Tradução Livre: Centro de Psicossíntese de São Paulo.
Texto extraído dos cursos ministrados aos domingos por Dr. Roberto Assagioli no Istituto di
Psicosintesi, Florença, 1967. Lição 01.1967
A VONTADE – DO PROPÓSITO À ATUAÇÃO
Por Dr. Roberto Assagioli
Antes de começar a falar da vontade, darei uma notícia muito significativa
publicada no jornal “A Nação” que chega a provocar vergonha! Trata-se de uma
correspondência do enviado do jornal na Indonésia. Este correspondente foi entrevistar
dois professores da Universidade da Indonésia e escandalizou-se porque diante destas
várias galinhas se coçavam (o que não acontece aqui!). Porém encontrou algo
interessante: os professores lhe perguntaram o queria saber, e então ele pergunta como
funcionava a Universidade. Um dos professores lhe disse que um indonesiano, depois
de ter frequentado os seis anos do ensino fundamental, e outros seis do ensino médio
(high-school americano), entra na Universidade. No primeiro ano um estudante
geralmente deve passar por exames de psicologia geral, psicologia experimental,
infantil, social e pedagogia; no segundo ano, exames de antropologia, filosofia, biologia
etc.
É um programa um pouco diferente em comparação aos das nossas Universidades
nas quais a psicologia em muitas faculdades nem mesmo existe Ali compreenderam que
a ciência fundamental é a psicologia: é a ciência do homem, que lhes dá formas de
conhecer a si mesmo e formas de agir sobre si e sobre outros seres humanos.
O professor indonesiano prossegue: “Nós professores e os estudantes de
psicologia, do primeiro ao último ano, ao contrário do que acontece em outras
Universidades do mundo, não vivemos separados uns dos outros. Fazemos “psicologia
aplicada”. Fazemos uma psicologia viva; na convivência entre estudantes e professores
surgem muitas situações psicológicas que proporcionam matéria para aprendizagem. Os
professores disseram que na psicologia esperavam grandes tarefas para a formação do
país, e que do ponto de vista cultural, consideravam-se seguidores da fenomenologia
existencial. (Aqui é necessária uma explicação: eles não entendem o existencialismo
negativo e “desesperado”, que é o mais conhecido, mas “a atitude existencial”, isto é a
partir dos dados imediatos da experiência, da existência vivida intencionalmente). Não
acredito que sejam necessários comentários; esperemos que em décadas se faça também
por nós algo parecido (sou um otimista).
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Hoje começarei a falar da Vontade: do propósito à atuação. Esta e as aulas
seguintes constituirão um tratado sobre este tema de um ponto de vista diferente em
relação às três aulas dadas em 1963. De um lado as aulas deste ano terão um cenário
mais sistemático, mas (tranquilizem-se!) de outro elas terão como objetivo prático o uso
da vontade. Consistirão no exame dos seis estágios ou fases da vontade ou mais
precisamente do ato volitivo completo, que vai do propósito à atuação.
Estes estágios são:
1. O propósito, a meta, baseados na avaliação e motivação
2. A deliberação
3. A escolha e decisão
4. A afirmação, comando, o faça-se da vontade
5. O planejamento e programação
6. A direção da execução: uma vez que a função especifica da
vontade é dirigir e não, como comumente se acredita, executar.
O que caracteriza a ação voluntaria e a distingue das outras é em primeiro lugar a
clara visão de um objetivo, de uma meta a alcançar, de um propósito a executar. Esta é
uma característica necessária, mas não suficiente: na verdade, até a visão do objetivo
permanece pura imagem, ou contemplação dele, não é ainda vontade: é necessário que o
objetivo seja avaliado, apreciado, e que, portanto, suscite motivos, isto é um impulso a
realizá-lo. A palavra “motivo” indica algo ativo, dinâmico, e os motivos são suscitados
pela valorização, isto é a avaliação dos objetivos, da meta a ser alcançada.
