0% acharam este documento útil (0 voto)
2K visualizações181 páginas

EIZIRIK, Nelson. M&a Regime Societário e Contratual. São Paulo Quartier Latin, 2024

O documento aborda o regime societário e contratual, destacando a importância das operações de fusão, incorporação e cisão no contexto da economia globalizada. A obra também discute a evolução do direito societário e as implicações das transações empresariais, incluindo contratos e garantias. É uma análise abrangente que reflete sobre a interdependência das economias e o papel das multinacionais nesse cenário.

Enviado por

lucasgabrielw099
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
0% acharam este documento útil (0 voto)
2K visualizações181 páginas

EIZIRIK, Nelson. M&a Regime Societário e Contratual. São Paulo Quartier Latin, 2024

O documento aborda o regime societário e contratual, destacando a importância das operações de fusão, incorporação e cisão no contexto da economia globalizada. A obra também discute a evolução do direito societário e as implicações das transações empresariais, incluindo contratos e garantias. É uma análise abrangente que reflete sobre a interdependência das economias e o papel das multinacionais nesse cenário.

Enviado por

lucasgabrielw099
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
Você está na página 1/ 181

NELSON EIZIRIK

REGIME SOCIETÁRIO
E CONTRATUAL

Editora Quartier Latiu do Brasil


São Paulo, verão de 2024
Copyright © 2024 by Editora Quartier Latin do Brasil
SUMÁRIO

1. Agradecimentos, 13

2. Introdução, 15
EIZIRIK, NELSON
MEAI - Regime Societário e Contratual.

São Paulo: Quartier Latin, 2024. PRIMEIRA PARTE


Regime Societário, 21

M&4 - Regime Societário e Contratual -1.° ed. - São Paulo.• Quartier Latin, 2024.
3.1. Incorporação, Fusão, Cisão e Incorporação
de Ações — Características Comuns das Operações, 23
ISBN 978-65-5575-262-5 23
3.1.1. Considerações Iniciais
3.1.2. Características Comuns às Operações de Fusão, Incorporação, Cisão
e Incorporação de Ações 28
1. Direito Societário; 2. M&A; 3. Contratos; 4. Interpretação; 5. Reorganização
(i) Processo de Deliberação 28
Societária; 6. Lei das S.A.; 7. Código Civil; 8. Fusão; 9. Incorporação; 10. Contrato
(ii) Direito de Recesso 32
de Aquisição de Participações Societárias; 11. Declarações; 12. Garantias. I. Título
Na Lei das S.A. 34
Norma Especial de Recesso na Operação entre "Partes Relacionadas"..38
No Código Civil 41
(iii) Protocolo e Justificação 44
EDITORA QUARTIER LATIN DO BRASIL Na Lei das S.A. 44
Rua General Flores, 508 52
Bom Retiro — São Paulo No Código Civil
CEP 01129-010 (iv) Direitos dos Credores 52
Telefone e whatsapp: +55 11 9 9431 1922 Na Lei das S.A. 53
D editoraquartierlatin
No Código Civil 58

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS.


Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou
processo, especialmente porsistemas gráficos, microfilmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, 3.2. Fusão, Incorporação, Cisão e Incorporação de Ações —
Videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de
qualquer parte desta obra em qualquersistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam- Características Especiais de Cada Operação, 61
se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é 61
punível como crime (art. 184 e parágrafos do Código Penal), com pena de prisão e multa, busca e 3.2.1. Fusão
apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a no da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais). 3.2.2. Incorporação 67
3.2.3. Cisão 79 SEGUNDA PARTE
3.2.4. Incorporação de Ações 85 Regime Contratual, 165

4.1. Contrato de Aquisição


3.3. Reorganização Societária na Companhia Aberta, 91 de Participações Societárias, 167
3.3.1. Considerações Iniciais 91 4.1.1. Considerações Iniciais 167
3.3.2. Regime da Prestação de Informações ("Disclosure") 95 4.1.2. Objeto e Regime Jurídico do Contrato 169
3.3.3. Operações entre Companhia Controladora e Controlada ou 4.1.3. Há Diferença Substancial entre a Aquisição de Ações e a
entre Companhias sob Controle Comum 104 Aquisição de Quotas? 172
4.1.4. Deveres Principais 176
4.1.4.1. Do Vendedor 176
3.4. Aquisição de Controle Mediante Oferta Pública, 111 4.1.4.2. Do Comprador 184
3.4.1. Funções e Características 111 4.1.4.3. Das 2 (duas) Partes Antes e Depois da Assinatura do Contrato....185
3.4.2. Divulgação de Informações e Edital da Oferta Pública 117 4.1.5. Dever de Informar e Ônus de Se Informar 187
3.4.3. Oferta Concorrente 118 4.1.6. Demais Deveres de Conduta 190
3.4.4. Comportamento dos Administradores 119
3.4.5. Dificuldades na Aquisição de Controle Mediante OPA 120
4.2. Declarações e Garantias -
"Representations and Warranties" , 193
3.5. Oferta Pública Decorrente da Alienação 4.2.1. Considerações Iniciais 193
do Controle de Companhia Aberta, 127 4.2.2. As "Declarações" são Diferentes das "Garantias"? 195
3.5.1. Características Gerais 127 4.2.3. Funções da Cláusula de Declarações e Garantias 198
3.5.2. Registro na CVM e Preço da OPA 129 4.2.4. Conteúdo da Cláusula 202
3.5.3. Quando a OPA do artigo 254-A é Obrigatória? 134 4.2.5. Natureza da Cláusula e Consequências do seu Incumprimento....205
3.5.4. Modalidades de Controle e Casos em que a OPA não é Obrigatória 139 4.2.6. Observações Finais 213
3.5.5. Destinatários da OPA 146
3.5.6. Instrumento da OPA e Aceitação da Oferta 148
3.5.7. A OPA nos Segmentos Especiais de Listagem na B3 151 4.3. Cláusulas com Qualificadoras de Conhecimento -
"Knowledge Qualfflers", 215
4.3.1. Características e Funções 215
3.6. Aprovação da Operação pela 4.3.2. Intepretação e Ônus da Prova 217
Assembleia Geral da Compradora, 153 4.3.3. Definição do Conhecimento 220
3.6.1. Considerações Iniciais 153 4.3.3.1. Conhecimento Real e Conhecimento Presumido 221
3.6.2. O Alcance do Artigo 256 da Lei das S.A 154 4.3.3.2. Identificação de Pessoas ou de Cargos Específicos 222
3.6.3. O Direito de Recesso 161 4.3.4. Cláusulas sem Limitação de Conhecimento 224
3.6.4. Observações Finais 162 4.3.5. Observações Finais 225
4.4. Cláusula de Indenidade , 227 4.9. Due diligente, 299
4.4.1. Considerações Iniciais 227
4.4.2. Funções e Conteúdo da Cláusula de Indenidade 227
4.4.3. Validade da Cláusula e o Papel do Julgador 233 4.10. Cláusula de Breakup Fee, 303 .
4.4.4. Alcance da Cláusula 238 4.10.1. Características e Funções 303
4.4.5. Eventuais Limites na Aplicação da Cláusula de Indenidade 242 4.10.2. Regime Jurídico no Direito brasileiro 307
4.10.3. Observações Finais 312

4.5. Cláusula de Earn-Out, 249


4.5.1. Considerações Iniciais 249
4.5.2. Características e Funções da Cláusula de Earn-Out 250 4.11. Trespasse, 313
4.5.3. Earn-Out no Direito Brasileiro e os Princípios Aplicáveis 254 4.11.1. Características Gerais 313
4.5.4. Deveres dos Administradores Durante o Período do Earn-Out 258 4.11.2. O Estabelecimento 314
4.5.5. Observações Finais 261 4.11.3. O Negócio Jurídico de Trespasse 317
4.11.4. A Sucessão no Trespasse 321
4.11.5. Transferência dos Contratos 324
4.6. Cláusulas MAC e MAE, 265 4.11.6. Proibição de Concorrer 327
4.6.1. Características e Funções 265 4.11.7. Observações Finais 327
4.6.2. Origem 272
4.6.3. Regime Jurídico no Direito brasileiro 273
4.6.4. Observações Finais 277

TERCEIRA PARTE, 331


4.7. Cláusula de Não Concorrência, 279
4.7.1. Origem, Características e Função 279
4.7.2. Limites e Interpretação da Cláusula 280 5. Interpretação das Operações Societárias e dos Contratos
4.7.3. Observações Finais 285 de Aquisição de Participações Societárias, 333
5.1. Considerações Iniciais 333
5.2. Nas Operações Societárias 336
4.8. Cláusula de Sandbagging, 289 5.3. Nos Contratos de Aquisição de Participações Societárias 344
4.8.1. Características e Funções 289 1° princípio — o objetivo da interpretação é verificar a intenção das
4.8.2. Origem 292 partes, o que deve ser feito de maneira objetiva 345
4.8.3. Regime Jurídico no Direito brasileiro 294 2° princípio — os contratos devem ser interpretados de acordo com o
4.8.4. Observações Finais 298 postulado da boa-fé objetiva 347
3° princípio — os contratos devem ser interpretados como um
todo 349
4° princípio — os contratos devem ser lidos tendo em vista o contexto
em que foram negociados e firmados 353
5° princípio — os contratos devem ser interpretados conforme o
ordenamento jurídico 356
6° princípio — o intérprete deve resistir à tentação de "reescrever"
os contratos 358

5is queridas Flávia, Julia, Alice e Cecilia


e aos queridos Miguel e Artur,
amorosas presenças em minha vida."
NELSON EIZIRIK -13

1. AGRADECIMENTOS

Agradeço muito às colegas de escritório Maria Luiza Gutierrez


Bonfatti Ribeiro e Mayara Ferreira Campelo pela inestimável e com-
petente colaboração ao longo de todo o processo de elaboração da
presente obra, com quem reparto os seus eventuais méritos. As falhas
e omissões são de minha inteira responsabilidade.
Cada capítulo foi objeto de um seminário interno em nosso es-
critório, sempre com pertinentes críticas e sugestões dos que ne-
les participaram: os advogados Alexandre Chede Travassos, Camila
Tinoco, Carolina Bouchardet Dias, Harife Huri Eugenio da Silva, João
Henrique Macarini dos Santos, Juliana Botini Hargreaves Vieira, Luis
André Negrelli de Moura Azevedo, Luiza Pereira da Cunha Pires de
Oliveira, Maria Lucia de Araujo Cintra, Maria Luiza Gutierrez Bonfatti
Ribeiro, Marcus de Freitas Henriques, Mayara Ferreira Campelo e
Renata Brandão Moritz Serpa Coelho; e os estagiários Caio Renato
Leitão Mendes, Gabriel Cardoso Ticom, Kauan Oliveira Silva Ferreira,
Maria Eduarda Schon Lesse e Vitor da Costa Matos.

$
NELSON EIZIRIK - 15

2. INTRODUÇÃO

A moderna economia de mercado caracteriza-se por um proces-


so de concentração empresarial, o que se deve a alguns fatores prin-
cipais: as economias de escala em empreendimentos de maior porte,
que reduzem os custos de produção e de distribuição; o impacto da
inovação tecnológica no processo produtivo demanda empresas cada
vez mais capitalizadas ou com maior acesso às fontes de financia-
mento; e a necessidade de produção e distribuição em escala global.
A crescente globalização das empresas também contribui para a
concentração econômica. Cada vez mais as grandes empresas atuam
em escala internacional, como multinacionais, estabelecendo depar-
tamentos ou filiais em países onde a mão de obra é mais barata e os
impostos e custos de produção são menores. Para tanto, associam-se
às locais, adquirindo seus ativos ou seu controle acionário.
Em suas feições originais, no Direito Romano e nos bancos flo-
rentinos, as sociedades por ações eram reconhecidas pelos Estados e
atuavam em escala local, recebendo direitos e privilégios atribuídos
pelas nações que as criavam. Porém, a partir do início do século XX e
principalmente após a Segunda Grande Guerra, quando muitos paí-
ses começaram a eliminar as barreiras para o comércio internacional,
as grandes companhias passaram a atuar em escala global, dando for-
ma ao chamado "capitalismo cosmopolita".
Fatores como livre comércio, transportes internacionais mais mo-
dernos e baratos, desenvolvimento das comunicações e da tecnologia
permitiram às grandes companhias tornarem-se entidades globais,
transformando-se em pequenos "impérios", controlando divisões e
subsidiárias em diferentes países. Em suas atividades, passaram a obter
matéria prima num país, manufaturar produtos em outro, vender num
terceiro, sempre mantendo o controle final do empreendimento. As
economias nacionais passaram a ser cada vez mais interdependentes,
16 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 17

na medida em que os canais de suprimento de produtos tornaram- anos. Até outubro de 2023, a proporção era de 80,1% de capital na-
-se globais e as pessoas e inovações tecnológicas atualmente cruzam cional, enquanto, em 2022, 81,4%, e, em 2021, 83,1%.
fronteiras como jamais ocorreu'. Ademais, analisadas conforme o tipo de investidor, identifica-se
As multinacionais passaram a constituir o principal elemento um incremento de transações realizadas por investidores estratégi-
propulsor do processo de globalização e, com ele, de operações de fu- cos em comparação às por private equity: a participação de investi-
sões e aquisições, comprando empresas nacionais já existentes, ou seus dores estratégicos aumentou de 72% em 2021 para 77,3% em 2022
ativos (operações de "M&A"), ou desenvolvendo novos empreendi- e 79,7% em 2023 (até outubro).
mentos por conta própria ou com sociedades locais. Por operações de M&A. entendemos todas aquelas que têm por
Interessantemente, porém, conforme tem demonstrado estudos de fim a aquisição do controle, de participação acionária relevante ou de
finanças, as empresas norte-americanas, quando compram empresas de ativos de determinada sociedade, seja mediante restruturação socie-
outros países, pagam mais do que os adquirentes locais. Esse "prêmio" tária, seja mediante contrato de compra e venda de ações ou quotas.
representa o pagamento pelo "know-how" local assim como o acesso Uma operação de M&A usualmente envolve vários aspectos:
ao mercado que a empresa adquirida provê ao comprador estrangeiro2. jurídicos, econômicos, financeiros e contábeis. Os aspectos jurídicos
As operações de M&A têm, em nosso país, adquirido grandes constituirão o foco de nosso trabalho.
proporções nos últimos anos. Ademais, pode demandar a utilização de institutos jurídicos de vá-
Segundo dados da PricewaterhouseCoopers Brasil Ltda.', no ano rias áreas do direito: societário, obrigacional, tributário, concorrencial e
de 2023, foram anunciadas 1.069 operações até o mês de outubro, em trabalhista. Os dois primeiros constituirão o objeto do presente estudo.
comparação com 1.556 em 2022 e 1.659 em 2021. Ainda que sejam realizadas muitas operações no Brasil, há ain-
De acordo com a pesquisa, verifica-se uma concentração de tran- da certa carência de estudos doutrinários sistemáticos que busquem
sações na Região Sudeste do país, no percentual de 69,1%, em 2023. suprir o descompasso entre a teoria e a prática do M&A. Inexistem
Também houve uma predominância no setor de tecnologia, mídia e te- decisões judiciais que formem uma jurisprudência consistente, pois
lecomunicações, em 45,6%, em relação aos demais setores da economia. tais negócios jurídicos, quando geram conflitos, são, o mais das vezes,
Quanto à origem do capital, nota-se uma leve diminuição da levados à arbitragem e têm sua decisão protegida pelo sigilo contra-
participação do capital nacional frente ao multinacional nos últimos tado entre as partes.
Além disso, em grande número de casos, em que uma das partes
não é nacional, os contratos de compra e venda de ações ou quotas
1 WILLIAM MAGNUSON. For Profit - A History of Corporations. New York: Basic são redigidos em inglês e contêm instrumentos jurídicos consagra-
Books, 2022, p. 188 e seguintes.
dos na prática negocial dos Estados Unidos ou de países europeus.
2 ROBERT F. BRUNER. Deals from Hell - M&A Lessons that Rise Above the Ashes.
New Jersey: John Viley § Sons, 2005, p. 31. Optam, porém, pela aplicação da lei brasileira e são resolvidos aqui,
3 Operações de M&A no Brasil. PwC. Disponível em: <https://www.pwc.com.br/ seja por tribunal estatal, seja mediante arbitragem. Tal situação gera a
pt/estudos/servicos/assessoria-tributaria-societaria/fusoes-aquisicoes/2o24/
operacoes-de-mea-no-brasil-outubro-2o23.html>. necessidade de ajustar-se os termos negociais desenvolvidos em outros
18 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 19

países ao nosso ordenamento jurídico, o que seguidamente acarreta tória, seja a voluntária.Também constará desta primeira parte uma seção
problemas de interpretação de cláusulas contratuais não conhecidas sobre a necessidade de aprovação pela assembleia geral da comprado-
por nosso direito obrigacional. ra, se companhia aberta, do controle de qualquer sociedade mercantil.
Tais são os desafios que nos propomos a enfrentar na presente obra, Na segunda parte, analisaremos as operações de aquisição de par-
utilizando, para tanto, a pesquisa bibliográfica nacional e do direito ticipações societárias e de ativos das empresas, concentrando-nos no
comparado, bem como nossa experiência no trato de operações da es- estudo das principais cláusulas utilizadas em tais contratos, descre-
pécie, principalmente como parecerista e árbitro, o que nos levou inclu- vendo como podem ser adaptadas ao nosso sistema de direito obri-
sive à apresentação de exemplos hauridos de nossa prática profissional. gacional e qual a sua mais adequada interpretação.
Como fazê-lo? Penso que o primeiro passo é entender os obje- Na terceira parte, apresentaremos comentários — de natureza mais
tivos econômicos e financeiros de tais operações, que devem estar re- pessoal e aproveitando nossa experiência profissional — sobre como
fletidos nos instrumentos jurídicos utilizados entre as partes. Ou seja, devem ser interpretadas as operações de restruturação societária e os
verificar o que as partes desejam ao utilizar determinadas cláusulas contratos de aquisição de participações societárias.
contratuais ou negócios jurídicos e, em seguida, adaptar tais objeti-
Qual o papel do advogado em operações de M&A?
vos e cláusulas ao nosso sistema jurídico.
É interessante mencionar alguns dados históricos relativos ao perío-
Tal tarefa é mais fácil nas operações de restruturação societá-
do da Revolução Industrial para a Inglaterra e Gales, entre 1797 e 1851,
ria, tratadas em nossa Lei das S.A. com muita propriedade, nem tan-
sobre a remuneração média anual de categorias profissionais. Eles indi-
to no Código Civil. Já nas operações de compra e venda de ações ou
cam que o maior ganho, em termos de renda, foi o dos advogados, que,
quotas, às quais se pode aplicar, em termos gerais, as normas de nos-
no período, aumentaram seus rendimentos em 1.073%,vindo em seguida
so Código Civil que disciplinam os contratos de compra e venda de
os executivos (engenheiros e supervisores) com aumento de rendimen-
bens, torna-se mais complexa a atividade do intérprete; muitas vezes,
to de 152%. Já os altos funcionários da Coroa tiveram aumento de 76%.
as cláusulas contratuais "não cabem" nos conceitos de nosso direito
A que se deveria isso? Com as novas e mais complexas unidades de
obrigacional, ou simplesmente não são tratadas em lei, o que deman-
produção — as empresas organizadas, em substituição ao trabalho autô-
da grande esforço de adaptação e de recurso à analogia.
nomo e artesanal—os custos de transação aumentaram inevitavelmente.
A obra está dividida em 3 (três) partes, as 2 (duas) primeiras con-
Como lidar com os custos de transação', senão com contratos e/
tendo várias seções.
ou com a atuação do Estado enquanto agente regulador?
Na primeira, trataremos das operações de reestruturação societá-
ria, disciplinadas na Lei das S.A., no Código Civil e na regulamentação
4 HELIO PORTOCARRERO, "O Teorema de Coase. Interpretações, Alguns
administrativa da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) quando Desdobramentos e Aplicações". In: Rodrigo Rocha Monteiro de Castro; Luis
envolvidas companhias abertas. Assim, analisaremos o tratamento ju- Andre Azevedo; e Marcus de Freitas Henriques (Coord.). Direito Societário,
Mercado de Capitais, Arbitragem e Outros Temas: Homenagem a Nelson
rídico das fusões, cisões, incorporação de sociedade e incorporação de Eizirik. v. III, São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 648.
ações, assim como da oferta pública de aquisição de ações, seja a obriga- 5 Um bom resumo do que sejam os custos de transação foi apresentado por
CARL J. DAHLMAN, como sendo os de "search and information costs, bargaining
20 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL

Nas operações de M&A, em que não é relevante a atuação do Estado,


exceto quanto à repressão de abusos do poder econômico que delas po-
dem decorrer, o papel do advogado, enquanto redator dos contratos, é
fundamental. Os contratos, com efeito, servem para reduzir os custos de
transação, ou para dividi-los entre as partes, de modo a permitir a con-
clusão de negócios de M&A, sem qualquer intervenção estatal direta.
E o papel do advogado em países como o nosso, em que, muitas ve-
zes, os contratos vêm praticamente "prontos", elaborados por escritórios
norte-americanos, seguindo um modelo usual no direito anglo-saxão?
Certa vez conversando com um colega sobre o assunto, ele me
fez uma observação interessante: que nossa principal função seria a
de "domesticar" tais institutos alienígenas, aplicando-os, quando pos- Primeira Parte
sível, tal como redigidos (afinal traduzem o que as partes desejaram),
adaptando-os aos nossos sistemas jurídicos sempre que necessário. REGIME SOCIETÁRIO
É o que me proponho a fazer, nas páginas que seguem.
Da mesma forma que procedi em outros livros, procurei "facilitar"
a vida do leitor, que já está lidando com um tema relevante, mas de
natureza técnica. Ademais, trata-se de obra que pode ser consultada
por partes. Assim, cada uma delas é autocontida, com as referências
bibliográficas completas e, quase sempre, os textos das normas legais
em rodapé, o que levou a algumas inevitáveis repetições. Também pro-
curei expor os institutos jurídicos aplicáveis às operações de M&A de
maneira mais clara possível, para que a presente obra possa ser utili-
zada como material didático.
A propósito, algumas das ideias aqui desenvolvidas são resulta-
do de debates em curso sobre operações de M&A que ministrei na
Escola de Direito da FGV-RJ no segundo semestre de 2023.

costs and decision costs policing and enforcement costs", in "The Problem of
Externality", Joumal of Law and Economics. V. 22, abril de 1979, p. 141-162.
NELSON EIZIRIK - 23

3.1. INCORPORAÇÃO, FUSÃO, CISÃO E INCORPORAÇÃO


DE AÇÕES - CARACTERÍSTICAS COMUNS DAS OPERAÇÕES

3.1.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Uma das formas típicas de aquisição de empresas ocorre me-


diante processos de reorganização societária. Utiliza-se a expressão
"fusão"("merger"), de forma não técnica, para designar diferentes ope-
rações que objetivam a compra da "empresa-alvo" ou do seu contro-
le. Embora seja comum o emprego da palavra "fusão" para designar
diversas modalidades de união entre empresas, entre nós, ela tem um
sentido técnico-jurídico, conforme definido no artigo 228 da Lei das
S.A.6 e no artigo 1.119 do Código Civil', que a distingue tanto da in-
corporação de sociedade, como da incorporação de ações e da cisão'.
No presente Capítulo, analisaremos as operações societárias que
resultam na concentração de empresas ou constituem etapas prepara-
tórias para tanto: fusão, incorporação, incorporação de ações e cisão.
Estudaremos inicialmente as características que são comuns a tais ope-
rações e, depois, nos capítulos seguintes, cada uma delas, bem como
seus traços distintivos das demais; em seguida, analisaremos as nor-

6 "Art. 228. A fusão é a operação pela qual se unem duas ou mais sociedades para
formar sociedade nova, que lhes sucederá em todos os direitos e obrigações."
7 "Art. 7.119. Afusão determina a extinção das sociedades que se unem, para formar
sociedade nova, que a elas sucederá nos direitos e obrigações."
8 No Direito Português, por força da transposição dos artigos 89, 91 e io8 da
Diretriz 2.017/1132 do Parlamento Europeu, a expressão "fusão" é utilizada
tecnicamente num sentido mais amplo, posto que apresenta duas modalidades:
a fusão por incorporação e a fusão por concentração. A primeira constitui
processo mediante o qual ocorre a transferência da totalidade do patrimônio
de duas ou mais sociedades, ditas "incorporadas", para uma sociedade pré-
existente, dita "incorporante". Já a fusão por concentração, constitui o processo
de constituição de uma nova sociedade que reúne a totalidade do patrimônio
de uma ou mais sociedades. Ver, a propósito: JOSÉ FERREIRA GOMES. M&A
- Aquisição de Empresas e Participações Sociais. ia edição, Lisboa: AAFDL
Editora, 2022, p. 103.
24 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 25

mas e regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários — CVM A incorporação de ações é a operação mediante a qual 1 (uma)
aplicáveis às companhias abertas. sociedade incorpora ao seu patrimônio todas as ações de outra com-
A Lei das S.A., em seu Capítulo XVIII, refere-se aos institutos panhia, convertendo-a em sua subsidiária integral (artigo 252 da
acima como "operações", expressão utilizada para representar o con- Lei das S.A.).
junto de atos interligados, processos ou procedimentos que condu- A fusão, a incorporação e a cisão podem ser praticadas entre so-
zem a determinado resultado. Tais operações constituem negócios ciedades de tipos iguais ou diferentes, desde que sejam personificadas,
jurídicos típicos, próprios do Direito Societário, que visam a reorga- como a sociedade por ações, a sociedade limitada, a sociedade em co-
nizar sociedades, mediante sua unificação, divisão ou mesmo criação mandita por ações ou em comandita simples, a sociedade simples e a
de novas sociedades9. sociedade em nome coletivo. Assim, nada impede que uma socieda-
No Código Civil, a operação de fusão é regulada nos artigos 1.119 de por ações incorpore uma limitada, ou vice-versa. Quando a socie-
a 1.122. Já a incorporação é disciplinada nos artigos 1.116 a 1.118. dade resultante da operação for uma companhia, aplica-se a Lei das
A cisão, embora mencionada no artigo 1.122 juntamente com a fu- S.A., por força do parágrafo único do artigo 220 e do artigo 223. Se a
são e a incorporação, ao tratar da anulação de tais operações por cre- sociedade resultante for regida pelo Código Civil, suas normas serão
dor prejudicado, não é definida nem regulada especificamente pelo as aplicáveis, nos casos de fusão e incorporação. Nos termos do artigo
Código Civil. 223, § 1°, da Lei das S.A., quando houver criação de sociedade — como
A fusão constitui a operação mediante a qual se unem 2 (duas) ocorre na fusão e pode ocorrer na cisão — serão observadas as normas
ou mais sociedades para formar uma nova, que lhes sucede em to- reguladoras da constituição de sociedade do seu tipo.
dos os direitos e obrigações (artigos 228 da Lei das S.A. e 1.119 do Antes da promulgação do vigente Código Civil, as normas da Lei
Código Civil). das S.A. sobre as operações de reorganização societária eram aplica-
A incorporação é a operação pela qual 1 (uma) ou mais socie- das a todos os tipos societários personificados, observadas as peculia-
dades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos ridades de cada um. O Código Civil alterou a situação, uma vez que
e obrigações (artigos 227 da Lei das S.A. e 1.116 do Código Civil). seus artigos 1.116 a 1.122 tratam das fusões e incorporações, havendo
uma menção isolada à cisão no artigo 1.122, que prevê que os credores
A cisão constitui a operação por meio da qual a sociedade transfe-
prejudicados podem pleitear a anulação da operação. Assim, deve-se
re parcelas de seu patrimônio para 1 (uma) ou mais sociedades, cons-
aplicar as normas da Lei das S.A. referentes à fusão, incorporação e
tituídas para esse fim ou já existentes, extinguindo-se a companhia
cindida caso haja versão de todo o seu patrimônio ou dividindo-se o cisão aos tipos societários regulados pelo Código Civil apenas quan-
seu capital caso a cisão seja parcial (artigo 220 da Lei das S.A.). do se verificar alguma lacuna neste diploma legal'o.
Ainda que a Lei das S.A. discipline de forma bastante completa
cada uma das operações, separadamente, nada impede que as socie-
9 JOSÉ LUIZ BULHÕES PEDREIRA, "Reorganização". In: Alfredo Lamy Filho e José dades envolvidas realizem legitimamente combinações de negócios
Luiz Bulhões Pedreira (Coord.). Direito das Companhias. 2a edição, Rio de
Janeiro: Forense, 2017, p. 1.259. SERGIO BOTREL. Fusões e Aquisições. São Paulo: Saraiva, 2012, p.105.
10
ECIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL

NELSON EIZIRIK - 27

-1 I
visando a alcançar os resultados desejados, inclusive utilizando ou-
tros institutos legais. Podem, por exemplo, combinar uma aquisiçã Como advento da Lei n° 11.638/2007 e da Lei n° 11.941/2008,
de controle seguida de incorporação o, que introduziram o IFRS ("International Financial Reporting
corporação da controlada ou realizar uma in-
de ações em que parte do pagamento do preço é feito com Standards") entre nós, surgiu uma nova terminologia, mais abran-
dinheiro, ou ainda uma incorporação seguida de cisão. Numa reorga- gente, para as reorganizações societárias: as "combináções de negó-
nização societária, pode-se legitimamente praticar diversos atos, cios". Conforme o Pronunciamento Técnico CPC 15, do Comitê de
dos
por um nexo de continuidade, sucedendo-s liga- Pronunciamentos Contábeis, considera-se combinação de negócios
e um ao outro, tendo
em vista o escopo final da operação. Em tal hipótese, as diversas eta- uma operação ou outro evento por meio do qual se adquire o con-
pas da operação não podem ser analisadas de forma isolada, como se trole de um ou mais negócios, independentemente da forma jurídi-
constituísse m atos societários autônomo
s e independentes, uma vez ca de tal operação. O termo também compreende, pai-a os efeitos do
que cada etapa depende das demais para chegar-se ao objetivo final Pronunciamento, as fusões que ocorrem entre partes independentes,
desejado pelas partes". conhecidas como "true mergers"ou "merger of equals".
Nos Estados Unidos, a partir dos anos oitenta, passou-se a ui Justificava-se a necessidade de ampliar o conceito de "operações
crescentement e tilzar
os chamados "instrumentos híbridos" societárias"para englobar também outras operações destinadas à mo-
de companhias, ou seja, uma parte do pagamento feita em aquisição
dinheiro, vimentação de ativos empresariais que não necessariamente envolvem
outra parte em ações ordinárias, outra em ações preferenciais, ou de- alterações societárias, como, por exemplo, a aquisição de um estabe-
bêntures, embora a configuração lecimento fabril mediante contrato de compra e venda, que constitui
mais típica seja metade em dinheiro
e metade em ações. As aquisições, muitas vezes, são estruturada uma operação relevante no mundo dos negócios13.
(dois) ou 3 (três) negócios, que conduzem ao mesmo fim: compra s emde2 Nas operações típicas de reorganização societária, prevalece o
um bloco de ações, oferta pública de aquisição ou fusão, a depende princípio da liberdade de contratar, uma vez que as sociedades en-
da negociação entre as partes e da aplicação das normas baixadas pelar volvidas são livres para estabelecer as bases da operação, em todos os
Securities and Exchange Conzmission seus aspectos negociais.
(SEC) sobre ofertas públicasu.
Há, porém, normas cogentes, de aplicação obrigatória. Entende-
se que são sempre mandatórias as normas que: definem o objeto da
11 NELSON EIZIRIK. A Lei das
Latin, 2021, p.
operação; regulam a convocação, instalação e deliberação da assem-
100-101. S/A Comentada. v. IV, 3a edição, São Paulo: Quartier
12
JAMES C. FREUND, bleia geral; disciplinam a manifestação da vontade social e a definição
publicado no 'ATurbulentDecadeforDeals:AnatomyofaMergrRevisited",
%dona! Law Journal, das condições do negócio no protocolo e na justificação da operação;
nov.
plemento ao clássico livro do mesmo ii, 1985, e reproduzido como com-
autor
disciplinam a avaliação dos patrimônios líquidos que formam o capi-
and Techniquesfor Negotiating Corporate Acquisitions",
"Anatomy of a Merger: Strategies
publicado originalmente em 1975, reedição de 2004.ANew York: LawJourna
propósito, sobre a uti-I,
tal; dispõem sobre a transferência dos patrimônios líquidos; conferem
lização de contratos societários de natureza diversa para atingir uma mesma direito de retirada aos sócios dissidentes; subordinam a aprovação do
finalidade, ver a decisão da CVM no âmbito dos Processos Administrativos
n°' 19957.007756/2018-46 e 19957.007885/2018-
Disponíveis em: <www.cvm.gov.br
>. 34, j. em 04.09.2018. 13 IAN DE PORTO ALEGRE MUNIZ. Fusões e Aquisições - Aspectos Fiscais e
Societários. 2a edição, São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 30.
28 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 29

negócio à aprovação dos debenturistas; asseguram ao credor preju- Nesse sentido, o Código Civil, em seu artigo 1.072, § 5°, dispõe
dicado ação para pleitear a anulação da operação; e, na falência, con- que as deliberações tomadas em conformidade com a lei e o contra-
ferem ao credor o direito de pedir a separação dos patrimônios para to social vinculam todos os sócios.
que os créditos sejam pagos pelos bens das respectivas massas".
A decisão coletiva é aquela subtraída da competência de cada
indivíduo que integra o grupo; quem decide é o coletivo, não o sin-
3.1.2. CARACTERÍSTICAS COMUNS ÀS OPERAÇÕES DE FUSÃO,
gular. A deliberação da assembleia ou da reunião constitui ato uni-
INCORPORAÇÃO, CISÃO E INCORPORAÇÃO DE AÇÕES
lateral da sociedade, embora decorrente da manifestação de vontade
dos sócios16.
Tais operações apresentam elementos e requisitos comuns, re-
Vige plenamente nas sociedades — qualquer que seja o seu tipo
gulados com detalhes na Lei das S.A. e, de forma mais resumida, no
— o princípio majoritário. As deliberações tomadas por maioria vin-
Código Civil, a saber: processo de deliberação; direito de recesso; pro-
culam todos os sócios, ainda que ausentes ou dissidentes. Trata-se de
tocolo; justificação; e direitos dos credores.
princípio fundamental do direito societário, uma vez que viabiliza o
0) PROCESSO DE DELIBERAÇÃO
funcionamento da sociedade, pois permite a eficácia, no plano exter-
As operações de reorganização societária, por envolverem alte- no, das decisões coletivas tomadas pela maioria do capital social, sem
rações estruturais nas sociedades, demandam sempre deliberação e necessidade de unanimidade, que poderia "engessar" o desenvolvi-
aprovação dos sócios, porém o quórum para tanto depende do regi- mento normal dos negócios da entidade.
me legal aplicável. A maioria do capital social constitui, em princípio, a intérprete
A deliberação constitui decisão adotada por órgão colegiado, do interesse social, presumindo-se que age no interesse dos sócios e
mediante prévia discussão e votação majoritária, consistindo, assim, da sociedade. Os sócios minoritários não têm como impedir que os
numa resolução de ordem plural. As deliberações tomadas em assem- majoritários aprovem as medidas que entendam necessárias ao inte-
bleias ou reuniões são caracterizadas como atos coletivos, para dife- resse social, ainda que eventualmente afetem a estrutura da socieda-
renciá-las dos contratos, em que as partes somente vinculam-se nos de e alterem direitos assegurados aos sócios.
termos de suas declarações. Já a deliberação de órgão colegial vincu- O exercício do poder majoritário legitima-se quando, dentro dos
la a todos os seus membros, ainda que não estejam presentes ou, pre- limites da lei, permite o prosseguimento da sociedade e a consecução
sentes, dela discordem". de seu objeto. As deliberações devem ter por fim o interesse social e
a função social da sociedade, sob pena de responsabilidade aos sócios
majoritários ou mesmo minoritários que votaram contra o interesse
social e/ou anulabilidade da decisão tomada em situação conflitante
14 JOSÉ LUIZ BULHÕES PEDREIRA, "Reorganização". In: Alfredo Lamy Filho e José
Luiz Bulhões Pedreira (Coord.). Direito das Companhias..., p.1.265-1.266.
15 ERASMO VALLADÀ- 0 AZEVENDO E NOVAES FRANÇA. Invalidade das 16 TULLIO ASCARELLI. Problemas das Sociedades Anônimas e Direito
Deliberações de Assembleia das S.A. São Paulo: Malheiros,1999, p. 41. Comparado. 2a edição, São Paulo: Saraiya,1969, p. 370.
NELSON EIZIRIK - 31
30 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL

com o interesse da sociedade (artigo 115, capuz', §§ 1° e 4°, da Lei das inexistente como ato coletivo, não constituindo, assim, expressão da
S.A.; e artigos 1.010, § 3°, e 1.074, § 2°, do Código Civil). vontade social".
O Código Civil, com as alterações promovidas pela Lei no As operações de fusão e cisão de companhias devem ser aprova-
14.451/2022 em seus artigos 1.061 e 1.076, regula a o processo de das com quórum qualificado, de metade, no mínimo,das ações com
deliberação nas sociedades que disciplina. Anteriormente, o artigo direito a voto, se maior quórum não for exigido no estatuto de compa-
1.076, inciso I, do Código Civil, determinava que as deliberações dos nhia cujas ações não sejam admitidas à negociação em bolsa de valo-
sócios nas operações de fusão e incorporação deveriam ser aprovadas res ou no mercado de balcão organizado (artigo 136, incisos IV e IX).
pelos votos correspondentes a pelo menos três quartos do capital so- Na incorporação, o quórum, na companhia incorporadora, será
cial. Atualmente, o artigo 1.076, inciso II, do Código Civil (combi- o de maioria absoluta, ou seja, metade, no mínimo, das ações ordi-
nado como artigo 1.071, inciso VI) prevê a necessidade de aprovação nárias dos acionistas presentes na assembleia, mais um (artigo 129).
de titulares com mais da metade do capital social. Não integram a base de cálculo os votos em branco, os dos acionistas
O regime de deliberação instituído no Código Civil é mais fle- impedidos de votar determinada matéria e os proferidos em infra-
xível que o da Lei das S.A., uma vez que as decisões dos sócios po- ção a acordo de acionistas arquivado na sede da companhia. Assim,
dem ser tomadas em reunião ou em assembleia, conforme previsto o quórum da maioria absoluta é verificado mediante o capital que
no contrato social (artigo 1.072). pode votar representando os acionistas presentes à assembleia geral.
Já nas sociedades por ações, cujo regime jurídico é destinado à Já na companhia incorporada o quórum será o da maioria quali-
regulação de empresas de maior porte e com maior número de sócios, ficada, ou seja, metade no mínimo das ações com direito de voto (ar-
nas quais em geral não prevalece a "affectio societatis", caracterizando- tigo 136, inciso IV).
-se como sociedades de capitais, não de pessoas, a disciplina da con- O § 2° do artigo 136 da Lei das S.A., com redação dada pela Lei
vocação e realização da assembleia geral é mais rígida. Prevalecem as n° 14.195/2021, conferiu à Comissão de Valores Mobiliários a com-
normas de ordem pública previstas no Capítulo XI da Lei das S.A., petência para autorizar a redução do quórum da metade, no mínimo,
cuja infringência pode acarretar a anulação da assembleia ou de de- das ações com direito a voto, para deliberar, dentre outras matérias,
liberação nela tomada. sobre fusão, incorporação e cisão da companhia, no caso da companhia
1
Nos termos da Lei das S.A., para que ocorra a deliberação social aberta com propriedade das ações dispersa no mercado, e cujas três
válida na assembleia geral devem ser seguidas as normas relativas ao últimas assembleias tenham sido realizadas com a presença de acio-
local e modo de convocação (artigo 124), ao quórum de instalação nistas representando menos da metade das ações com direito de voto.
(artigo 125), à legitimação e representação do acionista (artigo 126),
à assinatura do "Livro de Presença" (artigo 127) e ao funcionamento
JOSE LUIZ BULHÕES PEDREIRA, "Deliberação de Sócios Quotistas de Transformar
da mesa que dirigirá os trabalhos (artigo 128). 17
Limitada em S.A.". In: Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira (Coord.).
A deliberação de acionistas tomada fora da assembleia geral A Lei das S.A.: (pressupostos, elaboração, aplicação). v. II, 2a edição, Rio de
Janeiro: Renovar, 1996, p. 553; e ERASMO VALLADÃO AZEVENDO E NOVAES
constitui apenas um agregado de atos de vontade individual, sendo FRANÇA. Invalidade das Deliberações de Assembleia das S.A ..., p. 4o.
32 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 33

Na incorporação de ações, o quórum de deliberação na compa- O direito de recesso constitui remédio jurídico para proteger os
nhia incorporadora é o da maioria absoluta, por tratar-se de aumen- interesses dos minoritários afetados pela decisão majoritária, confe-
to de capital com integralização das ações da incorporada (artigo rindo-lhes um mecanismo de saída para que não precisem suportar
252, § 1°). Por sua vez, na companhia cujas ações serão incorpo- as consequências econômicas ou políticas da deliberação da maioria.
radas ao capital da incorporadora, a operação deverá ser aprovada Visa, ademais, a compor os interesses entre maioria e minoria; por
pelo voto de metade, no mínimo, das ações com direito a voto (ar- um lado, garante a permanência da pessoa jurídica e a preservação do
tigo 252, § 2°). princípio majoritário, e, de outro, funciona como uma compensação
00 DIREITO DE RECESSO
aos acionistas que consideram determinadas deliberações incompa-
tíveis com seus interesses próprios.
O direito de retirada — ou recesso — apresenta alguns princípios
Não há, no caso, ato ilícito ou abuso da maioria acarretando da-
e características comuns nas operações de fusão, incorporação, incor-
nos à minoria. O direito de recesso não significa uma indenização ou
poração de ações e cisão. Ao analisarmos cada modalidade de rees-
sanção, mas uma compensação aos interesses legítimos dos minori-
truturação societária, destacaremos os traços do instituto do recesso
que lhes são próprios. tários sacrificados em favor do interesse social".
O direito de recesso é exercido mediante manifestação receptí-
O direito de recesso consiste na prerrogativa conferida ao sócio
cia de declaração da vontade. Para produzir seus efeitos, basta que ela
de, não concordando com determinadas deliberações da assembleia
geral previstas em lei, retirar-se da sociedade, mediante o recebimen- chegue ao seu destinatário, a sociedade. Trata-se de um direito potes-
to do valor de suas ações. tativo, um poder jurídico, uma vez que confere ao seu titular a facul-
dade de alcançar determinado efeito jurídico — retirar-se da sociedade
O funcionamento das sociedades é regido pelo princípio majo-
recebendo o valor de suas ações ou quotas — pela sua simples vontade.
ritário, que preside a tomada de decisões nos órgãos de deliberação
A manifestação da vontade de retirar-se da sociedade, uma vez
colegiada, segundo o qual as deliberações são tomadas por maio-
chegada a ela, é irrevogável, tal como ocorre em qualquer negócio ju-
ria dos votos e vinculam todos os membros, ainda que ausentes ou
dissidentes. rídico unilateral.
O exercício do direito de recesso exige uma deliberação válida
O interesse da maioria prevalece, mas a lei reconhece a legitimi-
da assembleia geral, da qual o minoritário discorda, como pressupos-
dade dos interesses dos minoritários; assim, a Lei das S.A., em seu
to para seu exercício.
artigo 109, estabelece determinados direitos como essenciais, dentre
os quais o direito de recesso, os quais integram as bases do contrato Embora os princípios relativos ao direito de recesso sejam co-
de sociedade e garantem a estabilização e o equilíbrio nas relações de muns às sociedades submetidas à Lei das S.A. e àquelas ao Código
poder internos da sociedade. O poder da maioria legitima-se ao bus-
car o interesse social, mas não deve ser exercido ilimitadamente; e os 18 JOSÉ ALEXANDRE TAVARES GUERREIRO, "Direito de Retirada: Um Limite ao
Princípio Majoritário na Sociedade Anônima", Revista de Direito Mercantil.
minoritários podem zelar por seus interesses, mas sem prejudicar o São Paulo: Malheiros Editores, n. 151/152, jan-dez, 2009, p. 20.
desenvolvimento regular do empreendimento.
34 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL
NELSON EIZIRIK - 35

Civil, sua aplicação e suas consequências são distintas, particularmente põe em risco as suas atividades. Uma vez reconsiderada a deliberação
no que tange ao valor do reembolso. Tais distinções levam em conta que ensejou o direito de recesso, ele é extinto.
a natureza diversa das sociedades; em princípio, as disciplinadas pela
Nada impede que o acionista exerça o recesso parcialmente, uma
Lei das S.A são sociedades de capital, de feição institucional, parti-
vez que o conteúdo desse direito é puramente patrimonial. Aceitar
cularmente se companhias abertas; as disciplinadas pelo Código Civil
apenas o recesso total na companhia seria conferir interpretação for-
são sociedades de pessoas, de feição contratual.
malista ao instituto, o que não se coaduna com a natureza da socie-
NA LEI DAS S.A.
dade por ações19.
O direito de recesso nas operações de reestruturação societária Enquanto não recebe o valor do reembolso de suas ações, o dis-
está previsto nos artigos 136, incisos IV e IX, 137, inciso II, e 252, § 2°. sidente continua como acionista, podendo exercer plenamente os
Para exercer o direito de recesso, nos termos do artigo 137 da Lei seus direitos politicos e patrimoniais. Apenas com a quitação de seus
das S.A., o acionista deve: ser titular das ações na data da primeira pu- haveres é que se extingue o vínculo entre ele e a sociedade. Assim,
blicação do edital de convocação da assembleia ou na data da comu- pode, por exemplo, participar de assembleias gerais, exercer o direi-
nicação do fato relevante objeto da deliberação, se anterior (parágrafo to de voto, receber dividendos e exercer o direito de preferência para
primeiro); não ter votado favoravelmente à deliberação ensejadora do subscrição de novas ações".
recesso, embora os ausentes ou ausentes possam exercê-lo (parágrafo A Lei das S.A., em seu artigo 45, disciplina o reembolso, que
segundo); manifestar sua dissidência no prazo de 30 (trinta) dias da constitui a operação mediante a qual a companhia, nos casos previstos
publicação da ata da assembleia geral (inciso IV) ou, se esta depen- em lei, paga aos acionistas dissidentes de deliberação da assembleia
der de ratificação, da data da publicação da ata da assembleia geral geral o valor de suas ações. Com o reembolso, o dissidente recebe o
convocada para tal fim (inciso V). pagamento do valor de suas ações e perde seus direitos de acionista,
Se o acionista não exercer o recesso no prazo de 30 (trinta) dias retirando-se da sociedade.
contados da publicação da ata da assembleia geral, decairá desse di- A operação de reembolso constitui exceção à proibição geral da
reito, nos termos do § 4° do artigo 137. companhia de negociar com suas ações, estabelecida com o objeti-
A Lei das S.A., no § 3° do artigo 137, permite que a companhia, vo de preservar a integridade do capital social, tendo em vista sua
entendendo que o pagamento do valor do reembolso das ações dos função de garantia dos credores. No reembolso, a companhia não só
acionistas dissidentes colocará em risco a sua estabilidade financeira, está autorizada a negociar com as ações de sua emissão, mas deverá
reconsidere a deliberação que deu ensejo ao direito de retirada, esta- compulsoriamente adquiri-las, uma vez exercido o direito de reces-
belecendo que os administradores podem convocar nova assembleia
para ratificar ou reconsiderar a deliberação. Trata-se, a faculdade de 19 NELSON EIZIRIK. A Lei das S/A Comentada..., v. II, p. 618-619. No mesmo
sentido, JOSÉ WALDECY LUCENA. Das Sociedades Anônimas - Comentários
reconsideração, de um instrumento de preservação da continuidade
a Lei (arts.121 a 188). v. II, Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 250.
da companhia, quando grande número de acionistas manifesta o in- 20 Nesse sentido, MODESTO CARVALHOSA, "O Dissidente é Sócio e Não Mero
Credor", Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 528,
teresse de exercer o recesso e o pagamento do preço do reembolso
outubro, 1979, p. 49-5o.
NELSON EIZIRIK - 37
36 - M &A - REGIME SOCIETÁRIO t CONTRATUAL

so. Trata-se de uma obrigação da companhia para viabilizar a retira- Assim, como regra geral, aplicável no silêncio do estatuto social,
da do acionista que exerceu o direito de recesso. valor do reembolso deverá ser apurado de acordo com o critério
o
Como se calcula o valor do reembolso, uma vez exercido o direi- estabelecido no § 1° do artigo 45 da Lei das S.A., baseado no patri-
to de recesso? O § 1° do artigo 45, com a redação dada pela Lei n0 mônio líquido constante do último balanço aprovado em assembleia
9.457/1997, e que não prima pela clareza, estabelece que "o estatuto geral. O critério legal do cálculo do valor de reembolso exige apura-
pode estabelecer normas para determinar o valor de reembolso, que, entre- ção meramente contábil: verifica-se o patrimônio líquido da compa-
tanto, somente poderá ser inferior ao valor de patrimônio líquido constante nhia expresso no último balanço aprovado e divide-se pelo número
do último balanço aprovado pela assembleia geral, observado o disposto no de ações emitidas. Desse modo, o valor do reembolso constitui um
§ 2°, se estipulado com base no valor econômico da companhia, a ser apu- valor fixo e não se sujeita a provas, avaliações ou comparações. Isto
rado em avaliação (§55. 3° e 4°)" porque, conforme antes mencionado, o reembolso não tem a nature-
za de indenização por ato ilícito praticado pela maioria.
Como se verifica, a Lei das S.A. confere liberdade ao estatu-
to social para a fixação do valor do reembolso, desde que atendido Na sociedade por ações, o recesso não importa em liquidação e
o piso mínimo ali previsto: o valor do patrimônio líquido do úl- dissolução da companhia e partilha do acervo. Ao contrário, o direi-
timo balanço. Esse piso mínimo representa o critério geral para a to de recesso visa a compor os conflitos na sociedade, possibilitando
determinação do valor do reembolso, que somente pode ser afas- sua continuidade, sem qualquer interrupção, e a permanência de sua
tado em 2 (duas) hipóteses. atividade empresarial. Os bens sociais não são distribuídos, mas per-
manecem na titularidade da companhia, com o mesmo valor contábil
A primeira é quando o estatuto tem previsão expressa do que o
valor do reembolso será calculado com base no valor econômico da anterior à operação.
companhia. Nesse caso, o montante devido ao acionista dissidente O fato de a Lei das S.A., no § 1° do artigo 45, referir-se ao "úl-
deverá ser aferido por meio de avaliação realizada na forma dos §§ timo balanço aprovado em assembleia geral', deixa claro que não é ne-
3° e 4° do artigo 45 da Lei das S.A. Ou seja, nessa hipótese, o valor cessário o levantamento de balanço especial para se apurar o valor do
do reembolso independe do patrimônio líquido. Inexistindo previ- reembolso devido aos acionistas dissidentes.
são estatutária expressa, mantém-se o cálculo do valor do reembolso O levantamento de novo balanço constitui procedimento custo-
com base no valor do patrimônio líquido. so e demorado, somente sendo admitido para o cálculo do reembolso
O critério geral também poderá ser excepcionado se o direito de decorrente do exercício do direito de recesso caso o balanço da com-
recesso for exercido no curso de uma operação de incorporação de panhia esteja defasado, não expressando a sua situação patrimonial
companhia controlada, prevista no artigo 264, § 3° da Lei das S.A., no momento do recesso. Dessa forma, apenas se a deliberação que der
conforme analisaremos mais adiante. Neste caso, a Lei outorga ao dis- ensejo à retirada ocorrer mais de 60 (sessenta) dias da data do último
sidente o direito de optar por 2 (dois) critérios — patrimônio líquido balanço aprovado pela assembleia geral os acionistas dissidentes po-
contábil ou patrimônio líquido a preços de mercado —, por configu- dem requerer o levantamento de balanço especial para determinação
rar uma situação de conflito de interesses. do valor do reembolso (§§ 2°, 3° e 4° do artigo 45).
38 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 39

NORMA ESPECIAL DE RECESSO NA OPERAÇÃO ENTRE "PARTES trimônio liquido a preços de mercado ou por outro aceito pela CVM
RELACIONADAS"
no caso de companhia aberta23. Na apuração do patrimônio líquido
A Lei das S.A. disciplina no seu artigo 264 o direito de recesso a preços de mercado, cada bem que compõe o patrimônio é mensu-
quando a operação de fusão, incorporação ou incorporação de ações rado individualmente, por seu possível valor de venda'ou reposição.
ocorrer entre as chamadas "partes relacionadas", visando à proteção Isto não significa que a relação de troca efetivamente realizada
dos acionistas minoritários. São consideradas como partes relaciona- na operação deva ser fixada com base no resultado de tal avaliação,
das a sociedade controladora e a controlada assim como as socieda- pois prevalece a regra da liberdade para a determinação do valor do
des sob controle comum21-22. patrimônio das sociedades envolvidas.
Quando a operação envolve tais sociedades, o dispositivo acima As sociedades podem estabelecer a relação de substituição com
oferece uma proteção adicional aos acionistas minoritários: a obrigato- base em qualquer outro critério, desde que informem aos acionistas
riedade de apresentação, no protocolo, do cálculo das relações de troca qual seria a relação de troca se apurada com base no valor patrimo-
com base na avaliação das companhias envolvidas pelo critério do pa- nial a preços de mercado. Trata-se, portanto, de uma relação de subs-
21
tituição "teórica". De posse dessa informação, os acionistas poderão
Nos termos do item 9 do Pronunciamento TécnicoCPC05(121), emitido pelo Comitê
de Pronunciamentos Contábeis, "Parte relacionada é a pessoa ou a entidade que aferir a equidade da relação de troca indicada no protocolo.
está relacionada com a entidade que está elaborando suas demonstrações contábeis
(neste Pronunciamento Técnico, tratada como 'entidade que reporta a informação). Tal proteção adicional justifica-se, nas operações envolvendo so-
(a) Uma pessoa, ou um membro próximo de sua família, está relacionada com a ciedades controladoras e controladas, na medida em que não existem
entidade que reporta a informação se: (i) tiver o controle pleno ou compartilhado da
entidade que reporta a informação; (ii) tiver influência significativa sobre a entidade 2 (duas) vontades representando interesses opostos na operação24.
que reporta a informação; ou (iii)for membro do pessoal chave da administração
da entidade que reporta a informação ou da controladora da entidade que reporta
Como o mesmo controlador vota e decide as condições da ope-
a informação. (b) Uma entidade está relacionada com a entidade que reporta a ração nas 2 (duas) assembleias gerais, fixando unilateralmente as rela-
informação se qualquer das condições abaixo for observado: (0 a entidade e a
entidade que reporta a informação são membros do mesmo grupo econômico (o ções de troca, a lei assegura ao minoritário uma informação adicional,
que significa dizer que a controladora e cada controlada são inter-relacionadas, bem que lhe permite comparar aquela fixada no estatuto com outra, teó-
como os entidades sob controle comum são relacionadas entre si); (ii) a entidade é
coligada ou controlada em conjunto (joint venture) de outra entidade (ou coligada rica, resultante da avaliação prevista no artigo 264.
ou controlada em conjunto de entidade membro de grupo econômico do qual a
outra entidade é membro); (iii) ambas as entidades estão sob o controle conjunto
(joint ventures) de uma terceira entidade; (iv) uma entidade está sob o controle
conjunto (joint venture) de uma terceira entidade e a outra entidade for coligada
23 Conforme determina o artigo 8°, caput e §i°, da Resolução CVM n° 78/2022,
dessa terceira entidade; (v) a entidade é um plano de beneficio pós-emprego cujos os laudos de avaliação elaborados para os fins do artigo 264 da Lei das S.A.
beneficiários são os empregados de ambas as entidades, a que reporta a informação podem utilizar um dos seguintes critérios: (i) valor de patrimônio líquido a
e a que está relacionada com a que reporta a informação. Se a entidade que reporta preços de mercado; ou (ii) fluxo de caixa descontado. Este último critério
a informação for ela própria um plano de beneficio pós-emprego, os empregados somente pode ser utilizado se não tiver sido usado como critério determinante
que contribuem com a mesma serão também considerados partes relacionadas com para estabelecera relação de substituição proposta.
a entidade que reporta a informação; (vi) a entidade é controlada, de modo pleno
24 PAULO CESAR ARAGÃO e MONIQUE M. MAVIGNIER DE LIMA, "Incorporação
ou sob controle conjunto, por uma pessoa identificada na letra (a); (vii) uma pessoa
de Controlada: a Disciplina do art. 264 da Lei 6.404/1976". In: Ecio Perin Jr.,
identificada na letra (a)(i)tem influência significativa sobre a entidade, oufor membro
Daniel Kalansky e Luis Peyser (Coord.). Direito Empresarial: Aspectos Atuais
do pessoal chave da administração da entidade (ou de controladora da entidade)".
de Direito Empresarial Brasileiro e Comparado. São Paulo: Método, 2005,
22 Sobre o assunto, ver Parecer de Orientação CVM n° 35/2008.
Ia. 347-358.
40 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 41

A avaliação adicional prevista no dispositivo legal tem outro ob- A nosso ver, o entendimento do STJ não encontra amparo na
jetivo: serve como um critério alternativo para o cálculo do valor de Lei das S.A. Ao estabelecer uma regra geral para o cálculo do valor do
reembolso devido aos acionistas dissidentes, caso a relação de substi- reembolso, visou o legislador a permitir que as companhias pudessem
tuição prevista no protocolo seja menos vantajosa do que aquela que prever quanto deveriam pagar aos acionistas em operação que ense-
decorreria da avaliação da sociedade com base na avaliação prevista jasse o direito de recesso. As companhias necessitam prever o valor a
no artigo 264. ser despendido a título de reembolso para que possam, antes da deli-
De acordo com o § 3° do artigo 264, se a relação de troca pre- beração assemblear, avaliar a conveniência e a oportunidade de reali-
vista no protocolo for desvantajosa para os acionistas, eles terão, ao zar determinada operação societária.Trata-se do "cálculo de previsão",
fundamental em qualquer economia de mercado.
exercer o direito de recesso, o benefício de optar entre 2 (dois) cri-
térios para o pagamento do valor de reembolso: o do patrimônio A estipulação por parte de órgão do Poder Judiciário de um novo
líquido contábil (regra geral prevista no artigo 45 da Lei das S.A.) critério — não previsto em lei — para o pagamento do valor de reem-
ou o resultante da avaliação prevista no artigo 264. Por outro lado, bolso acarreta insegurança jurídica.
caso a relação de troca prevista no protocolo seja mais benéfica ou Ademais, a decisão proferida pelo STJ favoreceu apenas os acio-
idêntica àquela obtida a partir da avaliação dos patrimônios líqui- nistas minoritários que exerceram o direito de recesso, desconside-
dos a preços de mercado, o valor de reembolso será determinado rando o fato de que o custo com o pagamento do valor de reembolso
segundo a regra geral prevista no artigo 45, isto é, o do patrimônio seria suportado pela companhia e, consequentemente, pelos acionis-
líquido contábil. tas que nela permaneceram, inclusive os demais minoritários.

Em decisão proferida em 12.09.2017, o Superior Tribunal de No CÓDIGO CIVIL.

Justiça — STJ chegou a entendimento diverso. Tratava-se de ação O artigo 1.029 do Código Civil disciplina a retirada na socieda-
proposta por acionistas minoritários que questionaram o valor pago de simples, dispondo que "além dos casos previstos em lei ou no contra-
como reembolso pelo exercício do direito de recesso em decorrência to, qualquer sócio pode retirar-se da sociedade; se de prazo indeterminado,
de incorporação de companhia cujo estatuto social era silente a res- mediante notificação aos demais sócios, com antecedência mínima de ses-
peito. O STJ entendeu, fundamentado nas "peculiaridades da causa", senta dias; se de prazo determinado, provando judicialmente justa causa".
que o valor do reembolso calculado com base no patrimônio líqui- O artigo 1.031 trata da liquidação da quota do sócio retirante, dis-
do contábil não refletia o valor real das ações da companhia e era ir- pondo que seu valor será considerado pelo montante efetivamente
risório se comparado ao valor de troca efetivo, calculado a partir do realizado, salvo disposição contratual em contrário, com base na si-
valor econômico, denominado no julgamento como "valor justo de tuação patrimonial da sociedade na data da resolução, verificada em
mercado". Assim, determinou que o "valor justo de mercado", adota- balanço especial.
do para a relação de troca no protocolo, fosse aplicado como critério Nos termos do artigo 1.077 do Código Civil, que regula as so-
para o valor de reembolso aos acionistas dissidentes, em detrimento ciedades limitadas, na fusão da sociedade, incorporação de outra, ou
do valor do patrimônio líquido contábil. dela por outra, terá o sócio dissidente o direito de retirar-se da so-
42 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 43

ciedade, nos 30 (trinta) dias subsequentes à reunião. No silêncio do solução parcial, cogita-se da defesa da sociedade, enquanto unidade
contrato social, aplica-se igualmente o disposto no artigo 1.031, nos produtiva; no recesso, o enfoque normativo e contratual visa à defesa
termos do qual o reembolso do valor das quotas do sócio dissidente do interesse do próprio sócio e a possibilidade que lhe é assegurada
será apurado "com base na situação patrimonial da sociedade, à data da de retirar-se da sociedade.
resolução, vercada em balanço especialmente convocado". Ainda que exista discussão doutrinária a respeito, o artigo 1.029
Há 2 (duas) diferenças essenciais entre o regime da Lei das S.A. do Código Civil tem aplicação irrestrita também às sociedades li-
e o do Código Civil quanto ao direito de retirada. Na Lei das S.A., mitadas. O artigo 1.077 trata de hipótese especial de recesso, sendo
no caso de incorporação, tal direito somente é outorgado aos acio- de aplicação indistinta às sociedades limitadas contratadas por pra-
nistas da sociedade incorporada; no Código Civil aos sócios da in- zo determinado ou indeterminado. Ademais, realiza-se de modo es-
corporadora e da incorporada. Outra diferença refere-se ao valor do pecífico: o sócio que discorda da alteração contratual, da fusão ou da
reembolso, que deve ser calculado, no caso das companhias, com base incorporação pode exercer o seu direito de retirada nos 30 (trinta)
no valor do patrimônio líquido do último balanço aprovado pela as- dias subsequentes à data da assembleia ou da reunião em que foi to-
sembleia geral ou outro critério previsto no estatuto (§ 1° do artigo mada a deliberação. A previsão legal de tal hipótese de recesso não
45) — exceto se a deliberação da assembleia ocorrer mais de 60 (ses- exclui a prevista no artigo 1.029, que trata da hipótese geral de reti-
senta) dias depois do último balanço aprovado (§ 2° do artigo 45 da rada, de sorte que, tratando-se de sociedade sem prazo determinado
Lei das S.A.); já no regime do Código Civil, inexistindo disposição o sócio pode retirar-se a qualquer tempo. Assim, a par do caso espe-
em contrário no contrato social, tal valor deve ser apurado com base cial do recesso previsto no artigo 1.077, o sócio da limitada pode fa-
na situação patrimonial da sociedade, na data da deliberação que en- zer uso do recesso geral ou ordinário previsto no artigo 1.029, tendo
sejou a retirada ("data da resolução"), mediante balanço especialmen- em vista o caráter contratualista da sociedade26.
te levantado para tal fim. Nas sociedades disciplinadas pelo Código Civil, no silêncio do
A disciplina do recesso no Código Civil segue a concepção con- contrato, o valor do reembolso do sócio retirante deve ser calcula-
tratualista da sociedade. Assim, o direito de retirada constitui uma do com base em balanço especial. O balanço especial não constitui a
modalidade de resilição unilateral ou denúncia, entendida como forma simples correção monetária dos valores apropriados no balanço pe-
de rescisão parcial do contrato de sociedade, justificada pela alteração riódico, mas uma atualização dos valores componentes do ativo e do
de cláusulas essenciais que levaram o sócio a participar da socieda- passivo da sociedade em razão dos fatos contábeis verificados no de-
de. Ainda que os efeitos da retirada do sócio dissidente e da disso- correr do exercício.
lução parcial da sociedade sejam os mesmos, pois em ambos ocorre A jurisprudência dominante acerca da apuração de haveres de-
a resolução do vínculo societário, permanecendo em atividade a so- termina que esta seja feita da forma mais próxima da dissolução total.
ciedade, são diversas as causas de cada uma das situações25. Na dis-
26 SERGIO CAMPINHO e MARIANA PINTO, "O Recesso na Sociedade Limitada".
25 ARNOLDO WALD, "Do Direito de Empresa". In: Sálvio de Figueiredo Teixeira In: Luís André N. de Moura Azevedo e Rodrigo R. Monteiro de Castro (Coord.).
(Coord.). Comentários ao Novo Código Civil - do Direito de Empresa. v. XIV, Sociedade Limitada Contemporânea. 1a edição, São Paulo: Quartier Latin e
2a edição, Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 461. IDSA, 2013, p.152.
44 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 45

Trata-se do chamado "balanço de determinação", instrumento con- tivos administradores ou sócios, na qual são estabelecidas as bases da
tábil desenvolvido para atender à jurisprudência, em que se simula negociação. Findas com êxito as negociações, procede-se à assinatu-
a liquidação da sociedade, com a realização de todos os bens do ati- ra de um ou mais protocolos.
vo e a satisfação do passivo. Assim, busca-se calcular quanto seria o O protocolo, disciplinado no artigo 224 da Lei das S.A., cons-
acervo liquido da sociedade caso ela fosse dissolvida e liquidada na- titui o documento no qual são descritas as características principais
quela data para se calcular o valor do reembolso do sócio dissidente27. da operação, o qual será submetido ao conselho de administração, se
Cabe observar que a jurisprudência dos tribunais, inclusive do houver, e à assembleia geral, que deliberará sobre sua aprovação (ar-
STJ, não é uniforme com relação aos critérios para o cálculo do valor tigos 122, inciso VIII, e 136, incisos IV e IX).
do reembolso do sócio dissidente nas sociedades regidas pelo Código No Direito Comunitário Europeu, o protocolo ("projeto de fu-
Civil, o que é inegável fonte de insegurança jurídica28. são") pode ser consultado pelos credores e representantes dos traba-
O pagamento pelo modo estabelecido no contrato está previs- lhadores e/ou trabalhadores das sociedades envolvidas, que são os
to no artigo 1.031 do Código Civil. Os sócios podem disciplinar, no principais "stakeholders" afetados pela operação30. Já em nosso siste-
contrato social, a forma como se efetivará o pagamento dos haveres ma jurídico, conforme a disciplina da Lei das S.A., o protocolo desti-
do sócio dissidente, para que a empresa se mantenha economicamen- na-se exclusivamente ao exame e aprovação por parte dos acionistas,
te viável. Via de regra, os contratos estabelecem que os haveres serão reunidos em assembleia geral.
pagos em várias prestações, a primeira, inclusive, algum tempo após Trata-se, o protocolo, do primeiro ato do procedimento estabele-
o exercício do direito de recesso, para que a sociedade possa prepa- cido em lei para a fusão, incorporação, incorporação de ações ou cisão,
rar-se financeiramente para enfrentar esse ônus29. que constituem negócios jurídicos complexos, de formação sucessi-
0/0 PROTOCOLO E JUSTIFICAÇÃO va, em que cada ato pressupõe necessariamente o precedente e pre-
para e pré-anuncia o subsequente, todos dirigidos ao propósito final,
NA LEI DAS S.A. a conclusão da operação31.
Quando 2 (duas) ou mais sociedades pretendem realizar uma Conforme a Exposição Justificativa com que o projeto de Lei das
operação de reestruturação societária, em qualquer de suas modali- S.A. foi enviado ao Congresso, o objetivo dos artigos 224, que trata
dades, há, em geral, uma fase de negociação sigilosa entre os respec- do Protocolo, e do artigo 225, que disciplina a Justificação, é assegu-
rar aos acionistas o conhecimento de todas as condições da operação,
27 FABIO ULHOA COELHO, "Apuração de Haveres na Sociedade Limitada". In:
Luís André N. de Moura Azevedo e Rodrigo R. Monteiro de Castro (Coord.).
Sociedade Limitada Contemporânea..., p. 33.
28 HENRIQUE CUNHA BARBOSA, "Dissolução Parcial, Recesso e Exclusão de 30 Artigos 97 a 99 da Diretriz 2.017/1132 do Parlamento Europeu e do Conselho, de
Sócios: Diálogos e Dissensos na Jurisprudência do STJ e nos Projetos de CPC e 14 de junho de 2017. A propósito, ver JOSÉ FERREIRA GOMES. M&A - Aquisição
Código Comercial". In: Luís André N. de Moura Azevedo e Rodrigo R. Monteiro de Empresas e Participações Sociais..., p. 107 e seguintes.
de Castro (Coord.). Sociedade Limitada Contemporânea. São Paulo: Quartier 31 LUIZ CASTÃO PAES DE BARROS LEÃES, "Incorporação de ações e impedimento
Latin e IDSA, 2013, p. 353 e seguintes. de voto". In: Alberto Venancio Filho, Carlos Augusto da Silveira Lobo e Luiz
29 JOSÉ WALDECY LUCENA. Das Sociedades Limitadas. 5a edição, Rio de Janeiro: Alberto Colonna Rosman (Org.). Lei das S.A. em seus 4o anos. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003, p. 976. Forense, 2017, p. 217-230.
46 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 47

das repercussões que terá sobre seus direitos e do valor de reembolso Não há responsabilidade pessoal dos administradores que firma-
que lhes caberá, caso pretendam exercer o direito de recesso. ram o protocolo caso a assembleia não o aprove, exceto se não tive-
O protocolo constitui um acordo normalmente firmado entre rem agido dentro de suas atribuições ou poderes ou se tiverem atuado
os órgãos de administração das sociedades envolvidas ou seus sócios, com culpa ou dolo (artigo 158 da Lei das S.A.). •
que inclui todos os elementos econômico e jurídicos necessários ou Caso o protocolo seja aprovado pela assembleia geral, pode-se co-
convenientes ao perfeito conhecimento da operação. Somente com gitar da responsabilidade direta dos administradores perante os acio-
a informação adequada, os sócios poderão formar a sua opinião com nistas, por infração ao seu dever de diligência (artigo 153 da Lei das
relação às vantagens e inconvenientes e, assim, participar da delibe- S.A.), caso a operação acarrete-lhes danos, como aqueles que se ve-
ração sobre tal projeto". rificam se: receberem uma participação na sociedade incorporadora
O protocolo não constitui um contrato, mas uma proposta de de- ou na nova sociedade em valor inferior ao que tinham na sociedade
liberação à assembleia, um pacto entre os administradores ou sócios incorporada, fundida ou cindida; ou uma contrapartida em dinheiro
das companhias envolvidas condicionado à aprovação da assembleia insuficiente para perfazer o valor da participação que tinham na so-
geral. Somente após a aprovação pela assembleia é que o protocolo ciedade da qual eram sócios".
passa a apresentar natureza de proposta de contratar, aplicando-se, Da mesma forma, pode-se cogitar da responsabilidade do acio-
a partir de então, as normas do Código Civil sobre a formação dos nista controlador caso promova incorporação, incorporação de ações,
contratos (artigos 427 a 435). Caso a outra sociedade não aprove o fusão ou cisão da companhia com o fim de obter, para si ou para ou-
protocolo, a proposta é recusada, não se aperfeiçoando o contrato". trem, vantagem indevida, em prejuízo dos demais acionistas, dos em-
A proposta de realizar determinada operação de reestruturação pregados ou dos investidores (artigo 117, § 1°, "b").
societária constitui uma oportunidade de negócio que, preliminar- O protocolo constitui um passo além de uma minuta contra-
mente, cabe à administração e/ou ao acionista controlador avaliar à tual, servindo de prova da existência de tratativas em estado avança-
luz de sua conveniência, oportunidade e interesse social. Caso o acio- do; a ruptura abusiva das negociações, após a sua assinatura, quando
nista controlador entenda que ela não é de interesse da companhia, já estejam consolidadas relações de confiança entre as partes, pode
não faz sentido submetê-la à assembleia gera134. caracterizar infração ao artigo 422 do Código Civil, que disciplina a
responsabilidade pré-contratual na fase das tratativas.
O protocolo, nos termos do artigo 224 da Lei das S.A., deve con-
32 JOSÉ FERREIRA GOMES. M&A - Aquisição de Empresas e Participações ter, no mínimo, as seguintes informações:
Sociais..., p.109. I - número, espécie e classe de ações que serão atribuídas em
33 JOSE LUIZ BULHÕES PEDREIRA, "Incorporação, Fusão e Cisão". In: Alfredo
Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira (Coord.). Direito das Companhias...,
substituição dos direitos de sócios que se extinguirão e os critérios
p. 1.272-1.273. que serão utilizados para a relação de substituição;
34 LUIZ ALBERTO COLONNA ROSMAN e LUCIANO DE SOUZA LEAO JR.,
"Parecer: Incorporação, Protocolo e Justificação: Análise dos Poderes dos
Preferencialistas". In: Marcelo Vieira Von Adamek e Rafael Setoguti Julio Pereira 35 JOSÉ FERREIRA GOMES. M&A - Aquisição de Empresas e Participações
(Coord.). Fusões e Aquisições (M&A). São Paulo: Quartier Latin, 2022, p. 461. Sociais..., p. 139.
48 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 49

II — na cisão, os elementos ativos e passivos que formarão cada Embora a operação seja tida como contratada quando de sua
parcela do patrimônio; aprovação na assembleia geral, na prática, considera-se que o acervo
III — os critérios de avaliação do patrimônio líquido, a data a líquido transferido passa a integrar o patrimônio líquido da sucesso-
que será referida a avaliação e como serão tratadas as variações ra desde a data-base. Assim, é como se a deliberação dós sócios tives-
patrimoniais posteriores;
se um efeito retroativo, reportando-se não à data da assembleia geral,
IV — a solução a ser dada para as ações ou quotas do capital de
mas à data-base da avaliação.
uma das sociedades possuídas por outras;
O protocolo deve definir com clareza a relação de substituição
V — o valor do capital das sociedades a serem criadas ou do aumento
ou redução do capital das sociedades integrantes da operação; (relação de troca), ou seja, quantas ações da sucessora.cada acionista
VI — os projetos de estatuto ou de alterações estatutárias necessários
da sucedida receberá. A Lei das S.A. não estabelece critérios para a
para a operação; definição da relação de substituição, que constitui matéria negocial.
VII — as demais condições da operação. Não há obrigação de ser utilizado um ou outro método de avaliação,
nem mesmo é necessário que os patrimônios das sociedades envolvi-
Tais informações mínimas servem para que os acionistas tenham
das sejam avaliados pelo mesmo método. Tampouco é necessário que
condições de avaliar se aprovam ou não a operação. É recomendável
a relação de substituição seja fixada com base em laudos elaborados
que o protocolo seja minucioso sobre todos os elementos da opera-
por empresas independentes.
ção, uma vez que ele constitui documento essencial de informação aos
acionistas, que lhes permite deliberar com conhecimento de causa. A presunção legal, tratando-se de partes não relacionadas, é
de que os controladores de cada sociedade negociarão os termos da
Uma questão prática relevante é a da data-base para fins de ava-
operação da forma mais conveniente para os seus interesses e os dos
liação do patrimônio liquido. Embora o ideal fosse que a data-base
minoritários que, em princípio, são coincidentes no que se refere à
da avaliação coincidisse com a data de deliberação da assembleia, na
relação de substituição, pois interessa-lhes avaliar da melhor forma o
grande maioria dos casos, os avaliadores não dispõem de tempo há-
patrimônio da sociedade de que participam e buscar uma relação de
bil para tanto. Como a existência do laudo é indispensável para que
troca mais favorável.
os acionistas deliberem, de maneira informada, a data-base não pode
ser posterior à da realização da assembleia. Desse modo, normalmen- Porém, deve ser verificado, em cada situação, se os critérios ado-
te o protocolo fixa uma data passada como data-base para avaliação tados representam adequadamente o valor das ações ou quotas das
do patrimônio a ser fundido, cindido ou incorporado, o que facilita o sociedades envolvidas, a fim de que a relação de substituição não acar-
trabalho dos contadores e avaliadores. Adota-se, usualmente, o mes- rete danos aos sócios minoritários.
mo balanço que será utilizado para apuração do fato gerador do im- O protocolo deve vir acompanhado de projeto de estatuto, nos
posto de renda, limitando-se, assim, a definição da data-base em até casos de fusão ou incorporação, ou projetos, no caso de cisão, que de-
30 (trinta) dias da data da assembleia gera136. verão ser aprovados pela assembleia geral. Como em tais operações
ocorre a extinção das ações ou quotas de uma ou mais sociedades,
36 IAN DE PORTO ALEGRE MUNIZ. Fusões e Aquisições - Aspectos Fiscais e
os projetos de estatutos devem ser aprovados, com os novos direitos
Societários..., p.153-154.
so - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 51

atribuídos aos sócios, que poderão, em determinadas circunstâncias, mente apontadas são: sinergias entre as empresas envolvidas; ocupação
exercer o direito de recesso. de novos mercados; defesa contra competidores; compartilhamento
O valor do aumento de capital da incorporadora será fixado ten- de atividades e recursos; economia de impostos e aproveitamento de
do em vista 2 (dois) fatores: o valor de patrimônio líquido que forma- créditos fiscais; divisão das atividades empresariais, nó caso da cisão,
rá o capital correspondente às ações que serão criadas; e a parcela do para sua posterior alienação ou para resolver conflitos entre os sócios".
preço de emissão das ações destinada ao aumento de capital. Em segundo lugar, deve conter uma descrição das ações que cabe-
A Lei das S.A., em seu artigo 225, exige que seja apresentada na rão aos acionistas titulares de ações preferenciais e, caso eles venham a
assembleia geral que delibera sobre a operação, além do Protocolo, receber ações com direitos diversos dos que anteriormente detinham,
uma Justificação, na qual deverão ser expostos: os motivos ou fins da quais as razões de tal modificação. A operação de incorporação, fusão
operação e o interesse da companhia na sua realização; as ações que ou cisão acarreta necessariamente a extinção das ações ou quotas de
os acionistas preferencialistas receberão e as razões para a modifica- uma ou mais sociedades e sua substituição por ações de outra socie-
ção de seus direitos, se prevista; a composição, após a operação, se- dade. Assim, não pode o acionista ou quotista da sociedade sucedida
gundo espécies e classes das ações, do capital das companhias que reivindicar idênticos direitos aos que antes detinha, uma vez que eles
deverão emitir ações em substituição às que serão extintas; e o valor passam a ser regidos pelo estatuto ou contrato social da sociedade su-
do reembolso das ações a que terão direito os acionistas dissidentes. cessora.Tal consequência aplica-se também às ações preferenciais ex-
Enquanto o protocolo constitui um documento de natureza tintas, que podem ser substituídas por ações preferenciais com outras
técnica, que detalha a operação, a justificação é uma espécie de "ex- vantagens ou ordinárias da sucessora. Os direitos das ações preferen-
posição de motivos", muitas vezes, infelizmente, redigida de forma ciais, cujos titulares não votam aprovando a operação, não podem ser
burocrática, apenas para atender à exigência legal, particularmen- alterados discricionariamente, devendo existir razões que amparem
te quando a operação não envolve companhia aberta37. Na prática, tal modificação, as quais devem constar da justificação.
seguidamente, o protocolo e a justificação são apresentados em um Uma vez realizada a operação, altera-se o capital da sociedade
único documento. dela resultante, assim como a sua composição. Assim, deve a justifi-
A justificativa deve inicialmente apresentar os motivos da opera- cação descrever como ficará a composição do capital, segundo as es-
ção, o que se deseja com ela, assim como o interesse da sociedade em pécies e classes das ações que o comporão.
sua realização. Os fins podem ser de ordem econômica ou estratégi- Deve também a justificação apresentar o valor de reembolso das
ca. São motivos de ordem econômica, dentre outros: redução de cus- ações a que terão direito os acionistas ou quotistas dissidentes. É re-
tos; economias de escala; diversificação da produção; distribuição de comendável que conste da justificação o entendimento da sociedade
produtos e serviços em escala global, particularmente quando envol- sobre o cabimento ou não do direito de recesso e sobre quais as es-
vidas companhias multinacionais. As motivações estratégicas geral- pécies ou classes de ações cujos titulares terão direito de exercê-lo39.

