Leia nesta edição
PÁGINA 02 | Editorial
A. Tema de capa
» Entrevistas
PÁGINA 05 | Andreas Wirsching: Oposição ao nazismo foi radicalmente emudecida por mistura de intimidação e terror
PÁGINA 08 | Ricardo Timm: A Filosofia mudou depois de Auschwitz
PÁGINA 10 | Márcio Seligmann-Silva: A fragmentação do discurso como estética literária do Pós-Guerra
PÁGINA 13 | André Rafael Weyermüller: O Direito no período nazista: instrumento de controle e legitimação ideológica
PÁGINA 17 | Moacyr Scliar: O nazismo como legitimação da irracionalidade
PÁGINA 19 | Saul Kirschbaum: O nazismo como essência da pós-modernidade
PÁGINA 22 | Alexander Von Plato: A história oral como reflexão sobre o Holocausto
PÁGINA 27 | Yeda Arouche: Perseguição nazista à arte: o modernismo como arte “degenerada”
PÁGINA 31 | Mário Fleig: “Querer fazer o mal parece algo inerente à condição humana”
PÁGINA 34 | Vladimir Safatle: Totalitarismos: uma reflexão político-social e libidinal
PÁGINA 37 | Michael Stürmer: Hitler foi subestimado
B. Destaques da semana
» Teologia Pública da Semana
PÁGINA 41 | Valdir Marques: “Paulo foi feito imagem de Cristo, como todo cristão será imagem do Filho de Deus”
» Livro da Semana
PÁGINA 44 | Ângelo Segrillo: Stalin e Roosevelt: uma troca de cartas reveladora
» Brasil em Foco
PÁGINA 46 | Luiz Werneck Vianna: Fascismo: moralismo faz a política ficar de fora da discussão
» Memória
PÁGINA 49 | Odair Firmino
» Invenção
PÁGINA 51 | Mário Alex Rosa
» Destaques On-Line
PÁGINA 54 | Destaques On-Line
C. IHU em Revista
» Perfil Popular
PÁGINA 57| Marta Izabel Castro
» IHU Repórter
PÁGINA 58| José Roque Schneider
SÃO LEOPOLDO, 21 DE JULHO DE 2008 | EDIÇÃO 265 3
4 SÃO LEOPOLDO, 21 DE JULHO DE 2008 | EDIÇÃO 265
Oposição ao nazismo foi radicalmente emudecida
por mistura de intimidação e terror
Minorias ainda professam pensamento reacionário, mas não possuem mais chances dentro da
política alemã, sentencia o historiador Andreas Wirsching. Entre as causas da ascensão do Terceiro
Reich, deve-se levar em conta elementos da cultura política alemã do final do século XIX
POR MÁRCIA JUNGES
O
DIVULGAÇÃO
advento do nazismo na Alemanha legou ao país uma “alta sensibilidade para os ris-
cos do extremismo político”, pondera o historiador alemão Andreas Wirsching, na
entrevista exclusiva a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line. Em sua opinião,
mesmo que em setores marginais da sociedade existam o nacionalismo, o racismo
e o anti-semitismo, “eles já não têm mais chances no discurso político”. E acres-
centa: “Neste sentido, a experiência da ditadura nacional-socialista também contribuiu para a
estabilidade da democracia alemã do pós-guerra”. Sobre a concordância do povo com a ascensão
do Terceiro Reich, Wirsching pontua que este teve inúmeras causas que remontam a elementos
da cultura política alemã do final do século XIX: “um pensamento antiliberal, susceptibilidade
para ideologias de um nacionalismo extremo e de um populismo racista, mas também a forte
ruptura sociopolítica da sociedade alemã que foi refortalecida pela revolução de 1918-1919.
Acresce a isto a concreta falência das elites conservadoras burguesas nos anos de 1930 a 1933 e
a crise européia da democracia, ante cuja retaguarda foram de muito peso os desenvolvimentos alemães específicos”.
Vale lembrar, contudo, que menos da metade dos eleitores deram seu voto a Hitler, e que houve, sim, oposição ao Estado
nacional-socialista. Essa oposição, entretanto, foi “radicalmente emudecida por uma mistura de intimidação e terror”.
Andreas Wirsching é historiador graduado em História e Teologia, pelas universidades de Berlim e Erlangen. Ensina na
Augsburg Universität, é professor visitante do Institut d’Études Politiques, em Paris, da Universität Eichstätt, e lecionou,
também, em Tübingen, Regensburg e no Institut für Zeitgeschichte em Munique. Organizou os livros Nationalsozialismus
in Bayerisch-Schwaben Herrschaft – Verwaltung – Kultur (Ostfildern, 2004) e Herausforderungen der parlamentarischen
Demokratie. Die Weimarer Republik im europäischen Vergleich (München, 2007).
IHU On-Line - Como podemos enten- nalismo extremo e de um populismo Andreas Wirsching - Em primeiro lu-
der que, em pleno século XX, e com racista, mas também a forte ruptura gar, é preciso constatar que, mesmo
amplo apoio do povo alemão e de ou- sociopolítica da sociedade alemã que nas eleições já não plenamente livres
tras partes do mundo, se tenha che- foi refortalecida pela revolução de e do Partido Nazista. O nome significa o che-
gado ao terror nazista? 1918-1919. Acresce a isto a concreta fe máximo de todas as organizações militares
e políticas alemãs, e quer dizer “condutor”,
Andreas Wirsching - Esta pergunta falência das elites conservadoras bur- “guia” ou “líder”. Suas teses racistas e anti-
é, sob diversos aspectos, um perma- guesas nos anos de 1930 a 1933 e a cri- semitas, bem como seus objetivos para a Ale-
nente desafio. Ela vale da mesma se européia da democracia, ante cuja manha ficaram patentes no seu livro de 1924,
Mein kampf (Minha luta). Atualmente, se dis-
forma para a pesquisa histórica como retaguarda foram de muito peso os de- cute se essa obra deve ser liberada para uma
para a formação política e a cultu- senvolvimentos alemães específicos. edição crítica do texto. Para conferir detalhes,
ra da memória. O estabelecimento acesse a notícia, de 23-06-2008, “Acadêmicos
alemães pedem liberação do livro de Hitler”.
da ditadura nacional-socialista teve IHU On-Line - Por que as pessoas não No período da ditadura de Hitler, os judeus e
muitas causas. Há, a destacar, alguns reagiram à proposta assassina de Hi- outros grupos minoritários considerados “inde-
elementos da cultura política alemã tler1? sejados”, como ciganos e negros, foram perse-
guidos e exterminados no que se convencionou
que remontam a fins do século XIX: chamar de Holocausto. Cometeu o suicídio no
um pensamento antiliberal, suscepti- 1 Adolf Hitler (1889-1945): ditador austría- seu quartel-general (o Führerbunker) em Ber-
bilidade para ideologias de um nacio- co. O termo Führer foi o título adotado por lim, com o Exército Soviético a poucos quar-
Hitler para designar o chefe máximo do Reich teirões de distância. (Nota da IHU On-Line)
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do Reichstag de 5 de março de 1933 — nha se concebeu, desde o início, como
portanto, após a nomeação de Hitler sucessora jurídica do Reino Alemão e,
como Chanceler do Reino —, menos da “De fato há, na conseqüentemente, também assumiu
metade dos eleitores deram seu voto a a responsabilidade pelas conseqüên-
Hitler, escolhendo a NSDAP2. E natural- Alemanha, um ambiente cias dos crimes do regime nacional-so-
mente também houve oposição contra cialista. Isso vale, apesar do fato co-
o injusto Estado nacional-socialista, fortemente minoritário nhecido que, nos anos de 1950, muitos
oposição que, em todo o caso, já em culpados do nacional-socialismo esca-
1933 foi radicalmente emudecida por de extrema direita com param sem punição e certa “repres-
uma mistura de intimidação e terror. são” do passado talvez tenha inevita-
Não se deve esquecer que os primeiros tendências claramente velmente ocorrido. Em todo o caso,
prisioneiros dos campos de concentra- houve na República Federal um núme-
ção foram alemães que, de uma forma xenófobas” ro considerável de ações reparadoras,
ou de outra, se posicionaram contra o restituições de bens etc., embora nem
regime. Mas, ao mesmo tempo, cer- todas as reclamatórias tenham sido
tamente também houve na sociedade saldadas. Nos anos de 1990, chegou à
alemã uma enorme quantidade de en- ordem do dia o tema das vítimas dos
tusiasmado apoio ao regime nacional- Embora ainda hoje, em setores so- trabalhos forçados, que exigiram pro-
socialista. Isso permitiu a Hitler e aos ciais marginais ainda (ou novamente) gressivamente uma indenização indi-
nacional-socialistas fundar seu poder existam o nacionalismo, o racismo e o vidual do Estado alemão ou também
num misto de violência e apoio. anti-semitismo, eles já não têm mais das empresas envolvidas. Baseado-se
chances no discurso político. Neste no fundo formado pela indústria, fo-
IHU On-Line - O que era a Hitlerju- sentido, a experiência da ditadura na- ram criadas na época algumas ações
gend? Como é possível compreender cional-socialista também contribuiu de reparação que, em face da injus-
a adesão dos jovens ao nazismo da- para a estabilidade da democracia tiça de fato sofrida pelas vítimas, em
quela época? alemã do pós-guerra. geral só podiam ter caráter simbólico.
Andreas Wirsching - No decurso da Atualmente, se discutem as reclama-
dominação nacional-socialista, a Hi- IHU On-Line – Como é contado na tórias de vítimas gregas e italianas de
tlerjugend se tornou uma organização Alemanha o período histórico do na- trabalhos forçados e isto mostra que
estatal dos jovens com uma adesão zismo? este tema ainda está longe de ser en-
em princípio compulsória. De regra, Andreas Wirsching - No discurso públi- cerrado.
portanto, os jovens deviam aderir à co, estão em primeiro plano o pensa-
HJ. Seu posicionamento à HJ podia, mento nas vítimas e a responsabilida- IHU On-Line – Que traumas você des-
então, realmente oscilar de uma co- de histórica dos alemães. Na discussão tacaria ao falar das pessoas que na
operação entusiasta a uma rejeição científica, há um bom tempo a inves- época sofreram com o nazismo?
interior. Embora não tenha sido atin- tigação dos culpados vem conquistan- Andreas Wirsching - Os traumas são
gida a plena adesão da juventude, a do um grande significado. Esta última de natureza multiforme. Eles abran-
Hitlerjugend constituiu, todavia, um também foi incentivada pelo resultado gem desde a perda de familiares mais
forte fundamento ideológico e organi- dos grandes processos nacional-socia- próximos até danos da própria pessoa
zatório do Regime. listas desde os anos de 1960 — como pelas conseqüências de prisões, tra-
os processos de Auschwitz. Os dois balhos forçados e torturas. De sobre-
IHU On-Line – De que modo as ações juntos causam uma forte concretiza- viventes do Holocausto, sabemos que
de Hitler contribuíram para a forma- ção da concepção histórica. Hoje se as conseqüências podem ser sentidas
ção da Alemanha atual? O que você quer saber com muito maior exatidão durante toda a vida e também na pró-
destacaria? quem foram concretamente as vítimas xima geração.
Andreas Wirsching - O mais importan- e quem foram os culpados.
te talvez seja uma alta sensibilidade IHU On-Line – De que forma a socie-
para os riscos do extremismo político. IHU On-Line – De que modo o gover- dade lida com o tema do nazismo?
no e a Alemanha lidam com as víti- Este ainda é um assunto “tabu”, um
mas do nacional-socialismo? trauma coletivo?
2 NSDAP: Nationalsozialistische Deutsche Ar-
beiterpartei, em português Partido Nacional Andreas Wirsching - Na República Andreas Wirsching - Não seria minha
Socialista Alemão dos Trabalhadores. Mais Federal, existe uma longa tradição opinião que o nacional-socialismo ain-
conhecido como Partido Nazista ou Partido de “reparação”, um conceito que em
Nazi, foi um partido político levado ao poder da seja hoje um tabu da sociedade
na Alemanha por Adolf Hitler em 1933. O ter- todo o caso levanta alguns problemas, alemã. Ao contrário, nas ciências, na
mo Nazi é uma contração da palavra alemã já que naturalmente a injustiça come- opinião pública e na mídia, mas tam-
(NA)tionalso(ZI)alist (Nacional Socialista), re- tida jamais poderá ser transformada
fletindo a ideologia do NSDAP. O partido es- bém nas escolas o tema é tratado de
tabeleceu o Terceiro Reich após ter sido de- em algo que não aconteceu. Apesar maneira bastante ampla. Há um nú-
mocraticamente eleito para liderar o governo disso, a República Federal da Alema- mero extenso inabrangível de memo-
alemão em 1933. (Nota da IHU On-Line)
6 SÃO LEOPOLDO, 21 DE JULHO DE 2008 | EDIÇÃO 265
riais, a começar pelo Memorial KZ, de res comunistas da resistência. Judeus Estado nacional-socialista. Determina-
Dachau, até o novo memorial admoni- e outras vítimas do racismo nacional- das extrapolações cosmovisivas — anti-
tório do Holocausto em Berlim. Outros socialista possuíam, principalmente na liberalismo, antibolchevismo, em parte
novos memoriais e, respectivamen- fase inicial da DDR, um status de víti- também anti-semitismo — facilitavam
te, centros de documentação, foram mas nitidamente menos valorizado. este arranjo. Uma resistência eclesiás-
erigidos em Nürenberg, no monte de tica em sentido mais estrito só existiu
Obersalz, ou futuramente também em IHU On-Line – Ainda existem na Ale- em pessoas individuais que, em parte,
Munique. Assim, o nacional-socialismo manha segmentos que defendem pagaram por isso com a vida, como o
realmente não é mais tabu. Isso, em uma política xenófoba? O que faz a protestante Dietrich Bonhoeffer4 ou o
todo o caso, não exclui que em grandes sociedade para mudar este quadro? católico Alfred Delp5. Uma “resistên-
datas comemorativas predomine antes Andreas Wirsching - De fato há, na Ale- cia” eclesiástica só havia quando o re-
na política pública um trato ritualís- manha, um ambiente fortemente minori- gime ameaçava setores nucleares da li-
tico com o tema, que se movimenta tário de extrema direita com tendências berdade de culto. Um ponto importante
dentro de determinados limites. claramente xenófobas. Ultimamente, ele é o protesto das igrejas contra o crime
também se organizou num partido políti- da eutanásia, que em 1941 também foi
IHU On-Line – Como se deu esse pro- co, como o NPD3 e, em eleições políticas, publicamente articulado nas igrejas e
cesso de “hierarquias de vítimas” e como, por exemplo, no Estado da Saxô- causou um imediato recuo do regime.
de “competições entre vítimas” na nia, ele também pode pretender alguns No entanto, não se ouviu um protesto
Alemanha? resultados. Política e socialmente, este público semelhante por parte das igre-
Andreas Wirsching - Esta é uma ques- meio é combatido e é realçado o quadro jas contra a perseguição dos judeus.
tão muito importante e interessante. No de uma Alemanha hospitaleira e aberta
imediato período pós-guerra, os alemães ao mundo. Isto ocorre através de atos pú- IHU On-Line – E, especificamente, o
se consideraram eles próprios, com bas- blicos, de publicidade e também de me- que você diria sobre o papel do Papa
tante predominância, como as principais didas políticas concretas, como o cumpri- Pio XII6, Eugênio Pacelli, no momento
vítimas da guerra — como vítimas de mento da proteção constitucional. político da Alemanha nazista?
expulsão e de bombardeios, mas tam- Andreas Wirsching - Aqui vale basi-
bém como vítimas de arbitrariedades IHU On-Line – De que forma você camente o mesmo. Sob Pio XII, o Va-
dos aliados. Demorou basicamente até percebe o posicionamento da Igreja ticano se empenhou por uma postura
os anos de 1960/1970 até que na am- Católica e da Igreja protestante em de compromisso com o regime nacio-
pla opinião pública tenha surgido uma relação ao nazismo? nal-socialista. É verdade que ele con-
consciência das vítimas do próprio na- Andreas Wirsching - Ambas as Igrejas templou as lesões da concordata pelo
cional-socialismo. Desde então, como já demonstraram pouca força de oposição Estado nacional-socialista através da
foi frisado, a sensibilidade pelas vítimas em face do regime nacional-socialis- encíclica Mit brennender Sorge (Com
concretamente palpáveis cresceu nitida- ta. No protestantismo alemão, houve ardente preocupação), porém se omi-
mente, tendo, naturalmente, também a a tendência de confundir a história da tiu em tomar posição explícita contra
mudança de gerações contribuído para própria nação com a revelação divina. o nacional-socialismo ou erguer publi-
isto. Bastante cedo foi lembrado o sacri- Formulado teologicamente, isto foi camente sua voz contra a perseguição
fício dos crimes de eutanásia, bem como uma espécie de heresia que represen- dos judeus. Neste sentido, a posição do
o dos alemães que perderam sua vida no tava, simultaneamente, uma disposição Vaticano, bem como a do catolicismo
contexto de 20 de julho de 1944. No cen- perigosa para as tentações ideológicas ante o regime nacional-socialista, se
tro das atenções, estão hoje certamente do nacional-socialismo. Em vista disso, manteve, em seu conjunto, ambígua.
as vítimas do povo judeu, onde a recor- não é de admirar que até 1933 os pro-
dação publicamente construída sobre os testantes votaram superproporcional-
judeus alemães que foram deportados mente no NSDAP, na posição nacional- 4 Dietrich Bonhoeffer (1906-1945): teólogo,
pastor luterano, membro da resistência anti-
da Alemanha e assassinados poderia ser socialista alemã. Para a Igreja Católica nazista alemã e membro fundador da Igreja
bem mais concreta do que é a consciên- oficial, o nacional-socialismo, até a to- Confessante, ala da igreja evangélica contrá-
cia para a mídia oriental e os judeus do mada do poder, valia como neopaganis- ria à política nazista. Bonhoeffer envolveu-se
na trama da “Abwehr” para assassinar Hitler.
Oriente europeu, que desde 1939 caíram mo. Isso significa que um bom católico Em março de 1943, foi preso e acabou sendo
no âmbito de poder do regime nacional- não podia ser também um nacional-so- enforcado, pouco tempo antes do próprio Hi-
socialista e se tornaram as primeiras ví- cialista. Violações podiam até trazer tler cometer suicídio. É autor de, entre outros,
Ética (6. ed., São Leopoldo: Sinodal, 1985) e
timas do Holocausto. Em tempos mais consigo a excomunhão. No entanto, Resistência e submissão: cartas e anotações
recentes, também cresceu a consciência após 30 de janeiro de 1933, a Igreja escritas na prisão (São Leopoldo: Sinodal,
para outros grupos de vítimas. Católica “mudou de posição” muito ra- 2003). (Nota da IHU On-Line)
5 Alfred Delp (1907-1945): padre jesuíta ale-
Na República Democrática Alemã pidamente e — com base na concordata mão executado por sua resistência ao regime
(RDA), houve uma clara hierarquia das de julho de 1933 — se arranjou com o nazista. (Nota da IHU On-Line)
vítimas, ideologicamente fundamen- 6 Papa Pio XII (1876-1958): nascido Eugenio
Maria Giuseppe Giovanni Pacelli foi eleito Papa
tada. Na ponta estavam as “vítimas do 3 NPD: Nationaldemokratische Partei Deuts- em 2 de março de 1939 até a data da sua mor-
fascismo”, ou seja, em geral lutado- chlands, ou Partido Nacional Democrata Ale- te. Foi o primeiro Papa romano desde 1724.
mão. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)
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A Filosofia mudou depois de Auschwitz
Para continuar sendo chamada de Filosofia, essa ciência precisa se “encontrar
com seus fundamentos éticos de sentido”, e questionar pelo sentido que o Ser
deve assumir para construir um mundo no qual não haja mais espaço para a
barbárie
POR MÁRCIA JUNGES
Q
uestionado se a Filosofia mudou após Auschwitz, o filósofo Ricardo Timm foi enfáti-
co: “Definitivamente, se quiser merecer continuar sendo chamada de Filosofia”. E
justifica: “A Filosofia é obrigada, pelo horror e pelo imperativo de sua evitação, a
se encontrar com seus fundamentos éticos de sentido. O problema não é mais ques-
tionar pelo Ser, mas questionar pelo sentido que o Ser deve assumir na construção
de um mundo em que Auschwitz não tenha lugar”. As declarações fazem parte da entrevista a
seguir, concedida por e-mail, à IHU On-Line. Em seu ponto de vista, é difícil imaginar que algum
filósofo tenha vivenciado o horror nazista e ficado indiferente. Se ficou indiferente, provoca
Timm, “duvido muito que permaneça merecendo essa designação de ‘filósofo’”. Os pensadores
se viram na obrigação de “sobreviver” a esse trauma radical. Dessa forma, Timm destaca Adorno
pela elaboração de um “modelo de pensamento que propõe alternativas sólidas à violência que
Auschwitz e tudo que se lhe assemelha significa”. As filosofias de Lévinas, Heidegger, Nietzsche
e Hegel também são tema da entrevista a seguir.
Timm é graduado em Instrumentos, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFR-
GS), em Estudos Sociais e Filosofia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS). Também cursou o mestrado em Filosofia, pela mesma universidade, e doutorado em
Filosofia, pela Universität Freiburg (Albert-Ludwigs) com a tese Wenn das Unendliche in die
Welt des Subjekts und der Geschichte einfällt — Ein metaphänomenologischer Versuch über das
ethische Unendliche bei Emmanuel Lévinas. Escreveu inúmeros livros, entre eles, Sujeito, Éti-
ca e História — Lévinas, o traumatismo infinito e a crítica da filosofia ocidental (Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1999), A condição humana no pensamento filosófico contemporâneo (Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2004) e Em torno à diferença — Aventuras da alteridade na complexidade da cultura
contemporânea (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007). É também um dos organizadores de Alte-
ridade e Ética — Obra comemorativa dos 100 anos do nascimento de Emmanuel Lévinas (Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2008).
IHU On-Line - Como a marca do ódio mas que todos os sistemas opressores da Ser é o lugar, o espaço onde o encontro
do homem contra o homem deixada humanidade (e mesmo dos animais e da com o Outro e a responsabilidade por ele
pelo nazismo perpassa e inspira Lévi- natureza em geral) vêm significando ao se devem dar na construção do sentido
nas a construir um sistema em que a longo dos séculos. Consiste essencial- humano-ecológico.
Ética e alteridade são os pilares prin- mente em mostrar que a ética não é sub- foi tradutor, assim como pelas obras de
Martin Heidegger. Seu pensamento parte da
cipais? Podemos falar numa ética da sidiária de nenhum conhecimento ou sa- idéia de que a ética, e não a ontologia, é a
diferença? O que seria ela? ber prévio, mas condição vital-temporal Filosofia primeira. É no face-a-face huma-
Ricardo Timm - A Ética da Alteridade de todo saber e conhecimento, ou seja, no que se irrompe todo sentido. Diante do
rosto do Outro, o sujeito se descobre res-
— que, em sentido lato, é uma ética prima philosophia. Observe-se que Lévi- ponsável e lhe vem à idéia o Infinito. Sobre
das diferenças, assim mesmo, no plu- nas1 não “nega” o Ser; para Lévinas, o Lévinas, confira a entrevista concedida em
ral — se constitui essencialmente em 30-08-2007, por Rafael Haddock-Lobo, com
1 Emmanuel Lévinas (1906-1995): filósofo exclusividade ao site do Instituto Humanitas
uma resposta à violência contra a vida lituano, nascido na cidade de Kaunas (ou Unisinos — IHU, intitulada “Lévinas: justiça
e a Alteridade, o Outro, que não apenas Kovno), de descendência judaica e natura- à sua filosofia e a relação com Heidegger,
o Nazismo significou de modo eminente, lizado francês, bastante influenciado pela Husserl e Derrida”. (Nota da IHU On-Line)
fenomenologia de Edmund Husserl, de quem
8 SÃO LEOPOLDO, 21 DE JULHO DE 2008 | EDIÇÃO 265
IHU On-Line - Filosoficamente, que ou- Ricardo Timm - Carl Schmitt é um pensa-
tros autores, além de Lévinas, constru- dor singular, essencial para a compreen-
íram respostas ao horror nazista? “Carl Schmitt é um são da filosofia política contemporânea
Ricardo Timm - É difícil conceber que independentemente de seu viés político
algum filosófo que tenha vivenciado pensador singular, explícito. Todavia, ao meu ver, perma-
diretamente ou indiretamente o horror nece, apesar de tudo, um pensador, ou
nazista não tenha sido influenciado por essencial para a seja, alguém capaz de dialogar até mes-
este acontecimento maior na história mo com um Walter Benjamin. Há que
contemporânea, mas, se algum filósofo compreensão da filosofia saber distinguir o que, de Schmitt, nos
não o foi, eu duvido muito que perma- dá hoje o que pensar. Já o caso de Hei-
neça merecendo essa designação de “fi- política contemporânea degger5 me parece bem mais complica-
lósofo”. Assim, a totalidade dos grandes do; não é segredo para ninguém que ele,
pensadores que vivenciou o período foi independentemente de durante certo período crítico, abraçou
obrigado a sobreviver a este trauma ra- o nacional-socialismo, havendo perdi-
dical. Todavia, eu destacaria nesse uni- seu viés político do posteriormente várias chances de se
verso um pensador em particular — The- retratar. De qualquer forma, é possível
odor W. Adorno2 — que elabora, a partir explícito” — e tem sido realizada, especialmente
da crítica filosófica a um tal estado de na Alemanha, mas não apenas lá — uma
coisas e em articulação com um diag- exegese de seus textos que indiciam que
nóstico interdisciplinar extremamente sua proximidade com o referido ideário
sofisticado da sociedade e cultura con- Ricardo Timm - Nem Hegel, nem Niet- era mais intenso, até mesmo visceral,
temporâneas, um modelo de pensamen- zsche,3 nem mesmo o polêmico Wagner em relação ao que se depreende apenas,
to que propõe alternativas sólidas à vio- permitiriam, apenas pela leitura de por exemplo, da leitura do “Discurso do
lência que Auschwitz e tudo que se lhe suas obras ou de parte delas, inferên- reitorado”.
assemelha significa. Temos em Adorno cias tão baixas que sustentassem uma
a fundamental reconfiguração do impe- doutrina do teor do nazismo. Outra IHU On-Line - Como podemos enten-
rativo categórico da tradição: para ele, questão é saber se nesses pensadores der que, em pleno século XX, e com
é imperativo “impedir que Auschwitz se — Wagner incluído — não se encontram amplo apoio da população alemã e
repita”. elementos da grande tradição logocên- de outras partes do mundo, se che-
trica ocidental que permitiram, por gou ao terror nazista?
