Copyright © 2022 — Laís dos Passos
Capa: Ana Araújo
Diagramação: Laís dos Passos
Revisão: Laís dos Passos
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e
acontecimentos descritos são produtos da imaginação do(a)
autor(a). Quaisquer semelhanças com nomes, datas e
acontecimentos reais são mera coincidência.
É proibido o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer
parte destas obras, através de quaisquer meios - tangível ou
intangível - sem o consentimento escrito do(a) autor(a) ou da
editora.
Todos os direitos reservados.
Criado no Brasil.
SUMÁRIO
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Henrique
Jonas
O Trono
Agradecimentos
A Autora
Para todos que amam e mudam o mundo,
de alguma forma.
“Amar e mudar as coisas me interessa mais”
— Belchior
Jardinagem.
É tudo que eu preciso para me acalmar, depois de uma
manhã tediosa, costurando e aturando as chatices das minhas
clientes.
Isso, para não mencionar a droga do noivado, é claro!
Dezoito anos e já tenho tantos problemas para resolver...
Depois de calçar as botas de borracha, coloco o velho
chapéu de palha, para que o sol não provoque queimaduras na
minha pele, já que perco a noção do tempo quando estou aqui.
Ao enfiar a pá na terra úmida, sinto um pequeno alívio, mas
ainda não é o suficiente, por isso, termino de cavar o buraco com as
próprias mãos e, ao enxugar o suor do rosto, acabo me sujando um
pouco. Apenas a primeira mancha que logo se juntará a todas as
outras, até acabar meu serviço.
— Você vai ficar linda no meio das hortênsias — digo para a
muda de gardênia que seguro nas mãos.
Ouço a minha mãe gritar de dentro de casa, porém, finjo não
ouvi-la, porque já sei o que ela vai pedir. Sei que ela vai insistir. Sei
também que ela vai se enfurecer e dizer que nunca mais poderei
mexer no jardim. Sei ainda que meu pai vai tentar me proteger,
quando ela procurar o seu auxílio. E, muito mais do que tudo isso,
sei que, enquanto eles irão discutir sobre isso, vou terminar de
arranjar essas novas flores.
— Helena! — ela berra, irritada. — Estou te chamando há
horas.
Reviro os olhos com seu exagero e vejo a figura baixinha e
gordinha, com as mãos na cintura e cara fechada, descendo os
degraus que separam nossa velha casa de madeira e o minúsculo
jardim que cuido com tanto zelo. Olhando assim, pode-se pensar
que ela é uma pessoa brava, mas tudo não passa de pose.
— Não te ouvi, mãe — minto.
— Como não? Eu estou berrando. — Ela para um pouco e
fica me observando aparar algumas folhas. Isso é um péssimo sinal,
porque eu sei o que virá em seguida. — Vá tomar um banho. Estou
indo na casa da Julieta.
Esse é sempre um momento ruim do meu dia, porque detesto
discutir com ela, mas, às vezes, tenho a impressão de que seu
passatempo preferido é comprar briga comigo.
Desde que meus pais acertaram em definitivo o meu
casamento com o Jonas, filho da Julieta, a nossa relação piorou
bastante. Eu contribuí muito para que nossas desavenças
aumentassem na última semana, admito, porque, mesmo sabendo
que a lei do nosso reino nos obriga a casar contra a nossa vontade,
meu lado contestador — que ocupa a maior parte de mim — não me
permite aceitar isso de boca fechada.
Uma espécie de gripe foi responsável por dizimar três quartos
da população mundial. Minha avó sempre me contava que não era
como as gripes que conhecemos. Aquela era mais forte e
extremamente mortal e além do óbito, o medo também se espalhou
pelo planeta. Levou quase uma década para que os cientistas
descobrissem a cura e, quando isso aconteceu, tudo começou do
zero, como se toda a história anterior não tivesse acontecido.
Cada representante precisou pensar em uma maneira de
repovoar seu país. Para a minha total falta de sorte, o rei Plínio I,
primeiro rei de Luseia, decidiu que seria uma grande ideia obrigar
todos os jovens a se casarem até os dezenove anos e terem, no
mínimo, dois filhos até os vinte e cinco.
Não há leis muito duras por aqui, mas esta é levada muito a
sério, mesmo. Há uns vinte anos, houve uma moça aqui no meu
vilarejo que se rebelou contra as ordens da coroa e decidiu assumir
seu relacionamento com outra mulher, o que, para um governo que
só pensa em filhos, foi uma afronta sem tamanho. Ambas foram
condenadas à morte e serviram de exemplo.
O rei Plínio I já morreu há mais de cem anos, mas seu legado
permanece. É por causa deste velho imbecil que eu estou
descontando toda a minha frustração na minha pobre mãe.
— Eu não vou na casa da Julieta, mãe. Eu estou ocupada.
Ela cerra os olhos, como sempre faz quando começa a ficar
irritada.
— Você precisa ver o seu noivo! — Ela diz isso, como se
fosse um insulto. — Temos que resolver os detalhes do casamento.
Finalmente largo minhas plantas e me levanto.
— Eu não gosto dele, mãe! Você não consegue entender
isso? — disparo, tentando controlar a raiva. — Você acha que eu
não mereço coisa melhor?
Esse argumento a deixa confusa. Pelo menos, por alguns
minutos.
— Amor é fruto da convivência, filha. — Ela sempre repete
esta frase ridícula, como se ela própria tentasse acreditar em suas
palavras. Ela também já passou pelo que estou passando agora e
sinto muito por meus pais não se amarem. É justamente por este
motivo que não quero me casar contra a minha vontade. — Além
disso, se dependesse de mim, você se casaria com um príncipe. —
torna, depois de pensar por alguns instantes. — Mas não é assim
que as coisas funcionam.
— E quem disse que eu quero me casar com um príncipe?
Essa é a hora em que ela explode.
— Você está me tirando do sério, Helena! Está proibida de
pisar neste jardim — decreta, com mais raiva do que o habitual. —
Pode ir para o banho agora, porque nós duas vamos até a casa da
Julieta, você querendo ou não.
— Mas…
— Nem mas, nem meio mas. Pensasse nisso antes de me
desafiar.
Ela vira as costas e volta para dentro de casa e eu sei que
perdi esta batalha. Se meu pai estivesse aqui, ainda teria como
apelar por sua ajuda, mas, como estou sozinha, dou-me por vencida
e vou para o banho.
Demoro bastante na banheira, esfregando as unhas, que
estão encardidas e aproveito para lavar meus longos cabelos
castanhos com o sabão de coco que a minha mãe fez. Apesar de
quase todos no meu vilarejo serem loiros ou ruivos, adoro a cor
deles, pois me tornam única. Além dos olhos, é claro. Não é todo dia
que se vê uma pessoa que tem um olho azul e o outro castanho.
— Eu ainda estou te esperando! — Minha mãe grita, dando
socos na porta.
— Quer que eu vá encardida até a casa da Julieta? —
retruco, com voz de desdém.
Acho que meu argumento surte efeitos, pois não a ouço mais
até sair de dentro do banheiro, enrolada na toalha.
— Seja rápida.
Não me dou ao trabalho de responder. Entro no quarto que
divido com o Aristides, meu irmão caçula, e procuro o vestido mais
tosco da minha gaveta, um dos primeiros que costurei, quando
ainda estava aprendendo.
A gargalhada escandalosa que ele solta quando me vê na
sala é a prova de que meu plano deu certo. Eu estou ridícula.
— Você não vai usar isso, vai? — A voz perplexa da minha
mãe é como música para meus ouvidos.
— Qual o problema? — devolvo, fazendo-me de
desentendida.
Se ela é teimosa, vou mostrar que consigo ser muito mais.
— Nenhum, Helena. Nenhum.
Seguimos caminhando a passos rápidos até a casa da tal
mulher. Nosso vilarejo é muito pequeno e não levamos mais do que
dez minutos para chegar até lá. Após bater palmas em frente ao seu
portão, não contenho um revirar de olhos ao ver o Jonas vindo nos
receber.
Não me entenda mal. Ele não é uma pessoa ruim. Apesar
das nossas desavenças durante a infância e, até no começo da
adolescência, hoje somos melhores amigos.
O problema é que eu não o amo, assim como ele não me
ama.
— Gostei do vestido — diz, baixinho, em tom de brincadeira.
— Longa história — resmungo, enquanto ele abre o portão
para nós duas.
Contenho um bufar, quando ele cumprimenta minha mãe e
recebe um abraço esmagador em resposta. Se eu sentisse metade
de toda satisfação que ela está tendo com essa história de
casamento, já estaria no altar esperando pelo meu noivo.
Seguimos em silêncio até a sala. Ela e a Julieta conversam
na cozinha, enquanto me deito de bruços no tapete felpudo da sala
e dedico toda minha atenção ao aparelho televisor que enfeita a
estante imponente e lustrosa. O Jonas bem que tenta puxar
assunto, mas entre ele e um equipamento eletrônico caríssimo, que
minha família nunca vai ter condições de ter, eu fico com a segunda
opção. Isso sempre acontece quando venho à sua casa, porque
eles são os únicos moradores que possuem certos luxos. Serem
donos da única mercearia dessas terras tem suas vantagens.
Tive a falta de sorte de nascer em um vilarejo pobre de São
Francisco de Assis, a província mais miserável de Luseia. Não há
escolas e hospitais por aqui, o que explica os altos índices de
mortes por motivos ridículos e o fato de ninguém aqui saber ler, com
exceção do Jonas — que foi mandado para outra província.
— Não vai me contar qual é a do vestido? — insiste.
— Só estou desafiando a minha mãe.
Ele se senta ao meu lado, mas, antes que tenha chance de
perguntar mais uma vez, a transmissão é interrompida e o brasão
do reino aparece, juntamente com as primeiras notas do hino.
— O que houve? — indaga a Julieta, correndo para a sala,
com a minha mãe no seu encalço.
— Ainda não sabemos.
O rosto rechonchudo de Mário Silva e Silva, o anunciante
real, preenche quase toda a tela e, em poucos segundos, sua voz
sibilante soa.
— Súditos de Luseia e todas as suas províncias, é com
imenso pesar que venho informar o falecimento de Sua Majestade,
o rei Plínio III, vítima fatal de um câncer no pâncreas, contra o qual
lutou bravamente até o fim. O funeral acontecerá na capela real e
estará aberto a todos que quiserem prestar uma última homenagem
a este, que nos governou por tantos anos com honra e justiça.
— Justiça? — desdenho, fazendo uma careta. — Que
justiça?
— Helena! — Além da repreensão, levo um beliscão no
braço.
Não temos chance de iniciar uma discussão sobre o
acontecido, pois o homem continua seu discurso.
— Como é de conhecimento de todos, ele não deixou
nenhum herdeiro e, nestes casos, a Corte é convocada para tratar
deste assunto de extrema importância para o reino. — Ele pigarreia,
e continua: — Todos os membros da Corte tem até às treze horas
de amanhã para comparecerem ao Palácio e cumprir com suas
obrigações enquanto nobres deste reino. Tenham todos um ótimo
dia.
O brasão volta a aparecer e a transmissão da novela
continua, como se nada tivesse acontecido. E aproveitamos essa
deixa para voltarmos para a nossa casa.
Já está escuro quando meu pai chega. Estou sentada à
mesa, jogando uma partida de dominó com o Aristides e discutindo
sobre essa tal Corte que vai decidir o futuro de Luseia. É claro que,
tendo como analistas uma moça de dezoito anos, que não coloca a
menor fé no nosso governo, e um garoto de doze anos, que adora
zombar de tudo e de todos, nossa discussão gira em torno do quão
idiotas essas pessoas são.
— Aposto que eles são mais estúpidos que o Mário Silva e
Silva. — Ele ri, imitando a voz estridente do homem e sua postura
pomposa nos anúncios.
Seu rosto sardento e os dentes grandes demais para sua
boca fazem a careta parecer ainda mais engraçada.
— São um bando de velhos sustentados pela gente —
emendo, voltando a prestar atenção no jogo. — Eu tenho certeza
que são muito mais idiotas que aquele imbecil.
Meu pai se junta a nós na mesa. Mesmo cansado, depois de
um dia inteiro de trabalho, ele faz questão de jogar com a gente
todas as noites.
— Soube da novidade? — pergunto, enquanto misturo as
pedras no monte para serem distribuídas.
— E quem não soube? Só se fala nisso. — Suspira. — E
sabe o que isso significa? Mais problemas a caminho. Por pior que o
rei Plínio fosse, ao menos, ele mantinha a nossa província anexada
ao reino. Ninguém sabe se o próximo rei manterá essa decisão.
Nossa província não fazia parte de Luseia quando foi
fundada. Ela e nossas duas vizinhas foram anexadas após um
acordo com outros reinos. Isso significa que, apesar de fazermos
parte do reino, somos tratados como pedaços de terra sem valor,
que vivem das migalhas do rei e de seus nobres.
O problema é que são essas migalhas que nos impedem de
morrer de fome.
— Mas não vamos pensar nisso. O que fizeram hoje?
— Eu joguei bola com os garotos e a Helena foi até a casa do
Jonas para namorar. — Zomba o meu irmão.
Estamos tão acostumados com suas brincadeiras sem graça,
que nem nos importamos em retrucar.
— Ah! — exclama, parecendo ter se lembrado de algo. —
Deixaram uma carta aqui, quando vocês estavam na casa da
Julieta.
Ele se levanta e corre até a sala, voltando com um envelope
dourado. Pego-o das suas mãos e fico olhando o amontoado de
letras, que, para mim, não fazem o menor sentido. Não sei quem foi
o desavisado que enviou uma carta para uma província que não tem
escolas.
— Vou levar até o Jonas, para saber do que se trata — aviso,
já saindo pela porta.
Em poucos minutos, já estou batendo palmas em frente ao
seu portão e o vejo, abrindo a porta, desconfiado.
— Ah, é você. O que aconteceu? — pergunta.
Mostro-lhe a carta e ele me convida para entrar. Desta vez,
seus pais estão sentados no sofá, assistindo à televisão. Nós dois
seguimos para a cozinha e ele começa a ler o envelope.
— Foi engano. Esta carta é para uma tal de Aurora Loyola de
Albuquerque. Como se alguém com esse sobrenome chique vivesse
por essas bandas. — Ri. — Mas agora eu fiquei curioso.
Ainda bem, porque eu também estou. Quero saber do que se
trata essa carta chique. Ele rasga a beirada do invólucro e passa
alguns segundos lendo o papel requintado. Reconheço o brasão do
reino na parte de cima.
— Essa mulher é a condessa e está sendo convocada para a
tal Corte — explica, depois de ler.
— E por que eles acham que essa condessa vai estar aqui?
Solto uma gargalhada, com a probabilidade nula de existir
qualquer membro da realeza no nosso vilarejo. Somos um bando de
caipiras.
Jogamos um pouco de conversa fora e, quando vejo no seu
relógio de parede que já está tarde, levanto-me para ir embora.
É quando ouço a Julieta me chamar aos gritos.
Corro até a sala e vejo uma foto minha, estampada na tela da
televisão. Na verdade, quando presto mais atenção, percebo que a
moça da foto tem os dois olhos castanhos, mas com exceção desse
detalhe, ela é idêntica a mim.
— Quem é essa? — pergunto, boquiaberta, sem tirar os
olhos da TV.
— É a sua mãe, Helena. — explica, apontando para a tela. —
Você é a tal condessa.
Eu sei que não sou filha dos meus pais.
Só se eu fosse muito burra para não notar que eu sou
completamente diferente de todos os moradores daqui.
Eles nunca me esconderam esse detalhe. Fui adotada
quando ainda era um bebê. Minha mãe fazia trabalho voluntário no
orfanato de uma província vizinha e, assim que cheguei lá, foi amor
à primeira vista. Já ouvi essa história tantas vezes, que até já sei de
cor.
Fui criada com tanto amor, que este fato passou
despercebido muitas vezes. Nunca me senti rejeitada, tanto dentro
de casa, como fora também.
Com exceção da vez em que, quando éramos crianças, o
Jonas disse que meus olhos eram um portal para o inferno e que,
quem olhasse para eles por muito tempo, iria direto para lá — e é
claro que ele levou um soco por isso — sempre fui tratada como se
fosse um deles.
É por isso que essa informação não faz o menor sentido.
Eu sou uma caipira.
Não uma condessa.
— Helena! — o Aristides me chama, aos gritos, acordando-
me do meu transe.
Não sei por quanto tempo fiquei neste estado catatônico, mas
devem ter sido longos minutos, porque toda a minha família está
aqui, na sala da Julieta, sem que eu sequer tenha percebido sua
chegada.
— O que está acontecendo? — meu pai pergunta, sentando-
se ao meu lado no sofá.
A TV ainda está ligada, mas já transmite algum filme
qualquer.
— A Helena é uma condessa e foi convocada para fazer
parte da Corte que vai escolher o novo rei — o Jonas explica, com a
simplicidade de quem fala sobre uma fofoca qualquer.
— A Helena o quê? — dispara o Aristides, sem conter uma
risada estridente.
Uma discussão acalorada — intercalada com as gargalhadas
debochadas do meu irmão — inicia sobre eu ser ou não a tal
condessa, mas a minha mente está ocupada demais tentando me
dissuadir dessa ideia ridícula.
Onde já se viu?
Helena de Amorim, uma condessa?
Essa é a ideia mais descabida que eu já ouvi na vida. Se não
estivesse tão fora de mim, com certeza estaria gargalhando
também.
— Não! — exclamo, levantando-me em um salto. — Isso não
faz sentido. Isso é ridículo. Eu não sou condessa coisa nenhuma.
A Julieta me traz um copo d´água, que eu não consigo beber,
devido ao bolo que se formou na garganta.
— Eu quero ir para casa — anuncio, seguindo em direção à
porta.
Ninguém tenta me convencer do contrário e, no mais
profundo silêncio, vamos embora dali.
Leves batidas na janela me fazem levantar da cama. Depois
de horas rolando, sem conseguir pregar o olho e com a cabeça
fervilhando com tudo que ouvi, levanto e atendo, para não acordar o
meu irmão, que dorme na cama ao lado.
Além disso, já sei que é o Jonas. Não é a primeira vez que
ele me procura no meio da madrugada.
— O que você quer? — indago, em um sussurro, assim que
abro uma fresta da janela.
— Nós precisamos conversar, Lena. — Lanço-lhe um olhar
de desaprovação. — É sério.
Assinto e pulo para o lado de fora, para podermos falar em
tom de voz normal. Assim que o vento gelado sopra sobre a pele,
arrependo-me de ter aceitado sua ideia idiota. Abraço o meu corpo
com força, tentando, além de manter a temperatura, esconder meu
pijama curto demais.
— Fala logo, Jonas! Meu pai é bonzinho, mas se ele te pegar
aqui, te dá uma surra — ameaço, tentando apressar as coisas.
Ele está nervoso. Posso notar pela forma como passa a mão
nos cabelos loiros e espessos e como troca o pé de apoio o tempo
todo.
— É que eu tive uma ideia — solta, de uma voz, eufórico. —
Se você for mesmo a tal condessa…
— Mas eu não sou! — devolvo, irritada. — Foi para isso que
você me fez levantar da cama, nesse frio?
— Você está com frio?
— Não. Meus pelos estão arrepiados, mas é de calor —
respondo, irônica.
Ele revira os olhos, antes de tirar sua jaqueta e me entregar.
— Digamos que essa história seja verdade e você realmente
seja essa Aurora. — Faço menção de lhe interromper, mas ele não
deixa. — Escuta, Lena. Se você for dessa tal Corte e tiver que ir
para a capital e essas coisas… Bom, talvez seja a nossa chance de
não precisarmos nos casar.
Fecho ainda mais a sua jaqueta, mas desta vez não é pelo
frio, mas pela euforia que sua frase me causa. Embora eu saiba que
tudo isso não passa de uma fantasia da cabeça do meu querido
amigo, a simples ideia de não ter que me casar me soa muito
tentadora. De repente, meu coração saltita dentro do peito e uma
felicidade crescente ganha força.
Até eu me lembrar que nada é tão fácil para pessoas como
nós e um balde de água fria e decepção me acertam.
— As coisas não são simples assim, Jonas.
— Primeiro, me escuta. Depois você me alveja com seus
argumentos para me desencorajar, pode ser? — ralha, muito sério.
— Eu gosto de você, Helena. Gosto muito. Você é minha amiga, é
bonita e é engraçada, mas eu não te amo.
— Eu também não te amo — devolvo, de imediato. — Você
sabe disso.
— Então! É a nossa chance de acabar com essa história
idiota de casamento. Vai me ouvir?
Vencida, finalmente concordo.
— Qual é a sua ideia, gênio?
— Meu pai tem alguns conhecidos na capital e ele explicou
como funciona esse negócio de Corte. São cinco integrantes que
irão escolher, dentre eles, um representante que assumirá o trono —
explica, animado. — Se você for a condessa, significa que há uma
chance de vinte por cento de assumir o trono de Luseia, Lena. E se
você assumir, pode abolir essa lei estúpida, além de trazer um
pouquinho de dignidade para cá.
Continuo o encarando por alguns segundos, procurando
qualquer sinal de que todo esse discurso não passa de uma
brincadeira boba. Mas não é. Ele está falando sério, mesmo.
— Mas eu não quero assumir trono nenhum.
A simples ideia de ter que sair daqui, do único lugar que
conheço, é capaz de me apavorar. Não quero viver longe das
pessoas que amo, para me enfiar no meio daquela nobreza que
tanto repudio e que deixou que nosso vilarejo ficasse à mercê da
própria sorte.
Quantas pessoas morreram por uma simples infecção? Uma
hemorragia que poderia ser revertida, se tivéssemos um hospital por
perto? Quantas vezes recebemos cartas ou avisos importantes e
precisamos recorrer ao Jonas para entender o que aquele monte de
letras significavam, porque ninguém se prestou a construir uma
única escola por aqui?
Não quero fazer parte de nenhuma Corte!
— Eu quero ficar aqui, perto da minha família, com as minhas
plantinhas, como sempre foi! — continuo.
O Jonas vive aqui. Ele sabe que o que estou dizendo faz
sentido. Sabe o que é conviver com o medo de perder alguém
importante para uma doença que poderia ser curada com facilidade.
É por isso que, quando ele revira os olhos, irritado com minha
resposta, não fico apenas zangada, mas magoada também.
— Quer saber? Eu não sei porque cheguei a cogitar essa
possibilidade — solta, revoltado. — Você sempre foi egoísta. Só
pensa no seu próprio bem estar e não está nem aí para as outras
pessoas. Enquanto estiver tudo bem com você e suas plantinhas,
quer mais é que o mundo se dane! Boa noite, Helena.
Ele vira as costas e vai embora, pisando duro, deixando-me
ainda mais triste e indignada.
Acordo com batidas na porta do meu quarto e levo alguns
instantes para me situar.
— Helena, você precisa levantar. — Minha mãe diz, do outro
lado da porta.
Concordo com um aceno, mesmo que ela não consiga me
enxergar, e levanto da cama. Visto uma roupa de ficar em casa —
que consiste na maior parte da minha cômoda — e saio no corredor,
quando vejo uma movimentação estranha na sala. Neste instante,
uma palavrinha surge na minha mente e acaba com o meu pouco
humor matinal.
Condessa.
Espero que esse mal entendido se resolva logo e que
esqueçam logo esse absurdo, para que eu possa voltar a me
preocupar com minhas costuras, meus jardins e meu futuro
casamento frustrado com um noivo que, no momento, está me
odiando.
Depois de lavar o rosto e prender o cabelo em um rabo de
cavalo, sigo até a sala e descubro o motivo da tal movimentação
estranha.
Temos visitantes.
Dois guardas reais — que reconheço pelos uniformes com o
brasão do reino — estão parados, ao lado da porta. No sofá, um
senhor pálido e calvo, usando um terno muito bem costurado, bebe
café de uma das canecas esmaltadas da minha mãe. Aquelas que
ela guarda só para ocasiões especiais.
— Sente-se, Helena — pede o meu pai, que está escorado
na porta que divide o cômodo da cozinha. Seu tom de voz é
controlado, mas posso sentir a tensão. — O assunto é sério.
Eu odeio ouvir essa frase.
Antes que alguém explique o que está acontecendo, já crio
várias teorias sobre esse tal assunto sério. Sei que tem a ver com
aquela história de condessa. Não sou nenhuma idiota.
— Desculpe tirá-la da cama tão cedo, Helena — começa o
senhor de roupas caras. Seus olhos bondosos me analisam com
atenção e cuidado. — Viemos da capital, porque precisamos da sua
presença na reunião da Corte.
— Essa história de novo? — indago, impaciente. — Não me
leve a mal, senhor…
— Aldo. — Ele sorri.
— Senhor Aldo, isso tudo não passou de um grande mal
entendido. Eu sou Helena de Amorim, não Aurora de Loyola e Sei-
Lá-O-Quê…
Ouço o riso abafado do Aristides, quando o homem me
corrige:
— Albuquerque. Aurora de Loyola e Albuquerque.
Finjo um sorriso agradecido, mas acho que ele sai tão
amarelo, que ele nota que preferia estar contando as pedrinhas da
estrada do que aqui, nessa conversa absurda.
— Sou costureira, não uma condessa — explico, tentando lhe
mostrar o óbvio. — Isso tudo não faz o menor sentido.
Ele abre o casaco e tira uma fotografia de dentro do bolso.
Nela, um casal bem jovem sorri. A mulher é a que eu vi na televisão,
na casa da Julieta. Idêntica a mim, só que os dois olhos são
castanhos e ela parece um pouco mais velha também.
Minha mãe surge atrás do encosto do sofá e também observa
a foto por cima do meu ombro. Logo meu pai e Aristides também
estão ali.
— Se não fosse o olho, eu podia jurar que é você, Lena! —
exclama o meu irmão, estupefato.
— Esses são seus pais — o senhor Aldo esclarece. — Eles
foram assassinados durante o levante e, mesmo que seu corpo
nunca tenha sido encontrado, pensávamos que também estivesse
morta. Um pouco antes de morrer, uma senhora se confessou e
admitiu que teve pena de matar um bebê, então resolveu te deixar
em um orfanato. Isso aconteceu há poucos dias e, como a doença
do rei Plínio já estava bastante avançada, resolvemos prosseguir
com as buscas. Graças aos registros do orfanato, não foi difícil
localizá-la.
Sinto a sala girando ao meu redor, um redemoinho de
informações desconexas varre para longe as poucas convicções
que tinha. Não quero ser condessa. Quero continuar sendo a
Helena. A costureira, que ama cuidar dos jardins. A teimosa, que vai
brigar pelo que acha justo até o fim.
Cogito a possibilidade de voltar para o quarto e dormir mais
alguns minutos, só para tentar acordar e descobrir que isso tudo é
um daqueles sonhos malucos, que vou contar para o Aristides e rir
por uma semana inteira.
Mas isso não vai acontecer, porque é verdade.
Se não fosse, não haveria um nobre na minha sala,
encarando todas as partes descascadas da caneca da minha mãe.
— Eu sei que isso tudo é novo para você, mas o protocolo é
muito claro. O novo monarca só pode assumir após a votação de
todos os membros vivos da Corte e, no momento, todos estão.
— E se o senhor mentir, dizendo que eu estou morta? —
arrisco.
— Receio que isso não seja possível, Helena. Como
conselheiro real, fiz um juramento sobre sempre optar pelo que é
melhor para o nosso reino.
Suspiro, frustrada. Estou sem opções e detesto ser colocada
contra a parede.
— Olha só para mim, senhor Aldo. O senhor acha que eu
tenho condições de opinar em qualquer assunto real? Eu não
entendo nada desses assuntos — explico, em uma última tentativa
de lhe convencer que eu não preciso fazer parte desta tal Corte.
Eu nem sei ler! penso, horrorizada.
— Entendo que pode parecer complicado, mas não é. Tudo o
que você tem que fazer é votar no candidato que lhe parecer mais
apto. Vocês terão três dias para chegar a uma conclusão e, se
nestes três dias, a escolha for unânime, você poderá voltar para a
sua casa.
Sentindo uma esperança crescente no peito, finalmente me
permito desfazer a postura fechada e sorrio. Três dias não me
parece algo tão absurdo. Além do mais, a conversa que tive essa
madrugada com o Jonas volta à minha mente. Eu não preciso
assumir o trono para convencer seja lá quem for nosso novo rei de
que casamentos obrigatórios são um desastre.
— Só três dias? — insisto. Preciso ter certeza que não serei
enganada. Se ele confirmar, depois poderei cobrar, porque estamos
falando da palavra do conselheiro real. — O senhor garante que
serão só três dias?
Ele para por um instante, para ponderar o que eu disse.
— Como eu disse, se chegarem a uma conclusão unânime,
serão só três dias.
Assinto bem devagar, ganhando tempo para pensar em uma
decisão. É claro que prefiro não ir, mas, como não tenho opções,
melhor que seja rápido e me traga benefícios.
Encaro minha mãe, que concorda com um aceno discreto.
Meu pai e meu irmão também me encorajam com esse gesto
simples. É o aval da minha família, dizendo que eu devo aceitar. E é
o que eu faço.
— Tudo bem. Quando viajamos?
— Agora mesmo.
Peço permissão para, ao menos, despedir-me do meu noivo
e, de canto de olho, noto a minha mãe quase explodindo de
felicidade.
— Eu arrumo as suas coisas para adiantar as coisas — diz,
com o sorriso de orelha a orelha.
Concordo e caminho apressada até a mercearia, porque sei
que ele deve estar lá a esta hora da manhã. De longe, posso vê-lo
apoiado sobre o balcão, conversando com o Paulinho, o filho do
homem que cria galinhas.
— Jonas, a gente pode conversar em particular? — pergunto,
lançando um olhar bem significativo em direção ao intruso.
— Já entendi — resmunga, erguendo as mãos. — Os
pombinhos querem conversar.
Faço uma careta desdenhosa, enquanto ele deixa o
mercadinho.
— Eu estou indo para o Palácio — explico, apressada, assim
que noto que estamos sozinhos. — O conselheiro real em pessoa
está lá em casa.
— Eu soube… As fofocas correm. Mudou de ideia sobre ficar
aqui com suas plantinhas? — indaga, fazendo uma imitação tosca
da minha voz.
Seguro o ímpeto de xingá-lo e engulo em seco.
— Como se eu pudesse dizer não para o conselheiro real…
— Suspiro. — Mas não é para falar sobre ele que eu vim. Você está
certo. Essa é a nossa chance de acabar com essa ideia ridícula de
casamento e é o que eu vou fazer quando chegar lá, mas eu preciso
da sua ajuda. — Apoio os cotovelos sobre o tampo de madeira
gasta e continuo, em voz baixa, com medo que alguém me ouça: —
Eu nunca saí daqui, Jonas. Eu não faço a menor ideia do que vou
encontrar lá, nem de como vai ser… Você é inteligente, sabe das
coisas e pode me dizer o que fazer quando estiver perdida. Você me
ajuda?
Abrindo um sorriso do tamanho do mundo ele concorda. Acho
que nunca lhe disse isso, mas ele tem o sorriso mais lindo que eu já
vi.
— É claro que sim, Lena. — Ele sai de trás do balcão e me
dá um abraço. — O telefone lá de casa estará disponível para você
vinte e quatro horas por dia. Qualquer dúvida, qualquer problema,
qualquer desabafo… Eu vou estar aqui, tá bom?
— Tá bom.
Aproveito para me despedir dele e volto para casa o mais
rápido possível. Minha bolsa já está pronta na sala.
— Vai ficar tudo bem. — Tento soar animada, já que minha
família está com cara de enterro. — Três dias vão passar bem
depressa. Antes que vocês sintam saudade, eu já estarei aqui.
— E quem disse que eu vou sentir saudade? — desafia-me o
Aristides.
— Eu digo. Você não vive sem mim, pirralho. — Sorrio,
dando-lhe um abraço apertado.
Despeço-me dos meus pais e sigo para a rua, onde o senhor
Aldo e os dois guardas já me aguardam ao lado do carro.
Antes de entrar no veículo, minha mãe me abraça mais uma
vez.
— Toma cuidado — ela sussurra. — Essa gente da realeza é
perigosa.
Assinto e entro no carro. Aceno uma última vez para a minha
família, que me olha da porta da nossa casa, enquanto deixo meu
vilarejo para trás, pela primeira vez na vida.
— A capital fica muito longe? — pergunto, a certa altura.
Já estamos viajando há mais de uma hora e a paisagem
monótona está me deixando entediada. Não tenho assunto em
comum com o senhor Aldo e os dois guardas são menos do que
monossilábicos.
— Se tudo correr bem, chegaremos lá ao entardecer.
Suspiro só de imaginar o quanto essas horas vão demorar
para passar.
Distraio-me por algum tempo, pensando no que me aguarda
na capital e acabo pegando no sono.
Desperto dentro de algum tempo, quando paramos em frente
a um estabelecimento. Almoçamos em silêncio e, sem demora,
voltamos para o carro, para mais algumas horas de viagem. Para
minha infelicidade, não sinto sono algum e passo esse tempo todo
tentando organizar meus pensamentos.
São só três dias. Três dias que vão passar voando. Tudo o
que eu tenho que fazer é concordar com os nobres de verdade e
votar na pessoa que todos combinarem. Enquanto isso, provar para
quem quer que mande nessa porcaria, que os casamentos forçados
não fazem bem para ninguém. E então voltarei para a minha vida
pacata e, se tudo der certo, sem nenhum noivo.
Tudo se resolverá da maneira mais simples.
Um barulho muito alto me acorda dos meus devaneios e, ao
olhar pela janela, vejo um avião. Um de verdade! Eu só os conhecia
pela televisão. Colo meu rosto no vidro, enquanto o encaro,
estarrecida. É a coisa mais surpreendente e apavorante que eu já vi!
— Como uma coisa desse tamanho pode voar? — questiono,
em voz alta, o que desperta risadas.
— A diferença na velocidade na passagem de ar faz com que
a pressão na parte de cima da asa seja menor que embaixo. Com
isso, a força do peso fica menor que a força de empuxo. — explica
um dos guardas.
Balanço a cabeça, fingindo ter entendido o que ele acabou de
falar e começo a me entreter com as construções extravagantes e
os carros chiques que transitam ao nosso lado. Tudo aqui é mais
colorido, mais vivo e muito mais bonito. Mas de tudo, o que mais
chama a minha atenção, são as roupas que as mulheres usam. É
completamente diferente de tudo o que eu já vi e costurei na minha
vida toda. Nada dos vestidos simples e do tecido sem graça que
usamos no nosso vilarejo.
Ao longe, uma mansão se destaca do restante da cidade.
Fica sobre uma pequena colina e, pelo pouco que já vi na TV do
Jonas, identifico-a como sendo o Palácio. Ele é grande e imponente,
com suas colunas robustas, sacadas decoradas e pequenas
porções de telhados coloridos e muito bonitos. Quanto mais perto
chegamos, maior ele vai ficando. Minha vila inteira poderia morar ali
dentro e isso não é um exagero.
O carro cruza um portão enorme, cheio de arabescos e
detalhes dourados, após o guarda se identificar na guarita, e
percorremos um pátio extenso, envolto pelo jardim mais lindo do
mundo inteiro. Ilhas com flores das cores mais variadas e vibrantes,
rodeadas pela grama muito verde, arbustos podados
milimetricamente e estátuas de anjos. Mal posso esperar até o dia
amanhecer para poder explorar cada plantinha dali.
Finalmente, paramos em uma garagem ampla e o senhor
Aldo me acompanha até o interior do Palácio, que é ainda mais
sofisticado que seu exterior. Os corredores intermináveis são
repletos de janelas grandes, cobertas por cortinas de um tecido leve
de cor clara. Há várias pinturas estranhas penduradas na parede,
intercaladas por esculturas bizarras sobre aparadores. E há portas,
é claro. Tantas portas, que eu levaria um dia inteiro para contá-las.
Por fim, paramos em frente a uma delas.
— Este é seu quarto, Helena. Amanhã cedo você conhecerá
todos os membros da Corte e lhe darei maiores explicações — diz.
— Por hora, peço que descanse, pois nossa viagem foi bastante
cansativa.
— Muito obrigada, senhor Aldo.
Ele sorri e dá de ombros.
— Me chame apenas de Aldo. — Sai caminhando, mas
depois de dois ou três passos, parece lembrar de algo e se vira para
mim. — Ah! E seja muito bem-vinda ao Palácio.
Acordo em plena madrugada, assustada e encharcada de
suor, graças a um pesadelo. Nele, eu me casava com o Jonas e ele
ficava muito zangado por eu ter permitido que isso acontecesse.
Droga!
E aquele pilantra tem coragem de dizer que eu sou egoísta…
Se eu fosse tão individualista quando ele pensa, não estaria aqui,
sentindo-me culpada por algo que não é minha culpa!
A garganta está mais seca do que as terras do meu vilarejo
em época de seca, então me levanto da cama, em busca de água.
Ao contrário das novelas que já assisti na casa da Julieta, não tem
nenhuma jarra de cristal, para que eu mate minha sede na
madrugada, o que me obrigada a deixar o quarto.
Não sei se meu short surrado, minha regata larga e os pés
descalços estão adequados para perambular pelos corredores do
Palácio, mas, no momento, só quero satisfazer a minha
necessidade.
No fim do corredor, avisto uma porta entreaberta, um feixe de
luz escapando da sua fresta. Aproximo-me com cautela e constato
que, para minha sorte, esse local é a cozinha. Demoro muito tempo
procurando em qual dos infinitos armários são guardados os copos.
Depois de me servir de água na torneira e beber tudo em longos
goles, ouço vozes se aproximando e, temendo que alguém
importante me encontre vestindo estes trajes, escondo-me atrás do
balcão.
— Anda, a gente não tem muito tempo — diz uma voz
feminina e bem melosa.
— Já estou indo — responde uma voz masculina.
Um silêncio sepulcral toma conta do ambiente logo em
seguida, atrapalhado por estalos esquisitos. Daqui onde estou, não
consigo ver se eles ainda estão na cozinha, apesar de não ter
ouvido passos indo embora. Ainda abaixada, arrasto-me um pouco
para o lado e levo um susto ao ver o casal em um beijo totalmente
indecente, como se estivessem tentando engolir um ao outro. Isso,
para não mencionar as mãos do rapaz que exploram o corpo da
moça sem qualquer pudor.
— Eu estava com saudade — ela murmura, ofegante, entre
um beijo e outro.
De onde eu venho, esse tipo de demonstração de afeto é
proibido. É a primeira vez que vejo duas pessoas fazendo algo
parecido, com exceção dos atores da TV. Meu coração está batendo
tão rápido e com tanta força, que acho que vou passar mal.
Eu preciso ir embora daqui sem ser notada pelo casal
faminto.
O balcão onde estou fica relativamente próximo a saída. Eles
estão bem entretidos tentando sugar a alma um do outro para me
notar indo embora. Em um momento de coragem, conto
mentalmente até três e saio correndo, abaixada até a porta.
— Ei! Quem é você? — indaga a moça, mas finjo que não
ouço.
Continuo pelo corredor e aproveito a escuridão para me
esconder ao lado de um aparador com uma escultura ridícula. O
rapaz chega a caminhar alguns passos na minha direção, mas antes
de me alcançar, ele desiste e volta para a cozinha.
Fico parada ali por mais algum tempo e, quando acho que a
barra está limpa, volto para o quarto. Agora, além do coração
batendo em disparada, meu rosto está tão quente que tenho certeza
que ele está mais vermelho que um pimentão.
Ainda bem que não consegui ver o rosto daquelas pessoas.
Não sei com que cara olharia para elas depois do que acabei de
presenciar.
Ainda me sinto exausta, quando acordo com batidas
incessantes na minha porta. Na mesma hora, minha mente é
tomada pelas imagens daquela cena lamentável que fui obrigada a
ver e, além de indignação, sinto vergonha também.
Penso se devo me vestir de forma apropriada para atender a
porta, mas as batidas não param e fico tão agoniada, que corro até
lá, mesmo com esse pijama vergonhoso. Assim que giro a
maçaneta, deparo-me com uma moça jovem e linda, que não deve
ser mais velha do que eu. Seus longos cabelos escuros estão
presos em uma trança lateral e os olhos azuis correm com espanto
do meu rosto para o meu corpo algumas vezes. Não tenho certeza
se sua surpresa se deve aos meus olhos estranhos ou ao meu
pijama nada convencional para a nobreza. Talvez as duas coisas.
— Bom dia, Vossa Graça — cumprimenta-me, fazendo uma
reverência exagerada. — Meu nome é Carolina e fui escalada para
ser sua criada no que for necessário.
Ela não veste nenhum uniforme como o das novelas e filmes,
mas um vestido lilás sem mangas, que vai até o joelho. Algo
simples, mas elegante.
— Criada? — devolvo, erguendo uma sobrancelha.
— Sim, senhorita. Minha primeira função é ajudá-la a se
aprontar para o café da manhã.
O jeito como ela esfrega as mãos uma na outra e não para os
pés no chão, evidencia que está muito nervosa, mas decido não
tocar no assunto para não deixá-la ainda mais desconfortável.
Ela me encaminha até a penteadeira e me senta no
banquinho. Fico me olhando no espelho, enquanto ela some por
alguns instantes. O som de coisas caindo no chão, acompanhado
de um xingamento em voz baixa preenchem o ambiente e não
contenho uma risada. A garota está completamente perdida.
Dentro de pouco tempo, ela volta, trazendo consigo uma
escova de cabelo e uma caixa e começa a pentear meus cabelos.
— Não seria melhor eu me vestir primeiro? — pergunto,
mirando-a pelo reflexo. — Senão vai estragar o que você vai fazer
no meu cabelo, certo?
— Ótima ideia. — Sorri, puxando-me pelo braço até o
guarda-roupa.
Ao abri-lo, vejo-o vazio.
— E o que a senhorita vai vestir? — pergunta-me, como se
eu soubesse a resposta.
— Eu trouxe algumas roupas de casa.
Pego a minha bolsa e a abro sobre a cama, espalhando
meus vestidos. A Carolina faz um esforço tremendo para esconder
sua expressão de descontentamento, mas não se sai muito bem.
— A senhorita não pode vestir estes trajes. Não são
apropriados para a grandeza de seu título.
Agora é a minha vez de demonstrar aborrecimento. Quem
costurou as roupas fui eu. Ela deveria ter um pouco mais de respeito
pelo trabalho alheio.
— Essas roupas são inadequadas — diz, com desdém,
segurando um dos meus vestidos com a ponta dos dedos, como se
tivesse nojo delas.
— Esses vestidos foram feitos por mim — defendo-me, com
as mãos na cintura.
Vejo o terror tingir o rosto da garota e preciso suprimir a
vontade de gargalhar ao vê-la gaguejando, tentando se explicar.
Então ela se senta sobre a minha cama e cobre o rosto com
as mãos.
— Elas têm razão. Eu sou um desastre, mesmo — resmunga,
com a voz embargada pelo choro.
Sinto-me culpada por ser a causadora do seu desespero. Eu
queria apenas fazer uma brincadeira, não acabar com a autoestima
da garota.
— Eu só estava brincando, Carolina. — Apresso-me em
explicar e me sento ao seu lado. — Eu não quis te ofender.
— A senhorita não ofendeu, só disse a verdade. — Funga. —
Eu não nasci para isso. Todas as outras criadas estão certas
quando dizem que eu não tenho a menor vocação para um trabalho
tão importante. É melhor eu ir embora e chamar uma pessoa mais
capacitada.
Ela se levanta e caminha apressada até a porta, mas corro e
consigo me colocar à sua frente, impossibilitando sua saída.
— Você está certa — admito. — Essas roupas não são
adequadas para uma condessa, mas eu não sei o que vestir. Na
verdade, eu não sei nada sobre esse negócio de nobreza, porque
eu descobri ontem que faço parte disso. Para ser bem honesta, eu
estou morrendo de medo, Carolina. — Minha voz agora não passa
de um sussurro. — Você pode me ajudar?
Sua expressão assustada se abranda um pouco, como se
meu discurso surtisse efeito. É a mais pura verdade. Eu preciso de
ajuda para entender como isso tudo funciona, sem parecer uma
completa idiota e ela o fará sem me julgar. Pelo menos, não depois
de descobrir que ela é tão insegura quanto eu.
— É claro, senhorita. Será uma honra. — Sorri, secando as
lágrimas.
— Então comece parando de me chamar de senhorita.
Ela acena, concordando, e deixa o quarto para ir atrás de
algo para que eu possa vestir.
— A senhorita está linda! — exclama, levando as mãos ao
rosto, emocionada com o resultado de todo o seu trabalho.
Também não é para menos. Ela fez um milagre!
Observo a minha imagem pelo espelho e quase não me
reconheço. Meus cabelos estão soltos, mas em vez do liso de
sempre, cachos grandes e volumosos caem como uma cascata
pelos ombros. A maquiagem, discreta, destaca meus olhos — não
que eles precisem de maquiagem para se destacarem — e o vestido
turquesa tem alças largas e seu comprimento cobre meus joelhos,
deixando-me elegante e refinada. Isso para não mencionar os
brincos de pérolas — de verdade, não aquelas falsas que a minha
mãe usa — e o bracelete prateado.
Batidas na porta me alertam que é hora de sair do quarto e
enfrentar a realidade. Calço os sapatos de salto que, para minha
sorte, não são muito altos, e encaro a moça.
— Me deseje sorte — peço, em voz baixa.
Ela abre um sorriso e faz um movimento esquisito com o
corpo. Uma espécie de dança estranha. Acho que é sua forma de
desejar boa sorte. Ou isso, ou uma pulga entrou no seu vestido.
Finalmente abro a porta e encontro o Aldo me esperando. Ao
me ver, ele parece ficar surpreso.
— Bom dia, Helena. Vamos? Temos um dia cheio.
Acompanho-o ao longo do corredor e ele vai me contando
histórias sobre o Palácio e seus antigos moradores. Tento me
esforçar para acompanhá-lo, tanto nas informações, quanto no
passo, mas meu deslumbramento e o sapato me atrapalham
bastante.
Por fim, chegamos à sala de jantar, onde várias pessoas já
estão sentadas em uma mesa enorme. Sobre ela, há comida
suficiente para alimentar o meu vilarejo pelas próximas semanas.
— Bom dia, senhores — o Aldo chama a atenção de todos.
— Esta é a Helena, última descendente da família Loyola de
Albuquerque e condessa.
Sem saber o que fazer, apenas dou um tchauzinho.
— Este é Saulo, membro do marquesado e sua esposa
Paloma — diz, apontando para um homem negro, de careca
reluzente e com um belo sorriso simpático de dentes separados,
que não deve ter mais do que quarenta anos. Ao seu lado,
cumprimenta-me uma mulher, também negra, com cabelos
cacheados e muito bonita. Eles sorriem para mim de forma calorosa.
Então, ele aponta para um homem que aparenta ter pouco
mais de cinquenta anos. Ele é moreno, calvo, acima dos olhos
negros há uma pequena cicatriz cortando a sobrancelha esquerda.
Não parece, nem de longe, tão simpático quanto o marquês. Ao lado
dele, uma mulher negra de cabelos pretos e lisos acena para mim,
de forma discreta.
— Este é o Sérgio, nosso visconde e sua esposa Joice.
Ele indica uma moça jovem, muito parecida com a tal Joice.
— E esta é a Morgana, sua filha.
Sorrio, tentando ser simpática, mas só recebo um olhar de
desdém como resposta.
— Por último, mas não menos importante, Olga, a baronesa
mais amável de todo o reino.
— Não seja indelicado, Aldo. Todos sabemos que eu sou a
única baronesa deste reino. — a senhora, de aproximadamente
setenta anos, responde e sorri.
Ela me chama para sentar ao seu lado. Obedeço, após Aldo
me dar seu aval.
— Você é a cara da sua mãe, menina! — exclama,
examinando-me. — Com exceção dos olhos, é claro, que são lindos,
por sinal.
— Obrigada — digo, sorridente.
— Seja bem-vinda, Helena — diz o marquês. — Espero que
tenhamos uma reunião tranquila e que traga bons frutos para o
reino.
— Assim eu espero — respondo, pensando que, na verdade,
tudo o que quero é voltar logo para casa.
Mesmo que faça apenas um dia que estou longe da minha
família, sinto muita falta deles. Nunca estive longe por mais do que
algumas horas e, por mais que todos os acontecimentos do último
dia tenham me deixado um pouco dispersa, a saudade é inevitável.
— O duque teve um contratempo e só chegará depois do
almoço para a reunião — o Aldo me explica, sentando-se também e
se servindo de uma xícara de café. — Até lá, você estará livre para
conhecer as dependências do Palácio.
Não sei se isso é bom ou não. Por um lado, queria poder
adiar essa reunião por mais tempo, porque me sinto intimidada entre
tantos nobres e não sei como agir perto deles. Por outro, quero que
isso acabe o quanto antes.
— Posso conhecer os jardins? — arrisco.
— É claro, minha querida — diz a baronesa. — Depois do
café, posso te acompanhar, caso você queira a companhia de uma
velha que adora conversar.
— Eu vou adorar.
Terminamos o café da manhã sem grandes novidades e
limito-me a responder as poucas perguntas que o marquês e a
baronesa me fazem — as únicas pessoas que parecem se importar
com a minha presença naquela mesa.
Por mais que eu tenha dificuldade com o salto, preciso fazer
um esforço sobrehumano para acompanhar os passos lentos da
velha senhora até os jardins. Queria poder descalçar os sapatos e
correr até lá, porque a ansiedade para conhecer o que tenho certeza
que será minha parte preferida do Palácio não cabe em mim.
Quando cruzamos a imponente porta dupla, deparo-me com
a visão mais linda que eu, uma apaixonada por jardins, poderia ter.
Enquanto passava por aqui, ontem, de dentro do carro, não pude ter
a noção exata de toda a exuberância desse lugar. É maior, mais
colorido, mais exótico e muito mais bonito.
Sem conter minha empolgação, deixo a senhora para trás e
corro na direção do aglomerado de flores — algumas que nunca vi
— e ajoelho-me no chão, depois de levantar a barra do meu vestido.
— Vá com calma, querida — alertou-me a baronesa. — Você
precisa estar apresentável para a reunião.
Vejo-a sentar em um banco de ferro branco com arabescos
decorativos e, contra a minha vontade, levanto do chão e me sento
ao seu lado. Depois da reunião, voltarei aqui para dar a devida
atenção a este jardim encantador.
— Eu te peguei no colo, minha querida, quando você ainda
era Aurora. — Ela sorri e segura minhas mãos entre as suas. —
Você se tornou uma mulher tão linda. Seus pais se orgulhariam
tanto de você.
Vejo emoção em seus olhos. Ela tinha uma relação muito
próxima com eles, sem a menor dúvida.
Tento parecer educada, enquanto ela me conta várias
histórias sobre eles, mas a verdade é que não consigo sentir nada
por essas pessoas. É difícil ter qualquer conexão com pessoas que
não conheci, com base apenas no que me contam. Meus pais estão
vivos e mal vejo a hora de voltar para casa.
Não me contenho e acabo contando a ela sobre a minha
família. Falo sobre minha mãe e seu gênio difícil, sobre meu pai e
sua paciência sem fim, sobre o Aristides e seu jeito zombeteiro e
sobre o Jonas, que é o melhor amigo que alguém poderia ter.
A baronesa é uma pessoa de conversa fácil e agradável.
Passamos tanto tempo batendo papo, que só me dou conta do
horário quando somos chamadas para o almoço. Depois de uma
refeição deliciosa, seguimos até a sala de reuniões.