37 IAN DE PORTO ALEGRE MUNIZ. Fusões e Aquisições - Aspectos Fiscais e 38 NELSON EIZIRIK. A Lei das S/A Comentada..., v. IV, p.126.
Societários..., p.161. 39 NELSON EIZIRIK. A Lei das S/A Comentada..., v. IV, p.129.
52 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 53

No CÓDIGO CIVIL Há sucessão quando um sujeito da relação jurídica é substituí-


Embora a Lei das S.A. discipline com bastante minúcia o que do por outro. A sucessão pode ser universal ou singular. Na sucessão
deve, no mínimo, constar do protocolo e da justificação, o Código niversal, ocorre a aquisição de todo ou de quota de um patrimônio.
u
Civil é praticamente omisso a respeito. O patrimônio constitui um exemplo de universalidade de direito, de-
Em seu artigo 1.117, o Código é vago, dispondo apenas que a finido no artigo 91 do Código Civil, como "o complexo de relações jurí-
deliberação dos sócios da sociedade incorporada deverá aprovar "as dicas, de uma pessoa, dotadas de valor econômico". É a unidade — o todo
bases da operação" e o projeto de reforma do ato constitutivo. Na prá- ou a quota do patrimônio — que se transmite ao adquirente, dito su-
tica, normalmente submete-se à aprovação dos sócios um protocolo e cessor universal. A sucessão pode ser sobre todo o patrimônio (caso
uma justificativa, ainda que sumários, o primeiro descrevendo a opera- do herdeiro único) ou sobre quota do patrimônio (caso de dois ou
ção, o segundo demonstrando qual o interesse social na sua realização, mais herdeiros). Já na sucessão singular, o direito sai de um patrimô-
não seguindo detalhadamente as exigências previstas na Lei das S.A. nio especial para outro patrimônio especial ou para patrimônio ge-
É recomendável que conste do protocolo e da justificativa ao me- ral, ou de patrimônio comum para individual. A sucessão singular só
nos informações sobre: os objetivos da operação e o interesse da so- leva o direito, mas leva-o todo40.
ciedade na sua realização; o número, espécie e classe das quotas que A sucessão de direitos de per si constitui sucessão singular. Já a
serão atribuídas em substituição aos direitos de sócios que se extingui- sucessão de patrimônio constitui sucessão universal, ainda que nele
rão e os critérios utilizados para a relação de substituição; os critérios esteja um só direito. Na sucessão singular, é preciso que haja cessão
de avaliação do patrimônio líquido das sociedades envolvidas; os pro- de crédito e assunção de dívidas (sucessão singular de dívidas) para
jetos de estatutos ou contratos sociais que deverão ser aprovados em que se complete a sucessão. Na sucessão universal, tudo se transfere,
assembleia geral ou reunião de sócios; e o valor estimado de reembol- quaisquer que sejam os direitos e as dívidas transferíveis. Assim, não
so dos quotistas dissidentes. é a relação jurídica ou as relações jurídicas que mudam de termo; são
os direitos e deveres que sofrem, através de patrimônios, a mudança
(/v) DIREITOS DOS CREDORES
de sujeitos, no primeiro caso ativos, no segundo passivos".
As operações de fusão, incorporação ou cisão podem afetar subs-
tancialmente os direitos dos credores. Com efeito, seus créditos po- NA LEI DAS S.A.
dem ser assumidos por pessoas jurídicas que não eram os devedores Nos termos dos artigos 227 e 228, tanto na fusão como na in-
originais, que as sucedem em todos ou em parte de seus direitos e corporação ocorre a sucessão por parte da sociedade remanescente
obrigações. em todos os direitos e obrigações das sociedades fusionadas ou in-
Tal não acontece na incorporação de ações, em que não se extin- corporadas. Há, portanto, sucessão universal, operando-se, em um
gue a pessoa jurídica do devedor original, ocorrendo apenas a subs- único ato, a transmissão de uma universalidade de direitos, isto é, de
tituição de seu acionista controlador. Na operação de incorporação
40 PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. t. V, São Paulo: Revista dos
de ações, permanecendo existente a sociedade cujas ações serão in-
Tribunais, 2013, p. iii.
corporadas, não há qualquer sucessão em seus direitos e obrigações. 41 PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado..., t. V, p. 122.
54 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 55

um complexo de relações jurídicas ativas e passivas ao qual o orde- corporadora, embora não possam impedir a realização da operação,
namento jurídico confere um caráter unitário. A sociedade sucesso- têm legitimidade para pleitear sua anulação se provarem que estão
ra passa a ser sujeito ativo e passivo de todos os direitos e obrigações sendo prejudicados.
constantes do patrimônio da sociedade sucedida.
O prazo decadencial para que o credor demande judicialmente
A sucessão universal modifica tanto a situação dos credores da a anulação da operação é de 60 (sessenta) dias, contados da data da
incorporadora quanto da incorporada, assim como a dos credores das publicação da ata da assembleia geral que a aprova.
sociedades fusionadas, os quais passam a concorrer simultaneamen- Cabe ao credor demonstrar que está sendo potencialmente pre-
te a um mesmo patrimônio, quando antes concorriam isoladamente judicado, isto é, que seu crédito tem menores possibilidades de ser
nos respectivos patrimônios das sociedades contra as quais originou- cobrado, ou porque foram reduzidas as garantias ou porque o patri-
-se o crédito42. mônio da sucessora é inferior ao da sucedida. A sociedade sucesso-
É comum que os credores manifestem justificada preocupação ra pode depositar em juízo a importância cobrada, caso em que cessa
com a operação, pois a sociedade na qual detinham créditos pode ser o direito do credor de prosseguir na ação de anulação. Caso a dívida
sucedida por outra sem a mesma capacidade financeira. Seguidamente, seja ilíquida, a sociedade pode, nos termos do § 2° do artigo 232, de-
insere-se em contratos de mútuo cláusula estabelecendo que o deve- positar garantia, ficando suspenso o processo de anulação da opera-
dor não pode realizar a operação sem a concordância do credor, sob ção para discussão do débito.
pena de vencimento integral de sua obrigação. O credor prejudicado deve incorrer nos custos da ação judicial
A matéria está disciplinada no artigo 232 da Lei das S.A., que não para anular a operação. Seguidamente, há dificuldades para fazer com
submete a operação de fusão ou incorporação à aprovação dos credo- que as sociedades envolvidas voltem ao estado anterior à realização
res, uma vez que tal competência é exclusiva dos acionistas. Tampouco da operação, tendo em vista que seus patrimônios já se encontram
impõe que os credores tenham acesso ao protocolo antes de sua apro- unificados; anular a operação de incorporação ou fusão algum tempo
vação pela assembleia geral. A orientação legal já foi objeto de críticas após ela ter ocorrido, obrigando-as a novamente separarem seus pa-
doutrinárias, uma vez que não se prevê a possibilidade de os credores trimônios, constitui medida muitas vezes inviável.
oporem-se à operação, como ocorre em outros sistemas legais, e como Conforme o § 3° do artigo 232, se ocorrer, dentro dos 60 (ses-
se prevê no caso de redução do capital (artigo 174 da Lei das S.A.)43. senta) dias, a falência da sociedade incorporadora ou da sociedade
O dispositivo estabelece um procedimento mediante o qual os resultante da fusão o credor anterior à operação pode pedir a separa-
credores, tanto das sociedades fusionadas como da incorporada e in- ção dos patrimônios, para que os créditos sejam pagos pelos bens das
respectivas massas falidas.
42 JOSE WALDECY LUCENA. Das Sociedades Anônimas - Comentários à Lei. v. 3, Já na cisão, os direitos dos credores estão disciplinados no artigo
Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 579-580; e MARCELLA BLOK. Reorganizações
Societárias, Fusões, Incorporações, Cisões e outros Eventos Societários: 233 da Lei das S.A. Trata-se de matéria complexa, pela própria na-
Aspectos Legais, Negociais e Práticos. São Paulo, Quartier Latin, 2014, p. 6o. tureza da operação, que acarreta a divisão do patrimônio original da
43 WALDIRIO BULGARELLI. Fusões, Incorporações e Cisões de Sociedades. 5a
edição, São Paulo: Atlas, 2000, p. 179-181. sociedade devedora. Realizada a operação, o credor fica diante de um
56 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 57

novo patrimônio a garantir a dívida, resultante da segmentação da- responsáveis apenas pelas obrigações que lhes sejam transferidas, sem
quele existente ao tempo em que seu crédito foi constituído". solidariedade entre elas ou com a sociedade cindida.
Na cisão, a sociedade cindida transfere parcela de seu patrimô- Havendo cláusula de exclusão da solidariedade, qualquer credor
nio para uma ou mais sociedades pré-existentes ou constituídas para anterior à cisão pode opor-se, com relação a seu crédito, notificando
esse fim. Caso haja a versão integral de seu patrimônio, extingue-se a sociedade no prazo de 90 (noventa) dias contados da data de publi-
a cindida; se parcial, divide-se o capital da cindida, que remanesce. cação da ata da assembleia que aprovou a cisão. No silêncio do credor,
Se as sucessoras forem sociedades novas, há formação de seu ca- presume-se sua aprovação tácita à exclusão de solidariedade. A opo-
pital em bens — o patrimônio da cindida. Se forem sociedades já exis- sição, prevista no parágrafo único do artigo 233, não significa que a
tentes, ocorre o aumento de seu capital mediante a versão do capital operação possa ser impedida, mas apenas impugnação à ausência de
da cindida. Seja a cisão total ou parcial, ainda que não ocorra a trans- solidariedade, o que ocasionou severas críticas doutrinárias por não
ferência total do patrimônio da cindida, a transmissão opera-se a tí- ter a lei, diversamente do que ocorre na incorporação e na fusão, pre-
tulo universal em relação à parcela cindida, posto que ocorre em um visto no caso o direito dos credores de anularem a operação'''.
único ato; temos aqui sucessão universal da quota da parcela cindida. Quando a sociedade que absorve parcela do patrimônio da cin-
Para proteger os credores, a Lei das S.A. consagra o regime da so- dida já existia (a chamada "cisão incorporação"), prevalecem as regras
lidariedade com relação às obrigações da sociedade cindida, evitando, aplicáveis à incorporação, conforme o § 3° do artigo 229, não sen-
dessa forma, que seus direitos sejam modificados. As normas sobre so- do cabível a cláusula de exclusão de solidariedade, podendo o credor
lidariedade visam a assegurar que as obrigações da cindida continuem pleitear a anulação da operação.
garantidas por todo o patrimônio existente no momento da cisão. Os direitos dos debenturistas na incorporação, fusão ou cisão da
Na cisão total, as sociedades que absorvem parcelas do patrimô- companhia emissora de debêntures em circulação estão disciplinados
nio da cindida sucedem-na nos direitos e obrigações integrantes da no artigo 231 da Lei das S.A. A lei protegeu mais os debenturistas
parcela cindida, nas proporções dos patrimônios líquidos transferi- do que os demais credores, dada a natureza especial de seu crédito.
dos em cada parcela, assim como nos direitos e obrigações da cindida Trata-se de um débito único da companhia emissora, embora fracio-
não relacionados no ato da cisão, sem prejuízo da solidariedade pre- nado entre os titulares das debêntures. O crédito dos debenturistas é
vista no caput do artigo 233. uno, já que a comunhão entre eles está prevista no artigo 71 da Lei
Já na cisão parcial, em princípio, a sociedade cindida e as que ab- das S.A., que disciplina a assembleia geral de debenturistas.
sorvem parcela de seu patrimônio respondem solidariamente por suas O artigo 231 condiciona as operações à prévia aprovação dos deben-
obrigações. Porém, nos termos do parágrafo único do artigo 233, me- turistas, reunidos em assembleia geral especial, que objetiva a formação
diante cláusula expressa de exclusão de solidariedade, admite-se que da vontade da comunhão dos detentores dos títulos. A assembleia pode
as sociedades que absorvem parcelas do patrimônio da cindida sejam ser convocada: pelo agente fiduciário; pela companhia emissora; por de-
benturistas que representem pelo menos 10% dos títulos em circulação; e

44 NELSON EIZIRIK. A Lei das S/A Comentada..., v. IV, p.178. 45 MAURO BRANDÃO LOPES. A Cisão no Direito Societário. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 198o, p. 286-287.
58 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 59

pela CVM. Instala-se, em primeira convocação, com a presença de deben- Porém, da mesma forma que ocorre na Lei das S.A., não se sub-
turistas representando, pelo menos, a metade das debêntures em circula- mete a operação à prévia aprovação dos credores, uma vez que tal de-
ção, e, em segunda, com qualquer número. A aprovação da operação, que liberação é considerada como de competência exclusiva da assembleia
importa modificação nas condições das debêntures, posto que substituído geral de sócios. Tampouco têm eles acesso prévio ao protocolo e aos
o devedor original, requer o consentimento da maioria dos debenturis- demais documentos que fundamentam a operação.
tas presentes, se maior número não for previsto na escritura de emissão. Ao propor a ação, o credor deve demonstrar que está sendo pre-
A aprovação da operação pelos debenturistas constitui condição judicado com a operação, isto é, que seu crédito terá menor possi-
necessária para que os acionistas possam validamente deliberar. Na blidade de ser cobrado, ou porque foram reduzidas as garantias ou
ausência de aprovação pelos debenturistas, a deliberação que apro- porque o patrimônio da sucessora é inferior ao da sucedida. O "pre-
var a fusão, incorporação ou cisão será nula, por faltar-lhe requisito juízo" a que se refere o artigo 1.122, da mesma forma que ocorre com
de validade46. o artigo 232 da Lei das S.A., não é real, mas potencial, consistente
Será dispensada a assembleia caso seja assegurado aos debentu- na menor capacidade financeira da sucessora de honrar seu crédito.
ristas que assim o desejarem o resgate das debêntures no prazo míni- A sociedade pode depositar a importância cobrada em juízo, ces-
mo de 6 (seis) meses a contar da publicação das atas das assembleias sando o direito do credor de prosseguir com a ação de anulação da
que deliberaram a operação, sendo que na cisão a cindida e as socie- operação (§ 1° do artigo 1.122).
dades que absorveram parcela de seu patrimônio responderão soli- Caso a dívida seja ilíquida, a sociedade poderá garantir-lhe a exe-
dariamente pelo resgate (artigo 231, §§ 1° e 2°). cução, com o que igualmente se suspende o processo de anulação da
No CÓDIGO CIVIL operação (§ 2° do artigo 1.122).
Da mesma forma que dispõe o § 3° do artigo 232 da Lei das
Os direitos dos credores estão disciplinados no artigo 1.122
S.A., o § 3° do dispositivo do Código Civil estabelece que, ocorren-
do Código Civil, de maneira semelhante ao regime da Lei das S.A.
do no prazo de 90 (noventa) dias a falência da sociedade incorpora-
Embora sucinto, o dispositivo oferece maior proteção aos credores
dora, da sociedade resultante de fusão ou da cindida, qualquer credor
do que a da Lei das S.A.
anterior terá direito a pedir a separação dos patrimônios, para que se-
Nos termos do caput do artigo 1.122, os credores anteriores
jam os créditos pagos pelos bens das respectivas massas.
prejudicados terão o prazo decadencial de 90 (noventa) dias, após a
O Código Civil não tem disposição idêntica àquela do parágrafo
publicação dos "atos relativos à incorporação, fusão ou cisão" (ata de as-
único do artigo 233 da Lei das S.A., que permite que, na cisão parcial,
sembleia geral ou da reunião de sócios) para promoverem judicial-
as sociedades que absorverem parcelas do patrimônio da cindida se-
mente a sua anulação. Trata-se de prazo superior ao do artigo 232 da
rão responsáveis apenas pelas obrigações que lhes forem transferidas,
Lei das S.A. (sessenta dias) para a propositura da ação de anulação.
sem solidariedade entre si ou com a companhia cindida.
Assim, em qualquer modalidade de cisão — total ou parcial — os
46 IAN DE PORTO ALEGRE MUNIZ. Fusões e Aquisições - Aspectos Fiscais e
Societários..., p.185.
credores prejudicados terão o direito de pleitear a anulação da operação.
6o - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 61

Com relação à sucessão nas obrigações, aplicam-se os princi 3.2. FUSÃO, INCORPORAÇÃO, CISÃO E INCORPORAÇÃO DE
já analisados anteriormente, quando tratamos das operações tal co AÇÕES - CARACTERÍSTICAS ESPECIAIS DE CADA OPERAÇÃO
disciplinadas na Lei das S.A., exceto no que diz respeito à cláusula
exclusão da solidariedade prevista no parágrafo único do artigo 233
Lei das S.A., posto que o Código Civil não a admite expressame 3.2.1. FUSÃO

A fusão é definida, no artigo 228 da Lei das S.A., como "a opera-
ção pela qual se unem duas ou mais sociedades para formar sociedade nova,
que lhes sucederá em todos os direitos e obrigações".
O Código Civil, em seu artigo 1.119, dispõe que "a fusão deter-
mina a extinção das sociedades que se unem, para formar uma nova socie-
dade, que a elas sucederá nos direitos e obrigações".
Os traços principais da fusão são: a união de 2 (duas) ou mais
sociedades, de tipos iguais ou distintos, para formar uma nova socie-
dade; a extinção das sociedades fusionadas; a versão da totalidade dos
patrimônios das fusionadas para a formação do capital da nova so-
ciedade; a sucessão por parte da nova sociedade em todos os direitos
e obrigações das fusionadas; o recebimento, por parte dos sócios das
sociedades fusionadas, de ações ou quotas da nova sociedade.
Com a fusão, as sociedades fusionadas extinguem-se automati-
camente, nos termos do artigo 219, inciso II, da Lei das S.A., sem
necessidade de promover as suas respectivas liquidações.
Na prática dos negócios, a fusão não é muito utilizada, uma vez
que resulta na constituição de uma nova sociedade, com todos os in-
convenientes daí decorrentes, tais como: inscrição perante os órgãos
governamentais, unificação dos registros, cadastramento junto a for-
necedores, bancos e clientes'".

47 SÉRGIO BOTREL. Fusões & Aquisições. ia edição, São Paulo: Saraiva, 2012,
p. 11. A propósito, o autor menciona que a fusão da Submarino S.A. com a
Americanas S.A., para criar a B2W Companhia Global de Varejo, constitui um
exemplo isolado em nossa prática societária.
62 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 63

Mediante a incorporação, obtém-se a unificação de 2 (duas) ou tocolo e na justificação. Caso a aprove, nomeia os peritos que avalia-
mais sociedades sem os inconvenientes acima referidos, decorrentes rão o patrimônio líquido da outra sociedade.
da criação de nova sociedade, e com o aproveitamento de eventuais Na terceira fase, realiza-se uma assembleia conjunta (ou reunião
vantagens fiscais, o que não ocorre na fusão. de sócios) das sociedades envolvidas, denominada "assembleia geral
A principal finalidade da fusão — conferir unidade econômica na de fusão", que tem a mesma função daquela de constituição da so-
exploração de atividades antes desenvolvidas por 2 (duas) ou mais so- ciedade, na qual serão deliberados os laudos de avaliação, aprovado o
ciedades — pode ser alcançada de maneira mais simples, na chamada "fu- estatuto ou contrato social da nova sociedade e eleitos seus adminis-
são indireta" ou "imprópria", que não consiste juridicamente em fusão. tradores. Da assembleia, participam e votam todos os sócios, mesmo
Na "fusão imprópria", os sócios das sociedades a cujas operações os titulares de ações preferenciais sem direito de voto ou com voto
restrito. Para prevenir conflitos de interesse, os sócios de determina-
pretende-se conferir direção unitária integralizam o capital de uma
da sociedade não podem votar no laudo de avaliação do patrimônio
holding com as ações ou quotas de que são titulares. Após a transfe-
liquido da sociedade da qual fazem parte.
rência, a holding torna-se controladora das sociedades operacionais,
formando um grupo de sociedades de fato e conferindo unidade Uma vez concluída a assembleia com a aprovação dos laudos, do
econômica às sociedades que o compõem. O centro decisório das estatuto ou contrato social, assim como com a eleição dos primeiros
controladas fica situado na holding, cujos sócios são aqueles que lhe administradores, estará constituída a nova sociedade resultante da fu-
transferiram suas ações. Com a operação, são alcançados os mesmos são, devendo ser entregues aos acionistas ou sócios as ações ou quotas
efeitos econômicos da fusão, sem os inconvenientes; ademais, como que lhes cabem por força da relação de troca estabelecida no protocolo.
as sociedades operacionais continuam a existir, não se extinguem os
eventuais incentivos e benefícios fiscais que detêm".
49 Artigo 228 da Lei das S.A.: "Afusão é o operação pela qual se unem duas ou mais
O procedimento de fusão é constituído por 4 (quatro) fases. Na
sociedades para formar sociedade nova, que lhes sucederá em todos os direitos e
primeira, os administradores ou sócios discutem as condições da fu- obrigações. § 1° A assembleia geral de cada companhia, se aprovar o protocolo de
fusão, deverá nomear os peritos que avaliarão os patrimônios líquidos das demais
são, que constarão do protocolo e da justificação da operação, entre
sociedades. § 2° Apresentados os laudos, os administradores convocarão os
as quais a relação de substituição de cada ação ou quota de sociedade sócios ou acionistas das sociedades para uma assembleia geral, que deles tomará
conhecimento e resolverá sobre a constituição definitiva da nova sociedade,
existente por ação ou quota da nova sociedade. vedado aos sócios ou acionistas votar o laudo de avaliação do patrimônio líquido
Tratando-se de sociedade disciplinada pelo Código Civil, não há da sociedade de que fazem parte. § 3° Constituída a nova companhia, incumbirá
aos primeiros administradores promover o arquivamento e a publicação dos
previsão expressa de elaboração de protocolo e justificação da opera- atos da fusão"; e artigo 1.120 do Código Civil: "Afusão será decidida, na forma
estabelecido para os respectivos tipos, pelas sociedades que pretendam unir-se.
ção, sendo recomendável, porém, que as principais informações cons-
§1° Em reunião ou assembleia dos sócios de cada sociedade, deliberada a fusão
tem de documento apresentado aos sócios para sua aprovação. e aprovado o projeto do ato constitutivo da nova sociedade, bem como o plano
de distribuição do capital social, serão nomeados os peritos para a avaliação
Na segunda fase, a assembleia geral (ou reunião de sócios) de do patrimônio da sociedade. §2° Apresentados os laudos, os administradores
cada sociedade delibera sobre a operação, tal como descrita no pro- convocarão reunião ou assembleia dos sócios para tornar conhecimento deles,
decidindo sobre a constituição definitiva da nova sociedade. §3° É vedado aos
SÉRGIO BOTREL. Fusões & Aquisições..., p. 112-113. sócios votar o laudo de avaliação do patrimônio da sociedade de quefaçam parte".
48
64- M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK -

Na quarta fase, os primeiros administradores promovem o ar- a algu ns incisos do artigo 137 da Lei das S.A., estabeleceu as regras
quivamento e a publicação dos atos de fusão, passando então a ope- hoje vigentes sobre o direito de recesso na fusão, assim como na in-
ração a valer perante terceiros. corporação e na cisão.
A fusão acarreta a sucessão universal dos direitos e obrigações Conforme o artigo 137, inciso II, da Lei das S.A., não terá direito
das sociedades fusionadas na nova, resultante da fusão. Os credores de retirada o acionista titular de ação de espécie ou classe que tenha
anteriores à fusão e por ela prejudicados terão, na sociedade por ações liquidez e dispersão no mercado. O objetivo da norma é restringir o
resultante da operação, o prazo decadencial de 60 (sessenta) dias de- exercício do direito de recesso apenas aos acionistas que não tenham
pois de publicados os atos a ela relativos para pleitear judicialmente a condições efetivas de vender suas ações no mercado, posto que o reem-
sua anulação (conforme o disposto no artigo 232 da Lei das S.A.). Se bolso do valor de suas ações deve ser pago pela companhia, acarretan-
a nova sociedade for regida pelo Código Civil, o prazo é de 90 (no- do a redução de seu patrimônio e podendo impactar negativamente
venta) dias (conforme o disposto no artigo 1.122 do Código Civil). a situação dos sócios que optam por permanecer no quadro social.
Se houver debêntures em circulação, cabe aos debenturistas, reunidos Considera-se haver liquidez das ações ou dos certificados que as
em assembleia geral, a prévia aprovação da operação. representam quando integram índice representativo de carteira de va-
Os sócios dissidentes da deliberação que aprova a fusão po- lores mobiliários admitido à negociação no mercado de valores mo-
dem exercer o direito de retirada mediante o reembolso do valor de biliários, no Brasil ou no exterior. Nos termos da regulamentação da
suas quotas ou ações. Os regimes do direito de retirada são diver- CVM, considera-se atendida a condição de liquidez quando a espé-
sos no Código Civil e na Lei das S.A. Nas sociedades disciplinadas cie ou classe de ação, ou certificado que a represente, integrar o ín-
pelo Código Civil, as causas do direito de retirada são mais amplas e dice Bovespa (Ibovespa B3) na data do aviso de fato relevante que
o valor do reembolso deve ser calculado com base em balanço espe- anunciar a operação"-".
cial que reflita a situação patrimonial da sociedade na data mais pró- Há dispersão, para os efeitos da lei, quando o acionista contro-
xima possível da deliberação que ensejou a dissidência do quotista. lador, a sociedade controladora ou outras sob seu controle detiverem
Nos termos do artigo 1.077 do Código Civil, a fusão constitui uma menos da metade da espécie ou classe da ação, nos termos do artigo
das causas que justifica a retirada do acionista dissidente da socieda- 137, inciso II, alínea "b", da Lei das S.A.
de, mediante o recebimento de seus haveres. Para que a companhia possa negar o direito de recesso, os 2 (dois)
No regime da Lei das S.A., embora todos os acionistas dissi- critérios previstos no artigo 137, inciso II, devem ser aplicados con-
dentes da deliberação de fusão possam exercer o direito de recesso juntamente. Ou seja, não terão direito de recesso somente os titulares
(conforme o disposto no artigo 136, inciso IV, combinado com arti- daquelas ações em que estiverem atendidos os critérios de liquidez e
go 137, caput), há algumas restrições no caso das companhias abertas. de dispersão na companhia que deliberou a fusão.
A matéria foi objeto de alterações ao longo dos anos, a par- 50 Artigo no da Resolução CVM no .R /-i»-3
tir de 1989, quando se promulgou a chamada "Lei Lobão" (Lei n° 51 Sobre o conceito de liquidez e como deve ser medida: THIAGO SADDI
7.958/1989). A Lei n° 10.303/2001, ao dar nova redação ao caput e TANNOUS. Proteção à Liquidez no Mercado de Capitais. a edição, São Paulo:
Quartier Latin, 2018.
66 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 67

O atendimento aos critérios de liquidez e de dispersão, para que Uma vez exercido o direito de recesso, caso a operação não se efe-
possa legitimamente ser negado o direito de recesso, deve ser verifi- tive, não haverá o pagamento do preço de reembolso (artigo 137, § 40,
cado em relação a cada classe ou espécie de ação. Pode haver situa- da Lei das S.A.). As companhias envolvidas — ou uma delas — podem
ções em que, em decorrência da deliberação da assembleia geral que desistir da operação caso o pagamento do preço do reembolso ponha
aprovar a fusão da companhia, os titulares de uma espécie ou classe de em risco a sua estabilidade financeira (artigo 137, § 3°, da Lei das S.A.).
ações não tenham direito de recesso, pois suas ações atendem cumu-
lativamente aos requisitos de liquidez e dispersão, enquanto outros,
3.2.2. INCORPORAÇÃO
detentores de outra espécie ou classe de ações, terão o direito de re-
cesso, pois suas ações de sua classe ou espécie não atendem a algum A incorporação está regulada tanto na Lei das S.A. como no
dos dois requisitos legais52. Por exemplo, se ações preferenciais classe Código Civil. A Lei das S.A., em seu artigo 227, define a incorpo-
A de uma companhia integrarem o índice Bovespa (Ibovespa B3) e ração como a operação pela qual 1 (uma) ou mais sociedades são ab-
os controladores detiverem menos de 50% de tais ações, seus titula- sorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos e obrigações.
res não terão direito de recesso, pois há uma presunção legal de que No Código Civil, nos termos do seu artigo 1.116, da mesma forma,
eles poderão vender suas ações no mercado. Se o acionista controlador a incorporação é conceituada como a operação em que 1 (uma) ou
da mesma companhia detiver, direta ou indiretamente, mais de 50% várias sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos
de suas ações ordinárias, ainda que elas integrem o índice Bovespa os direitos e obrigações, devendo todas aprová-la na forma estabele-
(Ibovespa B3), haverá direito de recesso para os dissidentes titulares cida para os respectivos tipos.
de ações ordinárias; embora atendido o requisito de liquidez, nesse Trata-se de operação muito utilizada na prática dos negócios, em
caso não se verifica o requisito de dispersão. processos de concentração empresarial, uma vez que permite a uma so-
O acionista dissidente deve exercer o direito de recesso no prazo ciedade a absorção de outra, ou outras, com as vantagens econômicas,
decadencial de 30 (trinta) dias, contados a partir da data da publica- estratégicas e eventualmente tributárias daí decorrentes. Mediante a
ção da ata da assembleia geral que aprovar o protocolo e a justifica- incorporação unifica-se 2 (duas) ou mais sociedades, extinguindo-se
ção (artigo 137, § 4°, da Lei das S.A.). a incorporada e permanecendo existente a incorporadora. Os acio-
Têm direito de recesso tanto os titulares de ações ordinárias como nistas da incorporada perdem os direitos que tinham em relação ao
os de ações preferenciais sem direito de voto ou com voto restrito (ar- patrimônio da sociedade extinta, recebendo ações da sociedade in-
tigo 137, § 1°, da Lei das S.A.). Não estarão legitimados a exercer o corporadora, em substituição às suas antigas.
direito de recesso os acionistas que comparecerem à assembleia e vo- Comumente, a incorporação é utilizada após aquisição do con-
tarem favoravelmente à deliberação de fusão. trole de uma sociedade, como instrumento de integração da contro-
lada à controladora, caso em que há necessidade de especial atenção
à proteção dos acionistas minoritários, uma vez que é o mesmo acio-
52 NELSON EIZIRIK. A Lei das S/A Comentada. v. IV, 3a edição, São Paulo: Quartier
nista controlador final quem decide a operação, aplicando-se o dis-
Latin, 2021, p. 166-167. posto no artigo 264 da Lei das S.A.
68 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 69

A vantagem da incorporação sobre a fusão é que, na primeira, a A operação é doutrinariamente definida como vertical ascenden-
incorporadora sobrevive, enquanto, na segunda, as sociedades desa- quando a incorporadora participa no capital da incor-
te (" upstream")
parecem, sendo criada uma nova, com todas as dificuldades ineren- porada. Já quando a incorporada é titular de ações da incorporadora,
tes ao processo, como novo registro como pessoa jurídica, alvará de operação é denominada vertical descendente (" downstream")".
a
localização, inscrições estadual e municipal. A incorporação pode ocorrer entre sociedades independentes ou
Há 3 (três) características próprias da incorporação: passagem for- entre sociedades que já participam do capital uma da outra. A socie-
çada dos acionistas ou quotistas da sociedade incorporada para a incorpo- dade controladora pode incorporar a controlada e vice-versa. O por-
radora, exceto daqueles que exercerem o direito de recesso; transmissão te das sociedades envolvidas é irrelevante, nada impedindo que uma
do patrimônio da incorporada para a incorporadora, que a sucede em sociedade de menor patrimônio incorpore a de maior, desde que res-
todos os direitos e obrigações; extinção, não dissolução, da sociedade peitado o interesse social.
incorporada, nos termos do artigo 219, inciso II, da Lei das S.A.53 Os procedimentos para a incorporação de sociedade são prati-
Assim, em princípio, como resultado da operação os sócios camente os mesmos que para a fusão, antes descritos, exceto no que
da sociedade incorporada receberão ações ou quotas da sociedade se refere à "assembleia de fusão" realizada entre as sociedades fusio-
incorporadora. nadas. Existem algumas particularidades, dada a natureza da opera-
Há 2 (duas) situações em que as ações ou quotas extintas não se- ção, abaixo analisadas.
rão substituídas, uma vez que não ocorre o aumento de capital da in- Nos termos do artigo 226 da Lei das S.A., o valor atribuído no
corporadora: quando o patrimônio líquido da incorporada é zero ou laudo de avaliação que integra o protocolo ao patrimônio líquido da
negativo; ou quando a operação envolve a incorporação da subsidiá- sociedade incorporada deve ser, ao menos, igual ao do aumento de ca-
ria integral por sua controladora e única acionista'''. pital da incorporadora. O objetivo da norma é impedir que o capital
A incorporação é considerada como "horizontal" quando os acio- da incorporadora seja aumentado em valor superior ao do patrimônio
nistas ou sócios de uma sociedade são diferentes dos da outra, caso absorvido, em atenção ao princípio da realidade do capital. Nada impe-
em que todo o patrimônio da incorporada é transferido para a incor- de, porém, que o valor do aumento de capital seja menor do que aquele
poradora a título de aumento de capital. Já a incorporação "vertical" atribuído ao patrimônio da incorporada no laudo de avaliação, con-
constitui aquela em que todas as ações de uma companhia, a subsi- tabilizando-se a diferença como reserva de capital na incorporadora.
diária integral, são detidas por outra, a controladora total, caso em Em princípio, na dicção literal da lei, deveriam ocorrer 3 (três) as-
que as ações da incorporada serão extintas ou substituídas por ações sembleias gerais: (i) da incorporadora, para aprovar o protocolo e a jus-
em tesouraria da incorporadora. A incorporação pode ainda apre- tificação, e nomear os peritos que avaliarão o patrimônio líquido da
sentar uma feição híbrida, quando a incorporadora detém parte das incorporada; (ii) da sociedade incorporada, que aprova o protocolo e au-
ações da incorporada. toriza os administradores a praticar os atos necessários à realização da

53 NELSON EIZIRIK. A Lei das S/A Comentada..., v. IV, p. 138. 55 IAN DE PORTO ALEGRE MUNIZ. Fusões e Aquisições - Aspectos Fiscais e
54 SÉRGIO BOTREL. Fusões & Aquisições..., p. 116. Societários. 2 a edição. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p.121.
r

70 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 71

operação; (iii) da incorporadora, que aprova o laudo de avaliação e de- no protocolo. Com a operação, são extintas as ações da incorporada,
clara efetivada a incorporação. Na prática, consagrou-se o procedimento que deixa de ter existência legal.
de que cada sociedade realiza apenas 1 (uma) assembleia. A incorpo- Não há necessidade de avaliação do patrimônio da incorporado-
radora faz uma única assembleia quando estiver disponível o laudo de
ra, exceto quando a operação é realizada entre "parteS relacionadas"
avaliação dos peritos, na qual aprova o protocolo e a justificação, ratifi- (artigo 264 da Lei das S.A.).
ca a escolha dos peritos ou empresa avaliadora pelos administradores
A relação de troca, ou seja, o número de ações emitidas pela com-
e/ou acionistas, delibera sobre o laudo e declara efetivada a operação56.
panhia incorporadora que serão atribuídas aos acionistas da incorpo-
Tratando-se de companhia aberta, não só é possível como reco- rada, constitui um dos aspectos mais relevantes da operação. É pela
mendável a realização de apenas 1 (uma) assembleia geral. Como o determinação do valor comparativo entre as ações da incorporada e
laudo de avaliação pode demandar algum tempo para ser elaborado, da incorporadora que se fará a substituição dos títulos detidos pelos
poderia constituir fator de perturbação à cotação das ações no mer- acionistas da sociedade incorporada.
cado a divulgação da aprovação do protocolo na primeira assembleia
A fixação da relação de troca não se confunde com a avaliação do
da incorporadora e a conclusão da operação algum tempo depois, até
patrimônio da sociedade a ser incorporada para o efeito de se apurar
que o laudo fosse concluído e aprovado57.
o montante do aumento de capital da incorporadora. Não é obriga-
Uma vez aprovado o laudo de avaliação do patrimônio da incor- tório que as relações de troca sejam determinadas com base nos mes-
porada, ocorrerá o aumento de capital da incorporadora, mediante a mos critérios utilizados na avaliação do patrimônio da incorporada
versão do patrimônio da primeira para a segunda. Trata-se de aumen- para fins do aumento de capital da incorporadora.
to de capital integralizado com bens, aplicando-se o disposto nos ar-
A lei societária, em seu artigo 224, caput e inciso I, conferiu aos
tigos 7°, 8°, 170, § 3°, e 171, § 2°, da Lei das S.A.
administradores e acionistas das sociedades envolvidas na operação
Não há direito de preferência para os acionistas da incorporado- liberdade de escolher os critérios para estabelecer a relação de troca,
ra, uma vez que o seu exercício impediria a operação, que tem como exigindo apenas que eles sejam divulgados no protocolo.
um de seus principais elementos a integralização do capital da incor-
O artigo 224, inciso I, não estabelece sequer a obrigatoriedade
poradora com o patrimônio da incorporada, recebendo os acionistas
de ser elaborado um laudo de avaliação das relações de substituição,
dessa última as ações emitidas pela incorporadora.
exigindo apenas que indique os critérios utilizados. A lei societária
A subscrição e integralização do aumento de capital da incor- parte da premissa de que a fixação das relações de troca resulta da li-
poradora são atos praticados pelos administradores da incorporada, vre negociação entre administradores e acionistas controladores das
sendo as novas ações emitidas pela incorporadora entregues aos acio- sociedades envolvidas, razão pela qual, além de não exigir a utiliza-
nistas da incorporada, com base na relação de substituição prevista ção de 1 (um) único critério, tampouco impõe a realização de uma
, nnauaae
,• ,
56 NELSON EIZIRIK. A Lei das S/A Comentada..., v. IV, p. 142. avaliação específica para tal a
57 JOSÉ LUIZ BULHÕES PEDREIRA, "Incorporação, Fusão e Cisão". In: Alfredo
Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira (Coord.). Direito das Companhias. 58 Processo Administrativo CVM no RJ 2007/4933, Rel. Superintendência de
2a edição, Rio de Janeiro: Forense, 2017, p.1.302. Relações com Empresas, j. em 19.06.2007. Disponível em: <www.cvm.gov.br>.
72 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 73

Efetivada a operação, a incorporadora sucede a incorporada em às atividades desenvolvidas por outra, se a esta última não foi profe-
todos os seus direitos e obrigações, ou seja, em todas as relações reais rida decisão em sentido contrário antes da incorporação'''.
obrigacionais, ativas, passivas, substanciais ou processuais. Trata-se de A sucessão universal não alcança relações que são, por sua natureza,
sucessão universal, posto que o patrimônio da incorporada, por intei-
intransmissíveis, como concessão ou autorização administrativa, que pres-
ro, e mediante um ato, é transferido para a incorporadora. supõem a existência da incorporada como sujeito de direitos, nem aque-
Nesse sentido, o Código Tributário Nacional, em seu artigo 132, las de natureza orgânica, como as mantidas com seus administradores.
dispõe que a pessoa jurídica que resultar de incorporação (assim como Os acordos de acionistas da sociedade incorporada são automatica-
de fusão ou transformação) é responsável pelos tributos devidos pela mente extintos com a incorporação, uma vez que perdem o seu objeto e
incorporada até a data do ato. Depois de alguma oscilação na jurispru- torna-se impossível o cumprimento de suas cláusulas. É impossível ju-
dência, o STJ emitiu a Súmula no 554, nos termos da qual, na sucessão ridicamente a existência de acordo de acionistas em sociedade extinta.
empresarial, a responsabilidade da sucessora abrange não só os tribu- Uma questão que vem causando discussões refere-se à possibilidade
tos devidos pela sucedida como também as multas moratórias ou pu- de o pagamento da relação de troca para os acionistas da sociedade incor-
nitivas referentes a atos geradores ocorridos até a data em que ocorreu porada ser efetuado parte com a entrega de ações da incorporadora e par-
a sucessão'''. te em dinheiro, o que também ocorre no caso da incorporação de ações.
A jurisprudência de nossos tribunais é pacífica no sentido de que Os artigos 224, inciso II, e 252, § 3°, da Lei das S.A. fazem refe-
a sociedade incorporada perde a legitimidade para propor ação em rência ao pagamento da relação de troca por meio da entrega de ações
nome e por conta própria. A sucessão da incorporadora nas ações ju- da incorporadora para os acionistas da incorporada, embora a lei não
diciais em curso opera-se automaticamente, não dependendo da con- proíba que parte do pagamento seja feito em dinheiro. É bastante co-
cordância da parte contrária6°. mum que as sociedades efetuem incorporação de sociedade ou de ações
No direito processual, os principais efeitos da sucessão pela incor- utilizando-se da combinação de diferentes operações, que poderão le-
poradora no patrimônio da incorporada são: a incorporadora recebe gitimamente acarretar o pagamento de uma parte do pagamento em
os processos em curso no estado em que se encontram, devendo res- ações da incorporadora e outra parte da relação de troca em dinheiro.
peitar as situações jurídicas já consolidadas e praticar apenas os atos Em muitas operações entre nós realizadas foi adotado o seguin-
não preclusos; nos processos já findos, a incorporadora fica vinculada te procedimento: a sociedade A aporta parcela em dinheiro para au-
à coisa julgada que se formou sobre a decisão proferida em que figu- mentar o capital de B, sua subsidiária integral. B incorpora C ou as
rava como parte a incorporada; se houver mais de 1 (uma) sociedade ações de C, emitindo ações ordinárias e preferenciais resgatáveis que
incorporada, o beneficio pertencente a uma delas pode ser estendido são atribuídas aos acionistas de C. B, então, resgata a totalidade das

59 No mesmo sentido a Súmula 113 do CARF. A respeito, ver: RICARDO MARIZ DE 61 PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON, "Incorporação de Sociedades
OLIVEIRA. Fundamentos do Imposto de Renda. v. 1, São Paulo: IBDT, 2020, p. e Sucessão Processual". In: Rodrigo Rocha Monteiro de Castro, Luis Andre
1.131-1.132. Azevedo e Marcus de Freitas Henriques (Coord.). Direito Societário, Mercado
6o ALFREDO SERGIO LAZZARESCHI NETO. Lei das Sociedades por Ações de Capitais, Arbitragem e Outros Temas: Homenagem a Nelson Eizirik. v. II,
Anotada. 6a edição, São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 909. São Paulo: Quartier Latin, 2020, p.169-182.
74 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 75

ações preferenciais de sua emissão, resultando no pagamento de par- Nos Estados Unidos, é bastante comum a realização de"cash-out mer-
cela em dinheiro aos acionistas de C. Ato contínuo, A incorpora C, gers", que resultam na exclusão de acionistas mediante o pagamento do
ou suas ações, conferindo aos acionistas de C ações de sua emissão valor de suas ações, previstas inclusive na Delaware General Corporations
correspondentes a uma parcela da relação de troca. Low. Tais operações são legítimas, embora sujeitas à revisão dos tribu-
A entrega de ações preferenciais resgatáveis aos acionistas da so- nais,especialmente quando ocorrem entre partes relacionadas, cabendo ao
ciedade não é vedada pela Lei das S.A., não caracterizando fraude ao acionista controlador provar que o processo e o preço pago foram justos'''.
direito dos acionistas minoritários. Não há qualquer ilegalidade em O Colegiado da CVM analisou a questão em reclamação formu-
se combinar diferentes operações previstas na Lei das S.A. (aumen- lada por acionistas minoritários de sociedade cujas ações foram incor-
to de capital, incorporação de ações, resgate e incorporação de socie- poradas ao capital da incorporadora, podendo aplicar-se os mesmos
dade) no âmbito de uma única reorganização societária, que resulte princípios à incorporação de sociedade. Algumas operações estrutu-
em parte da relação de troca sendo paga em dinheiro. Ademais, não radas da mesma forma já haviam sido realizadas antes, embora não
existe na Lei das S.A. qualquer dispositivo determinando a obrigato- com idêntico percentual de pagamento em dinheiro, sem que hou-
riedade de, em operações de reorganização societária, como a incor- vesse manifestação contrária por parte da CVM.
poração, a relação de troca ser fixada exclusivamente em ações. Assim, No caso, alguns acionistas minoritários encaminharam pedi-
em virtude do princípio da liberdade de contratar, deve ser reconhe- do de interrupção do prazo de convocação de Assembleia Geral
cida a legitimidade da combinação de negócios para que a relação de Extraordinária (AGE) da Fibria Celulose S.A. A AGE havia sido
troca seja fixada parte em dinheiro e parte em ações62. convocada para deliberar sobre a reorganização societária da compa-
62 A questão foi objeto de intensa discussão na doutrina. Entendendo que cabe nhia, mediante a qual ela se tornaria subsidiária integral da Suzano
parcela do pagamento em dinheiro: ERASMO VALLADÃO AZEVEDO E NOVAES Papel Celulose S.A. e os acionistas da Fibria receberiam, para cada
FRANÇA, "Possibilidade de Emissão de Ações Preferenciais Resgatáveis mediante
Parte em Dinheiro e Parte em Ações - Parecer". In: Rodrigo Rocha Monteiro de ação de sua emissão, 20% do pagamento em ações da incorporadora
Castro, Luis Andre Azevedo e Marcus de Freitas Henriques (Coord.). Direito
e o restante (80%) em moeda corrente".
Societário, Mercado de Capitais, Arbitragem e Outros Temas: Homenagem
a Nelson Eizirik..., v. I, p. 378-398; e IVO WAISBERG, "Parecer - Reorganização A operação, conforme o Relator do processo, seria implementada
Societária Implementada por meio da Combinação de Negócios Jurídicos.
Inexistência de Fraude à Lei". In: Rodrigo Rocha Monteiro de Castro, Luis Andre mediante 4 (quatro) etapas interdependentes e vinculadas entre si, efe-
Azevedo e Marcus de Freitas Henriques (Coord.). Direito Societário, Mercado tivadas na mesma data, da seguinte forma: (i) aporte pela Suzano ou
de Capitais, Arbitragem e Outros Temas: Homenagem a Nelson Eizirik..., v.
I, p. 479-494. Em sentido contrário: EDUARDO SECCHI MUNHOZ, "Cash-out sociedade afiliada do montante correspondente à parcela em dinheiro
Mergers e o Direito Brasileiro". In: Rodrigo Rocha Monteiro de Castro, Luis Andre
Azevedo e Marcus de Freitas Henriques (Coord.). Direito Societário, Mercado 63 PETER CH RISTIAN SESTER. Business and Investmentin Brazil - Lawand Practice.
de Capitais, Arbitragem e Outros Temas. Homenagem a Nelson Eizirik..., v. I, 1a edição, New York: Oxford University Press, 2022, p. 361. Segundo o Autor,
p. 307-330; e LUIZ ALBERTO COLONNA ROSMAN, PEDRO WEHRS DO VALE como a Lei das S.A. não instituiu um "numerus clausus" de modalidades de
FERNANDES e DANIELLE BITTENCOURT COLAI L PARENTE, "Análise dos Aspectos reorganização societária, nada impede que, como resultado de diversas
Legais da Operação de Incorporação com Entrega de Ações Imediatamente operações, todas previstas na lei, parte do pagamento aos acionistas da
Resgatáveis aos Acionistas da Incorporada". In: Maria Lucia Cantidiano, Igor incorporada seja feito em dinheiro.
Muniz e Isabel Cantidiano (Coord.). Sociedades Anônimas, Mercado de Capitais 64 Processos Ad ministrativos CVM n -19957.007756/2018-46 e19957.007885/2018
e Outros Estudos: Homenagem a Luiz Leonardo Cantidiano. v. II, São Paulo: -34, Rel. Superintendência de Relações com Empresas, j. em 04.09.2018.
Quartier Latin, 2019, p. 31-56. Disponível em: <www.cvm.gov.br>.
76 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO L CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 77

em uma Holding não operacional, por meio de aumento de capital; (ii) unitário, não produzir nenhum resultado proibido em lei, o que teria
incorporação da totalidade das ações da Fibria pela Holding, por seu va- ocorrido na hipótese. Enfatizaram que não há ilegalidade na entrega
lor econômico, sendo que para cada ação ordinária de emissão da Fibria de ações preferencias resgatáveis aos titulares das ações da incorpo-
seriam entregues uma ação ordinária e uma ação preferencial resgatável rada e que a Lei das S.A., em seus artigos 224, inciso 'I, 225, inciso
de emissão da Holding, (iii) resgate da totalidade das ações preferen- II, admite que os acionistas da incorporada recebam ações da incor-
ciais de emissão da Holding, com o pagamento, para cada ação prefe- poradora em espécie e classe distinta das que possuíam.
rencial de emissão da Holding resgatada, da parcela em dinheiro; e (iv) Também ficou registrado o entendimento de que não teria ocor-
incorporação da Holding pela Suzano, pelo valor patrimonial contábil rido fraude na operação, uma vez que as suas etapas obedeceram in-
da Holding, com sua consequente extinção e sucessão, pela Suzano, de tegralmente aos respectivos requisitos legais e, como um todo, não
todos os seus bens, direitos e obrigações, recebendo os antigos acionis- produziu qualquer resultado proibido pela lei, tendo em vista que a
tas da Fibria a parcela do pagamento integrada por ações de emissão realização financeira de parte substancial das participações acionárias,
o
da Suzano. por decisão majoritária, é efeito típico do resgate acionário.
Dentre outras reclamações, os investidores sustentaram que a ope- Ademais, assinalaram que o prejuízo alegado pelos investidores
ração representaria uma ilegal expropriação das ações dos minoritários reclamantes não decorre necessariamente da operação, mas do fato
da Fibria que quisessem permanecer como acionistas da incorporado- de que as companhias incorporadora e incorporada têm parte pre-
ra, relativamente a totalidade (e não apenas 20%) de sua participação ponderante da receita em moeda estrangeira e parcela majoritária de
societária, uma vez que lhes seria imposto o recebimento de quan- suas despesas em real, de forma que a variação cambial tornou a par-
tia em espécie (80%) e uma quantidade de ações da Suzano (20%). cela referente à ação resgatável menos vantajosa, em termos de retor-
Sustentaram, ademais, que, ao entregar ações preferenciais resgatá- no, do que a parcela em ações. Não se poderia ignorar que a operação
veis, no mesmo ato, mediante pagamento em moeda, em substituição poderia ter-lhes sido favorável caso a oscilação dos ativos tivesse se-
de 80% das ações da incorporada, ainda que tal operação atendesse guido direção distinta desde o anúncio da operação.
formalmente ao comando legal, a incorporadora atingiria o resulta- O voto vencido entendeu que a operação era ilegal. Nesse senti-
do que a lei pretende evitar, qual seja, a entrega de outro bem que não do, enfatizou que a incorporação de sociedade ou de ações, por afetar
as ações da incorporadora em substituição às ações da incorporada.
o direito de propriedade dos acionistas, somente poderia ocorrer nos
Os 3 (três) membros do Colegiado que rejeitaram a reclamação estritos termos da Lei das S.A., cujas disposições preveem, necessa-
apresentada por investidores entenderam que uma operação comple- riamente, a substituição das ações da incorporada por ações da incor-
xa como a então analisada, organizada por meio de diferentes negó- poradora. Assim, não se poderia impor aos acionistas minoritários o
cios jurídicos vinculados entre si, sendo cada um deles indispensável recebimento de ativos outros que não ações, nem mesmo o pagamento
ao alcance das finalidades perseguidas pelas sociedades contratantes, em dinheiro, o que corresponderia a uma desapropriação privada de
deve ser considerado regular se: (i) cada um dos seus passos obser- bens sem que houvesse norma legal a autorizá-la. Por meio da ope-
var seu regime jurídico específico e (ii) se a operação, como um todo ração, os acionistas minoritários da Fibria estariam sendo expelidos
ir
78 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 79

do negócio ("squeeze-out") no percentual de 80%, uma vez que ape- 3.2.3. CISÃO
nas 20% seriam pagos com ações da incorporadora. Na Lei das S.A., a cisão é definida no caput do artigo 229 como
Não houve, até o momento, outro caso em que se tenha discu- a operação mediante a qual a companhia transfere parcela de seu pa-
tido, na CVM, a possibilidade de parte do pagamento na relação de trimônio para uma ou mais sociedades, constituídas para esse fim ou
troca ocorrer em moeda corrente. já existentes. A companhia cindida extingue-se se houver a versão de
Com relação ao direito de recesso, deve-se observar que, nas so- todo o seu patrimônio ou divide-se o seu capital se a cisão for parcial.
ciedades regidas pelo Código Civil, tanto os sócios da incorporadora O Código Civil não define a operação de cisão, o que constituiu
como da incorporada têm direito de retirada, recebendo como reem- uma omissão do legislador. Apenas menciona, em seu artigo 1.122,
bolso o valor atualizado de suas quotas, nos termos do seu artigo 1.077. que, na cisão, assim como na fusão e na incorporação, o credor ante-
Já conforme a Lei das S.A., em seus artigos 136, inciso IV, e 137, rior, por ela prejudicado, poderá promover judicialmente a sua anu-
somente os acionistas da sociedade incorporada têm direito de recesso, lação. No entanto, nada impede que as sociedades sob sua disciplina
o que constituiu uma omissão do legislador, uma vez que os acionis- pratiquem a operação, seguindo, com as devidas adaptações, as dis-
tas da incorporadora podem ter a sua situação patrimonial tão afe- posições da Lei das S.A.
tada como a dos acionistas da incorporada, a depender da relação de Com efeito, deve prevalecer a interpretação fundada na norma
troca prevista no protocolo. geral do artigo 223 da Lei das S.A., segundo a qual as operações de
Não terão direito de recesso os acionistas da sociedade incorporada reorganização ali enunciadas, entre as quais a cisão, podem ser realiza-
cujas ações de espécie e classe apresentem liquidez e dispersão no mercado. das entre sociedades de tipos iguais ou diferentes; dada a amplitude da
Não há óbice, a nosso ver, que uma sociedade em processo de norma, ela somente poderia ser afastada mediante exceção expressa".
dissolução seja incorporada por outra, valendo o mesmo para a fu- A cisão originou-se da prática empresarial, e, em geral, tem como ob-
são. Com efeito, nos termos do artigo 207 da Lei das S.A., "a compa- jetivos a racionalização e a reorganização de estruturas empresariais já exis-
nhia dissolvida conserva a sua personalidade jurídica, até a extinção, com tentes, permitindo que a finalidade lucrativa da sociedade seja alcançada
ofim de proceder à liquidação". Preservando sua personalidade jurídi- de maneira diversa da original, mediante realocação de seu patrimônio67.
ca, a sociedade mantém a sua capacidade ativa e passiva de agir, in- Ainda que seja frequentemente associada à ideia de divisão, a ci-
clusive em juízo, permanecendo na propriedade de seu acervo social. são constitui um negócio jurídico que acarreta a realocação do patri-
Ademais, nem sempre a dissolução leva necessariamente à liquida- mônio de uma sociedade, podendo servir para fins de concentração
ção, podendo os acionistas deliberar a cessação do estado de liquida- ou desconcentração empresarial.
ção (artigo 136, inciso VII, da Lei das S.A.)".
66 PAULO FERNANDO CAMPOS SALLES DE TOLEDO, "Spin-off e cisão:
65 No Lm-eito Portugues, a lei admite a possibilidade de a fusão - conceito `e1.1c^lhaievaa e distinções". l,.. Jai.,.., Saddi (Coord.). Fusões e Aquisições:

amplo que engloba também o que denominamos incorporação - abranger Aspectos Jurídicos e Econômicos. Ia edição, São Paulo: 10B e IBMEC LAW,

sociedades dissolvidas, uma vez que a dissolução não constitui fato extintivo da 2002, p. 476.

sociedade. A propósito, JOSÉ FERREIRA GOMES. M&A -Aquisição de Empresas 67 JOANA VASCONCELOS.ACisão de Sociedades.ia edição, Lisboa: Universidade
e Participações Sociais. ia edição, Lisboa: AAFDL Editora, 2022, p. 105. Católica Editora, 2001, p. 28-29.
8o - M&A - RtuME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 81

É utilizada como instrumento de concentração empresarial quan- ambos os casos, a cindida desaparece, pois seu patri-
já existentes. Em
do a transferência de parcela do patrimônio da sociedade cindida per- mente transferido. Na "cisão parcial" ou "falsa cisão",
nrii3nio é integral
mite uma combinação de negócios, sendo suas atividades transferidos a sociedade transfere parte de seu patrimônio para sociedades novas
para outra sociedade que explora atividade similar ou complementar68. ou já existentes, não ocorrendo a sua extinção. A cisão parcial em que
Já a utilização da cisão como mecanismo de desconcentração parcela do patrirnônio da cindida é transferida para sociedade já exis-
empresarial ocorre quando se reparte o patrimônio entre várias so- tente, também chamada de "cisão incorporação", é disciplinada pelas
ciedades, realocando-se os sócios entre elas, atendendo a razões de normas que tratam da incorporação (artigo 227 da Lei das S.A.)".
descentralização administrativa, de diversificação de investimentos A cisão, em qualquer de suas modalidades, distingue-se da alie-
ou mesmo da necessidade de especialização. nação de ativos. Na cisão, os sócios da sociedade cindida são realoca-
Em muitos casos, a cisão é utilizada para resolver disputas entre dos, tornando-se, ao menos em parte, sócios da sucessora, enquanto
os sócios, permitindo a divisão do patrimônio e a separação dos con- na venda de ativos não há alteração no quadro de sócios ou acionistas.
flitantes em sociedades distintas. A cisão deve sqBuir o procedimento determinado na Lei das S.A.; já
Pode também ser utilizada como etapa prévia a uma operação de na venda de atilvos, não existe procedimento legal, bastando o aten-
incorporação ou fusão, ou mesmo de aquisição de ações ou quotas, em dimento às nonnas estatutárias da sociedade alienante.
que o investidor está interessado em comprar parte das atividades da Da mesma forma que a incorporação e a fusão, a cisão consti-
sociedade. A cisão permite que parcela de suas atividades seja desta- tui um procedi nento negociai, uma sequência de atos dispostos de
cada para uma sociedade nova ou já existente, que será em seguida in- acordo com uma ordem necessária, dirigidos à obtenção de um efei-
corporada, fusionada ou terá seu controle adquirido pelo interessado. to jurídico final , no qual cada ato pressupõe o precedente e prepara
A definição da cisão no caput do artigo 229 da Lei das S.A. o subsequente"
contém 2 (duas) características essenciais, que conferem ao institu- O procedi mento compreende as seguintes etapas: (i) definição do
to grande flexibilidade: a transferência de uma parcela ou de todo o negócio, na qua11 os administradores ou sócios da sociedade cindida
patrimônio a uma ou mais sociedades; e a irrelevância de serem essas elaboram o pratocolo e a justificação; (ii) a assembleia geral delibera
sociedades novas ou já existentes69. sobre o protoco lo e a justificação e, caso os aprove, forma-se o negócio
Dessa forma, a Lei das S.A. previu tanto a cisão total, com extin- jurídico de cisã(3; (iii) execução do negócio jurídico, em que a mesma
ção da cindida, como a cisão parcial. A cisão total pode ocorrer de 2 assembleia ratilfica os peritos que avaliaram a parcela do patrimônio a
(duas) formas: a "pura", na qual se verifica a versão do patrimônio da ser transferida, delibera sobre o laudo e, caso o aprove, será considerada
sociedade cindida para 2 (duas) ou mais sociedades novas; e a "cisão como a assemblleia de constituição da nova companhia, se for o caso 72.
absorção", em que a cindida divide seu patrimônio entre sociedades
7o NELSON EIZIRIK. A Lei das S/A Comentada..., v. IV, p. 153.
71 LUIZ CASTÃO PAES DE BARROS LEÃES, "Incorporação de Companhia
68 SÉRGIO BOTREL. Fusões & Aquisições..., p. 140. Controlada", Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro.
69 MAURO BRANDÃO LOPES. A Cisão no Direito Societário. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 94, abril-junho, 1994, p. 95 e seguintes.
ia edição, São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 109. 72 JOSÉ LUIZ BULHÕES PEDREIRA, "Incorporação, Fusão e Cisão". In: Alfredo Lamy
Filho e José Luiz Bulhões Pedreira (Coord.). Direito das Companhias..., p.1.305.
82 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 83

Os acionistas da sociedade cindida recebem ações de emissão das ciedade cindida. As normas sobre solidariedade nas obrigações da cindida,
sociedades sucessoras, novas ou já existentes, na proporção das que seja na cisão parcial, seja na total, objetivam assegurar que as obrigações
possuíam na sucedida. A atribuição em proporção diferente requer a da cindida continuem garantidas por todo o patrimônio antes existente.
aprovação de todos os acionistas, inclusive dos titulares de ações sem Na cisão total ("cisão com extinção"), desaparece a sociedade cin-
direito de voto, a fim de impedir eventual tratamento discriminató- dida. As sociedades novas ou já existentes que absorvem parcelas de
rio aos minoritários (§ 5° do artigo 229 da Lei das S.A.). seu patrimônio sucedem a cindida em todos os seus direitos e obri-
Concordando todos os sócios, pode ocorrer a distribuição des- gações, inclusive nos não relacionados no protocolo de cisão, respon-
proporcional das ações. Assim, por exemplo, pode-se entregar aos dendo solidariamente por tais obrigações.
minoritários menos ações das que seriam devidas na atribuição "pro No caso da cisão parcial, na qual sobrevive a sociedade cindida,
rata", com pagamento adicional em dinheiro, caso eles não demons- a sociedade que absorver parcela de seu patrimônio sucede a cindida
trem o mesmo interesse que o controlador de permanecer na socie- nos direitos e obrigações relacionados no protocolo e responde solida-
dade sucessora. Também pode ser utilizada a distribuição assimétrica riamente com ela por suas obrigações anteriores à cisão. Nos termos
para resolver disputas entre os sócios; no caso, a sociedade continua do parágrafo único do artigo 233 da Lei das S.A., pode ser estipulado
a existir com alguns dos sócios originais e os demais receberão ações que a sociedade que absorver parcela do patrimônio da cindida será
da nova sociedade. Dessa forma, ocorre não apenas a separação de responsável apenas pelas obrigações referentes à tal parcela, sem so-
patrimônios, mas também de acionistas, que ficam alocados integral- lidariedade com a sociedade cindida. Nessa hipótese, qualquer credor
mente em sociedades distintas". anterior poderá opor-se à tal estipulação — não à operação como um
A formação do capital, caso as sucessoras sejam sociedades no- todo — em relação a seu crédito, caso notifique a sociedade no prazo
vas, ou o seu aumento, tratando-se de sociedades pré-existentes, ocorre de 90 (noventa) dias a contar da data da publicação dos atos da cisão.
mediante a versão total ou parcial do patrimônio da sociedade cindi- Na prática dos negócios, é bastante comum a "cisão com incor-
da. Na cisão, seja total, seja parcial, mesmo não havendo transferência poração", em que ocorre a versão de parte do patrimônio da socie-
integral do patrimônio da cindida, a transmissão opera-se a título uni- dade cindida para sociedade já existente. Trata-se, o mais das vezes,
versal em relação à parcela cindida, posto que ocorre em consequência de modalidade de operação em que a sociedade direciona suas ativi-
de um único ato, como um complexo unificado, uma universalidade. dades para outra área do mercado, em que acredita que poderá atuar
Trata-se, portanto, de sucessão universal "pro quota" da parcela cindida. mais eficazmente, abandonando aquela menos lucrativa ou fora de
Tendo em vista a proteção dos credores, a Lei das S.A., em seu artigo seu âmbito principal de negócios, cuja parcela de patrimônio corres-
233, consagra o regime da solidariedade com relação às obrigações da so- pondente será absorvida por outra sociedade".
Pode ocorrer a cisão com incorporação no caso da cisão parcial,
73 FERNANDO 01E0 BANET. ta Escisión de la Sociedad Anónima. ia edição,
Madrid: Civitas, 1995, p. 46.
hipótese em que parcela do patrimônio da cindida é incorporada em
74 JOANA VASCONCELOS. A Cisão de Sociedades..., p. 248; LUIZ CASTÃO PAES
DE BARROS LEÃES, "Aquisição de Ativos e Assunção de Passivos Empresariais". 75 MODESTO CARVALHOSA. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. v. 4,
In: Pareceres. V. 2, São Paulo: Editora Singular, 2004, p. 858. tomo I, 5a edição, São Paulo: Saraiva, 2011, p. 215.
84 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 85

sociedade existente, assim como em cisão com extinção, desde que as seu patrimônio, são divididos, mas o conjunto dos direitos resultan-
parcelas do patrimônio da cindida sejam incorporadas por duas ou tes dessa divisão continua a ter por objeto, nas mesmas proporções, o
mais sociedades já existentes. A cisão total com versão do patrimô- patrimônio original da sociedade cindida7g.
nio para uma única sociedade constituiria incorporação, não cisão. Na cisão com incorporação, os acionistas da cindida têm direi-
A operação constitui coligação de 2 (dois) negócios jurídicos tí- to de recesso, uma vez que sua situação é idêntica à do acionista da
picos — cisão e incorporação. Esses negócios típicos podem legiti- sociedade incorporada, a quem a lei confere tal direito, exceto se as
mamente ser reunidos ou coligados. A transferência de parcela do ações apresentarem liquidez e dispersão no mercado (artigo 137, in-
patrimônio da cindida para outra sociedade é característica da cisão. ciso II, da Lei das S.A.).
Já a absorção de parcela do patrimônio da cindida por outra socie-
dade existente é característica do negócio jurídico de incorporação".
3.2.4. INCORPORAÇÃO DE AÇÕES
Segundo o disposto no § 3° do artigo 229 da Lei das S.A., a ci-
A operação de incorporação de ações está prevista no artigo 252
são com incorporação deve obedecer as disposições legais sobre in-
da Lei das S.A. e não tem disposição similar no Código Civil, pelo
corporação, constantes do artigo 227.
fato de que somente é possível se a sociedade cujas ações são incor-
O direito de recesso na cisão passou por várias alterações legislati-
poradas for uma companhia. Nem a Lei das S.A. nem o Código Civil
vas, desde a promulgação da Lei das S.A. Na redação original do artigo
mencionam a possibilidade de incorporação de quotas ao capital de
137, havia previsão de recesso na cisão". A Lei n° 10.303/2001, ao dar
outra sociedade.
nova redação ao artigo 137, inciso III, estabeleceu que não existe direito
Trata-se de operação mediante a qual uma sociedade brasileira
de recesso, exceto se a cisão implicar: (i) mudança do objeto social, salvo
incorpora ao seu patrimônio todas as ações de outra companhia, con-
se o patrimônio for vertido para sociedade cuja atividade preponderan-
vertendo-a em sua subsidiária integral. Após ter ficado durante lon-
te coincida com o da cindida; (ii) redução do dividendo obrigatório; ou
go período quase sem utilização, tem propiciado, principalmente nos
(iii) participação em grupo de sociedades. São hipóteses em que a Lei
últimos 20 (vinte) anos, a realização de operações de reorganização
das S.A. já assegura o direito de recesso, independentemente da cisão.
societária de grande vulto.
A negação do direito de recesso na cisão decorre dos seguintes
Conforme a Exposição de Motivos n° 196, referente ao Projeto
fatores: os acionistas da cindida continuam a participar, nas mesmas
de Lei das S.A., não se admite a companhia brasileira subsidiária in-
proporções, tanto da sociedade cindida como da sucessora, salvo de-
tegral de companhia estrangeira, para deixar claro que a lei veda a
liberação unânime em contrário, na cisão parcial, ou em todas as so-
subordinação do interesse da sociedade nacional ao da estrangeira.
ciedades que absorvem parcela da cindida, na cisão total; os direitos
Nada impede, porém, que a sociedade brasileira tenha acionista es-
de participação dos acionistas da cindida, que tinham como objeto o
trangeiro com participação de 99,99% em seu capital, ou seja, há ape-

76 JOSÉ LUIZ BULHÕES PEDREIRA, "Incorporação, Fusão e Cisão". In: Alfredo Lamy
Filho e José Luiz Bulhões Pedreira (Coord.). Direito das Companhias..., p.1.307. 78 JOSÉ LUIZ BULHÕES PEDREIRA, "Incorporação, Fusão e Cisão". In: Alfredo Lamy
77 NELSON EIZIRIK. A Lei das S/A Comentada..., v. II, p. 594. Filho e José Luiz Bulhões Pedreira (Coord.). Direito das Companhias..., p.1.305.
86 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 87

nas a proibição ao controle total, não ao majoritário. Com efeito, nos O tratamento legal da subsidiária integral está contido apenas nos
termos do artigo 1.126 do Código Civil, é nacional a sociedade or- artigos 251, 252 e 253 da Lei das S.A., inexistindo normas legais es-
ganizada conforme a lei brasileira e que tenha no País a sede de sua pecíficas sobre responsabilidade, organização e regime de publicidade.
administração, independentemente de quem seja o seu controlador. Tratando-se de sociedade unipessoal, não é necessário que rea-
A incorporação de ações constitui instrumento que pode ser lize assembleia geral, que pode ser validamente substituída por uma
utilizado para descentralização administrativa da empresa, manten- escritura declaratória, assinada pelo acionista, em geral denominada
do separada a sociedade constituída como pessoa jurídica dotada de "termo de resolução" ou "resolução do acionista"".
patrimônio próprio". A subsidiária integral deve ter seus órgãos de administração; a
Na prática do mercado, muitas vezes faz-se a incorporação de Lei das S.A., no caso, não excepcionou o princípio de que as funções
ações de companhia após a aquisição de seu controle acionário, ou e competências dos órgãos são indelegáveis. Assim, a subsidiária inte-
como uma forma de comprar a totalidade de suas ações no curso de gral terá necessariamente diretores, com poderes de gestão ordinária
uma operação de integração empresarial". Em alguns casos envol- e representação, e conselho de administração, se for de capital autori-
vendo a integração de instituições financeiras, preferiu-se a incorpo- zado ou companhia aberta. Também pode criar comitês, de natureza
ração de ações à incorporação de sociedade, para que a incorporada consultiva, para assessorar a diretoria ou o conselho de administração.
mantivesse sua personalidade jurídica e sua "bandeira". Poderá ter ou não conselho fiscal em funcionamento, se for de inte-
Do ponto de vista formal, a incorporação de ações constitui mo- resse do acionista, que pode julgar conveniente manter o órgão em
dalidade de formação de subsidiária integral, considerada "derivada", atividade para aferir a regularidade da atuação dos administradores".
em oposição à "originária", que se verifica quando uma sociedade des- Da mesma forma que ocorre na incorporação de sociedade, na
taca recursos de seu patrimônio para constituir uma nova sociedade, incorporação de ações a sociedade controladora pode incorporar as
da qual será a única acionista. ações de emissão da controlada e vice-versa. Na incorporação de ações
A subsidiária integral é controlada integralmente por outra so- da controlada, de controladora ou de sociedades sob controle comum
ciedade, constituindo assim sociedade unipessoal. Deve ser necessa- deve ser observado o disposto no artigo 264, que confere uma prote-
riamente sociedade por ações, nos termos do artigo 251 da Lei das ção adicional aos acionistas minoritários, posto que é o controlador
S.A. O único acionista da subsidiária integral não pode ser uma pes- final quem decide a operação, já que prepondera nas assembleias das
soa natural, deve ser uma pessoa jurídica, não necessariamente com- sociedades envolvidas na operação.
panhia, posto que a lei utiliza a expressão "sociedade".

81 JOSÉ EDWALDO TAVARES BORBA. Direito Societário. 13 a edição, Rio de


79 JOSÉ LUIZ BULHÕES PEDREIRA, "Incorporação, Fusão e Cisão". In: Alfredo Lamy Janeiro: Renovar, 2012, p. 541.
Filho e José Luiz Bulhões Pedreira (Coord.). Direito das Companhias..., p.1.301. 82 Segundo o entendimento de CALIXTO SALOMÃO FILHO (A Sociedade
8o Sobre o regime tributário da incorporação de ações: RICARDO MARIZ DE Unipessoal. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 219), é obrigatório o funcionamento
BARROS DE OLIVEIRA. Incorporação de Ações no Direito Tributário. ia permanente do conselho fiscal na sociedade unipessoal, tendo em vista a
edição, São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 2.014. r!' tutela do interesse de terceiros.
88 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 89

Nada impede a existência de subsidiária integral de subsidiá- acionistas da sociedade incorporada não podem opor-se à operação, vi-
ria integral. Assim, por exemplo, se uma companhia adquire todas as sando a impedi-la, mas apenas exercer o seu direito de recesso. Após a
ações de outra, transformando-a em sua subsidiária integral, pode, aprovação da operação, a diretoria da sociedade incorporada subscre-
em seguida, proceder ao grupamento de todas as ações em uma ação, verá o aumento de capital da incorporadora com as ações dos acionis-
para simplificar suas operações". tas da incorporada, agindo como seu representante "ex lege" , nos termos
A subsidiária integral pode reverter sua situação, passando à con- do artigo 663 do Código Civil. Ocorre então, da mesma forma que na
dição de sociedade pluripessoal, mediante alienação por parte do con- incorporação de sociedade, uma substituição de ações: os acionistas da
trolador de suas ações para mais 1 (um) ou mais acionistas ou admissão sociedade incorporada, independentemente de sua vontade, recebem
de outros subscritores em aumento de capital. Os acionistas da con- ações da incorporadora, caracterizando-se uma modalidade de sub-ro-
troladora terão direito de preferência para adquirir ações do capital da gação real, já que há a substituição de uma coisa por outra. Como há
subsidiária integral, se a controladora resolver aliená-las, e para subscre- equivalência de valores — o acionista tem sua posição acionária trocada
ver as ações no aumento de capital da subsidiária integral (artigo 253 por outra de igual valor —, não se verifica alteração em seu patrimônio".
da Lei das S.A.). Trata-se da única hipótese da Lei das S.A. em que os O procedimento da incorporação de ações é o mesmo da incor-
acionistas de uma companhia — a controladora integral — têm direito poração de sociedade. A diferença é que, na incorporação de ações,
de preferência com relação às ações de outra — a subsidiária integral. os bens que integralizarão o aumento do capital da incorporadora são
Na incorporação de ações e na incorporação de sociedade exis- as ações de emissão da incorporada, enquanto na incorporação de so-
te um elemento comum: os acionistas da companhia incorporada per- ciedade é o patrimônio da incorporada, daí decorrendo a sucessão em
dem a titularidade de suas ações, recebendo, em contrapartida, ações da todos os seus direitos e obrigações.
incorporadora ou parte do pagamento em dinheiro. Há, porém, uma Da mesma forma que ocorre na incorporação de sociedade, na incor-
diferença fundamental entre ambas as operações: na incorporação de poração de ações as partes são livres para negociar os termos do protoco-
sociedades, a incorporada desaparece e seu patrimônio é inteiramente lo e da justificação, podendo convencionar as relações de substituição de
absorvido pela incorporadora, que a sucede em todos os seus direitos e ações e os critérios que serão utilizados para a avaliação dos patrimônios.
obrigações. Já na incorporação de ações, a sociedade cujas ações são in- Conforme o artigo 252, § 1., da Lei das S.A., a sociedade incor-
corporadas não é extinta, mantendo íntegra sua personalidade jurídica, poradora, quando aprova a operação, em sua assembleia geral, deve
inexistindo qualquer sucessão em seus direitos e obrigações. Assim, no autorizar o aumento do seu capital social, que será realizado com inte-
caso da incorporação de ações, não há normas de proteção aos credo- gralização em bens, consistentes nas ações da incorporada, e ratificar o
res, que permanecem tendo como devedora a mesma pessoa jurídica. perito que as avaliará. Tratando-se de aumento de capital com confe-
Vale dizer, na incorporação de ações, assim como na incorporação rência de bens, o quórum de deliberação da assembleia da incorporado-
de sociedade, os acionistas da sociedade cujas ações são incorporadas ra é o da maioria absoluta. Na sociedade cujas ações serão incorporadas
são compulsoriamente transferidos para a sociedade incorporadora. Os

83 NELSON EIZIRIK. A Lei das S/A Comentada..., v. IV, p. 335. 84 NELSON EIZIRIK. A Lei das S/A Comentada..., v. IV, p. 344-345.
go - M&A - REGIME SOCIETÁRIO
E CONTRAI UAL
NELSON EIZIRIK - 91

ao capital da incorporadora
, a operação deve ser aprovada com o voto
de pelo menos metade das ações com direito de voto (artigo 136) 33. REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA NA COMPANHIA ABERTA
Os bens — ações de emissão da incorporada — devem ser avali
a
dos, nos termos do artigo 8°, para que não sejam vertidos ao capital
3,3.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
por valor superior ao real, o que poderia "aguar" o capital. No pro-
Para os efeitos da Lei das S.A., conforme seu artigo 4°, consi-
tocolo de incorporação, devem ser informados, juntamente com as
dera-se aberta a companhia cujos valores mobiliários são admitidos
demais condições da operação, os critérios de avaliação das ações d
incorporada, conforme o artigo 224, inciso III, da Lei das S.A. a à negociação no mercado de valores mobiliários. Da mesma forma,
nos termos do artigo 22 da Lei n° 6.385/1976, "considera-se aberta
A avaliação das ações a serem incorporadas, cuja finalidad
eéa a companhia cujos valores mobiliários estejam admitidos à negociação na
apuração do montante do aumento de capital da incorporadora, não
bolsa ou no mercado de balcão".
se confunde com a fixação da relação de troca das ações. Da mesma
A companhia aberta, assim, é aquela que capta recursos junto ao
forma que ocorre na incorporação de sociedade, a Lei das S.A. con-
feriu liberdade aos administradore público investidor e tem seus valores negociados em Bolsa de Valores
s e sócios das sociedades envolvi-
das para escolher os critérios para a relação de troca, exigindo aenas ou no "mercado de balcão" (tradução literal de "over the counter mar-
p ket", termo utilizado nos Estados Unidos), aquele em que os títulos,
que sejam informados no protocolo (artigo 224, inciso I).
em princípio, são negociados fora de Bolsa, porém, com a interme-
Diversamente do que ocorre na incorporação de sociedade, em
diação de instituições financeiras.
que somente os acionistas da incorporada têm direito de recesso, na
incorporação de ações os acionistas das O mercado primário constitui uma das principais fontes de ca-
2 (duas) sociedades podem
exercê-lo, exceto no caso do titular de ações que atendam conjunta- pitalização das companhias abertas; nele, elas ofertam publicamente
mente aos critérios de dispersão e liquidez no mercado (artigo valores mobiliários de sua emissão, com a intermediação de insti-
§1°, 252, tuições financeiras atuando como "underwriters"86. Já no mercado
combinado com artigo 137, inciso II, da Lei das S.A
secundário, as negociações ocorrem entre os investidores, não ha-
Questão que tem causado discussão, da mesma forma ).
que ocor- vendo captação de recursos por parte das companhias, e sua função
re com a incorporação de sociedade, é a que se refere ao pagamento
consistindo na criação de liquidez para os valores mobiliários nele
em dinheiro como parte da relação de troca. Muitas vezes as com-
negociados. Sem a existência de um mercado secundário organiza-
panhias efetuam reorganizações societárias utilizando-se da combi-
do, os investidores teriam dificuldade de alienar os valores mobi-
nação de diferentes operações, que poderão,gleitimamte,
en di a nosso liários que detêm.
ver, acarretar o pagamento de parte da relação de
troca em nheiro". O § 1° do artigo 4° da Lei das S.A condiciona a negociação de
valores mobiliários no mercado de capitais ao prévio registro da com-

85 86 Sobre a natureza do contrato de"undeiwritng" e suas modalidades, ver: NELSON


A questão foi objeto de análise no item "3.2.2" deste Capítulo, que trata da EIZIRIK, ARIÁDNA B. GAAL, FLÁVIA PARENTE E MARCUS DE FREITAS HENRIQUES.
incorporação de sociedade.
Mercado de Capitais: Regime Jurídico. 4a edição, São Paulo: Quartier Latin,
2021, p. 252 e seguintes.
92 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 93

panhia emissora na CVM. Já o § 2° do mesmo artigo determina que


compra, permuta ou venda de valores mobiliárias emitidos pela com-
nenhuma distribuição pública de valores mobiliários será realizada no panhia e por sociedades controladas e controladoras; divulgação de
mercado de capitais sem o prévio registro na CVM. No mesmo sen- deliberações da assembleia geral e dos órgãos de administração, as-
tido, o artigo 21 da Lei n° 6.385/1976, em seu § 1°, estabelece que
sim como fatos relevantes ocorridos em seus negócioS; realização de
somente os valores mobiliários emitidos pelas companhias registra- reuniões anuais com acionistas e agentes do mercado de valores mo-
das na CVM poderão ser negociados na Bolsa de Valores ou no mer- biliários; e demais matérias previstas em lei.
cado de balcão.
Assim, a legislação confere à CVM amplos poderes para regu-
Nos termos do artigo 2° da Lei n° 6.385/1976, são considerados lamentar e fiscalizar as companhias abertas. Constatando infração
valores mobiliários, sujeitos à disciplina da CVM: as ações, debêntu- às normas legais e regulamentares, a CVM pode instaurar processo
res e bônus de subscrição; os cupões, direitos, recibos de subscrição e sancionador e aplicar as penalidades previstas no artigo 11 da Lei n°
certificados de desdobramento relativos aos valores mobiliários aci- 6.385/1976.
ma; os certificados de depósitos de valores mobiliários; as cédulas de
A disciplina das companhias abertas consiste principalmente na
debêntures; as cotas de fundos de investimento ou de clubes de in-
exigência de divulgação de informações, presumindo-se que os inves-
vestimento; as notas comerciais; os contratos futuros, de opções e ou-
tidores, uma vez devidamente informados, estarão protegidos. Não
tros derivativos; e quando ofertados publicamente, quaisquer outros
há um escrutínio do mérito dos valores mobiliários ofertados, nem
títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de
da companhia aberta emissora, não podendo a CVM negar o regis-
participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de
tro de uma companhia ou de uma oferta pública de venda de valores
prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do em-
mobiliários por entender que não é adequada ou oportuna. Cabe à
preendedor ou de terceiros.
CVM demandar a prestação das informações para que os investido-
Conforme o artigo 8° da Lei no 6.385/1976, compete à CVM res possam realizar tal exame de mérito.
regulamentar as matérias previstas nesta Lei e na Lei das S.A., fis-
A única hipótese de exame substantivo por parte da CVM, de
calizar as atividades do mercado de capitais, bem como as compa-
rara ocorrência na prática, é a de constituição de companhia aberta
nhias abertas.
por subscrição pública, na qual a Autarquia pode negar-lhe o regis-
Nos termos do artigo 22, § 1°, da mesma Lei, a CVM tem com- tro por considerar o empreendimento temerário ou seus fundadores
petência para expedir normas aplicáveis às companhias abertas sobre: inidôneos (artigo 82 da Lei das S.A.).
natureza e a periodicidade das informações que devem divulgar; rela-
As exigências com relação à prestação de informações (o cha-
tório de administração e demonstrações financeiras; compra de ações
mado "disclosure" na legislação inglesa e norte americana) deve visar
emitidas pela companhia e alienação das ações em tesouraria; padrões
a um nível ótimo, o que significa a maior proteção possível aos inves-
de contabilidade; relatórios e pareceres de auditores independentes;
tidores ao menor custo para as companhias abertas.
informações que devam ser prestadas por administradores, membros
O "disclosure" é implementado mediante normas de Direito
do conselho fiscal, acionistas controladores e minoritários relativas à
Societário e normas que regulam o mercado de capitais, o que decorre
NELSON EIZIRIK - 95
94 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL

do fato de a maior parte dos títulos publicamente ofertados e negocia- do exercício de direitos que lhes são inerentes (como são os bônus de
dos no mercado secundário serem emitidos por sociedades anônimas. subscrição de ações).
Para os acionistas das companhias abertas, a transparência das Os principais tópicos referentes à disciplina das operações de fu-
informações tende a reduzir o risco de atuação incompetente ou de- são, incorporação, cisão e incorporação de ações envolvendo compa-
sonesta dos administradores, assim como de utilização de informa- nhias abertas, dos quais nos ocuparemos no presente Capítulo, são
ções privilegiadas ("insider trading"), permitindo-lhes, ademais, saber os seguintes: regime da prestação de informações e operações entre
quem controla ou tem participação relevante no capital da sociedade companhias controladora e controlada ou sob controle comum.
e exercer com maior conhecimento o seu direito de voto.
Para os credores também é importante a transparência das infor- 3.3.2. REGIME DA PRESTAÇÃO DE INFORMAÇÕES ("D/SCLOSURE")
mações, uma vez que lhes permite melhor avaliar o risco de negociar
A obrigação de divulgação pública de informações quanto aos
com uma sociedade cuja única garantia é o seu próprio patrimônio,
fatos antecedentes e às consequências das operações de fusão, incor-
dado o princípio da responsabilidade limitada dos acionistas.
poração, cisão e incorporação de ações inibe condutas mais agressi-
Para o mercado de capitais, como um todo, a informação é tam- vas dos acionistas controladores, impedindo que ocultem vantagens
bém essencial, posto que o conhecimento da situação financeira da que poderiam estar obtendo com tais operações, em detrimento dos
companhia permitirá a adequada cotação de seus valores mobiliários. interesses dos acionistas minoritários e da companhias'.
Com vistas a adequar a quantidade de informações ao tipo de Conforme a Resolução CVM n° 80/2022, em seus artigos 15,
companhia aberta, a Lei das S.A., no § 3° do seu artigo 4°, acrescen- 16, 17 e 18, as informações prestadas pelos emissores de valores mo-
tado pela Lei n° 10.303/2001, permitiu à CVM classificar as compa- biliários devem ser verdadeiras, completas, consistentes e não indu-
nhias abertas em categorias, segundo as espécies e classes dos valores zir o investidor em erro; além disso, devem ser escritas em linguagem
mobiliários por elas emitidos e negociados publicamente. simples, clara, concisa e objetiva, divulgadas de forma abrangente e
A matéria é atualmente regulamentada pela Resolução CVM n° simultânea para todo o mercado, assim como úteis para os investido-
80/2022, que divide as companhias abertas em 2 (duas) categorias, res. Nos termos do artigo 19 da mesma Resolução, sempre que a in-
especificando as normas aplicáveis a cada uma delas. A categoria A, formação divulgada pelo emissor for válida por prazo determinável,
para a qual as normas sobre prestação de informações são mais ri- tal característica deve ser indicada. Ademais, o artigo 20 dispõe que
gorosas, é constituída pelas companhias abertas que podem negociar as informações factuais devem ser diferenciadas de interpretações,
publicamente quaisquer valores mobiliários de sua emissão em mer- opiniões, projeções e estimativas.
cados organizados. Já na categoria B estão as companhias abertas que A Lei das S.A., em seu artigo 157, § 4°, estabelece para os ad-
podem negociar quaisquer valores mobiliários, exceto ações e certi- ministradores de companhia aberta a obrigação de comunicar ime-
ficados de ações ou valores mobiliários que confiram ao seu titular o
direito de adquirir ações ou certificados de ações em consequência A propósito, ver: MARCELO F. TRINDADE, "O Papel da CVM e o Mercado
de Capitais no Brasil". In: Jairo Saddi (Org.). Fusões e Aquisições: Aspectos
de sua conversão (como são as debêntures conversíveis em ações) ou Jurídicos e Econômicos. São Paulo:10B/IBMECLaw, 2002, p. 322.
96 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL
NELSON EIZIRIK - 97

diatamente à Bolsa e divulgar pela imprensa "qualquer deliberação d deve ser divulgada; e (iii) quando uma informação relevante pode le-
a
assembleia geral ou dos órgãos de administração da companhia, ou fato re- gitimamente deixar de ser divulgada.
levante ocorrido nos seus negócios, que possa influir, de modo ponderável,
A Lei das S.A., em seu artigo 157, § 4°, seguindo o padrão nor-
na decisão dos investidores do mercado de vender ou comprar valores ?no-
define como fato rele-
biliários emitidos pela companhia". mativo norte-americano sobre "material face,
vante, conforme acima mencionado, aquele que pode influir, de modo
O objetivo da norma é permitir que todos tenham acesso às infor- ponderável, na decisão dos investidores de comprar ou vender valores
mações relevantes ao mesmo tempo, com vistas a maior eficiência no
mobiliários emitidos pela companhia".
processo de formação dos preços. Além disso, quanto mais rápida for a
Trata-se de norma flexível, devendo sua aplicação ser avaliada
sua divulgação, menor será a possibilidade de sua utilização por parte
dos "insiders", diante de cada caso.
evitando-se a assimetria de acesso e uso das informações.
Uma informação é considerada relevante se a sua divulgação tiver
Há 2 (duas) ordens de informações que devem ser comunicadas
o potencial de impactar a cotação das ações no mercado. O adminis-
à CVM, à Bolsa de Valores e divulgadas pela imprensa: (i) delibera-
trador deve avaliar a "potência" do impacto, ou seja, a probabilidade
ções das assembleias gerais ou dos órgãos de administração"; e (ii)
de que tal fato, uma vez divulgado, influencie a decisão do investidor,
fatos relevantes ocorridos nos negócios da companhia, como tais en-
uma vez que o real impacto somente será conhecido após a divulga-
tendidos aqueles que podem influir, de modo ponderável, na decisão
ção da informação9°.
dos investidores de comprar, vender ou manter os valores mobiliários
de emissão da companhia. Cabe ao administrador, diante do caso concreto, perguntar-se:
se eu fosse um investidor médio levaria em conta tal fato para tomar
Tratando-se de fatos relevantes, existem 3 (três) questões bási-
uma decisão de investimento? Uma vez divulgado o fato, poderá ter
cas referentes à necessidade de sua divulgação: (i) quando uma infor-
algum impacto sobre a cotação das ações? Sendo afirmativa qualquer
mação é relevante; (ii) em que momento a informação, se relevante,

