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Proalfa em Casa - Encontro 3

O documento apresenta uma análise poética e crítica da questão racial no Brasil, abordando a escravidão e suas consequências através de obras de diversos autores, como Castro Alves e Raul Bopp. Os poemas refletem a dor, a luta e a resistência dos negros, bem como a hipocrisia da sociedade em relação à liberdade e à dignidade humana. A narrativa destaca a importância da memória e da identidade cultural na luta contra a opressão.

Enviado por

Oscar Neto
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Proalfa em Casa - Encontro 3

O documento apresenta uma análise poética e crítica da questão racial no Brasil, abordando a escravidão e suas consequências através de obras de diversos autores, como Castro Alves e Raul Bopp. Os poemas refletem a dor, a luta e a resistência dos negros, bem como a hipocrisia da sociedade em relação à liberdade e à dignidade humana. A narrativa destaca a importância da memória e da identidade cultural na luta contra a opressão.

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Proalfa em Casa 2022. Encontro 3: A questão racial – Parte 2 Professor: Oscar Neto

O Navio Negreiro – Castro Alves (1868) ..........................................................

I. Por que foges assim, barco ligeiro?


'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço Por que foges do pávido poeta?
Brinca o luar — dourada borboleta; Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
E as vagas após ele correm... cansam Que semelha no mar — doudo cometa!
Como turba de infantes inquieta.
Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
'Stamos em pleno mar... Do firmamento Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Os astros saltam como espumas de ouro... Sacode as penas, Leviathan do espaço,
O mar em troca acende as ardentias, Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.
— Constelações do líquido tesouro...
II.
'Stamos em pleno mar... Dois infinitos Que importa do nauta o berço,
Ali se estreitam num abraço insano, Donde é filho, qual seu lar?
Azuis, dourados, plácidos, sublimes... Ama a cadência do verso
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?... Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina!
'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas Resvala o brigue à bolina
Ao quente arfar das virações marinhas, Como golfinho veloz.
Veleiro brigue corre à flor dos mares, Presa ao mastro da mezena
Como roçam na vaga as andorinhas... Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após.
Donde vem? onde vai? Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço? Do Espanhol as cantilenas
Neste saara os corcéis o pó levantam, Requebradas de langor,
Galopam, voam, mas não deixam traço. Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!
Bem feliz quem ali pode nest'hora Da Itália o filho indolente
Sentir deste painel a majestade! Canta Veneza dormente,
Embaixo — o mar em cima — o firmamento... — Terra de amor e traição,
E no mar e no céu — a imensidade! Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Oh! que doce harmonia traz-me a brisa! Junto às lavas do vulcão!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente O Inglês — marinheiro frio,
Pelas vagas sem fim boiando à toa! Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Homens do mar! ó rudes marinheiros, Que Deus na Mancha ancorou),
Tostados pelo sol dos quatro mundos! Rijo entoa pátrias glórias,
Crianças que a procela acalentara Lembrando, orgulhoso, histórias
No berço destes pélagos profundos! De Nelson e de Aboukir.. .
O Francês — predestinado —
Esperai! esperai! deixai que eu beba Canta os louros do passado
Esta selvagem, livre poesia E os loureiros do porvir!
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia... Os marinheiros Helenos,
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Que a vaga jônia criou, E após fitando o céu que se desdobra,


