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Sociedade, Educação e Vida Moral

O documento explora a intersecção entre sociologia e educação, destacando como a educação é tanto um meio de conservação da ordem social quanto um motor de transformação. A obra de Durkheim é central, apresentando a ideia de que a sociedade e o indivíduo se influenciam mutuamente, e que a educação deve ser entendida dentro desse contexto social. A análise sociológica da educação revela as dinâmicas coletivas que moldam a experiência individual e vice-versa.

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Luciane Suterio
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O documento explora a intersecção entre sociologia e educação, destacando como a educação é tanto um meio de conservação da ordem social quanto um motor de transformação. A obra de Durkheim é central, apresentando a ideia de que a sociedade e o indivíduo se influenciam mutuamente, e que a educação deve ser entendida dentro desse contexto social. A análise sociológica da educação revela as dinâmicas coletivas que moldam a experiência individual e vice-versa.

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IOLOGIA DA EDUCAGAO ALBERTO TOS! RODRIGUES f d Como ler a educagao com os olhos da sociologia? A sodologia é uma disciplina cientifica que se estruturou com 0 advento do moderno mundo industrial. Sua preo- cupacdo basica tem sido a de revelar as transformacoes que c capitalismo operou na vida econémica, politica e cultural das sociedades. O recado mais incisivo da socio- logia é o de que nao ha nada natural neste mundo de mulheres e homens, nada que nao seja uma construcao coletiva, nenhuma ideia que se sustente solta no ar, sem que se possa associd-la ao nosso tempo ou ao modo como fabricamos nosso destino. A educagao & um objeto privilegiado da sociologia. Porque 0 ato de educar é, ao mesmo tempo, a base da conservagdo da ordem e€ o esteio de suas mais radicais transformag®es. Viajar a raiz das sociedades em busca da compreensao de seus modos de educar é 0 convite que nos faz a sociologia da educacao. capiruto 11 SOCIEDADE, EDUCAGAO E VIDA MORAL O homem faz a sociedade ou a sociedade fax o homem? Num de seus sambas, Paulinho da Viola narra a trajetéria de um malandro do morro, Chico Brito. Na cancio, ele é malandro, sim, vive no crime e é preso a toda hora. Paulinho, porém, nao atribui sua condigao a uma falha de cardter. Chico era, em principio, tao bom como qualquer outra pessoa, mas “o sistema” nao lhe deixara outra oportunidade de sobrevivencia que nao a marginalidade, 0 ultimo verso diz tudo: “a culpa é da sociedade que o transformou”. Ja em outra cangao, bem mais conhecida, Geraldo Vandré d4 um recado com sentido oposto: “quem sabe faz a hora, no espera acontecer”. Somos nés que fazemos a hora? Ou a hora jé vem marcada, pela sociedade em que vivemos? O que, afinal, o “sistema” nos obriga a fazer em nossa vida? Qual a nossa margem de manobra? Qualo tamanho da nossa liberdade? Data dos primeiros esforcos dos fundadores da sociologia como disciplina com pretensées cientificas a dificuldade em lidar com essa tensao existente entre, de um lado, a possibilidade de ver a saciedade como ima estrutura com poder de coercia e de deter minag&o sobre as ages individuais ¢, de outro, a de ver o individuo como agente criador e transformador da vida coletiva. Diante da necessidade de demarcar um espago proprio dentro do campo cientifico para esta nova disciplina académica, alguns se empenharam em demonstrar a existéncia plena de uma vida coletiva com alma prépria, acima e fora das mentes dos individuos, Buscavam com isso delimitar um campo de investigacao que es vyesse fora da algada da psicologia (que ja lidava com a mente do SOCIOLOGIA DA EDUGACKO individuo) ou de outra ciéncia humana qualquer. Outros pensaram em trater a acao individual como o ponto de partida para o enten- dimento da realidade social e, embora também fugissem do “psi- cologismo”, colocaram