IHU On-Line - A Filosofia mudou depois alguma metamorfose doentia, alguns Ricardo Timm - Através de uma rigorosa
de Auschwitz? Em que aspectos? aspectos daquilo que se pode ler como arqueologia da razão ocidental. Pensado-
Ricardo Timm - Definitivamente, se uma certa base “filosófica” de aspec- res como os filósofos da Escola de Frank-
quiser merecer continuar sendo chama- tos da doutrina nazista. furt, Derrida e Lévinas, entre outros, nos
da de Filosofia. A Filosofia é obrigada, mostram que estranho seria se o caminho
pelo horror e pelo imperativo de sua IHU On-Line - De que forma o agir po- que vai “da funda à bomba atômica”, no
evitação, a se encontrar com seus fun- lítico de Hitler se entrelaçou com a dizer dos frankfurtianos, não fosse trilha-
damentos éticos de sentido. O proble- filosofia de pensadores como Heideg- do, uma vez que a obsessão pelo ser e o
ma não é mais questionar pelo Ser, mas ger e Carl Schmitt4? desprezo pela temporalidade confluem
questionar pelo sentido que o Ser deve necessariamente em um delírio ontoló-
3 Friedrich Nietzsche (1844-1900): filósofo
assumir na construção de um mundo alemão, conhecido por seus conceitos além-
gico-instrumental no qual a ética como
em que “Auschwitz” não tenha lugar. do-homem, transvaloração dos valores, niilis- realidade propriamente dita não tem, ou
mo, vontade de poder e eterno retorno. Entre co-político de Heidegger e Carl Schmitt. A fas-
suas obras, figuram como as mais importantes cinação por noções fundadoras do nazismo”.
IHU On-Line - Hitler dizia ter lido, Assim falou Zaratustra (9. ed. Rio de Janei- (Nota da IHU On-Line)
entre outros, Hegel e Nietzsche, ro: Civilização Brasileira, 1998), O anticristo 5 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo
além de se declarar um wagneriano (Lisboa: Guimarães, 1916) e A genealogia da alemão. Sua obra máxima é O ser e o tem-
moral (5. ed. São Paulo: Centauro, 2004). Es- po (1927). A problemática heideggeriana é
convicto. Em que medida Hitler com- creveu até 1888, quando foi acometido por ampliada em Que é metafísica? (1929), Car-
preendeu e distorceu o pensamento um colapso nervoso que nunca o abandonou, tas sobre o humanismo (1947)e Introdução à
desses filósofos e compositor? até o dia de sua morte. A Nietzsche foi dedi- metafísica (1953). Sobre Heidegger, a IHU On-
cado o tema de capa da edição número 127 da Line publicou na edição 139, de 02-05-2005, o
2 Theodor Wiesengrund Adorno (1903-1969): IHU On-Line, de 13-12-2004. Sobre o filósofo artigo “O pensamento jurídico-político de Hei-
sociólogo, filósofo, musicólogo e compositor, alemão, conferir ainda a entrevista exclusiva degger e Carl Schmitt. A fascinação por noções
definiu o perfil do pensamento alemão das realizada pela IHU On-Line edição 175, de 10 fundadoras do nazismo”. Sobre Heidegger,
últimas décadas. Adorno ficou conhecido no de abril de 2006, com o jesuíta cubano Emilio confira as edições 185, de 19-06-2006, intitu-
mundo intelectual, em todos os países, em Brito, docente na Universidade de Louvain-La- lada O século de Heidegger, e 187, de 03-07-
especial pelo seu clássico Dialética do Ilumi- Neuve, intitulada “Nietzsche e Paulo”. A edi- 2006, intitulada Ser e tempo. A desconstrução
nismo, escrito junto com Max Horkheimer, pri- ção 15 dos Cadernos IHU em formação é inti- da metafísica, disponíveis para download no
meiro diretor do Instituto de Pesquisa Social, tulada O pensamento de Friedrich Nietzsche. sítio do IHU, www.unisinos.br/ihu. Confira,
que deu origem ao movimento de idéias em fi- (Nota da IHU On-Line) ainda, o nº 12 dos Cadernos IHU em formação
losofia e sociologia que conhecemos hoje como 4 Carl Schmitt (1888-1985): jurista e cientista intitulado Martin Heidegger. A desconstrução
Escola de Frankfurt. (Nota da IHU On-Line) político alemão. A IHU On-Line 139, de 02-05- da metafísica. (Nota da IHU On-Line)
2005, publicou o artigo “O pensamento jurídi-
SÃO LEOPOLDO, 21 DE JULHO DE 2008 | EDIÇÃO 265 9
A fragmentação do discurso como
“Nem Hegel, nem
estética literária do Pós-Guerra
Nietzsche, nem mesmo
o polêmico Wagner Para o historiador e crítico literário Márcio Seligmann-Silva, na
permitiriam, apenas pela literatura do pós-holocausto há uma estética da fragmentação
do discurso. Além disso, esclarece, radicaliza-se a crise de para-
leitura de suas obras ou digmas para explicar o mundo, bem como na arte e literatura
de parte delas,
POR MÁRCIA JUNGES
inferências tão baixas
“A
que sustentassem uma Segunda Guerra Mundial radicalizou aquilo que já havia
sido iniciado com a Primeira Guerra Mundial, ou seja,
doutrina do teor do a crise dos grandes paradigmas, tanto de explicação do
mundo como nas artes e na literatura”, assinala o histo-
nazismo” riador e crítico literário Márcio Seligmann-Silva. Segundo
ele, “o hitlerismo e, sobretudo, a maquinaria dos campos de extermínio,
gerados por uma nação que tinha desempenhado um papel chave no Ilumi-
apenas tem dificilmente lugar. nismo, significou uma novidade devido à radicalidade da violência e à sua
origem. A idéia de exterminar onze milhões de indivíduos (o plano de Hitler),
IHU On-Line - Na Alemanha e no ou seja, todos os judeus europeus, era inédita nesta radicalidade. Isto gerou
mundo atual, há espaço para esse uma onda de memória também inédita na sua força. Esta onda mantém-se
tipo de político ditador? As pessoas, até hoje e está na origem de milhares de testemunhos”. Ele afirma que na
em pleno século XXI, apoiariam uma literatura “vemos uma estética pós-holocausto marcada por uma fragmenta-
política como aquela? ção do discurso”.
Ricardo Timm - As condições perma- Seligmann-Silva é graduado em História, pela Pontifícia Universidade Ca-
necem. Devemos perder a ingenuidade
tólica de São Paulo (PUCSP), mestre em Letras, pela Universidade de São
e entender que a crença em uma idéia
Paulo (USP), e doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada, pela Freie
linear de “progresso moral” não se justi-
fica nem historicamente, nem filosófica, Universität Berlin. É pós-doutor pelas seguintes instituições: PUCSP, Zentrum
política ou sociologicamente. Enquanto Für Literaturforschung Berlin e Yale University. Também é professor livre-
a racionalidade instrumental permane- docente da Universidade Estadual de Campinas e coordena o projeto temá-
cer ditando as regras maiores do mundo, tico FAPESP Escritas da Violência. Entre as obras que publicou, estão Ler o
como hoje o faz sob a forma capitalis- livro do mundo. Walter Benjamin: romantismo e crítica poética (São Paulo:
ta, na transformação da qualidade em Iluminuras/ FAPESP, 1999), Adorno (São Paulo: PubliFolha, 2003) e O local
quantidade pela anulação das diferen- da diferença. Ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução (São Pau-
ças, da Alteridade, nada nos garante que lo: 34, 2005). Organizou também os livros História, Memória, Literatura. O
as massas não venham a aderir ao sui- testemunho na era das catástrofes (Campinas: Editora da Unicamp, 2003) e
cídio coletivo que significam doutrinas Palavra e imagem, memória e escritura (Chapecó: Argos, 2006).
aberrantes em relação à vitalidade e à
saúde dos seres humanos individuais, das
comunidades e dos ecossistemas. IHU On-Line - Em que sentido é de explicação do mundo como nas
possível se falar em uma mudança artes e na literatura. O que se pode
de paradigma na literatura pós Se- dizer que acontece agora também,
LEIA MAIS... gunda Guerra Mundial? ou seja, desde a Segunda Guerra
>> Confira outra entrevista com Ricardo Márcio Seligmann-Silva - A Segun- Mundial, é um “secamento” do veio
Timm de Souza no sítio do IHU (www.unisinos. da Guerra Mundial radicalizou aqui- nacionalista nascido com o romantis-
br/ihu).
lo que já havia sido iniciado com a mo. Mais e mais as encenações au-
* Nanotecnologia e filosofia. Cadernos IHU em
formação nº 26, de 2008. Primeira Guerra Mundial, ou seja, a tobiográficas ou as tendências mais
crise dos grandes paradigmas, tanto formalistas e conceituais vão predo-
10 SÃO LEOPOLDO, 21 DE JULHO DE 2008 | EDIÇÃO 265
minar tanto nas artes quanto na lite- elas possuem muitas idiossincrasias man. Na literatura vemos uma esté-
ratura. Se existe muita continuidade vinculadas aos seus mídia. Aristóteles,3 tica pós-holocausto marcada por uma
com relação às vanguardas históricas na sua Poética, pode ser considerado fragmentação do discurso, mas que se
— sobretudo figuras como Duchamp1 o primeiro grande teórico das escritas manifesta de formas extremamente
e os surrealistas, tem sido insistente- da violência, já que uma das marcas diversas, de Paul Celan11 a Beckett,12
mente apontados como “precursores” da tragédia é a presença de eventos mas marcando a escritura também de
desta arte —, não deixa de ser verdade destrutivos, normalmente violentos, uma C. Lispector,13 de António Lobo
que existem aprofundamentos tão ra- que nos abalam. O hitlerismo e, sobre- Antunes,14 J. Coetzee,15 W.G. Sebald,16
dicais de certas tendências estéticas, tudo, a maquinaria dos campos de ex- entre tantos outros.
e seria mais correto se acentuar mais termínio, gerados por uma nação que
a ruptura do que a mera continuidade. tinha desempenhado um papel-chave IHU On-Line - Como explicaria a li-
Não por acaso, o conceito de abjeto, no Iluminismo, significou uma novida- teratura testemunhal a partir do Ho-
que Kristeva2 formula no início dos de devido à radicalidade da violência locausto? Quais são suas principais
anos 1980, vai fazer tanto sucesso no e à sua origem. A idéia de exterminar expressões e peculiaridades? A partir
meio da crítica: ele concentra em si onze milhões de indivíduos (o plano de disso, há uma relação estreita entre
diversas tendências, já anunciadas an- Hitler), ou seja, todos os judeus euro- literatura e trauma?
tes, que se cristalizam de modo mais peus, era inédita nesta radicalidade. Márcio Seligmann-Silva - A questão do
claro naquele período. Também o mo- Isto gerou uma onda de memória tam- testemunho tem sido cada vez mais
vimento de muitos artistas em direção bém inédita na sua força. Esta onda estudada desde os anos 1970. Para evi-
à performance não pode ser confun- mantém-se até hoje e está na origem tar confusões, devemos deixar claro
dido com uma simples reencenação de milhares de testemunhos. Levare- dois pontos centrais: (a) Ao invés de se
de rituais dionisíacos. Justamente a mos décadas, ou séculos, para enten- falar em “literatura de testemunho”,
consciência histórica contemporânea der este material. Novas modalidades que não é um gênero, percebemos
é marcada por uma hiper-consciência de escrita da violência surgiram nas agora uma face da literatura que vem
dos contextos históricos que impede a artes plásticas, e aqui refiro-me sobre- 11 Paul Celan (1920-1970): poeta romeno ra-
dicado na França. Sobrevivente do Holocausto,
simples “imitação” ligada à episteme tudo à estética dos anti-monumentos, foi um dos mais importantes poetas modernos
pré-romântica. Por outro lado, a arte de artistas como Jochen Gertz, Horst da língua alemã. (Nota da IHU On-Line)
e a literatura vão tentar encenar as Hoheisel, Naomi Tereza Salomon, 12 Samuel Beckett (1906-1989): escritor e
dramaturgo irlandês. Autor de uma obra bi-
novas subjetividades (esvaziadas) con- Shirin Neshat,4 Thomas Hirschhorn,5 língüe (francês e inglês), por vezes designada
temporâneas. Os jogos autobiográficos Candida Höfer,6 Doris Salcedo,7 Louise como “literatura da angústia”, recebeu o Prê-
desta nova produção têm muito de Bourgeois,8 Cindy Sherman,9 Rosange- mio Nobel de Literatura em 1969. À espera de
Godot é a sua peça mais conhecida. (Nota da
encenação de forte teor testemunhal. la Rennó, Dani Karavan,10, Micha Ull- IHU On-Line)
Testemunha-se tanto as catástrofes 13 Clarice Lispector (1920-1977): escritora
históricas (as inúmeras guerras e geno- 3 Aristóteles de Estagira (384 a C.–322 a. C.): nascida na Ucrânia. De família judaica, emi-
filósofo grego, um dos maiores pensadores grou para o Brasil quando tinha apenas dois
cídios) quanto os traumas individuais. de todos os tempos. Suas reflexões filosóficas meses de idade. Começou a escrever logo
— por um lado originais e por outro reformula- que aprendeu a ler, na cidade de Recife. Em
IHU On-Line - Como você definiria as doras da tradição grega — acabaram por con- 1944 publicou seu primeiro romance, Perto
figurar um modo de pensar que se estenderia do coração selvagem. A literatura brasileira
escritas da violência? O que o perío- por séculos. Prestou inigualáveis contribuições era nesta altura dominada por uma tendência
do hitlerista legou nesse sentido? para o pensamento humano, destacando-se: essencialmente regionalista, com personagens
Márcio Seligmann-Silva - Não existe ética, política, física, metafísica, lógica, psi- contando a difícil realidade social do país na
cologia, poesia, retórica, zoologia, biologia, época. Lispector surpreendeu a crítica com
uma definição unívoca das escritas da história natural e outras áreas de conheci- seu romance, quer pela problemática de ca-
violência. O que se pode tentar fazer é mento. É considerado, por muitos, o filósofo ráter existencial, completamente inovadora,
acompanhar certas linhas de força que que mais influenciou o pensamento ocidental. quer pelo estilo solto elíptico, e fragmentário,
(Nota da IHU On-Line) reminiscente de James Joyce e Virginia Woolf,
se modificam no tempo e de local para 4 Shirin Neshat (1957): artista visual iraniana, ainda mais revolucionário. Seu romance mais
local, além dos diversos gêneros do radicada em Nova Iorque. (Nota da IHU On- famoso embora menos característico quer te-
discurso. Se é verdade que este ele- Line) mática quer estilísticamente, é A hora da es-
5 Thomas Hirschhorn (1957): artista suíço, trela, o último publicado antes de sua morte.
mento autobiográfico a que me referia integrante do grupo de designers comunistas Neste livro, conta a vida de Macabéa, uma nor-
aparece nas produções das artes plás- chamado Grapus. (Nota da IHU On-Line) destina criada no estado Alagoas e que vai mo-
ticas e da literatura contemporâneas, 6 Candida Höfer (1944): fotógrafa alemã, es- rar no Rio de Janeiro, numa pensão, tendo sua
pecializada em fotografias de grande tamanho vida descrita por um escritor fictício chamado
de interiores vazios e espaços sociais que cap- Rodrigo S.M. Sobre a autora, confira a edição
1 Marcel Duchamp (1887-1968): pintor e es- turam a psicologia da arquitetura social. (Nota 228 da IHU On-Line, de 16-07-2008, intitulada
cultor francês. Sua obra mais conhecida é a da IHU On-Line) Clarice Lispector. Uma pomba na busca eterna
Fonte, na verdade um urinol comum, branco 7 Doris Salcedo: escultora colombiana. (Nota pelo ninho. (Nota da IHU On-Line)
e esmaltado, comprado numa loja de constru- da IHU On-Line) 14 António Lobo Antunes (1942): novelista
ção. (Nota da IHU On-Line) 8 Louise Bourgeois (1911): artista e escultora português. (Nota da IHU On-Line)
2 Julia Kristeva (1941): filósofa, crítica literá- francesa influenciada pelo surrealismo. (Nota 15 John Maxwell Coetzee: escritor sul-africa-
ria, psicanalista e feminista búlgaro-francesa. da IHU On-Line) no Nobel de Literatura em 2003. (Nota da IHU
Tornou-se influente em teoria da cultura e fe- 9 Cindy Sherman (1954): artista plástica nor- On-Line)
minismo após a publicação de Séméiôtiké: re- te-americana. (Nota da IHU On-Line) 16 Winfred Georg Maximilian Sebald (1944-
cherches pour une sémanalyse (Paris: Edition 10 Dani Karavan (1930): escultora israelense. 2001): escritor alemão. (Nota da IHU On-
du Seuil, 1969). (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) Line)
SÃO LEOPOLDO, 21 DE JULHO DE 2008 | EDIÇÃO 265 11
à tona na nossa época de catástrofes de 1921, como ele mesmo o reconhe-
e que faz com que toda a história da ce em inúmeros ensaios. Neste texto,
literatura — após duzentos anos de “Se existe muita Benjamin mostra que todo poder, em
auto-referência — seja revista a partir alemão Gewalt, é violência, que em
do questionamento da sua relação e continuidade com alemão também é significado pelo ter-
do seu compromisso com o “real”. Nos mo Gewalt. De certo modo, Benjamin
estudos de testemunho, deve-se bus- relação às vanguardas pensou o estado de direito como um
car caracterizar o “teor testemunhal” Estado de Exceção, assim como ele
que marca toda obra literária (mas, históricas — sobretudo pensou no homem moderno como um
repito, que aprendemos a detectar a traumatizado, radicalizando certas
partir da concentração deste teor na figuras como Duchamp teses freudianas. Mas, por outro lado,
literatura e escritura do século XX). acho equivocado e até perigoso, com-
Este teor indica diversas modalidades e os surrealistas, tem parar, como o faz Agamben, nossa vida
de relação metonímica entre o “real” nas democracias ocidentais (com to-
e a escritura. (b) Em segundo lugar, sido insistentemente dos seus evidentes limites) com a vida
esse “real” não deve ser confundido em um campo de concentração. Isto é
com a “realidade” tal como ela era apontados como perigoso porque banaliza a realidade
pensada e pressuposta pelo romance do campo de concentração, relativiza
realista e naturalista: o “real” que nos “precursores” desta arte a história e, portanto, a falsifica.
interessa aqui deve ser compreendi-
do na chave freudiana do trauma, de —, não deixa de ser IHU On-Line - De que forma a obra
um evento que justamente resiste à de Benjamin influencia Agamben no
representação. Não se trata mais de verdade que existem conceito de Estado de Exceção?
pensar na “representação” de fatos, Márcio Seligmann-Silva - Benjamin in-
como na chave da teoria literária tra- aprofundamentos tão fluenciou diretamente a teoria do Esta-
dicional — Pré-Segunda Guerra —, mas do de Exceção de Carl Schmitt, um dos
sim de se pensar no ato de escritura radicais de certas maiores teóricos da soberania, pese seu
como inscrição do eu, o que inclui sua evidente compromisso com o nazismo.
memória traumática, que possui várias tendências estéticas, Além disto, questões centrais do ensaio
características, entre as quais eu des- de 1921 sobre a violência foram reto-
taco aqui justamente a sua resistência e seria mais correto madas no livro sobre o Trauerspiel (dra-
à inscrição simbólica. ma barroco alemão) de 1925 — em que
se acentuar mais a Benjamin pensa a crise da soberania no
IHU On-Line - O nazismo foi um Esta- século XVII — e nos textos escritos no
do de Exceção nos moldes propostos ruptura do que a mera contexto do Passagen-werk (Trabalho
por Agamben? Esse totalitarismo é a das passagens), com destaque para o
essência de nossa época ou apenas continuidade” “Sobre o conceito da história”, de 1940,
uma excrescência dela? no qual Benjamin tem uma afirmação
Márcio Seligmann-Silva - É importan- contundente que ficou famosa: “A tra-
te lembrar que a Alemanha nazista dição dos oprimidos nos ensina que o
existiu por seus doze anos sob o signo longa tradição da teoria política que ‘Estado de Exceção’, no qual nós vive-
de um Estado de Exceção declarado. reflete sobre a relação entre nossa mos, é a regra. Precisamos atingir um
Agamben17 parte deste fato e de uma vida política “normal” e o Estado de conceito de história que corresponda a
Exceção. Sua teoria, de que o Esta- isto. Então teremos diante de nós como
17 Giorgio Agamben (1942): filósofo italiano. do de Exceção habita todo estado de nossa tarefa provocar o efetivo Estado
É professor da Facolta di Design e arti della
IUAV (Veneza), onde ensina Estética, e do Col- direito, ele leu no ensaio de Walter de Exceção; e deste modo melhorará
lege International de Philosophie de Paris. For- Benjamin18 “Zur Kritik der Gewalt”, a nossa posição na luta contra o fascis-
mado em Direito, foi professor da Universitá di mo”. Toda a teoria benjaminiana do Es-
Macerata, Universitá di Verona e da New York ocidental (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007) e
University, cargo ao qual renunicou em pro- Profanações (São Paulo: Boitempo Editorial,
tado de Exceção influenciou Agamben.
testo à política do governo norte-americano. 2007). Em 04-09-2007 o site do Instituto Hu- Agora veja só, esta passagem que cito,
Sua produção centra-se nas relações entre fi- manitas Unisinos – IHU publicou a entrevista Benjamin escreveu no exílio, em 1940.
losofia, literatura, poesia e fundamentalmen- Estado de exceção e biopolítica segundo
te, política. Entre suas principais obras, estão Giorgio Agamben, com o filósofo Jasson da
Agamben reproduz esta idéia sem levar
Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua Silva Martins. A edição 236 da IHU On-Line, de em conta que hoje as coisas não idênti-
I (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002), A lingua- 17-09-2007, publicou a entrevista “Agamben e
gem e a morte (Belo Horizonte: Ed. UFMG, Heidegger: o âmbito originário de uma nova mão crítico das técnicas de reprodução em
2005), Infância e história: destruição da experiência, ética, política e direito”, com o massa da obra de arte. Foi refugiado judeu
experiência e origem da história (Belo Ho- filósofo Fabrício Carlos Zanin. Para conferir o alemão e, diante da perspectiva de ser cap-
rizonte: Ed. UFMG, 2006), Estado de exceção material, acesse www.unisinos.br/ihu. (Nota turado pelos nazistas, preferiu o suicídio. Um
(São Paulo: Boitempo Editorial, 2007), Estân- da IHU On-Line) dos principais pensadores da Escola de Frank-
cias — A palavra e o fantasma na cultura 18 Walter Benjamin (1892-1940): filósofo ale- furt. (Nota da IHU On-Line)
12 SÃO LEOPOLDO, 21 DE JULHO DE 2008 | EDIÇÃO 265
cas à Alemanha hitlerista.
IHU On-Line - A história pessoal de
Benjamin é semelhante à de muitos
outros perseguidos pelo regime nazis-
ta. Quais são as principais marcas que
restaram nos sobreviventes do Holo-
causto?
Márcio Seligmann-Silva - Não se pode O Direito no período nazista:
generalizar algum tipo de herança co-
mum a todos. O que podemos observar instrumento de controle
são as mudanças no modo de se pensar
o homem, a sociedade, as artes. É claro
que as pessoas que estavam, por assim e legitimação ideológica
dizer, no olho do furacão, sofreram di-
retamente com aqueles fatos terríveis.
Eles tiveram suas vidas esmagadas por
Um antecedente histórico e militarista prussiano, aliado ao
aquela experiência. Mas, mesmo assim,
muitos sobreviventes escreveram de senso de respeito à autoridade e disciplina, é um dos traços
modo muito forte e marcante sobre es- que podem explicar a falta de transgressão ou rebeldia do
tas experiências, como Paul Celan, pri-
povo à ditadura hitlerista, analisa o advogado André Rafael
mo Levi19, Jorge Semprun20, Inre Kertesz,
entre muitos outros. Devemos manter Weyermüller
nossos ouvidos abertos para o que eles
disseram sobre aquela experiência.
