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Seer,+11 40 1 CE

O texto explora a civilização minóica, destacando a complexidade social e a centralidade da deusa Mãe no sistema simbólico da época. A análise aborda a relação entre as classes sociais e a influência dos aqueus, além de enfatizar a participação ativa das mulheres na sociedade. A religião minóica, centrada na deusa Mãe, reflete uma cultura de paz e harmonia, em contraste com outros povos da Antiguidade.
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Seer,+11 40 1 CE

O texto explora a civilização minóica, destacando a complexidade social e a centralidade da deusa Mãe no sistema simbólico da época. A análise aborda a relação entre as classes sociais e a influência dos aqueus, além de enfatizar a participação ativa das mulheres na sociedade. A religião minóica, centrada na deusa Mãe, reflete uma cultura de paz e harmonia, em contraste com outros povos da Antiguidade.
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A DEUSA MÃE

MINÓICA,
A HARMONIA
E O CONFRONTO

J. C. AVELINO DA SILVA

Resumo: o texto analisa as condições sociais diversificadas da civilização


minóica e a multiplicidade do imaginário correspondente, abordan-
do tanto a relação entre oposição de classes e sistema simbólico centrado
na deusa Mãe quanto a presença dos aqueus que chegam com outros
valores. Uma e outra situações colocam o enfrentamento como um
dado novo para o minóico. No sistema simbólico centrado na deusa
Mãe, o enfrentamento é um elemento profano.

Palavras-chave: civilização minóica, deusa Mãe, base social, imaginário

A história de Creta se inicia no começo do neolítico1. Sabe-se que, an-


tes da ocupação colonizadora propriamente dita das ilhas do mar
Egeu, navegantes freqüentavam as ilhas em busca de matérias pri-
mas, sobretudo sílex e absidiana, da ilha de Milo. Com a coloniza-
ção, o mármore, em Paros, Tinos e Syros, e o cobre, em Siphnos,
eram trocados por produtos alimentícios que compensavam a insufi-
ciente produção agrícola das ilhas. Aquela região do mar Egeu se
desenvolveu primeiro nas Cícladas, mas, com a chegada do II milê-
nio, o centro comercial, econômico e político foi sendo transferido
paulatinamente para a ilha de Creta, que viu a construção da civiliza-
ção minóica, cuja principal sede foi o palácio de Cnossos. O sítio de
Cnossos, que teve seu período áureo entre 1700 e 1450 a.C., foi
habitado continuamente até o período romano.
SOCIEDADE E CULTURA

Creta minóica, no seu momento de maior desenvolvimento, era uma soci-


edade complexa formada não só por camponeses (agricultura e pecu-
ária), mas também por artesãos, metalúrgicos, artistas plásticos, artistas
gráficos, ceramistas, escribas, arquitetos, comerciantes, navegadores
e homens da corte, para citar somente as categorias mais importan-
tes. Todos participavam, cada um a sua maneira, de uma sociedade
forte e em transformação (SILVA, 2003). Sua arquitetura e sua arte
alcançaram grande performance, provavelmente reflexo da sofistica-
ção de sua vida social. A civilização minóica foi um império que
centralizava o comércio do Mediterrâneo oriental, base de sua eco-
nomia. “Com esta civilização surge, pela primeira vez no mundo antigo,
uma vida econômica dominada pelo comércio marítimo” (AYMARD,
1962, p. 19). Diferentemente do habitual naqueles tempos, em que
o domínio de uma região era baseado na ação bélica, os minóicos
baseavam-se no comércio e nos acordos de paz para exercer seu im-
pério. Creta nos legou a primeira forma ocidental de Estado, aglutinando
importantes contingentes populacionais. O Estado forte é indicativo
de uma sociedade de classes. Isso vai acarretar a singularidade da his-
tória dessa sociedade: oposição de classes regida pela deusa Mãe, as-
sunto deste artigo. A sociedade minóica viveu um momento de grande
maturidade civilizatória, quando se soube aproveitar a vida e a paz.
Era tão clara a idéia de não fazer a guerra que suas cidades e seus
palácios não tinham muros. Eram os tempos da pax minoica. Esta
sociedade manteve a paz com todos os povos com quem fazia comér-
cio e isso não pode ser compreendido fora do contexto religioso des-
se povo que honrava a deusa Mãe. A deusa Mãe transmite valores de
paz que aparecem nos murais de Cnossos. Não há cenas de guerra, de
combate, de conquistas ou de sacrifícios em suas pinturas. O que a
deusa Mãe registrou, através de seu fiéis seguidores, é uma mensa-
gem visível até hoje graças ao trabalho de arqueologia e restauração
dirigido por Arthur Evans, de dedicação à vida religiosa, de fertilida-
de, de prática de esportes e também de participação social da mulher.

Longe de estar enclausurada no gineceu, a mulher participa de todas


as atividades da ‘pólis’: trabalha, caça, é toureira, diverte-se, ocupa o
lugar de honra nos espetáculos públicos, aliás maravilhosamente bem

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vestida, enfim tem e exerce direitos iguais aos dos homens... Religiosa-
mente, a supremacia da mulher cretense é inegável e óbvia; ela é a sacer-
dotisa: os sacerdotes surgiram mais tarde e apenas como acólitos. Afinal,
a augusta divindade de Creta é a Grande Mãe... Não foi por ironia que
Plutarco afirmou que os cretenses chamavam a seu país não de pátria (de
patér, pai), mas de mátria (de máter, mãe). Na ilha de Minos a mulher
não governava, mas reinava (BRANDÃO, 1993, p. 60).