Mas também isto não basta: de fato existem muitos objetivos possíveis e não
podemos por certo realizá-los todos; e nem todos ao mesmo tempo. Por isso é
necessária uma escolha e ao fazê-la é preciso levar em conta nossas possibilidades; ou
seja, dar-se conta se um dado objetivo é viável para nós. Isto entra no segundo estágio, a
deliberação, na qual se leva em consideração os vários possíveis objetivos e a sua
viabilidade.
À deliberação devem seguir a escolha e a consequente decisão: isto é escolher um
dado objetivo e decidir alcançá-lo, descartando e deixando de lado os outros mesmo que
possíveis e até mesmo apreciáveis.
A decisão e a escolha devem ser validadas pela afirmação. Através da afirmação
colocam-se em ação, promovem-se as energias dinâmicas e criativas que acabarão por
produzir a atuação.
Mas antes é necessário o estudo de uma cuidadosa programação ou planejamento,
ou seja, a consideração e a escolha dos vários meios e das várias fases da atuação, no
tempo, segundo as circunstâncias, as condições, as possibilidades existentes.
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Vem então a direção da execução, que é uma tarefa específica da vontade. A sua
função não é, como geralmente se acredita, a de realizar diretamente a execução. A
vontade pode e deve servir-se de outras funções e energias existentes na personalidade
psíquica e física: pensamento, imaginação, sentimentos, impulsos, órgãos físicos de
ação.
Usando a analogia da representação teatral, da qual falei em uma aula anterior, a
vontade é o diretor que dirige os atores, não é um dos atores. A atuação é realizada pela
ação coordenada das funções e energias acima mencionadas e inclui a utilização e
aplicação daquilo que foi decidido e projetado. Também estas devem ser reguladas e
dirigidas pela vontade, que mantém a clara visão do propósito, da meta que foi proposta.
É uma função importante, aliás necessária uma vez que ao agir nas várias fases
sucessivas de uma atividade um pouco complexa, pode acontecer facilmente que se
perca de vista o objetivo. A atenção dada aos meios é tal, que eles tendem a tornar-se
objetivos em si mesmos, por isso a vontade deve estar sempre e vigilante e pronta para
intervir.
Após dar este olhar do conjunto, panorâmico, dos estágios da vontade,
examinaremos cada um deles; mas antes é necessário descobri-la em nós, ou seja, ter
uma clara tomada de consciência dela. Isto ocorre por sua vez em três estágios.
O primeiro (não se surpreendam) é reconhecer que a vontade existe; na verdade
muitos – e entre eles também muitos psicólogos modernos – não a conhecem; aliás,
alguns negam sua existência. É necessário, portanto, o reconhecimento da realidade e da
natureza da vontade, que foram afirmadas e demonstradas pelas várias filosofias e
doutrinas sobre a vontade.
O segundo estágio é o da descoberta de ter vontade. Pode-se chegar diretamente,
por experiência interna, como um dado imediato da consciência; muitos não têm uma
mente filosófica, chegam na verdade assim, aliás, mais facilmente pelos outros, e é para
todos uma forma mais convincente. Tal descoberta direta pode ser espontânea, ou
favorecida ou até provocada, mediante um exercício especial; o que foi descrito nas
primeiras três aulas de 1963.
O terceiro estágio da descoberta, que a torna mais completa e eficaz, é o de ser
uma vontade, que é diferente de ter uma vontade. Também a esta descoberta pode-se
chegar pelas mesmas duas vias: a direta, que consiste na continuação, no
aprofundamento da anterior, e a indireta, racional, baseada em argumentos adotados por
concepções voluntarias. Ela implica na descoberta de si como sujeito consciente,
distinto de cada conteúdo ou determinação. É a revelação da verdadeira
autoconsciência, do “Eu sou”.
A autoconsciência tem dois aspectos, duas características inseparáveis: o
cognitivo, se poderia dizer contemplativo e o dinâmico. Isto pode ser expresso de vários
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modos, por exemplo: “Sou ser e querer” – ou: “Enquanto sou, posso querer”. Assim é a
vontade, aliás, em um certo sentido identidade, entre o Eu e a vontade, entre ser e
querer, ela é afirmada a partir de suas concepções. Elas foram expostas claramente pelo
Prof. Calò, em seu ótimo artigo sobre vontade publicado na Enciclopédia Treccani.
