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Paris Boêmia - Dan Franck

A obra disponibilizada pela eLivros visa oferecer conteúdo para pesquisas acadêmicas, sendo proibido seu uso comercial. O texto explora a importância da arte e dos artistas na sociedade, destacando a relação entre vanguardas e a evolução da arte moderna em Paris. O autor reflete sobre a vida boêmia dos artistas e a busca incessante pela criação artística, apresentando uma narrativa que entrelaça ficção e realidade.

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Paris Boêmia - Dan Franck

A obra disponibilizada pela eLivros visa oferecer conteúdo para pesquisas acadêmicas, sendo proibido seu uso comercial. O texto explora a importância da arte e dos artistas na sociedade, destacando a relação entre vanguardas e a evolução da arte moderna em Paris. O autor reflete sobre a vida boêmia dos artistas e a busca incessante pela criação artística, apresentando uma narrativa que entrelaça ficção e realidade.

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poderá enfim evoluir a um novo nível."

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Para Simon Michaël Ouazana
U m mundo sem arte não poderia enxergar a si próprio.
Ficaria en­cerrado dentro dos limites de regras simplistas.
É por essa razão que os regimes totalitários, uma vez
instalados, censuram, proíbem e queimam. É assim que
eles perfuram o olhar do pensamento, do sonho, da
memória e da expressão das diferenças. A terra de onde
nascem os artistas.
Esse termo, que serve mais para qualificá-las do que
para defini-las, suscita desdém e comentários. Se por um
lado a Arte é nobre, maiúscula, simples e bela, por outro,
o artista é minúsculo, objeto de desprezo e,
frequentemente, de rejeição. É que o fundo foi muitas
vezes apagado em benefício da forma. Desde os
macacões de Picasso, as gravatas de madeira de
Vlaminck, os chapéus de Braque, as arruaças sur‐­
realistas, alguns ingênuos e muitos maledicentes tomam
a parte pelo todo, a fantasia pela obra de arte, e
esquecem (ou ignoram) que a indu­mentária não conta, a
não ser por aquilo que é: uma aparência.
Tanto os pintores do Lapin Agile quanto os poetas do
La Closerie des Lilas usavam, às vezes, roupas
extravagantes, organiza­vam festas inusitadas, puxavam
o revólver e provocavam o burguês de mil maneiras, por
um motivo essencial: na época, o burguês não gostava
deles. Estava rigidamente assentado numa ordem
antiga, enquanto penas e pincéis aproximavam-se do
anarquismo, assim como o farão mais tarde com o
comunismo e o trotskismo. Eram mundos inconciliáveis.
Mas a obra está além dos problemas da ordem e dos
costu­mes. Antes de qualquer outra coisa, o artista produz
obras de arte. Picasso pode se vestir como quiser, Alfred
Jarry pode puxar a arma tantas vezes quanto desejar (e
ele o fez), Breton e Aragon podem ameaçar aqueles que
desprezam, todas essas bravatas pouco signifi­cam se
comparadas aos caminhos que eles traçaram. A arte
moderna nasceu das mãos desses sublimes
provocadores. De 1900 a 1930, eles não se contentaram
apenas em levar essa vida de artistas que os tor­nou
detestáveis para alguns e que muitos outros invejaram:
acima de tudo, eles inventaram a linguagem do século.
Foram igualmente odiados por isso. Os escândalos do
Ubu roi, do Sacre du printemps, da “jaula das feras”, dos
“cubistores” ou do Bonheur de vivre, exposto por Matisse
no Salão dos Independentes, em 1906, dão a medida da
violência suscitada pelas vanguardas. Stravinski, mil
vezes ultrajado, admitia entretanto esses rompantes; ele
achava que o público não tinha que se mostrar
indulgente em rela­ção aos artistas, mas cabia a esses
últimos compreender a perseguição da qual são,
algumas vezes, objeto: ele mesmo teria dado de ombros
se tivesse ouvido suas próprias obras um ano antes da
sua criação.
As vanguardas sempre incomodam. Mas a sociedade
acaba por assimilá-las. As tendências mais modernas
fazem esquecer as audácias das gerações precedentes.
No seu tempo, o impressionismo havia provocado o furor
do público e da crítica. O neoimpressio­nismo deixou-o
bastante apagado, antes de aparecer ele próprio com
cores mais desmaiadas diante dos horrores fauves que
foram, por sua vez, varridos pelas monstruosidades
cubistas. Na poesia, os românticos foram destronados
pelos parnasianos, que foram substi­tuídos pelos
simbolistas, que Blaise Cendrars via como “poetas já
ultrapassados”. Na música, Bach encerra a tradição
barroca, Haydn, Mozart e Beethoven abrem a orquestra
para as máquinas sinfônicas de Berlioz, que se tornaram
harmoniosas em face do dode­cafonismo. Quanto a Erik
Satie, a crítica da época já achava o bas­tante que ele
tivesse o direito de ser chamado de músico...
No limiar do século XIX, a França era a capital das
vanguar­das. Mas não era só isso. Duas escolas
coabitavam em Montmartre. Uma delas se inscrevia sem
rupturas na tradição de Toulouse-Lau­trec: Poulbot, Utrillo,
Valadon, Utter e outros nunca provocaram os raios que
caíram sobre a cabeça dos inquilinos do Bateau-Lavoir.
Lá, pintava-se formalmente. Aqui, as formas eram
quebradas em busca da nova arte. Misturando línguas e
culturas, cavando num terreno de incrível diversidade, os
espanhóis Gris e Picasso, o holandês Van Dongen, o ítalo-
polonês Apollinaire, o suíço Cendrars e também os
franceses Braque, Vlaminck, Derain e Max Jacob
escapavam das regras para liberar a pintura e a poesia
de pesadas limitações.
Do outro lado do Sena, em Montparnasse, Modigliani, o
ita­liano; Diego Rivera, o mexicano; Krogh, o escandinavo;
os russos Soutine, Chagall, Zadkine, Diaghilev; os
franceses Léger, Matisse, Delaunay – entre muitos outros
– também enriqueciam o patrimô­nio artístico. Nos anos
1920, chegarão os escritores americanos; Tzara, o
romeno; os suecos, outros russos, novas nações... Paris
se tornará a capital do mundo. Pelas calçadas, eles não
serão mais cinco, dez ou quinze, como em Montmartre.
Mas sim centenas, milhares. Um burburinho de riqueza
nunca mais igualada, nem mesmo mais tarde em Saint-
Germain-des-Prés. Pintores, poetas, escultores e músi‐­
cos, todos misturados. De todos os países, de todas as
culturas. Clássicos e modernos. Ricos mecenas e
marchands ocasionais. As modelos e seus pintores.
Escritores e editores. Pobres e milionários.
Antes da Primeira Guerra Mundial, Picasso já
enriquecera, mas a maioria de seus companheiros vivia
numa incrível pobreza. Depois de 1918, eles compravam
carros Bugatti e residências de luxo. O tempo dos
brilhantes aprendizes estava terminando. Guillaume
Apollinaire, que morreu dois dias antes do armistício,
leva com ele a época dos pioneiros. Modigliani, falecido
em 1920, encerra o ciclo das vidas errantes que Villon e
Murger conheceram. O búlgaro Jules Pascin fecha para
sempre a porta dos trinta primeiros anos do século XX: o
tempo dos boêmios.
Eles tinham escolhido viver em Paris, cidade fraterna,
gene­rosa, que soube oferecer a liberdade a esse povo
vindo de outros luga­res. Hoje, Picasso, Apollinaire,
Modigliani, Cendrars e Soutine não viveriam mais lá.
Teriam sido repelidos para longe do Sena. O espa­nhol por
uso de drogas, o ítalo-polonês por receptação, o italiano
por escândalo na via pública, o suíço por furto, o russo
por miséria crô­nica e mendicância mal disfarçada.
Poderíamos citar tantas outras razões. Todas
demonstrariam que os artistas, hoje como ontem, andam
quase sempre pelas beiras e não pelo centro dos
caminhos. Permanecem aquilo que nunca deixa­ram de
ser e que os torna tão peculiares. São pessoas
deslocadas.

Falar daqueles de ontem é também amar os de hoje. A


memória é reflexo, a sombra é uma projeção. Através
das décadas, os artistas continuam irmãos dos seus
antecessores.
A exigência é sua primeira companhia. Modigliani,
Soutine e Picasso, que sempre se dedicaram apenas à
sua arte, criticavam Van Dongen e alguns outros que
queriam agradar à alta sociedade. Para eles, esses
companheiros de época se renegaram, quase se
comprome­teram. Tornaram-se uma espécie de técnicos,
de artesãos da pintura. Ora, os artesãos não seriam
artistas. Pierre Soulages, um dia, me deu a chave da
diferença: “O artista procura. Ele ignora o caminho que
vai tomar para alcançar seu objetivo. O artesão, por sua
vez, segue por caminhos que ele conhece para ir ao
encontro de um objeto que ele também conhece”.
Brilhante.
O artista trabalha sozinho, não emprega ninguém e
não tem profissão. Pintar ou escrever não é uma questão
de profissão; trata­-se de uma respiração. Até a
ferramenta é incerta. Se a ideia morre, ou a imaginação,
se a cabeça entra em pane, nada nem ninguém pode­rá
salvar o homem asfixiado pelo nada. E ninguém poderá
substituí-lo: a obra de arte é única, assim como aquele
que a produz. As cariátides de Modigliani não são
comparáveis a nenhuma outra. Se aconteceu que Robert
Desnos comprou um desenho a carvão de Picasso,
vendido como se fosse uma composição de Braque, foi
por­que, durante o grande período do cubismo sintético,
os dois artistas trabalhavam juntos.
Tanto um como outro procuravam. A dúvida constitui a
eterna linguagem do artista diante de si mesmo. A nova
obra nunca é adquirida. Ela não repousa sobre coisa
alguma, nem mesmo sobre a obra que a precede. O
sucesso e a curiosidade são efêmeros. É preciso sempre
recomeçar do zero. O zero é um abismo. O artista vive
apenas do seu fôlego. Se este lhe falta, tudo desmorona.
É assim que funciona o homem em relação à obra
nascente.

Bohèmes [Boêmios] nasce nos ateliês do Bateau-Lavoir


e cresce sobre as calçadas da Ruche e de Montparnasse.
Ele cruza um romance, Nu couché [Nu deitado]. Preenche
seus espaços, suas reentrâncias e seus mistérios não
revelados.
Escrevi os dois livros ao mesmo tempo, durante vários
anos, descansando de um no outro, incapaz de dividi-los,
de separá-los. São dois irmãos siameses da mesma
aventura literária: um é romance, o outro é crônica. Não
teria podido escrever Nu couché sem escrever Boêmios,
e Boêmios não existiria sem Nu couché. A história desses
homens que fizeram brotar a arte moderna na terra das
suas diferen­ças é tão rica que apenas um livro não me
pareceu suficiente para esgotar as peças do
caleidoscópio que espio há tantos anos. São com‐­
panheiros extraordinários, mas persistentes.
Frequentando-os, esque­ci o motivo que havia me
conduzido até eles.
Comecei escrevendo Nu couché. Na sua primeira
versão, o livro me fugia. Escorregava sob seu próprio
peso. O real afogava a ficção. Os personagens nascidos
do meu imaginário depunham suas armas diante dos
heróis do Bateau-Lavoir e do cruzamento Vavin. Aqueles
valiam talvez um romance, mas estes também o
mereciam.
Recomecei. Retirei de Nu couché as escadas que
permitiram tomar de assalto minha fortaleza. Coloquei-as
em outro lugar. E es­crevi os dois livros paralelamente.
Nu couché visita os ateliês, os cafés e os bordéis da
época através de invenções que não pertencem apenas
às testemunhas do momento. Ele é como uma criação
fixada numa moldura.
Boêmios explora o quadro nas suas luzes e riquezas.
Ele con­ta os artistas de Montmartre e de Montparnasse
pela voz do contador.
Não sou historiador da arte. O escritor tem sua própria
linguagem. A minha é esta. Uma maneira de escrever um
outro romance: o das pessoas, dos lugares, das obras
que o século, virando a página, levaria para uma ilha
deserta se quisesse ter o prazer de encontrar a si
mesmo, à sombra da sua memória.
...Dar um jeito, pelo menos durante algum tempo, de melhorar a
aparência: roupa limpa, sapatos engraxados, cabelos penteados,
cara mais simpática...
Verlaine para Rimbaud

D ois homens estão subindo a rua Didot, em Paris, no


XVI arrondissement. Eles têm apenas vinte anos. São
colegas de turma. Não tro­cam nenhuma palavra. Andam
rapidamente pela calçada.
À esquerda, erguem-se os altos muros do hospital
Broussais. Eles passam pela entrada, seguem pelas
aleias que os conduzem a um prédio, depois a outro, até
uma grande sala onde alguém lhes pede que esperem. O
homem que eles procuram, um antigo preso reincidente,
não está ali.
Eles pedem informações. Esperam outra vez.
Finalmente, uma enfermeira os conduz até uma sala não
muito ampla onde se amontoam seis camas de ferro
dispostas de um lado e do outro de uma janela que se
abre para o jardim.
Aquele que eles vão visitar ocupa o leito do meio, à
direita da janela. Sua identidade está escrita numa
tabuleta, acima do tra­vesseiro. Tem cabelos grisalhos,
olhos de fauno, testa protuberante, barba malfeita. Usa
um gorro e um avental grosseiro em que está escrito o
nome do hospital.
Os dois visitantes se apresentam. O homem deitado
ergue­-se um pouco, sacode os jornais e os livros
espalhados pela cama. Em seguida, levanta-se. Enfia
umas calças surradas, um colete cheio de manchas
antigas e, finalmente, um roupão do hospital que amarra
na cintura.
Percorre o corredor seguido pelos visitantes.
Andam rapidamente até o pátio. Ali, conversam
durante mais de uma hora, enquanto passam por velhos
doentes que olham com desconfiança para aquele
estranho trio composto por dois es­tudantes bem
arrumados e um interno com jeito de mendigo.
Eles se separam.

Um ano mais tarde, o homem deixa o hospital


Broussais. Anda com dificuldade, apoiado numa bengala.
Numa rua de Montmartre, passa por um dos seus jovens
visitantes e não o reconhece. Este para e se apresenta.
Trocam algumas palavras.
“Me pague um trago”, pede o antigo preso.
Abre a carteira puída e diz que aquele é todo o
dinheiro que tem. Algumas moedas... Diz também que
um garçom acaba de pô-lo para fora de um bar, onde se
sentara, por achá-lo malvestido.
Entram num café e pedem alguma coisa.
“Onde você está morando?”, pergunta o estudante.
O outro ergue tristemente os ombros.
“Eu não moro. A noite me hospeda.”1

Assim falava o poeta. Não no final deste século, mas


no do ante­rior.1 O sem-teto é Paul Verlaine. Aqueles que
o escutam são Pierre Louÿs e André Gide. Hoje, Verlaine
dormiria no metrô.
A miséria não poupa ninguém.

1 Séculos XIX e XX. (N.T.)


I

Os Anartistas da
Butte Montmartre
O maquis2 de Montmartre

Bem no topo da Butte3 de Montmartre ergue-se a basílica de


Notre-Dame de la Galette. Essa enorme construção, uma das
vergonhas da nossa época, domina Paris e caçoa dela – prova
material de que os padrecos são sempre os todo-poderosos.
Le Père Peinard4, 1897

Q uando o século começa, Montmartre e Montparnasse


se olham: duas colinas de onde irão nascer as
belezas do mundo de ontem e também de hoje. Duas
margens do Rio Haussmann5, que cons­truiu prédios e
avenidas para o bem-estar dos burgueses, empur­rando
as mazelas populares para a periferia de Paris. Velho
método para valorizar o centro.
À direita, o Bateau-Lavoir.6 À esquerda, a fumaça do
La Closerie des Lilas.7 Entre os dois, corre o Sena. E toda
a história da arte moderna.
Montmartre ergue seu Sacré-Coeur. Bizâncio sobre o
Sena. Uma massa branca que sobe, sobe, sobe,
ultrapassando os moinhos de vento, os vinhedos e os
pomares.
O senhor Thiers8 fez soar as três pancadas. Ao
provocar Montmartre, desencadeou a Comuna. Os
parisienses tinham con­servado os canhões da cidade que
estavam lá.9 E certamente não foi por acaso que o
Sacré-Coeur foi construído exatamente no lu­gar onde a
Comuna começou: a água benta expiará o pecado revo‐­
lucionário.
A basílica coroa hotéis obscuros, cabarés cheios de
risos, frágeis casebres de madeira ou massa de papelão
e piche que sobem tomando a colina, entrelaçados a
lilases e pilriteiros. No centro desse maquis escuso,
Isadora Duncan e seus jovens alunos dançam como
gregos, de túnica e pés descalços, saltitantes.
Montmartre é um vilarejo. Nele se canta e se dança,
come-se e dorme-se, sem gas­tar muito dinheiro. As
mansões da avenida Junot ainda não come­çaram a
aparecer. As casas de prostituição funcionam
abertamente na rua Amboise. Todos ainda sonham com
as anáguas da Goulue, os quadris de Raio Dourado, os
passos de Valentin, o Desossado, ajudante de tabelião
durante o dia, dançarino à noite, único homem do
Quadrille Réaliste, cujos volteios inflamavam as
multidões do eixo Elysée-Montmartre, e que mais tarde
se tornaria vítima das asas do Moulin-Rouge.
Bruant insulta os burgueses. Satie toca suas
Gymnopédies no Chat Noir, bulevar Rochechouart, onde
Alphonse Allais faz suas primeiras aparições. Regência:
Rodolphe Salis. Quando, quinze anos antes da virada do
século, a casa cede sua vez ao Mirliton, o jornal Le Chat
Noir continua a atacar em todas as direções. Allais chega
a molhar a pena no tinteiro de alguém mais famoso:
assina seus artigos sob o pseudônimo de Francisque
Sarcey, que não é outro senão um crítico teatral em
carne e osso, e muito atuante no jornal Le Temps. Só
mais uma brincadeira entre tantas... Quanto a Jane Avril,
amante do poeta, posa para Toulouse-Lautrec. Este pinta,
mas não é o primeiro. Fantasmas famosos visitam o
bairro: Géricault, Cézanne, Manet, Van Gogh, Moreau,
Renoir, Degas... As sombras que começam a se distinguir
ainda não têm nome. São ape­nas silhuetas. Elas
prendem a respiração, aprendem nos museus, instalam-
se onde há lugar e esperam pela sua hora. Primeiro
Mont­martre. Depois Montparnasse. Em seguida, se as
musas inspirarem, o mundo todo...
Seria para se proteger, para cultivar suas diferenças,
que Montmartre se declarou Comuna livre? Pode-se ver
nisso uma brin­cadeira, e não deixa de ser. Mas não
apenas. Há também esse desejo de singularidade, de
liberdade, que, no limiar do século, levou alguns
ingênuos do lugar a decidirem que a praça do Tertre seria
a capital de um território autônomo.
Houve votação. A proposta foi aceita por maioria abso‐­
luta. Depois, elegeu-se um prefeito. Jules Depaquit, que
se dizia desenhista, foi então escolhido como primeiro
administrador da Comuna livre de Montmartre. Ele tinha
se tornado uma persona­lidade, alguns anos antes,
quando passou pelas celas da chefa­tura de polícia: dizia-
se que tinha sido ele o autor do atentado contra o
restaurante Véry, no bulevar Magenta.
Livre dessa acusação (os responsáveis eram, na
verdade, anarquistas que queriam vingar Ravachol,
detido à mesa de uma cervejaria), ganhou uma
notoriedade que cresceu com a eleição, a ponto de se
tornar figura essencial da sua nova pátria: cantado por
Francis Carco, elogiado por Roland Dorgèles, admirado
por Nino Frank e por Tristan Tzara, que verá nele um dos
precursores do movimento dadá. Iria também seduzir
Picasso, que virá com fre­quência ouvi-lo declamar
poemas no Lapin Agile.
Jules Depaquit deixou uma obra que Satie musicou
para a Comédie Parisienne, transcrita por Darius Milhaud
e interpretada pelos Balés Russos, num cenário de André
Derain, em 1926: Jack in the box. Essa pantomima
mostrava um homem com um enorme reló­gio, que
atravessava e tornava a atravessar o palco, em toda a
sua extensão, sem que ninguém soubesse qual era o seu
papel. Isso era somente revelado no final do último ato: o
homem era um relojoeiro.
Depaquit ganhava a vida vendendo desenhos
humorísticos aos jornais especializados. E a perdia nos
bares, onde entrava ereto e de onde saía curvado.
Ele organizava escrupulosamente sua agenda: uma
semana de abstinência, três semanas de excessos. Não
se sabe ao certo em que momento do mês lhe veio a
ideia da palavra de ordem alta­mente política, que iria
mobilizar todas as suas energias oficiais: obter a
independência de seu povo e a separação de Montmartre
do Estado francês.
Os méritos desse novo estatuto foram louvados por ele
em mil Comunas fora de Paris, a maior parte delas
situadas no Seine­-et-Oise, onde era convidado como o
embaixador todo-poderoso de uma nação em marcha. No
programa: vinhos e fanfarras.
No interior de suas próprias fronteiras, Jules Depaquit
ha­via desenvolvido um método infalível para beber de
graça. Quan­do não tinha mais nenhum tostão, entrava
num café, triste e aba­tido, casacão nos ombros, mala na
mão. Alguém lhe perguntava:
“Onde vai, senhor Depaquit?”
E ele respondia, uma lágrima entre os cílios:
“Volto para minha terra.”
“Onde fica sua terra?”
“Sedan.”
“Sedan, mas tão longe?”
“Tão longe. Dá para compreender minha tristeza...”
O desespero tomava conta de todos. Abriam uma
garrafa para se consolar, esvaziavam-na para se
sentirem melhor. Quando já haviam esquecido, Jules
Depaquit subia nas mesas e gritava:
“A Prússia entrou em Sedan, mas Montmartre
resistirá!”
Os copos eram erguidos, num brinde à valentia das
tropas do Tertre.
Geralmente, se rendiam ao amanhecer, depois de
brava­mente encharcar seus rastros.10 Depaquit, porém,
aclamado pelos seus, não podia capitular. Ele não era
Napoleão III.
Exceto, talvez, no dia em que Montmartre pegou as
armas e vestiu o uniforme dos soldados de 1870 para
defender Francis­que Poulbot, o pintor dos moleques da
Butte.
Poulbot adorava festas e desfiles. Todos os anos, para
con­solar a companheira, com quem ainda não assinara
os papéis11, ele organizava um falso casamento,
comemorado com a vizinhança. Pa­ra essa ocasião, todos
se fantasiavam. Depois, durante toda a noite, dançavam,
bebiam, aplaudiam a noiva...
Francisque Poulbot tinha uma pendenga com o
proprietá­rio, que queria expulsá-lo. O pintor chamou os
amigos para aju­dá-lo a resolver a questão. Sugeriu que
vestissem o uniforme das tropas que defenderam Paris
sitiada, antes da Revolta da Comuna, que fizessem
barricadas na sua casa, prontos a dar a vida para se
defenderem do ataque do proprietário.
Este cedeu antes da batalha final. Mas Poulbot
manteve a convocação fraterna. No dia marcado, as
ruelas de Montmartre fica­ram apinhadas de cavaleiros,
zuavos, lanceiros, artilheiros e federa­dos, todos munidos
de fuzis e vestidos garbosamente. Segundo Roland
Dorgèles, tarde da noite, às tropas de Montmartre vieram
se juntar soldados da guarda nacional, vindos
diretamente de Mont­parnasse, vestidos da mesma forma
e carregando baionetas afiadas, que confundiram os
verdadeiros policiais que estavam no verdadei­ro caminho
dessa falsa tropa, que se deslocava a passo ligeiro.
As patrulhas se espalharam pelos bulevares,
apontando as armas para os passantes que saíam dos
cinemas. Brincaram de guer­ra até o amanhecer. O
armistício foi assinado depois que as tropas do general
Poulbot, de sabre em punho e corneta na boca, ataca­ram
o Moulin de la Galette.
As festas e as provocações dessa turma animada
atraíam curiosos e turistas, um mundo de gente vinda
dos grandes bulevares, de redingote e cartolas de seda.
Por sorte, as diligências não subiam a colina: paravam na
praça Blanche, e a partir daí era preciso ir subindo a pé
pelas ruelas estreitas, até atingir o centro dos prazeres.
Montmartre permanecia à parte, protegendo suas
diferenças. Tinha seus próprios inquilinos, que eram
como membros de uma mesma família. Esta não havia
ainda revelado sua ala mais jovem, mais aten­ta ao
cruzamento das artes, da qual os primeiros irão se
chamar Pa­blo Picasso, André Salmon, Max Jacob e
Guillaume Apollinaire.
Por enquanto, Depaquit e os seus comandam a festa.
Empo­leirado nas mesas dos cafés, Carco canta La
Marseillaise, e Mac Or­lan acorda os amigos tocando
clarineta embaixo das suas janelas. Todos são
anarquistas de coração. Comem, mas comem mal,
bebem além da conta, dormem aqui e ali, onde acham e
quando podem, mas não ainda no metrô, que já possui
uma linha norte-sul unindo Montmartre a Montparnasse.
Seus documentos nem sempre estão em ordem, o
domicílio é mais ou menos fixo, às vezes têm que men‐­
digar. Alguns rabiscam umas telas que mal conseguem
vender, ou­tros tocam música, muitos se tornaram peritos
em afanar algo no prato do vizinho. Mas o vizinho é
generoso: vende fiado e fecha os olhos. Sobre o fogão
dos restaurantes, há sempre uma panela da qual os
proprietários tiram umas colheradas para os clientes que
estão na pior. É a sopa popular. Os pintores e os poetas
brindam junto aos libertários que, no início do século XX,
formigam em Montmartre.
O acaso não basta, evidentemente, para explicar que
todos eles estivessem ali, ao mesmo tempo, num bairro
nos limites da ci­dade, às margens dos grandes
bulevares. As ladeiras sinuosas, on­de outrora brigava-se
corpo a corpo, abrigam os homens, os jornais e a
memória. Libertad12 continua dando suas palestras
populares na rua Muller. O jornal L’Anarchie, que não tem
nem diretor nem reda­tor chefe, e cujo código moral e
tipográfico proíbe as letras maiús­culas, está acampado
na rua do Chevalier-de-la-Barre. Le Libertaire fica na rua
Orcel. Os redatores, seus amigos e leitores se encontram
na sala dos fundos do Zut, um café da rua Norvins que
logo será fe­chado pela polícia para proteger os ouvidos
do Estado das palavras subversivas trocadas no balcão.
Aliás, Steinlein, pintor suíço (autor dos cartazes do Chat
Noir), pregará a revolução futura. E o senhor Dufy será
fichado pela polícia por ter dado asilo a um confrade,
cuja paleta estava toda manchada do vermelho e negro
incendiários.
Nos anos que precedem a Primeira Guerra, Juan Gris
será perseguido e depois provisoriamente preso por ter
sido confundido com Garnier, tão bem situado na turma
de Bonnot, quanto na mira da polícia. Pierre Mac Orlan,
frequentador e cronista da Butte, atri­bui a um eletricista
de seu Quai des Brumes uma tarefa da qual se
encarregavam muitas vezes os libertários do lugar: a
confecção de documentos falsos. Ele presta seus serviços
ao desertor da Colônia Penal que busca uma nova
identidade. O pedido é sempre acompa­nhado por uma
frase clássica da época e do lugar: “Os tiras estão atrás
de mim por causa de uma história de jornal anarquista”.1
Obras de Signac, Vallotton e Bonnard são sorteadas
em be­nefício do Révolté, jornal libertário fundado por
Élisée Reclus e Jean Grave. Van Dongen, amigo do
escritor anarquista Félix Féné­lon, também participa. Em
1897, ele ilustra a tradução holandesa de uma obra de
Kropotkine, L’Anarchie, sa philosophie, son idéal.
Vlaminck proclama suas convicções demolidoras em alto
e duvi­doso tom (com variantes, infelizmente, durante a
Ocupação)...
Os anarquistas e os artistas não lutam juntos, embora
par­tilhem os mesmos ideais. Pintores e poetas não
brincam com os in­fernais artefatos que os outros
detonam. Mas quase sempre os apoiam. E são eles que
partem na linha de frente quando se trata de gozações,
farsas, armadilhas, provocações e todos os tipos de tu‐­
multo. Eles também viram as costas ao conforto doce,
macio e bor­dado dos lençóis burgueses. Em Montmartre,
como também mais tarde em Montparnasse, os artistas
permanecem rigorosamente opostos à geometria
perfeita das figuras dispostas ordenadamente. São
rebeldes.

2 Vegetação espessa característica de certas regiões mediterrâneas. O


termo foi usado para Montmartre porque, na época, um imenso matagal
com construções desorde­nadas cobria grande parte do bairro. (N.T.)
3 Butte Montmartre: a colina de Montmartre. (N.T.)
4 Semanário anarquista (1884-1902). (N.T.)
5 O barão de Haussmann foi prefeito de Paris de 1853 a 1870 e empreendeu
grandes obras que transformaram a cidade. (N.T.)
6 Antiga fábrica de pianos desativada – em Montmartre – que serviu de
moradia para artistas da época. (N.T.)
7 Café localizado em Montparnasse. (N.T.)
8 Thiers foi presidente da França em 1871. Descontentes com suas ações,
alguns socialistas e operários organizaram uma insurreição: a Comuna.
(N.T.)
9 Em 1870, Paris havia sido sitiada pelo exército prussiano. (N.T.)
10 Alusão à letra da Marseillaise. (N.T.)
11 Na França, os casamentos são realizados na prefeitura ou nas
subprefeituras, pelo próprio prefeito ou por seus auxiliares. (N.T.)
12 Anarquista da época. (N.T.)
Litrillo

Beber muito: aquecer, biritar, trocar as pernas, sair sem pagar.


Aristide Bruant

A dezesseis mil léguas de Paris, em plena prosa


transiberiana, Cendrars se desesperava: “Me diz, Blaise,
estamos mesmo longe de Montmartre?”.
Quem mais contribuiu para o esplendor da Butte e
também, infelizmente, para a sua decadência foi Utrillo.
Ele não queria isso, da mesma maneira que não queria
pintar. Aconteceu. Quando as suas Places du Tertre e
seus Moulin de la Galette foram parar nas galerias da rua
Drouot, todas as aves de rapina da Butte e de Na­varre
rabiscavam cópias e agiam à moda de. No início era
preciso comer. Ao final, Montmartre é que foi devorada...
Utrillo era um homenzinho curioso.
Nasceu no bairro, em 1883, na rua Poteau, de uma
união livre, ou pelo menos liberada, mais próxima das
exortações do Père Peinard do que do modelo conjugal
cantado em versos por Géraldy.
Sua mãe era Suzanne Valadon. Baixinha, ela tinha o
rosto redondo, um olhar azul extraordinariamente
luminoso que incen­diava outros olhares. Uma das raras
mulheres que não era dançarina, e que ficou na memória
de Montmartre. Tinha certa indepen­dência de modos e
de espírito que destoava do comportamento da época.
Vinha do interior. Era filha de uma empregada
doméstica e de um pai que fugira assim que ela nasceu.
Foi muito cedo para Pa­ris, com a mentira na ponta da
língua: dizia ter menos idade, per­tencer a uma família
rica e enganava sobre seu nome: Suzanne lhe foi dado
mais tarde; fora registrada Marie-Clémentine, e para os
artistas que a empregavam como modelo ela era Maria.
Fez mil coisas antes de se tornar acrobata do circo
Fernando. Depois de uma queda teve de mudar de
atividade. Tornou-se mode­lo. Posou, livremente, e nas
horas de sua escolha, para Puvis de Cha­vannes,
Toulouse-Lautrec e dois notórios opositores de Dreyfus13,
signatários em outubro de 1898 do manifesto de Barrès
pela Liga da Pátria Francesa: Renoir e Degas. Este último
encorajou-a a pintar.
Ela foi amante de quase todos os seus mentores. E
também de Erik Satie. O músico lhe enviou trezentas
cartas em seis meses. Ele a chamava de “mon petit
Biqui”, o que não comovia a bela Su­zanne. O idílio durou
pouco e foi bastante conturbado: a moça ti­nha muitos
pretendentes.
Teve então um filho, Maurice, de cujo pai não se sabe
muita coisa, para não dizer nada: contrariamente a
certas teses e hipóteses, não teria sido o pintor e crítico
de arte catalão Miguel Utrillo, grande amigo de Picasso
durante os primeiros anos em Montmartre; a maioria dos
amigos de Utrillo, talvez com razão, via sobretudo em
Miguel um amante que fora generoso no reconhecimento
da pater­nidade. Não há nada também que ateste a
afirmação de Francis Carco, segundo a qual o pai do
artista era um certo Boissy, pintor pobre e alcoólatra.
Durante alguns anos, Suzanne Valadon levou uma vida
nada comportada de mãe solteira. Depois, casou-se uma
primeira vez com um homem influente e rico, amigo de
Satie, que mandou Maurice para o Sainte-Anne14, e que
ela substituiu por um dos melhores ami­gos do filho. O
novo eleito chamava-se André Utter. Trabalhava es‐­
poradicamente como eletricista e, de preferência, como
pintor. Quando o tirou das obras dele para se consagrar
às dela, Suzanne Valadon tinha cerca de 45 anos. Utter,
vinte a menos do que ela, e três a menos do que
Maurice. O padrasto era o mais jovem do trio – ao qual se
deve acrescentar a avó materna, que vivia com o resto
da tribo.
A família era esquisita, mas não deixava de ser uma
família.
Mamãe pintava sob o olhar dos dois rapazes, seu filho
e seu mari­do. Ambos tinham uma grande amizade um
pelo outro, e também pintavam. Sob esse ponto de vista,
a união era muito harmoniosa, apesar dos disse me
disse.
O pecado estava em outro lugar, e havia muito tempo.
Por causa de Maurice. Desde cedo, ele se tornara escravo
da bebida. Não como seus amigos da Butte, que viviam
com o sol e a lua, tra­balhando de dia e brindando à noite.
Utrillo bebia o tempo todo. Um drama para sua mãe. Um
calvário para ele mesmo. Um horror para os vizinhos, que
tinham que suportar os gritos do pintor quando Utter e
Valadon o trancavam em casa para desintoxicá-lo um
pouco. Ele insultava a mãe e o padrasto. Rasgava suas
telas. Jogava mil coisas pela janela. Enquanto Suzanne
Valadon, desespe­rada, sucumbia às crises de nervos
ruidosas e agitadas, o moleque pegava a flauta e tocava
uma sonata para solo, ele que não sabia ler uma nota
musical sequer, e mal sabia tapar os orifícios do instru‐­
mento com os dedos.
À sua volta, todos só sonhavam com uma coisa: que
ele sos­segasse. Ou seja, que ele pintasse.
Foi assim que ele começou, seguindo os conselhos de
um psiquiatra que Suzanne consultara no Sainte-Anne. O
médico ti­nha dito: “Achem uma ocupação para ele que o
afaste do vinho”.
Ela fez com ele o que Degas fizera com ela alguns
anos an­tes: encorajou-o a pintar. Trancava-o com pincéis
e tintas, trazia­-lhe uma pilha de cartões-postais e dizia:
“Só abro quando você tiver terminado”.
Quando Utrillo pintava, nada tinha importância para
ele a não ser a obra que estava executando. Não
pensava em comer nem em beber. Mas, assim que
terminava, ia procurar um dos portos em que costumava
atracar, onde sempre havia uma garrafa ancorada.
Detestava pintar ao ar livre. O olhar do outro era para
ele uma pesada indiscrição. Para não ser espiado,
apoiava-se contra um muro. E se alguém insistia,
voltava-se para o importuno, que aca­bava fugindo, sob
insultos encolerizados. Depois de alguns anos brigando
com a curiosidade dos seus contemporâneos, ávidos do
espetáculo da pintura, Utrillo passou a representar o
pequeno uni­verso de Montmartre apenas a partir de
cartões-postais.
Francis Carco, que o viu trabalhar, testemunhou a
seriedade com que ele escolhia as fotos que havia
reunido, o cuidado com que ampliava o tema,
transferindo as medidas com a ajuda de um com­passo e
de uma régua para o cartão que serviria de suporte.
Dorgelès, que também foi seu amigo, fala da exigência
quase doentia do pintor para que tudo fosse perfeita e
exatamente representado:
A reprodução nunca lhe parece bastante fiel. Ele conta as fileiras de
pedras, recobre cuidadosamente os telhados, limpa as fachadas. Ao
buscar uma cor, esmaga os tubos e fica furioso quando não conse­gue.
“As fachadas não são branco-prata, hein? Nem branco-acin­zentado... são
de gesso...” Ele quer obter o mesmo branco pastoso. Ocorre-lhe então a
ideia barroca de pintar as casas com uma mis­tura de cola e gesso que
aplica com a espátula [...] De repente, toma como tema uma igreja [...]
“Gosto disso, de fazer igrejas”, ele nos explicava.1

Sexta-feira era um dia calmo. Graças às igrejas,


justamente. Utrillo as adorava. Principalmente a Catedral
de Reims, por causa do culto particular devotado a Joana
d’Arc. Sexta-feira era o dia consa­grado a Pucelle.15 As
gavetas e as prateleiras do pintor eram abarro­tadas de
medalhas, imagens e diversos objetos de culto à santa.
Ele orava para ela.
Sábado era dia de usufruir as delícias do inferno. Um
médi­co, que o hospedara durante algumas semanas,
contou a Francis Carco que ele bebia de oito a dez litros
de vinho por dia. E que, uma noite, já tendo ingerido tudo
o que havia entre o porão e o só­tão, entrou no quarto do
casal, descobriu os frascos da água-de-­colônia e bebeu
os cinco que lá se encontravam.
Na Butte, os moleques de Montmartre o chamavam de
Li­trillo. Eles o seguiam passo a passo quando o pintor,
depois de afo­gar suas mágoas, percorria as ruelas com
os cotovelos colados no corpo, fazendo tchic-tchic-tchic-
tchic e soltando baforadas de fumaça imaginária para
imitar, o mais perfeitamente possível, uma locomo­tiva
demoníaca que, segundo ele, acabava de virar, deixando
apenas um sobrevivente, ele mesmo, Litrillo, tchic-tchic-
tchic-tchic – de­pois do que, voltava para casa para
brincar com um trenzinho de brinquedo, de verdade,
cujos trilhos ele colocava no chão.
O poeta André Salmon conta que, certo dia, depois de
es­capar à dupla vigilância da mãe e do padrasto, Utrillo
foi para um hotel em Montmartre, com os bolsos cheios
de fogos de artifício. Ele os acendeu sozinho no quarto,
pondo fogo no prédio, que logo foi cercado pelos
bombeiros e pela polícia. Do lado de fora, alguns
gritavam: “Fogo!”. Ao que outros respondiam:
“Louco!”.16
Mas o pobre Maurice não era louco. Foi o que ele gritou
publicamente, um pouco mais tarde, depois que Francis
Carco pu­blicou um livro consagrado a ele.2 Discordando
completamente do retrato traçado pelo escritor, Utrillo se
trancou no ateliê da rua Cortot, e jogou pela janela
dezenas de desenhos, no verso dos quais escrevera: “O
senhor Carco diz que sou louco. Não, eu não sou louco.
Sou alcoólatra”.
Quando, a pedido de Suzanne Valadon, os proprietários
dos bistrôs de Montmartre lhe fechavam as portas, ele ia
se embriagar nos prostíbulos da Chapelle ou da Goutte
d’Or. Voltava com o rosto intumescido. No dia seguinte, a
mãe recebia um cartão colocado no correio na véspera,
em que o filho, que a adorava e admirava, tinha apenas
escrito: “Não estou bêbado!”.
Quando não tinha nem mais um tostão, trocava uma
ilustra­ção por um copo de vinho, às vezes de absinto. Ou,
ainda, sentava­-se na calçada e distribuía suas obras aos
que passavam. Por alguns francos, aceitava escrever
uma dedicatória e fazer ele mesmo a en­trega. Por um
pouco menos, vendia suas vistas de Montmartre nas lojas
de Pigalle, no açougue do aposentado Jacobi, ou ao
antigo lu­tador Soulié, que negociava arte no mercado
negro.
Deve sua glória de artista a um antigo palhaço e
antigo con­feiteiro que se instalara numa antiga farmácia
da rua Lafitte. Clovis Sagot tinha conseguido contatos
com os artistas, oferecendo a eles balas e xaropes que
descobrira no laboratório que ficava no porão. Ele se
dizia marchand; segundo muitos (principalmente Picasso,
que também foi seu cliente), ele não passava de um
vendedor de velharias. No entanto, entendia
inegavelmente de arte. Em todo o caso, o bastante para
compreender, rapidamente, que podia lucrar com a
pintura: às vésperas da Guerra, a galeria Clovis Sagot
fazia sua publicidade em termos desprovidos de qualquer
ambiguidade:

2.500% de redução!
ESPECULADORES!
Comprem pinturas!
O que custa
200 francos hoje valerá
10 mil francos
em dez anos.
Os jovens poderão ser
encontrados na galeria Clovis Sagot,
rua Laffitte, 46

Clovis Sagot começou de baixo. Ele propôs a Utrillo


com­prar-lhe os quadros pequenos por cinco francos, os
médios por dez francos e os grandes por vinte francos.
Maurice aproveitou essa inesperada ocasião, que lhe
permitia beber sem se preocupar com o pagamento.
Multiplicou as vistas de Montmartre e os copos no balcão.
A seguir, incentivado por Suzanne Valadon, trocou Sagot
por um outro marchand, Libaude, ex-leiloeiro de cavalos,
dublê de animador de variedades, que aceitou cuidar do
filho desde que a mãe fosse fiadora. Assinado o contrato,
ofereceu ao artista um tra­tamento de desintoxicação.
Mais uma vez, totalmente inútil.
Alguns anos mais tarde, quando Montmartre já havia
se juntado a Montparnasse, a modelo preferida dos
pintores da época veio posar para Utrillo: Alice Prin.
Foujita, Kisling, Man Ray e muitos outros já haviam
representado essa jovem mulher, jovial e debo­chada,
cuja conduta, modos e silhueta eram conhecidos no
mundo inteiro. Utrillo, por sua vez, queria fazer seu
retrato.
Ele a colocou diante do cavalete, fez com que ficasse
na po­se e pintou durante três horas. Ao final da sessão,
Kiki de Mont­parnasse pediu para ver o retrato.
“Claro!”, respondeu Utrillo.
Afastou-se da tela. A jovem se aproximou. Olhou com
aten­ção, petrificada, o desenho de Utrillo. De repente,
caiu na garga­lhada. Aquela risada que todos os bistrôs da
margem esquerda conheciam. Inclinou-se para se
certificar de que não estava enga­nada. Não estava. Ela
tinha visto bem. Não era seu rosto que estava na tela.
Nem seu corpo. Nada que pertencesse a ela. Durante
três horas, Utrillo havia pintado uma casinha no campo.

13 Oficial francês de origem judaica, acusado injustamente de traição. O


caso teve grande repercussão na época. A Liga Francesa era favorável à
condenação de Dreyfus. (N.T.)
14 Hospital psiquiátrico. (N.T.)
15 Joana d’Arc é conhecida como a Pucelle d’Orléans (a Virgem de Orléans).
(N.T.)
16 Em francês, os sons são semelhantes: feu (fogo) e fou (louco). (N.T.)
A vida em azul

Existem atualmente, como aliás em todos os países, tantos


estrangeiros na França que seria interessante estudar a
sensibilidade daqueles que, dentre eles, embora tenham nascido
em outro lugar, vieram para cá ainda jovens o bastante para
serem moldados pela alta civilização francesa. Eles introduzem
no país que adota­ram as impressões de sua infância, que de
todas são as mais vivas, e enriquecem o patrimônio espiritual da
sua nova nação, assim como o chocolate e o café, por exemplo,
ampliaram o domínio do paladar.
Guillaume Apollinaire

O Montmartre do Mirliton, do Moulin de la Galette e do


Quadrille Réaliste é o Montmartre nacional. Esses nomes,
que falam por si só, evocam imediatamente a graça e a
magia de um lugar: a praça do Tertre; de uma época: o
cruzamento de dois séculos; de diver­sos personagens:
Bruant, Toulouse-Lautrec, la Goulue, Valadon, Utrillo, Mac
Orlan, Dorgèles...
Ao lado deles, presentes já havia alguns anos, existiam
ainda os estrangeiros. Artistas, e muitos outros.
A França do Segundo Império havia encorajado a
imigra­ção, a fim de poder realizar suas novas obras. A
partir de então, a indústria das minas e dos metais
empregava, através de revoadas de anúncios, os talentos
manuais. Havia ainda os que vinham tra­balhar no campo
– muitos poloneses –, os estudantes – muitos romenos –,
os intelectuais e os artistas que fugiam da perseguição
czarista – muitos judeus. Nesse ponto, a França tinha boa
reputa­ção: em 1791, fora o primeiro país a conceder
cidadania e igualdade de direitos aos judeus. Cultivou
então uma imagem que atravessou todas as fronteiras.
No início deste século17, ela encarnava a nação da
liberdade, da tolerância e dos direitos do homem.
Centenas de pintores e de escritores foram viver nesse
país, pois ali podiam expressar livremente talentos,
sensibilidades, línguas a que não tinham direito em suas
pátrias. A arte moderna, nascida sobre as margens de
Montmartre e de Montparnasse, é fruto dessas múlti­plas
misturas.
Em outros tempos, Bordeaux havia acolhido um ilustre
es­panhol que ali terminou seus dias: Francisco Goya. No
limiar do século, um outro pintor, também espanhol,
desembarca na França: Pablo Diego José Francisco de
Paula Juan Nepomuceno Cipriano de la Santíssima
Trinidad Ruiz y Picasso.
O jovem tem dezenove anos. E a reputação de ser um
artis­ta extraordinário. Aos dez anos, desenhava tão bem
quanto seu professor de desenho. Aos catorze, o pai
colocou pincéis e tintas a seus pés, renunciando a uma
arte na qual o próprio filho já o ultrapassava. Aos
dezesseis anos, foi recebido com brilhantismo na
Academia Real de Madri. Quando chegou a Paris, já não
era apenas uma criança prodígio.
Ainda não conhecia a França e não contava ficar por
muito tempo. Quando pensou em deixar seu país natal,
foi porque este lhe pareceu pobre demais, limitado, e a
família, sufocante. Mas se era preciso atravessar os
Pireneus por um bom tempo, seria em direção à
Inglaterra e seus pré-rafaelitas...
Picasso chegou em Paris para a Exposição Universal de
1900. Uma de suas obras, Les derniers moments
(recoberta em 1903 por La Vie), foi escolhida para
representar seu país. Por ocasião desse evento, ele
encontra seus amigos espanhóis que viviam em
Montmartre. Decide então ficar.
Em um desenho dessa época, Picasso se representou
diante da porta da Exposição, em companhia dos
amigos. Esse desenho diz muito sobre a posição que ele
já se atribuía no grupo: é o pri­meiro. Mais baixo do que
os outros, é mais fácil reconhecer sua silhueta do que a
identidade dos perfis que o acompanham, e sob ela
escreveu com letras grandes: “EU”.
Os cinco espanhóis estão de braços dados: Pichot,
Ramon Casas, Miguel Utrillo, Casagemas. E uma mulher,
Louise Lenoir, mo­delo conhecida como Odette, que foi
amante de Picasso.
Esses espanhóis já conhecem a França,
particularmente Mont­martre. Em Barcelona, em
homenagem ao Chat Noir parisiense, eles fundaram um
café-cabaré que chamaram de Els Quatre Gats (Os
Quatro Gatos). Foi ali que, graças aos cartazes, Picasso
descobriu a cultura europeia, o impressionismo, Cézanne,
Gauguin, Rodin...
Como seus amigos estavam em Montmartre, ele vem
para Montmartre. Um pintor catalão, Isidre Nonell, cede a
ele seu ateliê na rua Gabrielle. Depois, vai morar num
quarto no bulevar de Clichy cedido por um outro
espanhol, Manyac. O personagem bai­xinho, com os
cabelos caindo sobre os olhos negros e vivazes e o cheiro
de tabaco saindo de um pequeno cachimbo, logo se
tornará familiar para os habitantes de Montmartre.
É visto quase sempre na companhia de seu mais velho
ami­go, Manuel Pallarès, e de um escritor catalão, Jaime
Sabartés, que lhe será fiel até a morte. Na casa de
Nonell, na rua Gabrielle, Picasso morou com Casagemas,
seu amigo desde a época do Quatro Gatos.
Casagemas é, provavelmente, o artista mais
“politizado” da colônia espanhola. Está ligado ao
movimento libertário. Sua assi­natura, ao lado da de
Picasso, pode ser encontrada embaixo de uma petição
pedindo a libertação de anarquistas espanhóis, presos
em Madri, em 1900. Por causa talvez dessas companhias,
a polícia francesa suspeitará, durante algum tempo, que
Picasso pertence ao movimento anarquista – o que
acabará por se revelar falso, apesar de sua real simpatia
pela causa e por alguns de seus defen­sores, como
Francisco Ferrer, cuja execução, em 1909, o deixará
revoltado.
Além de politizado, Casagemas é também sensível,
frágil e apaixonado. Enamorou-se de Germaine, jovem
que posa como mo­delo em Montmartre, e também na
cama de Picasso. Sua chama, porém, se consome
sozinha. Fala em suicídio. Para lhe arejar as ideias,
Picasso o leva para a Espanha. Os bordéis não diminuem
sua paixão. Casagemas volta a Paris. Na noite da sua
chegada, con­vida alguns amigos para jantar em um
restaurante do bulevar de Clichy. Germaine faz parte do
grupo. Casagemas anuncia a todos que vai deixar a
França e voltar definitivamente para o seu país. A moça
nem se comove. O pintor renova suas propostas de
casamento. Ela dá de ombros. Ele então pega um
revólver, atira em Germaine, mas não a atinge, aponta
então a arma para a própria cabeça e atira na fronte.
Picasso, muito abalado pelo trágico desaparecimento
do amigo, pinta vários quadros representando-o,
principalmente La mort de Casagemas (1901) e
Casagemas dans son cercueil (1901). Femme au chignon
(1901), de olhar endurecido e boca crispada, evoca
talvez Germaine.
A morte de Casagemas marca uma mudança de fase
na sua obra. Até então ele pintava como Toulouse-
Lautrec. Admirava esse artista, que descobrira no Quatro
Gatos. Escolhia personagens e temas que seu antecessor
não teria renegado e pintava-os com co­res vivas que o
público apreciava. É assim, por exemplo, o Moulin de la
Galette (1900). Desse modo, conseguia vender sua obra.
Pou­co a pouco, porém, ele abandona esse estilo por uma
pintura mais trágica, mais interior, que corresponde à
pobreza na qual vive a comunidade espanhola de
Montmartre. É a fase azul.
Dessa pintura monocromática, em grande parte azul,
já se disse que é inspirada em El Greco. Ela sugere a
melancolia e a afli­ção, a miséria, muitas vezes moral,
com a qual convive o artista desde a sua chegada em
Paris. Muitas vezes ele foi até o presídio feminino de
Saint-Lazare visitar algumas presas. Elas aparecem com
frequência na sua obra, como prova do interesse de
Picasso por uma certa imagem do sofrimento.
O azul convém a essa visão do mundo e às condições
nas quais ele trabalha, trancado à noite no ateliê, sob a
luz de uma lamparina.
São três, então, as perguntas que ele e seus amigos se
fa­zem: como viver, pintar e comer?
O menos pobre de todos é o pintor e ceramista Paco
Durrio. Foi aluno de Gauguin. Continuou seu amigo.
Possui desenhos, aquarelas e uns quinze quadros do
eLivros das Ilhas Marquesas. É atra­vés dele que Picasso
conhece melhor a obra desse pintor.
Paco costuma oferecer sua casa e sua mesa. Quando
nin­guém vem, é ele quem se desloca: várias vezes, deixa
um pedaço de pão ou uma lata de sardinhas na porta de
Picasso. Tem os amigos em grande apreço. No leito de
morte, dirá: “É chato deixar os amigos”.
O primeiro a tirar proveito dessa generosidade não é
Pi­casso, mas um catalão, Manuel Martínez i Hugué, dito
Manolo. Ele tem os olhos e os cabelos negros, é pobre,
esforçado, astuto, se vira como pode. É o único com
quem Picasso ainda fala em catalão. Nos bistrôs, ele o
apresenta como sua irmã. Manolo gostaria de escul­pir,
mas não pode porque não tem argila nem material.
Então pin­ta, heroicamente, pois ninguém compra suas
telas. Come dia sim, dia não, dorme onde o convidam,
rouba o que pode.
Durante um verão, Paco lhe empresta sua casa.
Quando re­torna, algumas semanas depois, o escultor o
recebe com alegria um pouco forçada. Entrega as chaves
e desaparece. O proprietário dá uma olhada. Está tudo
em ordem. Tudo, exceto os Gauguin. Manolo vendeu-os a
Vollard.
Um dia Picasso diz a Manolo: “Você nunca vai ser
executado por nenhum pelotão”.
“Por quê?”, ele pergunta.
“Porque iam rir de você.”
Manolo tornou-se mestre em ganhar a vida através de
pe­quenos expedientes. E aperfeiçoou suas estratégias
nos lugares sa­grados. Quando chegou em Paris, sua
primeira visita foi a uma igre­ja. Viu um homem bem-
vestido, que não sabia onde se sentar. Uma mulher
surgiu de um canto escuro, estendeu-lhe uma cadeira, o
ho­mem deu a ela uma moeda, sentou-se, e ela
desapareceu. Manolo fez isso várias vezes, o que lhe
permitiu ingerir alimentos terrenos mais substanciais do
que uma simples hóstia mergulhada em água benta.
Quando não vai à igreja, põe em prática o sistema da
rifa. Bate nas portas das casas de Montmartre e mostra o
desenho de um busto de mármore que pretende esculpir.
“Um franco o bilhete.”
Recebe a moeda e entrega um cartão numerado.
Agradece com uma reverência, antes de ir embora.
Ninguém jamais ganha: o busto não existe. Quando
alguém pergunta que número ganhou, ele responde:
“O de Salmon!”
Alguns anos mais tarde, quando finalmente consegue
algum dinheiro para comprar o material de que precisa,
engana Kahnweiler, que compra regularmente suas
esculturas. Manolo lhe pede um pouco mais por uma
delas.
“Por quê?”, pergunta o marchand.
“Porque está será melhor do que as outras.”
“É o que você sempre diz.”
“Desta vez, é sério.”
“Veremos isso depois...”
“Então não posso mais trabalhar.”
Kahnweiler não é apenas um comerciante. É também
um es­teta e amigo de seus artistas. Manolo sabe disso e
insiste:
“Ela será maior do que as outras. Vou precisar de mais
material, mas você vai poder vender mais caro.”
“Ela é muito maior?”
“Infinitamente.”
Kahnweiler lhe dá mais algum dinheiro. A visão do
maço de notas inflama de alegria os olhos negros de
Manolo.
Passa-se o verão. No início do outono, Kahnweiler
recebe a escultura do espanhol. É uma mulher de
cócoras. Nem maior nem menor do que as outras obras
do artista. O marchand o interpela.
“Você me prometeu uma escultura de grande porte.”
“E fiz.”
“Não estou vendo...”
“Você não olhou bem...”
Manolo se coloca diante da obra.
“Trata-se de uma mulher...”
“Estou vendo.”
“A mulher está de cócoras.”
“É, dá pra ver.”
“E se ela se levantar?”
“Se levantar?”, repete Kahnweiler, ainda sem
compreender.
“Se ela se levantar, ficará grande. Muito grande!”
Quanto a Picasso, ele se virava melhor do que os
soldados nos bis­trôs. Já tinha encontrado uma resposta
para viver: pintava e ven­dia seus quadros. Igual e
diferente ao mesmo tempo. De todos os artistas que
cresceram sob o frontispício de Montmartre, ele será não
apenas o mais rico, mas também um dos que
conheceram a misé­ria por menos tempo.
Picasso era muito orgulhoso para enviar desenhos
humorís­ticos ao L’Assiette au beurre, ao Cri de Paris ou
ao Charivari, como faziam Marcoussis, Gris, Van Dogen,
Warnod – e muitos outros. Ele desconfiava da “segunda
profissão”: “Quando se tem alguma coisa a dizer, a
expressar, qualquer tipo de submissão é insuportá­vel”.1
Em vez de aceitar as propostas dos jornais, ele esperava
pe­los marchands.
O primeiro deles, seu compatriota Manyac, cedeu-lhe
então um quarto no seu apartamento, no bulevar de
Clichy. Dava-lhe uma mesada de 150 francos em troca da
sua produ­ção. Era pouco, mas o bastante para não
morrer de fome.
Enquanto Picasso pintou no estilo Toulouse-Lautrec,
Manyac o sustentou. Mas quando começou a fase azul, o
marchand se afas­tou: invendável. Picasso teve de tratar
diretamente com os comer­ciantes, que lidavam com arte
como quem lida com frutas e legumes.
A maioria vendia coisas usadas. Colocavam a
mercadoria na calçada, diante da loja. Entre um velho
ferro de passar roupa e um carrinho de bebê sem rodas,
os transeuntes podiam encontrar uma obra de Utrillo, do
Douanier Rousseau ou de Picasso.
Como os outros, o espanhol teve que lidar com
Libaude e, principalmente, com Clovis Sagot, por quem
Utrillo já havia passado.
De início, o contato com o antigo confeiteiro era fácil:
ele era suave e maleável como suas massas. Além disso,
apreciava de verdade a pintura. Pelo menos, as cores. As
coisas se complicavam quando se começava a falar de
dinheiro. E se não começava, Sagot se encarregava de
dirigir a conversa para esse assunto, que era para ele o
mais importante de todos. Assim, cada vez que ia ver Pi‐­
casso, levava um buquê de flores. Oferecia-o
gentilmente, e per­guntava ao pintor:
“Gostou?”
Picasso balançava a cabeça.
“Você poderia pintá-lo, talvez?”
O espanhol resmungava.
“E então?”
“Não sei...”
“Mas é claro que pode!”, exclamava o marchand. “Um
buquê tão bonito!”
Tomava nas mãos o buquê e o exibia diante de Picasso.
“Eu lhe ofereço as flores, você as pinta, e depois... e
depois?”
Picasso não respondia.
“... depois, para me agradecer, você me faz uma
pequena gentileza: você me dá o quadro!”
Sagot abria um sorriso em dólares.
“E, como sou gentil, deixo-lhe as flores!”
Um dia, ele propôs comprar algumas telas de Picasso.
“Quanto?”
“Setecentos francos.”
“Nem pensar.”
O pintor deixou a rua Lafitte e subiu até a Butte.
Naquela mesma noite, não tendo nada para comer,
lamentou sua intransigência. No dia seguinte, voltou à
casa de Sagot.
“Mudou de ideia?”
“Não tenho escolha.”
“Ótimo!”, exclamou o marchand.
Abriu os braços para o grande artista.
“Compro todos. Quinhentos francos...”
“Setecentos!”
“Por que setecentos?”
“É que ontem...”
“Ontem foi ontem!”
Furioso, Picasso saiu da loja.
No dia seguinte, depois de outra noite sem ter o que
comer, ele voltou.
“Hoje”, exclamou Sagot sorridente, “estou de bom
humor”.
“Isso quer dizer o quê?”, arriscou Picasso, desconfiado.
“Quer dizer trezentos francos.”
O pintor desistiu.
Ele também negociava com Soulié, antigo lutador que
já ex­plorara Utrillo. Sua loja ficava em frente do circo
Médrano. Soulié era antes de tudo alcoólatra, depois,
vendedor de coisas usadas, especializado na compra e
revenda de camas e colchões. Tornara-se vendedor de
quadros por conta do escambo: vendia telas aos artistas,
que pagavam em guaches ou em desenhos, quando não
tinham outra moeda para a compra. Essas obras –
Renoir, Lautrec, Dufy... – ­eram, em seguida, expostas
diretamente na calçada.
Soulié tratava os pintores mais ou menos como os
outros clientes, negociando tudo, recusando-se a lhes
fornecer crédito. Um dia, foi ver Picasso para fazer uma
encomenda. Precisava de um buquê de flores para o dia
seguinte: tinha prometido a um cliente. Picasso não tinha
nada pronto.
“Me faça então um!”, sugeriu o marchand. “Para você,
isso não é complicado.”
“Não tenho branco.”
“E para que você quer branco?”
“Você podia me adiantar um dinheiro para comprar...”
“Esqueça o branco! É tão banal!”
Picasso pintou um buquê, que Soulié comprou por
vinte francos. Ainda não estava seco quando o levou. E
tratava-se de um preço excepcional, já que o marchand
fizera uma encomenda. Normalmente, pagava três
francos por um guache. E Picasso não era mais mal pago
do que os outros: foi na loja de Soulié que Pi­casso
comprou, por cinco francos, uma obra do Douanier Rous‐­
seau, Portrait de madame M. O quadro estava jogado na
calçada. Picasso olhava para ele, observado pelo
marchand.
“Leve essa senhora, vai ficar bem na sua casa!”
E como o pintor hesitava:
“Um franco! Você pinta por cima e, como é grande, se
me fizer um belo buquê de flores, compro de novo pelo
mesmo preço!”
Picasso adquiriu a tela, mas não a recobriu.

O primeiro marchand de verdade que ele encontrou


era uma mar­chande: Berthe Weill. Seus pintores a
chamavam de “La Merweil”...18 Era uma mulher
simpática, vesga, que usava grossas lentes. Não era
ambiciosa e lucrava pouco com a venda dos quadros.
Dormia e comia na sua galeria da rua Victor-Massé: uma
loja simples, onde ficavam penduradas com pregadores
de roupa, em fios estendidos, obras de Matisse, Derain,
Dufy, Utrillo, Van Dongen. Logo virão as pinturas de Marie
Laurencin, Picabia, Metzinger, Gleizes e, é claro, Picasso.
Amante das artes, Berthe Weill contribuiu quase tanto
para a expansão da arte moderna quanto Vollard, Paul
Guillaume, Rosenberg e Kahnweiler. Ela ajudou muito
Picasso, de quem havia comprado, por intermédio de
Manyac, uma parte das obras da fase Lautrec e, depois
que o intermediário se afastou, também alguns guaches
da fase azul. Mas só alguns.
De acordo com seus livros-caixa, abertos diante de
Francis Carco, em 1908, Berthe Weill comprava um Utrillo
por dez francos, um Dufy por trinta francos (tanto quanto
um Rouault), um Ma­tisse por setenta francos, um Lautrec
por seiscentos francos. A cota de Picasso ficava entre
trinta e cinquenta francos em média.2 Ela revendia as
obras a apreciadores relativamente ricos, como André
Level, colecionador, Marcel Sembat (já um apreciador de
Matisse) ou Olivier Saincière, que se tornará secretário-
geral do governo de Raymond Poincaré, quando este
ocupar o Élysée. Foi assim que essa mulher enérgica e
dedicada a seus pintores conse­guiu tornar Picasso
conhecido fora do estreito perímetro da Butte
Montmartre.
Berthe Weill era do tipo decidida. O delegado
responsável pelo XIX arrondissement que o diga. Um dia,
em 1917, Berthe Weill havia organizado, numa galeria da
rua Taitbout, a primeira expo­sição de Modigliani. Ela
pedira a Blaise Cendrars para redigir um poema que
acompanharia um desenho do pintor italiano nos con‐­
vites distribuídos aos interessados.
Na noite do vernissage, havia tanta gente no interior
da ga­leria quanto do lado de fora. De um lado, os
apreciadores de arte; do outro, os transeuntes
estarrecidos com os nus expostos na vitri­ne. Mandaram
um policial, que relatou o fato ao delegado. Este mandou
o recado: retirar os quadros. Berthe Weill se recusou a
fazê-lo. Foi então imediatamente convocada ao gabinete
do delegado. Teve que atravessar a rua debaixo das
vaias e apupos dos senhores de polainas e das senhoras
de chapéu.
O delegado estava furioso:
“Ordeno-lhe que retire todo esse lixo!”
“E por quê?”, perguntou a dona da galeria.
“Esses nus!...”
O representante da lei lançava perdigotos. Quando se
acal­mou, respondeu com a voz enrouquecida de raiva:
“Esses nus... têm pelos!”
Tiveram que fechar. Para ajudar Modigliani, que vivia
em profunda miséria, Berthe Weill comprou dele cinco
pinturas. Ela o defendia com a mesma veemência com
que defendera Picasso durante seus primeiros anos em
Paris, embora tivesse restrições à fase azul. Mas
enquanto o pintor espanhol, um dia, cruzará a estrada da
riqueza, o italiano jamais conhecerá fama e fortuna. E
terá muito pouca sorte.

17 Século XX. (N.T.)


18 O apelido em francês faz um trocadilho entre la mère Weil, a mãe Weil
(expressão muito usada na França), e la merveille, a maravilha. (N.T.)
Dois americanos em Paris

Mostrei dois estudos de Cézanne a um cliente. Imediatamente


ele disse: “Não quero essas máquinas onde ainda há espaços
brancos...”.
Ambroise Vollard

A fase azul também não convinha a Ambroise Vollard.


Ele descobriu Picasso por intermédio de Manyac, e
vendeu obras do pintor espanhol em 1901 e, depois, a
partir de 1906. Nessa época, ele expusera Manet, Renoir,
Cézanne, Van Gogh, Gauguin. Sua atividade não se
parecia em nada com a dos vendedores de coisas usadas
– que vendiam cores – e dos quais fazia parte, pelo
menos no início do século, Berthe Weill. Vollard havia
aberto uma galeria. Foi um dos primeiros a comprar as
obras de Derain e de Vlaminck e a se interessar pelo
escultor Maillol. Era muito ligado a Pissarro, que o havia
levado a descobrir os impressionistas.
Ambroise Vollard havia comprado títulos de nobreza ao
organizar, em 1895, uma exposição das obras de
Cézanne, que Durand-Ruel e os irmãos Bernheim tinham
recusado. Em suas memórias, ele descreve,
detalhadamente, o trabalho que teve para des­cobrir o
refúgio do pintor, que escondia cuidadosamente seu
endereço.1Quando conseguiu, encontrou-se com o filho
do artista, a quem falou de seu projeto de exposição.
Alguns dias mais tarde, recebeu um enorme rolo
contendo 150 telas do pin­tor. Como ainda não dispunha
de meios, Vollard as exibiu emoldu­radas por grosseiros
pedaços de madeira. Sua fama, e também a de Cézanne,
nasceram nessa ocasião. Isso permitiu a Vollard dedicar-
se aos pintores que amava e admirava, ao mesmo tempo
em que exer­cia a atividade de editor, que o apaixonava:
escolhia os melhores tipos de papel e os melhores
ilustradores para publicar livros, que eram assim
enriquecidos por artistas (como La Fontaine ilustrado por
Chagall; Verlaine, por Bonnard; Mirbeau, por Rodin...).
Ao longo dos anos, a galeria Vollard iria se tornar um
dos pontos altos da arte moderna. Ficava na rua Laffitte,
a principal artéria do mercado da pintura em Paris, onde
também estavam Bernheim e Durand-Ruel (que abrira
uma sucursal em Nova York, em 1886). Matisse, Rouault,
Picasso e outros jovens artistas vi­nham com frequência
visitar a galeria para descobrir a produção dos mais
velhos.
A vitrine da galeria Vollard não se parecia com as
outras. Diante dela, na rua Laffitte, depois de admirar os
Renoir, os Pis­sarro e os Monet, Chagall mal pôde crer no
que seus olhos viam: o resto era um punhado de lixo e
jornais velhos. Quanto ao hábito, fazia perfeitamente o
monge. Ao empurrar a porta, o visitante desco­bria uma
mesa, um aquecedor, uma escultura de Maillol, quadros
virados contra a parede, algumas telas de Cézanne que
não haviam sido emolduradas. E poeira por todos os
lados. Podia-se acreditar então em Vlaminck, que
afirmava, quando fez sua primeira exposi­ção na galeria,
que mandava todos os dias a empregada para limpar os
móveis e os quadros.
Um homem, meio sonolento, está sentado atrás da
mesa. Um créole19 das Ilhas Reunião. Beirando os
quarenta anos, alto, for­te, meio calvo, uma barba curta.
Renoir dirá que ele é parente de um chimpanzé. Os
clientes pensarão: ele não se interessa por pin­tura. Isso
porque Vollard mal dá atenção àqueles que entram na
galeria. Abre um olho, pergunta o que desejam, escuta,
ergue-se um pouco, deixa-se cair de novo na cadeira e
responde:
“Volte amanhã.”
No dia seguinte, ele mostra as obras que foi buscar na
sua caverna de Ali Babá: o porão, onde estão
depositadas mil preciosi­dades. Depois de retomar seu
lugar atrás da mesa, volta a cochilar, até o momento em
que o visitante lhe mostra uma tela.
“Esta aqui?”
“Cinquenta francos”, responde Vollard sem hesitar.
“Quarenta.”
“Eu disse cinquenta... O senhor me propõe quarenta...
en­tão vai ser setenta.”
“Mas...”
Vollard sacode a cabeça, mostrando que é inútil
discutir.
“E como posso saber se essa obra não é falsa?”
“Não pode.”
“Como, ‘não pode’?”
“Essa obra data de 1830. Eu ainda não era nascido...
quem pode saber?”
O cliente olha desconfiado para o marchand e
pergunta:
“Pode me mostrar um ou dois Cézanne?”
Vollard os mostra e o homem fica extasiado.
“Quanto, este aqui?”
“Duzentos francos.”
“O senhor acha que Cézanne vai valorizar?”
“Não tenho a menor ideia!”
O cliente hesita. Vollard aceita dar algumas
explicações:
“Comprei essa tela por doze francos no ano passado.
Estou vendendo por quase vinte vezes mais caro...”
“Isso prova que está valorizando!”
“Prova que está em alta hoje! Mas amanhã, pode ser
que esse quadro não valha nem mesmo os doze
francos!”
Sob esses modos rudes e desagradáveis, Vollard
dissimulava uma alma matreira. Era como um gato
espreitando a presa. Quando queria um pintor,
conseguia. Não comprava apenas uma ou duas telas,
mas toda a produção. É assim que ele fará com Vlaminck
e Derain: fascinado pela violência pictural dos fauves, ia
do ateliê de um para o ateliê do outro, observava, sério,
as obras que lá se encontravam e dizia:
“Compro.”
“O quê?”
“Tudo.”
Na maioria das vezes, não assinava nenhum contrato:
bas­tava a palavra.
Quando vendia, se queria se dar ao trabalho, não era
um gato, mas uma raposa. Graças a Alice Toklas,
sabemos o que se pas­sou com Gertrude e Léo Stein.
Tentemos imaginar a cena. Dois americanos, recém-
chega­dos à França, empurrando a porta da galeria de
Vollard. Ela, gorda como uma camponesa, de sandálias
de tiras de couro; o cabelo bem curto, acentuando ainda
mais o aspecto masculino de uma pessoa atarracada; a
mão era como a de um guarda-costas, o sorriso leve, a
voz alta, decidida, e falava sem parar.
Ele, muito ereto, sisudo, de chapéu, barba vermelha e
co­lete, quase delicado, se comparado à irmã. E Vollard,
cochilando atrás da mesa, com seu legendário casacão e
seus sapatos tão gran­des e tão velhos que os bicos
levantam como os dos tamancos ho­landeses.
Ele não se levanta. Não sabe que está diante dos
maiores mecenas de Paris. Desde que chegaram, em
1903, os Stein garimpa­ram as galerias e os ateliês. Eles
têm uma fortuna para gastar, e pre­tendem fazer isso
comprando obras de arte.
Impassível e sonolento, Vollard espera. Léo pergunta
se po­dem ver as paisagens de Cézanne. Vollard se
levanta pesadamente. Desce a escada que leva até suas
preciosidades. Passam-se cinco minutos antes que volte
com uma pequena tela na mão. Mostra-a. É uma maçã.
“Desculpe”, observa Gertrude. “Uma fruta não é uma
pai­sagem... Queremos ver uma paisagem.”
“Perdão!”, exclama Vollard.
Desce novamente a escada e desaparece. Os
americanos co­meçam a rir.
Quando o marchand volta, traz uma tela maior do que
a pri­meira. Apresenta-a aos visitantes. Eles olham com
grande interesse. Desta vez é Léo quem fala:
“Senhor Vollard, não queremos importuná-lo...
Desejamos uma paisagem e o senhor nos traz um nu!”
Por sua vez, Vollard olha a tela: é uma mulher de
costas.
“Desculpem! Já volto...”
Pela terceira vez, desce a escada. Reaparece alguns
minutos depois, trazendo um quadro enorme.
“Vocês querem uma paisagem? Aqui está uma
paisagem!”
A pintura está inacabada. É uma paisagem, mas
minúscula.
O resto da tela está vazio.
“Está melhorando”, admite Gertrude Stein. “Mas se
pudés­semos ver uma obra menor e totalmente acabada,
ficaríamos en­cantados.”
“Vou ver”, resmunga Vollard.
Sai novamente. O irmão e a irmã esperam. Ouvem
passos.
Mas não é o marchand: uma mulher bem idosa sobe a
escada e cum­primenta-os amavelmente, antes de sair e
desaparecer.
Léo e Gertrude se olham sem entender nada. Riem.
Nova­mente ouvem-se passos. Surge outra mulher.
“Boa noite, senhores!”
Sai como a outra, para a rua Lafitte. Gertrude cai na
garga­lhada e diz a seu irmão o que pensa: o marchand é
louco. As duas mulheres que acabam de passar são duas
pintoras que trabalham nas profundezas da galeria. A
cada vez, Vollard pede a elas que fa­çam rapidamente
uma maçã, um pedaço de um nu, um fragmento de uma
paisagem, e quando mostra a eles jura que é um
Cézanne. Na verdade, ele não tem nenhum Cézanne!
Eles acham graça. Mas Vollard volta ainda mais uma
vez.
Apresenta a eles uma nova tela: uma paisagem
totalmente pronta. E maravilhosa. Os dois americanos
compram o Cézanne e vão embora.
Vollard iria explicar a seus amigos que recebera a
visita de dois americanos apressados e meio malucos,
que não paravam de rir. Rapidamente, compreendera
que quanto mais eles rissem, mais comprariam.
E não se enganara: ele os fizera rir de tal maneira que
os Stein voltaram várias vezes. No mesmo ano,
adquiriram dois nus de Cézanne, um Monet, dois Renoir e
dois Gauguin.
O porão de Vollard era um lugar mágico e múltiplo.
Servia de depósito para as obras-primas, mas tinha
também uma cozinha e uma sala de jantar. O marchand
adorava receber. Ele não era ape­nas mal-humorado e
astucioso. Era também curioso, falador quan­do lhe
convinha, adorava ouvir e contar fofocas e gostava de
lite­ratura popular; extremamente amável, sobretudo com
as mulheres, apesar de nunca ter se casado. Quando
Vlaminck perguntou a ele por que continuava solteiro,
respondeu que uma esposa legítima, certamente, lhe
teria pedido muitas explicações sobre Cézanne. “Já
pensou! Que chatice ter que explicar!”
À sua mesa comia-se sempre frango ao curry, prato
princi­pal da cozinha da Reunião, sua terra natal. O
marchand convidava os artistas e os compradores de que
mais gostava. Sobretudo Rouault, que almoçava todos os
dias com ele; e o irascível Degas, antissemita e chato,
que nunca perdoou Berthe Weill por ter aberto sua
galeria de pintura perto da casa dele. Vollard contava
que, certo dia em que fora à casa do pintor para lhe
mostrar uma tela, deixou cair sem querer um pedacinho
de papel de meio centímetro qua­drado que se perdeu
numa fresta do assoalho. Degas se alvoroçou:
“Cuidado! Você está desarrumando meu ateliê!”
O lixo infecto foi imediatamente recolhido.
Uma noite em que o marchand o havia convidado para
jantar, Degas impôs sete requisitos para aceitar: ele não
queria pratos que levassem manteiga, nem flores sobre a
mesa, exigiu pouca luz, que o gato ficasse preso, que não
houvesse nenhum ca­chorro, que as mulheres não
usassem perfume e que o jantar fosse servido às sete em
ponto.
E bom apetite...
Os convidados sabiam que, assim que terminasse o
jantar, Vollard cruzaria as mãos na nuca, se apoiaria
contra a parede e mer­gulharia nos seus sonhos.
Ele tinha a doença do sono. A cabeça tombava à frente
du­rante as refeições, nos fiacres, atrás da sua mesa de
trabalho, e ele vivia se queixando de ter dormido mal.
Reclamava da cama e ju­rava que ia trocá-la (mas nunca
o fez, assim como nunca trocou o casacão e os sapatos
que, no entanto, dez vezes por semana, ele prometia
jogar no lixo). Esse estado de sonolência fazia com que
seus amigos (e seus inimigos) dissessem que ele
enriquecera dormindo. Os pintores para quem posou,
principalmente Renoir, suplicavam a ele para não cair
nos braços de Morfeu durante as sessões. Para mantê-lo
acordado, Bonnard o obrigava a segurar um gato no colo.
Cézanne chegou até a instalá-lo sobre um tamborete,
colocado em cima de quatro pedaços de madeira no alto
de um estrado.
“Se você cair, o tamborete também cai, e junto os
pedaços de madeira e o estrado!”
“E aí?”
“Aí, você acorda!”
Foi um verdadeiro suplício. Depois de quinze sessões
de pose e algumas quedas de mau jeito, o modelo
perguntou:
“Acabou?”
“Ainda não”, respondeu Cézanne.
“Pelo menos, você está satisfeito?”
O pintor se afastou, observou e respondeu:
“A parte da frente da camisa ficou boa...”
Ambroise Vollard morreria em 1939, num acidente de
carro.
O motorista dirigia, enquanto o marchand roncava no
banco de trás. Foram dadas duas versões para o
acidente. Uns diziam que a limusine passara sobre um
buraco e que Vollard, que dormia pro­fundamente, batera
a cabeça contra a lateral do carro. Teria então morrido
dormindo. Hipótese tentadora. Georges Charensol arrisca
uma tese mais realista2: depois que o carro derrapou, um
bronze de Maillol, que estava na tampa interna do porta-
malas, teria escor­regado e quebrado a cabeça do
marchand. Foi assim, talvez, que morreu Ambroise
Vollard, tocado por duas graças: Maillol e o sono.

19 Descendente europeu nascido nas antigas colônias. (N.T.)


Cyprien

Fala-se de Max Jacob. Vejo um vaga-lume contra uma parede: é


Max que está escutando.
Raymond Queneau

P elas ruas de Montmartre, na direção oposta à galeria


de Vollard, vai caminhando um homem, levemente
iluminado pela luz azul dos lampiões a gás. Está vestido
de modo estranho, com uma capa de pastor bretão,
cinza, forrada de flanela vermelha. A cabeça enorme está
descoberta, os ombros são estreitos, a boca é fina, e é
impossí­vel esquecer aquele olhar, às vezes fixo, às vezes
em movimento. Usa um monóculo. Sob a dignidade e a
elegância, grassa a miséria comum aos jovens artistas da
Butte.
Quando lhe perguntam sobre sua infância, conta que
foi roubado por um bando de ciganos quando tinha três
anos; foi de­sossado e cortado em rodelas, antes de ser
encontrado, alguns anos mais tarde, no pátio de entrada
da Escola Normal.
É claro que não se deve acreditar no que ele diz: é um
poeta.
Possui igualmente outras habilidades artísticas: pinta
há mui­to tempo. No colégio de Quimper, o professor de
desenho achava que ele só fazia garranchos, o que
denotava, de sua parte, uma total falta de perspicácia.
Os pais queriam que ele fizesse a Escola Normal. Ele
prefe­riu a carreira militar. Foi dispensado por falta de
fôlego e de mús­culos. Um belo dia, sem bagagem, sem
agasalho, com apenas alguns francos surrupiados da
carteira da mãe, foi para Paris. Descobriu rapidamente
que o pincel não alimentava mais do que a caneta. Foi
sucessivamente professor de piano, preceptor,
empregado, crítico de arte, varredor, aprendiz de
marceneiro, oficial de justiça, secretário, empregado de
comércio, babá.
É incrivelmente pobre. Se está vestido de modo
elegante, é graças à generosidade de seu pai, alfaiate
em Quimper. E, se está caminhando pelo bulevar de
Clichy, é para encontrar um artista do qual acaba de ver
64 quadros expostos na galeria de Ambroise Vollard:
Pablo Picasso.
Ficou fascinado pela pintura. Ele explicará que ela em
nada faz lembrar aqueles pintores que se preocupam em
passar, da ma­neira mais harmoniosa possível, da luz
para a sombra ou vice-ver­sa. Também não se parece com
o impressionismo, que ainda choca o público, apesar do
nascente entusiasmo por Renoir e Degas. Não pode ser
comparada ao trabalho dos artistas que Max Jacob
chama de “os grandes decoradores”, aparentemente
seguidores de Dela­croix e Rubens, que preenchem
paredes a metro. Não se aproxima nem das pequenas
pinceladas de Signac, nem daqueles que imitam os
simbolistas, Puvis de Chavannes ou Maurice Denis. É
menos mordaz do que a obra de Toulouse-Lautrec. No
entanto...
Ele [Picasso] imitava tudo aquilo, mas suas imitações eram guia­das por
um tal turbilhão de genialidade, que nessa exposição de inúmeras telas
sentíamos apenas a força detonadora de uma perso­nalidade
inteiramente nova e original.
1

Max Jacob descobre o pintor no apartamento que este


divide com Manyac, no bulevar de Clichy. Fala-lhe da sua
admiração, sob o olhar atento de uma dezena de
espanhóis que cozinham ervilhas à luz de uma lamparina
a álcool. Picasso agradece. Os dois homens se
cumprimentam, apertam as mãos e se abraçam, sem
entender bem o que dizem: o espanhol fala sua língua, e
o francês, a dele. O que os dois sabem é que passa um
magnetismo entre eles.
Picasso mostra suas obras: dezenas de telas
empilhadas umas sobre as outras. Em seguida, convida o
visitante a comer e a beber com os seus companheiros.
Depois disso, cantam. Como não conhe­cem as mesmas
canções, cantarolam Beethoven: até tarde da noite, os
violões acompanham o canto das sinfonias.
No dia seguinte, Max Jacob convida o novo amigo para
ir à sua casa. O espanhol, como sempre, chega com toda
a turma. Max lê seus versos para uma assistência que
não entende nada, a não ser o tom e os gestos. É o
bastante. Picasso chora de emoção. Diz a Max Jacob que
ele é o único poeta francês da época. Em troca dos elo‐­
gios, o único poeta francês da época oferece a seu
admirador alguns dos seus mais preciosos bens: uma
gravura em madeira de Dürer, algumas imagens de
Épinal20 que ele ainda é um dos poucos a cole­cionar, e
todas as litografias de Daumier que possui.
Picasso o leva junto com a turma dos espanhóis. Riem,
can­tam, dançam a noite toda.
O grupo tem vários redutos. O primeiro se chama Zut,
um bar da rua Ravignan onde se reúnem todos os
anarquistas da Butte. São três salas contíguas, cada uma
mais lúgubre do que a outra. O lugar, um tanto sinistro, é
iluminado por lampiões e dirigido por um homem
baixinho que usa um gorro, uma barba comprida, cal­ças
de veludo marrom, tamancos e um cinto de flanela
vermelho gritante. Chama-se Frédéric Gérard, vulgo
Frédé. O bar fica aberto a todos os pobres, a todos os
excluídos da cidade. Mesmo sem conhecer uma só nota
musical, o proprietário toca violão, e às vezes violoncelo.
Canta romanças parisienses, frequentemente acompa‐­
nhado de outros artistas que vêm dar uma ajudinha. Do
lado de fora, circulam as prostitutas, os malfeitores, os
desertores, as gan­gues que se enfrentam com facas, os
falsários, os adulteradores de selos: os frequentadores do
maquis.
O letreiro do Zut anuncia o tema: “CERVEJA”. É a única
bebida alcoólica. Nem vinho, nem digestivos. Frédé
enche os copos colocados sobre os tonéis, que fazem as
vezes de mesa, diretamente da jarra. Às vezes, ele serve
presunto com ovos. Quando se ouvem tiros vindos do
exterior, marca registrada das arruaças do bando de
Apaches, ele tranquiliza os amigos imigrantes: se a
polícia chegar, ele os esconderá. Todos têm medo de ser
deportados. Mas Frédé, o fanfarrão, Frédé, o anarquista
parisiense, está atento.
Ele é um pouco mais velho do que a maioria do bando
e compreende esses homens livres, que vivem como
jovens estudan­tes. Eles não têm as responsabilidades
sociais e familiares que tanto pesam sobre os
respeitáveis ombros daqueles que moram embaixo,
longe da Butte. Aqui, a única família são os amigos. E a
vida social é a vida de artista: sem ordem, sem regras. O
comportamento dos pintores e dos poetas é apenas, nem
mais nem menos, uma variante do gesto, dos arroubos
que Libertad e Le Père Peinard exprimem com as
palavras. Picasso e Max Jacob são como todos os outros.
Em 1902, o espanhol vai passar alguns meses em seu
país. Quando volta, divide vários quartos de hotel com
um amigo escul­tor. Está na penúria e desanimado com a
fraca venda das telas. Max, que é só cinco anos mais
velho do que ele, age como irmão mais velho e toma
conta do caçula. Ele o chama de “meu menino”.
Demonstrando uma incrível generosidade, vai trabalhar
no serviço de manutenção da rede Paris-France, lojas
dirigidas por um primo seu. O poeta varre o chão e
entrega mercadorias empurrando uma carrocinha.
Enquanto não é demitido, oito meses depois, por “in‐­
capacidade geral”, ele divide o que ganha com Picasso.
Os dois amigos vivem juntos, num quarto que Max
alugou no bulevar Voltaire. A vida boêmia está difícil.
Uma noite em que estão na janela, um pensamento
comum os atravessa. Picasso é o primeiro a se virar.
Toma o poeta pelo braço e diz:
“Nada de ideias como essa.”
Dormem se revezando: Max durante a noite, enquanto
Pa­blo pinta. Pablo durante o dia, enquanto Max trabalha.
Quando es­tão juntos, à noite, o empregado da Paris-
France encoraja o amigo de quem Manyac, Berthe Weill e
Ambroise Vollard se afastaram por causa da fase azul.
Certos dias, sob o nome de Maxime Febur, Max
percorre as galerias, fazendo-se passar por um rico
colecionador:
“Vocês têm obras de Picasso?”
A maioria das vezes a resposta é não. Ninguém sabe
quem é. Então Max finge indignação:
“Mas como? É um gênio! Que absurdo, uma galeria
como a sua não expor um artista desse porte!”
Para Picasso, Max Jacob é a encarnação da
providência: não apenas ele o ajuda, como também o faz
descobrir o universo das le­tras, que para ele, até então,
não passavam de hieróglifos. E Picasso faz o que fará
sempre: aprende, se aprofunda. Como ele próprio dirá
mais tarde, ele não dá, toma.
Para Max Jacob, as coisas são mais simples: Picasso é a
pes­soa mais importante da sua existência. Ele dirá: “A
porta da minha vida”. Admira-o muito e sem reservas.
Fascinado, por exemplo, pela vaidade do amigo, ele o
olha, boquiaberto, escolher cuidadosamente um par de
meias que combine com a cueca...
O poeta canta o pintor. O pintor desenha o poeta.
Depois de Baudelaire e Delacroix, Zola e Cézanne, são
eles que conduzem por sua vez o baile da pena e das
cores. Logo virão outros poetas e outros pintores: Léger e
Cendrars principalmente. O próprio Picasso vai atrair
Salmon, Apollinaire e depois Cocteau, Eluard, Breton,
Reverdy, René Char... mas é Max Jacob que o fará desco‐­
brir Ronsard, Verlaine, Vigny, Baudelaire, Rimbaud e
Mallarmé, abrindo para ele os horizontes da poesia, aos
quais será sensível por toda a vida; Max Jacob, que foi o
primeiro pilar da turma de Picasso, pelo menos daquela
que sucedeu os espanhóis; Max Jacob, que facilitará seu
acesso ao mundo da beleza, da moda, o encontro com os
costureiros-mecenas, Paul Poiret e Jaques Doucet...
Picasso não foi o único a tirar proveito da generosidade
e das múltiplas qualidades do poeta. Para Francis Carco,
sem Max Jacob, “a Butte teria certamente perdido seu
espírito mais lúcido”.2 Inegável.
Montmartre primeiro e Montparnasse depois o amaram
loucamente. Em qualquer lugar que chegasse era
aplaudido, acla­mado, festejado. Desfilava sua casaca
preta, sua cartola e seu monóculo em mundos
contraditórios, dos quais tirava seu sustento. Era
apreciado pelos burgueses emergentes, por sua
inteligência, sua gaiatice, suas diversas aparências, que
podiam transformá-lo em um deles, seus ditos
espirituosos, um pouco vulgares. Amado pelos amigos
pobres como ele por sua generosidade, ele partilhava
tudo e mais ainda. Judeu convertido, tinha orgulho de ser
bretão. Além disso, era brilhante, “fofoqueiro e sublime,
prestativo, aten­cioso, brincalhão, intenso, vaidoso,
debochado”.3 Era também terrivelmente sensível,
magoava-se por qualquer coisa, era capaz de chorar, de
pedir perdão. Espirituoso, seus dardos atingiam dire‐­
tamente o coração. Estimado pelas mulheres, por suas
maneiras delicadas, ele só amava os homens.
Apaixonou-se por uma ou duas mulheres, no máximo
três. A primeira chamava-se Cécile – tornar-se-á
Mademoiselle Léonie, amante de Matorel em Saint
Matorel. Ninguém a conhecia. Fer­nande Olivier menciona
sua existência, mas, certamente, nunca a encontrou.
Segundo uma carta que enviou a Apollinaire, em 1904,
Max Jacob tinha a intenção de pedi-la em casamento:
Esqueci de te dizer ontem que não vou estar livre hoje à noite. Prometi
participar de um jantar de noivado... Isso mesmo! O meu próprio: vou me
casar dentro de dois ou três meses. Esta comunica­ção serve de convite.4

A moça devia ter dezoito anos. Trabalhava nas lojas


Paris-France. O idílio durou pouco. Se foi verdade, Max
rompeu porque era po­bre demais para poder ajudá-la, e
chorou ao dizer-lhe isso.
Depois da Guerra, certo dia em que estava sentado na
cal­çada de um café de Pigalle, na companhia de Juan Gris
e de Piere Reverdy, viu passar uma mulher. Max
enrubesceu e balbuciou: “Cécile!”. Os outros olharam, e
viram uma mulher gorda, feia e sem graça que sumiu de
vista.
Antes de ser um amante perfeito, ou carente, Max
Jacob foi principalmente um dos maiores poetas do seu
tempo, tão brilhante nos alexandrinos quanto nas rimas
livres e no poema em prosa. Mas sempre ficou um pouco
apagado, atrás dos outros, sob pretexto de que tinha
menos talento. Isso não só nos primeiros anos do século,
mas também mais tarde, quando ficará bem conhecido –
o que para os poetas não significa, infelizmente, fama e
fortuna.
Quando Apollinaire publicou Alcools, Georges Duhamel,
que era crítico do Mercure de France, escreveu que
certos poemas eram plágio de Verlaine, Rimbaud e
Moréas, e outros se inspira­vam em Max Jacob. Max
pegou a caneta e respondeu a Duhamel que o que ele
dizia não era verdade: ele nunca escrevera nenhum
poema antes de encontrar Apollinaire. Mentira. A grande
virtude de Max Jacob, dirá Valery Larbaud, era a
humildade.
Nos anos 1930, completamente na miséria, ele
concordará em se apresentar num palco. Todas as noites,
diante da sala lotada, ele começará o espetáculo com
esta frase: “Senhoras e senhores, vocês não me
conhecem. Ninguém me conhece. No entanto, estou no
Larousse”.
Era poeta. Poeta, mas não romancista. A diferença? Ele
a explicará, um dia, a Pierre Béarn, na presença de um
jovem que se encontrava no minúsculo apartamento
parisiense de Max, Charles Trenet: “O romancista
escreve: um vestido verde, e um poeta escreverá: um
vestido verdejante”.5
Aprendeu muita coisa numa empresa para a qual
traba­lhou. A direção lhe pedira para fazer um discurso no
enterro do filho de um grande fornecedor. Max Jacob
procurou informações sobre o infeliz fornecedor e fez um
discurso elogiando fundamen­tada e detalhadamente os
méritos cívicos, morais, econômicos e financeiros do
defunto. Mas errou o alvo: o defunto em questão não
tinha tido tempo de mostrar seus talentos; era uma
criança...
Seu primeiro conto, Le roi Kaboul et le marmiton
Gauvin, foi oferecido a estudantes, em uma distribuição
de prêmios aos melhores alunos. Como a escola era
laica, as autoridades eclesiásti­cas foram substituídas por
autoridades municipais, e os padres, por professores. O
que não deixava de estar de acordo com o per­sonagem:
Max Jacob também não merecia mais os louros da mora‐­
lidade exemplar do que os do ateísmo praticante.
Ele mesmo se encarregava da distribuição dos seus
livros, edita­va-os por sua conta ou, em alguns casos,
através de uma lista de ajuda organizada por Kahnweiler:
assim foram publicados Saint Matorel (1911) e Le Siege
de Jérusalem (1914), ilustrados por águas-­fortes de
Picasso. As edições do Phanérogame e do Cornet à dés
foram financiadas por ele próprio.
“Você tem que viver como poeta”, lhe dissera Picasso,
quan­do ele trabalhava no Paris-France.
Talvez fosse uma maneira de sugerir a ele que
abandonasse não só o carrinho de entregas, mas
também o pincel. Max pintava guaches figurativos,
usando tinta, pó de arroz, cinza dos seus ci­garros,
fumaça, pó de café, poeira. Jamais renunciou à pintura.
Mas abandonou as diversas profissões que exercera até
então para se dedicar a outras atividades: a escritura,
certamente, mas também a cartomancia.
Ele lia as linhas da mão, a borra de café, conhecia a
Cabala e a linguagem dos astros. A todos os seus amigos
oferecia talismãs, desenhos, pedras, pedaços de couro
ou de ferro, gravados com hie­róglifos incompreensíveis,
fetiches de todos os tipos, às vezes reco­bertos de signos
cabalísticos. Aqueles de quem ele não gostava recebiam
objetos pesados, que o astrólogo aconselhava a
conservar sempre com eles, senão a má sorte os
atingiria. Assim, lá se iam os inimigos de Max Jacob,
arrastando na bolsa uma placa de metal ou, no fundo do
bolso, um granito bem pesado...
Ficou conhecido como astrólogo ao publicar, no
L’Intransigeant, o horóscopo de Joseph Caillaux. A partir
daí, passaram a lhe pedir que fizesse previsões sobre o
futuro: os pobres moradores de Montmartre, que
pagavam com uma sopa ou um par de meias; o
costureiro Poiret, que não escolhia um terno sem
primeiro saber a opinião do senhor Max; as mulheres da
sociedade, que adoravam aquele homenzinho tão
engraçado e esquisito, cuja presença deco­rava tão bem
os jantares de Auteuil e de Passy.
Pois Max Jacob era sabidamente engraçado. Além dos
seus talentos da pena e das estrelas, fazia imitações
como ninguém. Imi­tava seus pais (sua mãe cantava
operetas), os políticos, os personagens famosos dos
cabarés, levantava a perna bem alto, a calça arrega­çada,
mostrando os pelos, falseando os agudos de uma
dançarina. Ou então, pegava um pano vermelho que
transformava em xale das velhinhas ultrajadas... Adorava
aparecer: “A necessidade de agra­dar é em mim uma
paixão desenfreada”, ele confessará.6
Certa noite, houve uma briga no Lapin Agile. Acontecia
com frequência. Alguém foi ferido na barriga com um
saca-rolhas. Isso era raro. Max Jacob teve que ir
testemunhar diante do tribu­nal. Chegou vestido
impecavelmente. Pediram que falasse. Ele o fez: em voz
baixa, sussurrando as palavras, cuidando para que
ninguém entendesse nada a não ser a palavra “saca-
rolhas”, pro­nunciada dez vezes em tom maior. O
presidente do júri ficou fu­rioso. Mandaram-no sentar-se.
Ele começou a choramingar, recla­mando em voz alta que
se soubesse que iriam maltratá-lo assim, jamais teria
vindo... A sala de audiência se contorceu de rir como um
saca-rolhas. Dessa vez sem danos.
Nas festas, seu humor e seus talentos de imitador
faziam sucesso. As pessoas da sociedade que o tinham
convidado, porque era chique mostrar um amalucado
que sabia se comportar com ele­gância, subiam, no dia
seguinte, as encostas de Montmartre para consultar suas
cartas.
A burguesia elegante vinha então se promiscuir na
Butte. Dorgèles descreve os senhores de fraque que
visitavam os ateliês dos pintores, menos para comprar
telas do que para espiar as mo­delos – que eles
supunham, é claro, serem amantes do artista –; as
senhoras ficavam admiradas diante das lamparinas a
petróleo, tão fora de uso, das cozinhas-banheiro, tão
reduzidas, dos ritos daquele povo vagamente primitivo...
Quando desciam dos seus automóveis reluzentes, ou das
caleches conduzidas por cocheiros vestidos de preto, elas
não ficavam muito à vontade. É um lugar encantador,
mas um pouco distante. Enfim, tem árvores... Sus‐­
pendiam as saias de babados para chegar mais rápido ao
número 7 da rua Ravignan, onde dava consultas o
cabalista, que ainda não conheciam, e que Paul Poiret, o
grande costureiro de todas elas, havia recomendado.
Empurravam a porta e se deixavam envolver pelo
misterioso encanto, que tão agradavelmente é possível
sentir diante do universo dos poetas deste mundo.
Catástrofe!
Em 1907, Max Jacob morava no fundo de um pátio,
numa espécie de edícula imprensa da entre dois prédios,
que dava para a lixeira. O local era minúsculo (como
todos onde ele morou) e muito escuro. Parecia um quarto
de despejo do qual se retirou todo o en­tulho e as
vassouras, para ser alugado por cem francos ao ano.
Con­dizia com a extrema indigência do poeta, que
escrevia com uma caneta de dois vinténs, comia arroz
com leite, pedia cinquenta cen­tavos emprestados para
pegar o bonde, apertava o cinto para pagar o
empréstimo o mais rápido possível e gastava a maior
parte de seus parcos ganhos em combustível para a
lamparina, que ficava acesa dia e noite, pois o cômodo
único era escuro. “A política do petróleo é mais
importante do que a política do arroz!”, ele excla­mava
alegremente, quando alguém demonstrava compaixão.
Já passara por coisa pior: dois ou três invernos sem
aquecimento, ele mesmo sem agasalho e comendo
metade de um pão por dia.
Cuidava do lugar com esmero. Os únicos móveis eram
um colchão sobre quatro tijolos, uma mesa, uma cadeira
e uma grande mala, onde o poeta guardava seus
manuscritos. Depois de muita insistência, tinha obtido a
permissão do proprietário para abrir um buraco no teto e
instalar uma lucarna. Na parede maior, estavam
desenhados a giz os signos do Zodíaco, um Cristo, um
retrato de Max pintado por ele próprio, no tempo em que
usava barba, e diversas inscrições, das quais uma delas
chamava imediatamente a atenção: “NUNCA IR A
MONTPARNASSE”.
Max atendia nas segundas-feiras. Era muito cortês com
os clientes. Ele próprio os recebia e lhes pedia para se
sentar num canto do quarto, onde já aguardavam vários
moradores do bairro. E voltava para ler a sorte daquele
que tinha sido interrompido.
O cômodo era dividido por um magnífico biombo de
qua­tro folhas. Um dia, Max o cedeu a um alemão amador
de arte que, depois de ter comprado algumas telas dos
pintores do Bateau-­Lavoir, adquiriu também seus
manuscritos (talvez até os primeiros rascunhos de Saint
Matorels). Quando este lhe prometeu editá-los, ilustrados
por águas-fortes e gravuras, os olhos de Max se enche‐­
ram de lágrimas. Quando lhe estendeu algumas notas,
Max achou que estava no paraíso. O santo homem pediu
então que ele lhe desse o biombo, de cortesia. Max
concordou. Que pena: as quatro folhas tinham sido
pintadas por Picasso. Mas quando tomamos co‐­
nhecimento de que o jovem amador de arte, assim
apresentado pelas crônicas da época, se chamava
Daniel-Henry Kahnweiler, é fácil compreender o interesse
dele pelo biombo.
Algo que incomodava as senhoras vindas de longe era
o cheiro do lugar. Elas tapavam o nariz, vítimas da
mistura de tantos eflúvios – tabaco, petróleo, incenso e
éter. Tabaco, porque ele fu­mava. Petróleo, porque
precisava de luz. Éter, porque o poeta consu­mia tanto
que seu quarto “cheirava mais do que uma farmácia”.7
É Pierre Brasseur que relata algumas palavras de Max
Jacob, que ilustram perfeitamente as contradições morais
do chefe do druidismo, uma escola de poetas que tinha
cinco ou seis adep­tos, e cuja principal atividade consistia
em cortar os raminhos do carvalho21 na rua Ravignan:
A honestidade é uma casinha onde há um perfume de incenso, o que é
muito desagradável, e uma só porta que logo encontramos; a deso‐­
nestidade é muito mais ampla, cheira a mel e a álcool, não encontra­mos
a porta e, no entanto, existem muitas; desconfiem, pois essa casa é
sedutora e é difícil sair dela.8

Max Jacob gostaria de ter sido santo. E provavelmente


acreditou que tivesse conseguido, no dia 22 de setembro
de 1909, às quatro horas da tarde. Nesse dia, quando
entrava em casa, como todos os dias, o Cristo apareceu a
ele na parede da casa. Foi uma revelação fundamental
que transformou sua vida, e que ele mesmo conta:
...Quando tirei o chapéu, e me preparava, como um bom burguês, para
calçar os chinelos, dei um grito. Havia um Hóspede na parede. Caí de
joelhos, meus olhos se encheram repentinamente de lágri­mas. Fui
tomado por um indescritível bem-estar e fiquei imóvel, sem entender.
Parecia que tudo me era revelado [...] Instantaneamente, tão logo meus
olhos encontraram o Ser inefável, senti-me despido de minha carne
humana e apenas duas palavras me bastavam: morrer e nascer.9

Mais lírico:
Voltei da Biblioteca Nacional; deixei a pasta; procurei os chinelos e
quando ergui a cabeça havia alguém na parede! Havia alguém! Ha­via
alguém sobre a tapeçaria; minha carne desapareceu! Fui des­pido pelo
raio! Oh! Interminável segundo! Oh! Verdade! Oh! Perdão! Ele está numa
paisagem, numa paisagem que desenhei outrora, mas Ele! Que beleza!
Elegância e doçura! Seus ombros! Seu porte! Usa uma vestimenta de
seda amarela e ornamentos azuis. Ele se volta e vejo aquele rosto plácido
e resplandecente...10

Haverá outras revelações na vida de Max Jacob.


Bastante estra­nhas, em sua maioria.
No dia 17 de dezembro de 1914, quando estava
confortavel­mente instalado numa sala de cinema,
acompanhando com entu­siasmo as tribulações em capa
e espada dos heróis de Paul Féval, um importuno vem
sentar-se a seu lado. Max é obrigado a puxar o casaco.
Resmunga um pouco, coloca o braço sobre o braço da
pol­trona, e volta a mergulhar nas aventuras da Bande
des habits noirs. Depois, arrisca uma olhada à sua
direita. E aí, surpresa, perfeição, deslumbramento: o
vizinho é o próprio Senhor. Tranquilamente instalado
numa sala de cinema. Braços e pernas cruzados, dá para
imaginar que por pouco não se pareceria com um
esquimó! Max fica de joelhos. O espetáculo não está
mais na tela: está na sala.
Uma outra vez, quando está rezando numa igreja,
escuta uma voz:
“Max! Como você é feio!”
O penitente se volta. Quem vê a seu lado? Uma mulher
de branco: a Virgem Maria. Ele então exclama:
“Mas não é possível, senhora Virgem! A senhora está
exa­gerando!”
Ele mesmo contou esse encontro imprevisto a André
Billy.
Acredite-se no que se quiser. O importante é que,
cinema por cinema, ele decide apressar as operações
necessárias à boa causa: sua própria conversão.
Está tentando fazer isso desde que seu visitante de
seda amarela e ornamentos azuis encarnou na parede.
Mas não é fácil: o pároco de Saint-Jean-Baptiste, na praça
das Abbesses, foi sarcástico; o do Sacré-Coeur, também.
Por que essa má vontade? “Eles devem ter informações
terríveis a meu respeito”, supõe Max Jacob.11
Quanto aos amigos, morrem escancaradamente de rir.
Pi­casso, que Max quer que seja seu padrinho, propôs
Fiacre22 como nome de batismo. Max reage: além de
ridículo, esse nome é o mes­mo do padroeiro dos
jardineiros e cocheiros, e é também uma dis­creta alusão
às suas preferências sexuais.
Enfrentando os deboches, os sarcasmos, as
dificuldades que a Igreja coloca em seu caminho, o
poeta, palhaço saltitante e trágico, consegue finalmente
o que deseja: depois de muitas en­quetes para julgar a
veracidade da sua fé, os padres de Sion, espe­cialistas em
operações dessa natureza, adotam sua nova ovelha. Max
se converte. O padrinho, magnânimo, aceitou trocar o
nome de Fiacre por Cyprien, que é um dos seus nomes
também.
A revelação, assim como a conversão, não mudará em
nada o comportamento do novo católico. De um lado da
moeda, ele reza. Sem parar. Os amigos se perguntam:
por que tanto assim? Vla­minck vê nisso uma alegria
misturada a uma ponta de masoquis­mo. Talvez ele tenha
razão. Porque Cyprien faz também proseli­tismo, e em
condições estranhas. Certa noite, no fundo de uma
espelunca de Pigalle, ele tenta converter uma prostituta.
Ajoelha-­se diante dela e lhe estende as mãos para
melhor convencê-la:
“Abrace a fé!”
“Onde fica?”
“Abrace...”
“No trabalho, nunca!”
A senhorita olha aparvalhada para aquele
surpreendente indivíduo de monóculo, careca, usando
um casacão preto impecável, embora gasto, que lhe
conta histórias de anjos e do menino Jesus. Lá em cima,
surge seu protetor, que dá uma olhada e julga as coisas
de outra maneira. Aproxima-se do homem que quer su‐­
bornar sua prostituta, suspende-o pela gola do casaco,
toma-lhe as mãos e lhe quebra os dois polegares.
Max recomeça em outro lugar. Logo, ele terá tantas
fraque­zas a deplorar que as igrejas de Montmartre já não
são suficientes. Vai então mais longe, onde os padres não
o conhecem. Fica mais fá­cil confessar: entre suas
preferências pelos cavalheiros, sua paixão pelos frascos
de droga, seus desvios de conduta diversos e varia­dos,
os cochichos do confessionário horrorizam os homens de
pre­to. Principalmente quando se repetem.
Quando volta para casa, Max passa pela farmácia de
plantão da estação Saint-Lazare. Compra uma garrafa de
éter. Fechado no quarto, cheira, ao mesmo tempo em
que conversa com Deus e com a Virgem Maria. Fala-lhes
com intimidade. Conta o que fez durante o dia, como se
fossem seus velhos amigos. Os vapores do éter o
transportam para pequenas nuvens brancas, onde ele se
instala confortavelmente. Faz isso com frequência, com
muita frequência, segundo os vizinhos e a zeladora que,
involuntariamente, também inalam as amargas
fragrâncias.
Procura-se abafar os escândalos, pois todos gostam
muito dele. Na rua das Abbesses, todos o conhecem. Ele
ouve as fofocas da aldeia, passa adiante, fazem-lhe
confidências, ele se inclina diante da quitandeira como
se ela fosse uma princesa... Deve-se acreditar nele ou
em Utrillo, que conta que Max tentou violentá-lo depois
de fazê-lo inalar um pouco de éter? Em quem acreditar, e
por que escolher? Um e outro estão entre as grandes
figuras de Montmartre. Cada um a seu modo. E este é
outro paradoxo de Max Jacob: ele não gostava de
Montmartre. Desconfiava de seus “gigolozinhos
branquelos, que os romances poetizam estupidamente”,
de seus “falsariozinhos” e de seus “ladrõezinhos”.
Preferia a hu­manidade da Paris operária e burguesa. Ele
só estava lá por causa dos amigos. Quando eles
partiram, ele também se foi. Graças a um milagre que
lhe forneceu os meios.
O milagre foi um acidente.
Um dia de janeiro de 1920, quando atravessava uma
ave­nida, foi atropelado. Ficou levemente ferido, mas o
mais impor­tante é que recebeu uma indenização. Ele
disse a Vlaminck que tanto rogara à Virgem Maria, que
ela acabou tendo pena dele. Em vez de vê-lo reduzido a
mendigar ou morrer de fome, ela provocou o acidente.
Graças ao dinheiro que recebeu do seguro, Max Jacob
passou a viver um pouco melhor – ou um pouco menos
mal.
Nas vésperas de sua morte, ele ainda conseguia ver o
lado bom das coisas. Preso por dois policiais, mandou
várias cartas a seus amigos. Numa delas escreveu que os
dois policiais eram “muito gentis” com ele.
Eles foram gentis porque concordaram em colocar a
carta no correio. Mas o levaram para Drancy.23 Algumas
semanas antes da prisão, no registro da igreja de Saint-
Benoit, onde tinha feito retiro, Max escrevera o seguinte:
“MAX JACOB: 1921 (data da sua chegada)-1944”. Foi
premonitório. Ele sabia. Na estrada que o levou para a
morte, enviou uma carta ao pároco de Saint-Benoit:
Senhor pároco,
Desculpe esta carta de náufrago escrita com a complacência da po­lícia.
Quero lhe dizer que daqui a pouco estarei em Drancy. Ainda estou me
convertendo. Confio em Deus e nos meus amigos. Agradeço a Deus pelo
martírio que começa.12

Foi encarcerado em Drancy, não como católico, mas


como judeu. Enviou vários SOS aos amigos, pedindo
ajuda. Guitry, Cocteau, Salmon e outros intervieram junto
à Gestapo e às autoridades ale­mãs. No dia 15 de março
de 1944, conseguiram finalmente a ordem de soltura.
Tarde demais: Max Jacob morrera dez dias antes de uma
broncopneumonia fulminante.
Uma das primeiras cartas fora para André Salmon.
Pedia-­lhe que encontrasse Picasso para que este o
salvasse.
Não se sabe exatamente o que fez Picasso, nem se ele
fez alguma coisa. Alguns o acusaram de não ter se
mexido, outros de ter se mexido pouco, outros ainda o
desculparam, pois ele era apá­trida e, por causa disso,
também corria perigo.

A paixão essencial, muitas vezes desmesurada, que


Max Jacob sentia por Picasso causou-lhe muitos
sofrimentos. O poeta era gra­vemente paranoico. André
Salmon conta uma história que mostra sua extrema
sensibilidade. Um dia, leu para ele um poema que
escreveu, e que tratava de uma serpente. Max voltou
para casa. Picasso o encontrou aos prantos: achou que
Salmon o havia com­parado a uma serpente.
Bastava que o pintor não respondesse às cartas do
poeta para que este mergulhasse em profunda tristeza. A
esse respeito, a correspondência troca da entre os dois
homens é eloquente.
Picasso a Max, 1902:
Caro Max, faz muito tempo que não te escrevo. Não é porque não me
lembro de você mas trabalho muito por isso que não te escrevo.

Picasso, em 1903:
Meu caro Max, ainda que não te escreva com frequência não pense que
te esqueço [...] Eu trabalho como posso porque não tenho bas­tante pão
para fazer outras coisas que queria eu passo os dias sem poder trabalhar
e é muito chato.24

Max, em 1904:
Talvez você não tenha recebido minha última carta? Por isso te escrevo
esta, e não é pouca coisa, pois não tenho mais nenhum tos­tão e tive que
vender alguns livros para conseguir. Não preciso te dizer que meu quarto
está à tua disposição...

Max, de Quimper, em 1906:


Caro amigo, parto amanhã, 16 de abril, às oito horas da noite, es­tarei em
casa depois de amanhã, às nove horas da manhã. Que bom reencontrar
todos! Reencontrar você, meu querido amigo.13

Poderíamos multiplicar as trocas epistolares, a


demonstração seria a mesma: Picasso trabalha, Max
espera.
Havia uma marca registrada que os amigos
conheciam: na correspondência, mais do que as palavras
superficiais, era a assina­tura que revelava a afeição que
o poeta sentia por aqueles a quem se dirigia: se o J de
Jacob ia até embaixo da página, significava que ele
gostava da pessoa. Se a consoante era contida, apesar
de todas as palavras açucaradas que pudessem levar a
crer na mais pura amizade, é que ele não gostava. Para
Picasso o J não acabava mais.
Em 1927, durante um longo silêncio do pintor, numa
carta a Jean Cocteau, Max explode:
Não estou satisfeito com ele! Ah não!... não!... não! Será que ele es­tá
com medo... mas enfim, de que ele tem medo? De que eu me con­vide
para almoçar? De que lhe peça três francos? [...] Ele quer cor­tar a
intimidade da rua Ravignan? Desde antes da Guerra tudo isso já estava
morto, quebrado... 14

Um pouco mais tarde, Paul Léautaud também


confirma:
Max Jacob, sem um tostão naquele momento, foi vê-lo [Picasso]. Max
Jacob prestou grandes serviços a Picasso, no seu começo. Ele trabalhou
numa loja de novidades. Mal pago. Ainda achava um jeito de dar a
Picasso o que ele precisava para comer e trabalhar na sua pintura. Max
Jacob é, ao que parece, um homem incapaz de pedir alguma coisa para si
mesmo. Picasso disse a ele: “Então, Max, como vão as coisas?”. Max
Jacob responde: “Ah, não vão nada bem, você sabe, nada bem, nada
bem”. Picasso: “Vamos lá, Max, a gente sabe que você é rico”. Max Jacob,
com sua delica­deza habitual: “É sim, Picasso, eu sei que para você é
preciso que eu seja rico”.15

Uma das últimas imagens que Max Jacob conservará


de seu mais velho amigo, seu irmão, seu companheiro
dos primeiros tempos, é a de uma refeição feita em
Saint-Benoit, no dia 1o de janeiro de 1937. Parece que foi
a única visita que Picasso fez ao poeta, no seu retiro. Ele
chegou no final da tarde, levado pelo motorista, acom‐­
panhado do filho Paul e de Dora Maar. Jantaram juntos.
Max esta­va nas nuvens. Picasso zombava dele. Durante
todo o jantar, ele fez pouco caso do amigo. Pelo menos
foi assim que Max relatou o encontro. À meia-noite, no
momento da partida, Picasso propôs a Max levá-lo de
volta para Paris. O poeta exclamou:
“Ah, não!”
O grande automóvel deu partida em direção à capital.
Sete anos mais tarde, quando chegou sua vez de ir em
dire­ção ao norte, rumo ao campo de Drancy, para onde a
religião de sua infância o havia condenado, talvez Max
Jacob estivesse pen­sando nas palavras que trocou com
Picasso, durante aquele jantar em Saint-Benoit. O poeta
tinha perguntado ao pintor:
“Por que você veio no dia 1o de janeiro?”
O pintor respondeu:
“Primeiro de janeiro é o dia da família.”
“Você está enganado”, replicou o poeta. “Primeiro de
ja­neiro é o dia dos mortos.”

20 Basílica da região dos Vosges que se tornou um centro de imagens


populares, a par­tir do final do século XVIII. (N.T.)
21 Cerimônia religiosa atribuída aos druidas, usada aqui ironicamente. (N.T.)
22 Fiacre: referência a São Fiacre, santo popularmente associado, até depois
da Re­volução Francesa, à proteção contra os problemas urológicos e
proctológicos. (N.E.)
23 Campo onde ficavam os judeus detidos na França antes de ser
deportados. (N.T.)
24 No original, as duas cartas de Picasso contêm erros de grafia e de
pontuação, misturando francês e espanhol. (N.T.)
Guillaume, o bem-amado

Delicado! Delicioso! Admirável! Mony, você é um poeta


arquidivino, vem trepar comigo no vagão-dormitório, tenho a
alma em transas.
Guillaume Apollinaire

P icasso, Max Jacob, Guillaume Apollinaire. Uma arte


que incendiará o mundo da pintura está para nascer
no topo de Montmartre, e esses três são os primeiros
lanceiros da novidade que vem chegando.
Max Jacob conheceu Apollinaire em 1904. Foi Picasso
que o levou a um bar nas vizinhanças de Saint-Lazare, o
Austin Fox, onde ele tinha encontrado o poeta, na
véspera. O Austin Fox é ponto de encontro dos jóqueis, e
daqueles que esperam o trem: e também de Apollinaire,
que ainda mora com a mãe, em Vésinet.
A primeira vez em que o vê, Max fica encantado com a
ele­gância daquele que disputará com ele o primeiro lugar
no pódio, junto a Picasso. Guillaume Apollinaire é então
um jovem corpu­lento que usa um paletó inglês e colete
com uma corrente de reló­gio. Parece com um pierrô
lunar, com a cabeça em forma de pera. Essa descrição,
feita pelo próprio Max, corresponde, linha por li­nha, curva
por curva, a um retrato que Picasso fará desse seu ou­tro
amigo poeta, em 1908.
Antes de tudo, Max Jacob vê Apollinaire como verão
todos aqueles que se aproximarem dele, os pintores, os
escritores, os poetas, os marchands, os editores – tanto
os muitos amigos como os poucos inimigos.
Guillaume Apollinaire está sentado a uma mesa. Fuma
um pequeno cachimbo. Estende a mão, um pouco mole,
a Picasso e a Max Jacob, sem interromper a conversa em
curso com seus vizi­nhos, representantes comerciais ou
viajantes a negócios. Ele lhes fala de Petrônio e de Nero.
Tira um livro do bolso, depois outro, um terceiro: parece
que as dobras das suas roupas escondem obras de toda
a natureza, prosa, verso, filosofia, curiosidades, que Gui‐­
llaume exibe, dá, toma de volta, lê – depois procura outra
coisa, se entusiasma, ri, compõe uma quadra, fala de
uma cidade, canta­rola, descreve uma imagem, o odor de
um prato, as entonações de uma poskotznika, desperta
um súbito clamor, pede uma stout, vira­-se e disserta
sobre a literatura erótica, passa a Buffalo Bill, ao impe‐­
rador romano Pertinax, a Paul Fort e Jean
Papadiamantopoulos, tira de um dos bolsos um número
de La Revue Blanche, pedindo à assistência para refletir
sobre essa questão fundamental, sobre a qual ele mesmo
discursou longamente: por que a tiara de Saïta­phernès
seria desprezível pelo simples fato de ser falsa?
De repente, levanta-se e declara:
“Vamos dar uma volta.”
Arrasta atrás de si uma corte de letrados e artistas,
que vai conduzindo através de Paris, de uma esquisitice
a outra, às vezes cantarolando, parando para fazer
anotações, propondo brusca­mente pegar um carro e ir
passear lá para os lados de Rueil, na Flo­resta de Saint-
Cucufa.
Esse homem tem uma curiosidade insaciável. Tudo
aquilo que for novo, imprevisto, bizarro, lhe interessa. É
capaz de parar diante dos pedreiros que estão
construindo um muro e admirá-los durante longos
minutos. Depois, murmura do jeito mais sério do mundo:
“A construção é uma profissão de verdade. Não é como
a poesia...”
Tem uma cultura prodigiosa e prodigiosamente
diversifi­cada. Fala cinco idiomas. Lê tudo. É apaixonado
por Nick Carter, Fantômas e Buffalo Bill, dos quais não
perde um só número, que devora andando pelas ruas.
“É uma ocupação poética do maior interesse!”,
exclama.
Presenteia seus amigos com essas revistas. Um dia, a
turma rouba a Biblioteca de Montmartre, no bulevar de
Clichy. Passam os dias lendo. De noite, comentam as
aventuras de Juve e Fandor. Max Jacob chega a pensar
em criar uma “Sociedade dos Amigos de Fantômas”. Mais
tarde, os surrealistas irão adorar: ao redigir com uma
velocidade digna da escritura automática, não estavam
os autores fazendo prosa surrealista sem saber?
Cendrars chegará até a dar a um poema o nome do herói
comum. Melhor ainda: seu Moravagine será concebido
como uma sequência de Fantômas. Fora o ritmo
endiabrado das aventuras, porém, as duas obras não se
parecem em nada. Uma nasceu do imaginário de um
escritor. A outra resulta de um trabalho por encomenda
aceito por um talen­toso maníaco por artes gráficas,
mundano de carteirinha, amante de belos carros – Pierre
Souvestre – e seu redator, jornalista do Poids Lourd,
autor de um manual sobre as mil e uma maneiras de
cuidar do seu carro – Marcel Allain.
Apollinaire explica a modalidade literária de Fantômas
a seus amigos. Os dois autores estão na editora Fayard:
todo mês, devem entregar um volume de mais ou menos
quatrocentas páginas. O objetivo do editor é simples:
fazer mais sucesso do que Gaston Leroux.
Souvestre e Allain puseram em prática uma estratégia
de participantes de rali. Eles se veem durante três dias,
tempo de in­ventar uma história e estruturá-la, segundo
um plano definido. Depois, sorteiam os capítulos,
podendo trocar alguns entre si, em caso de dificuldade.
Em seguida, é cada um na sua casa, diante de um
gravador, junto a uma datilógrafa que leva os rolos de
parafina sem que os autores se releiam. O resultado é
um estilo veloz, com várias reviravoltas determinadas
pela gramática.
Mesmo reconhecendo que a obra é escrita “de
qualquer jeito”, Apollinaire admira a imaginação sem
rédeas – conforme, aliás, a campanha de publicidade,
primeira do gênero, que saudou o nascimento de
Fantômas.
Seu próprio trabalho não é isento dessas variantes que
fa­zem toda a riqueza do personagem. Apollinaire escreve
em verso, em prosa, poemas, caligramas, narrativas,
artigos, textos eróticos. Por causa dos costumes e da
moral da época ele teme o escândalo: disfarça sob uma
capa falsa, na parte de cima da sua biblioteca, sua
melhor obra, aquela que Picasso considera o mais belo
livro que já leu: Les onze mille verges.25
Alguns meses depois de seu encontro com Max Jacob e
Picasso, Apollinaire será o responsável de uma
enigmática revista de cultura física, para a qual o pintor
desenha três esboços do poe­ta nu, musculoso como um
halterofilista, junto a uma pequena cabeça que olha
admirada para esse corpo atlético. Depois, torna-­se
editor, encarregado de duas coleções, uma das quais se
chama Les maîtres de l’amour e a outra Le coffret du
bibliophile. Nelas são publicadas as obras de Arétin e do
Marquês de Sade, que ele ajuda a tirar dos porões da
censura.
Seu desejo de agradar é tão grande que poucos
resistem a ele. Seus paradoxos lhe permitem ficar à
vontade em qualquer lu­gar. Nas noites parisienses,
Guillaume Apollinaire, de fraque, se inclina diante das
senhoras para beijar-lhes delicadamente a pele branca
das mãos. Também discursa como um sábio, e depois cai
na gargalhada, um riso infantil, um tanto vulgar. É capaz
tanto dos gestos mais delicados como das pilhérias mais
grosseiras. Um dia, sob o olhar assustado dos amigos,
finge ser um judeu praticante, entra num bordel da rua
de Rosiers26 e, dirigindo-se à encarregada, pergunta-lhe
se o estabelecimento respeita as leis religiosas.
Compra Le Temps, explica ao vendedor que sofre de
cólicas crônicas e que Le Temps, bem aplicado sobre o
ventre, cura admi­ravelmente bem esse problema.
Ainda no estilo escatológico, pelo qual tem preferência
particular, gosta de passar diante de uma confeitaria da
Passagem Guénégaud, levantar a perna sobre os doces
expostos do lado de fora e deixar neles a marca delicada
de um peido fedorento.
Mais comportado, cozinha para Vlaminck peras com
mos­tarda, acompanhadas de raminhos de dente-de-leão
e água-de-colônia...
À primeira vista, isso tudo não condiz com sua
aparência: um burguês bem-vestido, de gravata, usando
colete e corrente de relógio, que aprecia facilidades e
conforto, empregado de um ban­co na rua da Chaussée-
d’Antin. Supersticioso, gosta de conhecer as previsões
para o futuro, e evita passar por baixo de escadas. Mora
com a mãe, numa luxuosa casa em Vésinet.27 A infância
se de­senrolou como um tapete de seda, nas escadarias
dos palácios da Riviera, Itália, Nice, Mônaco. Seu nome
verdadeiro era Wilhelm Apollinaris (uma bebida que
vamos encontrar em Les onze mille verges) de
Kostrowitzky, e era filho de um antigo oficial do exército
real das Duas Sicílias (e não de um prelado da Igreja
católica, como se acreditou durante muito tempo) e da
filha de um oficial polonês da guarda pessoal do papa.
Palavras pomposas para uma realidade muito simples:
Gui­llaume Apollinaire é um estrangeiro apátrida. Filho de
um homem que foi embora alguns anos depois do seu
nascimento, deixando um rastro de perfumado mistério
romanesco; e de uma mulher, a Kostrowitzka, que
podemos imaginar ágil como uma malabarista do amor,
livre, arrastando os filhos de um quarto de hotel para o
outro, frequentando cidades e palácios ao sabor do
acaso, do jogo, dos amantes, das estações. Para a época,
isso era o cúmulo da falta de vergonha. Circunstâncias
agravantes: Guillaume defendeu Dreyfus, que, na sua
época, apoiava as teses libertárias e foi colaborador de
um jornal declaradamente anarquista: Le Tabarin.
Ao contrário de Max Jacob, Apollinaire já tinha
publicado quando se encontraram. Não livros, mas
artigos. Na Revue d’Art Dramatique e na Revue Blanche,
cujo secretário de redação, o escritor Félix Fénéon, fora
julgado por suas simpatias pelos anarquistas (Mallarmé
testemunhou em favor dele). A equipe de redação da
Revue Blanche tinha prestígio, e Guillaume conheceu ali
muitos escri­tores que se tornaram famosos: Zola, Gide,
Proust, Verlaine, Jarry, Claudel, Léon Blum, Octave
Mirbeau, Jules Renard, Julien Benda...
Com alguns amigos, Alfred Jarry e Mécislas Goldberg
en­tre outros, Apollinaire fundou igualmente uma revista,
com uma sede – a casa da mãe –, um secretário de
redação – André Salmon –, um título – Le Festin d’Esope –
e nove números. Em 1904, ela publicará L’enchanteur
pourrissant.
Apollinaire tem ainda outros títulos. Alguns anos antes,
quando tinha apenas vinte anos, ele escreveu um
pequeno livro erótico que foi distribuído por baixo do
sobretudo (dos homens) e dos vestidos (das mulheres):
Mirelv, ou le petit trou pas cher.28 Um programa
completo. E antes disso ainda, quando a mãe, o irmão
Albert e ele mesmo desembarcaram em Paris, sem as
riquezas com as quais a Kostrowitzka tinha vivido seu
esplendor, o poeta redi­gia artigos para reclames, que
ainda não se chamavam publicidade. Também escreveu
para um novelista famoso que publicava, sob seu nome,
histórias em episódios, no jornal Le Matin. Fez a mesma
coisa para um estudante, que lhe pagou pela redação de
uma tese de doutorado sobre os escritores da época da
revolução.
Assim vivem os poetas. Quando não fazem jornalismo
– ­ora cachorros atropelados (como Dorgèles), ora
crônicas artísticas (como Salmon), ora teatro (como
Léautaud) –, publicam contos nos jornais (como Alain
Fournier) ou escrevem livros licenciosos para Jean Fort,
um livreiro do faubourg Poissonniere (como Alfred Jarry
ou Pierre Mac Orlan, que, uma vez ou outra, os assina
com seu verdadeiro nome: Pierre Dumarchey).
No Fox, onde Picasso e Max Jacob vêm esperar o novo
amigo, à saída do trabalho, Apollinaire não para de abrir
seu talen­toso leque. Pois ele também fora secretário e
preceptor de francês. Tem até um diploma. Da União dos
Estenógrafos. Olham para ele espantados. E ele, com
ares de superioridade:
“Posso escrever tão rápido quanto falo.”
“Isso serve para alguma coisa?”
“Para nada. Absolutamente nada...”
Além do mais, ele não trabalha como Salmon nem
como Jacob. Não precisa de mesa. Ou quase. Está mais
próximo de Erik Satie, do qual gosta de lembrar que este
compunha suas obras an­dando de Arcueil a
Montparnasse, parando para escrever suas no­tas
musicais à luz dos lampiões. A exemplo do músico, o
poeta vai andando por Paris cantando uma ária, sempre
a mesma, sobre a qual vêm pousar as rimas e os versos,
“como uma abelha sobre uma flor”, escreverá Max Jacob
– que continua assim: “era uma poesia terrivelmente
inspirada. Ele prolongava as notas para acres­centar uma
sílaba ou ao contrário para suprimir”. Paul Léautaud, que
uma noite será convidado de Apollinaire, ouvirá sua
mulher cantarolando a mesma ária... pois era ela que
passava a limpo os versos do marido.