Belos piratas morenos Tão puro sobre o mar,
Do mar que Ulisses cortou, Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
Homens que Fídias talhara, "Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Vão cantando em noite clara Fazei-os mais dançar!..."
Versos que Homero gemeu ...
Nautas de todas as plagas, E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
Vós sabeis achar nas vagas E da ronda fantástica a serpente
As melodias do céu! ... Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
III. Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
Desce do espaço imenso, ó águia do oceano! E ri-se Satanás!...
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador! V.
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras! Senhor Deus dos desgraçados!
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ... Dizei-me vós, Senhor Deus!
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Se é loucura... se é verdade
Que horror! Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
IV. Co'a esponja de tuas vagas
Era um sonho dantesco... o tombadilho De teu manto este borrão?...
Que das luzernas avermelha o brilho. Astros! noites! tempestades!
Em sangue a se banhar. Rolai das imensidades!
Tinir de ferros... estalar de açoite... Varrei os mares, tufão!
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar... Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Negras mulheres, suspendendo às tetas Mais que o rir calmo da turba
Magras crianças, cujas bocas pretas Que excita a fúria do algoz?
Rega o sangue das mães: Quem são? Se a estrela se cala,
Outras moças, mas nuas e espantadas, Se a vaga à pressa resvala
No turbilhão de espectros arrastadas, Como um cúmplice fugaz,
Em ânsia e mágoa vãs! Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
E ri-se a orquestra irônica, estridente... Musa libérrima, audaz!...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais ... São os filhos do deserto,
Se o velho arqueja, se no chão resvala, Onde a terra esposa a luz.
Ouvem-se gritos... o chicote estala. Onde vive em campo aberto
E voam mais e mais... A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Presa nos elos de uma só cadeia, Que com os tigres mosqueados
A multidão faminta cambaleia, Combatem na solidão.
E chora e dança ali! Ontem simples, fortes, bravos.
Um de raiva delira, outro enlouquece, Hoje míseros escravos,
Outro, que martírios embrutece, Sem luz, sem ar, sem razão. . .
Cantando, geme e ri!
São mulheres desgraçadas,
No entanto o capitão manda a manobra, Como Agar o foi também.
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Que sedentas, alquebradas, Prende-os a mesma corrente


De longe... bem longe vêm... — Férrea, lúgubre serpente —
Trazendo com tíbios passos, Nas roscas da escravidão.
Filhos e algemas nos braços, E assim zombando da morte,
N'alma — lágrimas e fel... Dança a lúgubre coorte
Como Agar sofrendo tanto, Ao som do açoute... Irrisão!...
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael. Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Lá nas areias infindas, Se eu deliro... ou se é verdade
Das palmeiras no país, Tanto horror perante os céus?!...
Nasceram crianças lindas, Ó mar, por que não apagas
Viveram moças gentis... Co'a esponja de tuas vagas
Passa um dia a caravana, Do teu manto este borrão?
Quando a virgem na cabana Astros! noites! tempestades!
Cisma da noite nos véus ... Rolai das imensidades!
... Adeus, ó choça do monte, Varrei os mares, tufão! ...
... Adeus, palmeiras da fonte!...
... Adeus, amores... adeus!... VI.
Existe um povo que a bandeira empresta
Depois, o areal extenso... P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
Depois, o oceano de pó. E deixa-a transformar-se nessa festa
Depois no horizonte imenso Em manto impuro de bacante fria!...
Desertos... desertos só... Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
E a fome, o cansaço, a sede... Que impudente na gávea tripudia?
Ai! quanto infeliz que cede, Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
E cai p'ra não mais s'erguer!... Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia Auriverde pendão de minha terra,
Acha um corpo que roer. Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
Ontem a Serra Leoa, E as promessas divinas da esperança...
A guerra, a caça ao leão, Tu que, da liberdade após a guerra,
O sono dormido à toa Foste hasteado dos heróis na lança
Sob as tendas d'amplidão! Antes te houvessem roto na batalha,
Hoje... o porão negro, fundo, Que servires a um povo de mortalha!...
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar... Fatalidade atroz que a mente esmaga!
E o sono sempre cortado Extingue nesta hora o brigue imundo
Pelo arranco de um finado, O trilho que Colombo abriu nas vagas,
E o baque de um corpo ao mar... Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga
Ontem plena liberdade, Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
A vontade por poder... Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Hoje... cúm'lo de maldade, Colombo! fecha a porta dos teus mares!
Nem são livres p'ra morrer. .
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Negro – Raul Bopp (Urucungo, 1932)


Pesa em teu sangue a voz de ignoradas origens.
As florestas guardaram na sombra o segredo da tua história.