Limitar-me-ei a uma citação: “A atividade voluntária está em estreita conexão com a
consciência do Eu como centro unitário e ativo, associada a todos os elementos da vida
psíquica. O Eu, inicialmente obscura subjetividade, ponto de referência único de toda
experiência psíquica, que ao afirma-se pouco a pouco consegue distinguir-se como fonte
de atividade de cada elemento seu, sentimentos, tendências, instintos, ideias. A vontade,
é exatamente o conjunto das atividades do Eu como unidade sobreposta à multiplicidade
dos seus conteúdos, que substituem a ação de início impulsiva, parcial, que emana
destes conteúdos. O EU e a vontade são termos correlatos. O EU enquanto capacidade
de ação, que é querer”
Isto está de pleno acordo com o que dissemos e fizemos com o exercício de
desidentificação, e também demonstrado no seguinte diagrama das funções
psicológicas:
O diagrama pede um comentário. Como se sabe, Jung distinguiu quatro funções
psíquicas: sensação, emoção, pensamento e intuição, mas um exame objetivo da vida
psíquica em nós e nos outros mostra que existem outras funções que não podem ser
identificadas como aquelas: são a imaginação, o impulso, o desejo e a vontade.
Representei a vontade no centro, em contato direto com o eu consciente, para mostrar
que ela está aderente, íntima ao EU, e que através dela o EU pode receber das outras
funções psíquicas impressões e informações e por sua vez agir sobre elas, influenciá-las,
dirigi-las.
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O diagrama é simplista, como todos os diagramas, mas considero que possa ajudar
a reconhecer a posição central da vontade. É preciso, entretanto, partir da experiência
central, fundamentalmente da autoconsciência da descoberta do Eu. Na realidade ela
está implícita na nossa consciência humana, é isto que a distingue da dos animais, que
são conscientes, mas não autoconscientes. Porém também em nós esta autoconsciência é
justamente “implícita”, “nebulosa”, “impura”, ou seja, mista e velada pelas contínuas
identificações do EU com os conteúdos da consciência. Por isso para torná-la explicita,
clara, vívida, é necessário desidentificar-se dos inúmeros conteúdos, e para isto aponta
justamente o exercício de desidentificação que fizemos aqui, que convidei e convido a
fazer.
Em seguida há um próximo passo a ser dado, mais uma descoberta: a das relações
entre o eu consciente e o Eu espiritual e o reconhecimento da sua identidade essencial,
uma vez que o eu consciente é somente um reflexo, uma projeção do Eu espiritual no
campo da consciência. Isto está representado no diagrama da constituição psíquica
humana.
O Eu consciente está indicado com um ponto no centro da área de consciência,
enquanto o Eu espiritual está representado por uma estrela no topo. Não me detenho
sobre isto porque por ora basta, e já é muito, a tomada de consciência do Eu e da
vontade.
Depois desta necessária premissa e clarificação podemos iniciar o exame dos
vários estágios do ato da vontade.
Falarei do primeiro:
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O propósito, a avaliação, as motivações.
Neste estágio reuni estes três diferentes “momentos” ou aspectos, uma vez que
estão de tal forma conectados entre si, que não considerei oportuno fazer três estágios
distintos. Na verdade, um propósito é a vontade de estabelecer uma meta, um objetivo;
mas um objetivo não se constitui como tal se não for apreciado e avaliado, por sua vez
um motivo não se caracteriza se não “mover”, se não empurrar até um objetivo.
Porém nem sempre eles seguem a ordem indicada; por vezes se apresenta
originalmente à consciência uma causa, um impulso até uma meta, um ideal, não ainda
bem claros e definidos, ou se desperta na consciência um sentido de um valor, por
exemplo, um valor moral, social, estético, religioso, que somente depois suscita o
propósito bem definido a ser atingido. Outras vezes ao contrário, se tem por primeira
visão, o flash intuitivo, a revelação que define uma meta, uma tarefa; em seguida é
atribuído um valor e isto que suscita os motivos até sua atuação. Portanto as relações
dinâmicas entre estes aspectos: propósito e objetivo, avaliação, motivo, podem ser
muito diferentes.