Ele parece rico, mas é pobre. Sua mãe – “mamãe”,


como ele diz – garante uma parte do trivial. Ela abusa da
bebida, rum e uís­que.
Em Vésinet, na bela casa situada no centro de um
parque, Vlaminck e Derain encontraram a Kostrowiyzka.
Ela estava pas­seando com os cachorros, dois setters de
pelo vermelho. Andava com um chicote na mão. Os dois
pintores se perguntaram se ela também usaria o chicote
para conduzir o amante já antigo, um certo senhor Weill
(que Max Jacob toma erroneamente pelo pai de
Guillaume), empregado da Bolsa, que se empenhou para
arranjar trabalho para os irmãos Kostrowitzky. Pelo menos
é o que diziam os vizinhos.
Albert, o mais jovem dos dois, simpatizante do Sillon
cató­lico de Marc Sangnier29, é um rapaz tranquilo,
comportado e sen­sato. A mãe o ouve com interesse e
admiração. O outro, o poeta, ela não compreende, mas
tem por ele um amor protetor. Alguém que não serve
para nada, nem para trabalhar na Bolsa, nem para fazer
nenhum tipo de trabalho manual. Nunca tem dinheiro e
sempre tem medo de não ter. Gostaria de poder trocar
um emprego estável, fixo e respeitável de empregado de
banco pela profissão de poeta. O que é um poeta?
O tempo todo, Guillaume tem que engolir o operador
da caixa registradora da mãe, sem poder dar o troco: ele
gosta da mãe. Ele a defende, e não perdoará Max Jacob
por ter escrito uma can­ção para ela, que os amigos,
quando querem zombar dele, cantam em coro:
Épouser la mère d’Apollinaire
La mère d’Apollinaire
De quoi qu’on aurait l’air?
De quoi qu’on aurait l’air?30

Ele tem cara de menino obediente. A mãe quase não


leu nada do que ele escreveu (ele não manda nada para
ela), e quando der uma espiada em L’hérésiarque & Cie,
fechará rapidamente os olhos sobre essas histórias
totalmente escabrosas e incompreensíveis. Um dia, ao
encontrar Paul Léautaud, ela lhe dirá:
“Meu outro filho também escreve! O que está no
México!”
“Que tipo de literatura?”
“Coisas complicadas... Artigos para um jornal de
economia.”
Para ela, Guillaume é uma criança um tanto
insuportável.
Quando ele estava na Renânia, bebezinho de 21 anos
per­dido na Alemanha, para onde foi como preceptor, ela
lhe escreve como se ele ainda fosse um menino. Quer
saber o que ele faz, como gasta seu dinheiro, se ainda
pensa na família, praticamente lhe dá ordens para ler os
jornais alemães, a fim de aprender a língua, aconselha-o
a não colocar dinheiro na carteira, que pode ser rou­bada
por garotos mais espertos do que ele... Chama-lhe a
atenção porque ele esqueceu de escrever no Natal,
recomenda que lamba BEM o selo antes de colar no
envelope, que compre sapatos, se não custarem mais de
oito marcos, que à mesa beba vinho, cerveja ou então
leite, que não faça bobagens... Quer saber se a roupa de
cama é trocada e lavada, se alguém conserta suas
roupas. Com incrível autoridade, exige que responda às
cartas dela e não mande aque­las cartas de sempre, que
parecem ter sido escritas por um imbecil. Finalmente,
pede-lhe que preste atenção na ortografia:
Presta atenção nas tuas cartas: é vergonhoso para um garoto que
frequentou a escola cometer erros de ortografias [sic] o tempo todo.
Entendo que são erros de falta de inatenção [sic], mas se você escre­ver
assim a outras pessoas eles [sic] falarão mal das tuas cartas e será
vergonhoso.1

Até a idade de 27 anos, Guillaume ficará morando com


mamãe. Aos 28, 29, ele irá visitá-la todos os do­mingos, e
em todas as vezes, como num ritual, levará uma
pequena trouxa de roupa suja para lavar. Em troca,
levará potes de geleia caseira. E voltará carregado de
bacalhau ou de macarrão.
Ela nunca vai gostar dos amigos dele. Nem dos de
Mont­martre, nem de Vlaminck, nem de Derain, que
Apollinaire levou uma primeira vez a Vésinet porque,
como a carteira estava vazia e o estômago, colado nas
costas, ele pensou que poderiam alimentar­-se na sala da
família: esperava que a mãe convidasse os três para se
sentar à mesa com os convidados dela. Foram levados
para um pe­queno cômodo, entre a sala de jogos e a sala
de música. Em cima de um baú, um macaco cego estava
preso em uma gaiola; também morto de fome, ele havia
roído as barras douradas a ponto de per­der a visão.
Sentados em cadeiras nada confortáveis, os três
amigos ou­viram, sem dizer uma palavra, mas com a boca
cheia d’água, o ba­rulho dos garfos e das facas que
chegava do cômodo vizinho. Ti­nham começado sem eles.
Entrada, prato principal, queijos, doces. Até o macaco
estava calado. Finalmente foram levados até a sala de
jantar, depois que todos os convidados tinham ido
embora, assim como a dona da casa, evitando os
artistas.
Comeram o que sobrou.
Guillaume Apollinaire herdou da mãe o pecado da gula.
“O vinho tilintava no seu estômago, a carne estalava
entre seus dentes”, escreveu Chagal.2 Ele gostava de
comer, de se empanturrar, de engolir os pratos uns atrás
dos outros, de recomeçar até não ter mais fome, mais
sede, até ficar saciado, sempre.
À mesa, ele se distinguia. Com as bochechas
estufadas, o estômago preparado, o colarinho aberto, o
cinto afrouxado, aguar­dava o sinal de partida e corria em
todas as direções pelo cardápio dos pratos e dos vinhos.
Escolhia os pratos mais variados, pois, tirando a carne
vermelha, gostava de tudo. Com uma preferência por
tripas e petit-fours cobertos de glacê, e por risoto, que
ele mes­mo preparava para os amigos, quando os
convidava para jantar.
No restaurante, Apollinaire era um espetáculo à parte:
o guardanapo em volta do pescoço, devorando uma ave
cujos ossos quebrava com os dentes e com as mãos, o
colarinho frouxo, a pe­quena boca bem aberta e cheia de
molho, o sorriso percorrendo os pratos. Depois de engolir
dois grelhados e três costeletas, levantava-se de repente
e dizia: “Esperem por mim. Agora tenho que ir cagar no
Lutécia”. Pois ele conhecia os melhores banheiros de Pa‐­
ris, que sempre aconselhava a seus amigos.
Quando voltava, e se Carco estivesse à mesa, o poeta
ter­minava sua refeição, pedia um café e um caldo
gorduroso como digestivo.
Se fossem Derain e Vlaminck, no Chartier da rua Mont‐­
martre, por exemplo, apostavam quem comia mais. A
regra era sim­ples e das mais sociáveis. Devoravam todos
os pratos do cardápio e, quando terminavam,
começavam outra vez. Quem parasse pri­meiro, perdia.
Depois pagavam. Raramente Apollinaire.
A cena predileta do poeta, no restaurante, consistia em
le­var a mão ao bolso, empalidecer e exclamar: “Esqueci
minha car­teira!”. E quanto já tinha aplicado o golpe
tantas vezes quanto Depaquit indo para Sedan, optava
por perder o concurso. Até o momento em que Vlaminck
dizia:
“Não te preocupa, é a minha vez.”
Imediatamente ele recobrava o moral e três pratos
com molho.
Com os gastos era extremamente parcimonioso. Para
não usar outra palavra. Tinha medo da falta, a angústia
de um criador diante de uma renda oscilatória, um
pássaro na corda bamba dos direitos autorais...
Isso ele aprendera com a mãe. Esta conhecera altos e
bai­xos. Fora preciso se adaptar. A escola de Guillaume foi
dura...
No entanto, nunca chegou a ser como Harpagon31
diante de seu pé-de-meia, e isso por uma boa razão: ele
não tinha pé-de-meia; foi quase sempre muito pobre,
nunca foi rico. Parecia uma criança, agarrado às suas
moedinhas.
Soupault conta que, durante a Guerra, ele sempre
acompa­nhava Apollinaire, que trabalhava então na
Censura, no edifício da Bolsa. Um dia, passavam pela rua
da Banque, onde havia um vendedor de coisas usadas.
Guillaume parou na loja. Olhava tudo: chaves velhas,
canetas-tinteiro, bustos, louça, pesos e medidas... Exta‐­
siava-se diante dos objetos. Chamou o vendedor:
“Quanto custa esse vaso?”
“Dez vinténs...”
“Dez vinténs?”
Olhou encantado para o vaso e depois recolocou-o,
brusca­mente, fazendo um muxoxo.
“Dez vinténs é muito caro.”
Pegou um velho cachimbo, alisou a textura do
material, admirou a curvatura e perguntou:
“E esse cachimbo?”
“Dois vinténs.”
“Dois vinténs? Não vale isso!”
Desapontado, ia embora. No dia seguinte, ele voltava,
e mes­mo que o vaso custasse cinco e o cachimbo apenas
um, não com­prava nem um nem outro.
Havia uma maneira de irritá-lo: abrir seus armários e
fingir roubar alguma coisa. Apollinaire corria atrás do
indelicado, orde­nava, suplicava, exigia que lhe
devolvessem o que lhe pertencia. Sempre acabava
recuperando o objeto, e sempre com amáveis
reprimendas. Ninguém ficava zangado com ele.
Admitiam essa sua fraqueza. Sabiam como lidar com ele:
era só não lhe pedir nada.

Esse homem que fazia tantas economias não


economizava esforços quando se tratava de amor.
Quando conheceu Picasso e Max Jacob, estava voltando
de Londres. Tinha ido fazer mais uma ten­tativa, a última,
junto a uma jovem por quem estava loucamente
apaixonado. O nome dela era Annie Playden. Ele a tinha
conhe­cido três anos antes, na casa da Viscondessa de
Milhaud. Na época, ele dava aulas de francês para a filha
dela, Gabrielle. O inglês era ministrado por uma
governanta britânica, a bela Annie. Ele se apaixonou em
Paris e seguiu-a até a Renânia, onde a família se ins­talou.
Essa migração permitiu que ele esquecesse um outro
amor, Linda, visitasse a Alemanha e escrevesse sobre
esse país – Les rhénanes e algumas outras páginas
admiráveis, que serão retoma­das em Le poète assassiné
e L’hérésiarque & Cie.
Sua maior ocupação, porém, seu campo de batalha,
mais do que as aulas de francês da pequena Gabrielle, é
a governanta in­glesa. Ele lhe envia versos, que fez para
Linda e que outras, mais tarde, também receberão,
sempre acreditando serem as únicas. Fala com ela em
francês, ela responde em inglês. Se entendem pouco,
mas para a jovem está tudo muito claro: ele lhe faz a
corte. E parece que conseguiu. “Eu o amei carnalmente,
mas nossos espíritos esta­vam muito distantes um do
outro”, confidenciaria a moça.3
Em todo o caso, nas cartas ela o chama de querido...
Durante quase um ano, tiveram uma ligação amorosa
e clan­destina. Um dia infeliz, Annie rompe: “Kostro”,
assim ela o cha­mava, tem uma personalidade rude e
difícil que vai de encontro ao temperamento casto e
reservado da jovem. Um dia, ele a levou até a beira de
um precipício e colocou a decisão nas mãos dela:
“Ou você casa comigo, ou te jogo lá embaixo.”
Ela conseguiu convencê-lo de que a proposta não era
justa. No dia seguinte, foi embora, e Guillaume ficou
sozinho e a ver navios.
Não foi a primeira nem será a última vez: ele sabe
como conseguir, mas não sabe como preservar. É sempre
rejeitado. Ele é o mal-amado das mulheres. E sofre por
isso. A todas escreve epís­tolas em versos, primeiro para
conquistar, depois para continuar, e no fim para
recomeçar. Chama e paixão. Ardor e volúpia. É toma­do
tanto pelo sentimento quanto pelo erotismo. Nada o
detém. Annie Playden não quer mais nada com ele?
Impossível.
Entretanto ela resiste, e Guillaume volta para Paris. Por
uns tempos. Flerta com uma vizinha. Quando soube que
Annie voltara para a Inglaterra, vai atrás dela. Propõe
raptá-la, casar-se com ela, ter filhos, dinheiro, chapéus e
peles que deixarão boquiaberta a respeitável família da
moça. Uma noite, prepara-lhe uma armadi­lha. Convida-a
para jantar na casa de um amigo, um escritor alba­nês.
Annie obtém permissão de voltar às nove horas. Alguns
mi­nutos antes das nove, quando o jantar já é apenas
uma lembrança, ela percebe uma estranha animação no
cômodo ao lado. Vai ver o que se passa: a companheira
do escritor albanês está preparando uma cama.
“Para quem é aquele quarto?”, ela pergunta.
“Para quem haveria de ser? Para nós!”, responde
suave­mente Kostro.
Às nove e dez, Annie Playden está em casa. Ela se
protege atrás da zanga dos pais.
Guillaume volta mais uma vez para Paris, de orelhas
caídas. Será que vai desistir dela? No ano seguinte, volta
a Londres. Dessa vez, propõe à sua Dulcineia um título
de condessa. Nananinanão. Fugir para a França.
Nananinanão. O que, então?
“Nada!”, grita a jovem governanta.
E como o poeta continua insistindo, cansada de brigar,
ela dá mais um passo: havia atravessado o Canal da
Mancha para fugir dele, agora colocará um oceano entre
os dois. O Atlântico os sepa­rará para sempre. Apollinaire
não irá para a América...
Annie, porém, terá sua Chanson du mal-aimé, como
Louise, quinze anos depois, terá seus Calligrammes.
Adieu faux amour confondu
Avec la femme qui s’éloigne
Avec celle que j’ai perdue
L’année dernière en Allemagne
Et que je ne reverrai plus.32

Quando volta de Londres, em 1904, Apollinaire deixa o


banco on­de trabalhava e se torna redator chefe do Guide
des Rentiers.33 Ele nada entende da Bolsa, mas finge.
Quando colocar sua pena a ser­viço da pintura, tornando-
se o trovador dos artistas, ao lado dos quais ele vive,
algumas línguas, nem sempre ferinas, dirão a mesma
coisa: que ele não entende nada de pintura.
Por enquanto, pelo menos, ainda não escreveu muita
coisa sobre arte. Faz seus discursos no Fox, como mais
tarde os fará no Flore. Seu séquito não é composto
apenas por Picasso e Max Jacob. Dele também fazem
parte um escritor que ele admira, Alfred Jarry, e dois
pintores fauves que conheceu no trem, entre Vésinet e
Paris: Vlaminck e Derain. O grupo já está formado. Falta
apenas o lugar.
É Picasso que o descobre, em 1904, quando volta de
sua quarta viagem à Espanha. Seu amigo Paco Durrio, o
escultor cera­mista, deixa o ateliê que ocupa em
Montmartre. Um espaço bizar­ro, num lugar incrível. Uma
antiga fábrica de pianos, construída em 1860, que se
tornou residência de artistas, graças a um tapume de
madeira cercando o local. O lugar ficava na encosta da
colina, e a entrada era pelo último andar. Ao descer, ia-se
deslizando por corredores escuros, abafados no verão,
gelados no inverno. Os ate­liês recebem a luz através de
amplas janelas que dão para Mont­martre. No primeiro
andar, há uma bica: a única. E os banheiros: os únicos. O
teto dos andares inferiores é o assoalho dos andares
superiores. Ouve-se tudo de um cômodo para o outro:
colchões que rangem, pontuados por outros gemidos,
cantorias, gritos, barulho de passos... As frestas do
assoalho permitem que nada se ignore sobre os feitos e
gestos dos vizinhos. As portas mal se fecham.
Picasso, entretanto, fica encantado. Olha com avidez
para aquela estranha construção de madeira que não se
parece com nada. Ele a chama de Maison du Trappeur.
Max Jacob tem outra ideia. A cabana parece com as
barcaças de fundo chato sobre as quais as lavadeiras
lavam roupa no Sena. Dá-lhe então um nome que, saindo
da rua Ravignan, dará a volta ao mundo: o Bateau-Lavoir.

25 Guillaume Apollinaire, As onze mil vergas, Mem Martins, Europa-América,


1996. (N.T.)
26 Principal rua do bairro judeu. (N.T.)
27 Nos arredores de Paris. (N.T.)
28 Mirely, ou o buraquinho barato. (N.T.)
29 Le Sillon: movimento social de inspiração cristã fundado em 1894,
condenado por Pio X. (N.T.)
30 Casar com a mãe de Apollinaire/ A mãe de Apollinaire/ Com que cara
vamos ficar?/ Com que cara vamos ficar? (N.T.)
31 Personagem principal de O Avarento, de Molière. (N.T.)
32 Adeus falso amor que confundi/ Com a mulher que não ficou/ Com aquela
que perdi/ Na Alemanha que passou/ E que não mais estará aqui. (N.T.)
33 Guia dos Investidores. (N.T.)
A bela Fernande

Meus olhos são pesos que medem a sensualidade das mulheres.


Blaise Cendrars

P icasso mora em cima, isto é, no térreo. Na porta do


ateliê, ele escreveu com giz estas palavras,
inspiradas nos letreiros dos cafés: “AU RENDEZ-VOUS
DES POÈTES”.34 Ao empurrar a tabuleta, o visitante (são
numerosos) descobre uma pequena entrada que dá para
um quarto minúsculo cujo assoalho está apodrecido.
Depois, entra num cômodo mobiliado por um somiê e um
aquecedor de ferro fundido enferrujado. Lá dentro, reina
um cheiro de fumo, petróleo e óleo de linhaça. Na
penumbra, dá para distinguir uma bacia que serve de
pia, sobre a qual está jogada uma toalha e um pedaço de
sabão nojento. Há também uma cadeira de palha,
cavaletes de todos os tamanhos, tubos de tinta
espalhados pelo chão, pincéis, recipientes cheios de
querosene. Uma mesa com uma gaveta serve de
moradia para um camundongo branco, domesticado, do
qual Pi­casso cuida com carinho, e que não assusta a
cadela Frika, uma doce vira-lata. Um enorme lampião é a
única fonte de luz. Num canto do cômodo, uma prateleira
de zinco contém dezenas de livros. Aqui, uma mala preta
serve de cadeira. Mais adiante, um balde cheio de água
espera para ser esvaziado. É tudo uma bagunça.
Menos na cama.
Recostada na cama, repousa uma jovem de 23 anos,
alta, loura bonita, de uma graça delicada, que o pintor
contempla com toda a força magnética de seus olhos
negros. Fernande Oli­vier. É sua grande paixão. Aquela
que substituiu as prostitutas, e algumas outras que
vieram e foram embora, colegas de escola do jovem
Pablo. Ela ainda não destronou todas. Mas vai fazê-lo.
Ele a viu pela primeira vez perto da fonte da rua
Ravignan. Depois, cruzou com ela perto da bica, no
primeiro andar. Trocaram algumas rápidas palavras. Ela
também mora no Bateau-Lavoir. Vi­ram-se novamente na
praça de Ravignan, onde Picasso faz ponto com sua
turma. O pintor despertou-lhe o interesse por causa de
seus “grandes olhos pesados, contundentes e
pensativos, cheios de fo­go contido”.1 Ele pareceu-lhe não
ter idade. Gostou do desenho de seus lábios, um pouco
menos do nariz grosso que o torna um pouco vulgar. Ele
tem mãos femininas. Anda malvestido, desen­gonçado.
Ela acha que ele é tímido e orgulhoso.
Quanto a ele, foi seduzido por seu porte, seus chapéus,
uma elegância à qual não estava habituado.
Numa noite chuvosa, encontrou-a nos corredores
escuros da Maison du Trappeur. Ele vem com um gato
nas mãos, que aca­bou de pegar numa calha. Pergunta se
ela o quer.
Ela lhe conta sua vida, muitos espinhos e poucas
flores: uma infância infeliz, pais que a rejeitaram, um
marido empregado do comércio a quem se uniu para
fugir do inferno familiar; uma criança perdida, um
divórcio doloroso depois de surras e ferimen­tos, uma
ligação com um escultor que a estimulou a se tornar mo‐­
delo. Alguns amantes. Sonhos e tristezas...
Picasso fica louco por ela. Certa manhã, pede a
Apollinaire para ajudá-lo a fazer uma limpeza no Rendez-
vous des Poètes. Du­rante o dia todo, esfregam o
assoalho, as paredes e até o teto com uma vassoura. À
noite, o pintor apresenta o ateliê a Fernande. Ele espera
que ela não resista por muito tempo...
Na verdade, ela cai sim, para trás, vítima do efeito
conju­gado dos odores de água-de-colônia, terebintina,
querosene e água sanitária. Mas não é para sempre e,
dessa vez, não foi por muito tempo: ela tem seus
amantes, e ele tem a enigmática Madeleine, mo­delo
misteriosa que pode ser reconhecida em Femme au
casque de cheveux e em La femme à la chemise (é ela
também o personagem do magnífico Nu assis, que será
comprado por Gertrude Stein).
Mas agora Picasso está amando. Não é um mero
interesse: é uma paixão. Ele, o jovem espanhol, ainda
embrutecido, descuida­do, falando mal o francês,
frequentador de bordéis, nos braços dessa mulher
esplendorosa, bem-vestida, divinamente perfumada, um
pouco burguesa, como serão todas as outras.
Quando ela vai vê-lo, ele a devora com um olhar
suplicante. Esconde os objetos que ela esquece. Quando
ela acorda, ele está à sua cabeceira, enlevado. Esquece
os amigos, esquece de pintar, só não se esquece dela.
Suplica-lhe que venha morar com ele. Ela hesita. Tem
medo do seu ciúme e da sua violência. Ele sempre a su‐­
foca com suas investidas, o que a assusta um pouco. Mas
quando lhe traz presentes, ela se derrete. Ele não tem
um tostão furado, mas isso não o impede de lhe oferecer
livros, chá, grandes frascos de perfume, perfumes pelos
quais ela é louca, tão fortes e cheirosos que quando ela
está em algum lugar basta inspirar para dizer:
“A senhora Picasso está por aqui.”
Ele a desenha sem parar. Ela posa e observa. No
cômodo reina a desordem. Mas isso não a incomoda. Por
outro lado, a gen­tileza do dono da casa não compensa
sua “falta de higiene”. In petto, Fernande promete que
vai ensiná-lo que, quando se recebe uma mulher, é
preciso estar limpo. Ela já se atribui um papel na
educação do rapaz.
Vai ter muito trabalho pela frente. Porque, acima de
tudo, Picasso é ciumento. De tudo e de todos, como será
sempre, por toda a vida. Não suporta perder as mulheres
ou os amigos, a não ser quando ele mesmo decide. Com
Fernande ele se comporta da mesma maneira como se
comportará, quase cinquenta anos mais tarde, com
Françoise Gilot, a quem aconselhará, sem brincadeira, a
usar um véu e um vestido até os pés. “Assim, você
pertenceria ainda menos aos outros, eles não a teriam.
Nem com os olhos.”2
Ele gostaria de trancar a bela Fernande em casa. Para
que ela não saia. Quer que ela desista de posar em outro
lugar; a partir de então, Picasso já não gosta que as
mulheres da sua vida sejam representadas, a não ser por
ele. Fernande posa uma vez, seminua, um seio bem à
mostra, para Van Dongen (La belle Fernande, 1906).
Ganha imediatamente uma bofetada. Ele faz uma cena
homérica certo dia em que desconfia que ela provocou o
olhar de um cliente sentado num bar. A partir desse dia,
ela não sai mais de casa. Ele prefere fazer tudo, inclusive
as compras, a arriscar outra troca de olhares.
Esse aspecto possessivo do personagem diverte os
amigos. Apollinaire caçoa gentilmente dele, fazendo com
que diga em Femme assise:35
Pour aboir braiment une femme, il faut l’aboir enlevée, l’enfermer à clef
et l’occouper tout lé temps.3

Picasso alterna o frio e o quente. Nunca está morno.


Nesse universo de dura miséria, ele traça os arabescos
coloridos da vida em comum: ela não trabalhará mais,
ele lhe comprará livros e fará tudo para ela.
Certa manhã, ele promete que lhe fará uma surpresa,
à noite.
“Você vai fazer meu retrato?”
Ele enfia as mãos nos bolsos do macacão, sorri de
forma enigmática e repete:
“Surpresa...”
À noite, ela vem. Ele está esperando impacientemente.
Mos­tra-lhe alguns objetos que acabara de comprar: uma
pequena lam­parina, um cachimbo com uma longa haste
de bambu e emboca­dura de marfim.
“É fumo novo?”
“Vem...”
Faz com que ela se deite sobre o pano que cobre o
chão. Estira-se ao lado dela. Faz alguns gestos estranhos,
que ela observa sem desconfiar: abre uma caixa que
contém uma massa escura, cor de âmbar; faz uma
bolinha com os dedos, espeta-a na ponta de uma agulha,
acende a lamparina, esquenta a bolinha na chama,
coloca-a na extremidade do cachimbo e aspira, depois
passa o ins­trumento para a companheira. É assim que
ela descobre que Pi­casso fuma não só o fumo comum
que coloca no cachimbo. Ele é também um grande
apreciador de ópio.
Adormecem quando está amanhecendo.
Ela passa três dias com ele. Picasso trabalha durante a
noi­te. Quando vai embora, está apaixonada.

34 Ponto de encontro dos poetas. (N.T.)


35 O personagem mistura francês e espanhol e comete erros, como Picasso.
(Para ter verdadeiramente uma mulher, é preciso raptá-la, trancá-la a chave
e mantê-la ocu­pada o tempo todo.) (N.T.)
O Bateau-Lavoir

Era uma vez um poeta tão pobre, tão necessitado, e que morava
tão mal, que quando a Academia Francesa lhe ofereceu uma
cadeira, pediu permissão para levá-la para casa.
André Salmon

E la conheceu Guillaume Apollinaire. Achou-o gordo,


jovial, amável. Era elegante, tinha a cabeça em forma
de pera, os olhos bem aproxi­mados, as sobrancelhas em
forma de vírgulas, a boca pequena, um jeito de criança.
Era calmo, austero, doce, enfático, encantador.
Max Jacob: tinha o olhar fugidio, a boca fina e maldosa,
ombros estreitos, leve jeito provinciano. O que mais lhe
chamou a atenção foi o sentimento de inquietação que
parecia atravessá-lo, e seu medo das mulheres.
Encontravam-se quase todas as noites. A maioria das
vezes, na casa de Pablo. Apollinaire quase sempre se
convidava, ao con­trário de Max Jacob: era preciso pedir-
lhe que viesse.
Sentavam-se à mesa dividindo uma pequena toalha,
da qual cada um ficava com uma ponta e sobre a qual
Apollinaire es­creveu um conto.1 Quase sempre havia
ostras portuguesas, pois a oito vinténs a dúzia era algo
que podiam comprar. E quando não podiam, era só
descer até o subsolo do Bateau-Lavoir, bater na porta
onde estava escrito: “SORIEUL, CULTIVADOR”, e tentar
negociar fiado alcachofras, aspargos, cebolas, que o
morador, por um mila­gre nunca explicado, cultivava em
casa.
Apollinaire dizia seus versos, sem jeito e sem nenhuma
gra­ça. Max Jacob era engraçado, brilhante e divertia a
plateia até o amanhecer. Em Femme assise, Guillaume
Apollinaire retratou-o sob o nome de Moïse Deléchelle:
“Um homem cinzento cujo corpo, em todas as partes, é
musical”. E o que faz esse homem-orquestra?
Bate na barriga para imitar os sons profundos do violoncelo; dos pés tira
as ressonâncias roucas da matraca; a pele esticada das bochechas é um
címbalo tão sonoro quanto o dos ciganos de restau­rante, e os dentes, nos
quais bate com uma caneta, produzem os sons cristalinos das orquestras
de garrafas tocadas por certos artis­tas de musicais, ou que fazem o
charme de certos realejos dos par­ques de diversão.2

Improvisavam peças de teatro que representavam


vestidos a caráter. A cadela Frika, presa a uma corrente
metálica que arrastava atrás de si, era a encarregada dos
efeitos sonoros. Nos andares de baixo, o pintor Jacques
Vaillant assegurava a multiplicação dos efeitos, gra­ças às
suas próprias festas, sonoras e agitadas. Quando voltava
o silêncio, falavam de arte, de poesia, de literatura. Se
Guillaume Apollinaire perdia o último trem para voltar
para casa e para a mãe, dormia no Bateau-Lavoir, num
colchonete, ou num quarto de hotel, na rua de
Amsterdam.
De manhã, se era inverno, e se o inverno era rigoroso,
Pi­casso ficava na cama, debaixo das cobertas. Se era
verão, ele se le­vantava e pintava, nu. Quando batiam à
porta e ele estava traba­lhando, não abria. Se insistiam,
insultava o intruso e mandava-o embora. Se era o
entregador da confeitaria da rua das Abbesses, era
Fernande que respondia, gritando:
“Não posso abrir, estou nua!... Deixe o embrulho na
porta!”
Era uma artimanha para pagar mais tarde: na véspera,
ela havia feito a encomenda pedindo que entregassem
em casa; ela pa­gará quando puder...
Havia também uma outra artimanha, que consistia em
rou­bar as garrafas de leite colocadas nas portas dos
apartamentos ri­cos. Mas para isso era preciso levantar
cedo...
Quando era um marchand, a zeladora avisava. Morava
na casa ao lado, tomava conta de quem entrava e
atendia quando a cara era confiável – isto é, quando não
parecia ser um credor. Então, batia na porta dos pintores
gritando:
“Dessa vez é sério!”
Se era para Picasso, ele escondia Fernande sob os
lençóis, e abria o trinco. Recebia Sagot ou Libaude,
esforçando-se para ser amável. Além de não gostar
deles, gostava menos ainda de se des­fazer de obras, que
muitas vezes considerava inacabadas. Depois disso, não
conseguia pintar por vários dias.
Encontravam consolo no Azon, na rua Ravignan.
Graças a Salmon, puderam comer ali, muito bem e fiado,
durante alguns anos. Ao constatar que a proprietária era
leitora assídua do Matin, o jornalista, poeta e escritor fez-
se passar por autor do folhetim que ela devorava todos
os dias. Desmascarado, depois de uma de­núncia
comprovada por fotos, teve de se resignar a comer
menos.
Também podiam ir ao Vernin, na rua Cavallotti,
restaurante popular frequentado por operários e
empregados. Se a dívida fosse grande, podia-se penhorar
um objeto nas vizinhanças e pegá-lo de volta assim que
possível. Com um pouco de sorte, sabendo como fazer,
colocava-se a despesa na conta de alguém. E, se Max
Jacob estivesse lá, era o paraíso: seu pai pagava a conta.
Havia feito um acordo com o proprietário: Max pagaria
sempre que possível, e se restasse algum débito no final
do mês, o pai acertaria. Com uma condição: o menu
deveria ter sempre uma entrada, um prato prin­cipal,
queijo e sobremesa, um café ao meio-dia e meia caneca
de vinho tinto à noite.
Sem que o pai soubesse, Max tinha renegociado o
acordo.
A entrada, prato principal, queijo, sobremesa, café,
vinho pode­riam ser transformados em cerveja,
quinquina, marc e outras be­bidas alcoólicas que ele
oferecia aos amigos, graças ao mecenato paterno. Desse
modo, podiam festejar alegremente pelo equivalen­te a
uma refeição diária.
Quando voltava para casa, Picasso pegava, às vezes, a
lam­parina, o cachimbo e a caixinha de ópio. Havia
descoberto a droga junto a um casal que frequentava a
Closerie des Lilas, em Mont­parnasse. Outros clientes do
café também a apreciavam, entre os quais, talvez, Alfred
Jarry: Les minutes de sable mémorial 3
con­tém uma dose
de ópio, com lábios queimando, corpo astral e o in‐­
dispensável narguilé; e talvez também Blaise Cendrars,
na Páscoa e em Nova York: “Eu lhe dei ópio para que ele
chegasse mais rápido ao paraíso”.
A partir de 1910, a coca destronará o ópio, e depois o
con­sumo geral vai diminuir: durante a Guerra, o uso dos
entorpecen­tes será severamente reprimido.
Na época do Bateau-Lavoir, o ópio estava na moda:
era com­prado dos oficiais da marinha que o traziam da
China e da lndo­china. Bastava ir a uma loja da rua Croix-
des-Petits-Champs, pedir “uma caixinha”, deixar vinte
francos no balcão e ir embora com o material necessário
e a respectiva substância.
Devidamente abastecidos, os convidados da Maison du
Trappeur se estiravam sobre o pano que Fernande já
havia usado, e depois, ao mesmo tempo que bebiam chá
frio com limão, se dei­xavam levar pela magia dos
paraísos artificiais.
Também fumavam haxixe. Segundo Fernande Olivier,
ele proporcionava estranhas sensações. Certa noite em
que estavam fumando na casa de Princet, um
matemático mais ou menos confiável de Montmartre (em
quem alguns, estranhamente, verão o teórico do
cubismo), Apollinaire foi tomado por uma crise de ubi‐­
quidade: achava que estava no bordel. Quanto a Picasso,
entrou numa espécie de transe doloroso, chorando e
gritando que, depois que descobrira a fotografia,
compreendera que sua arte não valia mais nada, e que o
melhor que tinha a fazer era se matar.
Fumou-se muito em Montmartre, até 1908. Nesse ano,
um pintor alemão do Bateau-Lavoir, Wiegels (o Krauss do
Quai des brumes), se enforcou depois de ingerir éter,
haxixe e ópio. Picasso jurou nunca mais fumar. Max
continuou, sempre com prazer. An­tes da Guerra,
Guillaume Apollinaire fumava ópio com Picabia (quase
todos os dias, afirmou esse último); ainda fazia isso
quando conheceu Lou: nos primeiros meses de 1915, foi
com a musa dos Calligrammes a um local onde se
fumava ópio, em Nice.
Com mais frequência, porém, do que fumar, os artistas
be­biam. Tirando Vlaminck, que só tomava água, e
Picasso, que bebia moderadamente, os copos se
enfileiravam em cima do balcão, nos cafés da Butte.
Ninguém ia mais ao Zut, que fora fechado pela polícia
por causa dos anarquistas. Mas seguiram Frédé. Ele havia
retomado o antigo Cabaret des Assassins, que antes
havia pertencido a Adèle, amiga da Goulue, que por sua
vez sucedera a um ilustrador e poeta metido a
comunista, André Gill. O Lapin à Gill, rebatizado como Au
Lapin Agile, ficava na rua dos Saules e tornou-se um dos
pon­tos altos de Montmartre, o reduto preferido da turma
de Picasso. Era também frequentado por Carco, Dorgèles,
Mac Orlan... O le­treiro representava um coelho saindo da
panela, homenagem ao coelho à caçadora preparado por
Adèle.
O Lapin era uma construção cercada de verde, com
bar, sa­lão, espaço ao ar livre e muitos animais. O interior
era escuro, e lim­po diariamente pela mulher de Frédé,
Berthe la Bourguignonne. Lampiões, que mal se
equilibravam sob abajures vermelhos pendu­rados em
arames fixos no teto, difundiam uma luz de taberna. Nas
paredes, estavam pendurados um grande Cristo branco,
esculpido por Wasselet, obras de Utrillo, de Poulbot, de
Suzanne Valadon e um autorretrato de Picasso vestido de
arlequim (Au Lapin Agile, 1905). Uma grande lareira de
gesso abrigava um batalhão de ca­mundongos brancos.
Eles disputavam o território com um macaco, uma gralha
domesticada e, principalmente, com o jumento de Frédé,
Aliboron, dito Lolo, que comia tudo em todos os lugares,
pin­tava nas horas vagas e teve uma de suas obras
exposta no Salão dos Independentes de 1910.
Voltaremos a falar nisso.
Berthe cuidava da cozinha, e a cozinha era boa. Frédé
ficava no caixa e vendia fiado. Bebia-se bem, quase
sempre muito. A bebida preferida, sugerida pelo
proprietário e apreciada pela clien­tela, era a combine,
mistura de cerejas, vinho branco, groselha e licor de
ginjas. Nos fins de semana, o bar e o salão ficavam
lotados pelos clientes habituais da casa, aos quais se
misturavam curiosos, que vinham se divertir nesse lugar
que cheirava a mulher e artista.
Todo o Montmartre frequentava o Lapin. Foi lá que
Picasso e Fernande encontraram o tonitruante Harry Baur
(chamado pelo pintor de El Cabo) e o discretíssimo
Charles Dullin. Este só se ani­mava quando dava vazão à
sua veia teatral, recitando poemas de Baudelaire,
Rimbaud, Verlaine e Laforgue. Ele não dizia, cuspia. Com
os cabelos caindo na testa, o olhar faiscante, vivendo a
poesia como se ela o queimasse, ele cativava a plateia,
que sempre o ouvia em silêncio. Depois, estendia a mão
e comia um sanduíche que Berthe lhe oferecia.
Frédé recebia Picasso e seus amigos com alegria. O
pintor não só era da casa, mas também da família. Ele
fez o retrato da filha de Berthe, que se casou com Pierre
Mac Orlan: La femme à la cor­neille (1904) representa
Margot e seu pássaro domesticado. Ele vinha com
Fernande, com Max Jacob, com Guillaume Apollinaire,
com seus amigos, todos pintores ou poetas, que
formavam seu séquito. Picasso era um pivô em torno do
qual todos se reuniam. Quando o viu pela primeira vez
em sua casa, acompanhado pelo gordo Apollinaire, pelo
longilíneo Salmon e por três armários, Braque, Derain e
Vlaminck, Gertrude Stein achou que ele parecia Napoleão
escoltado por sua guarda pessoal.
Os outros talvez não fossem soldados, mas Picasso
era, ine­gavelmente, o chefe da tropa.
A jaula das feras

Aquilo que eu só teria podido fazer na vida se jogasse uma


bomba – o que teria me conduzido ao cadafalso – tentei fazê-lo
na arte, na pintura, utilizando ao máximo a cor pura.
Maurice de Vlaminck

V “ocê já ouviu falar de Racine, La Fontaine e


Boileau?”, perguntou ironicamente Max Jacob a
André Salmon, logo depois do primeiro encontro entre os
dois. “Pois bem, somos nós!”
Quando veio pela primeira vez ao Bateau-Lavoir,
Salmon encontrou Picasso pintando descalço, no seu
ateliê. À luz de vela. Deixando de lado o que estava
fazendo, ele mostrou suas obras ao recém-chegado.
Como um demiurgo, ia passando de tela em tela,
esbarrando nos cavaletes e nas molduras, apresentando
seu traba­lho sem fazer o menor comentário, indo de um
canto a outro do ateliê para procurar, no meio de todas
as pinturas, aquela que ele queria. Salmon, por sua vez,
assim como Jacob, Apollinaire e tan­tos outros, se deixava
levar pela genialidade que acabara de descobrir naquela
noite.
Alto, magro, também fumante de cachimbo, Salmon já
es­crevia poemas e era também jornalista. Junto com Paul
Fort, pilar de um Montparnasse ainda desconhecido, ele
havia fundado uma famosa revista, Vers et Prose. Sob
uma aparência ríspida e severa, dissimulava um grande
talento inventivo, que divertia muito o pequeno universo
da Maison du Trappeur.
Havia também André Derain, que morava num ateliê
da rua Tourlaque (o mesmo que tinha sido ocupado por
Bonnard), lo­go abaixo da rua Lepic. Vindo de um meio
relativamente favore­cido, Derain tinha abandonado a
estrada da engenharia, na qual ti­nha sido lançado pelos
pais, para trilhar os atalhos escarpados de Montmartre e
da pintura. Conservara dessa vocação industrial, porém,
um acentuado gosto pelo trabalho manual. Gostava de
comprar no Mercado das Pulgas velhos aparelhos que
consertava e ia juntando em casa. Um dos seus
passatempos favoritos era fabri­car aeroplanos de
papelão, que tentava fazer voar. Colecionava ins‐­
trumentos musicais escangalhados e lhes devolvia uma
alma musi­cal. Lia muito, e conhecia toda a literatura da
época. Sua pintura, profunda, organizada, sólida, tinha
qualquer coisa de terrena, for­te, características também
encontradas nas suas atitudes e na sua compleição. Suas
modelos contavam que ele às vezes as colocava no colo,
envolvia-lhes a cintura com uma das mãos e pintava com
a outra. Ele precisava ver, e também tocar.
Antes de se instalar na rua Tourlaque, Derain viveu em
Chatou, a aldeia onde nasceu. Foi lá que encontrou seu
grande amigo Vlaminck, com quem pintou por muito
tempo às margens do Sena, e que apresentou a Matisse.
Desse encontro iria nascer um escandaloso produto: o
fauvisme.
Os dois companheiros certo dia decidiram que seriam
fa­mosos, e que o primeiro que fizesse sucesso, o que
seria marcado pela publicação de uma foto no jornal,
ofereceria uma pantagrué­lica refeição a seu infeliz
concorrente. Vlaminck trouxe o menu: um dia pela
manhã, chegou à casa de Derain com o Petit Journal na
mão. Sua cara estava estampada na terceira página.
Estupefato, Derain leu a legenda: era uma publicidade
para as pílulas laxativas Pink, recomendadas por
“Maurice Vlaminck, pintor”.
Ele, Derain, Manguin, Marquet, Camoin e,
principalmente, Matisse iriam provocar um escândalo no
Salão de Outono de 1905. Esse salão tinha sido criado
dois anos antes para permitir aos jovens artistas que
expusessem suas obras. Completava o Salão dos
Independentes, criado por Seurat e Signac, que se
posicionara contra os salões oficiais, os prêmios e os
júris. Em todas as épocas, artistas re­jeitados pelas
academias se retiravam dos eventos, quando não eram
expulsos pelos responsáveis da seleção. Foi assim com
Coubert, no seu tempo, e mais tarde com Degas. Pissarro
e Manet preferiram ex­por num salão concedido por
Napoleão III para a ocasião: o Salão dos Recusados.
Matisse, Vlaminck e sua turma iriam, por sua vez,
provocar alguma celeuma no terceiro Salão de Outono.
Chegaram trazendo telas cujas molduras eles mesmos
haviam fabricado com madeira cedida por um
marceneiro de Chatou. Haviam se distanciado das regras
picturais nascidas do pontilhismo e do impressionismo,
que tinham, segundo Vlaminck, levado a pintura a um
beco sem saída. Para Matisse, “a pintura em particular,
porque ela é divisionista, destrói o desenho”.1
Esses agitadores representavam a luz de outra
maneira, pela simples força da cor. No verão que
precedeu o Salão, Matisse tinha escrito de Collioure para
Derain, insistindo que viesse ao encontro dele, a fim de
descobrir a luz excepcional dessa pequena cidade dos
Pireneus Orientais. Derain aceitou o convite. Os dois
pintores traba­lharam juntos. Derain tinha descoberto ali
uma nova concepção de luz que significava, na prática,
negar as sombras. “Deixei-me levar à cor pela cor”, ele
escreveria ao amigo Vlaminck.
Isso ficou bem demonstrado em Vues de Collioure
(1905). Quanto à Femme au chapeau (1905) de Matisse,
com seus azuis, seus vermelhos, seus verdes, essa dança
inesperada de cores lança­das no rosto conservador de
muitos visitantes, provocou risos e cólera – e o ceticismo
de André Gide, que falou de pintura “ra­ciocinativa”,
teórica, sem qualquer intuição.
Esses pintores pertenciam mais à linhagem de
Gauguin e do expressionismo de Van Gogh que à de
Cézanne. Suas obras, vi­gorosas nas cores e nos
contrastes, estavam reunidas numa única sala, que o
crítico Louis Vauxcelles, bem conceituado, mas evasivo
quanto à arte moderna, qualificou de “cage aux
fauves”.36 Assim nasceu o fauvismo. Três anos depois,
junto com outros, esse mes­mo crítico irá comparar a
pintura de Braque, exposta na galeria de Kahnweiler, a
cubos. Daí o cubismo. Esse homem, à sua maneira, era
um visionário...
O escândalo foi tão grande que o presidente da
República se recusou a inaugurar o evento. A imprensa
ficou em polvorosa. Le Figaro falou de um pote de tinta
lançado na cabeça do público. Da coleção de artigos
dedicados aos fauves, Vlaminck gostava de mos­trar este,
do Journal de Rouen, datado de 20 de novembro de
1905:
Chegamos à sala mais espantosa deste salão, tão pródigo, no en­tanto, de
surpresas. Ali, qualquer descrição, qualquer relato, qual­quer crítica
tornam-se igualmente impossíveis, pois o que nos é apresentado não tem
– salvo o material empregado – nenhuma relação com a pintura: coloridos
sem forma; azul; amarelo; verme­lho; verde; manchas de tinta justapostas
ao acaso; brincadeiras to­las e inocentes de uma criança que brinca com
a caixa de lápis de cor que ganhou de presente.2

A crítica ainda não se acostumara com a ideia de que a


pintura não tinha mais como finalidade representar
objetivamente o mundo e a natureza. Para isso havia a
fotografia. O escândalo, a partir do final do século XIX,
devia-se ao fato de que os artistas cada vez mais se
afastavam da realidade, recompondo o mundo à sua
maneira. Eles não se entregavam mais à simples
representação – como se fosse possível decalcar a
natureza sobre uma tela! –; eles buscavam a expressão.
A arte, sob esse aspecto, lhes trará muitas recompensas.
Depois de terem chocado bastante por conta da luz,
antes de se tornarem quase irresponsáveis em relação às
formas, os pin­tores entravam então na arena da crítica,
brandindo obras das quais o vermelho não era a mais
agressiva das cores. Mil bandarilhas viriam ainda.
Matisse, Derain e também Vlaminck.
Ainda mais selvagem do que seu amigo de Chatou,
Maurice de Vlaminck criava a luz esmagando tubos de
tinta sobre a tela. Pintava pelo instinto, brutalmente, e
não ligava para nenhum pre­ceito teórico. Durante muito
tempo cultivou uma violência que no amigo foi sendo aos
poucos disciplinada. Quando Derain enveredou pela via
das escolas e das academias, Vlaminck rompeu com ele.
Vlaminck, de cabelos louro-avermelhados, de olhar
ingê­nuo num rosto atrevido, às vezes fechado, era
brigão. Bufava, gri­tava, gargalhava. Detestava não só as
escolas e as academias, mas também os museus, os
cemitérios, as igrejas. Afirmava que fora o anarquismo
que o havia conduzido ao fauvismo.
Desse modo, satisfiz minha vontade de destruir as velhas conven­ções, de
“desobedecer”, a fim de recriar um mundo sensível, vivaz e liberto.3
E concluía garantindo que ele pintara, mas o melhor
representante do fauvismo tinha sido Ravachol.
É uma questão de opinião. Vlaminck tinha várias, que
expressava sempre em alto e bom tom. De punho
fechado, se fosse preciso. O que era válido para ele
também o era para os seus. Geor­ges Charensol conta
que um dia Vollard almoçava na casa do pintor e perdeu
o apetite quando viu a filha deste, de sete anos, acen­der
um cigarro à mesa. Chamou-lhe gentilmente a atenção
dizendo que fumar, naquela idade... A garota, que não
tinha nada de uma menina exemplar, voltou-se para o
marchand e respondeu:
“Não é da sua conta, seu babaca.”4
Para grande alegria do papai, que também não era lá
dos mais delicados com os seus contemporâneos.
Vlaminck não gostava muito de Montmartre. Ia lá, de
vez em quando, fazer farra com os amigos e depois, de
madrugada, voltava para o subúrbio, a pé. Na época em
que conheceu Picasso, vivia de expedientes para
alimentar a mulher e as três filhas (suas primeiras telas,
de uma pintura bruta saída diretamente dos tubos de
tinta, estalam por causa da má qualidade das tintas e
dos supor­tes). Ele participava de corridas de bicicleta, de
regatas ou arra­nhava o violino em orquestras ciganas.
Tinha também feito luta livre em parques de diversão,
onde, por alguns francos, brigava com grandalhões e
deixava que o derrubassem antes do final do segundo
assalto. Por fim, escrevera livros. Dizia que a matéria-
prima era mais barata do que a exigida pela pintura.
Produziu alguns romances de títulos apelativos: D’un lit
dans l’autre ou La vie en culotte rouge.37 Mais tarde,
redigiu suas memórias, devastadoras e nem sempre
gentis com os colegas de seu tempo.
Pensou que a sorte tinha finalmente lhe sorrido quando
vendeu seu primeiro quadro no Salão dos Independentes.
Depois de se informar, descobriu que o benfeitor vinha
do Havre, e que comprara as duas telas que lhe
pareceram mais horrorosas para oferecê-las ao genro. A
primeira assinada por Vlaminck, a segunda por... Derain.
O terceiro elemento do grupo era Georges Braque,
nascido na Normandia, em Argenteuil. Seu avô e seu pai
dirigiam uma em­presa de decoração de paredes. Tanto
um como o outro eram ama­dores. Braque cursou a
escola de Belas-Artes, no Havre, onde tra­balhou com um
pintor decorador. Chegou em Montmartre em 1900 e,
logo em seguida, trocou a pintura praticada pelo pai por
outra menos artesanal. Morou na rua Trois-Frères e, em
1904, conseguiu um ateliê na rua Orsel, não muito
distante do Bateau-Lavoir. Co­nheceu Picasso em 1907 –
mais tarde do que os outros.
Alto, musculoso, de cabelos escuros e crespos, calmo,
forte como um urso, Braque encantava as garotas com
quem dançava no Moulin de la Galette. Quando pegava o
bonde puxado a cavalo Batignolles-Clichy-Odéon, que
atravessava o Sena para alcançar a margem esquerda,
subia cantando e tocando acordeão.
Era prontamente reconhecido graças ao macacão, aos
sapa­tos amarelo-canário e ao chapéu enfiado na cabeça.
Durante alguns meses a turma toda usou o mesmo
chapéu: é que, durante um lei­lão, o pintor comprara uma
centena deles por um preço irrisório, e os tinha oferecido
aos amigos.
O holandês Kees van Dongen, tão grandalhão quanto
Bra­que, ruivo e barbudo, veio se instalar na Maison du
Trappeur em 1905. Tinha exercido todas as profissões:
vendedor de jornais nos grandes bulevares, pintor
decorador, entregador, lutador de par­que de diversões...
Como muitos, também vendia desenhos para a revista
satírica Assiette au Beurre, e outras de conteúdo erótico,
para a Prou-Frou, ou outras publicações distribuídas
clandestina­mente. Foi um dos poucos do Bateau-Lavoir
que pintaram a vida de Montmartre, buscando seus
modelos entre as prostitutas que circulavam pelas
calçadas, as vendedoras da praça do Tertre ou as
dançarinas do Moulin de la Galette: os outros, apesar de
morarem ali, afastaram-se das fontes que serviram de
inspiração a Willette, Utrillo, Poulbot e Toulouse-Lautrec.
Van Dongen vivia com os estrangeiros de Montmartre,
mas pintava como os franceses. Isso o iria conduzir para
longe das revi­ravoltas da arte moderna (como ele
detestava qualquer teoria artís­tica, não participava das
reuniões na casa de Picasso), aos salões parisienses,
onde se reuniam as senhoras da alta sociedade: elas
sonhavam em se ver pintadas com pérolas e brincos por
esse gi­gante, que logo organizaria festas grandiosas e
opulentas no seu ateliê de Denfer-Rochereau.
André Salmon, que nunca poupava ninguém, critica
sua pintura, colorida demais para o gosto dele, achando
que Van Don­gen confundia a paleta das suas tintas com
as caixas de maquiagem de suas modelos. Picasso, por
sua vez, fugirá dele, considerando que Van Dongen, por
se sentir muito mais à vontade nas Planches de
Deauville38 do que em qualquer outro lugar, tinha se
tornado um pintor mundano. Talvez ele também não o
perdoasse por ter feito vários retratos de Fernande
Olivier, tendo se tornado por isso o estopim de
numerosas cenas conjugais (a bela Fernande, que tam‐­
bém ficara ciumenta, se defendia dizendo que também
ele, Picasso, tinha pintado muitas outras mulheres...).
No Bateau-Lavoir, Van Dongen viveu em tamanha
miséria que nunca mais quis voltar a participar daquela
vida. Ali, ele divi­dia um ateliê com a mulher, Guus, e a
filhinha Dolly. Guus era vegetariana. Na casa de Van
Dongen só se comia espinafre. A famí­lia era afetuosa.
Sobrevivia num lugar onde os cavaletes disputa­vam
espaço com as camas, o berço, a mesa, o barulho dos
vizinhos, o calor insuportável no verão, o frio de congelar
no inverno e alguns trocados que mal davam para
alimentar a criança. Por várias vezes Picasso, Max Jacob
e André Salmon tiveram que se cotizar para comprar
talco na farmácia mais próxima. Quando, final­mente,
Dolly dormia agasalhada e alimentada, os Van Dongen
con­tavam os tostões para saber se eles também
poderiam comer. O que nem sempre era possível.
Quando Vollard comprou alguns dos seus quadros, Van
Dongen instalou a família num apartamento da rua
Lamarck, e alu­gou para ele mesmo um ateliê próximo ao
Folies Bergere. Final­mente, cortou o espinafre, e ninguém
mais o viu pela Butte. Pre­feria andar pelos lados do Palais
Royal. Comia carne bem vermelha e pratos com molho,
num restaurante do qual se tornou cliente, e cujo
anúncio chamava a atenção para a presença do pintor no
esta­belecimento:

ONDE É QUE SE PODE VER VAN DONGEN


COLOCAR A COMIDA NA BOCA,
MASTIGÁ-LA, DIGERIR E FUMAR?
NO RESTAURANTE JOURDAN
RUA DOS BONS-ENFANTS, 10.

Juan Gris também vivia com a família. Ele chegou ao


Bateau-Lavoir em 1906, e se instalou no ateliê que era
de Van Don­gen. Era um jovem de dezenove anos, pele
morena, olhos e cabelos negros. “Um cachorrinho cheio
de vida, afetuoso, bom, um pouco desajeitado”, dirá
Kahnweiler, que teria sido talvez seu melhor amigo em
Paris.5
Como os outros, Gris sobrevivia em condições
miseráveis. Vendia desenhos aos jornais ilustrados, até o
dia em que Sagot lhe comprou umas telas. Nas paredes
do ateliê, escrevia com um lápis de carvão os preços dos
produtos que comprava a crédito dos comerciantes da
Butte. Assim que conseguia alguns trocados, pe­dia a
Reverdy para fazer a soma, e saldava a dívida.
Gris morava no Bateau-Lavoir, mas fugia da confusão
do Lapin Agile. Bebia pouco, quase sempre café. Quando
passavam por ele, nos corredores da Maison du Trappeur,
estava sempre me­lancólico e ensimesmado. Acariciava a
cadela do seu compatriota com a mão esquerda,
explicando que, se ela o mordesse, lhe resta­ria a mão
direita para pintar.
Picasso tinha um enorme ciúme de Juan Gris. Não
gostava da amizade que Gertrude Stein tinha por ele, e
menos ainda da de Kahnweiler. Nos anos 1920, Diaghilev
encomendou a Gris o cená­rio e o figurino de seu novo
balé, Cuadro flamenco; depois, cance­lou a encomenda e
entregou-a a Picasso. Essa história complicou as relações
entre os dois.
O mais velho não tinha muito o que criticar no mais
novo, a não ser sua independência, e o fato de que ele
também era espa­nhol. Até nesse quesito Picasso queria
ser único.
Gris ficou no Bateau-Lavoir durante mais de quinze
anos. Duas mulheres dividiram a vida com ele: Josette,
que ele conhe­cera em 1913, e a mãe de seu filho.
Quando fazia sol, penduravam o guri pelas fraldas na
janela. Picasso gostava tanto dessa criança quanto da
menina de Van Dongen.
Gris morreu aos quarenta anos, de uma leucemia que
os mé­dicos confundiram com tuberculose. Sua agonia foi
terrível. Nessa época, ele morava em Boulogne, perto de
Kahnweiler. Do jardim, este podia ouvir o amigo gritar de
dor.
Quando soube da morte do compatriota, Picasso ficou
aba­lado. Gertrude Stein, surpresa com esse sofrimento
depois de tanta aspereza muitas vezes demonstrada,
disse a ele, duramente, que suas lágrimas não eram
bem-vindas...
De todos os pintores que estiveram no Bateau-Lavoir,
Gris foi aquele que mais se manteve distante do grupo
de Picasso. Os outros dividiam tudo: a moradia, as
cobertas, a festa e até mesmo as roupas.
A pequena trupe escolhia as roupas aos domingos, no
Mer­cado Saint-Pierre. Quando desfilavam pelas ruas de
Montmartre, ofereciam o espetáculo de uma divisão do
exército Brancaleone em marcha.
Fiel ao que pintava naquela época, Derain tinha
adotado o estilo fauve: terno verde, colete vermelho,
sapatos amarelos, casacão xadrez, branco, preto e
marrom, tudo isso diretamente importado da Inglaterra;
mais tarde, um pouco mais sóbrio, irá escolher o azul,
apenas o azul: o macacão, para trabalhar; ternos, todos
azuis, cuida­dosamente pendurados por ordem de
limpeza, para sair.
Vlaminck, também adepto da escola de Chatou, usava
um tweed xadrez, um chapéu com uma pena de gaio e
uma magnífica gravata colorida, de madeira, que
Guillaume Apollinaire admirava pelo uso duplo que
poderia ter: cassetete em caso de ataque, e vio­lino,
quando era virada ao contrário para se fazer vibrar as
tripas de gato estica das do outro lado.
Quando não estava nos trinques, combinando com as
tiradas espirituosas que esperavam dele nos jantares
chiques para os quais era convidado, Max Jacob adotava
o estilo dos mágicos: capa de seda, cartola e monóculo;
ou se vestia à moda bretã: kabik39 com galões.
André Warnod tinha uma capa de veludo, Francis Carco
usava luvas impecavelmente brancas (tinha quatro
dúzias delas), Mac Orlan, que andava pelas ruelas da
Butte em companhia do seu basset, ostentava pulôveres
coloridos e meias de ciclista.
Picasso preferia o macacão, alpargatas, boné, uma
camisa de algodão vermelha com bolinhas brancas,
também comprada no Mer­cado Saint-Pierre.
Experimentou usar barba (pode ser vista no Autoportrait
en bleu, 1901), mas logo a cortou. Acabará por detes­tar
esse estilo aprendiz de pintor boêmio, bem como os
artistas que se vestem assim. Por essa razão, ao se
desfazer do seu legendário macacão, vai criticar
Modigliani e todos os seus excessos. No en­tanto, já na
época do Bateau-Lavoir, o pintor italiano (que chegou a
Paris em 1906) superava os outros pela elegante maneira
de se ves­tir: terno de veludo e camisa sempre
impecavelmente limpa. Vestia­-se de modo tão clássico
quanto Guillaume Apollinaire, que nunca foi visto com as
bizarrias dos colegas. Era nesses trajes diversos e
variados que os pintores da rua Ravignan já praticavam o
surrea­lismo, antes mesmo do seu surgimento. Andavam
pelas ruas, du­rante a madrugada, gritando: “Viva
Rimbaud! Abaixo Laforgue!”, provocando às vezes
escândalos que terminavam em pancadaria. Foi isso que
aconteceu no dia em que, ao atravessar o Sena pela
ponte das Artes, Derain, para mostrar sua força, torceu o
lampião da escada que levava à beira do rio. Depois
disso, ele e a mulher se lan­çaram numa briga, pontuada
por tapas e xingamentos, até o mo­mento em que a
polícia deu as caras. A cena terminou na delegacia.
Valia qualquer coisa que parecesse desordem.
Principal­mente a arte, quando não era oficial. Os poetas
malditos eram ama­dos. Em vez dos assentos dos teatros,
dava-se preferência à pista do Moulin de la Galette, onde,
por quatro tostões, podia-se passar a tarde toda
dançando quadrilhas e polcas inflamadas, que quei‐­
mavam os pés e a alma. Mais tarde, iriam descobrir as
estranhas formas da arte negra. Enquanto isso, a turma
descia em direção aos bulevares para aplaudir outros
artistas tão iconoclastas quanto aqueles da Butte
Montmartre: os boxeadores e os saltimbancos.

36 “Jaula das feras”. (N.T.)


37 De uma cama para outra ou A vida de calcinha vermelha. (N.T.)
38 “Calçadão” do balneário de Deauville. (N.T.)
39 Palavra bretã; refere-se a casaco curto com capuz e bolso na frente.
(N.E.)
No caminho dos saltimbancos

A criança me pegou pela mão e eu a protegi do mal.


Max Jacob

P icasso tinha inveja de Braque e de Derain, que


lutavam boxe. Certa vez, ele colocou as luvas para
tentar lutar contra esse último. Um direto de direita o
derrubou, e ele nunca mais repetiu o feito. Contentava-se
em contemplar, fascinado, os golpes que eram tro­cados
nos ringues das salas que a turma frequentava.
Eles também gostavam de ir ao circo. Preferiam o circo
Médrano, que sucedera o circo Fernando, pintado por
Toulouse­-Lautrec, Degas e Seurat. Iam várias vezes por
semana. Eram amigos dos palhaços Alex, Rico, Ilès,
Antonio e, principalmente, Grock, que estava
começando. Apollinaire cultivaria essa paixão até a
morte, tendo ido aplaudir Guignol, na Butte-Chaumont,
durante a guerra, quando já era membro da associação
Nos Marionnettes. Em 1905, na Revue Immoraliste, que
só teve um número, e na qual ele escreveu sobre pintura,
literatura e teatro, falou dos arlequins e das colombinas
que podem ser vistos em Roma, estabelecendo uma
ligação com Picasso:
Eis os seres que encantariam Picasso.
Sob os trajes brilhantes desses esbeltos saltimbancos, percebem-se
verdadeiros jovens do povo, versáteis, astuciosos, espertos, pobres e
mentirosos.

Quando Picasso descia de Montmartre até o bulevar


Rochechouart, onde ficava o circo, ia ao encontro do
mundo da jovialidade e da abertura. Nunca ele ria tanto
quanto no bar do Médrano. Gostava mais dos bastidores
do que do palco, e era assim, na verdade, que pintava os
participantes do circo: não no picadeiro, mas na estrada,
ensaiando os números em família, ou aqui e ali, na vida
de todos os dias. Esse período feliz, ilustrado pela
repetição da temática dos Saltimbancos (1905), punha
um ponto final na fase azul. Picasso ti­nha entrado na fase
rosa, que foi por muito tempo, erradamente, atribuída à
chegada de Fernande em sua vida. A verdade é que a
abertura para o mundo, que caracteriza essa fase, já
tinha começado na época de Madeleine.
Madeleine é um marco essencial na vida de Picasso,
tanto no plano afetivo como na história de sua carreira
artística. Ela foi uma das primeiras mulheres que tiveram
importância na sua vida antes de Fernande. Por razões
bastante misteriosas, o pintor silen­ciou sobre a
existência de Madeleine, até a morte de Fernande,
recusando-se a contradizê-la quando ela atribuía a si
mesma um papel que pertencia à outra. Segundo Pierre
Daix, apenas Max Jacob conhecera essa mulher; Daix
ouviu a confidência da boca do próprio Picasso:
Um dia, em 1968, quando cheguei em Mougins, Picasso tirou do ateliê
um admirável retrato de perfil que até então ele não tinha con­seguido
encontrar, porque ficara preso à moldura de um dos quadros da sua
coleção. “É Madeleine”, ele me disse, e continuou, diante da minha
surpresa: “Quase tive um filho com ela...” [...] Essa informa­ção nos levou
a 1904. Pois bem, se observarmos de que maneira o tema da
maternidade ressurgiu na sua obra, vamos encontrar o esplêndido
guache Maternité rose, com um rosto afilado, infinita­mente mais próximo
do de Madeleine do que do de Fernande.1

Picasso sempre considerou o arlequim como seu duplo.


Ao pintar Famille d’Arlequin, colocando ali um bebê, ou
Famille d’acrobates avec un singe, é sua própria
paternidade que ele está represen­tando. E portanto,
sutilmente, Madeleine, e não Fernande. Aliás, não é por
acaso que Maternité rose inaugura em Picasso o que cha‐­
mamos de fase rosa.
A questão da maternidade trouxe realmente grandes
pro­blemas para o casal Picasso: Fernande Olivier não
podia ter filhos. Para ela isso era provavelmente um
drama, e também para o aman­te. A fase rosa de suas
vidas encerra um episódio sombrio, que ficou em
segredo durante vários anos.
Em 1907, Fernande Olivier decidiu adotar uma criança.
Ela foi até o orfanato da rua Caulaincourt e trouxe uma
menina. Puseram-lhe o nome de Raymonde (André
Salmon a chamava de Léontine, e ninguém sabia dizer ao
certo a idade dela: uns dez anos, talvez...). Durante
algumas semanas, na Maison du Trappeur, todos se
interessaram muito por ela e por essa novi­dade. Picasso,
como bom pai artista, fez seu retrato em nanquim
(Portrait de Raymonde, 1907). Mas a garota perturbava,
era tur­bulenta. Não era mais possível dormir durante
uma parte do dia e trabalhar à noite. Não era mais como
antes. Era preciso encon­trar uma solução.
Procuraram. Na verdade, não era muito complicado:
quan­do algo está atrapalhando basta mudá-lo de lugar.
Colocá-lo onde estava antes. Ou seja, devolvê-lo.
Foi assim que, depois de ter brincado com seus novos
pais durante três meses e, segundo parece, contra a
vontade do pai, Raymonde voltou à antiga condição. Órfã
da rua Caulaincourt. Max Jacob, o bom Max Jacob, foi
encarregado de fazer a devolução.
Em La négresse du Sacré-Coeur, André Salmon
romanceou a cena.2 Segundo ele, Max, o bom
samaritano, foi repreendido por um empregado dos
Enfants Assistés, que o tomou por um pai des­naturado.
Explicaram-lhe a regra: se persistisse na sua decisão,
nunca mais poderia adotar a menina. Esta desandou a
chorar. Max também. Ele levou a garota para almoçar
num restaurante. Gastou todas as suas economias. À
noite, voltou à rua Caulaincourt. De­pois, foi embora
correndo.
Será que ele tinha cheirado éter naquele dia?
A história foi confirmada a Hubert Fabureau.3 Mas nem
Fabureau nem Salmon mencionam o nome de Fernande e
de Pi­casso. Os dois autores falam de um casal de
artistas; em La négresse du Sacré-Coeur, Max Jacob
aparece sob a identidade de Septime Febur (nome que
ele usava quando elogiava Picasso nas galerias)...
Por que tanta precaução em relação a Picasso? Por que
os bajuladores o protegeram tão bem e durante tanto
tempo, só tendo rompido a lei do silêncio muito mais
tarde? Por que desses primei­ros tempos do Bateau-Lavoir
(que precederam o nascimento do cubismo) só restou a
charmosa bagunça dessa turma extraordinária?
Porque cinco anos depois da sua chegada a Paris
Picasso já era o centro de um grupo para o qual todos
convergiam, vítimas ou heróis do seu poder, do fascínio
que exercia sobre aqueles que se aproximavam dele. No
Bateau-Lavoir, ele estava em toda parte: era admirado,
tudo girava em torno dele, ele se inspirava e servia de
inspiração... Atraía tanto por aquilo que fazia quanto por
aquilo que era. Todos o tratavam com respeito. Era mais
procurado do que procurava os outros. Até Guillaume
Apollinaire, que se dis­tinguia porque não morava em
Montmartre, ganhava mais e de maneira diferente, era
superior ao grupo por sua maneira de se vestir, seus
modos e suas atitudes, estava sempre a reboque do
amigo. Era assim em todos os aspectos, até mesmo em
relação às ilustrações que o pintor oferecia a seus
amigos poetas para suas obras: nem sempre ele se
preocupava em saber do que se tratava, e entregava a
eles o fruto do seu trabalho do momento, às vezes
esboços e até mesmo rascunhos que valiam sobretudo
porque esta­vam assinados por Picasso.
Pivô em torno do qual tudo girava, Picasso gostava
igual­mente de unir gente e gêneros à sua volta. Casais
também: nesse aspecto, tinha a alma generosa. Foi ele
quem apresentou Marie Laurencin a Apollinaire, Marcelle
Dupré a Georges Braque e, pro­vavelmente, Alice Princet
a André Derain...
Também ficava no centro das brigas entre uns e
outros. Até Demoiselles d’Avignon, raros eram aqueles
que criticavam sua obra. Ela era unanimidade e ele
também, através dela. O Bateau-Lavoir era uma espécie
de laboratório onde se trocavam ideias, pontos de vista,
descobertas, tudo misturado em uma extraordinária
fraterni­dade artística de onde o ciúme, por enquanto, e
apenas nesse cam­po, tinha sido banido. Tirando Juan
Gris, mais inseguro do que os outros, todos sabiam que
um dia a penúria iria derreter debaixo do sol do
reconhecimento. Era só esperar por esse dia. E
esperavam juntos, mostrando uns aos outros as novas
obras, quadros e poe­mas. A escola era uma só,
enriquecida por diversas linguagens.
A arte ainda não era objeto de rivalidades maiores. Só
um artista se prestava a esse papel.
Que artista?
Picasso.
Excessivamente ciumento das mulheres, dos homens,
dos homens que ficavam em volta das mulheres, das
mulheres que não ficavam em volta dele, dos homens
que desdenhavam o papel de discípulos ou de
admiradores, era normal que ele tivesse suscitado em
torno da sua pessoa os mesmos ciúmes.
Tratava-se de um ciúme puramente afetivo. Apollinaire,
Max Jacob e André Salmon não se mediam pelas obras.
Tinham in­veja da preferência de Picasso por esse ou por
aquele. O mais infeliz era sem dúvida Max Jacob,
destronado por Apollinaire no território da poesia, por
Fernande Olivier no território do afeto e, logo depois, por
Braque no território da criação artística.
Acreditava-se que essa convivência harmoniosa seria
inde­lével. O tempo mostrou que não seria bem assim.
Durou o tempo da pobreza e das revoluções artísticas.
Picasso gostou de Max Jacob e depois o desprezou.
Gostou de André Salmon e depois o desprezou. Gostou
de Guillaume Apollinaire, que foi o preferido de todos e
que cedeu o lugar a Jean Cocteau, depois da guerra e do
desaparecimento do autor de Alcools... Todos tinham
reconhecido o pintor como o porta-bandeira da arte
moderna. Muitos sofreram contratempos afetivos que, às
vezes, eram passageiros, mas que os feriram
profundamente. Quanto a Picasso, passeava, altivo, no
meio dos seus, sem se importar com as choradeiras, as
maledicên­cias e as pequenas tristezas daqueles que o
cercavam. Estava no seu lugar. Era o primeiro.
O tempo dos duelos

Se escrevo, é para irritar meus confrades; para fazer com que


falem de mim e tentar fazer um nome. Quando se tem um nome,
é mais fácil ter sucesso com as mulheres e nos negócios.
Arthur Cravan

Q uem brinca com o fogo se queima. Na rua Ravignan,


em homena­gem a Alfred Jarry, que saca sua arma
na Closerie des Lilas, tam­bém se ouvem tiros e espadas
se cruzando por todos os lados.
Picasso não se separa da sua Browning. Atira (para o
alto) para se livrar dos importunos. Atira quando entra no
Bateau­-Lavoir, ele que é o chefe de uma turma de
folgazões perfumados a álcool. Atira da janela para
acordar os vizinhos.
Certa noite, ele convida três alemães para ver suas
obras no Bateau-Lavoir. Depois, leva-os ao Lapin Agile.
Pelo caminho, os visitantes vão conversando sobre arte e
teoria estética. Picasso não aguenta mais. Puxa a arma e
atira. Os três alemães saem correndo.
Quando alguém fala mal de Cézanne, exibe a arma e
ameaça:
“Cale a boca...”
Quando Berthe Weill exprime suas reservas quanto ao
dinheiro que ele espera dela, não diz nada, mas pega a
pistola e a coloca sobre a mesa. Certo dia, num café,
entediado, atira alguns projéteis em direção ao teto. Mas
as balas nunca atingem ninguém.
Dorgèles, num canto de um prédio, espera pelo
engraçadi­nho que lhe roubou a namorada. E Apollinaire,
sentado à mesa de um café, espera que Max Jacob,
escolhido como padrinho, acerte as questões práticas
com um crítico que ele desafiou para um duelo, por
causa de uma discussão literária. O confronto não
acontecerá. Limitar-se-ão a cruzar as espadas em torno
da conta que os dois combatentes tiveram de pagar,
enquanto os padrinhos discutiam.
Na época, enviavam-se com a mesma facilidade flores
e pa­drinhos. Os jornais têm articulistas especializados
em fazer a co­bertura dos insultos mundanos, das
maledicências desmascaradas, das fofocas das salas
onde se realizam as aulas de treinamento. Eles se
encontram, de manhã cedo, na Île de Jatte ou na ciclovia
do Parc des Princes, locais preferidos tanto pelos
ofendidos como pe­los ofensores.
Para a sorte dos dois amigos do Bateau-Lavoir, se
Picasso é o campeão da pistola, esta nunca acerta
ninguém, e se Apollinaire é o rei dos duelos, estes são
sempre abortados.
A primeira vez foi em 1907. A segunda, pouco antes da
Guerra. A terceira teve como adversário Fabian Avenarius
Lloyd, aliás, Arthur Cravan, que se dizia sobrinho de
Oscar Wilde por parte de mãe. Um adversário de peso:
dois metros por cem quilos.
Cravan era homem de sete instrumentos, provocador,
anar­quista, violento e... insensato. Uma verdadeira
vocação. Adquirira seus títulos de nobreza quando estava
na escola, onde um profes­sor, que havia cometido o
equívoco de querer repreendê-lo, aca­bou no colo do mau
aluno, com as calças arriadas, e foi surrado dentro das
regras da arte.
Era só o começo.
Expulso da escola, Cravan foi para Berlim, onde
adquiriu o desagradável hábito de passear pela cidade
com quatro prostitutas nos ombros. O chefe de polícia
fechou-lhe a fronteira na cara, ar­gumentando que Berlim
não era um circo.
Paris era mais liberal. Cravan foi para lá e fez as
contas: uma noite com uma prostituta custava mais
barato do que uma noite no hotel; juntou então o útil ao
agradável e se proporcionou esse pra­zer. Depois,
improvisou como ator-poeta: no palco, exigia silêncio
com toques de clarineta e pauladas.
Na livraria Brentanos, ficou o tempo da venda de um
livro: admitido como vendedor, foi despedido por ter
jogado um exem­plar no rosto de um cliente que pedira a
ele que se apressasse.
Para se defender melhor dos golpes dos patrões,
aperfei­çoou-se no domínio do boxe, tornou-se campeão
amador e treinava na Closerie des Lilas: empurrava a
porta, insultava os clientes e brigava com eles até ser
atirado na rua.
Suas ocupações foram ainda mais diversas e variadas
do que as de Apollinaire. Ele as enumerava sem
preconceito: foi, um de cada vez, às vezes ao mesmo
tempo, trapaceiro, marinheiro no Pacífico, condutor de
mulas, colhedor de laranjas na Califórnia, encantador de
serpentes, rato de hotel, lenhador na Austrália, ex-‐­
campeão de boxe da França, neto do chanceler da
rainha, motorista de carro em Berlim, gatuno.
Era principalmente poeta e jornalista, responsável por
uma revista que só teve cinco números e que ele mesmo
distribuía com a ajuda de uma carrocinha: Maintenant.
Sua prosa elogiava as qua­lidades e os méritos de seu tio,
Oscar Wilde, e criticava os defeitos de todos os outros.
Alguns de seus alvos prediletos:
Gide: Sua ossatura nada tem de excepcional; suas
mãos são de quem não faz nada [...] Com isso, o artista
mostra um rosto doentio, no qual se destacam, em
direção às têmporas, pequenas lâminas de pele maiores
do que películas, inconveniente para o qual o povo dá
uma explicação, dizendo vulgarmente de alguém: “ele
está descascando”.1
Suzanne Valadon: Ela conhece bem as receitas
caseiras, mas simplificar não é tão simples assim,
espertalhona! 2
Delaunay: Tem uma boca suja de porco ou de cocheiro
de gen­te rica [...] Antes de conhecer sua mulher, Robert
era uma mula; tal­vez tivesse outras qualidades.3
Marie Laurencin: Essa é uma que merece que lhe
levantem as saias e lhe metam um... em algum lugar.
Apollinaire, no mesmo artigo, era descrito como um
judeu sério (Cravan toma cuidado em precisar que não
tinha nenhum pre­conceito contra os judeus, preferindo-
os mesmo aos protestantes). É, como se diz, atirar para
todos os lados.
Guillaume mandou seus padrinhos até o diretor da
revista Maintenant. Estava menos aborrecido por ele
mesmo do que por Ma­rie Laurencin, com quem
compartilhara a vida durante muitos anos.
Depois de sutis negociações, os intercessores
obtiveram uma dupla retratação de Cravan. Os dois
textos continham nuanças em relação aos primeiros, sem
contudo modificá-los totalmente:
Para Apollinaire: O senhor Guillaume Apollinaire não é
ju­deu, mas sim católico romano. Para evitar, no futuro,
erros sempre possíveis, faço questão de acrescentar que
o senhor Apollinaire, que tem uma barriga enorme,
parece mais um rinoceronte do que uma girafa, e que, no
que diz respeito à cabeça, está mais para anta do que
para leão, e que puxa mais ao abutre do que à cegonha
de bico comprido.
Para Marie Laurencin: Essa é uma que merece que lhe
levan­tem as saias e que lhe metam uma bela astronomia
no Teatro de Variedades.4
Ficou por isso mesmo. Arthur Cravan ainda daria o que
fa­lar durante algum tempo. Conseguiu vender um
Matisse verda­deiro e um falso Picasso, o que lhe rendeu
dinheiro suficiente para alcançar a Espanha no início da
Guerra...
Quanto a Apollinaire, embainhou a espada e releu os
artigos e os poemas que havia escrito em homenagem a
Marie Laurencin.

Fora Picasso quem lhe apresentara a jovem, em 1907.


Ele a havia visto na casa do marchand Sagot. Naquela
época, Marie Laurencin tinha vinte anos. Estudava
pintura na Academia Humbert, no bulevar de Clichy. No
cavalete ao lado do dela havia um tal de Georges
Braque.
Fernande Olivier descreveu-a como tendo cara de
cabra, o olhar míope, um nariz muito afilado, pele de
marfim sujo, mãos lon­gas e avermelhadas, jeito de
garota depravada. Sem contar que era metida, palpiteira
e se fingia de ingênua.
Ela a detestava. Provavelmente porque, naquele grupo
on­de havia poucas mulheres, Marie Laurencin poderia
disputar com ela o título de primeira-dama. André
Salmon, mais poeta mas não menos cruel, resume em
duas palavras: “Marie Laurencin? Uma bela feia”.5
E Apollinaire relata em Le poète assassiné o papel que
Oiseau du Bénin (Picasso) teve no encontro entre
Tristouse Balle­rinette (Marie Laurencin) e Croniamantal
(ele próprio):
Ele (Oiseau du Bénin) voltou-se para Croniamantal e disse:
“Vi tua mulher, ontem à noite.”
“Quem é?”, perguntou Croniamantal.
“Não sei. Eu a vi, mas não sei quem ela é. É bem jovem, como você
gosta. Tem o rosto sombrio e infantil daquelas que estão destinadas a
provocar sofrimento. As mãos que se erguem num gesto de recusa têm
muito charme, mas falta-lhe aquela nobreza que os poetas não poderiam
amar, pois os impediria de sofrer. Vi tua mulher, estou te dizendo. Ela é a
feiura e a beleza.”6

Detalhe: essas linhas foram escritas três anos após a


ruptura...
Marie Laurencin era magra, enquanto o amante era
gordo. O que não os impedia de ter vários pontos em
comum, começando por suas histórias: ela vinha de uma
família créole e não conhecera o pai. Vivia com a mãe,
em Auteuil, enquanto Apollinaire acabava de deixar a
dele. Ele estava morando na rua Léonie (mais tarde rua
Henner) e não ia mais a Vésinet, a não ser para a visita
ritual do domingo.
Quando ia à casa dele, Marie Laurencin subia os dois
lan­ces de escada pulando corda. E descia do mesmo
jeito. Ele ia atrás dela. Levava-a ao Bateau-Lavoir, onde
não gostavam dela, mas a suportavam. Diziam que seu
ar ingênuo era falso e dissimulava mal uma evidente
tendência para o gosto burguês. Mas o que não agra­dava
a ninguém seduzia Apollinaire: ele tinha essas mesmas
ten­dências. O gentil Douanier Rousseau compreendeu
isso, aliás muito bem, tendo desenhado os dois (La muse
inspirant le poète, 1909) com traços muito pouco fiéis,
mas verdadeiros se fosse uma carica­tura: ele vestido
como um tabelião e ela, como uma dona de casa.
Guillaume e sua musa recebiam na nova morada do
poeta.
Era proibido desarrumar, sujar, sentar na cama ou
comer sem au­torização. Picasso e Max Jacob, que
jantaram lá inúmeras vezes, tiveram que enfrentar, certa
noite, a ira do dono da casa porque, aproveitando que
este tinha virado as costas, resolveram roubar duas
rodelas de salame que estavam sobre a mesa.
Apollinaire tomava conta da cozinha e da musa, que
cozi­nhava mal. Se ficasse cozido demais, a coisa pegava
fogo, se ficasse de menos, também. Guillaume era
exigente, autoritário, bastante tirânico e ciumento, como
Picasso. Tudo o que as mulheres que­riam. Ficava
contente quando a mesa estava bem posta, a comida,
bem-feita, e os vinhos, adequados. Marie se tornava seu
pequeno sol. Principalmente se os convidados tinham se
cotizado e trazido alguma coisa para incrementar a mais
trivial das triviais refeições dos Apollinaire: ensopado de
carne e risoto. O que, em todo caso, era melhor do que
as batatas cruas ao conhaque, às quais tiveram direito
Jean Metzinger e Max Jacob numa noite de estranhas
comilanças.
Quando estavam reunidas todas as condições para
uma noite de paz, era uma delícia ver o poeta devorar a
entrada (pepi­nos e depois escargots), atacar o prato
principal, comer um pouco mais de um dos seus pratos
favoritos (tripas), engolir a sobremesa (petits-fours
cristalizados) e regalar-se com um mimo oferecido por
um dos convidados (caramelos). Depois, tendo retirado o
colarinho postiço, o dono da casa arregaçava as mangas
e ajudava no serviço.
Quando o casal estava em paz, Apollinaire se mostrava
de uma amabilidade exemplar. Não admitia que ninguém
zombasse da sua querida Marie. Defendia-a de Max Jacob
com a mesma gar­ra com que pegou nas armas para
socorrer sua mãe, de quem este também zombara. A
título de brincadeira, ele tinha igualmente com­posto uma
canção em louvor à musa:
Ah! l’envie me démange
De te faire un ange
De te faire un ange,
En chatouillant son sein
Marie Laurencin
Marie Laurencin.40

Marie Laurencin foi certamente a musa do poeta,


assim como Fer­nande Olivier foi a inspiradora de Picasso.
Uma teve suas cores, a outra, suas palavras: Alcools e
um fragmento dos Calligrammes. São, no entanto, raras
as mulheres da Butte que, excetuando as de Picasso e de
Apollinaire, entraram na vida dos artistas para sair delas
através das telas e das poesias.
Francis Carco concorda, nos seguintes termos:
As mulheres não tiveram grande importância no nosso grupo. Nós as
pegávamos como elas eram, durante um ou dois meses, depois elas iam
embora e escrevíamos versos, pensando que teria sido melhor se elas
não tivessem vindo.7

Evidentemente, isso é um exagero, como quase


sempre em Carco. Mas nada suprime do essencial. Claro
que havia mulheres no Bateau-Lavoir: Kees van Dongen
era casado e Juan Gris também. Mas, enquanto esses
senhores pegavam o pincel, as senhoras cui­davam do
patrimônio. Nada mais.
Por sorte, essa grande abertura de espírito logo será
con­testada. Mais alguns anos, e as mulheres de
Montparnasse, mais numerosas, virão ao encontro das de
Montmartre. A história não seria a mesma se Suzanne
Valadon, Fernande Olivier e Marie Laurencin não
tivessem dado a mão às suas amigas da margem
esquerda, as Kiki, as Beatrice Hastings, as Marie
Vassilieff, as Youki, as Gertrude Stein, as Sylvia Beach, as
Jeanne Hébuterne, as Adrienne Monnier e tantas outras
mais que terão um papel considerável no
desenvolvimento da arte após a Primeira Guerra Mundial.
Mas ninguém ultrapassará nem igualará a desmedida
misoginia de um articulista da revista Vers et Prose que,
em 1907, contava, cheio de inveja, a maravilhosa
sensação que tomou conta de Alfred de Musset certa
noite em que pôde percorrer sozinho o museu do Louvre.
Não porque estivesse sozinho, mas porque estava “longe
de suas contemporâneas”.8 E o articulista narrava aos
leitores da revista a alegria que ele mesmo
experimentava, idêntica à de Musset, quando estava às
sextas-feiras à noite em Avignon. Por que sexta-feira?
Porque nesse dia, em respeito à Paixão, as mulheres não
saíam. Um verdadeiro paraíso: “Podemos então,
finalmente, amar a maravilha pelo que ela é”.
O nome desse grande homem defensor da preferência
mas­culina? Charles Maurras.

40 Ah! que vontade/ De te fazer um anjo/ Afagando seu seio/ Marie


Laurencin. (N.T.)
Gósol

Organizar um caos, eis a criação.


Guillaume Apollinaire

N uma manhã de primavera de 1906, um fiacre de


capota arriada conduzido por um cocheiro parou ao
pé da escadaria da rua Ravignan. Um homem estava
sentado no banco de trás. Ele desceu pesadamente,
aconselhou o cocheiro a ir se sentar à mesa de um bistrô
e dirigiu-se, a passos largos, até a entrada do Bateau-
Lavoir. A zeladora, que assistia à cena, pensou que um
indivíduo com aquele aparato só podia querer o bem dos
seus inquilinos. Esgueirou-se pelos corredores até o
ateliê de Picasso, bateu à porta e anunciou:
“Tem gente aí, e pelo visto é para o senhor.”
“De que tipo?”, perguntou uma voz do outro lado.
“Tipo rua Laffitte. Um marchand da melhor qualidade.”
O marchand vinha mesmo da rua Laffitte. Era Vollard.
Tinha sabido por Guillaume Apollinaire que Picasso havia
abando­nado a fase azul por obras mais vivas, e queria
ver isso.
Ele viu. Uma hora depois, ao chegarem por sua vez à
rua Ravignan, André Salmon e Max Jacob assistiram a um
espetáculo verdadeiramente inacreditável: o marchand
estava saindo da Maison du Trappeur com duas telas que
os poetas reconheceram imediata­mente: Picasso!
Colocou-as no fiacre, no banco de trás, e em seguida,
com os mesmos movimentos pesados, voltou de onde
tinha saído. Alguns minutos se passaram e Vollard
reapareceu. Desta vez, colocou três telas no fiacre.
Depois quatro! Depois cinco! Quando terminou, havia
pelo menos vinte telas no banco de trás.
Vollard subiu, sentando-se ao lado do cocheiro. O fiacre
fez a volta, e partiu na direção dos grandes bulevares.
Max Jacob não se conteve. Com os olhos marejados,
abraçou André Salmon, agradecendo aos céus por terem
ajudado seu venerado amigo.
Esse ano de 1906 apresentava-se como um ano de
fartura. O Bateau-Lavoir já tinha recebido a visita de um
colecionador que parecia meio maluco, mas que tinha,
apesar disso, comprado algu­mas obras de Picasso. Havia
descoberto esse último por intermédio de Berthe Weill.
Chamava-se André Level. Tinha contado uma his­tória
surpreendente, mas tão generosa, que todos se
encheram de estima por esse amante da arte. Sem
meios para adquirir sozinho telas contemporâneas, Level
se juntara a alguns amigos para fun­dar uma associação,
a Peau de l’Ours41, que comprava obras para o grupo.
Os onze membros depositavam uma contribuição anual
que era usada por Level, designado como gerente. Para
isso, ele visitava as galerias e os ateliês a fim de
descobrir jovens pintores, cujas obras propunha aos seus
“sócios”. As telas eram sorteadas entre eles; tinha ficado
estabelecido que todas seriam postas à venda dez anos
após a fundação da Peau de l’Ours. Uma parte dos lucros
seria para os pintores.
Como não ficar encantado com essa ideia? Ainda mais
por­que, de acordo com a proposta de André Level, os
associados tinham decidido que, em 1906, só
escolheriam obras de Picasso. E depois desse grande
acontecimento, eis que aparece Vollard!
Ele pagou dois mil francos ouro.42 Dois mil francos
ouro!
Naquela noite, abriu-se champanhe no Bateau-Lavoir.
No dia se­guinte, Picasso comprou uma carteira que
colocou no bolso inter­no do paletó, e fechou-o com um
alfinete de fraldas.
Alguns dias depois, levou Fernande Olivier para uma
via­gem de férias: Barcelona e depois Gósol, uma
pequena cidade da Catalunha, perdida nas montanhas.
Max Jacob e Guillaume Apollinaire acompanharam o
casal até a estação de Orsay. Cada um segurando uma
alça do pesado cesto no qual o pintor havia colocado
seus tubos e pincéis, eles desceram a rua Ravignan.
Chamaram um fiacre que conduziu o alegre grupo até a
estação de trem. Na plataforma, outros amigos
aguardavam. Foi uma algazarra.

A estada em Gósol durou até o verão. Permitiu a


Picasso terminar um quadro que havia começado no
inverno anterior e que não conseguia terminar. Um
quadro de extrema importância na evolu­ção da sua obra.
Alguns meses antes, ele recebera outra visita que
acrescen­tara alguma coisa ao seu cofrinho. Levados por
Henri-Pierre Ro­ché, dois estranhos – Jules e Jim43 – se
apresentaram à porta do ateliê: Gertrude e Léo Stein.
Depois de terem comprado alguns Cézanne de Vollard,
adquiriram La femme au chapeau de Matisse, na “cage
aux fauves” do Salão dos Independentes. Em seguida,
Léo caiu de costas diante de um quadro de Picasso em
exposição na loja de Sagot. Levou a irmã para vê-lo, mas
ela não gostou.
“São as pernas que a incomodam?”, perguntou Sagot.
“Os pés.”
“Então cortem-nos!”
Eles nada fizeram. Por 150 francos, Léo Stein comprou
finalmente a Fillette au panier de fleurs (1905). Depois,
convenceu a irmã a acompanhá-lo à residência desse
pintor espa­nhol do qual nem um nem outro tinha, até
então, ouvido falar. Roché, que frequentava a turma do
Bateau-Lavoir, assim como fre­quentava todos os outros
artistas de Paris, serviu de intermediário. Durante essa
primeira visita, os Stein compraram vários quadros.
Graças a isso, durante algumas semanas, Picasso pôde
comprar material, e não precisou recobrir antigas telas
para pintar as novas.
Picasso e Gertrude se tornaram rapidamente grandes
ami­gos. Fascinado pelo seu aspecto físico, o espanhol
propôs à ameri­cana fazer o seu retrato. Ela aceitou. Ele
queria pintá-la como In­gres havia feito Le portrait de
monsieur Bertin: sentada, compacta, definitiva.
A primeira sessão de pose começou. O pintor havia
insta­lado seu modelo numa poltrona desconjuntada,
enquanto ele se sentava numa cadeira diante do
cavalete. Com o nariz colado na tela, começou fazendo
um esboço: Gertrude dobrada sobre si mes­ma, com as
mãos no colo, levemente curvada; uma força quase
masculina, parada, como se estivesse à espera de algo.
No primeiro dia, tudo transcorreu bem. A família Stein
veio buscar sua heroína, à saída do trabalho. Todos se
mostraram encan­tados. A ponto de considerar o quadro
pronto, acabado, pago, le­vado, exposto.
“E depois?”, perguntou Picasso.
“Quer que eu volte amanhã?”, quis saber Gertrude,
com aquela voz grave e profunda, que correspondia tão
bem ao aspecto que o artista lhe havia dado na tela.
Ela voltou, não apenas no dia seguinte, mas ainda
durante vários meses. Todas as tardes, ela deixava a rua
de Fleurus para ir a Montmartre, empurrava a porta do
Bateau-Lavoir e se sentava diante do pintor, na poltrona
desconjuntada.
Às vezes, Léo vinha fazer uma visitinha. Outras vezes,
era Fernande. Ela achava os Stein um pouco ridículos,
principalmente Gertrude, com seus ternos de veludo e
suas sandálias de tiras. Mas reconhecia que tinha força
de vontade: era preciso ter, para ficar assim imóvel,
durante horas, diante de Pablo, que não abria a boca.
Querendo ser amável, Fernande propôs ler para a
modelo as Fábulas de La Fontaine. Oferta aceita. Assim
se passaram os dias, ao longo dos livros e das conversas.
De repente, depois de noventa sessões de pose, Picasso
largou os pincéis. Diante de Ger­trude consternada, ele
confessou:

“Não a vejo mais quando a olho.”


Tinha acabado de pintar o rosto.
Apagou-o.
Partiu para Gósol.

Um amigo escultor tinha elogiado essa cidadezinha


catalã, situada não muito longe de Andorra, nos Pireneus,
por sua extrema sim­plicidade. Chegava-se até ela no
dorso de mulas, e então o mundo desaparecia. Em volta,
só a natureza, os marrons e os amarelos das montanhas,
a simplicidade de uma vida que a modernidade não
havia destruído. Os habitantes, amáveis e hospitaleiros,
eram, na maior parte, contrabandistas. Era tudo de que
Picasso precisava.
Foi em Gósol que ele esboçou esse novo estilo que, um
ano depois, deveria conduzi-lo ao término dessa
revolução artística que foi Les Demoiselles d’Avignon. Na
nudez das paisagens, na sim­plicidade do povo, ele afinou
seu estilo. Buscava aquilo que Gau­guin descobrira no
Taiti: uma pureza, uma forma de primitivismo. Algo
diferente. Uma novidade. Para ele, tratava-se de definir
suas diferenças da arte tradicional, ao mesmo tempo em
que retomava seus valores do começo, quando pintava
os excluídos de Mont­martre ou as mulheres da Prisão de
Saint-Lazare; uma crítica da pintura, da sociedade, da
cultura estabelecida... Revirar as con­venções sociais,
reencontrar-se como era antes, jovem simpatizante
anarquista de espírito livre.
Primeiro, ele pintou à maneira de Ingres, cujo Le bain
turc o havia fascinado no Salão de Outono de 1905. Fez
Fernande à sa toilette, de um extremo classicismo.
Depois se misturam múltiplas inspirações: as estátuas
ibéricas, anteriores à conquista romana, vistas no Louvre;
a virgem de Gósol, que data do século XVII, cujos traços
são exagerados; as órbitas desmesuradas e vazias; os
trabalhos de Matisse também, e os de Derain...
Picasso olhava dentro de si mesmo, procurava,
descobria. E pintou o Grand nu rose (1906). Fernande
sobre um fundo rosa. Nua. Os cabelos puxados para
cima, as mãos juntas, com um rosto mais escuro do que
o corpo, ao invés de um olhar, olhos sem órbi­tas,
alongados como uma fenda. Inexpressiva. Desprovida de
qual­quer subjetividade psicológica.
O esboço de uma máscara.
Quando voltou a Paris, fugindo de uma epidemia de
tifo que tomou conta de Gósol, Picasso se plantou diante
do retrato de Gertrude Stein e, sem mesmo rever seu
modelo, de uma só vez pin­tou a cabeça que tinha
apagado.
O esboço de uma máscara. Os contrafortes das
Demoiselles d’Avignon. O balbucio de uma nova arte: o
cubismo.

41 Pele do Urso. (N.T.)


42 Franco ouro: moeda de ouro da época de Napoleão III. (N.T.)
43 Protagonistas do filme Jules et Jim, dirigido por François Truffaut, em
1962. (N.T.)
Uma tarde na rua de Fleurus

Matisse: cor. Picasso: forma. Duas grandes tendências, um grande


objetivo.
Wassily Kandinsky

R ua de Fleurus, número 27. Uma casa de dois


andares, um ateliê con­tíguo. Na casa, alguns
quartos, um banheiro, uma cozinha onde é servido o
jantar. No ateliê, uma sala ampla, móveis envernizados
da Renascença italiana, um aquecedor, duas ou três
mesas atulhadas de flores e porcelanas, uma lareira,
uma cruz maciça pendurada entre duas janelas, paredes
caiadas sem nenhum centímetro quadrado de espaço
livre. Nas paredes: Gauguin, Delacroix, Greco, Manet,
Braque, Vallotton, Cézanne, Renoir, Matisse, Picasso. E
outros.
Não estamos num museu. E, como na época a maioria
des­ses quadros não vale grande coisa, a porta do ateliê
só tem uma chave; uma dessas chaves achatadas
americanas, que se coloca no bolso e fica perdida, em
meio a outras enormes e barulhentas que chacoalham
nos casacos dos parisienses.
É aí que moram os Stein. Recebem todos os sábados.
Boca-­livre, ou quase. Para poder entrar, basta responder
à pergunta ri­tual feita pela dona da casa: “Vem a mando
de quem?”. De um no­me de artista, cujas obras estão
expostas na casa.
Então, é possível ter acesso ao amplo ateliê, onde se
acoto­vela uma multidão desigual – pintores, escritores,
poetas... Uma vez por semana, come-se e bebe-se de
graça, o que, nesses tempos de vacas magras, é
considerável. Ainda mais que, por menos que se aprecie
a arte moderna, a companhia é das mais agradáveis.
Aquele que está falando, lá no fundo, com os dedos
nos bolsos do colete, cercado por uma multidão de
admiradores que conversam com ele, é Guillaume
Apollinaire. É inútil tentar desa­fiá-lo: ele sabe tudo sobre
tudo, e ganha sempre. Miss Stein, que se tem em alta
conta, confessa que apenas uma vez conseguiu vencê-lo,
e somente porque ele estava embriagado.
O grandalhão de cara amarrada, de pé, diante da
lareira, é Braque. Está zangado porque uma de suas
obras, colocada acima da lareira, está escurecendo com
a fumaça. E, da mesma forma, duas aquarelas de
Cézanne que estão ao lado. Braque resmunga, pensando
que da próxima vez que tiver que pendurar os quadros
(como é o mais alto de todos, ele segura o quadro
enquanto a zela­dora coloca o prego), pedirá para mudar
o seu de lugar. E lamenta não ter dito nada no último
jantar. Mas tem uma desculpa: à mesa, cada pintor
estava sentado diante das suas próprias telas, ao lado
dos colegas. Nessas condições, ficava difícil criticar...
Naquela noite, Picasso estava lá. Como sempre, não
dizia nada. Detestava a vida mundana e tinha dificuldade
de se exprimir bem em francês. Observava, com certa
ironia, o professor Matisse, que fala tão bem e com tanta
perfeição.
Nesse dia, Picasso está no mesmo estado de espírito
que seu colega da rua d’Orsel: furioso. Acaba de notar,
penduradas na parede, duas telas suas; mudaram de
aspecto e brilham mais do que deveriam: Gertrude Stein
as envernizou. Efetivamente, essa mulher gosta de tudo
que brilha...
Max Jacob tenta acalmar o amigo. Não conseguirá
muita coisa: Picasso decide ficar, mas jura não colocar
mais os pés na rua de Fleurus por muitas semanas.
Ele está procurando Fernande Olivier com os olhos,
quan­do um desconhecido se aproxima e mostra o quadro
que o pintor terminou ao voltar de Gósol:
“É Gertrude Stein?”
“É.”
“O retrato não parece muito com ela...”
Picasso dá de ombros:
“Não tem importância: ela acabará se parecendo com
ele.”
Fernande fala com uma mulher baixinha, vestida de
cinza e preto. É jovem, usa brincos de vidro, mas a voz,
muito grave, e os modos, muito formais, a envelhecem. É
frequentemente confundi­da com a empregada, mas não
é. No entanto, quem a vê conver­sando com Fernande
Olivier poderia perfeitamente pensar isso. Ela está ali e
ao mesmo tempo não está. Ouve sem prestar atenção.
Muito dependente das opiniões de miss Stein, ela não
liga muito para o que diz a senhora Picasso, que a dona
da casa não poupa: “Ela só fala de três coisas, só três
coisas: chapéus, perfumes e casa­cos de pele”.
Não desta vez. Combinam aulas de francês que
Fernande poderia dar a Alice Toklas. Ao mesmo tempo
em que responde às perguntas feitas pela futura
professora, a americana toma conta do que está se
passando: quem bebe, quem não bebe, quem come,
onde estão os petits fours, estão faltando, por que miss
Stein ainda não apareceu, vão ouvi-la com atenção, será
que ela vai precisar afastar os importunos que podem
atrapalhar a conversa que a es­critora-mecenas terá
obrigatoriamente com o artista-professor Ma­tisse? E
Brancusi, que se aproxima, será que ele não vai
perturbar a harmonia da conversa?
Alice Toklas venera a patroa e amiga a ponto de
enaltecê-la sob as múltiplas facetas que compõem sua
rara personalidade. Gertrude gostaria de ser uma joia
literária. Acha-se um gênio ino­vador das letras mundiais.
A “Picasso da literatura”. Alice faz com que ela acredite
nisso. É seu maior papel. Além de lhe servir de
datilógrafa.
Miss Stein acaba de surgir na porta do ateliê. Está
usando, naquele dia, um vestido de veludo marrom que
lhe marca a cintu­ra e aperta os ombros de tal maneira
que as carnes escapam indis­ciplinadamente. Para se
proteger do frio, colocou grossas meias de lã,
empurradas e acomodadas nas sandálias de tiras, que
fazem ba­rulho quando ela anda sobre o assoalho
encerado.
Primeiro, miss Stein se assegura de que todos notaram
sua chegada. Satisfeita em relação a isso, estende um
maço de folhas manuscritas a miss Toklas e pede-lhe
para datilografá-las, em espaço duplo, na Underwood
que fica no quarto. Depois suspira, e diz que escrever é
uma atividade muito deprimente. Mas tem sorte: acaba
de enviar um texto maravilhoso para uma revista de
Nova York que teve a gentileza de publicar outros três,
desde o iní­cio do ano.
Caminha em direção ao grande retrato feito por
Picasso e se coloca sob ele. Logo depois, Henri Matisse,
Robert Delaunay, Mau­rice de Vlaminck, três que vêm
sempre filar a comida, estarão à sua volta.
Gertrude Stein é a maestrina dessas reuniões de
artistas, e gosta desse papel. Sentada sob seu retrato,
como São Luís sob sua árvore44, emite seus comentários
com autoridade, olhando severa­mente para quem a
interrompe. Não suporta nem os escritores que não
admirem as poucas novelas que ela publicou nos jornais
ame­ricanos, nem os pintores que não lhe sejam
devotados, ela que é sua benfeitora material e moral.
Aos que recusam participar dos salões oficiais, oferece
um lugar para que exponham e, graças a isso, tornam-se
conhecidos. Foi assim com Picasso. E a quem Ma­tisse
deve agradecer por conseguir, doravante, seu sustento?
A ela.
Gertrude Stein gosta muito do casal Matisse. Quando
vai à casa deles, na margem do rio, perto de Saint-
Michel, fica sempre agradavelmente surpresa com a
arrumação. Picasso é a boêmia. Matisse é a pobreza
elegante. Come-se relativamente pouco tanto na casa de
um quanto na do outro, mas, na margem esquerda, as
aparências são salvas. A senhora Matisse sabe preparar
uma carne ensopada com vinho e cebolas. Ela se dedica
à causa do marido. Um dia, Matisse a fez posar vestida
de cigana com um violão na mão. Ela adormeceu e o
instrumento caiu. A família só tinha o in­dispensável para
comer, mas ela preferiu morrer de fome e mandar
consertar o violão. Assim, Matisse pôde terminar o
quadro.
Outra vez, Gertrude Stein viu uma magnífica cesta de
fru­tas sobre a mesa. Ninguém podia tocar nela: estava
reservada para o artista, para o seu trabalho. Para que as
frutas não apodrecessem, haviam desligado o
aquecimento do apartamento. Matisse pintava sua
natureza-morta enfiado num casacão, de luvas de lã nas
mãos.
Gertrude Stein gosta muito de convidar Matisse e
Picasso ao mesmo tempo. Eles se admiram, mas não
gostam um do outro, estão sempre se medindo. É um
espetáculo magnífico!
Matisse e Picasso, a imagem é de um deles, são como
o Polo Norte e o Polo Sul. O francês conservou uma
retidão que caía como uma luva nas suas mãos de
escriturário, quando redigia os atos do advogado para o
qual trabalhava. É sério, não ri. A família não são seus
amigos, mas sim a mulher e a filha. Convida pouca
gente. Quando fala, fala com seriedade, para convencer.
“Ele não sabia rir, mas era o pintor da alegria de viver”1,
lamentou André Salmon.
Dorgèles, num artigo um tanto xenófobo, descreveu
sua “barba ponderada” e seus “óculos austeros”,
semelhantes aos de “um adido militar alemão” –, mas a
verdade é que Dorgèles se tor­nará simpatizante da
Action Française e escreverá no Gringoire.45
Apollinaire, mais brilhante, mostrou-se mais conciso:
“Es­se fauve é refinado”. Descreveu-o pintando com
solenidade vá­rias telas ao mesmo tempo, quinze minutos
para cada uma, citando Claudel e Nietzsche, se havia
estudantes na sala.
O espanhol é calado. Exprime-se através dos olhos,
que são zombeteiros. É bruto, enquanto o francês é
educado. Foge dos círculos e dos salões. É passional e o
demonstra.
Os dois pintores têm, no entanto, alguns pontos em co‐­
mum: o interesse pelo primitivismo, a amizade que a
anfitriã da rua de Fleurus tem por eles, a tensão com que
se comportam um em relação ao outro.
Nas paredes, estão penduradas obras de ambos. Eles
já sa­bem o que os Stein compreenderam quando os
descobriram: são os dois gigantes da arte moderna.
Cada um terá seus prosélitos: para Matisse serão Léo e
seu irmão Michaël: para Picasso, Gertrude. Por ora, as
fissuras ainda não comprometeram a cumplicidade que
liga os irmãos e a irmã. Mas Matisse já sente ciúmes da
solicitude que a americana dis­pensa ao espanhol, doze
anos mais jovem do que ele; e sente tam­bém ciúmes de
Braque e de Derain, que se afastam do seu círculo para
se aproximar dos mistérios tramados no Bateau-Lavoir.
Uma pergunta atormenta o professor: do que se trata?

44 São Luís – Luís IX, rei da França –, monarca modelo da Idade Média, tido
como justo e moralizador dos costumes, é representado sentado junto a um
carvalho, apli­cando as leis. (N.T.)
45 Action Française: movimento nacionalista e revista de mesmo nome.
Gringoire: an­tigo jornal de direita. (N.T.)
O bordel de Avignon

Esse é o verdadeiro Taiti, isto é: fielmente imaginado.


Paul Gauguin e Charles Morice

E m Montmartre, assim como em torno de Saint-Michel,


borbulha um caldeirão do qual ninguém ainda chegou
a provar, mas que já se anuncia escaldante: o
primitivismo; a arte negra.
Picasso foi para Gósol, e Matisse está voltando de
Collioure. A fronteira espanhola separa o vilarejo na
montanha do pequeno porto de pesca. Mas a arte não se
importa com fronteiras. Nas altu­ras, Picasso descobria
uma nova simplicidade; embaixo, Matisse explorava
universos semelhantes.
Gertrude Stein sabe onde e como se realizou o
cruzamento. Um dia, que não era sábado, Matisse estava
indo à casa dela. Na rua de Rennes, ele parou, de
repente, diante da vitrine de Heymann (chamado de
“Père sauvage”46), um vendedor de curiosi­dades
exóticas, onde estava exposta uma estatueta africana de
madeira escura. Entrou e comprou-a (cinquenta francos).
Era uma estátua vili, do Congo, que representava um
personagem sentado, de cabeça erguida e órbitas vazias.
O mais extraordinário era que as formas e as proporções
tinham mais que ver com o imaginário do que com a
representação, e que, contrariamente às práticas da
escultura ocidental, a definição muscular não era
acentuada.
Matisse foi à rua de Fleurus e encontrou Picasso. Este
viu a estatueta. Foi depois de Gósol. Observou-a por
muito tempo, e depois voltou para Montmartre. Havia se
produzido um choque.
No dia seguinte, Max Jacob encontrou-o no ateliê,
ocupado em desenhar cabeças estranhas, cujos olhos,
nariz e boca eram liga­dos por um mesmo traço. Max,
aliás, gostava de desmentir a se­nhora da rua de Fleurus,
afirmando que Matisse tinha mostrado a estátua vili a
Picasso, em sua casa, durante um jantar, onde também
estavam Apollinaire e Salmon.
Apollinaire nunca falou sobre isso, e Salmon não se
lembra. Matisse conhecia a arte negra, pois já fora várias
vezes ao Museu de Etnografia do Trocadéro, que exibia
objetos da Oceania, africanos e americanos trazidos
pelos que vinham das colônias. Esses objetos estavam
entulhados em armários poeirentos, ou então eram
exibidos nas próprias caixas usadas nas viagens.
Apollinaire se manifestou contra a apresentação
descuidada dessas preciosidades. Propôs que fossem
recebidas no Louvre – onde Picasso ia com frequência
admirar as estatuetas ibéricas (ditas “iberas”) que lá se
encontravam. Nessa época, o pintor espanhol ainda não
frequentava o Museu do Trocadéro.
Nessa história, entra um terceiro personagem, cujo
papel foi deter­minante: André Derain.
Derain está apaixonado pela arte negra há mais tempo
do que os outros. Ele conhece o Trocadéro. E conhece
também o British Museum, onde, em 1906, descobriu as
obras primitivas da Nova Zelândia. Falou muito sobre
elas para Matisse, quando faziam juntos pesquisas sobre
o fauvismo, e também para Vlaminck:
Estou emocionado com minhas visitas a Londres e ao Museu Na­cional,
assim como também ao museu de arte negra. É fantástico,
extraordinariamente expressivo.1

É Derain que levará Picasso a entrar no Museu de


Etnografia. Também, e sobretudo, vai lhe mostrar uma
máscara fang. Essa máscara provocará no pintor
espanhol um choque, como aquele que levou ao ver a
estátua vili de Matisse.
Essa máscara tem uma história, anterior àquela
famosa noite em que Matisse foi à rua de Fleurus, depois
de passar na loja de Heymann. Gertrude Stein está
certamente na origem do encon­tro entre Matisse e
Picasso, mas não é ela a madrinha da arte negra. Carco,
Dorgèles, Warnod e Cendrars podem servir de
testemunhas.
A madrinha é um padrinho: Maurice de Vlaminck. Uma
tarde, ele está em Argenteuil, às margens do Sena,
pintando há vá­rias horas. Deixa o trabalho e entra num
café. Pede um vinho bran­co com água de Seltz.47 Nem
bem havia bebido os primeiros goles, nota três objetos
estranhos numa prateleira, imprensados entre duas
garrafas de Pernod. Levanta-se, aproxima-se, e descobre
três esculturas de origem africana. Duas são pintadas em
ocre verme­lho, amarelo e branco: vêm do Daomé.48 A
outra é preta: Costa do Marfim. O pintor fica
profundamente perturbado. Segundo suas próprias
palavras, “mexido no fundo”. Essas estatuetas lhe reve‐­
lam a arte negra.
Ele as compra, pagando à vista. Em seguida, leva-as
para casa.
Alguns dias depois, recebe a visita de um amigo de seu
pai. O homem vê os objetos africanos e lhe oferece
outros três: duas estátuas da Costa do Marfim e uma
máscara fang, que sua mulher acha tão feias que não as
quer na decoração da casa. Vlaminck está nas nuvens.
Pendura a máscara acima da cama. Quando Derain a vê,
fica paralisado de emoção. Quer comprá-la. Vlaminck
recusa.
“Nem por vinte francos?”
“Nem por vinte francos.”
Oito dias depois, Derain volta. Propõe cinquenta
francos.
Vlaminck aceita. O parceiro leva a máscara para seu
ateliê, na rua Tourlaque. É lá que Picasso a descobre. É
essa a origem do seu interesse pela arte negra.
O fato de saber se foi primeiro Matisse e depois
Picasso, ou Picasso primeiro e Matisse depois, não tem,
na verdade, muita im­portância. Houve Gósol para um,
Collioure para o outro, Derain para os dois... e Gauguin
para todos.
Porque Gauguin também ficara fascinado pelas peças
africa­nas e da Oceania que descobrira, na sua época, por
ocasião da Ex­posição Universal, e das quais uma
retrospectiva, organizada em volta das Tahitiennes, no
Salão de Outono de 1906, perturbou ao mesmo tempo
Matisse, Picasso e Derain. A partir daí, eles começaram a
colecionar essas preciosidades, vindas de um outro
tempo, de uma outra cultura, que contestava a arte
tradicional e elevava a subjetivi­dade do criador a um
ponto nunca alcançado até então. Os primiti­vos,
reconhecidos como “artistas puros” por um Kandinsky
ainda russo-germânico, só se ligavam, “nas suas obras, à
essência interior, qualquer contingência ficando por isso
mesmo eliminada”.2
Pouco a pouco, Matisse e Picasso vão integrando a arte
ne­gra à sua criação. O primeiro acrescentando-a a seus
quadros, o se­gundo fazendo do estatuário o centro das
suas composições. A partir daí, finalmente, o duelo
Matisse-Picasso não vai mais se rea­lizar com leves
pinceladas, mas sim à vista de todos, sobre telas
imensas, imensas obras-primas.
Matisse é o primeiro a desembainhar a espada. No
Salão dos Independentes de 1906, expõe uma única tela.
Ela se tornará legen­dária: Le bonheur de vivre. É uma
tela gigantesca, tanto pelo tama­nho (175 cm x 241 cm)
quanto pela novidade. É uma espécie de mis­tura desse
primitivismo, que o artista descobriu em Collioure, com
um fauvismo contido, uma poesia onírica que lembra
L’aprês-midi d’un faune, de Mallarmé, a deformação dos
corpos, como em Gauguin. Le bonheur de vivre rompe
com o neoimpressionismo.
Foi um prato cheio para a crítica. Juntando-se aos risos
e à zombaria daqueles que não gostaram, falam de
“divagações trans­cendentais”, de “tela vazia”, de
pensamento musical, literário, mas sem nenhuma
plasticidade. Menosprezam a justaposição das cores, os
contornos, às vezes finos demais, às vezes pesado em
excesso, as deformações anatômicas, o abandono do
pontilhismo pelas pince­ladas largas e coloridas. Até
mesmo Signac, que havia no entanto comprado um outro
objeto de escândalo, a tela de Matisse Luxe,calme et
volupté, estima que o pintor está completamente equivo‐­
cado; esse mesmo Signac que tinha, na sua época, junto
a seu amigo Seurat, conhecido o ostracismo dos
impressionistas român­ticos imposto por Picasso contra
Monet e Renoir.
Matisse, que se revelará terrivelmente conservador
quando se tratar de defender o cubismo, está então na
ponta da vanguarda, em 1906. No ano anterior, nos
Independentes, em relação a Luxe, calme et volupté,
Charles Morice, que era no entanto amigo de Gau­guin,
criticou-o por ter se juntado à turma “dos pontilhistas e
con­fetistas”. A mesma coisa aconteceu, alguns meses
depois, com La femme au chapeau. Matisse é o mais
escandaloso dos inovadores.
Até seus fiéis admiradores hesitam. Léo Stein também
fica desconcertado com Le bonheur de vivre. Vai vê-la,
volta uma outra vez. Finalmente, a tela lhe parece aquilo
que é: o acontecimento do Salão, a obra marcante do
século que começa, aquela que con­sagra Matisse como o
grande mestre da pintura moderna. Então, ele a compra.
No ano seguinte, o pintor reincide. É o Nu bleu:
souvenir de Biskra (1907), inspirado em uma viagem que
fez à Argélia, na pri­mavera de 1906. Novamente a crítica
permanece arredia aos estra­nhos contornos, sempre
deformados como em Gauguin, ao rosto que parece uma
máscara, à pele matizada de azul. Louis Vauxcelles
reconhece que não entende nada daquilo que ele define
como sen­do uma “esquematização vacilante”, da qual
Matisse e Derain (que expõe Les baigneuses) são os
primeiros arquitetos. Outros descre­vem o artista como
um “espertalhão”, e sua pintura como um “universo de
feiura”.
Também dessa vez, Léo Stein e a irmã compram o
quadro.

Durante esse tempo, bem longe do Couvent des


Oiseaux onde o “fauve refinado” vai instalar sua
academia (antes de se recolher ao convento do Sacré-
Coeur, nos Invalides), Picasso trabalha. Na con­fusão do
Bateau-Lavoir, prossegue com suas próprias pesquisas.
Sob o olhar atônito de Max Jacob, ele desenha formas e
figuras que se parecem com as gravuras das cavernas
pré-históricas. Depois do Portrait de Gertrude Stein, ele
pinta o Autoportrait (1906) e Autoportrait à la palette
(1906). Em seguida, dedica-se a vários bustos de
mulheres, principalmente o Buste de femme à la grande
oreille (1907).
Ele prepara sua resposta a Matisse. Afia suas armas.
Co­nhece a obra do rival, pois a viu na casa dos Stein.
Como muitos, também ficou abalado. Mas acha que
aqueles que afirmam que a pintura de Matisse é
revolucionária estão enganados. Ela é um ponto alto da
arte, mas da arte clássica. A linguagem é mais mo­derna
sim, mas ainda exprime a tradição. Isso é também o que
diz Kandinsky, mais ou menos na mesma época: ele vê
em Matisse um dos grandes mestres da pintura
contemporânea, um gênio das co­res, mas um
impressionista visceral que, como Debussy, não rom­peu
com a “beleza convencional”.
Disseram que o artista foi longe demais? Pois, em seu
ínti­mo, Picasso pensa que Matisse parou cedo demais. A
ruptura, a verdadeira ruptura, passará por ele.
Depois de meses de pesquisa e de esboços
preparatórios, no inverno de 1906, Picasso coloca a
ponta do pincel na garganta daquele que ele quer
superar. Começa a pintar Les Demoiselles d’Avignon. No
seu pensamento, esta obra é sua resposta ao Bonheur de
vivre, de Matisse.
Os esboços mostram que, inicialmente, ele pensava
repre­sentar um marinheiro num bordel, e introduzir um
estudante de medicina no quarto onde estavam o
marinheiro e cinco mulheres. Por que Avignon? Porque,
ao executar a obra, Picasso pensava na calle d’Avignon
(Avynyo), perto da qual ele morava em Bar­celona, e onde
comprava papel e tintas. Quanto ao marinheiro, era
inspirado em Max Jacob: este havia garantido a Picasso
que era originário de Avignon, cidade que, aliás, tinha
várias casas de tolerância. Durante os estudos
preparatórios, Picasso pintara o amigo poeta vestido com
uma camiseta de marinheiro. Inicial­mente, uma das
mulheres deveria ser Fernande Olivier, a outra Marie
Laurencin, e a terceira a avó de Max, nascida em
Avignon. Picasso confirmou esse fato a Kahnweiler em
1933.3
À medida que o trabalho avançava, o marinheiro
desapare­ceu e o estudante se transformou em mulher.
Quando o quadro ficou pronto, representava cinco
mulheres, das quais quatro estão de pé, nuas. Seus
rostos têm a marca das estatuetas ibéricas e das
máscaras negras. Contrariamente à obra de Matisse,
cheia de cur­vas, de cores, que parece, pelo menos hoje
em dia, extraordinaria­mente harmoniosa, a obra de
Picasso é escura, de uma espantosa violência. Os corpos
das mulheres são distorcidos, angulosos, os pés são
enormes, as mãos são grandes, o peito cortante ou
inexis­tente, os narizes achatados, retorcidos, um pouco
de azul em uma das pernas, certos movimentos pouco
graciosos, caras feias, másca­ras, olhos arregalados
fixando o observador, uma órbita vazia e preta, a
dissimetria ibérica do lado direito, a estatuária negra do
lado esquerdo, clara geometria anunciando o cubismo.
Pierre Daix diz, com precisão, que a violência do Bordel
lembra o arrebata­mento de Une saison en enfer, e que
Picasso, à época da composição da tela, estava lendo
Rimbaud.4
Não mais se trata de poesia, de indolência, de
devaneios, como em Mallarmé. Estamos num bordel, na
mais crua das realida­des. Picasso opõe essa obra, ainda
maior do que Le bonheur de vivre, a Matisse. Não se
trata do fim, fosse ele o mais moderno, do universo
anterior, mas o começo de um novo mundo. Le bordel es‐­
tá para Le bonheur assim como Le sacre du printemps de
Stravinsky está para os últimos Quatuors de Beethoven.
Ninguém entende. Quando Picasso mostra a obra para
os íntimos do Bateau-Lavoir, há um certo desconforto.
Braque tenta uma brincadeira: “É como se você quisesse
nos fazer comer a es­topa e beber o petróleo!”. Manolo,
como sempre, é objetivo: “Se você fosse buscar seus
pais na estação e eles chegassem com uma cara dessas,
confesse que você não ficaria contente!”. Léo Stein fica
horrorizado. Outros garantem que a obra não está
acabada. Derain teme encontrar Picasso enforcado no
próprio quadro.
Pior foi Apollinaire. Sempre disposto a defender as
ousa­dias da arte moderna, principalmente quando se
trata de Picasso, ele fica calado. Não diz uma só palavra
sobre o quadro e nem mes­mo menciona a existência dele
nas suas críticas.
A única a defender o artista é Gertrude Stein. Mas não
compra o quadro...
A tela ficou por muito tempo nos sucessivos ateliês do
pintor. Foi exposta pela primeira vez em 1916, no Salão
d’Antin, organizado por André Salmon. Foi ele quem
sugeriu na ocasião que, por razões de decoro e de
censura, Le bordel d’Avignon (assim chamado por
Picasso), ou Le bordel philosophique (assim chamado por
Apollinaire e Salmon), passasse a se chamar Les
Demoiselles d’Avignon. Picasso concordou, a
contragosto: ele jamais gostou desse nome.
Depois da exposição do Salão d’Antin, a obra foi
enrolada e pouco exibida. Em 1923, André Breton
convenceu Jacques Doucet, costureiro e mecenas, a
comprá-la. Em 1937, uma galeria de Nova York comprou-
a e depois vendeu-a ao Museu de Arte Moderna de Nova
York.
Ainda hoje, Les Demoiselles suscita comentários.
Historia­dores da arte discutem entre si, a fim de dar uma
resposta às duas perguntas feitas desde a origem do
quadro: qual é a contribuição da arte negra na
composição? A obra pode ser considerada o ponto de
partida do cubismo?
A resposta à primeira pergunta é que a arte ibérica
estava na parte direita do quadro, a mais
“revolucionária”, sendo reco­nhecida pelo sombreado, a
forma das orelhas e dos olhos de duas das senhoritas,
uma de pé, a outra agachada; que esta última foi pintada
segundo o retrato de um camponês feito por Picasso em
Gósol – os blocos dos esboços o provam sem grande
contestação possível. E que o olho da senhorita da
esquerda seria, ao contrário, influenciado pela arte
negra. Para apoiar essa tese, os historiadores avançaram
algumas datas que tendem a provar que, quando
começou Les Demoiselles, Picasso conhecia a estátua vili
de Matisse e a máscara fang adquirida por Derain junto a
Vlaminck, mas ainda não conhecia, ou conhecia mal, o
Museu de Etnografia do Troca­déro; portanto, ainda lhe
faltavam fontes de inspiração.
É verdade que Picasso começou a comprar um pouco
mais tarde os objetos de arte negra que iriam entulhar o
ateliê do Bateau-Lavoir (L’oiseau du Bénin49, nome
escolhido por Apollinaire para designar Picasso em Le
poète assassiné, se refere a uma peça da coleção do
pintor). Também é verdade que ele tinha menos pe­ças do
que Matisse, campeão nesse domínio. Finalmente, é
também verdadeiro que, a partir dos anos 1938-1939, o
próprio Picasso de­clarou que, se no tempo do Bateau-
Lavoir todo o mundo viu a in­fluência da arte negra nas
Demoiselles, era porque todos estavam descobrindo
essas novidades culturais; mas que, na verdade, de­ver-
se-ia ver ali, quase exclusivamente, uma influência
ibérica.
A influência da arte negra na obra do pintor é
igualmente contestada por Pierre Daix e por Pierre
Reverdy. Contrariamente ao primeiro, o segundo nega,
sem fundamento algum, a influên­cia de Cézanne no
cubismo, de Ingres nas obras de 1905, e da estatuária
negra no período que precede o cubismo. O poeta está
enganado. Mas tem desculpas: escreveu nos anos 1920,
logo, muito próximo da época; e venera seu modelo, tão
essencial para a arte, segundo ele, quanto Descartes
para a filosofia.
John Richardson tentou introduzir uma nova nuança
nesse debate de especialistas. Concordando com um
certo número de an­tropólogos e historiadores da arte, ele
afirma que os rostos das se­nhoritas são réplicas
incontestáveis de máscaras africanas; e que Picasso
refez esses rostos depois de visitar o museu do
Trocadéro. Richardson lembra ainda que, na época em
que Picasso negava a influência da arte negra nessa
obra, a guerra da Espanha terminara com a vitória de
Franco: reivindicar a influência ibérica no Le bor­del era
também reivindicar suas raízes espanholas. Entre a
elabora­ção do Bordel e as palavras do pintor, antes dos
anos 1940, houve Guernica, o Museu do Prado, cuja
direção lhe foi confiada pelos republicanos e, finalmente,
os massacres cometidos pelas tropas africanas
engajadas nas legiões franquistas. Era preciso defender a
Espanha, tanto ela havia sofrido e sido devastada. Isso
era suficien­temente importante aos olhos de Picasso
para que ele se irritasse, sem nenhuma hesitação, com
André Salmon, que devia cobrir a Guerra para o Le Petit
Parisien, jornal monarquista. A partir desse dia, ele se
recusou a apertar-lhe a mão, e afastou-se dele.
A segunda pergunta, sobre o cubismo, continua sem
res­posta. Salmon e Jacob sempre consideraram – e
escreveram – que as Demoiselles d’Avignon constituíam
o ponto de partida do cubismo. Kahnweiler, que mais
tarde será o marchand de Picasso, também. E quando se
observa a parte direita do quadro, pode-se reconhecer
claramente as novas formas que serão o modo de
expressão dessa escola. Mas Pierre Daix diz o seguinte:
Atualmente, depois da exposição no Museu de Arte Moderna de Nova
York, em 1989-1990, considera-se que o nascimento do cubis­mo implica,
além da reconstrução das formas naturais, o aprofun­damento da
expressão cezaniana dos volumes, que primeiro se manifestou em
Braque, durante o ano de 1908, e depois em Picasso, na versão final de
Trois femmes.5

Para Daix, Trois femmes é uma espécie de conclusão


da evolução do trabalho iniciado em Les Demoiselles
d’Avignon. Se aí existe cubismo, então é aí que ele se
situa, e não em outro lugar. Ainda uma vez, os exegetas
travam combate.

E Matisse, nisso tudo?