Diferentemente de outros povos da Antigüidade, a mulher participava ati-


vamente dessa sociedade bem de acordo com o imaginário religioso
minóico. A religião cretense se manteve centrada na deusa Mãe, mas
enriqueceu seu panteão com outras divindades, inclusive masculi-
nas. Segundo Brandão (1993, p. 60), há evidentes indicadores da
existência de um princípio masculino em Creta. No entanto, ele acres-
centa, o princípio feminino é inquestionável, os deuses masculinos
são subordinados. Isso aparece muito claramente nas pequenas gra-
vuras dos selos dos anéis, que, em grande quantidade, nos dão boas
indicações sobre a vida social e o imaginário dessa população. Era
uma sociedade referenciada ao sagrado e eles faziam procissões que,
de várias partes da ilha, se dirigiam ao palácio de Cnossos, onde o rei
Minos recebia os fiéis. Apesar de o rei Minos ser o sacerdote supre-
mo, a hierarquia religiosa era composta de sacerdotisas. Entretanto,
constatar que os deuses masculinos eram subordinados talvez não
seja suficiente para explicar a complexa realidade simbólica que aquela
sociedade estava vivendo.

O SIMBOLISMO SAGRADO CRETENSE

Dando continuidade a uma tradição que vem do paleolítico, o simbolismo


sagrado cretense estava ancorado na deusa Mãe. Uma sociedade com-
plexa como a minóica estava amadurecida para a sofisticação do seu
imaginário e assim ela foi naturalmente capaz de construir um simbo-
lismo refinado. A civilização minóica assumiu várias expressões da deusa
Mãe, interlocutoras do diálogo simbólico que o homem mantinha com
o sagrado. A multiplicidade das manifestações do sagrado aparecia na
diversidade dos cultos prestados a certas grutas, árvores, rochas e fon-
tes, ao machado de dupla face, escudo bilobado, deus Velcano (Galo),
deus Touro, a Deusa das Serpentes, ao jovem Zeus e outros. Entre os

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minóicos, os deuses, que estavam ligados à fertilidade natural, morri-
am e renasciam, refletindo o caráter imanente dessas divindades, já
que, na natureza, as coisas seguem o ciclo nascimento, vir-a-ser e pere-
cimento. Por outro lado, a evolução da realidade socioeconômica em
Creta fez surgir deuses celestes, mesmo que subordinados ao princípio
feminino, como o deus Touro, o deus Velcano, o jovem Zeus e a pró-
pria deusa Mãe. A riqueza cultural da civilização minóica legou uma
primeira geração do que veio a tornar-se, mais tarde, o sofisticado panteão
grego (deuses celestes e masculinos), apesar de as divindades cretenses
serem ctônias, subordinadas ao princípio feminino.
A Figura 1 vai da imanência da deusa Mãe-Terra, passa pelas incipientes ma-
nifestações de transcendência, passa por algumas manifestações
zoomórficas e antropomórficas, até chegar à manifestação transcen-
dente da deusa Mãe (Réia). Ela é um quadro procura apresentar uma
lógica que dê uma ordem para os vários níveis de transcendência exis-
tentes na multiplicidade dos deuses minóicos. Ela é um gráfico sintéti-
co que pode ser lido a partir da deusa Mãe em sentido horário, retornando
ao ponto de partida, mas já agora em outro momento simbólico. Ela
não se define historicamente, mas do ponto de vista lógico.

D e u sa M ã e
(R é ia )

M a n ife sta ç ã o tra nsc e nd e n te M a n ifesta ç õe s p rim itiva s:


a ntrop o m ó rfic a : C a ve rna s, c e rta s fo n te s, á rvo re s,
jo v em Ze u s ro c ha s, c o lina s

Prin c íp io fe m in in o

M a n ifesta ç ã o tra nsc e nd e n te M a n ife sta ç õ e s p rim itiva s:


a ntro p o m ór fica : b ip en e, e sc ud o b ilo b a d o
D e u sa d a s S e rp e nte s

M a n ife sta ç õ e s tra nsc e nd e nte s


zo o m ó rfic a s:
To u ro, v e lc a n o

Figura 1: Sistema Simbólico Minóico

, Goiânia, v. 4, n. 1, p. 143-163, jan./jun. 2006 146


Se, por um lado, é possível identificar um nível, mesmo que primário, de
transcendência na adoração de uma colina, uma rocha ou uma árvo-
re, por outro, não há transcendência na gruta, local típico de culto
durante o período pré-palacial da história de Creta. A gruta é a pró-
pria deusa Mãe-Terra. A gruta de Zeus em Psychro, no planalto de
Lasíthi, Creta, foi local sagrado por talvez milhares de anos. Conta o
mito helênico que Zeus nasceu nessa caverna. Foi também no interi-
or dessa caverna que Minos teria recebido as leis que ele implantou
em seu reino. Lá foram encontrados objetos de culto corresponden-
tes ao século V a.C. e outros bem anteriores. O que é espetacular é
que os fiéis depositavam suas dádivas nas cavidades existentes nos
pés dos estalactites, vale dizer, eles colocavam suas oferendas no inte-
rior do interior da deusa Mãe. Trata-se de uma dupla incursão à deu-
sa: primeiro por estar na caverna e em seguida por colocar a dádiva
numa cavidade.
A natureza, tal com a concebemos hoje, não era conhecida na época. A árvore
e a colina eram sagradas por serem divindades que se manifestavam
através desses elementos. O sobrenatural aflora através do natural e,
reciprocamente, o homem procura chegar ao sobrenatural através do
natural, cultuando certas árvores etc. Vivia-se um mundo de relacio-
namentos. Não havia a árvore em si, nem a rocha em si; elas existiam
à medida que estavam em relação com o ser humano, à medida que
aquela força sobrenatural estava em relação com o minóico.
Vejamos primeiramente o significativo fato de a civilização minóica cultuar
certas árvores. Podemos propor, num primeiro momento, que se tra-
ta de um simbolismo do tipo representativo: ao adorar uma determi-
nada árvore, toda a natureza estava sendo cultuada, representada que
estava por aquela árvore. Se é verdadeira essa interpretação, estamos
diante de uma relação do tipo árvore/Árvore, em que uma árvore
podia representar a natureza, a fertilidade natural da deusa Mãe-Ter-
ra. Trata-se de uma interpretação estimulante, mas problemática: por
que dar realeza a certas árvores (e não a outras)? Pode-se levantar a
hipótese de que eles já aceitavam a idéia de representação como sín-
tese. Seria uma representação sob a forma hierarquizada da realeza: o
rei (a rainha) representa/sintetiza a coletividade. O mesmo se passava
com certas rochas, colinas etc. Note-se a semelhança com a
multiplicidade dos palácios minóicos, às vezes bem próximos um do
outro como Cnossos e Arcanes: cada um, centralizado no monarca,