89 Nos termos do artigo 2° da Resolução CVM n° 44/2021, considera-se relevante


88 A Lei n° 13.818/2 019, em seu "qualquer decisão de acionista controlador, deliberação da assembleia geral ou
artigo 1°, deu nova redação ao artigo 289 da dos órgãos de administração da companhia aberta, ou qualquer outro ato ou
Lei das S.A., que passou a ser a seguinte:
"Art. 289. As publicações ordenadas fato de caráter político-administrativo, técnico, negocia! ou econômico-financeiro
por esta Lei obedecerão às seguintes condições: I - deverão ser efetuadas em ocorrido ou relacionado aos seus negócios que posso influir de modo ponderável:
jornal de grande circulação editado na localidade em que esteja situada a sede I - na cotação dos valores mobiliários de emissão da companhia aberta ou a
da companhia, de forma resumida e com divulgação simultânea da íntegra dos eles referenciados; II - na decisão dos investidores de comprar, vender ou manter
documentos no página do mesmo jornal na internet, que deverá providenciar aqueles valores mobiliários; ou III - na decisão dos investidores de exercer
certificação digital da autenticidade dos documentos mantidos na página própria quaisquer direitos inerentes à condição de titular de valores mobiliários emitidos
emitida por autoridade certificadora credenciada no âmbito da Infraestrutura de pela companhia ou a eles referenciados".
Chaves Públicas Brasileiras (/CP-Brasil); II - no caso de demonstrações financeiras,
90 Assim decidiu a CVM no Processo Administrativo Sancionador n° RJ
a publicação deforma resumida deverá conter, no mínimo, em comparação com
2006/4776, Rel. Dir. Pedro Oliva Marcilio de Souza, j. em 17.01.2007, ocasião
os dados do exercício social anterior, informações ou valores globais relativos a
em que entendeu-se que o administrador deve fazer um juízo de valor sobre a
cada grupo e a respectiva classificação de contas ou registros, assim como extratos
probabilidade de que determinado fato, uma vez divulgado, cause impacto na
das informações relevantes contempladas nas notas explicativos e nos pareceres
decisão dos investidores, de sorte que a sua análise deve centrar-se na "potência"
dos auditores independentes e do conselho fiscal, se houver".
do impacto, não sobre o real impacto, que só conhecerá após a divulgação.
98 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 99

das respostas, ou havendo dúvidas, prevalece o princípio da transpa- mediante uma série de atos previstos na Lei das S.A., podendo trans-
rência, devendo proceder-se à divulgação dos fatos9'. correr muitos meses ou até mais de 1 (um) ano entre as negociações
A Resolução CVM n° 44/2021, em seu artigo 2°, parágrafo único, preliminares e assinatura do protocolo e o seu encaminhamento para
estabelece uma série de exemplos de fatos relevantes, entre os quais as aprovação da assembleia geral. O princípio é de que a divulgação seja
operações de fusão, cisão e incorporação da companhia ou de compa- oportuna, para evitar a assimetria de informações e reduzir a possibi-
nhias ligadas (controladora, controlada ou coligada).Ta1 não significa lidade de "insider trading" . Assim, tão logo a administração conclua
que toda e qualquer operação da espécie deva ser objeto de fato rele- estar diante de um fato relevante, cabe a sua divulgação.
vante, cabendo ao administrador avaliar se de fato poderá influenciar Registre-se que, nos termos do artigo 13, inciso V, da Resolução
a decisão do investidor médio. Assim, por exemplo, uma incorpora- CVM n° 44/2021, consideram-se relevantes, a partir do momento em
ção, por parte de uma companhia de grande porte, de outra, de por- que iniciados estudos ou análises, as informações sobre, dentre outras,
te mínimo, não acarretará a necessidade de sua divulgação, por não operações de incorporação, cisão total ou parcial, fusão, transformação ou
se caracterizar um fato relevante92. A Resolução não menciona a in- qualquer outra forma de reorganização societária ou combinação de ne-
corporação de ações, que pode constituir um fato relevante, a depen- gócios. Contudo, tal presunção, de acordo com o § 1° do mesmo artigo,
der do impacto que causará na companhia aberta incorporadora das tem como finalidade a caracterização da relevância da informação para
ações ou cujas ações são incorporadas. a configuração do ilícito de utilização de informação relevante ainda não
A segunda questão refere-se ao momento em que deve ser divul- divulgada ("insider trading"). Ou seja, iniciados tais estudos ou análises,
gado o fato relevante, de especial relevância em operações de fusão, a companhia não é obrigada a divulgá-los, mas não pode tal informa-
incorporação, cisão ou incorporação de ações, que são implementadas ção ser utilizada para a negociação com valores mobiliários, sob pena de
presumir-se, até prova em contrário, o ilícito por parte de quem a usou.
91 NELSON EIZIRIK. A Lei das S/A Comentada. v.I11, 3a edição, São Paulo: Quartier
Latin, 2021, p. 190. Nem sempre é fácil a conclusão sobre o momento em que deter-
92 A CVM já decidiu que a divulgação de toda e qualquer informação como
fato relevante pode confundir o mercado, cabendo aos administradores minada negociação de reestruturação societária já apresenta um mí-
analisarem sua relevância para a decisão dos investidores. Assim, no Processo nimo de "materialidade", capaz de caracterizá-la como fato relevante
Administrativo Sancionador CVM n° SP2o13/12, Rel. Dir. Luciana Dias, j. em
18.08.2015, foi ressaltado que: "Justamente para preservar o caráter excepcional e que deve ser divulgado.
e de destaque das informações classificadas como 'relevantes' para fins desse
dispositivo, bem como a fim de assegurar que todas as informações divulgadas
A partir de decisões dos tribunais norte-americanos estabele-
sejam claras e não induzam os investidores a erro, é extremamente importante que ceu-se um "teste de relevância", com base em juízo de probabilida-
a administração e, em especial, o DRI de companhias abertas ponderem sobre
o formato a ser utilizado para a divulgação de informações. Nesse sentido, uma de e magnitude, que considera os seguintes fatores: probabilidade de
informação não deve ser divulgada como relevante quando a administração não chegar-se a um acordo; existência de decisão dos órgãos de adminis-
a considera como tal. Ao mesmo tempo, uma vez tomada a decisão de divulgar
um determinado fato relevante, transmite-se ao mercado a mensagem de que o tração aprovando a operação ou de relatórios ou pareceres elabora-
administração da companhia refletiu sobre aquela informação e concluiu que ela dos por consultores externos; e possível impacto da operação sobre
seria efetivamente relevante. A política adotada por certas companhias de divulgar
qualquer informação como fato relevante'causa mais desinformação ao mercado os negócios da companhia e a cotação de suas ações. Assim, se é pro-
que informação, além de gerar situações como as que ocorreram no presente caso.
vável que a operação será concluída e que ela trará um impacto sig-
Por isso, esse 'conservadorismo' deve ser evitado".
700 -
M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL
NELSON EIZIRIK - 101

nificativo sobre os negócios da companhia, já existe uma informaçã principais beneficios, custos e riscos da operação; (iv) relação de substi-
o
relevante. Mesmo que as negociações ainda estejam em curso, os ad-
tuição das ações; (v) critério de fixação da relação de substituição; (vi)
ministradores podem entender que cabe a sua divulgação, na etapa principais elementos ativos e passivos que formarão cada parcela do
em que se encontram".
patrimônio, em caso de cisão; (vii) se a operação foi ou será submetida
Nos termos do § 5° do artigo 157 da Lei das S.A., os administra- à aprovação de autoridades brasileiras ou estrangeiras; (viii) nas opera-
dores podem optar pelo sigilo sobre o fato relevante, desde que tal di- ções envolvendo sociedades controladoras, controladas ou sociedades
vulgação possa pôr em risco interesse legítimo da companhia. Assim, sob controle comum, a relação de substituição de ações calculada de
se uma negociação envolvendo a possível incorporação de uma com- acordo com o artigo 264 da Lei das S.A.; (ix) aplicabilidade do direito
panhia aberta por outra (aberta ou fechada) ainda estiver em sua fase de recesso e valor do reembolso; e (x) outras informações relevantes.
preliminar, podendo sua divulgação prejudicar a operação, ou desper- Nos termos do artigo 4° da Resolução CVM n° 78/2022, na hi-
tar o interesse de concorrentes em impedi-la, é legítima a decisão dos pótese de o acionista controlador ou a companhia divulgar ao mercado
administradores e/ou acionistas de não divulgá-la94.
a relação de substituição proposta ou o critério para sua fixação que
O sigilo, porém, não poderá ser mantido caso a informação es- ainda estejam sujeitos a alterações, as seguintes informações devem
cape ao controle da companhia ou ocorra oscilação atípica na cotação ser fornecidas: (i) as razões que levaram a fazer a divulgação naquele
das ações da companhia ou na quantidade negociada no mercado". momento; (ii) o estágio em que se encontram as negociações; (iii) as
A regulamentação da CVM estabelece um elenco de informa- circunstâncias em que a relação de substituição ou o critério divulga-
ções que devem ser prestadas por ocasião de operação de fusão, in- do ainda podem ser alterados; e (iv) em se tratando de proposta do
corporação, cisão ou incorporação de ações em que estiver envolvida acionista controlador ainda não avaliada pela administração da com-
companhia aberta. panhia: (a) se a proposta é vinculante; (b) o prazo para aceitação, se
A Resolução CVM n° 78/2 houver; (c) os demais termos e condições relevantes; (d) as medidas
022, que dispõe sobre operações de
reorganização societária que envolvam pelo menos um emissor de va- que a administração pretende tomar para avaliar a proposta; e (e) a data
lores mobiliários registrado na categoria A, determina, em seu artigo prevista para a conclusão das negociações, se for possível estimá-la.
3°, que, caso seja necessária a divulgação de fato relevante, este deve- De acordo com o artigo 5° da Resolução CVM n° 78/2022, os
rá conter, no mínimo, o disposto no Anexo A à Resolução. administradores da companhia aberta envolvidos na negociação da
O Anexo A à Resolução CVM n° 78/2 operação devem agir com cuidado e diligência, a fim de verificar se
022 estabelece que, no ins-
trumento que divulga fato relevante, devem constar: (i) identificação todas as informações prestadas pelas demais sociedades envolvidas
das sociedades envolvidas na operação e descrição sucinta das ativida- observam a regulamentação aplicável.
des por elas desempenhadas; (ii) descrição e propósito da operação; (iii) O artigo 6° da Resolução CVM n° 78/2022 estabelece que, para
os efeitos da operação, as sociedades envolvidas devem divulgar de-
93
NELSON EIZIRIK. A Lei das S/A Comentada..., v. III, p.194. monstrações financeiras, cuja data base: (i) seja a mesma para todas
94 Artigo 6° da Resolução CVM n° 44/2021.
95
Artigo 6°, parágrafo único, da Resolução CVM n°
44/2021,
102 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK -103

as sociedades envolvidas; e (ii) não seja anterior a 180 (cento e oiten-


ta) dias da data da assembleia que deliberará sobre a operação96-97 Anexo H. De acordo com o item 9 deste documento, na hipótese de
. incorporação, incorporação de ações ou fusão envolvendo sociedades
Nos termos do §1° do referido artigo, ainda que algumas das so- controladora e controlada ou sob o controle comum, é necessário (i)
ciedades envolvidas na operação não sejam sociedades anônimas nem calcular as relações de substituição das ações com base no valor do
estejam sujeitas às normas expedidas pela CVM, as referidas demons- patrimônio líquido a preços de mercado ou outro critério aceito pela
trações financeiras devem ser: (i) elaboradas de acordo com a Lei das CVM; (ii) informar se as relações de substituição das ações previstas
S.A. e com as normas da CVM; e (ii) auditadas por auditor indepen- no protocolo da operação são menos vantajosas que as calculadas em
dente registrado na CVM.
conformormidade com o item "ii"; e (iii) informar o valor do reem-
Por sua vez, a Resolução CVM no 80/2022, que dispõe sobre o bolso calculado com base no valor do patrimônio líquido a preços de
registro e as informações periódicas e eventuais dos emissores de va- mercado ou outro critério aceito pela CVIVI.
lores mobiliários admitidos à negociação em mercados regulamen- Finalmente, o artigo 22 da Resolução CVM n° 81/2022 estabelece
tados de valores mobiliários, prevê, em seu seu artigo 25, §§ 3° e 4°, que sempre que a assembleia geral for convocada para deliberar sobre fu-
que o emissor registrado na categoria A ou B deve atualizar os cam- são, cisão, incorporação e incorporação de ações envolvendo pelo menos
pos correspondentes do formulário de referência da companhia, em um emissor de valores mobiliários registrado na categoria A, a compa-
até 7 (sete) dias úteis contados da ocorrência de incorporação, incor- nhia deve fornecer, no mínimo, as informações indicadas em seu Anexo 1.
poração de ações, fusão ou cisão".
Dentre as informações que devem ser disponibilizadas, destacam-
A Resolução CVM n° 81/2
022, que trata das assembleias de -se as seguintes: (i) o protocolo e a justificação da operação, que pode-
acionistas, debenturistas e de titulares de notas promissórias e notas rão constar em documento único; (ii) descrição da operação; (iii) planos
comerciais, determina, em seu artigo 21, que sempre que a matéria para condução dos negócios sociais; (iv) análise de aspectos da operação,
deliberada em assembleia geral der ensejo a direito de recesso, a com- como, por exemplo, principais beneficios esperados; custos; fatores de ris-
panhia deve fornecer, no mínimo, as informações constantes do seu co; caso se trate de transação com parte relacionada, eventuais alterna-
96 tivas que poderiam ter sido utilizadas para atingir os mesmos objetivos,
Conforme consta do artigo 6°, §3°, da Resolução CVM n° 78/
2 0022, o prazo de
i8o (cento e oitenta) dias pode ser estendido para até36o (trezentos e sessenta) indicando as razões pelas quais essas alternativas foram descartadas; re-
dias, a critério dos administradores das companhias abertas envolvidas,
desde que: (i) a situação econômico-financeira das sociedades envolvidas na lação de substituição; (v) cópia das atas de todas as reuniões do conselho
operação não tenha se alterado de maneira relevante após a data base das de administração, conselho fiscal e comitês especiais em que a operação
demonstrações; e (ii) os administradores da sociedade envolvida na operação
responsáveis pela elaboração das demonstrações financeiras cuja data base foi discutida; (vi) cópia de estudos, apresentações, relatórios, opiniões,
ultrapasse i8o (cento e oitenta) dias firmem declaração, a ser divulgada junto
com as demonstrações financeiras. pareceres ou laudos de avaliação das companhias envolvidas na opera-
97
Nos termos do artigo 6°, § 2°, da Resolução CVM n° 78/2 ção postos à disposição do acionista controlador em qualquer etapa da
022, as companhias
abertas podem utilizar as demonstrações financeiras de final de exercício operação; (vii) identificação de eventuais conflitos de interesse entre as
e os formulários de informações trimestrais regularmente exigidos para
cumprimento de suas obrigações periódicas junto à CVM. instituições financeiras, empresas e os profissionais que tenham elabo-
98
O formulário de referência é o documento eletrônico cujo conteúdo reflete rado os documentos mencionados no item "vi" e as sociedades envolvi-
o Anexo C da Resolução CVM n° 80/2022.
104 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK -105

das na operação; (viii) projetos de estatuto ou alterações estatutárias das com uma controlada. A primeira — e talvez principal razão — é que em
sociedades resultantes da operação; (ix) demonstrações financeiras usa- qualquer operação envolvendo partes relacionadas há um substancial
das para os fins da operação; e (x) demonstrações financeiras pro forma risco de litígio iniciado pelos acionistas minoritários da "companhia-
elaboradas para os fins da operação, nos termos da norma específica99. -alvo", que nunca deve ser negligenciado. A operação deve não só ser
Todos os documentos e informações pertinentes à matéria a ser justa para os minoritários como também objeto de adequada divul-
debatida na assembleia geral extraordinária deverão ser postos à dis- gação". Entre nós, da mesma forma, muitos casos levados à CVM
posição dos acionistas. Nesse sentido, além dos documentos já men- ou a tribunais arbitrais por acionistas minoritários envolvem opera-
cionados, devem ser divulgadas todas as informações relevantes para ções entre partes relacionadas.
que os acionistas possam tomar uma decisão informada, tais como (i) A fixação das relações de troca em operações de fusão, incor-
eventuais acordos de não competição; (ii) propostas de celebração de poração e incorporação de ações, ou seja, do número de novas ações
contratos de qualquer natureza que tenham administradores ou acio- emitidas pela companhia incorporadora que serão atribuídas a cada
nistas da companhia como uma das partes e que guardem qualquer acionista da fusionada ou incorporada constitui um dos aspectos mais
relação com a combinação de negócios; e (iii) proposta de modifica- relevantes da operação'°'. É pela determinação do valor comparativo
ção da remuneração de administradores no contexto da reestrutura- entre as ações da incorporada e da incorporadora que se fará a subs-
ção societária. tituição dos títulos detidos pelos acionistas da sociedade incorporada.
A Lei das S.A., em seu artigo 264, estabelece uma proteção adi-
cional aos acionistas minoritários em tal modalidade de operação, nos
3.3.3. OPERAÇÕES ENTRE COMPANHIA CONTROLADORA E
termos de seu artigo 264, consistente na obrigatoriedade de apresen-
CONTROLADA OU ENTRE COMPANHIAS SOB CONTROLE COMUM
tação, no protocolo da operação, do cálculo das relações de troca com
Tais operações, também denominadas transações entre "partes base no critério de patrimônio líquido a preços de mercado ou outro
relacionadas", demandam especial atenção, uma vez que a decisão fi- expressamente aceito pela CV-Mm.
nal cabe ao mesmo acionista controlador, direto ou indireto. Assim,
too JAMES C. FR E U N D. Anatomy of a Merger: Strategies and Techniques for
por exemplo, caso a companhia A, controlada por Fulano, vá incorpo- Negotiating Corporate Acquisitions. New York, Law Journal Press, 1975,
rar a sua controlada, companhia B, Fulano terá o voto decisivo tanto reedição de 2004, p. 468 e seguintes.
101 Doravante mencionaremos companhia incorporadora e incorporada, embora
na companhia A, diretamente, como na companhia B, indiretamen- os mesmos princípios apliquem-se na fusão, posto que esta última constitui
te, exercido pela companhia A, sua controlada. operação menos comum na prática dos negócios.
102 Nos termos do artigo 8° da Resolução CVM n° 78/2022, os laudos de avaliação
Conforme já foi observado por um experiente advogado nor- elaborados para os fins do artigo 264 da Lei das S.A. podem utilizar um dos
seguintes critérios: (i) valor de patrimônio líquido a preços de mercado; ou (ii)
te-americano, em trabalho clássico, realizar uma operação de M&A
fluxo de caixa descontado. Este último critério somente pode ser utilizado se
com uma companhia não controlada é, muitas vezes, mais fácil do que não tiver sido usado como critério determinante para estabelecera relação de
substituição proposta. Ademais, a CVM pode autorizar, caso a caso e desde que
99 Sobre as demonstrações financeiras pro forma, ver (i) artigo 7° da Resolução os pedidos sejam devidamente justificados, outros critérios para elaboração
CVM n° 78/2022; e (ii) Resolução CVM n° 151/2022, que ratifica a Orientação dos laudos de avaliação exigidos para os fins do referido artigo.
Técnica OCPC o6 do Comitê de Pronunciamentos Contábeis.
106 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK -107

Tal avaliação constitui uma medida adicional ao procedimento que não o valor dos patrimônios líquidos a preços de mercado. No
normal de incorporação, uma vez que a Lei das S.A. não estabelece caso de estarem envolvidas companhias abertas com ações negocia-
critérios para a avaliação das companhias envolvidas na operação. As das na Bolsa e dotadas de liquidez, é possível que a operação seja rea-
sociedades, quando forem partes relacionadas, podem optar pela rela- lizada com base na cotação das ações em Bolsa.
ção de troca com base em qualquer critério, desde que informem aos Também são aplicáveis às operações envolvendo companhias
acionistas qual seria a relação de troca se apurada com base no valor abertas que sejam partes relacionadas os Pareceres de Orientação da
patrimonial a preços de mercado, para que eles possam aferir a equi- CVM nos 34/2006 e 35/2008.
dade da relação de troca efetivamente praticada103. O Parecer de Orientação n° 34/2006 foi editado pelo fato de te-
Ademais, a informação adicional requerida no caput do artigo rem ocorrido, à época, operações em que, com fundamento no artigo
264 tem ainda outro objetivo: servir como critério alternativo para o 254-A, que admite a existência de um "valor de mercado" ao contro-
cálculo do valor de reembolso devido aos acionistas dissidentes, no le acionário, conferia-se ao acionista controlador uma relação de tro-
caso de a relação de substituição estabelecida no protocolo ser menos ca mais vantajosa. Ou seja, os acionistas controladores da sociedade
vantajosa do que aquela que decorreria da avaliação das companhias incorporada recebiam um número maior de ações da incorporadora
efetuada com base nos patrimônios líquidos a preços de mercado. do que as atribuídas aos minoritários.
O artigo 264 aplica-se tanto às operações envolvendo compa- Mediante tal Parecer, a CVM admitiu que o controlador votasse
nhias abertas como fechadas, desde que sejam partes relacionadas104 . na aprovação da operação desde que não se atribuísse valores diver-
Tratando-se de companhias abertas, porém, a avaliação dos 2 (dois) sos às ações de uma mesma companhia envolvida na operação. Caso
patrimônios pode ser com base em outro critério, aceito pela CVM, o controlador tivesse uma relação de troca mais favorecida ficaria ca-
103 O Colegiado da CVM, no Processo Administrativo CVM n° RU011/4880, Rel.
racterizado o benefício particular, previsto no § 1° do artigo 115 da
Dir. Eli Loria, j. em 31.05.2011, decidiu pela dispensa de laudos a preço de Lei das S.A., daí decorrendo o seu impedimento de voto.
mercado nos termos do artigo 264 da Lei das S.A sob o argumento de que,
no caso, a companhia não tinha acionistas minoritários a serem tutelados. Ainda que críticas tivessem sido apresentadas ao Parecer de
No mesmo sentido, ver Processo CVM n° 'U2015/9097, apreciado pelo
Orientação n° 34/2006105, a partir de sua edição não mais ocorreram
Colegiado em 06.10.2015, em que reconheceu-se a possibilidade de se
conceder tratamento diferenciado às situações em que: (i) inexistam acionistas operações com partes relacionadas nas quais o acionista controlador
minoritários na incorporada; (ii) inexistam interesses de acionistas minoritários
da incorporadora que necessitem de proteção; e (iii) exista um desequilíbrio
tivesse uma relação de troca mais favorecida106 .
evidente entre os custos e de se observar integralmente as regras constantes
na legislação societária e os benefícios oriundos de seu cumprimento. Sobre 105 Sobre o tema, ver (i) PAULO CEZARARAGÃO,"0 Parecerde Orientação 35/2008
O mesmo assunto, ver: (i) Processo SEI n° 19957.007794/2016-37, ReI. SEP, j. da CVM e a Incorporação de Companhia Fechada por sua Controladora
em 17.01.2017; e (ii) Processo SEI n° 19957.006770/2020-47, ReI. SEP, j. em Companhia Aberta". In: Marcelo Vieira Von Adamek (Coord.). Temas de Direito
13.10.2020; disponíveis em: <www.cvm.gov.br>. Societário e Empresarial Contemporâneos. São Paulo: Malheiros, 2011, p.
104 Registre-se que, em reunião de 15.02.2018, no âmbito do Processo CVM 522-534; e (ii) LUIZ LEONARDO CANTIDIANO, "Incorporação de Sociedades
n° 19957.011351/2017-211, por unanimidade, o Colegiado manifestou ser e Incorporação de Ações". In: Rodrigo R. Monteiro de Castro e Luís André N.
inaplicável o artigo 264 da Lei das S.A. em operações de incorporação de de Moura Azevedo (Coord.). Poder de Controle e Outros Temas de Direito
controlada subsidiária integral por controladora companhia aberta, uma vez Societário e Mercado de Capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p.136-156.
que, inexistindo acionistas não controladores, não estaria presente a condição 106 Segundo o item 6.3.1, "e", do Código das Melhores Práticas de Governança
fundamental prevista no dispositivo. Corporativa do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa, "reorganizações
108 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NEI.SON EIZIRIK -109

Posteriormente, a CVM editou o Parecer de Orientação no tes; não administradores da companhia, todos independentes e com
35/2008, que dirige sua atenção aos administradores das companhias notória capacidade técnica, desde que tal comitê esteja previsto no esta-
envolvidas, para que adotem determinados procedimentos durante as tuto, para os fins do artigo 160 da Lei das S.A.; ou (iii) um administra-
negociações entre partes relacionadas visando a garantir que as rela- dor escolhido pela maioria dos membros do conselho de administração,
ções de troca e as demais condições da operação resultem de tratativas um conselheiro eleito pelos acionistas não controladores e um terceiro,
efetivas e independentes para que fique demonstrada o atendimento administrador ou não, escolhido pelos dois outros membros.
a seus deveres fiduciários107. O funcionamento dos comitês, após um início um tanto claudi-
Procedendo na forma indicada no Parecer, os administradores cante, passou a evoluir de forma satisfatória, colaborando para redu-
estariam atendendo aos deveres que lhes são impostos pelos artigos zir os conflitos de interesses e proteger os acionistas minoritários em
153, 154 e 155 da Lei das S.A.. operações de reestruturação societária, com uma participação ativa, não
Os administradores devem adotar um dos seguintes procedi- limitada a meramente chancelar uma relação de troca previamente esta-
mentos: (i) constituição de um comitê, formado, em sua maioria, por belecida entre os órgãos de administração das companhias envolvidas".
membros independentes, para negociar a operação e submeter suas Não cabe à CV1VI qualquer tipo de ingerência nas atividades de-
recomendações ao conselho de administração; ou (ii) subordinar a senvolvidas pelos comitês, não tendo como julgar o quanto intenso e
operação à aprovação dos acionistas não controladores, inclusive os profícuo foi o processo de negociação das relações de troca das ações
titulares de ações sem direito de voto ou com voto restrito" e das demais condições da operação. Caso entenda que tais comitês,
O comitê independente, conforme recomendado pela CVM, deve cuja obrigação é de meio, não de fim, não funcionaram de forma in-
seguir, em sua composição, uma das seguintes alternativas: (i) exclusi- dependente ou que os órgãos de administração não seguiram suas re-
vamente administradores da companhia, em sua maioria independen- comendações, pode, eventualmente, instaurar processo sancionador
contra os administradores da companhia, por infração aos seus deve-
societárias envolvendo partes relacionadas devem assegurar tratamento equitativo
para todos os sócios" (6a edição, São Paulo: IBGC, 2023).
res de diligência e de lealdade.
107 Ver a propósito o Memorando elaborado pelo então Diretor da CVM Marcos Na prática, diversas operações têm adotado o seguinte procedimento:
Barbosa Pinto, em 30.05.2008, que fundamentou a decisão da autarquia de
editar o Parecer, conforme decisão do Colegiado de 02.06.2008. o acionista controlador negocia as condições da operação com os minori-
to8 De acordo com o item 7.4 do Ofício Circular/Anual-2024-CVM/SEP,"é recomen- tários com maior participação acionária e depois não vota na assembleia
dável que as deliberações e negociações relativas à operação sejam devidamente
documentadas, dentre outros procedimentos, por meio da elaboração de atas de geral que a aprova, o que pode ser mais rápido e acarretar menores cus-
todas as reuniões, de modo a subsidiareventual análise do cumprimento dos deveres tos do que aqueles envolvidos na criação de comitês, que, em geral, de-
fiduciários previstos em Lei pelos membros do conselho de administração e do comitê
independente. Não é recomendável a divulgação de qualquer relação de troca que mandam a contratação de assessores jurídicos e financeiros.
a administração ou o acionista controlador entenda aplicável à operação preten-
dida antes do término dos trabalhos dos comitês independentes, uma vez que essa 109 Nesse sentido, a CVM jáse manifestou, em Comunicado ao Mercado de27.os.zoog,
divulgação em momento anterior pode, inclusive, influenciara cotação das ações no sentido de que uma das recomendações contidas no referido Parecer de
de emissão das companhias envolvidas até a conclusão das negociações. Nos casos Orientação n° 35/2008 diz respeito à constituição de comitê independente para
em que isso ainda assim ocorra, devem ser divulgadas as informações previstas no efetivamente negociar as condições da operação, de forma que sua constituição
artigo 4° da Resolução CVM n°78/22". Disponível em: <https://conteudo.cvm. para mera confirmação de relação de troca previamente estabelecida desvirtua as
gov.br/legislacao/oficios-circulares/sep/oc-anual-sep-zo24.html>. finalidades de tal órgão.
NELSON EIZIRIK - 111

3.4. AQUISIÇÃO DE CONTROLE MEDIANTE


OFERTA PÚBLICA

3.4.1. FUNÇÕES E CARACTERÍSTICAS

Uma das formas de aquisição do controle de companhia aber-


ta se dá mediante oferta pública de aquisição ("OPA"), disciplinada
pela Seção VII da Lei das S.A. (artigos 257 a 263) e pela Resolução
CVM n° 85/2022.
A OPA constitui uma declaração unilateral de vontade, por meio
da qual o proponente (ofertante) manifesta seu compromisso, válido
por determinado prazo, de adquirir um bloco de ações, por um preço

fixo e mediante certas cláusulas e condições110.


Mediante a OPA, o ofertante formula uma proposta, dirigida à
totalidade dos acionistas da companhia, de compra de suas ações por
um valor determinado. Tratando-se de uma proposta de celebração
de negócio jurídico, a oferta produz efeitos vinculantes para o ofer-
tante, o qual não pode revogá-la ou alterá-la unilateralmente.
Aplica-se à OPA o disposto nos artigos 427 e 429 do Código
Civil, nos termos dos quais a oferta dirigida ao público, desde que con-
tenha os requisitos essenciais do contrato, equivale a uma proposta,
obrigando o proponente, salvo se o contrário resultar dos termos da
própria oferta, da natureza do negócio ou das circunstâncias do casou'.
Não se trata de modalidade muito comum de aquisição de con-
trole entre nós, pelo fato de ainda não existirem muitas companhias
abertas nacionais sem acionista controlador, em que o capital acioná-
rio está pulverizado no mercado.

110 MODESTO CARVALHOSA. Oferta Pública de Aquisição de Ações. Rio de


Janeiro: IBMEC, 1 979, P. 24.
111 NELSON EIZIRIK. A Lei das S/A Comentada. v. IV, 3a edição, São Paulo: Quartier
Latin, 2021, p. 437.
112 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 113

No Brasil, ainda que nos últimos anos tenha aumentado o nú- mas não aquelas constantes dos artigos 257 a 263 da Lei das S.A., que
mero de companhias sem acionista controlador definido, na maioria disciplinam apenas as ofertas voluntárias para aquisição do controle13.
das companhias abertas ainda pode ser identificada a figura do con- O procedimento da OPA visa a conferir a todos os acionistas de
trolador, seja majoritário, seja minoritáriom. determinada classe e espécie de ações de companhia aberta a possibi-
Ademais, em muitos casos, existe o controle compartilhado, lidade de aliená-las pelo mesmo preço e nas mesmas condições. Nos
exercido por um grupo de acionistas que, atuando em conjunto, termos do artigo 4°, incisos I e II, da Resolução CVM n° 85/2022, a
decidem os rumos da companhia, preponderam nas assembleias OPA deve ser sempre dirigida indistintamente aos titulares de ações
gerais e elegem a maioria dos administradores. Na hipótese de da mesma espécie e classe, assegurado o rateio, tratando-se de OPA
controle minoritário, como veremos mais adiante, seguidamente parcial; e deve ser realizada de maneira a assegurar tratamento equi-
existem cláusulas estatutárias que dificultam a aquisição do con- tativo aos destinatários, fornecendo-lhes todas as informações ne-
trole da companhia. cessárias sobre a oferta, o ofertante e a companhia objeto, para que
A OPA para aquisição do controle, diversamente daquela decor- possam tomar uma decisão refletida e independente quanto à sua
rente da alienação do controle regulada no artigo 254-A da Lei das aceitação ou não.
S.A., constitui uma oferta voluntária, pela qual o interessado pode Qual a vantagem de utilizar-se a OPA ao invés de adquirir-se
chegar à posição de acionista controlador da "companhia-alvo". No as ações no mercado, aos poucos, até a compra do controle acioná-
caso da OPA disciplinada pelo artigo 254-A, o controle já foi adqui- rio? Caso o interessado no controle da companhia-alvo passe a com-
rido privadamente, em negociação com o acionista controlador, fican- prar as ações de sua emissão no mercado, a tendência natural é que
do sua eficácia condicionada à realização de uma oferta aos acionistas sua cotação suba, podendo ele, ao cabo, pagar um valor muito alto e
minoritários titulares de ações com direito de voto. não adquirir o número necessário de ações para o exercício do poder
O objeto de uma OPA voluntária não é necessariamente a aqui- de controle. Trata-se do risco da escalada de preços no mercado, que
sição do controle, podendo o ofertante visar a compra de participação impede ou dificulta ao interessado calcular, previamente, quanto de-
minoritária na companhia, ou ainda, o reforço do bloco de controle, verá despender para chegar ao controle da companhia"4.
se promovida pelo acionista controlador. Quando o ofertante formula A OPA voluntária permite ao ofertante prever quanto irá pagar
uma OPA voluntária sem objetivar a aquisição do controle aplicam-se pelo controle da companhia-alvo, uma vez que pode estabelecer um
ao procedimento as normas gerais da Resolução CVM n° 85/2022,
113 NELSON EIZIRIK, ARIÁDNA B. GAAL, FLÁVIA PARENTE e MARCUS DE FREITAS
HENRIQUES. Mercado de Capitais: Regime Jurídico. 4a edição, São Paulo:
Quartier Latin, 2019, p. 803.
114 LUIS ANDRÉ NEGRELLI DE MOURA AZEVEDO, "A Oferta Pública para Aquisição
de Controle sob a Perspectiva da Companhia Aberta Ofertante". In: Rodrigo
112 Do total de 327 companhias abertas brasileiras com registro ativo e ações Monteiro de Castro e Leandro Santos de Aragão (Coord.). Direito Societário -
negociadas em bolsa de valores em 2019, 58 não tinham controlador definido, DesafiosAtuais. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p.83; PAULO EDUARDO PENA,
conforme Boletim de Mercado CVM n° 09, v. 89, mar/2021. As estimativas da "Oferta Pública de Aquisição de Controle de Companhias Abertas". In: Alberto
CVM foram apuradas com base nos últimos dados reportados no Formulário Venâncio Filho, Carlos Augusto da Silveira Lobo e Luiz Alberto Colonna Rosman
de Referência pelas companhias. (Coord). Lei das S.A. em seus 4o anos. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 301.
114 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 115

limite para o número de ações que deseja adquirir; se houver uma A exigência de registro da OPA que contém permuta deve-se
oferta de ações em número superior a tal limite, será feito o rateio ao fato de que ela envolve, necessariamente, a distribuição pública
entre os aceitantes. Pode ainda o ofertante condicionar a OPA a de- dos valores mobiliários oferecidos na troca. Por esta razão, devem ser
terminadas condições, como a de que somente comprará as ações se prestadas aos destinatários da OPA informações da mesma nature-
o número de acionistas que aceitarem a oferta permitir-lhe a aquisi- za das que são exigidas pela CVM por ocasião de uma oferta pública
ção do controle acionário. de venda de ações. Ademais, em tais ofertas, justifica-se a atuação da
O ofertante pode já ser acionista da companhia, caso em que a CVM para assegurar a observância de critérios de equivalência entre
oferta terá por objeto ações com direito de voto em número suficien- os valores mobiliários objeto da permuta.
te para assegurar o controle da companhia, ou partir de uma situa- Nos termos do artigo 44, § 2°, da Resolução CVM n° 85/2022,
ção em que não detém ações da companhia. Nas 2 (duas) hipóteses, além das informações exigidas por ocasião das OPAs obrigatórias, o
a OPA é voluntária. instrumento da OPA com permuta deve conter: informações sobre
As OPAs podem ser classificadas em amigáveis ou hostis. As a relação de troca, a quantidade, espécie e classe dos valores mobi-
primeiras contam com a boa vontade dos administradores e/ou dos liários ofertados, os direitos a eles atribuídos, seu histórico de nego-
principais acionistas da companhia. São consideradas hostis as ofer- ciação nos últimos 12 (doze) meses e o tratamento as ser conferido
tas que enfrentam resistência da administração e/ou dos principais às eventuais frações decorrentes da troca; além de informações sobre
acionistas. A rejeição pode originar-se da preocupação de defender a companhia emissora dos valores mobiliários ofertados, na mesma
a companhia diante de um ofertante que pretende fazer uma aqui- forma exigida pela CVM para a distribuição pública de valores mo-
sição predatória, ou do temor dos administradores de serem subs- biliários. Nada impede que o ofertante, sendo uma companhia aberta,
tituídos pelo novo controlador, que pode ter interesse legítimo em ofereça em permuta ações de seu capital a serem emitidas dentro do
dirigir os negócios sociais, capitalizando a companhia e melhoran- limite autorizado, desde que o estatuto contenha previsão de emis-
do a sua gestãol". são sem direito de preferência117.
Diversamente do que ocorre nas OPAs obrigatórias"6, na OPA Nos termos do artigo 258, parágrafo único, da Lei das S.A., a
voluntária, não há necessidade de prévio registro da oferta na CVM, oferta voluntária deverá apenas ser comunicada à CVM dentro de 24
exceto se ela contiver permuta total ou parcial de valores mobiliários (vinte e quatro) horas da primeira publicação do edital. A regulamen-
(artigo 257, § 1°, da Lei das S.A.). tação da CVM, nos termos do artigo 35 da Resolução n° 85/2022,
deve ser aplicada somente no que se refere aos princípios gerais da
115 PAULO EDUARDO PENNA. Alienação de Controle de Companhia Aberta. São OPA e ao instrumento de oferta pública.
Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 300.
116 São obrigatórias, nos termos da Lei das S.A., as ofertas públicas de aquisição
Não há disciplina legal sobre o preço a ser oferecido pelo inte-
de ações para cancelamento de registro de companhia aberta, por aumento ressado, diversamente do que ocorre nas modalidades de OPAS obri-
de participação do acionista controlador no capital de companhia aberta, e
no caso de alienação do controle de companhia aberta. Tais modalidades de 117 CARLOS AUGUSTO DA SILVEIRA LOBO, "Sociedades Coligadas, Controladoras
OPAs obrigatórias são disciplinadas nos artigos 4°, §§ 4° e 5°, e 4°-A; artigo 4 e Controladas". In: Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira (Coord.).
°,
§ 6°; e artigo 254-A da Lei das S.A., assim como na Resolução CVM n° 85/2022. Direito das Companhias. 2a edição, Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 1.488.
116 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 117

gatórias; o ofertante estimará o valor pelo qual os acionistas ficarão aceitantes dos lances anteriores, de modo a preservar-se a igualdade
propensos a vender suas ações, não cabendo à CVM qualquer exame entre os destinatários da oferta.
de mérito do preço nem dos propósitos do ofertante. O instrumen-
to da OPA pode estabelecer preços à vista e a prazo distintos para os
3.4.2. DIVULGAÇÃO DE INFORMAÇÕES E EDITAL DA OFERTA PÚBLICA
mesmos destinatários, desde que a escolha lhes caiba (artigo 4°, § 1°,
da Resolução CVM n° 85/2022). Um dos aspectos essenciais do tratamento legal da OPA refe-
re-se à transparência ("disclosure") da operação, para evitar-se a assi-
A OPA deverá necessariamente ter a participação de institui-
ção financeira que garanta o cumprimento das obrigações assumi- metria de informações entre os acionistas e reduzir a possibilidade
das pelo ofertante, particularmente a liquidação financeira da oferta de "insider trading".
(artigo 257, capuz', da Lei das S.A. e artigo 8° da Resolução CVM Assim, o ofertante deve guardar sigilo a respeito da OPA até a sua
n° 85/2022). divulgação ao mercado, cabendo-lhe zelar para que seus administradores,
A obrigação da instituição intermediária de garantir a liquida- empregados, assessores e terceiros de sua confiança também o façam. Na
OPA voluntária, a obrigação de sigilo estende-se à data em que for divul-
ção financeira da OPA é subsidiária. Não existe solidariedade entre
gado o seu edital (Resolução CVM n° 85/2022, artigo 5°, capuz' e § 1°).
o ofertante e a instituição financeira. A solidariedade, nos termos do
artigo 265 do Código Civil, depende da lei ou da vontade das partes. O edital da OPA constitui documento essencial, onde são pres-
O artigo 257, capuz', da Lei das S.A. limita-se a afirmar que a insti- tadas as informações necessárias para que os destinatários possam
tuição financeira deve garantir a oferta, donde não se pode concluir decidir de maneira consciente se aceitam ou não a oferta de aquisi-
pela existência de solidariedade, exceto se pactuada entre as partes. ção de suas ações.
Ademais, a instituição financeira intermediária deve auxiliar o Trata-se de documento firmado pelo ofertante e pela institui-
ofertante em todas as fases da OPA, dele solicitando a prática dos ção financeira, que contém todas as informações a respeito da oferta,
atos necessários ao correto desenvolvimento da oferta, bem como a do ofertante, do número mínimo e, se for o caso, do número máximo
cessação das atividades que eventualmente a prejudiquem (artigo 8°, de ações que o ofertante se propõe a adquirir, o preço e as condições
§ 3°, da Resolução CVM n° 85/2022). de pagamento, a eventual subordinação da oferta ao número mínimo
de aceitantes e a forma de rateio, se necessário, bem como o procedi-
Nos termos do artigo 15 da Resolução CVM n° 85/2022, a
mento a ser adotado pelos acionistas para manifestar sua aceitação, o
OPA deve ser efetivada em leilão no mercado organizado (Bolsa ou
prazo de validade da oferta, e informações sobre o ofertante (artigo
Mercado de Balcão) em que as ações sejam admitidas à negociação'18.
258 da Lei das S.A. e 13 da Resolução CVM n° 85/2022)119.
O leilão deve adotar procedimentos que assegurem a possibilidade de
elevação do preço, estendendo-se o novo preço a todos os acionistas A regulamentação da CVM confere especial atenção às informa-
ções prestadas ao mercado por ocasião de uma OPA. Nos termos do

n8 Presentemente tanto o mercado de Bolsa como o de balcão organizado estão 119 O Anexo B da Resolução CVM n° 85/2022 contém um vasto e detalhado
concentrados na B3. elenco de informações que devem constar do instrumento da OPA.
118 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 119

artigo 8°, § 1°, da Resolução CVM n° 85/2022, "o ofertante é respon- do, portanto, livres os acionistas da companhia-alvo para aceitarem
sável pela veracidade, qualidade e suficiência das informações fornecidas à a nova oferta. Uma vez lançada uma OPA concorrente, tanto o
CVM e ao mercado, bem como por eventuais danos causados à companhia ofertante inicial quanto o concorrente podem aumentar o preço de
objeto, aos seus acionistas e a terceiros, por culpa ou dolo, em razão da fal- suas ofertas por quaisquer valores e por tantas vezes quantas julga-
sidade, imprecisão ou omissão de tais informações". rem conveniente.
Cumpre à instituição financeira, da mesma forma que ocor- Havendo divulgação de OPA concorrente, a CVM pode: adiar a
re quando atua como "underwriter", por ocasião da oferta pública de data do leilão da OPA inicial; estabelecer prazo máximo para a apre-
venda de valores mobiliários, agir de forma independente, revisando sentação e aceitação de propostas finais para todos os ofertantes; ou
criticamente as informações prestadas pelo ofertante120. Nesse senti- determinar a realização de leilão conjunto, fixando a data e as regras
do, o artigo 8°, § 2°, da Resolução CVM n° 85/2022 dispõe que ela para a sua realização. Este último, a nosso ver, constitui o procedi-
deve tomar todas as cautelas e agir com elevados padrões de diligên- mento mais adequado para uma competição equitativa e transparen-
cia para assegurar que as informações prestadas pelo ofertante sejam te entre os concorrentes2'.
verdadeiras, consistentes, corretas e suficientes.
3.4.4. COMPORTAMENTO DOS ADMINISTRADORES
3.4.3. OFERTA CONCORRENTE Um aspecto bastante relevante no caso da OPA voluntária para
A Lei das S.A., em seu artigo 262, prevê a possibilidade de oferta aquisição do controle de companhia aberta refere-se ao comporta-
concorrente, que constitui aquela formulada por um terceiro que te- mento do conselho de administração da companhia-alvo. Há uma
nha por objeto as ações abrangidas por OPA em curso, ou seja, cujo tendência natural que o órgão resista à OPA hostil, uma vez que, se
edital já tenha sido publicado. bem-sucedida, provavelmente o novo acionista controlador desti-
A existência de oferta concorrente tende a ser benéfica para os tuirá os membros do conselho eleitos pelo antigo controlador e pro-
acionistas da companhia-alvo, uma vez que eleva o preço a ser pago cederá à eleição de novos. Requer-se dos conselheiros uma atuação
por suas ações, numa espécie de "leilão" de compra do controle. isenta e diligente, exercendo suas atribuições para lograr os fins e
no interesse da companhia, não os seus próprios (artigo 154, caput,
Nos termos da Resolução CVM n° 85/2022, em sua Seção X, a
da Lei das S.A.).
OPA concorrente deve ser lançada em até 10 (dez) dias antes da data
prevista para a realização do leilão da OPA com que concorrer e por
um preço, no mínimo, 5% (cinco por cento) superior.
121 Tais regras constam da Instrução CVM n° 361/2002, modificada, dentre outras,
O lançamento da OPA concorrente torna sem efeito as mani-
pelas Instruções CVM n°487/2010 e n° 616/2019, e, posteriormente, revogada
festações já firmadas em relação à OPA com que concorrer, deixan- pela Resolução CVM n° 85/2022. A inclusão dessas previsões na norma resultou
de experiência adquirida com a sua aplicação, bem corno de consolidação de
decisões do colegiado sobre o tema, notadamente a partir do julgamento do
120 NELSON EIZIRIK, ARIÁDNA B. GAAL, FLÁVIA PARENTE e MARCUS DE FREITAS Processo SEI 19957.003818/2018-41, Rel. Superintendência de Registros de
HENRIQUES. Mercado de Capitais: Regime Jurídico..., p. 271 e seguintes. Valores Mobiliários - SRE, j. em 02.05.2018.
120 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 121

Nem a Lei das S.A., nem a regulamentação administrativa da dor, e a direção efetiva dos negócios sociais é realizada pelos admi-
CVM exigem uma manifestação do conselho de administração a res- nistradores profissionais e independentes, membros da diretoria e do
peito da OPA'22. conselho de administração'23.
Caso o conselho decida opinar de modo favorável ou contrário Muitas de tais companhias introduziram em seus estatutos so-
à aceitação da OPA, deve tal manifestação, nos termos do artigo 40 ciais cláusulas visando a manter a dispersão das ações no mercado,
da Resolução CVM n° 85/2022: abordar todos os aspectos relevan- obrigando o adquirente de um bloco substancial de ações a comprar
tes para a decisão do investidor, sobretudo o preço; e descrever as al- as ações dos demais acionistas, a preço superior ao de mercado, obje-
terações significativas ocorridas na situação financeira da companhia tivando evitar que voltassem a uma situação de controle concentrado
desde a data das últimas demonstrações financeiras ou informações nas mãos de um acionista ou grupo de acionistas.
trimestrais divulgadas ao mercado. Também ocorreu, em várias companhias, a passagem de um mo-
delo de controle majoritário para o de controle minoritário, que se
caracteriza quando, dada a dispersão das ações no mercado, um acio-
3.4.5. DIFICULDADES NA AQUISIÇÃO DE CONTROLE
MEDIANTE OPA nista ou grupo de acionistas exerce o poder de controle com menos
da metade do capital votante, uma vez que nenhum outro acionista
Muitas companhias que realizaram IPOs (ofertas públicas ini-
ou grupo está organizado ou detém maior volume de ações com di-
ciais de venda de ações) a partir da criação do Novo Mercado da B3
reito de voto.
passaram de uma situação de controle definido para uma de contro-
Em tais companhias com controle minoritário também foram in-
le "pulverizado", em que nenhum acionista tem condições de eleger
troduzidos, em seus estatutos, cláusulas do mesmo teor, que não ape-
a maioria dos administradores e impor sua vontade nas deliberações
nas visavam a manter a dispersão de ações, mas também, em alguns
das assembleias gerais. Ou seja, passaram a um modelo de controle
casos, a permitir o "encastelamento" do grupo minoritário no controle.
"gerencial", no qual não se identifica a figura do acionista controla-
Tais cláusulas foram impropriamente denominadas "poisonpills",
por terem supostamente se inspirado na prática norte-americana'24.
122 As normas do Novo Mercado exigem que o conselho de administração emita
um parecerfundamentado sobre qualquer OPA que tenha por objeto as ações Na realidade, as estratégias defensivas diante de uma oferta de aqui-
de emissão da companhia, conforme o artigo 21 do Regulamento do Novo
Mercado: 'Art. 27 O conselho de administração da companhia deve elaborar
e divulgar parecer fundamentado sobre qualquer OPA que tenha por objeto as 123 Sobre o chamado "controle gerencial" ou "pulverizado", ver: RODRIGO R.
ações de emissão da companhia, em até is (quinze) dias da publicação do edital MONTEIRO DE CASTRO. Controle Gerencial. São Paulo: Quartier Latin, 2010.
da referido OPA, no qual se manifestará, ao menos: I - sobre a conveniência e a 124 Sobre as "poison pills" no Direito norte-americano e brasileiro ver: (i) JOÃO
oportunidade da OPA quanto ao interesse da companhia e do conjunto de seus PEDRO BARROSO DO NASCIMENTO. Medidas Defensivas à Tomada de
acionistas, inclusive em relação ao preço e aos potenciais impactos para a liquidez Controle de Companhias, 2 a edição, São Paulo: Saraiva, 2019, p. 185 e
das ações; II- quanto aos planos estratégicos divulgados pelo ofertante em relação seguintes; (ii) JOÃO PEDRO SCALZILLI. Mercado de Capitais, Ofertas Hostis e
à companhia; e III - a respeito de alternativas à aceitação da OPA disponíveis no Técnicas de Defesa. São Paulo: Quartier Latin, 2015, p. 197-257; e (iii) NELSON
mercado. Parágrafo único. O parecer do conselho de administração deve abranger EIZIRIK e MARCUS DE FREITAS HEN RIQUES, "A Legalidade das 'Poison Pils'
a opiniãofundamentadafavorável ou contrária à aceitação da OPA, alertando que Adotadas pelas Companhias Brasileiras". In: Luiz Leonardo Cantidiano e Igor
é de responsabilidade de cada acionista a decisão final sobre a referida aceitação" Muniz (Org.). Temas de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. Rio de
(grifos no original). Janeiro: Renovar, 2014, p. 53-80.
122 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 123

sição no Brasil diferem bastante daquelas utilizadas na prática do principais contratos de empréstimos da companhia determinando o
mercado norte-americano. As principais diferenças decorrem da ne- vencimento antecipado da dívida caso o seu controle seja adquiri-
cessidade de aprovação por parte dos acionistas de tais medidas, pos- do mediante uma oferta hostil ("accelerated loans"); (iv) inclusão nos
to que demandam alterações no estatuto social. contratos de trabalho dos principais executivos de compensações fi-
Nos Estados Unidos, há um grande número de táticas de defesa nanceiras em valores elevados caso a companhia seja alvo de tomada
que podem ser utilizadas pelo conselho de administração ("board of hostil de controle ("golden parachutes"); (v) procura de terceiros ("white
directora") da companhia para evitar a tomada de controle mediante knights") que possam realizar oferta pública mais atrativa; e (vi) ven-
uma oferta pública de aquisição tida como "hostil". Trata-se o "board' da de ativos valiosos da companhia, tornando-a menos interessante
de órgão dotado de poderes muito maiores que o conselho de admi- para o interessado em adquirir seu controle ("crownjewel defènse")126.
nistração no nosso sistema legal. A utilização de tais medidas defensivas em muitos casos leva o
Tais mecanismos podem ser preventivos, quando a companhia interessado em adquirir o controle da companhia a desistir de sua
os adota independentemente de ser alvo de uma oferta, ou repressivos, oferta ou a negociar com os seus administradores.
quando ela os utiliza para tentar frustrar uma oferta hostil já em curso. Embora os tribunais norte-americanos durante muito tempo
A tática de defesa mais comum é a modalidade de "poison us entendessem legítimas tais estratégias, nos últimos anos grandes in-
criada na década de 1980 pelo advogado norte-americano Martin vestidores institucionais passaram a defender a extensão de maiores
Lipton, que consiste na atribuição, pelo conselho de administração, poderes aos acionistas, por meio da retirada das "poison pills" dos es-
do direito aos já acionistas de subscreverem ações de emissão da com- tatutos ou da flexibilização de suas regras.
panhia a um preço substancialmente inferior ao seu valor de mercado. Também vem sendo recomendado na doutrina que os acionistas
Como tal direito não é também conferido ao interessado em adqui- devem aprovar a implementação de táticas de defesa diante de ofer-
rir o controle, sua participação na companhia-alvo é diluída, tornan- tas para aquisição do controle127.
do muito mais onerosa a aquisição do controle. Já na União Europeia, a questão é tratada de maneira diversa.
Outras táticas de defesa contra ofertas hostis empregadas pelo Nos termos da Diretiva 2.004/25/CE, vige a regra do "no frustra-
"board of directors" nos Estados Unidos são: (i) a alternância do período tion": diante de uma oferta, os órgãos de administração devem obter
de mandato dos membros do conselho de administração, o que dificul- autorização dos acionistas antes de tomar qualquer medida que pos-
ta a troca dos administradores pelo adquirente do controle ("staggered sa frustrá-la, exceto a de procurar outros ofertantes'28.
board); (ii) a criação de quórum qualificado elevado para deliberação
126 NELSON EIZIRIK. A Lei das S/A Comentada..., v. IV, p. 425.
sobre certas matérias ("supermajority rides"), de sorte que o ofertante 127 MARC I. STEINBERG. Rethinking Securities Law. New York: Oxford University
deve adquirir maior quantidade de ações para que possa efetivamen- Press, 2021, p. 265.
128 Diretiva 2oo4/25/CE: "Artigo g°. (...)2. No período referido no segundo parágrafo,
te preponderar nas decisões relevantes; (iii) previsão de cláusulas nos
o órgão de administração da sociedade visada é obrigado a obter a autorização
prévia da assembleia-geral de accionistas para o efeito antes de empreender
125 GUHAN SUBRAMANIAN. The Poison Pill. Cambridge: Harvard Business School qualquer acção susceptível de conduzir à frustração da oferta, exceptuando a
Review, 2001, p. 1. procura de outras ofertas e, nomeadamente, antes de procedera qualquer emissão
124 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL. NELSON EIZIRIK -125

No Brasil, em princípio, não é possível a autorização de aumento Ademais, algumas companhias introduziram em seus estatutos
de capital pelo conselho de administração em que o preço das ações regras impondo penalidades aos acionistas que: descumprirem a obri-
seja fixado sem levar em consideração os critérios previstos no artigo gação de realizar a OPA quando adquirirem determinado percentual
170, § 10, da Lei das S.A. de ações estabelecido no estatuto, tais como a restrição ao direito de
Assim, a emissão de ações a um preço muito reduzido, sem le- voto; ou votarem favoravelmente à supressão ou à alteração das cláu-
var em conta o seu valor econômico, não pode ser utilizada para de- sulas de "poison pills", caso em que deveriam realizar oferta pública
sestimular o interessado em adquirir o controle mediante uma oferta para aquisição das ações dos demais acionistas.
pública. Da mesma forma, a criação de uma "poison pili" pelo conse- Essa última modalidade, denominada "cláusula pétrea", mani-
lho de administração constituiria flagrante ilegalidade, pois deman- festamente ilegal, pois impede o livre exercício do direito de voto, foi
daria alteração do estatuto social, o que compete com exclusividade à objeto de censura por parte da CVM, não devendo mais constar de
assembleia geral dos acionistas (artigo 122, inciso I, da Lei das S.A.). estatutos de companhias abertas brasileiras"°.
Muitas companhas abertas, particularmente as que fizeram seus Nos Estados Unidos, uma das características essenciais da "poi-
IPOs no Novo Mercado da B3, com controle minoritário ou sem son pill' reside no fato de o "board of directors" poder cancelar sua apli-
acionista controlador definido, passaram a adotar em seus estatutos cação, caso considere que a oferta de aquisição do controle atende ao
sociais algumas das seguintes cláusulas, com objetivos semelhantes interesse da companhia e de seus administradores.
às das "poison pi//s": (i) obrigatoriedade da divulgação de aquisição Sem essa possibilidade de afastamento de sua aplicação, tal mo-
de ações, determinando que o acionista ou grupo de acionistas que dalidade de cláusula poderia ser considerada inválida, pois teria por
aumentar sua participação, por exemplo, em 1% (um por cento) do efeito impedir a realização de operações de interesse da companhia,
capital, deve comunicar tal fato à companhia e ao mercado; (ii) obri- servindo apenas para "entrincheirar" os administradores e acionistas
gatoriedade de realização de OPA pelo acionista ou grupo de acionis- controladores em suas posiçõesm.
tas que desejar adquirir participação acionária superior a determinado
Muitas operações de aquisição de controle ou de participação
percentual (30%, por exemplo) aos demais acionistas da companhia,
acionária relevante, que seriam dificultadas pela aplicação de "poison
por preço estabelecido no estatuto (valor de mercado, valor econô-
pills", podem ser benéficas para a companhia e seus acionistas, ao fa-
mico, múltiplos de EBITDA) acrescido de prêmio; (iii) obrigatorie-
dade de o acionista ou grupo de acionistas que atingir participação de Proteção à tomada hostil de controle nos estatutos sociais das companhias
abertas brasileiras ('Brazilian Pills')". In: Alexandre Couto Silva (Coord.). Direito
acionária superior ao estabelecido no estatuto somente poder efetuar Societário. Estudos sobre a Lei de Sociedades por Ações. 1a edição, São Paulo:
novas aquisições por meio de leilão em bolsa129. Saraiva, 2013, p.253-278; NELSON EIZIRIK.Alei dasS/AComentada..., p.269.
13o Parecer de Orientação CVM n° 36/2009.
131 No caso "Household International Corporation vs. Dyson Kissner-Moran", a
de valores mobiliários susceptível de impedir deforma duradoura que o oferente Suprema Corte de Delaware opinou pela legalidade da"poison pill" baseada no
assuma o controlo da sociedade visada". argumento de que sua presença não tinha o condão de impedir uma aquisição,
129 FRANCISCO ANTUNES MACIEL MÜSSNICH e VITOR DE BRITTO LOBÁ- O MELO, mas apenas de permitir à companhia buscar melhores preços para as ações
"Análise Prática e Considerações Sobre a Realidade e a Aplicação das Medidas de sua emissão.
NELSON EIZIRIK -127
126 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL

cilitarem sua reestruturação, capitalização e contribuírem para maior 3.5. OFERTA PÚBLICA DECORRENTE DA ALIENAÇÃO
escala em suas atividades. DO CONTROLE DE COMPANHIA ABERTA
Ademais, a possibilidade de a companhia ser alvo de uma oferta
de aquisição de controle estimula os administradores a atuarem de for-
15.1. CARACTERÍSTICAS GERAIS
ma diligente e lucrativa, pelo temor de serem afastados de seus cargos.
Assim, é importante que tais cláusulas possam ser afastadas ou Em nosso sistema de direito societário, a alienação do controle de
flexibilizadas em situações específicas. Entre nós, o poder de excep- companhia aberta obriga o adquirente a realizar oferta pública de aqui-
cioná-las não compete ao conselho de administração, mas à assem- sição das ações ("OPA") com direito de voto dos acionistas minoritários.
bleia geral, órgão soberano para tomar todas as decisões de interesse Dada a prevalência, entre nós, de companhias abertas com po-
da companhia e ao qual compete, privativamente, reformar o estatu- der de controle concentrado, na maioria destas operações o compra-
to social (artigos 121 e 122, inciso I, da Lei das S.A.). dor adquire o bloco de controle de um acionista, grupo ou família,
Mesmo que o estatuto não preveja expressamente essa possibi- mediante contrato de compra e venda de ações, e depois, por força
lidade, a assembleia geral poderá dispensar a exigibilidade da "poison de lei, deve lançar a oferta pública de aquisição.
pilln ou aprovar alterações em suas características diante de determi- Nos termos do artigo 254-A da Lei das S.A., assim como da
nada operação que se revele em conformidade com o interesse social. Resolução CVM n° 85/2022, a alienação do controle de companhia
Seja pelo fato de ainda termos um número relativamente reduzi- aberta somente pode ser contratada sob a condição suspensiva ou reso-
do de companhias com controle pulverizado, seja pela existência, em lutiva de que o adquirente se obrigue a fazer oferta pública da aquisi-
muitas companhias com controle minoritário, de cláusulas estatutá- ção das ações com direito a voto dos demais acionistas da companhia,
rias que aumentam os custos de uma "tomada hostil de controle", as ao preço mínimo de 80% (oitenta por cento) do valor pago por ação
OPAs voluntárias ainda não constituem, entre nós, modalidade co- com direito de voto do acionista controlador.
mum de aquisição de controle de companhias abertasi". Trata-se de oferta pública obrigatória, condição de eficácia do negó-
cio jurídico; caso não realizada, a alienação do poder de controle da com-
panhia não se aperfeiçoa. Difere, portanto, da OPA voluntária, prevista
nos artigos 257 a 263 da Lei das S.A., destinada à compra do controle.
Conforme o artigo 2°, inciso III, da Resolução CVM n° 85/2022, a
OPA por alienação do controle é aquela obrigatória,"realizada como condição
de eficácia de negócio jurídico de alienação de controle de companhia aberta (...)" .
A OPA constitui uma proposta pública de contratar, nos termos
previstos no artigo 429 do Código Civil; ao formulá-la, o proponente
faz uma declaração unilateral de vontade, com força vinculante, obri-
132 Temos conhecimento de apenas 2 (duas) OPAs por aquisição de controle no
Brasil, realizadas em 2018 e 2021.
gando-se, assim, a contratar a compra das ações de titularidade dos
128 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK -129

acionistas que a aceitarem. Dessa forma, a OPA pode dar origem a ritário um preço no mínimo igual a 80% (oitenta por cento) do valor
tantos contratos quantos forem os destinatários da oferta que aceita- pago pelas ações com direito de voto integrantes do bloco de controle.
rem vender suas ações ao ofertante133. A possibilidade de os minoritários participarem do ágio funda-
Quais os fundamentos da oferta pública obrigatória, no caso de menta-se nos seguintes argumentos: ele reflete a valorização patri-
alienação controle de companhia aberta? monial da companhia, para a qual também contribuíram os acionistas
Normalmente, o mercado atribui um valor ao poder de controle, o minoritários; e o valor da venda de controle inclui não apenas o po-
chamado "ágio", uma vez que, notadamente em sistemas de pouca prote- der de dirigir a companhia, mas também os intangíveis e outros ati-
ção aos acionistas minoritários, os acionistas controladores podem even- vos, que pertencem a todos os acionistas.
tualmente se apropriar dos chamados "benefícios privados do controle". Ademais, a OPA permite ao minoritário vender as suas ações, caso
Tais beneficios podem consistir em: remuneração, quando ocupam ele não esteja satisfeito com o novo controlador. Com efeito, não se
cargos de administração, superior à de mercado; uso de bens da socieda- pode impor ao minoritário um novo controlador, com o qual ele não
de para fins particulares; empréstimos subsidiados; operações com par- tem qualquer relação fiduciária, permitindo-se, assim, que ele aliene
tes relacionadas em condições não equitativas. Assim, o adquirente do suas ações ao adquirente do poder de controle.
poder de controle aceita pagar um sobrevalor pelo poder de controle, es- A obrigatoriedade da OPA fundamenta-se, ainda, no princípio da
perando eventualmente recuperá-lo mediante o aproveitamento de re- igualdade; a lei reconhece o direito de todos os titulares de ações com di-
cursos da companhia. Quanto maior a proteção aos minoritários, menor reito de voto de aliená-las ao novo controlador, retirando-se da sociedade.
a possibilidade de apropriação pelo controlador de bens da companhia Considerando a natureza da OPA decorrente da alienação do
e menos significativa a diferença entre o valor das ações integrantes do controle, não se admite ofertas parciais nem a aplicação do rateio,
bloco de controle e as pertencentes aos minoritários'''. Tal não significa ambas possíveis na OPA voluntária. Só é efetivamente garantido o
que o ágio decorra apenas do "beneficio privado" do controle. Ele pode "direito de saída" se a compra das ações for estendida a todos os acio-
também decorrer do uso legítimo do poder de dirigir os negócios sociais. nistas que aceitarem a oferta, aos quais deverá ser assegurado o direi-
A OPA do artigo 254-A faz com que o ágio recebido pelo acio- to de vender a totalidade de suas açõesl".
nista controlador seja compartilhado com os acionistas minoritários.
De acordo com o artigo 254-A, tal compartilhamento não é in- 3.5.2. REGISTRO NA CVM E PREÇO DA OPA
tegral, uma vez que o adquirente do controle deve pagar a cada mino-
Tratando-se a OPA regulada no artigo 254-A de uma oferta públi-
ca obrigatória, deve ser registrada previamente na CVM. A Autarquia
133 PAULO EDUARDO PENNA. Alienação de Controle de Companhia Aberta. São
Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 173. 135 ANDRÉS RECALDE CASTELLS, "Régimen Jurídico de Las OPAS: Concepto, Función
134 EDUARDO SECHI MUNHOZ, "Transferência de Controle nas Companhias sem Económica y Principios de ta Ordenación". In: Javier Juste Mencía e Andrés
Controlador Majoritário". In: Rodrigo R. Monteiro de Castro e Luiz André N. Recalde Castells (Coord.). Derecho de OPAS. Estudio sistemático del régimen
de Moura Azevedo (Coord.). Poder de Controle e Outros Temas de Direito de las ofertas públicas de adquisición en el Derecho espariol. Valencia: Tirant
Societário e Mercado de Capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 295. lo Blanch, 2010, p. 53.
130 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 131

autorizará a alienação do controle da companhia desde que as condi- da OPA e solicitar-lhe a prática dos atos necessários ao correto desen-
ções da oferta pública atendam aos requisitos legais e regulamentares. volvimento da oferta (artigo 8°, § 3°, da Resolução CVM n° 85/2022).
A CVM tem um poder vinculado ao analisar a OPA, não lhe O pedido de registro da OPA deve ser protocolado na CVM,
competindo examinar a oportunidade ou a conveniência da aliena- em nome do ofertante, por meio da instituição intermediária, no pra-
ção do controle da companhia, mas apenas se foram atendidos os dis- zo máximo de 30 (trinta) dias a contar da celebração do instrumen-
positivos legais e regulamentares para a realização da oferta pública. to definitivo de alienação das ações representativas do controle, quer
A Autarquia não aprova a alienação do controle, mas os termos a OPA se constitua em condição suspensiva, quer em condição reso-
da oferta pública de aquisição das ações dos acionistas minoritários. lutiva da alienação (artigo 33, § 2°, da Resolução CVM n° 85/2022).
Conforme § 3° do artigo 33 da Resolução CVM n° 85/2022, a acei- A condição é suspensiva quando os efeitos do contrato de alie-
tação do registro da OPA pela CVM implica autorização para aliena- nação de controle não se produzirem desde logo, ou seja, permanece-
ção do controle, sob a condição de que a oferta pública seja efetivada rem suspensos até a efetivação da OPA. Por outro lado, caracteriza-se
nos termos aprovados e nos prazos regulamentares. como resolutiva se a transferência do bloco de ações representativas
Ademais, incumbe à Autarquia analisar a adequação da OPA às do controle ocorre antes da realização da oferta pública de aquisição
regras do estatuto da companhia alvo, ainda que tal oferta não seja das ações dos minoritários137.
devida por força da Lei das S.A., por 3 (três) razões: (i) cabe à CVM Quando há alienação direta do poder de controle, em que o novo
registrar qualquer oferta pública decorrente da aquisição do contro- controlador adquire ações pertencentes ao antigo, a verificação, pela CVM,
le de companhia aberta; (ii) o direito à realização da OPA prevista do preço a ser pago na oferta pública é feita pela simples comparação en-
no estatuto integra o status dos acionistas da companhia aberta, cuja tre o preço pago ao alienante, constante no contrato de compra e venda
proteção constitui uma das finalidades da CVM; e (iii) a obrigatorie- de ações, e aquele que está sendo oferecido aos acionistas minoritários.
dade ou não de realização de uma OPA no mercado de valores mo- Na alienação indireta, caso a controladora seja uma " holding" pura
biliários é matéria sob jurisdição da CVM136. — isto é, cujo único ativo é constituído pelo bloco de controle da com-
Da mesma forma que ocorre nas demais modalidades de ofertas panhia aberta alvo —, presume-se que o preço de aquisição das suas
públicas, o ofertante deve contratar a intermediação da OPA com so- ações corresponde àquele pago pelo controle da companhia aberta.
ciedade corretora ou distribuidora de valores mobiliários ou instituição Porém, nos casos em que a sociedade alienada tem outros ativos
financeira com carteira de investimentos, que garantirá, de forma subsi- além do controle da companhia aberta objeto da OPA, torna-se mais
diária, a liquidação financeira da OPA e o pagamento do preço de com- difícil determinar o valor pago por cada ação do bloco de controle.
pra, nos termos do artigo 8° da Resolução CVM no 85/2022. Cumpre, Assim, por exemplo, se a companhia A adquire o controle da com-
ademais, à instituição financeira auxiliar o ofertante em todas as fases panhia B, que detém o controle de várias sociedades, entre as quais
a companhia aberta C, como apurar o preço correspondente à aqui-
136 Nessesentido,ver Processo AdministrativoSancionadorCVM n° RJ 2006/6209,
Dir. Rel. Wladimir Castelo Branco Castro, j. em 25.09.2006. Disponível em: 137 ROBERTA NIOAC PRADO. Oferta Pública de Ações Obrigatória nas S.A. - Tag
<www.cvm.gov.br>. Along. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p.179.
132 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK -133

sição do controle de C? Sem sabê-lo, como chegar-se ao preço que No Processo CVM n° 19957.001656/2017-25, que ficou conhecido
deve ser oferecido aos acionistas minoritários de C na oferta pública? como "Caso CPFL:'139, o Colegiado da Autarquia analisou: (i) o papel da
Tratando-se de alienação indireta do controle acionário, nos ter- CVM em processo de registro de OPAs; (ii) a importância a ser conferida
à informação constante de contrato negociado entre adquirente e alienan-
mos do § 6° do artigo 33 da Resolução CVM n° 85/2022, deve o
te das ações da controladora da companhia objeto da OPA; e (iii) como
ofertante submeter à Autarquia, junto com o pedido de registro, de-
deve ser fixado o preço de uma OPA por alienação indireta de controle.
monstração justificada de como foi calculado o preço corresponden-
te à alienação do controle da companhia aberta. A CVM pode ainda O caso envolveu a alienação do controle indireto da companhia
requerer a apresentação de laudo de avaliação da companhia objeto aberta CPFL Energias Renováveis S.A. ("CPFL-R"). A companhia
da OPA, o qual deve ser elaborado por empresa independente. chinesa State Grid Brazil Power Participações Ltda. ("State Grid")
adquiriu o controle direto da CPFL Energia S.A., que, por sua vez,
Qual o papel da CVM ao analisar o preço oferecido por ocasião
controlava diretamente a CPFL-R. Ao apresentar o pedido de regis-
da alienação indireta de controle de companhia aberta?
tro da OPA, a State Grid ofereceu comprar as ações dos minoritários
Deve a CVM, em nosso entendimento, determinar qual a par-
da CPFL-R pelo valor de R$ 12,20 cada, o qual foi questionado tan-
cela do preço pago ao controlador indireto, no qual estão refletidos
to pelos minoritários quanto pela área técnica da CVM.
os diversos ativos de sua propriedade, correspondente às ações que
Ao examinar o pedido de registro, a Superintendência de Registro
asseguram o poder de controle da companhia aberta objeto da OPA.
(SRE) da CVM avaliou que (i) a demonstração justificada do cálculo
O ofertante deve demonstrar à CVM, com justificativa fun-
do preço das ações ("DJP"), apresentada pela State Grid, não teria em-
damentada, que a parcela do preço correspondente à aquisição do
pregado metodologia adequada; e (ii) o laudo de avaliação submetido
controle da companhia aberta controlada é aquela que efetivamen-
pela ofertante conteria premissas que não eram razoáveis. Entendeu,
te está sendo ofertada aos acionistas minoritários na OPA. Assim, a
assim, não ser possível realizar o teste de consistência do preço. Dessa
Autarquia tem o dever legal de se manifestar sobre o preço objeto da
forma, utilizando-se de critérios, no seu entender,"objetivos e baseados
oferta, já que é sua atribuição assegurar o fiel atendimento aos direi-
em dados isentos, existentes à época da [t]ransação", tendo como referên-
tos dos minoritários, tendo em vista as normas legais, regulamenta-
cia relatórios elaborados por analistas de mercado que avaliaram as 2
res e estatutárias aplicáveis138.
(duas) companhias anteriormente, a SRE estabeleceu que o preço da
OPA deveria ser elevado para, no mínimo, R$ 16,99, correspondente
138 NELSON EIZIRIK e MARCUS DE FREITAS HENIRQUES, "Oferta Pública por ao menor valor dentre aqueles que encontrou com base em tais cri-
Alienação Indireta de Controle de Companhia Aberta: Fixação do Preço da térios. Na prática, fixou um preço mínimo que deveria ser observado
OPA". In: A. Barreto Menezes Cordeiro e Francisco Satiro (Coord.). Direito dos
Valores Mobiliários e dos Mercados de Capitais - Angola, Brasil e Portugal. na OPA por alienação de controle. O ofertante recorreu dessa deci-
São Paulo: Almedina, 2020, p. 242 a 244. Ver também: (i) voto proferido pelo são e a questão foi levada ao Colegiado da Autarquia.
então Presidente da CVM, Marcelo Trindade, no Processo Administrativo CVM
n° RJ2007/1996, Dir. Rel. Maria Helena Santana, j. em 21.03.2007; e (ii) voto
do então Presidente da CVM, Marcelo Barbosa, no Processo Administrativo 139 Processo CVM n°19957.001656/2017-25, Rel. Superintendência de Registro de
CVM n° 19957.001656/2017-25, Rel. Superintendência de Registro de Valores Valores Mobiliários-SRE/GER-1, j. em 02.05.2018. Disponível em: <www.cvm.
Mobiliários - SRE, j. em 02.05.2018. Disponíveis em: <www.cvm.gov.br>. gov.br>.
134- M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL. NELSON EIZIRIK - 135

A discussão, então, girou em torno de qual deve ser o limite de ção das ações dos minoritários em decorrência da alienação do con-
atuação da CVM na análise do cálculo do preço da OPA nas alienações trole de companhia aberta.
de controle indireto. Seguindo precedentes anterioresm, o Colegiado Existe alguma incerteza com relação aos critérios que caracte-
entendeu que não cabe à Autarquia substituir o ofertante na tarefa de rizam a alienação do controle acionário, uma vez que a Lei das S.A.,
determinar o valor, ou mesmo uma faixa de valor, a ser utilizado na diversamente do que ocorre no Direito Comunitário Europeu, não
OPA por alienação de controle indireto, não havendo norma legal ou fixa, de forma precisa, quando é obrigatória a OPA. Não há um de-
regulamentar que a autorize a assumir tal função. Também não cabe terminado percentual de ações que, uma vez adquiridas, "disparam"
à CVM determinar o preço de uma oferta ou rejeitar uma técnica de
automaticamente o "gatilho" da OPA, gerando insegurança jurídica,
avaliação por não ser aquela que entende preferível — contanto que a particularmente nos casos de controle minoritário e de controle com-
metodologia não seja exótica. Conforme apontou o então Presidente partilhado, conforme mais adiante analisado.
Marcelo Barbosa em seu voto, é"larga a distância entre uma verificação
Como o legislador optou por não exigir a propriedade de percen-
de consistência da demonstração justficada do cálculo do preço da oferta e
tual mínimo de ações com direito de voto para caracterizar quem é o
a determinação do preço em si, e não vejo como sequer encurtar tal distân-
acionista controlador, cada situação deve ser examinada em particu-
cia sem incorrer em indevida interferência na esfera privada sem a neces-
lar para que se possa identificar quem de fato detém o poder de con-
sária previsão em norma".
trole, tal como definido no artigo 116 da Lei das S.A.141. Esse, aliás,
Por outro lado, o Colegiado esclareceu que cabe à CVM revisar a
tem sido o comportamento adotado pela CVM.
DJP para verificar se a metodologia adotada foi aplicada de forma correta
O caput do artigo 254-A e seu § 1°142 , bem como o artigo 33 da
e razoável, considerando técnicas e parâmetros adotados pelo mercado.
Resolução CVM no 85/2022, conferem uma acepção ampla à expres-
Diante disso, o Colegiado reformou a decisão da área técnica da
são "alienação do controle acionário".
Autarquia em relação à fixação do preço mínimo da OPA por alie-
nação de controle indireto da CPFL-R, mas exigiu que o ofertante
reapresentasse a DJP com determinados ajustes considerados neces- 141 Para uma análise dos casos submetidos à CVM, ver: LARISSA DE LIMA E
sários para confirmar a consistência do cálculo do preço. CAMPOS, "Análise Empírica do Artigo 254-A Quanto à OPA Decorrente da
Aquisição de Controle", Revista de Direito das Sociedades e dos Valores
Mobiliários. v.13, São Paulo: Almedina, 2021, p.138 e seguintes.
142 O caput e o § ,° do artigo 254-A da Lei das S.A. assim dispõem: 'A alienação,
3.5.3. QUANDO A OPA DO ARTIGO 254-A É OBRIGATÓRIA? direta ou indireta, do controle de companhia aberta somente poderá sercontratada
sob a condição, suspensiva ou resolutiva, de que o adquirente se obrigue a fazer
A Lei das S.A., a regulamentação administrativa, assim como os oferta pública de aquisição das ações com direito a voto de propriedade dos demais
acionistas da companhia, de modo a lhes assegurar o preço no mínimo igual a
casos decididos pela CVM foram estabelecendo, ao longo do tempo, 8o% (oitenta por cento) do valor pago por ação com direito a voto, integrante do
quais requisitos tornam obrigatória a realização de OPA para aquisi- bloco de controle. § i° Entende-se como alienação de controle a transferência,
de forma direta ou indireta, de ações integrantes do bloco de controle, de ações
vinculadas a acordos de acionistas e de valores mobiliários conversíveis em ações
140 Processo Administrativo CVM n° RJ2oo8/252, Dir. Rel. Durval Soledade, j. em com direito a voto, cessão de direitos de subscrição de ações e de outros títulos ou
04.03.2008; e Processo Administrativo CVM n° RJ2007/1996, Dir. Rel. Maria direitos relativos a valores mobiliários conversíveis em ações que venham a resultar
Helena Santana, j. em 21.03.2007. Disponíveis em: <www.cvm.gov.br>. na alienação de controle acionário da sociedade".
NELSON EIZIRIK - 137
136 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL

O § 1° do artigo 254-A prevê, de maneira um tanto circular, que O conceito de "alienação do controle" abrange não apenas a ven-
a alienação do controle pode decorrer de 4 (quatro) diferentes modali- da direta do conjunto de ações que compõem o bloco de controle, mas
dades de operações em que há transferência, direta ou indireta, de: (i) também a sua alienação indireta, que ocorre mediante a transferência
ações integrantes do bloco de controle; (ii) ações vinculadas a acordo do controle acionário de sociedade controladora de companhia aber-
de acionistas; (iii) valores mobiliários conversíveis em ações com direi- ta. Também abriga a alienação por etapas, aquela implementada por
to de voto; (iv) direitos de subscrição de ações ou outros títulos, desde meio de uma sequência encadeada de operações.
que a operação resulte na "alienação de controle acionário da socieda- Ademais, nos termos do § 5° do artigo 33 da Resolução CVM
de", isto é, na efetiva transferência do controle para um terceirom-'44. no 85/2022, a Autarquia pode impor a realização de OPA sempre
Para que fique caracterizada a alienação, é necessário que um ter- que verificar ter ocorrido a alienação onerosa do controle de compa-
ceiro — pessoa natural, jurídica, ou grupo de pessoas — passe a osten- nhia aberta, o que lhe confere um poder quiçá excessivo, haja vista a
tar a condição de acionista controlador, prevista no artigo 116 da Lei ausência de previsão legal.
das S.A., isto é, que: (i) seja titular de direitos de sócio que lhe asse- Ao definir de forma abrangente os casos de alienação de con-
gurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da trole, o objetivo do legislador, assim como o da CVM quando regu-
assembleia geral; (ii) eleja a maioria dos administradores; e (iii) use lamentou a matéria, foi o de assegurar a realização da OPA sempre
efetivamente seu poder para dirigir as atividades e orientar o funcio- que determinada operação resultar na efetiva transferência do poder
namento dos órgãos da companhia. de comandar as atividades da companhia.
A transferência de valores mobiliários com direito de voto em Em qualquer das hipóteses contempladas pelo artigo 254-A — a
potencial — tais como debêntures conversíveis em ações, bônus de saber, alienação direta, indireta, por etapas ou alienação de ações ou
subscrição, direito de preferência para subscrição de ações — não é su- valores mobiliários conversíveis em ações —, o pressuposto fundamen-
ficiente, "per se", para tornar exigível a OPA por alienação de contro- tal, para que emerja a obrigatoriedade de OPA, é que a operação re-
le. É necessário que ocorra o exercício do direito conferido por tais sulte na transferência do poder de controle146.
títulos, seja com a conversão, seja com a subscrição, para que a alie- Além da efetiva mudança no comando dos negócios sociais, a apli-
nação do controle seja consumada145. cação do artigo 254-A exige o caráter oneroso da operação. Somente
143 NELSON EIZIRIK. A Lei das S/A Comentada. v. IV, 3a edição, São Paulo: Quartier
é obrigatória a OPA para aquisição das ações dos minoritários quando
Latin, 2021, p. 374-375. houver pagamento, em dinheiro ou em bens, pelas ações ou valores mo-
144 O § 4° do artigo 33 da Resolução CVM n° 85/2002 assim dispõe: "Art. 33.
(...)§ 4° Para os efeitos desta Resolução, entende-se por alienação de controle a
biliários conversíveis que permitam a transferência do controle acionário.
operação, ou o conjunto de operações, de alienação de valores mobiliários com Como o artigo 254-A determina que o preço da OPA deve cor-
direito a voto, ou neles conversíveis, ou de cessão onerosa de direitos de subscrição
desses valores mobiliários, realizado pelo acionista controlador ou por pessoas responder a 80% do valor por ação pago ao antigo controlador, a ofer-
integrantes do grupo de controle, pelas quais um terceiro, ou um conjunto de ta pública não teria qualquer finalidade caso a transferência ocorresse
terceiros representando o mesmo interesse, adquira o poder de controle da
companhia, como definido no art. 776 da Lei n° 6.404, de 7976".
145 CARLOS AUGUSTO DA SILVEIRA LOBO, "Alienação do Controle de Companhia Companhias. 2a edição, Rio de Janeiro: Forense, 2017, p.1.465.
Aberta". In: Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira (Coord.). Direito das 146 NELSON EIZIRIK. A Lei das S/A Comentada..., v. IV, p. 376.
138 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 139

a título gratuito, como numa herança ou doação. Isso não significa, hipótese de o adquirente comprar quantidade de ações que, isolada-
contudo, que a OPA somente é obrigatória quando o preço pago pelo mente, ou agregadas às ações que já detinha, venham a assegurar-lhe o
controle apresente ágio com relação ao valor de mercado das ações. comando da companhia, nos termos do artigo 116 da Lei das S.A.'49.
Desde que a operação tenha caráter oneroso e estejam presentes os Desse modo, os elementos que caracterizam a alienação do con-
demais requisitos, torna-se obrigatória a realização da oferta pública, trole acionário e obrigam o adquirente a realizar uma OPA são: (i) que
ainda que o valor a ser pago seja menor do que o preço praticado no a operação, em seu conjunto, resulte na presença de um novo acionis-
mercado, uma vez que, em um mercado com pouca liquidez, ela pode ta controlador ou grupo de controle, que substitua o antigo contro-
constituir a única oportunidade de saída dos minoritários''. lador no exercício do poder de controle, tal como definido no artigo
O § 1° do artigo 254-A, ao impor a realização da OPA, refere- 116 da Lei das S.A.; (ii) que a transferência do poder de controle,
-se, genericamente, à transferência de ações integrantes do bloco de qualquer que seja a sua modalidade, apresente caráter oneroso; e (iii)
controle, que venha a resultar na alienação do controle acionário da que tenha ocorrido a transferência da totalidade ou de parte de ações
companhia. Assim, não é necessário, para que se torne obrigatória a ou de direitos sobre as ações pertencentes ao antigo controlador"°.
oferta pública, que todos os integrantes do grupo de controle transfi-
ram para o novo controlador o conjunto de suas posições acionárias148.
3.5.4. MODALIDADES DE CONTROLE E CASOS EM QUE A OPA
Porém, é indispensável que ocorra alguma transferência de ações por
NÃO É OBRIGATÓRIA
pelo menos um dos integrantes do grupo controlador, que acarrete o
Podemos reconhecer, em nossa prática empresarial, as seguintes
surgimento de novo controlador.
modalidades de controle acionário nas companhias abertas: (i) ma-
Com efeito, não faz sentido obrigar o novo titular do controle
joritário; (ii) compartilhado; e (iii) minoritário.
acionário a adquirir as ações dos minoritários se ele não comprou ne-
O controle majoritário existe quando um acionista, pessoa física
nhuma ação do antigo controlador. Se a OPA tem por objetivo atri-
ou jurídica, um grupo de acionistas ou uma família detém a maioria
buir aos minoritários a mesma oportunidade de alienar suas ações
das ações com direito de voto, o que ainda constitui o caso mais co-
que o controlador teve, não se pode exigir a sua realização se este não
mum nas companhias abertas brasileiras.
alienou qualquer ação de sua propriedade.
O "controle compartilhado" é aquele exercido por várias pessoas fi-
No entanto, não é qualquer alienação de ações do grupo de con-
sicas ou jurídicas, usualmente como signatários de acordo de acionistas,
trole que enseja a aplicação do artigo 254-A. A OPA é "disparada" na
que se obrigam a votar em conjunto nas matérias referentes ao exercí-
cio do poder de controle. Embora nenhuma delas tenha, individual-
147 JOSÉ WALDECY LUCENA. Das Sociedades Anônimas - Comentários à Lei
(artigos 189 a 300). v. 3, Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 873-874. Ver, a
propósito, decisão do Colegiado da CVM proferida no Processo Administrativo
CVM n° RJ2006/7658, j. em 11.04.2007. Disponível em: <www.cvm.gov.br>.
148 NELSON EIZIRIK, "Mudança na Composição do Bloco de Controle de 149 LUIS LEONARDO CANTIDIANO, "Características das Ações, Cancelamento de
Companhia Abera. Inexigibilidade de OPA por Alienação de Controle ou por Registro e 'tag along'". In: Jorge Lobo (Coord.). Reforma da Lei de Sociedades
Aquisição de Participação Acionária Relevante". In: Direito Societário- Estudos Anônimas. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 93.
e Pareceres. São Paulo: Quartier Latin, 2015, p. 470. 150 NELSON EIZIRIK. A Lei das S/A Comentada..., v. IV, p. 386.
r NELSON EIZIRIK - 141
140 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL

mente, a maioria das ações com direito de voto, a união de suas ações ção de dividendos, operações de incorporação, fusão ou cisão, inves-
assegura o controle acionário, mediante o chamado "bloco de controle». timentos ou empréstimos acima de determinado valor.
Tais acordos em geral preveem uma reunião prévia entre os signa- A Lei das S.A., ao não exigir, no artigo 116, um percentual míni-
tários, na qual a decisão sobre o exercício do poder de controle em de- mo de ações para presumir a existência de controle, admitiu implicita-
terminada situação será tomada por maioria de votos e vinculará a todos. mente o controle minoritário, o qual existe quando, dada a dispersão
Ou seja, todos os signatários seguirão a decisão adotada na reunião pré- das ações com direito de voto no mercado, um acionista ou grupo de
via nas manifestações do bloco de controle em assembleias gerais ou re- acionistas exerce o poder de controle com menos da metade do ca-
uniões do conselho de administração, ainda que tenham sido vencidos. pital votante, uma vez que nenhum outro acionista ou grupo está or-
No controle compartilhado, o poder de controle é exercido pelo ganizado ou detém maior quantidade de ações.
grupo, como um todo, por meio do exercício comum do direito de As 2 (duas) situações — controle compartilhado e minoritário —
voto. O grupo de controle exerce as responsabilidades que incumbem podem coexistir. É o que ocorre, por exemplo, se na companhia X um
ao acionista controlador sempre de forma coletiva; as pessoas que o grupo de acionistas, reunidos por acordo de voto, detém 30% do capi-
constituem agem e respondem como se fossem uma só, sem que cada tal votante e prevalece nas assembleias gerais, elegendo a maioria dos
uma delas, por si só, possa ser caracterizada como acionista controla- administradores e usando seu poder para dirigir as atividades sociais.
doi-151 . Conforme já decidiu a CVM, "o controle é exercido pelo grupo, Há casos em que o capital votante se encontra tão pulverizado no
como grupo e em grupo" 152. mercado que não existe efetivamente um acionista controlador. É o mo-
Usualmente, caracterizam o controle compartilhado a combina- delo denominado "controle pulverizado" ou "controle gerencial", no qual
ção das seguintes cláusulas constantes do acordo de acionistas: acordo não se identifica a figura do acionista controlador; a direção efetiva dos
de voto conjunto para determinadas matérias, que somente podem negócios sociais é realizada pelos administradores, membros do conse-
ser aprovadas em assembleia geral ou em reunião do conselho de ad- lho de administração e da diretoria. Inexistindo um acionista controla-
ministração se forem antes aprovadas em reunião prévia; direito de dor, ainda que minoritário, é impossível a alienação do controle, já que
preferência às demais partes do acordo para aquisição das ações do controle não há, descabendo a aplicação do artigo 254-A da Lei das S.A.
signatário que deseja retirar-se da companhia; direito de eleger um Em companhias com controle compartilhado foram surgindo di-
número de membros da diretoria e do conselho de administração; versos casos submetidos à CVM, que, uma vez decididos, passaram a
necessidade de aprovação, por todos, ou pela maioria dos signatários, formar uma "jurisprudência administrativa", havendo relativa segu-
para o ingresso de novos sócios; direito de veto sobre determinadas rança jurídica a respeito, o que não ocorre na hipótese de transferên-
matérias tidas como relevantes, como aumento de capital, distribui- cia de controle minoritário.
Conforme antes referido, em qualquer das hipóteses contempla-
.l

