Revista Tempos Históricos • Vol. 25, n.
1 (2021) • e-ISSN: 1983-1463
194
DOI: https://doi.org/10.36449/rth.v25i1.24331
CIDADE E JOGO SOCIAL: A ATUAÇÃO DE
FUNCIONÁRIOS DA INTENDÊNCIA DE NATAL NA
GESTÃO E NO USO DO PATRIMÔNIO FUNDIÁRIO (1903-
1919)
CITY AND SOCIAL GAME: THE ACTUATION OF THE MUNICIPAL
OFFICIALS OF THE NATAL INTENDENCE IN THE MANAGEMENT
AND USE OF THE LANDED PATRIMONY (1903-1919)
Gabriela Fernandes de Siqueira1
RESUMO: Este trabalho tem como objetivo investigar o processo de
apropriação e uso do patrimônio fundiário natalense associando-o à atuação da
Intendência Municipal no início do século XX. Constatou-se que funcionários
da Intendência utilizavam suas posições privilegiadas para beneficiar-se da
política de concessão de terras, aforando grandes lotes, pagando foros
inexpressivos, alienando terras por quantias não significativas do ponto de vista
do capital econômico, fortalecendo os vínculos com as redes de poder e
configurando um mercado pessoal que envolvia a transação de diferentes tipos
de capitais. Foram utilizados como fontes os jornais A Republica e Diário do
Natal, leis e decretos estaduais, relatórios de intendentes, resoluções
municipais, inventários, cartas de aforamento e dicionários biográficos.
PALAVRAS-CHAVE: Intendência, Aforamento, Mercado de terras
ABSTRACT: This work aims to investigate the process of appropriation and
use of landed patrimony natalense associating it to the action of the Municipal
Intendance at the beginning of the twentieth century. It was found that officials
of the Intendance used their privileged positions to benefit from the policy of
granting land, taking large lots, paying inexpressive foros, alienating lands for
amounts not significant from the point of view of economic capital,
strengthening ties with networks of power, setting up a personal market that
involved the transaction of different types of capital. The newspapers A
Republica and Diário do Natal, state laws and decrees, quartermaster reports,
* O artigo é parte da tese de doutorado defendida na Universidade Federal do Ceará (UFC),
financiada pela Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(FUNCAP). http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/44119
1
Doutora em História pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e professora de História do
Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN), campus Currais Novos. E-mail:
[email protected].
SIQUEIRA, G. F. 195
municipal resolutions, inventories, aforamento letters and biographical
dictionaries were used as sources.
KEYWORDS: Intendancy, Aforamento, Land market
A implementação do governo republicano promoveu uma mudança na
forma de atuação das redes de parentela que dominavam a política. O domínio
da esfera estadual significava o controle de verbas que poderiam ser
empregadas diretamente nas áreas de influência de quem controlasse essa esfera
de poder, realidade diferente da existente no período imperial. Os estados
passaram a ter mais liberdade, a receita de exportação pôde ser revertida para as
próprias unidades federativas, e as representações políticas tornaram-se mais
autônomas.
Essa autonomia favorecida pelo federalismo permitiu o fortalecimento
do que Edgar Carone denominou de “governos oligárquicos”, nos quais a
máquina governamental era controlada por um partido dominante,
representando o predomínio de determinadas famílias (CARONE, 1977:10). No
governo republicano, a pressão da ideologia liberal e democrática não quebrou
a estrutura patrimonialista existente no país, em que o poder público se
confundia constantemente com o privado (FAORO, 1975: 631-734).
Para José Murilo de Carvalho, apesar de ter sido estabelecido sem a
ação da iniciativa popular, o governo republicano despertou entusiasmos em
relação às novas possibilidades de atuação desse grupo. A República era
representada como regime da igualdade, da liberdade, da participação do povo.
Contudo, essa expectativa inicial foi sendo paulatinamente frustrada. A
implantação do sistema oligárquico abriu espaço para “os arranjos
particularistas, para as barganhas pessoais, para o tribofe, para a corrupção”
(CARVALHO, 2015: 37-38). Para Carvalho, o Estado republicano seria mais
liberal do que o imperial, “embora não mais democrático, pois a maior
representatividade da elite faria com que a dominação social se refletisse com
mais crueza na esfera política” (CARVALHO, 2015: 235).
Trabalhos recentes, como o de Maria Efigênia Lage de Resende,
também destacaram as limitações do advento da República no Brasil. De acordo
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FUNDIÁRIO (1903-1919)
com a autora, a ideia de priorizar o interesse coletivo não foi colocada em
prática na íntegra pelo governo republicano, que se tornou um sistema baseado
na dominação de uma minoria, e na exclusão de grande parte da população do
processo de participação política (RESENDE, 2014: 91). Para Resende, a
grande inovação da primeira Carta Constitucional republicana foi o
federalismo, que concedeu aos estados uma enorme soma de poder. As
unidades federativas passaram a ter a propriedade de suas minas e terras
devolutas, a poder cobrar impostos interestaduais, contrair empréstimos no
exterior, decretar impostos de exportação, elaborar sistema eleitoral e judiciário
particulares, organizar força militar, entre outras ações (RESENDE, 2014: 94).
Contudo, o liberalismo presente nessa Carta Constitucional foi conservador,
limitado, restritivo.
Para os autores mencionados, o governo republicano não foi
caracterizado apenas por mudanças. Muitas promessas do tempo da propaganda
foram, após a conquista do poder, diluídas. O patrimonialismo, a confusão entre
poder público e privado, também foi, segundo esses autores, uma constante,
reforçado pelo coronelismo e pela política oligárquica predominante nos
estados brasileiros.
Pesquisas recentes como as de Surama Pinto (2011), Marieta de Moraes
Ferreira (2017), José Alencar (2016), Cláudia Viscardi (2016), Vitor Fonseca
(2016), Paolo Ricci (2016), Jaqueline Zuline (2016), entre outras, têm indicado
que a pretensa estabilidade conseguida ao longo da Primeira República via
“política dos governadores” ou “política dos estados” e outros mecanismos, não
neutralizou de forma definitiva os grupos oligárquicos nos estados. Ao
analisarem a importância da competição política, da representação e do papel
dos partidos e do voto, esses autores demonstraram como o período da Primeira
República deve ser trabalhado de forma complexa, indo além da “caricatura de
um sistema político marcado por fraude, violência, clientelismo, ausência de
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SIQUEIRA, G. F. 197
direitos e eternização de oligarquias no poder” (FERREIRA; PINTO, 2017:
17)2.
No Rio Grande do Norte foi possível observar a repercussão dessas
mudanças e continuidades com o governo republicano. Foi nesse período que a
rede de parentela Albuquerque Maranhão assumiu o poder no estado3. Essa rede
queria afirmar-se na capital, e, para isso, inscreveu-se nas toponímias da urbe,
nos novos territórios criados, e, também, na historiografia. Mesmo perdendo de
forma progressiva o poder a partir de 1914, esse grupo familiar conservou, até o
final da Primeira República, cargos e influência na política4.
Na ocasião de fundação do Partido Republicano Federal do Rio
Grande do Norte, em 27 de janeiro de 1889, Pedro Velho, a principal liderança
dos Albuquerque Maranhão, leu um manifesto representando as ideias gerais do
movimento. Augusto Tavares de Lyra, em sua obra História do Rio Grande do
Norte, transcreveu partes desse manifesto que foi concluído com o seguinte
trecho: “no horizonte novo, surge, iluminando todos os espíritos e alegrando
todos os corações, o sol da liberdade, e com ele a república, a república que é
paz e o progresso como desenvolvimento da ordem” (LYRA, 2008: 324). É
possível notar como os fundadores do partido republicano norte-rio-grandense
concebiam em seu discurso a imagem da República como um regime que
representava a liberdade e o progresso, ambos seguidos da manutenção da
ordem5.
No dia 17 de novembro de 1889 a província do Rio Grande do Norte,
que a partir daquele momento tornou-se unidade federativa, aderiu ao novo
2
Em virtude da limitação de palavras exigidas nesta publicação, não foi possível aprofundar a
discussão bibliográfica sobre o tema. Para uma reflexão mais embasada, ver o terceiro capítulo
da tese Cidade, terra e jogo social: apropriação e uso do patrimônio fundiário natalense e seu
impacto nas redes de poder locais (1903-1929), SIQUEIRA, 2019.
3
Segundo Pedroza, que foi influenciada pelas concepções de Levi e Linda Lewin, a rede de
parentela refere-se a indivíduos ligados entre si não apenas por laços de parentesco
consanguíneos, laterais (primos e tios) e aqueles advindos do casamento (genros, sogros,
cunhados), englobando também os parentes rituais (padrinhos e afilhados) e amigos de mesmo
status. Para mais informações sobre a temática, ver: SIQUEIRA, 2019; PEDROZA, 2011.
4
A ascensão do grupo familiar Albuquerque Maranhão não ocorreu de forma imediata após a
implantação da República, consolidando-se apenas a partir de 1895. Sobre a formação e a
perpetuação dessa rede, ver: SIQUEIRA, 2019: 115-134.
5
Para uma discussão mais aprofundada sobre a temática, ver: SIQUEIRA, 2019: 115-152.
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governo, e Pedro Velho tornou-se governador. O A Republica6 publicou um
boletim ressaltando a adesão norte-rio-grandense e exaltando o novo chefe do
executivo estadual:
[...] Convencido de que representa e é depositário da
honra pública, o governo, nesta conjuntura solene, será
ao mesmo tempo forte e justo, não poupando esforços
para manter inteira a harmonia social, respeitando todos
os direitos, defendendo todas as liberdades. Extintos os
privilégios, estamos e entramos numa data de
verdadeira e plena confraternização. [...] (LYRA, 2008:
328).