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representava/sintetizava uma parte da população. Essa explicação é
tanto mais provável quanto mais se compreende a estrutura social
dos minóicos como responsável pela construção das primeiras for-
mas ocidentais de Estado, em que o monarca reina sobre os cidadãos
de seu reino, ocupando o centro da sociedade. Estas árvores (bem
como cada um dos outros elementos citados), sendo deusas represen-
tantes da deusa Mãe-Terra, reinavam.
O caráter ctônio do imaginário da época mostra que é falsa a disjuntiva:
eles cultuavam certas árvores, certas rochas ou essas árvores e essas
rochas eram simplesmente o altar no qual eles prestavam culto à sua
divindade? As sociedades daquela época não distinguiam divindades
e altar pelo fato de que toda a natureza era simultaneamente divinda-
de e altar. A sociedade cretense não conheceu templos (BRANDÃO,
1993). As capelas apareceram à medida que os deuses foram superan-
do sua imanência absoluta e foram assumindo formas transcenden-
tes. A deusa Mãe era também a deusa Mãe-Natureza, de tal forma
que o templo era a própria natureza e o santuário já estava pronto
desde sempre: era a própria natureza que se oferecia em toda sua
plenitude. Deusa e templo se confundiam e os fiéis simplesmente
adotavam locais como grutas, certas árvores, rochas, colinas e fontes,
onde provavelmente se sentiam mais próximos dela. Parece que a
transcendência da deusa Mãe, observada nas pequenas gravuras minóicas
do período palacial recente, onde se pode ver a epifania da deusa,
não modificou o culto a esses elementos da natureza, e o assim cha-
mado “anel de Minos” mostra um culto às árvores sacramentado pela
deusa.
A questão ainda não se esgotou. Qual o significado religioso dessas árvores
(e dos outros elementos enunciados acima)? Para chegar à resposta
a essa pergunta talvez seja oportuno fazer uma alusão ao significado
da serpente como símbolo de transcendência: este vem do fato de ela
“surgir” da terra, da deusa Mãe-Terra e aí conviver. É a terra energizada
e independente sem deixar de ser uma emanação. As serpentes são
assim uma criação, uma emanação da deusa Mãe. A sociedade minóica
adorava a deusa Mãe e suas manifestações. De forma semelhante,
árvores, rochedos, colinas e fontes são emanações adoráveis da deu-
sa Mãe-Terra. A árvore, tanto quanto a rocha e a nascente, surge
das entranhas da Terra. A rocha, tal como a árvore, sai do interior da
terra e se apresenta aos homens. A Terra faz nascer uma árvore que,

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filha da deusa, passa a receber culto. Essa interpretação torna-se mais
provável ao completarmos o panorama: essas “filhas” da deusa Mãe a
quem se presta culto situam-se no alto de colinas que também são
emanações da deusa Mãe-Terra.
O simbolismo do machado, entretanto, deve ser visto por outro ângulo. Ao
prestar culto ao machado, eles adquiriam domínio sobre este instru-
mento, o que os autorizava à sua fabricação e ao seu uso. As técnicas
eram uma concessão divina. Celebrar o machado resgatava a origem de
sua invenção, origem que se perdeu no tempo e por isso era relegada a
um passado remoto que se identificava com os tempos primordiais, no
qual se deu a origem de tudo. Os instrumentos tornaram-se assim uma
revelação divina, ocorrida nos tempos primordiais (ELIADE, 1998).
O machado está vinculado ao princípio masculino. Tanto mais que o
machado agride a natureza, tomando partido nas disputas entre deuses
masculinos e femininos. O machado expressa enfrentamento e poder.
O deus Touro é importante divindade nessa civilização. Ele é resultado de
um grau menos incipiente de superação da imanência. Ele é sem dú-
vida um símbolo de fertilidade, vinculado ao animal touro, de sêmen
abundante. Minos, o grande monarca de Creta, é filho de Europa e
Zeus, que o concebeu sob forma de touro, conforme o mito helênico.
Porém, examinando o culto ao deus Touro e a relação entre o animal
e a divindade, talvez encontremos a origem de um dos mais impor-
tantes passos que a humanidade já deu na construção de seu imagi-
nário. Pela adoração ao deus Touro, os minóicos talvez tenham esboçado
sua mais singular forma de transcendência, por mais paradoxal que
esta afirmação possa parecer. Eles sacrificavam o touro (o animal na-
tural) em honra ao Touro (a divindade), deixando claro que havia
uma distinção entre um e outro. A divindade não é imanente, mas
transcendente. O deus Touro honrado tem a imagem do animal, mas
não é o animal em si, e sim uma representação dele, transcendendo-
o. Isso fica mais evidente quando se considera o sacrifício do touro
(o animal) em homenagem ao Touro (o deus). Mata-se o touro para
que ele assuma sua divindade, transformando-se no deus Touro. Estamos
longe de um ritual deicida. Pelo contrário, trata-se de um rito de
deificação: a vida do animal alimenta a transcendência da divindade.
O deus Touro é transcendente. A sociedade minóica está vivendo seu mais
importante momento na transição das divindades ctônias para os deuses
masculinos e celestes com o deus Touro e Zeus cretágeno2. A chegada