Outro modo para indicar as relações acima citadas é o seguinte: os motivos são
baseados em avaliações, e as avaliações são baseadas no significado atribuído à vida;
mas este significado por sua vez depende do objetivo, do propósito da própria vida e da
realização deste propósito. Então é importante, aliás necessário, ter uma concepção
positiva do significado e do propósito da vida. Sobretudo reconhecer que a vida tem um
propósito, que tem um significado, e que este significado é positivo, construtivo, bom.
Observe que tudo isto pode surgir de dentro, do nosso ser, espontaneamente ou
acontece (aliás, mais frequentemente) por obra de estímulos externos, como exemplos
de vida, ou então leituras, imagens, ideias dos outros. Mas eles tornam-se eficazes
somente se são acolhidos por nós, “introjetados”; por isso esta origem diversa não muda
a natureza do ato volitivo, que, como tal, pede uma adesão consciente do Eu.
Até este ponto as coisas são, ou parecem bastante simples. Mas quando se vai
examinar as motivações, as coisas se complicam. A psicanálise tem, não digo
descoberto, mas enfatizado muito o fato que existem motivações inconscientes; que
muitas vezes nós agimos acreditando fazê-lo por um dado motivo consciente, mas na
realidade somos movidos também e sobretudo, por impulsos dos quais não estamos
conscientes. Eles são de natureza inferior, superam a “censura” do Eu mediante um
processo inconsciente chamado por Freud de “racionalização”. Mas já antes da
psicanálise ele era conhecido como a tendência geral dos homens a encontrar
justificativas para nós mesmos e para os outros. Tal tendência poderia ser comparada a
um advogado interno que defende a causa dos impulsos mais intensos que operam no
inconsciente.
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A este respeito houve uma daquelas reações, ou oscilações extremas, que são
frequentes na vida e nas doutrinas. A psicologia clássica se dava conta somente das
motivações conscientes; depois, por reação, a psicanálise e o behaviorismo, isto é a
psicologia do comportamento, deram-se conta somente, ou quase, das motivações, dos
impulsos inconscientes, determinados, chegando assim praticamente à negação da
vontade.
Pode-se dizer que, como em muitos outros casos, a verdade está no meio: existem
motivações conscientes e motivações inconscientes, aliás se poderia dizer que quase
sempre há uma somatória de umas e de outras em proporções muito variáveis. É
necessário, portanto, uma análise precisa; uma autoanálise, ou análise por parte do
médico ou do educador conforme o caso.
Não posso demorar-me nesta ocasião sobre técnicas desta análise que expus no
livro “Para harmonia da Vida – A Psicossintese”. Assinalarei somente um erro que se
comete muito frequentemente e, dada a sua grande importância pelas consequências que
pode acarretar. Permito-me repetir o disse na segunda aula do curso sobre Vontade de
1963 com referência à técnica do “agir como se” se tivesse um estado de animo,
enquanto existe em nós o contrário. Alguns ficam indignados pelo uso deste método
considerando-o uma hipocrisia. Segundo eles, se estou irritado, se tenho algum
ressentimento por uma pessoa e a trato de modo benevolente e sorridente, isto é
fingimento. Mas na realidade não o é dada a multiplicidade psíquica existente em cada
um de nós. Seria hipocrisia e fingimento se o fizesse para enganar os outros com
propósitos egoístas; mas aqui se trata de reconhecer a própria complexidade, a
coexistência de impulsos e tendências contrastantes. Em nós surge um impulso de
hostilidade, de ressentimento, mas se nós (ou seja, o nosso eu consciente) não o
aprovamos, não nos identificamos a nossa verdadeira vontade é ser benevolentes apesar
da parte impulsiva que queria dar socos ou tapas naquela pessoa.
Ao entrar em contato, por assim dizer, estas energias opostas, tendem a
neutralizar-se mutuamente e deveremos propor-nos intensificar o “potencial” das
energias benevolentes, de compreensão etc., de modo que não somente neutralizem as
opostas, mas tornem-se um “avanço ativo”. Aqui, porém é necessário fazer uma
observação, a citada na lição sobre Modelo Ideal. Se as tendências hostis são muito
intensas, o método agora citado não basta ou pode provocar reações não desejáveis.