POR MÁRCIA JUNGES
Micropolítica
ARQUIVO PESSOAL
“N
Na literatura, vemos uma estética
ão é possível conceber um Di-
pós-holocausto marcada por uma frag-
reito legítimo no nazismo”, ex-
mentação do discurso. Devemos levar
em conta que hoje em dia existe uma plica o advogado André Rafael
convivência de inúmeros modos de se Weyermüller. Para ele, “o Di-
pensar e produzir obras de arte e li- reito não era mais Direito. Era,
terárias. Por outro lado, é verdade sim, mais um instrumento de controle e legitimação
também que aconteceu um movimen- da ideologia de um regime baseado, sobretudo, nas
to que podemos interpretar como uma idéias de alguns poucos homens que não tinham a
politização destas produções. Mas não menor consideração por um mínimo de senso de hu-
se trata de uma politização instrumen- manidade”. Em sua opinião, “é muito difícil afirmar
talizadora — como a realizada pelos qual foi o fator mais importante que levou uma nação
regimes totalitários —, mas sim de uma de filósofos e músicos célebres a gerar, acolher e seguir um homem extrema-
politização no sentido de uma micro-
mente limitado e perturbado com uma vida pessoal extremamente obscura
política (do corpo, da memória dos
e confusa, com idéias radicais e agressivas”. Mas Weyermüller pondera que,
traumas), que se dá tanto em termos
individuais como grupais e nacionais. “além de músicos e filósofos, a Alemanha tinha um antecedente histórico
Vários artistas e escritores desenvol- guerreiro e militarista prussiano e um forte senso de respeito à autoridade e
veram esta capacidade de inscrição da a disciplina. Se o Direito daquela época tinha mecanismos capazes de legiti-
violência, que de certo modo está na mar a ascensão do nazismo, esse senso de dever e obediência não permitia
base de toda cultura e da nossa indivi- a transgressão ou a rebeldia, pelo menos foi assim para a maioria do povo”.
duação. São estas novas cartografias da Felizmente, conclui, “à luz do Direito hoje, principalmente do Direito Inter-
memória da dor que temos que apren- nacional, não seria possível conceber a ascensão de um poder tão absoluto e
der a ler. Nelas, podemos ler também, tão perverso”. As declarações fazem parte da entrevista a seguir, concedida
aqui e ali, indicações de modos de se por e-mail à IHU On-Line.
viver melhor, menos violentos talvez. Weyermüller é graduado em Direito, pela Universidade do Vale do Rio dos
19 Primo Levi (1919-1987): escritor italiano, co- Sinos (Unisinos), e especialista em Direito Ambiental, pelo Centro Universi-
nhecido por seu trabalho sobre Holocausto, em tário Feevale. No mestrado em Direito da Unisinos, defendeu a dissertação
particular, por ter sido um prisioneiro em Aus-
chwitz-Birkenau. (Nota da IHU On-Line) Comunicação, sistemas e precaução: a questão do aquecimento global e o
20 Jorge Semprún Maura (1923): escritor e polí- papel do Direito.
tico espanhol. (Nota da IHU On-Line)
SÃO LEOPOLDO, 21 DE JULHO DE 2008 | EDIÇÃO 265 13
“Era preciso manter uma daqueles que não podiam mais recor- cais de extermínio. Tinham inclusive
rer ao Direito digamos comum, pois tropas regulares denominadas Waffen
aparência de legalidade de alguma forma representavam uma SS,8 conhecidas pelo fanatismo de seus
ameaça ao regime que tinha seus or- combatentes e por atrocidades come-
e legitimidade como ganismos de controle baseados em tidas nos campos de batalha. A men-
sombrias organizações como a SS2 de te que estava por trás disso tudo era
parte de um grande plano Himmler,3 e a Gestapo.4 Com seus uni- Henrich Himmler, uma figura sombria
formes pretos e com uma caveira como que estava sempre ao lado de Hitler
muito bem orquestrado símbolo, a SS era, no meu entendimen- e conseguiu galgar todos os postos da
to, a mais perversa das organizações hierarquia nazista através de intrigas
de dominação e do regime nazista, pois tinha poderes e assassinatos.
praticamente ilimitados na condução Havia, portanto, essa cisão entre
convencimento das de assuntos como a prisão e deporta- Estado e Direito, como referiu Mi-
ção de judeus, repressão a oposição chael Stürmer, pois a essência tirâni-
massas pela propaganda” política (que por mais que fosse repri- ca do regime precisava ficar de certa
mida ainda existia) e a mais malévola forma protegida do conhecimento de
de todas: a administração das fábricas todos. Era preciso manter uma apa-
de morte que eram os campos de con- rência de legalidade e legitimidade
centração espalhados por toda Europa como parte de um grande plano mui-
IHU On-Line – Em entrevista ao jor-
ocupada, como Dachau,5 Treblinka,6 to bem orquestrado de dominação e
nal La Repubblica, o historiador ale-
Auschwitz7 e tantos outros infames lo- convencimento das massas pela pro-
mão Michael Stürmer1 afirmou, com
2 Schutzstaffel: Conhecida pela sigla SS, foi paganda. Essas pretensas “verdades”
base em Sebastian Haffner, que na
uma organização paramilitar ligada ao Partido que captavam desejos de vingança e
época da Alemanha nazista existiam Nazista Alemão. Da Tropa de Choque de Hi- de supremacia racial foram postas
dois estados. Um deles cuidava de tler, 400 Sturmabteilung (SA), criada em 1921
por Ernst Röhm, nasceram em 1925 as SS. Em em prática pelo sinistro Josef Goeb-
assuntos “ordinários”, como divór-
1932, as SS tinham 60 mil membros. Dois anos bels9, aquele que é retratado no filme
cio, direito civil e outras instâncias mais tarde o número havia saltado para 100 A queda,10 do qual a fanática esposa
corriqueiras da vida. O outro Estado mil, e em 1939, 240 mil. Durante a Segunda
Guerra Mundial o total de homens filiados às SS Magda, envenena pessoalmente seus
estava nas mãos da SS, e era respon-
era de um milhão. (Nota da IHU On-Line) seis filhos (!) nos derradeiros dias do
sável pelo arbítrio, tortura, ameaças 3 Heinrich Luitpold Himmler (1900-1945): co- nazismo no bunker de Hitler.
de morte. Como entender essa cisão mandante da Schutzstaffel (SA) e da Gestapo
do Estado e do Direito? alemã e um dos mais poderosos homens da Ale-
manha nazista. Foi uma figura chave na organi- IHU On-Line – Podemos dizer que, no
André Rafael Weyermüller - Concordo zação do Holocausto. (Nota da IHU On-Line) período nazista, o Direito estava sus-
plenamente com Michael Stürmer. Ao 4 Gestapo: organização criada em 1933, sig-
nifica Geheime Staatspolizei, “polícia secreta penso? Por quê?
contrário do que parece para a maioria
do Estado”. Estava sob a administração geral André Rafael Weyermüller - Poderia
das pessoas, durante a existência do re- da SS. O papel da Gestapo como polícia políti- se afirmar que sim, pois nossa atual
gime nazista, havia ainda um Direito or- ca só foi estabelecido quando Hermann Göring
foi designado para suceder Rudolf Diels como concepção de Direito não consegue
dinário, que resolvia os problemas nor-
comandante, 1934. Só não teve sucesso na Ba- se encaixar num contexto social como
mais e corriqueiros das pessoas. Hitler viera, onde Heinrich Himmler, chefe das SS, o do nazismo. Hoje temos uma forte
ascendeu ao poder em 1933, e a partir era o presidente de polícia e usava as forças
locais da SS como polícia política. (Nota da noção de direitos fundamentais e hu-
de 1939 o país estava em guerra pelo
IHU On-Line) chwitz eram dirigidos pela SS comandada por
lebensraum (espaço vital), com milhões 5 Dachau: campo de concentração construído Heinrich Himmler. (Nota da IHU On-Line)
de homens nas frentes de combate, as em 1933 pelos nazistas em uma antiga fábrica 8 Waffen-SS: organização cuja fundação é de-
cidades sendo bombardeadas e tantas de pólvora próxima a cidade de Dachau, cerca rivada da chamada Schutzstaffel (SS). No íni-
de cinco quilômetros a norte de Munique, no cio do Partido Nazista serviam como forma de
outras mazelas da guerra. Porém, na Sul da Alemanha. (Nota da IHU On-Line) proteção a Adolf Hitler. O ditador exigia que
medida do possível, as pessoas comuns 6 Treblinka: quarto dos campos de extermínio, sua tropa de elite fosse composta por cidadãos
levavam suas vidas e precisavam recor- onde os judeus foram mortos em câmaras de com comprovada origem germânica, uma con-
gás alimentadas por motores a explosão. Esta- dição fisica e mental excepcional e que cum-
rer ao Direito, mesmo que sob a égide va localizado nos arredores da cidade de Tre- prissem as normas da ideologia nazista cega-
de um regime brutal como o nazista. Era blinka, Polônia. Também foi o primeiro campo mente. (Nota da IHU On-Line)
esse o Estado que se apresentava ao povo onde ocorreu a cremação dos cadáveres a fim 9 Paul Joseph Goebbels (1897-1945): ministro
de ocultar o número de pessoas mortas. (Nota da Propaganda de Adolf Hitler. Figura-chave do
alemão, o qual procurava nele a solução da IHU On-Line) regime, conhecido por seus dotes retóricos.
de seus conflitos e necessidades pessoais 7 Auschwitz-Birkenau: nome de um grupo de (Nota da IHU On-Line)
que não cessaram devido à guerra. campos de concentração localizados no sul 10 Der Untergang: filme alemão que dramati-
da Polônia, símbolos do Holocausto perpetra- za os dias finais de Adolf Hitler e a Alemanha
Outro Estado, esse sim com a ver- do pelo nazismo. A partir de 1940 o governo nazista. Em português a produção chama-se A
dadeira face do regime, ocupava-se alemão comandado por Hitler construiu vá- queda — As últimas horas de Hitler. O filme
rios campos de concentração e um campo de foi escrito por Bernd Eichinger e dirigido por
1 Michael Stürmer: historiador alemão. Con- extermínio nesta área, então na Polônia ocu- Oliver Hirschbiegel. A edição 145 da IHU On-
fira nesta edição a entrevista por ele conce- pada. Houve três campos principais e trinta e Line, de 13 de junho de 2005, comentou esse
dida à IHU On-Line, “Hitler foi subestimado”. nove campos auxiliares. Como todos os outros filme na editoria Filme da Semana. (Nota da
(Nota da IHU On-Line) campos de concentração, os campos de Aus- IHU On-Line)
14 SÃO LEOPOLDO, 21 DE JULHO DE 2008 | EDIÇÃO 265
manos protegidos por mecanismos ju- Leis de Nuremberg de alcançar o poder total com o apoio
rídicos como tratados internacionais e Para se ter uma idéia da natureza das inicialmente desconfiadas forças
constituições democráticas que jamais dessas leis, no ano de 1935 foram pro- armadas lideradas por uma aristocra-
permitiriam leis que ferissem princí- mulgadas por Hitler em seção no Rei- cia militar prussiana. Assim, não foram
pios básicos de proteção ao homem, chstag (parlamento alemão) um con- apenas mecanismos legais que propor-
pelo menos na grande maioria dos pa- junto de leis conhecidas como “Leis de cionaram tal ascensão. Primeiramente,
íses. Vendo a questão por esse prisma, Nuremberg” (aprovadas no 8º congres- é preciso lembrar que o partido nazista
o Direito estava suspenso na Alemanha so do partido nessa cidade mítica para iniciou muito pequeno e foi crescendo
(e na Itália de Mussolini11 também!) os nazistas por suas origens históricas) na medida em que Hitler foi angariando
nesse período negro da história con- que “protegeriam o sangue e a hon- seguidores oriundos de grupos de desa-
temporânea, pois se através do Direito ra alemães” nas palavras de Hermann justados e arruaceiros que se identifi-
se promovia a negação e a diferencia- Göring12 (o segundo na hierarquia de cavam com suas idéias de ódio e supe-
ção de direitos entre as pessoas devido poder nazista e comandante da força rioridade racial alardeadas aos berros
a sua origem étnica ou religiosa, como aérea), que presidiu a seção no par- em seus discursos de efeito hipnótico
no caso dos judeus, o Direito não era lamento. Conforme essas leis, ideali- sobre as massas. Também convergiram
mais Direito. Era, sim, mais um ins- zadas anos antes por Himmler, ficaram em direção a Hitler alguns empresários
trumento de controle e legitimação proibidos os casamentos entre judeus que financiaram o rápido crescimento
da ideologia de um regime baseado, e alemães (inclusive relações sexuais do partido buscando proteger seus in-
sobretudo nas idéias de alguns poucos estavam proibidas!) e a cidadania ale- teresses do comunismo que represen-
homens que não tinham a menor con- mã de judeus seria cassada (estavam tava uma ameaça real na época. Vários
sideração por um mínimo de senso de fora da proteção do Estado e do Direi- partidos formavam a política alemã,
humanidade. Mesmo existindo na Ale- to!). Outra sanção é a de que judeus como o Partido Católico do Centro, o
manha nazista um Direito enquanto não poderiam tocar a bandeira ale- Partido Conservador, o Partido Demo-
sistema organizado e hierarquizado de mã, entre outros absurdos legais. Isso crático, entre outros, além é claro, do
normas e competências, não tinha a sem falar das leis de eugenia como a NSDAP ou partido Nacional-Socialista,
necessária legitimidade, pois da mes- “Lei da Profilaxia dos Descendentes os quais disputaram eleições durante
ma forma que resolvia conflitos entre com Doenças Genéticas”, de 1933, a República de Weimar13 construída so-
os “alemães de sangue”, como sempre que permitia a esterilização à força bre os escombros políticos da I Guerra
resolveu, legitimava restrições e se- de doentes mentais, depressivos, epi- Mundial.
gregações inimagináveis para aqueles léticos e alcoólatras graves e ainda a
que não se enquadravam nos padrões autorização para o programa de euta- Ascensão do NSDAP
estabelecidos pelo regime. násia a ser aplicada em loucos, idosos Nas eleições de 1928, o partido de
11 Benito Amilcare Andrea Mussolini (1883- e menores excepcionais (pressões da Hitler obteve uma votação pequena, po-
1945): jornalista e político italino, governou
a Itália com poderes ditatoriais entre 1922 e
Igreja fizeram com que suspendessem rém as eleições de 1930 e 1932 deram
1943, autodenominando-se Il Duce, que signi- o programa). Por tudo isso, não é pos- ao seu partido uma posição de destaque
fica em italiano “o condutor”. No início da sua sível conceber um Direito legítimo no nacional ao tornar-se o maior partido no
carreira de jornalista e político foi um tenaz
propagandista do socialismo italiano, em de-
nazismo. Porém, tecnicamente, era Parlamento. Ou seja, no início, a parti-
fesa do qual escreveu vários artigos no jornal Direito. cipação nazista na política alemã deu-se
esquerdista Avanti, de que era redator-chefe. de forma democrática, dentro das regras
Em 1914, dirigiu o jornal Popolo d’Itália, onde
defendeu a intervenção italiana em favor dos
IHU On-Line – Que mecanismos legais do conturbado jogo político alemão de
aliados e contra a Alemanha. Expulso do Par- permitiram a subida de Hitler à chan- Weimar. Com a eleição do idoso marechal
tido Socialista Italiano, alistou-se no exérci- celaria? prussiano Paul von Hindenburg14 para a
to, quando a Itália entrou na Primeira Guerra
Mundial e alcançou a patente de sargento. Em
André Rafael Weyermüller - A ascen- presidência, arranjos políticos levaram
1919, fundou os Fasci Italiani di Combatimen- são de Hitler e de seu partido ao poder Hitler à chancelaria em 30 de janeiro
to, organização que originaria, mais tarde, o foi um processo complexo de articula- de 1933 com von Pappen15 de vice-chan-
Partido Fascista. Baseando-se numa filosofia
política teoricamente socialista, conseguiu a
ção política, interesses econômicos, in-
adesão dos militares descontentes e de gran- trigas e pressões que acabaram funcio- 13 República de Weimar (1919-1933): instau-
de parte da população, alargou os quadros e nando muito bem para atingir o objetivo rada na Alemanha logo após a Primeira Guer-
a dimensão do partido. Sua oratória era tão ra Mundial, tendo como sistema de governo o
notável quanto seu uso eficaz de propaganda 12 Hermann Wilhelm Göring (1893-1946): po- modelo parlamentarista democrático. O pre-
política. Após um período de grandes pertur- lítico e líder militar alemão membro do Partido sidente da república nomeava um chanceler
bações políticas e sociais, quando alcançou Nazista, comandante da Luftwaffe e o segundo que seria responsável pelo poder Executivo.
grande popularidade, guindou-se a chefe do homem mais importante na hierarquia do III Quanto ao poder Legislativo, era constituído
partido, e em 1922 organizou a famosa marcha Reich. Herói da Primeira Guerra Mundial como por um parlamento (Reichstag). (Nota da IHU
sobre Roma, um golpe de propaganda. Usando piloto de combate várias vezes condecorado, On-Line)
as suas milícias para instigar o terror e comba- foi julgado e condenado à morte no Julgamen- 14 Paul von Hindenburg (1847-1934): mare-
ter abertamente os socialistas, conseguiu que to de Nuremerg por crimes de guerras e cri- chal alemão e importante figura durante a Pri-
os poderes investidos o nomeassem para for- mes contra a humanidade ao fim da Segunda meira Guerra Mundial, foi presidente da Ale-
mar governo. Foi nomeado Primeiro Ministro Guerra Mundial, escapando da execução na manha de 1925 a 1934. (Nota da IHU On-Line)
pelo rei Vítor Manuel III, alcançando a maioria forca ao cometer suicídio na prisão, em 15 de 15 Franz von Papen (1879-1932): político
parlamentar e, conseqüentemente, poderes outubro de 1946, aos 52 anos de idade. (Nota alemão conhecido por seu caráter dúbio. Se,
absolutos. (Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line) por um lado, lutou com unhas e dentes contra
SÃO LEOPOLDO, 21 DE JULHO DE 2008 | EDIÇÃO 265 15
celer, de forma legal, portanto. A partir tado de exceção nazista? ta. Assim, o estado de exceção nazista
desse ponto, aqueles que acharam que André Rafael Weyermüller - Enten- conseguia manter-se expurgando toda
podiam controlar Hitler foram sendo su- do que, depois da ascensão ao poder e qualquer oposição, criando inclusive
perados por um emaranhado de acordos absoluto após a morte do presidente simulacros de legalidade como o “Tribu-
e pressões políticas. A intimidação dire- Hindenburg, em agosto de 1934, tor- nal Popular” presidido pelo juiz nazista
ta foi outra forma de chegar ao poder nando-se presidente e chanceler, a le- Roland Freisler,20 que presidiu célebres
e foi promovida, sobretudo, pelas SA16 gitimação do regime deu-se por uma “julgamentos” como o dos conspirado-
(Sturmateilungen, ou tropas de assalto série de normas que visavam dar uma res, a maioria militares como o coronel
do partido — dissolvidas num expurgo aparente “legalidade” ao regime e seu Claus von Stauffenberg,21 que em 1944
de seus líderes e incorporada ao exérci- ditador a fim de evitar possíveis con- colocou uma bomba embaixo da mesa
to para obter seu apoio) e por eventos tragolpes políticos ou desconfiança de de reuniões em Rastenburg, mas que
planejados como o incêndio do Reichstag parte da população alemã. Inclusive, não matou Hitler, e de estudantes ide-
(atribuído a um comunista de nome Van o título de Führer (líder ou guia) em alistas como Sophie Scholl22 e seu irmão
der Lubbe,17 o que fortaleceu a posição substituição ao de presidente/chance- Hans, líderes do movimento estudantil
nazista contra os comunistas). Manipu- ler foi proposto em votação e apoiado “Rosa Branca”, todos condenados à mor-
lando o pressionado presidente Hinden- pela maioria da população. Ainda em te com requintes de crueldade após um
burg, o chanceler Hitler obteve um de- 1933, foi promulgada sob forte pres- “julgamento” com sentença conhecida
creto que revogava de uma só vez vários são pelo Parlamento, a “Lei de Plenos desde o início. Portanto, normas soma-
dispositivos da Constituição de Weimar Poderes” com vigência de quatro anos das ao terror garantiram a continuidade
e que limitavam os direitos individuais, e que concedida poderes ditatoriais à do regime.
de expressão, livre associação, permitia Hitler, destruindo assim o sistema par-
a violação do sigilo de correspondências, lamentar alemão. Durante o regime IHU On-Line – O nazismo é uma ano-
a invasão de residências sem mandado, nazista, as normas que lhe davam esse malia resultante da pós-modernida-
a intervenção em Estados, entre outros aspecto legal não eram o fator mais de? Como podemos entender esse
poderes absolutos. importante, pois havia um Estado pa- totalitarismo à luz do Direito atual?
ralelo que agia acima das leis através André Rafael Weyermüller - A primei-
IHU On-Line – E que expedientes le- das formas mais brutais possíveis, o ra idéia que nos vem à mente é de uma
gais garantiam a continuidade do es- que gerava um receio coletivo por par- anomalia. Porém, o nazismo foi um
os nazistas durante a época em que ocupou a te do cidadão comum, forçando uma desses infelizes eventos históricos que
chancelaria, por outro, após a ascensão dos espécie de acomodação, de aceitação foi possível graças a uma complexa e
nazistas, foi um dos seus aliados incondico-
nais. (Nota da IHU On-Line)
do que estava posto, estabelecido. fatídica conjugação de fatores. É mui-
to difícil afirmar qual foi o fator mais
16 Sturmabteilung (SA): sinônimo, em alemão, Sentenças preconcebidas importante que levou uma nação de fi-
para Seção Tormenta, na prática reconhecida
como “Tropas de Assalto”. Milícia paramilitar
A prosperidade econômica experi- lósofos e músicos célebres a gerar, aco-
nazista durante o período em que o Nacional mentada nos primeiros anos do nazis- lher e seguir um homem extremamente
Socialismo exercia o poder na Alemanha. Seu mo e as primeiras vitórias militares sem limitado e perturbado com uma vida
líder era Ernst Röhm, capitão do exército e no-
tório por seu senso de organização e sua capa-
grandes perdas fazia com que tais ações pessoal extremamente obscura e con-
cidade de comando. Os membros das SA tam- ilegais ficassem obscurecidas, pois pou- fusa, com idéias radicais e agressivas.
bém eram conhecidos como “camisas pardas”, cos nomes importantes como o bispo
pela cor de seu uniforme. As SA constituíram, vista econômico. (Nota da IHU On-Line)
em certo momento, uma das intituições mais
conde von Galen18 e o arcebispo Fau-
ativas da vida pública da Alemanha, e um dos lhaber19 ousavam fazer oposição aber- 20 Roland Freisler (1893-1945): juiz nazista
esteios do poder político de Adolf Hitler. Deve- 18 Clemens Augustinus Joseph Emmanuel alemão. Tornou-se secretário de Estado do Mi-
se ressaltar que elas não funcionavam como Pius Antonius Hubertus Marie Graf von Ga- nistério da Justiça do III Reich e presidente da
um exército ou uma tropa organizada, sendo len (1878-1946): arcebispo alemão da cidade Corte do Povo. (Nota da IHU On-Line)
sua atividade muito mais a de baderneiros do de Munique, nomeado em 1933. Foi nomeado 21 Claus Philip Maria Schenk von Stauffen-
que a de um exército. A partir do episódio co- cardeal pelo Papa Pio XII, em 1946. Foi beati- berg (1907-1944): coronel alemão da II Guerra
nhecido como A noite das facas longas, quando ficado em 2005 pelo Papa Bento XVI. (Nota da Mundial. Foi o oficial alemão mais jovem a re-
Röhm foi destituído, as SS, sempre contrapos- IHU On-Line) ceber o título de coronel. Foi um dos princi-
tas às SA, ocuparam o espaço de polícia políti- 19 Michael von Faulhaber (1869-1952): arce- pais articuladores do mal sucedido atentado à
ca. (Nota da IHU On-Line) bispo das dioceses de Munique e Freising, na bomba contra Hitler em 20 de julho de 1944,
17 Marinus Van der Lubbe (1909-1934): anar- Alemanha, por 35 anos. A pedido do Papa Pio que tentou remover o líder nazista do poder.
quista e ativista, acusado de atear diversos in- XI, redigiu em 1937 o esboço do documento (Nota da IHU On-Line)
cêndios em Berlim, entre os quais o incêndio que serviu de base para a Encíclica Mit bren- 22 Sophie Magdalena Scholl (1921-1943):
do Reichstag, o parlamento alemão, em 10 de nender Sorge, que condenou o nazismo. Foi membro do movimento Rosa Branca, de re-
Janeiro de 1933. Imediatamente detido pela apelidado por seus opositores nazistas como sistência nazista. Foi condenada por traição
polícia no interior do edifício, é acusado pelo Juden-Kardinal (cardeal judeu) por ter critica- e executada na guilhotina. É conhecida como
partido comunista alemão de ter sido manipu- do o crescente antisemitismo e a expulsão ar- uma das poucas alemãs que se opuseram ati-
lado pelos nazistas, sendo descrito como um bitrária da Alemanha de judeus poloneses. Em vamente ao III Reich durante a Segunda Guer-
desequilibrado. Os conselheiros organizam a 1940 apresentou um protesto junto ao Ministro ra Mundial. É tida como mártir. Em 2005, foi
sua defesa e criam um Comitê Internacional da Justiça contra o programa nazista Aktion lançado um filme sobre Sophie Scholl, Sophie
van Lubbe, apoiado pelo movimento anarquis- T4, cujo objetivo era a eliminação e o assassi- Scholl — Die letzten Tage (Sophie Scholl - Os
ta. Foi condenado à morte e executada exata- nato de deficientes físicos e doentes mentais, ultimos dias ou Uma mulher contra Hitler),
mente um ano após o incêndio do Reichstag. considerados pelos nazistas como sendo indig- com a atriz Julia Jentsch como Sophie. (Nota
(Nota da IHU On-Line) nos de viver, porque improdutivos do ponto de da IHU On-Line)
16 SÃO LEOPOLDO, 21 DE JULHO DE 2008 | EDIÇÃO 265
Lembremos que, além de músicos e fi-
lósofos, a Alemanha tinha um antece-
dente histórico guerreiro e militarista
prussiano e um forte senso de respeito
à autoridade e a disciplina. Se o Direito
daquela época tinha mecanismos capa- O nazismo como legitimação
zes de legitimar a ascensão do nazismo,
esse senso de dever e obediência não
permitia a transgressão ou a rebeldia,
da irracionalidade
pelo menos foi assim para a maioria do
povo. Se os mecanismos legais lançados O advento do nazismo legitimou a intolerância, o crime, a
durante o regime eram ou não moral-
irracionalidade, e prova que a cultura e o conhecimento não
mente aceitáveis, se não havia um sen-
so de humanidade que buscamos hoje, afastam o espectro da irracionalidade. No mundo atual, ainda
parece não ter sido fonte importante de é possível que surjam líderes como Hitler, analisa o médico e
preocupação. Havia um Estado e havia
escritor Moacyr Scliar
Direito e aparentemente isso bastou. À
luz do Direito hoje, principalmente do
Direito Internacional, não seria possível POR MÁRCIA JUNGES
conceber a ascensão de um poder tão
absoluto e tão perverso, pois todos nós DIVULGAÇÃO
“H
carregamos um pouco dessa e de ou- á pouco tempo,
tras experiências negativas que servem o presidente do
como uma espécie de freio que mostra Irã declarou que
que algo pode estar muito errado. Além o Holocausto nun-
do mais, a Declaração dos Direitos do
ca ocorreu. Isto
Homem de 1948 e os instrumentos in-
sem falar nos tiranos que pululam por
ternacionais que se seguiram estabele-
cem parâmetros, legais inclusive, que aí, como Mugabe na África”, responde o
não permitem a assimilação por parte médico e escritor Moacyr Scliar, ao ser
de um sistema jurídico de um regime a questionado se no mundo atual ainda há
exemplo do nazista. Não esqueçamos, espaço para um tipo de ditador como
porém, que após o nazismo tivemos no Hitler. Para Scliar, “o nazismo conseguiu
mundo vários regimes que se diziam e legitimar a irracionalidade, o racismo, o
se dizem “legais”, mas que cometem preconceito, a intolerância, o crime”. E
graves atrocidades contra minorias po- continua: “O sofrimento une as pessoas,
líticas, étnicas e religiosas. É contra e uma catástrofe da magnitude do Holo-
esses embriões que precisamos lutar causto exerce esse efeito de forma pode-
impondo o Direito supremo, esse sim,
rosa. Os judeus se deram conta de que, mesmo fazendo parte de diferentes
das garantias do ser humano indepen-
grupos nacionais, ou sociais, ou profissionais, para o nazismo eles eram uma
dentemente de sua origem ou crença.
Um Direito com coerência e humanida- coisa só”. As afirmações fazem parte da entrevista a seguir, concedida com
de, com limites e fundamentos éticos e exclusividade à IHU On-Line por e-mail.
morais de defesa de direitos individu- Moacyr Scliar é um dos mais conhecidos escritores brasileiros da atuali-
ais e humanos. É isso que precisamos dade. Formado em Medicina, trabalha como médico especialista em saúde
defender e buscar sempre, repudiando pública. Em 1963, iniciou sua vida como médico, fazendo residência em
qualquer sistema legal que não tenha clínica médica. Especializou-se no campo da saúde pública como médico
essa base, mesmo que formalmente, sanitarista. Iniciou os trabalhos nessa área em 1969. Em 1970, freqüentou
reconhecido como Direito. curso de pós-graduação em medicina em Israel. Posteriormente, tornou-se
doutor em Ciências pela Escola Nacional de Saúde Pública. Já foi professor
na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Ciências da Saúde de
Porto Alegre (UFCSPA). Scliar publicou mais de setenta livros, entre crônicas,
LEIA MAIS... contos, ensaios, romances e literatura infanto-juvenil. Destes, citamos o en-
>> André Rafael Weyermüller foi saio A condição judaica (Porto Alegre, L&PM, 1987) e os romances O exército
entrevistado pela edição 261 da IHU On-Line,
de 09-06-2008, na editoria IHU Repórter. O mate- de um homem só (Porto Alegre: L&PM, 1997) e O centauro no jardim (9. ed.
rial pode ser acesso através do nosso site: www. Porto Alegre: L&PM, 2001). É o sétimo ocupante da cadeira nº 31 da Acade-
unisinos.br/ihu
mia Brasileira de Letras.