Ele viu Le bordel d’Avignon no ateliê do Bateau-Lavoir
(os Stein o levaram até lá), e compreendeu muito bem
contra o que e contra quem era dirigida a violência do
seu caçula: contra a arte qualificada de moderna, ou
seja, contra ele próprio. Aos olhos do mundo, não é ele
que se passa pelo representante da mais nova tendência
da pintura francesa? É claro que ele fica furioso e afirma
que vai “arrasar” Picasso.
A rivalidade entre os dois homens é enorme. Segundo
o relato de Salmon, ela se manifesta nos “picassianos”
através de gestos de uma infantilidade impressionante:
quando Matisse ofe­receu a Picasso um retrato de sua
filha Marguerite – um retrato malfeito, afirma o escritor
para justificar o presente –, a turma, então, entrou um
dia em um bazar da rua das Abbesses, comprou umas
flechinhas e, de volta ao Bateau-Lavoir, lançou-as,
visando bem no rosto da menina. Por sorte, eram da
marca Eurêka, com pontas de borracha.
Matisse, por sua vez, queria saber quem eram os
moleques que pintavam slogans em sua homenagem nos
muros de Mont­martre: “Matisse faz enlouquecer!”.6
Seu caminho, entretanto, logo o levaria para o lado dos
júris e das academias de pintura: um outro mundo...
Em 1908, as relações entre os dois pintores esfriaram,
por­que Braque foi recusado pelo comitê que escolhia os
quadros para o Salão de Outono. Matisse, que, três anos
antes, provocara escân­dalo nesse mesmo Salão, era
membro do comitê. Dizia-se, além dis­so, que ele havia
criticado o cubismo nascente. As “garras da fera”50
tinham se tornado meras almofadas.
Por sorte, a briga não durou muito. No início da
Primeira Guerra Mundial, Matisse e Picasso cavalgavam
juntos no Bois de Boulogne. Encontravam-se nos
respectivos ateliês. Trocavam obras entre si. Em 1914, os
dois escaparam da convocação. Em 1937, foram
condenados pelos nazistas, junto a outros, como
represen­tantes da “arte degenerada”. Quando os
alemães entraram em Pa­ris, Matisse não estava lá.
Picasso protegeu sua obra, que estava num cofre forte,
no banco, perto dele. Para Matisse, segundo Bras­sal,
Picasso era “seu camarada e rival, a pedra do seu
sapato, e seu irmão de sangue”.7
Depois da Guerra, Picasso foi visitar Matisse (que tinha
se refugiado em Nice). Toda a rivalidade entre os dois
artistas havia desa­parecido. Falaram de suas respectivas
pinturas e de outras. Matisse se mostrou quase paternal.
Ele morreria pouco depois. Doou e trans­mitiu. E Picasso
escutava. A rua de Fleurus tinha ficado distante. Nem um
nem outro precisava mais de Gertrude Stein para
apartá-­los. Sabiam que eram ambos grandes mestres da
arte moderna.

46 Pai selvagem. (N.T.)


47 Da região de Seltz, na Alemanha, onde existem importantes mananciais
de água gaseificada natural. (N.E.)
48 Atual República do Benin. (N.T.)
49 O pássaro do Benin. (N.T.)
50 “Les griffes du fauve”, no original, remete a um jogo de palavras, pois
griffe pode tanto significar “garra” como “domínio cruel”. (N.T.)
O gentil Douanier

Um pássaro pequenino
Pousa no ombro de um anjo
Eles cantam em louvor
Do gentil Rousseau
Guillaume Apollinaire

U m pintor estranho, que não se espera encontrar num


lugar des­ses, também frequenta a turma do Bateau-
Lavoir. Tem quase 65 anos, a aparência de um velho
senhor respeitável, usa bengala e chapéu, e anda
devagar, um pouco curvado, de Plai­sance, onde mora,
até o alto da Butte. Seu rosto traduz uma bon­dade
generosa e uma grande sensibilidade: enrubesce à
mínima contrariedade. Henri Rousseau está entrando na
terceira idade, e mal saindo da infância. Sua pintura
reflete uma ingenuidade que Éli Faure comparou à de
Utrillo, os dois pintores partilhando, segundo ele, o
mesmo grau de inocência.
Chamam-no de Douanier Rousseau51, pois trabalhou
num escritório da alfândega de Paris, encarregado de
verificar os gêne­ros alimentícios que entravam na
capital. Quando fez cinquenta anos, aposentou-se para
se dedicar à pintura. Não estudou em nenhuma escola de
arte. É totalmente autodidata. Ignora a perspec­tiva e
todas as regras picturais. Pinta por instinto,
cuidadosamen­te. Sua história é simples, principalmente
se não for contada por Apollinaire.
Tu te souviens, Rousseau, du paysage aztèque,
Des forêts où poussaient la mangue et l’ananas,
Des singes répandant le sang des pastèques
Et du blond empereur qu’on fusilla là-bas.
Les tableaux que tu peins, tu les vis au Mexique
Un soleil rouge ornait le front des bananiers,
Et valeureux soldat, tu troquas ta tunique
Contre le dolman des braves douaniers.52

O poeta peca por excesso de imaginação quando


escreve que Henri Rousseau representa as paisagens
mexicanas descobertas durante a guerra do México, da
qual teria participado como sargento, coman­dando uma
tropa de soldados. Pois, na verdade, o Douanier Rous‐­
seau não foi nem ao México nem à América. Foi apenas a
Angers, durante o serviço militar, e à Exposição Universal
de 1889, onde talvez tenha descoberto as paisagens
exóticas reconstituídas que, eventualmente, o teriam
inspirado mais tarde. Apollinaire, portan­to, está
enganado quando, numa frase lapidar, afirma que as
obras de Rousseau “são a única coisa que o exotismo
americano forneceu às artes plásticas”.1 E Blaise
Cendrars não é mais verdadeiro quan­do, por sua vez, põe
a mão na massa da lenda:
Viens au Mexique!
Sur les hauts plateaux les tulipes fleurissent
Les lianes tentaculaires sont la chevelure du soleil
On dirait la palette et les pinceaux d’un peintre
Des couleurs étourdissantes com me des gongs,
Rousseau y a été
Il y a ébloui sa vie.53

Rousseau é único. Não tem época nem escola. Não


está mais pró­ximo dos impressionistas, dos quais, no
entanto, é contemporâneo, do que dos seguidores da
arte negra. Talvez dos fauves, mas só por engano: Le lion
ayant faim foi, na verdade, exibido ao lado das telas de
Matisse, de Vlaminck e de Derain, no famoso Salão de
Ou­tono de 1905. Louis Vauxcelles, que admirava
Rousseau, afirmava que o caso dele demonstrava “que o
mais ignaro e inculto dos seres pode ser um artista
talentoso”. Dele, disseram que era uma espécie de
surdo-mudo da pintura, solitário e intuitivo, seguindo por
um caminho tranquilo que ninguém partilhava com ele, e
do qual ele mesmo ignorava as regras – se é que
existiam.
O paradoxo desse artista, absolutamente único no
gênero, é que ele ostenta um classicismo, difícil
certamente de ser classifi­cado, mas que não pode ser
comparado à audácia dos criadores do Bateau-Lavoir;
ora, foi graças a eles que conheceu a glória.
Alfred Jarry apresentou-o às duas eminências do
Mercure de France, Alfred Valette e sua mulher Rachilde,
e depois a Apolli­naire; Jarry, também nascido em Laval,
foi o grande amigo do Douanier e não se sabe se
preferia, a exemplo de muitos outros, o pintor ao avoado
– ou o contrário. Até onde se sabe, foi ele, o menos
conservador dos autores, que lançou o gentil
homenzinho nas garras do Mercure de France, o que
muito contribuiu para tor­ná-lo conhecido. A seguir,
vieram os pintores da vanguarda, que muito respeitavam
o olhar deslumbrado com que Rousseau obser­vava a
natureza.
Picasso, mais do que qualquer outro. Em 1908, ele
com­prou por cinco francos uma tela do pintor, na loja de
Soulié: Le portrait de Mme M. (1895), que representava
sua primeira esposa. Em seguida, compraria outros. É
claro que Picasso ficou viva­mente interessado pelo
primitivismo que se desprende da obra do Douanier. Ele,
que tanto procurava se afastar do academismo, des‐­
cobriu na obra do Douanier um estilo que não era o seu;
mas que, certamente, era um estilo.
O Douanier Rousseau morava na rua Perrel, perto de
Mont­parnasse. Sozinho: ficou duas vezes viúvo e foi
perdendo os filhos, só tendo lhe restado um.
Na sua porta havia um pequeno cartaz de papelão:
DESENHO, PINTURA, MÚSICA.
AULAS EM DOMICÍLIO, PREÇOS MÓDICOS.

Vivia miseravelmente. Duas vezes por semana,


preparava uma gororoba que guardava embaixo da cama
e que deveria durar a semana toda. Infelizmente para
ele, todos os pobres do bairro sabiam o dia do festim. Mal
a gororoba ficava pronta, todos iam chegando. A semana
não durava dois dias...
Vendia o retrato de alguns alunos que iam à casa dele
para os comerciantes do bairro (quando o Museu de Arte
Moderna de Nova York houve por bem procurar suas
obras, descobriu-se uma na casa de um encanador, outra
com um agricultor...). Até que Vollard, Uhde e Paul
Rosenberg se interessassem por ele, só alguns amigos
compravam suas telas: Delaunay, Serge Férat e sua
meio-­irmã Hélène d’Oettingen.
A miséria, entretanto, não impedia o Douanier de
convidar os amigos. Depois de economizar, fazendo
jejum durante oito dias, enviava regularmente convites,
acrescidos de um menu que valo­rizava suas noitadas
artísticas. Para a do dia 1o de abril de 1909, por exemplo:
Programa
CÉCILIETTE (POLCA)
LES CLOCHETTES (MAZURCA)
ÉGLANTINE (VALSA)
POLKA DES BÉBÉS
RÊVE D’UN ANGE (MAZURCA)
CLÉMENCE (VALSA)2

A essas festas íntimas vinham o padeiro e o dono do


arma­zém, que garantiam o dia a dia de Henri Rousseau,
e também qua­se toda a turma do Bateau-Lavoir. O dono
da casa mandava os con­vidados se sentarem nas
cadeiras alinhadas, e ele mesmo ficava perto da porta
para receber os que iam chegando. Comia-se e bebia-se
o que havia – às vezes nada. Cada um recitava uma poe‐­
sia ou um versinho infantil. Depois, o Douanier pegava o
violino e tocava uma canção para a plateia. Quando
ficava cansado, estirava­-se, ainda vestido, num velho
canapé do ateliê, e só acordava de manhã, feliz, e pronto
para pintar.
A solidão acabou lhe pesando. Decidiu casar-se outra
vez e formar uma nova família. Enrabichou-se por uma
moça, fez-lhe a corte assiduamente, e, como os pais da
eleita hesitassem em entre­gar a única herdeira nas mãos
de um pintor sem eira nem beira, pediu aos amigos que
viessem em seu socorro. Um belo dia, che­gou à galeria
de Vollard brigando com uma tela maior do que ele.
Mostrou-a ao marchand, que a julgou admirável.
“Ótimo”, respondeu o pintor. “Você poderia então me
dar um atestado, dizendo que estou fazendo
progressos?”
O marchand não podia acreditar no que ouvia.
Rousseau explicou-lhe que queria se casar, e que um
atestado de boa conduta ajudaria os futuros sogros a
conceder-lhe a mão da filha.
“Que idade tem sua noiva?”, perguntou Vollard. “Ela
não é maior? Precisa do consentimento dos pais?”
“Não”, respondeu Rousseau, com um sorriso extático...
“Ela tem 54 anos.”
Conseguiu o atestado, e um outro de Apollinaire.
Apesar disso, o casamento nunca se realizou. O bom
Douanier Rousseau ficou solteiro.
Precisou de vários meses para terminar o retrato de
Marie Laurencin e Guillaume Apollinaire. Não por falta de
inspiração ou de criatividade. Simplesmente, ele fazia
questão que houvesse cra­vos na parte de baixo do
quadro, e teve que esperar, para encontrá-­los, que a
estação estivesse propícia a esse seu desejo de
vegetação.
Apollinaire conta que, quando ele pintava uma tela de
ins­piração fantástica, a realidade da pintura lhe apertava
a garganta; tomado pelo pânico, corria até a janela...
Outra curiosidade, assinalada por algumas
testemunhas, en­tre as quais Georges Claretie, jornalista
do Figaro: logo depois de um conto do vigário do qual
fora vítima, Rousseau foi condenado a uma pena na
prisão. Quando o juiz lhe concedeu o sursis, exclamou:
“Obrigado, meritíssimo! Em agradecimento, se o
senhor quiser, farei o retrato da sua mulher!”
Mal seu advogado, Guilhermet, tinha terminado a
defesa, o Douanier se virou para ele e perguntou em voz
baixa:
“Agora que você terminou, posso ir embora?”
Guilhermet reconhecia duas boas criações de Alfred
Jarry: o Ubu roi e o Douanier Rousseau. Mas, como muitos
outros, pergun­tou-se, por muito tempo, se as palhaçadas
do artista eram o resul­tado de uma gaiatice espontânea
ou de um talento nato para a comé­dia. A pergunta lhe
ocorreu pela primeira vez certo dia em que o cliente
telefonou para o seu escritório. Ele estava tentando falar
para Laval, e gritava. O advogado sugeriu que falasse
mais baixo.
“Está dando para te ouvir!”
“Você está me ouvindo! Mas os outros não!”
“Claro que sim... O telefone...”
“Bobagem!”, interrompeu Rousseau.
Colocou a mão em concha no bocal, e acrescentou:
“Estou falando com gente que mora em Laval! É longe!
Co­mo é que você quer que me ouçam, se eu não gritar?”
Seus amigos, pintores ou não, adoravam essa
ingenuidade, tão semelhante à sua obra. Picasso gostava
dele, e ele gostava de Picasso.
Douanier dizia: “Somos os dois maiores pintores do
nosso tempo, você no gênero ‘egípcio’ [primitivista], eu
no gênero moderno”.3 O espanhol não contestava. Talvez
pensasse a mesma coisa...
Em 1908, alguns meses antes de deixar o Bateau-
Lavoir, Pi­casso decidiu organizar um banquete em
homenagem ao Douanier Rousseau. Ele queria festejar a
tela comprada na loja de Soulié, e também o pintor que a
tinha criado.
A festa foi preparada durante muito tempo. Fernande e
Pi­casso tinham prendido ramos e folhas de árvores nas
vigas do cômodo. O teto estava todo coberto. Nas
paredes, máscaras africa­nas. Diante do armário, haviam
feito um trono com uma cadeira colocada em cima de um
caixote. Atrás da cadeira, nas paredes, entre bandeiras e
lampiões, estava estendida uma faixa: “SALVE
ROUSSEAU!”. Le portrait de Mme M. estava colocado
sobre um cava­lete, no centro do ateliê. Em volta do
quadro, colocaram faixas de tecido colorido e guirlandas.
A mesa estava posta: uma longa prancha sustentada
por ca­valetes, sobre a qual fora colocada a louça,
emprestada pelo restau­rante Azon. A comida,
encomendada no Felix Potin, foi paga por todos: o
Bateau-Lavoir se cotizou para a festa.
Restava esperar. Às oito horas, os entregadores ainda
não haviam chegado. Os convidados sim: Braque,
Jacques Vaillant, Da­lize, Gertrude Stein e Alice Toklas, de
chapéu novo.
Às oito e meia, nada. O jeito era ter paciência. Felix
Potin se enganara quanto ao dia. Pânico e correria. Num
piscar de olhos, todos os que estavam lá se dispersaram
pelas ruas Ravignan, Lepic e Abbesses para fazer a ronda
dos comerciantes amigos. Reuniram-se nos bares da
vizinhança com tudo o que tinham con­seguido: doces e
arroz. Voltaram, apressadamente, para a Maison du
Trappeur. Tiveram que carregar Marie Laurencin, bêbada
demais para ficar de pé. No ateliê, ela caiu por cima das
tortas que tinham colocado sobre o canapé. Ergueu-se,
sacudindo pernas e mãos e, aos gritinhos, foi parar, toda
coberta de açúcar, nos bra­ços dos convivas. Em alguns
minutos, a assistência estava toda melada e pegajosa.
Fernande começou a xingar “a bela feia”. Foi preciso
apartá-las.
Quando tudo se acalmou, foram para a mesa. Foi
então que a porta se abriu e entrou Apollinaire, que havia
ido buscar, de fia­cre, o Douanier Rousseau. O pintor,
siderado, feliz, permanecia imóvel na entrada, com o
pequeno chapéu na cabeça, a bengala na mão esquerda
e o violino na outra. Foi empurrado, puxado, feste­jado.
Apollinaire recitou um poema. Salmon também. Bebeu-se
muito. Marie Laurencin, sempre petulante, cantava
canções nor­mandas. Guillaume a repreendia em voz
baixa. Como isso não foi suficiente para sossegá-la,
arrastou-a para fora. Quando voltaram, ela estava mais
calma.
Rousseau instalou-se no trono que haviam preparado
para ele. Salmon dançava em cima da mesa. Foi preciso
contê-lo. Picasso empurrou-o para fora. Léo Stein se
colocara diante do homena­geado da noite para protegê-
lo contra os assaltos da assistência. Mas o pintor
adormecera. Acima dele, havia um lampião cuja cera
caía, gota a gota, no alto da sua cabeça. Ao acordar,
divertiu-se com o chapeuzinho que, pouco a pouco, ali se
formara. Quando o lampião pegou fogo, foi preciso subir
nas cadeiras e nas mesas para apagar o princípio de
incêndio. Restabelecida a ordem, o Douanier pegou o
violino e, acompanhado de seu instrumento, cantou tre‐­
chos de músicas da sua juventude:
Ai! Ai, ai, que dor de dentes!

Sob aplausos, engrenou outra quadrinha:


Moi je n’aim’ pas les grands journaux
Qui parl’ de politique
Qu’est-c’ que ça m’fait qu’les Esquimaux
Aient ravagé l’Afrique...54

Sucumbindo ao esforço, adormeceu novamente.


Durante a noite, outros visitantes vieram: Frédé e seu
bur­ro Lolo, que rapidamente se pôs a comer as roupas de
uns e os cha­péus de outros; um casal de americanos, ela
de vestido de noite e ele de terno escuro, estupefatos
diante das manifestações artísticas desses franceses
grosseiros. Logo se mandaram.
De manhãzinha, os convivas se cotizaram para pagar
um fiacre para o Douanier Rousseau. Acompanharam-no
até o veículo, colocaram em seu colo a bengala e o
violino, e deram-lhe muitos beijos.

Essa festa, que foi uma das últimas da época áurea da


rua Ravignan, foi comentada de diversas maneiras.
Segundo Fernande Olivier, a turma queria “pregar uma
peça no Douanier”. Num artigo publicado em 1914 por
Les Soirées de Paris, Maurice Raynal descreve os eventos
como se, na verdade, todos quisessem zombar do
Douanier Rousseau. Gertrude Stein fica neutra. Salmon
se revolta contra as interpretações maldosas. Ele
defende o pintor:
Nós gostamos de Henri Rousseau não pela sua falta de jeito, pela sua
ignorância sobre desenho; nós o estimamos não por sua enorme candura
[...] Nós gostamos do homem pela sua pureza, sua cora­gem diante da
vida cruel, por uma espécie de angelismo, e gostamos do artista pela
surpreendente intuição que ele teve da sua grandeza, pela sua magnífica
ambição da vasta composição, numa época em que, exceto Picasso e,
menos profundamente, Matisse, tão poucos artistas compunham.4

Se Picasso organizou a recepção em sua casa, se


arrumou e ajeitou a Maison du Trappeur, se cobriu Les
Demoiselles d’Avignon e, de certa forma, dobrou-se,
provavelmente não foi para se divertir às custas de um
mau pintor; foi, certamente, para receber um artista que
ele amava e admirava.
É claro que Henri Rousseau o fazia rir. Ele se divertia
com sua simplicidade e suas ideias de velho-criança. Mas
todos riam e se divertiam. Só que nem todos pensavam,
como Raynal e Derain (que mudaria de opinião), que o
Douanier Rousseau era um imbecil (Derain a Salmon,
depois que este último publicou um artigo sobre o pintor:
“O que é isso? É o triunfo dos idiotas?”). E mesmo que
Picasso brincasse, não zombava dele, provavelmente
nem Apollinaire: segundo Max Jacob, o pintor não teria
permitido. Beatrice Hastings, futura noiva de Modigliani,
aprendeu por expe­riência própria: Picasso fechou-lhe a
porta depois que ela falou mal do artista.
Rousseau, apesar de tudo, levou a vida
tranquilamente, sem nunca se aborrecer. Caçoavam?
Prova de que se interessavam por ele. E, em matéria de
pintura, não tinha nada a aprender com ninguém: ele
sabia que tinha talento.
Teve o mérito de inaugurar uma série de festividades,
das quais Braque e Apollinaire seriam, em outra época e
em outro lu­gar, os próximos heróis. Também fechou com
chave de ouro a épo­ca com a qual ele tanto sonhou, de
uma vida de artista, que logo iria atravessar o Sena para
incendiar Montparnasse.
...Temos então que procriar, mas, na nossa idade, não
devemos ter medo disso. Sim, você me faz sofrer porque,
felizmente, ainda me sinto vivo. Vamos nos unir e você
verá se sou incapaz de te servir.5
Não teve tempo para brincar de reprodutor. Certo dia
de setembro de 1910, seus amigos receberam a
comunicação do seu falecimento: Henri Rousseau tinha
morrido no hospital Necker, vítima de uma gangrena.
Todos foram convidados para o serviço religioso, que
teria lugar na igreja de Saint-Jean-Baptiste-de-la-Salle, na
rua Dutot.
Ninguém foi: a notícia chegou tarde demais! O funeral
já havia sido realizado.

51 Douanier: aduaneiro. (N.T.)


52 Tu te lembras, Rousseau, da paisagem asteca/ Das mangas e abacaxis
que crescem nas florestas,/ Do sangue das melancias espalhado pelos
macacos/ Do louro impera­dor que ali foi fuzilado.
Viste no México os quadros que pintas/ Um sol vermelho coroando as
bananeiras/ Enquanto trocavas a túnica do valoroso soldado/ Pelo dólmã
azul dos bravos adua­neiros. (N.T.)
53 Vem para o México!/ No cimo dos planaltos florescem as tulipas/ As lianas
tentacu­lares são a cabeleira do sol/ Lembrando a paleta e os pincéis de um
artista/ São cores estonteantes como a sonoridade dos gongos,/ Rousseau
esteve lá/ Foi lá que deslum­brou a vida. (N.T.)
54 Eu detesto os jornais/ Que só falam de política/ Que me interessa que os
esquimós/ Tenham destruído a África... (N.T.)
O roubo da Mona Lisa

...Um guarda o acompanha. Apollinaire – é inad­missível esse


rigor da administração penitenciária – está algemado.
Paris-Jornal, quarta-feira, 13 de setembro de 1911

O s Picasso estão se mudando.


Os carregadores que transportam os poucos móveis
do Bateau-Lavoir para o novo apartamento do bulevar de
Clichy estão surpresos. Para eles, deve ter sido muita
sorte. Ou uma herança. Que milagre permitiria trocar um
barracão de madeira, esquisito e imundo, por um prédio
dos mais burgueses, em que o ateliê tem vista para o
Sacré-Coeur, e o resto do apartamento para as árvores
da avenida Frochot? Um salão, um quarto, uma sala de
jantar, cozi­nha, vista ampla, calma, conforto.
Um sonho emoldurado.
Tudo muda, até os móveis. O bricabraque se torna
chique e choca: acaju rústico, móveis italianos, bufês
antigos de carvalho, divã Louis-Philippe, piano... O quarto
é um quarto de verdade, a cama, uma cama de verdade,
com barras de cobre. Cristais e porce­lanas estão à
mostra. Melhor ainda: ao chegar à nova residência, a
senhora Picasso escreve a Gertrude Stein para pedir-lhe
que peça a Hélène, a cozinheira, que lhe arranje uma
“empregada”! Terá ca­sa e comida e lhe pagarão
quarenta francos por mês.
Quando encontra a ave rara, a senhora Picasso lhe dá
um quarto, onde colocam a mesa redonda, o armário
pintado com tinta de casca de nozes e todos os móveis
dos melhores dias do Bateau­-Lavoir.
Só que para a jovem empregada não é bem uma vida
de artista: pedem-lhe que use um bonito avental branco
para servir à mesa. Limpeza todos os dias, em todos os
cômodos, menos no ate­liê do dono da casa. Lá, as
formas geométricas vão se tornando si­nuosas. Telas,
pincéis, tubos de tinta, paletas. Máscaras e estátuas
africanas por toda parte, instrumentos musicais, móveis
heterócli­tos. Sem contar as coleções: bibelôs azuis,
xícaras, garrafas, frag­mentos de tapeçaria desfiados,
caixas, molduras velhas... e o que dizer da macaquinha,
do cachorro e dos três gatos?
O dono da casa pediu que não se toque em nada,
principal­mente na poeira: quando ela está bem
espalhada, não o incomoda; agitada pelo espanador,
torna-se perigosa: vai para os quadros. Pa­ra evitar
problemas, ninguém entra. Proibição total. Nesse cômo‐­
do, a limpeza é feita uma vez por trimestre, não mais do
que isso. No restante do apartamento, a agitação
começa quando o senhor e a senhora acordam, isto é,
quase sempre quando a manhã já está avançada. A
senhorita aproveita para descansar, o que desagrada à
patroa: a empregada é negligente.
Na nova residência, Picasso se torna irritadiço, observa
Fernande. Refugia-se no ateliê, espécie de Bateau-Lavoir
reconsti­tuído. Exige comida saudável – peixes, legumes e
frutas –, mais de acordo com uma saúde que ele julga
debilitada. Segue uma dieta. Bebe mais água do que
vinho. Seu humor fica sombrio. Sai menos e é mais
exigente. Será porque, a partir daquele momento, passa
a frequentar mais a alta sociedade do que antes? Frank
Haviland, ceramista de Limoges, apreciador da arte
negra, e que também pinta, recebe em grande estilo no
seu ateliê da avenida de Orléans. E Paul Poiret, famoso
costureiro, convida para luxuosas festas. Ainda não está
no topo da moda, mas está chegando lá. Gra­ças a ele e
aos seus vestidos, as mulheres já não usam mais corpe‐
tes. Gosta da arte e dos artistas. Quando vem ao bulevar
de Clichy, admira tudo, por alto, sem prestar atenção nos
detalhes. As telas expostas no apartamento são
magníficas, extraordinárias, maravi­lhosas, admiráveis,
únicas; as almofadas: sublimíssimas; a vista:
esplendidíssima. Paul Poiret é um homem-superlativo.
De certa forma isso agrada a Picasso, que às vezes
prefere o boi gordo social às vacas magras heroicas. Mas
o excesso o irrita. Seu bom humor só retorna aos
domingos, quando chegam os ami­gos: Salmon,
Apollinaire e Max Jacob. Ou ainda quando encontra seu
velho amigo Manolo, que foi embora para Céret.
Céret é, à época, um vilarejo catalão, situado nos
Pireneus Orientais. Exatamente como quando se refugiou
em Gósol, alguns anos antes, Picasso vai até lá durante o
verão de 1911. Em meio aos pomares, ao campo e às
casas antigas, encontra-se a si mesmo.
Primeiro hospeda-se no hotel, depois, numa casa
isolada, no coração das montanhas. À noite, reencontra
os amigos. Braque vem de Paris, depois Fernande.
Durante um certo período, o casal encontra novamente a
harmonia de outros tempos. Picasso pinta como pintava
em Gósol e, assim como aconteceu em Gósol, sua
pintura terá mudado quando voltar a Paris. Como em
Gósol tam­bém, a estada é interrompida por um
acontecimento imprevisto.
Em 1906, foi a epidemia de tifo. Em 1911, uma
manchete de primeira página do Paris-Journal: roubaram
a Mona Lisa no Louvre. Quando, no dia 29 de agosto, um
tal de Géry-Piéret con­fessa nas colunas do mesmo jornal
que roubou três estatuetas do museu, Picasso e Fernande
fazem precipitadamente as malas e vol­tam correndo
para Paris. A hora é grave.
Picasso conhece bem esse Géry-Piéret. Bem demais. É
um aventureiro belga, amigo de Apollinaire, do qual foi
eventualmen­te secretário. O poeta encontrou-o na época
em que trabalhava como jornalista no Guide des
Rentiers. Apresentou-o a Picasso. Em março de 1907, por
cinquenta francos, este comprou dele duas ca­beças
ibéricas, de pedra, que vinham do Louvre. O museu era
en­tão uma espécie de peneira. Num sentido e no outro.
Francis Car­co conta que Roland Dorgèles tinha colocado
um busto de um de seus amigos escultores na galerie
des Antiques, sem que ninguém se desse conta da
brincadeira. O próprio Picasso, a título de goza­ção,
perguntara um dia a Marie Laurencin: “Vou ao Louvre.
Quer alguma coisa?”.
Géry-Piéret entrava então facilmente no museu. Talvez
não fosse tão fácil assim, como descreveu Blaise
Cendrars, que, com seu costumeiro exagero e o talento
inventivo e romanesco que caracte­rizam seus
testemunhos, apresenta o aventureiro belga como um
fanfarrão, apostando uma garrafa de champanhe em
como traria do Louvre um objeto valioso, escondido sob o
casacão, depois de ter – faça-me o favor! – apertado a
mão dos guardas! Mas, final­mente, esse astuto Géry-
Piéret vendeu mesmo duas cabeças para Picasso. A falta
de sorte foi que, depois do desaparecimento da Mona
Lisa, ele vendeu uma terceira cabeça ao Paris-Journal
(por 250 francos, o que não vale os cinquenta mil francos
oferecidos pela restituição da Mona Lisa); o jornal
garantiu uma publicidade barata, exibindo a estatueta
antes de devolvê-la. É claro que o antigo secretário do
poeta afirma também ter surru­piado a Mona Lisa. O
Paris-Journal publica então um editorial inflamado,
criticando a facilidade dessas entradas e saídas. O pró‐­
prio Apollinaire escreve um artigo sobre o mesmo tema,
no dia 24 de agosto, para L’Intransigeant. Começa assim:
“A Mona Lisa era tão linda que sua perfeição passava a
fazer parte, a partir de então, dos lugares-comuns da
arte”. Mais adiante: “O Louvre é mais mal guardado do
que um museu espanhol”.
O que prova sua ingenuidade.
Pois a justiça passa a desconfiar de que Apollinaire
está envolvido no caso. De certa forma, ele serviu de
intermediário entre o amigo aventureiro e o amigo pintor.
Em 1907, o poeta bem que tentou persuadir esse último
a devolver as estatuetas. Picasso recusou: “Ele as tinha
danificado para descobrir certos arcanos da arte antiga e
bárbara ao mesmo tempo, à qual elas pertenciam”.1 As
duas cabeças ibéricas constituíam uma das bases das
suas pes­quisas sobre o primitivismo, e elas têm seu
papel na elaboração das Demoiselles d’Avignon (a boca
redonda da mulher da direita, as orelhas desmesuradas
de três delas, a assimetria geral...).
Por isso, Picasso e Fernande voltam correndo de Céret:
se Géry-Piéret devolveu a terceira cabeça roubada, pode
ser que os policiais do Louvre, com a permissão dos
senhores do departamento de Justiça, partam em busca
das outras.
Apollinaire, por sua vez, compreendeu logo o perigo.
Veio então buscar seus amigos na estação de trem, e lá
se foram os três para o bulevar de Clichy. Um problema
precisa ser resolvido: como vão se desfazer do objeto do
delito?
O poeta se desespera, acusa-se de negligência, maldiz
o amigo indelicado, prevê a difamação e a desonra.
Picasso concorda com ele. Fernande Olivier, testemunha
mais calma e cruel, observa que eles parecem “crianças
arrependidas, amedrontadas”.2
Nessa hora grave, ressurge um dado importante que
os dois artistas haviam esquecido um pouco: são
estrangeiros. Temem ser expulsos.
Passam a noite no bulevar de Clichy. Imaginam mil
soluções antes de decidirem por aquela que lhes parece
a menos perigosa: jogar as estatuetas no Sena. É
Fernande quem conta. Assim o fize­ram. Ou quase. A
senhora Picasso ajuda a achar uma grande mala, a
colocar as obras de arte dentro dela e a empurrar o
pintor e o poeta pela porta afora. Blaise Cendrars,
sempre imaginativo, des­creve-os esgueirando-se pelos
muros, olhando para todos os lados, curvados sob o peso
da bagagem. Um barulho insólito propulsará os dois
receptadores até um pórtico, com o coração acelerado.
Depois, seguirão até o Sena, um atrás do outro, o
primeiro tomando conta da dianteira, o segundo, da
retaguarda. Até o momento em que um movimento nas
sombras, mais importante do que os outros, os fará
voltar praticamente correndo, tomados pelo pânico.
Quando Fernande Olivier lhes abre a porta, às duas
horas da manhã, eles estão pálidos. E trazem a mala.
“Vazia?”
“Não, cheia”, resmunga Picasso.
Entram. Pensam outra vez. Finalmente escolhem a
solução já experimentada por Géry-Piéret: as cabeças
serão entregues ao Paris-Journal. Os únicos a saber serão
Chichet, o diretor, e André Salmon, que trabalha lá. A
publicidade oferecida ao jornal vale o segredo.
Apollinaire passa o resto da noite no canapé do salão.
De manhãzinha, pega a mala e executa o plano previsto.
Segundo Albert Gleizes, Picasso o acompanha. Os dois
homens vão até a Gare de l’Est pelos bulevares que a
circundam, colocam a mala no depó­sito, e esperam a
hora da abertura da redação do Paris-Journal.
No dia seguinte, por intermédio do jornal, o Louvre
recu­pera as estatuetas.
Ufa!
Não exatamente. No dia 7 de setembro pela manhã, no
horário do leiteiro, tocam a campainha na casa de
Apollinaire.
É a polícia.
Mandado de busca.
Prisão.
O poeta é levado para o Quai des Orfevres.55 É
indiciado por receptação e cumplicidade de roubo. Vai
diretamente para a peni­tenciária da Santé. “Parecia-me
que, daquele momento em diante, eu estava num lugar
situado fora da nossa terra e que ia sucum­bir.” Não tem
direito a nenhum privilégio. Na prisão, recebe uma
camisa, uma toalha, lençóis e uma colcha. Através de
corredores sombrios, é conduzido até o décimo primeiro
pavilhão, décima­quinta cela. A porta se fecha atrás dele.
Os ferrolhos são puxados.
Avant d’entrer dans ma cellule
Il a fallu me mettre nu
E quelle voix sinistre ulule
Guillaume qu’es-tu devenu.56

Ele não entendeu nada. Está totalmente confuso. Em


uma das cabeceiras do catre, descobre a identidade de
um daqueles que o precederam naquele lugar sinistro:
“DÉDÉ DE MENILMONTANT, POR ASSASSINATO” .
Aguarda.
Que lentement passent les heures
Comme passe un enterrement.57

No bulevar de Clichy, ninguém se mexe. Um dia se


passa. Espera-­se um pouco. Mas no dia seguinte, ao
amanhecer, tocam a campai­nha. Polícia. O homem está à
paisana, o que não o impede de mos­trar a carteira e de
pedir a Pablo Picasso para acompanhá-lo até a chefatura.
No quarto, o pintor tira o pijama. “Picasso, tremendo,
ves­tiu-se rapidamente; foi preciso ajudá-lo; ele estava
fora de si, em pânico”.3
Dá para entender: o pintor é espanhol, suspeito pela
polí­cia francesa de ser simpatizante dos anarquistas. Na
pior das hipó­teses, corre o risco de ser preso, na melhor,
de ser extraditado...
Fernande o vê afastando-se pelo bulevar, em
companhia do mastodonte. Sobem no coletivo Pigalle-
Halle-aux-Vins. Picasso jura que não tem nada com a
história, que nem sabe do que se trata. Mas o policial não
pode fazer nada. Não é ele que cuida do caso.
Delegacia. Gabinete do juiz. Picasso, ouvido como
testemu­nha, repete que não sabe de nada. Não é
verdade. A polícia tem informações.
“Quais?”
“Um poeta que diz ser seu amigo.”
“Não conheço nenhum poeta.”
Picasso gagueja. O juiz detalha o depoimento do poeta
em questão: ele mencionou o nome de Picasso diante de
Géry-Piéret, que já se sabe ser o ladrão das obras de
arte; o dito Géry-Piéret foi à casa do pintor e lhe vendeu
duas cabeças ibéricas.
“Não sei de nada”, repete Picasso, sem firmeza.
“Ele também disse que o senhor ignorava a
procedência dessas obras de arte...”
“...”
“Temos uma testemunha.”
A testemunha esperou durante quatro horas na cela do
Pa­lácio de Justiça, com o nariz colado nas grades. Depois,
tiraram-no dali e conduziram-no, algemado, a uma sala
contígua ao gabinete do juiz.
Este abre a porta. A testemunha entra. Está abatido,
pálido, assustado, os olhos avermelhados, a barba por
fazer, sem gravata, o colarinho desfeito. Senta-se na
cadeira que lhe indicam. Picasso olha para ele e
imediatamente se vira para o outro lado. Olha fixa­mente
para a parede da frente.
“Conhece este homem?” Pergunta o magistrado.
“Não”, declara Pablo Picasso.
Na cadeira, Apollinaire emite um soluço.
“Não”, repete Picasso, teimoso como uma criança
perdida: “Nunca encontrei este senhor”.
Não diz mais nada.
Mas logo se arrepende, se desespera, volta atrás nas
suas declarações – enquanto Apollinaire, transtornado,
não consegue emitir nenhum som.
Sentado atrás da mesa, o juiz, desconcertado, observa
aque­las crianças tomadas por terrores piores do que os
noturnos, so­frendo, como se o céu do Papai Noel lhes
tivesse caído sobre a ca­beça. Manda um para casa e o
outro para a Santé.
No mesmo dia, Géry-Piéret, sob o pseudônimo de
Baron Ignace d’Ormesan (que Apollinaire havia usado no
L’hérésiarque & Cie) escreve à Justiça para inocentar o
prisioneiro.
Durante esse tempo, em Paris, algumas pessoas se
agitam. À esquerda, os amigos de Apollinaire, liderados
por André Sal­mon, René Dalize, André Tudesq e André
Billy, fazem uma petição pedindo o relaxamento da
prisão do poeta (o ilustríssimo senhor Franz Jourdain,
presidente do Salão de Outono, se recusa a assiná­-la). À
direita, a imprensa racista, tendo à frente Léon Daudet e
Urbian Gohier, se aproveita:
O secretário do judeu ou polonês pornográfico – um dos bandidos do
Louvre – é um belga. Quando todo o bando for conhecido, vere­mos que
todos são estrangeiros ou forasteiros.4

Atrás das grades, o forasteiro está arrasado:


Dans une fosse comme un ours
Chaque matin je me promène
Tournons tournons tournons toujours
Le ciel est bleu comme un chaîne
Dans une fosse comme un ours
Chaque matin je me promène.58

Felizmente, isso não dura muito tempo. No dia 12 de


setembro, Guillaume Apollinaire é libertado. Mas o caso
ainda não foi encer­rado. Por intermédio de Gleizes, o
poeta vai ao encontro do assis­tente Granié, que não o
tranquiliza: ele protegeu um indivíduo que roubou o
Estado, e foi receptor de bens subtraídos de um museu
nacional.
“Quais são os riscos?”, pergunta Apollinaire.
“O tribunal.”
“Mais o quê?”
“Uma condenação.”
O poeta fica arrasado.
“O ideal seria se apresentar diante do tribunal...”
“Como?”
“Você não pode negar o delito”, argumenta o
assistente, “os juízes aplicarão a lei sem discussão. No
tribunal, você pode se explicar...”
Apollinaire não tem a menor intenção de se explicar
diante de um tribunal.
“Não existe outra possibilidade?”
“O crime ser considerado improcedente.”
“Tenho chance de consegui-lo?”
“Veremos...”
Havia uma chance. E Apollinaire conseguiu. Em janeiro
de 1912, foi inocentado de toda e qualquer suspeita. Mas
essa histó­ria, dramática para ele, deixou algumas
sequelas. No seu coração de amigo, mesmo sem nunca
ter tocado no assunto, como poderia o Mal-Amado59 não
sofrer com a covardia de Picasso?
Um de seus mais queridos amigos não o tinha renegado, por ocasião de
um confronto, perdendo a cabeça, chegando até a declarar que não o
conhecia?, pergunta André Gleizes. Ele me falava sobre isso sem
conseguir disfarçar a amargura e a emoção.5

Essa amargura, verdade seja dita, não desagradava


certamente a Gleizes, que queria ser reconhecido como o
inventor do cubismo e detestava Picasso.
O pintor foi temporariamente vítima da frieza dos
amigos do poeta. Essa desgraça, porém, não tão pesada
assim, foi acompa­nhada por um temor difuso, que o
obcecou durante algum tempo: ele se recusava a usar a
linha Pigalle-Halle-aux-Vins, na qual havia sido levado
para a cadeia; na rua, estava sempre olhando para trás,
temendo ser objeto de perseguição; quando a campainha
tocava no bulevar de Clichy, ficava sobressaltado.
Cinquenta anos depois, no Paris-Presse, Picasso
confessaria, ao jornalista que o entrevistava sobre o caso
do roubo da Mona Li­sa, que sua atitude lhe havia
inspirado, e inspirava ainda, um sen­timento que não era
outro senão a vergonha.6 O que parece facil­mente
compreensível.
Porque Apollinaire, de sua parte, protegeu tão bem o
pin­tor da ira da praça pública, que seu nome nunca foi
citado pela im­prensa. Nem mesmo nas obras que seus
contemporâneos dedica­ram às relações entre os dois
homens. Melhor ainda: no seu prefá­cio às obras poéticas
de Guillaume Apollinaire7, André Billy, tes­temunha da
época e ator indireto dessa história infeliz, também não
menciona a identidade de Picasso; limita-se a falar do
pintor X...
A Mona Lisa foi reencontrada em 1913. Tinha sido
roubada por um cidadão italiano que trabalhava no
Museu do Louvre e queria devolver a obra ao seu país.
Aparentemente, o assunto esta­va encerrado.
Para todo o mundo, talvez, mas não para Apollinaire.
Um ano mais tarde, começava a Primeira Guerra
Mundial.
O poeta logo se alistou. Todos os seus amigos acharam
que essa vontade de defender um país que não era o seu
era uma espécie de revanche. Como se Apollinaire
quisesse recobrir as vergonhosas algemas com as três
cores da bandeira: sua maneira pessoal de fa­zer
esquecer o sorriso devastador da Mona Lisa.

55 Onde fica a chefatura de polícia. (N.T.)


56 Antes de entrar na minha cela/ Eu tive que ficar nu/ E uma voz sinistra
ulula/ Guillaume, diz quem és tu. (N.T.)
57 As horas passam lentamente/ Como passa um enterro. (N.T.)
58 Como um urso no fundo do fosso/ Passeio todas as manhãs/ Pra lá e pra
cá prá cá e pra lá/ O céu é azul como uma corrente/ Como um urso no fundo
do fosso/ Passeio todas as manhãs. (N.T.)
59 La chanson du Mal-Aimé é um dos poemas de Apollinaire. (N.T.)
Separações

Caso F.O. Não há o que dizer: estou excitado, excitado. Já estou


apaixonado na imaginação. Ficarei muito decepcionado se nada
acontecer. Mais do que decepcionado.
Paul Léautaud

O caso do roubo da Mona Lisa constitui um marco em


torno do qual uma nova era vai se abrir, dolorosa para
uns, feliz para ou­tros, fértil em formas e cores. É o tempo
das reviravoltas e das rup­turas. No livro das artes, a
página de Montmartre estremece. “Irei ao Lapin Agile
relembrar minha juventude perdida”, logo escre­verá
Blaise Cendrars.
Marie Laurencin rompe com Guillaume Apollinaire: em
Auteil, uma estada na prisão não é coisa que se perdoe.
Fernande garante que Marie não escreveu ao amado
enquanto ele esteve na Santé. A desonra da prisão foi se
juntar às inúmeras infidelidades do poeta, e a uma
divergência que se tornara crônica: Marie já havia se
recusado a se casar com ele, por causa do seu gênio
difícil. E depois, segundo Picasso, o casal se entediava
um pouco na cama... Quando pensamos no ardor de
Mony Vibescu em Les onze mille verges...
Profundamente magoado, Apollinaire deixa Auteil e vai
vi­ver, por alguns meses, na casa de Robert e Sonia
Delaunay. Ele da­rá o troco, através de Tristouse
Ballerinette:
Eu era desconhecida, ela pensava, e então, ele [Croniamantal] me tor­nou
famosa.
Geralmente todos me achavam feia, por causa da minha magreza, minha
boca enorme, meus dentes horrorosos, meu rosto assimé­trico, meu nariz
torto. Agora, todos os homens dizem que sou bela. Zombavam do meu
jeito viril e desajeitado, dos meus cotovelos pon­tudos, que mexiam
quando eu andava, como as patas de uma gali­nha. Agora, todos me
acham tão graciosa que as outras mulheres me imitam. Que milagres não
faz o amor de um poeta!1

Durante a Guerra, o poeta em questão trocará


algumas cartas mais amáveis com a musa. Mas esta,
segundo Pierre Soupault, o repu­diará. Soupault, que
dedicava uma imensa admiração a Apolli­naire, não
admitia que a jovem zombasse cruel e sordidamente do
homem com quem compartilhara vários anos da sua
vida. Além disso, Marie Laurencin tinha dois defeitos,
imperdoáveis aos olhos do autor do Nègre: era
injustificadamente pretensiosa e, o que é pior, muito
ligada a Marcel Jouhandeau...60
Apollinaire, então, atravessa um período difícil, tanto
pelo afastamento da musa quanto pela dúvida que
pairava em relação a seu caráter: o crime ainda não fora
julgado improcedente, e os ataques da imprensa de
direita assustaram-no. Teme não conseguir se naturalizar
e, como sempre e ainda, ser expulso da França.
Para ajudá-lo, os amigos André Salmon, René Dalize,
An­dré Tudesq, André Billy e Serge Jastrebzoff cotizam-se
e com­pram uma revista, Les Soirées de Paris, cuja
direção confiam a ele. Basta um único número para que
os assinantes passem de qua­renta a... um só.2 Mas os
pedidos de revenda afluem do mundo inteiro, o que
entusiasma Apollinaire. Uma vez por mês, na com­panhia
de Serge Jastrebzoff, ele faz a ronda em Paris, de táxi,
para entregar a revista aos livreiros.
Serge Jastrebzzoff, mais conhecido como Serge Férat,
seu nome de pintor, é o meio irmão da baronesa de
Oettingen. Ela é russa, culta, frequenta a alta sociedade,
mora numa mansão no faubourg Saint-Germain e lida
com tudo: pintura, literatura e Croniamantal, de quem foi
amante efêmera.

Para os lados de Clichy, as coisas também não vão lá


muito bem no melhor dos mundos conjugais. Ali também
Mona Lisa provocou algumas caretas. Será, como
disseram alguns, porque Fernande foi dura com
Apollinaire? Ou porque, em relação a isso, ela
demonstrou uma ironia que vai transparecer nos seus
escritos, da qual Picasso não gosta? Ou será porque é
leviana? Ou será que a vida mundana lhe sobe à cabeça?
Seja lá como for, o casal está em crise.
Durante muito tempo, criticou-se a irascibilidade do
pintor, que, nessa época, trabalhava junto com Braque.
Também se falava da incompreensão da bela Fernande
em relação à obra de Picasso. De qualquer maneira, as
tempestades se sucedem. Ela o critica por se preocupar
demais com suas pequenas indisposições físicas, e ele,
porque ela compra roupas e perfumes demais. Ela diz
que ele é “burro como uma porta”, que não sabe fazer
nada, a não ser pin­tar, que ele nada mais é senão uma
criança prodígio. Ele não aguenta as lamentações dela.
As cenas são cada vez maiores, multiplicam-se. Um
dia, Fernande Olivier vai embora. Vai pousar em outro
lugar durante algum tempo, depois volta correndo. Mas a
fruta já está estragada. E vai apodrecer sozinha até 1912
(anos mais tarde, Picasso iria con­fessar que a primeira
vez em que se separou da musa de Mont­martre não foi
por causa de água-de-colônia, ou de fru-frus; foi por
causa de Raymonde, a menina adotada e depois
devolvida).
A turma, por enquanto, faz de conta que nada está
aconte­cendo. Trocaram o Lapin Agile pelo Grelot, na
praça Blanche, ou pelo Ermitage, no bulevar
Rochechouart: como sempre fizeram, vão atrás de
Picasso. Os pintores se reúnem, sob os olhares curio­sos
dos clientes que bebem cerveja no balcão. Cada um na
sua, e que não se misturem. Quando as moças
sucumbem ao charme dos artistas, mudando de campo,
durante um encontro casual, explo­dem as brigas: é até
possível ver Picasso fazer um sujeito, que lhe deu um
encontrão, lamber a poeira do chão.
Os mais assíduos – Max Jacob, Apollinaire, Braque... –
fa­zem a contagem regressiva, observados pelos recém-
chegados: Férat e a irmã baronesa, Metzinger,
Marcoussis, os futuristas italianos...
Esses últimos logo se destacam: procurando aparecer
de qualquer jeito, usam meias combinando com a
gravata, mas de cores diferentes. São pintores e poetas.
O primeiro da fila, Filippo Tommaso Marinetti, resolveu o
problema do alexandrino e do ver­so livre, como mostra
esse trecho de seu poema “Train de soldats”.
Tlactlac ii ii guiiii
Trrrrrrtrrrrrr
Tatatatôo-tatatatatôo
(rodas)
urrrrrr
cuhrrrr
gurrrrrr
(locomotiva)
Fuufufufuufufu
fafafafafa
zazazazazaza
tzatzatzatza.
tza3

Para além da aparência provocadora das


indumentárias, dos dis­cursos e de outras bandarilhas
cravadas no bom comportamento da Belle Époque, é
preciso reconhecer nos futuristas o papel que lhes cabe
nas revoluções que estão por vir: foram eles os
primeiros, antes de dadá e dos surrealistas, a tentar
acender o pavio das futu­ras explosões. Fizeram-no,
porém, com evidente falta de jeito, principalmente
quando se vangloriaram de ser os precursores da arte do
amanhã. Era preciso, de qualquer jeito, estar de acordo
com os termos do Manifesto do Futurismo, assinado por
Marinetti, publicado pelo Figaro em 20 de fevereiro de
1909:
Artigo 4: declaramos que o esplendor do mundo foi enriquecido por uma
nova beleza: a beleza da velocidade. Um carro de corrida, com seu porta-
malas enfeitado com grossos canos, como serpentes de hálito explosivo...
um carro que ruge, que parece correr numa me­tralhadora, é mais bonito
do que a Victoire de Samothrace.
Artigo 9: queremos glorificar a guerra – única higiene do mundo, o
militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos anarquistas, as belas
ideias que matam e o desprezo pela mulher.
Artigo 10: queremos demolir os museus, as bibliotecas, combater o
moralismo, o feminismo e todas as formas de covardia oportunis­tas e
utilitárias.

O resultado disso é uma exposição, promovida por


Bernheim­- Jeune, uma discussão em La Nouvelle Revue
Française, Jacques Copeau falando de “uma prosa
declamatória, incoerente e risí­vel”4, um futuro
engajamento ao lado do Duce italiano, uma fle­chada de
Apollinaire:
Os futuristas são jovens pintores aos quais se poderia dar crédito se a
jactância de suas declarações e a insolência de seus manifestos não
afastasse a indulgência que seríamos tentados a ter por eles.5

Finalmente, isso provoca uma reviravolta na casa dos


Picasso: Fernande levanta voo com Umbaldo Oppi, pintor
futurista. Quan­do pousar de novo na terra, vai
compreender que o presente agora se conjuga no
passado: Picasso também foi embora.

Ele está com Eva Gouel, em Céret. Eva era noiva de


Marcoussis. Viram-se muitas vezes no Ermitage, os
quatro. Depois, Picasso e ela, sozinhos. A pretexto de
falta de espaço no seu ateliê do bule­var de Clichy, o
pintor alugou um outro no seu antigo Bateau-­Lavoir. Não
exatamente na Maison du Trappeur, mas um andar
acima. Foi aí, provavelmente, que assumiu o papel de
amante clan­destino, que se prolongou até o inverno de
1911 e a primavera do ano seguinte.
Não é passageiro, e Marcoussis se entristece. Os
amigos o encorajam a esquecer: não é fácil; a se mostrar
magnânimo: ele ten­ta. Quando a raiva extrapola,
aconselham-no a fazer como Cristo.
“O que é que Cristo fez?” “Perdoou a mulher adúltera.”
“Fácil! Não era a dele!”
Picasso está loucamente apaixonado por essa mulher
de apenas trinta anos, fina, bonita, de personalidade
tranquila e ale­gre. Ele a pinta e anota embaixo do
quadro, Ma jolie. Para fugir de Fernande, ele a leva para
os Pireneus e, temendo as visitas intem­pestivas, vai para
Sorgues, onde Braque vai encontrá-lo. E assim termina,
de forma medíocre, uma paixão de oito anos. Junto com
Fernande desaparece a sombra tutelar do Bateau-Lavoir.
Ela havia sido a rainha do lugar, a única.
Nunca mais ela veria Picasso. Depois da ruptura,
trabalhou com Poiret, em seguida com um antiquário e,
finalmente, numa galeria de quadros. Recitou poemas no
Lapin Agile, foi caixa no balcão de um açougue... Nos
anos 1930, vivia miseravelmente dando aulas de
pronúncia aos americanos que vinham aos bandos para
Montparnasse. Max Jacob procurou Picasso para pedir-lhe
que a ajudasse. Ele não se mexeu. Ela então decidiu
publicar suas Memórias. Foi até o Mercure de France.
Mandaram-na subir a um escritório escuro onde
trabalhava um homem de óculos. Dois casa­cos o
protegiam do frio. O de baixo estava gasto, manchado,
desco­sido. O segundo apenas sujo. Era mais curto do que
o outro, mas menos usado: talvez por isso o proprietário
o usava por cima.
Grandes folhas de papel jornal estavam estendidas no
chão. As manchetes do dia estavam cobertas por crostas
de pão, e seca­vam, longe dos manuscritos que
abarrotavam as prateleiras.
O homem levantou os óculos, cumprimentou a
aparição e se apresentou. Chamava-se Paul Léautaud.
Gostava de animais, particularmente de gatos. Quando
não estava trabalhando no Mercure, cuidava dos seus
protegidos. Procurava quem os quisesse abrigar, ou, mais
urgentemente, alimentava-os. As crostas de pão eram
para eles. “Se a senhorita quiser se sentar, por favor...”
Fernande Olivier tinha ouvido falar de Paul Léautaud.
Pou­co tempo depois do rompimento com Picasso. Talvez
por Guillaume Apollinaire. Léautaud estava jantando e
bebendo champanhe na companhia de uma mulher.
Quando ia levar o copo à boca, a mu­lher o interrompeu
exclamando:
“Você não vai fazer um brinde?”
“Certamente”, ele respondeu.
Como não dizia nada, a dama exclamou:
“Já que não tem nada melhor a dizer, beba ao menos à
saú­de dos animais!”
“Claro!”
Léautaud bateu seu copo no da companheira e, todo
sorri­dente, murmurou:
“À sua saúde, cara senhora...”
Fernande Olivier chorou suas misérias para o autor do
Petit ami, que ficou sensibilizado com seu infortúnio. A
seu modo, sempre diferente dos outros:
Quando a senhora F.O. foi embora, eu disse à senhora Graziansky (a
responsável pelas assinaturas) que, apesar de tudo, se ela está com
tantos problemas como disse, bonita como ela ainda é, bem que podia
arrumar um amante.6

Quando a encontra outra vez, examina-a, e diz para si


mesmo que ela tem, certamente, “um traseiro
maravilhoso”. Mas, infelizmen­te, tem a “pele sardenta
das louras”. Depois reavalia: deve ser rui­va. Acaba
perguntando a ela: castanho-avermelhado. Um dia, ele a
acha bonita, no outro, totalmente sem graça. “Tem
manchas rosa­das no peito, acima da marca dos seios.”
Colhe flores no seu jardim. Leva-as à rua da Grande-
Chau­mière, onde ela mora. Na frente, fica o prédio da
Academia de Pintura. Léautaud fica com um pouco de
ciúmes: pensa que, se ela quiser fazer amor, pode
escolher à vontade. Fica aborrecido por ser tão velho –
sessenta anos – e ela tão jovem – dá-lhe quarenta anos,
ela tem 46.
Léautaud está apaixonado. A paixão aumenta quando
com­preende que ela ainda tem “seus períodos”, mas
diminui quando ela lhe conta sua vida de artista, a
boêmia, o Lapin Agile... “Prefi­ro de longe uma boa puta
burguesa.”
Mas quando ela vai visitá-lo, geralmente durante o dia,
bem que ele gosta. Mas é tímido. Não tem coragem. Ela
se senta numa espreguiçadeira, no jardim. Ele descobre
que ela tem pernas “enormes”, um pneu na cintura,
braços grossos como as coxas, os seios flácidos. Não
importa: “Tive uma ereção”. Tinha comprado uma
garrafa de champanhe, que acabou bebendo sozinho,
depois que ela foi embora.
Mais tarde, ela lhe faz confidências: Marie Laurencin
des­conhecia o prazer; Apollinaire só fazia amor vestido;
Max Jacob frequentava policiais e guardas republicanos
de bigode; na rua Ravignan havia um carvoeiro que era
apaixonado por ela, e que colocava o carvão diante da
porta da Maison du Trappeur, sem nunca pensar em
pagamento; ela se dava muito bem “sensual­mente” com
Picasso...
Ela permanece muito ligada ao pintor: fica preocupada
quan­do ele adoece, defende-o sempre contra qualquer
coisa. Quando fala dele, Léautaud lê a emoção, talvez a
tristeza, no rosto dela.
Certo dia, ela confessa; o problema com Picasso é que
ela se entediava terrivelmente. Ele quase não falava,
sempre e sempre ab­sorto no trabalho... Mas ela esquece.
Revolta-se quando Léautaud lhe fala do que Serge Férat
lhe contou sobre aquele dia fatídico, em que o pintor e
Apollinaire se confrontaram no gabinete do juiz, e Picasso
disse não conhecê-lo. Fernande faz um escândalo, diz
que tudo não passa de ciúmes, pois Picasso roubou uma
amante de Férat, que quer então se vingar...
A pedido de Georges Charensol, Léautaud redige o
prefácio das memórias de Fernande Olivier (das quais o
Mercure só publi­cou alguns trechos, pois Valette achou
que a obra não venderia). Quando Picasso sabe que o
livro vai ser impresso, tenta intervir junto à editora Stock
para impedir a publicação: propõe pagar todas as
despesas. Consegue um adiamento, mas o livro será
final­mente publicado, em 1933.
Quase vinte anos depois, passando por outro período
difí­cil, Fernande Olivier escreverá outro livro. Picasso será
informado pela senhora Braque. Não se sabe se foi para
adiar a publicação, ou por um gesto desinteressado e
generoso (como faria mais tarde com Hans Hartung, ao
ajudá-lo a passar para a Espanha durante a Ocu­pação),
mas o poeta enviará à sua antiga companheira uma
soma considerável.
Durante trinta anos, a obra ficará guardada nos
armários de Fernande Olivier.

60 Autor de Chroniques maritales, entre outros, seus livros criticavam a vida


conjugal. (N.T.)
Cubismo

Para nós, os homens, a natureza está mais na profundidade do


que na superfície.
Paul Cézanne

M arie Laurencin se foi, Fernande também. Max Jacob,


depois de ter desfrutado os charmes de Cécile,
talvez de mais uma ou outra, quase se enamora de uma
de suas primas. Em 1912, em Quimper, no dia da
Ascensão, está vendo uma procissão quando alguém o
chama. Volta-se, e vê um primo e duas primas. Uma
delas chama­-se Eva. Max leva todo mundo em direção à
igreja. No jardim, avis­ta-se uma amoreira. As primas
estimulam Max a subir na árvore. Ele consegue.
Conquistou Eva: um poeta esportista!
É o bastante para que ela lhe ofereça seus lábios. Max
ex­perimenta. Não deixa de ficar orgulhoso por ter
“excitado a se­nhorita Eva”.1 Mas, feito por feito, ele
prefere as amoreiras. E, rapidamente, renuncia aos
caprichos das moças: volta aos seus amores habituais.
Na turma de Picasso, ele é presença constante, mas
começa a perder terreno. Por várias razões.
Cheira muito éter. Picasso, que depois da morte de
Wiegels não usa mais nenhuma droga, aceita mal a
dependência do amigo. Isso agora é uma bobagem. E
como essa bobagem esfria as reuniões amigáveis, Max
Jacob está sempre inventando pretextos para justi­ficar
sua apetência, Diz que sofre dos dentes, e que o éter
acalma a dor. Os pais, que ele visita de vez em quando,
ficam admirados ao ver que essas dores dentárias,
tratadas dessa maneira, mergulham o filho no delírio.
Exigem que ele vá a um dentista recomendado por eles.
Max Jacob, que detesta dentistas, e não tem nada nos
dentes, pensa em parar uns tempos com essas práticas
farmacêuticas. Tal­vez o faça na sua Bretanha natal, mas
não em Montmartre.
É um primeiro delito.
O segundo resulta da sua susceptibilidade doentia: ele
trans­forma, com frequência, pequenos
desentendimentos em terremo­tos arrasadores. Não
apenas em relação a Picasso, mas também a Apollinaire,
que, às vezes, bate de frente com ele. São rivais diante
de Picasso. Mas Jacob se queixa sempre de que o poeta
só pensa em se divertir com ele, sem levar em conta seu
trabalho literário. Ora, enquanto Picasso ganha dinheiro e
Apollinaire, notoriedade (teve três votos no Goncourt por
L’hérésiarque & Cie), Max per­manece no grupo dos
menos importantes. Essa situação alimenta ainda mais
uma paranoia natural. Em cartas, tão infantis quanto
certas frases do Douanier Rousseau, Max acusa
Apollinaire de fugir dele, de passar por Montmartre e não
ir cumprimentá-lo, de não convidá-lo nunca para suas
festas, de lhe dar inúmeros bo­los... tudo isso ao mesmo
tempo em que lhe jura uma amizade eterna e duradoura.
Esse é outro motivo.
Finalmente, ele mesmo critica em Picasso um pequeno
des­vio de conduta, a seus olhos imperdoável: ele está
enriquecendo. Depois que Vollard comprou suas telas, ele
esquece os velhos ami­gos e aquela cumplicidade única
nascida da miséria comparti­lhada. Max lamenta. Por
mera falta de sorte, ele mesmo vai tornar ainda mais
tenso o fio que existe entre os dois: pouco depois do
banquete com Rousseau, no Bateau-Lavoir, ele vende
alguns dese­nhos de Picasso. Justifica o gesto pela
pobreza (real) em que se encontra, e da qual os outros já
se livraram.
Picasso detesta ouvir seu antigo companheiro de
miséria falar – e, portanto, lembrar – do período das
vacas magras, e da solidariedade que os unia naquela
época.
Max rema contra a maré.
Em 1911, publica, à custa do autor, La côte, “coletânea
de cantos celtas, antigos, inéditos”. Essa obra, como
confessará al­guns anos depois a Tristan Tzara2, foi
concebida para zombar de Paul Fort, de Francis Jammes
e, de modo geral, da literatura popular, que ele acha
“grotesca” (o que confirmaria a opinião de André Salmon,
que considerava que Max Jacob fingia gostar dessa litera‐­
tura para agradar Apollinaire). Ele mesmo cuida da venda
e, desse modo, ganha a vida. Essa forma de ganha-pão
lhe parece uma “men­dicância disfarçada”. Talvez Picasso
pense a mesma coisa.
Enquanto os outros se mudam para apartamentos
maiores e mais luxuosos, ele continua nos pardieiros das
ruas Ravignan, Che­valier-de-la-Barre ou Gabrielle. É claro
que, às vezes, Picasso o convida para ir a Céret. Mas ele
não pode pagar a viagem. O pintor tem que escrever a
Kahnweiler pedindo-lhe que dê ao amigo poeta o dinheiro
necessário para as passagens e as pequenas despesas
da viagem.
Por sorte, nos Pireneus tudo vai às mil maravilhas. Ao
mes­mo tempo em que, em Montmartre, empresta seu
ombro amigo a Fernande, Max faz amizade com Eva.
Gosta da sua vivacidade, da sua dedicação ao lar e ao
dono da casa. Este último volta a ocupar o primeiro lugar
no panteão afetivo do convidado.
Vão à Espanha assistir a uma tourada. “A Espanha é
um país quadrado e anguloso”3, observa Max Jacob,
exprimindo uma ideia bem tola desenvolvida por
Gertrude Stein, que, mais tarde, vai considerar a
Espanha como o país do cubismo.

Em Céret, o poeta desenha paisagens geométricas. Ele


não sai para passear, os outros também não. Ao tomilho
e à lavanda das monta­nhas eles preferem os cafés,
cheios de erotômanos e “pederastas” (escreve Max a
Apollinaire). Ou o interior das casas, onde traba­lham
muito. Max pinta e escreve versos. Picasso,
acompanhando Braque, faz suas colagens.
Não é a primeira vez que os dois pintores trabalham
jun­tos, em Céret. Por ocasião de uma estada anterior,
eles já tinham se reunido numa casa isolada no coração
das montanhas. A cum­plicidade deles é antiga: data de
1908, ano seguinte ao Salão dos Independentes, onde
Braque expôs suas primeiras paisagens de Estaque.
Apesar de diferentes, e de terem sido desenvolvidas
individualmente, as pesquisas deles sobre as formas e os
volumes iria, inevitavelmente, conduzi-los um ao outro.
Para Picasso, tudo vem das artes negra e ibérica. Essa
dupla influência está no quadro mítico, Les Demoiselles
d’Avignon, que o pintor mantém coberto ou enrolado no
seu ateliê. Poucos visitan­tes tiveram o privilégio de ver
essa obra. No entanto, apesar de chocar, ela goza de
uma reputação considerável, que aumentará com o
passar dos anos.
Para Braque, tudo vem de Cézanne.
Na sua época, o mestre de Aix foi vaiado, como foram
os fauves e como serão os cubistas, como o foi Berlioz e
como será James Joyce: é o preço das vanguardas.
Recusado nos salões ofi­ciais, alvo da chacota e da
estupidez reinantes, Cézanne, que admi­rava Delacroix e
que era elogiado por Gauguin, recusou-se a expor
durante vinte anos. O senhor Camille Mauclair, eminente
especia­lista em arte, felicitou-o por isso: sua pintura, aos
olhos dele, era “a mais memorável pilhéria artística dos
últimos quinze anos”.
Dez anos antes de morrer, graças a Vollard, Cézanne
foi fi­nalmente reconhecido: não apenas pela obra
anterior, nascida do trabalho com Pissarro e os
impressionistas de Auvers-sur-Oise, mas também por
suas pesquisas sobre as formas, os volumes, a ordem
dos planos, a fragmentação, as deformações. “Ele elevou
a natu­reza-morta ao nível de objeto exteriormente morto
e interiormente vivo”, resume magistralmente
Kandinsky.4
Cézanne queria descobrir “as bases geológicas” da
Sainte­Victoire, e se empenhava nisso respeitando a
percepção humana do espaço. Segundo ele, era preciso
tratar a natureza “em termos de esfera, de cilindro e de
cone”. Compreende-se que Apollinaire tenha decretado
que as últimas obras de Cézanne eram de essência
cubista e, principalmente, o interesse de Picasso.
E mais ainda de Braque.
Depois da morte de Cézanne, acompanhado de Othon
Friesz, ele vai para Estaque, perto de Marselha, e pinta
várias obras, estruturadas, simplificadas e
monocromáticas, que são expostas no Salão dos
Independentes de 1907. No ano seguinte, o Salão de
Outono aceita dois quadros dos oito apresentados.
Braque se ressente dessa humilhação. Kahnweiler os
expõe então na sua galeria, na rua Vignon, e pede a
Apollinaire um prefácio para o catálogo. Maisons à
l’Estaque está entre as telas expostas. O quadro fora
recusado pelos senhores do Salão de Outono: cubos de
cor ocre, casas sem portas nem janelas, volumes
entrelaçados uns por cima dos outros. Não mais a
representação objetiva da natureza, mas sim sua
interpretação reinventada, fora dos padrões tradicio­nais,
uma simplificação, uma organização e uma deformação
de volumes que correspondem a uma visão já conhecida:
a de Picasso. No que diz respeito a Braque, pode-se dizer
que se trata de uma vocação. Segundo Jean Paulhan,
quando o pintor do Havre chegou a Paris, foi ao Louvre
copiar as obras de Rafael. Primeiro, fez muito parecido.
Quanto mais ele pintava, porém, mais deformava...
Kahnweiler expõe também o Grand nu (1908), de
Braque, que constitui uma espécie de resposta à
violência das Demoiselles e das Trois femmes de Picasso,
das quais ele critica a selvageria e o primi­tivismo, a seu
ver excessivos. O Grand nu, parente próximo do Nu
debout (1907) de Matisse, é uma obra de inspiração
cezaniana, angu­losa, desprovida de claro-escuro, menos
primitiva e mais “legível”, no entanto, do que o ímpeto
do espanhol. Primeira grande tela de Braque, ela
constitui uma obra maior do cubismo nascente. Matisse
não gosta. Ele faz parte do júri do Salão de Outono que
excluiu Braque. Ele zombou dos seus “cubos” e deu-lhe
as costas. Depois dele, Louis Vauxcelles, no número do
Gil Blas datado de 14 de novembro de 1908, fez o
mesmo. E depois, ou mais ou menos ao mesmo tempo,
foi a vez do crítico Charles Morice. O nome dessa escola
(se é que se pode dizer assim) foi então, provavelmente,
inventado por Matisse. Que, é claro, negou depois. Mas
Apollinaire e Kahnweiler confirmam. E os cubos em
questão se referiam às obras de Braque, e não às de
Picasso. Finalmente, mais tarde, Matisse reconhecerá que
o primeiro quadro cubista que ele viu foi uma obra de
Braque, que Picasso lhe mostrou no seu ateliê. Um ate­liê
do qual ele logo se afastou, furioso com o pintor
espanhol que o colocara ao lado de Derain e de Braque.
E, talvez, um pouco constrangido por ter recusado esse
último no Salão de Outono...

Por que esse escândalo em torno das obras dos dois


pintores? Porque elas questionam a tradição. A
perspectiva não existe mais, nem o claro-escuro, que
eles consideram um artifício utilizado para dar conta da
profundidade. Eles se distanciam do princípio que data
da Renascença, segundo o qual o espectador de uma
obra a vê de um único ponto de vista. Eles observam
uma paisagem e fecham alternadamente o olho direito e
depois o esquerdo: não veem a mesma coisa. Assim
também quando o ângulo de visão é outro. Essas
diferenças são essenciais. Eles levam isso em conta.
John Berger atribui ao cubismo uma dupla origem:
Cézanne, pela importância atribuída à relatividade do
ângulo de visão; Coubert, que trouxe para a tradição
pictural clássica outra materia­lidade que não aquela
atribuída à luz e à sombra.
Antes de Cézanne, todo quadro era de certa maneira como uma vista
através de uma janela. Coubert tinha tentado abri-la e ir para fora.
Cézanne quebrou a vidraça. O cômodo passou a fazer parte da paisa­gem,
o observador a fazer parte da vista.5

Para um, o materialismo. Para o outro, a dialética. Para


os dois, desde que estejam juntos, o materialismo
dialético. O cubismo, nunca ninguém contestou isso, foi
uma revolução.
O impressionismo, no seu tempo, tinha escandalizado
uma opinião pouco habituada a que os pintores lhe
mostrassem uma rea­lidade interpretada – mesmo que
fosse por leis ópticas. Os cubis­tas vão ainda mais longe:
eles não ligam para as sombras nem para as luzes.
Braque: “Diziam-me: basta colocar sombras. Não, o que
conta, antes de mais nada, é o que se pensa a respeito”.6
Eles opõem uma arte de concepção a uma arte de
imitação. Zombam do respeito pelas sensações visuais,
defendido pelos impressionistas. O que eles querem é
mostrar o objeto na sua essên­cia. Assim como é
concebido, e não como é visto. Nisso, aproxi­mam-se de
Gauguin, que achava que o impressionismo tinha uma
ferramenta, o olho, que o espírito não alcançava. Picasso:
“Quando o pintor cubista pensava: ‘Vou pintar uma
compoteira’, ele come­çava o trabalho sabendo que uma
compoteira na pintura não tem nada a ver com uma
compoteira na vida”.7
A utilização das figuras geométricas permite
apresentar todas as facetas de um objeto para além de
uma aparência ime­diata. Não se trata de “fazer de forma
semelhante”. É preciso ir mais longe. A própria cor não
deve se adaptar a fenômenos passa­geiros, como a luz, o
ângulo, o tempo, elementos que traduzem a irrupção do
mundo exterior; ela deve inscrever o objeto naquilo que
ele tem de durável. Braque: “Não preciso mais do sol,
levo a luz comigo”.
Os impressionistas tiravam suas fontes de inspiração
do lugar em que viviam, isto é, para muitos deles, perto
de Paris, à beira da água, em paisagens molhadas, onde
a luz varia. Os cubis­tas moram na cidade, e quando
partem é para os vilarejos do Sul, onde os relevos são
mais duros que aqueles das margens do Sena ou de
Auvers-sur-Oise. Baudelaire: “O Sul é brutal e positivo”. A
ele se opõe o Norte, “dolorido e inquieto”, que se consola
“com a imaginação”.8 E Derain, escrevendo de Collioure
para Vlaminck: “A luz ergue de todos os lados seu imenso
clamor de vitória. Não é como as brumas do Norte que
compartilham da nossa dor”.9
Como é possível definir melhor a oposição entre os
antigos e os modernos?
Os cubistas integram nas suas obras elementos da
vida co­tidiana que, segundo eles, atuam na percepção
artística dos seus semelhantes: por exemplo, as árvores,
as casas, os instrumentos musicais, os letreiros das lojas,
os painéis de publicidade, os jor­nais, os objetos de uso
diário. As colagens permitem opor os mate­riais, as
texturas, as cores, reuni-las em justaposições
heterodoxas que mostram, de maneira diferente, os
objetos mais comuns – por exem­plo, os violões e violinos
de Picasso, principalmente Le violon (1912), composto de
papéis colados em volta de uma caixa de papelão.
Os cubistas utilizam materiais simples, por vezes
grossei­ros, que se opõem a uma visão sofisticada da
arte: não há joias nem roupas com fru-frus, há areia,
papel, madeira. Estão no limiar de um século no qual a
ciência tem o que dizer, no tempo da radioa­tividade, da
baquelita, do néon, do cinematógrafo e da relativi­dade
einsteiniana. Os cubistas são decididamente modernos.
Vi­ram as costas para o romantismo.
Os fauves, por sua vez, tinham ido muito longe nas
pesqui­sas sobre a cor: recortando-a da realidade visível,
eles a submeteram unicamente ao olhar do pensamento.
Como dirá Fernand Léger, que vai aderir ao cubismo na
sua última etapa, é preciso, de agora em diante,
preocupar-se com a questão da composição e do espaço.
Picasso: “Estávamos à procura de uma base
arquitetônica na com­posição, de uma austeridade que
pudesse restaurar a ordem”.
Guias de cordada

O que é a arte pura segundo a concepção moderna? É criar uma


magia sugestiva que contenha, ao mesmo tempo, o objeto e o
sujeito, o mundo exterior ao artista e o próprio artista.
Charles Baudelaire

D epois de um primeiro período, qualificado de pré-


cubista ou cezaniano, marcado pela deformação dos
corpos e dos objetos, Braque e Picasso tomam uma nova
direção: o cubismo analítico. Estão no âmago do tema.
Em vez de utilizar o claro-escuro, artifí­cio que repousa
sobre uma ilusão, tentam exprimir a terceira dimensão –
profundidade e volume – do objeto pintado, repre‐­
sentando-o sob todos os ângulos, segundo planos
superpostos. Para que esses objetos sejam facilmente
identificáveis, eles os esco­lhem na vida cotidiana. Essa
etapa é marcada por uma pintura monocromática, cinza
e ocre, e pela austeridade.
Os dois pintores fundamentam suas pesquisas num
traba­lho de construção: elaboram esculturas de papel,
ferro e papelão. Dessa forma, respondem diretamente a
Baudelaire que via na es­cultura, excetuando aquela “da
época selvagem”, uma arte de segunda categoria, ou
“complementar”. É até mesmo surpreen­dente. É como se
eles tomassem o ponto de vista do poeta no sen­tido
contrário, tirando um lado positivo de um avesso
negativo. O que é que Baudelaire critica na escultura?
Não permitir o ponto de vista único; obrigar o espectador
a caminhar ao seu redor para observar-lhe as
particularidades (se existem); mostrar “faces de­mais ao
mesmo tempo”.1
Essas fraquezas, apontadas por Baudelaire, são
considera­das como riquezas aos olhos de Braque e de
Picasso. Eles partem então de suas construções “leves”,
e tentam traduzir os resultados obtidos sobre a tela.
Desse modo, vão da escultura para a pintura, ou ainda
da pintura para a escultura, num trabalho de ir e vir do
qual nascerá, por exemplo, a Tête de Fernande (1909),
esculpida por Picasso a partir dos retratos de Fernande
pintados na Horta de Ebro, ou, em 1912, a série dos
violões, baseada num modelo de pa­pelão tridimensional.
O problema, nessas representações que se propunham
to­tais, é que os pontos de partida desapareceram.
O Portrait de Daniel-Henry Kahnweiler (1910), obra-
prima do cubismo analítico, foi feito em duas etapas,
depois de várias ses­sões de pose. A primeira versão
pareceu insatisfatória a Picasso, porque o quadro estava
incompreensível. Então, ele acrescentou aquilo que
chamava de “atributos”, marcas, sinais, graças aos quais
o olhar se orienta: a sombra de uma orelha, a linha de
um nariz, um fragmento de gravata, o esboço dos
cabelos, as mãos cruzadas...
E é exatamente para infundir de novo a clareza nas
suas obras que os dois pintores vão, em seguida, abordar
um novo está­gio em seu trabalho, e chegar ao cubismo
sintético. Dessa vez, tra­ta-se de introduzir na tela um
detalhe, um sinal que permita iden­tificar o objeto,
devolvendo assim ao espectador os indícios que foram
retirados anteriormente. É o prego que Braque pinta em
trompe-l’oeil na tela Broc et cruche (1910), as letras
impressas, as colagens e os fragmentos de material que
logo surgirão em Gris e Picasso, pouco antes da
utilização do Ripolin61 por este último. A pesquisa
consiste, igualmente, em restituir através da pintura,
gra­ças às colagens, o relevo e o volume dos objetos
(como os violões) escolhidos como modelos.
A criação do cubismo por Braque e Picasso constitui
então uma obra comum, fundamentada em
preocupações semelhantes e pesquisas paralelas
realizadas em conjunto. Essa complementari­dade
excepcional não tem equivalente na história da arte.
Quem fez o quê?
Essa pergunta, não muito importante, só se justifica
para dar a César o que é de César, e a Braque aquilo que
a fama de Pi­casso tirou dele.
A influência de Cézanne pertence mais profundamente
a Braque. Mas a do primitivismo é de Picasso. Se Picasso
“cezaneou” seu primitivismo, o fez em total harmonia
com Braque.
A primeira obra qualificada de cubismo é de Braque.
Mas aquela da qual se disse que abriu o caminho é de
Picasso.
A primeira tela cubista exposta num salão oficial, o
Salão dos Independentes de 1908, é de Braque.
Fernande Olivier dizia que ele tinha se inspirado numa
obra de Picasso (Les trois femmes, 1908), e que o
espanhol estava furioso com o amigo. Mas Apolli­naire
nada cita a respeito, e Max Jacob afirma o contrário:
Picasso, que nunca expunha nos eventos oficiais
(desconfiava da imbecili­dade da crítica e dos escândalos
que ela alimentava), estimulou Braque a fazer isso.
Em 1912, Braque entra num bazar e compra um rolo
de pa­pel imitando madeira.2 Cola-o sobre uma tela
(Compotier et verre, 1912). É assim que ele inventa a
colagem. Picasso fará a mesma coisa. Ele realizará a
primeira colagem utilizando um pedaço de tela encerada
(Nature morte à la chaise cannée, 1912).
Em 1911, em Céret, Braque tinha utilizado o trompe-
l’oeil em Le portugais, desenhando letras e números com
normógrafo para representar um músico, visto do outro
lado da vidraça de um café sobre a qual esses números e
letras estavam escritos. Um ano depois, em Le violon,
Picasso insere uma partitura sobre a qual aparecem duas
palavras: Jolie Eva (em homenagem à sua nova
namorada). Algum tempo antes, ele havia pintado sobre
telas ovais, retomando uma ideia de Braque.
Em 1912, Braque utiliza cinzas e areia misturadas ao
óleo. Picasso o fará alguns meses mais tarde.
No outono de 1912, Picasso realiza uma escultura de
pape­lão, La guitare, inspirada nas construções cubistas
de papel elabo­radas por Braque no final do ano anterior.
E daí?
Daí, poderíamos concordar com Pierre Cabanne que
fala, a propósito de Picasso (que o reconhecia), de
“ciência do legítimo larápio”.3
Ou então com Nino Frank, infinitamente mais severo:
Picasso é indiscutivelmente um dos heróis do nosso tempo e seu mais
admirável artista, sempre entregue a esse grande egoísmo que o faz tirar
partido de tudo e de todos, pegando o que pode em todos os bolsos,
explorando amizades e amores, colocando tudo, desorde­nadamente, no
seu trabalho. Talvez se pudesse dizer que ele era o gigolô da época, e
não deixa de ser verdade... 4

Ou ainda acompanhar Jean Cocteau, que, durante a


Guerra, for­çará tanto a porta de um Picasso venerado,
que o pintor levará o poeta pelos ateliês de
Montparnasse, onde os batentes só se abriam até a
metade: assim que sabiam que Picasso se aproximava,
os artistas escondiam suas obras, antes de abrir.
Ele vai copiar minha maneira de pintar as árvores, declarava um, e um
outro: ele vai me roubar o sifão que usei na pintura. Dava-se uma grande
importância ao mínimo detalhe, e, se os colegas temiam a visita de
Picasso, é porque sabiam que seu olho ia ver tudo, engolir tudo, digerir
tudo e restituir tudo nas suas próprias obras, com uma riqueza da qual
eram incapazes.5
Pode-se, igualmente, ouvir o próprio Picasso. Muito
tempo depois da época cubista, ele explicava que,
durante todos aqueles anos, Braque e ele se viam todos
os dias (para infortúnio de Max Jacob e de Gertrude
Stein, ambos com ciúmes dessa convivência artística que
não podiam compartilhar). Primeiro em Montmartre,
depois em Céret, em Sorgues e em Montparnasse.
Trocavam opiniões e se criticavam. Braque falou de uma
cumplicidade, comparável a “uma cordada na
montanha”.62 É claro que um se inspirava mais nas
paisagens e naturezas-mortas, enquanto o outro passava
facilmente do objeto ao retrato. Mas eles queriam
elaborar uma arte coletiva, anônima, e suas obras eram
quase idênticas. A ponto de mal se poder distingui-las
entre aquelas do período analítico. A maioria não estava
assinada, ou, se estava, isso foi feito posteriormente.
Kahnweiler, a esse respeito, ora nega, ora confirma. Ele
observa6 que, entre 1908 e 1914, os dois pintores
assinavam na parte de trás das obras; nessa prática, ele
via o desejo, comum a vários outros artistas, de não
romper a geometria da tela ao registrar sua origem. Mas,
por outro lado7, concorda com Picasso, reconhecendo
nele, tanto quanto em Braque, um desejo de “execução
impessoal”.
Esse desejo, que certamente era caro aos dois artistas,
não foi partilhado com nenhum outro. Eles o
reivindicaram para si mesmos, e só para si mesmos.
Apenas Derain (vagamente) e Gris (principalmente)
achavam a ideia interessante. Mas isso não agradava a
Léger, que se conside­rava um dos pilares do cubismo (o
que Kahnweiler reconhecia).
Derain tinha sido um dos primeiros pintores a se
interessar pela arte negra. Era igualmente um grande
seguidor de Cézanne. Depois de uma temporada em
Estaque, havia demonstrado que, independentemente
das cores, as formas e a composição são muito
importantes na representação da natureza. Suas
Baigneuses, expos­tas no Salão dos Independentes de
1907, afirmavam a geometriza­ção das linhas, o que
levou Picasso, provavelmente, a atenuar as curvas da
primeira versão das Demoiselles d’Avignon. Derain, figu‐­
ra essencial do nascimento do cubismo, afastou-se em
seguida, dei­xando passar à sua frente os dois “chevau-
légers”63 da colagem.
Gris, mais intelectual, mais “científico” do que Braque
e Pi­casso, continuou a fazer suas pesquisas sobre a
colagem e o trompe-­l’oeil, paralelamente aos outros dois.
Ele costumava dizer: “Cézanne parte de uma garrafa
para chegar a um cilindro, eu parto de um cilindro para
chegar a uma garrafa”. No Salão dos Independentes de
1912, expôs sua Hommage à Picasso (1912), deferência
àquele que ele considerava o pioneiro dos cubistas.
Quando a Guerra foi declarada, como os pais fundadores
não trabalhavam mais juntos, ele se tornou o arauto do
cubismo ortodoxo.

A Guerra separou Braque e Picasso, como fez com


muitos outros. Anos mais tarde, Picasso dirá a Kahnweiler
que a última vez em que viu Braque e Derain fora no dia
2 de agosto de 1914, quando os conduziu à estação de
trem de Avignon. Claro que era só uma ima­gem, mas
fazia sentido: depois, nada mais foi como antes.
Subtenente no front, Braque foi ferido em Neuville-
Saint-Vaast e fez depois uma trepanação. A única
patente da qual Picasso pôde se orgulhar lhe foi
conferida, gentilmente, por Apollinaire, e ironicamente
retomada por Derain: general do cubismo.
Os dois homens se viram outras vezes, mas apenas
espora­dicamente. A corda se rompeu. Um pouco como as
formas arro­jadas que eles tinham inventado juntos e que,
pela desarticulação, explosão e contorção, anteciparam
tão bem o quadro de uma guer­ra que pulverizou o
mundo.

Com o passar dos anos, Braque manteve-se reservado


em relação ao antigo companheiro. Esse afastamento
irritava Picasso: ele não entendia a razão de tanta frieza.
Ao contrário de Max Jacob, Braque sabia se defender.
Ele não se deixava manipular pelas pequenas manobras,
às vezes dolo­rosas, que Picasso fazia com aqueles aos
quais estava ligado.
Picasso afirmava que ninguém o havia amado como
Bra­que, que ele era uma espécie de senhora Picasso. O
outro bem que gostaria de reviver a amizade, mas com
uma condição: receber sua parte. Relação de forças,
muito bem, mas só em condições de igual­dade. Nos anos
1950, isso foi manifestado de forma brilhante, sob o olhar
de reprovação de Françoise Gilot.
Picasso tinha ido, sem ser convidado, à casa do antigo
par­ceiro, que então morava perto do Parque Montsouris,
numa casa extraordinária, construída pelo arquiteto
Auguste Perret. Braque foi bastante frio, e não deu
nenhuma atenção a Françoise Gilot. Picasso ficou ainda
mais magoado porque o amigo não os convidara para
almoçar. Voltou para casa, no Quai des Grands-­Augustins,
e tirou da parede do ateliê um quadro de Braque que
estava lá havia muito tempo.
Algumas semanas depois, resolveu voltar com a
compa­nheira. Queria, com essa visita, testar os
sentimentos de Braque a seu respeito: chegaria alguns
minutos antes da hora do almoço; se não fossem
convidados, ele reconheceria seus limites e romperia
definitivamente com ele.
Um pouco antes do meio-dia, Picasso e Françoise Gilot
che­gam, então, à casa de Braque. Ele os manda entrar.
Lá, já está um outro visitante, saboreando o cheirinho de
um assado quase pronto. Picasso espera que coloquem
mais dois pratos na mesa. “Porém”, conta Françoise
Gilot, “se Pablo conhecia o seu Braque de cor, Braque
conhecia ainda mais o seu Picasso.”8 Ele sabe que, se
convidar Picasso para o almoço, este ganhará a queda de
braço e zombará da fraqueza dele.
Leva-o até o ateliê. Durante uma hora, mostra-lhe suas
últi­mas obras. O cheiro da carne sobe até eles. Picasso
está encantado só de pensar em vencer o torneio que
preparou.
Braque, mais ainda.
Propõe a Picasso e a Françoise Gilot mostrar-lhes
algumas esculturas. Eles vão vê-las. Picasso observa que
a carne já deve estar no ponto. Braque não responde,
mas sugere que vejam as li­tografias. Assim é feito. São
quase duas horas. Picasso começa a ficar agitado. Diz a
Braque que Françoise não conhece seus qua­dros fauves.
“Não seja por isso”, responde Braque.
Com isso, desfaz o lance de Picasso: as telas estão na
sala de jantar.
Descem. A mesa está posta para três pessoas. Nem
uma a mais. Passa-se meia hora. Nada de convite.
Picasso insiste: para prolongar o tempo, pede ao dono da
casa que lhe mostre novamen­te as telas que já viu. Muito
calmo, Braque o faz. Passam uma hora no andar de cima.
Depois, mais uma hora no ateliê. Às quatro e meia, o
assado não cheira mais, e já é hora do lanche. Picasso se
despede. Está ao mesmo tempo completamente
irritado... e admirado. Na volta desse passeio digestivo,
pendura de novo na parede do ateliê a tela de Braque
que havia retirado.
Os dois pintores se gostavam e se respeitavam. Mas se
torna­ram rivais. Essa rivalidade era agravada pelo ciúme
quase congê­nito de Picasso. Assim como Fernande Olivier
(de forma, porém, mais irônica e mais distanciada),
Françoise Gilot também foi teste­munha disso. Ela conta a
raiva de Picasso ao descobrir que, depois que Reverdy
publicou um livro ilustrado por ele, publicou outro
ilustrado por... Braque! E a raiva aumentou quando soube
que o mesmo Reverdy passava mais tempo na casa de
Braque do que na casa dele. Ou, ainda, naquele dia em
que foi visitar Braque e encon­trou René Char, que não
vinha ao Quai des Grands-Augustins havia várias
semanas!
Quando Braque morreu, Picasso o homenageou com
uma litografia, na qual inscreveu as seguintes palavras:
“AINDA HOJE POSSO DIZER QUE GOSTO DE VOCÊ”. Isso
surpreendeu alguns. Aque­les que se lembravam das suas
palavras anteriores: “Braque quis fazer maçãs, como
Cézanne, e só conseguiu fazer batatas”. E aque­les que,
como Sonia Delaunay, lembravam-se das insuportáveis
maledicências de Picasso em relação ao antigo
companheiro.
A verdade é que, quando Juan Gris morreu, suas
lágrimas também causaram surpresa. Esse homem tinha
algo de crocodilo...
61 Marca de tinta que passou a designar seu gênero. (N.E.)
62 Escalada na qual vários alpinistas sobem juntos, com a ajuda de uma
mesma corda. (N.T.)
63 Soldados de um corpo de cavalaria da França (séc. XVI ao séc. XIX). (N.T.)
Os cubistores

Talvez pensem que tenho prevenção contra o cubismo. De jeito


nenhum: prefiro todas as excentricidades de um espírito até
mesmo banal às obras sem originalidade de um burguês imbecil.
Arthur Cravan

E m 1912, a galeria La Boétie, em Paris, expõe quase


duzentos qua­dros qualificados como cubistas. Dois
anos antes, os pintores par­ticipantes, que se reuniam em
seus ateliês, principalmente em Puteaux, na casa de
Jacques Villon, tinham fundado a Section d’Or. Em 1911,
no Salão dos Independentes, sala 41, tinham organizado
a primeira exposição coletiva cubista. Estavam presentes
Delaunay, Gleizes, Léger, Metzinger, Jacques Villon,
Marcel Duchamp, Kupka, Picabia, Lhote, Segonzac,
Archipenko, Roger de la Fresnaye e Le Fauconnier.
Mas nem Braque nem Picasso estavam lá.
Eles só expõem nas galerias de Kahnweiler ou de
Uhde. Essa recusa obstinada a se misturar com os que
reivindicam, em alto e bom tom, um título que lhes
pertence de direito marca o desprezo que eles têm por
aqueles que Braque chama de “cubisto­res”. Picasso,
ainda mais direto, não hesita em afirmar: “Não existe
cubismo”.1 O que é tão provocador quanto a frase que
ele iria pronunciar sobre a arte negra nos anos 1920:
“Arte negra? Nunca ouvi falar...”. E que traduz, além do
desejo de se distinguir, seu desprezo pelas escolas e
teorias.
Os bajuladores ajudam. Reverdy, já o vimos, nega a
influên­cia de Cézanne, de Ingres e da arte negra na obra
do mestre. Du­rante a Guerra, chegará a brigar com um
dos defensores do “outro clã”; a tal ponto que Max Jacob
vai sugerir a criação de dois gru­pos: o de Braque, Gris,
Picasso, Reverdy e o de Lhote, Metzinger e seus amigos.
Cocteau, outro fã incondicional, é ainda mais
exclusivista:
Quando falo de cubismo, peço que não leiam: Picasso. Um quadro de
Picasso não é mais cubista do que um drama de Shakespeare seria
shakespeariano.2

Robert Desnos é mais rigoroso com os cubistores,


porém, mais sutil em relação a Picasso:
Enquanto tantos outros pintores se fecharam na fórmula esterili­zante do
cubismo, felizes por terem encontrado um meio de disfar­çar sua
incompetência através do ilegível, Picasso nunca soube o que é uma
fórmula. Ele cria do jeito que sente.3

Braque e Picasso consideram que a única coisa que


fizeram os pintores da Section d’Or foi acrescentar
formas geométricas às suas obras, mas que isso não é
inerente ao estilo deles. Os dois não ouvem as tolices
que dão a entender que Bergson teve in­fluência sobre o
cubismo (o que será negado pelo filósofo). Ou, ainda, que
o cubismo tem algo a ver com a matemática. Eles zom‐­
bam abertamente das exegeses simplistas, cuja
tendência seria provar que as pesquisas dos cubistas
repousam sobre o trabalho de diversos cientistas,
principalmente Princet, matemático que trabalhava numa
companhia de seguros e que frequentava a turma do
Bateau-Lavoir.
Se Princet gosta de traçar figuras geométricas para
demons­trar as relações de causa e efeito entre o
compasso e o pincel, isso é lá com os pintores da Section
d’Or, mas não com Braque nem com Picasso. Essas
histórias de terceira, quarta ou quinta dimensão na­da
têm a ver com os dois. Eles nunca recorreram à leis
matemáticas ou geométricas que os tornassem
dependentes de um sistema. Para eles, não existe
nenhuma teoria do cubismo. Gleizes, Metzinger e Raynal
(entre outros) trabalham em terras que lhes são
estranhas. Picasso, como sempre, se afastou depois de
provocar o re­buliço. Quando o circo pega fogo, ele já está
longe. A léguas de dis­tância dos outros.
Braque, igualmente. Muito mais tarde, ele dirá à Jean
Paulhan: “Já caí fora há muito tempo. Não sou eu que vou
fazer um Braque de encomenda”.4
Quando o escândalo do cubismo está no auge, os dois
fun­dadores da nova arte deixam as discussões para os
aliados. Princi­palmente para Max Jacob, que, ao contrário
dos outros, quer ser um santuário diante dos anátemas,
do som e da fúria. Aos que ficam desorientados diante de
uma obra cubista, ele dá quatro conselhos:
1o) Chegar diante do quadro sem intenção preconcebida de sar­casmo.
2o) Olhar para a pintura do mesmo modo como olharia para uma pedra
talhada. Aprecie as facetas, a originalidade da forma, a luta com a luz, a
disposição da linha e das cores [...]
3o) Escolher um detalhe que seja a chave do conjunto, fixá-lo por um bom
tempo, e o modelo surgirá.
4o) Nessa última comparação, deixar-se levar até as regiões da mais
requintada Alusão.5

Max Jacob também se considera cubista. Cubista


literário (assim como Reverdy, a quem, nesse aspecto, se
iguala). Numa obra já emaranhada, complexa,
extraordinariamente rica e inclassificável, feita de
poemas em prosa, trechos de conversas ouvidas aqui e
ali, jogos de palavras, verdadeira ginástica de um espírito
ágil, ele acrescenta o tom cubista:
O cubismo na pintura é a arte de trabalhar o quadro por ele mes­mo, fora
do que ele representa, e de dar à construção geométrica o primeiro
lugar, criando apenas uma alusão à vida real. O cubismo literário faz o
mesmo na literatura, servindo-se da realidade apenas como um meio e
não como um fim.6

Os notáveis da época, no entanto, não entendem Le


cornet à dés mais do que entenderam Estaque, as
banhistas, os violões e outros instrumentos de uma
música por demais atonal para o gosto deles. Para eles, o
cubismo é um ataque ao naturalismo. Um ataque vindo
de fora. Da Itália, por exemplo, que quer torpedear a arte
nacional enviando seus submarinos futuristas. E da
Alemanha, que creden­cia seus artilheiros nas pessoas de
Wilhem Uhde e de Daniel-Henry Kahnweiler, os
marchands dos cubistas. Sem contar a Rússia, que dança
sobre nossas tradições – Debussy! Ravel! – graças aos
espiões dos balés de Diaghilev.
Em 1912, um deputado socialista se insurge contra o
fato de que essa pintura, vinda do exterior, esteja
exposta nos museus na­cionais. Fala-se de Kubismo, de
arte boche. Quando a guerra che­gar, a ira será maior.
Até a medicina se mete na discussão. Depois de ter
refletido por muito tempo, o doutor Artault, de Vevey,
citado por Guillaume Apollinaire, explica o cubismo como
a exploração de um fenô­meno patológico:
Basta, na verdade, observar, com os olhos semicerrados, um qua­dro
cubista para encontrar ali, em meio a zigue-zagues e a vislum­bres
decrescentes, as deformações e as formas fugidias dos objetos,
características das irisações monocromáticas e intermitentes, desse
acidente que chamamos de escotoma cintilante, o sintoma mais fre‐­
quente da enxaqueca oftálmica.7

Para a medicina, portanto, Braque, Picasso e seus


consortes são vítimas de enxaqueca. Maneira asséptica
de exprimir o parecer médico e a opinião comum: são
doidos.
Até mesmo Léon-Paul Fargue, que admirava
Lautréamont e gostava de Jarry, não compreendia essa
pintura que, segundo ele, sofre de uma crise de
“intelectualidade”. Ele defende a volta ao grande
impressionismo, e coloca os artistas cubistas na lata de
lixo da arte:
Vocês são pintores de reunião em público – ou de restaurante sóbrio, de
refeitório vegetariano... Vocês são semi-instruídos, têm “a cabeça fraca
demais para o aprendizado”. Vocês vão sempre para o campo com suas
ideias bairristas, colegiais, suas comporta­das ideias revolucionárias, que
não cheiram nem mesmo a petróleo, mas a cachimbo apagado, a coisa
ácida, a toalha úmida e a mos­tarda rançosa, como as salas dos
banquetes literários.8

As bandarilhas também vêm de um campo que


poderíamos julgar mais aberto. Fiel à imagem que quer
mostrar de si mesmo, Arthur Cravan perde as estribeiras.
Metzinger: Um fracassado que se agarrou ao cubismo.9
Sua cor tem sotaque alemão. Ele me enoja.
Marcoussis? Não é sincero, mas sente-se, como diante
de todos os quadros cubistas, que deveria haver alguma
coisa, mas o quê?
Gleizes? Nenhum talento.
De Segonzac? Só faz bobagens.
Archipenko: Você não é nada tolo.10
E assim por diante.
Montmartre também entra na dança. Dorgèles, que na
época é jor­nalista do Paris-Journal, não aguenta mais
essa destruição de temas, formas e cores. Vê seus
melhores amigos, Gleizes, Mar­coussis, Delaunay,
demolidor de torres Eiffel64, e Maurice Raynal (que ele
qualifica de “estemático”), tomarem uma direção que
nega a tradição, os impressionistas e a arte acadêmica.
O esquadro subs­titui o pincel. O mais importante é
aparecer.
Apoiado por seu amigo André Warnod, Dorgèles
resolve aparecer também. Não é preciso escrever textos
assassinos, nem pronunciar excomunhões trovejantes:
outros já o fazem. Vale mais a pena provocar o ridículo.
Fazer uma pilhéria, da qual toda a im­prensa vai tratar.
Ele lança um movimento: o excessivismo. E um pintor:
Joachim-Raphaël Boronali, futurista italiano, nascido em
Gênova. Esse artista, do qual, efetivamente, toda a
imprensa vai falar, não se parece com os outros. Tem a
pele cinzenta, os pelos compridos, anda sobre quatro
patas, e não fala: zurra. É o jumento de Frédé: Aliboron,
cujo anagrama deu Boronali.
Certa manhã, Dorgèles vai à procura de um oficial de
Jus­tiça no faubourg Montmartre. Conta-lhe seu projeto e
explica o que quer que ele faça. Especialista em
averiguações conjugais e fla­grantes de adultério, o
senhor Paul-Henri Brionne não acredita nos seus olhos
nem nos seus ouvidos. Mas acha engraçado, e aceita.
O escritor e o homem da Justiça sobem até a Butte,
onde André Warnod espera por eles. Dorgèles e ele tiram
Lolo do Lapin Agile, amarram-lhe no rabo um pincel
encharcado de azul ultra­marino, colocam uma tela
virgem sobre um tamborete, que é posi­cionado sob o
traseiro do animal. Fazem-lhe festinhas, oferecem-­lhe
cenouras, e o animal, todo contente, sacode o rabo. E
assim deixa sua primeira marca de artista animal.
O oficial toma nota.
Os dois amigos mudam a tela de lugar para dar mais
vigor ao trabalho em curso, e como uma cor só não basta
para o artista, mudam, mergulhando o pincel, fixado na
extremidade desse des­tro bem particular, em outros
potes de tinta.
Depois do ultramarino, o vermelho, o cobalto, o
cádmio e o índigo. Quando o solípede demonstra
cansaço, Berthe lhe dá um pouco de tabaco para roer, e
o oficial, os seus cigarros. Em seguida, Frédé canta Le
temps des cerises: o jumento começa a acompanhar o
ritmo. Quando para de vez, Et le soleil s’endormit sur
l’Adriatique está diante dos olhos maravilhados dos
amantes da arte.
O oficial toma nota.
Dez dias depois, é inaugurado o Salão dos
Independentes. Et le soleil s’endormit sur l’Adriatique é
exposto num lugar bem visível. Alguns amigos de
Dorgèles, a quem ele confiou a história, demons­tram
entusiasmo diante dessa obra maior de um futurista
italiano que ninguém conhece, mas que, sem dúvida
alguma, seguirá seu caminho até atingir o ponto alto da
arte moderna. Guardem este nome: Joachim-Rafaël
Boronaldi, grande mestre do excessivismo.
E assim acontece. Alguns ficam extasiados. Outros
criticam. Acham que é um pouco fauve no que diz
respeito ao céu, vago segundo as formas, imbuído
demais da personalidade do pintor, enigmático, ou pelo
menos simbólico: o que é que representam aqueles
riscos vermelhos no centro da tela? Um nariz? A lua? Um
pierrô divino?... Le Matin, Comoedia, La Lanterne... a
imprensa não fala de outra coisa. E falarão ainda mais
depois que Dorgèles chega à redação do Matin brandindo
as provas do embuste. Perplexidade e hesitação. Mas só
por algumas horas. No dia seguinte, em negrito, na
manchete da primeira página, aparecem algumas
palavras que definem o cubismo, tal como era
considerado na época:
UM JUMENTO É CHEFE DE ESCOLA.

O oficial de Justiça foi testemunha.

64 Tours Eiffels, série de Delaunay, realizada entre 1909-1910. (N.T.)


Guillaume Apollinaire
toma a dianteira

Os sábios são felizes. Se eu fosse sábio, poderia refazer um dos


meus quadros.
Georges Braque

S egunda-feira, 1o de outubro de 1912: vernissage do


Salão de Outo­no. Nas escadarias do Grand Palais, o
ilustríssimo senhor Franz Jourdain, presidente do evento,
recebe o ministro da Educação. Depois dos
cumprimentos de praxe, a honorável assembleia per­corre
salas e corredores.
Alguns dias antes, vindos de Montmartre e de Montpar‐­
nasse, os mais ricos de fiacre, os mais pobres
empurrando carrinhos sobre os quais estavam
empilhadas suas obras, cumprimentando uns aos outros,
rindo e cantando, os artistas tinham ido pendurar as
telas escolhidas pelo júri.
As autoridades vão percorrendo a exposição. Ficam
pasmas diante de Renoir, Degas, Bonnard, Vuillard,
Manet. Cochicham res­peitosamente na frente de Fantin-
Latour e de Maillol. Levantam imperceptivelmente as
sobrancelhas, mas com discrição, ao passar perto das
antigas ovelhas negras, agora recebidas no seio familiar,
ocupando até mesmo lugares de honra: Matisse, Van
Dongen, Friesz. Maravilham-se diante do Portrait de
Cézanne, do querido Pissarro. Entram, finalmente, numa
sala mais escura.
Ali, tudo é verdadeiramente obsceno. Eles apertam os
pin­cenês e tiram os monóculos. O ilustríssimo senhor
Franz Jourdain e seus vice-presidentes nada puderam
fazer, a não ser aproveitar alguns daqueles cubistas
imundos, porque, explica a ilustríssima autoridade à sua
excelência o ministro da Educação, aquilo repre­senta,
apesar de tudo, a arte moderna. Não foi possível evitá-
los. Ainda mais porque dois deles, um tal de Albert
Gleizes e um tal de Jean Metzinger, acabam de publicar
um livro sobre o assunto, cha­ma-se Du cubisme, e os
jornais estão falando muito...
Coragem, vamos embora.
Na assistência, nem todos estão de acordo. Está
presente o ilustríssimo senhor Paul Fort, poeta, o
ilustríssimo senhor Claude Debussy, compositor, o
ilustríssimo senhor Apollinaire, jornalista. Esses observam
e discutem entre si. Um pouco afastado, está o
ilustríssimo senhor Louis Vauxcelles, que cobre o evento
para o Gil Blas, e que insultou com eloquência Picabia, “o
cubista endi­nheirado”, Léger, “tubista”, Picasso, “Ubu-
Kub”, e muitos outros, enfaticamente criticados ao longo
das páginas.
O senhor juiz em matéria artística está de braços
dados com sua senhora. Pronto para atirar uma das suas
lanças venenosas, cujo segredo ele possui, quando dois
maus pintores, em boa forma, surgidos de trás das
geometrias de Dunoyer, de Segonzac ou de Roger de la
Fresnaye, cercam-no, insultam-no e o jogam ao chão,
diante de Marcoussis, Metzinger, Picabia, Lhote, Le
Fauconnier, Gleizes, Léger, Duchmap e Villon, que se
contorcem de rir.
Discutem-se o lugar, as armas e os padrinhos.
Naquela mesma noite, em L’Intransigeant, Guillaume
Apolli­naire relata o acontecimento:
Um pequeno incidente teve lugar esta manhã. Alguns pintores cu­bistas
desafiaram um de nossos confrades, o ilustríssimo senhor Vauxcelles, e
insultaram-no veementemente. Mas tudo não passou de uma áspera
troca de palavras.1

No dia seguinte, nas colunas do mesmo jornal, o


feiticeiro vítima de seu próprio feitiço65 responde ao
diretor:
Conceda-me a honra de acreditar que não é do meu feitio deixar-me
insultar “veementemente” sem responder ao ofensor.
A verdade é que respondi aos dois jovens mal-educados que a solu­ção
normal para o incidente seria o duelo. Eles recusaram imedia­tamente,
talvez porque os princípios da moral cubista os proíbam de fazê-lo.
Serei grato se publicar esta carta, pois ficaria constrangido em parecer
covarde diante de seus numerosos leitores.
Acredite em mim, por favor, seu criado
Louis Vauxcelles
PS: Mais uma palavra: os dois jovens citados poderiam esperar, “para me
desafiar”, que eu estivesse sozinho. A senhora Vauxcelles estava a meu
lado quando o incidente aconteceu. Pois bem, certas questões devem ser
resolvidas de homem para homem.2
O cubismo, logo se vê, precisa de defensores.
O mais enérgico de todos é Guillaume Apollinaire. Para
ele, a defesa do cubismo é da ordem do combate e da
missão. Trata-se de sustentar uma vanguarda na qual
Apollinaire se inscreve igualmente como poeta. É aí que
ele primeiro demarca seu território.
Ele sabe o quanto deve ao simbolismo, que liberou o
verso das suas limitações e das pesadas regras da
prosódia. Mas ele de­seja ser ainda mais moderno. Quer
ser o grande defensor do verso livre. A exemplo dos
pintores cubistas, ele quer misturar a poesia com as
coisas da vida, as novidades, as imagens, e organizar
essa paleta de acordo com suas próprias cores: uma
cultura extraordiná­ria, uma incrível fantasia. É assim que
fará Guillaume Apollinaire.
Em 1913, publica Alcools pela editora Mercure de
France. Nessa antologia, ele reuniu textos escritos entre
1898 e 1912. É um buquê composto de flores da sua
memória, e das folhagens do mun­do: Guillaume na
Santé, sofrendo dos mil males do amor, insone e
angustiado; mas também os hangares de Port-Aviation, o
papa Pio X, os prospectos, os cartazes, as
estenodatilógrafas, o avião, as sirenes... Não há mais
pontuação, o corte dos versos é o bastante para dar
ritmo à poesia.
No ano seguinte, Apollinaire começa a escrever seus
Calligrammes. O uso das letras formando figuras não é
novidade. Mas como não ver nessas poesias/imagens a
aplicação daquilo que as palavras já continham em
Alcools, e que as reproduções dos títulos de jornal, as
montagens tipográficas, os desenhos integra­dos, as
escalas musicais sublinham e reforçam ainda mais: as
cola­gens cubistas? A faceta literária das ousadias
picturais? A ponta de lança da vanguarda? Uma invenção
generosa, proteiforme, cujas declinações serão
encontradas, quinze anos depois, no 42o Parallèle, de Dos
Passos?66
Quando defende a modernidade do outro, Apollinaire
tam­bém está se defendendo. Ele participa igualmente
dessa revolução da arte moderna, da qual não é apenas
o cronista complacente. Ele acha que deve se engajar ao
lado da nova linguagem, assim como as pessoas se
engajavam em 1789 ao lado da Revolução. Ele é poeta.
Sua arma é a pena. É com ela que ele se bate.
Entre 1910 e 1914, Apollinaire trabalha em
L’Intransigeant. Salmon está no Paris-Journal (escreve sob
pseudônimo: “La Pa­lette”, e logo irá para o Gil Blas, onde
tomará de assalto a fortaleza Vauxcelles).
Aos olhos dos amigos, Guillaume Apollinaire é um
poeta excepcional, um amigo maravilhoso, mas é um
crítico medíocre. Picasso não o leva a sério: na sua
opinião ele “sente” mais do que sabe. Para Braque, ele
não sabe nada, e confunde Rubens com Rembrandt.
Vlaminck ironiza sobre “sua incompetência e sua ver­ve
fantasiosa”. Outros ainda, como Juan Gris, se divertem ao
des­cobrir sob a pena do jornalista uma opinião que eles
mesmos emi­tiram em resposta a uma pergunta.
Servem-se dele quando querem atiçar fogo: Guillaume
adora novidades e acode assim que for preciso forçar
uma porta fechada. Ele louva as vanguardas. Mesmo se
for preciso devolver à loja de acessórios os acessórios
que não são mais necessários. O impressio­nismo, por
exemplo. No prefácio do catálogo da exposição de
Braque (1908), depois de usar de forma parcimoniosa
“alguns mestres mag­nificamente dotados” (os quais não
cita), ele ataca: “A ignorância e o frenesi são as
características do impressionismo”; este “não foi senão
apenas um instante pobremente religioso das artes
plásticas”; os impressionistas tentaram “exprimir
febrilmente, apressadamente, desarvoradamente, seu
espanto diante da natureza”.
Isso também é febril, apressado e desarvorado. Quanto
ao próprio Braque, de quem se trata, no final das contas,
pois Kahn­weiler o festeja, depois que os salões oficiais
lhe fecharam as portas, “ele exprime uma beleza cheia
de ternura, e o nácar de seus qua­dros irisa nossa
compreensão”. Isso é mais poesia do que crítica. São
frases que atravessam a pintura sem nunca mostrar as
rupturas, pa­lavras que cintilam como uma paleta de
versos, imagens, uma imen­sa boa vontade, uma falta de
análise às vezes desconcertante.
Nesse prefácio das obras de Braque recusadas no
Salão de Outono, Apollinaire se regozija de que o sucesso
tenha recompen­sado Picasso, Matisse, Derain, Vlaminck
e alguns outros. Lamenta que não tenha ainda chegado o
momento de Vallotton, Odilon Redon, Braque e... Marie
Laurencin.
Ela (ainda) é sua musa, e ele, seu trovador. Canta-a
por toda parte, em todos os tons.
Em 1908, em Les peintres nouveaux: “A senhorita
Laurencin soube exprimir na arte maior da pintura uma
estética inteiramente feminina” .
No mesmo ano, em L’Intransigeant, em que escreve
crônicas regularmente, “A vida artística”: “Não encontro
palavras para defi­nir a graciosidade toda francesa da
senhorita Marie Laurencin”.
Em 1909, sobre o Salão dos Independentes: “A
senhorita Laurencin traz para a arte uma graciosidade
forte e precisa que é totalmente nova”.
No Salão de Outono de 1910, onde Marie foi recusada:
“No­temos que artistas importantes, como o senhor André
Derain, Marie Laurencin, Puy etc., não expuseram”.
Em 1911: “O ponto alto do salão poderia ter sido a sala
dos cubistas, se todos eles tivessem exposto, se não
faltassem nem Delaunay nem Marie Laurencin...”.
Um pouco mais adiante, o crítico lamenta igualmente a
ausência de Picasso, de Derain, de Braque, de Dufy;
ninguém, a não ser ele, pensaria em associar Marie
Laurencin, que se dedicava à pintura em porcelana, e
cujas obras evocam tons pastel e formas arredondadas, a
esses quatro! É o que se pode chamar de “deitar a
amante no papel”...67
Existem outros, no entanto, de quem Guillaume não
gosta. Talvez porque Picasso também não goste, talvez
igualmente por­que esses artistas não participem da nova
e escandalosa arte. Van Dongen, que prefere a geometria
arredondada das pérolas nacara­das às linhas
descontínuas das figuras cubistas, recebe seu qui­nhão
em L’Intransigeant.
1910: “Os quadros do senhor Van Dongen são a
expressão daquilo que os burgueses que sofrem de
enterite chamam hoje de audácia”.
Alguns meses depois: “O ilustríssimo senhor Van
Dongen faz progressos na banalidade...”.
Em 1911, ele nada mais é do que um “velho fauve”
expondo “uma espécie de cartazes”. Dois anos mais, e
seus quadros pare­cem ao crítico “os mais inúteis do
mundo”.
Mas dá também uma alfinetada em Vlaminck: “Ele
desper­diça seu talento pintando cartões de visita”. E faz
uma maldade com Matisse (1907) – podemos adivinhar a
sombra de Picasso por trás das palavras: “O ilustríssimo
senhor Henri Matisse faz coisas novas, mas ele renova
mais do que inova”. A hora das reverências não tardará a
chegar. Apollinaire contribuirá então para reforçar o
pedestal sobre o qual subiu o mestre do Couvent des
Oiseaux e que ninguém pensará mais em demolir.
Quando se trata de Picasso, a coisa é simples.
Apollinaire nunca o ataca. Quando não gosta, se é que
não gosta, prefere não escrever. Foi o que aconteceu
depois de Les Demoiselles d’Avignon: assim como
Braque, Derain e alguns visitantes, que viram a tela no
Bateau-Lavoir, ele talvez também não tenha gostado
muito; mas, no mínimo, a novidade o deixou paralisado.
A partir de 1910, po­rém, ele comemora. Reencontrou a
energia necessária para consa­grar o amigo e colocá-lo no
lugar que, a seus olhos, lhe é de di­reito: o melhor.
Em Poésie, uma revista publicada no Sudoeste, ele
des­creve o Salão de Outono, usando pela primeira vez a
palavra “cubismo” e criticando a “metafísica plástica”
que os jornalistas encontraram nos expositores, entre os
quais Jean Metzinger; se­gundo ele, trata-se apenas de
“uma tosca e frágil imitação de obras que não foram
expostas, pintadas por um artista dotado de forte
personalidade e que, além do mais, não revelou seus
segredos a ninguém. Esse grande artista chama-se Pablo
Picasso”. No mesmo artigo, explicita seu pensamento: “O
cubismo do Salão de Outono era o gaio enfeitado com as
penas do pavão”.
O pavão concorda, com certeza. Mas os outros não. Em
res­posta aos artigos publicados em L’Intransigeant, a
redação recebe queixas cada vez mais numerosas,
vindas dos pintores vítimas dos artigos de Apollinaire. Ela
responde com retificações que magoam o crítico. Este
manda seus padrinhos procurarem os descontentes. A
direção acaba transferindo a crônica para páginas de
menos des­taque. Apollinaire encerra o assunto deixando
L’Intransigeant e indo para o Paris-Journal.

Ele não era Baudelaire e Picasso não era seu Delacroix.


Sessenta anos depois de Salons, de seu ilustre
predecessor, ninguém duvida de que ele reivindicava o
desejo de uma crítica subjetiva e apaixo­nada, não
explicativa, mas lúdica, assim como a reivindicava o
autor de Fleurs du mal. Mas ele não tinha nenhuma
profundidade. Raramente lemos sob sua pena uma
análise tão fina quanto aquelas de La Madeleine dans le
désert ou de Dernières paroles de Marc Aurele3, quando
não a de L’Eugene Delacroix4, assinadas por Baudelaire
em 1845 e 1846.
É claro que Apollinaire tem sua própria opinião. E, com
fre­quência, quer compartilhá-la. Menos com seus
leitores, o que seria razoável, do que com aqueles que
lhe são próximos – o que não é tão razoável assim. Às
vezes, ele muda de opinião em função do gosto dos
amigos, ou, o que é mais grave, da evolução das suas
ami­zades e inimizades. Resumindo clara e diretamente:
ele é o rei da camaradagem. O que lhe traz novos
problemas.
Em 1911, quando os cubistas se acham pela primeira
vez reunidos na sala 41 do Salão dos Independentes,
Apollinaire se en­tusiasma. Defende os cubistores. É a sua
contribuição para criar um movimento que, no espírito de
seus dois fundadores – Braque e Picasso –, não existe. Ele
admite o lugar preponderante de pelo menos um deles
no processo de criação, lembra-o através de muitas
linhas e artigos, mas, contrariamente à opinião dos dois,
aos quais logo virá juntar-se Kahnweiler, proclama em
alto e bom tom que o cubismo é uma escola da qual
Braque (de volta, bem a propósito), Gris, Gleizes e, é
claro, mas apenas em algumas de suas obras, a eterna
Marie Laurencin formam uma parte da tropa. Sem
esquecer Metzinger, Lhote, Delaunay, Archipenko, Le
Fauconnier, Dunoyer de Segonzac, Luc-Albert Moreau e
Fernand Léger, que, até a Guer­ra, serão elogiados, com
mais ou menos entusiasmo, pelo poeta.
Apollinaire está meio perdido. Ele ama demais, dá
demais, discerne muito pouco. Fica dividido entre sua
amizade por Pi­casso, aquela que dedica, a partir de
então, ao casal Delaunay (que detesta o espanhol), e seu
reconhecimento a Picabia, que, sendo mais rico do que
os companheiros de fortuna e infortúnio, financia a
edição das suas Méditations esthétiques... E quando,
para agradar a Picasso, Braque e Kahnweiler, faz uma
concessão, esforçando-se para se distanciar daquilo que,
pouco a pouco, vai parecer a ele como um sistema, já é
tarde demais: o bem (ou o mal, conforme o caso) está
feito. Apollinaire defendeu tão bem a nova pintura que
ela surge, a partir daí, como um movimento, uma escola.
A tal ponto que muitos, a exemplo de Vlaminck e de
Francis Carco, logo se perguntarão o que teria sido o
cubismo sem Guillaume Apollinaire.

65 No original, arroseur arrosé (jardineiro molhado); alusão ao filme


L’arroseur arrosé, de Louis Lumière, em que o jardineiro, ao usar a
mangueira, acaba sendo molhado por ela. (N.T.)
66 John Dos Passos, Paralelo 42, Rio de Janeiro, Rocco, 1999. (N.E.)
67 No original, a expressão coucher sur le papier apresenta duplo sentido:
“pôr no papel, escrever”, e também “deitar” no sentido erótico. (N.T.)
O poeta e o marchand

A arte é filha de seu tempo.


Wassily Kandinsky

O cubismo sem Apollinaire? Daniel-Henry-Kahnweiler


não se faz essa pergunta. Ele não escreve em jornais,
mas contribui tanto quanto o poeta para a defesa dos
seus pintores. É o marchand dos cubistas, como os
Bernheim são os de Matisse, como Durand-Ruel foi o dos
impressionistas e Vollard foi o de Cézanne, de Gauguin e
dos nabis.
Aos 23 anos, numa antiga loja que pertencia a um
alfaiate polonês da rua de Vignon (perto da Opéra),
Kahnweiler abriu uma galeria. Só dezesseis metros
quadrados, mas 25 mil francos ouro financiados por uma
família alemã. E uma aposta alta: o jovem tinha um ano
para mostrar lucros. Se fracas­sasse no comércio de
quadros, a sociedade seria desfeita.
Mas ele foi bem-suced­ido. No Salão dos
Independentes, comprou quadros de Derain e de
Vlaminck. Depois, foi a vez de Van Dongen e de Braque.
Em 1907, graças a Wilhelm Uhde, que lhe falou sobre as
Demoiselles d’Avignon, foi até o Bateau-Lavoir e
conheceu Picasso. Ao contrário de muitos outros, ele
ficou fascinado pelo quadro. Compreendeu,
imediatamente, a ruptura que ele representava para a
história da arte. Quis comprá-lo, mas, sob pretexto de
que não estava pronto, Picasso recusou-se a vendê-lo.
Kahnweiler teve que se contentar com os desenhos
preparatórios. Voltou outras vezes e, quando Vollard
faleceu, tomou o lugar dele junto ao pintor.
Fernande Olivier descreveu-o como audacioso e
teimoso. Totalmente obstinado. Tomava de assalto a torre
que queria con­quistar, e só a deixava depois de obter o
bem que queria possuir.
Acredita-se que se tratava de um método, pois
continuava a proceder da mesma forma quarenta anos
mais tarde. Ia à casa de Picasso e não arredava pé.
Instalava-se e ficava à vontade. O pintor tentava
provocá-lo com críticas ou palavras duras: o marchand
ne­gava calmamente ou concordava serenamente. Às
vezes, metiam-se em discussões filosóficas nas quais
Kahnweiler tomava cuidado para não irritar o outro; se
ganhasse a partida teórica, perderia a batalha comercial:
Picasso nunca aceitou ser derrotado duas vezes. As horas
passavam, o tédio se instalava, mas Kahnweiler não se
mexia na poltrona. Picasso acabava cedendo: vendia.
Françoise Gilot conta que, em 1944-1945, quando
Kahn­weiler não tinha exclusividade, Picasso o colocava
em concorrência com um outro marchand. Era Louis
Carré, cuja galeria, uma das mais importantes da época,
ficava na avenida de Messine. O artista convi­dava os dois
homens para virem à sua casa, no Quai des Grands-
Augustins, e deixava-os na sala de espera. Eles ficavam
lá por uma hora, conversando. Em seguida, o pintor
convidava um deles para acompanhá-lo ao ateliê.
Geralmente era Louis Carré. Respeitando o princípio
picassiano, segundo o qual quem ama castiga, o artista
dei­xava assim o seu preferido cozinhando em banho-
maria.
No ateliê, discutia-se mais do que era necessário:
tempo suficiente para que o visitante que ficou na sala
de espera se con­sumisse até ficar com cara de tacho.
Quando o pintor e seu mar­chand reapareciam,
Kahnweiler estava cinza. Se Carré saísse com uma
expressão só um pouquinho feliz, fazendo supor que os
dados estavam lançados (mesmo que não estivessem), o
pobre Kahn­weiler ficava verde.
Picasso, por sua vez, o levava ao ateliê, onde então era
fácil discutir o preço. “Foi uma das primeiras vezes em
que compreendi a técnica de Picasso, que consistia em
usar as pessoas como no jogo de bilhar, visando uma
bola para acertar outra”, conclui Françoise Gilot.1
Nesse jogo de gato e rato, quem ganhava era sempre
o quei­jo. Estava longe o tempo em que Braque, Derain,
Vlaminck e Pi­casso chegavam de macacão na pequena
galeria da rua Vignon, tiravam o boné e diziam: “Chefe,
viemos receber!”.
Kahnweiler foi o marchand dos cubistas, título
altamente reivindicado por ele. Ao que Apollinaire,
ironicamente, teria podi­do responder: tudo bem, mas que
cubistas?
Se forem Braque, Picasso, Gris e Léger, que Kahnweiler
considerava os “quatro grandes cubistas”2, o fato é
incontestável. Senão, o título não pertence a ele.
Apollinaire sabia bem disso, pois recebeu umas boas
bordoadas vindas desse homem que, cons­cientemente
ou não, invejava bastante a amizade que ligava o pin­tor
ao poeta.
Um e outro eram amigos da arte. Defendiam-na
ardente­mente, cada um com as suas armas. Assim como
fez Vollard antes dele, Kahnweiler editou poetas
ilustrados por seus pintores: mara­vilhas para bibliófilos,
impressas a cem exemplares.
Foi o primeiro editor de Apollinaire, que também foi
seu primeiro autor: em 1909, aparecia L’Enchanteur
pourrissant, ilus­trado com 32 xilogravuras de Derain (o
Saint Matorel de Max Jacob, ilustrado por Picasso, sairá
em 1911). Tiragem: cem exemplares; balanço, cinco anos
mais tarde: cinquenta exemplares vendidos. Pérola
literária:
A senhorita o tocou e sentiu que ele tinha o corpo muito bem feito. E ela
o amou com paixão, fez a sua vontade e isso, tudo isso, para sua mãe e
para os outros.

