiáveis. E um me-
morando católico romano afirma que "missão, evangelização e testemu-
nho são, atualmente, muitas vezes empregados por católicos como sinôni-
mos" (Memorandum 1982:460).
A confusão aumentou quando, em quarto lugar, o termo "evangelis-
mo" ou "evangelização" começou a substituir "missão" em anos recentes,
não apenas em círculos evangelicais conservadores, mas também entre
católicos romanos e protestantes ecumênicos. Para estes últimos, "evange-
lismo" ou "evangelização", entendidos como idênticos a "missão", eram
mais aceitáveis do que "missão" por causa das implicações colonialistas
ainda associadas com este termo (cf. Geffré 1982:479; Gómez 1986:36). O
exemplo mais rematado de "evangelização" suplantando "missão" pode en-
492 - Rumo a uma missiologia relevante

contrar-se em EN. O documento evita a palavra "missão" e, em sua tradu-


ção inglesa, emprega "evangelização" e seus cognatos não menos que 214
vezes (Barrett 1987:66). Compreende-se "evangelização" como um con-
ceito que abarca toda a atividade da igreja enviada ao mundo: "Um único
termo - evangelização - define a integralidade do ofício e mandato de Cris-
to" (EN 6; Snijders 1977:172; Geffré 1982:489; Scherer 1987:205). De ma-
neira idêntica, Geijbels (1978:73-82) entende evangelização como incluindo
proclamação, tradução, diálogo, serviço e presença. E Walsh (1982:92) afir-
ma que "desenvolvimento humano, libertação, justiça e paz são partes inte-
grantes do ministério da evangelização".
No caso dos evangelicais, "evangelismo" (ou, mais comumente, "evan-
gelização") é, muitas vezes, preferido a "missão" devido ao que os evange-
licais crêem que os ecumênicos entendem sob "missão" (ou por causa da
maneira como "missão" fora "reconceitualizada" em Uppsala [1968] e "im-
plementada" como "nova missão" em Bangcoc [1973] [Hoekstra 1979:63-
109]). Assim, quando Johnston (1978) escreve sobre "a batalha pelo evan-
gelismo mundial", e Hoekstra (1979), sobre "o desaparecimento do evange-
lismo" no CMI, eles manifestam uma preferência pelo termo "evangelis-
mo" em contraposição ao termo "missão".

Rumo a uma compreensão construtiva de evangelismo


Sinuosidades no significado como as que identificamos acima são
sintomáticas de um estado em que prevalece a fluidez constante no pensa-
mento missionário e do período de transição em que vivemos. No que se-
gue, tentarei esboçar uma compreensão de evangelismo que contribuirá,
assim espero, para o tipo de missão que seja relevante em nossos dias.
Básica para minhas considerações é a convicção de que missão e evange-
lismo não constituem sinônimos, mas, a despeito disso, estão indissoluvel-
mente vinculados e inextricavelmente entretecidos na teologia e na práxis.
1. Entendo a missão como sendo mais ampla que o evangelismo.
"A evangelização é missão, mas esta não é meramente aquela" (Moltmann
1977: 10; cf. Geffré 1982:478s.). Missão denota a tarefa global que Deus
incumbiu à igreja para a salvação do mundo, mas sempre relacionada a um
contexto específico de mal, desespero e perda de norte (como Jesus definiu
sua "missão", de acordo com Lucas 4.18s. - cf. também o capítulo 3 deste
estudo). Ela "abrange todas as atividades que servem para libertar o ho-
mem de sua escravidão na presença do Deus que vem, escravidão que se
estende da necessidade econômica ao abandono de Deus" (Moltmann
1977:10). Missão é a igreja enviada ao mundo, para amar, servir, pregar,
ensinar, curar, libertar.
2. O evangelismo não deveria, portanto, ser equiparado à mis-
são. Onde isso ocorre, surge a necessidade de complementar "evangelis-
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 493

mo" com neologismos como "pré-evangelização" e "reevangelização" (cf.


Rahner 1966:52s.; Gómez 1986:36), numa tentativa de introduzir elementos
que, de outra forma, poder-se-iam perder. Por conseguinte, é melhor pre-
servar o caráter distintivo do evangelismo dentro da missão mais abrangen-
te da igreja. Contudo, é impossível dissociá-lo da missão mais ampla da
igreja (Geffré 1982:480). O evangelismo é parte integrante da missão, "su-
ficientemente distinto, mas não separado dela" (Lõffler 1977a:341). Jamais
se poderá isolá-lo e tratá-lo como uma atividade completamente separada
da igreja. "Se ele não estiver relacionado a tudo que a igreja faz, então a
igreja é suspeita" (Spong 1982: 15). O evangelismo autêntico está inserido
na missão global da igreja, "o ato de tomar acessível o mistério do amor de
Deus por todas as pessoas dentro daquela missão" (Castro 1977: 10). O fato
de ME manter juntos a missão (ME 1-5) e o evangelismo (ME 6-8) correta-
mente impossibilita que se opte entre os dois.
3. O evangelismo pode ser visto como uma "dimensão" essencial
"da atividade global da igreja" (1954, Assembléia do CMI em Evanston,
cit. ap. Lõffler 1977b:8), como o coração ou o cerne da missão da igreja
(Lõffler 1977a:341). Se aceitarmos isso, temos que descartar a idéia, pro-
posta por Stott (1975) e pelo Pacto de Lausanne, de que o evangelismo é
um dos dois segmentos ou componentes da missão (sendo o outro a ação
social). Ao evangelismo jamais se poderá conceder uma vida própria, isola-
da do restante da vida e do ministério da igreja (cf. Castro 1978:88). À luz
disso e da aparente ausência de programas conspícuos de evangelização
nas igrejas membros do CMI, talvez seja precipitado falar sobre o "desapa-
recimento" do evangelismo no CMI (Hoekstra 1979).
4. O evangelismo implica testemunhar o que Deus fez, está fa-
zendo e fará. É assim que Jesus iniciou seu ministério evangelístico, de
acordo com os evangelhos sinóticos: "O tempo está cumprido, e o reino de
Deus está próximo" (Me 1.15). Evangelismo é anunciar que Deus, Criador
e Senhor do universo, interveio pessoalmente na história humana e o fez
derradeiramente através da pessoa e do ministério de Jesus de Nazaré, que
é o Senhor da história, o Salvador e o Libertador. Nesse Jesus, encarnado,
crucificado e ressuscitado, o reinado de Deus foi inaugurado (cf. ME 6,8).
O evangelismo inclui, portanto, os "eventos do evangelho" (Stott 1975:44s.).
Não se trata, essencialmente, de um chamamento a fim de pôr algo em
execução, como se o reinado de Deus fosse inaugurado por nossa resposta
ou obstaculizado pela ausência dela (cf. Kramm 1979:220). É uma resposta
a algo que Deus já realizou. Considerando isso, não se pode definir o evan-
gelismo em termos de seus resultados ou sua eficácia, como se ele apenas
tivesse ocorrido onde há "conversos". Dever-se-ia, antes, entender o evan-
gelismo em termos de sua natureza, como mediador da boa nova do amor
de Deus em Cristo que transforma a vida, proclamando, pela palavra e pela
ação, que Cristo nos libertou (cf. Gutiérrez 1988:xxxvii, xli).
494 - Rumo a uma missiologia relevante

5. Mesmo assim, o evangelismo objetiva uma resposta. Com base


na realidade da plenitude do tempo e da irrupção do reinado de Deus, Jesus
conclama seus ouvintes: "Arrependam-se e creiam no evangelho". "O chama-
mento visa a mudanças específicas, a renunciar a evidências do domínio do
pecado em nossas vidas e a aceitar responsabilidades em termos do amor
de Deus por nosso próximo" (ME 11); afinal, metano ia engloba a "transfor-
mação total de nossas atitudes e estilos de vida" (ME 12; cf. Costas 1989:112-
130). Dispensar a centralidade do arrependimento e da fé é despojar o evan-
gelho de sua significação. Conversão "implica um afastar-se de e um vol-
tar-se para" - "de uma vida caracterizada por pecado, separação de Deus,
submissão ao mal e potencial não realizado da imagem de Deus, para uma
vida nova caracterizada por perdão de pecados, obediência (...) comunhão
renovada com Deus na Trindade" (ME 12). A conversão é, ademais, um
processo contínuo, que se estende pela vida toda (cf. Lõffler 1977b:8).
6. O evangelismo sempre representa um convite (Lõffler 1977a:341;
Sundermeier 1986:72, 92). Evangelizar é comunicar alegria (Gutiérrez
1988:xxxvii). Transmite-se uma mensagem positiva; é esperança que esta-
mos oferecendo ao mundo (Margull1962:280). O evangelismo jamais deve-
ria deteriorar em engambelação, muito menos em ameaça. Evangelizar não
é o mesmo que (1) oferecer uma panacéia psicológica para as frustrações e
os desapontamentos das pessoas, (2) inculcar sentimentos de culpa para
que as pessoas (em desespero, por assim dizer) se voltem a Cristo, ou (3)
assustar as pessoas, a fim de que se arrependam e convertam, com estórias
sobre os horrores do inferno. As pessoas deveriam voltar-se a Deus porque
são atraídas por seu amor, não porque sejam empurradas a Deus pelo temor
do inferno. Só mediante nossa experiência da graça de Deus em Cristo
"conhecemos o terrível abismo de trevas em que nos precipitaremos se
colocarmos nossa confiança em algo que não seja aquela graça" (cf. New-
bigin 1982:151). Como se explicou no capítulo 4, é a "solução" em Cristo
que nos revela a "situação difícil" de que fomos salvos.
7. A pessoa que evangeliza é uma testemunha, não um juiz. Isso
acarreta conseqüências importantes para a avaliação de nosso próprio mi-
nistério evangelístico, pois, muitas vezes e com facilidade, dividimos as pes-
soas em "salvas" e "perdidas':. Newbigin o formula assim:
Jamais posso ter tanta confiança na pureza e na autenticidade de meu teste-
munho que me permita saber se a pessoa que rejeita meu testemunho rejei-
tou a Jesus. Sou testemunha daquele que é infinitamente santo e infinita-
mente gracioso. Sua santidade e sua graça se encontram tão além de minha
compreensão quanto estão da de meu ouvinte. (1982: 151).
8. Embora devamos ser modestos quanto ao caráter e à eficácia
de nosso testemunho, o evangelismo permanece um ministério indis-
pensável. Ele não representa um acessório opcional, mas um dever sagra-
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 495

do, "uma incumbência (da igreja) (...) Essa mensagem é, efetivamente, ne-
cessária. É única. Ela não pode ser substituída" (EN 5). Não é possível
supor que a dimensão evangelística da missão da igreja esteja incluída em
tudo que a igreja diz e faz; necessita-se tomá-la explícita (Watson 1983a:68s.).
"Toda pessoa tem o direito de ouvir a boa nova" (ME 10).
9. O evangelismo só pode acontecer quando a comunidade que
evangeliza - a igreja - é uma manifestação radiante da fé cristã e
exibe um estilo de vida atraente. "O meio é a mensagem" (Marshall
McLuhan). Segundo a Iniciativa Nacional em Evangelismo (britânica),
"o que somos e fazemos não é menos importante, nesse sentido, do que
aquilo que dizemos" (NIE 1980:3). Se a igreja deseja divulgar ao mundo
uma mensagem de esperança e amor, de fé, justiça e paz, algo disso deve
tomar-se visível, audível e tangível na própria igreja (cf. At 2.42-47; 4.32-
35). O testemunho de vida da comunidade dos crentes prepara o caminho
para o evangelho (cf. EN 59-61; veja também, uma vez mais, os critérios
para uma igreja missionária identificadospor Gensichen 1971:170-172).Onde
isso falta, a credibilidade de nosso evangelismo está perigosamente com-
prometida. "Quantos dos milhões de pessoas no mundo que não confessam
a Jesus Cristo rejeitaram-no pelo que viram na vida dos cristãos! Portanto,
o chamado à conversão deveria começar com o arrependimento da-
queles que realizam o chamamento, que fazem o convite" (ME 13 - o
grifo está no original). Essas palavras são especialmente pertinentes onde
uma comunidade cristã deixa de demonstrar que, em Cristo, Deus desfez
todas as barreiras que dividem a família humana. Nesse aspecto, em espe-
cial, o próprio ser da igreja possui um significado evangelístico, seja positivo
ou negativo (cf. Barth 1956:676s., 706s.).
10. O evangelismo oferece às pessoas a salvação como uma dá-
diva presente e, junto com ela, a garantia de bem-aventurança eterna.
As pessoas estão, mesmo que não o percebam, procurando desesperada-
mente um sentido para a vida e a história; isso as impele a buscar um sinal
de esperança em meio ao generalizado temor de uma catástrofe global e da
falta de sentido. Podemos, através de nosso evangelismo, mediar-lhes "uma
salvação transcendente e escatológica, que, de fato, tem seu princípio nesta
vida, mas alcança a plenitude na eternidade" (EN 27; cf. Memorandum
1982:463).
Mas se a oferta de tudo isso constituir o centro de nosso evangelis-
mo, degrada-se o evangelho a um artigo de consumo. É preciso, pois, que se
enfatize que o desfrute pessoal da salvação jamais representa o tema cen-
tral nas estórias bíblicas de conversão (cf. Barth 1962:561-614). Ali onde
cristãos se vêem como os que usufruem uma inefável e magnífica ventura
privada (p. 567s.), Cristo é facilmente reduzido a pouco mais do que um
"Fornecedor e Distribuidor" de bênçãos especiais (p. 595s.), e o evangelis-
496 - Rumo a uma missiologia relevante

mo, a um empreendimento que alenta a busca de um egocentrismo piedoso


(p. 572). Não que o usufruto da salvação seja equivocado, desprovido de
importância ou de base bíblica; mesmo assim, ele é quase incidental e se-
cundário (p. 572, 593). Não é simplesmente para receber vida que as pes-
soas são chamadas a se tornarem cristãs, mas, antes, para doar vida.
11. Evangelismo não é proselitismo (cf. Lõffler 1977a:340). Quan-
do foi fundada a Sacra Congregatio de Propaganda Fidei (1622), afir-
mou-se explicitamente que o interesse da nova organização estaria focado,
não em "não-cristãos", mas em "não-católicos"; de fato, até aproximada-
mente 1830, seu holofote estava voltado para a Europa protestante (Glazik
1984a:29s.). Com demasiada freqüência, portanto, utilizou-se o evangelis-
mo como um recurso para reconquistar influência eclesiástica perdida, tan-
to no catolicismo quanto no protestantismo. Especialmente em contextos
onde se vê a igreja (ou "a denominação") como composta de indivíduos que
optam livremente por pertencer a ela, existe uma sugestão implícita (e, às
vezes, explícita) de que a competição é necessária. Por conseguinte, as
pessoas da comunidade adjacente, quer pertençam ou não a outras igrejas,
são encaradas como "candidatos" a serem ganhos. Grande parte disso re-
flete a tendência de construir um império - a igreja "não consegue resistir à
tentação de abrir uma outra filial em uma área que parece promissora"
(Spong 1982: 13). Quer intencionalmente, quer não, essa mentalidade suge-
re que as pessoas não são salvas pela graça, mas por se tornarem membros
de nossa denominação.
12. Evangelismo não é o mesmo que extensão eclesiástica. Du-
rante o período em que estava em voga a máxima "não há salvação fora da
Igreja (Católica)", isso constituía a quintessência do evangelismo. Essa con-
cepção se encontra na base da encíclica Rerum Ecclesiae, do papa Pio XI
(1926). Evangelismo significava "acrescentar à Igreja Católica o maior nú-
mero possível de recém-batizados"; isso se processava em estágios, medi-
ante o catecumenato, o período probatório e a introdução à vida litúrgica da
igreja. O evangelismo era sinônimo de expansão da igreja através do incre-
mento numérico de membros. A conversão era uma questão de números.
Media-se o sucesso do evangelismo contando os batismos, as confissões e
as comunhões (Shorter 1972:2).
Também no protestantismo, entendia-se o evangelismo, em geral,
como extensão da igreja. Nos últimos anos, isso vale especialmente para o
Movimento de Crescimento da Igreja. McGavran pleiteia "um evangelismo
que proclame o evangelho, converta pecadores e multiplique a igreja"
(1983:71; cf. p. 21). Além disso, o propósito do crescimento eclesiástico é
mais crescimento eclesiástico. Aqueles que se tornam membros da igreja
devem granjear outros membros; esse é um aspecto importante, talvez o
aspecto principal do Novo Testamento (McGavran 1980:426). A "teologia
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 497

da colheita" deve ser priorizada frente à "teologia da semeadura" (p. 26-


30). O crescimento numérico ou quantitativo deveria constituir a prioridade
n° 1 num mundo em que vivem 3 bilhões de pessoas que não são cristãs. É
óbvio que as populações "resistentes" representam um problema para essa
abordagem. Ainda assim, McGavran não advoga uma retirada geral de áre-
as de baixa receptividade; ele acrescenta, porém, que esses campos deve-
riam ser ocupados brandamente e que os evangelistas se deveriam concen-
trar em populações "conversíveis" (p. 262).
Mas esse tipo de pensamento distorce o evangelismo, inclusive por-
que as razões pelas quais as pessoas se tomam membros da igreja podem
variar muito e é possível que, freqüentemente, pouco tenham a ver com um
compromisso com aquilo que a igreja supostamente defende. Uma congre-
gação em que as pessoas se parecem em tudo (Armstrong 1981:26) talvez
reflita a cultura prevalecente e seja um clube de folclore religioso em vez de
constituir uma comunidade alternativa em um ambiente hostil ou acomoda-
do. Isso aflora especialmente em situações onde o número de membros da
igreja está diminuindo e esta decide, relutantemente, que, se quiser continu-
ar no negócio, deve resignar-se a uma campanha evangelística. A atenção
do evangelismo não deveria, contudo, estar voltada para a igreja, mas para
o reinado de Deus que irrompe (cf. Snyder 1983:11, 29).
13. Distinguir entre evangelismo e recrutamento de membros não
significa, porém, sugerir que ambos estejam desconectados (Watson
1983a:71). Afinal, "faz parte do cerne da missão cristã fomentar a multipli-
cação de congregações locais em qualquer situação humana" (ME 25).
Não podemos ser indiferentes a números, pois Deus "não quer que nenhum
pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento" (2 Pe 3.9). Portanto,
AG 6 inclui com justeza a implantação e o crescimento eclesiásticos em sua
definição do objetivo da missão. A rejeição monomaníaca da igreja empírica
na teologia de Hoekendijk e em outras similares é totalmente inapropriada.
Sem a igreja, é impossível haver evangelismo ou missão.
Mas, para medir o grau de eficácia e responsabilidade do evangelis-
mo da igreja, as estatísticas sobre o número de membros são menos úteis
(Watson 1983a:73). Em verdade, um evangelismo autêntico e precioso pode
causar uma diminuição dos membros de uma igreja em vez de seu incre-
mento. Em certo sentido, portanto, o crescimento numérico constitui nada
mais que um subproduto que surge quando a igreja é fiel à sua vocação mais
profunda. Mais importante é o crescimento orgânico e "encamacional".
14. No evangelismo, "só é possível dirigir-se a pessoas, e só elas
podem responder", como o disse M. M. Thomas, moderador do CMI em
Nairóbi (ap. WCC 1976:233). Sem dúvida o evangelismo autêntico tem,
pois, uma dimensão pessoal. O evangelho é "o anúncio de um encontro
pessoal, mediado pelo Espírito Santo, com o Cristo vivo, recebendo-se seu
498 - Rumo a uma missiologia relevante

perdão e aceitando-se pessoalmente seu chamado ao discipulado" (ME 10).


Não é exato sustentar-se - como sói acontecer - que o individualismo seria
simplesmente uma "invenção" do Ocidente. Pelo contrário, o evangelho
cristão, necessariamente, enfatiza a responsabilidade e a decisão pessoais;
por isso, o individualismo na cultura ocidental é, primordialmente, fruto da
missão cristã. Rosenkranz (1977:407, valendo-se de E. E. Hõlscher e H.
Gollwitzer) afirma que isso constitui a única revolução real na estrutura da
natureza humana, uma vez que introduziu a doutrina do valor individual de
cada ser humano; por conseguinte, se as pessoas atualmente pensam e
agem como indivíduos livres e responsáveis - uma forma de pensamento
diametralmente oposta ao pensamento e à prática da Antigüidade - isso se
deve à influência do evangelho.
Visto que somente pessoas - indivíduos - podem responder ao evan-
gelho, falar de "evangelismo profético" como conclamação de "sociedades
e nações ao arrependimento e à conversão" (Watson 1983b:7) ou dizer que
o "chamamento à conversão, como um chamado ao arrependimento e à
obediência, também deveria ser dirigido a nações, grupos e famílias" (ME
12) significa confundir a questão. Principados e potestades, governos e na-
ções não podem chegar à fé - apenas indivíduos podem fazê-lo. Dessa
maneira, embora esse ministério seja necessário e constitua uma parte inte-
grante da missão, ele não é, estritamente falando, evangelismo.
Ainda assim, o evangelho não é individualista. O individualismo mo-
derno representa, em grande parte, uma perversão de como a fé cristã
compreende a centralidade e a responsabilidade do indivíduo. Como conse-
qüência do iluminismo e de seus ensinamentos, os indivíduos ficaram isola-
dos da comunidade que os gerou. No evangelismo, essa tendência tem pre-
dominado, especialmente, desde o ministério de D. L. Moody (1837-1899).
Para ele, o pecado era exclusivamente um assunto individual, e o pecador
se encontrava sozinho diante de Deus - um pecador que, nos Estados Uni-
dos democrático da época de Moody, possuía perfeitas condições de tomar
uma decisão e vencer o pecado (cf. Marsden 1980:37). Uma vez que se
compreendia o indivíduo como a unidade básica na obra da salvação, a
ênfase incidia cada vez mais na salvação de almas individuais. E passagens
bíblicas como a de Mt 16.26: "Que aproveitará o homem se ganhar o mundo
inteiro e perder sua alma?" foram interpretadas como apontando nessa di-
reção. As pessoas, contudo, jamais serão indivíduos isolados. Elas são seres
sociais, que jamais podem ser separados da rede de relacionamentos em
que vivem. E a conversão do indivíduo toca todas essas relações. Christian
Keysser (1980) reconheceu isso, durante os anos que passou em Papua
Nova Guiné, ao enfatizar sempre que o grupo social precisava estar envol-
vido na conversão de cada indivíduo.
15. O evangelismo autêntico sempre é contextual (Costas 1989,
passim). Um evangelismo que separa as pessoas de seu contexto vê o mun-
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 499

do não como um desafio, mas como um empecilho, desvaloriza a história e


somente consegue enxergar os "aspectos espirituais ou imateriais da vida"
(H. Lindsell, cit. ap. Scott 1980:94), é espúrio. O mesmo pode afirmar-se de
um evangelismo que expressa a conversão unicamente em termos microé-
ticos, como o comparecimento regular à igreja, a abstinência de álcool e
fumo bem como a leitura bíblica e orações diárias (cf. Wagner 1979:3; para
uma crítica dessa concepção, cf. Scott 1980:155s., 220-222), ou que limita a
mensagem evangelística a uma oferta de libertação da solidão, de paz de
espírito e de sucesso em tudo que empreendemos (cf. Scott 1980:208s.).
Deveras, grande parte do assim chamado evangelismo, aparentemente, visa
satisfazer as pessoas em lugar de transformá-las. No Ocidente (pelo menos
no passado), o cristianismo costumava ser identificado com respeitabilidade
social. As igrejas contavam com prestígio público. Nesse aspecto, o evan-
gelismo lhes prestava um auxílio: "A pressão comunitária dominante torna-
va pertencer à igreja não apenas uma necessidade, mas também indicativo
de civilização, boas maneiras e vida decente" (Spong 1982:12). Boa parte
dessa mentalidade fora exportada à África e a outras partes do Terceiro
Mundo. A igreja existia para os que desejavam ascender na pirâmide social;
tornar-se cristão significava identificar-se com o etos e o sistema de valores
dos que aspiravam à classe média.
Tudo isso se encontra muito distante do evangelismo genuíno e acar-
retou uma conversão à cultura predominante, não ao Cristo dos evange-
lhos. Em boa parte da "igreja eletrônica", batiza-se o materialismo. O Jesus
do reavivamentismo parece ter mais afinidade com a Câmara de Comércio
e o mundo do entretenimento do que com uma simples gruta em Belém ou
com uma tosca cruz sobre uma colina árida (Armstrong 1981:22,41,49).
Os pregadores se afastam de questões sociais controvertidas e concen-
tram-se naqueles pecados pessoais de que a maioria de seus entusiasmados
ouvintes não são culpados. Ora, que critério decide que o racismo e a injus-
tiça estrutural são questões sociais, mas a pornografia e o aborto pertencem
ao âmbito individual? Por que a política é evitada e declarada como extrapo-
lando a competência do evangelista, exceto quando ela favorece a posição
dos privilegiados na sociedade? Como é possível que pregadores que apa-
rentam interessar-se unicamente pelo destino "metaterrenal" de seus ou-
vintes sejam tão completamente terrenos em seu etos e seus métodos?
É claro que, para as pessoas que estão experimentando uma tragédia
pessoal, o vazio, a solidão, a alienação e a falta de sentido na vida, o evange-
lho significa, de fato, paz, consolo, plenitude e alegria. Mas o evangelho só
oferece isso dentro do contexto que implica ser ele uma palavra sobre o
senhorio de Cristo em todas as esferas da vida, uma palavra autorizada de
esperança no sentido de que o mundo, como o conhecemos, não será sem-
pre como é agora.
16. Por causa disso, o evangelismo não pode ser divorciado da
500 - Rumo a uma missiologia relevante

pregação e prática da justiça. Essa é a deficiência da concepção segun-


do a qual se confere prioridade absoluta ao evangelismo frente ao engaja-
mento social, ou onde o evangelismo é apartado da justiça, mesmo que se
sustente que, junto com a justiça social, ele constitua a "missão". Se enten-
dermos o evangélismo não como um mero recrutamento de membros para
a igreja, não como uma simples oferta de salvação eterna a almas individu-
ais e não como uma tentativa de apressar o retomo de Cristo, ele não pode
ser divorciado da missão mais abrangente da igreja. E mesmo se incluímos
o recrutamento de novos membros e a oferta da salvação eterna no objetivo
da missão, permanece a pergunta: para que as pessoas estão se tomando
membros da igreja? Para que os indivíduos estão sendo salvos?
Em nossas reflexões sobre o uso que Mateus faz do termo "discípu-
lo" (capítulo 2), foi sugerido que tomar-se discípulo de Jesus implica toda
uma gama de compromissos. Significa, primordialmente, aceitar um com-
promisso com Jesus e o reinado de Deus. Em seu âmago, o convite de Jesus
para que as pessoas o sigam e se tomem seus discípulos é a pergunta a
quem elas desejam servir. O evangelismo é, pois, um chamado ao serviço.
Isso não deve ser contraposto às bênçãos - inclusive bênçãos eternas - que
o novo converso receberá; em verdade, não faz sentido jogar uma perspec-
tiva contra a outra. Mas como a perspectiva da bem-aventurança eterna é
a que geralmente tem sido enfatizada, é urgente que se sublinhe, com a
mesma veemência, a perspectiva do serviço ao reino. Nas palavras de Scott,
um convite evangelístico orientado para o discipulado
incluirá um chamamento para se aliar ao Senhor vivo na obra de seu reino.
Ele chamará a atenção para as aspirações de homens e mulheres comuns da
sociedade, para seus sonhos de justiça, segurança, estômagos saciados,
dignidade humana e oportunidades para seus filhos. Ele dará, sem rodeios,
nome aos "principados e potestades" que se opõem ao Reino. (1980:212).
Evangelismo significa, portanto, angariar pessoas para o reinado de
Deus, libertando-as de si mesmas, de seus pecados e de seus enredamen-
tos, a fim de que sejam livres para Deus e o próximo. Ele conclama indivídu-
os para uma vida de abertura, vulnerabilidade, integralidade e amor (cf.
Spong 1982: 15; Snyder 1983: 146). Ganhar pessoas para Jesus significa ga-
nhar sua dedicação às prioridades de Deus. Deus deseja não apenas que
sejamos resgatados do inferno e redimidos para o céu, mas também que em
nós - e, através de nosso ministério, igualmente na sociedade em tomo de nós
- a "plenitude de Cristo" seja recriada, a imagem de Deus seja restaurada em
nossas vidas e relacionamentos. PL 4 expressou-o bem ao dizer:
Ao fazermos o convite do evangelho, não temos a liberdade de ocultar o
custo do discipulado. Jesus ainda conclama todos os que querem segui-lo a
negar-se a si mesmos, a tomar sobre si sua cruz e a identificar-se com a nova
comunidade dele.
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 501

Evangelismo, portanto, é chamar as pessoas à missão.


17. O evangelismo não é um mecanismo para apressar a volta de
Cristo, como sugerem alguns (por exemplo, Johnston 1978:52). A introdu-
ção do eschaton tem sido um tema missionário importante desde as últimas
décadas do século 19. Agências como a "China Inland Mission" (Hudson
Taylor) e a "Regions Beyond Missionary Union" (Grattan Guinness) foram
formadas porque seus fundadores acreditavam - baseados numa interpre-
tação biblicista de Mateus 24.14 - que o retomo de Cristo dependia da
conclusão da proclamação do evangelho a todos os povos do mundo (cf.
Beaver 1961). Johnson (1988) descreve o crescente entusiasmo, especial-
mente entre 1887 e 1893, pela idéia da evangelização do mundo todo antes
do ano de 1900 (p. 24-44), mas também o declínio depois de 1893, quando
se tomou claro que a meta era inatingível (p. 45-50). A maioria dos líderes
do movimento, como A. T. Pierson, A. B. Simpson e H. Grattan Guinness,
definiam o evangelismo estritamente em categorias individualistas e verba-
listas e rejeitavam qualquer idéia de os missionários se envolverem em ou-
tros projetos ou em estruturas da sociedade (p. 53-55). Acreditava-se que a
mera pregação da palavra traria os milhões do mundo ao aprisco dos redi-
midos e aceleraria a segunda vinda de Cristo.
Barrett e Reapsome (1988) calculam que houve, de fato, desde o
início da era cristã, 788 "planos globais" para evangelizar o mundo e que a
maioria deles estava intimamente relacionada com expectativas escatológi-
cas. O slogan "a evangelização do mundo nesta geração", popularizado
por John R. Mott por volta do início do século 20, não interpretou especifica-
mente o evangelismo como introdução da parúsia, mas apresentava, com
certeza, nuanças apocalípticas. Dos quase 800 planos identificados por Bar-
rett e Reapsome, apenas aproximadamente 250 ainda existiam em 1988.
Mas, à medida que se aproxima o terceiro milênio, mais e mais planos novos
são lançados, e, virtualmente, todos eles vinculam o evangelismo à parúsia.
Muitas vezes, expressam-se expectativas em termos pré-milenaristas. A
literatura evangelical contemporânea está repleta de contribuições sobre "a
evangelização do mundo antes do ano 2000". Modernas tecnologias, mor-
mente computadores, são utilizadas não apenas para avaliar as dimensões
gigantescas da tarefa, mas também para traçar estratégias eficazes. Um
desses planos, chamado DAWN ("Discipling A Whole Nation"), parte da
premissa de que necessitamos de uma igreja para cada mil pessoas a fim de
evangelizar o mundo de forma efetiva; como haverá aproximadamente 7
bilhões de pessoas até o ano 2000, a estratégia do DAWN é facilitar a
implantação de igrejas com o objetivo de chegar a um total de 7 milhões até
o final do século (Montgomery 1989). Várias conferências concentraram
sua atenção em um objetivo similar. Em 1980, realizou-se, em Edimburgo,
uma "Consulta Mundial sobre Missões de Fronteira"; ela formulou sua meta
como "Uma Igreja para Cada Povo até o Ano 2000". Uma conferência
502 - Rumo a uma missiologia relevante

semelhante aconteceu em São Paulo, em 1987, focada, em grande parte,


mas não exclusivamente, na América Latina. Em janeiro de 1989, reuniu-
se, em Singapura, uma "Consulta Global sobre Evangelização Mundial até
2000 d.C e além". E o programa de Lausanne Il, a conferência do Comitê
de Lausanne para a Evangelização Mundial realizada em Manila, em julho
de 1989, incluiu uma "Trilha 2000 d.C."l?
Mas, como sustentou Glasser (1989), todo esse projeto e sua fascina-
ção com o ano 2000 são altamente questionáveis. Ele parte da duvidosa
premissa de que a economia mundial crescerá ainda mais, de que a renda
paraeclesiástica subirá enormemente e de que os principais portadores da
missão nas décadas vindouras ainda serão agências missionárias do tipo
ocidental (p. 6). Mais relevantes, todavia, são as deficiências teológicas
nessa filosofia, especialmente porque esse tipo de evangelismo parece igno-
rar deliberadamente a crescente pobreza e injustiça no mundo.
18. O evangelismo não é apenas proclamação verbal (como su-
gere Watson 1983b:6s.; cf. Me Gavran 1983:190). Mesmo assim, o evange-
lismo possui uma dimensão verbal da qual não é possível escapar. Em uma
sociedade marcada pelo relativismo e pelo agnosticismo, faz-se necessário
dizer o Nome dAquele em quem cremos. Os cristãos são desafiados a pres-
tar contas da esperança que existe neles (cf. 1 Pe 3.15); a vida deles não é
transparente de chega para que outros reconheçam a fonte dessa esperança.
Não existe, contudo, uma única maneira de testemunhar Cristo. A
palavra, portanto, jamais pode estar divorciada da ação, do exemplo, da
"presença cristã", do testemunho de vida. É a "palavra encarnada" que
constitui o evangelho. A ação sem a palavra é muda; a palavra sem a ação
é vazia. Palavras interpretam ações, e ações validam palavras, o que não
significa que cada ação tenha que se fazer acompanhar de uma palavra ou
vice-versa (Newbigin 1982:146-149; JongeneeI1986:8).
Se tentamos agora, finalmente, uma definição de evangelismo, é im-
portante que não delineemos o conteúdo de nosso evangelismo de uma for-
ma demasiadamente exata, precisa e autoconfiante (R. Jones, in NIE
1980:28). Não é possível apresarmos o evangelho e empacotá-lo em quatro
ou cinco "princípios". Não há um plano-mestre universalmente aplicável
para o evangelismo, uma lista definitiva de verdades que as pessoas apenas
necessitam adotar para serem salvas. Jamais podemos limitar o evangelho
à nossa compreensão de Deus e da salvação. Só nos é possível testemu-
nhar, de maneira concomitantemente ousada e humilde, nossa compreensão
desse evangelho. Mas, "quando refletimos, humilde porém alegremente, o
amor reconciliador de Deus para com toda a humanidade, em amizade e
respeito mútuo, o Espírito Santo se utiliza de nosso testemunho e serviço
para que se conheça a Deus" (NIE 1980:3).
Conscientes da natureza essencialmente preliminar de nosso ministé-
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 503

rio evangelístico, mas, ao mesmo tempo, sabedores da inevitável necessida-


de de estarmos envolvidos nesse ministério, podemos, então, resumir o evan-
gelismo como aquela dimensão e atividade da missão da igreja que, através
da palavra e da ação e à luz de condições específicas e de um contexto
singular, oferece a toda pessoa e comunidade, em qualquer lugar, uma opor-
tunidade válida de ser diretamente desafiada a uma radical reorientação de
sua vida, uma reorientação que implica coisas como ser libertado da escra-
vidão do mundo e de seus poderes; aceitar a Cristo como Salvador e Se-
nhor; tomar-se um membro vivo de sua comunidade, a igreja; ser arrolado
em um serviço de reconciliação, paz e justiça na terra, e comprometer-se
com o propósito de Deus de colocar tudo sob o senhorio de Cristo.

Missão como contextualização

A gênese da teologia contextual


A palavra "contextualização" foi cunhada, pela primeira vez, no iní-
cio da década de 1970, nos círculos do Fundo para a Educação Teológica,
visando especificamente à tarefa da educação e formação de pessoas para
o ministério eclesiástico (cf. Ukpong 1987:163). Logo se tomou termo cor-
rente e abrangente para designar uma série de modelos teológicos. Ukpong
(1987: 163-168; cf. Schreiter 1985:6-16; Waldenfels 1987) identifica dois ti-
pos principais de teologia contextual, ou seja, o modelo de indigenização e o
socioeconômico. Cada um deles pode dividir-se novamente em dois subti-
pos: a indigenização se apresenta ou como modelo de tradução ou de incul-
turação; o modelo socioeconômico de contextualização pode ser evolucio-
nário (teologia política e teologia do desenvolvimento) ou revolucionário (te-
ologia da libertação, teologia negra, teologia feminista, etc.). Na parte que
se segue, usar-se-á essa definição ampla de teologia contextual e se realça-
rão sua natureza e suas qualidades como manifestação de um novo paradig-
ma. Mas modificarei um pouco a caracterização de Ukpong. Em minha
opinião, apenas o modelo de inculturação do primeiro tipo e o modelo revo-
lucionário do segundo qualificam-se como teologias contextuais em si. Em
duas seções subseqüentes, recapitular-se-ão a teologia da libertação e a
inculturação.
Um argumento básico deste livro tem sido, desde seu princípio, que a
mensagem missionária da igreja cristã encarnou-se na vida e no mundo das
pessoas que a aceitaram. Mas faz só pouco tempo que essa natureza es-
sencialmente contextual da fé foi reconhecida. Durante muitos séculos, todo
desvio do que era declarado por qualquer grupo como sendo a fé ortodoxa
era visto como heterodoxia, inclusive como heresia. Esse foi o caso especi-
almente depois que a igreja cristã se estabeleceu no Império Romano. O
arianismo, donatismo, pelagianismo, nestorianismo, monofisismo e numero-
504 - Rumo a uma missiologia relevante

sos movimentos similares foram todos considerados doutrinariamente hete-


rodoxos e seus seguidores foram excomungados, perseguidos ou expulsos.
Não se reconhecia o papel de fatores culturais, políticos e sociais na gênese
de tais movimentos. O mesmo ocorreu por ocasião do Grande Cisma, no
ano de 1054; doravante, as igrejas do Oriente e do Ocidente se declarariam
mutuamente não-ortodoxas em termos teológicos. A história se repetiria no
século 16 quando, após a Reforma, protestantes e católicos se negariam a
chamar uns aos outros de "cristãos". Nos séculos seguintes, empregaram-
se as formulações do Concílio de Trento e das diversas confissões protes-
tantes como pedras de toque para determinar a diferença entre formula-
ções doutrinais aceitáveis e inaceitáveis.
Sob a influência do espírito grego, consideraram-se as idéias e os
princípios como anteriores e mais relevantes do que sua "aplicação". Esta
constituía um passo segundo e secundário e servia para confirmar e legiti-
mar a idéia ou o princípio, que se compreendiam como supra-históricos e
supraculturais. As igrejas se arrogavam o direito de determinar qual era a
verdade "objetiva" da Bíblia e de dirigir a aplicação dessa verdade intempo-
ral ao cotidiano dos crentes. O advento do iluminismo trouxe um novo vigor
a essa abordagem. No paradigma kantiano, por exemplo, a razão "pura" ou
"teórica" era superior à "razão prática".
A concepção de Bacon originou uma abordagem complementar. Aqui,
o pensamento dedutivo anterior deu lugar a um método indutivo ou empírico
na ciência. Em vez de partir de princípios e teorias classicamente derivados,
começava-se agora com a observação. Em círculos eclesiásticos e teológi-
cos nos quais se adotou esse método (e que, com o passar do tempo, deno-
minou-se de liberal), credos e dogmas não mais eram julgados com base em
sua conformidade à verdade eterna, mas em termos de sua utilidade (cf.
Stackhouse 1988:92s.). As "igrejas", no sentido de entidades que reivindi-
cam uma correspondência última e incontestável entre seus próprios ensi-
namentos e a revelação divina, tomaram-se "denominações", agrupamen-
tos de indivíduos com mentalidade afim, cada uma das quais concedia,
magnanimamente, às outras o direito de existir e praticar sua fé como lhes
aprouvesse. As denominações coexistiam pacificamente. Os debates não
mais se centravam no que era verdadeiro, mas naquilo que, em termos
práticos (mais especificamente, pragmáticos), era o mais certo a fazer.
Não se preferia a fé cristã porque fosse a única religião verdadeira, mas
porque era manifestamente a melhor (cf. Dennis 1887, 1899, 1906).
Essas duas abordagens eram, cada uma à sua maneira, tentativas de
resgatar a teologia como "ciência". Para ambas, a teologia permanecia um
conhecimento racional. Ambas eram respostas ao desafio do iluminismo e,
mais especificamente, à crescente consciência do "horrível fosso" (G. E.
Lessing) que se abrira entre a época e a cultura da Bíblia e o radicalmente
distinto mundo moderno. Cada qual sentia a história como uma ameaça,
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 505

visto que a distância entre o então e o agora estava se tomando cada vez
mais intransponível. Ao mesmo tempo, não se poupavam esforços no senti-
do de transpor o "horrível fosso". Infatigavelmente, biblistas pesquisavam
os antigos textos com o intuito de revelar a intenção do autor e, dessa forma,
alinhar, por assim dizer, a leitora moderna na companhia imediata do autor
original, para que ela pudesse ouvir o autor sem os obstáculos dos eventos
da história intermediária. À moda verdadeiramente iluminista, entendia-se a
ciência como sendo cumulativa; se os estudiosos apenas insistissem o sufi-
ciente e ajuntassem mais e mais dados, eles chegariam ao ponto em que o
texto original e a intenção do autor original ficariam estabelecidos além de
qualquer dúvida razoável.
Friedrich Schleiermacher (1768-1834) foi um dos primeiros teólogos
a dar-se conta que havia algo fundamentalmente equivocado com todo esse
modus operandi. Ele não interpretava a Reforma protestante como uma
tentativa de restaurar a igreja primitiva ou apostólica. O que uma vez existiu
não pode ser simplesmente trazido de volta em um período posterior. A
igreja cristã está sempre no processo de tomar-se; a igreja do presente é
tanto o produto do passado quanto a semente do futuro. Por esse motivo, a
teologia não pode constituir-se em uma tentativa de reconstruir o pristino
passado e suas verdades; pelo contrário, a teologia é uma reflexão sobre a
vida e experiência da própria igreja (quanto a referências, cf. Gerrish
1984:194-196, 201).
Assim, Schleiermacher foi o pioneiro a perceber que toda teologia
era influenciada, se não determinada, pelo contexto em que evoluíra. Nunca
houve uma mensagem "pura", supracultural e supra-histórica. Era impossí-
vel penetrar até um resíduo da fé cristã que já não fosse, em certo sentido,
interpretação. Todo texto, reconhecia-se, tinha um Sit: im Leben singular,
que a estudiosa deveria determinar, em especial com a ajuda da crítica das
formas. Durante o século 19 e, especialmente, no século 20, o reconheci-
mento da maneira como a teologia era condicionada por seu ambiente tor-
nou-se corrente em círculos teológicos críticos. Os capítulos 1 a 4 deste
estudo mostraram que isso valia inclusive para os próprios escritos neotes-
tamentários mais antigos.
Mas nem Schleiermacher nem os especialistas em análise morfocrí-
tica, como Bultmann, foram capazes de dar o passo seguinte. Eles não per-
ceberam que suas próprias interpretações eram tão paroquiais e condicio-
nadas por seu contexto quanto o eram as daqueles que estavam criticando.
Suas explicações dos textos bíblicos serviam, pois, inconscientemente, para
legitimar concepções e posições predeterminadas. Martin (1987:379s.) ex-
plica o problema em relação a teólogos profissionais como, p. ex., os mem-
bros da Sociedade de Estudos Neotestamentários [Society for New Testa-
ment Studies - SNTS]. Ao conduzir suas atividades, a SNTS preserva um
razoável grau de equilíbrio, com flutuações apenas secundárias, e está satis-
506 - Rumo a uma missiologia relevante

feita com os padrões acadêmicos que mantém. Isso se deve principalmente à


sua composição: seus membros são predominantemente homens e brancos.
Se, contudo, a SNTS admitisse em suas fileiras um grande número de intér-
pretes feministas, de estudiosos judeus ou de expoentes da teologia da liberta-
ção, isso provocaria, gradualmente, uma alteração significativa no sistema.
Onde se reconhece esse estado de coisas, os estudiosos podem con-
seguir avançar para além das importantes conquistas do método histórico-
crítico e dos especialistas em crítica das formas e da redação dos meados
do século 20. Paul Ricoeur e outros críticos literários recentes propuseram,
de muitas maneiras, a concepção de que cada texto é um texto interpretado
e que, de certa forma, a leitora "cria" o texto quando o lê. O texto não
apenas está "lá fora", esperando para ser interpretado; o texto "toma-se" à
medida que nos envolvemos com ele. E, mesmo assim, essa nova aborda-
gem hermenêutica também não avança o suficiente. Interpretar um texto
não é apenas um exercício literário; também é um exercício social, econô-
mico e político. Todo o nosso contexto entra em jogo quando interpretamos
um texto bíblico. É preciso, pois, conceder que qualquer teologia (ou soci-
ologia, teoria política, etc.) é, por sua própria natureza, contextual.
A verdadeira ruptura, nesse sentido, veio com as teologias do Tercei-
ro Mundo, em suas diversas formas. Esse evento foi visto como tão funda-
mental, que Segundo (1976) o designou como "a libertação da teologia". A
teologia contextual representa, efetivamente, uma mudança paradigmática
no pensamento teológico (cf. Frostin 1988:1-26).

