Saber que se Sente: Corpo, Afeto e Conhecimento em uma Epistemologia
Encarnada
Resumo
Este artigo propõe uma abordagem interdisciplinar sobre o papel das emoções
na produção de conhecimento, com ênfase na epistemologia feminista e na
Psicologia Social crítica. A partir das contribuições de autoras como Alison
Jaggar, Sara Ahmed, bell hooks, Audre Lorde, Donna Haraway e Sandra
Harding, assim como de pensadores como Spinoza, Descartes, Hillman, Bull e
Reich, argumenta-se que as emoções não são meras reações subjetivas, mas
formas legítimas de cognição e crítica social. O trabalho percorre concepções
filosóficas, neurocientíficas e simbólicas das emoções, explorando suas
implicações éticas, políticas e epistemológicas. Ao integrar corpo, afeto e razão,
propõe-se uma ciência situada, sensível e comprometida com a transformação
social.
Palavras-chave:
emoção; epistemologia feminista; corpo; afeto; conhecimento situado; Psicologia
Social; razão.
Introdução
Pensar as emoções é, talvez, uma das formas mais sutis e corajosas de
interrogar o humano. Sentir — verbo tantas vezes relegado ao íntimo, ao
instável, ao irracional — emerge aqui como território fértil de pensamento, ética
e política. Neste ensaio, caminhamos entre as margens da razão e do afeto,
perguntando: e se fosse o corpo, com suas memórias, gestos e tremores, o
verdadeiro arquivo do saber? E se a raiva, o amor, o medo e o cuidado fossem
mais do que reações — fossem também modos de conhecer e transformar o
mundo?
As emoções, longe de serem ruídos na ordem racional, aparecem como
ressonâncias — ecos que atravessam disciplinas, tempos e vozes. De Darwin a
Spinoza, de Bull a Hillman, de Reich a Descartes, encontramos distintas
tentativas de nomear aquilo que vibra entre a carne e o pensamento. Mas é com
as epistemologias feministas que esse vibrar se torna chamado. Alison M.
Jaggar, em seu texto Love and Knowledge (1989), inaugura uma nova escuta:
propõe que os afetos — especialmente os que desafiam normas — são
ferramentas críticas, indicadores de injustiça e motores de transformação.
É a partir dessa escuta encarnada que este trabalho se inscreve. Com
inspiração no curso “Sentir, Pensar e Transformar: Emoção e Conhecimento na
Psicologia Social Feminista”, propomos uma travessia interdisciplinar pelas
tramas entre emoção, razão e conhecimento. Reunimos autoras como Jaggar,
bell hooks, Audre Lorde, Sara Ahmed, Sandra Harding e Donna Haraway, e
dialogamos com pensadores que, de formas distintas, contribuíram para a
cartografia do sentir: Spinoza, Descartes, Reich, Hillman, Bull, Darwin.
Nosso percurso se volta às emoções como práticas epistemológicas, mas
também como gestos éticos e políticos. Interessa-nos aquilo que se move
quando o saber se deixa afetar — quando o pensamento abriga o tremor, e a
ciência escuta o corpo. Afinal, como saber, sem antes sentir?
2. Epistemologia Feminista das Emoções: Diálogos com Jaggar
A esse panorama soma-se de forma essencial a contribuição sistematizada de
Sandra Harding (1991) em Whose Science? Whose Knowledge? na qual a
autora delineia três grandes vertentes da epistemologia feminista: o empirismo
feminista, a teoria do ponto de vista feminista e o pós-modernismo feminista. O
empirismo feminista, ao propor a correção dos vieses androcêntricos por meio
de uma aplicação mais rigorosa dos métodos científicos tradicionais, sugere que
a inclusão das mulheres na ciência poderia torná-la mais objetiva. A teoria do
ponto de vista feminista, por sua vez, avança ao defender que os grupos
oprimidos têm acesso epistêmico privilegiado por experimentarem as
desigualdades sistêmicas, influenciando diretamente a forma de ver o mundo.
Inspirada em Marx, Harding propõe que o ponto de vista das mulheres e de
sujeitos marginalizados deve orientar a construção do conhecimento. Já o pós-
modernismo feminista rejeita a existência de um ponto de vista fixo ou
privilegiado, enfatizando a multiplicidade de vozes, identidades e contextos
como fontes legítimas de saber. Harding não considera essas vertentes
excludentes, mas complementares, e propõe que sua articulação fortalece a
epistemologia feminista em seu projeto de justiça social.
A distinção proposta por Harding entre "a questão da mulher na ciência" e "a
questão da ciência no feminismo" também é fundamental. A primeira preocupa-
se com a inclusão das mulheres nos espaços de produção de saber,
combatendo as barreiras institucionais e sociais que dificultam sua permanência.
A segunda vai mais fundo: interroga os pressupostos epistêmicos da própria
ciência, questionando se seu modo de funcionamento não reproduz estruturas
patriarcais. A verdadeira transformação, segundo Harding, reside na capacidade
de subverter não apenas a participação, mas os fundamentos daquilo que se
entende por conhecimento válido.