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dos aqueus acelerou esse movimento e impôs seus deuses num pro-
cesso de inculturação forçada.
Seria talvez displicência deste texto não aproximar inumação, libação e sa-
crifício do touro. Nas três situações, estamos diante de rituais em
que prevalece o simbolismo de aproximação com a divindade (deusa
Mãe ou deus Touro), através do ato de devolver à divindade aquilo
que é dela. Na inumação se devolve à deusa Mãe-Terra algo que veio
dela, porque todos o seres são filhos dela. De forma semelhante, a
libação tem todas as características de um culto primitivo. Algo que
é a própria vida (sangue) ou algo que emana dela (azeite ou vinho) é
derramado no chão, devolvido à deusa Mãe, origem da vida, origem
de tudo. Se for válido colocarmos o sacrifício do touro no mesmo
grupo, podemos considerar o deus Touro como origem do touro.
Mata-se o touro para que ele assuma seu caráter divino, retornando
ao deus Touro: o deus Touro como idéia pura, como soberano peran-
te o touro.
Os cretenses conceberam uma forma própria e exclusiva (nada parecido
antes nem depois) da deusa Mãe, a Deusa das Serpentes. Uma de
suas mais belas representações artísticas, em faiança, foi encontrada
em Cnossos e datada do século XVII a.C., período palacial recente.
Sua cintura fina realça tanto os seios quanto o quadril. Ambos, seios
e quadril, estão ligados à fertilidade, o que legitima sua essência ctônia
e feminina. Por outro lado, os seios ostensivamente expostos da Deu-
sa das Serpentes, mesmo mostrando sua disposição para ser provedo-
ra, talvez indique agressividade e disposição de enfrentar o inimigo,
o que introduz nela um atributo masculino.
A deusa segura duas serpentes. A serpente “surge” da terra, da deusa Mãe-
Terra e afirma uma identidade própria, convivendo, mas não se con-
fundindo com a terra. A cobra é ctônia, pois é a própria Terra em
movimento. Tal como a terra, tal como a natureza, tal como o ciclo
nascimento, vir-a-ser e perecimento, ela tem a característica da rege-
neração. Sem deixar de ser ctônia, a serpente é símbolo de
transcendência, pois é uma emanação, é movimento, é energia, é ir
além, é buscar outra dimensão, é procurar superar sua imanência.
Como símbolo fálico, ela penetra, vai onde não se está.

Dentre os símbolos transcendentes das profundezas, nós encontra-


mos os roedores, os lagartos, as serpentes, e às vezes os peixes. Trata-

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se de criaturas de caráter intermediário que combinam entre elas os
diferentes modos de vida, aquática, terrestre e terreno. [...] O símbo-
lo onírico de transcendência mais divulgado é talvez a serpente... (JUNG,
1990, p. 154).

Segurando as serpentes, a deusa controla a energia da terra. Segurando as


serpentes, parece que ela tenta evitar a transcendência, porque sabe
que essa passagem dos deuses ctônios aos deuses celestes será sua ru-
ína. O pássaro que ela tem na cabeça é tipicamente transcendente,
pois todo pássaro, ao alçar vôo, vai onde o homem não vai: o pássaro
vai além. O pássaro sai da terra e vai para o ar. Com o pássaro na cabeça,
ela reconhece a inevitabilidade dessa passagem para outra dimensão,
mas o pássaro está pousado, indicando que a transcendência ainda
não se realizou.

Deusa Mãe Árvores, Deus Deusa das Deusa Mãe Zeus


imanente Cavernas rochas etc Touro Serpentes transcendente olímpico

Figura 2: Superação Gradativa da Imanência


Legenda: Imanência; Transcendência

A Deusa das Serpentes é transição, já que é basicamente ctônia e feminina,


mas simultaneamente estão presentes nela símbolos de transcendência.
Dá a impressão de que a Deusa das Serpentes reconhece que a deusa
Mãe está com os dias contados para a aposentadoria, mas luta contra
essa tendência. Ela não aceita transcender, mas convive com os inevi-
táveis símbolos de transcendência. Ela representa as forças da nature-
za, impedindo que a transcendência se realize.
Nos tempos mais antigos da sociedade minóica (neolítico e período pré-
palacial), eles concebiam a deusa Mãe de forma absolutamente imanente,
e por isso toda a natureza era seu templo. A partir do período palacial
antigo começam a surgir modestas capelas, localizadas no alto das

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montanhas. São instalações simples em torno de uma árvore, roche-
do ou fonte. Um lugar para o culto, mesmo que simples, já mostra
um certo nível de transcendência. As capelas no interior das habita-
ções também surgiram nesse período. Quando esse local deixa de ser
um elemento natural e se transporta para o interior da residência,
denota um nível a mais de transcendência. Pensar o próprio palácio
como local de culto avança-se mais ainda.
No período palacial recente, a deusa Mãe assume uma transcendência mais
explícita. A gravura do bisel (face superior) do anel de Minos é exem-
plar em admitir a concepção da deusa Mãe não simplesmente como
a própria natureza ou a mulher, mas também como uma divindade
celeste antropomórfica. A imagem gravada mostra a epifania da deu-
sa Mãe: a miraculosa visão da divindade e sua aparição no mundo
visível. Na epifania a divindade se apresenta diretamente no mun-
do sensível. A deusa é representada em três manifestações: terra, mar
e ar, mas a epifania da deusa Mãe-Terra é dominante sobre as de-
mais. Um elemento básico no padrão iconográfico minóico desse
período é

a representação de uma figura em escala menor na parte superior da


cena, o ‘céu’. No anel de Minos, essa figura feminina paira em frente
à deusa sentada. A pequena escala denota o distanciamento do especta-
dor, e a colocação da figura no alto indica que ela está pairando. Ele-
mentos iconográficos como esse, sugerindo uma visão da epifania, são
encontrados em quatro outros anéis de ouro, [entre eles o] de Poros,
onde a pequena figura feminina que paira no ar ‘venera’ a deusa senta-
da em frente a ela, o que também pode ser visto no anel de Minos
(DIMOPOULOU; RETHEMIOTAKIS, 2004, p. 19).

