História Contemporânea:
da Era das Revoluções
ao Mundo do Capital
Material Teórico
A Era do Capital
Responsável pelo Conteúdo:
Prof. Ms. Avelar Cezar Imamura
Revisão Textual:
Profa. Ms. Luciene Oliveira da Costa Santos
A Era do Capital
• A Era do Capital - 1848/1870
• Depois das Revoluções
• Um Mercado Mundial
• E o Progresso era Burguês...
• Modernidades
• Considerações Finais
·· Entender a configuração do mundo após a dupla revolução burguesa e a expansão
do capitalismo.
Caro(a) aluno(a),
Leia atentamente o conteúdo desta unidade, que lhe possibilitará entender a configuração
do mundo após a dupla revolução burguesa e a expansão do capitalismo.
Você também encontrará nesta unidade uma atividade composta por questões de múltipla
escolha, relacionada com o conteúdo estudado. Além disso, terá a oportunidade de trocar
conhecimentos e debater questões no Fórum de Discussão.
É extremante importante que você consulte os materiais complementares, pois são ricos
em informações que lhe possibilitarão o aprofundamento de seus estudos sobre o assunto.
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Unidade: A Era do Capital
Contextualização
Caro(a) aluno(a),
Para iniciar esta unidade, a partir texto abaixo, reflita sobre a natureza do capitalismo em
meados do século XIX (era do capital).Trata-se de um trecho do Capital de Karl Marx:
Depois que o capital precisou de séculos para prolongar a jornada
até seu limite máximo moral e para ultrapassá-lo até os limites do
dia natural de doze horas, ocorreu então, a partir do nascimento
da grande indústria no século XVIII, um assalto desmedido e
violento como uma avalancha. Toda barreira interposta pela moral
e pela natureza, pela idade ou pelo sexo, pelo dia ou pela noite
foi destruída. Os próprios conceitos de dia e noite, rusticamente
simples nos velhos estatutos, confundiram-se tanto que um juiz
inglês, ainda em 1860, teve de empregar argúcia verdadeiramente
talmúdica, para esclarecer “juridicamente” o que seja o dia o que
seja a noite. O capital celebrava suas orgias.
Karl Marx – O Capital – Livro I, p. 211.
Oriente sua reflexão pelas seguintes questões:
• Qual a natureza do capitalismo que aparece na citação?
• Como era a jornada de trabalho?
• O que mudou em relação ao passado, quanto à jornada de trabalho?
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A Era do Capital - 1848/1870
Nesta unidade, você verá como o Capitalismo se impôs como nova forma de economia e
espalhou-se pelo mundo.
O avanço do Capitalismo como prática econômica significa não somente a expansão de
modelos econômicos e práticas de mercado, mas também de uma visão de mundo, de uma
ideologia própria que procura assim justificar o domínio econômico através de um discurso
científico e/ou moral.
Depois das Revoluções
Entre 1789 e 1848, o mundo passou por sucessivas ondas revolucionárias, como
vimos na unidade anterior. As revoluções significaram, na sua maior parte, a consolidação
do poder político da burguesia, o que significava a república com forma de estado e a
democracia como forma de governo, abolindo as constituições monarquistas e/ou impondo
sérias restrições às monarquias constituídas, como foi o caso da Revolução Francesa. Após o
êxtase revolucionário dos anos 1789 e 1793, seguidos da expansão napoleônica que varreu
quase toda a Europa (com exceção da Rússia e da Inglaterra), após a derrota de Napoleão
(Batalha de Waterloo), em 1815, a aristocracia europeia se encontra no famoso Congresso
da Restauração (Beethoven fez a música de recepção para o Congresso da Restauração),
recuperando seu poder em toda a Europa.
Ainda que as revoluções de fato tenham sido feitas pelas camadas mais baixas da sociedade,
as reivindicações de caráter econômico e mesmo aquelas referentes a uma maior democracia
não foram atendidas. 1848 marca a última dessas etapas revolucionárias que significaram, na
realidade, a consolidação do poder burguês.
Isso significou a consolidação da democracia como forma governo, ainda que muitas vezes
essa democracia convivesse com os resquícios dos governos monárquicos, como ocorreu na
Inglaterra, onde uma democracia parlamentarista conviveu com a monarquia, sendo que,
no século XIX, há a figura emblemática da Rainha Vitória, que governou de 1839 a 1901,
tornando-se assim o símbolo de uma época onde a Inglaterra expande seus domínios e exporta
seu modelo econômico mais eficaz: o capitalismo industrial.
