Teologia
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All content following this page was uploaded by Gelson Vanderlei Weschenfelder on 11 October 2016.
Resumo: Watchmen é uma obra considerada como uma das mais importantes do final
do século 20, tanto pela originalidade de utilizar a Arte Sequencial para discutir grandes
questões políticas, culturais e sociais da época, quanto pela ousadia de seus autores, Alan
Moore e Dave Gibbons, na elaboração de personagens realistas, brutais e profundamente
humanos. Dentre as inúmeras abordagens possíveis à obra, este artigo desenvolve algumas
reflexões a respeito do mysterium iniquitatis e da perversão da lei representada em
Ozymandias, a partir de elaborações de e Lacan, para em seguida discorrer sobre a
questão ética presente no personagem Rorschach.
Palavras-chave: Watchmen. Histórias em quadrinhos. Ética. Política. Teologia.
Abstract: Watchmen is a work considered to be one of the most important of the late
twentieth century, both for the originality of using the Sequential Art to discuss the
major political, cultural and social issues of this time, as the boldness of their authors,
Alan Moore and Dave Gibbons, in developing realistic, brutal and deeply human
characters. There are many possible approaches of this work, but this article develops
some reflections on the mysterium iniquitatis and perversion of the law represented by
Ozymandias based on elaborations of and Lacan, followed by a discussion about
the ethical issue in this Rorschach character .
Keywords: Watchmen. Comics. Ethics. Politics. Theology.
1
O artigo foi recebido em 1º de abril de 2016 e aprovado em 27 de maio de 2016 com base nas avaliações
dos pareceristas ad hoc.
2
Doutor em Teologia pela Faculdades EST, São Leopoldo/ RS, Brasil e Professor Colaborador no PPG
em Memória Social e Bens Culturais e coordenador dos cursos de Teologia e Pedagogia no Centro Uni-
versitário La Salle (Unilasalle), Canoas/RS, Brasil. Contato: [email protected]
3
Doutorando em Educação pelo Centro Universitário La Salle (Unilasalle), Canoas/RS, Brasil e docente
do Complexo de Ensino Superior Cachoeirinha (CESUCA), Cachoeirinha/RS, Brasil. Contato: gellfilo@
terra.com.br
Renato Ferreira Machado/Gelson Weschenfelder
Considerações iniciais
Não podíamos discutir esses personagens sem discutir o mundo que dera forma a eles,
e não podíamos discutir esse mundo sem de algum modo nos referir ao nosso próprio,
mesmo que de modo indireto. Assim, o que começou como meramente uma visão cíni-
ca e barroca da Liga da Justiça da América e seus congêneres, subitamente entrou para
a ficção mainstream convencional de mercado, vestida apenas com um manto e uma
roupa justa de cores berrantes. Tematicamente, começamos a perceber que estávamos
brincando em uma nova vizinhança, assim como em termos de narrativa começamos a
perceber que estávamos jogando um jogo relativamente novo.6
4
Alan Moore é um escritor britânico, nascido em Northampton no ano de 1953. Iniciando sua carreira na
2000 AD e pela divisão britânica da Marvel, estreou no mercado de quadrinhos norte-americano ao rotei-
rizar o Monstro do Pântano, da DC Comics, repropondo o personagem a partir de uma abordagem que
misturava horror e ecologia. Nesse arco de histórias, Moore criou o mago John Constantine, que mais tarde
se tornaria o mais importante personagem da linha de histórias adultas da DC – a Vertigo. Moore também
escreveu a última história do Superman antes da reformulação editorial promovida pela DC com a Crise
nas Infinitas Terras. Na história O que aconteceu com o Homem de Aço, Moore coloca um ponto final na
fase da Era de Prata do herói. Watchmen, lançado em 1986 pela DC Comics, é considerada a obra-prima
do autor e o marco fundador do gênero da superaventura para o século 21. GOIDANICH, Hiron Cardoso;
KLEINERT, André. Enciclopédia dos Quadrinhos. Porto Alegre: L&PM, 2011. p. 327-328.