Kahnweiler amava e admirava o poeta, respeitava o


erudito, mas desprezava o crítico. Julgava-o mundano e
ignorante em matéria de história da arte. Para ele, as
Méditations esthétiques eram pura conversa fiada. Não
gostava do aspecto anedótico dos artigos, menos ainda
da energia com a qual o poeta defendia os pintores
cubistas reunidos na sala 41 do Salão dos Independentes
de 1911. E quando Apollinaire tornou a apoiar, no ano
seguinte, os artistas da Section d’Or, Kahnweiler se
enfureceu e protestou. Queria que o crítico estabelecesse
publicamente uma clara distinção: quem era cubista e
quem não era? De que lado ele estava?
O marchand pediu a Braque e a Picasso que
obrigassem o amigo a definir sua posição. Eles se
recusaram: talvez partilhassem da opinião de
Kahnweiler, mas respeitavam o poeta.
Apollinaire, que acabava de publicar Alcools nas
edições Mercure de France (tendo na capa seu retrato
feito por Picasso), soube do pedido de Kahnweiler.
Armou-se da pena e respondeu:
...Acabo de saber que você acha que o que digo sobre a pintura não é
interessante, o que vindo de você me surpreende. Defendi sozinho, como
escritor, pintores que você só escolheu depois de mim. Você acha que
fica bem tentar destruir alguém que, em suma, foi o único capaz de
colocar as bases da compreensão artística futura?3

Ao que o marchand respondeu:


Recebi de você uma carta bem peculiar. Ao lê-la, perguntei-me se deveria
ficar zangado. Preferi rir.4

Para Kahnweiler, as coisas estavam claras: os pintores


que ele expunha na rua Vignon, dos quais vendia as
obras no exterior, eram os únicos pintores cubistas. Os
outros eram apenas maus seguidores. Não tinha
interesse por eles.
Em 1912, ele e seus artistas estavam ligados por
contratos. O princípio era simples: comprava toda a
produção sob condições definidas previamente. Exigia
exclusividade. Os preços variavam de acordo com o
tamanho. Derain valia mais do que Braque, que recebia
três vezes menos do que Picasso. Este discutira cláusula
por cláusula: oferecera a Kahnweiler uma exclusividade
de três anos em relação a toda a sua obra, exceto a
produção antiga e os retratos que lhe fossem
encomendados; ele ficaria com cinco quadros por ano
para si mesmo, e também com os desenhos; Kahn­weiler
compraria os outros quadros, os guaches, e pelo menos
vin­te desenhos por ano.
O marchand assinou. Estava confiante: não faltava
clientela. Esta não era mais composta apenas de
Gertrude Stein ou de alguns franceses esclarecidos. Já
havia algum tempo, os colecionadores es­trangeiros
desembarcavam em Paris para conhecer esses cubistas
que eram só alguns deles, mas, ao mesmo tempo, eram
os únicos.
O primeiro desses colecionadores era russo. Chamava-
se Sergeï: Tchouchkine. Era industrial do setor têxtil,
proprietário do Palácio Troubtskoi, em Moscou. Tinha
comprado obras de Derain e de Matisse. Este último foi a
Moscou para expor La danse e La musique. Essas obras
estavam penduradas nas paredes do Palácio, ao lado de
Van Gogh, Monet, Cézanne e Gauguin.
Tchouchkine interessava-se por Picasso desde 1908.
Logo adquiriu os quadros mais importantes das fases
azul, rosa e cubista (sua coleção passará para o Estado,
após a Revolução de 1917, enri­quecendo os museus de
Moscou e de São Petersburgo). Seu inter­mediário
privilegiado sempre foi Kahnweiler.
Esse atuava em todas as frentes. À exceção de uma:
os salões nacionais. Recomendava a seus pintores que
seguissem o exemplo de Picasso, e proibia-os de se
exporem à chacota dos críticos que percorriam o Grand
Palais, em companhia das autoridades da República. Na
França, para ver as obras de Braque, Derain, Gris e
Picasso, era preciso visitar os colecionadores que os
apreciavam. Ou então ir até a pequena galeria da rua
Vignon. Ou, ainda, atravessar as fronteiras. Porque,
paradoxalmente, embora nenhum desses artis­tas
expusesse nos salões oficiais parisienses, eles estavam
todos em Berlim, em Colônia, em Munique, em Amsterdã,
em Londres e em Moscou.
Para início de conversa.
A Pele do Urso

Voltaremos todos para a rua Ravignan! [...] só lá é que fomos


verdadeiramente felizes.
Pablo Picasso

E les também estão em Paris naquela segunda-feira, 2


de março de 1914. Na casa de leilões Drouot, salas 6
e 7. Há curiosos, jornalistas, marchands vindos da
Alemanha, gente da sociedade, apreciadores
esclarecidos, como Marcel Sembat, deputado socialista
de Paris.
Na multidão, podemos reconhecer a “guarda pessoal”
de Picasso: Max Jacob, Kahnweiler, Serge Férat e a
Baronesa d’Oettingen. Na primeira fila – diante do
leiloeiro Henri Beaudoin e de seus experts, Druet e os
irmãos Bernheim –, membros fundadores da Peau de
I’Ours esperam o começo do leilão. Dez anos depois de
criar a associação, vão vender. Desde 1904, eles
contribuem com 250 francos por ano cada um.
Repartiram os quadros entre si, como previa o
regulamento elaborado por eles mesmos. Hoje, vão se
desfazer deles. Recuperarão o que investi­ram, e mais os
juros mínimos (3,5%). André Level, o gerente da
associação, receberá 20% do total como pagamento
pelos seus ser­viços. Os artistas dividirão o restante entre
si. A operação não foi concebida com fins especulativos,
mas sim para tornar a arte moderna conhecida e para
ajudar os pintores a viver. O prefácio do catálogo dá o
tom:
Alguns amigos se reuniram, há dez anos, para formar uma coleção de
quadros e principalmente ornar, embelezar as paredes de suas
residências. Como as belas obras do passado eram praticamente
inacessíveis, não foi difícil para eles, a maioria jovens e cheios de
esperança no futuro, confiar em artistas também jovens ou recém­-
descobertos. Parecia-lhes honroso correr os riscos inerentes às
novidades...

O que essas pessoas generosas compraram em dez


anos?
Cento e cinquenta obras: Van Gogh, Gauguin, Odilon
Redon, Vuillard, Maurice Denis, Bonnard, Vallotton,
Signac, Sérusier, Maillol; mas também Dufy, Van Dongen,
Herbin, Dufrenoy, Flandrin, Roger de la Fresnaye, Othon
Friesz, Marquet, Metzinger, Rouault, Dunoyer de
Sengonzac, Verhoeven, Vlaminck, Derain, Matisse,
Willette e Picasso. Alguns quase clássicos, outros fauves
e, principalmente, aqueles que todo mundo espera: os
cubistas. Porque mesmo que esses últimos apresentem
obras menos geométri­cas do que as que costumam
causar escândalo por aí, é a primeira vez que elas
enfrentam o mercado nacional. A venda da Peau de
l’Ours, todos sabem, é um teste decisivo para a arte
moderna.
O leiloeiro Henri Beaudoin encerra a primeira venda
em 720 francos: L’aquarium, de Bonnard, apresentada no
catálogo como um “estudo de peixes e crustáceos”.
Vlaminck não se sai tão bem com Écluses à Bougival,
para a qual o martelo bateu em 170 francos.
Le boulevard maritime, de Dufy, começa com um lance
de cem francos e é arrematado por 160.
Metzinger, com uma paisagem cubista, não passa dos
cem francos. Mas Roger de la Fresnaye vê os cubos da
sua Nature morte aux anses saírem voando por trezentos
francos. Utrillo consegue a mesma coisa no maior lance,
e a metade no mais baixo. Derain, tre­zentos francos por
Vase de gres, 215 francos por Pêches dans une assiette,
210 francos por La chambre.
Pior do que Marie Laurencin, que, com 475 francos, faz
jus, finalmente, à teimosia do seu antigo companheiro,
ainda jornalista. Muito pior do que Dunoyer de Segonzac,
cujo La mare, proposto a trezentos, é arrematado por oi‐­
tocentos francos.
Le violoncelliste, de Gauguin, começa com um lance
de qua­tro mil francos. Tanto quanto Fleurs dans un verre,
de Van Gogh. Com Étude de femme e La mer en Corse,
Matisse sai em novecentos francos. Feuillages au bord de
l’eau ultrapassa os dois mil francos, e Compotier de
pommes et oranges supera as expectativas, che­gando a
cinco mil francos. Melhor do que Van Gogh.
A sala aplaude.
Mas Picasso ainda não disse a que veio. Ele está acima
des­sa confusão. As telas compradas pelos amigos de
André Level são mais antigas do que suas últimas obras
cubistas, mas pouco im­porta: as fases azul e rosa serão
menos julgadas do que o homem, seu espírito inovador e
aqueles que o seguiram. Depois de ter tra­balhado por
muito tempo na sombra, o Bateau-Lavoir desceu para a
sala dos leilões. E, quando apresenta a primeira pintura
sobre papelão de Picasso, Femme et enfants, o leiloeiro
Beaudoin, a seu modo e sem o saber, enterra
Montmartre, o Montmartre dos artis­tas esplêndidos que
esperavam pela glória.
Pois a glória aí está. Femme et enfants é arrematada
por 1.100 francos. Mas é sobre papelão. L’homme à la
houppelande começa com 1.350 francos. Les trois
hollandaises atinge 5.200 francos.
A sala se agita: melhor do que Matisse. Uma tela
gigantesca é colocada então sobre o estrado: Famille de
saltimbanques (1905). Lance inicial: oito mil francos
(André Level a comprara por mil francos). Os lances
começam. Sobem. Sobem junto com o entu­siasmo de
uns e com a ira de outros. Os críticos ferozes já afinam as
pontas de seus lápis. Os defensores do cubismo
esfregam as mãos. E quando o martelo do leiloeiro bate
na mesa é como se ele atin­gisse o Velho Mundo. Onze
mil e cinquenta francos. A obra mais cara vendida
naquele dia.
A sala, de pé, aplaude efusivamente. Muitos vão
embora.
As más línguas, e são numerosas, observam que o
marchand que comprou L’homme à la houppelande e
Famille de saltimbanques é um alemão: Justin
Tannhauser. Cinco meses depois, exatamente cinco
meses, talvez se veja aí um sinal premonitório. Por ora,
os curiosos vão embora.
Na saída, esbarram em outro alemão. Daniel-Henry
Kahn­weiler abre caminho para sair. Precisa ir dar a boa
nova a Picasso. A venda rendeu 115 mil francos. Só para
ele, o pintor desti­nou a quarta parte daquilo que pode
ser chamado de uma boa cifra.
Kahnweiler consegue finalmente sair e corre até um
fiacre. Porque Picasso não está lá. Ele não veio. Está em
outro lugar, como sempre.
Onde estará ele, nesse dia de glória?
Não está em Clichy nem em Montmartre. César à sua
ma­neira, ele cruzou o Rubicão: atravessou o Sena. De
agora em diante, vai se misturar com a burguesia, cujas
chamas elétricas o afastarão para sempre das velas de
Montmartre.
Picasso deixou as terras do seu nascimento artístico.
Não está mais no Bateau-Lavoir. Está na margem
esquerda. Em Mont­parnasse.
II

Montparnasse vai à guerra


A Ruche68

Este é o Montparnasse que se tomou para os pintores e os


poetas aquilo que Montmartre era para eles há quinze anos: o
refúgio da simplicidade bela e livre.
Guillaume Apollinaire

D o outro lado do Sena não existem os Sacré-Coeur. Na


passagem do século, o Monte Parnasse era o reino
das cavalariças, das fazen­das, de alguns parques de
diversão instalados nas esquinas dos bulevares, dos
rebanhos de cabra andando pelas ruas.
Ali viviam mais homens ligados às letras do que às
imagens, muitos poetas vestidos de preto, poucos
pintores de macacão, uma vida comportada entre as
academias de pintura e os prédios de pedra talhada e
largos portões. Montparnasse tinha se estabelecido em
posições esquizoides: a burguesia caminhava na bosta.
Não havia nenhum monumento onde ela pudesse se
abrigar.
As cores do lugar eram as da poesia. Em outras
épocas, os estudantes vinham do Quartier Latin para
declamar seus versos nessa elevação coberta pelo
entulho das pedreiras vizinhas. Depois, vieram os
empregados das fazendas e das cavalariças, os
horticulto­res, os operários que trabalhavam na abertura
do bulevar Raspail.
Havia também alguns escultores: os jardins e os
depósitos ofereciam-lhes o espaço necessário para o seu
trabalho. A disposi­ção dos edifícios era igualmente
propícia. Os arquitetos tinham construído prédios
burgueses para os burgueses e, nos pátios internos,
ateliês de artista para os artistas: tetos envidraçados e
lucarnas que facilitavam a luminosidade, jirau sob o teto,
para que as obras pudessem ser observadas e
apreciadas de cima. Nume­rosos ateliês tinham ainda
tomado o lugar das fazendas, que foram divididas e
envidraçadas.
Montparnasse se abrira então para as belas-artes. O
bairro tinha academias de renome: a de Bourdelle,
principalmente, cujo ensino era mais livre do que o dos
professores tradicionais. Havia também moldureiros e
marchands; e alguns mercados de modelos, que faziam
ponto na porta da academia da Grande Chaumiere ou na
esquina da rua do mesmo nome com o bulevar
Montparnasse: lutadores de boxe, datilógrafas, operárias
– muitos italianos, me­nos pudicos do que os outros.
Montparnasse também tinha seus Bateau-Lavoir. Eram
corti­ços onde viviam artistas que vinham, iam, voltavam,
de acordo com os trocados do bolso. Havia o Beco do
Maine, onde Bourdelle escul­pia. Havia a Cité Falguière,
também chamada de Villa Rose, por causa da cor das
paredes. Foujita morou ali, e também Modigliani, que foi
despejado pela proprietária, senhora Durchoux, em
função dos frequentes atrasos do aluguel.
Havia principalmente a Ruche, construção circular no
Beco de Dantzig. Era um dos lugares mais importantes
de Montparnasse. Todos os artistas passaram por lá, pelo
menos uma vez; muitos deles ficaram. A Ruche era o
Bateau-Lavoir dos pintores judeus vindos dos países do
Leste Europeu.
A construção era obra de um mecenas, Alfred Boucher,
escultor pompier.69 Ao voltar da Exposição Universal de
1900, ele comprou o que restou dos pavilhões do
excelentíssimo senhor Gustave Eiffel e reuniu-os num
terreno adquirido anteriormente, não muito longe dos
abatedouros de Vaugirard. Vários ateliês erguiam-se em
torno do prédio principal, antigo Pavilhão dos Vinhos, cujo
teto lembrava uma colmeia. De um lado e de outro da
entrada, duas cariátides tinham vindo do Pavilhão da
lndonésia. A grade externa vinha do Pavilhão da Mulher.
Pequenas constru­ções, entre as quais um teatro de
trezentos lugares (onde Louis Jouvet teve aulas), e salas
de exposição erguiam-se no centro de gramados e de
aleias – Aleia das Flores, Aleia do Amor, Aleia dos Três
Mosqueteiros...
Boucher alugava os ateliês por um preço módico para
os pintores pobres. Eles dispunham de um cômodo único
que chama­vam “o caixão”: um triângulo dotado de um
jirau acima da porta, onde os inquilinos dormiam sobre
um fino colchão. Não havia água, nem gás, nem
eletricidade; os corredores eram escuros, o lixo se
acumulava, havia goteiras. Mas, do outro lado dos
patama­res circulares e das portas numeradas, ouvia-se o
canto dos italia­nos, as discussões dos judeus, os gritos
das modelos dos russos.
Antes da Guerra, segundo ele mesmo confessou,
Chagall gostava de parecer eLivros; trabalhava sozinho e
até tarde, e recebia poucos visitantes: Cendrars foi o
primeiro, seguido por Apollinaire. Quando voltavam à
noite, bêbados e barulhentos, os artistas da Ruche
jogavam pedras na sua janela para incitá-lo a vir ao
encontro deles. Mas Chagall, filho de uma família pobre
de Vitebsk, prote­gido de um advogado russo deputado
na Duma, era mais sério do que os outros. Cultivava
sozinho uma arte que ele definia como a do estado da
alma; pintava nu diante das telas, não se queixava,
comia uma cabeça de arenque no primeiro dia da
semana, o rabo no dia seguinte, crostas de pão nos
outros dias. Seu ateliê tinha uma agradável varanda
interna.
Com algumas exceções, como o normando Fernand
Léger, grande amigo de Archipenko, a maioria dos
inquilinos da Ruche vinha da Europa Central. Aos
domingos, reencontravam alguns vestígios de seus
países. Chegavam os frequentadores dos parques de
diversão, tocadores de acordeão, comediantes
populares... Do bairro de Saint-Paul, vinha um vendedor
judeu de longa barba ne­gra que parava sua carrocinha
diante das grades e distribuía o arenque, o fígado moído,
o pão preto, tantos cheiros e sabores que lembravam a
infância.
Eram todos imigrantes. Tinham chegado alguns anos
antes da Guerra. Ainda não constituíam a Escola de Paris
que iria se tor­nar famosa e conhecida no mundo inteiro.
Archipenko, escultor russo, havia chegado em 1908.
Lipchitz, escultor lituano, um ano depois. Kikoïne,
também lituano, neto de rabino, socialista do BUND70,
que estudara na Escola de Belas-Artes de Wilno com
Krémègne e Soutine. Krémègne, que atravessou a
fronteira clan­destinamente em 1912, sempre abatido, de
gestos desajeitados, e que tinha ciúmes de Soutine, com
quem se considerava em pé de igualdade. Mané-Katz,
que trocou Kiev pela Ruche em 1913. Chana Orloff, que
chegou no mesmo ano. Kisling, o polonês, aluno bri­lhante
da Escola de Belas-Artes de Cracóvia, mais alegre, mais
brincalhão do que muitos outros, que gostava de festas,
de vinho e de pintura. Léon Bakst, pintor e cenógrafo,
que, em 1909, fez os cenários de Cléopâtre, primeiro dos
balés russos, que causou furor no Châtelet nas pontas
das sapatilhas de Pavlova e de Nijinski. Soutine, o mais
miserável de todos, que cantava em iídiche en­quanto
pintava. E ainda Zadkine (vindo em 1909, aos dezenove
anos), Epstein, Gottlieb, Marevna, os escultores Lipsi,
Joseph Csaky, Léon Indenbaum...
Quando descobriram a França, esses imigrantes não
tinham mais de vinte anos. Deixaram para trás família,
amigos, uma tradi­ção. Suas únicas armas eram os lápis e
os pincéis, que na sua terra só podiam usar até certo
ponto. O ponto era, ao mesmo tempo, o numerus clausus
das universidades e a rigidez dos costumes espiri­tuais. A
lei hassídica condenava a idolatria e, portanto, a reprodu‐­
ção de rostos:
Não farás para ti imagem de escultura, nem alguma semelhança do que
há em cima nos céus, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da
terra.1

No Leste, a arte judaica era religiosa. Não existia


nenhuma outra tradição. Os judeus, fechados nos guetos,
eram impermeáveis ao mundo exterior. Os artistas
desenhavam como fazem as crianças com as leituras: de
dia, aquilo que podem mostrar; de noite, aquilo que
devem esconder. À luz do dia, a vida cotidiana do shtetl;
na sombra, todas as imagens banidas, escondidas, e
depois colocadas na folha branca, na clandestinidade dos
quartos fechados. Para se emancipar, só havia uma
solução: partir.
E partir também para fugir do antissemitismo oficial e
an­cestral. Em inúmeros países, as portas das
universidades se fecha­vam para os judeus. A Academia
Real de São Petersburgo, princi­palmente, lhes era
proibida.
Quando chegavam, esses homens desarraigados só
conhe­ciam uma palavra da língua francesa: Paris.
Escolheram essa cida­de porque outros, que lá já
estavam, tinham passado a mensagem adiante. Em Paris
era possível viver e pintar como homens livres. Em Paris
os artistas judeus trabalhavam como os outros. Tinham o
direito de dizer tudo, de mostrar tudo. É verdade que
eram mise­ráveis, mas a maior parte deles já conhecia a
miséria. Não falavam a língua, mas aprenderiam. O
essencial era poder finalmente pin­tar à luz do dia. Livres,
longe das escolas: tanto do impressionismo quanto do
cubismo recém-descoberto. Paris, como escreveria De
Chirico pouco depois, era um lugar para onde
convergiam os ho­mens, as ideias, os estados de espírito,
a criação. Paris, para todos, era a capital do mundo.

68 Colmeia. (N.T.)
69 Estilo de pintura e escultura acadêmicas. (N.T.)
70 BUND: partido socialista judeu fundado na Rússia em 1897. (N.T.)
Ubu rei

Deus é o caminho mais curto entre zero e o infinito.


“Em que sentido?”, pode-se perguntar.
Alfred Jarry

A té a Guerra, os pintores da Ruche não cruzavam suas


cores com as dos artistas do Bateau-Lavoir. Um rio
separava os dois mundos. Quando a turma de Picasso
atravessava o Sena, era principalmente para encontrar
escritores, amigos de Apollinaire. Montparnasse era
então um burburinho do murmúrio dos poetas. Os
versejado­res ainda eram os reis do lugar, e os que faziam
garatujas andavam atrás deles. Montparnasse ainda não
vivia sob os ritmos conjugados dos bistrôs Dôme e La
Rotonde, mas sim sob a cadência versificada do La
Closerie des Lilas.
A Closerie é o primeiro de todos os cafés que fizeram a
re­putação do bairro. Em outros tempos, era uma simples
taberna na estrada para Fontainebleau. Sua glória e seu
nome lhe vieram de sua vizinhança com o Bal Bullier.
Este ficava na avenida do Obser­vatoire, em frente do
Luxembourg. Até a Guerra, dançava-se ali em meio aos
lilases. Em seguida, ia-se refrescar no pequeno bistrô,
que ficava na parte de cima do bulevar que misturava
Saint-Michel a Montparnasse, isto é, estudantes e
artistas. Foram muitos os que brindaram à sombra da
estátua do marechal Ney, fuzilado na ave­nida do
Observatoire depois da Ilha de Elba71, levada para a
sombra do café quando da construção da estrada de
ferro para Sceaux.
A Closerie foi uma das trincheiras das discussões sobre
Dreyfus. Tornou-se também a retaguarda do café de
Flore, onde Charles Maurras reunia seus Camelots.72 Foi
igualmente frequen­tado por Monet, Renoir, Verlaine, Gide
e Gustave le Rouge; final­mente, por um poeta cujo papel
foi essencial no encontro das artes de Montmartre e
Mont­parnasse: Paul Fort.
Hoje, suas Ballades françaises já não são cantadas por
mui­tos, exceto algumas delas:
Le p’tit cheval dans le mauvais temps, qu’il avait donc du couraget!73

Mas ele era um príncipe. O príncipe dos poetas. Assim


foi eleito, sucedendo a Verlaine, Mallarmé e Léon Dierx.
Cinco jornais, La Phalange, Gil Blas, Comoedia, Les
Nouvelles e Les Loups organiza­ram, em 1912, um
referendo para nomear um sucessor para Dierx, que
acabara de morrer. Trezentas e cinquenta penas votaram
em Paul Fort: foi considerado o melhor herdeiro das
tradições literá­rias francesas.
Paul Fort não tinha um tostão. Quando lhe
perguntavam de que vivia, ele respondia com um sorriso
nos lábios:
“Da minha pena, ora essa!”
Ele copiava suas próprias obras e as vendia aos
coleciona­dores de manuscritos e de autógrafos.
Todas as terças-feiras reunia os amigos no La Closerie
des Lilas, dirigido à época por Combes. Os presentes
celebravam ale­gremente a poesia, o vinho, a festa e as
canções.
O amigo generoso tinha cara e jeito de mosqueteiro.
Era magro, tinha os cabelos compridos, um bigode fino,
usava uma gravata preta sob um paletó abotoado até o
colarinho, ria, brindava, contava histórias, tinha a língua
presa. Comandava a festa. À meia-noite, quase sempre,
com sua voz esganiçada, improvisava poesias geniais. Às
vezes cantava, de pé sobre uma cadeira, acom­panhado
por um piano, por outras vozes, por aplausos que iam se
extinguindo ao amanhecer.
Seu amigo, Jean Papadiamantopoulos, conhecido como
Jean Moréas, escutava, zombava, fazia versos na fumaça
e nas brumas do álcool. Este homem de prodigiosa
cultura, que conduzia seus leitores até Chateaubriand,
Vaugelas, Barrès ou Madame de la Fayette, ficava
sentado numa mesa à parte, embriagado, a cartola
enfiada até o monóculo, o monóculo caindo sobre um
bigode tingido, e o bigode fazendo cócegas em palavras,
quase sempre ríspidas, saídas de uma boca que puxava
para a direita incensando Barrès e Maurras.74 O que não
foi proposital para irritar o companheiro de certa noite,
secretá­rio de redação do Mercure de France, que veio
uma vez e jurou que nunca mais voltaria a pôr os pés ali:
Paul Léautaud. Duas coisas o incomodaram: a sujeira de
Moréas, legendária e confirmada, e o teor alcoólico geral.
Além disso, naquela noite, Léautaud estava na fossa:
tinha acabado de saber que, em cinco anos e meio, seu
Petit ami ti­nha vendido quinhentos exemplares...
Paul Fort havia fundado, em 1905, com Moréas e
Salmon, uma revista famosa: Vers et Prose. Os três
amigos tinham feito um empréstimo de duzentos francos
que foram convertidos em selos, e tinham enviado 2 mil
cartas aos primeiros possíveis assinantes.
Vers et Prose foi um marco das letras francesas até a
Guerra, da qual foi vítima. Abriu suas páginas a poetas e
a escritores ilus­tres: Maeterlink, Suart Merrill, Barrès,
Gide, Maurras, Jules Re­nard, Apollinaire... A sede ficava
no endereço do seu fundador, na rua Boissonnade. Foi
Pierre Louÿs quem escolheu o título. Vers et Prose se
propunha reunir “o grupo heroico dos poetas e dos escri‐­
tores de prosa que renovaram o fundamento e a forma
das letras francesas, suscitando o gosto da alta literatura
e do lirismo por tanto tempo abandonado”.
Os trovadores do simbolismo recorriam à força da
imagem, força misteriosa que a análise não podia
explicar. Era preciso evo­car a “alma das coisas, [...] as
afinidades secretas das coisas com a nossa alma”.1 Era
preciso sugerir, e não descrever.
A revista reunia todas as tendências da “jovem
literatura”. Paul Fort continuava a ser, no entanto, o
arauto de um simbolismo cujo momento de glória já
havia chegado ao fim havia alguns anos.
Os grandes defensores dessa escola eram Henri de
Régnier, Saint-Pol Roux e, uma vez ou outra, Jean
Moréas, que trocava de escola com mais frequência do
que trocava de camisa. Opunham­-se aos realistas – Zola
–, aos românticos – Chateaubriand, Hu­go, Lamartine –, e
aos parnasianos – Banville, Leconte de Lisle, Baudelaire,
Coppée. Estes eram criticados por terem buscado colo­car
nos seus versos virtudes analíticas e críticas, e por não
terem seduzido a juventude. Foram vivamente atacados,
assim também como Flaubert e Catule Mendès, que
considerava Verlaine um poe­ta muito pouco importante.
O simbolismo, entretanto, não marcou por muito
tempo a história da literatura. Foi principalmente uma
passagem, uma rea­ção que só durou uns dez anos.
A grande luta dos simbolistas, e depois dos pós-
simbolistas, era o ritmo. Era preciso livrar-se das regras
convencionais, liberar o alexandrino de suas doze
correntes, insistir no verso livre. As colu­nas de Vers et
Prose são cheias de debates e de reflexões sobre essa
questão, à qual até Mallarmé respondeu, post mortem:
ele deplo­rava no alexandrino “um abuso da cadência
nacional, cujo uso, as­sim como o da bandeira, deve ser
excepcional”.
Desde o primeiro número, a revista teve quatrocentos
assi­nantes. Logo os teria no mundo todo. A revista lhes
oferecia livros como prêmios. Ela abriu suas páginas para
a publicidade: edito­res, livreiros, fabricantes de estantes,
bancos e estabelecimentos financeiros.
Em 1910, foi criada a editora Vers et Prose. Houve
gigan­tescos banquetes para os poetas prediletos, que
reuniam quase quinhentos convidados. Às terças-feiras,
no La Closerie, os fes­teiros eram menos numerosos, mas
também barulhentos. Não vinham só de Montparnasse.
Muitos atravessavam o Sena. Vinham de Montmartre, a
pé. Quando os pintores do Bateau-Lavoir empur­ravam a
porta do bistrô para assistir às terças de Paul Fort, não
estavam em terras desconhecidas: o arroubo das suas
cores mistu­rava-se de maneira admirável aos jogos de
palavras e aos prazeres dos poetas do La Closerie des
Lilas.

Foi na Closerie, em 1905, que a turma da praça


Ravignan se juntou a um amigo de Apollinaire que vinha
às vezes ao Fox: Alfred Jarry. Foi Jarry quem passou a
todos eles a paixão pelas armas de fogo. “Jarry, aquele
que revólver”, dirá Breton sobre esse monumento que os
surrealistas veneram e com quem dividem duas paixões:
a poesia e o tiro com balas verdadeiras.
Guillaume Apollinaire foi o primeiro a colocá-lo na mira:
Alfred Jarry [...] me pareceu a personificação de um rio, um jo­vem rio sem
barba, com as roupas molhadas como um afogado. O bigode pequeno e
caído, a sobrecasaca cujas pontas balançavam, a camisa frouxa e as
meias de ciclista, tudo isso tinha algo de mole, esponjoso: o semideus
ainda estava úmido, parecia que al­gumas horas atrás tinha saído
encharcado do leito onde sua onda se esvanecera.2

Na época, Jarry era o criador da patafísica, que Ubu e


Fastrol serão os primeiros a louvar. O que é a patafísica?
Uma ciência que nós inventamos, cuja necessidade se fazia geral­mente
sentir.3

Essa ciência se propunha a observar o mundo a partir


das suas exceções e seus paradoxos, fora dos hábitos e
do conformismo do pensamento (René Dumal, e depois
Boris Vian e Raymond Queneau, no quadro do colégio de
patafísica, vão desenvolver os trabalhos de Jarry).
Quando Apollinaire encontrou Jarry, este já havia publi‐­
cado numerosos artigos em L’Art Littéraire, ou no
Mercure de France. Várias de suas obras já tinham sido
editadas, como César­-Antéchrist, Les jours et les nuits, Le
surmâle.75 Ele era conhecido principalmente como o
autor de uma peça que causara escândalo e revolta no
público parisiense bem pensante e bem comportado, que
estava sentado no Théâtre de l’OEuvre, no dia 9 de
dezembro de 1896: à primeira palavra – Merdra! –, a sala
ficou de pé.
Alfred Jarry morava na rua Cassette, num apartamento
à sua altura, senão à sua imagem. Ficava no terceiro
andar e meio. Guillaume Apollinaire e Ambroise Vollard
iam sempre à casa dele. Batiam numa porta minúscula,
incrustada na escada, que quando abria ia de encontro
ao peito do visitante. Uma voz vinda do inte­rior pedia
que os visitantes se abaixassem para que o morador lhes
pudesse ver o rosto.
Se era um amigo, Jarry mandava entrar. O cômodo
tinha o teto muito baixo e só se podia andar curvado: o
proprietário do imóvel tinha dividido seus apartamentos
em dois para dobrar os lucros alugando-os a inquilinos de
baixa estatura. Vollard, que era alto, conta que Jarry era
do tamanho exato da altura do aparta­mento. O
marchand afirma ainda que ele morava ali com uma co‐­
ruja cuja cabeça era embranquecida pelo gesso do teto;
o próprio escritor, que às vezes também roçava o teto,
tinha mechas brancas. Não se sabe ao certo se a coruja
era de carne, de osso ou de porce­lana, apesar de que
André Breton também se queixava do cheiro da gaiola da
coruja.
Jarry dormia numa cama muito baixa e escrevia
deitado. Na parede, havia um retrato do escritor (que
desapareceu), feito pelo amigo Douanier Rousseau.
Parece que se podia ver Jarry em companhia de um
papagaio e de um camaleão. Segundo André Salmon,
viam-se, principalmente, os retoques que o modelo tinha
feito na obra: ele tinha recortado sua silhueta, de forma
que a tela era enfeitada com um buraco de tamanho
natural.
Jarry não podia se ver nas pinturas. Ele não podia se
ver de maneira alguma.
Quando queria esticar as pernas, pegava a bicicleta e
ia a Plessis-Chenet, nas margens do Sena. Ele comprara,
perto da proprie­dade de Valette, diretor do Mercure de
France, e de sua mulher, a romancista Rachilde (cujo
verdadeiro nome era Marguerite Eymery), um terreno
minúsculo onde construíra uma cabana: o Tripode. Era
uma construção de madeira que ocupava quase toda a
superfície da “propriedade”: dezesseis metros
quadrados. Passava lá o verão co­mendo peixes que ele
mesmo pescava.
Jarry comia muito pouco. A não ser que quisesse se
diver­tir. Sentado um dia com Salmon à mesa de um
bistrô da rua do Sei­ne, ele chamou o proprietário.
“Um conhaque, por favor.”
“E só?”
“Não. Eu também queria um café.”
“Mas...”
“Um café, um pedaço de gruyère e uma compota de
frutas.”
“O senhor quer uma sobremesa!”
“Para começar. Depois me traga meio frango.”
“E depois?”
“Depois, macarrão.”
“Que tal um bife?”
“Malpassado.”
“Tudo de uma vez só?”
“Na ordem do pedido.”
O proprietário assentiu com jeito de quem aprova.
“Depois da carne, eu queria rabanetes”, acrescentou
Alfred Jarry... “E uma sopa.”
“E só?”
“Não. Quero também um Pernod... um Pernod bem
forte.”
O dono do restaurante colocou então a mão no ombro
do cliente e suspirou:
“É melhor parar por aí! Você vai passar mal!”
“Tire essa pata daí! E traga-me tinta vermelha num
copinho.”
“Como quiser.”
Assim foi feito. Jarry mergulhou um torrão de açúcar no
copo e bebeu a tinta toda. Naquele dia ele estava de
dieta. Na maior parte do tempo, só comia carne fria e
pepinos. O que não o impedia de beber muito. De
preferência erva santa. Era o nome poético pelo qual ele
chamava o absinto. Segundo Rachilde, que foi sua
melhor amiga e lhe foi fiel até a morte, ele engolia dois
litros de vinho branco e três Pernod entre a hora em que
levantava e a hora do almoço; depois, bebidas alcoólicas
durante a refeição, café acompanhado de marc como
digestivo, vários aperitivos antes do jantar; antes de ir
para a cama, acalmava o estômago com uma dose de
Pernod, uma dose de vinagre e um pouquinho de tinta.
Nunca ninguém o viu bêbado. Só doente, quando a
filha dos Valette, para lhe pregar uma peça, substituiu o
álcool do seu copo por água pura...
Quando conheceu Apollinaire, os dois homens
caminharam por Paris durante a noite toda. Quando
estavam no bulevar Saint­- Germain, alguém se aproximou
para perguntar o caminho de Plaisance. Jarry tirou um
revólver do bolso, apontou para o desco­nhecido,
ordenou-lhe que recuasse cinco metros... e explicou-lhe o
caminho que deveria seguir.
O negócio do nosso Ubu literário eram os seis tiros.
São numerosas as histórias que relatam seus feitos com
as armas.
Certa noite em que está jantando na casa de Maurice
Raynal, Manolo, o amigo de Picasso, aproxima-se dele.
Queria apenas co­nhecê-lo, o que desagrada Jarry. Ele
manda que o escultor o deixe em paz e que vá embora
imediatamente. Como o espanhol não se mexe, Jarry
saca o revólver e atira nas cortinas.
Noutra vez, ele está sentado num café, ao lado de uma
mu­lher. Por uma razão inexplicável, antipatiza com um
cliente vizi­nho. Levanta-se, puxa a arma e atira num
espelho. O espelho ex­plode. Tumulto. Muito calmo, Jarry
torna a sentar-se, vira-se para a mulher e diz:
“Agora que quebramos o gelo, vamos conversar.”76
Quando está treinando para abrir as garrafas de
champanhe atirando com a pistola, no jardim de uma
casa que alugou em Corbeil (que ele chamava de Le
Phalanstère), a proprietária acode assustada:
“Pare com isso, por favor! O senhor vai matar meu
filho!”
“Não tem importância”, responde Jarry. “Faço-lhe um
outro!”
Disso ele se orgulhava: Jarry não gostava das
mulheres, e ninguém nunca soube de um só
relacionamento seu.
Ele atira quando um pedestre atrapalha sua passagem,
atira para calar as crianças que o incomodam, atira
quando não pode subir num ônibus lotado. Mesmo
quando não está com seu revólver, ele não o desarma.
Certa noite, vai assistir a um concerto. Passa pela
bilhete­ria vestido com uma camisa de papel sobre a qual
está pintada uma gravata em nanquim. Como essa
maneira de vestir não inspi­ra confiança, mandam-no
para a galeria. Ele não reclama. Mas, assim que se faz
silêncio e o maestro se prepara para começar, ele se
levanta e grita:
“Isso é um escândalo! Como é que se deixa entrar
nesta sala esses espectadores das três primeiras filas
que estão atrapalhando todo mundo com seus
instrumentos musicais?”
No dia 28 de maio de 1906, depois de receber os
últimos sacramentos e redigir seu testamento, ele
escreve a Rachilde:
O pai Ubu, que não roubou seu repouso, vai tentar dormir. Ele acha que o
cérebro, quando se decompõe, funciona para além da morte e que o
Paraíso são seus sonhos. O pai Ubu, contra sua vontade – ele queria tanto
voltar ao Tripode – vai talvez dormir para sempre.

No dia seguinte, acrescenta um post-scriptum:


Reabro minha carta. O doutor acaba de chegar e acha que vai me salvar.4

E realmente o salva. Durante mais de um ano e meio,


Jarry sobre­vive. Todos os dias, armado de dois revólveres
e de um bastão recoberto de chumbo, ele vai ao médico.
Sua situação é das mais terríveis. Corroído pelas dívidas
e pela tuberculose, ele esconde sua ruína. Veste-se com
as roupas que os amigos não querem mais. Espera que
tudo termine.
No dia 29 de outubro de 1907, Jarry não abre quando
ba­tem à porta do terceiro andar e meio. Valette força a
fechadura. O escritor está na cama, incapaz de se mexer.
É transportado para o hospital da Charité. Durante dois
dias, incansavelmente, ele exala suspiros murmurando:
“Procuro, procuro, procuro...”.
O doutor Stephen-Chauvet, que o examina, nota no pa‐­
ciente uma calma excepcional. Jarry está anêmico. O
fígado se des­fez, o pulso está muito fraco. Ele para de se
queixar.
Morre no dia 1o de novembro de 1907, de meningite
tuber­culosa. Também sofria de intoxicação etílica crônica,
mas isso não foi a causa da sua morte.5
Deixou o Tripode para a irmã e, dizem (Max Jacob pri‐­
meiro), o revólver para Picasso. Não se sabe que fim
levou sua bici­cleta, uma Clément luxo 96, de corrida,
comprada em 1886 e que não estava paga por ocasião
da morte do proprietário.

Desaparecido aos 34 anos, Jarry não teve tempo de


representar no palco o papel que lhe cabia. Suas
extravagâncias e suas arruaças constituem uma
linguagem que os amigos da sua época sabiam ler.
Apollinaire em primeiro lugar:
Alfred Jarry foi um escritor como raramente se encontra. Suas míni­mas
ações, suas brincadeiras, tudo isso era literatura.6

Breton em segundo:
[...] A partir de Jarry, bem mais que de Wilde, a diferença entre a vida e a
arte, tida por muito tempo como necessária, vai ser contes­tada para
terminar enfraquecida no seu princípio.7

Que melhor homenagem podemos prestar a Jarry, que


tanto quis ser Ubu e se comportou na vida do mesmo
modo que esse personagem que ele mesmo definia como
o “anarquista perfeito”?
Mas o drama de Jarry vem do fato de que sua
reputação re­pousa sobre uma impostura: ele não é o pai
de Ubu. Nunca foi.
Essa peça que o consagrou, e muito, não é dele. Ele é
um autor, grande autor, seus livros o provam: mas Ubu
roi é uma obra coletiva da qual, por assim dizer, ele não
participou. Ubu é uma gesta redigida por alunos do liceu
de Rennes que queriam caçoar do professor de física,
Hébert, um homem sem nenhuma autori­dade, cujas
aulas eram uma bagunça. Quando Jarry teve aula de
retórica, aos dezesseis anos, a peça já existia. Chamava-
se Les po­tonais, e os autores eram os irmãos Morin. Jarry
é o criador do título e do nome do personagem. Este
talvez venha de uma contra­ção de Hébert, chamado de
Hébée ou Eb pelos alunos. Hébée se tornou Ubu.
Parece ainda que foi Jarry quem acrescentou as cenas
anti­militaristas à criação original. Mas nem a Chandele
Verte nem Cor­negidouille são dele. Menos ainda o
famoso Merdra que abre a pri­meira cena. Charles Morin
confidencia:
Éramos ainda crianças; nossos pais não queriam, naturalmente, que
usássemos aquela palavra; então, imaginamos intercalar um r: é isso!8

Entretanto, foi graças a Jarry que Ubu deu a volta ao


mundo. Foi ele, na verdade, quem colocou o personagem
num palco de teatro. Primeiro, no Liceu de Rennes,
representado pelos alunos. Depois, em outros lugares, às
vezes com marionetes.
A crítica entusiasmou-se. Falaram de Shakespeare, de
Rabelais. Vers et Prose saudou essa “imortal tragédia
burlesca, uma das obras-primas do gênio francês”. Muito
tempo depois da morte de Jarry, L’Action Française ainda
aplaudia a caricatura de Ro­bespierre, de Lenin, do
bolchevismo em marcha... O que fez rir os irmãos Morin,
que não reclamaram de nada. É claro que eles sem­pre
ficaram um pouco irritados com o papel que Jarry se
atribuiu, fazendo-se passar pelo único autor da obra
comum. Mas não reve­laram o segredo. Explicaram que
essa brincadeira, que zombava da sociedade da época,
particularmente dos medalhões do meio lite­rário,
divertia-os muito; ligados anteriormente ao colega, e
sabendo o quanto Ubu o ajudou no início da carreira,
alegraram-se com a notoriedade que isso lhe trouxe;
enfim, autorizaram Jarry a fazer o que quisesse com
Polonais, com a dupla condição que ele tro­casse o título
e os nomes dos personagens, de maneira que nin­guém
pudesse fazer a associação com Hébert e com o Liceu de
Rennes... Quanto ao resto, Ubu permaneceu aos olhos
dos dois criadores como uma gozação, uma brincadeira,
ou melhor dizendo: uma sacanagem.
Mesmo que ele seja, ao que parece, o autor de Ubu
enchainé e Ubu cocu, mesmo que o personagem Ubu
apareça nas suas pró­prias obras (principalmente Les
minutes de sable mémorial e César­-Antéchrist), Ubu roi
não é, portanto, da autoria de Jarry. Seu amigo Ambroise
Vollard sabia tão bem disso que, durante a Primeira
Guerra, pegou a deixa e escreveu uma sequência para a
saga: Les réincarnations du père Ubu, ilustrada por
Rouault.
A usurpação pesou muito sobre o destino de Jarry. E
sobre seus ombros também. Não se conhecem
revelações feitas por ele a propósito de Les polonais.
Entretanto, ele confidenciou uma vez:
Estou ficando sufocado com o Ubu. É só uma bobagem de estudan­tes
que nem mesmo é de minha autoria [...] Fiz e fazia outras coi­sas. Mas
estão todos aí atrapalhando meu caminho com Ubu. Tenho que dizê-lo,
representá-lo, vivê-lo. Só querem isso!9

A filha de Valette e de Rachilde confirma que nunca


ouviu Jarry ser chamado de outra maneira, a não ser de
Ubu:
Era uma espécie de máscara que às vezes ele tirava na nossa casa, em
família. E às vezes falávamos todos como o pai Ubu.10

Esse papel tomou conta de Jarry. Mas ele o representou


e respon­deu a todos os chamados. No palco da sua vida,
ele se apresentou como uma cópia desse personagem
que tem, ao mesmo tempo, algo de Macbeth, de Falstaff,
de Gargantua, de Tykho Moon e de Polichinelo.
Personagem que se ergue no teatro da existência
gritando Merdra! Que escandaliza os salões da alta
sociedade com suas provocações, sua insolência e, ainda
por cima, com uma con­duta que mais tem a ver com as
bandarilhas libertárias e anarquis­tas do que com os
traseiros abençoados sentados nas cadeiras das
academias. Do qual, enfim, a vida toda parece uma
tragicomédia em um ato.

71 Marechal Ney: oficial do exército de Napoleão. Foi condenado à morte


depois do exílio deste na Ilha de Elba. (N.T.)
72 Camelots du roi: assim eram chamados os militantes do movimento
monarquista L’Action Française, entidade nacionalista. (N.T.)
73 O cavalinho na tempestade, como era corajoso! (N.T.)
74 Ambos escritores, militantes de direita, Maurice Barros tem entre suas
obras o livro Sciences et doctrines du nationalisme, e Charles Maurras foi o
criador do movimento monarquista L’Action Française. (N.E.)
75 Alfredy Jarry, O supermacho, São Paulo, Brasiliense, 1985. (N.E.)
76 No original, la glace est rompue faz um trocadilho: significa ao mesmo
tempo “que­brar o espelho” e “quebrar o gelo” (no sentido figurado). (N.T.)
2 de agosto de 1914

Nesse dia, um raio caiu no


coração dos homens.
Joseph Delteil

U bu não era racional.


O século também não. Mal atinge a Idade da Razão
e já parte para a Guerra.
No dia 28 de junho de 1914, o arquiduque Francisco
Fer­dinando é assassinado por um fanático sérvio. No dia
28 de julho, o Império Austro-Húngaro declara guerra à
Sérvia. No dia 31, a Alemanha lança um ultimato à
França e à Rússia. No mesmo dia, Jean Jaures é
assassinado. No dia 1o de agosto, a França se mobi­liza.
No dia seguinte, sob um sol radioso, as tropas deixam a
École Militaire e os quartéis de Paris. Cheias de
entusiasmo, capacete sob o braço, num tilintar de
espadas, sabres e baionetas, bandei­ras e música, as
tropas sobem as avenidas e convergem para as estações
de trem. Couraceiros, dragões, artilheiros, fuzileiros e
soldados da infantaria em marcha só têm uma palavra de
ordem: “Rumo a Berlim!”. Acreditam que vão chegar em
uma semana e que voltarão rapidamente para Paris,
trazendo o escalpo do Cáiser na ponta dos fuzis.
Nos cafés de Montparnasse, já se comemoram as
próximas vitórias. O cruzamento Vavin77 destronou o
Lapin Agile e a parte alta dos bulevares. Na véspera da
Guerra, os artistas, seguindo Picasso, atravessaram o
Sena. Fugiram dos turistas que chegavam em
Montmartre. Plantaram na margem direita, mas a
colheita será feita em Montparnasse.
Ali, o La Closerie des Lilas já não conduz mais a dança.
Tor­nou-se burguês. O pastis passou de seis para oito
cêntimos. Em represália, pintores e poetas desceram um
pouco mais. Empurraram as portas de dois bistrôs
solidamente construídos de um lado e do outro de um
amplo cruzamento: o Dôme e o La Rotonde. O primeiro
abriu quinze anos antes do outro. Tem três salas onde os
alemães, os escandinavos e os americanos jogam bilhar.
O segundo tem duas vantagens: um caça-níqueis e
mesas na calçada, expostas ao sol. Logo vai crescer e
devorar os vizinhos: o Parnasse e o Petit Napo­litain. É lá
que os artistas se reúnem para falar mal do Cáiser.
Naquele 2 de agosto, o cruzamento Vavin se parece
com qualquer outro. A não ser pelo fato de que do lado
sul é a festa; do lado norte, a derrota. O La Rotonde
lotou. Em frente, o Dôme está vazio. Os alemães
abandonaram as mesas de jogo. De agora em diante,
vão exibir seus capacetes do outro lado da fronteira. Os
jovens pintores, que até então acreditavam que a arte
não tinha fronteiras, acompanharam tristemente os
amigos alemães até a beira dos trilhos, atendendo à
convocação do imperador Gui­lherme. Partiram para
Berlim ou para Zurique. Debaixo dos apu­pos da multidão.
É tempo de antigermanismo extremo, e em todos os
do­mínios. A arte não foge à regra. No dia seguinte à
venda da Peau de l’Ours, Paris-Midi publicou um artigo
que ilustra o pensa­mento geral:
Altos preços foram alcançados por obras grotescas e disformes de
indesejáveis estrangeiros... Assim, as qualidades de ordem e de equilíbrio
da nossa arte nacional vão pouco a pouco desaparecer para grande
alegria do ilustríssimo senhor Tannhauser e seus compatriotas, os quais,
chegará o dia, não mais comprarão Picasso, mas levarão de graça o
Museu do Louvre, que os esnobes frouxos ou os anarquistas intelectuais,
seus cúmplices inconscien­tes, não saberão defender.1

O próprio Apollinaire dá o tom. Condena Romain


Rolland e todos os escritores pacifistas que tomam o
partido da paz. Clama e rei­vindica por seus sentimentos
“antiboches”. Na ocasião da publica­ção de Alcools,
garantirá que os alemães traduziram Zone, o pri­meiro
poema de Alcools, sem nunca lhe terem dado um só
marco de direito autoral.
Quando eles não incendeiam catedrais francesas, roubam os poetas
franceses.2

Será porque nunca irá para o front que André Gide vai
ser um dos únicos a defender a reconciliação franco-
alemã, sem a qual, ele escreverá, a Europa não se fará?
Por muito tempo ele irá pregar no deserto: toda a
literatura francesa da época, até os anos 1930, é
marcada por esse estreito patriotismo, já denunciado no
final do século anterior por Remy de Gourmont.
Em 1917, chegar-se-á ao ponto de trocar o nome da
água­-de--colônia para água de Louvain, dos pastores
alemães para pasto­res alsacianos, da rua de Berlin para
rua de Liège, da rua Richard-Wagner para rua Albéric-
Magnard. “Espero que quando vier a paz troquem de
nome a rua da Victoire”, concluiu Paul Léautaud,
escandalizado.3
O La Rotonde foge um pouco à regra: ali, o
nacionalismo é menos feroz do que nos outros lugares.
Enquanto as armas desfilam, Libion, proprietário do café,
oferece bebida desde cedo. Distribui aos seus artistas os
múltiplos prazeres guardados nas suas caves. Com uma
das mãos na cintura e a outra verificando o ângulo do
bigode, todo vestido de cinza, como sempre, ele observa
as tropas que sobem o bulevar. Na beira das calçadas, as
senhoras jogam flores para os jovens soldados. Os
oficiais, de túnica preta e calças vermelhas, saú­dam
aguerridos. La Marseillaise ecoa em todos os campos.
Ao passar pelo La Rotonde, porém, as notas ficam mais
ás­peras e as palavras mudam de direção. A tropa e os
passantes hos­tilizam aqueles jovens que bebem à saúde
das marchas militares, mas que, à guisa de uniforme,
usam camisas coloridas abertas so­bre peles que não são
como as nossas. Ecoa então aquele grito de Maurras, que
ainda fará doer os ouvidos do século que termina: “Fora
os metecos!”.
É verdade que eles não são daqui, e isso é fácil de ser
ver.
São mesmo duplamente de fora. Suas falas têm
sotaque, mas suas roupas também. E seus modos. Suas
ocupações. Alguns vêm de paí­ses distantes, outros não.
Partilham, entretanto, costumes similares,
incompreensíveis para a maioria. Ficam nas beiradas.
Nas margens. Nas calçadas. Afastados das multidões que
acompanham a tropa.
Naquele dia, porém, erraram o alvo. São metecos, mas
não são covardes. É verdade que são estrangeiros, e que
são diferen­tes, mas se recuaram para dentro do café,
protegidos pelas corti­nas de Libion, não foi por covardia,
mas sim para se protegerem dos insultos que antes já
eram terríveis e continuam. O que os metecos não dizem
é que todos eles tomaram conhecimento do apelo feito
por dois deles: o italiano Ricciotto Canudo e o suíço
Blaise Cendrars:
Estrangeiros amigos da França, que durante sua estada aprende­ram a
amá-la e a respeitá-la como uma segunda pátria, sentem o dever
imperioso de estender-lhe os braços.
Intelectuais, estudantes, operários, homens de bem de todo o tipo –
nascidos lá fora, residentes aqui –, nós, que encontramos na França
nosso sustento material, agrupemo-nos num feixe sólido de vontades
colocadas a serviço da grande nação francesa.

O que eles não dizem é que, como o dia lo de agosto


daquele mes­mo ano caiu num sábado, esperaram todos
pela segunda-feira para se inscrever nos centros de
recrutamento.
E, na segunda-feira, os poloneses na frente de todos,
eles são quase 100 mil a ir em direção à rua Saint-
Dominique para alis­tar-se na Legião. Depois, com o
certificado de alistamento nas mãos, invadem o Temple
para comprar casacos, calças, túnicas, quepes, que serão
transformados em adereços militares.
Em poucas semanas, os antigos moradores do Bateau-
La­voir se separam para sempre, e Montparnasse perde
seus irmãos do outro lado, que foram defender a pátria
que os alimentou, nas trin­cheiras do Norte. Apollinaire
vai para Nice, onde se alistará. Na estação de trem de
Avignon, Pablo Picasso acompanha Braque e Derain até o
caminho da Guerra. Moïse Kisling volta da Holanda para
pegar nas armas. Blaise Cendrars o acompanha e Per
Krogh, Louis Marcoussis, Ossip Zadkine...
No dia 2 de agosto, em Paris, o ilustríssimo senhor
Frantz Jourdain, esclarecido presidente do Salão de
Outono, exclama: “Finalmente o cubismo se fodeu!”. Não
é provavelmente o que pensam Léger, Lhote e Dunoyer
de Segonzac, mobilizados com os companheiros da
mesma idade. Nem Carco e Mac Orlan, que tam­bém
partem. Menos ainda Modigliani e o pintor ítalo-chileno
Or­tiz de Zarate, recusados pela Legião e em outros
lugares, porque são muito fracos e franzinos para
manejar o Lebel. Mané-Katz é muito baixo e Ehrenbourg
está tuberculoso. Esses ficam fazendo companhia a
Diego Rivera, Brancusi, Gris e Picasso.
Foujita vai para Londres; depois irá para a Espanha e
vol­tará para Paris. Pascin ficará algum tempo na
Inglaterra antes de ir para os Estados Unidos, onde,
antes dele, chegarão Picabia e Du­champ. Delaunay vai
precisar de um álibi. Alguns afirmam que ele foi
reformado por causa de um problema no coração, ou por
sinais de desequilíbrio mental. Cendrars romperá com ele
considerando, como muitos outros, que ele simplesmente
se escondeu na Espanha e em Portugal com a mulher,
Sonia.
Nos dias seguintes, nas semanas seguintes, o que
resta em Montmartre? Em Montparnasse? Avenidas
vazias, cafés obrigados a fechar ao toque de recolher, o
Bal Bullier transformado em depó­sito de munição, uma
grande miséria que ficará, desta vez por muito tempo,
privada das cores da festa. Não há nada para beber,
nada para comer. O administrador do XVI
arrondissement, Ferdi­nand Brunot, gramático e professor
da Sorbonne, pede demissão da faculdade para cuidar da
sua jurisdição. Cria sopas populares para os indigentes. O
partido socialista, por sua vez, oferece sopas comunistas.
Nos ateliês, os pintores que ficaram morrem de frio, de
fome e de pobreza.
A Ruche é requisitada para abrigar refugiados vindos
da Champagne. Os gramados se transformam em hortas.
As árvores são cortadas para obter madeira para o
aquecimento. Certa manhã de inverno, o zelador, que
durante o verão molhava os inquilinos com um jato de
água fria, sobe ao ateliê de Chagall. Este, que tinha ido
para Vitebsk às vésperas da Guerra, não pôde voltar (só
o fará em 1923). O zelador tira todas as telas que lá se
encontram. Exa­mina-as e constata que a pintura
impermeabiliza a tela. Satisfeito, volta para o térreo. Com
os quadros nas mãos, dirige-se ao quarto que lhe serve
de moradia. O teto está estragado. Ele o desfaz e, com
um sorriso de mecenas, o substitui por aquela proteção
vinda do céu: as pinturas de Chagall.

77 Atualmente Place Picasso. (N.T.)


Sob a luz sombria dos lampadários

Temos em Montparnasse cantinas de artistas que propiciam ao


temperamento natural destes a oportunidade de esquecer, à
custa da decência e até da dança, as dores nacionais dos outros.
Max Jacob

P aris em tempo de Guerra. Paris miséria. A cidade está


envolta nas cores pálidas da escassez e das
restrições. Os lampadários e os faróis dos carros
obscureceram. As vitrines foram enfeitadas com
esparadrapos contra bombardeios. Foi preciso habituar-
se às novas regras. A atmosfera triste da penúria se
estendeu sobre as popula­ções, fazendo com que cada
um descobrisse a velha lei dos indi­gentes: a vida é um
tubo digestivo; o dinheiro só permite salivar: quinze
cêntimos o cozido, treze a porção de espinafres, dois
cênti­mos o meio quilo de peras, um cêntimo o
chocolate...
A Guerra cortou os víveres de todos os artistas
estrangeiros que viviam em Paris. Os vendedores
sumiram da cidade. As gale­rias estavam fechadas. O
dinheiro que alguns recebiam não pas­sava mais pelas
fronteiras. Era preciso esperar durante longas ho­ras para
se obter alguns pedaços de carvão que proporcionariam
calor pelo tempo de um suspiro. Até mesmo Rodin,
apesar de doente, congelava no leito de morte, pois
ninguém se preocupava em fornecer a ele combustível
para se manter aquecido.
Os artistas, no entanto, se mostravam solidários uns
com os outros. Isso não era novidade. Em outras épocas,
Caillebotte já tinha ajudado seus amigos impressionistas
comprando suas telas, organizando exposições, dando
dinheiro a Monet, Pissarro e Renoir. Nos anos 1910, os
russos de Paris haviam organizado bailes de caridade
para ajudar os mais pobres dentre eles. Em 1913, em
Vers et Prose, Salmon, Billy e Warnod tinham anunciado a
criação de uma entidade literária encarregada de
recolher fundos para os escritores sem recursos. A partir
de 1914, no seu pequeno quarto da rua Gabrielle, Max
Jacob escrevia aos amigos que partiram para o front e
recebia notícias deles transmitindo-as aos outros. Em
1915, o poeta organizará uma subscrição para enviar
para o Sul o pintor italiano Gino Severini, que estava
morrendo de fome e de tuberculose. Ortiz de Zarate,
grande amigo de Max Jacob (ele tam­bém tinha visto o
Senhor lhe aparecer numa parede), fez o mesmo no dia
em que encontrou Modigliani desmaiado em seu ateliê:
reu­niu os amigos para mandar o pintor se cuidar na
Itália, junto à família.
Foram abertas algumas cantinas, além daquelas
subvencio­nadas pelas autoridades municipais. Marie
Vassilieff, por exemplo, colocou a sua à disposição dos
pintores, no Beco do Maine, onde morava. Durante todo
o tempo que durou o conflito, ali se cruza­ram os artistas
havia muito tempo instalados em Montparnasse, os que
sobraram do alistamento e do Bateau-Lavoir, as grandes
figu­ras dos anos de Guerra e do pós-Guerra.
Marie Vassilieff vinha da Rússia. Depois de ter
estudado pintura em Moscou, passou uma temporada na
Itália e chegou à França em 1912. Foi por pouco tempo
aluna de Matisse, e fundou uma academia de pintura no
Beco do Maine. Youki Desnos conta que, apenas algumas
semanas depois da sua chegada, quando es­tava
descansando num banco, Marie foi abordada por um
senhor idoso, bem-vestido, educado e discreto, que
tocava razoavelmente violino e magistralmente o pincel.
Pediu-a em casamento. Tinha quarenta anos a mais que
a moça, tinha sido funcionário de um de­partamento da
alfândega em Paris e se chamava Henri Rousseau.
Marie Vassilieff preferiu preservar a sua mão. Usava-a
para pintar, esculpir, tirar as cartas para os amigos e
oferecer-lhes sua generosa petulância graças à qual,
nesses tempos de guerra, eles ainda podiam conjugar no
presente um triste passado.
Corria um boato de que, antes de 1914, a czarina
enviava-­lhe rublos; um outro mostrava-a em Munique,
distribuindo pan­fletos comunistas. No final da Guerra,
suspeitarão que ela traba­lhava para os bolcheviques.
Todos em Montparnasse conheciam sua cantina. Como
era um local particular, ela estava dispensada do toque
de recolher. Quando os artistas empurravam a porta, era
como se as promessas da noite apagassem as traições
do dia.
Nas paredes, telas: Chagall, Léger, Modigliani. No chão,
al­guns tapetes sem franjas. Nas prateleiras, as bonecas-
retrato de fel­tro que Marie Vassilieff fabricava e vendia
ao costureiro Poiret ou aos burgueses da margem direita,
que as empilhavam nos cantos de suas modernas
estantes. Por todo lado, cadeiras soltas, pufes
descosidos, centenas de objetos garimpados no Mercado
das Pulgas.
Atrás do bar, cuidando da louça, baixinha e mais vivaz
ainda do que um ludião, trabalhava o fênix dos clientes
do lugar. Sobre dois aquecedores, um a gás, outro a
álcool, Marie e uma co­zinheira preparavam a boia. Por
algumas dezenas de cêntimos era possível comprar uma
tigela de sopa, legumes, às vezes uma sobre­mesa. Os
mais ricos tinham direito a um copo de vinho e três cigar‐
ros Caporal bleu.
Comiam, cantavam, tocavam violão. Também
recitavam ver­sos. Falava-se em russo, exclamava-se em
húngaro e ria-se em todas as línguas. Quando soavam as
sirenes de alerta, bastava cantar mais forte para encobrir
o medo e o perigo.
No dia seguinte, durante o dia, os pintores se
encontravam no Dôme ou no La Rotonde. Passavam ali
dias inteiros. Os cafés tinham aquecimento. Podiam
roubar restos de comida: Libion não reclamava. Antes da
Guerra, ele fechava igualmente os olhos quan­do sua
clientela colocava disfarçadamente nas bolsas ou nos
bolsos os pires e os talheres que iam constituir o faqueiro
do dia a dia dos artistas. Só se mostrava exigente quanto
a duas coisas: as senhoras deviam conservar os chapéus
e os senhores, abrir em outro lugar seus vidrinhos de
éter ou seus saquinhos de coca. Quanto ao resto, o
patrão era de uma benevolência exemplar. Tinha dado
ordens aos garçons para não exigir novas consumações,
de modo que, com um único crème – que se tornara a
bebida local naqueles tempos de penúria –, cada um
podia ficar na sala aquecida por muito tempo. Por que o
café-crème? Porque era uma bebida para os pobres: não
era bom o bastante para ser bebido de uma só vez, nem
de todo ruim para ser deixado na xícara; era quente e
barato. Os bebedores de café-crème do La Rotonde
bebiam em minúsculos goles, lavavam-se nos lavabos,
aqueciam-se ao calor da estufa. Li­bion chegava a entrar
ele mesmo na fila das tabacarias para ofere­cer a seus
artistas os cigarros que eles não podiam comprar. Gos‐­
tava deles. Protegia-os. Ele foi em Montparnasse o que
Frédé tinha sido em Montmartre.
A maioria dos pintores e dos poetas do Bateau-Lavoir
es­tava no front, mas os que ficaram em Paris também
iam ao café de Libion. Os antigos artistas de Montmartre
encontravam ali as figu­ras de Montparnasse, que às
vezes já conheciam. Braque, Derain, Apollinaire já
frequentavam o lugar, e Max Jacob, Vlaminck, Sal­mon e
Picasso representavam o minguado contigente da praça
Ra­vignan. Estavam ao lado dos artistas que iam tomar o
cruzamento Vavin e cobri-lo de cores tão ricas e tão vivas
quanto as da Butte de ontem: o polonês Kisling, o
japonês Foujita, o italiano Mo­digliani, o suíço Cendrars, o
lituano Soutine... Para todos aqueles que tinham ficado
nos limites de Paris, para os que estavam em licença,
para os reformados, para os convalescentes, atravessar a
soleira do La Rotonde era o mesmo que empurrar o
Marne78 até o fim do mundo.

78 Rio da bacia parisiense, às margens do qual chegou o exército alemão.


(N.T.)
Chaïm e Amedeo

Meu coração se distendeu.


Chaïm Soutine

C haïm Soutine vem ao La Rotonde para aprender a ler.


Quando o pintor não tem como pagar os café-crème
exigidos por sua precep­tora em troca do serviço, Libion
põe a mão no bolso. Assim, ele con­tribui para a expansão
da língua francesa. Soutine bem que precisa.
Ele é um dos mais miseráveis de todos. Corroído por
den­tro, consumido pela angústia, devorado pela
exigência. Detestado por muitos, por Chagall antes de
todos, que reprova seu mau humor, sua grosseria, sua
rudeza.
Soutine no La Rotonde é como Quasímodo tomado pela
febre. Sentado no fundo do café, ele repete as palavras
que a pro­fessora ensina. Ela é feia. Ele não olha para ela.
Protege-se debaixo de um casacão cinza todo rasgado.
Seus ombros largos parecem ser­vir de suporte para o
rosto. O queixo dobra sobre o pescoço e o pescoço está
enrolado por uma echarpe de lã. A cabeleira, negra e
brilhante, desaparece sob um chapéu de aba rebaixada,
uma casa­mata sob a qual há um olhar inflamado. Soutine
olha tudo e todos. Para ver quem gosta dele e quem não
gosta, quem vai lhe fazer mal, quem vai lhe oferecer um
crème ou um cigarro. Morre de frio e de fome. Então ele
diz: “Meu coração se distendeu”. Muitas vezes, revira as
latas de lixo do bairro para encontrar alguma roupa velha
ou um sapato amassado, que troca por um arenque ou
um ovo.
Oferecer uma refeição a Soutine é o melhor presente
que se pode dar a ele. À mesa, parece um papão. Ele não
come: devora. Rói os ossos, aspira o molho. O rosto, da
testa até o queixo, torna­-se uma paleta de mastigação,
com comida por toda parte. Limpa-se com as mãos.
Lambe os dedos. Não sabe se comportar. Ele des­conhece
a fórmula da vida.
Ele gosta das belas casas. Mas não quer conspurcá-las.
Cer­ta vez em que foi convidado a uma casa de pessoas
ricas, pede des­culpas, sai da mesa e vai até o jardim.
Procura uma árvore. Abre a braguilha e faz xixi no tronco.
“Por quê?”, perguntam a ele.
Com um horrível sotaque, ele responde:
“A casa de vocês é tão bonita que eu não quis sujá-
la...”
Numa outra ocasião, um dos seus marchands lhe
oferece um quarto num hotel de luxo em Marselha.
Soutine desaparece e se refu­gia perto do porto, num
bordel de marinheiros onde passa a noite.
Ele gosta de boxe. Quando a sala urra e vocifera
porque um dos grandalhões, com a cara inchada e
ensanguentada, não conse­gue se levantar, Soutine ri
como um anjo. Levanta-se e aplaude, contra a maré. Sua
pintura será feita assim: atormentada, violenta, rica em
deformações. Ele é selvagem como sua obra. Paroxístico.
Ele não pinta sobre telas novas. Recobre as que
compra, cheias de crostas, no Mercado das Pulgas de
Clignancourt. Quando o resultado não lhe agrada, isto
quer dizer quase sempre, rasga com a faca o que acabou
de fazer. Faz a mesma coisa quando aque­le a quem
mostrou seu trabalho não demonstra muito entusiasmo.
Os pintores de Montparnasse já avisaram uns aos outros:
ninguém deve criticar as obras de Soutine. Senão ele as
destrói.
Quando lhe falta material, retoma as telas, pega
agulha e linha, recose os pedaços desencontrados e
pinta rostos deforma­dos, membros tortos, esses excessos
que fazem o seu estilo. Ele é mais brutal do que Van
Gogh, mais fauve do que Vlaminck.
Ele não vai aos salões que expõem a pintura
contemporânea, mas passa os dias no Museu do Louvre,
diante dos mestres flamen­gos que venera. E também
diante de Courbet, Chardin, Rembrandt, principalmente,
a seus olhos o maior de todos. Quer conhecer a luz.
Busca uma abertura que a vida não lhe oferece. Curvado
sobre si mesmo, de olhos baixos, as mãos enfiadas nos
bolsos do casacão, onde estão espalhadas algumas
pontas de cigarro, ele procura por um osso para roer, um
copo para beber, um detalhe para pintar, uma razão para
sorrir.
Quando a porta do La Rotonde se abre e Modigliani
entra, seu rosto se ilumina de repente. Deixa de lado o
aprendizado da língua para acompanhar o passeio do
italiano por entre as mesas. Amedeo é exatamente o
oposto de Chaïm. Fala com todo o mundo, sempre
sorrindo, usa um paletó cintado e um colete de veludo
que disfarçam uma camisa feita com pano de colchão.
Arrasta atrás de si uma longa echarpe, como um rastro. É
muito bonito, afável, brincalhão.
Senta-se diante de um desconhecido, empurra xícaras
e pires com suas longas mãos agitadas, tira um bloco e
um lápis do bolso, começa a cantarolar e a fazer um
retrato, sem mesmo pedir permissão ao retratado.
Termina rapidamente, em três minutos, assina, arranca a
folha e estende-a a seu modelo.
“É sua por um vermute.”
É assim que ele bebe. É assim que ele come.
Soutine não tem essa facilidade. Ganha a vida
carregando bagagem nas estações de trem. Mas ele
concorda com Modigliani, que afirma em alto e bom tom
que os artistas só devem viver da sua arte e que ele
jamais ganhará a vida de outra maneira a não ser com
seus pincéis; só que ele, Soutine, só diz isso baixinho, e
para um único interlocutor: ele mesmo.
Enquanto o italiano tira do bolso A divina comédia – o
livro está sempre com ele – e declama Dante em voz alta
para todos os clientes presentes, o lituano espera chegar
em casa para ler Baudelaire, e vai sozinho aos concertos
da Sala Colonne, onde a música clássica o mergulha no
êxtase.
Soutine não dá nada porque não tem nada. Modigliani
só tem seus desenhos, mas a metade de Montparnasse
também os pos­sui: quando não os troca por uma bebida,
oferece-os. Também os vende por alguns trocados cada
um. Sua generosidade é legendária. André Salmon conta
que a primeira vez em que o italiano encon­trou Picasso,
num café da rua Godot-de-Mauroy, deu a ele o pouco
dinheiro que possuía.
Modigliani usa roupas extremamente surradas, mas
usa-as como se fosse um príncipe. Está sempre
barbeado. Ele se lava, mes­mo se a água estiver fria.
Soutine é sujo. Certo dia, um médico des­cobre um ninho
de carrapatos na sua orelha direita.
Ele não agrada às mulheres. Não sabe como abordá-
las. É tímido. Em Wilno, uma jovem judia burguesa
enamorou-se dele. Convidou-o para ir à casa dos seus
pais. Soutine foi grosseiro, co­mo sempre. Espirrou molho
de tomate nas paredes e gema de ovo no tapete. Todos o
desculparam: os artistas têm outros talentos, que não os
da etiqueta.
Esperaram que ele fizesse o pedido. Ele procurava as
pala­vras, os gestos, mas não encontrava. Desajeitado e
assustado. Da­vam-lhe as deixas, mas ele não entendia.
Para facilitar as coisas, os pais compraram um
apartamento destinado ao futuro jovem casal. Levaram-
no para visitá-lo. Soutine achou bonito. Talvez tivesse
mijado na lareira. Mas não abriu a boca. De volta ao
térreo, a jo­vem resolveu escolher um outro marido.
Mais tarde, Soutine venceu a timidez. Foi num quarto
de hotel, com uma camareira. Teve a coragem de tomar-
lhe a mão. Te­ve a coragem de passar seu polegar sobre a
palma. Encantado, com os olhos deslumbrados, ousou
fazer um elogio: “Suas mãos são suaves como pratos!”.
Em Paris vai ao bordel. Senta-se sobre o veludo
vermelho da banqueta. Quando a dona do
estabelecimento bate palmas, seis mulheres entram,
fazendo caras e bocas. Soutine não olha as mais belas,
as mais desejáveis. Leva para os quartos aquelas que
mais se parecem com sua pintura: as que têm os traços
deformados, a pele avermelhada pelo álcool e pelos
fracassos.
Modigliani seduz as mulheres. Elas são atraídas por
seu vigor, sua beleza, o porte aristocrático que todos
reconhecem nele. Ele teve um filho (sempre negou),
nascido de seus amores passagei­ros, com uma jovem
estudante canadense, Simone Thiroux. Ela ainda o ama,
e lhe manda cartas extraordinariamente tocantes:
Meu mais doce pensamento é para você por ocasião deste novo ano que
eu gostaria fosse o ano da reconciliação moral entre nós [...] Juro pelo
meu filho, que para mim é tudo, que nenhum pensamento ruim passa
pelo meu espírito. Não, mas eu o amei tanto e sofro tanto que peço isso
como uma última súplica [...] Eu lhe suplico que me olhe com carinho.
Console-me um pouco, eu estou muito infeliz e peço uma pequena
parcela de afeição que me faria tanto bem.1

Mas Modigliani está apaixonado por uma poetisa


inglesa, corres­pondente em Paris de um jornal britânico,
The New Age. Beatrice Hastings. Bela e elegante. Está
quase sempre com um vestido preto desenhado de cima
a baixo pelo amante. Tem os olhos verdes e usa chapéus
incríveis. É exuberante, rica e culta. Toca piano. É amiga
de Katherine Mansfield e, para a época, uma audaciosa
militante: defende o aborto.
Ela leva o amante para Montmartre, onde vive. Fazem
amor e se agridem, trocam insultos em público,
representam o amor lou­co, a paixão devastadora.
Modigliani é de índole ciumenta. No Dôme, no Baty, no
Rosalie ou no La Rotonde, todos fazem a conta­gem
durante as lutas. Os socos do pintor são sonoros e
públicos. Principalmente quando estimulados pelos
môminettes ou pelos Picon-curaçao.79 Aí, ele se torna
violento. Ou então canta com toda a força pelas ruas,
aborda os passantes, faz piruetas pelas calçadas. Às
vezes, dorme numa lata de lixo, de onde os lixeiros o
tiram pela manhã. Soutine precisa de uns dez copos para
se soltar um pouco, concordar em se levantar e esboçar
alguns passos de uma dança mal enjambrada que
acompanha com duas frases em iídiche. De­pois do que,
senta-se novamente e chora.
Amedeo perde o ânimo com facilidade: seu riso, um
riso de criança, se quebra, se apaga, ele se torna amargo
e se perde no si­lêncio e na nostalgia.
Um pouco mais tarde, se Amedeo pede a Soutine para
cantar de novo, este responde que não sabe.
“Diz então algumas palavras em iídiche.”
“Não sei.”
“Mas ontem...”
“Você não ouviu direito.”
“E teu nome? Chaïm, não quer dizer vida?”
“Esqueci.”
Ele esqueceu tudo. Jura que não fala iídiche. Jura
também que sua vida anterior não lhe interessa.
Despreza a família e o shtetl que, ao contrário de Chagall
e Mané Katz, ele não retrata, ­embora o fascínio pelo
sangue dos animais venha talvez dos rituais da sua
infância.
Modigliani é do Sul. O sol da Itália é menos opressivo
do que a lua da Rússia, e os sefardins são mais afeitos às
belezas do mundo. Amedeo é judeu, e quer que todos
saibam. Fecha às vezes o punho contra os antissemitas.
Também é italiano, e não esquecerá nunca. Em Paris,
está sempre com saudades da sua terra; em Livorno, só
pensa em voltar para a França. Está sempre repetindo
que recobra suas forças na Itália, mas que só pode pintar
se estiver atormen­tado. O tormento é Montparnasse.
A família sempre esteve ao lado dele. Quando decidiu
abandonar os estudos para se dedicar ao desenho,
ninguém o im­pediu. Em 1902, inscreveu-se na Escola
Livre do Nu de Florença e depois, no ano seguinte, na
Escola de Belas-Artes de Veneza. Em 1906, veio para
Paris com o apoio dos pais e algum dinheiro ofere­cido
pela mãe. Voltará a Livorno por várias vezes. Modigliani
nunca pintou nem esculpiu contra a vontade da família.
Soutine viveu num gueto de Smilovitchi, perto de
Minsk. Fi­lho de um remendão muito pobre que batia nele
quando o surpreen­dia desenhando. Seus irmãos mais
velhos faziam a mesma coisa, zombando e condenando
seu desejo de pintar. A vontade do pai era que Chaïm se
tornasse sapateiro. Aos dezesseis anos ele transgrediu a
lei, ao fazer o retrato do rabino da aldeia. A punição foi
imediata: foi trancado pelo açougueiro de Smilovitchi no
frigorífico da loja, e depois violentamente espancado.
Para evitar o escândalo, o comer­ciante aceitou dar uma
soma de 25 rublos à família, e gra­ças a isso Soutine pôde
partir para Minsk, onde teve aulas de dese­nho ao mesmo
tempo em que trabalhava no retoque de fotografias, num
laboratório. Depois, foi à Academia de Belas-Artes de
Wilno, onde o jovem Chaïm encontrou Kikoïne e
Krémègne. Graças à gene­rosidade de um médico da
cidade, pôde ir para Paris. Na época, ele não havia lido
muita coisa. Modigliani já conhecia Mallarmé e
Lautréamont. Descobrira Nietzsche, D’Annunzio,
Bergson, Kropotkine e muitos outros autores, na
biblioteca da família. O irmão era um mili­tante socialista
que esteve na prisão antes de ser eleito deputado. Na
família de Soutine, ninguém se envolvia em política.
Até a chegada de Barnes, em 1922, Soutine viverá
numa pobreza deprimente. Graças à ajuda da família,
Modigliani viveu alguns momentos de menos privação.
Quando chegou em Paris, em 1906, instalou-se
imediata­mente num hotel burguês da Madeleine. Teve
aulas na Academia Colarossi e, em seguida, alugou um
ateliê em Montmartre. Passou de um quarto de hotel a
outro, morou por algum tempo no Bateau-­Lavoir,
encontrou um puxadinho no final da rua Lepic. E foi parar
em Montparnasse, em 1909. Já tinha gastado o dinheiro
que a mãe lhe mandara da Itália. Nunca se arrependeu.
O importante era ser livre e dedicar-se à sua arte.
Modigliani é corajoso. Quando a Guerra foi declarada,
quis se alistar. Foi recusado. Ficou desesperado, o que
não o impediu de expressar em alto e bom tom sua verve
antimilitarista: levou uma surra por ter insultado
soldados sérvios que passavam por Montparnasse.
Soutine tem medo de tudo. Até dos funcionários
adminis­trativos, que lembram a ele os funcionários
antissemitas do seu país. Só vai às repartições oficiais
em caso de necessidade, sempre acompanhado de
alguém para protegê-lo.
Tem poucos amigos. Nasceu na mesma cidade de
Kikoïne. Os dois estudaram pintura em Minsk. Viajaram
juntos de Wilno para Paris. Moraram nos mesmos cortiços
de artistas. Mas não se falam. Chaïm amua-se com os
compatriotas: Kikoïne e Krémègne, que se vangloria de
ser seu grande rival.
Todos conhecem Modigliani. Em 1907, um ano depois
da sua chegada a Paris, ele conheceu o doutor Paul
Alexandre, que foi seu primeiro mecenas, e um de seus
primeiros fornecedores de ha­xixe. O doutor alugara uma
casa na rua Delta, frequentada pelos artistas pobres,
entre os quais Gleizes, Le Fauconnier, o escultor Drouard
e Brancusi. Modigliani deixava lá seus quadros. Paul
Alexandre comprou uma grande quantidade das suas
obras e con­venceu-o a expor no Salão dos Independentes
de 1908.
Apollinaire ajudou-o a vender alguns quadros. Paul
Guillaume, que foi seu primeiro marchand, lhe foi
apresentado por um outro amigo: Max Jacob. Com este
último Modigliani fala de religião e judaísmo. Ofereceu a
ele seu retrato com a seguinte dedi­catória: “Ao meu
irmão, com afeto”.
Também foi muito ligado a Frank Haviland, que lhe
ofere­ceu sua casa, para que pudesse pintar.
Guiou Anna Akhmátova através de Paris, com quem
reci­tava versos de Verlaine.
Protegeu Utrillo, seu grande amigo da Butte, de quem
se sente mais próximo do que de Picasso.
É também amigo de Soutine. Colocou-o debaixo da sua
asa. Ensinou-o a mastigar de boca fechada, a não enfiar
o garfo no prato dos vizinhos, a não roncar quando
adormece nos restaurantes. Para Chaïm, Amedeo é seu
irmão, a quem devota infinito reconhecimento.
Os dois homens são profundamente diferentes, mas
alguns sólidos vínculos os unem. Modigliani também
destrói, como Sou­tine. Tanto telas quanto esculturas. Em
Livorno, jogou vários már­mores de Carrara no canal da
cidade.
Um e outro partilham o mesmo desejo de
independência. Não pertencem a nenhum grupo. Não
estão ligados aos grandes do Bateau-Lavoir, nem aos
futuristas italianos, aos quais Modigliani recusou apoio.
Não são cubistas nem fauves, não frequentaram a
academia Matisse, vão raramente à casa dos Stein, na
rua de Fleu­rus. Querem ser livres, independentes de
qualquer escola.
Os dois têm que lutar contra um inimigo que os corrói
por dentro. Modigliani sofre de uma lesão pulmonar que
adquiriu na infância e que o álcool e as drogas
transformaram em tuberculose. Soutine é corroído por
uma solitária e por dores estomacais que, agravadas
pela má nutrição, se transformarão em úlcera. O italiano
tem acessos de tosse terríveis que o abatem. O russo
engole quan­tidades impressionantes de bismuto que só
fazem agravar as dores. Enfim, cada um carrega um
drama consigo. O de Chaïm todos co­nhecem: sua
infância. Basta vê-lo andando pelas ruas, curvado, as
mãos enfiadas nos bolsos do casacão surrado para
compreender o quanto pesa a sua história.
Amedeo disfarça o seu sob a exuberância. Talvez o
afogue nas drogas e no álcool. Mas nem a quinquina, os
marcs, as stout, os mandarin-citron, nem o haxixe, nem a
cocaína podem enganar Soutine. Ele sabe da dor
profunda que Amedeo tenta superar. Das lágrimas que
ele sufoca nos braços das mulheres ou nos balcões dos
bistrôs. Sabe, porque moraram juntos na Cité Falguière,
em 1910. Na época em que Modigliani lutava contra si
mesmo, contra as cri­ses da doença, para tentar realizar o
único grande sonho que lhe importava. Não era a
pintura. Era a escultura. Apenas a escultura.

79 Aperitivos. (N.T.)
A Villa Rose

Survage: Por que você me fez com um olho só, no meu retrato?
Modigliani: Porque você olha o mundo com um: com o outro, você
olha dentro de você mesmo.

N o pátio da Cité Falguière, Foujita, Brancusi, Soutine e


o escultor Lipchitz observam Modigliani trabalhando
a pedra. Com o malho e o buril nas mãos, o italiano bate
nos blocos alongados que se torna­rão cabeças e
cariátides. Estas são para ele “colunas de ternura” des‐­
tinadas a um “templo da Beleza”. À sua volta, nenhuma
garrafa, ne­nhum copo: três anos depois de sua chegada
a Paris, Amedeo bebe pouco. Ele ainda não atribui ao
haxixe as virtudes que descobrirá mais tarde: permitir
conceber conjuntos particulares de cores. Visto que,
nessa época, pintar não é seu objetivo.
O italiano observa o sol. Está forte. Da pedra
desprende-se um véu de poeira que lhe aperta a
garganta e desce até os pulmões. Tosse. Bate na pedra.
Para, enche um regador e molha o trabalho. Bate. Tosse.
Deixa cair os instrumentos, dobra-se ao meio, leva a mão
à boca e desiste.
Como não tem dinheiro para comprar a pedra de que
precisa, vai buscar calcário junto aos pedreiros italianos
que constroem o Montparnasse moderno. Quando eles
não podem lhe fornecer o material, convoca alguns
amigos, espera a noite chegar e empurra seu carrinho
até os canteiros de obras desertos, onde rouba o material
necessário. Às vezes, o pequeno grupo desce até o
metrô, então em construção, e rouba algumas vigas, logo
levadas para a Villa Rose.
De noite, Modigliani e Brancusi falam mal de Rodin.
Criti­cam sua modelagem excessiva e a lama que ele
utiliza. Para eles, o talho direto é mais natural. E Rodin é
por demais acadêmico. Preferem as liberdades e as
invenções da arte negra. O trabalho de Modigliani, seus
rostos alongados e deformados traem essa in­fluência:
pode-se ver nisso uma inspiração próxima das peças ex‐­
postas no Museu de Etnologia do Trocadéro, que Matisse,
Picasso, Vlaminck e Derain já descobriram.
Paul Guillaume, que vai se tornar o marchand do
italiano em 1914, expõe na sua galeria da rua Miromesnil
obras primitivas que os inquilinos da Cité Falguière com
certeza conhecem. Georges Charensol conta que, certo
dia em que estava na sua loja em com­panhia de Francis
Carco, viu o marchand pegar uma estatueta do Congo,
abaixar-se e esfregá-la na poeira do chão. Carco pediu a
Paul Guillaume que lhe explicasse o objetivo desse gesto.
“É simples”, respondeu o marchand sem nenhum cons‐­
trangimento. “Estou acrescentando a ela alguns anos.”
Entre 1909 e 1914, Modigliani trabalha a pedra.
Brancusi o ajuda. O romeno chegou a Paris em 1904. Veio
a pé de Bucareste. É filho de um casal de camponeses
pobres, que ele deixou quando ti­nha nove anos.
Aprendeu a ler e a escrever sozinho. Empresta seus
instrumentos e seu ateliê. Para ele, assim como para
Foujita, Zadkine ou Lipchitz, Amedeo é apenas um
escultor. Conhecem seus vários desenhos feitos com
lápis-lazúli, mas não sabem que ele maneja os pincéis.
Em 1914, em The New Age, Beatrice Hastings publica
alguns artigos dedicados a seu amante. Nem uma só vez
ela faz alusão à sua pintura. Para todos eles, Modigliani
não é pin­tor. É escultor. Sua filha, Jeanne, confirma:
A primeira vocação do jovem Dedo, mal saído da infância e nas­cido para
a arte [...] era justamente a escultura.1

Daí vem a tragédia de Modigliani: pouco antes da


Guerra, ele renun­cia a essa vocação. A pedra custa muito
caro. Os compradores são poucos. Ele recusa as
encomendas que lhe permitiriam continuar. Acima de
tudo, a poeira resultante do talho direto realiza um dolo‐­
roso caminho até os pulmões. Modigliani bate. Tosse.
Certa vez, os amigos o encontraram desmaiado ao pé
das esculturas. As tempora­das ao sol, em Livorno, ou em
outros lugares, nada mudarão: sua saúde não lhe
permite tornar-se o escultor que ele sonha ser.
Será então pintor. Suas obras que datam da Guerra e
as que virão depois trazem a marca desse desejo
frustrado: os rostos e os bustos alongados, o estiramento
dos braços, do pescoço, dos corpos, lembram
estranhamente as cabeças esculpidas entre 1906 e 1913.
Naquele ano, Modigliani deixa a Cité Falguière e vai
para o bulevar Raspail. Encontrou um ateliê, num pátio:
uma construção de vidro por cujas frestas passam o frio,
o vento e a chuva. É lá que ele vive, pinta e declama
Dante. Quando o frio o paralisa, busca refúgio junto a
artistas mais ricos, dos quais faz o retrato: desse modo
pode dispor ao mesmo tempo de um teto e do material
que lhe falta. É assim que ele pinta Frank Haviland, Léon
Indenbaum e Jacques Lipchitz ao lado da mulher. Pinta
esse último de uma só vez, como costuma fazer. Lipchitz,
porém, insiste: a seu ver, o re­trato está inacabado.
Amedeo objeta que, se continuar, vai estragar tudo.
Lipchitz não cede: não para obrigá-lo a trabalhar mais,
mas sim para pagar-lhe mais. Finalmente Modigliani se
curva à vontade do freguês. O retrato de Lipchitz e sua
mulher é um dos raros que ele não fez num só
movimento.
Ao sair dessas sessões de trabalho ele vai beber. Passa
do haxixe à cocaína. Um dia, em que os amigos lhe
deram algum di­nheiro para que ele comprasse uma dose
para todos, ele volta “eufórico e fungando, tendo
aspirado tudo sozinho”.2 É exaltado e impetuoso. Mas
tem um grande coração. Vlaminck, geralmente
implacável, diz o seguinte:
Conheci bem Modigliani! Conheci-o quando tinha fome. Pude vê-lo
embriagado. Pude vê-lo com algum dinheiro. Mas sempre generoso e
cheio de grandeza. Nunca percebi nele o menor sentimento mesquinho;
mas pude vê-lo irascível, irritado por constatar que o poder do dinheiro
que ele tanto desprezava contrariava às vezes sua von­tade e seu
orgulho.3

Rosalie foi a primeira a desencadear as


destemperanças do artista. Essa italiana é uma antiga
modelo de Montparnasse. Abriu um bis­trô na rua
Campagne-Première. Cabem 25, se apertar bem. Antes
da Guerra, Rosalie servia macarrão à bolonhesa aos
fregueses da casa: pedreiros que trabalhavam nas
construções do bairro, pintores sem um tostão, ratos
vindos das antigas cavalari­ças vizinhas. A clientela
permaneceu fiel. Se os ratos incomodam, o preço é o
mesmo, e, se o preço não agrada, que procurem outro
lugar. Rosalie é teimosa e só faz o que quer. Atenta, atrás
do fogão, falando alto, Rosalie toma conta das quatro
mesas da antiga leite­ria que ela chama de restaurante.
Quando batem à porta, ela abre. Se o recém-chegado
incomoda, fecha. Aceita todos os que não têm dinheiro:
quando não lhes oferece uma tigela de sopa, vende
fiado. Recusa os avarentos que vêm só porque é barato e
os esnobes dis­farçados de americanos.
Entre os fregueses habituais, tem um carinho
particular por um quadrúpede vindo de Arcueil.
Conheceu o cachorro ao mesmo tempo que o dono:
puxava a carroça que o empalhador empurrava. Este
reformou as cadeiras do botequim. O trabalho durou
quatro dias. O animal aproveitou. Foi embora de barriga
cheia. Quando a esvaziou, era preciso enchê-la
novamente. O cachorro teve uma ideia: fez o trajeto de
Arcueil até Paris. Sozinho, pelo faro. Depois voltou. Isso
durou doze anos. Era certamente o freguês mais fiel de
Rosalie.
Ele e Modigliani.
A taberneira e o artista devotam um ao outro uma
amizade particular: eles se adoram e se provocam o
tempo todo. Ela o acusa de beber demais, ele quer mais
vinho. Para grande alegria dos clientes, eles se insultam
aos gritos. Tudo passa voando, menos os pratos. Quando
é tomado pela raiva, o pintor arranca um dos seus
inúme­ros desenhos pendurados nas paredes e rasga-o.
Quando volta, no dia seguinte, arrependido, traz um
outro. Que logo será destruído. Entre eles, isso é quase
um jogo. Que azeda quando Utrillo também aparece. Não
é raro que os passeios dos dois bêbados terminem na
delegacia da rua Delambre. Nesses momentos extremos,
faz-se necessária a intervenção do delegado Zamaron.
Responsável pelos estrangeiros da chefatura de polícia
de Paris, Zamaron é amigo dos artistas. As paredes da
sua sala são recobertas de obras de arte: Suzanne
Valadon, Modigliani, Sou­tine, Kikoïne e, principalmente,
Utrillo, de quem particularmen­te ele gosta.
Se um pintor fica na pior, Zamaron o ajuda. Quando
não es­tá de serviço, vai do Dôme ao La Rotonde
encontrar os amigos. Fre­quentemente, toma o partido
deles contra Descaves, o outro policial de Paris que
também gosta de arte. Descaves não facilita a vida dos
jovens pintores de Vavin. Troca serviços por telas, às
vezes compra algumas, faz um pequeno adiantamento e
pede ao artista que vá buscar o restante na chefatura,
onde, é claro, ninguém vai.
Quando sai da delegacia, Modigliani vai para a casa de
uns, de outros, ao Dôme, ao La Rotonde ou ao bistrô de
Rosalie. Algu­mas vezes, caminha ao longo do cemitério
de Montparnasse, chega ao bulevar Raspail na altura de
Edgard-Quinet e pega a rua Schoel­cher, à direita.
Caminha ladeando os altos muros do cemitério até um
pequeno prédio cujas escadas sobe rapidamente. Bate a
uma porta. Uma jovem mulher abre: é Eva Gouel. Ela
esconde a palidez do rosto sob uma espessa camada de
maquiagem. Está doente. Fa­la-se de tuberculose. Ela
tentou dissimular a doença para o amante, que entra em
pânico diante do espetáculo do sofrimento. Calou-se
durante muito tempo: tinha medo que ele a
abandonasse. Mas Picasso permaneceu fiel. Acompanha-
a aos médicos e às clínicas onde Eva vai regularmente.
O casal passou os primeiros meses da Guerra no Sul.
Agora, saem muito pouco da rua Schoelcher: nos cafés,
Picasso é frequen­temente insultado pelos soldados em
licença, que não entendem por que esse homem tão bem
acompanhado não está no front.
A janela do ateliê dá para os túmulos do cemitério de
Mont­parnasse. O cômodo, bastante amplo, está
entulhado de tubos, palhetas, pincéis. Temendo a falta de
material, o pintor constituiu reservas consideráveis.
Cerca de quatrocentas ou quinhentas telas estão
alinhadas ao longo das paredes. O chão desapareceu sob
os papéis que Picasso usa para suas colagens. Ele não
parou de pintar: não apenas telas, que a partir de agora
estão mais próximas de In­gres do que do cubismo, mas
também os objetos, as cadeiras, as paredes... Ele não
suporta os espaços vazios.
Está de costas para a janela, de short. As mãos estão
tensas. Parece preocupado. Não é por causa da guerra,
da qual não fala, a não ser para saber notícias dos
amigos: é por causa de Eva. Está atormentado.
Quando Modigliani chega, ele está olhando para um
enve­lope que o carteiro acabou de entregar. Lança ao
visitante um olhar faiscante com aqueles olhos negros
que tanto impressionam. O italiano não se comove.
Conta sua noite. Picasso o ouve distrai­damente. Eva
fugiu para os fundos do apartamento.
Os dois pintores trocam notícias: Kahnweiler está na
Suíça; os irmãos Rosenberg estão comprando cubistas;
Gertrude Stein e Alice Toklas chegaram da Inglaterra e
foram para Palma; Vlaminck está fazendo obuses numa
fábrica de armamentos e, à noite, escre­ve romances
medianos.
“Max Jacob se pergunta como podemos ser
antimilitaristas e dar nosso suor aos militares”, observa
Picasso.
“Ele foi convocado”, objeta Modigliani.
A conversa acaba aí. Amedeo não sabe que sua
exuberância incomoda o espanhol. Este, que está quase
erguendo voo em dire­ção à opulência da alta sociedade,
esqueceu as roupas miseráveis da época do Bateau-
Lavoir. Amedeo nunca saberá que alguns me­ses mais
tarde, por ocasião de um bombardeio, Picasso, tomado
pela inspiração e sem tela, recobrirá uma obra do pintor
italiano, uma natureza-morta feita com a espátula.
Dez minutos depois da chegada do visitante, os dois
ho­mens não têm mais nada a dizer um ao outro.
Modigliani gira so­bre os calcanhares, deixa o ateliê,
desce as escadas e desaparece na escuridão da rua
Schoelcher.
Picasso se volta para o envelope que encontrara antes
da chegada do italiano. É um envelope usado. Bem ao
jeito econômico do amigo que escreve. Mas é um amigo
dos mais fiéis. E Picasso não pode deixar de sorrir ao
imaginar o poeta, tão refinado, tão su­til, vaidoso,
distinto, melífluo como um padre, ingênuo como uma
criança, hoje com os pés no gelo e as mãos na lama!
Abre o envelope e mergulha na leitura das últimas
bravatas militares e amorosas de Guillaume Apollinaire.
As damas e o artilheiro

Se eu morresse lá longe no front. Você choraria por um dia, ó


minha amada Lou.
Guillaume Apollinaire

A pollinaire foi para o Exército. Um poeta na guerra.


Um pouco mais empertigado do que os outros,
porque, para preservar seu lugar no quadro de honra dos
apátridas, ele precisava apagar a lembrança de uma
foto: aquela que fora publicada pelos jornais no outono
de 1911, que o mostrava algemado, sendo conduzido
para a prisão da Santé. Uma enorme vergonha para um
homem que tinha entre suas maiores esperanças a de
ser definitivamente reconhe­cido pelo país que o
acolhera.
Não partiu tão depressa quanto esperava. Sua boa
vontade chocou-se com a papelada: quando se nasce em
Roma, filho de mãe de origem polonesa e de um pai
incerto demais para reconhecê-lo, a situação exige
reflexão. Quanto à Legião, eram tantos os voluntá­rios
que muitos eram recusados.
Enquanto aguardava a decisão das autoridades,
Apollinaire foi ao encontro de alguns amigos em Nice.
Três semanas após sua chegada, está almoçando num
res­taurante da cidade velha. Na mesa ao lado, uma
mulher de trinta anos chama a atenção. Num instante, o
poeta esquece Marie Laurencin, a musa que o traiu e que
acaba de ir para a Espanha com seu novo marido de seis
semanas, Otto von Waetgen, “melhor na gravura do que
na pintura”, segundo André Salmon.1
Aquela que inflama seu coração é morena, bela e
vivaz. Sua voz e seus gestos volteiam por entre os
convidados e os copos de cristal. É ao mesmo tempo
“imprudente e ousada, frívola e descon­trolada”.2 Os olhos
parecem um vulcão, não sabe o que fazer com tanta
energia, a infância foi contida pelas rédeas da
genuflexão, casou-se aos 23 anos, divorciou-se logo em
seguida, tem um nome com uma partícula que cheira a
aventura: Louise de Coligny-­Châtillon.80 Por um lado, se
diz enfermeira voluntária. Por outro, age como uma
mundana frívola e totalmente liberada. Apollinaire fica
emocionado.
No dia seguinte ao primeiro encontro, declara a ela seu
ardor e seu amor. Cinco dias depois, envia-lhe todos os
seus livros. Promete que vai escrever um para ela, só
para ela. Direto e ras­teiro, convida-a para passear com
ele. Sozinha, de preferência. Já é “seu escravo para toda
a vida”.3
Logo em seguida, encontram-se novamente numa casa
on­de se fuma ópio. Depois, em restaurantes, à beira-mar,
nas praias desertas. Em todos os lugares, menos no
hotel. Todas as vezes que Apollinaire tenta avançar um
pouco, Louise murmura que são ami­gos e que devem
continuar assim. Quando ela está relaxada, com o
cachimbo na boca, oferece-lhe a mão e algumas
promessas. O arti­lheiro vai se lembrar disto:
Je voudrais que nous soyons seuls dans mon petit
Bureau près de la terrasse couchés sur le lit de fumerie
Pour que tu m’aimes.814

Quando passa o efeito das drogas, andam de braços


dados, talvez mais do que isso, mas de qualquer forma
ainda não é o bastante. Principalmente quando a jovem
confessa a seu pretendente, quase em êxtase, que seu
coração já pertence a um certo “Toutou”, sol­dado da
artilharia.
“Que importância tem isso?”, pergunta Apollinaire.
“Nenhuma. Posso oferecer a outro.”
“Então venha.”
“Não.”
Dois meses depois dessa dieta, Apollinaire desiste.
Apressa as formalidades do alistamento e se prepara
para partir. É então que Louise cede. E não é pouco nem
muito, mas enlouquecidamente. A ponto de, no espaço
de alguns dias, Apollinaire já quase lamentar por ter se
alistado. Quando a Guerra fora declarada, alguns amigos
lhe propuseram uma fuga para a Suíça. Ele recusou.
Agora, está lotado em Nîmes e bem que gostaria de
mudar de opinião.
Mas é hora de partir. Com o coração a tiracolo.
No dia seguinte, Louise está na porta do quartel.
Pergunta por Guillaume Kostrowitzky, segundo
canhoneiro-condutor do 38o Regimento de Artilharia, 78a
Bateria.
Ele vem ao encontro dela.
Vão para o hotel.
Passam ali nove noites.
Depois, Apollinaire vai fazer seu treinamento.
Descobre o prazer das manobras, de preparar as
sopas, e das chamadas. Aprende a montar a cavalo. Dói-
lhe o traseiro, tem dor de barriga. Não tem dinheiro, fica
profundamente angustiado. Usa bigode, é obrigatório.
Nas cartas, não omite nenhum detalhe sobre a sua
condição de soldado raso para a bem-amada, a quem faz
declarações apaixonadas. Procura tranquilizá-la: a guerra
vai durar no máximo um ano. Talvez menos, segundo
Picabia: este ha­via previsto o conflito cinco meses antes
da mobilização, e acha que termina em fevereiro.
Apollinaire está confiante e patriota: “O valor e a força
dos franceses vencerão. Somos viris. Os outros não
valem quase nada”.5
Quando Lou demora a responder às suas cartas, três
dias para ele é o limite, o canhoneiro se desespera, se
queixa, e lembra a ela suas noites de amor. Esses
momentos o fazem recordar que eles têm outras
práticas. Ameaça-a com o chicote, com o açoite, toma-se
pelo ponta de lança da masculinidade nacional, pronto a
se introduzir ferozmente nas suas trincheiras pessoais
para cum­prir seu dever de homem valente.
Como resposta, ela escreve dizendo que “se
masturba” lendo as cartas dele.
Ele se contém. Manda para ela seu retrato feito por
Picasso. No dia 1o de janeiro de 1915, obtém uma licença
de dois dias e vai encontrá-la em Nice. Passam a maior
parte do tempo na cama. No trem de volta, entre Nice e
Marselha, Apollinaire viaja em com­panhia de uma
desconhecida. Professora de letras no colégio de
meninas de Oran. Chama-se Madeleine Pagès. Ainda vão
se rever.
Cinco dias depois de seu retorno a Nîmes, para seu
grande orgulho, Apollinaire entra para o pelotão dos
aspirantes a oficial. Cavalga cada vez mais e tem aulas
de artilharia. Por que é artilhei­ro? Porque é artista,
responde.
Sua condição de aprendiz militar não lhe causa
nenhum problema. Recebe presentes enviados por Sonia
Delaunay, um aga­salho oferecido pela mulher de
Archipenko, cem trocados de Paul Léautaud, uma carta
de Blaise Cendrars. Este escreve o seguinte: “Je ne peux
pas dire où nous SOMME”.82 Guillaume exulta: a censura
obriga a tantos engenhos! Mas ele sente vergonha de
sua inação e se sente culpado por ainda não estar no
front. Pelo menos esse lento passar do tempo lhe
proporciona o prazer de trocar com a amante uma
correspondência com as mais explícitas fantasias. Como
não pode ver, ele imagina. Sonha com sua bunda.
Imagina o dedo dela “se masturbando” junto com os
dele. Lembra a ela seus 69 e outras figuras geométricas.
Ela é a mulher da sua vida. Perto dela, Annie Playden,
Marie Laurencin, o conjunto de suas amantes, que ele
descreve como sendo todas magníficas e incansáveis na
cama, não são nada: “são m...a”.
Quando ela descreve para ele o menu de seus
arrebatamen­tos com outros, ele mal consegue dissimular
o ciúme. Dois, vá lá. Três, eventualmente. Mais do que
isso, é vício. Um dia em que ela lhe fala muito sobre a
Itália nas cartas, ele lhe pergunta poetica­mente:
“Haveria por acaso um italiano num vaso de flores,
naquela hora?”. Ele, artilheiro casto, levando uma vida
ascética, se com­para a ela, que abre seu coração e sua
cama como se fossem prostí­bulos. Sacanagem por
sacanagem, aconselha a ela que fique atenta, pois as
marcas da volúpia já fizeram murchar seu rosto.
Quando se zanga, não se dirige mais à sua Lou
adorada, à sua querida Lou, a seu coraçãozinho, mas à
“cara amiga”, à “velha coirmã”. Não mais assina “Gui”,
mas “Guillaume Apollinaire”. Mostra-se gentil, demonstra
uma pura amizade, tenta suscitar ciú­mes, que o
deixariam mais seguro, descrevendo garotas que pas­sam
diante dele e que bem poderia levar para o hotel...
Quando lhe parece que o amor entre eles está indo por
água abaixo, apre­senta-se não mais como um amante,
mas como um homem de pos­ses. Envia-lhe dinheiro.
Quando ela vai para Paris, empresta-lhe seu apartamento
do bulevar Saint-Germain. Assume-se como poe­ta. Ela
deve guardar suas cartas e seus versos, pois conta
publicá­-los depois da Guerra. Mostra-se previdente:
escreverá, a partir de então, na parte da frente das
páginas para que possam ser impres­sas rapidamente, e
enviará à parte os trechos mais pessoais. Já escolheu o
título da obra: será Ombre de mon amour.
No dia de Páscoa, Guillaume Apollinaire vai para o
front. É um dos raros momentos da sua vida em que se
lembrará que ainda não é francês, e seu país continua
sendo a Polônia. Lamenta que sua pátria tenha sofrido
tanto com a Guerra. Vê seu povo como o mais nobre e o
mais infeliz de todos. Se parte, é também para defendê-
lo.
No dia 9 de abril, redige um testamento em favor de
Lou. Diz a ela que deve fechar um contrato com o
Mercure de France sobre seu livro Alcools, que, segundo
ele, deve render algum di­nheiro. Faz um balanço da sua
produção literária, dos contratos que foram assinados,
dos que não foram, dos adiantamentos e das
porcentagens que ela pode reivindicar se, por
infelicidade, ele próprio não puder fazê-lo. Enquanto
espera, ela deve se comportar correta­mente no
apartamento do bulevar Saint-Germain. Por um lado, por‐­
que no mesmo prédio mora um senador; por outro,
porque ele está dispensado do aluguel enquanto durar a
Guerra, e pretende preser­var esse direito; finalmente, ele
acha que farrear em Paris, enquanto outros estão lutando
em Verdun, não é de bom-tom.
Quando Lou se queixa de anemia, responde ora como
o marido viril que gostaria de ser: “vacine-se”; ora como
o amante atencioso que já não é mais: “deixe a água do
banho esquentar por vinte minutos”; ora como o
ciumento furioso que não consegue esconder suas
agruras: “se você não beijasse na boca esses porta­dores
de tifo, não estaria doente...”.
Tirando o último conselho, dirige-se a ela com tanta
auto­ridade quanto sua própria mãe, a Kostrowitzka, que
exige que ele lhe escreva, que lhe diga onde dorme, que
quer saber quem é essa “condessa” de Coligny – é
jovem, velha, viúva? Suas reprimen­das mostram bem o
quanto ela desconhece da situação do filho­ – o que faz
pensar que, no fundo, isso não lhe interessa, imperiosa
egoísta que é, devotada primeiramente, e antes de tudo,
a ela mes­ma. No mesmo tom que empregava dez anos
antes, pede ao filho (de 34 anos!) que preste atenção ao
cavalgar despreo­cupadamente pelos bosques, para não
se chocar com os obuses, os quais, parece, fazem
enormes buracos, “e seria horrível se você caísse lá
dentro com o cavalo! E mesmo sem cavalo”.6 O pior,
segundo a Kostrowitzka, são os obuses que explodem
nas florestas. Porque derrubam as árvores. Daí o duplo
conselho materno: “Pres­ta atenção para não ser atingido
por uma árvore”; “Pede todos os dias à Virgem Maria que
te proteja”.
No dia 11 de abril, o poeta se torna um verdadeiro
soldado. Para seu grande orgulho, é nomeado agente de
ligação. Monta a cavalo ao ar livre, é o camarada dos
seus camaradas, escreve à luz tênue de um lampião
alimentado por gordura de boi. A Guerra até que não
parece má.
Torna-se íntimo de Toutou, o outro amante artilheiro.
Quan­do encontra Lou, pede-lhe que transmita a ele suas
saudações. Através dela, dirige-se ao rival como a um
confrade: conta-lhe seus progressos em relação ao tiro,
pergunta-lhe se não tem um medidor de campo
sobrando... Quando não recebe notícias, não hesita em
empregar outros meios: envia cartas registradas para
Toutou, soli­citando-lhe novidades da bem-amada
comum... Lembra a esta, de maneira um pouco seca, que
se alistou para defender a pátria dela.
A bela, infelizmente, parece distante. A carne se apazi‐­
guou. O poeta está sempre “erguido como um canhão
75”, mas a artilharia da frente não responde mais. Ou
muito pouco. Continuam a se tratar de “meu Gui”, ou
“minha Lou querida”. As gentilezas também continuam.
Apollinaire manda dinheiro sem reclamar. Num desses
anéis que os poilus83 confeccionam com as cápsulas dos
obuses, ele grava palavras de amor. Do alto da autori‐­
dade que se atribui, lembra à moça que ela lhe pertence.
Pelo menos em um domínio: “Lou só fala quando está na
cama”.
Sugere a ela que procure na sua biblioteca Les onze
mille verges, ordena-lhe que não comente com ninguém,
mas que se deleite. Também pode se divertir com o
Nouveau chatouilleur des dames, incluído em um dos
tomos de L’enfer de la bibliothèque nationale, iniciado
por ele.
Quando ela responde irregularmente às suas cartas,
ele lhe passa um sabão. E fica irritado quando ela lhe
envia chá em table­tes, pois deveria saber que os tabletes
só derretem na água ferven­do, e que água fervendo na
guerra não existe... Essas exasperações que se alternam
com as declarações de amor mais ardentes tradu­zem a
dor do poeta. Mais uma vez ele é o mal-amado da
história. Lou se afasta, como se afastaram Annie Playden
e Marie Lauren­cin. Ela concorda em ser sua amiga, sua
correspondente, talvez sua amante, mas é exatamente
esse talvez que desespera o artilheiro: ele quer tudo. O
homem é o senhor, a mulher se submete, ficam juntos
por toda a vida, o amor tem que ser correspondido.
Senão, é melhor ir procurar em outro lugar.
O outro lugar pode ser o colo de uma amiga da irmã de
um amigo que, desde 1915, escreve regularmente ao
poeta. Chama-se Jeanne Burgues-Brun, escreveu um
romance e alguns versos sob o pseudônimo de Yves
Blanc. No começo, e também no fim, ela é sua madrinha
de guerra. O artilheiro tentou sutilmente arrastá-la para
perto do seu coração, mas a jovem recusou
categoricamente: “nada de flerte entre nós”. Nem
mesmo uma foto. Apesar da insistência do soldado, ela
nunca lhe enviou um retrato, e seus contatos serão
apenas literários. Só se encontrarão uma vez, no final da
Guerra, nos jardins do Luxembourg.
Azar o dela.
De qualquer maneira, há uma outra.
É a moça que ele encontrou no trem, em janeiro de
1915. Era muito jovem: não teria mais de vinte anos.
Tinha longos cílios. Viera passar o Natal com o irmão, que
morava em Nice, e estava voltando para Oran. Ele
beijara Lou, no corredor. Quando o trem partiu, Guillaume
sentou-se em frente da desconhecida. Conversa­ram um
pouco. Sobre Nice, sobre Villon, sobre Alcools, lançado
dois anos antes... Em Marselha, ele a ajudou a descer e
levou sua mala. Depois, nunca se sabe, pediu o endereço
dela.
Quem não arrisca não petisca. Em abril, Apollinaire dá
de ombros para Lou, que não escreve há três dias.
Manda um cartão­-postal para a desconhecida, seus
respeitos e beija-lhe a mão. Cuida das frases. Duas
semanas mais tarde, na rede do pescador há um peixe
para ele: um maço de cigarros enviado de Oran. É mais
do que ele esperava. Isso merece uma resposta. Escreve
com cuidado. Mistura um pouco de guerra, considerações
gerais, alguns versos, um elogio: “que maravilhosa
lembrança daquela viagem de trem! Respeitosamente,
Guillaume Apollinaire”.
Passam-se seis dias. Chega um cartão. É o bastante
para que o “senhorita” do começo vire “pequena fada”,
mais doce, menos impessoal, um passo à frente. Mas
Guillaume gosta de avançar mais rápido. Lança uma isca:
fala de Goethe, de Scott, de Nerval e, no meio de uma
frase, de Laclos e de seus vícios em letras maiús­culas;
ora, vejam só como o acaso é estranho: esse Laclos
também não era artilheiro?
Chegamos às mãos: Apollinaire se propõe a fazer e
oferecer­-lhe um anel. Será que ela poderia lhe mandar a
medida de um dedo? Não, o indicador não! Nem o dedo
médio! O anular, é claro. E também, já que falamos
nisso, uma pequena fotografia. Ele a co­locaria ao lado do
sabre e do revólver, que é também, que coinci­dência, o
lado do coração.
Ele deve ter se precipitado. A resposta é menos
espontânea do que as anteriores. Gentil, amável, mas
sem calor. Por sorte, esse comedimento não dura muito.
A moça envia-lhe chocolates. O sol­dado responde com
pétalas de rosa e um outro anel, com pedra de couro, e
um “M” gravado, de Madeleine.
Ele reclama que ela assina suas cartas com um MP frio,
ao que ele contrapõe, cinco semanas depois do início da
correspon­dência entre eles, um “Minha pequena fada
adorável”. Que se tor­na “Minha pequena fada muito
querida” alguns dias depois. E, no dia 10 de julho de
1915, com um suspiro de êxtase o artilheiro vai direto ao
alvo: “Fiquei apaixonado desde que a vi”.7
No dia seguinte ele manda um “Minha querida Lou” à
se­nhorita que está na casa dele no bulevar Saint-
Germain. Mas se o coração ainda estremece, o tom é
outro...
Entre a França e a Argélia, chovem os obuses-
presentes: o artilheiro recebe água-de-colônia, manda
um porta-caneta feito por ele mesmo com “duas balas
boches”. Madeleine responde com lenços, cordões de
seda, cigarros nougats, balas de mel crocantes como
beijos. Ele lhe envia lápis, tinteiros feitos com cápsulas
de balas, abridores de carta forjados com martelo,
corações recortados dos cinturões dos inimigos,
carregadores, seu quepe, asas de bor­boleta, livros e
poemas que, com a prudência habitual, ele lhe pe­de que
guarde, em vista de publicações futuras.
Muitos desses poemas já foram recebidos por Lou ou
pela madrinha, mas pouco importa: vale a intenção, e a
intenção não é a mesma. Com Lou era apaixonado,
passional, físico, violento. Não se pode ir tão depressa
assim com Madeleine, que é tímida, mal conhece os
homens, mas certamente conhece os procedimentos.
Apollinaire retira a pele carnal para colocar as luvas de
poeta. À exceção de um beijo depositado mais tarde nos
seios da moça, ele é literário, comportado, delicado, ao
mesmo tempo doce e autori­tário, como ele mesmo
reconhece. Não fala mais de chicotes, de açoites, de
surras, mas evoca um quadro de Fragonard, La correc­tion
conjugale. Assim como quem não quer nada.
É tão sincero com Madeleine quanto havia sido
pretensioso com Lou. Pois não precisa mais desfilar ao
som de cornamusas amorosas e eróticas. Numa carta de
julho de 1915, abre seu coração. Ele admirava – e ainda
admira – o talento de Marie Laurencin, inspiradora de
Pont Mirabeau e de Zone. Acreditou que amava Lou, que,
finalmente, era só uma mulher cheia de encantos que o
ajudou a esquecer a dor causada pelo rompimento com
Marie; tem pena dela, que é um brinquedo nas mãos dos
homens; ligou-se car­nalmente a ela, mas seu espírito
sempre ficou distante.
Madeleine? A ela pôde dizer tudo de bom que pensa
sobre Gogol, e todo o mal que deseja a Henry Bordeaux.
A literatura é um dos principais assuntos da
correspondência entre eles. O resto gira em torno da
guerra (é evidente), e do seu amor. Propõe que tenham
vários filhos. Depois, que fiquem noivos. No dia 10 de
agosto de 1915, pede sua mão à mãe dela. Depois disso,
se com­porta como genro: afirma que gosta muito da
mamãe da sua noiva, que no entanto ele nunca viu.
Promete que vai pedir uma licença para visitá-la.
Escreve-lhe. Beija-a como um filho...
Os pombinhos já se tratam com intimidade. Madeleine
manda fotos. Ele busca por suas curvas, para além das
linhas cor de sépia. Seus quadris, os seios. Poderá, em
seguida, solicitar-lhe que seja menos pudica. Pedir-lhe,
por exemplo, que contribua para o prazer do seu olfato –
do qual se gaba – colocando nas cartas o perfume dos
seus cabelos. Para agradecer a ela a boa von­tade, envia-
lhe uma reunião de poesias, Case d’armons (é assim que
ele chama a caixa que transporta o canhão 75), escrito e
poli­grafado sobre folhas gelatinosas com a ajuda de seus
companheiros artilheiros e cuja capa foi ornamentada
com a seguinte menção simbólica: “AOS EXÉRCITOS DA
REPÚBLICA”. Manda-o também para Lou, assim como
recibos de venda. “Tenta vender alguns.”8 O di­nheiro
arrecadado será para ela: “Se você vender apenas vinte
a vinte francos, já dá para pagar teu dentista...”.
No dia 25 de agosto, o sargento Apollinaire,
recentemente promovido, dá a notícia à família da noiva.
Fica muito orgulhoso. E muito contente, um mês depois,
por usar o novo capacete cinza, que não brilha mais ao
sol, e o uniforme azul, que de longe muda de cor
confundindo o inimigo. Aliás, o que interessa a Apollinaire
é menos esse quesito de segurança do que a qualidade
sedosa do tecido, que agrada à sua vaidade.
Mas não será por muito tempo.
Em novembro, se oferece como voluntário para a
infanta­ria. É nomeado subtenente no 96o regimento da
linha de frente. A guerra de chinelos acabou. Ele conhece
as trincheiras e a miséria dos poilus.
O poeta se torna soldado.
Até então, tinha mantido uma correspondência
coerente com umas e outras sem esquecer os amigos
parisienses. Enviara ar­tigos ao Mercure de France, ou a
outro jornal, e se preocupara com a publicação e a
repercussão. O barulho dos obuses, miando como gatos,
o alegrara. Os tiros da artilharia eram como fogos de
artifício. Dormia em cabanas cobertas com lona de
tenda. Olhava com satisfa­ção para as cobras que se
enroscavam nos seus pés, os ratos fugindo por entre
suas pernas, as moscas cujo nariz parecia o dos
buldogues, as aranhas, tão engraçadinhas. Só se
queixava do tédio. Enquanto seus amigos de Montmartre
e de Montparnasse se preocupavam, querendo saber
como o seu gosto pelo conforto estava se arranjando
com os rigores à sua volta, ele mesmo não se
incomodava.
“COMO A GUERRA É BONITA!” Essa inscrição, que ele
gravara no seu tubo de creme dental, em 1915 (e que
lembra “Ah, meu deus! como é bonita a guerra”, de
Calligrammes), vai ficar breve­mente parecendo coisa do
passado – mesmo se os primeiros baru­lhos dos dispares
dos canhões lhe parecem, no início, “surpreen­dentes”.
O front é outra coisa. De forma brutal, o subtenente
Kostrowitzky descobre os sinalizadores, as
metralhadoras, os Marie-Louise, as caixas de merda, os
baldes de carvão caídos do céu, os canhões, o horror da
vida na trincheira. O boche diante deles, a menos de dois
metros. A terra aberta, revirada pelo tiro­teio. Ele está na
linha de frente, deitado na terra coberta de san­gue, com
a cara no canhão. Dorme na lama, e às vezes nem
dorme. Treme de frio. Lava-se quando pode, sofre o
ataque das armas e dos gases. O arame farpado espeta,
e há os vermes e os piolhos. Protege-se atrás de sacos de
areia ou de montes de cadáveres. Aprende a cavar, a
construir, de noite, como um troglodita da es­curidão. Em
alguns meses seu regimento já perdeu milhares de
homens. Os companheiros vão tombando um após o
outro. Do front, Apollinaire envia uma carta a Madeleine
na qual suplica-lhe que o espere se for feito prisioneiro.
Faz dela sua herdeira, em substituição a Lou, a quem
tinha legado sua fortuna em março.
Claro que ele pensa na morte. Mas nem por isso tem
medo. Nunca se queixa, a não ser das autoridades
militares que convo­cam conselhos de guerra por tudo e
por nada. Se for preciso lutar, ele é o primeiro a sair das
trincheiras. Demonstra uma coragem extraordinária.
Seus homens gostam dele porque ele os protege,
certifica-se de que têm o que comer, divide sua munição
e seus presentes com eles, e também suas cobertas,
quando estão menos molhadas. “Kostrowitzky” é muito
complicado: eles o chamam de “Kostro l’exquis” ou
“Cointreau-whisky”.
Mergulhado no tumulto da guerra, “Cointreau-whisky”
luta. Quando dispõe de um segundo, escreve para
Madeleine. A violência e a raiva que o dominam vencem
sua costumeira mode­ração. Em dezembro, envia-lhe uma
carta impetuosamente erótica. A única. No seu
pensamento, no âmago das suas esperanças, ela
certamente lhe abre as portas para a licença que ele vem
pedindo há meses.
A licença virá no Natal. Será seu melhor presente. O
subte­nente parte do front e vai diretamente para
Marselha. Sem mesmo passar por Paris, onde estão os
amigos. Depois de meses de assídua troca epistolar, ele
só tem uma premência: chegar a Laumur, na Argélia, e
descobrir finalmente essa jovem de 22 anos cuja mão ele
pediu, e que só viu por algumas horas, num trem, um
ano antes. Quando o artilheiro ainda não era hussardo...

80 Nos sobrenomes franceses, a partícula “de” indica ascendência nobre.


(N.T.)
81 Gostaria que ficássemos a sós no meu pequeno escritório/ Próximos ao
terraço, dei­tados para fumar/ Para que possas me amar. (N.T.)
82 “Não posso dizer onde estamos.” A frase da carta traz um erro assinalado
pelas maiúsculas: SOMME (cuja grafia correta deveria ser sommes). Isso
permite a Apollinaire saber onde está o amigo: no departamento (ou no rio)
do Somme, no norte da França. (N.T.)
83 Termo que designa o soldado francês da Primeira Guerra. (N.T.)
O escritor da mão cortada

A primeira qualidade de um romancista é ser mentiroso.


Blaise Cendrars

M “ando-te notícias de um dos meus amigos, um dos


melhores poe­tas da atualidade: Blaise Cendrars.
Teve o braço amputado.”1
No dia 6 de novembro de 1915, Guillaume Apollinaire
anun­ciava a Madeleine o ferimento de Frédéric Sauser,
vulgo Blaise Cen­drars, cidadão suíço, coautor, junto com
o italiano Ricciotto Canu­do, do apelo aos estrangeiros
para defenderem a França.
Cendrars era um furão. Com menos de trinta anos,
passou e repassou pelo mundo inteiro. Fugiu de casa aos
quinze e saiu por aí, de país em país, Alemanha,
Inglaterra, Rússia, Índia, China, América, Canadá – antes
de arriar as malas em Paris, uma pri­meira vez em 1907;
a segunda, dois anos antes da declaração de guerra.
Exerceu mil profissões. Foi se aperfeiçoando ao contato
com todas as populações e todas as classes sociais.
Defendeu em alto e bom tom concepções libertárias e
anarquistas. Também é poeta. Poeta viajante.
Em Nova York, em 1912, no dia de Páscoa, sufocado
pela miséria, entrou numa igreja presbiteriana. Queria se
aquecer, sen­tar, ouvir alguns compassos de A criação, de
Haydn. Quando vol­tou para o quarto, sentou-se à mesa e
começou a escrever um poe­ma. Adormeceu. Despertou
algumas horas depois e continuou seu trabalho. Foi
assim durante a noite toda. Pela manhã, com a cabeça
mais descansada, releu. Essa obra, nascida da tristeza,
chamou-se Les Pâques à New York.
Três meses mais tarde, Cendrars está em Paris. Vive de
pequenos expedientes e de ousadias. Junto com alguns
amigos anarquistas funda uma revista, Les Hommes
Nouveaux. Financia o primeiro número vendendo
entradas para um espetáculo organi­zado por ele no
Palais Royal. Mora com outro poeta, num quarto de hotel,
na rua Sainte-Étienne-du-Mont. A miséria é a mesma de
sempre. Anda pelo Dantzig, perto da Ruche. Bebe vinho
branco no Cinq Coins. Mal consegue ganhar a vida
colaborando para re­vistas e vendendo edições originais,
compradas alguns anos antes. Na Ruche, encontra
Modigliani, Chagall e Fernand Léger. Durante uma
conferência sobre o anarquismo, cruza com Victor Serge,
que traduzirá para o russo seu primeiro romance, L’or.
Mas seu maior desejo seria conhecer Guillaume
Apollinaire. Por quê? Porque ele defende as vanguardas.
Porque um sujeito sus­peito de roubar a Mona Lisa é
certamente um aventureiro.
Quando voltou das Américas, Cendrars tinha enviado
seu poema Les Pâques à New York a Apollinaire. Não
obteve nenhuma resposta. Certo dia de setembro de
1912, o poeta errante passa pela livraria das edições
Stock. Descobre L’hérésiarque & Cie. Começa a ler. Como
não tem dinheiro, coloca disfarçadamente o volume no
bolso e vai embora. Mas se deu mal: um policial que
estava pas­sando o viu. Blaise é preso e levado para uma
cela na delegacia. Que faz ele? Escreve para o autor de
L’hérésiarque, pede-lhe que pague às edições Stock e
que interceda para que seja liberado. Mas as por­tas da
prisão se abrem antes que tenha tido tempo de enviar a
carta.
Alguns meses depois, Cendrars encontra Apollinaire no
Flore (essa é a versão defendida por Miriam Cendrars;
outros afir­mam que Apollinaire escreveu para Cendrars
depois de ter rece­bido Les Pâques à New York, pedindo-
lhe que fosse vê-lo).
Apollinaire é sete anos mais velho do que o autor de
Pâques. Está na companhia de Robert e Sonia Delaunay.
Segundo Salmon, Delaunay ficou conhecido ao pintar
peixes vermelhos de azul. Era totalmente desprovido de
humor e nunca sorria. Apollinaire, por sua vez, o
considerava como o grande mestre do orfismo, e
elogiava a maneira como ele e a mulher se vestiam:
Sonia de tailleur violeta, corpete feito de retalhos, tafetá
e tule rosa, azul e escarlate; Robert de sobretudo
vermelho com gola azul, sapatos bicolores, paletó verde,
colete azul, gravata vermelha. Isso foi antes da Guerra.
Em agosto de 1914, o casal se mandou para a Espanha...
Blaise ligou-se primeiramente a Sonia Delaunay, com
quem fala em russo. Ela o convida para ir ao seu ateliê,
na rua Grands-­Augustins. Lá, diante de vários
convidados, entre os quais – afir­mam alguns – Guillaume
Apollinaire, Cendrars lê Les Pâques à New York:
Seigneur, c’est aujourd’hui le jour de votre Nom,
J’ai lu dans un vieux livre la geste de votre Passion,
Et votre angoisse et vos efforts et vos bonnes paroles
Qui pleurent dans le livre, doucement monotones...84

Todos ficaram encantados. Uma liberdade total na


métrica dos ver­sos, uma aproximação sem floreios do
mundo moderno, das cida­des, das ruas, dos
transeuntes... uma oposição definitiva ao antigo
simbolismo.
Apollinaire ficou extremamente impressionado (mas se
essa sessão de leitura realmente aconteceu, ele já o
estava: Cendrars, como vimos, tinha lhe enviado o
poema). Naquele momento, ele está trabalhando numa
nova coletânea de poemas que o Mercure de France
publicará em abril: é Alcools, que ainda se chama Eau de
vie. Apollinaire reúne as obras compostas desde 1898,
classifica-as em ordem cronológica e então decide
bruscamente suprimir toda a pontuação: considera que o
ritmo dos versos é o bastante (Pierre Reverdy utilizará,
por sua vez, espaços brancos dispostos entre as palavras
e os versos, procedimento que Jean Cocteau também vai
usar em Le Cap de Bonne-Espérance).
Quando está corrigindo as provas, decide começar o
livro por um novo poema, composto provavelmente
durante o verão, lido na casa de Gabrielle Buffet e
Picabia, no Jura. Foi nesse momento que ele encontrou o
título para essa obra, Zone2, publi­cada pela primeira vez
em dezembro no Les soirées de Paris:
À la fin tu es las de ce monde ancien

Bergère ô tour Eiffel le troupeau des ponts bêle ce matin

Tu en as assez de vivre dans l’antiquité grecque et romaine

Ici même les automobiles ont l’air d’être anciennes


La religion seule est restée toute neuve la religion
Est restée simple comme les hangars de Port-Aviation85

Mesma modernidade de Cendrars, versos sem métrica


(não é novi­dade em Apollinaire), a cidade, a rua, e
também a religião...
Quando Alcools sai nas livrarias, Cendrars elogia Apolli‐­
naire. Mas, por outro lado, está magoado: Zone se parece
demais com Pâques. Sabe por meio de terceiros que
Guillaume ficou zan­gado porque ele não escreveu nada
sobre Alcools. Então, envia ao mais velho uma carta
curta, na qual faz-lhe uma crítica velada por não lhe ter
dedicado Zone. A questão da anterioridade de uma das
duas obras sobre a outra pesa de verdade no
relacionamento entre os dois homens. Isso explica a
frieza que Cendrars manifesta em relação a Apollinaire,
com este tentando, em vão, obter uma expli­cação que o
poeta suíço se recusa a dar.
A discussão, porém, termina por aí: ninguém pode
provar nada, nem irá provar. Nem mesmo Tristan Tzara,
que, segundo Jacques Roubaud, mostrava às vezes uma
cópia das provas de Alcools corrigidas segundo a Prose
do transsibérien, e comentava maldosamente: “Vocês
todos acreditam que foi Apollinaire que fez tudo! Mas há
também algo de Cendrars!”.3
Com um detalhe: os poemas de Alcools são anteriores
ao Transsibérien, obra na qual, aliás, o autor presta
homenagem a Apollinaire:
“Perdoem-me por não mais seguir a antiga disposição dos versos”, como
diz Guillaume Apollinaire.4

A esse pequeno exercício, poder-se-ia acrescentar que


alguns Sonnets dénaturés, escritos em 1916, fazem
pensar em Calligrammes. Ou que os poemas não
pontuados de Cendrars foram compostos depois de
Alcools... Mas Apollinaire não é Picasso e Cendrars não é
Braque. Entre eles não há nenhuma cordada em comum.
As fontes de inspiração dos dois poetas são próprias de
cada um, mesmo se elas se cruzam e encontram outras:
a modernidade dessa época já havia se expressado na
pintura através do cubismo e do futu­rismo... Apollinaire
não precisava, evidentemente, de Cendrars para
escrever, e Cendrars não desejaria se tornar um inimigo
de Apollinaire. De qualquer modo, Blaise terá sua
revanche, se é que ele a procurava, mais tarde: ele vai
afirmar que o título de Alcools, que substituiu Eau de vie,
era invenção sua.
Talvez sim, talvez não. Cendrars, e isso fazia parte das
suas infinitas características, adorava confundir...
Segundo Hemingway, “um bom companheiro, quando
não bebia demais e, naquela época, era bem mais
interessante ouvir suas mentiras do que escu­tar as
histórias verídicas contadas por outros...”.5
Será que Cendrars acredita sinceramente que, além de
Apollinaire, teria também inspirado Charles Chaplin, o
qual, se­gundo ele, lhe teria roubado o personagem de
Bikoff, camuflado de tronco de árvore em La main
coupée, e que aparece igualmente em Charlot soldat?866
Será que foi ele que copiou na Biblioteca Mazarine, a
man­do de Apollinaire, que por sua vez agia a mando de
outro, os Ro­mans de la Table Ronde que as edições Payot
publicaram depois?
É possível.
Teria ele escrito, como afirmou, para serem publicados
em nome de Apollinaire, livros eróticos ou alguns
capítulos de obras históricas romanceadas das quais
René Dalize, Maurice Raynal e André Billy redigiam
outros fragmentos?
Talvez sim, talvez não.
Será que ele inventou totalmente o enterro de
Whitman, tal como Apollinaire o descreveu em um dos
números do Mercure de France, de 1913, o que valeu ao
pai de Alcools a ira de Stuart Merril e de numerosos
leitores dessa revista tão comportada?
Com certeza...
Walt Whitman era um dos maiores poetas americanos
do século XIX. Na França, sua única coleção de poemas,
Folhas da relva, sempre acrescida ao longo dos anos,
tinha notadamente in­fluenciado os poetas de Vers et
Prose. Sua existência certamente fascinava o jovem
Cendrars, que partilhava com Whitman o gosto pelas
viagens, pela mais diversificada fauna e pela liberdade.
Ele descreveu para Apollinaire o enterro do poeta, morto
vinte anos antes. A partir dessas informações, que lhe
pareceram verdadeiras, Apollinaire se abandonou a um
lirismo dos mais elaborados. Como o artigo foi publicado
no dia 1o de abril no Mercure, era possível pensar que se
tratasse de uma brincadeira. Aliás, com certeza era. Mas
só para Blaise Cendrars.
Segundo o cronista do Mercure de France, Whitman
tinha organizado seu próprio enterro. Não como uma
simples ida para debaixo da terra, mas como uma
excelente ocasião para um festim. Tinha então previsto
banda de música, comida, cerveja e uísque... A multidão
era composta de festeiros alcoólatras aos quais se mis‐­
turavam jornalistas, políticos, fazendeiros, pescadores de
ostras, jovens imberbes, pederastas em quantidade...
Todos haviam acom­panhado o cortejo fúnebre dando
socos no caixão. O enterro ter­minou com uma
monstruosa orgia. A polícia foi chamada e efetuou
cinquenta prisões.
Apollinaire se esmerou. Os leitores também. Foi uma
grita­ria geral: como uma revista tão séria quanto o
Mercure de France podia tolerar artigos como esse que
faziam de Walt Whitman um homossexual depravado e
alcoólatra?
Oito meses depois, Apollinaire teve de responder.
Assumiu total responsabilidade pelo artigo. Lembrou que
o havia escrito a partir da narrativa de uma testemunha.
Recusou-se a dizer o nome, contentando-se apenas em
precisar que a história lhe havia sido contada “na
presença de um jovem poeta de talento, o senhor Blaise
Cendrars”.7 Desta vez, o jardineiro87 não se molhou, mas
teve que se comportar.
Finalmente, teria Cendras também inventado
totalmente a narrativa da morte e do enterro de
Apollinaire, narrativa onírica, é verdade, mas inverossímil
do princípio ao fim?
Com certeza. Sobretudo porque ninguém o viu na
cabecei­ra do poeta, onde ele dizia ter estado.
Apollinaire sempre admirou Cendrars e nunca
escondeu isso. Cendrars também admirou Apollinaire,
mesmo que nas suas palavras apareçam, algumas vezes,
certas sutilezas que alguns po­deriam explicar como
sendo uma ponta de inveja.
Apollinaire 1900-1911
Durante doze anos o único poeta da França

escreve Cendrars em Hamac.8 Por que doze anos? Porque


depois chega Cendrars...
Depois da Guerra, os dois homens dissiparão
rapidamente as brumas que havia entre eles. Em 1918,
as edições Sirene, onde Cendrars será diretor literário,
publicarão Le flâneur des deux rives, de Apollinaire. Mais
tarde, na sua correspondência, Blaise reto­mará uma
expressão que pertence a Apollinaire, e isso soa como
uma homenagem definitiva ao amigo poeta: precedendo
sua assi­natura, ele recorrerá a essa fórmula que todos os
companheiros de Apollinaire conhecem: Com minha mão
amiga...
No dia 3 de agosto de 1914, dia seguinte à declaração
de guerra da Alemanha à França, Blaise Cendrars alista-
se. Um mês depois, ele se casa. Mais alguns dias e ele se
junta ao 1o regimento de estrangeiros de Paris.
Um ano de guerra por sua pátria adotiva. No início,
como Apollinaire, como Cocteau, Cendrars descobre um
mundo que fascina sua imaginação de poeta. Mas isso
não dura. Até porque ele não abdica daquele anarquismo
que o torna mais insolente, mais livre, mais crítico em
relação aos militares. Seu olhar se torna zombeteiro
desde os primeiros dias. Sob sua pena, o espe­táculo é
surpreendente: a tropa atravessa Chantilly, onde Joffre e
seus tocadores de pífaro se debruçam sobre os mapas do
Estado­-Maior. O grande general não quer ser incomodado
pelo barulho das botas da infantaria batendo no solo em
cadência. Para asse­gurar o silêncio necessário à reunião
estratégica desses neurônios “branco, azul e
vermelho”88, Joffre manda cobrir as ruas da cidade com
palha.
Cendrars zomba ainda mais quando seu regimento é
encar­regado de chegar até o Mar do Norte. É preciso
andar rápido para bloquear a passagem do inimigo. Mas
como também é preciso trei­nar para chegar preparado
ao combate, os oficiais têm uma ideia genial. O gênio
militar nunca se comparou ao civil. Dessa vez, a tropa
será escoltada pelos trens que deviam transportá-las!
Equi­pamento nas costas, os soldados se esfalfam ao
longo da via férrea sob o olhar cheio de carvão, vazio e
descansado de uma locomoti­va vagarosa. Arte maior.
Blaise suporta tudo: os trotes dos veteranos, as tarefas
pe­sadas, o front, o corpo a corpo. Ele aguenta porque a
seu lado, sempre, estava um homenzinho ainda
desconhecido que ele iria transformar em grande
personagem: Moravagine. Foi seu melhor companheiro
dos tempos de guerra e, principalmente, o mais fiel: os
demais morriam uns atrás dos outros.
No dia 28 de setembro de 1915, na Champagne, um
obus cor­tou a mão amiga do escritor. Blaise Cendrars
perdeu o braço direito.
Em maio, em Carency, quando combatiam no mesmo
regi­mento, Braque foi ferido na cabeça e Kisling recebeu
um golpe de baioneta. Esses ferimentos fizeram com que
os três fossem refor­mados. E recebessem ainda um
prêmio de consolação, que não podia ser desprezado: a
cruz de guerra com as folhas de palma. E,
principalmente, a promessa de uma recompensa à qual
aspiravam Kisling, Cendrars e todos os artistas
estrangeiros que combatiam nas trincheiras: a
nacionalidade francesa.