Essa consolidação da democracia parlamentarista e da república não se deu de maneira
uniforme e nem se deu sem sobressaltos: na França, a pátria mãe da república como a
conhecemos. A democracia e a república sofreriam diversos reveses: depois do Congresso
da Restauração, em 1815, Luís XVIII voltou ao trono da França, ainda que tenha conservado
os direitos adquiridos e mantido o parlamento. A monarquia se manteve até a revolução de
1848, quando foi finalmente derrubada. Ainda assim, em 1851, Luís Bonaparte (sobrinho
de Napoleão) deu um golpe de estado e assumiu por dez anos a presidência da república, e
através de um referendo foi proclamado imperador com o título de Napoleão III e a fundação
do Segundo Império:
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Unidade: A Era do Capital
O Segundo Império não podia ser um puro e simples retorno ao
absolutismo, já que não se podia deixar de lado as novas instâncias
do progresso econômico e institucional; durante este período
produziu-se um grande desenvolvimento industrial, criou-se um
bom número de instituições de crédito e modernizaram-se os
transportes. Napoleão III dirigiu o país através de governadores,
com o apoio da burguesia orleanista (que apoiava a monarquia),
dos católicos, comerciantes e camponeses.
(FRANCO, 2007)
Com a Guerra Franco-Prussiana de 1870, o Segundo Império chegaria ao fim e seria
proclamada a Terceira República.
Marx faria uma análise implacável do golpe de estado de Luís Bonaparte no clássico O
Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, em que analisa a participação da burguesia nesse
golpe de estado, o qual serviu principalmente para refrear as diversas lutas sociais travadas
pela classe operária.
Temos que lembrar (Unidade II – A Revolução Industrial) que, a partir das reivindicações
feitas pelo movimento cartista na Inglaterra, que levou à primeira greve geral inglesa em
1842, que a democracia daquela época não era como a de hoje: uma das reivindicações dos
cartistas era elegibilidade dos não proprietários, ou seja, era uma democracia seletiva que
privilegiava as classes abastadas.
As classes trabalhadoras estiveram à frente das várias revoltas que ajudaram a consolidar o
poder burguês em detrimento da aristocracia, mas sempre a burguesia fechava acordos com os
setores mais retrógrados da sociedade (incluindo a aristocracia e os monarquistas de maneira
geral), temendo os avanços da classe trabalhadora, que só podia contar consigo mesma, como
na luta dos cartistas, que incluía o direito de voto, o sufrágio universal, sem distinções quanto
a posses ou classes sociais.
O chamado Dezoito Brumário de Luís Bonaparte representa um desses momentos
em que a burguesia fecha acordo com os setores mais atrasados da sociedade temendo os
avanços das lutas sociais, que voltariam a explodir na França ainda sob a ocupação prussiana
(1870/1871), que foi a causadora da queda de Luís Bonaparte.
Mas a consolidação do poder burguês significava também o avanço na fronteira econômica,
onde o capitalismo, no período após a Revolução Industrial, começou uma expansão e
propriamente sua sedimentação como meio de produção.
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Um Mercado Mundial
O Capitalismo que surge a partir da Revolução Industrial é propriamente um capitalismo
industrial, ou seja, cuja base econômica é a produção de bens de consumo em larga escala,
como a produção de máquinas e instrumentos para a indústria e obras de infraestrutura (como
aço e escavadeiras).
Os benefícios trazidos pela Revolução Industrial, os avanços tecnológicos permitiram uma
expansão do capital, ao estabelecerem condições para a circulação dos capitais.
Sem dúvida, uma dessas invenções foi a estrada de ferro, que permitiu a circulação de
mercadorias e pessoas numa velocidade nunca antes imaginada.
A partir de 1850, de acordo com Hobsbawm, se veria uma onda de progresso e expansão
do capitalismo como nunca se tinha visto antes. Claro que, ao tratarmos dessa expansão,
estamos falando em primeiro lugar da Inglaterra, onde as condições dadas eram favoráveis ao
desenvolvimento do capital: avanço tecnológico, mão de obra barata, estrada de ferro e portos
abertos para o mundo, uma marinha mercante capaz de levar mercadorias a qualquer lugar.