A ruptura epistemológica
As teologias contextuais reivindicam constituírem uma ruptura epis-
temológica quando comparadas com as teologias tradicionais. Enquanto,
pelo menos desde o tempo de Constantino, a teologia era conduzida a partir
de cima como um empreendimento elitista (exceto no caso de comunidades
cristãs minoritárias, geralmente chamadas de seitas), sua fonte principal
(além da Escritura e da tradição) era a filosofia e seu mais importante
interlocutor era o não-crente-educado, a teologia contextual é teologia "a
partir de baixo", "do reverso da história" e sua principal fonte (além da
Escritura e da tradição) são as ciências sociais e seu interlocutor mais
importante é o pobre ou o culturalmente marginalizado (cf. também Frostin
1988:6s.).
Igualmente importante na nova epistemologia é a ênfase na priorida-
de da práxis. A teologia, diz Gutiérrez, é "reflexão crítica sobre a práxis
cristã à luz da palavra de Deus" (1·988:xxix) ou "reflexão crítica sobre a
palavra de Deus recebida na igreja" (xxxiii). Sergio Torres explica a dife-
rença entre a tradicional epistemologia ocidental e a epistemologia emer-
gente da seguinte maneira:
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 507

A forma tradicional de conhecer considera a verdade como a conformidade


da mente a um determinado objeto, o que faz parte da influência grega na
tradição filosófica ocidental. Esse conceito de verdade apenas se conforma
ao mundo existente e o legitima. Mas há uma outra maneira de conhecer a
verdade - a dialética. Nesse caso, o mundo não constitui um objeto estático
com que a mente humana se confronta e tenta compreender; pelo contrário,
o mundo é um projeto não-concluído e em construção. O conhecimento não
é a conformidade da mente ao objeto, mas uma imersão nesse processo de
transformação e construção de um novo mundo. (In: Appiah-Kubi & Torres
1979:5).
As seguintes características da nova epistemologia emergem da afir-
mação pragmática acima:
Em primeiro lugar, há uma profunda suspeita de que não só a ciência
e a filosofia ocidentais, mas também a teologia ocidental, seja ela conserva-
dora ou liberal, a despeito de (ou por causa de?) reivindicarem que o conhe-
cimento era neutro, destinavam-se, em verdade, a servir os interesses do
Ocidente, mais especificamente, a legitimar "o mundo agora existente". Aqui
a "hermenêutica da suspeita" de Nietzsche é radicalizada e aplicada, em
especial, à erudição ocidental em todas as suas formas, uma vez que evoluiu
no sentido de justificar a dominação imperialista (cf. Segundo 1976). Mes-
mo onde isso tenha acontecido de forma não-intencional ou "inocente", é
hora de "dizer adeus" a esse tipo de inocência (cf. o título de Boesak 1977),
pois não passa de pseudo-inocência (veja também Frostin 1988:151-169).
Em segundo lugar, a nova epistemologia nega-se a endossar a idéia
de que o mundo seja um objeto estático que precise apenas ser explicado.
Como Marx, ela afirma: "Os filósofos somente tentaram interpretar o mun-
do; o que importa, contudo, é transformá-lo." É a história e o mundo huma-
no e físico que devem ser levados a sério, não a meta-história ou a metafí-
sica.
Implícita na afirmação de Torres, e elaborada detalhadamente por
muitos teólogos contextuais, encontra-se, em terceiro lugar, uma ênfase no
compromisso como "o primeiro ato da teologia" (Torres e Fabella 1978:269)
- mais especificamente, compromisso com os pobres e marginalizados. O
ponto de partida é, portanto, a ortopráxis, não a ortodoxia. A ortopráxis, nas
palavras de Lamb,
objetiva transformar a história humana, redimindo-a mediante um conheci-
mento nascido de um amor capacitador do sujeito e doador de vida, que
acaba com os preconceitos que, desnecessariamente, vitimam milhões de
nossos irmãos e irmãs. Vox victimarum vox Dei. Os clamores das vítimas são
a voz de Deus. Na medida em que não se ouvem esses clamores devido a
nossas celebrações ou contendas políticas, culturais, econômicas, sociais e
eclesiais,já iniciamos um descenso ao inferno. (1982:22s.).
Em quarto lugar, nesse paradigma, a teóloga não pode ser mais "um
508 - Rumo a uma missiologia relevante

pássaro solitário sobre o telhado" (Barth 1933:40), que observa e avalia este
mundo e sua agonia; ela só pode teologizar com credibilidade se o faz com
as pessoas que sofrem.
Em quinto lugar, pois, enfatiza-se o fazer teologia. A reivindicação
universal da hermenêutica da linguagem precisa ser contestada por uma
hermenêutica da ação, porque fazer é mais importante que saber ou falar.
Nas Escrituras, são bem-aventuradas as pessoas que agem (cf. Míguez
Bonino 1975:27-41). Não existe, em verdade, "conhecimento exceto na pró-
pria ação, no processo de transformar o mundo através da participação na
história" (p. 88).
Por último, essas prioridades são elaboradas na teologia contextual
mediante um círculo (ou, melhor, circulação) hermenêutico (cf. Segundo
1976:7-38). A circulação inicia com a experiência, com a práxis, o que, no
caso da maioria das pessoas do Terceiro Mundo ou daquelas que se encon-
tram na periferia de poder do Primeiro e do Segundo Mundos, é uma expe-
riência de marginalização. Allan Boesak afirma que "a experiência negra
fornece o contexto dentro do qual os negros entendem a revelação de Deus
em Jesus Cristo. Nada mais, nada menos" (1977: 16). A Associação Ecu-
mênica de Teólogos e Teólogas do Terceiro Mundo (AETT) concorda: "A
experiência do Terceiro Mundo como fonte da teologia deve ser levada a
sério" (Fabella e Torres 1983:200).
A partir da práxis ou experiência, a circulação hermenêutica avança
para a reflexão como ato segundo (não secundário - cf. Gutiérrez 1988:xx-
xiii) da teologia. A seqüência tradicional, em que a theoria é elevada acima
da práxis, é invertida aqui. Isso não implica, naturalmente, uma rejeição da
theoria. Em termos ideais, deveria haver uma relação dialética entre teoria
e práxis. "A fé e a missão concreta e histórica da igreja são mutuamente
dependentes" (Rütti 1972:240). A relação entre teoria e práxis não é uma
relação de sujeito com objeto, mas uma relação de intersubjetividade (cf.
Ne11988: 184). Onde isso ocorre, a teologia contextual é um claro exemplo
do paradigma que está emergindo em todas as disciplinas. Tradicionalmen-
te, o pensamento e a razão estavam firmemente situados num lado e o ser e
a ação no outro. Segundo Kuhn (1970), porém, o novo paradigma não mais
vê o pensamento como anterior ao ser, ou a razão como anterior à ação;
pelo contrário, eles subsistem e soçobram juntos (cf. Lugg 1987:179-181).
Nas melhores teologias contextuais, não é mais possível, portanto, justapor
teoria e práxis, ortodoxia e ortopráxis: "A ortopráxis e a ortodoxia necessi-
tam uma da outra, e cada uma delas é afetada negativamente quando se
perde de vista a outra" (Gutiérrez 1988:xxxiv). Ou, como o expressa Sa-
muel Rayan: "Em nossa metodologia, prática e teoria, ação e reflexão, dis-
cussão e oração, movimento e silêncio, análise social e hermenêutica religi-
osa, engajamento e contemplação constituem um único processo" (cit. ap.
Fabella e Torres 1983:xvii).
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 509

As ambigüidades da contextualização
Não pode haver dúvida de que o projeto da contextualização é essen-
cialmente legítimo, considerando-se a situação em que muitas teólogas con-
textuais estão vivendo. "Os teólogos da libertação", afirma Dapper (1979:92),
"vivem em uma situação emergencial; estão engajados na missão, falam,
pregam e agem em uma situação de emergência. Eles não têm mais neces-
sidade de deliberar o que deveria acontecer em caso de uma emergência."
Tendo-se em vista isso, "não há uma teologia social ou politicamente neutra;
na luta pela vida e contra a morte, a teologia precisa tomar partido" (Míguez
Bonino 1980:1155).
Mas algumas ambigüidades permanecem, principalmente na medida
em que existe, na teologia contextual, uma tendência de reagir extremada-
mente numa das duas maneiras identificadas no capítulo 11 deste estudo -
nesse caso, de romper nitidamente com o passado e negar a continuidade
com seus antepassados em sentido teológico e eclesial. Tentarei explicar.
1. Missão como contextualização é uma afirmação de que Deus
se voltou para o mundo (cf. o título de Schmitz 1971). Tão logo que fale-
mos de Deus, o mundo, como teatro de sua atividade, já está incluído na
discussão (Hoekendijk 1967a:344). A situação histórica mundial não é sim-
plesmente uma condição exterior da missão da igreja; pelo contrário, deve-
se incorporá-la como elemento constitutivo em nossa compreensão de mis-
são, de seu propósito e de sua organização (Rütti 1972:231). Tal postura
concorda plenamente com a compreensão que Jesus tinha de sua missão,
como se reflete em nossos evangelhos; ele não subiu para alturas celestiais,
mas mergulhou nas circunstâncias inteiramente reais dos pobres, dos cati-
vos, dos cegos e dos oprimidos (cf. Lc 4.18s.). Também hoje Cristo está
onde se encontram as pessoas famintas e as enfermas, as exploradas e as
marginalizadas. O poder de sua ressurreição impele a história humana para
seu fim, sob o lema "Eis que faço novas todas as coisas!" (Ap 21.5). Como
seu Senhor, a igreja-em-missão precisa tomar partido pela vida e contra a
morte, pela justiça e contra a opressão.
Por conseguinte, temos de posicionar-nos firmemente contra qual-
quer tentativa de adotar uma abordagem não-contextualizada ou subcon-
textualizada da missão. Como Manfred Linz (1964) mostrou em sua análise
de prédicas alemãs sobre quatro assim chamados "textos missionários",
muitos sermões ignoram totalmente o mundo, mesmo quando o texto bíblico
está centrado, de forma inequívoca, no mundo. Os sermões servem unica-
mente para fortalecer a fé dos ouvintes e criar neles algum interesse por
uma missão compreendida como chamamento de pessoas para fora do mundo.
O pecado e o mal no mundo tomam a situação tão desesperadora, que tudo
que podemos fazer é construir diques contra eles e seus efeitos destrutivos.
Mas esse tipo de pensamento gera auto-suficiência piedosa, hipocrisia, um
510 - Rumo a uma missiologia relevante

retraimento da responsabilidade para com as outras pessoas e a sociedade


e uma oferta condescendente da salvação que nós já possuímos aos "po-
bres e ignorantes pagãos" (cf. Günther 1967:21s.).
Mas ver uma antítese entre a glorificação de Deus e a busca de uma
vida verdadeiramente humana na terra contraria o evangelho. Boa parte do
discurso sobre "entregar tudo às mãos de Deus" não significa mais do que
evadir nossas responsabilidades no mundo. Aqui reina, soberanamente, uma
cristologia docetista. Não se leva a sério a encarnação de Cristo. A huma-
nidade de Cristo é um manto atrás do qual só o Deus oculto lida conosco
(Wiedenmann 1965:199).
Isso não significa que se deva identificar Deus com o processo histó-
rico. Onde isso acontece, a vontade e o poder de Deus são identificados,
demasiado facilmente, com a vontade e o poder dos cristãos e com os pro-
cessos sociais que eles colocam em marcha. É difícil, contudo, senão im-
possível, nas palavras de Niebuhr (l959:9s.), encaixar Amós, Isaías, Jere-
mias, Jesus e outros em um sistema determinado por fatores sociais; existe
no cristianismo um traço revolucionário e criativo que não permite que ele
seja reduzido a um projeto humano, embora cristão. A "nova criação" de
que fala Paulo não irrompe tanto devido ao engajamento cristão na história;
ela se realiza mediante a obra de reconciliação de Cristo (cf. 2 Co 5.17), ou
seja, primordialmente através da intervenção de Deus (veja também Gün-
ther 1967:20). Alguma dualidade entre Deus e o mundo permanece. Preci-
samente isso gera o "dilema identidade-engajamento" a que se refere Mol-
tamann (1975:1; cf. também Küng 1984:70-75); faz parte da essência da fé
cristã que, desde sua origem, ela tivesse, por um lado, de procurar, sempre
de novo, ser relevante para o mundo e estar envolvida nele e, por outro lado,
manter sua identidade em Cristo. Esses dois elementos jamais estão desco-
nectados, mas eles tampouco são idênticos. Os cristãos encontram sua iden-
tidade na cruz de Cristo, que os aparta da superstição e da descrença, mas
igualmente de qualquer outra religião ou ideologia; eles encontram sua rele-
vância na esperança do reinado do Crucificado, colocando-se resolutamente
do lado das pessoas que sofrem e são oprimidas e mediando-lhes a esperan-
ça de libertação e salvação (Moltmann 1975:4).
2. Missão como contextualização implica a construção de uma
série de "teologias locais" (cf. Schreiter 1985). Hiebert (1987:104-106)
designa o período de 1800 a 1950 como a "era da não-contextualização" no
que concerne as missões protestantes. Dificilmente a situação foi diferente
nas missões católicas. Em ambos os casos, a teologia (no singular) fora
definida de uma vez por todas e agora só tinha de ser "indigenizada" nas
culturas do Terceiro Mundo, sem, contudo, abrir-se mão de qualquer parte
de sua essência. A teologia ocidental possuía validade universal, principal-
mente porque era a teologia dominante (cf. Frostin 1985:141; 1988:23; Nolan
1988: 15). A fé cristã baseava-se em uma verdade eterna, imutável, que já
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 511

havia sido expressa em sua forma final, por exemplo em confissões e políti-
cas eclesiásticas. Ostensivamente, é claro, os protestantes não atribuíam a
suas tradições e credos o mesmo status que à Escritura. Mesmo assim, as
confissões protestantes do século 16 foram logo encaradas como univer-
sais, válidas em todos os tempos e contextos, sendo exportadas, através do
empreendimento missionário, em suas formas inalteradas - e inalteráveis -,
às igrejas jovens do Terceiro Mundo (cf Conn 1983:17).
A contextualização, por outro lado, aponta para a natureza experi-
mental e contingente de toda teologia. Por conseguinte, os teólogos contex-
tuais se abstêm, com razão, de escrever "teologias sistemáticas" em que tudo
se encaixa num sistema que tudo abarca e é eternamente válido (cf. Míguez
Bonino 1980:1154). Necessitamos de uma teologia experimental em que se
trave um diálogo constante entre texto e contexto, uma teologia que, pela
natureza do caso, permaneça provisória e hipotética (Rütti 1972:244-249).
Mas isso não deveria acarretar uma celebração acrítica de um nú-
mero infinito de teologias contextuais e, muitas vezes, mutuamente exclu-
dentes. Esse perigo - o do relativismo - está presente não apenas no Ter-
ceiro Mundo, mas também, por exemplo, na pesquisa histórico-crítica da
Bíblia no Ocidente, onde se tem, às vezes, a impressão de que cada texto
bíblico é visto como tão profundamente moldado por seu contexto que cons-
titui, em verdade, um mundo teológico isolado. Mas não se pode admitir
esse historicismo e relativismo desenfreado. Há tradições de fé que todos
os cristãos compartilham e que deveriam ser respeitadas e preservadas.
Também temos de sustentar, pois - além de corroborar a natureza essenci-
almente contextual de toda teologia - as dimensões universais e ultracon-
textuais da teologia. As perspectivas puramente contingentes da teologia
precisam ser contrabalançadas por uma ênfase nas perspectivas metateo-
lógicas (quanto a uma discussão da diferença entre essas perspectivas e
seu inter-relacionamento na teologia e na cultura, cf. Kraft 1981:291-300).
As melhores teologias contextuais, em verdade, atêm-se a essa rela-
ção dialética. Na nova introdução de Teologia da libertação, Gutiérrez
não só enfatiza sua união com a Igreja Católica universal e sua lealdade a
ela, mas também sublinha que particularidade não significa isolamento e que
toda teologia é um discurso sobre uma mensagem universal (1988:37s.).
Qualquer theologia localis deveria, pois, desafiar e fecundar a theologia
oecumenica, e esta, de maneira similar, enriquecer e ampliar a perspectiva
daquela. Naturalmente, isso não significa apenas que cristãos do Terceiro
Mundo deveriam estudar teologia ocidental, porém também que cristãos do
Primeiro Mundo deveriam estudar teologias do Terceiro Mundo. O primeiro
caso sempre foi considerado óbvio, porém o segundo, não. Mas isso está
mudando (mesmo que de maneira demasiadamente lenta - cf. Frostin 1988:24).
Há mais ou menos uma geração, nenhuma instituição teológica do Ocidente
teria julgado necessária a oferta de cursos sobre desdobramentos teológi-
512 - Rumo a uma missiologia relevante

cos no Terceiro Mundo; atualmente, um número cada vez maior delas inte-
grou tais cursos em seus currículos - não como extravagâncias interessan-
tes, mas como uma dimensão essencial da formação teológica.
3. Não existe só o perigo do relativismo, em que cada contexto
produz sua própria teologia, feita sob medida para aquele contexto
específico, mas igualmente o perigo da absolutização do contextualis-
mo. Foi isso, em verdade, o que aconteceu na atividade missionária ociden-
tal, onde a teologia, contextualizada no Ocidente, foi, em essência, elevada
ao status de evangelho e exportada para outros continentes como um "pa-
cote" ou acordo global. Contextualismo significa, pois, universalizar nossa
própria posição teológica, tornando-a aplicável a todo o mundo e exigindo
que outras pessoas se submetam a ela. Se a teologia ocidental não esteve
imune a essa tendência, tampouco o estão as teologias contextuais do Ter-
ceiro Mundo. Nesse caso, um novo imperialismo na teologia simplesmente
substitui o antigo. Durante a Conferência da CMME realizada em Melbourne
(1980), por exemplo, porta-vozes latino-americanos estavam inclinados a
promulgar sua marca peculiar de teologia contextual como tendo validade
universal. Delegados de outros contextos do Terceiro Mundo nem sempre
aceitaram isso prontamente. A Conferência Cristã da Ásia, por exemplo,
sustentou que seria inapropriado que a teologia da libertação da América
Latina simplesmente fosse
tomar o lugar da teologia ocidental na Ásia. Não que não necessitemos de
libertação, mas porque precisamos nos libertar de nossos cativeiros, e, para
tanto, carecemos de outras perspectivas e outras sensibilidades."
4. Temos de analisar toda essa questão ainda de um outro ângu-
lo, o de "ler os sinais dos tempos", uma expressão que invadiu a lin-
guagem eclesiástica contemporânea (cf. Gómez 1989:365). Sem dúvida
alguma, tal empreendimento é muito válido. Como nas outras religiões semí-
ticas, é inerente ao cristianismo levar a história a sério como arena da ativi-
dade de Deus - como também se sustentou acima. Essa afirmação requer,
então, a pergunta de como devemos interpretar a ação de Deus na história
e aprender, assim, a nos comprometer com a participação nela. Quais são
os sinais na história humana que revelam a vontade e a presença de Deus?
Como identificamos os vestígios de Deus, suas pegadas no mundo? Trata-
se de um empreendimento cercado de perigos por todos os lados, mas do
qual não podemos nos eximir (cf. Berkhof 1966:197-205; Gómez 1989, pas-
sim).
O primeiro problema e, talvez, o mais incômodo é que, auxiliados pela
retrospectiva, estamos agora em condições de estabelecer que os sinais dos
tempos sofreram, muitas vezes, uma leitura equivocada no passado. Houve
um tempo em que o "colonialismo benevolente" do Ocidente era ampla-
mente entendido - até certo ponto, inclusive pelos colonizados - como um
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 513

sinal da intervenção providencial de Deus na história. Durante muitas déca-


das, a política do desenvolvimento separado - apartheid - foi saudada por
cristãos sérios da África do Sul como uma solução justa e aprovada por
Deus para os problemas daquele país. O mesmo vale para o nacional-soci-
alismo na Alemanha, onde a Deutsche Wende ("a virada germânica") de
1933 foi aplaudida sem reservas por muitos cristãos como prova da inter-
venção e favor divinos. Na década de 1960, o secularismo foi adotado de
forma similar por Mesthene, Harvey Cox, van Leeuwen e muitos outros.
Muitos cristãos também compreenderam eventos e desdobramentos políti-
cos ocorridos na União Soviética, na Europa Oriental e em outros países
socialistas como sinais divinos dos tempos (pode-se, por exemplo, mencio-
nar a fascinação com Cuba demonstrada por membros de uma comunidade
nicaragüense de campesinos, como se depreende de Cardenal 1976:49,
64). Hoje em dia, todos esses sinais dos tempos caíram em descrédito, ao
ponto de constituírem um profundo embaraço para as pessoas que os sau-
daram com tanto entusiasmo. A paixão e o compromisso, aparentemente,
não fornecem nenhuma garantia de que não se vá produzir uma sociologia
ruim, praticar uma política sofrível e realizar uma análise histórica questio-
nável (cf. Stackhouse 1988:95).
O problema parece ser que os cristãos tendem a sacralizar "as for-
ças sociológicas da história que são dominantes em uma determinada épo-
ca, considerando-as obras inexoráveis da providência e inclusive da reden-
ção" (Knapp 1977:161). Há exemplos em abundância. Falando na Confe-
rência da CMME em Melbourne (1980), Julia EsquiveI viu na vitória do
povo da Nicarágua uma "experiência gloriosa da ressurreição de Cristo";
Israel saindo do cativeiro egípcio "pode significar, para nós hoje, Zimbábue,
EI Salvador, Nicarágua ou Guatemala". Também no Encontro da CMME
em San Antonio (1989), afirmou-se, irrestritamente, na Seção 11.6: "A in-
surgência do povo contra a injustiça é o poder criativo de Deus em prol do
povo e do mundo inteiro (...) As ações do povo tornam-se a missão de Deus
em prol da justiça mediante o poder criativo" (WCC 1990:40). Albert Nolan
(1988: 166) descreve de modo semelhante a luta do povo sul-africano contra
um sistema opressor: "O poder do povo que se manifesta na luta é realmen-
te o poder de Deus (...) O sistema não está se confrontando agora com
'carne e sangue', mas com o poder onipotente de Deus"!".
A situação torna-se ainda mais complexa quando expoentes da con-
textualização reivindicam um conhecimento especial ou privilegiado da von-
tade de Deus e afirmam que as pessoas que discordam deles padecem de
uma "consciência falsa". Sua própria clarividência, por outro lado, provê-os
com a capacidade de saber exatamente não só qual é a vontade de Deus,
mas também o que acontecerá no futuro. Em relação à África do Sul, por
exemplo, Nolan (1988:144; cf. p. 184) assevera que "podemos ter plena
certeza de que nosso futuro não será opressor e alienante". O que os sul-
514 - Rumo a uma missiologia relevante

africanos não precisam temer "é uma tomada de poder em que um outro
grupo de pessoas simplesmente substitua os atuais governantes e mantenha o
mesmo tipo de sistema (...) Essa possibilidade desapareceu definitivamente."
A teologia contextual está correta quando enfatiza a necessidade de
uma "hermenêutica da suspeita", principalmente em relação à religião das
classes dominantes. O perigo disso, contudo, é que "a suspeita tende a tor-
nar-se um fim em si mesmo" (Martin 1987:381). Onde isso se verifica, a
conversa teológica toma-se "cada vez menos um diálogo sobre as questões
mais importantes e cada vez mais uma luta pelo poder de determinar quem
tem permissão de falar" (Stackhouse 1988:22s.). Só as pessoas que possu-
em acesso ao "conhecimento privilegiado" podem interpretar o contexto e
são capazes de dizer qual é o evangelho para o contexto. Nesse paradigma,
tudo o que as "não-vítimas" pensam já está irremediavelmente maculado;
se elas não endossam, de imediato, uma determinada ortopráxis, são exco-
mungadas de uma maneira oficiosa (por causa de sua "consciência falsa")
e consideradas fora do âmbito da justiça de Deus (p. 102s., 186).
Essa abordagem acaba dando pouca importância ao texto, como pro-
veniente de fora do contexto (Stackhouse 1988:38). A própria idéia de que
textos podem julgar contextos é, em realidade, questionada metodologica-
mente (p. 27). Não se vê o evangelho como algo que levamos a contextos,
mas como algo que derivamos de contextos (p. 81). "Não se encarna a boa
nova em uma situação, mas a boa nova emerge da situação", escreve No-
lan (1988:27); afinal, "os profetas não 'aplicavam' sua mensagem profética
a seus tempos; ela lhes era revelada através dos sinais do tempos".
O problema, porém, é que "fatos" sempre permanecem ambíguos.
Não são os fatos da história que revelam onde Deus está operando, mas os
fatos iluminados pelo evangelho. Segundo GS 4, a igreja, ao ler os sinais dos
tempos, deve interpretá-los à luz do evangelho (cf. Waldenfels 1987:227).
Em todas as grandes tradições eclesiásticas - católica, ortodoxa e protes-
tante - as pessoas não olham apenas para onde se encontram no presente,
mas também para o lugar donde provêm. Elas procuram uma orientação
real, confiável e universal que conduza à verdade e justiça de Deus, para
aplicá-la como critério na avaliação do contexto. Isso significa que o evan-
gelho é a norma nonnans, a "norma normativa". Nossa leitura do contex-
to também constitui uma norma, mas em um sentido derivado; ela é a nor-
ma normata, a "norma normada" (Küng 1987:151). Naturalmente, só é
possível ler o evangelho a partir de nosso contexto atual e ele só faz sentido
dentro desse contexto, mas postulá-lo como critério significa que ele poderá
criticar, e muitas vezes critica, o contexto e nossa leitura do mesmo.
Não há dúvida, então. Nós temos que interpretar os "sinais dos tem-
pos". Nossas interpretações dos sinais possuem, todavia, apenas validade
relativa e implicam riscos enormes. As parábolas de Mateus sobre o reina-
do de Deus enfatizam a necessidade de sermos vigilantes (Mt 25). A vigi-
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 515

lância decorre da insipiência; ao mesmo tempo, porém, estar vigilante é uma


maneira de interpretar sinais (Berkhof 1966:187s.), correndo o risco de in-
terpretá-los erroneamente. Nossas suposições podem estar equivocadas; é
possível que tenhamos formulado perguntas completamente inapropriadas e
procurado os indícios errados. Mas não estamos desprovidos de uma bússo-
la. São-nos dadas algumas linhas norteadoras cruciais, algumas estrelas-
guias que indicam a vontade e a presença de Deus no contexto. Onde pes-
soas estão experimentando e trabalhando em prol da justiça, liberdade, co-
munhão, reconciliação, unidade e verdade, em um espírito de amor e altru-
ísmo, podemos ousar ver a Deus em ação. Onde quer que as pessoas sejam
escravizadas, a inimizade entre os seres humanos atiçada e a prestação de
contas mútua negada em um espírito de egocentrismo individual ou comuni-
tário, podemos identificar em ação as forças que se opõem ao reinado de
Deus (cf. Rütti 1972:231,241; Lochman 1986:71). Isso nos permite tomar
alento e decisões, mesmo que elas permaneçam essencialmente relativas
(Berkhof 1966:204), já que nossos juízos não coincidem com o juízo final de
Deus (p. 199s.). Mesmo que não tenhamos condições de decidir entre o
absolutamente correto e o absolutamente errado, deveríamos ser capazes
de distinguir entre nuanças do cinzento e de optar "pelo cinzento claro e
contra o cinzento escuro" (p. 200).
5. A despeito da natureza e do papel inegavelmente cruciais do
contexto, não é lícito, pois, tomá-lo como a autoridade única e básica
para a reflexão teológica (cf. também Stackhouse 1988:26). A práxis
pode significar demasiadas coisas (p. 91). Portanto, mesmo que atualmente,
em alguns círculos, possa parecer falta de educação suscitar qualquer questi-
onamento sobre a prioridade absoluta da práxis (p. 96), a verdade é que não
existe práxis sem teoria, mesmo onde não se formula explicitamente a teoria.
Por esse motivo, a práxis necessita do controle crítico da teoria - em
nosso caso, de uma teologia crítica da missão, que depende do contexto
sem, contudo, promover a eficácia operacional ànorma suprema. A dinâmi-
ca de contextos particulares sempre envolve questões "abstratas" de ver-
dade e justiça, visões metafísico-morais "abstratas" e questões "teóricas"
de epistemologia (Stackhouse 1988:11). Toda práxis depende de "um dog-
ma social e histórico bem específico, altamente esquematizado e sintético"
e requer "uma theoria prévia bastante esmerada sobre o que é verdadeiro
e justo" (p. 96; cf. p. 103). A questão, conseqüentemente, não é tanto a da
primazia da práxis sobre a teoria; a questão é, antes, "que theoria é sufici-
entemente verdadeira e justa para que a praxis seja posta a seu serviço"
(p. 98). Existe, atualmente, uma legítima suspeita quanto à postulação de
uma posição doutrinariamente "ortodoxa" e de um depositum fidei imutá-
vel; mas onde tal tradição consensual de fé está completamente ausente, a
contextualização só gera novas seitas de política fideísta (p. 103) e torna o
discurso teológico absolutamente inútil (p. 102s.).
516 - Rumo a uma missiologia relevante

6. Stackhouse afirma que estamos distorcendo toda a discussão


da contextualização se a interpretarmos apenas como um problema de
relação entre práxis e teoria. Precisamos também da dimensão de poie-
sis, que ele define como a "criação ou representação imaginativa de ima-
gens evocativas" (1988:85; cf. p. 104). As pessoas não carecem só de
verdade (teoria) e justiça (práxis); elas necessitam igualmente de beleza,
dos ricos recursos do símbolo, piedade, culto, amor, reverência e mistério.
Demasiadas vezes, na contenda entre a prioridade da verdade e a priorida-
de da justiça, perde-se essa dimensão. Num sentido profundo, Niebuhr
(1960:75) tem razão: "O amor requer mais que justiça"; em verdade, ele
significa mais que a verdade. Dentre a fé, a esperança e o amor, o amor é o
maior - mas, naturalmente, jamais pode ser divorciado da fé e da esperan-
ça.
7. Os melhores modelos de teologia contextual conseguem reu-
nir, em uma tensão criativa, theoria, praxis e poiesis - ou, se quisermos,
a fé, a esperança e o amor. Isso constitui uma outra maneira de definir a
natureza missionária da fé cristã, que procura combinar as três dimensões.
Como as outras grandes religiões missionárias do mundo, diz Stackhouse, o
cristianismo crê em
um grande "desvelamento" da verdade última tida como universalmente
importante. Esse "desvelamento" induz a uma paixão por justiça transcen-
dente; ele liberta os adeptos de práticas localistas, das reivindicações absolu-
tas de lealdades contextuais e de condições sociais convencionais. Ele induz
a um certo "senso de ser apátrida", a uma alienação divina - uma disposição
de adotar práticas que sejam mais justas do que aquelas que podem ser encon-
tradas em casa, uma ânsia por fazer com que todos os outros indivíduos
entrem em contato com essa nova verdade, um desejo de levar a mensagem
universal a povos e nações que ainda a ignoram e de transformar a identidade
pessoal e sociedades inteiras com base em suajustiça. (1988:189).
Não é preciso dizer que nem todas as manifestações da teologia con-
textual são culpadas de qualquer ou de todas as reações inadequadas discu-
tidas acima. Mas todas elas permanecem um constante perigo para qual-
quer tentativa (legítima!) de permitir que o contexto determine a natureza e
o conteúdo da teologia para aquele contexto. Tendo isso presente, voltemo-
nos agora à teologia da libertação e, em seguida, à inculturação.

Missão como libertação

Do desenvolvimento à libertação
Nesta seção, seguirei com minhas reflexões sobre a missão como
contextualização, ajustando o foco com o intuito de explorar a natureza da
teologia da libertação como uma das mais dramáticas ilustrações da mudan-
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 517

ça radical de paradigma que está acontecendo atualmente no pensamento e


na prática missionárias.
A teologia da libertação constitui um fenômeno multifacetado, mani-
festando-se como teologia negra, hispânica e ameríndia nos Estados Uni-
dos, como teologia latino-americana, teologia feminista, teologia negra sul-
africana e vários movimentos teológicos análogos em outras partes da Áfri-
ca, Ásia e Pacífico Sul. Poder-se-ia também, com certeza, categorizar as
várias teologias da inculturação como teologias da libertação; ao mesmo
tempo, os movimentos que estamos discutindo aqui são suficientemente dis-
tintos das teologias da inculturação, que serão examinadas na seção seguin-
te, para justificar um tratamento separado.
Na prática, todas as teologias da libertação e da inculturação, excetu-
adas algumas teologias feministas, são teologias do Terceiro Mundo ou teo-
logias do Terceiro Mundo dentro do Primeiro Mundo. Elas possuem seu
foco primordial na AETT (Associação Ecumênica de Teólogos e Teólogas
do Terceiro Mundo), que foi fundada em Dar es Salaam, em 1976. O rótulo
Terceiro Mundo foi escolhido conscientemente; ele expressa a experiência
daquelas que sentem que estão sendo tratadas como pessoas de terceira
classe e exploradas pelos poderes do Primeiro e do Segundo Mundos. A
maioria dos membros da AETT rejeitaria, portanto, o termo "Mundo dos
Dois Terços", cada vez mais comum em círculos evangelicais, pois ele re-
flete apenas o tamanho geográfico e populacional do Terceiro Mundo, não
sua posição política e socioeconômica no "reverso da história" (cf. Fabella
e Torres 1983:xii).
Em grande parte, as teologias da libertação, especialmente a varieda-
de latino-americana clássica, desenvolveram-se como protesto contra a in-
capacidade de círculos eclesiásticos e missionários ocidentais, tanto católi-
cos quanto protestantes, em lidar com os problemas de injustiça sistêmica.
Não que inexistisse a preocupação com a libertação em círculos missionári-
os antes da década de sessenta! Seria possível, por exemplo, apontar alguns
indivíduos e agências missionárias mencionadas em partes anteriores deste
estudo: Bartolomeu de Las Casas; os primeiros missionários pietistas, de
Basiléia, da SMI e William Wilberforce. Em geral, porém, as igrejas tendiam
a reivindicar uma espécie de "extraterritorialidade", uma posição acima do
fluxo e dos conflitos da história, meramente detalhando princípios do evan-
gelho (cf. Míguez Bonino 1981:369). Concordava-se que males sociais ti-
nham de ser remediados, mas sem contestar macroestruturas sociais e po-
líticas. A conferência de 1937 sobre "Igreja, Comunidade e Estado", re-
alizada em Oxford, ainda podia reivindicar que a tarefa da igreja era supra-
nacional, supra-racial e supraclassista.
Confrontada com o nazismo na década de 1930, a igreja na Alema-
nha começou a perceber, paulatinamente, que se iludira ao pensar que os
principados e potestades estavam apenas "nos céus"; eles estavam encar-
518 - Rumo a uma missiologia relevante

nados na terra, como forças demoníacas em estruturas sociais. Mas, no que


diz respeito à missão protestante, somente no encontro do CoMIn em Tam-
baram (1938) é que ocorreu uma focalização clara das estruturas mais am-
plas e surgiu a convicção de que a melhoria não era suficiente; o que se
fazia necessário era uma renovação radical (cf. van 't Hof 1972:119-123).
A partir de Tambaram, a voz profética da igreja se faria ouvir mais nitida-
mente.
Mesmo assim, Tambaram não significou o início de uma era de inten-
sa confrontação com estruturas sociais e políticas injustas no Terceiro Mun-
do. Durante, aproximadamente, os 30 anos que se seguiram à primeira Con-
ferência de Igreja e Sociedade (Estocolmo, 1925), o foco do movimento
ecumênico permaneceu sobre os problemas sociais do Ocidente e do Ori-
ente (marxista), em especial sobre aqueles causados pela tensão entre o
socialismo e a livre iniciativa. Em 1955, porém, introduziu-se o projeto de
estudo sobre a responsabilidade cristã para com áreas de rápidas transfor-
mações sociais. O eixo começara a deslocar-se: a partir de agora, as rela-
ções Norte-Sul cresceriam em importância (Nürnberger 1987a, passim).
Em círculos missionários, reconheceu-se que nem o modelo tradicio-
nal de caridade nem o modelo da "abordagem abrangente" (que teve início
na década de 1920 e se concentrou, em especial, na educação, assistência
sanitária e formação agrícola) eram adequados. Necessitava-se de uma
estratégia mais fundamental. O conceito que expressava o desafio contem-
porâneo era desenvolvimento. Os governos do Primeiro e do Segundo
Mundos contribuiriam para a solução do problema da pobreza no Terceiro
Mundo despejando seus recursos em ambiciosos projetos de desenvolvi-
mento. Apressadamente, igrejas e agências missionárias ocidentais junta-
ram-se a essa caravana.
Para o Ocidente, desenvolvimento significava modernização (cf.
Bragg 1987:22-28). Mas o projeto todo se baseava em várias premissas
equivocadas: ele supunha que aquilo que era bom para o Ocidente também
o fosse para o Terceiro Mundo (nesse sentido, pois, ele era culturalmente
insensível); operava com base no pressuposto iluminista da distinção abso-
luta entre o sujeito humano e o objeto material e acreditava que tudo de que
o Terceiro Mundo precisava era o conhecimento tecnológico; pressupunha
um tráfego de mão única, sem qualquer reciprocidade - ajuda para o desen-
volvimento e aptidões transitavam de "doadores" ocidentais para "beneficiá-
rios" terceiro-mundistas, que, muitas vezes, nem sequer haviam sido consul-
tados; e ele partia da premissa de que nada no Norte rico precisava mudar
(cf. também Nürnberger 1982:233-291; Sunderrneier 1986:63s.; Bragg
1987:23-25). De modo geral, o projeto malogrou desastrosamente. Uma
reduzida elite se beneficiou; a maioria da população ficou em uma situação
ainda pior. Os ricos se tornaram mais ricos, os pobres, mais pobres. Smith
(1968:44) menciona que, antes da Segunda Guerra Mundial, um brasileiro
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 519

podia comprar um carro Ford com cinco sacas de café; agora (1968) eram
necessárias 206 sacas. A despeito de (devido a?) bilhões de dólares de
ajuda para o desenvolvimento, a situação socioeconômica de muitos países
do Terceiro Mundo estava se tomando cada dia mais desesperadora. Não
se reconheceu que a pobreza não era somente resultado da ignorância, da
falta de aptidões ou de fatores morais e culturais, mas que tinha, antes, a ver
com relações estruturais globais.
Na década de 1960, contudo, era virtualmente impossível- devido à
obsessão com a secularização e a tecnologia - convencer as igrejas ociden-
tais e sua liderança de que o modelo de desenvolvimento estava crivado de
inconsistências. Na Conferência de Igreja e Sociedade realizada em Gene-
bra (1966), Mesthene e outros "humanistas tecnológicos" não conseguiam
acreditar que a salvação dos pobres não consistisse em ajudá-los a nivelar-
se com o Ocidente mediante a tecnologia moderna. Ainda em 1968, a As-
sembléia do CMI em Uppsala - apesar de seu posicionamento político radi-
cal quanto a muitas questões - dedicou uma seção toda (I1I) ao "Desenvol-
vimento Econômico e Social Mundial" e produziu um relatório (cf. WCC
1968:45-55) que, aparentemente, quase não se dá conta de que toda a filo-
sofia desenvolvimentista fora fundamentalmente contestada.
Mesmo em 1973, as igrejas protestantes alemãs ainda elaborariam
um memorando falando com entusiasmo das animadoras perspectivas re-
servadas à humanidade e das possibilidades tecnológicas que poderiam tor-
nar realidade os sonhos do mundo inteiro (referência ap. Sundermeier
1986:72s.). A linguagem utópica era característica da filosofia do desenvol-
vimento. "O desenvolvimento", disse o papa Paulo VI em Populorum Pro-
gressio, 76 (1967), era "o novo nome da paz". As nações subdesenvolvidas
estavam apenas atrasadas na corrida para o bem-estar; bastava ajudá-las a
correr mais depressa e a dominar mais rapidamente as técnicas dos países
avançados para que o fim de sua miséria fosse iminente (cf. Gómez 1986:37).
Desde a década de 1950, todavia, o ânimo estava mudando nos pró-
prios países do Terceiro Mundo, especialmente na América Latina. Em ter-
mos sociopolíticos, trocou-se o desenvolvimento pela revolução; na área
eclesiástica e teológica, ele foi substituído pela teologia da libertação.
Quando se cunhou a expressão "teologia da libertação" (1968, às vésperas
de Medellín - cf. Gutiérrez 1988:xviii), seus principais temas já existiam há
quase uma década (p. xxiv, cf. Segundo 1986:222, nota 243). Em breve, a
palavra "libertação" se fazia presente em todo o cenário eclesiástico. Os
opostos com que lidávamos não eram desenvolvimento e subdesenvolvi-
mento, mas dominação e dependência, ricos e pobres, capitalismo e socia-
lismo, opressores e oprimidos (cf. Waldenfels 1987:226s.; Frostin 1988:7s.).
Não se erradicaria a pobreza despejando know how tecnológico nos países
pobres, mas por meio da abolição das causas fundamentais da injustiça; e
como o Ocidente mostrava relutância em endossar tal projeto, os povos do
520 - Rumo a uma missiologia relevante

Terceiro Mundo tinham que tomar seu destino em suas próprias mãos e
libertar-se através de uma revolução. O desenvolvimento implicava uma
continuidade evolucionária com o passado; a libertação significava uma rup-
tura radical, um novo começo.

"A opção preferencial de Deus pelos pobres"


O capitalismo moderno, alicerçado na filosofia de Adam Smith, criou
um mundo totalmente diferente daquele que se conhecera até então. Dois
séculos depois do iluminismo, diz Newbigin (1986: 110), "vivemos em um
mundo em que milhões de pessoas desfrutam de um padrão de riqueza
material com que poucos reis e rainhas podiam então competir". À medida
que crescia sua riqueza, os cristãos ricos se inclinavam cada vez mais a
interpretar metaforicamente as palavras bíblicas sobre a pobreza. Os po-
bres eram os "pobres em espírito", aqueles que reconheciam sua completa
dependência de Deus. Nesse sentido, portanto, os ricos também podiam ser
pobres - eles estavam em condições de reclamar todas as promessas bíbli-
cas para SI mesmos.
Gradualmente, porém, os semblantes dos pobres se impuseram à aten-
ção dos cristãos ricos do Ocidente de uma forma que não podia mais ser
ignorada ou alegorizada. O encontro da CMME ocorrido na Cidade do México
começou a perceber esses rostos, mas ainda estava demasiadamente preo-
cupado com a secularização para inferir daí conseqüências teológicas (cf.
Dapper 1979:39). Depois da Conferência de Genebra de 1966, o ambiente
mudou. Em sua "Mensagem", a Assembléia de Uppsala afirmou:
Ouvimos o clamor daqueles que anseiam pela paz, dos famintos e explorados
que exigem pão e justiça, das vítimas da discriminação que reivindicam justiça
humana e dos crescentes milhões que buscam o sentido da vida. (WCC 1968:5).
Dapper escreve: "Ninguém pode duvidar de que esse é um discurso
novo no Conselho Mundial; não se tenta mais evadir o clamor recorrendo a
uma linguagem metafórica" (1979:45). Bangcoc (1973) ratificou a nova
ênfase; termos como "salvação" se traduziam agora como "libertação",
"comunhão" como "solidariedade" (cf. Dapper 1979:53). Em Melbourne
(1980), os pobres foram colocados no centro da reflexão missiológica; de
fato, a conferência fez "uma afirmação cristalina de que a solidariedade
com eles constitui atualmente uma prioridade crucial e central na missão
cristã" (Gort 1980a: lIs.). De certa forma, os pobres tomaram-se a catego-
ria hermenêutica dominante em Melbourne. Em pelo menos três das quatro
seções (I, II e IV), os pobres ocupavam um lugar proeminente. Tecendo
considerações após a conferência, Emilio Castro (1985:151) sugeriu que,
em Melbourne, a afirmação dos pobres era o "princípio missiológico por
excelência" e a relação da igreja com os pobres, "o padrão de comparação
missionário".
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 521

Ainda mais dramática foi a "descoberta dos pobres" em círculos ca-


tólicos romanos, especialmente como isso se demonstrou na Segunda e Ter-
ceira Conferências Gerais dos Bispos Latino-Americanos em Medellín, Co-
lômbia (CELAM Il, 1968), e em Puebla, México (CELAM Ill, 1979). Foi
em Puebla que se cunhou a expressão "opção preferencial pelos pobres".
E, como explicou Gutiérrez (1988:xxvs.), a própria palavra "preferência"
nega qualquer exclusividade, como se Deus se preocupasse apenas com os
pobres, enquanto que a palavra "opção" não deve ser compreendida como
significando "opcional". O que se deseja expressar é, antes, que os pobres
são os primeiros, embora não os únicos, em que se concentra a atenção de
Deus e que, conseqüentemente, a igreja não tem escolha senão demonstrar
solidariedade com os pobres. Os pobres têm um "privilégio epistemológico"
(Hugo Assmann, cito ap. Frostin 1988:6); eles são os novos interlocutores da
teologia (Frostin 1988:6s.), seu novo locus hermenêutico.
Evidentemente, o perigo em tudo isso é que, facilmente, se pode cair
de novo na armadilha da "igreja para os outros" em vez da "igreja com os
outros", da "igreja para os pobres" em lugar da "igreja dos pobres". Mel-
bourne ajudou no distanciamento da tradicional atitude condescendente da
igreja (rica) em relação aos pobres; não era tanto o caso dos pobres neces-
sitarem da igreja, mas da igreja necessitar dos pobres - se desejasse per-
manecer próximo a seu Senhor pobre. Os pobres estavam começando a
descobrir e a afirmar a si mesmos. Assim como, em sua reação ao modelo
desenvolvimentista, os pobres "se recusaram a sonhar mandados" (Ivan
Illich, cito ap. Dapper 1979:91), eles agora se negavam a ser definidos pelo
Ocidente, pelos ricos ou pelos brancos. Os pobres não mais constituíam
meramente os objetos da missão; eles se haviam tomado seus agentes e
portadores (cf. Seção IV. 21 de Melbourne - WCC 1980:219). E essa mis-
são é, principalmente, de libertação. Gutiérrez inclusive define a teologia da
libertação como "uma expressão do direito dos pobres de refletir sobre sua
própria fé" (1988:xxi). Outrora a igreja era "a voz dos que não tinham voz";
agora os desprovidos de voz fazem com que se ouçam suas próprias vozes
(Castro 1985:32).
Durante as duas últimas décadas, aproximadamente, surgiram nume-
rosos estudos sobre quem são os pobres e como eles foram tradicionalmen-
te vistos e tratados pela igreja. Indubitavelmente, tanto no Antigo Testa-
mento quando no ministério de Jesus havia um enfoque significativo nos
pobres e em sua difícil situação (cf. o capítulo 3 deste estudo e de Santa
Ana 1977:1-35). "A Bíblia toda, iniciando com a história de Caim e Abel,
reflete a predileção de Deus pelos fracos e maltratados da história humana"
(Gutiérrez 1988:xxvii). Grande parte desse etos foi preservado durante os
primeiros séculos da igreja cristã (de Santa Ana 1977:36-64). Depois de
Constantino, e na medida em que igreja se tomava mais rica e privilegiada,
os pobres foram cada vez mais negligenciados ou tratados de maneira con-
522 - Rumo a uma missiologia relevante

descendente. Mesmo então, contudo, vozes poderosas, especialmente dos


círculos do movimento monástico, continuaram a sublinhar a ineludível res-
ponsabilidade cristã nessa questão. Basílio o Grande, em especial, foi um
incansável paladino dos pobres (p. 67-71). De certa maneira, portanto, a
redes coberta dos pobres, em nossos dias, representa também uma reafir-
mação de uma antiga tradição teológica.
Ser pobre é, incontestavelmente, uma realidade material. Não pode-
mos, contudo, pensar nos pobres apenas em categorias socioeconômicas
modernas. Em minhas reflexões sobre Lucas (capítulo 3), mostrei que ele,
sempre que registrou palavras de Jesus sobre as pessoas que sofriam, colo-
cava os pobres ou no início ou no final da lista. Isso parece sugerir que os
pobres representavam uma categoria que abarcava todos os que eram víti-
mas da sociedade. As interpretações da teologia da libertação em relação
aos pobres seguem uma hermenêutica semelhante. Os pobres são os mar-
ginalizados, as pessoas que estão privadas de qualquer participação ativa ou
mesmo passiva na sociedade; trata-se de uma marginalidade que abrange
todas as esferas da vida e, muitas vezes, é tão ampla que as pessoas se
sentem impotentes em relação a ela (Müller 1978:80, baseando-se em Hugo
Kramer). E uma "condição sub-humana" (Gutiérrez 1988: 164), "uma con-
dição malvada e escandalosa" (p. 168), "um sistema todo de morte" (Mí-
guez Bonino 1980:1155).
Dessa perspectiva, portanto, a "opção preferencial pelos pobres" não
se aplica somente à América Latina, como se sugere, às vezes. A prática
do racismo constitui uma forma de pobreza infligida às pessoas (e, é óbvio,
as que são discriminadas em termos de raça são, muitas vezes, também
materialmente pobres). Nesse sentido, a teologia negra - como versão nor-
te-americana e sul-africana da teologia da libertação - representa uma apli-
cação situacional da "opção preferencial pelos pobres" (cf. Kritzinger
1988:172-236).
Tradicionalmente, na teologia ocidental, compreendeu-se a relação
com os pobres apenas como uma questão de ética, não de teologia em si ou
de epistemologia (Frostin 1985:136; 1988:6). "A ação política, em nosso
ponto de vista, tem seu lugar na ética cristã, não na soteriologia", diz Brake-
meier (1988:219). Essa posição está sendo contestada atualmente, não só
pela teologia da libertação, mas também em círculos católicos, reformados
e em outros. Gort (1980b:52, 58) afirma que, segundo a posição reformada,
a teologia e a ética formam uma unidade. A ética são as mãos, os pés e o
rosto da teologia, e a teologia constitui os órgãos vitais, a alma da ética.
Esse posicionamento implica, obviamente, enormes conseqüências
para nossa compreensão da missão. Nesse modelo, as teologias negra e da
libertação se tornam "um desafio para a missão" (cf. o título de Kritzinger
1988). Esse foi o modelo que predominou em Melbourne (1980); a solidari-
edade com os pobres e os oprimidos era uma prioridade central e crucial na
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 523

missão cristã (cf. Gort 1980a: 12). Uma vez que reconhecemos a identifica-
ção de Jesus com os pobres, não mais podemos considerar nossa própria
relação com eles como uma questão da ética social; trata-se de uma ques-
tão do evangelho (Castro 1985:32; cf. Sider 1980:318). Ou, para dizê-lo com
as palavras de Nicholas Berdyaev: Enquanto o problema de meu próprio pão
é um assunto material, o do pão de meu próximo é uma questão espiritual.
Isso não exclui o amor de Deus pelos não-pobres. No caso deles,
contudo, requer-se um tipo diferente de conversão, que incluiria admitir cum-
plicidade na opressão dos pobres e afastar-se dos ídolos dinheiro, raça e
egoísmo (cf. Kritzinger 1988:274-297). Isso se faz necessário, não apenas
porque têm agido de forma contrária à ética, mas porque, de fato, negaram,
através de sua "pseudo-inocência" (Boesak), a si mesmos o acesso ao co-
nhecimento.
Parece que temos, quanto a isso, uma perspectiva teológica cada vez
mais unificada. As igrejas ortodoxas, muitas das quais viveram, durante
séculos, em situações nas quais a igreja foi perseguida ou, no mínimo, mar-
ginalizada, sempre se ativeram a esse elo intrínseco entre teologia e ética
quanto ao que se refere à atitude da igreja para com os pobres. Católicos e
protestantes ecumênicos, atualmente, também subscrevem essa posição. E
os evangelicais, após a "Grande Reversão" nas primeiras décadas deste
século, também começaram a ver, gradualmente, a conexão indissolúvel
entre a teologia e a ética social. Hoje em dia, muitos evangelicais, como
Ronald J. Sider, falam, de uma forma muito franca, sobre a igreja e os
pobres. Sider aceita a "doutrina" de que Deus está do lado dos oprimidos
(1980:314). E se os privilegiados realmente são o povo de Deus, eles tam-
bém devem estar do lado dos pobres; de fato, aqueles que negligenciam os
necessitados realmente não constituem, de maneira alguma, o povo de Deus,
não importa quão freqüentes sejam seus rituais religiosos (p. 317s.). Jesus
não será nosso Salvador se, persistentemente, o rejeitamos como Senhor de
toda a nossa vida. De modo semelhante, uma consulta sobre estilo de vida
simples, co-promovida pela Comissão de Lausanne para a Evangelização
Mundial e a Comunhão Evangelical Mundial (1980), foi muito além do tema
"vida simples" e abordou exatamente a opção preferencial de Deus pelos
pobres, o juízo divino sobre os opressores e o modelo da identificação do
próprio Jesus com os pobres (cf. Scherer 1987: 180).