A sala não é muito grande. A decoração fica por conta da
grande mesa redonda em madeira de lei e do retrato do rei Plínio III,
pendurado na parede. Tenho a impressão que o vazio na sala se dá
para evitar distrações nos momentos de decisões importantes para
o reino.
O Aldo já tinha me explicado por alto sobre a dinâmica da
votação. O voto de cada membro equivale a seu grau hierárquico na
linha da nobreza. O voto do duque equivale a cinco votos, o do
marquês a quatro, o meu a três, o do visconde a dois e o da
baronesa a um.
Tomo meu assento e um silêncio constrangedor paira sobre o
ambiente. Não consigo conter meu nervosismo e bato os pés sobre
o assoalho polido, o que desperta a impaciência do visconde. Não
que ele diga alguma coisa, mas suas bufadas desrespeitosas e seus
olhares hostis na minha direção não escondem que ele não foi com
a minha cara.
Estou a ponto de quebrar o silêncio, quando a porta se abre e
faz isso no meu lugar.
Um rapaz bem jovem, de postura distinta, que não deve ser
muito mais velho do que eu, entra apressado e se senta na cadeira
vaga ao meu lado, mas não parece notar a minha presença.
— Me perdoem pelo atraso. Tive um contratempo — explica-
se, direcionando suas desculpas aos demais e, só então, olha para
mim. Ele me encara por alguns segundos e continua: — É um
prazer conhecê-la, Helena. Eu sou Henrique, o último membro desta
Corte.
Não consigo conter a surpresa, nem a vergonha que esta
apresentação me causa, porque, de imediato, reconheço sua voz.
Ele é o homem da cozinha.
— Você é o duque? — pergunto, estarrecida.
É impossível conter a surpresa e a decepção. Na minha
opinião, um nobre deveria se portar de modo distinto e não ficar se
agarrando às escondidas. Além disso, sempre idealizei esta tal
Corte como um bando de velhos idiotas e usurpadores das riquezas
do nosso reino. E ele não parece ter mais do que vinte e poucos
anos e é tão lindo, que fico corada só de sustentar seu olhar.
— Sou. — Sorri.
Disse uma vez que o Jonas tinha o sorriso mais lindo do
mundo, mas estava enganada. Este definitivamente é o sorriso mais
bonito que já se teve notícia, sem dúvida alguma. E seus olhos
castanhos me observam com curiosidade e diversão, como se ele
soubesse de algo que mais ninguém nessa sala sabe.
Abaixo a cabeça e sinto o rosto pegar fogo. Não tenho
certeza se é pelas cenas que fui obrigada a ver ontem ou pela forma
como não desvia os olhos de mim.
— Está tudo bem? — ele sussurra, curvando-se na minha
direção.
Engasgo-me toda e não consigo responder.
— Vamos começar logo? — indaga a baronesa. Sei que ela
está fazendo isso para me tirar do foco do duque e me sinto grata.
— É claro.
Evito encará-lo, mas, de canto de olho, posso notar sua
postura impecável, sentado sobre uma cadeira comum. Até parece
que está sobre um trono, tamanha confiança que demonstra. O
terno cinza escuro, quase preto, combina perfeitamente com sua
posição. Ele passa a mão pelos cabelos castanhos e espessos,
antes de começar:
— Bom, todos aqui já conhecem os planos para o futuro do
reino, mas como a Helena é nova, vou repetir. — Forço-me a olhar
para ele, quando meu nome é citado. — Um de nós cinco assumirá
o trono através de uma votação exaustiva e que consumirá tempo e
esforços desnecessários. Se não chegarmos a uma conclusão até a
próxima reunião, o prazo será ampliado para dois meses e acho que
não é o que queremos, não é?
Não sei o que eles pensam, mas eu acho que surtaria se
tivesse que passar mais um dia sequer neste lugar. Faço qualquer
coisa para voltar para a minha casa o mais rápido possível.
— Pois bem. Todos sempre soubemos que o rei Plínio não
deixaria nenhum herdeiro e, por este motivo, fui treinado desde
criança para assumir o trono. Ouso dizer que não existe ninguém
mais apto para isso em todo o reino e é por isso que peço o voto
dos senhores amanhã, para que possamos dar prosseguimento ao
reinado próspero que tivemos até então.
Tenho dúvidas se minha vontade de rir é maior que a de
revirar os olhos com o monte de besteiras que acabei de ouvir.
Reinado próspero? Só se for para esse filhinho de papai, mimado,
que deve ter sido criado cercado de luxos, porque, para o meu
vilarejo, não sobrou nenhuma prosperidade. Mas foco na ânsia de
voltar para a minha família e a minha vida, para não começar uma
discussão desnecessária.
Tudo que preciso fazer é conversar com ele em um momento
oportuno e convencê-lo de que os casamentos forçados só fazem
mal à população. Se ele negar, posso usar meu voto como
barganha, afinal ele não precisa saber que detesto esse lugar.
— Você sabe o que eu penso sobre isso, Henrique. Já
conversamos várias vezes sobre este assunto — a baronesa
responde, com ar cansado. — Mas meu voto aqui é o de menor
peso e isto, além de não mudar nada, apenas atrasaria o processo.
Só gostaria de deixar bem claro que discordo desse disparate.
Ele concorda com a mulher, parecendo não se importar com
o fato de ela não estar do seu lado.
— Amanhã, após o almoço, nos reuniremos novamente para
formalizarmos nossos votos. Agradeço a paciência de vocês e
tenham todos um ótimo dia.
Depois da reunião, não vi sequer a sombra do Henrique, o
que acabou atrasando meu plano de convencê-lo a mudar os planos
sobre o casamento. Por isso, passo o restante da tarde
importunando o jardineiro do Palácio — o que não foi tão ruim assim
—, com minha curiosidade e questionamentos sobre as plantas
diferentes que crescem aqui e as técnicas de enxerto, até então
desconhecidas por mim. O jardineiro se coloca de pé ao ver alguém
que está vindo ao longe. Viro-me a tempo de ver a baronesa vindo
na minha direção.
— Será que podemos conversar, Helena? — ela pede,
olhando para o rapaz, que assente e nos deixa.
Sentamos no mesmo banco de ferro em que passamos a
manhã. Estou suja de terra e suada. Não queria conversar com ela
nesta situação, mas pela sua cara, não acho que ela permita que eu
tome banho antes.
— Você ainda é principiante neste jogo de poder, por isso, é
minha obrigação te alertar sobre o que está acontecendo. — Não
ouso dizer nada. Apenas a fito, esperando que ela conte o que é tão
importante assim. — O que o Henrique disse, é verdade. Ele foi
criado para assumir este trono desde que nasceu e, teoricamente,
não existe ninguém mais apto para isto do que ele, mas o que eu
disse também é. Eu não concordo com esta decisão.
— A senhora acha que o Henrique não será um bom rei? —
indago.
Ele me pareceu inteligente, cortez e capaz, apesar da pouca
idade. Não concordo com o que vi ontem à noite, mas não acho que
seja motivo para desqualificá-lo neste sentido. Não consigo
entender o motivo do descontentamento da senhora.
— Enquanto ele for um mero fantoche do visconde, não.
— Ele é um fantoche do visconde? — Ergo a voz, alarmada,
enquanto a baronesa me pede que eu fale baixo. — Mas o Aldo me
explicou que até eu mando mais que o visconde.
Ela me lança um sorriso complacente.
— Mas nenhum de nós manda mais do que o dinheiro, minha
querida. O Henrique está falido e não lhe sobrou nada além de um
título. Sua única chance de sair deste buraco é a coroa, mas, para
isso, o visconde vem lhe financiando em troca de favores.
— E tomar decisões sobre o futuro do reino seria um desses
favores — concluo, entendendo onde ela quer chegar.
— Sim. E também o noivado promissor com a filha dele.
— Ele é noivo da moça que eu vi no café da manhã? —
interrompo-a, perplexa.
Ela assente, sem entender minha surpresa. A questão é que,
apesar de ter falado muito pouco, a voz que ouvi ontem a noite não
era dela. Era mais melosa, mais arrastada… Caramba! A história só
fica pior!
— Desta maneira, eles conseguem unir duas forças
imbatíveis: dinheiro e poder — continua. — Para isso, eu preciso da
sua ajuda, Helena. Sozinha eu jamais conseguirei impedir que isso
venha a acontecer. Deixar o visconde assumir o trono indiretamente
trará consequências trágicas. Em especial, para vocês, que ainda
são jovens.
— E o que a senhora pretende?
— Que você se candidate.
Levanto-me do banco, tamanho choque. Como assim, eu me
candidatar? Já não me basta o Jonas com essa ideia idiota, agora
ela também?
— Isso não pode acontecer, senhora Olga. Eu não tenho a
menor condição de reinar.
Como eu posso assumir uma coroa, se nem ao menos sei
ler? Quem levaria a sério uma rainha burra? Isso para não
mencionar todo o restante. Eu não entendo nada deste jogo, nem
estou disposta a aprender.
— É a única chance, Helena — insiste.
Eu entendo o que ela quer dizer e também não quero ver o
meu reino se afundar ainda mais, mas aceitar a proposta da
baronesa, além de tudo, significa, na melhor das hipóteses, passar
mais dois meses aqui, longe da minha família e fingindo ser uma
pessoa que eu não sou. Sei que é egoísmo da minha parte, mas
não me sinto culpada em deixar de lado as pessoas que sempre
deixaram o meu vilarejo viver à míngua. É apenas uma troca.
— Perdoe-me, senhora, mas eu não vou aceitar. Tem que
haver outra pessoa mais habilitada do que eu.
Viro as costas e me afasto dela, sem nem pedir licença.
Fecho a porta do quarto com força e ainda me apoio sobre
ela por algum tempo, como se isso fosse capaz de impedir qualquer
visita indesejada.
— Aconteceu alguma coisa?
Levo um susto quando vejo a Carolina sentada no banquinho
da penteadeira.
— O que você está fazendo aqui?
Acho que minha pergunta soa um pouco grosseira, porque
ela se engasga, tentando se explicar.
— Eu não estou zangada com você — explico, caminhando
na sua direção. — Só não esperava te encontrar aqui.
— O senhor Aldo me mandou aqui, porque será feita uma
pequena reunião com as pessoas mais importantes do reino.
Pretendem lhe apresentar à sociedade e eu preciso deixar a
senhorita linda.
Suspiro, só de imaginar a chatice que será essa tal reunião.
Não tenho estômago para passar uma noite inteira fingindo estar
satisfeita e simulando sorrisos.
— Para começo de conversa, eu já pedi para você não me
chamar de senhorita, Carolina. — Ela dá um tapa na própria na
cabeça, punindo-se pelo esquecimento. — Em segundo lugar, eu
não quero ir a nenhuma reunião.
— Eu receio que a senhorita… — Ela se interrompe ao notar
o equívoco e se corrige: — que você não tenha escolha. Foi uma
ordem.
O que o Aldo chama de reunião simples é o que o meu
vilarejo chama de festa de arromba.
Cerca de cem pessoas lotam o salão de festas, que conta
com uma banda e uma mesa cheia de comida estranha, mas muito
gostosa. Sou obrigada a cumprimentar um monte de gente que,
mesmo que minha vida dependesse disso, jamais conseguiria
recordar seus nomes.
A baronesa já se retirou há horas e, como ela é a única
amiga que tenho aqui, estou sentada em uma cadeira, no canto,
tentando passar despercebida, o que é difícil, quando a festa só
está acontecendo por minha causa.
— Se eu continuar sorrindo por mais um segundo, vou ter
cãibra na bochecha — o Henrique reclama, sentando-se ao meu
lado.
Sua queixa não foi direcionada a mim, uma vez que ele nem
nota a minha presença. Ele deve estar tão satisfeito com este
evento quanto eu. Aposto que preferia estar na cozinha a esta hora,
acompanhado de uma certa moça de voz melosa.
— Acostume-se. A partir de amanhã você terá várias outras
festas como esta para sorrir — digo e ele finalmente me nota.
Ele está ainda mais bonito do que mais cedo. A pose
despretensiosa e os cabelos bagunçados lhe conferem uma
aparência mais normal, como se não fosse o sucessor do rei, mas
apenas um rapaz comum. E tem o terno azul marinho muito bem
cortado também. Passo alguns minutos observando sua roupa, na
tentativa de entender como ela foi feita. Se conseguir levar esta
técnica para as minhas clientes, posso cobrar mais pelas roupas.
Eu também não estou nada mal. O vestido verde claro,
rendado da cintura para cima, possui uma espécie de cinto de
pedraria prateada e cai com fluidez até o chão. Quando a Carolina o
trouxe, admito que o achei exagerado demais, porque acreditei que
se tratasse de uma pequena reunião, mas agora, vejo que estou
bem simples, perto das outras pessoas.
— Ossos do ofício. — Ele dá de ombros, fingindo
naturalidade, mas consigo sentir a tensão em sua voz. — Estou
acostumado.
Pelo menos, já consigo olhar para ele sem parecer que meu
rosto está pegando fogo. Uma pequena evolução, mas bastante útil.
— Se me der licença, vou te deixar aqui, recuperando as
bochechas, enquanto vou atrás do único motivo pelo qual não voltei
ainda para o meu quarto. A comida.
Ele ri da minha piada e caminho até a mesa. Ela mantém a
minha atenção por alguns poucos minutos e, quando a música
começa a ferir os meus ouvidos e a presença desse monte de gente
me sufoca, resolvo que é hora de ir embora daqui.
Logo que deixo o salão, vejo o Henrique sozinho no corredor,
o ombro apoiado na parede, parecendo pensativo e distante. Sei
que ele está tão exausto quanto eu, mas não acredito que terei
outra oportunidade de conversarmos a sós até amanhã. Junto toda
coragem e poucos argumentos e me aproximo dele.
— Nós podemos conversar?
Ele parece surpreso em me ver e endireita a postura, antes
de concordar. Cruzo os braços, desconfortável.
— Amanhã você vai ser eleito pela Corte e, em poucos dias,
será coroado. Como rei, terá poder para fazer mudanças e eu queria
sugerir uma delas. — Ele permanece impassível e não sei se isso é
bom ou ruim. Por isso, decido continuar: — Os casamentos forçados
são…
— Desculpa, Helena, mas não existe a menor possibilidade
de revogar essa lei — interrompe-me, tentando parecer educado. —
Há muito mais interesses por trás dela do que você pode imaginar e
isso está fora de cogitação.
— Qual interesse pode ser maior do que o bem estar dos
súditos? — insisto. — Ninguém gosta dessa maldita lei. Eu não
queria ter que apelar para isso, mas amanhã nós temos uma eleição
e, se eu não votar em você, tenho certeza que a baronesa fará o
mesmo.
Apesar do meu ataque, ele não se abala. Apenas suspira e
balança a cabeça.
— Eu não quero parecer grosseiro, mas o voto de vocês duas
não servirá de muita coisa, além de atrasar o processo. Eu tenho o
apoio do marquês e do visconde, Helena. Não esqueça disso.
Já estou com o argumento na ponta da língua, quando
passos no corredor me distraem. O Aldo se aproxima, apressado.
— Helena, eu estava atrás de você!
O desgraçado do Henrique aproveita a oportunidade e volta
para o salão, deixando-me a sós com o conselheiro.
— Em meia hora teremos o brinde e você fará um pequeno
pronunciamento.
— Pronunciamento? — pergunto, exasperada. — Mas eu não
sei falar em público, eu sou só uma…
— Não se preocupe. Eu já preparei algo. — Ele me entrega
um pequeno pedaço de papel, escrito à mão. — É só repetir essas
palavras.
Antes que eu tenha tempo de surtar, ele se afasta e me deixa
sozinha no corredor. Como se eu não tivesse problemas o
suficiente, aparece mais este.
Como vou repetir essas palavras, se não faço a menor ideia
do que está escrito nesse maldito papel?
Eu não sei ler, droga!
Fujo dali, antes que alguém note que estou em pânico, e
entro na primeira porta que vejo. Preciso ficar sozinha e pensar no
que fazer, ou, quem sabe, ficar escondida até pensarem que sumi e
esquecerem desse brinde. Por sorte, a tal sala se trata de um
escritório, com uma mesa em madeira totalmente fechada na frente.
Não consigo ver o restante da sala, porque nem acendo a luz antes
de me esconder atrás do móvel.
Eu não posso ser condessa. Sou uma fraude, não entendo
nada deste mundo, destas pessoas. Nem posso pedir ajuda a
nenhum deles, porque teria que confessar que nunca aprendi a ler.
É por isso que tenho que voltar para casa o mais rápido possível. Lá
sou apenas mais uma pessoa normal. Aqui não. Aqui sou uma
caipira burra, prestes a virar motivo de piada para toda essa
nobreza metida!
Este fato não me incomodaria se não tivesse tido essa
discussão com o Henrique. Eu votaria nele e depois de amanhã já
estaria em casa. Mas agora que já o ameacei com o meu voto, não
sei o que fazer.
Tento respirar fundo e pensar em uma saída. Se eu acender
a luz e me concentrar bem, talvez consiga ler. E se eu rezar para
São Francisco de Assis, o padroeiro da nossa província, pedindo
ajuda? Será que ele operaria um milagre? Sei que ele é o santo dos
animais, mas…
A porta é aberta com um rangido e me encolho ainda mais
debaixo da mesa. Ninguém pode saber que eu estou aqui.
— O que você quer? — pergunta o Henrique.
Droga! Mais essa agora. Será que ele veio se agarrar com
alguma moça?
— Eu quero adiantar o casamento — declara uma voz
feminina. — Amanhã você vai se tornar rei e é errado continuar
solteiro depois disso.
Ele solta uma gargalhada sarcástica e continua:
— Então é isso? Você está fazendo isso para me ajudar?
Como você é bondosa, Morgana. — Bufa, e ouço o som do seu
sapato ressoando contra o piso, demonstrando que ele está
andando de um lado para o outro. — Nós temos um acordo e ele
será mantido.
Sua voz parece tensa. A baronesa me contou que eles são
noivos, mas ele não está feliz em estar sozinho com ela.
Agora é a vez dela rir.
— Eu vou ter que lembrar que você depende do meu pai para
chegar lá, Henrique?
— Os termos são muito claros — explica, tentando manter a
calma. — O casamento, o cargo de conselheiro para o seu pai e a
desvinculação das províncias em troca dos votos. Eu não vou ceder
nenhum centímetro, estamos entendidos?
A porta se abre e se fecha com uma batida forte e levo
alguns segundos para soltar o ar, que nem reparei que estava
prendendo durante um bom tempo.
As palavras do Henrique ficam ecoando na minha mente de
forma assustadora e ininterrupta.
Ele vai desvincular as províncias.
Ele vai terminar de destruir meu vilarejo.
Perco a noção do tempo, enquanto as palavras do Henrique
seguem reverberando dentro da minha cabeça, como uma sentença
cruel.
A desvinculação das províncias em troca dos votos.
Não consigo acreditar que ele vá nos condenar a um futuro
ainda mais precário para poder usar aquela coroa maldita.
Preciso fazer alguma coisa e só conheço uma pessoa que
possa me ajudar a pensar em uma saída. Não hesito, quando pego
o telefone sobre a mesa. A única claridade é a luz da lua, que
invade a sala através da cortina fluida. As mãos trêmulas não
ajudam na tarefa de discar o número, mas, em pouco tempo, o som
das chamadas faz meu coração acelerar ainda mais.
— Alô. — A voz sonolenta da Julieta me saúda, depois de
uns dez toques.
— Boa noite, Julieta. É a Helena. Eu preciso falar com o
Jonas. É urgente — explico, antes que ela me dê uma bronca por
acordá-la em plena madrugada.
Ouço um suspiro e o aparelho sendo apoiado sobre a
madeira. Dentro de poucos minutos o tom preocupado do Jonas me
conforta.
— Aconteceu alguma coisa? — indaga, sem qualquer
cumprimento.
Conto três respirações, antes de respondê-lo:
— Sim. Eu estou te ligando às escondidas, então vou ser
rápida.
Explico-lhe tudo o que aconteceu de relevante. Sobre a
reunião da Corte, a conversa com a baronesa e a sua ideia ridícula
de que eu me candidate, a pequena festa para me apresentar,
minha tentativa frustrada de convencer o Henrique a anular a lei dos
casamentos e, o mais importante, o que ouvi por engano neste
escritório há poucos minutos.
Ele sabe, melhor do que ninguém, todas as consequências
que a desvinculação das províncias pode causar.
O sopro do seu suspiro é a única resposta que me dá. Sei
que está pensando e tentando absorver tudo o que disse, mas estou
com pressa. Se alguém me encontrar aqui, estou encrencada.
— Anda, Jonas! Fala alguma coisa.
— Estou tentando pensar em uma forma de dizer o óbvio
sem ouvir seus gritos e xingamentos, mas você já sabe o que fazer,
Lena — diz, com a voz calma. Não entendo como ele consegue não
se apavorar depois de tudo que lhe contei. — Você tem duas
opções: deixar que o duque assuma, voltar para casa e sofrer os
efeitos da desvinculação da nossa província ou fazer alguma coisa
para impedir que isso aconteça.
Irritada, bufo ao ouvir sua resposta óbvia.
— Isso eu já sei, gênio! — devolvo, sarcástica. — Mas eu
preciso saber o que fazer para impedir que isso aconteça.
— Você já sabe, Lena. Só não quer admitir para si mesma. —
Quase posso enxergá-lo do outro lado, dando de ombros e
entortando o lábio, como sempre faz quando tenta me convencer de
algo. — Saiba que, qualquer que seja sua decisão, eu vou te apoiar,
tá?
— Tá — disparo, com raiva. — Obrigada por não me ajudar
em droga nenhuma.
Bato o telefone, morrendo de ódio do Jonas, porque, apesar
de não admitir isso, ele tem razão.
Eu já sei o que fazer.
Ainda fico ali por alguns minutos, encarando o telefone,
tentando fazer a respiração ofegante voltar ao normal. Só então,
deixo a sala e sigo em direção ao salão a passos rápidos e firmes.
Assim que adentro o cômodo, todos se viram na minha direção.
Busco o Aldo no meio da multidão e me aproximo dele,
determinada.
— Eu quero fazer meu pronunciamento — aviso e me
encaminho até onde a banda está.
Eles param de tocar quando subo no palco e tiro o microfone
do pedestal. Se não estivesse cega de raiva, estaria morrendo de
medo e vergonha, porque não faço a menor ideia do que vou dizer a
todas essas pessoas.
— Boa noite, senhores. Prometo que não irei tomar muito
tempo. — Todos os rostos se viram para mim e noto o Henrique, do
fundo do salão, olhando-me com curiosidade. Finjo o meu melhor
sorriso e não desvio meus olhos dos dele. — Quando eu descobri
que faço parte disto, há dois dias, só tinha um desejo em mente:
que isto tudo acabasse o mais rápido possível. — As palavras fluem
como o curso de um rio, sem hesitação, sempre em frente. — Acho
que todos aqui sabem que, ao contrário de vocês, não cresci com
um título, nem riquezas e posses, mas nasci com algo muito mais
grandioso do que isso, que é a minha intolerância por injustiça. E só
tenho a agradecer ao destino, por ter me preparado essa surpresa
maravilhosa, e me permitir fazer alguma diferença no futuro do lugar
onde eu vivo, porque é isso que vou fazer, senhores, sem a menor
sombra de dúvidas.
Enquanto eles me aplaudem, pensando que minhas palavras
bonitas não têm o menor fundamento, devolvo o microfone para o
seu lugar e desço do palco, encaminhando-me para a saída. As
pernas fazem o trajeto no modo automático e a cabeça está
trabalhando em alta velocidade, tentando formular um jeito de
confrontar o plano do Henrique.
Levo um susto quando me esbarro em um corpo durante o
trajeto.
Para o meu azar é o meu mais novo oponente.
Recorro a todo o meu autocontrole e coloco no rosto aquela
expressão fingida de minutos atrás.
— Suas palavras foram inspiradoras — elogia-me, com um
sorriso convencido e o ar esnobe de sempre. O que antes era
motivo de graça, agora passa a ser algo irritante. — Tem certeza
que é a primeira vez que você tem contato com este mundo?
A pose pomposa só contribui para que a minha raiva cresça
de maneira descontrolada. Fecho os punhos com força, até sentir as
unhas machucarem a palma da mão.
— Tenho — respondo, por fim.
Despeço-me dele com um movimento de cabeça e caminho
em direção ao corredor.
Pode ter sido meu primeiro contato com este mundo, mas,
graças a uma conversa que eu nem deveria ter ouvido, estará muito
longe de ser a última.
Passo a noite em claro, tentando encontrar uma saída para
esse novo problema, que não inclua minha permanência eterna
neste antro de gente metida e perigosa, mas, apesar de ver o sol
nascer e a minha noite se esvair, não tive nenhuma solução.
Sei o que tenho que fazer. O problema é que não quero, por
isso, esta decisão está consumindo minha pouca sanidade.
Batidas na minha porta me despertam do meu problema e ao
atendê-la, dou de cara com a Carolina e uma ideia me surge de
imediato.
— Bom dia — ela me cumprimenta com um sorriso.
— Posso te pedir um favor?
— É claro.
— Você trabalha aqui há bastante tempo, né? — Ela assente
e me encoraja a continuar. — Você pode me dizer o que acha do
Henrique?
O primeiro passo para atacar um oponente é conhecê-lo,
certo?
A pergunta parece pegá-la de surpresa, porque ela pensa por
alguns instantes. Então, abre a porta e se certifica de que ninguém
esteja passando pelo corredor. Depois, volta e confessa, em um
sussurro:
— Ele é lindo, charmoso e irresistível.
Penso não ter entendido e a encaro, esperando que ela
continue ou que diga que isso é uma piada. Todo mundo sabe que
ele é lindo,! Basta olhar para aquele duque metido para saber o
óbvio!
— Todas as garotas daqui quase se estapeiam pela
oportunidade de poder vê-lo andando sem camisa pelo Palácio. —
Suspira, com cara de boba.
— Ele anda sem camisa pelo Palácio? Que desrespeitoso! —
exclamo, tomada pela indignação.
Pelo visto, escrúpulo e decência são duas palavras que não
configuram o vocabulário dele.
— Desrespeitoso ou não, deve ser uma visão inesquecível.
— Ela abana o próprio rosto com a mão. — Eu nunca tive essa
sorte, ao contrário da Bianca, uma das cozinheiras. Eles estão tendo
um caso. — Essa última parte é dita em um sussurro.
Imediatamente as cenas daquela noite se materializam e
sinto meu rosto esquentar só com as lembranças daquele beijo.
— Mas ele não tem uma noiva? — insisto.
— É um noivado por conveniência, Helena. Eles não se
amam.
Não acho que a Carolina seja a pessoa mais apta para me
dar as informações que preciso. Talvez a baronesa possa me dizer o
que quero ouvir, então decido procurá-la depois do café da manhã.
Depois de cumprir a tarefa de me deixar apresentável, a
Carolina vai embora e eu sigo até a sala de jantar. Não sei se estou
adiantada, atrasada ou se as outras pessoas estão ocupadas
demais, porque não encontro ninguém aqui. Apesar da infinidade de
coisas gostosas, só consigo dar um gole na xícara de café e comer
um biscoitinho. Sinto como se a garganta estivesse fechada, por
causa dessa sensação ruim de que algo grave está para acontecer.
E está.
Porque tenho que tomar uma decisão logo.
E por esta razão a manhã voa, como se estivesse me
apressando para decidir logo o que fazer. Não encontro a baronesa
em lugar algum, nem nenhum outro membro da Corte, o que é
estranho, levando em conta que logo teremos uma reunião
importante.
Estou tão ansiosa, que não consigo almoçar e chego à sala
antes de todos. As mãos estão suadas e fico batendo os pés contra
o piso de mármore polido, como se isso fosse capaz de dissipar a
tensão.
Pelo menos, a Carolina fez um bom trabalho em me fazer
parecer confiante e desafiadora. Uso uma saia lápis marsala — ela
que insistiu que esse é o nome correto da cor e não vinho
avermelhado, como a chamei anteriormente — e uma camisa
branca bufante de cetim. Antes de vesti-la, flagrei-me analisando
seu acabamento. Sempre é tempo de aprender técnicas novas. Os
cabelos estão presos em um coque sóbrio e a maquiagem ficou por
conta do batom quase da mesma cor da saia.
Pareço uma mulher decidida por fora, já que, por dentro, não
poderia estar mais insegura.
O marquês e o visconde chegam juntos e me cumprimentam,
mas nenhum deles tenta manter uma conversa comigo e agradeço
mentalmente por isso. Logo, chega a baronesa, que também parece
preocupada demais para papo furado. O Aldo também aparece em
seguida. Quando o relógio está prestes a bater o horário marcado, o
Henrique chega e preciso de um esforço sobrehumano para não
revirar os olhos com toda sua pompa.
Além disso, como futuro rei do nosso reino, ele deveria, ao
menos, cumprir seus horários.
— Boa tarde, senhores. Hoje, com esta reunião, estamos
fazendo história — começa o conselheiro, orgulhoso. —
Escolheremos o sucessor do trono, que mudará o futuro e a dinastia
de nosso reino.
Se depender desse duque metido, mudará o futuro do meu
vilarejo para muito pior. Flagro-me fazendo uma careta desdenhosa
para ele. Por sorte, todos estão ocupados demais, prestando
atenção no que o Aldo diz.
— Então, sem mais delongas, vamos ao que interessa.
Tento disfarçar minha respiração ofegante, mas não consigo.
— Você está bem, querida? — pergunta a baronesa,
baixinho.
Assinto, mesmo que esteja bem óbvio que a resposta é não.
Como eu poderia estar bem, se estou prestes a tomar uma
atitude que vai mudar a minha vida e das pessoas que amo para
sempre?
Fecho os olhos e lembro das palavras do Jonas.
Você tem duas opções: deixar que o duque assuma, voltar
para casa e sofrer os efeitos da desvinculação da nossa província
ou fazer alguma coisa para impedir que isso aconteça.
E é isso o que vou fazer.
Vou impedir que esse duque de meia tigela condene o meu
vilarejo à míngua e ao descaso, ainda mais do que já vivemos.
— Desculpa, Aldo — digo, juntando toda a coragem que
ainda resta em mim e me levanto. — Eu tenho algo importante para
falar.
Todos os olhares se voltam na minha direção e o ar da sala
parece sumir de repente. Meu coração pesa uma tonelada.
Não quero fazer isso, mas eu preciso.
Qualquer que seja sua decisão, eu vou te apoiar, tá?
— Eu não acho que o duque seja a melhor opção entre nós
— continuo, tentando parecer firme.
Por um segundo, nada acontece. O silêncio impera, mas
antes que eu prossiga, o Henrique desperta de seu torpor e indaga,
injuriado:
— Ah, não? E quem seria essa melhor opção?
Puxo o ar com força e solto de uma vez:
— Eu sou. E estou oficializando a minha candidatura.
Um burburinho toma conta da sala, depois do meu anúncio. A
maior parte dele é pura raiva e perplexidade.
— Isso é uma brincadeira? — o Henrique pergunta,
estarrecido.
— É claro que não — devolvo, muito séria. — Eu tenho esse
direito.
— Por que você está fazendo isso?
— Porque eu acho que você não está apto para assumir o
trono e governar o reino. — Agarro-me à raiva que sinto para me
encorajar a continuar firme. — Acho que você não será um bom rei,
mais do que isso, acho que serei uma rainha muito melhor.
Aproveito o silêncio que se instala para me sentar. Não tenho
certeza se minhas pernas aguentariam me manter de pé por mais
tempo, tamanho nervosismo.
— Isso é um absurdo! Você chegou aqui ontem — vocifera o
visconde, tomado pelo ódio.
— Qualquer um de nós pode se candidatar — intervém a
baronesa, em minha defesa. — É um direito previsto no protocolo.
O argumento da senhora só o deixa ainda mais furioso. Seus
olhos negros ganham um fulgor raivoso quando ele me encara.
— Que se dane o protocolo!
— Chega! — exclama o Aldo, em voz alta. — O protocolo diz
que qualquer membro da Corte pode se candidatar. O prazo até a
votação aumentará para sessenta dias. Tem certeza de que é isso
que quer, Helena?
Não é o que eu quero, mas é o que precisa ser feito.
— Absoluta.
Ele concorda e anota tudo em um livro de capa preta e nos
pede para assinarmos nossos nomes. Por sorte, o Jonas me
ensinou a, pelo menos, escrever meu nome, o que evita um
constrangimento enorme neste momento. Depois, dá por encerrada
a reunião. O Henrique é o primeiro a deixar a sala, como se minha
presença estivesse o intoxicando. O visconde segue logo atrás,
seguido pelo marquês, sem seu sorriso de dentes separados tão
costumeiro. Eu permaneço, porque não conseguiria manter as
pernas firmes, nem se quisesse. A baronesa fica e o Aldo só se vai,
quando se assegura que não vamos nos mover.
— Você fez a coisa certa, minha querida. — Tenta me
consolar, segurando as minhas mãos.
— Eu não tenho certeza disso.
— Mas logo você terá. Eu confio em você, Helena, e tenho
certeza que será um páreo duro para o Henrique. Pode contar com
a minha ajuda para isso.
Ao constatar que não estou muito disposta a manter uma
conversa, ela também se vai. Fico ali sentada, com a cabeça
apoiada sobre o tampo da mesa, refletindo sobre o tamanho do erro
que acabei de cometer.
Droga! Deixei-me levar pela fúria e tomei uma atitude
precipitada. É claro que vão descobrir que sou uma fraude logo. O
que eu estava pensando? Que poderia assumir o trono de um reino
como Luseia? Eu nem ao menos sei ler!
Ergo a cabeça, quando minha solidão é interrompida pela
última pessoa que gostaria de confrontar nesse momento.
— Qual é a sua intenção?
Um Henrique de cara fechada e olhar mortal senta-se de
frente para mim. Aquela pompa de alguns minutos atrás não existe
mais e, pela primeira vez, vejo quem ele é de verdade, por trás de
todos aqueles sorrisos apaixonantes e palavras bonitas.
— O que você quer com essa palhaçada? — insiste. — Isso
tudo é por causa daquela conversa que tivemos ontem à noite?
Porque se for…
— Não é por causa da conversa, Henrique — interrompo-o,
porque quero acabar logo com isso.
Ele não pode saber que escutei aquela conversa entre ele e a
Morgana. Esse é meu trunfo e preciso guardá-lo para usar na hora
certa.
— Eu só não quero que você seja rei, simples assim —
respondo, devolvendo o olhar cortante. — Eu não estou nem aí para
o trono, nem quero ser rainha, mas para te afastar dele eu vou fazer
esse sacrifício.
— Como se você tivesse alguma chance… — desdenha.
— Sua atitude exagerada me diz exatamente o contrário. —
Sorrio, sarcástica. A raiva tem essa capacidade de me direcionar,
quando juro estar perdida. — Você pode pensar que está lidando
com uma idiota do interior, que não sabe o que está fazendo, mas
eu sou bem esperta, Henrique.
Suas narinas inflam, tentando conter o ódio. Ele dá outros
sinais de que está à beira de perder o controle, mas ignoro-os e foco
em camuflar os meus.
— Eu sei que você está pensando que é muito mais
capacitado do que eu nesse joguinho, mas vou te dizer uma coisa.
Por nunca ter jogado, eu tenho uma visão diferente e conheço
truques que você vai adorar descobrir.
Ele assente e se levanta, mas continua na minha frente,
encarando-me sem desviar o olhar.
— Sabe, Helena, eu vim até aqui para te fazer reconsiderar
essa ideia descabida, mas, pelo visto, você sabe o que está fazendo
e eu até prefiro assim. Saiba, desde já, que vou te trucidar sem a
menor piedade.
— Digo o mesmo, Henrique. Não espere qualquer compaixão
de mim — provoco.
Furioso, ele deixa a sala e, ao me encontrar novamente
sozinha, aquela maldita pergunta volta a pairar sobre a minha
cabeça.
O que eu acabei de fazer?
Atende logo, Jonas.
Tamborilo os dedos sobre a mesa com impaciência, até ouvir
sua voz do outro lado da linha.
— Jonas, pelo amor de Deus, me ajuda! Eu fiz uma besteira
— cuspo as palavras, agoniada. — Eu falei demais.
— Nenhuma novidade até aqui — declara, entre risos. — O
que você fez?
— Eu blefei e agora não sei o que fazer.
Confiro se a porta está fechada e conto em voz baixa os
últimos acontecimentos. Da minha decisão à conversa nada
amigável com o Henrique.
— Você fez isso mesmo, Lena? Caramba, estou muito
orgulhoso de você.
Seu incentivo faz aquele aperto no peito dar uma trégua e até
sorrio. Mesmo que ele não acredite nisso, seu apoio é muito
importante para mim.
— Mas vamos ao que interessa. Você só tem a baronesa do
seu lado, certo? Isso significa que, juntas, vocês têm quatro pontos,
três seus e um dela, enquanto o Henrique tem onze, cinco dele,
quatro do marquês e mais dois do visconde… Caramba, a situação
não está muito favorável pra você — pondera, falando muito
apressado. — Já sabemos que o visconde jamais ficaria do seu lado
e, mesmo que ficasse, os pontos dele não te ajudariam, então você
tem que apostar suas fichas no marquês.
Respiro fundo e concordo com um movimento de cabeça,
mesmo sabendo que ele não pode me ver. Sua linha de raciocínio
faz sentido.
— E como eu vou convencer o marquês a ficar do meu lado?
— Você tem que descobrir o que o Henrique prometeu para
ele e oferecer algo maior.
— Você está sugerindo que eu me corrompa em troca de um
voto? — devolvo, indignada.
Eu me propus a entrar nessa briga para salvar o meu povo,
mas não estou disposta a fazer este tipo de barganha em troca
disso.
— Então, vamos lá. — Suspira, desanimado. — Sabe esse
mundo, onde as pessoas não toleram injustiça? Onde um
argumento bem fundamentado é capaz de convencer uma pessoa?
Esse mundinho cor-de-rosa não existe, Helena. Você está brigando
pelo posto mais importante de Luseia e precisa jogar o jogo deles,
se quer ter alguma chance nessa briga. O Henrique já deixou claro
que vai para cima de você com todas as armas. Você tem que fazer
o mesmo.
Droga, droga, droga!
Eu sabia que não devia ter dado ouvidos às ideias do
Jonas… Agora ele está lá, dando continuidade à sua vida e quem
está encrencada sou eu.
— Vou pedir para o meu pai conversar com seus amigos da
capital, para ver se temos alguma ideia melhor, tá? Sugiro que
converse com a baronesa, já que ela é bem mais experiente do que
você. E se precisar de qualquer coisa, é só ligar.
Por que não consigo ficar mais do que alguns segundos com
raiva dele?
— Tá. Obrigada, Jonas. Apesar de estar apavorada, lá no
fundo, sinto que fiz a coisa certa. Eu vou ser a melhor rainha que
esse reino já teve, você vai ver.
— Eu não tenho nenhuma dúvida, Lena.
Depois do furacão de emoções e pensamentos que tive que
enfrentar, tranco-me no quarto e não recebo ninguém, nem a
Carolina. Preciso pensar e colocar as ideias em ordem, além de
planejar uma maneira de explicar para a minha família que os
planos mudaram. Sei que o meu pai e o Aristides vão entender, mas
minha mãe pode não reagir bem à notícia de que meu casamento
será adiado.
E pensar que até algumas horas, o casamento era o maior
dos meus problemas… Agora tenho uma guerra contra um
oponente de peso, para ocupar o trono do meu reino.
Que reviravolta!
Listo mentalmente tudo o que preciso fazer e classifico por
ordem de prioridade.
Primeiro, tenho que explicar o que está acontecendo à minha
família. Depois, devo procurar a baronesa e pedir sua ajuda para
traçar um plano para ter alguma chance nessa batalha. Também
preciso de aliados. O maior número de aliados poderosos, que
acreditem que eu possa assumir o trono. Por último, mas não
menos importante, tenho que dar um jeito de encontrar alguém que
me ensine a ler e escrever. Ninguém colocaria fé em uma rainha
burra.
Euforia e desânimo disputam um duelo ferrenho dentro de
mim. Em alguns momentos, a primeira ganha vantagem e chego a
pensar que, com a ajuda das pessoas certas e muito esforço, tudo
pode dar certo e me tornar rainha não parece algo tão distante. Em
outros momentos, o segundo se destaca e tenta me avisar que é
melhor desistir logo, antes que eu seja humilhada na frente de todas
essas pessoas.
Batidas incessantes na minha porta interrompem minha linha
de raciocínio e me levanto da cama, furiosa.
— Carolina, eu pedi para não ser… — começo, indignada,
mas deixo a frase pela metade quando vejo que não é ela, parada
em frente à minha porta.
É o Henrique.
Mas que droga! Eu não quero conversar com ele… E isso
não se deve apenas ao motivo óbvio, mas também porque não
estou vestindo trajes adequados para um diálogo com meu
adversário. Meu vestido florido e desbotado não é o que se espera
de uma condessa.
Não que ele esteja muito diferente de mim. Agora, em vez do
terno bem cortado de sempre, ele usa bermuda e camiseta. Seu
cabelo, ainda molhado, demonstra que acabou de tomar banho.
— Nós podemos conversar?
Respiro fundo e seguro a porta com força, tentando dissipar,
desta forma, um pouco do incômodo que sua presença me causa.
— Não sei se é uma boa ideia.
— É bem rápido, prometo.
Seguro na base do nariz com o polegar e o indicador e
suspiro, externando que esse não é um bom momento para isso,
mas acabo concordando e abro passagem. Deixo a porta aberta,
porque não quero que ninguém pense que estou recebendo homens
no meu quarto.
Especialmente, um homem de caráter duvidoso como ele.
— O que você quer? — disparo, sentando na cama e
apontando para o banquinho da penteadeira, para que ele faça o
mesmo.
— Sabe, Helena, acho que nós dois começamos errado.
Aquela discussão foi desnecessária e eu vim até aqui para me
desculpar pela forma grosseira como te tratei.
Balanço a cabeça para deixar claro que aceito suas
desculpas, ainda que não acredite nas suas intenções.
— Além disso, você é novata nesse meio e, como veterano,
cabe a mim te alertar sobre os… — Ele pensa por um instante,
como se buscasse uma palavra adequada. — perigos desse lugar.
— Perigos… — repito, tentando entender onde ele quer
chegar.
— É. Você entende que nós estamos competindo pela coroa
do nosso reino e, com ela, há muitos interesses envolvidos. Não se
trata apenas de governar Luseia, mas de fazer o possível para
atender às necessidades do povo e isso pode despertar alguns
sentimentos ruins em algumas pessoas.
— Olha só, Henrique, eu não tenho o dia todo, então dá pra
resumir e dizer logo o que você quer? — pergunto, já sem paciência
pra sua ladainha sem fim.
Ele se remexe na cadeira, ansioso.
— Eu vim oferecer um acordo que vai beneficiar nós dois. Eu
entendo que você foi criada em um vilarejo muito pobre e que a vida
no Palácio pode parecer algo bem luxuoso. Sendo bem honesto,
não te culpo por estar deslumbrada com tudo o que viu aqui, mas
esse seu deslumbramento está custando muito caro pra mim,
Helena. Assumir essa coroa é o meu sonho, é tudo pra mim, você
consegue compreender?
Seu discurso me deixa tão abobalhada, que nem sei o que
responder. Não sei se ele quer me ofender ou me deixar com pena
com todo esse falatório.
— É por isso que eu quero negociar com você. Deve ter algo
que você queira em troca de voltar atrás na sua decisão. Talvez, eu
possa impedir que você tenha que se casar…
— Ah, então era isso — interrompo-o, cruzando os braços,
tomada pela indignação. — Você veio até aqui para me comprar?
— Não coloque nesses termos. É só uma troca.
— Um futuro brilhante para você em troca de umas migalhas
para mim? Essa troca me parece muito justa — devolvo, sarcástica.
Caminho até a porta, indicando-lhe a saída, embora a ela já
esteja aberta.
— Você é muito pior do que eu imaginava, Henrique. Mas
que caráter posso esperar de alguém que fica se agarrando às
escondidas com uma moça, sendo noivo de outra?
As últimas palavras abandonam meus lábios de forma
indevida, antes que eu pense a respeito, mas não me importo muito
com isso, já que não estou dizendo nenhuma mentira. Ele parece
ficar surpreso.
— Então era você aquela noite. — Sorri, cheio de ironia e
isso me deixa ainda mais zangada. — Deve ter gostado do que viu,
já que ficou tanto tempo admirando.
Sua resposta me deixa com tanta raiva, que, por um
segundo, não sei o que responder. Não esperava que ele fosse tão
baixo.
— Me respeita! Eu tenho um noivo. — Digo a primeira coisa
que me vem à mente.
— Engraçado… Ontem você não parecia muito satisfeita com
o seu noivo.
Marcho até estarmos a poucos centímetros um do outro e
enfio o indicador no seu peito.
— Não ouse falar do Jonas, seu nobrezinho metido a besta.
Saiba que ele é mil vezes mais digno e respeitoso que você.
— Então já que o seu noivo é tão bom assim, case-se com
ele e pare de atrapalhar meus planos. Você deveria ser grata por,
pelo menos, suportá-lo. Nem todos têm essa sorte.
Sem me dar oportunidade para responder, ele segue pelo
corredor com passos firmes e bato a porta com força, para
demonstrar toda a repulsa que sinto por ele.
Apoio-me com as costas na porta e me esforço para
normalizar a respiração, ponderando o saldo dessa conversa.
Se antes eu tinha um oponente, agora, tenho um inimigo.
O trajeto entre a casa da minha família e a do Jonas leva em
torno de dez minutos. Isso me daria aproximadamente vinte minutos
para pensar em como explicar para a minha mãe que os planos do
casamento estão adiados pelos próximos sessenta dias — se tudo
der certo, para sempre — e que, em tese, posso ser a nova rainha
do nosso reino.
O problema é que ela resolveu que esta é uma boa hora para
tomar um cafezinho com a Julieta e antecipar essa conversa e,
como não pensei muito bem no que dizer antes, agora ela está
esperando, do outro lado da linha, pela minha explicação.
O Aldo foi muito gentil em atrasar a divulgação da notícia
através de um comunicado real, para que eu pudesse explicar à
minha família o que realmente aconteceu. Se eles soubessem das
novidades pela TV e não por mim, viriam andando até o Palácio, só
para me dar uns beliscões!
— Mãe, a senhora está sentada? — pergunto, preparando-a
para o choque.
— Eu preciso estar?
— Eu acho melhor…
Ouço-a berrar, pedindo ao Jonas que traga uma cadeira para
ela e o xingando por ser tão demorado. No fundo, acho que a
pessoa mais beneficiada com tudo isso é o próprio Jonas, que vai
evitar uma esposa e uma sogra completamente descontroladas.
— Então, mãe… Acontece que eu ouvi uma conversa que
não deveria e fiquei sabendo que coisas horríveis aconteceriam com
a nossa província, caso o duque assumisse o trono. A senhora sabe
que isso vai ser péssimo para os moradores do nosso vilarejo e não
é isso que a gente quer, certo? É por isso que eu decidi entrar na
disputa pela coroa e vou ficar aqui por sessenta dias e o casamento
vai ter que ser adiado.
Fecho os olhos, esperando pelo surto, mas só ouço silêncio.
Um silêncio calmo e desesperador.
Será que a notícia foi tão inesperada, que ela entrou em
choque?
— Mãe? — insisto, depois de alguns segundos.
— Adiar o casamento? — ela sussurra, decepcionada. —
Você vai fazer isso com a sua mãe, Helena?
Não consigo conter um revirar de olhos. Tenho certeza que
ela só ouviu “blá blá blá, adiar o casamento, blá blá blá”.
— Vou. Quando eu for rainha, vou tornar as coisas melhores
para as províncias pobres e não vou mais precisar casar com
ninguém. Dois coelhos, uma só cajadada.
— E o seu noivo já sabe disso? — insiste, apelando para a
pessoa que menos quer que esse casamento aconteça, depois de
mim.
— É claro. O Jonas foi o primeiro a saber.
— Você sabia que ela estava conspirando pelas minhas
costas? — grita, agora atirando sua ira na direção do meu amigo. —
Pensei que você quisesse ser meu genro.
Ele resmunga algo que não consigo compreender, mas que a
deixa ainda mais furiosa.
— Ei, mãe! — grito, chamando sua atenção. — Eu amo muito
a senhora, o pai e o Aristides. Passar todo esse tempo longe de
vocês e na companhia dessa gente esnobe vai ser horrível, mas eu
tenho que fazer alguma coisa. Se eu voltar para casa e casar com o
Jonas, como a senhora quer, o novo rei vai abandonar nossa
província à própria sorte. Não teremos mais os poucos recursos que
o reino nos envia e os meus filhos não terão o que comer. É isso
que a senhora quer para os seus netos?
Drama. Essa é a única língua que ela parece entender.
— Não… Eu não quero que os meus netos sofram — sibila,
desanimada. — Mas eu já estava pensando no seu vestido, Lena.
Ele ia ficar tão lindo. Mas entre ele e os meus netos bem gordinhos
e saudáveis, eu prefiro meus bebês. — Ela pensa por um instante e
dispara: — Tem certeza que esse lugar não é perigoso?
Não acho que minha vida corra perigo por aqui. O máximo
que vai acontecer é perder essa disputa e o único ferido nesse
processo será o meu orgulho.
— Absoluta. Apesar de algumas pessoas detestáveis, tem
muita gente legal por aqui.
Ela não responde de imediato. Deve estar tentando absorver
a novidade.
— Quando você era criança e eu dizia que era minha
princesa, nunca imaginei que isso tudo aconteceria — lembra,
saudosa. — Agora você vai ser rainha, Helena.
Suspiro, aliviada. Sendo bem franca, pensei que seria mais
difícil.
— Vai com calma, mãe. Minhas chances são pequenas.
— Mãe sabe das coisas. Se eu estou dizendo que você vai
ser rainha, é porque você vai ser rainha, entendeu?
Acabo rindo da ironia desta situação. Há alguns minutos ela
estava revoltada com o adiamento do casamento, agora já está
radiante com a possibilidade de sua filha ser rainha.
— Dê a notícia para o pai e para o Aristides e diga a eles que
eu os amo muito. Assim que possível, vou trazer todos vocês para
conhecerem o Palácio. É tão lindo que nem sei explicar. Te amo,
mãe. Torça por mim.
— A torcida de todos os moradores daqui já é sua. Também
te amo muito.
Sentindo-me muito mais leve, encerro a ligação.
Um problema a menos na minha lista interminável.
Abro a porta, desanimada, já sabendo o que me espera.
Assim que dei a notícia à minha família sobre a decisão que
tomei, o Aldo me avisou que eu deveria me aprontar para fazer o
comunicado real.
Ou seja, vou aparecer na TV para todo o reino e, como se
isso não fosse apavorante o bastante, ainda tenho que fazê-lo junto
com o Henrique, fingindo que somos bons colegas.
— Eu não sabia que você queria ser rainha! — exclama a
Carolina, abismada, assim que me vê na sua frente.
Discrição não é algo do qual ela possa se orgulhar.
— Nem eu sabia. — Dou de ombros. — Mas não acho que o
Henrique seja nossa melhor opção. Você pode me ajudar com o
meu cabelo?
Mudo de assunto, antes que ela me pergunte mais do que
quero dizer. Sento-me de frente para o espelho da penteadeira e,
pelo reflexo, vejo um sorrisinho bobo estampado em seus lábios.
Conheço-a há pouco tempo, mas já sei que ela quer dizer alguma
coisa. E posso apostar que é algo que não quero ouvir.
— Anda, Carolina. Fala logo.