SÃO LEOPOLDO, 21 DE JULHO DE 2008 | EDIÇÃO 265 17
deu? Quais são as principais marcas determinadas circunstâncias, torna-
deixadas? rem-se assassinos. O nazismo conse-
Moacyr Scliar - O sofrimento une as guiu legitimar a irracionalidade, o ra-
pessoas, e uma catástrofe da magni- cismo, o preconceito, a intolerância,
“Hitler também dizia tude do Holocausto exerce esse efei- o crime.
to de forma poderosa. Os judeus se
que os judeus deram conta de que, mesmo fazendo IHU On-Line - Na Alemanha e no
parte de diferentes grupos nacionais, mundo atual, há espaço para esse
controlavam o capital. ou sociais, ou profissionais, para o na- tipo de político ditador? As pessoas,
zismo eles eram uma coisa só. Foi uma em pleno século XXI, apoiariam uma
Ou seja: eram forma de tomar uma dolorosa consci- política como aquela?
ência de um passado comum, de uma Moacyr Scliar - Claro que há. É só olhar
capitalistas e comunistas tradição cultural comum. os jornais para constatá-lo. Há pouco
tempo, o presidente do Irã declarou
ao mesmo tempo. O que IHU On-Line - Quais são as raízes his- que o Holocausto nunca ocorreu. Isto
tóricas para a perseguição aos judeus sem falar nos tiranos que pululam por
dá uma idéia do na Segunda Guerra Mundial? Pessoal- aí, como Mugabe na África.
mente, qual é o seu sentimento em
raciocínio maluco que relação a esse preconceito, a essa IHU On-Line - Podemos dizer que o
exclusão? Holocausto é fruto da pós-moderni-
animava o nazismo” Moacyr Scliar - O nazismo nasceu, em dade? Ou ele é a sua essência?
primeiro lugar, da peculiar situação Moacyr Scliar - Não sei se podemos
da Alemanha, que emergiu da Primei- dizer isso, mas não se discute que o
ra Guerra em uma situação precária Holocausto colocou dúvidas sobre a
e assim ficou durante muito tempo. idéia do progresso como algo moderno
Hitler soube, astutamente, mobilizar e irreversível.
esse ressentimento, e canalizá-lo con-
“O nazismo conseguiu tra um clássico bode expiatório que IHU On-Line - O que explica o fas-
eram os judeus, considerados, desde cínio exercido por Hitler sobre as
legitimar a a Idade Média, como um grupo conspi- massas?
ratório, atuando na área de finanças. Moacyr Scliar - Em primeiro lugar,
irracionalidade, o Para isso, colaborava o fato de que, pela frustração em que viviam mui-
no Medievo, muitos judeus se haviam tos alemães, e depois pelo carisma
racismo, o preconceito, dedicado ao empréstimo de dinheiro demagógico de um líder que prome-
a juros. Mas isso eles o haviam feito tia transformar a Alemanha na grande
a intolerância, o crime” por pressão das classes dominantes, potência do nosso mundo.
que confiavam o dinheiro a um grupo
indefeso. Quando um senhor feudal IHU On-Line - É correto dizer que
não queria pagar a dívida contraída Hitler entendia o marxismo como a
com um financista judeu tudo o que expressão política do judaísmo? Por
IHU On-Line - Em sua obra, inúme- ele tinha de fazer era desencadear um quê?
ros livros retratam a cultura judaica. massacre, que resultava assim numa Moacyr Scliar - É, sim, correto dizer
Como a questão da memória do povo “queima de arquivo”. Que os bancos isso. Mas Hitler também dizia que
através da literatura é importante depois tivessem assumido essa função os judeus controlavam o capital. Ou
para refletirmos sobre o Holocaus- aos preconceituosos não importava; seja: eram capitalistas e comunistas
to? eles continuavam dizendo que os ju- ao mesmo tempo. O que dá uma idéia
Moacyr Scliar - Alguém já disse que deus “tinham a usura no sangue”. do raciocínio maluco que animava o
a literatura é a história não oficial de nazismo.
um povo. Mesmo as obras de ficção IHU On-Line - Como podemos enten-
podem assim nos ajudar a entender der que, em pleno século XX, e com
um acontecimento tão sombrio e tão amplo apoio da população alemã e
cheio de lições como foi o Holocausto. de outras partes do mundo, se che- LEIA MAIS...
Igualmente importantes são as obras gou ao terror nazista? >> Confira outra entrevista concedida
de não-ficção. Moacyr Scliar - A cultura, o conheci- por Moacyr Scliar no sítio do IHU www.unisinos.
mento, a racionalidade, enfim, não br/ihu.
* “Ruim com SUS, pior, mas muito pior, sem ele”.
IHU On-Line - Como o Holocausto in- afastam o espectro da irracionalida- Edição 260, de 02-06-2008.
fluenciou na identidade do povo ju- de. Pessoas respeitáveis podem, em
18 SÃO LEOPOLDO, 21 DE JULHO DE 2008 | EDIÇÃO 265
O nazismo como essência da pós-modernidade
Se compreendermos pós-modernidade pela constatação do fracasso
dos “ismos” do século XIX, então o nazismo é sua própria essência,
“expressão máxima dessa aterradora e sempre presente possibilida-
de da Civilização Ocidental, a irrupção da barbárie”, afirma o enge-
nheiro Saul Kirschbaum
POR MÁRCIA JUNGES
“O
extermínio físico somente foi possível por ter sido precedido
pelo extermínio moral. Os judeus, ciganos, homossexuais,
foram primeiro desumanizados, desindividualizados, rebai-
xados a números, condenados à exclusão pelo fato mesmo de
pertencerem a um determinado grupo. O regime, totalitário,
se encarregou de criar uma imensa burocracia, recrutada e treinada para suprimir
quaisquer considerações éticas a respeito das tarefas recebidas”, acentua o enge- ARQUIVO PESSOAL
nheiro Saul Kirschbaum. Na entrevista a seguir, concedida com exclusividade por
e-mail à IHU On-Line, ele afirma que o número exato de vítimas do Holocausto “é
eticamente irrelevante, e sua discussão uma tentativa de desviar a atenção” para
a marca da barbárie, ou seja, a possibilidade de se assassinar populações inteiras
em escala industrial. Sobre as influências teóricas de Hitler, Kirschbaum acredita
que “qualquer texto é suscetível de múltiplas leituras, dependendo da ótica do
leitor”. Talvez, acredita ele, Hitler não tenha, propriamente, distorcido Hegel ou
Nietzsche, mas os compreendido em “uma dimensão que nos aterroriza. Para nos
tranqüilizarmos, precisamos pensar que ele distorceu”.
Kirschbaum é graduado em Engenharia Elétrica, pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS), especialista em Administração, pela Fundação Getúlio Vargas
São Paulo (FGV-SP), e mestre e doutor em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judai-
ca, pela Universidade de São Paulo. Sua tese intitulou-se Ética e literatura na obra de
Samuel Rawet. Autor de inúmeros artigos e capítulos de livros é um dos organizadores
de Dez Ensaios para Samuel Rawet (Brasília: LGE Editora, 2007). A entrevista, a seguir,
foi concedida com exclusividade, por e-mail, à IHU On-Line. Confira.
IHU On-Line - Quais são os principais e pesado passado de anti-semitismo, sil, aparentemente, só os mais idosos
traumas que persistem entre a co- um evento como o atentado contra a ainda sentem um certo estranhamento
munidade judaica em função do Ho- sede da Amia certamente traz de volta por sua condição judaica, que poderia
locausto? os fantasmas da era nazista. No Bra- ser visto como um fator que alimen-
Saul Kirschbaum - É difícil falar em taria sentimentos anti-semitas mais
1 Shoá: também escrito da forma Shoah,
“comunidade judaica”. Precisaríamos Sho’ah e Shoa, que em língua ídiche (um dia- violentos por parte da população he-
especificar: a comunidade judaica de leto do alemão falado por judeus ocidentais gemônica. Nos Estados Unidos, ao que
Israel? A do Brasil? A dos Estados Uni- ou asquenazitas) significaria calamidade, sen- parece, os judeus não sentem nenhum
do o termo deste idioma para o “Holocausto”.
dos? A da Argentina? Em Israel, cada É usado por muitos judeus e por um número tipo de estranhamento.
vez que o presidente do Irã ameaça crescente de cristãos devido ao desconforto
“varrer Israel do mapa”, não há como teológico com o significado literal da palavra IHU On-Line - Sua história pessoal
Holocausto que tem origem do grego e cono-
não pensar na iminência, ou pelo tação com a prática de higienização por inci- é marcada pelo Holocausto? De que
menos na possibilidade de uma nova neração. Estes grupos acreditam que é teolo- forma?
Shoá.1 Na Argentina, com um longo gicamente ofensivo sugerir que os judeus da Saul Kirschbaum - Na minha primei-
Europa foram um sacrifício a Deus. (Nota da
IHU On-Line)
SÃO LEOPOLDO, 21 DE JULHO DE 2008 | EDIÇÃO 265 19
ra infância, todos os judeus Ashkenaz2 mente pelos jovens, como tentativas tal, então deve ser possível encontrar
de Porto Alegre com quem tive conta- de culpabilizar toda a população, de aspectos que corroborem essas possi-
to tinham familiares entre as vítimas obrigá-los a assumir a culpa de seus bilidades em muitos pensadores. Nes-
da Shoá, ou estavam reencontrando pais, a geração da guerra. “Ora”, eles te sentido, talvez Hitler não tenha,
parentes e amigos que tinham con- pensam, “se nem ao menos tínhamos propriamente, distorcido o pensa-
seguido sobreviver. Mas eu era muito nascido”. Para os judeus, no imedia- mento dos filósofos, mas apenas com-
pequeno para entender o que estava to Pós-Guerra, a derrota é vista como preendido em uma dimensão que nos
acontecendo. Somente muito mais uma tragédia devida a erros estratégi- aterroriza; para nos tranqüilizarmos,
tarde fui capaz de entender por que cos dos generais e à conspiração dos precisamos pensar que ele distorceu.
minha avó paterna estava continua- judeus como os inimigos da Alemanha.
mente adoentada e pouco acolhedo- Por sua vez, os turcos agora, apesar IHU On-Line - Além do extermínio fí-
ra: tomei conhecimento de que meu da abundância econômica, são iden- sico, os nazistas promoveram um ver-
avô paterno tinha ajudado muitos dos tificados como os responsáveis pelas dadeiro extermínio moral por onde
seus parentes a vir para o Brasil logo eventuais dificuldades do dia-a-dia, passaram. De que forma a mentali-
que começou a ascensão do nazismo, pelo desemprego, pela pressão sobre dade nazista pôde ser aceita numa
e não tinha feito o mesmo esforço em a previdência social. Europa evoluída? Por que as pessoas
prol dos parentes de minha avó, o que não se levantaram contra esse tota-
resultou em um clima de permanente IHU On-Line - Em Mein kampf, Hitler litarismo?
tensão entre eles, já que minha avó afirma ter lido Hegel e Nietzsche, Saul Kirschbaum - O extermínio físi-
responsabilizava meu avô pela morte além de se declarar um admirador de co somente foi possível por ter sido
de todos os parentes dela. Esta situ- Wagner. Em que medida Hitler com- precedido pelo extermínio moral. Os
ação, bastante típica, o sentimento preendeu e distorceu o pensamento judeus, ciganos, homossexuais, fo-
de culpa por não ter feito todos os desses filósofos e compositor? ram primeiro desumanizados, desin-
esforços possíveis para ajudar paren- Saul Kirschbaum - A idéia de “dis- dividualizados, rebaixados a núme-
tes e amigos a sair da Europa oriental torcer” conota uma intencionalidade ros, condenados à exclusão pelo fato
antes da Shoá, foi tema de um con- perversa. Por outro lado, qualquer mesmo de pertencerem a um deter-
to de Samuel Rawet, “Réquiem para texto é suscetível de múltiplas leitu- minado grupo. O regime, totalitário,
um solitário”, publicado em Contos do ras, dependendo da ótica do leitor. se encarregou de criar uma imensa
imigrante, de 1956. Certamente, não se pode afirmar que burocracia, recrutada e treinada
Hegel e Nietzsche tenham sido na- para suprimir quaisquer considera-
IHU On-Line - Como você compreen- zistas, ou proto-nazistas, ou mesmo ções éticas a respeito das tarefas re-
de a construção do anti-semitismo simpatizantes do nazismo (ao con- cebidas. Uma gigantesca máquina de
que recrudesceu na Alemanha do trário de Wagner,3 cuja recuperação propaganda recebeu a atribuição de
pós-guerra? e interpretação dos mitos germânicos convencer a população de que as di-
Saul Kirschbaum - Persiste na Ale- foi instrumental para a elaboração do ficuldades vividas pela Alemanha eram
manha (como em vários outros países ideário nazista, e por quem a admira- conseqüência da presença maléfica
europeus) a mais triste herança da ção de Hitler era notória). Mas, se o dos grupos que estavam sendo exclu-
era nazista: o ódio ao estrangeiro, ao nazismo, o totalitarismo, a barbárie, ídos, pois impediam a caminhada da
imigrante que compete pelas vagas no são possibilidades concretas, apesar Alemanha rumo ao seu futuro glorioso,
mercado de trabalho (particularmente de extremas, da Civilização Ociden- de outra forma garantido pela supre-
as de nível mais baixo) e ameaça as re- macia racial dos alemães; ao mesmo
lações pessoais entre os alemães “pu- 3 Richard Wagner (1813-1883): compositor tempo, a prática da brutalidade contra
ros”. Ao estranho, com costumes di- alemão, considerado amplamente como um os adversários do regime, do fato con-
dos expoentes do romantismo na música.
ferentes, visto como não-assimilável. Como compositor de óperas, criou um novo es- sumado, espalhou o terror, impedindo
O racismo persiste, como evidencia a tilo, grandioso, cuja influência sobre a música que as pessoas se levantassem. Muitos
recente aprovação, pelo Parlamento foi forte a ponto de os músicos de seu tempo intelectuais, reduzidos à impotência,
e posteriores serem classificados como wagne-
europeu, de medidas mais restritivas rianos ou não-wagnerianos. Escreveu o libretto optaram por emigrar.
contra os imigrantes ilegais. Neste de todas as suas óperas, inclusive o ciclo do
contexto, os esforços institucionais Anel dos Nibelungos, onde reconstrói partes IHU On-Line - Qual é a base da teoria
da antiga mitologia germânica. Para a ence-
para banir o legado nazista e impe- nação deste e doutros espetáculos grandiosos de que o número de vítimas do Ho-
dir seu retorno são vistos, especial- que concebeu, foi construído o teatro de ópe- locausto é uma impossibilidade, que
ra de Bayreuth. É interessante notar que D. foi superestimado?
2 Ashkenaz: nome dado aos judeus provenien- Pedro II, impressionado com a obra de Wagner,
tes da Europa Central e Europa Oriental. O cogitou construir no Brasil este teatro. Sua Saul Kirschbaum - A teoria de que o
termo provém do termo do hebraico medieval vida pessoal teve também aspectos espetacu- número de vítimas da Shoá foi superes-
para a Alemanha, chamada Ashkenaz. Nos dias lares, como terminar o primeiro casamento e timado se baseia: a) na falta de estatís-
de hoje, o termo asquenazita é utilizado para ter que mudar de país por seu relacionamen-
tratar das tradições religiosas dos judeus que to com a esposa de von Büllow (Cosima, filha ticas confiáveis, já que muitos judeus fo-
viviam na Europa Oriental, assim como as de de Liszt) que se tornaria sua segunda esposa. ram “gaseados” assim que chegaram aos
seus descendentes, espalhados por todo mun- Vem daí seu parentesco com Liszt. (Nota da Campos de Extermínio, antes mesmo de
do após o Holocausto. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line)
20 SÃO LEOPOLDO, 21 DE JULHO DE 2008 | EDIÇÃO 265
serem cadastrados nos registros adminis- se de uma civilização, ou antes de uma
trativos dos Campos, ou simplesmente anti-civilização instalada na brutalidade
assassinados a tiros, pelos einsatzcoman- do fato de ser, na brutalidade do fato
dos, sem maiores preocupações de regis- “Rawet se alinha entre consumado. [...] Daí a advertência final
tro; b) na alegada falta de tecnologia e de Lévinas em De l’évasion: ‘Toda civili-
equipamentos (câmaras de gás e fornos os expoentes da literatura zação que aceita o ser, o desespero trá-
crematórios) para matar e cremar tantas gico que ele comporta e os crimes que
pessoas; c) numa suposta “conspiração brasileira, sendo ele justifica, merece o nome de bárba-
judaica”, interessada em exagerar o nú- ra’” [traduções minhas]. A grande lição
mero de vítimas para extorquir o “mundo responsável pela do nazismo, a barreira moral até então
civilizado”, especialmente os alemães; intransponível que ele derruba para a
d) em que não houve propriamente renovação do gênero conto Civilização Ocidental, é a demonstração
uma Shoá, sendo o elevado número de prática de que é possível matar milhões
vítimas judias apenas conseqüência das no Brasil, além de de pessoas, bastando, para isso, que elas
condições de guerra — afinal, os alemães sejam previamente desumanizadas, pri-
não poderiam desviar muita alimentação desenvolver um uso vadas de seus direitos mais elementares.
para consumo dos prisioneiros, e as más A constatação de que essas possibilidades
condições higiênicas nos Campos favo- diferenciado do próprio extremas residem na aceitação do Ser (e,
reciam o alastramento de epidemias de conseqüentemente, na desumanização
tifo etc. Na verdade, o número exato idioma, o que pode ser do Outro, reduzido a corpo “matável”)
de vítimas é eticamente irrelevante, e tem como decorrência, para Lévinas,
sua discussão uma tentativa de desviar a devido à sua inserção que somente uma filosofia baseada na
atenção: a marca da barbárie é a própria infinita responsabilidade pelo Outro, no
possibilidade do assassinato “industrial” em uma intersecção pleno reconhecimento de sua alteridade,
de populações inteiras. será capaz de se opor à barbárie.
de culturas”
IHU On-Line - O nazismo é uma ex- IHU On-Line - Qual é o contexto em
pressão da pós-modernidade ou é sua que surge e qual é a importância da
própria essência, representando a fa- obra de Samuel Rawet?
lência de valores e o niilismo moral? de suporte para a postulação da plena Saul Kirschbaum - A adolescência de
Saul Kirschbaum - É necessário um realização do Eu. O Outro se apresen- Rawet é marcada pela tragédia euro-
consenso prévio sobre o significado ta, então, como um obstáculo ao de- péia: ao final da guerra, ele tinha 16
da expressão “pós-modernidade”. Se senvolvimento do Eu em todo o seu anos, e certamente tomou conhecimen-
a entendermos como a constatação potencial, e deve, por isso, ser supri- to do sofrimento de tantas famílias ao
do fracasso dos “ismos” do século XIX mido. A liberdade é assassina, e a re- saberem do destino de seus parentes, e
(comunismo, socialismo, liberalismo, lação entre os homens é marcada pelo da chegada de sobreviventes abalados
positivismo), que prometiam um fu- ódio. Esta reflexão inspira Lévinas a psíquica e, muitas vezes, economica-
turo jubiloso de progresso material propor “a ética como filosofia primei- mente. Em sua primeira coleção publi-
permanente e a conseqüente melhoria ra”, e a infinita responsabilidade pelo cada, Contos do imigrante, em metade
moral da humanidade, então, sim, o Outro em lugar da primazia do Eu. dos contos o protagonista é judeu, e a
nazismo é a própria essência da pós- trama está intimamente relacionada à
modernidade, é a expressão máxima IHU On-Line - Em que aspectos o Shoá. Talvez esta exposição ao trauma,
dessa aterradora e sempre presente pensamento de Lévinas é uma res- ao sofrimento, à privação, tenha leva-
possibilidade da Civilização Ocidental, posta e uma contraposição à filosofia do Rawet à abertura para a alteridade
a irrupção da barbárie; é a possibili- nazista? A dominação do Ser na filo- que marca toda sua obra. Mas sua im-
dade do Campo de Concentração em sofia ocidental cede espaço ao Outro portância não reside exclusivamente no
escala internacional. na filosofia Lévinasiana? tratamento que dá às questões éticas.
Saul Kirschbaum - Lévinas já havia per- Rawet se alinha entre os expoentes
IHU On-Line - Como a marca do ódio cebido, em seu ensaio de 1934, “Quel- da literatura brasileira, sendo respon-
do homem contra o homem deixada ques réflexions sur la philosophie de sável pela renovação do gênero conto
pelo nazismo perpassa e inspira Lévi- l’hitlérisme”, que “a filosofia do hitle- no Brasil, além de desenvolver um uso
nas a construir um sistema em que a rismo [...] põe em questão os próprios diferenciado do próprio idioma, o que
Ética e alteridade são os pilares prin- princípios de uma civilização”. Como pode ser devido à sua inserção em uma
cipais? assinalou Miguel Abensour,4 no ensaio intersecção de culturas. Afinal, cabe
Saul Kirschbaum - O ponto de partida que acompanha aquela obra, “[t]rata- lembrar que o idioma de sua infância,
da reflexão levinasiana é que a pri- 4 Miguel Abensour (1939): filósofo francês, edi- tanto na Polônia quanto no Brasil, é o
mazia da liberdade do sujeito, cons- tor da revista Libre durante a década de 1970, ídiche. E que, como ele mesmo dizia,
titutiva da ontologia ocidental, serve junto de Pierre Clastres, Cornelius Castoriadis e “aprendeu o português na rua”.
Claude Lefort. (Nota da IHU On-Line)
SÃO LEOPOLDO, 21 DE JULHO DE 2008 | EDIÇÃO 265 21
A história oral como reflexão sobre o Holocausto
Alexander Von Plato, historiador alemão, conduz pesquisa em que
mais de três mil sobreviventes do Holocausto foram ouvidos. Relatos
diferem da historiografia oficial e lançam questões sobre o que a
população alemã da época realmente sabia sobre a solução final,
e até que ponto estava envolvida
POR MÁRCIA JUNGES E PATRICIA FACHIN
A
forma como os alemães lidam com o fato histórico do nacional-socialismo
mudou muito desde a década de 1970. Ao contrário do que acontecia nos
anos 1950, há poucas pessoas que negam o que houve, ou que os alemães
haviam perpetrados os crimes de guerra, explica o historiador alemão
Alexander Von Plato. Em entrevista concedida pessoalmente à IHU On-
Line, quando ele veio à Unisinos participar do IX Encontro Nacional da Associa-
ção Brasileira de História Oral (ABHO), intitulado Testemunhos e Conhecimento,
realizado de 22 a 25 de abril, ele admite que ainda pairam dúvidas sobre o que
realmente a população sabia sobre o Holocausto, e quem estava envolvido e até
que ponto. “Não duvido de que boa parte da população era apolítica”, disse. “Mas
houve uma boa porção que não se encaixa nesse perfil, como os filiados ao NSDAP e
a outras organizações nazistas”. Outro ponto que merece destaque é que o nacio-
nal-socialismo hoje é tema nas escolas, com depoimentos de pessoas que viveram
experiências pessoais do período. Esses relatos muitas vezes não coincidem com a
historiografia oficial, aponta Von Plato. Eis outro motivo importante para ouvir o
que essas pessoas têm a dizer. O historiador, que é vice-presidente da Associação
Internacional de História Oral (IOHA), coordena um trabalho em que mais de três
mil entrevistas biográficas sobre o período foram coletadas. Os testemunhos figu-
ram como uma memória importante a ser estudada e discutida, tema de reflexões
e debates. Questionado sobre o recrudescimento do nazismo na Alemanha atual,
Von Plato disse que este é maior em países como a França.
Von Plato é fundador e diretor do Instituto de História e Biografia da Universi-
dade Aberta de Hagen, na Alemanha, e vice-presidente da Associação Internacional
de História Oral (IOHA). Pesquisa o nacional-socialismo, em especial a divisão da
Alemanha e o recente processo de unificação. É professor visitante da Universidade
de Viena e foi um dos conferencistas do IX Encontro Nacional da Associação Brasi-
leira de História Oral (ABHO), Testemunhos e Conhecimento.
IHU On-Line - Como as pessoas que ta: se das vítimas, sejam elas políticas vieram a ser, respectivamente, a Re-
sobreviveram ao nazismo consegui- ou perseguidas por racismo, seja dos pública Democrática Alemã, comunista
ram lidar com seus traumas? Como apoiadores do sistema antigo, funcio- (RDA), e a República Federal da Ale-
o governo administrou esse proble- nários do nacional-socialismo, seja dos manha (RFA); e de como essa pessoa
ma? Que referenciais essas pessoas milhões de simpatizantes que foram lidou depois com o nazismo, com as
tinham para sobreviver, para lidar “tapeando” de um jeito ou de outro. lembranças, com a política, com as ví-
com a situação? Depende também de alguns fatores: o timas. A maioria dessas, de origem ju-
Alexander Von Plato - A forma como as de se a pessoa vivia no Leste, na Zona daica, emigrou. O nacional-socialismo
pessoas lidaram com o nazismo natu- de Ocupação soviética, ou nas Zonas e a história da RDA são as áreas melhor
ralmente depende de quem se pergun- de Ocupação ocidentais, que depois pesquisadas da história alemã.
