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A REESCITA DO CONTO “A TESTEMUNHA”, DE LYGIA F. TELLES:
REFINAMENTO E POLISSEMIA
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RESUMO
Este artigo tem como objetivo analisar o trabalho de refinamento no processo de
reescrita do conto A Testemunha de Lygia Fagundes Telles. Essa reelaboração,
além de tornar o texto mais conciso, confere-lhe, sobretudo, uma natureza mais
sofisticada, sugestiva, ambígua, fazendo, assim, competentemente, o exercício da
criatividade literária. Nesse trabalho, em que se explora a duplicidade semântica e a
intertextualidade, amplia-se a participação do leitor. Este, em sua acentuada
atividade, torna-se um coautor do texto. Para desenvolver sua argumentação, o
trabalho apoia-se em textos de Antoine Compagnon, Sigmund Freud, Audemaro
Goulart, Julia Kristeva, Jean-Paul Ronecker, dentre outros.
Palavras-chave: Testemunha. Reescrita. Polissemia. Refinamento. Lygia Fagundes
Telles
“A obra literária tem dois pólos, (...) o artístico e o estético: o pólo
artístico é o texto do autor e o pólo estético é a realização efetuada
pelo leitor.” (Wolfgang Iser)
A reescrita de textos literários, após a sua publicação, não é algo tão comum na
literatura brasileira. Quando se discute esse processo de reelaboração em nossas letras, é
recorrente lembrar-se do peculiar trabalho do contista mineiro Murilo Rubião, que fez da
reescrita um procedimento que caracterizou sua produção literária. Quando republicava seus
contos, promovia alterações semânticas, sintáticas e estilísticas, fazendo uma depuração da
linguagem, tornando-a mais concisa, refinada, visando à eficácia da fluidez narrativa.
Lygia Fagundes Telles faz um trabalho semelhante com um conto de sua autoria, A
testemunha, que narra o encontro de dois amigos, Miguel e Jorge (Rolf), em que o primeiro
indaga ao segundo o que havia acontecido entre eles numa noite passada. Num diálogo,
marcado por interditos, fica subentendido que houve, possivelmente, uma relação
homossexual entre ambos. Depois de publicar o conto em 1958, Telles o republicou mais duas
vezes, fazendo alterações em ambas as oportunidades. A reelaboração da autora, comparada à
reescrita de Rubião, apresenta, no entanto, certa diferença. Enquanto o polimento do texto
deste visava mais à precisão e à concisão, Telles priorizou a ampliação do leque semântico
das expressões. Nesse trabalho, a escritora cultivou uma aprimorada técnica da sugestão,
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Doutorando em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas.
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revelando um estilo que esconde mais o jogo do que o mostra, explorando a capacidade
polissêmica dos vocábulos.
Antes, entretanto, de expor o caráter plurissignificativo e sugestivo do conto, deve-se
lembrar de que, em alguns instantes, o refinamento da escrita de Telles atende ao critério da
concisão apenas. Como exemplo, pode-se mencionar o próprio preâmbulo da narrativa. É
perceptível a prolixidade do primeiro conto, que é corrigida nos subsequentes. O texto do
primeiro conto não seria, por exemplo, subscrito por um autor como Graciliano Ramos, que
rejeitava as futilidades descritivas. O essencial da narrativa original, todavia, permanece: a
figura do cisne, o olhar fixo do personagem Miguel para o anúncio luminoso.
Há uma passagem do segundo conto que não aparece no primeiro: “– Belon – disse
ele, antes que as cinco letras se apagassem sob o diadema da meia lua.” No terceiro conto, o
texto acaba se resumindo em: “– Belon – disse ele antes que as letras se apagassem.” Outros
trechos demonstram bem esse trabalho de enxugamento do texto. 1º conto: “No fim da rua,
estava a ponte, uma ponte escura, semelhante a um breve traço de união entre as duas
margens do rio.” (TELLES, 1958, p. 127). 2º conto: “No fim, a ponte, recurvo traço da união
entre as duas margens do rio.” (TELLES, 1974, p. 7) 3º: “No fim da rua, a ponte, um curvo
traço de união entre as margens do rio.” (TELLES, 1999, p. 5) No terceiro conto, o trecho é
explícito e mais conciso, onde se excluem redundâncias, como “duas margens”.