151 LUIZ CASTÃO PAES DE BARROS LEAES, "Acordo de comando e poder com-
das no artigo 254-A — alienação direta, indireta ou em etapas — para
partilhado". In: Pareceres. v. II, São Paulo: Singular, 2004, p.1.309. que se configure a obrigatoriedade da OPA é necessário que a ope-
152 Voto proferido por Marcelo Trindade, então Presidente da CVM, no Processo
Administrativo CVM n° RJ2007/7230, Rel. Dir. Eli Loria, j. em 11.07.2007.
ração resulte, direta ou indiretamente, na transferência do poder de
142 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK -143

dirigir o processo empresarial da companhial". Assim, somente será Em recente decisão, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que
obrigatória a oferta pública caso ocorra efetiva alienação do contro- o simples ingresso de terceiro no grupo controlador, por si só, é insu-
le, sendo fundamental a presença de novo acionista controladorim. ficiente para configurar a alienação de controle de que trata o artigo
Em uma companhia com controle compartilhado, o disposto no 254-A da Lei das S.A., especialmente quando este terceiro não as-
artigo 254-A somente poderá ser aplicado caso os integrantes do blo- sume posição majoritária dentro do bloco de controle e submete-se
co de controle cedam sua posição para terceiro, o qual assume posi- a acordo de acionistas no qual está evidenciada a relação de paridade
ção dominante na companhia. Devem ser considerados terceiros não entre ele e os demais integrantes do grupol".
apenas aqueles que não mantinham qualquer relação com os antigos A reestruturação do controle, sem alteração do acionista con-
controladores, mas também aqueles que detinham posição minoritá- trolador final, também não dispara o "gatilho" da OPA. Assim, a
ria dentro do bloco de controle. consolidação do controle em uma nova sociedade, reorganizando as
A transferência de ações entre os componentes do bloco de controle sociedades que detêm o controle direto, não configura alienação de
somente caracterizará a alienação do controle acionário se os cedentes controle, desde que mantido o poder de mando sob a titularidade do
venderem para o adquirente uma quantidade de ações que lhe permi- mesmo controlador final. No caso, ocorre apenas a mudança do veí-
ta assumir posição de preponderância dentro do grupo. No caso, ainda culo utilizado para o exercício do controle, o qual permanece sob a
que subsista o grupo controlador, o controle mudou de mãos, uma vez titularidade do mesmo acionista controlador indireto'". Por exem-
que há um novo acionista a prevalecer dentro do bloco de controlei". plo, se A controla a companhia aberta B diretamente e transfere suas
ações para 2 (duas) sociedades holdings sob seu controle, não incide
Já a mudança de posição dentro do bloco de controle, com a
o disposto no artigo 254-A, pois o controlador final — antes direto,
transferência de ações de um acionista para outro, sem que haja a al-
agora indireto — continua o mesmo.
teração do comando dentro dele, não configura alienação de contro-
le. Também não caracteriza alienação do controle a hipótese em que Quando ocorre a aquisição "originária" do controle, por exemplo,
um terceiro, que não integrava o grupo controlador, adquire parte das mediante compra de ações pertencentes a diversos acionistas mino-
ações integrantes do bloco que não lhe confere uma posição domi- ritários, sem que o novo controlador tenha comprado ações do anti-
nante dentro dele, não se aplicando o disposto no artigo 254-A1S6. go controlador, tampouco aplica-se o artigo 254-A, uma vez que não
houve alienação do poder de controle. O mesmo acontece quando um
grupo de acionistas passa a exercer o controle sem adquirir ações do
153 CARLOS AUGUSTO JUNQUEIRA DE SIQUEIRA. Transferência de Controle
Acionário: Interpretação e Valor. Niterói: FMF, 2004, p. 64.
154 Voto do Diretor Eli Loria no julgamento do Processo Administrativo CVM n° RJ 157 Nesse sentido, ver a decisão do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial
2.007/7230, Dir. Rel. Eli Loria, j. em 11.07.2.007. n° 1.837.538 - SP, Min. Rel. Ricardo VillaS BUS Cueva, j. em 07.03.2023.
155 PAULO EDUARDO PENNA. Alienação de Controle de Companhia Aberta..., i58 Nesse sentido, vera decisão do Colegiado da CVM no Processo Administrativo
p. 116. CVM n° RJ2006/7658, j. em 11.04.2.007. Também: ALEXANDRE DE
156 NELSON EIZIRIK, "Ingresso de novo Investidor no Bloco de Controle de MENDONÇA WALD e LUIZA RANGEL MORAES, "Transferência de Controle
Companhia Aberta. Inexigibilidade de OPA por Alienação de Controle. Exceção de Companhia Aberta. Algumas Questões para Estudo e Reflexão", Revista
à Aplicação da Cláusula Estatutária de Poison Pili". In: Direito Societário - de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. v. 38, São Paulo: Revista dos
Estudos e Pareceres. São Paulo: Quartier Latin, 2015, p. 512-519. Tribunais, outubro-dezembro, 2007, p.15-38.
144 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK -145

antigo controlador, com a celebração de um acordo que lhes permite, Em nosso entendimento, a OPA prevista no artigo 254-A não é
ao atuarem conjuntamente, deter o poder de comandar os negócios da obrigatória em tal situação, uma vez não existe um "bloco de controle"
companhia. Assim, por exemplo, se a companhia A é controlada por dotado de permanência, mas apenas um conjunto de ações que per-
Fulano, com 30% de seu capital votante, e Beltrano e Sicrano, cada mite ao seu titular exercer as prerrogativas que identificam o poder de
um com 20% das ações com direito de voto, celebram um acordo de controle. Imagine-se a seguinte situação: o acionista Fulano adquire
voto, eles passam a exercer o controle da companhia sem que tenha 20% do capital da companhia aberta X e, dada a dispersão acionária
ocorrido uma alienação de controle para os efeitos do artigo 254-A de seu capital votante, prepondera na primeira assembleia geral após
da Lei das S.A. Tal operação difere da chamada "aquisição derivada", tal compra. É perfeitamente possível que, logo após, Beltrano adquira
em que o poder de controle é alienado de antigo para o novo acio- maior quantidade de ações e alcance a maioria na assembleia seguin-
nista controlador, caso em que a OPA é obrigatória1S9. te. Como obrigar Fulano a realizar uma OPA, com todos os custos
Tampouco é exigida a realização da OPA quando ocorre mudan- nela envolvidos, quando o que adquiriu, na realidade, foi uma posi-
ça de controle em decorrência de operações de incorporação (artigo ção de controle precário, quiçá provisório?
227 da Lei das S.A.), incorporação de ações (artigo 252), fusão (arti- Ademais, o fato de o artigo 116 da Lei das S.A. admitir a figu-
go 228) ou cisão (artigo 229). Em tais casos, as ações são transferidas ra do controle minoritário não pode servir de base para sua aplicação
como um dos elementos do patrimônio da sociedade participante da aos casos de alienação do controle, uma vez que o objetivo da norma
transação. Não existe preço de alienação das ações da sociedade-al- foi permitir a responsabilização do acionista controlador pelos atos
vo, uma vez que os patrimônios das sociedades envolvidas são ava- abusivos eventualmente praticados no exercício desse poder161.
liados como universalidades, para determinação da relação de troca. Na única oportunidade em que se manifestou a respeito, o
Ademais, todos os acionistas devem receber, na relação de troca, o Colegiado da CVM, por maioria, e por diferentes razões, afastou a
mesmo valor pelas suas ações16°. incidência do artigo 254-A. Neste caso, discutiu-se a suposta aliena-
Diversamente do que acontece na hipótese de controle compar- ção do controle minoritário e indireto por sociedade holding situada
tilhado, em que existe uma orientação razoavelmente consolidada na em outro país, sem que tenha se formado um entendimento conclu-
CVM, bem como na doutrina, não há consenso entre os autores que
161 NELSON EIZIRIK, "Aquisição de Controle Minoritário. Inexigibilidade de Oferta
trataram da matéria com relação à alienação do controle minoritário. Pública". In: Direito Societário - Estudos e Pareceres. São Paulo: Quartier
Latin, 2015, p. 411-426. Em sentido contrário, EDUARDO SECCHI MUNHOZ,
"Da Alienação à Aquisição de Controle: Uma Nova Interpretação para o Art.
254-A da Lei das S/A". In: Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França e Marcelo
159 JOSE LUIZ BULHÕES PEDREIRA, "Alienação de Controle de Companhia Vieira Von Adamek (Coord.). Temas de Direito Empresarial e Outros Estudos
Aberta". In: Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira (Coord). A Lei das S.A.: em Homenagem ao Professor Luiz Gastão Paes de Barros Leães. São Paulo:
(pressupostos, elaboração, aplicação). v. II, 2a edição, Rio de Janeiro: Renovar, Malheiros, 2014, p. 201-229; ERIK FREDERICO OIOLI, "Anotações sobre o
1996, p. 620. Regime de Aquisição e Transferência do Controle na Lei das S.A.: o Caso das
160 A CVM tem decidido reiteradamente nesse sentido: (i) Processo Administrativo Companhias de Capital Disperso", Revista de Direito das Sociedades e dos
CVM n° RJ 200 8/4156, Rel. Dir. Sergio Weguelin, j. em 17.06.2008; (ii) MEMO/ Valores Mobiliários. São Paulo: Almedina, v. 1, maio, 2015; ANA GABRIELA
SRE/GER-1/N° 214/2008, de 17.09.2008; (iii) Processo Administrativo CVM n° SEINCMAN, "A Oferta Pública de Aquisição de Ações porAlienação de Controle
RJ 2009/5811, Rel. SEP, j. em 28.07.2009; e (iv) o Processo Administrativo CVM (Minoritário)", Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. São
n° RJ 2009/13346, Rel. Dir. Ana Novaes, j. em 17.12.2013. Paulo: Revista dos Tribunais, n. 8o, abril-junho, 2018, p. 159-191.
146 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 147

sivo a respeito. Apenas 1 (um) dos membros do Colegiado, o então to lhes assegure tal direito como uma das vantagens previstas no ar-
Diretor Eli Loria, manifestou-se expressamente de maneira contrá- tigo 17, § 1°, inciso III, da Lei das S.A.'64.
ria à obrigatoriedade da OPA na alienação do controle minoritário, As ações preferenciais, ainda que não tenham direito de voto ou
analisando o mérito e fundamentando seu voto no argumento de o tenham com restrição ao seu exercício, poderão ser objeto da oferta
que como o acionista que o exerce não tem garantia de que pode- pública caso exista previsão no estatuto. Da mesma forma, serão in-
rá continuar a manter tal posição no futuro, inexistiria permanên- cluídas na OPA as ações preferenciais das companhias que aderiram
cia no controle, um dos elementos essenciais para caracterizá-lo162. ao Nível 2 de Governança Corporativa da B3 S.A. — Brasil, Bolsa,
É inequívoco que existe insegurança jurídica no caso de alienação Balcão (B3), conforme mais adiante analisado.
de controle minoritário. O sistema da Lei das S.A., no qual é neces- Nos termos do artigo 33 da Resolução CVM n° 85/2022, a OPA
sária uma análise caso a caso da efetiva alienação de controle de com- deve ter por objeto "todas as ações da companhia às quais seja atribuído
panhia aberta, contraria a tendência verificada nos países europeus, o pleno e permanente direito de voto, por disposição legal ou estatutdria" ,
onde, após a edição da Diretiva 2004/25/CE do Parlamento Europeu excluindo, assim, as ações preferenciais com direito de voto restrito e
e do Conselho da União Europeia, exigiu-se dos países membros a as ações preferenciais com direito de voto temporário.
fixação de um percentual fixo do capital votante a partir do qual se
As ações preferenciais com voto restrito são aquelas que atribuem
presume a aquisição do controle e, consequentemente, torna-se obri-
aos seus titulares o direito de voto nos casos previstos no estatuto, nos
gatória a realização da OPA163.
termos do caput do artigo 111 da Lei das S.A.165

3.5.5. DESTINATÁRIOS DA OPA


164 "Art. 17. As preferências ou vantagens das ações preferenciais podem consistir:
Nos termos do artigo 254-A, a oferta é destinada somente aos (...) § 1° Independentemente do direito de receber ou não o valor de reembolso
titulares de ações com direito de voto que não integram o bloco de do capital com prêmio ou sem ele, as ações preferenciais sem direito de voto ou
com restrição ao exercício deste direito, somente serão admitidas à negociação
controle. Logo, ficam excluídos da OPA os titulares de ações prefe- no mercado de valores mobiliários se a elas for atribuída pelo menos uma das
renciais cujo direito de voto é negado pelo estatuto. Por outro lado, seguintes preferências ou vantagens: I - direito de participar do dividendo a ser
distribuído, correspondente a, pelo menos, 25% (vinte e cinco por cento) do lucro
também serão incluídas na OPA as ações preferenciais caso o estatu- líquido do exercício, calculado na forma do art. 202, de acordo com o seguinte
critério: a) prioridade no recebimento dos dividendos mencionados neste inciso
162 Processo Administrativo CVM n° RJ 2009/1956, Dir. Rel. Eliseu Martins, j. em correspondente a, no mínimo, 3% (três por cento) do valor do patrimônio líquido
15.07.2009. da ação; e b) direito de participar dos lucros distribuídos em igualdade de
163 Ver, a propósito, HIGOR DA SILVA BIANA e LEONARDO DA SILVA SANT'ANNA, condições com as ordinárias, depois de a estas assegurado dividendo igual ao
"Alienação de Controle de Companhia Aberta: Os Entendimentos da CVM e a mínimo prioritário estabelecido em conformidade com o alínea a; ou II - direito ao
Segurança Jurídica", Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. São recebimento de dividendo, por ação preferencial, pelo menos ;o% (dez por cento)
Paulo: Revista dos Tribunais, n. 73, junho-setembro, 2016, p.119-143. Em sentido maior do que o atribuído a cada ação ordinária; ou III - direito de serem incluídas
semelhante, FRANCISCO ANTUNES MACIEL MÜSSNICH e CAIO MACHADO na oferta pública de alienação de controle, nas condições previstas no art. 254-A,
FILHO, "Homenagem a Nelson Candido Motta - Revisitando a Alienação do assegurado o dividendo pelo menos igual ao das ações ordinárias."
Controle Compartilhado". In: Pedro Paulo Cristofaro e Caio Machado Filho 165 "Art. ui. O estatuto poderá deixar de conferir às ações preferenciais algum ou
(Coord.). Direito Empresarial: Estudos Contemporâneos. São Paulo: Quartier alguns dos direitos reconhecidos às ações ordinárias, inclusive o de voto, ou conferi-
Latin, 2017, p. 9-26. lo com restrições, observado o disposto no artigo log."
r
148 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK -149

Já as ações preferenciais com voto temporário são aquelas que o tares, assim como os estabelecidos pela B3, nas companhias listadas em
adquirem, conforme o § 1° do artigo 111, pelo fato de a companhia, seus Níveis de Governança, e/ou previstos em suas normas estatutárias.
pelo prazo previsto no estatuto, não superior a 3 (três) exercícios sociais, O pedido de registro da OPA deve ser apresentado à CVM, nos
deixar de pagar os dividendos fixos ou mínimos a que elas têm direito, termos do § 3° do artigo 33 da Resolução CVM n° 85/2022, no pra-
ter
conservando-o até que a companhia distribua os dividendos devidos. imo de 30 (trinta) dias a contar da data de assinatura do ins-
zo máximo
A nosso ver, o artigo 33, capuz', da Resolução CVM n° 85/2022 trumento definitivo de alienação das ações representativas do controle,
é ilegal, uma vez que a Lei das S.A. não faz qualquer menção à ne- quer a OPA se constitua em condição suspensiva, quer em condição
cessidade de que as ações, para serem objeto da OPA, tenham voto resolutiva. O registro da OPA, a teor do § 3° do mesmo artigo, implica
permanente'66. O Colegiado da CVM, porém, teve a oportunidade autorização da alienação do controle, sob a condição de que a oferta pú-
de discutir a matéria, entendendo, de forma unânime, que tais ações blica seja realizada nos termos aprovados e nos prazos regulamentares.
não precisavam ser incluídas na OPA'67. A Resolução CVM n° 85/2022, em seu artigo 11, disciplina detalha-
A OPA tem por objeto ações que devem estar livres e desemba- damente a tramitação do pedido de registro da OPA, descrevendo os ór-
raçadas de ônus, gravames ou restrições que possam impedir a ple- gãos internos competentes para analisar o pedido de registro, assim como
na propriedade de seu titular. Assim, não serão destinatários da OPA os prazos para formulação e atendimento de exigências da Autarquia.
acionistas minoritários com ações caucionadas, gravadas com usufru- O instrumento da OPA, também chamado de edital, consti-
to, objeto de alienação fiduciária ou fideicomisso, vinculadas a acor- tuindo uma proposta de contratar, deve conter todos os elementos
dos de acionistas ou sujeitas a qualquer ônus averbado nos livros da necessários à formação dos contratos de compra e venda entre o ofer-
companhia ou da instituição financeira, no caso de ações escriturais168. tante, adquirente do controle acionário, e os destinatários, acionistas
minoritários da companhia objeto da oferta. Trata-se de documen-
to fundamental, posto que nele devem estar não só contidas todas as
3.5.6. INSTRUMENTO DA OPA E ACEITAÇÃO DA OFERTA
informações necessárias à tomada de decisão dos destinatários, como
Conforme o § 2° do artigo 254-A da Lei das S.A., a CVM deve aquelas indispensáveis à celebração dos contratos de compra e venda.
autorizar a alienação do controle da companhia aberta desde que as
O Anexo A da Resolução CVM n° 85/2022, em seu artigo 1°,
condições da oferta pública atendam aos requisitos legais, regulamen-
descreve todas as informações que devem ser apresentadas no pedi-
166
do de registro da OPA, dentre as quais as mais relevantes são: iden-
NELSON EIZIRIK. A Lei das S/A Comentada..., v. IV, p.373. Em sentido contrário,
entendendo que tais ações não têm direito de integrar a OPA: ALFREDO LAMY tificação da companhia objeto; indicação da existência de vinculação
FILHO, "Oferta Pública por Alienação de Controle e as Ações Preferenciais com
Direito de Voto por não Pagamento de Dividendos". In: Alfredo I nmy Filhe, e
entre os seus acionistas, notadamente por acordo de acionistas; cópia
José Luiz Bulhões Pedreira (Coor.). A Lei das S.A. (pressupostos, elaboração, do contrato de intermediação; minuta do instrumento da OPA; re-
aplicação). Rio de Janeiro: Renovar, 1992, p. 723-724; e PAULO EDUARDO
PENNA. Alienação de Controle de Companhia Aberta..., p. 219.
lação de todos os acionistas da companhia objeto; descrição do ma-
167 Processo Administrativo CVM n° RJ2o04/6623, Dir. Rel. Sergio Weguelin, j. em terial publicitário a ser utilizado na divulgação da OPA; cópia dos
25.01.2005.
168 contratos que resultaram na alienação do controle.
PAULO EDUARDO PENNA. Alienação de Controle de Companhia Aberta...,
p. 221.
""111111110"--

NELSON EIZIRIK - 151


150 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATLIM

Já no Anexo B, artigo 1° da mesma Resolução, estão elencadas as No leilão, deve-se adotar procedimento que assegure a possibi-
informações que o instrumento da OPA (edital) deve conter. Além lidade de elevação do preço a ser pago pelas ações no seu transcor-
daquelas mencionadas no Anexo A, as principais são as seguintes: rer, estendendo-se o novo preço a todos os acionistas aceitantes dos
número, espécie e classe das ações objeto; preço; principais termos e lances anteriores. É permitida a interferência no leilão, desde que o
condições da oferta; dados sobre o leilão, quando ocorrerá a aceitação interessado divulgue sua intenção ao mercado, com 10 dias de ante-
da OPA; dados sobre a companhia, tais como quadro acionário, qua- cedência (artigo 15, § 2°, da Resolução CVM n° 85/2022).
dro demonstrativo dos seus indicadores financeiros nos últimos dois
exercícios, indicação do preço médio das suas ações; número de ações
3.5.7. A OPA NOS SEGMENTOS ESPECIAIS DE LISTAGEM NA B3
detidas pelo ofertante; contratos e demais instrumentos dispondo so-
bre a aquisição ou alienação de valores mobiliários da companhia ob- A partir de dezembro de 2000, a então Bovespa, atual B3 S.A.
jeto dos quais o ofertante seja parte; descrição de contratos e demais — Brasil, Bolsa, Balcão (B3), implantou alguns segmentos especiais
instrumentos legais celebrados nos últimos seis meses entre o ofer- de listagem que revelam o comprometimento das companhias ade-
tante ou pessoas a ele vinculadas e a companhia objeto, seus admi- rentes de adotarem as melhores práticas de governança corporativa,
nistradores ou acionistas titulares de mais de 5% das ações objeto da introduzindo em suas estruturas societárias regras mais rigorosas do
OPA; informação de que se encontra à disposição de eventuais inte- que aquelas previstas na Lei das S.A.
ressados a relação nominal de todos os acionistas da companhia obje- O mais importante desses segmentos é o denominado Novo
to, com seus respectivos endereços e quantidade de ações que detêm. Mercado, o qual obriga que o capital social da companhia seja compos-
Nos termos do artigo 15 da Resolução CVM no 85/2022, a acei- to somente por ações ordinárias169. Exige-se, ainda, para as companhias
tação da oferta ocorrerá em leilão no "ambiente de mercado organi- listadas, a extensão a todos os acionistas das mesmas condições obti-
zado" — ou seja, bolsa de valores ou mercado de balcão, atualmente das pelos controladores quando da venda do controle da companhia.
concentrados na B3 — em que as ações objeto da OPA sejam admi- Nesse sentido, o artigo 37 do Regulamento do Novo Mercado da
tidos à negociação.
B3 determina que "a companhia deve prever em seu estatuto social que a
Uma vez aceita a oferta no leilão, aperfeiçoa-se o contrato de alienação direta ou indireta de controle da companhia deve ser contratada
compra e venda das ações, nos termos do edital da OPA, devendo o sob a condição de que o adquirente do controle se obrigue a efetivar OPA
comprador proceder à liquidação financeira da operação — isto é, ao tendo por objeto as ações de emissão da companhia de titularidade dos de-
pagamento do preço — por meio da instituição intermediadora. mais acionistas, de forma a lhes assegurar tratamento igualitário àquele
O leilão deve ser realizado no prazo mínimo de 30 (trinta) e dado ao alienante"170 (grifos no original).
máximo de 45 (quarenta e cinco) dias contados da data de divulga-
ção do edital, conforme o § 1° do artigo 15. Presume-se que tal pra- 169 Artigo 8° do Regulamento do Novo Mercado da B3 de 17.02.2023.
O artigo 38 do Regulamento do Novo Mercado da B3, de 17.02.2023, prevê
zo seja suficiente para que os acionistas possam decidir se vendem 17o
que, em caso de alienação indireta de controle, o adquirente deve divulgar
ou mantêm as ações. o valor atribuído à companhia para os efeitos de definição do preço da OPA,
bem como divulgar a demonstração justificada desse valor.
152 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 153

A concessão de tratamento igualitário a todos os acionistas é 3.6. APROVAÇÃO DA OPERAÇÃO PELA


considerada uma boa prática de governança, pois evita a apropriação,
ASSEMBLEIA GERAL DA COMPRADORA
pelo controlador, de todo o valor do ágio de controle.
As companhias que aderirem ao denominado Nível 2 de
Governança Corporativa da B3 deverão estender aos acionistas prefe- 3.6.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
rencialistas o direito de participarem da oferta pública em decorrência A operação de aquisição de participação societária de controle
da alienação de controle'". O Regulamento do Nível 2, em sua versão (modalidade de "share deal') pode demandar a necessidade de apro-
original, determinava que, para os acionistas titulares de ações ordinárias, vação por parte da assembleia geral da companhia aberta adquirente,
deveria ser conferido tratamento igualitário ao dispensado ao acionista bem como conferir o direito de recesso aos seus acionistas dissidentes.
controlador alienante e, no caso dos acionistas preferencialistas, deve-
Em regra, a deliberação sobre a compra do controle de outra so-
ria ser pago o preço de 80% (oitenta por cento) do valor pago ao con-
ciedade pode ser tomada, de acordo com o que dispuser o estatuto
trolador. Com a reforma do Regulamento, que culminou na versão que
social, pelo conselho de administração ou pela diretoria da socieda-
entrou em vigor em 10.05.2011, determinou-se que o tratamento igua-
de, em conformidade com o princípio de que compete aos órgãos de
litário também deve ser estendido aos acionistas preferencialistas. Tal
administração praticar todos os atos necessários ao funcionamento
previsão foi mantida nas revisões do Regulamento de 2017 e de 2023.
regular da companhia. Exigir-se a aprovação dos acionistas para toda
Os segmentos de listagem Bovespa Mais e Bovespa Mais Nível e qualquer compra de bens poderia "engessar" as atividades da com-
2 também asseguram tratamento igualitário aos demais acionistas da panhia e a sua gestão, em prejuízo dos próprios sócios13.
companhia àquele dado ao controlador alienante. Assim, preveem que
No entanto, tendo em vista a relevância de que aquisição do con-
a alienação de controle de companhia, tanto por meio de uma úni-
trole de outra sociedade pode se revestir, o artigo 256 da Lei das S.A.
ca operação, como por meio de operações sucessivas, deverá ser con-
estabelece determinadas situações em que se torna obrigatória a pré-
tratada sob a condição, suspensiva ou resolutiva, de que o adquirente
via aprovação ou a posterior ratificação da operação pela assembleia
se obrigue a efetivar oferta pública de aquisição de ações dos demais
geral da companhia aberta compradora".
acionistas da companhia172.
173 NELSON EIZIRIK. A Lei das S/A Comentada. v. IV, 3a edição, São Paulo: Quartier
Latin, 2021, p. 404.
174 Art. 256. A compra, por companhia aberta, do controle de qualquer sociedade
mercantil, dependerá de deliberação da assembleia geral da compradora,
especialmente convocada para conhecer da operação, sempre que: I - O preço
de compra constituir, para a compradora, investimento relevante (artigo 247,
parágrafo único); ou II - o preço médio de cada ação ou quota ultrapassar uma vez
e meio o maior dos 3 (três) valores a seguir indicados: a) cotação média das ações
em bolsa, durante os 90 (noventa)dias anteriores à data da contratação (artigo 254,
parágrafo único); a) cotação médio das ações em bolsa ou no mercado de balcão
171 Item 8.1.2 do Regulamento do Nível 2 da B3 de 17.02.2023. organizado, durante os noventa dias anteriores à data da contratação; b) valor de
172 Item 8.1 dos Regulamentos Bovespa Mais e Bovespa Mais Nível 2, ambos de patrimônio líquido (artigo 248)da ação ou quota, avaliado o patrimônio a preços
17.02.2023. de mercado (artigo 183, § 1 °); c) valor do lucro líquido da ação ou quota, que não
NELSON EIzIRIK - 155
154 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL

O objetivo original da norma, conforme a Exposição de Motivos mos do qual se considera relevante o investimento sempre que: (i)
que acompanhou o Projeto de Lei, foi o de impedir a realização de o valor contábil de determinada coligada ou controlada representar
operações em que possa ocorrer conluio entre os administradores ou mais de 10% (dez por cento) do patrimônio líquido da controlado-
controladores da empresa adquirente e os da adquirida, mediante acer- ra; ou (ii) o valor contábil do conjunto de coligadas ou controladas
tos paralelos que promovam a supervalorização das ações desta última. for igual ou superior a 15% (quinze por cento) do patrimônio líqui-
do da controladora.
O objetivo do artigo 247 da Lei das S.A. é obrigar a companhia
3.6.2. O ALCANCE DO ARTIGO 256 DA LEI DAS S.A.
a incluir determinadas informações a respeito de suas controladas ou
O artigo 256 prevê 2 (dois) parâmetros alternativos para que a coligadas nas notas explicativas de suas demonstrações financeiras.
aquisição do controle de outra sociedade por companhia aberta fi-
Contudo, para fins do disposto no inciso I do artigo 256, que
que sujeita à deliberação da assembleia geral: (i) o da relevância do
visa a aferir a relevância do investimento levando em consideração o
investimento diante do patrimônio da compradora; e (ii) o da com-
patrimônio da empresa adquirente, não faz sentido aplicar-se o con-
paração entre o preço de aquisição e o valor das ações ou quotas da
ceito que consta da alínea "b" do parágrafo único do artigo 247, uma
sociedade adquirida, segundo três diferentes critérios.
vez que ele se refere ao valor total do conjunto de investimentos em
De acordo com o primeiro parâmetro, nos termos do inciso I suas coligadas e controladas.
do artigo 256, é necessária a realização de assembleia geral da com- Assim, embora o inciso I do artigo 256 faça referência ao parágra-
panhia adquirente sempre que o preço de compra constituir investi-
fo único do artigo 247, deve-se levar em conta, exclusivamente, o con-
mento relevante.
ceito de relevância da alínea "a" do parágrafo único do mesmo artigo.
Para definir a relevância do investimento, o dispositivo faz refe-
De acordo com o inciso I do artigo 256 da Lei das S.A., a aquisi-
rência ao parágrafo único do artigo 247 da Lei das S.A.75, nos ter-
ção de controle de outra sociedade deverá ser submetida à assembleia
poderá ser superior o /5 (quinze) vezes o lucro líquido anual por ação (artigo 187 geral caso o preço de aquisição represente mais de 10% (dez por cen-
n. VII) nos 2 (dois) últimos exercícios sociais, atualizado monetariamente. § 1° A to) do valor do patrimônio líquido da companhia aberta adquirente.
proposto ou o contrato de compra, acompanhado de laudo de avaliação, observado
o disposto no art. 8°, §§1° e 6°, será submetido à prévia autorização da assembleia Para verificar se uma aquisição de controle constitui investimen-
geral, ou à sua ratificação, sob pena de responsabilidade dos administradores,
instruído com todos os elementos necessários à deliberação. § 2 0 Se o preço da
to relevante para fins do inciso 1, deve-se dividir o preço de aquisição
aquisição ultrapassar uma vez e meia o maior dos três valores de que trata o inciso pelo valor do patrimônio líquido da compradora, constante de suas
II do caput, o acionista dissidente da deliberação da assembleia que a aprovar terá
o direito de retirar-se da companhia mediante reembolso do valor de suas ações,
últimas demonstrações financeiras. Se o resultado da divisão for igual
nos termos do art. 137, observado o disposto em seu inciso Il."
175 'Art. 247. As notas explicativos dos investimentos a que se refere o art. 248 desta Lei
devem conter informações precisas sobre as sociedades coligadas e controladas e operações entre a companhia e as sociedades coligadas e controladas. Parágrafo
suas relações com a companhia, indicando: / - a denominação da sociedade, seu único. Considera-se relevante o investimento: a) em cada sociedade coligada ou
capital social e patrimônio líquido; II - o número, espécies e classes das ações ou controlada, se o valor contábil é igual ou superiora to% (dez por cento) do valor
quotas de propriedade da companhia, e o preço de mercado das ações, se houver; do patrimônio líquido da companhia; b) no conjunto das sociedades coligadas
- o lucro líquido do exercício; IV- os créditos e obrigações entre a companhia e e controladas, se o valor contábil é igual ou superior a 15% (quinze por cento) do
as sociedades coligadas e controladas; V - o montante das receitas e despesas em valor do patrimônio líquido da companhia."
156 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 157

ou maior do que um décimo do patrimônio líquido da compradora, O valor de patrimônio líquido a preços de mercado correspon-
a operação necessitará da aprovação de seus acionistas. de ao somatório do valor individual pelo qual cada bem ou direito
Trata-se de conta matemática que pode ser realizada pela pró- constante do ativo da companhia adquirida poderia ser alienado no
pria administração da companhia compradora, que tem acesso aos mercado, subtraído do respectivo valor constante no passivo. Assim, a
dois dados necessários: o preço de aquisição e o valor do patrimônio avaliação do patrimônio a preços de mercado ocorre mediante a ava-
líquido da adquirente. Constituindo um método simples de cálculo, liação de cada ativo, isoladamente, levando-se em consideração o seu
não é necessária a elaboração de laudo ou de qualquer estudo externo. possível valor de venda ou de reposição'76.
Com efeito, a administração da companhia é responsável pelo O terceiro parâmetro do inciso II do artigo 256 refere-se ao "va-
confronto entre o preço a ser pago e os parâmetros legais, bem como lor de lucro líquido da ação ou quota, que não poderá ser superior a quinze
pela definição da necessidade ou não de assembleia geral, podendo vezes o lucro líquido anual (art. 187, VII) nos 2 (dois) últimos exercícios
ou não considerar necessária a elaboração de laudo. sociais, atualizados monetariamente".
O segundo parâmetro estabelecido pelo artigo 256 diz respei- Ainda que a redação da alínea "c" não seja muito clara, o crité-
to à comparação entre o preço fixado para a aquisição e o valor das rio nela mencionado refere-se ao valor da ação ou quota medido em
ações da sociedade adquirida, apurado de acordo com três critérios função do lucro liquido gerado pela sociedade, ou seja, o seu valor de
estabelecidos na Lei. rentabilidade, normalmente apurado com base no método do fluxo
De acordo com o inciso II do artigo 256, é obrigatória a realização de caixa descontado"'. Assim, o valor de rentabilidade da ação ou
de assembleia geral sempre que o preço a ser pago for superior a uma quota consiste numa projeção financeira obtida com base na expec-
vez e meia o valor das ações ou quotas da sociedade adquirida, apurado tativa de lucro anual.
com base no maior dos seguintes critérios: (i) cotação média em bolsa Constituindo uma previsão de lucros futuros, o resultado da ava-
ou no mercado de balcão organizado; (ii) valor de patrimônio líquido liação pelo método de fluxo de caixa descontado está sujeito a varia-
a preços de mercado; e (iii) valor de lucro liquido da ação ou quota. ções, dependendo das premissas utilizadas por cada avaliador. Para
O primeiro parâmetro não apresenta dificuldade, uma vez que a limitar tais variações, a Lei estabeleceu que o valor por ela apurado não
Lei indica, de forma objetiva, que ele deve ser apurado com base na pode ser superior ao valor médio do lucro líquido registrado pela so-
cotação média das ações em bolsa ou no mercado de balcão organi- ciedade adquirida nos dois últimos exercícios multiplicado por quinze.
zado aferida nos últimos 90 (noventa) dias anteriores à contratação Assim, se a companhia está pagando preço por ação ou quota
da operação. Tal critério evidentemente não é aplicável à aquisição: que corresponda a um índice preço-lucro superior a 22,5 (15 x 1,5),
de companhia aberta cujas ações não são negociadas em bolsa ou no
176 PAULO CEZAR ARACÃO e MONIOUF M mAviC.NiFR nF 1 IMA, "Ine,-,rpornao
mercado de balcão organizado; de companhia fechada; ou de socieda- de Controlada: a disciplina do artigo 246 da Lei 6.404/1976". In: Ecio Perin
de limitada. Em tais casos, a comparação prevista no dispositivo legal Junior, Daniel Kalansky e Luis Peyser (Coord.). Direito Empresarial, Aspectos
Atuais de Direito Empresarial Brasileiro e Comparado. São Paulo: Método,
deve levar em conta apenas aqueles parâmetros previstos nas alíneas 2005, p. 352.
177 ALFREDO LAMY FILHO e JOSE LUIZ BULHÕES PEDREIRA. A Lei das S.A. v. II, 2a
"b" e "c" do inciso II do artigo 256.
edição, Rio de Janeiro: Renovar, 1996, p. 689-690.
NELSON EIZIRIK - 159
158 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL

apurado na forma prevista na alínea "c", a Lei pressupõe que a ope- Conforme a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a fun-
ração assume uma valia de tal relevância que se justifica a necessida- ção do laudo exigido pelo § 1° do artigo 256 é subsidiar a decisão
de de aprovação por parte da assembleia'". dos acionistas de aprovarem ou não a operação, oferecendo-lhes um
balizamento ou uma justificativa para o preço de compra, devendo
Caso a sociedade a ser adquirida não tenha apurado lucro líquido
ser elaborado pelo critério que os administradores entenderem mais
na média dos dois exercícios sociais anteriores, a realização do cálcu-
lo acima descrito resultaria em comparação impossível; assim, em tal adequado ao investimento180.
hipótese não caberia a aplicação da alínea "c". A lei societária não prevê os critérios que devem ser adotados
na elaboração desse laudo de avaliação, ficando a administração livre
Portanto, caso o preço de compra das ações ou quotas da socie-
para definir, junto com a empresa especializada contratada, a metodo-
dade adquirida seja igual ou superior a 10% (dez por cento) do pa-
logia mais adequada para o caso e o ativo a ser avaliado. A propósito,
trimônio liquido da compradora ou ultrapasse em uma vez e meia o
a SEP entende que o laudo exigido pelo § 1° do artigo 256 "deve ser
maior dos 3 (três) parâmetros previstos no inciso II do artigo 256 da
elaborado pelo critério que os administradores entenderem ser o que me-
Lei das S.A., a aquisição do controle deverá ser submetida à prévia
aprovação ou à posterior ratificação dos acionistas da compradora em lhor avalia aquele investimento"'".
assembleia geral convocada para esse propósito. Tal laudo não se confunde com o documento eventualmente
elaborado para analisar os critérios do inciso II. Trata-se, este últi-
Nesse caso, a adquirente deverá disponibilizar aos seus acionis-
mo, de laudo cuja elaboração é facultativa, a critério da administra-
tas a proposta ou o contrato de compra, acompanhado de um laudo
de avaliação, conforme previsto no § 1° do artigo 256, cujo objetivo ção da compradora.
é demonstrar a conveniência do preço e seu caráter equitativo para a Com efeito, cabe à administração da companhia definir se os cri-
empresa compradora. térios legais foram ou não superados para o efeito de condicionar a
aquisição à aprovação dos acionistas. Tal definição deve dar-se com
A obrigação de apresentar o laudo de avaliação foi incluída em
base nos estudos ou laudos que a administração julgar adequados ou
nosso ordenamento societário com a edição da Lei 9.457/1997. O
legislador inspirou-se nas "frirness opinions" que os tribunais norte- desejáveis, para que possa chegar a uma decisão informada, refletida

-americanos passaram a exigir, a partir da década dos 1980, para que e desinteressada'''.
as administrações das companhias demonstrassem que estavam pa- Assim, a administração da companhia compradora não é obri-
gando um preço justo pelas operações de comprar". gada a elaborar laudo para a avaliação dos critérios do artigo 256, in-
ciso II, da Lei das S.A.
178 PAULO CEZAR ARAGÃO, "Algumas Questões Relativas à Aplicação do Artigo
18o Ofício Circular/Anual-2024-CVM/SEP, de 07.03.2024, p. 176.
256 da Lei das Sociedades por Ações". In: Rodrigo Rocha Monteiro de Castro,
Luis Andre Azevedo e Marcus de Freitas Henriques (Coord.). Direito Societário, 181 Ofício Circular/Anual-2024-CVM/SEP, de 07.03.2024, p.176.
Mercado de Capitais, Arbitragem e Outros Temas: Homenagem a Nelson 182 PAULO CEZAR ARAGÃO, "Algumas Questões Relativas à Aplicação do Artigo
Eizirik. v. II, São Paulo: Quartier Latin, 2020, p.158. 256 da Lei das Sociedades por Ações". In: Rodrigo Rocha Monteiro de Castro,
179
Luis Andre Azevedo e Marcus de Freitas Henriques (Coord.). Direito Societário,
EVANDRO FERNANDES DE PONTES, "Regime Jurídico do Laudo 256 e as
faireness Opinions no Direito Brasileiro", Revista de Direito das Sociedades e Mercado de Capitais, Arbitragem e Outros Temas: Homenagem a Nelson
dos Valores Mobiliários. v. 3, São Paulo: Almedina, maio-2016, p.109. Eizirik..., v. II, p. 164.
16o - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 161

No entanto, deve-se mencionar o entendimento adotado pela 3.6.3. O DIREITO DE RECESSO


CVM no Processo Sancionador n° RJ2013/6294183, no qual a SEP O direito de retirada ou de recesso consiste na faculdade previs-
acusou os membros do conselho de administração da companhia ta na lei societária que permite que o acionista, por sua manifestação
aberta adquirente de violação ao artigo 256, § 1°, c/c com o inciso II de vontade, deixe de suportar os efeitos jurídicos decorrentes de uma
do mesmo artigo, por não terem apresentado aos acionistas um lau- decisão majoritária com a qual não concorde, obrigando a sociedade
do com avaliação da companhia adquirida a preço de mercado, nos a pagar-lhe o valor de reembolso de suas ações.
termos da alínea "b" do inciso II. Conforme a acusação, o único lau-
O reembolso constitui uma recompra compulsória pela compa-
do apresentado na operação foi "elaborado para fundamentar o valor
nhia de ações de sua emissão, nos casos em que cabe o direito de re-
pago na aquisição da participação societária da IER tendo sido utilizado
cesso. Como é a própria companhia que deve arcar com o pagamento
o método do _fluxo de caixa descontado".
do reembolso devido ao acionista dissidente, o exercício do direito de
O Colegiado condenou os acusados por entender que a não ela- recesso pode colocar em risco a situação econômico-financeira da so-
boração do laudo com os parâmetros previstos no artigo 256, inciso ciedade. Por esse motivo, ao dispor sobre o direito de retirada, a Lei
II teria: (i) feito com que os acionistas da adquirente sofressem um das S.A. buscou preservar o equilíbrio entre o interesse individual do
prejuízo informacional, posto que tal laudo constitui referência para acionista dissidente e o interesse da companhia.
que eles possam avaliar se o preço negociado pela administração é
Nos termos do artigo 45, § 1°, da Lei das S.A.1", o critério a ser
adequado; e (ii) impedido a verificação do cabimento do direito de
utilizado para a determinação do valor de reembolso é o do patrimô-
recesso e da existência de eventual prejuízo material, pois não lhes foi
nio liquido contábil da companhia apurado no último balanço apro-
concedido o direito de retirada.
vado na assembleia geral.
A decisão a nosso ver foi equivocada, pois não levou em consi-
Tal critério somente pode ser afastado caso o estatuto social te-
deração a distinção entre o laudo obrigatório do § 10 do artigo 256
nha previsto a possibilidade de o reembolso ser fixado com base no
e o laudo eventualmente elaborado para a apuração dos critérios do
valor econômico da companhia, o qual deverá ser calculado por meio
inciso II do mesmo dispositivo.
da avaliação prevista nos §§ 3° e 4° do mesmo artigo. Caso o estatu-
O laudo que serve como referência para que os acionistas pos- to seja omisso, prevalece a regra geral do § 1° do artigo 45.
sam avaliar se o preço negociado pela administração é adequado é o
Dentre as previsões legais de cabimento do direito de retirada
previsto no § 1° do artigo 256, cuja apresentação é obrigatória. Já o
encontra-se a do artigo 256, § 2°, nos termos do qual, quando o preço
laudo eventualmente elaborado para a aferição dos critérios do inciso
de aquisição ultrapassar uma vez e meia o maior dos valores apurados
II do artigo 256 é facultativo e tem como objetivo verificar a neces-
"Art. 4,5. O reembolso é a operação pela qual, nos casos previstos em lei, a
sidade de se submeter a operação à análise dos acionistas e de confe- 184
companhia paga aos acionistas dissidentes de deliberação da assembleia geral o
rir-lhes o direito de recesso. valor de suas ações. §1° 0 estatuto pode estabelecer normas para a determinação
do valor de reembolso, que, entretanto, somente poderá ser inferior ao valor de
patrimônio líquido constante do último balanço aprovado pela assembleia geral,
183 Processo Administrativo Sancionador CVM RJ2o13/6294, Rel. Dir. Pablo observado o disposto no § 2°, se estipulado com base no valor econômico da
Renteria, j. em 14.11.2017. Disponível em: <www.cvm.gov.br>. companhia, a ser apurado em avaliação (§§ 3° e 4°)."
162 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON [IZIRIK -163

no inciso II do mesmo dispositivo, deverá ser assegurado o direito de outro negócio de compra de bens, decisão a ser tomada pela admi-
recesso aos acionistas dissidentes. nistração da companhia.
A dissidência pode ser manifestada nos 30 (trinta) dias seguin- No caso de companhia aberta, a Lei das S.A., em seu artigo 256,
tes à publicação da ata da assembleia geral que aprovou a operação prevê a necessidade de aprovação ou ratificação por parte da assem-
ou daquela que a ratificou. bleia geral, quando a operação constituir investimento relevante fren-
Justifica-se o direito de recesso no caso pois o valor que está sen- te ao patrimônio da sociedade, ou tendo em vista a comparação entre
do pago pela aquisição do controle da "sociedade-alvo" pode ser con- o preço de aquisição e o valor das ações ou quotas da sociedade-alvo,
siderado excessivo pelos acionistas dissidentes, pela comparação entre segundo os critérios ali previstos.
o preço de aquisição e o valor das ações ou quotas da sociedade cujo Trata-se de norma que deve ser interpretada restritivamente, uma
controle foi comprado. vez que excepciona: o princípio de que operações de aquisição (ou
Não existirá o direito de recesso para o acionista dissidente se as venda) de bens são de competência da administração; e o da boa-fé
ações de emissão da companhia aberta adquirente atenderem, cumu- da administração, ao presumir que, atendidos os critérios previstos no
lativamente, aos critérios de liquidez e dispersão, previstos no artigo artigo 256, a aquisição pode estar ocorrendo a um preço excessivo, em
137, inciso II, alíneas conluio entre os controladores e administradores da adquirente e os
Pressupõe-se, caso atendidos os dois critérios, que os acionistas administradores e/ou sócios da adquirida.
discordantes da deliberação assemblear poderão alienar suas ações no Ademais, desde 1976, quando a Lei das S.A. foi promulgada, até
mercado, não fazendo sentido impor-se à companhia o ônus de pa- os dias de hoje, houve grande evolução da chamada "corporate gover-
gar-lhes o valor de reembolso de suas ações. nance", com o aumento do número de membros independentes no
conselho de administração, a criação de comitês de assessoramento
aos órgãos de administração, assim como a divulgação de documen-
3.6.4. OBSERVAÇÕES FINAIS
tos pertinentes ao assunto conforme normas estabelecidas pela CVM,
A aquisição de participação ("share deal) em outra sociedade, padrões rigorosos de governança aplicáveis às companhias abertas
seja por açoes, seja iimiraaa, normalmente constitui, como qualquer _ .
listadas no Novo Mercado e nos Níveis 1 e II da B3 S.A A .— Brasil,

Bolsa, Balcão (B3), bem como orientações elaboradas pelo Instituto


185 "Art. 737. A aprovação das matérias previstas nos incisos I a VI e IX do art. 136 dá ao Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC).
acionista dissidente o direito de retirar-se da companhia, mediante reembolso do
valor das suas ações (art. 45) observadas as seguintes normas: (..) II - nos casos
Assim, a possibilidade de conluio entre os acionistas controlado-
dos incisos IVe Vdo art. 736, não terá direito de retirada o titular de ação de espécie res e administradores da companhia aberta adquirente e os sócios ou
ou classe que tenha liquidez e dispersão no mercado, considerando-se haver: a)
liquidez, quando a espécie ou classe de ação, ou certificado que a represente, integre administradores da sociedade-alvo é cada vez mais remota.
índice geral representativo de carteira de valores mobiliários admitido à negociação
no mercado de valores mobiliários, no Brasil ou no exterior, definido pela Comissão
A decisão do Colegiado da CVM, antes descrita e criticada, ao
de Valores Mobiliários; e b) dispersão, quando o acionista controlador, o sociedade punir administradores de companhia aberta por não terem apresen-
controladora ou outras sociedades sob seu controle detiverem menos da metade
da espécie ou classe de ação; (...)." tado laudo não exigido pela lei, criou alguma incerteza jurídica em
164 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL

operações da espécie. Com efeito, pode demandar cautelas adicionais,


como a elaboração de documentos não previstos em lei e mesmo a
realização de assembleia geral não obrigatória, com vistas a evitar a
eventual abertura de processo administrativo sancionador contra os
acionistas controladores e/ou administradores da companhia aber-
ta adquirente.

Segunda Parte
REGIME CONTRATUAL
NELSON EIZIRIK - 167

4.1. CONTRATO DE AQUISIÇÃO


DE PARTICIPAÇÕES SOCIETÁRIAS

4.1.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O contrato de M&A. pode objetivar a aquisição do estabelecimento,


caso em que é denominado, na prática da advocacia internacional,"asset
dear(o trespasse, em nosso sistema jurídico), ou a compra de participa-
ção societária, seja ou não de controle, quando é intitulado "share deal'.
As participações societárias constituem bens de natureza espe-
cial, dotados de características próprias, cuja circulação na economia
dá-se predominantemente mediante contratos de compra e venda.
O contrato, sob a perspectiva jurídica, trata de transferência de
ações ou de quotas, a depender do tipo societário. Do ponto de vis-
ta econômico, o comprador não adquire tais títulos por suas carac-
terísticas intrínsecas, mas pelo conjunto de direitos políticos e/ou
econômicos que a participação na sociedade lhe atribui'86. Seu inte-
resse primordial é adquirir uma empresa, tendo em vista a sua lucra-
tividade futura.
Tanto as ações como as quotas constituem "bens de segundo
grau", uma vez que o seu valor reflete o dos bens que compõem o pa-
trimônio da empresa e o valor dos direitos políticos que conferem a
possibilidade de participar no processo decisório da sociedade''.
Os contratos de compra e venda de participações societárias,
diante da assimetria de informações entre comprador e vendedor, são
vistos, sob o ponto de vista econômico-jurídico, como instrumentos
de distribuição de riscos.

186 GABRIELSAAD KIK BUSCHINELLI. Compra e Venda de Participações Societárias


de Controle. São Paulo: Quartier Latir], 2018, p. 27.
187 TULIO ASCARELLI, "Riflessioni in tema di titoli azionari e società tra società". In:
Saggi di diritto com merciale, Milão: Giufrrè, 1995, p. 242.
168 - M &A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK -169

Os riscos principais são: o de incorreta avaliação da sociedade, pelas numa empresa local, é a de que, embora constituam negócios típicos
dificuldades objetivas do comprador; de alteração do valor da empresa de compra e venda, contêm obrigações e mecanismos contratuais pe-
entre a celebração do contrato ("signing") e a conclusão da operação culiares, que fogem às tipologias clássicas dos ordenamentos jurídicos
("closing"); a não conclusão do negócio, por falta da necessária autori- romano-germânicos. Na insuficiência dos institutos do direito obri-
zação de alguma autoridade pública ou por incapacidade do adquirente gacional brasileiro, as partes valem-se da autonomia da vontade para
de obter o financiamento para a compra da participação societárias". regular seus interesses e comportamentos.
Os contratos de aquisição de participações societárias envolvem Daí a pecha de "paradoxal" do contrato nos países de orientação
riscos, dado que constituem empreendimento sobre o futuro. Há sem- civil law, como o nosso: por um lado, é um contrato de tipo aliení-
pre a possibilidade de que, por razões previsíveis ou imprevisíveis, se- gena, tendo em sua base categorias jurídicas anglo-saxãs, estando as
jam frustradas as expectativas das partes que orientaram a conclusão partes desejosas de se emancipar da lei local; por outro lado costu-
do negócio. Se não se consegue eliminar as possibilidades de perdas, mam eleger a lei brasileira para sua regência191.
é aõ menos possível alocá-las entre os agentes econômicosi". Ou, em Conforme analisaremos nas seções seguintes, tais contratos in-
termos mais concretos, disciplinar "quem paga a conta" caso ocorram cluem cláusulas originárias do direito anglo-saxão, ou de sua práti-
perdas decorrentes da execução do negócio jurídico. ca, como "earn out","representations and warranties","Mac and Mae",
Assim, o contrato é dominado por cláusulas de distribuição de "due diligente", que demandam um grande esforço para que possam
risco ("risk allocation provisions" — RAPs), as quais são concebidas e "caber" dentro dos limites de nosso direito obrigacional.
utilizadas: em função das informações que as diferentes partes têm na Qual o objeto do contrato e seu regime jurídico? Há diferenças
operação; dos seus incentivos durante e após a transação; e dos custos entre a aquisição de ações e de quotas? Quais os deveres contratuais,
de transação, em especial os de cumprimento do contrato. pré-contratuais e pós contratuais das partes?
Tais circunstâncias são de especial relevância em negócios jurídi- São os temas que doravante passaremos a analisar.
cos da espécie, pois não constituem contratos de execução instantânea;
seus efeitos não se produzem imediatamente, posto que, em geral, as
4.1.2. OBJETO E REGIME JURÍDICO DO CONTRATO
partes condicionam a sua produção à verificação de determinados even-
tos, entre o"signing"(assinatura do contrato) e o "closing"(fechamento O objeto do contrato, como já mencionado, é a compra e ven-
da operação, mediante a entrega dos bens e o pagamento do preço)190. da de participação societária, seja de ações, seja de quotas. A depen-
Uma característica de tais contratos, principalmente quando uma der da quantidade de ações ou quotas envolvidas, pode significar a
das partes não é nacional e está adquirindo participação societária aquisição do controle da sociedade (hipótese mais comum), de uma
participação minoritária, ou ainda, se o adquirente já for acionista ou
188 JOSÉ FERREIRA GOMES. Aquisição de Empresas e de Participações Sociais.
Coimbra: Almedina, 2018, p. 225. 191 RAFAEL SETOGUTI JUNIOR PEREIRA, 'A responsabilidade Pós-Contratual na
189 PAULA A. FORGIONI. Contratos Empresariais. 7a ed. São Paulo: Revista dos Compra e Venda de Participação Societária". In: Marcelo Vieira von Adamek
Tribunais, 2022, p.153; WANDERLEY FERNANDES. Clausulas de exoneração e e Rafael Setoguti J. Pereira (Coord.) Fusões e Aquisições (M&A). São Paulo:
de limitação de responsabilidade. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 47 e seguintes. Quartier Latin, 2022, p. 8o0.
190 JOSÉ FERREIRA GOMES. Aquisição de Empresas e de Participações Sociais..., p.226.
170 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 171

quotista da sociedade, de uma quantidade de títulos que lhe permi- Tanto na transferência de quotas como na transferência de ações
tam alcançar a situação de sócio controlador. ocorre uma alteração subjetiva da sociedade, uma vez que se modifica
Quais os principais elementos que integram o contrato? o titular de posição societária, seja ou não de controle.
Um contrato típico de compra e venda de participação societária As ações ou quotas são bens que podem ser objeto de compra e
normalmente contempla os seguintes tópicos, ainda que variando a venda, uma vez que, se é aceito que tal modalidade de negócio jurídi-
sua ordem: o objeto principal do negócio (que se sugere vir no início co pode visar a transmissão de um crédito, com mais razão deve-se ad-
do contrato), identificando os títulos que serão transferidos, o preço mitir que o contrato de transferência de participações societárias seja
e quais os instrumentos legais serão utilizados para a transferência e considerado como a medida para o adimplemento de contrato de com-
o pagamento; as cláusulas acessórias, como, por exemplo, "earn out"; pra e venda.
financiamento da operação; obrigação de não competir; se o preço de Assim, o contrato de compra e venda de participações societá-
compra será pago apenas com dinheiro ou também com ações ou quo- rias é aquele em que o vendedor se obriga a transferir ao comprador
tas; as declarações e garantias do vendedor e do comprador; os " cove- a posição de sócio, ou seja, a promover a cessão de quotas de socie-
nants" do vendedor (e em alguns casos do comprador), isto é, aqueles dade limitada ou a transmitir a titularidade sobre ações, contra uma
atos que o vendedor se obriga a fazer ou a deixar de fazer no período prestação pecuniária, ou seja, o pagamento do preçovn.
entre o " si gning"e o "closing"; as condições precedentes a cargo do com- A teoria que melhor explica a transferência de participação so-
prador e/ou do vendedor antes do "closing"; data e detalhes do "closing"; cietária é a da cessão da posição contratual. Por meio da cessão são
cláusulas prevendo indenização que o vendedor deverá pagar para o transferidas posições jurídicas ativas e passivas, seja na cessão de quo-
comprador (e talvez vice-versa);"break upfee"; e demais cláusulas, como tas, seja na cessão de ações. O consentimento dos sócios, quando exi-
quem é responsável pelo pagamento de despesas, comissões etc.192. gido, nos termos do artigo 1.057 do Código Civil194 , é equiparável ao
Uma das primeiras decisões quando se redige o contrato é se .•-•^•-• cp•-•1-; pri fel ria cntatranarte rine é necessária .
nara a cessão da Do-
haverá um único instrumento legal que traduza simultaneamente o sição contratuall 95
acordo entre as partes e o "closing" da operação ou se o fechamento
será postergado para algum momento do futuro.
Em aquisições de maior porte utiliza-se em geral o diferimento
do "dosing"para uma data futura, pois há necessidade de aprovação de
193 GABRIEL SAAD KIK BUSCHINELLI. Compra e Venda de Participações Societárias
autoridades governamentais. Há negócios que podem ser concluídos de Controle..., p.103-104.
sem diferimento do fechamento para data posterior, que dispensam 194 "Art. 1.057. Na omissão do contrato, o sócio pode ceder sua quota, total ou
parcialmente, a quem seja sócio, independentemente de audiência dos outros, ou a
cláusulas de "covenant" , mas, mesmo nesses casos haverá provavel- estranho, se não houveroposição de titulares de mais de um quarto do capital social."
mente a assinatura de uma carta de intenções. 195 GABRIEL SAAD KIK BUSCHINELLI. Compra e Venda de Participações Societárias
de Controle..., p. 97; CARLOS ALBERTO MOTA PINTO, "Contrato de cessão
de quotas sociais". In: Luis André Negrelli de Moura Azevedo e Rodrigo Rocha
192 JAMES C. FREUND.AnatomyofaMergerStrategiesandTechniquesforNegotiating Monteiro de Castro (Org.). Sociedade Limitada Contemporânea. São Paulo:
CorporateAcquisitions. New York: Law Jou rna1,1975, reedição de 2004, p.147-148. Quartier Latin, 2013, p. 230.
172 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 173

4.1.3. HÁ DIFERENÇA SUBSTANCIAL ENTRE A AQUISIÇÃO DE AÇÕES A discussão sobre a natureza da ação como título de crédito fazia
E A AQUISIÇÃO DE QUOTAS? mais sentido enquanto existiam ações ao portador, extintas quando da
Não vemos diferença substancial entre a cessão da posição de promulgação da Lei n° 8.021/1990. A partir de então, quanto à sua for-
acionista e a da posição de quotista. Ambas constituem contratos que ma, as ações somente podem ser nominativas ou escriturais.
geram efeitos similares aos da compra e venda: cabe ao vendedor a As ações não podem ser classificadas como títulos de crédito
obrigação de entregar as ações ou quotas, e ao comprador a de pagar uma vez que: conferem a posição de sócio, não de detentor de um
o preço. O fato de a transmissão de ação diferir da transmissão de direito de crédito; e os direitos dos acionistas fundam-se no estatuto
quota — conforme veremos mais adiante — não importa em distinção e nas deliberações da assembleia geral e/ou do conselho de adminis-
ontológica entre tais contratos196. tração da companhia, o que descaracteriza o requisito da literalidade.
A diferença entre tais contratos poderia derivar do fato de as Tratando-se de ações nominativas, as únicas atualmente existentes,
ações serem eventualmente consideradas títulos de crédito. Sua acei- sua circulação ocorre exclusivamente mediante o lançamento no li-
tação como títulos de crédito traria consequências importantes com vro de registro de ações, com o que perdem o atributo de portar um
relação à defesa da posição do adquirente de boa-fé de ações de quem direito autônomo, e não atendem ao requisito da cartularidade, uma
não era seu legítimo titular. vez que o certificado, se existente, não é documento necessário para

Quem considera as ações como coisas móveis entende que o ad- o exercício do direito".
quirente somente pode ser tutelado caso as adquira em leilão ou es- Ademais, de acordo com a dicção expressa do artigo 2°, inciso 1,
tabelecimento comercial, a teor do artigo 1.268 do Código Civil197. da Lei n° 6.385/1976, as ações são consideradas valores mobiliários.
Quem entende que as ações constituem títulos de crédito, o relevan- Os valores mobiliários diferem de outros bens em alguns aspectos
te, para saber se há proteção ao terceiro de boa-fé, será verificar se a fundamentais: não possuem um valor intrínseco, pois o valor de uma
aquisição ocorreu de acordo com as normas que disciplinam a circu- ação depende de vários fatores, como sua liquidez no mercado, os di-
lação dos títulos de crédito (artigo 896 do Código Civill"). Já quem videndos, a lucratividade e as perspectivas de rentabilidade da socie-
considera as ações como valores mobiliários não vê como possível a dade emissora; não são produzidos ou fabricados para serem usados
aplicação de qualquer das regras acima mencionadas199. ou consumidos, mas para conferirem direitos a seus titulares; podem
circular em massa, dada a sua natureza fungível"'.

1 96 No mesmo sentido, PETER SESTER. Business and Investment in Brazil. New


York: Oxford University Press, 2022, p. 310-312. ST), REsp n. 759.391, l a Turma, Rel. Min. José Delgado, j. em 15.12.2005;
200
197 "Art. 7.268. Feita por quem não seja proprietário, a tradição não aliena a NEWTON DE LUCCA. Aspectos da Teoria Geral dos Títulos de Crédito. São
propriedade, exceto se a coisa, oferecida ao público, em leilão ou estabelecimento Paulo: Ed. Pioneira,1979, p.114; LUIZ EMIDIO DA ROSA JR. Títulos de Crédito.
comercial,fortransferida em circunstâncias tais que, ao adquirente de boa-fé, como 3a ed. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2004, p. 77; FABIO ULHOA COELHO. Curso
a qualquer pessoa, o alienante se afigurar dono." de Direito Comercial. 17a edição, São Paulo: Saraiva, 2013, p. 164.
1 98 "Art. 896.0 título de crédito não pode ser reivindicado do portador que o adquiriu 201 NELSON EIZIRIK, ARIADNA B. GAAL, FLÁVIA PARENTE E MARCUS DE FREITAS
de boa fé e na conformidade das normas que disciplinam a sua circulação." HENRIQUES. Mercado de Capitais. Regime Jurídico. 4a edição, São Paulo:
199 GABRIEL SAAD KIK BUSCHINELLI. Compra e Venda de Participações Quartier Latin, 2019, p. 59 . Revisei minha posição sobre a natureza da ação
Societárias de Controle..., p. no. nominativa nos comentários ao artigo 11 contidos em "A Lei das S.A. Comentada".
CONTRATUAL NELSON EIZIRIK -175
- REGIME SOCIETÁRIO E

O fato de as ações nominativas serem consideradas valores mo- quirente para o segundo nenhuma invalidade, este último não po-
biliários e não títulos de crédito acarreta consequência relevante. Caso deria ser considerado acionista, uma vez que os direitos conferidos
as ações constituíssem títulos de crédito o seu titular seria tutelado pela ação não se transmitem autonomamente, como ocorre com os
contra a reivindicação na hipótese de tê-las adquirido de boa-fé, con- títulos de crédito2°6.
forme as normas que disciplinam a sua circulação (artigos 896 e 903 Trata-se de situação semelhante à da alienação de ações por par-
do Código Civi12°2). te do acionista remisso. Nos termos do artigo 107 da Lei das S.A•2°7,
Nesse sentido, quem considera as ações títulos de crédito en- uma vez verificada a mora do acionista, a companhia pode promover
tende que o adquirente fica protegido contra a eventual invalidação contra ele processo de execução para cobrar as importâncias devidas
do negócio prévio, desde que esteja de boa fé e a circulação das ações ou mandar vender as ações em bolsa de valores, objetivando a inte-
tenha obedecido a forma prevista na Código Civil para a circulação gralização das ações.
cartular das ações nominativasm. Caso a companhia não consiga efetuar a integralização das ações
Não nos parece a melhor interpretação. A presunção de pro- por qualquer dos meios acima mencionados, poderá declarar caduco o
priedade das ações nominativas, que ocorre pela inscrição do nome direito do acionista de integralizá-las e fazer suas as entradas realiza-
do acionista no livro de "Registro de Ações Nominativas" ou pelo das, com o que o acionista remisso deixa de ter participação no capi-
extrato fornecido pela instituição custodiante (artigo 31 da Lei das tal da companhia; não terá mais a oportunidade de quitar sua dívida
S.A.2°4), é "juris tantum", admitindo-se, portanto, prova em contrá- e perderá as importâncias que pagou a título de entrada, bem como
rio. Trata-se de presunção que pode ser elidida após decisão judicial as realizadas posteriormente.
que declare a nulidade do registro ou do extrato emitido pela insti- A eventual alienação das ações por parte do acionista remisso,
tuição custodiante2°5. uma vez declarado caduco o seu direito de integralizá-las, é ineficaz,
Na hipótese de serem transferidas ações por ato viciado, como, constituindo mais um exemplo a deixar claro que as ações não têm a
por exemplo, quando há falsidade da assinatura do acionista alie- autonomia típica dos títulos de crédito.
nante no "Livro de Transferência de Ações Nominativas" e o ad- As quotas constituem posições contratuais, regendo a matéria o
quirente vende as ações para um terceiro, o vício que compromete a princípio de que não se pode transferir mais direitos do que se possui.
regularidade do primeiro ato estende-se também ao segundo. Ainda Assim, no caso da cessão de quotas por parte de quem as adquiriu sem
que não se pudesse indicar no ato de transferência do primeiro ad-

202
"Art. 903. Salvo disposição diversa em lei especial, regem-se os títulos de crédito
pelo disposto neste Código."
206 FABIO ULHOA COELHO. Curso de Direito Comercial..., p.165.
203 GABRIELSAAD KIK BUSCHINELLI. Compra e Venda de Participações Societárias "Art. 107 - Verificada a mora do acionista, a companhia pode, à sua escolha: I -
de Controle..., p.129. 207
promover contra o acionista, e os que com eleforem solidariamente responsáveis
204
"Art. 31. A propriedade das ações nominativas presume-se pela inscrição do nome (artigo io8), processo de execução para cobraras importâncias devidas, servindo
do acionista no livro de "Registro das Ações Nominativas." o boletim de subscrição e o aviso de chamada como título extrajudicial nos termos
205
NELSON EIZIRIK. A Lei das S/A Comentada. v.1, 3a edição, São Paulo: Quartier do Código de Processo Civil; ou - mandar vender as ações em bolsa de valores,
Latin, 2021, p. 281.
por conta e risco do acionista."
1111~1.11".
"1"1"
11

176 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 177

título, como, por exemplo, mediante ato jurídico que foi declarado anu- custodiante, na qualidade de proprietária fiduciária das ações (artigo
lado ou inexistente, o cessionário não possui direito sobre a quota". 31, caput, da Lei das S.A.)21°.
Como a ação nominativa não constitui título de crédito, confor- A transferência das ações nominativas registradas opera-se mediante
me antes analisado, a situação na sua transferência por parte de quem termo lavrado no "Livro de Transferência de Ações Nominativas", datado
não é seu titular é idêntica à da transmissão de quotas por parte de e assinado pelo cedente e pelo cessionário ou seus legítimos representantes.
quem as adquiriu mediante ato anulado ou inexistente. A cessão e transferência de ações nominativas registradas somen-
As diferenças entre a transferência de ações e de quotas referem-se te se perfaz com a assinatura do termo de transferência, conforme o
aos procedimentos de sua realização, conforme analisaremos em seguida. artigo 31, § 1., da Lei das S.A.21, que constitui formalidade "ad subs-
tantiam" do ato, que não encontra sucedâneo em qualquer outra for-
ma de direito. Assim, exclui-se a possibilidade de transferência das
4.1.4. DEVERES PRINCIPAIS
ações sem a lavratura do termo de cessão212.
4.1.4.1. DO VENDEDOR Embora o lançamento do termo de cessão no livro em questão
Tanto na alienação de ações como de quotas, a obrigação prin- tenha o efeito previsto em lei de transferir a propriedade das ações
cipal do vendedor é de transferi-las ao comprador. nominativas, este ato, por si só, não é suficiente para que o cessioná-
rio exerça os seus direitos de acionista. Com base nesse termo, será
Na alienação de participação societária de uma companhia, o
efetuada a averbação da transferência e o lançamento do nome do
objeto da transmissão serão as ações nominativas, em sua forma re-
gistrai ou escriturai. cessionário no livro de "Registro de Ações Nominativas", sendo essa
a inscrição essencial para que se configure a presunção de que o ces-
A propriedade das ações presume-se pela inscrição do nome do
sionário se tornou proprietário das ações e legitimado a exercer os di-
acionista no "Livro de Registro de Ações Nominativas", que deve ser
reitos decorrentes dessa posição213.
obrigatoriamente mantido pela companhia, nos termos do artigo 100,
inciso I, da Lei das S.A.209,ou pelo extrato fornecido pela instituição Ou seja, a transferência das ações nominativas se aperfeiçoa com
esse duplo registro, o primeiro a comprovar a realização da cessão e o

208 GABRIEL SAAD KIK BUSCHINELLI. Compra e Venda de Participações 210 "Art. 31. A propriedade das ações nominativas presume-se pela inscrição do nome
Societárias de Controle..., p. 175. do acionista no livro de 'Registro das Ações Nominativas" ou pelo extrato que seja
209 fornecido pela instituição custodiante, na qualidade de proprietária fiduciária das
"Art. mo. A companhia deve ter, além dos livros obrigatórios para qualquer
comerciante, os seguintes, revestidos dos mesmas formalidades legais: I - o livro ações".
de Registro de Ações Nominativas, para inscrição, anotação ou averbação: a) do 211 "Art. 37. [...] § I° A transferência das ações nominativas opera-se por termo lavrado
nome do acionista e do número das suas ações; b) das entradas ou prestações de no livro de "Transferência de Ações Nominativas',' datado e assinado pelo cedente e
capital realizado; c) dos conversões de ações, de uma em outra espécie ou classe; pelo cessionário, ou seus legítimos representantes."
(Redação dada pela Lei n° 9.457 de 1997); d) do resgate, reembolso e amortização 212 JOSE ALEXANDRE TAVARES GUERREIRO, "A função registraria das sociedades
e
das ações, ou de sua aquisição pela companhia; e) das mutações operadas pela anônimas". In: Amoldo Wald (Coord.). O direito na década de 8o: estudos
alienação ou transferência de ações; f) do penhor, usufruto, fideicomisso, da jurídicos em homenagem a Hely Lopes Meirelles. São Paulo: RT, 1985, p.146.
alienação fiduciária em garantia ou de qualquer ônus que grave as ações ou obste 213 JOSÉ WALDECY LUCENA. Das sociedades anônimas - comentários à lei. v. I,
sua negociação." Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 346-349.
178 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 179

segundo a atestar em nome de quem estão registradas as ações. Este Com a extinção dos títulos ao portador, pela Lei n° 8.021/1990,
último registro é que atribui, a quem nele figurar, a presunção juris a única forma de ação admitida pela Lei das S.A. é a nominativa.
tantum de que é o proprietário das ações e a legitimidade para exer- Assim, o certificado de ação perdeu a sua principal função, que era a
cer os direitos de acionista. de legitimar a condição de acionista. Embora a emissão de certifica-
Além disso, o termo lavrado no livro de "Transferência de Ações dos de ações nominativas tenha caído em desuso, a companhia pode,
Nominativas" consiste em um ato jurídico que não se confunde com nos termos do artigo 27 da Lei das S.A.216, contratar, com instituição
o negócio realizado entre o cedente e o cessionário e que motivou o financeira autorizada pela CVM (denominada "agente emissor"), a
lançamento do referido termo no livro social próprio. escrituração e a guarda dos livros de registro e transferência de ações,
que independem da emissão de certificados.
Face à natureza de registro público do "Livro de Registro de
Ações Nominativas", as dúvidas suscitadas entre o acionista ou qual- A escrituração por parte do agente emissor deve ser efetuada de
quer interessado e a companhia sobre as averbações por ela ordena- acordo com as regras editadas pela CVM, cabendo-lhe atuar com di-
das, ou sobre anotações, lançamentos ou transferências de ações serão ligência para que os atos de emissão e substituição de certificados, de
dirimidas pelo juiz competente para solucionar os conflitos levanta- transferência e averbação nos livros sejam praticados no menor pra-
dos pelos oficiais de registros públicos, exceto tratando-se de ques- zo possível, não superior a 30 (trinta dias)217.
tões atinentes à substância do direito (artigo 103, parágrafo único, da A companhia responde diretamente perante os acionistas e ter-
Lei das S.A)214. ceiros interessados por erro ou irregularidade na prestação de serviços
A solução de tais dúvidas limita-se à análise dos documentos do agente emissor (artigo 104 da Lei das S.A.), porém tem direito de
apresentados pelas partes à companhia para verificar se são suficien- regresso contra a instituição prestadora dos serviços. Os titulares de
tes ao fim que se destinam. O Juiz da Vara de Registros Públicos não ações da companhia e terceiros interessados também podem acionar
tem competência para julgar questões referentes ao mérito do direi- diretamente a instituição financeira.
to, que é do juiz da Vara Cível215. As ações nominativas, além de sua forma registral, podem ser es-
criturais, disciplinadas nos artigos 34 e 35 da Lei das S.A.218.

214 "Art. toa. Cabe à companhia verificar a regularidade das transferências e da 216 "Art. 27. A companhia pode contratara escrituração e aguarda dos livros de registro
constituição de direitos ou ônus sobre os valores mobiliários de sua emissão; nos e transferência de ações e a emissão dos certificados com instituição financeira
casos dos artigos 27 e 34, essa atribuição compete, respectivamente, ao agente autorizada pelo Comissão de Valores Mobiliários a manter esse serviço. § 1°
emissor de certificados e à instituição financeira depositária das ações escriturais. Contratado o serviço, somente o agente emissor poderá praticar os atos relativos
Parágrafo único. As dúvidas suscitadas entre o acionista, ou qualquer interessado, aos registros e emitir certificados. § 2 ° O nome do agente emissor constará das
e a companhia, o agente emissor de certificados ou a instituição financeira publicações e ofertas públicas de valores mobiliários feitas pela companhia. § 3°
depositária das ações escriturais, a respeito das averbações ordenadas por esta Lei, Os certificados de ações emitidos pelo agente emissor da companhia deverão ser
ou sobre anotações, lançamentos ou transferências de ações, partes beneficiárias, numerados seguidamente, mas o numeração das ações será facultativo."
debêntures, ou bônus de subscrição, nos livros de registro ou transferência, serão 217 Resolução CVM n° 33/2021.
dirimidas pelo juiz competente para solucionaras dúvidas levantadas pelos oficiais 218 "Art. 34. O estatuto da companhia pode autorizar ou estabelecer que todas as
UUJ I ty1.511 U.5 IJUUULUJ, CXCELUUUU3 U.5 questues atinentes a suuswnc,a ao arreio. ações da companhia, ou uma ou mais classes delas, sejam mantidas em comas
215 NELSON EIZIRIK. A Lei das S/A Comentada. v. II, 3a edição, São Paulo: Quartier de depósito, em nome de seus titulares, na instituição que designar, sem emissão
Latin, 2021, p. 130. de certificados. § t° No caso de alteração estatutária, a conversão em ação
NELSON EIZIRIK - 181
180 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL

A ação escriturai, nos termos da Exposição de Motivos n° 196, mediante abertura de uma conta nova, tratando-se de novo acionis-
de 24 de junho de 1976, foi instituída com o objetivo de conciliar a ta, e/ou fechamento da antiga, caso ocorra a venda da totalidade das
segurança das ações nominativas com a facilidade de circulação, pro- ações do alienante. É necessária uma ordem escrita do alienante, ou
porcionada pela transferência mediante ordem à instituição financei- autorização ou ordem judicial.Tais documentos têm a mesma função
ra e mero registro contábil. Devido à sua natureza, a ação escriturai do termo lavrado no "Livro de Transferência de Ações Nominativas".
não comporta a emissão de certificados. A Lei n° 12.810/2013, posteriormente alterada pela Lei n°
A propriedade da ação escriturai, nos termos do artigo 35 da Lei 13.476/2017, institucionalizou o depósito central e as regras para
das S.A., presume-se pelo registro na conta de depósito das ações aber- custódia e escrituração de valores mobiliários, o qual já funcionava,
ta em nome do acionista nos livros da instituição depositária. O extra- desde 1997, com a criação da Companhia Brasileira de Liquidação e
to emitido pela instituição financeira depositária, tal como a inscrição Custódia (CBLC), sendo tal serviço atualmente prestado pela Central
do nome do acionista no "Livro de Registro de Ações Nominativas", Depositária da B3 S.A. — Brasil Bolsa, Balcão. Trata-se da única en-
constitui o documento hábil para caracterizar a presunção de proprie- tidade responsável pela guarda, atualização e coordenação de eventos
dade da ação escriturai. Trata-se de presunção relativa, podendo ser corporativos (como pagamento de dividendos, bonificação e juros so-
elidida mediante decisão judicial que declare a nulidade do registro bre capital próprio) no mercado de valores mobiliários219.
no extrato emitido pela instituição depositária. O depositário central deve manter contas individuais dos usuá-
Nos termos do artigo 35, § 1°, da Lei das S.A., a transferência da rios, nas quais os saldos dos ativos são registrados nas contas de de-
ação escriturai é realizada mediante lançamento efetuado pela insti- pósito de cada comitente, segregando o ativo financeiro e garantindo
tuição depositária em seus livros, a débito da conta de ações do alie- a identificação de seu titular.
nante e a crédito da conta das ações do adquirente, ou, se for o caso, As companhias abertas devem adotar a forma escriturai para a
distribuição pública de valores mobiliários e para a sua negociação
escriturai depende da apresentação e do cancelamento do respectivo certificado
em circulação. § 20 Somente as instituiçõesfinanceiras autorizadas pela Comissão
em mercados organizados, a qual se processa no depósito centraliza-
de Valores Mobiliários podem manter serviços de escrituração de ações e de outros do220. As transferências de ações em companhias abertas, assim, de-
valores mobiliários. § 3° A companhia responde pelas perdas e danos causados
aos interessados por erros ou irregularidades no serviço de ações escriturais, sem
vem ser efetuadas no depósito centralizado, mediante ordem escrita
prejuízo do eventual direito de regresso contra a instituição depositária. Art. 35. do alienante, autorização ou ordem judicial em documento hábil (ar-
A propriedade da ação escritura! presume-se pelo registro na conta de depósito
das ações, aberta em nome do acionista nos livros da instituição depositária. § tigo 35, § 1°, da Lei das S.A.).
1° A transferência da ação escritura! opera-se pelo lançamento efetuado pela
instituição depositária em seus livros, a débito da conta de ações do alienante e a
Com relação à cessão de quotas, antes da promulgação do novo
crédito da conta de ações do adquirente, à vista de ordem escrita do alienante, ou Código Civil, no regime do Decreto n° 3.708/1919, o tema gerava
de autorização ou ordem judicial, em documento hábil que ficará em poder da
instituição. § 2° A instituição depositária fornecerá ao acionista extrato da conta controvérsias. Atualmente, nos termos do artigo 1.057 do Código
de depósito das ações escriturais, sempre que solicitado, ao término de todo mês Civil, na omissão do contrato, o sócio pode ceder a sua quota, total
em que for movimentada e, ainda que não haja movimentação, ao menos uma
vez por ano. §3° 0 estatuto pode autorizar a instituição depositária a cobrar do
acionista o custo do serviço de transferência da propriedade das ações escriturais, 219 NELSON EIZIRIK. A Lei das S/A Comentada. v. p. 29,4.-
observados os limites máximos fixados pela Comissão de Valores Mobiliários." 220 Artigo 36 da Resolução CVM n° 31/2021.
182 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 183

ou parcialmente, a quem seja sócio, independentemente de anuência 997225 do Código Civil, a cessão da quota gera necessariamente a al-
dos outros, ou a terceiro, se não houver oposição de titulares de mais teração do contrato social.
de 1/4 (um quarto) do capital social. Ademais, o parágrafo único do artigo 1.057 faz referência ao ar-
O contrato social pode dispor de maneira diversa, uma vez que tigo 1.003226, nos termos do qual a cessão de quota sem a correspon-
o artigo 1.057 do Código Civil constitui norma dispositiva. Assim, o dente modificação do contrato social com o consentimento dos demais
contrato social ou o acordo de quotista pode: estabelecer regra de livre sócios não terá eficácia nem quanto a estes nem quanto à sociedade.
transferência, mesmo com a oposição do titular de mais de 14 (um quar- Assim, a não ser que o contrato social ou o acordo de quotistas
to) do capital social; prévia aprovação do nome do cessionário pelos estabeleça regra prevendo a livre transferência da quota, sem a con-
demais sócios; vedação de cessão a terceiros; exigência de concordância cordância de todos os demais sócios e a alteração do contrato social
da unanimidade dos sócios para a cessão; e direito de preferência221. não há a possibilidade de sua cessão227.
Ainda que haja discussão doutrinária a respeito, nada impede Nos termos do "Manual de Registro da Sociedade Limitada"
que o contrato social ou o acordo de quotistas vede a cessão de quo- (Instrução Normativa n° 10/2013, Anexo II, do Departamento de
tas a terceiros, o que reforça o caráter "intuitu personae" da sociedade Registro Empresarial e Integração — DREI) a cessão de quotas só
limitada, notadamente quando o contrato de sociedade é celebrado será eficaz quanto à sociedade e terceiros a partir do arquivamento
tendo em vista as condições pessoais dos sócios, sua expertise, o cré- do respectivo instrumento pelos sócios anuentes, estabelecendo adi-
dito que desfrutam junto aos bancos, ou ausência de restrições para cionalmente que o arquivamento não dispensa o da alteração con-
contratar com o poder público222. tratual. Assim, o adquirente da quota social somente obterá a plena
O Código Civil, em seu artigo 1.057, parágrafo único223, deter- eficácia da aquisição perante a sociedade e terceiros mediante a alte-
mina que a cessão de quota se opera mediante a averbação do instru- ração do contrato socia1228.
mento de cessão subscrito pelos sócios anuentes.
225 "Art. 997. A sociedade constitui-se mediante contrato escrito, particular ou
Como ocorrerá, com a cessão, a substituição de um sócio, e sen- público, que, além de cláusulas estipuladas pelas partes, mencionará: I - nome,
nacionalidade, estado civil, profissão e residência dos sócios, se pessoas naturais,
do obrigatório que constem do contrato social o nome e a qualifica- e a firma ou a denominação, nacionalidade e sede dos sócios, se jurídicas; II -
ção dos sócios e suas quotas sociais, nos termos dos artigos 1.054224 e denominação, objeto, sede e prazo da sociedade; 111- capital da sociedade, expresso
em moeda corrente, podendo compreender qualquer espécie de bens, suscetíveis
de avaliação pecuniária; IV - a quota de cada sócio no capital social, e o modo
de realizá-la; V - as prestações a que se obriga o sócio, cuja contribuição consisto
em serviços; VI - as pessoas naturais incumbidas da administração da sociedade,
221 GABRIELSAAD KIK BUSCHINELLI. Comprae Venda de ParticipaçõesSocietárias e seus poderes e atribuições; VII - a participação de cada sócio nos lucros e nas
de Controle..., p.162. perdas; VIII - se os sócios respondem, ou não, subsidiariamente, pelas obrigações
222 GABRIELSAAD KIK BUSCHINELLI. Comprae Venda de Participações Societárias sociais. Parágrafo único. É ineficaz em relação a terceiros qualquer pacto separado,
de Controle..., p.164. contrário ao disposto no instrumento do contrato."
223 "Art.1.057.[...] Parágrafo único. A cessão terá eficácia quanto à sociedade e terceiros, 226 "Art. 1.003. A cessão total ou parcial de quota, sem a correspondente modificação
inclusive para os fins do parágrafo único do art. 1.003, a partir da averbação do do contrato social com o consentimento dos demais sócios, não terá eficácia quanto
respectivo instrumento, subscrito pelos sócios anuentes." a estes e à sociedade."
224 'Art. 1.054. O contrato mencionará, no que couber, as indicações do art. 997, e, se 227 Artigo 1.003 do Código Civil.
foro caso, afirma social." 228 JORGE LOBO. Sociedades Limitadas. v. I, Rio de Janeiro: Forense, 2004, p.154.
184 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON ['MIK - 185

4.1.4.2. Do COMPRADOR o artigo 482 do Código Civil230. Na sua determinação pode-se re-
Conforme o disposto no artigo 481 do Código Civil, a obrigação correr a um terceiro avaliador, mediante o processo de arbitramento,
principal do comprador é a de pagar o preço em dinheiro pela aqui- previsto no artigo 485 do Código Civil231, o qual atuará como uma
sição dos bens (ações ou quotas). Nada impede que o contrato pre- espécie de perito, em geral para determinar o valor de determinados
veja que o pagamento seja feito parte em dinheiro e parte em ações bens que compõem o preço.
ou quotas da sociedade adquirente. O arbitramento do preço — ou de parte dele — por um terceiro
Em operações de M&A a fixação do preço constitui matéria com- não se confunde com a arbitragem; o terceiro contratado pelas par-
plexa e relativamente subjetiva, uma vez que pode envolver sinergias tes complementa o conteúdo contratual, mas não é um árbitro, uma
e economias de escala, quando se acresce aos bens adquiridos aque- vez que não está resolvendo um conflito, muito menos atuando no
les já de propriedade do adquirente. O cálculo do preço leva em con- exercício da jurisdição.
ta o valor da empresa, objeto último do negócio jurídico, tendo em O preço pago por ocasião do fechamento do contrato ainda pode
vista principalmente: a sua rentabilidade, passivos tributários, traba- ser objeto de complementação — o chamado "earn ouf —, a depender
lhistas e outros, aproveitamento de créditos, avaliação por múltiplos. de eventos futuros e incertos delimitados pelas partes no contrato.
No caso de companhia aberta, o valor de negociação de suas ações 4.1.4.3. DAS 2 (DUAS) PARTES ANTES E DEPOIS DA ASSINATURA
em bolsa de valores, se elas forem dotadas de liquidez, pode também DO CONTRATO
constituir uma referência importante. Além da obrigação principal, há outras assumidas pelas partes,
De qualquer forma, o valor de um bem — notadamente tratan- que são consideradas "deveres de conduta", existentes antes e após a
do-se de uma empresa — não existe de forma objetiva. Não há como assinatura do contrato.
se reconhecer a existência de um "preço justo", de sorte que o preço A obrigação, com efeito, constitui um ente dinâmico, com di-
não constitui qualidade essencial da coisa, mas resultado de uma ne- versas fases, que surgem ao longo do seu desenvolvimento, dirigida
gociação entre as partes. ao adimplemento, isto é, à satisfação do interesse do credor, que é o
Ademais, na fixação do preço, incluem-se as garantias negocia- seu fim último232.
das. Assim, o preço apresenta-se como contraprestação não só das
participações societárias como também das obrigações assumidas
pelo vendedor229.
O valor exato do preço pode ser determinado, quando certo, ou
230 "Art. 482. A compra e venda, quando pura, considerar-se-á obrigatória e perfeita,
determinável, quando é total ou parcialmente indefinido. Com efei- desde que as partes acordarem no objeto e no preço."
231 "Art. 485. A fixação do preço pode ser deixada ao arbítrio de terceiro, que os
to, o preço não precisa necessariamente ser determinado, conforme
contratantes logo designarem ou prometerem designar. Se o terceiro não aceitara
incumbência,ficará JCISe
sem fei to o contrato, salvo quando acordarem os contratantes

designar outra pessoa."