Como se pode inferir com base no fragmento do boletim transcrito no
jornal que publicava os atos oficiais do novo governo, periódico criado por
Pedro Velho, o discurso dos grupos que assumiram o poder era de otimismo,
com várias promessas de transformação. Contudo, boa parte dessas promessas
ficou reduzida ao campo do discurso. Os governos estadual e municipal
atuaram nas primeiras décadas do século XX na política de modernização da
capital norte-rio-grandense fomentando um processo de desapropriação em
massa, legitimando a relocação de retirantes e sujeitos considerados indesejados
das zonas urbanas7. Na cidade que enfrentava um processo de remodelação,
nem todas as liberdades estariam garantidas. No governo que começava a
enraizar-se no Rio Grande do Norte, nem todos teriam seus direitos
resguardados, os privilégios de poucos ainda seriam prioridade.
No manifesto republicano divulgado em 21 de novembro de 1889,
Pedro Velho ressaltou que o governo seria representante dos direitos do povo,
asseverando que os “erros e desmandos do passado, a desigualdade e os
privilégios, que traziam a vergonha pública e o rebaixamento da dignidade
cívica, cedeu o passo a uma vida nova, de horizontes largos, de abundâncias e
glórias, livres todos e todos iguais” (MARANHÃO apud CASCUDO, 1965:
279).
6
Optou-se por empregar a grafia original do referido periódico (sem o acento).
7
Sobre o processo de desapropriação ocorrido no período, ver: SIQUEIRA, 2017.
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SIQUEIRA, G. F. 199
O chefe do executivo estadual era categórico: “o Govêrno atual é do
Povo e pelo Povo!” (MARANHÃO apud CASCUDO, 1965: 279). Os trechos
citados do documento elaborado alguns dias após o advento do governo
republicano podem demonstrar como os organizadores do Partido Republicano
no Rio Grande do Norte desejavam divulgar o novo sistema político, fazer
propaganda, diminuir o número de insatisfeitos com as mudanças que o 15 de
novembro de 1889 prometia instaurar. Todavia, com o passar dos anos, os
ideais otimistas do republicanismo do tempo da propaganda foram, em grande
medida, afastados pelas práticas dos governos republicanos.
Câmara Cascudo ajudou a construir a imagem de um Pedro Velho que,
além de poderoso e memorável, era também honesto:
Pedro Velho velava sobre essa honestidade que era
atributo funcional da chefia política. Ele próprio, dono
do Estado, filho de homem rico, deixou uma herança
que envergonharia o mais desinteressado dos homens
contemporâneos. Quando casava uma filha, dava-se por
feliz podendo presenteá-la com um conto de réis,
trocado em notinhas novas, para as futuras despesas
miúdas. Por hábito ou temendo o Chefe, todos os
delegados de sua política temiam a transgressão
disciplinar no terreno dos dinheiros públicos. Não posso
nem devo revelar sua intervenção fulminante, serena,
implacável, definitiva, quando algum amigo sucumbia à
tentação financeira das rendas municipais ou compra
fictícia de propriedades. Fibras das velhas árvores... sem
poda e sentidos de aclimatação... (MARANHÃO apud
CASCUDO, 1965: 40).
O trecho transcrito é elucidativo da imagem de herói composta por
Cascudo. Segundo ele, a principal liderança dos Albuquerque Maranhão morreu
sem deixar herança expressiva, e, pelo exemplo, fazia com que funcionários da
municipalidade não cedessem à tentação de desviar rendas municipais para fins
particulares. Os redatores do jornal de oposição Diário do Natal certamente
discordariam das afirmações de Cascudo. Afinal, o Diário acusava
constantemente Pedro Velho e os demais que participavam de seu partido de
desviar verbas públicas para fins particulares, de utilizar esses recursos para
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FUNDIÁRIO (1903-1919)
embelezamento e construção de habitações de indivíduos ligados à rede de
parentela Albuquerque Maranhão8.
A distribuição e o uso do patrimônio fundiário da Intendência de Natal,
investigados neste texto por meio da análise de cartas de aforamento, da
legislação estadual e municipal, dos relatórios de intendentes e de matérias dos
periódicos A Republica e Diário do Natal, indicam como os funcionários
municipais utilizavam suas posições privilegiadas para se beneficiarem do
patrimônio público.
Existia em Natal um mercado com características próprias.
Intendentes, secretários e fiscais negligenciavam as leis locais, participando de
um jogo social que visava fortalecer os grupos influentes em prejuízo do
patrimônio público. Tem-se um processo marcado pela ambiguidade do ligame
de formas liberais com uma estrutura política e administrativa patrimonialista e
conservadora.
Funcionários da Intendência e a apropriação do patrimônio municipal
No início do século XX, as terras do patrimônio do Conselho da
Intendência Municipal de Natal eram apropriadas por meio do aforamento (ou
enfiteuse), um modelo de apropriação do solo que continua presente na
atualidade9. O aforamento é estabelecido mediante contrato perpétuo, em que o
titular da propriedade confere a outro os poderes de seu uso, gozo e
disposição10. Trata-se de um modelo baseado na concepção de domínios
8
Sobre as críticas produzidas pelo periódico Diário do Natal, ver: SIQUEIRA, 2014;
SIQUEIRA, 2017; SIQUEIRA, 2019.
9
Com o Código Civil elaborado em 2002, novos aforamentos para chãos urbanos foram
proibidos. Entretanto, em algumas cidades do Brasil esses aforamentos continuam existindo,
pois as enfiteuses já existentes continuaram sendo reguladas pelo Código de 1916. O
aforamento de terrenos de marinha não foi proibido em 2002, sendo regulado por legislação
específica. Em Natal, atualmente as pessoas pagam a taxa denominada laudêmio ao transferir
terrenos localizados em terras que, em tempos longínquos, constituíram o rossio da Câmara. O
pagamento do foro caiu em desuso, mas o instituto permanece, uma vez que a taxa de
transferência ainda é paga à Prefeitura, detentora do domínio direto das terras aforadas. Para
mais informações, ver: SIQUEIRA, 2019.
10
Para mais informações sobre esse modelo de apropriação, ver: AMORIM, 1986: 1;
SIQUEIRA, 2014.
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divididos (direto e útil). Tem-se um sujeito, o senhorio, que possui o domínio
direto do terreno, e outro, o foreiro ou enfiteuta, que possui o domínio útil,
podendo gozar de benefícios como construir, habitar e alienar o domínio útil,
devendo cumprir obrigações como o pagamento de uma taxa anual,
denominada foro, e taxas de transferência, de expedições de cartas, entre outras.
O objetivo do aforamento era propiciar a ocupação de áreas
despovoadas da cidade e incentivar a política de construção de moradias na
capital, por isso uma das principais obrigações associadas ao aforamento na
área urbana era o comprometimento de construir uma edificação no lote
concedido. Fora da área urbana, os foreiros deveriam cercar as terras aforadas e,
a longo prazo, estabelecer cultivo. Essa política de apropriação de terra foi
utilizada como um mecanismo de fortalecimento dos grupos que dominavam o
poder. Os funcionários da Intendência Municipal de Natal, que no período
reunia funções executivas e legislativas, permitiam alienações constantes do
patrimônio público, concediam latifúndios cobrando foros simbólicos e não
revogavam os aforamentos de foreiros que passavam anos sem construir e sem
pagar as taxas.
Os Albuquerque Maranhão também projetaram seu poder sobre a
esfera municipal, já que as indicações do Partido Republicano Federal do Rio
Grande do Norte, composto principalmente pelos membros dessa família, na
maioria das vezes saíam vitoriosas nas eleições para a composição da
Intendência. Na prática, o poder municipal era pouco autônomo11. Um bom
desempenho na Intendência poderia resultar em cargo no poder estadual, em
ascensão social, e, até mesmo, em casamentos com membros influentes. Esse
foi o caso de Joaquim Manoel Teixeira de Moura, que atuou como membro da
Intendência entre 1895 e 1913.
A atuação de Joaquim Moura na política de aforamento em Natal nas
primeiras décadas do século XX é elucidativa de como as ideias republicanas
11
O artigo 5º do Decreto n.08 de 1890, que estabeleceu o Conselho de Intendência de Natal,
dava ao governador o direito de dissolver, no intuito de zelar pelo bem público do município,
esse Conselho, o que demonstra a grande interferência do poder estadual no governo municipal,
ver: RIO GRANDE DO NORTE, 1896.
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CIDADE E JOGO SOCIAL: A ATUAÇÃO DE FUNCIONÁRIOS DA
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FUNDIÁRIO (1903-1919)
do tempo da propaganda foram desviadas em determinados momentos, e como
o processo de modernização convivia lado a lado com práticas patrimonialistas.
Moura, também conhecido pela alcunha Quincas Moura, ocupou a presidência
da Intendência de Natal entre 1900 e 1913, sendo membro da mesma desde
1895. Possuía a patente de coronel comandante superior da Guarda Nacional do
Rio Grande do Norte, foi importante comerciante da cidade, sendo membro da
Associação Comercial do Rio Grande do Norte (SANTOS, 2012: 77), dono da
Fazenda Santo Estevam12 e bem relacionado com a família Albuquerque
Maranhão. Em 1909, sua filha contraiu matrimônio com o filho de Pedro
Velho13. É possível encontrar nas publicações oficiais do A Republica notas
informando que o governo estadual efetivou contratos com Joaquim Moura para
o fornecimento de determinados serviços ao longo da gestão de Alberto
Maranhão14.
Em relatório publicado em 1914, Quincas Moura destacou seu papel
no processo de regularização da política de aforamento de terras do patrimônio
fundiário natalense, ressaltando que somente em 1903, com o aumento da
população e progressos da cidade, o poder municipal lançou “as vistas para os
terrenos doados ao município por D. João VI” (A REPUBLICA, 04 jun. 1914).
O intendente fazia referência às antigas terras do rossio, doadas pela Coroa às
câmaras municipais ainda no período colonial. Essas terras constituíram o
patrimônio do poder municipal, pertencendo, no período republicano, à
Intendência Municipal de Natal.
O presidente da Intendência ressaltou que, antes da intervenção de sua
gestão em 1903, eram raros os proprietários que possuíam a documentação
12
Moura também aparece como criador nas listas do Almanak Laemmert entre 1909-1929, ver:
ALMANAK Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro (Almanak Laemmert),
1909-1929.