A seguir, este trabalho se propõe a falar sobre o perfil sugestivo da linguagem da
autora. Este se configura a partir da abertura do conto, marcada pela imagem do olhar fixo do
personagem Miguel em direção a um letreiro de natureza comercial em que se evidencia a
figura de um cisne, assim descrito nos contos: no 1º, o cisne é branco, “impassível no
retângulo negro”; no 2º, o cisne é fosforescente, “no oco do espaço negro”; e no 3º, o cisne é
branco, “no espaço tumultuado de nuvens”.
A imagem desse cisne não é gratuita. A posição em que ele aparece, contemplada na
primeira chamada do letreiro, sinaliza a possibilidade de que a ave represente um ser em torno
do qual se constrói a trama. Para sustentar tal hipótese, pode-se recorrer ao poeta e filósofo
Gastón Bachelard (2002). Segundo ele, o cisne sintetiza o masculino e o feminino,
representando, pois, a figura do hermafrodita. Ronecker, a partir da mitologia clássica, reitera
tal percepção:
Os gregos [...] fizeram dessa ave um símbolo hermafrodita, no qual Leda e Zeus
forma uma só coisa na sublimação mística de sua união. Podemos ver nisso a união
da ambivalência homem-mulher do ser humano e a integração dessa dupla natureza
na psicologia do indivíduo. (RONECKER, 1997, p. 133).
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No decurso do conto, tal concepção se legitima, uma vez que se pode deduzir que, no mesmo,
houve, segundo terminologia mais atual, uma relação sexual homoafetiva.
Ainda sobre a figura expressiva do cisne, no decurso da narrativa, podem ser
percebidas identificações de comportamento dele com o dos personagens. Traços de Miguel e
Rolf parecem com os da ave, que vive em lugares frios. O animal, quando ameaçado, joga o
pescoço para trás, levanta as asas e ataca. Miguel tinha o rosto redondo e brancura flácida,
num instante “(...) inclinou a cabeça para trás. Passou a mão muito branca pelos cabelos ralos,
meticulosamente penteados. E apertou os olhos que se reduziram a dois pontinhos opacos.”
(TELLES, 1958, p. 124). Além disso, queixou-se de uma dor na nuca, o que sugere o ritual de
acasalamento em que o macho bica, segurando a fêmea atrás de sua cabeça. Já Rolf, alto e
magro, lembra o cisne, quando “Um vinco profundo formou-se entre suas sobrancelhas.”
(TELLES, 1999, p. 2).
Os termos já mencionados, “Belon” e “Belominal”, respectivamente, segundo e
terceiro contos, também dialogam com a figura do cisne. Sua pronúncia, sugerindo o som do
sino, coincide com o canto dos cisnes cantores – uma raça deles. Segundo lendas, o cisne
canta quando está morrendo. Belominal, do último conto, por sua vez, enriquece o jogo
polissêmico, quando sugere um remédio usado pelo companheiro ativo da dupla para induzir
o encontro ou indicando, ironicamente, outro nome: belo animal.
O dualismo (branco x negro) que se verifica nessa aludida descrição do cisne
também corrobora a sugestão e reforça a imagem da homoafetividade. O cisne representa a
“síntese das duas luzes, solar e lunar, simultaneamente. Quando isso ocorre, ele torna-se
andrógino, criando uma áurea de mistério sagrado.” (CISNE, 2015). Dessa forma, sem a
pretensão de esgotar a leitura, Miguel e Rolf, idênticos ao cisne, se apresentam como seres
cuja sexualidade não se define.
A suposta relação homoafetiva, que ocorreu na narrativa, é sugerida em várias outras
passagens. No primeiro conto, “rasgo do lençol e moringa quebrada.” No segundo, a imagem
reescrita acentua o impacto da cena: “Relógio despedaçado, o lençol rasgado e o
desaparecimento do gato.” No terceiro, o grau de sugestão é acentuado: “Relógio quebrado
em oito, o lençol rasgado e o sumiço de um cão.” Nos dois primeiros contos há uma
afirmação que sugere uma representação alucinada do desejo: “Nós dois completamente
loucos.” No último conto, a frase se repete, reforçada, porém, pela pergunta de Miguel: “–
Nós dois, Rolf? Ao mesmo tempo?”, o que acrescenta mais intimidade à cena.
Assim, a reescrita de Telles aprimora a sugestão. Para o leitor, pouco fica explícito.