— É verdade que o duque esteve aqui no seu quarto? —
indaga, em um sussurro, como se tivesse medo de que outras
pessoas ouvissem.
— É verdade — respondo, até já imaginando qual rumo essa
história vai tomar. — Mas eu coloquei aquele duque de meia tigela
para correr. Duvido que ele se aventure nas redondezas do meu
quarto de novo.
Seus olhos azuis se arregalam na mais pura expressão de
surpresa.
— Você está dizendo que o homem mais cobiçado de todo o
reino esteve no seu quarto e você o colocou para correr? — torna,
indignadíssima.
— Sim. E não me arrependo. — Levanto do banquinho e
confiro se há alguém pelo corredor, que possa nos ouvir. Ao
constatar que está vazio, volto a trancar a fechadura e cruzo os
braços. — Ele veio até aqui para tentar me subornar, acredita?
Queria me dar algo em troca da minha desistência da disputa.
— Você está brincando! — Leva as mãos à boca, chocada.
— Ele é sempre tão educado.
Não foi nada educado da sua parte ter insinuado que eu
fiquei assistindo àquela cena ridícula na cozinha de propósito, além
de ter ofendido meu melhor amigo. Na verdade, está entre os
maiores desaforos que já ouvi em toda a vida.
— Nem sempre — pondero. — Agora tenho que pensar em
uma estratégia para vencê-lo, porque, se ele for coroado, eu estou
perdida.
— Por quê? — Sua pergunta vem recheada de preocupação.
Eu sei que este lugar é habitado por cobras venenosas,
loucas para darem o bote a qualquer bobeira, mas não acho que a
Carolina seja uma dessas pessoas. Desde o primeiro dia, senti que
ela é uma pessoa honesta e confiável e, se vou passar um bom
tempo por aqui, ter sua amizade vai tornar tudo menos doloroso.
Por isso, conto-lhe tudo. Sobre a minha vida antes de vir para
cá e a pobreza que assola meu vilarejo e tantos outros, como a
notícia de que faço parte da Corte me desestabilizou, a ideia inicial
de fazer o possível para voltar para casa em três dias, a conversa
com a baronesa e, finalmente, aquilo que ouvi por acaso e que me
fez tomar esta decisão.
Sinto-me muito menos ansiosa quando termino o meu relato.
Ela, em contrapartida, parece ter ouvido alguma história de terror,
graças à sua expressão atônita.
— Isso é muito injusto! — exclama. — Por que ele faria uma
coisa dessas?
Apesar de ser uma empregada do Palácio, ela não sabe o
que existe fora daqui. Não conhece as províncias, nem a realidade
dura que nos castiga.
— Porque é o acordo. É só nisso que essas pessoas
pensam. Acordos, alianças, interesses… Mas eu estou farta disso.
Luseia já está saturada de nobres sanguessugas e acordos
estúpidos que só nos prejudicam. Talvez seja a hora de uma
mudança drástica, Carolina.
Acho graça quando ela começa a me aplaudir, animada,
como se eu fosse alguém importante.
— Você não só vai ser a rainha, como será a melhor rainha
que Luseia já viu!
Seu sorriso confiante e as palmas incessantes quase me
convencem de que ela tem razão. Contagiada com seu otimismo,
sorrio de volta.
— E, por favor, me chame de Carol.
— Então quer dizer que você está do meu lado, Carol?
Ela passa as mãos pelos meus cabelos e me lança um olhar
confiante pelo espelho.
— Contanto que eu não esteja proibida de admirar o duque,
minha torcida é sua.
É possível vomitar aquilo que você sequer comeu, tamanha
ansiedade que sente?
Porque tenho a impressão de que meu estômago pretende
jogar para fora qualquer coisa que se atreva a entrar nele. Isso, para
não contar as mãos suadas, os pés que não param de batucar
contra o piso e o coração batendo mais rápido que agulha de
máquina de costura.
Estou sentada em uma das cadeiras acolchoadas da sala do
Aldo, enquanto espero pelo Henrique, o que não é nenhuma
novidade. Tenho certeza que ele vai aparecer no último segundo,
como em todas as outras vezes.
— Lembra o que tem que dizer? — ele pergunta, pela terceira
ou quarta vez.
— Cumprimentar a todos, dizer meu nome… Tem certeza
que não posso dizer meu nome de verdade? — insisto.
O Aldo queria que eu me apresentasse como Aurora Loyola
de Albuquerque, mas bati pé e disse que seria uma ofensa contra a
minha família. Após vários minutos de discussão, ele permitiu que
eu, ao menos, usasse Helena, mas está irredutível quanto ao
sobrenome.
— Já conversamos sobre isso.
— Tá bom, tá bom. Digo o meu nome, e que sou concorrente
ao trono de Luseia. Depois disso, devo apenas responder às
perguntas que o senhor Mário Silva e Silva fará.
— Não parece complicado, não é? — Sorri, bondoso.
O Henrique estará comigo e, quando o próprio demônio está
ao seu lado, até dizer seu nome parece algo complicado.
Faltando precisamente um minuto, ele chega. Com sua
pompa de sempre, vestindo um terno cinza claro, tão elegante, que
me sinto intimidada. Questiono-me quantos ternos caros esse duque
deve ter, porque nunca o vi repetir nenhum deles.
Levanto-me, não em sinal de respeito, já que repudio este
idiota, mas porque o Aldo o faz. Contra a minha vontade, estendo a
mão na sua direção, para cumprimentá-lo e tenho que fazer um
esforço sobre-humano para não revirar os olhos, quando ele a
segura e beija, como se fosse um cavalheiro, um homem digno de
respeito e não um nobre desprezível e baixo.
Talvez seu objetivo realmente seja testar minha paciência,
porque, além do beijo indevido na minha mão, ele perde alguns
segundos me olhando dos pés à cabeça. Deve estar procurando
algum defeito, mas para a minha sorte, a Carol é muito boa no que
faz.
Além dos cabelos soltos e com ondas, que é a sua
especialidade e que me deixa muito bem, a maquiagem discreta me
faz parecer séria e simples. E a escolha do vestido não poderia ter
sido mais correta. Um tubinho bordô de mangas longas e ajustado
ao corpo, até a altura dos joelhos e sapato nude. E para completar,
um brinco dourado com pedras da cor do vestido, combinando com
uma gargantilha.
Esse nobrezinho metido a besta não vai encontrar nenhum
defeito.
Deixamos a sala e seguimos pelo longo corredor em silêncio.
Toda a concentração está sendo usada na tarefa de andar de forma
elegante sobre os saltos, que não são muito altos, mas exigem certa
prática.
Quando chegamos à sala de imprensa, Mário Silva e Silva
nos recebe, com sua costumeira voz sibilante. Preciso morder o
interior da boca para não cair na gargalhada ao lembrar das
imitações toscas e exageradas do Aristides.
— Sejam bem-vindos — diz, apontando para três cadeiras
dispostas em frente a uma câmera. — Entraremos no ar em poucos
minutos. Eu me sentarei na cadeira do meio, o duque à minha
direita e a condessa à minha esquerda, respeitando o grau
hierárquico de cada um. A transmissão será curta, pois será só uma
apresentação breve. Após a apresentação de cada um, farei
algumas perguntas básicas.
Não entendo qual o motivo das perguntas, já que nossos
votos virão da própria Corte e não das pessoas que estarão nos
assistindo, mas assinto e vejo o Aldo deixando a sala. Inspiro fundo
e tomo meu assento, enquanto os dois conversam sobre qualquer
um desses assuntos chatos de gente esnobe. O homem por trás da
câmera avisa que entraremos no ar em um minuto e a pose
arrogante do anunciante real vem à tona. Quando todos estão em
seus lugares, ouço a contagem regressiva.
— Estão prontos?
Respiro fundo, quando o programa entra no ar e tento
parecer à vontade, sem muito sucesso. Ainda mais quando observo
o Henrique pelo canto do olho e posso perceber que ele está
confortável com a situação, como se tivesse nascido em uma
transmissão ao vivo.
— Súditos de Luseia e todas as suas províncias, é com
imenso prazer que venho apresentar os concorrentes ao trono do
nosso reino. — Mário faz uma pausa, como se estivesse dando
tempo aos telespectadores para poderem nos olhar com mais
atenção. — É válido lembrar que esta é a primeira vez na história de
Luseia, que a Corte foi acionada para decidir quem assumirá a
coroa e, durante os sessenta dias até a votação, Aldo Pádua de
Braga, o conselheiro real, ocupará o trono interinamente.
Apoio as mãos sobre as coxas, buscando disfarçar a tensão.
Se eu penso em ser rainha, acho que vou ter que aprender a lidar
com esse tipo de exposição.
— Como podem ver, estamos diante de dois concorrentes
muito jovens, que governarão nosso reino por anos e, ainda que a
tarefa de decidir quem assumirá o trono seja da Corte, é justo que
toda a população conheça um pouco melhor quem reinará muito em
breve — continua, de forma clara e pausada. — Para tanto, cada
concorrente fará uma breve apresentação.
Como ele disse anteriormente, a ordem das apresentações
seguirá nosso grau hierárquico, portanto, o Henrique falará primeiro.
— Boa noite a todos. Sou Henrique Dantas Quaresma, duque
de Luseia e concorrente ao trono do meu reino — diz, com a
naturalidade de quem conversa entre amigos.
Assim que ele termina, inspiro fundo, pronta para fazer a
minha apresentação.
— Boa noite a todos. Sou Helena de Amo… Não! Sou Aurora
Loyola de… Também não. Desculpa, eu descobri que tenho dois
nomes há quatro dias, ainda me confundo um pouco — justifico-me,
sentindo o rosto pegar fogo. A discreta risada nasal que o Henrique
solta ao ouvir minha pequena confusão só deixa tudo pior. — Sou
Helena Loyola de Albuquerque, condessa de Luseia e concorrente
ao trono do meu reino.
O anunciante faz uma pausa, antes de retomar a palavra e,
quase morrendo de tanta vergonha, passo a encarar os pés. A parte
das perguntas se inicia e ele faz umas três perguntas para o
Henrique, sobre sua formação — além de ter estudado em outro
reino, o desgraçado fala três línguas — e sobre os planos para o
futuro, quando se tornar rei. É claro que ele não toca no assunto da
desvinculação das províncias e, mais uma vez, ele responde a tudo
de forma impecável.
O anunciante questiona sobre a minha formação também.
Não digo que não sei ler, mas explico que de onde venho, as
pessoas precisam trabalhar para sobreviver e que os estudos ficam
em segundo plano — o que é mentira, porque eles não ficam em
plano nenhum —, pois, desde muito jovens, aprendemos a profissão
que teremos pelo resto da vida.
Depois, ele pergunta sobre as diferenças entre a vida no
Palácio e onde eu vivia e quase reviro os olhos com a falta de
originalidade do seu questionamento.
— Você tem dezoito anos, além de nunca ter aprendido como
tudo, de fato, funciona na realeza. Não acha que a falta de
experiência está contra você? — dispara, por fim.
Olho para o Henrique de relance e observo seu sorriso
sarcástico, como se estivesse se divertindo com a saia-justa que
esse nobre sanguessuga me colocou.
Depois de alguns segundos, pensando sobre o assunto,
respondo:
— Eu também não tinha nenhuma experiência quando
comecei a costurar e hoje faço isso muito bem.
— Então você está dizendo que governar um reino é similar a
costurar vestidos?
— Não. Estou dizendo que, se orientada pelas pessoas
certas, eu vou aprender.
Ele assente e se vira para a câmera. Finalmente vai dar por
encerrada essa palhaçada e vou poder voltar para o meu quarto.
— Agora, iremos para um pequeno intervalo comercial e,
após isso, os concorrentes farão uso da palavra e explicarão porque
devem ser coroados.
Ai, droga! Isso não estava combinado.
Olho para o Henrique, tentando ver nele qualquer sinal de
que, assim como eu, foi pego de surpresa, mas ele se mostra
impassível. Então, concluo que ele já sabia disso. Aposto que eles
combinaram isso pelas minhas costas!
Assim que o homem atrás da câmera sinaliza, o anunciante
se levanta e vai até uma mesinha próxima à porta e bebe um copo
d'água. O Henrique também se levanta e se alonga, depois sai
andando e aproveito o momento de privacidade para praguejá-los
por me colocarem nessa enrascada.
— Gostou da novidade?
Levo um susto com o sussurro no meu ouvido. Olho para trás
e dou de cara com o duque de meia tigela atrás de mim, abaixado
para ficar da mesma altura que eu.
— Achei que seria uma ótima oportunidade para que todos
conheçam o que se passa na cabeça da condessa.
Ele ostenta um sorriso presunçoso e usa um tom de
sarcasmo tão nojento, que tenho vontade de quebrar cada um dos
seus dentes brancos e perfeitamente alinhados.
— Mas não se preocupe, Helena. Eu vou falar antes, assim
você pode olhar e aprender como faz.
Ainda bem que ele sai de perto de mim após dizer isso,
porque, caso contrário, não me responsabilizaria pelos meus atos.
Esse nobre pomposo e metido bem que merecia uns socos!
A transmissão volta ao ar e o Mário passa a palavra para o
Henrique, que me lança um olhar zombeteiro, antes de se
pronunciar.
— Serei muito breve em minhas palavras, porque todos
sabem que contra fatos não há argumentos. Desde os dez anos, fui
treinado para assumir a coroa de Luseia e garanto que não há
pessoa mais apta em todo o reino do que eu. Não há como
comparar anos de estudos nas melhores escolas, viagens por todos
os reinos aliados, atrás dos melhores acordos para a nossa
população e tudo o que aprendi ao lado do próprio rei Plínio III, que
me tinha como um filho e fazia muito gosto na minha coroação. O
trono não é uma brincadeira, um delírio infantil, que deve ser
ocupado por alguém que, claramente, não está capacitado para
isso. Luseia merece o melhor.
Alguns segundos de silêncio dividem o fim do seu discurso
perfeito e a voz insuportável do anunciante, avisando que é minha
vez de falar.
Penso por algum tempo, enquanto olho para as mãos no meu
colo e lembro das pessoas que amo. Meus pais, o Aristides e o
Jonas devem estar me assistindo. São eles que me encorajam.
— Como vocês podem ver, eu não estudei em escolas
chiques, nem sei falar várias línguas, nem tinha saído do meu
vilarejo até alguns dias atrás, porque, de onde eu venho, isso não
serve para nada — começo, buscando forças do outro lado da
câmera que aponta para mim. — A única coisa que aprendi desde
criança, é que eu deveria ter um emprego para sobreviver da
maneira mais digna possível. Aprendi a costurar com a minha mãe,
assim como meu irmão vai aprender a ser carpinteiro com o meu
pai. Não vou desmerecer o trabalho da nobreza, mas não vou deixar
que ninguém desmereça o trabalho de todas as pessoas do meu
vilarejo — Neste momento, viro-me para o Henrique o encaro —,
porque fazer as roupas que você está vestindo exige muita
inteligência, assim como construir casas, fazer a comida que você
come e cuidar de jardins. Inteligência não é só saber falar várias
línguas, estudar nas melhores escolas ou viajar o mundo, porque,
se fosse isso, você estaria chamando a população do nosso reino
de burra e acho que essa não foi sua intenção, não é mesmo,
duque?
Assim como aconteceu após a fala dele, um silêncio
esmagador preenche a sala, mas, desta vez, ele é pesado e cheio
de rancor. Posso ver nos rostos dos homens à minha frente que eu
disse o que eles não esperavam ouvir e isso me causa uma
satisfação imensurável.
Não consigo conter o sorriso vitorioso, pois acabo de me dar
conta de que, apesar de tudo favorecer o Henrique neste joguinho
bobo de poder, eu não sou tão ruim quanto pensava.
Embora este pronunciamento não sirva para muita coisa, já
que a votação é feita pelas pessoas da Corte, degustar o sabor da
vitória, mesmo que por alguns segundos, é algo que jamais vou
esquecer.
Depois de uma noite muito bem dormida, aproveito a manhã
de folga no meu lugar preferido do Palácio.
Os jardins.
Pedi a Carol que me ajudasse a encontrar a baronesa, mas
ela estava indisposta e decidi procurá-la depois do almoço. Agora,
estou aqui, ajoelhada no chão, apreciando as flores vistosas e
exóticas, segurando a vontade de enfiar a mão na terra e fazer os
ajustes necessários.
— Você foi tão incrível ontem — elogia ela, pela quinta vez.
Com medo de ter que enfrentar o Henrique e sua ira, depois
do ocorrido da noite passada, sugeri que a Carolina me
acompanhasse até aqui. Assim, além da companhia, tenho uma
testemunha, caso ele tente fazer alguma coisa contra mim, mas
apesar de já estar aqui há muitas horas, não vi nenhum sinal
daquele idiota.
Ela está sentada no banco de ferro, próxima a mim e tagarela
sem parar sobre como eu fui incrível e que a expressão surpresa do
duque e do anunciante em rede nacional foi algo impagável.
— A criadagem só fala nisso — conta, animada. — Sobre
como você foi corajosa por enfrentá-lo.
— Eu não fui corajosa. Só estava com vontade de dar um
soco naquela boca e arrancar aquele sorriso presunçoso dos lábios
daquele metido — explico. — Não consegui realizar a primeira
vontade, então tive que dar um jeito de fazer a segunda.
Por um longo período, ficamos ali, jogando conversa fora e
rindo, quando noto que ela fica tensa, de repente.
— O que foi? — pergunto, olhando ao meu redor.
Temo que o Henrique apareça para acabar com a minha paz,
mas não é ele que se aproxima a passos firmes.
É a Morgana, sua querida noiva.
— Ela está vindo pra cá — sussurra.
Levanto-me do chão e a espero, com as mãos na cintura,
pronta para o embate. Porque, sua cara azeda só pode significar
que ela está procurando briga.
— Se você pensa que vai frustrar meus planos, está muito
enganada, sua caipira ridícula — vocifera, assim que me alcança,
ignorando a presença da Carolina.
— Não sei do que você está falando. — Dou de ombros, sem
me abalar.
— Eu nasci para ser rainha e vou ser, nem que para isso,
tenha que passar por cima de qualquer desavisado que atravesse
meu caminho.
Inspiro fundo e conto até vinte, contendo a vontade de
mandá-la pastar.
— Se eu não tenho medo do Henrique, que é meu oponente,
por que eu teria medo de você? — indago, pausadamente.
Cruzo os braços e lanço um olhar de desdém. Ela é um
pouco mais baixa do que eu e aproveito essa pequena vantagem.
— Então continue no meu caminho e vai descobrir porque me
temer faz bem para a saúde.
Ela gira nos calcanhares e vai embora, tão de repente quanto
veio e, depois de me certificar que estamos sozinhas, viro-me na
direção da Carol.
— Você viu isso? — pergunto, ainda atônita.
— Vi e acho melhor você abrir o olho. Ela está acostumada a
ter o que quer, custe o que custar.
Dou de ombros, insolente. Não tenho medo de cara feia, nem
de ameaças vazias.
— Bom, se ela quiser arriscar passar por cima de mim, vai
descobrir que eu sou muito mais forte do que aparento.
Como combinado, logo após o almoço, aqui estou eu,
batendo na porta da baronesa, ansiosa por finalmente começar a
estratégia que me levará ao trono.
— Pode entrar.
Fico surpresa quando dou de cara com um quarto muito mais
luxuoso do que o meu. E olha que meus aposentos já são um luxo
só!
Nada exagerado, mas tudo extremamente chique e de muito
bom gosto.
Ela está sentada na cama e parece bem cansada.
— Boa tarde, Helena. Sente-se, por favor.
— Se a senhora não estiver se sentindo bem, posso voltar
aqui outra hora — explico.
— Imagina, minha querida. Eu estou ótima.
Assinto e puxo uma das cadeiras estofadas que ficam na
pequena mesa. Coloco-a de frente para a senhora e me sento.
— Primeiro, queria te parabenizar pelo seu desempenho
ontem à noite. Eu acompanhei tudo pela TV e fiquei impressionada
com a sua capacidade de resposta e de manter a cabeça erguida —
elogia, animada. — Tenho certeza que você será uma rainha como
Luseia nunca viu.
— Obrigada — digo, sem graça. — Mas isso ainda é muito
pouco. Ninguém na Corte vai votar em mim pelo meu desempenho
ontem.
A baronesa faz menção de responder, mas uma tosse seca e
incessante a toma e ela perde vários minutos tossindo. Levanto-me
e pego um copo d'água para ela na jarra de cristal que repousa
sobre a mesa. Fico um pouco frustrada que ela tenha direito a matar
sua sede, sem sair do quarto. Se houvesse um desses no meu
quarto, não teria sido obrigada a presenciar aquela cena lamentável
na cozinha.
— A questão que você está ignorando é que os nobres
representam interesses. O povo é um deles.
Seguro a vontade de contestá-la e dizer que o lugar de onde
venho não é do interesse de ninguém. É por isso que preciso mudar
as coisas por aqui. Porque estou cansada de ver os mesmos
padrões se repetindo.
— Se a sua popularidade fora do Palácio for boa o suficiente,
existe uma possibilidade do marquês te apoiar. É claro que isso
precisa estar aliado a alguma vantagem para ele, mas o que quero
dizer é que você tem grandes chances, Helena. Eu o conheço
desde que nasceu e vou tentar descobrir o que o Henrique
prometeu em troca do voto. Talvez consigamos negociar.
Pelo jeito que ela fala, as coisas parecem muito mais simples.
— Vou tentar marcar uma reunião com ele ainda essa
semana. Nós duas conversaremos com o marquês e vamos
conseguir o seu apoio — diz, resoluta.
Concordo, animada, mas murcho um pouco ao lembrar do
segundo assunto que tenho que tratar com ela. Esse é bem mais
complicado e constrangedor.
— Eu preciso da sua ajuda em mais um problema —
desabafo, sem conseguir encará-la. Abaixo o tom de voz a um
sussurro quase inaudível e prossigo: — Eu não sei ler.
— Você o quê?
— Lá no meu vilarejo não tem escolas — apresso-me em
explicar, a vergonha consumindo aquela pouca confiança que
cresceu em mim quando ela me elogiou. — Com exceção do meu
melhor amigo, que é rico e foi mandado para outra província para
estudar, ninguém sabe ler e escrever.
Mesmo com dificuldade, ela se levanta e abre a porta do
quarto para se certificar que não tem ninguém nos ouvindo. Aquele
ditado de que as paredes têm ouvido deve ter nascido nesse lugar.
— Você não vai contar isso para ninguém, entendeu? — diz,
muito séria. — Se essa informação cair nas mãos do Henrique, ele
vai fazer todos acreditarem que você não é capaz.
— Eu sei disso. Só contei para a senhora, porque eu preciso
resolver isso o quanto antes.
Ela volta a se sentar e pensa por algum tempo.
— Eu vou ensiná-la, tudo bem? — propõe. — Temos
cinquenta e nove dias para resolver isso. Se você se esforçar
bastante, talvez consiga aprender alguma coisa.
Suspiro, aliviada e empolgada com a novidade.
— Até vir para cá, a falta de estudos nunca foi um grande
problema na minha vida, mas agora preciso dar um jeito de reduzir a
vantagem que o Henrique tem sobre mim. — Abro um sorriso triste.
— Serei eternamente grata pela sua ajuda.
Levanto da minha cadeira e sigo até a porta, acompanhada
por ela.
— Após o jantar venha até aqui para começarmos o quanto
antes.
Agradeço mais uma vez e volto para o quarto, satisfeita com
o resultado da visita. Depois dessa conversa, sinto-me mais perto
de brigar com o Henrique de igual para igual.
— Você foi tão incrível, Lena!
Logo após minha conversa com a baronesa, encontrei com o
Aldo no corredor e, para minha surpresa, ele me deu uma notícia
maravilhosa.
Mandaram instalar um telefone no meu quarto!
Agora, estou aqui, deitada na cama, tagarelando com o
Jonas, igual às mocinhas das novelas que cansei de assistir na TV.
— Você colocou aquele duque de meia tigela no chinelo. —
Ri, com desdém. — Sabe quando foi a última vez que alguém
defendeu o povo em rede nacional?
— Não.
— Eu também não, mas se é que isso já aconteceu um dia,
deve fazer muito tempo! Ah! — exclama, como se tivesse lembrado
de alguma coisa. — O Aristides pediu para eu te perguntar como
você conseguiu ficar ao lado do Mário Silva e Silva sem cair na
gargalhada nenhuma vez.
A pergunta me faz engasgar de tanto rir.
— Eu estava com muita raiva, mas ainda assim, precisei
morder as bochechas em alguns momentos — explico, quando
consigo voltar a falar. — Além da minha família, quem mais estava
aí?
Enquanto estava na frente daquela câmera, indagava-me
incontáveis vezes quem estaria me assistindo, além das nossas
famílias.
— Quase todo o vilarejo veio te assistir. E, assim como eu,
todos estão encantados com a forma como você se comportou. Já
estão falando por aí que você vai ser a nova rainha e sua mãe está
encabeçando sua campanha. Meu pai disse que falou com alguns
amigos e que você não é a favorita só no nosso vilarejo. O povo
está do seu lado, Lena.
Sorrio, orgulhosa, mesmo que ele não possa me ver. O
relógio de parede que fica sobre a porta indica que é hora do jantar
e que, de lá, devo ir até o quarto da baronesa. Não lhe contei sobre
as aulas que ela vai me dar, pois perdi a conta de todas as vezes
que o Jonas se ofereceu para me ensinar e que neguei, achando
que não era algo tão importante assim. Se soubesse que um dia
estaria aqui, teria aceitado na primeira oferta.
E tem o medo de que alguém possa escutar nossa conversa
também.
— Está quase na hora do jantar e eu tenho que ir. Amanhã te
ligo novamente.
— Tudo bem, Vossa Majestade — brinca.
— Tchau, bobo.
Coloco o aparelho na base e prendo o cabelo em um rabo de
cavalo antes de sair para o corredor. Queria poder pedir que alguém
trouxesse minha refeição no quarto, porque sei que não sou muito
querida pela maioria das pessoas que estarão lá, mas,
especialmente depois de ontem, acho que vai ser interessante
descobrir o que estão falando sobre mim.
A conversa alta e animada dá espaço a um silêncio
constrangedor quando entro no salão. Todos me olham, alguns com
desdém, outros com indiferença, outros com admiração — e devo
ressaltar que, além da baronesa, somente as empregadas me
encaram desta forma.
Curiosamente, há uma cadeira vaga entre o Henrique e a
baronesa e, como faço questão de me sentar ao lado da senhora,
ignoro a presença do duque metido e me sento ali. Estou faminta e
o cheiro e a aparência da comida já são capazes de me encher de
expectativa. O clima austero se dissipa e todos voltam a conversar
como antes. Presto toda atenção na mulher ao meu lado, que me
conta histórias incríveis de coisas que aconteceram por aqui muito
antes de eu nascer.
Aquele silêncio esquisito volta a se formar e, ao olhar para a
porta, entendo o motivo. A Morgana está aqui, parada na entrada e
me fuzilando com o olhar.
— Você está no meu lugar — dispara.
— Não sabia que seu nome estava escrito na cadeira —
devolvo, sarcástica.
— Meu lugar é ao lado do meu noivo — insiste.
O Henrique já deixou bem claro que não é grande admirador
da sua própria noiva e não o culpo por isso. Acho que, se tivesse
conhecido a Morgana antes de tudo isso acontecer, teria casado
com o Jonas na primeira oportunidade, crente de que sempre há
alguém em situação muito pior do que a nossa.
— E o meu lugar é ao lado da minha amiga — retruco. — Há
várias cadeiras do lado de lá. — Aponto para a extremidade da
mesa. — Fique à vontade, Morgana.
Quase consigo sentir o calor vindo do olhar mortal que ela
direciona para mim, em especial, quando o Henrique solta uma
risada nasal discreta, mas de extremo deboche
Aos poucos, o clima animado volta a tomar conta do
ambiente, quando ela deixa o salão, derrotada e raivosa. Melhor
assim. Ficar no mesmo ambiente que ela deve fazer mal. Volto a me
concentrar nas histórias divertidas da baronesa e no meu jantar e
esqueço desse incidente.
Já tenho bastante problemas para ocupar a mente. Não
preciso de uma garota chata e mimada para aumentar a lista.
Quando a baronesa se ofereceu para me ensinar a ler e a
escrever, tenho certeza que não passou pela sua cabeça que eu
poderia ser tão ruim. Apesar de tentar, de toda forma, manter a
calma e me incentivar, pude ver na sua cara que sua vontade era
me mandar de volta para o quarto, depois da décima vez que
fracassei no que ela me pediu.
Mas que culpa tenho eu se minhas mãos não me obedecem?
Eu tentei copiar as letras como ela me mostrava, mas meus
dedos tomaram vida própria e resolveram fazer as coisas do seu
próprio jeito — que, coincidentemente, é o jeito errado.
Cansada de tanto me ver repetindo os mesmos erros, ela me
mandou para o quarto com várias folhas de papel com as tais vogais
que eu tenho que copiar até a exaustão para a nossa próxima aula.
O corredor está vazio, o que é explicado pelo horário
avançado, por isso, não me importo em caminhar por ele olhando
com atenção a folha em minhas mãos, como se isso fosse capaz de
me fazer aprender mais rápido. É por isso que me assusto quando
percebo que o Henrique está me esperando em frente aos meus
aposentos.
Inspiro fundo, pronta para mandá-lo embora, mas, antes
disso, lembro-me dos papéis da minha mão e, mais do que isso, que
ele não pode saber do que se tratam e os escondo atrás do meu
corpo.
— O que… O que você está fazendo aqui? — gaguejo,
mordendo os lábios — Já é tarde.
— Você demorou — devolve, como se esse argumento
explicasse sua presença a esta hora.
— E você agora vai começar a controlar meus horários? —
torno, sentindo a boca secar.
— Não. Não é isso.
Ele está apoiado na entrada do quarto, impedindo minha
passagem. Esta é uma das raras ocasiões em que não está
vestindo seus ternos caros. Ele fica muito menos imponente desta
maneira. Mas não menos bonito, devo confessar.
— Eu fiquei sabendo sobre a ameaça que a Morgana te fez
pela manhã — diz, sem jeito. — Só queria deixar claro que eu não
tenho nada a ver com aquilo.
— Quem te contou? — disparo, mas já tenho a resposta para
essa pergunta e quase consigo ver a Carolina espalhando essa
notícia aos quatro ventos.
— Aqui no Palácio, não são só as paredes que têm ouvidos.
Apesar de todo o seu histórico e do quanto o abomino,
sequer passou pela minha cabeça que ele estivesse ligado com
aquela ceninha ridícula no jardim. Agora tenho certeza que, embora
sejam meus oponentes, estão em lados distintos e, desta forma,
mais fracos.
— Gostaria também de aproveitar a oportunidade para te
fazer um alerta. A Morgana sempre foi acostumada a ter tudo o que
quer e não vai medir esforços para prejudicar qualquer um que se
meta no seu caminho. Tome cuidado.
Balanço a cabeça, tentando absorver suas palavras e, mais
do que isso, o que elas significam. É um truque. Só pode ser um
truque.
— Eu não compactuo com essa ideia, porque eu odeio jogo
sujo — completa e se afasta da porta.
Ele é bastante convincente no seu discursinho, mas
esqueceu de um detalhe importante.
Eu sei quem ele é.
Sei que é um fantoche do visconde e que vai arruinar a vida
de muitas pessoas para conseguir o que quer.
Se isso não é jogo sujo, não sei o que mais pode ser.
— Eu não acredito em uma palavra que sai da sua boca —
declaro, aproveitando a oportunidade para entrar no quarto. Ele fica
do lado de fora, encarando-me. — Vamos combinar uma coisa,
Henrique. Não precisa fingir que se importa comigo, porque eu
também não vou fingir que te suporto. Você é tudo que eu repudio
em uma pessoa. É mesquinho, arrogante e inescrupuloso. Se puder
manter distância de mim, eu até agradeço.
Fecho a porta na sua cara, não sem antes ver seu olhar
atordoado na minha direção.
— Aulas de etiqueta? — indago, apavorada.
Quando o Aldo me chamou na sua sala, com certa urgência,
jamais imaginei que esse seria o tema da conversa. Na verdade,
minha mente excluiu essa possibilidade, porque, com tantos
problemas para resolver até conseguir os votos que preciso, saber
com qual talher devo comer a alcachofra é algo irrelevante.
— Você é uma dama, Helena. Precisa saber se comportar
como uma.
— Digamos que eu não vença a eleição. Neste caso, eu não
vou precisar aprender essas coisas, certo? — argumento.
Ele entrelaça os dedos e me lança um olhar condolente.
— Você ainda será a condessa e representante da Corte. É
importante se portar como uma nobre a partir de agora.
Faço uma careta, mas acabo aceitando por falta de opção.
Em poucos dias já percebi que a nobreza tem pouco poder de
escolha. Acho que tinha mais autonomia sobre a minha vida lá no
meu vilarejo do que aqui.
— Sua professora estará lhe esperando no salão de festas,
logo após o almoço. Não se atrase.
Dou de ombros e deixo sua sala, pensando em mais esse
problema. Mais uma professora, mais uma pessoa que pode
perceber que não sei ler ou escrever e me dedurar. Talvez, posso
pedir que a baronesa me ensine essas coisas sobre etiqueta, afinal,
nem deve ser tão difícil assim.
Olho no enorme relógio de parede que fica próximo à sala de
jantar e, ao constatar que ainda tenho alguns minutos antes do
almoço, vou até a ala dos criados, atrás da Carolina.
Ela vai ter que me explicar porque contou para o Henrique
sobre o acontecido no jardim.
Embora já esteja aqui há vários dias, é a primeira vez que
venho para esse lado do Palácio e, conforme vou me infiltrando
nesta área, percebo que ela é muito mais divertida do que as
dependências onde sempre estive. Passo por um grupo de moças
que conversam animadas, enquanto lavam roupas. Uma outra está
de papo e risadinhas com um guarda bonitão e, ainda mais pra
frente, vejo um outro grupo sentado sob a sombra de uma árvore e
tagarelando.
E é lá que encontro a Carol.
— Você está aí! — exclamo.
As moças se assustam com a minha presença e se apressam
em fazer reverências, mesmo que eu insista que isso não é
necessário.
— A senhorita não pode entrar nessa ala — uma das
meninas me adverte, sem graça.
— Como não? — Indigno-me, colocando as mãos na cintura.
— Até alguns dias eu era só uma costureira pobre. Não é um título
que vai mudar isso.
— A senhorita foi maravilhosa na transmissão. — Uma outra
elogia e me deixa sem graça. — Se pudéssemos escolher, seria a
nova rainha.
Agradeço, envergonhada e o assunto acaba, deixando um
silêncio constrangedor de uma hora para outra. Aproveito a deixa e
convido a Carol a me seguir para um local distante.
— Se queria falar comigo, devia apenas pedir que alguém me
chamasse. Se o senhor Aldo desconfiar que você veio até aqui para
conversar comigo, nós duas estaremos encrencadas — explica,
quando chegamos ao meu quarto.
— Pelo amor de Deus, Carol! Nós somos amigas.
— Nós somos amigas apenas aqui dentro do seu quarto.
Daquela porta para fora, somos criada e condessa e ninguém pode
desconfiar disso. As regras aqui no Palácio são muito claras e
rígidas e há uma barreira invisível, mas muito bem definida entre
nobres e criadagem.
Engulo em seco ao ouvir sua bronca e a indignação que me
causa. Como podem impedir pessoas que vivem dentro da mesma
casa de conviverem umas com as outras? Não faz muito sentido.
Quando eu for rainha, vou mudar muitas coisas por aqui.
— Tudo bem, Carol, desculpa. Eu não sabia disso.
— O que você queria falar comigo? — pergunta e,
imediatamente, sou tomada por lembranças da última noite e do
Henrique na minha porta.
— Você contou para o Henrique sobre a ameaça que a
Morgana fez?
Suas bochechas coram e sua boca abre e fecha algumas
vezes, enquanto pensa em uma resposta.
— Eu só contei para algumas colegas — defende-se.
— E uma dessas colegas é a cozinheira que ele anda
agarrando na cozinha, de madrugada e às escondidas? — insisto,
estreitando os olhos.
— Eles se agarram às escondidas de madrugada na
cozinha? — devolve, perplexa. — Eu sabia que eles tinham um
caso, mas isso é muito mais interessante. — Ri. — Como você
sabe?
Agora são as minhas bochechas que ficam quentes.
— Eu ouvi falar — disfarço. — A questão é que todos já estão
sabendo disso e, apesar de não suportá-la, não quero criar caso
com ela. Da próxima vez, vou pedir que seja mais discreta.
Ela concorda e continuamos conversando, enquanto me
ajuda a me aprontar.
Eu pensei que minhas aulas com a baronesa já estivessem
cumprindo muito bem a tarefa de me fazer parecer desajustada
neste local, mas nada — NADA — pode ser pior do que as aulas de
etiqueta com a senhora Zélia.
Primeiro, porque acho que ela não foi com a minha cara.
Segundo, porque, definitivamente, não nasci para essas coisas.
Terceiro, porque tudo não passa de um tremendo desperdício de
tempo, em que poderia estar fazendo algo útil para a minha
candidatura.
De forma resumida, a mulher passou a tarde toda
discursando sobre elegância e desenvoltura, duas coisas que, ao
que parece, não nasceram comigo. De acordo com ela, o jeito como
ando, falo, sento e me porto é totalmente inadequado para uma
dama.
— Uma dama precisa ser delicada e gentil, mas deve se
portar de forma ilustre e distinta — repete, pela milionésima vez.
Meus olhos podem explodir a qualquer momento, tamanha a
força que faço para não revirá-los na frente dela.
— Com licença — ouvimos a voz vinda da porta e, ao me
virar na sua direção, vejo o duque insuportável.
Era só o que faltava para completar esta tarde
agradabilíssima.
— Desculpe, senhora Zélia. Estou procurando o visconde.
— Não se desculpe, meu querido. Entre aqui, por favor.
Ah, que dia interminável!
— O Henrique foi meu melhor aluno. — Sorri, abraçando-o.
O desgraçado me lança um sorriso debochado e aproveito
que a mulher está de costas para mim para fazer uma careta.
— Você devia se inspirar nele.
Só se eu quiser me tornar uma pessoa baixa e sem caráter.
— E andar pomposa como um pavão? — zombo, em um
sussurro. — Não, obrigada.
Ele deixa a sala entre risadas, o que faz o ódio tomar conta
de mim. Preferia que ele me enfrentasse da mesma forma que o
faço, em vez de ficar rindo e debochando de mim. O desgraçado
sabe me tirar do sério.
— Sua postura, querida — ela chama a minha atenção
novamente e arrumo o corpo.
Olho de soslaio para o relógio de parede e constato que
ainda faltam duas horas para que esse inferno chegue ao fim.
Não tenho dúvidas que esses serão os dias mais longos da
minha vida.
Esta era para ser a minha segunda aula com a baronesa,
mas, por um motivo muito louvável, acabamos a deixando para
amanhã. O marquês aceitou ouvir a nossa proposta e, embora não
tenhamos nenhum argumento bom — pelo menos, por enquanto —,
é a nossa chance de tentar descobrir o que o Henrique lhe ofereceu
para, quem sabe, negociar algo maior.
Não é algo do qual eu me orgulho, mas situações
desesperadas pedem medidas desesperadas.
Ele nos recebe em uma sala de reuniões pequena e muito
simples, que nem fazia ideia que existisse. Na verdade, esse
Palácio tem tantas portas, que, nem em cem anos, conseguiria
descobrir o que todas elas escondem. Seu sorriso cordial de dentes
separados e sua postura descontraída me deixam à vontade e, após
ele apontar para as cadeiras que estão em frente à mesa escura e
um pouco gasta, decido me sentar.
— Boa noite, Saulo. Agradecemos imensamente por ter
cedido um pouco do seu precioso tempo para nos receber — a
senhora começa, acomodando-se ao meu lado.
— Não tem de quê. Estamos tratando de um assunto de
grande relevância para o futuro, não é mesmo? — O marquês
esfrega as mãos e entrelaça os dedos.
Lanço um olhar para a baronesa, que assente, dando-me
aval para começar minha explicação, como havíamos combinado.
— O senhor sabe…
— Não me chame de senhor, Helena, por favor —
interrompe-me, mas sem ser mal educado.
— Tudo bem. Você sabe qual o motivo da nossa conversa,
marquês. Nós estamos aqui por conta da votação que acontecerá
em breve e sobre a possibilidade de um acordo entre nós.
Faço um esforço muito grande para camuflar as mãos
trêmulas e até me saio bem, mas não tenho o mesmo sucesso
quando o assunto é a minha voz vacilante.
— Me desculpe a sinceridade, mas você não tem a menor
chance, Helena. Apesar da pouca idade, o Henrique sabe muito
bem o que está fazendo. Sua estratégia já está traçada há anos e
devo ressaltar que ele é muito bom nisso — explica, paciente. —
Meu voto é dele e, honestamente, tenho muito a ganhar com isso.
No seu lugar, eu já teria desistido.
Embora saiba que ele tem razão, a indignação é inevitável.
Como alguém pode trocar seu voto por benefícios e destruir a vida
de milhares de pessoas, sem qualquer peso na consciência?
— Veja bem, Saulo. Não é de hoje que o povo não está
contente com a forma como as coisas por aqui tem acontecido —
intervém a baronesa, resoluta. — Estamos muito próximos de um
evento que desencadeará uma mudança drástica. Uma guerra, uma
rebelião, uma epidemia… ainda não sabemos o que será, mas
duvido muito que o Henrique consiga reinar até o final dos seus dias
com tranquilidade, como aconteceu com os seus antecessores. A
Helena é a mudança que os súditos anseiam e votar nela, a longo
prazo, é a decisão mais inteligente.
O homem balança a cabeça, tentando assimilar as palavras
da baronesa e aproveito para insistir um pouco mais.
— As províncias mais distantes já estão demonstrando sua
preferência por mim, porque estão cansados de viver de restos. Eu
sei como é a vida lá e vou saber, melhor do que ninguém, como
melhorar as condições de vida do povo.
— O Henrique é um mero fantoche do visconde. Todos nós
sabemos disso… Você confia no visconde? — a senhora insiste,
externando aquilo que todos nós pensamos.
— É claro que não, mas não é assim que as coisas
funcionam. Quem paga a banda, pede a música e, nesse momento,
só o que me interessa é saber quem está disposto a tocar o que eu
quero. Agradeço pela visita. — Ele se levanta e abre a porta para
que possamos sair.
Irritada e frustrada com o saldo da conversa, permaneço em
silêncio durante o trajeto curto pelos corredores, até o quarto da
senhora. Além da decepção por estar ainda mais distante do meu
objetivo, não consigo evitar o nojo que esta conversa me causa.
Quem está disposto a tocar a música que ele quer?
Francamente… Ele pensa em condenar uma parcela
importante da população em troca do seu próprio benefício? Com
que tipo de gente estou lidando?
— Nossa conversa não foi de todo ruim, minha querida —
comemora, assim que nos fechamos em seus aposentos.
Ela se senta e sirvo-lhe um copo d'água. Depois, tomo um,
porque minha garganta está seca.
— Seria ingenuidade pensar que ele fosse concordar com a
nossa proposta, assim, logo de cara. Mas temos que nos agarrar ao
fato de que ele não descartou ficar do nosso lado — alega,
animada.
— Mas a que preço? Vamos ter que trocar favores, como se
eu fosse igual àquele duque mau caráter — resmungo.
— Uma coisa de cada vez, Helena. Uma coisa de cada vez
— repete, com calma. — Agora, temos que nos contentar com o
pouco progresso que fizemos.
Bufo, revoltada, e começo a andar de um lado para o outro,
como se isso fosse capaz de aplacar toda a repulsa que sinto por
todos esses acordos.
Eu não quero ser como eles.
Se o Henrique não fosse tão baixo, nada disso estaria
acontecendo.
— É tudo culpa do Henrique — brado, tomada pela raiva. —
Por que meu oponente tem que ser tão canalha? Ele está me
obrigando a fazer coisas que odeio! Caramba! Eu nem consigo
imaginar o que a minha mãe diria se soubesse o que estou prestes
a fazer… Os pais dele não o ensinaram a ser honesto e decente,
não?
— Eu não sei se eles tiveram tempo para isso.
— Como assim?
Ela dá dois tapinhas sobre a cama, ao lado de onde está
sentada, chamando-me para sentar ali e o faço.
— Você nunca se perguntou porque você e o Henrique são
os únicos integrantes tão jovens da Corte?
— Na verdade, não…
Até a baronesa tocar nesse assunto, isso sequer passou pela
minha cabeça. Lembro de ter ficado chocada com a idade do duque,
quando o vi pela primeira vez, porque jurava que ele era um velho
babão, como eu e o Aristides imaginávamos, mas o motivo disso
nunca me interessou.
Até agora, pelo menos.
— A família dele morreu em um acidente de carro. Ele devia
ter uns nove anos na época e, como não tinha nenhum familiar
disposto a ficar com ele, o visconde fez a boa ação, já de caso
pensado — conta. — Pensei que você soubesse.
Balanço a cabeça para os lados, aturdida com as
informações.
Ainda não gosto dele, mas essa informação explica muita
coisa. Como posso exigir integridade de alguém que foi criado sob o
mesmo teto que o visconde e a Morgana? Acho que eu não
aguentaria.
— Agora temos que descobrir o que o Henrique ofereceu em
troca do voto do marquês e pensar em uma contraproposta. —
Sorri. — Estou esperançosa que vamos conseguir o voto dele muito
em breve.
Despeço-me dela e volto para o meu quarto com a cabeça
fervilhando de pensamentos, mas, para o meu azar, a conversa com
o marquês não está entre eles.
Nunca fui de perder o sono com facilidade, mas desde que
vim morar neste Palácio este é um problema que vem me assolando
com certa frequência. Talvez seja culpa da ansiedade com toda
essa história do marquês, já que, se ele aceitar nos apoiar, eu serei
a rainha e, apesar de querer muito que isso aconteça, também
morro de medo.
Depois de rolar na cama pelo que considero tempo suficiente,
levanto e abro a cortina do quarto. Pelo vidro, vejo a garoa fininha
caindo e o céu encoberto. A vista daqui é bem bonita quando o céu
está limpo. Já perdi a conta de quantas vezes passei minhas horas
insones observando o pedaço do jardim que consigo enxergar
daqui. Mesmo de madrugada, o lugar é bastante iluminado por
postes decorados que só o tornam mais exuberante.
Mas hoje o clima resolveu não colaborar e vou até a cozinha
para tomar um copo de leite morno. Minha mãe diz que ajuda.
Admito que fico aliviada quando vejo que a porta está
fechada e as luzes apagadas. Estava receosa que fosse encontrar
algum casal se agarrando por aqui. Também tem o fato de que, com
preguiça de me trocar, vim com meu pijama curto e surrado.
Sem rodeios, pego o leite de dentro da geladeira e perco
algum tempo procurando uma panela para poder aquecê-lo.
Mantenho meus olhos atentos, pois não quero que levante fervura,
por isso, fico parada, em frente ao fogão, com a sola do pé apoiada
no interior da coxa e, para quebrar o silêncio, assovio baixinho uma
canção boba que a minha mãe cantava enquanto costurava.
— Pensei que mais ninguém no reino conhecesse essa
canção.
A voz, mesmo que baixinha, consegue me assustar e me viro
na direção da porta a tempo de ver o Henrique, com o ombro
apoiado no batente da porta e, para o meu total constrangimento,
sem camisa.
Torno a olhar para a panela, enquanto sinto meu rosto
alcançando todos os tons de vermelho possíveis.
Aposto que as regras de etiqueta são bem claras sobre andar
sem camisa por aí… Se a senhora Zélia souber disso, aposto que
terá que rever seus conceitos sobre quem foi seu melhor aluno.
— Mudou a tática? Agora, em vez de me ofender todas as
vezes que nos encontramos, vai me ignorar? — insiste, cheio de
deboche.
Desligo o fogão e despejo o conteúdo em uma xícara, que já
tinha deixado preparada.
— De onde eu venho, é de extrema falta de educação obrigar
uma moça a vê-lo sem camisa, sabia? — disparo, sem conseguir
encará-lo.
— De onde eu venho, esse seu short também não é
considerado o cúmulo da decência — rebate, áspero.
Agarro com força a minha xícara e me encaminho para a
porta, com passos firmes e rápidos e fico ainda mais zangada
quando, de relance, vejo um sorriso em seus lábios. Paro ao seu
lado e disparo:
— Por que você simplesmente não me esquece, Henrique?
— Como eu vou te esquecer se, a cada vez que penso que já
poderia estar usando a coroa, lembro que ainda não sou rei só por
sua causa?
Ao contrário de mim, que estou tomada pela fúria, sua frase
soa magoada e cheia de ressentimento. As palavras da baronesa
voltam a ecoar na minha cabeça e, por alguns segundos, a ira dá
uma trégua.
Você nunca se perguntou porque você e o Henrique são os
únicos integrantes tão jovens da Corte?
Não consigo imaginar uma vida sem a minha família. Não
consigo mensurar a dor de perder as pessoas que mais amo.
— Está pensando em mais formas de dizer que eu sou uma
pessoa desprezível? — indaga, quebrando o silêncio sepulcral que
se formou. — Você está se saindo bem, Helena. Estou quase me
convencendo disso, sabia?
— Reconhecer os próprios erros é o primeiro passo para a
redenção. — Dou de ombros.
— E quem disse que estou em busca de redenção? —
retruca. — Meu único objetivo é o trono.
— Espero que, quando o diabo vier cobrar a sua alma, tudo
tenha valido a pena — respondo, deixando a cozinha, com a xícara
nas mãos.
Meu objetivo também é o trono, mas, ao contrário dele, eu
tenho princípios e conheço muito bem os limites que não quero
cruzar para alcançá-lo.
Hoje completam três semanas desde que me mudei para cá
e isso significa duas coisas.
A primeira é que tenho pouco mais de trinta dias até a
votação e ainda não tive nenhum avanço, além de trocas de farpas
constantes com o Henrique e conversas escusas com o marquês. A
única novidade boa é que as aulas com a baronesa estão surtindo
os primeiros efeitos e tenho que me controlar para não ler em voz
alta e de forma bem amadora toda palavra que vejo por aqui,
embora ainda esteja bem longe de saber o que gostaria.
A segunda é que quase não aguento de saudade da minha
família, do Jonas e de todo o meu vilarejo. Falo com eles todos os
dias por telefone, mas não é o bastante. Queria poder abraçá-los,
conversar pessoalmente com eles, saber das novidades que
acontecem por lá e que tenho certeza que eles esquecem de me
contar, por achar que, agora que estou aqui, não vou dar
importância.
É por isso que estou aqui, deitada na cama, batendo papo
com o Jonas há horas.
— Daqui a pouco tenho que me arrumar para uma festa
chata, mas não estou com a menor disposição para fingir que
suporto ficar no meio daquelas pessoas — reclamo.
Muito pior do que uma festa, esta se trata do aniversário de
vinte e três anos do Henrique. Já imaginando que eu negaria o
convite, o desgraçado fez o Aldo convocar toda a Corte, ou seja,
não tenho escapatória.
— Como você quer ser rainha, se tem pavor de eventos
sociais? — devolve, intrigado. — É melhor começar a se acostumar,
Lena.
— Acostumar é diferente de gostar.
— Então pensa pelo lado bom. É uma festa, vai ter música,
bebida…
— Mas a dança daqui é completamente diferente e sem
sentido! — Interrompo-o, chateada. — É chata e complicada.
A senhora Zélia não cansa de apontar todos os meus erros
ao tentar dançar aquelas músicas monótonas, com passos
ensaiados e bregas. Tá… na verdade não é tão ruim assim. Talvez
seja só implicância minha.