a énfase nao no peso da coletividade sobre os homens, mas na capacidade dos homens de forjar a sociedade a partir de suas relacées uns com os outros. F provavel que todos tivessem razio. Os homens criam o mundo social em que vivemn — de onde mais ele viria? — e ao mesmo tempo esse mundo criado sobrevive ao tempo de vida de cada individuo, influenciando os modos de vida das geracées seguin- tes. Como pensar a historia humana sem resgatar a biografia dos homens? Como escrever uma biografia sem considerar a sociedade € 0 momento hist6rico em que o biografado viveu? Portanto, a sociedade faz 0 homem na mesma medida em que o homem faz a sociedade. Preferir uma parte do problema em detrimento da outra é apenas uma questo de énfase. No entanto, essa énfase é importante quando consideramos a concepeao que cada um dos principais autores da sociologia tinha sobre a educacaio. Ou, pelo menos, a concepgio de educacao que podemos deduzir de seus escritos sociolégicos. Durkheim ¢ 0 pensamento sociolégico Educar é conservar? Ou revolucionar? Educar é tirar a venda dos olhos ou impedir que o excesso de luz nos deixe cegos? Educar é Preparar para a vida? Se for assim, para qual vida? Coma palavra, esses inquietos senhores, os formuladores da teoria sociolgica. E comecemos logo por aquele que foi ¢ conti- nua sendo um dos mais influentes pensadores da sociologia e da sociologia da educacao. Fortemente influenciado pelo cientificismo do século XIX, principalmente pela biologia, e extremamente Ppreocupado com uma delimitacao clara do objeto ¢ do método da sociologia, o fran- cés Emile Durkheim (1858-1917) vishambrou cm sua obra a existén- cia de um “teino social”, que seria distinto do mineral e do vegetal. Nao por coincidéncia, ele chamava este reino social, as vezes, de “reino moral”. O reino moral seria o lugar onde se processariam justamente os “fenémenos morais”, e seria composto por ambien- tes constituidos pelas “ideias” ou pelos “ideais” coletivos. Toda vida social se da, para Durkheim, nesse “meio moral”, que esta para as 18 SOCIEDADE, EDUCAGAO vipa MORAL consciéncias individuais assim como os meios fisicos esto para os organismos vivos. Entender que esta dimensio de fato exista, que tal meio coletivo seja real e determinante na vida das pessoas, ndo € algo evidente por si mesmo, e nio é tarefa para qualquer um, achava Durkheim. O sociélogo € o tanico cientista preparado para detectar esses estados coletivos. Para tanto, ele deveria enfrentar sua aventura intelectual com a mesma postura dos demais cientistas, colocando-se num stado de espirito semelhante ao dos fisicos, quimicos ou bidlogos em seus laboratérios. Se a lei da gravidade ou a da inércia sao leis da natureza ~ nao se pode questiona-las, no se pode mudé-las, ¢ s6 nos resta conhecé-las para melhor viver ~, do mesmo modo a sociedade, a vida coletiva, deve ter suas leis proprias, independentes da vontade humana, que precisam ser conhecidas. A fisica newto- niana descobriu as leis da gravidade e da inércia dos corpos. Cabe 4 sociologia, na vistio de Durkheim, descobrir as leis da vida social. Sua pretensao é apresentar a sociologia como uma ciéncia positiva, como um estudo metédico. Seguindo os métodos certos, portanto, o socidlogo poder descobrir as leis sociais. Durkheim compreendia “lei” (lei cientifica, neste caso) como uma “relagao necesséria”, como a descoberta da légica inscrita no proprio real ¢ apresentada nz forma de um enunciado pelo cientista. Esse positi- vismo é, para ele, a tinica posi¢o cognitiva possivel. Na explicacao que ele proporciona, o “fator social” é sempre o determinante. Em tal universo intelectual, a verdadeira Ciéncia s6 aparece quando ocorre a perfeita separagao entre teoria e pritica, O meio moral que serve de entorno aos individuos deve ser tomado como um dado bruto a observagiio do investigador, que ndo deve em momento algum assumir os valores nele contidos. Durkheim escreve que os principais fenémenos sociais, como a religido, a moral, o