O estilo que prima pela literariedade, segundo Goulart (2015), se propõe mais a insinuar,
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suscitar do que propriamente dizer objetivamente. Em determinados momentos, imagens são
supressas ou substituídas na perspectiva de acentuar o jogo sugestivo. No primeiro conto, as
“risadinhas” de Jorge aparecem três vezes. No segundo conto, o termo aparece uma vez
apenas. A ostensividade de “(...) deu uma risadinha” (TELLES, 1974, p. 88) da segunda
narrativa, declina, no terceiro conto, a favor das sutis frases: “Sacudiu-o afetuosamente. Riu.”
(TELLES, 1999, p.3) A indiscrição das risadinhas é, assim, atenuada, progressivamente, pelo
trabalho de reelaboração textual.
Além das imagens, o trabalho de ocultamento do jogo se mostra de outras formas.
Na cena inicial do primeiro conto, fica evidente o anúncio de um colchão de molas. Já nos
contos subsequentes, não se revela a identidade total desse anúncio, pois apenas as cinco
primeiras letras se mostram: “Só as cinco primeiras letras do anúncio eram visíveis, as outras
desapareciam detrás do cimento armado.” (TELLES, 1999, p.1) Essa parcialidade da
definição do anúncio sugere, também, a interdição da fala de Rolf (Jorge) no decurso da
trama, pois esse personagem não revela totalmente o que ocorreu entre ele e o amigo na noite
anterior.
Em outra passagem, no primeiro conto, o texto deixa mais evidente a suposta frieza
de Miguel, autor do crime: “Todo o aspecto de Miguel era grave e sóbrio” (TELLES, 1958, p.
125). No segundo conto, a gravidade da expressão enfraquece: “Miguel baixou a cabeça,
enfurnou as mãos nos bolsos e prosseguiu no seu andar vacilante.” (TELLES, 1974, p. 6) No
último, o aspecto mencionado desaparece: “Miguel enfiou as mãos nos bolsos e prosseguiu no
seu andar meio incerto.” (TELLES, 1999, p. 3).
O processo em que se reforça o jogo das sugestões se verifica ainda em outras
passagens. Na conversa entre Miguel e Jorge, ocorrida já no final da narrativa, o primeiro não
alude à aversão do segundo em relação aos esportes. No segundo conto, entretanto, a
reelaboração inscreve a confissão de Jorge: “Sempre tive horror de clube.” (TELLES, 1974, p.
8) Já no terceiro conto, o texto mostra esta fala de Miguel sobre Rolf (Jorge): “Você devia ter
aprendido ao menos a nadar” (TELLES, 1999, p. 5), o que sugere, de forma irônica, a
premeditação do crime.
Outro trecho, ausente no primeiro conto, mas que aparece nas republicações é o
seguinte: “Acho que você está precisando é de mulher, essa nossa vida acaba dando nisso, uns
neuróticos. Se tivesse aí umas putas bem simpáticas, hem?” (TELLES, 1974, p.7). O
fragmento citado é do segundo conto. No terceiro, tal fala se repete, fazendo a troca
significativa de “uns neuróticos” por uma “solidão miserável”. Nessa última versão, sugere-
se, pois, a questão da falta que pode acionar o mecanismo do desejo.
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A fala interditada de Rolf para Miguel, que nunca revelava o que ocorrera de fato na
noite mencionada, produz uma espécie de enigma a ser decifrado pelo segundo. E, assim, o
jogo se realiza, incluindo o leitor. No primeiro conto (TELLES, 1958, p. 124), evidencia-se
uma encenação do texto de natureza policial: “(...) Você já tem os elementos suficientes para
reconstituir a cena...” No segundo conto (TELLES, 1974, p. 5-6), o discurso policial se torna
enfático: “Com esses elementos você pode reconstituir tudo, não pode? (...) Você não lia livro
policial?” A imagem é reconstruída no terceiro conto, efetuando algumas alterações: “Você
gostava de livro policial, não gostava?” (TELLES, 1999, p.3).
A reconstituição proposta por Rolf a Miguel, inevitavelmente, se estende ao leitor,
uma vez que a narrativa termina com requintes exigidos pelo conto policial: o sinistro da
escuridão da noite; a presença de um policial; um crime inesperado, porém meticulosamente
planejado; a frieza do assassino que promoveu uma autêntica “queima de arquivo” da
“testemunha” ocular da desonra sofrida por ele (Miguel), configurada na suposta relação
condenada pela sociedade e pela Igreja, sobretudo quando se imagina a época da 1ª.
publicação, 1958. Além disso, o próprio título do conto, A testemunha, já insere o texto no
campo semântico policial.