Donna Haraway, também autora central nesse debate, contribui com o conceito
de "consciência de oposição" e a noção de conhecimento situado. Para Haraway
([1991] 1995), a objetividade não está na neutralidade, mas na capacidade de
reconhecer a localização parcial e a responsabilidade do sujeito epistêmico.
Essa objetividade encarnada recusa a ilusão da "visão do olho de Deus" e
sustenta que os saberes devem ser construídos a partir de vínculos de afinidade
e redes de resistência afetiva. Haraway defende que a ciência é um campo de
engajamento político e afetivo, e não uma prática puramente racional e
desinteressada.
A partir dessa mesma trilha teórica, Carlos Figari (2010) propõe a ideia de que
"situar o conhecimento é recuperar a ciência como afeto". Para Figari, conhecer
é um ato de responsabilidade e envolvimento. Sua noção de técnicas amorosas
da ciência sugere que os afetos não são entraves, mas catalisadores do
processo epistêmico. Ao propor a conversa como modelo de produção de saber,
Figari nos convida a repensar a ciência como um espaço de escuta,
reconhecimento e construção coletiva. Essas contribuições ampliam o escopo
da epistemologia feminista, deslocando o conhecimento da esfera abstrata para
o campo relacional, responsivo e afetivo.Donna Haraway (1988), por sua vez,
radicaliza essa crítica ao propor o conceito de "visão situada", segundo o qual
todo conhecimento é parcial, encarnado e localizado. Haraway desafia a
pretensão da ciência de ocupar um “ponto de vista de nenhum lugar”, mostrando
que todo sujeito cognoscente tem um corpo, uma história e uma afetividade.
Jaggar incorpora essa crítica ao colocar o afeto como lente epistemológica
legítima: não apenas sentimos enquanto conhecemos, mas sentimos para
conhecer.
Lorraine Code (1991) também é referência incontornável ao discutir como os
modelos tradicionais de conhecimento favorecem uma idealização do sujeito
epistêmico como descontextualizado e desencarnado. Em contraposição, Code
propõe uma epistemologia responsiva e relacional, em que o conhecimento é
sempre situado em redes sociais, morais e afetivas. Essa concepção aproxima-
se do compromisso ético defendido por Jaggar, em que emoções como a
indignação ou o amor funcionam como bússolas morais para a investigação
crítica.
Audre Lorde (1984), por sua vez, desafia a lógica racionalista ocidental ao
afirmar que "as ferramentas do mestre nunca desmontarão a casa do mestre".
Em seu ensaio "The Uses of Anger", Lorde mostra como a raiva das mulheres
negras é fonte de lucidez e resistência política. Essa emoção, historicamente
patologizada, é reconceituada como gesto epistêmico: sentir é compreender.
Jaggar se alinha a essa perspectiva ao defender que emoções outlaw são
fundamentais para detectar falhas nas normas hegemônicas.
Bell hooks (2000) aprofunda essa crítica ao tratar o amor como uma prática
política e pedagógica. Para hooks, amar é comprometer-se com a transformação
do mundo — um gesto que exige a escuta do outro, o reconhecimento do
sofrimento e a disposição afetiva de agir. Essa concepção está diretamente
ligada à proposta de Jaggar de que o conhecimento ético-afetivo é mais
transformador do que a pretensa neutralidade.
Essas autoras, em diálogo com Jaggar, consolidam uma epistemologia feminista
que não apenas aceita as emoções como parte do processo de conhecer, mas
as entende como fontes legítimas de crítica, transformação e compromisso ético.
Elas nos convidam a pensar com o corpo, com o desejo, com a raiva, com o
cuidado — e, sobretudo, com responsabilidade diante das estruturas de poder
que moldam o que é possível sentir e saber.
Dessa forma, ao compreender as emoções como formas legítimas de conhecer,
torna-se possível revisitar também outras tradições filosóficas, psicológicas e
políticas que contribuíram para pensar a experiência afetiva como componente
epistemológico. É a partir dessa interlocução que se desenvolve o próximo
capítulo, no qual serão analisadas diferentes abordagens teóricas sobre as
emoções — de James Hillman a Nina Bull, de Wilhelm Reich a Descartes e
Spinoza — com vistas a identificar tanto os pontos de convergência quanto os
impasses teóricos e políticos que atravessam essas perspectivas.
3. Abordagens Filosóficas e Psicológicas das Emoções: Entre Corpo,
Arquétipo e Razão
As contribuições da epistemologia feminista, especialmente na valorização das
emoções como práticas cognitivas e éticas, dialogam e contrastam com outras
tradições filosóficas e psicológicas que também se debruçaram sobre a
experiência afetiva. Neste capítulo, propõe-se uma análise comparativa entre
distintas concepções das emoções, a partir de autoras e autores como James
Hillman, Nina Bull, Wilhelm Reich, René Descartes e Baruch Spinoza.
James Hillman, por exemplo, propõe uma psicologia arquetípica das emoções,
na qual os afetos são compreendidos como expressões autônomas do
inconsciente coletivo. Em sua perspectiva, sentir é ser atravessado por figuras
míticas e simbólicas que escapam à lógica individualista da psicologia moderna.