Uma alta taxa de lucro e o aumento dos empregos favorecia a expansão industrial. Falando
da produção do algodão inglês, Hobsbawm (2001) diz que:
[...] entre 1820 e 1850, essas importações (do algodão inglês)
cresceram em 1.100 milhões de jardas, mas entre 1850 e 1860
elas cresceram mais de 1300 milhões. O número de máquinas de
algodão cresceu de 100 mil entre os períodos de 1819 a 1821 e
1844 e 1846 para o dobro disso na década de 1850
(HOBSBAWM, 2001, p. 55).
Ou seja, um crescimento espantoso, resultado por um lado, dos investimentos feitos e pela
demanda crescente pelos produtos industrializados.
Tanto a estrada de ferro quanto o telégrafo permitiram que o comércio capitalista avançasse,
garantindo assim condições para expansão da indústria; a base do desenvolvimento de
economias como a da Inglaterra eram as exportações, não havia ainda um mercado interno
forte o suficiente para manter a demanda da produção, o que tornava crucial a existência do
mercado externo. No dizer de Hobsbawm (2001):
Qualquer coisa vendável era negociada, mesmo as que sofriam
direta resistência do país comprador, como o ópio da Índia britânica
exportado para a China, que mais que dobrou em quantidade e quase
triplicou de preço. Por volta de 1875, um bilhão de libras esterlinas
tinha sido investido no exterior pela Inglaterra – três quartas partes
desse montante desde 1850 – , enquanto o investimento externo
francês quase decuplicava entre 1850 e 1880.
(HOBSBAWM, 2001, p. 60).
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Unidade: A Era do Capital
O interesse da Inglaterra na abolição da escravidão nos vários países com os quais
comercializava tem a ver com seus interesses comerciais e não com qualquer outra perspectiva
humanista: como vender para populações que são escravas? Economias escravas não possuem
mobilidade e a circulação de dinheiro é muito baixa, o capital precisa de condições para se
reproduzir e a escravidão, de uma maneira geral, é um empecilho à economia de mercado.
Como bem esclarece Caio Prado Jr. na Evolução Política do Brasil:
Todos os interesses britânicos aconselhavam a “humanitária”
política de combater o comércio de escravos. De um lado, sua
preeminência comercial nas costas da Àfrica, ofuscada pelo
prestígio dos traficantes negreiros, em geral portugueses. Doutro,
seus interesses nas colônias das Índias Ocidentais, que produziam,
como nós, o açúcar, e sofriam com isso a concorrência do Brasil,
avantajado pelo emprego do braço escravo.
(PRADO JR, 2012, p.86).
Ou seja, o “humanismo” inglês, a preocupação com os negros escravizados na verdade
traduzia a vontade do império britânico de estabelecer a livre concorrência com os outros
países e assim poder impor seus produtos, sem a concorrência do trabalho escravo; tanto que
por trás da proposta aparentemente “humana” de proibir o tráfico, havia a ação brutal contra
os navios brasileiros, mesmo em águas territoriais brasileiras, mesmo na costa brasileira:
Cometeram os cruzeiros ingleses as maiores tropelias contra os
navios brasileiros; eram estes capturados à vista do alcance das
fortalezas, e até dentro dos próprios portos, e atenta a dificuldade de
os conduzir à Serra Leoa, ou outra paragem do domínio britânico,
os incendiavam em frente às costas do Brasil, [...] servindo uma
tábua arrancada a esses navios para o corpo de delito no processo
de sua inavegabilidade.
(PRADO JR, 2012, p.87).
Em 1850, o Brasil promulgará a lei que proíbe o tráfico de escravos. Um dos efeitos
imediatos da proibição do tráfico, diz-nos Caio Prado, foi a liberação do capital antes investido
no tráfico, para outras aplicações. Não sem razão há um surto de prosperidade após o fim
do tráfico, que coincide com a construção da primeira estrada de ferro no Brasil, do Porto de
Mauá a Fragoso, e o telégrafo foi inaugurado em 1852.