13
Essas informações foram encontradas em: A REPUBLICA, 18 mar. 1909; A REPUBLICA,
14 maio 1909; A REPUBLICA, 21 dez. 1909.
14
Em junho de 1900 o governo pagou a quantia de 107.000 réis para Moura pelo fornecimento
de 25 quilos de “semente de maniçoba para serem distribuídos gratuitamente aos agricultores da
zona do agreste”. Em março de 1910, ao longo do segundo mandato de Alberto Maranhão, o
governo estadual pagou 716.260 réis para Joaquim Teixeira de Moura pelas “despesas
realizadas com a construção dos poços de propriedade do Estado, sitos às ruas Jundiahy, Assú e
Avenida 8”, ver: GOVERNO do Estado. A Republica, Natal, 06 jun. 1900; PARTE Official. A
Republica, Natal, 31 mar. 1910.
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SIQUEIRA, G. F. 203
regularizada de seus aforamentos e pagavam os foros anuais à Intendência,
contribuindo para a receita anual do poder municipal com a quantia de apenas
um conto de réis (1:000.000). Diante desse quadro de irregularidades, Moura
argumentou que:
Urgia organizar um cadastro e normalizar a situação dos
posseiros, assegurando a um tempo uma renda vantajosa
e fixa. Várias resoluções foram votadas e muitos
sacrifícios custaram esses trabalhos preparatórios
devido, em sua maior parte, à solicitude e influencia do
preclaro estadista que foi o senador Pedro Velho. [...].
O tempo com sua logica inflexível, saldou todo acervo
de censuras e injustiças que nos foram prodigalizadas,
como sóe acontecer entre gentes incultas e inconsciente
de seus deveres cívicos. Como prova do resultado
obtido, tenho a satisfação de acusar um rendimento
superior a 10:000.000 annuaes, para 2.700 cartas de
aforamento, ou seja, o decuplo da receita primitiva no
espaço de dez anos [...] (A REPUBLICA, 04 jun. 1914).
Moura ressaltou a importância de sua intervenção na política de
aforamento, regularizando uma situação que estava sendo bastante desvantajosa
para a receita municipal. O relatório também anunciou que essa política de
regularização não foi encarada pacificamente. De acordo com Joaquim Moura,
sacrifícios foram realizados, contestações existiram, mas esses percalços
representavam apenas um despreparo de “gentes incultas e inconscientes de
seus deveres cívicos” (A REPUBLICA, 04 jun. 1914).
O presidente da Intendência buscou reafirmar a função pedagógica do
poder municipal, de mostrar à população que a capital norte-rio-grandense tinha
outro papel a desempenhar, que não podia mais tratar suas políticas de terra
com descaso. Ele reforçava a importância das reformas implementadas por esse
poder local. Outro aspecto importante do trecho mencionado é o incremento da
receita municipal graças à regulamentação da política de aforamento.
Nesse mesmo relatório, foi mencionado que, apesar da regularização e
do maior controle em relação ao pagamento dos foros anuais, era necessária
ainda uma reforma para assegurar o desenvolvimento da edificação, objetivo
principal do aforamento para áreas urbanas. Era preciso limitar a área dos
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CIDADE E JOGO SOCIAL: A ATUAÇÃO DE FUNCIONÁRIOS DA
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FUNDIÁRIO (1903-1919)
terrenos concedidos em aforamento, pois, para o presidente da Intendência, a
concessão de verdadeiros latifúndios, “além de não ser equitativa, concentra as
propriedades nas mãos dos mais abastados e reduz o número de edificações, em
desaccôrdo com o crescimento da população” (A REPUBLICA, 04 jun. 1914).
Afirmação que pode ser interpretada como mais um indício de que os ideais de
igualdade, de fim de privilégios, de um governo preocupado com a coisa
pública, muitas vezes ficavam restritos apenas aos textos das leis e aos
discursos oficiais. O referido presidente da Intendência aforou, entre 1904 e
1919, 19 terrenos do patrimônio fundiário da Intendência Municipal de Natal,
conforme destacado abaixo:
Tabela 01: Terrenos aforados por Joaquim Manoel Teixeira de Moura entre
1904-1919.
Bairro Quantidade Área por bairro Área total aforada
Cidade Nova 2 59.202,65 m²
Cidade Alta 8 4.353,4 m² 527.190,92 m²
Ribeira 0 0
Subúrbio 915 463.634,87 m²
Fonte: Elaborada pela autora com base nas cartas de aforamento16.
A maior parte do patrimônio fundiário de Moura estava concentrada na
região suburbana da capital, abrangendo uma área de mais de 400.000 m², que
corresponderia a aproximadamente 3.300 lotes da menor unidade de moradia
reconhecida pela municipalidade no período, e a mais de 64 campos de futebol
iguais ao do estádio Arena das Dunas em Natal apenas na região dos subúrbios
15
Vale ressaltar que Moura foi listado em 18 cartas de aforamento para a região suburbana de
Natal. Contudo, para a contagem da área de domínio útil de cada foreiro é preciso fazer o
desconto de áreas que possam ser contadas mais de uma vez. Sendo assim, se um terreno foi
desmembrado em dois outros e, posteriormente, novamente em dois outros, somente se deve
contar a área original, já que, apesar dos desmembramentos, trata-se do mesmo terreno. É
preciso ainda ter cuidado para contabilizar as incorporações de áreas, efetivadas ao longo de
alguns desmembramentos.
16
As cartas de aforamento utilizadas neste trabalho foram digitalizadas, em 2005, pelo
Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e estão
disponíveis para consulta no Laboratório de Imagem dessa Instituição (LABIM). As cartas
originais estão arquivadas na Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo de Natal
(SEMURB), no setor de Geoinformação, Cartografia e Toponímia (SGCT).
Tempos Históricos • Vol. 25 • n.1 (2021)
SIQUEIRA, G. F. 205
natalenses17. Entre esses terrenos, tem-se destaque para um lote de 216.499 m²
concedido pela Intendência em setembro de 1912 e localizado na região
suburbana. Trata-se, pois, de um expressivo latifúndio, demonstrando como o
discurso de Quincas Moura não se tornou prática efetiva.
Em janeiro 1904, quando Alberto Maranhão era o governador do Rio
Grande do Norte, Moura recebeu em enfiteuse um lote de 58.265 m² no bairro
Cidade Nova. Para ter acesso ao domínio útil desse terreno, o presidente da
Intendência deveria pagar, conforme estipulado pela Resolução n.81, o valor de
83.265 réis anuais18. Contudo, a carta de aforamento registrou como valor de
foro 8.000 réis (NATAL. Carta de aforamento n.12, 30 de janeiro de 1904),
quantia mais de dez vezes inferior ao que deveria ser cobrado segundo
resolução implementada em setembro de 1903, quando Joaquim Moura já era
presidente da Intendência.
Os exemplos destacados demonstram como o presidente do executivo
municipal aproveitava sua posição privilegiada para aforar terrenos de
dimensões expressivas nas zonas urbanas e suburbanas da capital, pagando
foros simbólicos.
O relatório de Moura sobre a gestão de 1911 a 1913 também ressaltou
um problema que foi apontado em algumas matérias do A Republica: a questão
da falta de edificações. Os habitantes aforavam terrenos, mas não cumpriam a
cláusula da edificação, ocasionando um problema considerável, já que o
aumento populacional não era acompanhado pelo aumento de moradias.
Joaquim Moura, enquanto presidente da Intendência, tinha papel
17
Para fins de comparação tomou-se como referência o lote destinado aos aforamentos
gratuitos, que deveria ter no mínimo 140 m² (7 m x 20 m). Ou seja, 140 m² indicava a menor
unidade de moradia legalmente reconhecida pela Intendência de Natal, uma área que, aos olhos
contemporâneos, se mostraria considerável. Para comparação com a atualidade, pode-se utilizar
como parâmetro a área do campo de futebol do atual estádio Arena das Dunas em Natal: 7.140
m², valor que respeita o padrão da Federação Internacional de Futebol e da Confederação
Brasileira de Futebol (105 m x 68 m), ver: PROJETO gramados, 2018; RESOLUÇÃO n.92. A
Republica, Natal, 14 maio-14 jun. 1904.
18
Segundo a Resolução n.81, os foros de terrenos municipais nas áreas urbanas continuariam a
ser cobrados à razão de cinco réis por metro quadrado. Entretanto, esse cálculo seria efetuado
para um terreno de até 5.000m². O que excedesse de 5.000m² até 10.000m² seria calculado na
razão de dois réis e o que ultrapasse os 10.000m² seria cobrado na razão de um réis. Ver: A
REPUBLICA, 15 set. 1903.
Tempos Históricos • Vol. 25 • n.1 (2021)
CIDADE E JOGO SOCIAL: A ATUAÇÃO DE FUNCIONÁRIOS DA
206 INTENDÊNCIA DE NATAL NA GESTÃO E NO USO DO PATRIMÔNIO
FUNDIÁRIO (1903-1919)
importante na organização das mesas eleitorais e, como os editais publicados no
A Republica destacavam, também indicava os mesários que participavam das
eleições19. Nota-se que, ocupando o cargo de intendente, Moura fortalecia suas
relações com a rede de parentela dos Albuquerque Maranhão, e, enquanto
comerciante, também beneficiava seus negócios, além de ter forte atuação nas
eleições para variados cargos. O Diário do Natal constantemente denunciava as
ligações diretas entre os Albuquerque Maranhão e Quincas Moura, e sugeria
que o então presidente da municipalidade desviava verbas para empregá-las em
interesse particular, como destacou a matéria pulicada em 09 de janeiro de
1912:
Não sei porque cargas a Intendencia triplicou os
impostos para o corrente anno. Quaes os melhoramentos
feitos por essa grandíssima [...] nesta cidade? Onde
estão as suas obras? Nos cercados dos magnatas? Nas
terras do Senegal20?
Responda o Quincas Manuel
Ou algum seu agregado
Os cobres da Intendencia? [...] (DIÁRIO DO
NATAL, 09 jan. 1912).