22 SÃO LEOPOLDO, 21 DE JULHO DE 2008 | EDIÇÃO 265
Trabalhei principalmente sobre o praticando uma espécie de mimetis-
nacional-socialismo alemão. Entrevis- mo: casou-se com uma cristã, mandou
tei diferentes grupos populacionais, batizar os filhos, sempre afirmava ser
bem como pessoas que se diferencia- evangélico, o que não era verdade. Ou
vam por sua função, ou participaram “Há uma série de causas seja, durante 25 anos, calou-se sobre
da resistência, ou foram vítimas. É um sua etnicidade judaica. Somente de-
trabalho de décadas. Para se ter uma para o surgimento e pois que o clima social na RFA mudou
idéia, nosso Instituto dispõe de três com o movimento estudantil e aqueles
mil entrevistas biográficas. finalmente para a vitória fatos marcantes que mencionei, é que
ele se tornou um dos mais conhecidos
Prescrição de assassinatos do nacional-socialismo em protagonistas da luta por indenização
A primeira geração pós-guerra que para judeus e trabalhadores forçados,
vivenciou o nacional-socialismo ten- 1933. Em primeiro lugar, contra a IG-Farben e suas empresas
tou embelezá-lo, deixando de analisar sucessoras.
seus crimes. Isto mudou com o tempo, é preciso dizer que a A IG-Farben era um grande comple-
ao final dos anos 1960, quando na Ale- xo industrial químico na época, onde
manha Ocidental o nacional-socialis- Alemanha estava dividida, ele precisou prestar trabalhos força-
mo voltou a ter papel mais destacado dos. Nos anos 1970, ele começou a
na pesquisa e na política. não era um bloco lutar por indenização e pelo reconhe-
Fatos marcantes, nesse sentido, na cimento de que ali foram explorados à
Alemanha Ocidental, foram o proces- homogêneo, nem no povo, força. Além disso, voltou a professar
so de Auschwitz, entre 1963 e 1965, sua etnia judaica. Tornou-se dirigente
a instalação de uma Promotoria Geral nem nas lideranças. Havia de uma comunidade culto judaica, e
para a investigação dos crimes do na- casou-se. A questão desse casamento
cional-socialismo, em 1958/1959, e uma divisão extrema” é demasiado complicada, mas é im-
a discussão sobre a prescrição de as- portante porque, após Auschwitz, ele
sassinatos. Nesse caso, o assassinato se considerou incapaz de relacionar-se
perpetrado pelo nacional-socialismo com mulheres. Só tinha casos de pou-
estaria prescrito. Por isso, em meados ca duração, isto é, nada duradouro.
dos anos 1960, iniciou-se um debate
no Congresso Nacional alemão sobre dos em Auschwitz. Em sua volta, não IHU On-Line – Como os alemães lidam
essa prescrição, o que é de impor- pôde herdar a propriedade da família com essa parte de seu passado?
tância enorme, porque de repente se porque a lei alemã não previa que al- Alexander Von Plato - Com a geração
passou a discutir o tema em público. guém tão jovem, sem prova da mor- mais recente, a forma de lidar com
Havia, então, uma maioria no povo te dos pais, pudesse tomar posse da esse fato histórico mudou muito. Hoje,
alemão que queria que se acabasse herança. Na época, ainda não existia para cada campo de concentração, te-
com a investigação desses crimes. Em indenização, ou seja, uma forma de mos um memorial. Buchenwald é um
1969, essa pesquisa representativa foi compensação. O que era possível era dos mais conhecidos. Em muitas cida-
repetida, e aí a relação contra/a favor ele receber algo por uma formação de des na região do Ruhr, em Hamburgo,
havia invertido. Então, a maioria não estudo perdida. Por isso, ele recebeu Essen, Duisburg, Hannover, no Sul da
queria que se pusesse um ponto final 5 mil marcos e, quarenta anos depois, Alemanha, houve longa exposição so-
na investigação. uma indenização por trabalhos força- bre perseguição e resistência. Desde
Este é um ponto importante. Foi a dos prestados em Auschwitz. os anos 1970, a maneira de lidar com
época do movimento estudantil, mas essa questão mudou totalmente: ela
esse foi apenas um aspecto. Um exem- A importância da história oral também é aceita, contra uma minoria
plo é de que, em 1941, um judeu jovem Neste caso, se vê que o lado mate- que não admite que o Holocausto seja
foi levado com seu irmão, com toda a rial evoluiu lentamente na RFA. Este verdade. Mas, contrariamente aos anos
sua família, para Auschwitz. A família é o aspecto exterior, material. Mas o 1950, é aceito que, sob o nacional-so-
inteira morreu, com exceção dele e do que ocorreu na cabeça desse jovem só cialismo, esses crimes foram perpetra-
seu irmão. Após 1945, ele voltou a seu descobrimos mediante consulta oral e dos na Alemanha por alemães.
vilarejo e ninguém acreditou no que entrevista biográfica. Aí é que a histó- Também a minha geração admite
ele disse: que esteve em Auschwitz. ria oral mostra suas vantagens. Todas ter responsabilidade, embora sem cul-
Muito pelo contrário: disseram se tra- essas tentativas de fazer reconhecer pa individual. A questão sobre até que
tar de uma falsa acusação. As pessoas Auschwitz fizeram-no sentir-se nova- ponto os alemães estavam envolvidos
não acreditaram que realmente houve mente traumatizado. Seria demais. é muito difícil. A respeito disso há
esse sistemático assassinato de judeus. Foi um enorme peso para ele recontar muita discussão. Sobre esta questão,
Ele era jovem demais para poder her- tudo. Mesmo assim, ele ficou na Ale- estamos quebrando a cabeça há déca-
dar, e seus pais haviam sido assassina- manha com seu irmão, embora tentan- das. O que os alemães sabiam? Quem
do ocultar sua etnia judaica. Acabou
SÃO LEOPOLDO, 21 DE JULHO DE 2008 | EDIÇÃO 265 23
caram muito irritados. Ambos os lados
de alguma maneira tinham razão. Eu
compreendi o rapaz muito bem. Ele
disse: “Nós temos nossos próprios pro-
“A Primeira Guerra Mundial não estava terminada. O blemas. Nós vemos o racismo hoje”.
Este não é tão forte na Alemanha hoje,
grito de vingança estava no ar. Em entrevistas já nas como se acredita — é relativamente li-
mitado, talvez por causa do nazismo.
fases tardias da pesquisa que conduzi, fiquei sabendo
Xenofobia na Europa
que a Segunda Guerra Mundial foi percebida como conti- Em termos gerais, há xenofobia e
um anti-semitismo latente na Alema-
nuação da Primeira. Aqui, refiro-me apenas aos radicais nha. É preciso considerar que é muito
difícil, hoje, distinguir entre crítica à
da direita” política de Israel e anti-semitismo, ou
se uma coisa mascara a outra. Mas,
no parlamento federal, não temos um
partido de direita radical. Na Alema-
nha Oriental, ex-comunista, temos al-
guns partidos de extrema direita nos
esteve envolvido? geração, não o estudávamos. Hoje, parlamentos regionais, assembléias
Nos anos 1950, todos esses crimes não há sequer uma escola, uma clas- legislativas. O anti-semitismo e o neo-
foram atribuídos à SS e ao NSDAP, se, em que pelo menos uma vez uma fascismo são relativamente mais fracos
não às Wehrmacht (forças armadas). vítima do nazismo não tenha apresen- na Alemanha do que em outros países
Desde os anos 1960, entretanto, há tado experiências pessoais — o que é europeus, particularmente do leste
abrangentes investigações militares, complicado, porque não coincide com europeu, mas também mais fracos do
por sinal financiadas pelo governo, a historiografia oficial. Mas, se isto re- que na França. Espero que isto tenha a
que constatam que não é tão simples almente ajuda a trabalhar o nacional- ver com todo o processo de trabalhar
assim. As forças armadas também socialismo nas próximas gerações, na- o nazismo.
participaram de crimes. Elas se pro- turalmente é uma incógnita. Temos um Ainda sobre o radicalismo de direita
tegeram, às vezes participaram de “Dia da Libertação”, que não é o 8 de no leste, devo dizer que na área rural,
fuzilamentos e, em parte, ao menos, maio, mas o 27 de janeiro, justamente em muitas regiões da antiga República
cumpriram o Kommissarsbefehl (or- o dia da libertação de Auschwitz. Este, Democrática Alemã, ele ainda existe
dem de fuzilar sumariamente os fun- de um modo geral, é comemorado nas de forma acentuada, principalmente
cionários soviéticos). Isto foi oculta- escolas, atualmente. entre jovens trabalhadores. A taxa de
do, enfatizando-se, em compensação, Certa vez, pediram-me que desse desemprego ali é elevada. Não há mais
a resistência do movimento chamado uma palestra sobre Auschwitz e o na- instituições culturais antigas; elas es-
20 de julho, do qual participaram cional-socialismo. Houve uma discus- tão quebradas ou desapareceram. É
militares em 1945. A grande questão são, quando jovens perguntaram: “Para uma situação difícil justamente para
sempre é: quem esteve envolvido? que precisamos saber de Auschwitz, os jovens. Eles ou vão embora, ou,
Não duvido de que boa parte da po- como afirmou um professor, para hoje se ficam, estão muito ameaçados. Aí
pulação era apolítica. Mas houve uma ser a favor de direitos democráticos?”. ocorrem conflitos acirrados. Mesmo as-
boa porção que não se encaixa nesse Quem assim se manifestou foi um re- sim, tenho a sensação de que também
perfil, como os filiados ao NSDAP e a presentante estudantil turco. Ele dis- na Alemanha Oriental se desenvolve
outras organizações nazistas. se: “Quero saber o que aconteceu no outro processamento do nazismo.
nacional-socialismo, mas não precisa
IHU On-Line - Qual é a situação atual terminar sempre com ‘Lembrem de IHU On-Line – Durante a guerra, ape-
quanto ao resgate da história da épo- Auschwitz, senão vocês nem poderão nas os aspectos positivos da admi-
ca do Holocausto? saber a importância da democracia. nistração alemã eram apresentados.
Alexander Von Plato – Para começar, Para combater hoje a xenofobia na Aos poucos, contudo, os assassinatos
vou falar sobre meus filhos. Diferente- Alemanha não preciso de Auschwitz. vieram à tona. Como as pessoas rea-
mente de mim, meus filhos receberam Preciso disso para meu conhecimento giram a isso?
na escola muitíssima informação sobre da história, para questões de racismo. Alexander Von Plato - Os aspectos po-
o nazismo. Nenhuma classe atinge a Mas eu posso ser contra a xenofobia e sitivos ainda são lembrados hoje. Em
conclusão do 2° grau sem que tenha o racismo apenas pela minha própria poucos anos, acabou-se com o desem-
aprendido algo sobre o nacional-so- experiência’”. Foi uma discussão bem prego, a vergonha do Tratado de Ver-
cialismo. Na minha época de escola, acirrada. De certa maneira, dei razão sailles, o fato de a Alemanha ter sido
o que aconteceu com todos da minha a ele, ao passo que os professores fi- tão oprimida, o que, para muitos, era
24 SÃO LEOPOLDO, 21 DE JULHO DE 2008 | EDIÇÃO 265
como uma humilhação pessoal. Isto parentes, situação esta bem diferente quarto para o outro”, como Bush dis-
foi, de certo modo, compensado por da dos outros países. Essa insatisfação se. Os americanos ficaram com medo
Hitler. Os jovens repentinamente po- desembocou em duas grandes ver- de que, se essa aproximação na Ale-
diam viajar para regiões distantes com tentes: os que queriam viajar para o manha e na Europa acontecesse sem o
a HJ (Juventude Hitlerista), enquanto estrangeiro (Ausreiser) e os que que- envolvimento deles, também a OTAN,
antes eram obrigados a ficar no seu riam “dar no pé” (Ausreisser). A outra sua principal âncora na Europa, aca-
ambiente, apenas. O desempenho no vertente, formada pelos que queriam baria perdendo importância. Por isso,
trabalho era valorizado. Há toda uma ficar, pretendia efetuar mudanças na Bush determinou que a reunificação
série de memórias que descrevem os RDA. Havia outra parte que também poderia acontecer, mas sob o teto da
aspectos positivos. Então, se esquece estava insatisfeita, mas ficava escon- OTAN, reconhecendo as fronteiras na
facilmente o que isso representava. O dida: era oportunista, ia levando do Europa (o que era um problema com a
padrão de vida melhorou incorrendo- jeito que dava. Os que queriam sair da Polônia em função da linha Oder-Neis-
se em altas dívidas. A guerra foi tam- RDA ocuparam a embaixada alemã oci- se, rios que faziam a fronteira estabe-
bém uma guerra de pilhagem. O anti- dental em Varsóvia, Praga, Budapeste, lecida após a Primeira Guerra) e sob
semitismo de então era tratado como o que se transformou num problema a égide da democracia. Esses quatro
se não existisse. Esta é hoje a memó- político. Havia milhares de pessoas nas pontos os americanos defenderam sis-
ria daqueles que, na época, estavam embaixadas reivindicando sua saída. tematicamente, de modo que, no fi-
na Juventude Hitlerista ou na WDM, nal, como sabemos, a reunificação se
Aliança das Moças Alemãs, que era um IHU On-Line - Acompanhamos tudo deu sob o teto da OTAN, nos mostran-
organismo nazista. O que vivenciaram isso passo a passo nos noticiários... do um aspecto que não deixava de ser
como jovens foi positivo. Embora hoje Alexander Von Plato - A outra verten- controverso.
pensem diferente, se perguntam: “O te foi a mudança no Leste europeu, Os soviéticos não tinham estratégia
que me fascinou tanto naquela época? principalmente na União Soviética, definida, constante. Os soviéticos que-
O que me conquistou para o nacional- pois desde 1985 Gorbatchev estava no riam preservar a RDA, depois queriam
socialismo?”. A historiografia precisa poder como Secretário Geral e não só uma unificação do Pacto de Varsóvia
estudar isto, caso contrário não enten- prometeu como também cumpriu que com a OTAN. A estratégia de Bush e
demos o nacional-socialismo. O horror o Exército Vermelho não mais intervi- Kohl2 é que acabou decidindo as coi-
é um lado, mas a atração que o na- ria em assuntos internos, mesmo dos sas. Os soviéticos só correram atrás e
zismo exerceu para os jovens daquela países da aliança de defesa do Pacto os movimentos de massa perderam im-
época é outro. Nesse ponto, a história de Varsóvia. Isto naturalmente foi um portância. Com a queda do muro em 9
oral é decisiva. elemento importante. Quando então de novembro de 1989, os movimentos
apareceu o movimento, sempre havia de massa perderam importância e os
IHU On-Line - Mas esse lado atraente esse medo: a União Soviética vai in- ministérios do exterior assumiram a
foi tão formidável a ponto de mobili- tervir, ou não? Gorbatchev se encarre- liderança. Então, os americanos e os
zar as massas? gou — este ponto é importante — de alemães ocidentais foram mais for-
Alexander Von Plato - O Tratado de que não houvesse intervenção. Nessa tes que outros países da Europa Oci-
Versailles foi crucial para as pessoas. O história também o acaso influenciou. dental. Esse processo foi sumamente
termo humilhação ainda é usado hoje Houve mal-entendidos diplomáti- complexo: na União Soviética, se evi-
para se referir a esse documento. cos entre a RFA e a União Soviética, denciavam mudanças e os americanos
ampliados pelo fato de George Bush1 reagiram, levando finalmente à reuni-
IHU On-Line – E, quanto à reunifi- (pai) assumir a presidência, com uma ficação sob o teto da OTAN.
cação, como ela repercutiu entre o nova estratégia da OTAN — o que ini-
povo alemão? cialmente não se percebeu. Para o 40° IHU On-Line – Como foi possível que
Alexander Von Plato - Escrevi um li- aniversário da OTAN, ele teve preci- o nazismo se desenvolvesse numa
vro sobre os aspectos internacionais e sou ir a Bruxelas e fazer um discurso, pátria que deu ao mundo gênios da
nacionais da reunificação. Ela é, natu- quando acabara de assumir. Antes de música, filosofia e sociologia?
ralmente, resultado de uma história viajar, ele baixou instruções de que Alexander Von Plato - Há uma série de
complexa, com elementos e vertentes precisava de uma reelaboração da causas para o surgimento e finalmente
bem diversas. Uma coisa certa foi que, estratégia, segundo a qual se deveria para a vitória do nacional-socialismo
na Polônia, Hungria, RDA e Tcheco-Es- acreditar em Gorbatchev, que dissera: em 1933. Em primeiro lugar, é preciso
lováquia, a população foi tomada de “Queremos uma casa européia”. Os dizer que a Alemanha estava dividida,
uma insatisfação com o regime, com americanos ficaram com medo de que não era um bloco homogêneo, nem no
a repressão, com as restrições de via- a influência dos soviéticos aumentasse povo, nem nas lideranças. Havia uma
gem, principalmente na RDA, além de demais. O que os americanos queriam divisão extrema. Nas últimas eleições
outras restrições aos direitos democrá- era uma casa européia, mas com li-
ticos. Ao mesmo tempo, no Leste se vre acesso entre os cômodos, “de um 2 Helmut Kohl (1930): chanceler da Alemanha
captava a TV ocidental. Nas duas Ale- de 1982 a 1998. Participou na fase final da II
manhas, há uma comunicação entre os 1 George Herbert Walker Bush (1924): 41º Guerra Mundial como soldado. (Nota da IHU
presidente dos EUA. (Nota da IHU On-Line) On-Line)
SÃO LEOPOLDO, 21 DE JULHO DE 2008 | EDIÇÃO 265 25
livres, no verão e depois, no outono de responsável por essa situação. Todos esse plano simbolizava a vilania dos
1932, os nazistas obtiveram 32 a 34% sabem que houve fatores internacio- aliados da época.
dos votos, “apenas”, o que era muito. nais, mas um social-democrata estava Para os conservadores, sob ponto
Ou seja, um terço votou nos nazistas. à frente do governo em 1929-1930. de vista cultural, o período da Repú-
A maioria, a rigor, era da Coalizão de Isto naturalmente levou a que justa- blica de Weimar foi considerado de-
Weimar, do centro, do catolicismo, dos mente as leis e portarias emergenciais masiado libertário. Há numerosas ou-
social-democratas e do Partido Demo- voltadas contra a população pudessem tras vertentes que os conservadores
crático Alemão. Esta era a chamada ser por identificadas com a social-de- enxergaram como decadente agressão
Coalizão de Weimar, que sustentava o mocracia. contra o seu estilo de vida.
sistema da República de Weimar. E ha- Quanto à terceira razão, quero ao
via o Partido Comunista, do outro lado. menos mencioná-la. As reparações, os República de Weimar e anti-semitismo
Os comunistas somados aos social-de- pagamentos feitos pela Alemanha após Como sempre, nessas épocas aumen-
mocratas teriam tido a maioria. Mas a Primeira Guerra Mundial foram con- ta o anti-semitismo. Weimar, no início,
não conseguiram entrar em acordo, siderados por muitos, justamente por era relativamente contida. Natural-
por muitas razões, que não vou men- nacionalistas alemães, como causa do mente, também havia anti-semitismo
cionar aqui. Assim, precisamos dizer empobrecimento na crise econômica como em quase todos os países naque-
que a vitória do nacional-socialismo le tempo, mas de forma relativamente
também foi uma derrota para o outro limitada. Entretanto, ele aumenta no
lado na Alemanha. Esses, na verdade, final da República de Weimar.
eram os detentores da cultura: os de- O que todos não entendemos é
mocratas, os social-democratas e tam- “A primeira geração pós- que, para muita gente, a Primeira
bém os comunistas, muitos intelectu- Guerra Mundial não estava termina-
ais de esquerda: Tucholsky, Ossietzky,3 guerra que vivenciou o da. O grito de vingança estava no ar.
o pessoal da esquerda. Para eles, a Em entrevistas, já nas fases tardias
vitória do nacional-socialismo foi algo nacional-socialismo tentou da pesquisa que conduzi, fiquei sa-
terrível. Ocorreu uma emigração de bendo que a Segunda Guerra Mundial
intelectuais judeus e também não-ju- embelezá-lo, deixando de foi percebida como continuação da
deus. Enfatizo isto porque é preciso Primeira. Aqui, refiro-me apenas aos
ter cuidado ao se referir à Alemanha analisar seus crimes” radicais da direita.
como se fosse um bloco hegemônico. Um dos legados positivos da Segun-
A Alemanha era muito diversificada e da Guerra Mundial e do nacional-so-
complexa. Outro aspecto é que o mo- cialismo é pensarmos em democracia,
vimento operário na Alemanha era o não em guerra. A reconciliação entre
mais forte fora da União Soviética, França e Alemanha, os antigos arqui-
naquela época. Juntando os partidos mundial. Ou seja, todos aqueles pla- inimigos, foi um passo crucial, já ini-
SPD [social-democratas] e KPD [comu- nos de reparações entre as potências ciado na República de Weimar por meio
nistas], ou mesmo tomando-se apenas vitoriosas, primeiro Versailles, depois de Stresemann5 e Briand,6 e, após a
o KPD, estes eram os mais fortes parti- o plano Dawes4, em 1924, depois o Segunda Guerra, com Adenauer7 e De
dos de trabalhadores fora da União So- Plano Young, em 1930, para a direita Gaulle.8 Estas foram premissas impor-
viética. Portanto, a Alemanha estava e para grande parte da população, tantes para a unificação da Europa. E
profundamente dividida. foram o símbolo, a marca registrada não vejo, no momento, nenhum risco
por excelência e causa da mudança, de guerra que parta da Europa, ou da
Crise econômica e Tratado de Ver- da opressão e do empobrecimento na Europa Ocidental e Central.
sailles Alemanha. O maior sucesso dos na-
O segundo grande complexo a ser zistas nas urnas foi em 1930, com o
abordado é que a crise econômica slogan “Abaixo o Plano Young!”. Young
5 Gustav Stresemann (1878-1929): político
mundial, justamente após a Primeira foi o economista e político americano alemão. Ocupou o cargo de chanceler da Re-
Guerra Mundial foi um golpe muito que elaborou esse plano, na verdade pública de Weimar de 13 de agosto de 1923 a
forte. Houve um empobrecimento ge- visando à redução das reparações de- 23 de novembro de 1923. Foi premiado com o
Nobel da Paz em 1926. (Nota da IHU On-Line)
neralizado e falências. Minha família cididas anteriormente. Mesmo assim, 6 Aristide Briand (1862-1932): político fran-
toda era da aristocracia rural e um cês. Ocupou o cargo de primeiro-ministro da
atrás do outro faliu. Justamente nessa 4 Plano Dawes: plano provisório elaborado por França seis vezes e foi premiado com o Nobel
um comitê dirigido Charles G. Dawes para via- da Paz em 1926. (Nota da IHU On-Line)
época, havia um chanceler social-de- bilizar o pagamento das dívidas que a Alema- 7 Konrad Adenauer (1876-1967): político
mocrata, Müller, que grande parte da nha possuía após o final da I Guerra Mundial, alemão, advogado e prefeito de Colônia. Foi
população considerou politicamente decorrentes do Tratado de Versalhes. O comitê chanceler da República Federal da Alemanha
era composto por 10 representantes, dois de de 1949 a 1963 e presidente do Partido Demo-
cada um dos seguintes países: Bélgica, França, crata Cristão (CDU). (Nota da IHU On-Line)
3 Carl von Ossietzky (1889-1938): jornalista Grã-Bretanha, Itália e EUA. O comitê chegou 8 Charles de Gaulle (1890-1970): general e
alemão, Nobel da Paz em 1935. (Nota da IHU a um acordo em agosto de 1924. (Nota da IHU presidente da França de 1958 a 1969. (Nota
On-Line) On-Line) da IHU On-Line)
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Perseguição nazista à arte: o modernismo
como arte “degenerada”
Exposição Arte Degenerada, organizada em Munique, em 1937, foi a maior
campanha contra o modernismo. Nazistas queriam desmoralizar arte moderna
e substituí-la por uma arte oficial, que espalhasse o ideal de força e pureza
alemã, acentua Yeda Arouche
POR MÁRCIA JUNGES
N
DIVULGAÇÃO
a entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line por Yeda Arou-
che, é discutido o uso que os nazistas fizeram da arte, bem como as cen-
suras que impuseram aos modernistas, sobretudo expressionistas, através
da desqualificação de suas obras. “O tom satírico e de exprobração, além
da constante exposição das mazelas sociais alemãs da época, terminam
por irritar as autoridades que passaram a perseguir os expressionistas e, também, os
demais modernistas, classificando-os como degenerados”, explica Arouche. Segundo
ela, “em 1927, Alfred Rosenberg, principal teórico do nacional-socialismo, inspirado
em Nordaus, publica vários ensaios acusando a livre e subjetiva estética moderna de
desequilíbrio e de alienação, iniciando um processo de massificação dessa idéia. No
ano seguinte, o arquiteto e teórico Paul Schultze-Naumburg edita seu livro Arte e
raça, no qual — usando a força da linguagem visual — apresentava um paralelismo
entre imagens de enfermos e desequilibrados mentais com as pinturas modernistas,
a fim de imputar degeneração à arte. Em 1929, Rosenberg funda a Liga de Combate
pela Cultura Germânica”. Estava montado o pano de fundo sobre o qual os nazistas
desqualificariam a arte expressionista equiparando-a ao conceito de degenerada.
Infelizmente, não apenas o nazismo usou a arte para atender seus fins: “Por diversas
vezes, a arte esteve envolvida, de uma forma ou de outra, com um ou outro tipo de
poder, principalmente, os totalitários”, lamenta Arouche.
Carioca, bacharel em Comunicação Social, habilitada em Relações Públicas, Publicidade e
Propaganda, também bacharel em Comunicação Visual, pela Escola de Belas Artes da Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro (1980), Arouche priorizou, inicialmente, suas atividades profis-
sionais na área da editoração e produção gráfico-visual, quando paralelamente, trabalhou com
estamparia têxtil, desenvolvendo arte para serigrafia. A partir de 2005, retoma as artes plásti-
cas, freqüentando cursos livres de pintura e de história da arte. Dedica-se, também, a estudar
e a manter um blog sobre arte (yedaarouche.arteblog.com.br). Em 2008, no Museu Nacional de
Belas Artes, cursou Análise da Forma do Estilo/Valores Plásticos das Artes Visuais. Prepara-se
para reingressar na Escola de Belas Artes, a fim de sedimentar conhecimentos no campo das artes
visuais, destacando pintura.
IHU On-Line - De forma geral, que declínio do feudalismo, espaço para o se encontrava espalhado. Havia uma
fatores propiciaram o surgimento de capitalismo, bens de produção mudan- nova ordem, novos pensadores e novas
uma arte rompida com a escola aca- do de mãos, reconfiguração de classes teorias para explicar o novo mundo.
dêmica? sociais, formação da massa de assala- Na segunda metade do século XIX, as
Yeda Arouche - A Revolução Industrial, riados, reorganização urbana, cresci- rígidas tradições da Academia come-
em meados do século XVIII, foi um gran- mento populacional, desenvolvimento çam a estremecer. Segundo Ferreira
de marco da humanidade, causando tecnológico etc. No século seguinte, Gullar,1 quando, em 1874, na França,
mudanças críticas em todos os campos: o processo, iniciado na Inglaterra, já 1 Ferreira Gullar: pseudônimo de José Riba-
mar Ferreira. Poeta, crítico de arte, biógrafo,
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os impressionistas “rompem com toda adeptos, com Franz Marc,8 Paul Klee9 e
e qualquer representação alegórica da Wassily Kandinsky.10 O grupo apresen-
realidade, eles de fato operam no cam- tava uma variedade de formas, sem
po da arte, a ruptura que já se dera no “O tom satírico e de nenhum compromisso com um “parti-
nível da vida prática”.2 cular estilo pictórico”, conforme ilus-
exprobração, além da trou Kandinsky. Tanto A ponte quanto
IHU On-Line - O que era o expressio- O cavaleiro azul se desfizeram antes
nismo, como surgiu e como demons- constante exposição das da Primeira Guerra Mundial. As idéias
trou a situação sócio-político-econô- expressionistas produziram grandes
mica na Alemanha? mazelas sociais alemãs ecos, acabando por se estender para
Yeda Arouche - Aponta-se o norueguês outras manifestações artísticas, como
Edvard Munch3 como um dos precurso- da época, terminam por a música, a dança, a literatura, o cine-
res do expressionismo. Foi influencia- ma e as artes gráficas.
do pelo trabalho pós-impressionista de irritar as autoridades que A crise econômica que se propagou
Van Gogh4 e de Gauguin.5 Do primeiro, na Alemanha de 1918, ao final da guer-
veio a carga emocional, e, do segun- passaram a perseguir os ra, provocou um caos. Sob falências,
do, o tratamento achatado das figuras, alta inflação e desemprego em massa,
as cores e a ausência de sombras. Para expressionistas e, o país vivia uma sucessão de fracassos.
