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Manual DC

O Direito Constitucional é um ramo do direito público que regula o exercício do poder estatal e assegura a validade dos atos dos órgãos do Estado. Ele abrange diversas divisões, como Direito Constitucional Social, Econômico, e dos Direitos Fundamentais, cada uma tratando de aspectos específicos das relações entre o Estado e os cidadãos. Além disso, o Direito Constitucional se relaciona com outros ramos do direito, como o Direito Administrativo e Penal, e é influenciado por ciências afins como a Ciência Política e a Sociologia.
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O Direito Constitucional é um ramo do direito público que regula o exercício do poder estatal e assegura a validade dos atos dos órgãos do Estado. Ele abrange diversas divisões, como Direito Constitucional Social, Econômico, e dos Direitos Fundamentais, cada uma tratando de aspectos específicos das relações entre o Estado e os cidadãos. Além disso, o Direito Constitucional se relaciona com outros ramos do direito, como o Direito Administrativo e Penal, e é influenciado por ciências afins como a Ciência Política e a Sociologia.
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RESUMOS DO DIREITO CONSTITUCIONAL 2024

1. CONCEITO:

O direito constitucional é um ramo especial do direitopúblico


interno, cujo estudo pressupõe a correcta compreensãodas suas
especificidades, sobretudo enquanto
“estatuto normativo do político”. Quer isto dizer quenão se trata de
um ramo do direito que procura regularas relações jurídicas entre
os particulares ou entre osparticulares e opoder público, nem entre
os Estados ouos Estados e as entidades com personalidade jurídica
àluz do direito internacional, mas sim disciplinar o própriomodo de
exercício do poder pelos órgãos do Estado, assegurandoa validade
dos actos praticados por estes nas suas relações entre si, com os
cidadãos nacionais e estrangeiros

1.1. Âmbito e objecto do direito constitucional

O estudo do direito constitucional deve iniciar-se por uma clara e


correcta compreensão do seu âmbito e do seu objecto.
Em relação ao âmbito do direito constitucional, devemos sublinhar
que, no plano territorial, se trata de um direito estadual.

2. As divisões do Direito Constitucional

I. Mesmo considerando a sua unidade intrínseca, o Direito


Constitucional é suscetível de ser encarado sob diversas
perspetivas, tantas quantos os problemas mais específicos que
permitem a ereção de polos regulativos próprios, sem que tal
possa quebrar aquela sua primária essência siste-mática.
São estes os principais níveis por que o Direito Constitucional
pode ser entendido12:
– o Direito Constitucional Social: o conjunto dos princípios e das
normas constitucionais que versam os direitos fundamentais das
pessoas em relação ao poder público, quer nos seus aspetos gerais,
quer nos seus aspetos de especialidade;
– o Direito Constitucional Económico, Financeiro e Fiscal: o conjunto
dos princípios e das normas constitucionais que cuidam da
organização da vida económica, medindo os termos da intervenção
do poder público, no plano dos regimes económico, financeiro e
fiscal;

– o Direito Constitucional Organizatório: o conjunto dos


princípios e das normas constitucionais que fixam a disciplina
do poder público, no modo como se organiza e funciona, bem
como nas relações que nascem entre as suas estruturas;

– o Direito Constitucional Garantístico: o conjunto dos princípios


e das normas constitucionais que estabelecem os mecanismos
destinados à proteção da Constituição e à defesa da sua
prevalência sobre os atos jurídico-públicos que lhe sejam
contrários.
– o Direito Constitucional dos Direitos Fundamentais: parcela do
Direito Constitucional que é atinente à regulação dos direitos
fundamentais das pessoas frente ao poder público, nos pontos
relativos à sua positivação, regime de exercício e
mecanismos de defesa, dimensão que se concretiza tanto na
generalidade quanto na especialidade dos seus diversos tipos;

– o Direito Constitucional Económico: parcela do Direito


Constitucional que orienta a organização da economia, tanto no
seu estrito âmbito privado, como nos instrumentos que ao poder
público se consente para na mesma intervir;
– o Direito Constitucional dos Direitos Fundamentais: parcela do
Direito Constitucional que é atinente à regulação dos direitos
fundamentais das pessoas frente ao poder público, nos pontos
relativos à sua positivação, regime de exercício e
mecanismos de defesa, dimensão que se concretiza tanto na
generalidade quanto na especialidade dos seus diversos tipos;

– o Direito Constitucional Económico: parcela do Direito


Constitucional que orienta a organização da economia, tanto no
seu estrito âmbito privado, como nos instrumentos que ao poder
público se consente para na mesma intervir;

– o Direito Constitucional Ambiental: parcela do Direito


Constitucional que, recebendo a influência crescente da
necessidade da proteção do ambiente, que se mostra
transversal a toda a Ordem Jurídica, confere direitos aos
cidadãos e impõe deveres e esquemas de atuação ao poder
público;

– o Direito Constitucional Eleitoral: parcela do Direito


Constitucional que se organiza em torno da eleição como modo
fulcral de designação dos governantes, quer numa perspetiva
funcional – atendendo à dinâmica do procedimento eleitoral e
dos momentos em que se desdobra – quer numa perspetiva
estática – levando em consideração o direito de sufrágio e a
possibilidade de os cidadãos poderem democraticamente
influenciar a vida do Estado;

– o Direito Constitucional dos Partidos Políticos: parcela do


Direito Constitucional que equaciona o estatuto jurídico dos
partidos políticos, não apenas na sua conexão com os órgãos do
poder público, mas também enquanto singular expressão da
liberdade política, no plano dos vários direitos fundamentais
de intervenção política;
– o Direito Constitucional Parlamentar: parcela do Direito
Constitucional que define o estatuto do Parlamento, na sua
estrutura e modo de funcionamento, sem esquecer as relações
que mantém com outros órgãos do poder público, maxime com
o Governo;

– o Direito Constitucional Procedimental: parcela do Direito


Constitucional que disciplina os termos por que se desenrola o
procedimento legislativo, na sua marcha tramitacional no
âmbito da produção dos atos jurídico-públicos de feição
procedimental, maxime dos atos legislativos;33 § 1º O Direito
Constitucional na Enciclopédia Jurídica
– o Direito Constitucional Regional (ou Autonómico): parcela do
Direito Constitucional que incide no estatuto constitucional das
regiões autónomas, expressando-se nos órgãos e competências
respetivas, bem como na produção dos atos jurídico-públicos
que lhe são próprios;
– o Direito Constitucional Processual: parcela do Direito
Constitucional que se reserva ao estabelecimento dos
mecanismos processuais de fiscalização da constitucionalidade
das leis, genericamente associados à ideia de justiça
constitucional;

– o Direito Constitucional da Segurança: parcela do Direito


Constitucional que diz respeito à organização da atividade das
forças armadas, policiais e de segurança, constitucionalmente
relevantes como parte integrante das estruturas de proteção
do Estado quanto da ótica dos deveres fundamentais dos
cidadãos para com a segurança nacional;

– o Direito Constitucional de Exceção: parcela do Direito


Constitucional que engloba os princípios e as normas que se
aplicam nas situações de crise que perturbam a estabilidade
constitucional, numa lógica temporária, reforçando o poder
público contra a liberdade dos cidadãos, através da
transformação radical da Ordem Constitucional da
Normalidade.

3. As características do Direito Constitucional


a) Supremacia;
b) Transversalidade;
c) Politicidade;
d) Estadualidade;
e) Legalismo;
f) Fragmentarismo;
g) Juventude;
h) Abertura.

4. RELACAO ENTRE O DIREITO CONSTITUCIONAL E OUTROS RAMOS DE DIREITO

– o Direito Administrativo: sendo o Direito Administrativo o


setor jurídico que estabelece a organização e o funcionamento
da Administração Pública, bem como as suas relações com os
administrados, relaciona-se com o Direito Constitucional
porque lhe pede uma intervenção na fixação das grandes linhas
orientadoras dos seus principais temas, como sejam a
organização administrativa, com realce para a posição do
Estado-Administração, os direitos fundamentais dos
administrados, as diversas manifestações do poder
administrativo ou os termos da intervenção jurisdicional na
averiguação da juridicidade administrativa; – o Direito
Internacional Público: se o Direito Internacional Público é o
setor do Direito que estabelece as normas e os princípios que
disciplinam a organização e a atividade dos membros da
sociedade internacional, enquanto atuam nessa órbita e
assistidos de poder público, ao Direito Constitucional compete
a definição da relevância desse Direito na Ordem Interna, não
só no modo da sua inserção e no respetivo lugar hierárquico,
bem como os diversos poderes das pessoas coletivas internas
no que respeita à participação nas relações internacionais, com
a natural relevância que é dada ao Estado, entidade mais
proeminente nas relações internacionais;
– o Direito Penal: sendo o Direito Penal o setor jurídico que, de
um modo mais drástico, sanciona os comportamentos
humanos através da respetiva criminalização, aplicando aos
infratores penas privativas de liberdade, para além dos casos
das medidas de segurança, é indesmentível que o Direito Penal
só se pode estabelecer em razão dos bens jurídicos que são
recortados pelo Direito Constitucional no plano do catálogo
dos direitos fundamentais consagrados, sinal da proteção mais
relevante que a comunidade política quis fixar; como centro
agregador, subjetivamente falando, o fenómeno estadual, nele
se inserindo o Direito Constitucional e o Direito
Administrativo.
Esta tem sido sobretudo a experiência germânica, não só ao nível
das realidades pedagógicas universitárias como, sobretudo, no
plano científico, relativamente ao qual são inúmeros os exemplos
de atividade juspublicista que aí se concentra e que se traduz em
estudos dentro deste domínio mais amplo, com diversos elementos
doutrinários proeminentes, a começar por alguns muito relevantes
manuais universitários.42 Direito Constitucional
– o Direito Contraordenacional: num nível menos dramático, cabe
ao Direito Contraordenacional a tipificação de
comportamentos ilícitos, mas em que a sua fraca ilicitude
apenas determina a aplicação de sanções pecuniárias ou outras
de cariz acessório, nunca privativas de liberdade, cabendo,
contudo, ao Direito Constitucional a sua definição, numa lógica
secundária em relação ao Direito Penal;
– o Direito Judiciário: pedindo-se ao Direito Judiciário o
estabelecimento da organização e do funcionamento das
instituições que exercem o poder judicial, na sua vertente
institucional, regista-se a conexão de ser ao Direito
Constitucional que se atribui a definição fundamental do
enquadramento de tal poder, bem como da respetiva
organização, no contexto mais vasto dos diversos poderes do
Estado;
– o Direito Processual: regulando o Direito Processual, nas suas
múltiplas divisões, a tramitação do poder jurisdicional do
Estado no seu lado material, e não tanto institucional, na
dialética que se estabelece com os diversos sujeitos
intervenientes, ao Direito Constitucional reconhece-se a
preocupação pela imposição de certos direitos fundamentais
de cunho processual, em ordem a proteger o núcleo
fundamental daquela dialética;
– o Direito Financeiro: representando o Direito Financeiro o setor
jurídico que disciplina a atividade jurídico-financeira das
entidades públicas, ele mostra uma íntima conexão com o
Direito Constitucional na medida em que se estabelecem as
prioridades fundamentais ao nível da estrutura do Orçamento
do Estado, bem como das receitas e das despesas de diversos
organismos públicos em geral, para além dos mecanismos de
controlo, político e jurídico, daquela mesma atividade;
– o Direito Fiscal: uma vez que o Direito Fiscal tem a preocupação
de estabelecer o regime das receitas dos impostos, inerentes à
atividade pública, calibrando a tensão entre o Estado-Fisco e os
contribuintes, facilmente se compreende que ao Direito
Constitucional se reconheça a descrição dos fundamentos da
tributação, na generalidade e na especialidade, assim como a
positivação dos direitos fundamentais dos contribuintes;
– o Direito da Economia: não sendo em Estado Social a atividade
económica um domínio desregulamentado de intervenção
humana, é 43 § 1º O Direito Constitucional na Enciclopédia
Jurídica
natural que se façam sentir nos múltiplos capítulos do Direito da
Economia zonas de sobreposição com os textos
constitucionais, estes contendo a disciplina fundamental do
regime económico a esta-belecer;
– o Direito da Religião: como conjunto de orientações
ordenadoras no tocante à proteção dos sentimentos religiosos
numa sociedade democrática, é natural que neste recente setor
autónomo do Direito se evidenciem aspetos de conexão com o
Direito Constitucional, maxime em matéria de proteção da
liberdade de religião – em ambas as perspetivas individuais e
comunitárias – e no domínio da relação do poder público com
o fenómeno religioso, nas suas diversas manifestações;
– o Direito da Segurança: como o conjunto dos princípios e das
normas, maioritariamente de Direito Público, que se aplicam em
torno da prossecução da ideia de segurança, em cada uma das suas
vertentes de segurança externa, segurança interna, segurança
internacional e segurança do Estado.

5.As Ciências Afins e Auxiliares do Direito Constitucional


– a Ciência Política: o fenómeno político, diferentemente do
Direito Constitucional, pode ser visto como um mero facto,
pretendendo-se nesta ciência estudar os comportamentos das
instituições e dos respetivos titulares, incluindo aspetos do
sistema de partidos, do sistema eleitoral, do sistema de
governo e do regime político que aquele não pode
razoavelmente ignorar;
– a Teoria Geral do Estado: sendo esta uma atividade científica
que estuda os elementos e as características do Estado
enquanto realidade conceptual, naturalmente que auxilia o
Direito Constitucional quando este define um conjunto de
opções que se destinam à regulação jurídico-positiva concreta
de determinada estrutura estadual;
– a Sociologia Política: é um setor da Sociologia que se dedica ao
estudo das relações entre o poder e a sociedade, aquilatando
até que ponto existem comportamentos dominantes, maxime
no plano da representação dos interesses dos cidadãos e no
respetivo comportamento eleitoral, pelo que os dados que
possa fornecer são muito úteis às opções efetuadas pelo Direito
Constitucional;
– a História das Ideias Políticas e a História Política: ao registar e
analisar o contributo de diversos pensadores para a conceção
do poder político, assim como ao explicitar as causas e as
consequências dos acontecimentos políticos, na sua vertente
comportamental, parece clara a sua importância na
compreensão do lastro das instituições e da sua formação,
muitas vezes o Direito Constitucional correspondendo à
precipitação normativa do pensamento político e dos factos
políticos que se tornaram marcantes;
– a Filosofia Política: como parte da Filosofia, a Filosofia Política
pretende, no que respeita ao fenómeno político, sobretudo
estadual, descobrir os seus limites no que toca aos direitos das
pessoas, sugerindo o estudo dos limites do poder público
positivo;
– a Política Constitucional: é a parcela da Política Legislativa,
assim aplicada ao Direito Constitucional, que pondera as
necessárias e as convenientes alterações constitucionais,
sopesando as vantagens 51 § 2º O Direito Constitucional na
Ciência do Direito
e as desvantagens dos institutos a adotar ou dos aspetos a aper-
feiçoar;
– a Estatística e a Matemática: são evidentes os contributos
destas ciências no campo dos sistemas eleitorais ou da
definição das maiorias deliberativas, sem cujos conceitos não é
possível a compreensão de algumas normas constitucionais,
nem da sua lógica subjacente;
– a História: na explicação do percurso dos povos, nas suas
múltiplas formas de organização, os acontecimentos
económicos, sociais e religiosos, para além dos elementos
diretamente políticos, podem também justificar os
acontecimentos constitucionais;
– a Sociologia: sendo-lhe confiado o estudo dos comportamentos
coletivos, sem aqui incluir o setor da Sociologia Política, ela
fornece elementos auxiliares preciosos quanto à adequação
social de certas instituições jurídico-constitucionais, embora
com maior êxito no Direito Constitucional Material do que no
Direito Constitucional Organizatório;
– a Economia: na medida em que lhe está associada uma ideia de
eficiente afetação de recursos escassos à satisfação das
necessidades coletivas, esta disciplina dá as bases para as
opções económicas que 52 Direito Constitucional
os textos constitucionais, a partir do século XX, normalmente
têm na passagem do Estado Liberal ao Estado Social;
– a Antropologia: tendo a seu cargo perceber o comportamento
humano nas civilizações tradicionais, compreensão
indispensável ao itinerário dos sistemas políticos, é
fundamental numa tarefa comparatística dos diferentes
estágios da sua evolução, no que também poderá ter interesse
a manutenção de instituições mais antigas, mas porventura
mais representativas;
– a Geografia e a Astrofísica: relativamente à delimitação dos
espaços estaduais, bem como ao aproveitamento que tais espaços
proporcionam, sem o contributo destas ciências dificilmente seria
possível conhecer certos conceitos jurídico-constitucionais, que só
fazem sentido recorrendo à sua ajuda.

6.O ESTADO COMO ENTIDADE JURÍDICO-PÚBLICA

O sentido de Estado em geral

I. É também fundamental para quem se abalança ao estudo do


Direito Constitucional o conhecimento do Estado, bem como da sua
estrutura, sendo certo que é nele que se concentra, nos dias de hoje,
o principal modo de organização política e social.

É verdade que o Estado nem sempre existiu, nem sequer se pode ter
a certeza de que o Estado seja uma realidade imutável ou eterna.