Para Hillman (1960), emoções não são estados internos, mas formas
arquetípicas de estar no mundo — são imagens vivas que estruturam a
percepção e a ação.
Já Nina Bull (1951), numa abordagem experimental e fisiológica, define a
emoção como atitude motora pré-reflexiva, uma preparação corporal para a
ação que antecede o pensamento consciente. Wilhelm Reich, por sua vez,
elabora uma compreensão energética e terapêutica: as emoções são
expressões da libido, frequentemente bloqueadas por estruturas sociais e
internalizadas no corpo sob a forma de couraças musculares (REICH, 2011).
Ambas as abordagens rejeitam o dualismo mente-corpo, mas divergem quanto à
origem, finalidade e função terapêutica da emoção: Bull aposta na regulação;
Reich, na liberação.
Na filosofia moderna, encontramos dois paradigmas opostos. Para René
Descartes (2002), as paixões da alma devem ser dominadas pela razão, pois
perturbam a clareza e a objetividade. A racionalidade cartesiana inaugura uma
longa tradição de desconfiança em relação às emoções. Em contrapartida,
Baruch Spinoza (2019) entende os afetos como variações da potência de agir,
elementos constitutivos do conatus — o esforço para perseverar na existência.
Conhecer os afetos, para Spinoza, é transformar paixões passivas em ações
ativas, superando a alienação por meio da compreensão.
Ao colocar essas perspectivas em diálogo com a proposta de Alison Jaggar e
demais autoras feministas, torna-se possível identificar pontos de convergência
e ruptura. Se por um lado Hillman e Spinoza aproximam-se da ideia de emoção
como força autônoma e produtiva, por outro, Descartes representa a
racionalidade que as epistemologias feministas buscam justamente desafiar. O
corpo, o desejo, a imagem e o afeto, longe de serem ameaças à razão, tornam-
se, nesses cruzamentos, territórios fundamentais para pensar um conhecimento
encarnado, situado e transformador.
3.1 Charles Darwin e a Evolução das Emoções: Expressão, Continuidade e
Críticas Contemporâneas
Publicado originalmente em 1872, A Expressão das Emoções no Homem e nos
Animais representa uma extensão das teses evolucionistas de Charles Darwin
aplicadas à psicologia e ao comportamento. Ao investigar a origem das
expressões faciais, posturas e gestos ligados às emoções, Darwin buscou
demonstrar que tais manifestações são produtos da evolução biológica e
compartilhadas com outras espécies animais. A obra se distingue por seu
caráter empírico, reunindo observações de campo, relatos interculturais e
análise comportamental de crianças, cegos congênitos e animais.
Princípios Fundamentais
Darwin estabelece três princípios que orientam a expressão emocional:
1. Princípio dos Hábitos Úteis Associados: expressões originadas de
comportamentos outrora adaptativos, como o cerrar de punhos na raiva.
2. Princípio da Antítese: surgimento de posturas opostas como resposta a
estados emocionais contrastantes.
3. Princípio da Ação Direta do Sistema Nervoso: expressões involuntárias
resultantes de descargas fisiológicas, como o rubor da vergonha.
Esses princípios visam explicar a continuidade das expressões emocionais entre
humanos e animais, sustentando a hipótese de que tais comportamentos não
são construções culturais, mas heranças evolucionárias.
Contribuições Metodológicas
A originalidade da abordagem darwinista reside também na diversidade
metodológica empregada. Darwin analisa crianças, animais, indivíduos com
deficiência visual e pessoas de diferentes culturas para demonstrar a
universalidade das expressões. Sua atenção ao comportamento de primatas e
mamíferos não humanos antecipa os estudos da etologia moderna, aproximando
o estudo das emoções das ciências naturais.
Impactos e Legado
A obra inaugurou o campo da psicologia evolutiva e influenciou decisivamente
áreas como a etologia (Lorenz, Tinbergen), a neuropsicologia afetiva e as
ciências cognitivas. Paul Ekman, por exemplo, retomaria e ampliaria a tese da
universalidade das expressões faciais, reforçando empiricamente algumas das
hipóteses de Darwin.
Críticas Contemporâneas
Apesar de seu caráter inovador, a obra de Darwin recebeu críticas de várias
correntes contemporâneas:
Reducionismo biológico: algumas abordagens críticas, especialmente
ligadas à psicologia cultural, apontam que Darwin negligencia o papel das
mediações sociais e históricas na constituição da vida emocional. Ao
privilegiar a herança biológica, corre-se o risco de ignorar a complexidade
simbólica e cultural da expressão emocional.
Universalidade questionada: estudos contemporâneos em antropologia e
psicologia transcultural (como os de Margaret Mead ou Catherine Lutz)
sugerem que, embora haja padrões recorrentes, as emoções são
profundamente moldadas por contextos culturais. A noção de que um
sorriso ou uma expressão de medo têm o mesmo significado
universalmente é hoje objeto de disputa teórica.
Neutralidade metodológica: a confiança de Darwin em relatos de
missionários e viajantes — marcadamente eurocêntricos — levanta
questionamentos quanto à validade das conclusões sobre a
universalidade das expressões.