Essas questões que levantamos acerca das relações da Inglaterra com o Brasil envolvendo
a suspensão do tráfico de escravos ilustra bem a maneira de como o capitalismo se impôs, de
como as relações entre interesses privados (das empresas) se fundem com políticas de Estado e
de como as causas econômicas estão por trás dos discursos ideológicos: a causa primeira para
que a Inglaterra quisesse a suspensão do tráfico havia suas razões comerciais, a necessidade
de expandir suas exportações e acabar com a concorrência de produtos baseados no trabalho
escravo. Assim que o tráfico foi suspenso e o capital antes investido no tráfico foi investido
em obras de infraestrutura, foi a tecnologia inglesa a primeira a aparecer, tanto que a primeira
estrada de ferro construída foi feita pelos ingleses e se chamou Leopoldina Railway. Aqui
também aparecem os dois ícones da modernidade de então, a linha de ferro e o telégrafo,
permitindo assim o avanço do capitalismo.
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A burguesia criou o mundo à sua imagem e semelhança, no dizer de Marx: ao expandir
seu modelo econômico e impô-lo ao mundo, bem como seus mecanismos de transporte
e comunicação, ou seja, aqueles mecanismos que permitem a reprodução do capital, fez
com que o capitalismo industrial se tornasse uma economia mundial, como fala Hobsbawm.
O capitalismo tornou-se mundial, unindo povos e geografias no mesmo modo de produção,
criando redes e interações entre os povos.
Outra marca, concomitante à Revolução Industrial e, ao mesmo tempo, consequência
dela, foi a liquidação das antigas formas de comércio ainda controladas pelas guildas e
corporações: se as mesmas controlavam as manufaturas e detinham o monopólio sobre
certos setores da produção, o avanço da produção industrial desmantelou também o poder
comercial das mesmas, de maneira que gradualmente o sistema foi se aproximando de uma
total liberdade do comércio.
Essa total liberdade de comércio, defendida com ênfase e retórica pelos capitalistas e seus
ideólogos, como Adam Smith, foi chamada de Liberalismo.
Liberalismo: Termo pertinente à doutrina que defende a liberdade
individual no campo econômico e político. Teve em Adam Smith um
Glossário de seus principais teóricos e defensores. Para Adam Smith, o homem
é sempre impulsionado por um interesse pessoal, egoísta, sequer
pensando na sociedade. Ao perseguir o que é melhor para ele, acaba
alcançando também aquilo que é de interesse social. A não-intervenção
e a livre-concorrência constituem os postulados essenciais do liberalismo
econômico. (AZEVEDO, 1999, p. 278).
Marx faria uma crítica a esses economistas que defendem postulados econômicos como se
fossem consequências da natureza e não uma determinação do homem, que é o que realmente
são: não intervenção e livre-concorrência são determinações políticas e jurídicas feitas pela
sociedade e a desigualdade é o resultado de práticas econômicas que são elas mesmas escolhas
e não ‘acidentes’: torná-las ‘naturais’ é tornar também natural a desigualdade, que possui uma
base histórica e não uma base natural.
Mas esses, que são postulados econômicos e escolhas, seriam defendidos dentro de uma
lógica maior, a partir de Darwin, a partir de uma perspectiva da história natural.
Todo o conjunto de práticas econômicas e políticas oriundas do capitalismo, a crescente
desigualdade, o domínio sobre outros povos para a expansão comercial de países como
Inglaterra e França, ou seja, principalmente dos povos europeus, recebeu uma justificativa
ideológica nas ciências e filosofias do século XIX, mas principalmente no discurso científico,
que enxergava os processos econômicos como resultados de processos biológicos. É essa
ideologia da dominação, tão presente no século XIX, que iremos examinar agora.
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Unidade: A Era do Capital
E o Progresso era Burguês...
Se o Liberalismo defendia o individualismo como base do progresso, isso era colocado
dentro de uma perspectiva econômica, mas no decorrer do século outras ciências de
alguma maneira corroborariam o discurso do liberalismo burguês, dentre elas a biologia e
a nascente antropologia.
Se a biologia é uma ciência antiga e pode remontar a Aristóteles (um de seus tratados,
chamado em latim de Parva Naturalia, fala de diferentes espécies animais e vegetais), ela
ganhará grande destaque com o lançamento de A Origem das Espécies de Charles Darwin, em
que o mesmo defendia a teoria da evolução das espécies a partir da seleção natural. Ao mesmo
tempo em que Darwin, Alfred Russel Walace também chegara a conclusões idênticas sobre o
princípio da seleção natural, só que enquanto Darwin fizera suas observações principalmente
na América do Sul, com o epicentro de suas observações nas Ilhas Galápagos, Russel Walace
fez suas observações na Oceania; ambos estiveram no Brasil no século XIX: Darwin passou
pelo Rio de Janeiro e Russel Walace fez uma viagem pelo Amazonas.