5
Dave Gibbons é um ilustrador inglês, nascido em 1949. Iniciando sua carreira na revista 2000 AD, quadri-
nho inglês, começou sua carreira no mercado norte-americano ilustrando as histórias do Lanterna Verde.
Sua consagração veio com a parceria com Alan Moore em Watchmen, em 1986. Gibbons também ilustrou
roteiros de Frank Miller e trabalhou em revistas como Os Melhores do Mundo e edições especiais como
Batman Versus Predador. GOIDANICH; KLEINERT, 2011, p. 183-184.
6
MOORE, Alan; GIBBONS, Dave. Watchmen – Edição Definitiva. Barueri: Panini, 2011. p. 417.
próprio para inseri-los. Sua opção foi por uma realidade alternativa, onde os primeiros
heróis mascarados haviam aparecido na década de 1940, inspirados principalmente
pela estreia do Superman, na revista Action Comics nº 1, de 1938. Esse Zeitgeist le-
vou ao aparecimento do supergrupo de vigilantes chamado de Minutemen, formado
por personagens como Coruja, Espectral, Capitão Metrópolis e Comediante, entre
outros, que nada mais eram do que figuras arquetípicas dos super-heróis da Era de
Ouro7 dos quadrinhos. A intenção dos autores com isso era apresentar um universo de
personagens inéditos que mantivessem uma profunda familiaridade com os leitores,
ao mesmo tempo em que desenvolviam sua história em uma realidade onde perso-
nagens como o Superman eram ficção. Estabelecia-se, assim, o grande paradigma
de Watchmen: o que aconteceria se as pessoas resolvessem fazer justiça com suas
próprias mãos, encarnando a própria justiça de forma simbólica, através de uniformes
e nomes alegóricos?
A grande virada desse background, na narrativa, se dá com o aparecimento
do Dr. Manhattan, na década 1960. Bem ao estilo dos quadrinhos da Era de Prata8,
o personagem surge quando o físico Jonathan Osterman sofre um acidente em uma
câmara de testes nucleares, tornando-se quase uma divindade da Física Quântica. Em
uma clara alusão ao Projeto Manhattan9, esse superser garante a vitória dos Estados
Unidos no Vietnã, mas agrava a Guerra Fria, que logo caminha para um iminente con-
flito nuclear. Ao mesmo tempo, a caça às bruxas Macartista havia forçado os super-
-heróis a se aposentarem: como a maioria ocultava o próprio rosto, não havia como
saber se algum deles não seria um espião soviético. A história, então, começa com o
brutal assassinato de um desses personagens: o Comediante, que continuava agindo
em segredo para a CIA e é jogado de sua cobertura por um oponente misterioso.
7
A Era de Ouro dos Quadrinhos é considerada como o período que se estende da criação do Superman, em
1938, até meados da década de 1950, com o aparecimento dos quadrinhos de terror e a campanha desen-
cadeada pelo livro A Sedução do Inocente, de Fredric Wertham, contra as HQs. Para saber mais, consulte:
A HISTÓRIA das Histórias em Quadrinhos: a Era de Ouro. Quadrinheiros. 12/04/2013. Disponível em:
<https://quadrinheiros.com/2013/04/12/a-historia-das-historias-em-quadrinhos-a-era-de-ouro/>. Acesso
em: 15 fev. 2016.
8
A Era de Prata dos Quadrinhos é considerada como o período que se estende dos meados da década de
1950 até a década de 1970. Ela tem seu início marcado pela estreia de uma nova versão do Flash, na
revista Showcase nº 4 e pelo início das atividades da editora Marvel. Para saber mais, consulte: A HISTÓ-
RIA das Histórias em Quadrinhos: a Era de Prata. Quadrinheiros. 08/04/2015. Disponível em: <https://
quadrinheiros.com/2015/04/08/a-historia-das-historias-em-quadrinhos-a-era-de-prata/>. Acesso em: 15
fev. 2016.