Ausência de uma teoria da subjetividade: ao focar no aspecto fisiológico e
expressivo das emoções, Darwin pouco explora sua dimensão interna,
afetiva e existencial, deixando de lado questões ligadas à experiência
vivida da emoção.
Releituras e Atualizações
Mesmo diante dessas críticas, a obra de Darwin permanece influente e passível
de releituras críticas. Pensadoras feministas e pós-coloniais, como Sara Ahmed,
ao discutir a performatividade e a circulação social dos afetos, podem ser lidas
como deslocamentos da tese darwinista em direção a uma teoria crítica das
emoções. Ahmed recusa a ideia de emoções como apenas reações biológicas,
propondo que são também efeitos de regimes sociais, normativos e históricos.
A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais constitui um marco na
história das ciências humanas e biológicas. Apesar de suas limitações, a obra de
Darwin estabelece as bases para um estudo empírico, comparado e
interdisciplinar das emoções. As críticas contemporâneas não invalidam sua
contribuição, mas apontam para a necessidade de integrar a dimensão biológica
à simbólica, a expressão à experiência e a evolução à cultura. Ao lado das
epistemologias feministas e fenomenológicas contemporâneas, a proposta
darwinista pode ser revisitada como parte de uma genealogia do sentir, que
transita entre natureza e história.
3.2 Descartes e Spinoza: Paixões, Corpo e Razão
Descartes: a razão como mestre das paixões
Em As Paixões da Alma (1649), René Descartes formula uma teoria das
emoções a partir de sua ontologia dualista, segundo a qual o ser humano é
composto por duas substâncias independentes: a mente (res cogitans) e o corpo
(res extensa). A interação entre essas substâncias ocorre por meio da glândula
pineal, ponto de contato entre o pensamento e os movimentos corporais. As
paixões são descritas como efeitos dos movimentos dos "espíritos animais" no
corpo, que repercutem na alma como percepções ou sentimentos. São, portanto,
passivas e externas à vontade da mente.
A racionalidade cartesiana reserva à razão a tarefa de dominar e ordenar essas
paixões, guiando o sujeito à virtude e ao equilíbrio. Embora reconheça que
algumas paixões possam ser úteis, Descartes mantém a perspectiva de que o
ideal ético é o autodomínio, no qual a vontade racional governa os impulsos
sensíveis. A emoção, nesse modelo, é potencialmente perigosa e deve ser
submetida à disciplina interior.
Spinoza: afetos como potência do existir
Em oposição, Baruch Spinoza propõe, na Ética (1677), uma ruptura radical com
o dualismo cartesiano, ao estabelecer uma ontologia monista. Para Spinoza, só
há uma substância – Deus ou Natureza (Deus sive Natura) – da qual mente e
corpo são dois atributos distintos, mas inseparáveis. Nesse sistema, o ser
humano é uma expressão singular da substância infinita, e os afetos são
variações dessa expressão, afetando sua potência de agir.
Spinoza define o afeto como a modificação do corpo (e simultaneamente da
mente) que implica aumento ou diminuição da potência de existir (conatus).
Afetos passivos (paixões) são aqueles cuja causa está fora de nós; afecções
ativas, por outro lado, decorrem do nosso próprio entendimento e ampliam
nossa liberdade. A emoção, então, não é o oposto da razão, mas um modo de
ser que pode ser transformado pelo conhecimento de suas causas. Ao
compreender racionalmente os afetos, tornamo-nos menos escravos das
paixões e mais capazes de agir livremente.
Comparação Filosófica: Descartes vs. Spinoza
Aspecto Descartes Spinoza
Dualismo: mente e corpo Monismo: mente e corpo como
Ontologia
como substâncias distintas atributos da mesma substância
Percepções passivas da alma Afecções que alteram a
Emoções /
causadas por estímulos potência de agir do
Paixões
corporais corpo/mente
Função da Controlar e disciplinar as Compreender as causas dos
Razão paixões afetos e integrá-los
Relação com o Interação indireta via glândula Corpo e mente como modos
Corpo pineal inseparáveis do mesmo ser
Método Conhecimento das causas das
Vontade e autodisciplina
terapêutico afecções e transformação
racional
implícito racional
Autodomínio da razão sobre Alegria ativa e potência de
Liberdade
as paixões existir consciente
Virtude racional e moderação Liberdade imanente e aumento
Ética
das paixões da potência de agir
Análise Crítica das Divergências
A divergência entre Descartes e Spinoza não é apenas conceitual, mas
profundamente ontológica e política. Descartes mantém um modelo hierárquico
da mente sobre o corpo, em consonância com ideais de racionalidade clássica,
autocontrole e virtude moral como domínio do eu sobre suas paixões. Esse
modelo sustenta uma lógica de centralidade do sujeito, fortemente ligada às
tradições religiosas e ao pensamento moderno nascente.
Spinoza, ao contrário, dissolve o dualismo e propõe uma ética da imanência: o
bem é o que aumenta nossa potência de existir, e o mal é o que a diminui. O
conhecimento é libertação porque transforma a afecção passiva em ação ativa.