— O que eu quero dizer é que depois de algumas bebidas,
talvez o marquês se solte e lhe conte algo de interessante. É sua
chance de tentar arrancar alguma informação útil. Você não vive
reclamando que não teve nenhuma evolução?
— Caramba, Jonas! Você é um gênio! — Rio, empolgada,
começando a ver uma boa razão para comemorar o aniversário do
meu inimigo. — É uma tremenda falta de sorte que não seja você
aqui no meu lugar. Você tiraria isso de letra e já estaria sentado no
trono há tempo.
Ele solta uma gargalhada longa e debochada, demonstrando
que não concorda com a minha opinião.
— Óbvio que não, Lena. Eu sou medroso pra caramba…
Sem dúvida alguma, teria votado no Henrique, só para poder voltar
para casa o mais rápido possível.
— Mas foi você quem me aconselhou a ficar aqui e enfrentá-
lo — contesto.
— Bom, eu sou um ótimo conselheiro, o que não quer dizer
que eu seja um bom executor dos meus próprios conselhos —
brinca. — Agora, acho melhor começar a se arrumar e chegar cedo
nessa festa, porque estou com um ótimo pressentimento quanto a
isso.
Por mais que eu tenha insistido para que a Carol não
exagerasse, ela não acatou o meu pedido. Não que eu esteja feia,
longe disso, acho que nunca me vi tão bonita em toda a minha vida.
— Você tem que estar maravilhosa. Ninguém bota fé em uma
futura rainha toda desgrenhada — explicou, quando contestei sua
escolha.
O vestido longo, tem um tom de azul escuro tão lindo, que é
quase hipnotizante. O decote ombro a ombro deixa meu colo e
meus ombros à mostra e contrasta perfeitamente com a minha pele.
Ele segue ajustado até a cintura e depois ganha volume, até o chão,
onde algumas pedras prateadas deixam o tecido parecendo com um
céu estrelado. Meus cabelos estão presos em um coque baixo e
elegante, que, aliado ao batom vermelho, fazem-me parecer uma
verdadeira lady. Para arrematar, ela encontrou um par de brincos de
pedras da mesma cor do vestido. Por sorte, consegui um sapato
com salto médio, para o total horror da minha professora de
etiqueta, que, desde que começou a me dar aulas, exige que eu use
uns sapatos que mais parecem uns palanques, de tão altos.
Olho-me no espelho uma última vez, antes de deixar o
quarto. Sinto-me confiante, não apenas em relação à minha
aparência, mas com o que vai acontecer no baile. Acho que, depois
de dias andando em círculos, conseguirei alavancar minha
candidatura.
Devido ao receio de aparecer sozinha no salão de festas,
combinei de encontrar a baronesa em seus aposentos às nove em
ponto e, como prometido, aqui estou eu.
— Você está deslumbrante, Helena — elogia, assim que me
vê.
— A senhora também está um arraso — respondo, sorrindo.
Caminhamos lentamente pelo corredor, conversando sobre
besteiras e coisas inúteis e, conforme nos aproximamos do salão de
festas, temos que erguer a voz, pois a música alta está
atrapalhando nossa conversa.
A poucos metros dali, sinto que meu sapato está esquisito e
paro para conferi-lo.
— Droga! — resmungo, desanimada.
— O que houve? — indaga a senhora, preocupada.
— O salto do meu sapato quebrou. Vou ter que voltar e trocá-
lo — explico. — A senhora pode ir, que já a encontro no salão.
Ela assente e sigo na direção oposta, até o meu quarto.
Ainda bem que a Carol deixou aqui as outras opções que trouxe
para que eu experimentasse. Em poucos minutos já estou quase na
porta do salão, quando vejo a Morgana, vindo na minha direção.
— Aí está você — dispara, cruzando os braços.
Ela usa um vestido vinho, ajustado ao corpo e lindo de
morrer, que evidencia suas curvas e sua pele negra. Pena que seu
rosto não expressa o semblante de alguém que está animado com a
festa. Tenho certeza que um sorriso a deixaria deslumbrante.
— Estava me procurando? — indago, imitando sua postura.
— Só para dar um recado. Esta é a festa do meu noivo. Nós
não queremos você aqui. — Ela se aproxima de mim, a passos
lentos e com um olhar homicida.
Ela só esqueceu de um detalhe importante. Eu nunca tive
medo de cara feia.
— Eu faço parte da Corte, fui convocada e vou entrar nesse
salão, com ou sem a sua permissão.
Finjo um sorriso e continuo o meu caminho, ignorando a sua
presença, quando sinto uma leve pressão na saia do meu vestido e
paro de imediato.
— Seu vestido é bonito demais para uma caipira.
Ao olhar para trás, vejo-a com o tecido em suas mãos. Ela o
olha com um sorriso sádico estampado nos lábios e sei o que
pretende fazer. Antes que ela rasgue meu vestido, porque tenho
certeza que esse é o seu plano, agarro seu braço com força e a
empurro contra a parede, com o maxilar trincado de raiva.
— Encosta no meu vestido de novo e te mostro o que uma
caipira pode fazer com seu rostinho lindo — rebato, cheia de raiva.
— Meu vestido pode ser consertado com linha e agulha… — Solto
uma risada, debochada. — Seu rosto também, mas não acho que
seja uma boa ideia.
Por trás do deboche, posso ver o medo que minhas palavras
causaram. É bom mesmo, porque não sou do tipo que foge de briga.
Solto-a e respiro fundo, tentando esquecer esse pequeno entrave e
focar no meu objetivo.
Aproveito a pausa entre uma música e outra, para tentar
puxar conversa com o marquês, que, desde que chegou aqui, não
parou de dançar um segundo sequer.
Haja disposição! Eu estou cansada só de estar de pé sobre
os sapatos de salto alto, imagina se tivesse dançado por duas horas
seguidas.
Ele está sentado agora, conversando e rindo com sua esposa
e caminho apressada até ele, mas, antes que tenha oportunidade de
me aproximar, o Henrique se enfia na minha frente.
Eu sei que ele ainda é aquele duquezinho pomposo de meia
tigela, que acha que é mais esperto do que eu, mas tenho que
admitir que ele está mais lindo do que nunca. O terno azul marinho
— que, em uma triste coincidência, combina com o meu vestido —
aliado ao colete da mesma cor lhe caem muito bem. Se esse
nobrezinho metido não me causasse repulsa, é provável que ficasse
corada, só de olhar para ele.
— Dança comigo? — pergunta e estende a mão para mim.
Não sei se seu convite é uma piada sem graça ou uma
brincadeira de mal gosto, mas minha mente já está a todo vapor,
pensando em uma resposta bem grosseira, quando ele interrompe
meus pensamentos.
— Eu preciso conversar com você e não vejo outra forma de
fazermos isso, sem chamar atenção. — Agora sua voz reduz a um
sussurro urgente.
— E quem disse que eu quero falar com você? — retruco, de
cara fechada.
A postura esnobe se desfaz e a preocupação escurece seus
olhos castanhos, sempre tão brilhantes e vivos. Isso me faz recuar
um pouco.
— Se não fosse algo sério, acha que eu estaria aqui,
implorando para dançar com a minha rival? — argumenta,
impaciente.
Mordo o lábio e pondero sua proposta por poucos segundos.
Se isso tivesse acontecido antes daquela conversa com a baronesa,
teria o mandado para o inferno sem peso algum na consciência,
mas saber que ele está sozinho apaziguou todo aquele ódio. Ainda
acho que ele é um ser desprezível e inescrupuloso, só que agora
consigo entender como ele se tornou isso.
Reviro os olhos, mas acabo apoiando minha mão sobre a
sua, que ainda está estendida na minha frente, e seguimos até o
centro do salão. A música já está tocando e só quando ele se
posiciona na minha frente, lembro de um detalhe importante.
— Eu não sei dançar direito — explico, baixinho, para que os
casais à nossa volta não me ouçam.
— Deixa que eu te guio — responde, sem muita animação.
Tento não demonstrar nenhuma reação quando uma de suas
mãos pousa sobre a minha cintura, o que é quase impossível. De
forma automática, todos os músculos do meu corpo ficam tensos
com tamanha proximidade. Não estou acostumada a ficar tão perto
de homens, que não sejam meu pai, meu irmão ou o Jonas.
E nenhum deles é tão lindo, nem sorri tanto quanto ele.
— Você tem que relaxar um pouco — aconselha, quando
começa a ensaiar os primeiros passos.
— Pensei que quisesse falar comigo, não me dar aulas de
dança — revido, irritada.
Ele solta uma risada zombeteira e aguarda alguns minutos,
até eu me acostumar com o ritmo e parar de pisar no seu pé.
— Você e a Morgana tiveram algum desentendimento? —
pergunta.
— Na verdade, sim. — Ergo uma sobrancelha, sem entender
onde ele quer chegar. — Ela tentou rasgar meu vestido para que eu
não pudesse vir à sua festa, mas eu a coloquei no seu devido lugar.
Depois de soltar um risinho satisfeito, volta a me encarar.
— Isso explica a conversa que ouvi entre ela e o pai. Ela está
com raiva e vai tentar aprontar alguma coisa para te prejudicar. Se
eu fosse você, ficaria de olhos bem abertos.
Sem entender o propósito dessa conversa, paro no meio da
dança, intrigada e confusa. O que ele ganha me contando isso?
— O que foi? — pergunta, erguendo uma sobrancelha.
Olho em volta, tentando buscar a Morgana ou alguma pista
de que seu aviso faz sentido, mas, ao ver o marquês conversando
com o visconde, entendo o motivo de todo esse teatrinho.
— Eu sou muito burra, mesmo! — rosno, soltando-me das
suas mãos. — Isso tudo era um truque, né?
Um truque barato e tosco para me manter longe do marquês
e impedir que ele se alie a mim.
— Do que você está falando? — pergunta, fingindo
desentendimento.
— Não chega mais perto de mim! — ordeno e me afasto dele,
bufando.
Volto até a mesa e bebo o conteúdo da minha taça em um
único gole, a fim de amenizar a secura na garganta que esse
episódio me causou. A champanhe daqui é bem diferente da cidra
que costumava tomar nos casamentos do meu vilarejo. Não
contenho a careta ao sentir o gosto amargo.
Sento-me à mesa e aguardo uma oportunidade para poder
conversar com o marquês e impedir que o plano baixo do Henrique
se concretize, mas uma sensação estranha começa a me
incomodar. Uma espécie de dormência em todo o corpo, como se,
de repente, tudo tivesse ficado pesado demais para se mover.
Decido me levantar e ir até o banheiro. Talvez seja sono,
porque já está um pouco tarde, mas tenho dificuldade em me mover
para fora do salão. Todas as pessoas estão ocupadas demais para
notar que não estou bem e preciso me segurar em apoios de
cadeiras e nas paredes para conseguir atravessá-lo. As vozes e a
música se fundem em um som bizarro e sem sentido e, aos poucos,
a visão se torna turva e embaçada. Não sei como consigo sair dali,
mas, assim que fecho a porta atrás de mim, contabilizo três passos,
antes de despencar no chão, desacordada.
Um gemido de dor escapa dos meus lábios, quando, aos poucos,
recobro a consciência. Minha cabeça está explodindo e aquela sensação
estranha de torpor ainda não me abandonou por completo. Abro os olhos
e, conforme minha visão se estabiliza, dou-me conta que não estou no
meu quarto.
A última lembrança que tenho é de chegar ao corredor e cair no
chão. Depois disso, há uma lacuna assustadora. O pavor toma conta de
cada célula do meu corpo, a respiração fica ofegante e as mãos começam
a tremer, ainda mais, porque não faço a menor ideia de onde estou.
As palavras do Henrique voltam à minha mente.
Ela está com raiva e vai tentar aprontar alguma coisa para te
prejudicar. Se eu fosse você, ficaria de olhos bem abertos.
Tenho que sair daqui imediatamente.
Meu corpo não me obedece. O máximo que consigo é me arrastar
para fora da cama, caindo com força sobre o piso duro e gelado.
— Aonde você pensa que vai?
A voz soa distante e distorcida. Não a reconheço, mas não consigo
levantar do chão para fugir daqui. Manter os olhos abertos requer um
esforço grande demais, mas não posso sucumbir. Não quando sinto que
estou em perigo.
— Socorro — tento gritar, mas a língua parece ter triplicado de
tamanho.
Mãos me levantam do solo e a maciez do colchão volta a acariciar
meu corpo, apesar de tentar sair, com todas as minhas forças.
— Você precisa descansar.
É o Jonas. Tenho certeza que é ele. Posso reconhecer sua voz e
seu sorriso.
Se ele está cuidando de mim, não há o que temer.
— Obrigada, Jonas — resmungo, antes de cair em um sono
profundo.
Um pesadelo terrível me faz despertar sobressaltada.
Eu estava em um lugar desconhecido e não conseguia me mover
direito, nem gritar por socorro.
Sento sobre a cama, assustada, e me dou conta que não foi um
pesadelo.
Tudo aconteceu de verdade.
Aquela sensação estranha de não controlar meus movimentos, o
desmaio, o despertar em um lugar estranho, a voz do Jonas…
Por que diabos ouvi a voz do Jonas?
Agora que a visão voltou ao normal, percebo que ainda estou
usando o vestido da festa e meu cabelo está todo bagunçado, um pouco
preso, mas cheio de mechas soltas. A cabeça ainda dói e o corpo está
formigando.
Giro o pescoço e observo com atenção cada detalhe do quarto. Ele
é muito parecido com o meu, mas a decoração mais escura me causa
uma sensação sombria. Talvez seja porque ainda é madrugada e a pouca
claridade que vem da fresta da cortina, aliada a um pequeno abajur, não
sejam suficientes.
Em um canto pouco iluminado do quarto, posso ver que tem uma
pessoa cochilando, sentada sobre uma cadeira, com a cabeça pendendo
para a frente de forma desconfortável. Aperto os olhos para tentar
reconhecê-la, mas não consigo. Fico tensa ao me lembrar que tudo isso
pode ser parte do plano da Morgana e concluo que é uma boa hora pra ir
embora daqui.
Com todo cuidado, levanto da cama, pego meus sapatos, que
estão logo ao lado, e sigo a passos lentos até a porta, que range, quando
a abro.
Levo um susto e travo, com a mão na maçaneta. Olho por cima dos
ombros e vejo a pessoa acordar em um salto e vir na minha direção.
Fico boquiaberta ao constatar que se trata do Henrique.
Assim como eu, ele também ainda usa a mesma roupa do baile.
Quer dizer, em partes, já que o paletó, o colete e a gravata estão
pendurados em um mancebo próximo à porta. A camisa está aberta até o
peito e as mangas dobradas. Ele segue na minha direção, girando o
pescoço para os lados, a expressão inegável de dor.
— Você está bem? — pergunta, com a voz alguns tons mais grave.
Torno a fechar a porta e o encaro.
— O que aconteceu?
— Eu notei quando você deixou o salão, quase se arrastando. Não
consegui chegar a tempo de impedir sua queda, mas te trouxe para cá —
explica, cruzando os braços. — Colocaram alguma coisa na sua bebida e
tenho um palpite sobre quem fez isso.
— A Morgana — pondero, lembrando das suas palavras durante a
nossa dança. — E por que você está me ajudando?
Agora é a minha vez de cruzar os braços em frente ao peito.
— Até onde eu sei, você sairia ganhando, caso acontecesse
alguma coisa comigo.
Desconcertado, ele solta uma risada irônica e balança a cabeça.
— Eu já disse que não jogo sujo, Helena. Não entendo todo esse
medo que você sente de mim. Se quisesse te machucar, já teria feito isso
há tempo.
— Eu não tenho medo de você, Henrique — disparo. — Nunca tive,
na verdade. Já senti várias coisas a seu respeito. Desprezo, raiva, pena…
mas medo não.
— Deveria sentir gratidão também, por ter te encontrado antes da
Morgana. Só Deus sabe o que ela faria com você, para conseguir sua tão
sonhada coroa — retruca, com ar petulante.
Apesar do tom atrevido e de todo o desprezo que sinto, preciso
admitir que, desta vez, ele ganhou pontos comigo. Penso no que poderia
ter acontecido, caso não tivesse me encontrado antes da Morgana, e me
permito sorrir, ao concluir que ele não é esse monstro que pintei todo esse
tempo.
Talvez eu tenha canalizado todas as minhas frustrações no
Henrique, sendo que ele não é o único culpado. Na verdade, a cada dia
me convenço mais de que há pessoas muito piores por aqui.
— Pode me fazer um favor? — pergunto, um pouco constrangida.
— Eu preciso sair daqui, mas não quero que ninguém me veja. Pode ver
se tem alguém nos corredores?
— Não quer que ninguém saiba que seu inimigo a ajudou? —
brinca, com um meio sorriso cretino.
— Não é isso. De onde eu venho não é apropriado uma moça sair
do quarto de um homem em plena madrugada — explico, envergonhada.
Ele solta uma risada escandalosa, achando graça do que eu disse.
— É sério, mesmo? — insiste, quando se dá conta que não foi uma
piada.
— É.
— E de onde você vem? Da idade média?
Não vou admitir que não entendi sua piada. Apenas dou de ombros
e espero ele conferir se a barra está limpa.
— Nós estamos na ala leste do Palácio. Seu quarto fica na ala sul
— explica, apontando na direção que devo tomar.
Agradeço a gentileza e, finalmente, volto para o quarto.
— Você está brincando! — exclama o Jonas, estupefato com meu
relato sobre a festa e tudo que aconteceu. — Lena, você tem que tomar
cuidado!
Depois de voltar do quarto do Henrique e tomar um banho, fiquei
deitada na cama, rolando de um lado para o outro, a cabeça quase
explodindo de tanta dor, esperando um horário razoável para poder ligar
para o Jonas e lhe contar as novidades. Mais do que isso, espero que ele
possa me ajudar de alguma forma.
— Jura? — devolvo, sarcástica. — Se você não tivesse me
convencido a ir naquele maldito baile, nada disso teria acontecido.
— Nem vem! Você me disse que foi convocada para essa festa de
qualquer maneira — revida, impaciente. — Eu só te dei um motivo para
aproveitar sua presença lá.
Ignoro sua explicação, porque sei que está correta.
— Ai, Jonas… O que eu faço? Tem uma doida varrida querendo
acabar comigo, um visconde sujo que faz todas as vontades da filha e que
também me quer bem longe daqui, um marquês que só está esperando a
melhor oferta para se corromper e o Henrique, que já não sei mais o que
pensar a respeito… — Suspiro, angustiada. — Queria tanto que você
estivesse aqui comigo.
Mesmo que não possa ver, consigo sentir seu sorriso. É estranho
conhecer uma pessoa tão bem a ponto de saber suas reações, antes
mesmo que as expresse.
— Se eu pudesse, estaria aí, te ajudando e colocando essa gente
para correr. Você sabe disso.
— Você? Colocando eles para correr? Você não mete medo nem
em barata! — zombo, entre gargalhadas.
— Só não revido, porque você tem razão. — Ri.
Meu coração se aperta com a saudade que sinto dele e da minha
família. Não vejo a hora de acabar esses sessenta dias para, enfim, poder
voltar a vê-los. Seja como rainha, quando vou trazê-los todos para cá, ou
como a velha Helena costureira, quando voltar para casa. De qualquer
maneira, saber que terei todos ao meu lado ao fim desse período só faz o
tempo passar mais devagar a cada dia.
— Eu não sei o que dizer, Lena. O que sua intuição está dizendo
sobre essa mudança de atitude do Henrique?
— Eu não sei… Até ontem, jurava que ele era meu inimigo e pronto
— explico, enrolando o fio do telefone no dedo. — Quando eu soube o
que aconteceu com os seus pais e que ele teve que morar com o
visconde e com a Morgana… Eu reconsiderei muita coisa depois disso.
Só de me imaginar, crescendo em uma casa com a Morgana, sinto
arrepios.
— E depois de tudo o que aconteceu ontem, confesso que me senti
um pouco culpada por tê-lo expulsado de forma tão grosseira, quando ele
veio até aqui para me alertar sobre o quão perigosa aquela garota é.
Talvez ele não seja tão ruim quanto imaginei.
Mais do que isso, talvez, concentrando toda a raiva nele, como se
fosse meu único inimigo, eu tenha deixado de prestar atenção nas outras
pessoas que podem ser ainda mais perigosas do que ele. Quem sabe, eu
esteja deixando passar algo muito importante.
— Eu acho que o Henrique é meu oponente e, por motivos óbvios,
estamos em lados opostos, mas isso não significa que ele queira o meu
mal — concluo. — Sinto que, apesar de tudo, ele é alguém em quem
posso confiar, quando algo muito grave acontecer. Isso parece loucura
para você?
— Parece, na verdade — brinca. — Mas é você quem sabe, Lena.
Eu não estou aí para poder te dizer com certeza. Só toma cuidado, porque
o que aconteceu essa noite não foi um fato isolado. Essa garota vai tentar
algo contra você mais cedo ou mais tarde.
— Eu sei disso. Obrigada, Jonas. Já disse que você é incrível hoje?
Novamente, quase consigo enxergar seu sorriso lindo e sem graça
do outro lado.
— Hoje ainda não — responde. — Mas só está perdoada porque
ainda são sete horas da manhã.
Mais uma semana se passa sem grandes novidades e essa
incerteza sobre o que vai acontecer começa a me preocupar
bastante. Metade do tempo já se foi e me sinto cada vez mais longe
do meu objetivo.
O marquês parece arredio e se esquiva de mim e da
baronesa o tempo todo, temendo que o coloquemos contra a
parede. No fundo, acho que ele tem medo que nossa oferta seja
melhor e acabe quebrando o acordo com o Henrique, porque ele é
vendido, mas sabe que isso não é nada nobre.
Além disso, a Morgana sumiu desde o baile. Ouvi rumores de
que está viajando, resolvendo alguns problemas para o pai, que não
pode deixar o Palácio até o término do prazo da votação. De
qualquer maneira, estou de olhos bem abertos. Desde que ela
tentou me dopar para fazer sabe-se lá o que comigo, todo cuidado é
pouco.
Estou caminhando pelos corredores, rumo às minhas aulas
de etiqueta, e encontro o Henrique, fazendo o trajeto oposto ao
meu. Cumprimentamo-nos com cordialidade, como vem
acontecendo desde a noite em que ele me ajudou, o que é
esquisito. Uma realidade em que não o odeio ainda é estranha para
mim.
— Indo para a sessão diária de tortura? — ele pergunta, com
bom humor.
— Treino difícil, combate fácil. É o que dizem — brinco,
sorrindo.
— Considerando que a senhora Zélia é quem está te
treinando, tenho certeza que o combate vai ser moleza. — Dá uma
piscadinha, o que me faz desviar o olhar, com medo que ele note
que me deixou corada.
Droga! Não é só porque já não o detesto tanto quanto antes,
que meu corpo pode se dar ao luxo de corresponder às suas
canalhices. Ele pode pensar que sou o tipo de garota que se agarra
às escondidas em cozinhas de madrugada, coisa que não sou!
Praguejando-me, sigo até o salão, onde a minha torturadora
oficial já me espera com livros e cores de guardanapo, para que eu
os combine entre si. Apesar da chatice que me aguarda pelas
próximas horas, fico aliviada ao observar que a vitrola está fechada.
Pelo menos, não terei que dançar.
— O senhor Aldo não lhe passou meu recado? — pergunta,
assim que me sento no meu lugar de sempre.
— Não.
— Eu havia pedido que trouxesse um caderno para fazer as
anotações necessárias e muito importantes sobre como organizar
um jantar. Você pode ir lá buscar.
Meu coração erra algumas batidas, antes de tamborilar com
tanta força, que aposto que ela consegue ouvir, mesmo estando a
três metros de mim.
— Não precisa — respondo, rápido demais. — Minha
memória é ótima.
Neste caso, ela será obrigada a corresponder às nossas
expectativas, para que ela não descubra o meu segredo.
Forço um sorriso, tentando lhe mostrar que estou muito
segura sobre isso, quando, na verdade, estou prestes a ter um
colapso nervoso.
— Bom, você é quem sabe. — Concorda, cética e começa a
dar sua aula.
Espero que a minha mente não me sabote, porque meu
segredo está nas mãos dela.
Deixei as aulas me sentindo razoavelmente satisfeita com a
capacidade do meu cérebro de armazenar informações. Consegui
absorver boa parte do que ela me explicou. O problema é que,
considerando que a aula dura em torno de quatro horas, esse pouco
que ele não processou é muita coisa.
E se na próxima aula eu não lhe mostrar que me recordo de
tudo o que a senhora Zélia falou, ela vai me obrigar a levar um
caderno e aí eu estarei perdida.
Tentando achar uma solução rápida e eficaz, tenho a ideia
brilhante de levar para os jardins — onde geralmente fico solitária —
os exercícios de escrita que a baronesa me passou durante toda a
semana, como se isso fosse capaz de me fazer escrever como uma
pessoa normal em poucas horas.
Escondo-me entre duas estátuas de anjo enormes, desta
forma, posso ouvir se alguém se aproximar e, antes que ela
descubra o que estou fazendo, tenho tempo de esconder todas
essas páginas rabiscadas com meus garranchos. Deitada, de
bruços, apoiada sobre os cotovelos e com os pés balançando,
refaço todos os exercícios, copiando letras e mais letras, juntando
sílabas e quase dando um nó nos meus dedos para que tudo fique o
mais bonito possível.
— Que droga de letra cheia de voltas! — xingo, baixinho,
quando todas as minhas tentativas de fazer um B decente falham.
— O que você está fazendo aí?
A cena acontece em câmera lenta. Meu olhar vai subindo
bem devagar dos pés descalços à minha frente, passando pelo peito
nu, até chegar ao rosto curioso do Henrique, que está parado na
minha frente, com as mãos apoiadas na cintura.
Ele não deveria estar aqui! Nunca o vi nos jardins antes.
— Nada que seja da sua conta — devolvo, ríspida,
escondendo todos os papéis debaixo do meu corpo. — Já te
disseram que é falta de educação bisbilhotar?
— Eu não estava bisbilhotando — defende-se. — Ouvi uma
voz e achei estranho. Não pensei que fosse te encontrar aqui.
Ele parece sincero, mas estou tão transtornada com a ideia
de que ele descubra minha maior fraqueza, que o ataco, mesmo
assim.
— Agora que já sabe quem é, pode ir embora. Já te disse
que é extremamente grosseiro andar sem camisa para cima e para
baixo!
Essa nem é a razão de enxotá-lo daqui… Mesmo que vê-lo
neste estado me deixe constrangida.
— Ah, tinha me esquecido que estou lidando com a moça da
Idade Média — desdenha.
Ah, lá vem ele com essa piada sem graça — que talvez
tivesse graça, se eu a entendesse.
Irritada com o rumo da conversa e por ele ainda não ter ido
embora, levanto-me em um salto e cruzo os braços na sua frente.
Ainda bem que ele parece curioso demais no que tenho a dizer,
porque nem nota os vários papéis que ficaram sobre a grama.
— Não me interessa! Se eu estou dizendo que isso me
incomoda, você poderia ter um pouquinho de educação e bom
senso — insisto, revoltada. — Vá logo vestir uma camiseta, como
todos os homens decentes desse Palácio fazem.
Ele não se intimida com as minhas palavras, nem com a
minha expressão dura, nem, muito menos, com a pouca distância
entre nós. Pelo contrário. O desgraçado solta uma gargalhada,
debochando de mim.
— E se eu não quiser? — desafia-me.
Como eu posso ter esquecido que estou lidando com o
Henrique, afinal?
Mesmo que o episódio do baile tenha tentado me mostrar o
contrário, ele continua sendo aquele duque chato, metido e esnobe,
que acha que pode fazer o que quiser.
Ficamos nos encarando por alguns segundos. Meus olhos
cerrados e maxilar trincado deixam claro que, apesar do seu sorriso
zombeteiro, não estou achando a menor graça da situação. Enfim,
seus olhos se desviam dos meus e, quando me dou conta que está
tentando olhar por cima do meu ombro, giro o mais rápido possível,
recolho as folhas do chão e saio correndo dali com pressa.
Que grande ideia, Helena!
Além de ser constrangida por esse duque idiota, que acha
que todo mundo está interessado em ficar admirando seu peitoral,
ainda quase deixei que ele descobrisse que sou burra.
Só Deus sabe o que ele pode fazer se descobrir isso.
Decidi não sair mais de dentro do quarto. É como se essas
quatro paredes fossem o único lugar confiável desse Palácio, onde
posso ser eu mesma, onde me sinto segura e protegida de qualquer
ameaça.
Pedi que meu jantar fosse servido aqui, para evitar trombar
com aquele duque metido e levantar mais desconfianças sobre meu
segredo.
A baronesa também não estava se sentindo disposta, por
isso, cancelou nossa aula, o que me deu mais tempo para
prosseguir com meu plano desesperado de tentar aprender em
menos de vinte e quatro horas o que não aprendi durante a vida
toda.
Por isso, as batidas na minha porta me deixam tão irritada.
— O que foi? — pergunto, sem esconder a impaciência, que
se transforma em irritação quando vejo que meu visitante é alguém
bem inoportuno. — Não tem mais nada para fazer, não?
Queria entender em que momento o Henrique deixou de fingir
que não existo e começou a tomar gosto por me deixar zangada. Eu
era mais feliz quando esse chato parecia não ligar para mim.
— É claro que tenho. Sou um homem ocupado, mas resolvi
achar uns minutinhos na minha agenda lotada só para saber se está
tudo bem com você — brinca.
Isso é um teste de paciência! Só pode ser. E se for, não estou
me saindo nada bem. Reviro os olhos e bufo:
— Estou ótima, não está vendo? — Abro os braços de forma
teatral, só pra ele ver que não há nada de errado comigo. — Agora,
já pode ir.
— Que pressa toda é essa em se livrar de mim? O que você
está escondendo, Helena?
Mais do que sua curiosidade e falta de noção, o que me deixa
mais zangada é o seu deboche sem fim. Esse sorrisinho zombeteiro
e o brilho divertido em seus olhos castanhos conseguem despertar
os piores sentimentos que existem em mim.
— Se fosse para você saber, eu não estaria escondendo,
Henrique — respondo, cruzando os braços e fechando a cara. — Já
sabia que você é metido e esnobe, mas enxerido também? Você ia
se dar bem com algumas pessoas lá do meu vilarejo.
— Deve ser um segredo e tanto — pondera, segurando o
queixo. — Pra te deixar tão nervosa desse jeito…
Agora é a minha vez de gargalhar. Ele só pode ser doido!
— Nervosa? E de onde você tirou que eu estou nervosa?
— Você sempre morde os lábios quando está nervosa —
devolve, presunçoso. — Exatamente como está fazendo agora.
Sinto um ódio gigantesco dele e, mais do que isso, de mim
mesma, ao constatar que ele tem razão. Eu estava mordendo o
lábio. Será que eu sempre faço isso?
— Para alguém que não gosta de mim, até que você anda
prestando bastante atenção no que eu faço — provoco, tentando
esconder que sua descoberta me incomodou.
Ele se aproxima ainda mais de mim, até poucos centímetros
separarem nossos rostos.
— E quem disse que eu não gosto de você?
Pela primeira vez, não há qualquer tom de sarcasmo ou
deboche em sua voz. Só o calor do seu sussurro acariciando minha
pele e fazendo um arrepio percorrer o corpo inteiro.
Não recuo e continuo o encarando, mesmo que o coração
esteja tão acelerado, que tenho receio que ele note. Pior do que
isso, que saiba que é o causador dessas sensações esquisitas. Por
fim, ele abre um daqueles sorrisos atrevidos e vai embora.
Fico estática, na mesma posição, até ele sumir no corredor.
Só então, solto o ar de uma vez e bato, com força, a porta do
quarto, morrendo de raiva desse duque insuportável.
Puxo a mecha da esquerda para o centro, tentando adicionar
mais um pedaço do cabelo solto, como a Carol me ensinou, mas
meus braços já estão cansados e a trança está longe de sair como
eu gostaria.
— Você não esperava que ela saísse perfeita na primeira
tentativa, né? — brinca, deitada sobre a minha cama.
— Na verdade, sim — retruco, desanimada.
Estou sentada, encarando meu reflexo no espelho da
penteadeira, tentando terminar o serviço, mesmo que esteja claro
que está ficando muito diferente do planejado, quando batidas na
porta atrapalham minha prática.
Gostaria de saber em que momento da minha vida deixei de
ser a costureira esquecida, para me tornar a pessoa que não
consegue ter cinco minutos de paz no próprio quarto!
A Carol se assusta com a visita inesperada, mas faço um
movimento para que ela fique no lugar. Seja lá quem for, não vai
entrar no quarto, nem me tomar muito tempo.
— Você de novo? — pergunto, irritada, assim que dou de
cara com o sorriso irônico do Henrique na minha porta.
Era só o que me faltava! Será que ele mudou sua técnica de
ataque? Será que pretende me importunar de forma contínua, até
que eu me dê por vencida e desista da disputa? Tenho a impressão
de que esse método vá surtir efeitos com mais rapidez.
— Se o seu problema é falta do que fazer, lá na cozinha deve
ter uma pia cheia de louça. Seria muito mais útil para a sociedade
se fizesse isso, em vez de me incomodar, sabia?
A risada nasal da Carol denuncia sua presença e o curioso
tenta espiar por cima do meu ombro. Para evitar que isso aconteça,
saio do quarto e fecho a porta.
— Helena, Helena… Anda recebendo visitas indevidas no
seu quarto? — zomba, erguendo o queixo.
Quando me livrar desse duque chato, vou matar a Carol, pelo
deslize.
— Quem eu recebo ou deixo de receber no meu quarto é um
problema que só diz respeito a mim — devolvo, tentando não
vacilar.
— Bom… Se alguém souber que você está deixando sua
criada deitar na sua cama, garanto que esse problema será muito
mais dela do que seu. — Sorri, cruzando os braços. — Mas não se
preocupe com isso. Se você implorar bastante, talvez eu guarde seu
segredo.
Sua provocação me faz enxergar tudo em tons de vermelho.
Posso suportar seu sarcasmo, suas piadas sem graça e até sua
presença inconveniente, mas sua chantagem não.
Agarro sua camiseta e o empurro com força contra a parede
do corredor, sem fazer a menor questão de esconder toda a minha
raiva.
— Se você abrir a boca, juro que arranco cada dente desse
sorrisinho debochado — sibilo, com os dentes trincados. — Posso
não entender esse seu joguinho sujo, mas uma boa briga é minha
especialidade.
Percebo que minha ofensiva não surtiu o efeito desejado
quando, em vez de ficar assustado, ele sorri, com ainda mais
sarcasmo do que antes.
— Eu não vou contar. — Balança a cabeça, desvencilhando-
se das minhas mãos. — E não é porque você está me ameaçando.
Eu também não tenho medo de você, Helena.
Ele esfrega as mãos sobre o peito, alisando a camiseta que
amassei há poucos segundos.
— Ao contrário do que você pensa, eu não sou um ser
desprezível. Também não concordo com muitas coisas que
acontecem aqui e acho essa regra sobre funcionários e moradores
não poderem se relacionar um absurdo — explica.
É óbvio! Assim ele precisa se agarrar com a cozinheira às
escondidas e constranger os desavisados que só querem matar a
sede durante a madrugada.
— Na verdade, só vim avisar que o Aldo quer falar com você.
Se soubesse que minha integridade física correria perigo, teria
pedido para ele mesmo fazer isso — brinca e vai embora, deixando-
me sozinha.
Esfrego as mãos no rosto, tentando me livrar da fúria que me
domina, e volto para o quarto. Logo que abro a porta, a Carol se
afasta dela, com cara de quem foi pega em flagrante.
Ela estava ouvindo atrás da porta.
— Desculpa, mas eu não resisti — admite, corada. — Eu
precisava saber se ele ia ou não contar sobre o que viu.
— Ele não vai falar nada, não se preocupe. Se ele abrir o
bico sobre você, serei a primeira a espalhar que ele vem se
agarrando com aquela cozinheira — desdenho, voltando para a
penteadeira.
Pelo espelho, vejo-a se aproximando de mim.
— Eles não estão mais juntos — explica, enquanto separa o
meu cabelo e faz a tal trança que eu estava tentando fazer antes do
Henrique chegar. — Ela o trocou por um guarda.
— Um guarda? — Não consigo esconder o choque.
Embora seja metido e insuportável, é inegável que ele é
lindo. Tão lindo, que chega a dar raiva! Ou ela tem sérios problemas
de visão, ou esse guarda deve ser um espetáculo!
Ela assente e dá uma risadinha.
— Deve ser por isso que ele está ainda mais irritante nesses
últimos dias. — Reviro os olhos.
Ajeito o vestido e peço licença, antes de entrar na sala do
Aldo.
Não consegui entender o que ele gostaria de conversar
comigo e meu lado mais inseguro já tratou de inventar todas as
broncas que eu poderia receber por fazer coisas erradas por aqui.
Isso para não mencionar o pavor de que ele tenha descoberto que
não sei ler e irá me desqualificar da candidatura.
— Pode se sentar — pede, educado e apenas obedeço. —
Na verdade, como faz bastante tempo que não nos vemos, só
queria saber se está tudo bem e se está precisando de alguma
coisa.
Seu sorriso bondoso consegue me acalmar de forma
instantânea. Solto o ar todo de uma vez.
— Estou ótima. Obrigada por perguntar — respondo,
confiante.
— Além disso, seu aniversário está se aproximando…
— Não, você deve ter se confundido — interrompo-o. — Meu
aniversário é daqui a quatro meses.
— A data que sua segunda família te registrou pode ser essa,
mas estou falando da sua data de nascimento, que acontecerá
dentro de doze dias — explica, recostando-se no encosto da
cadeira. — Essas datas são muito importantes para nós, Helena.
Você precisa conversar com a Zélia para que ela ajude na
organização da festa.
Não escondo meu descontentamento com isso. Comemorar
aniversários já não está entre minhas atividades favoritas, quando
isso acontece em uma data que não faz o menor sentido e inclui um
monte de pessoas chatas e desconhecidas, a situação piora de
forma drástica…
— Geralmente, não abrimos exceções quanto aos
convidados, mas sua situação é diferente, então poderá convidar
sua família para vir à sua festa — diz, por fim.
— É sério? — pergunto, começando a me empolgar com
essa conversa.
Enfim uma notícia boa! Vou poder matar a saudade que sinto
de todos eles.
Ele assente e volta a se sentar ereto, com sua típica postura
nobre. Isso é algo que todos eles têm em comum. Sempre andam
cheios de si, exalando confiança e sua importância. Mesmo com as
aulas da senhora Zélia, ainda estou longe de andar com o peito
empolado como um pombo igual a eles.
— Três pessoas, correto?
— Quatro. Você esqueceu do meu noivo.
Bendito noivado! Quem vai proibir meu futuro marido de vir à
minha festa?
Sequer passou pela minha cabeça uma visita da minha
família que não inclua o Jonas. Isso está fora de cogitação.
Depois que ele concorda, deixo sua sala, animada, já
pensando em todas as novidades que vamos poder compartilhar
quando vierem para cá. Vou mostrar a eles os jardins, meu quarto, a
comida deliciosa… o Aristides vai amar a comida!
Estou tão animada e perdida em pensamentos, que levo um
susto quando sinto uma mão no meu ombro.
— Me desculpa — diz a esposa do marquês, ao ver o meu
sobressalto. — Eu não queria assustá-la.
Assinto, aceitando suas desculpas. No primeiro dia que estive
aqui, o Aldo me falou qual é o seu nome, mas não consigo me
lembrar por nada.
— Será que posso conversar com você? — pergunta, sem
jeito. — De preferência em um lugar mais discreto.
Ela olha para os lados, desconfiada, como se temesse ser
vista ao meu lado.
Curiosa com o teor da conversa, apenas a acompanho até
uma das salas que ficam próximas daqui. Assim que entramos, ela
tranca a porta, o que só fortalece minha suspeita de que, seja lá o
que ela quer tratar comigo, não é interessante que outras pessoas
saibam.
— Vou ser rápida, porque não quero que ninguém nos veja
tendo essa conversa — começa, pouco à vontade. — Meu marido
me contou sobre a reunião que vocês tiveram com ele sobre uma
possível aliança. Ele acha que deve fidelidade ao Henrique, mas eu
acho que ele só sairá perdendo com esse acordo. Ele lhe ofereceu a
administração das três províncias mais ricas e o cargo vago de
duque. Parece uma boa proposta, mas acho que nós merecemos
mais.
Balanço a cabeça e cruzo as pernas. Tento parecer serena,
uma pessoa que está tendo uma conversa casual, quando, por
dentro, estou vibrando como se tivesse conquistado a vitória sobre o
Henrique.
Forço-me a recordar o seu nome. Não quero parecer mal
educada lhe perguntando algo que deveria saber, especialmente
quando ela está entregando a cabeça do Henrique em uma bandeja
de prata para mim.
Paloma! O nome brilha como um letreiro colorido e me sinto
grata pela minha memória não ter me deixado na mão nesse
momento tão importante.
— Acho que todos nós merecemos mais do que ele pode
oferecer, Paloma — emendo, tentando entrar no seu jogo.
Ela é ambiciosa. Ainda mais do que o marido. Essa é a peça
que faltava para que a baronesa e eu pudéssemos traçar uma
estratégia definitiva rumo ao trono.
— Exato! Que bom que posso contar com sua compreensão.
— Sorri. — É por isso que vou propor que ofereça mais do que isso
a ele. Ele não declinará uma boa oferta. Eu mesma me encarregarei
de convencê-lo.
— Eu farei isso, com certeza.
Depois de verificar que os corredores estão vazios, deixamos
a sala, cada uma seguindo para um lado diferente.
Deixo escapar um bocejo cansado, evidenciando que estou
aqui, com a baronesa, há mais horas do que gostaria. Não que seja
muito tarde, mas tantas horas raciocinando e cogitando todas as
opções é um trabalho exaustivo.
Já pensamos em todas as propostas possíveis e impossíveis,
mas a única opção viável seria a administração de cinco províncias.
O meu cargo vago, caso eu seja rainha, não lhe interessa, já que o
marquês está acima de mim hierarquicamente. Além disso,
chegamos a cogitar o conselho real, mas fui resoluta ao dizer que
meu conselheiro será alguém de minha total confiança e não um
vendido qualquer.
— Espero que ele aceite — resmungo, exausta.
— Eu também, minha querida. Vamos torcer.
Com exceção de poucas palavras, um silêncio cheio de
ansiedade toma conta dos aposentos da mulher. Ela pediu a sua
criada que o chamasse até aqui para termos uma conversa e, assim
que recebemos a resposta que logo chegaria, meu estômago já
revirou o jantar tantas vezes, que penso que posso vomitar em cima
dele e estragar nossa negociação.
Ficamos alertas quando ele chega. Levanto da cadeira e abro
passagem para que ele entre. Apesar de ser uma reunião bem
informal, ela pode decidir meu futuro e o de todo o reino.
— Boa noite, senhoras — cumprimenta-nos, assim que se
senta em uma das cadeiras.
Também estou sentada em uma delas, enquanto a senhora
Olga está recostada em vários travesseiros, em sua cama, pois não
está se sentindo bem.
— Boa noite, Saulo. Muito obrigada por atender ao nosso
pedido. Como pode ver, não estou em condições de enfrentar uma
reunião — explica-se a senhora.
— Não há de quê. Espero que o assunto seja de grande
relevância.
— E é — emendo, animada. — Na verdade, temos uma
contraproposta para lhe fazer. A administração das cinco províncias
mais ricas será sua, caso eu tenha seu apoio.
Como havia combinado com a baronesa, o intuito é uma
conversa rápida, direta e sem rodeios. Não estamos com tempo
para enrolações. Precisamos de respostas o mais rápido possível,
pois, se ele negar, precisaremos de tempo hábil para traçar novos
planos.
— Cinco? Isso parece bem interessante — pondera. — Mas
eu não posso aceitar assim, de uma hora para outra.
— Nós nem esperávamos isso de você, Saulo — diz a
mulher.
— É uma decisão que precisa ser pensada e analisada com a
sua família — devolvo, lembrando-me das palavras da marquesa. —
Você tem até amanhã ao meio-dia para nos dar seu veredito.
Levanto da cadeira e o acompanho até a saída, depois volto
para perto da senhora.
— Ele vai aceitar — ela diz, otimista.
— E como a senhora sabe disso?
— Meu faro está dizendo isso.
Se ela, que entende dessas coisas, acha que vai dar certo,
quem sou eu para pensar o contrário? Sentindo-me também
esperançosa, volto para o meu quarto.
Toda a reviravolta da noite anterior me deixou tão eufórica,
que não consegui pregar o olho a madrugada toda. Quando aceitei
que o sono não estava de bem comigo, rendi-me e levantei da
cama, procurando algo para ocupar o tempo. Perdi algumas horas
observando os jardins e ponderando todas as consequências da
reunião. Depois, reorganizei o guarda-roupa, mesmo que nada
estivesse fora do lugar, até ver a noite se transformando em dia.
O relógio marca sete horas, quando um som grave e
insistente me dá um susto. Corro até a porta, tentando entender
porque diabos tem alguém tentando derrubá-la tão cedo.
Caramba! Deve estar acontecendo algo muito grave.
Não escondo a surpresa quando vejo o Henrique ali. De
braços cruzados e soltando fogo pelas ventas.
— O que está acontecendo, Henrique? — pergunto,
angustiada.
Ele não responde.
Apenas dá uma risada, essa sem qualquer humor. Trata-se
de um riso seco e cheio de raiva.
— Eu fui muito ingênuo quando pensei que você não sabia o
que estava fazendo — grunhe, com o maxilar trincado e os olhos
faiscando. — Você é a pessoa mais dissimulada que eu já tive o
desprazer de conhecer.
Não entendo sua reação raivosa. Embora não gostasse,
estava habituada a ser recebida por seus sorrisos cretinos, frases
cheias de deboche e olhares sarcásticos. Desta vez, a única luz que
brilha em seus olhos é uma chama furiosa.
Levo algum tempo para entender o que o deixou tão
possesso comigo, até que me lembro da conversa que tivemos com
o marquês. Ele já foi procurá-lo de manhã cedo, para poder nos dar
a resposta até o meio dia, como solicitamos.
— Dissimulada? — pergunto, perplexa.
— Hipócrita, fingida… Como quiser — dispara, com a voz
alterada.
Sei que não vou conseguir dispensá-lo com facilidade e não
quero que qualquer pessoa que cruze esses corredores veja nossa
discussão. Por isso, vou contra todos os meus princípios e abro a
porta para que ele entre, ignorando, por um instante, o pouco
comprimento do meu pijama.
— Eu não sou dissimulada — defendo-me, assim que fecho a
porta.
Com exceção de uns dois ou três passos que ele dá para
entrar no quarto, mantém-se estático e, mesmo que quisesse me
sentar para ter essa conversa, imito-o e ficamos parados próximos à
saída.
— Desde que chegou aqui, perdi as contas de todas as vezes
que você apontou o dedo na minha cara e me disse que sou
inescrupuloso e mesquinho. — Ele balança a cabeça para os lados,
transtornado. — Eu cheguei a acreditar em cada uma das suas
palavras, Helena, e me sentia horrível, porque você tinha razão.
Ele está furioso comigo e não consigo entender porque isso
me incomoda tanto.
— Imagine a minha surpresa ao descobrir que o exemplo de
integridade, que me julgava o tempo todo pela minha falta de
caráter, na verdade, é tão sujo quanto eu. — Ele cospe as palavras
com nojo.
— Não ouse me comparar a você — rosno, agora sendo
tomada pela indignação. — Nós somos completamente diferentes.
— E o que diferencia a gente, Helena? Você está oferecendo
favores em troca do voto do marquês, igual a mim. No fundo, nós
somos iguais. Talvez você seja até melhor do que eu, porque
aprendeu em um mês o que levei anos.
Não queria ter que admitir isso, mas suas palavras me
atingem com muito mais força do que eu gostaria. Ele é meu
inimigo, não deveria dar ouvidos a esse duque injusto, mas elas
machucam.
— Minhas motivações me diferenciam de você — defendo-
me. — Eu estou fazendo tudo isso para salvar as pessoas que eu
amo.
— Então você acredita que os fins justificam os meios? —
devolve.
— Eu… Não… Não é nada disso… — gaguejo, tentando
pensar em argumentos razoáveis, mas falhando.
Eu devia simplesmente mandá-lo para o inferno e colocá-lo
para fora daqui, mas não consigo e não entendo porque isso está
acontecendo.
— Você, ao menos, sabe o que está fazendo? — pergunta,
franzindo o cenho. Desta vez, mais curioso do que raivoso. —
Porque eu tenho a impressão que não. Que você me acusa de ser
um fantoche do visconde, quando, no fundo, é um fantoche da
baronesa.
Aquela centelha de culpa se apaga, dando espaço ao furacão
de ódio que só uma acusação sem sentido como essa poderia
provocar.
— Eu não sou fantoche de ninguém, seu duque metido! —
vocifero, enfiando o dedo no seu peito.
Ele não recua um centímetro sequer. Também não cedo e
permanecemos nos encarando, trocando faíscas através do olhar.
— Você só está despeitado porque vai perder para mim.
Porque, mesmo depois de anos se dedicando a isso, está vendo
seus sonhos se desfazendo bem em frente aos seus olhos, graças à
uma novata — provoco-o. — Confessa logo que está desapontado
só de pensar que, em breve, terá que se curvar para a pessoa que
mais odeia.
Estamos tão próximos um do outro, que sinto sobre a pele a
carícia de sua risada sem humor.
— Não se superestime, Helena. Você não está com essa bola
toda.
— Por quê? Acha que eu não consigo?
— Porque você não é a pessoa que mais odeio — declara,
sem desviar o olhar de mim. — Seria muito mais fácil se fosse.
A hostilidade se transforma em surpresa, de repente, e
aquela tensão raivosa vira pó, de uma hora para outra.
Ninguém diz nada, nem ousa se mexer. O único movimento
que consigo perceber é do seu olhar que, lentamente desce até a
minha boca. Só então, dou-me conta que estou mordendo o lábio,
denunciando que sua presença me perturba.
Tudo parece se desenrolar em câmera lenta e isso torna o
cenário muito pior. Eu tenho total ciência do que vai acontecer, se
não tomar uma atitude e afastá-lo de perto de mim.
O problema é que não consigo.
Ele é seu inimigo, Helena!
Uma parte quase insignificante da minha mente ainda tenta
me alertar, mas é silenciada pela outra, que quer pagar para ver até
onde isso vai.
Seus olhos ainda dão uma última conferida nos meus, como
se estivesse procurando neles um resquício de bom senso ou um
bom motivo para desistir antes que seja tarde. Mas ele não encontra
nada além de uma sutil permissão.
Prendo a respiração, em pura expectativa, enquanto o vejo
se aproximando cada vez mais de mim.
Meu juízo faz uma última tentativa de me despertar do estado
de torpor e acabar com essa palhaçada, mas antes que possa dar
ouvidos a ele, o toque da sua mão sobre a minha cintura é capaz de
causar um curto circuito no cérebro, fazendo-me esquecer de tudo.
Seus lábios finalmente tocam nos meus e, sem qualquer
delonga, a língua quente e macia invade a minha boca. Mergulho
minhas mãos nos seus cabelos, trazendo-o para mim e, durante
alguns segundos, permito-me aproveitar esse aglomerado de
sensações que o seu beijo me proporciona. O toque da sua pele
incendeia a minha. O gosto da sua boca é inebriante. Seu cheiro me
deixa tonta. Por alguns instantes, esqueço-me completamente de
quem somos e das circunstâncias que nos trouxeram até aqui.