Vários anéis indicam a visão da epifania da deusa Mãe. Isso mostra que a
deusa Mãe estava tomando a forma que a transcendência exige. Ser
totalmente outro, ser transcendente implica em ser distante. Em sua
forma imanente, não há distância, a divindade está imediatamente
presente, sob forma de natureza, ou de fenômenos naturais, que em
verdade são a sobrenatureza e os fenômenos sobrenaturais. Não ha-
vendo distância, há diferenciação: a natureza (sobrenatureza) é total-
mente diferente do ser humano. Quando há distância, há necessidade
de locais especiais (capelas simples e cada vez mais elaboradas como é

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o próprio palácio), onde a divindade está presente ou se apresenta.
Antes não havia necessidade de locais de encontro, pois o ser huma-
no estava permanentemente em contato com o sagrado. Não havia
nem tempo nem espaço profanos. Quando o sagrado sai do mundo
sensível, é necessário um lugar no mundo sensível para o culto, para
o encontro com o sagrado.

PERTURBAÇÃO NO SIMBOLISMO MINÓICO

A chegada dos aqueus, no final do III milênio, introduziu elementos novos


na península dos Bálcãs e no mar Egeu. Eles trouxeram novos valo-
res, novas idéias, os deuses celestes e masculinos e uma outra concep-
ção de como enfrentar as relações no interior da sociedade. Ao chegarem,
os aqueus e seus deuses eram capitaneados por Posídon, um deus
violento e agressivo. Os séculos de ocupação colonizadora do territó-
rio continental permitiram-lhes construir uma civilização, em que a
cidade mais importante foi Micenas. Entre as duas civilizações, houve
sincretismo cultural e religioso em que os micênicos assimilaram de
forma criativa particularmente a organização social, a escrita e a arte
dos minóicos. Os escribas minóicos, chamados a participar da nova
sociedade que crescia no continente, levando a escrita, ensinaram
aos micênicos as técnicas de organização da sociedade e do Estado.
As duas sociedades se interpenetraram e a presença da arte minóica
em Micenas mostra a presença da própria cultura minóica no interior
de seu oponente. Cottrell (2003) diz que Schliemann encontrou objetos
em Micenas aparentemente sem importância, mas que mais tarde,
com o conhecimento da sociedade cretense, revelaram a presença em
Micenas da arte cretense. Com a arte, estão também presentes a cul-
tura, o simbolismo e os valores. Schliemann, durante as escavações
em Micenas, anotou em seu caderno de campo, que foi encontrada
uma cabeça de vaca (mais tarde identificada como uma cabeça de tou-
ro) de prata com dois longos chifres de ouro. Também foram encon-
tradas duas cabeças de touro, feitas de fina placa de ouro, que tinham
um machado de dupla face (bipene) entre os chifres. O terceiro tipo
de objeto encontrado por Schliemann nesse nível da escavação era
formado de numerosos selos, às vezes com a forma de anel sinete, às
vezes de gema mais ou menos lisa de pedra semi-preciosa, com fre-
qüência gravados. Essas cenas gravadas em miniatura deram muitas

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informações sobre a vida de então, já que, pela arte, pode-se conhe-
cer muito da realidade em que aquela arte é produzida.
Duas sociedades antitéticas estavam convivendo no mesmo espaço geo-
gráfico e trocando cultura. A convivência fez aflorar as diferenças.
A ideologia micênica tinha interesse na eliminação da ideologia con-
ciliatória dos minóicos para poder exercer de forma ostensiva a auto-
ridade e a dominação, mais de acordo com sua prática belicosa e
ambiciosa de poder. Não combina exercer o domínio pela força quando
a idéia de cooperação está presente ou ser violento quando a harmo-
nia é um valor. A situação contrária, vivida pelos minóicos, também
não ia bem: pregar a harmonia quando, no mesmo espaço geográfi-
co, os micênicos agiam com violência. Por outro lado, a sociedade de
classes é feita de imposição e submissão, mesmo quando eventual-
mente brandas, disfarçadas ou ocultas, e a sociedade minóica, com
sua classe palaciana dominante, teve de enfrentar essa realidade.
Os aqueus são um povo indo-europeu que em pouco tempo passou a domi-
nar a região e, em cerca de 1450 a.C., eles colocaram os cretenses sob
sua autoridade. Eles se instalaram no palácio de Cnossos, que passou a
usar a língua grega, como indicam as tabuinhas de barro aí encontra-
das, escritas em Linear B. A partir de então se pode falar com mais
propriedade de civilização creto-micênica. Os deuses celestes passaram
a exercer sua hegemonia sobre toda aquela região e Zeus afirmou sua
soberania. A transcendência, mesmo no estágio celeste (Zeus e Apolo)
em que eles se encontravam, negando a idéia de morte, não vai deixar
a deusa Mãe morrer: vai aposentá-la e transferir o princípio feminino
para deusas celestes, subordinadas ao princípio masculino. Por ser
imanente à própria natureza, o princípio feminino não pode mor-
rer, sob pena de matar a própria vida, e os gregos já tinham elaborado
a noção do possível e do absurdo para garantirem a sobrevivência
do princípio feminino. A paz minóica deu lugar aos tempos heróicos.
A pergunta que se coloca é a seguinte: a mudança histórica (a hegemonia
cretense cedeu lugar à hegemonia micênica no Mediterrâneo oriental)
acarretou a transformação simbólica (as divindades femininas imanentes
cederam lugar aos deuses masculinos celestes)? Os parágrafos seguintes
mostram que as condições internas à sociedade cretense apontavam na
direção da superação de seu imaginário ctônio e os micênicos, ao invadirem
Creta, passaram por cima desse processo gradativo e impuseram pela
força os deuses celestes e masculinos.