Teologia liberal e teologia da libertação


Sustenta-se, muitas vezes, que a teologia da libertação é simplesmen-
te uma variante do que, em termos amplos, pode ser denominado teologia
liberal - a clássica teologia liberal do século 19, o Evangelho Social, as
teologias seculares da década de 1960 ou a teologia política européia (cf.,
entre outros, Braaten 1977:139-148,153; Knapp 1977: 160s.). E há, em ver-
524 - Rumo a uma missiologia relevante

dade, algumas semelhanças importantes. Como a maioria das teologias libe-


rais, a teologia da libertação tem uma forte preocupação social e rejeita
tanto a tendência de interpretar a fé cristã em categorias metaterrenais quan-
to o individualismo excessivo. Apesar de sua crítica ao Ocidente e à sua
teologia, a teologia da libertação também está comprometida com o tema da
prosperidade terrena mediante o modelo de modernização (Sundermeier
1986:76). Ambos os tributários teológicos parecem ser antropocêntricos, e
não teocêntricos; à semelhança daquelas teologias ocidentais, acusa-se a
teologia da libertação de imanentismo e de implicar "uma evaporação da
fé" (cf. Frostin 1988:12,193).
Se essas avaliações da teologia da libertação fossem verdadeiras em
sua totalidade, ela dificilmente teria migrado da sombra do iluminismo para
um novo paradigma. Há, porém, duas áreas gerais em que os dois projetos
diferem fundamentalmente.
1. Todas as teologias ocidentais mencionadas se debatem, primordi-
almente, com a realidade da modernidade, do secularismo, ou seja, com a
pergunta se ainda faz sentido falar sobre Deus em uma época secular. A
resposta delas é afirmar os princípios básicos do secularismo enquanto ten-
tam salvar algo de sua herança religiosa nesse processo. Elas, freqüente-
mente, fazem-no dispensando a evangelização como chamado à fé pessoal
e substituindo a missão pela "humanização". Asseveram que a descoberta
das dimensões política, social e econômica da vida tomou obsoleta a redu-
ção subjetivista, individualista e existencialista da teologia (cf. Daecke
1988:631). Elas afirmam que o mundo inteiro está se encaminhando a uma
única cultura global, irreversível, que será moldada à imagem do Ocidente, e
na qual a fé religiosa, em sua forma tradicional, perderá sua "relevância
sacralizadora" (cf. Fierro 1977:265-267). Uma "restauração do sagrado" é
fútil (p. 339-348); deveríamos aceitar o secular (p. 348-351). À moda genu-
inamente iluminista, esses "humanistas tecnológicos" pressupõem uma se-
paração entre fato e valor e crêem que o ser humano, como sujeito racional
distanciado, é capaz de transmitir informações confiáveis e de tomar as
necessárias adaptações (também em nível sociopolítico) inteligíveis (e, por-
tanto, aceitáveis) para seus semelhantes racionais (cf. West 1971:26s.). Os
ocidentais, incluindo os teólogos, diz West (p. 51), são, por instinto, humanis-
tas tecnológicos; a história que estudam e os pressupostos de cada ciência
que absorvem engendram neles uma fé instintiva na razão (p. 52), que so-
mente precisa ser iluminada pela revelação (p. 63).
Os teólogos da libertação, em contraste, tendem a ser quase ingenu-
amente religiosos, às vezes até biblicistas (cf. a crítica a Desmond Tutu e
Allan Boesak tecida pelo colega liberacionista Mosala 1989:26-42). A cruz
de Jesus, um embaraço para o Evangelho Social, está situada no próprio
centro da teologia da libertação. A "prática de Jesus" (Echegaray 1984)
inclui a vida, a morte e a ressurreição de Cristo. Declara-se francamente
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 525

que "a teologia precisa permanecer inteiramente teologia" e recusar "dis-


solver seu princípioepistemológicofundamental" (Míguez Bonino 1980:1156).
Em seu estudo de Paulo, Segundo faz constante alusão aos "dados trans-
cendentes" (1986: 152, 157 e outras passagens), de que, em absoluto, se
deve abrir mão. A questão da teologia da libertação não é saber se Deus
existe, mas saber de que lado Deus está (Fabella e Torres 1983:190). E isso
representa uma questão pós-moderna.
2. As teologias ocidentais progressistas tendem a ser evolucionárias
em sua filosofia e, em última análise, portanto, inclinam-se a preservar o
status quo, mesmo que em um formato adaptado (cf. Lamb 1984: 138).
Inclusive onde elas estão comprometidas com uma forma de socialismo,
esse tende a ser um socialismo fabiano (cf. Hopkins 1940:323). Sua visão
de sociedade é, freqüentemente, romântica, utópica, ingênua e sentimental
(p. 323, 325). Até as afirmações radicais de Uppsala (1968) não revelam
muito mais do que, "em geral, um racionalismo tecnológico moderado e um
sóbrio otimismo liberal entretecidos com uma insistência moral" (West
1971:33, nota 10). Assim, as teologias progressistas refletem a linguagem
dos privilegiados. É teologia "a partir de cima".
Mas a teologia da libertação é teologia "a partir de baixo". Ela é
contra-hegemônica (Frostin 1988:192) e acredita que a lei da história não é
o desenvolvimento, mas a revolução - "uma lei inexorável que molda a
vontade humana, porém não está subordinada a ela" (West 1971: 113). O
inimigo da humanidade não é a natureza (como o é no humanismo tecnoló-
gico), mas uma estrutura de poder humano que explora e destrói os destitu-
ídos de poder (p. 32).
À luz do que se disse acima, e a despeito das inegáveis semelhanças
entre esses dois gêneros de teologia, seria, portanto, superficial entendê-los
como imagens especulares recíprocas. A teologia da libertação não é sim-
plesmente a ala radical, política da teologia progressista européia (Gutiérrez
1988:xxix). Existe aqui uma diferença tão básica que cada lado precisa in-
terpretar equivocadamente o outro para fazer sentido (cf. West 1971:32).
Ambas, em verdade, podem ser denominadas como teologias "dos sinais
dos tempos", mas, como sustentei anteriormente, não temos outra alternati-
va senão tentar interpretar os sinais dos tempos, mesmo que isso permane-
ça uma empresa extremamente arriscada. Não nos é possível evadir essa
responsabilidade; afinal, o que vale a pena fazer, também vale a pena fazer
mal. Em vez de constituírem uma mera extensão lógica do Evangelho Social
e das teologias secularistas da década de 1960, várias formas da teologia da
libertação alinham-se com a tradição dos despertamentos evangelicais, da
teologia reformada (cf. a centralidade da tradição reformada em Boesak
1977) e da ruptura teológica associada com o nome de Karl Barth (observe-
se a maneira em que James Cone e Míguez Bonino extrapolam suas teolo-
gias a partir de suas raízes barthianas; cf. também Lamb 1984:129).
526 - Rumo a uma missiologia relevante

A conexão marxista
Freqüentemente, acusam-se as teologias contextuais e da libertação
de terem entregue o evangelho cristão à ideologia marxista. Em si, isso é de
se esperar, uma vez que tanto o marxismo quanto a teologia da libertação
rejeitam o modelo capitalista (cf., por exemplo, Míguez Bonino 1976). Isso
também é compreensível quando se considera a natureza burguesa da mai-
oria das igrejas ocidentais e sua cumplicidade com o colonialismo e o capi-
talismo. A orientação em prol do status quo de grande parte do cristianismo
e a interpretação convencional do engajamento social cristão que não ultra-
passa a caridade e a assistência foram eloqüentemente expressas nas pala-
vras, muitas vezes citadas, de Dom Hélder Câmara: "Quando eu construo
casas para os pobres, chamam-me de santo. Mas quando tento ajudar os
pobres dando nome às injustiças que os tomaram pobres, chamam-me de
subversivo, de marxista". Há, pois, motivos razoáveis para que os teólogos
do Terceiro Mundo recorram a uma crítica marxista do cristianismo tradici-
onal. O próprio Marx era consumido pelo desejo de terminar com a explora-
ção e a opressão dos pobres, o que dificilmente pode ser imputado como
defeito.
Nem sempre, contudo, se reconhece que o uso dado pela teologia da
libertação ao marxismo e às categorias marxistas é seletivo e crítico. Os
teólogos da libertação tendem a empregar a análise marxista como um ins-
trumento de crítica e não de forma prescritiva. Mesmo alguém tão declara-
damente marxista como José P. Miranda (cujo livro Communism in the
Bible abre com um capítulo intitulado "Cristianismo é comunismo") critica
muitos revolucionários que se chamam marxistas e utiliza criticamente ca-
tegorias marxistas.
Além disso, parece que houve, no que conceme à teologia da liberta-
ção latino-americana, nos últimos anos, um distanciamento da análise mar-
xista. Isso vale especialmente para a crítica marxista da religião. Segundo,
por exemplo, critica a incapacidade marxista de levar em conta a realidade
dos "dados cristãos transcendentes". Seu problema, afirma ele, está vin-
culado com "a simplória e equivocada escatologia [marxista], que suscita
esperanças falsas e, por isso, a longo prazo, só intensifica a desesperança e
o desespero das pessoas" (1986: 179), e com a "utopia paralisante" que se
insinuou na teologia da libertação devido a essa aliança. Também Míguez
Bonino (1976: 118-132) se preocupa em apontar deficiências cruciais no
marxismo, como seu abuso do poder, sua arbitrariedade, seus cultos perso-
nalistas e suas "panelinhas" burocráticas. A aliança com o marxismo apre-
senta, portanto, "promessa" e "limites".
Ao mesmo tempo, enquanto que a análise marxista parece estar em
declínio na América Latina, ela foi introduzida com maior vigor na teologia
negra sul-africana desde, mais ou menos, 1981- de novo por razões muito
óbvias, considerando-se a situação de repressão e de privação de direitos
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 527

dos negros na África do Sul. Em certo sentido, pois, houve um desenvolvi-


mento inverso na África do Sul, em comparação com o da América Latina.
A "primeira fase" da teologia negra (1970-1980) estava praticamente isen-
ta da influência marxista, mas os teólogos da "segunda fase", depois de
1980, estão se utilizando de categorias marxistas de forma muito mais cons-
ciente e consistente (quanto às duas "fases", cf. Kritzinger 1988:58-84).
Dificilmente pode existir qualquer problema no uso da teoria marxis-
ta como instrumento na análise social. Como tal, ela certamente pode ser de
enorme valor. A questão, porém, é se alguns proponentes da teologia da
libertação também não adotaram a ideologia marxista e se isso pode ser
considerado compatível com a fé cristã. Na tentativa de responder a essa
questão, é possível destacar, primeiro, que o marxismo compartilha com o
capitalismo os pressupostos do paradigma iluminista, especialmente em re-
lação a seu pensamento sujeito-objeto, seu utopismo e sua crença na mo-
dernização e nos seres humanos como seres autônomos e inatamente bons.
Newbigin, com certa dose de razão, chama-o de "irmão gêmeo rebelde do
capitalismo"; os dois são "produtos univitelinos da apostasia dos intelectuais
europeus do século 18" (1986:8). A diferença talvez resida apenas no fato
de que um persegue a liberdade à custa da igualdade, e o outro, a igualdade
à custa da liberdade (p. 118).
Segundo, o cristianismo, como religião, parte da premissa de que existe
outra realidade atrás e acima da realidade visível e tangível que nos circun-
da; seu ponto de referência não é apenas este mundo. O marxismo, em
contraste, é uma ideologia, o que significa que não possui qualquer referên-
cia a uma realidade trans-empírica (isso não impede que tenha fundadores,
sagradas escrituras, mártires, credos oficiais, uma escatologia, hereges, etc.;
para um excelente resumo dos "elementos religiosos do marxismo", cf.
Nürnberger 1987b: 105-109). No modelo marxista clássico, a religião repre-
senta uma ilusão e o ópio do povo. É importante observar que essa dimen-
são totalmente ateísta do marxismo está sendo cada vez mais rejeitada por
teólogos da libertação. Nesse sentido, os teólogos secularistas se encon-
tram, de fato, mais próximos da clássica premissa marxista do que os teólo-
gos da libertação. Em geral, estes se recusam a dispensar o que Segundo
denomina de "dados transcendentes". Para Gutiérrez, a salvação "abarca
qualquer aspecto da humanidade: corpo e espírito, indivíduo e sociedade,
pessoa e cosmo, tempo e eternidade" (1988:85) - uma afirmação com que
nenhum marxista pode concordar. Leonardo Boff igualmente distingue en-
tre "libertação parcial" e "libertação integral" (1984: 14-66; cf. Boff 1983).
Só esta última merece ser chamada de salvação e tem a ver com "a condi-
ção escatológica do ser humano" (1984:56-58). A salvação e a libertação
jamais podem ser divorciadas uma da outra (como sói acontecer tantas
vezes na teologia convencional); mas elas tampouco deveriam ser confun-
didas (p. 58-60).
528 - Rumo a uma missiologia relevante

Terceiro, há a questão da violência. O apoio à violência é intrínseco


ao marxismo. Sem desculpar a violência do status quo e sua bênção por
parte dos cristãos (que constitui, de fato, o problema maior), é preciso ex-
pressar preocupação com o apoio à violência revolucionária (que é, em
verdade, o problema menor, pois representa efetivamente uma resposta à
violência do sistema) que se encontra em algumas ramificações da teologia
da libertação. Ele se torna especialmente problemático quando a idéia mar-
xista de revolução contínua é adotada por teólogos, na linha da filosofia de
Albert Camus: "Eu me rebelo, logo somos", ou do slogan de Che Guevara:
"O dever de um revolucionário é fazer revolução". Nesse tipo de aborda-
gem, a ação revolucionária é quase alçada ao nível de uma liturgia sagrada,
o conflito torna-se uma chave hermenêutica que abrange a tudo, e a mobi-
lização de ódio e demagogia vira um dever inescapável. Concomitantemen-
te, ela perpetua a fixação no "oponente" como inimigo implacável e joga a
culpa de toda e qualquer miséria em outros (cf. Sundermeier 1986:67,76),
enquanto que desculpa tudo que os oprimidos decidam fazer no sentido de
livrar-se dos grilhões da opressão.
Embora alguns libertacionistas apóiem, de forma inequívoca, a vio-
lência (como Shaull1967) e outros pareçam ser ambíguos em relação a ela
(por exemplo, o Kairos Document), a maioria está comprometida com a
não-violência (por exemplo, Desmond Tutu e Allan Boesak). Nessa linha, a
Conferência da CMME em Melbourne afirma que "Jesus de Nazaré rejei-
tou o poder coercitivo como forma de transformar o mundo" (Seção IV, 3;
WCC 1980:209), enquanto que EN 37 declara que "a violência não está
acorde com o evangelho". A "espiral de violência" (Câmara) é um espectro
por demais conhecido em muitas partes do mundo. Só isso já faz com que
estratégias de não-violência como as de Ghandi e Martin Luther King me-
reçam uma séria consideração. O poder humano tem seus limites; ele pode
coagir, mas dificilmente pode curar (West 1971:230). Os cristãos sempre
deveriam permanecer abertos à "impossibilidade possível" de que o "inimi-
go" torne-se um amigo e que o opressor seja persuadido a trilhar um outro
caminho (de Gruchy 1987:242). Para vexação de muitos, os evangelhos nos
contam que Jesus comia com pecadores e justos, com exploradores e ex-
plorados, e que tanto Levi, o colaborador, quanto Simão, o zelote, eram dis-
cípulos seus (a não ser, é óbvio, que nossa hermenêutica da suspeita nos
induza a contestar radicalmente toda a tradição evangélica nesses e em
pontos similares, como Mosala 1989 parece sugerir). E, visto que os cris-
tãos crêem que a batalha decisiva já foi vencida por Cristo, eles podem
acreditar na possibilidade do perdão, da justificação e da reconciliação.
Considerando as cruas realidades da opressão e da exploração, tal reconci-
liação será custosa. Ela é "extremamente destrutiva para as continuidades
humanas, as teorias de progresso, o velho self e a velha sociedade, porque
acarreta também a afirmação do adversário" (West 1971:47; cf. de Gruchy
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 529

1987:241s.). Nesse sentido, portanto, o elemento da análise conflituosa na


teologia da libertação não deveria constituir uma alternativa para a reconci-
liação, mas uma dimensão intrínseca da restauração da comunhão entre
aqueles que agora são os privilegiados e os não-privilegiados (Frostin
1988:180).

Libertação integral
A teologia da libertação ajudou a igreja a redescobrir sua antiga fé
em Javé, cuja qualificação singular - que fazia dele o Completamente Outro
- fundamentava-se em seu envolvimento na história como o Deus da eqüi-
dade e justiça que defendia a causa dos fracos e oprimidos (cf. Dt 4.32,34s.;
SI 82). Ela nos ajudou a compreender de novo o Espírito Santo, especial-
mente sua capacidade de transformar coisas inertes em coisas vivas, de
trazer pessoas de volta da morte para a vida, de conceder poder aos fracos
e de reconhecer a presença do Espírito não apenas nos corações das pesso-
as, mas também no mundo cotidiano da história e da cultura (cf. Krass
1977:11). Ela reacendeu a fé na grande renovação da história que se inau-
gurou na morte, ressurreição e ascensão de Cristo e despertou de novo a
confiança de que nada precisa permanecer como está: os cristãos podem se
posicionar criticamente frente a autoridades, tradições e instituições deste
mundo e combinar o antigo adágio ecclesia semper reformanda com seu
corolário societas semper reformanda (cf. Gort 1980b:54). Isso se aplica,
sobretudo, às condições dos pobres e dos humildes. Eles merecem prefe-
rência não porque sejam moral ou religiosamente melhores do que os ou-
tros, mas porque Deus é Deus, e a seus olhos "os últimos são os primeiros";
ou, segundo as palavras de Las Casas, "Deus se lembra melhor e de forma
mais incisiva dos últimos e mais esquecidos" (cit. ap. Gutiérrez 1988:xxvii).
Como a fé e a vida são inseparáveis (Gutiérrez 1988:xix), essa liber-
tação deve acontecer em três níveis diferentes: libertação de situações so-
ciais de opressão e marginalização, libertação de qualquer espécie de es-
cravidão pessoal e libertação do pecado, que é a ruptura da amizade com
Deus e com outros seres humanos (p. xxxviii; p. 24s.; cf. Brakemeier
1988:216). A ortodoxia e a ortopráxis necessitam uma da outra, e cada qual
é afetada adversamente quando se perde de vista a outra; mutilamos a
mensagem de Jesus quando optamos ali onde opção alguma é possível (p.
xxxiv). E somos libertados por nossa participação na nova vida conferida a
nós mediante a gratuidade de Deus (p. xxxviiis.).
Os três níveis estão intimamente interconectados, mas não são os
mesmos. A tendência, em alguns setores, de elevar a política a uma posição
de primazia inconteste deve ser, portanto, questionada. Em seu estudo sobre
a cristologia humanista de Paulo, Segundo apresenta algumas reflexões im-
portantes sobre esse tema. A fé javista de Israel, diz ele, tinha a libertação
política como uma, mas apenas uma, de suas dimensões (1986: 169s.). Os
530 - Rumo a uma missiologia relevante

teólogos da libertação, contudo, tenderam ou a ler toda a Bíblia - mesmo as


partes aparentemente mais apolíticas - com o auxílio do código político, ou
a fazer pouco caso daquelas partes que não era possível ler dessa maneira
(p. 169-171). Isso sucedeu porque tentavam obter respostas prontas da Es-
critura, procurando uma conexão pragmática imediata entre os problemas
que surgiam em seu próprio horizonte e a mensagem da Bíblia (p. 172s.). Ele
propõe, portanto, uma releitura de Paulo, compreendendo-o dentro de seu
próprio contexto, onde a liberdade sociopolítica não significa tudo, e extrapo-
lando de lá para os dias de hoje. Paulo nos mostra que existem, efetivamente,
aspectos do ser humano que não são redutíveis ao sociopolítico.
Segundo se ocupa, então, com a questão de quem são os verdadeiros
portadores da teologia da libertação. Existe, na teologia da libertação, uma
tendência, segundo ele, de toldar a diferença entre a igreja e o "povo" ou "os
pobres" e de sacrificar a igreja como comunidade distinta. Essa tendência
também se encontra fora dos limites estritos da teologia da libertação. Na
Conferência da CMME de Melbourne, por exemplo, conferiu-se, muitas ve-
zes, uma qualidade messiânica aos pobres, como se os pobres e a igreja cons-
tituíssem sinônimos perfeitos. Uma sugestão no sentido de afirmar que os
pobres são bem-aventurados na medida em que anseiam por justiça foi rejei-
tada na Seção L O relatório agora assevera (adicionou-se o grifo) que "os
pobres são 'bem-aventurados' por causa de seu anseio por justiça e sua
esperança por libertação. Eles aceitam a promessa de que Deus veio para
resgatá-los" (1, 2; WCC 1980: 172). Segundo adverte contra esse tipo de
discurso e diz haver muita retórica vazia em fórmulas superficialmente des-
lumbrantes, por exemplo, de que as pessoas deveriam colocar-se "sob o
discipulado dos pobres", pois (de acordo com Gutiérrez) somente aos po-
bres se concedeu a graça de receber e compreender o reino, de modo que
não é possível existir uma autêntica teologia da libertação até que seja criada
pelo "Povo" (Segundo 1986: 182, 224, nota 257; cf. p. 226, nota 262).
Segundo propõe, porém, que nossa categoria teológica abrangente
deveria ser a igreja, e não "o Povo". A práxis da teologia da libertação
pressupõe a justificação pela graça mediante a fé. "O Povo", contudo, é
uma categoria sociológica e não se pode transformá-la em um termo teoló-
gico e tratá-la como um sinônimo de igreja. Toda libertação precisa passar
pelo juízo da cruz de Cristo (cf. Brakemeier 1988:217-221). Também no
Kairos Document, a linha entre a igreja e os movimentos políticos toma-se
indistinta (cf. de Gruchy 1987:241). A convicção de Lamb, citada anterior-
mente, de que "a voz das vítimas é a voz de Deus" (1982:23) constitui uma
assertiva muito poderosa e comovente, mas ela incorre no mesmo obscure-
cimento de categorias. Dizer que Deus escuta e responde os clamores dos
oprimidos é uma coisa; outra é afirmar que esses clamores são a voz de
Deus. O bispo Alpheus Zulu disse certa vez: "A afirmação 'Deus está do
lado dos oprimidos' não pode ser simplesmente invertida: 'Os oprimidos
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 531

estão do lado de Deus'." É preciso que se atente para as advertências de


Segundo quanto a isso. E, aparentemente, Gutiérrez está, em verdade, co-
meçando a prestar atenção a ele. Em sua nova introdução ao livro Teologia
da libertação, ele admoesta contra "os entusiasmos fáceis que interpreta-
ram [a teologia da libertação] de forma simplista ou errada, afastando-a das
exigências integrais da fé cristã vivida em comunhão eclesial" (2000: 12; cf.
p.44s.).
Ainda há um outro aspecto a considerar: o otimismo inato da humani-
dade. Quanto a isso, a teologia da libertação - pelo menos, em sua manifes-
tação inicial- compartilhava o otimismo dos teólogos secularistas, dos "hu-
manistas tecnológicos". Ambos situavam o pecado nas estruturas da socie-
dade e não no coração humano. Os dois eram inerentemente otimistas em
relação ao futuro e àhumanidade e, por isso, herdeiros da cosmovisão ilumi-
nista. A diferença talvez residisse apenas nisto: enquanto os humanistas
tecnológicos consideravam todas as pessoas essencialmente boas, a teolo-
gia da libertação se inclinava a crer que somente os pobres e os oprimidos
eram inatamente bons - mas os ricos e opressores eram maus.
O otimismo da década de 1960 e do estágio inicial da teologia da
libertação era quase palpável. Gutiérrez (2000: 11s.) cita um parágrafo do
documento da CELAM II (Medellín, 1968, onde se sancionou, pela primeira
vez, oficialmente a teologia da libertação da América Latina) que o resume:
A América Latina está evidentemente sob o signo da transformação (...) Isto
indica que estamos no umbral de uma nova época da história de nosso
Continente. Época plena de um desejo de emancipação total, de libertação
de qualquer servidão, de maturidade pessoal e integração coletiva. (...) Não
podemos deixar de interpretar este gigantesco esforço por uma rápida trans-
formação e desenvolvimento como evidente sinal da presença do espírito
que conduz a história dos homens e dos povos para sua vocação. Não
podemos deixar de descobrir nesta vontade, cada dia mais tenaz e apressada
de transformação, os vestígios da imagem de Deus no homem, como um
potente dinamismo.
Na época, o próprio Gutiérrez compartilhava esse entusiasmo e en-
dossava o otimismo. O que realmente toma o pensamento utópico viável e
realça sua riqueza de possibilidades é a experiência revolucionária de nos-
sos tempos (1988: 135) - de fato, o pensamento utópico autêntico postula,
enriquece e proporciona novas metas à ação política (p. 136).
Esse tipo de linguagem era indicativo da euforia reinante em meados
da década de 1960. A libertação de Israel do cativeiro no Egito constituía o
paradigma teológico incontestado da teologia da libertação (Segundo
1986: 169). Medellín incrementou o entusiasmo e inspirou a igreja e o povo
da América Latina. E, deveras, existiam muitos eventos promissores. O
sistema capitalista, aparentemente, encontrava-se sob uma pressão intensa,
no Chile e alhures. A idade de ouro do socialismo estava muito próxima.
532 - Rumo a uma missiologia relevante

Mas, em meados dos anos 70, grande parte disso havia desaparecido. As
esperanças por uma transformação social e política se esfrangalharam no
Chile, no Uruguai, na Argentina e na Bolívia. Regimes brutais inspirados
pela ideologia da "segurança nacional" haviam imposto sua repressão poli-
cial e suas políticas econômicas a grande parte do continente (cf. Míguez
Bonino 1980:1154). Também ali onde se instauraram regimes socialistas, a
situação em quase nada se alterou. A repressão apenas assumiu outras
formas. E, inclusive, ficava mais difícil ainda atacar a moralidade de tudo
isso, uma vez que os governantes socialistas afirmavam ter o apoio popular
para aquilo que estavam fazendo. Freqüentemente, portanto, as pessoas
eram libertadas sem se tomarem livres ...
Nesse ambiente, os elementos triunfalistas começaram a desapare-
cer do discurso da teologia da libertação. Segundo (1986:224, nota 254)
critica A força histórica dos pobres, de Gutiérrez, e pergunta: "De que
'força' ele está falando? Onde essa força se escondeu nos últimos quatro
séculos, desde os dias do colonialismo europeu?" Em outra passagem, ele
tece reflexões sobre o horizonte que se turva:
Parece que tudo foi experimentado, toda abordagem possível empregada,
mas o resultado é o mesmo. Por alguma lei inflexível, percebida de forma mais
aguda na medida em que o tempo passa, parece impossível tornar-nos até
mesmo parcialmente livres, escolher o tipo de vida social que desejamos,
discuti-lo e, muito menos, lutar por ele. Diariamente, vemos caminhos que
antes pareciam abertos inviabilizar-se para nós. (p. 175).

Na nova introdução a seu livro, Gutiérrez também reconhece que as


circunstâncias mudaram. Freqüentemente, diz ele, a teologia da libertação
"suscitou entusiasmos fáceis" (1988:xviii). A segunda fase da teologia da
libertação da América Latina parece ser, pois, mais modesta, mais sóbria do
que a primeira. Para Segundo (1986: 157-180), isso significa, entre outras
coisas, uma "deuteroleitura" de Paulo, sobretudo de seus ditos sobre escra-
vos. Paulo calcula os custos de energia implicados em várias situações so-
ciais (p. 222, nota 240). Quanto à instituição da escravidão - uma forma de
ser dominada pelo Pecado -, Paulo percebe que ele, e os cristãos escravos,
defrontam-se com uma opção limitada, com um problema de eficácia, com
um cálculo de energia; se a preocupação do escravo é obter a libertação
civil e ele investe toda a sua energia nisso, Paulo acredita que o custo seja
alto demais. Por conseguinte, Paulo faz uma opção que, obviamente, possui
suas limitações, ou seja, opta por humanizar o escravo a partir de dentro (p.
164). Nas circunstâncias com que se confronta, ele procrastina o compro-
misso com a causa sociopolítica concreta de libertar os escravos (p. 165).
Isso, contudo, não o paralisa, pois a fé vê aquilo que nós próprios não temos
condições de ver; a fé representa uma mudança em nossas premissas epis-
temológicas (e nas do escravo) (p. 159). Possuímos agora uma nova forma
de interpretar os eventos, de modo que Paulo pode até afirmar (Rm 8.28):
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 533

"Todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus" (p.
221, nota 237).
Não podemos simplesmente aplicar Paulo a nossa situação atual. Mas
temos que permitir que a espiritualidade de Paulo nos informe e perguntar o
que seu "cálculo de energia" poderia significar em um determinado contex-
to. E o que vale para Paulo também tem validade para Jesus. É difícil ima-
ginar um Jesus silente diante da realidade que precisamos vivenciar atual-
mente, diz Segundo (1986: 173), mas também é difícil imaginá-lo contestan-
do o poder estabelecido sobre nós de uma maneira totalmente irrealista e
apenas por amor ao princípio. Paulo e Jesus não estavam se refugiando no
setor "privado"; eles estavam simplesmente enfatizando que o status desu-
manizante dos escravos não os impede, necessariamente, de obter a matu-
ridade humana. Isso eles poderiam fazer aderindo à fé em Cristo e aos
"dados transcendentes" trazidos por ele (p. 180). Dentro das circunstânci-
as, essa era a única forma mediante a qual Jesus ou Paulo podiam humani-
zar o escravo. Essa é a maneira em que as pessoas cristãs podem triunfar
qualitativamente, mesmo que não escapem da vitória quantitativa do Peca-
do (p. 160).
Segundo está abrindo uma nova senda dentro da teologia da liberta-
ção. O cristão pode triunfar, mesmo onde as circunstâncias não se alteram,
mesmo onde a libertação não vem. A libertação e a salvação se sobrepõem
em um grau significativo, mas a sobreposição não é integral. Não nos deve-
ríamos iludir acreditando que tudo está a nosso alcance e que podemos
concretizá-lo agora; diminuiríamos, então, também "a importância e o cará-
ter decisivo da próxima geração" (Segundo 1986: 160). A espiritualidade de
Paulo (e a de Segundo) é "a longo prazo" (Robert Bilheimer, referência ap.
Henry 1987:279s.), e não é a de Pelágio, que acreditava que "temos o poder
de conseguir qualquer coisa boa mediante a ação, a fala e o pensamento"
(Pelágio, cito ap. Henry 1987:272). Para os pelagianos, a verdadeira justiça
e a verdadeira unidade podem coexistir integralmente neste mundo, basta
que o tentemos em grau suficiente (p. 274; cf. Gründel 1983:122). Mas a
esperança de que os seres humanos possam suportar os fardos do mundo é
uma ilusão que os conduz da ansiedade ao desespero (cf. Duff 1956:146,
resumindo um relatório do "Comitê Assessor" sobre o tema da Assembléia
do CMI de Evanston). Ela apenas fomenta nossos sentimentos de culpa e
acarreta uma crescente autoflagelação devido à nossa incapacidade de ob-
ter aquilo que, de acordo com nossa própria convicção, deveríamos alcan-
çar. Caímos então na armadilha de crer que a justiça deve ser nossa justiça,
que podemos e devemos cancelar nossa culpa mediante a reparação, supe-
rar nossa frustração por meio de mais ação e impelir-nos, incessantemente,
de um "engajamento" a outro. Ademais, isso é fácil para as pessoas cuja
causa é desfazer a divisória entre aquilo pelo qual lutam e sua própria repu-
tação e glória. A luta pela justiça pode facilmente redundar em uma espécie
534 - Rumo a uma missiologia relevante

de dogmatismo ideológico, fazendo com que, eventualmente, perpetremos a


injustiça enquanto lutamos pelajustiça (Henry 1987:279).
Segundo deseja romper esse círculo vicioso de frustração, do qual a
teologia da libertação não está, em absoluto, isenta. Deveríamos reconhe-
cer, porém, que a posição de Segundo não reflete uma solução conciliatória
ou um ajuste pragmático e uma reconciliação com as "realidades". Isso
contradiria o âmago da teologia da libertação. E Segundo permanece firme-
mente comprometido com a pauta da libertação. Se o cristianismo perdesse
seu papel contracultural e transformador do mundo, outras forças tomariam
seu lugar. Necessitamos uma visão que oriente nossa ação dentro da histó-
ria. A indiferença frente a essa visão é uma negação do Deus que vincula
sua presença à eliminação de toda exploração, dor e pobreza. Tão logo que
nossa esperança seja objeto de transigência, que cessemos de esperar as
transformações globais dentro da história sobre as quais falam as Escritu-
ras, nós exterminamos essa visão (cf. Krass 1977:21). Temos que rejeitar
resolutamente nosso pensamento dualista tradicional de erigir alternativas
entre o corpo e a alma, a sociedade e a igreja, o eschaton e o presente, e
reavivar uma fé, uma esperança e um amor que tudo abarcam e apostam no
triunfo final de Deus que projeta seus raios sobre o presente.
A teologia da libertação, muitas vezes, é mal compreendida, atacada
e vilipendiada. Creio que um desses casos de má compreensão, que acarre-
tou amplas conseqüências, foi a Instrução sobre alguns aspectos da "teo-
logia da libertação", publicado pelo Vaticano em 1984 e dirigida, bem es-
pecialmente, a Leonardo Boff. Não tentei, nesses parágrafos, caiar a teolo-
gia da libertação nem corrigir mal-entendidos. Tentei, simplesmente, salien-
tar que esse movimento, apesar de suas deficiências (e há várias), repre-
senta "uma nova etapa, em estreita conexão com as anteriores, da refle-
xão teológica iniciada com a tradição apostólica" (João Paulo lI, em uma
carta a bispos brasileiros datada de abril de 1986, cito ap. Gutiérrez, 1988,
xliv; o grifo foi adicionado). O papa o expressou bem. Não se trata de uma
"nova teologia", mas de um novo estágio no teologizar, estando, como tal,
em continuidade e descontinuidade com o teologizar de épocas anteriores.
Não se trata de um modismo, mas de um esforço sério de fazer com que a
fé tenha sentido para uma época pós-moderna. Exatamente por isso, ela
jamais constituirá um produto acabado. Em cada estágio, diz Gutiérrez, "É
sempre necessário esclarecer, melhorar e eventualmente corrigir formula-
ções prévias se queremos empregar uma linguagem compreensível e fiel
tanto à integridade da mensagem cristã como à realidade que vivemos" (p.
xviii).
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 535

Missão como inculturação

As vicissitudes da acomodação e da indigenização


A inculturação representa um segundo modelo importante de con-
textualizar a teologia (cf. Upkong 1987) e é, como a teologia da libertação,
de origem recente - embora tenha precedentes na história cristã. A incultu-
ração é um dos padrões em que o caráter pluriforme do cristianismo con-
temporâneo se manifesta. Inclusive o termo é novo. Pierre Charles introdu-
ziu o conceito "enculturation", comum em círculos da antropologia cultural,
mas foi J. Masson o primeiro a cunhar a expressão Catholicisme inculturé
("catolicismo inculturado"), em 1962. Ela logo se tornou corrente, entre
jesuítas, na forma de "inculturação". Em 1977, o superior geral dos jesuítas,
P. Arrupe, apresentou a expressão ao Sínodo dos Bispos; a Exortação Apos-
tólica Cathechesi Tradendae (CT), fruto desse sínodo, empregou-a e lhe
conferiu circulação universal (cf. Müller 1986:134; 1987:178). Em breve,
ela também foi aceita em círculos protestantes e, atualmente, constitui um
dos conceitos mais usados em círculos missiológicos.
A fé cristã jamais existe senão como "traduzida" para dentro de uma
cultura. Essa circunstância, que era um traço integrante do cristianismo
desde seu princípio, tornou-se, espero, bem clara no decorrer deste estudo.
Lamin Sanneh diz, com justeza (cf. Stackhouse 1988:58), que a igreja primi-
tiva, "ao estender-se sobre os mundos judaico-gentílicos, nasceu num ambi-
ente transcultural, tendo a tradução como sua marca de nascença'f". Con-
seqüentemente, não deve causar surpresa que, nas igrejas paulinas, judeus,
gregos, bárbaros, trácios, egípcios e romanos pudessem sentir-se em casa
(cf. Küster 1984:172). O mesmo se pode dizer da igreja pós-apostólica. A
fé foi inculturada em uma grande variedade de liturgias e contextos - siría-
co, grego, romano, copta, armênio, etíope, maronita, etc. Além disso, duran-
te esse período inicial, a ênfase estava na igreja local, e não na igreja univer-
sal em sua forma monárquica.
Depois de Constantino, quando a es-religio illicita se tornou a reli-
gião do Estado, a igreja passou a ser o portador da cultura. Sua expansão
missionária representou, portanto, um movimento dos civilizados para "sel-
vagens" e de uma cultura "superior" para culturas "inferiores" - um pro-
cesso em que estas precisavam ser dominadas, se não erradicadas. Logo, a
missão cristã, naturalmente, pressupunha a desintegração das culturas em
que penetrava. Onde essa desintegração não ocorria, a missão tinha um
êxito apenas limitado (como no caso de algumas culturas asiáticas - cf.
Gensichen 1985: 122; Pieris 1986).
No capítulo 9 deste estudo, e também em outras passagens, sublinhei
a influência decisiva que o colonialismo ocidental, os sentimentos de superi-
oridade cultural e o "destino manifesto" exerceram sobre o empreendimen-
536 - Rumo a uma missiologia relevante

to missionário ocidental e até que ponto isso comprometeu o evangelho.


Sem repetir o que se disse ali, mencionarei apenas algumas formas em que
essas circunstâncias afetaram o assunto examinado aqui.
Quando se iniciou a expansão colonial do Ocidente em grande esca-
la, os cristãos ocidentais não tinham consciência do fato de que sua teologia
era condicionada pela cultura; eles simplesmente supunham que ela fosse
supracultural e universalmente válida. E como se considerava a cultura oci-
dental, implicitamente, como cristã, também era óbvio que essa cultura de-
via ser exportada junto com a fé cristã. Mas reconheceu-se logo que, a fim
de acelerar o processo de conversão, faziam-se necessários alguns ajustes.
A estratégia segundo a qual eles deveriam ser efetivados denominava-se,
variegadamente, de adaptação ou acomodação (no catolicismo) ou de indi-
genização (no protestantismo). Muitas vezes, contudo, ela se limitava a ques-
tões acessórias, como vestimentas litúrgicas, ritos não-sacramentais, arte,
literatura, arquitetura e música (cf. Thauren 1927:37-46).
As ramificações foram múltiplas. Primeira: a acomodação jamais in-
cluía a modificação da teologia ocidental "pré-fabricada". Segunda: em ver-
dade, entendia-se como uma concessão que os cristãos do Terceiro Mundo
agora tivessem permissão de usar alguns elementos de sua cultura para
expressar sua nova fé. Terceira: apenas aqueles elementos culturais que
eram manifestamente "neutros" e naturalmente bons, i. é, não "contamina-
dos" por valores religiosos pagãos, podiam ser empregados (cf. Thauren
1927:25-33; Luzbetak 1988:67). Quarta: a palavra "elementos" implicava,
ademais, que as culturas não eram vistas como todos indivisíveis, mas, à
moda iluminista, como componentes separados que se poderiam juntar ou
desmembrar a bel-prazer; portanto, não haveria problema algum se alguns
componentes fossem isolados e utilizados a serviço da igreja cristã. Quinta:
era óbvio que a indigenização ou acomodação constituía um problema ex-
clusivo das igrejas "jovens". Na igreja ocidental, a indigenização fora, du-
rante muitos séculos, umfait accompli [assunto encerrado]; o evangelho
estava perfeitamente em casa no Ocidente, mas ainda era estrangeiro em
outros lugares (cf. Song 1977:2). Sexta: um termo como "adaptação" não
poderia deixar de transmitir a idéia de uma atividade periférica e, por conse-
guinte, não essencial, até mesmo superficial, no que conceme à essência da
missão cristã; era algo opcional e, de qualquer forma, apenas uma questão
de método, deforma, e não de conteúdo (cf. Shorter 1977: 150). A filosofia
subjacente a tudo isso era separar o "miolo" da "casca". A fé, como com-
preendida e canonizada na igreja ocidental- em outras palavras, o deposi-
tumfidei - constituía o miolo puro, enquanto que os atavios culturais das
pessoas a quem os missionários se dirigiam representavam a casca descar-
tável. No processo de acomodação, o miolo precisava ficar intato, mas aco-
modado às formas da nova cultura; ao mesmo tempo, essas culturas tinham
que se adaptar ao "miolo" (cf. Fries 1986:760). Sétima: todo esse projeto
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 537

sugeria, de forma implícita e, freqüentemente, explícita, que as igrejas jo-


vens necessitavam das igrejas velhas, mas que estas, em sentido algum,
dependiam do que, eventualmente, recebessem daquelas; tratava-se, deci-
didamente, de uma via de mão única. Última: muitas vezes, a iniciativa quanto
à indigenização não provinha dos recém convertidos, mas de missionários
com um interesse sentimental em culturas exóticas, que insistiam na "alteri-
dade" das novas igrejas e as tratavam como algo que se deveria preservar
em sua forma primitiva.
Mas missionários católicos, especialmente jesuítas primevos como
de Nobili e Ricci, tentaram ir além do modelo miolo-casca em sua acomoda-
ção da fé aos povos da Índia e da China. Assim, deveras, fê-lo Propagan-
da Fide (fundada em 1622). Em uma extraordinária diretriz de 1659, ela
aconselhou seus missionários a que não obrigassem as pessoas a mudar
seus costumes, desde que eles não se opusessem à religião ou à moralidade.
A mesma declaração ainda acrescentou:
O que poderia ser mais absurdo do que levar a França, a Espanha ou a Itália
ou qualquer parte da Europa para a China? Não é isso que vocês devem
levar, mas a Fé, que não rejeita nem causa dano aos ritos e costumes de
qualquer povo, contanto que não sejam depravados.
Apesar dessa instrução (que era notavelmente semelhante a uma
orientação do papa Gregório Magno, dada mais que um milênio antes - cf.
Markus 1970), os jesuítas, em breve, enfrentaram dificuldades, especial-
mente devido ao que ficou conhecido como a "Controvérsia dos Ritos",
tanto na China quanto na Índia. Em 1704, o enviado papal T. M. Toumon
emitiu um decreto em que condenava a prática jesuítica em 16 pontos. O
papa tomou o partido de Toumon - dois decretos papais (1707 e 1715)
sancionaram a disposição regulamentar de Toumon. A controvérsia conti-
nuou até 1742, quando um outro decreto, Ex quo singulari, ratificou as
decisões anteriores. Uma bula papal de 1744, Omnium sollicitudinum, proibiu
tudo a não ser as concessões mais triviais aos costumes locais e ordenou
um juramento de submissão que deveria ser prestado por todos os missioná-
rios; vetava-se também qualquer outra discussão da questão (cf. Thauren
1927:131-145; Shorter 1988:157-160). Em 1773, suprimiu-se a Sociedade
de Jesus. Logo depois, todos os missionários jesuítas foram chamados de
volta. Somente em 1814 eles foram restaurados por um decreto papal. Só
em 1938 se aboliu o juramento introduzido em 1744.
As missões protestantes somente aparentavam ser diferentes; em
vez de subordinar a expressão da fé à autoridade magisterial, como no cato-
licismo, os protestantes, inconscientemente, submeteram-na às pressuposi-
ções da cultura euro-americana. Os protestantes suspeitavam, em geral,
ainda mais das culturas "não-cristãs" do que os católicos, mormente devido
à sua ênfase na completa depravação da humanidade (Müller 1987:177).
538 - Rumo a uma missiologia relevante

Eles permitiam alguma liberdade, mas, no geral, trabalhavam visando a uma


reprodução exata de modelos europeus. Isso se podia confirmar, inclusive,
quando, deliberadamente, punham-se a encorajar a indigenização, algo exem-
plificado nos famosos "três auto-" como objetivo da missão (autogovemo,
auto-sustentação e autopropagação), formulado classicamente por Rufus
Anderson e Henry Venn há quase um século e meio. Essas notae ecclesi-
ae derivavam-se da idéia ocidental de uma comunidade viva, que possuía
condições de se sustentar, propagar e administrar a si mesma; esses, pois,
constituíam os critérios de acordo com os quais se julgavam as igrejas jo-
vens. As igrejas ocidentais, que há muito tinham alcançado essas metas,
representavam a forma "superior", as outras, que lutavam para correspon-
der a essas expectativas, as "inferiores". Tanto no catolicismo quanto no
protestantismo, a imagem prevalecente era, portanto, pedagógica - por
um extenso período de tempo e ao longo de um laborioso itinerário, dever-
se-iam educar e treinar as igrejas jovens para que alcançassem a autonomia
ou a "maturidade", medida em termos dos "três auto-". Na prática, porém,
as igrejas jovens, à semelhança de Peter Pan, jamais "cresciam", pelo me-
nos não aos olhos das mais velhas. A maioria delas só conseguia sobreviver
e, assim, agradar suas fundadoras, quando se segregavam resolutamente da
cultura circundante e viviam como corpos alienígenas.

Desdobramentos do século 20
O "sistema rígido" de acomodação (Thauren 1927: 130) não poderia
subsistir interminavelmente. As forças que contribuíram para o colapso do
modelo incluem a emergência, já no século 19, do nacionalismo no Terceiro
Mundo, o surgimento do pensamento antropológico, que gradualmente des-
velou a relatividade e a contextualidade de todas as culturas (inclusive as do
Ocidente), e - de singular importância para nosso propósito - a maturação
das igrejas jovens, que, freqüentemente, era acompanhada da criação de
igrejas independentes isentas de qualquer controle missionário. A despeito
das falhas inerentes ao modelo dos "três auto-", ele ajudou a inspirar povos
subjugados para que procurassem a independência também em áreas que
não a estritamente eclesiástica. Mesmo alguém tão encamiçadamente críti-
co de todo o empreendimento missionário ocidental como Hoekendijk teve
que admitir que, nesse sentido, a igreja se encontrava realmente na van-
guarda do mundo (1967a:321). Por volta de 1860, podia se vernitidamente a
autonomia das igrejas jovens em qualquer programa missionário sensato,
muito antes que qualquer ocidental pudesse mesmo imaginar outros tipos de
autonomia para países colonizados. Certamente havia mais sensibilidade,
nesse aspecto, em círculos missionários ocidentais do que nos vários escri-
tórios coloniais.
O papa Benedito XV, especialmente em sua encíclica Maximum Illud
(1919), foi um dos primeiros a promover o direito das "igrejas de missão" de
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 539

deixar de ser colônias eclesiásticas sob controle externo e de ter seu próprio
clero e bispos. Rerum Ecclesiae (Pio XI, 1926) e Evangelii Praecones
(Pio XII, 1951) avançaram em sendas semelhantes (cf. Shorter 1988:179-
186). Desde então, hierarquias locais foram introduzidas em toda parte.
Bühlmann (1977) descreve a nova evolução como "o advento da terceira
igreja", uma realidade que ele designa alhures como "o evento marcante da
história eclesiástica atual" (cit. ap. Anderson 1988:114). A nova realidade
também se expressa no fato de que, atualmente (segundo os cálculos de
Barrett 1990:27), existem muito mais cristãos fora do que dentro dos países
que tradicionalmente enviavam missionários - 914 milhões comparados a
597 milhões - e que muitas dessas igrejas jovens começaram, elas próprias,
a mandar missionários para o exterior.
No período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial, foi
preciso fazer inúmeras retificações tanto em círculos católicos quanto em
protestantes. Para nosso propósito, duas são de especial importância. Em
primeiro lugar, houve os eventos na China, culminando na vitória dos comu-
nistas em 1949 - um acontecimento que simbolizava, de uma maneira sin-
gular, a ruptura de toda a velha ordem missionária. Ocorreu também que -
apesar da guerra durante a qual elas havia sido "orfanadas" - muitas jovens
igrejas do Terceiro Mundo não apenas tinham sobrevivido, mas algumas
cresceram, em verdade, de forma espetacular durante os anos de ausência
dos missionários. O slogan de Whitby (1947) "Parceria em Obediência" e
a formação do CMI como um conselho de igrejas autônomas de todas as
regiões do mundo constituíram duas maneiras de reconhecer a nova reali-
dade e a necessidade de um novo relacionamento. Isso se expressou na
idéia de "missão como assistência recíproca" e em projetos ecumênicos
como "Interchurch Aid", "Ecumenical Sharing ofPersonnel" e "Joint Action
for Mission" (cf. Jansen Schoonhoven 1977; quanto ao cenário católico, cf.
van Winsen 1973).
Mas a missão como assistência intereclesiástica foi um fenômeno de
transição (cf. van Engelen 1975:294). No final da década de 1960, ficou
evidente que ocorrera uma mudança decisiva, mesmo na mente dos ociden-
tais, passando-se de um mundo centrado na Europa para um mundo centra-
do na humanidade. Doravante, as igrejas do Ocidente levariam, cada vez
mais, em conta os pontos de vista e os desdobramentos das igrejas jovens.
Inclusive no Concílio Vaticano Segundo, porém, as vozes de líderes eclesi-
ásticos do Terceiro Mundo ainda eram abafadas, como o eram em encon-
tros ecumênicos protestantes na época. Apenas desde os Sínodos de Bis-
pos Católicos e, no protestantismo, desde a reunião da CMME em Bangcoc
(1973), tomou-se claro que a liderança eclesiástica global está passando,
inexoravelmente, para os cristãos do Terceiro Mundo. A "redescoberta" da
igreja local, durante e após o Vaticano Il, contribuiu muitíssimo para a nova
percepção do amadurecimento de relações. O surgimento de comunidades
540 - Rumo a uma missiologia relevante

eclesiais de base, primeiro na América Latina e então em outros lugares, foi


muito significativo para a auto-imagem das comunidades cristãs locais no
Terceiro Mundo, tanto que Leonardo Boff (1986) o designa como "eclesio-
gênese" ou "reinvenção" da igreja.
Agora também estava mais do que na hora de agregar um "quarto
auto-" aos clássicos "três auto-" - o autoteologizar, um aspecto em que os
teóricos da missão no século 19 jamais pensavam (cf. Hiebert 1985b: 16). É
óbvio que já havia ocorrido muito autoteologizar, freqüentemente de manei-
ra despercebida ou clandestina e, mais das vezes, fora das "igrejas de mis-
são" e, assim, do alcance dos missionários - para os quais, de qualquer
modo, grande parte disso era inaceitável, já que o consideravam sincretis-
ta". Desde a década de 1930, contudo, teólogos asiáticos (especialmente
indianos) oriundos de "igrejas de missão" tinham começado, consciente e
publicamente, a traçar novos caminhos teológicos. Na África, tais desdo-
bramentos só afloraram depois da Segunda Guerra Mundial. Em 1956, um
grupo de sacerdotes africanos de países francófonos publicaram Des prêtres
noirs s 'interrogent, um livro que viria a ter grande influência em círculos
católicos. Pouco depois, Tharcisse Tshibangu, aluno da Faculdade Católica
de Teologia em Kinshasa, começou a questionar as idéias de seus mentores
belgas a respeito de uma teologia universalmente válida. Em 1965, ele publi-
cou Théologie positive et théologie speculative. Esses e outros desdo-
bramentos representaram os primeiros passos no sentido de remediar uma
situação que John Mbiti descreveu, certa vez, assim: "[A igreja na África] é
uma igreja sem uma teologia, sem teólogos e sem uma preocupação teológi-
ca" (1972:51). Encontrava-se montado o cenário para o vigoroso desenvol-
vimento de uma teologia africana autóctone.