Até que aquela partezinha insignificante, que tentou me
alertar há alguns segundos, ganha voz de uma hora para outra e
começa a gritar na minha cabeça que esse beijo é um erro
gigantesco.
Ele é seu inimigo, Helena!
Atordoada, empurro-o para longe de mim e, ainda ofegante,
dou-me conta do absurdo que acabei de cometer. Quase consigo
ver o reflexo da minha própria frustração quando olho para ele, que
também parece confuso e irritado.
Menos mau!
Se ele estivesse ostentando aquela droga de sorriso
debochado, nem sei do que seria capaz.
— Vá embora do meu quarto agora — ordeno, apontando
para a porta.
Ele não se move e reforço minha ordem, desta vez com um
grito:
— Vá embora do meu quarto agora!
Antes de deixar o quarto, ele balança a cabeça e bufa, como
se estivesse arrependido.
Duvido que esteja mais do que eu.
Assim que ele sai, bato a porta com toda força e me xingo,
como nunca fiz antes.
Droga! O que eu acabei de fazer?
Atende logo, Jonas!
Para meu total desespero, a casa parece estar vazia, porque
já é a terceira vez que o telefone chama até a ligação cair e não
obtenho qualquer resposta.
Mas que droga!
Faço uma última tentativa, quando ele finalmente me atende.
— Graças a Deus! Pensei que não fosse atender nunca —
reclamo, assim que ouço sua voz.
— Eu estava no mercado. Acabei de chegar — diz. — Você
está chorando?
Noto preocupação em seu tom de voz, o que me faz chorar
ainda mais.
— Eu quero voltar para casa, Jonas. Não aguento mais esse
lugar!
— O que aconteceu?
Conto-lhe sobre tudo o que aconteceu nas últimas horas. A
conversa estranha com a marquesa, a proposta ao marquês, as
ofensas do Henrique e, mais do que tudo, como suas palavras me
afetaram.
Não toco no assunto do beijo. É algo sem a menor
importância, que quero esquecer e não vai se repetir. Além disso, é
estranho falar sobre isso com o Jonas, mesmo que ele seja meu
melhor amigo. De onde viemos, as coisas são diferentes. Tenho
medo que ele me julgue, ainda mais, nesse momento em que estou
mais sozinha do que nunca.
Tem outro detalhe que também me impede de lhe contar
sobre isso.
O Jonas foi o primeiro rapaz que beijei. Não me orgulho nada
das circunstâncias em que isso se deu, já que ele foi forçado por
mim a fazer isso. Eu era a única garota com mais de quinze anos
que nunca tinha beijado ninguém no meu vilarejo.
Eu já tinha a minha aparência, que me diferenciava de todos
lá… Não queria mais esse motivo para me distinguir deles.
Como os rapazes de lá não eram opções viáveis, obriguei o
Jonas a me beijar, mas, infelizmente, o fato de ser meu melhor
amigo não tornou essa experiência menos constrangedora e digna
de pena. Passamos a fingir que isso nunca aconteceu e jamais
voltamos a tocar no assunto.
— Você não está fazendo nada de errado — insiste. — Só
está lutando com as armas que tem.
— Então por que eu estou me sentindo tão mal? — revido,
entre soluços. — Por que tenho a impressão de que ele está certo?
Eu não quero ser esse tipo de pessoa, Jonas. Eu vivo o acusando
por não ter escrúpulos e estou fazendo a mesma coisa. Só quero ir
embora desse lugar e ficar o mais longe possível dessas pessoas.
Ou que você estivesse aqui comigo.
Ele suspira, desanimado.
— Mas não dá, Lena — responde, triste. — Eu queria poder
estar aí com você. Caramba, você, melhor do que ninguém, sabe o
quanto eu gostaria de estar aí para poder te ajudar, não é? Mas não
tem como.
— Eu sei — resmungo. — Eu estou com medo de estar
deixando alguma coisa passar. E se o Henrique estiver certo? E se
eu for, mesmo, um fantoche da baronesa?
Sinto tanto desprezo por ele, que a simples ideia de que
sejamos iguais me embrulha o estômago. Pensar que estou
comprando o voto do marquês e sendo um fantoche como ele me
apavora, porque este pode ser só o começo de tudo.
— Bom, neste caso, você está fazendo isso por nós, não
está? — indaga. — Mesmo que outras pessoas ganhem com suas
atitudes, sua missão estará cumprida, porque você vai poder acabar
com várias injustiças.
Respiro fundo, tentando absorver suas palavras. Ele tem
razão. O futuro das pessoas que amo vale cada esforço e cada dia
nesse inferno.
Como eu disse para o Henrique mais cedo, minhas
motivações me diferenciam dele e quando tudo acabar, terá valido a
pena.
— Você tem razão. Essa briga não é só minha. Você é o
melhor amigo do mundo, sabia?
Ele solta uma risada, sem graça.
— Sempre que precisar, é só ligar. Agora eu preciso ir. Só
vim até aqui para buscar umas coisas para a minha mãe. Se ela me
pegar aqui, o melhor amigo do mundo está morto.
— Cadê a Carol? — pergunto, assustada, assim que vejo
uma outra moça na minha porta, alegando ser minha nova criada.
— Ela foi afastada por tempo indeterminado — responde,
seca. — Meu nome é Valéria e estou à disposição, caso a senhorita
precise.
Ela faz uma reverência, mas estou baqueada demais com a
notícia.
Permaneço a encarando, sem entender o que ela está
fazendo aqui. Quando isso acontece, meu sangue ferve. Alguém
dedurou a Carolina para o Aldo. Só uma pessoa a viu no meu
quarto. Embora ele tenha dito que não contaria, tenho argumentos
suficientes para acreditar que o Henrique abriu a boca só para me
prejudicar.
Marcho até seu quarto com passos firmes e remoendo a raiva
até ultrapassar todos os limites reconhecidos por mim. Esmurro sua
porta com toda força, repetidas vezes, até o punho doer.
— Calma! Já estou aqu…
Não o deixo terminar sua frase, nem me importo com o fato
de estar sem camisa. Apenas o empurro para dentro do quarto e
despejo todo o meu ódio em cima dele.
— Seu desgraçado, miserável — vocifero, com o dedo em
riste.
Meu desejo de acabar com a raça dele é tão grande que
continuo andando, até o encurralar contra a parede do seu quarto.
— Você acaba de cometer o maior erro da sua vida! Você
não faz ideia do que sou capaz quando atacam os meus amigos,
Henrique — ameaço, com os dentes trincados.
— Eu não sei do que você está falando — responde.
É reconfortante ver algo em seus olhos além de deboche. Ele
está assustado com a minha reação e é bom mesmo que esteja,
porque estou furiosa.
— Prejudicar a Carol só para me atingir? — continuo,
ignorando-o. — Você é muito mais baixo do que eu imaginei.
— Olha só que coincidência! Você também me surpreendeu
nesse quesito. — Cruza os braços, provocando-me.
Passado o susto, ele volta a apresentar aquela postura
soberba e o sorriso arrogante.
— Eu já disse que nós somos mais parecidos do que você
imagina, Helena — continua. — Nós dois somos manipulados e não
temos limites para conseguirmos o que queremos. Ah! — Faz uma
pausa, como se tivesse se lembrado de algo importante. — Temos
mais uma coisa em comum. Assim como eu, você também andou se
agarrando com outra pessoa, sendo noiva de…
Interrompo-o novamente, mas desta vez, não com palavras,
mas com um tabefe com toda força no seu rosto. A palma da mão
arde com o contato e só não reclamo, porque sei que sua bochecha
deve estar doendo muito mais.
Aturdido, ele leva a mão ao local e me encara, sem saber o
que fazer.
— Da próxima vez que você me desrespeitar ou ao meu
noivo de forma tão vulgar, juro que vai se arrepender — sibilo,
enraivecida.
Giro nos calcanhares e deixo o quarto a tempo de encontrar a
Morgana no corredor.
— O que você está fazendo no quarto do meu noivo? —
indaga, indignada.
Sem paciência para mais um embate, apenas dou de
ombros.
— Não se preocupe comigo, Morgana. Eu não seria uma
ameaça para o seu noivado, nem que ele fosse o último homem
deste planeta.
Depois de incessantes conversas com o Aldo, para que a
Carol volte a ser minha criada, deixo sua sala me sentindo ainda
mais triste e frustrada. Embora não tenha sido grosseiro, ele está
irredutível e disse que, mesmo fazendo parte da Corte, regras
devem ser cumpridas, inclusive por ele próprio.
Mais um dos motivos que me fazem querer assumir esse
maldito trono com ainda mais garra. Muita coisa precisa mudar por
aqui.
Por outro lado, a vontade de jogar tudo para o alto é enorme.
Desde que cheguei aqui, nunca me senti tão sozinha e
desamparada. E ainda faltam muitos dias para o meu aniversário
falso, onde poderei rever minha família e o Jonas.
Volto para o quarto e desabo na cama, deixando que as
lágrimas lavem a tristeza e a raiva.
As palavras do Henrique ficam ecoando na minha cabeça e
me lembrando do tamanho do meu erro em ter beijado aquele
crápula. Como posso ter deixado alguém tão grotesco chegar onde
nenhum outro homem — com exceção do Jonas e só porque foi
obrigado por mim — chegou?
Eu não fui só burra… Fui fraca também!
Seria muito mais fácil se tivesse sido uma experiência
horrível e nojenta. Caramba! Seria muito mais fácil se aquela droga
de beijo não ficasse voltando à minha mente a todo instante. Se o
calor do seu toque não tivesse sido tão agradável, se seus lábios
macios não fossem tão saborosos…
Por que um ser tão desprezível tem que beijar tão bem e ser
tão bonito?
Isso é tão injusto!
Em um momento minha mente traz à tona a forma nojenta
com que se referiu a mim e sou consumida pela fúria. Em outro, ela
traz de volta a sensação entorpecente do seu cheiro e seu sorriso
perfeito e, mais uma vez, sou consumida pela fúria.
Sinto muita raiva dele, mas muito mais de mim mesma por ter
gostado!
E enquanto essa chama me corrói, sinto-me ainda mais
solitária, por não poder conversar sobre isso com ninguém.
Deixo o choro tomar conta de mim, expressando toda a
minha frustração e culpa, até pegar no sono.
Levanto da cama irritada, praguejando quem quer que esteja
batendo aqui. Estou cansada disso também… Não se pode ter paz
neste lugar, nem por algumas horas.
Antes de abrir e descobrir quem está me importunando, não
consigo esconder a surpresa ao notar que já escureceu e que dormi
por horas.
Dou de cara com o Henrique, parado sob o batente, com uma
expressão indecifrável estampada no rosto.
— Eu vim te pedir desculpa pela…
Fecho a porta na sua cara, antes que ele tenha tempo de
finalizar sua desculpa esfarrapada. Infelizmente, não fui rápida o
bastante para evitar o monte de pensamentos ruins, recordando-me
da minha burrice sem fim.
— Helena! — chama.
Penso em mandá-lo para o inferno, mas ele nem merece
isso. Apenas o ignoro, até o silêncio me provar que já foi embora.
Só quando a barriga faz um barulho estranho, lembro-me que
já passou da hora do jantar e que preciso comer alguma coisa. Além
disso, os últimos acontecimentos acabaram tirando o foco do que
realmente importa e me esqueci que o prazo do marquês expirou
hoje ao meio-dia. Não tenho certeza se ele deu alguma resposta
para a baronesa, mas penso que já está tarde para importuná-la
com esse assunto.
Sigo até a cozinha para comer alguma coisa e me permito um
suspiro aliviado, ao perceber que não há mais ninguém aqui.
Demoro bastante procurando nos armários e geladeira os
ingredientes necessários para um sanduíche e me sento à pequena
mesa.
Sons de passos se aproximando me avisam que não estou
mais sozinha e prendo a respiração, enquanto aguardo que o
estranho se identifique. Estou de costas para a porta e, antes que
me dê conta disso, já estou recitando repetidas vezes e bem
baixinho:
Tomara que não seja o Henrique.
— Boa noite, Helena.
Não sei se devo comemorar, por meu pedido ser atendido,
porque não é o Henrique, mas o visconde. Seu tom de voz nada
agradável deixa claro que o último dos seus desejos é que eu tenha
uma noite boa.
— Boa noite — respondo, sem levantar a cabeça ou me virar
na sua direção.
Ele abre alguns armários, mas não diz nada por muito tempo,
até que se senta de frente para mim. Engulo em seco, tentando
esconder o incômodo que sua presença me provoca. Sua pequena
cicatriz sobre o olho brilha à luz da lâmpada fraca que paira sobre
nós dois.
— Você se parece muito com a sua mãe — começa, depois
de um longo gole do seu copo.
— Todo mundo diz isso — respondo, na defensiva.
— Não estou falando só da aparência. — Ele passa o
indicador na borda do copo, como se quisesse ganhar tempo ou me
fazer perguntar o que quer dizer.
Seja lá qual for sua intenção, permaneço em silêncio.
— A Felícia era uma provinciana, sabia? As pessoas não
costumam lembrar deste detalhe, apenas a citam após ter sido
nomeada condessa… Mas eu lembro muito bem — conta, cheio de
desprezo. — O Heitor já estava de casamento marcado, quando
largou tudo para ficar com ela. Não sei como seus pais aceitaram
que um homem com um título e sangue nobre se casasse com uma
qualquer. Alguns dizem que ela já estava grávida quando isso
aconteceu.
Ele odiava essas pessoas. Fica nítido em cada palavra que
sai de sua boca, na forma detestável que ele se refere a eles.
Questiono-me o que eles fizeram de tão ruim para despertar um
sentimento tão intenso e venenoso. Bom, talvez isso explique o ódio
gratuito que esse homem sente por mim.
Quando termina de contar sua história, não me manifesto, o
que o obriga a prosseguir:
— Ela era uma oportunista. — Sorri, erguendo o queixo. —
Igual a você.
— Então você me contou essa história chata, só para me
comparar com uma pessoa que eu nem conheço? — devolvo,
impaciente. — Eu já sei que você não gosta de mim. Podia ter ido
direto ao ponto.
Minha resposta o surpreende, vejo o espanto em seu olhar.
— Todas as pessoas da sua família parecem nutrir esse
mesmo sentimento por mim, mas eu só não me importo — continuo.
— Tenho coisas mais importantes para cuidar.
— Você é uma ótima jogadora — conclui, voltando a sua
postura fria. — Sabe identificar as fraquezas dos seus oponentes e
usá-las contra eles e isso é admirável, Helena. Você identificou a
cobiça do Saulo e deu um jeito de tentar trazê-lo para o seu lado.
Identificou a insegurança do Henrique também e está quase
conseguindo transformá-lo no seu brinquedinho particular. Não
pensei que fosse ter que lidar com alguém como você, mas estou
achando divertido.
— Brinquedinho particular? Do que você está falando? —
torno, confusa.
— Não se faça de sonsa. Esse teatrinho pode funcionar com
o Henrique, mas não comigo — dispara, seco.
Ele se levanta e leva seu copo até a pia, então, antes de ir
embora apoia-se na mesa e me encara.
— Vencer um oponente à sua altura vai ser muito mais
saboroso — conclui. — E quando isso acontecer, vai ser
maravilhoso ver o temor substituindo o atrevimento nos seus olhos,
porque eu mesmo vou fazer questão de cuidar de você.
A ameaça do visconde me assustou de verdade.
Até então, pensei que, se não ganhasse do Henrique, apenas
retornaria para casa e tudo voltaria a ser como antes. Agora sei que
nada será tão simples e a incerteza do que pode acontecer comigo
é ainda mais apavorante.
Mais do que nunca, preciso do apoio do marquês, mesmo
que isso signifique que eu seja tão suja quanto o Henrique. Prefiro
me corromper a querer descobrir como diabos o visconde vai cuidar
de mim.
Logo de longe, vejo que tem alguma coisa estranha na
maçaneta e fico com medo que o meu recém inimigo declarado já
tenha agido de alguma forma, mas, ao me aproximar, vejo que se
trata de uma rosa vermelha.
Além dos espinhos, não acho que ela ofereça qualquer
perigo, por isso, retiro-a dali e vejo que tem um papel enrolado nela.
Respiro fundo, já imaginando quem deixou essa flor aqui e fico
tentada a despedaçá-la e mandá-la destruída para que o Henrique
veja que uma simples flor não vai mudar nada entre nós, mas a rosa
não tem culpa de nada, por isso, prefiro mantê-la intacta.
O problema é que sempre fui curiosa e acabo abrindo o
bilhete, mesmo pressentindo que não serei capaz de decifrá-lo.
Aos poucos, conforme passo os olhos pelas letras —
separadas e bem desenhadas, para minha surpresa e alegria —,
dou-me conta que sou capaz de ler. Pela primeira vez na vida,
consigo ler algo que foi escrito para mim e não escondo a euforia
que isso me causa, mesmo que seja um pedido de desculpas
daquele desgraçado. Meu coração se aquece, pela primeira vez,
desde que cheguei aqui. Sinto-me confiante, como nunca antes.
Entro no quarto com a flor na mão e a coloco em um copo
que encho de água na pia do banheiro. Cogito jogar o bilhete fora,
por pura birra, mas volto atrás. Acho que vou guardá-lo para
sempre, só pela felicidade que senti quando o li.
Tomo um banho rápido e deito na cama, com o papel nas
mãos. Já perdi a conta de quantas vezes o li nesse pouco tempo,
mas parece não ser o bastante.
É normal sentir tanta alegria por algo que veio de alguém que
desprezo tanto?
Perco horas esperando no quarto, até achar que todos já
tomaram o café da manhã e que não vou trombar com nenhuma
presença indesejada. Só então, decido sair e já dou de cara com a
pior delas.
O Henrique está sentado no corredor, em frente à minha
porta, como se estivesse a guardando. Logo que me vê, levanta-se
do chão e faz uma careta ao esticar o corpo. Parece que ele está
aqui há bastante tempo.
Nossos olhos se cruzam e viro o rosto. Caminho apressada
para longe, tentando ignorá-lo.
— Por favor, Helena. Me escuta — pede, vindo atrás de mim.
Balanço a cabeça para os lados e, ao encará-lo, sou tomada
por uma vergonha avassaladora, por ter me deixado ser tão fraca.
— Por que você não me esquece de uma vez? — disparo,
com os dentes trincados de raiva. — Finge que nada aconteceu
entre a gente e segue a sua vida bem longe de mim.
Queria acreditar que sua expressão arrependida é
verdadeira, mas tenho certeza que não passa de mais um dos seus
truques. Deixo-o para trás, mas sou obrigada a parar quando segura
no meu braço. O calor que irradia da pele ao sentir seu toque me faz
vacilar.
— Pelo menos, me escuta — insiste.
— Não. É você quem vai me escutar. Desde que cheguei
aqui, pela primeira vez, cogitei abrir mão de tudo e voltar para casa
— começo, tentando não demonstrar o quão magoada me sinto. —
Você conseguiu me ofender de uma forma que nenhuma outra
pessoa conseguiu, Henrique. Você não me deixou só com raiva,
você me fez sentir envergonhada e culpada. De onde eu venho,
uma acusação como aquela poderia acabar com a reputação da
minha família inteira, poderia ofender o meu noivo, poderia acabar
com o meu noivado e, caso eu perca e precise voltar para casa,
estaria perdida. Você tem alguma noção do quanto suas palavras
me feriram?
Após expressar todo meu ressentimento, deveria virar as
costas e deixá-lo para trás, mas a curiosidade para saber o que ele
tem a dizer sobre isso, impede-me de sair daqui, do meio do
corredor.
— Eu não sei como as coisas funcionam no lugar de onde
você veio, mas de onde eu venho, minhas palavras foram, no
mínimo, grosseiras — explica, sem conseguir me encarar. — Eu não
costumo ser assim, Helena. Eu juro. Mas você me faz perder a
cabeça…
— Está dizendo que a culpa é minha? — pergunto,
indignada.
— Não. A culpa é toda minha. Eu não deveria ter dito aquelas
coisas e te peço desculpas por isso.
Acredite nele. Acredite nele. Acredite nele.
Uma voz irritante repete essa frase. Uma parte de mim que
quer acreditar que há bondade nele, apesar de sua fachada
inescrupulosa. Engulo em seco e a obrigo a se calar, antes que
cometa mais um erro do qual vou me arrepender em breve.
— Você tem razão, mas eu não aceito suas desculpas —
declaro, colocando fim à conversa e seguindo meu caminho.
Desta vez, para minha sorte, ele não vem atrás de mim.
Tento, em vão, descobrir qual a decisão do marquês sobre a
nossa oferta, mas parece que hoje não está sendo um dia bom para
isso. Ao tentar entrar em contato com a baronesa, fui informada que
ela estava se sentindo mal pela manhã e, após ser consultada por
um médico, recebeu recomendações para não ser incomodada por
ninguém.
Quando procurei pelo marquês, descobri que ele está em
uma reunião com o Aldo desde de manhã cedo.
E essa incerteza sobre o meu futuro me faz sentir ainda pior
do que de costume. A resposta para as minhas perguntas está
muito próxima de mim, mas inacessível e isso é frustrante.
Desisto desse assunto, por enquanto, e volto para o quarto.
Quanto mais tempo permanecer longe das pessoas que querem o
meu mal, melhor para mim. Peço à Valéria, minha criada nova e
monossilábica, que traga o meu almoço e só deixo meus aposentos
novamente, porque sou obrigada a comparecer à aula de etiqueta.
A única notícia boa é que, desde que informei a senhora Zélia
sobre o meu aniversário, temos focado na organização da festa.
Devo confessar que colocar em prática os ensinamentos dela é
muito mais divertido do que aprendê-los.
Depois de horas escolhendo entre os pratos que serão
servidos, a cor da decoração e todos os detalhes pertinentes, ela
vem com a notícia ruim:
— Na festa você terá que fazer a primeira dança. Seus
passos ainda não estão perfeitos, por isso iremos treinar bastante
durante essa semana.
Não consigo evitar um suspiro desanimado. De todas as
partes da aula de etiqueta, dançar, com certeza, é a pior delas.
Começamos com os mesmos passos chatos e complicados
de sempre, ouvindo o tempo todo que minha postura não está
correta ou que não tenho leveza.
— Teremos que intensificar essas aulas até a festa, querida.
Traduzindo, eu sou um completo fracasso quando o assunto
é essa dança estranha da realeza.
— Eu tive uma ideia. Aguarde um instante — diz, deixando a
sala.
Aproveito a deixa para sentar e descansar os pés, que estão
doendo por causa dos sapatos de salto. Aprender a costurar foi
difícil, mas se portar como uma dama é uma tarefa quase
impossível!
— Sinta-se sortuda, Helena. Mesmo com todos os
compromissos, consegui convencer o Henrique a te ajudar —
anuncia, animada, entrando no salão.
Nossa! Que sorte! Melhor do que isso, só se ela chamasse o
visconde para dançar comigo.
— Não acho que seja uma boa ideia — retruco. — Nós dois
não somos muito próximos.
Na verdade, nós mal nos suportamos…
— Melhor assim. Na sua festa você terá que dançar com
pessoas que nem conhece.
Dentro de poucos minutos, ele chega. Não saberia dizer qual
de nós dois está se sentindo menos à vontade com esta situação
embaraçosa que a mulher nos colocou.
Sem dizer uma palavra, ele se aproxima de mim e apoia uma
das mãos na minha cintura, o que faz meu coração acelerar.
Automaticamente, lembro-me da última vez que sua mão esteve
neste mesmo lugar e sinto o rosto pegar fogo. Tento manter a
postura e a leveza, mas estas são duas características que não
parecem querer andar lado a lado.
— Você está muito tensa — ele sussurra, depois de alguns
passos.
— Deve ser porque eu não queria estar aqui — devolvo, no
mesmo tom.
A tensão entre nós dois é evidente. Acho que só a senhora
Zélia parece não notar.
— A postura, Helena — chama a minha atenção e reprimo
uma bufada.
Corrijo a postura e continuamos nossa dança silenciosa e
angustiante. Evito, a todo custo, olhar para ele, que, por sua vez,
tenta manter uma distância segura entre nós.
— Você consegue fazer muito melhor do que isso, Henrique
— ela critica, em tom de reprovação. — Vamos, faça isso direito.
Ele cessa os movimentos e se afasta de mim.
— Não sei se é uma boa ideia — pondera.
É claro que essa é uma ideia péssima!
Com tantos homens nesse Palácio, por que ela foi buscar
justamente o último com quem gostaria de dançar?
Mas entendo que ela não faz ideia do que há entre nós dois
— e nem pode vir a saber —, por isso não a culpo pela extrema falta
de tato. Apenas dou de ombros.
— Vamos acabar logo com isso.
Ele assente e volta a se aproximar, mas, desta vez, ainda
mais do que antes. Esforço-me para manter a respiração em um
ritmo normal, mas o contato tão próximo entre nossos corpos é
capaz de mexer comigo muito mais do que gostaria de admitir. Seu
cheiro invade minhas narinas, transportando-me para o momento
em que nos beijamos. Meu coração, que já estava acelerado,
começa a tamborilar com tanta força contra o peito, que tenho medo
que ele possa sentir e perceber que é o causador disso.
Não demora até nos acertarmos nos passos e cadenciarmos
uma dança harmoniosa, atrapalhada, vez ou outra, pelas
intervenções, cada vez mais raras, da senhora Zélia.
— Ótimo! Vocês estão perfeitos — elogia, batendo palmas. —
Já podem parar.
Obedecemos a ordem de imediato, como se não
suportássemos mais continuar fingindo que está tudo bem.
— Eu só vou até o depósito buscar algumas amostras de
tecidos para a decoração e já volto.
Ela não espera pela minha resposta e vai embora dali,
apressada, deixando-nos a sós. Sento-me em um dos bancos e um
silêncio denso preenche o salão. Apesar do clima estranho, ele não
se move. Tenho vontade de mandá-lo embora, mas não quero iniciar
uma briga, por isso, dou meu melhor para ignorar sua presença.
— Nunca pensei que fosse dizer isso, mas preferia quando
você me odiava — diz, em tom de brincadeira.
— E quem disse que não odeio mais?
Procuro não olhar para ele, mas existe algo no Henrique que
faz meu corpo não me obedecer direito quando ele está por perto.
— Então vou reformular a frase. Eu preferia quando você
demonstrava que me odeia, em vez de me tratar com indiferença.
Balanço a cabeça e respiro fundo. Além de externar minha
insatisfação com o rumo da conversa, também busco aquietar os
pensamentos desenfreados.
— Esse não é um bom lugar para termos essa conversa.
— Isso significa que podemos ter essa conversa em outro
lugar?
— Isso significa que nenhum lugar é bom para termos essa
conversa — decreto.
Minha resposta parece convencê-lo, porque ele dá de ombros
e vai embora. Quase me permito soltar o ar de uma só vez, quando
ele cruza a porta. Antes que tenha tempo para fazer isso, ele volta.
— Eu não entendo o que há com você, Helena — começa,
enquanto se aproxima de mim.
Sua voz soa séria e até um pouco ofendida. Levanto-me,
pronta para encará-lo e revidar qualquer ofensa.
— Você está tentando, de todas as formas possíveis, tirar
aquilo que deveria ser meu. Eu estava tão convencido que estaria
com aquela maldita coroa sobre a minha cabeça a essa hora, que
não pensei que fosse possível alguém cogitar tirá-la de mim. Ainda
mais, uma garota que, até alguns dias, não fazia a menor ideia do
que estava fazendo. — Ele segura os cabelos e os puxa, com raiva.
— Você deveria estar no topo da minha lista de inimigos.
Sua atitude desmedida e suas palavras sem sentido são
capazes de me paralisar, por um instante.
Onde ele quer chegar com essa conversa?
— Quando olho para você, vejo a personificação do meu
fracasso — continua, aproximando-se cada vez mais de mim, até a
distância entre nós não passar de uns poucos centímetros. Penso
em recuar, mas as pernas deixam de me obedecer. — E essa nem é
a pior parte…
— Não? — indago, baixinho.
— Quem dera fosse… — Ri, sem nenhum humor. — A pior
parte é que, mesmo sabendo que você pode tirar esse sonho de
mim, não consigo me afastar de você. Eu deveria te odiar, Helena.
Na verdade, eu tento te odiar, com todas as minhas forças, mas só
consigo me sentir mais e mais atraído por você.
Desisto de tentar disfarçar que a proximidade dos nossos
corpos está me causando sensações estranhas, mas gostosas. Sei
que vou me arrepender disso em poucos minutos, mas, proíbo meu
corpo de ter qualquer reação contrária e apenas aguardo pelo seu
próximo passo.
— E toda vez que te vejo tão perto de mim, só consigo
pensar no quanto desejo beijar sua boca — sussurra, com os lábios
quase tocando os meus.
Alguns segundos antes que possamos cometer esse grande
erro, gritos são responsáveis por nos afastar de forma brusca.
Corremos até o exterior do salão, onde vemos um corre-corre sem
sentido.
— O que está acontecendo? — ele pergunta, assim que uma
criada passa por nós.
Em choque, a moça pensa por alguns segundos, antes de
responder:
— A baronesa está morta.
Por um instante, meu coração para de bater e, quando volta,
martela contra o peito de forma violenta, tamanho choque. Sem
pensar muito, descalço os sapatos e saio em disparada, em direção
ao quarto dela.
— Helena, espera! — grita o Henrique, logo atrás de mim,
mas não paro.
Continuo correndo por minutos, até os pulmões reclamarem e
as pernas doerem. Vejo o aglomerado de pessoas próximas à porta
dos seus aposentos. Há guardas, criados e percebo que o Aldo está
no meio da multidão. Vou até ele, com o coração pulsando na
garganta.
— O que está acontecendo? — pergunto, desejando, com
todas as forças, que tudo não tenha passado de um mal entendido.
— Eu sinto muito, Helena. Pneumonia é uma doença que
costuma ser bem grave em pessoas de idade avançada. — Suspira,
abatido. — O médico explicou que ela teve uma piora nas últimas
vinte e quatro horas e…
— Por que não a levaram a um hospital? — interrompo-o,
aturdida.
— Ela não quis. A Olga sempre foi teimosa.
— Essa é uma decisão que não cabia a ela! — argumento,
tomada pela revolta. — Alguém tinha que tê-la obrigado, Aldo! —
Aos poucos, minha voz embarga e as lágrimas inundam minha vista.
— Vocês tinham que ter feito alguma coisa.
Não é justo!
Primeiro afastam a Carol de mim. Agora a baronesa… Se
antes eu me sentia sozinha nesse lugar, o que vai ser de mim
agora?
— Onde ela está? — pergunto, sem mais controlar o choro.
— Estão preparando o corpo para o velório.
Assinto e me afasto do lugar. Não tenho coragem de entrar
no quarto e encontrá-lo vazio, nem de conversar com ninguém. Só
quero ficar quieta e pensar no inferno que serão meus próximos dias
aqui, sem a única pessoa com quem podia contar.
A cada dia, a vontade de desistir dessa loucura aumenta.
Voltar para casa, ao lado das pessoas que amo, torna-se mais
tentador a cada minuto e o baque dessa notícia triste não colaborou
em nada para me fazer mudar de ideia.
Estou sentada em um dos bancos de ferro do jardim. Esse foi
o primeiro lugar onde conversei com a baronesa. Foi aqui também
que ela tentou me convencer a me candidatar. Foi aqui que tudo
começou e, se não fosse ela, eu já estaria em casa há tempo, o
Henrique seria o rei e meu vilarejo e vários outros estariam
condenados.
— Posso falar com você?
Não preciso me virar para saber que é o Henrique. Acho que,
mesmo depois de cem anos, ainda reconheceria sua voz.
— Eu não quero brigar com você — respondo, desanimada.
— Eu também não vim até aqui para brigar. — Ele se senta
ao meu lado e me entrega um envelope. — Isso é seu. Ela deixou
para você.
Sem olhar para ele, agradeço e seguro-o firme. Depois,
tentarei decifrar o que está aqui dentro. Espero que me saia tão bem
quanto aconteceu com o bilhete do Henrique, mas tenho um
pressentimento ruim sobre essa carta.
— O Aldo me pediu para te avisar que teremos um recesso
de três dias. Durante esse período, nenhum assunto referente às
nossas candidaturas deverá ser tratado, em respeito à baronesa.
Depois disso, faremos uma reunião para resolver os assuntos da
Corte — explica.
— Tudo bem.
Penso que após cumprir sua tarefa, ele irá embora, mas isso
não acontece. Em vez disso, permanece sentado e quieto, embora
não tente puxar assunto. Assim como eu, fica estático, apreciando o
belo trabalho do jardineiro.
— É lindo, né? — arrisco, depois de muito tempo em silêncio.
A voz até soa mais grave do que o normal.
Não consigo compreender direito porque fiz isso. Se sua
presença me incomoda tanto, deveria manter a boca fechada até ele
me deixar sozinha, não tentar começar uma conversa.
— O que é lindo? — pergunta, encarando-me confuso.
— O jardim. — Suspiro. — É a minha parte preferida desse
lugar.
— É bonito, mesmo. — Dá de ombros, com o pensamento
longe.
Depois, levanta e vai embora, deixando-me ali. Aproveito a
oportunidade para abrir o envelope e dar uma olhada na carta, mas
me frustro ao perceber que, nem em mil anos, conseguiria ler
aquele monte de palavras, escritas em letra cursiva e apressada.
Ah, droga!
Terei que procurar alguém para ler essa carta para mim. A
grande questão é: quem?
Cada músculo do meu corpo clama por descanso. Sinto-me
exausta, no entanto, passo mais uma noite em claro, os
pensamentos disparados e as dúvidas me importunando.
O velório da senhora Olga foi cansativo e desgastante. Assim
como todos os integrantes da Corte e o Aldo, passei a madrugada
acordada. Ela não possuía parentes vivos e era nossa obrigação
passar os últimos momentos ao seu lado. Diversas homenagens
foram feitas e muitas pessoas falaram coisas lindas sobre ela,
inclusive o Henrique, que parece ter nascido com o dom de falar
bem em público. Eu sequer me arrisquei nessa tarefa, deixando-a
para as pessoas que sabem fazer isso direito.
Depois que nos despedimos dela, seu corpo foi cremado e
todos nos dispersamos. Passei horas no telefone com a minha
família e o Jonas, vi o sol se pôr e as horas indo embora e nada do
sono aparecer.
Quando desisto de tentar dormir, já são quase duas da
manhã. Decido ir até a cozinha fazer um chá ou algo do tipo e não
me surpreendo quando vejo que a luz está acesa. Um dia triste e
atípico como esse não poderia ter acabado só com a minha noite.
Prendo a respiração antes de entrar, rezando para que não
seja o visconde ou a Morgana e respiro aliviada ao encontrar o
Henrique, sentado à mesa, distraído.
E pensar que, se fosse há uns dias, preferiria ver o próprio
diabo do que ele.
— Também perdeu o sono? — pergunta, assim que entro.
— Para perdê-lo, teria que ter achado — respondo, com um
sorriso desanimado.
Desisto da ideia do chá e me contento com um gole de leite
morno. O silêncio absoluto impera no ambiente, atrapalhado só
pelos sons do preparo da minha bebida. Por fim, quando já está
tudo pronto, sigo até a porta, com a xícara na mão, mas fico parada
ali, por algum tempo.
— Boa noite — digo.
— Boa noite, Helena — responde, com uma sombra de
sorriso.
Sei que preciso voltar para o quarto e dormir, mas algo em
mim insiste para que eu fique aqui com ele.
O que esse duque metido tem, que me faz ter pensamentos
tão contraditórios?
O orgulho me diz que não devo ficar aqui, mas mando-o se
calar e volto para a mesa, ainda que não saiba bem o porquê.
— Eu te desculpo, Henrique — disparo, assim que me sento
de frente para ele. — Você foi muito grosseiro e mereceu aquele
tapa, mas eu também falei coisas terríveis a seu respeito, então, eu
te desculpo.
Ele sorri e assente.
— Eu acho que nós começamos do jeito errado — continuo,
apoiando os cotovelos sobre a mesa e lhe encarando. — Eu
demorei muito para perceber que somos oponentes, não inimigos. É
claro que vamos discordar em vários assuntos e até brigar algumas
vezes, mas isso não significa que temos que nos odiar.
Lembro da nossa última briga e das palavras do Henrique.
Eu deveria te odiar, Helena.
Eu entendo perfeitamente o que ele quis dizer. Nutrir todo
esse ódio por ele tem sido mais trabalhoso a cada dia,
principalmente, depois de descobrir que ele não é o monstro que
sempre pintei.
Ele não deve me odiar, só porque estamos em lados
distintos, assim como não devo odiá-lo também.
— Concordo com você — declara. — E proponho uma
trégua. Pelo menos, até o fim do recesso.
Ele estende a mão na minha direção e a aperto, selando
nosso acordo.
— Eu nunca te contei, mas me lembro da primeira vez que te
vi. — Ele dá um longo gole no seu copo, então continua: — Você
ainda era um bebê e eu tinha quatro anos. Achei seus olhos
assustadores, tive pesadelos com você por semanas.
Não contenho uma gargalhada com seu relato. Não estava
esperando, mas faz sentido que nosso primeiro encontro tenha sido
desse jeito.
— Quando eu era criança, o Jonas espalhou para todo o
vilarejo que meus olhos eram um portal para o inferno. Quem
olhasse para eles por mais de dez segundos, iria para lá — conto,
animada. — Eu dei um soco tão forte no seu olho, que ele levou
dias para abri-lo novamente.
Ele faz uma careta, como se sentisse a dor nele mesmo.
— Jonas é o seu noivo? — indaga, mudando de assunto, e
assinto. — Você chamou por ele quando estava dopada no meu
quarto.
— Ele não é só meu noivo. É a pessoa em quem eu mais
confio no mundo todo.
— E mesmo assim, não quer se casar com ele?
Balanço a cabeça, em negativa, e suspiro.
É bem provável que, se não fôssemos obrigados,
acabaríamos nos casando, porque ele é um homem incrível e, de
longe, é a melhor opção do meu vilarejo. O problema é que cresci
vendo a relação falida dos meus pais e não quero isso para mim.
Ninguém merece ter que conviver uma vida toda com uma pessoa
que não ama.
— Se você tivesse que se casar com alguém que não
suporta, mudaria de ideia sobre esse casamento. — Ele faz uma
careta e o imito, só de pensar no castigo que é ter que viver ao lado
da Morgana.
— Eu não queria estar na sua pele — digo. — Mesmo
quando não te suportava, ainda achava que casar com ela é uma
penitência pesada demais.
— Então quer dizer que agora você me suporta?
— Um pouquinho — brinco.
De repente, o riso cessa e a leveza da nossa conversa se vai.
Por alguns minutos, não falamos mais nada. Aproveito a deixa, para
tomar o resto do meu leite, que já esfriou. Ele passa a encarar a
mesa e eu só queria saber o que se passa na sua cabeça.
— A gente tem tanta coisa em comum, Helena… —
resmunga, depois de muito tempo. — E não estou falando daquelas
grosserias que te disse no meu quarto. Nossos pais morreram
quando ainda éramos crianças e, graças a isso, estamos aqui, nos
enfrentando, mesmo sem querer. O que eu quero dizer é que somos
jovens demais para lidar com o futuro de um reino.
— A diferença é que fui mandada para um lugar pobre, mas
cheio de amor, enquanto você foi mandado para um lugar cercado
de luxos, mas ao lado daquelas pessoas horríveis — concluo. —
Apesar de toda a dificuldade que passei, acho que saí no lucro.
— Eu tenho certeza disso.
Mais um longo período de silêncio preenche a cozinha.
Penso em toda a saudade que sinto da minha família e do Jonas e
do quanto gostaria que eles estivessem aqui.
— Eu tenho a impressão de que nunca vou pertencer a esse
lugar. Mesmo que eu os traga para cá, sinto que aqui nunca vai ser
a minha casa — explico.
— Com o tempo você se acostuma. — Dá de ombros.
— Você acha que, com o tempo, vou pertencer? — insisto.
— Não. Você se acostuma a não pertencer a lugar algum —
responde, sério. — Desde que os meus pais morreram, eu não faço
parte de nada. No começo você se sente vazio, mas com o tempo,
acaba se familiarizando com isso.
Engulo em seco o bolo que se forma na garganta. Suas
palavras nem são a pior parte, mas a forma como as diz, como se
não se importasse com algo tão grave, como se estivesse habituado
a estar sozinho.
— Mas eu não quero me familiarizar com isso — rebato. — É
triste demais.
Ele me lança um sorriso desanimado, mas não diz nada.
Apenas boceja, demonstrando o quão cansado está. Aproveito a
deixa para me despedir, depois de lavar a minha xícara.
— Quando se sentir deslocada, pode me chamar, se quiser.
— Sorri. — Eu não vou fazer você se sentir parte do Palácio, mas,
ao menos, nos sentimos deslocados juntos.
Rio da sua proposta boba e balanço a cabeça.
— Vou me lembrar disso. Obrigada.
A correria dos últimos dias acabou tirando o foco dos
problemas que tenho que resolver. A carta da baronesa é um deles
e, desde que acordei, tive uma ideia que pode me ajudar a
solucionar essa questão e ainda, de quebra, tirar uma dúvida que
tenho há alguns dias.
Guardo a carta debaixo da blusa e vou até a ala dos
empregados, decidida a descobrir quem foi o responsável pela
substituição da Carol. Tento não transparecer medo ou receio,
apenas chego lá, com cara de quem manda, e peço a uma moça
que a chame para mim.
Dentro de poucos minutos a Carol aparece, surpresa.
— A senhorita pediu para falar comigo? — indaga, com a
mesma formalidade da primeira vez que nos falamos.
Admito que isso me causa muito incômodo, mas entendo que
ela não pode se encrencar mais por minha causa.
— Tem algum lugar mais reservado onde possamos
conversar? É sobre algo bem importante.
Ela assente e me leva até uma área com várias portas
numeradas. Depois de destrancar uma delas, me convida para
entrar em seu quarto, que não se parece em nada com o meu. Ele é
pequeno, abafado e escuro.
— Temos que ser bem rápidas — explica, sentando-se sobre
a cama.
Sento-me ao seu lado e respiro fundo.
— Você sabe quem contou ao Aldo sobre nossa amizade? —
pergunto. — Assim que soube que você foi substituída, parti para
cima do Henrique, mas tenho impressão de que ele não é o
culpado.
Desde a nossa conversa na cozinha, esse pensamento vem
rondando a minha cabeça. Mesmo que ele estivesse com raiva de
mim, não acho que ele faria algo que prejudicaria apenas a Carol.
Esse é o tipo de atitude que eu esperaria da Morgana ou do pai
dela, mas não mais do Henrique.
— Eu não sei. Já tentei sondar alguma informação importante
por aqui, mas ninguém sabe de nada. Segredos da realeza são
guardados a sete chaves… Especialmente de gente como eu —
explica.
— Olha só… Eu vou descobrir quem fez isso e reverter essa
situação — prometo. — Aquela Valéria não fala mais do que cinco
palavras.
— Ela não é uma pessoa ruim, só está com medo do que
pode acontecer com quem se aproxima demais de pessoas
importantes. — Ela arruma sua postura e, de repente, parece bem
mais animada. — Ouvi dizer que você e o Henrique estão ficando
amiguinhos, isso é verdade?
— Amiguinhos? — torno, perplexa.
Só porque conversamos civilizadamente algumas vezes, já
estão espalhando por aí que somos amiguinhos?
— Quem disse isso? — insisto.
— Dizem que ele já foi visto no corredor perto do seu quarto
milhares de vezes. — Sorri, toda presunçosa, como se soubesse de
algo que mais ninguém sabe.
E então me lembro que a Carol não é muito boa guardando
segredos e que não posso contar a ela sobre a carta. Ela vai acabar
deixando escapar meu segredo, mesmo sem intenção. Acho melhor
deixar isso para depois.
— Ele é bem chato e insistente — devolvo, dando de ombros.
— Se souber de qualquer novidade, me avise, por favor.
Despeço-me dela e volto para quarto, frustrada por não ter
resolvido nenhum dos meus problemas.
Quando recebi a convocação para a reunião da Corte, não
entendi o motivo. Pensei que todas as movimentações estivessem
proibidas durante o luto da baronesa. Mas não questionei nada e
pedi à Valéria que me ajudasse a me aprontar. A pior parte dessas
reuniões, sem dúvidas, é precisar perder horas arrumando meu
cabelo e me maquiando para, dentro de poucos minutos, tirar tudo
com um banho.
Escolhemos um vestido lilás de um tecido leve, com mangas
até o cotovelos e saia até os joelhos. Apesar de simples, é muito
bonito e combina comigo. Peço a ela que faça uma trança nos meus
cabelos e escolho brincos de pérolas, que são os meus preferidos.
Por fim, calço um sapato nude de salto médio, já que não me sinto
muito à vontade com aqueles saltos altíssimos que a senhora Zélia
me obriga a usar.
Como sempre, chego cedo à sala e tomo meu assento. Olho
para o lugar da baronesa e sinto um vazio insuportável ao me dar
conta de que ela nunca mais estará aqui para me apoiar. Na
verdade, estou sozinha nesta guerra e espero ser forte o bastante
para aguentá-la até o fim.
Aos poucos, os outro integrantes se juntam a mim, sem dizer
nada. Cumprimento o Henrique com um movimento de cabeça, que
ele retribui. Faço o mesmo com o Aldo e com o marquês, mas
ignoro o visconde, que parece não se importar.
Depois de nos cumprimentar formalmente e manifestar mais
uma vez seu pesar pela morte da baronesa, o Aldo explica de
maneira breve sobre as implicações dessa baixa a esta altura da
briga pelo trono.
— A senhora Olga não possui nenhum herdeiro que possa
assumir seu lugar na Corte. Eu li e reli este protocolo e, nestes
casos, não posso indicar ninguém para o cargo vago, para evitar
injustiças e benefícios para um de vocês — explica, apontando para
mim e para o Henrique. — Ou seja, até o sucessor assumir, a Corte
será composta apenas por vocês quatro, o que traz à tona outro
problema.
Engulo em seco, só de pensar em mais problemas… Como
se eu já não os tivesse em quantidade suficiente.
— Dependendo dos votos, teremos um empate e, sem o voto
de minerva da baronesa, isso não é permitido. Isso significa que
daqui a dois dias vocês terão que entrar em um consenso sobre um
de vocês desistir ou mais um candidato entrar na disputa.
Lembrando que todas as movimentações estão proibidas até o fim
do período de luto. Só quero que pensem a respeito disso. —
Respira fundo. — Era esse o assunto a ser tratado. Alguma dúvida?
Apesar da negação unânime, quase posso ouvir o turbilhão
de ideias e estratégias que todos nós já estamos criando. Isso pode
gerar uma grande reviravolta, porque nem eu, nem o Henrique
estamos dispostos a desistir.
Nada melhor do que a solidão e uma bela visão para me
ajudar a pensar.
E nenhum outro lugar me oferece isso além do jardim.
Sei que deveria estar lamentando a falta que a baronesa faz,
mas só consigo cogitar todas as possibilidades que essa novidade
trouxe.
— Caramba! Você gosta desse jardim, mesmo! — exclama o
Henrique, em tom de brincadeira.
Há alguns dias, eu ficaria transtornada só de ouvir sua voz e
o enxotaria daqui, mas, desta vez, tenho que me esforçar para
conter um sorriso. Em especial, quando ele surge no meu campo de
visão, tão bonito e bem vestido, que me sinto intimidada com sua
presença.
— Já disse. É minha parte preferida do Palácio — explico,
enquanto o observo se sentar ao meu lado. — Às vezes, quando
perco o sono, fico o admirando da janela do meu quarto.
Ele balança a cabeça e sorri, então se levanta e me oferece a
mão.
— Vem comigo que eu tenho um lugar para te mostrar. Acho
que você vai gostar.
Dou de ombros e aceito seu convite. Caminhamos lado a
lado e conversamos assuntos banais, enquanto ele me guia até
esse tal lugar. Entramos em uma área do Palácio que não conheço
e, por fim, subimos uma escada interminável, que me deixa
ofegante. Nem sabia que o Palácio era tão alto assim. Por fim, ele
abre a porta e gesticula para que eu entre nela. Assim que o faço,
noto que estou em um terraço a céu aberto, com um muro que vai
até a minha cintura em volta. Ao me aproximar dele, consigo ter
uma visão privilegiada de todo o jardim.
— Que tal? — pergunta, apoiando os antebraços sobre o
muro, ao meu lado.
— É lindo! — exclamo, encantada.
— Esse é o meu lugar preferido do Palácio — conta.
— Acho que ele acaba de se tornar o meu também — brinco.
Daqui de cima, consigo entender o mosaico que as flores
formam. Tudo é tão simétrico e perfeito, que perco o ar. O céu azul e
as poucas nuvens tornam o cenário ainda mais encantador.
— Como você descobriu esse lugar?
— Eu praticamente cresci aqui. Conheço cada canto, cada
duto, cada pedacinho desse palácio. E não é um exagero.
Permanecemos assim, parados e em silêncio, por bastante
tempo. Não sei no que ele está pensando, mas me contento em
apenas observar cada detalhe bem arquitetado do jardim. Faz
parecer meu trabalho lá em casa, no meu vilarejo, um amontoado
ridículo de flores.
— Está pensando nas coisas que o Aldo disse? — Quebro o
silêncio, quando ele se torna denso demais.
Ele assente, mas não diz nada por algum tempo. Acho que
não quer conversar sobre isso e não insisto, até que ele responde:
— Eu não sei o que pensar. Até o mês passado, eu só tinha
duas coisas: um título e a certeza de que seria rei. — Suspira,
desanimado. — Mas aí você veio e mudou tudo.
A mudança brusca de assunto me faz ficar na defensiva e me
desencosto do muro. Não quero brigar com ele. Não agora, que ele
se tornou a única pessoa em quem posso confiar aqui dentro.
— Sabe, Helena, se você perder a disputa, vai voltar para o
seu vilarejo e continuar sua vida de onde parou — continua, sem
tirar os olhos do jardim. — Eu não, porque tudo que vivi até agora foi
pensando no momento em que fosse rei.
— Está tentando me convencer a desistir? — Cruzo os
braços, demonstrando insatisfação com o rumo da conversa. —
Porque eu não vou desistir, Henrique.
— Não. Juro que não. — Ele se vira na minha direção. —
Apesar de estar morrendo de medo de descobrir o que vai
acontecer, caso eu perca, não quero que você desista.
Mesmo que minha razão me diga para ter cuidado com ele, já
que somos oponentes, meu coração garante que ele está sendo
sincero. No fundo, acho que entendo, porque, também não quero
que ele desista.
Vejo-o se aproximando de mim e não faço nada para impedir.
— Se correr o risco de perder o trono é o preço pra ter você
por perto, eu estou disposto a pagá-lo — sussurra, com o rosto cada
vez mais próximo do meu.
Fecho os olhos ao sentir seu hálito quente soprando sobre a
minha pele e, ainda que saiba que isso está errado, não consigo
fazer nada para evitar.
Eu quero beijá-lo, mesmo sabendo que é o maior equívoco
que podemos cometer.
Desta vez, sou eu quem vence a distância mínima entre nós,
fazendo nossas bocas se tocarem com delicadeza. Permito-me
saborear seu gosto suave e sinto um arrepio gostoso percorrer toda
a pele, quando ele toca meu rosto.
É errado.
Eu sei disso.
Ele também sabe.
Mas é tão bom.