direito, a economia ou a educagio, si0 na verdade sistemas de valores. Se estivermos contaminados com os valores que esses fenémenos expressam, nao teremos a isengdo necessaria para entendé-los. A sociologia, enuncia Durkheim, é 0 estudo dos fatos sociais. E fatos sociais sao justamente aqueles modos de agir que exercem sobre o individuo uma coeredo exterior, e que apresentam uma exis- téncia prépria, independente das manifestacoes individuais que possam ter. Os fatos sociais, em suma, devem ser considerados como coisas. Durkheim nota que na vida cotidiana temos uma ideia vaga e confusa dos fatos sociais — como o Estado, a liberdade, ou o 19 SOCIOLOGIA DA uDUCAGAO que quer que seja — justamente porque, sendo eles uma realidade vivida, temos a ilusao de conhecé-los. O senso comum, as maneiras habituais de pensar sao, portanto, contrarias ao estudo cientifico dos fendmenos sociais. A maneira da légica cartesiana, ele acha necessério desconfiar sempre das primeiras impressdes. Dai a necessidade de tratar os fatos sociais como coisas, para livrar-se das pré-nogées, dos preconceitos nao cientificos. Para conhecé-lo: cientificamente o fundamental é estarmos convencidos de que eles nio sio inteligiveis imediatamente. Mas cuidado ai com as palavras, caro leitor. Veja 14 que con- clusdes vai tirar delas. Durkheim nao afirmou que os fatos sociais sao de fato coisas materiais, mas apenas que devem ser tratados como sc fossem coisas tais como as coisas materiais. “Coisa” para ele € todo objeto de conhecimento que a inteligéncia humana nao penetra de modo imediato, necessitando 0 auxilio da ciéncia. Tratar os fatos sociais como coisas, portanto, é uma postura intelectual, uma atitude mental. Por outro lado, é possivel reconhecer 0 fendmeno social por- que ele se impoe aos individuos, ou seja, os fatos sociais exercem coergao sobre os comportamentos individuais, como 0 demons- tram a moda, o casamento, as correntes de opinio. Um crime, por exemplo, é reconhecido como tal porque é de conhecimento cole- tivo que todo crime suscita uma sangao, que deve ser punido plas regras que a socicdade estabelece (no caso, pelas leis juridicas). A lei estabelece punisdo porque o crime fere a consciéncia coletiva, contradiz as convicdes mais vivas ¢ profundamente compartilha- das. No entanto, o crime nao é uma aberracdo. Se existem regras sociais que prevéern o que seré e o que nao sera crime é porque o crime € algo normal. O crime, portanto, é um fato social, assim como a lei que prevé sua punicao. Sao fatos sociais nao 86 porque sao normais, mas porque sao percebidos como fatos sociais pelos membros da sociedade; e porque exercem alguma pressio sobre os individuos, alguma coer¢ao, alguma obrigatoriedade. Ouseja, 0 recado de Durkheim, com essa conversa toda sobre como definir corretamente os fatos sociais, é que nao adianta sim- plesmente dizer que o homem é um ser inserido na socicdadc, ccr- cado de fatos sociais por todos os lados. Isso nao diria nada. A coisa mais complicada. O recado € o seguinte: a sociedade esta na cabeca dos homens ¢ das mulheres, de todos ¢ de cada um. Pois s6 existe um modo de conhecer os fatos que esto a nossa volta, sejam eles 20 SOGIEDADE, EDUCACAO E VIDA MORAL pedras, paus, casas, avides, emogées, leis, delitos, pneus, roupas, ppecas de teatro, religides ou sei lé o qué. £ criando em nossa mente uma ideia do que sejam ou um ideal que diga respeito ao modo como deveriam ser. Em outras palavras, ¢ gerando uma representa- ¢(io mental, uma espécie de chave interpretativa que construimos para lidar com aquilo que a principio nao conhecemos. A sociedade na cabeca de cada um Fai que a sociologia de Durkheim tem graca. Para cle, as repre- sentag@es podem ser individuais (pessoais) ou coletivas (compar- tilhadas). As representagSes sobre os fatos sociais sdo represen- tages coletivas, sao percebidas em coletivo. £ como se houvesse dois de nés dentro de nés mesmos: um ser individual, em cuja cabeca existem estados mentais