Munch, uma obra de arte só poderia A instabilidade e a falta de perspectivas
nascer do interior do homem: “as ima- também, os demais muito contribuíram para que as idéias
gens que ficam do lado de trás dos do nazismo acabassem por triunfar, em
olhos”. No ano de 1892, Munch reper- modernistas, 1933, com a ascensão de Hitler.
cutiu grandemente na Alemanha, após
sua primeira exposição em Berlim. A classificando-os como
Mazelas sociais expostas na arte
obra “O grito” (1893), com sua perso- O expressionismo, em 1923, contou
nagem encarnando a própria angústia, degenerados”
com uma nova formação: o Neue sa-
é considerada emblemática. chlichkeit (Nova objetividade), que re-
cusava tendências abstracionistas. Em
O expressionismo alemão 1925, o grupo realiza uma exposição,
O expressionismo sedimentou-se na expressionista, o artista deveria lidar em Munique, mostrando a decadente
Alemanha, no início do século XX. Seus com a subjetividade, com os impulsos sociedade alemã. Assumindo postura
adeptos criticavam o impressionismo e com as paixões, fazendo crítica so- muito mais politizada que seus ante-
por não aceitarem sensações visuais cial e tocando em dramas psicológicos. cessores mantiveram-se na crítica so-
dando origem à representação. Para o Logo, a simples observação/imitação cial e incluíram temas antibelicistas e
memorialista e ensaísta brasileiro, autor de, do mundo exterior havia perdido o va- preocupações com o cenário evolutivo
entre outros Muitas vozes. (Nota da IHU On- lor, enquanto que o sentimento é que para a centralização do poder e conse-
Line)
2 GULLAR, Ferreira. Sobre arte (Rio de Janei- seria o notável. O simbolismo, também qüente fortalecimento do Estado.
ro: Avenir Editora, 1982). (Nota da entrevis- pode ser apontado como fonte em que Otto Dix11 e George Grosz12 foram
tada) bebeu o expressionismo pela possibili- expoentes dessa terceira geração de
3 Edvard Munch(1863-1944): pintor norueguês,
um dos precursores do expressionismo alemão. dade do uso do onírico. expressionistas. Ambos vão abraçar
Sua obra mais famosa é “O grito”. (Nota da Inicialmente, dois grupos foram for- certas temáticas, como a hipócrita
IHU On-Line) mados. O primeiro foi o Die brücke (A burguesia alemã, os horrores da guer-
4 Vincent Willem Van Gogh (1853-1890): pin-
tor neerlandês, considerado o maior de todos ponte), criado em 1905. Contava com ra e os socialmente rejeitados. É in-
os tempos desde Rembrandt, apesar de du- Otto Muller, Emil Nolde6 e Ernst Ludwig
rante a sua vida ter sido marginalizado pela Kirchner,7 dentre outros. Trabalhavam 8 Franz Marc (1880-1916): pintor alemão, um
sociedade. Sua influência no expessionismo, dos principais representantes do movimento
fauvismo e abstracionismo foi notória e pode com o cotidiano e com as obsessões. expressionista. (Nota da IHU On-Line)
ser reconhecida em variadas frentes da arte do Apresentavam pinceladas vigorosas, 9 Paul Klee (1879-1940): pintor alemão, nas-
século XX. Van Gogh foi pioneiro na ligação das deformações no traço e com cores for- cido na Suíça, de sentido abstrato. (Nota da
tendências impressionistas com as aspirações IHU On-Line)
modernistas. Hoje em dia várias das suas pin- tes e contrastantes. O segundo núcleo, 10 Wassily Kandinsky (1866-1944): artista
turas, entre elas Doze girassóis numa jarra, A com postura mais intelectualizada, russo, nacionalizado francês, professor da
casa amarela, Quarto em Arles, Os comedores surgiu em 1911 – o Der Blaue Reiter (O Bauhaus e introdutor da abstração no campo
de batatas e Auto-retrato encontram-se entre das artes visuais. (Nota da IHU On-Line)
os objetos mais caros do mundo, sendo supe- cavaleiro azul) – e contava, entre seus 11 Otto Dix (1891-1969): pintor expressionista
rados apenas por Pablo Picasso. Era portador alemão. Veterano da Primeira Guerra Mundial,
de epilepsia e também de distúrbio bipolar 6 Emil Nolde (1867-1956): pseudônimo de Emil sua obra é dominada pela temática antibélica.
(psicose maníaco-depressiva). (Nota da IHU Hansen, um dos mais importantes pintores ex- (Nota da IHU On-Line)
On-Line) pressionistas alemães. (Nota da IHU On-Line) 12 Georg Grosz (1893-1959): foi um pintor e
5 Eugène-Henri-Paul Gauguin (1848-1903): 7 Ernst Ludwig Kirchner (1880-1938): um dos desenhista alemão, uma das figuras mais des-
pintor francês pós-impressionista. (Nota da fundadores do grupo de pintura expressionista tacadas do movimento dadaísta em Berlim, de
IHU On-Line) Die Brücke. (Nota da IHU On-Line) 1917 a 1920. (Nota da IHU On-Line)
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teressante observar as obras “Prague senberg funda a Liga de Combate pela expressão, lidando com a sensação
street”(1920), “Metropolis” (1928) e Cultura Germânica. Ao cenário que se pessoal, fazendo críticas e levantando
“The seven cardinal sins” (1933), to- vem arquitetando, somam-se idéias questões. Tal postura, no mínimo, foi
das de Dix; e “Street scene” (1925), políticas sobre indesejáveis influên- desconfortável para um estado centra-
“The pillars of society” (1926) e “Ber- cias, tanto capitalistas como comunis- lizador que precisava sustentar uma
lin street” (1934), de Grosz. tas, sobre a arte. ordem e uma união em torno de sua
O tom satírico e de exprobração, Quando Adolf Hitler chegou ao po- ideologia. Além disso, para a ótica na-
além da constante exposição das ma- der, em 1933, o modernismo já estava zista, qualquer representação fora dos
zelas sociais alemãs da época, termi- definitivamente ligado à imagem de de- padrões naturalistas seria considerada
nam por irritar as autoridades que pas- generação. Sobre os artistas modernos, um desequilíbrio, uma degeneração.
saram a perseguir os expressionistas e, Hitler disse que se suas obras foram A partir de 1933, a Liga de Combate
também, os demais modernistas, clas- “resultado de uma experiência inte- pela Cultura Germânica propagaria a
sificando-os como degenerados. idéia de que o esforço nazista não se
importava apenas com os aspectos po-
IHU On-Line - Quais são as origens da lítico-econômicos, ao contrário, preo-
idéia do “degenerado”? “Em 1927, Alfred cupava-se em realizar uma ampla ação
Yeda Arouche - Na década de 1920, o cultural. Nesse sentido, calar os inde-
modernismo faz renascer velhas discus- Rosenberg, principal sejáveis e nortear os padrões estéticos
sões em torno do estilo artístico versus do regime, o governo proibiu a diversi-
qualidade racial, com a finalidade de teórico do dade criativa e impôs o neoclassicismo
confirmar a arte naturalista alemã do como modelo a ser seguido. Promoveu
século XIX, como nobre representan- nacional-socialismo, algumas exposições difamatórias e di-
te da estirpe ariana. Anteriormente, tou medidas coercitivas.
em 1829, Max Nordaus13 já havia feito inspirado em Nordaus, Passam a ser perseguidos todos os
analogia entre a degeneração patoló- que pudessem ser identificados como
gica com a decadência que imputava publica vários ensaios contrários às diretrizes nacionalistas e
à arte dos simbolistas, para defender retirados de circulação qualquer meio
a espiritualmente saudável e superior acusando a livre e de disseminação de idéias vanguardis-
cultura alemã. Isso terá desdobramen- tas. Hitler mandou fechar a Bauhaus, a
tos futuros. subjetiva estética primeira escola de design, arte e arqui-
Em 1927, Alfred Rosenberg,14 prin- tetura de vanguarda (1919/1933). Mui-
cipal teórico do nacional-socialismo, moderna de desequilíbrio tos livros e outras publicações foram
inspirado em Nordaus, publica vários varridos do território alemão. Direto-
ensaios acusando a livre e subjetiva e de alienação, iniciando res de museus foram cassados. Artistas
estética moderna de desequilíbrio e foram proibidos de dar aulas, de expor
de alienação, iniciando um processo um processo de ou de comercializar seus trabalhos. O
de massificação dessa idéia. No ano nazismo impôs uma verdadeira “caça
seguinte, o arquiteto e teórico Paul massificação dessa idéia” às bruxas”, confiscando de galerias,
Schultze-Naumburg15 edita seu livro de museus e de particulares, todas as
Arte e raça, no qual — usando a força obras de arte consideradas degenera-
da linguagem visual — apresentava um das. George Grosz pinta “A bestialida-
paralelismo entre imagens de enfer- de avança”, em 1933, como resposta a
mos e desequilibrados mentais com as rior, então eles são um perigo público e perseguição do Terceiro Reich.
pinturas modernistas, a fim de impu- devem ficar sob supervisão médica […]
tar degeneração à arte. Em 1929, Ro- se era pura especulação, então deviam IHU On-Line - O que foi a exposição
13 Max Nordau (1849-1923): médico, ativista estar numa instituição apropriada para Entartete Kunst (Arte Degenerada) e
sionista e co-fundador da organização sionista o engano e a fraude”. quais são os principais artistas conside-
mundial. Trabalhava junto com Theodor Herzl. rados “degenerados” pelo nazismo?
(Nota da IHU On-Line)
14 Alfred Rosenberg (1893-1946): político e IHU On-Line - Por que se acusava a Yeda Arouche - A exposição Arte De-
escritor alemão, principal teórico do nacional- estética modernista de ser desequi- generada foi inaugurada em Munique,
socialismo. Conselheiro de Adolf Hitler, chegou librada? Que tipo de arte se tornou no ano de 1937, como maior aconteci-
a ser ministro encarregado dos territorios da
Europa Oriental, em 1941, onde deportou e oficial do Estado nazista e como fun- mento da campanha contra o moder-
exterminou centenas de milhares de pessoas. cionou a repressão às manifestações nismo. Os nazistas pretendiam a total
O Tribunal de Nuremberg o condenou à mor- artísticas? e irreversível desmoralização da arte
te por enforcamento, pelos crimes de guerra.
(Nota da IHU On-Line) Yeda Arouche - O modernismo incomo- moderna. O evento foi de grande re-
15 Paul Schultze-Naumburg (1869-1949): ar- dou primeiro por rejeitar as tradições percussão reunindo em torno de 650
quiteto da Alemanha nazista. (Nota da IHU do passado. O artista moderno adqui- obras, selecionadas entre milhares
On-Line)
rira liberdade de criação, formal e de que foram apreendidas. Tal acervo era
SÃO LEOPOLDO, 21 DE JULHO DE 2008 | EDIÇÃO 265 29
Max Ernst,22 Piet Mondrian23 e George
Grosz.
IHU On-Line - Após a guerra, o que
“O modernismo incomodou primeiro por rejeitar aconteceu aos artistas que aderiram
à arte oficial do nazismo?
as tradições do passado. O artista moderno adquirira Yeda Arouche - Boa parte dos artistas
“degenerados” ao final da guerra tor-
liberdade de criação, formal e de expressão, lidando nou-se célebre. O mesmo não ocorreu
com os artistas “perfeitos” que repro-
com a sensação pessoal, fazendo críticas e duziam a Alemanha “perfeita” sob a
luz da eugenia e da “saudável” arte
levantando questões” nazista. Estes últimos foram estigma-
tizados e caíram numa espécie de lim-
bo, no ostracismo.
IHU On-Line - Como compreender a
“fruto da insanidade, imprudência, cionais”.
submissão de artistas e uso da arte
inépcia e completa degeneração”, A Arte Degenerada circulou pelo
pelo regime ditatorial de Hitler?
segundo Adolf Ziegler,16 presidente país, coroando o esforço de purifica-
Yeda Arouche - É preciso lembrar que
da Câmara de Artes Plásticas e orga- ção de galerias e museus alemães. O
o nazismo não foi a única organização
nizador do evento. Paralelamente, empenho nazista foi um sucesso, se
a usar a arte para melhor atender às
o governo planejou e inaugurou com for considerado o expressivo número
suas necessidades. Por diversas vezes,
grande pompa e destaque a Exibição de visitantes. Mais de dois milhões de
a arte esteve envolvida, de uma forma
da Grande Arte Alemã. Assim, o povo pessoas desfilaram pelas galerias para
ou de outra, com um ou outro tipo de
poderia bem comparar a arte “dege- ver as obras dos desprezados, e, prin-
poder, principalmente, os totalitários:
nerada” com a arte que oficialmente cipalmente, a dos expressionistas ale-
fascismo, stalinismo, maoísmo e até o
espelhava o ideal de força e de pureza mães em grande evidência na época.
salazarismo. Anteriormente, Napoleão
da raça alemã. Os cofres do partido também lucraram
Bonaparte24 já havia utilizado o neo-
com o empenho. Muitas obras foram
clássico para oficialmente glorificar
Guerra à “desintegração cultural” leiloadas, rendendo ótimos números
e divulgar seu desempenho político.
Observa-se como curiosa a arruma- para o ideal nazista. Algumas obras
Taunay e outros artistas franceses de
ção propositalmente descuidada da de arte que não foram vendidas des-
sua época registraram as glórias napo-
exposição degenerada. Tal coisa fazia tinaram-se à destruição sumária. Cer-
leônicas: foram artistas moldados na
parte dos planos do Reich para aumen- ca de quatro mil pinturas, aquarelas
França revolucionária, preparados para
tar a estranheza e a desagrado que de- e trabalhos de outras técnicas foram
a arte a serviço do Estado. E, mesmo
veriam transmitir as obras condenadas incinerados.
fugindo da ótica política, encontramos
pelo sistema. Pinturas de autoria de A exposição contou com mais de
o barroco como um exemplo de estilo
doentes mentais internados em hospi- 100 artistas, destacando-se Herbert
oficial utilizado pela “reforma” cató-
tais alemães foram expostas junto aos Bayer,17 Max Beckmann,18 Marc Cha-
lica, conhecida por contra-reforma,
quadros de artistas consagrados. Mui- gall,19 Lasar Segall,20 Otto Dix, Wassily
que transformou igrejas em verdadei-
tos títulos foram substituídos por ou- Kandinsky, Franz Marc, Georg Munch,
ros espaços cênicos, onde se esperava
tros mais jocosos para causar impacto Emil Nolde, El Lissitzky,21 Paul Klee,
comover pessoas a fim de mantê-las
negativo. Fora isso, é claro, fluía um
fiéis a religião, em época de cisão.
discurso político moralizante e insul-
tos atirados contra a estética moder- 17 Herbert Bayer (1900-1985): pintor, fotó-
nista. Nas palavras de Hitler, “de ago- grafo e arquiteto austríaco. (Nota da IHU On-
Line)
ra em diante nós iremos empreender 18 Max Beckmann (1884-1950): pintor expres- 22 Max Ernst (1891-1976): pintor surrealista
uma guerra implacável contra os últi- sionista e artista gráfico alemão cujas obras alemão. Aprendeu a pintar sozinho enquanto
mos remanescentes da desintegração transmitem uma visão pessimista da socieda- estudava Filosofia e Psiquiatria na Universida-
de. (Nota da IHU On-Line) de de Bonn, entre 1909 e 1914. (Nota da IHU
cultural [...]. Por tudo que nós apre- 19 Marc Chagall (1887-1985): pintor, ceramis- On-Line)
ciamos, esses bárbaros pré-históricos ta e gravurista surrealista russo-francês. (Nota 23Pieter Cornelis Mondriaan (1872-1944):
da Idade da Pedra podem retornar às da IHU On-Line) pintor modernista holandês. Participou do mo-
20 Lasar Segall (1891-1957): pintor expressio- vimento artístico neoplasticismo. (Nota da IHU
cavernas de seus ancestrais e lá reali- nista russo naturalizado brasileiro. (Nota da On-Line)
zar os seus rabiscos primitivos interna- IHU On-Line) 24 Napoleão Bonaparte (1769-1821): dirigen-
21 El Lissitzky (1890-1941): artista, designer te da França a partir de 1799 e Imperador de
gráfico, fotógrafo, tipógrafo, arquiteto e pro- 18 de maio de 1804 a 6 de abril de 1814, po-
16 Adolf Ziegler (1892-1959): pintor e político fessor russo. Fez parte da vanguarda russa, in- sição que voltou a ocupar rapidamente de 20
alemão, o artista favorito de Hitler. (Nota da fluenciou a Bauhaus e o construtivismo. (Nota de março a 22 de junho de 1815. (Nota da IHU
IHU On-Line) da IHU On-Line) On-Line)
30 SÃO LEOPOLDO, 21 DE JULHO DE 2008 | EDIÇÃO 265
“Querer fazer o mal parece algo inerente à condição humana”
O caso de Hitler e o nazismo está ligado a uma ordem da paranóia
que comanda uma montagem perversa, acredita o filósofo e psica-
nalista Mário Fleig. Ele afirma que é preciso que nos perguntemos o
que produz o ódio ao outro
POR MÁRCIA JUNGES
O
psicanalista e filósofo Mário Fleig, em entrevista por e-mail à IHU On-
Line, afirma que a norma no nazismo estaria “na negação de qualquer
diferença, a começar pela afirmação de uma única raça pura, e a pro-
posta de um único Reich para toda a humanidade”. Segundo Fleig,
“de modo diferente do que aparece no discurso perverso, creio que
o caso de Hitler e do nazismo siga uma lógica um pouco diferente. Tenho mais a
tendência de ver no fenômeno do nazismo algo da ordem da paranóia que comanda
uma montagem perversa”. Outra idéia desenvolvida na entrevista a seguir é que
“querer fazer o mal parece algo inerente à condição humana. Precisaríamos nos
perguntar o que produz o ódio ao outro e qual é o futuro de nosso futuro do ódio.
A partir disso, por que os modos de recalcamento do ódio têm sido tão ineficientes
na contemporaneidade?”.
Fleig é professor do curso de pós-graduação em Filosofia da Unisinos e membro
da Associação Lacaniana Internacional. Graduado em Psicologia pela Unisinos e
em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, é mestre em
Filosofia, pela UFRGS, doutor em Filosofia, pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul (PUCRS), e pós-doutor em Ética e Psicanálise, pela Université de
Paris XIII (Paris-Nord), França.
IHU On-Line - Segundo a obra mais hipóteses que trabalho em O desejo introduz em seu texto, de 1905, “Três
recente de Elizabeth Roudinesco, A perverso (Porto Alegre, CMC, 2008), ensaios para uma teoria da sexualida-
parte obscura de nós mesmos, “per- não estou certo que possamos atribuir de”, entre tendências perversas que
versão é gozar com o mal”. Hitler a Hitler, de modo simplista, a denomi- já aparecem precocemente na in-
seria, então, o exemplo mais com- nação de perverso. Seria preciso fazer fância (ele se refere à criança como
pleto do pervertido? Nesse sentido, uma distinção, a partir do que Freud2 perversa polimorfa) e o perverso em
perversão e perversidade seriam si-
nal, o livro foi publicado sob o título La famille donando a hipnose em favor da associação
nônimos? en désordre (Paris: Fayard, 2002). A escritora livre. Estes elementos tornaram-se bases
Mário Fleig - Ainda não tive oportu- concedeu entrevista à IHU On-Line, na edição da Psicanálise. Freud, além de ter sido um
nidade de ler o livro da historiadora 179, sobre o pensamento de Sigmund Freud, grande cientista e escritor, realizou, assim
de 08-05-2006 com o título “O pensador das lu- como Darwin e Copérnico, uma revolução no
E. Roudinesco.1 Contudo, segundo as zes escuras”. Na edição 186, de 26 de junho de âmbito humano: a idéia de que somos movi-
2006, publicamos o artigo “Michel de Certeau dos pelo inconsciente. Freud, suas teorias,
1 Elizabeth Roudinesco: psicanalista e es- ou a erotização da história, escritor por Rou- e seu tratamento com seus pacientes foram
critora francesa, aluna e companheira inte- dinesco” à IHU On-Line. O site do IHU (www. controversos na Viena do século XIX, e con-
lectual de Michel de Certau. Entre suas obras unisinos.br/ihu), deu amplo destaque ao seu tinuam muito debatidos hoje. A edição 170
publicadas em português, citamos História da livro, recém-lançado, A parte obscura de nós da IHU On-Line, de 08-05-2006, dedicou-lhe
psicanálise na França (Rio de Janeiro: Jorge mesmos (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, o tema de capa sob o título Sigmund Freud.
Zahar, 1989), Dicionário de psicanálise (Rio de 2008). (Nota da IHU On-Line) Mestre da suspeita, e a edição 207, de 04-
Janeiro: Jorge Zahar, 1998) e Por que a psica- 2 Sigmund Freud (1856-1939): neurologista 12-2006, intitulada Freud e a religião. A edi-
nálise? (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000). A e fundador da Psicanálise. Interessou-se, ção 16 dos Cadernos IHU em formação tem
IHU On-Line dedicou a edição 58, de 05-05- inicialmente, pela histeria e, tendo como como título Quer entender a modernidade?
2003, intitulada A família em desordem, re- método a hipnose, estudava pessoas que Freud explica. Todos os materiais estão dis-
percutindo o livro de nome idêntico, escrito apresentavam esse quadro. Mais tarde, in- poníveis para download no site do IHU (www.
por Roudinesco e traduzido para o português teressado pelo inconsciente e pelas pulsões, unisinos.br/ihu). (Nota da IHU On-Line)
pela Jorge Zahar Editora, em 2003. No origi- foi influenciado por Charcot e Leibniz, aban-
SÃO LEOPOLDO, 21 DE JULHO DE 2008 | EDIÇÃO 265 31
sentido estrito. Fazer o mal para o ou- diferente. Tenho mais a tendência de IHU On-Line - Podemos entender os
tro ou para si mesmo não é um privi- ver no fenômeno do nazismo algo da totalitarismos como o nazismo como
légio do perverso, ainda que isso seja ordem da paranóia que comanda uma perversões? Por quê?
o traço mais relevante de seu modo montagem perversa. Mário Fleig - Considerando o que
de agir, como podemos encontrar nos Assim, passo a introduzir essas duas propus acima, vejo os totalitarismos
personagens sadeanos. Estes não se noções a mais para situar fenômenos muito mais algo da ordem dos efeitos
contentam em apenas fazer o mal ao sociais e subjetivos semelhantes ao sociais da paranóia, dados os elemen-
outro por meio de suplícios que levam do nazismo. A montagem perversa não tos específicos que a compõe: redução
à morte, mas querem mais, querem requer um sujeito organizado positi- de todos os furos a um único furo que
perpetrar a segunda morte, que impli- vamente na perversão, mas sim que então é tamponado pelo perseguidor,
ca a destruição de todos os atributos se tenha o dispositivo operado de tal que passa a ser o objeto a ser com-
de valor da pessoa, ou seja, realizar a modo que os lugares sejam ocupados batido. Esse procedimento se chama
morte do sujeito. Contudo, no caso de por sujeitos que podem ser gente co- sistema, no qual tudo o que possa
Hitler e o nazismo, não me parece que mum, neuróticos que, fora do funcio- representar diferença, discordância
a lógica que organiza a solução final namento do dispositivo, nada têm de etc. é reduzido ao estatuto do perse-
seja simplesmente uma lógica perver- perverso. Um dispositivo desse tipo guidor único, que dever ser colocado
sa. Considerando as descrições do dis- pode ser desencadeado perfeitamente fora do sistema e destruído. No caso
curso perverso na literatura, como em por um paranóico, que se arvora em do nazismo, a ideologia racista pode
Sade3 ou Choderlos de Laclos,4 não me profeta de uma promessa de gozo ple- ser perfeitamente lida à luz dessa
parece que esta, no horizonte do per- no e coloca tanta certeza em sua mira- operação de segregação, que se des-
verso, funda uma nova ordem social. gem que convoca de modo irrecusável dobra em uma lógica infernal, tendo
O sujeito perverso se apresenta muito a multidão, que o segue sem crítica. por objetivo a purificação e limpeza.
mais como o esperto, alguém animado Um dispositivo de tal ordem é poten- A convocação de sujeito nem perverso
por uma inteligência brilhante e que cializado pelos meios técnicos que a nem paranóico para tomar parte nesse
faz a denúncia da lei para transpô-la, ciência moderna nos disponibiliza. Sa- sistema já foi há muito tempo eluci-
a fim de que o desejo possa ser rea- bemos que, sem sistemas de transpor- dada por Freud a respeito das forma-
lizado até seus últimos limites, onde te, armazenamento e informação efi- ções de grupo e massas. A promessa de
se encontra a pretensão do mal abso- cientes, a solução final não teria sido que há um pai protetor e a aparência
luto. O perverso nos fascina porque possível. A montagem perversa passa a de consistência da ideologia veicula-
se apresenta como tendo o saber e os ser um fato corrente na Modernidade, do pela certeza do agente paranóico
instrumentos para realizar os desejos mas, quando encontra um paranóico, são fatores determinantes para anga-
e obter um gozo pleno. Além disso, o dotado da inteligência para o sistema riar adeptos dispostos a tudo entregar
perverso ilustra que transgredir a lei que lhe é própria, os efeitos sociais e para tomar parte no dispositivo.
não terá nenhuma conseqüência par- subjetivos são de extraordinária mon- Charles Melman,5 em seu seminário
ticular sobre ele, ou seja, supõe em ta, se comparados ao que pode produ- na Unisinos em maio do ano passado,
uma posição de impunidade. Essa posi- zir de mal um perverso em sentido es- “Como alguém se torna paranóico?”