84 Senhor, hoje é o dia do Vosso Nome,/ Num velho livro li a gesta da Vossa
Paixão/ E Vossa angústia e Vossos esforços e Vossas palavras bondosas/ Que
choram no livro, numa doce monotonia... (N.T.)
85 Ao final estás cansado desse antigo mundo/ Ó torre Eiffel pastora o
rebanho das pontes bale esta manhã/ Estás cansado de viver na antiguidade
grega e romana/ Aqui até os automóveis parecem antigos/ Só a religião
permaneceu bem nova a religião/ Permaneceu simples como os hangares de
Port-Aviation. (N.T.)
86 Charlot soldat (Shoulder Arms), curta-metragem mudo de Chaplin, de
1918. O romance de Cendras La main coupée só foi lançado em 1946, mas
ele e Chaplin divi­diram um quarto de hotel em Londres antes da Guerra.
(N.T.)
87 Ver nota a respeito na página 173. (N.E.)
88 Bleu blanc rouge (as cores da França): franceses. (N.T.)
O príncipe frívolo

...Antes dele, nos cafés do bulevar Montparnasse, só ecoavam as


grandes discus­sões entre pessoas e escolas; depois dele, todos
se perderão, de um jeito mais bonito, em muitas voltas e
volteios, como se ele tivesse, de brincadeira e sem dizer nada,
transmitido a cada um sua arte pessoal da “enrolação”.
André Salmon

P aris desconcerta aqueles que voltam. Depois de


aproveitar quinze dias de licença nos braços da noiva
oficial, Apollinaire passa algu­mas horas em Paris. A
cidade está em guerra, mas não é o front, longe disso. É
verdade que os zepelins atacam quase todas as noi­tes.
Precedidos pelas sirenes de alerta, eles evoluem,
cinzentos e oblongos, a 150 metros de altura. Os
canhões se esforçam para alcançá-los. No rastro de luz
dos projetores, os pari­sienses mais curiosos conseguem
ver, às vezes, o lançador de bom­bas com os braços
erguidos acima da nave, e o projétil assassino nas mãos.
Os espectadores, entretanto, não são numerosos. As fa‐
mílias se amontoam nos porões, aguardando o final dos
alertas.
É verdade também que muitos sofrem com a fome. E o
frio é glacial naquele inverno. Mas quantos deixaram de
ser mobilizados! Segundo Jean Hugo, Léon-Paul Fargue
aproveita a amizade de um suboficial do Val-de-Grâce
para ajudar os amigos a se reformarem. Apollinaire atira
algumas flechas na direção dos companheiros pou­pados
pelo trabalho nas usinas. Cendrars também não perdoa
aqueles que se mandaram para a Espanha ou para os
Estados Unidos. Em 1915, Derain está temporariamente
zangado com Vlaminck, a quem discretamente recrimina
por ter ficado para trás.
O que estão fazendo os outros, aqueles que a Guerra
não quis, aqueles que ela rejeitou depois de tê-los
maltratado nas trin­cheiras?
Estão tomando cafés-crème no La Rotonde. Esperando
que aquilo acabe. Ou, então, esperando que chegue.
Como os revolu­cionários russos, principalmente.
Em Paris, eles são alguns milhares aguardando a
eclosão da grande noite. Refugiados, longe de seus
países, espreitam os saltos e sobressaltos de uma
possível revolução. Escolheram Montmartre como local
de abrigo.
Lenin mora na rua Marie-Rose, para os lados de Alésia.
Martov, Ilya Ehrenbourg (que ganha a vida fazendo
traduções e guiando turistas russos na capital) e Trotski
também estão lá. Este último aceitou a oferta de um
jornal de Kiev, o Kievskaya Mysl, que lhe propôs ser
correspondente na França.
Trotski chegou em Montparnasse no final de novembro
de 1914. Primeiro ficou num quarto de hotel na rua
Odessa; depois, quando a mulher e os filhos se juntaram
a ele, mudou-se para a rua do Amiral-Mouchez, nos
confins de Montsouris. Além do trabalho no Kievskaya
Mysl, ele é responsável pela publicação de um jornal
criado há pouco pelos imigrantes russos. Ficou dois anos
na França antes que as autoridades francesas o
expulsassem.
Trotski ia frequentemente ao La Rotonde, e também ao
Baty, na esquina de Raspail com Montparnasse (diz a
lenda que ele deixou de pagar uma conta nesse
restaurante, que Apollinaire elo­giava pela qualidade dos
vinhos e era frequentado por elegantes um pouco mais
afortunados).
Alguns anos mais tarde, a presença dos dois
revolucioná­rios russos será fortemente contestada. Mas
as testemunhas da época permanecem irredutíveis.1
Mesmo se exageram na carica­tura, como Vlaminck, que
ao encontrar Trotski um dia no La Rotonde, teria ouvido
dele:
Gosto muito da sua pintura [...] Mas você deveria pintar mineiros,
pedreiros, Trabalhadores! Exaltar o trabalho, fazer a apologia do
trabalho!2

E mesmo se também concordam em reconhecer que


não é porque Trotski já era amigo de Diego Rivera (irá
encontrá-lo no México bem depois) que ele e seus
camaradas bolcheviques teriam tempo a perder com
atividades artísticas...
Certos encontros são mesmo difíceis de conceber.
Imaginar Lenin, Trotski, Martov, um punhado de
mencheviques e bolchevi­ques no meio da fumaça do La
Rotonde, de vapores de éter e car­reiras de cocaína, é
puro delírio. Ainda mais com Modigliani, à di­reita,
gritando slogans antimilitaristas; Soutine, à esquerda,
res­mungando, nu, enrolado no casacão; Derain, mais
adiante, em li­cença naquele dia, fazendo aviõezinhos de
papel lançados com precisão nas xícaras desses
senhores...
A presença de Max Jacob nesses lugares por onde
circulam os artistas é muito mais concreta.
Certo dia, em 1916, o poeta empurra a porta do La
Rotonde. Conta como foram suas “aulas” na companhia:
serviu durante um mês em Enghien como motorista de
ambulância civil; como os feri­dos ainda eram raros,
passou um mês num jardim estival, em meio a mães e
esposas aos prantos, organizando seus poemas e seus
ma­nuscritos para o caso de uma publicação póstuma de
suas obras.
Em seguida, naturalmente, fala de Picasso. E o
amaldiçoa. Em voz baixa, pois o pintor está de luto: Eva
não suportou a tu­berculose que a corroía havia meses.
Foram poucos, entre os quais Juan Gris, os que o
acompanharam até o cemitério. Tudo isso era tão triste
que Max precisava de algo para reconfortá-lo. Vinho,
apenas vinho. O que o faz contar histórias picantes.
Tornou-se amigo íntimo do cocheiro da funerária. Alguém
o critica por não saber se comportar.
Depois disso, Picasso se irrita. E Max fica amuado.
Depois de tudo o que fez por ele! Tudo o que deu a ele!
Na outra extremidade da sala, um jovem está
escutando. Quando ouve o nome de Picasso fica de
orelha em pé.
Está sentado no balcão, na frente de Libion. Sacode a
bo­tina de aviador, amarrada até o tornozelo. A calça
vermelha cai im­pecavelmente sobre os pequenos ilhoses
de couro amarelo. A tú­nica preta faz um ótimo efeito, e
mais ainda o capacete pintado de malva (as más línguas
dirão que é a última criação de Paul Poiret), que o poeta
balança despreocupadamente na ponta de um punho de
rendas brancas.
Está voltando da Guerra. Primeiro, foi enviado à
intendên­cia, em Paris; depois obteve sua transferência
para uma unidade de ambulâncias, comandada pelo
conde Étienne de Beaumont. Achou ótimo. Lindo. Nada
como ter, pela manhã, o barulho do canhão como
despertador. E nenhuma paisagem é tão magnífica
quanto o céu azul onde se vê uma revoada de
schrapnells caindo em volta dos aviões.
O soldado, muito chique, evolui sua pequena figura, ao
rit­mo de um pensamento vivo e delicado, que flui sem
esforço, como uma fonte, sobre as pequenas flores à sua
volta, pelas quais, a fra­queza obriga, ele gostaria de ser
amado.
“A admiração me deixa frio”, murmura. “Minha obra
exige amor; eu o recolho.”3
Um pouco não basta, e muito é só mais um pouco. Ele
pre­cisa do apaixonadamente. Muitas vezes, não colhe
nada.
Vlaminck, que acaba de empurrar a porta do La
Rotonde, passa longe: acaba de perceber as asas móveis
e graciosas de Cocteau, o zéfiro.
Vai ao encontro de Salmon e Carco, que, sentados lado
a la­do, riem observando o soldado gentleman.
“Ele é o filho espiritual de Picasso e de Max Jacob”, Vla‐­
minck: fala entre dentes. “Mas que foi criado na casa de
Anna de Noailles.”4
Salmon ergue o copo.
“Ao Ariel dos salões!”5
Carco bate sua xícara:
“À coqueluche das velhas senhoras.”
E especifica:
“Ao costureiro das Artes.”
E acrescenta:
“Ao teórico perfumado.”6
“Ao príncipe frívolo”, conclui Vlaminck.
Esse é o título de um livro que Cocteau publicara em
1910, cinco anos antes. Na margem esquerda, essa obra
não é apreciada pelos pintores e poetas, que detestam
tudo aquilo que o dândi do outro lado representa. Mesmo
que um lado flerte com o outro, mesmo que, mais tarde,
virem a casaca, mesmo que o próprio Coc­teau, depois de
ter forçado um círculo que não o queria, acabe fa­zendo
ali um ninho confortável, tornando-se íntimo de quase to‐­
dos, a realidade dos primeiros anos persiste: seu
comportamento era o de um estranho.
Francis Carco reconhece nele um mérito: “Sem Jean
Coc­teau, quem poderia pensar que o cubismo fosse
encantar os esno­bes?”7 Segundo Philippe Soupault,
Apollinaire não gostava muito dele: “Desconfiem de
Cocteau [...] É um farsante e um camaleão”8 Reverdy o
considerava “o antipoeta”, dublê de “exibicionista, imi‐­
tador, maníaco pelo sucesso, falso, especialista em
enrolar os outros”. Sob a pena de André Salmon,
encontramos este depoi­mento, aliás tão severo quanto
os outros: Vindo da margem direita, para a qual iria
voltar o mais rapida­mente possível – Táxi! – e não
aparecer mais, o poeta [...] foi embora, depois de terem
se submetido a inesperados refinamentos dialéticos os
larápios do café-crème.9
Max Jacob não é o último a retocar sua reputação. Ao
que Cocteau responde com boas alfinetadas: o autor do
Cornet à dés é um “emergente do cristianismo. Tipo faz-
tudo sujo e gentil”10; ou ainda: “um Jean-Jacques
Rousseau de WC, um dançarino de sacris­tia”. O que não
impedirá que os dois homens se tornem os melho­res
amigos do mundo. Cocteau, como vimos, vai intervir,
mais tarde, para tentar salvar Max Jacob, preso em
Drancy.
Vai intervir também por ele mesmo, em 1942, junto às
auto­ridades de Vichy, o que lhe valerá a sólida inimizade
de Philippe Soupault. Este conta que, em 1983, por
ocasião de um leilão de cartas e manuscritos originais,
durante o qual foi oferecido o texto de Champs
magnétiques, ele descobriu duas cartas de Cocteau
datadas de 1942 e dirigidas a Pétain. Depois que Jean
Marais e ele próprio tinham estado na mira da Milícia e
da imprensa colaboracionista, o autor pedia ao marechal
que interviesse para que a peça Renaud et Armide, que
acabara de ser proibida, fosse, apesar disso, encenada
pela Comédie-Française. Soupault cita alguns trechos
dessas cartas:
Eu tinha decidido, junto com os atores, escrever para a Comédie‐­
Française uma grande peça lírica exaltando o que a vossa nobreza nos
ensina [...] Minha vida é impecável. Minha obra, impoluta. Sou primo do
almirante Darlan. Mas é à vossa excelência, senhor Marechal, que me
dirijo, porque o admiro e o amo.11

Bem antes dessa data, os surrealistas já desprezavam


Jean Coc­teau. Em Pas perdus,12 André Breton chega a
pedir desculpas por ter que escrever o nome dele.
Critica-o por aquilo que os poetas e os pintores de
Montmartre já haviam percebido, antes e durante a
Primeira Guerra Mundial: seu arrivismo marcante, seu
munda­nismo, a atenção que ele dedicava à princesa
Bibesco, à princesa de Polignac, à imperatriz Eugénie, a
Liane de Pougy, esposa do príncipe romeno Georges
Ghika, e a artistas que, como ele tam­bém, admiravam os
dourados e os salões: o músico Reynaldo Hahn e o pintor
Jacques-Émile Blanche.
Jean Cocteau brilhava, e brilhava por toda a parte.
Quando chegou a Montparnasse, sua maior riqueza,
aquela que, com ra­zão, mais gostava de exibir, era a
reluzente vestimenta dos Balés Russos.
O grupo Mir Iskustva tinha sido fundado em São Peters‐­
burgo em 1898. Sob a direção do coreógrafo Fokine,
reunia pinto­res e músicos. Em 1909, instalaram-se no
Teatro do Châtelet, em Paris. Fokine e Serge Diaghilev
compreenderam que, se quisessem romper com o balé
clássico, teriam que incluir na equipe os pilares da arte
contemporânea. Desse ponto de vista, eles são os
fundado­res do balé moderno. Voltando as costas para as
músicas pompo­sas, encomendaram suas obras a
compositores totalmente novos: Auric, De Falla, Milhaud,
Prokofiev, Satie, Stravinski. Depois de Bakst, os cenários
foram assinados por Derain, Braque e Picasso.
Nijinski e Karsavina provocavam o delírio... ou a ira. Foi
assim com o Prelude à l’après-midi d’un faune, de Claude
Debussy, e, principalmente, com o Le Sacre du
printemps, de Igor Stravinski, cuja estreia aconteceu em
maio de 1913, no Teatro Champs-Élysées. Foi um
escândalo, digno da estreia de Hernani.89 A sala veio
abaixo sob pérolas e peles. Todos os representantes das
artes e das letras estavam presentes: Debussy, Ravel,
Gide, Proust, Claudel, Sarah Bernhardt, Réjane [atriz],
Isadora Duncan... e Jean Cocteau, é claro.
Assim que a cortina se abriu, o tumulto começou. A
sala se dividiu entre os que defendiam Stravinski e a
coreografia de Nijinski, e todos os outros. De um lado
aplaudiam, do outro vaia­vam. Insultos e bengalas em
riste. Ninguém ouvia mais a música. No palco,
imperturbáveis, os dançarinos evoluíam. Passando por
entre as fileiras, de cartola, com suas luvas cor de
manteiga90 e roupa de gala, Apollinaire beijava as mãos
das elegantes – quan­do elas não desviavam o olhar. O
escândalo do Sacre foi comparado àquele provocado pela
exposição dos pintores cubistas no Salão dos
Independentes, alguns meses antes.
Como uma abelha de flor em flor, Jean Cocteau
recolheu seu mel.
Ele conhecia Diaghilev havia alguns anos e encontrara
Stravinski em 1911. Um ano depois, escreveu um balé
musicado por Reynaldo Hahn: Le diable bleu será
encenado em maio de 1912 pelos Balés Russos.
A partir daí, a grande proposta de Cocteau foi a de unir
as vanguardas. Trazer para Diaghilev aquilo que ainda
lhe faltava: a colaboração dos pintores que, do mesmo
modo que a trupe de São Petersburgo, provocavam a ira
do público. Ele queria orquestrar a nova arte, a arte total.
Aproximou-se do cubismo depois de tê-lo ridicularizado
muito. Para isso foi preciso um encontro com Albert
Gleizes, que o levou até os artistas da Section d’Or. Era
um começo. Mas não era o bastante.
Quando chegou em Montparnasse, Cocteau logo
compreen­deu – ele escreveu isso – que, como seus pares
haviam partido para o front, “era preciso tomar Paris”.
Paris era Picasso. Imediatamente, Cocteau avaliou que,
se o pintor arrastava atrás de si pessoas tão ilustres
como Max Jacob, Pierre Reverdy ou Guillaume Apollinaire,
não havia razão para que ele próprio, Jean Cocteau,
também não segurasse uma ponti­nha dessa cauda.
Tratou de se empenhar nisso. Sempre que podia, o rapaz
(tinha 26 anos) oferecia pequenos presentes àque­le que
ele queria apanhar na sua rede dourada. Enviava-lhe
tabaco. Escrevia-lhe cartas de uma trágica limpidez:
“Meu caro Picasso, pinte logo meu retrato, porque vou
morrer”.13
Algumas semanas antes da morte de Eva, conseguiu,
sem muita dificuldade, entrar no ateliê da rua
Schoelcher. Edgar Varèse serviu de chave. O poeta ficou
encantado: “Acho que sou uma das poucas pessoas aptas
a entrar instantaneamente no teu reino, e digna de
traduzi-lo na minha língua, de forma que minha sintaxe
obedeça aos mesmos imperativos que a tua”.14
Em suma, uma revelação.
Depois dessa primeira visita, Cocteau só tem um
sonho: voltar. Porque, assim como aconteceu com Max
Jacob, ele já sabe que Picasso é o grande encontro da
sua vida. E pouco importa que, para atingir seu objetivo,
tenha que passar pelo La Rotonde, esbarrar naqueles
cubistas que ele não entende muito, um bando de
aprendizes malvestidos, ocupados com conversas
estéreis, que avaliam a elegância e o bom gosto com os
botões da braguilha. Ele sonha em se ver numa tela
assinada pelo pintor espanhol.
Em janeiro de 1915, Picasso tinha feito um retrato a
grafite de Max Jacob. Pelo estilo, esse retrato se parece
estranhamente com o de Ambroise Vollard, traçado no
mesmo ano. No micro­cosmo do cruzamento Vavin, essas
duas obras tiveram o efeito de uma bomba: será que o
pintor ia abandonar o cubismo por um rea­lismo mais
clássico, que lembra Ingres? Até Beatrice Hastings fa­lou
sobre isso em The New Age.
“Se ele fez Max Jacob, por que não eu?”, pergunta-se
Cocteau.
Mas como obter esse imenso favor? Há uma maneira...
A bem da verdade, não se trata de uma novidade. Foi ao
ver Arle­quin, pintado pelo artista na última fase da
doença de Eva, que a ideia começou a germinar no sutil
espírito do poeta. Léonce Ro­senberg, que comprou a
obra, confirmou-lhe o interesse de Picasso pelas figuras
de circo.
Cocteau deixa uma moeda no balcão, sorri para Libion
e desce elegantemente da banqueta. Examina a dobra
da calça ver­melha, segura o capacete pela tira com o
polegar direito e, depois de ter gentilmente
cumprimentado a plateia, sai para pôr em prá­tica o plano
elaborado por seu cérebro nobre.

89 Peça de Victor Hugo de 1830 que suscitou intensa discussão entre


clássicos e român­ticos. (N.T.)
90 No original, gants beurre frais: luvas tradicionais de cor clara para
homens, às quais se atribui uma conotação irônica de solenidade pequeno-
burguesa. (N.T.)
O galo e o arlequim

Voltei. Chove muito e perdi em dois dias o bronzeado que levei


dois meses para conseguir.
Jean Cocteau

E le mora na rua d’Anjou, número 10. Gosta de receber


os amigos. Foi lá que Jean Hugo, bisneto de Victor
Hugo, o conheceu.
O poeta estava de pé, no meio de um círculo de admiradores e
admiradoras, segurando com uma das mãos o receptor telefônico,
deslumbrado, imaginando os meandros que faziam suas palavras ao
longo do fio que serpenteava sobre o tapete.1

Foi lá também que leu para um seleto grupo de


visitantes seu poema Le Cap de Bonne-Espérance,
dedicado ao aviador Roland Garros, que o fez descobrir
os prazeres da navegação aérea:
donc
cet ange ailleurs distrait
cela peut
chez nous
apparaitre
L’adorable géant ra len ri se se condense91

O poeta ficava atrás de uma estante de livros decorado


de flores pintadas. Usava um terno preto e uma gravata
branca. Na lapela, prendera uma daquelas gardênias que
garantia receber diariamen­te, não de Paris: muito banal.
De Londres.
Quando terminou a leitura, foi perguntar a opinião dos
con­vidados. Misia Sert (filha do escultor polonês Cyprien
Godebski, e grande amiga de Diaghilev) aplaudia, ao
lado do comediante Ro­land Bertin e da pintora Valentine
Grosz, futura mulher de Jean Hugo, que havia introduzido
o dono da casa no círculo de Mont­parnasse. André
Breton, pouco à vontade no seu uniforme de mé­dico
militar, não dizia uma palavra. No final da apresentação,
ele desapareceu.
Isso foi antes do encontro com Picasso. A partir de
então, algumas gotas de água passaram por debaixo das
pontes.
Cocteau abre as portas do guarda-roupa. Escolhe o que
lhe parece mais adequado para um balé que está
preparando para Dia­ghilev. Calça e camisa estampadas,
cores vivas em losangos: um traje de arlequim.
Veste-se. Na hora de sair, dá-se conta de que andar
por Paris, em plena guerra, vestido daquela maneira
poderia causar­-lhe alguns problemas. Disfarça então a
fantasia sob um casacão bem comprido. Fica esquisito
nos calcanhares, mas, se alguém per­guntar algo, dirá
que é uma roupa de camuflagem...
Cocteau chama um táxi e vai até a rua Schoelcher.
Sobe a escada com o coração disparado. Como será que
Picasso vai rece­ber o belo convidado? Será que a viuvez
vai impedi-lo de pintar tão doce perfil?
O poeta toca a campainha. O pintor abre a porta. O
poeta tira o casacão negligentemente e surge como está,
ramagem, plumagem, espírito: todo colorido. Mas o
pintor não diz nada. Não co­loca nenhuma tela à luz da
janela que dá para o cemitério de Mont­parnasse, não
pega tintas nem pincéis. Cocteau se desespera. Vai se
consolar quando reescrever a história:
Em 1916, ele [Picasso] queria fazer meu retrato vestido de arlequim. Esse
retrato terminou sendo um quadro cubista.2

Quando Cocteau vai à casa de Picasso, este está se


recuperando da tristeza causada pela morte de Eva.
Consola-se com Gaby, uma jovem de Montparnasse que
será substituída por Irène Lagut, que por sua vez deixará
os braços de Serge Férat pelos do espanhol, o qual abrirá
depois seu coração para Pâquerette, manequim de
Poiret, e posteriormente para Olga, sua primeira mulher.
Cocteau aguarda. Como por ora os pincéis de Picasso
estão ocupados com outras coisas, posa para os de
Modigliani e de Kisling.
Assim como Cendrars, Moïse Kisling foi reformado
depois da Batalha de Carency. Sobrevive graças à ajuda
de um escritor polonês, Adolphe Basler (grande
admirador de Manolo), que ven­de as telas do artista no
seu apartamento.
Kisling anda por Montparnasse, alegre e festeiro,
vestido com um macacão rasgado e sandálias que
participaram de várias batalhas pelas calçadas. As
roupas que trazia quando chegou de Cracóvia são
apenas uma lembrança. Adotou os trajes e os hábitos dos
novos amigos. É intrépido. Já era antes da Guerra. Em
1914, lutou em duelo contra outro pintor polonês,
Leopold Gottlieb. Ninguém jamais soube a razão desse
combate fratricida. O com­bate aconteceu no Parc des
Princes, perto de uma pista onde os ciclistas treinavam.
André Salmon era o padrinho de Kisling, e Diego Rivera,
o de Gottlieb. Os dois combatentes se enfrentaram,
primeiro com pistola, dois tiros a 25 metros, depois se
lincharam com o sabre. Kisling nunca tinha usado uma
arma bran­ca. As lâminas voavam, os ciclistas
interromperam suas voltas para aplaudir, os
espectadores estavam encantados, os padrinhos pedi­ram
uma pausa para tratar dos ferimentos. Os dois poloneses
recusaram. Lutaram ferozmente durante uma hora, com
uma garra que lhes valeu um merecido lote de lanhos. O
cessar-fogo foi obtido depois que o sabre de Gottlieb
tirou um pedaço do nariz do com­patriota, que, com o
rosto cheio de sangue, mas feliz, voltou-se para a
assistência exclamando:
“É a quarta divisão da Polônia!”
Era a quinta. Seis semanas mais tarde, o Império
Austro­-Húngaro declarava guerra à Sérvia.
Enquanto aguarda que Picasso lhe abra o coração,
Cocteau está, certo dia, na rua Joseph-Bara, no ateliê de
Kisling. Modigliani está presente. Os dois pintores devem
fazer o retrato do poeta. Esse último trouxe uma garrafa
de gim e dois limões: ele gostaria de posar diante de
uma natureza-morta.
“Impossível!”, declara Amedeo. Ele não gosta de
naturezas-mortas. “... Mas adoro o gim-fizz!”
Pega a garrafa de gim, espreme os limões, abre uma
garrafa de água de Seltz e toma um copo. Depois dois.
Depois três. Depois a garrafa.
Kisling fica louco de raiva.
Cocteau continua esperando.
Algumas semanas mais tarde, finalmente, ele exulta:
Pi­casso começa a fazer seu retrato. Será que o pintor já
sabe que logo irá mudar de mundo e de universo, levado
pelo esfuziante rapaz? Que o Bateau-Lavoir, já tão
distante, vai desaparecer para sempre quando, de braços
dados, Cocteau e Picasso irromperem juntos nas altas
rodas?
Provavelmente ele não o ignora. Nem ele nem os
outros. É a tese de Maurice Sachs, que explica por que os
antigos amigos de Montmartre, Max Jacob e Picasso, em
primeiro lugar, se renderam às artimanhas de Cocteau:
eles precisavam de um “bom agente de publicidade”.3
Em troca da sua esperteza, ofereceram a ele a novidade
e a vanguarda que ele queria. O jovem poeta foi um
maravilhoso “animador”, e eles se serviram dele como
tal. Entre eles, tratava-se, porém, de “uma amizade de
fachada que encobria, na realidade, rivalidades
profundas e muito desprezo”.4
Parece exagero, mas existe alguma verdade nisso.
Logo virá Parade. Cocteau e Picasso ainda trabalharão
juntos para os Balés Russos. Mas, em seguida, o pintor se
distanciará do poeta. Gertru­de Stein conta sobre isso
uma história que parece significativa.5 Picasso estava um
dia em Barcelona. Foi entrevistado por um jor­nal catalão.
A conversa recaiu sobre Jean Cocteau. Picasso decla­rou
que este era tão famoso em Paris que todos os
cabeleireiros chi­ques colocavam poemas dele sobre as
mesas.
A entrevista foi publicada na imprensa francesa, e
Cocteau leu. Tentou encontrar Picasso para pedir
explicações. Este se fez de morto. Para apagar o incêndio
que ameaçava sua reputação, Cocteau disse a um jornal
francês que não fora seu amigo Picasso quem havia
falado dele daquela maneira, mas sim... Picabia. Para
azar dele, este desmentiu. Cocteau tentou outra vez falar
com Pi­casso. Suplicou ao pintor que contradissesse
Picabia. O outro conti­nuou calado.
Pouco depois, Picasso e a mulher (provavelmente Olga)
foram ao teatro. Passaram pela mãe de Cocteau. Esta
pediu ao pin­tor que lhe confirmasse que não era ele o
autor das calúnias lança­das da Espanha contra seu filho.
Picasso não reagiu. Foi a mulher dele que, sensibilizada
por ver sofrer uma outra mãe, respondeu que, na
verdade, Picasso jamais falaria nesses termos sobre Jean
Cocteau.
Assim, o poeta se acalmou: não havia nenhuma
sombra entre eles.
Novas nuvens, no entanto, não tardariam a aparecer,
quando, nos anos 1920, Picasso se aproximou dos
surrealistas, que detestavam “o viúvo no telhado”.92
Caiu uma chuva fina. Esta virou granizo quando, durante
e depois da guerra da Espanha, Picasso se posicionou
claramente à esquerda do tabuleiro político. A
tempestade veio com a Guerra: Cocteau, que escapou
por milagre da depuração93, tinha realmente exagerado.
Deve-se a ele, so­bretudo, uma homenagem pública a
Arno Breker...94
Apesar de perdoá-lo, muito mais tarde, e de abrir
nova­mente suas portas para ele, em 1960, Picasso não
esqueceu. E não foi o único. Françoise Gilot conta que,
quando ele estava em Saint­-Tropez com Paul Eluard (cujo
nome verdadeiro era Eugene-Émile-­Paul Grindel), um iate
atracou diante da casa de Senéquié. Cocteau desceu da
cabine como um ludião. Eluard, que não gostava dele,
recebeu-o com frieza. O outro insistiu tanto que acabou
recebendo um aperto de mão... gelado. Melhor do que
nada. Isso permitia a Cocteau escrever que Eluard era
“um grande amigo”...6 Picasso também não foi caloroso.
Mas mudou um pouco de atitude depois da morte de
Eluard, em 1952.7
Resta uma pergunta à qual ninguém jamais saberá
responder.
Em Montparnasse, durante os anos em que Cocteau
bri­lhava, havia um outro poeta que brilhava tanto quanto
ele, com uma chama diferente, mas provavelmente mais
duradoura; que havia igualmente escrito poemas,
romances, peças de teatro, cujo talento era proteiforme e
que, embora também soubesse beijar a mão das
senhoras nos salões, não fizera nenhum esforço para
pene­trar no mundo das vanguardas e dos gênios da
época pela simples razão de que já era um deles. Esse
poeta era Guillaume Apollinaire.
Os dois homens se conheciam desde o final de 1916.
No iní­cio, a relação entre eles era cheia de dúvidas e
desconfianças. Escrevendo a Picasso, na primavera de
1917, Apollinaire dizia que a situação entre ele e Cocteau
havia se esclarecido um pouco. Teria sido depois de uma
carta datada do mês de março, na qual o mais jovem foi
claro e direto?
Juro que trabalharemos juntos e que tinha certeza quanto ao nosso
entrosamento. Desculpe-me por ter insistido um pouco, arriscando
parecer “o jovem que procura se passar por bem-vindo”. Agi assim com
coragem e seriedade pela causa comum e fiquei até contente com a sua
desconfiança, como a do pedreiro que se disfarça para testar um outro e
constatar suas habilidades.8

Ou foi porque Picasso, segundo Cocteau, havia


insistido muito pa­ra que os dois poetas se vissem e se
encontrassem?
Alegro-me com esse nosso encontro tão importante e que Picasso tanto
deseja. “Tomara que você se dê bem com Apollinaire”, ele diz sempre.9

Eles se deram bem, com altos e baixos. Cocteau se


queixava de que Apollinaire o julgava “suspeito”;
Apollinaire, segundo Vauxcelles, rejeitava Cocteau
porque este tentou tomar o lugar que ele mesmo tirara
de Max Jacob, ao lado de Picasso. Enfim, as fofocas, as
his­tórias, as maledicências mundanas não paravam de
multiplicar as sombras entre eles.
Quando, com o passar do tempo, Cocteau proclamou
que Paris durante a Guerra era uma cidade a ser tomada,
pensava cer­tamente num lugar e não na cidade.
Exatamente o lugar que Apollinaire tinha deixado. Daí a
pergunta que permanecerá sem resposta: qual teria sido
o destino de Cocteau se Apollinaire tivesse sobrevivido?

91 então/ esse anjo distante distraído/ isso pode/ para nós/ aparecer/o
adorável gigante ra len ri se se condensa. (N.T.)
92 Por ocasião da morte de Raymond Radiguet, escritor, poeta, discípulo e
compa­nheiro de Cocteau, em 1923, este ficou inconsolável. Os dadaístas o
chamaram então de le veuf sur le toit numa alusão ao balé encenado em
1920, cujo roteiro era uma farsa de Cocteau, musicado por Darius Milhaud:
Le Boeuf sur le toit. (N.T.)
93 Assim foi chamada a repressão aos “colaboradores”, no final da Segunda
Guerra. (N.T.)
94 Escultor que viveu na França por algum tempo, e trabalhou depois para
Hitler. (N.T.)
O ferimento do poeta

A guerra é o retorno legitimado ao estado de selvageria.


Paul Léautaud

E xército, 17 de março de 1916


Setor 139

Diante de Berry-au-Bac, no Bois des Buttes, Guillaume


Apollinaire ajeita seu canto na trincheira. Estende uma
lona por sobre o parapeito: ilusória proteção contra os
shrapnells que caem à sua volta. Coloca o capacete e
senta-se na lama. Depois da licença passada em Lamur,
com Madeleine e a mãe, retornou para a sua unidade em
janeiro. Durante dois meses, efetuou um treinamento
intensivo. Comandou sua companhia. No dia 14 de
março, voltou para a linha de frente. Quando partiu,
escreveu para Madeleine, fazendo-a novamente herdeira
de todos os seus bens. Uma carta entre outras.
Eles se escrevem quase todos os dias. Ele promete a
ela um amor eterno, jura que assim que tiver tempo
tratará das formalida­des do casamento. Existe ternura,
mas não entusiasmo. Quando a jovem parece ficar
preocupada, ele se mostra tranquilizador, explica por
meias palavras que a censura impede as declarações in‐­
tempestivas. Às vezes, parece irritado com a insistência
dela. Pede­-lhe que seja “boazinha”, que adote um
registro mais literário, que eleve o pensamento.
Aconselha-a a aperfeiçoar seu inglês, a não comer peixe,
recomenda-lhe que se distraia, que cuide dos pés
doentes: “Massageia-os delicadamente até a ponta dos
dedos, cada um, durante dois minutos à noite, e passa
philopode”.1
Tudo muito sensato. Essa correspondência é a imagem
do comportamento burguês que rege a história deles:
noivado, pedido de casamento feito à mãe, atenções
afetuosas e reconfortantes... Será que é isso mesmo que
Guillaume quer?
Ele não escreve mais para Lou. Os louros foram
cortados. Sua última carta data do mês de janeiro: pedia
a ela que lhe en­viasse um recibo da caixa de penhores
de Nice para que ele pu­desse recuperar um relógio que
tinha colocado no prego. Por outro lado, escreve de vez
em quando para Marie Laurencin, num tom afetuoso. E
para os amigos de Paris, Picasso principalmente, a quem
ofereceu um anel feito por ele.
Escreve poemas. Envia algumas páginas ao Mercure
de France, as Anecdotiques que falam da guerra, do
futurismo, de Stendhal ou de Joana d’Arc. Aconteça o que
acontecer, ele tem sempre um livro no bolso, que pega
sempre que a luta no front dá uma trégua.
Ele não se queixa, mas está deprimido. É tomado por
uma “grande melancolia”. Menos, ao que parece, pela
distância que o separa de Madeleine do que pela própria
guerra. Acostumou-se com a chuva, com a lama, com a
vida no quartel, com as marchas e com as manobras sob
a neve, com os gases asfixiantes. Mas não se conforma
com a estupidez do Estado-maior. Teve que fazer um
relatório para explicar por que os homens da sua
companhia usavam capacete, enquanto os da companhia
vizinha usavam quepe. Provavelmente, ele também está
a par dos rigores disciplinares impostos a todas as
tropas. É hora dos conselhos de guerra. As mutilações
voluntárias são punidas com a pena de morte. Todo
soldado ferido nas mãos, portador de vestígios
escurecidos em volta da ferida, corre o risco de ser
executado: esses vestígios poderiam ser de pólvora, o
que provaria que o tiro fora dado de perto e, logo, não
poderia ter sido dispa­rado pelo inimigo. Muitos soldados
foram fuzilados por causa de estilhaços de obuses que
atingiram suas mãos.
Da mesma forma, a desobediência é cruelmente
punida. Em março de 1915, perto de Souain, a 2a
companhia do 336o batalhão de infantaria recebe ordem
de atacar as trincheiras inimigas. Os homens recusam-se
a se mexer: estão cansados dos ataques e con­tra-
ataques; além do mais, eles têm que atravessar uma
zona de 150 metros coberta de arame farpado e tomada
pelas metralhadoras alemãs: um suicídio.
Constatada a indisciplina, o general comandante da
divisão pensa primeiro em atirar nas trincheiras
francesas. O coronel co­mandante da artilharia intervém
energicamente, e ele muda de tática. Exige que seis
sargentos e dezoito homens sejam escolhidos entre os
mais jovens. Os reféns são enviados ao conselho de
guerra e imediatamente condenados à morte.
Às vezes, os reféns não são escolhidos por seus oficiais
ou suboficiais, mas sorteados. Depois, são fuzilados no
lugar daqueles que se recusaram a revidar o ataque das
baterias ou a atravessar os campos, patinhando entre os
cadáveres e jogando-se sobre eles para escapar dos
obuses alemães.
O subtenente Apollinaire certamente não ficou
insensível ao caso de um outro subtenente. Chapelant.
Tinha vinte anos, era ofi­cial de metralhadora do 98o
batalhão de infantaria. Em outubro de 1914, foi atacado
no Bois de Loges. Os alemães os cercaram; ele, suas
duas metralhadoras e seus quatro ajudantes. Foram
capturados. Em seguida, Chapelant foi ferido diante das
linhas alemãs. Ficou dois dias no meio do arame farpado.
Foi recolhido pelos enfermeiros e levado à presença de
seu coronel. Foi acusado diante do conselho de guerra.
Por quê? Por ter passado para o lado do inimigo.
Chapelant estava deitado na maca quando ouviu a
sentença: pena de morte. E não foi uma morte qualquer:
foi amarrado à maca, esta foi erguida na vertical, e ele
recebeu doze tiros no corpo.
Fatos como esse baixam o moral das tropas.
Apollinaire não é menos sensível do que os outros. Do
que Derain, por exemplo, que escreve à sua mãe:
Milhares de vidas são sacrificadas em vão como se não valessem nada, e
por nada que seja grave ou previsível. Certas pessoas se atribuíram todos
os poderes e dispõem dos outros como se estes fos­sem instrumentos fora
de uso e incansáveis, pedindo a eles constan­temente que renovem seus
esforços mais penosos. A inconsciência daqueles que dão ordens mete
medo.2

Algumas semanas antes de tomar posição no Berry-au-


Bac, Apollinaire obteve uma licença e partiu. Por dois
dias. Voltou de­cepcionado; como a Guerra é suave em
Paris! Max Jacob ministrou-­lhe o veneno: prevê um
conflito de trinta anos. Certamente é um exagero. Mas
Guillaume não acredita que a paz possa ser assinada
antes do final de 1917, quem sabe no inverno de 1918.
A única boa notícia, a melhor dos últimos tempos, vem
nu­ma carta oficial recebida alguns dias antes. Essa carta,
enviada pe­lo Ministério da Justiça, departamento de
estrangeiros, concede a Guillaume Kostrowitzky, dito
Guillaume Apollinaire, a nacionali­dade francesa. Até que
enfim!
A carta está no bolso do poeta. Junto a um número do
Mercure de France. Apollinaire toca-o com a mão e pega-
o. Abre-o. À sua volta, o bombardeio continua. Mas não
há nada a fazer, além de se proteger.
São quatro horas da tarde daquele 17 de março de
1916.
Apollinaire mergulha na leitura do índice. Vira algumas
páginas. De repente, ao mesmo tempo em que uma
explosão se pro­duz a cerca de quarenta metros, um
choque ressoa no seu capacete. Um choque leve, do lado
direito, na altura da têmpora. Apollinaire leva a mão à
cabeça. Há um buraco no capacete. E um calor que
desce pelo rosto. É sangue.
Grita por ajuda. É retirado e levado ao posto de atendi‐­
mento médico. Um estilhaço de obus 150 alojou-se na
têmpora direita. O médico chefe do 246o regimento faz-
lhe um curativo na cabeça. Trazem-lhe sua maleta
pessoal e fazem-no dormir. No dia seguinte, às duas
horas da manhã, uma ambulância o leva ao hos­pital de
Château-Thierry: alguns fragmentos são extraídos. No dia
18 de março, ele escreve a Madeleine, para colocá-la a
par do seu estado: o ferimento é leve, ele só precisa
descansar.
No dia 22, faz uma radiografia. Sente dores. Mas isso
não o impede de relatar na agenda as circunstâncias do
ferimento. Nem mesmo de escrever a Madeleine, a Yves
Blanc e a Max Jacob.
No dia 25, tem que ser retirado de Château-Thierry,
mas a febre o deixa na cama até o dia 28. No dia 29,
chega ao Val-de­- Grâce, em Paris. Os amigos vêm vê-lo.
Está perfeitamente lúcido. Aparentemente, o ferimento
está curado e a ferida, se fechando.
Apollinaire se queixa, no entanto, de dores de cabeça e
de vertigens. Os médicos notam que ele está cansado. O
braço esquer­do se torna pesado. No dia 9 de abril, Serge
Férat, que está servindo como enfermeiro no hospital da
embaixada italiana, faz a transfe­rência dele para esse
hospital, no Quai d’Orsay. Os dias se passam, e uma
paralisia se desenvolve, acompanhada de perdas de
consciên­cia. No dia 9 de maio, na Villa Molière (um anexo
do Val-de-Grâce, situado no bulevar de Montmorency, em
Auteuil), Apollinaire é tre­panado e operado de um
abscesso craniano. No dia 11, ele manda um telegrama
para Madeleine: a operação foi bem-sucedida.
Em bilhetes, quase sempre breves, ele a mantém
informada sobre as transferências e a evolução da
doença. Em agosto, quando ela manifesta o desejo de ir
ao encontro dele, suplica-lhe que não faça nada. Pede-lhe
que escreva cartas alegres, e não mais de uma por
semana. Pedirá, finalmente, que lhe devolva seu manual
de artilheiro, assim como um anel que havia lhe dado. E
um exemplar de Case d’armons. E duas aquarelas de
Marie Laurencin. Fará com ela como fez com Lou:
retomará o que lhe pertence e que havia sido dado.
Logo será a vez de Madeleine deixar a vida de
Guillaume Apollinaire. Será porque uma outra mulher,
Jacqueline, que veio vê-lo na Villa Molière, logo tomará
seu lugar? Ou porque, como ele mesmo reconhece na
última carta enviada à Argélia, ficou “muito irritadiço”?
Seja lá o que for, quando voltar para a vida civil os‐­
tentando um magnífico uniforme sobre o qual está
pendurada a cruz de guerra recebida em junho, e com a
cabeça enfaixada por uma tira de couro que substitui a
atadura das primeiras semanas, Guillaume Apollinaire
não será mais o mesmo. Não está apenas irritadiço.
Demonstra um patriotismo excessivo que surpreende os
amigos. Torna-se inquieto, menos alegre, decepcionado
com o egoís­mo dos homens que o cercam e com essa
vida parisiense tão distante das misérias do front.
Entretanto, ele ainda vai retornar a essa vida. Vai
voltar ao Flore e ao seu apartamento do bulevar Saint-
Germain. Vai frequen­tar novamente festas e banquetes.
Isso vai durar o tempo da Guer­ra: 27 meses.
Vinte e sete meses. É também o tempo que lhe resta
de vida.
A arte do falso

A camuflagem de guerra foi obra dos cubistas: também podemos


dizer que foi sua revanche.
Jean Paulhan

E m fevereiro de 1916, Apollinaire


Madeleine para dar­-lhe uma boa notícia: tinha um
escrevera a

novo uniforme. Ele vivia lamentando que o azul,


recentemente adotado em substituição aos paletós e cal‐­
ças de cores vivas, não fosse como o cáqui, reservado ao
exército do Oriente. Ou, melhor dizendo, que as
tonalidades não fossem “arle­quinizadas” para que se
fundissem na natureza e, desse modo, desaparecessem
sob o olhar do inimigo. Essa ideia lhe tinha sido soprada
por Picasso. Um ano antes, este havia escrito ao amigo
poeta para explicar a ele um ponto de vista estratégico:
mesmo pin­tados de cinza, os canhões podiam ser
facilmente percebidos; para dissimulá-los era preciso
também jogar com as formas, usando cores vivas,
encaixadas como as peças do traje do arlequim.
Em Le poète assassiné, Apollinaire escreve que o
Oiseau du Bénin (Picasso) camufla peças de artilharia
pesada. O mesmo Oiseau du Bénin, segundo Gertrude
Stein, teria exclamado, certo dia em que um comboio
militar passava pelo bulevar Saint­- Germain: “Fomos nós
que fizemos isso!”.
Nós: os cubistas.
A experiência começou bem no início da Guerra, na
Fran­ça, perto de Toul. Um decorador teve a ideia de
dissimular um canhão e os atiradores sob uma lona
pintada com as cores do solo. O Estado-maior enviou um
avião para sobrevoar o dispositivo de camuflagem. O
aviador só percebeu as árvores.
Alguns meses mais tarde, em Pont-à-Mousson, um
telefo­nista da tropa é encarregado de transmitir a ordem
de atirar. Assim faz. Mal o canhão dispara, um obus
inimigo o atinge fazendo-o explodir. O telefonista se
pergunta: não seria possível inventar e desenvolver um
sistema de proteção eficaz que permitisse confun­dir com
a natureza os homens e as peças de artilharia?
O telefonista é pintor. Imagina que esse objetivo
poderia ser alcançado misturando-se formas e cores. Dá
a sugestão ao Es­tado-maior. Em fevereiro de 1915, o
Ministério da Guerra aceita constituir uma equipe que
trabalhará sob seu comando. É assim que Lucien Guirand
de Scevola (de quem Apollinaire tinha falado antes da
Guerra, nas suas crônicas artisticas1) funda a primeira
unidade de camuflagem da história militar. Trinta
voluntários no começo, mais de 3 mil especialistas e 8
mil fabricantes três anos mais tarde. E um símbolo
facilmente identificável: um cama­leão dourado bordado
sobre um fundo vermelho.
Quem Scevola convoca? Pessoas que não têm
nenhuma experiência em assuntos militares, estratégia,
nem qualquer tipo de combate: os pintores cubistas. Jean
Paulhan escreve:
Os únicos quadros que a opinião pública obstinadamente acusou de não
parecerem com nada tornaram-se, na hora do perigo, os únicos que
poderiam se parecer com tudo.2

Melhor do que qualquer um, os pintores cubistas


sabem jogar com as formas e os planos, oferecendo à
superfície de suas telas objetos sem corpo,
representados porém sob todas as facetas. Eles recons‐­
tituem o objeto na sua totalidade, e não apenas segundo
o ponto de vista de quem os olha. É isso que eles farão, e
também o contrá­rio. Camuflarão objetos fazendo com
que seu volume desapareça. Outros surgirão, criados
inteiramente a partir de um só plano que representará
uma totalidade. É o princípio da ilusão: o olho do aviador
inimigo que sobrevoa um falso canhão, pintado em uma
superfície plana e em trompe I’oeil, deve acreditar que
esse canhão é real, qualquer que seja o ângulo pelo qual
examine. E, se as bate­rias existem de verdade,
dissimuladas sob falsos arbustos, o olho do aviador
inimigo deve acreditar que a folhagem é real, qualquer
que seja o ângulo pelo qual examine. As próprias
fotografias aé­reas não devem mostrar nada daquilo que
se quer esconder. Não se trata apenas de dissimular as
estruturas e o armamento. É preciso também induzir o
inimigo ao erro.
Sob o comando do capitão Guirand de Scevola, os
cubistas puseram mãos à obra. Existe nisso algo de
surpreendente: todos aqueles pintores tão vilipendiados
antes da Guerra, aqueles que eram considerados os
grandes defensores da “arte boche”, os artis­tas vendidos
em liquidação por Khanweiler, Uhde e outros Tannhauser,
todos estão trabalhando em defesa da pátria francesa!
Pintores, escultores, cenógrafos, desenhistas e
arquitetos: Bouchard, Boussingault, Camoin, Dufresne,
Dunoyer de Segonzac (que dirige o ateliê de camuflagem
de Amiens), Forain, Roger de la Fresnaye, Marcoussis,
André Mare, Luc-Albert Moreau, Jaques Villon... Bra­que
também vai se juntar a eles, por alguns meses, em 1916.
Mas, apesar da insistência de Scevola, Derain e Léger
são recusados.
Enquanto durar a Guerra esses artistas vão desenhar
aqua­relas com falsas árvores que serão fabricadas na
retaguarda, nos circos ou nas escolas de belas-artes,
equipadas com uma escada interna que permita ao
observador ver as trincheiras inimigas (daí veio a ideia
do Bikoff de Cendrars, no qual Charles Chaplin teria se
inspirado). Essas folhagens pintadas com as cores da
natureza se­rão colocadas sobre capacetes e canhões,
quebrarão os ângulos das máquinas recobrindo-as de
tonalidades vivas ou de redes de ráfia, esconderão os
pontos de ataque e de observação em falsas ruínas,
paredes fictícias, moinhos de papelão, chaminés, montes
de palha, cadáveres de homens ou de animais feitos a
pincel... Sobre telas gigantes, serão desenhadas falsas
florestas abrigando metralhado­ras de verdade, estradas
de ferro, placas. Cidades inteiras serão dissimuladas,
trincheiras, pontes... Serão feitas cabeças de solda­dos
cobertas de gravetos, que os poilus exibirão no fundo das
trin­cheiras para atrair o fogo inimigo. Em 1917, na
província de Mes­sina, centenas de soldados se erguerão
da terra, bem desenhados sobre telas estendidas para
despistar os alemães.
A camuflagem será utilizada por todos os exércitos do
mundo. Os cubistas franceses ajudarão os ingleses e os
italianos. Os alemães também a utilizarão, em 1917. De
volta da Guerra, mui­tos desses pintores estarão
desgostosos com uma arte da qual per­ceberam toda a
sórdida realidade: árvores arrancadas, cidades vi­radas de
pernas para o ar, monumentos destruídos, cadáveres
com os membros arrancados e espalhados... E alguns
farão então uma pergunta bem legítima: o cubismo, que
tão bem ilustrava a Guerra, não a teria também
antecipado?
Para os lados da América

Objeto-dardo95
Marcel Duchamp

E m 1914, Georges Braque estava no 224o regimento


de infantaria. Promovido de sargento a subtenente,
foi para a linha de frente. Em maio de 1915, foi
gravemente ferido na cabeça, na Batalha de Ca­rency. Foi
trepanado e em seguida dispensado, em 1916.
Léger esteve em Argonne e Verdun. Vítima dos gases,
foi reformado alguns meses antes do final da Guerra.
Em setembro de 1915, Derain foi para o 82o regimento
de artilharia. Participou das hecatombes de Verdun e do
Chemin des Dames. Com a paz, retornou à vida civil.
Roger de la Fresnaye ficou na infantaria até que a
tubercu­lose o prendeu a um leito de hospital, em 1918.
Kisling foi ferido durante uma luta corpo a corpo.
Cendrars perdeu um braço na Champagne. Apollinaire
voltou para Paris, depois do Bois des Buttes... Todos
criticaram os amigos de antes da Guerra que, aqui ou ali,
tinham continuado a trabalhar e a vender suas obras.
Não aqueles que o exército recusou, como Modigliani ou
Ortiz de Zarate, mas os que tinham saído de fininho.
Delaunay para a Espanha, Picabia e Cravan para a
América.
A América era uma história que tinha começado antes
da Guerra. Mas que voltaria a Montparnasse alguns
meses depois do armistício.
No dia 17 de fevereiro de 1913, em Nova York, foi
aberta a International Exhibition of Modern Art, evento
mais conhecido como Armory Show. Era a primeira
exposição americana de arte contemporânea
internacional e, segundo Hélène Seckel, o “relan­çamento
– senão o nascimento – do mercado da arte”.1 Essa
exposição iria ter repercussões consideráveis, pois foi ali
que se efetuaram os primeiros encontros entre os
artistas europeus e os colecionadores que virão para
Paris nos anos 1920.
As obras do Armory Show estavam reunidas numa
antiga sala de armas (“Armory”), perto de Greenwich
Village. Um dos pro­motores do evento era um advogado
americano, John Quinn, que depois de muitas batalhas
conseguiu que as obras de vanguarda não fossem
taxadas como importados. Ele recorreu aos serviços de
Henri-Pierre Roché (futuro autor do romance Jules et Jim)
para adquirir um certo número de peças na França.
Walter Pach, tradu­tor de Elie Faure para a língua inglesa,
reuniu também alguns qua­dros para a exposição –
principalmente os pintores cubistas da Section d’Or.
O Armory Show expôs cerca de 1.600 obras de artistas
europeus, entre os quais Cézanne (foi nessa ocasião que
o Metropolitan Museum de Nova York adquiriu seu
primeiro qua­dro), Braque, Gauguin, Gleizes, Kandinski,
Léger, Marcoussis, Pi­casso, Duchamp e Picabia.
Em 1913, apenas Picabia tinha recursos para fazer a
traves­sia do Atlântico. Ele foi o único artista francês
presente no Armory Show. A imprensa americana
dedicou colunas inteiras a esse pin­tor, nascido de pai
cubano e de mãe francesa, que era a própria imagem da
vanguarda.
Picabia tinha sido impressionista na sua juventude,
ponti­lhista um pouco mais tarde, fauve pela margem,
vagamente cubis­ta, orfista, segundo Apollinaire. A
América deu a ele o gosto pela mecânica e pela
tecnologia. Descobriu os carros velozes, os dispo­sitivos
de partida elétricos, as preciosidades da modernidade.
Ele iniciou uma nova fase fundada no gosto pelas
máquinas. Picabia ficou fascinado por Nova York. Para
ele, a cidade americana era a cidade do futuro, a cidade
do cubismo.
De volta à França, esse festeiro alegre e rico recebeu a
convo­cação com um desgosto não dissimulado. Como
era esperto, conse­guiu dar um jeito de ser motorista de
um oficial. Em Paris, o que era melhor do que em Verdun.
Mas, quando foi chamado para servir em Bordeaux,
Picabia pediu a ajuda do pai. Por meio da embaixa­da de
Cuba em Paris, este conseguiu que o filho fosse enviado
para Havana, encarregado de uma missão comercial
oficial.
Havana não era a América. Picabia só foi para lá
instigado pela mulher, Gabrielle Buffet. Ficou dois meses.
Depois, voltou para a América. De lá, passou para Madri,
visitou a Suíça, esteve outra vez em Nova York, e de novo
na Espanha.
Na Espanha, onde, durante o verão de 1914, iriam
chegar Delaunay, a mulher e o poeta boxeador Arthur
Cravan.
Cendrars não perdoou esses três. Eram amigos.
Tinham participado de festas desregradas, regadas a
álcool. Puderam ser vistos dançando tango no Bal Bullier,
com roupas extravagantes, rasgadas, notáveis sob todos
os aspectos. Cravan fazia furor com suas calças que
pareciam ter sido mergulhadas na paleta de um pintor, e
suas camisas cheias de buracos, que deixavam entrever
tatuagens e obscenidades.
O juízo tinha vindo com a declaração de guerra. Os
antigos festeiros se encontraram todos em Lisboa. Que
deixaram rapida­mente, quando Portugal, por sua vez,
declarou guerra à Alemanha. Foram aportar em Madri.
Onde as fronteiras não tinham segurança.
Cravan decidiu ir para a América. Para financiar a
traves­sia, teve a ideia de organizar uma luta, na qual
disputaria seu títu­lo com o campeão mundial dos pesos
pesados, Jack Johnson. Os dois homens tinham se
encontrado em salas de treinamento, em Berlim e em
Paris. Segundo Cendrars, Johnson era boxeador em
tempo integral e gigolô nas horas vagas.
Os dois homens fizeram um acordo. A luta teve lugar
num ringue de Madri (em Barcelona, segundo Cendrars).
Foi anunciado por intermédio de cartazes e anúncios na
imprensa: uma verdadeira tourada. Na véspera do
torneio, Cravan tinha reservado um lugar num
transatlântico que ia para Nova York. Sabendo que não
iria vencer o adversário, pediu a este que não batesse
com muita força, e que não o pusesse a nocaute, pelo
menos durante alguns assaltos.
Foi mais rápido do que se esperava. A versão
sustentada por Cendrars, atribuída a uma “testemunha
ocular” (assim como no enterro de Whitman), mostra um
Cravan petrificado de medo, encolhido, imóvel no ringue,
curvado sob as vaias da multidão ­diante de um Johnson
primeiro sorridente, depois dando-lhe pontapés no
traseiro para fazê-lo se mexer um pouco e, finalmente,
acertando-lhe um direto em cheio que derrubou de vez o
sobrinho de Oscar Wilde.
“Um, dois, três”, contou o árbitro.
Cravan já tinha caído fora. Enquanto o público e os
orga­nizadores da luta procuravam por ele, junto com
Johnson, que queria sua pele, o combatente cuidava dos
ferimentos na cabine do navio.
Em Nova York, Cravan provocou escândalo. Quando
Du­champ e Picabia souberam que senhoras da alta
sociedade tinham organizado uma conferência para ouvir
falar de arte moderna, decidiram enviar a esse público
de gente esnobe e inculta o mais exaltado dentre eles.
Cravan foi então escolhido para falar. Man­daram-no
almoçar antes da palestra. Ele comeu pouco, mas bebeu
muito. Apresentou-se no horário, na sala onde era
esperado por um regimento de saias rodadas, pasmas de
admiração e prestes a desmaiar. O conferencista virou-
lhes as costas, tirou primeiro o paletó, depois os
suspensórios, a camisa, as calças, voltou-se, in­sultou as
filas da frente, depois as outras, e foi, finalmente, levado
pela polícia. Os amigos pagaram a fiança.
Cravan foi para o Canadá de onde fugiu vestido de
mulher, se engajou como médico num barco de pesca
que ia para a Terra Nova, abriu uma academia de boxe
no México e desapareceu no mar ao largo da costa do
México, depois de ter se casado com a escritora
americana Mina Loy.
Quanto a Jack Johnson, nunca mais foi visto num
ringue.
Cendrars sempre reconheceu o “imenso” talento
poético de Arthur Cravan. Mas nunca o perdoou por ter
deixado a França nas vésperas da Guerra. Como também
não perdoou seus amigos de Nova York, “uns medrosos
da pior espécie, que a tormenta que assolava a Europa”
tinha jogado para lá; uma mistura “de deserto­res
europeus, de internacionalistas, de pacifistas, de
neutros”.2
Entre eles, um expoente essencial da arte moderna,
talvez neutro, certamente pacifista, mas de forma
alguma desertor: Mar­cel Duchamp.
Que fazia ele na América?
Escândalo.
Chegou a Nova York em 1915, precedido por uma
turbu­lenta reputação. Dois anos antes, tinha sido a
estrela europeia do Armory Show. Seu Nu descendant un
escalier tinha provocado muita gritaria, entusiasmo,
desgosto, veneração... A imprensa o ti­nha incensado,
zombado dele, desejado-lhe tanto o fogo do inferno
quanto as delícias de todos os paraísos.
Não era a primeira vez. Já em 1912, por ocasião do
Salão dos Independentes, seus amigos cubistas tinham
lhe pedido que retirasse seus quadros. Gleizes e Le
Fauconnier tinham enviado seus dois irmãos, Jacques
Villon e Raymond Duchamp-Villon, para tentar evitar que
ele expusesse esse Nu descendant un escalier, por
demais ousado, na concepção do movimento, para ser
suportado pela crítica.
Duchamp aquiesceu. Uma vez, mas duas não: no ano
se­guinte, seu Nu foi exibido nas paredes da Section d’Or.
Em segui­da, partiu para a América.
Duchamp vendeu para o Armory Show as quatro obras
que expôs e, graças a isso, conseguiu dinheiro suficiente
para dei­xar a Europa em chamas e ir para Nova York.
Tinha sido reformado por insuficiência cardíaca. Isso não
lhe causou nenhuma frustra­ção: segundo ele próprio
confessou, não tinha o patriotismo necessário para a
moral daquela época; e quando lhe pareceu imperioso
fazer algo, depois que os Estados Unidos entraram na
Guerra, alis­tou-se na missão militar francesa como
secretário. Duração das aulas: seis meses.
Quando chegou a Nova York, Duchamp admitiu suas in‐
fluências: um pouco de impressionismo, um pouco de
fauvisme, um pouco de cubismo; nenhuma admiração
particular por Cézanne, mas um grande amor por Monet,
um profundo respeito por Matisse e um choque diante da
exposição de Braque, em 1910, na galeria de Kahnweiler.
No entanto, sua influência mais marcante não foi um
pin­tor. Foi um escritor: Raymond Roussel. Duchamp
sempre reconhe­ceu que havia começado La mariée mise
à nu par ses célibataires, même, depois de ter visto a
representação de Impressions d’Afrique no Teatro
Antoine, em 1912. Estava acompanhado por Guillaume
Apollinaire.
Raymond Roussel representava então o arquétipo do
jovem rico que frequentava as altas rodas da Belle
Époque. Lembrava a Philippe Soupault, o Proust de
Cabourg: mesma elegância, mesmos gostos pelo
refinamento, mesmas exigências literárias.
Depois do fracasso da primeira obra, La doublure,
Roussel foi vítima de “uma terrível doença”3 da qual
sofreu durante mui­to tempo. Mais tarde, entrou em
desespero, jogando-se ao chão, porque não mais atingiu
o sublime na criação literária.
Ele costumava passear num trailer de vários
compartimen­tos, equipado de banheiro e cozinha.
Roussel escrevia com as per­sianas fechadas para que o
espetáculo da vida não o distraísse do trabalho. Da
mesma forma, em casa, pagava um jardineiro para cui‐­
dar das flores que ele nem olhava. Gastava sua fortuna
editando livros que não vendiam, produzindo peças de
teatro que provoca­vam total indiferença ou, exatamente
o contrário, barulho, furor e anátema. Foi assim com
Impressions d’Afrique.
Teve a ideia de adaptar seu livro para o palco a fim de
con­quistar um público que nunca o pedia nas livrarias. Só
Edmond Rostand foi benevolente. O público se
enfureceu. A revolta foi jus­tamente contra aquilo que
fascinou Marcel Duchamp: a novidade da linguagem, a
modernidade do espetáculo, as máquinas apresen­tadas
no palco, principalmente as máquinas humanas, uma das
quais representava um esgrimista. Roussel buscava suas
fon­tes na vanguarda: na revolução das técnicas, no
movimento, na velocidade, no cinematógrafo...
Tanto o pintor quanto o escritor iriam abandonar sua
arte enquanto ainda eram jovens. Um e outro se
dedicaram ao jogo de xadrez, do qual foram os mais
brilhantes expoentes da sua época (Roussel foi
principalmente o inventor de um xeque-mate do bispo e
do cavalo, utilizado por Tartakower). Nenhum dos dois
nunca pertenceu a uma escola.
Duchamp tinha uma razão mais forte para se recusar a
fazer parte de um grupo: o fato de seu Nu ter sido
retirado da Section d’Or por seus pares deixara-o
desgostoso em relação à noção de coletividade. Tanto na
América quanto na França, ele ficará, por­tanto, sozinho.
Principalmente quando os cubistas Survage, Glei­zes e
Archipenko excluírem os pintores e os escritores
dadaístas da Section d’Or.

Em Nova York, como um jovem complacente, Duchamp


passeia seu cachimbo e seus charutos em meio aos seus
admiradores. Passa de um salão a outro, rindo
silenciosamente de se ver assim como objeto de culto ou
de escândalo. É o comendador de todas as van­guardas.
Dá aulas de francês, muito vagas, a belas jovens a quem
ensina as palavras mais grosseiras da língua. Descobre o
jazz, joga xadrez, fuma, bebe e dança em companhia de
Man Ray, do músico Edgar Varése, de Francis Picabia,
Arthur Cravan e Mina Loy. As mulheres passam,
desaparecem, voltam.
Dinheiro? Nenhum problema. Precisa do que precisa,
só isso. O pai sempre sustentou os três filhos artistas. Os
mecenas americanos o sucederam. Duchamp vive na
casa de Louise e Walter Arensberg, que lhe pagam pelas
obras adquiridas, não em dinheiro, mas em meses de
aluguel. Nas paredes da casa estão pen­duradas obras de
Cézanne, Matisse, Picasso, Braque... Os Arensberg são
decididamente modernos e fervorosos defensores das
vanguardas.
É com eles, e com o amigo Man Ray, que Duchamp
funda a Sociedade dos Artistas Independentes. O
princípio é o mesmo dos Independentes de Paris: expõem
aqueles que quiserem, sem censura.
É o que ele faz. Envia aos Artistas Independentes um
sani­tário para homens, Fontaine; data e assina com o
nome de um ven­dedor de sanitários: R. Mutt. Novo
escândalo. O sanitário não é retirado da exposição, mas
é colocado atrás de uma tapeçaria. Duchamp se desliga
do grupo.
Para além da provocação, imediatamente visível, o que
é que ele procura? Inventar novas formas, experimentar
uma arte que romperia com limitações dentro das quais
desfalecem as telas, os pincéis, as paletas – os
instrumentos habituais da pintura. Ele também pensou
na quarta dimensão, invisível ao olhar. Seu vaso sanitário
responde às preocupações inerentes à sua busca, que
abrirá caminho para outras vocações artísticas: como
observa Pierre Cabanne, “o exemplo de Duchamp
suscitou a maior mutação artística da segunda metade
do século XX, a síntese neodadá que levou à arte pop”.4
Fontaine não é o primeiro ready-made proposto por
Du­champ. A ideia desses objetos, mais ou menos
deslocados, lhe veio em Paris, certo dia em 1913: ele
havia fixado uma roda de bicicleta sobre um tamborete.
Tinha também comprado um secador. Esses objetos
tinham ficado jogados pela casa, sem que tivesse
pensado em atribuir a eles um valor ou um papel
qualquer.
Em Nova York, antes do vaso sanitário, ele comprara
uma pá de neve de madeira e ferro, que pendurara no
teto do ateliê. Título da obra: In advance of the broken
arm (Antes do braço que­brado). Logo se seguirão À bruit
secret, novelo de linha impren­sado entre duas placas de
latão, Pliant de voyage, constituído por uma capa de
máquina de escrever Underwood, L.H.O.O.Q.96, Mona
Lisa enriquecida de cavanhaque e bigode. Depois,
Duchamp escre­verá à irmã, pedindo a ela que inscreva
um texto curto (que foi perdido) e sua assinatura
embaixo do secador, transformado, a partir daí, em
ready-made.
A partir dos anos 1920, os ready-mades vão ficar mais
com­plicados. O artista não mais se contentará em
assinar objetos exis­tentes; vai reuni-los. São assim, Why
not sneeze (Por que não espir­rar, 1920), constituído de
cubos de mármore, de um termômetro e uma siba de lula
dentro de uma gaiola; Fresh widow (Viúva alegre, 1920),
redução de uma janela de dois batentes, assinado com
um pseudônimo feminino que Duchamp vai utilizar muito
e que ire­mos encontrar na poesia de Robert Desnos:
Rrose Sélavy.
Duchamp explicou a origem desse nome. Ele queria
mudar de identidade e tinha inicialmente pensado num
nome judeu. Afinal, preferiu fazer a inversão dos sexos. A
ideia de Rrose Sélavy surgiu quando Picabia pediu a ele
que acrescentasse sua assinatura às dos amigos
(Metzinger, Segonzac, Jean Hugo, Milhaud, Auric, Péret,
Tzara, Dorgèles...), cujas rubricas estavam em volta de
L’oeil cacodylate (1921):

Acho que tinha colocado Pi Qu’habilla Rrose – arrose


pede dois R, então fui atraído pelo segundo R que
acrescentei –, Pi Qu’habilla Rrose Sélavy.

E conclui:
Isso tudo eram jogos de palavras.5

As palavras apaixonam Duchamp. Sobre os ready-


mades, ele geral­mente acrescenta uma frase curta
“destinada a levar o espírito do espectador até outras
regiões mais verbais”.6 O título da obra na qual ele
trabalha entre 1915 e 1923, La mariée mise à nu par ses
céli­bataires, même (Le grand verre) (óleo, fio de prumo
sobre vidro), recebe esse advérbio, même, que não
corresponde a nada, é um nonsense, mas um nonsense
voluntário – admirado por Breton, que considerava
Duchamp o homem mais inteligente do século XX.
Duchamp também deve essas palavras a Raymond
Roussel. Nisso, os dois homens também têm algo em
comum. O sentido das viravoltas, das manipulações, do
jogo. A Rrose Sélavy do pintor não é estranha ao
“Napoleão premier empereur” de Roussel, disfarçado em
“Nappe ollé ombre miettes hampe air heure” do escritor.
E essas palavras, essas máquinas, essa modernidade
são encontradas igualmente em Francis Picabia, o grande
amigo nova­-iorquino de Duchamp: também para ele a
América representa uma espécie de laboratório do
futuro.
Os dois homens andam juntos pelas calçadas das
cidades americanas. Um magro e o outro gordo. Picabia
tem a aparência de um garoto gorducho, e compensa a
baixa estatura com sapatos de solas grossas; Duchamp é
um grande pássaro como Roger Vailland. Os dois
esperam com mais ou menos impaciência o final da
Guerra na Europa. Encontram-se frequentemente no
número 291 da 5a Avenida, na galeria de um fotógrafo
americano de origem austríaca, Alfred Stieglitz,
frequentada por toda a vanguarda artís­tica dos dois
continentes. Stieglitz expõe artistas a quem sempre dá o
valor integral da venda das obras. Ele ganha a vida
graças à fotografia, e é o bastante.
A galeria tem um jornal, o 291, no qual Picabia vai se
inspi­rar ao criar a 391, em Barcelona, em janeiro de 1917
(a revista che­gará a Paris em 1924). Pois a guerra não
impede nem os encontros nem as viagens. Picabia divide
seus prazeres e suas depressões entre Barcelona, Nova
York e a Suíça, Cravan, Gleizes, Roché, Varèse, Duchamp,
Marie Laurencin e Isadora Duncan. Ele pinta, escreve,
visita os filhos, que estão em Gstaad, trata-se com um
neurologista de Lausanne e encontra em Zurique um
homenzinho de monóculo que está se preparando para
que falem dele: Tristan Tzara.
Para Cendrars, o franco-cubano é “o embusteiro da
arte pe­la arte”.7 Quanto ao romeno, “o grande mufti
Tristan Tzara”, este é apenas uma coluna de bar atrás da
qual se reúnem os espiões, os estetas, os pacifistas de
todo tipo, refugiados na Suíça.
Duchamp é praticamente o único que escapa das
gemônias do homem do braço cortado. No entanto, ele é
como todos os ou­tros, e os outros não são, ou não são
apenas, medrosos, fracos, civis assustados com o choque
dos obuses na terra. O ponto comum entre o Cabaret
Voltaire de Zurique – onde os dadaístas se reúnem em
torno de Tristan Tzara –, os salões nova-iorquinos – fre‐­
quentados por Cravan, Duchamp e Picabia –, os
surrealistas – que vão reverenciar os três –, consiste em
que, tanto uns quanto outros reivindicam em alto e bom
tom uma opinião da qual a épo­ca não quer nem ouvir
falar: eles são em primeiro lugar, e antes de qualquer
outra coisa, os primeiros inimigos da Guerra.

95 Embora a tradução corrente em português do ready-made de Duchamp


seja “objeto­-dardo”, o sentido de “objeto-ferrão” certamente não
desagradaria aos dadaístas, enriquecendo ainda mais a sua simbologia
fálica. (N.T.)
96 A sonoridade das letras em francês forma a frase: elle a chié au cul (ela
cagou na bunda). (N.T.)
Dadá & Cia.

...Sou contra a ação; a favor da contínua contradição, a favor da


afirmação, também, não sou nem contra nem a favor e não
explico, porque odeio o bom senso.
Tristan Tzara

D o outro lado do Atlântico, longe de Nova York,


isolados na Eu­ropa em guerra, dois homens jogam
xadrez. Um deles tem 45 anos. Tem a testa alta,
desguarnecida, bigode e cava­nhaque. O outro usa um
monóculo. Tem apenas vinte anos. Uma longa mecha de
cabelo preto lhe cai sobre a testa. Tem a pele ama­relada.
É míope.
O mais velho é russo. O mais novo, romeno. Estão em
Zuri­que, no Cabaret Voltaire, na rua Spieglegasse, 1.
Nessa mesma cida­de estão também Romain Rolland,
James Joyce e Jorge Luis Borges.
Os dois homens não têm muita coisa em comum, a
não ser o gosto pelo xadrez, uma grande desconfiança
em relação à Guerra, que está deixando o continente em
chamas, e o uso de pseudôni­mos. Vladimir Ilitch
Oulianov. Samuel Rosenstock.
O revolucionário e o poeta.
Lenin e Tzara.
Um deles foi a Zimmerwald. Em setembro de 1915, os
dele­gados socialistas, reunidos nessa aldeia perto de
Berna, publicaram um manifesto no qual condenavam a
guerra imperialista travada pelas grandes potências. O
que não significa, longe disso, uma ga­rantia de
pacifismo.
O outro é visceralmente contra a Guerra. Esta e
qualquer outra. No entanto, assim como Duchamp em
Nova York, Breton ou Aragon em Paris, ele também não
se ligou a nenhum grupo ou par­tido que lutasse pela paz.
A política não interessa a Tristan Tzara. E, pelo menos por
enquanto, também não aos outros. Na época do Cabaret
Voltaire, Tzara é um jovem talvez um pouco indisciplina‐­
do, que gosta de Villon, Sade, Lautréamont e Max Jacob.
Mas ele não veio a Zurique para revolucionar o mundo.
Veio para conti­nuar seus estudos.
Dadá nasceu no dia 8 de fevereiro de 1916, às dezoito
horas. A palavra não significa nada, e por isso mesmo foi
escolhida. Gra­ças ao acaso de um cortador de papel que
estava dentro de um di­cionário. Essa desejada ausência
de qualquer sentido traduz o de­sejo dos fundadores de
expressar o absurdo e o grotesco. Hugo Ball, Christian
Schad e Richard Huelsenbeck – alemães –, o poeta e
escultor Jean Arp – alsaciano-alemão –, Marcel Janco e
Tristan Tzara – romenos – estão revoltados não apenas
contra a Guerra, mas também contra a civilização que a
produziu. Eles pre­conizam a busca de um absoluto total
que vá ao encontro de uma moral de peso,
fundamentada em bases ancestrais: Trabalho, Famí­lia,
Pátria, Religião.
O grupo se reúne no Cabaret Voltaire, fundado por
Hugo Ball. Ali vão poetas, escritores, pintores,
estudantes, a maior parte deles imigrantes,
antimilitaristas, muitas vezes revolucionários: além de
Lenin, frequentaram o Cabaret Karl Radek e Willy
Münzenberg.
Hugo Ball organiza espetáculos de um novo tipo, onde
se misturam música, pintura, poesia, dança, máscaras,
percussão. A expressão deve ser espontânea. A poesia
não é mais apenas ligada à escrita. Trata-se de
ultrapassar Baudelaire, Rimbaud, Jarry e Lau­tréamont. As
palavras podem ser inventadas, clamadas em vez de
declamadas. Os artistas acompanham-se uns aos outros
gritando, batendo em caixotes ou caixas cheias de
objetos variados. Dançam. Brincam com o público. Ao
acrescentar à poesia sons, pedaços de frases,
fragmentos de textos e cantos africanos, Tzara
estabelece um paralelo com as pesquisas picturais de
Picasso, Matisse e Derain, assim como com as colagens
de Arp, que estão expostas na galeria Dada.
Em junho, nasce a revista Cabaret Voltaire. Com uma
edição de cinco mil exemplares, ela traz ilustrações de
Max Oppenheimer, de Picasso, Modigliani, Arp, Janco, um
poema de Apollinaire, ou­tro do futurista italiano
Marinetti, e a primeira realização para o teatro de um
poema simultâneo assinado, cantado e dito em alemão,
em francês e em inglês por Huelsenbeck, Janko e Tzara:
L’amiral cherche une maison à louer. Assinando o
editorial, Hugo Ball anun­cia o lançamento de uma revista
internacional: Dada.
No dia 14 de julho, acontece a primeira noite dadá. No
pro­grama: cantos africanos, concerto e danças dadá,
poemas movi­mentistas e simultâneos, danças cubistas.
Alguns dias depois, no Cabaret Voltaire, Tristan Tzara lê
Le manifeste de monsieur Antipyrine, incluído em La
première aventure céleste de monsieur Antipyrine, que
será encenada em Paris, em 1920. A obra é publicada na
coleção dadá, com xilogravuras de Marcel Janco. Tzara
envia alguns exemplares para Nova York, in­troduzindo
assim o movimento dadá nos Estados Unidos. A antipi‐­
rina é um medicamento muito usado pelo autor para
acalmar suas nevralgias, e a aventura celeste em
questão permite a Tzara expres­sar o Primeiro Manifesto
Dadá:
Dadá é nossa intensidade; que ergue as baionetas sem consequência a
cabeça sumatral do bebê alemão; dadá é a arte sem chinelos nem
paralelo [...] Sabemos sabiamente que nossos cérebros tornar-se-ão
almofadas confortáveis que nosso antidogmatismo é tão exclusi­vista
quanto o funcionário e que nós não somos livres e que grita­mos liberdade
Necessidade rigorosa sem disciplina nem moral e cuspimos na
humanidade. Dadá permanece no quadro europeu das fraquezas, é
apesar de tudo uma merda, mas queremos a partir de agora cagar em
diversas cores, para enfeitar o jardim zoológico da arte, com todas as
bandeiras dos consulados do do bong hibo aho hiho aho.1
Em julho de 1917, com um ano de atraso, surge Dada
1, coletânea literária e artística. Depois vêm Dada 2 e
Dada 3. Logo depois, es­timulado pelo apoio de Picabia,
cuja energia vai compensar a dos fundadores do Cabaret
Voltaire, que se afastarão, Tristan Tzara publicará o
Manifesto Dadá 1918 (os dois homens já trocam muitas
cartas antes de se encontrarem em janeiro de 1919).
Esse texto terá repercussão considerável em toda a
Europa, principalmente na França, onde os futuros
surrealistas aplaudirão a violência, a audácia, a justeza
dessa tábua rasa do passado.
Tzara vilipendia aqueles que procuram razões, causas,
ex­plicações para tudo – começando pela palavra dadá,
que significa um cavalinho de madeira para uns, uma
ama de leite para outros, duas vezes sim para russos e
romenos, rabo de uma vaca sagrada para os negros
Krou... e mais o que cada um queira imaginar.
Tzara declara que a obra de arte não é beleza, pois
esta, se for o caso de defini-la “por decreto,
objetivamente para todos”, já morreu. A crítica é,
portanto, inútil, pois é própria de cada um. O homem é
um caos que nada pode organizar. Amar o próximo é
hipocrisia, conhecer-se a si mesmo, uma utopia. A
psicanálise, “uma doença perigosa, adormece as
tendências antirreais do ho­mem e sistematiza a
burguesia”. A dialética conduz a opiniões que, em todo
caso, pertencem aos outros e que o indivíduo teria
descoberto sem ela. Cada um fala por si, Tzara antes de
todos, sem se preocupar em convencer nem encorajar
ninguém a segui-lo. “Assim nasceu DADÁ, de uma
necessidade de independência, de desconfiança em
relação ao que é comum a todos.”2
Nada de grupos. Nada de teorias. Abaixo os cubistas e
os futuristas: não passam de “laboratórios de ideias
formais”. Cézanne via de baixo a xícara que ia pintar; os
cubistas, de cima; os futuris­tas viam a mesma xícara em
movimento. “O novo artista protesta: ele não pinta
mais.” Os cérebros têm gavetas que é melhor destruir,
assim como aquelas da organização social. A única coisa
que conta é o ribombar pessoal. A ciência especulativa e
a harmonia, que or­ganiza, são sistemas inúteis, como
todos os sistemas. A moral atro­fia. “Há um grande
trabalho destrutivo, negativo a ser feito. Varrer, limpar.”
As palavras de Tzara têm a força de balas, mas não
matam ninguém. O Manifesto Dadá 1918 é uma
declaração de guerra à Guerra. Ou ao Velho Mundo. Um
texto de força nunca vista que apregoa uma nova
humanidade depois da carnificina. Ele vai apa­recer como
ponta de lança do movimento dadá, cristalizador de
diferentes sensibilidades que os surrealistas logo irão
pegar com mão de ferro. E não serão os únicos. Em Nova
York, Marcel Du­champ verá nele numerosos pontos
comuns com suas próprias preocupações:
Dadá foi o auge do protesto contra o aspecto físico da pintura. Era uma
atitude metafísica. Estava íntima e conscientemente ligado à “literatura”.
Era uma espécie de niilismo [...] Uma maneira de sair de um estado de
espírito – de evitar ser influenciado pelo seu meio imediato, ou pelo
passado: de se afastar dos clichês – de se libertar. A força de vacuidade
de dadá foi muito salutar. Dadá diz a você: “Não esqueça que você não é
tão vazio quanto pensa!”3

Uma linguagem que não será compartilhada, longe


disso, pelos representantes dos pontos de vista oficiais –
mesmo que sejam literários. Em setembro de 1919,
quando a NRF é relançada, a redação – num artigo não
assinado – vai estigmatizar esse novo meio de expressão
vindo de longe:
É verdadeiramente irritante que Paris pareça acolher disparates desse
tipo, vindos diretamente de Berlim. Durante o último verão, a imprensa
alemã ocupou-se, por diversas vezes, com o movimento dadá e as
ladainhas nas quais os fiéis da nova escola repetiam ao infinito as sílabas
místicas: “Dada dadada dada da”.4

Um pouco mais tarde, André Gide vai aprimorar a


crítica, to­mando, em relação ao dadá, uma distância
mais objetiva: ele o opõe ao cubismo – “uma escola” – e
verá nele “uma empresa de demolição”, ao mesmo
tempo em que admite que, depois da Guer­ra, que viu
proliferarem as ruínas, parece normal “que o espírito não
fique defasado em relação à matéria; ele também tem
direito à ruína. Dadá vai se encarregar disso”.5

Existem, pois, Dada na Suíça, mas também a 391 na


Europa e em outros lugares (os quatro primeiros números
foram publicados na Espanha, os três seguintes na
América, o número 8 em Zurique, os onze últimos em
Paris), a SIC e a Nord-Sud em Paris. Essas revis­tas tentam
compensar o vazio cultural dos jornais, cujas páginas
magras são dedicadas quase exclusivamente aos
assuntos da Guer­ra. Elas preenchem igualmente o
espaço deixado pelo desapareci­mento das publicações
comportadas: subsiste apenas o Mercure de France,
clássico demais sob o ponto de vista dos agitadores da
nova arte. De qualquer maneira, as grandes damas da
literatura só podem mesmo ficar ofuscadas por esses
poetas mais jovens, de san­gue novo. Novos nomes,
penas desconhecidas, que vão alçar voo a partir dessas
folhas subestimadas para se tornarem, alguns anos
depois, os Hugo, os Zola, os Flaubert do século XX.
SIC (Som, Ideias, Cores, Formas) dá seguimento à
revista de Ozenfant, L’Élan, que tinha sido lançada em
1915 e 1916. Ela é obra de um só homem: Pierre Albert-
Birot. Antes da Guerra, ele era poe­ta e escultor. Depois,
montou um pequeno comércio de cartões-pos­tais que
imprimia à sua custa e vendia aos soldados e suas
famílias, para facilitar a correspondência entre eles.
Desejoso de editar seus próprios poemas e os dos
amigos, Pierre Albert-Birot decidiu criar uma nova revista.
Inscreveu-se para obter o seguro-desemprego e financiou
o projeto graças ao dinheiro recebido. A SIC, oito pági­nas,
150 exemplares, sessenta cêntimos, saiu em janeiro de
1916. Sua sede, rua da Tombe-Issoire, 37, era a
residência de seu diretor, igualmente autor de todos os
artigos e poemas do primeiro número. Este começava
com estas palavras:
Nossa vontade:
Agir. Tomar iniciativas, não esperar que elas nos venham de Ultra Reno.

Já que era para agir, Pierre Albert-Birot agiu. Quando


inaugurou a revista, ele não conhecia nenhum poeta.
Está sozinho e entende pouco do assunto. Mas ousou e
logo irá colher os frutos da sua coragem: encontra
Severini, que o apresenta a Apollinaire, o qual aceita dar-
lhe alguns poemas. É o bastante para lançar a SIC.
A Nord-Sud não tem o caráter excessivo e inflamado
de suas duas concorrentes. Seu título é inspirado na linha
de metrô que atravessava Paris de Montmartre a
Montparnasse. Quando surge o primeiro número, em
março de 1917, a reputação de Re­verdy é restrita a um
pequeno círculo. Era corretor, católico, alis­tou-se e foi
reformado no final de 1914. Não tem mais dinheiro do
que Albert-Birot, mas sabe se virar melhor. Um poeta
chileno de recursos dá-lhe o empurrãozinho necessário.
Jacques Doucet tam­bém dá uma ajuda, assim como Paul
Guillaume (reformado por motivo de saúde), cuja
publicidade regular da sua galeria traz al­guns francos
para a nova publicação mensal. Juan Gris contribui para o
projeto da capa. A elegância da revista contrasta com as
co­res e o estilo da SIC, cujos efeitos tipográficos parecem
às vezes exageradas piruetas.
A Nord-Sud não parece uma revista de vanguarda. Mas
é. Pierre Reverdy, Max Jacob, a baronesa d’Oettingen
(que usa dois pseudônimos: Roch Grey e Léonard Pieux)
e Guillaume Apolli­naire o demonstram ao longo das
páginas até o último número, em maio de 1918. O
rompimento foi causado por um desentendimento entre
Reverdy e Apollinaire (o primeiro acusando o segundo de
excesso de atividades jornalísticas), e outro entre Max
Jacob e o mesmo Reverdy (que não aceitava que o autor
do Cornet à dés se proclamasse o inventor do poema em
prosa, cuja invenção ele rei­vindicava para si).
Em junho de 1917, Cocteau faz uma pequena incursão
como eventual colaborador. Sua assinatura não vai mais
aparecer: Re­verdy desconfiava do autor de Parade. Como
desconfiava também dos futuristas italianos,
sistematicamente recusados pela Nord-Sud (mas bem-
vindos na SIC), com exceção de Marinetti, provavelmente
porque, no número 2, ele emite algumas reservas em
relação aos excessos desse movimento que ele
contribuiu para lançar (o que não o impedirá, alguns
anos depois, de tornar-se amigo do Duce).
Para compensar, novos colaboradores, e não sem
importân­cia, fazem sua aparição na revista: André
Breton, em maio de 1917; Tristan Tzara, no mês
seguinte; Philippe Soupault, em agosto; Louis Aragon, em
março de 1918 (ele publica seu primeiro poema, “Soifs
de l’Ouest”): Jean Paulhan, em maio.
Esses mesmos vão aparecer ao lado de Tristan Tzara:
Rever­dy em Dada 3; Aragon, Breton, Soupault em Dada 4
e 5, onde tam­bém escreve Georges Ribemont-
Dessaignes. Enfim, todos esses autores colaboram
também na SIC de Pierre Albert-Birot, onde aparecem
também os nomes de Raymond Radiguet e Pierre Drieu
la Rochelle.
Por que obra do acaso essas assinaturas se
encontraram nes­sas três revistas, uma publicada em
Zurique e as duas outras em Paris, todas ligadas aos
movimentos de vanguarda literária e artís­tica que
inflamam a Europa em guerra?
Elas estão aí graças a uma mesma pessoa. Aquela que,
no primeiro editorial do primeiro número, Nord-Sud
aponta como sendo o homem que “traçou novas
estradas, abriu novos horizon­tes”, e a quem a revista
declara todo o seu fervor e toda a sua admiração:
Guillaume Apollinaire.
Ele, mais uma vez.
Os companheiros do Val-de-Grâce

É nos nossos primeiros encontros com Soupault e Aragon que


reside o esboço dessa atividade que, a partir de março de 1919,
iria fazer o reconhecimento do terreno em Littérature, explodir
rapidamente em Dada e ter que se recarregar inteiramente para
chegar ao surrealismo.
André Breton

E le foi trepanado, mas está passando bem. Um pouco


nervoso, quase sempre cansado, mas em condições
de receber os amigos. No quarto do hospital, conserva o
uniforme, está com a cabeça enfai­xada e o cabelo
raspado. É volúvel. E generoso.
Pierre Albert-Birot, que descobriu seus escritos há
pouco tempo, vem pedir a ele que colabore com a sua
revista. Do front, Apollinaire já tinha enviado um poema
que a SIC publicara no número 4: “L’avenir”. Promete a
Albert-Birot que vai fazer isso de novo, muitas vezes. E
cumpre a promessa: durante mais de um ano, envia a ele
cópias de seus poemas. Juntos, os dois homens vão mon‐­
tar Les mamelles de Tirésias. Apollinaire vai redigir um
prefácio para os Trente et un poèmes de poche, que
serão publicados pelas edições SIC. E, quando deixar o
Val-de-Grâce, o poeta irá pontual­mente às reuniões que o
diretor do jornal faz na sua casa, todos os sábados, na
rua da Tombe-Issoire. Levará com ele os amigos Serge
Férat, Pierre Reverdy, Max Jacob, Blaise Cendrars, Roch
Grey. E outros. Dessa forma, a revista vai se enriquecer
com novos no­mes que contribuirão para sua expansão.
Apollinaire permanecerá um amigo fiel, apesar das
criancices de Pierre Albert-Birot, que ele não levava
mesmo muito a sério. É o caso da teoria do “nunismo”
desenvolvida ao longo de páginas e colunas pelo senhor
diretor; tratava-se de uma arte do instante que pretendia
ser mundial, uni­versal e poderia ser aplicada à poesia, à
pintura e ao teatro... e não convencia muita gente.
Com Tzara as relações são mais complicadas.
De Zurique, o pai de Dada enviou publicações para
vários lugares. Descobriu a SIC e mandou suas obras
para Pierre Albert­-Birot, e também não ignorou o
nascimento da Nord-Sud. Colocan­do sua energia a
serviço da causa que defende, contatou todos os artistas
de vanguarda da Europa em guerra para propor a eles
espaço no seu jornal. Cendrars, Reverdy, Max Jacob
tiveram di­reito às suas cartas. E Apollinaire também, é
claro. Mas o convales­cente não responde logo. Em junho
de 1916, o Cabaret Voltaire pu­blicou um poema dele sem
solicitar sua autorização. Ele não se aborrece. Mas fica
preocupado: seria conveniente assinar alguma coisa num
jornal impresso na Suíça, país cuja neutralidade poderia
ser maculada porque lá se fala alemão?
Ele hesita. Tzara insiste. Apollinaire acaba
respondendo. Em duas cartas, uma datada de dezembro
de 1916, a outra de ja­neiro de 1917, ele o censura por
não defender a França com mais vigor diante da
Alemanha. Critica “a disparidade das nacionalida­des” da
redação de Cabaret Voltaire, “das quais algumas têm
uma clara tendência germanófila”. Conclui com as
seguintes palavras: “Viva o cubismo francês! Viva a
França! Viva a Romênia!”.1
Como Tzara faz um retrato apologético dele em Dada
2, Apollinaire agradece, reconhece e assina embaixo:
Acredito que poderia ser comprometedor para mim, principalmente no
ponto em que nos encontramos dessa Guerra multiforme, colaborar com
uma revista, por melhor que pareça ser seu espírito, que tem alemães
como colaboradores, por mais defensores da concórdia que eles sejam.2

Independentemente de seus sentimentos


ultrapatrióticos, será que Apollinaire teme a ação da
censura, encarregada de abrir e de ler a correspondência
vinda ou destinada aos países estrangeiros?
Seja lá o que for, essa germanofobia torna-se fonte de
con­flito entre ele e Reverdy. É que esse último logo pediu
a participa­ção de Tzara em Nord-Sud. Ora, espalhou-se
um infeliz boato so­bre o poeta romeno: desconfia-se que
ele está na “lista negra” dos espiões alemães. O que fica
ainda mais complicado, quando se sabe que Tzara foi
interrogado pela polícia suíça por ter frequentado
elementos suspeitos germano-bolcheviques...

Mesmo desconfiando de dadá, é ainda Apollinaire, uma


vez mais, que vai fazer a ligação (mesmo que seja
indireta) entre o grupo do Cabaret Voltaire e os futuros
surrealistas. André Breton, na ver­dade, descobre os dois
primeiros números da revista no bulevar Saint-Germain,
202, residência de Apollinaire.
Os dois homens se encontram pela primeira vez no dia
10 de maio de 1916, no Val-de-Grâce, onde Apollinaire
acaba de ser trepanado. O mais velho tem 36 anos. O
mais jovem, exa­tamente vinte. É bonito: tem olhos
verdes, rosto forte e bem dese­nhado... Um ano antes, ele
escreveu a esse “grande personagem” que admira.
Aproveitou uma licença para ir visitá-lo.
Breton foi convocado em fevereiro de 1915. Depois de
pas­sar três meses no 17o regimento de artilharia de
Pontivy, seu diploma de PCN (preparação em medicina)
conduziu-o a Nantes, onde foi designado como
enfermeiro militar. Não escolheu a medi­cina por vocação,
mas “por eliminação”, e porque lhe pareceu que a
“profissão médica era aquela que tolerava melhor ao
lado dela o exercício de outras atividades do espírito”.3
Foi no Hospital Militar de Nantes que Breton encontrou
Jacques Vaché, um meteoro que iria exercer sobre ele
uma influên­cia considerável. Que ninguém saberá
verdadeiramente quem foi, e que morrerá de uma
overdose de ópio, em 1919, aos 22 anos. Breton ficou
fascinado por ele por causa da sua conduta to­talmente
livre naqueles tempos terríveis, pelo arrojo de sua apa‐­
rência e de suas palavras, por sua total insubordinação.
Ele nunca estendia a mão a ninguém. Andava pelas ruas
de Nantes de unifor­mes variados – ora hussardo, ora
aviador. Quando cruzava com um conhecido, estendia o
braço na direção de Breton e dizia: “Apre­sento-lhe André
Salmon”. Porque Salmon tinha uma notoriedade que o
outro não tinha.
Vaché só tinha um ponto em comum com Apollinaire:
ele admirava Jarry. De resto, tudo os separava. O próprio
Breton, mui­to próximo desse amigo de Nantes, só podia
se irritar com as pala­vras chauvinistas do artilheiro-
poeta. Depois de passar três sema­nas no front do Meuse,
em meio à carnificina geral, ele considerava essa Guerra
como a pior das monstruosidades. Assim como Louis
Aragon, Paul Eluard, Benjamin Péret e Phillipe Soupault –
as lâmi­nas afiadas do surrealismo, que está por vir –, ele
odiou ter pas­sado a juventude sob as bandeiras do
Exército. Deixara os campos de batalha com uma
constatação, partilhada pelos outros quatro: só uma
revolução total, abrangendo todos os domínios, poderia
limpar a civilização dessa barbárie. É nisso que dadá
devia parecer a eles como uma das poucas vias de
salvação possíveis. Essa via estava mais próxima de
Vaché do que de Apollinaire. Aliás, Breton reco­nhecerá
que transferiu para Tristan Tzara as esperanças que tinha
depositado no amigo de Nantes.4
Mas quando ele encontra Guillaume Apollinaire as
diver­gências se apagam diante da estatura do grande
homem. Elas só virão à tona em junho de 1917, durante
a representação de Ma­melles de Tirésias. Vaché, que
estava presente, abrirá os olhos de Breton, que vai medir
de maneira definitiva o abismo profundo que separa as
duas figuras que o cercam. Escolherá seu campo. E se
afastará de Apollinaire.
Por ora, este continua sendo o grande poeta de seu
tempo. Breton, o homem dos arrebatamentos ora
definitivos, ora provisó­rios, ficara deslumbrado com o
Valéry de Monsieur Teste, com Rimbaud, Lautréamont,
Mallarmé. Ele sucumbe ao charme de Apollinaire. O
homem o cativa por seu brilho, sua imensa cultura, o
espírito novo que ele ainda encarna a seus olhos.
Conhecê-lo é “um raro privilégio”.5
O que [...] me impressionava em Apollinaire é que ele ia colher seu
material na rua, que ele conseguia dignificar, mesmo que não perce­besse
que os reunia em poemas, até mesmo trechos de conversas.6

Foi Apollinaire quem apresentou a Breton um outro dos


seus admi­radores, do qual ele ajudou a publicar um
poema na revista SIC: Philippe Soupault. Os dois homens
logo descobrem vários pontos em comum. Soupault é
filho de médico. É um burguês elegante e dândi. Foi
convocado, mas não foi para as trincheiras: serviu de
cobaia, como muitos outros (que morreram): foi vacinado
contra o tifo, antes de partir para o front. Intoxicado,
ficou hospitalizado durante vários meses.
Ele também sente um ódio incomensurável por essa
Guerra que não acaba. Com que arma exprime essa
violência? Com a pena. Escreve com raiva. A inspiração
lhe vem como um acesso repen­tino. Está num café, pede
uma caneta ao garçom, fecha-se sobre si mesmo e
compõe um poema. Será o grande iniciador da escritura
automática e o coautor, junto com Breton, de Champs
magnétiques.
O terceiro mosqueteiro dos surrealistas é igualmente
um estudante de medicina. Tem um bigode fino, um ano
a mais do que Breton e, como ele, faz estágio no hospital
do Val-de-Grâce. O pai chama-se Louis Andrieux. É
advogado, foi deputado, secretário de Segurança,
embaixador, senador. O filho não tem seu sobrenome.
Aliás, nada prova que seja seu filho. Pelo menos no que
diz res­peito à certidão de nascimento. Pois quando a
amante de Louis Andrieux, Margueritte Toucas-Massillon
(33 anos a me­nos do que ele), teve a criança, o senhor
chefe de polícia registrou-o com o nome de Louis Aragon,
filho de pais desconhecidos. Por que Aragon? Porque o
pai, diziam, teve uma namorada espa­nhola que se
chamava assim.
Era uma falta tão grave que era preciso escondê-la
dupla­mente. Tanto a certidão quanto as adjacências.
Então, fizeram com que o jovem Aragon acreditasse que
a avó (materna) era sua mãe e, como três precauções
valem mais do que duas, disseram que era sua mãe
adotiva. O pai verdadeiro foi apresentado ora como
padri­nho, ora como tutor, e a mãe verdadeira tornou-se
sua irmã. Troca de papéis e passes de mágica: a moral
aparente estava salva. Isso permitiu que o jovem Louis
frequentasse boas escolas em Neuilly e se inscrevesse no
PCN. Em 1917, o senhor chefe de polícia exigiu que a
mãe confessasse ao filho que não era sua irmã e que o
padri­nho era o pai: se o rapaz ia morrer na Guerra, era
melhor que sou­besse de que conjugação de sementes
ele derivava...
Aragon lutou na Guerra sem morrer, e com bravura
sufi­ciente para obter uma medalha. Quando encontrou
André Breton, os dois homens estavam numa situação
idêntica: alternavam os períodos militares e os ciclos de
estudos médicos.
Companheiros de dormitório no Val-de-Grâce,
descobriram afinidades e gostos comuns. Falavam de
Picasso, de Derain, de Matisse, de Max Jacob, de Alfred
Jarry, de Mallarmé e de Rimbaud, de Lautréamont, o
primeiro de todos, que Aragon tinha desco­berto num
catálogo de empréstimos de uma livraria que se torna­ria
famosa, na rua do Odéon, número 7.
O estudante de medicina impressionava Breton por sua
cul­tura. Tinha lido tudo. Era brilhante. Seu desejo de
agradar era visível tanto na riqueza das palavras quanto
das roupas. Estava sempre elegantemente vestido. Essa
procura era também perceptí­vel nas suas maneiras, na
construção das suas frases, no olhar ora irônico, ora
caloroso que lançava sobre aqueles que queria seduzir –
e que seduzia.
Quando não estavam no Val-de-Grâce, entre antigos
solda­dos enlouquecidos pela Guerra, Aragon e Breton se
encontravam na livraria da rua do Odéon. Lá, podia-se
comprar livros, mas também pegar emprestado. Podia-se
igualmente vir escutar autores lerem suas obras e
folhear as revistas de vanguarda, SIC, Nord-Sud e Dada,
nas quais colaboravam, a partir de então, os escritores e
os poetas da nova geração. Na quarta capa da Nord-Sud
estavam indi­cados dois endereços para as assinaturas: a
residência de Pierre Reverdy (rua Cortot, número 12) e a
livraria da rua do Odéon. Essa Maison des Amis des
Livres97, aberta em 1915, teve papel conside­rável na
difusão da cultura dos vinte anos que estavam por vir.
Era dirigida por uma simpática mulher, baixinha, de
bochechas rosa­das, cabelos claros, um pouco gordinha:
Adrienne Monnier.

97 Casa dos Amigos dos Livros. (N.T.)


Na casa dos amigos dos livros

Uma loja, um pequeno comércio, uma barraca de feira, um


templo, um iglu, os bastidores de um teatro, um museu de cera e
de sonhos, uma sala de leitura e, às vezes, uma modesta livraria
com livros para vender ou alugar, e clientes, os amigos dos
livros, que vinham para folheá-los, comprá-los, levá-los. E lê-los.
Jacques Prévert

Q uando abriram a livraria, certa manhã de inverno,


Adrienne e sua ajudante colocaram uma banca na
calçada. Em seguida, entraram e ficaram escondidas
dentro da loja, temerosas, emocionadas, intimida­das
pelos transeuntes que paravam, uns atrás dos outros,
para olhar o conteúdo das caixas. Havia velhos volumes
vindos de bibliotecas particulares, revistas literárias e
artísticas, obras de literatura moderna. A livreira não
tinha meios para comprar todas as obras das quais
gostava. Por isso, a especialidade da Maison des Amis
des Livres veio de uma escolha ditada, antes de mais
nada, pelas neces­sidades econômicas. Quando a livraria
de Adrienne Monnier foi inaugurada, a clientela podia
encontrar ali todos os livros do Mercure de France e da
Nouvelle Revue Française, cujo acervo ela comprara.
Mais tarde, adquiriu toda a coleção de Vers et Prose: Paul
Fort cedeu os exemplares que não tinham sido vendidos
– 6.676, pagáveis em várias vezes.
Os números da revista eram apreciados de maneiras
dife­rentes: alguns nunca eram pedidos, enquanto outros
só ficavam algumas horas na banca. Como o tomo IV.
O primeiro a comprá-lo foi André Breton. Ele deixou a
livreira intimidada:
Breton não sorria, mas, às vezes, ria com um riso curto e sardônico que
surgia em meio ao discurso sem alterar os traços do rosto, como nas
mulheres grávidas preocupadas com a beleza [...] O lábio infe­rior,
desenvolvido de forma quase anormal, revelava, segundo os parâmetros
da fisionomia clássica, uma forte sensualidade gover­nada pelo elemento
sexual [...] Ele tinha realmente aquilo que Freud chamaria de poder
libidinoso do chefe.1

Ele voltou, comprou novamente o tomo IV da revista


Vers et Prose. Depois outra vez, e ainda outra vez...
Pouco depois, apareceu um rapaz de bigode, chapéu e
lu­vas claras. Era muito elegante. No bolso direito trazia
um volume de Verlaine e no esquerdo, uma coletânea de
Laforgue. Apro­ximou-se da livreira e, da maneira mais
amável possível, pediu o tomo IV de Vers et Prose.
Adrienne Monnier remexeu nas caixas que continham a
revista de Paul Fort e estendeu a ele o tomo IV.
“O que é que ele tem de tão extraordinário?”, ela
perguntou.
“Abra na página 69.”
A livreira encontrou ali o texto que tanto fascinava
André Breton: La soirée avec monsieur Teste, de Paul
Valéry.
Ela também iria rever Louis Aragon diversas vezes. Ele
che­gava na livraria, começava a falar com um e com
outro, e isso du­rava três horas: todos se deixavam
envolver pela sua arte da con­versação. Ali, ele podia se
livrar do desmando que era obrigado a suportar no Val-
de-Grâce, onde a grosseria das palavras proferidas pelos
companheiros feria sua delicadeza natural.
Aragon, assim como Breton e Soupault, escrevia nas
revis­tas que Adrienne vendia: SIC, e também Dada.
Quando um dos clientes mais fiéis perguntou um dia à
livreira se ela poderia em­prestar os dois primeiros
números da publicação de Zurique, ou­viu a seguinte
resposta:
“Tudo bem, mas com uma condição... Não corte as
páginas, para que eu possa devolver essa coisa horrível
para a Suíça...”
O cliente era Jean Paulhan.
De uma outra vez, a porta se abriu e entrou um
homem com a cabeça em forma de pera, que tinha
examinado cuidadosa­mente a vitrine antes de entrar.
Procurou pela livreira com o olhar. Quando a encontrou,
apontou-lhe um dedo acusador exclamando:
“É inacreditável que não haja um só livro de um
comba­tente nessa vitrine!”
Era Guillaume Apollinaire.
Ele ainda exercia uma influência muito forte sobre
Breton. Este tinha falado muito do poeta para Adrienne
Monnier, antes que ela o conhecesse: tinha com ele
“uma ligação fanática”. Era seu discípulo.
Lembro-me de uma ou duas cenas realmente inesquecíveis: Apollinaire
sentado na minha frente, conversando familiarmente, e Breton de pé,
encostado na parede, o olhar fixo e amedrontado, vendo não o homem
que estava presente, mas o Invisível, o deus negro, ao qual era preciso
obedecer.2

Apollinaire não era o único poeta vivo que Breton


admirava. Havia também Pierre Reverdy, o fundador da
Nord-Sud. Apreciava nele uma “magia verbal”
incomparável, um gosto acentuado pela teo­ria, mas
reprovava sua exaltação nas discussões e uma tendência
por demais evidente a defender “uma expressão poética
relacio­nada ao cubismo”.3
Essas queixas não eram nada se comparadas às
injúrias que Breton lançou ou permitiu que fossem
lançadas contra o infeliz poeta que, certo dia de 1917,
cismou de fazer a leitura de uma das suas obras na
presença de André Gide.
O imprudente foi procurar Adrienne Monnier e disse a
ela:
“Querida Adrienne, o senhor Gide faz absoluta questão
de ouvir meus versos aqui. Você poderia ceder sua
livraria?”
Adrienne concordou, pois organizava com frequência
reu­niões dessa natureza; convidava os amigos, Léon
Fargue, Paul Léautaud, Max Jacob, Erik Satie... Depois
que os escritores liam as obras, os participantes eram
convidados para um coquetel, no qual um Porto
acompanhava sanduíches e doces...
Animado com o consentimento da livreira, o poeta foi à
ca­sa de André Gide:
“Caro mestre, a senhorita Monnier pediu-me para lhe
dizer que ela adoraria que eu lesse Le Cap na livraria, na
sua presença.”
“Está bem”, respondeu Gide.
Le Cap era Le Cap de Bonne-Espérance. E o poeta...
Em maio de 1917, no décimo sétimo número da SIC,
Jean Cocteau mandou publicar um poema: Restaurant de
nuit. Esse tex­to provocou certa reação, menos pela
qualidade literária do que pelo acróstico que ele formava:
a primeira letra de cada verso era um insulto ao diretor
da revista. Podia-se ler: “Pauvres Birots”.98 Cocteau
negou ter escrito o poema. Metzinger, Warnod e alguns
outros foram acusados. O autor da brincadeira era
Théodore Fraenkel, grande amigo de André Breton.

Adrienne Monnier não era apenas livreira, bibliotecária


e organi­zadora das sessões de leitura, mas também
editora. Publicou alguns livros, entre os quais uma obra-
prima: Ulisses, de James Joyce. Ela se encarregou da
tradução francesa. O texto original, em inglês, foi
publicado, pela primeira vez, pela amiga de Adrienne:
Sylvia Beach.
Sylvia era americana, filha de um pastor, e amava a
França. Descobriu a livraria graças a um anúncio de
jornal que elogiava a revista Vers et Prose. Foi até a rua
do Odéon para comprá-la. Em 1919, a conselho e com a
ajuda de Adrienne Monnier, Sylvia Beach abriu sua
própria livraria: Shakespeare & Cia, na rua Dupuytren.
Dois anos depois, mudou-se para a rua do Odéon,
número 12, em frente da Maison des Amis des Livres.
Todos os escritores americanos que vieram para Paris
depois da Guerra escolheram como referência o
endereço de Sylvia Beach. A livraria serviu de ponto de
encontro, endereço para correspon­dência, e era o
primeiro lugar visitado pelos literatos vindos do outro
lado do Atlântico. Entre eles Hemingway, a quem ela
ofereceu crédito inúmeras vezes e emprestava as obras
que ele queria ler. E também Ezra Pound, que convenceu
James Joyce a ir para Paris.
Em 1918, em Nova York, The Little Review tinha
começado a publicar Ulisses. Em 1920, por causa de uma
queixa da Sociedade em prol da supressão do vício, a
publicação foi interrompida (foi preciso esperar até 1933
para que a justiça americana autorizasse a publicação do
livro, o que seria feito pela Random House). No ano
seguinte, Joyce terminou sua obra. Sylvia Beach propôs a
ele pu­blicar a versão inglesa na França. Joyce aceitou. O
livro foi publi­cado em 2 de fevereiro de 1922, dia em que
ele fez quarenta anos.
Valery Larbaud tinha descoberto Ulisses na The Little
Review. A obra fascinou esse filho de farmacêutico, que
ficou rico com as borbulhas da família: o pai era
proprietário da fonte de água mineral de Saint-Yorre, em
Vichy. Ele escreveu a Sylvia Beach para lhe dizer que
estava “totalmente louco por Ulisses” 4
e que se
propunha a traduzir alguns episódios para a NRF.
Em dezembro de 1921, Larbaud fez uma conferência
sobre James Joyce na livraria de Adrienne Monnier. Ela e
Joyce pediram a ele que traduzisse Ulisses na íntegra.
Depois de muitas idas e vindas, o autor do livro Les
poésies de A.O. Barnabooth encarre­gou-se da última
parte da obra, Pénélope. O restante foi traduzido por um
jovem, Auguste Morel, e por um magistrado britânico,
Stuart Guilbert. Larbaud e Joyce participaram da revisão
final.
Em fevereiro de 1929, a versão francesa de Ulisses
apare­ce na Maison des Amis des Livres. Adrienne
Monnier enviou-a a Paul Claudel, cliente assíduo da
livraria, então embaixador da França em Washington.
Claudel respondeu nos seguintes termos:
Perdoe-me se lhe devolvo o livro que possui, acho eu, um certo valor
comercial e que para mim não tem o menor interesse. Algum tempo
atrás, perdi algumas horas lendo o Retrato do artista quando jo­vem, do
mesmo autor, e já foi o bastante.5

Dois anos depois, Adrienne Monnier escreveu


novamente a Paul Claudel. Soubera-se na França que
uma edição clandestina de Ulis­ses, copiada com quase
todas as letras da edição de Sylvia Beach, circulava nos
Estados Unidos. A livreira pedia ao ilustríssimo se­nhor
embaixador que interviesse junto às autoridades
americanas para procurar o responsável. Sob vários
pretextos, Claudel recu­sou. Com essa fineza de
argumento:
O Ulisses, assim como o Retrato, está cheio de blasfêmias imundas, nas
quais sente-se todo o ódio de um renegado – acometido, aliás, por uma
ausência de talento simplesmente diabólica.6

Paul Claudel foi incapaz de saborear a substanciosa


essência mo­dernista de Ulisses. Ele detestava Joyce, e foi
odiado pelos mosque­teiros do surrealismo, Breton,
Aragon, Soupault, Fraenkel, todos eles amigos de
Adrienne Monnier, naqueles tempos em que a de­fesa de
Ulisses era uma verdadeira causa literária.
Muito antes do aparecimento da obra, SIC, Nord-Sud e
Dada já tinham deixado a arena havia muito tempo.
Cederam lugar à revista Littérature, arma de André
Breton e de seus pares, que não iria se furtar a crucificar
Paul Claudel e os “autores de poemas patrióticos
infames, de profissões de fé católicas e nauseabundas”.7
Adrienne Monnier, que tinha desculpado tudo – e mais
ainda –, não perdoará André Breton por ter atacado sua
excelência o embai­xador: Littérature não será mais
vendida na rua do Odéon...
Mas isso é uma história para depois da Guerra...
98 Pobres Birots. Referência irônica a Pierre Albert-Birot. (N.T.)
Dias de festa em Paris

Minha consciência é uma roupa suja e amanhã é dia de


lavanderia.
Max Jacob

O front estava a cem quilômetros de Paris, e a Guerra ia


crescendo. Ela manifestava acessos de febre e de
urticária que eram erradica­dos trocando-se de médico,
ora Joffre, ora Lyautey99, ou adminis­trando remédios
poderosos, isto é, mortíferos: lança-chamas e ga­ses
clorídricos. Falava-se em usar a aviação como arma de
ataque. Dizia-se que os americanos iriam se juntar às
Forças da Tríplice Aliança. Temia-se que os russos, às
voltas com turbulências ainda não muito claras,
recuassem. Os cadáveres amontoavam-se nas trin‐­
cheiras. Os feridos voltavam para casa.
Em Montparnasse, tudo estava indo bem. Matava-se a
fome e a sede como fosse possível – no La Rotonde, no
bistrô de Marie Vassilieff, na padaria da Samaritaine,
onde os croissants voltaram a aparecer. À noite,
driblando o toque de recolher, pintores e artis­tas
atravessavam a cidade sob a luz sombria dos
lampadários para aportar em um luxuoso apartamento
de Auteuil ou de Passy, onde um bem-vestido felizardo
oferecia bebidas, só pelo prazer de em­briagar-se na
companhia dos artistas. Em outras noites, um ateliê abria
suas portas; durante toda a madrugada, apesar da
proibição de andar nas ruas, chegavam desconhecidos
que esvaziavam os bolsos e distribuíam alguns pedaços
de pão ou de queijo como se fossem oferendas.
Cendrars talvez dividisse suas noites e pesadelos com
um braço cortado, Kisling, com a coronhada que lhe
destruíra o peito, Braque e Apollinaire, com as lâminas,
serras e martelos que lhes ti­nham desamassado o crânio.
Mas as feridas encontravam bálsamos nas alegrias e nos
prazeres. Era preciso esquecer a guerra.
Em julho de 1916, numa galeria contígua aos salões do
cos­tureiro Paul Poiret, realizou-se o Salão d’Antin. Não
era a primeira manifestação artística desde o começo da
Guerra (Germaine Bon­gard, irmã de Poiret, já havia
organizado algumas exposições), mas foi
incontestavelmente a mais importante. Obra de André
Salmon, que quis misturar artistas franceses e
estrangeiros para lembrar a solidariedade destes para
com a França. Krémègne estava ao lado de Matisse, que
era vizinho de Severini, que estava exposto não longe de
Léger, De Chirico, Kisling, Van Dongen, Zarate... Max
Jacob também estava presente: francês, porém bretão –
ele fizera questão de precisar.
A mansão de Paul Poiret ficava na avenida d’Antin
(hoje avenida Franklin D. Roosevelt), no número 26, na
extremidade de uma aleia suntuosa que cortava os
jardins, lembrando Versalhes. A exposição era numa
galeria de pequenas dimensões. Uma parede inteira
estava ocupada por uma obra havia muito tempo
acabada, mas que o público ainda não tinha visto, pois
seu criador tinha, até então, se recusado a mostrá-la: Les
Demoiselles d’Avignon.
Os jardins externos foram oferecidos aos poetas. Max
Jacob leu Le Christ à Montparnasse. Cendrars, sem o
braço, e Guillaume Apollinaire, ainda com a bandagem
da trepanação, foram aclamados.
À noite houve um concerto. Debussy, Stravinski, Satie,
in­terpretados por Georges Auric, Arthur Honegger, Darius
Milhaud e alguns outros. Foi aí, em meio a seus amigos
músicos, que Cocteau compreendeu definitivamente
como fazer para atrair Picasso.
Alguns dias mais tarde, foi propor a ele que
colaborasse com um balé realista que estava
escrevendo, junto com Erik Satie, para Serge Diaghilev e
os Balés Russos. O espetáculo mostrava ato­res de circo
apresentando seus números para incitar os curiosos a
entrar na lona.
Parece que foi a presença de Picasso que levou
Diaghilev, que não ligava a mínima para Parade, à
decisão final. Ele encon­trou o pintor, Satie e Cocteau no
outono, e acabou concordando. Imediatamente, o músico
e o autor do libreto puseram-se a traba­lhar. Quanto a
Picasso, trocou o ateliê da rua Schoelcher por uma casa
em Montrouge. Não ficaria ali por muito tempo.