9
O Projeto Manhattan foi um projeto de pesquisa e desenvolvimento liderado pelos Estados Unidos e
Grã-Bretanha para a produção da primeira bomba atômica.
10
Rm 7, segundo a versão portuguesa da Bíblia Edição Pastoral: “Ou vocês não sabem, irmãos – falo a
pessoas competentes em matéria de lei –, que a lei tem domínio sobre alguém só enquanto ele vive? Por
sendo justa e santa (Rm 7.12), não nos livra do mal, uma vez que não fazemos o bem
que queremos, e sim o mal que não queremos (Rm 7.19). Paulo ainda ressalta que, não
fosse pela lei, ele não conheceria pecado, pois o mandamento de não cobiçar o levou
à cobiça (Rm 7.7). Ele, porém, não culpa a lei, mas o próprio pecado, que se aproveita
da lei para levá-lo à prática do mal e revelar o pecado em toda a sua perversidade (Rm
7.13). A saída para essa situação se encontra na morte e na ressurreição em Cristo que,
libertando do pecado, liberta também da lei (Rm 7.4-6) através da graça.
O pecado é a posição subjetiva do sujeito da lei; ele só pode ser superado saindo-se
daquela sujeição para se tornar o sujeito da vida. O pensamento, estando inicialmente
impotente sob a condição da lei, não pode responder inteiramente pelo brutal recomeço
no caminho da vida no sujeito, ou seja, pela conjunção redescoberta entre o pensar e
o fazer – algum evento contingente que exceda a ordem do pensamento, o que Badiou
chama de Evento-Verdade, é necessário justamente para restabelecer o poder de um
pensamento ativo.11
Alan Badiou toma essa passagem como o anúncio paulino de libertação da lei
pela graça. O filósofo marroquino sustenta que lei, neste contexto, é a descrição da
exemplo: a mulher casada está ligada por lei ao marido enquanto este vive; mas, se ele morre, ela fica
livre da lei conjugal. Por isso, enquanto o marido está vivo, se ela se tornar mulher de outro homem, será
chamada adúltera. Mas, se o marido morre, ela está livre em relação à lei, de modo que não será adúltera
se ela se casar com outro homem. Meus irmãos, o mesmo acontece com vocês: pelo corpo de Cristo, vocês
morreram para a Lei, a fim de pertencerem a outro, que ressuscitou dos mortos, e assim produzirem frutos
para Deus. De fato, quando vivíamos submetidos a instintos egoístas, as paixões pecaminosas serviam-
-se da Lei para agir em nossos membros, a fim de que produzíssemos frutos para a morte. Mas agora,
morrendo para aquilo que nos aprisionava, fomos libertos da Lei, a fim de servirmos sob o regime novo
do Espírito, e não mais sob o velho regime da letra. Que diremos então? Que a Lei é pecado? De jeito
nenhum! Mas eu não teria conhecido o pecado se não existisse a Lei, nem teria conhecido a cobiça se a
Lei não tivesse dito: “Não cobice”. Mas o pecado aproveitou a ocasião desse mandamento e despertou
em mim todo tipo de cobiça, porque, sem a Lei, o pecado está morto. Antes eu vivia sem a Lei; mas,
quando veio o mandamento, o pecado reviveu, e eu morri. O mandamento que devia dar a vida tornou-se
para mim motivo de morte. Porque o pecado aproveitou a ocasião do mandamento, me seduziu e, através
dele, me matou. A Lei é santa e o mandamento é santo, justo e bom. Então uma coisa boa se transformou
em morte para mim? De jeito nenhum! Foi o pecado que fez isso. Pois o pecado, através do que é bom,
produziu em mim a morte, a fim de que o pecado, por meio do mandamento aparecesse em toda a sua
gravidade. Sabemos que a Lei é espiritual, mas eu sou humano e fraco, vendido como escravo ao pecado.