ção de impunidade revela o tipo de ló- trito. Dito isso, penso que não se pode (Porto Alegre, CMC, 2008), elucidando
gica que o guia: os termos opostos em colocar na conta do sujeito perverso os detalhes da lógica paranóica, nos
uma antítese se equivalem, de modo fenômenos como o nazismo, pois isso mostrou como a paranóia se introduz
que se pode passar do sim para o não seria fazer um mau uso da especifici- facilmente no cotidiano, bastando
e vice-versa ao bel prazer. De modo dade do conceito, considerando-o a que as condições de segregação não
diferente do que aparece no discurso partir da teoria psicanalítica. encontrem uma clara oposição e que
perverso, creio que o caso de Hitler e Quanto ao uso do termo perversida- alguém se coloque no lugar da exce-
do nazismo siga uma lógica um pouco de, tenho minhas restrições, em fun- ção que trataria a salvação contra o
3 Marquês de Sade (1740-1814): aristocrata ção de considerar a perversão como desconhecido perseguidor.
francês e escritor marcado pela pornografia fazendo parte das potencialidades da
violenta e pelo desprezo dos valores religiosos
e morais. Muitas das suas obras foram escritas
condição humana, e não como cons- 5 Charles Melman: psicanalista francês, aluno
enquanto estava em um hospício, encarcerado tituindo o dado de natureza. A subs- de Lacan. É membro fundador da Association
por causa de seus escritos e de seu comporta- tantivação de uma formação discur- Freudienne Internationale e diretor de ensino
mento. De seu nome, surge o termo médico na antiga École Freudienne de Paris. Escreveu
sadismo, que define a perversão sexual de ter
siva na desinência perversidade pode dezenas de livros. De 17 a 19-05-2007, Melman
prazer na dor física ou moral do parceiro ou nos induzir a pensar que se trata de esteve na Unisinos proferindo o ciclo de confe-
parceiros. Foi perseguido tanto pela monarquia algo inerente a uma suposta natureza rências “Como alguém se torna paranóico? De
(Antigo Regime) como pelos revolucionários vi- Schereber a nossos dias”, numa promoção do
toriosos de 1789 e depois por Napoleão. (Nota
eterna. O biologicismo já faz isso de Instituto Humanitas Unisinos (IHU). Foi o con-
da IHU On-Line) forma explícita, ao querer encontrar ferencista de abertura do Simpósio Internacio-
4 Pierre-Ambroise-François Choderlos de no genoma a causa exclusiva de com- nal O Futuro da Autonomia. Uma sociedade
Laclos (1741-1813):, escritor, além de oficial de indivíduos?, em 21-05-2007, quando falou
e general do exército francês. As relações pe-
portamentos socialmente repulsivos, sobre “O futuro da autonomia. Uma socieda-
rigosas (Les Liaisons dangereuses) é seu mais sem considerar as incidências históri- de de indivíduos? Desafios e perspectivas”. A
famoso romance. (Nota da IHU On-Line) cas, sociais, familiares e individuais. conferência será publicada em livro que está
no prelo.(Nota da IHU On-Line)
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IHU On-Line - É possível afirmarmos é suposto aprovado pelo consenso seja mento veiculado em sua obra princi-
que no nazismo a perversidade se mal visto e reprovado. pal Ser e tempo (1927) estava exces-
converteu na norma? Querer fazer o mal parece algo ine- sivamente centrado na perspectiva da
Mário Fleig - A norma no nazismo esta- rente à condição humana. Precisaría- subjetividade, sem suporte para a crí-
ria, penso eu, na negação de qualquer mos nos perguntar o que produz o ódio tica dos fenômenos sociais. É após sua
diferença, a começar pela afirmação ao outro e qual é o futuro de nosso fu- renúncia ao lugar político dentro da
de uma única raça pura, e a proposta turo do ódio. A partir disso, por que os administração nazista que Heidegger
de um único Reich para toda a humani- modos de recalcamento do ódio têm inicia a elaboração dos fundamentos
dade. A norma, nesse caso, é a afirma- sido tão ineficientes na contempora- da crítica ao império da técnica e ao
ção constante de apenas e somente um neidade? discurso objetivante calcado na raça.
Um. Isso que significa o sistema exacer- Não concordo com seus críticos que
bado, que tem a pretensão de conter IHU On-Line - Como caracterizaria o fazem uma equiparação injustificada
tudo, inclusive a si mesmo. É a imanên- tipo psicológico de Hitler? entre sua filosofia e o nazismo. Bem
cia plena e completa. Por isso é que a Mário Fleig - Não creio que seja algo pelo contrário, se Heidegger tivesse se
dimensão da alteridade não tem lugar produtivo fazer a psicologia de figuras ancorado de modo mais firme do que
em tal sistema e, em decorrência, de- públicas, ainda menos de Hitler. Penso já fizera em seu antecessor, Kierkega-
saparece o pensamento, se o conside- que seja mais produtivo prestar aten- ard,7 propulsor incansável do valor do
rarmos como a operação da diferença ção ao que se manifesta no discurso. indivíduo contra o sistema, talvez não
ou da polêmica, como já propunha He- Ressalto um elemento no caso de Hi- tivesse se enleado tão desastrosamen-
ráclito6, por meio do polemos. tler, que contraria a hipótese de se te na teia paranóica nazista. Sugiro,
tratar alguém situado na perversão: a para esse debate atual, a lúcida dis-
IHU On-Line - Como podemos enten- insistência em ocupar o lugar de exce- cussão de vários colegas franceses em
der que, enquanto algumas pessoas ção em nome próprio. Sabemos que o Heidegger, à plus forte raison (Paris:
pensam no mal e não o executam, perverso tende a agir sempre fazendo Fayard, 2007).
outras o concretizam em campos de uso do outro, especialmente de seu
extermínio, por exemplo? Somos to- nome. O célebre “Burlador de Sevi-
dos um pouco perversos? lha”, de Tirso de Molina, o Don Juan,
Mário Fleig - Quando não conseguimos costumava realizar suas conquista se
ver claramente um fato social, talvez apresentando no lugar e em nome de LEIA MAIS...
seja porque, de algum modo, fazemos outro. Não é o caso deste senhor que
>> Confira outras entrevistas concedidas
parte dele. Parece que assim se passa exigia que todos declarassem inces- por Mario Fleig. Acesse nossa página eletrônica
com a perversão, pois temos indícios santemente: Heil Hitler. WWW.unisinos.br/ihu
de que o funcionamento social hoje Entrevistas:
* As modificações da estrutura familiar clássica
certamente é muito mais regido pela IHU On-Line - Como é possível com- não significam o fim da família. Edição número
perversão, isto é, a recusa em fazer da preender a adesão dos intelectuais 150, de 08-08-2005;
subjetividade daquele com quem lida- ao nacional-socialismo? Nesse con- * Freud e a descoberta do mal-estar do sujeito na
civilização. Edição número 179, de 08-05-2006;
mos o menor entrave ao exercício de texto, como se situa Heidegger e sua * O declínio da responsabilidade. Edição número
um poder ou de um gozo, não impor- filosofia? 185, de 19-06-2006;
tando o fato de que ele exista. O que Mário Fleig - Acredito que uma posição * O delírio de autonomia e a dissolução dos fun-
damentos da moral. Edição número 220, de
importa é que ele realize sua tarefa e intelectual não implica necessaria- 21-05-2007.
isso sem nenhum limite, sem nenhuma mente uma proteção contra o totali-
barreira, sem nenhuma fronteira. Esse tarismo, a segregação e a maldade. Os
tipo de dispositivo parece fazer parte intelectuais estão tão sujeitos a serem 7 Soren Kierkegaard (1813-1855): filósofo
de nossa organização social, ao ponto seduzidos pelas promessas perversas e existencialista dinamarquês. Alguns de seus
livros foram publicados sob pseudônimos: Víc-
de que não sabemos muito bem de que paranóicas quanto o homem comum. tor Eremita, Johannes de Silentio, Constantín
modo estamos imerso na perversão. Heidegger certamente não soube iden- Constantius, Johannes Climacus, Vigilius Hauf-
Ou seja, os funcionamentos perversos tificar os sinais de maldade que já se niensis, Nicolás Notabene, Hilarius Bogbinder,
Frater Taciturnus y J, Anticlimacus. Filosofica-
tende a passar por normais e o ques- descortinava na proposta política na- mente, faz uma ponte entre a filosofia de He-
tionamento que alguém possa levantar zista. Por que não conseguiu ou por gel e aquilo que viria a ser o existencialismo.
é visto como inconveniente. O império que caiu na sedução que lhe prome- Kierkegaard negou tanto a filosofia hegeliana
de seu tempo, bem como aquilo que classifica-
do politicamente correto, que estaria tia uma radical renovação da univer- va como as formalidades vazias da igreja dina-
dentro da lógica da perversão comum sidade? É uma pergunta que teria de marquesa. Boa parte de sua obra dedica-se à
que perpassa nossa cultura, determina buscar respostas dentro do pensamen- discussão de questões religiosas como a natu-
raza da fé, a instituição da igreja cristã, a éti-
que qualquer discordância àquilo que to do filósofo, assim como examinar ca cristã e a teologia. Autor de O conceito de
a oposição à ideologia nazista poste- ironia (1841), Temor e tremor (1843) e O de-
rior à renúncia ao posto de reitor da sespero humano (1849). A respeito de Kierke-
6 Heráclito de Éfeso (540 a. C.-470 a. C.): filó- gaard, confira a entrevista “Paulo e Kierkega-
sofo pré-socrático, considerado o pai da dialé- Universidade de Freiburg. Poderíamos ard”, realizada com o Prof. Dr. Álvaro Valls, da
tica. Problematiza a questão do devir (mudan- levantar a hipótese de que o pensa- Unisinos, na edição 175, de 10-04-2006, da IHU
ça). (Nota da IHU On-Line) On-Line. (Nota da IHU On-Line)
SÃO LEOPOLDO, 21 DE JULHO DE 2008 | EDIÇÃO 265 33
Totalitarismos: uma reflexão político-social e libidinal
A resposta ao problema do totalitarismo exige uma reflexão política
e social, mas também uma reflexão libidinal complementar, acre-
dita o filósofo Vladimir Safatle. Para ele, gostamos de imaginar que
quem age em nome de uma ordem totalitária age sem pensar
POR MÁRCIA JUNGES
“O
que há na estrutura psíquica de indivíduos aparentemente
‘esclarecidos’, membros de uma sociedade moderna e de-
senvolvida, que produz uma certa abertura em direção ao
totalitarismo?”, pergunta o filósofo Vladimir Safatle, pro-
fessor do Departamento de Filosofia da USP, em entrevista
concedida por e-mail à IHU On-Line. “Que tipo de insegurança faz indivíduos de
sociedades modernas ocidentais verem como racional aceitar práticas totalitárias,
xenófobas e racistas, mesmo que não acreditem totalmente nelas? É bem possível
DIVULGAÇÃO
que a resposta ao problema do totalitarismo em nossas sociedades exija não ape-
nas uma reflexão político-social, mas também uma reflexão libidinal complemen-
tar à primeira”. Segundo Safatle, “gostamos de imaginar que aqueles que agem em
nome de uma ordem totalitária agem sem pensar, sem ‘senso crítico’. Mas todos
conseguem justificar relativamente bem seus atos bárbaros”. E usa o exemplo dos
torturadores da ditadura militar brasileira: “Eu diria que o que eles perderam não
era a capacidade de ‘raciocinar’, mas a capacidade de, como dizia Adorno, identi-
ficarem-se com o corpo torturável, de sentirem esta força anônima que me leva a
sentir algo da ordem da convulsão diante do sofrimento”.
Graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e em Comunicação
Social, pela Escola Superior de Propaganda e Marketing, Vladimir Safatle é mestre em
Filosofia, pela Universidade de São Paulo, e doutor em Lieux et transformations de la
philosophie, pela Université de Paris VIII, com a tese La passion du négatif: modes de
subjectivation et dialectique dans la clinique lacanienne. Professor da USP, atualmente
desenvolve pesquisas nas áreas de epistemologia da psicanálise, desdobramentos da
tradição dialética hegeliana na Filosofia do século XX e Filosofia da Música. É um dos
coordenadores da International Society of Psychoanalysis and Philosophy.
IHU On-Line - Como você caracteri- estrutura psíquica de indivíduos apa- sas sociedades exija não apenas uma
zaria o pathos do carrasco Hitler? E o rentemente “esclarecidos”, membros reflexão político-social, mas também
que o tornou tão sedutor às massas? de uma sociedade moderna e desen- uma reflexão libidinal complementar
Vladimir Safatle - Não tenho certeza volvida, que produz uma certa aber- à primeira.
que a pergunta sobre a estrutura psí- tura em direção ao totalitarismo? Que Diria que isto ficou claro para mais
quica do indivíduo Hitler possa trazer tipo de insegurança faz indivíduos de uma pessoa durante o século XX e
alguma luz sobre o nazismo como fe- de sociedades modernas ocidentais deveríamos nos perguntar por que al-
nômeno social. Muitas vezes esta aca- verem como racional aceitar práti- guns conceitos, como “identidade”,
ba sendo uma maneira de patologizar cas totalitárias, xenófobas e racistas, “estabilidade”, “unidade” são, ao
o processo. Mais interessante seria se mesmo que não acreditem totalmente mesmo tempo, conceitos importantes
perguntar sobre a estrutura psíquica nelas? É bem possível que a resposta em operação no campo do político e da
dos que seguiram Hitler. O que há na ao problema do totalitarismo em nos- psicologia. Talvez seja porque a própria
34 SÃO LEOPOLDO, 21 DE JULHO DE 2008 | EDIÇÃO 265
maneira com que pensamos e constitu-
ímos individualidades sustenta-se em
uma lógica que posteriormente fará a
base de discursos totalitários. Se admi- “Se admitirmos que uma das maiores conquistas do
tirmos que uma das maiores conquistas
do Iluminismo foi uma certa noção de Iluminismo foi uma certa noção de indivíduo, então eu
indivíduo, então eu diria que o totali-
tarismo não é refratário ao indivíduo, diria que o totalitarismo não é refratário ao indivíduo,
como certos teóricos liberais conser-
vadores gostariam de nos fazer acre- como certos teóricos liberais conservadores gostariam
ditar, mas é a própria forma política
do indivíduo. Neste sentido, nunca nos de nos fazer acreditar, mas é a própria forma política do
livraremos do risco totalitário enquan-
to continuarmos a deixar guiar nossa indivíduo”
economia psíquica através da tentativa
de construir individualidades através
de sistemas rígidos de identidade e de
auto-unidade que nos impede de nos ça que acompanha todos aqueles que rientado a partir de suas conseqüên-
reconhecer naquilo que não se submete agem. E, contra tal sentimento, o pen- cias. Calcular sem regras é a verdadei-
a imagem narcísica de si. samento não teria encontrado nada ra situação daquele que se vê diante
melhor que a enunciação de princípios da iminência de produzir um ato. Isto
IHU On-Line - De que forma Lacan1 gerais formais, incondicionais, cate- me leva a dizer que todo verdadeiro
(em Juliette) e Adorno e Horkheimer góricos e universais. Pelo menos, tal ato moral é um cálculo às cegas en-
(em Esclarecimento moral) nos dão recurso a princípios poderia nos tirar tre dois fundamentos insuficientes. No
suporte para entender os limites do da areia movediça dos sentimentos de final das contas, talvez seja isto que
projeto iluminista em moral e assim simpatia e compaixão, que são sem- tanto Adorno quanto Lacan tentaram
compreender que o nazismo tenha pre instáveis, que mudam de direção nos mostrar.
grassado na tão erudita Alemanha? a todo momento. Mas e se mostrarmos
Vladimir Safatle - De fato, parece que que princípios formais são muito me- IHU On-Line - A hiper-racionalização e
Lacan e Adorno compreenderam muito nos estáveis que parecem, que eles formalização do desejo através de um
claramente o vínculo estreito entre to- garantem muito menos coisas que ima- imperativo categórico podem ser apon-
talitarismo e Iluminismo. Todos os dois ginávamos? tadas como as pilastras de um compor-
insistem que a maneira que pensamos Por exemplo, a partir de um prin- tamento que descambou num agir sem
os móbiles racionais do sujeito da ação cípio formal de universalização, não questionamentos? Onde estava o senso
depende em larga medida de uma re- posso impedir a tortura em casos onde crítico daqueles que recebiam ordens
flexão sobre a moralidade a partir da vidas de muitos estão em jogo. Dada do alto escalão nazista?
tradição kantiana. Para os dois, isto uma situação onde tenho uma grande Vladimir Safatle - É possível que o
significa, a partir da entificação de probabilidade de conseguir, através de senso crítico estava no corpo, e por
dicotomias entre liberdade e nature- tortura, uma informação que poderá isto ele era tão inaudível. Gostamos
za, vontade livre e desejo patológico conservar a vida de muitos, é absolu- de imaginar que aqueles que agem em
ligados a objetos sensíveis, amor à Lei tamente racional praticá-la. Isto ape- nome de uma ordem totalitária agem
e interesse. Dicotomias estas que têm nas demonstra como nossa aversão à sem pensar, sem “senso crítico”. Mas
em vista assegurar a ação no interior tortura não vem de um princípio for- todos conseguem justificar relativa-
de uma estratégia transcendental de mal, mas de um impulso corporal que mente bem seus atos bárbaros. Não
determinação de seu sentido. talvez seja a base do que chamamos precisamos ir muito longe, basta lem-
Pensando nesta estratégia, pode- de compaixão. brarmos como torturadores e militares
mos dizer, seguindo Lacan e Adorno, No entanto, é certo que fundar a brasileiros justificam, até hoje, seus
que a reflexão sobre a ação ainda hoje ação no impulso está de longe de ser atos durante a Ditadura Militar. Eu di-
é assombrada por fantasmas fundacio- uma saída plausível. Talvez a melhor ria que o que eles perderam não era
nistas. “Qual o fundamento da ação resposta seja: toda ação moral é um a capacidade de “raciocinar”, mas a
moral?” é uma pergunta que no fundo cálculo entre impulsos e princípios, re- capacidade de, como dizia Adorno,
visa retirar o sentimento de inseguran- conhecimento do sofrimento e capaci- identificarem-se com o corpo torturá-
dade de seguir uma norma. No entan- vel, de sentirem esta força anônima
1 Jacques Lacan (1901-1981): psicanalista
francês. Lacan fez uma releitura do trabalho to, este cálculo é feito às escuras, sem que me leva a sentir algo da ordem da
de Freud, mas acabou por eliminar vários ele- garantias de sucesso. Por isto, toda convulsão diante do sofrimento. Como
mentos deste autor (descartando os impulsos ação moral é falível e todo verdadeiro disse, não se trata de fazer apologia de
sexuais e de agressividade, por exemplo). Para
Lacan, o inconsciente determina a consciên- ato é infinito, no sentido de precisar alguma forma de moralidade do senti-
cia, mas esta é apenas uma estrutura vazia e ser infinitamente recalculado e reo- mento, mas simplesmente reconhecer
sem conteúdo. (Nota da IHU On-Line)
SÃO LEOPOLDO, 21 DE JULHO DE 2008 | EDIÇÃO 265 35
um caso extremamente interessante.
Primeiro porque, do ponto de vista
econômico, a Itália votou contra seus
“De fato, parece que Lacan e Adorno compreenderam próprios interesses. Desde que Berlus-
coni subiu ao poder, a Itália estagnou.
muito claramente o vínculo estreito entre totalitarismo Meios de comunicação conservadores,
como The Economist e Financial Times,
e Iluminismo. Todos os dois insistem que a maneira que fizeram campanha contra ele devido a
sua mais completa inépcia econômica.
pensamos os móbiles racionais do sujeito da ação No entanto, ele ganhou pela terceira
vez, mas agora com um discurso fran-
depende em larga medida de uma reflexão sobre a camente racista e xenófobo.
O que é interessante em seu caso é
moralidade a partir da tradição kantiana. Para os dois, como sua figura de fora-da-lei notório,
misto de malandro boa praça e mafio-
isto significa, a partir da entificação de dicotomias entre so empresarial, acaba por encarnar o
desconforto e a ira da maioria contra
liberdade e natureza, vontade livre e desejo patológico uma Lei que, até agora, foi apenas a
vontade do mais forte. Berlusconi re-
ligados a objetos sensíveis, amor à Lei e interesse” presenta a revolta contra a Lei social.
No entanto, esta revolta está agora
associada a demandas de “seguran-
ça”, que a suspensão pura e simples
que ele é um dos dois fundamentos destruição do outro sem prazer, feita a
da Lei não traria. Por isto, pedimos ao
insuficientes que dispomos para deter- partir de um formalismo levado às úl-
fora-da-lei que, ao mesmo tempo, sus-
minar um ato moral. timas conseqüências, um pouco como
pendam e cumpram a Lei com dureza.
aquela máquina de “Na colônia pe-
Cumpram não contra nós, mas con-
IHU On-Line - Nesse aspecto, o Ilumi- nal”, de Kafka,3 que de tanto escrever
tra os outros, contra estes invasores,
nismo seria a exacerbação do logos a Lei no corpo dos condenados acaba
parasitas, estes que não gozam como
e o ocaso definitivo de nossos aspec- por mutilá-los “em nome da Lei”.
nós, sejam eles os judeus de ontem
tos dionisíacos, nietzschianamente
ou os árabes de hoje. Tanto faz quem
falando? O homem se transformou IHU On-Line - O homem contempo-
ocupa o lugar dos que representam a
num ressentido, num rato de subsolo râneo é suscetível de se deixar levar
insegurança contra o Todo social.
(como dizia Dostoiévski2) que se com- por outros ditadores como Hitler?
Berlusconi é a melhor figura do to-
praz em arquitetar o mal, deixando Vladimir Safatle - Há um aspecto do
talitarismo: alguém que mistura, de
de lado sua “crueldade inocente”? fascismo que acabamos por esquecer.
um lado, o sorriso maroto da crian-
Vladimir Safatle - Na verdade, tenho No entanto, ele é para mim o mais
ça que não quer se submeter à Lei e
uma certa dificuldade em entender aterrador. Tendemos a acreditar que
que, com isto, ganha a simpatia destes
o que pode significar “o mal” neste o fascismo era uma ditadura no velho
para quem a Lei tem gosto de opres-
contexto. Não creio que ele seja re- estilo Law and Order. No entanto, ele
são e que traz na sua mão o porrete
almente um conceito ou um princípio era uma situação social onde, no fun-
implacável da polícia que não se deixa
que funda uma certa lógica própria do, ninguém acreditava na ideologia
enganar pela ingenuidade destes que
da ação. Normalmente, dizemos que bricolada e inconsistente dos líderes.
são complacentes com a insegurança e
o mal está vinculado ao prazer de Na verdade, encenava-se a crença,
com os que burlam a lei de imigração.
fazer o outro sofrer e de destruí-lo. agia-se como se todos acreditavam.
Um criminoso duro contra o crime. Al-
Não seria difícil mostrar que este não Esta era a única maneira do sistema
guém que não pede para acreditarmos
é um prazer que funda um modo de funcionar.
nele, mas fingir que acreditamos.
conduta, mas é uma espécie de prazer Pensando nisto, peguem alguém
derivado da hipóstase de princípios de como Silvio Berlusconi.4 Trata-se de
auto-conservação. Mais aterrador não
é o prazer de destruir o outro, mas a 3 Franz Kafka (1883-1924): escritor tcheco,
de língua alemã. De suas obras, destacamos A proprietário do império midiático italiano Me-
2 Fiódor Mikhailovich Dostoiévski (1821- metamorfose (1916), que narra o caso de um diaset, além de empresário de comunicações,
1881): um dos maiores escritores russos e tido homem que acorda transformado num gigan- bancos e entretenimento. É a pessoa mais rica
como um dos fundadores do existencialismo. tesco inseto, e O processo (1925), cujo enredo da Itália, segundo a revistas Forbes, e o 37º
De sua vasta obra, destacamos Crime e cas- conta a história de um certo Josef K., julgado mais rico do mundo. Pela segunda vez é o pri-
tigo, O idiota, Os demônios e Os irmãos Ka- e condenado por um crime que ele mesmo ig- meiro-ministro da Itália. Foi acusado inúmeras
ramázov. A esse autor, a IHU On-Line edição nora. (Nota da IHU On-Line) vezes de corrupção e ligações com a Máfia.
195, de 11-9-2006 dedicou a matéria de capa, 4 Silvio Berlusconi (1936): líder político do Gerou polêmica na Europa ao apoiar a Guerra
intitulada Dostoiévski. Pelos subterrâneos do partido Força Itália, que criou especifica- dos EUA contra o Iraque, em 2003. (Nota da
ser humano. (Nota da IHU On-Line) mente para sua entrada na vida política. É o IHU On-Line)
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Hitler foi subestimado
Ninguém podia imaginar do que Hitler era capaz, e ele conquistou
a confiança e enganou a população, dispara o historiador alemão
Michael Stürmer. Entretanto, “a Europa não tinha muita escolha, e
de fato houve silenciosa concordância e criminosa colaboração”
POR MÁRCIA JUNGES
“O
segredo do êxito de Hitler esteve no fato de ele ter sido su-
bestimado. Isto vale tanto para os comunistas e os socialistas
quanto para os conservadores, mas também para as potên-
cias estrangeiras. Ninguém podia imaginar que ele provinha
do inferno”, aponta o historiador alemão Michael Stürmer na
entrevista a seguir, concedida com exclusividade, por e-mail, à IHU On-Line. Em DIVULGAÇÃO
sua análise, Hitler se valeu do recurso à legalidade para galgar o poder em 1933,
quando se tornou chanceler. Assim, ele conquistou a confiança e enganou a todos,
afirma o estudioso. Além disso, “a Europa não tinha muita escolha e de fato hou-
ve silenciosa concordância e criminosa colaboração”, já que “os nazistas sabiam
combinar magistralmente sedução e violência”. Questionado sobre os motivos da
adesão dos jovens ao nazismo, ele enfatiza: “Juventude é embriaguez sem vinho.
A capacidade de sedução é enorme. O desejo do parricídio também”.
Desde 1973, Stürmer é professor adjunto de estudos europeus e professor emé-
rito de história medieval e moderna da Universidade Friedrich-Alexander, Erlan-
gen-Nürnberg. Estudou História, Filosofia e Línguas na London School of Economics
e Ciências Políticas na Universidade Livre de Berlim e na Universidade de Marburg.
Foi conselheiro político do chanceler Helmut Kohl nos anos 1980. Desde 1989, é
diretor de redação do jornal alemão Die Welt. Escreveu, entre outros, Bismarck
und die preussisch-deutsche Politik, 1871-1890 (München: Deutscher Taschenbu-
ch-Verlag, 1970), Die Reichsgründung: deutscher Nationalstaat und europäisches
Gleichgewicht im Zeitalter Bismarcks (München: Deutscher Taschenbuch Verlag,
1984) e The German Empire, 1870-1918 (New York : Random House, 2000).
IHU On-Line – Numa entrevista1 ao subestimado. Isto vale tanto para os você diz, foi um golpe em tempos sel-
jornal La Repubblica, em 25-01- comunistas e socialistas quanto para vagens. Em 1933, como conseqüência
2008, o senhor afirmou que o êxito os conservadores, mas também para as do fracasso dez anos antes, houve o
de Hitler ocorreu porque ele foi su- potências estrangeiras. Ninguém podia recurso à legalidade, para conquistar
bestimado por todos ou quase todos. imaginar que ele provinha do inferno. confiança e enganar a todos.
Poderia esclarecer isto melhor?
Michael Stürmer - O segredo do êxito IHU On-Line – Poderia explicar a ten- IHU On-Line – Até que ponto as san-
de Hitler esteve no fato de ele ter sido tativa de Hitler de um golpe em 1923 ções impostas pelo tratado de Ver-
e sua ascensão a Chanceler, dez anos salhes, em 1933, contribuíram para
mais tarde? Qual é a diferença destas criar condições políticas e sociais
1 O referido material pode ser acessado no site
do Instituto Humanitas Unisinos — IHU (www. duas tentativas de chegar ao poder? para a ascensão de Hitler ao poder?
unisinos.br/ihu), no link Notícias do Dia, na Michael Stürmer – O ano de 1923, como Michael Stürmer - Nas mentalidades,
data de 31-01-2008. (Nota da IHU On-Line)
SÃO LEOPOLDO, 21 DE JULHO DE 2008 | EDIÇÃO 265 37
e já é observável em alguns lugares.
Os humanos aprendem pouco.
“O segredo do êxito de Hitler esteve no fato de ele ter IHU On-Line – Na Alemanha e no
mundo atual, ainda há lugar para tal
sido subestimado. Isto vale tanto para os comunistas e tipo de ditador político? As pessoas
que vivem em pleno século XXI ainda
socialistas quanto para os conservadores, mas também apoiariam tal política?