No final de 1916, surgiram outros lugares onde os


artistas podiam se encontrar. O primeiro deles ficava na
rua Huyghens, número 6, nos fundos de um pátio. Ali, um
pintor suíço, Émile Lejeune, colo­cara seu ateliê à
disposição de pintores, poetas e músicos desejosos de
expor suas obras, lê-las ou representá-las.
Blaise Cendrars, Jean Cocteau e Ortiz de Zarate
fundaram a Associação Lyre et Palette, cujas
manifestações acolheram um pú­blico dos mais variados:
os habituais frequentadores do cruza­mento Vavin, de
pulôveres e calças surradas, lado a lado com as peles e
os colares dos requintados moradores da margem direita,
levados por Jean Cocteau. Em uma sala ora abafada, ora
gelada, es­ses dois mundos travavam conhecimento. Do
lado de fora, as limu­sines de cromos dourados estavam
ao lado dos carrinhos que transportavam as obras
expostas pelos pintores, ou das cadeiras emprestadas
por uma noite pela responsável do Luxembourg.
No dia 19 de novembro, dia da abertura da primeira
expo­sição da Lyre et Palette, Kisling, Matisse, Modigliani,
Picasso e Ortiz de Zarate penduraram juntos suas obras.
Paul Guillaume ha­via cedido significativas estatuetas da
arte negra. À noite, Erik Sa­tie, vindo de Arcueil, a pé,
sentou-se ao piano para executar obras cujos títulos
eram efetivamente dadá: Airs à faire fuir, Danses de
travers, Versets laïques et somptueux, Véritables
préludes flasques pour un chien.100
No dia seguinte, e nos dias subsequentes, aqueles que
eram chamados de Novos Jovens e que vão se tornar o
grupo dos Seis­ – Arthur Honegger, Darius Milhaud,
Francis Poulenc, Georges Auric, Louis Durey, Germaine
Tailleferre – foram se sucedendo.
No dia 26 de novembro, Cendrars, Max Jacob, Reverdy
e Salmon leram suas obras. Cocteau recitou uma poesia
de Apolli­naire, que estava muito fraco para fazê-lo ele
mesmo. Ficou um pou­co afastado, ostentando um
esplêndido uniforme de oficial, com­prado na véspera na
Belle Jardinière, e botas de couro selvagem imaculadas.
Sacudia a poeira da túnica azul, punha a mão orgulho‐­
samente na bandagem preta em torno da cabeça. Uma
jovem dava-­lhe o braço. O nome dela era Jacqueline, mas
ele a chamava de Ruby, por causa da cor dos seus
cabelos. Ela não conhecia muita gente. Ele a
reencontrara por acaso, depois de tê-la visto várias
vezes, em outros tempos, na companhia do noivo, o
poeta Jules-­Gérard Jordens. Este tinha morrido no Bois
des Buttes, em 1916, no mesmo lugar onde Apollinaire
fora ferido.
No dia 31 de dezembro de 1916, para festejar o
lançamento do Poète assassiné, coletânea de contos e
novelas, os amigos de Guillaume decidiram organizar um
almoço íntimo – duzentas pes­soas – num lugar tranquilo
– o Palácio de Orléans, na avenida do Maine. O menu foi
bem sutilmente redigido por Max Jacob e pelo próprio
Apollinaire:
Entradas cubistas, orfistas, futuristas etc.
Peixe do amigo Méritarte
Zone de contrafilé à Croniamantal
Arétin de capão à Hérésiarque
Salada de Méditations esthétiques
Queijos em Cortêge d’Orphée
Frutas do Festin d’Ésope
Biscoitos do Brigadier masqué

Vinho branco do Enchanteur


Vinho tinto da Case d’Armons
Champanhe dos Artilleurs
Café das Soirées de Paris
Alcools

Foi um sucesso. O almoço terminou com uma batalha


de miolo de pão, tendo de um lado, em uma das mesas,
Rachilde, Paul Fort, André Gide e algumas outras grandes
figuras das Letras e das Ar­tes, e do outro, artistas mais
jovens, barulhentos e extremamente mal-educados –
para grande alegria de todos.
Duas semanas depois, a mesa foi posta novamente.
Dessa vez no bistrô de Marie Vassilieff, e em homenagem
a Braque, que retornava, também trepanado, à vida civil.
O comitê organizador, que incluía Apollinaire, Gris, Max
Jacob, Reverdy, Metzinger, Ma­tisse, Picasso e alguns
outros, convidava os amigos, mediante uma contribuição
de seis francos, a virem participar da ágape. (André
Salmon afirma que Picasso não escrevera nem uma só
vez a Braque durante a Guerra.)
O sucesso não foi total. Porque, para infelicidade sua,
Ma­rie Vassilieff tinha convidado Beatrice Hastings, que se
separara de Modigliani. Ela veio; mas não veio sozinha:
Alfredo Pina, escultor e amante da vez, a acompanhava.
Haviam pedido a Modigliani que fosse comer em outro
lugar. Mesmo assim ele apareceu. Pagou seus seis
francos de entrada, cumprimentou uns e outros e,
conside­rando que o preço valia o espetáculo, aproximou-
se de Beatrice e pôs-se a recitar Dante e Rimbaud ao seu
ouvido. Quando o escul­tor quis se intrometer, ou seja,
dizer alguma coisa, Amedeo tentou mandá-lo plantar
batatas. Ao que o outro replicou sacando uma Browning.
Todos tomaram um susto. Que virou uma grande con‐­
fusão. Max Jacob bancou o árbitro. Apollinaire fez a
contagem. Juan Gris observava, espantado, aqueles
energúmenos de todos os jeitos e feitios que se
sacudiam como galos raivosos. Impertur­bável, atrás da
barba e dos óculos, Matisse tentava acalmar os âni­mos.
Finalmente, Modigliani, desprestigiado, foi jogado na rua.
Em um canto, Picasso sussurrava ao ouvido de
Pâquerette, sua manequim preferida da Maison Poiret. O
idílio, entretanto, não iria durar muito.
Um mês depois, o pintor levantava voo nas asas
ligeiras de Cocteau, o zéfiro. Foi visitar Nápoles e
Pompeia, encontrou Dia­ghilev em Roma, caiu nos braços
de Olga, e voltou no dia 18 de maio de 1917, no palco do
teatro do Châtelet.
Ali, apresentaram Parade, balé em um ato, argumento
de Jean Cocteau, música de Erik Satie, figurinos e
cenários de Pablo Picasso.
Foi como Hernani. Versão moderna. Os representantes
da nobreza, vindos naquela noite arejar o espírito junto
aos aromas duvidosos da arte cubista, defendida por
Cocteau no programa, levaram pequenos sustos. No
início, La Marseillaise estava perfeita. A cortina
tricolor101 com arlequins, cavalos e atrações dos
parques de diversão era passável. Mas a moça de chapéu
pontudo! O empre­gado negro! A égua com asas! O
caubói carregando um arranha­céus nas costas! E a
música! Não há notas, é só barulho!
A princesa Eugène Murat não conseguia se acalmar.
Ela es­tava usando um diadema. Distribuía vários “Mon
cher” ao acompa­nhante do dia e pancadas com o leque
nos vizinhos, que sopra­vam, a todo pulmão, apitos que
tinham aprendido a usar naquela tarde, em caso de
necessidade. Havia tumulto por todos os lados. A
condessa de Chabrillan e a marquesa de Ouessan
gritavam: “Metecos! Covardes! Vermelhos!”. Era
loucamente excitante! As senhoras da alta sociedade
procuravam os artistas grosseiros para atacá-los com os
grandes alfinetes dos chapéus. Algumas, de ves­tido de
gala, davam o braço a cavalheiros cujos fraques e unifor‐­
mes rufavam de condecorações e ornamentos militares.
Outras, co­mo a princesa de Polignac, estavam vestidas
de enfermeira para lembrar a Guillaume Apollinaire que
ele não era o único que tinha se alistado. Porque
Guillaume defendia os seus, de uniforme mili­tar. A
bandagem que ele usava em volta da cabeça
impressionava muita gente. Perto dele, Cocteau dava
pulinhos para verificar se na sala estava o público que
ele escolhera e que estaria sempre ao lado dele: os
artistas finos e esmerados. Com a manga, ele esbarra
num senhor que dizia ao vizinho: “Se eu soubesse que
seria tão estú­pido, teria trazido as crianças!”.
No dia seguinte, a crítica foi implacável. Parade foi
consi­derado uma manifestação da melhor arte boche. Os
cronistas atira­vam para todos os lados com suas
máquinas de escrever, seus dína­mos e sirenes.
Crucificaram Diaghilev, que, algumas semanas antes,
havia tido a infelicidade de incendiar as dobras da
bandeira ver­melha dos bolcheviques com seu L’oiseau de
feu.102
Erik Satie, o primeiro a ser visado pelas flechas dos
jornalis­tas, iria responder com estas palavras ao cronista
do Carnet de la Semaine, que o acusara ao mesmo
tempo de ultrajar o gosto fran­cês e de falta de talento,
de imaginação e de profissionalismo:
Caro senhor e amigo,
Você é só uma bunda, mas uma bunda sem música.
O outro abriu um processo contra ele por injúria e
difamação. Satie foi condenado a uma pena, com direito
a sursis. Ele ficou tão per­turbado quanto Picasso no dia
em que compareceu diante do juiz, no caso das
estatuetas ibéricas. Passou a ter antecedentes crimi­nais,
ficou arruinado pela suspensão dos direitos autorais,
proi­bido de viajar (ele que só saía de Paris para ir a
Arcueil103 e voltar!). Ele não tinha dinheiro para pagar
um advogado nem para bancar uma apelação da
sentença. Os amigos, Gris, Cocteau e Max Jacob na
frente, procuraram conhecidos influentes para ajudar o
músico.
Enquanto isso, nesse mesmo mês de maio de 1917, o
presi­dente Poincaré nomeava Philippe Pétain
comandante em chefe do Exército. Pois lá para cima, nas
planícies do Norte, os batalhões dizimados estavam
deixando as trincheiras para pedir o fim da carnificina.
Pétain mandou fuzilar quatrocentos rebeldes para
servir de exemplo. Quatrocentos soldados que foram se
juntar aos qua­renta mil exterminados no Chemin des
Dames.

99 Comandantes do Exército francês. (N.T.)


100 Árias para espantar, Danças enviesadas, Versículos laicos e suntuosos,
Verdadeiros prelúdios flácidos para um cachorro. (N.T.)
101 Com as cores da bandeira da França. (N.T.)
102 O pássaro de fogo: uma das mais importantes produções dos Balés
Russos, dirigida por Diaghilev e musicada por Stravinski. (N.T.)
103 Subúrbio de Paris. (N.T.)
Amor à primeira vista

Ele estava sozinho, tinha uma espessa franja castanha na testa,


óculos de tartaruga, uma camisa de algodão xadrez vermelha e
branca, um pequeno bigode em forma de M, e usava um terno de
um belo tecido inglês...
Youki Desnos

N o seu posto atrás do balcão do La Rotonde, o bigode


atento, Libion está em estado de alerta. Blaise
Cendrars acaba de empurrar a porta, com a mala na
mão: está mais uma vez mudando de hotel... Aproxima-
se de Max Jacob, que está recopiando um dos seus
manuscritos para o costureiro Doucet. Ele poderia estar
vestido assim como descreve Léautaud: escarpins de
saltos gastos, grossas meias de lã, calça xadrez
desbotada e muito curta, jaqueta minús­cula e apertada,
chapéu empoeirado.
Cendrars senta-se. Max conta a ele a briga entre
Reverdy e Diego Rivera a propósito do cubismo. O pintor
e o poeta parti­ram para a agressão física. Tudo começou
na casa de Lapérouse, durante um jantar oferecido por
Léonce Rosenberg, e foi terminar na casa de Lhote, em
meio aos bibelôs Louis Philippe. Reverdy de­fendeu o
cubismo de Braque, Gris e Picasso, sem poupar os artis‐­
tas que lá estavam. Ofendido, Rivera deu-lhe uma
bofetada. Rever­dy puxou-lhe os cabelos. Foi preciso pô-lo
para fora...
Libion não ouve tudo o que vem da sala. Está
observando uma meia dúzia de policiais de bicicleta que
cercam o café, descem e se reúnem não muito longe da
entrada.
“Batida!”, diz com voz forte.
O aviso não assusta ninguém: a clientela está
acostumada. Desde que os revolucionários russos e os
pacifistas de todas as ten­dências escolheram o La
Rotonde como quartel-general, esses se­nhores da
chefatura de polícia fazem batidas regulares. Todos
aqueles que são contra a Guerra são considerados
derrotistas. Pala­vra que não é francesa, segundo o
marechal Joffre. Mas que obriga a tomar certas
precauções. Por isso, durante algumas semanas, Li­bion
colou nas paredes cartazes patrióticos, esperando que
servis­sem de provas testemunhais. Não foi o suficiente
para acalmar os denunciantes, os delatores e outros
policiais à paisana que, desde o início do ano, estão de
olho nos estabelecimentos considerados suspeitos: o La
Rotonde em primeiro lugar, seguido de perto pelo Dôme
e pela Closerie des Lilas. O restaurante Baty, em frente, é
me­nos visado: as toalhas brancas e o cardápio – bastante
caro – de­põem a favor daqueles que almoçam ali.
Um grupo de homens afetados aparece de repente na
entra­da. Passam pelas mesas, verificando os documentos
dos clientes. Ninguém pode escapar: seria
imediatamente barrado pelos policiais à bicicleta parados
na calçada. Mas desta vez a sorte está do lado dos
presentes: o controle das identidades é efetuado ali
mesmo, e não na delegacia.
Os agentes da lei cercam um japonês baixinho, de
vestido cor de ameixa. Em volta do seu pescoço brilha
um colar. Brincos completam a aparência bizarra.
“Mulher?”
“Homem”, responde o japonês.
“Prove.”
“Casei uma primeira vez, e a segunda não vai demorar
mui­to”, responde o japonês com um sorriso de enlevo.
Mostra uma jovem que está um pouco afastada
conversando com outra, sem prestar a mínima atenção
naquele que olha para ela.
“Amor à primeira vista, senhores.”
“Documentos.”
Ele os mostra. Os policiais se curvam para ler melhor:
Fujita Tsuguharu, dito Foujita, nascido em Tóquio, no
Japão.
“Profissão do pai?”
“General do exército imperial.”
“Desde quando está na França?”
“1913... Mas estive em Londres.”
“Fazendo o quê?”
Foujita lança um olhar penetrante na direção da
desconhe­cida, que ainda não o percebeu. Volta-se para
os policiais.
“Eu trabalhava para um pintor. Fazíamos quadros
juntos, ele os assinava, vendia, e não me pagava.”
“Então por que continuava fazendo isso?”
“Para ganhar a vida.”
A autoridade franze a sobrancelha.
“Ele me enrolou, se é isso que quer saber...”
“Queremos saber tudo, e com detalhes.”
“Esse pintor possuía uma propriedade e uma
estrebaria”, explica pausadamente Foujita. “O problema
é que ele sabia pintar tudo, menos os cavalos. Então, eu
os fazia, e ele se encarregava do resto: a relva, o sol ora
nascendo, ora se pondo, as delicadas por­teiras, o charme
bucólico. E, é claro, a assinatura... Um dia, ele saiu para
vender o nosso trabalho. Nunca mais o vi.”
“Foi então que você veio para a França?”
“Depois de ter sido modelista em Londres, para Sir
Gordon Selfridge. Lá, vendem-se tailleurs idealizados por
mim.”
Os policiais olham para o vestido cor de ameixa.
“E isso? É obra sua?”
“Feito à mão... Uma saiazinha da mesma cor
interessaria a um dos senhores?”
A chefatura de polícia faz rapidamente meia-volta em
dire­ção à saída. Com uma paradinha no bar, onde está
Libion, com as mãos nos quadris. Avisam a ele que, se
persistirem as denúncias contra o estabelecimento, este
será fechado.
Novamente sozinho, Foujita procura o olhar da moça
sentada três mesas adiante. Ela tem 25 anos, o olhar
vivo, cabelo curto, nariz arrebitado, sotaque parisiense.
Virou-se uma vez para ele e não pareceu chocada com o
vestido cor de ameixa. O que não surpreende o japonês
baixinho: quando ele chegou à França, costumava
passear em companhia de Isadora Duncan e de seu
irmão, que professavam então o retorno aos ideais
gregos. Ele usava uma faixa na cabeça, uma clâmide
presa no ombro, um colar de pedras grandes, uma bolsa
de mulher e andava descalço. Essa indumentária não
impedia que as jovens caíssem a seus pés.
Feitas as contas, Foujita reconhece tudo o que deve a
elas: Marcelle ensinou-lhe a tomar sopa sem fazer
barulho e a não lam­ber a colher da sobremesa;
Marguerite, a arte do beijo; a Renée deve a maneira de
entrar no cinema sem pagar; a Margot, um grande
repertório de insultos de origem animal; a Yvonne, ter
aprendido a ir até o penhor para colocar o relógio no
prego, dei­xando-o lá pelo tempo de algumas prises de
cocaína; a Gaby, estar agora sempre usando vestidos ou
calças impecáveis, que deixa sob o colchão durante a
noite... Mas, aquela ali, o que ela lhe poderia ensinar? E,
antes de mais nada, como se chama?
Foujita se levanta e se aproxima da moça. Inclina-se
ceri­moniosamente diante dela. Trocam algumas breves
palavras. Em seguida, o japonês se retira.

No dia seguinte, ele vem de novo ao La Rotonde.


Entra, sorrindo, com cara de conquistador. Pendurada no
braço, sua última con­quista: a jovem da qual já sabe o
nome – Fernande – e onde mora – rua Delambre. Ela
parece perdidamente apaixonada por esse diabo de
japonês que a conquistou graças a uma simples blusa:
um corpete azul que ela está usando com tanto orgulho
como se fosse um vestido de princesa. Foujita, que é
capaz de fazer uma túnica em menos de uma hora,
passou a noite toda cos­turando esse presente. Levou-o
para ela pela manhã, tendo conseguido, na véspera, o
endereço do quarto que sua futura namo­rada ocupa
perto do Dôme. E como Fernande Barrey não queria ficar
devendo favores, depois que ele lhe ofereceu esse
presente feito à mão, e como ele se queixasse do frio
que reinava no pequeno cômodo, pegou um machado e
transformou em lenha a única cadeira que possuía.
Treze dias depois, casaram-se na sede do XIV
arrondissement. Foujita pediu os seis francos necessários
para a publicação dos proclamas a um garçom do La
Rotonde, a quem pagou fazendo o retrato da sua mulher.
Escolheram uma testemunha, e, como era preciso duas,
optaram por um profissional desse tipo de coisa que fazia
ponto diante da repartição.
Algumas semanas mais tarde, a senhora Foujita saiu
de sua casa, que tinha sido transformada em domicílio
conjugal. Com uma pasta de desenhos embaixo do
braço, foi até a margem direita, onde está a maioria dos
marchands. Conta a lenda que, tendo sido surpreendida
pela chuva, entrou na loja de Chéron, trocou duas
aquarelas por um guarda-chuva, e voltou para
Montparnasse sem vender nada.
Mas conquistou Chéron. Porque depois de observar por
muito tempo as aquarelas, o comerciante atravessou o
Sena, foi até a rua Delambre e, sem mesmo olhar para as
esteiras no chão, as lâm­padas enfeitadas com
ideogramas, as mesas de pés serrados e, luxo inusitado,
uma banheira de verdade, perguntou quem era o artista
e onde ele guardava suas obras. Comprou tudo,
garantindo não só o pão, mas também o caviar: sete
francos e cinquenta por aquarela no mínimo, 450 francos
por mês.
Para festejar a boa notícia, Foujita ofereceu uma gaiola
e um canário à mulher. Depois, misturando a arte
tradicional japo­nesa com a vanguarda europeia,
aventurou-se por um caminho pe­lo qual ninguém poderia
segui-lo. Antes, por falta de meios, ele pintava animais e
flores a guache ou pastel. A partir desse momen­to, vai
poder comprar as tintas e os pincéis de que precisava.
Sen­tado no chão de uma antiga estrebaria da rua
Delambre transformada em ateliê, cercado de tintas,
Foujita pinta serenamente as telas que Paris inteira logo
irá disputar. Depois de Van Dongen, e ao mesmo tempo
que Picasso, ele vai descobrir as alegrias da opu­lência. O
dinheiro bate à sua porta. A fama também.
Um pintor e seu marchand

No fundo, são os grandes pintores que criam os grandes


marchands.
Daniel-Henry Kahnweiler

Q uem vai ao ar perde o lugar. Cidadão alemão


refugiado na Suíça, com seus bens (em seguida,
suas telas) sequestrados pela Justiça, Kahnweiler acaba
gastando suas reservas: não consegue mais susten­tar
seus artistas. A partir daí, a cadeira ficou vazia. Logo foi
ocupada.
Venceu o mais rápido: Léonce Rosenberg. Seguindo os
con­selhos de André Level e Max Jacob, ele comprou as
obras de Gris, de Braque, de Léger e de Picasso. Tornou-
se o marchand titular dos cubistas, apesar de não
entender nada do assunto, segundo ele próprio
confessou. E não foi só isso: alguns anos depois do final
da Guerra, aconselhou Miró a recortar a tela La ferme
para poder ven­dê-la a clientes... que moravam em
apartamentos. Finalmente, foi Hemingway quem o
venceu no jogo de dados...
Léonce Rosenberg pagava relativamente mal aos seus
pin­tores – mas, às vezes, melhor do que Kahnweiler. No
entanto, a maior parte dos artistas não reclamava, pois
não sabia a quem re­correr. E também porque, como
observa Max Jacob, “sem ele, inú­meros pintores seriam
motoristas ou operários de fábrica”.1
Picasso era o único que esbravejava. Acabou trocando
Léon por seu irmão, Paul Rosenberg, que tinha um
discernimento mais sutil; ele será seu principal marchand
no período entre guerras.
Modigliani também mudará de barco. Troca Paul
Guillaume por Léopold Zborowski. Aquele era um grande
defensor da arte contemporânea, um dos primeiros a
publicar os catálogos das suas exposições. Este era um
poeta polonês que a Guerra surpreendeu em Paris,
quando estudava na Sorbonne. Sob aparente elegância,
escondia uma pobreza que não ficava nada a dever à do
seu cliente. Mas tinha um coração de ouro. E uma
palavra de platina. “Você vale duas vezes mais do que
Picasso!”, ele disse a Amedeo, quando o encontrou pela
primeira vez.
“Você pode provar?”
“Vamos discutir.”
Isso foi durante uma exposição de Lyre et Palette.
Kisling tinha se encarregado das apresentações.
O artista e seu futuro marchand dirigiram-se ao bar do
Petit Napolitain. Modigliani acabara de ganhar duas notas
por uma du­pla sessão de pose. Deixou a primeira no
bulevar, no chapéu de Or­tiz de Zarate, que havia
organizado uma exposição ambulante em benefício dos
artistas vítimas da Guerra.
Sentaram-se e começaram comportadamente por dois
cafés­-crème. Ofereceram um terceiro a um jovem pintor
pobre como eles. O homem usava um sobretudo
rasgado, uma camisa que não valia nada e sapatos que
também não iam lá muito longe. Tossia com rouquidão.
Modigliani levou a mão ao bolso e, discretamente, dei­xou
cair a segunda e última nota.
Em seguida, abaixou-se, pegou o dinheiro e sacudiu-o
sobre a mesa.
“Olhem! Dez paus!”
Colocou a nota na frente do jovem pintor.
“É para você... Estava embaixo da sua cadeira.”
O outro quis dividir.
“Nem pensar!”, exclamou o italiano. “Acabo de ganhar
uma fortuna!”
A segunda sessão de pose acabava de desaparecer em
prol da felicidade de outro.
O jovem pintor ofereceu uma rodada e foi embora.
Zborowski era um jovem estranho. Muito elegante, o
pa­letó bem talhado, a barba impecavelmente cortada,
um sotaque parecido com o de Soutine, um imenso
desejo de se ligar a Ame­deo... Propôs a ele quinze
francos por dia, com direito a modelo e material.
Para Picasso seria uma esmola; para Modigliani era
uma fortuna...
O italiano olhava, desconcertado, para aquele
indivíduo que lhe propunha um maná quase divino,
diário, pois sua cota va­lia apenas um marc no balcão. Um
tipo do qual não era difícil afas­tar a gravata para ver que
faltavam botões, a camisa estava cerzida, o peito era
encavado, e compreender que tinha tanta fome quanto
ele mesmo. Quinze francos por dia!
“Também tenho amigos talentosos”, disse o italiano de
Livorno.
Estava falando de Chaïm Soutine. Depois, como ele
come­çou a enumerar o resto do catálogo dos amigos na
miséria, o mar­chand interrompeu-o com um gesto.
“Tenho que lhe explicar. Com muita franqueza...”
Expôs a situação: não tinha nada. A Guerra o
surpreendera em Paris, onde estudava literatura francesa
na Sorbonne. Tinha se tornado intermediário em obras de
arte, livros e gravuras, porque sabia que falava bem e
tinha alguma facilidade para negociar. Não tinha tido
vocação. Continuava não tendo. Mas Lyre et Palette re‐­
velara a ele a genialidade de Modigliani. Queria se
dedicar a ela e defendê-la.
Sim ou não?
Amedeo tinha colocado seu bloco sobre a mesa do
bistrô. Fixava agora o olhar numa americana que estava
sozinha numa me­sa ao lado. Desenhava seu rosto. Talvez
estivesse pensando em um outro encontro com um outro
marchand. Foi antes que Paul Guillau­me assinasse
contrato com ele. O sujeito tinha negociado um lote de
desenhos por um preço muito baixo, muito, muito baixo,
cada vez mais baixo. Quando Modigliani considerou que o
nível do mar havia sido alcançado, pegou os desenhos,
furou-os, passou um barbante pelo buraco, e foi até o
banheiro, onde pendurou as obras na caixa da descarga.
Quando voltou, colocou-se na frente do marchand, e
disse apenas:
“São seus. Limpe-se com eles.”
Modigliani arrancou do bloco a folha que acabara de
rabiscar.
“Sim ou não?”, perguntou outra vez Léopold
Zborowski.
Modi estendeu o retrato à americana. Ela pegou o
desenho, observou com desconfiança, interesse,
bondade, alegria, contenta­mento, encantamento,
gratidão, felicidade, e quando o êxtase san­tificou seu
rosto, Amedeo disse:
“São três stout.”
Que foram imediatamente servidas.
“Quero a assinatura!”, pediu a americana.
“Os santos nem sempre são anjos”, observou
Zborowski.
Modigliani retomou o desenho que a mulher lhe
estendia.
“Por que precisa de uma assinatura?”
“Pelo valor!”, proferiu a simpática mulher. “Talvez um
dia você seja conhecido!”
Em dez letras perfeitas, sobre toda a diagonal da folha,
Mo­digliani recobriu o retrato com seu nome. E devolveu-o
à america­na, que o pegou mergulhada em êxtase, olhou-
o com gratidão, in­teresse, desconfiança e rasgou-o com
raiva.
Modigliani voltou-se para Zborowski. Bateu seu copo
con­tra o dele e disse:
“A resposta é sim.”

Todos os dias, o marchand passava pelas galerias.


Amedeo nunca lhe pedia contas, só adiantamentos. Para
pagar os copos, os pratos, os buquês de flores... E
Zborowski dava o que podia. Quando não podia, colocava
as joias da mulher no prego, jogava pôquer no La
Rotonde, negociava com outros marchands, pedia
emprestado aos comerciantes. Às vezes o encontravam
sentado numa mesa do La Rotonde sem comer nada
havia dois dias. Sua sina não era mais invejável do que a
de Max Jacob, que passava de mesa em mesa para
vender suas obras publicadas por ele mesmo, ou do que
a daque­les que iam se lavar nos banheiros, porque não
tinham água em casa. Provavelmente o marchand fazia
como os outros, que rouba­vam as pontas do pão que
ficavam para fora do balcão. Quando um interessado se
apresentava, ele empurrava as obras de Modigliani,
vendendo por uma miséria aquilo que valeria cem vezes
mais, cinco anos depois.
Zborowski era totalmente devotado a Amedeo.
Sacrificava­-se por ele, privava-se de tabaco, de carvão,
de comida, dava tudo ao outro para que a miséria fosse
menos rude. Fazia isso tanto por afeição quanto por
admiração. Lutava ao longo do dia para defen­der esse
pintor no qual ninguém acreditava, a não ser alguns cole‐­
cionadores suíços, certo dia atraídos por um artigo
escrito em um jornal de Genebra por Francis Carco. Eles
adquiriram alguns nus por um preço irrisório.
Zborowski procurava a clientela por toda a parte. Até
mes­mo entre os comerciantes do cruzamento Vavin.
Quando não havia outro jeito, o próprio Modigliani
tratava diretamente com eles. Francis Carco conta que,
certo dia em que o marchand estava no Sul, Amedeo
passou pela mulher dele, Hanka, e pediu a ela que
posasse para ele: precisava vender duas telas para um
cabeleireiro. Ela aceitou, em troca de uma terceira para
ela mesma. No final da sessão de pose, como a última
tela ainda não estava seca, Hanka Zborowski decidiu vir
buscá-la no dia seguinte. Quando chegou ao ateliê, as
três obras tinham desaparecido: duas estavam com o
cabeleireiro; a outra tinha sido vendida a um comprador
que apa­recera inesperadamente.
Hanka posou muito para Modigliani. E também Lunia,
amiga do casal. Quando dispunha dos cinco francos
necessários para o pagamento, Zborowski se
encarregava de procurar modelos profissionais. Assim
como o material necessário – trinchas, tintas, paletas,
telas, sem esquecer a costumeira garrafa.
Amedeo pintava no hotel. Depois passou a vir à casa
do marchand, na rua Joseph-Bara. As condições em que
trabalhava não se pareciam em nada com aquelas que
lhe impunha o marchand Chéron, que, antes da Guerra,
trancava o artista no porão da sua galeria, na rua La
Boétie, com uma garrafa de conhaque na mão, só
liberando-o quando a tela estava terminada.
Na casa dos Zbo, Modi chegava depois do almoço.
Preci­sava de uma sessão de algumas horas para terminar
uma tela. Nun­ca fazia a menor crítica a seus modelos.
Quando acabava, o casal repartia com ele o feijão que
Hanka comprava no armazém ao lado. Depois, ia
embora. Às vezes, voltava à noite para pedir um adian‐­
tamento de alguns francos. No apartamento, apagavam
as luzes e fingiam estar dormindo.
Modi levava os amigos à casa dos Zborowski. Soutine
principalmente. Ele insistia sempre com o marchand para
que cui­dasse dele. Mas o polonês não estava convencido.
Provavelmente porque Hanka também não estivesse: os
modos de Soutine a assustavam. Ela adorava Modigliani,
mas não quando estava com o amigo. Durante muito
tempo ela não o perdoou por ter um dia se levantado da
mesa, observado Soutine por um instante e ter
exclamado: “Vou te pintar!”.
O que fez logo em seguida. Usando como tela a porta
da sala de jantar.
Frequentemente, Modigliani vinha com a jovem que,
des­de a primavera de 1917, substituíra Beatrice
Hastings. Puseram­-lhe o apelido de “Noix de Coco” por
causa do contraste formado por uma cabeleira escura,
com reflexos ruivos, e uma pele muito clara, diáfana.
Jeanne Hébuterne tinha tido aulas de desenho no ateliê
Colarossi. Era tão doce e tímida quanto Beatrice Hastings
era agres­siva e extravagante. Um olhar verde, muito
puro, como a água de uma fonte. Era bela e frágil,
ausente, impenetrável, expressando apenas uma infinita
tristeza que encobria como um véu o olhar profundo e
magnífico. Era como um bicho do mato, buscando um
cantinho no mundo dos adultos. Seus pais, Eudoxie e
Achille Casimir, católicos praticantes, severos e rigorosos,
não tinham apro­vado a ligação da filha com um artista
judeu, italiano, sem um tos­tão e muito mais velho do que
ela. Tinha dezenove anos. Modi­gliani, 35. Estavam
apaixonados.
Zborowski encontrou para eles um pequeno ateliê na
rua da Grande-Chaumière, em frente daquele que tinha
sido ocupado por Paul Gauguin em outra época. Ele
continuou a tomar conta do seu protegido. À sua
maneira, que não era a mesma dos mar­chands
estabelecidos.
Mais tarde, alguns irão reprovar nele o amadorismo, a
falta de credibilidade, incontestável, e algumas outras
leviandades, das quais Daniel-Henry Kahnweiler,
principalmente, vai se queixar. Essas críticas não pesam
diante do essencial. O essencial continua a ser a pintura.
Entre 1916 e 1920, isto é, durante os anos Zborowski,
Modigliani vai realizar a quase-totalidade da sua pintura.
Prin­cipalmente sua extraordinária série de nus. Por
absoluta falta de sorte, ou por um sinistro jogo do
destino, quando morrer, doze anos depois de Modigliani,
o marchand estará arruinado e tão pobre quanto estava
Modigliani quando, na manhã de sua morte, Jeanne
Hébuterne voltou para a casa dos pais, na rua Amyot, nú‐­
mero 8B.
Rua Joseph-Bara, número 3

Zeladora? Sim, mas de um prédio de artistas...


André Salmon

A s moças estavam se emancipando. Amores fugidios


nasciam nu­ma noite e morriam ao amanhecer.
Cendrars dizia que a guerra es­vaziava as casas: os
homens estavam no front, as mulheres procu­ravam
substitutos para ocupar as camas despovoadas... As
almas eram consumidas pelas paixões amorosas como
fogo de palha.
Kisling enamorou-se de Renée-Jean, loura, vinte anos,
a franja cortada rente às sobrancelhas, viva e passional,
que usava calças com­pridas e meias desemparelhadas –
como os futuristas italianos.
Como recebera uma herança de um escultor
americano, companheiro de farras antes de 1914, o
noivo pôde organizar um casamento grandioso, a mais
bela festa do bairro naqueles tempos de guerra. Todo o
Montparnasse foi convidado. O cortejo saiu da casa de
Kisling, na rua Joseph-Bara. Cheia de alegria e de vinho, a
pequena tropa resolveu ir a pé até a repartição
municipal, com pausa no La Rotonde e, depois, no Dôme,
onde Cambom, o proprietário, ofereceu algo para
reanimá-los. O público foi crescendo de copo em copo, de
café em bistrô, até o “sim”, mais ou menos nítido, que
Kisling trocou com Renée-Jean, diante do ilustríssimo
funcionário que nunca tinha visto aquilo, um bando de
desengon­çados ao qual se misturavam soldados em
licença uniformizados que estalavam os sapatos na sala
dos casamentos. Além disso, a noiva tratava o novo
esposo de “polonesinho sacana”, enquanto este, que
estava se casando com a filha de um comandante da
guar­da republicana, estava desesperado: logo ele, cujas
convicções an­timilitaristas tinham sido largamente
testadas, ia ter um sogro ofi­cial! Uma vergonha! Uma
calamidade!
Depois de um almoço regado a muita bebida, a tropa
deu um giro pelos bordéis do bulevar Saint-Germain e
voltou para o ateliê de Kisling, onde Max Jacob
representou seu melhor papel, imitando Jules Laforgue.
Modigliani corria atrás dele, suplicando que o deixasse
recitar Dante, Rimbaud, Baudelaire, qualquer coisa,
contanto que ele também participasse da representação.
Foi até o pequeno quarto contíguo ao ateliê e voltou
enrolado nos lençóis dos recém-casados. Subiu num
tamborete, imitou o fantasma, de­clamou Macbeth e
depois Hamlet, tudo isso sob os gritos enfurecidos de
Renée-Jean, que não admitia que usassem os lençóis das
núpcias, mesmo que fosse para recitar Shakespeare.
Seguiu-se um tropel pelas escadas, uma gritaria infernal,
na qual os inquilinos respondiam aos gritinhos de
Amedeo e aos impropérios da senhora Salomon.
A senhora Salomon era a zeladora. Uma bretã teimosa,
mi­núscula, que se vestia como uma feiticeira, mas era
dedicada e atenta a todos esses pequenos artistas que
povoavam seu universo. Ela os defendia junto às outras
zeladoras da rua.
No verão, passava as noites deitada na porta do seu
aparta­mento. No inverno, voltava para dentro e, como o
Douanier Rous­seau, dormia toda vestida. Era impossível
escapar à sua vigilância. Ao primeiro passo, ela saía de
casa. Noite e dia, chocava sua ninha­da com um olhar ora
severo, ora atento.
Tinha um carinho especial por Kisling. Quando ele
voltou ferido da Guerra, ela o encorajou a tomar leite
para aliviar a tosse que o maltratava. Cada vez que ele
saía ou entrava, ela surgia do seu posto de observação,
ajustava com precisão o pincenê e perguntava:
“E o leite?”
“Amanhã, amanhã!”
Ele beijava seus cabelos despenteados. Ela
resmungava, só para constar.
Acolhera Renée-Jean como um passarinho que caiu do
ni­nho. Esperava que a vida em comum estancasse a
sede festiva de Kisling, que, antes do alistamento,
voltava quase sempre de madru­gada, sempre bêbado e
raramente sozinho.
Desiludiu-se rapidamente: a vida conjugal não trouxe
as boas maneiras para o seu protegido. A porta do ateliê
continuava sempre aberta: de manhã, a partir das nove
horas, para as modelos que se sucediam por trás das
telas; de tarde, para os amigos; de noite, para todos os
prazeres. E a pobre senhora Salomon tinha sempre que
suportar os horrores sonoros do fonógrafo, ligado na casa
de Kisling.
“Isso arranha meus ouvidos! Deforma meus gostos!”
Ela detestava Fréhel104 e os tangos argentinos.
Quando não era a música, era o barulho da plataforma
de rodinhas sobre a qual o pintor colocava suas modelos.
Ele puxava, empurrava, virava, ia e vinha em função da
luz do sol e, quando finalmente descobria o melhor
ângulo, tomava fôlego e cantava uma canção que
parecia um rugido, e que ele acompanhava com uma
dança sioux das mais sonoras e trepidantes.
Isso era no último andar. Havia também os outros. Pois
Kis­ling não era o único morador artista do número 3 da
rua Joseph­-Bara. André Salmon também morou ali, antes
de mudar de calçada e ir para o número 6. Todas as
noites, um transeunte que levava seus cachorros dizia a
ele (involuntariamente) que estava na hora de ir dormir.
Às onze horas, como num ritual, esse homem
pronunciava uma palavra, uma só e sempre a mesma:
“Velhaco!”. É que os animais aproveitavam a hora do
passeio para morder ou incomodar uma pes­soa qualquer,
que então insultava o dono dos cachorros, que por sua
vez replicava com essa injúria bem literária e servida na
hora certa.
Não se sabe o nome dos animais. O proprietário
morava per­to da rua Stanislas e trabalhava no Mercure
de France. Chamava-se Paul Léautaud.
Rembrandt Bugatti, escultor de animais e irmão de
Ettore (o construtor de automóveis), morou no térreo do
número 3. Foi ali que ele se suicidou, em 1915. No ano
anterior, Jules Pascin deixara o último andar para voltar
para Montmartre.
Os atuais moradores causavam bastante embaraço à
senho­ra Salomon. Principalmente o mais novo deles:
Leopold Zborowski, marchand. Ele morava no primeiro
andar, num apartamento de dois cômodos que dividia
com muita gente. Havia a mulher, Hanka Zborowska – o
que era normal; uma amiga, Lunia Czechowska, mulher
de um polonês que foi para o front – era estranho; Ame‐­
deo Modigliani, que não morava lá, mas pintava no outro
cômodo do apartamento – o que era generoso da parte
do polonês, mas barulhento para os outros moradores do
prédio.
Entre os andares, havia um vaivém permanente. Modi‐­
gliani ia buscar tintas na casa de Kisling, que descia para
recuperá­-las, cruzava com Salmon que subia, Apollinaire
que empurrava uma porta, uma modelo que procurava o
andar, Renée-Jean acor­dando, Lunia perguntando a um e
a outro se havia ambiguidade entre Amedeo e ela, Hanka
resmungando porque Soutine ia che­gar, Soutine subindo
até o apartamento de Zbo, e Zbo descendo com os
últimos desenhos de Modigliani embaixo do braço...
A senhora Salomon acompanhava e tomava conta das
idas e vindas dos seus inquilinos. Quando estavam
particularmente barulhentos e agitados, consolava-se
pensando na tristeza que sen­tiria se um deles não
tivesse voltado da Guerra. Quando se deitava na cama, à
noite, depois de um pesado dia de trabalho, apurava o
ouvido, temendo um outro barulho mais perigoso do que
os gritos e as risadas de uma meia dúzia de pintores e de
poetas: o ronco dos zepelins, a explosão dos Gothas.

104 Fréhel (1891-1951): nascida Marguerite Boulc’h, em Paris, foi cantora e


atriz de ci­nema. O nome Fréhel é uma homenagem a sua origem bretã.
(N.E.)
Les mamelles de Tirésias

...Ainda estou muito nervoso, irascível demais, ainda preciso de


um ano, parece, para ficar curado do traumatismo capital que
quase me matou.
Guillaume Apollinaire

Oamor atingiu Kisling, Foujita, Modigliani e Apollinaire.


Picasso também não escapou. Fernande está longe, Eva
enterrada, Gaby, Pâquerette e as outras, esquecidas.
Sobre a tela, grande, esplendo­rosa, soberana, surge Olga
Khokhlova. Tem 25 anos, é russa, filha de um coronel do
exército do czar, bailarina dos Balés Russos. Picasso a
encontrou em Roma, junto a Diaghilev. Seguiu-a até
Nápoles e Florença, encontraram-se novamente em Paris,
foram juntos a Barcelona com a trupe dos bailarinos.
Picasso não é mais o mesmo. Usa terno, gravata,
lencinho no bolso de cima e corrente de relógio. Seus
amigos espanhóis não o reconhecem mais. A glória dos
Balés Russos lhe trouxe um pres­tígio que a pintura ainda
não lhe havia dado.
Ainda o amor... Em março de 1917, Ruby anuncia a
Apolli­naire que está grávida. A criança não nascerá.
Coincidência ou não, nessa época Apollinaire está
preparando uma peça cujo tema cen­tral gira em torno do
repovoamento da França: Les mamelles de Tirésias105, A
obra é apresentada no dia 24 de junho de 1917, no
Teatro Renée-Maubel, de Montmartre. O programa,
distribuído ao público, traz a marca de Picasso: um de
seus desenhos está na capa. A obra obtém sucesso
considerável. Mais ainda do que Parade, ela constitui “o
grande acontecimento da vanguarda em 1917”.1
A ideia de produzir Les mamelles de Tirésias vem de
Pierre Albert-Birot. Numa noite de novembro de 1916, ele
estava na rua da Tombe-Issoire, na sede da sua revista,
em companhia de Apollinaire. Birot gostaria que a SIC
não se contentasse apenas em publicar a poesia
moderna: queria também um teatro moderno. Apollinaire
propôs a ele então um drama que havia escrito em 1903:
a história de Thérèse, que se tornou Tirésias, que, assim
como o oráculo de Tebas, muda de sexo e toma o poder
dos homens (a obra não deixa de lembrar A assembleia
de mulheres, de Aristófanes).
Birot concorda. Apollinaire trabalhou de novo a peça,
tal­vez profundamente. Acrescentou principalmente um
prólogo, o qual não existia na primeira versão, que
exprime as intenções pro­fundas do autor:
Eu lhes trago uma peça cujo objetivo é reformar os costumes...

Ele recusa o passado:


A arte teatral sem grandeza sem virtude
Que matava o tempo nas longas noites de antes da guerra

Reivindica para as mulheres um papel comparável ao


dos homens:
Também quero ser deputada advogada senadora
Ministra presidente da coisa pública106

Mostra-se totalmente antimilitarista:


Eles apagam as estrelas com tiros de canhão.

Tudo isso numa profusão de atores representando o


sexo oposto, efeitos sonoros e ousadias que podem
parecer provocações. Não apenas porque o pacifismo
(novidade em Apollinaire) é uma forma de derrotismo,
mas também porque, nesses tempos de carnificina, se
por um lado é bem-visto encorajar a procriação para
aumentar a natalidade, por outro não é aconselhável
mostrar num palco de tea­tro uma mulher abrindo o
corpete para deixar escapar uma grande quantidade de
balões.
Os ensaios começaram. Não foi bem uma direção,
mas, se­gundo Pierre Albert-Birot, um “bate-boca”.1072
Os atores não eram profissionais (Apollinaire chegou a
cogitar ficar com um papel para si), os cenários,
assinados por Serge Férat, foram feitos em cima da hora,
e a partitura musical, que deveria ser interpretada por
uma orquestra completa, foi tocada por uma pianista que
substituiu os instrumentistas, difíceis de serem
encontrados naqueles tempos de guerra. O coro foi
dirigido por Max Jacob. A música foi composta por
Germaine Albert-Birot.
Apollinaire nunca foi apaixonado por música. Em 1917,
por ocasião de um concerto na Sala Gaveau, ele ficou
compondo versos enquanto a orquestra tocava uma obra
de César Frank. Durante o intervalo, ele aproveitou para
sair discretamente... Durante os en­saios de Mamelles, ele
aplaudia entusiasticamente a pianista que interpretava a
obra, menos pela qualidade da sua interpretação do que
pela circunferência da sua cintura. Ele gostava de Satie,
antes de tudo porque era seu amigo. Mas seu interesse
por Mamelles era porque se tratava de defender a
vanguarda.
Quando o programa ficou pronto, Birot perguntou ao
poeta o que deveria ser escrito na capa. Apollinaire
sugeriu o título: Les mamelles de Tirésias. Birot achou
que não bastava. Era preciso tam­bém caracterizar a
peça.
“Drama”, propôs Apollinaire.
“Curto demais. E o público corre o risco de pensar que
se trata de um drama cubista.”
Apollinaire refletiu um instante e disse:
“Vamos colocar drama sobrenaturalista.”
“Não dá”, retorquiu Birot. “Estamos tão distantes do
natu­ralismo quanto do sobrenatural.”
“Então vamos colocar apenas Les mamelles de
Tirésias, drama surrealista.”108
A palavra estava lançada. Será retomada por André
Breton e Philippe Soupault, em homenagem a Guillaume
Apollinaire.
Quando Mamelles foi apresentada, Breton estava
presente. Ele não gostou nem da obra nem da atuação
dos atores. No final do primeiro ato, notou um espectador
agitado na plateia. Era Jacques Vaché, de uniforme de
oficial inglês. Tinha puxado o revólver e ameaçava usá-
lo. Breton conseguiu acalmá-lo. Os dois homens con‐­
tinuaram a assistir ao espetáculo sem entusiasmo.
Vaché, principal­mente, ficou irritado tanto “com o lirismo
barato da peça quanto [pela] repetição cubista dos
cenários e dos figurinos”.3
Uma balbúrdia. De certa forma, foi o primeiro da longa
sé­rie de escândalos que iriam balizar o caminho do
surrealismo. A imprensa não poupou críticas, o público
também não. Apesar da prudência demonstrada por
Pierre Albert-Birot, a obra foi taxada de cubista,
Apollinaire foi arrasado, e Picasso, por conta do dese­nho
da capa, crucificado no altar da arte nacional. O cubismo,
sempre considerado de inspiração “boche”, não era mais
bem-visto do que por volta de 1914.
No entanto, os pintores que se consideravam os
sustentá­culos do cubismo puro e ortodoxo reivindicavam
insistentemente sua participação nessa escola. A ponto
de dirigirem um protesto aos jornais, depois da
apresentação de Mamelles de Tirésias, expli­cando que
não existia nenhuma relação entre suas obras e “certas
fantasias literárias e teatrais”. Analisem o ponto de vista
deles. Vi­sando em primeiro lugar a Picasso, a acusação
foi assinada por Gris, Hayden, Kisling, Lipchitz, Lhote,
Metzinger, Rivera e Severini.4
Isso afetou Apollinaire. Ele também achou que Blaise
Cendrars não era indiferente ao ataque.
No dia seguinte da apresentação de Mamelles de
Tirésias no Teatro Renée-Maubel, Apollinaire foi
designado para o gabinete de imprensa do Ministério da
Guerra: a Censura. Naquela época, ele escrevia para
Excelsior, L’Information, Nord-Sud, a revista de Pierre
Reverdy, e para a SIC, de Pierre Albert-Birot.
Anteriormen­te, havia trabalhado com André Billy no
Paris-Midi. Não tinha perdido aquele espírito de
afrontamento que fazia a alegria dos amigos. No Paris-
Midi, por exemplo, ele enviava notícias falsas vindas de
Londres, Tóquio ou de Nova York... Retomando a tradi­ção
de Paul Fort, ele reunia os amigos todas as terças-feiras
no café de Flore, entre cinco e sete horas – Max Jacob
chamava esses encontros de “as terças-feiras de Paul
Flore”, e Pierre Reverdy falava da “fauna do Flore”.109
Ele encontrou Lou, uma só vez, por acaso, na praça da
Opéra. Mas a paixão tinha definitivamente acabado.
Apollinaire estava vivendo com Jacqueline, no seu
apartamento do bulevar Saint-Germain. Ficava no último
andar, e era preciso subir várias escadas. Por trás da
porta, no final das escadas, o morador havia mandado
instalar uma minúscula abertura que lhe permitia ver, do
interior, quem era o visitante. Se fosse um oficial de
Justiça, ele não abria. Do lado de fora estava pendurado
um pequeno cartaz: “Pede-se não chatear as pessoas”.5
O apartamento era atravessado por corredores
sinuosos en­tulhados de livros, de estatuetas e mil
fetiches recolhidos aqui e ali. Era um lugar muito
estranho, uma sucessão de cômodos aper­tados nos
quais, por obra e graça de um instalador mágico, fora
possível colocar móveis pesados e maciços. Havia
quadros pendu­rados nas paredes; outros estavam no
chão, encostados, esperando por uma ajuda amiga:
Apollinaire era completamente desajeitado, incapaz de
pregar um prego sem machucar três dedos.
O cômodo preferido do poeta era a sala de jantar:
escura, minúscula, tinha cadeiras instáveis e uma mesa
sobre a qual se co­locavam os pratos trincados. No
inverno, havia fogo na lareira. Ha­via também uma
cozinha, e um escritório com uma mesa de traba­lho
diante de uma janela estreita. Uma escada interna
conduzia ao quarto. Através de uma porta de vidro era
possível ter acesso a um minúsculo terraço de onde se
podia ver os telhados de Paris.
Era ali que Apollinaire se restabelecia do ferimento.
Tinha crises de enfisema. O desaparecimento do amigo
de infância, René Dalize, a quem dedicara Calligrammes,
morto na Guerra, tinha-o afetado profundamente. Dalize,
o companheiro de todas as festas, com seu eterno
guarda-chuva debaixo do braço, que se plantava diante
do espelho e dizia a si mesmo: “Que bela sabotagem da
existência!” .
Apollinaire estava então nos píncaros da glória:
reconhe­cido em todo lugar, sempre solicitado, cheio de
mil novos projetos. Tinha, entretanto, deixado alguns
fragmentos da sua alegria de viver no front. O futuro o
preocupava. Estava cada vez mais irascí­vel. Quando os
amigos vinham jantar com ele, tinham cuidado para não
desarrumar nada, a fim de não ferir sua susceptibilidade.
Olhavam, um pouco inquietos, para o capacete perfurado
do arti­lheiro, colocado sobre uma mesa, na entrada.
Em janeiro de 1918, uma congestão pulmonar levou o
poeta para o hospital. Saiu logo depois. A guerra, então,
tinha mudado de cara.

105 As mamas de Tirésias. (N.T.)


106 Em francês (à exceção de deputés, essas profissões não têm uma forma
para o gênero feminino. (N.T.)
107 No original, um jogo de palavras: a mise-en-scène (direção) foi uma
mise-en--engueu­lade (um bate-boca). (N.T.)
108 No original, drame surréaliste. O prefixo sur, em francês, forma
inúmeras palavras indicando sempre: “para além de”, “excessivamente”. A
criação da palavra por Apollinaire segue a lógica da língua. Em português,
seriam os prefixos “sobre” ou “super” os equivalentes. A palavra
surrealismo vem diretamente do francês. (N.T.)
109 O nome do café era devido a uma pequena estátua de Flora (do latim,
deusa das flo­res) que ficava do outro lado da rua. (N.T.)
Paris-Nice

Na sobremesa o champanhe estourou a 120 quilômetros de Paris,


ou melhor, acima de Paris, naquela noite. Toda a companhia foi
exibir seus talentos nos porões.
Max Jacob

N a primavera de 1918, Paris tinha fome, frio, mas não


tinha sono. As barrigas estavam vazias, o que não
impedia de se ir ao concerto, ao teatro, ao cinema. Max
Jacob escrevia seus poemas em papel de embrulho, mas
encontrava charutos para Picasso. À noite, os notí­vagos
surrupiavam todas as garrafas que podiam e depois, a pé
ou de táxi, iam procurar lugares onde pudessem
enxaguar a secura da sua miséria. Os carros andavam
devagar, até que um ultrapassava os outros porque seus
ocupantes tinham tido uma ideia para onde ir. Todos se
encontravam aqui e ali, numa padaria da rua da Gaîté,
ou na sala dos fundos de uma loja da margem direita,
onde comes e bebes eram compartilhados.
Em março, entretanto, depois de dois anos de
estratégia de­fensiva, os alemães atacaram com energia
as linhas francesas e inglesas. O front foi derrotado. Por
mais que Foch dissesse que o país não perderia nem
mais um metro de solo, e Clemenceau exor­tasse os
soldados a não cederem de forma alguma, a Guerra já
metia o focinho a setenta quilômetros de Paris. À noite, o
Grande Bertha troava. Metia medo e era assustador:
canhões Krupp de trinta me­tros puxados sobre trilhos,
capazes de atirar projéteis a trinta qui­lômetros de altura
e cem quilômetros de distância. Os alemães os
chamavam de Pariser Kanonen. As balas atingiram
Grenelle, Vau­girard, a igreja de Saint Gervais e o Champ-
de-Mars.110 Uma delas alcançou a rua Liancourt. Outra
explodiu em Port-Royal, numa sala da maternidade
Baudelocque, provocando a morte de várias crian­ças e
de suas mães. Meio milhão de parisienses fugiram da
capital e foram para o Sul da França. Entre eles, Soutine,
Foujita, Cendrars, Kisling, Modigliani, Jeanne, Zborowski e
a mulher.
Esses últimos partiam para se proteger dos
bombardeios, mas também porque esperavam que o sol
de Nice fizesse bem a Amedeo, cuja tuberculose tinha se
agravado, e a Jeanne, que esta­va grávida. Assim que
soube da notícia, Eudoxie Hébuterne deci­diu viajar
também: de jeito nenhum ela iria abandonar a filha nas
mãos daquele artista judeu, grosseiro, inconsequente e
sem talento.
Foram para a mesma cidade – Nice –, mas os ânimos
esquentaram tanto que o futuro pai teve que ir para o
hotel, enquanto Jeanne e a mãe instalavam-se num
apartamento na rua Masséna.
Modigliani ficou quase dois anos no Sul. Além do fato
de que o sol aliviava suas dores, ele não pôde voltar
antes porque seus documentos foram roubados. Pintava
muito, mas de maneira des­controlada, em companhia de
numerosos amigos que encontrou por lá: Survage, o
escultor Archipenko, Paul Guillaume e o pintor Osterlind.
Este levou-o um dia à casa de Renoir. O pintor, que
sofria de reumatismo, não saía da cadeira de rodas.
Pintava com pincéis amarrados nas mãos. Graças a um
sistema de pesos, fazia subir e descer a tela. Trabalhava
sem parar para poder doar a obras de ca­ridade o
máximo possível de quadros antes de morrer. Pintava
também para ajudar crianças pobres das redondezas.
Fugia dos marchands. Recebia ainda alguns amigos como
Monet, que viajou para encontrá-lo pela última vez.
Nessa ocasião, paralisado na cadeira, fumando um
cigarro que tinha que lhe ser colocado na boca, incapaz
de se mover, a não ser com a ajuda de alguém, recebeu
o companheiro octogenário com as seguintes palavras:
“E então, Monet? Está enxergando mal?”
Renoir também abria as portas para os jovens artistas.
Foi por isso que recebeu Modigliani. Tentou conversar
com ele, mas o italiano não abria a boca.
“Vão ver meus últimos nus”, propôs Renoir.
Amedeo e Osterlind foram até o ateliê. O italiano
observou as telas sem fazer o menor comentário. Na
volta, continuou calado.
“E então?”
Então nada. Osterlind fez um comentário. Por razões
inexplicáveis, Amedeo continuava mudo.
“Observou a cor da pele?” Silêncio.
“O contorno dos seios?” Nada.
“E as coxas?... Quando pinto coxas, tenho a impressão
de tocá-las...”
De repente Modigliani levantou-se, olhou para o velho
pintor e declarou secamente:
“Não gosto de coxas.”
Depois foi embora, deixando Renoir desconcertado e
Os­terlind morto de vergonha.
Foi ao encontro de Zborowski. Este passava os dias
tentan­do vender algumas telas nos hotéis de luxo.
Quando compreendeu que Modigliani não fazia mais
sucesso ali do que em outro lugar, e que os ricos boas-
vidas do Sul não compravam mais do que os marchands
parisienses, voltou para a capital.

Em Paris, Apollinaire tinha saído do hospital. Trocara o


gabinete da Censura pelo Ministério das Colônias. No dia
2 de maio, casou­-se com Jacqueline Kolb. Uma cerimônia
religiosa foi realizada na igreja de Santo Tomás de
Aquino. Os padrinhos da noiva foram Ambroise Vollard e
Gabrielle Buffet-Picabia. Os do noivo eram o escritor
Lucien Descaves e Pablo Picasso.
Dois meses mais tarde, este último, por sua vez,
também passava diante do ilustríssimo senhor prefeito.
Picasso fora recu­sado por Gaby e Irene Lagut. Olga
Khokhlova aceitou. Diaghliev o tinha prevenido: “Com
uma russa, a gente se casa”. Não foi tão fácil, por causa
da situação da moça: seus documentos não estavam em
ordem e não foi fácil regularizá-los, por causa da
Revolução Russa. Apollinaire interveio junto ao irmão de
Lucien Descaves, que trabalhava na chefatura de polícia.
O casamento foi marcado para 12 de julho de 1918, na
sede do VII arrondissement. Quando Max Jacob recebeu a
carta de Picasso convidando-o para padrinho, pensou
que ia morrer de alegria; sobretudo porque a data do
casa­mento era a mesma do seu aniversário... Correu até
o Hotel Lutetia, onde a noiva estava hospedada. Não a
encontrou. Se fosse até Montrouge, onde Picasso estava
morando, também corria o risco de não encontrar o
noivo. Então enviou um telegrama, em êxtase:
Caro afilhado,
Só a morte me impediria de estar no VII arrondissement, sexta-feira, às
onze horas; e mesmo morto ficaria desolado por não ter ido.

Ele foi. Às onze horas da manhã, Pablo Diego José


Francisco de Paula Juan Nepomuceno Cipriano de la
Santíssima Trinidad Ruiz y Picasso, nascido em Málaga
(Espanha), em 25 de outu­bro de 1881, artista plástico,
casava-se com Olga Khokhlova, nascida em Niegine
(Ucrânia), em 17 de junho de 1890, sem profissão, na
presença das testemunhas: Guillaume Apollinaire, 37
anos, escritor condecorado com a cruz de guerra; Max
Jacob, 42 anos, escritor; Valerin Irtchenko Svetloff, 54
anos, capitão de cavalaria; Jean Cocteau, 27 anos,
escritor.
O casamento religioso aconteceu na igreja russa da
rua Da­ru, em meio a incensos e cantos ortodoxos.
Algumas semanas depois, Picasso mudava-se da sua
casa em Montrouge para o Hotel Lutetia.
É lá que ele se encontrava na noite de 9 de novembro
de 1918. A Guerra estava acabando. Durante a tarde, ele
estava passando pelas arcadas da rua de Rivoli quando
cruzou com uma viú­va de guerra. Um pé de vento jogou
a fita do luto sobre o rosto dela. De volta ao hotel,
Picasso se olhou no espelho e ficou obser­vando seu rosto
por muito tempo. O encontro da tarde mexera com ele.
Parecia um funesto presságio. Pegou um lápis e
desenhou o rosto que o espelho mostrava. Foi então que
o telefone tocou. Dei­xou de lado o desenho e foi atender.
Por muito tempo permaneceu imóvel depois de ter
desligado. Em seguida retornou ao auto­rretrato.
Ele acabara de receber a notícia da morte de
Guillaume Apollinaire.

110 No XIII arrondissement, nas proximidades da Torre Eiffel. (N.T.)


Final de jogo

Não iremos mais ao bosque, os louros foram cortados


Os amantes vão morrer e mentem as amantes.
Guillaume Apollinaire

N o dia 3 de novembro de 1918, Guillaume Apollinaire


desce do apartamento em companhia de Vlaminck e
a mulher, que ele con­vidara para almoçar. No bulevar
Saint-Germain, os dois homens discutem a última peça
do poeta, Couleurs du temps, que a compa­nhia Art et
Liberté vai encenar quinze dias depois: Vlaminck está
fazendo os cenários. Quando se separam, Apollinaire
dirige-se ao jornal Excelsior, para o qual colabora
regularmente.
À noite, tem um acesso de febre. Deita-se no quarto,
sob o quadro de Marie Laurencin, onde ele está ao lado
de Max Jacob e de Picasso. Sente-se mal, mas não é
como das outras vezes. Como sempre, ele não quer ir ao
hospital: passou várias temporadas lá desde que foi
ferido na cabeça.
A febre continua subindo. Guillaume transpira.
Jacqueline começa a ficar preocupada. Mas não chama o
médico. Esperam.
No dia seguinte, Max Jacob vai vê-lo. Depois, Picasso.
Vol­tam. Foram à casa de Jean Cocteau, na rua d’Anjou,
pedir a ele que chame o doutor Capmas. Talvez seja uma
congestão pulmonar. Tal­vez outra coisa. Não se sabe.

É a gripe espanhola. Dizem que ela foi trazida da Ásia


por marinheiros espanhóis. Na verdade, ela vem dos
Estados Unidos e contaminou a Europa por meio da força
expedicionária. Ela der­ruba os homens ainda mais rápido
do que a guerra. Vinte e cinco milhões de mortos em dois
anos. No Chemin-des-Dames, os gene­rais pedem trégua
para evacuar os que são atingidos. Em Paris, os carros
fúnebres passam uns atrás dos outros na direção dos
cemi­térios. Um deles levou Edmond Rostand.
Guillaume Apollinaire vê a morte se aproximar. No
front, ele esteve todos os dias ao lado dela, mas nunca a
temeu. Agora, é tomado pelo pânico. Suplica ao doutor
Capmas que o salve. Não quer partir dessa forma. Não
entende. Salvou-se de um fragmento de obus na cabeça,
não vai morrer por causa de um micróbio!
Os amigos vêm vê-lo. E voltam. Jacqueline Apollinaire,
Serge Férat e Max Jacob não saem de perto dele. Há
flores na casa. Acima dos telhados paira um céu
cinzento. E a morte, no bulevar Saint-Germain, 202,
naquele 9 de novembro de 1918, às cinco ho­ras da tarde.
As horas passam lentamente, como passa um enterro.

Guillaume Apollinaire está deitado na cama, vestido


com seu uni­forme de oficial, com o quepe a seu lado. A
Guerra vai terminar. Mais de oito milhões de mortos,
vinte milhões de feridos. Um poe­ta levado sob um
baldaquim tricolor até a igreja de Santo Tomás de Aquino,
e depois ao cemitério do Père-Lachaise.
Uma seção do 237o regimento territorial111 presta as
homena­gens. A senhora Kostrowitzky está de luto.
Picasso está ao lado dela. E Max Jacob, André Salmon,
Blaise Cendrars, Pierre Mac Orlan, Paul Fort, Jean
Cocteau, Metzinger, Fernand Léger, Jacques Doucet, Paul
Léautaud, Alfred Valette, Rachilde, Léon-Paul Fargue, Paul
Guillaume... E tantos outros. O armistício fora assinado
dois dias antes. Nas ruas, a multidão festeja a vitória
gritando “Que morra Guillaume!”.
O Cáiser, não o poeta.
Les obus miaulaient un amour à mourir
Les amours qui s’en vont sont plus doux que les autres
Il pleut Bergère il pleut et le sang va tarir
Les obus miaulaient Entends chanter les nôtres
Poupre Amour salué par ceux qui vont périr.112

Na tarde do funeral, Pablo Picasso deixa o Hotel Lutetia


e vai até sua casa de Montrouge. Pega suas coisas. No
dia seguinte, envia uma carta a Gertrude Stein
informando que vai se instalar na rua La Boétie.
Novamente, ele atravessa o Sena.

111 Regimento do Exército francês até a Primeira Guerra. (N.T.)


112 Os obuses gemiam um amor mortal/ Os amores que partem são mais
doces que os outros/ Está chovendo, Pastora, está chovendo e o sangue vai
secar/ Os obuses gemiam Ouve os nossos cantar/ Amor púrpuro que saúdam
os que vão morrer. (Tre­cho do poema Zone.) (N.T.)
III

Montparnasse,
cidade aberta
Kiki

Kiki? Ela mereceu ser considerada a rainha de Montparnasse.


André Salmon

U m sol frio brilha sobre Paris em paz. É hora da


desmobilização. Os turistas estão chegando. Os
primeiros são os americanos do corpo expedicionário.
Descobriram a França em tempo de Guerra. Estão de
volta, depois de trocar o uniforme pelo terno das alegrias
e dos prazeres.
Os bistrôs do bulevar Montparnasse estão cheios.
Tanto os antigos quanto os novos, como o café do
Parnasse, que concorre com o La Rotonde.
Libion observa, descontente. Não é a concorrência o
que mais o incomoda, mas as autoridades. Por várias
vezes ele teve de pagar multa ou fechar as portas: antes,
porque os desertores, ou aqueles considerados como tal,
bebiam no bar; depois, porque os bolcheviques e seus
simpatizantes sentavam-se no balcão – como Kikoïne,
que foi denunciado devido a suas relações com revolucio‐­
nários russos –; agora, porque os fumantes consomem
demais: Libion comprou cigarros de fumo claro, ao que
parece de contra­bando, para oferecer algumas tragadas
à sua clientela mais pobre. Foi acusado. Ameaça vender
(o que acabará fazendo). As coisas vão mal.
Ele avista uma pessoa interessante, a quem já viu na
com­panhia de Soutine, facilmente reconhecível, pois usa
um chapéu de homem, uma velha capa remendada e
sapatos grandes demais para ela. Uma jovem. Dezoito
anos no máximo. Pele branca. Ca­belos curtos, muito
escuros. De uma beleza peculiar, feita de uma mistura de
extroversão, vivacidade, ousadia no falar, nos gestos, na
postura, no riso. Naquele dia, porém, ela não responde
quando Kisling, voltando-se para Libion, pergunta em voz
alta:
“Quem é essa nova puta?”
Ela se contenta em tirar um fósforo do bolso, risca-o,
apaga a chama e escurece delicadamente a sobrancelha
esquerda.
“E aí? Quem é essa puta?”
A jovem não responde. Vai esperar que Kisling
recomece para enviar-lhe insultos cuidadosamente
selecionados, aos quais o polonês responderá em termos
como “sarnenta”, “rameira”, “sifi­lítica” e outras
gracinhas que animarão a sala. Depois do que, fato
excepcional para a época, o pintor contratará a jovem
como mo­delo por um período de três meses.
Esse foi o começo de Alice Prin, apelidada de “Kiki”, e
depois “Kiki de Montparnasse”, rainha do bairro, amuleto
da sorte de artistas, figura lendária e mundialmente
conhecida, que posará para Kisling, Foujita, Man Ray, Per
Krogh, Soutine, Derain e mui­tos outros. Será a queridinha
de todos os pintores de Vavin, a pri­meira figura
importante, depois da Guerra, desse Montparnasse cuja
fama ela vai ajudar a espalhar até a América, com seus
arrou­bos e sua impetuosidade.
Até então, Kiki não havia tido muita sorte. Sua linha de
vida atravessa com mais frequência o vale das lágrimas
do que os píncaros da glória. Nasceu na Côte-d’Or, e
cresceu tão depressa que, antes mesmo de encontrar um
lugar mais confortável e adap­tado, já estava metendo o
nariz na rua. O pai, vendedor de lenha e carvão, tinha
sumido havia muito tempo.
Filha natural: é o primeiro escândalo de Kiki. Que
atinge igualmente a mãe, que a moral da província
daqueles tempos mandou para Paris, Maternidade
Baudelocque, onde a medicina obste­trícia se
encarregava de fazer com que as senhoras solteiras
desis­tissem de engravidar novamente.
A pequena Alice viveu então na casa da avó, na
compa­nhia de um bando de primos e primas, todos filhos
do amor, como ela. Injustiça e pobreza: o avô trabalha na
conservação das estra­das por um franco e cinquenta por
dia; a avó trabalha nas casas dos burgueses da cidade. A
mãe manda o que pode. A professora não gosta dos
pobres, de modo que Kiki passa as manhãs no fundo da
sala, e as tardes, de castigo. De noite, quando não há
mais feijão na panela, ela e a prima vão bater à porta
das freiras Cornettes. Essa experiência não vai aproximar
a menina da cruz nem da água benta...
Aos doze anos, Kiki vai para Paris. A chamado da mãe.
A menina conhece menos essa mulher, que ia visitá-la
um mês por ano, do que a avó que a criou e que ela
adora. No trem que a leva, afoga as lágrimas nas
provisões da viagem: salame ao alho e vinho tinto, que
fazem a festa da cabine...
Em Paris, a pequena Alice descobre os fiacres. E as
aveni­das, limpas e retas.
“Mãe, é cera que passam por cima para brilhar assim?”
A mãe, geralmente séria, acha graça. Ela trocou
Baude­locque por uma tipografia, onde é linotipista.
Desejando que a fi­lha a suceda no trabalho, manda-a
para a escola comunal, na rua de Vaugirard. Kiki fica lá o
tempo suficiente para se desinteressar para sempre dos
estudos. “Tenho treze anos. Acabo de deixar a escola
para sempre. Sei ler, contar... chega!”1
A adolescente entra para uma tipografia como
aprendiz de encadernadora: por cinquenta cêntimos por
semana ela encaderna o Kama Sutra. Depois, ao seu
modo, vai à guerra. Trabalha numa fábrica de calçados
que reforma os sapatos dos poilus. Eles vêm do front; a
pequena Kiki os desinfeta, amacia com óleo e ajeita-os
com o martelo. Dos sapatos ela passa para a solda, os
balões dirigíveis, os aeroplanos e as granadas. Sempre
na maior das misérias. Rói as pedras das sopas de
lentilhas populares e usa sapatos de homem tamanho
quarenta, encontrados numa lata de lixo.
Aos catorze anos e meio, é alimentada, recebe casa,
comida e roupa lavada da dona de uma padaria na praça
Saint-Charles, no XV arrondissement. Levanta-se às cinco
horas para atender os operários que vão para o trabalho;
às sete, faz entregas nas portas dos pregui­çosos que
ainda dormem; às nove, faz a limpeza, as compras,
traba­lha na cozinha e ajuda a fazer o pão. O padeiro é
um rapagão. Tem só quinze anos, mas está na
exuberância da idade.
“Tá a fim?”
“Ainda não.”
Mas quando, pela janela do quarto, a pequena Alice vê
os namorados se beijando na praça, fica perturbada: “Me
senti engra­çada! Fiquei rolando na cama e foi muito
bom... e depois, fiquei com muito medo”.2
O medo vai passar...
A garota decide dominar o medo arrastando o vizinho
da frente para os fundos da loja. Beijos e carícias a levam
ao quinto céu. Mas o sexto ainda a assusta e do sétimo
nem se fala. Vamos esperar um pouco...
Kiki se maquia. Na idade dela isso não se faz. Ao
surpreen­dê-la, certo dia, pintando o rosto, a dona da
padaria exclama:
“Putinha!”
A palavra não caiu bem. E valeu um soco no estômago
da patroa. Depois do que, a boxeadora toma chá de
sumiço.
Vai parar no ateliê de um escultor, para quem posa.
Nua. A primeira sessão transcorre sem problemas, a
segunda termina com uma condenação, sem direito a
apelação. Tendo tomado conheci­mento, por meio dos
vizinhos, de que a filha anda se atracando com um
homem bem mais velho, por conta de uma arte que ela
desconhece totalmente, a mãe aparece, constata e grita:
“Puta!... Puta sem-vergonha!”
Entre a mãe e a filha, tudo acaba aí. A mais velha volta
pa­ra junto do futuro esposo, um linotipista meio soldado,
mais jovem do que ela; a jovem vai parar na casa de
uma cantora da Opéra-Comique.
Torna-se empregada e faz todo o serviço. Mas, como
vive pulando a cerca, isso não agrada à artista lírica.
Expulsa mais uma vez, Kiki busca refúgio na casa da
amiga Eva, que mora num quarto minúsculo em
Plaisance. A cama é grande, mas não dá para três. De
vez em quando, Eva recebe um operário corso mais
velho do que ela. Por dois francos ao dia e um pedaço de
salame, ele dis­põe da cama e da inquilina.
“Fica olhando”, aconselha Eva à amiga. “Assim você
vai aprendendo.”
Kiki senta-se e acompanha o desenrolar das
operações. Es­pera que passe a febre. Seu interesse não é
muito grande. Fica con­tente porque, segurando a vela,
pode comer, tranquila, o salame que o casal esquece.
Mas ela se pergunta se é totalmente normal.
“Por quê?”, Eva quer saber.
“Ainda sou virgem!”
“Aos quinze anos?”
“Só conheci o quase...”
“Que horror! Vem comigo, vamos resolver esse
problema.”
As duas fazem trottoir no bulevar de Strasbourg. Eva
prometeu encontrar um velho para a amiga.
“Na primeira vez, um velho é melhor, dói menos...”
Kiki imagina. Ela conhece os velhos. Uma ou duas
vezes, arrastou um para trás da Estação de
Montparnasse, não muito longe de um barraco onde
vivia. Em troca de dois francos, eles tinham o direito de
olhar seus seios. Por cinco francos podiam tocá-los. Não
mais do que isso, e nunca mais abaixo. Kiki não é
meretriz: só precisa comer.
No primeiro dia, no bulevar de Strasbourg, Eva
encontra um cinquentão aceitável. Apresenta-o a Kiki.
Ele cheira bem e está de acordo. Oferece crème e
croissants. A cafetina se afasta. Kiki acompanha o
felizardo. Ele a leva até em casa, em Ménilmontant. É
artista de variedades, mais precisamente, palhaço.
Mostra a ela suas roupas, tão bonitas quanto as de
Fratellini.113 Oferece à convi­dada um assado de porco e
vinho. Depois, ele a lava, veste-lhe uma das suas
camisas de dormir e a põe na cama. Kiki está quase se
apaixonando. Deixa-se acomodar sob as cobertas, ouve
as cantigas de ninar que o palhaço toca para ela ao
violão, e adormece depois de algumas coisinhas nada
desagradáveis.
Balanço do dia seguinte: a senhorita chegou ao sexto
céu, mas não perdeu nada.
Ela encontra um pintor. Robert. Ele lhe oferece um
choco­late e leva-a para a sua casa. É o primeiro a tirar a
roupa. As meias quase estragam tudo: estão rasgadas na
ponta. Kiki não consegue parar de rir.
“Não sabia que isso existia, meias-luvas para os pés!”
O outro fica zangado:
“Está na moda.”
Tentam. Conseguem alguma coisa. Mas não é o
bastante. Não é completamente. Robert tem uma ideia.
Certa noite, ele volta para casa com duas mulheres
pescadas no Dôme.
“Olha como a gente faz, e vê se aprende.”
Kiki olha. Uma vez, duas vezes, três vezes. Mas se por
um lado ela é atenta às aulas, por outro não se sai bem
no dever de casa. Robert perde a paciência. Manda-a ir à
luta no bulevar Sébastopol. Por pouco, e ele explicaria
que é a mesma coisa que ir para o front, só que não são
boches e sim ianques. Aliados. Kiki não se decide. Ela
ainda prefere apanhar do pintor-gigolô, o qual, por sorte,
desa­parece um dia para nunca mais voltar.
Muda-se para uma pocilga na rua de Vaugirard, e
depois para um hangar atrás de Montparnasse...
Descobre o La Rotonde, seus pintores e escultores. Como
todos os pensionistas de Libion, ela se lava nos banheiros
e joga as poucas moedas que possui nos caça-níqueis,
esperando ganhar um croissant em troca.
Consegue um pouco mais do que isso: Soutine. Ele a
hos­peda algumas vezes na Cité Falguière, queimando a
metade do ate­liê para aquecê-la. Apresenta-a a outros
artistas, que iniciam a moça nos paraísos artificiais, que
a transportam de uma altura a outra, mas, infelizmente,
ainda não é o sétimo céu, para ela o mais importante de
todos.
Finalmente, é um pintor polonês, Maurice Mendjizky,
que se revela o anjo salvador que ela espera há tanto
tempo. Tira dela aquilo que a moça não quer mais, e
oferece-lhe esse apelido, Kiki, doce declinação de Alice,
em grego.3
Mendjizky é o primeiro homem da sua vida. Posa para
ele antes daqueles que se tornarão seus melhores
amigos: Kisling e Foujita.
A primeira vez em que vai à casa do japonês, ele ainda
mora no ateliê da rua Delambre. Quando ela entra, está
descalça, com um casacão e um vestido vermelho.
“Tire a roupa”, pede o pintor.
Ela tira o casacão. Não tem nada por baixo; a ilusão do
ves­tido era obtida por uma tira de pano pregada na
abertura do casa­cão. Foujita olha para a modelo,
fascinado por seu púbis sem pelos. Ele se aproxima até
encostar o nariz:
“Não tem pelos?”
“Costumam crescer enquanto poso.”
Kiki pega um lápis preto que está em cima da mesa e
desenha uma pilosidade artificial.
“Gosta?”
“É engraçado!”, garante Foujita.
Kiki o afasta do cavalete e toma o lugar dele.
“Não se mexa.”
A modelo pega os lápis e, chupando-os e mordendo-os,
co­meça a fazer o retrato daquele que deveria pintá-la.
Quando ter­mina, pede:
“O dinheiro da minha pose, por favor.”
Estupefato com essa audácia, Foujita paga. Kiki pega
seu desenho.
“Até logo, senhor!”
Vai até o Dôme, onde um colecionador americano
compra o retrato de Foujita.
No dia seguinte, o pintor japonês a encontra no La
Rotonde.
“Você tem que voltar ao meu ateliê e me deixar pintá-
la!”
“Feito!”, responde Kiki.
Foujita realizou uma grande tela: Nu couché de Kiki.
Nunca ele tinha feito algo tão imponente. Enviou-o ao
Salão de Outono. Toda a imprensa falou nele. Foi
felicitado pelos senhores ministros. A obra foi comprada
por oito mil francos, o que era inusitado. O pintor
convidou sua modelo para festejar o acontecimento.
Durante a sobremesa, ofereceu a ela algumas notas.
Imediatamente, Kiki saiu da mesa. Quando voltou ao
ateliê da rua Delambre, algumas horas mais tarde, usava
um chapéu, um vestido e um casacão novos, e sapatos
brilhando como vidro.
“Quero pintar você com essa roupa!”, exclamou
Foujita.
“Não”, respondeu Kiki, “tenho um encontro com um
outro.”
“Um pintor?”
“Kisling.”
Naquela época, Montparnasse tinha três Kikis: Kiki van
Dongen, Kiki Kisling e Kiki Kiki.
Foujita nada podia fazer, a não ser se curvar diante da
força da homonímia.

113 Albert Fratellini (1886-1961): membro da família de clowns Fratellini,


que se apresentava no circo Médrano. Um dos visitantes frequentes de seu
camarim era Pablo Picasso. (N.E.)
A morte em Montparnasse

Era filho das estrelas e a realidade não existia para ele.


Leopold Zborowski

K iki Kisling sempre esperava por Kiki batendo pé firme.


Quando ele dizia nove horas eram nove horas. Para
ele. Para ela, eram qua­renta minutos mais tarde. Isso
dava lugar a interpelações severas e sonoras, das quais
se queixava a senhora Salomon, que tinha ouvidos
frágeis. Os dois Kikis duelavam com as armas dos
insultos, que ambos manejavam com perfeição.
Amavam-se, porém, de forma carinhosa. Quando a
senhora Kiki estava triste, o senhor Kiki se empenhava
em fazê-la rir. Can­tava e dançava para ela, arrastando-a
atrás de si para que fizesse o mesmo. Também faziam
concursos de barulho. Mas calavam-se quando chegavam
os vizinhos. Às vezes era Zborowski, outras vezes, um
voyeur que vinha espiar.
Modigliani também vinha. Tinha voltado de Nice, em
maio de 1919, seguido de Jeanne, que veio ao encontro
dele três semanas depois. Em novembro do ano anterior,
havia nascido uma menina, Jeanne. Tiveram que
contratar uma ama, pois, segundo conta a pri­meira
mulher de Blaise Cendrars, nem o pai, nem a mãe, nem a
avó sabiam cuidar dela.
Quando reencontrou o pai de sua filha em Paris, Jeanne
estava outra vez grávida. No dia 7 de julho de 1919,
Modigliani se comprometeu por escrito a casar-se com
ela assim que recebesse os papéis necessários para as
providências administrativas. Esse com­promisso estava
assinado também pela própria Jeanne, por Zborowski e
por Lunia Czechowska. Muitos anos mais tarde, Lunia
confessará à filha de Modigliani que tomava conta dela
com fre­quência, no apartamento dos Zbo, na rua Joseph
Bara.
Às vezes, Modigliani tocava a campainha tarde da noite, comple­tamente
embriagado, para saber notícias da filha. Lunia gritava pela janela que
ele não fizesse barulho, ele se calava, sentava-se um pouco nos degraus,
depois ia embora.1

Ele continua bebendo. Bebe demais. Não para de


tossir. Descobre Isidore Ducasse, vulgo conde de
Lautréamont, que lê, em compa­nhia de André Breton,
num banco da avenida do Observatoire: o fundador de
Littérature publicou as poesias no número 2 da sua
revista, depois de tê-las copiado na Biblioteca Nacional.
Recebe as modelos no seu ateliê da rua da Grande-‐­
Chaumière, esboça alguns traços, toma um gole de rum,
arrasta os pés pelo chão escurecido de carvão. Quando
sai, é para ir aos cafés. Troca copos de bebida por
retratos, distribui as moedas que conse­gue aos mais
pobres do que ele, engole um sanduíche, tosse, bebe,
segue um grupo de amigos, tropeça no átrio da igreja de
Alésia, cai no chão e adormece sob a chuva.
Procura Zborowski para pedir-lhe algum dinheiro
empres­tado, esquecendo que Zborowski está em Londres
para uma expo­sição consagrada a seu cliente e amigo.
Atravessa o Sena e sobe até Montmartre, beija Utrillo e
Suzanne Valadon, canta para eles o kadish, volta para a
margem esquerda, escreve rapidamente para a mãe, nos
cartões selados que ela lhe mandou.
Está doente. Ninguém o ouve se queixar da
tuberculose que o corrói. Nem mesmo Jeanne Hébuterne,
cuja fragilidade diá­fana ele protege com um silêncio de
chumbo. Há meses, Zbo tenta convencê-lo a ir se tratar
num sanatório, na Suíça. Todas as vezes, Amedeo
responde com as mesmas palavras:
“Para de ser moralista.”
Entretanto, a morte o está rondando, e provavelmente
ele sabe disso. Bebe para afastar o sofrimento, as dores,
as misérias que tomam conta dele há tanto tempo. Lá
fora, a Guerra já acabou há mais de um ano. Dentro dele,
ela cavou suas trincheiras e pre­para o terreno para o
ataque final.
Numa noite de janeiro de 1920, Amedeo deixa o La
Rotonde na companhia de amigos. Chove forte. Ele vai
para os lados da rua Tombe-Issoire, espera duas horas no
frio, segue até Denfert, e senta-se debaixo do Lion de
Belfort. Tosse. Mas não tem mais forças para beber. Volta
cambaleando pela calçada, apoiando­-se nas paredes, até
a rua da Grande-Chaumière. Sobe a escada a pique que
vai dar no ateliê. Joga-se na cama, ao lado de Jeanne.
Cospe sangue.
No dia 22 de janeiro, o pintor Ortiz de Zarate, que
mora no prédio, bate à porta. Está de volta a Paris depois
de uma semana de ausência. Não tem notícias de
Modigliani. Nem ele, nem Zborowski, que também está
acamado, nem ninguém. Ortiz bate, e bate outra vez.
Não ouve nenhum ruído. O chileno espera alguns
minutos, depois respira fundo e arromba a porta.
Amedeo está na cama. Nos braços de Jeanne. Respira
com dificuldade. Chama pela Itália: “Cara Italia”. O
aquecedor está apa­gado. Uma fina camada de gelo
recobre as latas de sardinha jogadas no chão, as garrafas
vazias, o silêncio lúgubre do começo da manhã.
Ortiz de Zarate desce a escada de quatro em quatro
de­graus, e vai chamar um médico. Este ordena a
imediata transferên­cia do doente para o hospital da
Charité, na rua Jacob.
Dois dias depois, 24 de janeiro de 1920, a meningite
tuber­culosa sai vitoriosa. São 20h45. A notícia se espalha
por Mont­martre e Montparnasse. Os amigos vêm de toda
parte. Formam uma cerca diante do hospital. Pintores,
poetas, marchands, modelos: todos estão lá, incrédulos,
horrorizados. Modigliani morreu. Mo­digliani morreu.
Do outro lado dos muros, em uma sala que é como um
ca­dafalso, Kisling se curva sobre o rosto do amigo. Suas
mãos estão cheias de gesso. Ajudado pelo pintor suíço
Conrad Moricand, ele faz o molde da máscara mortuária.
Esta se desfaz, arrancando pe­daços de carne. Chamam
Lipchitz para ajudar. Ele junta os frag­mentos. A máscara
será feita em bronze.
No dia seguinte, muito cedo, outros amigos cercam
uma sombra hierática que vem atravessando a multidão,
pelas calçadas. Tem a pele clara, é magra, minúscula.
Segura o ventre com as mãos. Anda balançando os
ombros, como fazem as mulheres grávidas. Jeanne
Hébuterne. Ela não dormiu na rua da Grande-Chaumière,
e sim no hotel. Quando saiu, a camareira achou um
estilete sob o tra­vesseiro.
Ela é conduzida de corredor em corredor até o
necrotério, onde exige ficar sozinha. Fica lá por muito
tempo. Corta uma mecha dos seus cabelos e a deposita
sobre o ventre do pai de seus dois filhos. Depois vai
embora. Ninguém consegue convencê-la a se internar
numa clínica, onde já reservaram um quarto para ela.
Volta para a casa dos pais, na rua Amyot, número 8.
Passa lá o resto do dia e o começo da madrugada. Às três
horas, levanta-se, atravessa o apartamento, vai até o
salão, abre a janela, sobe na grade e se joga no vazio.
Cinco andares.
No dia seguinte, um operário descobre o corpo
despeda­çado. Toma-o nos braços e sobe. Não se sabe se
é o pai ou o irmão que abre a porta. Não se sabe por que
aquele que abre pede ao ho­mem que leve o cadáver
para a rua da Grande-Chaumière, número 8, onde mora
aquela pessoa. Só se pode imaginar o horror, o hor­ror
indizível, o espanto dos dois homens face a face.
O operário desce. Coloca o corpo no seu carrinho de
mão e empurra. Rua Lhomond. Rua Claude-Bernard. Rua
das Feuillantines. Rua do Val-de-Grâce. Bulevar
Montparnasse. Rua da Grande­-Chaumière. No número 8,
a zeladora não deixa entrar: é preciso um papel da
polícia. O homem retoma seu carrinho, com Jeanne nele.
Vai até a delegacia da rua Delambre. Ou a da rua
Campagne-Première. Consegue o papel. Atravessa
novamente o bulevar Montparnasse. Até a rua da
Grande-Chaumière.
Os amigos foram avisados. Jeanne Léger estende o
corpo sobre um lençol russo oferecido por Marie
Vassilieff. Chega Salmon. Depois Kisling. Depois Carco.
Montmartre em peso, Montparnasse em peso. No dia
seguinte, Jeanne fica sozinha. Modigliani está sendo
enterrado. Foi Kisling quem pagou o funeral e avisou a
famí­lia. Emanuele, o irmão de Amedeo, deputado
socialista, escreveu: “ENTERREM-NO COMO UM
PRÍNCIPE”.
Assim será feito. E mais ainda. Os pintores, os poetas,
os modelos cotizaram-se para comprar as flores. Os
artistas reuniram seus quadros: vão vendê-los para que
viva a pequena Jeanne Mo­digliani, órfã de pai e mãe, que
ficará sob os cuidados da família paterna. Todos pensam
nessa criança que não está lá, enquanto uma multidão
considerável, densa e silenciosa, acompanha seu pai na
última viagem.
Nos cruzamentos, os guardas fazem continência
enquanto passam os carros do cortejo, as flores e as
coroas. Os marchands começam a sentir o cheiro dos
bons negócios. Naquela multidão tris­temente reunida,
procuram por aqueles que possuem obras de Modigliani.
Um deles se aproxima de Francis Carco, que segue junto
aos outros. Propõe comprar os quadros que ele possui do
falecido pintor. A fortuna bate finalmente à porta. À porta
de um túmulo.
Modigliani foi enterrado no Père-Lachaise. Jeanne
Hébu­terne irá para Bagneux.
Mas só no dia seguinte. Muito cedo, às oito horas, para
evi­tar tumulto e desordem. Um coche miserável na porta
da rua da Grande-Chaumière. Um caixão estreito, a
família acompanhando rápida e furtivamente, antes que
a notícia se espalhe.
Mas a notícia já chegou. No final da rua da Grande-
Chau­mière, dois táxis e um carro particular estão
estacionados. Salmon, Zborowski, Kisling, suas mulheres
e flores brancas.
Dez anos mais tarde, a família de Modigliani
conseguirá o consentimento da família Hébuterne para
que Jeanne se junte a Amedeo no Père-Lachaise: então,
ele já não era mais um artista judeu maldito e
desconhecido.
No Père-Lachaise já repousava também outro morto
que­rido, o pintor das palavras, que tantas vezes ofereceu
sua pena ao poeta das formas e das cores: Guillaume
Apollinaire.
Montmartre sem um, Montparnasse sem o outro... Não
era só a Guerra que havia terminado. Era também uma
certa juven­tude. E uma história.
Pugilato na casa Drouot

Eu gostaria de viver como um pobre, com muito dinheiro.


Pablo Picasso

H ouve o Montmartre do Chat Noir, de Toulouse-


Lautrec, de Depaquit, Poulbot, Valadon e Utrillo; a
Butte do Bateau-Lavoir, dos macacões, dos tiros
insolentes e das festas do Lapin Agile. Tinha-se
atravessado o Sena para apertar a mão dos poetas,
Alfred Jarry, Paul Fort e Blaise Cendrars. A Guerra havia
dispersado os grupos como os pedaços de metal em uma
explosão. Montparnasse conhecera o rigor dos tempos de
penúria, as festas clandestinas, os encontros por ocasião
de exposições pacíficas. Mas iria colher aquilo que
Montmartre tinha plantado. A vida retomava um curso
mais alegre. O armistício fora assinado, e todos tratavam
de esque­cer a Guerra. A morte de Modigliani foi a última
tragédia daqueles tempos. Ele fora como a pele da
origem, e essa pele estava se trans­formando. Era tempo
de muda em Montparnasse. O ontem era ape­nas uma
lembrança. Os surrealistas estavam chegando. A
exemplo de muitos outros, pintores e poetas desciam de
viaturas puxadas a cavalo para subir em automóveis
barulhentos que corriam dire­tamente para o futuro.
Os moradores do Bateau-Lavoir, os fauves, os cubistas,
tinham sido uma espécie de pioneiros. Mas Picasso tinha
deser­tado. Max Jacob estava se retirando para a beira do
Loire. Van Dongen usava paletós de couro e camisas
imaculadas que lhe caíam como uma luva; ele andava
como os homens da alta sociedade pelas Planches de
Deauville114, de braços dados com condessas e
marquesas que, em seguida, corriam para o ateliê do
artista, em Denfert-Rochereau, para posar com todas as
suas joias ou baixar o nível, à noite, no meio das festas
extravagantes que o holandês ofe­recia generosamente.
Derain tenta levar uma vida mais regrada, esportiva,
com sua coleção de Bugatti, e imobiliária, vivendo
alternada ou simul­taneamente em uma mansão na rua
Douanier-Rousseau, um apar­tamento na rua d’Assas,
outro na rua de Varennes, um ateliê na rua Bonaparte e
uma casa em Chambourcy. Até que o embaixador Abetz
tivesse tido a infeliz ideia de reuni-los, durante uma
viagem sinistra pela Alemanha nazista, os dois grandes
fauves de Chatou não se viam mais.
Em Tourillière, entre a Beauce e a Perche, Vlaminck
esprei­tava os inimigos (ele tinha vários), com o fuzil de
caça na mão. Num terno de tweed, o olhar perdido sobre
as suas propriedades, ele vilipendiava Picasso, Derain,
Kisling e a metade do mundo. Quando a raiva
aumentava, subia no seu Chenard e acalmava os nervos
nas estradas do campo, pondo as galinhas para correr.
Juan Gris mantinha a distância que sempre tivera em
rela­ção aos outros. Ia frequentemente para o Sul cuidar
de crises de asma, que os médicos achavam estarem
ligadas à tuberculose. Tal­vez estivessem, mas se
revelaram menos mortais do que a leucemia que o levou,
em 1927.
Braque, vizinho de Derain na rua Douanier-Rousseau,
tinha se afastado de Picasso. E de todos os outros
também.
Quinze anos tinham se passado desde o Zut e o Austin
Fox. O dinheiro tilintava nos cofrinhos. No entanto,
apesar das casas, das propriedades, dos carros
magníficos, ele não iria transformar a cabeça daquelas
pessoas em máquinas registradoras ou em pés de ­meia.
Talvez eles tenham se tornado burgueses; mas não
foram, de forma alguma, pequeno-burgueses. Daniel-
Henry Kahnweiler, que os conheceu a todos no começo e
a maioria por muito tempo de­pois, disse e repetiu:
Nenhum deles, nem mesmo Derain e principalmente Picasso, mudou
profundamente seu modo de vida [...]. O que sabemos da vida, não da
vida privada, mas da vida doméstica desses pinto­res é que, no fundo,
eles precisam de muito pouca coisa. Eles não se tornaram burgueses no
que diz respeito à vida cotidiana.1

Mas eles já não gostam mais uns dos outros e não


cultivam mais os pretextos para os encontros. Um
acontecimento, no entanto, vai reuni-los: a venda da
coleção de quadros de Kahnweiler, marchand preferido
dos cubistas antes de 1914.
Seus bens, assim como os de Uhde e outros de origem
alemã, tinham ficado em poder da Justiça durante os
cinco anos de Guerra. Depois de assinado o Tratado de
Versalhes, e com a Alemanha atrasando o pagamento
dos ressarcimentos aos quais estava obrigada, falava-se
em indenizar os credores vendendo os bens tomados do
inimigo. Em relação à pintura, uns eram contra –
Kahnweiler, é claro –, outros a favor, liderados por
Léonce Rosenberg. Esse último fez uma avaliação ao
mesmo tempo boa e má. Ele achava que preservaria sua
posição de primeiro defensor dos cubistas, impedindo o
marchand alemão de recuperar as cen­tenas de obras que
compunham seu acervo – o que, moral à parte, era
admissível –; e acreditava que o valor das telas cubis­tas
dispararia – o que se revelou uma tolice, pois o mercado
ficou rapidamente saturado pela oferta de cerca de
oitocentos quadros.
Léonce Rosenberg era apoiado por todos aqueles que‐ ­
cerca de quinze anos depois de o Salão dos
Independentes ter recu­sado Braque, em 1908 –
pensavam, esperavam, sonhavam que esse último golpe
dado no cubismo o abateria para valer. Quando a
esperança dá a mão à imbecilidade, e o braço ao
obscurantismo...
Kahnweiler voltou para Paris em fevereiro de 1920 (um
mês depois da morte de Modigliani). Associou-se a um
amigo de infância, o que lhe permitiu contornar o
problema da nacionalidade e abrir a galeria Simon, na
rua d’Astorg. Feito isso, dedicou-se a um duplo combate:
reatar com os pintores que lhe haviam escapado durante
a Guerra; isolar a ameaça da venda das obras sob
sequestro.
Tinha perdido Picasso e não o reencontrou logo. Havia
um duplo cadáver entre eles: o espanhol recriminava o
alemão por não ter se naturalizado, como ele o
aconselhara – o que teria evitado o sequestro, prejudicial
ao artista –; o marchand devia vinte mil francos ao
pintor, soma da qual não dispunha.
Os dois homens só iriam se rever depois do pagamento
da dívida, por volta de 1925. Picasso, porém, não vai
abandonar Paul Rosenberg, que sucedera o irmão
Léonce.
Os outros pintores, principalmente Gris, mantiveram-se
fiéis. Alguns o foram durante apenas alguns anos:
Vlaminck, Derain, Braque e Léger acabarão passando
para o lado de Rosenberg.
Kahnweiler não pôde impedir a venda das obras
confisca­das pelo Estado francês. Nem ele nem seus
amigos. Só conseguiu comprar novamente, por baixo dos
panos, as telas mais importan­tes para ele (entre elas,
nenhuma assinada por Picasso: a briga durava e
perdurava...). Como sua nacionalidade o impedia de agir
abertamente, ele criou uma associação com alguns
amigos e mem­bros da família que agiram em nome dele.
Tiveram então lugar, na casa de leilões Drouot, entre
1921 e 1923, as cinco vendas da coleção adquirida antes
da Guerra por Daniel-Henry Kahnweiler (quatro relativas
à sua galeria, uma com­preendendo obras pessoais). Foi
um desastre. Sob todos os pontos de vista. Robert
Desnos, que comprou um desenho a carvão apre­sentado
como sendo de Braque, mas que era de Picasso, ficou por
várias razões escandalizado:
Os quadros estavam empilhados de qualquer maneira, havia dese­nhos
enrolados e dobrados em pastas, outros estavam lacrados cui‐­
dadosamente em rolos, para que não fossem vistos; outros ainda
estavam fechados em cestas ou escondidos atrás do estrado. Tudo
estava incrivelmente sujo e desorganizado, o que justificaria as pio­res
represálias da parte dos pintores em questão: os senhores Braque,
Derain, Vlaminck, Gris, Léger, Manolo, Picasso. A maneira pela qual
alguns estavam pendurados, sobretudo, demonstrava uma in‐­
competência ou uma subserviência comercial dignas de injúrias.2

Por ocasião da primeira venda, no dia 13 de junho de


1921, Braque abriu fogo. Segundo Gertrude Stein, ele
tinha sido mais ou menos instruído por seus pares para
disparar sobre Léon Rosenberg, pro­movido a expert. Não
poderiam ter sido Gris nem Picasso, espanhóis, nem
Marie Laurencin, alemã desde seu casamento, nem o
escultor Lipchitz, russo. Vlaminck, que não tinha as
qualidades requeridas, ficou na retaguarda. Poderiam ter
enviado Derain ou Léger. Mas foi Braque, francês, oficial
condecorado com a cruz de guerra e a legião de honra e,
além disso, gravemente ferido no front.
Ele se desincumbiu corajosamente da tarefa que lhe
fora confiada. Atacou Léonce Rosenberg violentamente,
acusando-o de trair os cubistas, de ser um canalha e um
covarde. O outro revi­dou, chamando o agressor de
“porco normando”, o que lhe valeu uma ida ao chão, e
depois à delegacia, para onde os dois pugilistas foram
levados pelos policiais que vieram acabar com a briga.
Ma­tisse, que chegou no meio da contenda, tomou a
defesa do repre­sentante dos pintores cubistas, depois
que Gertrude Stein lhe ex­plicou do que se tratava:
“Braque tem razão, esse homem roubou a França!”
Quando as feridas foram tratadas – mas não
cicatrizadas –, o leiloeiro ficou frente a frente com os
marchands: Bernheim Jeune, Durand-Ruel, Paul
Guillaume, Léopold Zborowski e inú­meros estrangeiros.
Havia também banqueiros, pintores, mecenas e
escritores. Sem esquecer os curadores dos museus
franceses, que ergueram tão pouco a mão que a maioria
das obras de vanguarda lhes escapou. Triste balanço.
Os marchands compraram pouco. Léonce Rosenberg
porque não tinha mais dinheiro, seu irmão Paul porque
achava que já havia adquirido Picassos suficientes desde
a Guerra, os estrangeiros por­que, fora Picasso e Derain,
não conheciam os artistas cujas telas eram leiloadas. Em
nenhum momento o valor das obras aumentou.
A associação de Kahnweiler pôde comprar a maioria
das obras de Gris e de Braque. Derain ficou bem
colocado, seguido de perto por Vlaminck. Ao longo dos
dias e das sessões, o cálculo de Léonce se mostrou
errado. Os preços caíam. O mercado não tinha condições
de absorver a totalidade das obras. Os que mais
aproveitaram não foram, portanto, os profissionais da
arte, mas os amadores esclare­cidos que agiam
geralmente a mando de alguém. Foi o caso do pin­tor
suíço Charles-Édouard Jeanneret, que ainda não se
chamava Le Corbusier e que comprou inúmeros Picassos
para um industrial, Raoul La Roche. Foi assim também
com Louis Aragon, que, por 240 francos, comprou La
baigneuse, de Braque. E ainda Tristan Tzara e Paul
Eluard. E principalmente André Breton, que adquiriu
obras de Léger, Picasso, Vlaminck, Braque e Van Dongen.
Os poetas estavam, portanto, presentes, mas não
eram os mesmos. Aqueles de antes da Guerra tinham
desaparecido ou esta­vam apagados. Outros estavam
tomando o lugar deles. Iriam adqui­rir as obras dos
pintores do Bateau-Lavoir e tornar-se os interme­diários
entre os antigos aprendizes de macacão e os novos
mecenas. Ao ocupar o terreno abandonado pelas penas
de ontem, esses poe­tas iriam contribuir para mudar a
cara de Montparnasse. Os surrea­listas estavam na casa
de leilões Drouot, no início dos anos 1920. Agora, era a
vez de eles jogarem.

114 “Calçadão” na praia de Deauville, balneário elegante no norte da


França. (N.T.)
Cenas surrealistas

...Foi nessa época que André Breton e eu descobrimos esse


procedimento (naquele momento, aos nossos olhos, era apenas
um procedimento) a que chamamos, em memória de Apollinaire,
de “surrealismos”.
Philippe Soupault

E m 1919, no quarto miserável que ocupava no Hôtel


des Grands Hommes, na praça do Panthéon, André
Breton recebera a visita dos pais, que vieram lhe ordenar
que parasse de bancar o dadá ao lado de palhaços pouco
recomendáveis. Se ele não retomasse os estudos de
medicina, cortariam a mesada.
Assim fizeram. Do Val-de-Grâce, Breton passou então
para a rua Sébastien-Bottin, onde as edições Gallimard
emprega­ram o jovem em tarefas condizentes com a sua
idade: envio da Nouvelle Revue Française aos
assinantes; correção das provas do livro de Marcel
Proust, No caminho de Guermantes. Mas seu tra­balho
mais importante naquela época foi a redação de Les
champs magnétiques, empreendida junto com Philippe
Soupault.
Em 1919, minha atenção havia se fixado nas frases mais ou menos
parciais que, em plena solidão, quando o sono se aproxima, tor­nam-se
perceptíveis para o espírito, sem que seja possível achar para elas uma
determinação prévia. Essas frases, extraordinariamente cheias de
imagens e de uma sintaxe perfeitamente correta, me pareceram
elementos poéticos de primeira ordem.1

Todas as manhãs, durante quinze dias, Breton e


Soupault escreviam no café La Source, no bulevar Saint-
Michel e no Hôtel des Grands Hommes. Respeitando o
princípio que nega a lógica em benefício das imagens e,
em consequência disso, ignora a censura a fim de
promover uma espécie de inspiração, os dois homens
modificavam o ritmo da escritura de acordo com os dias,
impedindo-se de riscar ou corrigir, trabalhando ora
separadamente, ora em conjunto, ora um depois do outro
(segundo o procedimento que ficará conhecido como
cadavre exquis), parando no final do dia e recomeçando
no dia seguinte. Foi assim que eles escreveram essa obra
fundamen­tada sobre uma revelação que havia
perturbado Breton, e que cons­titui uma espécie de pedra
angular do movimento: sonhos, sono hipnótico, médiuns,
escritura automática.
Segundo os autores, Les champs magnétiques
deveriam cons­tituir o ato de nascimento do surrealismo,
numa época em que este ainda não tinha esse nome.
Porque até então tudo era ainda dadá.
Dadá e escândalos.
As coisas tinham começado seriamente em janeiro de
1920, apenas alguns dias depois da chegada de Tzara a
Paris. A equipe de Littérature, chefiada por Breton e
Aragon, tinha lido poemas no Palais des Fêtes, na rua
Saint-Denis. O público, que esperava uma conferência de
André Salmon sobre A crise do câmbio (era o que
anunciavam os cartazes e os jornais), encontrou um
bando de gaia­tos declamando versos de Soupault, de
Tzara, de Albert-Birot e alguns outros que tinham tanto
que ver com a crise do câmbio quanto as obras de
Picabia exibidas diante de uma plateia de curiosos, cujo
número foi diminuindo com o passar dos minutos.
Alguns dias mais tarde, os futuros surrealistas
organizaram a segunda manifestação pública dadá. Foi
no Grand Palais, no dia 5 de fevereiro de 1920.
A questão era simples: como atrair o público? A
resposta foi rapidamente encontrada: enviando
comunicados à imprensa anunciando que Charles Chaplin
estava em Paris, e que viria ao Grand Palais ver seus
amigos dadaístas, na verdade seus pares, pois, assim
como Gabriele D’Annunzio, Henri Bergson e o príncipe de
Mônaco, Chaplin acabara de aderir ao movimento.
Charlie Chaplin não veio, nem Bergson, nem
D’Annunzio.
Mas foi diante de uma sala repleta que Tzara, Breton e
Aragon le­ram seus manifestos. As explicações devidas ao
auditório foram rigorosas e animadas.
No dia 27 de março de 1920, houve nova provocação,
dessa vez na Maison de l’Oeuvre, onde, 25 anos antes,
Ubu roi já havia causado escândalo. Sob pretexto de
demonstrar o absurdo das regras do teatro clássico, os
“atores” se excederam. Ribemont­-Dessaignes feriu as
orelhas da plateia ao tocar Le pas de la chicorée frisée,
obra para piano composta a partir de notas colocadas na
pauta ao puro acaso. André Breton, protegido por um
escudo de papelão onde estava desenhado um alvo, leu
o Manifeste cannibale, de Francis Picabia, que terminava
com essas palavras:
Dadá não sente nada, ele não é nada, nada, nada.
Ele é como as esperanças de vocês: nada.
Como os paraísos de vocês: nada.
Como os ídolos de vocês: nada.
Como os políticos de vocês: nada.
Como os heróis de vocês: nada.
Como os artistas de vocês: nada.2

No dia 26 de maio de 1920, na Sala Gaveau, tem lugar


o Festival Dadá. A imprensa e os homens-sanduíche que
percorreram as ruas da capital anunciavam o que ia
acontecer: todos os dadás vão tosar os cabelos
publicamente. O espetáculo acontecerá tanto no palco
(graças aos senhores Aragon, Breton, Eluard, Fraenkel,
Ribemont­-Dessaignes, Soupault, Tzara...) quanto na
plateia, que se esperava numerosa e vindicativa.
Tzara abre o espetáculo exibindo O sexo de dadá,
enorme falo de papelão colocado sobre balões. Em
seguida, “o famoso ilu­sionista” Philippe Soupault
apresenta-se todo pintado de preto, de roupão, armado
com um facão; ele libera cinco balões nos quais estão
inscritas as identidades daqueles que sobem para serem
estourados: um papa – Benedito XV –, um homem de
guerra – ­Pétain –, um homem de Estado – Clemenceau –,
uma mulher de letras – a senhora Rachilde –, um Cocteau
– que é o pri­meiro a morrer, atravessado pela lâmina do
poeta surrealista.
Na sala, começa o tumulto. Se Gide, Dorgèles, Jules
Romains, Brancusi, Léger, Metzinger não se mexem, os
outros se agitam: to­mates, cenouras, nabos, laranjas
voam por sobre a plateia até o pal­co, onde Ribemont-
Dessaignes, fantasiado de barrica, é o primeiro a ser
atingido. Aqui, canta-se La Madelon.115 Ali, alguém tenta
entoar uma Marseillaise vingativa. Um espectador chama
Picabia de lado e o intima a se explicar num duelo. Mais
adiante, um homem jovem e atarracado levanta-se e
grita:
“Viva a França e as batatas fritas!”
É Benjamim Péret. Ele logo deixará a plateia para
subir, por sua vez, ao palco do surrealismo.

Dadaísmo ou surrealismo? Por hora, é um e outro, ou


um no outro, sem que ninguém ainda saiba. Mas Breton
se cansa. Tzara o decep­cionou. Ele respeita o poeta, mas
não tanto o agitador. Aquilo que era bom em Zurique não
é necessariamente bom em Paris. Os gri­tos não bastam.
É preciso agir. Menos esterilidade, mais eficiência. Dadá
é libertário, e Breton concorda: “Dadá é um estado de
espí­rito [...]. Dadá é o livre-pensamento artístico”.3 Mas
se o coração de Tzara está mais para libertário, o de
Breton se inclina para o lado de Lenin. Melhor dizendo, já
sobre as questões de método, bem próximo às margens
stalinistas.
No dia 13 de maio de 1921, a partir das 20h30, na
Salle des Sociétes Savantes, na rua Danton, começa o
“processo Barrès”. Trata-se de uma encenação da
acusação e do julgamento do escri­tor Maurice Barrès. Por
quem? Oficialmente pelo grupo dadá; na realidade, por
André Breton. Por quê? Porque Barrès representa aquilo
que a equipe de Littérature (assim como uma certa
esquerda e numerosos intelectuais de todas as
tendências) mais execra: o patriotismo, o nacionalismo, o
conservadorismo.
Tristan Tzara é contra a realização do processo. Ele
acha que dadá não está habilitado a julgar quem quer
que seja. É exata­mente essa opinião que Breton reprova,
e é para desafiá-la que ele emprega toda a sua energia
para que haja o processo. Trata-se de julgar tanto Barrès
quanto Tzara. Nesse ponto, o libelo acusatório exprime o
duplo sentido dado ao caso pelo próprio Breton:
Dadá, tendo avaliado que já é tempo de colocar a serviço de seu espírito
de negação um poder executivo e decidido, antes de mais nada, a
exercê-la contra aqueles que possam impedir sua ditadura, toma, a partir
de hoje, medidas para abater essa resistência.

A resistência é, pois, a de Maurice Barrès, acusado de


“crime con­tra a firmeza do espírito”.
O tribunal é composto por um presidente, André
Breton, e dois assistentes: Pierre Deval e Théodore
Fraenkel. Na acusa­ção: Georges Ribemont-Dessaignes.
Na defesa: Louis Aragon e Philippe Soupault.
As testemunhas são numerosas. Entre elas estão tanto
dadaístas quanto personalidades visadas, escolhidas por
razões não muito claras: Benjamim Péret, Drieu la
Rochelle, Tristan Tzara (contra sua vontade), Rachilde, o
poeta simbolista Louis de Gonza­que-Frick...
O acusado não comparece. Convidado a apresentar-se
diante da Corte, ele deixa Paris precipitadamente. É
então substituído por um manequim de pano colocado
sob uma bandeirola indicando que “NINGUÉM PODE
IGNORAR DADÁ”. O tribunal, no seu conjunto, usa gorros
brancos e o jaleco dos estudantes de medicina.
Breton lê a acusação, redigida por ele mesmo. O libelo
se mostra inconsistente e consagra dadá mais do que
condena Barrès (Ribemont-Dessaignes fazia seu papel a
contragosto); a defesa ataca onde o presidente já
esperava. Quanto às testemunhas... teste­munham.
O “soldado desconhecido” é chamado à barra do
tribunal. Está de uniforme, usa uma máscara contra
gases e anda como um ganso. Sua irrupção no palco
provoca as vaias habituais, a habitual Marseillaise e a
habitual retirada de Picabia, que não aprecia as brigas.
Benjamim Péret, que se saiu bem no seu papel, vai
para os bastidores e tira a máscara contra os gases.
Tristan Tzara se apre­senta. É a testemunha mais
esperada. Toma seu lugar diante de Breton. Entre os dois
homens o que está em jogo é muito mais do que a
paródia de um processo: é Zurique contra Paris, o
passado diante do futuro, dadá e o surrealismo.
Tzara lança os dados:
Não confio na justiça, mesmo que essa justiça seja feita por dadá. O
senhor há de concordar comigo, senhor presidente, que somos apenas
um bando de salafrários e que, portanto, as pequenas diferenças,
salafrários maiores ou menores, não têm a menor importância [...]
Breton: O senhor sabe por que lhe pediram para testemunhar?
Tzara: Certamente é porque sou Tristan Tzara. Embora ainda não esteja
totalmente convencido disso.
Soupault: A defesa, certa de que a testemunha inveja a sorte do acu­sado,
pergunta se a testemunha ousa confessá-lo.
Tzara: A testemunha diz “merda” para a defesa [...]
Breton: Além de Maurice Barrès, o senhor pode citar ainda outros
grandes patifes?
Tzara: Sim, André Breton, Theodore Praenkel, Pierre Deual, Georges
Ribemont-Dessaignes, Louis Aragon, Philippe Soupault, Jacques Rigaut,
Pierre Drieu la Rochelle, Benjamim Péret, Serge Charchoune.
Breton: A testemunha quer insinuar que Maurice Barrès lhe é tão
simpático quanto todos os patifes que são seus amigos e que ele acaba
de enumerar [...] A testemunha insiste em se passar por um perfeito
imbecil ou está querendo ser internado?
Tzara: É isso mesmo, insisto em me fazer passar por um perfeito imbecil,
mas não estou querendo fugir do asilo em que passo minha vida.

Provavelmente André Breton esperava que Maurice


Barrès fosse condenado à pena capital. O júri, composto
de doze espectadores, decide outra coisa: o escritor terá
de cumprir vinte anos de traba­lhos forçados. Assim que o
veredicto é entregue, Breton prepara a segunda edição.
Um ano depois do Processo Barrès, embora Picabia
tenha se distanciado do grupo de Littérature da mesma
forma que dos ami­gos de Tzara, ele convoca um
“Congresso Internacional para a Determinação das
Diretrizes e a Defesa do Espírito Moderno”. Esse
congresso deve reunir os diretores das principais revistas
do mo­mento e alguns artistas independentes: Paulhan
(Nouvelle Revue Française), Ozenfant (L’Esprit Nouveau),
Vitrac (Aventure), Breton (Littérature), Auric, Delaunay,
Léger.
Por considerar que as modalidades desse congresso
(cha­mado de Congresso de Paris) não correspondem ao
espírito de liber­dade próprio dos dadaístas, Tzara se
recusa finalmente a participar. Breton, então, comete
uma indelicadeza que ele mesmo vai reconhe­cer em
seguida: considerando que Tzara faz obstrução
sistemática ao projeto dele, publica um comunicado de
imprensa assinado pelos membros do comitê do
congresso (o único a não assinar é Paulhan) no qual
Tzara é vilipendiado como “o promotor de um
movimento” vindo de Zurique, que não vale a pena
chamar de outra coisa e “que hoje não responde mais a
nenhuma realidade”.4 Para que ninguém tenha dúvidas
sobre a realidade das coisas, o comitê acusa Tzara de ser
“um impostor atrás de notoriedade”.
É demais. É um exagero. Em resposta às palavras
xenófobas de Breton, Tzara, acompanhado por Eluard,
Ribemont-Dessaignes e Erik Satie, promove no La
Closerie des Lilas uma reunião de todo o movi­mento, de
seus simpatizantes e dos artistas convocados para o Con‐­
gresso de Paris. Breton se apresenta. Man Ray, Zadkine,
Eluard, Metzinger, Roch Grey, Survage, Zborowski,
Charchoune, Brancusi, Férat e muitos outros
responderam ao apelo de Tzara. A maioria dos presentes
condena Breton pela indelicadeza dos seus atos: não so‐­
mente ele é o único responsável por um comunicado que
foi apre­sentado como sendo coletivo, como também
insultou uma persona­lidade no intuito de ofendê-la. Os
artistas retiram o voto de con­fiança que depositaram
nele para organizar o Congresso de Paris. Este vai por
água abaixo.
E Breton se vinga. Alguns dias depois, Comoedia
publica um texto no qual acusa Tristan Tzara de se ter
atribuído a invenção da palavra “dadá”, de ter tido pouca
participação na redação do Mani­festo Dadá de 1918, de
exercer influência pouco importante, já que antes dele
houve Vaché, Duchamp e Picabia...
Por fim, deixando as baixarias de lado, Breton se
empenha em consolidar novamente a equipe de
Littérature. O jornal, fundado em 1919, tinha acolhido
aqueles que Breton considerava os sobrevi­ventes do
simbolismo (Gide, Valéry, Fargue), os poetas da família
de Apollinaire (Salmon, Jacob, Reverdy e Cendrars),
Morand, Giraudoux, Drieu la Rochelle. Depois tinham
surgido Vaché, Eluard, Tzara, que tinham ofuscado Valéry
e Gide. Reverdy também havia se afastado, católico
demais para acreditar no surrealismo.
Depois do fracasso do Congresso de Paris, o jornal
torna-se a máquina de guerra do movimento. Breton
abandona temporaria­mente as escaramuças contra
dadá. Faz uma arrumação e coloca suas tropas em ordem
de ataque: Aragon, Péret, Limbour, Vitrac... A esses ele
acrescenta um novo recrutado, que é imediatamente
colo­cado nos postos da frente do seu pequeno exército:
Robert Desnos.

115 Canção de 1914 muito popular entre os soldados. (N.T.)


O adormecido desperto

Surrealismo, n. m. Automatismo psíquico puro através do qual


nos propomos a exprimir, seja oralmente, seja por escrito, seja
de qualquer outra maneira, o funcionamento real do
pensamento. Ditado do pensamento, sem qualquer controle
exercido pela razão, fora de qualquer preocupação estética ou
moral.
André Breton

Q uando Desnos é liberado de suas


militares, ele está com 22 anos e Breton, com 26. O
obrigações

mais velho fica admirado com a “grande força de


oposição e de ataque” do mais jovem.1 Quanto a isso,
Desnos é realmente um fenômeno. Baixo, moreno, uma
mecha caindo nos olhos, os olhos violeta, cor de ­ostra,
cercados de olheiras, o terno desleixado. Arrebatado,
impe­tuoso, gostando loucamente das coisas ou odiando-
as, inimigo do meio-termo. Amigo dos anarquistas do
bando de Bonnot. Sempre com os punhos cerrados,
erguidos à frente. Como não sabe lutar, uma de suas
amigas lhe deu algumas aulas de boxe. O que não o
impede de colecionar equimoses e arranhões: quando
chove chum­bo grosso, ele é o primeiro a ir para o front.
É tão pródigo em golpes e ferimentos quanto em
rabiscos audaciosos. Desnos é o mágico dos acrósticos,
dos anagramas, das inversões silábicas de todos os tipos.
As liberdades que ele toma nesse campo, quebrando a
lógica e as regras gramaticais, estão de acordo com as
preocupações surrealistas. Breton não vai se enganar.
Na imprensa, onde trabalha, escreve sobre qualquer
assunto – mas com enorme talento. Começou traduzindo
prospectos publi­citários de línguas das quais não
conhecia nenhuma palavra. Conti­nuou com artigos sobre
a filoxera, a navegação a vela, a cultura da batata-doce,
os cachorros atropelados, reportagens falsas e falsifica‐­
das de todo jeito e feitio.
Ele é amigo de Eugène Merle, um sujeito um pouco
deso­nesto, coração de ouro, fundador do Paris-Sair (que
Jean Prouvost comprará em 1930) e do Merle Blanc116,
“o jornal que canta e graceja todos os sábados”, desde
1919. Oitocentos mil exemplares de galho­fas, fofocas,
afrontas, temperadas pelos alegres anarquistas. Foi
Merle que, ao lançar em 1927 um novo jornal, Paris-
Matin, cha­mará para ajudá-lo um dos redatores mais
prolixos do Merle Blanc, um jovem de 24 anos que já
tinha alguns trabalhos lite­rários no currículo: Georges
Simenon. Juntos, sob o olhar divertido e cúmplice de
Desnos, os dois rapazes vão montar uma farsa em dois
tempos. Assinarão um contrato estipulando que o
escritor se compromete a escrever em três dias e três
noites um romance que Paris-Matin vai publicar ao longo
dos números. Para tornar o exer­cício mais difícil, fica
entendido que Simenon usará personagens e uma intriga
escolhidos pelo público. Este assistirá ao nascimento da
obra. Pois não se trata de ficar trancado num quarto,
mas, pelo con­trário, de se expor o máximo possível.
Como? Escrevendo numa ca­bine de vidro que será
instalada diante do Moulin Rouge.
A cabine será fabricada. Georges Simenon receberá
um adiantamento de 25 mil francos sobre os 100 mil aos
quais terá direito ao término do exercício. Um exercício
que ficará para a posteridade, e é saudado com todas as
honras por mil teste­munhas da época, arranjadas pelos
espertinhos.2 Youki Desnos descreveu, André Warnod
felicitou. Florent Fels admirou, Louis Martin-Chauffier
delirou... e Merle se divertiu muito: pois nunca houve
nem cabine de vidro, nem romance escrito em três dias,
nem público fascinado. Só Simenon era de verdade. No
último ins­tante, a operação tinha sido anulada...
Robert Desnos também brinca. Mas seus jogos não se
pa­recem com os do patrão. Breton o chama de
“adormecido des­perto”. Pois, mais do qualquer outro, ele
adere aos grandes so­nos surrealistas.
Foi René Crevel, em 1922, quem introduziu o sono
hipnó­tico no círculo. No ano anterior, uma vidente
espírita o tinha feli­citado por seus talentos mediúnicos.
O sono hipnótico, assim como todos os fenômenos
saídos do sonho ou de atividades psíquicas não
controladas, está em perfeita sintonia com o surrealismo,
“que nada desejará tanto quanto apagar a fronteira entre
sonho e realidade, inconsciente e consciente” e que “se
constitui como um fenômeno de fronteira, a relação entre
o inconsciente que fornece e a consciência que recebe e
explora”.3
Logo depois, todos aderem à prática. É uma espécie de
transe coletivo. Crevel é o primeiro a ficar à deriva. De
mãos dadas com Max Morise, Robert Desnos e André
Breton, numa sala mer­gulhada na penumbra e isolada do
barulho, ele adormece e, duran­te o sono, declama,
canta, suspira, conta histórias de dar sono... Quando
acorda, não se lembra de nada.
Em seguida, é a vez de Desnos. Em plena
inconsciência, ele arranha a mesa. Segundo Crevel, isso
traduz um desejo de escri­tura. Colocam uma folha de
papel diante do adormecido, um lápis nas suas mãos.
Milagre, ele escreve. Crevel observa. Ele, que Soupault
admirava pela rapidez com a qual produzia seus livros,
estimulado por uma extraordinária ebulição (Aragon é
talvez o único a possuir uma idêntica facilidade de
escrever), não acredita no entanto na escritura
automática: os dois termos lhe parecem contraditórios.
Ele não diz nada.
Apesar de todos os esforços, Ernst, Eluard e Morise não
adormecem. Soupault fica de fora, e Aragon também.
Quanto a Desnos, vive caindo nos braços de Morfeu. Fala,
escreve, sonha... Adormece por tudo e por nada, quase
sempre na casa de Breton.
Certa noite, como não conseguem acordar o poeta, o
dono da casa vai chamar um médico, que é recebido com
gritos e insul­tos. De outra feita, Desnos entra em contato
telepático com Marcel Duchamp, que, de Nova York e por
intermédio de Rrose Sélavy, dita-lhe frases. De resto, ele
lhe prestará uma homenagem:
Rrose Sélavy conhece bem o vendedor do sal.4

Ele se supera diante de Crevel, que, um dia em que


todos adorme­ciam juntos, propõe a eles que se
pendurem no porta-casacos. Desnos prefere perseguir
Eluard pelo jardim, com uma faca de cozi­nha na mão; é
preciso toda a força de Breton para evitar o homicí­dio. E
toda a persuasão do chefe para interromper a
experiência:
Durante anos, Robert Desnos abandonou-se de Corps et biens (Corpo e
Bens, título de um de seus livros) ao automatismo surrea­lista. De minha
parte, tentei dissuadi-lo, quando temi que sua estrutura individual não
fosse resistir. Sim, eu continuo a acreditar que nesse caminho, quando se
passa de um certo limite, existe a ameaça de desintegração.5

Tudo bem. Mas resta uma pergunta: durante essas


sessões de espi­ritismo, que reuniam os adeptos do gesto
e da palavra automáticos, será que Desnos fingia estar
dormindo?

De todo modo, ele é muito ágil quando acorda. Não só


com as pala­vras, mas também, como vimos, com os
punhos.
Depois de tê-lo introduzido na equipe de Littérature,
Bre­ton faz dele um dos pivôs dos futuros combates. Ele
não esqueceu o essencial, seu objetivo principal: dadá
está sempre na linha de mira. Mas, antes de dar o golpe
final, é bom treinar um pouco. O fracasso do Congresso
de Paris data de abril de 1922. Oito meses depois,
recomeçam as escaramuças.
No dia 11 de dezembro, duas obras estão em cartaz no
teatro Antoine: Locus solus, de Raymond Roussel, e uma
peça patriota, La guerre en pantoufles.
É ainda sob o rótulo dadá, e não sob o do surrealismo,
que Breton e os seus apoiam Roussel. Aragon, Desnos,
Breton e alguns outros se espalham pela sala. Durante
toda a encenação de Locus solus, eles aplaudem,
felicitam o autor em voz alta e inteligível, respondem-se
uns aos outros por cima dos insultos dos espectado­res
mais calmos. As provocações se multiplicam,
simultaneamente, durante La guerre en pantoufles.
“Viva a Alemanha!”, grita Aragon, de um vão entre as
pi­lastras.
“Abaixo a França!”, replica Desnos, do outro extremo.
“E então?”, pergunta um ator, sem nada que ver com
o que acontecia, de acordo com seu texto.
“Então, ‘merda’!”, urra Breton, do alto do balcão.
O tumulto é intenso. Para a grande alegria de
Raymond Roussel:
A história deu o que falar, e fiquei conhecido da noite para o dia [...] Um
resultado fora obtido daquele momento em diante: o título de uma das
minhas obras ficara famoso.6

A ponto de dar origem a duas revistas teatrais


encenadas no mesmo ano: Cocus solus e Blocus solus ou
les bâtons dans les Ruhrs.
Dezoito meses depois, os surrealistas defendem
L’étoile au front, do mesmo Roussel. O escândalo foi
tamanho que é preciso baixar a cortina no terceiro ato. A
um espectador que grita furioso: “Você é a claque!”,
Robert Desnos responde: “Sou o tapa e você é a
cara!”.117 Pá! O tapa é sonoro e bem dado.
O próximo golpe é dado por André Breton no teatro Mi‐­
chel, na rua dos Mathurins, no dia 6 de julho de 1923.
Dessa vez, é dadá que é visado, unicamente ele.
Naquele dia, Tzara reuniu os amigos para um
espetáculo tranquilo, mas estranhamente heterogêneo,
La soirée du coeur à barbe, que propõe ao público obras
de Stravinski, do Groupe des Six, poemas de Cocteau,
Soupault, Eluard e Apollinaire, danças, filmes inéditos e a
representação de Coeur à gaz, peça em três atos de
Tristan Tzara.
O problema é que nem Soupault nem Eluard foram
consul­tados, e nenhum dos dois aceita que suas obras
possam ser lidas paralelamente às de Cocteau. Então,
eles estão na sala, na compa­nhia dos habituais reforços.
Num primeiro tempo, o espetáculo se desenrola sem
proble­mas. Mas, depois da parte musical, um jovem
dadaísta, Pierre de Massot, sobe ao palco e começa a ler
um texto condenando, como “mortos no campo de
honra”, Gide, Picabia, Duchamp e Picasso... Picasso está
assistindo ao espetáculo. Breton também. Tomando a
defesa do pintor, ele sobe ao palco. Desnos e Péret
juntam-se a ele. Imobilizam o orador. Breton ergue a
bengala e desce-a no braço de­le. Há fratura. A sala vaia
os agressores e se volta contra Breton. Tzara, que
observa de longe, chama a polícia. Breton, Desnos e
Péret são expulsos. A calma retorna. Mas não por muito
tempo. Mal a peça de Tzara começa, um jovem alto,
louro e distinto, com um olhar quase sonhador, levanta-
se e interpela o autor, exigindo uma explicação: por que
ele mandou expulsar Breton?
Mas os policiais ainda estão no recinto. Precipitam-se
so­bre Paul Eluard, que é imediatamente cercado pelos
amigos e pro­tetores. Poetas e policiais travam uma briga.
É quando Tzara apa­rece no palco. No mesmo instante,
mudando de alvo, Eluard se joga sobre ele e o
esbofeteia. Depois é Crevel, que estava che­gando. Logo
a briga se estende do público aos maquinistas, e
prossegue do lado de fora. No dia seguinte, o diretor do
teatro se recusa a ceder a sala para uma nova
apresentação: a arte, sim. O boxe, não.
Só muito mais tarde Breton perdoará Tzara por ter
chama­do a polícia para colocá-lo para fora do teatro
Michel. Por conta disso, ele vai dedicar seu Les pas
perdus ao pai do dadá: “A Tristan Tzara, ao romancista de
1924, ao grande safado, ao papagaio velho, ao
informante da polícia”. Les pas perdus incluía um texto,
Lâchez tout, que soava como um adeus definitivo a dadá:
Deixem tudo.
Deixem dadá.
Deixem sua mulher, deixem sua amante.
Deixem suas esperanças num canto da mata.
Deixem a presa pela sombra.
Deixem se for preciso a vida de conforto, aquilo que lhe oferecem para o
futuro.
Partam pelas estradas.7

Os dois homens, no entanto, vão se reencontrar. Mas


para isso será preciso esperar pela publicação do
Segundo manifesto do Surrealismo.
O ano de 1924 marca a grande virada do movimento.
Na verdade, Breton não se contenta em publicar Les pas
perdus. Ele edita igual­mente o Manifesto do Surrealismo.
Ao mesmo tempo, Aragon publica Le libertinage, Péret,
Immortelle maladie, Eluard, Mourir de ne pas mourir, e
Artaud (que Breton conhece naquele ano), L’ombilic des
limbes.
Além das publicações que lhe conferem existência no
mun­do das letras, o grupo dispõe de um endereço na rua
de Grenelle, número 15, sede do Bureau des Recherches
Surrealistes, aberto todos os dias das quatro e meia às
seis e meia. Logo vão inaugurar uma galeria, na rua
Jacques-Callot, dirigida por Roland Tual, esse gênio do
imaginário, que, infelizmente, nunca escreveu. Ele vai
lançar principalmente La révolution surrealiste, cujo
primeiro número apa­recerá em dezembro sob a égide de
Pierre Naville e Benjamin Péret, seus diretores.
Finalmente, 1924 marca uma mudança importante na
vida de André Breton. Essa mudança está ligada à morte
de Anatole France e ao escândalo que os surrealistas
provocaram a propósito desse acontecimento.
Breton detestava o escritor:
Éramos totalmente insensíveis à pretensa limpidez do seu estilo, e
principalmente seu muito famoso ceticismo nos repugnava [...] No plano
humano, considerávamos suas atitudes como as mais falsas e
desprezíveis de todas: ele usou de todos os meios para conciliar o apoio
da direita e da esquerda. Era podre de honras e de presunção.8

Durante o funeral, Aragon, Breton, Eluard, Delteil,


Drieu e Soupault publicaram um libelo de rara violência
contra Anatole France: Un cadavre. Breton,
principalmente, não poupou as palavras. Sob o título
Refus d’inhumer, ele escreveu:

Loti, Barrès, France, vamos assinalar com um belo


traço branco o ano em que morreram esses três sinistros
homenzinhos: o idiota, o traidor e o policial.

Vocês já esbofetearam um morto?, perguntava Aragon,


dando con­tinuidade a Breton:
Considero todo admirador de Anatole France um ser degradante [...]
Execrável histrião do espírito, ele deve ter verdadeiramente respon­dido à
ignomínia francesa para que esse povo obscuro ficasse feliz a ponto de
ter-lhe emprestado o nome! Balbuciem, portanto, como bem entenderem
sobre essa coisa podre, por esse verso que por sua vez os vermes118
vão possuir [...] Houve dias em que sonhei com uma borra­cha que
apagasse a imundície humana.