Mas como pode uma teoria biológica surgida a partir da observação da vida de espécies
animais e vegetais servir como ponto de apoio de análise da sociedade e dos homens? É
que o discurso da seleção natural das espécies, que diz que só os mais aptos perduram e/ou
vencem a luta pela existência, o que casava bem com os anseios de uma classe que procurava
naturalizar sua dominação, para a qual o discurso darwinista caía como uma luva.
Com a antropologia, ciência nova, aconteceu a mesma coisa: ao estudar os homens,
as ditas ‘raças’ com base em suas evidências físicas, a antropologia criou conceitos (nada
científicos) de inferioridade das raças não brancas e superioridade da raça branca, o que
macula a antropologia em sua origem, porque naquele momento era somente um discurso que
tentava justificar a dominação europeia sobre os outros continentes, discurso este que Hannah
Arendt coloca como um dos precursores do nazismo ao justificar a violência da dominação
europeia sobre outros povos.
Hobsbawm (2001, p. 372) afirma, não sem razão, que [...] o “darwinismo social” e a
antropologia ou biologia racista pertencem não à ciência do século XIX, mas à sua política.
Para pensar
Karl Marx dedicou O Capital a Darwin, que declinou da dedicatória. Na época
em que foi lançada a obra A Origem das Espécies, houve um tumulto pelo
fato de que o livro afirmava que a criação de novas espécies era um processo
natural e não divino, o que gerou (e ainda gera) conflitos com as religiões cristãs.
A dedicatória de Marx a Darwin reflete o fato de que Marx considerava que
Darwin abrira as portas para a emancipação humana. Mas isso não impediu que
a mesma teoria de Darwin fosse usada justamente para defender a dominação
que Marx tanto combatia.
Hannah Arendt faz uma análise pertinente dos riscos do discurso biológico e racista do século
XIX no livro Origens do Totalitarismo – Antissemitismo, Imperialismo, Totalitarismo:
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O aspecto mais perigoso dessas doutrinas evolucionistas estava
no fato de aliarem o conceito de hereditariedade à insistência
nas realizações pessoais e nos traços de caráter individuais, tão
importantes para o amor-próprio da classe média do século XIX.
Essa classe média queria cientistas que provassem que os “grandes
homens” e não os aristocratas eram os verdadeiros representantes
da nação em que se personificava “o gênio da raça”. Esses cientistas
proporcionaram uma fuga ideal das responsabilidades politicas
quando “provaram” a verdade da antiga afirmação de Benjamin
Disraeli de que “o grande homem” é “a personificação da raça,
o seu exemplar seleto”. O desenvolvimento desse gênio tece seu
fim lógico quando outro discípulo do evolucionismo simplesmente
declarou: “O inglês é o homem superior(overman). E a história da
Inglaterra é a história de sua evolução.
(ARENDT, 2012, p.261).
Não há neutralidade na ciência; o desenvolvimento da antropologia como disciplina científica
está diretamente relacionada com a autoafirmação da burguesia enquanto classe dominante e à
expansão do capitalismo como meio de produção universal. O antropólogo Jesus Azcona diz que:
A prática da ciência está ligada a um projeto que nunca é neutro e
desinteressado, mas que se insere na história e no conflito dos homens.
(AZCONA, 1992, p.39).
É interessante pensar que, nessa perspectiva ditada por Jesus Azcona, um dos melhores
exemplos a serem citados é o caso da eugenia, pseudociência fundada no século XIX pelo
inglês Sir Francis Galton, que gozou de status de ciência e foi tomada como um caminho para
melhoramento da humanidade.
Na percepção de Galton, a aptidão humana seria função da hereditariedade e não da educação.
Mas ao situar a ‘aptidão’ humana como uma característica biológica e não uma possibilidade
derivada da educação (ou seja, de fatores sociais), o discurso de Galton permitirá que homens e
mulheres sejam classificados pela sua origem biológica: assim, os pobres seriam pobres pela sua
incapacidade mesma de realizarem melhoras na sua vida e não por razões sociais. No dizer de
Nancy Leys Stepan:
Galton se convenceu, ainda na década de 1860, de que as idéias
lamarckianas estava erradas, em parte graças a sua convicção
socialmente estabelecida, de que ‘gênio’, ou o sucesso intelectual de
que desfrutavam pessoas como ele próprio, não tinha relação nem
com a educação nem com outras oportunidades sociais com que
haviam sido aquinhoadas. Preferia acreditar que a proeminência
social resultava de uma capacidade herdada que nenhuma engenharia
social poderia afetar[…].