Em vez de um eu racional que governa o corpo, há uma continuidade dinâmica
entre mente e corpo. A razão não suprime os afetos; ela os compreende, os
transforma e os torna aliados.
Dois Paradigmas do Sentir e da Liberdade
O confronto entre Descartes e Spinoza revela dois paradigmas fundamentais da
tradição ocidental no trato das emoções: o paradigma do controle racional e o
paradigma da transformação imanente. No primeiro, as emoções são ameaças
que exigem domínio; no segundo, são expressões de nossa própria potência,
que podem ser compreendidas e cultivadas.
Spinoza antecipa abordagens contemporâneas que reconhecem a
interdependência entre cognição e afeto, razão e corpo. Sua filosofia inspira
práticas terapêuticas, políticas e educacionais voltadas à integração, à escuta e
à expansão da potência de existir. Em tempos em que o sofrimento psíquico é
amplamente medicalizado e controlado, a proposta spinozana de conhecer para
libertar pode ser relida como uma ética radical da autonomia afetiva e da
liberdade vivida.As contribuições da epistemologia feminista, especialmente na
valorização das emoções como práticas cognitivas e éticas, dialogam e
contrastam com outras tradições filosóficas e psicológicas que também se
debruçaram sobre a experiência afetiva. Neste capítulo, propõe-se uma análise
comparativa entre distintas concepções das emoções, a partir de autoras e
autores como James Hillman, Nina Bull, Wilhelm Reich, René Descartes e
Baruch Spinoza.
James Hillman, por exemplo, propõe uma psicologia arquetípica das emoções,
na qual os afetos são compreendidos como expressões autônomas do
inconsciente coletivo. Em sua perspectiva, sentir é ser atravessado por figuras
míticas e simbólicas que escapam à lógica individualista da psicologia moderna.
Para Hillman (1960), emoções não são estados internos, mas formas
arquetípicas de estar no mundo — são imagens vivas que estruturam a
percepção e a ação.
Já Nina Bull (1951), numa abordagem experimental e fisiológica, define a
emoção como atitude motora pré-reflexiva, uma preparação corporal para a
ação que antecede o pensamento consciente. Wilhelm Reich, por sua vez,
elabora uma compreensão energética e terapêutica: as emoções são
expressões da libido, frequentemente bloqueadas por estruturas sociais e
internalizadas no corpo sob a forma de couraças musculares (REICH, 2011).
Ambas as abordagens rejeitam o dualismo mente-corpo, mas divergem quanto à
origem, finalidade e função terapêutica da emoção: Bull aposta na regulação;
Reich, na liberação.
Na filosofia moderna, encontramos dois paradigmas opostos. Para René
Descartes (2002), as paixões da alma devem ser dominadas pela razão, pois
perturbam a clareza e a objetividade. A racionalidade cartesiana inaugura uma
longa tradição de desconfiança em relação às emoções. Em contrapartida,
Baruch Spinoza (2019) entende os afetos como variações da potência de agir,
elementos constitutivos do conatus — o esforço para perseverar na existência.
Conhecer os afetos, para Spinoza, é transformar paixões passivas em ações
ativas, superando a alienação por meio da compreensão.
Ao colocar essas perspectivas em diálogo com a proposta de Alison Jaggar e
demais autoras feministas, torna-se possível identificar pontos de convergência
e ruptura. Se por um lado Hillman e Spinoza aproximam-se da ideia de emoção
como força autônoma e produtiva, por outro, Descartes representa a
racionalidade que as epistemologias feministas buscam justamente desafiar. O
corpo, o desejo, a imagem e o afeto, longe de serem ameaças à razão, tornam-
se, nesses cruzamentos, territórios fundamentais para pensar um conhecimento
encarnado, situado e transformador.
3.3 O Gesto como Expressividade Encarnada: Hubert Godard e a
Percepção do Movimento
No posfácio intitulado Le geste et sa perception do livro La danse au XXe siècle,
Hubert Godard aprofunda a reflexão sobre a experiência encarnada da emoção
ao discutir a relação entre gesto, percepção e gravidade. Sua contribuição
dialoga com as abordagens corporais de Nina Bull e Wilhelm Reich, ao mesmo
tempo que acrescenta uma dimensão perceptiva e estética ao entendimento do
corpo emocional.
Godard introduz o conceito de "pré-movimento" como o estado preparatório e
implícito que antecede todo gesto voluntário. Tal estado pode ser comparado à
inspiração que precede a fala e é visto como o alicerce da expressividade. Para
o autor, o gesto não é apenas o movimento executado, mas emerge da
qualidade tônica do corpo e de sua relação com a gravidade. Essa noção ecoa
os princípios da corporeidade como campo de expressão não verbal, afetiva e
pré-reflexiva.
A tonicidade muscular e a postura são centrais na concepção de expressividade
em Godard. A maneira como o corpo se organiza posturalmente — em relação
ao solo, ao espaço e à própria verticalidade — determina não apenas a forma,
mas a qualidade do gesto. Ele nomeia essa matriz de sustentação como a toile
de fond tonique et gravitaire du sujet, isto é, o pano de fundo tônico e
gravitacional que estrutura a presença do corpo no mundo. Nesse sentido, o
gesto carrega a memória postural, afetiva e histórica do sujeito.