Não consigo entender nem mesmo o que eu faço; pois não faço aquilo que eu quero, mas aquilo que mais
detesto. Ora, se eu faço o que não quero, reconheço que a Lei é boa; portanto, não sou eu que faço, mas
é o pecado que mora em mim. Sei que o bem não mora em mim, isto é, em meus instintos egoístas. O
querer o bem está em mim, mas não sou capaz de fazê-lo. Não faço o bem que quero, e sim o mal que
não quero. Ora, se faço aquilo que não quero, não sou eu que o faço, mas é o pecado que mora em mim.
Assim, encontro em mim esta lei: quando quero fazer o bem, acabo encontrando o mal. No meu íntimo,
eu amo a lei de Deus; mas percebo em meus membros outra lei que luta contra a lei da minha razão e que
me torna escravo da lei do pecado que está nos meus membros. Infeliz de mim! Quem me libertará deste
corpo de morte? Sejam dadas graças a Deus, por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor. Assim, pela razão
eu sirvo à lei de Deus, mas pelos instintos egoístas sirvo à lei do pecado”.
11
KOTSKO, Adam. Política e perversão: Paulo segundo . Cadernos de Teologia Pública, São Leopoldo,
v. 11, n. 88, 2014. p. 18. Disponível em: <http://ihu.unisinos.br/images/stories/cadernos/teopublica/088_ca-
dernosteologiapublica.pdf >. Acesso em: 02 fev. 2016.
divisão do sujeito entre poder e não poder, sendo o pecado a subjetividade deste em
relação a essa lei. Aquilo que Paulo coloca como superação da lei, então – a morte
e ressurreição de Cristo – trata-se, para ele, de um Evento-Verdade que restabelece o
poder de um pensamento ativo e supera todas as divisões. A maior delas, inclusive,
que é a cisão entre vida e morte. Em síntese, Badiou entende o texto como possibi-
lidade de superação da própria divisão identitária do sujeito.12 Com isso, voltamos a
Ozymandias.
No ambiente de Watchmen, a “lei” é a guerra estabelecida entre as superpo-
tências do capitalismo e do comunismo. Em um contexto de anticomunismo apoca-
líptico, incentivado para angariar votos no congresso13, Moore e Gibbons extrapolam
essa neurose cultural mantendo Richard Nixon no poder por quatro mandatos conse-
cutivos. A partir dessa norma, que divide o mundo em aliados e inimigos, a própria
dinâmica subjetiva individual é reconfigurada com a imposição de limites pessoais
proibitivos de quaisquer linhas de diálogo com o “outro lado”. Nesse sentido, os vi-
gilantes uniformizados, apesar de agirem na mesma sistemática ideológica do lado
em que se encontram, parecem acenar para uma possibilidade de ação para além dos
limites impostos. Ao vestirem seus uniformes e máscaras, aqueles homens e mulheres
parecem não ter mais dúvidas quanto ao que fazer e como agir: eles alcançaram uma
unidade plena entre intenção e ação, e, ao aparecerem em público, todos sabem que
tipo de ação esperar deles.
12
KOTSKO, 2014, p. 19.
13
HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos – O breve Século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
p. 232.
14
AGAMBEN, Giorgio. O Mistério do Mal. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 10-11.
15
AGAMBEN, 2015, p. 12.