Porém, não é menos verdade que se tem mantido estável na sua


essência, apesar das modificações sensíveis que tem vindo a
conhecer ao longo das diferentes épocas históricas que tem
atravessado, assim como das conceções que o têm acompanhado.
Seja como for, o Estado de hoje, herdado da Idade
Contemporânea, é ainda um modo de organização que satisfaz os
interesses dos cidadãos, se
149 Merecendo a Georges Burdeau (O Estado, Póvoa do Varzim,
s.d., p. 15) estas impressivas palavras: “Jamais alguém viu o Estado.
Quem poderia, no entanto, negar que ele é uma realidade? O lugar
que ocupa na nossa vida quotidiana é de tal ordem que ele não
poderia ser daí retirado sem que, do mesmo lance, ficassem
comprometidas as nossas possibilidades de viver. Revestimo-lo de
todas as paixões humanas: ele é generoso ou somítico, engenhoso
ou estúpido, cruel ou complacente, discreto ou abusivo”.
124
Estado
comparado com outros modos de organização que têm surgido,
a um ritmo cada vez mais veloz.
II. Uma primeira aproximação à essência da natureza estadual
implica que dela se possa formular uma definição conceptual150: o
Estado é a estrutura juridicamente personalizada, que num dado
território exerce um poder político soberano, em nome de uma
comunidade de cidadãos que ao mesmo se vincula.
Antes de se analisar com mais detença estes três elementos
tradicionais do Estado – o elemento humano, o elemento funcional
e o elemento espacial – vem a ocasião de observarmos alguns
aspetos preliminares que contribuem para a sua melhor perceção:
– as características do Estado;
– os fins do Estado;
– as aceções do Estado; e
– o nome do Estado.
III. As características do Estado como fenómeno político-social
permitem o seu melhor entendimento, para além da respetiva
diferenciação em face de realidades afins151, características que se
resumem a estas seis reflexões:
a) a complexidade organizatória e funcional: o Estado pressupõe
um mínimo de complexidade organizacional e funcional, isso
acarretando uma pluralidade de organismos, de tarefas, de
atividades e de competências para levar a cabo os seus
objetivos;
b) a institucionalização dos objetivos e das atividades: o Estado
assenta na dissociação da sua realidade estrutural por
contraposição aos interesses particulares e pessoais daqueles
que nele desempenham funções, criando-se um quadro
próprio de referência, nisso consistindo, aliás, a ideia de
personalidade coletiva;
c) a autonomia dos fins: naquele aparelho complexo, o Estado
separa os fins que prossegue dos interesses pretendidos pelos
seus membros individualmente considerados, permanecendo
para além da sua vida terrena e com os mesmos não se
confundindo, nem sequer sendo o seu somatório e avultando,
assim, a ideia de bem comum;
150 Cfr., por todos, Jorge Bacelar Gouveia, Manual…, I, pp. 127 e
ss.
151 Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, Manual…, I, pp. 142 e 143.
125
§ 7º O Estado como entidade jurídico-pública
d) a originariedade do poder: o Estado expressa-se em função da
qualidade do poder político de que é detentor, no caso e
necessariamente um poder político originário, que se mostra
constitutivo dele mesmo, de tal sorte que é o próprio Estado a
autodeterminar-se e a auto-organizar-se nos seus diversos
planos de organização e de funcionamento, poder esse que é o
poder constituinte;
e) a sedentariedade do exercício do poder: o Estado, na
prossecução dos seus fins, carece de uma localização
geográfico-espacial, uma vez que a sua atividade
inelutavelmente se lança num dado território, não havendo
Estados virtuais, nem Estados nómadas;
f) a coercibilidade dos meios: o Estado, embora não o seja em
exclusividade, é o depositário supremo das estruturas de
coerção, que podem aplicar a força física para fazer respeitar
o Direito que produz e a ordem político-social que mantém.
IV. Ao lado das características do Estado, é de sublinhar que a
sua importância na organização social também se mede pelos fins
por que luta152.
A ereção de uma realidade estadual não é neutra, nem satisfaz
interesses indiferenciados, antes vai corresponder a desejos e a
objetivos que fazem dessa estrutura, ainda hoje, a mais relevante
entidade de satisfação das necessidades coletivas da vida em
sociedade.
Tais fins têm sido tradicionalmente agrupados em três vertentes:
– a segurança: a segurança externa contra as entidades agressoras,
no plano territorial, no plano das pessoas e no plano do poder; a
segurança interna, na manutenção da ordem pública, da segurança
de pessoas e bens, e na prevenção e repressão de danos de bens
sociais, para além da própria aplicação geral do Direito153;
– a justiça: a justiça comutativa, quando se impõe estabelecer
relações de igualdade, abolindo as situações de privilégio, com
uniformes crité
rios de decisão; a justiça distributiva, no sentido de dar a cada um
o que lhe pertence pelo mérito ou pela sua situação real, numa visão
não necessariamente igualitarista;
– o bem-estar: o bem-estar económico pela provisão de bens que
o mercado não pode fornecer ou não pode fornecer
satisfatoriamente; o bem-estar social pela prestação de serviços
sociais e culturais a cargo do Estado, normalmente
desinseridos do mercado.
Certamente que cada Estado, através da Constituição, se
encarregará de concretizar as suas grandes tarefas, especificando
melhor os desígnios que explicam o seu sentido útil, que tem
subjacente, de resto, um amplo debate num dos principais temas da
Filosofia Contemporânea, com a contraposição entre as teorias
individualistas e as teorias comunitaristas.
V. O conceito de “Estado”, para além do seu lado linguístico,
acolhe diferentes aceções que nele se acobertam, designando
outras tantas perspetivas da estruturação do Estado, de algum jeito
em razão da incidência que se pretenda conferir a alguns dos seus
aspetos154: – Estado no Direito Constitucional: Estado-Poder e
Estado-Comunidade, conforme se pretenda realçar,
respetivamente, o conjunto dos órgãos, titulares, atribuições e
competências ou o conjunto das pessoas, essencialmente cidadãos,
que beneficiam da proteção conferida pelos direitos fundamentais,
sendo certo que, em ambos os casos, é a mesma pessoa coletiva
pública que detém o poder constituinte e que interpreta mais
abstratamente o interesse público no exercício das funções
legislativa e política;
– Estado no Direito Internacional Público: Estado enquanto
pessoa coletiva participante das relações jurídicas
internacionais que integram a sociedade internacional como o
seu sujeito qualitativamente mais antigo, e ainda essencial, não
obstante o alargamento subjetivo que essa mesma sociedade
internacional tem vindo a sofrer;
– Estado no Direito Administrativo (Estado-Administração):
Estado enquanto pessoa coletiva pública, distinta de outras
pessoas coleti
154 Cfr. Marcelo Rebelo de Sousa, Direito Constitucional…, pp.
154 e 155; Jorge Bacelar Gouveia, Manual…, I, pp. 145 e ss. 127 § 7º
O Estado como entidade jurídico-pública
vas reguladas pelo Direito Administrativo, noutros níveis e
setores da Administração Pública;
– Estado no Direito Judiciário (Estado-Poder Judicial): Estado
enquanto pessoa coletiva pública que desenvolve a função
jurisdicional através dos órgãos judiciais, assim realizando a
administração da Justiça;
– Estado no Direito Privado: Estado enquanto pessoa coletiva que
se submete ao Direito Privado, este como Direito comum que é,
em tudo o que não requeira a regulação dada pelos diversos
capítulos do Direito Público.
VI. A palavra Estado, numa perspetiva terminológica, nem
sempre foi o vocábulo designado para o denominar, sendo um
atributo de recente conquista.
Nisso foi decisiva a obra de Nicolau Maquiavel155, a partir da
qual essa nomenclatura definitivamente se instalaria na doutrina
político-constitucional: status e stato.
Até então, o Estado aparecia normalmente referido pela
expressão atinente à forma institucional de governo vigente,
praticamente sendo exclusiva da monarquia, por contraposição à
república.
A conveniência da palavra “Estado”, na esteira da proposta
daquele autor florentino, radica na sua adequação para referir uma
das suas características, que é a permanência e a intensidade do
respetivo poder político156.
31. O elemento humano – o povo
I. O elemento humano do Estado é o conjunto das pessoas que,
relativamente a determinada estrutura estadual, apresentam com
a mesma um laço de vinculação jurídico-política, que tem o nome
de cidadania, conjunto de cidadãos de um Estado que toma, por
isso, o substantivo coletivo de povo157.
155 Cfr. Nicolau Maquiavel, O Príncipe, Lisboa, 1990, pp. 8 e ss., e
Discourses on Livy, Chicago/London, 1996, pp. 20 e ss., e pp. 49 e ss.
156 Cfr. Georg Jellinek, Teoría…, pp. 121 e ss.
157 Sobre o povo do Estado, v. Jorge Miranda, Sobre a noção de
povo em Direito Constitucional, in AAVV, Estudos de Direito Público
em honra do Professor Marcello Caetano, Lisboa, 1973, pp. 201 e ss.,
e Manual de Direito Constitucional, III, 5ª ed., Coimbra, 2004, pp. 50
e ss.; Marcelo 128 Estado
A consideração dos cidadãos no seu vínculo jurídico-público ao
Estado, com tudo o que isso implica, refrange a existência de um
substrato humano ou pessoal, em relação ao qual a atividade do
Estado ganha uma dimensão própria, ao nela evidenciar-se a
vertente comunitária, até por contraponto a outras estruturas, que
possuindo também uma parcela do poder político, não ostentam
aquele substrato pessoal.
Do ponto de vista terminológico, ao lado da locução “cidadania”,
utiliza-se muitas vezes a expressão “nacionalidade”. Como esta
igualmente se aplica a realidades afins que não são as pessoas
humanas, a título de exemplo a nacionalidade das pessoas coletivas,
de navios e de aeronaves, o seu emprego, neste contexto, deve ser
evitado158, preferindo-se a expressão “cidadania”, ainda que se
reconheça que o nome “nacionalidade” é, na linguagem corrente e
até legal, muito mais frequente.
II. A importância do substrato humano do Estado, como pessoa
jurídica coletiva, é visível em diversos domínios, aparecendo como
o mais relevante de todos o facto de ser em favor dessas pessoas –
e de outras que venham a ser eventualmente equiparadas àquelas
para certos objetivos da governação estadual – que são definidos os
seus objetivos e desenvolvidas as respetivas atividades.
Eis alguns dos domínios em que se torna mais nítida a relevância
do substrato humano da organização estadual: – na escolha dos
governantes: havendo democracia, como é mais frequente, quem
escolhe os titulares do poder político são os cidadãos, não os
estrangeiros ou as empresas, exprimindo a sua livre vontade
através do sufrágio;
– no desempenho de cargos públicos: os cargos públicos mais
diretamente ligados ao poder do Estado, como o de Chefe de
Estado e outros equiparados, só podem ser desempenhados
por cidadãos desse mesmo Rebelo de Sousa, Direito
Constitucional…, pp. 110 e ss.; Marcello Caetano, Manual de
Ciência Política…, I, pp. 122 e ss.; Reinhold Zippelius, Teoria…,
pp. 92 e ss.; Hans Kelsen, Teoria Geral do Direito e do Estado, 3ª
ed., São Paulo, 2000, pp. 334 e ss.; Jorge Bacelar Gouveia,
Manual…, I, pp. 147 e ss.
158 Ou, pelo menos, cuidadosamente explicada no seu contexto,
para evitar confusões qualificativas.129 § 7º O Estado como
entidade jurídico-pública
Estado, havendo, porém, uma margem variável que cada Direito
Constitucional em particular especifica;
– na definição das prestações sociais: as preocupações com o
bem-estar económico e social, através do exercício dos direitos
fundamentais económicos e sociais, são aquilatadas em função
dos cidadãos que delas vão beneficiar;
– no cumprimento de alguns deveres fundamentais: na defesa da
Pátria, por exemplo, o respetivo dever de proteção contra
agressões inimigas recai sobre quem tem a qualidade de
cidadão desse mesmo Estado.
III. O conceito de povo deve ser cuidadosamente diferenciado de
outros conceitos afins, cuja dilucidação interessa para se
descortinar os contornos destas realidades jurídico-políticas159,
sendo de enunciar as seguintes:
a) a população: as pessoas residentes ou habitantes no território
estadual, independentemente do vínculo de cidadania,
nacional ou estrangeira, ou do não-vínculo de apolidia, em que
não há cidadania alguma160;
b) a nação: as pessoas que se ligam entre si com base em laços
sociopsicológicos, como uma mesma cultura, religião, etnia,
língua ou tradições, formando uma comunidade com esses
traços identitários;
c) a pátria: o sítio onde viviam os pais, a terra dos antepassados,
numa conjunção de fatores territoriais e histórico-culturais;
d) a nacionalidade (stricto sensu): a qualidade atribuída a
pessoas coletivas ou a bens móveis registáveis, como as
aeronaves ou os navios, que os associa a determinada Ordem
Jurídica, tornando-a aplicável.
IV. No seu conteúdo, a relação jurídico-pública de cidadania161
pode ser vista sob uma dupla veste:
159 Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, Manual…, I, p. 149.
160 Este é um conceito essencialmente estatístico e económico,
uma vez que a ação do Estado e das empresas está muitas vezes
mais interessada na quantificação do número de consumidores – os
habitantes de certo território – do que propriamente na distinção,
dentro desses habitantes, entre os que são e os que não são
cidadãos do Estado, diferença que para aquela finalidade se mostra
irrelevante.
161 Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, Manual…, I, pp. 149 e 150.130
Estado
– ora como um estatuto;
– ora como um direito.
A cidadania como estatuto designa sinteticamente a atribuição
de um feixe de posições jurídicas à pessoa que dela beneficia, feixe
de posições jurídicas que tem um caráter acentuadamente
caleidoscópico, variando em função da natureza das posições que
nesse estatuto se encontram pre-sentes: – posições ativas – direitos
– e posições passivas – deveres;
– posições constitucionais – atribuídas logo pela Constituição – e
posições infraconstitucionais – de natureza internacional ou
legal.
A cidadania como direito traduz o percurso trilhado no sentido
de se obter aquele estatuto, mediante o respeito por algumas regras
fundamentais, assim favorecendo a ligação da pessoa a
determinada estrutura estadual.
Há orientações internacionais no sentido de tornar indesejável a
situação de apolidia ou de apatridia, como do mesmo modo existem
orientações internas que favorecem o acesso à cidadania mediante
o preenchimento de determinadas condições.
32. O elemento funcional – a soberania
I. O elemento funcional do Estado expressa a organização de
meios que se destinam a operacionalizar a atividade estadual em
ordem a alcançar os respetivos fins.
O poder político do Estado, contudo, não oferece uma infinita
combinação de cambiantes porque, tratando-se de uma estrutura
própria, a mesma toma a natureza de soberania, que vale
duplamente, na esfera externa e na esfera interna162:
162 Relativamente ao poder soberano do Estado, v. Marcelo
Rebelo de Sousa, Direito Constitucional…, pp. 129 e ss.; Marcello
Caetano, Manual de Ciência Política…, I, pp. 130 e ss.; Hans Kelsen,
Teoria Geral do Direito e do Estado, pp. 364 e ss., e pp. 544 e ss.;
Jorge Miranda, Manual…, III, pp. 165 e ss.; Jorge Bacelar Gouveia,
Manual…, I, pp. 150 e ss.131 § 7º O Estado como entidade jurídico-
pública
– a soberania na ordem interna representa a supremacia sobre
qualquer outro centro de poder político, que lhe deve
obediência e cujas existência e amplitude são forçosamente
definidas pelo próprio Estado;
– a soberania na ordem externa significa a igualdade e a
independência nas relações com outras entidades políticas,
maxime dos outros Estados, nelas se reconhecendo diversos
poderes, como o direito de celebrar tratados (ius tractuum), o
direito de estabelecer relações diplomáticas e consulares (ius
legationis), o direito de apresentar queixa, o direito de exercer
a legítima defesa e o direito de participar na segurança da
comunidade internacional (ius belli)163.
II. O reconhecimento de que o poder político do Estado é
soberano, para lá da dupla vertente que fica assinalada, contém
ainda o traço fundamental – qual seja a de uma dimensão
estritamente qualitativa – de a respetiva dilucidação se refranger
na primariedade do poder político do Estado, que é o poder
máximo da sua auto-organização, interna e externa: a Kompetenz-
Kompetenz ou a competência das competências164.
Essa primariedade do poder do Estado implica que lhe compete,
em cada momento, autodefinir-se na sua estruturação e que os
outros poderes políticos, internos e externos, existem e medem-se
em razão de uma decisão fundamental que só ao Estado cabe tomar.
Em termos práticos, esse é o poder constitucional de auto-
organização do Estado, que tanto pode ser inicial, quando o Estado
estabelece uma nova Constituição, ou superveniente, quando em
cada momento modifica a Constituição ou, mais profundamente,
exerce um novo poder constituinte primário.
Contudo, importa dizer que esta primariedade do poder político
do Estado não pode associar-se a uma qualquer ideia de
omnipotência estadual, no sentido de lhe ser permitido agir sem
limites.
163 Quanto a estas diversas manifestações da personalidade e
capacidade jurídico-internacionais, v. Fausto de Quadros e Jorge
Bacelar Gouveia, As relações externas de Portugal – aspetos jurídico-
políticos, Lisboa, 2001, pp. 21 e ss.
164 Como esclarece Reinhold Zippelius (Teoria…, p. 77), “O
poder do Estado integra, pois, também a competência de decidir
sobre a extensão das competências. A “omnipotência do Estado”, no
plano jurídico, não reside na soma das competências subordinadas,
mas nesta soberania de competência”.132 Estado
São essencialmente dois os limites com que é preciso contar: com
os limites axiológicos, que se imponham à atuação de qualquer
poder político e, por isso, também do poder soberano; e com os
limites lógicos, que derivam da coexistência, sobretudo na ordem
internacional, dos diversos Estados soberanos.
III. A soberania interna do Estado implica que dentro das
extremas da atividade política estadual, no seio do seu território, é
o Estado a autoridade máxima, nenhuma outra com ele podendo
ombrear.
Desta soberania interna decorre, em primeiro lugar, que é o
Estado que se apresenta como a autoridade suprema, dele
dependendo a fonte da juridicidade da Ordem Jurídica interna.
Essa soberania interna implica, por outro lado, que é ao Estado
que compete optar pela existência de outras entidades
infraestaduais ou menores, opção que normalmente se insere no
respetivo texto constitucional.
A soberania interna traduz ainda a orientação de que é ao Estado
que incumbe o estabelecimento da natureza, da intensidade e dos
limites do poder político atribuído a essas estruturas
infraestaduais.
Definida nestes termos, a soberania interna separa-se da
qualidade do poder político que é entregue às entidades
infraestaduais que com ele convivem, mas que por serem
infraestaduais não podem ser, segundo esta perspetiva, soberanas.
Deste modo, é preferível utilizar-se o conceito de autonomia, ao
exprimir a possibilidade de acionar meios próprios de ação política,
mas sempre condicionados, tomando o poder estadual soberano
por referência, seja porque é o poder estadual que permite a sua
criação, seja porque é o poder estadual que baliza os poderes que
lhes são delegados.
IV. As competências que se integram na soberania estadual
interna costumam ser repartidas por dois núcleos distintos: – as
competências territoriais; e
– as competências pessoais165.
165 Sobre as competências pessoais e territoriais do Estado,
integrando o seu poder soberano, v. Marcello Caetano, Manual de
Ciência Política..., I, pp. 125 e ss.; André Gonçalves Pereira e Fausto
de Quadros, Manual de Direito Internacional Público, 3ª ed.,
Coimbra, 1993, pp. 330 e 331; Fausto de Quadros e Jorge Bacelar
Gouveia, As relações..., p. 19; Nguyen 133 § 7º O Estado como
entidade jurídico-pública
As competências pessoais representam um dos aspetos mais
nobres do exercício do poder político na esfera interna, incidindo
sobre o conjunto das pessoas que são os seus cidadãos, em relação
às quais o Estado define o respetivo estatuto jurídico-político, a
começar por quem o pode ser e por quem o não pode ser, se bem
que a ação do seu poder possa igualmente incidir sobre as restantes
pessoas que residam no respetivo território.
As competências territoriais, do mesmo modo vistas da ótica do
Estado, determinam que se lhe reconheça a capacidade de
livremente configurar o regime da utilização e aproveitamento dos
seus espaços geográficos. É unicamente o Estado a entidade com
senhorio territorial, aí projetando as suas leis, o mesmo é dizer, a
respetiva Ordem Jurídica.
V. A soberania externa do Estado, mantendo relações de
independência – ou seja, de não sujeição – e de igualdade de
direitos no seio da sociedade internacional, simboliza a liberdade
de as estruturas estaduais escolherem os seus vínculos contratuais
e diplomáticos, sem que se possa aceitar a existência de
autoridades que lhes sejam superiores, a não ser com o seu
consentimento, ou que esse resultado seja uma consequência lógica
da viabilidade da atuação internacional dos Estados166.
Porém, a realidade estadual, se é fácil de averiguar do ponto de
vista da soberania interna, no plano internacional enfrenta
hipóteses que se mostram mais variáveis, sendo os Estados
internamente sempre soberanos, mas no plano internacional tal
podendo nem sempre acontecer, no todo ou em parte, falando-se, a
este propósito, de duas categorias: – os Estados semissoberanos: os
Estados semissoberanos são Estados que, por várias razões, não se
apresentam com uma soberania plena na esfera das relações
internacionais167; e Quoc Dinh, Patrick Daillier e Alain Pellet, Droit
International Public, 7ª ed., Paris, 2002, pp. 463 e ss.; Wladimir
Brito, Direito Internacional Público, Braga, 2003, pp. 256 e ss.; Jorge
Bacelar Gouveia, Manual de Direito Internacional Público, 3ª ed.,
Coimbra, 2007, pp. 551 e 552, e Manual…, I, pp. 153 e 154.
166 Como se tem reconhecido num conjunto de proibições e de
mecanismos que permitem “civilizar” a sociedade internacional,
sendo este certamente o caso da proibição geral do uso da força,
hoje consagrada na CNU, após um longo debate jurídico e doutrinal.
Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, Manual…, pp. 643 e ss.
167 Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, Manual…, pp. 431 e ss.134 Estado
– os Estados não soberanos: os Estados não soberanos, embora
sendo verdadeiros Estados, somente o são assim na ordem
interna, carecendo na ordem internacional de capacidade de
atuação própria168.
VI. Os Estados semissoberanos – relativamente aos quais se
verifica, da ótica do Direito Internacional, mas que também assume
relevância para o Direito Constitucional, uma limitação na sua
capacidade – podem ter diversas causas, assim como atingir
aspetos daquela soberania internacional, devendo distinguir-se os
seguintes exemplos: – os Estados confederados;
– os Estados vassalos;
– os Estados protegidos;
– os Estados exíguos;
– os Estados neutralizados; e
– os Estados membros de organizações supranacionais.
VII. Os Estados não soberanos, nos quais apenas se assinala a
verificação da soberania interna, sendo verdadeiros Estados para o
Direito Constitucional, desdobram-se em duas modalidades
estruturalmente distintas, previstas nos respetivos textos
constitucionais169: – os Estados federados; e
– os Estados membros de uniões reais.
Os Estados federados, pertencentes a federações mais amplas, na
sequência do exemplo precursor dos Estados Unidos da América,
mantêm a sua soberania interna, com os poderes que a identificam,
incluindo o poder constituinte170, e estabelecem uma estrutura de
separação entre o nível estadual e o nível federal. Os Estados
federados, nesta sua versão, não são
168 Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, Manual…, pp. 434 e 435.
169 Cfr. Marcello Caetano, Manual de Ciência Política…, I, pp. 136
e ss.; Fausto de Quadros e Jorge Bacelar Gouveia, As relações..., pp.
10 e 11; Jorge Miranda, Curso de Direito Internacional Público, 2ª
ed., Cascais, 2004, pp. 192 e 193.
170 Não só os Estados federados que integram as Federações
adotam o nome de Constituição como se lhes reconhece a
radicalidade do respetivo poder, ainda que limitado, de um prisma
heterónomo, ao poder constituinte federal.135 § 7º O Estado como
entidade jurídico-pública
sequer sujeitos de Direito Internacional171, por terem
transferido a totalidade dos poderes de atuação internacional para
o nível federal.
Os Estados membros de uniões reais, que se inserem nestas
estruturas estaduais compósitas, mantêm a sua soberania interna,
ainda que limitada, mas diferentemente do que sucede com os
Estados federados, alguns dos órgãos daqueles podem ser comuns
à união real, numa lógica de fusão dos poderes estaduais
subjacentes com os poderes estaduais superiores.
33. O elemento espacial – o território
I. O elemento espacial do Estado consiste no domínio geográfico
em que o poder do Estado faz sentido, o que se denomina por
território estadual172, ou seja, uma parcela de espaço físico que se
submete ao respetivo poder político soberano, que também pode
tomar o nome de senhorio territorial ou de domínio eminente.
Tudo isto implicita que a atividade do Estado não pode nunca
desprender-se de um suporte físico, que é o seu território, embora
se discuta se o elemento territorial tem a mesma natureza
constitutiva dos outros elementos do Estado – o povo e a soberania
– ou se não será apenas uma condição da sua existência.
A importância do elemento espacial do Estado percebe-se
melhor através das várias funções que o território estadual é
chamado a desempenhar173: – a sede dos órgãos estaduais: é no
território que se situa a capital do Estado, que se pode transferir
para qualquer lugar em vista da melhor garantia do objetivo de
segurança externa;
171 Isso mesmo se confirma pelo exemplo do Estado do Ceará
(Brasil), em cuja Constituição, de 5 de Outubro de 1989, no
respetivo art. 14, proémio, se estipula que “O Estado do Ceará,
pessoa jurídica de Direito Público interno, exerce em seu território
as competências que, explícita ou implicitamente, não lhe sejam
vedadas pela Constituição Federal…”.
172 Sobre o território do Estado, v. Marcelo Rebelo de Sousa,
Direito Constitucional…, pp. 118 e ss.; Marcello Caetano, Manual de
Ciência Política…, I, pp. 125 e ss.; Reinhold Zippelius, Teoria…, pp.
108 e ss.; Hans Kelsen, Teoria Geral do Direito e do Estado, pp. 299
e ss.; Jorge Bacelar Gouveia, Manual…., pp. 545 e ss., e Manual…, I,
pp. 159 e ss.; Jorge Miranda, Manual…, III, pp. 236 e ss.
173 Cfr. Marcelo Rebelo de Sousa, Direito Constitucional…, pp.
123 e 124; Jorge Bacelar Gouveia, Manual…, I, p. 160.136 Estado
– o lugar de aplicação das políticas públicas do Estado, bem como
da residência da maioria dos seus cidadãos: a definição das
políticas públicas, sobretudo de cunho infraestrutural, leva em
consideração a extensão do território, beneficiando os
cidadãos desse mesmo Estado, propiciando mais elevados
níveis de bem-estar;
– a delimitação do âmbito de aplicação da ordem jurídica
estadual: é o território que traça as fronteiras da aplicação do
poder estadual, bem como dos outros poderes, que se
expressam na Ordem Jurídica que produzem e que têm a
missão de preservar e defender;
– o espaço vital de independência nacional: é o território que
favorece a permanência e a independência do Estado
relativamente aos respetivos inimigos, para além de ser um
espaço de construção da sua singularidade identitária.
II. O conceito de território estadual, na medida em que o mesmo
possa acolher a titularidade e o exercício de poderes de natureza
soberana, deve ser cuidadosamente apartado de outros conceitos
afins que do mesmo modo ligam o poder político ao espaço físico
onde o mesmo se projeta, sobretudo relevando do Direito
Administrativo174.
Um desses conceitos é o de domínio público do Estado e das
demais pessoas coletivas, que designa os direitos de utilização de
bens coletivos que, por causa da sua função, não podem ser objeto
de comércio privado, estando sujeitos a um severo regime de
imprescritibilidade e de inalienabilidade.
Outro conceito a referir é o do domínio privado do Estado e das
demais pessoas coletivas públicas, nele se sinalizando os direitos de
utilização de bens coletivos que, ao contrário daqueles primeiros
que inerem ao domínio público, permitem a sua entrada no
comércio privado, sujeitos à regra geral da disponibilidade jurídica.
Conceito ainda a aludir, sendo mais amplo, é o de domínio
privado das pessoas privadas, que não tem qualquer peculiaridade,
ao denominar os direitos reais comuns que se exercem sobre os
bens.
A diferença essencial entre estes conceitos cifra-se no facto de o
senhorio territorial exprimir, num plano mais abstrato, a aplicação
espacial do
174 Sobre estas noções, v. Jorge Bacelar Gouveia, A utilização
ilegal do domínio público hídrico pelos particulares: o caso das
construções clandestinas na Lagoa de Santo André, in Novos Estudos
de Direito Público, II, Lisboa, 2002, pp. 356 e ss.137 § 7º O Estado
como entidade jurídico-pública
Direito Estadual, ao passo que o domínio público e o domínio
privado são esquemas concretos de aproveitamento de bens que se
integram na esfera jurídica das pessoas coletivas públicas, mesmo
de entidades infraesta-duais.
III. No seu território soberano, o Estado organiza a
competência segundo três características fundamentais:

– a permanência: o poder do Estado é tido por duradouro e não


consubstancia qualquer situação de vigência limitada, pois que, se
assim fosse, não configuraria um verdadeiro poder estadual;
– a plenitude: o poder do Estado é exercido na máxima
potencialidade que se conhece, não se concebendo outra
modalidade mais ampla, podendo imaginar-se vários outros
direitos de natureza menor, mas que não podem almejar à
qualificação de direitos de soberania territorial;
– a exclusividade: o poder do Estado não é partilhável com mais
ninguém ao seu nível de soberania, sendo exercido somente
pelo Estado nesse domínio territorial e a esse título.

– a teoria do imperium pessoal, pela qual o direito sobre o


território se exerceria sobre as pessoas que nele se situassem
ou residissem;
– a teoria do direito real institucional, idêntica à primeira, mas
mitigada pela função dos serviços estaduais;
– a teoria da jurisdição ou senhorio, para a qual o direito sobre o
território afeta simultaneamente pessoas e bens, nunca se
equiparando a um direito real.
O desenvolvimento do território estadual tem vindo a confirmar
a correção da teoria do senhorio territorial, não ostentando as
características dos direitos reais porque não persiste qualquer
apropriação dos espaços, mas só uma difusa aplicação da Ordem
Jurídica estadual, sendo por isso inviáveis as teorias patrimoniais,
pessoais ou funcionais do território.

. A afirmação da evidência do território estadual não é ainda sufi-


ciente, porquanto a sua explicitação possibilita desfibrar a
existência de três modalidades, a primeira e a última inelutáveis,
sendo a segunda meramente eventual: – o espaço terrestre;
– o espaço marítimo; e
– o espaço aéreo.
O espaço terrestre corresponde à massa de terra seca,
continental ou insular, onde o Estado, os seus órgãos e os
respetivos cidadãos desenvolvem a sua atividade, espaço que, não
obstante aquela caracterização física, pode ainda incluir massas
líquidas, assim globalmente distribuídas: – a terra seca: a porção de
terra que se encontra acima do nível médio das águas;

– os cursos fluviais: as porções de água doce, assistidas de


corrente circulatória, que percorrem os meandros da terra
seca;
– os lagos e lagoas: as porções de água doce (nalguns casos de
regime internacional e não meramente interno), sem corrente
circulatória, que se encerram em espaços delimitados por terra
seca.
O espaço marítimo abrange a porção de água salgada que
circunda o território terrestre, nalguns casos podendo abranger
ainda o solo e o subsolo marítimos, de acordo com as seguintes
subcategorias: – as águas interiores: a porção de água salgada até
ao limite interno do mar territorial;
– o mar territorial: a porção de água salgada entre a linha de
baixa-mar e o limite exterior das 12 milhas, ou a partir do limite
exterior das águas interiores, quando seja caso disso, no que
também se inclui o solo e o subsolo subjacentes, ainda nesta
categoria se considerando, em certos casos, o regime especial
dos estreitos internacionais;
– a plataforma continental: o solo e o subsolo marítimos até às
200 milhas ou ao bordo exterior da plataforma continental, que
não deve exceder as 350 milhas;
– as águas arquipelágicas: a massa de água compreendida
entre a linha da baixa-mar e o perímetro arquipelágico
exterior, nos casos de Estados totalmente constituídos por
ilhas, nelas se exercendo poderes preferenciais de
aproveitamento de pesca, mas apenas concorrentes na
navegação e na instalação de cabos e oleodutos, numa situação
em que se registam significativos limites à soberania marítima.