Na matéria citada, o autor criticou o aumento dos impostos e sugeriu
que eles estavam sendo desviados para custear a construção de propriedades do
presidente da Intendência e de seus agregados, já que não se conseguia observar
na urbe natalense melhoramentos que justificassem o referido aumento.
Moura também exerceu o cargo de presidente da comissão encarregada
de regresso e localização de retirantes, sendo responsável por gerir a verba
estadual destinada ao transporte dos emigrantes para outros estados (A
19
Conforme destacado em edital publicado em junho de 1904, em que Joaquim Manoel
Teixeira indicou os mesários para a eleição de deputado federal. Entre os nomes indicados
constavam os de Manuel Dantas, Francisco Cascudo, Theodósio Paiva e Fortunato Aranha, que
também atuaram como intendentes na capital. Em 1906 o próprio Joaquim Manoel assinou um
edital a respeito da eleição estadual desse ano colocando-se como mesário, ver: EDITAES. A
Republica, Natal, 11 jun. 1904; EDITAES. A Republica, Natal, 27 out. 1906.
20
Quincas Moura construiu a propriedade denominada Senegal em um dos seus lotes de Cidade
Nova. Além das matérias do Diário citando tal propriedade, a mesma também foi mencionada
por Alberto Maranhão em carta enviada à Câmara Cascudo, e em matéria do A Republica, ver:
CASCUDO, 1980: 333-334; A REPUBLICA, Natal, 19 jun. 1913.
Tempos Históricos • Vol. 25 • n.1 (2021)
SIQUEIRA, G. F. 207
REPUBLICA, 09 maio 1904), acumulando, assim, suas funções de
comerciante, comandante da Guarda Nacional do Rio Grande do Norte,
intendente e integrante da junta apuradora das eleições. Tem-se, assim, indícios
que atestam a grande influência que ele possuía em Natal no início do século
XX.
Joaquim Moura não foi o único membro da Intendência a aforar lotes
com dimensões expressivas e a pagar foros anuais abaixo do que as resoluções
municipais determinavam. Dos 18 intendentes e 3 secretários que ocuparam a
municipalidade ao longo de 1903 a 1919, todos foram enfiteutas de terras do
patrimônio foreiro da capital. A tabela abaixo apresenta alguns desses
funcionários, incluindo também fiscais, e as terras a que tiveram acesso nas
duas primeiras décadas do século XX:
Tabela 02: Alguns funcionários da Intendência e terras aforadas entre 1903-
1919.
Enfiteuta Cargo ocupado na Quantidade de Área total de terras
Intendência terrenos aforados aforadas
Alberto Roselli Secretário da 8 845.290,45 m²
Intendência (1912-
1913); intendente
(1914-1916)
Alexandre dos Reis Intendente (1918- 1 270,70 m²
1919)
Antonio Gurgel do Intendente (1914- 4 9.379 m²
Amaral 1916)
Antonio Joaquim Intendente (1902- 1 159.000 m²
Teixeira de Carvalho 1904; 1905-190721;
1908-1910; 1911-
1913; 1918-1919)22
Arthur Disnard Fiscal da Intendência 29 521.768,85 m²
Mangabeira (1908-1910);
secretário da
Intendência (1911-
1912)
Arthur Hypolito da Intendente (1917- 1 1.364,71 m²
Silva 1919)
Avelino Alves Freire Intendente (1914- 2 492,52 m²
21
Sobre esse período de gestão, ver: A REPUBLICA, Natal, 02 jan. 1905.
22
Também citado como intendente em resoluções de 1918. Após a morte do intendente Virgílio
de Miranda, foram abertas eleições para a vaga de intendente, por isso Carvalho não iniciou o
mandato em 1917, mas apenas em 1918. Ver: A REPUBLICA, Natal, 02 abr. 1918; A
REPUBLICA, Natal, 28 dez. 1918.
Tempos Históricos • Vol. 25 • n.1 (2021)
CIDADE E JOGO SOCIAL: A ATUAÇÃO DE FUNCIONÁRIOS DA
208 INTENDÊNCIA DE NATAL NA GESTÃO E NO USO DO PATRIMÔNIO
FUNDIÁRIO (1903-1919)
1916)
Felinto Elysio Manso Intendente (1914- 53 19.536,48 m²
Maciel 1916)
Fortunato Rufino Intendente (1901- 2 10.257,22 m²
Aranha 1913; 1917-1919;
1926-1930)
Joaquim Ignácio Intendente (1917- 1 11.830,42 m²
Torres 1919; 1923-1925)
Joaquim José Intendente (1914- 5 102.997 m²
Valentim de Almeida 1916)
Joaquim Manoel Intendente (1895- 19 527.190,92 m²
Teixeira de Moura 1913)
Joaquim Policiano Intendente (1917- 2 1.432,72 m²
Leite 1919; 1923-1925)
Joaquim Severino da Secretário da 3 4.181,92 m²
Silva Intendência (1892-
1910)
José de Calazans Intendente (1905- 5 35.210,15 m²
Pinheiro 1913)
José Mariano Pinto Intendente (1914- 2 5.331,11 m²
1916)
Mario Eugenio Lyra Secretário da 1 1.120,00 m²
Intendência (1913-
1923); diretor de
expediente da
Intendência (1926-
1930)
Miguel Augusto Intendente (1897- 2 20.249 m²
Seabra de Mello 1912)
Paschoal Romano Fiscal da Intendência 3 90.552,4 m²
Sobrinho (1906- 1909)
Pedro Soares de Intendente (1892- 2 4.882,8 m²
Amorim 1895; 1905-1913)
Raymundo Filgueira Fiscal da Intendência 11 25.755,71 m²
e Silva (1904- 1913)
Romualdo Lopes Intendente (1914- 15 124.416,23 m²
Galvão 1916)
Theodosio Paiva Intendente (1899- 4 7.539,15 m²
1912; 1917-1922)
Fonte: Elaborada pela autora com base em resoluções municipais, notas do A
Republica e cartas de aforamento.
Conforme demonstrado na tabela acima, vários membros da Intendência
possuíam lotes de dimensões expressivas em Natal. Tem-se destaque para as
terras de Alberto Roselli, citado como foreiro em 8 cartas, reunindo uma área
de mais de 800.000 m², que abarcaria mais de 6.037 lotes destinados aos
aforamentos gratuitos e a mais de 118 campos de futebol no padrão atual da
FIFA. Já Arthur Mangabeira, que atuou como fiscal da Intendência, parece ter
Tempos Históricos • Vol. 25 • n.1 (2021)
SIQUEIRA, G. F. 209
seguido a estratégia de solicitar e adquirir vários terrenos com dimensões
menos expressivas que os de Roselli, somando um patrimônio fundiário de
mais de 500.000 m² divididos em 29 lotes. Felinto Elysio Maciel recebeu em
enfiteuse 53 lotes, todavia, seu patrimônio fundiário era inferior ao do fiscal
Paschoal Romano Sobrinho, foreiro de apenas 3 terrenos.
Os membros da Intendência utilizavam estratégias diferenciadas no
mercado de terras. Alguns preferiam solicitar vários lotes visando lucrar do
ponto de vista econômico, construindo casas para alugar ou transacionando os
terrenos para indivíduos fora da rede de parentela dominante por valores
expressivos. Já outros optavam por ter seus nomes citados em poucos editais de
solicitação de terra, evitando críticas do jornal oposicionista, sustentando a
imagem de funcionários comprometidos com os ideais republicanos, ainda que
apenas na aparência.
Todavia, quantidade não significava restrição de área. Conforme
verificado na tabela, alguns membros da Intendência solicitavam dois ou três
terrenos, mas possuíam um patrimônio fundiário bem mais expressivo do que
outros que solicitavam mais de 10. Eis outra estratégia que podia ser empregada
por esses sujeitos. Muitos intendentes não pagavam os foros devidos e não
respeitavam as regras que as resoluções estipulavam para aforamentos
concedidos em áreas urbanas e nos subúrbios23. Muitos governadores e seus
familiares também foram beneficiados com essa política de concessão de terras
em enfiteuse ainda na gestão de Joaquim Moura. Vários membros da família
Albuquerque Maranhão conseguiram adquirir o domínio útil de terras da
Intendência sem respeitar as regras citadas24.
Dessa maneira, o que teria levado membros da Intendência a
desrespeitar as regras que eles mesmos criavam? Por que aprovavam a
concessão de latifúndios com taxas que provocavam diminuição da receita
municipal?
Acredita-se na existência de um mercado pessoal de terras na Natal do
23
Essa discussão foi aprofundada em SIQUEIRA, 2019.
24
Para ter acesso a esses casos, ver: SIQUEIRA, 2019.
Tempos Históricos • Vol. 25 • n.1 (2021)
CIDADE E JOGO SOCIAL: A ATUAÇÃO DE FUNCIONÁRIOS DA
210 INTENDÊNCIA DE NATAL NA GESTÃO E NO USO DO PATRIMÔNIO
FUNDIÁRIO (1903-1919)
início do século XX. Um mercado que não levava em consideração apenas a
transação de capital econômico25. Esse mercado respeitava a formação de um
espaço social específico. Segundo Bourdieu, o espaço social é a realidade
invisível que organiza as práticas e as representações dos agentes sociais
(BOURDIEU, 1996: 24). Os agentes ou grupos de agentes são definidos pelas
suas posições relativas nesse espaço, distribuídos de acordo com os tipos e os
volumes de capitais que possuem.
Em Natal, existia um espaço social em que a rede de parentela dos
Albuquerque Maranhão detinha as maiores parcelas desses capitais,
principalmente o político, que era utilizado e, sobretudo, reforçado nas
transações. Os indivíduos que participavam do mercado pessoal partilhavam de
um mesmo habitus nesse espaço social natalense, ou seja, eram sujeitos que
compartilhavam um conjunto de elementos, de práticas e de bens capazes de
formar uma unidade de estilo (BOURDIEU, 2011: 349). Eram indivíduos que
possuíam parcelas semelhantes de capitais econômicos, sociais e políticos, que
frequentavam os mesmos lugares e compartilhavam um modo de vida
específico.