A sua primeira inscrição em baixo-relevo


foi uma chicotada no lombo.

Um dia
atiraram-te no bojo de um navio negreiro.
E durante longas noites e noites
vieste escutando o rugido do mar
como um soluço no porão soturno.

O mar era um irmão da tua raça.

Uma madrugada
baixaram as velas do convés.
Havia uma nesga de terra e um porto.
Armazéns com depósitos de escravos
e a queixa dos teus irmãos amarrados em coleiras de ferro.

Principiou aí a sua história.

O resto,
o que ficou para trás,
o Congo, as florestas e o mar
continuam a doer na corda do urucungo.

Dona Chica – Raul Bopp (Urucungo, 1932)


A negra serviu o café.
- A sua escrava tem uns dentes bonitos, Dona Chica.
- Ah, o senhor acha?

Ao sair
a negra demorou-se com um sorriso na porta da varanda.

Foi entoando uma cantiga casa a dentro:

Ai do céu caiu um galho


Bateu no chão. Desfolhou.

Dona Chica não disse nada.


Acendeu ódios no olhar.

Foi lá dentro. Pegou a negra.


Mandou metê-la no tronco.
- Iaiá Chica, não me mate!
- Ah! Desta vez tu me pagas.
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Meteu um trapo na boca.


Depois
quebrou os dentes dela com um martelo.

- Agora
junte esses cacos numa salva de prata
e leve assim mesmo,
babando sangue,
pr'aquele moço que está na sala, peste!

Negra – Carlos Drummond de Andrade (Menino Antigo, 1973)


A negra para tudo
a negra para todos
a negra para capinar plantar
regar
colher carregar empilhar no paiol
ensacar
lavar passar remendar costurar cozinhar
rachar lenha
limpar a bunda dos nhozinhos
trepar.

A negra para tudo


nada que não seja tudo tudo tudo
até o minuto de
(único trabalho para seu proveito exclusivo)
morrer.

Homem livre – Carlos Drummond de Andrade (Menino Antigo, 1973)


Atanásio nasceu com seis dedos em cada mão.
Cortaram-lhe os excedentes.
Cortassem mais dois, seria o mesmo
admirável oficial de sapateiro, exímio seleiro.
Lombilho que ele faz, quem mais faria?
Tem prática de animais, grande ferreiro.

Sendo tanta coisa, nasce escravo,


o que não é bom para Atanásio nem para ninguém.
Então foge do Rio Doce.
Vai parar, homem livre, no Seminário de Diamantina,
onde é cozinheiro, ótimo sempre, esse Atanásio.

Meu parente Manuel Chassim não se conforma.


Bota anúncio no Jequitinhonha, explicadinho:
Duzentos mil-réis a quem prender crioulo Atanásio.
Mas quem vai prender homem de tantas qualidades?
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Quarto de despejo (excerto) – Carolina Maria de Jesus, 1960


13 de Maio. Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpatico para mim. É o dia da Abolição. Dia que
comemoramos a libertação dos escravos.
...Nas prisões os negros eram os bodes expiatorios. Mas os brancos agora são mais cultos. E não nos
trata com desprezo. Que Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam feliz.
Continua chovendo. E eu tenho só feijão e sal. A chuva está forte. Mesmo assim, mandei os meninos
para a escola. Estou escrevendo até passar a chuva, para eu ir lá no senhor Manuel vender os ferros. Com o
dinheiro dos ferros vou comprar arroz e linguiça. A chuva passou um pouco. Vou sair. ...Eu tenho tanto dó
dos meus filhos. Quando eles vê as coisas de comer eles brada:
– Viva a mamãe!
A manifestação agrada-me. Mas eu já perdi o hábito de sorrir. Dez minutos depois eles querem mais
comida. Eu mandei o João pedir um pouquinho de gordura a Dona Ida. Ela não tinha. Mandei-lhe um bilhete
assim:
– “Dona Ida peço-te se pode me arranjar um pouco de gordura, para eu fazer uma sopa para os
meninos. Hoje choveu e eu não pude catar papel. Agradeço, Carolina”.
...Choveu, esfriou. É o inverno que chega. E no inverno a gente come mais. A Vera começou pedir
comida. E eu não tinha. Era a reprise do espetaculo. Eu estava com dois cruzeiros. Pretendia comprar um
pouco de farinha para fazer um virado. Fui pedir um pouco de banha a Dona Alice. Ela deu-me a banha e
arroz. Era 9 horas da noite quando comemos.
E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!