(STEPAN, 2004, p.32).
Uma sociedade marcada pela desigualdade o discurso de Galton só poderia agradar aos
donos do poder, pois dessa maneira havia uma justificativa para a condição dos pobres: ela
não era resultante dos baixos salários nem das condições insalubres de suas habitações, mas
era, isso sim, uma consequência da hereditariedade.
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Unidade: A Era do Capital
Modernidades
O Século XX herdou os ideais da burguesia do século XIX, os absorveu como se fossem
naturais, como se desde sempre tivesse sido assim: a organização das cidades, o ideal de
progresso material, as guerras por mercado, o tempo de trabalho independente do tempo
natural, a modernidade ou as modernidades.
Ser moderno significa estar a par do que acontece, estar a par do presente; mas o
presente não é algo dado, mas algo que se constrói; para a burguesia, ser moderno era
ser afim aos seus ideais de eficiência e lucro, e o moderno, em oposição ao antigo ou
ultrapassado, sempre serviu de bandeira para justificar o avanço do capitalismo sobre áreas
economicamente atrasadas.
A modernidade, enquanto discurso, sempre justificou os maiores crimes cometidos em
nome do progresso; foi em nome da modernidade que o exército republicano destruiu Canudos
no século XIX e massacrou, no início do século XX, os revoltosos do Contestado, ambos no
Brasil. No caso do Contestado em particular, o Governo Federal, em nome do progresso,
desalojou pequenos proprietários de terra do sul do Paraná para destinar a terra à ferrovia
e aos coronéis, gerando um conflito com essas populações abandonadas, para as quais as
esperanças místicas de salvação eram o fermento para lutar contra o monstro do progresso.
Ainda hoje, em nome do progresso material, cuja ideologia e discurso foram desenhados
ainda na era do capital que estamos retratando, comunidades indígenas são desalojadas,
massacradas, como se fossem um obstáculo ao progresso.
O capitalismo não traz a modernidade, mas as modernidades, porque a desigualdade que
está no bojo do capitalismo proporciona diferentes experiências e possibilidades de vivências
históricas. Na época do Contestado, para as populações que viviam no campo, distantes das
metrópoles que concentravam a administração da República (Rio de Janeiro) ou o dinheiro
do café no início do século XX (São Paulo) não havia o menor sentido em falar em progresso
material quando essas comunidades não tinham acesso a nada; assim como ainda hoje, entre
os mendigos do bairro da Luz e o luxo tecnológico da Avenida Paulista há uma imensa
distância e uma diferente vivência do presente (tempo histórico).
Na conformação das cidades, o modelo das grandes metrópoles com largos bulevares foi
copiado da Paris do século XIX após a reforma do Prefeito Barão Haussman, que mandou
derrubar parte da velha Paris medieval, tomada de cortiços e trabalhadores, para construir
largas avenidas por onde pudessem passar os largos tanques de guerra, tão necessários para
reprimir os movimentos de massa. Só para lembrar, Paris, só século XIX, foi palco de mais
de três tentativas de revolução, destacando-se as de 1830, 1848 e 1871. No último episódio
(1871), foi a famosa Comuna de Paris. Os trabalhadores perderam suas habitações no centro
e foram empurrados para a periferia de Paris.
A reforma de Paris é importante porque se tornaria modelo para outras cidades e porque o
que determina a mesma é a reformulação da cidade para atender, por um lado, aos interesses
econômicos de mobilidade do capital e por outro lado à nascente especulação imobiliária. Por
isso que estudar a reforma de Paris nos permite compreender outras tantas reformas urbanas
que aconteceram pelo mundo:
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Autodenominando-se ‘artista da demolição’, Hausmann arrasou
os bairros mais velhos da cidade, destruindo assim testemunhos
preciosos da Paris de outros tempos, e substituiu-os por uma nova
rede viária com grandes artérias rápidas (os boulevards), na qual
ressaltam os novos pólos de atração e os grandes monumentos.
Nenhum bairro de Paris escapou `’haussmanização’ , às vezes
aplicada de forma algo obscura: as expropriações, com freqüência,
beneficiaram os amigos do barão e as faraônicas obras públicas
foram destinadas a empresas mais ou menos vinculadas a ele.
