Rhac+v 5+n 1+-+ALENCAR
Rhac+v 5+n 1+-+ALENCAR
Resumo
O presente artigo pretende recompor o quadro multifacetado das modernidades artísticas
emergidas nas primeiras décadas do século XX, no cenário cultural brasileiro, tomando, para tanto,
como linha diretiva o exame de alguns aspectos do projeto estético-musical delineado por Heitor
Villa-Lobos (1887-1959). Nesse sentido, os “afrotropos” – conceito formulado por Huey Copeland –,
ficcionalizados pelo compositor, e por ele convertidos em signos de uma suposta “brasilidade
musical”, serão contrastados com o contexto de consolidação da “Pequena África” carioca,
convertida naqueles anos em epicentro de modernidades alternativas potencialmente capazes de
expandir, para além das fronteiras do modernismo paulista, a reflexão acerca dos modernismos
artísticos atuantes no país.
Palavras-chave: Historiografia da arte brasileira. Modernismos. Arte Afro-brasileira. Afrotropos.
Síncopa.
Abstract
This article aims to recompose the multifaceted picture of artistic modernities emerged in the early
20th century, in Brazilian cultural sphere. To achieve this purpose, the examination of some aspects
of the aesthetic and musical project outlined by Heitor Villa-Lobos (1887-1959) will be adopted as
the main strategy. In this sense, the “afrotropes” – a concept formulated by Huey Copeland –
fictionalized by the composer and converted by him into signs of a supposed “musical
Brazilianness”, will be contrasted with the context of consolidation of “Little Africa” in Rio,
transformed in those years into an epicenter of alternative modernities potentially capable of
expanding, beyond the borders of the São Paulo modernism, the debates about artistic
modernisms active in the country.
Keywords: Historiography of Brazilian Art. Modernisms. Afro-Brazilian Art. Afrotropes. Syncope.
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Introdução
Em tempos recentes, o debate acerca das modernidades artísticas emergidas no cenário cultural
brasileiro vem sendo adensado por uma série de contribuições que visam, de um lado, relativizar o papel
desempenhado pela Semana de Arte Moderna, de 1922, enquanto marco inaugural do Modernismo no
país, e, de outro, recompor um quadro multifacetado de modernidades plurais, que poderiam ser
expandidas em termos cronológicos e geográficos para além dos limites fixados em torno do “cânone
paulista”1, uma vez que seriam anteriores ao movimento articulado em São Paulo, remetendo sobretudo
à virada do século XIX para o XX, e ao passo que as aludidas modernidades também teriam vicejado em
espaços insuspeitos, como as regiões Norte e Nordeste, e como o Rio de Janeiro – espaços esses muitas
vezes secundarizados pela bibliografia que se volta para o tema do Modernismo brasileiro.
Não que as ponderações às leituras cristalizadas acerca do modernismo paulista datem apenas de
agora. Muito pelo contrário, como bem o pontua Pedro Duarte, desde os anos 1980, vem sendo
aprofundado o contrabalanço histórico que busca revisar a “mitologia fundacional” criada pelos
modernistas acerca de seus respectivos projetos estéticos. Sobre o assunto, vale dizer que a pregnância,
ao longo do tempo, da aludida “mitologia” se explica pelo fato de os primeiros cronistas, narradores,
críticos e historiadores do Modernismo terem sido, em grande medida, os próprios membros do
movimento paulista, que se colocaram no centro dessa memória, em detrimento de outros artistas
situados fora do núcleo vanguardista de São Paulo. E, com o passar do tempo, essa história continuou a
ser recontada por críticos literários, historiadores e ensaístas, que, a exemplo de Antonio Candido, viram
no modernismo paulista “a tendência mais autêntica da arte e do pensamento brasileiro” 2.
Entretanto, nas duas últimas décadas do século passado, segundo as palavras de Silviano
Santiago, o Modernismo encontrou-se “fechado para balanço”3. Daí em diante as efemérides em torno da
Semana de 1922 passaram a ser aproveitadas para ponderar os limites do movimento. E, assim, se torna
fácil atestar que já há algumas décadas as pesquisas históricas no Brasil vêm se dedicando a tudo aquilo
que ficou às margens do relato hegemônico do Modernismo. Nas artes, as obras de pintores como Arthur
Timótheo da Costa foram revisitadas; na literatura, os novos estudos sobre as obras de Euclides da Cunha
e Lima Barreto serviram ao desmanche do problemático rótulo de “pré-modernista” – em relação ao qual
1
Sobre o assunto, conferir as reflexões de Rafael Cardoso sobre aquilo que o autor chama de “o mito de 1922”. CARDOSO, Rafael.
Modernidade em preto e branco: arte e imagem raça e identidade no Brasil, 1890-1945. São Paulo: Companhia das Letras, 2022,
p. 18-25.
2
DUARTE, Pedro. A palavra modernista: vanguarda e manifesto. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2014, p. 35.
3
SANTIAGO, Silviano. Fechado para balanço. In: Nas malhas da letra: ensaios. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p. 85-107.
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o movimento paulista perdurava como referência e modelo –; e, no sentido geográfico, as mais recentes
pesquisas identificaram novos polos irradiadores de modernidades artísticas, como Pernambuco, Minas
Gerais, o Sul do país e o peculiar Modernismo carioca4.
Inclusive a hipótese do alargamento temporal do Modernismo brasileiro foi alentada, ainda na
década de 1970, por Eduardo Jardim, em A brasilidade modernista e sua dimensão filosófica (1978). No livro
citado, o filósofo adota como eixo de sua reflexão a problemática da brasilidade tal como reelaborada
pelo Modernismo, e sugestivamente aponta para a possibilidade de deitar as raízes do aludido
movimento em uma linhagem do pensamento oitocentista5.
Nas palavras do autor:
Entretanto, em contraste com as revisões historiográficas acumuladas desde os anos 1980 acerca
do Modernismo brasileiro, as revisitações contemporâneas7 desse tema apresentam uma flagrante
inclinação de sentido que confere a elas uma especial peculiaridade: qual seja, a escrita de uma história,
e, mais especificamente, de uma história da arte dotada de cor, de corpo e de nome, orientada
analiticamente por um recorte biográfico e racial8.