Godard diferencia o gesto do mero movimento mecânico: enquanto o movimento
pode ser repetido por máquinas, o gesto humano é atravessado por afetos,
cultura, geografia e história. O gesto, para ser expressivo, precisa da intenção,
do direcionamento subjetivo e da escuta do corpo que se move no mundo. Essa
perspectiva se aproxima da crítica à psicologia cognitiva e mecanicista
promovida por autores como Hillman, e articula-se à valorização do corpo como
locus de conhecimento nas epistemologias feministas.
A teoria do gesto expressivo proposta por Godard amplia a compreensão das
emoções ao destacar que o sentir não está dissociado do mover-se. Sentimos
com o corpo em relação ao mundo, e essa relação é moldada por posturas,
tensões, histórias e desejos. Em diálogo com Nina Bull e Reich, Godard propõe
que a emoção não é apenas energia ou atitude, mas gesto encarnado,
sustentado por uma ecologia da percepção e da gravidade.
Sua reflexão enriquece as práticas terapêuticas, pedagógicas e performativas ao
propor que escutar o gesto é escutar a história tônica e sensível do sujeito. O
gesto, como expressão afetiva incorporada, torna-se uma via privilegiada para o
autoconhecimento, para o cuidado e para a transformação sensível do estar no
mundo.
3.4 Emoção como Interface Molecular: Candace Pert e a Inteligência do
Corpo
No cruzamento entre neurociência, biologia molecular e psicologia, a obra The
Molecules of Emotion (1997), de Candace Pert, introduz uma abordagem
inovadora sobre a base física dos afetos. Pert rompe com a dicotomia mente-
corpo ao demonstrar que emoções não residem exclusivamente no cérebro, mas
são processadas e armazenadas em todo o organismo, por meio de uma
complexa rede de neuropeptídeos e receptores.
Pert descobriu os receptores opiáceos e identificou os neuropeptídeos como
"moléculas da emoção", pequenas proteínas que mediam a comunicação entre
as células do sistema nervoso, imunológico e endócrino. Para ela, o corpo é um
sistema inteligente em que mente e emoção não apenas se encontram, mas se
tornam indistinguíveis. Essa visão é profundamente alinhada à crítica das
epistemologias feministas ao dualismo cartesiano e à separação entre
racionalidade e sentimento.
Sua teoria afirma que a emoção é tanto uma experiência subjetiva quanto um
processo bioquímico distribuído pelo corpo. Essa perspectiva sustenta a ideia de
um saber encarnado e proporciona uma base neurocientífica para o conceito de
"conhecimento situado" desenvolvido por Donna Haraway e retomado por
Jaggar, Ahmed e Harding. Assim como a emoção, o saber é construído a partir
da interação entre linguagem, ambiente, experiência e corpo.
Ao integrar os sistemas cognitivo, imunológico e afetivo, Pert propõe que o corpo
é um arquivo afetivo e um agente epistemológico. Essa ideia ressoa com
autores como Wilhelm Reich, para quem o corpo é um repositório de
experiências emocionais, e com Hubert Godard, ao propor que os gestos
expressam estados afetivos incorporados.
A teoria de Pert também convida à reavaliação das práticas terapêuticas: se
emoções residem nas moléculas, no tecido e nas células, a cura emocional
passa por um trabalho integrado entre psique, fisiologia e movimento. Essa
perspectiva amplia o horizonte da Psicologia Social e da clínica ao incluir as
emoções como mediações químicas do afeto e da memória.
Em suma, a contribuição de Candace Pert complexifica a discussão sobre
emoção e conhecimento ao oferecer uma ponte entre ciência biomédica e
pensamento crítico, desafiando paradigmas mecanicistas e introduzindo uma
visão sensível, interconectada e pós-cartesiana do sujeito emocional.
4. Emoções, Psicologia Social e Práticas Transformadoras
4.1 Sentir Tudo como Forma de Estar Vivo – Norma Telles, Candace Pert e
a Poética da Descontinuidade
A complexidade da experiência emocional não se limita ao campo sensível: ela
se estende também à capacidade de decidir e agir. Norma Telles (2005) observa
que "as decisões pessoais e sociais que têm impacto na sobrevivência são
repletas de incertezas e necessitam de amplo repertório de conhecimento sobre
o mundo externo e interno ao organismo". Esse processo de decisão é mediado
por imagens mentais — como se fossem "fotografias" de eventos ou objetos —
que surgem na mente não como representações fixas, mas como construções
momentâneas, frágeis, em constante atualização.
Essa observação ecoa a noção de "imagem" desenvolvida por James Hillman,
para quem a psique é povoada por imagens arquetípicas que não representam
uma realidade estável, mas modos de ver e ser afetado. Hillman propõe que a
alma pensa por imagens, e que essas imagens são veículos de sentido e
emoção. As decisões, nesse contexto, não são frutos de um cálculo puramente
racional, mas respostas simbólicas e afetivas a essas imagens vividas,
carregadas de história, mito e emoção.