O espaço geográfico reservado à punição de Rolf pelo “crime” praticado não é
gratuito. O recorte sombrio da natureza abre um leque de sugestões, o que incita a
participação do leitor. O corpo do personagem mencionado desaparece nas águas sujas de um
rio, o que pode simbolizar a sordidez do ato praticado pela vítima. A atitude, considerada suja,
deveria, definitivamente, ocultar-se na água escura do rio, que passa por uma gradação
semântica: no primeiro conto é caracterizada como “sujíssima”; nas republicações, qualificada
como “podre”. E é nessa podridão que se confina o que para a sociedade jamais podia ser
público, o que pode ensejar a polêmica que o homossexualismo provoca no interior da nossa
cultura. Segundo outro ponto de vista, permitido pela natureza ambígua da narrativa, a água
suja do rio pode significar, também, a vilania do ato cometido por Miguel, à execução
impiedosa do suposto amigo Rolf.
Gratuidade não se verifica também, no final da narrativa, na imagem de uma ponte.
Esta que representa o elo entre duas margens ou dois recortes geográficos, acaba
simbolizando o vínculo desconfortável entre Miguel e seu passado, representado por Rolf,
consoante afirmação do primeiro: “Você é essa ponte, o único ponto que me liga à véspera.”
(TELLES, 1974, p. 8). Exatamente nessa travessia, Miguel trata de apagar a sombra da noite
anterior, eliminando o companheiro. Dessa forma, a ponte Rolf-Miguel se desfaz.
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É importante ainda assinalar o relato de Rolf (Jorge), interrompido, que nunca
satisfaz plenamente a curiosidade de Miguel. O seu estilo hesitante, já mencionado, estimula a
atuação do leitor, exigindo deste redobrada atenção, o que sugere, numa visão mais moderna,
o processo de coautoria, reivindicado pelo mencionado receptor. Como coautor, então, pode-
se dizer que as reticências, os desvios de Rolf, sugerem implicitamente uma suposta cena
amorosa, atualmente chamada homoafetiva. 1º. conto: “– Ora, o que houve... Mas então não
se sabe? / – Não me lembro de nada.” 2º. conto: “– Mas você sabe. (...) – Que é que eu sei?”.
No terceiro: “– Você sabe./ – Mas sei o que, meu Deus?” Nesse instante do texto, fica
evidente o que Goulart (2015) assinala como uma das estratégias do narrador “para fazer a
história chegar a leitor” de forma criativa. O texto sugere as ações dos personagens, jamais as
explicitando, cabendo, pois, “ao leitor a função de imaginar o seu desenrolar.” E, desse modo,
o receptor declina de seu papel passivo e assume função ativa na construção do texto.
Compagnon, guiado por reflexões de Iser, lembra que os textos mais modernos, “são
cada vez mais indeterminados. Em consequência disso, cada vez mais o leitor tem que dar de
si próprio para completar o texto.” (COMPAGNON, 1999, p. 153) Nessa concepção, a obra se
abre, privilegiando a participação do leitor. Para favorecer tal atitude, A testemunha, em suas
republicações, como já foi discutido, busca mais o sugerir do que o mostrar. A abertura do
texto, que dinamiza a atuação do leitor, nessa visão moderna, se firma, uma vez que nada se
fecha ou se comprova, apenas é insinuado ou dá a entender.
Em relação ao conto mencionado, outro aspecto interessante dessa sua construção
sugestiva é o processo de diálogo com outros textos da literatura, assim, definido por Kristeva
(1974, p. 64): “Todo texto se constrói como mosaico de citações, é absorção e transformação
de outro texto.” A obra literária é, pois, recriação de outros textos. Na escrita de Telles, esse
processo ocorre de forma direta ou de forma mais indireta. Como exemplo da primeira, Rolf
(Jorge), ao caracterizar a persistente dúvida do seu parceiro, afirma: “– Ai, meu Hamlet!".