4
DUARTE, Pedro. A palavra modernista: vanguarda e manifesto. Op. Cit., p. 46-50.
5
O debate acerca das “fontes e influências” do Modernismo brasileiro esteve atravessado pelo falso dilema em relação à margem
de originalidade ou dependência local, medida em relação às escolas artísticas europeias. Aracy Amaral desdobra, em seu livro
Artes plásticas na Semana de 22, o par “internacionalismo e nacionalismo” para responder à mencionada questão, dedicando-se à
descrição minuciosa do ambiente artístico europeu e de sua absorção pelos artistas brasileiros que viajaram a Paris nas primeiras
décadas do século XX. AMARAL, Aracy. Internacionalismo e nacionalismo no modernismo brasileiro. In: Artes plásticas na
Semana de 22. 7ª ed. São Paulo: Editora 34, 2021, p. 21-50.
Jorge Schwartz, por seu turno, opta por articular uma análise integrada e sincrônica das vanguardas na América Latina, o que
acaba por atenuar o papel fundante muitas vezes atribuído aos movimentos vanguardistas europeus para a eclosão dos
modernismos latino-americanos. SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas Latino-americanas: polêmicas, manifestos e textos críticos. 2ª
ed. São Paulo: EDUSP, 2008, p. 45-63.
Por fim, em meio a essas possibilidades interpretativas, observa-se a singularidade do enfoque proposto por Eduardo Jardim, ao
estabelecer os referidos diálogos intelectuais entre o Modernismo brasileiro e a tradição oitocentista de intérpretes do país –
tradição essa com a qual, em grande medida, os próprios modernistas paulistas procuravam romper, por considerá-la
“passadista”. JARDIM, Eduardo. A brasilidade modernista e sua dimensão filosófica. Rio de Janeiro: Editora Ponteio, Editora PUC-
Rio, 2016, p. 18.
6
JARDIM, Eduardo. As tradições da diversidade cultural – o modernismo. In: Diversidade cultural brasileira. Op. cit., p. 5.
7
GOMES, Flávio; LAURIANO, Jaime; SCHWARCZ. Enciclopédia negra. São Paulo: Companhia das Letras, 2021, p. 9-19.
8
O aludido enfoque biográfico e racial pode ser observado na produção do artista contemporâneo Dalton Paula, recentemente
envolvido com o projeto de elaboração de uma galeria de retratos de personagens negras da história brasileira, com o propósito
de assim restituir uma “presença da ausência”. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Dalton Paula e seus retratos afrodescendentes: dar vida
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Uma particular amostra das novas tendências interpretativas mencionadas poderia ser
encontrada nas reflexões de Renata Felinto Aparecida dos Santos, que, ao contrapor o par representação
x representatividade, busca “desnudar a suposta celebração das raças” atribuída a obras de artistas
modernistas paulistas, como seria o caso da emblemática produção plástica da pintora Tarsila do Amaral.
Expressiva da aproximação profundamente ambígua da artista em relação à temática racial é sua pintura
intitulada “A negra” (1923), cujo centenário foi comemorado no ano passado. As tensões presentes na
obra, bem exploradas por Lilia Schwarcz e Renata Santos9, residem sobretudo no apagamento da
identidade e na exotização do corpo feminino negro de uma mulher que esteve presente no decurso da
infância da artista, e que, nas lembranças edulcoradas do passado escravista relatadas pela pintora, não
chega a ser sequer nomeada, como é possível notar no seguinte excerto:
Um dos meus quadros de muito sucesso quando expus lá na Europa se chama A negra.
Porque eu tenho reminiscências de ter conhecido uma daquelas antigas escravas,
quando eu era menina de cinco ou seis anos, sabe? Escravas que moravam lá na nossa
fazenda, e ela tinha os lábios caídos e os seios enormes, porque, me contaram depois,
naquele tempo as negras amarravam pedra nos seios para ficarem compridos e elas
jogarem para trás e amamentarem a criança presa nas costas [sic]10.
à morte, fazer da ausência uma grande presença. In: PEDROSA, Adriano; BRITTO, Glaucea Helena; SCHWARCZ, Lilia Moritz
(Orgs.). Dalton Paula: retratos brasileiros. São Paulo: MASP, 2022, p. 30-34.
9
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O negrismo e as vanguardas nos modernismos brasileiros: presença e ausência. In: ANDRADE, Gênese
(Org.). Modernismos: 1922-2022. São Paulo: Companhia das Letras, 2022, p. 303-305; SANTOS, Renata Aparecida Felinto dos.
Representação, representatividade e necropolítica nas artes visuais. In: ANDRADE, op. cit., p. 663-665.
10
PEDROSA, Adriano; OLIVA, Fernando. Tarsila popular. São Paulo: Masp, 2019, p. 188 apud SCHWARCZ, Lilia Moritz. O negrismo
e as vanguardas nos modernismos brasileiros: presença e ausência. In: ANDRADE, op. cit., p. 305.
11
SANTOS, Renata Aparecida Felinto dos. Representação, representatividade e necropolítica nas artes visuais. In: ANDRADE, op.
cit., p. 666-675.
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a uma narrativa única resultaria em inequívoco simplismo historiográfico a ser complexificado por novos
enfoques, objetos e tendências12.
Seguindo esse impulso, o autor se volta sobre o Modernismo carioca, composto por uma
diversidade de agentes, dentre os quais jornalistas, ilustradores, humoristas e sambistas – figurando entre
esses atores numerosos artistas afrodescendentes, a exemplo de K. Lixto, e dos já aludidos Lima Barreto e
Arthur Timótheo da Costa. Além disso, o referido movimento seria especialmente atento à cultura de
massas, que se expressava em mídias como a fotografia e as artes gráficas, e teria feito uso da indústria
fonográfica, das revistas ilustradas e da moderna prática festiva do Carnaval como potentes polos de
irradiação que encontravam espaço propício de desenvolvimento no cenário urbano da capital nacional13.