referentes apenas a nossa pessoa, a nosea vida como individuos, e, ao mesmo tempo, um ser social. Na cabeca desse ser social que habita em nés nao trafegam apenas estados mentais pessoais, mas um conjunto de crengas, de habi- tos, de valores, os quais nao revelam coisas que “pensamos com nossa propria cabeca” (se é que tal coisa poderia existir, na visto de Durkheim). Tais crencas ¢ valores nao revelam uma suposta per- sonalidade privada, Revelam, sim, o quanto h4 dos outros em nés. De todos os outros! Das pessoas que vivem conosco na sociedade fem que vivemos e das pessoas que nem conhecemos, ¢ inclusive das que nao vivem mais, que j4 morreram, talvez ha muitos anos. ‘A sociedade vive na cabeca de cada um e, assim como 0 Cristo biblico, onde dois ou mais estiverem reunidos em seu nome ela estar no meio deles. Mais do que isso até, pois se destacarmos lum tnico individuo da sociedade onde ele vive o levarmos para outra sociedade ou mesmo para uma ilha deserta, ele levaré um pouco da sociedade consigo, dentro de sua cabega. Lembram-se do modo como Robinson Crusoé sobreviveu apés o naufragio? Pois 6, foi gracas a sociedade e seus saberes, que viviam dentro de sua cabega, apesar da auséncia fisica das demais pessoas. Portanto, nao apenas o individuo faz parte da sociedade; uma parte da sociedade faz parte dele. Ao mesmo tempo, por outro lado, a sociedade s6 existe em sua plenitude se tomarmos 0 conjunto, porque ela ndo cabe toda, completa, na cabega de cada um, ‘As representacdes coletivas, assim, sio exteriores ds conscién- cias individuais; elas nao derivam dos individuos considerados ar SOCIOLOGIA DA EDUCAGAO isoladamente, mas de sua cooperagio. Na construgao do resultado comum dessa colaboragao, diz Durkheim, cada um entra com a sua quota-parte; mas os sentimentos privados sé se tornam sociais quando se combinam entre si, sio compartilhados e geram, em decorréncia, algo novo. Por causa das combinacées ¢ das mutacdes que sofrem ao se combinarem, os sentimentos individuais se trans- formam em outra coisa. E como uma sintese quimica. O hidrogénio © 0 oxigénio sao dois gases diferentes, mas se combinados em certa Proporcao determinada e sob certas condicées fisicas especificas, transformam-se em algo completamente diferente: Agua. Se tomar- mos as partes que compoem a Agua, nao entenderemos a 4gua jamais, pois que suas partes constitutivas sto gases. Do mesmo modo, se tomarmos os individuos, nao entenderemos a sociedade jamais, pois se é verdade que ela existe em cada um, em cada um sé existe um fragmento dela. O todo, para Durkheim, tem precedéncia sobre as partes. A sociedade tem vontade propria. Ela pensa, sente, deseja, embora nao possa pensar, sentir, desejar e principalmente agir sendo através dos individuos. A consciéncia coletiva existe atra- vés das consciéncias particulares, Cada uma nao é nada sem a outra. Talvez a esta altura, caro leitor, vocé jé esteja um pouco ansioso. Talvez ja esteja se perguntando: bem, mas o que tem tudo isso a ver com educacao? Em que Durkheim nos ajuda, afinal, a pensar a educacao? Calma, calma. Vamos chegar lé agora. Disso que acabei de dizer, retenha dois raciocinios fundamen- tais. Primeiro, a consciéncia coletiva, esta sociedade viva na cabeca de cada individuo e a0 mesmo tempo exterior a cada pessoa e que a obriga a comportar-se conforme o desejo da sociedade, nao existe individualmente, mas somente pela cooperacdo entre os individuos, Segundo, essa existéncia social, essa vida coletiva, é obra nao ape- nas dos individuos que cooperam entre si num dado momento da vida da sociedade, mas também das geracdes passadas, que ajuda- ram a criaras crengas, os valores e as regras que ainda hoje esto Presentes e que nos obrigam de certo modo a nos comportarmos de acordo com “a vontade da sociedade”. A diferenciacao da sociedade Ora, se agimos segundo a vontade da sociedade, é porque assim aprendemos. Porque fomos educados para isso. Essa educacio, natu- aa SOGIEDADE, EDUCAGAO E VIDA