Bourdieu ajuda a compreender como os sujeitos que partilham um
mesmo habitus são constrangidos a participar de um jogo que lhes impõem
acordos e sacrifícios. O mercado que foi construído com o patrimônio fundiário
natalense pode ser considerado como um dos elementos desse jogo, e os
foreiros relacionados com as famílias que participavam do poder podem ser
compreendidos enquanto sujeitos que partilhavam ou tencionavam partilhar de
um mesmo habitus, que possuíam o que o autor chama de illusio, isto é, que
conheciam as relações desse jogo.
Segundo Bourdieu, os jogos sociais se fazem esquecer como tais, e a
illusio seria “essa relação encantada com um jogo que é o produto de uma
25
O conceito de mercado pessoal aqui empregado foi baseado nas definições de Giovanni Levi
(2000: 147-161), que demonstrou como as relações nesse mercado transcendiam a família
nuclear. No mercado pessoal o preço cobrado pelas alienações refletia as redes de solidariedade
das famílias extensas, formadas por grupos não co-residentes, ligados entre si por vínculos de
parentela consanguínea, por alianças ou por relações de parentescos fictícias. Para mais
informações sobre o significado do conceito empregado, ver: SIQUEIRA, 2019: 223-225.
Tempos Históricos • Vol. 25 • n.1 (2021)
SIQUEIRA, G. F. 211
relação de cumplicidade ontológica entre as estruturas mentais e as estruturas
objetivas do espaço social” (BOURDIEU, 1996: 140). Entre os agentes e o
mundo social existe uma relação de cumplicidade “infraconsciente”, ou seja,
esses sujeitos utilizam constantemente em suas práticas teses que não são
colocadas como tais. De acordo com Bourdieu,
O bom jogador, que é de algum modo o jogo feito
homem, faz a todo instante o que deve ser feito, o que o
jogo demanda e exige. Isso supõe uma invenção
permanente, indispensável para se adaptar às situações
indefinidamente variadas, nunca perfeitamente
idênticas. O que não garante a obediência mecânica à
regra explicitada, codificada (quando ela existe). [...]
Nada é simultaneamente mais livre e mais coagido do
que a ação do bom jogador. Ele fica naturalmente no
lugar em que a bola vai cair, como se a bola o
comandasse, mas, desse modo, ele comanda a bola
(BOUDIEU, 1990: 81-82).
Aplicando esse conceito à análise das apropriações de terras via
aforamento, é possível compreender que não era necessário que os intendentes
solicitassem aos demais funcionários municipais que não reprovassem suas
petições de aforamento pelo fato de seus terrenos serem bem mais extensos do
que a lei permitia. Também não era preciso pedir para a Intendência não
revogar aforamentos de enfiteutas que não pagavam os foros anuais e
alienavam constantemente as terras aforadas. Essas concessões eram realizadas
porque faziam sentido, porque esses indivíduos partilhavam, ou aspiravam
partilhar, um mesmo habitus, estavam inseridos em um jogo, já tinham
internalizado o senso de jogo.
Essas relações, essa política de terras, era parte desse jogo no espaço
social em questão, e, para os partícipes desse jogo, fazia sentido praticar
determinados atos, concessões específicas, não lucrar apenas economicamente.
Esses sujeitos movimentavam um jogo social que era retroalimentado nas mais
diversas instâncias, seja na apropriação do patrimônio fundiário, na contratação
para fornecimento de determinados serviços, nos encontros de sociabilidade,
entre outras ocasiões.
Tempos Históricos • Vol. 25 • n.1 (2021)
CIDADE E JOGO SOCIAL: A ATUAÇÃO DE FUNCIONÁRIOS DA
212 INTENDÊNCIA DE NATAL NA GESTÃO E NO USO DO PATRIMÔNIO
FUNDIÁRIO (1903-1919)
As enfiteuses de Arthur Disnard Mangabeira
As enfiteuses de Arthur Disnard Mangabeira ajudam a exemplificar
como outros funcionários da municipalidade atuavam no mercado de terras da
capital. Como a tabela 02 destacou, Mangabeira recebeu em enfiteuse 29 lotes,
construindo um patrimônio fundiário que equivaleria a aproximadamente 3.726
habitações populares no período. Mangabeira participava do mercado de terras
pessoal existente na capital norte-rio-grandense, frequentava os salões de nomes
influentes na cidade. Exerceu o cargo de fiscal do 1º distrito de Natal (que
englobava os bairros Cidade Alta, Cidade Nova e região suburbana) entre 1908
e 1910, e de secretário da Intendência de Natal entre 1911 e 1912 (SIQUEIRA,
2019: p.171-172). A maior parte do patrimônio fundiário de Mangabeira estava
situada na região suburbana, uma área de 478.625,85 m² dividida em 15 lotes.
Abaixo segue a espacialização de alguns terrenos adquiridos por Mangabeira:
Imagem 01: Espacialização de alguns lotes aforados por Arthur
Mangabeira.
Fonte: Elaboração da autora sobre Planta cadastral e topográfica elaborada por
Henrique de Novaes em 1924.
Tempos Históricos • Vol. 25 • n.1 (2021)
SIQUEIRA, G. F. 213
Dos 29 terrenos aforados por Mangabeira, somente 14 foram
espacializados. Nessa espacialização observa-se também como os enfiteutas se
aproveitavam das irresoluções presentes nas leis municipais. Em 1908, com a
Resolução n.120, a área urbana de Natal foi expandida, tendo como limite sul a
Avenida Almirante Alexandrino. Assim, caso essa resolução fosse considerada,
os três lotes de Mangabeira nas proximidades de artérias como a Avenida
Hermes da Fonseca e a Avenida Rodrigues Alves não deveriam ser
enquadrados como lotes suburbanos, já que foram concedidos após 1908 e,
portanto, já pertenciam à área urbana da capital26. Todavia, entre 1909 e 1914,
com a Resolução n.133 (A REPUBLICA, 20 ago. 1909), o limite da área
urbana foi alterado, sendo reduzido como destacado nas espacializações que
seguem:
Imagem 02: Limites sul aproximados da zona urbana de Natal.
Fonte: Elaboração da autora sobre Planta cadastral e topográfica elaborada por
Henrique de Novaes em 1924.
26
Um de seus terrenos na região suburbana próxima ao bairro Cidade Nova foi concedido em
enfiteuse em 1912 (terreno registrado na carta 148S), quando ele ainda exercia o cargo de
secretário da municipalidade. O outro foi aforado em 1913 (terreno registrado na carta 291S),
todos, portanto, posteriores à Resolução n.120.
Tempos Históricos • Vol. 25 • n.1 (2021)
CIDADE E JOGO SOCIAL: A ATUAÇÃO DE FUNCIONÁRIOS DA
214 INTENDÊNCIA DE NATAL NA GESTÃO E NO USO DO PATRIMÔNIO
FUNDIÁRIO (1903-1919)
Imagem 03: Limite sul aproximado da zona urbana de Natal entre 1909 e 1914.
Fonte: Elaboração da autora sobre Planta cadastral e topográfica elaborada por
Henrique de Novaes em 1924.
As concessões de Mangabeira foram efetivadas entre 1912 e 1913, ou
seja, quando a Resolução n.133 vigorava, localizando-se, de fato, em área
suburbana. Em 1914 o limite demarcado em 1908 voltou a vigorar, conforme
estabelecido pela Resolução n.183 (A REPUBLICA, 28 out. 1914), o que
enquadrava esses terrenos na região urbana de Natal. Mesmo com essa
alteração, as cartas de aforamento não retificaram as informações sobre os lotes
aforados por Mangabeira, que, mesmo estando na área urbana, continuaram
registrados como lotes suburbanos, sujeitos, portanto, a foros muito mais
Tempos Históricos • Vol. 25 • n.1 (2021)
SIQUEIRA, G. F. 215
baixos27.
As confusões presentes nos editais de solicitação de enfiteuse, a falta de
delimitação do limite sul da área suburbana, as constantes modificações nos
limites da área urbana e os interesses dos funcionários da municipalidade
certamente beneficiaram muitos enfiteutas, uma vez que o aforamento na área
suburbana implicava em taxas inferiores as da área urbana e não era
acompanhado da obrigatoriedade de edificação. Mangabeira deve ter optado por
concentrar suas petições na região suburbana para se beneficiar dessas
prerrogativas.
É possível notar ainda que as petições de Mangabeira não ficaram
restritas ao acompanhamento do traçado das linhas de bonde, mas
demonstraram como o funcionário da Intendência tinha certa noção a respeito
do eixo de crescimento da cidade no sentido sul. Todas as enfiteuses na região
suburbana foram solicitadas entre 1910 e 1914, a maioria quando Mangabeira
exercia o cargo de secretário da Intendência. Muitos desses lotes possuíam
dimensões expressivas, contrariando a Resolução n.9228, indícios que
confirmam como o referido fiscal utilizava sua posição privilegiada para
beneficiar-se da política de concessão de terras.
Entre os 8 lotes que possuía na Ribeira, um merece destaque. Trata-se
de um terreno de 27.150 m² aforado originalmente em 1906 por Fabrício
Gomes Pedroza e alienado a Mangabeira em 1910 pela quantia de 500.000 réis.
Pedroza, irmão de Petronila Florinda, esposa de Pedro Velho, era um
comerciante29 de sucesso na capital potiguar, abria os salões de sua residência
para bailes frequentados pelos grupos mais abastados de Natal (A
REPUBLICA, 30 out. 1903).
Pelo domínio útil do referido lote, Pedroza pagava como foro 33.575
27
Em 1914 vigorava a Resolução n.171. Por essa resolução, um terreno de 10.000 m²
(100X100) na área urbana deveria pagar como foro 50.000 réis. Já por um terreno dessas
dimensões nos subúrbios, o enfiteuta deveria pagar 6.000 réis, quantia mais de 8 vezes inferior
ao que seria pago por um lote na área urbana.