Civilização – Oswaldo de Camargo (O carro do êxito, 1972)

Aos "malungos" Odacir, Aristides,


Thereza Santos e Dalmo.

Subi na "Neurotic's House", porque Fred foi com a minha cara. Foi, pousou a mão no meu ombro, fa-
lou logo:
— Gostei de você, preto, gostei mesmo...
O mundo bravo comigo, o desencanto reinava na minha vida. Exemplo: o maestro Borino, que me
alugara o quarto, me enxotou e largou nos meus ouvidos umas palavras, com jeito sofrido, mas largou:
— Assim não dá, Paulinho, a gente quer ajudar, mas vocês...
Aí está, vocês, pretos, pessoal de cor... Se traiu o maestro, claro, se traiu. Vocês... ou seria: vocês,
músicos, artistas? Não! O maestro Borino não me aguentou, claro, na sua sala deslumbrante. Alguém
lembrou a ele o destôo, o desequilíbrio no ambiente... é claro.
Peguei, então, minha mala, e da estante da sala retirei os meus poucos livros, com um raspão, como
recolhendo faíscas pra meu começo de briga.
— A gente quer ajudar, mas vocês...
Parti, então, para um hotel, depois de examinar o cheque de cem cruzeiros, assinado por Borino,
pelas lições de Harmonia que eu dera em seu lugar. Quase cuspi no cheque. Dormi então muito mal,
levantei-me três vezes pra urinar. Palpando as paredes sebentas do hotel, senti que minha vida mudava. Senti
mesmo que minha existência ia apodrecer, se eu não cuidasse dela, se eu não gostasse um pouquinho mais
de mim... Minha vida começava a apodrecer. Minha vida ia apodrecer, como uma fruta machucada, rolada
pra debaixo da cama, por alguma criança. De costas, na cama, acompanhei o vôo da barata, ziiimmm, tão
breve. Minha vida também vai ter um vôo breve, pensei, seria bom se eu morresse. Sou um sujeito feio,
fendido por complexos, sou um preto fodido, isso, fodido...
Dona Aída, a mulher do maestro Borino, falou que eu precisava gostar mais de mim. Bolas... Eu
gostava era dela, mas com pureza, por Deus! Que olhos bonitos que ela tem, que dentes, e que riso de semi-
Gioconda... Eu gostava era dela, com pureza, e nisso nunca fui sacana, por Deus! Podia ser minha mãe...
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Às vezes uma treva me assaltava e eu ficava mais escuro. Tenho fases dessas: sou um sujeito
espontâneo na multidão, dou meus gritos contra o ar e cumprimento as coisas; súbito fico preto, no sentido
defeituoso: sou um sem irmão, solitário entre o povo, na rua que gera tumultos, sou um moço desgraçado...
Então, muitas vezes dona Aída chegava com a chávena de prata (tanto luxo comigo pra quê?) e me
trazia um chá, um comprimido. Eu quase chorava de sentimento, mas ela fazia que não enxergava e pedia
que eu tocasse “As lembranças do castelo antigo”. Meus olhos úmidos, minhas finas mãos, meus braços
tornavam-se asas de anjo, se ousassem tocar em dona Aída. Nada de sacanagem, nada de pensamento sujo.
Podia não gostar de mim, mas de dona Aída eu gostava. Gostava dela, sim, e me comprazia comigo mesmo
na cama, evitando pousar a imaginação sobre ela. Sou um sujeito confuso. Mas me resta no pensamento a
imagem de dona Aída, sem respingo, sem jaça no meu coração.
Então eu tocava “As Lembranças do Castelo Antigo” e meus dedos, nos sons graves, arrebanhavam
trevas, dragões e fossos. Dona Aída não se movia. Meus dedos ressuscitavam febres de princesas, paredes
nuas e frias de masmorras. Mas o amor, ao fim, fremia sobre as teclas e ia, triunfante, subindo aos sons
agudos, para a peroração gloriosa.