MORAL, ralmente, nao se faz no vacuo. Ela tem contetidos. Tais conteados #0 dados pelo meio moral que compartilhamos, quer dizer, por este mar de crengas, valores e regras produzidos pelas geracdes de indi- viduos passadas e presentes da sociedade em que viveos. Existe jim ntimero quase infinito de regras sociais que, de tio comuns, até ‘esquecemos que existem, mas das quais imediatamente nos lem- bramos se colocados diante de uma situagao que as exija: € proibido matar seres humanos, é proibido fazer sexo com o irmaozinho ou irmazinha, é recomendavel que o homem envie flores a mulher amada (s6 na fase da conquista, claro), € pouco educado perpetrar tum sonoro arroto durante as refeigBes etc. Isso parece 6bvio demais? nto veja estas outras duas regras sociais: € gentil arrotar durante a teleicao, pois significa que estamos gostando da comida; ¢ gentil ofe- fecer sua esposa para uma noite de sexo com os homens visitantes. Bem, essas j4 parecem mais exéticas para nds, pelo menos alguns de nés, mas a primeira vale para certas culturas de povos arabes, ¢ 4 segunda vale para a cultura esquim6. Hé outras regras de “boa ‘educacao” que caem em desuso, obviamente porque a sociedade e também as condigdes econémicas mudam. Pergunte a seu pai ou av6 (se ele foi um homem “bem-educado” da primeira metade do século XX) 0 que se devia fazer ao cruzar, na calcada, com uma pessoa mais velha. A resposta é: oferecer 0 lado de dentro da calgada, ficando vocé com o lado da rua. Pra qué? Nao esqueca que a maioria das ruas era de terra, e o risco de enlamear o terno de casemira branca era bem maior para os que ficassem perto da rua nos dias de chuva. Com a urbanizacao e o desenvolvimento econémico, a regra caducou. Além disso, o status dos mais velhos era diferente do que existe hoje. Esses exemplos tormam apenas pequenos fragmentos da teia de normatizagées oferecidas pela sociedade, mas sao parte integrante de um determinado meio moral que compartilhamos. Este meio moral, nos diz Durkheim, é produzido pela coo- peracao entre os individuos, através de um processo de interacao que chamou de divisao do trabalho social. Dito de outro modo: conforme o tipo de divisto do trabalho social que predomina na vida coletiva numa determinada época, temos um tipo diferente de cooperagao entre os individuos. E este tipo diferente de cooperagio, por sua vez, dé origem a uma vida moral diferente. Vida moral que sera a base dos contetidos transmitidos na forma de crengas, valores e normas de geracao para geracao. E que cada nova geragao, ao nascer, recebe pronta na forma de educagio. 33 SOCIOLOGIA DA EDUCAGAO Nao estou falando apenas de educaco escolar, note bem. Estou falando de aprender a viver. Estou falando do modo como somos ensinados a ser membros da sociedade da qual fazemos parte. Coisa que, vocé ja deve ter reparado, ninguém nasce sabendo. Alias, alguns jamais aprendem. Como ja vimos, ao refletir sobre como, afinal, um simples conjunto de individuos pode constituir uma sociedade, Durkheim observa que uma condico fundamental para que a sociedade possa existir é a presenca de um consenso. Pois sem consenso nao ha cooperacio entre os individuos e, portanto, nao ha vida social. Quando os homens possuem pouca divisiio do trabalho em sua vida em comum, existe entre cles um tipo de solidariedade baseado na semelhanga entre as pessoas. Numa tribo de indios, Por exemplo, todas as pessoas fazem praticamente as mesmas tare. fas: cagam, pescam, fazem cestos de vime, participam de rituais teligiosos etc. A tinica divisao que geralmente existe — além da pre- senga de individuos destacados, como o chefe ou 0 curandeiro — éa divisdo sexual de tarefas entre homens e mulheres. O tipo de soli- dariedade que se estabelece entre essas pessoas é 0 que Durkheim chama de solidariedade mecanica. As pessoas estio juntas por- que fazem juntas as mesmas coisas. Mas no caso radicalmente oposte, ou seja, na moderna sociedade industrial, as tarefas sao extremamente divididas. Com a