Lei e perversão
O pervertido, segundo a psicanálise lacaniana, pode ser descrito usando-se um dito dos
oponentes de Paulo: “Façamos o mal para que venha o bem”. Em termos mais técnicos,
o pervertido é o sujeito que crê saber o que o Outro quer e o faz – e assim isso gera uma
dinâmica em que, a despeito do que a lei moral diz, o pervertido sabe que a lei está,
na verdade, induzindo-o furtivamente a violar a lei, talvez a fim de preservar a própria
ordem legal em face de alguma ameaça maciça, mas talvez também simplesmente para
dar à lei a oportunidade de exibir seu poder. Isso é o que chama, alhures, de “o
suplemento do superego obsceno”, invocando um superego especificamente lacaniano
que incentiva ativamente violações da lei, mas justamente para manter o poder da lei – e
não a “consciência culpada” do freudismo popular.16
E essa perversão é exatamente aquilo que guia Ozymandias em seu plano: fa-
çamos o mal para que venha o bem. A problemática levantada por Paulo, então, não se
encontra na rebeldia contra uma lei que escraviza, mas no assumir outra postura diante
dela. A questão que surge refere-se à busca de rompimento do ciclo vicioso entre lei
e desejo, dentro do qual as paixões vivas precisam ser disfarçadas para que a lei não
seja transgredida. Nesse sentido, podemos seguir a análise que Lacan faz a respeito da
mesma passagem bíblica, na qual o psicanalista coloca o desejo no nível da ética, ao
invés de subtraí-los ao nível de neurose freudiana.17
Assim, o problema da perversão da lei vem não do desejo que a rompe, mas
da exclusão do desejo como algo a ser evitado e a chave para um Evento-Verdade que
supere essa dualidade se encontra na integração das pulsões de morte no horizonte da
vida ressuscitada. Se Badiou compreende o Evento-Verdade da ressurreição como su-
peração da morte, Lacan e também o tomam como ressignificação dessa diante
da revelação de uma dimensão absoluta de vida que já não se submete ao morrer. E a
dimensão absoluta da vida se traduz em uma misericórdia tão abundante que supera
qualquer expectativa de perdão. Se isso está na nascente da tradição cristã e se apre-
16
KOTSKO, 2014, p. 20.
17
KOTSKO, 2014, p. 21.
senta como absoluta novidade naquele contexto histórico, o tempo trará novas práti-
cas perversas, na medida em que a compaixão se transmuta em lei.
Voltemos a Watchmen. Se Ozymandias consegue levar ao êxito seu plano, a
história não se encerra com sua vitória. No epílogo, avançando alguns anos no futuro,
Moore e Gibbons mostram um diário onde os segredos de Ozymandias estão regis-
trados, sendo encontrado por jovens jornalistas, em sua redação. O diário pertencia
ao mais trágico dos vigilantes: Rorschach, um homem obcecado em fazer criminosos
reconhecerem suas culpas, punindo-os com desmedida violência.
Figura 2: Rorschach
Fonte: MOORE; GIBBONS, 2011, p. 195.
© 2011, DC Comics, inc. Todos os direitos reservados.
Rorschach cobre o rosto com uma máscara branca, com manchas negras que
mudam de forma constantemente, conforme o teste psicológico de onde ele retirou
seu codinome. Rorschach é a lei encarnada, que se abate sobre os que a pervertem de
maneira furiosa e impiedosa. Por isso é considerado também um criminoso e perse-
guido pela polícia. Ao investigar o assassinato do Comediante e chegar à identidade
do assassino, acaba sendo morto pelo Dr. Manhattan, que compreende que, se o plano
de Ozymandias vier à tona, a paz conseguida com o genocídio estará em cheque.
Rorschach morre gritando por justiça e seu diário, encontrado anos depois de sua mor-
te, será sua ressurreição, revelando a perversidade da política de paz de Ozymandias.
Rorschach carrega um grande fardo em suas costas. Ele viu a verdadeira face
da cidade, viu este mundo cheio de vermes, pelo que ele é: uma vala dos desgraçados,
cada um escalando sobre as costas dos outros, por nada mais que um prazer insigni-
ficante, para simplesmente continuar essa vida patética por um segundo, um minuto,
um dia a mais.
Diário de Rorschach. 12 de outubro de 1985. Esta manhã, no beco, havia um cão morto
com marcas de pneu no ventre rasgado. A cidade tem medo de mim. Eu vi o rosto dela.
As ruas são sarjetas dilatadas e essas sarjetas estão cheias de sangue. Quando os bueiros
finalmente transbordarem, todos os ratos irão se afogar. A imundice acumulada de todo
o sexo e matanças que praticaram vai espumar até suas cinturas e todos os políticos e
rameiras olharão para cima, gritando “salve-nos”... e, do alto, eu vou sussurrar: “não”.