Isto posto, cabe dizer que a reflexão exposta nas páginas que seguem será porosa aos impasses e
dilemas apontados pela produção bibliográfica contemporânea, acerca do tema dos Modernismos
atuantes no país, aqui observados sob sua inflexão afro-brasileira. Dessa forma, a questão de fundo que
permeará a análise do projeto musical e estético de Heitor Villa-Lobos (1887-1959) será receptiva às
possibilidades de alargamento das modernidades artísticas brasileiras em termos da composição étnica,
racial e social, de seus expoentes, bem como em relação às mídias e suportes nelas envolvidos.
Nesse sentido, o exame que será feito adiante da obra do compositor carioca, sobretudo da peça
para piano e voz intitulada Xangô (1919), inclusa no ciclo das “Canções Típicas Brasileiras”, girará em torno
dos “afrotropos”14 singularmente incorporados e ficcionalizados pelo referido músico modernista em seus
processos composicionais. Dessa forma, observado a partir do ângulo da retoricidade sonora, o artista
será enfocado pelo emprego do motivo “tipo Xangô”15 realizado por ele em seu vasto repertório musical.
Feitos estes apontamentos introdutórios, prossigamos pela apresentação de nosso protagonista,
Heitor Villa-Lobos, que será nesse texto localizado em meio ao férvido modernismo artístico e cultural
que irrompia, em inícios do século XX, na cidade do Rio de Janeiro.
O flâneur é ingênuo quase sempre. [...] Acaba com a vaga idéia de que todo o
espetáculo da cidade foi feito especialmente para seu gozo próprio. O balão que sobe
ao meio-dia no Castelo, sobe para seu prazer; as bandas de música tocam nas praças
12
CARDOSO, op. cit., p. 17.
13
Ibidem, p. 25-39.
14
Refiro-me ao conceito formulado por Huey Copeland que será mobilizado no decorrer do artigo. COPELAND, Huey. Relatando
condições: rumo a uma história da arte afrotrópica. Tradução de Daniel Lühmann. In: PEDROSA, Adriano; CARNEIRO, Amanda;
MESQUITA, André. (Orgs.) Histórias afro-atlânticas: antologia. São Paulo: MASP, 2022.
15
A noção de “tipo Xangô” foi especialmente trabalhada pela pesquisadora Juliana Ripke da Costa, e será mobilizada na análise
da canção Xangô, de Villa-Lobos, que será realizada mais adiante.
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para alegrá-lo; se num beco perdido há uma serenata com violões chorosos, a serenata
e os violões estão ali para diverti-lo16.
No despontar do século XX, a paisagem urbana carioca foi atravessada por tão vertiginosas
transformações que tal processo apenas poderia encontrar na virada do século anterior17 um frágil
paralelo. O núcleo urbano da capital do país, que até pouco tempo antes se repartia entre algumas
quantas freguesias e que, sobretudo, abrangia a região atualmente correspondente ao Centro da cidade
do Rio de Janeiro, passou então a vivenciar um verdadeiro processo de alargamento cada vez mais
contundente de suas fronteiras territoriais18.
E as regiões antes localizadas às margens dos limites urbanos receberam um afluxo crescente de
pessoas: fossem elas os despossuídos recentemente expulsos de seus lares pelas políticas anti-cortiços
que animavam as reformas urbanas em curso na cidade, fossem os imigrantes há pouco tempo
desembarcados no Rio de Janeiro – capital que se tornara conhecida como “túmulo de estrangeiros” –, ou
fossem os indivíduos envolvidos na “diáspora baiana”19, composta por numerosos contingentes da
população negra recém-liberta proveniente do Nordeste, e que se colocavam rumo às freguesias cariocas
da Saúde, Santo Cristo, Praça Onze e Gamboa: berços primevos da “Pequena África”20 que, pouco a pouco,
se erigia no Rio de Janeiro.
A Pequena África carioca, que ganhava seus mais sólidos contornos nas primeiras décadas do
século passado, poderia ser observada como um valioso “laboratório” cultural21, em torno do qual
reuniam-se experiências religiosas as mais díspares e práticas festivas, musicais e performáticas as mais
diversas, nutridas pelos múltiplos grupos étnicos e sociais compostos por indivíduos negros que forjavam
para si próprios novos vínculos identitários e de nação, de modo a rearticular conhecimentos e práticas
em face a circunstâncias alteradas22.
16
JOÃO DO RIO. A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1995, p. 6.
17
Refiro-me à modificação na paisagem urbana da cidade do Rio de Janeiro, iniciada em 1808, em decorrência da presença da
família real portuguesa, acompanhada por um contingente de aproximadamente 15 mil membros da nobreza lusitana.
Emblemática da aludida modificação da paisagem da cidade, que resultou, entre outras coisas, na relativa ampliação de seu
perímetro urbano, foi a construção do “Caminho das Lanternas”, que se fez a partir da ocupação de zonas pantanosas às margens
do Centro da cidade. FRANCESCHI, Humberto M. Samba de sambar no Estácio: 1928-1931. São Paulo: Instituto Moreira Salles,
2010, p. 13-17.
18
COSTA-LIMA NETO, Luiz. Entre o lundu, a ária e a aleluia: música, teatro e história nas comédias de Luiz Carlos Martins Penna
(1833-1846). Rio de Janeiro: Folha Seca, 2018, p. 117.
19
MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. São Paulo: Todavia, 2022, p. 106.
20
Termo cunhado pelo multiartista Heitor dos Prazeres (1898-1966) para referir-se a essa porção da cidade como “trincheira de
resistência” política e cultural. CARDOSO, op. cit., p. 43.
21
TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular brasileira. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 278.
22
Cécile Fromont afirma: “Apesar da violência extrema que a vida na sociedade escravista brasileira impôs a todos os aspectos dos
seus corpos e mentes, homens e mulheres [...] preservaram uma visão de mundo independente [...] que lhes permitiu responder às
mudanças e adaptar-se às novidades segundo seus próprios pontos de vista.” FROMONT, Cécile. Dançando para o rei do Congo: da
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A noção de família expandida23 adquiria renovado sentido para a população afrodescendente que,
partindo de distintos contextos regionais, sociais, econômicos e culturais, transitava nas vielas do morro
da Favela e nas ruas da antiga zona portuária do Rio de Janeiro; zona essa que compunha, até a primeira
metade do século XIX, o complexo do Valongo – localização central para o tráfico escravagista
recentemente abolido a nível nacional24.