Sua mão desce para a minha cintura, puxando-me para mais
perto. Seguro seu rosto, como se ele fosse escapar de mim, se não
o fizesse. A necessidade de tê-lo cresce, o beijo começa a se tornar
mais intenso. Só então, caio em mim e o afasto, antes seja
impossível.
— Não dá, Henrique — protesto, apegando-me aos últimos
resquícios de lucidez que ainda me restam. — Você sabe disso, não
sabe?
— Eu sei, eu sei — concorda, mesmo que todo o seu corpo
esteja dizendo o contrário.
— Não podemos mais fazer isso — digo e, antes que algum
de nós volte atrás, giro nos calcanhares e deixo-o para trás.
Desço aquelas escadas com pressa, tentando me manter o
mais longe possível dele.
Droga!
Tenho certeza que estou perdida, porque, ao contrário da
outra vez, não estou arrependida.
Só quando fecho a porta do quarto, permito-me respirar
aliviada.
Não posso deixar isso se repetir. Nós estamos disputando o
cargo mais importante do reino! Esses beijos podem confundir tudo,
além de tirar toda a minha credibilidade.
Não posso confundir as coisas.
Deito na cama, frustrada e, sem me dar conta disso, já estou
tocando os lábios, sendo presenteada com as lembranças do que
acabou de acontecer e sorrindo feito idiota.
Para com isso, Helena!
Preciso manter o foco e pensar em algum problema.
Problemas vão ocupar minha mente e afastar o Henrique dela. Enfio
a mão debaixo do travesseiro e pego o envelope.
Isso! Com um problemão desses, não vou ter tempo de
pensar no…
— Henrique — sussurro, sendo tomada por uma ideia
absurda.
Levanto em um salto e ando o mais rápido que meus saltos
me permitem em direção ao quarto dele, torcendo
desesperadamente para que ele esteja lá e, mais do que isso, que
esteja sozinho.
Não seguro a ansiedade quando bato — com mais força do
que o necessário — em sua porta.
— Calma! — exclama lá de dentro, o que me anima ainda
mais.
Ele está aqui!
E está vestido, o que, vindo dele, é quase um milagre. A
gravata e o paletó estão pendurados e a camisa está levemente
aberta.
— Helena? — pergunta, confuso. — Pensei que…
— Eu preciso muito falar com você — disparo, já entrando no
quarto, sem que ele sequer me convide.
Não espero por um convite formal e me sento sobre a cama.
— Eu devo deixar a porta aberta? — insiste, atônito.
— Não! Tranque a porta e venha aqui.
Ele assente e obedece, enquanto normalizo a respiração,
ofegante pelo esforço e pela euforia.
— Eu não deveria estar fazendo isso — começo, mais para
mim, do que para ele. — Desde que eu cheguei aqui, tenho tentado
fazer tudo o que o meu coração manda. Às vezes, ele me coloca em
apuros, mas, na maior parte do tempo, tem dado certo. E é por ouvir
meu coração que estou aqui, indo contra tudo o que nós dois
acreditamos, para te pedir ajuda.
— Pode pedir — diz, franzindo o cenho.
Tenho certeza que ele não está entendendo nada. Também
não compreendo muito bem o que estou fazendo, mas, de alguma
forma, sinto que ele é a única pessoa em quem posso confiar.
Mesmo que, até alguns dias, duvidasse disso com todas as
forças.
Antes que eu desista, entrego-lhe o envelope, já amassado,
de tantas vezes que o segurei em minhas mãos.
— Leia isso, por favor.
— Tem algo importante aqui? Algo que eu deva saber? —
indaga, erguendo uma sobrancelha.
— Eu não sei — devolvo. — Eu não faço a menor ideia.
— Você não teve coragem?
Fecho os olhos e puxo o ar com força, antes de admitir a
minha maior fraqueza para o meu adversário.
— Eu não sei ler, Henrique.
— Você o quê?
Se antes ele parecia confuso, agora sua expressão
demonstra a mais pura perplexidade. Ele se levanta e começa a
andar de um lado para o outro, transtornado.
Não o culpo por isso. Sei que não saber ler e escrever é algo
inconcebível para alguém como ele, que estudou nas melhores
escolas que esse reino possui.
— De onde eu venho, não há hospitais ou escolas — conto,
sem graça. — Lá, somos ensinados desde cedo que precisamos ter
um emprego e isso basta. Não existe ninguém no meu vilarejo que
saiba ler, além do Jonas. Por isso, preciso da sua ajuda.
— Helena, isso é…
— Vergonhoso? — interrompo-o. — Eu sei.
— Não. Isso é inadmissível! — contesta, tomado pela revolta.
Pensei que, quando esse momento chegasse, ele fosse rir de
mim, ou sentir pena, ou me humilhar… Vê-lo furioso nem passou
pela minha cabeça.
— Você não sabia?
— Eu vi os registros de todas as províncias, incluindo aquelas
que não fazem parte do reino, como a sua — explica, voltando a se
sentar sobre a cama. — Os documentos dizem que todas elas
possuem escolas e hospitais em áreas que atendem toda a
população. Isso não faz sentido.
— Bom, sinto informar que esses documentos estão
mentindo — respondo, impaciente. — Agora, pode ler a carta, por
favor? Já tem dias que estou morrendo de curiosidade para saber o
que está escrito aí.
Ele concorda, mas, antes de ler, abre a porta e se certifica de
que ninguém está por perto. Depois, volta a se sentar do meu lado e
tira a folha dobrada de dentro do envelope. Prendo a respiração, na
mais pura expectativa.
— Helena, primeiramente, peço desculpas por escrever uma
carta tão complexa para você, que ainda não sabe ler — começa.
Então ele tira os olhos do papel e me encara. — Ela sabia?
— Sim. Ela estava me ensinando. — Sorrio.
— Mas até isso foi intencional — continua. — Queria que
você fosse obrigada a procurar alguém em quem confie para lhe
ensinar aquilo que não tive tempo de fazer. Quando você for rainha,
precisará saber muito mais do que aquilo que te mostrei. Em
segundo lugar, gostaria de pedir perdão pelas técnicas não muito
honestas que usei para te convencer a formalizar sua candidatura…
— Que técnicas não muito honestas são essas? — pergunto,
interrompendo-o.
— Não sei, eu ainda estou lendo — explica. — Dizem que os
fins justificam os meios e eu espero que seu fim justifique os meus
erros.
— Que erros?
— Ah, Helena! — bufa, irritado. — Guarde suas perguntas
para quando eu terminar de ler, pode ser?
Tampo a boca com uma das mãos e assinto.
— Não tenho nenhum orgulho em admitir que você foi
manipulada, minha querida. Se eu não fizesse nada, você já estaria
na sua casa, à mercê dos caprichos do visconde e do Henrique. —
Ele entorta a boca e inspira fundo. — Por isso, precisei usar da
minha influência para armar algumas coincidências. A primeira delas
foi aquela conversa entre o Henrique e a Morgana, no escritório…
Que conversa é essa?
Agora é a minha vez de bufar.
— Guarde suas perguntas para quando você terminar de ler,
pode ser?
Lançando-me um olhar de desdém, ele prossegue:
— Não foi difícil convencer a Morgana a tentar apressar as
coisas. Eu conheço a gana daquela menina em se tornar rainha e só
precisei colocar algumas coisas na sua cabeça, para fazê-la
questionar o Henrique. Expliquei que o escritório estava vazio, mas
sabia que você estava escondida lá, porque um dos empregados
estava de olho em você. Depois disso, você fez exatamente o que
eu queria, se candidatou e declarou guerra aos dois. Convencê-la a
fazer uma proposta para o Saulo foi fácil, ainda mais quando o
destino conspirou a nosso favor e fez a esposa dele lhe procurar.
Naquele momento, eu já estava dando sua eleição como algo
certeiro, até o Henrique entrar na jogada e não da maneira
esperada. É nítida a forma como ele mexe com você e não a julgo
por isso.
Sinto minhas bochechas pegarem fogo e passo a encarar os
sapatos, morrendo de vergonha do que está acontecendo aqui.
— Ele é lindo, elegante, inteligente, distinto, competente…
— Eu sei que você está inventando essa parte — disparo,
revirando os olhos. — Pode parar com as gracinhas e continuar.
Ele solta uma risada nasal, antes de prosseguir.
— Por isso, precisei intervir nisso também. Eu já sabia da sua
relação com a sua criada e que o Henrique já estava ciente disso
também. Vários empregados estavam colaborando comigo e foi só
levar essa denúncia ao Aldo, para que você explodisse na direção
que eu desejava. — Ele para de ler por um instante e fica pensativo.
— Você me viu aquele dia na cozinha com a Bianca e sabia, melhor
do que ninguém, que eu seria a última pessoa a dedurar sua
amizade com a sua empregada. Não passou pela sua cabeça que
poderia não ter sido eu?
— Eu estava cega de ódio e você também estava furioso —
defendo-me, dando de ombros. — Pensei que pudesse fazer algo
desse tipo só para me prejudicar.
— Talvez eu fizesse, se fosse te prejudicar, mas a única
lesada nessa história foi ela.
— Eu sei disso. Hoje enxergo que você não é tão ruim quanto
pensava — admito.
Com um sorriso tímido, ele volta a olhar para a carta.
— Um atrito como este era só que faltava para afastá-los e
aumentar a rivalidade entre vocês. Acho que consegui o que queria,
porque me contaram que ouviram gritos entre vocês dois…
Esqueceu de mencionar uma bofetada bem dolorosa também —
brinca.
— Que você bem que mereceu! — acuso-o, cruzando os
braços.
— Quando estiver lendo esta carta, já será tarde demais para
mim. Espero que você possa me perdoar um dia, Helena, e, mais do
que isso, levar adiante nosso plano, para que todo o nosso esforço
não tenha sido em vão. Lembre-se de quem assumirá o futuro do
nosso reino pelos próximos anos, caso você desista… — Ele aponta
para o próprio peito e diz, fingindo indignação: — Ela está falando
de mim, na hipótese de ter restado alguma dúvida. Foi um prazer
imenso ter conhecido uma moça tão jovem, mas tão cheia de força
e amor pelos seus ideais. Desejo toda a felicidade do mundo para
você. Com amor, Olga.
Por um breve momento, ninguém diz nada. Ainda estamos
absorvendo cada palavra da baronesa. Eu, mais do que ele, já que
esta carta significa que o Henrique tinha razão quando disse que eu
era um mero fantoche. Ela me manipulou o tempo todo e eu estava
ocupada demais o odiando para perceber isso.
Como eu fui ingênua.
Como eu fui burra!
Levanto da cama e começo a andar de um lado para o outro,
como se isso fosse capaz de diminuir este aperto no peito e essa
sensação de ter sido enganada.
— Então quer dizer que você ouviu minha conversa com a
Morgana naquela noite… — começa, pensativo. — Foi por isso que
você resolveu se candidatar?
— Sim. Eu não podia deixar você desvincular minha província
— explico, esgotada. — Eu só… Eu não acredito que isso está
acontecendo. Eu preciso pensar.
Sem esperar pela sua resposta, pego a carta sobre a cama e
sigo até a porta. Ele vem atrás de mim, mas não diz nada.
— Obrigada pela ajuda. — Suspiro, sentindo-me derrotada.
— Eu sei que somos adversários, mas, se puder manter segredo
sobre o que te contei, serei eternamente grata. Não posso deixar
ninguém saber que sou burra, está entendendo?
— Você não é burra, Helena — diz, muito sério, olhando nos
meus olhos. — Você é uma das pessoas mais inteligentes que eu já
conheci. Só não teve as mesmas oportunidades que os moradores
das províncias mais ricas tiveram, mas isso não define sua
capacidade. E é claro que não vou contar para ninguém.
Espero ele destrancar a porta, antes de deixar seu quarto e
caminhar até o meu. Assim que entro, rasgo a carta em mil
pedacinhos e a jogo no lixo, desejando que esta atitude me faça
esquecer o conteúdo dela e todo constrangimento que aquelas
palavras originaram.
Como pude ser tão cega?
Acusei o Henrique de ser manipulado, quando estava
acontecendo o mesmo comigo. A diferença é que, ao contrário de
mim, ao menos, ele tem noção disso.
Aposto que, se o Jonas estivesse aqui, me diria o que fazer.
Aliás, tenho certeza que ele teria percebido tudo antes mesmo de
acontecer e teria evitado que me deixasse levar desse jeito.
Droga!
Descalço os sapatos e deito na cama, sentindo-me traída. A
senhora Olga era uma das poucas pessoas em quem confiava e
não podia estar mais enganada. Ela me manipulou, me usou, sem
que eu nem percebesse isso.
Será que todos sabiam, menos eu?
Será que a Carol também fazia parte do seu joguinho?
Bom… pelo menos uma certeza eu tenho.
Não quero mais fazer parte dessa sujeira.
Assim que o período de luto se encerrar, vou dizer ao
marquês que não quero o seu apoio, mesmo que isso signifique que
não vou vencer a disputa.
Quando era criança e via notícias sobre a nobreza na TV,
ficava encantada com a vida que eles levavam aqui, as roupas que
aquelas mulheres usavam e queria tudo aquilo para mim, porque, na
cabeça de uma menina de oito anos, uma vida de princesa é tudo o
que se pode querer.
Quanto aos luxos, eu estava certa. É fácil se habituar com a
riqueza. Tenho certeza que, se precisar voltar para casa, vou sentir
falta da comida boa, do colchão macio, das roupas bonitas e de
todas as futilidades que aprendi a gostar.
Quanto às pessoas e às regras… não posso dizer que vou
sentir saudade. Tenho a impressão de que todos têm segundas
intenções e que nada parece ser o que realmente é. Que sempre
tenho que estar preparada para algum golpe, alguma mentira,
alguma trapaça, até mesmo das pessoas que estão próximas de
mim.
Porque receber uma pancada das pessoas que já declararam
me odiar é uma coisa.
Mas ser surpreendida por quem eu acreditava estar do meu
lado é apavorante.
Depois da descoberta da armação da baronesa, passei a
noite em claro, pensando e repensando em tudo o que estava na
carta e, cada vez mais, me convenço de que negar o apoio do
marquês é o certo a se fazer.
Apesar do Jonas discordar de mim, não conseguiria me olhar
no espelho se aceitasse me tornar esse tipo de pessoa.
E é por isso que estou me sentindo péssima.
Não deixei meu quarto para tomar o café da manhã… Na
verdade, estou sem o menor apetite e nem pedi à Valéria que o
trouxesse para mim. Até ordenei que ninguém me incomodasse e é
por isso que as batidas na porta me irritam mais do que de costume.
As pessoas do Palácio precisam aprender com urgência o
significado da palavra privacidade!
— Eu pedi para não ser incomodada — disparo, assim que
abro.
Nem o sorriso brincalhão do Henrique consegue melhorar
meu humor.
— Eu prometo que vou incomodar só um pouquinho. — Ele
quase une o polegar e o indicador, deixando um espaço mínimo
entre eles, para enfatizar que seu incômodo será pequeno.
Dou de ombros e o deixo entrar.
— Como você está? — pergunta, sentando-se no banquinho
da penteadeira., enquanto fecho a porta.
— Péssima. — Deixo o corpo cair sobre a cama, tamanho
desânimo que me assola. — E perdida também.
Ele se levanta e caminha lentamente na minha direção, até
que seu olhar para na rosa murcha, que ainda está sobre a mesinha
de cabeceira. Algumas pétalas já caíram, o vermelho vivo foi
substituído por uma cor mais escura, como sangue.
— Você guardou? — Ergue uma sobrancelha, apontando
para ela. — Pensei que tivesse jogado fora.
— Não tive coragem de jogar fora. — Enfio a mão debaixo do
travesseiro e tiro o seu bilhete de dentro. — Mas este daqui, guardei
por um motivo especial.
— Posso saber que motivo é esse? — indaga e se senta ao
meu lado.
Sem tirar os olhos do bilhete, respondo, sorridente:
— Foi o primeiro bilhete escrito para mim que eu consegui ler.
Você nem imagina a minha felicidade, quando isso aconteceu.
Passo os olhos sobre as letras bem desenhadas, pela
milésima vez. Já deveria estar acostumada, mas meu coração
sempre se aquece quando leio em voz baixa essas palavras.
— Sério?
Assinto e lhe entrego o pequeno pedaço de papel.
— Neste caso, acho que vai gostar da minha proposta. Eu
estive pensando muito sobre ontem e… — Ele para por um instante,
antes de prosseguir: — Se quiser, posso continuar de onde a
baronesa parou, sabe? Posso te ensinar.
Preciso refletir sobre o assunto por um instante, porque, de
imediato, não consigo processar a informação. O Henrique, que até
alguns dias era meu inimigo declarado, está me oferecendo ajuda
naquilo que mais me prejudica.
Reconheço sua atitude e sinto os fogos de artifício explodindo
no estômago, mas aceitá-la significa me aproveitar dele e não é isso
que eu quero. Ele está sugerindo acabar com uma desvantagem
gigantesca que há entre nós.
— Eu não posso aceitar, Henrique. É injusto. Nós somos
adversários e…
— Será que você pode esquecer esse detalhe só por alguns
minutos? — interrompe-me, sem esconder sua impaciência.
— Não, porque é isso que nós somos — declaro com
firmeza. — Você não pode abdicar da maior vantagem que tem
sobre mim. É desleal. Já sou muito grata pela sua promessa de não
contar meu segredo a ninguém.
Ele não concorda com meu argumento. Antes mesmo de
abrir a boca para dizer isso, é nítida a forma como todo o seu corpo
expressa sua discordância. O Henrique é uma das pessoas mais
fáceis de se ler que já conheci. A raiva e a ilusão de que era meu
inimigo me impediram de enxergar o quão transparente ele é.
Embora minha razão me diga que essa é uma boa arma para usar
contra ele, meu coração está me fazendo sentir péssima, só por
cogitar essa possibilidade.
Eu sei que deveria ver as coisas pelo lado prático. Somos
oponentes e nosso objetivo é vencer um ao outro.
Simples.
Mas a verdade é que eu gosto dele. Os melhores momentos
dos meus dias têm sido aqueles que passo ao seu lado. Ver o seu
sorriso — aquele que sei que só eu consigo arrancar dele — é
capaz de me alegrar. Apenas sua presença faz meu coração bater
em um ritmo estranho.
Nem sei como é possível que, em pouco menos de uma
semana, nossa relação tenha mudado tanto e tomado essa
proporção, mas eu gosto do Henrique.
E sei que ele também gosta de mim.
E esse sentimento está tornando a linha que separa nossa
rivalidade cada vez mais nebulosa e difícil de enxergar.
Eu sei de todas essas coisas e tenho certeza que ele também
sabe. Nós dois só não conseguimos fazer nada para evitar e isso
me assusta.
— Eu posso e vou — afirma, resoluto. — Não é justo que a
nossa disputa seja desleal só porque as pessoas que deveriam ter
dado condições básicas para a sua província não o fizeram. Já
disse que odeio jogo sujo.
— Eu sei — admito, em voz baixa.
Todas as vezes que ele me disse essa mesma frase, não
confiei nele. Acreditava que era um truque, uma forma de me
manipular. A culpa é tão dolorosa quanto ter um punhal enfiado no
estômago.
Crispo os lábios, enquanto penso em uma resposta para a
sua proposta, mas me dou por vencida. Preciso ser prática. Se
ganhar dele, precisarei saber ler. Se perder, também.
— Eu aceito, mas com uma condição. — Recebo seu olhar
curioso e prossigo: — Nós vamos combinar que não vai acontecer
mais nada entre nós. Nenhum beijo, nenhuma indireta, nenhum
climão… Estamos entendidos?
Ele ergue as mãos, como se estivesse se eximindo da culpa.
É claro que a culpa não é só dele. Nós somos cúmplices dessa
maluquice e cada um carrega metade da responsabilidade dos
nossos atos. Mesmo que esses atos sejam deliciosos e não saiam
da minha cabeça.
— Eu prometo que vou tentar — diz. — Mas já adianto que é
uma tarefa dificílima. E se eu não conseguir cumprir, o que
acontece?
Lentamente, ele coloca uma mecha do meu cabelo atrás da
orelha e aproxima seu rosto do meu.
E depois ele tem a pachorra de dizer que odeia jogo sujo. Se
isso não é sujeira, é o que, então?
— Henrique… a gente não pode, lembra? — advirto-o,
baixinho.
— Mas eu não fiz nada — defende-se, cheio de cinismo.
— Mas estava pensando em fazer.
— Você não pode proibir meus pensamentos. Eu tento fazer
isso, desde que te vi pela primeira vez, mas não tem funcionado.
Sorrio, quase cedendo, mas, antes que isso aconteça, somos
surpreendidos com alguém tentando esmurrando a porta.
Droga! Quando for rainha vou fazer um decreto proibindo
qualquer pessoa de bater da droga da minha porta!
— Ninguém pode ver você aqui — sussurro.
Ele concorda e se esconde debaixo da cama. Sou obrigada a
revirar os olhos, tamanho absurdo, para, só então, abri-la.
— Onde está o Henrique? — Uma Morgana furiosa me fuzila
com o olhar.
Ela fica na ponta dos pés, tentando olhar por cima do meu
ombro.
— Ele é seu noivo. Quem deveria saber é você. — Dou de
ombros, fingindo indiferença.
O remorso tenta assumir o controle da situação, mas meu
instinto de sobrevivência o cala. Se essa louca descobrir que ele
está aqui comigo e que, se não tivesse chegado a tempo,
estaríamos nos beijando a essa hora, garanto que ela tentaria
arrancar meu coração pela boca.
— Não se faça de sonsa, sua caipira ridícula. Eu sei que ele
está aqui — torna, possessa. — E eu vou entrar aí para…
— Ah, mas não vai, mesmo! — contesto, colocando a mão no
batente da porta e impedindo sua entrada.
Se ela resolver procurá-lo, não terá a menor dificuldade em
descobrir que ele está debaixo da minha cama e isso vai ser, no
mínimo, embaraçoso.
— Você está vendo que ele não está aqui — continuo. — O
Palácio é enorme. Se for rápida, até o meio-dia consegue encontrá-
lo. Agora, por favor, vá embora daqui e me livre da sua presença
desagradável.
O brilho raivoso se intensifica em seus olhos e, por pouco,
não vacilo na sua frente.
— Se eu descobrir que vocês estão me enganando, vou fazer
o possível e o impossível para que você se arrependa disso —
grunhe, com os dentes cerrados.
— Mas não vai descobrir, Morgana.
Fecho a porta na sua cara, sem que ela tenha tempo para
contestar. Apoio as costas nela e solto uma lufada de ar, aliviada,
por ter me livrado dela, mas me sentindo péssima pela situação em
que nos metemos.
— Ela já foi — digo. Ele sai do seu esconderijo e, por um
tempo, não dizemos nada. — Está vendo porque temos que acabar
com essa loucura? Eu já tenho problemas demais e estou
dispensando mais este.
Em silêncio, ele caminha até perto de mim. Aquele sorriso
divertido se foi, junto com a atmosfera divertida de alguns minutos.
— Desculpa, Helena. Eu não queria que você passasse por
isso por minha causa.
— A culpa também é minha. — Balanço a cabeça.
Abro a porta, só para me certificar que aquela lunática não
está mais por aqui. Assim que vejo a barra limpa, coloco-o para fora.
— Vou esperar por você depois do jantar — aviso, baixinho.
Ele concorda com um meio sorriso e vai embora, deixando-
me ainda mais ansiosa do que antes.
— Que história sem sentido! — reclamo, quando fecho o livro
sobre o colo.
Quando o Henrique apareceu, trazendo consigo uma pilha de
livros infantis, ri do seu otimismo, porque estava certa de que jamais
conseguiria ler uma história inteira. Agora que terminei a primeira
delas, estou dividida entre a euforia por ter conseguido e a
decepção pela história ser tão idiota.
— Que princesa mais metida — prossigo, analisando a bela
gravura da capa. — Ninguém conseguiria sentir uma ervilha debaixo
de vinte colchões. Isso é ridículo!
— Não é ridículo — ele protesta. — Se ela não conseguisse
sentir a ervilha, como provaria que é uma princesa?
— Eu não precisei deitar sobre nada para provar que sou
condessa. — Desdenho e devolvo o livro para a pilha que está
sobre a mesa de cabeceira. — Bom, se tivesse uma cama de
pregos debaixo do meu colchão, duvido que notaria.
Ele ri e me alcança o caderno e a caneta. Estamos sentados
sobre a cama. Ele manteve a promessa de permanecer o mais
distante de mim possível e, apesar de desejar que ele mandasse
tudo para o inferno e me beijasse de uma vez, sei que é o certo a se
fazer. Pelo menos, estivemos tão distraídos com as aulas, que fico
surpresa, quando vejo no relógio que já são três e quinze da
madrugada. Ele não parece notar o horário tão avançado e sua
companhia é tão agradável, que prefiro guardar essa informação
comigo, receosa que o faça ir embora daqui.
— Agora, escreva o que você achou da história.
— Eu já disse o que achei da história.
— Então vai ser fácil escrever. — Abre um sorriso vitorioso,
que me faz ter vontade de arrancá-lo dali.
Seguro a caneta com força e encosto a ponta sobre o papel.
A tinta deixa uma mancha onde a pressionei, mas recolho a mão,
sem saber o que fazer. Quer dizer, eu sei o que achei da história, só
não sei se ilógica se escreve com J ou G. Então, para contornar a
situação, escrevo outra coisa e entrego o papel para ele.
— Odeio o Henrique por ter me feito ler essa droga? — Ele
lê, de cenho franzido, contendo o riso, sem sucesso. — Pensei que
já tivéssemos superado a fase de odiar o Henrique.
— Se você me mostrar uma história menos ridícula, posso
pensar no seu caso.
Já superei a fase de odiar o Henrique há algum tempo —
muito mais tempo do que gosto de admitir —, mas provocá-lo ainda
é um dos meus passatempos preferidos. Ainda mais, quando ele
sorri desse jeito e faz meu coração esquecer como bate.
— Estou impressionado, Helena! — Muda de assunto. —
Você se saiu muito bem na nossa primeira aula.
Sinto um peso no estômago com a iminência da sua partida e
penso em uma forma de adiá-la. Antes que ele levante da cama,
disparo:
— Posso te perguntar uma coisa?
Ele já estava com a pilha de livros na mão e a solta sobre a
cama, quando se vira para mim e consente.
— Se você soubesse que não sei ler, lá no começo, quando
ainda me odiava, as coisas teriam sido diferentes?
— Não. — Balança a cabeça para os lados, com firmeza. —
Saber que há lugares onde as pessoas vivem sem qualquer
assistência é inadmissível em qualquer contexto, Helena. Eu jamais
veria isso como uma vantagem ou tiraria proveito dessa informação.
A única diferença que consigo imaginar é o que eu faria para mudar
isso, quando assumisse a coroa.
Sua resposta me deixa sem reação. Não sei o que responder
para demonstrar o quanto suas palavras me emocionaram. Espero
que minha expressão transmita que, mesmo não esperando por
isso, essa é a resposta mais assertiva que poderia receber.
— E tem mais. De onde diabos você tirou que eu te odiava?
— prossegue, agora um pouco aturdido. — A única pessoa que
odiei nesse tempo todo fui eu mesmo, por não conseguir te odiar!
— Eu… Eu não sei. Só achei que… — Deixo a frase morrer,
sem argumentos para valer o esforço de deixar a voz audível.
Parando para pensar, o Henrique nunca fez nada para me
ferir, com exceção de responder meus desaforos. As poucas
ameaças que me fez foram vazias. Quando a Morgana passou do
limite, fez questão de me alertar e deixar claro que não concordava
com aquilo. Foi o único a me salvar, quando desmaiei depois do
baile, mesmo depois de eu ter duvidado do seu aviso.
— Como eu poderia odiar a única razão dos meus sorrisos no
meio desse inferno?
Por muito tempo, perco-me na imensidão castanha de seus
olhos, na curva de seus lábios entreabertos, no desenho de seu
rosto perfeito.
— Helena. — Ele me chama, despertando-me. — Se você
continuar mordendo o lábio desse jeito, não vou conseguir manter
minha promessa.
Não ouço ninguém, além do meu próprio coração, quando
digo:
— Eu acho que não quero mais que você a mantenha.
Em um momento ele está me encarando, o desejo brilhando
em seus olhos. No instante seguinte, sua boca já cobre a minha,
impetuosa. Seu gosto me deixa embriagada, as mãos passeiam
pela minha pele fazendo arrepios percorrerem meu corpo todo.
Nunca imaginei que um beijo pudesse me deixar fora de mim,
mas desde que ele me beijou pela primeira vez, as coisas deixaram
de fazer sentido. Minhas certezas se dissolveram, penso que abriria
mão do trono para poder passar o resto dos meus dias em seus
braços.
Mas não posso.
Ele é uma boa pessoa, eu sei disso. Ele é justo e respeitável
e concorda comigo em tantos pontos, que nem conseguiria citar,
mas ele ainda depende do visconde. Toda sua integridade não vale
de nada, quando ele está nas mãos de um bandido corrupto.
É por isso que me afasto dele, mesmo que meu corpo
implore que não faça isso.
— Acho que é melhor você ir — sussurro, ofegante.
Por sorte, ele não insiste. Acompanho-o até a saída, cada
centímetro de pele me odiando por tê-lo mandado embora, seu
gosto ainda impregnado na minha língua.
— Amanhã eu volto. — Seus dedos acariciam meu rosto. —
O que você acha mais idiota? Uma princesa mimada que fala com
sapos ou um boneco de madeira mentiroso?
Solto uma risada e cruzo os braços.
— Não sei, mas confio na sua capacidade de me
surpreender.
Assim que entro na sala, indago-me por que diabos sou
sempre a primeira a chegar.
Que mania chata esses nobres têm de deixar tudo para a
última hora!
Sento-me no lugar de sempre e aguardo, ansiosa, até que
alguém me faça companhia.
A reunião que definirá o futuro da disputa pela coroa está
prestes a começar e sinto um frio congelante na barriga, só de
imaginar o que pode acontecer até o final dela. Por mais que o
Henrique tenha insistido que não há o que temer, minha intuição me
diz que a morte da baronesa vai representar mudanças drásticas no
nosso futuro.
Prendo a respiração quando ouço a maçaneta sendo girada e
a solto, de uma vez, quando o Henrique entra na sala.
— Pensei que fosse deixar para os últimos segundos, como
sempre faz — ralho, de brincadeira, enquanto ele se senta.
— Das outras vezes, não tinha motivos para chegar mais
cedo. — Dá uma piscadinha, ao sentar e apoia os cotovelos sobre a
mesa.
Sorrio, enquanto as bochechas esquentam. Fico admirada
com sua capacidade de sempre dizer algo que me deixa igualmente
explodindo de felicidade e morrendo de vergonha.
A entrada do visconde acaba com nosso clima divertido.
Culpa da nuvem negra que sempre o acompanha e torna qualquer
ambiente em que ele esteja sombrio e desagradável. Logo chegam
o marquês e o Aldo, que dá início à reunião.
— Boa tarde, senhores. Como expliquei no nosso último
encontro, teremos que chegar a um consenso sobre a disputa. A
ausência da baronesa significa que vocês serão obrigados a ter um
número ímpar de concorrentes — explica, com paciência. — Por
isso, primeiro devo perguntar aos dois concorrentes se algum deles
está disposto a desistir.
— Não — respondemos eu e o Henrique em uníssono.
— Eu já imaginava. — Balança a cabeça. — Neste caso,
temos um impasse.
— Não temos nenhum impasse, Aldo, porque eu estou
oficializando a minha candidatura — anuncia o visconde, cheio de
si.
De imediato, encaro o Henrique, que lança um olhar incrédulo
na direção do seu ex-aliado.
— Como assim? — pergunta, boquiaberto. — Nós temos um
acordo.
— Não temos mais.
Se o Henrique pudesse lançar chamas pelos olhos, o
visconde já teria virado carvão, tamanho ódio que emana dele. Não
o culpo, porque, se pudesse, também o ajudaria.
Agora, esse homem é meu oponente direto. Naquele dia, na
cozinha, ele já deixou bem claro que está disposto a me prejudicar,
só porque odiava meus pais biológicos, e sinto um arrepio na
espinha ao imaginar o que esse maníaco pode fazer, caso eu
represente algum risco real para ele.
— Gostaria de aproveitar a oportunidade para manifestar
meu apoio à candidatura do Sérgio — diz o marquês, pronunciando-
se pela primeira vez e abrindo um sorriso glorioso. A fenda entre
seus dentes parecendo ainda maior, deixando sua expressão mais
enojante do que nunca.
— Vocês usaram o recesso para armar tudo isso, não é? —
pergunto. A indignação passando por cima de mim.
Isso é muito injusto.
Eu o Henrique respeitamos a memória da baronesa — ainda
que ela tenha sido ardilosa, fazendo aquelas coisas — e esses dois
corruptos se aproveitaram desse momento para unir forças e atacar.
— De jeito nenhum — responde o marquês, dissimulado. —
Só creio que nosso visconde será um grande rei para Luseia.
Ele vai desvincular minha província, na melhor das hipóteses.
Na pior, vai cuidar de mim.
Um rei e tanto!
Os dois exibem sorrisos satisfeitos, enquanto eu não consigo
disfarçar a repugnância que essa notícia me causa e o Henrique
quase solta fumaça pelas orelhas.
— Bom, como chegamos a um acordo. Declaro esta reunião
encerrada — declara o conselheiro.
Ele, o visconde e o marquês deixam a sala, deixando-me
sozinha com o Henrique.
Não dizemos nada. Na verdade, nem prestamos atenção na
presença um do outro. Apenas ficamos pensando nas
consequências dessa reviravolta. Eu estava disposta a abrir mão do
apoio do marquês, só para não me rebaixar ao nível deles. Agora,
mais do que nunca, preciso pensar em uma forma de vencê-los e
manter minha dignidade.
Por fim, ele se levanta, mas antes que saia, chamo-o.
— Nós precisamos conversar, mas ninguém pode nos ver
juntos — digo. — Vou te esperar lá no terraço.
Ele assente e vai embora e eu sigo para o local combinado.
Acho que tive uma ideia que vai ser de grande valia para nós
dois.
Ele demora tanto para subir, que canso de ficar de pé e
termino minha espera sentada no chão, mesmo que isso signifique
sujar o vestido branco que a Valéria me fez vestir.
Depois de muito tempo, ele aparece. Não parece mais aquele
homem imponente que estou habituada a ver e não sei se isso se
deve ao olhar decepcionado, à postura caída, à gravata frouxa,
aliada a alguns botões abertos da sua camisa, ou tudo junto.
— Você falou com eles? — Minha pergunta soa quase como
uma afirmação.
Ele não responde. Nem esperava nenhuma resposta, já que
sua cara denuncia que eles tiveram uma conversa longa e nada
otimista para o Henrique.
Ele se senta ao meu lado e solta uma lufada de ar, cheia de
frustração, mas não diz nada. Cada parte do seu corpo consegue
expressar tudo o que ele está sentindo.
Raiva, desapontamento, tristeza…
A notícia também foi chocante para mim, mas para ele foi
devastadora e consigo compreender. Ele sempre insiste que esse é
o sonho da sua vida e está sendo retirado dele da forma mais
injusta possível.
— Treze anos da minha vida, dedicados a assumir essa
maldita coroa. Treze anos de sacrifícios, suportando os maiores
absurdos que você pode imaginar, para, no final das contas, ouvir
que não sou forte o bastante para ser rei — desabafa, furioso.
— O que é ser forte, Henrique? É ser igual a ele? — indago.
— É não ter escrúpulos? Ameaçar pessoas? Comprar favores para
conseguir o que quer? Porque, se for isso, eu admiro muito a sua
fraqueza.
Mudo de posição para poder ficar de frente para ele.
— Mas eu não acho que você seja fraco — continuo. —
Desde o começo, muito antes de conhecermos um ao outro, você
me provou que é justo, que não compactua com as canalhices
daquelas pessoas. Nós ainda éramos inimigos e, mesmo assim,
você me alertou sobre o quão perigosos eles podem ser. Você
cuidou de mim, depois de eu ter duvidado das suas intenções. Você
se ofereceu para me ensinar a ler, mesmo sabendo que isso
diminuiria a nossa vantagem. — Seguro sua mão e entrelaço
nossos dedos. — Você é tão forte, que não se aproveitou de
qualquer desvantagem entre nós dois, porque sabe que não precisa
disso para ganhar de mim.
Parecendo esgotado, ele fecha os olhos e apoia a cabeça no
muro atrás de nós.
— É uma pena que isso já não serve para mais nada —
resmunga. — A esta altura, eles têm seis votos e eu tenho só cinco.
— Você tem oito, na verdade — digo.
Ele abre os olhos e me encara, confuso. Depois, quando seu
olhar se ilumina, demonstrando que ele compreendeu o que eu quis
dizer, balança a cabeça e se levanta.
— Nada disso. Eu não preciso da sua pena, Helena.
Quando cogitei essa possibilidade, há alguns minutos, já
imaginei que essa seria sua reação.
— Eu não estou com pena de você. — Também fico de pé e
seguro seu braço. — Por que eu teria pena de um duque metido a
besta?
Percebo a sombra de um sorriso por trás da sua expressão
fechada e me aproximo.
— Eu só estou sendo prática. Separados, nós caímos. Só
existe a possibilidade de tirarmos esse maníaco do trono se nos
unirmos. Um de nós teria que abrir mão e, como você acabou de
dizer, passou treze anos sendo preparado para assumir esse posto.
— Levo a mão até o seu rosto e o toco, com delicadeza. — Eu
confio em você, Henrique, e te dou meu voto.
Meu discurso ainda não o convenceu por completo. E, como
eu imaginava, é hora de lhe mostrar que não vou sair perdendo
nessa história.
— Mas eu tenho algumas condições. Primeiro, você não vai
desvincular nenhuma das províncias anexas. Pelo contrário, vai
torná-las parte do reino e garantir um mínimo de dignidade a todas
elas. Segundo, você vai acabar com essa lei de casamentos
arranjados. Terceiro, eu vou ser a sua conselheira.
Apoio as mãos na cintura e o observo com atenção. Seus
olhos cerrados me dizem que ele está digerindo cada uma das
minhas palavras e ponderando cada exigência com calma. Prefiro
assim. Quero que ele só me dê uma resposta quando tiver certeza
que é capaz de cumpri-las ou não.
— Tem outra coisa — prossigo, chamando a sua atenção. —
Se você aceitar a minha proposta, teremos que manter segredo e
sermos mais discretos. É primordial que ninguém saiba que
estamos juntos nessa. Esse visconde é perigoso e pode tentar fazer
algum mal para nós dois, caso descubra que seu futuro reinado está
ameaçado.
Sei que estamos falando do futuro do nosso reino e de como
isso vai afetar nossas vidas, mas queria que ele pudesse me dar
uma resposta agora. Meu estômago está doendo, devido a
ansiedade.
— Eu topo — diz, por fim. — Eu aceito a proposta.
— Ótimo.
Estendo a mão na sua direção e ele a aperta, selando nosso
acordo.
— Eu vou descer e ser vista por aí, bem longe de você. Faça
o mesmo. Quanto mais longe formos vistos um do outro, menos
desconfianças sobre nós — sugiro.
— Ótimo. Talvez eu acorde com sede, de madrugada, lá
pelas duas e meia e fique um tempo na cozinha, sozinho e sem
nenhum funcionário por perto. — Sorri.
As coisas saíram do meu controle e todo o planejamento da
baronesa virou cinzas ao vento, mas sorrio de volta e respiro
aliviada, ao constatar que aquele homem asqueroso não vai colocar
as mãos na coroa. Que não seremos dependentes dele pelo resto
da vida. Que, finalmente, Luseia pode ter o futuro que merece.
Com cuidado, coloco água para ferver, mas a cozinha está
tão silenciosa, que o mínimo de barulho parece um estardalhaço
ensurdecedor.
Olho para o relógio, que fica em cima da porta, e suspiro ao
me dar conta que só se passaram dois minutos desde a última vez
que o vi e que ainda falta uma hora para o horário combinado.
Queria que a força do pensamento fosse capaz de acelerar esses
ponteiros.
Deveria ter esperado no quarto, mas a ansiedade não deixou.
Não consegui dormir também e, cheguei à conclusão que um
chazinho pode ajudar a aquietar meu coração, que está disparado.
Como já é meu costume, apoio a sola do pé esquerdo no
interior da minha coxa direita e assovio baixinho aquela música que
a minha mãe costumava cantarolar. Passo longos minutos
observando a água, até ela levantar fervura. Assim que desligo e me
viro para pegar a xícara, levo um susto quando vejo o Henrique,
parado no batente da porta.
— Caramba, Henrique! Que susto! — Levo a mão ao peito,
como se isso fosse capaz de acalmar o coração saltitante. —
Parece alma penada.
Ele cai na gargalhada, divertindo-se às minhas custas.
— Está aí há muito tempo? — Tento tirar o foco da vergonha
que acabei de passar.
— Não muito. Não aguentei esperar até às duas e meia. —
Balança a cabeça, divertido. — E você? Chegou há muito tempo?
— Tempo suficiente para preparar um chá e levar um susto.
— Dou de ombros. — Quer um? — Levanto a chaleira.
— Não, obrigado.
Pego a xícara e me sento, de frente para ele. Inspiro a
fumaça quente e cheirosa que sai dela e assopro seu conteúdo,
com cuidado, enquanto ele encara a mesa, pensativo.
— Está tudo bem? — pergunto, chamando a sua atenção.
— Essa música que você estava assoviando… Me faz
lembrar a minha mãe — conta, melancólico. — Ela cantava para
mim, quando era criança.
— Engraçado. Essa música também me faz lembrar a minha.
Ela vivia cantarolando, enquanto costurava. — Sorrio. — Eu sinto
tanta falta dela.
Suspiro, ao sentir a pontada no peito que a saudade me
causa. Mal posso esperar por esse aniversário, só para poder
abraçar minha família novamente.
— Como ela é? — pergunta, apoiando os cotovelos sobre a
mesa.
— Minha mãe? — indago e ele assente. — Ah, ela é brava e
teimosa como uma mula. Vive implicando com todo mundo, mas é a
mulher mais forte e corajosa que já conheci.
— Então você teve de onde puxar.
— A teimosia e a implicância? — Rio. — Pode apostar que
sim.
— Eu me referia à coragem, na verdade — devolve.
Não escondo minha surpresa e, ao notar isso, ele emenda:
— Você é a pessoa mais corajosa que eu já conheci, sabia?
Você largou sua vida para vir para cá, enfrentou a mim e aos outros,
sem demonstrar medo nenhuma vez. Não faz ideia do quanto invejo
sua coragem, Helena.
Dou um gole no chá e não sei se meu rosto esquenta pelo
elogio ou pela temperatura da bebida.
— Eu não tive escolha quando vim para cá. — Dou de
ombros, fingindo despretensão. — E sobre enfrentar vocês… Sabe,
acho que ninguém planeja ser corajoso. Quando a gente acredita
muito em algo, as coisas simplesmente acontecem.
— Então eu acho que nunca acreditei muito em algo. Minha
família morreu, tudo que tenho são aquelas pessoas, e você deve
imaginar que lutar por eles não está na minha lista de prioridades —
brinca.
— Eu aposto que não.
— Posso te fazer uma pergunta? — indaga, parecendo
incomodado.
Assinto e ele pensa por alguns segundos.
— Você já deixou bem claro que não gosta daqui. Por que,
mesmo assim, quer continuar no Palácio, sendo minha conselheira?
— Porque eu não posso correr o risco de deixar você sozinho
e fazer alguma besteira — zombo, entre risadas. — Além do mais,
quando eu for nomeada, você vai me ajudar a trazê-los para perto
de mim. E isso não é um pedido, mas uma ordem.
Ele faz uma careta e leva ao mão no peito, dissimulando.
— Você só está esperando eu ser coroado para mandar em
mim? É isso mesmo?
— Eu tenho certeza que você não vai me contrariar. Eu sei
ser bem convincente quando quero.
Ele balança a cabeça, inconformado com a minha atitude,
mas achando graça da situação.
Termino de beber meu chá e o assunto morre de uma hora
para outra. O silêncio que preenche a cozinha está longe de ser
pesado ou constrangedor. Ele é terno, leve, confortável, mas nunca
gostei muito dele, então aproveito para emendar o assunto.
— Nós não podemos deixar que ninguém desconfie do nosso
acordo — abaixo minha voz até ela não passar de um sussurro. Ele
precisa se curvar sobre o tampo da mesa e se aproximar de mim,
para me ouvir. — Eu estive pensando que nós dois deveríamos
conversar com o marquês. Não juntos, é claro, mas em momentos
distintos, implorando pelo apoio dele.
— Eu já fiz isso mais cedo. Pensei que, quanto mais
desesperado eu parecesse, mais convincente seria o nosso teatro
— explica, também em voz baixa.
Assinto, animada com a nossa conexão.
— Vou fazer o mesmo, mas somente dentro de alguns dias,
para não dar na vista. Talvez aproveite a oportunidade da minha
festa para insistir nesse assunto. E temos que tomar muito cuidado.
Precisamos nos tratar com indiferença na frente das outras pessoas.
— Isso vai ser difícil.
— Eu sei que vai. — Seguro sua mão sobre a mesa e lhe
encaro. — Vai ser difícil para mim também, mas será por pouco
tempo. Além do mais, você não desistiu das nossas aulas, não é?
São os únicos momentos do dia em que me sinto feliz, de
verdade. Não consigo me imaginar fingindo ignorar o Henrique, sem
a recompensa de tê-lo comigo em nossas aulas.
— É claro que não, mas acho que é melhor esquecermos
isso, pelo menos, até semana que vem. — Ao notar minha
decepção, emenda: — Precisamos ser muito cuidadosos. Se nos
comportarmos direitinho durante esta semana e fingirmos que
estamos em lados opostos, a vigilância sobre nós vai ser inútil.
Assinto, porque ele tem razão.
— Acho que…
Paro minha frase no meio, assim que passos do lado de fora
da cozinha enchem o ambiente. Ele se levanta e faz um gesto,
pedindo que eu me esconda e é o que faço. Abaixo-me atrás da
mesa e ouço-o conversando baixinho com alguém do lado de fora.
Meu coração acelera e preciso controlar a respiração ofegante,
antes que ela denuncie meu esconderijo.
As vozes vão se distanciando e aproveito a oportunidade
para voltar para o quarto, o mais rápido possível. Minha mãe me
daria uns cascudos, se me visse deixando a xícara suja sobre a
mesa, mas, no momento, sair daqui antes que alguém me veja é
mais importante do que as lições sobre responsabilidade que ela me
deu.
Respiro aliviada ao encontrar o corredor escuro e vazio e saio
dali, às pressas.
— Helena! Sou eu!
O sussurro através da a porta me faz levantar da cama em
um salto.
Reviro os olhos, irritada. Acabamos de ter uma conversa
sobre tomar cuidado e ele vem atrás de mim no minuto seguinte!
Assim que abro, seguro-o pelo braço e o puxo para dentro,
sem nenhuma delicadeza.
— Qual parte de precisamos ser cuidadosos você não
entendeu? — disparo, impaciente, cruzando os braços.
— Ei, calma! Eu só queria saber se está tudo bem —
defende-se. — Quando voltei para a cozinha, você não estava mais
lá. Fiquei preocupado!
Uma culpa leve martela na minha cabeça, avisando-me que,
enquanto ele está se arriscando só para saber se estou bem, eu
devolvo o favor com grosserias.
— Desculpa. É que eu tenho medo que alguém possa ter
visto você aqui.
— Ninguém me viu… Eu espero que ninguém tenha me visto
— corrige, com um sorriso que é capaz de me desarmar desarmar.
Assim que ele percebe que minha postura defensiva virou pó,
aproveita a brecha para se aproximar ainda mais, até me encurralar
contra a porta.
— Não sei se você já se deu conta disso, mas nós não
somos mais inimigos, sabia? — murmura, os lábios tão próximos
dos meus, que o sopro da sua voz me faz cócegas.
— Sabia — torno.
— Nem adversários, nem oponentes, nem rivais…
Tento parecer firme, demonstrando que a pouca — ou
nenhuma — distância entre nós não é o suficiente para me deixar
zonza, com as pernas moles e com o coração galopando no peito…
Mas quem disse que eu consigo?
— Sabe o que isso quer dizer? — continua.
Sei. É claro que sei.
Desde que fechamos aquele acordo, esse pensamento não
deixou a minha mente nem por um segundo. Tentei me apegar ao
fato que ambos somos comprometidos, mas, antes mesmo de me
sentir culpada, minha consciência já deu um jeito de me convencer
de que não estamos fazendo nada de errado, já que, se o Jonas
conhecesse outra garota, eu jamais o impediria de ficar com ela.
Assinto, por fim, e fecho os olhos, já aguardando sua próxima
jogada. Sua boca acaricia de leve a minha e logo sua língua me
invade, em um beijo sedento. Seguro seu rosto e retribuo, sentindo
cada parte do meu corpo corresponder a ele. A cada instante, seu
corpo me pressiona mais contra a superfície atrás de mim e, mesmo
sabendo que estou encurralada, não quero que ele pare.
Perdemos a noção do tempo, perdidos em todas as
sensações incríveis desse beijo. O gosto da sua boca, o rastro de
calor que sua mão deixa por onde passa, o seu cheiro…
Mas a preocupação volta a me assolar e me afasto dele,
mesmo que sua boca pareça atrair a minha como um ímã.
São só alguns dias.
— Você precisa ir — digo. — Precisamos ser cuidadosos,
lembra?
Ele assente e me dá um último beijo — este mais apressado,
mas igualmente delicioso — antes de deixar meu quarto.
Apoio as costas na porta e não contenho o sorriso bobo.
Manter distância e fingir indiferença vai ser muito mais difícil
do que eu imaginei.
Deixo escapar um grito de dor e puxo a mão com força,
mesmo sob os protestos da Valéria.
— A senhorita precisa ficar quieta! — repreende-me, já
irritada. — Desse jeito eu não vou terminar suas unhas nunca!
— Eu estou impaciente — defendo-me. — Minha família já
deve estar chegando.
Nunca pensei que um aniversário falso pudesse me deixar
tão ansiosa. Mal consegui dormir essa noite e não parei de
importunar o Aldo para saber, com exatidão, a que horas eles irão
chegar — mesmo que ele tenha repetido milhares de vezes que não
sabe.
— Então é melhor deixar que eu termine isso logo, porque,
quando eles chegarem, a senhorita poderá ficar a sós com eles, não
acha?
Concordo com ela e tento manter as mãos quietas.
Depois de alguns dias, pude perceber que a Valéria não é de
todo ruim, como imaginava. Ela só é muito discreta e tem medo de
ser punida, como aconteceu com a Carol, mas fora isso, ela é
educada, solícita e até engraçada de vez em quando.
Ela puxa alguns assuntos bobos, que conseguem me distrair
até terminar seu serviço e ainda me faz ficar parada no quarto,
enquanto o esmalte seca.
Por fim, um empregado vem avisar que eles chegaram.
Quase solto um grito de animação e saio correndo pelo Palácio,
atrás deles. Meu fôlego ficou para trás há muito tempo, mas isso
não me impede de acelerar ainda mais, assim que os vejo, próximos
à entrada. Miro no Jonas, que é o primeiro que minha visão alcança,
e me atiro nos seus braços, quase o derrubando.
— Caramba, Lena! Se eu soubesse que você queria me
matar, não teria vindo — brinca, retribuindo meu abraço.
Não respondo sua provocação boba. Estou feliz demais para
isso.
— Eu estava com tanta saudade! — Afasto-me dele e agora
a minha mãe é o alvo do meu ataque.
— Você está magra, filha — diz ela, analisando-me de cima a
baixo. — Anda comendo direito?