Rumo à inculturação
Os desdobramentos esboçados acima prepararam o caminho para
aquilo que, posteriormente, seria conhecido como "inculturação", Reconhe-
ceu-se, afinal, que uma pluralidade de culturas pressupõe uma pluralidade
de teologias e, portanto, para as igrejas do Terceiro Mundo, uma despedida
da abordagem eurocêntrica (cf. Fries 1986:760; Waldenfels 1987:227s.). A
fé cristã precisa ser repensada, reformulada e revivida em cada cultura
humana (Memorandum 1982:465), e é preciso que se faça isso de uma
forma vital, profunda e diretamente voltada às raízes das culturas (EN 20).
Tal projeto se faz ainda mais necessário à luz da maneira como o Ocidente
violentou as culturas do Terceiro Mundo, infligindo-lhes o que se designou
como "pobreza antropológica" (cf. Frostin 1988: 15).
No início, a liderança eclesiástica do Ocidente admitiu apenas relu-
tantemente o novo desenvolvimento. Snijders (1977: 173s.) mostrou como
Paulo VI, por exemplo, hesitou entre aceitar e rejeitar a idéia da incultura-
ção - do mesmo modo como um papa anterior, Gregório Magno vacilou
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 541

quanto à acomodação missionária no século VI (cf. Markus 1970). Mas, no


fim, Paulo VI optou resolutamente pela inculturação, assim como o fez João
Paulo 11, especialmente em CT. O compromisso deste com o projeto corro-
borou-se quando fundou o Concílio Pontifício para a Cultura, em 1982 (cf.
Shorter 1988:230s.). Pode-se observar uma evolução similar no protestan-
tismo. Aqui os evangelicais, muitas vezes, estiveram na vanguarda (talvez
porque os protestantes ecumênicos revelavam um interesse maior na mis-
são como libertação do que na missão como inculturação?). Um evento
marcante foi a Consulta sobre Evangelho e Cultura, promovida pelo Comitê
de Lausanne para a Evangelização Mundial e realizada em 1978, em Willow-
bank, Bermudas (cf. Stott e Coote 1980). O Relatório de Willowbank (p.
311-339) foi amplamente aclamado (cf. Gensichen 1985:112-129). Emge-
ral, Willowbank optou pelo modelo de inculturação de "equivalência dinâmi-
ca" (Stott e Coote 1980:330s.), seguindo, assim, os passos do trabalho pio-
neiro feito por Eugene Nida e, mais recentemente, Charles Kraft. A "equi-
valência dinâmica", uma variante do "modelo de tradução", constitui, po-
rém, apenas um dos vários modelos de inculturação correntes. Outros são
os modelos antropológico, da práxis, sintético e semiótico. Um exemplo ex-
celente deste último é Constructing Local Theologies (1985), de Schrei-
ter. Está claro, pois, que inculturação não significa necessariamente o mes-
mo para todos. Mas existem traços básicos que são comuns a todos esses
modelos e os destacam de abordagens anteriores, como a acomodação, a
indigenização e afins.
Em que aspectos a inculturação difere de suas predecessoras?
Primeiro, ela difere quanto aos agentes. Em todos os modelos ante-
riores, era o missionário ocidental que induzia ou benevolentemente supervi-
sionava a maneira como se deveria desdobrar o encontro entre a fé cristã e
as culturas locais. Os próprios termos "acomodação", "adaptação", etc.
sugeriam isso. O processo era unilateral, na medida em que a comunidade
de fé local não era o agente primordial. Na inculturação, porém, os dois
agentes principais são o Espírito Santo e a comunidade local, especialmente
as pessoas leigas (cf. Luzbetak 1988:66). Nem o missionário, nem a hierar-
quia, nem o magistério controlam o processo. Isso não significa que o missi-
onário e o teólogo sejam excluídos. Schreiter inclusive considera a partici-
pação deles indispensável; ignorar os recursos da teóloga profissional "sig-
nifica preferir a ignorância ao conhecimento" (1985: 18). Mas os missionári-
os não mais vão com uma mentalidade do tipo "Forças de Paz" a fim de
"fazer o bem". Eles não mais participam como aqueles que têm as respos-
tas para todas as perguntas, mas para aprender como os demais. O padre
se torna um compadre. A inculturação só é possível se todos praticam a
convivência, "a vida em conjunto" (Sundermeier 1986).
Segundo, a ênfase está verdadeiramente na situação local. "A pala-
vra universal só fala dialeto" (P.Casaldáliga, cito ap. Sundermeier 1986:93).
542 - Rumo a uma missiologia relevante

A nova ênfase do Vaticano II na igreja local já apontava nessa direção. A


igreja una e universal encontra sua existência genuína nas igrejas particula-
res (LG 23, 26) - algo que as igrejas do Terceiro Mundo levam muito mais
a sério que a igreja no Ocidente (cf. Glazik 1984b:64). Nesse nível local, a
inculturação abrange bem mais do que a cultura no sentido tradicional ou
antropológico do termo. Ela envolve todo o contexto: social, econômico,
político, religioso, educacional, etc.
Mas a inculturação não constitui unicamente um evento local. Ela
tem também uma manifestação regional ou macrocontextual e macrocul-
tural. Em medida significativa, os vários paradigmas que delineei na parte
precedente deste estudo evoluíram porque a cada vez a fé cristã entrou em
um contexto macrocultural distinto - os mundos grego, eslavo, latino ou
germânico. As disputas teológicas que se suscitaram nesse processo deve-
riam ser atribuídas, no mínimo, tanto a diferenças culturais quanto a diferen-
ças doutrinárias genuínas. Vista dessa perspectiva, é possível sustentar que
a Reforma protestante foi um caso da (atrasada?) inculturação da fé entre
povos germânicos e relacionados. O mesmo se pode dizer sobre muitas
diferenças regionais hodiernas. A consideração decisiva, então, poderá ser
não se uma igreja é católica romana, anglicana, presbiteriana ou luterana,
mas se ela tem seu domicílio na África, na Ásia ou na Europa. Diferenças
regionais tendem a tornar-se mais importantes que as confessionais. É dig-
no de nota, por exemplo, que os negros americanos, após terem sido assal-
tados, durante vários séculos, por uma cultura alheia, ainda retenham uma
singular identidade religioso-cultural. Essas diferenças no macronível expli-
cam, portanto, parcialmente, por que, na América Latina, a inculturação
assume a forma de solidariedade com e entre os pobres; na África, ela pode
significar solidariedade e comunhão dentro e entre culturas autônomas; e,
na Ásia, a procura de identidade em meio à densidade do pluralismo religio-
so. Em várias regiões do mundo, podemos, pois, observar o surgimento de
eclesiologias, cristologias, etc. autóctones.
Quarto, a inculturação segue inconscientemente o modelo da encar-
nação (cf. João Paulo Il, cit. ap. ITC 1989:143). O Relatório de Willow-
bank menciona especificamente João 17.18,20.21 e Filipenses 2 (cf. Stott e
Coote 1980:323). De fato, a dimensão cenótica e encarnacional da incultu-
ração autêntica é citada com freqüência em todas as tradições teológicas
(cf. Bühlmann 1977:287; Scott e Coote 1980:323s., Geffré 1982:480-482;
Gensichen 1985:123-126; Müller 1986:134; 1987:177; cf. também CT 53 e
ME 26, 28). Essa dimensão encamacional, do evangelho sendo "em-cama-
do", "in-corporado" em um povo e sua cultura, de uma "espécie de encar-
nação contínua" (P. Divarkar, cit. ap. Müller 1986:134), é muito diferente
de qualquer modelo que estivera em voga durante mais de um milênio. Nes-
se paradigma, não se trata tanto de a igreja ser expandida, mas de ela nas-
cer de novo em cada novo contexto e cultura.
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 543

Em quinto lugar, e derivando diretamente do ponto acima, os modelos


anteriores deveras sugeriam uma interação entre evangelho e cultura, mas
nela o conteúdo teológico da interação permanecia obscuro. A coordena-
ção de evangelho e cultura, contudo, deveria ser estruturada cristologica-
mente (Gensichen 1985:124). Os missionários, contudo, não partem sim-
plesmente para "levar Cristo" a outras pessoas e culturas, mas também
para conceder à fé a oportunidade de iniciar uma história própria em cada
povo e sua experiência de Cristo. A inculturação sugere um movimento
duplo: há, simultaneamente, a inculturação do cristianismo e a cristianiza-
ção da cultura. O evangelho precisa permanecer a Boa Nova enquanto se
torna, até certo ponto, um fenômeno cultural (Geffré 1982:482), levando em
consideração os sistemas de sentido já presentes no contexto (cf. Schreiter
1985:12s.). Por um lado, ele oferece às culturas "o conhecimento do misté-
rio divino", enquanto que, por outro, as ajuda a "produzir, com base em sua
própria tradição viva, expressões originais de vida, celebração e pensamen-
to cristãos" (CT 53). Essa abordagem rompe radicalmente com a idéia da
fé como "miolo" e da cultura como "casca" - que, de qualquer maneira,
ilustra, em grande parte, a distinção tradicional da ciência ocidental entre
"conteúdo" e "forma". Em muitas culturas não-ocidentais, tais distinções
não funcionam de forma alguma (cf. Hiebert 1987:108, que faz referência a
Mary Douglas). Uma metáfora mais apropriada talvez seja, por isso, a do
desabrocho de uma semente implantada no solo de uma cultura específica.
Essa também é a metáfora que AG 22 emprega (sem usar explicitamente, é
claro, o termo "inculturação").
Sexto, uma vez que a cultura representa uma realidade englobante, a
inculturação também o é. EN 20 ainda podia afirmar que o reinado de Deus
se utiliza apenas de "certos elementos da cultura e das culturas humanas".
Reconhece-se agora, porém, que é impossível isolar elementos e costumes
e "cristianizá-los". Onde se faz isso, o encontro entre evangelho e cultura
não acontece em um nível significativo (cf. Gensichen 1985:124s.). Só onde
esse encontro for inclusivo, essa experiência representará uma força que
alentará e renovará a cultura a partir de seu interior (cf. Müller 1987:178).

Os limites da inculturação
A inculturação também possui uma dimensão crítica. A fé e sua
expressão cultural - mesmo que não seja possível nem prudente apartar
uma da outra - jamais são totalmente coincidentes. Inculturação não signi-
fica que a cultura tenha que ser destruída e que algo novo deva ser constru-
ído sobre suas ruínas, mas tampouco significa que uma cultura específica
deva ser meramente endossada em sua forma atual (cf. Gensichen
1985:125s.). A filosofia de que "qualquer coisa serve" enquanto, aparente-
mente, fizer sentido para as pessoas pode ser catastrófica.
É lógico que as igrejas do Ocidente têm que dizer isso primeiramente
544 - Rumo a uma missiologia relevante

a si mesmas, antes que o ousem afirmar para outras e sobre outras. Fre-
qüentemente, o processo de inculturação foi, no Ocidente, tão "exitoso" que
o cristianismo se tomou nada mais que a dimensão religiosa da cultura - ao
escutar a igreja, a sociedade apenas ouve sua própria música. O Ocidente,
muitas vezes, domesticou o evangelho em sua própria cultura enquanto o
tomava desnecessariamente estranho a outras culturas. Em um sentido muito
real, porém, o evangelho é estranho a qualquer cultura. Ele sempre consti-
tuirá um sinal de contradição. Mas quando ele se encontra em conflito com
uma cultura específica, por exemplo, do Terceiro Mundo, é importante veri-
ficar se a tensão tem sua origem no próprio evangelho ou no fato de o
evangelho haver estado em associação demasiadamente estreita com a
cultura através da qual a mensagem missionária foi mediada em sua época
(cf. Geffré 1982:482).
Existem aqui dois princípios em ação, diz Walls (1982b), e eles ope-
ram simultaneamente. De um lado, encontra-se o princípio "indigenizante",
o qual afirma que o evangelho está em casa em qualquer cultura e toda
cultura se encontra em casa com o evangelho. Mas temos também o princí-
pio "peregrino", advertindo-nos de que o evangelho nos colocará em des-
compasso com a sociedade - "pois jamais existiu, no Ocidente ou no Orien-
te, em tempos antigos ou modernos, uma sociedade capaz de absorver a
palavra de Cristo em seu sistema de forma indolor" (p. 99). A inculturação
autêntica pode, deveras, ver o evangelho como libertador da cultura; o evan-
gelho, contudo, também pode tomar-se prisioneiro da cultura (cf. Walls
1982b).
A inculturação visa, diz Pedro Arrupe, a tomar-se "um princípio que
anima, orienta e unifica a cultura, transformando-a e refazendo-a de modo a
produzir uma 'nova criação" (cit. ap. Shorter 1988:11; cf. ITC 1989:143,
155). O foco está, portanto, na "nova criação", na transformação do velho,
na planta que, tendo brotado de sua semente, é, ao mesmo tempo, algo
completamente novo quando comparado àquela semente.

Interculturação
Por sua própria natureza, a inculturação nunca pode ser umfait ac-
compli. Jamais é lícito usar o termo "inculturado". A inculturação permane-
ce um processo tentativa e continuado (cf. Memorandum 1982:466), não
somente porque as culturas não são estáticas, mas também porque a igreja
poderá ser levada a descobrir mistérios da fé antes desconhecidos. A rela-
ção entre a mensagem cristã e a cultura é criativa e dinâmica, repleta de
surpresas. Não existe uma teologia eterna, uma theologia perennis que
possa ser o árbitro de "teologias locais". No passado, a teologia do Ocidente
se arrogou o direito de ser esse juiz em relação a teologias do Terceiro
Mundo. De forma implícita, ela se considerava plenamente indigenizada,
inculturada, um produto acabado. Estamos começando a perceber que isso
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 545

foi inapropriado, que as teologias ocidentais (plural!) - tanto quanto todas as


demais - eram teologias em construção, teologias no processo de serem
contextualizadas e indigenizadas.
Essa percepção acarreta importantes conseqüências. Estamos co-
meçando a perceber que todas as teologias, inclusive aquelas do Ocidente,
necessitam umas das outras; elas se influenciam, desafiam, enriquecem e
avigoram reciprocamente - inclusive para que as teologias ocidentais pos-
sam ser libertadas do "cativeiro babilônico" de muitos séculos. Em um sen-
tido bastante real, pois, estamos envolvidos não apenas em uma incultura-
ção, mas em "interculturação" (Joseph Blomjous - cf. Shorter 1988: 13-
16). Precisamos de um "intercâmbio de teologias" (Beinert 1983:219), em
que estudantes do Terceiro Mundo continuem (como têm feito há muito
tempo) a estudar no Ocidente, mas em que estudantes ocidentais também
vão estudar em contextos de Terceiro Mundo, em que o trânsito de mão
única, do Ocidente para o Oriente e para o Sul, seja substituído, primeiro,
por relações bilaterais e, então, multilaterais-'. Onde isso acontece, trans-
cendem-se as antigas dicotomias, e as igrejas do Ocidente descobrem, para
sua surpresa, que elas não são simplesmente benfeitoras e as do Sul e do
Oriente, apenas beneficiárias, mas que todas são, concomitantemente, doa-
doras e donatárias, que há uma espécie de osmose acontecendo (cf. Jansen
Schoonhoven 1977:172-194; Bühlmann 1977:383-394). Isso exige uma nova
disposição, especialmente da parte do Ocidente e de seus missionários (e,
talvez, também cada vez mais da parte de missionários que vão do Sul para
o Ocidente!), que precisam repensar a necessidade e a bem-aventurança
de receber, de ser suscetível de ensino. O missionário, disse Daniel Fleming
há quase 70 anos, deve entender que ele é "temporário, secundário e con-
sultivo" (cit. ap. Hutchison 1987:151). Isso não torna as missionárias supér-
fluas ou insignificantes. Elas permanecerão, também no futuro, símbolos
vivos da universalidade da igreja como entidade que transcende todas as
fronteiras, culturas e línguas. Mas elas serão, muito mais do que o foram no
passado, embaixadoras enviadas de uma igreja a outra, uma corporificação
viva da solidariedade e parceria mútuas.
A interculturação pressupõe, ademais, que as encarnações locais da
fé não deveriam ser locais demais. Por um lado, uma igreja do tipo "unidade
homogênea" pode tornar-se tão "encravada" que lhe seja impossível a co-
municação com outras igrejas, acreditando que sua perspectiva do evange-
lho seja a única legítima. A igreja precisa ser um lugar em que é possível
sentir-se em casa; se, porém, apenas nós nos sentimos em casa em nossa
igreja específica e todas as outras pessoas são ou excluídas, ou mal acolhi-
das, ou se sentem completamente alienadas, então algo deu errado (cf. Walls
1982b). Por outro lado, podemos ser tentados a comemorar de forma exa-
gerada um número infinito de diferenças na emergência de teologias plura-
listas locais e reivindicar que não apenas cada comunidade local de culto,
546 - Rumo a uma missiologia relevante

mas inclusive cada pastor e membro da igreja possa desenvolver sua pró-
pria "teologia local" (cf. Stackhouse 1988:23: 115s.). Contra essas posições,
é preciso que se diga que nossas igrejas e comunidades de culto também
precisam ser "desprovincializadas" (p. 116). Isso só pode acontecer caso se
fomente o contato vital com a igreja mais ampla. Enquanto agimos local-
mente, temos que pensar globalmente, em termos da una sancta, combi-
nando a micro e a macroperspectivas. É verdade que a igreja existe primor-
dialmente em igrejas particulares (LG 23), mas também é verdade que é
em virtude da catolicidade da igreja (cf. LG 13) que as igrejas particula-
res existem - e isso vale não apenas para a Igreja Católica Romana como
estrutura eclesiástica internacional, mas para todas aquelas comunidades
que se denominam "cristãs". Se a igreja é o corpo de Cristo, ela só pode ser
uma. Nesse sentido, então - e não como uma entidade supracultural idealis-
ta - a igreja constitui uma espécie de "comunidade hermenêutica universal,
em que cristãos e teólogos de diferentes origens checam reciprocamente
seus vieses culturais" (Hiebert 1985b: 16). Particularidade não significa iso-
lamento; por conseguinte, mesmo que possamos celebrar nossas várias te-
ologias locais, lembremo-nos de que igualmente é verdade que "qualquer
teologia é um discurso sobre uma mensagem universal" (Gutiérrez 1988,
xxxvi). Esse discurso certamente gera tensão, mas ela pode ser uma tensão
criativa se visamos ao modelo da "unidade dentro da diversidade reconcili-
ada" (H. Meyer, referência ap. Sundermeier 1986:98). Se trilharmos essa
senda, nossa compreensão da missão e da igreja será, de fato, qualitativa-
mente diferente de todos os modelos anteriores, enquanto que experimentare-
mos, ao mesmo tempo, uma comunhão vital com essas épocas precedentes.

Missão como testemunho comum


o (re)nascimento da idéia ecumênica na missão
Denominei o paradigma teológico emergente de "ecumênico" (veja o
título deste capítulo). Esse motivo condutor esteve implícito em todo este
capítulo. Agora é mister torná-lo mais explícito.
No que diz respeito ao protestantismo, a idéia ecumênica resultou
diretamente dos vários Despertamentos e do subseqüente engajamento de
igrejas do Ocidente no empreendimento missionário mundial. O primeiro
exemplo claro disso foi a emergência do movimento pietista no início do
século 18. Luteranos, calvinistas e anglicanos na Alemanha, Escandinávia,
Países Baixos e Grã-Bretanha vivenciaram uma renovada unidade de cris-
tãos, que transcendia diferenças denominacionais, e se sentiram urgidos a
envolver-se em um movimento missionário novo, transdenominacional (cf.
Rosenkranz 1977:168). O espírito ecumênico manifestou-se, por exemplo,
nas sociedades bíblicas e, no final do século 19, em movimentos de jovens
como as ACMs e a FMEC. Mas foi, sobretudo, no movimento missionário
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 547

no exterior que a idéia ecumênica prosperou. Várias das primeiras socieda-


des missionárias eram não- ou transdenominacionais. Pode-se citar, por
exemplo, a SML, o American Board e as sociedades missionárias de Basi-
léia e Barmen. Outras, como a Sociedade Missionária de Berlim, eram ape-
nas moderadamente confessionais (cf. Rosenkranz 1977: 198).
Mas, na terceira década do século 19, o fervor tanto pela missão
quanto pela cooperação declinara. Substituiu-o um denominacionalismo novo
e, não raras vezes, feroz. Os sinais, em verdade, faziam-se presentes desde
quase o princípio dos Despertamentos. A SML (1795) foi deliberadamente
fundada como sociedade não-denominacional, mas, apenas quatro anos de-
pois, os anglicanos se retiraram para criar a SMI (denominacional). A pró-
pria SML passou gradualmente a constituir uma sociedade denominacional
(da Igreja Congregacional), como o fez o American Board no outro lado do
Atlântico. No continente, os luteranos experimentavam crescentes dificul-
dades com a natureza "mista" da Sociedade Missionária de Basiléia; em 1836,
formou-se a Sociedade Missionária de Leipzig com uma base confessional
luterana como alternativa para a sociedade de Basiléia (cf. capítulo 9).
Isso significava, naturalmente, que não era mais só "o Glorioso Evan-
gelho do Deus bendito" (um dos "princípios fundamentais" da SML) que se
exportava para outros países, mas o luteranismo, o presbiterianismo, o angli-
canismo e afins. Nos "campos de missão", isso levou, inevitavelmente, à
rivalidade e à competição, muitas vezes em grande escala. Esse fato se
evidenciou, em especial, na China, tradicionalmente a "menina dos olhos
das missões protestantes". Já em 1855, 20 sociedades protestantes esta-
vam trabalhando nas seis cidades portuárias chinesas. Em 1925, havia 130
sociedades operando em toda a China (Rosenkranz 1977:210). Só se pode-
ria esperar que tal situação tivesse efeitos muito negativos e engendrasse
uma incrível confusão. Ainda em 1953, Beaver escrevia: "O empreendi-
mento missionário não-católico romano parece uma conglomeração caótica
de unidades desconectadas, sobrepostas, muitas vezes em concorrência e,
aparentemente, incapazes de um planejamento e uma atuação comuns" (cit.
ap. Hoekendijk 1967a:332s., nota 66).
Antes do último quarto do século 19, a única forma nova de ecume-
nismo que se desenvolvia no protestantismo era a das alianças confessio-
nais globais, em igrejas como a luterana, presbiteriana, metodista e anglica-
na. Nos campos de missão, porém, começou a existir um certo grau de
aceitação mútua. Isso desembocou nos assim chamados acordos de boa
vizinhança, segundo os quais as áreas a serem evangelizadas foram subdivi-
didas entre diferentes agências missionárias. O resultado foi uma espécie
de denominacionalismo geográfico. É claro que isso só funcionava no caso
das denominações dispostas a abrir mão de sua reivindicação de absolutida-
de e, em geral, excluía qualquer entendimento com os católicos romanos e
anglicanos. Os propósitos eram louváveis, mas puramente pragmáticos -
548 - Rumo a uma missiologia relevante

evitar a concorrência, administrar melhor os recursos e dar um testemunho


mais eficaz a não-cristãos (cf. Anderson 1988: 102). Essa também consti-
tuía a finalidade das primeiras conferências, nos campos de missão, de re-
presentantes de várias agências missionárias.
No decorrer do tempo, essas considerações pragmáticas levaram,
sem que o tencionassem, à redescoberta de um datum teológico básico: a
unidade da igreja de Cristo. Nas duas últimas décadas do século 19, então,
o cenário mudou drasticamente, com a emergência, primeiro, do movimento
internacional de estudantes, depois, do movimento missionário internacional
e, no início do século 20, com os primeiros passos hesitantes em direção a
um movimento ecumênico global e abrangente. O marco mais importante
nesse sentido foi a Conferência Missionária Mundial de 1910, em Edimbur-
go. Devido à sua pauta pragmática (tratou-se, essencialmente, de uma con-
ferência sobre o "como fazer"), Edimburgo teve um notável sucesso em
transcender diferenças denominacionais (cf. Scherer 1968:20).
Apesar de sua natureza pragmática, Karl Barth (1961:37s.) saudou o
movimento iniciado em Edimburgo como um avanço eclesiológico funda-
mental. Antes, entendera-se a unidade da igreja como resultado de um con-
senso doutrinário obtido mediante o debate teológico, mas o mundo era
ignorado; no novo estilo, o interesse na unidade da igreja era motivado por
uma preocupação com o mundo. Mas "o novo estilo de ecumenismo"
estava apenas embrionariamente presente em Edimburgo. Martin Kâhler
foi um dos primeiros a compreender a importância teológica da unidade; ele
considerava essa unidade uma expressão de fé e a desunião uma manifes-
tação de descrença. Em uma carta a John Mott, Kâhler ([1910] 1971:259)
designou as contendas entre as igrejas como uma Zerrissenheit ("fratura")
equivalente à causada pela ausência de fé. Dois anos antes ([1908] 1971: 179),
ele comentara que o déficit de unidade na missão era muito mais premente
do que qualquer déficit financeiro que as sociedades pudessem estar so-
frendo. Ejá em 1899, ele havia escrito - quase que melancolicamente - que
a oração de Jesus em João 17.21 ainda não fora atendida: "Até agora, o
Senhor não conduziu seu povo neste caminho rumo à vitória da fé" ([1899]
1971:462).
°
Edimburgo 191 sugeriu, sem o explicitar, que uma unidade autêntica
não poderia ser alcançada sem uma missão autêntica, sem uma janela aber-
ta para o mundo. Com o passar do tempo, aqueles primeiros passos vacilan-
tes rumo à unidade na missão e à missão em unidade levariam à convicção
de que é impossível optar ou pela unidade ou pela missão: "A única opção
possível para a igreja ou qualquer parte da igreja é em favor ou contra
ambas" (Saayman 1984: 127 - o grifo está no original).
O Conselho Missionário Internacional, fundado em 1921, que proveu
o mundo não-católico romano com seu primeiro órgão de cooperação inter-
nacional e interconfessional (cf. Neill 1968: 107), foi a primeira expressão
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 549

tangível do novo paradigma. Ele logo seria seguido por dois outros movi-
mentos, que também tinham suas raízes em Edimburgo 1910: Fé e Consti-
tuição e Vida e Ação. Em 1948, eles se fundiram para formar o Conselho
Mundial de Igrejas. A dicotomia entre unidade e missão - epitomada na
existência, lado a lado, do CMI (um conselho de igrejas) e do CoMIn (um
conselho de sociedades) - passou a sofrer uma pressão cada vez maior.
Uma reunião do Comitê Central do CMI em Rolle, Suíça (1951), refletiu
sobre "a vocação da igreja para a missão e a unidade" (cf. Saayman
1984: 14s.). Reconheceu-se que era inconcebível divorciar a obrigação da
igreja de levar o evangelho ao mundo todo de sua obrigação de reunir todo
o povo de Cristo; viam-se ambas como essenciais para o ser da igreja e o
cumprimento de sua função como corpo de Cristo. Também se instou que
se empregasse a palavra "ecumênico" "para descrever tudo que se relaci-
ona à tarefa toda da igreja toda de levar o evangelho ao mundo todo".
A dicotomia - em nível estrutural global- entre unidade e missão só
foi suplantada na assembléia do CMI em Nova Délhi (1961), onde o CoMIn
se integrou ao CM!. Mesmo que se possa eventualmente criticar a maneira
como se processou a integração, é indubitável que se salientou um aspecto
teológico crucial: unidade e missão constituem uma unidade. A redesco-
berta da natureza essencialmente missionária da igreja só poderia levar à
descoberta de que a missão cristã só pode ser verdadeiramente chamada
de cristã se o portador dela for a igreja una de Cristo. Essa "descoberta"
confirma um princípio antiqüíssimo da Ortodoxia (Oriental). Como a missão
e a unidade constituem uma unidade, não é possível vê-las como estágios
consecutivos; caso não se mantenha isso consistemente em vista, estare-
mos apenas convertendo pessoas à nossa própria "denominação", infundin-
do-lhes, concomitantemente, o veneno da divisão (Nissiotis 1968:198). É
através da universalidade do evangelho proclamado por ela que a igreja se
toma missionária (Frazier 1987:13). Afirmar que a igreja é católica constitui
uma outra forma de dizer que ela é essencialmente missionária (cf. Berkou-
wer 1979:105-107). Por isso, pretender - como fazem alguns - que a época
ecumênica seja agora a substituta da época da missão significa entender
equivocadamente a ambas, e negligenciar uma das duas é perder a ambas
(Linz 1974:4s.).
Foi essa perspectiva teológica que esteve atrás da decisão da As-
sembléia do CMI de Nova Délhi (1961) no sentido de integrar o CoMIn ao
CM!. Newbigin, dirigindo-se à Assembléia, afirmou: "Para as igrejas que
constituem o Conselho Mundial, isso significa reconhecer que a tarefa mis-
sionária não é menos central para a vida da igreja do que a busca da reno-
vação e da unidade" (WCC 1961:4). Em concordância com a nova compre-
ensão, Nova Délhi fez uma emenda à"base" do CM!. Originalmente, ele se
identificara como "uma comunhão de igrejas que aceitam nosso Senhor
Jesus Cristo como Deus e Salvador". Em Nova Délhi, alterou-se "aceitam"
550 - Rumo a uma missiologia relevante

para "confessam". Ao mesmo tempo, acrescentaram-se as palavras "e,


portanto, procuram cumprir em conjunto sua vocação comum para a glória
do uno Deus, Pai, Filho e Espírito Santo" (cf. WCC 1961: 152-159). A "vo-
cação comum" foi entendida como referindo-se a "confessam" e continha,
pois, uma clara ênfase missionária, algo que estava ausente na base original
(cf. também WCC 1961:116, 121,257). Neill (1968:108) considera essa
decisão "um momento revolucionário na história da igreja". Ele agrega:
Mais que 200 entidadeseclesiásticasde todas as partesdo mundo C... ) decla-
raram-se, solenemente, na presença de Deus, responsáveis como igrejas
pela evangelização do mundo todo. Taleventojamais acontecerana história
da Igreja desde Pentecostes. (p. 108s.).
A Assembléia de Nairobi (1975) endossou a perspectiva de Nova
Délhi. O Relatório da Seção "O que a Unidade Requer" formulou-o assim:
"O propósito para o qual somos convocados à unidade é 'para que o mundo
creia'. Uma busca pela unidade que não se situe no contexto da promessa
de Cristo de atrair todas as pessoas a si seria falsa" (WCC 1976:64).
ME 1 também menciona a "relação inextricável entre unidade cristã
e vocação missionária, entre ecumenismo e evangelização". O encontro da
CMME em San Antonio (1989) retomou o mesmo tema e o interpretou
assim: "Missão cristã é o humilde envolvimento do corpo uno de Cristo em
amor libertador e sofredor" (Seção 1.10; WCC 1990:27), e: "Ser chamado à
unidade na missão implica tomar-se uma comunidade que transcende em
sua vida as barreiras e a fragmentação do mundo e viver como um sinal de
expiação e unidade sob a cruz" (1.11; WCC 1990:28).
Se a visão de Nova Délhi, Nairobi, ME e San Antonio está sendo
concretizada é uma questão que não poderá ser examinada aqui. O objetivo
da unidade eclesiástica estrutural ("em uma só fé e em uma só comunhão
eucarística" [Vancouver - cf. WCC 1983:43-52]) foi colocado, aparente-
mente, em segundo plano nos últimos anos. Muitos também dirão que o
movimento ecumênico e muitas igrejas-membro do CMI perderam virtual-
mente sua visão missionária (dependendo, é óbvio, de como se define "mis-
são"). É possível que isso seja verdade, ou parcialmente verdade. Mesmo
assim, pode haver pouca dúvida de que o CMI e suas igrejas-membro estão
expressando uma noção que é fundamental à fé cristã: o vínculo indissolúvel
entre unidade e missão (cf. Saayman 1984:112-116, 127).
Muitas agências evangelicais retiraram-se do movimento ecumênico
mais amplo após a integração do CoMIn ao CMI em Nova Délhi. E poucas
denominações evangelicais aderiram ao CMI. Isso não significa que todos
os evangelicais sejam antiecumênicos, apenas que o movimento ecumênico
é mais abrangente que o CMI. Existe, atualmente, um movimento ecumêni-
co evangelical que possui vida própria e que se estende de Wheaton 1966 e
Berlim 1966 via Lausanne 1974 até Manila 1989. Mas a ênfase evangelical
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 551

na unidade difere significativamente da compreensão ecumênica. Os evange-


licais tendem a considerar a unidade algo quase exclusivamente espiritual e
um atributo da igreja invisível. Onde se menciona a unidade "visível", exis-
te a tendência de enfatizá-la visando somente a um evangelismo mais eficaz
e não como uma premissa teológica inegociável. LC 7, por exemplo, asse-
vera: "O evangelismo também nos conclama à unidade, porque esta reforça
nosso testemunho, assim como nossa desunião solapa nosso evangelho da
reconciliação". O interesse está numa unidade pragmática, envolvendo pla-
nejamento, incentivo mútuo e o compartilhar de recursos e experiências. E
ela é circunscrita mais ainda por uma forte ênfase na pureza doutrinária. Na
Conferência de Pattaya (1980), do Comitê de Lausanne para a Evangeliza-
ção Mundial, por exemplo, a sugestão de que o CLEM estivesse aberto a
uma relação fraterna com "quem simpatize" com o Pacto de Lausanne foi
emendada no sentido de "quem apóie integralmente" o Pacto. Tal mentali-
dade facilmente cria a situação onde, em vez de se testemunhar a pessoas
que não são cristãs, testemunha-se contra cristãos cujas prioridades são
diferentes das nossas. Em geral, portanto, a mudança de paradigma que se
evidencia no movimento ecumênico está ausente entre os evangelicais.

Católicos, missão e ecumenismo


Os desdobramentos ocorridos no catolicismo têm sido inclusive mais
dramáticos que no protestantismo. Isso é ilustrado, por exemplo, pela mu-
dança da forma em que documentos católicos romanos oficiais se referem
aos protestantes. Antes estes eram denominados "filhos de Satã" e "heréti-
cos" ou "cismáticos"; então os chamaram de "dissidentes", "irmãos sepa-
rados" e, por fim, "irmãos e irmãs em Cristo" (cf. Auf der Maur 1970:88s.;
van der Aalst 1974: 197). Os fundamentos para a primeira posição se esta-
beleceram firmemente no Concílio de Trento. A restauração do catolicismo
se manifestou como Contra-Reforma. A própria palavra "missão" possuía
uma certa conotação antiprotestante; afinal, o termo "missão" com o senti-
do de "propagação da fé" surgiu pela primeira vez para designar colônias
jesuíticas no norte da Alemanha, cuja tarefa era reconverter protestantes
(Glazik 1984b:29). Depois da fundação da Propaganda Fide (1622), e, em
verdade, até aproximadamente 1830, o foco principal da Propaganda era
chamar os protestantes de volta à fé verdadeira. E as encíclicas missionári-
as de século 20, de Maximum lllud (1919) a Fidei Donum (1957), eram
francamente antiprotestantes (cf. Auf der Maur 1970:83s.). Rerum Eccle-
siae (1926), por exemplo, mencionou a importância de se chamar "os ir-
mãos separados de volta à unidade da igreja" e de "arrancar os não-católi-
cos de seus erros" (cf. Auf der Maur 1970:85). Inclusive a oração conjunta
do Pai-Nosso, por exemplo, estava proscrita aos católicos até 1949. Devido
à mudança de paradigma do catolicismo para o protestantismo - diz Pfürt-
ner (1984: 179) - surgiram duas "comunidades lingüísticas" diferentes; seus
552 - Rumo a uma missiologia relevante

seguidores, mesmo onde empregavam as mesmas palavras, não mais fala-


vam a mesma linguagem.
Tendo em vista esse pano de fundo, os eventos do Vaticano II cons-
tituem quase um milagre. Um novo espírito permeou virtualmente todos os
procedimentos e documentos do Concílio. É verdade que o uso do termo
"igreja" permanece ambíguo (às vezes, ele se refere claramente à Igreja
Católica Romana; outras vezes, porém, parece ser mais abrangente), mas é
inquestionável que o Vaticano II falou sobre a igreja de uma maneira muito
diferente do que fora costume. LO 15 afirma categoricamente que aqueles
"que portam o selo do batismo que os une a Cristo (...) estão, deveras,
vinculados a nós, de alguma forma real, no Espírito Santo". À luz das dire-
trizes de AO 15, também se tomou impossível continuar vendo cristãos não-
católicos como objetos de missão.
Mas foi especialmente o Decreto sobre o Ecumenismo (Unitatis Re-
dintegratio) que se expressou em linguagem clara sobre a necessidade de
relações melhores e de aceitação mútua. Crumley descreve a adoção desse
decreto pelo Concílio como "o mais importante evento isolado na história
um tanto altemante do movimento ecumênico" (1989: 146). Em seu primeiro
parágrafo, ele descreve "a restauração da unidade entre todos os cristãos"
como uma das principais preocupações do Concílio e afirma que a divisão
entre cristãos "contradiz a vontade de Cristo, escandaliza o mundo e preju-
dica a mais sagrada das causas, a pregação do evangelho a toda criatura".
AO 6 retoma o mesmo assunto e vincula intimamente a unidade da igreja à
sua missão. Todas as pessoas batizadas são chamadas a reunir-se em um
único rebanho, para que possam prestar um testemunho unânime de Cristo,
seu Senhor, perante as nações. O Decreto também assevera: "E se elas
ainda não conseguem testemunhar integralmente uma única fé, deveriam
estar, pelo menos, imbuídas de respeito e amor mútuos". Freqüentemente
(nos parágrafos 3 e 19 a 23), o Decreto sobre o Ecumenismo alterou, de
forma sutil, o "irmãos separados" (já menos judicativo) para "os irmãos
divididos (ou separados) de nós", chamando a atenção para o fato de que a
separação havia sido recíproca (cf. Auf der Maur 1970:89). A Declaração
do Concílio sobre a Liberdade Religiosa (Dignitatis Humanae) e a criação,
pelo papa João XXIII, da Secretaria para a Promoção da Unidade dos Cris-
tãos rematam todo esse desenvolvimento, que também foi bem-recebido
pelo CMI (cf. Meeking 1987:5-7).
O Vaticano lI, junto com desdobramentos recentes no protestantis-
mo, saudou o advento de uma nova era (cf. Saayman 1984:33-67). Após o
Concílio, a Igreja Católica continuou a trilhar esse caminho (p. 67-70). EN
77 (publicado em 1975) insisteem "uma colaboração marcada por um compro-
misso maior com os irmãos cristãos com os quais ainda não estamos unidos
em unidade perfeita" (grifo meu). Projetos de diálogos entre a Igreja Ca-
tólica e várias outras comunidades denominacionais, incluindo evangelicais,
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 553

são hoje parte integrante do cenário eclesiástico. Em 1980, João Paulo II


chamou Martinho Lutero de "testemunha da mensagem da fé e justifica-
ção". Em 11 de dezembro de 1983, ele elogiou Lutero em uma igreja lutera-
na. As duas "comunidades lingüísticas" (Pfürtner) estavam afinal, depois
de um longo tempo, começando a entender-se e, inclusive, a falar a mesma
linguagem. A controvérsia e confrontação deram lugar ao encontro ecumê-
nico. E a doutrina da Reforma sobre a justificação somente pela fé não mais
é vista como motivo de separação (cf. Pfürtner, 1984: 168; Crumley
1989:147).
O novo termo, que enuncia as idéias tanto de unidade quanto de mis-
são e que se empregou em vários documentos de estudo, é "testemunho
comum" (cf. Common Witness 1984; veja também Meeking 1987 e Spind-
ler 1987). O impulso para um testemunho comum, reivindica-se, não tem
sua origem em alguma estratégia; é a "consciência da comunhão com Cris-
to e de uns com os outros que gera o dinamismo que impele os cristãos a dar
um testemunho visível comum" (Common Witness 1). A renovação que o
Espírito Santo gera nos cristãos e em suas comunidades "tem seu centro em
Cristo e traz à tona uma nova obediência e um novo modo de vida que é, ele
próprio, uma comunhão testemunhadora" (Common Witness 13). As "sur-
preendentes e claras convergências" quanto ao evangelismo que emergi-
ram de Bangcoc (1973), do Congresso de Lausanne (1974) e de Evangelii
Nuntiandi (1975) provocam aplausos (Common Witness 11). Spindler
(1987 :20; cf. Meeking 1987:9-17) menciona, com justeza, "a tremenda rea-
lidade" e "a tradição emergente" do testemunho comum. Não que a idéia
esteja isenta de problemas. O testemunho comum ainda é algo extrema-
mente raro na área do evangelismo e, em especial, quando se define a mis-
são de forma quase exclusiva como "implantação de igrejas" (cf. Auf der
Maur 1970:97; Spindler 1987:21,25). Além disso, o que está escrito em do-
cumentos eclesiásticos ou declarações conjuntas não se pratica necessaria-
mente em nível local, e é isso que, em última análise, interessa. Ademais, o
ecumenismo parece ter perdido muito de seu impulso. Tendo em vista tudo
isso, estamos, no momento, envolvidos, na melhor das hipóteses, em um
"ecumenismo intermediário" (Spindler 1987:26s.).

Unidade na missão, missão em unidade


Quando de sua entronização como arcebispo de Cantuária, em 1942,
William Temple designou a existência de uma cristandade mundial como "o
grande fato novo de nosso tempo" (cit. ap. Neill 1966a: 15). Em estreita
relação com esse, diz Jansen Schoonhoven, há um segundo "grande fato
novo de nosso tempo": o movimento ecumênico, em todas as suas formas.
Foi um católico romano, W. H. van de Pol, que, em 1948, referiu-se à for-
mação do CMI como "algo absolutamente novo na história". Em 1960, um
outro católico, M. J. le Guillou, afirmou que o CMI era "uma comunidade de
554 - Rumo a uma missiologia relevante

um tipo radicalmente novo, sem precedente na história" (referências ap.