O espaço aéreo abrange a camada de ar sobrejacente aos espaços


terrestres e marítimos submetidos à soberania estadual, até a um
limite superior a partir do qual se considera existir o espaço
exterior, aí vigorando um regime internacional, e não já de
soberania interna.
Assim, todo o espaço aéreo nacional está submetido à ação do
Estado, que pode realizar o seu aproveitamento, autorizando e
impedindo a circulação das aeronaves, tal como outras eventuais
utilizações.
O principal título jurídico deste tipo de espaço vem a ser o Direito
Interno de cada Estado a que respeita, mas também é possível que
essas indicações sejam complementadas por outros títulos
jurídicos, internos e internacionais.
Alguns desses princípios e preceitos considerados aplicáveis
encontram-se em disposições da CNUDM que versam sobre os
espaços marítimos que genericamente se adequam à soberania
estadual, este tratado internacional acessoriamente avançando
para a definição de regras aplicá141 § 7º O Estado como entidade
jurídico-pública
veis a espaços que não têm a consistência daqueles, como é o que
se passa com o espaço aéreo nacional.
O mais relevante instrumento internacional – porque
especificamente concebido para regular os espaços aéreos
nacionais – acaba indiscutivelmente por ser a CCACI181, a qual
estabeleceu, desde 7 de dezembro de 1944, as normas e os
princípios fundamentais em matéria de Direito Aéreo, na base da
partilha das diversas soberanias nacionais.
Este espaço aéreo nacional não deve ser confundido com uma
outra qualidade de espaço aéreo – este já internacional – que
corresponde à massa de ar, até ao limite inferior do espaço exterior,
em que se assinala um regime puramente internacional, sendo a
projeção superior de espaços terrestres ou marítimos onde não se
exerce qualquer soberania territorial.
VIII. O território do Estado, que se compõe por estes diversos
espaços, naturalisticamente diferenciados, não permite ainda
determinar a totalidade das situações de exercício do poder
estadual.
É possível observar casos em que existem poderes menos
intensos, que não são de soberania, mas que expressam, todavia,
importantes vias de aproveitamento ou exploração182, para lá dos
poderes de jurisdição e de fiscalização, numa por vezes intrincada
rede de direitos e deveres183: – a zona contígua: espaço marítimo
delimitado entre as 12 e as 24 milhas, a seguir ao mar territorial,
em que o Estado costeiro pode exercer poderes de fiscalização com
vista a evitar ou reprimir violações às suas leis e regulamentos
internos;
– a zona económica exclusiva: espaço marítimo delimitado entre
as 12 e as 200 milhas, a seguir ao mar territorial, nela o Estado
exercendo direitos preferenciais de aproveitamento dos
recursos biológicos vivos aí existentes, para além de poderes
de jurisdição e de fiscalização.
IX. Como o Estado igualmente assume uma vertente de
relacionamento internacional, é ainda apropriado considerar que
lhe está permitido
181 Cfr. o respetivo texto em Jorge Bacelar Gouveia,
Organizações Internacionais – Textos Fundamentais, 1ª ed., Lisboa,
1991, pp. 145 e ss.
182 Os quais, no dizer de Hans Kelsen (Teoria Geral do Direito e
do Estado, p. 306), não se submetem à característica da
“impenetrabilidade”.
183 Sobre estes espaços mistos, v. Jorge Bacelar Gouveia,
Manual…, pp. 599 e ss. 142 Estado
um uso livre, dentro dos limites gerais estabelecidos pelo Direito
Internacional, dos espaços internacionais184, que são também de
três naturezas: – ou espaços terrestres, em que o Estado pode
desenvolver diversas atividades em igualdade e liberdade com os
outros Estados, situação que atualmente apenas se exemplifica pela
Antártida, dado o completo aproveitamento dos espaços terrestres
pelas diversas autoridades estaduais que foram gradualmente
ocupando as faixas de terra seca, no Globo progressivamente
descobertas;
– ou espaços marítimos, neles o Estado podendo fazer navegar
navios que arvoram a sua bandeira ou desenvolver quaisquer
atividades permitidas, podendo tais espaços corresponder ao
alto mar, à zona económica exclusiva (considerando apenas a
vertente de navegação) e à área;
– ou espaços aéreos, em que o Estado pode efetuar os
aproveitamentos inerentes à atividade aeronáutica e à
atividade radioelétrica, concretizando-se tais espaços no
espaço aéreo internacional e no espaço exterior.
184 Sobre os espaços internacionais em geral, na sua
diversidade geográfica e jurídica, v., de entre outros, Bin Cheng,
Studies in International Space Law, Oxford, 2004.
A CARACTERIZAÇÃO DO ESTADO DE MOÇAMBIQUE
34. O Estado de Moçambique
I. Em termos constitucionais, o Estado de Moçambique é
autorreferenciado com uma ampla definição que, pela sua
centralidade, vale a pena transcrever, em dois preceitos iniciais e
lapidares da CRM: – República de Moçambique: “A República de
Moçambique é um Estado independente, soberano, democrático e
de justiça social”185;
– Estado de Direito Democrático: “A República de Moçambique é
um Estado de Direito, baseado no pluralismo de expressão, na
organização política democrática, no respeito e garantia dos
direitos e liberdades fundamentais do Homem”186.
II. São vários os princípios constitucionais que configuram o
Estado de Moçambique na sua caracterização jurídico-
constitucional, os quais cumpre elencar:– Estado de Direito;
– Estado Republicano;
– Estado Democrático;
– Estado Soberano;
– Estado Social187.
185 Art. 1 da CRM.
186 Art. 3 da CRM.
187 Para uma caracterização geral do Estado de Moçambique, v.
AAVV, Conflito e Transformação Social: uma Paisagem das Justiças
em Moçambique (orgs. Boaventura de Sousa Santos e João Carlos
Trindade), II vol., Maputo, 2003, pp. 593 e ss.; AAVV, Moçambique e
a Reinvenção
144
Estado
Os preceitos em questão devem ser lidos em conjunto com
outros preceitos iniciais do texto constitucional que dão uma mais
ampla noção dos diversos princípios constitucionais do Direito de
Moçambique.
Alguns desses traços fundamentais serão desenvolvidos no
capítulo deste livro referente aos princípios constitucionais.
III. O estatuto constitucional da língua é outra dimensão que
contribui para a caracterização geral do Estado de Moçambique,
tendo a CRM a preocupação específica de fixar duas disposições a
este propósito: – Línguas nacionais: “O Estado valoriza as línguas
nacionais como património cultural e educacional e promove o seu
desenvolvimento e utilização crescente como línguas veiculares da
nossa identidade”188;
– Língua oficial: “Na República de Moçambique, a língua
portuguesa é a língua oficial”189.
A principal orientação que se deduz deste segundo preceito
constitucional – que consiste na indicação do português como língua
oficial – não impede e até obriga mesmo o Estado a promover, pelo
sistema de ensino e não só, as demais línguas: as línguas nacionais
de Moçambique, que correspondam às suas diversas áreas
linguísticas, em associação com as suas regiões étnico-culturais.
Um exemplo disso mesmo pode encontrar-se no RAR190, no
qual se afirma o português como língua de trabalho por ser a língua
oficial, mas em que também se pode utilizar a língua nacional: “O
Deputado pode requerer exprimir-se numa língua nacional
providenciando-se a tradução simultânea”191.
Tal não significa que o português como língua oficial perca
relevância ou que pelo facto de se valorizarem as línguas nacionais
ou línguas de trabalho aquela língua fique secundarizada. da
Emancipação Social (org. Boaventura de Sousa Santos e Teresa
Cruz e Silva), Maputo, 2004, pp. 5 e ss.
188 Art. 9 da CRM.
189 Art. 10 da CRM.
190 O RAR estabelece ainda a possibilidade do uso da língua
oficial dos respetivos países, no caso de visitantes e convidados
(art. 14 do RAR), bem como o uso de linguagem específica por parte
de Deputado com deficiência (art. 15 do RAR).
191 Art. 13, nº 1, do RAR.
145
§ 8º A caracterização do Estado de Moçambique
Antes pelo contrário: como referem Raul Araújo e Elisa Rangel
Nunes, para semelhante preceito existente na CRA, “Com este
artigo, a CRA consagra a língua portuguesa como língua oficial da
República e dá, igualmente, a esta língua o estatuto de língua
nacional”192.
Trata-se, sim, de fazer um esforço adicional de dotar os recursos
humanos do Estado, mas também os membros da comunidade
política, de novas ferramentas de comunicação linguística que
podem servir novos propósitos – feita a construção do Estado e da
Nação a partir da língua portuguesa português – de maior soli-
dariedade inter-regional interna e de reconhecimento das
autonomias tradicionais.
IV. O nome de Moçambique supõe-se ter origem na corruptela
Mussa Bin Mbiki ou Mussa Ali Mbiki, possível nome de um sultão que
dominava a Ilha de Moçambique quando abordada pelos
Portugueses, capitaneados por Vasco da Gama193.
35. Os cidadãos moçambicanos
I. Do ponto de vista do elemento humano, o Estado Moçambicano
– como, de resto, qualquer estrutura estadual – só faz sentido ao
assentar no conjunto das pessoas que se lhe vinculam por um laço
jurídico-público de cidadania: os cidadãos moçambicanos194.
Trata-se de uma qualidade jurídica de feição complexa, nela se
perspetivando múltiplas e heterogéneas posições jurídico-
públicas, que substanciam uma relação estrutural do Estado
enquanto agremiação de pessoas com um destino coletivo, as quais
dão sentido a um projeto de poder político, tomando por referência
a Nação subjacente195.
192 Raul Araújo e Elisa Rangel Nunes, Constituição…, p. 244.
193 Cfr. Pedro Borges Graça, A construção…, p. 57, nt. nº 66.
194 Numa estimativa, em 2012, de cerca de 20 900 000
habitantes.
195 Discutindo as questões da construção do Estado e da Nação
em Angola a partir da sociedade civil, o que pode ter interesse para
a mesma problemática em Moçambique, v. Armando Marques
Guedes, Sociedade Civil e Estado em Angola – o Estado e a Sociedade
Civil sobreviverão um ao outro?, Coimbra, 2005, pp. 67 e ss.; Carlos
Feijó, O papel do Estado na construção da Nação angolana – unidade,
cidadania e tolerância, in Problemas Actuais de Direito Público
Angolano – contributos para a sua compreensão, Cascais, 2001, pp.
98 e ss.146 Estado
II. A relevância constitucional da cidadania moçambicana como
substrato humano da estrutura estadual surge referenciada a
diversos propósitos, se bem que com intensidades regulativas
desiguais, avultando no texto da CRM um título inteiramente
dedicado ao assunto, embora também seja muito relevante uma lei
ordinária196: – o Título II, sobre “Nacionalidade”; e
– a Lei da Nacionalidade (LN), diploma de 1975, alterado pela L
nº 2/82, de 6 de abril, e pela L nº 16/87, de 21 de dezembro.
III. O texto constitucional moçambicano ainda confere um relevo
particular aos antigos combatentes, distinguindo duas categorias
que absorvem os dois períodos da história do país, no período
colonial e no período I República: – os combatentes da luta de
libertação nacional, durante o período colonial; e
– os combatentes da defesa da soberania e da democracia, no
período da I República.
A CRM dedica uma disposição específica ao assunto, nos
seguintes termos:
Artigo 15
(Libertação nacional, defesa da soberania e da democracia)
1. A República de Moçambique reconhece e valoriza os
sacrifícios daqueles que consagraram as suas vidas à luta de
libertação nacional, à defesa da soberania e da democracia.
2. O Estado assegura proteção especial aos que ficaram
deficientes na luta de libertação nacional, assim como aos órfãos
e outros dependentes daqueles que morreram nesta causa.
3. A lei determina os termos de efetivação dos direitos fixados
no presente artigo.
A L nº 16/2011, de 10 de agosto197, viria a explicitar a “…a base
jurídica para a prossecução, defesa e proteção dos direitos e
deveres do Veterano
196 Sobre as leis da nacionalidade nos países lusófonos, v.
Feliciano Barreiras Duarte, As leis da nacionalidade dos Estados-
Membros da CPLP, Lisboa, 2014, pp. 13 e ss.
197 Diploma que, pelo seu art. 38, revogou a L nº 3/2002, de 17
de janeiro, que consagrava, mais limitadamente, o Estatuto do
Combatente da Luta de Libertação Nacional. 147 § 8º A
caracterização do Estado de Moçambique
da Luta de Libertação Nacional e do Combatente da Defesa da
Soberania e da Democracia”198.
É um diploma legal importante e que finalmente viria regular
delicadas questões cuja solução se arrastava no tempo sem
absoluto consenso, com a seguinte sistematização:
– Capítulo I – Disposições gerais
– Capítulo II – Direitos do combatente
– Capítulo III – Deveres
– Capítulo IV – Disposições finais
IV. A ligação das pessoas à República de Moçambique pode ainda
ser dignificada de um modo especial através do Sistema de Títulos
Honoríficos e Condecorações, que foi estabelecido pela L nº
10/2011, de 13 de julho.
Na distinção fundamental que se opera entre os títulos e as
condecorações, sobressai a importância destas, havendo a elencar
as seguintes, que se destinam a reconhecer os altos serviços
prestados a Moçambique199: – Ordem Eduardo Chivambo
Mondlane;
– Ordem Samora Moisés Machel;
– Ordem 25 de Junho;
– Ordem Militar 25 de Setembro;
– Ordem 4 de Outubro;
– Ordem Amizade e Paz.
36. O poder público soberano moçambicano
I. O elemento funcional estruturante do Estado Moçambicano,
que diz respeito à natureza do poder público que lhe está atribuído,
não faz sobrar qualquer dúvida sobre a sua feição soberana.
Isso é mencionado em diversos passos da CRM, nos quais se
sublinha a ideia comum do caráter soberano do poder político,
genericamente representado pela República de Moçambique como
uma “…República (…) soberana…”200 e que a “A soberania reside
no povo”201.
198 Art. 2 da L nº 16/2011, de 10 de agosto.
199 Cfr. o art. 11, nº 1, al. b), da L nº 10/2011, de 13 de julho.
200 Art. 1 da CRM.
201 Art. 2, nº 1, da CRM. 148 Estado
Esta mesma conclusão é reforçada pela opção fundamental que
o texto constitucional fez no sentido do unitarismo como esquema
de estruturação do Estado Moçambicano, evidenciando-se esse
elemento em preceito constitucional autónomo: “A República de
Moçambique é um Estado unitário, que respeita na sua organização
os princípios da autonomia das autarquias locais”202.
II. Da perspetiva da explicitação da origem deste poder estadual,
tomando por referência o critério da sua primariedade, registe-se
que são múltiplos os elementos normativo-constitucionais que o
comprovam.
Primeiro, a própria ideia de o texto constitucional ser o produto
da vontade do povo soberano, tal como ela vem a ser apresentada
no preâmbulo da CRM: “A presente Constituição reafirma,
desenvolve e aprofunda os princípios fundamentais do Estado
moçambicano, consagra o caráter soberano do Estado de Direito
Democrático, baseado no pluralismo de expressão, organização
partidária e no respeito e garantia dos direitos e liberdades
fundamentais dos cidadãos”203.
Depois, a nitidez da afirmação do princípio da
constitucionalidade, que interessa aqui não tanto sob o prisma da
superioridade hierárquico-formal do texto constitucional quanto
sobretudo por inculcar o sentido de que a lei constitucional é o ato
fundador da Ordem Jurídica Estadual, ao dizer-se que “A soberania
reside no povo”204.
Finalmente, é de referir todas as limitações que a CRM apresenta
quando permite a manifestação do poder de revisão constitucional,
através de uma extensa cláusula de limites materiais de revisão
constitucional, nela não olvidando a “independência, a soberania e
a unidade do Estado” como o primeiro desses limites205.
III. Atendendo às duas vertentes da soberania estadual, o Estado
de Moçambique é duplamente definido como soberano na ordem
interna e
202 Art. 8 da CRM.
203 4º § do preâmbulo da CRM.
204 Art. 2, nº 1, da CRM.
205 Cfr. o art. 292, nº 1, al. a), da CRM. 149 § 8º A caracterização
do Estado de Moçambique
na ordem externa, assinalando-se as marcas que comprovam tal
especial modalidade de poder político, que é o poder político
soberano: – ao nível interno, todos devem obediência ao Estado
através da sua Constituição, dado que a constitucionalidade dos
atos jurídicos praticados depende da conformidade com o
respetivo texto constitucional206;
– ao nível externo, as relações internacionais de Moçambique
devem pautar-se por importantes princípios, sendo um deles o
do “…respeito mútuo pela soberania e integridade
territorial”207.
IV. A confirmar tudo quanto se refere está ainda o facto de a
soberania moçambicana, no plano interno, não ser motivo para
impedir outros esquemas de organização política.
É verdade que se afirma o princípio da unidade do Estado, não
apenas na própria definição do Estado de Moçambique como
noutros preceitos constitucionais208.
Simplesmente, essa conclusão acomoda no seu seio esquemas de
descentralização administrativa, de diversa índole: – de
descentralização administrativa geral, ligada a toda a
Administração Pública, de base territorial ou não;
– de descentralização territorial local, através da criação de
organismos do Poder Local209.
V. No relacionamento internacional, a soberania moçambicana é
compatível com a adoção de compromissos internacionais, assim
como a sua pertença a várias instâncias internacionais, que nele
projetam os respetivos ordenamentos jurídicos.
A CRM confere uma especial ênfase à cooperação entre Estados
e Povos de África e da Lusofonia: “A República de Moçambique
mantém laços especiais de amizade e cooperação com os países da
região, com os países
206 Cfr. o art. 2, nºs 3 e 4, da CRM.
207 Cfr. o art. 17, nº 1, da CRM.
208 Cfr. o art. 8 da CRM.
209 Cfr. o art. 8 da CRM, formando mesmo os preceitos atinentes
ao “Poder Local” um título à parte na sistematização constitucional,
o Título XIV.150 Estado
de língua oficial portuguesa e com os países de acolhimento de
emigrantes moçambicanos”210.
37. O território moçambicano
I. É com a preocupação de delimitar o território nacional de
Moçambique que a CRM lhe reserva preceito próprio, assim
esclarecendo os seus diversos espaços, em artigo dedicado ao
“Território”, com duas dispo-sições: – território em geral: “O
território da República de Moçambique é uno, indivisível e
inalienável, abrangendo toda a superfície terrestre, a zona
marítima e o espaço aéreo delimitados pelas fronteiras nacio-
nais”211;
– espaço marítimo em especial: “A extensão, o limite e o regime
das águas territoriais, a zona económica exclusiva, a zona
contígua e os direitos aos fundos marinhos de Moçambique são
fixados por lei”212.
Numa palavra: o território moçambicano inclui as três categorias
possíveis que ficaram assinaladas, que são o território terrestre213,
o território marítimo e o território aéreo.
II. No tocante ao espaço terrestre, a CRM preferiu o método da
cláusula geral na sua delimitação, em detrimento do método
tipológico alternativo para localizar certas zonas territoriais214,
referindo-se a toda a “superfície terrestre (…) delimitados pelas
fronteiras nacionais”.
Em rigor, o território terrestre não configura apenas uma
dimensão superficial, mas inclui também a profundidade desse
mesmo território.
210 Art. 21 da CRM.
211 Art. 6, nº 1, da CRM.
212 Art. 6, nº 2, da CRM.
213 O território terrestre moçambicano tem uma extensão de
799.380 km².
214 Resta ainda mencionar que, mesmo não tendo sido
individualizados, os espaços lacustres e fluviais, integrados na
superfície terrestre, ficam automaticamente sendo pertença do
território terrestre.
7. A forma institucional de governo em geral

I. Um outro modo de ver a caracterização do poder político


estadual, tal como ele se define num texto constitucional, é o da
forma institucional de governo, conceito que designa a configuração
da faceta simbólica do poder público, na sua simultânea relação
com o exercício dos cargos públicos, maxime da Chefia do
Estado366.
Nestes termos, a forma institucional de governo não se refere
tanto à repartição de poderes entre os diversos órgãos do Estado,
ou às relações destes com outros organismos infraestaduais ou
supraestaduais, como essencialmente à vertente institucional do
poder político, lado a lado com a imagem que dele têm os cidadãos.
No entanto, é curial referir que a importância dogmático-
constitucional da forma institucional de governo – outrora motivo
de grandes disputas constitucionais – se esvaziou com o tempo, não
se localizando já nos debates de primeira linha, depois da
estabilização constitucional dos Estados dentro das tradições
políticas que foram criando, bem diferentemente do que sucedeu
nos tempos do Liberalismo oitocentista.
II. Não é recente, sendo ao invés bem antiga, a preocupação da
Teoria e da Dogmática do Direito Constitucional na apresentação
dos termos possíveis da classificação de forma institucional de
governo, contrariamente do que sucede, v. g., com as formas
políticas de governo.
366 Sobre as formas institucionais de governo, bem como as
respetivas opções monárquicas e republicanas, v., por todos, Jorge
Bacelar Gouveia, Manual…, II, pp. 844 e ss

7. A forma institucional de governo em geral

I. Um outro modo de ver a caracterização do poder político


estadual, tal como ele se define num texto constitucional, é o da
forma institucional de governo, conceito que designa a configuração
da faceta simbólica do poder público, na sua simultânea relação
com o exercício dos cargos públicos, maxime da Chefia do
Estado366.
Nestes termos, a forma institucional de governo não se refere
tanto à repartição de poderes entre os diversos órgãos do Estado,
ou às relações destes com outros organismos infraestaduais ou
supraestaduais, como essencialmente à vertente institucional do
poder político, lado a lado com a imagem que dele têm os cidadãos.
No entanto, é curial referir que a importância dogmático-
constitucional da forma institucional de governo – outrora motivo
de grandes disputas constitucionais – se esvaziou com o tempo, não
se localizando já nos debates de primeira linha, depois da
estabilização constitucional dos Estados dentro das tradições
políticas que foram criando, bem diferentemente do que sucedeu
nos tempos do Liberalismo oitocentista.
II. Não é recente, sendo ao invés bem antiga, a preocupação da
Teoria e da Dogmática do Direito Constitucional na apresentação
dos termos possíveis da classificação de forma institucional de
governo, contrariamente do que sucede, v. g., com as formas
políticas de governo.
366 Sobre as formas institucionais de governo, bem como as
respetivas opções monárquicas e republicanas, v., por todos, Jorge
Bacelar Gouveia, Manual…, II, pp. 844 e ss.
§ 13º O princípio do Estado Republicano
229
É na Antiguidade Clássica que se encontraram as formulações
mais recuadas, tanto em Platão como em Aristóteles: – Platão
distinguia as formas de governo em razão do número dos
governantes, bem como da consideração ética do respetivo
exercício, numa distinção entre boas e más formas de governo:

monarquia ou tirania, conforme o poder de um só fosse conforme


à lei ou atuasse sob o impulso da avidez ou da ignorância;
aristocracia ou oligarquia, conforme o governo de vários
respeitasse a lei ou não; democracia ou demagogia, conforme o
governo do povo agisse segundo o Direito ou, em decadência, fosse
o governo sem lei nem limite;
– Aristóteles368, recebendo o legado platónico, apresentaria
uma trilogia de formas de governo em razão do número de
governantes, assim como em nome de considerações éticas no
exercício do poder, dissociando o grupo das formas sãs do
grupo das formas degeneradas369: as formas sãs eram a
realeza (monarquia), a aristocracia e a politeia (“regime
constitucional”), quando procuravam o bem comum; as formas
viciosas ou degeneradas eram a tirania, a oligarquia e a
democracia (demagogia), procurando, não o bem comum, mas
vantagens para os próprios titulares do poder370.
III. Com a Idade Moderna, outro importante contributo foi dado
por Nicolau Maquiavel371, que, reapreciando estas anteriores
classificações, simplificou-as e propugnou somente a distinção
entre a monarquia (principado) e a república, sendo esta a mais
recente identificação com o atual
367 Ainda que na parte final da sua vida, no livro Leis, tenha
reduzido a sua tricotomia a apenas uma dicotomia entre
monarquia e democracia.
368 Aristóteles, Política, pp. 211 e ss.
369 Como refere Aristóteles (Política, p. 211): “Quando o único,
ou os poucos, ou os muitos, governam em vista do interesse
comum, esse regimes serão necessariamente retos. Os regimes em
que se governa em vista do único, dos poucos, ou dos muitos são
trans-viados.”
370 Aristóteles (Política, p. 213): “Os três desvios
correspondentes são: a tirania em relação à realeza; a oligarquia
em relação à aristocracia; a democracia em relação ao regime
constitucional. A tirania é o governo de um só com vista ao
interesse pessoal; a oligarquia é a busca do interesse dos ricos; a
democracia visa o interesse dos pobres. Nenhum destes regimes
visa o interesse da comunidade”.
371 Cfr. Nicolau Maquiavel, O Príncipe, pp. 8 e ss., e Discourses…,
pp. 7 e ss.
Princípios Fundamentais
230
fenómeno da forma institucional de governo, dicotomia que ele
próprio admitia fundar-se em três distintos critérios: – no tocante
ao número de governantes, a monarquia como poder de um só
indivíduo, ao passo que a república seria o poder exercido por um
colégio de personalidades, incluindo mesmo o colégio de todos os
eleitores;
– no tocante à fonte do poder, a monarquia representaria o
exercício do poder por direito próprio do monarca, ao passo
que a república assentaria na ideia de que o poder pertenceria
ao povo ou nação, sendo delegado no conjunto dos
governantes;
– no tocante à simbologia da chefia do Estado, a monarquia
corresponderia a um chefe de Estado hereditário, enquanto a
república proibiria que isso sucedesse nesses termos.
IV. Caberia ainda a Charles de Montesquieu uma outra
intervenção neste tema, propondo uma distinção tripartida, ainda
com base em dois critérios que se aproximariam do atual e distinto
conceito de forma política de governo, em termos bem diversos
daqueles que seriam anteriormente experimentados: – a
monarquia como o governo de um só, segundo leis fixas e
estabelecidas;
– a república como o governo de uma parte ou do todo, segundo
leis gerais;
– o despotismo como o governo de um só, segundo leis arbitrárias.
V. Concretizando historicamente a relevância desta opção
constitucional que qualquer Estado toma, sem esquecer a
experiência adquirida nestes dois séculos de Constitucionalismo,
concluiu-se que a forma institucional de governo se projetaria em
três linhas regulativas fundamentais372: – na nomenclatura da
realidade política estadual;
– no critério de escolha dos governantes em geral e na escolha
do Chefe de Estado em particular; e
– na duração e na renovação dos cargos públicos em geral.
O resultado viria depois a simplificar-se através da apresentação
dicotómica das possíveis formas institucionais de governo entre a
monarquia e a república.
372 Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, Manual…, II, pp. 847 e 848.231 §
13º O princípio do Estado Republicano
Esta síntese dos critérios que foram decantados
subjacentemente à forma institucional de governo permitiu, ao
mesmo tempo, remeter para a forma política de governo o
problema mais vasto da liberdade no exercício do poder político,
incluindo a consideração da relação entre governantes e
governados373.
VI. Importa finalmente destrinçar este sentido de “república”, na
sua oposição à “monarquia”, do sentido etimológico clássico que
durante muito tempo o acompanhou como respublica, equivalendo
a “coisa pública”, com o significado da construção de um interesse
público por contraponto aos interesses particulares374.
Ora, nessa aceção, a respublica em nada se assimila à forma
institucional republicana que se popularizaria a partir do
Constitucionalismo Contemporâneo e antes se direcionou na
construção da personalidade jurídico-institucional do Estado.

. As formas monárquicas de governo


I. As formas institucionais monárquicas de governo foram as
primeiras a desenvolver-se no Direito Constitucional e dominaram
o panorama histórico até precisamente ao nascimento do
Constitucionalismo e do Liberalismo.
A essência da monarquia radica no tipo de critério para a escolha
do titular do cargo de Chefe de Estado, assentando no facto de, por
força da aplicação daquele princípio monárquico, a respetiva
sucessão ser de cunho hereditário, segundo os laços familiares, com
ou sem lei sálica, de acordo com as preferências de linha e de grau.
A monarquia igualmente se pode conceber em relação a outros
cargos públicos, agora já pelo princípio aristocrático, como sua
extensão, pertinente à vontade régia de determinar a escolha de
outros titulares de ofícios públicos, fundamentalmente no âmbito
dos títulos nobiliárquicos.
373 Como escrevia, no princípio do século XX, José Ferreira
Marnoco e Sousa, grande constitucionalista português do
Liberalismo (Direito Político, Coimbra, 1910, pp. 199 e 200), “A
forma de governo é republicana, quando o Chefe de Estado é eleito
em períodos juridicamente pré-fixados; é monárquica, quando o
Chefe de Estado ocupa durante toda a vida o seu cargo, que depois
passa para o seu legítimo sucessor”.
374 Cfr. Marcello Caetano, Manual de Ciência Política…, I, p. 7.
232 Princípios Fundamentais
Em formulações mais recentes, a monarquia ainda passou a
compreender outras dimensões, como o exercício vitalício dos
cargos públicos.
II. A despeito da facilidade da construção de um modelo mais ou
menos uniforme, seria uma grande estultícia pensar que as formas
monárquicas se pudessem explanar sem modelações específicas
em função da respetiva aceitação num dado sistema político.
É o momento de esquematizar as que são determinantes para a
respetiva compreensão375: – a monarquia romana: foi este o
modelo vigente no primeiro período do Estado Romano, em que a
sucessão do rex surgia determinada por um critério eletivo, este
governando em conjunto com os outros poderes, legislativos e
judiciais376;
– a monarquia feudal: foi este o modelo que se viveu na Idade
Média, em cujo enquadramento o rei governava no contexto de
outros poderes, mas jamais com poderes amplos377, sendo
hereditária e situando-se na lógica do sistema político do
feudalismo;
– a monarquia limitada: foi este o modelo que prevaleceu no
período estamental do Estado Moderno, em que o rei, em
recuperação de estatuto, se contrapunha às ordens sociais, com
assento nos parlamentos, e de que foi grande exemplo a
monarquia britânica no lento processo de afirmação dos
diversos textos constitucionais que progressivamente lhe
limitariam a atividade jurídico-pública;
– a monarquia absoluta: foi este o modelo da Idade Moderna
tardia, em que se verificou o crescimento dos poderes régios de
intervenção, ao mesmo tempo que se apagariam os outros
poderes, no contexto do Estado absoluto;
– a monarquia cesarista: foi este o modelo especificamente vivido
no tempo do constitucionalismo napoleónico, em que a posição
jurí
375 Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, Manual…, II, pp. 849 e ss.
376 Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, Manual…, I, pp. 183 e 184.
377 Ainda que numa primeira fase a monarquia visigótica
europeia tivesse sido eletiva, como no-lo recorda F. P. de Almeida
Langhans, Estudos de Direito, pp. 225 e ss., ou Marcello Caetano,
História do Direito Português, 4ª ed., Lisboa/São Paulo, 2000, pp. 93
e ss.
Mas tal princípio eletivo, fundado na decisão dos concílios,
segundo a Lex Visigothorum, acabou por desaparecer, dando lugar
a um princípio hereditário. 233 § 13º O princípio do Estado
Republicano
dico-constitucional do “imperador dos franceses” se
reivindicava de uma legitimidade popular, de tipo plebiscitário, não
hereditária ou religiosa;
– a monarquia constitucional: foi este o modelo que permitiu a
conciliação entre a antiga monarquia absoluta e o novo regime
constitucional, sendo o texto da Constituição outorgado pelo
rei, que assim aceita a limitação em que aquele sempre
consiste, ao fixar as competências da instituição régia;
– a monarquia parlamentar: foi este o modelo que, numa fase
mais amadurecida do Liberalismo e em que a monarquia
passou a conhecer já os primeiros declínios, traduziu o
compromisso entre a manutenção da instituição monárquica,
cada vez mais contestada, e a sua crescente limitação
procedimental e material em aplicação da teoria da separação
dos poderes, realçando-se a posição do Parlamento como órgão
representativo, por excelência, dos cidadãos;
– a monarquia simbólica (ou democrática)378: é este o modelo
que atualmente predomina nos sistemas constitucionais
democráticos, não possuindo o rei quaisquer poderes efetivos
de intervenção política e remetendo-se ao lado simbólico,
sobretudo preponderante em Estados com profundos
problemas de identidade nacional379.
III. Uma análise dos principais textos constitucionais
estrangeiros mostra a importância da forma monárquica de
governo, verificando-se que certos Estados permaneceram fiéis à
sua tradição constitucional – como o caso do Reino Unido, que
nunca abandonou a monarquia (com uma curta exceção) – ou que,
pelo contrário, introduziram a monarquia em rutura com o
passado, depois de a terem abandonado – foi o que fez
recentemente a Espanha, cuja CE voltaria a consagrar a monarquia
depois de a mesma ter sido abolida.
378 Como lhe chama Reinhold Zippelius (Teoria…, p. 210):
“Quando os monarcas hereditários perderam a soberania das
competências, transferindo-se esta, na monarquia parlamentar,
para a representação do povo, manteve-se igualmente em relação
a esta forma de Estado a designação de monarquia, embora se trate
aqui, e no sentido da classificação clássica, já não de uma
monarquia, mas sim de uma democracia”.
379 Os Estados do Norte da Europa oferecem alguns bons
exemplos, a começar pelo Reino Unido. 234 Princípios
Fundamentais
Em todos estes casos, num contexto de sistemas constitucionais
monárquicos, os poderes régios são protocolares, ainda que com
uma ou outra flutuação, mas dentro do modelo da monarquia
constitucional simbólica.

As formas republicanas de governo


I. As formas institucionais republicanas de governo,
contrariamente às formas institucionais monárquicas, são muito
mais tardias e surgiram com particular vigor no contexto do
Constitucionalismo, altura em que nasceriam outros esquemas de
organização do poder público380.
Mas esta afirmação do conceito de república não foi
propriamente uma absoluta novidade, antes a revitalização de um
conceito antigo, ainda que no novo prisma da limitação liberal do
poder público.
II. Simplesmente, não deixa de ser curiosa a verificação de que o
princípio republicano, afirmado também no ideário
constitucionalista, foi dos que mais tarde – e mais paulatinamente
– lograriam obter aceitação nos textos constitucionais que foram
aparecendo um pouco por toda a parte.
E até podemos mesmo dizer que a ideia republicana, como o
atesta a Alemanha ou o Portugal no século XX, correspondeu ao
último dos princípios a penetrar nos textos constitucionais, pelo
menos se comparado com os outros princípios na mesma altura
defendidos doutrinariamente e depois normativamente
consagrados.

A república representa, na sua essência, a aceitação de que a


Chefia do Estado deve ser atribuída a um órgão, unipessoal ou
colegial, que se mostre democraticamente legitimado, mais contra a
conceção monárquica da chefia do Estado do que propriamente a
favor de uma conceção estrita e certa da representação dessa
função estadual.
A ideia republicana, se a princípio concentrada na chefia do
Estado, acabou por alargar-se aos cargos públicos, impondo uma
dimensão de democraticidade e de temporalidade no tocante ao
respetivo exercício, cujo critério de escolha, no plano dos mandatos,
se condiciona à vontade popular, além da necessidade de uma
escolha para um mandato determinado, temporário e jamais
vitalício.
380 Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, Manual…, II, pp. 852 e ss.235 §
13º O princípio do Estado Republicano
De alguma sorte, esta dimensão da temporariedade dos cargos
completa o princípio republicano no seu específico enfoque da chefia
do Estado, porquanto amplia as virtualidades do princípio
democrático a outras paragens, confirmando, este aspeto, a
proibição do princípio aristocrático.