Nestes casos é preciso usar antes os métodos da “descarga” inócua (catarse), da
transmutação e da sublimação.
Por isso o modo benéfico é a mais alta sinceridade, uma vez que corresponde ao
que queremos ser completamente e que somos já em parte. Tal reconhecimento elimina
o que pode ser chamado “o equívoco da sinceridade”. Muitos comportam-se de modo
descortês, agressivo, impulsivo e se desculpam dizendo “sou sincero”. Mas esta é a
sinceridade do homem das cavernas: ele matava os inimigos e batia em sua mulher com
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“sinceridade”. Por isso no método de “agir como se” teríamos os sentimentos desejados,
sem fingimento, sem hipocrisia, mas com sinceridade espiritual. É um meio eficaz para
nos tornarmos cada vez mais como queremos ser, mesmo quando ainda não o sejamos.
Quanto aos motivos inconscientes, recordarei que Pakard adverte que até sobre
aqueles suscitados de certas formas pela publicidade no seu livro “I Persuasori
Invisibili”. Aconselho a leitura; poderá ajudar a não se deixar induzir e sugestionar para
fazer despesas inúteis!
Em relação às motivações, é oportuno distinguir entre “motivação” e “motivo”;
uma motivação é constituída, produzida por um impulso, por uma pulsão, aqueles que
em inglês se chamam “drives” e “urges” podem ser conscientes ou inconscientes. A
motivação pode ser considerada genericamente como uma tendência espontânea,
“aquilo que move” ou que tende a mover-se, ao contrário, o motivo para ser verdadeiro,
deve ser consciente, ter um aspecto cognitivo, mental; isso requer uma clara visão do
objetivo, em seguida sua valorização, o reconhecimento do seu valor.
Há além disso uma distinção fundamental e necessária entre as motivações e os
motivos egoístas de um lado e os não egoístas do outro, isto é, os altruístas, éticos,
espirituais. As motivações e, portanto, a vontade do Eu, são egoístas quando o Eu
acredita ou se considera separado dos outros e se propõe e persegue fins puramente
individuais. Mas esta posição egoísta, ou egocêntrica, antes de constituir uma
deficiência em sentido moral, é uma ilusão fundamental, por um erro direi, científico.
De fato, o indivíduo isolado não existe: o Eu, o queira ou não é tecido acima de tudo em
uma densa rede de relações interpessoais e sociais; além disso é parte integrante da vida
universal, com a qual tem relações muito maiores do que aquelas das quais geralmente
se da conta, conforme dados científicos recém confirmados. Basta recordar a
demonstração das influências cósmicas dada pelo Prof. Piccardi.
Mas a prova psicológica mais evidente está no fato da afetividade. Ela existe em
cada ser humano normal e muitas vezes é aliás preponderante. O ser humano de um lado
tem necessidade de amar, de dar afeto, por isso cada vontade puramente egoísta,
enquanto não se dá conta deste elemento vital da natureza humana, é realmente
“inumana”.
O mesmo se pode dizer pela posição existencialista extrema que acentua a solidão
do ser humano, o seu insuperável isolamento. Este é um estado de animo, uma
experiência temporária que muitos podem ter, mas o isolamento e a incomunicabilidade
são relativos e temporários. As que existem infelizmente são as estruturas defensivas
que muitos indivíduos criam, por medo de perder o próprio “querido eu”, ou por
excessiva autodefesa contra as pressões conformistas e especiais.
Mas estas reações de defesa em certo sentido confirmam a existência da relação
entre o próprio Eu e os outros. Se o Eu fosse independente dos outros, não se sentiria
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nem mesmo só. O erro dos existencialistas é considerar este estado subjetivo e
temporário como uma realidade psicológica permanente e como algo não modificável. É
bom ter claro isto, dada a expansão da literatura existencialista insuficiente, que é bem
distinta da concepção psicológica existencialista. O uso da mesma palavra tende a
confundir as duas concepções; é bom se dar conta e ter presente sua diferença.