Notadamente se faz uma alusão à obra de William Shakespeare, Hamlet, conhecida como a
tragédia da dúvida, esta que persegue o protagonista Miguel, de Telles, da mesma maneira
que atormenta a personagem do dramaturgo inglês. E, assim, um movimento claro de
intertextualidade entre a literatura de Telles e a do consagrado autor europeu se concretiza.
Já de forma mais indireta, pode-se mencionar a suposta conexão da obra A
testemunha com o romance As brasas, do húngaro Sándor Márai (1900-1989), a partir das
republicações. No texto original não se pode fazer alusão à obra mencionada, pois pressupõe
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que a autora não havia lido ainda o romance do autor do leste europeu. A partir do segundo
conto, tal mediação é possível, uma vez que a leitura de As brasas2 no Brasil já seria possível.
Tal dedução viabiliza-se pela evolução da escrita. No primeiro conto: “Seu rosto teve um
lampejo vermelho.” (TELLES, 1958, p. 128) No segundo: “Seu rosto teve um reflexo de
brasa” (TELLES, 1974, p. 8, grifo nosso) No terceiro, a conexão com o texto do romancista
europeu, surge de forma mais sutil: “A face avermelhou, esbraseada.” (TELLES, 1999, p. 5,
grifo nosso) É oportuno registrar que em outra passagem, apenas nos dois últimos contos,
fala-se da excitação de Miguel por um livro de um húngaro. O texto, assim, exercita a
ambiguidade, especificamente com o termo brasa, uma vez que ele pode significar ficar
vermelho, corado, como uma brasa, ou pode estabelecer conexão com o romance húngaro.
Além disso, mais provável, pode-se pensar nas duas hipóteses simultaneamente.
O mencionado vínculo temático entre as duas obras não é algo fantasioso. Em Telles
há um encontro marcado entre dois amigos, Miguel e Rolf (Jorge), em que o primeiro
desconfia que fora desonrado pelo segundo e o elimina friamente. No romance húngaro, dois
amigos de infância e juventude, Henrik e Konrad, marcam, também, um encontro,
acompanhado de um jantar, idêntico à narrativa de Telles. Os personagens de Márai se
encontram após quarenta e um anos sem se verem. A ocasião acaba, no entanto, se
transformando mais num ajuste de contas do que propriamente num jantar festivo, pois, na
oportunidade, o primeiro, Henrik, em dúvida, como Miguel no conto de Telles, exige que
Konrad confirme sua traição. Este fora acusado pelo primeiro de, numa caçada, ter tentado
contra a vida do amigo e de se envolver, amorosamente, com a esposa do mesmo. Assim, as
narrativas convergem semanticamente, uma vez que ambas tratam de um tema semelhante: a
desonra pessoal. Diferem-se em relação ao desfecho. No romance húngaro, a vingança não
avança para o crime fatal, ocorrido em Telles. O referido ajuste de contas fica restrito, apenas,
ao desabafo, à agressão verbal.
As interlocuções que a reescrita do conto A testemunha cria não ficam restritas ao
campo literário, abrangem outras linguagens, outras artes. No conto original, o protagonista
Miguel mencionou o verso inicial Vedi Il Mare Quanto é Bello da antiga e famosa canção
napolitana Torna a Surriento, dizendo que a cantaria integralmente para o amigo após o
jantar. No segundo conto, tal referência foi substituída por uma alusão a um tango. Miguel
declara a Rolf (Jorge): “Depois cantarei um tango inteirinho, lembra, Rolf? Tenho voz ótima.”
2
As brasas, romance do húngaro Sándor Márai, publicado em 1942, conta a história de dois amigos que marcam
um encontro depois de 41 anos sem se verem. A temática gira em torno de amizade, paixão amorosa e honra.
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(TELLES, 1974, p.7). Assim, o lirismo de Torna a Surriento3 se esconde para dar lugar à
sensualidade, que normalmente caracteriza o ritmo do tango. O refinamento estético-literário,
assim, reforça o jogo de insinuações de um suposto relacionamento amoroso. No terceiro
conto, acentua-se a atmosfera erótica. A proposta sugere mais intimidade pelo significativo
acréscimo da bebida, de expressiva conotação erótica, ao desempenho musical: “(...) vou
cantar para você um tango inteirinho, Cuestaabajo4, tenho uma voz linda, com vinho então
fica um esplendor.” (TELLES, 1999, p. 5). Além disso, com foco na última republicação,
explorando todas as possibilidades que a polissemia oferece, não se pode negligenciar o título
da canção, cuja tradução em português é declive, ou, mais literalmente, costa abaixo.