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Hegemonia cretense Hegemonia micênica

Divindades ctônias Divindades celestes

Civilização Creto-micênica

Figura 3: Hegemonia, Referência Simbólica e Sincretismo


Fonte: Silva (2003, p. 44).

A sociedade minóica, herdeira das populações que povoaram o neolítico egeu,


atravessou importantes mudanças que fizeram evoluir sua base econô-
mica e social para uma sociedade de classes, com um Estado ideologi-
camente forte capaz de dar coesão a essa sociedade com diferentes interesses
sociais. A base ideológica dominante dessa sociedade era dada pelo
simbolismo religioso minóico centrado na deusa Mãe que tinha um
caráter totalizante, vale dizer, envolvendo os vários aspectos da vida
social e individual, não havendo nem espaço nem tempo para a ativi-
dade profana. Esse simbolismo religioso propunha, com êxito, a har-
monia para toda a sociedade, a harmonia para o convívio dos indivíduos,
das categorias profissionais e das classes sociais.
Mas as pressões contrárias a essa harmonia eram fortes tanto interna quanto
externamente. Internamente, o desenvolvimento das técnicas, o cres-
cimento econômico, a acumulação de riquezas e a complexificação
da divisão social do trabalho constituíram-se como fatores de afir-
mação da competitividade e da individualidade, situação que batia
de frente contra a ideologia de harmonia da deusa Mãe. De devotos
(e, nesse caso, as diferenças individuais, profissionais, sociais e eco-
nômicas se subordinavam à coesão dada pela deusa), os minóicos

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iam se transformando em indivíduos participantes da sociedade, cada
um no seu lugar e não necessariamente referenciados à deusa Mãe,
mas sim ao trabalho que cada um desenvolvia e à nova configuração
da estrutura social.
Externamente, a sociedade minóica tinha de conviver com a pressão da
sociedade micênica que, expandindo-se na mesma área geográfica,
era portadora de uma ideologia de competitividade, agressividade e
violência, baseada nos deuses masculinos e celestes. O caráter mascu-
lino e agressivo dessa sociedade tem raízes que remontam à pré-his-
tória. Durante milhares e milhares de anos, o homem (e não a mulher),
ao caçar, enfrentou os animais, subjugando-os. O homem participa-
va do enfrentamento natural com outros grupos pela disputa territorial.
A guerra era uma atividade de enfrentamento exercida pelo homem,
em que o que valia era subjugar o inimigo ou, na pior das hipóteses,
evitar ser subjugado (quem não foi exitoso em evitar ser subjugado
saiu-se mal). Enquanto o homem enfrentava, caçava e guerreava, a
mulher exercia uma atividade harmônica com o meio, coletando fru-
tas, folhas, raízes, cascas e cuidando das crias. Durante o tempo em
que os valores femininos prevaleceram, vale dizer, enquanto a deusa
Mãe reinou sem questionamentos, os grupos de caçadores-coletores
aceitaram em seu interior relações harmônicas. Quando a humani-
dade entrou numa nova fase de seu desenvolvimento, marcada pela
divisão social do trabalho, comércio e exploração do trabalho, a com-
petição, o enfrentamento e a agressividade passaram a ser os valores
dominantes, criando-se as condições e a necessidade da emergência
dos deuses masculinos, mais em sintonia com esses valores. Quando
os deuses masculinos vieram à tona, o enfretamento passou a preva-
lecer e subjugar ou ser subjugado passou a ser o padrão da relação do
homem com o outro no interior da sociedade. Na sociedade minóica,
o princípio feminino era dominante, mas, com o passar do tempo, o
princípio masculino tornou-se presente e atuante. O apogeu da soci-
edade minóica foi o canto do cisne da hegemonia da deusa Mãe.
Vejamos os termos do impasse. A deusa Mãe minóica, expressão sagrada do
princípio feminino, em que o principal atributo é a fertilidade, apa-
rece no mundo sensível através da natureza (cosmo mineral, vegetal e
animal) e da mulher. Desde o neolítico, as bases sociais de sustenta-
ção da deusa Mãe estavam se diluindo. Por um lado e primeiramen-
te, a compreensão de que a agricultura é a natureza disciplinada, assim

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como o pastoreio é a vida selvagem organizada: como pode algo sa-
grado como era a natureza, que se apresentava como deusa Mãe-Na-
tureza, se disciplinar segundo a vontade do ser humano? Mesmo com
a compreensão de que tudo era feito sob os auspícios da deusa Mãe,
ela foi perdendo a força concreta de ter a prerrogativa exclusiva da
fertilidade natural. Considere-se também a superação, mesmo que
parcial, mas sem dúvida gradual, do atrelamento da própria agricul-
tura à deusa Mãe-Terra com o aumento na confiança no trabalho
humano. Por outro lado, a base ideológica de valorização da deusa se
diluía também em conseqüência da compreensão de que a mulher
não era responsável exclusiva da gravidez. Nessas condições, a gravi-
dez deixou de ser um ato divino de criação e acarretou a dessacralização
da mulher, que deixou de ser expressão da deusa Mãe e tornou-se um
vaso onde o homem plantava a semente. A gestação passava a ser
associada à união sexual. O que antes era pura criação divina – a
criação de um novo ser –, agora tornou-se atividade humana, mesmo
que sagrada. Acrescente-se a esses fatores a complexa organização so-
cial dos cretenses que passaram a ter a sua base econômica no comér-
cio marítimo e na produção industrial diversificada, deslocando a
agricultura do centro de sua atividade social.
As sociedades que cultuavam a deusa Mãe – e a sociedade minóica, no seu
apogeu, centrada no feminino, apresentava-se como uma transição –
estabeleceram relações concretas e diretas entre os homens. Não ha-
via nada a esconder. As relações humanas, visando a satisfação das
necessidades imediatas de sobrevivência, implicavam cooperação har-
mônica, transparentes, portanto. A sociedade minóica é exemplar por
ter mantido um simbolismo feminino apoiado em valores de coope-
ração harmônica, ao mesmo tempo em que as forças sociais no inte-
rior da sociedade tornavam-se cada dia mais incompatíveis. Pode-se
falar em confronto de classes, caso contrário, não teriam constituído
um Estado forte como foi o minóico. Contudo não se conhecem
conflitos sociais, o confronto ficou reduzido a uma tensão potencial
e a ideologia da harmonia com certeza foi fator decisivo para que se
tenha dado um tratamento gentil ao enfrentamento de classes.
O caráter celeste dos deuses indo-europeus é compatível com o fato de as rela-
ções entre os homens terem se tornado opacas e abstratas, características
necessárias à aceitação da exploração do trabalho humano. A sociedade
micênica explicitou as diferenças sociais, aceitou o enfrentamento e fez