229 GABRIEL SAAD KIK BUSCHINELLI. Compra e Venda de Participações 232 CLOVIS DO COUTO E SILVA. A Obrigação como processo. Rio de Janeiro:
Societárias de Controle..., p. 189-190 FGV, 2006, p.17.
186 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 187

Há, além dos deveres principais de prestação (pagar o preço e en- Com efeito, a responsabilidade objetiva somente é admitida em
tregar o bem), outros, como os de informação, de proteção, de lealdade, situações extraordinárias, nos termos do artigo 927 e seu parágrafo
nos períodos antecedentes ou subsequentes à conclusão do contrato. único do Código Civi1236. Assim, não se pode focar apenas no resul-
Embora o artigo 422 do Código Civil imponha aos contratan- tado do inadimplemento, devendo-se levar em conta a conduta dos
tes apenas a obrigação de "guardar, assim na conclusão do contrato, como contratantes, para que se evite situações abusivas237.
na sua execução, os princípios da probidade e boa:fr , cabe ao intérprete,
mediante uma leitura integrativa, "preencher" as lacunas do contrato, 4.1.5. DEVER DE INFORMAR E ÔNUS DE SE INFORMAR
particularmente as dos deveres secundários ou laterais, que agem so-
Vigora, no ordenamento jurídico brasileiro, o princípio da boa-fé
bre o período do contato negocial (fase pré-contratual), perpassam o
objetiva, disposto no artigo 422 do Código Civil. Em decorrência disso,
contrato (fase contratual) e estendem-se para além de sua extinção233.
a parte vendedora em uma operação de M&A deve prestar à contrapar-
Tal função integrativa significa que importa, na interpretação do
te informações relevantes sobre o objeto do negócio. Por outro lado, o
contrato, fora da sua literalidade, revelar aquilo que as partes falha-
comprador tem o ônus de agir com diligência na etapa pré-contratual,
ram em manifestar explicitamente, seguindo-se o sentido e a exten-
buscando informações sobre o estado do bem objeto da venda, para a
são do conteúdo negocial para que se possa colmatar suas eventuais
tomada de uma decisão informada sobre a celebração do contrato238.
incompletudes, visando a atingir-se o adimplemento satisfativo, se-
Notadamente em contratos empresariais, os quais presumem-se
gundo a normalidade da operação econômica realizada, a utilidade
paritários, o dever de informar convive com o ônus jurídico de infor-
visada pelas partes e o mandamento legal de agir segundo a boa-fé234.
mar-se. Tal dever e o seu correlato ônus apresentam-se como mutua-
O artigo 422 do Código Civil, cuja redação é deficiente, por confi-
mente excludentes239.
nar o princípio da boa-fé à conclusão e execução do contrato, ignorando
Existe, assim, uma fronteira entre o dever dos vendedores de in-
suas demais fases, não inviabiliza a sua aplicação por parte do julgador
formar e o ônus dos compradores de se informarem em operações
nas fases pré-contratual e pós-contratual, conforme o Enunciado n° 25
de M&A. Geralmente transações complexas envolvem informações
da I Jornada de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal, em 2002.
sensíveis ao negócio e segredos comerciais. Não existe uma regra so-
A responsabilidade por incumprimento dos deveres de compra-
dor e devedor nas fases pré-contratual e pós-contratual, que decor- 236 "Art. 927. Aquele que, poratoilkito(arts.186 e187),causardanoaoutremlica obngadoa
repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar° dano, independentementede
rem da inobservância do dever originado da boa-fé, não prescinde da
culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida
comprovação da culpa23s. pelo autor do dano implicar, porsua natureza, risco para os direitos de outrem."
237 RAFAEL SETOGUTI, "A responsabilidade Pós-Contratual na Compra e Venda
233 RAFAEL SETOGUTI JUNIOR PEREIRA, "A Responsabilidade Pós-Contratual na de Participação Societária" In: Marcelo Vieira von Adamek e Rafael Setoguti
Compra e Venda de Participação Societária" In: Marcelo Vieira von Adamek J. Pereira (Coord.). Fusões e Aquisições (M&A)..., p. 815.
e Rafael Setoguti J. Pereira (Coord.). Fusões e Aquisições (M&A)..., p. 782. ' 238 NELSON EIZIRIK, MARCUS DE FREITAS HENRIQUES e JULIANA BOTINI
234 PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. t. XXXVIII, São Paulo: HARGREAVES VIEIRA, "Dever de informar e ônus de se informar das partes em
RT, 2012, p. 162-163; JUDITH MARTINS-COSTA. A boa-fé no Direito Privado: operações de M&A", Revista do Advogado. n.158, São Paulo: AASP, jul. 2023, p.122.
Critérios para sua aplicação. 2a ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023, p. 565. GABRIELSAAD KIK BUSCHINELLI. CompraeVendade Participações Societárias
239
235 JUDITH MARTINS-COSTA. A boa-fé no Direito Privado: Critérios para sua de Controle. São Paulo: Quartier Latin, 2018,11 343-344.
aplicação..., p. 473.
188 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK -189

bre o momento certo de revelação desses dados, devendo essa análi-


se ser feita caso a caso. A delimitação das esferas de responsabilidade
!Iirnível de informação entre as partes; (ii) o cuidado com que cada uma
das partes atuou; (iii) a potencial renúncia à informação; (iv) o inte-
costuma ser um desafio, podendo gerar, na prática, disputas após o resse próprio do devedor da informação; (v) a intensidade e a duração
fechamento das operações. dos contratos negociais; (vi) as características pessoais dos contraen-
Em que pese essa delimitação depender das características de tes; (vii) as causas dos possíveis riscos; (viii) o caráter excepcional de
cada operação, é possível traçar alguns parâmetros para a demarca- fatores de risco; e (ix) o equilíbrio econômico do contrato242.
ção dos limites do dever de informar dos vendedores vis à vis o ônus O ônus de se informar do comprador afasta a possibilidade de
de se informar dos compradores. responsabilização do vendedor, quando, por exemplo: (i) o compra-
Basicamente, este equilíbrio está associado ao padrão de com- dor não emprega a diligência usual conforme os usos e costumes do
portamento esperado de cada uma das partes, bem como ao seu grau tráfego negocial; (ii) o bem apresenta falhas evidentes e facilmente
de vulnerabilidade ou assimetria informacional na relação contratual. perceptíveis; e (iii) o comprador tem condições privilegiadas para ve-
Do comprador, espera-se uma diligência para com os próprios rificar a informação, tais como qualificação profissional ou especia-
interesses, a qual decorre da autonomia privada e do critério da razoa- lização técnica.
bilidade. Já o dever de informar do vendedor cessa quando este não Assim, não se deve imputar ao vendedor o descumprimento de
tem mais que se preocupar com os interesses do adquirente quanto a um dever de informar aquilo que o comprador já conhece ou poderia
circunstâncias que afetem a esfera de risco deste240. conhecer a partir de uma atuação diligente. Tampouco é admissível
Ademais, quanto maior a assimetria informacional ou a vulne- que o comprador obtenha tutela jurídica a respeito de vícios que pode-
rabilidade fático informativa entre os contratantes, mais intenso é o ria ter percebido e considerado durante a fase de negociação do preço.
dever de informar e menos intenso é o ônus de se informar; por ou- Ressalvados os casos nos quais a informação consiste no próprio
tro lado, quanto menor a assimetria informacional ou o grau de vul- objeto do contrato, esta assume uma função instrumental. Assim, in-
nerabilidade, menos intenso é o dever de informar e mais intenso é forma-se a fim de se possibilitar que haja uma deliberação informa-
o ônus de se informar241. da por meio de um consentimento adequadamente esclarecido243.
A doutrina aponta alguns parâmetros para que seja definida a Eventual violação dos deveres de informação pode comprometer a
delimitação da linha divisória entre as esferas de responsabilidade do manifestação de vontade e o consentimento contratual.
vendedor e do comprador. A extensão concreta do dever de informar Caso a vontade seja externada com vício ou defeito, o negócio
depende de uma série de circunstâncias, quais sejam, (i) a falta/des- jurídico torna-se suscetível de anulação. São as hipóteses, por exem-
plo, de erro substancial e dolo.
240 JUDITH MARTINS-COSTA, "Um Aspecto da Obrigação de Indenizar: Notas
para uma Sistematização dos Deveres Pré-Negociais de Proteção no Direito 242 CATARINA MONTEIRO PIRES. Aquisição de Empresas e de Participações
Civil Brasileiro", Revista dos Tribunais. v. 867, jan. 2008, p.12. Acionistas - Problemas e Litígios. Coimbra: Editora Almedina, 2018, p. 28.
241 NELSON EIZIRIK, MARCUS DE FREITAS HENRIQUES e JULIANA BOTINI JUDITH MARTINS-COSTA, "Um Aspecto da Obrigação de Indenizar: Notas
243
HARGREAVES VIEIRA, "Dever de informar e ônus de se informar das partes para uma Sistematização dos Deveres Pré-Negociais de Proteção no Direito
em operações de M&A", Revista do Advogado..., p.123-124- Civil Brasileiro", Revista dos Tribunais..., p. 11.
190 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 191

Se houver dano em decorrência de informação equívoca, insu- eventualmente invocado o artigo 187 do Código Civil, que trata do
ficiente ou deficiente, mas o plano de validade não for impactado, o abuso de direito247.
negócio se realiza, mas fica sujeito a consequências indenizatórias. Tais deveres de conduta na fase pós-contratual não podem ser vistos
É possível, também, a cumulação das eficácias invalidante e in- com o mesmo rigor que os existentes na fase pré-contratual. Com efeito,
denizatória. É a situação, por exemplo, na qual o comprador tenha a a prestação de informações falsas ou incompletas, em infração ao dever de
intenção de enganar a contraparte quanto ao destino que pretende informar, atinge o núcleo do contrato de venda de participação societária.
conferir ao bem. Nos termos dos artigos 253244 e 254245 do Código Sem tais informações, ou sem a sua prestação correta, o contrato possivel-
Civil, haverá a anulação do contrato, bem como será devido o paga- mente não teria existido; ou, se concluído, teria sido em condições diversas.
mento de perdas e danos. Na prática, aliás, é mais comum a existência de conflitos envol-
Em outras situações, pode-se verificar uma espécie de convalida- vendo o dever de informar e seu correlato ônus de ser informado, as-
ção cumulada com eficácia indenizatória, por meio de adaptação ou sim como o dever de buscar as informações, do que casos que tratem
modificação das condições contratuais246. A título de exemplo, isso dos deveres pós-contratuais, os quais em geral dizem respeito à não
se verifica quando a parte lesada não tem interesse na invalidação do concorrência por parte do comprador.
negócio, por ser de difícil execução, ou por ser-lhe economicamen- Quais seriam os interesses de preservação do resultado útil do
te desvantajosa. negócio jurídico? Para o vendedor, o dever de não concorrência. No
caso do trespasse, há previsão expressa de não concorrência durante
4.1.6. DEMAIS DEVERES DE CONDUTA
determinado prazo. Porém, tratando-se de aquisição de participação
societária, a não concorrência deve ser objeto de disciplina no contrato.
Também há deveres de conduta na fase pós-contratual. Tanto
Também podem agredir o interesse do comprador, ainda que não
comprador como vendedor têm responsabilidade para que se chegue
previstas no contrato, ações praticadas pelo vendedor que desabonem a
aos resultados úteis do negócio jurídico de compra e venda de parti-
empresa ou sua reputação. Assim, se o vendedor, após concluído o contra-
cipações societárias, atendendo ao princípio da boa-fé objetiva.
to, declara que a empresa cujo controle foi alienado está em decadência,
A fonte dos deveres de conduta aqui também decorre de uma ou desenvolvendo atividades empresariais já superadas pelos concorrentes,
interpretação integrativa do artigo 422 do Código Civil, cabendo ser
descumprirá seus deveres pós-contratuais de resultado útil do negócio248.
Ao longo das negociações, cada parte tem acesso a informações
confidenciais da outra, cujo objetivo principal é o estabelecimento do
244 "Art. 253. Se uma das duos prestações não puder ser objeto de obrigação ou se
tornada inexeqüível, subsistirá o débito quanto à outra." 247 "Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
245 "Art. 254. Se, porculpa do devedor, não se pudercumprir nenhuma das prestações, manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé
não competindo ao credor a escolha, ficará aquele obrigado a pagar o valor da ou pelos bons costumes."
que por último se impossibilitou, mais as perdas e danos que o caso determinar." 248 RAFAEL SETOGUTI, "A responsabilidade Pós-Contratual na Compra e Venda
246 JUDITH MARTINS-COSTA, "Um Aspecto da Obrigação de Indenizar: Notas de Participação Societária" In: Marcelo Vieira von Adamek e Rafael Setoguti
para uma Sistematização dos Deveres Pré-Negociais de Proteção no Direito J. Pereira (Coord.). Marcelo Vieira von Adamek e Rafael Setoguti J. Pereira
Civil Brasileiro"..., p.13-14. (Coord.). Fusões e Aquisições (M&A)..., p. 802
192 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK -193

preço; em atenção ao princípio da boa-fé objetiva espera-se que am- 4.2. DECLARAÇÕES E GARANTIAS -
bas mantenham sigilo a respeito de tais informações. " REPRESENTATIONS AND WARRANTIES"
Existe também um interesse de cooperação sucessiva; ou seja, su-
põe-se que as partes possam continuar usufruindo das prestações obti-
das com o contrato. O vendedor deve avisar o comprador sobre algum 4.2.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

fato relacionado à sociedade que pode lhe causar dano. Assim, por Na obra considerada "a Bíblia do M&A", seu autor, quando co-
exemplo, tratando-se de uma gestora de fundo de investimento, caso meça a tratar do tema, observa que, embora não existam estatísticas
seus antigos controladores recebam uma notificação da CVM a res- a respeito, é capaz de apostar que os advogados gastam mais tempo
peito de algum processo administrativo instaurado pela autarquia para negociando as "representations and warranties of the seller", ("reps and
apurar sua responsabilidade, cabe-lhes informar o adquirente da par- warranties") — que aqui traduziremos por "declarações e garantias do
ticipação societária de controle, para que possa defender a instituição. vendedor" — do que qualquer outra cláusula num contrato típico de
Da mesma forma, cumpre ao vendedor, após a conclusão do con- aquisição de controle2". A seu ver, há uma tendência dos advogados
trato, atender a pedidos do comprador de prestação de informações e de seus clientes de supervalorizarem tais cláusulas, em parte como
ou documentos relacionados à sociedade, desde que tal conduta não resultado de suas falhas em analisar o que realmente importa, ou seja,
implique em ônus excessivo249. para que servem e que consequências podem acarretar.
Caso o contrato preveja cláusula expressa de não concorrência é Tal se dá pelo fato de se perder muito tempo discutindo qual a
recomendável que discipline quais as consequências do seu incum- redação mais adequada para certas expressões, quando há pouca di-
primento. No silêncio do contrato sobre tais consequências, se o ven- ferença prática entre elas, e que não trarão maiores consequências
dedor continuar concorrendo, desviando clientes e inviabilizando a caso o contrato vá à apreciação por um tribunal judicial ou arbitral.
atividade econômica do comprador, pode o credor exigir a execução E entre nós? Um grande especialista no assunto observou que
específica ou a resolução por inadimplemento, sem prejuízo de indeni- lhe parece surrealista perder tanto tempo discutindo se a redação mais
zação por perdas e danos, nos termos do artigo 475 do Código Civi1250. adequada é" best efforts"ou "best reasonable effbrts", ou, ainda,"best com-
mercially reasonable efforts". Como praticamente não temos em nos-
so país jurisprudência acerca de tais conceitos, ou da diferença entre
eles, se de fato existe, tudo acaba se resolvendo na aplicação de con-
ceitos genéricos nacionais, a partir da boa-fé objetiva, que pouco ou
nada tem a ver com esses padrões anglo-saxônicos2s2.
249 RAFAEL SETOGUTI, "A responsabilidade Pós-Contratual na Compra e Venda
de Participação Societária". In: Marcelo Vieira von Adamek e Rafael Setoguti
I Pereira (Coord.l. Marcelo Vieira von Adamek e Rafael Setoguti I. Pereira 251 JAMES C. FREUND. Anatomy of a Merger: StrateMes and Techniques for
(Coord.). Fusões e Aquisições (M&A)..., p. 803. Negotiating Corporate Acquisitions. New York: Law Journal Press, 1975,
25o "Art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, reedição de 2004, p. 229.
se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, 252 PAULO CEZAR ARAGÃO, "Reflexões sobre algumas tendências recentes em
indenização por perdas e danos." operações de M&A", Revista do Advogado. n.158, São Paulo: AASP, jul. 2023,
vir
194 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL
NELSON EIZIRIK -195

Em contratos de aquisição de ações ou de quotas de companhias da assinatura do contrato ou do fechamento da operação. Já as "co-
brasileiras, tais cláusulas são quase sempre objeto de muita discussão, venants and undertakings" criam uma obrigação na qual o obrigado —
embora, o mais das vezes, já vindo "prontas", enviadas pelos advoga- em geral o vendedor — deve cumprir no futuro ou em bases contínuas,
dos das companhias estrangeiras compradoras e seguindo um padrão tais como apresentar documentos de que ainda não dispõe ou prestar
uniforme na prática da advocacia nos Estados Unidos. determinadas informações durante algum tempo2s5.
Conforme já analisado doutrinariamente, a cláusula de declara- Em princípio, constitui finalidade da cláusula de declarações
ções e garantias constitui uma "cláusula socialmente típica", uma vez e garantias a obtenção da parte declarante de manifestações diretas
que consolidada na prática dos negócios, sendo usual a sua utiliza- e objetivas sobre a empresa objeto do negócio, a situação de seus li-
ção em operações de M&A, e cuja função econômica típica é fami- vros sociais e registros contábeis, os contratos em curso que mantêm,
liar aos agentes do mercado2". pendências judiciais, administrativas e arbitrais, endividamento etc.
Tal modalidade de cláusula, além de reduzir o potencial de dis- Em suma, um retrato fidedigno do negócio que está sendo vendido.
putas futuras, antecipando a sua provável solução, constitui também A cláusula significa uma promessa de que um estado de coisas
um instrumento de alocação de riscos, atualmente protegido em nosso existe, mediante a fixação de características ou qualidades de certo
sistema jurídico com base no novo artigo 421-A do Código Civi1254. bem, ou conjunto de bens, de certo negócio, ou, ainda, de certa situa-
A causa da cláusula parece evidente: como até o momento em ção jurídica, conferindo ao comprador direitos adicionais à discipli-
que ocorre a aquisição das ações ou quotas da sociedade-alvo todas as na legal. Pode-se nela reconhecer, assim, a ideia geral de prever uma
informações que o comprador obtém são aquelas prestadas pelo ven- frustração ou de acautelar um insucesso256.
dedor, é imprescindível que este último garanta a sua veracidade. Tal Declarações e garantias têm o mesmo significado? Para que ser-
não seria necessário numa aquisição "de porteira fechada", em que o vem tais cláusulas? O que usualmente é objeto de declarações e ga-
comprador não exige qualquer declaração do vendedor, ou porque já rantias? Como se resolve a "quebra" das declarações e garantias? No
conhece as informações (por ser sócio da "sociedade-alvo") ou por- silêncio do contrato, como se aplicam as disposições do Código Civil?
que aceita correr os riscos de eventuais informações falsas, o que pode
São as questões que analisaremos em seguida.
lhe proporcionar um maior poder de barganha na fixação do preço.
É importante distinguir as "reps and warranties" das "covenants
and undertakings". As primeiras referem-se ao estado da sociedade- 4.2.2. As "DECLARAÇÕES" SÃO DIFERENTES DAS "GARANTIAS"?
-alvo, com informações sobre seu passado e presente, no momento Uma questão preliminar refere-se à existência de uma eventual
diferença entre as "representations" e as "warranties". Significarão a
p.138. mesma coisa?
253 PAULA A. FORGION I. Contratos Empresariais - Teoria Geral e Aplicação. 7a
edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p. 53 e seguintes.
255 PETER SESTER. Business and lnvestmentin Brazil. New York: Oxford University
254 "Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até
I" e5), 2022, p. 313.
a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção,
256 CATARINA MONTEIRO PIRES. Aquisição de Empresas e de Participações
ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais."
Acionárias. São Paulo: Almedina, 2018, p. 63.
NELSON EIzIRIK -197
196 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL

Há quem entenda que as expressões designam fatos distintos e Não se pode esquecer, porém, que as "declarações e garantias",
acarretam diferentes consequências jurídicas. As declarações ("repre- de largo uso na prática dos negócios de M&A, têm uma feição niti-
sentations"), em primeiro lugar, estariam referindo-se a fatos preté- damente instrumental, servindo para "disparar o gatilho" das conse-
ritos ou presentes relativos às partes ou à sociedade cujas ações ou quências jurídicas previstas no contrato.
quotas estão sendo alienadas, inexistindo declarações quanto a fatos A expressão "representations and warranties" deve ser entendida
futuros257. Ademais, a declaração ou "representation"tutela o chamado como uma díade, conforme observado doutrinariamente, significando
"interesse negativo" do contrato; a indenização, se cabível, seria quan- um sistema unitário de declarações conjugadas às mesmas consequên-
tificada de forma a colocar a parte lesada na situação em que estaria cias jurídicas. Os contratos de alienação de participações societárias,
caso não tivesse existido a declaração falsa25s. em sua maioria, atrelam as "representations and warranties" exclusiva-
Em outras palavras, as declarações teriam como função apenas mente às consequências jurídicas expressamente previstas no próprio
descrever determinada realidade fática, registrando que os contratan- contrato, normalmente uma cláusula de "indemnity"260.
tes têm conhecimento sobre atos e fatos. Assim, não gerariam obri- Assim, a discussão sobre a eventual distinção entre tais expres-
gações contratuais em sentido próprio, uma vez que, ao "representar" sões apresenta feições mais acadêmicas do que de ordem prática, uma
(melhor dizendo, "declarar") determinado estado de fato não carre- vez que quase sempre os contratos utilizam-nas em conjunto, atri-
gariam, em si, prestações de dar, fazer ou não fazer. buindo à sua "quebra" os mesmos efeitos.
Por outro lado, as "warranties" constituiriam uma promessa de As declarações e garantias constituem afirmações a respeito de
que determinado fato é ou será verdadeiro, referindo-se, portanto, a fatos presentes ou pretéritos sobre a sociedade-alvo261. O declarante
fatos presentes ou futuros, garantindo que determinado estado de não apresenta prognósticos sobre o futuro, mas apenas atesta a vera-
fato corresponde ou corresponderá à realidade, conforme declarado cidade de tais fatos, cabendo-lhe assumir as consequências se as de-
no contrato. Expressariam, assim, uma obrigação de garantia259. clarações já eram falsas ao tempo em que foram prestadas.
É muito difícil distinguir as declarações das garantias, exceto se
257 JUDITH MARTINS COSTA,"Contrato de Compra e Venda de Ações. Declarações vierem separadas e o contrato dispuser que a falsidade de uma delas
e Garantias. Responsabilidade por Fato de Terceiro. Inadimplemento,
pretensão, exigibilidade, obrigação. Práticas do Setor e Usos do tráfico. acarreta consequências diversas da falsidade da outra. Suponhamos
Parecer." In: Rodrigo Rocha Monteiro de Castro, Luis Andre Azevedo, Marcus que a cláusula contenha, dentre as declarações e garantias, uma di-
de Freitas Henriques (Coord.). Direito Societário, Mercado de Capitais e
Arbitragem e Outros Temas: Homenagem a Nelson Eizirik. v. III, São Paulo: zendo que a sociedade foi regularmente constituída e dispõe de todos
Quartier Latin, 2020, p. 75.
os documentos necessários ao seu funcionamento. Se for considera-
258 MARIANA PARGENDLER e CARLOS PORTUGAL GOUVÊA, "As Diferenças
entre Declarações e Garantias e os Efeitos do Conhecimento". In: Rodrigo
Rocha Monteiro de Castro, Luis Andre Azevedo, Marcus de Freitas Henriques
de Freitas Henriques (Coord.). Direito Societário, Mercado de Capitais e
(Coord.). Direito Societário, Mercado de Capitais e Arbitragem e Outros
Arbitragem e Outros Temas: Homenagem a Nelson Eizirik..., v. III, p. 76.
Temas: Homenagem a Nelson Eizirik..., p.153.
26o GIACOMO GREZZANA. A Cláusula de Declarações e Garantias em Alienação
259 JUDITH MARTINS-COSTA, "Contrato de Compra e Venda de Ações. Decla-
de Participação Societária. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 55.
rações e Garantias. Responsabilidade por Fato de Terceiro. Inadimplemento,
pretensão, exigibilidade, obrigação. Práticas do Setor e Usos do tráfico. 261 GIACOMOGREZZANA. A Cláusula de Declarações e Garantias em Alienação
Parecer." In: Rodrigo Rocha Monteiro de Castro, Luis Andre Azevedo, Marcus de Participação Societária..., p. 64 e 65.
198 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL. NELSON EIZIRIK -199

da só uma declaração, isto significa que o vendedor não está garan- Assim, elas constituem um instrumento que pode "forçar" o ven-
tindo que tal afirmativa é verdadeira? Ou seja, poderíamos ter uma dedor a se focar nos aspectos significativos de sua empresa, numa ma-
declaração falsa sem a responsabilidade de garantia de sua veracida- neira que ele talvez nunca tivesse tentado, para que as informações
de por parte do vendedor? a respeito dela sejam transmitidas ao comprador. Para o comprador,
O fato é que na prática dos negócios a cláusula é redigida e deve tal propósito é muito importante, não apenas quando ele está dian-
ser interpretada como um sistema unitário de declarações, que acar- te de um vendedor no qual não confia, como também quando diante
retam as mesmas consequências jurídicas em caso de sua falsidade, de um vendedor desorganizado.
tal como disciplinadas no contrato262. Em segundo lugar, tais cláusulas permitem que o comprador
possa desistir do negócio, entre o "signing" (assinatura do pré-contra-
4.2.3. FUNÇÕES DA CLÁUSULA DE DECLARAÇÕES E GARANTIAS
to) e o "closing"(fechamento da operação, com assinatura do contrato
definitivo) se entender, analisando as informações e verificando que
As declarações e garantias constituem um instrumento não só
não parecem corretas ou fidedignas, que não é prudente consumá-lo.
de alocação de riscos como também são aptas a limitar futuras dis-
O terceiro propósito da cláusula é estabelecer as bases da indeni-
putas entre comprador e vendedor, permitindo-lhes antecipar como
zação quando, após concluído o negócio, verificar-se que as declarações
provavelmente será a sua solução263.
e garantias eram enganosas, falsas ou incorretas. Aqui está presente a
Quais as principais razões para se incluir tais cláusulas nos con-
sua feição instrumental — e quiçá principal —, que é a de transformar
tratos de alienação de participações societárias?
tais declarações em responsabilidade contratual pelos danos decor-
Nos EUA, a doutrina abalizada, ao analisar tais cláusulas sob um rentes de sua falsidade.
ponto de vista prático e tendo em vista as recomendações necessárias para
Para o advogado do vendedor, a principal questão é o quão de-
os advogados das partes, entende que, para o comprador, elas servem a
talhadas devem ser as informações. Assim, por exemplo, no caso de
três distintos propósitos, que podem eventualmente estar sobrepostos264.
uma ação judicial contra o vendedor, sugere-se declarar qual é o caso,
Em primeiro lugar, as "representations and warranties" são úteis o tribunal, a natureza, em que estágio se encontra, o montante do pe-
como um meio de o comprador obter a maior quantidade de possí- dido, o nome do advogado encarregado e qual a sua opinião sobre o
vel informações acerca da empresa-alvo antes de assumir um com- possível resultado da demanda. Tais informações permitem ao com-
promisso irrevogável de adquiri-la. prador decidir se quer mais dados sobre o caso, conversando com o
advogado que está tratando da demanda, ou se já está satisfeito e con-
262 A propósito entende-se, a respeito da cláusula, que: "Separating them explicitly siderando-se em condições de fechar o negócio265.
in an acquisition agreement is a drafting nuisance, and the legal import of the
separation has been ali but eliminated" (American Bar Association - ABA.
Model Stock PurchaseAgreement with Commentary. v. I, Chicago: ABA Book
Publishing, 2010, p. 77.
262 PETER SESTER. Busintns and Invpctrnpnt in Rrn7i1 - 1 aw and PI-ai-tire n

264 JAMES C. FREUND. Anatomy of a Merger: Strategies and Techniques for 265 JAMES C. FREUND. Anatomy of a Merger: Strategies and Techniques for
Negotiating Corporate Acquisitions..., p. 23o e seguintes. Negotiating Corporate Acquisitions..., p. 237-238.
200 - M&A REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 201

Conforme qualificado entendimento266, o melhor que o advogado artigo 219 do Código Civi1268, que a declaração é verdadeira em re-
pode fazer é evitar que seu cliente fique excessivamente nervoso sobre a lação ao seu signatário. Para que possa se eximir da responsabilida-
necessidade de total transparência das informações. Ainda que seja com- de, o vendedor precisa provar que a declaração é verdadeira. Mas a
preensível a reação negativa do vendedor a respeito do montante de infor- cláusula também faz prova em desfavor do comprador, ao criar uma
mações que lhe são demandadas — afinal ele nunca havia alienado a sua presunção de que ele tomou conhecimento das informações ali pres-
empresa — cabe ao seu advogado desencorajá-la. O comprador tem o di- tadas, ficando impedido, se não forem falsas, de levantar pretensões
reito de exigir todas as informações de que necessita para fechar o negó- fundadas em vícios redibitórios, erro ou dolo.
cio, mesmo que tal procedimento acarrete muito trabalho para o vendedor. A função assecuratória está presente quando o vendedor assume
Entre nós, a doutrina tem identificado algumas das principais no contrato a obrigação de "indenizar" as consequências negativas de
funções da cláusula, que podem assim ser resumidas: informativa; determinado fato, como a prestação de informações falsas, incompletas
probatória; assecuratória; e conformativa267. A depender do contrato, ou enganosas. Considera-se que em tais casos o vendedor obriga-se a
a cláusula pode desempenhar as quatro funções ou apenas uma, pos- reembolsar os danos sofridos pela sociedade-alvo ou pelo comprador
to que ela não tem uma natureza jurídica unívoca. em virtude de tal fato, contraindo assim uma obrigação de garantia
A função informativa, como parece evidente, decorre do fato de a pelo risco assumido ao fazer as declarações. A obrigação de garantia
cláusula fornecer informações essenciais sobre a sociedade-alvo, que eram em contrato de M&A desdobra-se em dois elementos: um fato ge-
desconhecidas do adquirente, permitindo-lhe um consentimento infor- rador e um fato revelador da contingência. O fato gerador deve ser
mado sobre o negócio, assim como reduzindo a assimetria informacional. anterior à entrega das quotas ou ações ("fechamento da operação"),
constituindo a desconformidade entre a realidade e o afirmado na de-
A função probatória significa que a cláusula coloca no contra-
claração. O fato revelador é aquele que, dentro do prazo contratual
to não só informações como também a forma de executar prestação
da garantia, traz à tona o fato gerador269.
e contraprestação; ou seja, a cláusula documenta que as informações
foram fornecidas e de que maneira, presumindo-se, nos termos do Já a função conformativa emerge quando as declarações e garan-
tias especificam as qualidades das ações ou quotas da sociedade objeto
266 )AMES C. FREUN D. Anatomy of a Merger: Strategies and Techniques for
do negócio jurídico, como, por exemplo, direito de voto, direito ao di-
Negotiating Corporate Acquisitions..., p. 233 e seguintes. videndo obrigatório fixo ou mínimo ou ônus. A falta de tais qualidades
267 Seguimos aqui a análise de GIACOMO GREZZANA (A Cláusula de Declarações — falsidade das declarações — caracteriza o inadimplemento contratual.
e Garantias em Alienação de Participação Societária..., p. 69 e seguintes) e de
ERASMO VALLADÃO AZEVEDO E NOVAES FRANÇA e GIACOMO GREZZANA
em seu artigo "Consequências da falsidade das declarações e garantias em 268 "Art. 219. As declarações constantes de documentos assinados presumem-se
contratos de M&A: a chamada 'indenização' e os tetos de 'indenização —, verdadeiras em relação aos signatários. Parágrafo único. Não tendo relação
Revista do Advogado..., n. 158, p. 46 e seguintes. Ver também: ARNOLDO direta, porém, com as disposições principais ou com a legitimidade das partes, as
WALD, "Dolo Acidental do Vendedor e Violação das Garantias Prestadas", declarações enunciativas não eximem os interessados em suo veracidade do ônus
Revista dos Tribunais. v. 103, n. 949, São Paulo: Revista dos Tribunais, nov. 2014, de prová-las."
p. 97; e MARIANA MENDES-MEDEIROS. Cláusulas de declarações e garantias 269 ERASMO VALLADÃO AZEVEDO E NOVAES FRANÇA e GIACOMO GREZZANA,
nos contratos internacionais de aquisição de empresa ou ativos. Dissertação "Consequências da falsidade das declarações e garantias em contratos de M&A:
de Mestrado em Direito apresentada à Faculdade de Direito da Universidade a chamada 'indenização' e os tetos de 'indenização", Revista do Advogado..., n.
de São Paulo, São Paulo, 2006. 158, p. 48.
202 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 203

4.2.4. CONTEÚDO DA CLÁUSULA observância da legislação anticorrupção; a titularidade dos ativos de


propriedade intelectual ou a detenção das respectivas licenças; situa-
O que deve constar nas cláusulas de declarações e garantias? Quais
ção dos litígios em curso nas esferas judicial, administrativa e arbitrai;
as principais informações que nela devem estar presentes?
cumprimento dos contratos com clientes, fornecedores e prestado-
Dada a assimetria de informações entre vendedor e comprador,
res de serviços; detenção das autorizações regulatórias e/ou governa-
as declarações e garantias, em sua maioria, são prestadas pelo vende-
mentais para o exercício de suas atividades; contratação de apólices
dor e dizem respeito à sociedade-alvo.
de seguro suficientes para conduzir os negócios sociais e quitação dos
Normalmente, consta do contrato que nenhuma declaração nele respectivos prêmios; a descrição de outros direitos e obrigações legais.
contida ou em seus anexos omite um fato relevante necessário para
Quando a sociedade-alvo controla outras, é comum a exigência,
que as informações sejam acuradas e não enganosas.
pelo comprador, de informações relevantes sobre os registros contábeis,
Em geral, as principais declarações e garantias, com relação à as operações, contratos, litígios e situação financeira de cada uma delas.
sociedade-alvo, compreendem as seguintes informações: o balanço
Dentre as declarações e garantias acerca da sociedade-alvo uma
foi elaborado de acordo com as normas e os princípios de contabili-
das mais relevantes é a chamada "garantia do balanço". O conteúdo
dade geralmente aceitos; a sociedade foi regularmente constituída e
da garantia depende da forma como é estabelecida no contrato, mas,
seus livros sociais e registros contábeis estão corretos e atualizados; a
em geral, consiste numa afirmação de que o balanço foi elaborado de
composição do capital social e a titularidade dos principais acionis-
acordo com a legislação, as normas contábeis e os princípios de con-
tas ou quotistas; a existência de acordos de acionistas ou quotistas (no
tabilidade geralmente aceitos e refletem, de forma adequada, a situa-
caso de companhia aberta tal informação é pública); relação dos ad-
ção financeira da sociedade.
ministradores, membros do conselho fiscal e de comitês, assim como
A garantia do balanço evidentemente ganha maior importân-
sua qualificação profissional; existência e custos de plano de previ-
cia quando a sociedade-alvo não tem suas demonstrações financeiras
dência privada, seguro-saúde e demais benefícios para os emprega-
submetidas ao exame de auditor independente. Trata-se de situação
dos; eventuais situações de conflitos de interesse entre os vendedores
que demanda redobrada cautela por parte do adquirente.
(ou seus administradores) e a sociedade alvo, bem como os contratos
entre eles mantidos; declaração sobre a veracidade das demonstrações O "balanço falso" corresponde à situação em que ele viola as
financeiras, que inclusive podem ter servido para a fixação do preço normas contábeis aplicáveis. A divergência ou falta de conformida-
de alienação das quotas ou ações; os elementos do ativo — como bens de da garantia do balanço não é necessariamente entre o que consta
móveis, imóveis e investimentos — assim como os eventuais gravames do balanço e a realidade presente, ou a realidade futura, mas entre o
existentes sobre eles; os principais contratos, empréstimos e avais ou- que foi inscrito no balanço e as regras que presidem a sua elaboração.
torgados pela sociedade; a ausência de proibições administrativas que Assim, se um crédito for inscrito de acordo com as normas contábeis
impeçam a celebração do contrato; o cumprimento das normas tribu- e ele revelar-se incobrável não haverá desconformidade do balanço270.
tárias, trabalhistas, previdenciárias e ambientais, bem como a detenção
de todas as licenças ambientais necessárias ao seu funcionamento; a 270 CATARINA MONTEIRO PIRES. Aquisição de Empresas e de Participações
Acionárias..., p. 74 e 75.
204 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 205

Embora normalmente menos detalhadas, há também declara- 4.2.5. NATUREZA DA CLÁUSULA E CONSEQUÊNCIAS DO

ções que tratam não da situação da sociedade que está sendo adqui- SEU INCUMPRIMENTO

rida, mas do declarante. Assim, comumente o vendedor declara que Talvez a questão mais importante quando se analisa a cláusula
tem legitimidade para assinar os contratos necessários à alienação da de declarações e garantias refira-se às consequências de serem pres-
sociedade e que a operação não caracteriza violação a normas legais tadas informações falsas.
ou a contratos com terceiros, nem disparará o "gatilho" de dívidas.
É importante referir, preliminarmente, qual a natureza da cláu-
O comprador em geral declara: (i) que foi regularmente consti- sula, sua qualificação jurídica, para que se possam analisar as conse-
tuído, se pessoa jurídica; (ii) que tem legitimidade para assinar todos quências da "quebra" das declarações e garantias.
os contratos necessários; (iii) que não há qualquer litígio ou pendência
A cláusula de declarações e garantias constitui obrigação de ga-
que possa impedi-lo de concluir a operação; (iv) que tem capacidade
rantia, que é um terceiro gênero de obrigação, distinguindo-se das
financeira para realizar os pagamentos avençados; e (v) que a operação
obrigações de meio e de resultado. Na obrigação de garantia, o de-
foi regularmente aprovada por seus órgãos competentes. É frequente
vedor não garante o resultado de sua ação, nem que envidará seus
a estipulação de garantias outorgadas pelo adquirente em relação ao
melhores esforços para alcançar tal resultado, mas assume com seu
pagamento do preço de compra das ações ou quotas da sociedade-alvo.
patrimônio as consequências negativas de determinado fato, cujo
Usualmente, as declarações constam de longas e detalhadas ta- risco ele assumiu.
belas anexas ao contrato ("schedules" ou "disclosure letters"). Assim, por
Na obrigação de garantia, em princípio, nem mesmo a ocor-
exemplo, uma tabela pode conter a relação de todos os bens da socie-
rência de caso fortuito ou de força maior exime o devedor de sua
dade-alvo, outra a situação dos litígios em curso, outra ainda as licen-
prestação, uma vez que o seu objetivo é a eliminação de um ris-
ças ambientais necessárias ao desenvolvimento das suas atividades.
co, que pode constituir um evento de realização fortuita, indepen-
A preparação das tabelas, na prática, constitui atividade a dentemente de sua vontade. Assim, o vendedor, mesmo sem culpa,
ser desenvolvida em conjunto pelo declarante e por seu advo- é obrigado a indenizar"' . Caso o resultado não seja alcançado, o
gado. Muitas vezes, indaga-se o quão detalhadas devem ser tais credor pode exigir do devedor a importância acordada ou a inde-
tabelas. As respostas variam, a depender da natureza da ope- nização dos prejuízos sofridos272.
ração e das informações necessárias à sua conclusão. Na prá- Em decisão do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, con-
tica da advocacia nos Estados Unidos, recomenda-se não cair
cluiu-se que o vendedor responde pelas eventuais divergências en-
em nenhum dos dois extremos: informações excessivas e verbo-
tre o que declara e a realidade, haja o que houver, ou seja, o vendedor
sas, com enorme número de páginas, ou informações crípticas.
assume plenamente o risco da não verificação da situação garantida,
O melhor comportamento por parte do vendedor é o de proceder
a um "balanceamento" entre tais extremos, de sorte que o comprador
271 FABIO KONDER COMPARATO. Ensaios de Direito Empresarial. Rio de Janeiro:
receba as informações necessárias nas tabelas, ou se faça referência aos Forense, 1978, p. 536.
documentos que as contêm, sem declarações enganosas ou omissões. 272 ANTÔNIO PINTO MONTEIRO. Cláusula penal e indenização. Coimbra:
Almedina, 1999, p. 267.
NELSON EIZIRIK - 207
206 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL

independentemente de culpa de sua parte, o que é admissível à luz da A ideia de contrato paritário está ligada à de relações equilibra-
liberdade contratual, nos termos do artigo 405° do CC de Portugal273. das, na qual certa igualdade entre as empresas contratantes consti-
tui fator determinante na organização e desenvolvimento das fases
O vendedor, num contrato de alienação de ações ou quotas, haven-
do negócio, desde o ajuste inicial, passando pela execução, criação de
do cláusula de "representations and warranties", obriga-se a reembolsar
obrigações, até sua extinção275.
os prejuízos sofridos pelo comprador ou pela sociedade em virtude de
declarações falsas. O reembolso não é a obrigação de garantia, mas Os remédios, caso concretizado o risco da falsidade das decla-
uma obrigação ulterior, disparada pela ocorrência do sinistro; não se rações e garantias, podem ser: pagamento de uma soma em dinheiro
trata de uma reação contra o inadimplemento contratual, uma vez que que pode ser pré-fixada; redução do preço; desfazimento do contrato;
a obrigação de garantia se cumpre pela simples assunção do risco274. correção "in natura" da falsidade; ou outras concebidas pelas partes.

Conforme antes observado, a obrigação de garantia costuma des- O mais comum é o pagamento de uma soma em dinheiro que
dobrar-se em fato gerador e fato revelador da contingência. O fato cubra todos os prejuízos sofridos pela sociedade-alvo em virtude da
gerador é a desconformidade entre o declarado e a realidade. O fato divergência entre o afirmado pelo declarante e a realidade. Assim, a
revelador, por sua vez, constitui aquele que, dentro do período da ga- sociedade-alvo é recolocada no estado em que se encontraria se as
rantia previsto no contrato, traz à tona o fato gerador. declarações e garantias tivessem sido prestadas sem qualquer falsi-
dade. Trata-se de um tipo de reembolso equiparado à"indemnity" do
Uma vez presentes o fato gerador e o fato revelador, incidem os CL
common law" , no qual uma das partes promete proteger a outra das
remédios previstos no contrato, com relação aos quais não há qualquer
perdas oriundas de eventos especificados no contrato, pagando uma
limitação; presume-se que as partes, no livre exercício de sua vonta-
soma igual ao montante da perda sofrida276.
de, empresários assessorados por advogados, decidiram como alocar
os riscos do negócio jurídico e as consequências da prestação de in- Pode-se prever no contrato um teto de reembolso, que limita o
formações falsas. Nos termos do artigo 421-A, inciso II, do Código risco assumido por aquele que se obriga a garantir a um valor deter-
Civil, tanto os contratos civis como os empresariais (como é o caso minado. Também é possível estabelecer uma cláusula de limitação de
de um contrato de M&A) presumem-se paritários e simétricos, de- responsabilidade civil ao pagamento de contingências. Nada impe-
vendo ser respeitada a alocação dos riscos definida pelas partes. de que o contrato preveja uma atualização do teto por correção mo-
netária e juros. Tendo em vista o disposto no artigo 315 do Código
Civi1277, que consagra o princípio do nominalismo, até o vencimen-
to da obrigação é o credor quem corre o risco da desvalorização da
273 O que mereceu a crítica de CATARINA MONTEIRO PIRES, para quem a ideia
de incondicionalidade afirmada pelo Tribunal não pode servir para dispensar
uma interpretação do contrato, nem para firmar um caráter absoluto de
responsabilidade objetiva (Aquisição de Empresas e de Participações
275 PAULA FORGIONI. Contratos Empresariais - Teoria Geral e Aplicação..., p. 67.
Acionárias..., p. 71).
276 GIACOMO GREZZANA. A Cláusula de Declarações e Garantias em Alienação
274 ERASMO VALLADÃO AZEVEDO E NOVAES FRANÇA e GIACOMO GREZZANA, ria PartirinarSn Snrietária 11 202-20Q
Consequências da falsidade das declarações e garantias em contratos de M&A:
277 'Art. 315. As dívidas em dinheiro deverão ser pagas no vencimento, em moeda
a chamada 'indenização' e os tetos de 'indenização", Revista do Advogado...,
corrente e pelo valor nominal, salvo o disposto nos artigos subsequentes."
n.158, p. 48.
208 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 209

moeda. Após o vencimento, o risco da moeda passa para o devedor, relevantes na empresa280. No caso de companhia aberta, cujos valores
devendo ser acrescidos os encargos moratórios278. das ações podem ter apresentado oscilações para cima ou para bai-
O contrato pode ainda prever a redução do preço caso alguma xo no período, refletindo o impacto, positivo ou negativo da opera-
informação revele-se falsa. Assim, por exemplo, se o preço do negó- ção, o desfazimento do negócio pode revelar-se ainda mais complexo.
cio foi estabelecido por um terceiro escolhido pelas partes, com base Quando o alienante permanece como sócio da sociedade-alvo,
numa projeção de resultados da sociedade-alvo, fundamentada em também é possível, embora seja de mais rara ocorrência, a correção "in
dados constantes da cláusula de declarações e garantias, que depois natura" da falsidade. Suponha-se um caso em que o vendedor decla-
se revelam falsos, o comprador pode pleitear a redução do preço. No rou que todas as licenças ambientais estavam em dia e tal não ocorre.
caso, pode-se fazer nova projeção, agora com dados corretos, caben- Pode ele, com a concordância do comprador, tratar da sua regulari-
do a redução do preço caso fique demonstrado que ele teria sido di- zação, assumindo todos os custos para tanto.
ferente se tivesse tomado como referenciais os dados corretos. É cada vez mais comum a inclusão de uma "cláusula de indenida-
Também cabe a redução do preço na hipótese em que o vende- de", a qual prevê que uma parte assume a obrigação de indenizar a outra
dor declara que a sociedade é proprietária de determinado imóvel e a parte e terceiros a ela relacionados (em geral a sociedade-alvo) caso ve-
afirmação não é verdadeira. No caso, o dano pode dar causa à redu- nham a sofrer determinadas perdas, nas hipóteses previstas no contrato.
ção do preço ou à devolução de parte dele279, devendo-se verificar o A função de tal cláusula é prever um mecanismo de compensa-
"valor da supressão patrimonial" causado pela falta do imóvel. ção "ex pose para possíveis prejuízos futuros causados por uma das
Também podem as partes prever o desfazimento do negócio fi- partes e de alguma forma relacionados ao negócio jurídico que fir-
cando comprovado que a falsidade de informação prestada pelo ven- maram, mas cuja probabilidade de ocorrência e magnitude as partes
dedor a respeito da sociedade-alvo é de tal relevância que retira todo entenderam não valer a pena discutir "ex ante" e que não se refletiu
o interesse do comprador na concretização do negócio. No caso, o no preço da operação281.
comprador tem o direito potestativo de demandar o desfazimento Na definição das "perdas" — ou termos equivalentes usados no
do contrato e perdas e danos. contrato — são usualmente incluídos prejuízos, passivos, responsabi-
A devolução das ações ou quotas pode apresentar alguma comple- lidades, desembolsos, multas, juros, despesas processuais, honorários
xidade, pois o adquirente pode ter feito alterações na estrutura socie- de advogado, ainda que de forma não muito técnica, para evitar am-
tária, implementado novos planos de negócios e outras modificações biguidades que possam restringir o direito à indenização. Os danos,

278 ERASMO VALLADÃO AZEVEDO E NOVAES FRANÇA e GIACOMO GREZZANA, 28o GIACOMO GREZZANA. A Cláusula de Declarações e Garantias em Alienação
"Consequências da falsidade das declarações e garantias em contratos de M&A: de Participação Societária..., p. 212.
a chamada 'indenização' e os tetos de 'indenização", Revista do Advogado..., 281 BRUNO ROBERTe LUCAS C. GORGULHO M. BARROS, "Cláusula de Indenidade
n. 758, p. 51. em contratos de M&A: A Inclusão de Lucros Cessantes como Perdas
279 CATARINA MONTEIRO PIRES. Aquisição de Empresas e de Participações Indenizáveis". In: Marcelo Vieiravon Adamek e Rafael Setoguti J. Pereira (Coord.).
Acionárias..., p. 777. Fusões e Aquisições (M&A). Rio de Janeiro: Quartier Latin, 2022, p. 93-94.
210 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 211

nos termos do artigo 403 do Código Civi1282, são indenizáveis se fo- ram prever a alocação dos riscos, o comprador adquiriu a sociedade-
rem certos, diretos e comprovados. -alvo "de porteira fechada", correndo todos os riscos daí decorrentes.
Além dos danos emergentes também cabe a indenização dos Ainda assim, quais seriam as proteções ao comprador que po-
lucros cessantes, dado o princípio da reparação integral prevista no deriam advir da aplicação das normas do Código Civil? Seriam elas
artigo 944, caput, do Código eivam, desde que: sejam certos; dire- tão efetivas como as previstas no contrato?
tos e imediatos; e decorrerem da violação de um interesse juridica- Inexistindo cláusula de declarações e garantias, o comprador pode
mente protegidos284. valer-se dos institutos jurídicos que conformam a sua defesa, haven-
E caso o contrato não contenha cláusula de declarações e garan- do até mesmo quem entenda — o que a nosso ver é discutível — que a
tias? Estaria o comprador protegido com a mesma intensidade, com proteção das partes não estará diminuída, dado o princípio geral da
fundamento apenas nas disposições do Código Civil? boa-fé objetiva285.
Em primeiro lugar, é importante notar que advogados e árbitros Assim, argumenta-se que, como a boa-fé objetiva constitui parâ-
anglo-saxões (e contratos de M&A o mais das vezes são submetidos metro de conduta mediana, o intérprete deverá integrar ao contrato
à arbitragem) seguem a noção do "caveat emptor" (acautele-se o com- os deveres de lealdade, de transparência e de informação, bem como
prador). Assim, o que não estiver previsto no contrato como instru- impor o sacrifício de direitos subjetivos dos contratantes em favor do
mento de defesa do comprador provavelmente não será considerado. interesse comum perseguido pelo ajuste, definidor de suas finalida-
Ademais, nosso ordenamento jurídico, a partir da promulgação da des econômicas e sociais. Nessa linha, entende-se que, ainda que não
Lei n° 13.874/2019 (chamada "Lei da Liberdade Econômica"), que haja previsão no contrato, a falta de informações poderia acarretar a
introduziu no Código Civil o artigo 421-A, consagrou o princípio obrigação de indenizar, decorrente do princípio da boa-fé objetiva,
de que as partes, em contratos empresariais, em condições paritárias, prevista no artigo 422 do Código Civi1286.
têm o direito de verem respeitadas as cláusulas contratuais que con- Em contratos empresariais, a boa-fé desempenha três importan-
vencionaram, particularmente no que se refere à alocação dos riscos. tes funções: constitui uma "pauta de comportamento" para os agen-
Assim, caso as partes não estabeleçam cláusula de declarações e tes econômicos, impondo limites ao exercício de direitos, nos termos
garantias, é perfeitamente possível que o julgador entenda, a partir da do artigo 187 do Código Civi1287; é "pauta de interpretação", orien-
leitura literal do contrato, que, como elas aparentemente não deseja-
285 CAITLIN MULHOLLAND, "Cláusulas de Declarações de Garantias e a Aplicação
do Princípio da Boa-Fé Objetiva nos Contratos Societários". In: Ana Frazão,
282 "Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só Rodrigo R. Monteiro de Castro e Sergio Campinho (Org.). Direito Empresarial
incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, e suas Interfaces. Homenagem a Fabio Ulhoa Coelho. v. II, Rio de Janeiro:
sem prejuízo do disposto na lei processual." Quartier Latin, 2022, p. 237 e seguintes.
283 "Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano." 286 CAITLIN MULHOLLAND, "Cláusulas de Declarações de Garantias e a Aplicação
284 BRUNO ROBERT e LUCAS C. GORGULHO M. BARROS. Cláusula de Indenidade do Princípio da Boa-Fé Objetiva nos Contratos Societários". In: Ana Frazão,
em contratos de M&A: A Inclusão de Lucros Cessantes como Perdas Rodrigo R. Monteiro de Castro e Sergio Campinho (Org.). Direito Empresarial
Indenizáveis..., p. u33; e GISELA SAMPAIO DA CRUZ GUEDES. Lucros cessantes. e suas Interfaces..., p. 236 e 237.
Do bom senso ao postulado normativo da razoabilidade. São Paulo: Revista 287 "Art. 787 Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
dos Tribunais, 2011, p. 74-97. manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé
212 — M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK — 213

tando a atuação dos advogados e juízes, de maneira que a exegese do 4.2.6. OBSERVAÇÕES FINAIS

contrato jamais poderá ser contrária à boa-fé, a teor do artigo 113 do Conforme até aqui analisado, as cláusulas de declarações e ga-
Código Civil; e também "pauta de integração dos negócios mercan- rantias constituem um dos elementos mais importantes dos contratos
tis", uma vez que se presta à resolução dos conflitos decorrentes da de M&A .Talvez
Talvez a sua discussão, na prática dos negócios, seja super-
incompletude do contrato2". valorizada, mas não se pode ignorar que os efeitos de sua omissão ou
Poderia o comprador valer-se da proteção contra os vícios redi- má redação são da maior relevância, caso sejam objeto de litígio na
bitórios, prevista no artigo 441 do Código Civil289? esfera judicial ou — mais comumente entre nós — arbitral.
Com relação à alienação de participação societária, não cabe a A cláusula de declarações e garantias permite reduzir a assimetria
aplicação da proteção contra os vícios redibitórios por inconsistên- informacional e dotar o comprador das informações que lhe permi-
cias do patrimônio ou da atividade da sociedade-alvo. A aquisição tam concluir o negócio com o maior conhecimento possível a respei-
de ações ou quotas constitui uma cessão de posição contratual, pre- to da sociedade-objeto do negócio jurídico.
sumindo-se que o adquirente recebe a posição no contrato de socie- A discussão sobre a eventual diferença entre as declarações e as
dade com todos os direitos e deveres, o que não engloba os bens que garantias parece-nos inócua e sem maior relevância prática. Afinal, o
integram o patrimônio da sociedade29°. propósito da cláusula é instrumental: "forçar" o vendedor a apresentar a
A propósito, considera-se que uma das finalidades da cláusula de maior transparência possível de informações e "disparar o gatilho" das
declarações e garantias é a de afastar a invocação dos vícios redibitórios, consequências jurídicas da eventual prestação de informações falsas.
permitindo a aplicação de um regime autossuficiente de alocação dos O que se deseja, em negócios de cessão de participações socie-
riscos entre os contratantes, de modo que o cumprimento da obrigação tárias, é a segurança jurídica de operações legítimas que possam pro-
principal passa a pressupor inequivocamente a entrega da coisa (no piciar maior eficácia no desenvolvimento de atividades empresariais;
caso a participação societária) tal como foi garantido que ela seja291. muitas vezes, a alteração do controle acionário é necessária para que
um novo acionista controlador possa capitalizar a sociedade e dotá-
ou pelos bons costumes." -la de uma gestão empresarial mais eficiente.
288 JUDITH MARTINS-COSTA. A boa-fé no direito privado. Critérios para sua
aplicação. 2a edição. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 429.
Ainda que tenhamos contratos cada vez mais complexos e de-
289 "Art. 441. A coisa recebida em virtude de contrato comutativo pode ser enjeitada por talhados — muitas vezes excessivamente — o modelo econômico ideal
vícios ou defeitos ocultos, que a tornem imprópria ao uso a que é destinado, ou lhe
diminuam o valor"
é aquele em que sejam reduzidos os custos de transação, dentre os
290 Sobre a possibilidade de aplicação da proteção contra vícios redibitórios nos quais o de submissão do contrato a um litígio na esfera judicial ou
casos de alienação de participação societária, ver item 5 do Capítulo intitulado
"Cláusula de Indenidade".
arbitral. Cláusulas bem redigidas permitem aos advogados das par-
291 TERESA NEGREIROS, "Dos vícios redibitórios e da sua articulação com as tes alertarem-nas sobre os riscos indesejáveis de um conflito. Aqui,
cláusulas de declarações e garantias em contratos de compra e venda de
empresas". In: Giovana Benetti, André Rodrigues Corrêa, Márcia Santana
diversamente do que ocorre no "design" de móveis, o mínimo não é
Fernandes, Guilherme Carneiro Monteiro Nitschke, Mariana Pargendler, Laura o máximo. Melhor uma disciplina pormenorizada das declarações e
Beck Varela (Org.). Direito, Cultura, Método: Leitura das obras de Judith
Martins-Costa. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2019.
214 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 215

garantias do que cláusulas que pouco ou nada dizem sobre a real in- 4.3. CLÁUSULAS COM QUALIFICADORAS DE
tenção das partes na alocação dos riscos do negócio. CONHECIMENTO - " KNOWLEDGE QUALIHERS"
Presentemente, dada a inclusão do artigo 421-A no Código Civil,
bem como a prática de constarem declarações e garantias detalhadas
em contratos de M&A, é grande o risco de o julgador acreditar que 4.3.1. CARACTERÍSTICAS E FUNÇÕES

a omissão da cláusula significa que o adquirente renunciou a obter Em contratos de M&A, é comum o estabelecimento de cláusu-
tais informações, comprando "de porteira fechada". las de declarações e garantias, as quais, em sua maioria, são prestadas
pelo vendedor e relativas à "sociedade-alvo".
A extensão e os detalhes dessas declarações e garantias costumam
ser objeto de intensas negociações, a fim de que reflitam os negócios,
operações, contratos, litígios e condição financeira da empresa-alvo.
Além de fornecerem informações essenciais ao comprador, as decla-
rações e garantias constituem instrumento de alocação de riscos re-
lacionados aos assuntos tratados entre as partes envolvidas.
Durante tais negociações, o vendedor normalmente tenta man-
ter suas declarações e garantias mais restritas, enquanto o comprador
deseja ampliá-las. Assim, o vendedor pode empregar, para restringir o
escopo de suas declarações e garantias, as denominadas cláusulas com
"qualificadoras de conhecimento" ("knowledge qualOers").
As "qualificadoras de conhecimento" têm por objetivo limitar
o alcance de uma disposição contratual e, por consequência, os seus
efeitos. Na prática, utilizam-se expressões como "segundo o conheci-
mento do vendedor" (to seller's knowledge), "no melhor conhecimento
do vendedor" (to the best of seller's knowledge), ou "no melhor conheci-
mento do vendedor e após investigações diligentes" (to the best of sel-
ler's knowledge and after diligent investigation)292.

292 CARLOS PORTUGAL GOUVÊA e MARIANA PARGENDLER, "As diferenças


entre as declarações e garantias e os efeitos do conhecimento". In: Carlos
Portugal Gouvêa, Mariana Pargenclier e Maurizio L
• evi-m"inzi (Coord.). Fusões
e Aquisições: Pareceres. São Paulo: Almedina, 2022, p. 294.
r- •

216 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 217

Independentemente da linguagem utilizada, a previsão de limi- representa uma redução do risco da parte que está prestando a decla-
tações evidencia que o declarante não tem conhecimento de qualquer ração quanto a fatos desconhecidos a respeito da sociedade-alvo295.
fato que contradiga a declaração293.
Ademais, a depender da expressão empregada, a inserção de quali-
4.3.2. INTEPRETAÇÃO E ÔNUS DA PROVA
ficadoras de conhecimento também serve para limitar a diligência a ser
feita na busca por informações durante o processo de negociação. Essa As expressões que indicam "qualificadoras de conhecimento" ori-
limitação pode ser eficiente, tendo em vista que a produção de infor- ginaram-se da prática contratual norte-americana, onde é amplamen-
mação é sempre custosa. A fim de reduzir gastos, exige-se do vendedor te reconhecido que a sua inclusão enfraquece determinada declaração,
apenas as informações que este já tem, sem investigações adicionais294. pois permite ao vendedor eximir-se de responsabilidade por questões
Portanto, as cláusulas de declarações e garantias com limitações não reveladas sobre as quais não tinha conhecimento296.
de conhecimento são disposições contratuais que amenizam a higi- A inserção de qualificadora é incompatível com situações nas
dez das informações prestadas e, consequentemente, restringem a ex- quais o comprador busca obter uma verdadeira garantia, não sendo
tensão da responsabilidade do vendedor em relação à sua precisão. aconselhável em tais casos incluí-la no contrato297.
Se houver alguma informação desconhecida ou se o vendedor Assim, considerando a origem da "qualificadora de conhecimen-
não tiver ciência de certos fatos, essas cláusulas proporcionam-lhe to", é necessário que o intérprete analise o seu sentido técnico ao em-
uma salvaguarda, limitando a sua responsabilidade em relação a es- pregá-la em nosso contexto jurídico.
sas áreas específicas. Na prática societária no Brasil, da mesma forma, as qualificadoras
Nesse sentido, na alocação de riscos contida na cláusula de de- têm por objetivo delimitar a exposição a que estaria sujeita o vende-
clarações e garantias, a presença da qualificadora de conhecimento dor com informações prestadas por meio das declarações e garantias,
restringindo, dessa forma, o escopo da declaração.

293 Segundo o Collins Dictionary: "If you say that something is true to your
knowledge or to the best of your knowledge, you mean that you believe it to 295 VLA DIMI R ROSSMAN. "Commercial contracts: strategies for drafting and
be true but it is possible that you do not know all the facts" (Disponível em: negotiating", Wolters Kluwer Law & Business, 2014, p. 2-17.
<https://www.collinsdictionary.com/dictionary/english/to-the-best-of-your- 296 JAMES C. FREUN D. Anatomy of a Merger: Strategies and Techniques for
knowledge#google_vignette>. Acesso em 15.12.2023). Negotiating Corporate Acquisitions. New York: Law Journal, 1975, reedição
294 Para ilustrar essa função das qualificadoras de conhecimento, Ronald Gilson de 2004, p. 247 ("[t]urning now to the knowledge caveat, it is obvious that the
comenta que: "[Flue the idea is to qualify not the object of the inquiry, but seller would prefer every one of his representations to be qualified 'to the best of
the diligente of the seorch. Consider, for example, the common representation his knowledge'- the theory being that, although he would still be on the hookfor
concerning the absenceofdefaults underdisclosed contracts. While it might involve items he knew about but failed to disclose, he would escape liabilityfor undisclosed
titile cost to determine whether the seller, as lessee, has defaulted under a lease, it matters concerning which he had no actual knowledge").
may well be quite expensive to determine whether the lessor is in default. In that 297 Segundo JAMES C. FREUND, "in the usual case the purchaser is simplylookingfor
situation, the buyer might consideritsufficient to be told everything that the seller a guarantee, and it becomes immaterial whether the seller actually has or hasn't
naa tnougnt appropnare to fina ourjor irs own purposes, wirnour regara w rne the requisite knowledge. In th ese sttuattons, the purchaser s attorneysh ould refuse
acquisition, but not no requirefurther investigation" (RONALD GILSON. "Value to permit the knowledge caveat to create ambiguity in the legal relations existing
Creation by Business Lawyers: Legal Skills and Asset Pricing", Columbia Law between the parties" (Anatomy of a Merger: Strategies and Techniques for
School: The Yale Law Journal, V. 94, n. 2. p. 239-313, Dec.1984. p. 278). Negotiating Corporate Acquisitions..., p. 248).
NELSON EIZIRIK - 219
218 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL

Com a inclusão dessas limitações, surgem 2 (duas) consequên- decisão da Suprema Corte de Idaho, no caso 11Cyfer v. Callister, sobre
cias interpretativas, quais sejam: (i) o comprador terá o ônus de com- a existência de problemas de zoneamento em um imóvel, em razão de
provar a imprecisão das declarações prestadas pelo vendedor, devendo sua clareza: "O texto do contrato (...) é claro e inequívoco. Estabelece que
demonstrar a existência de fatos que, conhecidos por este, não foram as garantias são apresentadas com base no melhor conhecimento do vende-
devidamente informados no momento da celebração do contrato; e dor. Não fala que o vendedor fez pesquisas no registro público, ou que não
(ii) a expressão empregada para a qualificação do conhecimento não existe efetivamente nenhuma violação, ou que o comprador poderia confiar
deve ser aplicada de forma ilimitada, sob pena de ignorar todas as nessa garantia a fim de parar de pesquisar por conta própria"299
cláusulas de declarações e garantias, assim como os dispositivos le- Há quem defenda, no entanto, que tal cláusula não cria uma pre-
gais destinados a proteger o comprador. sunção de boa-fé subjetiva, pois não seria possível que uma declara-
Sobre o primeiro item e baseando-se na interpretação adotada no ção do vendedor gerasse uma presunção em seu favor. Assim, o efeito
direito norte-americano, a expressão "to the best knowledge of the seller" principal seria reduzir o alcance das declarações aos casos em que o
poderia ser vista, no Brasil, como uma presunção relativa de boa-fé vendedor tinha (ou deveria ter) conhecimento de fatos que as tornam
subjetiva. Ou seja, essa expressão não implica numa presunção abso- falsas. Como a regra geral atribui ao autor o ônus da prova do fato
luta de que o vendedor não tinha conhecimento de algum vício. Pelo constitutivo do direito (artigo 373, caput, inciso I, do CPC)300, seria
contrário, ela indica uma presunção relativa de que o vendedor não responsabilidade do comprador interessado na declaração de responsa-
conhecia determinado vício da coisa por ele não informado298. bilidade do vendedor comprovar não apenas a falsidade da declaração,
mas também o conhecimento do vendedor (ou o dever de conhecer)"'.
Em uma declaração desprovida de qualquer qualificadora de co-
nhecimento, é suficiente demonstrar que os fatos objetivamente de- No entanto, comprovar uma questão inteiramente subjetiva, como
clarados não correspondem à realidade. No entanto, na presença de o conhecimento de um indivíduo, pode ser desafiador. Costuma-se
um qualificador, a falsidade da declaração passa a depender de um recomendar, então, que as partes estabeleçam, no contrato, uma in-
elemento subjetivo de conhecimento. Ou seja, não basta ao compra- versão do ônus probatório, conforme o artigo 373, § 3°, do CPC302,
dor demonstrar que a realidade é diferente do que foi declarado; é 299 Hoffer v. Callister, 47 p. 3d 1261, (Idaho 2002) ("[t]he language of the contract
necessário também comprovar que o vendedor tinha ou deveria ter (...) is clear and unambiguous. It states that the warranties are made to the best
of seller's knowledge. It does not say the seller has searched the public record, or
conhecimento da realidade. that no actual violation exists, or that the buyer may rely on this warranty to stop
researching on his own").
Por isso, na presença de uma qualificadora de conhecimento, o
300 'Art.373. O ônus da prova incumbe: 1- ao autor, quanto aofato constitutivo de seu
comprador tem o ônus de provar que o vendedor tinha ciência dos direito; (...)."
301 GIACOMO GREZZANA, "O Qualificador de Conhecimento (Knowledge
fatos que tornam falsas as declarações.
Qualifier) e suas Relações com a Cláusula de Declarações e Garantias em
Esse, com efeito, tem sido o entendimento dos tribunais nos Alienações de Participação Societária". In: Marcelo Vieira Von Adamek e Rafael
Setoguti Julio Pereira (Coord.). Fusões e Aquisições (M&A). São Paulo: Quartier
Estados Unidos sobre a matéria. Transcreve-se, em tradução livre, a Lati n, 2022, p. 261.
302 Art.373. 0 ônus da prova incumbe: (...) § 3° A distribuição diversa do ônus da prova
também pode ocorrerporconvenção das partes, salvo quando: 1- recairsobre direito
298 GUSTAVO TEPEDINO. Temas de Direito Civil. t. II, Rio de Janeiro: Renovar,
indisponíveldaparte;11-tomarexcessivamentedykilaumaparteoexerckiododireito."
2006, p. 257.
220 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 221

de modo que o conhecimento do vendedor seja sempre presumido tui o fim da negociação, uma vez que as partes ainda deverão nego-
juris tantum, ficando a seu cargo a demonstração de que não tinha ou ciar o escopo do conhecimento do vendedor.
não poderia ter conhecimento do fato que torna falsa a declaração. Existem 2 (duas) questões principais nesta discussão: primeiro,
Assim, se partiria da responsabilidade do vendedor, permitindo-lhe se o conhecimento do vendedor é limitado ao conhecimento real, ou
provar a ausência de conhecimento para se eximir dela'". se também inclui conhecimento presumido; e segundo, se o conhe-
Poder-se-ia argumentar que para o vendedor também seria uma cimento do vendedor é limitado ao conhecimento de pessoas especi-
tarefa extremamente difícil demonstrar um fato negativo. Entretanto, ficamente identificadas ou de categorias de pessoas.
parece ser preferível que o vendedor assuma uma responsabilidade
4.3.3.1. CONHECIMENTO REAL E CONHECIMENTO PRESUMIDO
mais efetiva no contrato do que arriscar que sejam tidas como inú-
teis as declarações e garantias devido a questões de prova. Quando da inclusão de qualificadoras no pacto, deve-se identifi-
car se o conhecimento do vendedor limita-se ao "conhecimento real"
Como regra geral, o ônus da prova cabe à parte que alega o fato
ou se também inclui o "conhecimento presumido""
constitutivo de seu direito (artigo 373, caput, inciso I, do CPC). Na
ausência de pactuação expressa das partes em contrário, seria o com- O "conhecimento real" exige que a parte declarante realmente
prador quem teria que comprovar o conhecimento do vendedor para saiba de um item ou evento específico que possa causar uma violação.
justificar a aplicação dos remédios jurídicos previstos para a falsida- Um exemplo de definição de conhecimento real, no prólogo do con-
de das declarações. Não obstante, o ordenamento jurídico brasileiro trato, seria dizer que "conhecimento" significa o conhecimento real e
confere ao julgador uma certa margem para distribuir o ônus da pro- consciente, excluindo qualquer "conhecimento presumido".
va de maneira diferente, especialmente quando for muito difícil para O "conhecimento presumido", por sua vez, refere-se, na prática,
uma das partes satisfazê-lo (artigo 373, § 1°, do CPC)3°4. ao conhecimento imputado à parte que faz a declaração, podendo ser
definido como o conhecimento que se espera que qualquer indivíduo
adquira após um nível razoável de diligência, ou o que essa pessoa de-
4.3.3. DEFINIÇÃO DO CONHECIMENTO
veria saber em virtude de sua posição na sociedade-alvo.
A concordância do comprador com a inclusão de qualificadora
de conhecimento na cláusula de declarações e garantias não consti-
305 A doutrina anglo-saxã utiliza as expressões "actual knowledge" e "constructive
knowledge", respectivamente. Nesse sentido, ver: (i) EDWARD J. LEVIN, "Best
is not always best when it comes to knowledge", Probate & Property Magazine.
303 GIACOMO GREZZANA, "O Qualificador de Conhecimento (Knowledge
v. 3o, Chicago: ABA, n.1, 2016, p. 44-48; e (ii) EDWARD N. BARAD, "Colorado
Qualifier) e suas Relações com a Cláusula de Declarações e Garantias em
purchase and sabe issues for buyers", The practical real estate lawyer. ju1-2017,
Alienações de Participação Societária". In: Marcelo Vieira Von Adamek e Rafael p. 43-62; No Direito brasileiro, Giacomo Grezzana adaptou os termos para
Setoguti Julio Pereira (Coord.). Fusões e Aquisições (M&A)..., p. 261. "conhecimento positivo" e "conhecimento exigível", conforme seu artigo "O
304 "Art. 373. O ônus do prova incumbe: (...)§1° Nos casos previstos em lei ou diante de Qualificador de Conhecimento (Knowledge Qualifier) e suas Relações com a
peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade Cláusula de Declarações e Garantias em Alienações de Participação Societária".
de cumprir o encargo nos termos do coput ou à maior facilidade de obtenção da In: Marcelo Vieira Von Adamek e Rafael Setoguti Julio Pereira (Coord.). Fusões
prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, e Aquisições (M&A). São Paulo: Quartier Latin, 2022, p. 229-234. Em nosso
desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a entendimento, as expressões seriam melhor traduzidas como "conhecimento
oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído." real" e "conhecimento presumido".
NELSON EIZIRIK - 223
222 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL

A cada 2 (dois) anos, desde 2005, a American Bar Association e/ou cargos das pessoas que detêm o conhecimento técnico em re-
("ABA") divulga seu estudo intitulado "Private Target ME.951 Deal lação à determinada declaração. O vendedor, ou, quando aplicável, a
Points Study", que analisa os contratos de M&A publicamente dis- própria sociedade que está fazendo a declaração, busca, por meio des-
poníveis envolvendo companhias fechadas". Estas transações variam sa identificação, imputar o conhecimento das pessoas e/ou cargos lis-
em tamanho, mas são geralmente consideradas como parte do "mer- tados ao próprio declarante".
cado intermediário" para transações de fusões e aquisições; os valores Assim, seguidamente, compradores e vendedores negociam
das transações dos 123 negócios analisados no estudo de 2021 varia- os nomes das pessoas que serão incluídas (ou excluídas) no "grupo
ram de US$30 a US$750 milhões. de conhecimento".
Os estudos da ABA mostram que o "conhecimento" é quase Pode-se, por exemplo, restringir a imputação de conhecimen-
sempre definido nas operações entre as empresas. Por exemplo, no to àquelas pessoas que ocupam cargos no conselho de administra-
estudo de 2021, apenas 2% dos negócios relatados deixaram de de- ção e diretoria de determinada sociedade ou que estavam envolvidas
fini-lo. Os estudos revelam também que a definição de conhecimen- na transação.
to inclui cada vez mais o conhecimento real e o presumido (em vez Do ponto de vista do comprador, o ideal seria que o "grupo de
de apenas conhecimento real). A definição do "conhecimento" para conhecimento" incluísse aqueles indivíduos mais propensos a ter co-
incluir conhecimento presumido aumentou constantemente ao lon- nhecimento de fatos relevantes em relação aos itens abordados pelas
go dos 9 (nove) estudos ABA — de 52% dos negócios revisados no declarações e garantias relevantes com qualificadoras. Como exemplo,
estudo ABA de 2005 para 81% no estudo mais recente de 2021307. poderia imputar ao declarante o conhecimento do diretor financeiro para
4.3.3.2. IDENTIFICAÇÃO DE PESSOAS OU DE CARGOS
os fins da declaração de conformidade das demonstrações financeiras.
ESPECÍFICOS
Em sociedades menores, limitadas ou de capital fechado, com um
Em algumas situações, o vendedor pode não ter acesso a todas
pequeno grupo de acionistas ou quotistas ativos nos negócios, costu-
as informações necessárias para verificar se há algum fato que torna-
ma-se incluir todos os sócios no grupo de conhecimento. Em socie-
ria a sua declaração falsa. Frequentemente, inclusive, a informação é
dades maiores, com vários departamentos, cada um com diferentes
detida por uma pessoa que não está diretamente envolvida na nego-
funções operacionais, indivíduos específicos podem ser incluídos no
ciação da operação.
grupo de conhecimento para declarações selecionadas.
Diante disso, nos contratos de compra e venda de participação
Qual a finalidade em identificar indivíduos ou cargos específicos?
societária, é comum que haja uma cláusula que especifique os nomes
Essa identificação tem o propósito de evidenciar o grau de di-
ligência das partes. Isso porque quanto maior e mais qualificado for
306 No estudo do ABA, utiliza-se a expressão "private company", que pode ser
traduzida para o português como "companhia fechada".
07 DANIEL AVERY, "Trenrk in Private rnmnnnv MRA Trnn crre-tinn c • Use e-h{ k'nn.,1‘,4,-.. 308 A doutrina também considera a identificação de pessoas e cargos específicos
Qualdiers for Representations and Warranties (2021)", Bloomberg Law. corno um "limite subjetivo" às qualificadoras de conhecimento. Nesse sentido,
Disponível em: <https://www.goulstonstorrs.com/whats-market-blog/use- ver GUSTAVO TEPEDINO. Temas de Direito Civil..., p. 258.
of-knowledge-qualifiers-for-representations-and-warranties-2 >. Acesso em:
15.12.2023.
em
224 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 225

o conhecimento das pessoas listadas no "grupo de conhecimento", o tre o declarado e a realidade independentemente de qualquer juízo de
ônus da prova com relação ao declarante fica mais reduzido. Por ou- ilicitude ou de culpam. Constatada a divergência, o comprador pode
tro lado, nesta mesma hipótese de inclusão de pessoas com conheci- valer-se dos remédios legais e/ou contratualmente ajustados.
mento mais específico, a responsabilidade de apresentar evidências ou
sustentar argumentos torna-se mais difícil para o comprador.
4.3.5. OBSERVAÇÕES FINAIS
Na negociação de cláusulas de declarações e garantias, que vi-
4.3.4. CLÁUSULAS SEM LIMITAÇÃO DE CONHECIMENTO sam a informar e oferecer segurança às partes, apresentam-se as va-
Na ausência de qualificadora de conhecimento, a parte que presta riáveis envolvendo situações em que os vendedores desejam limitar o
uma declaração e/ou oferece uma garantia está assumindo a respon- escopo das declarações prestadas e, portanto, restringir a responsabi-
sabilidade total pela veracidade dessas informações, independente- lidade delas decorrentes.
mente do seu real conhecimento. Uma das limitações é a alocação dos riscos derivados do desco-
Ou seja, quando não há limitações específicas em relação ao que nhecimento de determinado fato por meio da inclusão da qualificadora
é ou não conhecido pelo vendedor no momento da declaração, este "no melhor conhecimento" em determinadas declarações e garantias.
assume o risco quanto à eventual falsidade das informações presta- Assim, as declarações e garantias com qualificadores de conhe-
das na declaração. cimento alocam riscos aos compradores, enquanto aquelas sem limi-
Nesse tipo de cláusula, portanto, há o risco de desconformida- tações alocam-nos aos vendedores.
de entre o que foi declarado e a realidade, sem considerar o conhe- Espera-se que compradores e vendedores negociem: (i) quais de-
cimento que o declarante tinha, deveria ou poderia ter sobre os fatos clarações e garantias serão qualificadas pelo conhecimento; (ii) como
em questão3o9. o conhecimento deve ser definido (ou seja, apenas conhecimento real,
A falta de qualificadora de conhecimento evidencia que o ven- ou conhecimento real e presumido); e (iii) quem fará parte do "grupo
dedor deveria ter confirmado a veracidade das informações prestadas de conhecimento", caso seja previsto.
antes de assegurá-las ao comprador. Geralmente, as qualificadoras de conhecimento são mais apro-
Assim, em princípio, as cláusulas constituem garantias objeti- priadas para fatos ou assuntos que estão fora do controle do vende-
vas31o, por meio das quais o declarante responde pela divergência en- dor ou que não podem ser razoavelmente determinados por meio de
sua diligência — por exemplo, se há ameaça ou não de algum litígio a
309 JOSÉ FERREIRA GOMES. Aquisição de Empresas e de Participações Sociais. 1a ser iniciado por um terceiro contra a sociedade-alvo312.
edição, Coimbra: Almedina, 2018, p. 270.
310 A garantia objetiva se contrapõe à garantia subjetiva aplicável às cláusulas com
limitação de conhecimento. Nesta última garantia, o declarante não garante
311 JOSÉ FERREIRA GOMES. Aquisição de Empresas e de Participações Sociais...,
a veracidade da declaração, mas tão somente que não tem conhecimento de
P. 270.
'IC11114111 icuu LIUG a lUI1ICIU164.
312 JAMES C. FREUN D. Anatomy of a Merger: Strategies and Techniques for
Negotiating CorporateAcquisitions..., p. 247.
226 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL
NELSON EIZIRIK - 227

Os advogados de ambas as partes em um contrato de M&A de-


4.4. CLÁUSULA DE INDENIDADE
vem avaliar cuidadosamente o emprego de qualificadoras de conheci-
mento, uma vez que elas podem transferir o risco de problemas entre
comprador e vendedor para o período pós-fechamento da operação. 4.4.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Portanto, é importante adaptá-las de maneira específica, levando em
Os contratos de aquisição de participações societárias muito se-
considerações os detalhes do caso concreto.
guidamente contêm cláusulas de indenidade, que preveem a obriga-
ção, para uma ou para ambas as partes, de indenizarem a contraparte
caso descumpram suas obrigações.
Sob as mais diversas denominações, sendo a mais comum a de
"perdas indenizáveis", os contratantes, visando a evitar a necessidade
de discutirem "expost" o valor da indenização, estabelecem um me-
canismo de compensação patrimonial, fixo ou com valores máximos
e/ou mínimos.
Ainda que o assunto já tenha sido ventilado na Seção sobre
Declarações e Garantias, aqui será retomado de maneira mais sis-
temática, uma vez que a cláusula de indenidade, entre nós, em geral
não cobre apenas perdas decorrentes da eventual falsidade de tais in-
formações, o mais das vezes prestadas pelo vendedor com relação à
empresa objeto.
Quais as principais funções da cláusula de indenidade? Qual o
seu conteúdo? Pode ela ser considerada válida em nosso sistema ju-
rídico? Pode abranger lucros cessantes e danos emergentes, inclusi-
ve decorrentes da privação de uso? Quais os seus limites em casos de
dolo, erro ou vícios redibitórios?
São as questões que passaremos a analisar.