A democraticidade e a temporariedade dos cargos públicos em


Moçambique
I. No caso do Direito Constitucional Moçambicano, o princípio
republicano concretiza-se logo no facto de haver um Presidente da
República, democraticamente legitimado, com um conjunto de
competências constitucionais efetivas.
A designação do Presidente da República é feita por eleição, para
um mandato de cinco anos381.
O Presidente da República dispõe de várias competências, para a
prática de atos próprios e para a prática de atos relacionados com
outros órgãos, além de ser o primeiro órgão de soberania a constar
do Título VI do texto da CRM, com tudo quanto isso implica de
protocolo de Estado.
II. Porém, o princípio republicano em Moçambique não se limita
à chefia do Estado, pois que o mesmo possui uma aplicação geral, a
começar pelo Título I da CRM, sobre os Princípios Fundamentais: –
ao nível da designação do Estado, Moçambique é por múltiplas
vezes referido como “República”, avultando a primeira disposição
constitucional, na qual se usa o termo “A República de
Moçambique…”382;
– ao nível dos símbolos nacionais, com alusão direta à “República”:
“Os símbolos da República de Moçambique são a bandeira, o
emblema e hino nacionais”383.
III. O mesmo se diga do Capítulo I do Título VI da CRM, sobre o
estatuto e eleição do Presidente da República, em cujos preceitos
se frisa a importância do princípio republicano da perspetiva da
temporariedade dos cargos públicos.
381 Cfr. o art. 147, nº 3, da CRM.
382 Art. 1, nº 1, primeira parte, da CRM.
383 Art. 13 da CRM.236 Princípios Fundamentais
É este cargo político alvo de duas relevantes limitações, que se
afiguram ser concretizações do princípio republicano: – “O
Presidente da República só pode ser reeleito uma vez”384;
– “O Presidente da República que tenha sido eleito duas vezes
consecutivas só pode candidatar-se a eleições presidenciais
cinco anos após o último mandato”385.
Só que estas disposições oferecem um sentido redundante,
porque se diz o mesmo duas vezes: se só pode haver uma única
reeleição, a mesma personalidade sempre poderia candidatar-se
cinco anos após a conclusão do segundo mandato, pois que nesse
caso já não se trataria de reeleição, por ter havido a interrupção
numa série de eleições, que deixando de ser consecutivas deixam
também de integrar o conceito de reeleição, que supõe esse
carácter ininterrupto.
IV. O princípio republicano faz-se ainda presente no conjunto
dos limites materiais da revisão constitucional, incorporando os
domínios que definem a identidade do Constitucionalismo
Moçambicano, delimitados no Capítulo II do Título XV do texto da
CRM, alusivo às Garantias da Constituição.
A leitura do correspondente preceito constitucional não autoriza
qualquer hesitação a respeito da sua consolidação como opção
excluída do poder de revisão constitucional: “As leis de revisão
constitucional têm de respeitar: (…) b) a forma republicana de
Governo”386.
384 Art. 147, nº 4, da CRM.
385 Art. 147, nº 5, da CRM.
386 Art. 292, nº 1, al. b), da CRM.
§ 14º O PRINCÍPIO DO ESTADO LAICO
64. As relações entre o Direito, o Estado e a Religião
I. A conceção geral do Estado Contemporâneo tem ainda
associada, numa elaboração mais recente, um modo específico de
apreciar as relações entre o poder político e o fenómeno religioso387,
no sentido de se consagrar um esquema de separação, assim se
rejeitando modelos de fusão ou de identificação entre eles:– o
modelo da fusão entre o poder político e o fenómeno religioso, ora
com predomínio do fenómeno religioso – teocracia – ora com
predomínio do poder político – cesaropapismo;
– o modelo da identificação do poder político com o fenómeno
religioso, mantendo-se as duas estruturas de poder
paralelamente, com tratamento igual ou diferenciado das
religiões em causa, mas com interferências de um sobre o
outro.
II. Está assim ínsito no Constitucionalismo um programa de
neutralidade religiosa do poder político, aberto às diversas
manifestações de religiosidade humana, com isso se reforçando a
democraticidade do poder exercido.
387 Quanto às relações entre o poder político e o poder religioso,
v. Jorge Bacelar Gouveia, A proteção de dados informatizados e o
fenómeno religioso em Portugal, in RFDUL, vol. XXXIV, Lisboa, 1993,
pp. 183 e ss., Religião e Estado de Direito – uma visão panorâmica,
in AAVV, Estudos Jurídicos e Económicos em Homenagem ao Prof.
Doutor António de Sousa Franco, I, Coimbra, 2006, pp. 429 e ss., e
Manual…, II, pp. 861 e ss.; AAVV, Europäisches Datenschutzrecht
und die Kirchen (org. de Gerhard Robbers), Berlin, 1994, pp. 9 e ss.;
Dominique Le Tourneau, O Direito da Igreja…, pp. 117 e ss.; Pedro
Filipe Mbandango, Convicções religiosas: relevância na relação
jurídico-laboral, in RFDUAN, Luanda, nº 13 de 2013, pp. 90 e ss.
Princípios Fundamentais
238
Essa não foi, contudo, uma senda uniforme, porquanto em alguns
pensadores do Constitucionalismo tal princípio assumiu e assume
contornos mais agressivos, diretamente ligados ao laicismo, em que
se pretende combater a religião, considerada uma manifestação
“obscurantista” ou “irracional” da organização coletiva humana,
merecendo, por isso, ser abolida.
A separação entre o poder político e as confissões religiosas
determina que as finalidades e as tarefas desenvolvidas pelo Estado
não possam ser influenciadas por indicações de natureza religiosa.
Do ponto de vista prático, essa orientação desabrocha em
importantes consequências: não só a ausência de uma religião
oficial do Estado como a impossibilidade de as instâncias políticas
interferirem nas decisões do foro religioso, sendo a vice-versa
igualmente verdadeira.
III. Contudo, não se pode considerar a existência de um modelo
único de separação cooperativa na relação entre o poder político e o
fenómeno religioso, pelo que importa realçar algumas das suas
tonalidades388: – o modelo da separação cooperativa igualitária,
com relações de colaboração entre o poder político e as diversas
religiões, num estrito plano de igualdade;
– o modelo da separação cooperativa diferenciada, com relações
de cooperação entre o Estado e o fenómeno religioso, mas com
um tratamento especial de alguma ou algumas das religiões,
em função de critérios objetivos, como o da sua implantação
nos seus fiéis ou o do tipo de atividades desenvolvidas.
Em qualquer destes casos, vigoram dois princípios
fundamentais: o princípio da neutralidade religiosa – o Estado não
tem uma religião, não se confundindo com nenhuma delas; o
princípio do pluralismo religioso – o Estado convive com quaisquer
religiões, nenhuma podendo desconsiderar.
IV. Há ainda quem adicione um outro esquema, dentro da
separação entre o Estado e as confissões religiosas, que é o modelo
da separação absoluta, pelo qual se proíbe qualquer tipo de relação,
por mais igual ou cooperativa que seja.
388 Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, Religião e Estado…, p. 436.
§ 14º O princípio do Estado Laico
239
Só que o modelo da separação absoluta, teoricamente mais puro
na defesa da neutralidade e do pluralismo religioso, acaba por se
transformar num modelo de “confusão” entre o Estado e o fenómeno
religioso, dado que se traduz na criação de uma religião estadual
“estranha”: a do laicismo, ou seja, a “antirreligião”, que acaba por ser
uma religião negativa, com o precípuo objetivo de aniquilar as
religiões positivas estabelecidas.
Efetivamente, nenhuma separação absoluta pode sobreviver a
um mínimo de indagação: a construção de um Estado Laico
pressupõe um conjunto mínimo de relações com o fenómeno
religioso.
V. A conceção subjacente ao modelo da separação cooperativa,
igualitária ou diferenciada, entre o Estado e as confissões religiosas
não quer forçosamente implicar que entre eles se não possam
estabelecer variáveis nexos de entendimento.
E esse entendimento até pode ser desejável, em comunidades de
intensa manifestação religiosa, na medida em que o poder político
deve olhar para o fenómeno religioso como uma realidade viva e
social que muito lhe interessa e em nome da qual assenta a sua
razão de ser.
A delimitação dos espaços de inter-relação entre poder político
e confissões religiosas não se apresenta num um só figurino, sendo
antes possível equacionar diversas velocidades: – um espaço
mínimo, de proteção institucional, na medida em que as confissões
religiosas tenham direito à proteção da sua existência, jurídica e
social, assim como das suas atividades, devendo o Estado prevenir
e reprimir eventuais obstáculos e perseguições;
– um espaço intermédio, de partilha de responsabilidades
socioculturais, sendo certo que são múltiplos os campos de
atividade em que se regista a coincidência dos fins do Estado e
das finalidades identicamente prosseguidas pelas confissões
religiosas;
– um espaço amplo, de intensa colaboração recíproca, na qual o
Estado aceita as atividades de confissões religiosas realizadas
com independência do poder estadual, como é o caso dos
efeitos civis do casamento ou de outros atos praticados no foro
estritamente religioso. 240 Princípios Fundamentais
65. A laicidade cooperativa em Moçambique
I. A opção constitucional do Estado de Moçambique foi
indubitavelmente no sentido da adoção do modelo da separação
cooperativa entre o poder político e o fenómeno religioso389.
Eis uma matéria em que a CRM toma uma posição direta, não se
coibindo de estabelecer diversas orientações em três diferentes
contextos: – na configuração do Estado Moçambicano, através da
enunciação dos seus princípios fundamentais;
– na proteção dos direitos fundamentais, através da consagração
da liberdade religiosa como direito, liberdade e garantia
fundamental;
– no exercício do poder político, através dos limites impostos à
atuação jurídico-pública no sentido de respeitar a liberdade
religiosa.
II. No que é concernente aos Princípios Fundamentais do Título I
da CRM, o cuidado com o assunto chegou ao ponto de o texto
constitucional lhe dedicar um artigo completo, nos seguintes
termos:
Artigo 12
(Estado laico)
1. A República de Moçambique é um Estado laico.
2. A laicidade assenta na separação entre o Estado e as
confissões religiosas.
3. As confissões religiosas são livres na sua organização e no
exercício das suas funções e de culto e devem conformar-se com
as leis do Estado.
4. O Estado reconhece e valoriza as atividades das confissões
religiosas visando promover um clima de entendimento,
tolerância, paz e o reforço da unidade nacional, o bem-estar
espiritual e material dos cidadãos e o desenvolvimento
económico e social.
A formulação constitucional expressamente inclui uma
referência ao modelo de separação cooperativa entre o Estado e as
confissões religiosas, todas colocadas em plano de igualdade no seu
pluralismo, ainda que na condição de a sua atividade não atentar
contra a Constituição e a legalidade.
389 Quanto ao fenómeno religioso em Moçambique, numa
perspetiva sociológica e jurídica, v. Jaime Pedro Gonçalves, A Paz…,
pp. 35 e ss.241 § 14º O princípio do Estado Laico
III. Ao nível dos Direitos, Deveres e Liberdades Fundamentais do
Título III da CRM, o preceito fundamental é o da positivação da
liberdade de consciência, de religião e de culto, no qual se prescreve:
Artigo 54
(Liberdade de consciência, de religião e de culto)
1. Os cidadãos gozam da liberdade de praticar ou de não
praticar uma religião.
2. Ninguém pode ser discriminado, perseguido, prejudicado,
privado de direitos, beneficiado ou isento de deveres por causa
da sua fé, convicção ou prática religiosa.
3. As confissões religiosas gozam do direito de prosseguir
livremente os seus fins religiosos, possuir e adquirir bens para a
materialização dos seus objetivos.
4. É assegurada a proteção aos locais de culto.
5. É garantido o direito à objeção de consciência nos termos da
lei.
Este direito fundamental vai depois irradiar para outros âmbitos
específicos em que se sente a relevância da atividade religiosa: – a
título individual: através da livre atuação das pessoas na expressão
da sua fé religiosa, em privado e em público, no culto ou em
quaisquer outras manifestações pertinentes390;
– a título institucional: através da livre criação de associações
religiosas, bem como a liberdade da sua organização e
atividade, podendo beneficiar da proteção do Estado e da
Ordem Jurídica391.
IV. Em matéria de Organização do Poder Político, prevalece a
orientação da separação entre o poder político e o fenómeno
religioso, havendo a impossibilidade da identificação ou, pior, da
fusão entre estas duas esferas da vida coletiva.
Em vários dos seus âmbitos de atuação, o Estado-Poder está
sujeito a uma orientação de neutralidade religiosa, obedecendo a
algumas proibições:
390 Incluindo a profissão de uma fé religiosa no âmbito laboral.
Cfr. Pedro Filipe Mbandango, Convicções religiosas: relevância…, pp.
108 e ss.
391 A respeito do problema específico da relevância civil do
casamento canónico, que deixou de existir em Moçambique, v. Jorge
Bacelar Gouveia, A relevância civil do casamento católico no Direito
Moçambicano da Família, in Estudos de Direito Público de Língua
Portuguesa, Coimbra, 2004, pp. 96 e ss.242 Princípios Fundamentais
– na prestação do serviço militar por razões de consciência: “É
garantido o direito à objeção de consciência nos termos da
lei”392;
– na denominação dos partidos políticos: “É proibido o uso pelos
partidos políticos de denominações que contenham expressões
diretamente relacionadas com quaisquer confissões religiosas
ou igrejas ou a utilização de emblemas que se confundem com
símbolos nacionais ou religiosos”393;
– como limite material de revisão constitucional: “As leis de
revisão constitucional têm de respeitar: (…) c) a separação
entre as confissões religiosas e o Estado”394.
V. No plano do Direito ordinário, há a referir o RAR, que contém
um importante preceito relacionando a atividade parlamentar com
o fenómeno religioso.
O RAR estabelece o seguinte: “Na fixação das datas para o
funcionamento do Plenário e das Comissões de Trabalho, a
Assembleia da República respeita as celebrações da Páscoa, do
Natal, do Ide-Ul-Fitre e do Ide-Ul-Adha”395.
VI. Em matéria de atividade jurisprudencial, cumpre mencionar
uma antiga decisão do Tribunal Supremo, na vigência da CRM1990,
tirada em sede de fiscalização preventiva da constitucionalidade.
Trata-se do Acórdão proferido no Proc. nº 1/96396, no qual
aquele alto tribunal considerou inconstitucional o diploma
aprovado pela Assembleia da República, remetido para
promulgação presidencial, em que se previa feriado para as datas
religiosas do Ide-Ul-Fitre e Ide-Ul-Adha, por violação do princípio da
igualdade e da liberdade religiosa.
392 Art. 54, nº 5, da CRM.
393 Art. 76 da CRM.
394 Art. 292, nº 1, al. c), da CRM.
395 Art. 24 do RAR.
396 Publicado no BR, III série, nº 44, de 4 de dezembro.
§ 15º O PRINCÍPIO DO ESTADO DEMOCRÁTICO
66. A forma política de governo em geral
I. A indagação acerca das características de um sistema
constitucional deve ainda observar o modo como se organiza a
relação entre os governantes e os governados, ou seja, as relações
entre o Estado-Poder e o Estado-Sociedade.
A isso se chama forma política de governo, para se dissociar da
forma institucional de governo, adotando-se outras designações,
como “sistema político”, “regime político” ou “forma política”397.
O estudo, teorético e dogmático, das formas de governo permite
estabelecer uma summa divisio fundamental entre dois grandes
polos, que devem ser vistos separadamente:– as ditaduras; e
– as democracias.
II. Claro que essa é uma apreciação que, partindo da leitura e da
hermenêutica dos textos constitucionais, deve ponderar a
existência de outros elementos, fornecidos pela prática política e
pelo modo como a aplicação dos comandos constitucionais é vivida
pelos protagonistas da política e dos seus destinatários.
Têm aqui grande utilidade as apreciações da Ciência Política,
assim dando uma valiosa colaboração no estudo que o Direito
Constitucional vai levar a cabo a este propósito.
397 Sobre a forma política de governo, bem como as suas
modalidades, v. Jorge Bacelar Gouveia, Manual…, II, pp. 865 e ss.
244
Princípios Fundamentais
É também de tomar em consideração o facto de nem sempre ser
inteiramente fácil enquadrar, com perfeição, determinado sistema
político-constitucional, tal como ele aparece na estruturação de
certo Estado, numa daquelas duas categorias.
Não é raro que a realidade dos sistemas político-constitucionais
apareça com elementos contraditórios ou com tendências que não
vão apenas num único sentido, ainda que apontem
predominantemente num certo sentido.
III. A discussão acerca das formas políticas de governo é uma das
mais antigas questões do Direito Constitucional e da Ciência
Política, remontando a sua discussão ao tempo da época ateniense,
cujos principais ícones proporiam modalidades puras e
degeneradas, tanto em Platão como em Aristóteles.
A evolução posterior dos sistemas políticos determinou que a
grande divisão se tornasse mais simples e separasse as ditaduras
das democracias, deixando de fazer sentido formular juízos morais
acerca de algumas das modalidades.
Paralelamente, operar-se-ia a separação do esquema unipessoal
do governo da coisa pública com base democrática da forma
política de governo, passando aquele a ingressar no conceito,
menos árduo, de forma institucional de governo, ali se contrapondo
a monarquia à república.
67. As formas ditatoriais de governo
I. As ditaduras correspondem à forma política de governo,
vigente em certo sistema constitucional, em que os governantes
exercem um poder público efetivo e amplo, com indiferença ou
mesmo contra a vontade dos governados, o que se assinala na
ocorrência de certos índices398: – um poder amplo no seio das
diferentes funções de Estado, com a prevalência das funções
exercidas pelo ditador;
398 Sobre as ditaduras, nas suas múltiplas vertentes, v. Hans
Kelsen, Teoria Geral do Direito e do Estado, pp. 428 e ss.; Reinhold
Zippelius, Teoria…, pp. 214 e ss.; Jorge Bacelar Gouveia, Manual…,
II, pp. 867 e ss.
§ 15º O princípio do Estado Democrático
245
– um poder amplo na relação entre o poder político e os cidadãos,
sem possibilidade de estes se protegerem com direitos
fundamentais dotados de efetividade;
– um poder amplo na duração e por vezes perpetuação dos cargos
públicos exercidos, com duração indefinida e sobretudo não
renovada pela legitimidade democrática desses mesmos
cargos.
II. Estes visíveis sinais da existência de uma ditadura têm na sua
base diferentes causas que, isolada ou conjuntamente, dão origem
àquele resultado: – a ausência de mecanismos de escolha dos
governantes por parte dos governados, como cidadãos do Estado
nos quais deve residir a sede do poder público e em nome dos quais
o Estado tem sentido;
– a ausência de instrumentos de limitação do exercício dos poderes
dos governantes, quer entre si pela concentração de poderes,
quer na relação do poder com a esfera de proteção dos
cidadãos, pela ausência ou nominalização dos direitos
fundamentais;
– a ausência de instrumentos de controlo da atividade exercida
pelos governantes, nomeadamente em matéria de respeito pela
necessária juridicidade das suas deliberações.
III. No entanto, as ditaduras não são todas iguais e ao longo do
tempo têm sido apresentadas diversas modalidades, em razão de
outros tantos critérios.
O mais relevante de todos é o da composição do órgão fulcral da
ditadura, sendo de dissociar entre: – a autocracia, quando o
governo é de vários, podendo aplicar-se em diversos domínios,
como sucede habitualmente com as ditaduras de esquerda; e
– a monocracia, quando o governo é atribuído a uma única
pessoa, podendo ser de raiz cesarista, militarista ou fascista,
em geral de direita.
IV. A inspiração das ditaduras pode ser variável em decorrência
da doutrina que as justifica, para além do setor populacional que
exerce o poder: 246 Princípios Fundamentais
– o bolchevismo: radicando na conceção marxista-leninista de
esquerda, implantada pelo Estado Socialista da ex-URSS;
– o fascismo: radicando na conceção totalitária de direita,
dominante nos Estados fascistas e fascizantes;
– o caudilhismo: radicando na conceção totalitária de direita, mas
com a especificação de sobressair uma inspiração militarista,
muito comum nos Estados da América Latina até aos anos
setenta do século XX.
V. Do ponto de vista das repercussões na organização do Estado
e da Sociedade, as ditaduras podem ainda subdistinguir-se entre: –
as ditaduras autoritárias;
– as ditaduras totalitárias.
A distinção repousa na amplitude da ditadura no tocante à
limitação da liberdade individual, como lembra Hans Kelsen: “Em
todos os (…) Estados ditatoriais, a Ordem Jurídica penetra não
apenas na esfera económica, mas também em outros interesses do
indivíduo privado num grau muito mais alto que em qualquer outro
Estado atual. Em vista desse facto, as ditaduras de partido também
têm sido chamadas Estados «totalitários»”399.
68. As formas democráticas de governo
I. As democracias, opostas às ditaduras, representam
organizações de poder público em que os governados influenciam a
atividade e o percurso dos governantes, sobre eles exercendo um
efetivo controlo.
A própria palavra “democracia”, na sua raiz etimológica, é bem
ilustrativa do seu significativo denotativo, pois que é originário do
grego, aí se usando os vocábulos “demos” – que quer dizer povo – e
“kratos” – que designa poder público400.
399 Hans Kelsen, Teoria Geral do Direito e do Estado, p. 432.
400 Quanto ao sentido etimológico da democracia, v. Jorge
Bacelar Gouveia, O princípio democrático…, pp. 26 e 27, e Manual…,
II, p. 869; Robert A. Dahl, Democracia, Lisboa, 2000, p. 19; Dalmo de
Abreu Dallari, O aparato jurídico da Democracia, in DeC, ano VI, nº
19, janeiro a abril de 2004, pp. 133 e ss.247 § 15º O princípio do
Estado Democrático
Ou como não nos lembrarmos da expressão do Presidente Norte-
Americano Abraham Lincoln, que certo dia definiu a democracia
como o “governo do povo, pelo povo e para o povo”.
II. A concretização da forma política democrática nos textos
constitucionais faz-se com apelo ao princípio da soberania popular,
na titularidade do povo e dela emanando o critério de escolha e de
atividade do Estado-Poder.
Deste modo, a democracia significa que o poder público postula
uma relação de confiança com a comunidade política, em que o
respetivo exercício se submete a diversos controlos, jurídicos e
políticos401.
A operacionalização da democracia depende da regra da maioria,
segundo a qual a decisão corresponde à vontade popular se
determinada por um conjunto de cidadãos em número superior ao
daqueles que têm uma opinião contrária, regra da maioria que se
fundamenta na igualdade da intervenção de cada um desses
cidadãos.
III. O funcionamento da democracia com base na regra da
maioria não pode querer dizer que as minorias – ou seja, aqueles
que têm opinião contrária ou mesmo nenhuma opinião – se
consideram excluídas do sistema político ou, numa visão menos
drástica, apenas se limitem a esperar a oportunidade de passarem
a maioria política.
Não: a democracia, num debate que se tem recentemente
revalorizado, é deferente para com as minorias políticas, na medida
em que são partes integrantes do sistema político, numa lógica
heraclitiana – entre a afirmação e o seu contrário, entre o ser e o
não ser – em que só pela dialética discursiva e pelo contraditório
político-ideológico se pode verdadeiramente legitimar a decisão
política.
Numa perspetiva histórica quanto à evolução da ideia de
democracia, v., por todos, Luciano Canfora, A Democracia – História
de uma Ideologia, Lisboa, 2007, pp. 11 e ss.
401 Sobre a democracia em geral, v. Georges Burdeau, A
Democracia, pp. 9 e ss.; Fernando Cunha, Democracia e Divisão do
Poder…, pp. 9 e ss.; Alain Touraine, O que é a Democracia, 2ª ed.,
Petrópolis, 1996, pp. 17 e ss.; Reinhold Zippelius, Teoria…, pp. 230
e ss.; Robert A. Dahl, Democracia, pp. 45 e ss.; António Alberto Neto,
Instituições políticas e sistemas…, pp. 93 e ss.; Ronald Dworkin, La
Democracia Posible – princípios para un nuevo debate político,
Barcelona, 2007, pp. 15 e ss.; Jorge Bacelar Gouveia, Manual…, II,
pp. 870 e ss.248 Princípios Fundamentais
É assim que a aplicação do princípio da maioria vai sofrer
algumas reduções, quer porque se reconhecem situações de
decisão com maioria agravada, quer porque as minorias podem ter
votos de bloqueio402.
Só que este entendimento jamais pode levar à equivalência da
maioria e da minoria no sistema político porque isso seria, desde
logo, antidemocrático: mas, pelo menos, chama a atenção para a
importância de a proteção das minorias permitir a preservação da
própria democracia, mostrando a alternativa futura e evitando que
a maioria degenere numa ditadura.
IV. Ao invés do que sucede com as ditaduras, nas democracias
regista-se a efetiva presença dos governados no estatuto e no
desempenho dos governantes, sendo vários os prismas que podem
ser analisados403: – a intervenção na escolha dos governantes,
através de um esquema em que, direta ou indiretamente, a sua
vontade é decisiva na seleção daqueles;
– a intervenção na atividade levada a cabo pelos governantes, na
medida em que esta se apresenta limitada na distribuição de
poderes entre os órgãos (separação de poderes) e no respeito
por um espaço de proteção dos cidadãos (direitos
fundamentais);
– a intervenção na fiscalização dos atos dos governantes, através
da sua efetiva submissão a uma atividade de controlo judicial e
de natureza política;
– a intervenção na possibilidade da não redesignação dos
governantes, com mandatos limitados no tempo, e sempre com
uma ponderação acerca do mérito do trabalho
desenvolvido404.
V. Na prática, a concretização da relação entre os governados e
os governantes, em regime democrático, pode desdobrar-se à luz
de três importantes óticas405: – a democracia representativa, caso
em que os governantes mandam em nome do povo e têm a sua
confiança política;
402 Cfr. Hans Kelsen, Teoria Geral do Direito e do Estado, p. 411.
403 Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, Manual…, II, pp. 871 e 872.
404 Robert A. Dahl (Democracia, pp. 99 e ss.) elenca mesmo
algumas dessas instituições da democracia: dirigentes eleitos,
eleições livres, justas e frequentes, liberdade de expressão, acesso
de fontes alternativas de informação, autonomia de associação e
cidadania inclusiva.
405 Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, Manual…, II, p. 872.249 § 15º O
princípio do Estado Democrático
– a democracia referendária, sendo pontualmente o povo a decidir dire-
tamente questões de governação, com a força de um ato jurídico-público;
– a democracia participativa, situação em que o exercício de direitos políticos, que formam
a opinião pública, contribui, ainda que informalmente, para a limitação do poder público
e a sua democratização.
VI. As vantagens da democracia como modalidade de forma institucional de governo, a
despeito do enorme consenso em seu redor, podem ser sistematizadas, de acordo com Robert
A. Dahl406, com base nas seguintes ideias-força: – ajuda a evitar a governação por autocratas
cruéis e viciosos;
– garante aos cidadãos um conjunto mínimo de direitos fundamentais impossíveis em
sistemas ditatoriais;
– assegura uma maior margem de liberdade pessoal;
– auxilia os cidadãos na proteção dos seus interesses fundamentais;
– proporciona o exercício do autogoverno, permitindo a escolha democrática das leis;
– favorece a oportunidade do exercício de uma responsabilidade moral;
– encoraja o desenvolvimento humano na coletividade;
– favorece um elevado grau de igualdade política;
– ajuda o clima de paz em relação a outras democracias;
– auxilia o aumento da riqueza nacional.
69. Moçambique como Estado Democrático
I. A natureza democrática do Estado Moçambicano é solenemente proclamada nos preceitos
iniciais da CRM, princípio democrático que se assume como um princípio geral de Direito
Constitucional, atravessando todo o seu texto.
Recorde-se, de resto, que a profusão de indicações constitucionais a este respeito nem
sequer pode causar qualquer estranheza se tomarmos nota do facto de ter sido em nome da
democracia que precisamente se
406 Cfr. Robert A. Dahl, Democracia, pp. 55 e ss.250 Princípios Fundamentais
fundou a II República de Moçambique, aprofundada depois da assinatura do Acordo Geral
de Paz de 1992407.
II. As indicações constitucionais começam logo com o preâmbulo da CRM, que
explicitamente alude à construção de um “Estado Demo-crático”: – primeiro, recordando que
coube ao antecessor texto constitucional a abertura para a Democracia: “A Constituição de
1990 introduziu o Estado de Direito Democrático (…) contribuindo de forma decisiva para a
instauração de um clima democrático que levou o país à realização das primeiras eleições
multipartidárias”408;
– segundo, sublinhando o papel da nova Constituição no desenvolvimento da Democracia
em Moçambique: “A presente Constituição reafirma, desenvolve e aprofunda os
princípios fundamentais do Estado moçambicano, consagra o carácter soberano do
Estado de Direito Democrático…”409;
– terceiro, salientando a ampla participação popular na elaboração do novo texto
constitucional: “A ampla participação dos cidadãos na feitura da Lei Fundamental
traduz o consenso resultante da sabedoria de todos no reforço da democracia e da
unidade nacional”410.
III. Os preceitos iniciais do articulado da CRM, por seu turno, mostram-se de elevada
importância, com várias alusões: – “A República de Moçambique é um Estado independente,
soberano, democrático e de justiça social”411;
– “A soberania reside no povo” e “O povo moçambicano exerce a soberania segundo as
formas fixadas na Constituição”412;
407 Sobre Moçambique como Estado Democrático, v. Jorge Bacelar Gouveia, O princípio democrático…, pp. 21