divisio do trabalho social, cada vez mais, os individuos desempenham fungées diferentes umas das outras. Tal processo se radicalizou com 0 capitalismo, que levou a uma superespecializacao das tarefas. Na fabrica moderna, ha um homem para apertar o parafuso, outro para encaixar as Pecas, outro para pintar os encaixes etc. Além desses, que sio todos operirios, ha outros tipos de profissionais superespecializados: 0 médico, o professor, o dentista, 0 carteiro, o ferreiro, 0 agougueiro, © contador ete. Imagine o que diria o velho Durkheim se vivesse nos dias de hoje, rodeado por técnicos em informatica, consultores de marke- ting, pilotos de corrida, analistas de sistemas, videomakers, astro- nautas... Talvez nem se espantasse. Talvez confirmasse com um sorrisinho nos labios que tudo 0 que se fez desde 0 inicio do século XIX foi o incremento de uma diferenciacao social cada vez maior. O tipo de solidariedade que se estabelece entre os individuos com este elevado grau de divistio do trabalho nao pode ser amesma solidariedade dos indios na tribo. Na sociedade industrial moderna cry SOCIEDADE, EDUCAGAO F VIDA MORAL ha uma solidariedade por diferenga ¢ nao mais por semelhanga. fio que Durkheim chama de solidariedade orgdnica. As pessoas nao pyitio juntas porque fazem juntas as mesmas coisas, mas o contra- rio: estdo juntas porque fazem coisas diferentes e, portanto, para viver (inclusive para comer, beber e vestir) dependem das outras, que fazem coisas que elas nZio querem ou niio séo mais capazes de {azer. Como 0 alfaiate comeria e como 0 cozinheiro se vestitia se nilo fosse a existéncia do outro, Se uma tribo fosse devastada por um ataque inimigo ¢ sé restasse uma pessoa, ela poderia ainda sobreviver na mata cacando ou pescando ou comendo frutos das Arvores, embora viver sem o grupo talvez nao fizesse mais sentido pra ela, tao ligada a0 coletivo ela & Mas 0 que vocé faria, caro leitor, se uma expedicao de marcianos capturasse toda a populagao da terra para experiéncias e s6 esquecesse vocé por aqui? Como come- fia? Claro, vocé pode assaltar o balcao frigorifico do supermercado. Mas quanto tempo a energia elétrica duraria sem a manutengao do pessoal da companhia de forca e luz? Quem pagaria seu saldrio? Quem lavaria suas cuecas ou calcinhas? E pra que usar cuecas ou calcinhas se nao ha mais escritério para trabalhar ou aula para agsistir, nem ninguém para ver vocé pelado ou pelada? Quem The ensinaria sociologia da educacao na universidade? Quem passaria aqule filme romantico de sabado a noite? Lamento informar, mas vocé depende dos outros. Sua relacdo com 08 outros todos que esto a sua volta, mesmo com aqueles que vocé odeia, sua relag’o com seu patrZo ou com sua sogra, € uma relacao de solidariedade. De solidariedade organica. ‘A diferenciacao social, isto é, a passagem da solidariedade mecanica para a organica, ¢ similar a luta pela sobrevivencia no reino animal, A divisao do trabalho, para Durkheim, é a solugao pacffica da huta pela vida. Em vez de matar uns aos outros por causa da competicao que seriam obrigados a empreender com seus semelhantes na luta pela sobrevivéncia, os seres humanos diferenciam-se. Nas sociedades humanas é possivel a um ntimero maior de pessoas sobreviver, diferenciando-se umas das outras, fazendo coisas que as outras nao fazem para tornar-se parte da sociedade, e por conseguinte substituindo a solidariedade bascada na semelhanga pela solidariedade baseada na diferenca. Mas ha outro ponto importante. Durkheim assinala que quando ha pouca divisio do trabalho e, em decorréncia, solida- riedade mecinica, a consciéncia coletiva é mais forte e extensiva a a3 SOCIOLOGIA DA EBUCASKO. uum numero maior de pessoas. Isso ocorre porque desempenhanda fung0es sociais muito semelhantes, os individuos pensam “com a mesma cabega”, por assim dizer. Quando, ao contrario, ha muita divisao do trabalho e, em decorréncia, solidariedads organica cada pessoa, em diversas circunstancias da vida, tem uma mar- gem maior de