Neste território, que, pelas vicissitudes de um país “moderno”, fora atravessado por experiências
afrodiaspóricas complexas atuantes no imediato contexto do pós-abolição, a política exercia-se, entre
outros meios, a partir da liderança das “tias”, que além do poderio econômico e cultural, também eram
importantes recriadoras de práticas e sistemas de crenças concernentes a religiões de matriz africana em
solo brasileiro. Dentre essas matriarcas, Hilária Batista da Costa – mais conhecida como Tia Ciata, seu
nome caseiro, afetivo, do que por seu nome de registro –, vinda da Bahia para o Rio de Janeiro em 1876,
destacar-se-ia como mãe de santo e quituteira, sendo os eventos promovidos por ela em sua casa núcleos
fundamentais de articulação do samba carioca25.
A respeito desses encontros, que poderiam durar por dias e mais dias e tomavam quase todos os
cômodos da casa de Tia Ciata, Roberto Moura nos conta:
Dois aspectos assomam daquilo que foi pontuado pelo excerto. Em primeiro lugar, os batuques
mais distantes dos olhos dos passantes, que ocorriam no quintal dos fundos da casa da baiana Ciata,
recolocam a função política, social, religiosa e cultural desempenhada pelos terreiros de candomblé
estabelecidos na Pequena África carioca. Isso porque esses enclaves demonstravam a atuação das
religiões de matriz africana como potentes instrumentos promotores de alianças interétnicas no Brasil,
África Central, no início da Era Moderna, ao Brasil, no período da escravatura. In: AVOLESE, Cláudia Mattos; DALCANALE, Patrícia
(Orgs.). Arte não europeia: conexões historiográficas a partir do Brasil. São Paulo: Estação liberdade, 2020, p. 137.
23
MOURA, op. cit., p. 86.
24
COSTA-LIMA NETO, op. cit., p. 23.
25
SANTOS, Ynaê Lopes do. História da África e do Brasil afro-descendente. Rio de Janeiro: Pallas, 2017, p. 218.
26
MOURA, op. cit., p. 201.
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uma vez que “ainda que os terreiros não tivessem deixado de representar uma memória da identidade
étnica [...], tal identidade, em virtude da inclusão de tantos elementos estrangeiros, deixou de se basear
na linhagem étnica para se assentar na filiação espiritual”27.
Em segundo lugar, seria possível ressaltar o ambiente propício ofertado por esse poderoso
“laboratório cultural” emergido na cidade do Rio de Janeiro para o estabelecimento do moderno samba
carioca, que, entre outros elementos, se constituía por muitas das características rítmicas da música afro-
brasileira religiosa, tais como o compasso binário, a subdivisão em semicolcheias, a melodia e o
acompanhamento com ritmo sincopado e a sensação recorrente de deslocamento do tempo forte para as
partes fracas do tempo28 – características essas também encontradas, de maneira mais ampla, no lundu
e no maxixe, considerados pela literatura especializada como gêneros primevos da música popular no
cenário nacional29.
Tal correlação entre a rítmica afro-brasileira e a nacionalização da expressão musical, antes de
espontânea, foi argumentada e forjada discursivamente no âmbito dos projetos artísticos modernistas, a
exemplo daquele aventado pelo maestro e compositor Heitor Villa-Lobos, que, desde fins dos anos 1910,
já despontava como um dos principais expoentes da nova geração de músicos brasileiros. De origem
modesta, o jovem violoncelista, que nas décadas seguintes seria convertido em um dos principais nomes
da música de concerto do país, circulava pelas ruas cariocas, sorvendo neste espaço os elementos
posteriormente utilizados em suas obras orquestrais.
Nas palavras de Eero Tarasti:
27
REIS, João José. O candomblé na Bahia do século 19. In: PEDROSA; CARNEIRO; MESQUITA, op. cit., p. 330.
28
Cabe ressalvar a incontornável margem de inadequação e falibilidade guardada pelo vocabulário musical ocidental ao abordar
expressões culturais localizadas fora do Ocidente. Entretanto, dado que o samba dificilmente poderia ser pensado enquanto
gênero musical estanque, dissociado por completo de outros gêneros como o lundu, o maxixe, a modinha, o chorinho, a marcha
carnavalesca, o tango brasileiro, entre outros; e dado que esses gêneros fronteiriços, também eles, estabeleceram diálogos com
o repertório musical ocidental, tal vocabulário pode ser estrategicamente manejado nesse artigo, ainda que se saiba dos
possíveis ruídos contidos em seu emprego.
29
SIQUEIRA, Magno Bissoli. Samba e identidade nacional: das origens à Era Vargas. São Paulo: Editora Unesp, 2012, p. 84-89.
30
TARASTI, Eero. Heitor Villa-Lobos: vida e obra (1887-1959). Tradução de Paulo de Tarso Salles, Rodrigo Felicíssimo e Cláudia
Sarmiento. São Paulo: Editora Contracorrente, 2021, p. 85-86.
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Vale lembrar que, de acordo com a cartografia da cidade delineada por Luiz Costa-Lima Neto,
desde meados do século XIX, a região pela qual Heitor Villa-Lobos transitava já poderia ser caracterizada
pelo intenso e variado afluxo cultural de inflexão afro-brasileira. Segundo o mapa sonoro da cidade
composto pelo pesquisador, o antigo Largo do Rocio, juntamente com a região referente ao já desativado
cais do Valongo, seriam partes constitutivas da zona de influência musical do Lundu – gênero afro-luso-
brasileiro –, em contraste com as zonas da Aleluia e da Ária, sob influência da música sacra e da música
vocal operística de matriz europeia31.