— Que coisa linda, Paulinho!


— Dona Aída, sou o seu músico. Essas lembranças "tuas são".
E eu ria pelas "tuas são", palavras de cavaleiro medievo cortejando dama. Mas, comigo, nada de
corte. Ela podia ser minha mãe e eu a amava, talvez, como a mãe que me morreu muito cedo. Outra coisa:
eu era casto e dona Aída sabia. E se aproximava de mim, às vezes, com os olhos batidos e tristes, Borino
bebia e passava a noite fora. Eu ficava demente de medo, pois era o meu fim, pois não podia ser assim:
Borino nas boites e eu na casa, sob o mesmo teto com Dona Aída. E eu pedia a Deus que Borino se
comportasse, que aquilo não ia dar certo. Pedia que Borino voltasse a ser o sujeito tranquilo que conheci nos
"Concertos Matinais", os cabelos levemente prateados, indicando juízo, o riso bondoso comigo e com os
outros rapazes, o peito largo onde cabia muita compreensão.
— Moço, você tem talento, poxa... E está se perdendo nessas liçõezinhas bestas... Vem comigo,
rapaz.
Fui. Era maio. Treze de Maio levei-o a uma conferência sobre "Negritude na Modinha", pelo
Eduardo Embondeiro, nome de guerra, que o verdadeiro era José da Silva. Borino fungou muito durante a
conferência, balançou a cabeça e coçou a testa enrugada como a destrinçar enigmas.
— "Negritude"... Você vai sair de "Negritudes" e outras bobas atitudes. Vai morar comigo... Você se
perdeu, rapaz, você está perdido nesse chão. Desse jeito você não chega a ser nada, ouviu? Nada!
— Mas eu sou negro e isso me diz respeito...
— Não reparei que você era negro... É, interessante, você é negro...
E ironia, como uma clava, me fendeu a resistência. E ele me levou pelo braço e alugou o quarto vazio
de sua casa e de manhã perguntou: — Como é, gostou? E sua mulher, dona Aída, trouxe o café pra nós dois
e se sentou também, mas isso como num sonho, porque tudo passou e hoje ando com outros passos. Hoje
respiro o ar de loucura na "Neurotic's House".