— Ela não está magra. Está linda, isso sim! — defende o
meu pai, como não podia ser diferente.
Sorrio, com o coração quase explodindo de tanta felicidade
por tê-los comigo novamente. Esses dias que passei longe deles
foram os mais longos da minha vida, sem dúvida nenhuma.
— Você cresceu, pirralho! — exclamo, ao ver o Aristides.
— E você continua a mesma baixinha de sempre — retruca,
o que é um absurdo, porque sou mais alta do que ele.
Finalmente, levo-os para o meu quarto, porque mal vejo a
hora de colocar a conversa em dia e absorver o máximo que puder
deles, enquanto tenho tempo.
Logo após o almoço, meus pais e o Aristides resolvem
descansar um pouco e aproveito a oportunidade para levar o Jonas
até o jardim. Ele nem gosta de flores, mas é um bom lugar para
conversarmos sem ninguém nos observando.
— Está acontecendo alguma coisa? — Ele me olha como se
conseguisse enxergar minha alma através das íris de cores
diferentes.
Estamos sentados em um dos bancos de ferro, mas sem falar
nada há algum tempo.
— Por que você está perguntando isso?
— Porque você está estranha — declara, olhando para mim.
— Quieta demais. Eu te conheço há tempo suficiente para saber
que você só fica quieta quando alguma coisa está acontecendo.
Droga!
Eu não contei a ele nada sobre o Henrique. Apesar de ser o
meu melhor amigo e de saber quase tudo sobre a minha vida, a
verdade é que morro de medo do seu julgamento.
Eu fui criada em um lugar onde beijos e demonstrações
públicas de afeto não são permitidas. É claro que isso não foi
empecilho para que todos os adolescentes do meu vilarejo fizessem
isso às escondidas, que é exatamente o que eu tenho feito com o
Henrique, mas, desta vez é diferente.
Por mais que eu saiba que seria condenada por eles, caso
soubessem o que anda acontecendo, não me sinto fazendo algo
errado, o que é estranho. Esse sentimento de culpa, que me
assolava no começo, está cada vez mais distante e esquecido.
Creio que quando duas pessoas se casam sem que haja
nenhum sentimento entre elas, seja fácil não demonstrar qualquer
afeto, mas isso se torna muito complicado quando eu passo os dias,
contando as horas para poder vê-lo e sentir o gosto da sua boca na
minha ou meu coração tamborilando no peito, do jeito que só
acontece quando estou com ele.
— Você está assim por causa da eleição? — insiste,
acordando-me dos meus devaneios.
Assinto, dividida entre o remorso, por estar escondendo a
verdade do meu melhor amigo, e o alívio, por ter recebido a
desculpa de bandeja.
Sei que estou errada.
Devia lhe contar a verdade de uma vez, mas, apesar de ser a
pessoa em quem mais confio no mundo, não posso esquecer que
ele foi criado seguindo as mesmas regras que eu. Regras que, até
alguns dias, antes de me apaixonar, acreditava serem corretas. Pelo
que sei, o Jonas nunca sentiu isso por alguém e não creio que vá
me entender.
— Eu não sei o que fazer — digo, mas não me refiro,
especificamente, a eleição.
Ele sabe que o visconde se candidatou, até porque, ele
também teve direito a uma entrevista na TV, onde pôde mostrar o
quão capacitado para assumir o trono ele está, assim como eu o
Henrique tivemos nossa chance de fazer o mesmo. Só não lhe
contei que estamos juntos e que vou votar nele. E dessa vez não
teve nada a ver com sua reprovação.
Se as paredes têm ouvido, os telefonemas não estão livres
de serem grampeados também. Essa é uma prática muito comum
nas novelas que assistia na casa da Julieta e não imagino que aqui
as coisas sejam muito diferentes.
— Tem uma coisa que eu preciso te contar — começo, em
um sussurro, aproximando-me dele.
Depois de verificar que estamos sozinhos, conto-lhe sobre o
acordo que eu fechei com o Henrique, o motivo de não ter lhe falado
sobre isso antes e minha ideia de trazê-los para perto de mim,
assim que tudo acabar.
— Você acha que ele vai cumprir a parte dele do trato? —
indaga, cético. — Porque isso está me parecendo bom demais para
ser verdade.
— Eu tenho certeza que ele vai cumprir o combinado, Jonas
— devolvo, categórica.
— Até alguns dias, você não confiava nele e agora está
apostando todas as suas fichas nesse cara… Eu perdi alguma
coisa?
— Sim. Você perdeu a parte em que o visconde está unido ao
marquês e que os dois juntos vão destruir nosso reino — respondo,
impaciente. — Ou eu me junto ao Henrique e temos uma chance ou
deixamos que aquele homem asqueroso destrua o nosso futuro.
Ele não responde. Em vez disso, me lança um olhar
indecifrável, o que é estranho vindo do Jonas. Eu costumava
entender qualquer sinal vindo dele.
— Você está do meu lado ou não?
— Eu sempre estou do seu lado, Lena. Você sabe disso.
Sei… E mesmo assim estou lhe enganando.
Que droga de amiga eu sou!
Sento em uma das cadeiras, quando meus pés clamam por
descanso.
Nunca pensei que pudesse me divertir tanto em uma festa
nesse lugar. Acho que é culpa da minha família, que conseguiu me
deixar tão à vontade, quanto nas festas de casamento que
costumava ir. A diferença é que naquelas festas eu não era o centro
das atenções, nem tinha que dançar com qualquer coisa que se
mexa, com medo de fazer desfeita.
De todos os pares, o Jonas é o meu preferido, de longe. Já
perdi as contas de quantas vezes dançamos, desde que a festa
começou. É claro que ele não sabe dançar os passos estranhos que
a senhora Zélia cansou de me ensinar, mas nos contentamos com a
coreografia divertida do nosso vilarejo, para o total horror da minha
professora de etiqueta, que cansou de me lançar olhares de
reprovação.
Meu pai, que não é nenhum bailarino nato, negou-se
terminantemente a se levantar da cadeira, sobrando para o Jonas e
para o Aristides se revezarem no papel de par da minha mãe, que
adora dançar. O problema é que nenhum deles parece bom o
suficiente para ela, o que resulta em xingamentos divertidíssimos.
O visconde e o marquês só ficaram até o brinde e foram
embora, logo que suas ausências não fossem consideradas falta de
educação. A Morgana, pelo contrário, fez questão de ficar aqui e
estipulou como meta para a sua noite infernizar o Henrique durante
toda a festa. Neste momento, eles estão na pista e ele parece estar
tão realizado quanto um condenado às vésperas da execução.
Nossos olhares se cruzam e preciso fazer um esforço
tremendo para não transparecer que meu coração deu uma pirueta
dentro do peito.
Mando qualquer resquício de bom senso para bem longe e
sigo até eles, no meio do salão.
— Só falta você para que eu possa dizer que dancei com
todos os homens desse salão — digo, assim que paro bem ao seu
lado, interrompendo o seu sofrimento.
— Caso não tenha percebido, ele já está ocupado — retruca
a Morgana, fazendo cara de nojo.
— Você já dançou com ele a noite toda, Morgana. Não seja
egoísta. Além do mais, eu sou a aniversariante, você não faria essa
desfeita para mim na frente de todas essas pessoas, não é?
Ela respira fundo e se afasta dele, mas, antes de ir embora,
segura no meu braço e rosna, no meu ouvido:
— Eu já disse para ficar longe do meu noivo.
— Eu também tenho um noivo — respondo, com um sorriso
sarcástico. Então, aponto para o Jonas, que dança com uma moça
que já vi algumas vezes no Palácio, mas não faço ideia de quem
seja. — Ele está ali, dançando com outras pessoas, porque é
simpático e educado. Devia se espelhar nele.
Puxo meu braço com força e volto para perto do Henrique,
que ainda nos encara, estático.
— Você me deve mais uma — começo, assim que ele pousa
uma das mãos na minha cintura e começamos a dançar. — Aposto
que depois dessa, ela não vai mais te incomodar.
— E quando eu vou poder te agradecer pelo favor? — Sorri,
o que me faz soltar uma risada. — Eu estou falando sério. Pensei
que só seu amiguinho tivesse o prazer de dançar com a
aniversariante mais linda que já vi.
Sei que corro o risco de parecer exibida, mas ele tem razão.
Eu estou linda, mesmo. Ao contrário da Carol, a Valéria me deixou
escolher o vestido e, assim que coloquei os olhos no vestido
dourado, com as costas abertas, já sabia que ele seria o escolhido.
Ela só precisou deixar meus cabelos soltos e volumosos e fazer
uma maquiagem leve para me deixar perfeita para a minha festa.
— Nem é meu aniversário, Henrique.
— Você está estragando minha declaração — zomba.
— Era para ser uma declaração? — Bufo, fingindo decepção.
— Esperava bem mais de você!
Dando um giro que faz parte da coreografia, ele aproxima os
lábios do meu ouvido e sussurra:
— Então me encontra no escritório em meia hora e me deixa
fazer isso direito. Bem longe dos olhares curiosos dessas pessoas.
— Henrique… — repreendo-o, morrendo de vontade de
aceitar.
— Vai ser bem rapidinho, eu juro.
Embora isso não passe de uma loucura, acabo concordando.
Quando a música acaba, agradeço-o e volto para perto da minha
família.
— Aguenta dançar mais uma? — o Jonas pergunta,
estendendo a mão na minha direção.
— É claro.
Confiro o relógio de parede e suprimo um sorriso ao me dar
conta que já está na hora combinada. Meus pais, já cansados,
resolveram ir dormir e, para a tristeza do Aristides, levaram-no com
eles. O Jonas ficou, mas há uma fila quilométrica de moças
querendo dançar com ele, o que significa que ele não vai sentir
minha falta nesses poucos minutos que pretendo ficar fora.
O escritório não fica longe. Em poucos minutos já estou lá,
com o coração disparado e o estômago congelando. Sorrio ao
encontrá-lo ali, o quadril apoiado na mesa, um sorriso de lado nos
lábios.
Tão logo a porta do escritório se fecha atrás de mim, ele
ataca a minha boca, como se estivesse esperando por isso há muito
tempo. Retribuo com a mesma intensidade, agradecendo
mentalmente à Valéria por ter escolhido um batom claro, caso
contrário, teria problemas para voltar para a festa.
— Eu sei que não deveríamos estar aqui, mas está cada vez
mais difícil, Helena — sussurra, com os lábios encostados nos
meus. — É impossível te ver e fingir que não estou completamente
apaixonado por você.
Eu deveria dizer a ele que nem mesmo consigo fingir mais.
Que qualquer pessoa que me analise com o mínimo de atenção
pode notar há quilômetro que ele mexe comigo como nunca pensei
ser possível, mas sua declaração — essa, muito melhor do que a
outra, devo confessar — me deixa tão radiante, que só consigo
sorrir.
Sorrir, até minhas bochechas doerem.
— São só alguns dias — respondo e torno a beijá-lo.
Não fazia ideia que pouco mais de vinte e quatro horas sem
poder tocá-lo me faria toda essa falta. Tento absorver cada parte
dele com vigor, porque sei que esse momento precisa ser breve. Ele
morde meu lábio, enquanto seguro seu rosto e o trago para mais
perto. Ele beija meu pescoço, enquanto enrosco meus dedos em
seu cabelo. Ele me arranca suspiros, enquanto…
A porta é aberta abruptamente e me afasto dele, como se seu
toque me causasse um choque.
O Jonas está parado, encarando-me em um misto de
perplexidade, raiva e decepção.
— O que está acontecendo?
Antes que eu tenha tempo de responder, ele e vai embora.
Levo alguns segundos para normalizar minha respiração, que está
ofegante pelos beijos e pelo susto.
Assim que a consciência volta ao seu estado normal, sigo até
a saída, pronta para ir atrás dele, mas o Henrique me segura.
— Eu tenho que ir atrás dele — digo.
— Quer que eu vá com você?
Balanço a cabeça e saio correndo.
Posso vê-lo no fim do corredor, andando apressado. Por mais
que o chame, ele finge não me ouvir. Por fim, descalço meus
sapatos e logo consigo alcançá-lo.
— Espera, Jonas. Eu posso explicar…
— Explicar? Você não tem que me explicar nada! — dispara,
zangado. — Você faz o que bem entender da sua vida.
— Mas você está bravo comigo!
— Estou, mas estou muito mais decepcionado, porque pensei
que você confiasse em mim.
Ele cruza os braços e me lança um olhar frio, que dói mais do
que se tivesse me dado um tapa.
— Eu só estava com medo que você me julgasse — arrisco.
— Você nunca se importou com o meu julgamento, por que
começou agora? — indaga, e comprime os lábios, como se
estivesse medindo as palavras. — Você mudou, Helena.
Ouvi-lo me chamando pelo meu nome — e não pelo apelido
— é capaz de fazer meu coração sangrar. Posso lidar com esse tipo
de reação vinda de qualquer pessoa, mas não dele. Não do meu
melhor amigo.
— Por favor, Jonas… — insisto, tentando segurar as
lágrimas.
— Você não é mais aquela Helena. Em vez de tentar fingir
que ainda é uma de nós, assume logo que agora você faz parte
disso aqui. — Ele abre os braços, apontando para as paredes do
corredor. — Talvez no seu lugar, eu faria o mesmo, não sei… A
única certeza que eu tenho é que não tem mais espaço para mim
nessa sua nova vida.
— É claro que tem! — contesto, a voz já embargada. —
Sempre vai ter espaço para você.
— Eu notei que você estava estranha. Eu sabia que tinha
algo de errado, mas não quis acreditar que minha melhor amiga
estivesse escondendo qualquer coisa de mim. Eu… — Ele balança
a cabeça para os lados e segura a base no nariz com força. — Você
mudou. Eu já não sei mais quem é você.
A cada palavra que sai da sua boca, sinto como se uma faca
golpeasse meu peito, machucando-me da forma mais profunda e
dolorosa possível. Já não tento mais esconder as lágrimas, nem
fingir que não estou devastada com tudo o que acabei de ouvir.
— A Helena que eu conheço não faria… aquilo. — Aponta
para a direção do escritório, algo entre decepção e repulsa retinindo
em sua voz.
— Você não entende…
— Não, mas talvez entenderia se você confiasse em mim
tanto quanto gosta de repetir.
Ele segue seu caminho em direção ao fim do corredor, mas
quando passa ao meu lado, seguro seu braço, com força, como se
isso fosse impedi-lo de me deixar sozinha aqui.
— Jonas, por favor!
Ele não diz nada. Nenhuma palavra ou som deixa seus
lábios. A única resposta que recebo é seu olhar desgostoso e
machucado, do tipo que nunca vi antes.
Observo-o se afastando, até sumir no final do corredor,
deixando-me sozinha, apenas na companhia da dor e da tristeza.
Acordo, no outro dia de manhã, e descubro, da pior forma
possível, que o que aconteceu ontem não foi um mero pesadelo.
Meu corpo parece muito mais pesado do que ontem e levo
mais tempo do que o normal para sair da cama. Estou com medo de
enfrentar o Jonas, medo de descobrir que perdi meu melhor amigo
por causa da minha covardia, medo de que ele tenha contado aos
meus pais sobre o que viu. Essa incerteza está comprimindo o peito
de uma forma dolorosa e incômoda, impedindo-me de respirar.
Encho os pulmões de ar e coragem e deixo o quarto, a
procura da minha família, seja lá onde estiverem. Não demoro a
encontrá-los, na sala de jantar, tomando o café da manhã. Não há
nenhum sinal do meu amigo. Junto-me a eles, mas apesar das
delícias que estão servindo, tudo tem gosto de cinzas.
— Onde está o Jonas? — pergunto, baixinho, para a minha
mãe.
— Ele disse que não está se sentindo bem e preferiu ficar no
quarto.
Ele só está fazendo isso para me evitar.
— Aconteceu alguma coisa? — ela insiste.
Nego com um movimento de cabeça e, mesmo que tenha
notado que não estou dizendo a verdade, não insiste. Fico sentada
ao lado deles, distraída, pelo que parece uma eternidade. Abaixo a
cabeça quando o Henrique entra, porque olhar para ele me traz
todas as lembranças de ontem. As boas e as ruins. Ainda bem que
estamos fingindo todo esse distanciamento, porque não quero ter
que conversar com ele sobre o que aconteceu ontem e tenho
certeza que essa seria sua primeira pergunta.
Cogito várias vezes a possibilidade de bater no quarto do
Jonas para que possamos conversar melhor, agora de cabeça fria,
mas não acho que seja uma boa ideia. Se ele quisesse falar comigo,
não teria mentido para a minha mãe.
Se, por um lado, não quero insistir, por outro, não quero que
ele vá embora sem resolvermos essa situação.
Eu devia ter lhe contado sobre o Henrique.
Ele estava certo. Eu nunca liguei para o seu julgamento…
Por que fui ligar para isso logo agora?
Volto para o quarto com eles, para que possam arrumar suas
coisas. A viagem é longa demais e precisam partir o quanto antes.
Eu já sabia que ficaria triste quando eles fossem embora,
mas não fazia ideia de que as coisas terminariam desse jeito. Em
quase dezenove anos, não me lembro de ter tido uma briga tão feia
com o Jonas. Apesar das nossas várias discussões e brigas, ele
nunca me tratou com tanto desprezo.
Acompanho-os até o carro. Ele vai direto para o veículo, sem
me dirigir a palavra, o que causa estranheza na minha mãe.
— Vocês brigaram?
— Mais ou menos.
Enfim, despeço-me deles e sinto o vazio que deixam quando
partem daqui.
Lembro-me do que disse para o Henrique ontem à noite,
tentando me agarrar a esse fio de esperança.
São só alguns dias.
— Eu estou me sentindo tão envergonhada — reclamo,
desanimada.
Sei que deveríamos tomar cuidado, mas não consegui
impedir o Henrique de entrar no meu quarto. Depois de um dia
inteiro me sentindo péssima, eu só precisava de um pouquinho de
cuidado e atenção e não pude recusar seu pedido, alegando que
estava preocupado comigo. Em especial, porque já são três e meia
da madrugada e não quero acreditar que alguém esteja de tocaia
nos corredores a essa hora.
Contei-lhe sobre a briga que tivemos e sobre o quanto me
deixou triste e culpada e ele ouviu tudo, em silêncio. Estamos
deitados na minha cama, o que só intensifica aquele sentimento de
que eu estou cometendo um erro enorme.
— Nós não estávamos fazendo nada de errado — arrisca,
depois de horas ouvindo meus lamentos.
Apoio-me nos cotovelos e lanço um olhar cético, porque,
teoricamente, o que estávamos fazendo estava longe de ser
considerado correto.
— Pelo seu ponto de vista, até pode ser que sim. Nós dois
somos comprometidos e blá-blá-blá. — Ele faz uma careta, que
consegue me arrancar um riso tímido. — Mas vamos ver as coisas
por outro ângulo. Eu nunca quis me casar com a Morgana, assim
como você também não quer se casar com o Jonas, certo? Nós
também não escolhemos nos apaixonar. Pelo contrário, até onde me
lembro, nós bem que tentamos evitar que isso acontecesse.
— Eu sei disso, mas lá no meu vilarejo…
— Me desculpa, mas seu vilarejo não é nenhum exemplo —
interrompe-me, impaciente. — Lá não existem escolas, nem
hospitais e você consegue enxergar que isso não está certo. O
mesmo acontece com essas regras ridículas sobre quem pode
beijar quem ou qual roupa as pessoas devem usar. Eu sei que você
sente falta de lá e que está chateada com tudo o que aconteceu,
mas eu não vou deixar que se culpe por isso. Eu tenho certeza que
logo ele vai cair em si e se dar conta que errou.
Viro-me de frente para ele e lhe dou um beijo suave.
— Obrigada por me fazer sentir um pouco melhor. — Sorrio e
o abraço. — As poucas horas que passo com você tem sido, de
longe, as melhores do meu dia.
— Isso tem acontecido comigo também.
Por algum tempo ficamos em silêncio, o único som que
preenche o ambiente é o meu coração batendo em um compasso
tranquilo, como sempre acontece quando ele me abraça desse jeito.
— Minha mãe sempre dizia que você pertence ao lugar onde
se sente livre — ele conta. — Acho que é por isso que, desde que
eles morreram, não me sentia fazendo parte de nada e que, agora,
só me sinto em casa quando estou perto de você.
Abro um sorriso sincero e enfio o rosto na curva do seu
pescoço. Ficamos assim, até um bocejo nos avisar que já está bem
tarde.
Entre risadas e beijos, levo-o até a porta e me despeço,
sentindo-me leve novamente.
Um som distante incomoda meu sono tranquilo. Parece
minha fechadura sendo aberta, mas só pode ser um sonho, já que
tenho certeza que a tranquei depois que o Henrique foi embora.
O barulho continua me atrapalhando, mas estou sonolenta
demais para reagir. Depois de algum tempo, ele cessa, o silêncio
volta a reinar e torno a pegar no sono.
Sinto a presença de pessoas dentro do meu quarto, pessoas
estranhas e sorrateiras. Talvez sejam as pessoas que estavam
tentando abrir a minha tranca. Sento na cama, sobressaltada, e levo
um susto ao notar que um homem está ao lado da minha cama. A
penumbra do quarto me impede de enxergar seu rosto, sobretudo,
quando ele coloca um pano molhado sobre o meu rosto. O líquido
tem um cheiro muito forte e minhas narinas ardem ao respirá-lo.
Uma espécie de torpor começa a se apossar de mim, mas antes de
apagar, ouço uma voz insuportavelmente familiar.
— Já passou da hora de você aprender que ninguém mexe
no que é meu, sua caipira ridícula.
Sons distantes e destorcidos, unidos a uma dor de cabeça
esmagadora acompanham o retorno da minha consciência. O
pescoço também lateja e levo alguns segundos para conseguir
endireitá-lo, já que minha cabeça está pendida para o lado.
Onde eu estou?
Estou sentada no chão, com os punhos amarrados e, aos
poucos, a voz da Morgana começa a se tornar mais nítida, trazendo,
de repente, lembranças do que aconteceu.
— Já não era para ela ter acordado? — ela pergunta, mas
não há qualquer preocupação na sua voz. Talvez ansiedade.
— O que você quer, Morgana? — Tento fazer a voz parecer
firme, mas a língua ainda não está tão desperta quanto o cérebro, o
que faz a fala ficar um pouco débil.
— Ah, olha só quem apareceu! — exclama, animada.
— Você me dopou e me trouxe para cá… Acho que não tive
muita escolha.
Quando meu pescoço parece ter voltado ao normal, giro-o
para os lados e me dou conta que estou em uma espécie de terraço,
mas não aquele que o Henrique me mostrou outro dia. Este é um
pouco menor, o muro não é tão alto e o piso bruto deixa claro que
este é um lugar de acesso não convencional. Talvez até seja
proibido subir até aqui.
Além disso, um homem com o rosto coberto está parado,
próximo à porta. Ele usa uma calça preta e uma jaqueta, mas por
trás da gola, consigo notar o uniforme dos guardas.
— Seu noivo gostou do que encontrou no escritório? Ele
pareceu ficar bem curioso quando lhe contei o que vocês estavam
aprontando — desdenha e sorri, ao ver a minha surpresa.
— Você é mais ridícula do que eu imaginei. — Reviro os
olhos. — Pensou o quê? Que o Jonas ficaria com ciúme? Ele não
sente nada por mim.
Ela solta uma risada debochada e se aproxima de mim.
— Engraçado… Eu podia jurar o contrário.
Não consigo esconder o espanto com a sua colocação. Ela
só pode estar mentindo. O Jonas não sente nada por mim. Nunca
sentiu, na verdade. Ele sempre deixou isso bem claro. Somos
apenas bons amigos e, assim que ele perceber o tamanho da
injustiça que cometeu, virá correndo me pedir mil desculpas.
No entanto, o pensamento de que esse argumento faz
sentido, após ele ter ficado tão chateado comigo, martela minha
consciência com mais força do que posso suportar.
— Mas o seu noivo e os sentimentos dele não me dizem
respeito. Eu te trouxe aqui para conversarmos sobre o meu. — A
diversão some do seu rosto e seus olhos ganham um tom raivoso.
— Está na hora de te mostrar que ninguém toca no que é meu,
queridinha.
— Você se refere a ele como se fosse um objeto. Deve ser
por isso que ele não te suporta — disparo.
— A recíproca não poderia ser mais verdadeira — devolve.
— Ou você pensou que eu amasse aquele idiota? Ah… que
decepção, Helena. Achei que você fosse uma oponente à minha
altura e não uma boba apaixonada.
Cerro os olhos, tentando entender o que ela quer com o
Henrique, mas não consigo chegar à nenhuma conclusão.
— Seu pai tem o apoio do marquês. Ele vai ser rei. Você não
precisa mais do Henrique para conseguir a sua tão sonhada coroa
— arrisco.
— Você tem razão. Eu vou ser princesa em alguns dias e não
preciso mais dele… Mas você está enganada se pensa que eu vou
deixá-lo livre para ser feliz ao lado de uma caipira ridícula como
você. — Ela cospe as palavras, em uma mistura de ódio e nojo. —
Ele é meu. Como um brinquedo velho e que já perdeu a graça. Eu
costumo ser bem possessiva com aquilo que me pertence, mesmo
que não tenha a menor utilidade. O Henrique é meu desde o dia em
que você foi dada como morta. Ainda não entendo porque você teve
que voltar das profundezas do inferno para atrapalhar meus planos.
A última parte é dita quase em um sussurro, como se
estivesse falando mais para si mesma do que para mim.
— Do que você está falando? — indago, curiosa.
— Nada que seja da sua conta! — vocifera, descontrolada.
Ela é mais louca do que eu podia imaginar. Pela primeira vez,
desde que acordei nesse lugar, começo a sentir que não estou
segura e que ela pode, sim, representar um perigo real para mim.
Pensei que fosse só um grande teatro para me amedrontar, porém,
seu sorriso raivoso e lunático estão me convencendo de que, se ela
me atirasse daqui de cima, sairia radiante.
Por alguns minutos, ninguém diz nada. Ela me encara,
furiosa, enquanto tento manter minha respiração normal.
— Você já deu seu recado, agora já pode me soltar e
podemos fingir que isso nunca aconteceu, Morgana — sugiro,
rezando para que ela mude de ideia e me deixe voltar para o meu
quarto.
— Eu ainda nem comecei e você já quer ir embora? Isso é
muito deselegante, Helena. — Sorrindo, ela coloca as mãos na
cintura e finge decepção. — Quem tem amigos tem tudo. É isso o
que eles dizem, não é? Isso me dá uma vantagem brutal sobre
você, já que amigos não é algo que você tenha aos montes por
aqui.
Ela perde alguns segundos admirando suas unhas longas e
bem pintadas, antes de estalar os dedos. O homem com o rosto
coberto, que se manteve calado e estático durante todo esse tempo,
aproxima-se de mim. Encolho-me ao sentir suas mãos agarrando
meus braços e me colocando de pé. Quase solto um suspiro
aliviado, quando tira a corda que amarra meus punhos, mas, pelo
olhar sádico que a Morgana me lança, convenço-me de que isso
não é algo bom. Ele é muito mais forte do que eu e não tem
nenhuma dificuldade em me empurrar até a beira do muro que
protege o terraço, que é tão baixinho que bate nas minhas coxas.
— O que você pensa que está fazendo? — pergunto,
desesperada.
Nenhum deles responde.
Ele continua me empurrando para frente, sem soltar meus
braços, até o meu corpo ficar inclinado sobre a proteção. Aqui não é
tão alto quanto o terraço em que estive com o Henrique, mas não
creio que sairia viva, caso solte meus braços. Os únicos
movimentos que meu corpo faz são os respiratórios e o meu
coração, que está quase perfurando peito.
— Para com isso, Morgana!
— A vida na Corte pode ser traumatizante, sabia? — sibila,
ignorando meu pedido. — Não é qualquer pessoa que passa por
tudo isso, sem sofrer a pressão de ter a decisão sobre o futuro do
reino em suas mãos…
A visão da calçada debaixo de mim começa a me causar
vertigem. Todo o corpo está na expectativa sobre o toque desse
homem sobre a minha pele. Tenho a impressão de que, em alguns
momentos, ele libera rapidamente a pressão, só para me assustar
ainda mais.
— Caramba! Uma moça tão jovem, tão bonita, com um futuro
promissor pela frente… Pena que não aguentou as
responsabilidades que a nobreza trouxe consigo.
— Pelo amor de Deus, Morgana! Me deixa voltar para o
quarto, por favor! — imploro, aflita.
As lágrimas quentes que escorrem pelo meu rosto
contrastam com a brisa gelada da madrugada.
A necessidade de parecer forte e orgulhosa na sua frente
sumiu. Não tenho mais vergonha de mostrar meu desespero, desde
que ela me deixe ir embora.
— Vai chegar perto do Henrique de novo?
Ela está tão próxima de mim, que sinto seu hálito quente no
ouvido.
— Não! Juro que não, mas me tira daqui.
— Vou acreditar na sua palavra, Helena.
Assim que ela diz essas palavras, sou puxada para o centro
do terraço. Caio sentada sobre o chão e, por puro instinto, trago os
joelhos para perto de mim e agarro as pernas.
— Saiba que eu tenho olhos em todos os lugares desse
Palácio. Se você quebrar seu juramento, eu vou saber, estamos
entendidas?
Assinto e deixo aquele lugar tão rápido quanto minhas pernas
aguentam.
Já se passaram dois dias desde aquela conversa
assustadora que tive com a Morgana, mas, em vez de diminuir, o
medo do que aquela doida varrida pode fazer comigo só cresce.
Quando voltei para o quarto naquela noite, tratei de arrastar a
cômoda para bloquear a porta, caso alguém tentasse entrar sem
permissão. Mesmo assim, não consegui voltar a dormir. Eu deitava
na cama e, quando estava quase pegando no sono, despertava,
sobressaltada, ao imaginar que alguém poderia invadir meu quarto.
A janela parecia vulnerável demais, o que me levou a
empurrar o guarda-roupa até cobrir a abertura em vidro. Foram
horas até conseguir alcançar meu objetivo, mas, apesar de estar me
sentindo em uma prisão, a preocupação não me abandonou nem
por um segundo, o que me impediu de ter mais do que dez minutos
de sono nessas quarenta e oito horas.
Não consegui comer nada, também. E, mesmo que tivesse
fome — o que não aconteceu —, não sei como explicaria à Valéria a
presença dessa cômoda trancando a porta.
Minha aparência nunca esteve tão péssima. Pareço abatida,
com manchas arroxeadas sob os olhos e o mais puro pavor
embaçando meus olhos.
Sem contato com qualquer pessoa nesse meio tempo ou sem
qualquer sinal de luz solar, só não perdi a noção do tempo, graças
ao relógio de parede.
A única pessoa que poderia me ajudar, está evitando as
minhas ligações a todo custo. Já perdi a conta de quantas vezes a
Julieta precisou inventar mentiras para justificar o fato de que o
Jonas não quer falar comigo.
E tem o Henrique…
Nem sabia que conseguiria inventar tantas desculpas
esfarrapadas, só para evitá-lo. De dor de cabeça a fingir que sumi,
nenhuma resolveu meu problema, pois ele está sempre aqui,
insistindo, como está acontecendo agora.
— Helena, abre essa porta — pede, em um sussurro, mas
tudo está tão silencioso, que posso ouvi-lo com clareza.
— Eu não estou me sentindo bem. Acho que é melhor você
voltar para o seu quarto e nos falarmos outra hora — respondo.
— Eu estou esperando essa outra hora há dois dias —
devolve, sem conter a impaciência. — Eu sei que está acontecendo
alguma coisa séria.
Xingo-me mentalmente, mas sigo até a porta e arrasto a
cômoda o suficiente para poder abrir uma fresta.
— O que você quer? — disparo, irritada.
— Quero saber o que está acontecendo! A sua criada me
disse que você não come há dois dias, não sai daqui de dentro e,
pela sua cara, acho que não dorme direito também. — Ele olha por
cima do meu ombro e franze o cenho. — Por que tem um móvel
bloqueando a entrada e outro protegendo a janela?
Suspiro, dividida entre a culpa de mentir para ele e o medo
do que pode acontecer, caso a Morgana descubra que estou prestes
a descumprir nosso acordo. Fecho a porta só pelo tempo necessário
para conseguir retirar a cômoda daqui e, quando a abro, noto
espanto no seu rosto. Puxo-o pelo braço e tranco a fechadura.
— Nós não podemos mais nos ver. Pelo menos, até a
eleição, é melhor que você não me procure mais — disparo,
camuflando o pavor da melhor forma possível.
— Eu até posso fazer o que você está me pedindo, mas só
depois de entender o que te deixou desse jeito.
A sua presença no meu quarto consegue despertar os
sentimentos mais opostos possíveis dentro de mim. Ele é a única
pessoa em quem posso confiar aqui dentro e que pode me ajudar.
Tê-lo aqui, ainda que tenha sido advertida de que não deveria mais
fazer isso, consegue aplacar boa parte daquela tensão e do pavor
que esteve comigo nos últimos dias. Por outro lado, deveria mantê-
lo longe de mim.
Droga! O que eu faço?
Desnorteada e sem saber como agir, deixo meu corpo agir
por conta própria e o abraço o mais apertado que consigo.
— Só faça o que estou pedindo, por favor — imploro, em um
sussurro.
Ele retribui. O calor do seu corpo no meu deveria me
confortar, mas me deixa ainda mais tensa.
Saiba que eu tenho olhos em todos os lugares desse Palácio.
Afasto-me dele com um empurrão, ao lembrar das palavras
da Morgana.
— Por favor.
— Tudo bem, eu vou. — Assente, sério. — Mas eu vou
descobrir o que te deixou desse jeito e até já sei por onde devo
começar a procurar.
— Não. Você só precisa fingir que eu não existo até o dia da
votação.
— Como se isso fosse possível…
Mesmo que o medo ocupe cada parte da minha mente,
permito-me sorrir. Despeço-me dele, com mais pressa do que o
normal, e volto a me trancar na minha fortaleza, desejando que
aquela maluca não interprete essa visita como uma afronta.
Desde a conversa com o Henrique, as coisas não voltaram
ao normal, mas, ao menos, consegui dormir algumas horas e
desobstruir a porta e a janela. Ainda não consegui fazer nenhuma
refeição fora do meu quarto. Não saí daqui nenhuma vez, temendo
encontrar aquela maníaca nos corredores e não saber como agir.
O Henrique atendeu ao meu pedido e não me procurou
nenhuma vez. Não tenho certeza se ele o fez porque pedi ou porque
ficou chateado por não ter lhe contado a verdade. Seja lá qual for o
motivo, tenho que confessar que seu afastamento tem sido quase
tão difícil de lidar, quanto o pavor de ser jogada daquele terraço.
Perdi a conta de todas as vezes que passei a madrugada
ansiosa por uma de suas visitas surpresa, embora soubesse, lá no
fundo, que sua presença é perigosa para nós dois.
Eram só alguns dias, que demoraram tanto para passar, que
mais pareciam meses. Falei muito pouco com a minha família
durante esse tempo, porque ligar para a casa da Julieta e ouvir as
desculpas do Jonas para não falar comigo também tem me
machucado demais.
Mas minha solidão está com as horas contadas.
Isso, porque, logo após o almoço, faremos a reunião que
decidirá quem vai assumir o trono e eu não poderia estar mais
aliviada.
Minha tormenta está prestes a acabar. Finalmente vou me
livrar deste peso e das ameaças do visconde e da Morgana.
Finalmente estarei segura e livre.
— Por que está sorrindo?
É estranho que, após todo esse tempo desejando voltar para
casa com todas as minhas forças, o motivo da minha felicidade seja
o contrário disso.
Ainda mais estranho, é admitir que a pessoa que conseguiu
despertar os piores sentimentos que existem dentro de mim seja o
motivo da minha permanência no Palácio.
Estou sorrindo, porque, toda essa tensão da eleição está
prestes a acabar, o Henrique vai realizar seu sonho de assumir a
coroa, estarei ao seu lado, para não deixá-lo fazer nenhuma
besteira, o visconde vai ter uma surpresa nada agradável, minha
família virá morar aqui comigo…
Caramba! Como ele ainda tem coragem de perguntar porque
estou sorrindo?
— A pergunta é por que você não está sorrindo? — devolvo,
brincalhona. — Vai ter sua coroa e a melhor conselheira de todo o
reino. Se eu fosse você, estaria com o sorriso de orelha a orelha.
Apesar do tom de voz baixo, já que estamos na sala de
reunião e não queremos que ninguém ouça nosso plano, minha
vontade é de gritar para o mundo todo que, em breve, estarei livre
de toda essa pressão.
Ele balança a cabeça, mas, antes que tenha tempo de
responder, os demais integrantes da Corte se juntam a nós. Meu
coração, que estava calmo até esse momento, acelera. Abaixo a
cabeça, evitando olhar para os outros homens.
— Boa tarde, senhores — cumprimenta-nos o conselheiro,
sentando-se à mesa. — Estamos prestes a tomar a decisão mais
importante da história do nosso reino. Dentro de três dias, um dos
senhores não assumirá apenas o cargo mais importante de Luseia,
mas será responsável pelo futuro de milhões de pessoas. Este dia
entrará para a história.
Ele parece empolgado e compreendo sua euforia. Além de
ser um episódio inédito na história do nosso reino, o Aldo já deixou
bem claro que mal pode esperar até o novo rei assumir, para que
ele possa, enfim, curtir sua aposentadoria.
— Então, sem mais delongas, vamos logo dar início às
votações.
Endireito o corpo na cadeira e sinto meu estômago gelar.
Lanço um olhar tímido na direção do Henrique, que parece ansioso.
Eu também estaria, se estivesse no lugar dele e prestes a assumir a
maior responsabilidade do nosso reino.
— Vamos logo com isso — diz o marquês, animado. — Os
votos serão por ordem hierárquica, alfabética ou aleatória?
Sua brincadeira consegue arrancar risadas do visconde, mas
tenho que fazer um esforço muito grande para não revirar os olhos
ou bufar.
— Hierárquica. Quem começa é o Henrique.
Vejo-o se levantar da sua cadeira e me sinto grata por não
ser a primeira a ter que votar. Tenho certeza que acabaria fazendo
alguma besteira, tamanho nervosismo.
— Eu gostaria de dizer algumas palavras antes de votar.
Prometo que serei muito breve.
O Aldo concorda e ele limpa a garganta, antes de começar:
— Desde a fundação do nosso reino, é a primeira vez que ele
será governado por alguém que não nasceu com essa designação.
Um de nós vai assumir essa função. Não só isso, os descendentes
de um de nós governarão Luseia até o fim da linhagem. O que eu
quero dizer é que há alguns anos atrás, não imaginávamos que
estaríamos aqui.
Anos? Há pouco mais de dois meses, eu jamais imaginava
que estaria aqui. Só não consigo entender aonde ele quer chegar
com essa conversa fiada.
— E eu acho que isso é bom. A realeza funciona como uma
espécie de venda, que nos impede de enxergar com clareza. Eu
nem cheguei a ser rei, mas só a certeza de que seria me deixou
cego e burro. Acho que acontece com todo mundo, não tenho
certeza. O que eu quero dizer é que você estava certa, Helena.
— Estava? — pergunto, perplexa. — Sobre o quê?
Nós conversamos tantas vezes, sobre tantos assuntos, que
não faço a menor ideia do que ele está falando.
— Sobre muitas coisas, mas, especialmente, quando disse
que eu não serei um bom rei e que você seria uma rainha muito
melhor. É por isso que meu voto é seu — declara, resoluto.
Aturdida, levanto da minha cadeira em um salto.
— O que você pensa que está fazendo? — disparo, com os
dentes cerrados e com as mãos espalmadas sobre a mesa.
Demoro alguns segundos para entender o que ele acabou de
fazer e, quando compreendo, tenho vontade de pular no seu
pescoço.
Esse não era o combinado.
— Você não pode fazer isso — rosna o visconde, espumando
de tanta raiva.
— É claro que eu posso. Eu li e reli aquele maldito protocolo
umas mil vezes. Em nenhum lugar está escrito que o candidato
precisa votar nele mesmo — defende-se. — Meu voto está dado, é
esse e, a menos que eu tenha deixado passar alguma coisa, não há
nada de ilegal nisso.
Todos olhamos para o Aldo, aguardando pelo seu aval.
— O Henrique tem razão. O voto dele é inusitado, mas não é
ilegal — explica, desconfortável com a situação. — Saulo, agora é a
sua vez.
— Bom, neste caso, tenho que dizer que o discurso do
Henrique faz sentido — começa o marquês. A fenda entre seus
dentes ornamentando seu sorriso corrupto. — Se ele diz que a
condessa será uma boa...
— O que você está fazendo? — pergunta o visconde, dando
um soco na mesa.
Ele vai votar em mim.
Não acredito que esse homem tenha se rebaixado a esse
ponto.
— Pode parar com isso! — ordeno, indignada. Viro-me para o
conselheiro e pergunto: — Aldo, posso negar um voto?
Ele abre o tal protocolo e o folheia. A expectativa paira na
sala, até ele encontrar a resposta e dizer que posso fazer isso.
— Eu não aceito seu voto. — Encaro o marquês. Aquele
sorriso falso deu espaço a uma expressão assustada inédita. — Não
pense que vai ganhar qualquer favor em troca desse voto, marquês,
porque no que depender de mim, você não ganhará uma palha por
isso. Quero ter o prazer de dizer que venci da forma mais honesta
possível.
— Venceu? Venceu o quê? — o visconde vocifera, tomado
pelo mais puro ódio.
— Venceu, oras! Cinco votos meus, mais três votos dela. —
O Henrique faz os números com os dedos, para provar que está
certo. — Mas vamos esperar o Aldo contabilizar todos, se prefere
assim.
A nuvem negra, que sempre acompanha o visconde e
consegue destruir o clima ameno em qualquer ambiente que ele
esteja, torna-se ainda mais escura e pesada. O olhar raivoso que
ele lança na minha direção deixa claro — não só para mim, mas
para qualquer pessoa aqui dentro — que, se pudesse, ele me
mataria com as próprias mãos.
— Eu estou surpreso — admite o conselheiro, aturdido. —
Mas precisamos formalizar todos os votos para que eu possa
registrá-los.
O marquês volta atrás e vota no visconde, como era o
combinado. Depois, eu voto em mim mesma e o visconde também
vota em si, resultando naquilo que, mesmo que eu tenha desejado
no início, não sei se terei competência para fazer.
— Parabéns, Helena Loyola de Albuquerque. Você é a rainha
de Luseia.
Você é a rainha de Luseia.
Maldita frase que não sai da minha cabeça há horas.
Desde o fim da reunião, tranquei-me no quarto, porque estou
apavorada, o que só prova que eu não tenho a menor condição de
assumir esse cargo.
Minha mente está um furacão de pensamentos pessimistas e
raiva do Henrique por ter feito isso comigo, sem sequer me
consultar. Minhas mãos não param de tremer e tenho dificuldade em
discar o número da casa da Julieta. Inspiro fundo algumas vezes,
enquanto ouço o telefone chamando.
— Alô — atende a voz entediada do Jonas, o que faz meu
coração bater ainda mais rápido.
— Sou eu. Não desliga por favor — imploro, apressada, com
medo que ele bata o telefone na minha cara. — Eu fui eleita. Eu
serei a rainha de Luseia.
Ele não responde, mas também não desliga. Chego a pensar
que apoiou o fone sobre a mesinha e foi embora, porque só isso
explicaria toda sua demora em responder, mas sua respiração do
outro lado denuncia que ele ainda está ali.
— Parabéns… eu acho. Pensei que o plano fosse outro.
Apesar da indiferença clara no seu tom de voz, meu coração
se aquece só pelo fato de estar me ouvindo.
— E era. Na última hora o Henrique votou em mim e estou
até agora sem saber o que pensar, nem como agir. Eu não sei ser
rainha, Jonas — choramingo.
Não sei ler direito, não sei falar em público, não sei nada
sobre diplomacia e negociações e todas essas coisas que uma
rainha deveria saber com maestria.
— Ninguém sabe até ser. Não era isso que você queria?
— Era, mas… Eu estou apavorada. Você tem noção da
responsabilidade que está nos meus ombros?
— É claro que tenho. — Suspira. — Mas você vai ser a
melhor rainha que esse reino já viu, Lena. Se tem uma certeza que
eu tenho na vida, é essa.
Sorrio. O primeiro sorriso verdadeiro, desde que brigamos
naquela noite.
Mais do que isso, tenho certeza que ele sabe que estou
sorrindo, assim como sei que ele também está fazendo a mesma
coisa.
O Jonas é a pessoa que mais conheço nesse mundo.
Conheço-o melhor do que a mim mesma.
— Desculpa, Jonas. Eu deveia ter te contado o que estava
acontecendo — explico, apressada. — Sempre vai ter espaço para
você, porque minha vida sem você não faz sentido. Por favor, me
desculpa.
— Tudo bem. Eu também te devo um pedido de desculpas
por ter estragado sua festa de aniversário falso. — Ri. — Eu não te
atendi, porque estava com vergonha do meu comportamento.
Desculpa.
Lágrimas mornas borram minha visão. Não de tristeza ou
medo, como aconteceu desde que pisei aqui. Essas são de
felicidade e alívio.
— É claro que desculpo.
A partir daí nossa conversa flui com tanta naturalidade, que
até parece que nem passamos todos esses dias sem nos falar.
Explico que o anúncio oficial vai acontecer à noite e que em breve
vou contar para a minha família.
— Eu preciso ir — digo, assim que vejo o Henrique parado no
batente da porta. — Depois a gente conversa melhor.
Coloco o fone no gancho e marcho até ele, furiosa.
— Você me deve uma explicação.
Abro passagem para que ele passe e aponto para que se
sente sobre a minha cama. Penso em fazer o mesmo, mas estou
tão agitada, que não consigo e fico de pé, na sua frente, andando de
um lado para o outro.
— Por que você fez aquilo? — pergunto, sendo tomada pela
indignação. — Você tinha que ter me avisado que ia votar em mim,
Henrique! Eu estou… Eu… — Bufo, revoltada, sem conseguir
terminar a frase. — Quando você decidiu fazer aquilo?
Ele respira fundo e só então percebo que aquela postura
distinta que ele sempre ostenta não existe mais. Seus ombros
caídos e seu rosto cansado deixam claro que esse foi um dia longo
para ele também.
— Desde quando você disse que ia votar em mim — explica,
cabisbaixo. — Quando eu aceitei o acordo, já sabia que não poderia
ser rei. Não, sem o apoio do visconde.
— Do que você está falando? Por que você não pode ser rei?
Balançando a cabeça, ele ri, mas sem qualquer traço de
humor.
— Porque, tecnicamente, eu não sou duque — diz, quase em
um sussurro. — Eu não sou filho dos meus pais.
— Como assim?
A pergunta deixa meus lábios, de repente, enquanto meu
cérebro tenta processar mais essa informação ao emaranhado de
pensamentos que já estavam o rondando, como um redemoinho
traiçoeiro.
— Quando eu disse que nós temos muitas coisas em comum,
não estava exagerando, Helena.
Sento-me ao seu lado e espero pelo restante da explicação,
porque, mesmo que quisesse, não consigo dizer nada.
— Eu não tenho o sangue do meu pai correndo nas veias. O
que era para ser algo irrelevante, é o que define se eu sou digno
para assumir um cargo e não a minha competência para tal —
reclama, desanimado. — Injusto, não acha?
Assinto, sem saber se faço perguntas para saber mais sobre
essa história ou se o abraço e o consolo, porque sua tristeza é tão
latente que me sufoca.
— Eles não podiam ter filhos, então resolveram me adotar.
Além da lei que obriga todos os casais a terem filhos, eles
precisavam de um herdeiro — continua, olhando para um ponto fixo
na parede. — Já se sabia que o rei não tinha filhos e essa era a
chance de reerguer o nome da família. Eles estavam falidos,
vivendo dos favores que o título lhes dava. Meu irmão também foi
adotado.
— Você tem um irmão? — pergunto, surpresa.
— Tinha. Ele morreu no acidente também — responde,
cabisbaixo.
A lei que obriga os casais a terem filhos é um pouco mais
branda para a nobreza, mas ainda levada muito a sério. Os prazos
são um pouco estendidos, já que os casamentos e a união de
famílias são um pouco mais criteriosos no caso deles, pois
envolvem interesses maiores.
— O visconde sabe disso?
— Como você acha que ele tem me manipulado por tanto
tempo? Eu era a galinha dos ovos de ouro. Garantiria um bom cargo
para ele até a morte e um futuro promissor para a Morgana. Ele
soube manter segredo sobre isso, pois era do seu interesse, mas
ele daria com a língua nos dentes na primeira oportunidade.
— E se ele revelasse o seu segredo… Eu seria sua
conselheira e assumiria o cargo, certo? — arrisco.
— Não. O conselheiro assume caso o rei morra e não tenha
herdeiros. Se ele for deposto ou renuncie, a Corte é acionada. Essa
seria uma eleição ilegítima e uma nova teria que ser feita com a
Corte antiga. Entende o que isso significa?
De repente, as consequências dessa revelação me
assustam.
— Se você não é duque, então a eleição não valeu e o
visconde vai assumir? — pergunto, apavorada. — Todo nosso
esforço foi em vão?
Se esse homem for rei, além de nos condenar à miséria,
corro risco de vida. Ele deixou bem claro que faria questão de fazer
mal para mim e fico ofegante só com essa constatação.
— Não se preocupe com isso. Ele não vai abrir a boca.
— E por que não?
— Porque, além da coroa, ele quer ser aclamado. Quer ser
visto como um herói. Ele vai esperar você fracassar, para então
surgir como o salvador do reino.
Engulo em seco o bolo que tenta se formar abaixo da
garganta.
— E se eu não fracassar?
Ele dá de ombros, sem saber o que responder. E eu sei que
isso significa que, de um jeito ou de outro, meus dias no trono estão
contados.
— O passado desse homem é obscuro e cheio de segredos.
Nossa única saída é descobrir algo que o impossibilite de se tornar
rei.
— Meu Deus! Quanto tempo eu tenho?
— Não dá para ser muito preciso, mas eu não acho que ele
faria alguma coisa antes de completar um ano. Esse é o tempo
mínimo para que as pessoas percebam se você está fazendo um
bom trabalho ou não. Talvez um pouco mais... Não dá para saber.
Ele me encara e balanço a cabeça, concordando. É
informação demais para processar em tão pouco tempo. Há
algumas horas eu pensava que seria conselheira. Agora sou rainha
e com prazo para deixar de ser. É muita loucura. Se ele não votasse
em mim, o visconde seria rei de um jeito ou de outro e isso seria
terrível para o Henrique, para mim e, principalmente, para todo o
reino.
— Eu não te contei antes, porque não era seguro que você
soubesse de toda a verdade. Ele precisava de mim para conseguir o
que quer, mas não de você.
Engulo em seco, só de imaginar o que poderia ter acontecido
comigo. Eu nem era uma ameaça real para a coroa da Morgana —
não que ela soubesse, pelo menos — e, mesmo assim, ela
conseguiu me assustar de verdade. Se ela desconfiasse que eu
seria eleita, não teria pensado duas vezes antes de me jogar
daquele terraço. Isso, para não mencionar o visconde, que talvez
tivesse feito algo pior.
Ele tem razão. Essas pessoas são perigosas.
— Agora que você é a rainha, está segura. Isso é o mais
importante.
A simples menção da palavra rainha é capaz de fazer minhas
mãos voltarem a tremer. Todas essas revelações me fizeram
esquecer por um breve momento o que me aguarda e, agora que
ele trouxe esse assunto de novo, sinto o peso da responsabilidade
em meu estômago.