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tudo isso em nome de Posídon e Zeus, deuses guerreiros. Zeus enfrenta-
va, dominava, subjugava e impunha a ordem. As duas sociedades, convi-
vendo no mesmo espaço geográfico, pelo menos a partir do momento
em que os micênicos expandiram seu raio de ação pelo mar Egeu, entra-
ram em conflito, conflito comercial e cultural.
Como as atividades sociais e individuais, a econômica também era sagrada, e
um bom indicador dessa afirmação é o fato de os registros econômicos
minóicos serem feitos numa das capelas do palácio. Pode-se compre-
ender mais facilmente que as atividades de agricultura e pastoreio e o
extrativismo mineral fossem sagrados, visto que estavam diretamente
vinculados à deusa Mãe-Terra. Mas o comércio não era muito diferen-
te, visto que exatamente os produtos dessas atividades eram trocados.
No entanto, havia um aspecto da atividade socioeconômica que desto-
ava. O espaço da concorrência, do enfrentamento comercial, para o
qual é necessário espírito de competição e agressividade, tornou-se um
espaço profano. O confronto é profano no sistema simbólico centrado
na deusa Mãe. Não havia base sagrada na religião dos minóicos para a
prática do enfrentamento. No entanto, os minóicos foram levados a
essa situação com a chegada dos aqueus nas áreas de comércio do Me-
diterrâneo oriental, anteriormente sem concorrência.
Num sentido simbólico mais profundo, a religião centrada na deusa Mãe
minóica dava sentido global à vida. Com o desenvolvimento do co-
mércio, o minóico se deparou com o sentido profano da vida, aquele
que, através das relações materiais que estabeleceram com outros homens,
faz o quotidiano se encher de gestos e movimentos, visando a realiza-
ção de um ganho na relação com o outro. A relação principal não é
mais com a natureza, a fertilidade não está presente na atividade co-
mercial, não há imanência divina no objeto do comércio (o outro
comerciante e a coisa comercializada); estão presentes o ganho e a
acumulação. Estes não têm limites. O quotidiano desde sempre exi-
giu gestos visando a produção e a reprodução da vida biológica. En-
tretanto, no caso da vida biológica, o quotidiano apresenta um limite:
a saciedade acarreta um tempo de repouso dos gestos. Mas o comér-
cio, principal atividade econômica minóica, visa o ganho e a acumu-
lação que são ilimitados. A troca e a acumulação são fenômenos que
ocorrem na sociedade e se dão entre os homens e se dão em função
do trabalho humano. Assim a deusa Mãe só está presente difusamente
e por subtração: os homens subtraíram dela esse espaço3.

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A alegria de viver, uma característica dos minóicos, não era uma alegria da
vitória, mas da ausência da angústia e da ansiedade. Por um lado, eles
tinham ultrapassado a luta pela sobrevivência que esteve presente em
toda a humanidade anterior. Por outro lado, eles não tinham adota-
do a propensão ao enriquecimento e poder que surgem no espaço
social da divisão do trabalho, no espaço social referenciado à acumu-
lação. A alegria de viver a simplicidade da vida no seu contexto ime-
diato, descomprometido com o futuro, com o progresso e com a
vitória está no campo da deusa Mãe. Ao se afastar dela, afastamento
que se realizou a partir do inevitável desenvolvimento histórico, vie-
ram o vazio da perda de um espaço sagrado e a ansiedade por não se
saber onde se chegaria com essa nova perspectiva. Além da perda de
espaços sagrados, essa nova perspectiva tem a ansiedade como seu
fundamento. É a ansiedade que leva o homem a produzir cada vez
mais, a acumular cada vez mais.
Para o homem minóico continuar existindo em sintonia com o seu imagi-
nário e em paz consigo mesmo, ele foi levado a instituir o tempo
profano, quando então ele realizava a sua atividade socioeconômica
de enfrentamento comercial, alicerçada na concorrência e na agres-
sividade, o que ele mesmo percebia como heresia. Não conseguindo
superar a dicotomia de seu dia-a-dia, dividido entre o socioeconômico
profano e o sagrado feminino que tinha uma estrutura totalizante,
a sociedade minóica não teve forças para enfrentar os aqueus, cujo
sagrado masculino também totalizante dava sustentação ideológica
para a prática da concorrência, da agressividade e da conquista (con-
quista de espaços e de poder).
Conseqüência das pressões externas e internas, as instituições minóicas co-
meçaram a se enfraquecer, já que não correspondiam mais aos novos
desafios da sociedade. As instituições (o sistema simbólico centrado
no feminino, no caso) têm a função de garantir o bom andamento da
sociedade. Quando há um descompasso entre as instituições e a soci-
edade, as instituições que não correspondem mais às necessidades
sociais se enfraquecem, dão oportunidade ao aparecimento de outras
ou se adaptam, como aconteceu com a sociedade cretense. É impensável
o aparecimento do deus Touro num momento em que a deusa Mãe
vivia o seu prestígio inquestionável. Mas sua base social de sustenta-
ção se estiolava: a natureza deixava de ter vida própria, tornando-se
compreensível e, portanto, racional. A compreensão e a racionalidade