(FRANCO & ZUANAZZI, 2007, p.65).
Essa é a Paris moderna que surge no século XIX, fruto de uma racionalidade que em
primeiro lugar atende a objetivos econômicos e financeiros e que deixa em último lugar as
pessoas e os interesses humanos. Basta lembrar que a população pobre que morava no centro
velho de Paris foi simplesmente desalojada, expulsa para a periferia da cidade.
O que aconteceu em Paris na década de 1850 do século XIX, aconteceria no Rio de
Janeiro no início do século XX(1910): construção de largas avenidas, derrubada dos cortiços
e exílio da população pobre para os morros e favelas. A arquitetura urbana parisiense, de
alguma forma uma arquitetura da exclusão, serviu de modelo para outras arquiteturas da
exclusão pelo resto do mundo.
Outro detalhe arquitetônico das cidades revela o quanto a modernidade desenhada é frutos
de complexas relações econômicas e dos avanços tecnológicos permitidos pela Revolução
Industrial. Nós nos referimos ao uso do ferro como material de construção, naquilo que se
acostumou a chamar de arquitetura do ferro. Exemplos dessa arquitetura são o Palácio de
Cristal de Nova York, construído em 1853, o Palácio de Cristal de Londres e o Les Halles,
o mercado central de alimentos de Paris; em todos eles, o predomínio do ferro e do vidro
demonstram um amplo domínio da técnica e as construções representam um novo nicho no
qual a indústria siderúrgica pode prosperar.
A Arquitetura do Ferro
Fonte: Karl Gildemeister (1820-1869)/Wikimedia Commons Fonte: Wikimedia Commons
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Unidade: A Era do Capital
Considerações Finais
A era do capital significou o período em que o capitalismo se consolidou como modelo
econômico mundial através da expansão de mercados e tecnologias e de um discurso ideológico
que procurava dar coerência ao universo capitalista.
É a época em que a democracia se consolida também como forma de governo, no lugar dos
antigos governos absolutistas-monárquicos.
Foi uma época de expansão do capital e da busca pela modernidade, pelo progresso, que
se traduzia nas cidades sob a forma das novas tecnologias incorporadas ao cotidiano, como
meios públicos de transporte e o telégrafo, ainda que muitas vezes tal modernidade, que
chegava sob a forma de ‘reformas’, como foi reforma de Paris, não conseguisse esconder os
reais interesses que a moviam.
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Material Complementar
Livros:
Para complementar os conhecimentos adquiridos nesta Unidade, leia as seguintes obras:
A Era do Capital, clássico de Eric Hobsbawm, que aborda todo o período englobado
pela Unidade.
O Manifesto do Partido Comunista, de Karl Marx, que faz uma leitura das
transformações levadas a cabo pela sociedade burguesa.
Ambos enriquecerão sua compreensão sobre os aspectos da Revolução Industrial.
Bom estudo!
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Unidade: A Era do Capital
Referências
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Antissemitismo, Imperialismo, Totalitarismo.
São Paulo: Cia. De Bolso, 2012.
AZCONA, Jesús. Antropologia I. História. Petrópolis: Vozes, 1992.
AZEVEDO, Antonio Carlos do Amaral. Dicionário de Nomes, Termos e Conceitos
Históricos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
CANEDO, Letícia Bicalho. A Revolução Industrial. Campinas/São Paulo: UNICAMP/
Atual, 1987.
FRANCO, Luigi. & ZUANAZZI, Giovanni. Grande História Universal. O Século XIX.
Barcelona: Folio, 2007.
HOBSBAWM, Eric J. A Era do Capital. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
LE-GOFF, Jaques. História e Memória. Campinas:UNICAMP, 2006.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Textos 3. São Paulo: Edições Sociais, 1977.
PRADO JR, Caio. Evolução Política do Brasil e Outros Estudos. São Paulo: Cia. Das
Letras, 2012.
RICE, Edward. Sir Richard Francis Burton. O agente secreto que fez a peregrinação à
Meca, descobriu o Kama Sutra e trouxe as Mil e Uma Noites para o Ocidente. São Paulo: Cia.
De Bolso, 2008.
STEPAN, Nancy Leys. A Hora da Eugenia. Raça, Gênero e Nação na América Latina. Rio
de Janeiro: Fiocruz, 2014.
18
Anotações
19