Naquele mesmo espaço, em pleno auge do Império escravista brasileiro, estabeleceu-se, por
exemplo, a loja de Francisco de Paula Brito, tipógrafo, escritor, jornalista, letrista de lundus e poeta negro
carioca, pioneiro na edição de jornais de temática racial, como O Homem de Cor (1833), promotor de
inúmeros espetáculos teatrais em benefício de alforria de irmãos escravizados e fundador da Sociedade
Petalógica, atuante entre as décadas de 1830 e 1860, na Rua da Constituição32 – rua esta que se localizava
a poucos metros de distância do Teatro São Pedro de Alcântara e do Teatro de São Francisco, naqueles
anos algumas das casas de espetáculo mais prestigiadas da cidade33. Na referida sociedade, avessa aos
estatutos reguladores da República das Letras, o gênero musical da modinha foi reinventado por meio
dos versos compostos pelos poetas românticos, e também a partir dos timbres da viola, da flauta e do
cavaquinho, explorados pelos instrumentistas saídos das camadas populares do Rio de Janeiro34 .
Feitos esses apontamentos sobre a ambiência sonora do Rio antigo, vale frisar que a porosidade
da paisagem urbana carioca, permeada pelos trânsitos de indivíduos pertencentes aos mais diferentes
estratos étnicos, sociais e raciais, não foi traço exclusivo do contexto imperial, tendo apenas se
intensificado na virada do século passado, quando os variados lados da Belle Époque vivenciada pela
capital inopinadamente esbarravam-se – e isso à revelia dos projetos urbanos que visavam à segregação
das camadas sociais menos abastadas. Pois, “dada a geografia peculiar do Rio de Janeiro e as rápidas
mudanças demográficas, a convivência se impunha”, caracterizando-se a cidade, naqueles anos, pelo
trânsito constante entre opostos35.
31
COSTA-LIMA NETO, op. cit., p. 29-32.
32
Ibidem, p. 167-169.
33
Nos palcos de ambos os teatros brilhou, entre 1840 e 1850, o cantor-ator-dançarino negro Martinho Corrêa Vasques, protegido
de Paula Brito e participante de muitos espetáculos em benefício articulados pelo tipógrafo. Com seu variado repertório atorial,
composto de lundus, árias e vaudevilles, e com seu gestual musical afro-brasileiro, Vasques poderia ser visto como potente
expressão das culturas negras no plural praticadas por indivíduos afrodescendentes habitantes da capital do Império escravista
brasileiro. COSTA-LIMA NETO, Luiz. O ator-cantor negro Martinho Corrêa Vasques (1822-1890): lundus, árias, vaudevilles e
paródias no Império da escravidão. Per Musi, n. 42, 2022, p. 2-3.
34
TINHORÃO, José Ramos. Pequena história da música popular: segundo seus gêneros. 7ª ed. São Paulo: Editora 34, 2013, p. 26-27.
35
CARDOSO, op. cit., p. 94.
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O canto Xangô: entre a “negrofilia” e o internacionalismo negro nos anos 1920 e 1930
Exemplos de algumas das obras vocais mais expressivas de Heitor Villa-Lobos, compostas entre
finais dos anos 1910 e a década de 1920, são as “Canções Típicas Brasileiras”, cuja “fatura”, segundo Eero
Tarasti, remeteria ao período de estadia do músico em Paris, que se inicia em julho de 1923, por meio do
amparo de uma bolsa concedida pelo governo36. De modo a elaborar para si próprio uma autoimagem
“selvática”, de um típico compositor nacional, capaz de destacá-lo no contexto cultural internacional,
Villa-Lobos pululou a imprensa francesa de então com as mais estapafúrdias lorotas37 sobre as suas
incursões Brasil adentro, chegando mesmo a relatar a sua suposta captura por indígenas das florestas
tropicais, a quem teria exibido, em primeiríssima mão, as sonoridades características da música europeia,
valendo-se para tanto de um aparelho fonógrafo, nessa imaginária peripécia38.
Mas não por mero acaso o compositor brasileiro assim procedia. Ao fazê-lo, Heitor Villa-Lobos
tinha por intento criar para si um espaço legítimo no interior de uma Paris embalada pela música negra e
pelo jazz, pelo ritmo sincopado, pelas danças binárias, negro spirituals e pelo ragtime; uma Paris convertida
em epicentro das transformações vanguardistas implementadas no campo musical, calcadas, como o
pontua Eero Tarasti, na “libertação do ritmo”, na “expansão da orquestra”, na “inclusão de instrumentos
antes pouco utilizados” e nas “técnicas de transmissão e gravação que levaram os compositores a escrever
com mais precisão e rigor que antes”39.
Para além da ambígua “negrofilia”40 que naquelas décadas caracterizava o cenário cultural
parisiense – décadas essas igualmente atravessadas pelas investidas imperialistas europeias sobre o
continente africano –, e do “primitivismo artístico” que servia de estímulo para os movimentos de
vanguarda então vigentes no velho continente, a exemplo do Fauvismo, do Cubismo e do Surrealismo 41,
é importante apontar para o fato de a Paris dos anos 1920 e 1930 ter se tornado um dos polos mais ativos
de fermentação do movimento pan-africanista engajado no desmonte do “supremacismo branco” e das
36
TARASTI, op. cit., p. 97.
37
As referidas lorotas eram críveis exclusivamente no contexto internacional europeu, afoito justamente por esse tipo de relato.
Era pouco verossímil, contudo, que na imprensa brasileira estas mentiras tivessem largo lastro, sendo mais facilmente
reconhecidas como paródias de crônicas como as de Hans Staden (1525-1576). Com isso, pode-se dizer que a ironia prepondera
nessas histórias inventadas pelo maestro.
38
TARASTI, op. cit., p. 102.
39
Ibidem, p. 99.
40
SANTOS, op. cit., p. 668.
41
BARROS, José D’Assunção. As influências da arte africana na arte moderna. Afro-Ásia, v. 44, p. 37-95, 2011.
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42
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O negrismo e as vanguardas nos modernismos brasileiros: presença e ausência. In: ANDRADE, op.
cit., p. 298.
43
O movimento conhecido como Harlem Renaissance eclodiu nos anos 1920, em Nova York. A partir de um amplo espectro
artístico-cultural, e também dos campos da filosofia, história e sociologia, os intelectuais e artistas negros participantes do
movimento exploraram novas formas de compreender e figurar as experiências históricas da população afro-americana.