*
Mas não posso deixar de voltar a dona Aída. É como uma flor que pende sobre o meu sono e roça-me
a face na hora do pesadelo. Guardo daquilo uma indescritível tristeza, eu, por natureza um debochado, pois o
deboche tornou-se-me arma poderosa e fêz-me subir, com modos de gigante, na "Neurotic's House".
Aprendi a rir do mundo e de mim mesmo. Mas há um momento em que meu coração cresce pra abrigar a
imagem dela. Há um momento em que invento castidades nessa casa onde se encontram aleijões morais
disfarçados como bolinhas de barro cobertas de açúcar. Dá pro garoto, ele pensa que é bombom e, clack!,
comeu barro e a garotada ri dele: Comeu barro! Comeu barro! E ele é bobo, bobão. Eu fui esse bobo...
Evoluí modos de comportar-me. Agigantei-me no meu domínio. Casto e duro comigo, meus olhos cor de
aço roíam, ao baterem nelas, as crostas das sujeiras do mundo. Eu, o rapaz de aço. Eu, o negro que se
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desejou paradigma e foi chamado de fresco e outras amenidades que os párias mentais armam contra o
sujeito que se contém e não avança o sinal...
Mas, hoje, estou sentindo o bafo da loucura na minha cara, hoje minha carapuça é de desânimo, nojo.
Sou um sujeito gretado e me defendo entre muitas safadezas. Procuro espécimes raros de desastres.
Catalogo-os para Fred, o doido, que me acha imprescindível e me paga salário muito alto.
Subi na "Neurotic's House", porque sou um preto inteligente e agudo (opinião de Fred) e também
desamparado, após tentar a beatitude. Fred leu meu livrinho de versos, “Um homem tenta ser anjo”, riu alto,
gargalhou até ficar roxo, perguntou:
— Você foi isso? Piada! Ah, ah, ah, piada! Pi-a-da! Mas eu subi, tenho dinheiro, graças a esse louco
rico e desatento à minha esperteza.
Saí de manhã, picado de pulgas e com o nariz entupido de mofo.
— Vocês, pessoal de cor...
É isso: me levou com ele, fez que me deu a mão, mas por dentro se remordia de ter avançado o passo
sem avaliar minudências... Não viu que eu não cabia naquele quarto, naquela sala, não viu que um preto
ocupa muito lugar, se o deixam livre e ele é um sujeito que aprendeu a "golpear", isto é, educado, brunido de
finezas, coberto de ouro, que é a educação, sim senhor. Preto é um sujeito muito danado, se descobre o
engonço do êxito e trabalha na sombra, acobertado por "sim, senhor", "o senhor é muito bondoso comigo",
"nem tanto, minha senhora" e reverências que empinam o traseiro, mas empurram o carro do êxito pra
frente.

Saí, pois, de manhã, sentei-me num banco da Pça. da República, onde conversei com o José do
Patrocínio (Patrocínio, sim senhor, que sarro!, o cara nem sabe ler, bebe como um porco, fede a catinga e os
engraxates chamam ele de José do Patrocínio, oh José do Patrocínio!).
Abri meu Cruz e Sousa, aquela edição de papel mendigo, do Zelio Valverde, li dois poemas, não
buliram comigo. Eu estranhei: se Cruz e Sousa não bole comigo é porque estou bem ruinzinho, estou
começando a ficar podre e um sujeito podre precisa ganhar dinheiro, se não fede, descasca, fica gretado e
todo mundo fala: aquele é um sem eira nem beira e, se é um preto: é um preto "Tu" e não um preto "sim
senhor". Desculpem de eu falar assim, mas estou amargurado, amargurado mesmo. Prouvesse a Deus que eu
me desgovernasse feito um idiota, mas no fundo abissal me encontrasse como um homem, um homem
cutucando o chão do abismo, catando caramujo, mas um Homem, entendeu o senhor?, um Homem!
Esses pensamentos de ser idiota, etc., me afloraram ao me sentir surripiado do cheque do Borino. Na
Pça. da República. O José do Patrocínio não podia ser, pois eu lhe acabara de contar as peripécias do seu
xará ilustre:
— Olha aqui, um negro aprumado, comprou um carro, já naquele tempo, tribuno (outro dia te explico
o que é tribuno), beijou a mão da Princesa... Você, por acaso, não encontrou um cheque?
Sentei-me então noutro banco, desanimado. Peguei o livro de Cruz e Sousa, mirei a dona que
passava, linda (ó Formas alvas, Formas brancas, Formas claras) e percebi que eu estava "emparedado”.
Percebi que os “miseráveis, os rotos, são as flores dos esgotos", percebi que eu apodrecera naquela manhã e
que algo me ia acontecer, naquele instante, algo que me ia entortar o focinho da vida pra outro lado.