O panfleto coletivo contra Anatole France custaria caro


a André Breton. Esses textos de extrema violência
fizeram-no perder o emprego de vários anos, um
emprego que o tinha levado a Drouot, por ocasião da
venda das coleções de Kahnweiler. Pois naquele mo‐­
mento ele comprava não só para si mesmo, mas também
para um homem que o empregara para esta tarefa.
Homem que, durante mui­tos anos, ajudara a maioria dos
artistas de Montparnasse a viver, tanto pintores como
poetas: o costureiro-mecenas Jacques Doucet.

116 Melro Branco. (N.T.)


117 Em francês, claque significa tanto “grupo de espectadores encarregados
de aplau­dir” como “bofetada”. Daí o trocadilho. (N.T.)
118 No original, vers, significa ao mesmo tempo “verso” e “verme”. (N.T.)
O costureiro das artes

Graças ao senhor Doucet, até o final do mês eu não tinha mais


nada a fazer a não ser passear pelo campo, deitar-me na relva,
fumar, sonhar...
Blaise Cendrars

E m 1924, Jacques Doucet não é muito jovem, e a alta


costura não lhe interessa mais. Aliás, ele detesta ser
apresentado como um homem da moda. Mas
indubitavelmente ele foi – e continua sendo – um dos
libertadores da mulher da Belle Époque, aquele que
introduziu a leveza nos tecidos, as rendas, os plissados,
as transparências, os bordados. Ele decidiu que as
mulheres não deviam mais se submeter à tirania das
formas artificiais apertadas em corpetes, mas sim
aparecer como são, em vestidos de caimento natural,
cavados, sem artifícios.
Ele vestiu as grandes mulheres do seu tempo. Seus
desfi­les são verdadeiras manifestações artísticas. Aos
domingos, em Longchamp119, duquesas e condessas
aprazem-se em mostrar seus tons pastel, doces e
delicados. As artistas são suas amigas; Sarah Bernhardt e
Réjane, suas confidentes. Mas ele só tem um desejo:
vender sua Maison. Pois, antes de mais nada, ele é um
colecionador. Um tipo meio louco, mesmo que não se
perceba. Homem bo­nito, muito elegante, de cabelos
grisalhos, barba curta e bem apa­rada. Usa polainas e,
sob elas, sapatos incrivelmente brilhantes: dizem que ele
usa um verniz especial e põe os sapatos no forno depois
de cada uso.
Ele é muito maçante, e, apesar de sustentar a metade
dos es­critores e jornalistas de Paris, tem poucos amigos.
Mas é um senti­mental, um apaixonado, um solitário que
não teve sorte no amor. Apaixonou-se por uma jovem
que o recusou, por outra que mor­reu antes de aceitar,
por uma que era casada, a senhora R., que ele tentou
convencer a se divorciar. Como presente de casamento
para a futura noiva, ele ofereceu uma mansão que
mandou construir na rua Spontini, bem perto do Bois de
Boulogne. Quando a bela dese­jada aceitou finalmente se
render a uma razão enlouquecida, Jacques Doucet
comprou quadros de La Tour, de Fragonard e de Boucher,
porcelanas e bibelôs chineses, que foram se juntar aos
Watteau, aos Goya, aos Chardin, aos escultores e às
centenas de obras do século XVIII que ele já havia
adquirido (em 1906, por oca­sião de uma venda na Sala
Drouot, o costureiro tinha organizado suas coleções).
A senhora R., infelizmente, nunca veio para esse
palácio de sonho: ela morreu alguns dias antes da
homologação do divórcio.
Doucet não se recuperou do golpe. Em 1912, vendeu
sua coleção. Obteve 7 milhões de francos ouro, que
decidiu destinar à formação de uma biblioteca de arte.
Desde 1909, ele havia alugado, em frente da mansão
da rua Spontini, um imóvel que abrigava os poucos
manuscritos e edi­ções raras comprados por ele mesmo.
Depois, contratou um crí­tico de arte, René-Jean, para
prestar-lhe assistência. O acervo ini­cial foi aumentando,
e iria constituir uma das maiores bibliotecas da França.
Durante e depois da Guerra, André Suares, André Bre­ton
e depois Marie Dormoy cuidarão dela. Jacques Doucet irá
fi­nalmente doá-la à Universidade de Paris.
O colecionador sabia se mostrar magnânimo. Certo
dia, quando está assistindo a uma sessão de provas na
sua Maison, uma das clientes declara:
“Quando ouço Tristão, desfaleço, me abandono, e faço
tu­do o que os outros querem.”
“Perfeito!”, murmura o costureiro para si mesmo.
A história não diz se ele gostava de Wagner. Mas
respeita o bastante a cliente para oferecer-lhe um lauto
banquete. Aluga um apartamento, coloca nele móveis
refinados e convida a amante da música. Ela vem. Mal a
porta do salão se fecha, e a música se faz ouvir do outro
lado das paredes.
“Venha ver”, propõe Doucet.
E leva sua já Dulcineia até um pequeno cômodo, onde
mú­sicos tocam trechos de Tristão.
Foi uma espécie de paraíso.
Doucet mostrou a mesma generosidade em relação
aos artis­tas que ele ajudou a sustentar durante e depois
da Guerra. E, da mesma forma que fizera com a moça,
exigiu deles uma doação: não da pessoa, mas de
escritos. Pois ele não queria apenas comprar edi­ções
originais ou manuscritos, por mais raros que fossem
(Baude­laire, Rimbaud, Chateaubriand, Verlaine,
Mallarmé, Flaubert e de­pois Claudel, Jammes, Gide...);
ele queria também que os poetas que ele subvencionava
escrevessem para ele.
André Suarès, um dos primeiros a ser solicitado, foi
encar­regado de escrever uma carta semanal sobre a
literatura contempo­rânea ou um tema da atualidade. Em
1916, Pierre Reverdy recebeu cinquenta francos a cada
bilhete escrito que tratasse do movi­mento artístico da
época. Doucet ajudou-o igualmente quando foi criada a
revista Nord-Sud. Ele o sustentou materialmente e lhe
deu numerosos conselhos. Incentivou-o, por exemplo, a
afastar Jean Cocteau da redação. O que não impediu
esse último de falar de “meu velho amigo Doucet”,
quando Raymond Radiguet, por sua vez, aproveitou a
generosidade do mecenas (cinquenta francos por
semana em troca de uma crônica).1
André Salmon também foi remunerado por seu ponto
de vista sobre a literatura. Max Jacob também. Através
dele, Jacques Doucet queria saber novidades das
vanguardas. Soube, mas não aquelas que esperava. O
poeta contou-lhe com detalhes a briga entre Reverdy e
Diego Rivera na casa de Lapérouze: a representação de
Mamelles de Tirésias; os choques e as desditas de Erik
Satie com a crítica... Ofereceu-lhe o leque de seus gostos
e desgostos em matéria de literatura e de poesia. Mas
recusou categoricamente o pedido do seu mecenas para
lhe falar de Picasso:
Não escrevi nada sobre Picasso. Ele tem horror a que escrevam sobre ele.
Tem horror da incompreensão e da indiscrição e tenho tanto respeito por
ele e tanta gratidão que não faria nada que pudesse desagradá-lo [...]
Certos amigos viveram do nome dele gra­ças a boatos, histórias,
fantasia... Enfim... mais tarde... vere­mos... mas muito mais tarde e, na
verdade, nunca, eu acho.2

Ele lhe vendeu alguns manuscritos, Le siège de


Jérusalem, Le cornet à dés, Le Christ à Montparnasse,
alguns originais autênticos, outros recopiados para a
ocasião. Aconselhou-o a dirigir-se a Apollinaire e a
literatos menos conhecidos, algumas vezes a pintores
pobres e ainda anônimos. Quando não tinha dinheiro,
não hesitava em lhe pedir um adiantamento, e agradecia
oferecendo-lhe alguns guaches.
Blaise Cendrars também foi contatado. Foi na época
em que ele não tinha nada para comer. Ele conta que foi
ao Mercure de France levar um poema. Terá visto
Rachilde, Valette ou Léautaud? O fato é que, quando o
interlocutor aceitou o poema, Cendrars pediu um
adiantamento. O outro quase perdeu a voz:
“Adiantamento de quê?”
“De dinheiro, por favor.”
A tensão era grande e o outro ficara vermelho.
“Saiba, cavalheiro, que o Mercure não remunera nunca
os poemas em verso.”
“Não tem importância”, respondeu o escritor
sacudindo os ombros. “Coloque-os em prosa e me dê uns
trocados.”
Não conseguiu nada. Não se sabe se ele deixou sua
prosa no Mercure...
Pouco tempo depois, ele conta que recebeu a visita do
se­cretário de Jacques Doucet, que lhe transmitiu a
proposta do patrão: uma carta por mês em troca de uma
mensalidade de cem francos. O negócio lhe pareceu
ousado:
O senhor Doucet não era meu amigo, não havia nenhuma razão para que
eu lhe escrevesse cartas – e para dizer o quê?... não tendo sequer a
honra de conhecê-lo.3

A resposta foi, portanto, negativa. Com um presente: a


recusa de Cendrars foi notificada por escrito, o que valia
uma carta gratuita para o colecionador. Mas, nessa carta,
Cendrars fazia uma contra­proposta: aceitaria escrever
para Doucet, desde que fosse um livro do qual redigiria
um capítulo por mês.
O empregado transmitiu o recado à rua Spontini. Na
volta, colocou sobre a mesa de Cendrars uma nota de
cem francos e uma carta concordando. Na resposta –
duas missivas gratuitas! –, o poeta estabelecia os termos
do contrato: seria um pequeno livro escrito em doze
meses, tantas páginas por mês, tantas linhas por página,
tantas palavras por linha e o pagamento seria antecipado
no dia primeiro de cada mês, ficando os direitos autorais
com o autor. Dessa forma foi redigido L’eubage. E
Cendrars garante que em nenhuma outra ocasião
negociou com Doucet.
André Breton, como tantos outros, também aproveitou
as benesses do costureiro-mecenas. Em dezembro de
1920, foi contra­tado como bibliotecário. Seu trabalho
consistia em escolher as obras que lhe pareciam
corresponder ao espírito da época. Também tinha como
missão esclarecer o patrão setuagenário sobre a arte
moderna. Ele o fará comprar Les Demoiselles d’Avignon
(por 25 mil francos), La charmeuse de serpents, do
Douanier Rousseau, obras de Derain, De Chirico, Seurat,
Picabia, Ernst, Masson, Miró...
Em 1922, Breton se juntou a Aragon para estabelecer
um projeto de aumento da biblioteca, que foi proposto a
Jacques Doucet. Tratava-se de adquirir obras que a
literatura clássica e ofi­cial desconhecia ou ignorava.
Além de Lautréamont e Raymond Roussel, já integrados,
sugeriram que fossem abertas as portas para Pascal,
Kant, Hegel, Fichte, Bergson, Sade, Restif de la Bretonne,
Sue, Jarry, dadá... Aconselharam igualmente Doucet a
comprar manuscritos de Jean Paulhan, Tristan Tzara, Paul
Eluard, Benjamin Péret, Robert Desnos, Jacques Baron,
Georges Limbour... A fina flor do surrealismo.
Breton não escondia suas ambições: queria ajudar os
ami­gos. Conseguiu. Doucet se encantou por Aragon, a
quem financiou como os outros, conseguindo
principalmente que lhe enviasse pas­sagens do Paysan de
Paris e duas cartas regulares sobre temas lite­rários. Foi
assim que o costureiro de Neuilly-Passy contribuiu para
sustentar esse bando de jovens literatos, cujas loucuras
alimenta­vam a crônica escandalosa dos bairros chiques.
O idílio, como vimos, terminou em 1924, por ocasião
da mor­te de Anatole France. Diante da violência das
sátiras de Breton e Aragon, Jacques Doucet pegou sua
borracha de patrão e apagou os contratos que o ligavam
aos surrealistas. Isso segundo Breton. Marie Dermoy tem
mais nuanças. Ela afirma que Doucet ficou sabendo de
palavras debochadas e desrespeitosas sobre ele, ditas
por seus jovens amigos. Convocou o grupo surrealista ao
seu escritório, pro­meteu saldar o que lhes devia, mas sua
colaboração terminava ali. Exceto com relação a Aragon.
Em 1926, o escritor apaixonou-se por Nancy Cunard,
her­deira da companhia marítima Cunard Line, cuja mãe
frequentava a corte da Inglaterra. O que era ótimo para
os negócios do costu­reiro. Este dobrou então a
mensalidade de Aragon pedindo a ele que lhe desse
informações sobre o lazer e as ocupações de um jovem
da alta sociedade parisiense... O que fez o rapaz até
1927. Depois de aderir ao partido comunista, ele rompeu
definitiva­mente com Jacques Doucet por razões políticas.
Mais tarde, André Breton, mesmo reconhecendo as
quali­dades de mecenas e colecionador daquele que tanto
o ajudara em diversas circunstâncias da sua vida
(quando ele se casou com Simone Kahn, em 1921,
Doucet, que já havia lhe oferecido presen­tes e viagens,
dobrou seu salário para tranquilizar a família da jovem),
baixou o tom dos elogios:
Como presumo que isso não seja segredo profissional e que, atual­mente,
haveria interesse em esclarecer as relações entre o artista e o
apreciador, deixem-me dizer que os cordões daquela bolsa não se abriam
assim tão facilmente em favor dos jovens pintores.4

Pior do que isso: nas histórias contadas por Breton, há


lances que lembram Clovis Sagot (aquele marchand que
aconselhou Gertrude Stein a cortar os pés de uma obra
de Picasso). O escritor teria, por exemplo, convencido o
colecionador a adquirir uma tela de Max Ernst exposta no
Salão dos Independentes. Essa obra mostrava cinco
vasos semelhantes contendo cinco buquês semelhantes.
Pre­ço: quinhentos francos.
“Peça ao artista que nos faça dois vasos por duzentos
fran­cos”, sugeriu Doucet.
É preciso assinalar que Derain ensinou-lhe boas
maneiras. Pierre Cabanne conta que, certo dia em que
Breton levara o costu­reiro à casa dele para fazê-lo
comprar uma natureza-morta, o ar­tista tirou uma fita
métrica do bolso, mediu a tela desejada pelo visitante e
disse:
“Se basearmos o preço no centímetro quadrado, isso
vai lhe custar quarenta mil francos.”
De outra vez, diante de um Masson minúsculo, Doucet
teria resmungado:
“Falta alguma coisa nesse quadro...”
E o costureiro se pôs a vasculhar a obra coçando a
barba, antes de exclamar, tomado por uma ideia
luminosa:
“Vamos pedir ao artista para acrescentar alguma
coisa... Um pássaro! É isso! Um pássaro ficará perfeito!”
Aragon também não foi gentil com seu antigo
mecenas. Em Aurélien, ele o chama de Charles Roussel e
o coloca na presença de um pintor chamado Zamora, que
não é outro senão Picabia. Não é difícil reconhecer as
excentricidades do segundo: mundano, re­cebe com
alegria “jóqueis célebres, duquesas, literatos, homens
ricos e sem ocupação, mulheres bonitas de todo tipo,
jogadores de xadrez, conhecidos feitos em viagens de
transatlântico”.5
O primeiro é apresentado como um homem chique,
“cui­dado como um cãozinho de estimação e vestido de
uma maneira que beirava o mau gosto pela distinção
exagerada”. Os traços são talvez grosseiramente
forçados. Menos um pouco quando Aragon põe em cena
um poeta do grupo de Ménestrel (Breton), que se faz
ouvir durante um escândalo provocado pelos surrealistas.
Os agi­tadores, “que não suportavam Cocteau”, queriam
perturbar a re­presentação de uma de suas peças. Ao
final de uma rápida briga, Ménestrel/ Breton está com o
nariz amassado e a gravata suja de sangue. Roussel/
Doucet leva-o até um café e pergunta-lhe, com o olhar
brilhando de intensa cobiça:
“Será que você não poderia escrever uma notinha para
minha biblioteca sobre essa curiosa noite? Tenho o
manuscrito da peça, que comprei de Cocteau... Poderia
juntar sua nota com...”6
Deboche por deboche, tanto Aragon quanto Breton não
ti­veram o menor reconhecimento por um homem a quem
deveram tanto. Mas todos souberam tirar proveito, de
Kisling a Cendrars, passando por André Salmon, Max
Jacob e Apollinaire, Radiguet, Cocteau e Desnos, da
prodigalidade e da generosidade de um ho­mem para
quem a maioria deles escrevia com uma humildade que
chegava às raias da prosternação... senão mais.
Cendras também. Pois ele está contando vantagem ao
dizer que Doucet o contratou por intermédio do
empregado. A verdade é bem diferente. Foi o próprio
Cendrars quem escreveu a Doucet em 1917: solicitava
uma ajuda de quinhentos francos para termi­nar seu
romance La fin du monde. Em troca, oferecia-lhe um
manuscrito que foi, no fim das contas, o de Pâques à
New York, escrito em 1912. Depois disso é que eles
fizeram um acordo sobre L’eubage. Não houve, portanto,
um único negócio entre eles, como afirma Cendrars, mas
pelo menos dois. E com certeza não foi o escritor quem
ditou as condições, assim também como não fora ele
quem ditara os termos do contrato anterior: Cendrars
pedia quinhentos francos; Doucet concordou em lhe dar
150. 7
Mesmo tratando-o de “velho assanhado de
companhia agradável” em Lotissement du ciel, isso não o
impediu de agrade­cer sua generosidade em uma carta,
com uma grande reverência. Ninguém fará como ele a
descrição da biblioteca de Jacques Doucet: podemos vê-
lo acompanhando o patrão no meio de um labirinto de
caixas e caixotes contendo cartas, manuscritos reco‐­
piados, mas nenhuma obra maior (a não ser L’eubage);
ele ouve o velhote queixar-se de receber tanta coisa, e
conclui com esta excla­mação desesperada:
“Eles nunca vão parar de escrever!”
Isso é Cendrars. Não é Doucet.

119 Um dos hipódromos de Paris. (N.T.)


O costureiro e o fotógrafo

Como muitos artistas franceses, fiquei encantado com os Balés


Russos e admitiria que eles tivessem de certa forma me
influenciado.
Paul Poiret

D oucet vendeu sua Maison em 1924. Havia sido


destronado por costureiros mais jovens,
principalmente Paul Poiret, que tinha introduzido na
moda cores mais vivas, verdes, vermelhos, azuis, em
substituição aos lilases e rosas de seus predecessores.
Ele liber­tou definitivamente a mulher do corpete, lançou
o sutiã, desenvol­veu o vestido justo, colado ao corpo.
Paul Poiret, que fora aprendiz de Doucet, também foi
um mecenas, mas, comparada à do mais velho, sua obra
é apenas um opúsculo.
Ele teve seu primeiro momento de glória ao fazer um
casaco de tule negro para Réjane. Foi despedido depois
de ter desenhado modelos para sua noiva, que os
mandou fazer por uma costureira: Doucet não o perdoou.
Livre, Poiret levantou voo rapidamente, comprou uma
residência magnífica no faubourg Saint-Honoré e
começou a vestir as senhoras da alta, muito alta,
sociedade.
Não ficou insensível às artes da sua época. Menos ao
cu­bismo do que aos Balés Russos, dos quais admitia ter
sofrido a influência. Naturalmente presunçoso, não
esquecia, porém, de preci­sar que sua reputação era
anterior à do ilustríssimo senhor Bakst.
Nos melhores anos de Montmartre, ele ia com
frequência ao Bateau-Lavoir. Era ele, como vimos, quem
enviava sua clientela chi­que à casa de Max Jacob, onde
as mulheres importantes da alta-roda consultavam as
cartas. Era ele também quem convidava os artistas
pobres para festas grandiosas nas quais expunha suas
teorias: segundo ele, a costura era uma arte como as
outras; ao que Apollinaire respondia que, se fosse uma
arte, seria uma arte inferior.
Os dois homens não se davam muito bem.
Por outro lado, Paul Poiret tinha um carinho particular
por Max Jacob. Ele o consultava por tudo e por nada:
sobre a cor da gra­vata, das meias, sobre suas atividades
diárias... Propôs que ele apre­sentasse suas peças de
teatro na sua mansão da rua d’Antin, onde Picasso tinha
exposto Les Demoiselles d’Avignon durante a Guerra.
Teceu em torno de Max Jacob aquela rede mundana que
lhe permi­tia ter onde bater quando faltava dinheiro ou
estava desesperado.
Fora o caderno de endereços, o poeta não tinha grande
es­tima pelo costureiro. Criticava-o por não gostar dos
amigos dele e por ser muito conservador no que dizia
respeito à arte. O que não se pode contestar.
Curiosamente, apesar de admirar tudo aquilo que via no
Bateau-Lavoir, Poiret nunca aderiu ao cubismo:
Não fui indiferente às pesquisas de Picasso, mas sempre as conside­rei
exercícios de ateliê e especulações do espírito que não deveriam sair de
um círculo de artistas, e que o público deveria ter ignorado.1

Sua grande força era a mistura dos gêneros.


Era muito ligado à dançarina Isadora Duncan. Depois
de perder os dois filhos, ela confidenciou a Poiret um
projeto que lhe viera à mente: queria um novo herdeiro,
que tivesse seu esplendor físico e o esplendor intelectual
de um poeta de talento.
“Maeterlink!”, respondeu imediatamente Poiret.
Tinha lido uma de suas obras na véspera.
Isadora foi procurar Maeterlink para pedir a ele que lhe
fizesse um filho. O escritor recusou: era casado, e as
complicações decorrentes da situação...
Poiret também tinha pensado em Max Jacob. Não
chegou nem mesmo a formular seu nome diante da
dançarina...

Fernande Olivier, que trabalhou com o costureiro


durante algum tempo, depois da ruptura com Picasso,
revelou a Paul Léautaud que as lojas dele serviam como
casas de rendez-vous para encontros diurnos. Ela se
queixava de que Poiret era amável externamente, e
grosseiro com seus empregados. Único consolo: sua
coleção de quadros de vanguarda, uma das mais belas
de Paris.
Essa coleção foi igualmente admirada por um fotógrafo
que, certo dia de outono de 1921, apresentou-se na
entrada princi­pal da Maison Poiret, na avenida d’Antin.
Era um jovem ameri­cano de estilo tradicional, que trazia
uma pasta contendo seus tra­balhos. Vinha a mando de
Gabrielle Buffet-Picabia.
Deu o nome ao porteiro de libré que guardava a
entrada dos jardins. Fizeram-no atravessar as aleias que
cortavam os gramados plantados de açafrão. Cadeiras e
mesas de cores vivas estavam dis­postas aqui e ali, no
meio dos canteiros que lembravam Versalhes.
O visitante subiu os degraus do alpendre. Este era
ladeado por duas gazelas de bronze trazidas de
Herculano, ao pé do Ve­súvio. Passou por uma das dez
portas que se abriam para o inte­rior, caminhou sobre um
tapete de cor groselha iluminado por lus­tres de cristal
que terminavam na beira de uma escada imponente com
um corrimão trabalhado.
Um ascensorista acompanhou-o no elevador. Primeiro
an­dar. O jovem americano seguiu por um corredor
ladeado por uma série de ateliês de prova. Foi dar numa
grande sala repleta de res­peitáveis senhoras. Elas
acompanhavam com os olhos uma mane­quim que estava
apresentando um novo vestido. O centro era do­minado
por uma estátua de Brancusi.
O visitante se aproximou de um empregado e
perguntou onde poderia encontrar o senhor Poiret: tinha
hora marcada.
“Siga-me”, ele respondeu.
De sala em corredor, uns atrás dos outros, como
pontos de costura, o americano foi conduzido até a porta
de um escritório onde estava fixada uma pequena placa:

ATENÇÃO! PERIGO!
ANTES DE ENTRAR PERGUNTE-SE TRÊS VEZES:
“Ê MESMO INDISPENSÁVEL INCOMODÁ-LO?”

Depois de se fazer anunciar, o americano foi


introduzido em uma sala onde estava um homem de
paletó amarelo-canário e calças lis­tradas. Tinha uma
barba pontuda. Era um pouco calvo. O fotógrafo
americano colocou a pasta sobre a mesa. O costureiro
abriu-a, olhou atentamente, fechou-a e disse:
“Muito bem... Que posso fazer pelo senhor?”
“Não sei.”
“Já fez fotos de moda?”
“Nunca... Mas posso tentar... Só que não tenho
estúdio.”
“Quem trabalha para mim trabalha comigo”,
respondeu friamente Poiret.
Com um amplo gesto da mão ele indicou o escritório,
os jar­dins, a residência particular que podia ser vista ao
longe.
“Os fotógrafos trabalham aqui... O senhor tem o
material necessário?”
“Não tenho máquina fotográfica.”
“Vamos emprestar-lhe uma.”
O fotógrafo foi autorizado a tirar fotos das manequins
fora do horário de trabalho.
Ele voltou e realizou sua tarefa. Revelou as fotos no
minús­culo quarto do miserável hotel onde estava
morando. Depois, vol­tou para mostrá-las a Poiret.
“Muito bonitas!”, exclamou o costureiro.
Aproveitando a ocasião, o fotógrafo americano
perguntou se podia receber. Ao que Poiret respondeu
com cara de espanto.
“Nunca pago aos fotógrafos... As revistas o fazem.”
“Mas eu não conheço ninguém!”, replicou o fotógrafo.
“Acabo de chegar à França!”
Poiret se mostrou generoso: comprou algumas fotos e
pa­gou duzentos francos.
Nessa época, sua fortuna estava começando a ser
dilapidada. Em alguns anos desapareceria: o costureiro
não conseguiu se adaptar ao estilo mais sóbrio e menos
luxuoso do pós-Guerra. No meio dos anos de 1920, nada
mais restava do império Poiret. Vítima dos ban­cos, dos
credores e dos “mecenas socialistas”, segundo ele dizia,
tro­cou Paris por uma pequena casa na Île-de-France. Ali,
viveu isolada­mente, praguejando contra o mundo todo,
pensando até em subme­ter seu caso à Liga dos Direitos
do Homem, mas desistindo, final­mente, temendo “que
até esse órgão estivesse sob influência do espí­rito
maçônico, e, portanto, incapaz de ser independente”.2
Conservara um amigo: o médico que cuidava dele.
Este veio um dia procurar pelo fotógrafo americano para
pedir-lhe que o acompanhasse à casa de campo de
Poiret: o costureiro deposto estava escrevendo um livro
de memórias que logo seria publicado; iria precisar de
uma foto.
Em nome dos duzentos francos, o fotógrafo fez a
viagem. Poiret o recebeu com elegância e todo o fausto
que lhe restava. Co­meram, beberam, caminharam.
Quando voltaram para casa, não havia luz suficiente para
a foto. Despediram-se com tristeza.
Alguns dias depois, o médico que servira de
intermediário voltou a procurar o fotógrafo americano.
Este achou que o outro tinha uma certa semelhança com
Poiret nos seus tempos de esplen­dor. Divertiu-se
fazendo-o posar.
Quando, cerca de vinte anos mais tarde, o antigo
costureiro morreu, mordido de rancores e corroído pela
paranoia, um sema­nário perguntou ao fotógrafo se ele
não teria nos seus arquivos uma foto do falecido. O
americano enviou o retrato do médico. Es­te foi publicado.
Ilustrou um artigo consagrado a Paul Poiret, sua vida, sua
obra. Nunca ninguém descobriu a farsa. Só o médico, é
claro. E o fotógrafo americano.
Não se sabe o nome do primeiro. O segundo morava
em Montparnasse desde o verão de 1921. Chamava-se
Man Ray.
Um americano em Paris

Conheci um americano que faz lindas fotos [...] Ele me diz: “Kiki!
Não me olha assim! Você me ‘perturbar’...!”.
Kiki de Montparnasse

Q uando voltou para o quarto do hotel, naquele dia em


que foto­grafara as manequins de Paul Poiret, Man
Ray fechou as cortinas do pequeno cômodo, acendeu
uma lâmpada vermelha e começou a revelar suas placas
fotográficas. Ele dispunha de muito pouco material: os
produtos químicos indispensáveis, duas bacias, papel e
alguns acessórios.
Mergulhou as folhas nos banhos de revelação. Por
descui­do, colocou uma que estava virgem. Quando a
tirou da bacia, colo­cou sobre ela um recipiente de vidro.
Depois acendeu a luz.
Sob meus olhos, uma imagem tomava forma. Não era exatamente uma
simples silhueta dos objetos: estes tinham sido deformados e refratados
pelos vidros que tinham estado mais ou menos em con­tato com o papel,
e a parte diretamente exposta à luz se destacava, como um relevo, no
fundo negro.1

Man Ray abandonou por um tempo as fotos feitas na


Maison Poiret. Pegou todos os objetos que encontrou à
sua volta, chave, lenço, lápis, barbante e colocou-os
sobre papel ainda não mergu­lhado nos banhos. Depois
expôs tudo à luz. Revelou. Secou.
No dia seguinte, pendurou os resultados da
experiência nas paredes do quarto do hotel. À noite,
Tristan Tzara, que tinha che­gado a Paris um ano antes,
bateu à porta. Man Ray abriu e mostrou a ele o seu
trabalho. O jovem romeno ficou entusiasmado. Durante
uma parte da noite, os dois homens dispuseram mil e um
objetos sobre o papel, revelaram e recomeçaram. Tinha
nascido a raiogra­fia: ela permitia fotografar sem máquina
fotográfica. Um ano mais tarde, Man Ray publicará seu
primeiro álbum de raiografias, Les champs délicieux. O
prefácio será assinado por Tristan Tzara.
Antes de ser fotógrafo, Man Ray, filho de um alfaiate
judeu do Brooklyn, era pintor. Ele tinha feito o curso
Ferrer, assim chamado porque tinha sido criado por
simpatizantes da causa anarquista, pela qual morrera
Francisco Ferrer (que Picasso, como sabemos, admirava).
Ele também tinha frequentado todos os lugares da van‐­
guarda nova-iorquina, na época do Armory Show.
Começando pela galeria de Alfred Stieglitz, na 5a
Avenida, 291. Foi lá que ele encontrou Francis Picabia e,
principalmente, Marcel Duchamp, a quem ficou muito
ligado.
Man Ray possuía uma máquina com a qual fotografava
suas próprias obras. Ao longo do seu trabalho, ele
descobriu a riqueza das reproduções em preto e branco e
acabou por “destruir o origi­nal guardando apenas a
reprodução”.2 Ele iria considerar a seguir que “a pintura é
uma forma de expressão ultrapassada”3 que a foto
destronará um dia, inevitavelmente. Mais tarde, vai
reconsi­derar essa opinião.
Em Nova York, saiu à procura de modelos. Não mais
para pintá-las, mas para fotografá-las. Graças ao retrato
da escultora Berenice Abbott, que ele encontrou num bar
do Village (em Paris ela será sua assistente durante três
anos), ganhou seu primeiro prê­mio de fotografia. Em
alguns meses, fotografou Edgar Varèse, Mar­cel
Duchamp, as escritoras Djuna Barnes e Mina Loy, Elsa
Schia­parelli (que ainda não era costureira)...
Duchamp foi o primeiro a partir para Paris. Assim que
reu­niu o dinheiro necessário para a viagem, Man Ray
colocou suas telas e alguns objetos dadaístas em uma
mala, subiu com ela em um transatlântico e juntou-se ao
amigo. O pintor tinha reservado para ele um quarto em
um pequeno hotel de Passy... onde também estava
Tristan Tzara. Foi assim que Man Ray encontrou os
dadaís­tas e os surrealistas de Paris, com quem fez
amizade: Breton, Ara­gon, Eluard, Fraenkel, Soupault,
Desnos e os outros.
Foi Soupault quem teve a ideia de organizar uma
exposição das obras que Man Ray trouxera de Nova York.
No catálogo, im­presso para a ocasião, os dadaístas
apresentavam o artista como vendedor de carvão e, ao
mesmo tempo, magnata do chiclete, ri­quíssimo e com
muito talento para a pintura... Esses títulos não ajudaram
a vender coisa alguma. Man Ray voltou para trás das
lentes. Fotografou primeiro as telas de Picabia, e não
ignorou Cocteau e seu caderno de endereços. Estava
lançado.
Em 1921, encontrou uma jovem que iria tornar-se sua
pri­meira modelo e depois a egéria de Montparnasse
durante muitos anos. O fotógrafo estava na companhia
de Marie Vassilieff, num café de Vavin primo do Dôme e
do La Rotonde. A sala estava api­nhada. Lá se encontrava
toda a clientela habitual do bairro desde o armistício:
pintores menos pobres, escritores americanos, dança‐­
rinos suecos, uma frota de modelos, um pele-vermelha
com todas as penas chamado Colbert, Granowski, pintor,
judeu, polonês, fantasiado de caubói, um poeta da
Lapônia, russos – a partir de então brancos –, um búlgaro
mudo que usava uma argola de cor­tina pendurada no
nariz, Cocteau e o amigo Radiguet, algumas pessoas
fantasiadas que iam a uma festa ou a um baile, homens
descalços, um grupo de mulheres pouco vestidas, o
pintor Jules Pascin de volta da América, Antonin Artaud,
um músico negro tentando tocar um sax baixo, Adamov,
ainda bem jovem, de san­dálias gregas, roído pela
miséria...
Em uma mesa distante, duas jovens falavam alto.
Estão ma­quiadas com todas as cores do arco-íris, e usam
bijuterias das ore­lhas aos punhos. Uma delas é Kiki de
Montparnasse. Ela responde atravessado ao garçom que
não quer servi-la porque não está de chapéu. Ele fala
delicadamente, mas com firmeza, ela responde que um
bistrô não é uma igreja, e que cada um vem como quiser.
“Um Chambéry-fraisette, por favor”, pede Kiki. “E
outro para minha amiga.”
O garçom depõe as armas e chama o patrão.
“Sem chapéu”, ele diz, “poderiam ser confundidas.”
“Com o quê? Com as americanas?”
As americanas podem entrar à vontade nos cafés,
mesmo sem chapéu.
“Não é o que eu quis dizer”, articula o outro,
gaguejando.
“E o que é que o senhor quis dizer?”
“Sem chapéu, poderiam pensar que a senhora é
uma...”
“Uma o quê?”
“Uma puta!”
Kiki se levanta de um salto. Com um pé (descalço)
sobre uma cadeira e o outro sobre a mesa, com sua voz
inimitável, aguda, falando muito alto, ela explica ao
garçom de jabô e colarinho que seus charmes não estão
à venda, o que não a impede de ser uma bastarda de
verdade, nascida em uma verdadeira província fran­cesa,
a Borgonha. Depois, jura que nunca mais voltará a pôr os
pés ali, nem ela nem seus amigos, e desce da mesa,
mostrando, num movimento proposital e esmerado,
aquilo que deve e também o que não deve.
“Sem chapéu, sem sapatos e sem calcinha!”
Man Ray levanta a mão na direção do garçom. Marie
Vassilieff chama as duas jovens.
“Dois copos para as senhoritas”, pede o americano.
“Venham se juntar a nós”, propõe a russa.
Kiki senta-se.
“Elas estão com os senhores?”, pergunta o garçom.
“Estão”, responde Man Ray.
“É porque não posso servir mulheres sozinhas.”
“... A não ser que estejam de chapéu”, retifica Kiki.
Fazem um brinde. Recomeçam. Saem daquele café e
vão para outro. Depois para um restaurante.
“Você é nosso amigo americano”, decidem Marie e
Kiki.
O jantar é acompanhado de muita bebida.
“Nosso amigo americano rico!”
Vão ao cinema ver A Dama das Camélias.
“Muito rico!”
As jovens estão sentadas ao lado do magnata do
chiclete. Kiki assiste ao filme encantada como uma
criança. Man Ray pro­cura a mão dela. Encontra. Aperta.
Ela não retribui, mas também não a retira.
Na saída, ele diz que gostaria de pintá-la, mas que
está to­mado pela emoção e se julga incapaz de fazê-lo.
Ela responde que está acostumada: todos os artistas
para os quais ela posa pela pri­meira vez ficam no mesmo
estado.
“Então, sugiro outra coisa. Deixe-me fotografá-la.”
“Isso não!”, exclama Kiki.
Mas, no dia seguinte, ela vai ao hotel de Man Ray, sobe
ao quarto dele e tira a roupa: ele quer fotografá-la nua.
Fazem algumas fotos. Descem e vão até o café. Ele
pede a Kiki que volte no dia seguinte para uma nova
sessão de fotos. E também para ver as que foram feitas.
Ela volta. Juntos, eles olham o trabalho da véspera.
Depois Kiki tira a roupa, enquanto Man Ray prepara a
máquina. Ele está sentado na cama. Nua, ela vem ao en‐­
contro dele. Ele pega sua mão. Ela lhe oferece os lábios.
Ficarão juntos durante seis anos.
Uma tampa de radiador

assinada por Rodin

E assim caminhará sobre o palco, como uma bela criança


comportada, com gestos comedidos, seguro de si, e os olhos que
parecem ver sem olhar, aquele que só desenhou mulheres e
gatos.
Roger Vailland

E nquanto Kiki e Man Ray adormecem sobre as


primeiras páginas de seu romance, uma jovem de
uns vinte anos empurra a porta do apartamento onde
mora sozinha, na rua Cardinet. É cheia de cor­po, tem o
rosto um pouco redondo, os cabelos castanhos, os olhos
negros e vivos. Ficou órfã há três anos. Não trabalha: a
herança dos pais é o bastante.
Lucie Badoul coloca em cima de uma mesa o monte de
li­vros que acabou de comprar. Entra no banheiro, tira a
maquia­gem cuidadosamente, pega novamente os livros
e vai para o quarto. Uma gatinha ruiva se junta a ela. A
moça se mete sob as cobertas e escolhe um dos volumes
que comprou só por causa do título: La femme assise. Ela
não conhece o autor – Guillaume Apollinaire – nem o
bairro que ele descreve: Montparnasse. Mas ao término
da leitura os cafés parecem tão extraordinários, as
pessoas que moram lá, tão livres, a atmosfera, tão
diferente daquilo que Lucie Badoul conhece, que ela é
tomada por uma espécie de febre.
Levanta-se, veste-se, torna a se maquiar, põe a gata
em­baixo do braço e deixa a rua Cardinet. Direção: o
metrô.
Desce na estação Montparnasse e sobe o bulevar até o
in­crível bistrô de que fala Apollinaire: La Rotonde. Mas
está lotado. O térreo e o primeiro andar também.
Decepcionada, a moça está prestes a ir embora quando
um grupo de espanhóis libera uma me­sa. Ela se senta.
Olha em volta. Nunca, em nenhum outro lugar, ela viu tal
animação, tal conivência entre os que entram e os que
saem, todos eles fregueses habituais do lugar, cúmplices,
amigos. Lucie fica fascinada.
Tarde da noite, volta para casa. No dia seguinte, lá está
ela de novo no La Rotonde. A sala, desta vez, está mais
vazia. Não se veem apenas as silhuetas. Surgem os
rostos. Eles vão se destacando.
Aquele homem, por exemplo, que está entrando no
café.
Está sozinho. É asiático. Uma franja lhe cobre a testa.
Usa óculos de tartaruga. Sob um paletó bem talhado
marcado na cin­tura por uma faixa de tecido, vê-se o
xadrez vermelho e branco de uma camisa de algodão.
Lucie olha. É como se um véu lhe cobrisse o rosto.
Compreende que foi conquistada, que acaba de sucumbir
a um amor à primeira vista. Mas o homem dá meia-volta
e vai embora. A moça fica, imóvel. Chama o garçom e
pede um licor. De­pois outro. Um terceiro... Precisa de seis
para ter coragem de fazer a pergunta que a atormenta.
Levanta-se, posta-se no meio do café e pergunta se
alguém conhece o japonês que saiu. Um desconhe­cido se
levanta e diz:
“Venha comigo.”
O homem é pintor. Leva a moça até a casa dele. Em
um instante, a carvão, ele faz o retrato do asiático.
“É ele?”
“É”, responde Lucie.
O pintor enrola o desenho e o estende para ela.
“Chama-se Foujita.”
“Você o conhece?”
“Claro!”
“Dê a ele meu endereço”, pede Lucie.
Ela o anota em um pedaço de papel, e depois volta
para casa. Pendura o retrato de Foujita na parede.
Durante oito dias ela não sai. Fica esperando. Mas o
homem da sua vida não dá ne­nhum sinal. Então, Lucie
vai de novo a Montparnasse. O pintor que havia
desenhado o japonês leva-a até o número 5 da rua
Delambre, onde fica o ateliê de Foujita. Este olha para a
moça, ofe­rece-lhe um leque e marca um encontro com
ela para aquela mes­ma noite no La Rotonde.
Ela foi. Jantaram juntos. Ele a levou ao hotel. Ficaram
lá três dias sem sair. Quando voltaram ao La Rotonde,
Lucie não se chamava mais Lucie. Foujita a havia
batizado de “Youki”, que sig­nifica “neve rosa” em
japonês (ela ainda conservava o apelido que ele lhe dera
quando, em 1931, caiu nos braços de Robert Desnos).
A vida com Foujita? Um sonho. É claro que há
Fernande. A esposa oficial não abandona facilmente o
terreno, embora já tenha se juntado a alguém, em outro
lugar, e há muito tempo. Quando Foujita expõe seu
quadro Youki, déesse de la neige no Salão de Outono,
Fernande agride publicamente a amante do marido. Mas,
quando ela desiste, a festa começa.
Nos anos 1920, Montparnasse é um espetáculo de som
e luz. Reuniões barulhentas com os amigos, múltiplos
encontros, festas extraordinárias. Vinte convidados em
volta da mesa, fre­quentemente duas ou três vezes mais,
às vezes mais ainda.
Tudo depende de quem convida.
Se é o conde de Beaumont, na sua mansão da rua
Duroc, os salões, os corredores e as escadas ficam
cheios. O baile vai de cima a baixo, se espalha por todos
os cantos. Quase sempre os convidados vêm fantasiados.
Youki nem sempre os reconhece. Marcoussis está de
camponesa, Van Dongen, de Netuno, Kisling, de
prostituta sulina... As mulheres usam bonés, galões de
ofi­ciais; os homens, perucas, há marinheiros, pierrôs,
palhaços de cara branca, toureiros... Foujita, o rei das
fantasias, vem quase sempre de vestido. Certa noite, ele
veio nu por baixo, vestido de porteiro, com uma gaiola
nas costas e uma mulher na gaiola... Às vezes usa anéis,
às vezes brincos, um turbante, um chapéu com molas.
Todo mundo ri, todo mundo dança, os casais se formam e
se deformam. Bebem.
Quando não é na rua Duroc, é na casa Watteau, rua
Jules-­Chaplain, reduto dos escandinavos. Pelo menos
uma vez por ano, eles organizam um baile grandioso ao
qual comparece todo o bair­ro de Montmartre. E, se não
for lá, é em outro lugar. Em ateliês preparados para a
ocasião, sendo que os próprios pintores se encarregam
da decoração e dos cartazes que são espalhados pelas
ruas. Ou no Bal Bullier, onde a União dos Artistas Russos
se reveza com a A.A.A. (Ajuda Amigável aos Artistas),
que organiza festas para os artistas necessitados.
Também pode-se ir ao baile dos Quat’z’Arts, que começa
no pátio da escola de Belas-Artes e vai terminar, tarde da
noite – ou de manhã –, com um banho ritual na praça da
Concorde ou nos jardins do Luxembourg. Aos sábados ou
aos domingos, às vezes em ambos, todos os festeiros se
encon­tram no Bal Negre, na rua Blomet, perto de
Vaugirard. Lá, são a biguine120, o ponche, o rum, o
tambor e as animadas clarinetas. Uma multidão
considerável que dança e se esbalda. Muitos negros,
mulatos, soldados da Colonial, cada vez mais artistas...
Pode-se ir também dançar no Moulin de la Galette ou
no Bal des Pompiers, rua da Huchette, antes dos
encontros em lugares mais calmos, à sombra das festas.
Às vezes, Youki e Foujita param no Camaléon, esquina
do bulevar Montparnasse com a rua Campagne-Première.
Em outras épocas, era um lugar que ficava vazio durante
o dia. Ali, comia-se um chucrute um pouquinho só mais
caro do que os espague­tes de Rosalie. Alguns
vendedores ambulantes vendiam colchões ou meias de
seda aos esparsos fregueses. Mas, desde que Ale­xandre
Mercereau, que se dizia escultor, decidiu animar esse an‐­
tigo bistrô, o lugar fica cheio da manhã até à noite.
Principal­mente à noite. O Camaléon foi transformado em
universidade aberta de Montparnasse. Músicos e poetas
de todos os grupos vêm ter ali. Leem seus versos,
representam suas obras, fazem conferên­cias. Aos
domingos, vêm em grande número para assistir a
espetácu­los humorísticos. Até as pessoas da alta
sociedade reservam um lugar. Cocteau foi visto lá. E
também a condessa de Noailles.
Essa mulher admira Foujita. Menos, talvez, pela
qualidade da sua obra do que por um dos temas que ele
pinta, também caro a Van Dongen: as mulheres da alta
sociedade. Ele fez os retratos da condessa de Clermont-
Tonnerre, da condessa de Ganay, da con­dessa de Mont‐­
bello. Por que não da condessa de Noailles?
Na época, apesar de passarem a maior parte do tempo
em Montmartre, Youki e Foujita moram na rua Massenet,
em Passy. São vizinhos da condessa de Noailles. Para a
primeira sessão de pose é ela que se desloca.
Ela é baixinha, mas usa um enorme colar de pérolas no
pes­coço. Isso a ajuda a manter-se ereta. Não sente muita
admiração pelos artistas que a desenharam antes do
pintor japonês, mas tem uma desculpa: só admira a si
mesma. Gosta de si mesma sob todos os aspectos,
particularmente pela poesia que pratica com assidui‐­
dade. É uma grande artista. Uma grande poetisa. Uma
bela mulher. Com um olhar magnífico. Uma testa que
mostra a inteligência muito sutil que faz toda a força da
sua sedução. Um corpo de deusa que é preciso às vezes
proteger. “Você entende por que, meu caro Foujita,
também é preciso que venha me pintar na minha casa,
quando estou na cama, para que minha carne, meus
músculos e meu pensamento descansem.”
O devotado Foujita vai até lá. Sobe pela escada de
serviço, porque os porteiros não querem saber de
japoneses malvestidos junto aos ricos. A condessa de
Noailles espera por ele. Está recos­tada sobre os lençóis
de seda do baldaquim. Na penumbra. Usa um vestido
Poiret. Mexe-se o tempo todo. Tagarela. Foujita pinta. As
sessões são intermináveis. Quando finalmente ele faz
uma pausa, a condessa de Noailles fica furiosa: ela não
encontra a beleza da sua pessoa, o esplendor do seu
caráter, a divindade do seu espírito... Mas é assim. O
artista assina e vai embora. Nem mesmo terminou a
obra.
A vida de Foujita é um sonho porque sua própria
carreira se desenvolve como num sonho. Desde que, em
1922, Chéron expôs seus guaches, ele é solicitado a todo
instante. Está em toda a Europa, e até nos Estados
Unidos. Suas telas são vendidas muito caro. Em alguns
meses, ele se tornou um dos principais e mais ricos
expoentes de Mont­parnasse. Quando a noiva (que logo
será sua mulher) faz 21 anos, ele decide que ela precisa
trocar de motorista. Até então, o mesmo táxi ficava
esperando por ela na porta do restaurante ou da boate.
O carro era dirigido por um dis­tinto senhor que ainda não
tinha “posto a mão na grana”, embora já se chamasse
Albert Simonin.121
Foujita oferece à sua bem-amada o presente com o
qual sonham todos os antigos aprendizes de pintor: um
carro. E não é qualquer um. Trata-se de um Ballot
amarelo fabricado por Saoutchik, dotado de uma tampa
de radiador assinada por Rodin, e dirigido por José Raso,
basco, campeão de pelota, promovido a motorista
particular.
O visom que acompanha o presente é uma bobagem, a
secretária-datilógrafa, a quem Foujita dita a partir de
então sua correspondência, é apenas uma gota d’água
no oceano dos sinais exteriores de um sucesso que se
confirma ao longo dos anos.
Foujita está em Saint-Tropez.
Foujita está em Cannes, na Croisette.
Foujita anda de bicicleta nas Planches de Deauville.
Com quem? Com Maurice de Rothschild, Van Dongen, as
Dolly Sisters ou Suzy Solidor, a diretora de revista que se
exibe de maiô de con­chas nacaradas ou então envolta
numa rede de pescador, com um tapa-sexo de cortiça. E
também Mistinguett, com quem André Salmon cruzou no
Tribunal da Justiça do Trabalho de Versalhes, onde a
“rainha das plumas” perseguia, com todo seu furor e
rom­pantes, uma camareira que havia roubado um dos
seus 172 casacos de pele. Universo surpreendente, cruel,
ele­gante, diabolicamente mundano – embora, é o que
todos garan­tem, Foujita não mude.
A água passou sob todas as pontes, as pontes
mudaram de estilo. O ateliê da rua Delambre se perdeu
na memória, junto com as mansões da margem direita. A
partir de 1927, Youki e Foujita moram na rua do Parque
Montsouris, número 3, um térreo, três andares, um
terraço. Os amigos ajudaram a encontrar os móveis. Um
jovem escritor em ascensão vendeu um tapete, cadeiras
e um bar americano dos mais originais. Ele assina suas
obras como Georges Sim, diminutivo de seu sobrenome
oficial: Georges Sime­non. Ele também é um frequentador
habitual das festas sublimes que os Foujita oferecem em
sua casa, e que equivalem àquelas, também famosas, de
Van Dongen. Ele também vai do Dôme ao La Rotonde,
põe haxixe no cachimbo, espera sua vez no andar térreo
dos bordéis. Ele também troca um bar por outro,
abandona um primeiro prazer por um segundo, um
terceiro, um quarto, até que, tarde da noite, as nuvens
de fumaça e o álcool o empurrem para o outro lado do
Sena, rua Boissy-d’Anglas, número 28, onde Jean
Cocteau, realizando a profecia de Maurice Sachs, tornou-
se o mais extraordinário dos animadores.

120 Dança popular das Antilhas. (N.T.)


121 Albert Simonin é autor do romance policial Touchez pas au grisbi
(literalmente, Não mexam na grana ou Não ponham a mão na grana). (N.T.)
Um coquetel, vários Cocteaus

...Radiguet, de monóculo, extremamente distante e até mesmo


pretensioso, que se tomava por Radiguet...
Pierre Brasseur

D esde 10 de janeiro de 1922, Cocteau faz a festa no


Boeuf sur le toit. Ele frequenta o bar de Louis Moysès
com seu grupo. Este reúne tudo o que Paris tem de mais
chique, e ainda os músicos do Groupe des Six, Diaghilev,
Coco Chanel e alguns outros. O sufi­ciente para fazer
desse lugar o centro da margem direita da van­guarda em
marcha.
Cocteau garante a animação. Wiener e Doucet tocam
piano; Williams, bateria. Ninguém ouve: todos vêm aqui
para se mostrar. Ou para beber. Ou para admirar L’oeil
cacodylate, de Picabia, comprado por Moysès depois que
o Salão dos Independentes recusou a obra. Trata-se de
um olho que Picabia tinha desenhado quando estava so‐­
frendo de uma doença ocular, tratada com cacodilato
(alusão médica que faz lembrar a Antipyrine, de Tristan
Tzara). Ele pedira aos amigos que acrescentassem ao
quadro suas assinaturas e algumas palavras:
Isadora (Duncan) ama Picabia de todo o coração; Eu o acho Mui­to
(Tristan Tzara); Não tenho nada a dizer (Georges Auric); Me chamo Dadá
desde 1892 (Darius Milhaud): Gosto de salada (Francis Poulenc); Coroa
de melancolia (Jean Cocteau, com foto)...

Depois de seus primeiros movimentos em


Montparnasse, Cocteau seguiu seu caminho. Não se pode
evitá-lo.
Com uma rara intuição tática, o jovem poeta da Danse de Sophocle (25
anos, em 1917) acabou garantindo a submissão daquelas pessoas da alta
sociedade das quais ele parecia fugir, depois de ter chegado até elas com
seu talento de estrategista, e para as quais ele voltaria com as mãos
cheias, mas sempre leves, de presentes prontos para deixá-las
estupefatas e admiradas. 1

É Salmon que o diz, e, mesmo que diga com


crueldade, diz com exatidão: uns dez anos depois de sua
aparição nos meios artísticos de Paris, Cocteau chegou
lá, exatamente lá. Todos conhecem a par­tir de agora as
rendas do seu mundanismo, mas admitem-nas. Melhor
ainda: procuram-nas. E, para o poeta, encontram descul‐­
pas. Ele precisa tanto ser amado! Ele é tão brilhante!
É verdade.
Aliás, ele faz grande sucesso junto à juventude.
Quando propuseram ao jovem Pierre Brasseur que fosse
ao encontro dele, este não hesita: “Era o desejo de todos
os rapazes, em 1923”.2
O futuro ator vai então à rua d’Anjou e descobre “esse
per­sonagem, fio condutor que todos admirávamos”. O
rapaz fica fas­cinado. Principalmente pelas mãos do
poeta, “mãos que valiam por quatro, que volteavam até
para dizer bom-dia e que ele utilizava admiravelmente,
desenhando tudo, pontuando tudo com elas – pincéis –
brilhos – plumas –, enfim, as mais belas mãos que eu já
vira!”
O dono da casa leva o visitante até o banheiro, onde
faz a barba sem parar de falar.
As palavras estavam ao contrário, as ideias esbarravam umas nas outras,
e disso resultavam jogos de ideias, jogos de palavras [...] Saíam como se
fossem foguetes, sem parar. Bastava dizer-lhe uma palavra, uma ideia,
para que ele fizesse uma brincadeira poética e a pusesse de lado, como
uma linda imagem dos seus maravilhosos reflexos [...] O cretino não
deixava escapar nada.

Na segunda vez, Cocteau leva Brasseur até seu quarto,


cujas pare­des eram cobertas de números de telefone.
Um outro visitante, Georges Charensol, então jornalista
do Paris-Journal, chamará a atenção para a simplicidade
ostentatória desse cômodo em compa­ração ao luxo
burguês da entrada, onde se destaca o retrato do dono
da casa feito por Jacques-Émile Blanche. Mas Brasseur
ainda é muito jovem para observar esses detalhes. Ainda
mais porque, assim que ele entra no quarto, um gigante
sai de debaixo da cama. Está com a cara amassada e a
língua pastosa: provavelmente é o ópio que os dois
homens devem ter usado e abusado durante horas...
Cocteau aponta o atordoado adormecido e diz:
“Essa é a criança que fiz durante a noite.”3
Joseph Kessel.
Não era à toa que a juventude ficava impressionada.
No dia da inauguração do Boeuf sur le Toit, Picasso
conversava com Marie Laurencin, e Brancusi, com um
jovem que ele encontrara várias vezes em companhia de
Cocteau. Ele não era especialmente bonito. Tinha a pele
clara, os olhos sem brilho, era baixo, míope, mal
penteado. Enrolava seus cigarros e espalhava tabaco por
todos os lados. Usava óculos quebrados que tirava do
bolso e colocava nos olhos como se fossem um
monóculo.
Foi André Salmon quem, durante a Guerra, introduziu o
rapaz no grupo de Cocteau. O poeta122 trabalhava então
em L’Intransi­geant. Em 1917, contatara um dos seus
velhos amigos desenhistas para encomendar desenhos
para a primeira página (Salmon já havia ajudado Foujita
dessa maneira). O homem aceitara a proposta: duas
ilustrações por semana. Como morava em Saint-Maur
(Parque Saint­-Maur, na época), encarregara o filho de
fazer as entregas.
O filho era um garoto: catorze anos e calças curtas.
Um rapazinho gentil com um olhar vivaz de adulto ainda ingênuo, mas
um bom candidato à crueldade; isso mesmo, um estranho olhar coberto
pela sombra de uma mecha marota, pesadamente ondulada, como se
fosse a aba de um boné.4

Como se chamava?
Raymond Radiguet.
Duas vezes por semana, Raymond Radiguet trazia os
desenhos do pai. Depois de algumas vezes, ele disse a
André Salmon:
“Sabe, eu também desenho!”
Salmon não se mexeu.
“Quer que eu lhe mostre?”
Sob o olhar surpreso do jornalista, o garoto abriu a
pasta de desenhos que continha os trabalhos do pai... e
tirou os dele.
“Então?”
André Salmon não disse nada.
“Talvez o senhor pudesse publicar...”
Como não eram de todo ruins – embora um pouco
medío­cres –, e como o amigo ilustrador precisava de
dinheiro, Salmon aceitou. Com uma condição: que o
rapaz escolhesse outra assina­tura diferente da do pai.
“Nenhum problema”, respondeu Raymond Radiguet.
Sob o olhar atônito do redator, pegou uma caneta e
assi­nou: Rajki.
Passou-se uma semana. Na visita seguinte, Raymond
Ra­diguet colocou o desenho do pai sobre a mesa; depois
o dele. E acrescentou:
“Eu não lhe disse, mas também escrevo...”
Mostrou-lhe um poema.
“Vá procurar Max Jacob”, aconselhou André Salmon.
No dia seguinte, Raymond Radiguet telefonou a Max
Ja­cob. Depois, voltou ao jornal para perguntar a Salmon
se ele não queria ajudá-lo a fazer jornalismo. Finalmente,
conseguiu ir à casa de Léon Rosenberg, onde estava
sendo organizada uma leitura em memória de Guillaume
Apollinaire. Leu um poema. Cocteau estava presente.
Max Jacob facilitou o contato. Cocteau, muito impressio‐­
nado, caiu nos braços da juventude.
Na noite da inauguração do Boeuf, compreendendo
que nada tinha a fazer naquele lugar, Brancusi convidou
o jovem a buscar outras paisagens. Saíram e foram para
Montparnasse. De manhã cedo, o escultor propôs que
pegassem o trem.
“Está bem, mas para onde?”
“Para o Sul...”
Foram para a estação de trem, pegaram o primeiro
que che­gou e foram parar na Bretanha. De lá, trocaram
de trem e foram para Marselha, na noite seguinte. Ainda
estavam com as roupas da festa: smoking e sapatos de
verniz.
Como Marselha era triste, foram para Nice. Como Nice
estava deserta, embarcaram para Ajácio. Como em
Ajácio não havia mulheres, visitaram a ilha. Como a ilha
era pequena, volta­ram para Paris onze dias depois.
“Brancusi deixou Radiguet no Boeuf e não voltou mais”,
constatou simplesmente Jean Hugo.5

A exemplo de Pierre Brasseur, Paul Morand, que cruzou


com o jovem pela primeira vez durante um baile de gala
na casa de Paul Poiret, achou-o taciturno, altivo e
pretensioso. O próprio Cocteau, fascinado, enamorado,
em transe, escreverá mais tarde, numa es­pécie também
de autocrítica:
Provavelmente ele tinha um plano, executava um programa a longo
prazo. Um dia, ele teria orquestrado sua obra e até, tenho certeza, feito
todo o possível para torná-la visível.6

Mas não foi isso o que ele fez? E Cocteau não ajudou?
Quando Raymond Radiguet começa a escrever a
história dessa ligação que une, durante a guerra, um
rapaz a uma mulher mais velha, o poeta se intromete.
Não se sabe até onde. Talvez te­nha se contentado, como
ele mesmo disse, em trancar seu frangote no quarto para
obrigá-lo a dominar a preguiça. Em todo caso, foi ele
quem se dirigiu às edições Grasset para ler as primeiras
páginas da obra.
Bernard Grasset logo compreendeu que tinha um filão
entre as mãos: um autor muito jovem, um cheiro de
escândalo, padrinhos e protetores em todos os meios
artísticos, literários e mundanos.
Quando Le diable au corps foi publicado, em 1923, a
estra­tégia estava traçada. As edições Grasset lançam a
obra como um produto. Para a época, a publicidade
literária nos jornais, os ser­viços prestados pela imprensa,
os amigos publicando notas (prin­cipalmente o próprio
Cocteau, na Nouvelle Revue Française)... tudo isso era
novidade. Resultado: cinquenta mil exemplares ven­didos
em quinze dias. “Bebê” (como Cocteau chama o garoto)
pode ficar contente.
E fica. Durante o ano que lhe resta de vida, usufrui do
seu triunfo, fuma ópio e consome tudo o que pode,
rapidamente. Vai deixando para trás Marthe, a heroína
de Diable au corps, que pro­curava por ele, chorando, nas
redações dos jornais; Beatrice Hastings, que o conheceu
na casa de Brancusi, tão violenta e apai­xonada por Bebê
quanto fora por Modigliani; Jean Cocteau, final­mente, que
não se conforma em relação a essas, tanto quanto não
aceita a última: Bronia Perlmutter, jovem modelo de
origem polo­nesa, muito disputada em Montparnasse,
pintada por Nils Dardel e Kisling, que veio ao Boeuf com
um vestido Poiret, e que Ray­mond Radiguet leva para um
hotel.
Os jovens dizem que vão se casar. Escondem-se no
Hotel Foyot, na rua de Tournon. Fogem daquele que as
más línguas logo vão chamar de “viúvo no telhado”123,
e que os cronistas singulari­zam no plural: um coquetel,
vários Cocteaus.
Radiguet consome sua extrema juventude nesse Mont‐­
parnasse entorpecido pelos cantos e pelas danças,
iluminado pelas guirlandas das felicidades prateadas,
dopado pela cocaína distri­buída pelas mulheres que
cuidam dos banheiros nos cafés e restau­rantes,
mergulhado na embriaguez e no álcool que bebem os
artis­tas vindos de todas as partes, os turistas
estupefatos, os america­nos que brindam à felicidade de
estar ali, naquela cidade livre e magnífica. Mais do que
nunca, margem direita, margem esquerda, Paris é um
caldeirão, um caldeirão em ebulição.
Mas, apenas alguns meses depois do lançamento de
Diable au corps, as luzes escurecem bruscamente. No dia
12 de dezembro de 1923, Raymond Radiguet não resiste
a um acesso de febre ti­foide. Quando é levado do seu
quarto no Hotel Foyot para uma clí­nica do XVI
arrondissement, já é tarde demais. O médico chefe,
pressionado por um Cocteau fora de si, não soube
diagnosticar a doença. Radiguet recebe a extrema-unção
e morre em meio a um sofrimento atroz.
Coco Chanel organizou o funeral. O caixão, as flores,
os cavalos, os ornamentos... tudo era branco. Cocteau,
arrasado pela dor, não assistiu ao enterro. Alguns anos
mais tarde, ele escreverá essas linhas admiráveis:
Radiguet era extremamente livre. Foi ele quem me ensinou a não me
apoiar em nada [...] Como era dele também que vinha minha parca
lucidez, sua morte me deixou sem diretivas, incapaz de conduzir meu
barco, secundar minha obra e sustentá-la.7

Raymond Radiguet tinha vinte anos.

122 André Salmon. (N.T.)


123 Ver nota da tradução no capítulo “O galo e o arlequim”. (N.T.)
US at home

Vocês, jovens que fizeram a Guerra, são todos uma geração


perdida.
Gertrude Stein

N a América há a Lei Seca. Na Europa, pode-se beber


em paz. Ou­tras vantagens: a vida não é tão cara, e
muitos amigos estão lá, prontos para ajudar.
Sylvia Beach, por exemplo. Sua livraria é um ponto de
referência. Os viajantes podem mandar para lá sua
correspondên­cia. Shakespeare & Cia está à disposição
deles. Sylvia organiza reu­niões e facilita a interação.
Para aqueles que querem se reunir para beber ao sair
da livraria, basta subir a rua do Odéon, atravessar o
Luxembourg, rua Vavin, rua Bréa, primeira à direita
depois do cruzamento, rua De­lambre, número 10. É aí
que fica um bistrô recém-comprado por um americano: o
Dingo, American bar and restaurant. Durante o dia, paga-
se relativamente caro. À noite bebe-se com euforia.
Flossie Martin, uma bailarina que deu o grande salto para
além do Atlântico, dirige o balé dos amigos. Eles bebem
muito e falam com sotaque yankee: o Dingo é um dos
pontos altos da colônia americana. Os escritores, que são
algumas centenas em Paris, encontram-se lá depois do
jantar: Sherwood Anderson, Thornton Wilder, Eugène
Jolas (que mora numa casa, La Boisserie, numa
cidadezinha, Colombey-les-deux-Églises124), Sinclair
Lewis, Archibald Mac Leish, John Dos Passos, William
Seabrook, Djuna Barnes, Mina Loy, Robert Mac Almon
(que publicará seus amigos americanos). Estão lá
também George Gershwin, que está escrevendo Um
americano em Paris nos quartos de hotel; Ezra Pound, um
dos primeiros a chegar, correspondente em Paris do The
Little Review, que deixará o país em 1924 para ir à Itália
encontrar, infelizmente, seu esti­mado Duce; Natalie
Clifford Barney e sua companheira Romaine Goddard
Brooks, que recebem os amigos no hotel da rua Jacob. E
ainda Henry Miller, que passará rapidamente, em 1928, e
ficará mais tempo dois anos depois, aplicando talvez no
Dingo aquele método infalível que lhe permitia comer
alguma coisa todos os dias: instalava-se em uma mesa,
escrevia doze bilhetes e enviava-os a doze fregueses
presentes, pedindo a cada um que o convidasse para
jantar uma vez por semana. Miller, que em troca de uma
gar­rafa de champanhe e de um passe livre redigiu os
prospectos do maior bordel da margem esquerda, o
Sphynx, cujas portas se abri­riam em 1931 (ele recebia
também uma comissão pela clientela mas­culina que se
apresentasse em seu nome).
Havia ainda Sandy Calder, suas esculturas em fio
metálico e seu circo. E, principalmente, Scott Fitzgerald,
Zelda e a pequena Scotty. Gatsby logo será publicado,
mas já naquela época, depois do lançamento de The side
of paradise, em 1920, os jornais ameri­canos disputam as
novelas do escritor. O que lhe dá meios de sobra para
fazer a festa...
Foi no Dingo que ele encontrou Hemingway. Este veio
uma primeira vez a Paris em 1921, e voltou depois por
um ano para os Estados Unidos, antes de retornar com a
mulher Hadley e o filho. Hemingway conhece todos os
anglo-saxões de Paris, principal­mente Joyce, com quem
bebeu bastante (quando está bêbado, o escritor irlandês
canta árias de ópera) e a quem deu aulas de boxe.
A família Hemingway morou primeiro no V
arrondissement, depois veio se instalar na rua Notre-
Dame-des-Champs. No início da sua estadia, Hemingway
ganhava a vida escrevendo artigos esporti­vos para o
Toronto Star. Depois de desistir do jornalismo, tenta se
virar apostando nas corridas e escrevendo novelas, que
os jornais americanos vão recusando uma atrás do outra.
Ele escreve no La Closerie des Lilas, mais calmo do
que o Dôme e o Select (o único poeta visto por lá era
Blaise Cendrars). Às vezes, o filho Bumby o acompanha:
ele balbucia enquanto o pai trabalha. Quando chega a
hora do almoço, é preciso sair dali e ir para algum lugar
onde não haja tentações alimentares: com que dinheiro
se poderia ceder a elas?
Hemingway descobre um trajeto de acordo com sua
po­breza. Primeiro é preciso chegar ao Luxembourg: as
plantas e as árvores têm um perfume agradável que não
evoca os pratos apetito­sos. Entre a praça do
Observatoire e a rua Vaugirard, os transeuntes famintos
não correm nenhum risco: não existem restaurantes.
Se quisermos mudar de paisagem e sair do jardim,
Heming­way nos aconselha a descer pela rua Férou até
Saint-Sulpice. Não passaremos por nenhuma mesa
tentadora. Em seguida podemos ir em direção ao Sena,
sabendo que vamos encontrar uma legião de padarias,
de confeitarias, de mercearias e outros demônios
mastiga­tórios. O melhor é, portanto, virar à direita, na
rua do Odéon, evi­tando a praça (onde três restaurantes
atiçam o freguês), e subir até o número 12. Sylvia Beach
nos receberá sempre amavelmente. Sua gentileza
chegará mesmo ao ponto de nos emprestar livros. Foi
assim que Hemingway leu Tourgueniev, Gogol e
Tchékhov.
À noite, o escritor vai geralmente ao Dingo. Na
primeira vez em que encontra Scott Fitzgerald, este está
esvaziando uma taça de champanhe atrás da outra. No
final da noite, é preciso car­regá-lo até um táxi.
Alguns dias depois, os dois homens se reveem na
Closerie des Lilas. Fitzgerald conta a Hemingway como
faz para publicar suas novelas nos jornais americanos:
manda uma para o Post e, depois da publicação, ele a
modifica, encurta e envia para outro lugar. Como
Hemingway discorda e chama o compatriota de “fi­lho da
puta”, este justifica:
“Preciso fazer isso para dispor dos meios para escrever
bons livros!”1
Depois disso, Fitzgerald pede um favor ao compatriota:
será que ele poderia acompanhá-lo a Lyon para
recuperar o Renault que Zelda e ele tiveram de deixar lá
por causa do mau tempo?
Hemingway aceita. Segue-se uma viagem inenarrável.
Scott perde o trem, e Ernst parte sozinho. Quando se
reencontram, no dia seguinte, Scott há muito já deu
partida na sua dose diária de garra­fas. É só um começo.
Compram provisões para a viagem, antes de ir até a
garagem. O Renault está esperando. O carro não tem
capota. Surpreso, Hem pergunta e Scott explica: como a
capota amassou em Marselha, Zelda mandou tirá-la. Foi
por isso que deixaram o carro em Lyon: a chuva, de certa
forma, atrapalhou a viagem.
Os dois homens se instalam, Scott ao volante, Hem ao
lado. Logo depois, a chuva os obriga a parar. Partem de
novo, param, partem outra vez, param... Em cada
parada, ou quase, se abaste­cem de combustível vinícola.
Scott está encantado: nunca bebeu pelo gargalo. Mas, de
repente, entre dois goles, começa a tossir. Seria o
começo de uma congestão pulmonar?
“Claro que não”, responde Hemingway.
“Claro que sim”, objeta Fitzgerald.
E é grave. Ele conhece pelo menos duas pessoas que
morre­ram de congestão pulmonar. Não quer que o
mesmo aconteça com ele, mas acha que o drama está se
delineando.
Em Chalon-sur-Saône, ele para diante de um hotel:
está doente, precisa ir para a cama.
No quarto, Scott veste o pijama e se deita. Antes de
fechar os olhos, pede a Hemingway que lhe prometa
cuidar da filha e da mulher. Hemingway promete com
boa vontade, sobretudo porque o pulso do companheiro
está tão normal quanto o frescor de sua aparência. Mas é
preciso um termômetro. Chamam o camareiro.
“Se eu sair dessa”, declara Fitzgerald com seriedade,
“pe­garemos o trem e irei para o hospital americano de
Paris.”
O termômetro chega. Scott o põe embaixo do braço.
Cinco minutos para um resultado esplêndido: 37,6.
“É muito?”, pergunta o doente.
“Não é nada.”
“Quanto é que você tem?”
Por dever de amizade, Hem tira sua própria
temperatura.
“E aí?”, pergunta Scott com ansiedade.
“Trinta e sete e seis.”
“E você não está doente?”
“Nem um pouco.”
Fitzgerald pula da cama, tira o pijama e veste-se
depressa.
“Sempre me curo rápido...”
Alguns dias mais tarde, em Paris, Scott convida o
amigo Hem para almoçar. Quer falar com ele sobre um
problema muito sério e doloroso: Zelda lhe assegurou
que seu pênis era pequeno demais para satisfazer as
mulheres. O que se pode fazer?
“Ver”, responde Hemingway.
Os dois saem da mesa e se trancam no banheiro.
Resultado, estabelecido na volta: normal.
“Não é verdade”, responde Scott. “Ele é mesmo muito
pequeno.”
“É porque você está vendo de cima... De lado, ele é
perfeito.”
“Tenho que verificar.”
“Vamos ao Louvre.”
“Fazer o quê?”
“Comparar com as estátuas.”
Dois americanos em Paris...
Há uma terceira, que Hemingway ainda não conhece: a
me­cenas da rua de Fleurus, número 27. Gertrude Stein.
Quando Hemingway vai à casa dela pela primeira vez,
es­tá com 23 anos. Ela o acha muito bonito. Segundo ela,
ele é também muito respeitoso. Fica encantada. O
recém-chegado não só vai substituir Ezra Pound, proibido
de voltar depois que quebrou uma cadeira, como
também vai substituí-lo com uma grande vantagem: ele
se senta e ouve. Melhor ainda: pede conse­lhos. Pois não
é que propôs que ela fosse à casa dele dar uma opi­nião
sobre seus manuscritos?
Ele mostra-lhe poemas, que ela considera aceitáveis, e
um fragmento de romance decididamente ruim. Para
orientá-lo, ela o faz ler sua última obra, The making of
americans. Hemingway fica boquiaberto: é uma obra.
Gertrude Stein escreve que Hemingway lhe afirmou “que
nada mais restava a ele e à sua geração a não ser
consagrar suas vidas à publicação daquela obra”.2
Aliás, ele se empenha. Recopia o manuscrito, corrige
as provas e ajuda na publicação. É um cão de guarda
devotado e gen­til. Quando Gertrude Stein o aconselha a
deixar o jornalismo para se consagrar à escrita,
Hemingway jura, de pés juntos, que assim o fará. E assim
fez: se ele voltou para os Estados Unidos, foi para seguir
os conselhos da boa Gertrude Stein: trabalhar lá para
não mais ser jornalista aqui, quando voltasse.
Um bom aluno, portanto. Pelo menos, é o que dizem
dele Gertrude Stein e Sherwood Anderson: Hemingway,
“que bom aluno!” .
Por que essa qualidade e não outra? Porque, escreve
ainda a grande Gertrude, ele tem ótimos professores: o
mesmo Anderson, e ela própria, Gertrude Stein. Isso
mesmo. Ela considera que jun­tos eles formaram o
menino. O qual, ela reconhece, tem talentos: ele registra
sem entender. Ela o compara a Derain: moderno com um
cheiro de museu.
A versão de Hemingway não é evidentemente a
mesma. Primeiro, quando ele vem à casa de Gertrude,
está na maioria das vezes sozinho. A dona da casa não
gosta muito das esposas. Para ocupá-las existe Alice
Toklas.
Ele gosta dessas visitas: oferecem-lhe aguardente à
von­tade, e ele pode ver os magníficos quadros
pendurados nas pare­des. A conversa não é
desagradável, embora Miss Stein passe mais tempo
falando sobre fofocas ligadas à vida dos criadores do que
sobre as obras em questão. Quanto aos cursos de
educação sexual que ela ministra a seu visitante, são
francamente hilários. Ela tenta convencê-lo de que o
homossexualismo masculino é su­jo e vicioso, ao contrário
da homossexualidade feminina, que é bela e grandiosa.
Resposta, in petto, do rapaz: “Não basta trepar, é preciso
estacionar a bunda”.
Ele aprecia o trabalho dela, nada mais. Acha que The
mak­ing of americans tem algumas qualidades e também
muitos defeitos: é longo demais, repetitivo, indigesto. É
por amizade que ele se envolve para ajudar a publicação
da obra, e corrige as provas pela mesma razão. Nada
além disso.
As preocupações maiores, no entanto, giram em torno
da própria Gertrude Stein. Como sempre. Sua vida, sua
obra. Miss Stein deseja ser publicada no Atlantic Monthly
ou no Saturday Evening Post, jornais nos quais, segundo
ela, Hemingway não pode ter esperanças de aparecer:
ele não é um escritor dos melhores.
Os outros autores americanos, ou de língua inglesa,
tam­bém não valem lá essas coisas. Mal contam, afirma a
moradora da rua de Fleurus. Huxley? Nulo. Lawrence?
Um doente. Joyce? “Quem quer que mencionasse Joyce
duas vezes diante dela estaria dali em diante banido.”3
Para Gertrude Stein, todos os escritores que foram para a
Guerra só pensam em se embebedar e não respei­tam
nada: são, segundo uma frase que ficou famosa por ser
extraordinariamente imbecil, “uma geração perdida”.
De tanto falar mal deles e de todo o mundo, Gertrude
Stein acabará por se indispor com a maior parte
daqueles que haviam frequentado a rua de Fleurus. À
exceção de Juan Gris, porque estava morto. Todos os
outros, inclusive seu irmão Léo, se unirão contra ela
quando, em 1934, surgirá na França seu livro de me‐­
mórias. Braque, Picasso, Tzara, Matisse, Salmon,
principalmente, publicarão por sua vez várias opiniões
criticando as fofocas da senhora, sua pretensão em se
arvorar os mais diversos títulos, sua capacidade de julgar
a pintura mais em função de afinidades pes­soais do que
da própria obra.
Hemingway, mais tolerante do que alguns outros,
consen­tirá em revê-la. Mas nunca mais privará da sua
intimidade. A antiga amizade só iria ressurgir muito mais
tarde, nos anos 1960, quando, às vésperas de se matar,
ele reatou com sua juventude parisiense para escrever
este livro que permanece como uma homenagem à
liberdade daquela época: Paris est une fête.125

124 Cidade natal do general De Gaulle. (N.T.)


125 Ernest Hemingway, Paris é uma festa, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil,
2000. (N.E.)
Um judeu errante

Com seu chapéu na nuca, ele parecia um personagem da


Broadway por volta do final do século, bem mais do que o pintor
charmoso que era, e mais tarde, quando se enforcou, gostava de
me lembrar dele do jeito que estava naquela noite, no Dôme.
Ernest Hemingway

C aminhando pelo bulevar Montparnasse, voltando da


casa de Gertrude Stein ou da livraria de Sylvia
Beach, Hemingway passa pelo Dôme. Um homem está
sentado a uma mesa. Desenha. Duas moças o
acompanham. Uma é morena. A outra é jovem e bonita.
O homem veste-se com elegância: terno azul, gravata,
camisa clara bem passada, sapatos de verniz. Usa uma
longa echarpe de seda branca e um chapéu-coco
inclinado sobre a testa. A pele é ligeira­mente morena, os
olhos são negros, vivazes e profundos, atraves­sados por
bruscos lampejos de melancolia. Aperta um cigarro no
canto da boca.
Com um gesto de mão, ele convida Hemingway a se
aproximar.
“Tome alguma coisa conosco!”
O escritor pede uma cerveja. O outro diz que tem
dinheiro e que podem beber uísque. Depois disso,
apresenta as duas moças, suas modelos, propõe uma
delas ao americano, oferece seu ateliê para ele, e riem.
Quando o garçom traz os pedidos, o homem do
chapéu­-coco pede papel. Amassa e depois joga fora a
folha em que estava desenhando, pega um fósforo,
acende-o, apaga-o, passa-o sobre a folha de papel, dilui o
traço com borra de café, esboça o retrato das duas
moças que estão diante dele, tudo isso sem parar de
falar. Tem uma voz doce, um sotaque da Europa Central.
Um sorriso interior. Faz mil perguntas ao convidado, dilui
as aquarelas com água de Seltz... Pouco a pouco, a
conversa fica animada e surge um novo desenho, que
Jules Pascin joga debaixo da cadeira, depois pede outra
folha de papel, e recomeça...
Quando Hemingway vai embora, Pascin propõe às duas
jovens irem beber no Viking. Depois vão ao Alfredo, na
rua dos Martyrs. Pascin é um dos clientes habituais. Os
pratos são bem medíocres, mas, como custam muito
caro, o pintor tem a impressão de levar os amigos a um
dos melhores restaurantes de Paris.
À meia-noite, são quinze em volta da mesa: outras
mode­los, outros pintores, um punhado de notívagos...
Pascin paga tudo. Depois, a noite prossegue em uma
boate de Montmartre ou Montparnasse, no térreo de um
bordel. Alguns sobem, outros não. Pascin desenha as
mulheres. Está lá, e ao mesmo tempo não está. Cercado,
festejado, adulado, ora rindo às gargalhadas, ora sozinho
com seus pincéis, seus lápis, seus copos de aguardente.
Ele bebe muito. Bebe demais. Os amigos usam de
artifícios tão velhos quan­to o álcool para reduzir as
doses. Raramente conseguem.
Pascin é o rei de todas as festas. Frequentemente,
aprovei­tando o carro das amigas, leva todos ao campo,
ou até à beira do Marne. As mulheres são quase sempre
mais numerosas do que os homens. Comem pratos frios
e bebem vinho, usam pouca roupa por conta do banho
de rio. Voltam tarde da noite, depois de termi­nar o dia
em um bar – ou mais de um.
Pelo menos uma vez por semana, Pascin manda
cartões ou cartas para os amigos. Pede-lhes que venham
à sua casa, no bule­var de Clichy, 36, com quem
quiserem.
Os primeiros a chegar encontram o dono da casa de
robe de chambre, fazendo a barba. Ele fica andando pelo
corredor, com o queixo cheio de espuma, enquanto suas
modelos preferidas verificam se há bastante presunto,
frangos, pernas de carneiro, vinho e bebidas.
Aïcha, uma jovem mulata nascida em Pas-de-Calais,
que o pintor descobriu em um bulevar, é a mais assídua.
É muito ligada a Pascin, o que não a impede de posar
para Kisling, Van Dongen, Foujita e muitos outros. Ela
ajuda a afastar as cadeiras e as almofa­das para
aumentar o espaço no ateliê. Vão rir, beber, dançar,
talvez venha uma banda de música... A festa vai ser
grandiosa, mas sim­ples. Não será uma reunião elegante
como as de Van Dongen. E pode ser que, no final da
noite, Pascin proponha irem a Saint­-Tropez. Fez isso uma
vez. De manhã, uns cinquenta remanescen­tes da festa
pegaram o trem para uma viagem improvisada até a
praia. Voltaram depois de alguns dias de libação e noites
de bebe­deira.
Outra vez, em Marselha, o pintor ofereceu um
banquete a todos os amigos. Não havia mais um só lugar.
Ele entrou então em um restaurante ao lado e jantou
sozinho. É Francis Carco que conta essa história. É tão
bonita que talvez ele a tenha inventado. Pouco importa:
ela corresponde à natureza profunda de Pascin. Ele adora
festas porque não pode ficar sozinho.
Uma das suas distrações favoritas consistia em oferecer bebida para todo
o mundo. [...] Era preciso ver então Pascin. Ficava radiante, impertinente,
provocava histórias, ouvia-as e, quando a bebedeira aumentava, a noite
terminava com uma bacanal do qual todos participavam. Quanto mais os
copos se esvaziavam, mais ele ficava feliz [...] No entanto, em certas
horas, dava para sentir que ele estava sofrendo por não estar bem em
parte alguma, nem mesmo em Montmartre cercado pelos amigos.1

De madrugada, depois de ter pagado todas as


despesas, Pascin volta para casa, com o coração
apertado – e não é só por causa da bebida.
De manhã, chegam outras moças em quem ele calça
suas próprias meias pretas, pede que posem, alimenta-
as, deita às vezes com elas na cama... Elas lhe compram
os tubos de tinta que faltam, arrumam o ateliê... Há as
dançarinas a quem ele dá aulas, outras que trabalham
como cozinheiras ou camareiras... Essas atividades,
essencialmente teóricas, não as impedem de se vestir de
rendas, leves véus e posar de forma sugestiva para o
patrão artista, às vezes amante, sempre amigo.
São muito jovens. Pascin não tem coragem de mandá-
las para casa, ainda mais porque na maioria das vezes
elas não têm pa­ra onde ir, moram em pocilgas, em
cabanas, nesses pequenos espa­ços das grandes
misérias. Então ficam na casa dele, dormem nos canapés
ou no chão, enroladas nas cobertas. Pascin gosta da sim‐­
plicidade das jovens do povo.
Ele é ao mesmo tempo um príncipe oriental e, como
definiu seu amigo Georges Papazoff, pintor e
compatriota, “judeu – o Judeu errante, sem raízes,
expulso, perseguido”.2 Um homem de extrema
generosidade, cercado por essa corte a que ele dá de
comer e de beber, da qual não pode prescindir, e que o
segue de bares a festas, como um rastro brilhante. “Em
volta de uma mesa de res­taurante presidida por Pascin
era possível perceber todas as varie­dades da pele
humana”, observou um de seus amigos e convidados
mais assíduos: Pierre Mac Orlan.3
Tão pródigo quanto Modigliani, Pascin oferece seus
dese­nhos a quem pedir, cédulas bancárias a quem
precisar, seus objetos pessoais aos amigos que o
admirem, paga a conta dos mais pobres sentados nos
bistrôs. Quando um amigo vai à sua casa para comprar
uma tela, Pascin deixa-o escolher, promete que vai
mandar a nota, que certamente nunca chegará: é sua
maneira de dar presentes.
No seu ateliê, há uma gaveta sempre cheia de
dinheiro. Quando recebe um amigo necessitado, ele diz:
“Abra a gaveta e pegue o que precisar.”
Às vezes, roubam suas obras. Pois todo o conteúdo da
ga­veta não vale um só dos seus desenhos. Estes são tão
bem cotados que existem falsos em circulação. Pascin
fecha os olhos. O que ganha é amplamente suficiente. Se
ele apreciasse os sinais exterio­res de riqueza, viveria
como Picasso ou Derain: suas obras custam mais caro do
que as deste último e só duas vezes menos que as do
primeiro. Mas ele não junta dinheiro. Gasta tudo. Mais
com os outros do que consigo mesmo. Além dos amigos
e das modelos (a quem paga muito mais do que o
normal) e dos jovens pintores pobres de Montmartre e de
Montparnasse, ele sustenta duas mu­lheres. É casado,
gosta de outra, assim como de todas que passam por
seus pincéis, a maioria núbil. É alcoólatra, festeiro,
excessivo, fornicador. Mas também não tem raízes, é
apátrida e cosmopolita. Enfim, por trás de tantos
excessos, esconde-se um homem tímido, ansioso,
corroído pelo sofrimento do amor.

Ele nasceu na Bulgária, às margens do Danúbio. Filho


de comer­ciantes bem-sucedidos, mais ricos do que os
Soutine ou os Krémègne. O pai era um turco-espanhol e
a mãe uma servo-italiana que atravessaram a fronteira
no início do século XX para desenvol­ver seus negócios na
Romênia. Foi ali que Pascin começou a exer­cer essa
sexualidade cuja aura de escândalos iria acompanhá-lo
por toda a vida: apaixonou-se por uma mulher
duplamente venenosa. Primeiro, porque ele tinha quinze
anos, e ela, trinta. Segundo, por­que ela dirigia uma
empresa cujos lucros lhe garantiam o desprezo das
almas bem pensantes da cidade. Era, na verdade, a
única dona do maior bordel de Bucareste. Isso foi o
bastante para interessar o jovem Pascin. E contrariar a
autoridade familiar.
O pai mandou o filho para a Alemanha. Graças à
bagagem adquirida junto à amante e suas empregadas,
todas esboçadas sobre folhas brancas, o jovem se tornou
mestre no traço e na cari­catura. Depois de estudar
desenho em Munique, Viena e Berlim (onde se ligou a
Georges Grosz), foi contratado por um jornal satí­rico,
onde já colaborava Steinlen: Simplicissimus. Foi a gota
d’água para a paciência do pai. Não satisfeito em se
afastar do judaísmo familiar, com o qual não sabia o que
fazer, incapaz de tomar a frente de um comércio de
grãos que prosperava prometendo uma situação estável,
tendo tido suas aulas de homem e de artista no meio de
um grupo inominável, eis que o rapaz se tornava
colabora­dor de um lixo que desrespeitava tudo, todos e
todos os valores!
Para que a família não ficasse ainda mais desonrada, o
pai ordenou que o filho trocasse de nome. Foi assim que
Julius Mor­decaï Pincas se tornou Jules Pascin. Exatamente
como Lautrec se tornara Tréclau por algumas semanas,
em obediência a semelhante ordem paterna. Mas se o
francês logo desistiu do anagrama, o búl­garo conservou
o seu durante toda a vida.
Quando chega em Paris, no dia 24 de dezembro de
1905, aos vinte anos, Pascin é um homem livre. Rompeu
com os seus, deu as costas para um futuro garantido,
usa um nome que ele mesmo escolheu e, finalmente,
ganha confortavelmente a vida graças ao salário que
Simplicissimus lhe paga por mês. Estão espe­rando por
ele na estação de trem, fato excepcional para um imi‐­
grante vindo do Leste. Os frequentadores do Dôme, na
sua maioria alemães, atravessaram o Sena para receber
aquele cuja assinatura conheciam bem. Lá estão Bing,
Uhde, Wiegels e alguns outros. Levam o recém-chegado
até Montparnasse, alugam para ele um quarto no Hôtel
des Écoles, na rua Delambre, e... que comece a festa!
Ela tem início no bulevar Sébastopol, na noite de Natal,
com um inesperado presente caído das chaminés: uma
garota.
Continua em imagens e cores no Louvre, onde Pascin,
como tantos outros, copia os mestres.
Passa por entre os andares dos bordéis, muito
frequentados nessa época.
E termina todos os dias em Montmartre, nos hotéis em
que se hospeda Pascin – ele ainda não mora nos ateliês
onde logo virão seus amigos, principalmente todos
aqueles que escreverão sobre ele: Paul Morand, Pierre
Mac Orlan, André Warnod, Ernest Hemingway, André
Salmon, Ilya Ehrenbourg...
A festa recomeça todas as manhãs no Dôme, onde
Pascin marca seus encontros.
Como Modigliani, ele não pertence a nenhuma escola e
também só frequenta os grupos apenas pelas margens.
Na grande época do Bateau-Lavoir, ele encontra Picasso
no circo Médrano. É ele quem organiza o enterro do
pintor Wiegels, que conheceu na Alemanha e que veio
buscá-lo na estação, no dia em que chegou a Paris
(aquele artista que se enforcou, e que todo o grupo do
Bateau-Lavoir acompanhou ao cemitério de Saint-Ouen.
Picasso e os seus de macacão e roupas fauve, enquanto
Pascin estava todo de preto, com o já então legendário
chapéu-coco).
Assim como Modigliani, Pascin gosta de mulheres, de
fes­tas, de álcool. Sua generosidade é igualmente sem
limites. Está sempre cheio de pessoas à sua volta, como
o italiano, e gostam tanto dele quanto gostavam
daquele. Pertencem à mesma geração. A história deles
repousa no exílio. Todos os dois sofrem de uma ferida
aberta, um, o luto da escultura, o outro, o luto de uma
mu­lher (ela já chega). Eles encarnam sua época, o
primeiro na miséria de antes da Guerra, o segundo na
opulência do pós-Guerra. Par­tilham o mesmo destino
trágico que os levará, soberanos corroídos por secretas
dores, com dez anos de intervalo.
Pascin, no entanto, não é um artista maldito. A partir
de 1908, ele expõe no Salão de Outono, e também em
Berlim, em Bu­dapeste e em outros lugares. É ele quem
vai inaugurar a galeria de Pierre Loeb, em 1924. Às vezes
ele choca, a ponto de Berthe Weill ter de colocar suas
obras ao abrigo dos olhares alheios. O que não o impede
de receber em casa uma clientela de apreciadores de
arte.
Em 1907, quando ainda está morando no Hôtel des
Écoles (sairá de lá em 1908), ele divide um ateliê, na rua
Lauriston, com Henry Bing, um dos amigos do Dôme.
Certa noite, este anuncia uma visita para o dia seguinte:
uma jovem que faz gravuras e pinta miniaturas em
marfim. Pascin decide recebê-la de robe de chambre,
com uma flor atrás da orelha.
Em uma hora, ele a conquista. Oferece-lhe a
quantidade de conhaque necessária para estendê-la na
cama e constatar que sua roupa de baixo é costurada.
Essa forma arcaica de cinto de casti­dade é uma
precaução tomada pela mãe para garantir a virgindade
da filha... de 21 anos.
Hermine David entra nesse dia para a vida de Jules
Pascin. É sua primeira mulher e a única legítima: ele se
casará com ela dez anos mais tarde. Durante muitos
anos, viverão ora juntos, ora se­parados, em quartos de
hotel, ateliês provisórios, até que o pintor se mude para
o bulevar de Clichy.
A segunda mulher de Jules Pascin, mais importante
ainda do que Hermine, chama-se Cécile Vidil. Lucy, para
os frequentado­res de Montparnasse. Ela trabalhou numa
charcutaria aos catorze anos, foi aprendiz de costureira
no ano seguinte e depois modelo na Academia Matisse.
Foi lá que ela conheceu os dois homens da sua vida: Jules
Pascin e Per Krogh.
O primeiro foi à Academia Matisse unicamente para
conhe­cer essa mulher que diziam ser uma das mais belas
de Paris. Era morena, tinha a pele branca, o corpo cheio
e belo... Pascin convi­dou-a a posar para ele. Ela aceitou.
Ele pediu mais. Ela também acei­tou. Isso se passou num
hotel da praça d’Anvers. Depois disso, os amantes de
uma única noite não irão mais se ver durante dez anos.
Per Krogh era filho do pintor Christian Krogh e afilhado
de Edvard Munch. Também conheceu Lucy na Academia
Matisse. Ela veio posar na casa dele. Ele a levou ao Bal
Bullier. Ela caiu nos bra­ços dele. Tornaram-se
especialistas do tango, foram para a Noruega e depois
voltaram para Paris, onde se casaram em 1915.
Nessa época, Pascin estava longe. Em junho de 1914,
dois meses antes da declaração de Guerra, ele havia
deixado o ateliê que ocupava na rua Joseph-Bara,
número 3, lá mesmo onde viviam Zborowski e Kisling. Foi
para Bruxelas e depois para Londres. De lá, partiu para
os Estados Unidos, onde não era desconhecido: John
Quinn comprara algumas das suas obras para o Armory
Show.
Passou os anos de Guerra entre Nova York, os estados
do Sul e Cuba. Enviava dinheiro regularmente aos amigos
pintores que lutavam nas trincheiras do front. Em 1920,
tornou-se cidadão americano. Seu padrinho foi Alfred
Stieglitz. Em outubro de 1921, voltou para a França.
Foi imediatamente à rua Joseph-Bara buscar as malas
que havia deixado no porão, antes de partir. No pátio do
prédio, cru­zou com aquela que viera ocupar o
apartamento onde ele morava, no último andar: Lucy
Vidil. Ela se tornara Lucy Krogh. Tinha um menino de três
anos. Isso não foi um impedimento. Caíram nos braços
um do outro. O calvário iria durar dez anos.
No Jockey

Flexível, elegante, a senhora L. tinha olhos pequenos e


penetrantes e uma expressão particular. Seus lábios formavam
um sorriso constante, semelhante ao sorriso de uma madona.
Parecia representar um tipo de mulher estritamente
determinado, um pouco misteriosa talvez, mas apesar disso era
charmosa e gentil. Vestida à moda da época, podia-se ver o
contorno exato do seu peito, agradável de ser admirado.
Inegavelmente, ela correspondia, sob todos os aspectos, às
aspirações sentimentais que um homem pode exigir. Ela
correspondia também à sensibilidade sexual de Pascin, um
homem que estava constantemente enamorado.
Georges papazoff

E le a ama loucamente, ela corresponde sem paixão


excessiva. Enquanto Hermine David foi viver em
Montparnasse, Pascin ficou em Montmartre. Ele trabalha,
faz a festa e espera por Lucy. Às vezes ela vem, até
mesmo com frequência, mas não fica. Diz que não pode
deixar o marido e o filho, Guy. Ele implora. Ela rompe. Ele
propõe que continuem a se ver “como amigos”. Ela não
res­ponde. Ele recorre a artimanhas infantis: vai aos cafés
onde ela está, finge que não a vê, dá-lhe um gelo,
aguarda, tem esperanças, para nada. Vai para casa,
manda-lhe um bilhete dizendo que pre­cisa ir à rua
Joseph-Bara pegar algumas coisas no porão, pergunta
que dia seria melhor para ela, diz que não vai incomodá-
la...
Não incomoda: recupera. Não suas coisas, pois deixá-
las lá pode lhe ser útil, mas a mulher. Passam algumas
horas juntos, tal­vez uma parte da noite, depois ela vai
embora. Volta. Ele pede a ela que não o abandone. Ela
vai embora outra vez. Ele volta para Montparnasse ou
para a rua Joseph-Bara. Aluga um quarto no hotel onde
se conheceram dez anos antes e manda-lhe uma carta
para lembrá-la desse aniversário. Oferece-lhe presentes,
promete viagens, lautos jantares, uma vida maravilhosa.
Ela aceita, recusa, vem, se esquiva, posa, cuida do ateliê,
encontra modelos para ele, vai para debaixo dos seus
lençóis, ele fica feliz. Quando ela vai embora, sempre
depressa demais, ele pinta. Se ela promete voltar e não
cumpre a palavra, ele se desespera novamente. Envia-
lhe car­tas dilacerantes. Diz que não pode trabalhar
enquanto espera por ela, que sabe que ela virá, que ela
não está lá. Precisa dela para pintar, para viver. Se ela
decide espaçar as visitas, ele fica desnor­teado, depois
vinga-se quando sai.
Quando sai, ele bebe. Quando bebe, escolhe uma
garota e leva-a para casa. Quando não é uma garota, é
um rapaz. Ao chegar pela manhã, Lucy fica enfurecida.
Pascin, encantado. Ela diz que quando ele bebe faz
qualquer coisa. Ele retruca que bebe quando ela não
está: portanto ela é responsável por sua saúde, cada dia
mais frá­gil. Ela sacode os ombros e pune-o, virando-lhe
as costas. Ele corre atrás dela. Ela para. Volta. Ele a deita
na cama. Quando ela se levanta, o sempiterno pesadelo
recomeça: quando será a próxima vez?
Pascin, esse mulherengo, parece uma criança. Tem
medo do escuro. Quando Lucy está longe, é sempre
noite. Ele torce as mãos, diz que vai morrer. Hermine, sua
mulher, tenta ajudá-lo. Ela tam­bém posa para ele, ela
também cuida das modelos e do ateliê. Ela encontra
sempre Lucy, de quem é amiga. Cada uma ao seu jeito,
as duas mulheres tentam salvar Pascin. Trabalho perdido,
mesmo que ninguém ainda saiba. Pascin paga sempre a
conta, convida o mundo inteiro para suas festas. Está um
pouco mais só, muito mais triste, mas ainda distribui
seus trocados.
Ele sai em grupo. Dele fazem parte Nils Dardel e sua
mulher Thora, que Modigliani pintou alguns meses antes
de morrer; Abdul Wahab, pintor tunisiano que receberá
Hermine e Pascin no seu país; Georges Eisenmann,
comerciante apreciador de jazz; os Salmon, os Cremnitz,
Fatima, Morgan, Claudia, Simone, Aïcha ­as modelos mais
fiéis. E também Hermine. E, principalmente, Lucy, Guy e
Per. Pois ninguém esconde nada de ninguém. Todos
sabem e fecham os olhos. Aqui não há lugar para
escândalo. Em torno de Pascin tudo é embriaguez,
liberdade. O som mais puro das paixões e das loucuras.
Per nada ignora sobre a ligação de Lucy. Nem Guy.
Hermine faz pouco caso. Andam todos juntos no pequeno
carro de Lucy. Vão para o campo. Para a beira do Marne.
Para o Jockey.
É ali que o mundo de Pascin cruza com o de Kiki. Na
es­quina do bulevar Montparnasse com a rua Campagne-
Première. Numa boate inaugurada em novembro de 1923
por um antigo jó­quei, Miller, e um pintor americano,
Hilaire Hiler. Com um só movimento os ianques tiraram o
Cameléon da jogada e tomaram o lugar dele. Alguns
meses antes do Select, que não tardará a abrir suas
portas, eles inauguraram a vida noturna do bairro. De
agora em diante, pode-se cantar, rir e dançar à luz do sol
e das estrelas. O Jockey está lá para isso.
Do lado de fora, índios e caubóis pintados pelo próprio
Hilaire Hiler cobrem as paredes negras; uma multidão na
entrada; limusines estacionadas ao longo da calçada; e
principalmente, milagre da tecnologia moderna, um
anúncio luminoso.
Do lado de dentro, é o faroeste. Um bar, algumas
mesas, uma pista de dança. Música e fumaça. Centenas
de cartazes cola­dos nas paredes. Um deles dá o tom:
“WE ONLY LOST ONE CUSTOMER... HE DIED!”. Mulheres
nuas dançam juntas sem que ninguém olhe. Quando não
é Hiler, é um negro que dedilha as escalas ao piano. Jazz
por toda parte. Shimmy e foxtrote. Os insultos são
trocados em todas as línguas.
Pascin está lá, sentado num canto. Às vezes
acompanhado de Hermine, Lucy, Per. Quase sempre está
sozinho com Per. Estão voltando do Dôme, de uma casa
de banhos, ou de outro lugar qualquer. Às vezes, Pascin
dorme no ateliê para onde acaba de se mudar, na rua do
Val-de-Grâce. Juntos, falam de Lucy. Ou da jovem que
acaba de entrar no Jockey e tenta chegar com dificul­dade
à pista de dança, onde Kiki se apresenta sob aplausos.
Kiki é a rainha do Jockey. Sua voz faz sucesso. Ela
começa seu número depois de Marcelle, que imita as
estrelas americanas, e Chiffon, a quem chamam de
Chiffonette, um metro e cinquenta sobre o salto dos
sapatos, que canta algumas canções de marinhei­ros. Há
também Floriane, alta, grotesca, que se esforça para
dançar direito; e Barbette, um travesti de peruca.
Quando Ben, o pianista negro, anuncia a vez da estrela
do lugar com um trinado do sax, uma sinfonia de
aplausos responde. A sala estimula Kiki com gritos.
Ela começa comportadamente com Nini peau de chien,
depois entoa Les filles de Camaret.
Les filles de Camaret se disent toutes vierges
Les filles de Camaret se disent toutes vierges
Mais quand elles sont dans mon lit
Elles préfêrent tenir mon vit
Q’un cierge, qu’un cierge, qu’un cierge...126

Kiki só canta embriagada. Como ela nunca se lembra


da letra das canções, a moça que foi ao encontro dela na
pista sopra. É para ela que Pascin está olhando. E Per
Krogh também. Deve ter uns vinte anos. É morena como
Kiki, e também tem a cara redonda. Dá aulas de
ginástica.
Chama-se Thérèse Maure, mas prefere que a chamem
pelo apelido que lhe foi dado por Robert Desnos, seu ex-
amante, a quem dava aulas de boxe: Thérèse Treize
(quando ele a chama­va na rua pelo nome as letras se
misturavam, “Thérèse” virava “Treize”). Desse modo,
seus pais não saberão nada sobre as loucu­ras da filha
nesse Montparnasse de tantas liberdades.
Kiki e ela se adoram. Juntas fazem a festa. A primeira
es­quece. A segunda faz as vezes de memória. Não só
sopra a letra das canções, como também funciona como
agenda: é ela quem lembra a Kiki, nos dias seguintes das
festas, que esta marcou vinte encontros à mesma hora.
Baixinho, para que Man Ray não ouça. É ela, tam­bém,
quem dança com a amiga quando os rapazes ficam
muito abu­sados. E, finalmente, também é ela quem, ao
final do espetáculo, ajuda Kiki a subir nas mesas, e a
levanta quando a outra decide andar de quatro – para o
grande prazer dos fregueses que deliciam o estômago e
os olhos ao mesmo tempo: Kiki nunca usa calcinha.
Enquanto o público, eufórico, aplaude com entusiasmo,
Thérèse Treize pega um chapéu e passa pela sala.
“Para os artistas!”, grita.
As moedas caem. E os elogios. Só um lhe interessa:
aquele que fará Per Krogh, quando ela passar perto dele.
Pois ela é grata a Robert Desnos por uma dança com
aquele belo escandinavo cuja mecha de cabelo no rosto
a encanta.
Quando ela se afasta um pouco, Jules Pascin vira-se
para o marido de Lucy e gentilmente observa:
“Essa garota é formidável... Você agrada muito a ela.”
Per sorri, encantado.
“Mazel Tov!”, murmura o búlgaro.
E esboça alegremente um pas de deux.

126 As moças de Camaret dizem que são virgens/ Mas quando estão na
minha cama/ Preferem segurar meu pau/ A uma vela, a uma vela, a uma
vela... (N.T.)
Fotos e mais fotos...

...Eu tentava fazer na fotografia aquilo que os pintores faziam,


com a diferença de que eu utilizava luz e produtos químicos ao
invés de tintas, e isso sem a ajuda da máquina fotográfica.
Man ray

K iki ainda não está fazendo amor com Mosjoukine, seu


amante­-ator russo. Ela ainda não rejeitou os
múltiplos pedidos daquele ministro mexicano que
estaciona seu Hispano-Suiza na frente do Jockey, louco
para levar a diva de Montparnasse primeiro para sua
suíte no Hotel Claridge, e depois para além dos mares.
Ela está de volta de Nova York, onde, oficialmente,
acompanhou um casal que lhe propôs fazer cinema, e
onde representou seu melhor papel: amante do marido.
Com Man Ray o amor não é lá essas coisas. Ele é ciu‐­
mento, ela também. Trocam tapas por qualquer
bobagem. Antes, ela se distraía rabiscando os números
de telefone das mulheres nos caderninhos do fotógrafo.
Quanto a ele, passava às vezes o dia todo emburrado, a
troco de nada. Era o que ela dizia. Foi assim quando ele
pegou uma doença venérea e acusou-a de ser a fonte, o
que a obrigou a arrumar atestados de saúde que eram,
principalmente, atestados de boa conduta... Ou aquela
outra vez em que ele lhe ofereceu dois vestidos de
Schiaparelli, que ela cortou com a tesoura porque
preferia seus próprios modelos aos da alta-costura.
Viviam brigando. Nunca pararam. Jogam tinta ou água
um na cara do outro. Às vezes Kiki escancara a janela do
quarto do hotel e grita:
“Socorro, ele quer me matar!”
Os vizinhos se queixam.
Eles se mudam.
Pouco depois de terem se conhecido, Man Ray alugou
um ateliê extraordinário no número 31B da rua
Campagne-Première. Um prédio construído por
Arfvidsson em 1911. No interior, altas fachadas
envidraçadas, uma escada que conduz a uma pequena
loggia, um banheiro transformado em câmara escura.
Quando Man recebia os clientes, Kiki se escondia na
loggia. Como a vida em comum não era fácil, eles
conservaram o ateliê, mas alugaram um apartamento.
Com banheiro. Kiki passava horas na banheira. Como
agora ela comia todos os dias, foi ganhando peso. E,
milagre dos milagres, os pelos do púbis começaram a
nascer. Ela estava feliz. E tentava desempenhar o papel
de dona de casa.
Com direito a algumas cenas.
Mudaram-se mais uma vez. Para um hotel na rua
Delambre, um outro na rua Campagne-Première, perto do
ateliê. O Hotel Istria.
Foram para lá um mês depois da inauguração do
Jockey. E continuam lá. Tristan Tzara é vizinho deles, e é
o confidente de Kiki, que se queixa da frieza de Man Ray.
No andar de cima, Picabia, quando não está com a
mulher, vem com a amante, Germaine Everling.
Satie, de passagem, compõe a música de um balé que
Pica­bia está montando para os Balés Suecos de Rolf de
Maré.
Marcel Duchamp, que deixou o 37 da rua Froidevaux e
os amigos Matussière, brinca de esconde-esconde com
as mulheres que o procuram e esperam por ele, até na
porta do único banheiro do hotel, no térreo. Há Mary
Reynolds, uma rica americana com quem ele ficou e de
quem agora foge; Fernande Barrey, com quem ele não
ficou, mas de quem ele também foge; Elsa Triolet, que
ain­da não encontrou Aragon e que gostaria de receber
pelo menos um beijo; Jeanne Léger, loucamente
apaixonada, pronta para abando­nar o marido pintor e
ocupar o quarto que reservou no Hotel Istria para ficar
mais perto daquele que não quer saber de mais nada,
ouvir mais nada, absolutamente nada. A não ser jogar
xadrez, o que as amantes suportam com dificuldade, e a
mulher de algumas semanas não suporta de maneira
alguma: ela não o via à noite por­que ele estava
participando de um torneio no Dôme, de madru­gada
porque ele estava dormindo, de manhã porque, ao
levantar, ela o encontrava na cozinha, entretido,
resolvendo diante do tabu­leiro um problema que lhe
provocara pesadelos durante o sono, até o dia em que
ele não conseguiu mover as peças: ela as havia colado
no tabuleiro...
Man Ray às vezes joga com ele. Principalmente no
filme de René Clair, Entracte. Os dois homens estão
sentados frente a frente, diante de um tabuleiro, no
telhado do teatro Champs-Elysées, até que Picabia
derruba as peças com um jato de água bem forte.
Man Ray, que também faz cinema, preocupa-se mais
com a fotografia. Ele agora já frequenta todos os lugares.
A alta sociedade o disputa assim como a boemia que
enriqueceu.
A marquesa de Casati abriu para ele as portas da
nobreza. Ele esteve com ela em 1922. Ela o recebeu com
sua roupa habitual: três metros de cobra viva em volta
da cintura. Falou-lhe de seu amigo Gabriele D’Annunzio,
depois levou-o para visitar o jardim, onde têm lugar as
festas que ela organiza: todos os troncos de árvore são
pintados de dourado. Depois disso, a marquesa voltou
para dentro e pediu ao fotógrafo que começasse seu
trabalho. Man Ray acendeu as lâmpadas. O choque das
culturas provocou um curto-circuito: as lâmpadas
queimaram o circuito elétrico.
Que fazer?
A senhora fez a pose. Sem luz.
Man Ray foi para casa e revelou as fotos. Não ficou
satisfeito com o resultado, o que não foi o caso da
marquesa: ela adorou o movi­mento do seu olhar, que
seguiu um movimento muito involuntário.
“Sabe que o senhor fotografou minha alma?”
Satisfeita, a senhora pagou e depois fez com que se
abris­sem as portas das residências dos amigos. Foi
graças a ela que Man Ray pôde comprar o estúdio da rua
Campagne-Première.
Depois da marquesa Casati, o conde de Beaumont,
grande amigo de Cocteau, convidou o fotógrafo para
imortalizar os convi­dados dos seus grandiosos bailes de
gala. Em seguida, foi a con­dessa Greffuhle, o conde
Pecci-Blunt, o marajá d’Indore, o vis­conde e a
viscondessa de Noailles, que possuíam vários Goya, um
palco de teatro instalado no jardim, grades recobertas de
espelhos pelo lado de dentro, um salão de baile que
podia ser convertido em sala de cinema...
Man Ray também fotografou Picasso vestido de
toureiro, Tristan Tzara em todas as posições do seu
monóculo, Ezra Pound, Sinclair Lewis bêbado, Antonin
Artaud, Phillipe Soupault, Matisse, Braque, Duchamp
fantasiado de Rrose Sélavy, Picabia ao volante do seu
Delage... Ele clicou Joyce no momento em que o escritor
fechava os olhos por causa do brilho das lâmpadas. Fez
os mais belos retratos de Kiki de Montparnasse. Levou
Meret Oppenheim, uma amiga de Giacometti, à casa de
Brancusi e imor­talizou-a nua, com os braços e as mãos
manchados pela tinta de uma prensa de águas-fortes.
Fotografou também o dono da casa, que, ao contrário
dos artistas de Montparnasse, frequenta pouco os cafés
de Vavin. Ele vive em um grande ateliê no Beco Ronsin. A
casa é toda branca: as paredes, o teto, o forno... Nenhum
móvel foi comprado em loja. Troncos servem de bancos.
A mesa, em volta da qual os convidados comem pernas
de carneiro assadas na lareira, é feita com um pé
incrustado no solo, sobre o qual está pousado um imenso
tampo de gesso.
Quando recebeu Man Ray pela primeira vez, Brancusi
pe­diu a ele que lhe ensinasse a sua arte. Acha que só ele
próprio po­deria fotografar seu trabalho. Compraram uma
máquina, um tripé, os produtos necessários para o
trabalho no laboratório... Brancusi construiu um
laboratório para revelação, pintou o exterior de branco e,
durante um jantar em que tocou violino com Erik Satie,
mostrou a Man Ray o resultado das suas pesquisas
fotográficas: clichês flous, pálidos, riscados... Mas ele
estava contente.
Man Ray fotografou toda a sua época e também o final
da época anterior. Captou até mesmo o rosto de Marcel
Proust, a quem, no entanto, nunca encontrara. Ele não
frequentava Cabourg na época em que Philippe Soupault
cruzava com o autor de Em busca do tempo perdido,
naquele hotel à beira-mar onde, todas as tardes, uma
poltrona de cana-da-índia era colocada no terraço; ela
ficava vazia até o cair da noite; então, quando o sol
finalmente desaparecia, Proust sentava-se
cuidadosamente, e falava primeiro do tempo, “como as
inglesas”, ele dizia, depois das suas doenças,
“companheiras queridas”.1Usava um casaco preto, tinha
uma voz lenta e queixosa, um olhar magnífico, a pele
branca, quase de cera, como a dos doentes em estado
grave. Mas, segundo Jean Hugo, “ele só falava para os
duques”.2
Man Ray nunca foi com ele ao bordel, e não obteve
nenhuma confidência de Paul Léautaud que contava – e
escrevia – que houve uma época em que Proust ia de táxi
até a porta de uma casa de prostituição, perguntava pela
dona, pedia a ela que lhe mandasse algumas jovens,
fazia-as subir no carro e sentarem-se diante dele, ofe‐­
recia-lhes leite e as ouvia falar do amor e da morte. (Teria
sido na­quele bordel da rua Mayet, onde Léautaud foi,
certo dia, deixar um gato? Foi recebido pela ajudante da
proprietária que lhe pediu que a seguisse, levou-o até um
quarto redondo onde seis mulheres nuas esperavam, e
disse-lhe: “Escolha seu gato, caro senhor”.)
Man Ray não estava na França em 1914, no Mercure
de France, quando Alfred Valette recebeu uma carta de
Marcel Proust protestando discretamente por ele não ter
publicado nenhuma crítica sobre suas obras anteriores, e
abertamente por ter deixado Rachilde redigir um artigo
no qual ela confessava ter abandonado No caminho de
Swann, que era “como um soporí­fero”, propondo ainda, a
título de compensação, a publicação de um artigo
favorável de Jacques Blanche que tinha saído em L’Echo
de Paris.3
Man Ray certamente não conheceu Henri de Régnier,
se­cretário vitalício da Académie Française, a quem Proust
escreveu no dia 30 de outubro de 1919 para perguntar o
que deveria fazer para obter o grande prêmio da
Académie Française por À sombra das raparigas em flor.
No entanto, foi a ele que Cocteau se dirigiu no dia 19
de novembro de 1922. Pediu-lhe que tirasse uma foto de
Marcel Proust e fizesse apenas duas cópias: uma para a
família, outra para ele, Cocteau. Se Man Ray assim o
desejasse, poderia fazer uma para si mesmo também. O
fotógrafo aceitou. Cocteau acompanhou-o até a
cabeceira do escritor. Este estava deitado sobre uma
cama, vestido e inerte. Marcel Proust tinha morrido na
véspera.
Doutor Argirol e Mister Barnes

O doutor Barnes acaba de deixar Paris [...] Ouvindo o tilintar


aurífero dos dólares que precederam seus passos, a cupidez e a
cobiça surgiam diante dele como uma aparição, seguiam-no,
aborreciam-no, perseguiam-no como fogos-fátuos.
Paul guillaume

C erta noite, Man Ray para seu Voisin diante do Jockey.


Desce, empurra a porta e é imediatamente envolvido
pela música, pela fumaça, pelos risos... Vai tentando
abrir passagem até a pista de dança, onde certamente
está Kiki. Troca algumas palavras com Tristan Tzara, de
gravata e monóculo, que está prestes a se casar: ele
conheceu uma jovem pintora sueca, Greta Knutson, cuja
famí­lia é tão rica que prometeu aos jovens construir para
eles uma casa em Paris desenhada pelo arquiteto
austríaco Adolf Loos.
Naquela noite, Greta não está lá. Tzara está
acompanhado de uma outra herdeira, grande amiga,
muito excêntrica, morena, bela, esguia, facilmente
reconhecível: Nancy Cunard usa nos antebraços uma
coleção de pulseiras de marfim que se chocam e
entrechocam. Dizem que ela foi amante de Aldous
Huxley. Em todo caso, vai ser a de Aragon, que, naquela
noite, também não está presente.
Aïcha, a jovem mulata, modelo preferida de Pascin,
apro­xima-se do americano. Pergunta se não quer que ela
pose para ele um dia desses. Man Ray responde que
talvez, por que não, e pega o cartão de visita que a
jovem tirou da bolsa. Lê: Aïcha Goblot, artista. Sorri e
continua seu caminho. Por onde anda Kiki?
Finalmente ele a vê. Um caubói está lhe propondo uma
dança. Ela recusa. Mais ao longe, a bateria pega no
embalo. É Pascin que está tocando: Man Ray reconhece
seu chapéu-coco e sua echarpe de seda branca. O pintor
gosta de música; às vezes toca tambor ou bumbo. O
americano foi várias vezes convidado para as festas na
casa dele. Várias vezes, também, ele assistiu ali às brigas
entre as modelos. Certa vez, depois de um jantar regado
a bebida, foram quinze até um bordel. Pascin e Man Ray
subiram cada um com uma garota. Estavam bêbados
demais para cometer o menor delito.
Quando finalmente Man Ray consegue chegar à pista
de dança, o caubói enlaça Kiki. Ela o repele. Ele insiste.
Então Man Ray fica zangado. Ele, que é capaz de
perseguir a amante de arma em punho, pega o caubói
pelos ombros, vira-o de lado e joga-o ao chão. Os dois
homens rolam um por cima do outro. Kiki dá um berro.
Todos se afastam para ver e aplaudir. Kiki grita para Man
Ray:
“Acaba com ele! Mata!”
Quando o americano se levanta, ela o beija, orgulhosa
dele.
Depois, volta-se para o caubói desconcertado e cobre-
o de insul­tos. Kiki é assim. Não tem papas na língua. De
manhã, quando lhe perguntam se a noite foi boa, não é
raro ouvi-la responder:
“Perfeita. Trepei um bocado...”
Quando alguém quer saber por que não usa calcinha,
ela responde que, como os cafés não têm banheiro para
as mulheres, basta levantar as saias para fazer lá em
cima, quer dizer, na rua, aquilo que os homens fazem lá
embaixo, quer dizer, nos subsolos.127
Ela não gosta de André Breton. Certa vez, disse a ele:
“Você fala demais de amor, mas não sabe como se
faz!”
A partir de então, o papa do surrealismo a detesta.
Porém Man Ray sempre a defende. Quando lhe
perguntam se ela é inteli­gente, ele responde que a
inteligência dele é suficiente para dois – o que constitui
mais uma presunção do que uma gentileza.
Ele também ficou ao lado de Kiki quando ela teve
alguns contratempos em Villefranche, no Sul. Tinha ido
para lá com a amiga Treize. Certa noite, ela entrou num
bistrô. O patrão quis mandá-la embora.
“Nada de putas por aqui!”, ele gritou.
Kiki pegou uma pilha de pires e jogou-os na cara dele.
Houve uma confusão. O patrão deu queixa. No dia
seguinte, um policial se apresentou no hotel.
“Acompanhe-me até a delegacia.”
Kiki disse que não ia.
O policial voltou com o delegado de Villefranche e
alguns homens. O superior reiterou a ordem do
subalterno. Kiki respon­deu que não estava com pressa.
Como demonstrava isso com afinco, o delegado resolveu
apressá-la. Ela reagiu com insultos e socos. Levaram-na
para a prisão de Nice. Quando Man Ray foi avi­sado,
procurou os amigos. O pintor Malkine pressionou o
promo­tor responsável pelo caso. Fraenkel, amigo de
Breton e médico, passou um atestado dizendo que Kiki
era doente dos nervos. Ao sair do tribunal, Kiki
confessou: “O mais duro foi quando meu advogado me
disse: ‘Diga obrigada aos senhores’.”1
Ela disse. Graças a isso, obteve o sursis. Man Ray, que
viera de Paris para o julgamento, levou-a de volta para o
Jockey. A par­tir daí, Kiki se orgulhava de mais este título
glorioso: passou mais de dez dias na cadeia.
Ela gosta de contar esse feito importante a seus
amigos. Depois de voltar para as profundezas do Jockey,
depois que Man acabou com o caubói abusado, ela passa
de mesa em mesa para contar suas últimas aventuras.
Relata-as a René Clair, a Foujita e a Kisling, que estão
reunidos um pouco afastados da orquestra, não muito
longe de um outro grupo presidido pelo fabricante André
Citroën, com as mãos cheias de dinheiro. Sentado ao
lado, Fernand Léger cuida para que a mulher não arraste
a asa para Marcel Duchamp ou Roland Tual. De qualquer
maneira, sua vigilância não serve para nada: o pintor
conhece os desvios de conduta de Jeanne, perdoa-os, e
sai no tapa com aqueles que falam mal dela. Chegou até
a aplicar um corretivo nos amantes que a tratavam mal;
Thérèse Treize levou umas bofetadas por esse mesmo
motivo.
Sob o olhar da amiga Kiki, Thérèse Treize beija a boca
de Per Krogh. Pascin, que deixou a bateria, observa a
cena. Não fica nem um pouco satisfeito. Ele já sabe que
essa ligação não vai arranjar as coisas: para sua
infelicidade, Lucy tem ciúmes de Thérèse. Vigia o casal e
vai atrás deles quando vão para um hotel do bulevar
Edgar-Quinet.
O búlgaro passa ao longe na sala do Jockey, a partir de
agora menos animada. Cruza com Soutine, que acaba de
entrar com seu amigo, o pintor Michonze, mas não o
cumprimenta. Kiki lembra que Youki Foujita contou a ela
que havia apresentado os dois homens algum tempo
antes. Foi no Select, o único outro lugar de Montparnasse
que fica aberto de madrugada e é reputado pelos seus
Welsh Rarebit128, Soutine estendeu a mão a Pascin e
disse:
“Gosto da sua pintura. Suas mulheres me excitam
muito!”
“Proíbo-o de se excitar com minhas mulheres!”,
exclamou Pascin.
Estava furioso. Soutine, que só pintará um nu na vida,
tomou-lhe as mãos:
“Mas gosto muito do senhor! Gosto muito, muito!”
Kiki deixa Foujita e Kisling. Aproxima-se de Soutine,
seu pobre amigo que ficou rico. Desde os anos da
Guerra, quando abri­gou a jovem por uma noite num
ateliê gelado, Soutine mudou bas­tante. Não sente mais
frio. Não sente mais fome. Não parece com o mendigo de
outros tempos. Agora, ele fuma Lucky Strike de ponta
dourada, usa os ternos com que tanto sonhou, um
casacão quente como a pele e suave como a porcelana.
Um milagre.
Esse milagre tem uma data: 1922; tem também um
nome: Albert C. Barnes.
Barnes é um industrial americano, um pouco médico,
um pouco psicólogo, um pouco altruísta com tendências
paranoicas. Fez fortuna com a produção e a
comercialização de um antisséptico de sua invenção, o
Argirol.
Nasceu na Filadélfia, Pensilvânia. Cresceu num meio
popu­lar, em contato com a cultura negra. Isso dará a ele
o gosto pela ar­te negra, da qual se tornará um esmerado
colecionador. Também é um apaixonado pela pintura
contemporânea, e considera que po­derá ajudar o
próximo por meio da arte.
Na sua fábrica, expôs, primeiro, artistas americanos.
De­pois, interessou-se pela pintura europeia. Antes da
Guerra, enviou um emissário a Paris. Williams James
Glackens, pintor americano, foi encarregado de visitar os
ateliês e as galerias e trazer uma boa quantidade de
obras significativas. Cézanne, Van Gogh, Pissarro, Renoir
e Picasso atravessaram o Atlântico dessa maneira.
Em 1912, depois de ter comprado quadros de Renoir
em Nova York, o doutor Barnes fez ele mesmo a viagem.
Encontrou Ambroise Vollard e foi aos leilões. Gauguin,
Bonnard, Daumier, Matisse, outros Cézanne (entre os
quais Les baigneuses), novos Renoir e Picasso foram se
juntar à sua coleção. Comprou igual­mente alguns Matisse
de Léo Stein. Em 1914, antes da declaração de Guerra,
Barnes tinha adquirido cinquenta Renoir, quinze Cézanne
e vários Picasso. Era só um começo. Bastante promissor.
Em 1922, o colecionador compra uma propriedade em
Me­rion, perto da Filadélfia. Manda construir um museu
para abrigar sua fundação. Esta é primeiro destinada aos
empregados da fábrica que produz o Argirol; eles devem
se instruir e se desenvolver convivendo com o conjunto
dessas obras, inspiradas na arte negra e nas escolas de
pintura mais modernas. Essa generosidade pedagógica é,
eviden­temente, enriquecedora para os operários da
Barnes Company e para todos aqueles que têm o insigne
privilégio de atravessar as portas do museu. É
insuportável para todos os outros. Pois, segundo um prin‐­
cípio que o colecionador já havia enunciado por ocasião
do Armory Show, ele se recusa a emprestar as obras para
que sejam expostas, os quadros adquiridos não devem
deixar a fundação e ninguém tem o direito de reproduzi-
los sob qualquer forma que seja. Assim, desapa­recerá do
olhar dos apreciadores e historiadores um considerável
número de obras que permanecerão inacessíveis por
quase setenta anos. Entre outras, cerca de duzentos
Renoir, vários Cézanne, ses­senta Matisse, numerosos
Modigliani...
Em dezembro de 1922, Barnes volta a Paris. Instala-se
no Hotel Mirabeau, rua De La Paix, e convoca o marchand
que escolheu como intermediário: Paul Guillaume. Este é
um grande especialista em arte negra. Possui inúmeras
obras de Matisse, Vlaminck, Derain e Modigliani. Durante
quinze dias, todas as ma­nhãs, ele vem buscar o
colecionador americano ao volante do seu Hispano-Suiza.
Abre passagem por entre os colegas e as dezenas de
pintores novatos que esperam pelo doutor na calçada do
hotel, com suas pastas de desenho debaixo do braço. Ele
o leva a todos os museus de Paris, aos antiquários, aos
melhores restaurantes. Pa­cientemente, responde às
perguntas ininterruptas que faz o indus­trial sobre as
obras e os artistas contemporâneos, temendo o ins­tante
ritual quando, já de noite, depois do digestivo, Barnes
escor­rega pela poltrona, coloca os polegares sob o colete
e propõe:
“Vamos?”
“Já é um pouco tarde...”
“Você está cansado?”
“Não...”
“Então vamos!”
E Barnes se levanta, tão fresco como se acordasse
depois de uma boa e longa noite de sono, sobe no
Hispano-Suiza e, incansavel­mente, retoma o fio do seu
questionário: por que a arte negra, por que o cubismo,
por que Matisse, por que Picasso, por que Lipchitz?
Ele foi ver o escultor acompanhado de seu mentor. Não
prestou atenção à pobreza do artista, que não tem mais
marchand e não vende nada. Só viu a obra. Informou-se
sobre isso, aquilo, sobre o resto e mais alguma coisa.
Tomou notas. Comprou oito esculturas. Convidou Lipchitz
para almoçar. O escultor mal podia falar de tanta
felicidade. Escondia os buracos da camisa para não
destoar da elegância de Paul Guillaume, dos óculos
dourados, do charuto e das luvas de pele do americano
do talão de cheques. Lipchitz achava que estava no
paraíso. Era só um purgatório.
“Estou construindo um museu”, explicou o doutor
Barnes. “Preciso da sua ajuda.”
Foi durante a sobremesa. Um bolo.
“Quero cinco baixos-relevos para a fachada. Você
poderia fazê-los?”
Era a cereja do bolo.
Assim foi com dezenas de artistas, centenas de
obras...
Geralmente as perguntas vão diminuindo à medida
que eles se aproximam da rua La Boétie, onde fica a
galeria de Paul Guillaume. Recomeçam assim que as
luzes se acendem. Por que os fauves, por que Vlaminck,
por que Kisling, por que Marcoussis?
“Não sei”, gagueja Paul Guillaume.
Está cansado.
“Não sabe? Então diga-lhes que venham. Perguntarei
dire­tamente a eles.”
À meia-noite, Paul Guillaume chama Vlaminck, Kisling,
Marcoussis. Enquanto isso, o doutor vai olhando os
quadros. Certa noite, ele para num quadro de cores
vivas, de formas retorcidas, repuxadas. Separa-o, afasta-
se e observa com mais atenção. É um jovem. Tem uma
orelha monstruosa, um chapéu na cabeça, uma blusa
branca com reflexos amarelos, verdes, azuis.
“O que é isso?”, pergunta.
“Soutine” , responde Paul Guillaume. “Le petit
pâtissier.”
“Conhece o marchand?”
“Zborowski.”
Barnes pega o casaco e se dirige para a porta.
“Vamos lá”, diz num tom decidido.
“Onde?”
“Ver o marchand, ora! Zborowski!”
“Agora? Por que agora?”
“Porque quero comprar tudo. Esse Soutine é um
gênio.”