FINZSCH, Norbert. The Harlem Renaissance, 1919-1935. In: WELSKOPP, Thomas; LESSOFF, Alan (Ed.). Fractured Modernity:
America Confronts Modern Times, 1890s to 1940s. Berlin, Boston: De Gruyter Oldenbourg, 2013, p. 193-194.
44
A martinicana Paulette Nardal foi escritora e jornalista, além de ter sido a primeira mulher negra a estudar na Sorbonne.
Contribuiu para a divulgação da Harlem Renaissance, no contexto parisiense, e, juntamente com suas irmãs, atuou na
consolidação do movimento cultural e literário fundado em torno do termo “negritude”. CAMPOS, Rogério de. Retorno a Aimé
Césaire, uma cronologia. In: CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Tradução de Cláudio Willer. São Paulo: Veneta, 2020,
p. 90.
45
Nas palavras de Lilia Schwarcz: “A negritude toma força, pois, quando a população negra adquire consciência de que seria
necessário retomar sua identidade, recuperar sua herança histórica, cultural e social, proclamar a solidariedade para com as
nações negras de todo o mundo, bem como negar o branqueamento vigente de forma naturalizada em boa parte das sociedades
ocidentais.” SCHWARCZ, op. cit., p. 300.
46
Ibidem, p. 90-107.
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musical europeia, disseram, pela imprensa, ao lado de alguns elogios à forma original
reconhecida, que essa obra sofria influência de Stravinsky47.
Os comentários do compositor brasileiro dizem respeito às apreciações de sua própria obra feitas
por críticos europeus, consideradas por ele inadequadas, uma vez que circunscreviam suas produções ao
círculo estreito das vanguardas artísticas europeias, imbuídas, em grande medida, do já mencionado
“primitivismo artístico”, empregado por elas como elemento disruptivo das convenções artísticas até
aquele momento estabelecidas no âmbito da história da música ocidental. Villa-Lobos, por seu turno,
pretendia diferenciar-se em meio ao cenário das vanguardas artísticas europeias por meio da evocação
do singular repertório rítmico e melódico mobilizado por ele em seus processos composicionais.
Em outras palavras, o músico carioca, ambientado às sonoridades dos choros, sambas e modinhas
que embalavam as ruas do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX, valia-se de sua vivência e
de sua inscrição cultural enquanto signos diferenciadores de sua produção musical, concebendo nesses
termos a distância que separaria o vanguardismo cultivado por artistas europeus, centrado em rupturas
e inovações formais e estilísticas, de sua própria aproximação em relação às manifestações “folclóricas” e
“populares” coexistentes no país, e inseridas por Villa-Lobos em um amplo projeto de pesquisa acerca da
“brasilidade musical”.
Dito isto, podemos avançar analiticamente de maneira mais consistente sobre a canção Xangô
(1919), composta para voz e piano, e que integra o ciclo das “Canções Típicas Brasileiras”, elaboradas, como
já foi dito, durante o período de estadia do músico em Paris. A partir desse breve exame, procurarei em
seguida sustentar a recorrente presença de “afrotropos” no interior do universo composicional de Heitor
Villa-Lobos, de modo a oferecer lastro para futuras reflexões sobre os mais variados diálogos, contatos e
tensionamentos travados entre as diferentes modernidades artísticas articuladas no cenário cultural
brasileiro.
Como chave analítica a ser mobilizada no exame que proponho do canto Xangô, composto por
Heitor Villa-Lobos e difundido em meio ao cenário cultural previamente comentado, atravessado pelos
polos da negrofilia e do internacionalismo negro, irei recorrer às reflexões desenvolvidas por Acácio
Piedade acerca da retoricidade e da teoria das tópicas musicais.
47
GUIMARÃES, Luiz. Villa-lobos visto da plateia e na intimidade (1912/1935). Rio de Janeiro: Moderna, 1972, p. 136 apud TARASTI,
op. cit., p. 103-104.
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Tal “arquétipo do estilo afro-brasileiro”, de acordo com Juliana Ripke da Costa, seria caracterizado
pela conjugação de uma melodia vocal repleta de polirritmias, notas longas e contornos melódicos
descendentes com um acompanhamento percussivo em forma de ostinato, executado pelo piano. Ainda
segundo a autora, tais ritmos em repetição, que adquirem a forma de ostinatos, poderiam remeter aos
48
PIEDADE, Acácio. Uma análise do prelúdio da Bachianas Brasileiras Nº 2 sob a perspectiva das tópicas, da retoricidade e da
narratividade. In: SALLES, Paulo de Tarso; DUDEQUE, Norton (Orgs.). Villa-Lobos, um compêndio: novos desafios
interpretativos. Curitiba: Editora UFPR, 2017, p. 274-277.
49
TARASTI, op. cit., p. 353-354.
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atabaques50 integrantes de muitas das cerimônias performadas no âmbito das religiões de matriz afro-
brasileira, sobretudo o candomblé51.
O vínculo entre o samba e a rítmica religiosa afro-brasileira foi fartamente estudado por uma
diversidade de pesquisadores, dentre os quais poderíamos citar Roberto Moura, autor do trecho acima
transcrito, e também Magno Bissoli Siqueira, musicólogo que mobiliza a noção de “samba perene”, de
modo incluir no interior dessa categoria não apenas o samba, mas todo o vasto repertório musical
originário, entre outras tradições e influências, da estrutura rítmica da música negro-religiosa de matriz
africana e afro-brasileira, composta por elementos como a síncopa, a pulsação rítmica, a melodia e o
acompanhamento com ritmo sincopado, a acentuação das partes fracas do tempo, a marcação em
semicolcheias e a predominância do compasso binário53.