e ss.; Valdomiro Sócrates, O Estado Social e Democrático de Direito…, pp. 30 e ss. Jorge Bacelar Gouveia, Direito
Constitucional de Língua Portuguesa – Caminhos…, pp. 193 e ss.
408 § 3º do preâmbulo da CRM.

409 § 4º do preâmbulo da CRM.

410 § 5º do Preâmbulo da CRM.

411 Art. 1 da CRM.

412 Art. 2, nºs 1 e 2, da CRM.251 § 15º O princípio do Estado Democrático


– “A República de Moçambique é um Estado de Direito, baseado no pluralismo de
expressão, na organização política democrática, no respeito e garantia dos direitos e
liberdades fundamentais do Homem”413;
– “O Estado moçambicano tem como objetivos fundamentais: (…) o reforço da democracia,
da liberdade, da estabilidade social e da harmonia social e individual”414.
IV. O funcionamento do sistema político é ainda muito sensível ao espírito da democracia,
a qual se pretende manter no exercício dos direitos fundamentais de natureza política, como
sucede com o direito de participação na vida pública: – em termos gerais, “O povo
moçambicano exerce o poder político através do sufrágio universal, direto, igual, secreto e
periódico para a escolha dos seus representantes, por referendo sobre as grandes questões
nacionais e pela permanente participação democrática dos cidadãos na vida da Nação”415;
– em termos específicos, “O sufrágio universal, direto, igual, secreto, pessoal e periódico
constitui a regra geral de designação dos titulares dos órgãos eletivos de soberania, das
províncias e do poder local”416.
V. Ao nível da garantia do núcleo fundamental da CRM, são finalmente visíveis as
preocupações com os traços fundamentais do regime democrático, que bem se expressam em
alguns dos limites materiais da revisão constitucional, porquanto as “…leis de revisão
constitucional têm de respeitar…”: – “os direitos, liberdades e garantias fundamentais”417;
– “o sufrágio universal, direto, secreto, pessoal, igual e periódico na designação dos
titulares eletivos dos órgãos de soberania, das províncias e do poder local”418;
413 Art. 3 da CRM.
414 Art. 11, al. f), da CRM.
415 Art. 73 da CRM.

416 Art. 135, nº 1, da CRM.

417 Art. 292, nº 1, al. d), da CRM.

418 Art. 292, nº 1, al. e), da CRM.252 Princípios Fundamentais


– “o pluralismo de expressão e organização política, incluindo partidos políticos e o direito
de oposição democrática”419.
VI. A caracterização de Moçambique como um Estado Democrático igualmente se obtém
sem qualquer hesitação através da análise da prática política de todo este percurso da II
República.
Num primeiro momento, logo que a guerra terminou com a assinatura do Acordo Geral de
Paz de 1992, foi possível introduzir a democracia multipartidária, tendo então sido realizadas
eleições pluripartidárias para o Presidente da República e para a Assembleia da República,
em 1994.
Desde então a experiência democrática tem amadurecido não apenas com a multiplicação
das formações partidárias como também pelo alargamento do princípio eletivo às
assembleias provinciais e aos órgãos autárquicos, já com diversas eleições efetuadas.
Em qualquer destas experiências, as eleições foram sempre objeto de observação
internacional, que as validaram e as consideraram livres e justas, tendo diversos litígios sido
julgados pelo Conselho Constitucional.
VII. A variedade de alusões à forma democrática de governo, através da exaltação do
princípio da soberania popular, revela-se no plano da verificação das três modalidades que
pudemos salientar, que se encontram todas presentes, sendo elas gradações da intervenção
popular no sistema político: – a dimensão representativa;
– a dimensão referendária (ou semidirecta); e
– a dimensão participativa.
Vejamos separadamente a importância que cada uma dessas modalidades de democracia
que o Direito Constitucional Moçambicano defende.
70. A democracia representativa e a eleição
I. A dimensão representativa da democracia relaciona-se com a designação dos titulares
dos órgãos públicos, principalmente do Estado, que desempenham os mandatos em nome da
comunidade política.
419 Art. 292, nº 1, al. f), da CRM.253 § 15º O princípio do Estado Democrático
Os interesses prosseguidos através da sua atividade são os interesses gerais, e não os
interesses particulares, devendo para isso possuir a confiança política dos cidadãos que assim
mediatamente definem aqueles interesses gerais.
A ponte que permite a ligação entre os governantes e os governados, no momento da sua
escolha, é construída pelo fenómeno da representação política420.
É daqui que surge o mandato político, que na respetiva modelação se afirmou em duas
vertentes distintas, com base em opostos pressupostos democráticos421: – o mandato
imperativo, defendido por Jean-Jacques Rousseau, tributário da democracia direta, em que os
eleitos teriam de submeter-se à vontade geral, podendo ser destituídos em consequência da
sua violação; e
– o mandato representativo, propugnado por Emmanuel Sieyès, no qual os eleitos, ainda
que genericamente submetidos ao interesse público, teriam a faculdade de agir –
maxime através do seu voto parlamentar – de maneira diversa dos interesses
particulares da sua circunscrição ou do grupo de eleitores que os elegeu, conservando-
se o seu mandato mesmo na situação de perda daquela confiança política.
De todas as modalidades de democracia enunciadas, é a democracia representativa a que
ainda se mostra fundamental, mesmo considerando os argumentos que vão crescendo em
favor da democracia direta, no novo contexto da sociedade de informação: só aquela permite
a obtenção de capacidade de ação, de racionalidade e de controlo que é propiciada pela
representação422.
II. É a fidúcia política que torna o mandato dos titulares dos órgãos públicos um mandato
representativo, o qual assenta num particular modo de se proceder à sua designação – a
eleição.
Daí que tal nexo de confiança se consolide no sufrágio do povo ativo na seleção das pessoas
para o preenchimento dos lugares do Estado, res
420 Cfr. Reinhold Zippelius, Teoria…, pp. 230 e ss.; Jorge Bacelar Gouveia, Manual…, II, pp. 876 e 877.
421 Cfr. Reinhold Zippelius, Teoria…, pp. 265 e ss.
422 Cfr. Reinhold Zippelius, Teoria…, pp. 234 e ss.254 Princípios Fundamentais
peitando-se a liberdade de apresentação de candidaturas e de campanha eleitoral.
O Direito Constitucional Moçambicano dá-nos conta da preponderância desta dimensão
representativa, sendo vários os órgãos de cunho eletivo, não só ao nível do Estado, mas
também no plano das entidades públicas infraestaduais.
Que assim é, está um dos preceitos iniciais da CRM a demonstrá-lo: “A soberania reside no
povo”423.
III. A eleição, nos regimes democráticos, cristalizou-se como o fundamental modo de
designação dos titulares dos cargos públicos, no qual participam, através do voto, os cidadãos
ativos de certa comunidade estadual424.
Com a eleição ocorre a escolha de tais titulares, seja através de uma designação direta, seja
através de uma designação mediatizada pelos partidos políticos.
A importância que se tem atribuído à eleição – assim como ao colégio de eleitores que a
leva a cabo – tem inclusivamente suscitado questões complexas ao nível da colocação do ato
eleitoral no próprio plano dos atos jurídico-públicos, neste caso do Estado-Comunidade,
podendo mesmo enquadrar um outro poder público, o poder eleitoral, como foi tão bem
teorizado, v. g., pelo português Silvestre Pinheiro Ferreira, no século XIX.
IV. Se a delimitação da eleição enquanto manifestação do poder eleitoral, protagonizado
pelo povo, não suscita muitas dúvidas conceptuais, não é de excluir a respetiva distribuição
por tantas modalidades quantos os úteis critérios de classificação que lhe têm sido apostos425:
– eleições políticas, legislativas, administrativas ou internacionais, conforme a natureza do
órgão, nas funções que exerce, que vai ser escolhido;
423 Art. 2, nº 1, da CRM.
424 Sobre a eleição política em geral, v. Marcelo Rebelo de Sousa, Direito Constitucional…, pp. 286 e ss.; Jorge Miranda,
Manual de Direito Constitucional, VII, Coimbra, 2007, pp. 11 e ss.; António Nadais, Eleição, in DJAP, IV, Lisboa, 1991, pp.
205 e ss.; Reinhold Zippelius, Teoria…, pp. 253 e ss.; Dieter Nohlen, Sistemas electorales y partidos políticos, 2ª ed., Cidade
do México, 1998, pp. 11 e ss.; Jorge Bacelar Gouveia, Manual…, II, pp. 876 e ss.
425 Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, Manual…, II, p. 878.255 § 15º O princípio do Estado Democrático
– eleições externas e eleições internas, conforme a escolha eleitoral seja feita pelo povo ou
por órgãos políticos já previamente escolhidos por eleição;
– eleições gerais e eleições intercalares, conforme a escolha se faça num conjunto de órgãos
que integram uma instituição ou apenas aconteça num dos seus órgãos, por razões
particulares de ser necessário prover os respetivos titulares.
V. A configuração da eleição fica concluída com a apresentação das figuras afins que com
ela não são suscetíveis de confusão426.
A mais evidente, porque mais próxima, vem a ser a do referendo, na medida em que, tal
como na eleição, igualmente tem na sua titularidade o conjunto dos cidadãos.
Mas elas entre si bem se distinguem por a eleição se destinar à escolha dos governantes,
enquanto o referendo visa a tomada de uma decisão material, e não recaindo sobre a
titularidade de cargos públicos.
VI. O desenvolvimento do ato eleitoral – valendo bem pelo ato final que desemboca na
eleição produzida (o resultado eleitoral) – está longe de poder ser explicado na produção de
um ato instantâneo, traduzindo-se num procedimento, em que se sucedem vários atos
parcelares ordenados à emissão do ato final: a eleição propriamente dita ou stricto sensu.
É assim possível descortinar as diversas fases de progressão do procedimento eleitoral, a
culminar com a decisão eleitoral427: – o registo do colégio eleitoral através do recenseamento;
– a marcação das eleições, seja por fim do mandato, seja por dissolução, com eleições
antecipadas;
– a apresentação das candidaturas levadas a escrutínio;
– o exercício da campanha eleitoral de esclarecimento;
– a votação eleitoral;
– o apuramento dos resultados;
– o contencioso eleitoral; e
– a publicitação dos resultados eleitorais.
426 Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, Manual…, II, p. 878.
427 Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, Manual…, II, pp. 879 e 880.256 Princípios Fundamentais
VII. A organização eleitoral – quer em termos puramente teoréticos, quer em termos das
diversas opções que o legislador positivo pode tomar – concita um conjunto dos problemas que
respeitam às múltiplas preocupações que se encontram presentes quando chega o momento de
regulamentar um qualquer procedimento eleitoral.
Não é apenas, obviamente, a do sistema eleitoral com o qual se deve trabalhar. Outras
questões – como as características do sufrágio, a composição do colégio eleitoral ou a
apresentação das candidaturas – do mesmo modo exigem difíceis opções entre várias
alternativas possíveis.
Ainda poderíamos acrescentar outros tópicos que, se bem que não tão importantes quanto
estes, de certo jeito influenciam o decurso de um procedimento eleitoral: as condições do
recenseamento eleitoral, o regime de exercício da liberdade política, através da liberdade de
expressão, de imprensa, de manifestação e de reunião e de criação de partidos nos períodos
eleitoral e pré-eleitoral, ou a natureza dos órgãos a quem incumbe a organização e a
fiscalização do processo eleitoral.
No entanto, a problemática do sistema eleitoral – que se define como o método que permite
traduzir, em mandatos, os votos que foram depositados nas urnas pelos cidadãos eleitores –
acaba por ser, de entre todas estas questões que se colocam na organização eleitoral, a que
ocupa o lugar proeminente.
Do prisma técnico, a conversão de votos em mandatos, estando associada a cálculos
matemáticos, obriga a uma saudável articulação de esforços com a Ciência Matemática no
estudo das diversas possibilidades de manifestação da vontade eleitoral, rica
interdisciplinaridade que não encontramos noutros domínios.
Em termos políticos, a opção por determinado sistema eleitoral não é – nem nunca poderá
ser – neutra, pois é nele que se traçam as linhas estruturantes dos diferentes instrumentos de
ação política.
Se quanto aos diversos pontos que se levantam no ato eleitoral, é usual verificarmos uma
única regulação legal, já quanto ao sistema eleitoral, numa tendência que se vai acentuando,
normalmente é a própria Constituição que chama à sua órbita a definição das suas traves-
mestras.
VIII. É assim que, no seio dos diversos “temas eleitorais”, tem sido pertinente desenvolver
algumas considerações sobre esta vexata quaestio de qualquer organização eleitoral.257 § 15º
O princípio do Estado Democrático
Embora o sistema eleitoral se funde num conceito unívoco de transformação de votos em
mandatos, nem por isso se mostra impedido de se desdobrar em múltiplas combinações, que
podem ser arrumadas nestas três categorias de representação428: – a representação
proporcional;
– a representação maioritária; e
– a representação de minorias.
IX. Em matéria de sistema de partidos, a Ciência Política, em conjunto com o Direito
Constitucional, tem ensaiado a elaboração de leis explicativas das relações mais ou menos
constantes que se assinalam entre a escolha de certo sistema eleitoral e o funcionamento,
diretamente, do sistema de partidos e, indiretamente, do sistema de governo.
Ficaram famosas, a este propósito, as leis de Maurice Duverger, que em 1951 as formulou
do seguinte modo429:
(i) a representação maioritária a uma volta origina o bipartidarismo perfeito;
(ii) a representação maioritária a duas voltas conduz ao multipartidarismo polarizado;
(iii) a representação proporcional favorece o multipartidarismo perfeito.
Em conclusão: a opção entre estes dois sistemas eleitorais não é uma escolha
politicamente despicienda, que inelutavelmente incide sobre aspetos gerais do
funcionamento do sistema político, sendo uma das suas principais variáveis430.
428 Quanto a estas diversas opções, v. Dieter Nohlen, Sistemas electorales…, pp. 91 e ss.
429 Cfr. Maurice Duverger, Los partidos políticos, Cidade do México, 1994, pp. 235 e ss. Cfr. também Jorge
Bacelar Gouveia, Sistemas eleitorais e método de Hondt, in DJAP, 1º sup., Lisboa, 2000, pp. 461 e 462, e Manual…,
II, pp. 881 e ss.
430 Posteriormente, caberia a Giovanni Sartori reformular as leis de Maurice Duverger, propondo a existência

de quatro leis na relação do sistema eleitoral com o sistema partidário. Cfr. Dieter Nohlen, Sistemas electorales…,
pp. 387 e ss.258 Princípios Fundamentais
71. As principais linhas do Direito Eleitoral Moçambicano
I. A importância da eleição em qualquer democracia afere-se pelo conjunto de fontes
normativas que integram o Direito Eleitoral, ramo do Direito Constitucional que visa a
definição do respetivo regime431.
Ao texto da CRM se comete a tarefa, em preceitos próprios, de fixar essas coordenadas
fundamentais, quer na perspetiva individual, quer na perspetiva institucional: – o sufrágio
como direito: “O povo moçambicano exerce o poder político através do sufrágio universal,
direto, igual, secreto e periódico para a escolha dos seus representantes, por referendo sobre
as grandes questões nacionais e pela permanente participação democrática dos cidadãos na
vida da Nação”432;
– o sufrágio como um dos princípios do Direito Eleitoral: “O sufrágio universal, direto, igual,
secreto, pessoal e periódico constitui a regra geral de designação dos titulares dos
órgãos eletivos de soberania, das províncias e do poder local”433.
II. Depois há uma imensidão de leis e de fontes normativas menores – que infelizmente
nunca chegou a ser codificada – que concretizam e desenvolvem aquelas orientações
constitucionais, designadas por “leis eleitorais” ou, em geral, por “legislação eleitoral”, nas
quais se pode incluir as seguintes: – Lei do Recenseamento Eleitoral (L nº 5/2013, de 22 de
fevereiro, alterada pela L nº 8/2014, de 12 de março);
– Lei das Eleições Gerais (LEG), para a eleição do Presidente da República e dos Deputados
da Assembleia da República (L nº 8/2013, de 27 de fevereiro, alterada pela L 12/2014,
de 23 de abril);
431 Numa análise jurídico-política acerca do sistema eleitoral moçambicano, v. Albano Macie, Etiologia das

sucessivas reformas do Direito Eleitoral Positivo Moçambicano e perspectivas da sua evolução, Maputo, 2013, pp.
117 e ss. Cfr. também Jorge Bacelar Gouveia, O princípio democrático…, pp. 38 e ss.
432 Art. 73 da CRM.