Jansen, Schoonhoven 1974b:7s.).
Desde o Vaticano Il, muito disso pode afirmar-se a respeito do cato-
licismo. Ficou inviável dizer "igreja" sem, ao mesmo tempo, mencionar "mis-
são". Tomou-se igualmente impossível falar "igreja" ou "missão" sem, si-
multaneamente, referir-se à missão una da igreja una. Isso representa uma
mudança de paradigma de momentosas proporções. Ela não aconteceu por
causa do acúmulo de novas (e melhoresl) percepções, mas devido a uma
nova autocompreensão (cf. Pfürtner 1984:184). Ela faz parte da nova bus-
ca por integralidade e unidade e pela superação do dualismo e do fratura-
mento (Daecke 1988:630s.). Não é o resultado de tolerância indolente, indi-
ferença ou relativismo, mas de uma nova compreensão do que, efetivamen-
te, significa ser cristão no mundo. Por esse motivo, todas as uniões de igre-
jas que vêm acontecendo desde a década de 1920 e todos os "conselhos de
igrejas" nacionais que se formaram durante, mais ou menos, o último meio
século só fazem sentido se servem à missio Dei. O ecumenismo não é um
ajuntamento passivo e meio relutante, mas uma convivência e uma colabo-
ração ativas e deliberadas. Ele não é meramente a substituição da hostilida-
de por uma polidez correta, mas descomprometida.
Tentarei agora delinear alguns dos contornos do novo paradigma.
Primeiro, a coordenação mútua de missão e unidade é inegociável.
Ela não se deriva simplesmente de uma nova situação mundial ou de cir-
cunstâncias modificadas, mas da dádiva divina de unidade no corpo uno de
Cristo. O povo de Deus é um só; o corpo de Cristo, idem. Estritamente
falando, pois, é uma anomalia referir-se à "unidade das igrejas"; só é pos-
sível falar sobre a "unidade da igreja". H. de Lubac o expressa assim:
A igreja não é católica porque se estende por todo o mundo e pode contar
com um grande número de membros. Ela já era católica na manhã de Pente-
costes, quando todos os seus membros cabiam em um pequeno recinto (...)
Porque, fundamentalmente, a catolicidade nada tem a ver com geografia ou
estatística (...) Como a santidade, a catolicidade é, primordialmente, uma
característica inerente à Igreja. (cit. ap. Frazier 1987:47).
À luz disso, estaremos criando uma falsa dicotomia se contrapuser-
mos a verdade à unidade. Uma das marcas da teologia de Paulo era sua
recusa de admitir a possibilidade de uma separação entre a verdade do
evangelho e a unidade da igreja pretendida por Deus; para ele, o valor su-
premo eram, indissoluvelmente, essa unidade e essa verdade (cf. Beker
1980:130; Meyer 1986:169s., nota 12).
Segundo, manter missão e unidade, verdade e unidade pressupõe
tensão. Não a uniformidade. O propósito não é um nivelamento de diferen-
ças, um reducionismo superficial, uma espécie de "caldo" ecumênico. Nos-
sas diferenças são genuínas e devem ser tratadas como tais. Sempre que a
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 555

igreja leva a sério sua missão em relação às várias comunidades humanas


que se encontram em conflito - seja ele doutrinário, social ou cultural em
sua natureza ou motivado por distintas situações ou experiências de vida -
há uma tensão interna que não se pode descartar. Ao contrário, essa tensão
nos convoca ao arrependimento. A missão em unidade e a unidade na mis-
são são impossíveis sem uma atitude autocrítica, especialmente onde cris-
tãos se encontram com outros, irmãos de fé ou não-crentes, que, por pa-
drões humanos, deveriam ser seus inimigos. Mas é essa a finalidade da
igreja - "assumir em si mesma os mais profundos conflitos do mundo e
confrontar ambos os lados com o poder que perdoa e transforma, rompen-
do-os e recriando-os numa nova comunidade, com uma nova esperança e
uma nova vocação" (West 1971:270). O ecumenismo só é possível onde as
pessoas aceitam umas às outras a despeito de diferenças. Nossa meta não
é uma comunhão isenta de conflito, mas uma comunhão caracterizada por
unidade na diversidade reconciliada. O paradigma moderno, diz Daecke
(1988:631), sugeria que é preciso escolher entre diversidade sem unidade e
unidade sem diversidade; o paradigma pós-moderno manifesta-se como urna
unidade que preserva a diversidade e uma diversidade que se empenha por
unidade. Divergências não são uma questão a deplorar, mas um elemento
que faz parte do esforço dentro da igreja para tomar-se o que Deus quer
que ela seja (cf. NIE 1980:12; CrumIey 1989:147).
Em meio a toda a diversidade, porém, há um centro: Jesus Cristo.
Quando João XXIII abriu o Concílio Vaticano lI, em l l de outubro de 1962,
ele falou sobre o que permanecera inalterado depois de quase dois milênios,
ou seja, que Jesus Cristo ainda era o centro da comunidade e da vida. É
esse fundamento comum, esse ponto de orientação, que nos capacita a en-
gajar-nos em um serviço conjunto e testemunho unido no mundo (cf. Vers-
traelen 1988:433). A unidade na missão não constitui uma causa perdida
enquanto a Bíblia, que testemunha a esse Cristo, é aberta, lida e proclamada
em todas as igrejas cristãs (cf. de Groot 1988:155). Ouvir a palavra de Deus
e escutar um ao outro, porém, formam uma unidade; só podemos ter o
primeiro se também estivermos dispostos a ter o segundo (p. 163; cf. tam-
bémKüng 1987:81-84).
Terceiro, uma igreja-em-missão unida é essencial à luz do fato de
que a missão da igreja jamais chegará a seu término. Houve uma época
quando se acreditava, com toda a sinceridade, que era apenas uma questão
de tempo até que pudéssemos efetivamente concluir a tarefa missionária.
Grande parte da política missionária do século 19 se fundamentava nessa
premissa. Hoje sabemos que nunca alcançaremos o estágio em que possa-
mos dizer "missão cumprida!". Temos consciência de que não mais é viável
subdividir o mundo em países "remetentes" e "destinatários", entre "base
doméstica" e "campo de missão". A base doméstica está em toda parte, e
o~mo acontece com o campo de missão. Essa foi a mensagem chocante
556 - Rumo a uma missiologia relevante

de Godin e Daniel (1943): a França, "a filha mais velha da igreja", tornara-
se de novo um campo de missão. Uma nova "Era de Descobertas" iniciara-
se para as igrejas na Europa - não a exploração de novas terras além-mar,
mas dos mundos do ateísmo, secularismo e superstição, dos "novos pagãos"
da Europa (cf. Küster 1984:156s.). Em qualquer lugar, a igreja se encontra
na diáspora, em uma situação de missão.
Quarto, missão em unidade significa o fim da distinção entre igrejas
"remetentes" e "destinatárias" - algo que John Mott requereu já na Con-
ferência de Jerusalém, em 1928 (cf. Hutchison 1987:180). Dez anos mais
tarde, Kraemer achou por bem lembrar aos delegados da Conferência de
Tambaram que as igrejas "jovens" são ofruto do trabalho missionário, não
a propriedade de sociedades missionárias ([1938] 1947:426). Concebe-
ram-se muitas expressões e slogans para manifestar a necessidade de no-
vas relações: "três autos-", "parceria em obediência", "viver como compa-
nheiros", "igualdade", "cooperação", "meio a meio", "solidariedade". Ex-
pressões maravilhosas! As igrejas jovens, contudo, experimentaram a mai-
oria delas como ocas e inexpressivas. Aludindo ao slogan de Whitby (1947),
um pastor indonésio fez, certa vez, a seguinte observação mordaz a um
professor holandês: "Sim, parceria para vocês, mas obediência para nós!"
(Jansen Schoonhoven 1977:48). Mas é inútil falar sobre a "autonomia das
igrejas jovens" (desconsiderando se é possível, alguma vez, referir-se à "au-
tonomia" de qualquer igreja!), enquanto se deixam intactos modelos estru-
turais existentes. Nenhuma modernização superficial de políticas missioná-
rias ou adaptação a práticas e técnicas correntes do Ocidente surtirão quais-
quer alterações fundamentais (cf. Rütti 1974:291). Isso se aplica não só aos
protestantes, mas igualmente aos católicos; lá também o relacionamento
entre as igrejas do Ocidente e as do Terceiro Mundo ainda se apresenta,
freqüentemente, impregnado de paternalismo (cf. Rosenkranz 1977:431-434).
Por causa da unidade e da missão, necessitamos de novas relações, respon-
sabilidade mútua, prestação de contas e interdependência (não independên-
cia!) - não apenas porque a igreja ocidental está agora operando no contex-
to de um mundo em que a dominação do Ocidente, numericamente e em
outros sentidos, parece ter chegado definitivamente ao fim, mas, antes, por-
que não pode haver "mais alto" ou "mais baixo" no corpo de Cristo.
Quinto, se aceitamos a validade da missão-em-unidade, não podemos
senão nos posicionar contra a proliferação de novas igrejas, que, muitas
vezes, formam-se com base em distinções extremamente questionáveis.
Não é mais possível tolerar esse vírus protestante como se fosse a coisa
mais natural do mundo um grupo de pessoas começar sua própria igreja,
que reflete suas fraquezas, temores e suspeitas, alimenta seus preconceitos
e as faz sentirem-se confortáveis e relaxadas. Quando se elogia Wagner
(1979) (na sobrecapa de seu livro) por ter transformado "a afirmação de
que' 11 h da manhã de domingo constitui a hora mais segregada da Améri-
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 557

ca' de um fardo pendurado no pescoço dos cristãos em um instrumento


dinâmico para garantir o crescimento cristão", então algo está drasticamen-
te errado. O apóstolo Paulo procurou formar comunidades em que, já desde
o princípio, judeus e gregos, escravos e pessoas livres, pobres e ricos fos-
sem celebrar culto juntos, aprender a amar-se uns aos outros e aprender a
lidar com dificuldades origirlárias de seus contextos sociais, culturais, religi-
osos e econômicos diversos. Isso faz parte da essência da igreja. Em con-
traste, a essência da heresia, diz Hoekendijk, é "a recusa fundamental de
participar de uma história comum" (1967a:348). Há uma tendência no pro-
testantismo a enfatizar a relação vertical entre Deus e o indivíduo de tal
maneira que ela seja distinta da relação horizontal entre as pessoas; mas a
"linha vertical" também constitui uma linha de pacto com a comunidade (cf.
Samuel e Sugden 1986:195). Em termos teológicos -e práticos-isso signi-
fica que a cristologia permanece incompleta sem a eclesiologia (p. 195s.) e
sem a pneumatologia (cf Kramm 1979:218s.; Memorandum 1982:461). Não
podemos falar de Cristo, o Senhor e Salvador, sem falar de seu corpo - sua
comunidade libertada e salva. De forma idêntica, o Espírito, na dispensação
neotestamentária, não é dado a indivíduos, mas à comunidade. Para ser
cristológica e pneumatológica, nossa missão também terá que ser eclesial,
no sentido de ser a missão una da igreja una.
Sexto, a unidade na missão e a missão em unidade não estão, em
última análise, a serviço da igreja, mas, através da igreja, existem para ser-
vir a humanidade e buscam manifestar o senhorio cósmico de Cristo (cf.
Saayman 1984:21-55). A igreja (apenas, porém, na medida em que se trata
da igreja una) é "o sinal da unidade vindoura da humanidade" (Uppsala,
Seção 1.20 - WCC 1968:17). A Conferência da CMME de San Antonio
(1989) concorda: "A igreja é conclamada sempre de novo a ser um sinal
profético e um antegosto da unidade e renovação da família humana visio-
nadas no reinado prometido de Deus" (Seção 1.11;WCC 1990:28). O reina-
do de Deus não representa somente a consumação final da igreja, mas
também o futuro do mundo (Limouris 1986:169).
Por último, temos que confessar que a perda da unidade eclesial
não constitui apenas uma vexação, mas um pecado. A unidade não é um
acessório opcional. Elajá é, em Cristo, um fato, algo dado. Ao mesmo tem-
po, é um mandamento: "Sejam um!". Somos convocados a ser um como o
Pai, o Filho e o Espírito Santo são um, e jamais deveríamos nos cansar de
buscar alcançar o dia em que as pessoas cristãs, em qualquer lugar, poderão
reunir-se para compartilhar o Pão Uno e o Cálice Uno (cf. Crumley
1989:146,149). Por ora, isso parece ser apenas um relampejo escatológico
em um horizonte distante. Tanto a "igreja universal" quanto a "unidade da
humanidade" são, em certo sentido, ficções. Mas ambas as ficções são
indispensáveis se desejarmos fazer justiça ao que significa ser igreja e viver
criativa e missionariamente em face da tensão escatológica que é parte
intrínseca de nosso próprio ser como cristãos (cf. Hoedemaker 1988:174).
558 - Rumo a uma missiologia relevante

Missão como ministério por parte de todo o povo de Deus

A evolução do ministério ordenado


O movimento que conduz do ministério como monopólio de homens
ordenados para o ministério como responsabilidade de todo o povo de Deus,
ordenados ou não, constitui um dos mais dramáticos câmbios a ocorrer na
igreja hodierna. Boerwinkel (1974:54-64) identificou "a institucionalizaçãodos
cargos eclesiásticos" como uma das características da dispensação constan-
tiniana e a "laicização" contemporânea da igreja como indicativo do fim do
constantinianismo. Moltmann (1975:11), ao falar sobre a tarefa da igreja e
da teologia em nossos dias, formula seis teses, uma das quais é a seguinte:
"A teologia cristã (...) não será mais simplesmente uma teologia para sacer-
dotes e pastores, mas também uma teologia para os leigos em suas voca-
ções no mundo."
A crise que estamos enfrentando em relação ao ministério faz parte
integrante da crise com que a igreja e a missão estão se confrontando nesta
época de mudanças de paradigma, quando praticamente todo elemento tra-
dicional da fé e da forma de organização está sob severa pressão. Durante
quase 19 séculos e em virtualmente todas as tradições eclesiásticas, enten-
deu-se o ministério quase exclusivamente em termos do serviço de minis-
tros ordenados. Para compreender algo da magnitude da mudança que se
está processando agora e sua importância para a missão da igreja de hoje,
será necessário analisar, com bastante brevidade, os desdobramentos que
levaram ao presente impasse.
É indubitável que Jesus de Nazaré rompeu com toda a tradição judai-
ca quando escolheu seus discípulos não entre a classe sacerdotal, mas den-
tre pescadores, publicanos e afins. Isso fazia parte de seu "ministério-de-
romper-odres", do caráter de "inversão" presente no ensino de Jesus, de
colocar de cabeça para baixo as convenções da época ao opor-se às expec-
tativas humanas normais (cf. Burrows 1981:44s.). Sustentei, no capítulo 1
deste estudo, que o movimento de Jesus iniciou como um movimento de
renovação dentro do judaísmo, não como uma religião distinta. Talvez isso
explique por que a terminologia empregada para designar o movimento e
seus membros não foi emprestada nem da cultura religiosa judaica nem
(depois que o movimento começou a recrutar, conscientemente, não-judeus)
da grega. A palavra principal para designar a comunidade, ekklesia, provi-
nha da esfera secular. Meeks (1983:81) chama a atenção para o fato de que
as igrejas paulinas não eram chamadas de "sinagogas". Em verdade, tam-
pouco eram denominadas de thiasoi, a palavra grega comum para designar
reuniões religiosas ou cultuais. Os crentes simplesmente "se reuniam" (cf.
1 Co 11.17,18,20,33,34; 14.23,26), principalmente em casas particulares (cf.
Beker 1980:319). Em realidade, a casa pode ser considerada a unidade
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 559

básica no estabelecimento do cristianismo em qualquer cidade (Meeks


1983:29). A igreja tem cargos ou ofícios - se quisermos denominá-los assim
- especialmente os de episkopos, presbyteros e diakonos (todos termos
seculares). Mas, primeiramente, sempre se compreendem esses ofícios como
existentes dentro da comunidade de fé, jamais como anteriores à igreja lo-
cal, independentes dela ou superiores a ela (cf. de Gruchy 1987:27), e, em
segundo lugar, seria totalmente inexato "plugar" esses termos em uma com-
preensão sacro-jurídica posterior do ofício eclesiástico (Burrows 1981:77,
baseando-se em H. von Campenhausen e H. Conzelmann). A maioria dos
"líderes" na igreja primitiva são figuras carismáticas, líderes naturais, tanto
homens quanto mulheres.
Na década de oitenta do século 1 d.C; porém, estava claro que o
cristianismo se tomara uma nova religião e não mais podia ser contido nos
limites do judaísmo. Isso também significou que a terminologia utilizada pe-
los adeptos da nova fé era, cada vez mais, entendida em um sentido estrita-
mente religioso. Agora a igreja tinha que enfrentar a heresia provinda de
fora e o solapamento da fé provindo de seu interior. Nessas circunstâncias,
o antídoto mais confiável foi, aparentemente, encorajar os crentes a seguir
as orientações do clero, sobretudo dos bispos, que, em breve - especial-
mente por causa dos escritos e da influência de Inácio e de Cipriano - eram
vistos como os únicos fiadores da tradição apostólica e dotados de autorida-
de plena em questões eclesiásticas. A partir de então, o ministro ordenado
ocuparia uma posição dominante e inconteste na vida eclesiástica, uma situ-
ação que se fortaleceu com as doutrinas da sucessão apostólica, da "marca
indelével" concedida aos sacerdotes no rito da ordenação e da infalibidade
do papa.
A clericalização da igreja acompanhou pari passu a sacerdotaliza-
ção do clero. Além de uma referência questionável em Inácio, não se apli-
cou o termo "sacerdote" ao clero cristão até aproximadamente o ano 200.
Depois disso, o termo, e a teologia subjacente a ele, era a "concepção rece-
bida", robustecida por um esmerado "sacramento das ordens sagradas",
que conferia ao ordenando o poder de representar sacramentalmente o sa-
crifício de Cristo e promovia uma mudança mística e ontológica na alma do
sacerdote (cf. Burrows 1981:61). Concomitantemente, ele apartava o sa-
cerdote da comunidade, contrapondo-o a ela como uma figura de mediação
e uma espécie de alter Christus ("um outro Cristo") (p. 60, 88). O sacerdo-
te tinha poder ativo para consagrar, perdoar pecados e abençoar; os cris-
tãos "ordinários", capacitados para tal através de seu batismo, tinham ape-
nas um papel passivo a exercer, ou seja, receber a graça (p. 105). A igreja
consistia de duas categorias de pessoas claramente distintas: o clero e o
laicato (de laos, "povo [de Deus]"), sendo que se entendia a este como
imaturo, menor de idade e inteiramente dependente do clero em questões
religiosas.
560 - Rumo a uma missiologia relevante

Era inevitável que, sob essas circunstâncias, se acreditasse que a


única ocupação da igreja era o sagrado (mesmo que o clero, mormente os
bispos, muitas vezes exercesse poder secular!). Revisando os cinco mode-
los de igreja identificados por Dulles (1976), Burrows (1981:38) ressalta que
todos eles (a igreja como instituição, comunhão mística, sacramento, arauto
e servo) entendem, de fato, a igreja quase exclusivamente como um meio
de comunicar a graça e, assim, reforçam a imagem sacerdotal da igreja. A
igreja é uma comunidade preocupada primordialmente em mediar a salva-
ção eterna a indivíduos. O ministério ordenado constitui o veículo principal
para essa tarefa, de modo que a igreja se amolda a ele (p. 61s.).
Como não se contestasse a hegemonia da Igreja Católica na Europa
medieval, tomou-se costume para a igreja entender a si mesma como o
efetivo reino de Deus na terra. O fato sociológico simples que está em ação
aqui é que qualquer religião dominante tende a adotar esse tipo de posição.
Nesse caso, a Igreja Católica via-se suprida com um estoque de graças
celestiais que os proprietários clericais podiam oferecer a seus clientes.
Quando, no século 16, sua supremacia foi questionada pela Reforma pro-
testante, ela reagiu (no Concílio de Trento) descartando por completo as
alegações protestantes. Ao mesmo tempo, ela empreendeu a "missão", uma
atividade de um grupo de "especialistas", sacerdotes e religiosos, autoriza-
dos pelo papa a estender a hegemonia da igreja a outras partes do mundo.
Nesses países, erigiram-se estruturas eclesiásticas idênticas àquelas exis-
tentes no "fronte doméstico" e instalou-se uma estrutura análoga de lide-
rança.
A pergunta é se os protestantes realmente se houveram melhor. É
verdade que se deve creditar a Lutero a redescoberta da noção do "sacer-
dócio de todos os crentes". Em sua tese de que "a comunidade cristã tem o
direito e a autoridade de julgar toda doutrina e de chamar, nomear e demitir
pregadores" (cit. ap. Pfürtner 1984:184), Lutero, com toda a certeza, rom-
peu com o paradigma dominante. Mas quando sua compreensão de igreja e
teologia se encontrava sob o ataque dos anabatistas (alguns dos quais havi-
am descartado por inteiro a idéia de um ministério ordenado) e também dos
católicos, Lutero voltou ao paradigma herdado. No final, ele ainda tinha o
clérigo no centro de sua igreja, dotado de considerável autoridade (cf. Bur-
rows 1981:104).
Os outros reformadores e seus herdeiros seguiram Lutero nesse as-
pecto. É certo que eles rejeitaram a sanção católica da forma de sacerdócio
como se apresentava no final do século 4 e se decidiram, em vez disso, pela
forma que os ofícios haviam adotado no fim da formação do Novo Testa-
mento. A chave para isso constituía o "tríplice ofício de Cristo" - Rei, Pro-
feta e Sacerdote -, que, para os protestantes, cristalizara-se claramente nos
três ofícios de pastor, presbítero e diácono. Em vez de valorizar o fato de
que, nos primeiros estágios, esses ofícios haviam evoluído apenas até um
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 561

grau rudimentar, eles os viram como explicitamente instituídos por Cristo, e,


por conseguinte, como imutáveis. Na prática, a maioria das denominações
do protestantismo tradicional hoje avançam atabalhoadamente, com uma
compreensão do ministério ordenado que vacila entre a definição tradicional
da Reforma e uma posição mais próxima ao catolicismo. Por outro lado,
muitas denominações evangelicais, que tendem a seguir uma forma de or-
ganização congregacionalista, estão lutando para evitar uma de duas arma-
dilhas: ou o ministro se toma um pequeno papa cuja palavra é lei, ou a
congregação o considera um empregado seu que deve dançar como ela
assobia.
O resultado líquido não foi basicamente diferente da concepção cató-
lica dominante. A igreja permaneceu uma sociedade estritamente sacra ad-
ministrada por um "pessoal da casa". Apenas o foco para a "cura d'almas"
não eram, como no catolicismo, os sacramentos, mas a proclamação da
palavra de Deus (cf. de Gruchy 1987:18, sobre Bonhoeffer). Quanto ao
resto, o que protestantes e católicos compartilhavam em relação ao papel
do ministério ordenado era muito mais significativodo que suas discordâncias
- em ambas as tradições, o clérigo-sacerdote, elevado a uma posição privi-
legiada e central, continuou sendo a peça-chave da igreja (cf. Burrows
1981:61, 74). Com a crescente especialização da formação teológica, refor-
çou-se ainda mais o caráter elitista do "paradigma clerical" (cf. Farley
1983:85-88). À semelhança das missões católicas, as missões protestantes,
como era de se esperar, exportaram seu modelo clerical dominante para os
"campos de missão", impondo-a a outros como o único modelo legítimo e
apropriado, vestindo Davi com a armadura de Saul, e impossibilitando que a
jovem igreja ou executasse seu ministério particular ou sobrevivesse sem
ajuda externa.
Era altamente improvável que qualquer modificação acontecesse no
modelo dominante até que uma transformação de profundas proporções se
manifestasse tanto na igreja quanto na sociedade. Isso é o que começou a
ocorrer em nosso tempo, em relação à redescoberta do "apostolado dos
leigos" ou do "sacerdócio de todos os crentes".

o apostolado dos leigos


As missões católicas sempre tiveram um significativo envolvimento
de leigos. A participação deles no empreendimento missionário era, todavia,
claramente auxiliar e se achava sob o firme controle e jurisdição do clero.
Nas missões protestantes, o cenário era mais auspicioso, especialmente à
medida que crescia o "princípio do voluntário" (ver capítulo 9).
Em verdade, já desde seu início, as missões protestantes eram, em
grau significativo, um movimento leigo. As sociedades de voluntários não
estavam limitadas a eclesiásticos. Normalmente havia clérigos envolvidos
562 - Rumo a uma missiologia relevante

na fundação de sociedades missionárias, mas eles eram muitas vezes, como


no caso da SMI, clérigos sem maior expressão, que, em geral, cooperavam
estreitamente com leigos proeminentes (Walls 1988:150). Walls (p. 142)
descreve as sociedades como sendo livres, abertas, responsáveis, abarcan-
do todas as classes, ambos os sexos, todas as idades, as massas populares -
um movimento verdadeiramente democrático e antiautoritário e, até certo
ponto, também anticlerical e contrário ao establishment. As sociedades
norte-americanas, em especial, atraíam grande número de mulheres. Em
alguns casos, as mulheres fundavam suas próprias sociedades missionárias
(em 1890, havia 34 delas só nos Estados Unidos) e periódicos, e levantavam
os fundos para sustentá-las (cf. Anderson 1988: 102s.). Nos "campos de
missão", inclusive em sociedades dirigidas por homens, as mulheres consti-
tuíram, em pouco tempo, a maioria (cf. Hutchison 1987: 101). E elas faziam
tudo que os homens soíam fazer, incluindo a pregação (é claro que isso não
se estendia à administração dos sacramentos).
Depois da Segunda Guerra Mundial, o "front doméstico" começou a
recuperar terreno. As igrejas, tanto a católica quanto as protestantes, co-
meçaram a perceber que os tradicionais modelos monolíticos de ofício eclesi-
ástico não mais se coadunavam com a realidade. O aggiomamiento [atuali-
zação] teológico nas duas principais confissões ocidentais redescobriu que a
apostolicidade era um atributo de toda a igreja e que somente podia enten-
der-se o ministério ordenado como existindo dentro da comunidade de fé.
O Vaticano II expressou, de várias maneiras, o novo clima teológico
e social e uma nova consciência quanto ao papel central dos leigos na igreja,
sobretudo em relação à vocação missionária da igreja. O clima era, nesse
sentido, fundamentalmente distinto daquele de vários concílios anteriores.
Y. Congar observou que palavras repetidamente empregadas no Vaticano
IIjamais haviam sido empregadas pelo Vaticano I - palavras como "amor",
113 vezes, e "leigo", 200 vezes (cit. ap. Gómez 1986:57). LG 33 afirma: "O
apostolado dos leigos é participação na própria missão salvífica da Igreja. A
este apostolado todos são destinados pelo próprio Senhor através do batis-
mo e da confirmação." Acrescenta que os leigos têm "o preclaro ônus de
trabalhar para o plano divino de salvação atinja sempre mais a todos os
homens de todo os tempos e de todos os lugares da terra". AO 28 (cf. LO
12) incentiva a todos os membros da igreja" a colaborar na obra do Evan-
gelho, cada um conforme sua oportunidade, faculdade, carisma e função".
Inclusive afirma categoricamente (AO 21): "A Igreja não se acha deveras
consolidada, não vive plenamente, não é um perfeito sinal de Cristo entre os
homens, se aí não existe um laicato de verdadeira expressão que trabalhe
com a hierarquia". O Decreto sobre o Múnus Pastoral dos Bispos define
os bispos, primordialmente, como pastores, não como "portadores da pleni-
tude do poder sacerdotal" (cf. Burrows 1981:109). Sumamente importante,
todavia, é que o Vaticano II tenha produzido Apostolicam Actuositatem, o
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 563

Decreto sobre o Apostolado dos Leigos, um documento que descreve os


leigos eminentemente em termos da missão da igreja, tendo o "direito e o
dever do apostolado" (parágrafo 3).
Não que todos os problemas estivessem subitamente solucionados.
Longe disso! O Vaticano II ainda se refere às pessoas leigas como "auxili-
ares" dos "ministérios sagrados" (cf. Gómez 1986:51). Também em outros
aspectos, a velha dicotomia entre clero e laicato parece ter sido sustentada
com firmeza, tanto que Boff (1986:30) assevera que, apesar do Vaticano Il,
a participação dos fiéis na tomada de decisões é totalmente mutilada. Pare-
ce, deveras, que a tensão entre o "topo" e a "base" tem crescido em vez de
diminuir nos últimos anos, uma vez que mais e mais comunidades de base,
as chamadas "ecclesias", "congregações críticas" e afins estão se forman-
do dentro da Igreja Católica (cf. Blei 1980:1). Há, por parte da hierarquia,
uma certa apreensão quanto às conseqüências de conceder um papel maior
aos leigos, um receio que N. Lash (cit. ap. de Gruchy 1987:35) chamou de
"a redescoberta do elemento 'congregacionalista' no catolicismo" (cf. tam-
bém Burrows 1981:39s.; Michiels 1989:106s.).
Quanto ao laicato, portanto, o catolicismo pós-Vaticano expõe ver-
sões velhas e novas de eclesiologia. A situação não difere essencialmente
no protestantismo. Isso é compreensível quando se lembram os quase dois
milênios durante os quais o modelo do clero ordenado persistiu sem contes-
tação. A divisão clara entre a igreja "que ensina" e a igreja "que aprende"
(a ecclesia docens e a ecclesia discens), entre a mediação ativa da graça
e a recepção passiva da graça, tem raízes profundas demais para que seja
expungida sem maiores dificuldades.
Mesmo assim, está em andamento uma mudança inequívoca. As
pessoas leigas não são mais apenas os escoteiros que, retomando do "mun-
do lá fora", com testemunhos oculares e, talvez, com alguns cachos de
uvas, apresentam-se à "base de operação"; elas são a base operacional
donde emana a missio Dei. De fato, não são elas que devem "acompa-
nhar" aqueles que são os portadores de "ofícios especiais" na missão des-
tes no mundo. Pelo contrário, são os portadores de ofícios que precisam
acompanhar os leigos, o povo de Deus (cf. Hoekendijk 1967a:350). Na dis-
pensação do Novo Testamento, o Espírito (à semelhança do sacerdócio) foi
dado a todo o povo de Deus, não a indivíduos selecionados. "Os clérigos,
pois, provêm da comunidade, orientam-na e agem em nome de Cristo"
(Moltmann 1977:303).
Pois é a comunidade que é o portador primordial da missão. O pro-
jeto sobre a "estrutura missionária da congregação", lançado pela Assem-
bléia do CMI em Nova Délhi (1961) (um projeto, porém, que foi abortado
em grande parte), juntamente com a redéscoberta da igreja local no catoli-
cismo, são talvez - de uma perspectiva missiológica - as contribuições do
CMI e do Vaticano II que têm as mais amplas conseqüências. A missão não
564 - Rumo a uma missiologia relevante

procede primordialmente do papa, nem de uma ordem missionária ou socie-


dade ou sínodo, mas de uma comunidade reunida em tomo da palavra e dos
sacramentos e enviada ao mundo. Por isso, o papel da liderança ordenada
não pode ser o fator que tudo determina; ela é apenas uma parcela da vida
inteira da comunidade (Burrows 1981:62). Gradualmente, as igrejas estão
começando a se ajustar à nova percepção teológica. O modelo vertical,
linear, que parte do papa, passando pelo bispo e o sacerdote até chegar ao
fiel (um modelo que tem seus paralelos no protestantismo), está sendo pau-
latinamente substituído por um modelo em que todos estão envolvidos de
forma direta (cf. Boff 1986:30-33).
Não é preciso dizer que um novo modelo de igreja é de grande impor-
tância para toda a discussão relativa à ordenação de mulheres (cf., entre
outros exemplos, Burrows 1981: 134-137; Boff 1986:76-97). Mas a ordena-
ção delas representa apenas um dos componentes da questão, como o é a
noção de autorizar pessoas leigas a estar diretamente envolvidas na cele-
bração da ceia do Senhor (cf. Boff 1986:70-75). O problema com essa
discussão, sem dúvida legítima e crucial, é que ela ainda sugere que alguma
forma de ministério ordenado e de autoridade para celebrar os sacramentos
seria o cerne do que significa a igreja.

Formas de ministério
Se é verdade, como se sustentou ao longo deste estudo, que a vida
toda da igreja é missionária, segue-se que necessitamos urgentemente de
uma teologia do laicato - algo de que apenas os primeiros rudimentos estão
agora emergindo. Mas essa teologia também só agora está se tomando
possível de novo, na medida em estamos nos afastando da sombra maciça
do iluminismo. Pois uma teologia do laicato pressupõe uma ruptura com a
noção, tão fundamental para o iluminismo, de que a esfera privada da vida
tem que ser separada da pública (cf. também Newbigin 1986: 142s.). Molt-
mann, em sua tese de que a teologia do futuro não será mais simplesmente
uma teologia para sacerdotes e pastores, mas também para os leigos, segue
dizendo nessa tese:
Ela se dirigirá não só ao serviço divino ou culto na igreja, mas também ao
serviço divino ou culto no cotidiano do mundo. Sua implementação prática
incluirá a pregação e o culto, deveres pastorais e a comunidade cristã, mas
também a socialização, a democratização, a educação visando à auto-sus-
tentação e a vida política. (1975:11).
É necessário dizer, portanto, enfaticamente que a teologia do laicato
não significa que os leigos devam ser treinados para tornar-se "minipasto-
res". Seu ministério (ou talvez devêssemos dizer seu "serviço", pois "minis-
tério" tomou-se uma palavra demasiadamente eclesiástica - cf. Burrows
1981 :55s.) é oferecido na forma da vida contínua da comunidade cristã "em
lojas, vilas, fazendas, cidades, salas de aula, lares, escritórios de advocacia,
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 565

em aconselhamento, política, governo e recreação" (p. 66s.). É preciso re-


conhecer-se a forma contingente que esse ministério assumirá - assim como
deveríamos, em verdade, reconhecer a forma contingente do ministério or-
denado. Ele não será o mesmo para cada época, contexto e cultura. Em
algumas partes do Terceiro Mundo, em especial, o ministério tanto das pes-
soas leigas quanto das ordenadas será muito mais amplo do que é no Oci-
dente. Seu escopo maior talvez seja ocasionado pela circunstância de que,
num país em desenvolvimento, os esforços da igreja podem ser mais abran-
gentes que os do governo (p. 72) ou, em um país como a África do Sul- que
atravessa um doloroso processo de democratização -, pelo fato de que,
onde se silenciaram as vozes de líderes políticos e comunitários, a igreja
remanesce quase como a única voz dos que não têm voz. Na maioria des-
ses casos, teremos um ministério combinado de clérigos e leigos, ao ponto
de se tornar impossível distinguir quem está fazendo o quê.
Um exemplo notável de ministério laico constitui o fenômeno das
"pequenas" comunidades cristãs ou comunidades eclesiais de "base" que,
tendo sua origem na América Latina", estão hoje se espalhando pelo mun-
do inteiro, inclusive no Ocidente. Ele assume formas múltiplas: no Ocidente,
grupos de igrejas domésticas, igrejas independentes africanas, reuniões clan-
destinas em países onde o cristianismo está proscrito, etc. O movimento é,
no que diz respeito ao catolicismo, tão excepcional que os pesquisadores
facilmente são tentados a tornar-se demasiadamente visionários em sua
avaliação (cf., por exemplo, Boff 1986:1,4). Mas trata-se de um desenvol-
vimento de momentosa significação. Bühlmann (1977:157) inclusive ousa
dizer que esses "experimentos" são mais importantes que a teologia da li-
bertação e podem, com maior razão, ser considerados a contribuição ofere-
cida pela América Latina à igreja universal. E sua significação reside sobre-
tudo no fato de que aqui as pessoas leigas chegaram à maioridade e se
encontram envolvidas na missão de maneira imaginativa.
Levou muitíssimo tempo até que a igreja cristã descobrisse que Cris-
to, que subvertera as formas sagradas de ministério do establishment judai-
co de sua época, poderia eventualmente também contestar a "teologia do
ministério" da igreja cristã (cf. Burrows 1981:31s.). Como sempre, porém,
Cristo não tem o propósito de destruir, mas de consumar. Isso também se
aplica ao ministério ordenado. Nada se ganha em aboli-lo. Boff (1986:32),
apesar de toda a sua crítica às estruturas da Igreja Católica e de todo o seu
entusiasmo pelas comunidades de base, repudia qualquer tentativa de "pri-
var o bispo e o sacerdote de sua função em um falso processo de liberta-
ção". De fato, não se vence o clericalismo rejeitando um ministério ordena-
do ou depreciando sua importância e tarefa. De Gruchy (1987:26) cita E.
Schillebeeckx nesse sentido: "Se não existe uma concentração especializa-
da no que é importante para todos, a comunidade, a longo prazo, sofre em
conseqüência disso".
566 - Rumo a uma missiologia relevante

Por isso, a tendência de Hoekendijk de compreender os ofícios ecle-


siásticos como meramente funcionais e, portanto, em última análise, como
contingentes (cf. também Rütti 1972:311-315) nos leva a lugar nenhum.
Alguma forma de ministério ordenado é, deveras, essencial e constitutiva
(veja também Moltmann 1977:288-314), não como fiador da validade da
reivindicação eclesiástica de ser a dispensadora da graça de Deus, mas,
quando muito, como guardião, para ajudar a comunidade a se manter fiel
ao ensinamento e à prática do cristianismo apostólico (cf. Burrows
1981:83,112). O clero não faz isso sozinho e sem auxílio, mas junto com a
totalidade do povo de Deus, pois todos receberam o Espírito Santo, que guia
a igreja em toda verdade. O sacerdócio do ministério ordenado deve possi-
bilitar, e não remover, o sacerdócio da igreja inteira (Newbigin 1987:30). Os
clérigos não são anteriores à igreja ou independentes dela ou superiores a
ela; ao contrário, com o resto do povo de Deus, eles são a igreja enviada ao
mundo. Para concretizar essa visão, portanto, precisamos de uma eclesiolo-
gia mais orgânica, menos sacra, do povo todo de Deus.

Missão como testemunho a adeptos


de outras religiões vivas"

o cenário em mudança
A theologia religionum, a "teologia das religiões", é uma disciplina
que surgiu apenas na década de 1960. O mesmo impulso que fez com que
os cristãos de uma determinada denominação teológica perguntassem: Quem
são esses católicos romanos, anglicanos, metodistas, ortodoxos? também
originou a pergunta: Quem são esses adeptos de outras crenças, esses hin-
dus, budistas e muçulmanos? Pelo menos nesse sentido formal, existe, pois,
uma relação entre o ecumenismo e a teologia das religiões.
A questão quanto à atitude que os cristãos e missões cristãs deveri-
am adotar em relação a (adeptos de) outras crenças é, naturalmente, muito
antiga, com raízes no Antigo Testamento. Durante muitos séculos, porém,
ela quase não foi debatida. Os decretos do imperador Teodósio de 380 (que
exigiu que todos os cidadãos do Império Romano fossem cristãos) e de 391
(que proibiu todos os cultos não-cristãos) inexoravelmente prepararam o
caminho para a bula Unam Sanctam (1302), do papa Bonifácio, que procla-
mou que a Igreja Católica era a única instituição que garantia a salvação,
para o Concílio de Florença (1442), que remetia ao eterno fogo do inferno
toda pessoa que não pertencesse à Igreja Católica, e para o Cathechismus
Romanus (1566), que professou a infalibilidade da Igreja Católica. No con-
texto desse modelo, era impensável que se desse às pessoas a liberdade de
crer no que escolhessem; ainda em 1832, Gregório XVI rejeitou o pedido de
liberdade religiosa não apenas como um erro, mas como um deliramentum,
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 567

"insanidade" (referência ap. Fries 1986:759). Os protestantes, é verdade,


não tinham nada comparável a bulas papais. Mas sua mentalidade, freqüen-
temente, em quase nada diferia daquela de Roma; onde o modelo católico
insistia que "fora da igreja não há salvação", o modelo protestante aderia
ao "fora da palavra não existe salvação" (Knitter 1985: 135).
Em ambos esses modelos, missão significava, essencialmente, con-
quista e substituição. Entendia-se o cristianismo como único, exclusivo,
superior, definitivo, normativo e absoluto (cf. Knitter 1985: 18), a única reli-
gião que possuía o direito divino de existir e de se propagar. Durante a maior
parte da Idade Média, o arquiinimigo do cristianimo foi o islamismo. Maomé
era um "segundo Ário"; o islamismo era uma imitatio diaboli [imitação do
diabo] pós-cristã, uma ameaça que deveria ser esmagada antes que destru-
ísse a igreja. Daí as cruzadas, que, em geral, fracassaram. Mas isso não
alterou a atitude dos cristãos em relação ao islamismo (cf. Erdmann 1977;
Kedar 1984).
Dadas as circunstâncias e o clima geral da época, é difícil acusar a
igreja pela atitude que adotou. Mas isso toma as exceções à regra tão notá-
veis - pessoas como Raimundo Lulo, no século 14, e Las Casas, no 16. E,
meio século antes de Las Casas, houve o cardeal alemão Nicolau de Cusa,
que - cansado das guerras religiosas entre cristãos e muçulmanos - espe-
rava o dia em que todos reconhecessem a religião una na pluralidade dos
ritos religiosos (religio una in rituum varietate). Inclusive Nicolau, porém,
não duvidou, em momento algum, da absoluta superioridade do cristianismo
sobre o islamismo (cf. Gensichen 1989: 196s.), exatamente como Las Casas
supunha, como algo natural, que as superstições dos índios americanos fos-
sem infinitamente inferiores à fé cristã.
Mas a certeza inabalável, maciça e coletiva da Idade Média, que
vigorou até o século 18, desapareceu. O cristianismo, diz Kraemer (1961:21),
é severamente questionado, repudiado ou ignorado de forma condescen-
dente. Um fator importante nesse colapso foi, é óbvio, o iluminismo. Quanto
ao mundo dos valores (no qual se enquadrou a religião), o iluminismo ado-
tou, como princípio, uma atitude relativista. Com o decurso do tempo, isso
solaparia certezas cristãs até então inabaláveis e, paulatinamente, conscien-
tizou a igreja da existência de um dilema que ela jamais tivera que reconhe-
cer. Com a derrocada do colonialismo, ela perdeu sua hegemonia - mesmo
no Ocidente, seu domicílio tradicional- e hoje tem que competir por adeptos
no mercado aberto de religiões e ideologias. Não há mais oceanos separan-
do os cristãos dos adeptos de outras religiões. Nos países ocidentais, cris-
tãos, muçulmanos, hindus, sikhs e budistas se encontram em qualquer rua.
Cristãos sérios também descobriram que aquelas "outras religiões" são, in-
congruamente, mais diferentes do cristianismo e, ao mesmo tempo, mais
semelhantes a este do que haviam suposto.
No paradigma iluminista, esperava-se que a religião, afinal, fosse de-
568 - Rumo a uma missiologia relevante

saparecer à medida que as pessoas descobrissem que fatos eram tudo de


que necessitavam para sobreviver e que o mundo dos valores - a que per-
tence a religião - perdesse sua ascendência sobre elas. E, em verdade,
muita coisa parecia apontar nessa direção. O marxismo descartou a religião
como "ópio do povo" e propagou um mundo em que ela não teria espaço.
Mesmo fora do mundo comunista, a religião - e sobretudo o cristianismo -
parecia estar em declínio. Arnold Toynbee (1969: 327) diz que, em sua épo-
ca de estudante em Oxford, na primeira década de nosso século, ele e seus
colegas acreditavam que as religiões não tinham futuro e desapareceriam.
Na Conferência do CoMIn de Jerusalém (1928), John Macmurray apresen-
tou a tese de que as religiões desapareceriam com a ascensão do pensa-
mento científico - embora ele não cresse que também o cristianismo fosse
desaparecer (cf. Newbigin 1969:31). Mas, em uma pesquisa de 1948, 34
por cento da população francesa se declarou "atéia" (cf Gómez 1986:30),
corroborando, assim, a tese de Godin e Daniel (1943). Com a "secular dé-
cada de sessenta", aparentemente, chegara a hora final da religião; a única
maneira de assegurar a sobrevivência do cristianismo era transformá-lo em
uma religião completamente secular.
Estranhamente, porém, a religião não pereceu. Pelo contrário! Esta-
mos descobrindo hoje a realidade inconteste da "religião após o iluminismo"
(cf. o título de Lübbe 1986). A natureza humana, disse o octogenário Toyn-
bee, em 1969 (p. 322), tem ojeriza ao vácuo; assim, se uma religião desapa-
rece, uma outra ocupa seu lugar; contrariando sua opinião anterior de que
as religiões estavam moribundas (p. 327), ele agora sustentava que elas
tinham um papel duradouro a desempenhar (p. 328). Aparentemente, a idéia
de Bonhoeffer sobre o ser humano não-religioso e o "mundo secular" era
equivocada. Desde os "sessenta seculares", mais e mais estudiosos têm
escrito sobre o ressurgimento de um anseio transcendente, aberto à percep-
ção espiritual e crítico em relação à ciência como meio adequado de conhe-
cer a verdade toda; pode-se citar, por exemplo, A Rumor of Angels [Um
rumor de anjos] (1970), de Peter Berger, Where the Wasteland Ends (1972),
de Theodore Roszak, e The Seduction of the Spirit, de Harvey Cox (em
que, incidentalmente, ele adota uma posição bastante diferente da sustentada
em The Secular City, mas que difere bastante da de Roszak e outros).
O reavivamento da religião não é, porém, um fenômeno exclusiva-
mente cristão. Pelo contrário, parece que são, sobretudo, as outras religiões
que estão experimentando uma revitalização. Warneck (1909) estava equi-
vocado - é impossível simplesmente justapor "o Cristo vivo" ao "paganismo
moribundo". Já em 1933, H. W. Schomerus publicou um estudo sobre Das
Eindringen lndiens in das Herrschaftsgebiet des Christentums ("A in-
filtração da Índia no domínio do cristianismo"). Em alguns casos (principal-
mente no islamismo), a revitalização das religiões tradicionais está estreita-
mente vinculada a um nacionalismo emergente, a projetos de construção
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 569

nacional e a processos afins. Muitas vezes, essas religiões estão envolvidas


em um "evangelismo" bem mais agressivo do que o das igrejas cristãs. O
hinduísmo não é assertivo apenas em casa, mas suas seitas estão fazendo
proselitismo com êxito no Ocidente. O budismo se tomou militante em Sri
Lanka e em outras partes. Enquanto que o número de cristãos triplicou
desde o início do século, o de muçulmanos quadruplicou (cf. Barrett 1990:27).
Nos países ocidentais, a liberdade de religião é altamente valorizada, o que
possibilita que qualquer fé propague suas crenças sem restrições; em vários
países islâmicos, todavia, proíbe-se a divulgação da fé cristã - com impor-
tantes conseqüências para a missão cristã (cf. Gensichen 1989:199-201).
De fato, os cristãos do Ocidente foram despertados de sua complacência.
Todas essas circunstâncias fazem com que a igreja cristã atual se
defronte com desafios sem precedentes. Provavelmente seja correto afir-
mar que chegamos a um ponto onde pode existir pouca dúvida de que os
dois maiores problemas não-resolvidos para a igreja cristã são sua relação
(1) com cosmovisões que oferecem salvação imanente e (2) com outras
crenças. Na primeira página de On Being a Christian [Ser cristão] Hans
Küng (1977 :25) diz que, diante desse desafio duplo das religiões mundiais e
do humanismo moderno, o cristão hodierno se confronta com a pergunta se
o cristianismo é, deveras, algo essencialmente diferente, algo especial. Sharpe
(1974: 14) acredita que o desafio das religiões é inclusive mais significativo
do que o das ideologias seculares - embora assuntos como a relação entre
missão e mundo, missão e política, missão e ação social sejam importantes,
é a theologia religionum que constitui o epítome da teologia da missão.
A questão é se a igreja e a missão cristãs estão preparadas para
responder ao desafio que emana das religiões. Após a Reunião do CoMln
em Tambaram (1938), Karl Hartenstein declarou: "Não temos uma teologia
com que pudéssemos sequer começar a encarar o desafio apresentado ao
cristianismo pelo budismo e pelo hinduísmo" (cit. ap. Gensichen 1989:195).
Durante o último meio século, pouco parece ter mudado nesse sentido. A
recente introdução holandesa à missiologia (Oecumenische inleiding
1988:475s) sugere que ainda reina muita confusão e incerteza nessa área e
que, à medida que nos aproximamos do século 21, muito caminho ainda está
por ser andado, pois estamos completamente despreparados para enfrentar
o desafio diante de nós. Se esses estudiosos estiverem corretos, é possível
avaliar a frustração e o pesar de Cracknell e Lamb (1986:10-16), que, anali-
sando o cenário britânico, constatam que a teologia das religiões (de fato, toda
a área da missiologia) é ou virtualmente desconhecida nas instituições teológi-
cas ou relegada à posição de uma insignificante subseção da teologia pastoral.