Sobre a vontade egoísta ou não egoísta, é oportuno responder a uma objeção que
foi mais vezes colocada; isto é que também a vontade altruísta é no fundo egoísta,
enquanto causa prazer, satisfações a quem a usa. Não é difícil refutar este sofisma: ao
ampliar assim indefinidamente o significado do egoísmo, ele perde todo sentido preciso;
isto é o prazer que se tem em obter satisfações para nós mesmos, e o que se tem ao dar
satisfação aos outros, por isso é uma questão artificial, somente de palavras. Este
sofisma do egoísmo está também parcialmente baseado na velha concepção, para o qual
o dever, o fazer o bem, eram sentidos como imposição, uma obrigação externa, tendo,
portanto, um caráter doloroso.
Fazer isto apresenta grandes vantagens: a primeira é evitar a condenação e a
repressão no inconsciente daquelas tendências, ou um deprimente senso de culpa, com
as consequências prejudiciais que se originam, colocadas em evidência, de modo
também exagerado, por muitos psicanalistas.
Poder-se-ia dizer que uma das tarefas mais importantes da vontade é mobilizar
uma tendência contra outra, segundo a oportunidade e os objetivos a conseguir, por ex.,
mobilizar a ambição ou a sede de ganho contra a preguiça, ou inversamente a tendência
do viver tranquilo contra o ativismo excessivo etc. Esta é uma das artes mais belas e
eficazes da ação volitiva: não fazer ataques frontais, mas “manobrar” habilmente.
A constatação da existência de elementos inferiores não deve nos surpreender nem
nos deprimir, assim somos todos! Cada um tem um pequeno mundo, um microcosmo,
no qual existem todos os reinos da natureza: o mineral no osso etc.; a vida vegetativa; os
instintos animais; o homem primitivo; o ser humano atual. Somos a soma de toda
evolução do passado, do mineral em diante. Mas a evolução não para no “homo
sapiens”, que muitas vezes é muito pouco “sapiens”. A definição do homem como um
“animal racional”, foi corrigida pela máxima: “o homem é um animal algumas vezes
racional”.
Mas a evolução, repito, continua e nossa tarefa é favorecer este grande impulso
evolutivo, sem negar os estágios anteriores. Esta evolução psicoespiritual futura, aliás,
já em ação sobre bases biopsíquicas, foi muito bem prospectada por Taillard de Chardin
em “L’Avenir de l’Homme”.
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A segunda vantagem é utilizar de modo individual e socialmente produtivo
energias potentes que diferentemente podem explicar-se de modos nocivos e
destrutivos. Este procedimento é análogo a construção das águas impetuosas de uma
torrente em um canal indo para uma central elétrica.
A terceira vantagem é que ao empregar para propósitos superiores àquelas
tendências, energias, elas podem ser transmutadas e sublimadas. Este processo de
transmutação das energias psíquicas tem uma grande importância e utilidade e
mereceria ser muito mais conhecido e praticado, uma vez que constitui o modo mais
eficaz e construtivo para resolver os dois maiores problemas diante aos quais se
encontra atualmente a humanidade.
Voltando ao recolhimento, ao convergir dos motivos no produzir as decisões e as
atividades que dele decorrem, pode-se observar frequentemente que no desenvolver das
atividades socialmente uteis, muitas vezes, além do motivo humanitário, existem outros
motivos, como a ambição, a vaidade, o desejo do reconhecimento e da valorização dos
outros, a autoafirmação etc. A este propósito devemos reconhecer que não se deveria
nunca julgar “bom” ou “mau”, superior ou inferior, em sentido absoluto. Tudo é relativo
à pessoa, a sua evolução, às condições ambientais e a muitos outros elementos, para
dizer de forma simplista: o que pode ser “bom” para um é “mau” para o outro. Portanto,
convém seguir a máxima Evangélica “não julgueis” e também lembrar o verso de
Campanella: “Em Deus veremos quem melhor fez e disse”. Perde-se tanto tempo e tanta
energia em julgar os outros que muitas vezes não se avança para examinar a nós
mesmos, no propósito de nos conduzir bem.