Bachelard, por sua vez, reforça a ideia de que a mente opera a partir de
descontinuidades temporais e imagéticas. Para ele, a vida psíquica é feita de
instantes, de rupturas e reinícios, que só mais tarde se encadeiam em uma
narrativa coerente. A imagem, nesse sentido, é mais originária que o conceito.
As decisões surgem de lampejos poéticos, da intuição que atravessa a duração
e reconstrói o tempo vivido.
Complementando essa perspectiva, Antonio Damásio, em O Erro de Descartes,
defende que a razão é inseparável da emoção e que o processo decisório
depende profundamente de marcadores somáticos: sinais emocionais que
informam o sujeito sobre o valor afetivo das escolhas possíveis. Esses
marcadores não são fixos, mas variáveis e sensíveis à história do organismo, à
memória corporal e à interação com o ambiente. A mente racional, para
Damásio, não é um instrumento autônomo, mas um modo de operação
enraizado nas emoções e no corpo.
Assim, à luz dessas contribuições, podemos entender que o ato de decidir é
sempre situado, afetivo e provisório. A imagem que guia a decisão não é uma
fotografia, mas um lampejo — uma síntese momentânea da experiência, do
desejo e do mundo. Pensar, escolher e agir são, portanto, atos encarnados e
sensíveis, que só podem ser compreendidos a partir de uma epistemologia do
sentir, como propõem Jaggar, Telles, Pert e as demais autoras feministas
analisadas neste trabalho.
A frase de Norma Telles (2005) — “Estar totalmente vivo, ser totalmente humano
exigiria, portanto, que estivéssemos tão desejosos de usufruir a dor tanto quanto
o prazer” — propõe uma ética sensível do viver encarnado. Em oposição à
lógica moderna de controle, contenção e medicalização do sofrimento, Telles
aponta para a integralidade da experiência afetiva, na qual dor e prazer são
inseparáveis como expressões da potência vital. Tal visão ressoa
profundamente com a abordagem neurobiológica e existencial de Candace Pert.
Em The Molecules of Emotion, Pert argumenta que os afetos são registros
bioquímicos distribuídos por todo o corpo, e que nenhuma emoção deve ser
marginalizada — pois todas, mesmo as ditas “negativas”, desempenham
funções fundamentais para o equilíbrio e a sobrevivência do organismo. Ao
mapear os neuropeptídeos e os receptores que veiculam sinais entre cérebro,
sistema imunológico e órgãos, Pert mostra que "cada emoção é uma corrente
química que informa o corpo inteiro sobre seu estado de ser".
Essa concepção recusa a categorização moralizante das emoções e propõe que
viver plenamente significa aceitar a complexidade e a ambivalência afetiva. O
corpo, para Pert, é um campo de ressonância onde alegria, medo, raiva, amor e
suas nuances — ou como ela mesma diz, “misturas” — são processadas em
tempo real. Com base em seus estudos, ela sugere combinações como:
medo + surpresa = alarme
alegria + medo = culpa
tristeza + aceitação = compaixão
Essas combinações ilustram que não há emoções puras ou estanques, mas sim
uma paleta infinita de afetos compostos que modulam nossa experiência no
mundo. Nesse sentido, a vida emocional se aproxima de uma composição
musical ou de uma coreografia, como sugeriria Hubert Godard, com tonalidades
e transições imprevisíveis, e nunca meramente binárias.
Voltar ao corpo como lugar de escuta e memória — como propõem tanto Pert
quanto Telles — é também uma posição epistemológica: conhecer é sentir, e
sentir é conhecer. Recusar a dor, a tristeza ou o medo é recusar a própria
condição humana. Estar “totalmente vivo” exige, portanto, coragem afetiva: a
disposição de acolher os contrastes e tensões da vida sem anestesia.
Essa visão encontra ressonância também na filosofia poética de Gaston
Bachelard. Em obras como A intuição do instante e A poética do espaço,
Bachelard afirma que a vida não é uma continuidade homogênea, mas uma
descontinuidade de atos que só se encadeiam posteriormente por meio da
memória. A duração, nesse contexto, não é cronológica, mas afetiva. Cada
emoção é um instante pleno que rompe com o anterior, e só depois se torna
parte de uma narrativa. Assim, viver plenamente — como propõem Pert e Telles
— é também aceitar a fragmentação, a interrupção, o instante excessivo que
nos arranca da neutralidade e nos mergulha na intensidade.
Na confluência entre corpo, emoção e tempo, essas autoras e autores nos
oferecem uma visão integrada e radicalmente encarnada da subjetividade. A
emoção deixa de ser apenas um dado interno ou socialmente regulado: ela é
uma potência de ruptura e de conexão, que modela o tempo vivido e funda
formas de saber, de estar e de resistir no mundo.
Essa perspectiva se alinha à epistemologia feminista de Jaggar, que reivindica o
valor epistêmico das emoções para a crítica social e a transformação. Para
todas essas autoras, o sujeito não é um centro racional isolado, mas um
organismo sensível que pensa com o corpo, sofre com a memória e transforma-
se no sentir.A revalorização das emoções como práticas cognitivas e políticas,
conforme proposta por Jaggar e outras pensadoras feministas, tem importantes
repercussões na Psicologia Social. Ao rejeitar a separação rígida entre razão e
afeto, essas epistemologias apontam para a necessidade de uma ciência mais
engajada, situada e responsiva às experiências e aos corpos que ela
tradicionalmente silenciou.