Respostas pós-modernas?
Desde a década de sessenta, poucos temas têm dominado a literatu-
ra sobre a missão (e, em verdade, a literatura teológica em geral) como o
570 - Rumo a uma missiologia relevante

fez toda a área da teologia das religiões. Publicou-se uma avalancha de


livros e artigos e parece que ela persistirá. Sem dúvida, a situação mundial
contemporânea e o crescente intercâmbio de idéias entre povos e entre
religiões criaram um cenário inédito. Antes que se tente, de alguma manei-
ra, ordenar as idéias, talvez seja importante destacar que grande parte do
atual interesse por nosso tema tem a ver com o fato de que, em geral, o
cristianismo não tem obtido muito êxito entre aqueles povos que praticam o
que, muitas vezes, se denomina (talvez incorretamente) de as grandes reli-
giões - islamismo, hinduísmo, budismo, etc. No decurso da história, apre-
sentam-se muitas explicações para esse fracasso. Tendo em vista o que
escrevi sobre contextualização e inculturação em uma parte anterior deste
capítulo, talvez seja esclarecedor mencionar uma de tais explicações, a de
A. Pieris (1986). Ele sustenta que esses modelos provêm da prática do
cristianismo latino de separar a religião da cultura. O que realmente se faz
necessário, porém, não é apenas inculturação, mas "inreligionização"
(1986:83). Song, usando o exemplo da propagação do budismo na Ásia, diz
essencialmente o mesmo. Tão logo que o budismo deixou sua terra de ori-
gem, ele se tomou budismo chinês, budismo tailandês, budismo japonês
(1977:5; cf. Pieris 1986:85), intrínseco ao solo e ao povo de cada um desses
países. Isso, diz Song, foi verdadeiramente uma missão de encarnação.
Em contraste, a missão cristã foi uma missão de desincorporação (p. 54).
Jamais deveríamos ter transplantado o cristianismo para a Ásia sem que-
brar o vaso em que vinha a planta, afirma Pieris. Ele denomina a "febre da
inculturação" uma última aposta desesperada no sentido de dar uma facha-
da asiática a uma igreja que não conseguiu lançar raízes no solo asiático,
porque ninguém se atreve a quebrar o vaso greco-romano em que, durante
séculos, existiu como um bonsai raquítico (1986:84). Talvez, diz Pieris (p.
85), o cristianismo tenha perdido sua oportunidade porque chegou tarde de-
mais ao cenário asiático, com a possível exceção das Filipinas. Agora sua
única esperança reside não em tentar criar (por exemplo) apenas um cristi-
anismo indiano, mas - como estão sugerindo M. Amaladoss, R. Panikkar e
outros - um cristianismo hindu (p. 83).
Citei a tese de Pieris (e Song) simplesmente para realçar o fato de
que, em todas as partes, existe hoje uma nova urgência em lidar com essa
questão toda de uma theologia religionum cristã e uma tentativa, às vezes
quase desesperada, de compensar uma miopia anterior. A diversidade des-
concertante dessas tentativas (Nümberger 1970:42s. arrola nada menos de
27 variedades!) indica que, por ora, parece não haver uma direção clara
emergindo. Nümberger subdivide os 27 tipos em três amplas categorias,
que ele denomina de relativista, dialética e antitética. Mas é possível que a
subdivisão de Küng em quatro "posições fundamentais" (1987:278-285) seja
mais útil para nosso propósito. A primeira posição, a do ateísmo ("nenhuma
religião é verdadeira" ou "todas as religiões são igualmente falsas") pode
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 571

ser ignorada tendo em vista nosso objetivo, pois nenhuma ramificação da


teologia cristã das religiões lhe dá acolhida. As outras três (os termos são
meus) são o exclusivismo, a consumação e o relativismo. Cada um deles
contém em si elementos tanto do paradigma moderno quanto do pós-moder-
no. Não será possível expor as três concepções de forma detalhada; só abor-
daremos aquelas dimensões que revelam, no interior de cada uma delas, ele-
mentos que, inconscientemente, procuram ir além da posição moderna.
1. Exclusivismo: A tradicional atitude exclusivista do catolicismo e
protestantismo ocidentais em relação a outras religiões era decididamente
pré-moderna ou (em algumas de suas manifestações) moderna. O mesmo
pode ser dito, em termos gerais, da posição evangelical contemporânea.
Mas existe um exemplo importante de uma posição exclusivista que revela
claramente elementos pós-modernos - a teologia das religiões de Karl Barth
(nesse sentido, portanto, Knitter [1985:80-87] está equivocado quando apre-
senta Barth como um representante da posição evangelical conservadora).
Barth discute esse tema no volume 1/2 de sua Church Dogmatics.
Radicalizando e sobrepujando Lutero e Calvino - seus dois principais inter-
locutores - e opondo-se, conscientemente, ao otimismo evolucionário e ao
endosso do ser humano autônomo do iluminismo, Barth afirma que religião é
descrença - uma preocupação, em verdade, a preocupação de seres hu-
manos ímpios. Essa afirmação, porém, dirige-se primordialmente não às
outras religiões, mas ao cristianismo (um ponto de vista que, de fato, apro-
xima Barth de Feuerbach - nesse aspecto, ao menos). O ser humano, diz
Barth (1978:302), citando Calvino, é uma fabrica idolorum, uma "fábrica
de ídolos", e o ídolo assim produzido é a religião, cristã ou outra. Ele segue
contrapondo, de uma maneira absoluta, a religião como produto humano
com a revelação, que é algo de todo novo, provindo diretamente de Deus
(p. 301s.). Não há ponto de contato entre a religião e a revelação de Deus.
Se Deus fala aos seres humanos (o que ele faz) e está sendo compreendido,
isso não acontece com base em algo inato à humanidade, mas devido a uma
creatio ex nihilo [criação a partir do nada] divina. Isso também explica por
que nós, com temor e tremor e a despeito do que se disse, podemos referir-
nos ao cristianismo como tornando-se "religião verdadeira". Dizemos isso
não por causa de algo intrínseco à religião cristã, mas porque Deus a cria,
elege, justifica e santifica (p. 325-361). Como o ser humano justificado, a
verdadeira religião é uma criação da graça (p. 326).
Indubitavelmente, a tentativa de Barth de resolver um problema anti-
quíssimo foi ousada, inovadora e radical. Isso aplica-se sobretudo à maneira
como ele negou refugiar-se no velho estratagema de contrapor, displicente-
mente, a religião cristã como verdadeira a todas as demais como falsas.
2. Consumação: Poder-se-ia sustentar que a idéia do cristianismo
como consumação de outras religiões já estava presente nos conceitos de
572 - Rumo a uma missiologia relevante

adaptação, acomodação e indigenização (veja supra "Missão como incultu-


ração"). Quando Xavier, de Nobili e Ricci tentaram acomodar valores reli-
gioso-culturais indianos, chineses e japoneses, eles atribuíram algum valor a
essas culturas e religiões e romperam, em princípio, com a concepção dua-
lista da realidade sancionada pela teologia de Agostinho. Mas somente com
a entrada em cena da teoria da evolução no século 19, com a ascensão da
teologia liberal e com o nascimento da nova disciplina do estudo comparati-
vo da religião, estava pronto o palco para uma abordagem segundo a qual as
religiões podiam ser comparadas e classificadas em uma escala ascenden-
te. No mundo ocidental, porém, não havia dúvida quanto a que religião se
encontrava no pináculo. Em quase todos os aspectos, qualquer outra reli-
gião - mesmo que pudesse ser designada como uma praeparatio evange-
lica - era deficiente quando comparada com o cristianismo, como Dennis o
ilustrou tão hábil e amplamente em seu estudo de três volumes (1897, 1899,
1906).
A nova disciplina chamou a atenção do grande público quando do
"Parlamento Mundial das Religiões", que se reuniu em Chicago, em 1893,
como parte da "Columbian Exposition", que comemorava a "descoberta"
da América por Cristóvão Colombo (cf. Barrows 1893). No auge do libera-
lismo teológico e sob a bandeira da "paternidade de Deus" e da "fraternidade
universal dos homens", os organizadores cristãos convidaram, magnanima-
mente, para virem a Chicago, representantes de todas as grandes religiões.
No parlamento e durante as décadas que se seguiram, os cristãos
realmente podiam dar-se ao luxo de serem generosos. O triunfo final do
cristianismo, muito provavelmente antes do fim do século 20, estava asse-
gurado - como os cálculos de Dahle tão convincentemente o ilustravam (cf.
Sundkler 1968: 121). Às vésperas do novo século, um periódico teológico
dos EUA expressou essa crença mudando seu nome para The Christian
Century ["O Século Cristão"]. A teologia liberal da época aceitava a vali-
dade das outras religiões, mas acreditava que o cristianismo ainda era a
melhor delas e certamente lhes sobreviveria. Outras religiões podiam pre-
parar o caminho para o cristianismo, mas este permanecia a "coroa", como
sustentou J. N. Farquhar em seu famoso estudo intitulado The Crown of
Hinduism ["A coroa do hinduísmo"] (1913).
Essa concepção também dominou a Conferência do CoMln em Jeru-
salém (1928), sobretudo devido ao papel desempenhado por W. E. Hocking.
A "Declaração do Conselho", emitida pela Conferência, afirmou, entre outras
coisas":
Reconhecemos como parte da Verdade una aquele senso da Majestade de
Deus e a conseqüente reverência de culto que são conspícuos no islamismo,
a profunda compaixão com o sofrimento do mundo e a busca abnegada pela
libertação que estão no âmago do budismo; o desejo de contato com a
realidade última concebida como espiritual que é notável no hinduísmo; a
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 573

crença numa ordem moral do universo e a conseqüente insistência em uma


conduta moral que são inculcadas pelo confucionismo.
Na superfície, essa declaração parece relativista e se encaixa na
próxima categoria. Mas a "Verdade una" a que Jerusalém aludiu era afé
cristã. De certa forma, pois, as outras religiões eram todas subsumidas sob
o cristianismo. Isso também constituía a nota dominante no relatório da "Lay-
mens Foreign Mission Inquiry" (norte-americana) (1932). Estávamos todos
rumando para uma única cultura global e precisávamos de uma única reli-
gião universal - sem dúvida, baseada, em larga escala, nas premissas do
cristianismo do Ocidente. O amor cristão, na sugestão de Hocking, era o
elemento especialmente necessitado para o rejuvenescimento espiritual do
mundo (cf. Hutchison 1987:161).
Toda essa abordagem se identificava integralmente com a mentalida-
de do iluminismo. Até certo ponto, pode-se afirmar o mesmo inclusive acer-
ca da contribuição do Vaticano II para a teologia das religiões. Seu ponto de
partida (expresso em LG 16) é a vontade salvífica universal de Deus (cf. 1
Tm 2.4)26 e o reconhecimento da presença "do bem ou da verdade" na vida
das pessoas. LG 16 vê o "plano da salvação" operando nas pessoas que
"reconhecem o Criador", que procuram o Deus incógnito "em sombras e
imagens" e que, "não sem a divina graça, esforçam-se por viver uma vida
reta". Nostra Aetate (a Declaração conciliar sobre as relações da Igreja
com as religiões não-cristãs) aprofunda essas premissas. Ela enfatiza o
que as pessoas têm em comum e o que tende a promover a comunhão;
considera as religiões como o que supre as respostas para os enigmas não-
resolvidos da vida (NA 1). Acrescenta que a Igreja Católica não rejeita
nada do que é verdadeiro e sagrado em outras religiões, pois essas "fre-
qüentemente refletem lampejos" da verdade da própria igreja (NA 2). O
que surpreende na maior parte disso é que as reflexões do concílio ainda se
baseiam em uma teoria geral da religião. Os argumentos são sociológicos e
filosóficos, e não teológicos.
Uma abordagem mais explicitamente pós-moderna começou a aflo-
rar com a passagem do eclesiocentrismo para o cristocentrismo. Grande
parte dessa passagem se evidenciava em diversos documentos do Vaticano
II - mas não em NA. Os protestantes, por seu turno, sempre reivindicaram
ser cristocêntricos, não ecIesiocêntricos. Sua cristologia, porém, era exclu-
dente no que diz respeito a outras religiões. Na Assembléia do CMI em
Nova Délhi (1961), Joseph Sittler, um luterano - baseando-se na tradição da
pratística grega e não em Agostinho - introduziu a idéia do Cristo cósmico.
Referindo-se à noção de anakephalaiosis ("recapitulação" ou "unir sob
uma só cabeça") contida em Efésios 1.10 (cf. Colossenses 1.15-20), Sittler
argumentou em favor de uma cristologia cósmica e da unificação da huma-
nidade sob a nova Cabeça una, o Cristo cósmico.
Independentemente dos desdobramentos em curso nos círculos pro-
574 - Rumo a uma missiologia relevante

testantes ecumênicos, Karl Rahner e outros também começaram a pleitear


a passagem de uma abordagem eclesiocêntrica para uma cristocêntrica na
teologia das religiões. É importante reconhecer que o ponto de partida de
Rahner, quando discute outras religiões e seu possível valor salvífico, é a
cristologia. Ele jamais abandona a idéia do cristianismo como religião ab-
soluta e da salvação como vindo unicamente através de Cristo. Reconhece,
porém, elementos sobrenaturais da graça em outras religiões, que, postula
ele, foram dadas aos seres humanos por meio de Cristo. Há graça salvado-
ra em outras religiões, mas essa graça é de Cristo. Isso torna adeptos de
outras crenças "cristãos anônimos" e confere a suas religiões um lugar
positivo no plano salvífico de Deus. São "formas comuns de salvação",
independentes da maneira singular da salvação de Israel e da igreja. É nesta
que elas encontram sua consumação.
A tese de Rahner foi modificada em vários aspectos por H. R. Schlet-
te, R. Pannikar, A. Camps e outros (cf. Camps 1983; Knitter 1985:125-135)
e talvez possa ser designada, com algumas reservas, como a perspectiva
católica atual dominante na teologia das religiões. A idéia de Camp de pra-
ticar um "método maiêutico" nesse sentido (que inclui uma tentativa da
parte do cristianismo de despojar-se de sua roupagem ocidental) é especial-
mente intrigante (cf. Camps 1983:7,84,91,155).
3. Relativismo: Afirmei que tanto o exclusivismo quanto a consuma-
ção se manifestam em alguns modelos que são claramente pós-modernos e
modernos e em outros que mostram traços de um paradigma pós-moderno.
O mesmo pode-se dizer do relativismo.
Filósofos como G. E. Lessing, A. Schopenhauer, G. W. Leibnitz e
Herbert of Cherbury, todos profundamente imbuídos pelo espírito iluminista,
representam uma compreensão decididamente moderna de religião. Na
opinião deles, a realidade (se há tal realidade) para a qual as diferentes
religiões apontam é a mesma. Apenas empregam termos diversos para de-
signá-la, como os seis indianos cegos que apalparam um elefante e chama-
ram-no - dependendo da parte anatômica que haviam tocado - cobra, es-
pada, ventilador, parede, pilar e corda. A pergunta em cada caso é a mes-
ma, apenas as respostas diferem. Por conseguinte, ao longo de suas distin-
tas sendas, as várias religiões nos conduzem a um cume espiritual idêntico
(Toynbee 1969:328). Em última análise, apesar de suas assombrosas dife-
renças, as religiões revelam ser mais complementares do que contraditórias
(Knitter 1985:220).
Esse relativismo extremo do iluminismo dificilmente se encontra hoje
em círculos cristãos. Em vez disso, modificações constituem a ordem do
dia, como, p. ex., a sugestão de que as várias religiões são historicamente
condicionadas. Um dos primeiros teólogos a utilizar essa abordagem foi
Ernst Troeltsch (1865-1923). Como expoente da escola da história das reli-
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 575

giões, ele se debatera, durante toda a vida, com a questão da chamada


absolutidade do cristianismo. Ele sustentou uma reivindicação alterada de
absolutidade até que, perto do fim de sua vida, mudou sua maneira de pen-
sar. Em seu livro Der Historismus und seine Überwindung (1923), defen-
deu a existência de um vínculo estreito entre uma determinada religião e sua
própria cultura. O cristianismo, portanto, ainda possuía uma validade final e
incondicional para os ocidentais, mas apenas para eles. Para outros povos e
culturas, suas religiões tradicionais igualmente têm validade incondicional.
A tese de Troeltsch, muitas vezes modificada, ainda é subscrita por
vários estudiosos. John Hick, por exemplo (referência ap. Knitter 1985:147)
combina a idéia de Troeltsch com a noção de que todas as religiões são
respostas humanas diferentes à Realidade divina una e afirma que elas cor-
porificam percepções variadas que se formaram em distintas circunstânci-
as históricas e culturais. Knitter (173-175) dá um passo adiante e expressa
suas dúvidas quanto à confiabilidade de grande parte da tradição cristã,
sobretudo da cristologia, argumentando que se trata de um acréscimo pos-
terior e discorde com a autocompreensão do próprio Jesus, a qual era teo-
cêntrica. Essa interpretação, pois, permite-lhe dispensar o cristocentrismo,
mesmo para os cristãos; ela se torna a base para sua tese central de que
estes, também, deveriam passar do cristocentrismo para o teocentrismo.
Ele é de opinião que Rahner e as pessoas que foram além da tradição de
Rahner nos apresentam uma concepção inadequada, precisamente porque,
em última análise, consideram a fé em Cristo como o Salvador definitivo (e,
assim, a própria fé cristã) um ponto inegociável (p. 133). O próprio Knitter
prefere se identificar com teólogos como John Hick, R. Panikkar e Stanley
Samartha, que estão, clara e seriamente, questionando o caráter final e a
normatividade definitiva de Cristo e do cristianismo (p. 146-159).
Knitter expõe, então, sua noção de "pluralismo unitivo", que, asseve-
ra, constitui uma nova compreensão de unidade religiosa e não deveria ser
confundida com a velha idéia racionalista de "uma única religião mundial".
A nova visão, afirma ele, não é sincretismo nem um exemplo de tolerância
indolente (1985:9). Como Hick, ele alude à nova concepção como uma "mu-
dança de paradigma" (p. 147). Todas as religiões possuem a mesma valida-
de e outros reveladores e salvadores podem ser tão importantes quanto
Jesus Cristo. Knitter não advoga a idéia de uma fé universal que abarcaria
todas as religiões, como o fez Hocking. Ele defende, antes, a noção de um
ecumenismo mais amplo (p. 166). Assim, opta conscientemente por uma
pluralidade religiosa, mas isenta de reivindicações mutuamente excludentes
ou de indiferença. O encontro inter-religioso deveria basear-se na experiên-
cia religiosa pessoal e em firmes pretensões à verdade (p, 207), mas sem
sugerir que qualquer parceiro do encontro possua a verdade final, definitiva,
irreformável (p. 211).
Partindo dessa posição, Knitter também se aventura, então, a formu-
576 - Rumo a uma missiologia relevante

lar algumas palavras sobre a missão cristã. O que ele diz a respeito disso (p.
222) vem a ser um "requentado" do que Swami Vivekananda falou, há um
século, no Parlamento Mundial das Religiões
Desejo, porventura, que um cristão se torne hindu? Longe disso. Quero que
o hindu ou o budista se convertam em cristãos? De modo algum (...) O
cristão não deve tornar-se hindu ou budista, nem o hindu ou o budista
converter-se em cristão. Mas cada qual precisa assimilar os outros, preser-
vando, porém, sua individualidade e desenvolvendo-se conforme sua pró-
pria lei decrescimento. (ap. Barrows 1983:170 [v. 1]).
Portanto, o modelo de Knitter parece ser menos original do que ele
pretende. Ele está próximo da posição de Vivekananda, assim como da de
Toynbee (1969:328), que visiona as religiões históricas reaparecendo no ho-
rizonte em um espírito de caridade mútua. Quanto ao restante, Knitter rede-
finiria a missão em termos mais ou menos pragmáticos, à semelhança de
John Macquarrie, que também advoga um "ecumenismo global" (1977:446)
e sugere que a missão cristã deveria restringir-se às áreas humanitárias da
saúde, educação, etc. (p. 445). Sobretudo, ela não deveria tentar converter
membros das assim denominadas religiões superiores em que a graça salví-
fica de Deus já está reconhecidamente operando (p. 445s). Pretensões ri-
valizantes à verdade fazem simplesmente parte do mosaico religioso mais
amplo e deveriam ser tratadas como tais.

Diálogo e missão
Focalizo agora a relação entre diálogo e missão. Ao discuti-la, tece-
rei, mais implícita do que explicitamente, uma crítica dos três modelos re-
cém delineados desde a perspectiva de um paradigma missionário pós-mo-
derno. Inicialmente, gostaria de expressar minha crença de que necessita-
mos uma teologia das religiões caracterizada por uma tensão criativa, que
vá além da alternativa estéril entre uma confortável reivindicação de cará-
ter absoluto e o pluralismo arbitrário (cf. KuscheI1984:238; Küng 1986:xvii-
xix). E talvez seja precisamente nesse aspecto que os diversos modelos
expostos acima se mostram deficientes. Todos são "assépticos" demais.
Todos funcionam demasiadamente bem. No final das contas, tudo - e qual-
quer um! - é levado em consideração e explicado. Nada está fora do lugar,
não há espaço para surpresas e charadas não-resolvidas. Mesmo antes que
se estabeleça o diálogo, as questões cruciais estão decididas em sua ínte-
gra. Nos vários modelos não existe, aparentemente, espaço para o duradou-
ro paradoxo de defender tanto o compromisso último com a própria religião
quanto a abertura genuína para a do outro, de constantemente vacilar entre
a certeza e a dúvida. Sempre - em todas essas abordagens - a tensão se
desfaz.
Talvez a teologia das religiões seja eminentemente uma área que de-
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 577

veríamos explorar ajudados pela poiesis e não pela theoria (cf. Stackhouse
1988, para uma exposição desses elementos). Foi isso que KIaus Kloster-
maier fez em seu cativante livro Hindu and Christian in Vrindaban (1969).
Pois tanto o diálogo quanto a missão se manifestam em um encontro de
corações e não de mentes. Estamos lidando com um mistério.
A primeira perspectiva requerida - e isso já é uma decisão do cora-
ção, não do intelecto - é aceitar a coexistência de crenças diferentes e
fazê-lo de boa vontade, sem relutância. É o que o Conselho Britânico de
Igrejas fez em 1977, em vista da existência de múltiplas crenças na Ingla-
terra (cf. Craknell e Lamb 1986:7). Não é possível dialogar com pessoas ou
dar-lhes um testemunho se nos ressentimos com sua presença ou os pontos
de vista que sustentam. Macquarrie (1977:4-18) identificou seis "fatores
formativos na teologia": experiência, revelação, Escritura, tradição, cultura
e razão. R. Pape (in Cracknell e Lamb 1986:77) - com justeza, creio eu-
adiciona um sétimo fator formativo - uma outra religião. Atualmente, pou-
cos cristãos, em qualquer parte do mundo, vivem numa situação em que a
coexistência com pessoas adeptas de outras religiões não constitua uma
parcela integrante de seu dia-a-dia. Mais do que alguma vez o foi desde a
vitória de Constantino sobre Maxêncio na ponte de Mílvio, em 312 d.C; a
teologia cristã é uma teologia do diálogo. Ela necessita do diálogo, também
por si mesma (cf, Moltmann 1975:12s.). O solilóquio, a fala monológica está
fora de questão, como o está a militância em qualquer de suas formas.
Parece que, mesmo hodiemamente, requer-se muito tempo para que
a natureza essencialmente dialógica da fé cristã sedimente e crie raízes. A
evolução de temas em uma série de conferências do CMI talvez aclare
minha afirmação. A Conferência da CMME na Cidade do México (1963)
empregou a formulação "O Testemunho dos Cristãos a Homens de Outras
Crenças". Um ano depois, em uma reunião da Conferência Cristã da Ásia
Oriental, realizada em Bangcoc, o tema foi "O Encontro Cristão com Ho-
mens de Outras Crenças". Três anos mais tarde, em Sri Lanka, aflorou a
palavra "diálogo"; agora o tema era "Os Cristãos em Diálogo com Ho-
mens de Outras Crenças". Em todos eles, os principais participantes ainda
eram identificados como cristãos que dialogam sobre ou com os outros. Só
em Ajaltoun (Líbano), em 1970, reconheceu-se a mutualidade do diálogo; o
tema foi "O Diálogo entre Adeptos de Crenças Vivas" (as mulheres, apa-
rentemente, ainda se encontravam fora do campo de visão dos dialogado-
res!). Em 1977, então, em Chiang Mai (Tailândia), o assunto foi "Diálogo
em Comunidade".
Em segundo lugar, o diálogo autêntico pressupõe compromisso. Ele
não implica o sacrifício da própria posição - nesse caso, ele seria supérfluo.
Uma abordagem "sem pré-conceito" não representa apenas uma impossi-
bilidade, mas, em verdade, subverteria o diálogo. As Diretrizes para o Di-
álogo com Adeptos de Crenças e Ideologias Vivas, do CMI, formula-o
578 - Rumo a uma missiologia relevante

assim: dialogar significa testemunhar nossas mais arraigadas convicções,


ao mesmo tempo que escutamos aquelas de nosso próximo (WCC, 1979:16).
Sem meu comprometimento com o evangelho, o diálogo se toma um mero
bate-papo; sem a presença genuína do próximo, ele se toma arrogante e
sem valor. É falso sugerir que um compromisso com o diálogo seja incom-
patível com uma posição confessional (cf. A. Wingate, ap. Cracknell e Lamb
1986:65).
Em terceiro lugar, o diálogo (e, tendo em vista nosso tema, a missão)
só é viável se procedermos com a crença de que - como insistiram D. T.
Niles, Max Warren e Kenneth Cragg - não estamos avançando para um
vácuo, de que vamos com a expectativa de encontrar o Deus que nos pre-
cedeu e está preparando pessoas no contexto de suas próprias culturas e
convicções (cf. Sharpe 1974:15s.). Deus já removeu as barreiras; seu Espí-
rito está constantemente operando de uma maneira que está além da com-
preensão humana (cf. ME 43). Não o temos, por assim dizer, em nosso
bolso, e não "o levamos" simplesmente a outras pessoas; ele nos acompa-
nha e também vem ao nosso encontro. Não somos os "possuidores", os
beati possidentes [possuidores bem-aventurados], contrapostos a "não-pos-
suidores", à massa damnata [massa condenada]. Somos, pois, donatários
da mesma graça, compartilhando do mesmo mistério. Aproximamo-nos, por-
tanto, de qualquer outra fé e de seus adeptos com reverência, descalçamo-
nos, uma vez que o lugar de que nos acercamos é sagrado (Max Warren,
ap. Cragg 1959:9s.). A natureza não-dialética da posição de Barth, sobretu-
do sua definição de religião como descrença e sua concepção de que mis-
são significa entrar em um vácuo, é, por conseguinte, inaceitável (cf, Krae-
mer 1961:356-358, que critica Barth, "o iniciador do pensamento dialético",
por seus argumentos não-dialéticos e racionalistas).
Do que foi exposto acima segue-se, em quarto lugar, que tanto o
diálogo quanto a missão só podem se concretizar em uma atitude de humil-
dade. Para os cristãos, isso deveria constituir uma obviedade, por dois mo-
tivos: a fé cristã é uma religião da graça (que se recebe gratuitamente) e
ela possui seu centro, em uma escala significativa, na cruz (que julga tam-
bém o cristão). É um valor permanente da teologia de Barth o fato de ela
nos ter ensinado que as linhas que separam a verdade da inverdade e a
justiça da injustiça não se encontram apenas entre o cristianismo e outras
crenças, mas perpassam igualmente o cristianismo. Há, pois, algo autenti-
camente cristão em uma atitude de humildade na presença de outras cren-
ças (cf. Cragg 1959:142s.; Newbigin 1969:15; Margulll974, passim; Baker
1986:156s.). Isso não constitui apenas uma expressão de arrependimento
pelos baixos índices alcançados nesse sentido pelos cristãos (por exemplo,
por causa da odiosa intolerância que pessoas cristãs, muitas vezes, mostra-
ram em relação a seguidores de outras crenças), mas porque tal atitude de
humildade é intrínseca a uma fé cristã autêntica. E, em última análise, é
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 579

quando somos fracos que somos fortes. Logo, a palavra que, talvez, melhor
caracterize a igreja cristã em seu encontro com outras crenças é vulnera-
bilidade (Margull 1974). Não podemos abordar pessoas quando estamos
autoconfiantes e à vontade, mas apenas quando nos contradizem e estamos
sem norte. N.-P. Moritzen o expressa desta maneira:
Ninguém nega que Jesus praticou o bem generosamente, mas isso, em abso-
luto, salvou-o de ser crucificado. É da essência (da fé cristã) necessitar da
testemunha débil, do representante impotente da mensagem. As pessoas a
serem conquistadas e salvas deveriam ter sempre, por assim dizer, a possibi-
lidade de crucificar a testemunhado evangelho. (cit. ap. Aring 1971:143).
Mas se faz mister uma restrição. Nossa humildade e nosso arrepen-
dimento não podem ser pretexto para que nos abandonemos masoquista-
mente a um acesso de autoflagelação ou que usemos nossa penitência como
uma nova ferramenta para manipular a outros (cf. Cracknell e Lamb 1986:9).
Isso seria assumir uma posição subcristã. Verdadeiro arrependimento e hu-
mildade são experiências purificadoras que levam à renovação e a um com-
promisso renovado. Humildade também significa mostrar respeito pelas pes-
soas que nos antecederam na fé, por aquilo que nos legaram, mesmo que
tenhamos motivos para estar profundamente embaraçados com seus vieses
racistas, sexistas e imperialistas. A questão é que não existe garantia algu-
ma de que venhamos a nos sair melhor que eles (cf. Stackhouse 1988:215).
Iludimo-nos ao pensar que só podemos ser respeitosos para com uma outra
fé quando menoscabamos nossa própria.
Em quinto lugar, tanto o diálogo quanto a missão deveriam reconhe-
cer que as religiões são mundos em si, com seus próprios eixos e estruturas;
elas olham para direções diferentes e formulam perguntas radicalmente di-
ferentes (cf. Kraemer 1961:76s; Newbigin 1969:28, 43s.; Gensichen
1989: 197). Isso significa, entre outras coisas, que o evangelho cristão se
relaciona diferentemente com o islamismo do que com hinduísmo, o budis-
mo, etc. (Ratschow 1987:496). Nesse aspecto, tanto o modelo de consuma-
ção quanto o relativista ainda refletem o paradigma moderno, que tende a
atribuir pouca relevância a essas diferenças. Elas são niveladas e harmoni-
zadas como ocorreu, de forma clássica, no Parlamento Mundial das Religi-
ões (cf. Barrows 1893). O que geralmente acontece é que - de modo cons-
ciente ou inconsciente - se toma o cristianismo como ponto de partida. Os
"elementos" da religião cristã são generalizados até se encaixarem nos fe-
nômenos de outras religiões e, assim, produzirem um espécie de cópia redu-
zida do cristianismo (cf. Rütti 1972: 106). Isso faz com que as outras religi-
ões sejam pouco mais do que ecos da voz do próprio cristianismo (cf. U.
Schoen, referência ap. Gensichen 1989:197) e denota pouca consideração
pelo fato de que elas estão apresentando suas próprias interrogações ao
cristianismo (Ratschow 1987:498s., baseado em H. Bürkle; ver também
Gensichen 1989, passim).
580 - Rumo a uma missiologia relevante

Essa concepção domina sobretudo onde se entende o cristianismo


como a consumação de outras religiões, por exemplo, na noção de "cristãos
anônimos" de Rahner. Ela aparece igualmente na encíclica Suam Ecclesi-
am de Paulo VI (1964), que cria a impressão de que as outras religiões
estariam dispostas em círculos concêntricos ao redor da Igreja Católica,
que representa o centro. O que constitui uma religião não-cristã, nesse mo-
delo, é sua "distância" em relação ao cristianismo - em especial, à Igreja
Católica. Vê-se a Cristo agindo mística, cósmica e anonimamente em ou-
tras religiões, em graus diferentes, mas sempre e ao final como a consuma-
ção dessas religiões. Vale a pena atentar para a crítica mordaz que Küng
move contra essa idéia em sua totalidade. A noção do cristianismo anônimo,
diz ele, é uma tentativa de empurrar toda a humanidade portadora de boa
vontade para dentro da "santa Igreja Romana" pela porta dos fundos, pre-
servando-se, assim, a idéia de que "não há salvação fora da igreja". Entre-
mentes, porém, os judeus, muçulmanos e pessoas adeptas de outras cren-
ças têm perfeita consciência de que não são "anônimos". Em conseqüên-
cia, Küng descarta, na íntegra, essa noção como uma pseudo-solução
(1977:98).
Parece que Knitter, Hick e outros são, pelo menos, mais honestos
por, explicitamente, dispensarem a idéia de qualquer necessidade de Cristo
e da igreja. Mas o "pluralismo unitivo" de Knitter e seu postulado de que as
religiões mundiais são "mais complementares que contraditórias" (1985:220),
por mais atraente que seja como hipótese, é a-histórico e, em última análise,
não difere substancialmente das posições expressas pelos filósofos iluminis-
tas (cf. o resumo em Nürnberger 1970:42). A compatibilidade de religiões
diferentes é um construto integralmente racionalista, como o é a idéia do
"teocentrismo" de Knitter. De uma outra perspectiva, sua busca afanosa
pelo holismo na religião pode, efetivamente, ser vista como pós-moderna. É
significativo, porém, que, desde 1985, Knitter se tenha sentido forçado a
descartar inclusive sua ênfase no teocentrismo. Agora ele reconhece ape-
nas "um locus compartilhado de experiência religiosa" (1987: 186) e opta pelo
"soteriocentrismo" em vez do teocentrismo (p. 187). O que impedirá que
avance ainda mais e termine nas cercanias do movimento da Nova Era?
Um paradigma pós-moderno extremo pode decidir-se por um holis-
mo excessivo, por uma versão moderna do Parlamento Mundial das Religi-
ões (à moda de Capra, por exemplo). Ou pode escolher, conscientemente, o
caminho do pluralismo, em que pretensões antagônicas à verdade simples-
mente fazem parte do mosaico, onde não mais existe algo como a ortodoxia,
onde todos somos hereges na acepção original da palavra (cf. Newbigin
1986:16). Em ambos os casos, estaríamos optando por uma concepção to-
talmente instrumentalista de religião - as várias crenças ou estão cultural-
mente determinadas, ou são selecionadas irracional e arbitrariamente, ou
reunidas à maneira do "faça-o você mesmo". Mas quando tudo possui a
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 581

mesma validade, nada, em verdade, importa mais. Onde isso se verifica, já


não mais podemos falar seriamente de uma legítima mudança de paradig-
ma; a tensão criativa com a tradição - tão fundamental para a idéia de
mudanças de paradigma - desapareceu. Trivializou-se por completo a questão
da verdade, e a própria vida foi privada de sua seriedade última (cf. Küng
1986:xviii; veja também Bloom 1987). A religião autêntica, todavia, é com-
plexa demais para encaixar-se em tal constelação (cf. Josuttis 1988; Dae-
cke 1988:629s.).
Em sexto lugar, o diálogo não é um substituto nem um subterfúgio
para a missão (cf. Scherer 1987:162). Não se deve vê-los nem como idên-
ticos nem como irrevogavelmente opostos. Constitui uma falácia sugerir
que, para haver diálogo, é necessário excluir a missão, que o compromisso
com o diálogo é incompatível com o compromisso com a evangelização. O
Encontro da CMME de San Antonio formulou-o da seguinte forma: "Afirma-
mos que o testemunho não impede o diálogo, mas o convida, e que o diálogo
não impede o testemunho, mas o estende e aprofunda" (I.27; WCC 1990:32).
A correspondência entre diálogo e missão é deveras impressionan-
te (cf. também WCC 1979: 11). Ambos registraram, com o passar do tempo,
uma transição "da ignorância, passando pela arrogância, até a tolerância"
(Küng 1986:20-24). Nem o diálogo nem a missão estão trafegando em uma
rua de mão única; nenhum dos dois é inflexivelmente dogmático, intolerante
ou manipulador. Em ambos, o compromisso com a fé se faz acompanhar do
respeito pelos outros. Nem um nem outro pressupõem uma "mente comple-
tamente aberta" - o que, de qualquer modo, constitui uma impossibilidade.
Em ambos os casos, estamos testemunhando nossas mais profundas con-
vicções ao mesmo tempo que escutamos as de nossos próximos (cf. WCC
1979: 16). Nos dois casos, somos retirados "da segurança de (nossas) pró-
prias prisões" (Klostermaier 1969:103).
Mas as diferenças entre diálogo e testemunho também são funda-
mentais. Se Knitter (1985:222) afirma que se terá alcançado o objetivo da
missão quando o anúncio do evangelho tiver feito do cristão um cristão
melhor e do budista um budista melhor, ele pode estar descrevendo um dos
objetivos do diálogo, mas certamente não da missão. É verdade que o
cristianismo redescobriu - com atraso - sua natureza integralmente dialógi-
ca; essa redescoberta, porém, não deveria ser feita a expensas de sua natu-
reza fundamentalmente missionária. Hoje em dia, todas as principais orga-
nizações e denominações cristãs do mundo confirmam essa natureza missi-
onária inerente ao cristianismo. Já se citaram com freqüência as famosas
palavras de AG 2 sobre esse ponto. Mas inclusive um "assim chamado
documento antimissionário" (Gómez 1986:32) como NostraAetate diz (pa-
rágrafo 2) que "(a igreja) anuncia e vê-se de fato obrigada a anunciar inces-
santemente o Cristo que é caminho, verdade e vida (Jo 14,6)".
Ouvem-se vozes similares provindas das fileiras do CMI. Suas Dire-
582 - Rumo a uma missiologia relevante

trizes sobre o Diálogo (WCC 1979) se empenham sobremaneira para es-


tabelecer, de uma vez para sempre, a legitimidade do diálogo; mas mesmo
ali não há dúvida quanto à vocação da igreja de prestar seu testemunho
sobre a vida em Cristo. A Seção I.1 da Assembléia de Nairóbi (1975) afir-
ma, por exemplo: "Confessamos intrepidamente a Cristo como único Salva-
dor e Senhor" e expressa "confiança profunda (...) no poder do evangelho"
(WCC 1976:43). E em ME, contudo, que se assevera inequivocamente o
compromisso do CMI com a missão. Em ME 6, lemos: "No próprio cerne
da vocação da Igreja no mundo encontra-se a proclamação do reino de
Deus inaugurado em Jesus o Senhor, crucificado e ressucitado". De novo,
ME 42 afirma que "os cristãos devem a mensagem da salvação de Deus
em Jesus Cristo a cada pessoa e a cada povo". A Conferência de San
Antonio se baseou nessa afirmação, declarando que "o Deus Triúno, Pai,
Filho e Espírito Santo, é um Deus em missão, a fonte e o mantenedor da
missão da igreja" (I.1, WCC 1990:25). Em outra passagem (1.26), diz-se
que "não podemos apontar outro caminho de salvação que não seja Jesus
Cristo" (WCC 1990:32).
É necessário salientar tais afirmações, atualmente, em um ambiente
no qual, por um lado, a familiaridade nos privou do frescor e da vitalidade do
evangelho, deixando-nos apenas uma pertinaz lealdade a ele (cf. C. Lamb
ap. Cracknell e Lamb 1986:130), ou onde, por outro lado, as pessoas cristãs
são admoestadas, inclusive por irmãs na fé, de que é inapropriado convidar
adeptos de outras crenças ou pessoas sem crença a depositar sua confian-
ça em Deus mediante Cristo. A fé cristã não pode abrir mão da convicção
de que Deus, ao enviar Jesus Cristo para o nosso meio, encetou um modus
operandi definitivo e escatológico e está oferecendo à humanidade o per-
dão, a justificação e uma vida nova de júbilo e serviço, o que, por seu turno,
requer uma resposta humana na forma de conversão. Esses elementos ina-
lienáveis da missão tomaram-se abundantemente claros em nossos capítu-
los sobre o caráter missionário da igreja primitiva.
Em sétimo lugar, contudo, não se deve interpretar essa nossa suges-
tão no sentido do "continuemos a fazer o que estávamos fazendo", como se
apenas tivéssemos que seguir proclamando a "mesma, velha estória". Pelo
contrário, é preciso compreender as observações precedentes dentro do
contexto integral desta seção. Para tanto, são necessários mais alguns acrés-
cimos, partindo de observações feitas anteriormente neste capítulo, sobre-
tudo nas seções sobre "Missão como igreja-com-os-outros" e "Missão como
mediação da salvação".
Grande parte do debate sobre a relação entre a fé cristã e outras
crenças perdeu sua clareza pela permanente questão: as outras religiões
também "salvam"? Da forma como geralmente é formulada, ela diz respei-
to tão-somente a algo que sucede com indivíduo depois da morte e sugere
que as pessoas aderem a uma determinada religião para que tenham garan-
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 583

tida essa salvação, que as religiões se expandem geográfica e numerica-


mente e fim de assegurar tal salvação a um número cada vez maior de
pessoas. Mas eu repudio a noção de que a religião se limite a isso, de que
essa seja a única razão por que alguém deveria tomar-se cristão. Tal per-
cepção a-histórica e metaterrenal da salvação é espúria, mormente quando
se agrega que tudo que a pessoa precisa fazer para obtê-la é aderir a um
determinado sistema de dogmas, ritos e leis.
A conversão, no entanto, não é a adesão a uma comunidade visando
à "salvação eterna"; trata-se, antes, de um câmbio de comprometimento,
em que se aceita Cristo como Senhor e centro da vida. Um cristão não é
meramente uma pessoa que apresenta maiores chances de ser "salva",
mas uma pessoa que aceita a responsabilidade de servir a Deus nesta vida
e de promover o reinado de Deus em todas as suas formas. A conversão
envolve purificação pessoal, perdão, reconciliação e renovação para que
nos tomemos partícipes nas obras poderosas de Deus (cf. Cragg 1959:142s.;
Newbigin 1969:111s.). A pessoa crente é, afinal de contas, um membro da
igreja, que constitui um sinal do reinado de Deus, sacramentum mundi,
símbolo do novo mundo de Deus e antecipação do que Deus quer que toda
a criação seja.
Chego à minha última observação sobre diálogo e missão em um
novo paradigma. Ela é, em realidade, uma pergunta: como mantemos a ten-
são entre ser missionário e dialógico? De que maneira combinamos a fé no
Deus que se revelou de modo singular em Jesus Cristo com a confissão de
que Deus não se permitiu ficar sem testemunha? Se formos honestos, tam-
bém conosco mesmos, encontramos essa tensão para onde quer que olhe-
mos. Nós a observamos nos documentos do Vaticano lI, por exemplo. Duas
afirmações, que parecem ser mutuamente incompatíveis, nos falam a partir
desse documentos - a vontade salvífica universal de Deus e a possibilidade
de salvação fora da igreja versus a necessidade da igreja e da atividade
missionária. A mesma tensão não-resolvida emerge de ME, que diz, por um
lado, que a proclamação do reinado de Deus em Cristo integra o âmago da
vocação da igreja no mundo (ME 6) e, por outro lado, que "o Espírito de
Deus está agindo constantemente de maneiras que ultrapassam a compre-
ensão humana e em lugares onde menos o esperamos" (ME 43). Ela afIora
de forma ainda mais clara na Seção I de San Antonio, onde se justapõem
imediatamente duas convicções: "Não podemos apontar outro caminho de
salvação que não seja Jesus Cristo; ao mesmo tempo, não podemos estabe-
lecer limites para o poder salvífico de Deus" (1.26; WCC 1990:32). O rela-
tório segue reconhecendo publicamente que existe aqui uma tensão e afir-
ma: "Nós valorizamos essa tensão e não tentamos resolvê-la" (1,29; WCC
1990:33).
Tal linguagem significa admitir que não temos todas as respostas e
que estamos dispostos a viver no contexto de um conhecimento penúltimo,
584 - Rumo a uma missiologia relevante

que consideramos nosso envolvimento no diálogo e na missão como uma


aventura, que estamos preparados para correr riscos e ante vendo surpresas
à medida que o Espírito nos guia para uma compreensão mais plena. Isso
não significa optar pelo agnosticismo, mas pela humildade. Trata-se, porém,
de uma humildade ousada - ou de uma ousadia humilde. Conhecemos ape-
nas em parte, mas conhecemos. E cremos que a fé que professamos é tanto
verdadeira quanto justa e deve ser proclamada. Não o fazemos, todavia,
como juízes ou advogados, mas como testemunhas; não como soldados,
mas como mensageiros da paz; não como vendedores persuasivos, mas
como embaixadores do Senhor Servo.

Missão como teologia"

Missão marginalizada
Nos primeiros capítulos deste estudo, tentei demonstrar que é impos-
síveller o Novo Testamento sem levar em consideração que a maior parte
dele foi conscientemente escrita dentro de um contexto missionário. Menci-
onei, por exemplo, a sugestão de Martin Kâhler ([1908] 1971: 189s.) de que,
no século 1, a teologia não constituía o luxo de uma igreja que conquistava o
mundo, mas era gerada pela situação emergencial em que se encontrava a
igreja em missão. Nessas circunstâncias, a missão tornou-se a "mãe da
teologia". À medida, porém, que a Europa se cristianizava e o cristianismo
se tomava a religião estabelecida no Império Romano e além dele, a teolo-
gia perdeu sua dimensão missionária.
Em todo o período pré-moderno, entendia-se a palavra "teologia" ba-
sicamente de dois modos (cf. Farley 1983:31). Primeiro, ela era o termo
empregado para designar uma cognição efetiva e individual de Deus e das
coisas relacionadas com Deus. Nesse sentido, era um habitus, um hábito
da alma humana. Segundo, essa palavra designava uma disciplina, um em-
preendimento autoconsciente de estudo. Durante muitos séculos, havia ape-
nas uma disciplina teológica, sem subdivisões. Existiam, naturalmente, dis-
tinções, mas todas elas se referiam a esse "hábito" uno - a teologia, o
conhecimento de Deus e das coisas relacionadas com Deus (p. 77). Sob o
impacto do iluminismo, no entanto, essa disciplina única se subdividiu, inici-
almente, em duas áreas: teologia como know how prático necessário para o
trabalho clerical e teologia como uma ocupação técnica e erudita entre ou-
tras, ou, se quisermos, teologia como prática e como teoria (p. 39). A
partir disso, a teologia evoluiu, gradualmente, para aquilo que Farley (p. 74-
80,99-149) chama de "modelo quádruplo": as disciplinas da Bíblia (texto),
da história eclesiástica (história), da teologia sistemática (verdade) e da teo-
logia prática (aplicação). Cada uma destas possuía seu paralelo nas ciências
seculares. Sob a influência de Schleiermacher, esse modelo criou raízes, não
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 585

apenas na Alemanha, mas também em outras lugares; em realidade, ele se


tornou praticamente universal nas faculdades e seminários de Teologia pro-
testantes e na formação teológica da Europa, dos Estados Unidos e alhures.
A teologia "prática" se tomou um mecanismo para manter a igreja
funcionando, enquanto as outras disciplinas constituíam exemplos de "ciên-
cia pura". Os dois elementos se mantinham conectados pelo que Farley (p.
85-88) chama de "paradigma clerical". O horizonte da teologia, em ambos
os casos, era a igreja ou, no máximo, a cristandade. E a teologia era, em
geral, completamente amissionária. Isso se manteve em vigência até mes-
mo depois do século 15, quando a Igreja Católica encetou um vigoroso pro-
grama missionário no exterior. No protestantismo, a situação se mostrava
ainda mais deplorável. Um exemplo característico disso é a declaração fei-
ta, em 1652, pelo corpo docente da Faculdade de Teologia luterana de Wit-
tenberg (cit. ap. Schick 1943:46), segundo a qual a igreja não tinha, em
absoluto, qualquer tarefa ou vocação missionária. No mundo reformado,
Voetius foi o primeiro a desenvolver uma "teologia da missão" abrangente
(cf. Jongenee 1989), mas ela teve pouco efeito duradouro nas gerações
subseqüentes. A missão representava algo totalmente periférico na igreja e
não despertava qualquer interesse teológico digno de menção. O aspecto
"teórico" da teologia se dirigia quase que unicamente àrealidade da revela-
ção divina ou à anuência no ato da fé que os estudantes tinham de absorver;
o componente "prático" concentrava-se na idéia do ministério como serviço
à igreja institucional. Nos dois casos, ela permanecia de todo provinciana e
domesticada. Isso valia inclusive para os novos seminários criados no Ter-
ceiro Mundo para a formação do clero nativo. Visto que a igreja "filial"
tinha de imitar a "matriz" nos mínimos detalhes e precisava reproduzir a
estrutura de congregações, dioceses, clero, etc., é óbvio que a teologia ali
ensinada fosse uma mera fotocópia da teologia européia. O foco estava,
uma vez mais, sobre a conceituação e a sistematização da fé em consonân-
cia com linhas que haviam sido traçadas de uma vez para sempre.
À medida que o empreendimento missionário se expandia e a realida-
de da missão e da existência de igrejas jovens nos "territórios de missão" se
impunha, cada vez mais, à igreja de origem, patenteou-se a necessidade de
fazer emendas. Mas como o "modelo quádruplo" era sacrossanto, precisa-
va-se buscar outros modos e meios de acomodar a idéia missionária. A
solução mais natural era anexar o estudo da missão a uma das quatro disci-
plinas existentes, em geral, à teologia prática. Nesse sentido (como em tan-
tos outros), Schleiermacher foi o pioneiro (cf. Myklebust 1955:84-89). Ele
apensou a missiologia à teologia prática e criou, assim, um modelo que ainda
é seguido em alguns círculos. Típica, por exemplo, é a concepção de Karl
Rahner, que define a teologia prática como a "disciplina teológica normativa
da auto-realização da igreja em todas as suas dimensões" (1966:50). Se-
gundo Rahner, pois, a missiologia - sendo uma dessas dimensões - constitui
586 - Rumo a uma missiologia relevante

o estudo da auto-realização da igreja em situações de missão (i. é, da igreja


que se expande), enquanto que a teologia prática propriamente dita estuda
a auto-realização da igreja existente (ou seja, da igreja que se edifica). O
objeto da reflexão teológica da missiologia, portanto, é, em essência, idênti-
co ao da teologia prática (para reflexões sobre essa concepção, veja tam-
bém Rütti 1974:292-296). À semelhança de Rahner, A. Seumois faz uma
distinção entre a missão e aquelas áreas em que a igreja já se encontra
"normalmente constituída" - a teologia prática tem a ver com o pastorado
da igreja, e a missiologia, com seu apostolado - mas de forma tal que o
apostolado tende claramente para o pastorado (referência ap. Kramm
1979:47,49).
Uma segunda estratégia foi defender a introdução da missiologia como
disciplina teológica independente (cf. Myklebust 1961:335-338). Isso, ob-
viamente, ia de encontro ao "modelo quádruplo" (um problema enfrentado
também por outras disciplinas teológicas "novas", sobremaneira pela ética
teológica, pelo estudo do ecumenismo e pela ciência da religião), mas, mes-
mo assim, essa alternativa conquistou terreno rapidamente. Charles Breck-
enridge foi a primeira pessoa a ser designada especificamente para lecionar
instrução missionária (no Seminário Teológico de Princeton, em 1836), em-
bora fosse, ao mesmo tempo, professor de teologia pastoral (cf. Myklebust
1955: 146-151). Isso, no entanto, não se verificou com a cadeira de teologia
evangelística (como era então denominada) de Alexander Duff, criada em
Edimburgo, em 1867; aqui se lecionava missiologia como uma disciplina
independente (cf. Myklebust 1955:19-24, 158-230). Mas foi, principalmen-
te, devido ao empenho infatigável de Gustav Warneck - professor da Uni-
versidade de Halle (1896-1910) - que a missiologia acabou sendo estabele-
cida como disciplina independente, não só como mero hóspede, mas com
direito a domicílio na teologia, segundo formulação do próprio Warneck (cit.
ap. Myklebust 1955:280).
A contribuição estupenda de Warneck produziu reações não apenas
em círculos protestantes, mas também católicos. A criação da primeira ca-
deira de missiologia em uma instituição católica - em 1910, na Universidade
de Münster (cf. Müller 1989:67-74) - foi influenciada, sem dúvida, pelos
desdobramentos que ocorriam no protestantismo e, mais especificamente,
pela contribuição de Warneck. O primeiro responsável por essa cadeira,
Josef Schmidlin, reconheceu, francamente, sua dívida para com Warneck,
enquanto que sublinhava sempre, ao mesmo tempo, as diferenças existen-
tes entre Warneck e ele (cf. Müller 1989:177-186). Logo em seguida, copi-
aram-se os exemplos de Warneck e Schmidlin em outros lugares, particu-
larmente devido ao enorme impacto causado pela Conferência Missionária
Internacional de Edimburgo, em 1910 (Myklebust 1957, passim). Com o
passar do tempo, algumas cadeiras de missiologia passaram a ser cadeiras
de cristianismo mundial, de teologia comparada, de teologia ecumênica, etc.;
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 587

criaram-se, porém, igualmente muitas novas cadeiras - especificamente


para a missiologia - não só no Ocidente, mas também no Terceiro Mundo,
sobretudo na África e na Ásia, de modo que existem, hoje, mais cadeiras e
departamentos de missiologia do que em qualquer período anterior (cf.
Myklebust 1989).
Toda essa evolução acabou sendo, na melhor das hipóteses, uma bên-
ção ambígua. Ela não garantiu que a missiologia tivesse agora um domicílio
legal na teologia. Instituíram-se cadeiras não porque a teologia fosse enten-
dida como intrinsecamente missionária, mas por pressão de sociedades mis-
sionárias ou (em especial, nos Estados Unidos) de estudantes ou, em alguns
casos, inclusive de governos (em Münster, criou-se a cadeira, pelo menos
em parte, porque o Ministério da Cultura alemão insistiu que os professores
de Teologia atentassem, em suas preleções, para o "sistema colonial" e,
especialmente, para as missões nos protetorados alemães [cf. Müller
1989:69; deveras, a primeira publicação maior de Schmidlin, após assumir a
cadeira de Münster, intitulava-se Die katholischen Missionen in den deut-
schen Schutzgebieten ("As missões católicas nos protetorados alemães"),
1913]). Tudo isso acarretou sérias conseqüências. A missiologia transfor-
mou-se no "Ministério das Relações Exteriores" da instituição teológica,
ocupando-se com o exótico mas, ao mesmo tempo, periférico. Outros teólo-
gos viam, muitas vezes, seus colegas missiólogos com indiferença, se não
com condescendência, sobretudo porque estes, freqüentemente, eram ex-
missionários aposentados que haviam trabalhado no "Taiti, em Teerã ou em
Timbuktu" (Sundkler 1968: 114). Concomitantemente, isso significava que
os outros professores se viam desobrigados de qualquer responsabilidade
em termos de reflexão sobre a natureza missionária da teologia (cf. Mit-
terhõfer 1974:65).
Tudo isso se complicou ainda mais quando os missiólogos principia-
ram a redigir sua própria enciclopédia teológica, pautada, evidentemente,
pelo "modelo quádruplo" (cf. Linz 1964:44s.; Rütti 1974:292). "Fundamen-
tos missionários" constituía um paralelo aos temas bíblicos, a "teoria da
missão" era uma analogia para a teologia sistemática, a história das missões
tinha seu correlato na história eclesiástica, e a prática missionária, na teolo-
gia prática. Quanto ao restante, a missiologia continuou existindo em es-
plêndido isolamento. Ao duplicar todo o campo da teologia, ela ratificou sua
imagem de apêndice dispensável; ela era uma ciência do missionário, para
o missionário.
Uma terceira abordagem, praticada mormente na Inglaterra - e, em
geral, denominada de integração - consistiu em abandonar o ensino da mis-
siologia como disciplina independente e esperar que as outras disciplinas
teológicas incorporassem a dimensão missionária à teologia como um todo.
Parece uma boa solução, mas ela revela uma série de defeitos graves. Por
exemplo, as professoras de outras disciplinas geralmente não estão sufici-
588 - Rumo a uma missiologia relevante

entemente conscientes da dimensão missionária inata de toda a teologia;


elas tampouco têm o conhecimento para prestar a devida atenção a essa
dimensão (cf. Myklebust 1961:330-335). O estudo de Cracknell e Lamb
(1986) ilustra bem as deficiências desse modelo.