Trata-se de uma tradição rítmica pouco explorada ao longo da história da música europeia 54,
vindo a ganhar destaque no cenário ocidental a partir do século XX, mediante a iniciativa das vanguardas
artísticas atuantes no período55. Como nos informa o autor, as síncopas56, que copiosamente se
encontram nos sambas, maxixes, lundus, batuques e cateretês, não tinham destaque no universo musical
europeu até pouco mais de um século atrás. E o núcleo primário difusor desse procedimento sonoro, que
50
Segundo Pierre Verger: “Os atabaques desempenham nesses cultos um papel essencial. São, para os negros, muito mais do
que meros instrumentos musicais que servem para acompanhar as cantigas e danças religiosas. São considerados seres dotados
de alma e personalidade. [...] Os atabaques são instrumentos sagrados.” VERGER, Pierre. Notas sobre o culto aos orixás e voduns
na Bahia de Todos os Santos, no Brasil, e na antiga Costa dos Escravos, na África. Tradução de Carlos Moura. 2ª ed. São Paulo:
Edusp, 2019, p. 25.
51
COSTA, Juliana Ripke. Canto de xangô: uma tópica afro-brasileira. Orfeu, v. 1, n. 1, jun., 2016, p. 60.
52
MOURA, op. cit., p. 237.
53
SIQUEIRA, op. cit.,p. 72-86.
54
Ibidem, p. 88.
55
CAMPOS, Augusto de. Música de invenção. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 79-81; BENNETT, Roy. Uma breve história da
música. Tradução de Maria Teresa Resende Costa. Rio de Janeiro: Zahar, 1986, p. 71.
56
Com as seguintes palavras José Miguel Wisnik define a síncopa: “[...] alternância entremeada de dois pulsos jogando entre o
tempo e o contratempo, e chamando o corpo a ocupar esse intervalo que os diferencia através da dança. Com isso ele [o ritmo]
se investe do seu poder de aliar o corporal e o espiritual, e de chegar no limiar do tempo e do contra-tempo, o simétrico e o
assimétrico [...]. O ritmo não é meramente uma sucessão linear de tempos longos e breves, mas a oscilação de diferentes valores
de tempo em torno de um centro que se afirma pela repetição regular e se desloca pela sobreposição assimétrica dos pulsos e
pela interferência de irregularidades [...]. WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas. 3ª ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 70.
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consiste no deslocamento do acento para as partes fracas do tempo, seria, segundo Magno Bissoli
Siqueira, a música negro-religiosa57.
De modo a complementar o que vem sendo dito, observemos as colocações de Nahim Marum
sobre o referido tema:
Tal como o pontua o autor, um dos traços característicos da canção Xangô seria, portanto, o
embasamento da peça em “paradigmas musicais ritualísticos ou religiosos”59 – paradigmas esses cada vez
mais explorados e ficcionalizados por compositores modernistas desejos de forjar uma “música
brasileira”, calcada, entre outros elementos, nas já mencionadas “tópicas afro-brasileiras”, comentadas
por Acácio Piedade.
Vejamos como esses elementos poderiam ser lastreados no interior da peça:
Figura 1 :
VILLA-LOBOS, Heitor. Xangô. Chansons Brésiliennes. Paris: Éditions Max Eschig, 1957.
57
SIQUEIRA, op. cit., p. 88-89.
58
MARUM, Nahin. Revisão crítica das canções para voz e piano de Heitor Villa-Lobos: publicadas pela Editora Max Eschig. São
Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010, p. 28.
59
Ibidem, p. 31.
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Mais do que o emprego das síncopas, ou seja, dos deslocamentos do acento para as partes fracas
do tempo, acredito que o fator mais distintivo da produção composicional de Heitor Villa-Lobos consista
na transformação desses deslocamentos em uma espécie de padrão recorrente ao longo de toda a peça.
Pode-se perceber o que foi dito ao observarmos as células rítmicas, de feitio percussivo, executadas pelo
piano, que se mantêm estáveis durante quase toda a canção, e ao destacarmos as indicações de dinâmica
referentes ao acompanhamento rítmico realizado pelo instrumento, indicações essas caracterizadas por
sinalizações de sforzandos que recaem com frequência sobre os contratempos.
O efeito desestabilizador da convencional medida “quatro por quatro” em que se organiza o
compasso é apenas ressaltado pelas constantes quiálteras incorporadas à linha melódica executada pelo
canto; algo possível de se notar no fragmento da peça exposto a seguir:
Figura 2 :
VILLA-LOBOS, Heitor. Xangô. Chansons Brésiliennes. Paris: Éditions Max Eschig, 1957.
Assim como em outras de suas composições, a exemplo do Choros Nº. 10, Villa-Lobos torna
inadequada e estreita a acepção mais tradicional da “síncopa”, tal como delimitada pelo vocabulário
musical ocidental, pois, ao invés de exceção, de deslocamento rítmico momentâneo, as síncopas seriam
convertidas pelo compositor em elemento recorrentemente utilizado, estruturante de uma forma que
rompe com a medida mais convencional do compasso60.
Valendo-me dessas reflexões gostaria de sustentar, portanto, que em torno do repertório rítmico
enfocado teria se cristalizado um importante “afrotropo”, em intensa circulação pelas mais variadas
paisagens sonoras do Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do século XX – repertório esse com o qual
Heitor Villa-Lobos travou recorrentes diálogos no âmbito de sua produção musical. No entanto, antes de
prosseguirmos com a argumentação, comentemos brevemente a noção acima mencionada.
60
Já no Ensaio sobre a música brasileira (1928), Mário de Andrade afirmava a limitação da concepção ocidental de “síncopa”, se
aplicada à “fantasia musical” característica da rítmica “tipicamente” brasileira. Contemporaneamente, Carlos Sandroni oferece
uma possível saída para esse dilema mediante o uso do conceito de “contrametricidade”. ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a
música brasileira. 4ª ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2006; SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba
no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
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Seguindo essa trilha de reflexão, proponho que a “tópica afro-brasileira”, concebida por Acácio
Piedade, o “arquétipo do estilo afro-brasileiro”, comentado por Eero Tarasti, bem como o motivo “tipo
Xangô”, referido por Juliana Ripke da Costa, poderiam todos ser compreendidos na esteira dos afrotropos,
tal como definidos por Huey Copeland, uma vez que cada uma dessas categorias, a seu modo, cristalizaria
processos histórico-culturais mais amplos, protagonizados por indivíduos negros, e inseridos no âmbito
da diáspora africana.