E continua:
Eles tiveram escolha. Todos eles. Podiam ter seguido os passos de homens honrados,
como meu pai [...], homens decentes, que acreditavam no suor do trabalho honesto. Em
vez disso, seguiram os excrementos de devassos e sem perceber, até ser tarde demais,
que a trilha levava a um precipício. Não me digam que eles não tiveram opção. Agora o
mundo todo está na beira do abismo, contemplando os liberais, intelectuais e sedutores
de fala macia, que ardem no inferno... e, de repente, ninguém mais sabe o que dizer19.
18
MOORE; GIBBONS, 2011, p. 30.
19
MOORE; GIBBONS, 2011, p. 7.
20
HELD, Jacob M. Podemos Conduzir este Mundo sem Leme? Kant, Rorschach, Retributivismo e Honra.
In: WHITE, Mark D. (Org.). Watchmen e a Filosofia: um teste de Rorschach. São Paulo: Madras, 2009.
p. 30.
21
NIETZSCHE apud MOORE; GIBBONS, 2011, p. 204.
22
BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
23
KANT, 1996, p. 331.
24
KANT, 1996, p. 331.
25
HELD, 2009, p. 33.
26
KANT, 1986, p. 429.
27
HELD, 2009, p. 35.
28
HEGEL apud HELD, 2009, p. 35.
meteu. E Rorschach adora fazer o malfeitor sentir isso. A punição serve para proteger
e reproduzir uma ordem moral ideal.
Cada um deve respeito ao próximo e tratá-lo como fim em si mesmo, como
pessoas que merecem respeito pelo que são, agentes livres e racionais. A punição é,
como descreve Jacob Held, meramente um instrumento para implementar essa ordem
moral. E Rorschach expressa isso quando fala com o psiquiatra no presídio: “Este
mundo sem leme não é moldado por vagas forças metafísicas. Não é deus que mata
as crianças. Não é a sina que as esquarteja ou o destino que as dá de comer aos cães.
Somos nós. Apenas nós”29.
O valor da vida está em como ela é vivida. É somente com justiça e ética que
vêm o valor e respeito para uma sociedade. Assim como Kant descreve, “pois, se a
justiça se vai, não há mais qualquer valor nos seres humanos vivendo na Terra”30.
Rorschach busca essa justiça, uma centelha da moral, para uma luz no fim do túnel.
Em um último dialogo com seus companheiros, Ozymandias, o homem mais inte-
ligente do mundo, vendo que seu plano deu certo, comenta: “Duas superpotências
desistindo da guerra (EUA e URSS). Eu salvei a terra do inferno. Nós salvamos [...].
Agora podemos voltar a cumprir nosso dever”31. E Rorschach responde: “O nosso
dever é fazer justiça. Todo mundo vai saber o que você fez!”32, seguindo o diálogo:
Ozymandias – Será mesmo, Rorschach? Se me denunciar, irá sacrificar a paz pela qual
milhões morreram hoje.
Coruja II – Paz baseada em uma mentira.
Ozymandias – Mas é paz, apesar de tudo.
Dr. Manhattan – Ele está certo. Se quisermos preservá-la aqui, temos que ficar em
silêncio.
Rorschach – Fiquem vocês com suas mentiras! Não faço acordos, nem mesmo diante
do Armagedom.33
29
MOORE; GIBBONS, 2011, p. 202.
30
KANT, 2003.
31
WATCHMEN – O Filme. Direção: Zack Snyder. Produção: Lawrence Gordon; Lloyd Levin e Deborah
Snyder. Los Angeles: Warner Brothers, 2009. 1 DVD (162 min.). Cap. 40.
32
WATCHMEN – O Filme, 2009. Cap. 40.
33
WATCHMEN – O Filme, 2009. Cap. 40.
Dr. Manhattan – Rorschach, você sabe que não posso permitir isso!
Rorschach – Se tivesse se importado desde o começo [com a humanidade], nada disso
aconteceria.