De uma teologia da missão para uma teologia missionária


Nenhum dos três modelos - a incorporação a uma disciplina existen-
te, a independência ou a integração - teve êxito (embora se tenha de admitir
que, pelo menos na teoria, o terceiro modelo era, teologicamente, o mais
sólido; cf., porém, Cracknell e Lamb 1986:26). O problema fundamental,
naturalmente, não estava na pergunta pelo que era a missiologia, mas pelo
que era a missão. Onde se definia a missão quase exclusivamente em ter-
mos de salvação de almas ou de expansão eclesiástica, a missiologia só
poderia mesmo constituir a ciência do missionário e para o missionário, uma
disciplina prática (se não pragmática) que respondia a questão: "Como de-
vemos executar nossa tarefa?" Uma vez, porém, que não se compreendia a
igreja como sendo "missionária por sua própria natureza", a missão e, impli-
citamente, a missiologia permaneciam um acessório prescindível.
Por volta da década de 1960, todavia, aceitava-se, em geral, em to-
das as famílias confessionais, que a missão pertence à essência da igreja.
Para os protestantes, as datas cruciais são os encontros do CoMIn em Tam-
barame Willingen (1938 e 1952) e a assembléia do CMI em Nova Délhi, na
qual o CoMIn se integrou ao CMI. Para os católicos, o Vaticano 11 marcou
a ocasião em que a missão cessou de ser uma prerrogativa do papa (que
podia delegar essa responsabilidade a ordens e congregações missionárias)
e passou a constituir uma dimensão intrínseca da igreja em toda parte. É
evidente que isso influenciou profundamente a compreensão de missão e
missiologia. Não mais se percebia a igreja, primordialmente, como estando
contraposta ao mundo, mas como sendo enviada para dentro do mundo e
existindo por amor ao mundo. A missão não constituía mais meramente
uma atividade da igreja, mas expressava o âmago da igreja. Tudo isso era
aceito agora sem contestação. Na Conferência da CMME (1963) realizada
na Cidade do México, W. A. Visser't Hooft falou da missão como um teste
de fé para a igreja. Não era mais possível conceber a igreja exceto como
sendo chamada para fora do mundo e enviada para dentro do mundo. O
mundo não podia mais ser dividido em territórios "missionantes" e territórios
"missionários". O mundo todo era um campo de missão, o que significava
que também a teologia ocidental tinha de ser praticada em uma situação
missionária.
Foi com grande dificuldade que a teologia começou a incorporar a
nova percepção. Karl Barth conseguiu fazê-lo melhor do que a maioria dos
outros teólogos sistemáticos (cf., por exemplo, Barth 1956:725). O resultado
disso tudo se traduziu num avanço efetivo em relação à posição tradicional.
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 589

Ivan Illich o formulou em uma linguagem poética. Depois de definir a mis-


são como "o crescimento da Igreja Una, mas também como o crescimento
da Igreja humanamente sempre nova" (1974:5), ele define a missiologia
assim:
(ela é) a ciência sobre a Palavra de Deus como igreja em seu vir-a-ser; a
Palavra como igreja em suas situações limítrofes; a igreja como uma surpresa
e um enigma; a igreja em seu crescimento; a igreja (...) quando sua aparição
na história é tão nova que ela precisa esforçar-se para reconhecer seu passa-
do no espelho do presente; a igreja onde ela está grávida de novas revela-
ções para um povo em que ela alvorece (...) A missiologia estuda o cresci-
mento da igreja além de seus limites sociais, além das barreiras lingüísticas
em que ela se sente em casa, além das imagens poéticas com que instruiu
seus filhos (...) A missiologia, portanto, é o estudo da igreja como surpresa.
(p.6s).
Não podemos mais volver à posição anterior em que a missão era
periférica para a vida e o ser da igreja. É por causa de sua missão que a
igreja foi eleita, por causa de sua vocação que ela se tomou "o povo do
próprio Deus" (l Pe 2.9; cf. Linz 1964:33). A missão, por conseguinte, não
se pode definir unicamente em termos da igreja - mesmo da igreja que é
missão por sua própria natureza. A missão vai além da igreja. Illich está,
pois, correto quando afirma que a missão constitui "a continuação social da
encarnação", "a alvorada social do mistério", "a florescência social da Pa-
lavra em um presente sempre cambiante" (1974:5). Dizer que a igreja é, em
essência, missionária não significa que a missão esteja centrada na igreja.
Ela é missio Dei. É trinitária. Está mediando o amor de Deus Pai, que é pai!
mãe de todas as pessoas, quem quer que sejam e onde quer que estejam.
Ela é epifania, a concretização da presença no mundo de Deus Filho (cf.
AG 9). Está mediando a presença de Deus Espírito, que sopra onde quer,
sem que saibamos de onde vem e para onde vai (Jo 3.8). A missão é "a
expressão da vida do Espírito Santo, a quem não se impõem limites" (G. vau
der Leeuw, cito ap. Rosenkranz 1977:14). Portanto, a missão diz respeito
também ao mundo que se encontra além dos limites da igreja. Trata-se do
mundo que Deus ama e por cujo amor a comunidade cristã é conclamada a
ser sal e luz (lo 3.16; Mt 5.13 -cf. Linz 1964:33s.; NeillI968:76). O símbo-
lo "missão" não deveria, pois, ser confundido com ou confinado ao termo
"missionário"; o movimento missionário da igreja é apenas uma forma da
natureza extrovertida do amor de Deus (cf. Haight 1976:640). Missão signi-
fica servir, curar e reconciliar uma humanidade dividida e machucada.
Isso acarreta conseqüências profundas para nosso teologizar. Assim
como a igreja deixa de ser igreja se não for missionária, a teologia cessa de
sê-lo se perder seu caráter missionário (cf, Andersen 1955:60). A questão
crucial, então, não é simplesmente, ou apenas, ou sobretudo o que é igreja
ou o que é missão; a pergunta também envolve o seguinte: o que é a teologia
590 - Rumo a uma missiologia relevante

e de que trata (Conn 1983:7)? Necessitamos de uma pauta missiológica


para a teologia, não apenas de uma pauta teológica para a missão (p. 13),
porque a teologia, se entendida corretamente, não tem outra razão de existir
senão a de acompanhar criticamente a missio Dei. A missão, por conse-
guinte, deveria ser "o tema de toda a teologia" (Gensichen 1971 :250). Pode
designar-se a missiologia como a "disciplina sinótica" dentro da enciclopé-
dia mais ampla da teologia. Não se trata de a teologia ocupar-se com o
empreendimento missionário quando lhe parece apropriado fazê-lo; pelo
contrário, a missão é o assunto com que a teologia deve lidar. É vital para a
teologia estar em contato direto com a missão e o empreendimento missio-
nário (cf. Andersen 1955:60s.; Meyer 1958:224; Schmidt 1973: 193s.).
Cracknell e Lamb (1986:2) observam que, na primeira edição de seu
estudo (1980), não teriam ousado sugerir que, em qualquer currículo, hou-
vesse um espaço para o estudo da missiologia; agora, contudo, insistiriam
que todas as questões teológicas fossem pensadas a partir do ponto de vista
da teologia da missão. Somente assim é possível que aflore um "ensino
melhor" de qualquer matéria (p. 25s.). Numa linha similar, uma comissão de
revisão curricular da Andover Newton Theological School identificou um
"desejo corporativo quase geral de ampliar nossa perspectiva no sentido de
abarcar questões de caráter internacional" (Stackhouse 1988:25). Uma das
recomendações fundamentais da comissão foi relacionar "cada disciplina
especificamente à teologia da missão" (p. 25; cf. p. 49).
Dentro do amplo contexto da teologia, a missiologia exerce uma du-
pla função. A primeira está vinculada ao que Newbigin e Gensichen deno-
minaram de "aspecto dimensional" (cf. Gensichen 1971:80-95, 251s.). Aqui
a tarefa da missiologia, em livre parceria com outras disciplinas, é enfocar a
relação da teologia com o mundo. Teoricamente, pois - e desde a perspec-
tiva dimensional-, poder-se-ia dispensar uma disciplina independente cha-
mada missiologia. Ela deve permear todas as disciplinas e não constitui,
primordialmente, um "setor" da enciclopédia teológica (cf. Linz 1964:34s.;
Mitterhõfer 1974: 103). A idéia missionária é uma restauração da universa-
lidade que reside na profundeza da boa nova; como tal, ela deve infundir-se
em todo o currículo em vez de prover matéria para um curso especial (Fra-
zier 1987:47). Mas ainda é aconselhável, mesmo que apenas por motivos
práticos, ter uma disciplina separada chamada missiologia, pois, sem ela, as
outras disciplinas não são constantemente lembradas de sua natureza missi-
onária. A missiologia, portanto, acompanha as outras disciplinas teológicas
em seu trabalho; ela as questiona, e elas a questionam; ela necessita do diálo-
go com essas outras disciplinas, porque este é necessário para elas e para ela
própria (cf. Meyer 1958:224; Linz 1964:35; Schrnidt 1973: 195). É em termos
de seu aspecto dimensional que a missiologia desafia disciplinas específicas e
responde aos desafios delas (cf. Andersen 1955:59-62; Meyer 1958: 221-
224; Sundkler 1968:113-115; Gensichen 1971:252s.; Schmidt 1973:196-198).
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 591

Depois do que já se escreveu nos primeiros capítulos deste estudo,


seria supérfluo argumentar em favor da dimensão missionária do estudo do
Antigo e Novo Testamentos. O mesmo seria válido para a disciplina da
história eclesiástica. A igreja tem uma história somente porque Deus lhe
conferiu o privilégio de participar da missio Dei. Gerhard Ebeling sugeriu
que a história eclesiástica é a história da exegese das Escrituras. Mas não
seria igualmente apropriado vê-la como a história do envio de Deus? Em
vez disso, transformamo-la em uma série de histórias denominacionais,
em que cada denominação simplesmente escreve suas próprias crônicas,
esculpindo as faces de seus próprios "pais" em seu "poste totêmico particu-
lar" (Hoekendijk 1967a:349). Vista da perspectiva da missão, porém, a his-
tória eclesiástica faz.perguntas fundamentalmente distintas quanto a ques-
tões como o fracasso da igreja primitiva em acomodar o povo judeu; a atitu-
de frente a "hereges" depois de Constantino, tanto dentro quanto fora do
Império Romano; o desaparecimento, quase sem vestígios, da igreja em
regiões outrora altamente cristianizadas, como o Norte da África, a Arábia
e o Oriente Próximo, e a virtual imunização subseqüente do islamismo con-
tra o evangelho; a posição oficial da igreja diante da escravização de não-
cristãos; a cumplicidade da igreja no colonialismo e na subjugação e explo-
ração de outras raças; o paternalismo e o imperialismo que parecem ser
quase endêmicos entre os cristãos ocidentais; a identificação da igreja "ofi-
cial" com a elite e não com as classes marginalizadas da Europa do século
19; etc. A pergunta que se impõe é a seguinte: não foi por que se negou a
ver essas e outras questões de um ponto de vista missiológico que a igreja
do Ocidente ainda é - segundo palavras de M. Austin (cit. ap. Cracknell e
Lamb 1986:87) - uma igreja de classe média do século 19 lutando para se
encontrar no século 20 às vésperas do terceiro milênio?
Perguntas similares podem formular-se à teologia sistemática. Du-
rante mais de 1.500 anos, o único parceiro de diálogo da teologia sistemática
foi a filosofia. Mas como ela pode dar-se o luxo, no mundo contemporâneo,
de ignorar as ciências sociais? Mais ainda, como ela se permite desconside-
rar ideologias anticristãs e as crenças de pessoas adeptas de outras religi-
ões? Um questionamento igualmente crítico é como a teologia sistemática
do Ocidente pode continuar a agir como se fosse universalmente válida e
descartar a contribuição indispensável ao pensamento teológico oriunda do
Terceiro Mundo? Deveras, como a teologia sistemática pode mostrar-se
cega a seu próprio caráter inerentemente missionário? Se ela desconhece a
pergunta "Por que missão?", também ignora, implicitamente, as questões
"Por que a igreja" e "Por que, inclusive, o evangelho?".
E existe ainda a dimensão missionária da teologia prática. Sem essa
dimensão, a teologia prática toma-se míope, ocupando-se unicamente com
o estudo da auto-realização da igreja quanto à sua pregação, catequese,
liturgia, ministério de ensino, pastorado e diaconato, em vez de ter seus
592 - Rumo a uma missiologia relevante

olhos abertos para um ministério no mundo fora dos muros eclesiásticos, de


desenvolver uma hermenêutica da atividade missionária, de alertar uma teolo-
gia e uma igreja domesticadas para o mundo lá fora, um mundo que está
sofrendo e é amado por Deus.
Além do aspecto dimensional, a missiologia precisa atentar para o
aspecto intencional da missão. Isso não significa apenas que a missiologia
deve apresentar a igreja do Ocidente ao Terceiro Mundo e preparar "espe-
cialistas" que possam trabalhar lá. Rütti (1974:304) tem razão ao afirmar
que a igreja e a missão ocidentais deveriam superar seu congênito "tiers-
mondisme" [terceiro-mundismo], que logo pensa no que pode fazer pelos
"menos afortunados". Elas deveriam descobrir que inculturação, libertação,
diálogo, desenvolvimento, pobreza, ausência de fé, etc. não representam
apenas problemas para igrejas do Terceiro Mundo, mas constituem também
questionamentos a elas mesmas em seu próprio contexto. A igreja deveria
reconhecer, porém, que é impossível refletir teológica e praticamente sobre
esses desafios se ela, ao mesmo tempo, não alertar a si e sua "clientela"
para as realidades do Terceiro Mundo. E, em essência, o mesmo se aplica
para as pessoas que fazem teologia no Terceiro Mundo. Para a comunidade
cristã inteira - igrejas do Primeiro, Segundo e Terceiro Mundos - missiolo-
gia significa globalização. Mas para que se possa alcançá-la, ela precisa de
especificidade, concretização. Só mediante uma missiologia in loco pode-
mos servir à missiologia oecumenica (cf. Jansen Schoonhoven 1974a:21;
cf. Mitterhõfer 1974: 102s.).

o que a missiologia pode e não pode fazer


A missiologia tem, pois, uma tarefa dupla: em relação à teologia e em
relação à práxis missionária. É possível elucidá-lo ainda de outra maneira.
Quanto à primeira, dentro do contexto das disciplinas teológicas, a
rnissiologia desempenha uma função crítica ao desafiar continuamente a
teologia a ser theologia viatorum [dos que estão a caminho], i. é, ao refle-
tir sobre a fé, a teologia deve acompanhar o evangelho em suajomada pelas
nações e através dos tempos (Jansen Schoonhoven 1974a: 14; Mitterhõfer
1974: 101). Nesse papel, a missiologia age como um "incômodo" na casa da
teologia, gerando inquietação e resistindo à complacência, opondo-se a qual-
quer impulso eclesiástico de autopreservação, a qualquer desejo de perma-
necer o que somos, a toda inclinação ao provincianismo e ao paroquialismo.
Ela se opõe a qualquer fragmentação da humanidade em blocos regionais
ou ideológicos, a qualquer exploração de alguns setores da humanidade pe-
los poderosos, a todo imperialismo religioso, ideológico ou cultural e a qual-
quer exaltação da auto-suficiência do indivíduo sobre outras pessoas ou
sobre outras partes da criação (cf. Linz 1964:42; Gort 1980a:60).
A tarefa da missiologia é, ademais, acompanhar criticamente o em-
preendimento missionário, escrutinar seus fundamentos, objetivos, atitudes,
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 593

mensagens e métodos - não à distância segura de um espectador, mas em


um espírito de co-responsabilidade e de serviço à igreja de Cristo (Barth
1957: 112s.). A reflexão missiológica é, pois, um elemento vital na missão
cristã - ela poderá fortalecê-la e purificá-la (cf. Castro 1978:87). Visto que
a missão tem a ver com a relação dinâmica entre Deus e a humanidade, a
missiologia, conscientemente, exerce sua tarefa desde uma perspectiva de
fé. No amplo campo da missiologia, pode debater-se qualquer ponto de vis-
ta; a perspectiva da fé, contudo, não é negociável (cf. Oecumenische inlei-
ding 1988:19s.).
A perspectiva da fé não significa que o missiólogo possa, através de
uma exegese cuidadosa das Escrituras, ter acesso a "leis" bíblicas da mis-
são que determinam, em detalhes, como a missão deve ser levada a cabo.
Não convém tratar o presente e o futuro simplesmente como extensão do
que as "leis" da missão, reveladas nas Escrituras ou na tradição, estabele-
ceram, uma vez e para sempre, que fosse a missão (cf. Nel 1988: 182s.,
187). Essa abordagem tradicional trata a práxis missionária como se fosse
muda, submetida a um "controle remoto", como se pudesse dar respostas
somente a estímulos provenientes de uma história há muito transcorrida,
como se fosse a "aplicação" do que se fixou desde a eternidade.
Isso nos leva, segundo, à responsabilidade que a missiologia tem de
interagir com a práxis missionária. A missão constitui uma realidade inter-
subjetiva em que as missi6logas, as missionárias e as pessoas entre as
quais trabalham são todas parceiras (NelI988: 187). Essa realidade da prá-
xis missionária encontra-se em tensão criativa com as origens da missão,
com o texto bíblico e com a história do engajamento missionário da igreja. É
inapropriado, porém, interpretar as origens divinas da missão e sua realiza-
ção histórica como oponentes ou rivais (p. 188). Pelo contrário, "a fé e a
missão concreta e histórica, a teoria e a práxis se determinam reciproca-
mente" (Rütti 1972:240) e dependem uma da outra. A preocupação da mis-
siologia atual será a elucidação contextual da relação entre Deus, o mundo
de Deus e a igreja de Deus (Verstraelen 1988:438). Ela constitui, se assim o
quisermos formular, um "diálogo" entre Deus, o mundo de Deus e a igreja
de Deus, entre o que afirmamos ser a origem divina da missão e a práxis
com que nos deparamos atualmente.
Nessa tensão dinâmica, o texto e o contexto permanecem separados.
Não nos é possível, de maneira fundamentalista, colocar o contexto na ca-
misa-de-força do que o texto nos parece dizer, nem tratar o texto, à moda de
um teste de Rorschach, como uma mancha de tinta desprovida de normas
para dentro da qual projetamos nossas interpretações, contextualmente de-
rivadas, do que a missão deveria ser (cf. Stackhouse 1988:217s.). Tradicio-
nalmente, o primeiro perigo constituía o maior. Hoje em dia, o segundo é
mais real. Trata-se do perigo do contextualismo, já discutido na seção sobre
"Missão como contextualização". Não nos é permitido, no entanto, conver-
594 - Rumo a uma missiologia relevante

ter, sem mais nem menos, o contexto no texto. A tarefa da missiologia não
é puramente pragmática. Sua tarefa não reside na mera manutenção da
operação missionária. Seu objetivo primordial não é recrutar candidatos para
o serviço missionário ou sancionar projetos missionários existentes - nossas
estimadas "missões e missõezinhas" (Hoekendijk 1967a:299). Em verdade,
foi assim que se viam, muitas vezes, a missiologia e o papel do missiólogo;
este recebia um espaço no corpo docente, principalmente para gerar inte-
resse pela "idéia missionária" e, onde se fizesse necessário, tentar reverter
o quadro de interesse minguado pela missão. E como isso constituía a mais
importante responsabilidade do missiólogo, a missiologia podia existir com
uma base teológica mínima, suficiente apenas para manter "as coisas an-
dando" (cf. Mitterhõfer 1974:99). Mas onde esse é o caso, as missiólogas
não deveriam surpreender-se ao descobrir que as questões missionárias
efetivamente relevantes estão sendo abordadas fora do departamento de
missiologia (cf. Hoekendijk 1967a:299; Rütti 1972:227). A teologia (e isso
inclui, naturalmente, a missiologia), porém, não é, em si, proclamação da
mensagem, mas reflexão sobre essa mensagem e sua proclamação. Ela,
em si, não medeia a visão missionária, mas a examina criticamente (cf.
Barth 1957:102-104). A missiologia, como tal, não pode resultar em um
envolvimento missionário (p. 111).Em resumo, uma visão missionária é apre-
endida, não é ensinada (Scherer 1971:149).
A mudança para uma base subjetivista da missão redundará, pois, em
um completo relativismo. Existem critérios que nos viabilizam uma avalia-
ção e uma crítica do contexto. Provavelmente, não será fácil encontrar
critérios com que todos concordemos, mas é preciso tentá-lo. Stackhouse
(1988:9) sugere que, uma vez que podemos ter alguma perspectiva de saber
algo confiável sobre Deus, a verdade e ajustiça em um nível que nos permi-
ta reconhecê-lo em concepções e práticas de outras pessoas, deveríamos
julgar qualquer contexto estabelecendo o que é e o que não é divino, verda-
deiro e justo naquele contexto. Stackhouse hesita em tomar o contexto a
autoridade básica (p. 26). Isso me parece correto; são as Escrituras (e, se
quisermos, a tradição) que vinculam a nós e nosso contexto com a igreja e a
missão de todas as épocas, e não podemos abrir mão disso. Igualmente,
porém, não podemos deixar de fundamentar nossa fé e nossa missão em um
contexto concreto e local. Talvez pudéssemos, pois, como estratégia (mes-
mo que se limite a isso), parar de falar sobre o que é prioritário, texto ou
contexto, e concentrar-nos na natureza intersubjetiva do empreendimento
missionário e da reflexão missiológica sobre ele.
Talvez a formulação de van Engelen o sintetize da melhor forma. Ele
afirma que o desafio da missiologia é "conectar o sempre-relevante evento-
Jesus, de dois milênios passados, ao futuro do prometido reino de Deus para
que se possam tomar iniciativas pertinentes no presente" (1975:310). Dessa
forma, encetar-se-ão novas discussões sobre soteriologia, cristologia, ec1e-
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 595

siologia, escatologia, criação e ética, e à missiologia se concederá a oportu-


nidade de dar sua contribuição própria e ímpar (cf. Oecumenische inleiding
1988:474).
Isso continua sendo uma empresa de risco. Qualquer ramo da teolo-
gia - inclusive a missiologia - é fragmentário, frágil e preliminar. Não existe
algo assim como missiologia e ponto final. O que há é a missiologia em
esboço. Missiologia semper reformanda est. Somente assim a missiologia
pode tomar-se não apenas ancilla theologiae, "a serva da teologia" (cf.
Scherer 1971:153), mas também ancilla Dei mundi, "a serva do mundo de
Deus".

Missão como ação em esperança

Fechado o "escritório da escatologia"


Emst Troeltsch afirmou, certa vez, sobre a teologia (liberal) do século
19: "O escritório da escatologia está fechado na maior parte do tempo" (cit.
ap. Wiedenmann 1965:11). Uma das características mais singulares da teo-
logia do século 20 constitui a redescoberta da escatologia, primeiro no pro-
testantismo, depois no catolicismo. Em nosso século, o "escritório da esca-
tologia" tem trabalhado horas extras.
Não deveria ser motivo de surpresa que a recuperação da dimensão
escatológica se manifeste de forma especialmente clara em círculos missi-
onários. Desde os primórdios da igreja cristã, parece ter havido uma afini-
dade peculiar entre o empreendimento missionário e as expectativas de uma
mudança radical no futuro da humanidade.
Mas apenas nos dias atuais começamos a redescobrir a natureza
fundamentalmente histórica da fé e da escatologia bíblicas. Nos capítulos 1
a 4 deste estudo, tentamos delinear essa noção. Ela, contudo, certamente
não possui seus primórdios em Jesus de Nazaré. No capítulo 1, menciona-
mos G. E. Wright, que sustenta ser da essência da fé bíblica, do Antigo e do
Novo Testamentos, perceber a Deus, primordialmente, como um Deus que
age na história (1952:22). "Revelação" não significa tomar conhecido o que
soía estar oculto (esse é o significado básico da palavra grega apokalyp-
sis); ela tampouco se refere à manifestação da vontade divina que antes se
mantinha em segredo. Ao contrário, a palavra "revelação" designa a ação
do Deus que se faz conhecido em atos históricos (p. 23, 25). A pergunta
"Quem é Deus?" encontrou sua resposta em uma referência à história -
Ele é o Deus de Abraão, Isaque e Jacó. E a estória de Jesus de Nazaré faz
parte dessa história, é ininteligível sem ela (p. 32).
A redescoberta da escatologia Gomo ingrediente da religião é um
fenômeno em total desacordo com as concepções newtonianas de tempo e
espaço adotadas no clássico método histórico-crítico do "paradigma mecâ-
596 - Rumo a uma missiologia relevante

nico" (cf. Martin 1987:373s.). A escatologia representa o elemento de es-


perança na religião. Mesmo um filósofo marxista como Ernst Bloch pode
afirmar: "Onde existe esperança, há religião" (cit. ap. Moltmann 1975:15).
O iluminismo praticamente destruiu a categoria da esperança. Ele descar-
tou a teleologia e operava unicamente em termos de causa e efeito, não de
propósito. "O deus da física nos dá o que desejamos. Ele, porém, não nos diz
o que deveríamos desejar", asseverou George Santayana (cit. ap. Molt-
mann 1975:24). Só a religião tem condições de fazê-lo.
Mas a resposta da religião para essa pergunta é dúplice. Uma foi
formulada classicamente por Mircea Eliade como "o mito do eterno retor-
no" - esperamos pelo que era, mas se perdeu. No princípio, havia um para-
íso, um estado de bem-aventurança livre de tensão, que nós perdemos; sal-
vação significa recuperar o paraíso. As respostas judaica e cristã diferem
disso. O futuro por que esperamos não é meramente uma repetição da
origem ou um retorno a ela. Pelo contrário, o futuro está aberto para um
novo começo que suplantará o primeiro. No Antigo Testamento, diz Molt-
mann (1975: 18), entendia-se o êxodo não como um evento mítico da origem,
mas como um evento histórico que apontava para além de si mesmo, para
um futuro mais grandioso de Deus. Nas mitologias grega e oriental, o passa-
do é tornado presente como uma origem perpétua; na perspectiva israelita,
o passado é uma promessa do futuro. Como podemos verificar na constante
controvérsia entre Javé e os baalim em Canaã, o Deus do futuro se opõe
aos deuses da origem, do ciclo da natureza, do "eterno retorno".
É assim também - admitimos tratar-se aqui de uma simplificação
extrema - que Jesus de Nazaré e a igreja primitiva compreendiam o que
Deus estava fazendo naquela época. Grande parte do Novo Testamento
testemunha uma vibrante expectativa de que o que foi inaugurado em Jesus
constitui apenas o princípio de uma nova era - em que Deus não mais lidará
só com Israel. Embora os cristãos primitivos estivessem convictos de que,
em Cristo, a história entrou em uma aceleração inaudita, de que, em verda-
de, o futuro já invadiu o presente, eles esperavam por eventos ainda maiores
do que aqueles que tinham presenciado - as pessoas que crêem nesse Je-
sus não apenas fariam as obras que ele realizou, mas, inclusive, "obras maio-
res que essas" (Io 14.12).

o sombreamento do horizonte escatológico


Nosso estudo, no entanto, mostrou que foi impossível à igreja cristã
reter o caráter escatológico-histórico da fé. A proclamação cristã deixou de
anunciar o reinado de Deus para apresentar às pessoas a única religião
verdadeira e universal (cf. Rütti 1972:128). Nesse desenvolvimento, era
natural que o Antigo Testamento fosse subestimado, até mesmo negligenci-
ado. Comparado ao cristianismo, a religião verdadeira e universal, ele era,
no melhor dos casos, provisório, mas agora amplamente obsoleto (p. 95).
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 597

Isso se deve, em grau significativo, à helenização da fé cristã. Na


cultura grega, inclusive historiadores - por exemplo, Heródoto e Tucídides-
compreendiam a história como um círculo contínuo. Filósofos também inter-
pretavam eventos na história humana principalmente como prenúncios do
que estava por vir, como protótipos do retomo à origem. A história - even-
tos na vida humana - tomou-se sobretudo um manual para a filosofia moral,
um espelho para uso humano, material ilustrativo para a conduta correta
(cf. van der Aalst 1974:143). Esse pensamento influenciou profundamente
o cristianismo. O Logos foi interpretado não tanto como referência à encar-
nação histórica, mas pintado em cores puramente metafísicas buscadas no
platonismo. Orígenes, com sua doutrina da apokatastasis, reintroduziu o
elemento cíclico na teologia cristã. E mesmo que não se sancionasse essa
doutrina, ela contribuiu para uma crescente tendência a-histórica no cristia-
nismo (p. 144). Transferiu-se o foco da escatologia para a protologia, uma
evolução que ficou bastante clara nas controvérsias trinitárias e cristológi-
cas do período da patrística; discussões sobre a "origem" de Cristo, sobre
sua preexistência, dominaram a pauta teológica (cf. Beker 1984:108).
Durante os séculos posteriores, canalizaram-se as expectativas es-
catológicas, em sua maioria, para dois dutos (que não eram, todavia, mutu-
amente excludentes). Primeiro, havia a tendência para aquilo que é possível
denominar, muito inadequadamente, de místico. Ela assumiu várias formas,
por exemplo, a theosis na igreja oriental e a salvação como bem-aventuran-
ça individual na igreja do Ocidente. Segundo, existiu a tendência ao eclesio-
centrismo. Nesse modelo, a igreja constitui a extensão da encarnação e a
concretização lógica da pregação de Jesus sobre o reinado vindouro de
Deus. Braaten (1977:50) chama-o, com justeza, "o modelo de escatologia
mais conservador possível" - basta que a igreja permaneça assentada so-
bre seu passado e fomente líderes que funcionem como guardiães do tesou-
ro celestial que lhe foi confiado. Em nenhum desses dois modelos, natural-
mente, abandonou-se a crença na volta de Cristo, mas ela significaria tão-
somente o desvelar daquilo que, no momento, está oculto para os descren-
tes devido à dureza de seus corações.
Os dois modelos predominaram nas três maiores ramificações do
cristianismo: ortodoxa, católica e protestante. O ataque virulento do ilumi-
nismo à igreja do Ocidente apenas reforçou as tendências prevalecentes.
Depois de ser banida da esfera pública dos fatos para a esfera privada dos
valores e opiniões, a religião se refugiou na meta-história do misticismo, na
redenção eterna e supra-histórica da alma ou no enclave seguro da igreja
empírica. As missões protestantes passaram, paulatinamente, do primeiro:
do pietismo, com sua ênfase na redenção da alma, em direção ao segundo:
à implantação de igrejas que se autogovernavam, auto-sustentavam e auto-
expandiam.
Comparado à maioria das outras ramificações do protestantismo, o
598 - Rumo a uma missiologia relevante

puritanismo teve mais êxito em manter viva uma forma de esperança esca-
tológica que não era meramente individual ou eclesial (cf. os capítulos 8 e 9
deste estudo). Cada vez mais, essa esperança expressou-se em categorias
milenaristas. Autores como Jonathan Edwards e Samuel Hopkins fomenta-
ram o entusiasmo missionário e estimularam a dispersão de missionários
norte-americanos pelo planeta; o jardim que haviam plantado nos ermos
imensos dos Estados Unidos produziu sementes em abundância, suficientes
para o mundo todo. A teologia dominante, pelo menos entre a Revolução
Americana e a Guerra Civil, era pós-milenarista (Marsden 1980: 49). Mais
e mais, porém, ela se revelava um pós-milenarismo domesticado, extrema-
mente otimista e voltado para a felicidade e a prosperidade terrenas. A
concepção básica era a imanência de Deus - resultante da influência da
ciência, sobretudo da teoria evolucionista de Darwin, sobre a teologia pro-
testante; o Deus imanente estava concretizando seus propósitos no mundo
das pessoas, aqui e agora. Apenas em círculos pré-milenaristas sobreviveu
a idéia puritana original de uma subversão cataclísmica da ordem existente
- mas, no fim do século 19 e no início do século 20, os pré-milenaristas se
encontravam completamente marginalizados.
No continente europeu, a evolução foi similar - só que ali os pré-
milenaristas estavam ainda mais à margem da corrente dominante. Para a
teologia liberal, a escatologia do Novo Testamento era perfeitamente dispen-
sável e representava, em todo caso, um embaraço. Na teologia de Wameck-
mesmo que ela se distinguisse da teologia liberal predominante - a escatologia
não exercia papel algum (cf. Wiedenmann 1965:187). Nesse aspecto, pois, as
teologias liberal e conservadora, tanto as européias quanto as anglo-saxãs,
pensavam de maneira idêntica. O pensamento escatológico quase não se fez
sentir, por exemplo, na Conferência Missionária Mundial de 1910 (cf. van 't
Hof 1972:48). A missão consistia, em grande escala, na cristianização e civi-
lização de nações mediante a implantação de igrejas, ao que a missiologia
alemã ainda agregou que a igreja emergente devia ser adaptada ao Volkstum
[etnicismo] de um determinado povo (cf. Hoekendijk 1967a). E tudo isso se
interpretava em termos de crescimento orgânico para a maturidade.

Reaberto o "escritório da escatologia"


Na virada do século, estudiosos do Novo Testamento como Johannes
Weiss e Albert Schweitzer sustentaram - contrariando os princípios da teo-
logia liberal- que a escatologia não era algo insignificante para Jesus e para
a igreja primitiva, mas parte integrante de toda a sua vida e ministério. Mas
nem Weiss nem Schweitzer sabiam o que fazer com sua descoberta (cf.
Kâsemann, cit. ap. Beker 1980:361). Foi só o trauma de duas guerras mun-
diais que criou um ambiente em que o pensamento escatológico novamente
começou a fazer sentido nos círculos eclesiásticos e teológicos dominantes.
Isso ocorreu mais cedo na teologia continental do que no mundo anglo-
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 599

saxão, como o demonstraram as conferências do CoMln em Jerusalém


(1928) e em Tambaram (1938)28. Em Tambaram, o livro de Kraemer ([1938]
1947) refletiu o ponto de vista de apenas uma minoria de delegados, oriun-
dos, em sua maior parte, do continente europeu, como o evidenciou a assim
chamada "Declaração escatológica alemã" (que não foi assinada, contudo,
só por alemães). Só depois da Segunda Guerra Mundial, por ocasião da
Conferência do CoMln em Willingen (1952), pode-se falar, em termos mais
gerais, do "ingresso do fundamento escatológico da missão na discussão
ecumênica" (Margull, cito ap. van 't Hof 1972: 173).
Mas a "nova escatologia" estava longe de ser uniforme. Wieden-
mann (1965:26-49, 55-91, 131-178) distingue quatro "escolas" escatológi-
cas principais no protestantismo alemão, cada uma das quais teve um im-
pacto relevante no pensamento missionário. São elas a escatologia dialética
do jovem Barth (a qual influenciou missiólogos como Paul Schütz, o jovem
Karl Hartenstein, Hans Schãrer e Hendrik Kraemer), a escatologia existen-
cial de Rudolf Bultmann (que foi aplicada missiologicamente por Walter
Holsten), a escatologia efetivada de Paul Althaus (que inspirou Gerhard
Rosenkranz) e a escatologia histórico-salvífica de Oscar Cullmann (vestígi-
os da qual podem ser detectados no pensamento missiológico de Walter
Freytag e do velho Hartenstein).
No primeiro modelo, enfatizam-se a transcendência absoluta de Deus
e seu estar totalmente separado do mundo. Deus se encontra no céu; nós,
na terra. O único elo entre Deus e os humanos é a intervenção de Deus em
juízo e graça. Na terminologia de Barth, essa intervenção divina é integral-
mente escatológica. Na edição de 1921 de sua Epístola aos Romanos, ele
escreve: "O cristianismo que não seja de todo escatológico nada tem a ver,
em absoluto, com Cristo" (cit. ap. Jansen Schoonhoven 1974a:34). Nessa
tradição, "escatologia" simplesmente se toma um termo hermenêutico para
designar o que é último e transcendente, uma expressão que visa a repelir,
inclusive, a mais sutil insinuação de uma colaboração humana em suscitar o
fim. Barth sustenta o advento futuro do reinado de Deus em sua plenitude,
mas o vê como sendo inaugurado tão-somente por Deus, no fim da história.
O segundo modelo, associado primordialmente com o nome de Bult-
mann, apresenta algumas afinidades com o primeiro e compartilha a mesma
origem. Radicalizando a afirmação luterana de que "só a palavra o fará",
Bultmann vê a escatologia como o evento que se desenrola entre a palavra
proclamada - o kerygma - e o ser humano individual. Holsten aplica isso
missiologicamente em seu livro Das Kerygma und der Mensch (1953). A
missão está limitada à oferta da possibilidade de uma decisão e de uma nova
autocompreensão à luz do kerygma. Wiedenmann, que, em todo o seu estu-
do, censura o protestantismo por seu baixo conceito da igreja e da dimensão
social da fé cristã, encontra em Holsten o auge do "singularismo, ocasiona-
lismo e efetivismo protestante moderno" (1965: 168). Essa escatologia não
600 - Rumo a uma missiologia relevante

propunha ética alguma para a vida pública e deixava a igreja desamparada


perante os demônios da política de poder, em especial frente ao desafio
colocado pelo nacional-socialismo. Tampouco havia espaço para qualquer
expectativa de um futuro diferente, da irrupção do reinado de Deus. Tudo
que sobrou foi o "apocalipse particular" acontecendo na vida do indivíduo.
O terceiro modelo, a escatologia "efetivada" de Althaus, mostra al-
guma semelhança com a escatologia "realizada" de C. H. Dodd (embora
Althaus preferisse falar da "escatologia em processo de realização"). Visto
que o mundo, em princípio, tem seu fim no julgamento do reino em Cristo,
qualquer momento na história, e também a história como um todo, é tempo
derradeiro, sempre à mesma distância do final (Beker 1980:361, resumindo
a posição de Althaus). A confissão protocristã de que o Senhor está próxi-
mo pode ser aplicada hoje como o foi naquela época. Não se deve esperar
a parúsia como um acontecimento histórico; ela representa, antes, a sus-
pensão de toda a história. Por isso, não interessa se o fim está "cronologi-
camente" próximo ou distante - ele está "essencialmente" sempre às por-
tas. Rosenkranz, retomando o tema de Althaus, interpreta a missão como a
proclamação de um reino já presente, mas ainda oculto.
Wiedenmann considera todas essas três interpretações exemplos de
escatologias a-históricas. Apenas o quarto modelo, a escola histórico-salví-
fica, leva a história a sério. Tomou-se cada vez mais claro, desde a década
de 1930, que a escatologia dialética do jovem Barth, assim como as con-
cepções de escatologia das escolas de Bultmann e de Althaus, deixavam as
pessoas desprotegidas em face dos desafios propostos pelo mundo moderno.
A quarta abordagem se diferencia das outras três em vários sentidos.
Primeiro, ela põe uma ênfase especial no reinado de Deus como chave
hermenêutica. Também lhe é fundamental a idéia de que o reinado de Deus
é tanto presente quanto futuro. Israel olhava para o futuro esperando a
salvação, mas agora aquele futuro estava dividido em dois. A nova era foi
inaugurada; a velha ainda não foi levada a termo. Vivemos entre os tempos,
entre a primeira e a segunda vinda de Cristo; este é o tempo do Espírito, o
que significa que é tempo para missão. Em verdade, a missão é a caracte-
rística e a atividade mais importantes deste ínterim. Ela preenche o presente
e mantém afastadas as muralhas da história - como, inclusive, Hoekendijk
ainda pôde formulá-lo em 1948 (a tradução alemã [1967a:232] omite a pode-
rosa metáfora e diz apenas: "A história mantém-se aberta mediante a mis-
são"). Ela é uma preparação para o fim e - segundo os primeiros escritos de
Cullmann - até mesmo um pré-requisito. Tendo isso em mente, ele interpreta
a referência a ho katechon e a to katechon ("aquele que detém", "aquilo
que detém"), em 2 Tessalonicenses 2.6-7, como alusões à missão. Enquanto a
tarefa missionária não estiver consumada, ela está "detendo" o fim.
Cullmann, portanto, interpreta a missão em termos radicalmente his-
tórico-salvíficos. Ao mesmo tempo, ele empresta respeitabilidade acadêmi-
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 601

ca a uma concepção amplamente respaldada em círculos missionários co-


muns e que, à medida que nos aproximamos do fim do segundo milênio,
realimenta o entusiasmo por esforços visando à evangelização do mundo
inteiro antes do ano 2000.
Mas, talvez um tanto surpreendentemente, a escola histórico-salvífi-
ca de missão está se revelando muito menos homogênea do que seria de
esperar. De fato, poder-se-ia defender o ponto de vista de que, na prática,
todas as escolas contemporâneas de escatologia e de pensamento missio-
nário constituem, de uma maneira ou outra, rebentos da abordagem histórico-
salvífica - embora algumas delas talvez prefiram negar essas raízes", O fato
de Beker situar Paulo na tradição apocalíptica e sua interpretação da impor-
tância disso para a missão cristã (1980, 1984) também manifestam alguns
paralelos com Cullmann (cf. Cullmann 1965:225-245). O pensamento históri-
co-salvífico inspirou, ademais, tanto missiólogos evangelicais conservadores
quanto teólogos da libertação - José Míguez Bonino, por exemplo, contribuiu
em uma "Festschrift" [coletânea] que homenageava Cullmann em 1967.
Importa igualmente observar que Cullmann - desde seus primeiros
artigos sobre o assunto, publicados na década de 1930, passando por Christ
and Time (primeira edição alemã em 1945) até Salvation as History (pri-
meira edição alemã em 1965) - refinou e redefiniu sua própria compreen-
são da relação entre escatologia e missão. Nesse desenvolvimento, ele pôs
uma ênfase crescente na dimensão histórico-mundial da missão. Gostaria,
pois, de sugerir que - excetuando algumas formulações mais toscas de
Cullmann, principalmente em seus primeiros escritos, e sua preocupação
em tentar delinear a história da salvação como algo totalmente distinto da
história do mundo - a abordagem histórico-salvífica constitui, em termos
amplos, o mais significativo avanço em relações a posições anteriores, tanto
católicas quanto protestantes (cf. também Wiedenmann 1965: 194-196), e a
base mais sólida para uma compreensão da natureza escatológica da mis-
são a partir de uma perspectiva pós-moderna. Continua, porém, sendo um
empreendimento arriscado traçar os contornos de um modelo razoavelmen-
te confiável da natureza escatológica da missão, como veremos nas duas
seções subseqüentes.

Escatologização extrema da missão


Durante sua história, houve períodos em que o cristianismo vivenciou
altas expectativas escatológicas. Nossa própria época parece constituir um
período desses. Uma vez mais, surgem inúmeras predições sobre o futuro,
e, à medida que nos acercamos do fim do segundo milênio cristão, é de se
esperar que essa febre aumente. A escatologia cristã, em especial, repre-
senta, aparentemente, uma área visada pela curiosidade fanática, como o
testemunham os escritos de Hal Lindsey e outros. Ao mesmo tempo, não é
possível rotular simplesmente todos os milenaristas como excêntricos. A
602 - Rumo a uma missiologia relevante

validade de suas concepções reside na indignação e no protesto que mani-


festam contra a complacência do corpo principal do cristianismo e uma
compreensão da história como um entrecruzamento de impulsos fortuitos,
um fluxo acidental de corpos que se precipitam pela catarata do tempo para
sua destruição (cf. Braaten 1977: 97-99).
No passado (e, com certeza, também nos escritos de Lindsey), a
preocupação com o fim acarretou uma paralisia em relação à missão, uma
ausência de engajamento missionário. Isso vale para grande parte da orto-
doxia protestante do século 17. Sua filosofia não era, assim parece, a de que
todos precisam ser salvos, mas que a maioria deve ser condenada. Foi só
com o advento do pietismo que se compreendeu o tempo anterior ao fim não
como uma época de espera, mas como um tempo permitido para que se
desse testemunho e se incluísse o maior número possível de perdidos.
A ortodoxia protestante, o pietismo e muitos de seus herdeiros espiri-
tuais, porém, compartilhavam um sentimento: um pessimismo infindo quanto
ao mundo. Em sua análise de quase um século de pregação alemã sobre as
missões, Linz (1964) mostrou que, na maioria desses sermões, via-se o mundo
como totalmente abandonado por Deus ou, alternativamente, como tendo
dado, de forma resoluta, as costas a Deus (p. 179). O mundo necessita da
igreja se quiser ser salvo, mas a igreja não necessita do mundo para ser
igreja (p. 136). A única observação positiva que ainda podemos fazer sobre
o mundo e sobre a história é que eles tomam a missão possível enquanto
durar a paciência de Deus (p. 178; cf. Freytag 1961:213s.). Tudo que é bom
está no passado e no futuro. Nessa concepção essencialmente maniqueísta,
a história constitui uma conspiração encetada por forças demoníacas. As-
sim como no caso da comunidade de Qumran do século 1 d.C., a conversão
cristã significa que os indivíduos devem separar-se das massas, que se en-
caminham para a condenação eterna.
De quando em quando, todavia, esse pessimismo em relação ao mun-
do poderá andar pari passu com um imenso otimismo quanto ao empreen-
dimento missionário. Isso já se verificou em grande parte do pietismo, mas
também se evidencia em alguns círculos evangelicais contemporâneos. Na
Conferência do CLEM realizada em Pattaya (Tailândia), em 1980, a noção-
chave era oportunidades - o mundo estava à espera do evangelho da
salvação eterna, e as pessoas estavam prontas a responder positivamente
ao convite para se tomarem cristãs. McGravan revela, muitas vezes, uma
confiança similar nas oportunidades que aguardam a igreja-em-evangeliza-
ção (cf. 1980:49) A única história real é a história das missões (Linz 1964:136,
178); ela é o ponteiro no relógio do mundo, dizendo-nos que horas são e para
quando podemos esperar a segunda vinda de Cristo (p. 132). A finalidade
prioritária da missão é preparar as pessoas para o além, garantindo a todas
uma passagem segura para o céu. Na melhor das hipóteses, a história re-
presenta um prólogo, uma preparação, um estágio provisório. Na pior das
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 603

conjeturas, ela é o inimigo do crente, uma ameaça permanente e uma possí-


vel fonte de contágio, pois a continuação da história apenas aumenta a "dis-
tância" entre o presente sombrio e o futuro glorioso.
É de se esperar que essa compreensão pessimista da história fosse
desestimular praticamente qualquer tentativa de reformar o mundo e as
condições humanas. Para Freytag, o progresso na história do mundo consis-
te, no máximo, em um aumento de catástrofes (1961:216). O Novo Testa-
mento não conhece outro progresso na história que não seja a aproximação
do fim (p. 215). A história humana, entrementes, encontra-se sob o signo do
avanço do demoníaco (p. 189). Nossa tarefa não é erigir o reino de Deus
neste mundo, cristianizar a sociedade ou alterar estruturas (p. 200). Há
limites para o que podemos e devemos fazer, e não nos cabe antecipar
agora aquilo que somente se tornará visível quando do advento da nova
criação (p. 96s.).
Mas Freytag precisa ser compreendido em seu contexto. Ele escre-
veu tendo como pano de fundo imediato a catástrofe da Segunda Guerra
Mundial; presenciara o que as "conquistas" humanas são capazes de pro-
duzir e desejava que seus leitores fossem modestos quanto a suas capacida-
des. Referindo-se à missiologia de Freytag, Warren (1961:161) afirma que
foi a experiência do abismo que separou o pensamento continental do anglo-
saxão em relação a quase todos os assuntos, e também o fez no que concer-
ne à missão. Nesse sentido Freytag foi decididamente pós-moderno e muito
diferente das pessoas que hoje, julgadas superficialmente, estão dizendo
mais ou menos o mesmo que ele afirmou. Freytag estava pleiteando que
abandonássemos nosso incurável pensamento voltado para o sucesso, que
fizéssemos o que é preciso ser feito sem levar em consideração os resulta-
dos (cf. Freytag 1961:222). Ele também criticou aquelas missionárias e agên-
cias de missão que se mostravam cegas para o serviço neste mundo e por
amor a ele, para as quais o reinado de Deus era uma entidade exclusiva-
mente do além (p. 211) e que, às vezes, inclusive pareciam ficar satisfeitas
com a decadência da sociedade, entendendo-a como um sintoma seguro da
iminência da parúsia. Freytag apoiou todo o programa missionário abran-
gente de sua época, assim como as atividades do movimento ecumênico.
Em contraste, muitos que parecem seguir a tradição de Freytag são, de fato,
vítimas de um dualismo insidioso no qual a ênfase em ser salvo para a pró-
xima vida aliena e aparta o indivíduo do envolvimento neste mundo, mesmo
que digam, magnanimamente, que "é claro que o serviço social é importan-
te, mas nossa tarefa é a evangelização". Se, ademais, sua recusa de con-
testar estruturas sociais injustas se fundamenta numa concepção acerca da
inviolabilidade das "ordens da criação", eles não podem invocar Freytag ou,
no que diz respeito a este assunto, Cullmann, que afirma que o 'já" do
reinado de Deus excede seu "ainda não" (1965: 164).
A validade dos pontos de vista de Freytag e Cullmann reside em sua
604 - Rumo a uma missiologia relevante

inquebrantável insistência em que não existe missão autêntica sem uma


disposição escatológica básica. Em Freytag, sobretudo, isso se expressa em
suas constantes alusões à basileia, ao reinado de Deus como substância e
meta da missão. Foi, pois, adequado que a Festschrift [coletânea] publica-
da em sua homenagem ostentasse o título Basileia. O reinado de Deus
permanece, essencialmente, uma dádiva; jamais podemos identificá-lo com
uma estrutura empírica. Mas, mesmo que Freytag acrescente que o reinado
de Deus não é só dádiva, mas também desafio, sua ênfase no esperar pode
facilmente resultar em quietismo. É possível que nos tornemos culpados do
pecado da temeridade, confundindo o reinado de Deus com o que tivermos
alcançado neste mundo; podemos, contudo, também tornar-nos culpados do
pecado da timidez, esperando por menos do que foi prometido. Este mundo
talvez seja, deveras, um território ocupado pelo inimigo, mas esse inimigo
não possui a escritura de propriedade dele (cf. Warren 1948:53). O inimigo
é um usurpador. Não somos chamados a agir como a quinta-coluna de Deus,
efetuando ataques repentinos e resgatando almas perdidas em poder do
"príncipe deste mundo". Devemos, pelo contrário, reivindicar todo este mundo
para Deus, como parte do reinado de Deus. O reinado futuro de Deus exer-
ce influência sobre o presente; em Cristo, o futuro foi trazido, drasticamen-
te, para mais perto do presente. Uma fixação na parúsia final simplesmente
significa que estamos evadindo nossas responsabilidades no aqui e agora.
Submeter-se a Cristo como Salvador é inseparável de submeter a ele como
Senhor não apenas nossas vidas pessoais, mas igualmente sistemas políti-
cos e econômicos na vida corporativa da sociedade.