4.4.2. FUNÇÕES E CONTEÚDO DA CLÁUSULA DE INDENIDADE

As cláusulas que tratam do descumprimento do contrato são ti-


das como instrumentos de "alocação de riscos", expressão muitas ve-
zes utilizada ao longo da presente obra.
226 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL
NELSON EIZIRIK - 227

Os advogados de ambas as partes em um contrato de M&A de-


4.4. CLÁUSULA DE INDENIDADE
vem avaliar cuidadosamente o emprego de qualificadoras de conheci-
mento, uma vez que elas podem transferir o risco de problemas entre
comprador e vendedor para o período pós-fechamento da operação. 4.4.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Portanto, é importante adaptá-las de maneira específica, levando em
Os contratos de aquisição de participações societárias muito se-
considerações os detalhes do caso concreto.
guidamente contêm cláusulas de indenidade, que preveem a obriga-
ção, para uma ou para ambas as partes, de indenizarem a contraparte
caso descumpram suas obrigações.
Sob as mais diversas denominações, sendo a mais comum a de
"perdas indenizáveis", os contratantes, visando a evitar a necessidade
de discutirem "expost" o valor da indenização, estabelecem um me-
canismo de compensação patrimonial, fixo ou com valores máximos
e/ou mínimos.
Ainda que o assunto já tenha sido ventilado na Seção sobre
Declarações e Garantias, aqui será retomado de maneira mais sis-
temática, uma vez que a cláusula de indenidade, entre nós, em geral
não cobre apenas perdas decorrentes da eventual falsidade de tais in-
formações, o mais das vezes prestadas pelo vendedor com relação à
empresa objeto.
Quais as principais funções da cláusula de indenidade? Qual o
seu conteúdo? Pode ela ser considerada válida em nosso sistema ju-
rídico? Pode abranger lucros cessantes e danos emergentes, inclusi-
ve decorrentes da privação de uso? Quais os seus limites em casos de
dolo, erro ou vícios redibitórios?
São as questões que passaremos a analisar.

4.4.2. FUNÇÕES E CONTEÚDO DA CLÁUSULA DE INDENIDADE

As cláusulas que tratam do descumprimento do contrato são ti-


das como instrumentos de "alocação de riscos", expressão muitas ve-
zes utilizada ao longo da presente obra.
228 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 229

Quais os principais riscos? O que temem as partes quando con- As contingências normalmente referem-se a reclamações tra-
cluem um contrato de aquisição de participação societária ou de ativos? balhistas, passivo tributário, previdenciário, cobranças de dívidas por
Para o vendedor o risco principal é o de não receber o preço, em credores de diversas naturezas, questões ambientais e regulatórias.
sua integralidade. Já para o comprador é o de pagar um preço exces- Há 2 (duas) principais formas de se regular a alocação de ris-
sivo, pelo desconhecimento a respeito de determinadas características cos e responsabilidades com relação à avaliação da empresa-alvo e às
da "empresa-alvo", ou por ser obrigado, também pela falta de infor- contingências. A primeira é o ajuste de preço, mediante cláusula de
mações, a realizar pagamentos que desconhecia (impostos, multas, "earn out" , pela qual deixa-se para o futuro uma complementação do
dívidas frente aos trabalhadores e terceiros em geral). preço, em função de critérios estabelecidos no contrato, em geral vin-
Assim, uma das maiores fontes de discussões por ocasião da ne- culados à lucratividade alcançada pela empresa adquirida em deter-
gociação da operação de M&A refere-se à avaliação da empresa-alvo. minado período.

A avaliação é fruto de livre negociação entre o comprador e o ven- Já o risco representado pelas contingências é disciplinado no con-
dedor, não havendo um "preço justo". O preço a que chegam reflete o trato mediante cláusulas de indenidade.
valor que o vendedor atribui à sua empresa, assim como a expectati- Na chamada "luta contra os riscos", as partes buscam evitar o
va de lucros que o comprador tem, após um processo, por vezes lon- fato temido — a ocorrência do que se tinha como risco — mediante: a
go, de negociações, em que as partes fazem concessões mútuas para transferência do risco para outro sujeito; a repartição do risco; o co-
chegarem a um preço que entendem aceitável.
para "passivos e ativos que não sejam reconhecidos porque a sua existência somente
Tal avaliação leva em consideração uma série de premissas, tanto será confirmada pela ocorrência ou não de um ou mais eventos futuros incertos
atuais (posição de caixa e endividamento, por exemplo), quanto fu- não totalmente sob o controle da entidade". O Pronunciamento define "provisão"
como"um passivo de prazo ou de valor incertos", "passivo" como"uma obrigação
turas (as perspectivas de rentabilidade da empresa-alvo constituindo presente da entidade, derivada de eventos já ocorridos, cuja liquidação se espera que
resulte em saída de recursos da entidade capazes de gerar benefícios econômicos"
em geral a mais importante).
e "passivo contingente" corno "(a) uma obrigação possível que resulta de eventos
Também são objeto de análise as contingências, que se refletem passados e cuja existência será confirmada apenas pela ocorrência ou não de um ou
mais eventosfuturos incertos não totalmente sob controle da entidade; ou (b) uma
no preço, materializadas e a materializar, da companhia alvo. Por "ma- obrigação presente que resulta de eventos passados, mas que não é reconhecida
terializadas" entende-se aquelas que já são objeto de procedimentos porque: (i) não é provável que uma saída de recursos que incorporam benefícios
econômicos seja exigida para liquidara obrigação; ou (ii) o valorda obrigação não
judiciais, arbitrais ou administrativos; já as "não materializadas" ou pode ser mensurado com suficiente confiabilidade.". Ademais, distingue entre
"(a) provisões - que são reconhecidas como passivo (presumindo-se que possa ser
"por materializar" relacionam-se a contingências potenciais, que ain-
feita uma estimativa confiável) porque são obrigações presentes e é provável que
da não são objeto de processos3t 3-314. uma saída de recursos que incorporam benefícios econômicos seja necessária para
liquidara obrigação; e (b)passivos contingentes - que não são reconhecidos como
313 IVO BARI FERREIRA e RENATO VILELA, "Breves Comentários Sobre a Cláusula passivo porque são: (i) obrigações possíveis, visto que ainda há de ser confirmado
de Limitação de Responsabilidade em Contratos de Compra e Venda de se a entidade tem ou não uma obrigação presente que possa conduzira uma saída
Participações Societárias no Brasil". In: Marcelo Vieira von Adamek e Rafael de recursos que incorporam benefícios económicos, ou (ii) obrigações presentes
Setoguti J. Pereira (Coord.). Fusões e Aquisições (M&A). São Paulo: Quartir que não satisfazem os critérios de reconhecimento deste Pronunciamento Técnico
Latin, 2022, p.362. (porque não é provável que seja necessária uma saída de recursos que incorporem
314 Para efeitos contábeis, ver Pronunciamento Técnico CPC 25 - Provisões, benefícios econômicos para liquidar a obrigação, ou não pode ser feita uma
Passivos Contingentes e Ativos Contingentes, que utiliza o termo "contingente" estimativa suficientemente confiável do valor da obrigação)."
230 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 231

nhecimento sobre a empresa objeto. Caso não seja possível evitar o em todo ou em parte, mesmo que eventual perda não esteja coberta
fato temido, buscam substituir as consequências econômicas desfavo- por uma violação a declarações e garantias317.
ráveis de sua ocorrência por um equivalente econômico, que é o res- O que constitui uma "perda indenizável" deve ser objeto de cui-
sarcimento de danos'''. dadosa redação, para evitar, no futuro, decisões judiciais ou arbitrais
A negociação de um nível adequado de ressarcimento dos da- incompatíveis com a alocação de riscos desejada pelos contratantes.
nos pode trazer benefícios mútuos para as partes. Por um lado, con- Normalmente, a definição contratual de perda indenizável des-
fere previsibilidade ao possível causador do dano, o que lhe permite a dobra-se em 2 (dois) aspectos: quais as hipóteses em que há obrigação
contratação de seguros em condições mais favoráveis; por outro lado, de indenizar assumida por uma das partes; o que deve ser conside-
propicia à outra parte uma eficiente equação dos riscos, pois ela pro- rado uma "perda".
vavelmente não terá incorporado ao preço o custo da contingência As hipóteses de indenizar usualmente compreendem: o descum-
relacionada a um evento que poderá ou não ocorrer316. primento de obrigações da infratora ou de suas partes relacionadas;
Assim, usualmente, em contratos de aquisição de participações violação de declarações e garantias; materialização de contingências
societárias os contratantes preveem uma cláusula de indenidade: uma pelas quais a parte indenizadora se responsabilizou, em geral ante-
parte assume a obrigação de indenizar a outra e/ou terceiros a ela re- riores ao fechamento da operação; indenizações por determinadas
lacionados (em geral a própria empresa-alvo) caso sofram "perdas", contingências que possam surgir após o fechamento da operação. As
nas hipóteses previstas no contrato. regras sobre o que constitui uma perda indenizável costumam variar
Embora a expressão "perdas" seja a mais utilizada, outros termos muito. Em alguns contratos, elaborados com menos cuidado, há re-
similares, não necessariamente dotados de tecnicidade, também são ferências genéricas a perdas, prejuízos ou danos, sem uma definição
empregados, como "danos", "perdas e danos", "prejuízos", todos fa- expressa em suas cláusulas, caso em que o intérprete deve recorrer às
zendo referência a quaisquer danos sofridos por uma das partes (em regras gerais dos artigos 402 a 405 do Código Civil318. Em contra-
geral o comprador ou a própria empresa-alvo) por ato da outra par-
te, ou de pessoa a ela associada, nas hipóteses e nos limites estabele-
317 IVO BARI FERREIRA e RENATO VILELA, "Breves Comentários Sobre a Cláusula
cidos contratualmente. de Limitação de Responsabilidade em Contratos de Compra e Venda de
Participações Societárias no Brasil". In: Marcelo Vieira von Adamek e Rafael
Na prática norte-americana, o escopo da obrigação de indenizar Setoguti J. Pereira (Coord.). Fusões e Aquisições (M&A)..., p.363-364; e RENATO
limita-se em geral às violações das declarações e garantias. Entre nós, BERGER. Temas Complexos de Direito Empresarial: Resolução de Questões
Concretas. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 162.
seguidamente é mais amplo, abrangendo o passado da empresa-alvo, 318 "Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas
ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente
deixou de lucrar." "Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as
perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela
direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual." "Art. 404. As perdas
315 WANDERLEY FERNANDES. Cláusulas de Exoneração e de Limitação de e danos, nas obrigações de pagamento em dinheiro, serão pagas com atualização
Responsabilidade. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 95. monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, abrangendo juros,
.1- ---
.
.310 WA NDERLEY FERNANDES. g...14~1db À.. Limitação
UC CAU11C141,4U C UC CUS/0.5 e 1701101UTIMS ue uuvuyuuu, sem piejutzu uu puiu cuumuctuttut. ruí uyi uju
Responsabilidade..., p. 96. único. Provado que os juros da mora não cobrem o prejuízo, e não havendo pena
232 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 233

tos mais sofisticados, utiliza-se um termo definido no próprio instru- Tratando-se a aquisição de participação societária, em princí-
mento, visando a conferir maior segurança jurídica aos contratantes319. pio, de um contrato entre partes com igual "poder de fogo", não há,
Costuma-se incluir na definição de "perdas", de forma não técnica a nosso ver, proibição legal a que a cláusula estabeleça um valor irri-
e mesmo redundante, para evitar ambiguidades que possam restrin- sório, que provavelmente será compensado por um preço de aquisi-
gir o direito à indenização: prejuízos, passivos, danos, perdas, obriga- ção mais elevado.
ções, responsabilidades, desembolsos, multas, juros, despesas, custas Pode ainda a cláusula deixar de fora dela valores que as partes
e mesmo honorários de advogados32°. considerem irrelevantes, estabelecendo que somente serão indenizá-
Usualmente são estabelecidos limites para a aplicação da cláusula veis perdas que, em seu conjunto, ultrapassem determinado montante.
de indenidade, relacionados ao tempo e ao valor. Assim procedendo, Vale notar que a cláusula limitadora do dever de indenizar usual-
as partes buscam evitar que, no futuro, tenham que discutir na esfera mente é requerida pelo vendedor, que visa, mediante sua inclusão no
judicial ou arbitral o montante do valor a ser indenizado. contrato, "blindar-se" da responsabilidade de indenizar o comprador
Com relação ao tempo, a cláusula pode estabelecer um prazo por questões que tenham fato gerador anterior ao fechamento da ope-
determinado depois do "closing", após o qual a parte prejudicada não ração, mas que produzam efeitos após a sua conclusão322.
pode mais pleitear a indenização de perdas.
A cláusula pode limitar a indenização das perdas a um valor má- 4.4.3. VALIDADE DA CLÁUSULA E O PAPEL DO JULGADOR
ximo, usualmente estabelecido em função do preço de aquisição pago
Embora nosso sistema jurídico consagre o princípio da repara-
pelo comprador.
ção integral, é há muito tempo reconhecido na doutrina nacional a
Também podem ser tomados como referenciais do preço de in-
possibilidade de as partes, mediante estipulação contratual, estabele-
denização: percentual do valor do contrato; os riscos a que se sujeitam
cerem uma limitação da responsabilidade de indenizar. Tais estipula-
as partes; percentual do valor recebido pela parte até o momento da
ções são referidas na doutrina como "cláusula de irresponsabilidade"
ocorrência do dano ou do valor correspondente a determinado número
ou "cláusulas de limitação da responsabilidade", ou ainda "cláusulas
de prestações; ou ainda mediante fórmula acertada entre as partes321.
de exoneração e limitativas de responsabilidade negocial"323.
Tais cláusulas são plenamente válidas em nosso ordenamento
convencional, pode o juiz conceder ao credor indenização suplementar." "Art. 405.
Contam-se os juros de mora desde a citação inicial." jurídico, uma vez que elas podem exercer, da mesma forma que as
319 BRUNO ROBERT e LUCAS C. GORGULHO M. BARROS, "Cláusula de Indenidade
em Contratos de M&A: A Inclusão de Lucros Cessantes Como Perdas
Indenizáveis". In: Marcelo Vieira von Adamek e Rafael Setoguti J. Pereira (Coord.). 322 RAFAEL VILLAC VICENTE DE CARVALHO, "Da Cláusula Limitadora de
Fusões e Aquisições (M&A)..., p. 98-99. Indenização em Contratos de M&A". In: Marcelo Vieira von Adamek e Rafael
320 BRUNO ROBERT e LUCAS C. GORGULHO M. BARROS,"Cláusula de Indenidade Setoguti J. Pereira (Coord.). Fusões e Aquisições (M&A)..., p. 829.
em Contratos de M&A: A Inclusão de Lucros Cessantes Como Perdas 323 Nesse sentido: JOSÉ DIAS DE AGUIAR. Clausula de Não-Indenizar. 3a
Indenizáveis". In: Marcelo Vieira von Adamek e Rafael Setoguti J. Pereira edição, Rio de Janeiro: Forense, 1976; ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO.
(Coord.). Fusões e Aquisições (M&A)..., p. 99-100. Estudos e Pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 427-
321 WANDERLEY FERNANDES. Cláusulas de exoneração e limitação de responsa- 441; e WANDERLEY FERNANDES. Cláusulas de exoneração e limitação de
bilidade..., P. 3o5. responsabilidade..., p. 151 e seguintes.
234 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 235

cláusulas penais, a importante função de conferir às partes a previsi- mento intocável, não sendo possível qualquer restrição aos efeitos do
bilidade com relação aos efeitos de seu eventual inadimplemento324-325. seu incumprimento.
Ademais, com a entrada em vigor da Lei n° 13.874/2019, que Não é o caso dos contratos de compra e venda de participações
incluiu o artigo 421-A no Código Civi1326, ficou reforçada a autono- societárias, visto que, em princípio, as partes têm uma relação de equi-
mia de vontade das partes, que podem prever no contrato o regime de líbrio, são paritárias, com plenas condições de negociar o que lhes
reparação de danos que desejam, inclusive mediante valores fixos ou parecer mais conveniente, normalmente auxiliadas por assessores fi-
"tetos", respeitados alguns limites estabelecidos pelo ordenamento ju- nanceiros e jurídicos qualificados.
rídico em normas de ordem pública, conforme mais adiante analisado. Com efeito, tais cláusulas têm por objetivo dar previsibilidade à
Normalmente, cláusulas de tal natureza são compensadas, direta indenização de danos, exatamente em razão do inadimplemento da
ou indiretamente, por alguma vantagem correlata, como, por exemplo, obrigação principal328. Trata-se, a previsibilidade, de elemento fun-
condições financeiras mais vantajosas para a contraparte, ou mesmo damental para a plena eficácia do sistema de alocação de riscos em
uma redução no preço do bem adquirido. contratos de tal natureza.
Seriam admissíveis entre nós as cláusulas que estabelecem o va- Cabe ao julgador conferir plena eficácia à cláusula de indenidade,
lor da indenidade para a obrigação principal? tendo em vista o disposto no parágrafo único do artigo 421 do Código
Nas relações de consumo, nos termos do artigo 51 do Código Civi1329, também incluído pela Lei n° 13.874/2019, que, ao positivar
de Defesa do Consumidor327, a obrigação principal é tida como ele- o postulado da "intervenção mínima" (fruto de neoliberalismo um
tanto exacerbado), repete um dos princípios da Lei n° 13.874/2019,
324 WANDERLEY FERNANDES. Cláusulas de exoneração e limitação de respon- consubstanciado em seu artigo 2°, inciso III, o qual estabelece "a in-
sabilidade..., p. 97-98.
tervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício da ativida-
325 A cláusula de indenidade distingue-se da cláusula penal na medida em que
trata-se de uma cláusula de garantia, aplicável independentemente de uma de econômica". O mesmo princípio também está positivado no artigo
conduta culposa de alguma parte que acarrete descumprimento contratual.
421-A, inciso III, do Código Civil, ao dispor que "a revisão contra-
326 "Art. 427-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até
a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, tual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada".
ressalvados os regimesjuridicos previstos em leis especiais, garantido também que: I -
as partes negociantes poderão estabelecerparâmetros objetivos para a interpretação
O parágrafo único do artigo 421 foi objeto de críticas doutri-
das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução; II - a nárias, uma vez que, embora exista certo dirigismo estatal nos con-
alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e III
- a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada." tratos nas leis que tratam da relação de trabalho, locação, relações de
327 'Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao consumo (hipóteses de regulação legal), jamais se cogitou de "inter-
fornecimento de produtos e serviços que: I - impossibilitem, exonerem ou atenuem
a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e
serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo
entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser 328 WANDERLEY FERNANDES. Cláusulas de exoneração e limitação de respon-
limitada, em situações justificáveis; (...) XII - obriguem o consumidor a ressarcir sabilidade..., p. 254.
os custos de cobrança de sua obrigação, sem que igual direito lhe seja conferido 329 'Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do
contra r fornecedor, _
(...)XVIpossibilitem dir eito de indenização
rnntrntn Pnrrinrnfn
. tinirn Nnc rpinriipc =tratar-1k privadas. nrevolererão o
por benfeitorias necessárias; (...)". principio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual."
236 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 237

venção", seja mínima, seja máxima, nos contratos disciplinados pelo valor da obrigação principal'''. Com efeito, nos termos do artigo 412
Código Civi1330. do Código Civil, a cláusula penal não pode ter valor superior ao da
De qualquer forma, o dispositivo não só fixa uma norma que vin- obrigação principal334.
cula a administração pública, como também orienta os órgãos julga- Como o artigo 413 do Código Civil refere-se à "redução de pe-
dores no sentido de não admitir — ou, pelo menos, reconhecer como nalidade", não pode o julgador suprimir a cláusula, ainda que a con-
excepcional — a revisão contratual que se afaste da clara intenção das sidere inteiramente injusta, exceto se caracterizado dolo ou erro.
partes'''. O que a lei autoriza é a supressão do excesso, e não a eliminação
Pode o julgador eventualmente reduzir o valor da indenidade, da penalidade, nem a declaração de sua nulidade. Uma vez operada a
por considerá-lo excessivo, dadas as circunstâncias do caso? redução, o seu principal efeito é desvincular o obrigado ao pagamen-
A nosso ver sim, a despeito do disposto no parágrafo único do to do valor originalmente pactuado, remanescendo o caráter de pe-
artigo 421, com fundamento no artigo 413 do Código Civil332, nos nalidade, a ser cumprida no quantum determinado pelo julgador"'.
termos do qual o juiz "deve" reduzir a penalidade se a obrigação prin- Ademais, o parágrafo único do artigo 944 do Código Civil confe-
cipal tiver sido cumprida parcialmente ou se o seu montante for ma- re ao juiz o poder de reduzir, equitativamente, o valor da indenização
nifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade caso haja excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano336.
do negócio. Desta forma, o legislador mitigou o princípio da indenização in-
Ainda que o dispositivo do artigo 413 diga respeito à cláusula tegral, conferindo ao julgador competência para fixar a indenização
penal, nada impede que, mediante o recurso à analogia, seja também de acordo com seu prudente arbítrio; trata-se de dispositivo salutar
aplicável à cláusula de indenidade. Primeiro, porque ambas repre- para impedir o excesso na condenação, considerando todas as circuns-
sentam modalidades de alteração convencional ao regime geral de tâncias de fato, evitando que a indenização enseje o enriquecimento
responsabilidade contratual. Em segundo lugar, porque, em dadas
circunstâncias, a cláusula penal poderá coincidir com os efeitos da
cláusula de limitação da responsabilidade, sendo ambas limitadas ao
333 WANDERLEY FERNANDES. Cláusulas de exoneração e limitação de respon-
sabilidade..., p. 128-140.
334 "Art. 47.2. O valor da cominação imposta no cláusula penal não pode exceder o da
330 GERSON LUIZ CARLOS BRANCO, "Comentário ao Artigo 421 do Código Civil: a obrigação principal."
Função Social do Contrato na Lei de Liberdade Econômica". In: Judith Martins-
335 JUDITH MARTINS-COSTA, "Do Inadimplemento das Obrigações - Artigos 389
Costa e Guilherme Carneiro Monteiro Nitschke (Coord.). Direito Privado Na Lei
a 42o". In: Sálvio de Figueiredo Teixeira (Coord.). Comentários ao Novo Código
de Liberdade Econômica - Comentários. São Paulo: Almedina, 2022, p. 478.
Civil. v. V, tomo II, 2a edição, Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 709-712.
331 JOSÉ ROBERTO DE CASTRO NEVES, "Comentário ao Artigo 421 do Código Civil:
336 "Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano. Parágrafo único. Se
a Função Social do Contrato". In: Judith Marfins-Costa e Guilherme Carneiro
houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o
Monteiro Nitschke (Coord.). Direito Privado na Lei de Liberdade Econômica:
juiz reduzir, equitativamente, a indenização.". Ver, a propósito: ANDERSON
Comentários. la edição, São Paulo: Almedina, 2022, p. 507-508.
SCHREIBER. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil. Da Erosão dos
332 "Art. 413. A penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação Filtros Da Reparação à Diluição dos Danos. 5a edição, São Paulo: Atlas, 2013,
principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for
P. 45-46.
manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e afinalidade do negócio."
238 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 239

sem causa do lesado e a insolvência do causador do dano, e levando É o dano todo que deve ser indenizado, como tal entendido o
em conta a consequência efetiva do ato lesivo para a vítima337. dano em si e as suas repercussões na esfera jurídica do ofendido, ou
Assim, por exemplo, numa operação de alienação do controle de seja, tudo o que ele sofreu pela ação do ofensor339.
uma companhia por R$ 1.000.000.000,00 (um bilhão de reais), se as Com efeito, caso os lucros cessantes não fossem indenizáveis, o
partes fixam o valor da indenização pelo descumprimento de qual- dano não seria indenizado em toda a sua extensão, pois o lesado aca-
quer cláusula do contrato em R$ 500.000.000,00 (quinhentos mi- baria suportando um prejuízo certo, direto e efetivo, que não teria
lhões de reais), caso o vendedor descumpra uma obrigação acessória, experimentado se não tivesse ocorrido o ato que fundamenta a obri-
que não impede o cumprimento da obrigação principal (a entrega das gação de indenizar34°.
ações), o julgador, com base nos artigos 413 e 944, parágrafo único, do Daí decorre que, na ausência de menção expressa no contrato
Código Civil, poderá reduzir tal valor, dada a excessiva desproporção à exclusão da obrigação do ofensor de indenizar os lucros cessantes,
entre a gravidade da culpa e o dano, assim como as reais consequên- eles devem ser tidos como incluídos no conceito de "perda", ainda que
cias da infração contratual para a parte lesada. sua quantificação seja mais complexa que a dos danos emergentes.
Do ponto de vista prático, para evitar discussões sobre o valor
dos lucros cessantes, a solução que parece mais adequada é a de in-
4.4.4. ALCANCE DA CLÁUSULA
cluí-los no conceito de "perdas indenizáveis" e submetê-los às regras
Em nosso sistema jurídico, os danos somente são indenizáveis previstas no contrato, inclusive quanto a eventuais limitações quan-
caso sejam certos, ou seja, juridicamente provados, diretos e imedia- titativas e temporais, de forma equivalente aos danos emergentes341.
tos, a teor do artigo 403 do Código Civil. Tanto o artigo 403 como o
A privação do uso pode constituir suporte fático tanto de um dano
artigo 402 do Código Civil referem-se aos prejuízos efetivos (danos
emergente como dos lucros cessantes. Exemplo da primeira hipótese
emergentes) e lucros cessantes.
é a do indivíduo que sofre um abalroamento em veículo; ele não per-
Sendo certos, diretos e imediatos, todos os danos, inclusive os de a titularidade da coisa danificada, mas ainda assim tem o direito
lucros cessantes, devem ser reparados, tendo em vista o princípio da de ser ressarcido, em princípio, pela paralisação do carro na oficina342.
reparação integral, que orienta a quantificação do que deve ser inde-
nizado, previsto no artigo 944, caput, do Código Civi1338. 339 PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. t. XXVI, São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2012, p. 126.
340 BRUNO ROBERT e LUCAS C. GORGULHO M. BARROS, "Cláusula de Indenidade
em Contratos de M&A: A Inclusão de Lucros Cessantes Como Perdas
Indenizáveis". In: Marcelo Vieira von Adamek e Rafael Setoguti J. Pereira
(Coord.). Fusões e Aquisições (M&A)..., p.103.
341 BRUNO ROBERT e LUCAS C. GORGULHO M. BARROS, "Cláusula de Indenidade
337 CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO e SÉRGIO CAVALIERI FILHO, "Da em Contratos de M&A: A Inclusão de Lucros Cessantes Como Perdas
responsabilidade civil, das preferências e privilégios creditórios". In: Sálvio Indenizáveis". In: Marcelo Vieira von Adamek e Rafael Setoguti J. Pereira
de Figueiredo Teixeira (Coord.). Comentários ao Novo Código Civil. v. XIII, (Coord.). Fusões e Aquisições (M&A)..., p.113.
2a edição, Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 333. GUSTAVO TEPEDINO e RODRIGO DA GUIA SILVA, "Novos Danos em Cotejo
342
338 "Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano." com as Categorias Fundamentais da Responsabilidade Civil". In: Rodrigo
240 M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 241

A segunda hipótese — a privação do uso como suporte fático dos pação acionária majoritária de uma companhia que se vê privado de
lucros cessantes — tem sido reconhecida pela jurisprudência e doutri- exercer o poder de controle pelo fato do vendedor ter assinado um
na, em 2 (duas) situações. A primeira diz respeito ao adquirente que acordo de acionistas, não inscrito nos livros da sociedade, conferin-
se vê privado do uso de imóvel recém adquirido em decorrência do do direito de preferência a um acionista minoritário na hipótese de
atraso culposo do alienante na entrega do bem, partindo o STJ da venda de suas ações. No caso, se o minoritário exercer o direito de
presunção de que o adquirente sofre lucros cessantes por não poder preferência, o adquirente poderia alegar que não tem como usufruir
utilizá-lo como residência ou para locação. A segunda, mais frequen- da utilidade econômica do bem — as ações e os direitos de participa-
te, refere-se aos casos em que o proprietário sofre esbulho ou priva- ção que conferem — e pleitear lucros cessantes pela privação do uso,
ção e vê prejudicado o exercício de sua posse. Em algumas decisões, cuja decisão dependerá provavelmente da avaliação do julgador se ele
o STJ, embora mais tarde tenha revisitado o assunto, relativizando exerceu diligentemente o dever de se informar.
seu entendimento anterior, também decidiu que, uma vez provada a Já os danos indiretos, em princípio, não são indenizáveis345. Ainda
ilegalidade da privação da posse, presume-se a ocorrência de lucros que possam acarretar uma diminuição no patrimônio do lesado, não
cessantes em favor do proprietário343. geram a obrigação de indenizar, uma vez que não se estabelece o nexo
Ora, o bem jurídico, objeto também de proteção com base na de causalidade entre o dano e o ato culposo do ofensor.
privação de seu uso, não se identifica apenas com a coisa, em sen- Com efeito, a doutrina enfatiza que, salvo raríssimas exceções
tido material ou jurídico. Extraído da realidade tangível, assume (como a prevista no artigo 948, inciso II, do Código Civil346), o de-
conteúdo e contornos diversos da 'realidade material, compatíveis ver de indenizar depende da prova do nexo causa1347.
com a função a que se destina, podendo representar coisas imate- Assim, diversamente do que ocorre com os danos emergentes e
riais, incorpóreas ou intangíveis, como os direitos autorais, a clien- os lucros cessantes, para que se possa, ao menos em tese, pleitear a
tela, a marca e outros344. indenização por danos indiretos, o contrato deve ser expresso a res-
Parece-nos cabível a aplicação da teoria da privação do uso ao peito de sua inclusão na categoria de danos indenizáveis.
contrato de M&A. Imagine-se a situação do adquirente de partici-

Rocha Monteiro de Castro, Luis Andre Azevedo e Marcus de Freitas Henriques


(Coord.). Direito societário, Mercado de Capitais, Arbitragem e Outros Temas:
Homenagem a Nelson Eizirik. v. I, São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 627-628.
343 GUSTAVO TEPEDINO e RODRIGO DA GUIA SILVA, "Novos Danos em Cotejo 345 Exemplo clássico de dano indireto é o da oscilação da cotação das ações
com as Categorias Fundamentais da Responsabilidade Civil". In: Rodrigo em bolsa de valores em decorrência de danos causados ao patrimônio da
Rocha Monteiro de Castro, Luis Andre Azevedo e Marcus de Freitas Henriques companhia emissora.
(Coord.). Direito societário, Mercado de Capitais, Arbitragem e Outros 346 "Art. 948 - No caso de homicídio, a indenização consiste, sem excluir outras
Temas: Homenagem a Nelson Eizirik..., p. 628-629. reparações:1- no pagamento das despesas com o tratamento da vítima, seufuneral
GUSTAVO TEPEDINO e RODRIGO DA GUIA SILVA, "Novos Danos em Cotejo e o luto da família; 11- na prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os
344
com as Categorias Fundamentais da Responsabilidade Civil". In: Rodrigo devia, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima."
Rocha Monteiro de Castro, Luis Andre Azevedo e Marcus de Freitas Henriques 347 GUSTAVO TEPEDINO, ALINE DE MIRANDA VALVERDE e GISELA SAMPAIO
(Coord.). Direito societário, Mercado de Capitais, Arbitragem e Outros DA CRUZ. Responsabilidade Civil. Fundamentos do Direito Civil. v. 4, Rio
Temas: Homenagem a Nelson Eizirik..., p. 614-616. de Janeiro: Forense, 2020, p. 127.
242 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 243

4.4.5. EVENTUAIS LIMITES NA APLICAÇÃO DA CLÁUSULA DE INDENIDADE ao estado em que se achavam antes da conclusão da operação, ten-
Seriam aplicáveis os institutos dos vícios do consentimento em do em vista o caráter dinâmico da atividade empresarial? É possível
contratos de aquisição de participação acionária, uma vez que nosso que o adquirente tenha realizado substanciais investimentos na em-
sistema jurídico, como tantos outros, protege o consentimento como presa, tornando-a muito mais lucrativa, ou, por outro lado, a levado
requisito de validade do contrato? E os vícios redibitórios? à ruína por geri-la de maneira inepta. Ademais, direitos de terceiros
que contrataram com a empresa podem ter sido afetados no período.
É possível que o contrato seja muito bem elaborado, estabelecen-
do como único remédio para a parte lesada a indenização nele prevista Assim, a melhor solução parece estar contida na parte final do
e limitada a um certo valor. Seria tal cláusula contratual plenamente artigo 182, apesar das dificuldades inerentes ao cálculo do montante
aplicável, mesmo na hipótese de comportamento malicioso de uma de danos sofridos pela parte lesada, uma vez que sua aplicação per-
das partes com a intenção de causar um efeito nocivo à outra? Ou mite a preservação do negócio jurídico.
seja, mesmo presente o dolo ou a culpa grave, a indenização não po- A primeira hipótese em que cabe a aplicação do artigo 182 do
deria ultrapassar o "teto" do valor fixado na cláusula de indenidade? Código Civil é a do dolo. O artigo 145 do Código Civi135° prevê a
Trata-se de questão complexa, sendo necessário integrar as cláu- possibilidade de anulação do negócio jurídico se uma das partes atuar
sulas contratuais que estabelecem limites de indenidade ao nosso sis- dolosamente.
tema de direito obrigacional, particularmente às normas que protegem Caracterizado o dolo principal (presente quando a parte ludi-
o consentimento e que se caracterizam como de ordem pública. briada se dele tivesse ciência não teria assinado o ajuste), e não sen-
A anulação de contratos de aquisição de participação societária do aplicada a anulação, o regime contratual — medidas reparatórias
constitui medida excepcional, em regra aplicável caso o contrato apre- de dano, limitação de responsabilidade condicionadas a prazos e va-
sente vícios de consentimento, como o dolo e o erro substancial?". lores — é posto de lado, tendo a parte lesada direito à indenização em
montante hábil a restaurar a posição em que se encontrava antes da
No caso de anulação, o artigo 182 do Código Civi1349 determi-
conclusão do negócio jurídico35t.
na, a princípio, o desfazimento do negócio e a restituição das partes
ao estado anterior, o que pode ser extremamente difícil em contratos Já o dolo acidental, nos termos do artigo 146 do Código Civi1352,
de M&A. Imagine-se a situação de uma empresa cujo controle foi refere-se a um termo não essencial do contrato; a parte lesada o as-
adquirido e, alguns anos mais tarde, chega-se a uma decisão judicial sinaria, mesmo ciente da verdade, mas em condições distintas e mais
ou arbitral anulando o negócio jurídico. Como restituir-se as partes favoráveis. Ele não enseja a anulação do contrato, mas o direito de
postular indenização pela diferença entre o valor pago e o valor real

348 MARCELO ROBERTO FERRO e ANTONIO PEDRO GARCIA DE SOUZA, "O 35o "Art.145- São os negóciosjuridicos anuláveis pordolo, quando estefora sua causa."
Desenho Contratual nas Fusões e Aquisições e as Disputas Após o Fechamento: 351 MARCELO ROBERTO FERRO e ANTONIO PEDRO GARCIA DE SOUZA, "O
Limitações à Luz do Direito Brasileiro". In: Marcelo Vieira Von Adamek e Rafael Desenho Contratual nas Fusões e Aquisições e as Disputas Após o Fechamento:
. _ _ _ . .
Setoguti Julio Pereira (Coord.). Fusões e Aquisições (M&A)..., p. 598. Limitações à Luz do Direito Brasileiro". In: Marcelo Vieira Von Adame k e Rafael
349 'Art. 182 - Anulado o negócio jurídico, restituir-se-ão as partes ao estado em que Setoguti Julio Pereira (Coord.). Fusões e Aquisições (M&A)..., p. 600.
antes dele se achavam, e, não sendo possível restituí-las, serão indenizadas com o 352 "Art.146. O dolo acidental só obriga à satisfação das perdas e danos, e é acidental
equivalente." quando, a seu despeito, o negócio seria realizado, embora por outro modo."
244 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 245

da participação societária, expurgados os excessos oriundos do dolo. preencher o requisito do artigo 138 do Código Civil, isto é, ter agido
Assim, se o vendedor comete dolo acidental, omitindo a existência de com a diligência que se espera em operações da espécie. Da parte do
certas contingências da sociedade-alvo, que se materializaram após o vendedor, exige-se que ele atue conforme seus deveres de boa-fé ob-
fechamento da operação, a parte lesada terá direito de reclamar in- jetiva, cumprindo com a sua própria diligência e com as obrigações
denização em valor a elas correspondente3s3. de informar e de não omitir informações essenciais ao comprador35s.
O negócio jurídico também pode ser anulado pela parte que tiver Presentes as 2 (duas) circunstâncias — comprador atuando de
incorrido em erro essencial e escusável, nos termos dos artigos 138 e maneira diligente e vendedor de forma negligente e/ou dolosa — a
139 do Código Civi1354. cláusula que estabelece um limite de indenização pode ser consi-
O erro é essencial se a parte lesada provar que não teria celebra- derada inválida. Nesse caso o comprador pode pleitear um ressar-
do o contrato se estivesse ciente dos fatos, e escusável quando não cimento adicional àquele previsto no contrato, pelo valor integral
poderia ter sido percebido por uma pessoa agindo com a diligência da perda sofrida'.
requerida pela situação. Em regra, se o vício da vontade atinge apenas a cláusula de li-
Assim, os limites à obrigação de indenizar podem ser afastados mitação da responsabilidade, sem contaminar o restante do contrato,
se ficar comprovada a existência de dolo ou erro (essencial). não se anula o contrato como um todo. Com efeito, pelo princípio da
Por outro lado, tendo em vista os princípios do "pacta sunt ser- conservação das avenças, previsto no artigo 184 do Código Civi1357, a
vanda" e da intervenção mínima do julgador nos contratos, deve-se nulidade de uma cláusula não implica nulidade de todo o contrato, a
levar em conta alguns aspectos essenciais para o afastamento da cláu- depender da verificação de qual foi a vontade das partes. Uma cláu-
sula que estabelece a limitação do valor a ser indenizado, mesmo no sula de "independência das disposições" ("severability" na terminolo-
caso de dolo ou erro. gia anglo-saxã) significa que as partes desejaram a manutenção do
restante do contrato caso alguma de suas cláusulas tenha sido consi-
Em primeiro lugar, no caso do erro, o comprador prejudicado deve
derada ilegal ou inexequível.
ter atendido seu dever de diligência na fase pré-contratual, atuando de
acordo com determinado padrão de conduta que lhe teria permitido

353 MARCELO ROBERTO FERRO e ANTONIO PEDRO GARCIA DE SOUZA, "O 355 IVO BARI FERREIRA e RENATO VILELA, "Breves Comentários Sobre a Cláusula
Desenho Contratual nas Fusões e Aquisições e as Disputas Após o Fechamento: de Limitação de Responsabilidade em Contratos de Compra e Venda de
Limitações à Luz do Direito Brasileiro". In: Marcelo Vieira Von Adamek e Rafael Participações Societárias no Brasil". In: Marcelo Vieira von Adamek e Rafael
Setoguti Julio Pereira (coord.). Fusões e Aquisições (M&A)..., p. 602-603. Setoguti J. Pereira (Coord.). Fusões e Aquisições (M&A)..., p. 376-377.
354 "Art. 138. São anuláveis os negócios jurídicos, quando as declarações de vontade 356 IVO BARI FERREIRA e RENATO VILELA, "Breves Comentários Sobre a Cláusula
emanarem de erro substancial que poderia ser percebido por pessoa de diligência de Limitação de Responsabilidade em Contratos de Compra e Venda de
normal, em face das circunstâncias do negócio." "Art 139. O erro é substancial Participações Societárias no Brasil". In: Marcelo Vieira von Adamek e Rafael
quando: I - interessa à natureza do negócio, ao objeto principal da declaração, ou Setoguti J. Pereira (Coord.). Fusões e Aquisições (M&A)..., p. 379.
a alguma das qualidades a ele essenciais; II - concerne à identidade ou à qualidade 357 "Art. 184. Respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio
essencial da pessoa a quem se refira a declaração de vontade, desde que tenha jurídico não o prejudicará na parte válida, se esta for separável; a invalidade da
influído nesta de modo relevante; III - sendo de direito e não implicando recusa à obrigação principal implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz
aplicação da lei,for o motivo único ou principal do negócio jurídico." a da obrigação principal."
246 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 247

Assim, assegura-se ao prejudicado que busque a anulação do ne- E no caso da alienação de participação societária, cujo objeto é a
gócio jurídico somente quanto à parte atingida pelo erro ou dolo, sem aquisição de ações ou quotas da sociedade objeto, seria possível cogi-
afetar as demais, não contaminadas pelo vício de consentimento3s8. tar-se da aplicação da defesa contra os vícios redibitórios?
Não logrando chegar o intérprete a uma conclusão a respeito da Há autorizada corrente doutrinária defendendo a aplicação do
vontade comum e não somente da vontade de quem pretende anular instituto dos vícios redibitórios no caso, uma vez que o objeto último
o negócio, deve-se afirmar o princípio da conservação do contrato. da transferência não é constituído apenas pelas ações ou quotas, mas
Desse modo, considera-se válido o contrato e nula a cláusula, aplican- pelos direitos que elas conferem sobre o patrimônio da empresa-alvo,
do-se o regime geral da responsabilidade civil, sendo as disposições compreendendo os seus ativos e passivos, fluxo de caixa e perspecti-
convencionais substituídas pelas legais próprias ao negócio jurídico359. vas de rentabilidade. A redibição, porém, seria limitada, somente po-
Poderia o adquirente valer-se da proteção contra os vícios redi- dendo ser invocada caso o vício oculto se referisse a atributo essencial
bitórios, prevista no artigo 441 do Código Civi136°? do negócio, capaz de inviabilizar sua destinação361.
No caso do trespasse, instituto pouco utilizado em operações de A nosso ver, parece problemática no caso a invocação da prote-
M&A de maior monta, como ocorre a transferência de um estabele- ção contra os vícios redibitórios.
cimento empresarial, é possível invocar-se a proteção contra os vícios A aquisição de ações ou quotas constitui uma cessão de posição
redibitórios. Isto porque o objeto do contrato — o estabelecimento — contratual, presumindo-se que o comprador recebe a posição no con-
pode apresentar vícios graves, ocultos e pré-existentes à sua entrega trato de sociedade com todos os direitos e deveres, o que não engloba
ao comprador, que incidem sobre a possibilidade de utilização do bem os bens que integram o patrimônio da sociedade. Caso tivesse inte-
ou lhe diminuem o valor. resse em adquirir os bens da sociedade poderia fazê-lo diretamente.
Imagine-se, por exemplo, a situação em que uma loja de vestuá- Quando adquire uma participação societária submete-se a um regi-
rios é alienada, com o imóvel onde funciona e os bens móveis (mobi- me jurídico diverso, que, em virtude da autonomia patrimonial da
liário e roupas) nela contidos e o adquirente descobre que as fundações sociedade, não integra em seu objeto os bens ou a atividade por ela
que sustentam o prédio estão ruindo e ele deverá ser desocupado ime- desenvolvidas362.
diatamente. Presentes, na hipótese, os elementos necessários à prote- Com efeito, o objeto do contrato é a aquisição do controle ou de
ção do comprador pela existência dos vícios redibitórios: os vícios são participação no capital da sociedade, não dos bens de sua proprieda-
ocultos, tornam o estabelecimento impróprio ao uso, ou, pelo menos, de. O que interessa primordialmente ao comprador da participação
caso seja possível recuperar o imóvel, diminuem o seu valor.

358 EVANDRO DE PONTES. Representations & Warranties no Direito Brasileiro. 361 FABIO KONDER COMPARATO e CALIXTO SALOMÃO FILHO. O Poder de
São Paulo: Almedina, 2014, p.128-129. Controle na Sociedade Anônima. 6a edição, Rio de Janeiro: Forense, 2014, p.
359 WANDERLEY FERNANDES. Cláusulas de exoneração e limitação de respon- 237-246; MARCELO VIEIRA VON ADAMEK e ANDRÉ NUNES CONTI, "Vícios
sabilidade..., p. 369. redibitórios na alienação de participações societárias", Revista de Direito
360 "Art.447.Acoisarecebidaemvirtudedecontratocomutativopodeserenjeitadaporvícios Societário e M&A. São Paulo: Ed. RT, v. 3, ano 2, jan.-jun., 2023, p. 5.
ou defeitos ocultos, quea tornem imprópria ao uso a que é destinada, ou lhe diminuam 362 GIACOMO GREZZANA. A Cláusula de Declarações e Garantias em Alienação
o valor. Parágrafo único. É aplicável a disposição deste artigo às doações onerosas." de Participação Societária. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 362 e seguintes.
248 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 249

societária é a utilidade da empresa, sua capacidade de gerar lucros e 4.5. CLÁUSULA DE EARN-OUT
de distribuí-los entre os sócios.
A atividade empresarial não é compatível com o instituto dos ví-
cios redibitórios, uma vez que eles dizem respeito a bens, não a uma 4.5.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

atividade, como é a empresa, que constitui uma série de atos e negó- Em geral, os contratos de M&A apresentam estrutura complexa,
cios coordenados em função do escopo de lucro. A atividade não pa- uma vez que envolvem 2 (duas) entidades com realidades distintas e
dece de vício ou defeito oculto, podendo ser apenas lícita ou ilicita, que dependem de um acordo de vontades acerca de inúmeros deta-
regular ou irregulat363. lhes, como a distribuição de riscos, as responsabilidades das partes e
as condições prévias, sendo o preço um dos mais discutidos.
Especialmente nas negociações de alienação de participações so-
cietárias, não são raras as incertezas quanto à determinação do pre-
ço do bem objeto do negócio, o que pode obstaculizar ou até mesmo
impedir a celebração final do acordo de vontades. Por essa razão, a
fixação do preço constitui uma das fases mais difíceis e decisivas das
operações de fusões e aquisições364.
No que diz respeito à precificação da "empresa-alvo", existem
basicamente 2 (dois) problemas interligados que os compradores e
vendedores precisam superar: (i) a assimetria informacional a respei-
to das particularidades e condições de desenvolvimento da sociedade
a ser adquirida; e (ii) a possível divergência de opinião sobre o valor
justo da sociedade e sua performance futura.
Com efeito, ao fixar o preço do negócio, o alienante pode men-
cionar lucros futuros de alta monta. O adquirente, porém, não tem
como se assegurar previamente da veracidade desta informação, o que
gera incertezas e receio de erros de avaliação. Portanto, o objetivo do

364 Nesse sentido, ver GIOVANNI IUDICA, "// prezzo nella vendita di partecipazioni
azionarie", Rivista delie società. Ano 36, 1991, nota de rodapé n° 25, p. 756; e
DANIEL KALANSKY e RAFAEL SANCHEZ, "Earn Out nas Operações de Fusões
e Aquisições (M&A)". In: Sérgio Botrel e Henrique Barbosa (Coord.). Finanças
363 GIACOMO GREZZANA. A Cláusula de Declarações e Garantias em Alienação Corporativas: Aspectos Jurídicos e Estratégicos. 1a edição, São Paulo: Atlas,
de Participação Societária..., p. 366. 2016, p.153-155.
250 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 251

vendedor é reduzir margem de risco quando da precificação da so- terminados eventos futuros e incertos, comumente o alcance de metas
ciedade-alvo, de modo a receber o maior valor possível pelo bem365. empresariais e/ou financeiras predefinidas.
Há diversas maneiras de tentar evitar margem de risco, sen- É licito pactuar que o vendedor continue recebendo valores a tí-
do as principais: (i) a auditoria (due diligence); (ii) a análise das de- tulo de preço (earn) mesmo depois de deixar formalmente o contro-
monstrações financeiras da sociedade-alvo; e (iii) a análise do seu le da sociedade (out), caso determinados eventos sejam verificados367.
fluxo de caixa. A importância destas informações deve-se ao fato de De modo exemplificativo, registre-se algumas das condições
que o preço de aquisição de participações societárias é usualmen- geralmente previstas em contratos de M&A para o recebimento do
te determinado pelo valor presente dos fluxos futuros de lucros e valor do earn-out: obtenção de determinados resultados (EBTIDA,
dividendos de tais participações. Assim, uma análise adequada do EBIT, EBT); de licenças administrativas ou de registro de paten-
fluxo de caixa é do interesse comum de compradores e vendedores, tes; e a não rescisão unilateral do contrato de trabalho por parte de
os quais, normalmente, têm perspectivas diferentes acerca da ava- funcionários-chave no processo produtivo da sociedade.
liação do negócio366. Na prática, a cláusula de earn-out, muitas vezes, serve para des-
Por outro lado, tanto a auditoria como as demonstrações finan- bloquear negócios de aquisição de sociedades nos quais as partes têm
ceiras das sociedades consistem em documentos que basicamente re- acentuadas divergências quanto à precificação das participações so-
latam o desempenho passado ou a situação presente da empresa. cietárias ou à valorização da sociedade-alvo36s.
Assim, diante da incerteza sobre o real valor da sociedade em ne- As funções primordiais da cláusula de earn-out são: (i) reduzir a
gociação, e para superar eventual impasse quanto à sua performance assimetria informacional presente nas operações de M&A; (ii) alocar
futura, as partes frequentemente estabelecem uma cláusula de earn- riscos dos compradores e dos vendedores; (iii) reduzir risco de com-
-out no contrato, também chamada de "cláusula de contingenciamen- portamentos oportunistas369; e (iv) permitir que a avaliação da socie-
to de preço" (earn-out clause ou contingent deals).
367 GABRIELSAAD KIK BUSCH INELLI. Compra eVenda de Participações Societárias
de Controle. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 216.
368 De acordo com Paulo Cezar Aragão, "(...) usa-se o earn-out como uma
4.5.2. CARACTERÍSTICAS E FUNÇÕES DA CLÁUSULA DE EARN-OUT verdadeira 'ponte' de entendimento entre comprador e vendedor: este último
aceita, condicionalmente, as premissas otimistas do vendedor, mas condiciona
A cláusula de earn-out em operações de M&A consiste em ins-
o pagamento do preço a que elas efetivamente se realizem" ("Obrigações
trumento por meio do qual os contraentes estipulam o deslocamento Vinculadas à Cláusula de Earn-Out Prevista no Contrato". In: Carlos Portugal
Gouvêa, Mariana Pargendlere Maurizio Levi-Minzi (Org.). Fusões e Aquisições:
temporal do ajuste de preço em razão de incertezas quanto à precifi- Pareceres. São Paulo: Almedina, 2022, p. 351).
cação da sociedade-alvo, subordinando tal efeito à ocorrência de de- 369 Sobre comportamentos oportunistas, Sérgio Botrel explica que: "a opção
pelas parcelas variáveis vinculadas ao desempenho futuro da empresa gera
dilemas infindáveis. O vendedor argumenta que o resultado por ele projetado só
365 PETER SESTER. Business and Investment in Brazil: Law and Practice. New York: pode ser alcançado se a empresa continuara ser comandada por ele, e de acordo
Oxford University Press, 2022, p. 321. com o planejamento por ele realizado, e que a instalação de uma nova estrutura
366 PAULO CEZAR ARAGÃO, "Obrigações Vinculadas à Cláusula de Earn-Out Prevista organizacional, com a adoção de novas práticas, impedirá que a curto prazo se
no Contrato". In: Carlos Portugal Gouvêa, Mariana Pargendler e Maurizio Levi- verifique o crescimento planejado. O comprador, poroutro lado, teme que o negócio
Minzi (Org.). Fusões e Aquisições: Pareceres. São Paulo: Almedina, 2022, p. 351. seja conduzido pelo vendedor de maneira irresponsável, com o único objetivo de
252 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 253

dade seja concluída em momento futuro, baseada não somente em determinação de maneira objetiva, conforme estipula o artigo 487 do
expectativas, mas em dados concretos. Código Civil373.
Por meio dessa cláusula, as partes decidem estruturar o paga- A previsão da cláusula de earn-out possibilita que os vendedo-
mento em 2 (duas) ou mais parcelas, sendo uma delas certa e fixa e, res recebam, além do preço fixo e certo, uma contraprestação adicio-
outra(s), incerta(s) e variável(eis). O earn-out representa a parcela va- nal levando em consideração sua confiança no desenvolvimento da
riável do preço, um acréscimo ao valor fixo, que apenas será devido se, sociedade objeto da operação. Por outro lado, os compradores pos-
em determinado período, após o fechamento da operação ("Período tergam eventual desembolso vinculado ao atingimento de metas pre-
do Earn-Out"), certas metas econômicas e/ou financeiras futuras e viamente determinadas.
previamente definidas forem atingidas. Portanto, o earn-out atende, a um só tempo, aos interesses de
Ao ser utilizada como uma forma de postergar, sob condição do ambas as partes. O vendedor terá a expectativa de receber um preço
bom desempenho da sociedade-alvo, o pagamento da parcela contin- atrativo e o comprador terá a garantia de que só desembolsará o earn-
gente do preço de aquisição, a cláusula de earn-out revela-se como forma out se a sociedade-alvo atingir o desempenho esperado.
de pagamento condicionada, assumindo natureza jurídica de preço"°. Quanto à forma de execução da cláusula de earn-out, não há re-
Embora o preço seja elemento essencial do contrato de compra quisitos. É possível, por exemplo, que os contraentes optem pelo de-
e venda, nos termos dos artigos 481371 e 482372 do Código Civil, o seu pósito em uma "escrow account" de parcela do preço. Atingida a meta
ajuste — ou pagamento de parcela — é efeito do contrato. Logo, desde pactuada, a parcela contingente é liberada para o vendedor; do con-
o momento da sua celebração, o contrato é existente, válido e eficaz trário, reembolsa-se o comprador.
quanto aos seus efeitos obrigacionais típicos, restando apenas o efei- De outro modo, podem os contraentes decidir o tipo de meta
to relativo ao "ajuste de preço" diferido à realização de determinadas que visam a alcançar e definir que o vendedor continue presente na
metas, que consistem em eventos futuros e incertos. administração da companhia-alvo ou não.
Com efeito, o contrato não precisa necessariamente estabelecer Também é possível que o comprador e o vendedor estabeleçam a
um preço predeterminado; basta prever critérios que permitam a sua cláusula de earn-out "reversa", por meio da qual o vendedor recebe o
valor total do bem no fechamento da operação e, caso as metas pre-
serem alcançadas as projeções realizadas" (Fusões e Aquisições. 3a edição, São viamente pactuadas não sejam atingidas, deve restituir ao comprador
Paulo: Saraiva, 2014, p. 265).
37o PAULO CEZAR ARAGÃO, "Obrigações Vinculadas à Cláusula de Earn-Out
uma parte do preço originalmente estabelecido. Esse tipo de cláusula
Prevista no Contrato". In: Carlos Portugal Gouvêa, Mariana Pargendler e é menos comum na prática brasileira, pois o maior risco concentra-se
Maurizio Levi-Minzi (Org.). Fusões e Aquisições: Pareceres..., p. 351; DANIEL
KALANSKY e RAFAEL SANCHEZ, "Earn Out nas Operações de Fusões e na figura do comprador, a quem caberá comprovar que a meta não
Aquisições (M&A)". In: Sérgio Botrel e Henrique Barbosa (Coord.). Finanças foi alcançada. No entanto, a sua utilização pode ser útil em negocia-
Corporativas: Aspectos Jurídicos e Estratégicos..., p.156.
371 Art. 481. Pelo contrato de compra e venda, um dos contratantesse obriga a transferir
ções de capital de risco, quando o fundador continua a administrar
O UU1111111U ue C.C1 LU C.U15U, e u UUUU, U pugut -ttle Lel- tu pt eçu efIl
372 "Art. 482. A compra e venda, quando pura, considerar-se-á obrigatória e perfeita, 373 "Art. 487. É lícito às partesfixaro preço em função de índices ou parâmetros, desde
desde que as partes acordarem no objeto e no preço." que suscetíveis de objetiva determinação."
NELSON EIzIRIK - 255
254 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL

a companhia e os investidores desejam estabelecer fortes incentivos evento futuro e incerto. Assim, a condição pode ser definida como a
de desempenho. cláusula decorrente da autonomia da vontade, que subordina a eficá-
cia do negócio jurídico, total ou parcialmente, a acontecimento futu-
ro e imprevisível.
4.5.3. EARN-Our NO DIREITO BRASILEIRO E OS As condições podem ser classificadas em diferentes categorias,
PRINCÍPIOS APLICÁVEIS
sendo a mais relevante aquela que as distingue em suspensivas e re-
Como se pode inferir de seu nome, o earn-out é uma figura im- solutivas. ()liando a eficácia do negócio jurídico ficar sobrestada até
portada do sistema de common law. Não obstante advenha de uma o implemento da condição, será suspensiva. Por outro lado, quando
tradição jurídica diversa, não há óbice à sua utilização no Direito bra- ele produz efeitos desde logo, importando a verificação da condição
sileiro. Trata-se de pagamento de preço, sujeito, em parte, a uma con- no seu desfazimento, será denominada resolutiva.
dição, e pactuado, em regra, em contratos de compra e venda. A cláusula de earn-out, portanto, configura-se como uma con-
Um dos grandes desafios da cláusula de earn-out consiste em dição suspensiva, em que o dever do comprador de pagar parte
estabelecer critérios que nem o vendedor nem o comprador possam adicional do preço estará subordinado a evento futuro e incerto de-
manipular para condicionar a determinação do preço374. limitado pelas partes, baseado em verificações concretas de perdas,
No Brasil, os negócios jurídicos podem ser analisados em 3 (três) rentabilidade, contingências, entre outras. Com efeito, a pactuação
planos distintos: o da existência, o da validade e o da eficácia. Uma vez da cláusula de earn-out tem como consequência o diferimento de
verificados seus requisitos constitutivos ou essenciais, o negócio exis- efeitos do contrato até que implementadas, ou não, as condições
te. Se estiver revestido de determinadas formalidades legais, é válido. previstas no contrato.
A eficácia, por sua vez, decorre da vontade das partes, que podem li- No nosso ordenamento jurídico, as condições são lícitas, desde
mitar ou modificar os efeitos dos atos que estão praticando, median- que não contrariem dispositivo legal, normas de ordem pública ou
te o estabelecimento de elementos acidentais. os bons costumes. Ademais, são proibidas aquelas que privam o ato
Os elementos acidentais são aqueles que não são indispensáveis de todo efeito, bem como as puramente potestativas, uma vez que
à celebração do negócio jurídico — pelo contrário, são facultativos ou implicam subordinação efetiva e total de uma parte ao bel-prazer da
acessórios. A condição, o termo e o encargo são tidos como elemen- outra. Nesse sentido, o artigo 122 do Código Civil dispõe que "são
tos acidentais de um negócio jurídico. lícitas, em geral, todas as condições não contrdrias à lei, à ordem públi-
De acordo com o artigo 121 do Código Civil375, considera-se ca ou aos bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que pri-
condição a cláusula que, derivando exclusivamente da vontade do varem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio
disponente, ou das partes, submete o efeito do negócio jurídico a de uma das partes".
Embora o Código Civil não estabeleça tal distinção, entende-
374 JOSÉ FERREIRA GOMES. M&A: Aquisição de Empresas e de Participações
Sociais. Lisboa: AAFDL Editora, 2022, p. 287.
se que a condição puramente potestativa só gera a nulidade do ato
375 'Art. 127. Considera-se condição a cláusula que, derivando exclusivamente da se for suspensiva, pois, caracterizando-se como resolutiva, o negócio
vontade das partes, subordina o efeito do negócio jurídico a eventofuturo e incerto."
PIM

256 — M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 257

aperfeiçoa-se e produz efeitos, resolvendo-se apenas se e quando a na, sem estímulos ou obstáculos perturbadores". Para constatar se houve,
condição se verificar376. ou não, indevida interferência em seu curso natural, não "se exige a
Independentemente de sua classificação, a condição — isto é, o frustação dolosa da condição", basta que "o comportamento da parte não
evento futuro e incerto — deve realizar-se ou deixar de realizar-se na- corresponda ao que a outra legitimamente esperava"378
turalmente. Ou seja, é vedado às partes, durante o Período do Earn- Assim, o artigo 129 do Código Civil pode ser usado para disci-
Out provocar ou impedir a sua ocorrência. O Código Civil, no artigo plinar a forma como o comprador administra o negócio entre o seu
129, coíbe este tipo de conduta, determinando que "reputa-se veri- fechamento e a determinação do preço de compra final. No entan-
ficada, quanto aos efeitos jurídicos, a condição cujo implemento for ma- to, o princípio da boa-fé deve ser aplicado com cuidado ao avaliar
liciosamente obstado pela parte a quem desfavorecer, considerando-se, ao a decisão empresarial tomada pelo comprador após a transferência
contrário, não verificada a condição maliciosamente levada a efeito por de controle.
aquele a quem aproveita o seu implemento". Por exemplo, o não atingimento das metas previamente defini-
No regime anterior, entendia-se que a aplicação desse disposi- das no contrato de M&A não pode, em princípio, configurar violação
tivo sujeitava-se à verificação do dolo. No entanto, com a consoli- ao princípio da boa-fé pelo simples fato de o comprador ter gerido a
dação do princípio geral da boa-fé, que impõe um comportamento companhia da forma que lhe parecia estrategicamente mais adequada.
de cooperação entre as partes, a expressão "maliciosamente" adquiriu Na omissão de previsões específicas acerca da administração, o que se
novo significado, que não demanda o elemento intencional, mas tão pode exigir dos administradores é que tomem decisões negociais de
somente a culpa377. maneira refletida, informada e desinteressada, conforme preceitua a
A propósito, a jurisprudência já utilizou o desvio do curso na- teoria da business judgment rule (artigo 159, §6°, da Lei das S.A.)379-380.
tural da condição como parâmetro de incidência do artigo 129 do 378 TJSP, ia Câmara Reservada de Direito Empresarial, Apelação Cível n° 0207897-
Código Civil, firmando o entendimento de que a verificação da con- 09.2011.8.26.0100, Rel. Des. Francisco Loureiro, j. em 12.09.2013. No mesmo
sentido, ver: (1) TJSP, 31a Câmara de Direito Privado, Apelação Cível n°
dição deve ser "deixada às livres forças da natureza e da vontade huma- 1008094-35.2015.8.26.0602, Rel. Des. Adilson de Araujo, j. em 26.07.2016; (ii)
TJDFT, 6a Turma Cível, Apelação Cível n° 0006402-57.2016.8.07.0005, Rel.
Des. Vera Andrighi, j. em 16.08.2017; e (iii) TJSP, ia Câmara de Direito Privado,
376 Nesse sentido, ver: (i) MARIA HELENA DINIZ. Curso de Direito Civil Brasileiro. Apelação Cível n° 1005980-91.2015.8.26.0451, Rel. Des. Francisco Loureiro,
v.1, 20a edição, São Paulo: Saraiva, 2003, p. 443; (ii) ROSE MELO VENCELAU, "O j. em 30.08.2016.
negócio jurídico e suas modalidades". In: Gustavo Tepedino (Coord.). A Parte 379 "Art. 159. Compete à companhia, mediante prévia deliberação da assembléia-
Geral do Novo Código Civil: Estudos na Perspectiva Civil-Constitucional. geral, a ação de responsabilidade civil contra o administrador, pelos prejuízos
Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 206; (iii) EDUARDO RIBEIRO DE OLIVEIRA. causados ao seu patrimônio. (...) § 6° O juiz poderá reconhecer a exclusão da
Comentários ao Novo Código Civil. v. II, arts. 79 a 137, Rio de Janeiro: Forense, responsabilidade do administrador, se convencido de que este agiu de boa fé e
2008, p. 311; e (iv) GUSTAVO TEPEDINO, HELOISA HELENA BARBOZA, visando ao interesse da companhia."
MARIA CELINA BODIN DE MORAES. Código Civil Interpretado Conforme a 38o No exercício de suas atribuições, os administradores estão sujeitos a cenários
Constituição da República. v. I, Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 248-249. e acontecimentos adversos e imprevisíveis que podem afetar negativamente o
377 Como refere a doutrina, a "malícia constitui-se, portanto, na interferência resultado das decisões negociais que eles tomam na gestão da companhia, por
voluntário poro o fim reprovado pelo ordenamento, sendo dispensável, por mais cuidadoso que tenha sido o seu processo decisório. Há, assim, um risco
isso mesmo, a presença do dolo" (GUSTAVO TEPEDINO, HELOISA HELENA inerente à atividade de gestão dos negócios das sociedades anônimas. Em vista
BARBOZA, MARIA CELINA BODIN DE MORAES. Código Civil Interpretado disso, as cortes norte-americanas desenvolveram a teoria da businessjudgment
ca Luesau ua exci.suuiet_a. v. e..., 1). 250-259). / t.VII I U 11 RUIU,/ uc pl01. 5 I U LI 0CJ lw5ul.ldIJLUI I ICIUCI pUl aU111111111>“ ClUVI CJ
258 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 259

Portanto, o vendedor tem o ônus de provar que o comprador Por tal razão, nos contratos de M&A, as partes costumam con-
abusou do poder discricionário conferido a ele pela transferência de vencionar os critérios de gestão e as atribuições de cada uma duran-
controle que ocorreu antes da determinação do preço de compra fi- te o Período do Earn-Out.
nal. O ônus da prova inclui apresentar evidências de que o compra- Normalmente, os contratantes expressamente determinam como
dor tinha a intenção de frustrar a expectativa legítima do vendedor a administração da sociedade objeto da operação de M&A será confi-
de receber o earn-out ou que não agiu de boa-fé e visando aos inte- gurada. Essas disposições podem prever: (i) a manutenção dos antigos
resses da empresa. administradores; (ii) a substituição de pessoas eleitas pelo compra-
dor; ou (iii) a composição por uma combinação de antigos e novos
administradores.
4.5.4. DEVERES DOS ADMINISTRADORES DURANTE O PERÍODO DO
EARN-OUT Independentemente da escolha das partes, enquanto a condição
não se verifica, durante o Período do Earn-Out, cabe aos administra-
Nos contratos de M&A, há o receio de que o ajuste de preço ex
dores da companhia adquirida atuar de maneira diligente. Isto signi-
post promovido pela cláusula de earn-out possa criar incentivos ao ad-
fica analisar a nova estrutura e as necessidades da sociedade e tomar
quirente para adotar comportamentos oportunistas, como reter ga-
as medidas mais ajustadas ao caso, como, por exemplo, remanejar cus-
nhos durante o período de apuração com o objetivo único de obter
tos, reestruturar processos e políticas internos.
vantagens do novo negócio adquirido somente após o término de tal
período, administrando o não atingimento das metas e, consequen- Cumpre ressaltar que os deveres impostos aos administrado-
temente, o não pagamento da parcela adicional do preço de aquisi- res que atuam durante o Período do Earn-Out não se confundem
ção da sociedade. com aqueles exigidos pela legislação societária. Neste caso, o inte-
resse a ser resguardado é o da própria companhia. Naquela hipóte-
Por outro lado, se o alienante é mantido na administração da so-
se, a atuação proba dos administradores busca maximizar o retorno
ciedade-alvo durante o Período do Earn-Out, há o receio de que este
ao vendedor, que espera ver concretizada a sua expectativa de preço
priorize estratégias de curto prazo, somente para o atingimento das
que embutiu na operação.
metas condicionais, descurando do interesse social. Nesse caso, o dever
de diligência e o dever de lealdade dos administradores devem servir Os deveres dos administradores no Período do Earn-Out
como parâmetro para avaliação do comportamento das partes na ad- constituem obrigações de meio, uma vez que devem envidar seus
ministração dos negócios sociais durante o Período do Earn-Out' melhores esforços dentro de sua estratégia empresarial para que
a sociedade adquirida tenha um bom desempenho durante o
Período do Earn-Out, mas não podem garantir o resultado pre-
de sociedades anônimas, impedindo que eles sejam responsabilizados pelo visto no contrato.
insucesso de decisões adotadas de forma refletida, informada e desinteressada.
Nesse sentido, ROBERT C. CLARK. Corporate Law. Boston: Little, Brown and Com efeito, o que se exige dos administradores é a boa-fé objeti-
Company, 1986, p. 125. va, que tem por função proibir condutas que não expressem a lealda-
381 GABRIEL SAAD KIK BUSCHINELLI. Compra e venda de participações
societárias de controle. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 232. de, a confiança e a honestidade que devem estar presentes nas relações
260 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 261

privadas. Vale dizer, a boa-fé objetiva tem por fim impedir o exercí- Normalmente, o adquirente da companhia-alvo quer — e pode —
cio de um direito em sentido contrário ao dever legal de considerar mudar os meios de gestão. Isso porque quem adquire o controle de
os interesses e as expectativas da outra parte. Por isso, constitui abu- uma sociedade pode exercer os direitos derivados de sua posição ju-
so de direito o ato que frustra uma expectativa criada, de boa-fé, en- rídica, o que inclui se utilizar de mecanismos que entende mais ade-
tre as partes de determinado negócio jurídico382. quados para conduzir os interesses da companhia.
A expectativa das partes deve ser legítima, isto é, aquela que na-
turalmente se espera, tendo em vista os termos acordados no contra-
4.5.5. OBSERVAÇÕES FINAIS
to. O intérprete deve analisar as cláusulas no seu contexto e tutelar as
condutas correspondentes aos riscos que as partes distribuíram para As principais negociações em torno da cláusula de earn-out ocor-
alcançar o earn-out. A boa-fé objetiva não pode ser entendida de for- rem em relação aos parâmetros financeiros que servirão como marcos
ma ampla, de modo que tutele o interesse privado e individual de cada ou objetivos de desempenho da sociedade-alvo.
um dos contratantes, mas sim o interesse de ambos que se extrai ob- Embora o earn-out seja um recurso eficiente, a sua estipulação
jetivamente do pacto383. em contratos de M&A seguidamente resulta em disputas, especial-
Em decorrência da interpretação conforme a boa-fé objetiva, mente se o período entre o fechamento da operação e a implemen-
para que a companhia objeto da operação de M&A mantenha o cur- tação da condição pactuada for relativamente longo ou se a estrutura
so normal dos negócios adotados pelo vendedor, é necessária estipula- da sociedade adquirida for alterada pelo adquirente38s.
ção contratual nesse sentido, especificando a conduta administrativa a Ou seja, a cláusula de earn-out pode aumentar a complexidade
ser empregada pela sociedade adquirida. Caso contrário, os adminis- das operações de M&A e se tornar o motivo de conflitos futuros en-
tradores que atuam durante o Período do Earn-Out não têm o dever tre vendedor e comprador.
de conduzir os negócios da companhia de acordo com as práticas de Diante disso, e a fim de tornar a cláusula de earn-out mais efe-
gestão até então utilizadas pelo vendedor384. tiva, as partes podem, por exemplo, determinar (i) critérios de gestão
Na hipótese de omissão do contrato, apesar de o vendedor ter da sociedade adquirida e as atribuições do vendedor, mantendo-o na
interesse econômico na realização do evento condicionante que pos- condição de administrador e/ou de sócio minoritário; (ii) mais de 1
sibilita o pagamento do earn-out, não poderá intervir na gestão da (um) evento futuro e incerto, a fim de eliminar a cláusula que con-
sociedade-alvo. diciona o pagamento a um único, aumentando a possibilidade de
recebimento do earn-out, ainda que em menor valor; (iii) metas fi-
382 TERESA NEGREIROS. Teoria do Contrato: Novos Paradigmas. 2a edição, Rio nanceiras e/ou econômicas claras e detalhadas; e (iv) fatores objeti-
de Janeiro: Renovar, 2006, p.141.
383
vos de cálculo do earn-out.
GUSTAVO TEPEDINO, "Novos princípios contratuais e teoria da confiança: a
exegese da cláusula to the best knowlegde of the sellea". In: Gustavo Tepedino
(Coord). Temas de Direito Civil. t. II, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 253.
384 Nesse sentido, ver caso Winshall vs. Viacom International Inc. (Corte do 385 GREGORYWOLSKI, "The Answer(Not the Devil) Is in the Details: Mingating Risks
Estado de Delaware). Disponível em: <https://courts.delaware.gov/opinions/ of Post-Transaction M&ADisputes", Business Law Today. v. 17, n. 2, nov.-dez.
download.aspx?ID=195810>. 2007, American Bar Association, p. 56.
rri

262 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 263

Na hipótese de o vendedor não permanecer na gestão da socie- É essencial que comprador e vendedor, acompanhados de seus
dade-alvo, as partes podem, ainda, estabelecer a obrigatoriedade de advogados, elaborem a cláusula de earn-out com cautela, especial-
que a nova administração o mantenha informado a respeito das de- mente com relação às condições pactuadas e à administração da so-
cisões tomadas ao longo do Período do Earn-Out e que podem afetar ciedade objeto, de modo a conferir à operação uma solução efetiva e
as condições previamente definidas. A contraparte não deve se valer não uma fonte de litígios.
da incerteza da condição para deixar de prestar uma informação pre-
visível e relevante sobre o evento condicional386.
A propósito, uma forma que pode ajudara resolver tal situação é
a indicação de um "observado?— figura que não se confunde com a do
administrador —, com a finalidade de verificar se as regras do contra-
to de M&A estão sendo cumpridas internamente na sociedade-alvo,
sujeito a um acordo de confidencialidade. Nesse sentido, o observa-
dor poderá atestar se a companhia objeto da operação está sendo ge-
rida dentro dos parâmetros de gestão ordinária?".
Finalmente, as partes podem elaborar um plano de negócios,
no qual se estabelece as diretrizes gerais da operação e o grau de
interferência do controlador na gestão da sociedade adquirida. Por
exemplo, se o comprador quiser aumentar as despesas de marketing,
buscando impulsionar o crescimento da companhia, o lucro será
reduzido, pelo menos no curto prazo, e poderá entrar em conflito
com a viabilidade de atingir os objetivos propostos para o earn-out.
O plano, portanto, definirá a atuação das partes ao longo do Período
do Earn-Out.

386 FERNANDA MARTINS-COSTA, "O princípio da boa-fé objetiva nos negócios


sob condição suspensiva". In: Giovana Benetti, André Rodrigues Corrêa;
Márcia Santana Fernandes, Guilherme Carneiro Monteiro Nitschke, Mariana
Pargendler; Laura Beck Varela (Coord.). Direito, cultura, método: leituras da
obra de Judith Martins-Costa. Rio de Janeiro: GZ, 2019, p. 285.
387 FERNANDA MYNARSKI MARTINS-COSTA. Execução Diferida nos Contratos
de M&A. São Paulo: Almedina, 2022, p. 205.
NELSON EIZIRIK - 265

4.6. CLÁUSULAS MAC E MAE

4.6.1. CARACTERÍSTICAS E FUNÇÕES

Os contratos de M&A, além de sua complexidade, o mais das


vezes caracterizam-se como de execução diferida, com várias etapas,
o que gera preocupação para as partes e os advogados envolvidos a
respeito das repercussões do transcurso do tempo sobre as bases do
negócio jurídico.
A existência de um lapso temporal entre os momentos de assina-
tura (si gning) e fechamento (closing) em contratos de execução dife-
rida pode ocasionar alterações no "estado de coisas" existente quando
as partes decidiram constituir o vínculo contratual388.
O risco de modificação do equilíbrio inicial sobre o qual os con-
tratantes manifestaram sua vontade pode ser regulado por meio de
mecanismos de salvaguarda. Um desses instrumentos é a previsão
das cláusulas Material Adverse Change ("MAC") e Material Adverse
Event ("MAE").
Tais cláusulas estão relacionadas às "condições de manutenção". Isto
é, visam à regulação dos riscos do futuro, de modo a assegurar que sejam
mantidas as bases negociadas no momento da assinatura do contrato.
As cláusulas MAC e MAE disciplinam a ocorrência de altera-
ções ou efeitos significativos sobre as bases originalmente contratadas,
sendo frequentemente inseridas em contratos de M&A, notadamen-
te em operações com fechamento diferido. Elas têm como função a
alocação dos riscos surgidos no período intermitente389 e que possam
afetar a execução do contrato de modo substancial.

388 FERNANDA MYNARSKI MARTINS-COSTA. Execução diferida nos contratos


de M&A. São Paulo: Almedina, 2022, p. 57.
389 CRISLEINE BARBOZA YAMAJI. As previsões contratuais da superveniência
de circunstâncias: uma construção teórica à luz das cláusulas material
adverse change. Tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Direito
266 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 267

As circunstâncias objeto das cláusulas MAC e MAE dizem res- dos contratantes, de modo a justificar a aplicação de tais cláusulas393.
peito a fatos ou atos prejudiciais às bases contratuais previamente Entretanto, o tempo de duração da alteração ou do efeito adverso
acordadas. Portanto, a sua introdução tem como objetivo proteger a substancial pode vir a ser relevante numa avaliação da materialidade
parte beneficiária de eventos externos, não controláveis pelos contra- sob uma perspectiva de longo prazo394-395.
tantes, que produzam efeitos comerciais, financeiros ou legais adver- Note-se que o período intercalar (aquele que dura entre o si g-
sos sobre os fundamentos da operação39o. ning e o closing) geralmente tem duração de meses, enquanto efeitos
Dois aspectos destacam-se na aplicação de cláusulas MAC e de longo prazo podem ser percebidos em anos. Para evitar-se um des-
MAE: (i) a materialidade; e (ii) a causalidade391. casamento temporal que inviabilize a aplicação das cláusulas MAC
A avaliação quanto à materialidade diz respeito à relevância das e MAE, as partes podem estipular um prazo específico para a avalia-
alterações adversas provocadas pelo evento e por seus efeitos. Algumas ção da ocorrência de um evento considerado como MAC ou MAE
balizas para essa interpretação são: (i) identificar se uma das partes — como o período de 6 (seis) meses ou 1 (um) ano imediatamente
assumiu tal alteração como risco; (ii) verificar se a aplicação da cláu- anterior ou imediatamente posterior ao closing396.
sula beneficiaria o contratante que não assumiu o risco; e (iii) averi- A causalidade é outro requisito para a aplicação das cláusulas
guar se essa parte teria mantido a contratação, mesmo ciente do fato MAC e MAE. O evento que justifica o uso de tais cláusulas por uma
e de seus efeitos392. das partes deve ter relação direta com a alteração ou o efeito substancial-
A substancialidade também pode ser verificada por meio da pe- mente adverso percebido. Desse modo, não deve apenas ter contribuí-
renidade dos efeitos percebidos. Não é necessário que as cláusulas do para a sua concretização, mas sim determinado a sua ocorrência397.
MAC e MAE especifiquem prazos mínimos de duração para que
um evento seja caracterizado como adverso. Assim, é possível que
eventos passageiros provoquem alterações ou efeitos materiais pre- ANDREW A. SCHWARTZ. "A Standard Clause Analysis of the Frustration
393
judiciais de longo prazo sobre a "sociedade alvo" ou sobre a finalidade Doctrine and the Material Adverse Change Clause". UCLA LAW Review. N.
789, 2010, p. 83o.
394 FERNANDA MYNARSKI MARTINS-COSTA. Execução diferida nos contratos
de M&A. São Paulo: Almedina, 2022, p. 66; JORGE CESA FERREIRA DA SILVA,
"Cláusulas MAC ou MAE no Direito Brasileiro". In: Fusões eAquisições (M&A)...,
da Universidade de São Paulo. Orientador Prof. Cristiano de Sousa Zanetti. p. 392; VICENTE BEVIÁ. Las condiciones en ei contrato de compra venta de
Coorientador Prof. Claudio Scognamiglio. São Paulo: 2019, p. 88. empresa. Navarra: Arazandi, 2016, p. 59; JOSÉ FERREIRA GOMES. M&A.
390 PEDRO SANTOS CRUZ, "A Cláusula MAC em contratos de M&A no direito Aquisição de empresas e de participações sociais. Lisboa: AAFDL, 2022, p. 294.
comparado (EUA e Reino Unido)", Revista de Direito Bancário e do Mercado 395 Sobre o tema, cf. Caso IBP S'Holders Litig. V. Tyson Foods, 789 A. 2d 14 (Cel.
de Capitais. N. 45, jul-set, 2009, p. 153; JUDITH MARTINS-COSTA; PAULA Ch. 2001); Akorn, Inc. v. Fresenius Kabi AG, No. 2018-0300-JTL, 2018 Del. Ch.
COSTA E SILVA. Crise e Perturbações no Cumprimento da Prestação. Estudo LEXIS 325 (Ch. Oct. 1, 2018); Bardy Diagnostics, Inc. v. Rill-Rom, Inc., 2021 W1
de Direito Comparado Luso-Brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2020, p.127. 2886188 (De. Ch. July 9, 2021).
391 JORGE CESA FERREIRA DA SILVA, "Cláusulas MACou MAE no Direito Brasileiro". 396 VICENTE BEVIÁ. Las condiciones en el contrato de compra venta de empresa...,
In: Marcelo Vieira Von Adamek; Rafael Setoguti Julio Pereira (Coord.). Fusões p. 59; ANDREW M. HERMAN; BERNARDO L. PIERECK. "Revisiting the MAC
e Aquisições (M&A). São Paulo: Quartier Latin, 2022, p. 39o. Clause in Transaction". Business Law Today. Ago/2010, p. 3.
392 JORGE CESA FERREIRA DA SILVA, "Cláusulas MAC ou MAE no Direito Brasileiro". 397 JORGE CESA FERREIRA DASILVA,"Cláusulas MACou MAE no Direito Brasileiro".
In: Fusões e Aquisições (M&A)..., p. 392. In: Fusões e Aquisições (M&A)..., p. 392-393.
268 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 269

Em relação aos seus efeitos, é comum tais cláusulas conferirem sensíveis e querer evitar os efeitos negativos, inclusive reputacionais,
ao beneficiário o direito de desvinculação contratual — right to walk decorrentes da aplicação de tais cláusulas400.
away ("MAC out). Muitos contratos utilizam as 2 (duas) denominações — MAC e
O efeito típico das cláusulas MAC e MAE é o liberatório, por meio MAE —, prevendo tanto a resolução quanto a revisão do conteúdo
do qual se atribui à parte beneficiária o direito de se libertar da obrigação do contrato na ocorrência de quaisquer das cláusulas401. Assim, em
contratual; daí a sua denominação também de deal stopping clauses398 que pese diferirem em sua terminologia — versando, respectivamente,
Tem-se, assim, de um lado, uma parte, que se vê eximida do vín- sobre alterações e efeitos significativos —, são, normalmente, tratadas
culo assumido e, de outro, uma parte que se encontra sujeita ao des- de forma semelhante, por acarretarem as mesmas consequências402.
fazimento da operação. Usadas nesse sentido, tais cláusulas têm a Em contratos de M&A, essas cláusulas geralmente apresentam-se
função de extinção do vínculo contratual. estruturadas de 2 (duas) formas.
Alternativamente, embora menos frequente, as partes podem es- Em primeiro lugar, num sentido estrito, os contratantes pactuam
tipular como efeito das cláusulas MAC ou MAE a renegociação dos uma cláusula específica de MAC ou MAE, por meio da qual são previstas
termos contratuais e a alteração do preço399. a definição de base (base definition), ou seja, aquilo que constitui uma mu-
Como as cláusulas MAC e MAE são geralmente estruturadas dança ou efeito material adverso, bem como as exceções (carne-outs)4°3
em favor do comprador, mesmo as que apenas preveem a extinção A delimitação do que as partes consideram efeito ou mudança
do contrato acabam por constituir mecanismo de criação de incen- significativa pode ser feita por meio de uma descrição em termos ge-
tivos às partes negociarem, especialmente ao vendedor. Este incenti- rais ou de uma lista de situações. Alguns exemplos de efeitos mate-
vo adicional reside no fato de ter o vendedor fornecido informações riais adversos geralmente estão associados a condições geopoliticas,
econômicas e de mercado relacionadas à sociedade-alvo404.