— Eu não tenho certeza se sei ser rainha, Henrique —
confesso.
— Você é corajosa, justa e sabe se impor. Eu tenho certeza
que será a melhor rainha que esse reino já viu. Só vai precisar das
pessoas certas ao seu lado.
Sorrio em resposta. Ele parece tão sincero, que quase
acredito.
— E você? Como você está? — pergunto, tocando seu rosto,
mas ele se esquiva.
— Eu já estou acostumado com esse jogo e sei me virar. —
Dá de ombros. — Eu vou ficar bem.
Ele finge um sorriso e se levanta, deixando-me sem entender
sua atitude.
— Você já vai? — pergunto, confusa. — Eu pensei que,
agora que esse inferno acabou, você pudesse ficar aqui comigo.
Ele para com a mão na maçaneta e me lança um olhar triste.
— Você está enganada, Helena. O inferno está só
começando.
Os dois dias que se seguiram à eleição foram uma confusão
que vivenciei apenas de corpo presente. A mudança do meu quarto
para os aposentos reais, ensaios para a cerimônia de coroação,
transmissão de TV, ligações de pessoas que eu nem conheço,
parabenizando-me pela conquista e várias outras situações chatas e
inusitadas. Todas elas, intercaladas com surtos de pânico, toda vez
que me lembro que sou a rainha agora.
A vantagem é que, com a rotina tão atribulada, não sobrou
tempo para pensar no que o Henrique está escondendo de mim.
Porque eu sei que algo de muito estranho está acontecendo. Ele
está me evitando de todas as formas possíveis e, assim que tiver
alguns minutos livres, tenho que colocá-lo contra a parede e
descobrir o motivo.
Outra vantagem é que minha família veio para cá. A princípio,
vieram só para passar alguns dias, mas em breve farão a mudança
definitiva e eu não poderia estar mais radiante. Pelo menos, uma
notícia boa em meio a tanto caos.
— Eu disse que você seria rainha, não disse? Mãe sabe das
coisas — gabou-se, assim que me viu.
E eu só pude rir, porque ela estava certa.
É claro que não comentei com ela todos os fatores externos
que me levaram ao trono. Preferi deixá-la pensar que estava com a
razão e me divertir às custas das suas novas tentativas de acertar o
que vai acontecer no futuro.
Mas, apesar da sensação boa de ter as pessoas que amo
perto de mim, não consigo relaxar, nem me sentir plenamente feliz.
Sinto o furacão se formando ao meu redor e é só uma
questão de tempo até ele me devastar
— Sabe no que eu estava pensando? — pergunta-me o
Jonas, depois de vários minutos em silêncio, observando o jardim.
Desde o susto que a Morgana me deu, o terraço deixou de
ser o meu lugar preferido do Palácio e voltei a ficar satisfeita com o
banco de ferro daqui, com os pés encostados em chão firme.
— Que eu vou ter que me curvar para você — continua,
pensativo. — Vai ser muito estranho ter que me curvar para a garota
chata que se aproveitava da nossa desvantagem para bater em
mim.
Não seguro a risada, ao me lembrar das várias vezes que fiz
isso.
— Se você não se curvar para mim, juro que não vou te bater
— brinco.
— Agora fico mais tranquilo. — Ri. — E o que você vai fazer
agora?
Essa é uma pergunta que não sai da minha cabeça. O Aldo
me explicou que terei sessenta dias para designar os novos
integrantes da Corte.
— Vou nomear o Henrique para ser meu conselheiro —
explico. — Além de ser o combinado, preciso dele para saber como
agir. Ele tem experiência nessas coisas de realeza, ao contrário de
mim.
Ele assente, mas não diz nada. No entanto, o silêncio que se
forma entre nós é leve e tranquilo.
— O cargo de duque vai ficar vago, quer ser meu duque? —
pergunto, da maneira mais casual possível.
Imaginar o Jonas vivendo aqui, sob o mesmo teto que eu,
podendo me ajudar e me aconselhar até parece um sonho.
— Na verdade, você teria que nomear meu pai — devolve,
rindo. — Acho que ele ia gostar, mas não resolveria seu problema…
Além do mais, ele não largaria o mercadinho nem sob pena de
morte.
— Eu sei… Mas a ideia de ter você aqui comigo para sempre
é tentadora — reclamo, fazendo uma careta. — Você é o cérebro da
nossa dupla.
— E você é o quê? O coração que não é! — exclama, rindo.
— Eu ia dizer que sou os punhos, bobo.
Consigo um minuto de sossego em meio a confusão dos
preparativos da minha coroação. O Jonas já me ajudou a ler o
juramento e, agora que já sei o que está escrito nessa folha
amassada de papel, fica fácil repetir suas palavras, até decorá-las.
Amanhã vou ter que dizê-las em voz alta em frente a todo o
reino e não quero fazer feio. Aposto que o nervosismo vai tentar me
sabotar, por isso, estou relendo pela bilionésima vez, para que,
mesmo desmaiada, ainda consiga recitar cada palavra com graça e
segurança.
A biblioteca do Palácio era desconhecida por mim, até ontem.
Depois que fui eleita, decidi que precisava conhecer cada canto
dessa construção e me surpreendi ao descobrir esse cômodo, tão
silencioso e vazio.
Ninguém vai me procurar aqui em plena madrugada.
A mesa redonda de madeira com tampo envernizado é a
única testemunha de meu discurso monótono e sem vida. Já o disse
tantas vezes, que as palavras deixaram de fazer sentido, mas o
importante é que já é a terceira vez que o recitei inteirinho, sem
nenhum erro ou hesitação.
Decido que vou repetir o juramento só mais três vezes antes
de voltar para o quarto. No entanto, passos firmes ecoam no silêncio
da madrugada com força o bastante para me fazer ficar alerta.
Prendo a respiração quando o visconde surge, sob a porta
dupla que deixei escancarada. Apesar do horário avançado, ele está
vestido de forma impecável, como se tivesse acabado de participar
de uma reunião. Eu, por outro lado, visto meu costumeiro pijama
curto e desgastado.
Levanto da cadeira, enquanto ele se aproxima, o desprezo
que sente por mim estampado em sua expressão enojada.
Cruzo os braços, como se isso fosse capaz de me proteger
dele.
— Vocês se acham muito espertos, né? — questiona, os
olhos cerrados, fuzilando-me. — Acham que conseguiram me
derrotar, mas estão enganados.
O medo reverbera em cada parte do meu corpo, mas a raiva
fala mais alto. Esse homem é um monstro, um ser asqueroso,
enquanto eu estou prestes a ser coroada rainha.
O Henrique tem razão. Estou segura agora.
— Eu não tenho medo de você. — A frase não passa de um
blefe. — Todos sabem que você e sua filha me odeiam. Qualquer
coisa que aconteça comigo, vocês serão os principais suspeitos.
Ele ri. Uma risada nasal quase imperceptível, mais
assustadora do que sua face mais sisuda.
— Você acha mesmo que vou precisar interferir em alguma
coisa para ver seu fracasso? — A voz não transparece deboche,
mas firmeza. Isso é ainda mais apavorante. — Você vai cair sozinha
e serei o primeiro a assistir sua queda, Helena.
Meu nome soa como um xingamento em sua boca, uma
palavra indevida, algo que lhe causa asco.
Não quero ficar mais um minuto na presença fantasmagórica
desse homem. Passo por ele, sem pedir licença ou me despedir,
mas ele segura meu braço, antes que tenha chance de ir embora.
— Atrapalhar meus planos não é uma opção muito saudável
— sibila, um sussurro rouco e arrepiante. — Você, melhor do que
ninguém, deveria saber disso.
Desta vez não consigo disfarçar o pavor. Livro-me do seu
aperto e saio correndo dali.
Tenho dificuldade para respirar, mas não tenho certeza se é
culpa do nervosismo ou do vestido que está apertado demais.
Eu bem que avisei à Carol que não deveria ter apertado tanto
as cordas do espartilho, mas desde que voltou a ser minha criada,
ela está ainda mais teimosa e insistiu que assim ficaria mais bonito.
Bonito ficou, isso é inegável.
Se qualquer pessoa me pedisse para imaginar o vestido que
uma rainha usaria, com certeza pensaria em algo muito próximo do
que estou usando agora. Seu tom se aproxima de algo parecido
com sangue e possui alguns bordados dourados no busto. Disseram
que são fios de ouro e, desde que soube disso, estou tomando o
maior cuidado para não estragá-lo, porque consertar fios de ouro
está além das minhas capacidades de costureira. Sua saia é ampla
e tão rodada, que no espaço que ocupo, caberia umas quatro
pessoas. O decote de ombro a ombro é elegante, apesar de ser um
pouco aberto demais para o meu gosto. Tenho a impressão de que
o salão inteiro está olhando para os meus seios, o que considero
desconfortável.
O coque baixo foi estrategicamente escolhido, para não
atrapalhar a coroa.
Meu reflexo no espelho e todos os elogios que recebi da
minha família — inclusive do Aristides, o que é um milagre — me
dão a mais absoluta certeza de que estou linda.
Só não entendo porque isso tem que me impedir de respirar.
O lado bom é que, apenas em datas oficiais, serei obrigada a
usar este tipo de roupa, porque, se precisasse usá-la diariamente,
minhas costelas não suportariam e a Corte teria que entrar em ação
antes do que todos imaginam.
A cerimônia, que aconteceu na capela real, correu como
havíamos ensaiado. Fui coroada, fiz o juramento, mantive-me séria
e serena, quando meu sistema nervoso estava dando uma festa
dentro de mim.
Agora, estou na frente de todas essas pessoas, pronta para
dar meu primeiro discurso como rainha de Luseia e, logo nesse
momento que precisava de muito ar nos pulmões, não consigo
evitar o xingamento mental direcionado à Carol.
— Bom dia, súditos de Luseia.
Passei os últimos dias pensando no que diria quando
chegasse esse momento, mas nada do que ensaiei parecia bom o
suficiente. Inspiro fundo e, ao ver minha família sentada na primeira
fileira de bancos, sorrio. Não muito distante deles, um banco é
ocupado pelos integrantes da Corte. O sorriso discreto do Henrique
é capaz de me acalmar e me deixar ainda mais ansiosa… e nem sei
como isso é possível.
— Se tem uma frase que representa com este momento é
aquela que diz que o mundo dá voltas. Eu cresci no lugar mais
distante possível do Palácio. E nem me refiro só a todos os
quilômetros que separam a capital do vilarejo de onde venho. Lá o
clima é diferente, os costumes são diferentes, as condições de vida
são diferentes… Eu não fui educada para ser uma dama, mas meus
pais me ensinaram a ser justa e essa é a principal qualidade que os
senhores podem esperar de mim. — Preciso parar por alguns
instantes, para normalizar a respiração, pois falar em público e
manter a calma é muito mais difícil quando se tem uma estrutura
rígida apertando o peito. — Apesar deste anel e desta coroa, eu sou
uma pessoa normal, como qualquer outro súdito deste reino. Já
adianto que vou achar estranho ter pessoas se curvando para mim.
Espero que tenham paciência comigo. Quero que saibam que vou
dar o meu melhor para tornar Luseia mais próspera e justa. — Fixo
meu olhar no Henrique e sorrio. — Uma pessoa muito importante
me disse que só pertencemos ao lugar onde nos sentimos livres.
Espero me sentir livre para poder fazer o meu trabalho da melhor
maneira, para poder tornar este lugar a minha casa. Muito obrigada.
Agradeço pelos aplausos e me retiro do recinto, pedindo que
chamem a Carol com urgência, antes que a falta de oxigênio me
faça desmaiar na frente desse monte de gente.
Já no salão de festas, onde o almoço é servido para uma
parcela pequena, mas muito importante de nobres, consigo respirar
aliviada e me sentar como uma pessoa normal. Há representantes
de outros reinos aqui, que já me parabenizaram, pessoas que nem
falam nossa língua!
Nem preciso dizer que, apesar do monte de comidas
deliciosas, não consegui comer mais do que algumas garfadas.
— Você não vai comer? — pergunta o Aristides, ao ver meu
prato mexido, mas ainda com muita comida.
— Não. Estou sem apetite.
— Ótimo! — comemora, já pegando o conteúdo do meu prato
e jogando no dele.
Minha mãe faz uma careta e posso sentir seu esforço para
controlar o cascudo que ela pretendia dar nele.
— Pode comer o quanto quiser, Aristides. A Lena é rainha
agora. Pode designar um cozinheiro só para você — diz o Jonas,
para tentar acalmar a minha mãe.
Eles estão tão lindos!
Nem no dia do meu aniversário falso eles estavam assim, tão
arrumados. Mesmo que meu pai já tenha reclamado da sua roupa
um milhão de vezes, ele também está muito chique. Mas ninguém
supera o Jonas. Como se a roupa não o deixasse extremamente
elegante, seu sorriso é capaz de iluminar todo o salão. As poucas
garotas que estão aqui não tiram os olhos dele.
— Ela é rainha agora. Você não pode mais chamá-la pelo
apelido — diz o Aristides, dando uma cotovelada no Jonas.
— Chega vocês dois! — ralho, com os dentes cerrados.
— Eu só paro, se você buscar mais sobremesa para mim —
diz o meu irmão, forçando um sorriso.
— Aristides! Sua irmã é rainha! Não pode ficar dando ordens
para ela — contesta a minha mãe, zangada.
— De que adianta ter uma filha rainha, se ainda sou obrigado
a usar essa roupa — meu pai reclama, de cara feia.
— Vocês querem fazer o favor de parar!? — torno, irritada.
É claro que meu pedido não surte nenhum efeito e eles
continuam brigando e reclamando, como se estivessem na nossa
casa. Isso é bom, porque me distrai até o fim do almoço.
Depois que os funcionários retiram a comida e os pratos,
fazendo parecer que nunca houve nenhuma refeição nesse salão, o
Aldo chama a atenção de todos e eu já sei o que vai acontecer.
Tenho que anunciar o nome do meu conselheiro.
Na mesma hora, lanço um olhar na direção do Henrique, mas
sou surpreendida, porque vejo medo em seus olhos. Discretamente,
ele balança a cabeça para os lados, o que entendo como uma
resposta clara para a pergunta que ainda nem fiz.
Ele não pode ser meu conselheiro.
E não sei por quê.
Isso faz o chão sumir debaixo dos meus pés e a sensação de
que estou caindo em um precipício tomar conta de mim, porque não
sei o que fazer.
Eu sabia que havia algo de errado com ele, mas toda essa
confusão dos últimos dias me distraiu, a ponto de nem procurá-lo
para entender o que houve.
— O conselheiro exerce uma das funções mais importantes
do reino. Ele é o braço direito do rei e alguém em quem ele pode
confiar em qualquer tempo ou situação. É o alicerce de qualquer
reinado — o homem explica, animado.
Assim que ele finaliza sua explicação, viro para o lado e olho
para o Jonas, que observa atentamente o conselheiro.
Braço direito, alguém em quem posso contar em qualquer
tempo ou situação, alicerce…
A pessoa que mais se encaixa nessa definição, sem a menor
sombra de dúvidas, é o Jonas.
Puxo seu braço e me aproximo do seu ouvido.
— Eu quero que você seja meu conselheiro — digo, baixinho.
Ele se afasta e me lança um olhar surpreso.
— Lena, eu… Eu não sei se eu sou a melhor opção.
— Você ouviu o que o Aldo disse. O conselheiro precisa ser
alguém em quem eu possa confiar de olhos fechados. Não há
ninguém em quem eu confie mais do que você. Você é, sim, a
melhor opção.
Ele não responde e quando volto minha atenção para o
restante do salão, noto todos os olhares pairando sobre mim, com
expectativa. Eu preciso indicar quem vai assumir este cargo agora.
— Eu aceito — ele sussurra e sorrio, aliviada.
— Eu escolho o Jonas — digo em voz alta e aponto para ele.
— Ele será meu conselheiro.
O som das palmas preenche o ambiente.
— De todas as loucuras que eu já topei por sua causa, essa
é a pior de todas — ele brinca.
— Eu não vou muito longe sem meu cérebro por perto —
devolvo. — Além do mais, a comida é boa. Você vai se acostumar
rapidinho.
Lanço um último olhar para o Henrique, que parece mais
aliviado e assente, como se concordasse com a minha escolha.
Não vejo a hora de poder sair daqui e descobrir o que diabos
está acontecendo com ele. Ele está agindo de maneira muito
estranha, desde que fui eleita. Duvido que ele tenha mudado de
ideia sobre o que sente por mim.
O visconde se levanta e bate com um talher na sua taça,
chamando a atenção de todos.
— Desculpe, Majestade, por quebrar o protocolo, mas a
notícia que tenho para dar é muito boa para esperar até amanhã. —
Seu sorriso ganha amplitude, quando olha para a filha e tenho que
fazer um esforço gigante para não fazer uma careta. — Prometo
que vai ser muito rápido.
Concordo, dando-lhe oportunidade para dizer seja lá o que
ele pretende. Desde sua ameaça na biblioteca, evitei encará-lo. A
Morgana ostenta uma expressão afrontosa e não desvia o olhar de
mim, como se estivesse me desafiando.
— É com extrema felicidade que anuncio que, após muitos
anos, enfim teremos um casamento por aqui. Dentro de três meses,
minha querida filha se casará com o Henrique e se tornará a
duquesa mais notável que esse reino já viu.
Fico paralisada, sentindo o torpor tomar conta do meu corpo,
enquanto as palavras do visconde ecoam nas profundezas da minha
mente.
— Que história é essa, Lena? — indaga o Jonas.
Graças aos aplausos e felicitações que o casal recebe,
preciso me aproximar dele para responder.
— Eu não sei.
— Você não estava sabendo disso? — insiste, boquiaberto.
— Mas eu pensei que…
— Eu também pensei — interrompo-o. — Eu já sabia que
tinha alguma coisa ruim acontecendo. Só não imaginei que fosse
isso.
A Morgana se distrai com a atenção que recebe e me
esquece por alguns segundos. O Henrique força um sorriso tão
falso, que não sei como as pessoas a sua volta não notam.
— Pensa pelo lado bom. Ele não parece feliz com isso — diz,
tentando me animar.
Isso explica todo esse tempo que ele passou me evitando.
Tento puxar na memória nossa última conversa e me lembro das
suas últimas palavras.
O inferno está só começando.
— Ele está sendo chantageado — concluo. — Eu posso
apostar que o visconde está chantageando o Henrique.
— Que tipo de chantagem?
— Eu não faço a menor ideia, mas deve ser algo muito grave.
Ele odeia a Morgana.
E posso apostar que não tem nada a ver sobre ele não ser
filho dos seus pais. Tem mais coisa por trás. Inspiro algumas vezes,
tentando colocar os pensamentos no lugar.
— E eu vou descobrir tudo.
A banda já está tocando há várias horas e estou cansada de
tanto dançar com pessoas chatas e estranhas, mas vou ficar aqui
até ter uma oportunidade de falar com o Henrique. A Morgana está
monopolizando sua companhia, como sempre, porém, se não
conseguir arrancar alguma coisa dele agora, não sei quando
teremos outra oportunidade.
— Tem certeza que está bem? — insiste o Jonas.
— Tenho — garanto.
— Então eu vou para o quarto, porque essa maratona real é
mais exaustiva do que eu podia imaginar. — Sorri. — Qualquer
coisa, sabe onde me encontrar.
Concordo e me despeço dele com um abraço. Depois, sento-
me em uma das cadeiras vagas e penso em tirar meu sapato.
Chego a levantar o vestido do chão, tentada a fazê-lo, mas uma
sombra denuncia que há alguém na minha frente. Levanto a cabeça
a tempo de ver o Henrique fazendo uma reverência para mim e não
seguro o revirar de olhos.
— Sabe que não precisa fazer isso, né? — reclamo.
Ele dá de ombros e estende a mão, convidando-me para
dançar.
— Pensei que sua noiva fosse do tipo possessiva — digo,
cheia de sarcasmo.
— Ela é. Mas seria grosseiro não dançar com a rainha —
devolve, em tom irônico.
Procuro pela Morgana com o olhar e, ao me ver, ela acena e
sorri, como se estivesse me dizendo que o Henrique só está aqui,
prestes a dançar comigo, porque ela quis que isso acontecesse.
Seguimos em silêncio até o meio do salão e paramos, um de
frente para o outro. Sem cerimônias, pouso minha mão em seu
ombro e tento fingir que o seu toque na minha cintura não me causa
nenhuma sensação, o que está longe de ser verdade.
— Parabéns pela cerimônia. Suas palavras foram...
— Inspiradoras? — arrisco, interrompendo-o e ele concorda.
Foi o que ele disse, depois do meu pequeno discurso cheio
de ódio, na primeira festa que participei aqui, logo que ouvi a
conversa entre ele e a noiva.
— Uma rainha deve inspirar seu povo, não acha? — Sorrio.
— Devo parabenizá-lo pelo anúncio do casamento?
— Não, por favor.
Eu jamais parabenizaria um criminoso pela sua condenação.
Prefiro gastar minhas energias com coisas úteis, em vez de chutar
cachorro morto.
Olho atentamente para seu rosto, o vinco entre as
sobrancelhas, o sorriso sarcástico falso, o olhar opaco e sem vida.
Ele me lembra o Henrique que conheci, logo que cheguei ao
Palácio, mandado e desmandado pelo visconde. Meu coração pesa
uma tonelada por vê-lo nessa situação desastrosa. Mais do que
isso, por não poder fazer nada para ajudá-lo.
Olho para os lados, tentando achar uma oportunidade para
dizer que sei que há algo errado, mas não encontro. A Morgana não
tira os olhos de nós, o salão está lotado e qualquer pessoa aqui
pode informá-la sobre alguma conversa suspeita. A música alta não
permite que sussurre e, se eu me aproximar demais, também
levantarei suspeitas.
Este não é o momento ideal para termos essa conversa.
O problema é que tenho certeza que ele pensa que estou
zangada com ele. Posso ver nos seus olhos.
— Helena, eu…
— Eu sei — corto-o, antes que ele fale mais do que deve. —
Não se preocupe, porque eu sei.
Vejo a apreensão se transformar em alívio e terminamos a
música em silêncio. A Morgana aparece para tomá-lo de mim, assim
que a música acaba. Agradeço-os pela dança e deixo o salão. Além
de não ter mais o que fazer aqui, preciso que ela compre minha
pose de moça decepcionada e de coração partido.
Enquanto ela pensar que estou acreditando no seu teatro,
será mais fácil descobrir o que ela esconde.
Apesar das poucas horas desde que fui coroada, já pude
perceber algumas coisas. Odeio que as pessoas se curvem para
mim, odeio ser o centro das atenções e odeio ter que fingir que
suporto certas pessoas.
Vou ter que me acostumar com tudo isso, eu sei, mas até lá
serão dias bem longos.
É por isso que a solidão do corredor me parece ainda mais
gratificante. Posso andar por eles, sem pressa, com os sapatos nas
mãos, sem correr o risco de precisar forçar mais nenhum sorriso.
Meu novo quarto fica mais distante do que o antigo, em uma
ala exclusiva. A privacidade é boa, mas, desde que a Morgana me
deu aquele susto, admito que lugares ermos não me deixam tão à
vontade quanto antes.
A pouca iluminação não me permite perceber que tem algo
na minha maçaneta, até que já esteja a poucos metros dela. Meu
coração acelera, de repente, quando me dou conta do que é.
Uma rosa vermelha.
Não há nenhum bilhete preso nela, como da última vez, mas
nem precisaria. O gesto em si já me dá o recado de forma clara.
Trata-se de um pedido de desculpas do Henrique, por não
poder me contar o que está acontecendo.
Retiro a flor e a cheiro, sentindo a esperança crescer dentro
do meu peito.
Eu vou descobrir o que o visconde e a Morgana estão
escondendo. Vou impedir aquele maldito casamento e mandá-los
para bem longe daqui, antes que aquele desgraçado me tire do
trono.
Não deixarei que qualquer injustiça tenha vez no meu
reinado.
E com o Jonas ao meu lado, tenho certeza que Luseia terá o
futuro que merece.
Tem alguém tentando derrubar a minha porta.
Esse não deveria ser meu primeiro pensamento do dia, mas,
em vez de ficar me questionando como começar um dia bom,
levanto da cama e atendo a visita indesejada.
— Bom dia, Morgana — sibilo, com todo o sarcasmo que
existe em mim, ao vê-la, parada na minha porta.
— Meu pai quer te ver.
Suspiro e faço um esforço tremendo para não bufar de raiva.
— E precisa ser tão cedo?
— Ele está furioso, Henrique. Se eu fosse você, não perderia
tempo com perguntas idiotas.
Ela não espera pela minha resposta e vira às costas,
deixando-me sozinho novamente. Só pela prévia dos primeiros
minutos, já tenho uma boa noção de que meu dia vai estar bem
longe de ser bom.
Depois de lavar o rosto e me trocar, junto todo o meu
equilíbrio emocional e sigo até o quarto dele. Se está furioso, aposto
que não me chamou a esta hora para elogiar meu desempenho.
— Sente-se — ele me diz.
Não digo nada, apenas sento em uma das cadeiras e espero
pelo seu ataque de fúria.
— Eu não esperava ter que te chamar para esse tipo de
conversa, Henrique — começa, medindo cada palavra, mas sem
esconder o olhar cortante. — Não a esta altura.
Ele se senta em outra cadeira e fica a uns três metros de
mim.
— Sua brincadeirinha ridícula está passando dos limites e já
é hora de acabar com essa palhaçada de uma vez.
— Eu não sei do que você está falando — devolvo, cruzando
os braços.
Tudo o que faço é uma brincadeirinha ridícula ou uma
palhaçada. Ele precisa ser mais específico.
— O Saulo acabou de sair daqui. Está prestes a se unir à sua
nova amiguinha e votar nela. Se você estivesse interessado em
fazer o seu papel, também já estaria sabendo dessa novidade.
— Como assim…
— Eu estou dizendo que está na hora de parar de agir feito
um adolescente idiota e começar a levar seu trabalho a sério,
Henrique — ele me interrompe, duramente.
Mas essa não era a minha pergunta. Na verdade, meu
questionamento não tem muito a ver com o que eu deveria estar
fazendo, porque disso, estou muito ciente. Sei que deveria estar
levando a guerra pela coroa muito mais a sério do que estou, mas
não vou negar que me divertir às custas da Helena é o que tem
tornado meus dias mais leves e divertidos.
O que me faz prestar atenção no discurso do Sérgio — que
em outra ocasião, eu apenas ignoraria, fazendo cara de quem está
interessado — é perceber que eu estava enganado. Que a Helena,
aquela que, desde o começo sempre fez questão de me julgar,
jogando na minha cara o quão inescrupuloso eu posso ser, está
usando dos mesmos meios que eu para conseguir o que quer.
Essa descoberta não me deixa irritado, apesar do choque.
Essa descoberta me deixa frustrado, decepcionado e me faz sentir
ridículo, porque pensei que ela fosse diferente. Pensei que, ao
contrário de mim, ela ainda não tivesse se perdido.
Mas eu estava enganado.
— Você está me dizendo que o Saulo está prestes a se unir à
Helena? — insisto, aturdido. — É isso, mesmo? — Ele assente. —
O que ela lhe ofereceu?
— É isso que eu espero que você descubra.
Concordo, balançando a cabeça e deixo seu quarto, com
pressa. Já fiz tanto esse caminho nos últimos dias, que já estou
mais do que habituado e, assim que paro em frente à sua porta,
bato com força.
— O que está acontecendo, Henrique? — ela pergunta,
assim que abre a porta.
— Eu fui muito ingênuo quando pensei que você não sabia o
que estava fazendo. Você é a pessoa mais dissimulada que eu já
tive o desprazer de conhecer — rosno, com desdém, tomado pela
raiva.
A sonsa fica me olhando, fingindo não estar entendendo do
que estou falando. Caio na burrice de desviar os olhos dos seus, só
por um segundo. Só pelo tempo necessário para me dar conta que
ela ainda está de pijama. Uma blusa velha e um short tão curto, que
me faz vacilar.
Foco, Henrique. Foco.
— Dissimulada? — indaga.
— Hipócrita, fingida… Como quiser.
Para a minha surpresa, ela abre caminho para que eu possa
entrar. Cadê todo aquele constrangimento em ser vista no meu
quarto? Será que aquilo também fazia parte do seu teatro?
— Eu não sou dissimulada.
— Desde que você chegou aqui, perdi as contas de todas as
vezes que apontou o dedo na minha cara e me disse que sou
inescrupuloso e mesquinho. Cheguei a acreditar em cada uma das
suas palavras, Helena, e me sentia horrível, porque você tinha
razão.
Neste momento, sou uma mistura de raiva e decepção, mas
não quero que ela note que sua atitude me desapontou, por isso,
tento me concentrar na fúria.
— Imagine a minha surpresa ao descobrir que o exemplo de
integridade, que me julgava o tempo todo pela minha falta de
caráter, na verdade, é tão sujo quanto eu.
Acho que consigo acertar em algum ponto fraco, porque
aquela pose falsa de quem não estava entendendo nada
desaparece. Agora estou cara a cara com uma Helena tão raivosa
quanto eu.
— Não ouse me comparar a você — devolve, agora tomada
pela indignação. — Nós somos completamente diferentes.
— E o que diferencia a gente, Helena? Você está oferecendo
favores em troca do voto do marquês, igual a mim. No fundo, nós
somos iguais. Talvez você seja até melhor do que eu, porque
aprendeu em um mês o que levei anos.
— Minhas motivações me diferenciam de você. Eu estou
fazendo tudo isso para salvar as pessoas que eu amo.
— Então você acredita que os fins justificam os meios? —
retruco.
— Eu… Não… Não é nada disso… — ela vacila.
E posso ver alguma coisa se quebrando dentro dela. Sou
obrigado a segurar a surpresa quando me dou conta que se trata
daquela pose metida de quem sabe exatamente o que está fazendo.
Porque ela não sabe.
Ela não faz a menor ideia do que está fazendo.
E não sei por que isso me deixa tão aliviado.
— Você, ao menos, sabe o que está fazendo? — pergunto,
desta vez, com real curiosidade. — Porque eu tenho a impressão
que não. Que você me acusa de ser um fantoche do visconde,
quando, no fundo, é um fantoche da baronesa.
E eu devo ter acertado em cheio, porque ela volta a se armar.
— Eu não sou fantoche de ninguém, seu duque metido!
Além de tudo que envolve a realeza, essa garota precisa
aprender a xingar também! Duque metido? É sério?
Ela se aproxima de mim e enfia o dedo no meu peito, mas
não recuo. Eu não tenho medo dela. Apenas sustento seu olhar pelo
que parece uma eternidade.
— Você só está despeitado porque vai perder para mim.
Porque, mesmo depois de anos se dedicando a isso, está vendo
seus sonhos se desfazendo na sua frente, graças à uma novata.
Confessa logo que está desapontado só de pensar que, em breve,
terá que se curvar para a pessoa que mais odeia.
Toda a sua provocação cai no esquecimento, assim que ela
diz a última frase. De onde diabos ela tirou que eu a odeio? Boa
parte dos meus problemas estaria resolvida se eu, de fato, a
odiasse!
E não foi por falta de esforço.
— Não se superestime, Helena. Você não está com essa bola
toda.
— Por quê? Acha que eu não consigo? — O tom de desafio
em sua voz só serve para me deixar ainda mais satisfeito.
— Porque você não é a pessoa que mais odeio. Seria muito
mais fácil se fosse.
Minhas palavras a deixam perplexa, posso enxergar a
estupefação nítida em seus olhos. Agora que ela está desarmada, é
a minha chance de descobrir o que ofereceu ao Saulo em troca do
seu apoio e, talvez eu o fizesse, se a simples visão dos seus dentes
mordendo de leve o lábio inferior não fosse responsável por destruir
todo bom senso que existe dentro de mim.
Minha razão me abandona de vez, deixando-me a sós com
um coração acelerado e um desejo insensato de beijar sua boca.
O verdadeiro motivo da minha vinda se transforma em uma
névoa fina e quase invisível. Tudo o que resta é a vontade de beijá-
la. Juro que tento me agarrar a qualquer resquício de juízo, mas ela
não desvia os olhos de mim, nem tenta me impedir quando levo a
mão até sua cintura e a trago para mais perto. Seus lábios são
ainda mais macios do que eu poderia imaginar e seu gosto… Não
me lembro de já ter provado algo tão bom antes.
Minha razão desperta, de repente, e tenta me alertar que
essa é a coisa mais idiota que eu já fiz na vida.
O que você pensa que está fazendo, seu imbecil?
Mas suas mãos afundam no meu cabelo e me puxam para si
e, mais uma vez, minha razão se cala e vai embora.
Não tenho certeza se já se passaram horas ou só alguns
segundos. Sei apenas que sinto um vazio insuportável quando ela
me empurra para longe. Há confusão em seus olhos e raiva
também. E quando me dou conta do tamanho da minha estupidez,
sinto-me tão envergonhado, que tenho vontade de morrer.
— Vá embora do meu quarto agora — ela diz, em voz baixa,
apontando para a porta.
Mas estou ocupado demais ouvindo a minha razão dizendo,
cheia de deboche:
Eu avisei que essa era uma péssima ideia.
— Vá embora do meu quarto agora! — desta vez, ela
vocifera.
Saio dali, desorientado com tudo o que aconteceu nesses
poucos minutos. Bato a porta do meu quarto com força e agarro
meus cabelos, tentando externar toda a raiva que sinto de mim
mesmo.
— Qual é o seu problema? — pergunto para a imagem
refletida no espelho.
O Sérgio tem razão. Estou agindo feito um adolescente idiota.
Deixei aquela droga de quarto sem ter as informações que
precisava e, como se não fosse o suficiente, estou me sentindo
ridículo, constrangido e furioso, porque só eu sei o quanto gostaria
de voltar lá e beijá-la novamente, provocá-la, ou, até mesmo, só
estar perto dela.
Mas que droga!
Quando as coisas saíram do meu controle?
Isso está errado. Isso está totalmente errado.
Ela quer roubar meu sonho, quer o lugar que deveria ser
meu, quer destruir a minha vida! E como eu retribuo o favor?
Me apaixonando por ela!
Isso está errado. Isso está totalmente errado!
E eu preciso fazer alguma coisa, antes que ela me destrua.
Que tédio.
Nessa época do mês, o movimento do mercado sempre é
bem baixo, mas não me lembro de já ter passado uma tarde inteira
aqui e não atender uma alma sequer.
Olho para o relógio de parede mais uma vez e apoio o
cotovelo sobre o balcão e o queixo sobre o punho cerrado, irritado.
Abro a gaveta novamente, só para me certificar que aquelas revistas
de palavras cruzadas que meu pai comprou uma vez, por engano, já
estão completas e que não sobrou nenhuma página, capaz de
aliviar a monotonia desse lugar.
A pior parte do tédio nem é ele em si, mas o monte de
pensamentos inoportunos que o acompanham e me incomodam,
sem pedir licença. Desde que voltei para casa, há pouco mais de
vinte e quatro horas, essas lembranças estão me atormentando e
quase implorei para que meus pais me deixassem trabalhar aqui o
dia inteiro, crente que isso ajudaria a ocupar minha mente.
Eu só não contava que nenhum morador daqui estaria
interessado em comprar qualquer coisa nesta tarde e que eu
passaria longas horas sendo torturado pela minha consciência.
Arrumo minha postura em um salto, quando a sineta toca,
anunciando a chegada de alguém.
— Oi, Jonas — cumprimenta-me o Paulinho.
Respondo com um resmungo qualquer e volto a apoiar o
rosto nas mãos, como se a cabeça fosse pesada demais para ser
sustentada só pelo pescoço. Com o monte de coisas rondando a
minha mente, acho que isso até que faz sentido.
Observo-o pegar um saco de fubá na prateleira e vir até mim.
Como sei que ele vai pedir para anotar, pego o bloquinho e a caneta
e já abro na página com o nome da mãe dele. Vender fiado faz parte
da realidade daqui.
— Como foi sua estadia no Palácio? — pergunta, fazendo
uma voz pomposa.
— Ah, foi legal. — Dou de ombros.
Na verdade, as primeiras horas foram incríveis, mesmo. O
Palácio é o lugar mais fabuloso que já tive o prazer de visitar. Pude
comprovar tudo aquilo que a Helena já tinha me contado um milhão
de vezes, sobre a comida ser fantástica e as acomodações
extremamente confortáveis. Mas nada disso se compara ao
verdadeiro motivo de toda a minha ansiedade em visitar aquele
lugar.
Eu estava doido para revê-la.
A Helena é minha melhor amiga desde que tínhamos, sei lá,
uns dois anos. Talvez até antes, graças à amizade das nossas
mães, que também já vem de muitos anos. Tudo bem que, durante
a infância, vivíamos intercalando momentos de paz com brigas
feias, que geralmente acabavam comigo machucado de alguma
forma. Ela sempre foi pavio curto e eu sempre adorei vê-la zangada.
Mesmo quando passei anos longe daqui, estudando em outra
província, ainda mantínhamos contato diário, por telefone, e eu mal
podia esperar pelas férias para poder reencontrá-la e contar todas
as novidades.
Nossa relação sempre foi algo tão natural, que, desde
crianças já sabíamos que nossos pais acertariam o nosso
casamento em algum momento da nossa adolescência. E isso
aconteceu um pouco depois que eu me formei e voltei para casa.
Eu sempre deixei claro que não a amava. Não dessa
maneira, pelo menos. E ela também respondia a mesma coisa, mas,
salvo algumas raras exceções, amor não é um pré-requisito para
que os casamentos aconteçam por aqui. É por isso que, embora
essa não fosse nossa vontade, era só uma questão de tempo.
Até que o destino resolveu mudar os planos e, de repente, a
Helena era uma condessa, estava morando no Palácio e,
finalmente, existia a possibilidade de não precisar cumprir uma lei
idiota e sem sentido. Não vou fingir que a ideia não me pareceu
muito tentadora e que eu estava, sim, torcendo muito para que tudo
saísse como eu esperava.
É por isso que eu não entendo porque encontrá-la naquele
lugar, aos beijos com aquele engomadinho, me deixou tão
decepcionado.
Sempre tive muita certeza sobre os meus sentimentos por
ela, por que agora tudo tinha que ficar confuso?
— Só legal? — ele insiste, apoiando-se no balcão. — Você
tem ideia que visitou o lugar mais desejado de todo o reino? Eu
sairia contando vantagem para todo mundo!
— Tá. Foi mais do que legal. Foi incrível. É, com certeza, o
lugar mais bonito que eu já vi. E a comida… A comida é muito boa.
Consigo me animar um pouquinho, contando as coisas boas
que aconteceram por lá, pelo menos, até me lembrar daquela droga
de baile e da decepção. E aí, aquele monte de dúvidas e
questionamentos voltam com tudo.
Se eu não a amo, como sempre tive tanta certeza, por que
fiquei tão chateado?
Por que estou me sentindo culpado também, se tudo parecia
tão óbvio naquela noite?
Será que eu passei do ponto?
Será que ela ainda está chateada comigo, assim como
estou?
E a mais incômoda de todas: Será que minha decepção se
devia somente ao fato da Helena estar escondendo algo tão
importante de mim, ou tem mais coisas por trás disso?
Mas que droga!
— E a Helena? Como ela está? — pergunta.
— Está ótima — minto, enquanto penso em algo para mudar
de assunto.
— Caramba, Jonas! Eu nunca pensei que fosse conhecer
alguém da realeza, ainda mais alguém que nasceu aqui. Você bem
que podia ajudar, né? — reclama.
— E o que você quer saber dela? — devolvo, irritado. — Ela
continua teimosa e implicante e chata pra caramba, mas agora está
usando roupas chiques e andando com um monte de gente
granfina.
E só de pensar que não existe mais espaço para mim nessa
sua vida nova, sou invadido por uma tristeza tão grande, que dói.
— Quer saber? Já vi que você não está muito falante hoje. —
Ele dá de ombros, fingindo não ter se ressentido com a minha
atitude. — Eu volto outra hora.
O Paulinho vira às costas e deixa o mercado. Fico me
sentindo ridículo, por ter desejado a tarde toda que alguém entrasse
aqui, para enxotá-lo com o meu mau humor.
Parabéns, Jonas!
— Filho, a Helena está no telefone — avisa a minha mãe,
colocando a cabeça para dentro do meu quarto.
Por sorte, ela faz isso em voz baixa. Caso contrário, a Helena
conseguiria escutar lá da sala e teria certeza que estou pronto para
dar uma desculpa qualquer.
— Eu estou cansado. Outra hora falo com ela — respondo,
desanimado.
Ela vai dizer alguma coisa, mas desiste e cruza os braços.
Fica me olhando por bastante tempo, antes de entrar e se sentar na
beirada da minha cama.
— Está acontecendo alguma coisa? — pergunta, em voz
baixa.
Sento-me, apoiando as costas na parede e respiro fundo.
Geralmente, a pessoa para quem eu conto os meus problemas é a
Helena. Depois dela, talvez o Paulinho — nossa amizade acabou se
estreitando um pouco, desde que ela se mudou para o Palácio —,
mas, depois da maneira idiota que o tratei hoje de tarde, fico sem
graça só de me imaginar contando qualquer coisa para ele.
Minha mãe é a única pessoa que restou e acabo decidindo
lhe contar o que está me incomodando.
— Ela está diferente. Não é mais a mesma Helena —
declaro.
É claro que não toco no assunto do que vi naquele escritório,
porque tenho certeza que ela acabaria contando para a mãe da
Helena e, apesar de estar zangado, não quero colocá-la em
problemas.
— E qual o problema nisso? — indaga, curiosa. — Todo
mundo muda, Jonas. É bem provável que você também tenha
mudado durante esse tempo.
— É diferente… Eu acho que ela mudou demais, sabe?
— E vocês já conversaram sobre isso?
Abro a boca, pronto para responder, mas a verdade é que
fico com vergonha de dizer que nem sequer quis ouvir sua
explicação. Eu estava tão revoltado, que só queria sair de perto dela
o mais rápido possível.
Só queria esquecer que aquilo tinha acontecido e voltar para
casa o mais rápido possível.
Só queria que essa droga de história de condessa nunca
tivesse acontecido e que tudo voltasse a ser como antes.
— Você deveria dar uma chance para que ela se explique.
Vocês são amigos há tempo demais para deixar um mal entendido
bobo atrapalhar isso — continua, com a voz calma.
Sei que ela tem razão, mas não quero conversar com a
Helena agora. Não quero ter que relembrar aquela droga de noite.
Não quero ter que me questionar mais uma vez sobre o motivo
daquilo ter me magoado tanto, porque, na verdade, estou morrendo
de medo de descobrir que não é só isso. Que existem mais coisas
por trás da minha reação exagerada e eu nem quero imaginar o que
vai acontecer, caso isso se confirme.
Por ora, é melhor deixar isso quieto.
— Talvez eu faça isso, mas não hoje.
Ela assente e me deixa sozinho, acompanhado somente
daqueles malditos pensamentos.
É, Jonas… Você faz tudo errado, mesmo!
Fique agora com um trecho do primeiro capítulo de O
Trono, segundo e último livro da duologia, que será lançado em
outubro.
Eu preciso sair daqui.
O corredor está me engolindo e tenho que ir embora, mas
minha mochila está pesada demais e não me deixa sair do lugar, por
mais que tente correr.
Olho para trás e vejo que tudo está sumindo atrás de mim. Se
não largar esse peso inútil, não vou conseguir fugir daqui, mas não
consigo. As alças estão presas nos meus ombros.
Fecho os olhos, porque já sei o que vai acontecer e, de
repente, a escuridão toma conta de tudo e, dentro de alguns
segundos, tudo volta a ficar nítido.
O terraço está mais alto do que da última vez que estive aqui.
Aliás… tenho a impressão de que ele está se afastando do chão a
cada segundo.
— Você vai morrer e ninguém vai sentir sua falta, sua caipira
ridícula.
Apesar da ameaça clara, não consigo evitar o revirar de
olhos. Que garota mais chata!
— Você é a pior rainha que esse reino já viu. Sua morte será
um favor para todos nós. Seus súditos têm vergonha de você,
sabia?
— Isso não é verdade — defendo-me.
— Não? E o que você fez até agora por nós? Quais grandes
mudanças você já trouxe para Luseia nesse tempo todo em que
está no poder? Você é um peso para nós…
Sua voz me causa mais nojo do que medo.
— Não sou, não! Ainda não tive tempo…
— Tempo? Quem aqui tem tempo? Você é muito
incompetente… espere só até seus súditos descobrirem que você
nem ao menos sabe ler. Imagine a cara de todos eles ao
descobrirem que servem a uma rainha burra.
O terraço se transforma em um precipício e sinto cada
músculo se contrair.
— Quem te disse isso? — pergunto em um sussurro.
— Quem você acha? — devolve, com deboche.
Antes que ela tenha tempo de responder, a força que segura
meus braços some e caio no precipício com força.
Sento na cama, sobressaltada, suada e ofegante.
Maldito pesadelo!
Todas as noites, nas últimas semanas, sou agraciada com
algum sonho ruim muito parecido com esse. Às vezes, eles têm
algumas variações no seu decorrer, mas sempre acabam da mesma
forma.
Suspiro ao me dar conta que ainda são quatro horas e que
minha noite de sono acabou. Algumas vezes, isso acontece depois
das cinco. É o que eu chamo de noites boas. Nas ruins, antes das
duas, já estou acordada e tenho bastante tempo para me punir por
todos os erros que penso estar cometendo.
A verdade é que ser rainha é muito mais difícil do que
imaginei.
O Henrique tinha razão quando disse que somos jovens
demais para cuidar de um reino inteiro. O problema é que muitas
pessoas concordam com essa afirmação e duvidam da minha
capacidade.
Quando extingui a lei que proíbe qualquer contato entre
moradores e funcionários aqui no Palácio, fui duramente criticada
por todos os nobres da capital, o que apenas ignorei. Em seguida,
anexei as províncias que não faziam parte do reino, porque, sem
fazer isso, não poderia levar escolas e hospitais até elas em caráter
emergencial.
Esses lugares já foram esquecidos por tempo demais. Não
existia a mais remota possibilidade de fazê-los esperar por mais
tempo!
Além de que estou correndo contra o relógio. A qualquer
momento, aquele desgraçado pode abrir a boca e acabar com tudo.
Quando pensei em proibir os casamentos arranjados, o
Jonas me freou. Alegou que eu precisava ir com calma, caso
contrário, as poucas pessoas que ainda estavam do meu lado
poderiam se virar contra mim. Quanto menos apoio das pessoas
importantes do reino, mais críticas eu recebo e, automaticamente,
mais insegura me sinto quanto a tudo.
O Jonas tem feito um bom papel como conselheiro. Ele é
paciente comigo e sempre tem uma palavra amiga para me ajudar,
mas sua pouca experiência no poder o deixa de mãos atadas na
maior parte do tempo e isso é horrível.
Hoje completam trinta dias desde a coroação e ainda não
pensei em ninguém para fazer parte da Corte. Este é outro assunto
que tem me incomodado bastante, porque não confio o bastante em
outras pessoas para nomeá-las para um papel de tamanha
importância para o reino.
Desde que assumi o trono e a Corte deixou de ser obrigada a
permanecer no palácio, todos foram embora. Não vou mentir,
dizendo que senti falta do visconde, da Morgana e do marquês.
Tenho certeza que esse período teria sido muito pior se eles
estivessem aqui. No entanto, o Henrique tem feito tanta falta…
Cada vez que desperto dos meus pesadelos recorrentes,
penso no quanto gostaria que ele estivesse aqui, para me ajudar a
resolver meus problemas, ou apenas para me ouvir e dizer que tudo
vai ficar bem ou me dar um beijo, daqueles que me faziam esquecer
do resto do mundo.
Ah, como eu queria esquecer do resto do mundo!
Ele foi embora, sem nem se despedir de mim. Sei que não foi
sua culpa, porque, desde a minha eleição, a Morgana grudou nele
como um carrapato, mas isso não quer dizer que doa menos.
Levanto da cama e deixo o quarto que, embora seja enorme,
às vezes me sufoca, e sigo para o jardim. A iluminação que vem dos
postes não é suficiente para mostrar toda a sua beleza. Mesmo
assim, é o único lugar do palácio que me acalma um pouco e me faz
esquecer de toda a pressão. Pelo menos, por algum tempo.
Vejo o dia clarear, aos poucos, e me lembro que tenho uma
importante reunião com o governante de Vermênia, um dos reinos
aliados. Ele não fala a nossa língua e será necessário chamar um
intérprete para mediar nossa conversa, o que me faz sentir ainda
mais inadequada.
Se fosse o Henrique no meu lugar, ele tiraria de letra.
— Pesadelos de novo? — pergunta o Jonas, sentando-se ao
meu lado no banco de ferro. — Isso já está ficando preocupante,
Lena.
Balanço a cabeça, tentando demonstrar que está tudo bem.
— São só uns sonhos bobos. Nada de mais.
— Sonhos bobos? Tem semanas que você não dorme uma
noite inteira — ralha, cruzando os braços. — Está na hora de deixar
de ser teimosa e admitir que precisa de ajuda.
— E para quem eu vou pedir ajuda? Você é o único em quem
eu confio, Jonas. E, até onde eu sei, você não sabe o que fazer para
resolver esse problema, certo?
Ele entorta a boca e respira fundo.
— Se você parasse de se preocupar tanto com o que as
outras pessoas pensam, resolveria metade do seu problema.
— Eu sou rainha, Jonas! Como eu não vou me preocupar
com o que as pessoas pensam? Eu não quero ser vista como o rei
Plínio, que era um inútil. Eu quero ser diferente!
— Você já é diferente, Lena. Mas você não pode querer
mudar o mundo em um mês.
Queria que seus argumentos fossem o bastante para me
convencer que ele tem razão… Pena que a minha consciência
discorda dele.
— Você sabe que tempo de sobra é um luxo que eu não
tenho!
— É claro que sei. Mas, se continuar desse jeito, vai acabar
estourando uma veia na sua cabeça, antes que o visconde abra a
boca.
Sem saber o que responder, apenas bufo.
— Acho que é melhor eu entrar e me preparar para a reunião
— digo, levantando-me.
Por enquanto, é melhor focar em algo útil.
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A Corte foi o livro que reviveu a felicidade em escrever que
existe em mim. Ele surgiu lá em 2015, com uma ideia bem ruim, que
aprimorei com o tempo, até se tornar o que é hoje e eu tenho um
carinho muito especial pelo livro.
Queria agradecer imensamente a Helena, Samira e Júlia, que
betaram o livro e me deram ideias incríveis para aperfeiçoar meu
bebê, além de serem umas fofas!
E meu maior obrigada pra ti, que leu e confiou no meu
trabalho. Espero que tenha atendido tuas expectativas!
Um beijo no core e não se esqueçam que essa Corte ainda
terá mais reuniões!
Apaixonada por música, futebol, viagens e literatura (não
necessariamente nesta ordem), Laís vive em Balneário Piçarras/SC
(melhor cidade do Brasil), com seu marido, sua filha e seus cinco
filhos de quatro patas.
Começou a escrever na adolescência, fazendo fanfic de
Linkin Park, mas só mostrou seu trabalho para o mundo em 2017,
no Wattpad. Vencedora do Prêmio Wattys no mesmo ano, com A
Segunda Geração, não parou mais e já tem mais de 10 livros
publicados.
Tem o maior orgulho em dar vida aos personagens birrentos
e teimosos que a atormentam vinte e quatro horas por dia e não tem
a menor intenção de parar.
Me segue no insta para mais informações @divadistopica