A isto poderia ser objetado que todo ato volitivo pede uma avaliação, uma
valorização, isto é um “juízo”, e dois modos diferentes de usá-la. Quando se fala de
juízo, entende-se geralmente o juízo moral: um louvor, uma aprovação, ou mais
(frequentemente) uma culpa, uma condenação, que dão um sentido de superioridade a
quem os pronuncia.
Ao contrário, os julgamentos que são necessários – tanto no primeiro estágio do
ato volitivo, quanto (como veremos) no segundo, da deliberação – são avaliações
objetivas, racionais, feitas com base em elementos múltiplos diversos. A palavra mais
exata neste caso seria a “discriminação”.
Voltando ao exame dos motivos, devemos reconhecer que os “inferiores”
constituem uma imperfeição ética subjetiva, mas não constituem um obstáculo objetivo,
aliás podem favorecer o desenvolvimento de atividades artísticas. Elas, além da
inspiração superior, do impulso criativo espontâneo, podem ser estimuladas e
intensificadas pela urgência de necessidades práticas; recordarei dois exemplos
demonstrativos: o de Balzac e de Dostoievsky. Ambos foram atormentados pela
necessidade econômica: Dostoievsky porque era dominado pela paixão do jogo; Balzac
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por dívidas que contraia pelo tipo de vida luxuosa e pelo modo antieconômico de
refazer mais vezes os rascunhos de impressão. (Se em seu tempo houvesse a máquina de
escrever, não teria feito tantas dívidas). Se bem que o tormento fez sim que eles
tivessem escrito um número maior de romances. Que isto não tenha influído sobre a
qualidade das suas criações é evidente no caso de Balzac, uma vez que uma das maiores
causas das suas despesas foi o escrúpulo artístico que o induzia a refazer e desenvolver
mais vezes a mesma obra.
Um exemplo contrário, que constitui uma confirmação que se poderia chamar
negativa, é o de Rossini. Quando se tornou celebre e rico, cortejado e admirado em
Paris, não teve mais incentivos adequados para vencer sua natural preguiça e volúpia;
por isso para de compor obras de relevo. Se fosse mais ambicioso, ou mais desejoso de
ganho, teríamos mais de sua obra prima. (tudo isto poderia ser invocado como
justificativa pelos prêmios literários, ou criticáveis por outras razões!).
Pode-se dizer, portanto, que não somente é oportuno utilizar os motivos menos
elevados, mas que pode ser legal criar de propósito, isto é suscitar incentivos pessoais
para intensificar a eficácia dos superiores, para potencializar o ato volitivo. Estes
incentivos são inócuos: por ex., o assumir compromissos externos; fixar as datas para a
realização de uma determinada ação; o prometer algum prêmio a nós mesmos (o método
da cenoura!).
Em certo sentido, o uso destes meios poderia ser considerado um ato de
humildade, uma vez que implica no reconhecimento da existência em nós dos motivos
inferiores ou simplesmente pessoais. Sem dúvida é necessário que prevaleçam os
motivos superiores, de modo que sejam estes a determinar e dirigir a ação. Falei de
“clara prevalência”, mas se poderia até dizer que uma pequena prevalência seria
suficiente. Quando numa sociedade por ações um grupo possui 51% isso lhe dá o
comando, determina as decisões da empresa; do mesmo modo, na ação voluntária basta
que haja uma prevalência segura dos motivos superiores a fim de que os motivos
inferiores igualmente fortes, não tenham voz no capítulo das decisões e das ações quer
sejam igualmente inócuos, ou até úteis, como os acionistas minoritários que investiram
um capital.
Por outro lado, é bom se dar conta que tudo isto pode apresentar inconvenientes e
perigos; é necessário que a vontade seja muito vigilante a fim de que os motivos
inferiores não “assumam o comando” ou não induzam a ilusões, a compromissos, a
desvios do propósito inicial, do objetivo pré-fixado. Por outro lado, tudo isto resguarda
a obtenção dos objetivos externos; quando ao contrario o fim proposto é o
desenvolvimento e a elevação interna, a psicossintese espiritual, então ocorre uma
deliberada e mais elevada sublimação.
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