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aludidas costumam ser designadas pelo nome de agricultura e pastoreio,
que são a natureza dominada e organizada segundo as necessidades
humanas. Em lugar da natureza, o homem passou a ter confiança no
próprio trabalho, no pastoreio, na agricultura, no extrativismo mi-
neral, no artesanato, no comercio etc. A complexa divisão social do
trabalho, colocando o homem diante do outro, transferiu a atenção,
antes voltada para a natureza (multiplicidade em transformação), para
outro homem e para a sociedade. O sistema simbólico daquela soci-
edade, que lhe permitira tão alto grau de civilização, estava abalado.
As condições históricas para a emergência de um sistema simbólico centrado
no masculino estavam evoluindo na sociedade minóica com algumas
exceções que fizeram a diferença: o arraigado modo de vida baseado
na paz e na alegria de viver, aliado à tradição dos cultos à deusa Mãe,
davam sustentação à continuidade do sistema simbólico centrado no
feminino. Mas as contradições estavam amadurecendo e pedindo uma
alternativa, já que a deusa Mãe, no seu sentido tradicional, herança
de como ela era concebida havia milênios, não respondia mais às
necessidades sociais. Diante de uma sociedade minóica enfraquecida
nas suas instituições, nos seus valores religiosos e na ideologia de paz,
os aqueus não tiveram dificuldade de se impor.

O CONFRONTO NO INTERIOR DA DEUSA MÃE

Eis a tese que este texto procurou comprovar: o deus Touro, o Minotauro
etc., o sagrado minóico masculino, eram versões masculinas do prin-
cípio feminino, já que exerciam uma função feminina, mas, contra a
vontade deles mesmos, agiam contra o sistema feminino. A religião
cretense era essencialmente ligada ao princípio feminino, mesmo que
nem sempre se apresentasse com feição tipicamente feminina. O deus
Touro, representando a fertilidade que é valor essencial do sistema
simbólico centrado no feminino, se impunha e então mostrava seu
caráter contraditório, visto que a imposição não é originariamente
um elemento do princípio feminino. A fertilidade é tipicamente fe-
minina, é a capacidade de gerar novos seres e colocá-los no mundo.
No entanto, o touro como referência de fertilidade faz alusão a uma
fertilidade agressiva, uma fertilidade que monta e subjuga a fêmea,
uma fertilidade masculina. O machado de duas faces (bipene) era
agressivo – a agressividade também não faz parte original do princí-

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pio feminino. De forma semelhante ao que acontece com o deus Touro,
o machado de dupla face, tão presente no palácio de Cnossos, sendo
agressivo, faz parte do enfrentamento, faz parte dos valores masculi-
nos. O chifre da consagração e o escudo bilobado representavam pro-
teção, também atributo feminino, mas num contexto de confronto,
que historicamente faz parte do princípio masculino.
Resgatemos as palavras-chave do sistema simbólico centrado no feminino:
divindades ctônias, referência cosmológica, fertilidade, imanência.
Importante também são as palavras-chave do sistema simbólico centrado
no masculino: divindades celestes, referência antropológica, potên-
cia, transcendência. O sistema simbólico minóico centrado no prin-
cípio feminino vivia um impasse. Sendo uma sociedade cujo imaginário
estava tentando uma adaptação entre os princípios feminino e mas-
culino, características de ambos os princípios estão presentes ora em
harmonia complementar, ora em conflito. O panteão minóico era
diversificado e girava em torno do princípio feminino. Eram várias
as manifestações da deusa Mãe, inclusive a forma masculina.
A evolução histórica da sociedade cretense evidenciou um descompasso entre o
dinamismo de sua base socioeconômica e um imaginário conservador
que tentou, com pouco sucesso, uma adaptação à nova realidade, basea-
da na divisão social do trabalho, comércio e da acumulação de riquezas.
O minóico, amante da paz, acostumado a dar tratamento harmônico às
suas divergências internas e externas, não estava preparado para enfren-
tar o concorrente indo-europeu. O modo minóico de viver, ancorado
num simbolismo que não dava mais respostas aos desafios sociais, su-
cumbiu à força das armas e aos deuses masculinos e celestes.

Notas

1
Este artigo adota a periodização de N. Platon para a história antiga de Creta:
5000-2600 aC, período neolítico; 2600-2000 aC, período pré-palacial; 2000-
1700 aC, período palacial antigo; 1700-1400 aC, período palacial recente (apo-
geu); 1400-1100 aC, período pós-palacial (SAKELLARAKIS, 2002, p. 10).
2
Cretágeno quer dizer gerado em Creta.
3
Os helenos vão garantir para o espaço sagrado este espaço que a deusa Mãe não tinha
o controle: Hermes é o deus do comércio, Deméter é a deusa da agricultura e, acima
de tudo, Zeus é o deus do confronto, do enfrentamento e sobretudo das vitórias.

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Tradução do original francês: Les origines de la pensée grecque.

Abstract: the paper analyses the diversified social conditions of the


Minoan civilization and the corresponding multiplicity of its religious
imagery. The relation between class opposition and the symbolic system
centered on the Mother goddess is studied as well as the presence of
the Achaeans in the same commercial area who brought other values.
Both situations (class opposition and the Achaean presence) forced
the Minoan people to deal with confrontation, a new situation for
them. In the symbolic system centered on the Mother goddess,
confrontation is profane.

Key words: Minoan civilization, Mother goddess, social base, imagery

J.C. AVELINO DA SILVA


Doutor pela Universidade de Paris. Professor no Departamento de Filosofia e Teolo-
gia e no Mestrado em Ciências da Religião da Universidade Católica de Goiás.

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