Emoções como vergonha, medo, desejo, raiva e amor passam a ser
compreendidas não como expressões meramente subjetivas ou disfuncionais,
mas como fenômenos coletivos, regulados por normas sociais e estruturados
por relações de poder. Sara Ahmed (2004) analisa como as emoções "aderem"
aos corpos, moldando afetos e pertencimentos, e organizando o espaço social a
partir de regimes afetivos. A emoção, nesse sentido, é performativa: ela não
apenas expressa, mas também produz efeitos sobre o sujeito e o mundo.
Para a Psicologia Social crítica, essa concepção das emoções como forças
sociais e políticas amplia significativamente o escopo de investigação e
intervenção. Abandona-se a ideia de um sujeito isolado, racional e neutro, para
abrir espaço à escuta de experiências encarnadas, plurais e interseccionais.
Emoções passam a ser analisadas como marcadores de diferença, dispositivos
de controle e fontes de resistência.
Além disso, essas concepções desafiam os modos tradicionais de produção de
conhecimento na academia. A neutralidade epistemológica dá lugar ao
compromisso ético, e o saber se torna inseparável da experiência vivida. A
implicação subjetiva do pesquisador ou pesquisadora não é vista como viés,
mas como parte fundamental de uma epistemologia situada, conforme proposto
por Haraway (1988) e Harding (1991).
Em contextos pedagógicos, como o da formação em Psicologia Social, essas
ideias convidam à criação de práticas educativas afetivamente implicadas. Bell
hooks (1994) chama atenção para o papel do amor como força pedagógica
capaz de sustentar espaços de escuta, diálogo e transformação. Aprender,
nesse paradigma, envolve também desaprender hierarquias rígidas entre
emoção e razão, entre teoria e prática, entre saber e experiência.
Dessa forma, ao trazer o corpo, os afetos e os vínculos para o centro da
epistemologia, a Psicologia Social feminista amplia sua potência crítica e sua
capacidade de intervenção. O que se propõe, afinal, é uma ciência que se deixa
afetar — que sente, pensa e transforma.
6. Conclusão
Sentir, neste percurso, não foi apenas um objeto de estudo — foi também
método, linguagem e substância. Ao atravessar as epistemologias feministas, as
filosofias do corpo e as teorias da emoção, percebemos que o afeto não é
acessório do pensamento, mas um modo radical de conhecer, intervir e existir.
As emoções, antes relegadas ao campo da irracionalidade, emergem aqui como
chaves interpretativas da realidade, bússolas éticas e ferramentas de
resistência.
Em meio ao entrelaçamento de autoras e autores — de Jaggar a Spinoza, de
Pert a Lorde, de Haraway a Hillman — compusemos um mosaico onde o saber
se encarna, se move, se dobra ao ritmo do gesto e da dor, da memória e da
esperança. Neste espaço de encontros, a epistemologia deixa de ser território
estéril e se transforma em corpo vivo: pulsa com o desejo, treme com o medo,
se abre com o amor. Aqui, razão e emoção não se excluem — dançam.
A Psicologia Social feminista, ao reivindicar a centralidade do sentir,
desestabiliza os alicerces de uma ciência fundada na abstração e no
distanciamento. E nos propõe, com coragem e delicadeza, uma outra prática:
uma ciência que escuta, que se afeta, que se compromete. Uma ciência que não
teme a vulnerabilidade, mas a acolhe como potência crítica. Que não esconde o
corpo, mas o convoca como lugar de saber.
A emoção, tal como a entendemos ao longo deste trabalho, não é ruído no
processo cognitivo — é frequência, é sintonia. Ela informa, transforma e
compromete. E, quando marginalizada, compromete também a possibilidade de
justiça, de diálogo e de emancipação. Ao escutar o gesto, ao respeitar o tremor,
ao nomear a raiva, ao dignificar o choro, abrimos frestas por onde o
conhecimento pode entrar como luz.
Como escreveu Audre Lorde, não há hierarquia entre formas de sentir: todas
carregam verdades, todas são legítimas em sua potência de desvelar o mundo.
E, como nos lembra Donna Haraway, todo saber é situado — e todo sentir,
também. O que propomos, então, não é a substituição de um paradigma pelo
outro, mas uma alquimia cuidadosa entre razão e afeto, entre rigor e cuidado,
entre ciência e sensibilidade.
Que esta conclusão não seja um ponto final, mas uma respiração. Uma pausa
onde o pensamento se aquece no corpo, e o corpo sussurra ao pensamento que
ainda há muito a sentir. Pois saber que se sente — e sentir que se sabe —
talvez seja um dos gestos mais profundos de liberdade.
5. Referências
AHMED, Sara. The Cultural Politics of Emotion. Edinburgh: Edinburgh University
Press, 2004.
BACHELARD, Gaston. A intuição do instante. Tradução de Antonio de Pádua
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2009.
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