398 FERNANDA MYNARSKI MARTINS-COSTA. Execução diferida nos contratos


400 PEDRO SANTOS CRUZ, "A Cláusula MAC em contratos de M&A no direito
de M&A..., p. 6o; CATARINA MONTEIRO PIRES. Cláusulas de preço fixo, de
comparado (EUA e Reino Unido)"..., p.156; FERNANDA MYNARSKI MARTINS-
ajustamento de preço e de alteração material adversa ("MAC") e cláusulas de COSTA. Execução diferida nos contratos de M&A..., p. 65; JUDITH MARTINS-
força maior - Revisitando problemas de riscos de desequilíbrio e de maiores
COSTA; PAULA COSTA E SILVA. Crise e Perturbações no Cumprimento da
despesas em tempos virulentos. Revista da ordem dos advogados, V.1/2.
Prestação..., p.134.
Lisboa: OA jan./jun. 2020. Disponível em: https://portal.oa.pt/media/131416/
401 NELSON EIZIRIK e MARCUS DE FREITAS HENRIQUES, "Notas sobre a revisão
catarina-monteiro-pires.pdf. Acesso em: 17.07.2020, p. 82; JORGE CESA
dos contratos". In: André Fernandes Estevez; Marcio Felix Jobim (Org.). Estudos
FERREIRA DA SILVA, "Cláusulas MAC ou MAE no Direito Brasileiro". In: Fusões e
de Direito Empresarial. Homenagem aos 5o anos de docência do Professor
Aquisições (M&A)..., p. 383; JUDITH MARTINS-COSTA; PAULA COSTA E SILVA.
Peter Walter Ashton. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 235.
Crise e Perturbações no Cumprimento da Prestação..., p.127.
402 HOWARD, Rod. J. Deal Risk, Annoucement Risk and Interim Changes -
399 CATARINA MONTEIRO PIRES. Cláusulas de preço fixo, de ajustamento de
Allocating Risks in recent technology M&A Agreeements. PLI Corporate Law
preço e de alteração material adversa ("MAC") e cláusulas de força maior...,
Practice Course. Handbook serie n.1219, 2000, p. 244.
p. 82; FERNANDA MYNARSKI MARTINS-COSTA. Execução diferida nos
contratos de M&A..., p. 120; JORGE CESA FERREIRA DA SILVA, "Cláusulas 403 FERNANDA MYNARSKI MARTINS-COSTA. Execução diferida nos contratos
MAC ou MAE no Direito Brasileiro". In: Fusões e Aquisições (M&A)..., p. 386; de M&A..., p. 63; JORGE CESA FERREIRA DA SILVA, "Cláusulas MAC ou MAE
CRISLEI NE BARBOZA YAMAJI. As previsões contratuais da superveniência de no Direito Brasileiro". In: Fusões e Aquisições (M&A)..., p. 385.
circunstâncias: uma construção teórica à luz das cláusulas material adverse 404 DANIEL BUSHATSKY. Considerações sobre a cláusula MAC no Brasil e sua
change..., p. 89o. aplicabilidade na pandemia. Jota. 29. mai. 2020. Disponível em: <https://www.
270 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 271

Essa definição de base pode ser seguida de um elenco de exce- naturais; (vii) guerras, revoluções ou levantes armados e/ou
ções à sua aplicação. Como exemplos, temos: (i) riscos sistemáticos violentos; (ix) ataque de hackers de qualquer espécie.

alheios ao controle das partes — como mudanças na economia ou no (b) efeitos que tenham sido solucionados pela Companhia ou pelo
Vendedor antes da Data de Fechamento e ou da data em que este
mercado em que a companhia atua, alterações regulatórias, guerra,
Contrato for extinto por outro fator."40"
terrorismo, pandemia ou desastres naturais —; (ii) riscos do indicador
— risco de que a sociedade-alvo não cumpra metas predeterminadas Ademais, pode haver a previsão de uma lista de exceção sobre a
de sucesso —, como projeções financeiras elaboradas por ela própria exceção. Exemplo disso é a que ressalva a sociedade-alvo de eventos
ou estimativas feitas por analistas do setor, ou que haja eventual que- que a afetem de modo desproporcional em relação a outras compa-
da no preço de negociação das suas ações —; e (iii) riscos do acordo — nhias do mesmo ramo. Desse modo, a cláusula MAC ou MAE será
mudanças adversas decorrentes do anúncio público do negócio a ser aplicável caso a sociedade-alvo seja afetada de modo desproporcio-
realizado —. Ainda que tais eventos gerem uma alteração ou efeito nal em relação ao setor do mercado no qual atua407.
significativos, não serão assim considerados para fins do contrato4°5. Em um sentido amplo, as partes podem modelar um conceito de
A título de exemplo, veja-se a seguinte cláusula: alterações adversas significativas e inseri-las em outras cláusulas, como
"Para os fins deste Contrato, entende-se como Alteração Adversa
a seção de declarações e garantias, ou a das condições de fechamento".
Relevante ou Efeito Adverso Relevante toda e qualquer mudança, Embora não se identifique, nesse cenário, cláusulas MAC ou MAE stricto
evento, fato, desenvolvimento e/ou efeito que, individualmente ou sensu, o conceito adotado encontra-se disperso em outros dispositivos".
de modo agregado, é ou possa ser esperado como materialmente Assim, a depender da forma como são pactuadas, as cláusulas
adverso para os negócios da Companhia [sociedade-alvo], seus
MAC e MAE podem ter distintas funções.
ativos, operações, suas condições financeiras, com exceção das
seguintes situações, que, ainda que gerem alterações ou efeitos Como visto, quando estabelecidas tipicamente como cláusulas
materialmente adversos, não gerarão consequências contratuais: próprias, delimitam as circunstâncias do exercício do direito de des-
(a) alterações ou mudanças relacionadas a: (i) curso normal dos vinculação contratual. Em sentido lato, como elemento qualificador
negócios, tais como flutuação do preço de insumos, aumento de outras cláusulas, funcionam como um limite para a determinação
de carga tributária); (ii) alterações normativas (legislativas, do escopo de prestação de informações por parte da sociedade-alvo.
regulamentares etc.) emanadas por órgãos ou entes estatais; (iii)
anúncios públicos da assinatura deste Contrato; (iv) fatos que
406 JORGE CESA FERREIRA DA SILVA, "Cláusulas MAC ou MAE no Direito Brasileiro".
o Comprador teve conhecimento posteriormente à assinatura In: Fusões e Aquisições (M&A)..., p. 387-388.
deste Contrato, ainda que relacionado à Companhia; (v) perda 407 FERNANDA MYNARSKI MARTINS-COSTA. Execução diferida nos contratos
de M&A..., p. 63-64; JORGE CESA FERREIRA DA SILVA, "Cláusulas MAC ou
de clientes não causados por atos da Companhia; (vi) eventos
MAE no Direito Brasileiro". In: Fusões e Aquisições (M&A)..., p. 388; ROBERT T.
MILLER, "Canceling the Deal: Two Models of Material Adverse Change Clause
jota.info/opiniao-e-analise/artigos/consideracoes-sobre-a-clausula-mac-no- in Business Combination Agreements"..., p.118.
brasil-e-sua-aplicabilidade-na-pandemia-29052020>. Acesso em: 10.08.2023. 408 FERNANDA MYNARSKI MARTINS-COSTA. Execução diferida nos contratos
405 ROBERT T. MILLER, "Canceling the Deal: Two Models of Material Adverse de M&A..., p. 64.
Change Clause in Business Combination Agreements". Cardozo Law Review, v. 409 JORGE CESA FERREIRA DA SILVA, "Cláusulas MAC ou MAE no Direito Brasileiro".
31, 99, 2019, p. 117-121. In: Fusões e Aquisições (M&A)..., p. 385.
l!Fir 1 711111P-

272 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 273

Também impactam no cumprimento de tais cláusulas, tendo como Desse modo, basta que haja mudanças significativas sobre as bases ne-
efeito considerar-se como cumpridas mesmo quando houver altera- gociadas pelas partes para se autorizar o rompimento da relação, não se
ções adversas irrelevantes no negócio da sociedade-alvo4". exigindo que haja uma completa perda de valor no seu cumprimento4".

4.6.2. ORIGEM 4.6.3. REGIME JURÍDICO NO DIREITO BRASILEIRO

As cláusulas MAC e MAE surgiram na prática norte america- As cláusulas MAC e MAE são atípicas no ordenamento jurídico
na como uma alternativa à doutrina da frustração do contrato Vrus- brasileiro. Elas podem ser inseridas pelas partes com base no permis-
tration doctriner . sivo contido no artigo 425 do Código Civil414, que trata do princípio
Em resumo, a referida doutrina autoriza a extinção do contrato da atipicidade contratual.
por eventos supervenientes, alheios aos contratantes, que tornem inú- Esse mecanismo contratual de proteção à alteração das circuns-
til o seu cumprimento, mesmo que este ainda seja possível jurídica ou tâncias negociais assemelha-se à resolução por onerosidade excessi-
fisicamente. Um dos requisitos para isso é que o fim do contrato seja va nos contratos bilaterais, prevista no artigo 478 do Código Civil4",
frustrado, isto é, que o interesse concretamente perseguido não mais sendo ambos aplicáveis a contratos de execução diferida. Contudo,
seja realizável. Tem-se, assim, uma impossibilidade de se alcançar a diferem deste instituto sob alguns aspectos.
finalidade objetiva do negócio jurídico, qual seja, a finalidade comum Em primeiro lugar, por meio das cláusulas MAC e MAE, as partes
das partes, o interesse essencial almejado na sua pactuação. Não se tra- podem pactuar entre si a alocação de riscos decorrentes de eventos pre-
ta de mera frustração de expectativas; é necessário que haja um óbice visíveis416. A resolução por onerosidade excessiva, por outro lado, ape-
intransponível à realização do propósito do contrato4'2. nas resta configurada caso o evento seja extraordinário e imprevisível.
Assim como a doutrina da frustração do fim do contrato, as cláu-
413 ANDREW A. SCHWARTZ. "A Standard Clause Analysis of the Frustration
sulas MAC e MAE permitem a desvinculação do pactuado diante de Doctrine and the Material Adverse Change Clause"..., p. 819 e 822; FERNANDA
eventos externos, que não sejam imputáveis às partes. MYNARSKI MARTINS-COSTA. Execução diferida nos contratosde M&A..., p.65.
414 'Art. 425. É lícito às partes estipularcontratos atípicos, observadas as normas gerais
Entretanto, de modo diverso, as cláusulas MAC e MAE foram fixadas neste Código."
criadas como medidas para se ampliar as possibilidades de desvinculação 415 "Art.478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma
das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outro,
contratual. Ao empregar o termo "material", tais cláusulas flexibilizam em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor
os parâmetros para que uma das partes possa se eximir do pactuado. pedira resolução do contrato. Os efeitos da sentença que o decretar retroagirão à
data da citação."
416 ANDREW A. SCHWARTZ. "A Standard Clause Analysis of the Frustration
410 Nixon Peabody. MAC Survey. NP 2023 Report, p. 2-3. Doctrine and the Material Adverse Change Clause"..., p. 834; FERNANDA
411 ANDREWA. SCHWARTZ. "AStandard ClauseAnalysisofthe Frustration Doctrine MYNARSKI MARTINS-COSTA. Execução diferida nos contratos de M&A...,
and the Material Adverse Change Clause"..., p. 819; FERNANDA MYNARSKI p. 122; JORGE CESA FERREIRA DA SILVA, "Cláusulas MAC ou MAE no Direito
MARTINS-COSTA. Execução diferida nos contratos de M&A..., p. 58. Brasileiro". In: Fusões e Aquisições (M&A)..., p. 399; VICENTE BEVIÁ. Las
412 GIOVANNI ETTORE NANNI. "Frustração do Fim do Contrato: análise de seu condiciones en el contrato de compraventa de empresa..., p. 232; ARNOLDO
perfil conceituai", Revista Brasileira de Direito Civil. Belo Horizonte, V. 23, WALD, LUIZA RANGEL DE MORAES e IVO WAISBERG, "Fusões, Incorporações
jan./mar. 2020, p. 4o e 50-51. e Aquisições - Aspectos Societários, Contratuais e Regulatórios". In: Walfrido
274-M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 275

Em segundo lugar, as cláusulas MAC e MAE têm aplicação vo- que isso implique na derrogação do regramento legal da revisão ou
luntária pela parte beneficiária417. Já a resolução por onerosidade exces- resolução por alteração superveniente das circunstâncias423.
siva depende da solicitação pelo interessado e de apreciação judicial. Discute-se doutrinariamente a respeito da natureza jurídica das
Ademais, a caracterização da resolução por onerosidade exces- cláusulas MAC e MAE, se resolução convencional, denúncia cheia,
siva exige que a prestação de uma das partes se torne excessivamente resilição convencional, ou se não se trataria propriamente de uma re-
onerosa, com extrema vantagem para a outra, o que não é necessário solução típica, mas sim de uma desvinculação contratual424.
para a aplicação das cláusulas MAC e MAE418. Qualquer que seja a sua natureza jurídica, a consequência é a
Não há incompatibilidade entre o disposto nos artigos 317419, 478 mesma: tais disposições contratuais, em regra, implicam na cessação
e 479420 do Código Civil e a pactuação de cláusulas MAC ou MAE, da eficácia do acordo, sem que tenha havido inadimplemento ou des-
ainda que as partes estipulem disciplina distinta da legal a respeito cumprimento contratual.
de eventos futuros extraordinários ou imprevisíveis. As cláusulas MAC e MAE operam no plano da eficácia. A parte
No âmbito de uma negociação entre agentes econômicos priva- beneficiária da cláusula passa a ter o direito de resilir unilateralmente
dos envolvendo relações patrimoniais paritárias421, vigora o princípio o pacto. Mediante simples manifestação de vontade, uma das partes
da autonomia da vontade422. Os contratantes, assim, têm liberdade pode efetuar a denúncia e extinguir a relação contratual42s.
para modificar o regime das normas revisionais dos contratos, sem Em geral, retorna-se ao status guo anterior à assinatura do con-
trato, como se este nunca tivesse sido firmado. Ainda que não haja
Jorge Warde Jr. Fusão, Cisão, Incorporação e Temas Correlatos. v.1, la edição,
penalidade nem o pagamento de indenização por inadimplemento, as
São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 56; PEDRO SANTOS CRUZ, "A Cláusula MAC
em contratos de M&A no direito comparado (EUA e Reino Unido)"..., p. 155. partes podem prever que o denunciante indenize a outra parte pelo
417 FERNANDA MYNARSKI MARTINS-COSTA. Execução diferida nos contratos de
M&A..., p. 121; VICENTE BEV1Á. Las condiciones en ei contrato de compraventa
423 JORGE CESA FERREIRA DA SILVA, "Cláusulas MAC ou MAE no Direito Brasileiro".
de empresa..., p. 231.
In: Fusões e Aquisições (M&A)..., p. 399.
418 FERNANDA MYNARSKI MARTINS-COSTA. Execução diferida nos contratos de
424 FERNANDA MYNARSKI MARTINS-COSTA. Execução diferida nos contratos
M&A..., p. 123; VICENTE BEVIÁ. Las condiciones en ei contrato de compraventa
de M&A..., p. 178; JUDITH MARTINS-COSTA; PAULA COSTA E SILVA. Crise
de empresa..., p. 232.
e Perturbações no Cumprimento da Prestação..., p. 138; PEDRO SANTOS
419 'Art.317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre CRUZ, "A Cláusula MAC em contratos de M&A no direito comparado (EUA
o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo,
e Reino Unido)"..., p. 155; ARNOLDO WALD, LUIZA RANGEL DE MORAES e
a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação." IVO WAISBERG, "Fusões, Incorporações e Aquisições - Aspectos Societários,
420 "Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar Contratuais e Regulatórios". In: Fusão, Cisão, Incorporação e Temas Correlatos...,
eqüitativamente as condições do contrato." p. 56; JORGE CESA FERREIRA DA SILVA, "Cláusulas MAC ou MAE no Direito
421 JORGE CESA FERREIRA DA SILVA, "Cláusulas MAC ou MAE no Direito Brasileiro". Brasileiro". In: Fusões e Aquisições (M&A)..., p. 395; CATARINA MONTEIRO
In: Fusões e Aquisições (M&A)..., p. 399. PIRES. Cláusulas de preçofixo, de ajustamento de preço e de alteração material
422 Nesse sentido, confira-se Lei n° 13.874/2019, artigo 3°: "Islão direitos de toda adversa ("MAC") e cláusulas de força maior..., p. 82.
pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento 425 PEDRO SANTOS CRUZ, "A Cláusula MAC em contratos de M&A no direito
econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da comparado (EUA e Reino Unido)"..., p.155; ARNOLDO WALD, LUIZA RANGEL
Constituição Federal: f...] VIII - ter a garantia de que os negócios jurídicos DE MORAES e IVO WAISBERG, "Fusões, Incorporações e Aquisições - Aspectos
empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, Societários, Contratuais e Regulatórios". In: Fusão, Cisão, Incorporação e
deforma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira Temas Correlatos..., p. 56; JUDITH MARTINS-COSTA; PAULA COSTA E SILVA.
subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública;". Crise e Perturbações no Cumprimento da Prestação..., p.137-138.
276 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 277

interesse negativo426 ou a reembolse pelas despesas eventualmente Por fim, as cláusulas MAC e MAE diferem das condições por não
incorridas. Também podem pactuar deveres laterais pós contratuais, subordinarem o efeito do negócio jurídico ao diferimento no tempo.
como o de confidencialidade427. Elas apenas têm o propósito de alocar riscos durante o período in-
A denúncia exercida pela parte beneficiária é motivada pelos termitente, tratando dos efeitos do direito expectativo que criaram431.
eventos pactuados entre os contratantes. Trata-se, assim, de denún- Diversamente das condições suspensivas, não é função das cláu-
cia por justa causa, ou resilição com justa causa. Embora as hipóteses sulas MAC e MAE motivar um deslocamento temporal entre a cele-
ensejadoras de denúncia não sejam previstas em lei, e sim escolhidas bração do contrato e a exigibilidade do seu efeito típico de vinculação.
pelas partes, não há incompatibilidade entre tal disposição contratual Ademais, tais cláusulas, quando aplicadas, impactam na extinção de
e o previsto no artigo 473, caput, do Código Civi1428 no que diz res- uma etapa anterior ao do fechamento, isto é, à da eficácia típica da
peito a "casos em que a lei expressa ou implicitamente o permita". operação. Por isso, diferem das condições resolutivas, cuja função é
A ausência de previsão de pagamento pelo denunciante tampouco justamente desfazer a eficácia do negócio432.
contradiz o disposto no artigo 473, parágrafo único, do mesmo diplo-
ma lega1429. Em contratos de M&A, geralmente há uma alocação dos
4.6.4. OBSERVAÇÕES FINAIS
custos entre as partes, sendo pré-excluída a aplicação de tal norma43o.
Como visto, as cláusulas MAC e MAE podem exercer papel
relevante na negociação de contratos de M&A ao conferir à parte
426 "Ao interesse positivo se contrapõe o interesse negativo, correspondente ao dano
sofrido com a celebração do contrato. O lesado deve, nesses termos, ser colocado
beneficiária o poder de desfazimento da operação. Por vezes, a con-
na situação em que estaria caso o contrato não tivesse sido celebrado, sendo-lhe traparte pode experimentar prejuízos superiores ao mero desfazimen-
ressarcidas as despesas realizadas para a conclusão do negócio e tornadas inúteis,
bem como os lucros que perdeu por ter desviado seus recursos e suo atividade de to do contrato — como a perda de oportunidade e o não reembolso
outras aplicações, de outros contratos, para celebrar o contrato inadimplido. O pelos gastos decorrentes das tratativas, além do não recebimento de
interesse negativo engloba, com efeito, o prejuízo que o lesado evitaria se não tivesse
confiado que a manifestação de vontade do ofensor produziria o efeito que dela se multa contratual433. Diante disso, é possível que ela seja estimulada a
esperava: o adimplemento da obrigação." - GUSTAVO TEPEDINO, ALINE DE M. aceitar a retomada das negociações.
V. TERRA e GISELA SAMPAIO DA C. GUEDES. Fundamentos do Direito Civil:
Responsabilidade Civil. 2a ed., Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 79. Essa circunstância também impacta os interesses das partes no
427 PEDRO SANTOS CRUZ, "A Cláusula MAC em contratos de M&A no direito
comparado (EUA e Reino Unido)"..., p.157; FERNANDA MYNARSKI MARTINS-
momento da redação de tais cláusulas. De um lado, a parte beneficiária
COSTA. Execução diferida nos contratos de M&A..., p.178; JUDITH MARTINS- tende a preferir a adoção de hipóteses mais amplas de incidência. De
COSTA; PAULA COSTA E SILVA. Cr3ise e Perturbações no Cumprimento da
Prestação..., p.139. outro, a contraparte é estimulada a restringir o seu âmbito de aplicação.
428 "Art. 473. A resilição unilateral, nos casos em que a lei expressa ou implicitamente
o permita, opera mediante denúncia notificada à outra parte." FERNANDA MYNARSKI MARTINS-COSTA. Execução diferida nos contratos
431
429 "Art. 473. (...]Parágrafo único. Se, porém, dada a natureza do contrato, uma das de M&A..., p.178; JORGE CESA FERREIRA DA SILVA, "Cláusulas MAC ou MAE
partes houverfeito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia no Direito Brasileiro". In: Fusões e Aquisições (M&A)..., p. 394.
unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a JUDITH MARTINS-COSTA; PAULA COSTA E SILVA. Crise e Perturbações no
432
natureza e o vulto dos investimentos." Cumprimento da Prestação..., p. 135-136.
43o JORGE CESA FERREIRA DASILVA, "Cláusulas MACou MAE no Direito Brasileiro". 433 PEDRO SANTOS CRUZ, "A Cláusula MAC em contratos de M&A no direito
In: Fusões e Aquisições (M&A)..., p. 396. comparado (EUA e Reino Unido)"..., p.157.
278 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 279

A negociação da cláusula, bem como a sua redação demandam 4.7. CLÁUSULA DE NÃO CONCORRÊNCIA
cuidado e atenção, para que os interesses das partes sejam atendidos
e ela tenha a aplicação prática pertinente.
Cláusulas com redação genérica tendem a apresentar menores 4.7.1. ORIGEM, CARACTERÍSTICAS E FUNÇÃO
custos de transação no momento da sua negociação, mas um custo Nas operações de M&A, é comum a inclusão nos contratos de
mais elevado de aplicação (enforcement). A adoção de conceitos in- cláusula de não concorrência, também chamada de cláusula de non
determinados pode vir a exigir do beneficiário um especial ônus ar- compete ou cláusula de não restabelecimento.
gumentativo e probatório para a sua aplicação434. O pacto de non compete consiste em uma obrigação negativa, por
Já as cláusulas mais específicas, com uma menor previsão de concei- meio da qual os contratantes comprometem-se a não iniciar ou parti-
tos indeterminados, geralmente demandam um maior custo de transa- cipar, isoladamente ou com terceiros, de investimentos em determina-
ção, seguido de maior segurança jurídica e menor custo de enforcement. da área e/ou de um negócio semelhante ao que estão desenvolvendo
Em pesquisa sobre a previsão de cláusulas MAC em operações em conjunto ou que um alienou ao outro.
de M&A no período entre julho de 2020 e junho de 2022 no merca- A origem da cláusula de não concorrência vem do contrato de
do norte americano, o escritório Nixon Peabody identificou uma ten- trespasse — instrumento jurídico pelo qual se promove a transferên-
dência de aumento do uso da expressão "would reasonably be expected cia do estabelecimento empresarial —, tendo como finalidade precí-
to" em contratos para qualificar um evento como alteração material pua a proteção daquele que compra o estabelecimento.
adversa43s. Isso implica uma ampliação do escopo de fatos que poten- Os pactos de não concorrência têm por finalidade combater a con-
cialmente ensejam a aplicação de uma cláusula MAC. corrência desleal, impedindo que aqueles que tenham conhecimento
Também se constatou uma percepção de aceitação da exclusão dos segredos de negócios ou sejam titulares de expertise relativa às ativi-
de riscos gerais do negócio do alcance de cláusulas MAC. Ademais, dades desempenhadas pela contraparte possam prejudicá-la mediante
percebeu-se um aumento da expressão "disproportionately affects"como a utilização de tais informações para desenvolver atividade concorrente.
limitador às exclusões à aplicação de cláusulas MAC. Isso indica uma Desde o advento do Código Civil de 2002, a obrigação de não
preocupação em assegurar-se ao beneficiário a proteção da cláusula concorrência no contrato de trespasse passou a ter expressa previsão
MAC na eventualidade de a sociedade-alvo ser mais afetada do que legal. Segundo o artigo 1.147 do Código Civil, "não havendo autori-
sociedades do mesmo ramo diante de determinado evento. zação expressa, o alienante do estabelecimento não pode fazer concorrência
ao adquirente, nos cinco anos subsequentes à transferência".
Paulatinamente, a utilização das regras de não concorrência evo-
luiu para além do contrato de trespasse, passando a figurar também,
quando expressamente reguladas pelas partes, nos contratos de ces-
434 JORGE CESA FERREIRA DA SILVA, "Cláusulas MAC ou MAE no Direito Brasileiro". são de participações societárias, nos acordos de acionistas e nos acor-
In: Fusões e Aquisições (M&A)..., p. 292 e 395.
435 Nixon Peabody. MAC Survey. NP 2023..., p. 2, 6 e 7.
280 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 281

dos de associação para o desenvolvimento de determinada atividade atividades no mesmo setor empresarial da contraparte, é perfeitamen-
empresarial (joint venture). te licita a celebração de contrato em que tal obrigação seja prevista.
A função primordial da cláusula é a preservação da capacidade de O pacto de não concorrência materializa uma obrigação de não
geração de lucros da sociedade adquirida. Há um interesse legítimo fazer, por meio da qual uma das partes do negócio jurídico se com-
na fixação da obrigação de não concorrência: a tutela indireta da base promete a abster-se de realizar certa atividade.
de clientes da sociedade-alvo da operação. Atinge-se esse objetivo por Conforme o disposto no artigo 104 do Código Civil, se ambas
meio do afastamento do alienante do mercado, enquanto concorrente436. as partes estiverem no gozo de sua plena capacidade, se o objeto pre-
Uma operação de M&A poderia ser significativamente com- visto na cláusula for licito ou não contrariar a moral e os bons costu-
prometida, caso, após a sua conclusão, o alienante pudesse explorar a mes, e se for adotada forma não vedada por lei, a celebração de um
mesma atividade, na mesma região ou em local próximo, valendo-se pacto de não concorrência será válida437.
do seu know-how e disputando com o adquirente a mesma clientela. Ainda que, em princípio, lícitos, tais pactos devem observar al-
Com efeito, o vendedor da sociedade-alvo da operação pode ter guns requisitos, já que a assunção da obrigação de não concorrência
uma grande vantagem competitiva frente ao comprador, tendo em pode implicar em restrições a determinados princípios constitucio-
vista que conhece, de maneira aprofundada, a atividade desempe- nais que vigem no ordenamento jurídico brasileiro.
nhada por ela, assim como seus fornecedores, clientes e instituições Nesse sentido, a obrigação de não concorrência pode implicar li-
que a financiam. mitação aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, con-
Diante desse interesse legítimo, é licito que as partes da opera- sagrados no artigo 170 da Constituição Federal.
ção estipulem a cláusula de não concorrência. Entretanto, a vedação O princípio da livre iniciativa tem por finalidade assegurar a li-
à competição não pode ocorrer de forma ampla e irrestrita, havendo berdade de indústria e comércio, tutelando o direito de entrada e de
limitações a serem observadas. saída dos agentes no mercado, de modo a promover o desenvolvimen-
to da atividade econômica. O da livre concorrência visa a reprimir o
abuso do poder econômico, o aumento arbitrário de lucros, entre ou-
4.7.2. LIMITES E INTERPRETAÇÃO DA CLÁUSULA
tras práticas ilícitas, com o objetivo de garantir que todos os agentes
Levando em consideração o princípio da autonomia privada, o tenham condições de manter-se no mercado.
pacto de não concorrência constitui modalidade regular do exercício A celebração de um pacto de não concorrência impede, em cer-
da liberdade de contratar. Como não há expressa vedação à celebração ta medida, que um dos contratantes possa, por exemplo, empreender
de pacto por meio do qual uma das partes da relação jurídica assume a em determinado setor econômico ou adquirir participação acionária
obrigação de não exercer ou participar de sociedade que desempenhe em sociedade que atue em tal mercado.
436 "Essas disposições são estipuladas em obediência a uma causa, uma razão:
afastar um concorrente do mercado, para viabilizar a melhor exploração do
estabelecimentoadquirido"(EROS ROBERTO GRAU e PAULAA N DR EA FORG ION I. 437 'Art. 104. A validade do negócio jurídico requer: I - agente capaz; II - objeto lícito,
O Estado, a Empresa e o Contrato. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 289. possível, determinado ou determinável; III -forma prescrita ou não defesa em lei."
282 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 283

No direito obrigacional, no entanto, um dos postulados fun- mesma forma, deve a contraparte ter interesse em não desempenhar
damentais é o da autonomia da vontade, segundo o qual as pessoas atividade na área em relação à qual tenha expertise ou tenha conhe-
são livres para contratar, bem como para fixar regras próprias a fim cimento de informações estratégicas e sigilosas, sendo tal interesse
de disciplinar as suas relações, criando, modificando ou extinguin- materializado, normalmente, pelo recebimento de indenização, como
do direitos. será visto a seguir.
A liberdade contratual constitui o poder conferido às partes de Ademais, o pacto de "non compete" deve limitar temporalmente
um negócio jurídico para regular os seus interesses privados da ma- o dever de abstenção. Uma cláusula que impusesse o ônus de não
neira que lhes aprouver, desde que, ao fazê-lo, não violem lei impe- prestar serviços ou iniciar atividades econômicas por um período
rativa ou ditame de ordem pública e observem a função social do indefinido representaria uma violação aos preceitos constitucio-
contrato43s. nais da livre iniciativa, da livre concorrência ou do livre exercício
Diante deste cenário, há determinados parâmetros que com- do trabalho.
patibilizam o interesse de uma das partes da relação negocial em A limitação temporal também justifica-se em razão de o conhe-
preservar, por exemplo, informações estratégicas, clientela e se- cimento, o know-how e as informações estratégicas evoluírem com o
gredos industriais, com a liberdade da contraparte de desenvol- tempo e, muitas vezes, tornarem-se obsoletas. Em vista disso, decor-
ver atividades econômicas ou exercer plenamente suas atividades rido determinado período temporal, as informações que a contraparte
profissionais. do contrato de "non compete" tinha conhecimento deixam de ser es-
Assim, para serem considerados lícitos, os pactos de não con- tratégicas e potencialmente lesivas à sociedade cujos interesses con-
corrência têm que ser objeto de acordo expresso entre os contra- correnciais se pretenda proteger.
tantes, bem como devem (i) corresponder a um interesse legítimo No nosso ordenamento jurídico, não há dispositivo legal que es-
das partes; (ii) conter limitações temporais e espaciais no tocan- tabeleça expressamente o limite de tempo para a obrigação de não
te à atividade a ser desempenhada; e (iii) atribuir uma compensa- competição nos contratos de alienação de participação societária.
ção financeira à parte em relação à qual atribui-se a limitação de Diante disso, a doutrina e a jurisprudência têm utilizado, por ana-
não competição. logia, o prazo de 5 (cinco) anos previsto no artigo 1.147 do Código
O primeiro requisito consiste no legítimo interesse das partes Civi1439, que trata dos contratos de trespasse°.
do negócio jurídico de estabelecerem tal obrigação. Ou seja, uma das
439 Art. 1.147 Não havendo autorização expressa, o alienante do estabelecimento
partes deve ter o objetivo de proteger informações estratégicas e de não pode fazer concorrência ao adquirente, nos cinco anos subsequentes à
impedir eventuais prejuízos que decorreriam de a contraparte desen- transferência. Parágrafo único. No caso de arrendamento ou usufruto do
estabelecimento, a proibição prevista neste artigo persistirá durante o prazo do
volver atividades no mesmo setor econômico explorado pela primei- contrato."
ra ou da contratação da contraparte por companhia concorrente. Da 440 Nesse sentido, ver: (i) RODRIGO RENTZSCH SARMENTO BARATA e DANIEL
MARQUES RAUPP, "As Cláusulas de Não Competição nos contratos empresariais
de longa duração", Revista Brasileira de Direito Empresarial. Porto Alegre, v. 4, n.
438 De acordo com o artigo 421 do Código Civil, 'a liberdade contratual será exercida 2, jul.-dez., 2018, p.30; (ii)TJSC, Apelação Cível no 0000609-27.2012.8.24.0031,
nos limites da função social do contrato". 4a Câmara de Direito Comercial, Relatora Desembargadora Janice Ubialli, j.
284 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 285

Não somente nos instrumentos de compra e venda de participa- tante terá, em regra, um prejuízo econômico por deixar de explorar
ções societárias, como em diversas outras modalidades contratuais, o atividades econômicas em relação às quais possui expertise. Assim,
prazo de 5 (cinco) anos, constante do artigo 1.147 do Código Civil, as partes devem prever uma indenização adequada às necessidades
tem sido (i) aplicado por analogia, em cláusulas em que não tenha do contratante e compatível com as funções e negócios dos quais
sido especificado o limite temporal; ou (ii) considerado como parâ- ele está abrindo mão.
metro para aferição da razoabilidade dos efeitos da obrigação de não Por fim, para que a cláusula de não concorrência seja mais eficaz
concorrer. e o contratante, de fato, se abstenha de desenvolver atividade concor-
Ademais, a obrigação de não concorrência deve limitar o ramo rente, as partes podem prever a incidência de multa no caso de des-
de atividade em que o contratante estará impedido de atuar. Nesse cumprimento do pacto.
sentido, é recomendável que haja uma delimitação precisa das áreas Como as cláusulas de não competição são limitadoras de direitos e
em relação às quais o contratante não poderá, por determinado pe- caracterizam renúncia — ainda que parcial e temporária —, ao exercício de
ríodo, exercer atividades, devendo a contraparte, ao firmar a cláusula, prerrogativas legais, elas devem ser interpretadas restritivamente441-"2.
levar em consideração o escopo de sua própria atuação e os setores
Assim, ao interpretar-se cláusula de não competição é fundamen-
que necessitam de proteção.
tal ater-se aos exatos termos da disposição contratual, restringindo-se a
Além da limitação quanto ao âmbito de atuação, a validade do sua aplicação às hipóteses expressamente por ela reguladas, sem qual-
pacto de não concorrência depende da indicação da área física na qual quer ampliação de escopo ou sentido.
o contratante estará proibido de empreender.
Ademais, considerando o princípio da relatividade dos contratos,
Essa limitação deve ser pautada pela razoabilidade. Assim, caso tem-se que, em regra, a cláusula de não concorrência produz efeitos
os negócios da sociedade beneficiada pela imposição de não concor- somente entre as partes contraentes, não atingindo, portanto, tercei-
rência sejam desenvolvidos exclusivamente em um determinado esta- ros não signatários do pacto.
do brasileiro, pode não fazer sentido impor à contraparte a obrigação
de não desempenhar atividades em estado distinto. No entanto, na
hipótese de uma sociedade com atividades em âmbito nacional, é ra- 4.7.3. OBSERVAÇÕES FINAIS
zoável que o dever de abstenção se aplique a negócios desenvolvidos A obrigação de não concorrer vem sendo admitida pelos tribu-
em todos o país. nais, que aceitam a sua licitude443.
Outro requisito para a validade do ajuste é a previsão de con-
traprestação em favor daquele que assume o compromisso de não 441 EROS ROBERTO GRAU e PAULA FORGIONI. O Estado, a Empresa e o Contrato...,
p. 291-292; PAULA FORG ION I. Contratos Empresariais. Teoria Geral e Aplicação.
concorrer. Com efeito, ao aceitar o dever de abstenção, o contra- 7a edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p. 308.
442 Segundo o artigo 114 do Código Civil,"os negócios jurídicosbenéficosearenúncia
em 19.06.2018; TJSP, Apelação n° 1000281-65.2018.8.26.0047, 2a Câmara interpretam-se estritamente".
Reservada de Direito Empresarial, Relator Desembargador Sérgio Shimura, j. 443 Cite-se, em especial, o célebre caso da "Companhia de Tecidos de Juta",
em 29.11.2018; e (iv) TJSP, Apelação n°0191965-24.2010.8.26.0000,103 Câmara analisado em: ARNALDO SAMPAIO DE MORAES GODOY e DANIEL AMIN
de Direito Privado, Relator Desembargador Coelho Mendes, j. em 29.03.2011. FERRAZ, "A cláusula de interdição de concorrência no direito brasileiro e sua
NELSON EIZIRIK - 287
286 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL

Recentemente, a ia Câmara Reservada de Direito Empresarial não seria abusivo e que o seu pagamento não autorizaria a parte ina-
do Tribunal de Justiça de São Paulo ("TJSP") reconheceu a validade dimplente a exercer a atividade concorrente.
de uma cláusula de não concorrência, estipulada em contrato de ces- O julgamento do TJSP reforçou, portanto, o princípio geral do
são de cotas em uma sociedade do setor de tecnologia444. pacta sunt servanda, que autoriza as partes a exercerem amplamen-
A ação discutia a validade da cláusula de não concorrência e a te a autonomia da vontade para regular suas relações em transações
possibilidade de cumulação da obrigação de não concorrer, junta- complexas de M&A.
mente com multa reparatória — a título de perdas e danos — em caso
de descumprimento. O contrato de compra e venda de quotas foi ce-
lebrado por aproximadamente R$ 4.000.000,00 (quatro milhões de
reais) e previa multa no valor de R$ 15.000.000,00 (quinze milhões
de reais), em caso de infração à obrigação de non compete.
Os principais argumentos dos autores pela invalidade da cláusu-
la de não competição eram: (i) a cláusula violaria o Sistema Brasileiro
de Defesa da Concorrência ("SBDC"), e; (ii) a multa seria abusiva
por ser superior ao valor do contrato.
O Desembargador Azuma Nishi, do TJSP, foi o relator do caso e
votou no sentido de afastar os argumentos pela nulidade da cláusula.
De acordo com seu voto, as partes teriam sido assessoradas por experts
da área na conclusão do contrato e a eventual violação ao SBDC deve-
ria ser comunicada ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica
— CADE, não ao TJSP.
Sobre o valor da multa, o TJSP considerou que o contrato de ces-
são de quotas integrava uma operação maior e que envolvia diversos
outros contratos que, somados, chegavam ao valor de R$ 15.000.000,00
(quinze milhões de reais). Com base neste entendimento e observan-
do toda a cadeia de contratos, o TJSP considerou que o valor da multa

fundamentação histórica: o caso da Companhia dos Tecidos de Juta (1914).


Notas sobre seus reflexos normativos, doutrinários e jurisprudenciais.", Revista
Brasileira de Políticas Públicas (Online). Brasília: UniCEUB, v. 6, n. 3, dez.,
2016, p.149-167.
444 Apelação Cível n° 0034036-35.2018.8.26.0100, Rel. Des. Azuma Nishi, j. em
09.11.2022.
NELSON EIZIRIK - 289

4.8. CLÁUSULA DE SANDBAGGING

4.8.1. CARACTERÍSTICAS E FUNÇÕES

Em operações de M&A, é comum o vendedor prestar declarações


expressas a respeito da sua situação e da situação dos bens da "socie-
dade-alvo", as quais geralmente são fornecidas por meio de cláusulas
de declarações e garantias (representations and warranties).
Em decorrência de investigações conduzidas durante o lapso tem-
poral entre o si gning e o closing, é possível que o comprador tome ciên-
cia, antes do fechamento, de que tais declarações não são verdadeiras.
Uma solução frequentemente adotada entre os contratantes é
a estipulação de uma cláusula de sandbagging (ou pro-sandbagging),
também denominada cláusula de irrelevância da ciência prévia"5.
Por meio desta pactuação, permite-se ao adquirente que tenha co-
nhecimento de um passivo ou defeito da sociedade-alvo antes do closing
concluir a transação e, posteriormente, exigir os remédios que lhe são
conferidos pelo contrato ou pela lei decorrentes da referida contingência.
Assim, confere-se ao comprador a possibilidade de concretizar
o negócio e depois pleitear perdas e danos, mesmo tendo tido ciên-
cia, antes da aquisição, de que as informações prestadas pelo vende-
dor eram falsas'6.

445 GIACOMO GREZZANA, "Cláusula de irrelevância da ciência prévia


do adquirente sobre contingências da sociedade-alvo em alienações
de participação societária (cláusula de irrelevância da ciência prévia -
"sandbagging provisions"), Revista de Direito das Sociedades e dos Valores
Mobiliários. São Paulo: Almedina, v. 11, maio, 2020, p.106.
446 MARCELO TRINDADE, "Sandbagging e as Falsas Declarações em Alienações
Empresariais". In: Rodrigo Rocha Monteiro de Castro; Luis André Azevedo;
Marcus de Freitas Henriques (Coord.). Direito Societário, Mercado de
Capitais, Arbitragem e Outros Temas: Homenagem a Nelson Eizirik. v. III,
São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 95.
I,-

290 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 291

As cláusulas pro-sandbagging permitem ao comprador confiar A título de exemplo, veja-se as seguintes cláusulas:
nas declarações e garantias do vendedor e/ou da sociedade-alvo, in- "Pro-Sandbagging Clause. The ri ghts of the Purchaser to indemnfication
dependentemente de informação adicional obtida em negociações or any other remedy under the Agreement shall not be impacted or
prévias ou durante a due diligente. limited by any knowledge that the Purchaser may have acquired,
or could have acquired, whether before or after the closing date, nor
Desse modo, limita-se o padrão de diligência a ser adotado pelo
by any investigation or diligente by the Purchaser. lhe Seller hereby
adquirente durante a fase pré-contratual''. Por outro lado, estimula-
acknowledges that, regardless of any investigation made (or not made)
-se o vendedor a prestar uma declaração completa e acurada, além de by or on behay of the Purchaser, and regardless of the results of any
desencorajá-lo a sobrecarregar o comprador com um material des- such investigation, the Purchaser has entered finto this transaction in
necessariamente extenso durante a due diligente. Ademais, mitiga-se express reliance upon the representations and warranties of the Seller
uma potencial discussão posterior a respeito do momento em que o made in the Agreement.
adquirente tomou conhecimento das incorreções448. Anti-Sandbagging Clause. The Purchaser acknowledges that he/she had
Alternativamente, as partes podem optar por uma cláusula an- the opportunity to conduct due diligente and investigation with respect
ti-sandbagging, por meio da qual concordam que, caso o comprador to the Company, and in no event shall the Seller have any liability to
the Purchaser with respect to a breach of representation, warranty, or
tenha conhecimento de que as declarações prestadas pelo vendedor
covenant under this Agreement to the extent that the Purchaser knew
não são verdadeiras e decida prosseguir com a operação e realizar o of such breach as of the closing date."45°
closing, não terá direito a eventual indenização.
Assim, as cláusulas pro e anti sandbagging funcionam como me-
Aplicada nesse contexto, a cláusula tem a função de proteger o canismos de alocação de risco entre as partes e refletem a relevância
vendedor. Recai sobre o adquirente o ônus de realizar uma due dili- das declarações e garantias para a manifestação de vontade do com-
gente completa e analisar todos os documentos disponibilizados pelo
prador. A depender da opção escolhida, atribui-se ao vendedor ou ao
alienante. Isso também estimula o comprador a revelar ao vendedor, comprador maior proteção, o que pode influenciar o preço a ser pago
previamente ao closing, eventuais aspectos relevantes e sensíveis que
pela aquisição da participação societária.
tenha identificado, para que negociem a respeito e este tenha a opor-
A opção das partes por pactuar cláusulapro ou anti-sandbagging
tunidade de resolvê-los449.
ou por manter o contrato silente está relacionada aos custos de tran-
447 MARCELO ROBERTO FERRO e ANTONIO PEDRO GARCIA DE SOUZA, "O sação da sua negociação.
Desenho Contratual nas Fusões e Aquisições e as Disputas após o Fechamento:
Limitações à luz do Direito Brasileiro". In: Marcelo Vieira von Adamek; Rafael Os contratantes devem, em cada caso, ponderar se o tempo e os
Setoguti Julio Pereira (Coord.). Fusões e Aquisições (M&A). São Paulo: Quartier
Latin, 2022, p. 595. recursos despendidos numa negociação detalhada da cláusula serão
448 DANIEL KALANSKY e RAFAEL BIONDI SANCHEZ, "Sandbagging Clauses nas compensados
r
pelos
Á
beneficios daí advindos. Essa escolha também é
Operações de Fusões e Aquisições (M&A)". In: Henrique Barbosa e Sérgio
Botrel (Coord.). Novos temas de Direito e Corporate Finance. São Paulo:
Quartier Latin, 2019, O. 147.
449 DANIEL KALANSKY e RAFAEL BIONDI SANCHEZ, "Sandbagging Clauses nas
Operações de Fusões e Aquisições (M&A)". In: Henrique Barbosa e Sérgio PETER SESTER. Business and Investment in Brazil. New York: Oxford University
450
Botrel (Coord.). Novos temas de Direito e Corporate Finance..., p.148.
Press, 2022, p. 318.
NELSON EIZIRIK - 293
292 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL

influenciada pelo valor que o comprador atribui ao rigor e à exatidão No âmbito de operações de M&A, as sandbagging provisions sur-
das declarações e garantias prestadas pelo vendedor4". giram na prática norte-americana para mitigar incertezas a respei-
to da aplicação da cláusula de declarações e garantias (representations
and warranties).
4.8.2. ORIGEM Com efeito, especialmente no que tange às garantias, pode-se
O termo sandbagging parece ter surgido no século XIX, para fa- verificar orientações divergentes nos tribunais estaduais norte-ame-
zer referência às gangues que utilizavam meias ou mochilas conten- ricanos quanto ao requisito da confiança. Enquanto alguns tribunais
do areia molhada como arma4". exigem que a parte que alega violação de warranty comprove que de-
Como verbo, significa uma ocultação ou uma representação falsa positou confiança na declaração falsa, outros permitem a ação de breach
da realidade, a fim de obter vantagem ou induzir terceiros a erro4". O of warranty independentemente desta prova. Há ainda precedente"
termo passou a ser utilizado no golfe, correspondendo ao comporta- no qual se considerou que o fato de o comprador ter tido ciência da
mento do jogador que se apresenta como o pior, na tentativa de ob- imprecisão de uma garantia antes de celebrar o negócio equivaleria a
ter vantagem perante seus adversário?". uma renúncia ao direito à indenização, ainda que não fosse necessá-
ria prova da confiança457.
No poker, incorre na prática de sandbagging quem deixa de au-
mentar a aposta na primeira oportunidade — a fim de aparentar ter Assim, para afastar a insegurança jurídica quanto ao direito apli-
cartas piores e induzir os demais jogadores a apresentarem apostas cável em cada estado, os advogados norte americanos passaram a in-
maiores —, fazendo-o na ocasião seguinte4". cluir nos contratos as sandbagging provisions.
Como se verá a seguir, diversamente do modelo norte-america-
451 CAMILA OTANI NISHI. A Cláusula de Sandbagging em Contratos de M&A. São
Paulo: Quartier Latin, 2023, p. 37.
no, em que a adoção da cláusula de sandbagging teve como motiva-
452 JOSÉ FERREIRA GOMES. M&A. Aquisição de Empresas e de Participações ção conferir maior segurança jurídica, no Brasil percebe-se contexto
Sociais. Lisboa: AAFDL, 2022, p. 28o; MARIANA PARGENDLER e CARLOS
PORTUGAL GOUVÊA, "As diferenças entre declarações e garantias e os efeitos do
diverso na "importação" desse mecanismo.
conhecimento". In: Carlos Portugal Gouvêa, Mariana Pargendler e Maurizio Levi-
Minzi (Org.). Fusões e Aquisições. Pareceres. São Paulo: Almedina, 2022, p. 299.
453 CAMILA OTANI NISHI. A Cláusula deSandbagging em Contratos de M&A..., p. 23.
454 GIACOMO GREZZANA, "Cláusula de irrelevância da ciência prévia do adquirente
sobre contingências da sociedade-alvo em alienações de participação societária
(cláusula de irrelevância da ciência prévia - "sandbagging provisions"), Revista
de Direito das Sociedades e dos Valores Mobiliários..., p. 105; JOSÉ FERREIRA
cria%C3%A7%C3%A3o-de-uma-carta-na-manga-contratual#:-:text=Com%20
GOMES. M&A. Aquisição de Empresas e de Participações Sociais..., p. 280.
o%2otempo%2C%200%2overbo,com%2otal%2oatitude%5B4%5D.>. Acesso
455 GIACOMO GREZZANA, "Cláusula de irrelevância da ciência prévia do em: 04.08.2023.
adquirente sobre contingências da sociedade-alvo em alienações de
456 Gusmao v GMT Group, Inc., o6 Civ. 5113 (GEL) (S.D.N.Y. Aug. 1, 2008).
participação societária (cláusula de irrelevância da ciência prévia -"sandbagging
457 GIACOMO GREZZANA, "Cláusula de irrelevância da ciência prévia do
provisions"), Revista de Direito das Sociedades e dos Valores Mobiliários...,
adquirente sobre contingências da sociedade-alvo em alienações de
p. 105; RODRIGO FIALHO BORGES; ANALY LEAL e MANOELA NAQUIS.
pai ux-pcitsavatn-ectai ia kt_ia~la ue ui i eleVCIIILICI uat.aemact plCVICI- Junuuuyyttry
Sandbagging: A autonomia da vontade permite a criação de uma "carta na
provisions"), Revista de Direito das Sociedades e dos Valores Mobiliários...,
manga" contratual?. CenterforM&AStudies.1 fev. 2022. Disponível em: <https://
p.108-109.
www.cmnausp.com/post/sandbagging-a-autonomia-da-vontade-permite-a-
294 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 295

4.8.3. REGIME JURÍDICO NO DIREITO BRASILEIRO A inserção de cláusula de sandbagging, por outro lado, afasta as
No direito brasileiro, não há norma legal a respeito do conheci- normas legais eventualmente aplicáveis no silêncio do contrato.
mento prévio pelo comprador de defeitos e vícios no momento da ce- Em princípio, os contratantes têm liberdade para pactuar uma
lebração de um negócio. No silêncio do contrato, discute-se a aplicação, cláusula pró-sandbagging ou anti-sandbagging, prática que se coadu-
por analogia, das normas dos artigos 441, caput4",e 4574" do Código na com o princípio da autonomia da vontade das partes e da força
Civil, que se referem, respectivamente, a vícios redibitórios e evicção. vinculante dos contratos462.
Caso se aceite a aplicação da disciplina dos vícios redibitórios, Nesse sentido, o artigo 421, caput, do Código Civil"' autoriza o
o que é bastante discutível, os vícios ou defeitos da coisa devem ser exercício da liberdade contratual nos limites da função social do con-
ocultos, ou seja, alheios ao conhecimento do comprador. O adqui- trato. O parágrafo único do mesmo dispositivo dispõe que prevalece
rente tampouco poderá demandar pela evicção caso soubesse que a o princípio da intervenção mínima nas relações contratuais privadas.
coisa era alheia ou litigiosa. Em ambos os casos, se forem considera- Já o artigo 421-A, inciso II, reforça a autonomia dos contratantes na
dos aplicáveis tais institutos, a lei afasta a responsabilidade do vende- alocação de riscos464.
dor na hipótese de o adquirente ter ciência prévia de sua existência. Um argumento para sustentar a validade da cláusula pró-san-
Assim, prevalece, no regime jurídico brasileiro, um sistema anti- dbagging é a sua adequação à função social do contrato. Por vezes, é
-sandbagging46° . Na hipótese de o comprador optar por assinar o con- a pactuação dessa cláusula que possibilita às partes chegarem a um
trato sem apresentar qualquer ressalva de que tem ciência da falsidade consenso a respeito do preço e viabilizar o negócio. Assim, o contra-
da declaração do alienante, não terá o direito de postular eventual anu- to propicia a troca econômica e cumpre a sua função465.
lação ou de exercer outra pretensão contra o alienante461.
462 DANIEL KALANSKY e RAFAEL BIONDI SANCHEZ, "Sandbagging Clauses nas
458 "Art. 447. A coisa recebida em virtude de contrato comutativo pode ser enjeitada por Operações de Fusões e Aquisições (M&A)". In: Henrique Barbosa e Sérgio Botrel
vícios ou defeitos ocultos, que a tornem imprópria ao uso a que é destinada, ou lhe
(Coord.). Novos temas de Direito e Corporate Finance..., p.150; CAIO RAPHAEL
diminuam o valor."
MAROTTI DE OLIVEIRA. "A cláusula pro-sandbagging (conhecimento prévio)
459 "Art. 457 Não pode o adquirente demandar pela evicção, se sabia que a coisa era em contratos de alienação de participação acionária". Dissertação de Mestrado
alheia ou litigiosa." em Direito Comercial apresentada à Faculdade de Direito da Universidade
46o GIACOMO GREZZANA, "Cláusula de irrelevância da ciência prévia de São Paulo, 2020, p.136; GIACOMO GREZZANA, "Cláusula de irrelevância
do adquirente sobre contingências da sociedade-alvo em alienações da ciência prévia do adquirente sobre contingências da sociedade-alvo em
de participação societária (cláusula de irrelevância da ciência prévia - alienações de participação societária (cláusula de irrelevância da ciência prévia
"sandbagging provisions"), Revista de Direito das Sociedades e dos Valores - 'sandbagging provisions)", Revista de Direito das Sociedades e dos Valores
Mobiliários..., p.111; RICARDO MORAISTONIN. "Efeitos do conhecimento para Mobiliários..., p. 115.
fins de indenização em contratos de alienação de participações societárias no 463 "Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do
Brasil: uma análise da regulação contratual do sandbagging". Dissertação de contrato. Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o
Mestrado apresentada à Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual."
Vargas, 2022, p. 75; CAMILA OTANI NISHI. A Cláusula de Sandbagging em
464 "Art. 427-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até
Contratos de M&A..., p. 91. a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção,
461 MARCELO TRINDADE, "Sandbagging e as Falsas Declarações em Alienações ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que:
Empresariais". In: Rodrigo Rocha Monteiro de Castro; Luis André Azevedo; (...) II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada".
Marcus de Freitas Henriques (Coord.). Direito Societário, Mercado de
465 CAMILA OTANI N ISH I. A Cláusula de Sandbagging em Contratos de M&A...,
Capitais, Arbitragem e Outros Temas: Homenagem a Nelson Eizirik..., p.702.
p. 125-130.
296 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 297

Ademais, considera-se que, ao pactuarem uma cláusula de san- Há também interpretação no sentido de que, na hipótese de am-
dbagging, os contratantes teriam optado por "precificar" o custo do di- bos os contratantes terem conhecimento da declaração falsa e optarem
reito a eventual indenização, havendo legítima expectativa de ambas por concluir o negócio jurídico, incidiria a regra "nemo potest veni-
as partes na alocação de riscos nesse sentido. Essa liberdade contra- re contra factum proprium", caso em que nenhuma das partes poderia
tual nos contratos empresariais está em consonância com o princípio buscar indenização em face da outra47°.
da boa-fé objetiva, disposto no artigo 422 do Código Civil". Indaga-se ainda se seria contraditório e constituiria abuso de di-
Por outro lado, é possível questionar a eficácia de tais cláusulas reito, nos termos do artigo 187 do Código Civi1471, o ato do compra-
também com base no princípio da boa-fé objetiva. Assim, poder-se-ia dor de pretender pleitear indenização com base em informação de
interpretar como violador do princípio da boa-fé e lealdade o com- que já tinha conhecimento previamente ao fechamento do negócio472.
portamento do comprador que, tendo ciência da falsidade da decla- Discute-se, também, se o comportamento do adquirente de con-
ração prestada pelo vendedor e tendo oportunidade de informá-lo a cluir o negócio mesmo ciente da falsidade das declarações constitui
respeito, optar por ficar inerte e, posteriormente, utilizar-se dos do- manifestação de concordância e, assim, renúncia prévia à anulabili-
cumentos por ele disponibilizados para pleitear uma indenização. Tal dade por erro, nos termos dos artigos 138473, 172474, 174475 e 175476
situação torna-se particularmente relevante caso o adquirente descon- do Código Civil477.
fie que a omissão do alienante não foi proposita1467.
470 MARCELO TRINDADE, "Sandbagging e as Falsas Declarações em Alienações
Nesse sentido, interpreta-se a utilização da cláusula de san- Empresariais". In: Rodrigo Rocha Monteiro de Castro; Luis André Azevedo;
dbagging como "carta na manga", quando o comprador tem conheci- Marcus de Freitas Henriques (Coord.). Direito Societário, Mercado de Capitais,
Arbitragem e Outros Temas: Homenagem a Nelson Eizirik..., p. 97.
mento de supostas violações por parte do vendedor previamente ao "Art. 187 Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
471
fechamento e permanece silente, atentando contra a boa-fé objetiva468. manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa fé
ou pelos bons costumes."
Também se aponta como violação à boa-fé objetiva a hipótese 472 RICARDO MORAIS TONIN. "Efeitos do conhecimento para fins de indenização
em que o adquirente tenha atuado com intenção maliciosa ao exigir em contratos de alienação de participações societárias no Brasil: uma análise
da regulação contratual do sandbagging"..., p. 88; PETER SESTER. Business and
que a cláusula fosse incluída de modo a obter vantagem indevida469. Investment in Brazil..., p. 318.
473 "Art. 138. São anuláveis os negócios jurídicos, quando as declarações de vontade
466 "Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do emanarem de erro substancial que poderia ser percebido por pessoa de diligência
contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé." normal, em face das circunstâncias do negócio."
467 DANIEL KALANSKY e RAFAEL BIONDI SANCHEZ, "Sandbagging Clauses nas 474 "Art. 172. O negócio anulável pode ser confirmado pelas partes, salvo direito de
Operações de Fusões e Aquisições (M&A)". In: Henrique Barbosa e Sérgio terceiro."
Botrel (Coord.). Novos temas de Direito e Corporate Finance..., p. 15o; PETER 475 "Art.174. É escusada a confirmação expressa, quando o negócio já foi cumprido em
SESTER. Business and Investment in Brazil..., p. 423. parte pelo devedor, ciente do vício que o inquinava."
468 MARIANA PARGENDLER e CARLOS PORTUGAL GOUVÊA, "As diferenças entre 476 "Art. 175. A confirmação expressa, ou a execução voluntária de negócio anulável,
declarações e garantias e os efeitos do conhecimento". In: Carlos Portugal nos termos dos arts. 172 o 174, importa a extinção de todas as ações, ou exceções,
Gouvêa, Mariana Pargendler e Maurizio Levi-Minzi (Org.). Fusões e Aquisições. de que contra ele dispusesse o devedor."
Pareceres..., p.316. 477 MARCELO ROBERTO FERRO e ANTONIO PEDRO GARCIA DE SOUZA, "O
469 RICARDO MORAIS TONIN. "Efeitos do conhecimento para fins de indenização Desenho Contratual nas Fusões e Aquisições e as Disputas após o Fechamento:
em contratos de alienação de participações societárias no Brasil: uma análise Limitações à luz do Direito Brasileiro". In: Marcelo Vieira von Adamek; Rafael
da regulação contratual do sandbagging"..., p. 88. Setoguti Julio Pereira (Coord.). Fusões e Aquisições (M&A)..., p. 596; MARCELO
298 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK -299

Como se percebe, a doutrina nacional apresenta orientações con- 4.9. DUE DILIGENCE
flitantes com relação ao alcance da cláusula, suas consequências e a
aplicação do princípio da boa-fé objetiva.
Há diversos mecanismos que costumam ser adotados para re-
A depender da importância da informação omitida, tem-se a pos- solver ou mitigar a assimetria de informações entre vendedor e com-
sibilidade de anulação do negócio jurídico — nos termos dos artigos prador a respeito da "sociedade-alvo", dentre as quais a realização de
147478 e 171, inciso 11479, do Código Civil —, ou de cobrança de per-
procedimentos de auditoria, denominados due diligence.
das e danos, conforme o artigo 146480 do Código Civil4".
O procedimento de auditoria costuma ter início com o envio de um
check-list contendo a relação dos documentos e informações solicitados
4.8.4. OBSERVAÇÕES FINAIS pelo potencial adquirente à parte vendedora. O vendedor, em contra-
partida, providencia o preenchimento do correspondente data room
Como visto, a adoção pelas partes de uma sandbagging provision
(base de dados), contendo as informações e os documentos pedidos.
acarreta o afastamento das normas legais eventualmente aplicáveis na
hipótese de silêncio do contrato. Conclui-se, em princípio, pela licitu- A due diligence tem como principais objetivos: permitir a melhor
compreensão possível do negócio a ser realizado; possibilitar a ade-
de de tal cláusula sob a ótica do regime jurídico brasileiro. Trata-se de
quada avaliação do investimento, da qual poderão decorrer ajustes
mecanismo de alocação de risco entre partes no âmbito de contratos
no preço; realizar uma avaliação dos riscos da operação e do negócio;
empresariais, os quais presumem-se paritários e simétricos, devendo
reduzir a exposição do vendedor frente a eventuais reclamações do
ser respeitada a liberdade e autonomia dos agentes.
comprador482; e apurar circunstâncias e riscos que poderão ser objeto
de declarações e garantias483.
A melhor definição da due diligence é a do "retrato" da socieda-
de-alvo, que pode ser mais ou menos detalhado e nítido, a depender
dos esforços despendidos pelo comprador e pela empresa especiali-
zada que contrata, assim como da boa vontade do vendedor de for-
TRINDADE, "Sandbagging e as Falsas Declarações em Alienações Empresariais". necer as informações necessárias.
In: Rodrigo Rocha Monteiro de Castro; Luis André Azevedo; Marcus de Freitas
Henriques (Coord.). Direito Societário, Mercado de Capitais, Arbitragem e Geralmente, a due diligence é conduzida por empresas especiali-
Outros Temas: Homenagem a Nelson Eizirik..., p. 97. zadas, de auditoria independente, assim como por escritórios de ad-
478 "Art. 147 Nos negócios jurídicos bilaterais, o silêncio intencional de uma das partes
a respeito de foto ou qualidade que a outra parte haja ignorado, constitui omissão vocacia. Costuma envolver o exame de atividades operacionais e não
dolosa, provando-se que sem ela o negócio não se teria celebrado." operacionais da empresa alvo, englobando aspectos contábeis, finan-
479 'Art. 171. Além dos casos expressamente declarados na lei, é anulável o negócio
jurídico: I - por incapacidade relativa do agente:"
48o "Art. 146. O dolo acidental só obriga à satisfação das perdas e danos, e é acidental
quando, a seu despeito, o negócio seria realizado, embora por outro modo." 482 SÉRGIO BOTREL. Fusões e Aquisições. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 246.
481 CAMILA OTANI NISHI. A Cláusula de Sandbagging em Contratos de M&A..., 483 CATARINA PIRES MONTEIRO. Aquisição de empresas e de participações
p. 152 e 188-189. acionárias - problemas e litígios. Coimbra: Almedina, 2018, p. 33.
300 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 301

ceiros, patrimoniais, societários, contratuais, trabalhistas, fiscais, am- prestadas, atraindo as consequências do disposto nos artigos 1744" e
bientais, de propriedade intelectual e regulatórios. 175486 do Código Civi1487.
Assim, compreende o diagnóstico legal, o levantamento e quan- A aferição do grau de responsabilidade das partes em uma ope-
tificação de passivos e contingências, e a emissão de relatório pelos ração que tenha sido precedida de due diligente depende de uma aná-
auditores e advogados. lise das características do caso, com base no volume de informações
A due diligente constitui um procedimento analítico, para o qual objeto da auditoria e nas demais condições que o comprador teve para
se requer uma metodologia que pressupõe, por exemplo: o entendi- sua verificação, incluindo a sua qualificação profissional, a existência
mento do negócio (passado, presente e potencial de crescimento); o de assessoria técnica, a dinâmica adotada para obtenção dos dados,
levantamento das principais informações e documentos; a visão da bem como o tempo disponibilizado para sua análise.
organização, da relação entre os sócios e da administração de caixa; A amplitude e a profundidade com que são conduzidas tais au-
a avaliação da governança corporativa; a confiabilidade das demons- ditorias variam. Isso impacta, proporcionalmente, o nível de assime-
trações financeiras; os principais riscos financeiros, jurídicos e repu- tria informacional entre as partes e, consequentemente, a intensidade
tacionais; e a visão geral das relações com os stake-holders e partes do dever de informar do vendedor e do ônus de se informar do com-
relacionadas484. prador, respectivamente.
A depender das especificidades de cada negócio, variam os níveis Assim, o procedimento de due diligente tem papel preponderan-
de escopo, profundidade e tempo a serem dedicados pelo comprador te na delimitação do âmbito de responsabilidade do vendedor por in-
à obtenção de informações. formar e do comprador por se informar.
Apesar de não ser obrigatória, a due diligente consiste no meca- O posicionamento ativo do comprador no sentido de solicitar
nismo mais comumente adotado pelos compradores para se desin- informações e formular questionamentos reduz o escopo do dever de
cumbir do ônus de se informar. A realização de tal procedimento informar do vendedor à prestação dos dados pedidos488. Deve este,
para se precaver em relação à assimetria informacional confere ao assim, diligenciar para que os documentos e informações solicitados
adquirente mais legitimidade para reclamar do vendedor eventual estejam à disposição das equipes de auditoria na data convencionada.
vício de informação.
Por outro lado, pode servir como prova do conhecimento do
"Art.174. É escusada a confirmação expressa, quando o negócio jáfoi cumprido em
comprador a respeito dos documentos e informações disponibilizados 485
parte pelo devedor, ciente do vício que o inquinava."
e do seu consentimento em concluir o negócio apesar de eventuais 486 "Art. 175. A confirmação expressa, ou a execução voluntária de negócio anulável,
nos termos dos arts. 172 a 174, importa a extinção de todas as ações, ou exceções,
imprecisões posteriormente constatadas nas declarações e garantias
de que contra ele dispusesse o devedor."
487 MARCELO FERRO e ANTONIO PEDRO GARCIA DE SOUZA,"0 Desenho Contratual
nas Fusões e Aquisições e as Disputas após o Fechamento: Limitações à Luz do
484 ANDRÉ ANTUNES SOARES DE CAMARGO, "As quatro grandes perguntas das Direito Brasileiro". In: Marcelo Vieira von Adamek e Rafael Setoguti Junior Pereira
combinações de negócios". In: Marcelo Vieira von Adamek e Rafael Setoguti (Coord.). Fusões e Aquisições (M&A). São Paulo: Quartier Latin, 2022, p.593.
Junior Pereira (Coord.). Fusões e Aquisições (M&A). São Paulo: Quartier Latin, 488 GABRIEL SAAD KIK BUSCHINELLI. Compra e Venda de Participações
2022, p. 34- Societárias de Controle. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 358-359.
302 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 303

Entretanto, o comprador, por não ter conhecimento aprofundado 4.10. CLÁUSULA DE BREAKUP FEE
a respeito do modelo de negócios, pode não ser capaz de formular
todos os questionamentos pertinentes. Assim, a realização da due
diligence não exime o vendedor de informar ao comprador eventuais 4.10.1. CARACTERÍSTICAS E FUNÇÕES

fatos que — embora não tenham sido questionados por este — sejam A breakup fee, também referida como "taxa de insucesso", im-
materialmente relevantes a respeito do objeto do contrato489. Isso porta em um pagamento fixo a ser realizado por uma das partes sig-
ocorre especialmente quando, de acordo com as circunstâncias do natárias de contrato preliminar, que será devido em decorrência do
caso, não seria razoável esperar-se que o comprador incluísse todos fracasso da operação de reorganização societária ou do contrato de
os questionamentos específicos nas checklists enviadas. aquisição de participação societária. Em tradução literal, trata-se de
taxa pela "quebra" contratual, a qual enseja o pagamento de uma mul-
ta compensatória49°.
A cláusula de breakup fee geralmente é prevista em operações en-
volvendo companhias cuja propriedade acionária é dispersa491. Em
companhias com acionista controlador em que a negociação é fei-
ta por este, tende-se a reduzir incertezas sobre o que será deliberado
pela assembleia geral a respeito da operação, bem como sobre even-
tual aceitação de ofertas concorrentes.
Por outro lado, no caso de companhias sem controlador defini-
do, em que a negociação é conduzida por seus administradores, estes
não têm o controle sobre a decisão da assembleia geral. Isso aumen-
ta o risco para o ofertante, o qual pode exigir a inclusão de uma cláu-
sula de breakup fee.
Os eventos desencadeadores do pagamento de uma breakup fie
costumam ser os seguintes: (i) desistência da operação de M&A por
iniciativa do conselho de administração; (ii) violação de quaisquer de-
clarações e garantias estabelecidas entre as partes nos documentos da

490 JUDITH MARTINS-COSTA, "A cláusula de break up fee: qualificação perante o


direito brasileiro", Revista de Direito Societário e M&A. São Paulo: Ed. RT, v. 1,
489 MARCELO FERRO e ANTONIO PEDRO GARCIA DE SOUZA, "O Desenho ano 1, jan.-jun., 2022, p. RR-5.1.
Contratual nas Fusões e Aquisições e as Disputas após o Fechamento: 491 MARCOS BARBOSA PINTO, "As break-up fees nas incorporações envolvendo
Limitações à Luz do Direito Brasileiro". In: Marcelo Vieira von Adamek e Rafael companhias sem controlador", Revista de Direito das Sociedades e dos Valores
Setoguti Junior Pereira (Coord.). Fusões e Aquisições (M&A)..., p. 592. Mobiliários. São Paulo: Almedina, v. II, dez. 2021, p. 255.
304 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 305

operação de M&A; (iii) rejeição da operação de M&A pela assem- Ainda que eventuais terceiros venham a apresentar propostas
bleia de acionistas de uma das partes; (iv) descumprimento de obri- para a aquisição da sociedade-alvo, a existência de uma cláusula de
gações de exclusividade da "sociedade-alvo"; (v) descumprimento de breakup fee em tese minimiza a possibilidade de tais propostas se-
obrigação prevista no acordo que dê ensejo à sua resolução; (vi) acei- rem aceitas. Isso porque o valor ofertado por estes teria que superar
tação de uma oferta concorrente; ou (vii) não aprovação da opera- o montante proposto pelo primeiro ofertante, acrescido da taxa pela
ção por órgãos públicos. Trata-se de relação não exaustiva, tendo em quebra contratual494.
vista as diversas razões possíveis pelas quais uma operação de M&A O acordo pactuado entre o potencial adquirente e a administração
pode fracassar492. da sociedade-alvo não vincula os acionistas desta, que têm liberdade
Usualmente, as breakup fies são estabelecidas em benefício da para votar a operação em assembleia geral. Apesar disso, a imposição
parte adquirente em uma operação de M&A. à sociedade de pagamento de multa pode vir a minimizar as chances
A primeira função de uma disposição contratual que prevê uma de uma não aprovação da operação na assembleia, pois trata-se de um
breakupfee é estimular que a reorganização societária seja efetivamen- elemento a mais a ser ponderado pelo acionista495.
te realizada, ou seja, criar incentivos para a constituição de um víncu- A breakup fie também constitui um mecanismo de alocação de
lo jurídico. O primeiro interessado na aquisição de uma companhia riscos entre as partes durante o período intercalar. Desse modo, tem
geralmente incorre em custos para formular uma proposta de com- a função de compensar a contraparte pelos custos incorridos e perdas
pra, notadamente quanto à estipulação do preço. sofridas em razão da não concretização da operação.
É comum que terceiros, apropriando-se do trabalho do pionei- O processo de negociação demanda o dispêndio de tempo e re-
ro por meio de um "efeito carona", adotem o valor definido por este cursos pelo proponente, como, por exemplo, com a realização de au-
como ponto de partida para a formulação das suas propostas. Assim, o ditorias, a contratação de profissionais e a análise de documentos, que
primeiro proponente agrega valor à sociedade-alvo, deixando-a pron- constituem custos diretos. Acarreta, também, custos indiretos, como
ta para a venda. A cláusula de breakup fee tem a função de estimular o o custo de oportunidade e danos à sua reputação, incluindo a exposi-
agente a apresentar sua proposta de aquisição da sociedade-alvo, as- ção da estratégia de negócios do potencial adquirente 496 .
segurando-lhe a internalização do valor a ela agregado493.
494 JUDITH MARTINS-COSTA, "A cláusula de break up fee: qualificação perante o
direito brasileiro", Revista de Direito Societário e M&A... p. RR-5.3; ZOHAR
GOSHEN, "Merger Breakup Fees", Revista de Direito Societário e M&A..., p.
492 HEATH PRICE TARBERT, "Merger Breakup Fees: A Critica! Challenge to Anglo- RR-2.3.
American Corporate Law", Lawand Policy in International Business. Washington: 495 MARCOS BARBOSA PINTO, "As break-up fees nas incorporações envolvendo
Spring, V. 34, n. 3, 2003, p. 639-64o. companhias sem controlador", Revista de Direito das Sociedades e dos
493 MARCELO VIEIRA VON ADAMEK, "No-Shop, Break-Up Fee e Fiduciary Out em Valores Mobiliários..., p. 255-257.
Contratos Preparatórios a Operações de Fusões e Aquisições (M&A): Validade 496 MARCELO VIEIRA VON ADAMEK, "No-Shop, Break-Up Fee e Fiduciary Out em
e Compatibilidade com os Deveres Fiduciários dos Administradores". In: Contratos Preparatórios a Operações de Fusões e Aquisições (M&A): Validade
Marcelo Vieira Von Adamek e Rafael Setoguti Julio Pereira (Coord.). Fusões e e Compatibilidade com os Deveres Fiduciários dos Administradores". In:
Aquisições (M&A). São Paulo: Quartier Latin, 2022, p. 530; ZOHAR GOSHEN, Marcelo Vieira Von Adamek e Rafael Setoguti Julio Pereira (Coord.). Fusões e
"Merger Breakup Fees", Revista de Direito Societário e M&A. São Paulo: Ed. RT, Aquisições (M&A)..., p. 528-529; ZOHAR GOSHEN, "Merger Breakup Fees",
V.2, ano 2, jul.-dez., 2022, p. RR-2.3. Revista de Direito Societário e M&A..., p. RR-2.3.
306 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 307

Assim, diante da ocorrência do evento estipulado na cláusula, a Esse pagamento justifica-se na medida em que as análises rea-
parte que não quis assumir o risco do insucesso da operação tem di- lizadas pelos órgãos competentes de defesa da concorrência podem
reito a um pagamento, destinado a indenizá-la pelo interesse negati- levar um considerável período para serem concluídas. Nesse ínterim,
vo"' ou a reembolsá-la pelas despesas realizadas498. muitas vezes as sociedades envolvidas na operação de M&A, especial-
Os contratos preliminares em operações de M&A também po- mente a companhia alvo, podem ficar impossibilitadas de continuar
dem prever breakup fees em benefício da parte a quem a proposta se conduzindo normalmente suas atividades, em função da operação de
destina, a sociedade a ser adquirida. Em tais situações, as cláusulas reorganização societária já contratada e em vias de ser implementada.
são usualmente denominadas reverse breakup fees. Outros exemplos de eventos que podem dar ensejo ao pagamento
A previsão de pagamento da reverse breakup fee justifica-se como da reverse breakup fee são (i) a incapacidade da sociedade compradora
forma de compensar a sociedade-alvo por possíveis prejuízos, tais de obter financiamento; e (ii) o não fechamento (" dosing") da operação
como a perda de clientes e de funcionários-chave, transferindo-se de M&A até a data acordada pelas partes, por culpa do comprador.
esse risco para a sociedade potencialmente adquirente'''.
As reverse breakup fees são comumente utilizadas em situações
4.10.2. REGIME JURÍDICO NO DIREITO BRASILEIRO
em que a operação de M&A envolva algum risco antitruste. Nesses
casos, o objetivo é compensar a sociedade vendedora caso a operação Em que pese tratar-se de figura jurídica originária do common
não seja aprovada pelos órgãos de defesa da concorrência, partindo-se law, esse tipo de multa vem sendo cada vez mais adotado em ope-
do princípio de que essa possibilidade deveria ter sido prevista pela rações de M&A realizadas no Brasil, inclusive em casos envolvendo
parte adquirente previamente à apresentação da proposta. companhias abertas".
A depender de como é pactuada, a cláusula de breakup fee pode
ser qualificada juridicamente no direito brasileiro como cláusula pe-
497 Sobre interesse negativo:"Ao interesse positivo se contrapõe o interesse negativo, nal ou como obrigação de garantia.
correspondente ao dano sofrido com a celebração do contrato. O lesado deve,
nesses termos, ser colocado na situação em que estaria caso o contrato não tivesse
Soo A esse respeito, destacam-se as operações de reorganização societária
sido celebrado, sendo-lhe ressarcidas as despesas realizadas para a conclusão do
envolvendo as seguintes companhias abertas: Suzano Papel e Celulose S.A. e
negócio e tornadas inúteis, bem como os lucros que perdeu por ter desviado seus
a Fibria Celulose S.A.; Magazine Luiza Cayman Ltd. e Netshoes (Cayman) Ltd.;
recursos e sua atividade de outras aplicações, de outros contratos, para celebrar
Aliansce Shopping Centers S.A. e Sonae Sierra Brasil S.A.; International Meal
o contrato inadimplido. O interesse negativo engloba, com efeito, o prejuízo
Company Alimentação S.A. e MultiQSR Gestão de Restaurantes Ltda., todas
que o lesado evitaria se não tivesse confiado que a manifestação de vontade do
concluídas em 2019, assim como a operação envolvendo Natura Cosméticos
ofensor produziria o efeito que dela se esperava: o adimplemento da obrigação."
S.A. e Avon Products, INC., e a incorporação das ações da Linx S.A. pela STNE
(GUSTAVO TEPEDINO, ALINE DE M. V. TERRA e GISELA SAMPAIO DA C.
Participações S.A., subsidiária brasileira da StoneCo Ltd., ambas ocorridas
GUEDES. Fundamentos do Direito Civil: Responsabilidade Civil. 2a edição,
em 2020. Os documentos da operação de reorganização societária entre a
Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 79).
Embraer S.A. e a The Boeing Company, realizada em 2019 e rescindida no
498 JUDITH MARTINS-COSTA, "A cláusula de break upfee: qualificação perante o ano seguinte, também continham previsão de pagamento de breakup fee
direito brasileiro Revista de Direito Societário e M&A..., p. RR-5.3. em determinadas situações. Exemplos mais recente são a fusão entre os
499 DARREN S. TUCKER e KEVIN L. YINGLING, "Keeping the Engagement Ring: grupos Hapvida e NotreDame Intermédica e a compra do Grupo CRM pela
Apportioning Antitrust Risk with Reverse Breakup Fees", Antitrust Magazine. Nestlé, respectivamente em 2022 e 2023. Fontes: websites de Relações com
Chicago: American Bar Association, V. 22, n. 3, Summer 2008, p. 71. Investidores das referidas companhias.
308 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 309

As cláusulas penais podem ser compensatórias ou moratórias. A eventual inadimplemento da obrigação principal. Isso porque, nesta
cláusula penal compensatória destina-se a substituir a execução da hipótese, o credor fica dispensado de comprovar e quantificar as per-
obrigação que não foi cumprida. A sua principal função é indenizar. Já das e danos, o que, caso inexistisse a cláusula penal, constituiria re-
a moratória é cumulativa ao adimplemento da obrigação, de modo que quisito indispensável para o recebimento da indenização502.
este permanece exigível, e visa, primordialmente, a penalizar a parte. O Código Civil disciplina o valor da multa compensatória pre-
A estipulação de pagamento de multa compensatória por meio da vista em cláusulas penais. Nos termos do artigo 412503, seu valor está
cláusula de breakup fee para o caso de uma das partes deixar de cum- limitado ao montante da obrigação principal. Já o artigo 4135°4 con-
prir as obrigações assumidas em determinado contrato está abrangi- fere ao juiz poderes para determinar a redução equitativa do valor es-
da, em nosso ordenamento jurídico, pela regra geral contida no artigo tabelecido na cláusula penal se o seu montante for manifestamente
408 do Código Civil501, que regula a fixação da cláusula penal. excessivo, tendo em vista a natureza e a finalidade do negócio.
A cláusula penal constitui o pacto acessório a uma obrigação prin- Ambos os dispositivos têm sido objeto de críticas por parte da
cipal por meio da qual as partes estabelecem uma pena, normalmente doutrina, no sentido de que, em se tratando de relações empresariais,
consubstanciada no pagamento de multa, a ser imposta ao contratan- prevaleceria a liberdade das partes para determinar a pena considera-
te que deixou de cumprir a obrigação principal. da adequada505. Do mesmo modo, a possibilidade de revisão da cláu-
O elemento essencial da aplicação da cláusula penal consiste no sula penal pelo Poder Judiciário não se coadunaria com o dinamismo
inadimplemento de uma obrigação a que o devedor está subordina- do mundo empresarial atuar6.
do. Conforme o disposto no artigo 408 do Código Civil, o devedor A discussão sobre a limitação do valor das multas compensató-
incorre de pleno direito na cláusula penal desde que "deixe de cumprir rias ganhou novo fôlego com a promulgação da Lei n° 13.874/2019
a obrigação ou se constitua em mora". ("Lei de Liberdade Econômica"). A lei, dentre outras matérias, es-
A fixação da cláusula penal apresenta dupla função na relação tabelece normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de
contratual. Em primeiro lugar, a pena convencional serve como es- atividade econômica, buscando, de forma explicita, privilegiar a livre
tímulo ao cumprimento da obrigação principal pelo devedor, refor- contratação e a autonomia das partes em negócios jurídicos paritários.
çando o vínculo negocial.
Adicionalmente, a cláusula penal tem a finalidade de prefixar as
502 SILVIO RODRIGUES. DireitoCivil.v.2.3oa edição,SãoPaulo:Saraiva,2002.p.287.
perdas e danos devidas em caso de inadimplemento, eximindo o cre- 503 'Art. 412. O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da
dor do ônus de provar judicialmente o seu prejuízo para obter a in- obrigação principal."
504 "Art. 413. A penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação
denização pelo descumprimento da obrigação principal. principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for
manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e afinalia'aa'e do negócio."
Assim, além de reforçar o liame obrigacional, a cláusula penal
505 RENATO BERGER. Temas Complexos de Direito Empresarial. São Paulo:
visa a facilitar o recebimento da reparação, pelo credor, em face de Quartier Latin, 2019, p.151.
506 JOSÉ CRETELLA NETO, "Da Cláusula Penal nos Contratos Empresariais - Visão
501 "Art. 408. Incorre de pleno direito o devedor na cláusula penal, desde que, dos Tribunais Brasileiros e Necessidade de Mudança de Paradigma", Revista
culposamente, deixe de cumprir a obrigação ou se constitua em mora." de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, V. 245. jul. 2015. p. 379-404.
310 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 311

Nesse sentido, o artigo 3°, inciso VIII 507, de tal diploma legal prevê Note-se que o valor da obrigação principal não se confunde com o
como direito de toda pessoa a garantia de que os negócios jurídicos valor do contrato, visto que engloba a obrigação primária de prestação
empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes da parte inadimplente, bem como as obrigações secundárias e anexas".
pactuantes. A Lei de Liberdade Econômica também incluiu o artigo Ademais, a percepção do que é manifestamente excessivo deve
421-A508 ao texto do Código Civil, segundo o qual os contratos civis levar em conta a natureza e a finalidade do negócio. Assim, conside-
e empresariais presumem-se paritários e simétricos. ra-se, dentre outros, o contrato, a sua racionalidade econômica, o con-
Como se verifica, uma das principais consequências da Lei de texto no qual foi negociado, a duração temporal da multa e os usos
Liberdade Econômica é reduzir a discricionariedade do julgador na do segmento econômico correspondente.
revisão do contrato. O legislador consolidou o entendimento acerca Para a verificação do excesso em uma cláusula penal, também é
do direito das partes de livremente estipularem os termos e condições importante distinguir-se qual espécie de cláusula foi pactuada pelas
dos negócios jurídicos empresariais, assim como a mensuração dos partes: se moratória ou compensatória. Tratando-se a breakup fee de
riscos a eles concernentes. Igualmente, estipulou que revisões contra- uma cláusula penal compensatória, deve-se levar em conta que ela visa a
tuais somente podem ocorrer em hipóteses excepcionais e limitadas. substituir a execução da obrigação incumprida. Diversamente da mora-
Desde que o valor da cominação imposta na cláusula penal não tória, ela não tem um caráter cumulativo ao cumprimento da obrigação.
exceda o da obrigação principal, o ordenamento jurídico brasileiro en- Alternativamente à classificação de uma breakup fee como cláusu-
tende como regular o valor da multa compensatória livremente acor- la penal, esta pode qualificar-se juridicamente como obrigação de ga-
dada entre partes capazes em negócios jurídicos empresariais. Este rantia. Enquadram-se nesta classificação as cláusulas que não preveem
somente poderá ser objeto de revisão se for manifestamente excessi- o pagamento de multa como decorrência de uma conduta culposa de
vo, em decisão fundamentada do julgador. uma das partes, isto é, casos em que não se caracteriza precisamente
um inadimplemento. Isto se verifica nas hipóteses em que a extinção
do contrato for decorrente de uma imposição legal, de uma decisão
que escape à esfera de controle das partes, ou, ainda, do não imple-
mento de uma condição"°.
507 "Art. 3°. São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o
desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no Como uma obrigação de garantia, o contrato opera a transfe-
parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal: [...] VIII - ter a garantia de rência de um risco predeterminado. Assim, uma das partes assume a
que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação
das partes pactuantes, deforma a aplicar todas as regras de direito empresarial obrigação de garantir um risco, independentemente de sua conduta
apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública." ou culpa. É o caso, por exemplo, de a operação não ter sido aprovada
508 'Art.421-A. Os contratos civise empresariais presumem-separitários esimétricosaté
a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, dentro de prazo estipulado no contrato pela autoridade competente.
ressalvadososregimesjuddicosprevistosem leisespeciais,garantidotambém que:1-
as partes negociantes poderão estabelecerparâmetros objetivos para a interpretação 509 JUDITH MARTINS-COSTA, "A cláusula de break upfee: quaI if ic aç ã0perante o
qualificação
das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução; II - a direito brasileiro", Revista de Direito Societário e M&A..., p . RR -5 4 •
alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e III 510 JUDITH MARTINS-COSTA, "A cláusula de break upfee: qualificação perante o
- a revisão contratual somente ocorrerá de maneiro excepcional e limitada." direito brasileiro", Revista de Direito Societário e M&A..., p. RR-5.3.
312 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 313

4.10.3. OBSERVAÇÕES FINAIS


4.11. TRESPASSE
Como visto, a cláusula de breakup fie encontra-se presente em
vários negócios de M&A e pode ser tida como lícita no ordenamen-
to jurídico brasileiro, desde que não haja infração aos deveres dos ad- 4.11.1. CARACTERÍSTICAS GERAIS

ministradores ou abuso por parte do acionista controlador. Há algumas modalidades de negócios de aquisição de empre-
A aceitação, pelos administradores da sociedade-alvo de cláu- sas, dentre as quais, no jargão de M&A, destacam-se a "asset deare a
sula de breakup fee, desde que eles atendam aos seus deveres fiduciá- "share deal'. A primeira envolve a compra de parte dos ativos, ou do
rios, não cria, em regra, ônus indevido aos seus acionistas no que se estabelecimento. A segunda refere-se à aquisição de participações so-
refere ao seu direito de voto acerca da operação. Tampouco prejudica cietárias minoritárias, representativas do controle, de todas as ações
a possibilidade de tais acionistas analisarem e deliberarem a respei- ou quotas, ou, ainda, às operações de reorganização societária (fusão,
to de eventuais propostas concorrentes que venham a ser recebidas e incorporação, incorporação de ações e cisão).
que possam, no seu entendimento, ser mais benéficas. Nos "asset deals", as operações ocorrem diretamente com a "em-
presa-alvo", enquanto unidade de produção; já nos "share deals" as
operações envolvem ações ou quotas representativas do capital da so-
ciedade titular de tais ativos.
Nos "share deals", o estabelecimento empresarial não muda ne-
cessariamente de titular, já que pode continuar a pertencer à mesma
sociedade empresária. Nos "asset deals" ocorre a transferência da titula-
ridade de parte ou de todos os bens que compõem o estabelecimento.
A estrutura do "share deal' em geral é mais simples que a do "as-
set deal', uma vez que incide apenas sobre as ações ou quotas da so-
ciedade-alvo e não sobre um conjunto de bens que podem compor
o estabelecimento. Por outro lado, o "share dai!' torna-se mais com-
plexo quanto maior for o número de sócios da sociedade-alvo e mais
díspares as suas posições51.
A transferência do estabelecimento em nosso sistema jurídico
constitui o trespasse. Trata-se de negócio jurídico mediante o qual
as partes transmitem não bens avulsos, mas o estabelecimento como
um todo, enquanto uma unidade jus-econômica.