127 Os banheiros dos cafés parisienses ficam no subsolo. (N.T.)


128 Mistura de queijo derretido servida sobre torradas. (N.T.)
A cruz de Soutine

...Acho que ele é um dos maiores pintores do nosso tempo.


Depois de Goya, não vejo verdadeiramente ninguém que seja tão
extraordinário quanto Soutine.
Chana Orloff

E “le me comprou dezenas de quadros por três mil


dólares!”, exulta Soutine.
“Eu também desenho”, diz Kiki. “Tenho que te
mostrar.”
“Depois disso”, prossegue o lituano, “meu preço dispa‐­
rou como uma Bugatti na pista. Hoje, um quadro vale dez
mil dólares!”
Ela fica olhando para ele. Vai longe o tempo em que
ele lutava para acabar com os carrapatos que invadiam o
ateliê e que, por não encontrarem lugar mais aquecido,
foram se alojar na sua orelha. Tempo em que ele não
tinha nada para comer. Tempo em que andava nu, só de
casacão. Tempo em que, para inventar uma roupa,
passava os braços pelas pernas de uma cueca e transfor‐­
mava o cós em colarinho e a cueca, em camisa.
Esse homem sofreu mais do que qualquer outro. Ainda
so­fre. A comida que ele não podia comprar antigamente
também não pode comer agora. Sonha com os pratos do
seu país, condimentados, arenques, molhos... Mas não
pode engolir nada. Só bismuto.
Apesar disso, ele está irreconhecível. O imigrante
fechado, um pouco rude, que aprendia francês encolhido
nos fundos do La Rotonde, transformou-se. Agora, ele
usa camisas de bolinhas e gravatas coloridas. Como ele
sonhou com essas gravatas. Ninguém nunca o humilhou
tanto quanto aquele colecionador armênio que pediu,
certo dia, que ele o acompanhasse até a praça Vendôme,
a uma loja de luxo que vendia gravatas de seda. Queria
ouvir sua opinião sobre cores e nuanças. Comprou três
dúzias sem pensar em oferecer uma só ao pintor, que o
olhava com inveja, todo encolhido dentro do casaco
rasgado.
Agora ele pode ir à forra. Não só tem meios para ir
também à praça Vendôme, como pode, igualmente,
passar creme nas mãos e sacudi-las diante dele (sabe
que são bonitas). As unhas não estão mais manchadas
pela tinta que se incrustava, quando ele a espa­lhava com
as palmas e com os dedos, depois de jogar fora com
raiva os pincéis que usara. Os cabelos, negros como
azeviche, têm um novo brilho: são cuidados por uma
irmã de caridade, que os escu­rece com unguento. Tem
até um carro com motorista, Daneyrolles. Ele explica a
Kiki que isso tudo não pertence a ele, mas sim a
Zborowski, que ficou rico graças a Barnes e a ele próprio.
O ameri­cano foi à rua Joseph-Bara para ver as obras de
Soutine. Cada vez que o polonês tirava uma de debaixo
da cama, o outro exclamava:
“Wonderful! Wonderful!”
Depois disso, Zborowski abriu uma galeria na rua de
Seine, onde expõe Utrillo, Derain, Vlaminck, Kisling, Dufy
e Friesz. Com­prou uma casa no Indre para onde
costumam ir seus artistas e suas colaboradoras, entre as
quais Paulette Jourdain, que às vezes posa para Soutine
(e para Kisling também).
Quando quer ir para o Mediterrâneo, Soutine chama
Daney­rolles, deita no banco de trás do carro americano
e, no dia se­guinte, está à beira-mar. Ele não gosta de
Paris. Foge das lembran­ças dos antigos infortúnios
evitando os amigos daquela época, assim como os
lugares que frequentava. Critica Modigliani, que, no
entanto, foi o único que o ajudou durante a Guerra.
Zangou-se com Eli Faure, que escreveu o primeiro livro
sobre ele. Não cum­primenta Maurice Sachs, embora este
tenha publicado um artigo elogiando sua obra. Quando
os clientes o reconhecem nos cafés, levantam-se,
aproximam-se e vão falar com ele, vira o rosto osten‐­
sivamente e diz:
“Não o conheço...”
E quando insistem:
“Nunca o vi antes.”
Sai da mesa e vai embora.
Seu orgulho lhe prega peças. Por causa dele quase
perdeu a oportunidade de conhecer os Castaing,
mecenas tão importantes para ele quanto Barnes.
Os Castaing moram em um castelo perto de Chartres,
e gos­tam de pintura. Marcellin cuida da parte artística de
uma revista da qual é secretário de redação. Vai com
frequência a Montparnasse para se encontrar com
artistas.
Certa noite, pouco tempo antes da chegada de Barnes
a Paris, ele entra no La Rotonde. Está com a mulher,
Madeleine. Sou­tine passa. Um pintor sugere aos Castaing
que comprem um dos quadros dele: o russo não tem um
tostão nem nada para comer. Chamam-no. Marcellin
pede para ver seu trabalho. Soutine marca um encontro
com ele na sala dos fundos de um café da rua Cam‐­
pagne-Première. Chega atrasado, com duas telas na
mão. Os Cas­taing olham rapidamente, no escuro,
propõem voltar no dia se­guinte e oferecem uma nota de
cem francos como sinal. Soutine pega a nota e rasga.
“Não estou pedindo esmolas!... E vocês nem sequer
olha­ram o meu trabalho!”
Fica furioso. Os visitantes se retiram.
Algumas semanas mais tarde, Soutine expõe Le coq
mort aux tomates numa galeria perto da Madeleine. Os
Castaing querem comprar. Vão procurar Zborowski. Este
não pode vender o qua­dro: ele pertence a Francis Carco.
O marchand não explica que ele foi dado ao escritor
alguns meses antes, dado e não vendido, pois na época
um quadro de Soutine não valia nada.
Como os clientes insistem, Zborowski corre até a casa
de Carco que, num gesto elegante, devolve o quadro
recusando o dinheiro que o polonês lhe oferece. Os
Castaing o compram. Depois outro, e mais outro. Quando
vão ao ateliê do artista, ficam lá por horas a fio.
Depois, é Soutine quem vai até o Castelo de Leves.
Passa lá várias semanas. Seus novos mecenas o cobrem
de gentilezas. Prin­cipalmente Madeleine, que posa para
ele. Ela fica fascinada por aquele homem que pinta para
se salvar, com uma força e uma ener­gia indescritíveis.
Que procura telas do século XVII, cuja textura é a única
que o satisfaz, pois o pincel desliza sem derrapar. Que
pede, de joelhos, a uma lavadeira cujo retrato está
fazendo que reencontre a expressão que perdeu. Que
pode passar horas, dias inteiros, sobre um detalhe
imperfeito. Que quando pinta exige silêncio e solidão, a
ponto de ninguém poder se aproximar nem falar. Que
acorda de manhã, pede que o carro esteja pronto o mais
rápido possível para levá-lo ao mercado onde tem que
comprar peixes, unicamente pei­xes, pois ele quer pintar
peixes. Que, numa outra manhã, convence Madeleine e
Marcellin a acompanhá-lo até o campo onde viu um
cavalo admirável; o cavalo é uma égua velha, suja,
desconjuntada, que puxa uma carroça de saltimbancos.
“Quero pintá-lo!”, exclama Soutine.
E dá voltas e voltas em torno do animal, quase em
transe. Marcellin Castaing negocia com os artistas. Eles
aceitam fazer uma parada no castelo, em troca de
comida e bebida. Enquanto se espa­lham pelo gramado,
Soutine se afasta com a égua. Depois, pinta uma obra-
prima.
Ele é extremamente exigente consigo mesmo. Recusa-
se a participar de exposições coletivas com medo de
passar desperce­bido em meio aos artistas. Rasga cada
tela que não consegue una­nimidade de opinião, a sua, a
dos Castaing ou a dos amigos.
Segundo Man Ray, quando Barnes comprou as obras
dele, Soutine se embebedou, chamou um táxi e foi
diretamente para o Sul. Sonhava em rever o mar. Foi a
Céret e a Cagnes-sur-Mer.
Dois anos depois da sua volta, ele continua destruindo
sis­tematicamente as obras que pintou quando estava lá.
Quando acha algumas na casa de Zborowski, queima-as.
Se sabe que uma galeria as tem, tenta comprá-las ou
trocá-las por outras mais recentes. Leva-as para casa e
recorta-as cuidadosamente. Vão se juntar a outros
fragmentos que às vezes reutiliza, costurando-os, antes
de integrá-los a novas obras. Na maior parte do tempo,
porém, elas vão parar na lata do lixo. É lá que os
apreciadores – quando não Daneyrolles, agindo a mando
de Zborowski – as recuperam, le­vam-nas até o senhor
Jacques, dono de um bistrô na rua Ma­zarine, que as
recompõe com linha e agulha, restaurando assim uma
tela que será vendida nas galerias.
As primeiras obras visadas são as que datam de Céret.
Mas as outras não escapam à regra. O marchand René
Gimple pendura bem no alto as telas de Soutine, quando
recebe o pintor em sua casa. Nunca o deixa sozinho
numa sala onde houver um de seus quadros.
Soutine destrói tudo, inclusive os falsos, assinados com
seu nome. Seu alvo principal são as obras pintadas no
Castelo de Lèves ou na casa de campo de Zborowski; os
quadros feitos em Montparnasse, nos diferentes lugares
em que morou: bulevar Edgar-Quinet, Passage d’Enfer,
avenida do Parc-Montsouris, rua da Tombe-Issoire, Villa
Seurat (onde viverão Dalí, Chana Orloff, Jean Lurçat e
Henry Miller).
Em 1925, só se interessa pela Carcasse de boeuf . Está
traba­lhando nela no seu ateliê da rua Saint-Gothard. Não
é sua primeira tentativa nesse tema. Por várias vezes ele
voltou do Halles, ou das fazendas em volta do castelo
dos Castaing, carregando perus, patos, coelhos, frangos,
todos sem a pele ou começando a apodre­cer, que ele
representou nas suas telas depois de pendurá-los num
gancho. Mas o boi é diferente. O boi é Rembrandt, que
ele tanto admira. É também aquele açougueiro de
Smilovitchi e o frigorífico onde a criança Soutine foi
trancada por ter pintado imagens icono­clastas. É
finalmente uma extraordinária confissão do pintor:
Numa outra época, eu vi o açougueiro da aldeia cortar o pescoço de uma
ave e tirar seu sangue. Quis gritar, mas ele parecia tão contente que o
grito me ficou na garganta [...] Esse grito, ainda sinto que está lá.
Quando eu era criança e desenhava grosseira­mente meu professor,
tentava fazer esse grito sair, mas era em vão. Quando pintei a carcaça de
boi, ainda era aquele grito que eu queria libertar.1

Soutine foi até La Villette129, comprou um boi inteiro e


pendurou-­o em ganchos no ateliê. Os dias foram
passando. O boi começou a apodrecer. Paulette Jourdain,
tão devotada a Zborowski quanto a Soutine, percorreu os
abatedouros para conseguir sangue que era jogado sobre
a carcaça para reavivar as cores. Soutine a aju­dava: com
o pincel, ele pintava a carne do boi antes de pintá-lo na
tela.
Logo apareceram as moscas. Soutine nem sequer as
via. O odor tornou-se pestilento. Os vizinhos deram
queixa. Certa manhã, o serviço de inspeção sanitária
apareceu. Atrapalhado como sempre com tudo que se
parecesse com um uniforme, o pintor se escondeu. Foi
Paulette Jourdain quem explicou a presença do boi. Ela
conven­ceu os empregados municipais a desinfetarem o
ateliê e pediu que lhe explicassem de que maneira
poderiam evitar a decomposição e o mau cheiro: era só
borrifar a carcaça com amoníaco.
Depois disso, Soutine anda sempre com uma maleta
cheia de seringas. Ele as injeta em tudo aquilo que não
se mexe mais há pouco tempo e que ele quer pintar.

Kiki gostaria de perguntar sobre seus amores, mas não


o faz. Ela sabe que ele já não está tão sozinho quanto
antes. Reencontrou uma mulher de Vilno, um amor da
juventude, Debora Melnik. Corre o boato de que eles se
casaram no religioso e tiveram uma filha. Mas Soutine
rompeu rapidamente essa ligação, e quando lhe
perguntam pela criança afirma que não é o pai e muda
de assunto. Não quer saber disso. Mas ele já não é tão
selvagem quanto antes. As mulheres agora fazem parte
da sua vida.
Em 1937, ele vai se enamorar de Gerda Groth, uma
refugiada alemã judia e socialista. Vai apelidá-la de
Mademoiselle Garde130, pois logo depois do primeiro
encontro ela ficará tomando conta dele por toda uma
noite em que ficou de cama, com dor de estômago por
causa da úlcera. Vão morar juntos na Villa Seurat e
depois em Civry, Yonne. Durante a Guerra, voltarão para
Paris.
Em 1940, mademoiselle Garde foi levada para
Vel’d’Hiv’131 e depois para o Campo de Gurs (ela voltará
milagrosamente para Pa­ris, em 1943). Soutine encontrou
então uma jovem mulher de grande beleza,
extravagante, que lhe foi apresentada pelos Cas­taing
durante um vernissage: Marie-Berthe Aurenche. Ela tinha
sido a segunda mulher de Max Ernst. Foi a última
companheira de Soutine.
Durante a Ocupação, o pintor era procurado pela
Gestapo por ser judeu e apátrida. Passeava por Paris com
a aba do chapéu caída sobre os olhos: achava que assim
ninguém o reconheceria. Praticamente só comia batatas
cozidas e sopas. Estava assustadora­mente magro. Os
cabelos estavam caindo. Para protegê-los, que­brava um
ovo sobre eles e disfarçava a omelete sob o chapéu.
Escondeu-se na rua das Plantes, na casa de amigos de
Ma­rie-Berthe Aurenche. Só saía à noite. Quando a
zeladora o denun­ciou às autoridades da Ocupação, fugiu
para Touraine, e foi para Champigny-sur-Veude. Marie-
Berthe arrastou-o de hotel em hotel até que encontraram
uma casa isolada, onde se instalaram. Soutine estava
cada vez mais doente. Em agosto de 1942, a úlcera se
rom­peu. O pintor foi levado para o hospital de Chinon.
Suplicou que o operassem imediatamente. Marie-
Berthe não deixou: ela queria que a intervenção fosse
feita em Paris, por um especialista. Fretaram uma
ambulância. Esta voltou a Champigny, para que Marie-
Berthe Aurenche recuperasse algu­mas telas. Depois,
foram a outros lugares, onde também havia outras obras.
E foi assim por 24 horas. Quando Soutine chegou a Paris,
ao final dessa viagem lúgubre, seu estô­mago estava
despedaçado. Foi operado no dia 7 de agosto de 1942.
Morreu no dia 9, às seis horas da manhã. Poucos artistas
o acom­panharam até o túmulo no cemitério de
Montparnasse, onde Pascin e suas mulheres esperavam
por ele havia doze anos. No enterro, estavam Picasso e
Max Jacob, com a estrela no peito, antes de tomar o
caminho de Drancy.
Chaïm Soutine repousa num jazigo que pertence à
família Aurenche. Não está sob sua estrela de cinco
pontas: há uma cruz no seu túmulo. É um paradoxo, mas
não é o único. Também se enganaram quanto à data do
nascimento. E, ainda por cima, escre­veram seu nome
errado...

129 Antigo abatedouro de Paris. (N.T.)


130 Garde (enfermeira) é um anagrama do nome Gerda. (N.E.)
131 Vélodrome d’Hiver, em Vincennes (Paris), onde judeus presos
aguardavam a depor­tação para os campos. (N.T.)
Escândalo no La Closerie des Lilas

...Disso resultaram algumas esquisitices que não alarmaram a


família até o dia em que ele se comportou na via pública de
maneira pouco decente: compreenderam então que ele era
poeta.
Louis Aragon

P elo menos uma vez os escritores foram até o La


Closerie des Lilas pela manhã. Certo dia de julho de
1925, Les Nouvelles Littéraires organizam um banquete
em homenagem a Saint-Pol Roux, simbo­lista e católico
que vivia em Camaret. Os surrealistas foram convida­dos:
tinham colaborado para um número de Nouvelles
dedicado ao poeta. Eles desculpam seus vieses religiosos
porque veem nele um certo parentesco com Mallarmé.
André Breton dedicou-lhe Clair de terre. Vinte anos
depois, Aragon prestará outra homenagem à “grande
sombra” daquele que ele chamava de “o Magnífico”.1
Por que não teriam os surrealistas respeitado um
homem que escreveu este verso:
Je m’avoue légion comme les religions et les hérésies, et volontiers je
laisse à l’âne des Sorbonnes les têtus panonceaux de son immuable
opinion.132

Breton e seus amigos estão, portanto, presentes. E não


estão sozi­nhos. Há também Lugné-Poe, diretor do
Theâtre de l’OEuvre, do tempo em que Jarry causou
escândalo com seu Ubu roi, a quem Breton acusa de ter
servido na contraespionagem durante a Guer­ra. Sentada
à mesa de honra, a senhora Rachilde preside o evento.
Breton admite: “A simples menção das palavras mesa de
honra nos deixava fora de nós”.2 Os nervos estão tensos.
A presença de algu­mas pessoas ligadas às letras, que
para os surrealistas não passam de gente sem
importância, não basta para explicar a crescente
irritação. É que, sob os pratos da nobre assembleia, os
agitadores colocaram uma resposta ao embaixador no
Japão, sua excelência Paul Claudel, que acaba de
declarar na Comoedia que o surrealismo e o dadaísmo
são de essência “pederástica”; e lembrou seus brilhantes
serviços prestados durante a Guerra: comprou toucinho
na América Latina para alimentar os exércitos aliados. A
resposta está num panfleto vermelho-sangue, com
palavras não menos sanguinárias:
Resta apenas de pé uma ideia moral, ou seja, por exemplo, que não se
pode ser ao mesmo tempo embaixador da França e poeta. Aproveitamos
essa ocasião para retirar publicamente nossa solida­riedade a tudo que
for francês, seja em palavras ou atos. Declaramos achar que a traição e
tudo aquilo que de uma forma ou de outra pode prejudicar a segurança
do Estado é muito mais con­ciliável com a poesia do que a venda de
“grandes quantidades de toucinho” a mando de uma nação de porcos e
cachorros [...] Escreva, reze e babe; reivindicamos a desonra de chamá-lo
de uma vez por todas de pretensioso e de canalha.3

Como se vê, o ambiente está elétrico. Bastaria um


pequeno curto­-circuito para queimar os fusíveis. É a
senhora Rachilde que o pro­voca. No auge das
manifestações dadá, ela convocava os poilus para tomar
de assalto as fortalezas desguarnecidas e encorajava-os
a corrigir uma juventude tão desrespeitosa. Naquele dia,
ela põe fogo na lenha ao repetir uma frase
germanofóbica que havia citado alguns dias antes,
durante uma entrevista:
“Uma francesa não deveria casar-se com um alemão!”
Não falou muito alto, mas todos puderam ouvir. Isso
atingiu os surrealistas justamente no ponto em que eles
são mais sensíveis, a Alemanha. Primeiro porque um
surrealista, como disse Aragon, sempre dá a mão ao
inimigo, principalmente quando o inimigo é subjugado
pelo Tratado de Versalhes, pelas reparações exigidas e
pela ocupação da região do Rhur – mesmo que ele tenha
assassi­nado Rosa de Luxemburgo e Karl Liebknecht. Há
igualmente outra razão que Breton, levantando-se,
exprime muito calmamente:
“O que a senhora está dizendo é muito ofensivo para
nosso amigo Max Ernst.”
Max Ernst assente com um movimento da cabeça.
Breton e ele partilham várias opiniões. O primeiro se
importa tão pouco com a derrota infligida à Alemanha
quanto o segundo se vangloria com a vi­tória da França.
Foi o bastante para romper com a paz estabelecida.
Atiram uma maçã. Depois outra. Dizem que Breton
jogou um guardanapo na cara de Rachilde, gritando:
“Prostituta de soldados!”
“Ela está enchendo o saco!”, reforça um outro.
Saint-Pol Roux tenta acalmar os ânimos:
“O que é isso... Não se trata uma mulher dessa
maneira! É preciso conservar a gentileza!”
“A gentileza que se dane!”
Pronto. A confusão se espalha. O peixe com molho
serve de catapulta, com seus legumes frescos, os
talheres, o vinho, os copos, os pratos...
Philippe Soupault dá um salto e se agarra ao lustre.
Fica suspenso com as pernas esticadas, batendo em tudo
o que passa. Vindo de uma sala ao lado, Louis de
Gonzague Frick, por sua vez, se joga sobre os
surrealistas. André Breton abre a janela e a quebra. Junta
gente na calçada. Max Ernst coloca as mãos em concha
em volta da boca e berra:
“Abaixo a Alemanha!”
Ao que Michel Leiris responde:
“Abaixo a França!”
“Viva a China!”, responde uma voz.
“Viva os montanheses do Rif!”, grita alguém, em
homena­gem aos berberes de Abd el-Krim que se
revoltam no Marrocos.
No meio da multidão que se formou na calçada, uma
jovem olha na direção das janelas. É russa. Não tem
trinta anos. No vão da janela, ela acaba de avistar um
homem de smoking. Deixou-a sem voz. Porque é bonito.
Porque é de uma elegância impecável. Porque, naquela
confusão de gritos e movimentos, seus gestos con‐­
servam uma calma magnífica.
O desconhecido não a vê. Permanece por alguns
instantes acima da multidão. Quando ele se volta para
defender Max Ernst, ou Breton, ou outro qualquer, pondo
a mão sobre uma penca de bananas que atira na direção
das mesas, Elsa Triolet pergunta a uma das pessoas que
está a seu lado quem é aquele homem. Ninguém sabe, é
claro. A jovem procura um lugar para ver melhor. Na bei‐­
rada do bulevar Saint-Michel, ela avista um banco e
sobe. Olha. Mas o homem desapareceu. A moça continua
procurando. Depois desce e se afasta. Seu coração
dispara: ela sabe que acabou de ver o homem da sua
vida. Aquele que ela procura há tanto tempo.
No interior da Closerie, em meio à confusão, Saint-Pol
Roux continua tentando manter a calma. Em vão. Michel
Leiris volta para a janela e grita novamente:
“Viva a Alemanha!”
Os transeuntes que se juntaram na calçada exigem
que ele desça para se explicar. É quase linchado. Foi
salvo pela heroica chegada das forças da ordem que o
levam até a delegacia para, não menos heroicamente,
cobri-lo de pancadas a portas fechadas (Youki Foujita
afirma que ele foi liberado graças à intervenção de
Robert Desnos junto a Édouard Herriot).
O escândalo foi considerável. No dia seguinte, toda a
imprensa critica os surrealistas, acusados de serem “o
terror do bulevar Montparnasse”. A Sociedade dos
Escritores e a Associação dos Escri­tores Combatentes, de
comum acordo com L’Action Française, pe­dem que o
nome desses senhores nunca mais seja mencionado, a
fim de privá-los do contato com o público.
Não é a primeira vez que os arruaceiros ficam na
berlinda. Mas nunca antes Montparnasse de um modo
geral e o La Closerie em particular tinham visto poetas,
pintores e escritores se enfren­tando por razões assim tão
estranhas à arte.
André Breton assinala: “O que esse episódio” – o ban‐­
quete Saint-Pol Roux – “tem de importante é que marca a
rup­tura definitiva do surrealismo com todos os elementos
conformis­tas da época”.4
Mas há também outra coisa. Na manhã do banquete,
Breton e seus amigos haviam apoiado um protesto
condenando a guerra do Marrocos e o envio de
contingentes franceses contra Abd el-Krim: sete anos
depois do final da “der des der”133 eles pensam em
participar da batalha pela paz. Para além dos gritos e do
tumulto que sacudi­ram as velhas paredes da Closerie des
Lilas, naquele dia de julho de 1925, uma nova realidade
estava surgindo. Paul Fort e suas sombras, que cantavam
e versejavam rindo, estão cada vez mais distantes a
partir de agora. Sob a liderança dos surrealistas,
Montmartre e Montparnasse se preparam uma vez mais
para mudar de história. Os poetas descobrem uma nova
prosa: a política.

132 Eu me confesso legião como as religiões e as heresias, e de bom grado


deixo para o asno das Sorbonnes as estúpidas insígnias de sua imutável
opinião. (N.T.)
133 A Primeira Guerra Mundial (dernière des dernières: última das últimas).
(N.T.)
Pequena geografia surrealista

Pai nosso que estais no céu, ficai aí mesmo.


Jacques Prévert

O teatro surrealista se apresenta em vários palcos. Uns


ficam no café, outros na casa de Breton, outros na rua do
Château, no XV arrondissement. O lugar predileto desses
senhores (fora Simone Breton, as mulheres são raras, e
estão sempre caladas) são os bis­trôs. Não os balcões,
mas as salas do fundo, onde as mesas podem ser
reservadas. Vão para lá em horas determinadas, como no
escri­tório. Marcam encontros, jogam tarô, fazem o jogo
do retrato, das perguntas e respostas (trata-se de
responder a perguntas desco­nhecidas)... É lá que fazem
suas enquetes, principalmente pergun­tas íntimas sobre a
sexualidade ou as particularidades de cada um, que
quase sempre provocam brigas e tensões. A imprensa é
anali­sada, os acontecimentos, comentados, as contas,
cuidadosamente acertadas, raramente com
tranquilidade... Os amigos são convida­dos para tomar
um aperitivo, ao meio-dia ou às sete horas. Às vezes são
os candidatos à adesão que fazem o teste de admissão.
Breton está sempre presente, e Aragon, quase sempre.
É o único com quem o pai do Manifeste fala com
respeito, e talvez com admiração. Um é propenso a
cóleras homéricas, o outro nunca perde a serenidade.
Esse notável sangue frio é muito útil nas esca­ramuças
verbais.
Bebem grenadines porque gostam da cor, ou então
bebidas alcoólicas raras, porque gostam dos nomes: Pick
me Hup, Kees me Quick, Omnium cocktail, Dada cocktail,
Pêle-mêle mixture, Amer Picon, Porto Flipp, Pastis
Gascon, Mandarin-Curaçao... Le Chambéry-fraisette tem
uma qualidade suplementar: foi elo­giado por Apollinaire
em L’hérésiarque & Cie.
Cada um paga a sua conta: é uma regra imutável.
Breton, que ficou rico por conta dos vários quadros
comprados nas vendas de Kahnweiler e vendidos
segundo as necessidades, está sempre preocupado com
o dinheiro dos outros. Paul Eluard também tem muito
dinheiro, mas é, por assim dizer, o único. Os restaurantes
escolhidos estão, portanto, ao alcance de todas as
carteiras.
Outra regra: a assiduidade. É quase obrigatória.
Aragon é malvisto quando prefere os braços e os
braceletes de Nancy Cunard aos fortes abraços dos
amigos. E, se gostam de olhar as fotos de Gala nua, que
Eluard mostra com frequência e satisfação, lamentam
abertamente suas ausências, tenham ou não uma justifi‐­
cativa: sabe-se que ele ama sua Gala, que gosta tanto
dele quanto de Max Ernst, que a ama tanto quanto gosta
de Eluard, que não se incomoda com o ménage à trois,
desde que sua parte esteja garan­tida. Mas em todos os
casos, quando Breton convoca, nenhuma desculpa
justifica a ausência, principalmente se ela é reincidente.
“O papa” reina soberano sobre a assembleia dos fiéis,
vigiando sua tropa com o olhar penetrante. Ele está no
centro de tudo. Firme, empertigado nos seus ternos
escuros – quase sempre verde-gar­rafa –, os cabelos
ondulados penteados para trás, ele conta os pre­sentes e
anota as ausências. Quando uma mulher se apresenta,
levanta-se e beija-lhe a mão. É assim que o beija-mão vai
se tornar um ritual surrealista.

Onde eles se encontram? Na época dadá, era no La


Source, no bule­var Saint-Michel, próximo ao mesmo
tempo do Val-de-Grâce, onde estavam Aragon e Breton, e
do Hôtel des Grands Hommes, onde este último morava.
Foi na Source que Breton mostrou ao melhor amigo,
Aragon, os dois cadernos de Champs magnétiques, dos
quais Littérature iria publicar os três primeiros capítulos.
Foi lá também que Louis Aragon, autor de Anicet ou le
panorama, decidiu não ma­nifestar essa pequena mágoa,
que certamente o incomodava, de não ter participado
dessa experiência fundadora porque estava no front.
A compensação veio pouco depois, quando o grupo
trocou a Source por esse ponto alto do dadaísmo, e
depois do surrealismo, que foi o café Certà, na Passage
de l’Opéra, número 11, escolhido exata­mente “por ódio a
Montparnasse e a Montmartre”.1 Breton, Tzara e Aragon
recebiam ali os candidatos à adesão e outros amigos do
grupo, como Marcel Duchamp, Max Ernst, Jean Arp ou
René Crevel, jovem, bonito, frágil, sempre à beira da
revolta ou do entusiasmo.
O café Certà permitiu que Aragon enchesse um pouco
os bolsos numa época em que estavam
desesperadamente vazios: seu amigo Soupault
encomendou a ele um texto sobre a Passage de
l’Opéra134 (incluído em Le paysan de Paris) para La
Revue Européenne, da qual era chefe de redação.
Nos anos 1920, depois que Breton se mudou para a
rua Fontaine (no final da praça Blanche), o grupo passou
a se reunir na casa do seu fundador, ou então no Cyrano,
bulevar de Clichy. Ficaram ali até a chegada de Buñuel e
Dalí, em 1929.
Quando atravessavam o Sena, os surrealistas iam ao
café da Mairie, na praça Saint-Sulpice. A partir de 1928,
seguindo o rastro de Man Ray, Aragon e Desnos, foram
para o La Coupole, também frequentado pelos pintores.
Artaud e muitos outros permaneceram fiéis ao Dôme e
ao La Rotonde. Mas todos passaram por duas casas de
Montparnasse que foram os pontos altos do surrealismo
da margem esquerda.
A primeira ficava na rua Blomet, próximo a Vaugirard.
Eram três construções no meio de um jardim malcuidado.
Em 1922, André Masson e Joan Miró foram morar lá. Os
dois pintores haviam se conhecido em Montmartre, no
grupo de Max Jacob. O espanhol cruzara com Picabia, e,
portanto, com a cultura francesa, em Barcelona. Chegou
a Paris em 1919.
Masson tinha sido ferido durante a Guerra. Esta tinha
lhe deixado uma sequela maior: passou uma temporada
num hospital psiquiátrico. Quando saiu, foi viver na
miséria. Como Miró. Tra­balhou como entregador,
figurante, revisor no Journal Officiel. Em 1922, Max Jacob
apresentou-o a Kahnweiler. Este logo lhe propôs um
contrato. Graças a esse dinheiro inesperado, Masson se
insta­lou na rua Blomet, com a mulher e a filha. Ao
mesmo tempo que Miró, sem que os dois pintores, assim
diz a lenda, que no entanto eram amigos, tivessem
sabido que estavam se mudando para o mesmo lugar.
Em 1924, levado por Robert Desnos, Breton passa pela
rua Blomet. Encontra Masson, que o manda ver Miró.
Logo no pri­meiro dia, aquele que tomou o lugar de dadá
compra Terre labourée. Em seguida, adquire outras telas,
cujas reproduções ele publica em La Révolution
Surréaliste. Para ele, Miró é incontestavelmente um dos
seus.
Em novembro de 1925, a maior parte dos grandes
nomes do surrealismo está impressa num convite para o
vernissage de uma exposição do artista, na galeria
Pierre, rua Bonaparte: Breton, Aragon, Soupault, Naville,
Eluard, Vitrac, Crevel (que, depois de ter seguido dadá,
ligou-se definitivamente a Breton), Leiris, Max Ernst... O
vernissage aconteceu à meia-noite, como era de praxe
na Galeria Pierre para as manifestações do grupo. Miró
está presente, é claro. O espanhol não se opõe ao apoio
dos surrealistas. Com uma condição: que possa ficar à
distância, se assim desejar.
Masson é o mais entusiasmado. Fornece regularmente
dese­nhos para a revista de Breton. Permanecerá fiel a
ele até 1928, data em que se afastará do autoritarismo
do “chefe” – o que, como acontece com muitos outros,
provocará sua exclusão.
Durante os primeiros anos, grandes e pequenos
surrealistas passam então pela rua Blomet: Leiris,
Artaud, Roland Tual, Bataille (que esteve próximo ao
movimento sem nunca ter aderido a ele), Limbour,
Aragon. Eles leem, bebem e fumam ópio. E não são os
únicos. Aqueles que, em 1926, substituirão os primeiros
morado­res vão usufruir dos mesmos prazeres, com o
mesmo entusiasmo: o escultor André de la Riviere, o
pintor Georges Malkine e o poeta Robert Desnos.
Este não está mais apaixonado por Thérèze Treize, mas
por Yvonne George, uma atriz belga que canta nas horas
vagas e exige que seu cavalheiro (provavelmente em
transe) lhe dê os fortifican­tes necessários. Desnos
obedece, aproveita para também experi­mentar, divide
com o amigo Malkine, que ama Caridad de La­berdesque,
dançarina.
Quando não está dormindo – ou não está fingindo que
dorme –, Desnos vai ao Bal Nègre: foi ele quem
contribuiu para o sucesso dessa grande festa que reunia
todas as tendências. Muitas vezes também ele sobe em
direção à rua da Gaîté, perto do cemité­rio de
Montparnasse. Pega a rua do Château, atrás da estação
de trem, que vai dar não muito longe da antiga cantina
de Marie Vassilieff. Para no número 54. Empurra um
portão e se acha diante de uma casa de um andar que
antes serviu de entreposto para a venda de peles de
coelho. Sobe alguns degraus e entra numa gran­de sala
decorada com uma enorme tapeçaria de inspiração
cubista, feita por Lurçat. Espalhados pelo chão, estão
almofadas e esparsos objetos conseguidos no Mercado
das Pulgas ou nas latas de lixo das redondezas.
Contra a parede do fundo está apoiado um móvel
estranho: é alto e inclui um armário, um viveiro com
areia e cobras vivas, um toca-discos de verdade, movido
a eletricidade, e, no alto, aci­ma de tudo, uma gaiola com
ratos brancos. Do outro lado, foi cons­truída uma loggia,
que abriga os amigos que estão de passagem, isto é,
geralmente Benjamin Péret. Nessa loggia, na noite de 6
para 7 de novembro de 1928, a vida de Louis Aragon,
que ainda vive um tumultuado romance com Nancy
Cunard, mudará completa­mente para sempre.
Atrás de uma porta fica o discreto ateliê de um dos
três mo­radores do lugar, um homem alto, de topete: o
pintor Yves Tanguy. Na maior parede da sala comum, ele
pintara um Cristo sanguino­lento, que apagou depois que
levou um choque ao descobrir, de dentro de um ônibus, a
pintura de De Chirico. A partir daí, ele abandonou o
expressionismo por obras muito mais iconoclastas cujas
reproduções são publicadas pela revista La Révolution
Surréaliste.
No primeiro andar vivem os dois outros moradores da
casa. Por enquanto Marcel Duhamel ainda não criou a
Série Noire. É dono de um hotel. Como é o mais rico do
trio, é ele quem financia as obras de reforma da casa.
O último do pequeno grupo já usa aquele boné que se
tor­nará legendário, assim como a ponta de cigarro no
canto da boca. Escreve roteiros de cinema que são
recusados (não por muito tempo), canções em parceria
com Desnos que oferecem a Kiki, que não as quer, pois
acha que são inteligentes demais para ela.
Trabalha como figurante nos filmes dos amigos.
Frequentou pouco a escola, a não ser para matar as
aulas. Aos dezesseis anos, foi trabalhar no Bon Marché,
onde aprontava. Mandava entregar notas de compra
falsas a clientes de verdade, ou então preparava os reló‐­
gios da loja para que tocassem todos ao mesmo tempo,
se possível nas horas de maior afluência. Como ainda
não tinha se casado com Simone, fazia a corte a uma
jovem vendedora que trabalhava um pouco mais
distante; os pais a defenderam contra o agressor, que
teve de correr pela calçada do Bon Marché, perseguido
por dois policiais que tentavam alcançá-lo.
Fez o serviço militar em Meurthe-et-Moselle e depois
em Constantinopla, o que lhe valeu o encontro com seus
grandes ami­gos Duhamel e Tanguy; este havia tentado
em vão ser reformado engolindo aranhas vivas.
O autor de Paroles cruzou com o autor de Corps et
biens em um café de Montparnasse. O primeiro estava
prestes a agredir um indivíduo que falava alto demais, e
o segundo, a defender a víti­ma, de punhos erguidos.
Florent Fels, que lá estava, apresentou os dois brigões:
Robert Desnos e Jaques Prévert.
Guardaram as luvas de boxe e trocaram apertos de
mão. Prévert levou Desnos até Tanguy e Duhamel.
Tornaram-se amigos. Logo descobriram um ponto
comum: nasceram os quatro em 1900. Quando se
conheceram, ainda não tinham 25 anos.
Foi assim que se deu a junção entre a rua Blomet e a
rua do Château, e depois entre Montparnasse, na
margem esquerda, e a rua Fontaine, na margem direita.
Para a grande felicidade de um surrealismo que acabara
de adotar esse nome, e que não será pra­ticado da
mesma maneira pelo papa e pelos arruaceiros.

134 Entre 1786 e 1860, foram construídas cerca de cinquenta galerias


comerciais em Paris, chamadas primeiro de “passagens”. Muitas foram
demolidas, entre elas a Passage de l’Opéra, em 1920, o que suscitou o texto
de Aragon. (N.T.)
Os gazeteiros da rua do Château

Na maior parte do tempo, ficamos zanzando por Montparnasse,


esse eterno parque de diversões...
Marcel Duhamel

A primeira vez em que a turma de Prévert foi à casa de


Breton, tinham cheirado uma boa dose de cocaína para
se sentir melhor. E todos ficam tão à vontade que voltam
todos os dias, e todos os dias os outros também vêm à
rua do Château. Aragon, Queneau, Max Morise, Michel
Leiris... Este, no primeiro dia, senta-se muito ereto, pega
uma garrafa de gim, esvazia-a, fica cada vez mais ereto,
cada vez mais impenetrável, cada vez mais mudo.
Fará isso de novo.
Quando Benjamin Péret chega, ele pega o acordeão,
toma fôlego e estica bruscamente os braços – de tal
maneira que o ins­trumento se parte ao meio.
Não fará isso de novo.
Fará melhor do que isso.
O número 8 de La Révolution Surréaliste1 imortalizou-o
no seu esporte favorito: a caça ao padre. Péret, de
camiseta, interpela um eclesiástico que passa pela rua. A
foto tem a seguinte legenda: “Nos­so colaborador
Benjamin Péret ofendendo um padre”. Isso tinha sido em
Plestin-les-Grèves, perto de Lannion. Foi Marcel Duhamel
quem tirou a foto. Ele estava viajando em companhia dos
Prévert para ir buscar os Tanguy e levá-los à casa que
Masson havia alugado em Sanary. Tinham atravessado
Pontoise em grande velocidade, com os vidros das
janelas do Torpédo abaixados para que Péret pudesse
assustar os pedestres gritando e atirando com um
revólver, do qual ele usava e abusava tanto quanto
Alfred Jarry vinte anos antes.
Masson conhece bem os excessos de Péret. Quando o
pintor morava na avenida de Ségur (foi antes da rua
Blomet), Péret vinha vê-lo todos os dias. E todos os dias,
durante duas semanas, a mesma cena se repetia,
imutável. Péret passava por uma casa onde havia, no
térreo, uma janela aberta, um zelador, a mulher e três
crianças, um prato fumegante sobre a mesa. Ele se
debruçava no peitoril da janela e fazia essa amável
pergunta à família que estava almoçando:
“Então, a merda está boa?”
Ele mesmo não tinha comido nada desde a véspera ou
a antevéspera.
Depois de meditar durante duas semanas, o valente
defensor dos valores familiares ofendidos tomou
coragem, limpou a garganta e, quando o inconveniente
apareceu, passou ao contra-ataque:
“Boche imundo!”, murmurou.
E fechou a janela com força para evitar o revide.
Péret admira Breton, que agradece. Ele nunca o
contradiz e sempre o defende. A não ser quando o abade
Gegenbach senta-se ao lado dele. Imediatamente Péret
se levanta e o esbofeteia. O homem da batina se retira.
Por mais que Breton repreenda seu surrealista mais fiel,
não adianta: Péret não compreende. Pouco importa que
Gegenbach tenha aderido ao movimento (mais tarde irá
execrá-lo publicamente), que esteja apaixonado por uma
atriz do Odéon, que dance de batina no Jockey, que beba
no La Rotonde com uma garota de cada lado no colo, que
frequente os bordéis e faça retiro em Solesmes quando
não tem mais um tostão... Ele continua sendo um padre.
No número 5, La Révolution Surréaliste publicou uma
foto do abade e da sua namorada. Péret não pôde
impedir. Procura então tirar sua desforra na rua. Assim
que percebe a sombra de uma batina, perde a cabeça.
Quase sempre Prévert está com ele. Ele também não
perde um escândalo.
Ele e toda a turma da rua do Château estão, certa
noite, no bulevar de Clichy. Aguardam a hora da sessão
do cinema. A cal­çada está cheia de gente. Como chove,
há muitos guarda-chuvas. Breton detesta guarda-chuvas.
Principalmente quando atrapalham seu caminho. Irritado,
pega um das mãos de um dos transeuntes, encaixa-o
entre os braços estendidos e parte-o ao meio sem es‐­
forço. Prévert acha engraçado, e faz o mesmo. Desnos
não quer ficar atrás: quebra um terceiro guarda-chuva.
Tanguy, Péret e Duhamel tomam conhecimento do
assunto e também o fazem... As pessoas protestam.
Breton dá um tapa em alguém. Chega a polícia. Vão ter
de se render à evidência: o filme ficará para outro dia...
Num outro dia, justamente Prévert, Duhamel e Tanguy
estão na praia, na Bretanha. Prévert banca o
exibicionista. Depois do aten­tado ao pudor ele se
esconde em um restaurante, onde os pratos são finos e
os vinhos, encorpados. Na sobremesa, para se divertir,
abre as janelas e insulta as pessoas que se juntaram na
praça. Tem sorte de não ser linchado. O milagre se
reproduz alguns dias mais tarde, quando quebra a cara
de um ciclista que o derruba por distração.
Nessas condições, é melhor voltar para casa.
Para os vizinhos, o número 54 da rua do Château é um
bor­del. Como explicar de outra maneira os constantes
vaivéns?
Durante o dia os moradores não trabalham. Bebem nos
ba­res de Montparnasse. Vão ao Ciné-Opéra. Desnos,
digamos, uma vez por dia. Prévert quase tanto. Pierrot,
seu irmão, que é proje­cionista numa sala da margem
direita, deixa-o entrar com os ami­gos. Eles veem e
reveem Le Golem, Nosferatu, Os irmãos Kara­mazov... À
noite, quando voltam, leem L’histoire de l’oeil, de
Georges Bataille, publicada clandestinamente.
São sempre muitos. Onde três alugaram, dormem
quinze. Antes de dormir, ouvem discos de jazz
americano. Bebem, fumam, jogam jogos estranhos.
Que jogos são esses?
Instalam-se em volta de uma mesa, diante de pedaços
de papel. Distribuem os papéis entre eles, escrevem sem
que os outros vejam, dobram, passam adiante. É o jogo
dos pedacinhos de papel, que Tzara começou e Prévert
cultivou: foi ele quem encontrou o começo da famosa
frase que deu nome ao “cadavre exquis”:
Le cadavre exquis boira du vin nouveau.135

Os pintores também brincam, compondo equipes nas


quais os poe­tas também pegam nos pincéis: Man Ray –
Miró – Morise­ – Tanguy; Breton – Duhamel – Morise –
Tanguy...
Falam também de política. Aproximaram-se da revista
Clarté, fundada em 1919 por Barbusse, e que se tornou
mais radi­cal em 1924. George Grosz acha que nessa
França “intelectual­mente enfraquecida, quase
moribunda”, onde “Romain Rolland, citado como sendo o
arauto de uma humanidade melhor, é um radical tão
fraco quanto Herriot no domínio político”2, o grupo Clarté
é o único polo de radicalismo interessante. Mais tarde, a
revista será o órgão da oposição de esquerda ao PC. Por
ora, to­mou a liderança no combate contra a guerra no
Marrocos. Muitos intelectuais aderem a essa luta. Entre
eles os surrealistas. Mas Clarté tem um problema com o
comunismo. Em 1926, em La Révolution Surréaliste,
Breton publicou um longo texto, Légitime défense,
reagindo contra os ataques de que são alvo os
intelectuais no jornal L’Humanité136, e respondendo a
uma pergunta feita por Pierre Naville: os surrealistas
estão preparados para a Revolução de fato? Sim,
responde Breton; mas a revolução do espírito é tão
essencial quanto a Revolução de fato; os membros do PC
não são os únicos agentes da Revolução.
A grande interrogação daqueles anos é saber se os
surrealis­tas vão pegar o bonde do comunismo. Prévert
está em dúvida: “Serei preso”.3 Ele não precisará do
partido para criar o grupo Octobre, em 1929, e
apresentar sua trupe de teatro nos subúrbios operários.
Leiris e Tanguy hesitam. Artaud e Desnos recusam.
Breton, Aragon, Péret, Unik e Eluard dão o passo decisivo
em janeiro de 1927 (Breton, decepcionado com a política
cultural do partido, vol­tará rapidamente atrás). Eles
publicam um texto, Au grand jour, no qual explicam sua
decisão. O que provoca uma nota ácida de Paulhan
publicada pela NRF, e uma primeira resposta de Breton
tratando-o de “veado francês da pior espécie”. Paulhan
manda os padrinhos Marcel Arland e Francis Crémieux a
fim de organizar o duelo. Mas Breton tira o corpo fora.
Paulhan responde com um bilhete dirigido aos dois
amigos e publicado na NRF:
Caros amigos,
Obrigado. Não os incomodei em vão; conhecemos agora a covardia
acobertada pela violência e pela sujeira desse personagem.4

Ao que Aragon já havia anteriormente respondido,


tomando a de­fesa de Breton, numa carta bem
surrealista:
Caro senhor,
Há diversas espécies de cretinos. Sempre pensei que os piores eram os
anônimos. O senhor é um especialista do anonimato [...] Mas no fim o
senhor não passa de um babaca, não posso me contentar em deixar que
o diga. Quero definitivamente encher seu saco.
P.S. Anda depressa com os padrinhos, vou fugir depois de amanhã.5

Crevel também se filia. Ficará por muito tempo. Vai


escrever nas revistas comunistas, participará de ações
militantes. Em 1935, por ocasião do Congresso
Internacional de Escritores pela Defesa da Cultura, ele
tentará desesperadamente aproximar os comunistas e os
surrealistas. Não vai conseguir. Brigará com Breton e
contará a briga, aos prantos, a Salvador Dalí.6 Alguns dias
mais tarde, to­mado pelo desespero, minado pela
tuberculose, se suicidará.
Quanto a Péret, já está lá desde 1926. Além disso,
trabalha na composição tipográfica do L’Humanité, o que
lhe rende alguns tro­cados. Deixará o PC quando as
incompatibilidades entre comunismo e surrealismo lhe
parecerem intransponíveis. Em 1936, na Espanha,
apoiará os trotskistas do POUM (Partido Operário de
Unificação Marxista). Assim como Pierre Naville, preso
em 1926, diretor de Clarté no mesmo ano, expulso do
partido em 1928, dirigente da seção francesa da IV
Internacional, trotskista.
Na margem direita, o surrealismo rima melhor com
trots­kismo do que com comunismo. Na margem
esquerda, o surrea­lismo rima é com anarquismo. É
alegre. Mais festeiro. Mais libertá­rio. Menos fundado em
princípios, menos preocupado com a linha, com menos
tendência às excomunhões. Mais flexível. Na rua do
Château, o espírito do antigo Montparnasse ainda
perdura. É claro que o dinheiro, as luzes, a modernidade
tornaram-no mais pesado. Mas é clara a influência de
Jarry e Apollinaire sobre Des­nos e Prévert. Breton está
mais para Matisse. Mesmo quando faz arruaças, não
perde a linha. Mantém o olhar atento sobre suas pró­prias
fronteiras. A diferença essencial, pelo menos até 1928, a
ra­zão pela qual Montparnasse continua sendo
Montparnasse e não vai se confundir com a rua Fontaine,
é que, em volta de Prévert, os gazeteiros são reis. Na
escola da rua Fontaine, os primeiros da tur­ma se levam a
sério.137

135 O cadáver refinado beberá vinho jovem. (N.T.)


136 Órgão oficial do PC. (N.T.)
137 O título deste capítulo e a alusão aos gazeteiros referem-se a um dos
poemas mais conhecidos de Prévert: Le cancre (o aluno que “mata aula”,
que não presta atenção) [“... Ele diz sim àquilo que ama/ Ele diz não ao
professor”]. (N.T.)
Ajustes de contas

...O atual resultado da minha inspeção benévola é que Morise


passou o tempo todo batendo à máquina, e Vitrac não fez
absolutamente nada...
André Breton

C erto dia de 1928, Youki Foujita está bebendo no La


Cigogne, na rua Bréa. Numa mesa ao lado, um
homem de smoking ri de um jeito que irrita a jovem
mulher. Uma mecha de cabelo lhe cai sobre o olho. Ele
está brincando com os canudinhos. Como ela parece
interessada pelo que o homem está fazendo, ele vai até
a mesa dela e lhe mostra o último brinquedo dos
surrealistas: junta as embala­gens de canudinhos até
formar uma aranha de papel. Depois deixa cair uma gota
d’água em cima: a aranha mexe as patas.
O homem dá uma gargalhada e se apresenta: Robert
Desnos.
Youki reage friamente.
No dia seguinte, ela está tomando um aperitivo com
Bre­ton, que é mais ou menos seu conhecido, pois já
cruzou com ele nos bares de Montparnasse. Conta o que
aconteceu e confessa que não gostou de Desnos.
Imediatamente Breton chama o garçom, pede uma folha
de papel e escreve uma carta severa ao amigo sur‐­
realista que não sabe se comportar nos cafés e muito
menos junto às senhoras. Youki tenta impedir o Bicho-
papão de escrever e de mandar a carta. Não adianta:
Breton está louco de raiva.
Alguns dias depois, em outro café, Youki vê novamente
Desnos. Convida-o a sentar-se à sua mesa e pede
desculpas por ter falado mal dele para Breton. Mas
Desnos nem liga. Está voltando de Cuba, livre,
contente...
Youki convida-o para jantar, naquela mesma noite, na
casa de Foujita, em Montsouris. Tornam-se amigos.
Alguns anos mais tarde, Youki Foujita vai se tornar Youki
Desnos. Breton não será escolhido para padrinho...
A carta indignada enviada a um jovem mal-educado,
de­pois desse encontro no La Cigogne, traduz o rigor do
papa dos poetas, “íntegro e rígido como a cruz de santo
André”, escreverá Salvador Dalí.1 Breton rege a orquestra
com a sua batuta.
Toca suas partituras em múltiplos lugares. Considera,
por exemplo, que o comércio de quadros, que ele mesmo
pratica (assim como Eluard), é uma atividade nobre,
contrariamente à de jorna­lista, exercida por Desnos (que
trabalha no Paris-Soir), Crevel (que é secretário de
redação de Nouvelles Littéraires), Soupault e muitos
outros (em 1944, em Nova York, Soupault cruzará com
Breton, que se tornou jornalista por falta de algo melhor
a fazer para ganhar a vida: Pierre Lazareff contratou-o
para ler notícias no rádio; o apre­sentador se impôs uma
restrição que nunca desrespeitou: ele noti­ciava todos os
acontecimentos, menos o que dizia respeito ao papa).
Aquilo que interessa a Masson, Desnos e aos
frequentadores da rua do Château ou do Bal Nègre, da
rua Blomet, chega pouco e mal aos ouvidos da rua
Fontaine, e é apreciado às escondidas.
O amor puro é considerado uma virtude (Nadja é um
exem­plo), o homossexualismo, um vício. Breton nunca
pensará de outra forma. O número 11 de La Révolution
Surréaliste2 relata as palavras trocadas durante uma
daquelas mesas redondas que reuniam os fiéis em torno
de um problema específico. Naquele dia: “O que você
pensa sobre a pederastia?”. Prévert não via mal nenhum
nisso, nem Queneau, que deplora esse preconceito
contra o homossexua­lismo muito comum nos
surrealistas. Péret, Unik e Breton partem para o ataque.
Principalmente Breton, que considera que, à exceção de
Sade, os homossexuais propõem “à tolerância humana
um déficit mental e moral que tende a se tornar um
sistema”.3
Talvez esse excesso de rigor possa explicar em parte o
des­prezo dos surrealistas por Cocteau. Também justifica
o antagonis­mo entre Breton e Ilya Ehrenbourg, escritor
soviético que vive em Paris, subserviente a Moscou.
O francês reprova o russo menos por ter várias vezes
vi­rado a casaca para agradar a direção do partido do que
por ter es­crito algumas linhas violentas contra os
surrealistas, acusando-os de ociosidade, parasitismo e,
crime dos crimes, de preocupar-se quase exclusivamente
com a pederastia.
Por ocasião da preparação do congresso da Associação
dos Escritores e Artistas Revolucionários, Breton encontra
Ehrenbourg, que está saindo de casa (ele mora em
Montparnasse) para ir com­prar cigarros. Segue-o e o
esbofeteia metodicamente, sem que o outro reaja.
Usando alternadamente o tapa e a palavra, às vezes
os dois, o autor do Manifeste du Surréalisme nunca pega
leve. Na maioria das vezes é difícil evitar seus acessos de
raiva. Esses são quase sem­pre imprevisíveis. Em 1929,
por exemplo, quando ele se divorcia de Simone Breton,
considera crime de lesa-majestade que alguém di­rija a
palavra à ex-mulher. As más línguas dizem até que a
briga com Pierre Naville teria sido desencadeada pelo
fato de a compa­nheira (e futura mulher) deste, Denise
Lévy, ser prima de Simone.
As rupturas com Breton são quase obrigatórias. Elas se
pro­duzem sempre num clima de ódio e de insultos, tão
violento quan­to as paixões suscitadas por esse homem
especialmente carismá­tico. A brutalidade com a qual os
dadaístas e depois os surrealistas provocam o mundo
não está somente voltada para o exterior. Ela se volta
contra eles próprios, como um bumerangue, quando se
trata de condenar ou excluir um membro do grupo (em
1946, no Avertissement pour la réedition du Second
Manifeste, Breton irá lamentar esses “desagradáveis
traços de nervosismo” e “os julga­mentos por vezes
apressados”, feitos por ele mesmo).
Soupault, que no entanto foi um dos elementos
fundado­res, um dos dois pais de Champs magnétiques,
foi descartado em circunstâncias que não ficam devendo
nada às expulsões da grande família stalinista, trinta
anos depois. E assim como tantos intelectuais sentir-se-
ão órfãos depois de terem sido expulsos do partido,
Soupault terá uma depressão nervosa quando ficar sozi‐­
nho, sem o estandarte surrealista para se agarrar.
Ele foi convocado numa noite de novembro de 1926.
Como aconteceu no Processo Barrès, é Breton quem
dirige o ato:
Entrei numa sala relativamente grande, mal iluminada. Percebi que,
como era de costume, os numerosos assistentes formavam um tribunal
presidido, é claro, por André Breton, assistido por Louis Aragon e Max
Morise. A acusação foi lida num tom hostil, até ofensivo. Não esperava
esse tratamento da parte daqueles que até então eu considerava amigos,
que eu me esforçara para ajudar quando passavam por qualquer tipo de
dificuldade. Compreendi rapidamente que aquela “cerimônia”, que me
pareceu insignifi­cante e ridícula, tinha sido preparada com antecedência
para me arrasar. Os organizadores não tinham a menor intenção de me
ouvir. As cartas estavam marcadas.4

De que acusam Philippe Soupault? De não ter


frequentado com assiduidade o Cyrano, onde se
realizavam as reuniões do grupo. De colaborar para
“revistas burguesas” e de praticar uma “atividade
literária desordenada” escrevendo livros contestados. De
recusar a se filiar ao Partido Comunista. De fumar
cigarros ingleses, mais aristocráticos do que o fumo
escuro e operário dos proletários – ci­garros da marca
Caporal.
E Artaud, excluído na mesma leva? De só agir de modo
es­cuso. De ser um irracional. Um metafísico. “Um
canalha”, “uma podridão”. De ter impregnado todo o
número 3 de La Révolution Surréaliste desse caráter
“meio libertário”, “meio místico”.5 que ameaçava levar o
movimento em direções estranhas ao seu funda­dor – o
qual retomou o jornal nas mãos justamente para lutar
contra tais desvios.
Dois anos mais tarde, quando Artaud levará para o
palco Le songe, do “vago Strindberg” (segundo Breton),
no teatro Al­fred-Jarry, ele se tornará um “traidor”,
agindo” com objetivo de lucro e fama fácil”.6 O genial
ator sacudirá os ombros: para ele, o surrealismo tinha
assinado sua condenação à morte ao se ligar ao
comunismo.
Ainda em 1926, Max Ernst e Joan Miró vão para a
berlinda por terem aceitado fazer os cenários de um
espetáculo dos mais conformistas: Romeu e Julieta,
montado por Serge de Diaghilev. Naquele dia, Breton,
Aragon e sua turma estão no teatro. Eles não aceitam
que os dois artistas fiquem ao lado do poder do dinheiro.
Centenas de panfletos insultuosos caem dos balcões.
Não muito distante do palco, Leiris desdobra uma
gigantesca bandeira sobre a qual está escrita uma frase:
“VIVA LAUTRÉAMONT!”. Aragon, ves­tido com elegância,
insulta a multidão, apoiado pelos gritos de Péret e
Desnos... logo abafados pelos apitos da polícia. A noite
aca­ba na delegacia.
Depois é a vez de De Chirico. Adoraram sua primeira
fase, detestam a segunda. Em março de 1928, contra a
vontade do pin­tor, e para concorrer com Léonce
Rosenberg, que está expondo novas telas, a galeria
surrealista expõe suas obras mais antigas. Estas foram
compradas por Breton, no ateliê que o pintor ocupou em
Montparnasse, na Passage d’Enfer, até 1913. Raymond
Queneau se encarrega da execução. Segundo ele, há
duas fases De Chirico: a primeira... e a ruim.

No dia 11 de março de 1929, a rua do Château é palco


de outro ajuste de contas. Não a casa, que os antigos
inquilinos já deixaram para recém-chegados muito mais
ortodoxos (Georges Sadoul e André Thirion), mas o café
em frente. Breton convocou todos os membros próximos
e distantes do surrealismo para refletirem so­bre alguns
temas importantes: a Revolução, a decisão de Stalin
sobre Trotski, as ações comuns...
Os grandes ausentes a essa reunião são Naville,
Artaud, Vitrac, Limbour, Masson, Tual, Bataille, que
preferiram não vir. E dois dos antigos moradores da rua
do Château, Duhamel e Prévert, que o comitê central e
surrealista não se dignou convidar para a reunião, em
virtude de “suas ocupações” ou de “suas ma­neiras de
agir”.7 (Man Ray e Tanguy, apesar de “esquecidos”, virão
assim mesmo.)
Por outro lado, vieram os novatos, que vão para o
banco dos réus. O grupo do Grand Jeu138, Roger Gilbert-
Lecomte, René Daumal e Roger Vailland, reunido em
torno da revista de mesmo nome, é taxado de misticismo
e acusado de preferir Landru a Sacco e Vanzetti (é o que
afirma uma manchete provocadora da revista Le Grand
Jeu); e, finalmente, Roger Vailland publicou no Paris-Midi
um artigo elogioso sobre o chefe de polícia Chiappe. O
elogio é na verdade irônico e debochado. Começa com
uma comparação; Chiappe é como “um avô que enche
os netos de presentes” (que são, evidentemente, os
policiais de Paris) e termina com uma estaca fincada no
coração do “depurador da nossa capital”.8 Mas Breton
não vê nada disso. Vailland é jornalista. Já seria o
bastante para expô-lo à ira surrealista.
No dia seguinte do processo do Grand Jeu, Ribemont­-
Dessaignes envia uma carta de ruptura para a rua
Fontaine: ele não suporta mais essa paixão de Deus e de
seus apóstolos pelos julga­mentos.
E ele ainda não viu nada. Em 1930, Breton publica o
Segundo Manifesto do Surrealismo. Trata-se ao mesmo
tempo de reorganizar o movimento, de lembrar seus
princípios e de um ataque em regra contra “os covardes,
os dissimulados, os arrivistas”, aqueles que traíram e se
comprometeram.
Já se sabia que Masson tinha ciúmes de Max Ernst e de
Picasso, e que, assim como Artaud, pecava por
“abstencionismo social”; já se sabia tudo sobre a
complacência de Desnos; ninguém duvidava de que
Naville (a quem Breton tinha confiado junto com Péret a
direção de La Révolution Surréaliste, pois eram “os mais
avessos a qualquer concessão”)9 tinha entrado para o PC
para sair três meses depois, e conseguir assim uma
publicidade barata, logo ele cujo pai era, na verdade, tão
rico; já se achava que Georges Bataille e Michel Leiris
mereciam ir para o castigo, o primeiro por ter fundado
uma revista concorrente, Documents, da qual o segundo
era secretário de redação, tendo os dois cometido a trai‐­
ção suprema de abrir suas páginas para os renegados
Desnos, Prévert, Masson, Limbour...
A tudo isso, o Segundo Manifesto acrescenta brindes e
mais brindes. Por ele sabe-se que Vitrac, que teve a
infelicidade de escre­ver para o teatro, é um “verdadeiro
porcalhão das ideias”, que Limbour molha sua pena nas
“vaidades literárias”, que Soupault nada mais é senão
“um rato fazendo a volta do ratódromo”, a encar­nação
da “infâmia total”...10
De tudo um pouco e muita bobagem. Para alguns é
demais. Em resposta às diatribes de Breton, Ribemont-
Dessaignes, Vitrac, Limbour, Morise, Baron, Leiris,
Queneau, Boiffard, Bataille, Des­nos e Prévert publicam
um panfleto intitulado Un cadavre. Ele atinge
violentamente André Breton, falso irmão para uns, falso
pa­pa e falso bispo para outros, falso amigo para muitos,
profanador de cadáveres e intelectual profissional para
certas pessoas, polícia e padre para todo o mundo.
Os destruidores de ícones utilizaram o título do
panfleto escrito em memória de Anatole France, em
1924. Retomaram as palavras com as quais o próprio
Breton tinha concluído a “home­nagem”: “não se deve
permitir que esse homem sacuda a poeira depois de
morto”. Essa frase vem escrita acima do rosto de Breton,
cuja testa está cingida por uma coroa de espinhos, e tem
uma lágrima de sangue no canto dos olhos.
Breton, por sua vez, reuniu as tropas antigas e novas.
Para unir aqueles que ainda estão ao lado dele é preciso
um objetivo. Ele o descobriu. Prepara-se então para o
ataque final a Montparnasse. O primeiro tinha demolido a
Closerie des Lilas. O último, cinco anos depois, vai
quebrar e destruir um bar-jantar-ceia-dançante que aca‐­
ba de abrir no bulevar Edgar-Quinet, não muito longe da
rua do Départ e da Gare Montparnasse. Esse lugar de
prazeres noturnos tem a infelicidade de ostentar um
nome que os cavaleiros do conde de Lautréamont não
podem admitir que seja colocado na vitrine de um
estabelecimento de bebidas: Maldoror.
Não estão todos lá, no dia 14 de fevereiro de 1930,
naquela noite de expedição punitiva. Os recém-
chegados, Bufiuel, Giaco­metti, Magritte, Dalí, Sadoul,
Yhirion, ainda não foram para a linha de frente. Há
alguns outros, no entanto, ao lado de Aragon, Péret e
Tanguy. Mas é Breton quem atravessa a soleira do
Maldoror gri­tando que ele é o convidado do conde de
Lautréamont. É ele tam­bém quem dispara a primeira
bateria de copos e pratos que que­bram os vidros da
fachada.
“Os surrealistas estão nos atacando!”, grita uma
senhora de casaco de pele.
Thirion recebe um soco no estômago. Tanguy, uma
tigela de escargots ao champanhe cobertos por um fio de
manteiga fres­ca, e Eluard, um presunto defumado. Ele
logo sacode as pernas, os braços, e a confusão aumenta.
As senhoras, de vestido de noite, e os senhores, de
fraque, correm para os banheiros. René Char atira numa
toalha de mesa. Um suflê espirra seu recheio pelos
tapetes coloridos. Um balde perde seu champanhe, e o
champanhe, suas borbulhas. O barman saca uma fruta
que atinge Aragon no occipi­tal, provocando uma ofensiva
de bordeaux millésimés acompanha­dos de algumas
cadeiras e de uma ou duas mesas. Tudo isso atinge a
porta da cozinha que se despedaça. Aparecem três
cozinheiros. Alguém grita:
“Chamem a polícia!”
Outras garrafas se abrem. Meia dúzia de assados são
lança­dos, acompanhados de insultos bem salgados,
apimentados e en­corpados. Ouvem-se as sirenes. Os
poetas se agrupam. René Char está com a coxa
sangrando, espetada por uma faca de cozinha. A camisa
de Breton está em farrapos.
Os atacantes correm para a entrada, dispersando-se
para deixar passar os policiais. Na confusão geral, Breton
constata que a honra de Lautréamont foi vingada: o
campo do Maldoror está coberto de cacos de copos e de
garrafas, de mesas partidas e sopei­ras quebradas,
gordura, molhos e resíduos gratinados, açucarados
cristalizados e moídos cobrem as paredes.
Os surrealistas desaparecem. Char é levado num táxi.
Os outros vão caminhando ao longo do cemitério. O olho
de Breton brilha com aquela chama encantada que o
anima depois das rixas. Péret esfrega as mãos porque, a
cem metros de distância, na mesma calçada, vem vindo
um padre. Aragon está com o lábio superior ferido.
Abandonando os outros, ele vira na rua Delambre. Chega
ao cruzamento Vavin, dobra à esquerda, passa na frente
do Dôme e do La Rotonde, segue até um restaurante
decorado em grená, que abriu dois anos antes e onde,
desde a noite da inauguração, Elsa esperava sua hora.

138 Grupo literário mais jovem do que os surrealistas e a eles ligados no


princípio. (N.T.)
O Citroën da limonada

Há seis meses vem se acentuando a pressa com que os artistas


estão deixando Montparnasse. Fogem dos hotéis caros, dos
ateliês que só podem servir de estúdios para americanas ricas e
de um certo pitoresco, comercializado pelos painéis publicitários
de quinze boates e por uma série de revistas e jornais locais
movidos pelo interesse.
Roger Vaillant

L a Coupole. Dois mil e quatrocentos metros quadrados


de refei­ções, danças, sedução, calor, encontros, de
disputas para ver quem leva a melhor. No térreo: a
comilança; no subsolo: a agarração; no primeiro andar: a
jogatina.
Em 1926, os senhores Fraux e Lafon, cunhados e
proprietá­rios de um restaurante em Auvergne,
compraram o depósito de madeira e carvão que havia
em frente ao Select. Anteriormente, tinham comprado o
Dôme, de Chambon, que conseguiu recuperá-lo depois
de três anos de leais serviços prestados. Impedidos de
realizar esse sonho, os cunhados conceberam um outro:
abrir em pleno Montparnasse o maior restaurante do
lugar, ou quem sabe até da capital.
Em pouco tempo, o sonho era realidade. As obras
começa­ram em janeiro de 1927. Menos de um ano
depois, tudo está pronto. Três andares, três maneiras de
se gastar (e se desgastar). No térreo, come-se junto aos
artistas que pintaram os pilares das colunas. Os que
entram pela porta giratória que dá para o bulevar
encontram-se nos domínios de Bob, o barman que
trabalha atrás do balcão. Do bar passa-se para o
restaurante empurrando a porta que liga as duas salas.
Os que preferem jogar sobem ao primeiro andar. A
escada fica no fundo, à direita. Vai dar num terraço onde
se come no verão e se lança o bolim em todas as
estações. O pintor Othon Friesz é o grande gerente do
jogo.
Os notívagos devem ir para o subsolo. Duas
orquestras, uma de blues, a outra de tango, permitem
que os dançarinos se aproximem em diversas cadências.
De tarde, os contatos se fazem sob outros ritmos. A
boate se transforma em salão de chá, onde senhoras
muito maquiadas e de uma certa idade vêm procurar
homens bem jovens e sem um tostão. Troca-se savoir-
faire por dinheiro. Parece lucrativo, e será assim até os
anos 1970.
Por que Coupole? Porque já havia o Dôme e a
Rotonde.139 O mais novo pertence à mesma família dos
mais velhos. Os senhores Fraux e Lafon acrescentaram a
referida cúpula depois de terem encontrado o nome para
a sua obra-prima. E se ela se ergue a cinco metros do
solo, é para dispersar a fumaça que toma conta das salas
de teto baixo.
Na noite da inauguração, 20 de dezembro de 1927,
duas mil pessoas vieram comer e beber. Quando
começou a faltar muni­ção – as 1.200 garrafas de
champanhe logo se evapora­ram –, vários táxis se
espalharam pelos quatro cantos de Paris para buscar
reforço. Quando voltaram, havia tanta gente se acoto‐­
velando em volta do bufê que alguns espertinhos
aproveitaram para se mandar com um razoável estoque
de garrafas. Foram para o Select, o Dôme e o La
Rotonde. Pediram copos. E beberam em paz no novo
Montparnasse.
Em 1914, no La Rotonde, Libion tinha três ajudantes.
No La Coupole, trabalham quatrocentos empregados. O
senhor Fraux é apelidado de “o Citroën da limonada”.140
Sua fábrica? O La Coupole. Quatro anos antes da
inauguração, premonitório, André Warnod havia dito:
O industrial que abrir o primeiro restaurante noturno por lá talvez fique
rico, e os artistas irão acampar em outro lugar, e não mais em
Montparnasse.1

O industrial abriu. Ficou rico. Os artistas ainda estão lá.


Mas não por muito tempo.
E serão os mesmos?
Derain circula numa Bugatti. Man Ray comprou um
Voisin.
Kisling, que vive tanto ou até mais em Sanary do que
em Paris, faz roncar os motores dos seus dois Willys
Knight americanos. Picabia possui um Delage seis
cilindros, e Cendrars, um Alfa-Romeo. Zbo­rowski não tem
carteira de motorista, mas ficou rico. Não será por muito
tempo. Foujita também não. Ele trocou o Ballot de Youki
por um Delage conversível cuja capota o motorista se
recusa a arriar: vai ficar marcada pelas dobras. Trocar de
capota não vai aliviar a conta que um oficial de Justiça
acaba de apresentar: mui­tas centenas de milhares de
francos, que correspondem a várias promissórias, desde
1925. Foujita despediu todos os empregados. Ele
organizou uma exposição monumental no Japão por cujos
lu­cros está aguardando. Senão, terá de vender o carro.
Por ora, ele já está deixando a casa de Montsouris.
O único que não muda é Pascin. É um dos mais ricos
de to­dos, mas não o demonstra. Quando vai ao La
Rotonde, sempre cer­cado de modelos e de fiéis, ele
chega a pé. Abre caminho por entre as limusines
estacionadas, vai até o bar, oferece rodadas a todo o
mundo e procura Lucy Krogh com o olhar. Por ora, ele
está feliz: acaba de voltar de uma viagem aos Estados
Unidos, na qual ela o acompanhou. Está esperando um
filho dele. Ele ainda não sabe que uma abortadeira vai
amaldiçoar seu destino.
Pascin é fiel tanto ao que ele sempre foi quanto ao seu
amor por Lucy Krogh.
Em volta dele tudo é caos e corações volúveis.
Youki está prestes a deixar Foujita para ficar com
Robert Desnos, e Foujita, a refazer sua vida com Mady
Lequeux, cantora e manequim.
Paul Eluard, que retorna de uma volta ao mundo
sozinho, trocou Gala por Nusch, achada na rua sem um
tostão. Gala, cujo desejo oscilou durante tanto tempo
entre Eluard e Ernst, deixou os dois amigos se arranjando
sozinhos e correu para agarrar Dalí, uma oferta novinha
em folha. No tempo de Eluard, ela era “o carra­pato”; para
muitos, vai se tornar “a caixa registradora”.
Bronia já se consolou com a morte de Radiguet: vai se
casar com René Clair, que conheceu durante as
filmagens de Entracte.
Kiki briga com seu fotógrafo americano: ele está quase
pas­sando os braços em volta dos ombros de uma jovem
americana, manequim esplêndida e determinada. Ela
veio para a França aprender fotografia. Apresentou-se na
rua Campagne-Première pa­ra ver Man Ray. Como ele não
estava, ela foi esperá-lo num café. Ele chegou logo
depois. Ela foi ao encontro dele:
“Bom dia. Eu me chamo Lee Miller e sou sua aluna.”
“Como?”
“Lee Miller... A partir de agora, sou sua aluna.”
Ele olhava para ela sem entender nada.
“Mas eu não tenho alunos!”
“Tem sim, eu.”
Man Ray estava indo para Biarritz no dia seguinte.
Disse isso a ela, que sorriu, encantadora, e fez uma
simples pergunta: “A que horas parte o nosso trem?”.
No bar do La Coupole, Kiki joga pratos na cara desse
insu­portável tratante que, por sua vez, também
demonstra ciúme de toda e qualquer silhueta masculina
que se aproxime de Lee Miller e, a partir de então, anda
com um revólver no bolso, prestes a exe­cutar qualquer
um que quiser tomar o lugar dele.
Man Ray foge de Kiki se esgueirando por entre e por
debai­xo das mesas. É a vida, a roda da vida.
Mas Kiki está exagerando um pouco. Ela mesma está
de olho num jornalista, que às vezes também desenha,
Henri Broca. Este será responsável pelo lançamento de
alguns jornais em Paris e de sua nova noiva no mundo,
graças a exposições nas quais Kiki vende suas obras
(naïves) e sua reputação, a partir de então oficial: foi
eleita a rainha de Montparnasse.
Derain acerta as contas com tanto empenho quanto a
ex­-modelo preferida de Man Ray. Ele está com cerca de
cinquenta anos, ainda apronta e tem uma amante muito
rica. Chama-se Madeleine Anspach, e é mulher de um
banqueiro belga. Quando está bêbado, ela o fica vendo
quebrar ruidosamente os copos, as cadeiras e as mesas
do bar do La Coupole, saltar na Bugatti, correr para
Barbizon a 165 quilômetros por hora, voltar no dia se‐­
guinte, desculpar-se, pagar os prejuízos e exibir o motor
do carrinho azul jurando que nenhuma obra de arte ainda
se igualou àquela. Madeleine Anspach concorda e pede a
ele duas peles de ra­posa prateadas. Na maioria das
vezes, ele faz a sua vontade.
O mais apaixonado, porém, de todos os clientes
habituais do La Coupole, aquele de quem todos
acompanharam as exibições amorosas, é Louis Aragon.
Exibição. A palavra não combina com Denise Lévy,
prima de Breton e depois mulher de Naville, por quem
Aragon foi loucamente apaixonado e que levou para a
cama em Aurélien, não tendo podido fazê-lo em outro
lugar: Denise foi a muito casta Bérénice da história.
O que não era o caso de Nancy Cunard, que precedeu,
glo­riosa e magnífica, a entrada de Elsa na vida do poeta.
Entre 1926 e 1928, ela lhe ofereceu o braço – aquele
braço cheio de braceletes de marfim que deixavam
marcas no rosto dos homens. Ela costumava usar um
chapéu, às vezes um pequeno véu, uma capa sem
mangas combinando com a do acompanhante. Este
usava uma das bengalas da sua coleção. Era tão
elegante quanto ela era bonita. Os dois eram livres: ela
porque respeitava acima de tudo suas aspirações, que se
tornavam possíveis graças a uma fortuna colossal que
era gasta em hotéis e transatlânticos; ele porque Le con
d’Irène141, publicado clandestinamente (ilustrado por
Masson), tornava ainda mais excitante sua reputação de
dândi dedicado tanto às coisas do espírito quanto às da
vida. Ele era um escritor surrealista, e ela, uma generosa
musa. Levava-o para todos os lados, para a rua Le
Regrattier (como a Bérénice de Aurélien), onde ficava
uma de suas casas, para a cama, tão logo decidiu que,
entre os frequentadores do Cyrano, seria ele.
Ele foi sem resistir. Era um dia de inverno, em Londres,
no começo de 1926. Aragon descobriu uma mulher que
não era apenas livre: era também independente. Tinha
feito o que era preciso para não ter filhos, e também
fazia o que era preciso para ter os homens que queria.
Olhava-os, pegava-os, arrastava-os. Eles se
embriagavam, jogavam, ela os dispensava. Aragon
ficava, mas se consumia. Estava aos pés dela. Por mais
que ela o insultasse com sotaque inglês e palavras
francesas, olhasse-o friamente queimar as 1.500 páginas
do manuscrito de La défense de l’infini, em um quarto de
hotel madrileno, reprovasse o seu ciúme, sua estreiteza
de cora­ção, seu sentimento de exclusividade em matéria
de sexo, ele se curvava, paralisado pela paixão.
Viajaram pela Espanha, Holanda, Alemanha. Em julho
de 1928, estavam em Veneza. Aragon aguardava o
dinheiro de La baigneuse, obra de Braque adquirida na
venda de Kahnweiler de 1922. Ele a tinha comprado por
240 francos. Seis anos mais tarde, revendeu-a por cem
vezes mais. Mas o dinheiro estava demorando a chegar.
Ele não podia viver à custa de Nancy. Sobretudo porque
sua Dulcineia passeava pela praça de San Mar­co com
outro. O outro chamava-se Henry Crowder; era um ameri‐­
cano pianista de jazz que a herdeira da Cunard Line tinha
roubado do seu instrumento.
Aragon ficou sozinho no quarto do hotel. Queria
morrer. Tentou. Dirá que se jogou no Grande Canal. Ou
que tomou sonífe­ros. Ou os dois. De qualquer maneira,
foi salvo a tempo. De modo que, quando o dinheiro
finalmente chegou, ele voltou para Paris.
Instalou-se na rua do Château. Em 1928, dois jovens
originá­rios de Nancy (a cidade), comunistas e
surrealistas, tinham retoma­do a casa ocupada
anteriormente por Prévert, Tanguy e Duhamel: André
Thirion e Georges Sadoul. Ofereceram um quarto a
Aragon.
Mas Nancy voltou de Veneza.
Tudo recomeçou.
Até quando?
Até que uma Bugatti igualzinha à de Derain parou um
dia diante do La Coupole. Dela desceu uma jovem. Era
morena, alegre, usava um gorro na cabeça e trazia um
rato branco nos braços. Era dançarina e vinha de Viena.
Chamava-se Léna Amsel. Logo for­mou-se um grupo à sua
volta. Mas foi Aragon quem ela escolheu, e foi Aragon
quem a levou.
Naquele tempo, eu me dizia que estava apaixonado por uma outra
mulher, uma alemã. [...] Fingia não gostar mais de uma outra. Uma
inglesa.2

Com a “alemã” o caso não durou. Pois, no canto do


bar, uma mu­lher observava. Ela achou que havia
chegado a hora. Virou-se para um dos seus amigos,
Roland Tual, que bebericava uma ale ao seu lado. E disse:
“Quero que você me apresente aquele homem.”
“Aragon?”, perguntou Tual.
“Aragon”, ela respondeu.
“Por que ele?”
Elsa Triolet olhou fixamente com seus olhos negros o
amigo surrealista, que nunca pintou nem escreveu. Disse
apenas:
“Porque espero por esse momento há três anos.”

139 Os nomes significam, respectivamente: cúpula, domo e rotunda. Todos


se referem a construções circulares e arredondadas. (N.T.)
140 A referida limonada tem um sabor especial em francês: Citroën, pela
sonoridade, lembra citron, o limão. Além disso, limonade, afora a bebida, é
também, familiar­mente, o comércio dos bares e cafés. (N.T.)
141 A boceta de Irene. (N.T.)
Ao acaso

O amor é um lugar onde se resume uma vida, se resume não, se


desenvolve.
Louis Aragon

N o dia 4 de novembro de 1928, Maiakovski está


sentado a uma mesa do La Coupole. Maiakovski é
um dos maiores poetas russos vivos. Ele chegou a Paris
alguns dias antes. Está hospedado no Hotel Istria. Foi
Elsa Triolet quem o convidou a vir. Ela conhece
Maiakovski desde criança. Esteve apaixonada por ele.
Mas foi a irmã, Lili, quem o conquistou. Lili Brik,
sobrenome do marido. Este ficou tão apagado quanto
Eluard, no tempo de Gala e Max Ernst. E Elsa foi se
consolar nos braços do senhor Triolet, um francês de
passagem por Moscou, em 1917. Ele a levou para o Taiti
e depois para Paris, onde a instalou e a deixou, depois de
casar-se com ela.
Maiakovski está cercado de amigos que pertencem ao
gru­po de Ilya Ehrenbourg. Sua altura e sua compleição o
distinguem dos outros. Tem cabelos castanhos, grossos,
mãos enormes como palmatórias. Mas seu olhar é
infinitamente doce.
Ele está sentado ao lado de uma moça de dezoito
anos, Ta­tiana, por quem está apaixonado há pouco
tempo, sem muita chance de levá-la com ele para o país
dos sovietes: além de ter vin­te anos a mais do que ela,
não estão do mesmo lado; ele é verme­lho, ela é branca.
Aragon está passando pela entrada principal do restau‐­
rante. Maiakovski pede que o chamem. Os dois poetas se
conhe­cem de nome. Um não fala uma palavra de
francês, o outro não fala uma palavra de russo. Por sorte,
há intérpretes. Aragon convida Maiakovski para ir, dois
dias depois, à rua do Château: ele vai organizar uma
festa em sua homenagem.
No dia 5 de novembro, quando Aragon volta ao La Cou‐­
pole, é abordado por um dos seus amigos. É Roland Tual.
E Roland Tual lhe diz:
“Gostaria de te apresentar uma amiga.”
A amiga está sentada a uma mesa. Usa um chapéu
cor-de­-rosa, um casaco de pele e um vestido preto. É
baixinha, ruiva, tem a pele branca, parece séria.
Aragon senta-se. São seis horas da tarde. Ainda não
anoite­ceu e Elsa já está convidada para a festa do dia
seguinte, em home­nagem a Maiakovski.
“Eu irei”, ela diz.
E vai mesmo. Mistura-se aos outros convidados.
Aragon não dá muita atenção a ela. Está preocupado
com Maiakovski e com o amigo André Thirion, que se
refugiou na loggia, sofrendo por causa de um amor.
Aragon vai ao encontro dele. De baixo, Elsa vê tudo,
com­preende tudo e agarra sua chance. Ela sobe e vai ao
encontro dos dois homens. Entra na loggia. Olha em
volta e, como se estivesse brincando, pergunta:
“Isto serve para quê? Para fazer amor?”
Ela cola em Aragon. Thirion fica sem saber o que fazer:
Ela atacou imediatamente, sem pudor, com uma vontade de con­quista
tenaz e paciente que tinha desenvolvido ao longo da vida.1

Um pouco constrangida, a testemunha se afasta.


Desce a escada e fica vigiando ao pé dos degraus.
Quinze minutos depois, os amantes voltam para a festa.
Têm um sorriso nos lábios. Dançam ao som de Duke
Ellington e Louis Armstrong, discos que Marcel Duhamel
deixou por lá.
É o que conta Thirion. Para Lilly Marcou, é verdade que
Elsa e Aragon se encontraram na rua do Château; mas
passaram uma primeira noite no Hotel Istria, onde
Maiakovski cruzou com eles na escada. Além disso, no
dia do encontro, Elsa estava acom­panhada de Vladimir
Pozner, a quem pediu para sair de fininho no momento
oportuno.2
A continuação, no entanto, é complicada. O casal só
está no começo. Ainda não tiveram tempo de construir
sua lenda.
Eu não te amava, eu não te amava. Eu não te disse que te amava, pois
eu não te amava.3

Por enquanto, os olhos de Elsa ainda não têm o brilho


que Aragon cantará mais tarde. Ele ainda prefere os de
Léna Amsel. A dança­rina é mais alegre. É mais bonita
também. Mais divertida. Porém, assim como Nancy
Cunard, é liberada demais. Flerta com outros homens.
Principalmente com um escultor.
Quando Elsa vai procurar o amante, não o encontra.
Toda vez que passa por Thirion ou Sadoul, pergunta a
eles:
“Vocês viram Aragon?”
“Não”, eles respondem, desviando o olhar.
Claro que viram. Mas Aragon pediu-lhes que não digam
nada. Ele não escolheu a russa pelos seus encantos.
Pegou-a ao acaso, para se vingar de Léna e seu escultor.
Pelo menos, é o que ele afirma a Thirion. Ele também diz
que não confia em Elsa. Ela gruda muito. É indiscreta. Ele
até se pergunta se ela não seria uma informante, se não
trabalharia para a polícia. Esta vigia os mem­bros do
Partido. E por que os policiais perderiam a oportunidade
de conseguir, graças à jovem, confidências abandonadas
nos tra­vesseiros da loggia da rua do Château?
Aragon está totalmente enganado. Elsa está morrendo
de pai­xão. Mas se ela conseguiu vencer o primeiro
obstáculo, o segundo ainda não é para ela. Vai ser
preciso esperar algumas semanas. Então, ela agirá com
uma habilidade surpreendente. E definitiva.
Certa noite, Aragon pede a Thirion para ir ao La Jungle
avi­sar Léna, com quem ele tem um encontro às onze
horas, que vai se atrasar. La Jungle substituiu o Jockey,
que foi demolido: Helena Rubinstein comprou todos os
prédios na esquina da rua Campagne­-Première com o
bulevar Montparnasse para construir ali um edifício
moderno. Para os notívagos, bastou atravessar a rua
para continuar a festa. Eles continuam dançando blues
numa outra pista, só isso.
A alguns cubos de gelo para as onze, Thirion entra e
senta-se a uma mesa. A sala ainda está vazia: a noite
está apenas começando. O mensageiro da rua do
Château pede uma bebida e espera. Às onze e alguns
drinques, uma jovem senta-se diante dele. Não é Léna
Amsel. É Elsa. A conversa esquenta. A discussão é sobre
um assunto que desagrada a um, mas interessa à outra:
onde está Aragon?
De constrangimento a escapatórias e de rubores a
subterfú­gios, temendo a chegada da amante oficial,
Thirion acaba deixando escapar alguma coisa: Aragon
está com uma outra mulher.
“Quem?”
“Uma dançarina.”
“É uma aventura passageira.”
“De jeito nenhum...”
Algo mais escapa.
“Ele a ama. Ela alivia o sofrimento dele, provocado por
Nancy Cunard.”
“Você disse que ele a ama?”
“Um pouco...”
“Não mais do que ‘um pouco’?”
“Um pouco muito.”
“O que mais?”
Thirion sopra e suspira como um pobre infeliz.
“Ele a ama de verdade.”
Elsa recebe o golpe. Não responde. Começa a chorar.
Mas eis que surge um casal, do outro lado da pista. Léna
Amsel e Louis Aragon.
“Ui!”, murmura Thirion.
“Ah!”, exclama Elsa.
Como uma rajada de vento, ela se levanta. Quando a
vê, Aragon dá meia-volta e desaparece. Elsa olha para
Léna e diz a ela:
“Venha beber alguma coisa comigo...”
As duas mulheres sentam-se à mesa onde Thirion está
pros­trado. Virando-se para ele, a russa o despacha com
um peteleco:
“Vá logo para junto de Aragon! Ele pode fazer uma
besteira!”
Thirion não espera a segunda ordem. Dois copos a
menos para a meia-noite, levanta-se de um salto, sai
correndo do La Jungle, toma impulso na rua Campagne-
Première, acelera no bulevar Raspail, passa voando por
trás do cemitério de Montparnasse e freia na rua do
Château.
Aragon está lá. Está se embebedando
conscienciosamente diante do retrato de Nancy Cunard.
Alguns minutos depois, chega mais alguém: Léna
Amsel e Elsa Triolet. As duas mulheres estão sorridentes.
Elsa aproxima-se de Aragon, faz-lhe um carinho e
anuncia o resultado das negocia­ções: Léna compreendeu
que seu amor não era nada comparado à paixão de Elsa.
Então, resolveu ir embora.
Aragon não tem tempo de dizer uma só palavra. Léna
vira-­se para André Thirion e pede:
“Você pode me acompanhar até o táxi?”
Quando o surrealista comunista (um dia será gaulista)
volta, a casa da rua do Château está apagada. Na loggia,
onde antes dormia Benjamin Péret, descansam agora o
poeta e sua musa.
A cortina está fechada.

Marie-Laure de Noailles, que era especialista em casos


amorosos, comparava Nancy Cunard a uma mariposa de
espécie rara. E Elsa, à hera. “É difícil combater a hera.”4
A senhora Triolet não tinha podido se tornar a senhora
Maiakovski. Iria ser a senhora Aragon. Lili Brik estava
com o maior poeta russo: ela viveria com o maior poeta
francês.
De um só golpe, o escritor foi subjugado. Levado para
lon­ge da rua do Château e dos maus elementos que a
frequentavam. Brigou com todos aqueles que poderiam
servir de intermediários entre Nancy Cunard e ele. Como
a vingança é um prato que se come frio, e como Elsa, 35
anos mais tarde, ainda não terminara a digestão, ela
impediu Aragon de mexer um dedo se­quer para ajudar
Nancy Cunard quando esta precisou.
A herdeira da Cunard Line tinha então dilapidado sua
for­tuna: fizera muitas doações aos surrealistas, aos
republicanos espa­nhóis e aos negros americanos. Certa
noite, ela estava em um táxi. Bêbada, doente e
assustadoramente magra. Bastaria impedir que ela
terminasse a vida na enfermaria de um hospital.
Aragon não fez nada.
Com Léna Amsel foi muito mais rápido. As
circunstâncias ajudaram. No dia 3 de novembro de 1929,
Derain propôs à jovem dançarina irem almoçar em
Barbizon. Levariam Florence, roubada no ano anterior por
Max Ernst, e prestes a ir para outro ninho, na rua do
Château, junto a André Thirion. Iriam em dois carros, pois
não cabiam três na Bugatti.
Pegaram os dois carros. Levaram Florence. Foram para
Barbizon. Na volta, Léna e Derain, cada um ao volante de
seu bó­lido, disputaram uma corrida na estrada. A Bugatti
era muito veloz, e só tinha um defeito: era muito leve
para a sua potência. Precisava de lastro no porta-malas.
Derain tinha pensado nisso. Lé­na não. E olha que não
faltavam beterrabas, pois era a época. As rodas não
resistiram. A Bugatti da jovem dançarina, que vinha atrás
do pintor, derrapou, capotou, duas, três vezes e pegou
fogo. Foram encontrados dois corpos carbonizados.
No La Coupole, naquele 14 de fevereiro de 1930,
quando Aragon empurrou a porta giratória depois da
expedição do Maldoror, ele se tornou um homem de uma
só mulher. Ele é também um dos pilares desse novo
Montparnasse que os artistas estão deixando.
Em outra época, os turistas e o dinheiro tinham
extraído de Montmartre sua veia artística. É a vez do
pulmão de Mont­parnasse se esvaziar. Os carros rutilantes
e os brilhos dourados e prateados ainda estão lá, mas os
pintores e os poetas buscam alco­vas mais silenciosas.
Alguns já descem em direção à planície de Saint-
Germain-des-Prés, que, um dia, irá suceder as elevações
de Montmartre e de Montparnasse. A maioria deles já se
foi. Muitos deram as costas a uma maneira de viver e de
estar juntos que a Primeira Guerra Mundial abalou e a
Segunda eliminaria definiti­vamente.
Picasso já não está lá faz muito tempo. Max Jacob foi
para a beira de outro rio. Guillaume Apollinaire morreu.
Vlaminck grita e esbraveja nas suas terras. Van Dongen
cuida de seus contratos nas Planches de Deauville. André
Salmon emprega sua energia escrevendo crônicas nem
sempre gentis. Braque não se aproxima mais. Derain
conta as cilindradas dos seus carros. Juan Gris mor­reu.
Modigliani morreu. Kisling passa o inverno em Sanary.
Zadkine não dá mais notícias. Soutine não aparece mais.
Cendrars está viajando.
Se sobrasse apenas um, seria aquele que saúda Bob, o
bar­man. Com seu chapéu-coco, seus ternos azul-escuros
e seu cigarro no canto da boca. Dirige um pequeno
sorriso a Aragon, com quem tem pelo menos um ponto
em comum: ele também é homem de uma só mulher.
Se sobrasse apenas um, sim, seria esse.
Jules Pascin.
O último dos boêmios

Homem livre, herói do sonho e do querer


Empurrando as portas de ouro com sua mão ferida
Espírito e carne Pascin não quer escolher
E ordena a morte o senhor da vida.
André Salmon
A canoa do amor se quebrou contra a vida corrente.
Maiakovski

E le está corroído pela cirrose. Por Lucy Krogh. Pelo


desgosto de si mesmo. Ao longo das suas obras, foi
perdendo a liberdade das cores e dos pincéis. Ele gosta
do traçado da caneta, da leveza da aquarela. Mas é
preciso óleo: vende melhor. Bernheim-Jeune pro­pôs a ele
um contrato extraordinário, que causaria inveja a Derain
e a Picasso. Mas ele não quer se tornar um “gigolô da
pintura”. Não assinou. Para quê?
Para pagar o aluguel de Lucy Krogh. Para vestir
Hermine David. Para alimentar as dezenas de modelos
que se sucedem em seu ateliê, flores da calçada,
meninas de treze anos apenas que lhe são enviadas, a
quem pede para posar, mas não as pinta... Ele paga, elas
sorriem, três voltinhas e depois vão embora.
Mas voltam.
Para fugir de seus demônios, Pascin muda de um hotel
para o outro, procura ateliês onde ninguém o descobrirá,
onde as garra­fas e as meninas serão raras.
Lucy encontrou uma pequena residência, a Villa
Camélia, na porta de Vanves, nos confins de
Montparnasse. Ele vai para lá. Espera que ela vá ao
encontro dele, que vivam juntos.
Volta para o bulevar de Clichy. Pinta. Anda pelas
calçadas. Envia cartas pungentes a Lucy, porque ela está
sempre atrasada, porque ela não vem, porque decidiram
não se ver mais, porque ele não consegue viver sem ela.
Ela reclama porque ele bebe, quase não trabalha, volta
das bebedeiras com o rosto vermelho. Todas as vezes ele
diz:
“Você é má. Você é muito má.”
Lucy, Lúcifer.
Numa noite de maio de 1930, ela diz a ele que está
tudo acabado. Ele pede para ir buscar suas coisas e
algumas telas que estão naquela casa da porta de
Vanves. Ela responde:
“Está bem, mas antes das sete.”
“Da noite?”
“Da manhã.”
Ele pede ajuda ao amigo Papazoff. Esperam a noite
toda, diante do muro do cemitério de Montparnasse.
Depois, chamam dois táxis. Vão até a porta de Vanves.
Pascin volta para o bulevar de Clichy.
Lucy volta para o bulevar de Clichy.
Um pouco.
Eles não sabem viver juntos. Não sabem se separar.
Isso já dura dez anos.
No dia primeiro de junho de 1930, Pascin senta-se à
mesa do ateliê. Escreve algumas linhas caprichando na
caligrafia. Depois, escolhe um de seus desenhos. Veste o
terno azul-marinho, que todo o mundo conhece em
Montmartre e em Montparnasse, mesmo que ele esteja
agora bem surrado, assim como os sapatos, o chapéu-
coco, mas por que e por causa de quem iria trocá-los?
Desce a escada e vai ao consultório do médico que
trata dele, o doutor Tzanck. Desde que está cuidando
dele, o doutor Tzanck não aceita pagamento. Pascin lhe
oferece o desenho.
Atravessa o Sena, como sempre faz desde 1905. Sobe
até o cruzamento Vavin, onde conhece cada pórtico,
cada banco, cada árvore. Empurra a porta giratória do La
Coupole. Bob está no bar. Pascin pede uma aguardente e
paga as contas antigas.
“Está saldando as dívidas, senhor Pascin?”
“É isso aí.”
Durante a noite, a madrugada, o pintor saúda Paris. Ao
amanhecer, na praça Pigalle, cruza com Mac Orlan, que
está sain­do de um bar.
“Venha beber uma saideira” , ele propõe. Mas o
escritor está cansado. E vai embora. Pascin bebe o último
copo sozinho.
Volta para casa. Fecha a porta a chave. A manhã
desenha cores vermelhas sobre Montmartre e suas
colinas. Pascin fecha as persianas para não ver mais
nada.
Coloca duas almofadas no chão. E duas bacias, de um
lado e do outro. No verso de um convite para uma
exposição berlinen­se, escreve um bilhete de despedida
para Lucy:
Lucy, não me queira mal pelo que estou fazendo. Obrigado pelos
presentes. Você é muito boa, tenho de partir para que você seja feliz!
ADEUS! ADEUS!

Vai até o banheiro. Pega a lâmina de barbear. Corta o


pulso es­querdo.
Volta para o ateliê, relê o testamento escrito pela
manhã: deixa o saldo da sua conta bancária e a
totalidade de suas obras para Hermine David e Lucy
Krogh.
Mergulha o indicador direito no sangue que escorre do
punho esquerdo. Como a ponta de um pincel na paleta
da sua vida.
Na porta do armário, escreve: “ADEUS, LUCY”.
Pega de novo a lâmina e corta o pulso direito. Deita-se
sobre as almofadas e mergulha os dois antebraços nas
bacias.
Espera.
É demorado.
Uma imagem lhe vem à memória. Um homem
enforcado, que viu na infância.
Levanta-se, vai até a cozinha. Numa gaveta, acha uma
cor­da. Faz um nó frouxo, passa-o em volta do pescoço.
Retorna ao ateliê. Olha em volta. Escolhe a maçaneta da
porta. Aproxima-se. Passa a corda em torno dela, segura
a outra ponta com a mão e se deixa cair no chão.

Quando Lucy o encontra, no dia 5 de junho, seu grito, e


o grito da jovem que a acompanha, e o do serralheiro
que abriu a porta, e depois as lágrimas de Hermine
David, o boletim de ocorrência do delegado, as centenas
de flores enviadas pelos amigos, o longo e longo
queixume que se espalha por Paris junto com a notícia, o
ranger das portas das vitrines das galerias, de luto no dia
do enterro, os choros e os suspiros, as cores dos pintores,
os versos dos poetas, tudo isso vem soar como uma onda
quebrando ao pé dos túmulos, três pedregulhos batendo
sobre as lápides, três tem­pos de um compasso
esquecido.

Guillaume Apollinaire.
Amedeo Modigliani.
Jules Pascin.
Agradecimento

Obrigado ao amigo Philippe Dagen pela ajuda.


Notas

1. Vers et Prose, no 23, outubro de 1910; Paris, L’Échoppe, 1993.

O maquis de Montmartre
1. Pierre Mac Orlan, Le quai des brumes, Paris, Gallimard, 1927. [Edição por‐­
tuguesa: Cais das brumas, Lisboa, Livros do Brasil, 1958.]

Litrillo
1. Roland Dorgèles, Bouquet de bohème, Paris, Albin Michel, 1947.
2. Francis Carco, La légende et la vie d’Utrillo, Paris, Bernard Grasset, 1928.

A vida em azul

1. Brassaï, Conversations avec Picasso, Paris, Gallimard, 1997. [Edição


brasileira: Conversas com Picasso, São Paulo, Cosac & Naify, 2000.]
2. Francis Carco, Bohème d’artiste, Genebra, Éditions du Milieu du Monde,
1942.

Dois americanos em Paris


1. Ambroise Vollard, Souvenirs d’un marchand de tableaux, Paris, Albin
Michel, 1937.
2. Georges Charensol, D’une rive à l’autre, Paris, Mercure de France, 1973.

Cyprien
1. Conferência no Museu de Belas-Artes de Nantes.
2. Francis Carco, Montmartre à vingt ans, Genebra, Éditions du Milieu du
Monde, 1942. (Col. “Mémoires d’une autre vie”)
3. Idem, ibidem.
4. Max Jacob, Correspondance, Paris, Éditions de Paris, 1953.
5. Pour les cinquante ans de la mort de Max Jacob à Drancy, Les Cahiers
Bleus, 1994.
6. Max Jacob, “Le Christ à Montparnasse”, in Les écrits nouveaux, Paris,
Émile-Paul Frères, abril de 1919.
7. André Warnod, Les berceaux de la jeune peinture, Paris, Albin Michel,
1925.
8. Pierre Brasseur, Ma vie en vrac, Paris, Ramsay, 1986.
9. Max Jacob, “Récit de ma conversation”, in Correspondance, op. cit.
10. Pour les cinquante ans de la mort de Max Jacob à Drancy, op. cit.
11. Max Jacob, “Le Christ à Montparnasse”, op. cit.
12. Pour les cinquante ans de la mort de Max Jacob à Drancy, op. cit.
13. Max Jacob et Picasso, Réunion des Musées Nationaux, 1994.
14. Ibidem.
15. Paul Léautaud, Journal Littéraire, Paris, Mercure de France, 1961.

Guillaume, o bem-amado

1. Guillaume Apollinaire, Correspondance avec son frère et sa mère,


apresentado por Gilbert Boudar e Michel Décaudin, Paris, José Corti, 1987.
2. Marc Chagall, Ma vie, Paris, Stock, 1972.
3. Vladimir Divîs, Apollinaire, chronique d’une vie, Paris, c. 1965.

A bela Fernande
1. Fernande Olivier, Souvenirs intimes, Paris, Calmann-Lévy, 1988.
2. Françoise Gilot, Vivre avec Picasso, Paris, Calmann-Lévy, 1991.
3. Guillaume Apollinaire, La femme assise, Paris, Gallimard, 1948. [Ed. port.:
A mulher sentada, Lisboa, Estampa, s.d.]

O Bateau-Lavoir
1. Guillaume Apollinaire, “La serviette des poètes”, in Uhérésiarque & Cie,
Paris, Stock, 1984.
2. Idem, La femme assise, op. cit.
3. Alfred Jarry, Les minutes de sable mémorial, Paris, Fasquelle, 1932.

A jaula das feras

1. Henri Matisse, carta a Signac de 14 de julho de 1905, in André Derain,


Lettres à Vlaminck, Paris, Flammarion, 1994, organizado e apresentado por
Philippe Dagen.
2. Maurice Vlaminck, Portraits avant décès, Paris, Flammarion, 1943.
3. Idem, ibidem.
4. Georges Charensol, D’une rive à l’autre, op. cit.
5. Daniel-Henry Kahnweiler, Juan Gris, Paris, Gallimard, 1946.

No caminho dos saltimbancos

1. Pierre Daix, Picasso créateur, Paris, Seuíl, 1987.


2. André Salmon, La négresse du Sacré-Coeur, Paris, Éditions de la Nouvelle
Revue Française, 1920.
3. Hubert Fabureau, “Max Jacob”, La Nouvelle Revue Critique, 1935.

O tempo dos duelos

1. Arthur Cravan, Maintenant, julho de 1913. Republicado in Arthur Cravan,


Maintenant, Paris, Seuil-L’École des Lettres, 1995.
2. Idem, ibidem, março de 1914.
3. Idem, ibidem.
4. Idem, ibidem.
5. André Salmon, Souvenirs sans fin, Paris, Gallimard, 1955.
6. Guillaume Apollinaire, Le poéte assassiné, Paris, Gallimard, 1947. [Ed.
port.: O poeta assassinado, Lisboa, Estampa, s.d.]
7. Francis Carco, De Montmartre au Quartier Latin, Genebra, Éditions du
Milieu du Monde, 1942.
8. Vers et Prose, no 12, dezembro de 1907.

Uma tarde na rua de Fleurus


1. André Salmon, L’air de la Butte, Paris, Éditions de la Nouvelle France,
1945.

O bordel de Avignon
1. André Derain, 7 de março de 1906, in André Derain, Lettres à Vlaminck,
op. cit.
2. Wassily Kandinsky, Du spirituel dans l’art, Paris, Denoël-Gonthier, 1969.
[Ed. bras.: Do espiritual na arte, São Paulo, Martins Fontes, 1999.]
3. Daniel-Henry Kahnweiler, Huit entretiens avec Picasso, Paris, L’Échoppe,
1988.
4. Pierre Daix, Picasso créateur, op. cit.
5. Idem, Dictionnaire Picasso, Paris, Robert Laffont, 1995.
6. André Salmon, Souvenirs sans fin, op. cit.
7. Brassaï, Conversations avec Picasso, op. cit.

O gentil Douanier
1. Guillaume Apollinaire, Anedoctiques, Paris, Gallimard, 1997.
2. Artigo de Guillaume Apollinaire, Les soirées de Paris, 15 de janeiro de
1914.
3. Fernande Olivier, Picasso et ses amis, Paris, Stock, 1933.
4. André Salmon, Souvenirs sans fin, op. cit.
5. Carta à senhora Eugénie-Léonie V., 19 de agosto de 1910, citada por
Philippe Soupault, Écrits sur la peinture, Paris, Lachenal & Ritter, 1980.

O roubo da Mona Lisa


1. Guillaume Apollinaire, Tendre comme le souvenir, Paris, Gallimard, 1952.
2. Fernande Olivier, Picasso et ses amis, op. cit.
3. Idem, ibidem.
4. L’Oeuvre, setembro de 1911.
5. Albert Gleizes, “Apollinaire, la justice et moi”, Rimes et Raison, Albi,
Éditions de La Tête Noire, 1946.
6. Peter Read, Picasso et Apollinaire, les métamorphoses de la mémoire,
Paris, Jean-Michel Place, 1995.
7. Col. “Bibliothèque de la Pléiade”, Paris, Gallimard, 1965.

Separações
1. Guillaume Apollinaire, Le poéte assassiné, op. cit.
2. Roch Grey, “Les soirées de Paris”, Présence d’Apollinaire, Paris, Galerie
Breteau, dezembro de 1943.
3. Vers et Prose, no 34, p. 189.
4. La Nouvelle Revue Française, agosto de 1909.
5. L’Intransigeant, 7 de fevereiro de 1912.
6. Paul Léautaud, Journal Littéraire, t. IX, Paris, Mercure de France, 1960.

Cubismo
1. Max Jacob, Correspondance, op. cit.
2. Idem, carta a Tristan Tzara, 26 de fevereiro de 1916.
3. Idem, carta a Guillaume Apollinaire, 2 de maio de 1913.
4. Wassily Kandinsky, Du spirituel dans l’art, op. cit.
5. John Berger, Réussite et échec de Picasso, Paris, Denoël-Les Lettres
Nouvelles, 1968.
6. Jean Paulhan, Braque le patron, Paris, Gallimard, 1987.
7. Françoise Gilot, Vivre avec Picasso, op. cit.
8. Charles Baudelaire, “Qu’est-ce que le romantisme?” , Salon de 1846,
Paris, Gallimard, 1976. (Col. “Bibliothèque de Ia Pléiade”) [Ed. bras.: “O que
é o roman­tismo?”, Salão de 1846, in Poesia e Prosa, Rio de Janeiro, Nova
Aguilar, 1995.]
9. André Derain, Lettres à Vlaminck, seguidas da Correspondance de guerre,
texto organizado e apresentado por Philippe Dagen, Paris, Flammarion,
1994.

Guias de cordada

1. Charles Baudelaire, “Pourquoi la sculpture est ennuyeuse”, Salon de 1846,


Paris, Gallimard, 1992. [Ed. bras.: “Por que a escultura é enfadonha”. Salão
de 1846, in Poesia e prosa, op. cit.]
2. Pierre Cabanne, Le siècle de Picasso, Paris, Gallimard, 1992.
3. Idem, ibidem.
4. Nino Frank, Montmartre, Paris, Calmann-Lévy, 1956.
5. Jean Cocteau, Picasso, Paris, L’École des Lettres, 1996.
6. Daniel-Henry Kahnweiler, Mes galeries et mes peintres, entretiens avec
Francis Crémieux, Paris, Gallimard, 1961. [Ed. bras.: Minhas galerias e meus
pintores, Porto Alegre, L&PM, 1990.]
7. Idem, Juan Gris, op. cit.
8. Françoise Gilot, Vivre avec Picasso, op. cit.

Os cubistores

1. Paris-Journal, 1911.
2. Jean Cocteau, Essai de critique indirecte, Paris, Bernard Grasset, 1932.
3. Robert Desnos, Écrits sur les peintres, Paris, Flammarion, 1984.
4. Jean Paulhan, Braque le patron, op. cit.
5. Texto publicado em La Publicidad, Barcelona, citado in Max Jacob et
Picasso, Réunion des Musées Nationaux, 1992.
6. Max Jacob, carta à mãe, 1927.
7. Paris-Journal, 15 de maio de 1914.
8. La Nouvelle Revue Française, janeiro de 1914.
9. Arthur Cravan, Maintenant no 4, 1914.
10. Idem, ibidem.

Guillaume Apollinaire toma a dianteira

1. L’Intransigeant, 1o de outubro de 1912.


2. Ibidem, 3 de outubro de 1912.
3. Charles Baudelaire, Salon de 1845, Paris, Gallimard, 1976. (Col.
“Bibliothèque de la Pléiade”) [Ed. bras.: “Salão de 1845, algumas palavras
introdutórias”, in Poesia e Prosa, op. cit.]
4. Idem, Salon de 1846, op. cit.

O poeta e o marchand

1. Françoise Gilot, Vivre avec Picasso, op. cit.


2. Daniel-Henry Kahnweiler, Mes galeries et mes peintres, entretiens avec
Francis Crémieux, op. cit.
3. Pierre Assouline, L’homme de l’art, Paris, Balland, 1988.
4. Idem, ibidem.

A Ruche
1. A Bíblia, Êxodo 20:4.

Ubu rei

1. Robert de Souza, Vers et Prose, no 2, 1905.


2. Guillaume Apollinaire, Contemporains pittoresques, Paris, Gallimard,
1975.
3. Alfred Jarry, Le minutes de sable mémorial, op. cit.
4. Jacques-Henry Levesque, Alfred Jarry, Paris, Seghers, 1987.
5. Doutor Stephen-Chauvet, “Les derniers jours d’Alfred Jarry”, Mercure de
France, no 832, 15 de fevereiro de 1933.
6. Guillaume Apollinaire, Contemporains pittoresques, op. cit.
7. André Breton, Anthologie de l’humour noir, Paris, Jean-Jaques Pauvert,
1966.
8. Charles Chassé, D’Ubu roi au Douanier Rousseau, Éditions de la Nouvelle
Revue Critique, 1947.
9. Idem, ibidem.
10. Madame Fort-Vallette, depoimentos compilados por Marcel Trillat e Nat
Lilenstein, Magazine Littéraire, no 48, janeiro de 1971.

2 de agosto de 1914
1. Paris-Midi, 3 de março de 1914.
2. Guillaume Apollinaire, Tendre comme le souvenir, op. cit.
3. Paul Léautaud, Journal Littéraire, t. III, Paris, Mercure de France, 1956.

Chaïm e Amedeo
1. Jeanne Modigliani, Modigliani sans légende, Paris, Jeanne Modigliani-
Librairie Gründ, 1961.

A Villa Rose
1. Jeanne Modigliani, Modigliani sans légende, op. cit.
2. Jean Arp, citado por Billy Klüver e Julie Martin, Kiki et Montparnasse, Paris,
Flammarion, 1989.
3. Maurice Vlaminck, Portraits avant décès, op. cit.

As damas e o artilheiro

1. André Salmon, Souvenirs sans fin, op. cit.


2. André Rouveyre, Apollinaire, Paris, Gallimard, 1945.
3. Guillaume Apollinaire, Lettres à Lou, Paris, Gallimard, 1969.
4. Idem, Poémes à Lou, Paris, Gallimard, 1956. (Col. “Bibliothèque de la
Pléiade”)
5. Idem, ibidem.
6. Idem, Correspondance avec son frère et sa mère, op. cit.
7. Idem, Tendre comme le souuenir, op. cit.
8. Idem, Lettres à Lou, op. cit.

O escritor da mão cortada

1. Guillaume Apollinaire, Tendre comme le souvenir, op. cit.


2. Idem, Oeuvres poétiques, Paris, Gallimard, 1956. (Col. “Bibliothèque de la
Pléiade”)
3. Jacques Roubaud, Cahiers de la bibliothèque littéraire Jacques-Doucet, no
1, Doucet littérature, 1997.
4. Blaise Cendrars, “Prose du transsibérien et de la petite Jeanne de France”,
in Du monde entier, Paris, Gallimard, 1967.
5. Ernest Hemingway, Paris est une fête, Paris, Gallimard, 1964. [Ed. bras.:
Paris é uma festa, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2000.]
6. Blaise Cendrars, La main coupée, Paris, Denoél, 1946.
7. Artigo publicado in Mercure de France, dezembro de 1913; Guillaume
Apollinaire, Anedoctiques, op. cit.
8. Blaise Cendrars, “Dix-neuf poèmes élastiques”, in Du monde entier, op.
cit.

O príncipe frívolo

1. Gustave Fuss-Amoré e Maurice des Ombiaux, Montparnasse, Paris, Albin


Míchel, 1925.
2. Maurice Vlaminck, Portraits avant décès, op. cit.
3. Jean Cocteau, Essai de critique indirecte, op. cit.
4. Maurice Vlaminck, Portraits avant décès, op. cit.
5. André Salmon, Montparnasse, Paris, André Bonne, 1950.
6. Francis Carco, Montmartre à vingt ans, op. cit.
7. Idem, ibidem.
8. Philippe Soupault, Mémoires de l’oubli, Paris, Lachenal & Ritter, 1986.
9. André Salmon, Montparnasse, op. cit.
10. Jean Cocteau, carta a Albert Gleizes, 1916, citada por Billy Klüver, Un
jour avec Picasso, Paris, Hazan, 1994. [Ed. bras.: Um dia com Picasso, Rio de
Janeiro, José Olympio, 2003.]
11. Philippe Soupault, Mémoires de l’oubli, op. cit., carta-autógrafo
endereçada ao marechal Pétain, assinada e datada de fevereiro de 1942.
12. André Breton, Les pas perdus, Paris, Gallimard, 1969.
13. Carta de 15 de setembro de 1915. Citada por Billy Klüver, Un jour avec
Picasso, op. cit.
14. Jean Cocteau, Picasso, op. cit.

O galo e o arlequim

1. Jean Hugo, Le regard de la mémoire, Paris, Actes Sud, 1989.


2. Jean Cocteau, Picasso, op. cit.
3. Maurice Sachs, Le Sabbat, Paris, Gallimard, 1960.
4. Idem, ibidem.
5. Gertrude Stein, Autobiographie d’Alice Toklas, Paris, Gallimard, 1934.
6. Jean Cocteau, Picasso, op. cit.
7. Françoise Gilot, Vivre avec Picasso, op. cit.
8. Jean Cocteau e Guillaume Apollinaire, Correspondance, Paris, Jean-Michel
Place, 1991.
9. Jean Cocteau e Guillaume Apollinaire, carta de 13 de abril de 1917,
Corres­pondance, op. cit.

O ferimento do poeta

1. Guillaume Apollinaire, Tendre comme le souvenir, op. cit., carta a


Madeleine de 24 de janeiro de 1916.
2. André Derain, carta a Vlaminck datada de 1o de maio de 1917.

A arte do falso

1. Guillaume Apollinaire, “Chroniques et paroles sur l’art”, 1911, e “La vie


artis­tique”, 1912, Oeuvres en prose completes, Paris, Gallimard, 1991. (Col.
“Bibliothèque de la Pléiade”)
2. Jean Paulhan, Braque le patron, op. cit.

Para os lados da América


1. Paris-New York, Paris, Éditions du Centre Georges Pompidou-Gallimard,
1991.
2. Blaise Cendrars, Le lotissement du ciel, Paris, Denoël, 1949.
3. Raymond Roussel, Comment j’ai écrit certains de mes livres, Paris, Jean-
Jaques Pauvert, 1963.
4. Pierre Cabanne, Duchamp et Cie, Paris, Terrail, 1996. Marcel Duchamp,
Entretiens avec Pierre Cabanne, [S.l.], Éditions d’art, 1995.
5. Marcel Duchamp, Entretiens avec Pierre Cabanne, op. cit.
6. Idem, Duchamp du signe, Paris, Flammarion, 1994.
7. Blaise Cendrars, Le lotissement du ciel, op. cit.

Dadá & Cia.


1. Tristan Tzara, Sept Manifestes Dada, Paris, Jean-Jaques Pauvert, 1979.
2. Idem, ibidem.
3. Marcel Duchamp, Duchamp du signe, op. cit.
4. Nouvelle Revue Française, 1o de setembro de 1919.
5. Ibidem, abril de 1920.

Os companheiros do Val-de-Grâce
1. Guillaume Apollinaire, carta a Tristan Tzara de 14 de janeiro de 1917,
citada por Marc Dachy, Tristan Tzara dompteur des acrobates, Paris,
L’Échoppe, 1992.
2. Guillaume Apollinaire, carta a Tristan Tzara de 6 de fevereiro de 1918,
citada por Michel Sanouillet, Dada à Paris, Paris, Flammarion, 1993.
3. André Breton, Entretiens avec Madeleine Chapsal, julho de 1962, in
Madeleine
Chapsal, Les écrivains en personne, Paris, UGE, 1973.
4. André Breton, Les pas perdus, op. cit.
5. Idem, ibidem.
6. Idem, Entretiens avec Madeleine Chapsal, op. cit.

Na Casa dos Amigos dos Livros


1. Adrienne Monnier, “Memorial de la rue de L’Odéon”, Rue de l’Odéon,
Paris, Albin Michel, 1989.
2. Idem, ibidem.
3. André Breton, Entretiens avec André Parinaud, Paris, Gallimard, 1969.
4. Valery Larbaud, carta a Sylvia Beach de 2 de fevereiro de 1921. James
Joyce, Oeuvres completes, Paris, Gallimard, 1995. (Col. “Bibliothèque de la
Pléiade”)
5. Paul Claudel, carta a Adrienne Monnier de 4 de maio de 1929. James
Joyce, Oeuvres completes, op. cit.
6. Paul Claudel, carta a Adrienne Monnier de 28 de dezembro de 1931.
James Joyce, Oeuvres completes, op. cit.
7. André Breton, Point du jour, Paris, Gallimard, 1970.

Um pintor e seu marchand

1. Max Jacob, carta a Jaques Doucet, Correspondance, op. cit.

Les mamelles de Tirésias


1. Guillaume Apollinaire, L’enchanteur pourrissant, Paris, Gallimard, 1972.
2. Pierre Albert-Birot, “Guillaume Apollinaire”, caderno especial de Rimes et
Raisons, Paris, Éditions de la Tête Noire, 1946.
3. André Breton, Entretiens avec André Parinaud, op. cit.
4. Pierre Cabanne, Le siècle de Picasso, op. cit.
5. André Breton, Perspective cavalière, Paris, Gallimard, 1970.

Kiki
1. Kiki, Souvenirs, Paris, Henri Broca, 1929.
2. Idem, ibidem.
3. Lou Mollgaard, Kiki Reine de Montparnasse, Paris, Robert Laffont, 1988.
[Ed. bras.: Kiki de Montparnasse, São Paulo, Martins Fontes, 1990.]

A morte em Montparnasse
1. Jeanne Modigliani, Modigliani sans légende, op. cit.

Pugilato na casa Drouot


1. Daniel-Henry Kahnweiler, Mes galeries et mes peintres, entretiens avec
Francis Crémieux, op. cit.
2. Robert Desnos, Écrits sur les peintres, op. cit.

Cenas surrealistas

1. André Breton, Les pas perdus, op. cit.


2. Michel Sanouillet, Dada à Paris, op. cit.
3. André Breton, Les pas perdus, op. cit.
4. Michel Sanouillet, Dada à Paris, op. cit.

O adormecido desperto

1. André Breton, Perspective cavalière, op. cit.


2. Pierre Assouline, Simenon, Paris, Julliard, 1992.
3. Gaëtan Picon, Journal du Surréalisme, Genebra, Skira, 1976.
4. Robert Desnos, “Rose Sélavy”, in Corps et biens, Paris, Gallimard, 1953.
5. André Breton, Perspective cavalière, op. cit.
6. Raymond Roussel, Comment j’ai écrit certains de mes livres, op. cit.
7. André Breton, Les pas perdus, op. cit.
8. Idem, Entretiens avec André Parinaud, op. cit.

O costureiro das artes

1. François Chapon, Jacques Doucet ou l’art du mécénat, Paris, Perrin, 1996.


2. Max Jacob, Correspondance, op. cit.
3. Blaise Cendrars, Le lotissement du ciel, op. cit.
4. André Breton, Entretiens avec André Parinaud, op. cit.
5. Louis Aragon, Aurélien, Paris, Gallimard, 1944.
6. Idem, ibidem.
7. François Chapon, Jacques Doucet ou l’art du mécénat, op. cit.

O costureiro e o fotógrafo

1. Paul Poiret, En habillant l’époque, Paris, 1930; Grasset, 1986.


2. Idem, Art et phynance, Paris, Lutetia, 1934.

Um americano em Paris
1. Man Ray, Autoportrait, Paris, Seghers, 1986.
2. Citado em Man Ray, Centro Nacional da Fotografia, 1988.
3. Man Ray, Autoportrait, op. cit.

Um coquetel, vários Cocteaus


1. André Salmon, Montparnasse, op. cit.
2. Pierre Brasseur, Ma vie en vrac, op. cit.
3. Idem, ibidem.
4. André Salmon, Souvenirs sans fin, op. cit.
5. Jean Hugo, Le regard de la mémoire, op. cit.
6. Jean Cocteau, La difficulté d’être, Paris, LGF, 1995.
7. Idem, ibidem.

US at home

1. Ernest Hemingway, Paris est une fête, op. cit.


2. Gertrude Stein, Autobiographie d’Alice Toklas, op. cit.
3. Ernest Hemingway, Paris est une fête, op. cit.

Um judeu errante

1. Francis Carco, Montmartre à vingt ans, op. cit.


2. Georges Papazoff, Pascin!... Pascin!... C’est moi!..., Genebra, Pierre Cailler,
1959
3. Pierre Mac Orlan, “Le Tombeau de Pascin”, Pascin, par Yves Kobry e
Elisbeva Cohen, Paris, Hoëbeke, 1995.

Fotos e mais fotos...

1. Philippe Soupault, Histoire d’un blanc, Paris, Lachenal & Ritter, 1986, p.
71. (Col. “Mémoires de l’oubli”)
2. Jean Hugo, Le regard de la mémoire, op. cit.
3. Mercure de France. Anthologie 1890-1940, Paris, Mercure de France,
1997.

Doutor Argirol e Mister Barnes


1. Kiki, Souvenirs, op. cit.

A cruz de Soutine
1. Émile Szittya, Soutine et son temps, Paris, La Bibliothèque des Arts, 1955.
Soutine, Catalogue raisonné, Colônia, Taschen, 1993.

Escândalo no La Closerie des Lilas


1. Louis Aragon, L’homme communiste, Paris, Gallimard, 1946.
2. André Breton, Entretiens avec André Parinaud, op. cit.
3. Jean-Jacques Brochier, L’aventure des surréalistes, Paris, Stock, 1977.
4. André Breton, Entretiens avec André Parinaud, op. cit.

Pequena geografia surrealista

1. Louis Aragon, Le paysan de Paris, Paris, Gallimard, 1953. [Ed. bras.: O


campo­nês de Paris, Rio de Janeiro, Imago, 1996.]

Os gazeteiros da rua do Château


1. La Révolution Surréaliste, 1o de dezembro de 1926.
2. Georges Grosz, artigo publicado no Europa Almanach, 1925. Citado in
Paris-Berlin, Paris, Éditions du Centre Georges Pompidou-Gallimard, 1992.
3. Marcel Duhamel, Raconte pas ta vie, Paris, Mercure de France, 1972.
4. NRF, 1o de novembro de 1927.
5. Bernard Leuilliot, Aragon, correspondance générale, Paris, Gallimard,
1994.
6. Salvador Dalí, prefácio para René Crevel, La mort difficile, Paris, Jean-
Jacques Pauvert, 1974.

Ajustes de contas

1. Salvador Dalí, prefácio para René Crevel, La mort difficile, op. cit.
2. Março de 1928.
3. André Breton, La Révolution Surréaliste, no 11.
4. Philippe Soupault, Mémoires de l’oubli, op. cit.
5. André Breton, Entretiens avec André Parinaud, op. cit.
6. André Breton, “Second Manifeste du Surréalisme”, in Manifestes du
Surréalisme, Paris, Jean-Jacques Pauvert, 1979. [Ed. bras.: “Segundo
Manifesto do Surrealismo”, in Manifestos do Surrealismo, Rio de Janeiro,
Nau, 2001.]
7. Maurice Nadeau, Histoire du Surréalisme, Paris, Seuil, 1970.
8. Roger Vailland, “L’hymne ‘Chlappe-Martia’”, Paris-Midi, 15 de setembro de
1928.
9. André Breton, Entretiens avec André Parinaud, op. cit.
10. Idem, “Second Manifeste du Surréalisme”, op. cit.

O Citroën da limonada

1. André Warnod, Les berceaux de la jeune peinture, op. cit.


2. Louis Aragon, La mise à mort, Paris, Gallimard, 1965.

Ao acaso

1. André Thirion, Révolutionnaires sans révoluton, Paris, Le Pré aux Clercs,


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2. Lilly Marcou, Elsa Triolet, les yeux et la mémoire, Paris, Plon, 1994.
3. Louis Aragon, La mise à mort, op. cit.
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Título original: Bohèmes

Tradução: Hortencia Santos Lencastre

Capa: Ivan Pinheiro Machado. Ilustração: © Rue


des Archives/RDA

Preparação: Patrícia Yurgel

Revisão: Lia Cremonese

Cip-Brasil. Catalogação na publicação

Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

F893p

Franck, Dan, 1952-

Paris boêmia: os aventureiros da arte moderna


(1900-1930) / Dan Franck; tradução Hortencia
Santos Lencastre. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2015.

Tradução de: Bohèmes

ISBN 978-85-254-3507-1

1. Boemia - França - Paris - História - Séc. XX. 2.


Paris (França) - Vida intelectual - Séc. XX. I. Título.
14-09958 CDD: 944.360814

CDU: 94(443.6)

© Calmann-Lévy, 1998

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Table of Contents
I - Os Anartistas da Butte Montmartre
O maquis de Montmartre
Litrillo
A vida em azul
Dois americanos em Paris
Cyprien
Guillaume, o bem-amado
A bela Fernande
O Bateau-Lavoir
A jaula das feras
No caminho dos saltimbancos
O tempo dos duelos
Gósol
Uma tarde na rua de Fleurus
O bordel de Avignon
O gentil Douanier
O roubo da Mona Lisa
Separações
Cubismo
Guias de cordada
Os cubistores
Guillaume Apollinaire toma a dianteira
O poeta e o marchand
A Pele do Urso
II - Montparnasse vai à guerra
A Ruche
Ubu rei
2 de agosto de 1914
Sob a luz sombria dos lampadários
Chaïm e Amedeo
A Villa Rose
As damas e o artilheiro
O escritor da mão cortada
O príncipe frívolo
O galo e o arlequim
O ferimento do poeta
A arte do falso
Para os lados da América
Dadá & Cia.
Os companheiros do Val-de-Grâce
Na casa dos amigos dos livros
Dias de festa em Paris
Amor à primeira vista
Um pintor e seu marchand
Rua Joseph-Bara, número 3
Les mamelles de Tirésias
Paris-Nice
Final de jogo
III - Montparnasse, cidade aberta
Kiki
A morte em Montparnasse
Pugilato na casa Drouot
Cenas surrealistas
O adormecido desperto
O costureiro das artes
O costureiro e o fotógrafo
Um americano em Paris
Uma tampa de radiadorassinada por Rodin
Um coquetel, vários Cocteaus
US at home
Um judeu errante
No Jockey
Fotos e mais fotos...
Doutor Argirol e Mister Barnes
A cruz de Soutine
Escândalo no La Closerie des Lilas
Pequena geografia surrealista
Os gazeteiros da rua do Château
Ajustes de contas
O Citroën da limonada
Ao acaso
O último dos boêmios
Agradecimento
Notas
Bibliografia

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