28
Dos 15 lotes aforados nos subúrbios por Arthur Disnard Mangabeira, 11 possuíam mais de
1.000 m². Entre esses, um tinha 127.800 m², dois possuíam 90.000 m² e outro contava com
53.125 m².
29
Seu pai, também denominado de Fabrício Gomes Pedroza, foi o fundador da casa comercial
de maior destaque do estado entre 1859 e 1896, a Casa Fabrício & Cia. Ver: LYRA, 2019.
Tempos Históricos • Vol. 25 • n.1 (2021)
CIDADE E JOGO SOCIAL: A ATUAÇÃO DE FUNCIONÁRIOS DA
216 INTENDÊNCIA DE NATAL NA GESTÃO E NO USO DO PATRIMÔNIO
FUNDIÁRIO (1903-1919)
réis, quando a Resolução n.92 determinava que o valor de foro anual deveria ser
de 135.750 réis (NATAL. Carta de aforamento n.203 R, 18 ago. 1906). Sendo
assim, o valor pago por Arthur Mangabeira, embora equivalesse a três meses de
seu salário como fiscal da municipalidade30, não correspondia nem ao que
Pedroza deveria pagar como foro anual por um período de quatro anos, não
sendo lucrativo do ponto de vista econômico31. Mesmo após a transferência,
ocorrida enquanto Mangabeira ainda exercia suas funções de fiscal da
Intendência, o valor de foro não foi corrigido. Certamente ao transferir o lote,
Pedroza, enquanto comerciante e membro partícipe do mercado de terras,
tencionou solidificar seus laços com aquele que era responsável por fiscalizar o
cumprimento das resoluções municipais e poderia fazer vista grossa para
possíveis descumprimentos praticados por ele e seus amigos e parentes32.
Em julho de 1911, Mangabeira adquiriu um lote de 13.620 m² na região
suburbana pagando a quantia simbólica de 20.000 réis (NATAL. Carta de
aforamento n. 111A S, 20 jul. 1911) a Miguel Barra. As notas do A Republica
30
Em 1910 Mangabeira recebia 166.750 réis mensais para atuar enquanto fiscal do 1º distrito da
capital, conforme destacado na resolução orçamentária do referido ano (Resolução n.136). O
fiscal do 2º distrito recebia quantia inferior (150.000 réis), certamente por ser responsável pela
fiscalização de uma área menor. Ver: A REPUBLICA, Natal, 04 fev.- 09 fev. 1910.
31
O próprio Pedroza, também um expressivo enfiteuta natalense, sendo citado em 22 cartas e
totalizando um patrimônio de 110.934, 13 m², alienou em setembro de 1910 um terreno de
340,60 m² por 6 contos de réis (6:000.000). Tomando por base a Resolução n.184, Pedroza
deveria ter recebido 8:630.985 réis, quantia aproximadamente 17 vezes maior a que foi paga
por Mangabeira. Ver: NATAL. Carta de aforamento n.202 R, 17 de ago. de 1906; A
REPUBLICA, Natal, 01 dez. 1914.
32
Outras transações demonstram como Mangabeira negligenciava sua função para fortalecer
seus laços com a rede de parentela que dominava a política local. Em novembro de 1911, o
fiscal adquiriu o domínio útil de um terreno de 1.292 m² no bairro Cidade Nova pelo valor de
100.000 réis. Poucos meses depois, em fevereiro de 1912, alienou o lote pela metade do preço
pago, 50.000 réis, a Pio Paes Barreto. Pio Barreto, um expressivo enfiteuta natalense, era
sobrinho e cunhado de Alberto Maranhão, então governador do período. Mangabeira alienou o
domínio útil de outros lotes em Cidade Nova para Barreto: em janeiro de 1912 transferiu dois
lotes, um de 541, 57 m² por 250.000 réis32 e outro de 388,58 m² pelo mesmo valor. Em
fevereiro alienou uma área de 1.143 m² por 50.000 réis. Sendo assim, Pio Barreto pagou
600.000 réis por um patrimônio de 3.365,15 m². Ao transacionar terras por um preço não
lucrativo do ponto de vista do capital econômico, Mangabeira estava prejudicando a
arrecadação municipal. Vale salientar que todas essas transações foram efetivadas quando
Arthur Mangabeira exercia o cargo de secretário da Intendência de Natal e, portanto, estava
habituado com as regras que regulamentavam o processo de concessão do patrimônio fundiário
da municipalidade. Ver: NATAL. Carta de aforamento n.225A CN, 18 jul. 1910; NATAL.
Carta de aforamento n.225B CN, 18 de jul. de 1910; NATAL. Carta de aforamento n.274 CN,
20 jan.1912; NATAL. Carta de aforamento n.356A CN, 26 out. 1910; NATAL. Carta de
aforamento n.184B CN, 14 maio 1909.
Tempos Históricos • Vol. 25 • n.1 (2021)
SIQUEIRA, G. F. 217
oferecem indícios sobre a posição de destaque que Barra gozava no espaço
social natalense. Seu nome foi citado na lista dos 15 maiores contribuintes do
imposto de décima urbana nos anos de 1905 (A REPUBLICA, 27 dez. 1905) e
1906 (A REPUBLICA, 27 dez. 1906), e na nona posição da lista dos maiores
contribuintes do imposto de indústria e profissão comercial em 1906 (A
REPUBLICA, 22 dez. 1906). Certamente a alienação do terreno em questão
visava reforçar laços com aquele que, enquanto secretário da municipalidade,
seria um dos responsáveis por legislar sobre variados aspectos de seus ramos de
atividades, e poderia interferir nas várias petições de aforamento que requeria à
Intendência33.
O inventário de Mangabeira, efetivado entre 1936 e 1938, indica como o
outrora secretário da municipalidade também lucrava do ponto de vista
econômico com os imóveis construídos nas terras que aforava, além de obter
rendimentos com as safras de propriedades que possuía em outras cidades do
Rio Grande do Norte, como São Tomé, Macaíba e São Gonçalo34.
Entre as propriedades de Mangabeira localizadas no bairro Ribeira, tem-
se: as casas n. 123 (correspondendo ao valor de 8:000.000), n.12535 (avaliada
em 10:000.00 de réis), n. 127(valendo 20:000.000 de réis), e n. 137 (avaliada
em 15:000.000 de réis) da Rua Ferreira Chaves, além de um terreno no valor de
3:000.000 de réis; os prédios de números 81 (2:000.000) e 83 (5:000.000) da
Rua Almino Afonso e uma casa sem numeração na Rua 15 de Novembro,
avaliada em um conto de réis (1:000.000). De acordo com a documentação, os
prédios n.125 e n.127 foram construídos após o falecimento de Mangabeira, em
terrenos deixados por ele. No bairro Cidade Nova Mangabeira lucrava com o
33
Miguel Barra foi citado em vários editais de solicitação de enfiteuse, em alguns momentos
requerendo terras e em outros como limite de lotes requeridos por outros aspirantes a enfiteutas:
PARTE OFFICIAL. A Republica, Natal, 27 ago. 1904; GOVERNO municipal. A Republica,
Natal, 21 fev. 1906; EDITAES. A Republica, Natal, 01 maio 1908; INTENDENCIA municipal.
A Republica, Natal, 18 fev. 1908; EDITAES. A Republica, Natal, 11 mar. 1911, entre outros.
34
Entre elas destaca-se a existente em São Gonçalo, avaliada em seis contos de réis, e as
fazendas Olho d’agua, Cachoeira, Riacho da Onça e Barcelona, citadas no inventário. Os
imóveis de Mangabeira, somando inclusive os prédios e terrenos em Natal, valiam, em 1938,
284:000.000 de réis. Ver: NATAL. Juizo de Direito da Segunda Vara, 1936-1938. Código
2010, Caixa 28.
35
O contrato para a construção desse prédio movimentou 11:234.000 réis.
Tempos Históricos • Vol. 25 • n.1 (2021)
CIDADE E JOGO SOCIAL: A ATUAÇÃO DE FUNCIONÁRIOS DA
218 INTENDÊNCIA DE NATAL NA GESTÃO E NO USO DO PATRIMÔNIO
FUNDIÁRIO (1903-1919)
aluguel de uma casa (avaliada em 10:000.000 de réis), de dois terrenos na
Avenida Hermes da Fonseca (um no valor de 200.000 réis e outro no de
5:000.000 de réis), e de dois terrenos na região suburbana da capital,
localizados na Avenida 15 (correspondendo ao valor de 2:000.000). A renda
anual desses aluguéis no ano de 1936 correspondeu a 4:290.000 réis (NATAL.
Juizo de Direito da Segunda Vara, 1936-1938).
As enfiteuses realizadas por Mangabeira e seu inventário demonstram
como poderia ser vantajoso participar do poder local. Seja como fiscal ou
enquanto secretário da municipalidade, Arthur Disnard Mangabeira conseguiu
aproveitar-se de sua posição para beneficiar-se do mercado de terras da capital,
firmando seus bons laços com aqueles que administravam o poder, mas também
soube aproveitar a política de concessão de terras para construir casas
destinadas a aluguéis que rendiam mais de quatro contos de réis anuais na
década de 1930.
Os aforamentos concedidos a Romualdo Lopes Galvão
Romualdo Lopes Galvão ocupou o poder municipal entre 1914 e 1916 e
foi listado como enfiteuta de 19 lotes, uma área de 124.416,23 m², equivalente a
aproximadamente 888 habitações populares nos padrões do período. Além de
ocupar a Intendência de Natal, o coronel da Guarda Nacional também exerceu o
cargo de intendente em Mossoró entre 1892 e 189536. Atuou como importante
comerciante37, integrando a Associação Comercial do Rio Grande do Norte (A
REPUBLICA, 17 dez. 1906), foi sócio do Banco do Natal, presidente da
Companhia Ferro Carril, membro do Congresso Legislativo do Rio Grande do
36
Em Mossoró, Galvão foi um dos diretores da Sociedade Libertadora Mossoroense,
organização em prol da libertação dos escravos. Ver: SEGUNDO, 2016.