511 JOSÉ FERREIRA GOMES. M&A: Aquisição de Empresas e de Participações


Sociais. Lisboa: AAFDL Editora, 2022, p. 34-
NELSON EIZIRIK - 315
314 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL

Ou seja, o objeto do contrato de trespasse é a transferência do Diversamente do patrimônio, que é uma universalidade de di-
estabelecimento, não de ações ou quotas de sua emissão. Não há, no reito, pois a lei assim o considera, o estabelecimento constitui uma
caso, alienação da pessoa jurídica, mas do estabelecimento no qual universalidade de fato, posto que a organização dos elementos que o
ela desenvolve todas ou parte de suas atividades. compõem decorre da vontade do empresário.
O estabelecimento não é dotado de personalidade jurídica, não
assumindo direitos nem obrigações. Sujeito de direitos é o titular do
4.11.2. O ESTABELECIMENTO estabelecimento, seja este o empresário ou a sociedade empresária.
Conforme disposição do artigo 1.143 do Código Civi1512, o esta- Compreendem-se como elementos corpóreos do estabeleci-
belecimento pode ser objeto unitário de diferentes negócios jurídicos, mento: os bens (i) móveis utilizados pelo empresário para apare-
como arrendamento, doação, transmissão "mortis causa" ou trespasse. lhar seu estabelecimento, como mobília, maquinário e utensílios;
O estabelecimento empresarial consiste numa universalidade de (ii) móveis que servem ao negócio, como mercadorias, estoques e
fato, nos termos dos artigos 90"3 e 1.142514 do Código Civil, composta produtos; e (iii) imóveis, como o local físico onde exerce sua ativi-
por um conjunto de bens corpóreos e incorpóreos, não só úteis como dade empresarial.
indispensáveis à empresa. Ou seja, trata-se de um complexo de bens Dentre os elementos incorpóreos incluem-se o ponto empresa-
materiais e imateriais a que o empresário ou a sociedade empresá- rial, o nome empresarial e o nome fantasia, os títulos do estabeleci-
ria confere destinação unitárias". Cada um dos elementos da empre- mento, as insígnias, as marcas e as patentes de invenção, assim como
sa tem individualidade própria e existência autônoma, mas, em razão os direitos creditórios.
da vontade de seu titular, encontram-se organizados para o exercício Em razão do desenvolvimento do comércio eletrônico também
produtivo de determinada atividade. se reconhece o estabelecimento virtual, mediante o qual o consumidor
adquire produtos ou serviços eletronicamente. Ademais, há crescen-
te número de empresas sem sede física, que exercem suas atividades
512 516
"Art. 1.143. Pode o estabelecimento ser objeto unitário de direitos e de negócios
atuando na rede mundial de computadores .
jurídicos, translativos ou constitutivos, que sejam compatíveis com a sua natureza."
513 "Art. go. Constitui universalidade de fato a pluralidade de bens singulares que, Qual seria o elemento fundamental do estabelecimento? Aquele
pertinentes à mesma pessoa, tenham destinação unitário."
514 "Art. 1.142. Considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado,
que, se não fizer parte da venda não se poderia considerar alienado o
para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária. 1° estabelecimento? Ou aquele que, mesmo alienado isoladamente im-
O estabelecimento não se confunde com o local onde se exerce a atividade
empresarial, que poderá serfísico ou virtual. § 2 0 Quando o local onde se exerce
plicaria a transferência do estabelecimento? Parece não haver resposta
a atividade empresarial for virtual, o endereço informado para fins de registro "apriori", dependendo do gênero de comércio, indústria ou agricultu-
poderá ser, conforme o caso, o endereço do empresário individual ou o de um dos
sócios da sociedade empresária. § ?° Quando o local onde se exerce a atividade
ra. Por exemplo, quem vende isoladamente a mina de que se tirava a
empresarial for físico, a fixação do horário de funcionamento competirá ao
Município, observada a regra geral prevista no inciso II do caput do art. 3° da Lei
n° 13.874, de 20 de setembro de 2019." GUSTAVO TEPEDINO, HELOISA HELENA BARBOZA e MARIA CELINA BODIN DE
516
515 MORAES. Código Civil Interpretado Conforme a Constituição da República.
OSCAR BARRETO FILHO. Teoria do Estabelecimento Comercial: fundo de
comércio ou fazenda mercantil. São Paulo: Max Limonad, 1969, p. 151. v. III, Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 362.
316 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 317

matéria prima do produto pode ter alienado o estabelecimento, mes- serviços. A clientela não compõe o estabelecimento, constituindo
mo que dele fizessem parte outros elementos517. Já num estabeleci- um atributo empresarial; na medida em que se apresenta como um
mento de tecnologia da informação, seus elementos essenciais podem conjunto de pessoas, não é um bem que possa ser objeto de apro-
consistir nas pessoas que nele trabalham, assim como nos programas priação520. Já o ponto empresarial, definido como o local em que o
de computação que desenvolve. empresário se estabelece, é aceito, de forma pacífica, como elemen-
O aviamento (ou "goodwilt'), que decorre da organização to do estabelecimento521.
dos bens para o desempenho da atividade empresarial, em ge- Nem todas as relações jurídicas ativas e passivas atinentes ao es-
ral tem valor superior à soma dos preços atribuídos a cada um tabelecimento são parte dele integrante, mas tão somente aquelas que
dos bens corpóreos e incorpóreos que compõem o estabele- se mostrem indispensáveis ao desenvolvimento da atividade.
cimento. Trata-se da capacidade da empresa de produzir lu- Nesse sentido, compõem o estabelecimento os contratos que
cros, um valor agregado ao estabelecimento, reconhecido pelo lhe são estritamente vinculados e que necessariamente o seguirão
Código Civil como elemento do ativo do empresário ou da so- em caso de alienação, tais como os de locação, de trabalho, fran-
ciedade empresária (artigo 1.187, parágrafo único, inciso III518).
quia, "leasing", fornecimento, distribuição, prestação de serviços,
O aviamento não se caracteriza como elemento do estabeleci- desde que neles esteja presente o elemento da essencialidade, isto
mento empresarial, uma vez que não tem autonomia nem se encon- é, que a atividade empresarial não possa ser desenvolvida sem a sua
tra protegido juridicamente. Na realidade, traduz-se em qualidade continuidade522.
ou atributo do estabelecimento frente aos resultados obtidos pela Na medida em que consiste numa universalidade de fato, o es-
empresa519.
tabelecimento empresarial pode ser, nos termos do artigo 1.143 do
Intrinsecamente ligados à noção de aviamento estão a cliente- Código Civil, objeto unitário de direitos e negócios jurídicos, trans-
la e o ponto empresarial, uma vez que boa parte do valor agregado lativos ou constitutivos, desde que compatíveis com a sua natureza,
à organização dos bens que integram o estabelecimento deles de- como é o caso do trespasse.
corre. A clientela consiste no conjunto de pessoas que mantêm com
o estabelecimento uma relação continuada de procura por bens e
4.11.3. O NEGÓCIO JURÍDICO DE TRESPASSE
517 PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado - Parte Especial. t. XV, São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 575. O trespasse constitui o negócio jurídico de transferência do es-
518 "Art. 1.787 Na coleta dos elementos para o inventário serão observados os critérios
de avaliação a seguir determinados: (...) Parágrafo único. Entre os valores do ativo tabelecimento pelo empresário.
podem figurar, desde que se preceda, anualmente, à sua amortização: (...) 111 - a
quantia efetivamente paga a título de aviamento de estabelecimento adquirido
pelo empresário ou sociedade."
519 Nesse sentido, ver: (i) ARNOLDO WALD, "Livro II. Do Direito de Empresa". In: 52o OSCAR BARRETO FILHO. Teoria do Estabelecimento Comercial: Fundo de
Sálvio de Figueiredo Teixeira (Coord). Comentários ao Novo Código Civil. v. Comércio ou Fazenda Mercantil. 2a edição, São Paulo: Saraiva, 1988, p. 241.
XIV,edição,
2a Kl() de Janeiro:_Forense, 2010, p. 653; e (ii) GUSTAVO TEPEDINO, 521 FABIO ULHOA COELHO. Curso de Direito Comercial. v. I, 8a edição, São Paulo:
HELOISA HELENA BARBOZA e MARIA CELINA BODIN DE MORAES. Código Saraiva, 2004, p. 102.
Civil Interpretado Conforme a Constituição da República. v. III, p. 363. FABIO TOKARS. Estabelecimento Empresarial. São Paulo: LTr, 2006, p. 82.
522
NELSON EIZIRIK - 319
318 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL

Trata-se de um contrato bilateral, consensual, comutativo e one- Primeiramente o interesse do empresário, titular do estabe-
roso, por meio do qual o trespassante transfere ao trespassário (ou ad- lecimento, que tem o direito de aliená-lo, fazendo jus a uma con-
quirente) o complexo de bens que servem ao exercício da atividade traprestação, consistente normalmente no sobrevalor, o chamado
empresarial. O Código Civil não menciona o trespasse, apenas regu- aviamento. Existe também o interesse do adquirente, que pretende
la os efeitos obrigacionais decorrentes da negociação unitária do es- recebê-lo de uma forma que lhe permita continuar a empresa. Há
tabelecimento. Já a Lei no 11.101/2005, em seu artigo 50, inciso VII, ainda os interesses dos credores do alienante do estabelecimento,
refere-se expressamente ao trespasse como um dos meios de recupe- uma vez que a transferência de sua titularidade pode ser-lhes dano-
ração da empresa em crise. sa. Tal sobreposição de interesses orientou o legislador a criar uma
sistemática calcada em 2 (dois) pilares: a preservação da empresa e
Na prática dos negócios muitas vezes utilizam-se as expressões
a proteção dos credores525.
"cessão de empresa" ou "venda de empresa". Tais locuções referem-
-se ao trespasse do estabelecimento, instrumento legal de aquisição A caracterização do trespasse pressupõe a alienação dos bens que
de sua titularidade. compõem o núcleo do empreendimento, isto é, aqueles suficientes
ao desenvolvimento da empresa, sem que seja necessário o acréscimo
Embora o estabelecimento possa ser objeto de outros tipos de ne-
de outros por parte do adquirente para que se confira funcionalidade
gócios jurídicos, como o usufruto ou o arrendamento, conforme pre-
ao conjunto de elementos do estabelecimento526. Já a simples trans-
vê o artigo 1.144 do Código Civil, o trespasse tem natureza diversa;
ferência de um acervo desconexo de bens não importa em trespasse,
constitui o contrato oneroso que opera em definitivo a transferência
constituindo mero desmantelamento do estabelecimento e compra
da propriedade do estabelecimento empresarial. No trespasse, tanto
e venda de ativos'''.
a titularidade do estabelecimento como a sua exploração são transfe-
ridas para o adquirente523. Não fazem parte do trespasse os ativos e passivos do empresá-
rio ou sociedade empresária que não se relacionem com o estabeleci-
O princípio norteador do negócio jurídico de trespasse é sem-
mento objeto do contrato. Com efeito, o estabelecimento empresarial
pre o de resguardar a integridade do estabelecimento, transferindo-o
vincula-se ao exercício da atividade, não se confundindo com o em-
de um empresário para outro. Desde que não seja desvirtuada a uni-
presário ou sociedade empresária nem com seu patrimônio. O esta-
versalidade, podem alguns bens singulares que integram o estabele-
belecimento pode constituir apenas um dos ativos que integram o
cimento ser deixados de fora da transmissão mediante a inclusão de
patrimônio do empresário ou da sociedade empresária.
reservas no instrumento contratual524.
Tratando-se o estabelecimento de uma universalidade de fato,
Quais os principais interesses em causa no trespasse, que mere-
a sua transmissão é realizada mediante a tradição, sem maiores for-
cem a tutela do sistema jurídico obrigacional?
525 MARCELO ANDRADE FÉRES. Estabelecimento Empresarial - trespasse e efeitos
obrigacionais, p. XXIX.
523 MARCELO ANDRADE FÉRES. Estabelecimento Empresarial-trespasse e efeitos
526 FABIO TOKARS. Estabelecimento Empresarial, ..., p.107.
obrigacionais. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 46.
527 OSCAR BARRETO FILHO. Teoria do Estabelecimento Comercial: Fundo de
S2,1 OSCAR BARRETO FILHO. Teoria do Estabelecimento Comercial: Fundo de
Comércio ou Fazenda Mercantil. 2 a edição, ..., p. 208.
Comércio ou Fazenda Mercantil. 2a edição..., p. 211-212.
320 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 321

malidades. A transferência de cada um de seus elementos seguirá a restem ao alienante do estabelecimento bens suficientes para solver os
lei que lhes é própria. Assim, por exemplo, a transferência da marca seus passivos, a eficácia da alienação do estabelecimento depende do
deverá ser objeto de averbação no Instituto Nacional de Propriedade pagamento de todos os credores, ou do seu consentimento, expresso
Industrial — INPI 528. ou tácito, após serem pessoalmente notificados.
Nos termos do artigo 1.144 do Código Civil, o contrato de tres-
passe, para produzir efeitos, deve ser averbado à margem da inscrição 4.11.4. A SUCESSÃO NO TRESPASSE
do empresário ou da sociedade empresária no registro competente e
O adquirente do estabelecimento, nos termos do artigo 1.146
publicado na imprensa oficial. Trata-se, assim, de condição de eficá-
do Código Civil, "responde pelo pagamento dos débitos anteriores à
cia do negócio jurídico perante terceiros.
transferência, desde que regularmente contabilizados, continuando o de-
A norma visa a dificultar a ocorrência de fraudes para prejudi-
vedor primitivo solidariamente obrigado pelo prazo de um ano, quanto
car credores, principalmente quando o empresário está em situação
aos créditos vencidos, a partir da publicação, e, quanto aos outros, a par-
pré-falimentar, conferindo maior transparência ao trespasse. Mediante
tir da data do vencimento".
a averbação no registro público mercantil, dá-se publicidade ao ato,
Assim, a responsabilidade do adquirente pelos débitos an-
podendo qualquer interessado ter acesso à informação. A publicação
teriores à aquisição do estabelecimento está condiciona-
no Diário Oficial tem a função de iniciar a contagem do prazo pres-
da à regularidade da contabilização de tais dívidas; não se
cricional do artigo 1.146529.
apresentando a obrigação na contabilidade da empresa, não
Ademais, nos termos do artigo 1.14553°, de forma semelhante ao
pode ela ser cobrada do adquirente, posto que este deve ter
disposto no artigo 129, inciso VI, da Lei n° 11.101/2005531, caso não
prévio conhecimento da extensão de sua responsabilidade.
528 VERA HELENA DE MELLO FRANCO. Manual de Direito Comercial. v. I, 2a A "ratio legis" da norma, ao determinar a responsabilidade do
edição, São Paulo: RT, 2004, p. 145. adquirente pelos débitos anteriores ao trespasse, desde que regular-
529 'Art. 1.146. O adquirente do estabelecimento responde pelo pagamento dos
débitos anteriores à transferência, desde que regularmente contabilizados, mente contabilizados, decorre da boa-fé, uma vez que não pode o ad-
continuando o devedor primitivo solidariamente obrigado pelo prazo de um quirente alegar desconhecimento de sua existência. Porém, caso haja
ano, a partir, quanto aos créditos vencidos, da publicação, e, quanto aos outros,
da data do vencimento." um passivo oculto, ou contabilidade paralela, o adquirente não pode-
530 "Art. 1.145. Se ao alienante não restarem bens suficientes para solvero seu passivo, rá ser responsabilizado.
a eficácia da alienação do estabelecimento depende do pagamento de todos os
credores, ou do consentimento destes, de modo expresso ou tácito, em trinta dias Conforme antes mencionado, constitui o estabelecimento em-
a partir de sua notificação."
531 "Art. 129. São ineficazes em relação à massa falida, tenha ou não o contratante
presarial uma universalidade de fato, composta por um conjunto de
conhecimento do estado de crise econômico financeira do devedor, seja ou bens, não por um patrimônio, universalidade de direitos; portanto, o
não intenção deste fraudar credores: (...) VI - a venda ou transferência de
estabelecimento feito sem o consentimento expresso ou o pagamento de todos os
trespasse acarreta a sucessão particular, não universal, como ocorre
credores, a esse tempo existentes, não tendo restado ao devedor bens suficientes nos casos de operações de fusão, incorporação ou cisão.
para solvPrn seu passivo, salvo no prazo rio 3n (trinta)dias, não houver oposição
dos credores, após serem devidamente notificados, judicialmente ou pelo oficial
do registro de títulos e documentos; (...)."
322 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 323

Assim, no trespasse, ocorre sucessão somente nas relações obriga- ponsabilidade por sucessão de estabelecimento caso o adquirente, por
cionais que tenham como objeto o estabelecimento ou os bens que o com- qualquer motivo, não mantiver a exploração da mesma atividade535.
põem, inexistindo, em princípio, nas demais obrigações do alienante532. Nos termos do artigo 133, inciso I, do CTN, o adquirente res-
O principal objetivo do artigo 1.146 é o de proteger terceiros, ponde integralmente pelo passivo tributário caso o alienante encerre
cujos direitos não podem ser prejudicados pelo trespasse. Estamos, suas atividades. Se o alienante reiniciar suas atividades no mesmo ou
portanto, diante de uma norma cogente, que deve ser aplicada in- em ramo diverso nos 6 (seis) meses subsequentes à aquisição do es-
dependentemente do que dispuser o contrato de alienação do tabelecimento o adquirente somente responderá pelo passivo tribu-
estabelecimento'''. tário de forma subsidiária (artigo 133, inciso II).
Uma questão que sempre merece especial atenção na aquisição A legislação trabalhista também regula a sucessão no trespasse,
do estabelecimento é a sucessão de dívidas de natureza tributária, en- nos artigos 10, 448 e 448-A da Consolidação das Leis do Trabalho
contrando-se a matéria regulada no artigo 133 do Código Tributário (CLT)536, estabelecendo que os contratos de trabalho se transferem
Nacional (CTN)534. Nos termos do caput deste artigo, a responsabili- junto com o estabelecimento. Trata-se, portanto, de sucessão legal; o
dade tributária pelas dívidas relacionadas ao estabelecimento somen- adquirente assume, por força de lei, a posição do empregador que o
te é transmitida ao adquirente se este continua a explorar a mesma precedeu e com ela todas as obrigações e direitos decorrentes dos con-
atividade empresarial anteriormente exercida. tratos de trabalho firmados no âmbito do estabelecimento.
O critério determinante para a aplicação do conceito de "respec- A sucessão empresarial "irregular", "fraudulenta" ou "presumida",
tiva exploração", previsto no caput do artigo 133 do CTN, deve ser que não se encontra disciplinada em lei, tem sido reconhecida pelo Poder
buscado pela identidade de atividades econômicas, não havendo a res- Judiciário, quando se identifica que um empresário ou sociedade em-
presária — em geral com o intuito de fraudar credores — deixa de exercer
a sua atividade, a qual passa a ser praticada por outrem, no mesmo lugar
e utilizando-se dos mesmos elementos537. Nesse caso, é possível impu-

532 PEDRO HENRIQUE LARANJEIRA BARBOSA, "Sucessão Empresarial no


Trespasse: A Questão da Sucessão nas Dívidas do Alienante". In: Suzy El izabeth
Cavalcante Kouri (Coord.). Direito Empresarial. Os Novos Enunciados da 535 PAULO CALIENDO. Curso de Direito Tributário. 3a edição, São Paulo: Saraiva
Justiça Federal. São Paulo: Quartier Latin, 2013, p. 297. Educação, 2020, p. 578-579.
533 ARNOLDO WALD, "Livro II. Do Direito de Empresa". In: Sálvio de Figueiredo 536 "Art. to - Qualquer alteração na estrutura jurídica da empresa não afetará os
Teixeira (Coord). Comentários ao Novo Código Civil. v. XIV, ..., p. 666. direitos adquiridos porseus empregados. (...)Art 448 -A mudança na propriedade
534 "Art. 133. A pessoa natural ou jurídica de direito privado que adquirir de outra, ou na estrutura jurídica da empresa não afetará os contratos de trabalho dos
por qualquer título, fundo de comércio ou estabelecimento comercial, industrial respectivos empregados. Art. 448-A. Caracterizada a sucessão empresarial ou
ou profissional, e continuar a respectiva exploração, sob a mesma ou outra razão de empregadores prevista nos arts. 70 e 448 desta Consolidação, as obrigações
social ou sob firma ou nome individual, responde pelos tributos, relativos ao trabalhistas, inclusive as contraídas à época em que os empregados trabalhavam
fundo ou estabelecimento adquirido, devidos até à data do ato: I - integralmente, para a empresa sucedida, são de responsabilidade do sucessor. Parágrafo único.
se o alienante cessar a exploração do comércio, indústria ou atividade; II - A empresa sucedida responderá solidariamente com a sucessora quando ficar
subsidiariamente com o alienante, se este prosseguir na exploração ou iniciar comprovada fraude na transferência."
dentro de seis meses a contar da data da alienação, nova atividade no mesmo ou 537 NELSON EIZIRIK. Direito Societário - Estudos e Pareceres. São Paulo: Quartier
em outro ramo de comércio, indústria ou profissão." Latin, 2015, p. 767.
324 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 325

tar a responsabilidade por determinado débito do estabelecimento ao O artigo 1.148 constitui norma dispositiva, podendo, portanto,
empresário ou sociedade empresária que deu continuidade à empresa. as partes afastar os seus efeitos. Ademais, não prevalecerá no caso de
Para satisfazer o crédito de um terceiro de boa-fé, pode-se presumir contrato personalíssimo. Em relação ao contrato de locação onde se
a existência da "sucessão irregular" quando se verifica, na situação fáti- localiza o ponto empresarial, deve-se observar o disposto no artigo
ca, o esvaziamento da empresa conjugado com o surgimento de outra 13 da Lei no 8.425/19915A°. A sub-rogação automática somente ocor-
sociedade empresária que: exerce a mesma atividade e no mesmo ende- re havendo identidade entre as atividades empresariais exercidas pelo
reço; usa idêntico nome fantasia; adquire o estabelecimento sem con- alienante e pelo adquirente, acarretando a continuidade da empresa54'.
trato de trespasse; e possui identidade de sócios e/ou administradores. Conforme a expressão utilizada no artigo 1.148, é necessário, para
Caso não ocorra a transferência de elementos do estabelecimen- a transferência automática dos contratos, que eles constituam avenças
to suficientes à continuidade da empresa, mas a mera aquisição de "estipuladas para a exploração do estabelecimento" ,como são tipicamen-
alguns bens da sociedade, estaremos diante de uma mera compra e te os denominados "contratos exploracionais", aqueles que apresen-
venda de ativos, sendo o adquirente responsável somente.pelo que foi tam funcionalidade para a exploração do estabelecimento. Contratos
estipulado entre as partes, permanecendo o alienante obrigado pelas de tal natureza constituem situações jurídicas diferentes das comuns,
dívidas do estabelecimento"'. por estarem intrinsecamente ligadas à exploração da empresa, daí de-
correndo a possibilidade, em alguns casos, de sua transmissão inde-
pendentemente do consentimento das contrapartes542 .
4.11.5. TRANSFERÊNCIA DOS CONTRATOS Consideram-se "exploracionais", como o nome indica, todos
O Código Civil, em seu artigo 1.148, dispõe sobre a transmissão os contratos firmados para a exploração do estabelecimento: aque-
dos contratos para o adquirente do estabelecimento, estabelecendo les relativos à estruturação da empresa, como os de franquia, de
uma hipótese de sub-rogação deste nos ajustes existentes para a ex- "know-how", transporte, de trabalho e outros similares; e os destina-
ploração do estabelecimento"'.
A denominada "sub-rogação" constitui, na realidade, uma cessão
de determinados contratos do alienante para o adquirente. Trata-se
540 "Art. 13. A cessão da locação, a sublocação e o empréstimo do imóvel, total ou
de cessão imprópria, posto que determinada por lei e independente parcialmente, dependem do consentimento prévio e escrito do locador. § 1° Não
da anuência do contratante cujo contrato foi cedido. se presume o consentimento pela simples demora do locador em manifestar
formalmente o sua oposição. § 2° Desde que notificado por escrito pelo locatário,
de ocorrência de uma das hipóteses deste artigo, o locador terá o prazo de trinta
dias para manifestarformalmente a sua oposição."
541 GUSTAVOTEPEDINO, HELOISA HELENA BARBOZA e MARIA CELINA BODIN DE
538 NELSON EIZIRIK. Direito Societário - Estudos e Pareceres..., p. 769. MORAES. Código Civil Interpretado Conforme a Constituição da República.
539 "Art. 1.148. Salvo disposição em contrário, a transferência importa a sub-rogação v. III, p. 373; e MODESTO CARVALHOSA, "Parte Especial - Do Direito de
do adquirente nos contratos estipulados para exploração do estabelecimento, se Empresa". In: Antônio Junqueira de Azevedo (Coord.). Comentários ao Código
não tiverem caráter pessoal, podendo os terceiros rescindir o contrato em noventa Civil. v. XIII, São Paulo: Saraiva, 2003, p. 659.
dias a contar da publicação da transferência, se ocorrer justa causa, ressalvada, 542 JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO. Direito Comercial: institutos gerais. v.1, Lisboa:
neste caso, a responsabilidade do alienante." FDL, 1998/1999, p. 126.
326 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL
NELSON EIZIRIK - 327

dos às relações com a clientela, como os de consumo, de compra e 4.11.6. PROIBIÇÃO DE CONCORRER
venda, de concessão de crédito, etc543. Nos termos do artigo 1.147546, o alienante do estabelecimento
A transmissão (ou cessão da posição contratual) do contrato ope- não pode fazer concorrência ao adquirente nos 5 (cinco) anos subse-
ra uma sucessão a título particular, desde que: se trate de contratos quentes à transferência.
bilaterais, exploracionais e impessoais; não exista disposição contra- Diante da lacuna no regime legal anterior, na prática comer-
tual em contrário nem óbice legal; e que não haja justa causa para o cial, visando à proteção da clientela, os contratos de transferência
terceiro rescindir o contratos". do estabelecimento seguidamente estabeleciam cláusulas de "não
Nos termos do artigo 1.148 do Código Civil, os terceiros podem concorrência", ou de "não-reestabelecimento igual", nas quais se
rescindir o contrato em 90 (noventa) dias, contados da publicação da previa em que condições e prazo o alienante poderia retomar a an-
transferência do estabelecimento, havendo justa causa. tiga atividades".
Trata-se, a justa causa, de uma "cláusula geral", a ser preen- Com a redação do artigo 1.147 ficou consagrado o princípio
chida pelo juiz frente ao caso concreto; diante da alegação do ter- da não concorrência como regra geral, permitindo-se, porém, que as
ceiro, deverá decidir se há ou não motivo legítimo para a rescisão partes pactuem de forma diversa, o que ainda gera controvérsias em
do contrato. contratos de M&A.
Constituem exemplos típicos de justa causa: a existência de pro-
testos ou de ações intentadas contra o adquirente; a notória incapa-
4.11.7. OBSERVAÇÕES FINAIS
cidade financeira ou técnica do adquirente para gerir a empresa; a
alteração radical do quadro de empregados; e a ruptura de contratos O trespasse, da forma como está regulado no Código Civil, cons-
com fornecedores de matérias-primas necessárias para a continuida- titui uma operação de alto custo e de alto risco para o adquirente.
de do estabelecimentos'''. Alto custo em face da sucessão de todo o passivo vinculado ao esta-
belecimento. Alto risco tendo em vista a possível declaração de ine-
ficácia do negócio, por iniciativa dos credores, nos termos do artigo
1.145 do Código Civil. Tais características causam desincentivo à
sua utilização como operação empresarial, podendo levar o empresá-
rio, conhecedor dos riscos, a preferir uma compra fracionada do es-
tabelecimento, adquirindo separadamente seus principais elementos,
ao invés de optar pela compra de toda a universalidade em um único
543 MARCELO ANDRADE FÉRES. Estabelecimento Empresarial - trespasse e efeitos
obrigacionais, p. 73.
544 MARCELO ANDRADE FÉRES. Estabelecimento Empresarial - trespasse e efeitos
obrigacionais, p. 69. 546 "Art. 1.147. Não havendo autorização expressa, o alienante do estabelecimento
545 FABIO ULHOA COELHO. Curso de Direito Comercial. v. I, p. 122; e não pode fazer concorrência ao adquirente, nos cinco anos subseqüentes à
MARCELO ANDRADE FÉRES. Estabelecimento Empresarial - trespasse e transferência."
efeitos obrigacionais, p. 82. PONTES DEMIRAN DA.Tratadode Direito Privado-Parte Especial. t. XV,..., p.586.
328 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NEISON EIZIRIK - 329

ato548. Ou então, a adquirir apenas ativos não essenciais, para evitar te a responsabilidade pelos débitos passados, desde que regularmen-
eventual caracterização de trespasse "irregular" ou "fraudulento". Ou, te escriturados, sem que ele possa, de qualquer forma, limitá-los551.
ainda, comprar as ações que compõem o bloco de controle da socie- Assim, os estabelecimentos muito endividados, e que mais ne-
dade empresária, incorporá-la ou incorporar suas ações, transforman- cessitam de nova gestão e de aporte de recursos para sua sobrevivên-
do-a em subsidiária integral. cia, são os que encontrarão maiores dificuldades para serem alienados,
O trespasse é modalidade de operação mais arriscada para o ad- dados os riscos envolvidos na sucessão das obrigações e na possibi-
quirente do que uma aquisição de controle, incorporação de ações ou lidade de ineficácia do negócio jurídico por iniciativa dos credores.
cisão; em todas elas, ainda que existam riscos de passivos não reve-
lados, capazes de reduzir os lucros futuros, tais riscos são transferi-
dos para a sociedade sucessora, não para o empresário ou sociedade
empresária adquirente. Na cisão é até mesmo possível que a socieda-
de que absorva parcela do patrimônio da cindida fique responsável
apenas pelas obrigações que lhe forem transferidas, sem solidarieda-
de com a companhia cindida549. Já na incorporação de ações, sequer
existe sucessão das dívidas da incorporada para a incorporadora, pos-
to que aquela conserva sua personalidade jurídica"°.
A tutela jurídica do trespasse deveria privilegiar não apenas os
interesses dos credores, mas também a preservação da empresa. Ao
vender o estabelecimento o empresário encontra uma legítima op-
ção à sua simples liquidação, mantendo em atividade uma unidade
econômica produtiva.
O índice de proteção aos credores é muito mais rigoroso do que
o da preservação da empresa, uma vez que a lei transfere ao adquiren-
548 FABIO TOKARS. Estabelecimento Empresarial..., p. 198-199.
549 Conforme o disposto no artigo 233, parágrafo único, da Lei das S.A., "[o] ato
de cisão parcial poderá estipular que as sociedades que absorverem parcelas do
patrimônio da companhia cindida serão responsáveis apenas pelas obrigações que
lhes forem transferidos, sem solidariedade entre si ou com a companhia cindida,
mas, nesse caso, qualquercredoranteriorpoderá se apara estipulação, em relação
ao seu crédito, desde que notifique a sociedade no prazo de 90 (noventa) dias a
contar da data da publicação dos atos da cisão".
55o Conforme o disposto no artigo 252 da Lei das S.A., "[a] incorporação de todas as
ações do capitalsocialao patrimônio de outra companhia brasileira, para convertê-la
em subsidiária integral, será submetida à deliberação da assembléia-geral das duas 551 MARCELO ANDRADE FÉRES. Estabelecimento Empresarial - trespasse e efeitos
companhias mediante protocolo e justificação, nos termos dos artigos 224 e 225". obrigacionais, p. 178.
Terceira Parte
NELSON EIZIRIK - 333

5. INTERPRETAÇÃO DAS OPERAÇÕES SOCIETÁRIAS


E DOS CONTRATOS DE AQUISIÇÃO
DE PARTICIPAÇÕES SOCIETÁRIAS

5.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Pretendo, na presente Seção, apresentar comentários, mais pes-


soais, sobre a interpretação das operações societárias e dos contratos
de M&A, descritos e estudados ao longo da presente obra.
Não é meu objetivo proceder a uma análise exaustiva sobre mé-
todos de interpretação, mas principalmente transmitir minha expe-
riência, como advogado, árbitro e parecerista, ilustrando-a com alguns
exemplos vividos na prática profissional.
Quais os aspectos mais relevantes na interpretação de operações
societárias, quer envolvendo sociedades limitadas e sociedades anô-
nimas fechadas, quer envolvendo companhias abertas?
Quais os aspectos mais significativos na interpretação de con-
tratos de M&A, aqueles para os quais se voltam os árbitros quando
devem decidir um conflito sobre a matéria?
É o que passo doravante a expor.
Antes, algumas breves palavras sobre o que entendo por
interpretação.
Trata-se, a interpretação, de atividade desenvolvida em vários se-
tores; podemos falar de interpretação de inscrições arqueológicas, de
interpretação literária, psicanalítica, jurídica etc.
Podemos distinguir 2 (dois) momentos da atividade jurídica: o
primeiro é o "ativo" ou "criativo" do Direito, que encontra sua mani-
festação mais típica na legislação; e o segundo momento é constituído
pelos atos cognitivos do Direito, visando à sua aplicação, desenvol-
vidos pela teoria jurídica e pelos tribunais. A interpretação insere-se
334 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 335

no segundo momento, voltada não para produzir, mas para reprodu- Assim, o intérprete deve indagar-se: o que queriam as partes
zir o Direito, isto é, para explicar com meios lógico-racionais o con- quando assinaram o contrato ou ingressaram em determinada ope-
teúdo das normas jurídicas já postasm. ração societária?
Interpretar, de modo geral, consiste em remontar do signo à coi- Mas a interpretação não se volta para a vontade interior de cada
sa significada, isto é, compreender o significado do signo, individuali- uma das partes (de resto impossível de conhecer), mas para aquela
zando a coisa por este indicada. Assim, a interpretação baseia-se em comum, consubstanciada na declaração. O objeto da interpretação
2 (dois) termos: o signo e o seu significado. Pode ser ligada principal- não é a vontade interior, que a parte poderia ter manifestado, mas a
mente à letra do signo, fazendo-a prevalecer sobre o significado (in- que ela de fato manifestou. Ou seja, é preciso que o querido esteja na
terpretação literal) ou pode fazer prevalecer a coisa significada sobre manifestação; o que não foi manifestado não entra no universo ju-
o signo (intepretação segundo o "espírito")5". rídico. Assim, o simples propósito, que não se exteriorizou, de nada
Na esfera jurídica, temos a lei (ou o contrato) como signo; já a serve para o intérprete"5.
tarefa do jurista ou do julgador consiste em dar significado àquele ato Haverá diferença estrutural entre a interpretação de contratos de
de criação do Direito. Ou seja, conferir-lhe sentido, torná-lo claro, M&A e de operações societárias? Nos 2 (dois) casos existe um norte
para tanto utilizando os mais diversos métodos: gramatical; teleoló- comum: tornar claro qual o objetivo econômico das partes ao assina-
gico; sistemático; histórico; analógico e funcional. rem o contrato ou realizarem determinada operação societária, o que
Interpretar, no plano jurídico, consiste assim em tornar claro o desejavam alcançar, e se os meios jurídicos utilizados eram idôneos.
que está dito numa norma jurídica ou num contrato, sempre levan- Não creio que existem diferenças essenciais entre tais atividades,
do em consideração que tal ato de criação do direito insere-se num trata-se muito mais de uma questão de ênfase. Uma operação socie-
contexto maior, o do sistema legal. tária seguidamente envolve também a assinatura de contratos. Um
Tratando-se de contratos, a atividade do exegeta consiste em protocolo, documento necessário para uma operação de fusão, incor-
evidenciar o que as partes buscaram, de acordo com o que disseram poração ou cisão, após sua aprovação pela assembleia geral, torna-se
e fizeram. O intérprete coloca-se na posição de uma pessoa razoá- um contrato, vinculando as sociedades signatárias. E um contrato de
vel, com um conjunto de informações que se supõe eram detidas pe- compra de participação societária pode visar à posterior incorpora-
las partes antes de assinarem o contrato, objetivando concluir o que ção da sociedade cujo controle foi adquirido, o que já era desejado
aquele instrumento para elas significava"4. pelas partes.

555 PAULA FORGIONI. Contatos Empresariais - Teoria Geral e Aplicação. 7a


552 NORBERTO BOBBIO. O Positivismo Jurídico - Lições de Filosofia do Direito. edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p. 263-264; conforme comentou
5a0 rauio: icone toitora, 1999, p. 212.
Richard Calnan, "Declarations of subjective intention are not admissible in
553 NORBERTO BOBBIO.OPositivismoJuridico-liçõesde FilosofiadoDireito..., p.213. interpreting a contract because they are irrelevant to the question to be decided
554 RICHARD CALNAN. Principies of Contractual Interpretation. 2a edição, New - what is the objective intention of the porfies?". Principies of Contractual
York: Oxford University Press, 2017, p.1-2. Interpretation..., p. 63.
336 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 337

Ademais, dependendo das sociedades envolvidas, como veremos mudança de seu tipo legal (transformação) ou mediante sua unificação,
556
em seguida, uma operação societária pode apresentar uma feição mais ou divisão e criação de novas sociedades (incorporação, fusão, cisão) .
contratual (quando envolvidas sociedades limitadas ou companhias Ainda que a Lei das S.A. regule cada uma das operações se-
fechadas) do que societária. paradamente, nada impede que as empresas envolvidas legitima-
Talvez o principal traço distintivo, entre nós, esteja no tratamen- mente realizem combinações de negócios com vistas a alcançar os
to legal: uma operação societária está regrada na Lei das S.A. ou no resultados desejados, inclusive mediante a utilização de outros ins-
Código Civil, em quase todas as suas feições, ainda que muitas das trumentos legais. Podem, por exemplo, combinar uma aquisição de
normas sejam dispositivas, e não cogentes. Já num contrato de aqui- participação acionária de controle seguida de incorporação da con-
sição de participação societária, embora sua moldura geral esteja pre- trolada, ou realizar uma incorporação em que parte do pagamento
vista no Código Civil — afinal trata-se de um contrato de compra e é feito em dinheiro e parte em ações da incorporadora, ou uma in-
venda — a maioria de suas cláusulas é "importada" do direito anglo- corporação seguida de cisão de uma das companhias, para proceder
-saxão. Isso demanda uma análise mais "por dentro" do contrato, de à venda de seu controle.
suas cláusulas, tal como redigidas pelas partes e buscando identificar Seguidas as normas da Lei das S.A., as sociedades têm liberdade
o seu objetivo negocial. para utilizarem os instrumentos legais da forma que entenderem mais
adequada, desde que o objetivo final da operação seja lícito.
Numa reorganização societária é possível produzir diversos atos
5.2. NAS OPERAÇÕES SOCIETÁRIAS
que a integrem, ligados por um nexo de continuidade, sucedendo-se
As operações de reorganização societária, aqui analisadas, apre- um ao outro, tendo em vista o resultado da operação.
sentam algumas particularidades, que as distinguem dos contratos de
Cabe ao julgador avaliar a operação como um todo, não poden-
compra de estabelecimento ou de participações societárias, embora
do cada etapa ser analisada de forma isolada, como se constituísse um
possam chegar a resultados semelhantes: a aquisição da "empresa-alvo'.
ato societário autônomo e independente, sem qualquer relação com
Diversamente dos contratos de M&A, que não estão discipli- as demais; cada parte é reciprocamente dependente das demais, pos-
nados como contratos típicos em nosso Código Civil, as operações to que nenhuma delas existiria isoladamente557 .
societárias estão (bem) reguladas na Lei das S.A. e (não tão bem) na
Parte Especial do Código Civil, em seu Livro II.
556 JOSÉ LUIZ BULHÕES PEDREIRA, "Reorganização". In: Alfredo Lamy Filho e
A Lei das S.A., em seu artigo 223, refere-se à incorporação, fusão José Luiz Bulhões Pedreira (Coord). Direito das Companhias. Rio de Janeiro:
e cisão, assim como à transformação (artigo 220) como "operações". A Forense, 2017, p. 1.259.
NELSON EIZIRIK. Lei das S.A. Comentada. v. IV, 3a edição, São Paulo: Quartier
expressão é utilizada para representar o conjunto de atos interligados, 557
Latin, p. 101; ver, a propósito, decisão do Colegiado da CVM proferida no
processos ou procedimentos que conduzem a um resultado determi- Processo Administrativo CVM n° RJ 2005/8293, Rel. Dir. Wladimir Castelo
Branco Castro, j. em 20.12.2005, na qual concluiu que a reorganização societária
nado. Tais operações constituem negócios jurídicos típicos, próprios constitui um negócio jurídico complexo, cujas várias etapas estão interligadas e
do Direito Societário, que visam a reorganizar sociedades, mediante a são indissociáveis, razão pela qual devem ser analisadas e compreendidas em
seu conjunto, no contexto da operação como um todo.
338 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL
NELSON EIZIRIK - 339

Claro, cada etapa deve ser lícita, mas a sua combinação, a for- considerada, do ponto de vista econômico, como um "bem público",
ma como se encadeia com as demais, depende da vontade das partes, que pode ser utilizado "de graça" pelas partes"8.
desde que o resultado não seja vedado em lei. Porém, a depender das sociedades envolvidas, o intérprete deve
A função econômica da operação é essencial para a sua correta identificar quais as normas cogentes e quais as normas dispositivas.
intepretação. São as partes que a escolhem, assim como são elas que Há algumas normas cogentes nas operações de incorporação, fu-
decidem qual o melhor formato jurídico para alcançá-la. Não cabe ao são, incorporação de ações e cisão, que devem ser seguidas pelas partes
julgador substituir-se às partes para dizer que o resultado visado não envolvidas, no caso das sociedades por ações. São consideradas co-
é o mais adequado para a situação financeira da sociedade, ou que ele gentes as normas que: definem o objeto da operação; regulam a con-
poderia ter sido alcançado de forma mais eficaz se os instrumentos vocação, instalação e deliberação da assembleia geral; disciplinam a
jurídicos utilizados fossem outros. manifestação da vontade social e a definição das condições do negó-
A decisão sobre tais aspectos compete aos empresários envolvi- cio em protocolo e sua apresentação à assembleia geral, acompanhada
dos, que têm mais experiência do que os encarregados de aplicar as da justificação; disciplinam a avaliação dos patrimônios líquidos que
normas ao caso. Ademais, eles sabem melhor como proceder visan- formam o capital; dispõem sobre a transferência dos patrimônios me-
do à maximização dos lucros que podem decorrer da operação, assim diante sucessão universal; conferem direito de retirada aos acionistas
como à minimização dos custos envolvidos. dissidentes; subordinam o negócio à prévia aprovação dos debentu-
Assim, por exemplo, se 2 (duas) companhias resolvem unir suas ristas; asseguram ao credor prejudicado ação para anular a operação;
atividades, escolherão livremente se o melhor caminho é uma aqui- e no caso de falência asseguram ao credor o direito de pedir a sepa-
sição de controle, incorporação, incorporação de ações ou mesmo ração dos patrimônios para serem os créditos pagos pelos bens das
fusão. Também escolherão qual sociedade comprará o controle da respectivas massas559.
outra, qual será a incorporadora e qual a incorporada, tendo em vis- Mas mesmo nas normas cogentes há alguma liberdade de ação
ta as vantagens fiscais envolvidas, custos da operação, eventual di- para as partes envolvidas. Veja-se o caso o do artigo 224 da Lei das
reito de recesso para os dissidentes, necessidade de autorização de S.A.560, que dispõe sobre as condições da operação que devem cons-
órgãos públicos etc.
558 JOHN ARMOUR, HENRY HANSMANN, REINER KRAAGMAN e MARIANA
Uma parte significativa das normas de direito societário apresen-
PARGENDLER,"What is Corporate Law". In: Reinier Kraakman, John Armour, Paul
ta natureza dispositiva. A lei oferece um modelo geral, um standard Davies, Luca Enriques, Henry Hansmann, Gerard Hertig, Klaus Hopt, Hideki
Kanda, Mariana Pargendler, Wolf-Georg Ringe, Edward Rock. The Anatomy of
contratual, que as partes podem adotar, total ou parcialmente. A van- Corporate Law: A Comparative and Functional Approach. 3a edição, New York:
tagem reconhecida de tal modelo é que ele minimiza os custos que as Oxford University Press, 2017, p.18 e seguintes.
559 JOSÉ LUIZ BULHÕES PEDREIRA, "Incorporação, Fusão e Cisão". In: Alfredo
partes teriam se tivessem que negociar cada relação que mantêm com Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira (Coord.). Direito das Companhias.
os acionistas e os stakeholders. Nesse sentido, a legislação societária é 2a edição, ..., p.1.265-1.266.
56o 'Art. 224. As condições da incorporação, fusão ou cisão com incorporação em
sociedade existente constarão de protocolofirmado pelos órgãos de administração
ou sócios das sociedades interessadas, que incluirá: I - o número, espécie e classe das
ações que serão atribuídas em substituição dos direitos de sócios que se extinguirão
340 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 341

tar do protocolo, estabelecendo em seu inciso VII, que ele também Já as normas relativas à proteção dos credores são cogentes, seja
pode prever "todas as demais condições a que estiver sujeita a operação". no caso das sociedades por ações, seja no caso das sociedades limi-
Da mesma forma, o artigo 225 da mesma lei confere liberdade aos tadas. Com efeito, o credor pode ter contratado com uma socieda-
órgãos da administração para explicarem, na Justificação da opera- de e, em decorrência de sua incorporação por outra, que a sucede em
ção, seus motivos, fins, interesse da companhia na sua realização, in- todos os direitos e obrigações, passar a ser credor da incorporadora.
formações sobre as ações que os acionistas preferenciais receberão, a Daí, por exemplo, a previsão legal do artigo 232 da Lei das S.A., nos
composição do capital social após a operação561. Na prática, aliás, o termos do qual na fusão ou na incorporação os credores anteriores à
protocolo e a justificação da operação são apresentados numa única operação poderão pleitear a sua anulaçãos63.
peça. São documentos obrigatórios, nas companhias, mas seu con- As normas de tutela dos acionistas minoritários também são, em
teúdo apresenta certa flexibilidade. princípio, cogentes, particularmente no caso das companhias abertas,
Na sociedade limitada sequer há necessidade de protocolo e jus- que apresentam uma feição mais institucional do que as fechadas ou
tificação, devendo os sócios simplesmente aprovarem "as bases da ope- as sociedades limitadas.
ração" (artigo 1.117 do Código Civil)562. A decisão pode ser tomada Tais normas legais e regulamentares dirigem-se principalmente
em assembleia geral ou em reunião dos sócios. Ou seja, os sócios po- à disciplina da divulgação de informações e a propiciar uma relação
dem ou não firmar protocolos e apresentar as justificativas da opera- de troca equitativa, na qual o minoritário tenha um tratamento igual
ção, diversamente do previsto nos artigos 224 e 225 da Lei das S.A., ao conferido ao acionista controlador. Com efeito, em tais operações,
bastando que a descrevam sumariamente. o minoritário, mesmo contra a sua vontade, pode ser "deslocado" para
outra sociedade, com uma política de dividendos menos atrativa, ou
cujas ações não são dotadas da mesma liquidez. Resta-lhe, quando
e os critérios utilizados para determinaras relações de substituição; II - os elementos
ativos e passivos queformarão cada parcela do patrimônio, no caso de cisão; III - os cabível, o direito de retirada.
critérios de avaliação do patrimônio líquido, a data a que será referida a avaliação,
e o tratamento das variações patrimoniais posteriores; IV - a solução a ser adotada
Boa parte das operações de incorporação, cisão e incorporação
quanto às ações ou quotas do capital de uma das sociedades possuídas por outra; de ações ocorrem após a aquisição do controle da sociedade-alvo. Em
V- o valor do capital das sociedades a serem criadas ou do aumento ou redução do
capital das sociedades que forem parte na operação; VI - o projeto ou projetos de tal situação, em que temos uma operação entre "partes relacionadas",
estatuto, ou de alterações estatutárias, que deverão ser aprovados para efetivar o o acionista controlador prevalece nas assembleias gerais da contro-
operação; VII -todas as demais condições a que estiversujeito a operação. Parágrafo
único. Os valores sujeitos a determinação serão indicados por estimativa." ladora e da controlada, justificando-se também a existência de nor-
561 "Art. 225. As operações de incorporação, fusão e cisão serão submetidas à mas legais, regulamentares e Pareceres de Orientação da CVM que
deliberação da assembleia-geral das companhias interessadas mediante
justificação, na qual serão expostos: I - os motivos ou fins da operação, e o interesse visam a impedi-lo de atuar em benefício próprio e em prejuízo dos
da companhia na sua realização; II - as ações que os acionistas preferenciais minoritários.
receberão e as razões para a modificação dos seus direitos, se prevista; III - a
composição, após a operação, segundo espécies e classes das ações, do capital das
companhias que deverão emitir ações em substituição às que se deverão extinguir;
IV- o valor de reembolso das ações a que terão direito os acionistas dissidentes." 563 'Art.232.Até6o(sessenta)diasdepoisdepublicadososatosrelativosá incorporaçãoou à
562 "Art. 1.177. A deliberação dos sócios da sociedade incorporada deverá aprovar as fusão, o credoranteriorporela prejudicado poderá pleitearjudicialmente a anulação
bases da operação e o projeto de reforma do ato constitutivo." da operação; findo o prazo, decairá do direito o credor que não o tiver exercido."
342 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 343

Já no caso das companhias fechadas e das sociedades limitadas, credores. Em tal situação, nos termos do artigo 264 da Lei das S.A.565,
nas quais não há investidores de mercado a serem protegidos, existem além da relação de troca prevista no protocolo, deveria ser feita outra,
situações em que as partes envolvidas resolvem eventuais situações "teórica", com base no valor de patrimônio liquido das 2 (duas) socie-
litigiosas mediante contratos, sem seguir os procedimentos estabele- dades a preços de mercado, com vistas à proteção dos minoritários e
cidos na Lei das S.A. ou do Código Civil. eventualmente a servir como base de cálculo do valor de reembolso para
O que prevalece em tais situações? os acionistas dissidentes. Diante da urgência de uma solução, e tendo
Veja-se, por exemplo, o chamado "acordo de cisão", relativamente em vista que tal avaliação adicional pode ser cara e demorada, os acio-
comum na prática dos negócios. Nele, alguns acionistas, antes de uma nistas minoritários da controlada, em instrumento escrito, renunciam
reorganização societária, celebram um acordo com o fim de vincu- a ela, declarando-se satisfeitos com a relação de troca estabelecida no
lar a vontade de seus signatários para que, por ocasião da assembleia protocolo. Poderiam depois eles pleitear a anulação da operação? Ou
geral, estejam obrigados a aprovar a operação previamente acordada. estariam, com tal procedimento, adotando comportamento contraditó-
Tal documento poderia ser considerado um protocolo e justifi- rio ("venire contra factum proprium") 566 e violando o princípio da boa-fé?
cativa da cisão, como exigido pelos artigos 224 e 225 da Lei das S.A., Em suma, há muitas situações, particularmente em companhias
ainda que não submetido à aprovação da assembleia geral dos acionis- fechadas e sociedades limitadas, em que soluções contratuais podem
tas? Já manifestei meu entendimento no sentido de que o ato definiti- prevalecer sobre as disposições legais. A natureza cogente de deter-
vo de aprovação de uma operação de reorganização societária somente minadas normas jurídicas, exceto se envolvidos direitos de credores
pode ocorrer na assembleia geral. Antes disso, a vontade expressada ou de acionistas minoritários de companhias abertas, deve ser vista
pelos acionistas, mesmo que em documento escrito, é sempre retratá- com cautela; há dispositivos legais que, em princípio, são cogentes,
vel, razão pela qual não cabe execução específica das obrigações pac- mas que podem, em atenção ao interesse de todos os sócios, não ser
tuadas em instrumento preliminar de incorporação, fusão ou cisão564. aplicados em determinadas situações. Cabe ao julgador a necessária
Mas, numa sociedade fechada, de 2 (dois) acionistas, que resolvem
encerrar disputas intermináveis, para tanto assinando um "contrato de 565 "Art. 264. Na incorporação, pela controladora, de companhia controlada, a
justificação, apresentada à assembleia geral da controlada, deverá conter, além
cisão" e nele regulando todos os aspectos da operação? Não seria even- das informações previstas nos arts. 224 e 225, 0 cálculo das relações de substituição
tualmente desnecessária a assembleia geral? Se um deles resolvesse vol- das ações dos acionistas não controladores da controlada com base no valor do
patrimônio líquido das ações da controladora e da controlada, avaliados os dois
tar atrás alegando a ineficácia do instrumento, pois a decisão deveria ser patrimônios segundo os mesmos critérios e na mesma data, a preços de mercado,
tomada em assembleia geral (de 2 (dois) acionistas!) não estaria violan- ou com base em outro critério aceito pela Comissão de Valores Mobiliários, no
caso de companhias abertas."
do o seu dever de boa fé e manifestando comportamento contraditório? 566 Na lição clássica de ANTONIO MANUEL DA ROCHA e MENEZES CORDEIRO,"a
locução 'venire contrafactum proprium'traduz o exercício de uma posição jurídica
Relato outro exemplo, que já presenciei. Numa companhia fecha- em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente.
da, em situação financeira dificil, a sociedade controladora decide incor- Esse exercício é tido, sem contestação por parte da doutrina, como inadmissível'.
(Da Boa Fé no Direito Civil. v. II, Coimbra: Livraria Almedina, 1984, p. 742 e
porá-la, com vistas a melhorar sua imagem no mercado e a acalmar os seguintes). No mesmo sentido, ver ANDERSON SCHREIBER. A proibição de
comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum
564 NELSON EIZIRIK. A lei das S/A Comentada. v. IV, ..., p.162-163.
proprium. 4a edição, São Paulo: Atlas, 2016, p. 86 e seguintes.
344 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 345

sensibilidade e experiência para concluir qual a melhor solução para 1° PRINCÍPIO — O OBJETIVO DA INTERPRETAÇÃO É VERIFICAR A
o caso, sopesando todos os interesses envolvidos. INTENÇÃO DAS PARTES, O QUE DEVE SER FEITO DE MANEIRA OBJETIVA

O artigo 112 do Código Civil dispõe que "nas declarações de von-


tade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido
5.3. NOS CONTRATOS DE AQUISIÇÃO DE PARTICIPAÇÕES
SOCIETÁRIAS
literal da linguagem".
Porém, conforme antes observado, a "vontade" a ser observada pelo
Com exceção do contrato de trespasse, disciplinado no Código
intérprete é aquela comum das partes, consubstanciada na declaração, e
Civil como aquisição de estabelecimento, os demais contratos de
não de uma delas, singularmente considerada e que não foi manifestada.
M&A, de aquisição de controle ou de participação societária mino-
ritária não têm regulação legal específica, estando dentro da moldura Se as partes se deram ao trabalho de escrever o contrato (e não
geral dos contratos de compra e venda, salvo no caso da aquisição do conheço negócio jurídico de aquisição de participação societária oral)
controle de companhia aberta mediante oferta pública, disciplinada o ponto de partida deve ser o texto. A razão é relativamente óbvia:
no artigo 257 da Lei das S.A.567. as partes colocaram seu contrato por escrito com vistas a deixar claro
aquilo que elas acordaram e esperam que o julgador confira o efeito
Como interpretar as cláusulas de contratos de aquisição de par-
que desejaram ao que escreveram.
ticipação societária, a maioria das quais vindas da prática dos negó-
cios em países que seguem o sistema anglo-saxão? Levado o princípio acima ao seu paroxismo, durante algum tem-
po prevaleceu no sistema obrigacional anglo-saxão a chamada "parol
Penso que podemos analisar a questão com base nos princípios
rule", muito discutida, mas pouco aplicada na prática, que significa o
gerais de interpretação dos contratos e verificar como devem ser apli-
seguinte: se as partes escreveram o que acordaram, os tribunais de-
cados aos de M&A.
vem tornar efetivo o acordo sem prestar atenção em quaisquer outras
É o que passo a expor, tomando, em boa parte, como base, a i
coisas que as partes possam ter dito ou feito569.
obra de Richard Calnan5", com relação aos princípios gerais de in-
Visando a tornar mais factível a aplicação do princípio do "parai
terpretação dos contratos, aceitos em boa parte das jurisdições, e
rufe", muitos contratos (inclusive de aquisição de participação socie-
acrescentando aqueles entre nós desenvolvidos e que devem ser apli- I
tária) vêm incluindo a chamada "entire agreement clause", que basica-
cados aos contratos de M&A.
mente diz o seguinte: o contrato constitui o acordo integral entre as
partes e consequentemente nenhum ajuste entre elas, oral ou por es-
crito, pode ser considerado como dele fazendo parte570.Tal não signi-
fica que o contexto em que o contrato foi negociado e assinado deva
ser ignorado, conforme mais adiante analisado.
567 "Art. 257 A oferta pública para aquisição de controle de companhia aberta
somente poderá ser feita com a participação de instituição financeira que garanta
o cumprimento das obrigações assumidas pelo ofertante."
568 RICHARD CALNAN. Principies of Contractual interpretation. 2a edição, New 569 RICHARD CALNAN. Principies of Contractual interpretation..., p 3o.
York: Oxford University Press, 2017. RICHARD CALNAN. Principies of Contractual interpretation..., p. 42.
570
Y
346 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 347

A referência à intenção comum das partes no artigo 112 do objeto aliás, de críticas acerbas, o mais das vezes procedentes573, dis-
Código Civil funciona como um "postulado normativo" de toda in- põe que a interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sen-
terpretação contratual. Ou seja, consiste, a intenção comum, num tido que "corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre
critério de aplicação de outras normas, princípios e regras. Ademais, a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racio-
serve para indicar a finalidade da exegese contratual, que é justamen- nalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no
te tornar clara a intenção comum das partes"i. momento de sua celebração".

Em contratos de M&A, normalmente objeto de longas discussões Ainda que o conceito de "razoável negociação das partes"possa en-
entre as partes, empresários ou sociedades empresárias, com o auxí- sejar distintas interpretações, dada a canhestra redação do dispositivo,
lio de seus advogados e assessores financeiros, a redação das cláusu- remete a uma intepretação sistemática do contrato, referindo-se, como
las constitui o resultado de tais procedimentos. Assim, a não ser que meio útil para interpretar o negócio, à sua racionalidade econômica574.
conduzam a conclusões absurdas, tais cláusulas devem ser respeitas Ou seja, deve o intérprete buscar qual o objetivo econômico bus-
pelo intérprete, tal como foram escritas. cado pelas partes quando realizaram aquele negócio, do qual o contrato
O princípio refere-se não apenas à vontade declarada no contra- constitui a roupagem, o instrumento que o insere no mundo jurídico.
to, mas também ao seu comportamento durante o processo de nego- 2° PRINCÍPIO — OS CONTRATOS DEVEM SER INTERPRETADOS
ciação e após a sua conclusão. A vontade pode ter sido declarada em DE ACORDO COM O POSTULADO DA BOA-FÉ OBJETIVA

vários instrumentos, notadamente em negócios complexos como são A boa-fé subjetiva é aquela relacionada a um convencimento pes-
os de M&A, cuja leitura auxilia o intérprete a verificar qual a vontade soal da parte de estar atuando conforme o direito. De uso comum em
comum das partes. Além do contrato, muito seguidamente as partes questões possessórias, deve o intérprete, para a sua aplicação, considerar
assinam um memorando de entendimento, trocam mensagens pedin-
racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no
do e fornecendo informações, redigindo atas de reuniões etc. Assim,
momento de sua celebração."
é comum, em procedimentos arbitrais, que a decisão também leve em 573 Nesse sentido, ver: GUSTAVO TEPEDI NO, "Notas sobre as alterações
promovidas pela Lei 13.874/2.019 nos artigos 5o, 113 e 421 do Código Civil".
conta as mensagens trocadas entre as partes, no curso da negociação,
In: Luis Felipe Salomão, Ricardo Villas Bôas Cueva e Ana Frazão (Coord.). Lei
bem como os depoimentos a respeito delas. da Liberdade Econômica e seus impactos no Direito Brasileiro. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2020, p. 500 e seguintes; A Exposição de
O artigo 113, § 1., inciso V, do Código Civil572, introduzido Motivos da Medida Provisória n° 881/2.019 evidencia o "ultraliberalismo" da
pela Lei n° 13.874/2019 (chamada "Lei da Liberdade Econômica"), Lei 13.874/2.01 ao destacar que o objetivo da MP é "(...) empoderar o Particular
e expandir sua proteção contra a intervenção estatal (...)" e "[estabelecer] uma
571 proteção que se consolida em um rol de 'direitos dos brasileiros contra um Estado
GUILHERME CARNEIRO MONTEIRO NITSCHKE, "Comentário ao artigo 113 §§
irracionalmente controlador--; Ver, a propósito da feição "ultraliberal" da MP 881:
1° e 2° do Código Civil: A intepretação contratual a partir da Lei da Liberdade
GUILHERME CARNEIRO MONTEIRO NITSCHKE, "Comentário ao artigo 113 §§
Econômica". In: Judith Martins-Costa e Guilherme Carneiro Monteiro Nitschke
(Org.). Direito Privado na Lei da Liberdade Econômica - Comentários. 1a 1° e 2° do Código Civil: A intepretação contratual a partir da Lei da Liberdade
Econômica". In: Judith Martins-Costa e Guilherme Carneiro Monteiro Nitschke
edição, São Paulo: Almedina Brasil, 2022, p. 327.
(Org.). Direito Privado na Lei da Liberdade Econômica - Comentários. 1a
572 "Art. 173. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa fé e os
edição, São Paulo: Almedina Brasil, 2022, p. 277 e seguintes.
usos do lugar de sua celebração. § 1° A interpretação do negócio jurídico deve lhe
atribuir o sentido que: (...) V - correspondera qual seria a razoável negociação das 574 JOSÉ ROBERTO CASTRO NEVES. Teoria Geral dos Contratos. Rio de Janeiro:
partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da GZ Editora, 2021, p. 282.
348 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 349

a intenção do sujeito, a sua convicção íntima. Já a boa-fé objetiva está pressamente especificadas pelas partes no instrumento contratual576.
ligada aos standards de comportamento esperados do homem ativo Com efeito, além dos deveres de prestar, há deveres laterais de con-
qt
e probo. É a que assume relevância para a interpretação dos contra- duta (como de proteção, cooperação, informação), que normalmente
tos comerciais, na medida em que permite a objetivação e um me- são vistos como decorrentes do princípio da boa-fé objetivas'''.
lhor cálculo da conduta esperada da outra parte, aumentando o grau Nos contratos de M&A tal função integrativa é de suma im-
de previsibilidade no mercado575. portância, uma vez que há deveres de conduta essenciais para que
Entre nós, o princípio da boa-fé objetiva está positivado no or- as partes alcancem os objetivos desejados, tanto na fase pré-contra-
denamento jurídico. Com efeito, o artigo 113 do Código Civil dispõe tual, como na pós-contratual, como são, por exemplo os de prestar
que "os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-, . No informações verdadeiras, e de colaborar para que o contrato atin-
seu § 1°, inciso III, diz que a interpretação do negócio jurídico deve ja sua finalidade.
lhe atribuir o sentido que corresponder à boa-fé. 3° PRINCÍPIO — OS CONTRATOS DEVEM SER INTERPRETADOS COMO UM TODO
No mesmo sentido, o artigo 422 estabelece literalmente que "os
Constitui um princípio de interpretação universalmente aceito
contratantes são obrigados aguardar, assim na conclusão do contrato, como
o de que o contrato constitui um "todo", devendo ser analisado pelo
em sua execução, os princípios de probidade e boa-fr .Já o artigo 3°, inciso
julgador em sua integralidade. Com efeito, não se pode admitir que
V, da Lei n° 13.874/2019, dispõe que constitui direito de toda pessoa,
cada uma das partes está de acordo apenas com determinadas cláu-
natural ou jurídica, gozar de presunção de boa-fé nos atos praticados
sulas do contrato. A obrigações são assumidas voluntariamente na
no exercício da atividade econômica, entre os quais, evidentemente,
medida em que decorrem do conjunto das regras contidas no instru-
incluem-se os contratos.
mento contratuals78.
Em primeiro lugar, a boa-fé em matéria geral de contratos
Assim, deve prevalecer uma interpretação sistemática do contra-
(como também nos de M&A), não desempenha apenas uma fun-
to, devendo o intérprete, em sua atividade de deixar clara a intenção
ção moral, mas incentiva a atuação leal das partes. Com efeito, cada
uma delas pode presumir, legitimamente, que a outra está atuan-
do de boa-fé, o que reforça a confiança de que as obrigações con- 576 JUDITH MARTINS-COSTA. A Boa-Fé no Direito Privado. São Paulo: Marcial
Pons, 2015, p. 513.
tratuais serão cumpridas.
577 FRANCISCO PAULO DE CRESCENZO MARINO, "Interpretação e Integração
A presunção de que a outra parte está agindo de boa-fé é ainda dos Contratos". In: Gilberto Haddad Jabur e Antonio Jorge Pereira Junior (Org.).
Direito dos Contratos. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 76.
mais forte quando se trata de aquisição de participação societária por 578 RICHARD CALNAN. Principies of Contractual interpretation..., p. 35-36.
parte de quem já é sócio, posto que necessariamente presente, no caso, Cita, a propósito, um interessante trecho de uma decisão da Suprema Corte
da Austrália, que diz o seguinte: "Of course the Whole of the instrument has to
o dever de lealdade entre os integrantes de uma mesma sociedade. be considered, since the meaning of any one part of it may be revealed by Other
Ademais, o princípio da boa-fé tem uma função integrativa, ser- parts, and the words of evety clause must if possible be construed as to render
them ali harmonious one with another". O artigo 4.5 do "Unidroit Principies of
vindo para identificar outros deveres e proibições que não estão ex- International Commercial Contracts" (edição de 2010) dispõe que: "Contract
terms shail be interpreted so as to give effect to ali terms rather than do deprive
575 PAULA FORGIONI. Contatos Empresariais - Teoria Geral e Aplicação..., p. 267. some of them ofeffect".
350 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 351

comum declarada pelas partes, visualizá-lo como um todo, presumin- As regras de interpretação das partes — que constituem moda-
do, em princípio, a inexistência de contradições. lidade de "intepretação autêntica" — deverão prevalecer sobre as de-
Um ordenamento jurídico aspira a ser sistemático e completo. Ou mais, posto que constituem manifestação de sua livre vontade comum.
seja, uma unidade sistemática, uma totalidade ordenada, um conjun- Na ausência de regras de interpretação estabelecidas pelas par-
to de regras entre as quais existe uma certa ordem e hierarquia, sem tes há alguns princípios que podem ser aplicados diante de cláusu-
antinomias ou lacunas, o que, na prática, é inexequíveis". las contraditórias.
(bando é impossível a aplicação de 2 (duas) regras ao mesmo Inicialmente, quando há antinomia entre uma cláusula geral e
caso, posto que cada uma dispõe num sentido contrário, estamos dian- uma especial em princípio prevalece a especial, da mesma forma que
te de uma antinomia (ou contradição). É o que ocorre, por exemplo, ocorre na interpretação das normas que integram determinado sis-
quando uma norma proíbe um comportamento e outra o permite. Há tema jurídico.
lacuna quando o ordenamento jurídico (ou o contrato) não prevê como Assim, por exemplo, um contrato pode conter uma cláusula geral
será resolvida determinada situação, cabendo ao intérprete fazê-lo. sobre indenização e outras que se referem a infrações específicas. Em
Daí a necessidade de princípios de interpretação para resolver os princípio, lendo o documento como um todo, o julgador tenderá a inter-
casos de normas contraditórias e de lacunas. Por ora, trataremos da pretar a cláusula genérica de maneira a que ela não seja aplicada às ques-
questão das antinomias, deixando o problema das lacunas para um tões para as quais o contrato prevê cláusulas especiais de indenização"°.
dos próximos tópicos. Em contratos de M&A utiliza-se muito seguidamente termos
As partes, quando contratam, desejam elaborar um documento técnico-contábeis, normalmente para alocação de riscos e respon-
que seja completo e sistemático, em que tudo esteja previsto e não sabilidades, como "endividamento líquido", "endividamento bruto",
existam cláusulas contraditórias. "Capex" etc.
Porém, a inexistência de contradições e de lacunas num contra- Pode haver contradição entre o termo técnico utilizado pelas par-
to, da mesma forma que ocorre em determinado sistema jurídico, é tes no "glossário", quase sempre presente nos contratos de aquisição
algo ideal, quase impossível na prática. Daí a necessidade de regras de de participação societária, e seu significado na prática do mercado. Ao
interpretação visando a conferir um caráter sistemático ao contrato. se apropriarem de determinado termo técnico (contábil, por exem-
Os contratantes podem estabelecer regras de interpretação, de plo) e fixarem o seu sentido no contrato, as partes operam uma redu-
acordo com o artigo 113, § 2°, do Código Civil, nos termos do qual ção de sua amplitude semântica, elegendo um sentido individual, o
qual deve prevalecer, ainda que não seja o mais usual no mercado, em
"as partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preen-
chimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daque- respeito aos termos do contrato e ao artigo 112 do Código Civil581.
las previstas em lei". Ç80 RICHARD CAI NAN PrinrinIpc nf Cnntrnetital Intprnrotntinn n "3

581 FRANCISCO PAULO DE CRESCENZO MARINO, "A interpretação dos


negócios jurídicos celebrados no contexto de urna compra e venda de
579 NORBERTO BOBBIO. Teoria do Ordenamento Jurídico. loa edição, Brasília: participação societária e a responsabilidade limitada de um dos alienantes
Editora UNB, p. 71 e seguintes. pelas consequências pecuniárias do ajuste de preço pactuado". In: Carlos
352 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 353

Os contratos de M&A seguidamente contêm termos do chama- cláusulas de "earn ou,' condicionadas à lucratividade futura, para im-
do "jargão jurídico", os quais não são objeto de definição no instru- pedir que o comprador dele afaste-se com vistas a reduzir os lucros
mento contratual. Presume-se que as partes, ao usarem tais termos, o e, portanto, não pagar o preço restante. Ora, ao comprar a participa-
estão fazendo tendo em vista o seu sentido técnico-jurídico. Assim, ção societária ou o estabelecimento, o adquirente pode objetivar uma
por exemplo, se as partes citam no contrato o "usufruto de ações", não mudança na forma como a administração anterior conduzia a em-
se pode entender que elas tinham como objetivo um "empréstimo de presa. Qual a natureza das modificações que pode implementar sem
ações". Da mesma forma, se pactuam que a sociedade cujo controle infringir a cláusula?
é adquirido será posteriormente incorporada pela adquirente, não se A interpretação dos termos do contrato pode não ser suficien-
pode interpretar a cláusula como tratando de uma fusão ou de uma te para chegar-se a uma solução razoável, sendo necessário examinar
incorporação de ações, operações que podem levar a consequências o contexto em que o contrato foi firmado, o que nos remete ao pró-
diversas da constante no contrato. ximo princípio.
É possível que uma mesma cláusula apresente 2 (dois) sentidos, 4° PRINCÍPIO — OS CONTRATOS DEVEM SER LIDOS TENDO EM VISTA O
uma das hipóteses em que se deve privilegiar o contrato como um CONTEXTO EM QUE FORAM NEGOCIADOS E FIRMADOS
todo, analisando qual a sua finalidade, a sua função econômica.
Os contratos não são firmados no espaço vazio, mas dentro de
Assim, uma cláusula que tiver 2 (dois) sentidos deve ser inter- um contexto determinado. Assim, é necessário ler as cláusulas do con-
pretada de modo a que produza algum efeito. Pode-se presumir que trato não só como um todo, mas tendo em vista as circunstâncias que
as partes, quando acordaram no negócio jurídico, tenham previsto as formam o seu "background'.
disposições para que produzam um efeito prático, sendo esta a inter-
O princípio é de particular importância em contratos de M&A,
pretação a ser adotada pelo julgadors".
que são negociados e firmados num ambiente determinado. Assim,
As cláusulas podem apresentar uma hierarquia, algumas ten- deve-se indagar como foram realizadas as negociações que precede-
do maior relevância que as outras. Há muitos contratos — princi- ram a assinatura do contrato, assim como o comportamento poste-
palmente no direito anglo-saxão — que são baseados em termos rior das partes.
"standard"; em caso de conflito entre uma cláusula de tal nature-
O exame das negociações é mais relevante do que o comporta-
za e outra incluída pelas partes e redigida de forma diversa, a úl-
mento posterior das partes em contratos de aquisição de participações
tima prevalecerám.
societárias. O primeiro envolve identificar como se deram as conver-
Muitas vezes as cláusulas contêm expressões amplas, não neces- sas que precederam a assinatura do contrato, em que pontos as par-
sariamente ambíguas, mas dotadas de certa vaguidade. É o caso, por tes cederam ou foram inflexíveis, para saber o que realmente estavam
exemplo, de "curso normal dos negócios", seguidamente presente em buscando com tal transação.
Portugal Gouvêa, Mariana PARGENDLER e Mauricio Levi-Minzi (Org.). Fusões e O artigo 113, § 1., inciso II, do Código Civil dispõe que a in-
Organizações - Pareceres. São Paulo: Almedina, 2022, p. 91.
582 JOSÉ ROBERTO CASTRO NEVES. Teoria Geral dos Contratos..., p. 289.
terpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que for
583 RICHARD CALNAN. Principies of Contractual Interpretation..., p. 42.
354 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EtzIRIK - 355

confirmado pelo comportamento das partes após a celebração do ne- ções, que se tratava de um investidor ativo no mercado de capitais,
gócio5$4. A atuação das partes após a conclusão do negócio, em mer- "disparando" quase diariamente várias ordens de compra e venda
cados altamente dinâmicos, como o de aquisição de empresas, pode de ações. No caso, o conhecimento das características de uma das
ser menos relevante, uma vez que o adquirente, muitas vezes, subs- partes foi decisivo para se chegar à decisão de que não houvera
titui os administradores e imprime novas modalidades de gestão, vi- ato ilegal da corretora.
sando à maximização dos lucros do negócio. A natureza e os objetivos da operação são essenciais para que se
Por outro lado, há limites a respeito da extensão da pesquisa identifique o que é mais importante para as partes, de sorte que even-
sobre contexto que deve ser realizada pelos julgadores, que decor- tuais infrações a deveres laterais de conduta, que não prejudicaram as
rem de 3 (três) imperativos em matéria contratual: a necessidade prestações principais, podem ser relevadas pelo intérprete.
de certeza nas relações comerciais, que privilegia o texto escrito; A investigação sobre o ambiente de mercado é importante para
a importância de se reduzir o tempo e os recursos despendidos identificar-se como estão se comportando as empresas que nele atuam
para se chegar a uma decisão; e a proteção de terceiros, que po- quando o contrato é negociado. Nesse sentido, o artigo 113, caput, e
dem ser afetados pelo conteúdo do contrato e que o tomaram em § 1., inciso II, dispõe que os negócios jurídicos devem ser entendi-
sua acepção literal'". dos conforme os usos do lugar de sua celebração, devendo sua inter-
Assim, pesando os prós e contras de uma investigação sobre pretação lhes atribuir o sentido que corresponder aos usos, costumes
o contexto, ela pode limitar-se aos seguintes fatores: as caracte- e práticas do mercado relativos ao tipo de negócio.
rísticas das partes; a natureza e os objetivo da transação; o mo- Os usos e costumes podem ser elementos importantes para a iden-
mento do mercado em que o negócio foi feito; o mercado em que tificação da função econômica e da natureza do negócio, bem como para
atua a empresa-alvo. compreender o significado da linguagem empregada no contratos".
Menciono um caso hipotético em que uma das partes esta- Com efeito, os termos utilizados em contratos de aquisição de
va adquirindo o controle de uma sociedade corretora de valores participação societária, muitos dos quais oriundos da prática norte-a-
mobiliários, da qual era cliente, quando, após assinar o contrato mericana, são empregados comumente pelos empresários, assessores
de compra e venda, tentou, em procedimento arbitral, desfazer o financeiros e advogados, devendo o intérprete, em princípio, respei-
negócio ou reduzir o preço pago, pois a vendedora teria praticado tar o sentido que lhes é conferido por tais agentes.
"churning" com as ações de que era titular, causando-lhe prejuí- Há algumas indagações práticas que devem ser feitas: o setor
zo"6. Na oitiva do requerente, ficou claro, a partir de suas declara- está em crise? quais são suas perspectivas futuras, tendo em vista a
584 "Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa fé e os de compras e vendas de ações unicamente para gerar comissões de corretagem.
usos do lugar de sua celebração. § 1° A interpretação do negócio jurídico deve Nos termos da Resolução CVM n° 62/2022, considera-se prática não equitativa
lhe atribuir o sentido que: (...) ll - corresponder aos usos, costumes e práticas do "aquela de que resulte, direta ou indiretamente, efetiva ou potencialmente, um
mercado relativas ao tipo de negócio;" tratamento para qualquer das partes, em negociações com valores mobiliários,
585 RICHARD CALNAN. Principies of Contractual I nterpretation..., p. 76. que a coloque em uma indevida posição de desequilíbrio ou desigualdade em face
586 Trata-se, o "churning", de operação vedada, tida como prática não equitativa dos demais participantes da operação".
pela regulamentação da CUM, e consistente na realização de número excessivo 587 PAULA FORGIONI. Contatos Empresariais - Teoria Geral e Aplicação..., p. 269.
356 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 357

economia nacional e internacional? os produtos da empresa-alvo são Da mesma forma que o ordenamento jurídico, o contrato, como
atrativos ou já estão se tornando obsoletos? qual o nível de competi- norma secundária "que faz lei entre as partes", aspira não só à unida-
ção entre as empresas que atuam no mercado? de e à coerência, como também à completude.
Também deve-se identificar quais são as práticas vigentes no Por completude entende-se a propriedade pela qual um orde-
mercado em que atua a empresa adquirida no momento do negócio. namento jurídico dispõe de uma norma para regular qualquer caso.
Trata-se de questão relevante, por exemplo, quando cabe analisar se Uma vez que a falta de uma norma se chama "lacuna", a completu-
está sendo seguido o "curso normal dos negócios". de significa a falta de lacunas. Assim, um ordenamento é completo
Num determinado caso, discutia-se se os descontos dados pelo quando o juiz pode nele encontrar uma norma para regular qualquer
novo acionista controlador para alguns clientes estratégicos signifi- caso que lhe é submetido; ou melhor, não há caso que não possa ser
cavam afastar-se do "curso normal dos negócios". A análise do mer- resolvido por uma norma do sistema jurídico589.
cado, naquele momento, revelou que a companhia cujo controle fora Há lacunas próprias e impróprias. A primeira — que aqui nos interes-
adquirido, de praticamente monopolista, estava em vias de sofrer uma sa — é aquela dentro do sistema jurídico (ou do contrato). Já a segunda é a
forte concorrência, o que justificava os descontos, como estratégia do que deriva da comparação do sistema (ou do contrato) real com um ideal.
novo controlador para manter os clientes. Como preencher as lacunas? Os métodos mais utilizados são a
5° PRINCÍPIO - OS CONTRATOS DEVEM SER INTERPRETADOS autointegração e a heterointegração"°.
CONFORME O ORDENAMENTO JURÍDICO O primeira (autointegração) consiste no emprego da analogia, me-
Da mesma forma que cabe ao intérprete analisar o contexto econô- diante a qual se verifica como o ordenamento jurídico (ou o contrato)
mico em que o contrato foi negociado e firmado, cumpre-lhe verificar trata de situações semelhantes. Assim, por exemplo, se o contrato prevê
se o instrumento é conforme ao ordenamento jurídico em que se insere. uma multa para o atraso do vendedor em prestar uma informação so-
Com efeito, não se admite uma leitura do contrato que imponha bre determinada licença, indispensável para a conclusão do negócio, e
a uma das partes prestações contrárias à lei e ao interesse social. Por não prevê multa para o comprador comprovar sua situação financeira,
exemplo, não faz sentido defender-se uma interpretação que impeça poder-se-ia cogitar da aplicação do tratamento analógico, pois a con-
uma pessoa de alugar o seu imóvel, sem que isso traga qualquer pro- clusão do negócio depende igualmente dos 2 (dois) comportamentos.
veito para ninguém5". Já a heterointegração consiste em recorrer a elementos externos. No
Trata-se de princípio importante pois visa a integrar o contrato caso do sistema jurídico, aos princípios gerais do direito ou à equidade.
ao ordenamento jurídico, sendo de manifesta utilidade no caso das No caso dos contratos recorre-se ao sistema jurídico obrigacional
lacunas contratuais. vigente, que consagra, como principais métodos de preenchimento das

589 NORBERTO BOBBIO. Teoria do Ordenamento Jurídico..., p. 115. Sobre as


diferentes modalidades de lacunas, ver: CHAÏM PERELMAN. LogiqueJuridique.
Nouvelle Rhétorique. Paris: DalIoz, 1979, p. 47 e seguintes.
588 JOSÉ ROBERTO CASTRO NEVES. Teoria Geral dos Contratos..., p. 288. NORBERTO BOBBIO. Teoria do Ordenamento Jurídico..., p.146.
590
358 - M&A - REGIME SOCIETÁRIO E CONTRATUAL NELSON EIZIRIK - 359

lacunas, os usos e costumes (artigo 113 do Código Civil) e o princípio contratos consumeristas, o julgador deve intervir no menor grau pos-
da boa-fé objetiva (artigo 422 do Código Civil), ambos constituin- sível nos contratos comerciais593.
do instrumentos de integração do contrato ao ordenamento jurídico. No mesmo sentido, o artigo 421-A, inciso II, estabelece que a
Conforme já mencionado algumas vezes na presente obra, a boa-fé alocação dos riscos definida pelas partes, em contratos paritários e si-
objetiva, em contratos complexos, como os de M&A, cria para as partes métricos, deve ser respeitada e observadas". Caso a alocação dos riscos
os chamados deveres laterais atuando como fonte de integração do con- entre as partes não violar normas jurídicas, deve prevalecer na inter-
teúdo contratual, independentemente de sua regulação pelas partes591. pretação dos contratos comerciais, especialmente naqueles de maior
Na prática, podem surgir dúvidas se de fato há uma lacuna no complexidade, como são os de M&A.
contrato ou se as partes resolveram não regular certos aspectos de Os contratos paritários e simétricos (as expressões parecem ser utili-
sua relação obrigacional. É importante, em tais casos, ouvir quem de zadas, na má dicção do dispositivo, como sinônimas) constituem antípo-
fato participou nas negociações para se concluir se há lacuna ou sim- das de contratos de consumo e podem ser tidos como aqueles nos quais a
plesmente o desejo das partes de não prever determinadas cláusulas. liberdade de contratar é exercida de modo equivalente entre as partes, por
não estar presente uma relação de consumo ou um contrato de adesão595.
6° PRINCÍPIO — O INTÉRPRETE DEVE RESISTIR À TENTAÇÃO DE
"REESCREVER" OS CONTRATOS" Apesar da má redação de tais dispositivos, devem eles ser apli-
cados aos contratos de M&A, que claramente não são consumeristas
Os contratos M&A usualmente são precedidos de intensas nego-
nem de adesão. Ademais, pode-se presumir que as partes têm o mes-
ciações, nas quais participam os empresários, seus assessores jurídicos
mo poder de barganha na sua negociação e redação, nenhuma delas,
e financeiros. Sua redação é objeto de infindáveis reuniões (principal-
em princípio, necessitando de proteção por parte do julgador.
mente entre os advogados), de sorte que os julgadores devem, com
todas as suas forças, resistir à tentação de "reescrevê-los".
Trata-se, aliás, de um "mantra" entre árbitros experientes; quase
sempre há um momento, nas reuniões para decidir o caso, em que um
deles diz: "não estamos aqui para reescrever o que as partes escreveram".
O princípio está de certa forma positivado em alguns dispo-
593 "Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do
sitivos de nossa ordem jurídica, após a edição da chamada "Lei da contrato. Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o
Liberdade Econômica". princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual."
594 "Art. 42,-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até
O parágrafo único do artigo 421 do Código Civil dispõe que nas a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção,
ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que:
relações privadas prevalecerá o princípio da intervenção mínima, cujo (...) II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada;".
principal objetivo é deixar claro que, diversamente do que ocorre nos 595 FRANCISCO PAULO DE CRESCENZO MARINO, "Comentários ao artigo
421-A do Código Civil: presunção de paridade e simetria em contratos civis
591 JUDITH MARTINS COSTA. A Boa-Fé no Direito Privado. São Paulo, Marcial e empresariais". In: Judith Martins-Costa e Guilherme Carneiro Monteiro
Pons, 2015, p. 44o. Nitschke (Coord.). Direito Privado da Liberdade Econômica: comentários.
592 RICHARD CALNAN. Principies of Contractual Interpretation..., p. 144. São Paulo: Almedina, 2022, p. 521 e seguintes.
Este livro foi composto em fonte A Caslon Pro regular
11/14 e impresso em papel pólen 80 g/mi

Você também pode gostar