Em outras palavras, a modelação desses tropos, tópicas, tipos, arquétipos não teria sido um
processo unilateral, executado por artistas modernistas engajados em projetos de construção de uma
pretensa “música nacional”. Pelo contrário, o forjamento de um vasto conjunto de afrotropos teria se dado
– não sem tensões e conflitos – por iniciativa tanto dos referidos artistas modernistas, quanto pela
agência de músicos, compositores, instrumentistas e artistas negrodescendentes, interessados em
reconstruir alianças e vínculos culturais no contexto do pós-abolição, e que se utilizaram da linguagem
musical como um de seus mais poderosos instrumentos de atuação.
Retornando ao caso do canto Xangô, de Heitor Villa-Lobos, pode-se dizer que os afrotopos ali
presentes – sobretudo as síncopas e ostinatos –, forjados nas ruas, casas e terreiros da Pequena África
61
COPELAND, Huey. Relatando condições: rumo a uma história da arte afrotrópica. Tradução de Daniel Lühmann. In: PEDROSA,
CARNEIRO, MESQUITA, André. (Orgs.) Histórias afro-atlânticas: antologia. Op. cit., op. cit., p. 623-624.
62
Ibidem, p. 624.
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carioca e reelaborados pelo moderno samba que naqueles anos emergia no Rio de Janeiro, foram, por seu
turno, transculturados pelo compositor modernista em muitas de suas composições. Familiarizado com
a híbrida paisagem sonora63 da cidade, uma vez que ele mesmo circulava pelos espaços de sociabilidade
marcados pela presença dos chorões, modinheiros, sambistas e seresteiros64, Villa-Lobos absorveu, e, de
sua maneira singular, reinterpretou os afrotropos que integraram seu vasto universo composicional.
Não por acaso o compositor mencionou em uma entrevista previamente citada os nomes de Sinhô
e Donga, que, assim como a música do carnaval carioca, foram tratados como fontes para os motivos por
ele trabalhados em suas peças camerísticas e orquestrais. Contudo, como o músico lamenta, os ouvidos
pouco habituados à “paisagem sonora” ressonante na cidade do Rio de Janeiro apenas encontrariam
naquelas mesmas peças supostas influências europeias de compositores vanguardistas, como Igor
Stravinsky, e não a fina nata da música tocada nas ruas, nas praças, nos cinemas, restaurantes e nas noites
cariocas, tão ao gosto do protagonista dessas páginas – artista que, nas palavras de Eero Tarasti,
participava desses ambientes com tamanho entusiasmo, que chega a surpreender o fato de Heitor Villa-
Lobos ter sido alçado ao circuito musical “oficial”, em vez de “ter permanecido como um chorão ou
seresteiro errante”65.
Considerações finais
No decorrer do artigo, meu intuito foi o de analisar o universo composicional de Heitor Villa-
Lobos, de modo a inseri-lo, aproximá-lo e contrastá-lo em relação ao contexto cultural de emergência da
Pequena África carioca e das modernidades alternativas fervilhantes nesse singular território
afrodiaspórico. Algo que foi feito mediante o exame dos afrotropos cristalizados em torno de recursos
rítmicos como a síncopa e o ostinato, mobilizados pelo artista recorrentemente em muitas de suas
composições, e que se fizeram presentes igualmente no canto Xangô, que integra o ciclo das “Canções
típicas brasileiras”.
Com isso, procurei distanciar-me de leituras da obra de Villa-Lobos que enfocam o compositor a
partir do ângulo das “fontes e influências europeias”, bem como de uma vertente de interpretação da obra
63
SCHAFER, Murray. A afinação do mundo: uma exploração pioneira pela história passada e pelo estado atual do mais
negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora. Tradução de Marisa Trench Fonterrada. 2ª ed. São Paulo: Editora
Unesp, 2011, p. 25-27.
64
Pequena amostra do que está sendo comentado é o fato de Villa-Lobos ter se apresentado no restaurante Assyrio e no salão
do cinema Odeon, espaços pelos quais também circulavam músicos negros como Pixinguinha e Donga, então integrantes do
grupo “Os Oito Batutas”. Ou então a assiduidade de Villa-Lobos nas rodas de choro promovidas pelo Cavaquinho de Ouro, ponto
de encontro de músicos populares como Anacleto de Medeiros, entre outros chorões de renome. TARASTI, op. cit., p. 86.
65
TARASTI, op. cit., p. 86.
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do músico carioca centrada particularmente nas implicações políticas passíveis de serem extraídas do
projeto pedagógico-musical de Heitor Villa-Lobos; abordagem essa que se ancora na ocupação de cargos
oficiais de prestígio, por parte do compositor, durante a Era Vargas, como o posto de diretor da
Superintendência de Educação Musical e Artística (SEMA), que Villa-Lobos assumiu em 193266.
Diversamente a essas linhas interpretativas, a minha proposta analítica – vale dizer, em estreito
diálogo com a bibliografia mais contemporânea referente ao tema do Modernismo brasileiro,
particularmente atenta aos modernismos plurais atuantes no país – consistiu em observar o compositor
carioca de um ângulo que não fosse nem o das “fontes e influências europeias” que teriam orientado seu
projeto, e nem o da perspectiva estritamente política previamente mencionada.
O que pretendi, pelo contrário, foi o desdobramento de um exame de Heitor Villa-Lobos
plenamente cioso das sinuosas vias de mão dupla, tripla, em múltiplas direções, que conectam o universo
composicional deste artista aos pulsantes territórios do samba moderno, das rodas de choro, modinhas e
serestas, vicejantes na Pequena África carioca, e ressonantes na “alma encantadoras das ruas” do Rio de
Janeiro.
66
Sobre o assunto, conferir: WISNIK, José Miguel. Getúlio da Paixão Cearense: Villa-Lobos e o Estado Novo. Parte 1. Nacionalismo
musical. In: SQUEFF, Ênio; WISNIK, José Miguel. Música: o nacional e o popular na cultura brasileira. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense,
1983, p. 148.