liberdade, para pensar ¢ agir por conta propria. Ha, portanto, um enfraquecimento relativo da consciéncia coletiva nas sociedades complexas, ha um enfraquecimento das reagdes da cole- tividade contra a quebra das regras estabclecidas ¢ h4 urna mar. gem maior para a interpretagao pessoal ou grupal dessas regras. Assim, os meios morais, nas sociedades com pouca e nas com muita divisio do trabalho, sao bastante distintos. Os valores. as ¢rengas ¢ as normas compartilhados no scio de uma cultura pelos individuos sio muito mais imperativos, obrigatorios e homoge- Acamente transmitidos de geracao para geracao numa sociedade pouco diferenciada, enquanto que, pelo contrario, sofrem interfe- réncias de grupo, de status ¢ de classe numa sociedade muito dife- renciada, como a sociedade industrial moderna. Quando todos sao rigidamente ensinados a obcdecer as mesmas normas, a compa!= tilhar as mesmas crengas ¢ os mesmos valores, a tendéncia, pensa Durkheim, é © consenso. Quando cada individuo, em fungao da divisio do trabalho e da especializacao, assume valores, crengas © normas diferenciadas conforme o grupo ao qual se vincula na vida profissional, as regras gerais ficam relativizadas, ficam mais fracas. Pode-se dar interpretagoes diferentes a elas conforme o lugar de onde sao vistas. H quando hé forte diferenciagao social ha muitos lugares diferentes de onde se olhar as regras. A tendéncia sera, entao, o conflito, decorrente da competicao imposta pela diferen. ciasao. Os individuos passam a guiar-se pela busca da satisfacao de interesses que sa0 cada vez mais pessoais ¢ cada vez menos cole- tives, na luta pela sobrevivéncia que aprendem na sociedade com plexa em que nascem. F assim que Durkheim vé um fenémeno extremamente disseminado nox dias de hoje: 0 individualismo Ba divisao do trabalho e a diferenciacao social que possibilitam © surgimento da liberdade moderna. S6 numa sociedade complexa e diferenciada é que se torna possivel diminuir a rigidez das regras sociais, sua validade geral c indistinta, e s6 assim o individuo pode ter certa liberdade de julgamento e de aga. Mas quanto mais liber dade individual, mais individualismo, entendido como a perda dos sentimentos gregarios ¢ de respeito as normas gerais da sociedade. SOCIEDADE, EDUCAGAO F VIDA MORAL Hducacao para a vida ‘hamo entio sua ateng%o para a seguinte questao: quanto mais individualista em termos de crencas e valores é uma sociedade, ‘mais importante se torna resolver o problema de como preservar {uma parte da consciéncia coletiva, que era quase total nas socieda- dles pouco diferenciadas. Pois quanto mais o individualismo cresce, gnais a consciéncia coletiva diminui. E no entanto, paradoxalmente, gem consciéncia coletiva, sem uma moral coletiva, a sociedade nao de sobreviver. A solidariedade € 0 cimento que da liga 4 socie- Made. Sc fosse deixada para seguir seu rumo sem controle, a solida- ‘fledade organica (baseada na diferenca) provocaria a desintegracao Wa sociedade, provocaria o que Durkheim chamou de anomia, isto @, a auséncia de regras, 0 caos. Se isso nao ocorre por completo é | porque a consciéncia coletiva ainda se mantém de alguma forma. Num meio moral em que o individualismo possibilitado pela diferenciacao social compete com a consciéncia coletiva propria @ toda vida social, a educagao assume o significado de educasio moral. Assume a condicao de pedra fundamental de preservacao da coesao social Assim, a educacio, para fimile Durkheim, é essencialmente © processo pelo qual aprendemos a ser membros da sociedade. Hducagio é socializagao. “F uma ilusdo acreditar que podemos educar nossos filhos €omo queremos”, sentencia Durkheim no seu livro Educacao e sociologia, Existern certos costumes, certas regras, que devem ser obrigatoriamente transmitidos no processo educacional, goste- mos deles ou nao. Se nio fizermos isso, a sociedade se vingaré de nossos filhos, pois nao estaraio em condigdes de viver em meio aos outros quando adultos. A cada momento histérico, acredita