Considerando o caráter sugestivo do texto, o termo lido como declive ou queda, insinua,
ironicamente, o rebaixamento moral a que fora submetido Miguel pela suposta violação que
sofrera. Jogando com o último significado, costa abaixo, o texto sugere de forma mais direta o
suposto ato sexual, comprometedor e supostamente degradante. Esse rico processo
interdiscursivo, além da ampliação do leque semântico textual, inquestionavelmente, reforça a
literariedade do texto, em função da habilidade com a linguagem.
E, dessa forma, A testemunha, pelo seu rico tecido de sugestões, firma-se como um
texto em que se pode falar confortavelmente de um trabalho criativo com a linguagem que, na
visão freudiana, revela, também, uma natureza lúdica. Para ele, “o escritor criativo faz o
mesmo que a criança que brinca. Cria um mundo de fantasia que ele leva muito a sério (...)”
(FREUD, 2015, p. 1). E este exercício, conjugando brincadeira e criatividade, é capaz de
acionar o mecanismo do prazer. Nessa reorganização do texto, a interferência maior é mais de
caráter estético-formal do que semântico. Mesmo com todas as alterações promovidas no
desenvolvimento da reescrita, a essência do texto se mantém, porém é aperfeiçoada por meio
de um jogo bem articulado de múltiplas sugestões. O texto, refeito, pode provocar mais prazer
para os seus leitores. Sobre tal capacidade, Schiller, citado por Goulart (2015, p.5) lembra que
“na contemplação do objeto estético, o que nos provoca o prazer é sua organização formal e
não o seu conteúdo.” As palavras do texto original, pesadas, reavaliadas e reelaboradas nas
republicações, demonstram o refinamento da arte de narrar de Lygia Fagundes Telles, e, dessa
forma, satisfaz o leitor sensível a esse exercício.
3
TORNA A SURRIENTO, canção italiana de 1902, composta por Ernesto de Curtis, gravada e interpretada por
diversos cantores famosos, como Elvis Presley, Jose Carreras, Pavarotti, Andrea Bocelli. Fonte:
<http://www.quicampania.it/musica-torna-a-surriento>Acesso em 9 de fevereiro de 2016.
4
CUESTA ABAJO, canção de Carlos Gardel (1890-1935), conhecido como o mais famoso dos cantores de tango
da história.
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Além disso, é oportuno reafirmar, a escrita aciona, também, o mecanismo da
interação em sua literatura. O autêntico jogo proposto pelo narrador, inevitavelmente, ativa a
participação do leitor que, por meio de suas experiências, procura dar sentido àquilo que é
enunciado. Com esta capacidade, o receptor se assume como leitor-modelo, na formulação de
Umberto Eco5. Nesse movimento, na percepção de Compagnon (1999, p. 149), com base em
formulações de Iser, “o texto literário é caracterizado por sua incompletude e a literatura se
realiza na leitura.” E, assim, “o objeto literário autêntico é a própria interação do texto com o
leitor.” (COMPAGNON, 1999, p. 149) Com essa predicação, a obra em destaque polemiza,
enriquece e provoca o leitor; provoca a sua participação e, consequentemente, outorga-lhe o
direito da coautoria textual.
ABSTRACT
This article aims to analyze the work of the refinement in the process of rewritten of
the short history The Witness, by Lygia Fagundes Telles. That re-elaboration,
besides to get the text more concise, gives it about everything a character more
sophisticated, suggestive, ambiguous, that makes thus the exercise of the literary
creativity very well. In this work, in which it is explored semantic duplicity and
intertextuality, the reader`s participation is increased. This, in his sharp activity,
becomes a co-author. This article, in order to develop its argument recurs, supports
itself in texts of Antoine Compagnon, Sigmund Freud, Audemaro Goulart, Julia
Kristeva, Jean-Paul Ronecker, among others.
Keywords: Witness. Rewritten. Polysemy. Refinement. Lygia Fagundes Telles
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Antônio de Paula Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
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5
A ideia de um leitor que aceita as regras do jogo proposto por um autor modelo está no texto de Umberto Eco,
escritor, filósofo, semiólogo e linguista italiano, em Seis passeios pelos bosques da ficção, publicado no Brasil
em 1994 pela Cia. das Letras.
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