37
Possuía a empresa Galvão & Cia, que funcionava como banco no estado da A Equitativa,
uma sociedade de seguros mútuos sobre a vida. A empresa de Galvão também possuía a loja
Novo Mundo, encarregada do comércio de fazendas e outros artigos. Ver: JUNTA comercial. A
Republica, Natal, 16 fev. 1901; SANTOS, 2012: 93.
Tempos Históricos • Vol. 25 • n.1 (2021)
SIQUEIRA, G. F. 219
Norte38 e deputado estadual39.
Galvão circulava nos espaços de sociabilização de destaque na
sociedade, enquanto sócio do Natal Clube, e firmava contratos com o governo
estadual. Em 1905 forneceu artigos para a construção de um jardim na Praça
Augusto Severo e, em 1915, quando já ocupava o cargo de presidente da
municipalidade, alugou um dos seus prédios para a Junta Comercial (SANTOS,
2012). Assim, constata-se que Galvão atuava em diferentes ramos de atividades
e que os contratos de fornecimento de serviços para o governo estadual podiam
ser firmados com indivíduos que estavam exercendo cargos importantes na
esfera municipal.
Quando estava à frente da Intendência, Romualdo Galvão colocou em
prática algumas mudanças na administração. Os trabalhos da municipalidade
foram divididos em três comissões (a de Fazenda e Comércio, a de Legislação,
Instrução e Higiene e a de Obras Públicas) visando melhorar a eficiência
administrativa. Todavia, essa modificação não ocasionou de fato
transformações efetivas, já que as comissões não eram compostas por
funcionários especializados e não possuíam autonomia (SANTOS, 2012).
Em relação à política fundiária, nos estudos de caso já analisados nota-
se que ao longo de sua administração o desrespeito às resoluções municipais
sobre aforamento persistiu. Dos 15 lotes de Galvão, 6 foram aforados entre
1914 e 1916, período em que ele esteve à frente do poder municipal,
demonstrando mais uma continuidade com a gestão anterior. A participação no
mercado de terras como um dos mecanismos do jogo social existente em Natal
perdurou ao longo da gestão de Galvão que, desde 1907, era acusado pelo
Diário do Natal de aproveitar seus cargos para benefício privado.
Em novembro de 1907, Romualdo e seu irmão, João Chrisostomo
38
Atuando como suplente do secretário do Congresso e compondo a Comissão de Comércio,
Agricultura, Indústria e Obras Públicas, ver: SANTOS, 2012: 93-94; ALMANAK
Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro (Almanak Laemmert), 1908-1910.
39
Em seu relatório sobre a administração da Intendência de Natal entre 1914 e 1916, Galvão
destacou que foi eleito deputado e, como as sessões do Congresso iniciaram em novembro de
1916, precisou passar o cargo de presidente da Intendência ao seu substituto legal, o vice-
presidente Major Antônio Gurgel do Amaral, ver: RELATORIO apresentado a Intendência do
Municipio de Natal em sessão do 1 de janeiro de 1917.
Tempos Históricos • Vol. 25 • n.1 (2021)
CIDADE E JOGO SOCIAL: A ATUAÇÃO DE FUNCIONÁRIOS DA
220 INTENDÊNCIA DE NATAL NA GESTÃO E NO USO DO PATRIMÔNIO
FUNDIÁRIO (1903-1919)
Galvão, foram acusados de crime e contrabando praticado contra a Fazenda
pública por importarem com isenção de impostos moinhos de vento, cadeiras de
madeira, secretárias de madeira e cofres de ferro. Os envolvidos destacaram que
os objetos mereciam isenção por serem requeridos pelo presidente da
Intendência de Assú, Olyntho Lopes Galvão, irmão de Romualdo e
Chrisostomo.
Ao longo da investigação foi constatado que os utensílios não se
destinavam à Intendência de Assú. Tratava-se de uma manobra da firma dos
irmãos Galvão para burlar o sistema, diminuindo as despesas com o referido
imposto. Após apuração, os objetos foram apreendidos e os sócios da firma
Galvão & Cia foram condenados, perderam as referidas mercadorias, pagaram
uma multa de 1:199.350 réis e foram proibidos de entrar na Alfândega e nas
suas dependências (A REPUBLICA, 05 nov. 1907). Nesse período, Romualdo
Galvão ocupava o cargo de deputado estadual e presidente da Associação
Comercial. O Diário aproveitou a ocasião para sugerir que Romualdo
renunciasse ao seu cargo, uma vez que gozava de imunidade e não poderia ser
processado sem a licença do Congresso, o que causaria grande
constrangimento. Outro indício que aponta os benefícios de ocupar um cargo na
política local, a facilidade para livrar-se de determinados processos.
Para os articulistas do jornal da oposição, os irmãos Galvão não
possuíam a idoneidade moral “precisa para exercer os mandatos de
representantes do Estado, de presidente da associação de uma classe inteira, de
deputado a Junta Comercial e de diretor de um estabelecimento de crédito” (A
REPUBLICA, 07 nov. 1907). Os discursos desses articulistas expressavam a
concepção de que os que ocupavam cargos públicos deveriam representar a
população, governar para melhorar a condição de vida da população, e não para
benefício próprio ou de sua família.
Desse modo, antes de ocupar o poder municipal Galvão já esteve
envolvido em situações de desrespeito ao patrimônio público, aproveitando-se
dos seus laços para encobrir rastros e beneficiar sua empresa com isenção de
impostos de consumo. Certamente sua inserção como intendente de Natal na
Tempos Históricos • Vol. 25 • n.1 (2021)
SIQUEIRA, G. F. 221
década de 1910 foi motivada pelo desejo de continuar participando desse
sistema vantajoso. O jogo social era retroalimentado em suas várias instâncias.
Para um comerciante de destaque, a atuação na Intendência era extremamente
vantajosa na articulação de suas atividades comerciais. Os irmãos Galvão
também atuaram na Empresa Ferro-Carril de Natal, responsável pela
implantação dos bondes na cidade, e certamente possuíam informações
privilegiadas que interferiam nas suas petições de aforamento. A ciranda da
terra era outra moeda desse jogo social existente.
Em julho de 1915, Galvão recebeu em enfiteuse um lote de 800 m² nos
subúrbios natalenses (NATAL. Carta de aforamento n.463 S, 17 jul. 1915). Por
esse lote, o presidente da municipalidade deveria pagar 1.800 réis de foro anual.
Contudo, a documentação registrava 100 réis como valor de foro, quantia 18
vezes inferior ao que a lei estipulava. Um exemplo que demonstra como
Romualdo contrariava as resoluções municipais e os demais intendentes e
fiscais da Intendência compactuavam com o desrespeito das leis locais, uma vez
que a concessão não foi revogada. Esses funcionários integravam o jogo social
existente e, para eles, não seria vantajoso negar petições de terras daquele que
ocupava o posto de presidente da municipalidade e tinha grande interferência
nos mais diferentes ramos de atividades regulamentadas pelas resoluções.
Outro exemplo que merece destaque foi a reunião de 3 lotes
implementada pelo enfiteuta em dezembro de 1915, totalizando uma área de
103.210,59 m² (NATAL. Carta de aforamento n.506 S, 17 dez. 1915), o
equivalente a aproximadamente 737 habitações populares do período. O
extenso lote em questão foi resultado da reunião de um terreno de 40.000 m²
aforado em 1903 (NATAL. Carta de aforamento n. 01 S, 24 dez. 1903), de um
lote de 45.738 m² adquirido em 190840 e do domínio útil de 17.472 m² recebido
40
A carta que registra esse lote destaca que o terreno possuía 619 m². Contudo, a extensão de
cada limite do terreno, também registrada na carta, e a área do terreno fruto da reunião dos três
lotes, sugerem que a informação da área registrada na documentação estava equivocada e o lote
deveria possuir aproximadamente 45.738 m². Galvão adquiriu esse lote pela módica quantia de
400.000 réis, paga a seu irmão João Galvão que, por sua vez, tinha adquirido o lote por 500.000
réis. Dada a dimensão do terreno e os vínculos entre os envolvidos, tem-se uma transação típica
de um mercado pessoal, em que o lucro de capital econômico não era o objetivo primordial.
Ver: NATAL. Carta de aforamento n.64D S, 29 fev. 1908.
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CIDADE E JOGO SOCIAL: A ATUAÇÃO DE FUNCIONÁRIOS DA
222 INTENDÊNCIA DE NATAL NA GESTÃO E NO USO DO PATRIMÔNIO
FUNDIÁRIO (1903-1919)
no ano de 1913 (NATAL. Carta de aforamento n. 216 S, 07 maio 1913). Esse
terreno estava bem localizado, tendo como limite oeste a Avenida Hermes da
Fonseca, nas proximidades de uma linha de bonde, e como limite norte a
estrada que se dirigia a Areia Preta. Abaixo segue a localização aproximada do
referido lote:
Imagem 04: Localização do lote registrado na carta 506 S41.
Fonte: Elaboração da autora sobre Planta cadastral e topográfica elaborada por
Henrique de Novaes em 1924.
Dada a dimensão expressiva do lote, provavelmente sua área ocupava o
equivalente a mais de três quarteirões da Avenida Hermes da Fonseca, devendo
aproximar-se bastante da linha de bonde. Apesar de ter como limite uma das
principais artérias do bairro Cidade Nova, o lote de Galvão não estava no
traçado do referido bairro, por isso se enquadrava como terreno suburbano, e,
portanto, estava sujeito a valores mais baixos de aforamento se comparados aos
da zona urbana.
Enquanto presidente da municipalidade e, portanto, também responsável
pela concessão dos lotes, Galvão certamente reconhecia o potencial de
valorização da terra, e deve ter optado pelo aforamento do terreno sabendo que
gozaria dos equipamentos urbanos que atendiam o bairro Cidade Nova, como a
linha de bonde mencionada, mas pagaria taxas 26 vezes menores do que
41
Vale ressaltar que o ponto assinalado do mapa representa a localização aproximada do lote, e
não a sua extensão.