Durkheim, existe um tipo adequado de educagao a ser transmitida Ideias educacionais muito ultrapassadas ou muito a frente de seu tempo, diz nosso socidlogo, nao s40 boas porque nao permitem que 0 individuo educado tenha uma vida normal, harmdnica com seus contemporaneos. Mas se, como dissemos antes, as sociedades modernas sao muito diferenciadas, devido a divisao do trabalho social, como seria possivel um tinico tipo adequado de educagao para todos? Ora, nao seria possivel. Para Durkheim, a educagao adequada € a educagao propria a0 meio moral que cada um compartilha. Nas sociedades hee SOCIOLOGIA DA EDUCACAO complexas existem muitos meios morais, conforme a divisao em classes, em castas, em grupos, em profissdes etc. Assim, nao existe uma educagao tinica para que todos aprendam a ser membros da sociedade. Vocé aprende a ser um membro de sua classe, de seu grupo, de sua casta, de sua profissdo, enfim, de seu meio moral. E este € 0 modo especifico, particular, pelo qual vocé se torna mem- ‘bro da sociedade. Esta nao é algo que esteja disponivel em sua abrangéncia total para todas as pessoas. Socializar-se ¢ aprender a ser membro da sociedade, ¢ aprender a ser membro da sociedade éaprender 0 seu devido lugar nela. S6 assim é possivel preservar a sociedade. Preserva-la inclusive de sua propria diferenciacao. Aprender a ser um engenheiro, para Durkheim, nao é sim- plesmente aprender a fazer plantas ou calcular volumes de con- creto. Assim como aprender a ser médico nao se limita a aprender acorlar barrigas ou serrar ossos. Aprender a ser médico ou en- genheiro significa aprender a agir na vida como médico ou enge. nheiro, a relacionar-se com os outros a partir desta ou daquela profissao. Significa aprender a agir como a sociedade espera que um médico ou um engenheiro ajam. Significa entrar num meio moral, através da aquisicZo de uma moral profissional. Por isso, 93 sistemas educacionais contemporaneos nao sto homogéneos. Educacao homogénea, alias, s6 se voltéssemos a pré-hist6ria, em sociedades sem diferenciacio. No entanto, por mais especificos que sejam os meios morais para os quais somos educados, sempre existirao crengas € valores Dasicos que devem ser comuns a todos. A educagao do engenheiro pode ser muito diferente da do médico, ou do literato, mas antes de serem educados para essas atividades profissionais, passaram por uma educagao fundamental, no geral compartillhada com todos. ‘Mesmo numa sociedade rigidamente dividida em castas, como na india, onde as pessoas nascem e morrem, geragao apés geragao, sem chance de passar de uma casta para outra, existe alguns valores comuns a todos; por exemplo, uma religidlo comum. Assim, mesmo que nem todos nés furnemos um determinado cigarro, “alguma coisa a gente tem que ter em comum”, Nao seria possivel existir sociedade sem isso. F fundamental que haja certa homogeneidade, ea educacao deve perpetué-la e reforcé-la na alma da crianga que € educada, insistiu 0 sociélogo francés. Assim como € fundamental para ele que, a partir de certo ponto, a educacao se diferencie, para adequar as criangas a seus meios especificos de vida SOCIEDADE, EQUCAGAO H VIDA MORAL, Para resumir esta ideia, permita-me citar a definicao que o proprio Durkheim da para cducagiio: A educagio € a ago exercida pelas geracbes adultas sobre as gera- Oes que nao se encontram ainda preparadas para a vida social: fem: por objeto suscitar e desenvolver, na crianga, certo nmero de catados fisicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade politica, no seu conjunto, ¢ pelo meio moral a que a crianga, partic Cularmente, se destine (Fducacao e sociologia, cap. 1) fi isso que nos permite viver em sociedade, é isso que permite que a sociedade viva em nés ¢ isso que permite & sociedade Gontinuar viva: sermos iguais e diferentes ao mesmo tempo. S6 a Kducagiio pela qual passamos € capaz de nos fazer assim. E @ por que a cducagao € um processo social.

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