433 Art. 135, nº 1, da CRM.259 § 15º O princípio do Estado Democrático


– Lei da Eleição dos Membros das Assembleias Provinciais (L nº 4/2013, de 22 de fevereiro,
alterada pela L nº 11/2014, de 23 de abril);
– Lei das Eleições do Presidente do Conselho Municipal e dos Membros da Assembleia
Municipal ou da Povoação (L nº 7/2013, de 22 de fevereiro, alterada pela L nº 10/2014,
de 23 de abril);
– Lei das Funções, Composição, Organização, Competências e Funcionamento da Comissão
Nacional de Eleições (L nº 6/2013, de 22 de fevereiro, alterada pela L nº 9/2014, de 12
de março).
III. De acordo com a CRM, o princípio democrático insufla as escolhas dos governantes,
sendo os titulares destes órgãos jurídico-públicos selecionados com base no sufrágio popular:
– o Presidente da República;
– a Assembleia da República;
– as Assembleias Provinciais;
– o Presidente do Conselho Municipal ou da Povoação;
– os Membros da Assembleia Municipal ou da Povoação.
IV. De todos aqueles temas, cujo estudo completo neste contexto é verdadeiramente
impossível, é de privilegiar as opções que o Direito Eleitoral Moçambicano firmou sob o
prisma destes três principais pontos de vista, que traduzem a essência da eleição 434: – o
recenseamento eleitoral;
– a caracterização do sufrágio;
– o procedimento eleitoral.
V. O recenseamento eleitoral espelha uma existencial necessidade de disciplina do
procedimento de votação, na medida em que corporiza uma permanente e prévia certificação
formal acerca da qualidade de cada cidadão como eleitor.
434 Com uma apreciação geral sobre o Direito Eleitoral Moçambicano, v. João André Ubisse Guenha, Os sistemas

eleitorais em Moçambique, in RLAD, I, Lisboa, 1997, pp. 223 e ss.; Jorge Bacelar Gouveia, O princípio democrático…,
pp. 40 e ss., e Legislação Eleitoral em Moçambique, in Estudos de Direito Público de Língua Portuguesa, Coimbra,
2004, pp. 148 e ss.; Gilles Cistac, O Direito Eleitoral Moçambicano, Maputo, 1994, pp. 15 e ss.; Albano Macie,
Etiologia…, pp. 115 e ss.260 Princípios Fundamentais
Para que o cidadão possa votar, é forçoso que esteja inscrito nos cadernos eleitorais, o que
se explica pela conveniência de evitar fraudes, que assim se consegue pelo prévio
conhecimento de quem tem capacidade eleitoral ativa devidamente reconhecida.
Nos termos da Lei do Recenseamento Eleitoral, a regra geral é a de que “O recenseamento
eleitoral é oficioso, obrigatório e único para as eleições por sufrágio universal, direto, igual,
secreto, pessoal e periódico”435.
Alguns dos princípios fundamentais do registo eleitoral são depois assim definidos por
esta lei do recenseamento eleitoral436: – a obrigatoriedade: o registo eleitoral é obrigatório
para os cidadãos com capacidade eleitoral ativa residentes em território moçambicano;
– a oficiosidade: as autoridades eleitorais devem promover essa inscrição no caso de os
cidadãos não tomarem tal iniciativa;
– a universalidade: o registo eleitoral, por causa da universalidade do sufrágio, inclui a
totalidade daqueles que tenham capacidade eleitoral ativa.
VI. O sufrágio, terminologicamente herdeiro do ius sufragii romano, é outro eixo
fundamental do Direito Eleitoral Moçambicano e exprime os termos por que a vontade
individual dos cidadãos eleitores se pode transformar numa vontade coletiva declarada no
dia das eleições.
De acordo com a CRM, numa célebre fórmula repetida no seu articulado, o sufrágio é
definido como sendo “…universal, direto, igual, secreto, pessoal e periódico…”437, às quais se
podem ainda juntar outras características, a saber438: – sufrágio universal: o voto é de todos,
não se aceitando qualquer exclusão no conjunto daqueles que, tendo idade acima de 18 anos,
devem possuir capacidade eleitoral ativa, assim se proscrevendo o sufrágio restrito, seja
capacitário (por não se possuir certas habilitações literárias), seja censitário (por não se
atingir um patamar mínimo de rendimentos), seja por qualquer outra razão discriminatória
(por não
435 Art. 2 da L nº 5/2013, de 22 de fevereiro.
436 Cfr., respetivamente, os arts. 5 e 3 da L nº 5/2013.
437 Art. 135, nº 1, primeira parte, da CRM.

438 Cfr. os arts. 64 e ss. da LEG. 261 § 15º O princípio do Estado Democrático
se permitir o voto das mulheres ou de outros grupos minoritários, em nome de
pseudojustificações raciais, religiosas ou outras);
– sufrágio livre: o voto, sendo sagrado em Democracia, deve ser exercido sem qualquer
coação na escolha, ao mesmo não podendo aplicar-se qualquer sanção em relação à
opção do votante;
– sufrágio direto: o voto projeta-se na escolha dos candidatos que se apresentam ou das
decisões a tomar, não havendo qualquer esquema de mediação na relevância que se
atribui aos respetivos efeitos, tornando a vontade expressa muito mais genuína e pura;
– sufrágio igual: o voto, sendo de todos, deve valer exatamente o mesmo entre si,
proibindo-se a ponderação dos votos no sentido de alguns poderem valer mais do que
o de outros, numa outra garantia paralela da plenitude do sufrágio (ainda que em
associações de Direito Privado essa seja uma prática possível);
– sufrágio secreto: o voto é formulado na intimidade do votante, sem que em qualquer
momento seja forçado a revelar em quem votou, nem o podendo fazer nas imediações
da assembleia de voto, assim se alcançando uma maior liberdade de expressão e assim
se evitando constrangimentos sobre certos eleitores por parte dos candi-datos;
– sufrágio pessoal: o voto é determinado pelo votante, não sendo suscetível de qualquer
fenómeno de representação, voluntária ou necessária, mesmo em situações de
impossibilidade daquele, com isso se assegurando que a vontade do cidadão jamais seja
adulterada;
– sufrágio presencial: o voto é exercido através da deslocação do eleitor à assembleia de
voto, não se admitindo votos por correspondência;
– sufrágio periódico: o voto é repetido nos períodos previamente estabelecidos na lei na
exata medida em que os cargos políticos são temporários, devendo aqueles que são
eletivos ser escolhidos por nova eleição, o que também se filia diretamente numa
exigência do princípio republicano.
VII. O procedimento eleitoral existe porque pressupõe que a eleição, como ato jurídico-
público, de natureza política e final, seja apenas o resultado de um percurso, que comporta
diversas fases, procedimento eleitoral que em regimes democráticos se tem revelado cada vez
mais complexo, 262 Princípios Fundamentais
sendo de equacionar as seguintes fases, tal como as mesmas se organizam na legislação
eleitoral439: – Marcação da data das eleições: tudo começa com a definição da data das eleições,
mais ou menos previsível, dentro do calendário abstratamente estabelecido pela lei eleitoral,
mais previsível no caso da aproximação do fim dos mandatos eletivos, menos previsível no
caso de cessação antecipada dos mandatos por dissolução, sendo tal legalmente possível;
– Apresentação das candidaturas: marcada a data das eleições, as pessoas e as entidades
que se querem candidatar têm de apresentar-se ao sufrágio, dando a conhecer os
contornos das respetivas candidaturas;
– Campanha eleitoral: conhecidos os candidatos, reserva-se um período de campanha
eleitoral, no qual, de um modo mais intenso, se organiza o esclarecimento dos cidadãos
em relação às propostas das candidaturas apresentadas, normalmente com uso de
meios extraordinários que não são postos em prática no tempo não eleitoral;
– Organização das assembleias de voto: a realização da votação só é viável com a
preparação das assembleias de voto, que consiste na escolha das pessoas e dos lugares
em que vai ter lugar a votação, distribuindo-se o número de cidadãos pelos diversos
locais, segundo o critério da residência eleitoral;
– Votação: é o momento em que cada cidadão eleitor exerce o seu direito de voto,
escolhendo de entre as alternativas que se consubstanciam nas diversas candidaturas
apresentadas;
– Apuramento: é a contagem dos votos, num primeiro momento feita em cada assembleia
de voto, e posteriormente feita em termos mais amplos, para se permitir a conversão
dos votos em mandatos, por aplicação das regras próprias inerentes à natureza de cada
órgão a eleger;
– Contencioso da votação: feita a votação e a respetiva contagem, as irregularidades
verificadas podem ser objeto de impugnação judicial, uma vez que é legítimo fazer
chegar aos tribunais o conhecimento da prática de atos considerados ilegais ou
inconstitucionais.
439 Cfr., a título de exemplo, os arts. 13 e ss. da LEG.263 § 15º O princípio do Estado Democrático
72. A democracia semidireta e o referendo
I. A dimensão referendária da democracia consiste na possibilidade de os cidadãos se
pronunciarem acerca de assuntos que se colocam à gover-nação.
Já não se trata de escolher os governantes, em função das suas capacidades pessoais ou do
ideário político pretendido, governantes que depois ficarão com a responsabilidade de decidir
em vez do povo.
É o próprio povo que decide, por si mesmo, certas questões, intervindo pontualmente na
resolução dos assuntos públicos, povo que, enquanto conjunto de cidadãos governados, por
momentos se transforma em povo governante, resolvendo a questão que lhe tenha sido
submetida.
II. O instituto político-constitucional que concretiza a democracia semidirecta ou
democracia referendária é o referendo, ato pelo qual o povo responde a uma pergunta que lhe
é apresentada a respeito de uma matéria que se coloca à decisão do poder público.
A vontade que vem a ser manifestada num certo sentido – “sim”, “não” ou “abstenção” –
espelha o entendimento popular, coletivamente válido no âmbito de um procedimento de
votação.
O referendo implica que o povo decida sobre uma questão que normalmente é do foro dos
órgãos representativos, os quais têm titulares que foram escolhidos para imputarem uma
vontade psicológica à atividade jurídico-pública440.
A palavra “referendo” (ad referendum) proveio do Direito Internacional Público, em cujo
contexto os tratados são negociados ad referendum quando carecem de ulterior
consentimento dos órgãos internos competentes,
440 Sobre o referendo em geral, v. Ricardo Leite Pinto, Referendo local e descentralização política, Lisboa, 1984,

pp. 5 e ss.; Jorge Miranda, Ciência Política…, pp. 235 e ss., e Manual…, VII, pp. 306 e ss.; Maria Luísa Duarte, O
referendo e a representação política, in RJ, nºs 9 e 10, junho de 1987, pp. 195 e ss.; Luís Barbosa Rodrigues, O
referendo português a nível nacional, Coimbra, 1994, pp. 19 e ss.; Maria Benedita Pires Urbano, O referendo,
Coimbra, 1998, pp. 7 e ss.; Francisco Pereira Coutinho, O referendo político nacional em Portugal, in AAVV, Estudos
de Direito Público (coord. de João Caupers e Jorge Bacelar Gouveia), Lisboa, 2005, pp. 9 e ss.; Jorge Bacelar Gouveia,
Manual…, II, pp. 902 e ss.264 Princípios Fundamentais
fazendo-se a mesma homologia para a pergunta que se formula ao povo, a qual carece de
aceitação ou rejeição popular posterior441.
III. A observação do referendo no seu lugar de instituição político-constitucional permite
múltiplos prismas de análise, que se mostram relevantes noutras tantas classificações que
têm sido propostas442:
a) as matérias a referendar: referendo constitucional, internacional, político, legislativo e
administrativo;
b) o momento da realização: referendo prévio, referendo final e referendo superveniente;
c) a obrigatoriedade ou a facultatividade da convocação: referendo obrigatório e referendo
facultativo;
d) a força jurídica da resposta: referendo vinculativo e referendo consultivo.
IV. A melhor localização conceptual do referendo aconselha ainda a sua diferenciação
relativamente a outros institutos que dele se separam443: – a eleição;
– a destituição popular (recall);
– a iniciativa legislativa popular;
– a petição popular;
– as assembleias abertas.
A eleição, sendo a figura afim mais próxima do referendo, deste se distingue, embora a sua
titularidade também resida no povo, por não ser uma decisão de governação e ser uma seleção
de governantes para ocuparem os cargos públicos.
441 Mas naturalmente que o referendo de que aqui curamos situa-se no plano do Direito Constitucional,

embora o instituto, com esta ou outra configuração, seja conhecido de outros ramos do Direito.
No caso do Direito Internacional, o referendo tem sentido quando se pergunta a certo povo se quer ser
independente, no contexto do exercício da autodeterminação dos povos.
No plano do Direito Administrativo, o referendum administrativo traduz a expressão de uma vontade
administrativa, necessário à eficácia do ato administrativo ou de algo equivalente.
442 Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, Manual…, II, p. 903.

443 Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, Manual…, II, pp. 904 e 905.265 § 15º O princípio do Estado Democrático
A destituição popular, sendo o reverso da eleição, implica a cessação da titularidade dos
cargos públicos, mas, tal como a eleição, dissocia-se do referendo por se projetar no
preenchimento dos órgãos, não na tomada de decisões materiais.
A iniciativa legislativa popular significa que os cidadãos, enquanto comunidade política,
podem exercer o direito de fazer iniciar um procedimento legislativo, ainda que não decidam
a respetiva conversão em lei, mas neste caso assinala-se a distinção frente ao referendo
porque o povo não decide o ato legislativo, apenas o decide propor, cabendo a decisão aos
órgãos públicos competentes.
A petição popular, uma versão enfraquecida da iniciativa legislativa popular, representa o
direito de os cidadãos darem a conhecer aos órgãos públicos os seus pedidos, sem terem a
garantia de que sejam apreciados e, por maioria de razão, decididos, pelo que o fosso
relativamente ao referendo é ainda maior, pois que na petição popular apenas se chama a
atenção para o seu conteúdo, não havendo uma decisão sobre questões da governação.
As assembleias abertas são diversas do referendo porque nelas o aglomerado populacional
pode equivaler, em certos casos, a uma assembleia deliberativa, que se reúne sob certas
circunstâncias, normalmente pelo baixo número dos seus participantes.
V. O referendo em Direito Constitucional tem sido porventura um dos temas que mais
ricos debates tem suscitado nas últimas décadas, num estudo que se vai acentuando, para
além das importantes ilações que o mesmo proporciona no plano diverso da Ciência
Política444.
É verdade que a Democracia Contemporânea em boa parte nasceu contra a afirmação de
uma alternativa referendária, que ainda por cima tem um pesado lastro histórico de
experiências pouco democráticas.
Mas não tem sido menos verdade que a sociedade de informação em que estamos
mergulhados exige uma maior participação dos cidadãos, gradualmente se eliminando as
dificuldades e os perigos que antes se assacavam ao referendo: – o problema do
desconhecimento técnico das matérias por parte do povo que vai decidir não existe mais porque
não apenas as decisões são pontuais
444 Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, Manual…, II, pp. 905 e 906.266 Princípios Fundamentais
como se estabelece a obrigatoriedade de uma ampla campanha de esclarecimento;
– o problema da distorção “plebiscitária” dos resultados é dificuldade meramente teórica
porque o referendo não é uma ilha democrática, antes se insere num contexto
globalmente democrático, juntando-se não apenas a outros instrumentos de
participação política como vivendo lado a lado com a democracia eleitoral.
E vamos mesmo mais longe: numa altura em que muitos acreditam que a democracia se
encontra em crise profunda, pelo descrédito em que os políticos genericamente caíram, ou pela
insuficiência dos mecanismos representativos e partidários na resposta às inquietações dos
cidadãos, desvenda-se na democracia referendária uma importante válvula de segurança para
assegurar a mínima “oxigenação democrática” do sistema político.

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