História como salvação


Como sugeri acima, a escola histórico-salvífica suscitou não apenas
uma escatologização extrema da missão, mas também uma interpretação
inteiramente imanente do caráter escatológico da missão. Afinal, é possível
ou interpretar a história da salvação como algo de todo separado da história
do mundo e intocado por ela, ou tomar a direção oposta, i. é, secularizar a
história da salvação e assim, implicitamente, sacralizar a história do mundo
(cf. Beyerhaus 1969:49). Isso ocorre onde se abandona qualquer idéia da
unicidade da igreja e o foco se concentra, pelo contrário, na singularidade do
que sucede no mundo fora da igreja. Em vez de falar sobre a "salvação
como história" (cf. o título de Cullmann 1965), fala-se então da "história
como salvação". A história não constitui apenas o "contexto" da missão,
mas seu "texto" (Rütti 1972:232).
Em geral, não se faz isso mediante uma terminologia puramente se-
cular. Ao contrário, continua-se empregando uma linguagem religiosa, in-
clusive eclesiástica. A história necessita de uma "base espiritual". Assim, a
encarnação de Cristo toma-se o símbolo do processo de salvação histórico-
mundial que emerge progressiva e imanentemente através do esclareci-
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 605

mento cultural, moral, social, político e, até, revolucionário (cf. Braaten


1977:50). Tendo nos impacientado com a morosidade do advento do reinado
de Deus, assumimos nós mesmos as rédeas, redefinimos o reino e procura-
mos erigi-Io com técnicas instantâneas, enquanto continuamos a usar o nome
de Cristo para endossar nosso partido ou programa de automelhoria e de
aperfeiçoamento do mundo (p. 101). Então o reinado de Deus, nas palavras
de W. Rauschenbusch (cit. ap. West 1971:77), é "a energia de Deus se
auto-realizando na vida humana", na forma daquilo que parecem ser os
ideais sociopolíticos da época ou do grupo em questão. "Missão" e "missio-
nário" constituem meras expressões estenográficas para designar a execu-
ção de responsabilidades sociais, já que não existe nenhuma atividade hu-
mana em prol do mundo que não seja, em si mesma, missão (Linz 1964:
206). A questão, afinal- como se afirmou no encontro do CMI em Uppsala
(1968) - não é tanto o que Deus falou na Bíblia, mas o que ele está fazendo
no mundo hoje. O "divino" deve ser vivenciado somente no risco e engaja-
mento histórico, visto que Deus é Deus somente na medida em que estiver
atuando no mundo. Portanto, os cristãos podem reconhecer sua missão so-
mente em meio a processos do mundo (Rütti 1972:232s.). Onde se efetivou
a libertação para a verdadeira humanidade, podemos concluir que a missio
Dei alcançou seu objetivo (Hoekendijk 1967a:347). Todas as pessoas já
pertencem à nova humanidade, constituída em Cristo, quer estejam consci-
entes disso, quer não.
Mas se rejeitamos a escatologização extrema da missão, também
devemos rechaçar seu correlato - a historicização extrema da missão. O
mundo, uma vez que se tenha emancipado, passa necessariamente a ditar
as condições sob as quais aceitaria um encontro "missionário" consigo (cf.
Gensichen 1986:116). Ele decidirá, segundo seus próprios termos, que tipo
de ideologia ou práxis política é adequado. Ora, onde isso acontece, o evan-
gelho se converte em lei. Nossa incurável tendência de arruinar tudo que
tocamos e nosso inveterado impulso para o egocentrismo tornam-se, então,
os árbitros últimos sobre qual ação é apropriada. Mas longe de ser o apogeu
de nossos ideais, o reinado de Deus os submete a seu juízo soberano; ele
permanece uma categoria crítica e, freqüentemente, "nada contra a corren-
teza" de nossa história (cf. Lochman 1986:63). É esse foco sobre o reinado
de Deus, tanto presente quanto futuro, que nos pode oferecer uma perspec-
tiva adequada quanto à nossa missão no mundo. Sem essa dimensão esca-
tológica, nosso "evangelho" se reduz à ética (cf. Braaten 1977:39, 152).

Escatologia e missão em tensão criativa


Há certa validade na observação de Aagaard (1965:256) de que, em
termos gerais e até a sexta década do século 20, a perspectiva escatológica
mais estrita evidenciou-se em círculos missionários da Europa continental,
enquanto que os norte-americanos enfatizavam o engajamento social. Des-
606 - Rumo a uma missiologia relevante

de então, os contornos perderam sua nitidez, de modo que não é mais viável
fazer essa distinção. Em todas as tradições cristãs e em todos os continen-
tes, ainda nos encontramos em meio a um movimento para reformular uma
teologia da missão à luz de uma escatologia autêntica (cf. Braaten 1977:36).
Entrementes, podemos afirmar que existe atualmente um amplo consenso
de que a escatologia determina o horizonte de toda a compreensão cristã,
mesmo que ainda estejamos buscando seu significado preciso. Ficou claro,
todavia, que nem a escatologização nem a historicização da missão são
satisfatórias. Devido à sua fixação na parúsia, a primeira negligenciou os
problemas deste mundo e, com isso, debilitou a missão cristã. Devido à sua
preocupação com este mundo a ponto de excluir a dimensão transcendente,
a segunda despojou as pessoas do sentido último e de uma dimensão teleo-
lógica sem a qual ninguém consegue sobreviver (cf. Moltmann 1975:20-24).
Necessitamos de uma alternativa que vá além de ambas. Precisamos
de uma escatologia para a missão que esteja, concomitantemente, voltada
para o futuro e orientada para o aqui e agora. Ela tem de ser uma escatolo-
gia que retenha, em tensão criativa e redentora, o já e o ainda não, o mundo
do pecado e da rebelião e o mundo amado por Deus, a nova era que já foi
inaugurada e a velha que ainda não terminou (Manson 1953:370s.), ajustiça
e a justificação, o evangelho da libertação e o evangelho da salvação. A
esperança cristã não brota do desespero em relação ao presente. Temos
esperança devido àquilo que já experimentamos. A esperança cristã é, si-
multaneamente, posse e anelo, sossego e atividade, chegada e peregrina-
ção. Como a vitória de Deus é certa, as pessoas crentes podem atuar paci-
ente e entusiaticamente, combinando planejamento cuidadoso com obediên-
cia urgente (p. 149), motivadas pela impaciência paciente da esperança
cristã. O envio dos discípulos para os confins da terra (At 1.8) foi a única
resposta que obtiveram para sua pergunta de quando o reinado de Deus
seria inaugurado em sua plenitude.
Não existe, pois, a opção de engajar-se ou na história da salvação ou
na história profana. A história da salvação não constitui uma história à par-
te, um fio separado que se desdobra no interior da história secular. Não há
duas histórias, mas duas maneiras de compreender a história. A distinção só
possui, por conseguinte, significado noético. O cristão não se preocupa com
um conjunto diferente de fatos históricos, mas se utiliza de uma perspectiva
diferente. O historiador secular converterá a história da salvação em histó-
ria profana, enquanto que a pessoa crente verá a mão de Deus também na
história secular. Não que a história (da salvação ou a secular) sempre vá ser
transparente para quem crê. Há paradoxos, lacunas, descontinuidades, enig-
mas e mistérios em toda a história (cf. Braaten 1977:95s.). Para o cristão,
portanto, a história da salvação é revelada e oculta, transparente e opaca
(cf. Blaser 1978:35-42).
A escatologia cristã perpassa, logo, todos os três tempos: o passado,
Elementos de um paradigma missionário ecumênico emergente - 607

o presente e o futuro. O reinado de Deus já veio, está vindo e virá em


plenitude. É porque Deus já governa e nós esperamos a manifestação públi-
ca de seu governo que nos é lícito ser, no aqui e agora, embaixadores do
reino dele. Os cristãos jamais podem ser pessoas do status quo. Eles oram:
"Venha teu reino (...) assim na terra como no céu!" e o interpretam como
uma prece dirigida a Deus assim como um desafio dirigido a si mesmos no
sentido de atacar as estruturas perversas a seu redor (Kãsemann 1980:67).
A plenitude do reinado de Deus ainda está por vir, mas exatamente a visão
desse reino vindouro se traduz em uma preocupação radical com o "penúl-
timo" e não com o "último", em uma preocupação com o que "está à mão"
e não com "aquilo que será" (cf. Beker 1984:90). Na morte e ressurreição
de Cristo, a nova era foi inaugurada irreversivelmente e o futuro está garan-
tido; vivendo no campo de força da certeza da salvação já recebida e da
vitória final já assegurada, a pessoa crente se engaja na urgência da tarefa
à sua frente. Nesse sentido, a escatologia está acontecendo agora mesmo.
Visto desse ângulo, temos que concordar com Cullmann (1965: 164)
de que o "já" excede o "ainda não". Isso, em poucas palavras, é o que o
paradigma pós-moderno proclama quanto à escatologia, sobretudo desde o
encontro do CoMIn realizado em Tambaram, em 1938 (cf. van 't Hof
1972:119; Bassham 1979:24). A nova perspectiva não é simplesmente uma
variação de uma posição anterior, mas algo fundamentalmente diferente
(cf. Rütti 1972:73 [nota 38],76). Em vez de procurar saber o plano de Deus
para o futuro do mundo, perguntamos pelo engajamento do cristão no mun-
do (p. 221). Não mais se vê o mundo corno um empecilho, mas como um
desafio. Cristo ressuscitou, e nada pode permanecer corno costumava ser.
Foi uma vitória estupenda do maligno ter conseguido que acreditássemos
que estruturas e condições deste mundo realmente não se transformarão ou
não necessitam ser alteradas, que considerássemos poderes políticos e so-
ciais e outros interesses estabelecidos corno invioláveis, que aquiescêsse-
mos em condições de injustiça e opressão, que moderássemos nossas ex-
pectativas a ponto de nos acomodarmos, que desistíssemos da esperança
por uma transformação global do status quo, que fôssemos cegos para
nossa própria responsabilidade por e engajamento em um mundo que está a
caminho de sua consumação. Ao assumirmos um posicionamento crítico
diante das autoridades, prescrições, tradições, instituições e predileções ide-
ológicas da ordem mundial vigente, devemos tomar-nos um fermento do
novo mundo de Deus (cf. Gort 1980b:54).
Sem retirar absolutamente nada do que acabou de ser dito e sem
pedir de novo um certo grau de moderação ou transigência, faz-se necessá-
ria, entretanto, uma advertência. Por natureza, somos todos românticos e
pelagianos (o que significa o mesmo - cf. Henry 1987:275), confiantes de
que possuímos tanto a vontade quanto o poder de inaugurar um mundo novo.
Com demasiada facilidade, identificamos a vontade e o poder de Deus com
608 - Rumo a uma missiologia relevante
nossa vontade e nosso poder. Em essência, porém, os estudos de Weiss e de
Schweitzer, há um século, já deveriam ter soado o dobre fúnebre para qual-
quer conceito imanentista, progressivista, evolucionista e ético do reinado
de Deus como um produto humano (cf. Braaten 1977:40). Jamais concreti-
zaremos nosso projeto para uma ordem social e política que se equipare à
vontade e ao governo de Deus. Em verdade, é intrínseco à teleologia cristã
duvidar de que a visão escatológica possa ser plenamente realizada na his-
tória (Stackhouse 1988:206). A transformação de Deus difere das inova-
ções humanas. Deus nos toma de surpresa. Ele está sempre à nossa frente,
e seu triunfo vindouro nos convida a segui-lo - como Beker (1980, 1984) o
mostrou, de maneira tão lúcida, em relação à teologia de Paulo (veja o capí-
tulo 4 supra). Visto dessa perspectiva, portanto, o futuro tem a primazia. O
triunfo último permanece singularmente uma dádiva divina. É Deus que faz
novas todas as coisas (Ap 21.5). Se desligarmos o farol da escatologia, só
nos resta tatear na escuridão e no desespero.
Mas as duas afirmações feitas nos dois parágrafos anteriores não
devem ser vistas como mutuamente excludentes. Pelo contrário. A mensa-
gem transcendente do triunfo seguro de Deus nos proporciona tanto a dis-
tância e a sobriedade necessárias em relação a este mundo quanto a moti-
vação para nos engajarmos na transformação do status quo. Exatamente a
visão do triunfo de Deus toma impossível procurar refúgio no quietismo, na
neutralidade ou na retirada do campo de ação. Jamais podemos superesti-
mar nossas próprias capacidades, mas podemos ter confiança quanto à di-
reção em que o mundo se move, pois não estamos, como Sartre, perscru-
tando o abismo do nada, nauseados pelo vazio de nossa liberdade, saltando
para um futuro que apenas ratifica a falta de sentido do momento presente
(cf. Braaten 1977:98).
Traçamos uma distinção clara entre a esperança no último e perfeito,
por um lado, e a esperança no penúltimo e aproximado, por outro lado.
Fazemos essa distinção sob protesto, com dor e, ao mesmo tempo, com
realismo. Sabemos que nossa missão - como a própria igreja - pertence
somente a esta era, não à próxima. Realizamos essa missão na esperança.
Portanto, se Margull (1962) estava certo ao referir-se à dimensão evange-
lística de nossa vocação missionária como "esperança em ação", estamos
corretos em qualificar toda a nossa missão abrangente no contexto de nossa
expectativa escatológica como "ação em esperança" (cf. também Sun-
dermeier 1986:60s.). Mas, nesse caso, precisamos definir nossa missão-
com a devida humildade - como participação na missio Dei. Testemunhan-
do o evangelho da salvação presente e da esperança futura, identificamo-
nos, então, com as formidáveis dores que acompanham o nascimento da
nova criação de Deus.
Capítulo 13

Missão de muitas maneiras

Tudo é missão?
Não pode haver dúvida de que se presenciou, nas últimas décadas,
uma escalada surpreendente no emprego do termo "missão" - surpreen-
dente, quando consideramos o fato de que, nessas décadas, também se
testemunhou uma crítica sem paralelos ao empreendimento missionário. A
inflação do conceito apresenta implicações tanto positivas quanto negati-
vas. Uma das conseqüências negativas é a tendência de definir a missão de
uma forma demasiadamente ampla - o que inspirou Neill (1959:81) a for-
mular sua famosa máxima "Se tudo é missão, nada é missão", e Freytag
(1961:94) a referir-se ao "espectro do pan-missionismo". Mesmo que se
tenha que levar a sério essas advertências, continua sendo extraordinaria-
mente difícil determinar o que é missão. Todo este estudo parte da premissa
de que a definição de missão é um processo contínuo de peneirar, testar,
reformular e descartar. Isso significa que se deve entender a missão como
uma atividade que transforma a realidade e, simultaneamente, que existe
uma necessidade constante de a própria missão se transformar.
As tentativas de definir a missão são recentes. A igreja cristã primi-
tiva não empreendeu tais tentativas - pelo menos não conscientemente.
Contudo, nossa análise da "teologia da missão" de Mateus, Lucas e Paulo
nos mostrou que é possível interpretar seus escritos como um esforço per-
sistente de definir e redefinir o que a igreja foi chamada a realizar no mundo
de seu tempo. Mais recentemente, porém, tornou-se necessário elaborar
definições de missão mais consciente e explicitamente. Desde o século 19,
essas tentativas se multiplicaram.
Por volta da época da Conferência do CoMIn em Jerusalém (1928),
ficou evidente que a maioria das definições eram irremediavelmente inade-
quadas. Jerusalém cunhou a expressão "abordagem abrangente", o que re-
presentou um avanço significativo em relação a todas as definições anteri-
ores de missão. O encontro do CoMIn em Whitby (1947) utilizou, então, os
termos kerygma e koinonia para sintetizar sua compreensão de missão.
Em um estudo famoso, publicado pela primeira vez em 1950, Hoekendijk
(1967b:23) acrescentou um terceiro elemento: diakonia. A Conferência de
Willingen (1952) adotou a fórmula ampliada, agregando a noção de "teste-
610 - Rumo a uma missiologia relevante

munho", martyria, como o conceito abrangente: "Esse testemunho é dado


por proclamação, comunhão e serviço" (cit. ap. Margull 1962:175). Du-
rante as próximas três décadas, essa formulação dominou as discussões
missiológicas como imagem mais apropriada e abrangente do que a missão
é ou deveria ser. É possível encontrá-la em quase todo livro sobre teologia
da missão depois de 1952. Naturalmente, existem algumas variações nas
definições. As vezes, tratam-se martyria e kerygma como conceitos
intercambiáveis e sinônimos (cf. Snyder 1983:267). Outros acrescentam
leitourgia, "liturgia", como elemento a mais (cf. Bosch 1980:227-229).
A fórmula, mesmo em sua versão adaptada, revela, todavia, severas
limitações. Rütti (1972:244) admite que ela serviu para libertar a missão da
camisa-de-força de defini-la apenas em termos de pregação ou de implan-
tação de igrejas e que, de quando em quando, ela ainda poderá mostrar
alguma utilidade. Mas ele lamenta o fato de que, em última análise, ela só
ajuda a clarear idéias e atividades tradicionais. Eu tendo a concordar com
Rütti. Necessitamos de uma hermenêutica da missão mais radical e
abrangente. Ao tentar fazê-lo, talvez nos acerquemos do ponto de ver tudo
como missão, mas esse é um risco que teremos que assumir. A missão
constitui um ministério multifacetado em termos de testemunho, serviço,
justiça, cura, reconciliação, libertação, paz, evangelização, comunhão, im-
plantação de igrejas, contextualização, etc. Inclusive o intento de arrolar
algumas dimensões da missão, porém, está repleto de perigo, porque de
novo sugere que nos é possível definir o que é infinito. Quem quer que
sejamos, espreita-nos a tentação de enclausurar a missio Dei nos estreitos
confins de nossas próprias predileções, voltando, necessariamente, à
unilateralidade e ao reducionismo. Deveríamos guardar-nos de qualquer ten-
tativa no sentido de delinear a missão de uma forma demasiadamente nítida.
E, talvez, não se possa realmente fazê-lo por meio da theoria (que implica
"observação, relatório, interpretação e avaliação crítica"), mas unicamente
através da poiesis (que implica "a criação ou representação imaginativa de
imagens evocativas") (Stackhouse 1988:85).

Faces da igreja-em-missão
Nossa missão precisa ser multidimensional, para que seja fidedigna e
fiel a suas origens e seu caráter. Assim, visando a proporcionar uma idéia
da natureza e qualidade dessa missão multidimensional, poderíamos recor-
rer a imagens, metáforas, eventos e quadros em vez de lançar mão da lógi-
ca ou da análise. Sugiro, pois, que uma maneira de oferecer um perfil do que
a missão é e do que requer seja examiná-la em termos de seis "eventos
salvíficos" relevantes descritos no Novo Testamento: a encarnação de Cristo,
sua morte na cruz, sua ressurreição no terceiro dia, sua ascensão, o derra-
mamento do Espírito Santo em Pentecostes e a parúsia.
Missão de muitas maneiras - 611

1. A encarnação: As igrejas protestantes, em geral, têm uma teolo-


gia subdesenvolvida da encarnação. As igrejas do Oriente, os católicos ro-
manos e os anglicanos sempre deram mais importância à encarnação -
embora a igreja oriental tenda a concentrar-se na encarnação dentro do
contexto da preexistência, da "origem" de Cristo. Mas, nos últimos anos, foi
a teologia da libertação que, bem mais explicitamente do que foi feito até
agora, entendeu a missão cristã em termos do Cristo encarnado, do Jesus
de Nazaré humano que, exausto, trilhou os caminhos poeirentos da Palesti-
na, onde se compadeceu das pessoas que estavam marginalizadas. Ele tam-
bém se encontra do lado dos que sofrem nas favelas do Brasil e das pessoas
descartadas nas áreas de reassentamento na África do Sul. Nesse modelo,
o interesse não está em um Cristo que oferece apenas a salvação eterna,
mas em um Cristo que sofre e sua e sangra junto com as vítimas da opres-
são. Critica-se a igreja burguesa do Ocidente, que se inclina para o docetismo
e para quem a humanidade de Jesus é só um véu encobrindo sua divindade.
Essa igreja burguesa tem uma compreensão idealista de si mesma, recusa-
se a tomar partido e acredita oferecer um lar para senhores e escravos,
ricos e pobres, opressores e oprimidos. Por negar-se à prática da "solidari-
edade com as vítimas" (Lamb 1982), essa igreja perdeu sua relevância.
Tendo se despojado das dimensões sociais e políticas do evangelho, ela o
desnaturou por completo.
Nosso exame de como se compreendia a missão na igreja primitiva
(e sobretudo em Lucas) provou a justeza dessa perspectiva. A igreja do
Ocidente foi tentada a ler os evangelhos - na famosa expressão de Kãhler
- como "histórias da paixão com introduções extensas". A recente ênfase
no significado da encarnação - que foi aceita pelo movimento ecumênico
desde, no mínimo, a Conferência da CMME realizada em Melbourne, em
1980 - chama nossa atenção precisamente para essas "introduções exten-
sas" e sua importância para nossa missão. Melbourne se concentrou, em
grande parte, no "Jesus terreno, no judeu, no nazareno, que viveu como um
simples galileu, sofreu e foi executado, morrendo na cruz" (J. Matthey, in
WCC: 1980, ix). A "prática de Jesus" (Echegaray 1984) realmente tem muito
a dizer sobre a natureza e o conteúdo da missão hodierna.
2. A cruz: A expressão de Kãhler, recém citada, revela a preocupa-
ção da igreja ocidental- católica e protestante - com a paixão e a crucifica-
ção de Jesus. A pergunta "Qual é a essência do evangelho?" seria respon-
dida, provavelmente, pela maioria dos cristãos do Ocidente com "Cristo
morreu por meus pecados na cruz". Sem querer encetar um exame da
doutrina da expiação, parece-nos suficiente asseverar que essa concepção
possui, efetivamente, uma base bíblica; segundo ditos como Me 10.45 e
diversos enunciados de Paulo, pode-se concluir que, para muitos membros
da igreja primitiva, Cristo era o novo "lugar de expiação" em substituição do
templo (cf. Pesch 1982:4ls.). As pessoas que o aceitam como Salvador
612 - Rumo a uma missiologia relevante

têm seus pecados perdoados. Isso lhes abre o caminho para tomar-se mem-
bros de uma comunidade nova, salva, chamada igreja, um conjunto singular
das pessoas com quem Deus tem uma relação especial.
Mas a morte de Jesus na cruz não deveria ser isolada de sua vida. As
próprias "introduções extensas" aos evangelhos já constituem histórias da
paixão. A kenosis de Jesus, seu esvaziar-se, teve início com seu nascimen-
to. E foi por causa de sua identificação com os que se encontravam na
periferia e de sua recusa em agir conforme as convenções vigentes que ele
foi crucificado. Mas há o que se agregar a isso. A cruz de Cristo é o que
distingue, de forma única, a fé cristã (cf. Moltmann 1975:4). E quando o
Cristo ressurreto incumbiu seus discípulos a partir para a mesma missão
que recebera do Pai, foram as cicatrizes de sua paixão que lhes revelaram
quem ele era (Jo 20.20). Sem a cruz, o cristianismo seria uma religião da
graça barata (cf. Koyama 1984:256-261). A cruz se contrapõe à natureza
humana. Ela não é natural. E se, na era pós-moderna, a religião parece ser,
de novo, algo aceitável e natural - como Capra e outros sustentam - é
preciso que se sublinhe que uma religião da cruz não pode ser natural; a
cruz constitui um perigo permanente para qualquer religiosidade (Josuttis
1988; cf. Koyama 1984:240-261).
Mas as cicatrizes do Senhor ressurreto não apenas comprovam a
identidade de Jesus; elas igualmente são um modelo a ser emulado pelas
pessoas a quem ele outorgou esta incumbência: "Assim como o Pai me
enviou, eu também vos envio" (Jo 20.21). Trata-se de uma missão de auto-
esvaziamento, de serviço humilde - aqui reside a validade permanente da
idéia da "igreja para os outros" de Bonhoeffer. Na série de conferências
missionárias internacionais, foram principalmente a de Jerusalém (1928) e a
de Willingen (1952) que estiveram sob o signo de uma teologia da cruz.
Willingen se reuniu sob o tema "A obrigação missionária da igreja"; seu
relatório, porém, publicou-se como Missão sob a cruz. Toda missão, afir-
mou Hartenstein em relação a Willingen, constitui um ministério à verdade
em humildade (cit. ap. van 't Hof 1972: 160). Na presença da cruz, a igreja-
em-missão deve arrepender-se antes que se engaje na missão. Nas pala-
vras de Kâsemann, ditas em sua alocução à conferência de Melbourne, "as
igrejas que não se arrependem negam sua realidade e rejeitam o Senhor que
também teve de morrer por elas. Recusam-se a colocar-se debaixo da cruz,
onde todos os nossos pecados vêm à luz e onde nós, em nossa humanidade,
somos crucificados com ele" (WCC 1980:69). Paulo descobriu, não a des-
peito de, mas por causa da morte que ele sofria dia após dia, que era após-
tolo, missionário (cf. 1 Co 15.31; 2 Co 12.10). "Quando Cristo vocaciona
um homem, ele o convida a vir e morrer", escreveu Bonhoefer em meio à
luta da igreja alemã (cit. ap. West 1971:223). Nisso reside a importância
missionária da cruz. "O sofrimento representa a maneira como Deus age na
história (...) A missão da igreja no mundo também é sofrer (...) é participar
da existência de Deus no mundo" (Schütz 1930:245).
Missão de muitas maneiras - 613

A cruz também simboliza a reconciliação entre indivíduos e grupos


indispostos, entre o opressor e o oprimido. A reconciliação não significa,
naturalmente, uma mera harmonização sentimental de grupos em conflito.
Ela exige sacrifício, de maneiras muito distintas, mas muito reais, tanto da
parte do opressor quanto do oprimido. Requer o fim da opressão e da injus-
tiça e o compromisso com uma nova vida de mutualidade, justiça e paz.
Contudo, sem subtrair nada dessa asserção, é preciso acresentar que, even-
tualmente, existem males que não é possível reparar por meios humanos,
que não deveríamos permitir que nos tomemos prisioneiros de "sentimentos
de culpa, desesperados e irremediáveis", ou da idéia de que "a justiça preci-
sa ser nossa justiça, de que podemos e devemos cancelar nossa culpa me-
diante a reparação, ou (...) superar nossa frustração através da ação pura e
simples" (H. Bortnowska, in WCC 1980:150).
Entre os mestres morais do mundo, apenas Cristo não faz com que
tudo dependa do sucesso moral. Além da reconciliação, portanto, a cruz -
falando missiologicamente - também significa um ministério de amor aos
inimigos, de perdão. Ela afirma "que amar vale a pena, qualquer que possa
ser o custo em termos de autodoação e, inclusive, morte" (Segundo 1986:152
- grifo no original). Foi sobretudo por isso, diz Baker (1986: 162), que Jesus
deu sua vida. Ele acrescenta uma citação do staret: [guia espiritual] Silouan:
"Sem amor aos inimigos não há como seguir a Cristo". Trata-se de uma
assertiva dura, pois ela expressa o fim absoluto de qualquer tipo de preten-
são de justiça própria. A cruz, pois, também constitui uma categoria crítica.
Ela nos diz que a missão não é exeqüível quando somos poderosos e confi-
antes, mas apenas quando estamos fracos e sem norte. Nada do que faze-
mos está isento do julgamento da cruz. Não existe ação justa que também
não necessite de perdão, sobretudo porque o poder que trabalha pela justiça
hoje pode revelar-se injusto amanhã (cf. West 1971:229; Henry 1987:279).
3. A ressurreição: Nas igrejas do Oriente, é a ressurreição de Cristo
que constitui o evento salvífico de Deus par excellence. As pessoas que
planejaram a conferência de Melbourne (1980) haviam designado para a
Seção IV o tema "O Cristo crucificado desafia o poder humano". Os parti-
cipantes ortodoxos, no entanto, criticaram a formulação. Por isso, reformulou-
se e alterou-se o tema para "Cristo - crucificado e ressuscitado - desafia
o poder humano". A intervenção ortodoxa foi apropriada. A morte de Jesus
na cruz não tem sentido sem a ressurreição. Os primeiros cristãos viam o
evento pascal como a vindicação de Jesus. A cruz e a ressurreição não se
encontram em equilíbrio; a ressurreição tem a ascendência e a vitória sobre
a cruz (Berkhof 1966:180). A síntese mais comum da mensagem missionária
da igreja primitiva era seu testemunho da ressurreição de Cristo. Era uma
mensagem de júbilo, esperança e vitória, as primícias do triunfo definitivo de
Deus sobre o inimigo. E os crentes já podem compartilhar esse júbilo e essa
vitória. É isso, entre outras coisas, que a igreja oriental expressa em sua
614 - Rumo a uma missiologia relevante

doutrina da theosis, da divinização; ela representa o princípio da "vida


incorruptível" (Clemente de Roma). Na ressurreição de Cristo, as forças do
futuro já fluem para o presente e o transformam, mesmo que, aos nossos
olhos, tudo pareça estar inalterado. A vida do cristão continua a transcorrer
em dois planos, por assim dizer (cf. Segundo 1986:159). A promessa de
Deus e nossa esperança já são realidade plena em Cristo, antes que se
concretizem de todo na história humana; em Cristo, a eternidade adentrou o
tempo, a vida derrotou a morte (Memorandum 1982:463).
Em termos missiológicos, isso significa, em primeiro lugar, que o tema
central de nossa mensagem missionária é a ressurreição de Cristo, e que,
em segundo lugar e por conseqüência, que a igreja é chamada a viver a vida
da ressurreição no aqui e agora e a ser um sinal de oposição às forças da
morte e da destruição - que ela é convocada a desmascarar ídolos moder-
nos e falsos absolutos (Memorandum 1982:463).
4. A ascensão: A tradição calvinista, poder-se-ia dizer, concentra-se
na ascensão. Para João Calvino, as pessoas cristãs vivem entre a ascensão
e a parúsia; desde essa posição, elas procuram compreender qual é sua
missão (cf. Krass 1977: 1). A ascensão é, preeminentemente, o símbolo da
entronização do Cristo crucificado e ressurreto - ele agora governa como
Rei. E é dessa perspectiva do reinado presente de Cristo que voltamos
nossos olhos para trás, para a cruz e o sepulcro vazio, e para a frente, para
a consumação de tudo. A fé cristã é marcada por uma escatologia inaugu-
rada (p. 10). Isso não vale apenas para a igreja - como se a igreja fora a
corporificação presente do reinado de Deus - mas também para a socieda-
de, a história, que constitui a arena de atividade de Deus (p. 8). A história da
salvação não se opõe à história profana, nem a graça à natureza. Por con-
seqüência, decidir não participar da sociedade civil e estabelecer ilhotas
cristãs é subscrever uma compreensão truncada e disjuntiva da atuação de
Deus (p. 5). Na tradição calvinista, existe, portanto, uma atitude positiva
para com o que se pode alcançar na história das pessoas e do mundo.
Juntamente com a ênfase na encarnação, pode-se afirmar que essa
tradição teológica, mais do que qualquer outra, exerceu uma influência pro-
funda sobre o movimento ecumênico. Ela está comprometida com a con-
cepção de que a ordem vital de Cristo já avança, vigorosamente, em todo o
mundo (Berkhof 1966:170). A missão, vista desse ângulo, significa que de-
veria ser natural para os cristãos ter um compromisso com a justiça e a paz
no âmbito social. O reinado de Deus é real, embora ainda incompleto. Não
iremos inaugurá-lo, mas podemos ajudar a tomá-lo mais visível e mais tan-
gível. Neste mundo injusto, somos vocacionados a ser uma comunidade das
pessoas comprometidas com os valores do reinado de Deus, a preocupar-
nos com as vítimas da sociedade e a proclamar o juízo de Deus sobre aque-
les que persistem em adorar os deuses do poder e do amor-próprio. Nas
palavras da Seção IV.3 da conferência de Melbourne: "A proclamação do
Missão de muitas maneiras - 615

reinado de Deus é o anúncio de uma nova ordem que contesta aqueles


poderes e estruturas que se tomaram demoníacos em um mundo corrompi-
do pelo pecado contra Deus" (WCC 1980:210).
Mas a glória da ascensão permanece estreitamente vinculada à ago-
nia da cruz. O mesmo parágrafo de Melbourne (Seção IY.3) menciona "a
imagem deveras surpreendente (...) de um cordeiro sacrificado, abatido mas
ainda vivo, compartilhando o trono (...) com o próprio Deus vivo". De forma
similar, as palavras de Jesus em João 12.32 - "Quando eu for levantado da
terra" - foram, tradicionalmente, interpretadas como referência tanto a seu
ser "levantado" à cruz quanto à sua ascensão. O Senhor que proclamamos
na missão permanece o Servo sofredor. "O princípio do amor que se sacri-
fica é (...) entronizado no próprio cerne da realidade do universo" (p. 210).
E esse princípio precisa ser transparente em nossa práxis missionária. Não
é, pois, de estranhar que Melbourne tenha sido a conferência em que se
celebraram tanto a debilidade do Jesus encarnado quanto o poder do Cristo
ascendido. Kâsemann, especialmente (in WCC 1980:61-71), sublinhou a
identidade entre o Crucificado e o Kyrios.
5. Pentecostes: Os movimentos pentecostais e carismáticos tendem
a ver Pentecostes como a obra de Deus par excellence. Algumas pessoas,
inclusive, chegam a dizer que, depois de uma era da história eclesiástica em
que se enfatizava Deus Pai, seguida pela era do Filho, ingressamos agora -
sobretudo desde o princípio do século 20 - na era do Espírito. Nessa nova
dispensação, empenhamo-nos pela riqueza toda do céu e pelo êxtase inces-
sante agora. Assim, encontramos, nesse círculos, reivindicações quanto à
ocorrência de acontecimentos miraculosos e o regozijo por uma cadeia
ininterrupta de experiências apicais.
Sem negar o elemento de validade dessa interpretação de Pentecos-
tes, gostaria de sugerir que, de um ponto de vista missiológico, há mais a
dizer. Primeiro, quando o Cristo ressurreto foi interrogado por seus discípu-
los sobre a restauração do reino a Israel (At 1.6), ele respondeu prometen-
do-lhes o Espírito do testemunho. Nosso estudo dos escritos de Lucas, em
especial, revelou-nos o Espírito Santo como o Espírito da ousadia (parresia)
em face da adversidade e da oposição. Assim, "a igreja prossegue a missão
de Cristo no poder de seu espírito" (Memorandum 1982:461).
A era do Espírito é, além disso, a era da igreja. E a igreja no poder do
Espírito (Moltmann 1977) é ela mesma parte da mensagem que proclama.
Ela é uma comunhão, uma koinonia, que efetiva o amor de Deus em seu
dia-a-dia e em que a justiça e a retidão se tomam presentes e atuantes. Não
podemos ignorar essa comunidade, em verdade nos é vetado fazê-lo
(Lochman 1986:70). Trata-se de uma comunidade distinta, mas não de um
clube, de uma sociedade de gueto. O Espírito não pode ser seqüestrado pela
igreja, como se sua tarefa exclusiva fosse mantê-la e protegê-la contra o
616 - Rumo a uma missiologia relevante

mundo exterior (p. 71). A igreja só existe como parte orgânica e integrante
da comunidade humana global, "pois, tão logo que tente compreender a si
mesma como tendo sentido fora do conjunto da comunidade humana, ela
trai o único objetivo que pode justificar sua existência" (Baker 1986: 159).
Mesmo seu culto, sua celebração da eucaristia, não acontecem fora
dessa estrutura referencial. As igrejas ortodoxas nos ensinam que a euca-
ristiaé a mais missionária de todas as atividades da igreja (cf. Bria 1975:248).
Por um lado, ela é uma celebração e antecipação do triunfo vindouro de
Deus (Moltmann 1977:191s., 196,242-275); por outro lado, representa, cada
vez que a celebramos, um convite para que compartilhemos nosso pão com
as pessoas famintas (cf. Melbourne, Seção 1I!.31 [WCC 1980:206];
Memorandum 1982:462).
6. A parúsia: Já desde o século 1 têm existido grupos adventistas
cujo foco central está na segunda vinda de Cristo. Sua tendência foi encarar
o reinado de Deus como uma realidade exclusivamente futura e este mundo
como um vale de lágrimas, cativo nas garras do maligno. Nesse modelo, a
igreja constitui meramente uma antecâmara da eternidade. Os fiéis fixam
seu olhar no horizonte longínquo e nas nuvens, de onde Cristo retornará
como Senhor para transformar tudo em um piscar de olhos.
A validade dessa concepção é que, na fé cristã, o futuro efetivamen-
te tem a primazia. Só se pode entender a missão quando o próprio Cristo
ressurreto ainda tem um futuro, um futuro universal para as nações (Moltmann
1967:83). Isso aflorou, sobretudo, em nosso exame da teologia missionária
de Paulo; para ele, a missão constituía uma resposta à visão do triunfo vin-
douro de Deus. Segundo (1986: 179) reconhece a fidelidade da escatologia
paulina à ênfase de Jesus e a descreve como "o único tipo (de escatologia)
capaz de conferir um significado real à história humana". Em uma escatologia
genuína, a visão do derradeiro reinado divino de justiça e paz serve como
um magneto poderoso - não porque o presente seja vazio, mas exatamente
porque o futuro de Deus já o adentrou.
A igreja não é o mundo, pois o reinado de Deus já se encontra pre-
sente nela. Assim, só é possível reconhecer e praticar a unidade entre a
igreja e o mundo dialeticamente em esperança - isto é, à luz do reinado de
Deus (cf. Lochman 1986:68). Mas tampouco a igreja é o reinado de Deus.
Ela não possui o monopólio do reinado de Deus, nem pode reivindicá-lo para
si, nem pode se apresentar como o reino plenificado de Deus em
contraposição ao mundo (p. 69). O reino jamais se fará plenamente presen-
te na igreja. É na igreja, porém, que principia a renovação da comunidade
humana (p. 70). Mas precisamente como vanguarda do reinado de Deus, da
nova terra e da nova humanidade, a igreja não deveria tentar suscitar a
irrupção do fim nem apenas preservar-se para ele. O lugar desses dois é
ocupado pela missão da igreja (Moltmann 1967:83; 1977: 196). Em sua mis-
Missão de muitas maneiras - 617

são, a igreja afirma seu próprio caráter preliminar e contingente (cf. Küng
1987: 122). Ao praticar a "evangelização expectante" (Warren 1948: 133-
145), ela sempre antecipa sua própria supressão. Consciente de sua
provisoridade, ela vive e presta serviço como aquela força na humanidade
através da qual se servem a renovação e a comunidade de todas as pessoas
("Report", ap. Limouris 1986: 167).

Para onde vai a missão?


Jamais se podem ver os seis eventos salvíficos cristológicos como
isolados um do outro. Em nossa missão, proclamamos o Cristo encarnado,
crucificado, ressurreto, exaltado, presente entre nós no Espírito e conduzin-
do-nos para seu futuro como "cativos de sua procissão triunfal" (2 Co 5.14,
New English Bible). Cada um desses eventos exerce influência sobre os
demais. Se não tivermos isso presente, transmitiremos ao mundo um evan-
gelho truncado. A sombra do homem de Nazaré, crucificado sob Pôncio
Pilatos, cai sobre a glória de sua ressurreição e ascensão, sobre a vinda do
seu Espírito e sua parúsia. É o Jesus que caminhou com seus discípulos que
vive como Espírito em sua igreja (cf. Ef 2.20); é o Crucificado que ressus-
citou dos mortos; é Aquele erguido à cruz que ascendeu ao céu; é o Cordei-
ro sacrificado mas vivo que consumará a história.
Mas quem, que igreja, que grupo de pessoas está à altura de tal voca-
ção? (cf. 2 Co 2.16). Esta foi a pergunta que Mott fez a Kãhler pouco antes
da Conferência de Edimburgo: "Você crê que temos agora, em nível domés-
tico, um tipo de cristianismo que se deveria propagar em todo o mundo?"
(em Kãhler 1971:258). Hoje não formularíamos a questão de forma tão
ingênua como Mott o fez. Mas ela continua nos importunando. Ataca-se a
missão cristã de todos os lados, inclusive em suas próprias fileiras. Para
Rütti (1972, 1974), o empreendimento missionário moderno em sua íntegra
está tão contaminado por sua origem no colonialismo ocidental e sua estrei-
ta associação com ele, que é irremediável; temos que encontrar uma ima-
gem completamente nova hoje. Falando em uma consulta realizada em Kuala
Lumpur, em fevereiro de 1971, Emerito Nacpil (1971:78) descreve a missão
como "um símbolo da universalidade do imperialismo ocidental entre as no-
vas gerações do Terceiro Mundo". No missionário, as pessoas da Ásia não
vêem o rosto do Cristo sofredor, mas um monstro benevolente. Assim, ele
conclui que "a presente estrutura da missão moderna está morta. E a pri-
meira providência que deveríamos tomar é encomiá-la e então enterrá-la".
A missão parece ser o maior inimigo do evangelho. De fato, "o serviço mais
missionário que um missionário, sob o presente sistema, pode prestar atu-
almente à Ásia é ir para casa!" (p. 79). No mesmo ano, o queniano John
Gatu, falando primeiro a uma platéia em Nova Iorque e então em um encon-
tro da Igreja Reformada Americana em Milwaukee, sugeriu uma moratória
618 - Rumo a uma missiologia relevante

para o engajamento missionário ocidental na África. Bem antes, em maio


de 1944, Bonhoeffer, escrevendo de uma prisão da Gestapo e refletindo
sobre a igreja alemã de seus dias, escreveu:
Nossa igreja, que, em todos esses anos, tem lutado apenas por sua preserva-
ção, como se esta fosse um fim em si, é incapaz de levar a palavra da recon-
ciliação e da redenção à humanidade e ao mundo. Nossas palavras anterio-
res estão, pois, fadadas a perder sua força e a morrer, e nosso ser cristão
atualmente se limitará a duas coisas: orar e fazer boas ações entre os ho-
mens. (1971:300).
Bonhoeffer provavelmente também considerava o empreendimento
missionário da igreja no exterior uma luta pela autopreservação. Com me-
nos reserva que Bonhoeffer, James Heisig (1981) denominou a missão cris-
tã de "a guerra egocêntrica".
Ao contrário do que alguns desses autores poderiam sugerir, eles não
estão descrevendo um fenômeno novo. Durante a maior parte da história da
igreja, seu estado empírico tem sido deplorável. Isso já se verificava no
primeiro círculo de discípulos de Jesus e, em realidade, não mudou desde
então. Talvez tenhamos sido razoavelmente bons em termos de ortodoxia,
de "fé", mas temos sido medíocres em relação à ortopráxis, ao amor. Van
der Aalst (1974: 196) nos lembra que houve incontáveis concílios sobre o
crer corretamente; jamais, porém, convocou-se um concílio para elaborar
as implicações do mandamento maior - amar um ao outro. Pode-se, logo,
perguntar, com alguma justificação, se alguma vez existiu uma época em
que a igreja teve o "direito" de realizar trabalho missionário. O que Neill diz
dos missionários vale para os missionários de qualquer período, para o gran-
de apóstolo que se vangloriava de sua fraqueza até os que ainda se chamam
de "missionários": "(Eles), em geral, têm sido pessoas fracas, não muito
sábias, nem muito santas, nem muito pacientes. Têm transgredido a maioria
dos mandamentos e incidido em todos os erros concebíveis" (1960:222).
Os críticos da missão geralmente partem da suposição de que missão
era apenas o que missionários ocidentais estavam fazendo em termos de
salvar almas, implantar igrejas e impor seus métodos e vontades a outros.
Jamais podemos, contudo, limitar a missão exclusivamente a esse projeto
empírico; ela sempre foi maior do que o empreendimento missionário obser-
vável. É claro que tampouco se deve divorciá-la completamente dele. An-
tes, missão é missio Dei, que procura englobar em si as missiones ecclesi-
ae, os programas missionários da igreja. Não é a igreja que "empreende" a
missão; é a missio Dei que constitui a igreja. A missão da igreja precisa ser
constantemente renovada e repensada. Missão não equivale a competição
com outras religiões, não é atividade de conversão, de expansão da fé, de
edificação do reino de Deus; tampouco é atividade social, econômica ou
política. Existe, porém, mérito em todos esses projetos. A igreja se preocu-
pa, pois, com conversão, crescimento eclesiástico, o reinado de Deus, eco-
Missão de muitas maneiras - 619

nomia, sociedade e política - mas de um modo diferente! (cf. Kohler


1974:472). A missio Dei purifica a igreja. Ela a coloca sob a cruz - o único
lugar onde está segura. A cruz é o lugar da humilhação e do juízo, mas
também é o lugar do refrigério e do renascimento (cf. Neill 1960:223). Como
comunidade da cruz, a igreja, portanto, constitui a comunhão do reino, não
só de "membros da igreja"; como comunidade do êxodo, não como "institui-
ção religiosa", ela convida as pessoas para a festa sem fim (Moltmann
1977:75).
Vista dessa perspectiva, a missão é, simplesmente, a participação
das pessoas cristãs na missão libertadora de Jesus (Hering 1980:78), apos-
tando em um futuro que a experiência verificável parece desmentir. Ela é a
boa nova do amor de Deus, encarnado no testemunho de uma comunidade,
em prol do mundo.

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