Dr. Manhattan – Posso mudar quase tudo, Rorschach, mas não posso mudar a natureza
humana.
Rorschach – Claro, deve proteger a utopia de Veidt [Ozymandias]. Um cadáver a mais
não faz diferença. Muito bem, o que está esperando, anda, me mate, me mate [...]34.
Mesmo sabendo que essa seria sua última atitude antes da morte, no final da
trama, Rorschach comenta: “O mal deve ser punido. Pessoas alertadas”35. O herói
sabe que se deixar o plano de Ozymandias escapar ileso, a justiça foi comprada, mas
não realizada. Para Kant, sem justiça não há valor na vida humana. O herói se recusa
a fazer concessões, vender a justiça, mesmo que isso signifique desfazer a ilusão de
Ozymandias e, portanto, garantir que os milhões que morreram o tenham feito em vão.
Na narrativa, enquanto lágrimas escorrem, sabendo do seu destino, ele grita: “Anda,
me mate”, e Dr. Manhattan o evapora.36 Rorschach não quis a morte. Ele entendeu o
que os outros companheiros de luta contra o crime não conseguiam entender: “É me-
34
WATCHMEN – O Filme, 2009. Cap. 41.
35
MOORE; GIBBONS, 2011, p. 403.
36
HELD, 2009, p. 37.
lhor sacrificar a vida do que negligenciar a moralidade. Não é necessário viver, mas é
preciso que, enquanto vivemos, o façamos com honra”37.
Considerações f nais
O mundo de Watchmen poderia ter sido real. Pode não existir um ser como
o Dr. Manhattan, mas o arsenal atômico das superpotências da Guerra Fria ainda
existe, ainda que parcialmente desativado. Além disso, com o avanço da ciência e da
tecnologia, arsenais bélicos ao redor do globo têm se tornado cada vez mais poderosos
e devastadores. Podemos não encontrar vigilantes mascarados combatendo o crime
nas ruas, mas seguidamente vemos notícias de pessoas que tomam a justiça com as
próprias mãos e recebem incentivos calorosos da população. Da mesma forma, forças
fascistas se apropriam de símbolos e se arvoram em supostos representantes da von-
tade do “povo”. O mundo representado em Watchmen, em certa medida, existe, dado
que a obra representa mitologicamente a relação da sociedade ocidental com o poder
e todas as perversidades daí decorrentes.
Watchmen é uma das graphic novels mais aclamadas pela crítica e seu sucesso
repercutiu significativamente no mundo das histórias em quadrinhos de super-heróis.
Essa obra levanta questões que todos nós deveríamos observar com maior atenção.
Afinal, quadrinhos podem ser objeto de investigação para diversas ciências, como a
sociologia, a psicologia, a teologia, a história, a literatura, dentre outras.
Essa história, tanto nos quadrinhos quanto nas telas de cinema, é recheada de
riquezas filosóficas, antropológicas e teológicas. Desde a natureza metafísica, passan-
do por questões acerca da sociedade em que vivemos, até e principalmente acerca de
questões éticas. Quem não queria viver o papel de Rorschach e sair por aí fazendo
justiça com as próprias mãos? Quem não questiona se o Ozymandias não estava certo
quanto à sua atitude?
Alan Moore criou uma realidade alternativa ao período da Guerra Fria, mas
que, devidamente explicado, pode bem servir como pano de fundo didático sobre o
conflito global. Então, além da finalidade explícita de proporcionar entretenimento,
essa história em quadrinhos apresenta questões relacionadas ao comportamento mo-
ral. Elas mostram vivencialmente a importância dos dilemas morais que enfrentamos
em nosso cotidiano, principalmente quando remetem a questões sobre poder e socie-
dade. Como afirmou Rorschach: “Por que existe o bem e existe o mal. O mal deve ser
punido. Mesmo diante do juízo final”38.
37
KANT apud HELD, 2009, p. 38.
38
MOORE; GIBBONS, 2011, p. 30.
39
MOORE; GIBBONS, 2011, p. 334.
Referências