Tempos Históricos • Vol. 25 • n.1 (2021)
SIQUEIRA, G. F. 223
desembolsaria se o mesmo lote fosse localizado dentro do traçado do bairro
mencionado42.
Em fevereiro de 1916, Galvão e os demais intendentes publicaram a
Resolução n. 194 que, entre outras prerrogativas, estabelecia que os lotes
concedidos na região suburbana não poderiam ultrapassar os 20.000 m² (A
REPUBLICA, 20 abr. 1916). Desde 1904, com a Resolução n.92, os lotes no
subúrbio não deveriam ter mais de 300 m de largura (A REPUBLICA, 14 maio
– 14 jun. 1904). Assim, os terrenos de Galvão, mesmo antes da reunião
efetivada em 1915, já contrariavam as resoluções que limitavam a extensão das
terras concedidas em enfiteuse. O referido intendente ainda promulgou uma
resolução que contrariava as suas petições anteriores, já que alguns de seus
lotes ultrapassavam os 20.000 m².
Os casos destacados indicam um presidente da Intendência de Natal que,
assim como Joaquim Moura, tentava sustentar uma imagem de eficiência
administrativa e de um governo preocupado com a melhoria das condições de
vida da população. Afinal, para garantir a governabilidade era necessário
enfatizar a imagem de uma gestão que ampliou as receitas municipais, que se
empenhou em apresentar um relatório minudente a respeito das despesas e
receitas ao longo de todo o mandato (1914-1916), que atuou nos mais diferentes
aspectos buscando a melhoria de vida dos natalenses (seja ampliando o
calçamento das ruas e avenidas, instalando lâmpadas de iluminação em diversas
áreas da capital, construindo novas escolas, etc.) (RELATÓRIO, 01 jan. 1917).
Todavia, a dificuldade em não governar possuindo a família como objetivo final
persistia.
Observou-se como Galvão, mesmo antes de integrar a municipalidade,
aproveitava-se de seus cargos públicos para beneficiar os negócios de sua
família. Quando passou a ter o controle do poder local essa dificuldade em
separar o público do privado permaneceu. A posição de destaque no espaço
42
De acordo com a lei vigente (Resolução n.171), pelo domínio útil desse lote Galvão deveria
pagar 19.626 réis anuais. Se esse mesmo lote estivesse localizado na área urbana, o então
presidente da Intendência de Natal teria que desembolsar 516.052,95 réis, quantia 26 vezes
maior. Ver: A REPUBLICA, Natal, 20 out.-21 out. 1913.
Tempos Históricos • Vol. 25 • n.1 (2021)
CIDADE E JOGO SOCIAL: A ATUAÇÃO DE FUNCIONÁRIOS DA
224 INTENDÊNCIA DE NATAL NA GESTÃO E NO USO DO PATRIMÔNIO
FUNDIÁRIO (1903-1919)
social natalense, no poder político e nas atividades de comércio colocou Galvão
em uma situação privilegiada, que lhe permitiu aforar terrenos de grandes
dimensões, desrespeitando regras de pagamento de foro e de extensão de lotes,
prejudicando a receita local e, consequentemente, as obras que estivessem
voltadas para a melhoria das condições de vida dos natalenses. Parece que a
máxima: “Aos amigos (e familiares), tudo, aos inimigos, a lei” foi considerada
na gestão desse e de vários outros membros da Intendência de Natal.
Considerações Finais
Manoela Pedroza, ao estudar os aforamentos de terras da Fazenda
Imperial de Santa Cruz na primeira metade do século XIX, constatou a relação
entre concessões de terras e a aproximação com o monarca. A autora concluiu
que as concessões eram “apenas uma parte de uma longa relação de prestação
de serviços, favores e fidelidade política” (PEDROZA, 2015: 72). O
aforamento servia como uma espécie de retribuição em troca de fidelidade e de
serviços entre governo imperial e suas clientelas. Assim, muitos aforamentos da
Fazenda Santa Cruz foram utilizados para a instalação de unidades escravistas
produtoras de café, que concentravam terras e homens, por indivíduos que não
despenderam nenhum capital prévio. Tratava-se de um projeto que culminou
com a criação “desta nova classe de cafeicultores escravistas intimamente
ligada à família imperial” (PEDROZA, 2015: 73).
Pedroza constatou que essa elite utilizou um modelo proprietário
baseado nos domínios divididos para consolidar seu poder, aproveitando-se de
suas boas relações para apoderar-se de lotes e comportar-se como proprietário
pleno, no sentido moderno da propriedade privada, em relação a terras que
foram aforadas, concedidas sem custo além das taxas anuais que, em alguns
casos, eram constantemente negligenciadas. Dessa maneira, o aforamento
barateava e legitimava os direitos de propriedade sobre as terras mais cobiçadas
daquele período. Como foreiros, esses homens “conseguiram contornar a tão
incômoda renda fundiária de uma aquisição de terras nos moldes capitalistas”
(PEDROZA, 2015: 80).
Tempos Históricos • Vol. 25 • n.1 (2021)
SIQUEIRA, G. F. 225
As pesquisas de Manoela Pedroza demonstraram que a classe senhorial
brasileira não foi composta por grandes proprietários nem grandes capitalistas,
mas sim por “grandes ‘presenteados’ com mercês, regalias e concessões régias”
(PEDROZA, 2015: 81|). O acesso à terra não se dava com base em regras de
um mercado livre. Era viabilizado pela proximidade pessoal, por influências
políticas e trocas diretas com o monarca, prática do período colonial que
permaneceu no novo Estado brasileiro e, como os casos analisados neste artigo
indicam, perpetuou-se no governo republicano. Os terrenos eram concedidos de
forma gratuita e, posteriormente, transmitidos onerosamente. Como ressaltou
Pedroza, mesmo com o pagamento da taxa de transferência (laudêmio), tratava-
se de negócio vantajoso. Os contratos e a documentação gerada por pagamentos
e transferências se transformavam em “armadura legal que protegia seus
direitos em tempos de incerteza e transformações na propriedade” (PEDROZA,
2015: 81).
As constatações de Manoela Pedroza podem ser aproximadas às
verificadas no mercado de terras existente na capital norte-rio-grandense no
início do século XX. Também em Natal o aforamento de lotes do patrimônio
municipal, efetivado de forma gratuita, embora condicionado ao pagamento de
taxa anual e outras obrigações, fez com que indivíduos que atuavam na
administração e/ou tinham vínculos diretos ou indiretos com as redes de
parentela que dominavam a política local acumulassem um patrimônio
fundiário significativo.
Esses foreiros não eram proprietários plenos, no sentido moderno do
termo, mas acabavam agindo como tal, negligenciando as regras de construção,
deixando de pagar as taxas anuais por anos ou décadas e alienando essas terras
em busca de diferentes tipos de capitais. Assim, o modelo proprietário
enfitêutico passava a ser utilizado pelos intendentes natalenses como um
mecanismo para se apoderarem de terras públicas, lotes que pertenciam ao
governo municipal, sem respeitar as regras vigentes43.
43
É válido ressaltar que a propriedade moderna, plena e abstrata foi uma invenção da
modernidade e não deve ser sacralizada, tomada como uma única possibilidade de apropriação.
Os direitos proprietários, enquanto construções históricas, são plurais e sofrem transformações.
Tempos Históricos • Vol. 25 • n.1 (2021)
CIDADE E JOGO SOCIAL: A ATUAÇÃO DE FUNCIONÁRIOS DA
226 INTENDÊNCIA DE NATAL NA GESTÃO E NO USO DO PATRIMÔNIO
FUNDIÁRIO (1903-1919)
Os homens que integravam a Intendência de Natal no recorte estudado
não recebiam salários por essa atividade, devendo conciliar suas profissões com
o exercício do Executivo e do Legislativo municipal, o que afastava desses
cargos indivíduos que não possuíam posições privilegiadas na sociedade com
renda capaz de sustentar a família ao longo do mandato.
Mesmo sem receber salário, integrando a Intendência esses homens
poderiam conquistar diferentes tipos de capitais, já que, em seus cargos,
legislavam sobre as mais diversas atividades. Podiam criar leis que
beneficiassem seus negócios diretamente, como fixando um preço vantajoso de
uma determinada mercadoria, mandando calçar a rua de seu estabelecimento,
decidindo sobre o local de implementação de equipamentos urbanos, como uma
determinada linha de bonde que valorizasse sua propriedade ou atendesse o seu
comércio, firmando contratos que beneficiassem amigos e parentes, entre outras
medidas que garantissem vantagens aos seus negócios e às suas posições
políticas.
Nesse sentido, a política de concessão de terras municipais em enfiteuse
tinha papel fundamental. Certamente muitos intendentes e demais funcionários
da municipalidade tinham o conhecimento de que várias petições de solicitação
de enfiteuse que aprovavam estavam indo de encontro às resoluções que
regulamentavam o aforamento. Todavia, conforme elucidado, não seria
vantajoso para esses indivíduos questionar ou negar tais petições, pois o
mercado de terras era um dos elementos do jogo social existente no período, e
esses membros da Intendência faziam parte desse jogo. Eram sujeitos que
partilhavam ou aspiravam partilhar o mesmo habitus compartilhado pela rede
de parentela que dominava a política local. Intendentes, secretários e fiscais da
municipalidade negligenciavam as leis locais, participando de um jogo social
que visava fortalecer os grupos influentes em prejuízo do patrimônio público.
A participação de intendentes e governadores no mercado de terras
natalense exemplifica como na República brasileira os interesses dos “donos do
São resultados de disputas e de construções sociais. Para uma discussão mais aprofundada sobre
essa temática, ver: SIQUEIRA, 2019: 152-175.
Tempos Históricos • Vol. 25 • n.1 (2021)
SIQUEIRA, G. F. 227
poder” eram garantidos por meio da corrupção, via fortalecimento de laços no
jogo social e pela acumulação de terras para fins particulares em prejuízo da
coisa pública.
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Recebido em: 30 de dezembro de 2019
Aceito em: 08 de abril de 2021
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