*
Era um sujeito de uns cinquenta anos. Cabelos loiros, olhos azuis, lábios finos e nariz fino, a testa
larga, revelando inteligência muito alta. Homem bonito. Percebi, sem esforço, que era um branco. Parou na
minha frente, a bengala de junco na mão, alçou o chapéu com uma inclinação graciosa:
— O senhor lê...
— Leio.
Adiantou alguns passos, um sorriso malicioso nos lábios:
— O senhor é um desocupado. O senhor lê... Em que trabalha? se me perdoa a indiscrição...
— Professor de Piano e Harmonia, respiro um pouquinho pra recomeçar.
9

Fixou-me alguns segundos e nos seus olhos azuis eu vi meu rosto preto, úmido de águas do Reno...
— O senhor é músico. O senhor lê... Então, que acha de Bach?
— Bach? — e fiz uma cara de mui complexa análise — Bach devia ser Mar e não bach = riacho. Es -
reveu o Antigo Testamento da Música. A música deve tanto a ele como uma religião a seu fundador. O
"kantor" de Sto. Tomaz continua sendo, ainda, o maior dos compositores...
Aí me falhou a memória e as ideias catadas brevemente em Kurt Fahlen, Schumann e mesmo
Caldeira Filho se misturaram ao meu desânimo, de modo que eu não sabia mais nada de Bach.
Olhei, então, a manhã que caminhava rumo à tarde, os edifícios com suas barrigas planas de
concreto, onde o sol batia feito um borrão amarelo, olhei a Praça da República. No banco, perto do coreto, o
José do Patrocínio roncava.
— Bach é Bach, meu senhor.
— Eu gostaria de lhe falar... em outro local. Gostei de você, preto, gostei mesmo — e me pousou no
joelho a mão peluda.
— Meu cartão, o cartão de Pred. Já ouviu falar na "Neurotic's House"? Pois me procure, então, me
procure...
Estendeu-me a mão, inclinando-se. E eu senti um cheiro áspero de colônia e seus cabelos, fixos como
por goma, pareciam uma carapuça de ouro. E já a alguns metros de mim, repetia:
— Gostei de você, preto, gostei mesmo...
Hoje estou na "Neurotic's House" e Fred me aprecia. Chego de manhã e minha função, além de bater
as cartas e tocar piano, no almoço, é conversar com os frequentadores. Conversar oficialmente e sofismar,
também oficialmente. Devo ainda aprender citações em várias línguas, ler a "Enciclopédia", pelo menos
duas horas, e tocar em Klavarskribo, esse método para instrumento de tecla, revolucionário, inventado pelo
holandês C. Pott.
Em resumo, Fred me exibe como fruto de seu desvelo, cria sua. "Pegou-me pequeno a uma preta
bêbeda, tuberculosa e sem marido, mas não me pôs em colégios, nada disso. Me levou com ele, me deu
roupinhas brancas e, arrostando a fúria da família, ergueu-me às finuras da educação, como filho seu muito
querido, muito amado".
Meu ofício, então, é contar aos frequentadores da "Neurotic's House" o meu caminho amargo, o meu
início, como um garotinho preto e ranhento, calça vermelha, com um remendo verde no traseiro (verde =
esperança!) e pixaim ignorante de pente.
— "Nasci, minha senhora, a bem dizer por nascer. Meu destino surgiu furado, cercado de zeros, um
destino zarolho, turvo e besta, minha senhora. Depois Fred me encontrou na gélida madrugada, eu vendia
rosas diante de uma boate e cantarolava "God save the King", estropiado, mas muito engraçadinho. Minha
mãe aprendeu o "God save" na casa de uma madame inglesa, onde trabalhou antes de ficar doente, bêbeda,
tuberculosa e sem marido... Meu destino surgiu furado, madame, mas eu o consertei com a ajuda de "papai"
Fred."
Quando minha ouvinte ria eu ficava satisfeito de minhas "verdades" e ela, por seu turno, feliz de se
deixar levar...

*
Subi na "Neurotic's House", porque Fred foi com a minha cara, foi e ainda vai:
— Gosto de você, preto, você provou que um preto pode livrar-se de sua carga... Gosto de você,
preto, gosto mesmo...
E ele me ajeita o nó da gravata, sorrindo, muito loiro, muito fino e bonito, como um branco.
É sua mão, no meu ombro, me belisca a carne até o osso, testando a resistência...
— Gosto de você, preto, gosto mesmo...

*
Um odor áspero, de colônia, me envolve, como nuvens de Civilização.

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