Michael Stürmer - Não. As tentações
para as potências estrangeiras. Ninguém podia imaginar são sempre diferentes, sempre novas.
O estado do bem-estar torna todos nós
que ele provinha do inferno” imaturos. A história é mais rica em suas
variações do que em deixar-se influen-
ciar por pura repetição. Hoje em dia,
as tiranias chegam via Tecnologia de
Informação, via estado do bem-estar,
estado econômico etc. Como poderia
como humilhação e constante argu- essa pergunta. você acreditar que o nível de moral ou
mento para revisão e vingança. de sabedoria seria hoje mais alto do
IHU On-Line – Por que, quando Hitler que nos anos 1970, 1980?
IHU On-Line – O que o leva a admi- massacrou os judeus, a Europa, en-
tir que o poder de Hitler poderia ter quanto calava, manteve uma política IHU On-Line – Que razões explicam a
sido evitado? Por que isso não ocor- de concordância disfarçada? maciça adesão da juventude à pro-
reu? Michael Stürmer - A Europa não ti- posta de Hitler?
Michael Stürmer - Tudo pode ser evi- nha muita escolha e de fato houve Michael Stürmer - Juventude é em-
tado, ou, com mais precisão, nada é silenciosa concordância e criminosa briaguez sem vinho. A capacidade de
predeterminado. Caso contrário, onde colaboração — junto a uma oposição sedução é enorme. O desejo do parri-
ficaria o conceito de liberdade e res- e resistência muito séria. Por quê? Os cídio também.
ponsabilidade? nazistas sabiam combinar magistral-
mente sedução e violência. IHU On-Line – O senhor nota uma di-
IHU On-Line – Qual era a situação dos ferença entre a história considerada
partidos de direita e esquerda no pe- IHU On-Line – Alguns autores afirmam oficial e a história oral sobre o nazis-
ríodo entre as guerras? De que modo que o fenômeno do nazismo não se- mo na Alemanha?
esta situação política contribuiu para ria uma anomalia social ou uma pa- Michael Stürmer - Isso são duas di-
o advento do nacional-socialismo? tologia cultural, mas uma síntese do mensões incomensuráveis: assim como
Michael Stürmer - A República de pensamento reacionário europeu. História e histórias.
Weimar foi uma civitas sitiada, desde Qual é seu ponto de vista?
o início, de ambos os lados: a guerra Michael Stürmer - Sobre isto, dou IHU On-Line – Após 75 anos desde a
civil da esquerda, que no início foi for- duas respostas. Quem se prepara para ascensão de Hitler ao poder, como os
te, e a da direita, que no final venceu. a guerra de ontem, vencerá a de ama- alemães lidam com o passado?
Mas o nacional-socialismo é ambas as nhã. Mas a radical combinação de es- Michael Stürmer - Sempre falar disso,
coisas: direita e esquerda — isto não se querda-direita, impulsionada pela cri- jamais pensar nisso.
pode esquecer, caso se queira explicar se social e de recursos, pode retornar
o seu êxito.
IHU On-Line –Quais foram as influên-
cias intelectuais de Hitler? Até que
ponto ele realmente entendeu os
“A Europa não tinha muita escolha e de fato houve
autores que ele afirma ter lido? Na
mesma entrevista ao La Repubblica,
silenciosa concordância e criminosa colaboração —
o senhor considera que “o completo
niilismo de sua vontade de poder não
junto a uma oposição e resistência muito séria. Por quê?
foi levado a sério”.
Michael Stürmer - Hitler foi leitor
Os nazistas sabiam combinar magistralmente sedução
compulsivo e autodidata. Mas, sobre-
tudo um possuído pelo poder. Somente
e violência”
uma edição crítica de seu Mein kampf
poderá dar informação mais exata a
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Teologia Pública
“Paulo foi feito imagem de Cristo, como todo cristão
será imagem do Filho de Deus”
Padre Valdir Marques reflete sobre a contribuição de Paulo de Tarso
para a teologia e a antropologia
POR GRAZIELA WOLFART
“P
ara Paulo a maior dificuldade era explicar o Cristo crucificado e res-
suscitado como salvador, o que as mentes judaica e grega não podiam
aceitar”, afirma o padre jesuíta e professor Valdir Marques. Ele lem-
bra que Paulo de Tarso, em Corinto, “combateu os sábios apoiados
no mero saber humano e desprovidos do Espírito que conduz a razão
em direção da fé. A dificuldade em resolver tais problemas terá sido uma das limitações
do cristianismo incipiente”. Para ele, o modelo missionário de Paulo se caracteriza pelo
“universalismo da pregação e a inculturação da fé até os confins da terra”. Professor no
Departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia de Belo Horizonte
— MG, Pe. Valdir Marques é doutor em Teologia, pela Pontifícia Universidade Gregoriana,
de Roma. Eis a entrevista, concedida por e-mail para a IHU On-Line.
IHU On-Line - Paulo de Tarso é uma apóstolos. A práxis missionária o levou exigia a circuncisão dos gentios. Era
figura complexa. Como podemos a “seu Evangelho” desvinculado da Lei uma questão de vida ou morte de seu
considerá-lo enquanto figura singu- de Moisés. Nisto sim, foi totalmente ministério. Depois de sua morte estes
lar na sua relação com o judaísmo e singular na origem do cristianismo. Os problemas serão resolvidos na Igreja,
as origens cristãs? Salmos de Salomão 17 e 18, obra fari- como o atestam o livro dos Atos dos
Valdir Marques - Paulo de Tarso afir- saica do século anterior,2 anunciavam Apóstolos, que data nos anos 1980.
mou sempre sua condição judaica de um Messias imortal, santo, justo, ca-
filho de Abraão; porém, viu a Promes- paz de destruir os pecadores e fazer IHU On-Line - Como entender a ex-
sa aos Pais (Gn 12,1-3) realizada no de Israel uma nação santa. Paulo re- periência de Paulo, o “homem que
Messias Jesus de Nazaré (Gl 3,16). Sua conheceu em Jesus o Messias imortal cai do cavalo”, de encontro com Je-
herança cultural helenístico-romana de Israel porque o viu ressuscitado. A sus Cristo no caminho de Damasco?
lhe permitiu atingir sínteses fulgu- Ressurreição de Jesus significou o fim Valdir Marques - Esta imagem convém
rantes a partir das quais o cristianis- do tempo da Lei (Rm 10,4). Este foi o mais ao imaginário do que à realidade.
mo teve rápida difusão.1 Além disto, maior confronto com o judaísmo e o Nem Atos nem Paulo mencionam o ca-
muito mais sua figura complexa re- motivo de todas as suas divergências valo (At 9,3-8). Mas esta imagem cum-
sulta de sua descoberta de Cristo, a na Igreja nascente. Será o motivo do pre uma tarefa: diz a transformação
partir de sua experiência na estrada chamado “Concílio de Jerusalém”, radical de Paulo por iniciativa de Jesus
de Damasco. Suas heranças culturais que vai provocar o Conflito de Antio- Cristo: o Jesus que julgava morto está
e religiosas superam as dos demais quia com Pedro e Barnabé: Paulo não inegavelmente vivo e lhe dá ordens.
Radicais serão também as conseqü-
1 Conferir D. Marguerat, “La conversion de 2 Conferir Jerome Murphy-O’Connor, Paulo ências. Chegado o messias, diziam os
Paul”, em Le Monde de la Bible: Paul de Tarse de Tarso: História de um apóstolo. São Pau- Salmos de Salomão 17 e 18, a Lei de
e voyageur du christianisme, hors série - prin- lo: Loyola/Paulus, 2008, p.40; 54-57 (Nota do
temps 2008, p.52 (Nota do entrevistado). entrevistado) Moisés ficava revogada. Jesus Cris-
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to é a imagem verdadeira de Deus e terá sido uma das limitações do cris-
que ilumina todos os que têm fé (2Cor tianismo incipiente. Porém, a filosofia
3,12-18); quem permanecer na Lei ja- greco-romana será integrada mais tar-
mais entenderá nem o passado de Isra- de, como o fizeram Justino e Agosti-
el, nem Moisés e nem o Messias; será nho (fides quarens intellectum). Ora,
privado da Salvação dada só pelo Cris- “Cristo é o critério para se no ensino de Paulo não houvesse
to, Vida e Glória de Deus (2Cor 3,38; brechas para isto (os textos-chaves
4,4-6), pois Salvação — da Morte — é discernir o são 1Cor 6,12; 8,2; 10,23: o cristão
a Vida eterna. Ora, a Lei não é pes- deve considerar o que há de lícito e
soa e conseqüentemente não tem uma proceder útil nas outras culturas), o cristianis-
a Vida para dar, isto é, a Salvação. O mo não ultrapassaria o judaísmo sob
tempo da Lei passou quando a Vida, o ético e espiritual, este ponto de vista, para lançar as
Ressuscitado, chegou (Rm 10,4). Caído gerações futuras num diálogo com as
por terra, com ou sem cavalo, Paulo individual demais culturas.
foi feito imagem de Cristo, como todo
cristão será imagem do Filho de Deus e comunitário” IHU On-Line - Que críticas e que ins-
(Rm 8,29). Como valeu aquela queda! pirações decorrem do modelo mis-
sionário de Paulo para a missão cris-
IHU On-Line - É bastante conhecida tã em épocas posteriores? O que se
a importância de Paulo para o en- pode aprender dele para as questões
contro da fé cristã com as culturas atuais do diálogo intercultural e in-
da sua época. Que continuidades e ter-religioso?
que rupturas culturais possibilitaram fronto de Paulo e seus colaboradores Valdir Marques - Seu modelo missioná-
a expansão do cristianismo pela ação com as diversas culturas, revelaram as rio se caracteriza pelo universalismo da
missionária de Paulo e de seus cola- rupturas necessárias quanto à compre- pregação e a inculturação da fé até os
boradores e colaboradoras? ensão de Deus, do mundo e do homem confins da terra. Era o do proselitismo
Valdir Marques - Paulo foi aberto a to- em diferentes campos: cosmologia, judaico, paradoxal, porque defendido
das as culturas. Todas elas tinham suas antropologia, ética, sociedade etc. De em teoria por todos, mas rejeitado em
elaborações míticas e filosóficas sobre Harmonia também houve casos, entre momentos pontuais da evangelização.
a divindade, o homem, sua história o que a razão humana acumulara e os A ação missionária antes do Concílio
e o mundo. A diferença entre o que dados da fé; para citar um só exem- Vaticano II consistia basicamente na
a fé cristã oferecia e o conhecimen- plo: da ética estóica Paulo conservou implantação, nas terras de missão, de
to acumulado pelas diversas culturas elementos válidos. um cristianismo inculturado na Euro-
consistia num dado essencial herdado pa. Ora, para Paulo a fé transcende
já do judaísmo: a Revelação de Deus a IHU On-Line - Que possibilidades e toda cultura. Os bispos da América
Abraão; em Jesus Cristo ressuscitado, que limitações trouxe para o cristia- Latina em Santo Domingo4 adotaram
a revelação do Deus dos Patriarcas se nismo o encontro da proposta cristã esta visão paulina. Há ainda muito a
completou na “plenitude dos tempos” com a cultura helênica? aprofundar e aprender na direção de
(Gl 4,4). E a partir disto decorre uma Valdir Marques - A possibilidade de um diálogo inter-religioso eficaz. Se
nova compreensão do divino, do cos- diálogo se apresentou em diversos procurarmos um ponto a ser atingido,
mo, do homem e sua história. Ao Gê- âmbitos. O principal, no entanto, encontramos Gl 3,28: perante Jesus
nero Humano foi revelado o Deus Vivo deve ter sido a ultrapassagem da vi- Cristo, todos são iguais, em qualquer
e Verdadeiro (1Ts 1,9-10), criador do são herdada do judaísmo quanto à sa- cultura, com direito à salvação.
mundo, do homem e Senhor da histó- bedoria ou filosofia dos outros povos.
ria de Salvação que vai se consumar O conhecimento e o ensino no judaís- IHU On-Line - Encontramos nos tex-
na Parusia3 do Filho, o Senhor Jesus. mo eram acumulados e administrados tos paulinos muitas situações em que
Ora, os dados da Revelação, no con- pelos sacerdotes escribas. Para Pau- Paulo lida de frente com conflitos
lo, a maior dificuldade era explicar interpessoais, eclesiais e sociais, e
3 Segunda vinda de Cristo, Segundo Advento
o Cristo crucificado e ressuscitado também com as próprias fragilidades.
ou Parusia (grego transliterado = parousia, como salvador, o que as mentes judai- Como isto se relaciona com a ética e/
com o significado imediato e simples de “pre- ca e grega não podiam aceitar (1Cor ou com a espiritualidade paulina?
sença”) é termo usualmente empregado com a
significação religiosa de “volta gloriosa de Je-
1,22). Insistindo na necessidade da fé, 4 Santo Domingo, na República Dominicana,
sus Cristo, no final dos tempos, para presidir o evita discutir com a “vã filosofia” em foi a sede da IV Conferência Geral do Episco-
Juízo Final”, conforme crêem as várias religi- Colossos (Cl 2,8). Em Corinto, comba- pado Latino-Americano, realizada no período
ões cristãs e muçulmanas, inclusive sincréticas de 12 a 28 de outubro de 1992. João Paulo II
e esotéricas. As especificidades sobre o tema,
teu os sábios apoiados no mero saber a convocou oficialmente no dia 12 de dezem-
definem-na individualmente cada religião ou humano e desprovidos do Espírito que bro de 1990, estabelecendo como tema “Nova
expressão religiosa, conforme a sua crença, conduz a razão em direção da fé. A di- evangelização, Promoção humana, Cultura
com pontos semelhantes e não tão semelhan- cristã”, sob o lema “Jesus Cristo ontem, hoje
tes. (Nota da IHU On-Line)
ficuldade em resolver tais problemas e sempre”. (Nota da IHU On-Line)
42 SÃO LEOPOLDO, 21 DE JULHO DE 2008 | EDIÇÃO 265
“A antropologia paulina, tão difícil de sintetizar, é um campo aberto para o
diálogo com as antropologias atuais”
“São poucos os textos em que Paulo de Tarso recorre a elementos apocalípticos
como em 1Ts 5, onde explica a Ressurreição dos mortos na Parusia”
Valdir Marques - Paulo solucionou subordinou a mulher ao homem (como manos decorre da cristologia paulina.
vários conflitos: os pessoais, por seu em 1Cor 11,7). Do ponto de vista da Rm 5,12-21 é o texto-chave. Remon-
temperamento forte que o obrigava atividade missionária, em suas comu- tando às origens do Gênero Humano
a auto-correção, como na redação de nidades deu a maior importância a lí- e a queda no Pecado, Paulo encontra
1Cor, muito dura, seguida por 2Cor, deres como Lídia (At 16,14.20), Evódia em Cristo o sentido da Criação, sendo
mais amena. Os interpessoais foram e Síntique em Filipos (Fl 4,2); sobre Ele o Novo Adão. Conseqüentemente,
também eclesiais e sociais; os mais outras mulheres, ver Rm 16,1; Cl 4,15; o Cosmo verá as conseqüências des-
dolorosos foram com Pedro e Barnabé At 18,18.26; Rm 16,3, além de nove ta Nova Criação em Cristo, num mo-
durante o “Concílio” de Jerusalém e mencionadas em Rm 16. Sobre isto é mento pelo qual anseia intensamen-
em Antioquia a propósito da não cir- claro o artigo de Jean-Marie Aubert, te: ver a glória dos que antes eram
cuncisão dos gentios. Os sociais mais “L´apôtre face aux femmes”, em Le apenas filhos de Adão transformados
significativos foram os relacionados Monde de la Bible: Paul de Tarse e em filhos de Deus (Rm 8,18-22); todos
com a pastoral e a liturgia (1Cor 11,10; voyageur du christianisme, hors série seremos transformados na imagem
1Tm 2,11-12 traz normas pastorais, printemps 2008, p.14-17. do primogênito de Deus (Rm 8,29).
não diminuição da mulher pela sote- Secundariamente a terminologia an-
riologia paulina). Como tanto a ética, IHU On-Line - Quais são os principais tropológica de Romanos (anthropos,
como a espiritualidade paulinas proce- elementos da teologia paulina que soma, psyché, sarks, pneuma, thána-
dem da incorporação do cristão a Cris- deveriam ser recuperados para um tos, anástasis nekrôn) traz elementos
to, Cristo é o critério para discernir o maior diálogo cultural hoje? próprios a serem entendidos em seu
proceder ético e espiritual, individual Valdir Marques - A questão fé e ra- contexto.
e comunitário. zão permanece candente e intrigante.
Paulo apenas acena para soluções em IHU On-Line - A visão de mundo de Pau-
IHU On-Line - Como podemos com- textos-chaves (Rm 1,19-20; 11,23; 1 lo não é um pouco apocalíptica? Como
preender a relação de Paulo com as Cor 1,17-30; 2,1-13; 3,19 com 12,8; podemos compreendê-la melhor?
mulheres que colaboraram e partici- 2Cor 1,12). A antropologia paulina, tão Valdir Marques - De fato, é bem pouco
param de sua missão e sua visão so- difícil de sintetizar, é um campo aber- apocalíptica em relação ao Antigo Tes-
bre o lugar e a participação das mu- to para o diálogo com as antropologias tamento e ao Apocalipse de João. São
lheres nas comunidades eclesiais? atuais. Muito difícil de conduzir é o poucos os textos em que Paulo de Tar-
Valdir Marques - Pouco sabemos sobre diálogo com o judaísmo sobre a cris- so recorre a elementos apocalípticos
o que Paulo ensinou sobre a mulher na tologia paulina perante o pensamen- como em 1Ts 5, onde explica a Ressur-
Igreja porque seus escritos são parte to monoteísta e messiânico. Porém, reição dos mortos na Parusia. É clara
mínima de seu legado. Erro comum o problema mais desafiador de todos, sua concepção de uma Nova Criação
nesta discussão é a falta de distinção porque do próprio cristianismo peran- que suplanta a Antiga (2Cor 5,17; Gl
dos âmbitos teológicos em que Pau- te a cultura atual, é o da Encarnação e 6,15; Rm 8,20-22). Se no Antigo Testa-
lo trata da mulher. Do ponto de vis- Ressurreição de Cristo. mento uma Nova Criação viria no fim
ta da soteriologia, Paulo considera a da história, para Paulo de Tarso este
mulher igual ao homem: a salvação é IHU On-Line - Qual é a contribuição fim já nos alcançou, tendo-se iniciado
dada sem distinção a homem e mulher antropológica que Paulo apresenta na Ressurreição de Jesus Cristo para
(Gl 3,28); do ponto de vista do minis- na carta aos Romanos? ser pleno com a destruição da morte
tério litúrgico, segue o judaísmo que Valdir Marques - A antropologia de Ro- (1Cor 15,26.54).
SÃO LEOPOLDO, 21 DE JULHO DE 2008 | EDIÇÃO 265 43
Livro da Semana
Stalin e Roosevelt: uma troca de cartas reveladora
Chefes de Estado soviético e americano mantinham uma correspondência
freqüente e que demonstra uma relação amistosa, ao contrário da imagem
divulgada no Pós-Guerra, analisa o filósofo e historiador Ângelo Segrillo
POR MÁRCIA JUNGES
R
oosvelt e Stalin trocaram mais cartas do que se pode supor, e o tom delas era amigável.
Entretanto, a partir do clima “anti-soviético formado a partir do presidente Truman
não havia interesse da parte americana de divulgar correspondências que mostrassem
um relacionamento mais amistoso entre os dirigentes dos EUA e da URSS durante a
Segunda Guerra”, disse o historiador Ângelo Segrillo na entrevista a seguir, concedi-
da por e-mail à IHU On-Line desta semana. As questões formuladas a Segrillo são baseadas na
obra de Susan Butler, Prezado Sr. Stalin (Rio de Janeiro: Zahar, 2008), recém-traduzida para o
português. Segrillo, que é historiador da Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal
Fluminense (UFF) e Instituto Pushkin de Moscou, conta que, embora o livro não traga nenhuma
reviravolta historiográfica, alguns fatos importantes vêm à tona. Um deles é o próprio “caráter
bastante próximo e amigável entre os líderes desses dois países que normalmente eram vistos
como inimigos”. Além disso, em questões sobre o futuro dos países colonizados, “Roosevelt pa-
recia mais próximo à posição de Stalin que de Churchill”. Um dos pontos altos do livro é mostrar
que a imagem de inimigos irremediáveis entre URSS e EUA foi “interrompida durante a Guerra e
sua retomada no período da Guerra Fria não era uma inevitabilidade histórica, e sim resultado de
escolhas políticas específicas”.
Segrillo é graduado em Filosofia, pela Southwest Missouri State University (SMSU), nos EUA, mes-
tre em Língua e Literatura russa pelo Instituto Pushkin de Moscou, na Rússia, e doutor em História,
pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com a tese Reconstruindo a “Reconstrução”: uma
análise das causas principais da perestroika soviética. Escreveu inúmeros livros, dentre os quais
citamos Um brasileiro na Perestroika (Rio de Janeiro: Serthel, 1992), O fim da URSS e a Nova Rússia
(Petrópolis: Vozes, 2000) e Rússia e Brasil em transformação: uma breve história dos partidos rus-
sos e brasileiros na democratização política (Rio de Janeiro: 7Letras, 2005).
44 SÃO LEOPOLDO, 21 DE JULHO DE 2008 | EDIÇÃO 265
IHU On-Line - Por que apenas agora IHU On-Line - Quais são os fatos mais de Estado e da Defesa dos EUA que-
vieram à tona certas cartas entre inusitados que esse diálogo epistolar riam aproveitar para deixar a URSS e
Stalin1 e Roosevelt2/Truman,3 omi- revelam? a Alemanha sangrarem um ao outro
tidas na edição soviética da corres- Ângelo Segrillo - O livro não traz ne- (“matando dois coelhos com uma só
pondência entre esses líderes? Que nhuma grande reviravolta em termos cajadada”). Roosevelt teve uma visão
possíveis interesses mantiveram es- dos debates historiográficos já exis- de longo prazo e forneceu uma ajuda
ses documentos fora da publicação tentes até aqui sobre o assunto, mas muito forte aos soviéticos tanto em
naquela época? revela, de maneira mais viva e pesso- termos de suprimentos como de equi-
Ângelo Segrillo - Não é que estas al, os detalhes das negociações entre pamentos militares, o que foi funda-
correspondências que faltavam não os dois líderes, os pontos em que mais mental para a resistência dos russos a
estivessem disponíveis. Elas estavam se aproximavam e os pontos em que longo prazo. Como afirma o livro, as
na biblioteca Franklin D. Roosevelt, havia tensão. Pela correspondência e remessas começaram já em outubro
depositária dos documentos pessoais pelos textos explicativos que acom- de 1941. Logo no primeiro ano, os so-
do ex-presidente americano. Teorica- panham, pode-se entender melhor os viéticos receberam por mês 400 aviões
mente, qualquer pesquisador ou pes- zigzags e reviravoltas nesse relacio- e 500 tanques, além de uma longa lista
soa poderia lê-las lá. Elas, entretanto, namento. Alguns fatos “inusitados”, de suprimentos, matéria-prima e equi-
nunca tinham sido antes publicadas. no sentido de serem diferentes da pamentos militares: borracha, alumí-
Por isso, o que a autora do livro fez imagem que normalmente se tem des- nio, cobre, cobalto, aço, chumbo, ge-
foi disponibilizar para o grande públi- te período, podem ser apontados: 1) radores, telefones de campanha, fios
co (através da publicação) esta parte É relativamente surpreendente ver a telefônicos, rádios, motocicletas, uni-
da correspondência também. No livro, quantidade de correspondências que formes, equipamento cirúrgico, trigo,
a autora considera que o fato de que tem um caráter bastante próximo e açúcar, jipes, caminhões, metralhado-
uma edição completa da correspon- amigável entre os líderes desses dois ras etc. No total da Guerra, os sovi-
dência entre Roosevelt e Stalin nunca países que normalmente eram vistos éticos receberam 11,3 bilhões de dó-
tenha sido publicada tem a ver com como inimigos; 2) É interessante notar lares da época (equivalentes a cerca
os rumos que a política externa ame- que em vários momentos (por exem- de 150 bilhões de dólares atuais) em
ricana tomou com a Guerra Fria. No plo, sobre a questão do futuro dos ajuda dentro deste programa chamado
clima anti-soviético formado a partir países colonizados) Roosevelt parecia Lend-Lease.
do presidente Truman, não havia inte- mais próximo à posição de Stalin que
resse da parte americana de divulgar de Churchill; 3) Esse livro parece mos- IHU On-Line - E sobre a divisão da
correspondências que mostrassem um trar que Roosevelt pode não ter sido Alemanha no pós-guerra, que deta-
relacionamento mais amistoso entre tão próximo de Churchill como normal- lhes são mencionados nas cartas?
os dirigentes dos EUA e da URSS duran- mente é colocado; 4) Acompanhando a Ângelo Segrillo - A correspondência
te a Segunda Guerra. correspondência tem-se a impressão não entra em muitos detalhes sobre
que os soviéticos estavam certos em a divisão da Alemanha no pós-guer-
1 Josef Stalin (1878-1953): ditador soviético, sua desconfiança sobre os sucessivos ra, pois este assunto foi discutido na
líder máximo da URSS de 1924 a 1953 e res- adiamentos (de 1942 para 1943 e de- Conferência de Potsdam4 em julho-
ponsável pela condução de uma política no-
meada como stalinismo. Chegou a estudar em pois para 1944) do desembarque da agosto de 1945, quando Roosevelt já
um colégio religioso de Tbilisi, capital geor- Normandia, que abriria uma nova fren- tinha morrido e sido substituído por
giana, para satisfazer os anseios de sua mãe, te ocidental (e aliviaria a carga alemã Truman.
que queria vê-lo seminarista. Mas logo acabou
enveredando pelas atividades revolucionárias na frente oriental sobre a URSS); 5)
contra o regime czarista. Passou anos na pri- Um fato pitoresco é o medo que Stalin IHU On-Line - Por que, para o gran-
são e, quando libertado, aliou-se a Vladimir tinha de voar (só voou uma vez na vida de público, a imagem que se passava
Lenin e outros camaradas, que planejavam
a Revolução Russa. Stalin chegou ao posto para ir à Conferência de Teerã): este era de que Stalin e os presidentes
de Secretário-geral do Partido Comunista da pode ter sido um dos fatores que levou americanos eram inimigos comple-
União Soviética entre 1922 e 1953 e, por con- à realização da grande conferência da tos, quando na verdade não apenas
seguinte, o chefe de Estado da URSS durante
cerca de um quarto de século. (Nota da IHU guerra em Ialta, na URSS, para onde trocavam correspondências, mas se
On-Line) Stalin foi de trem.
2 Franklin Delano Roosevelt (1882-1945): 32°
presidente dos EUA. Realizou quatro manda- 4 Conferência de Potsdam: ocorreu em Pots-
tos e morreu durante o último. Durante sua IHU On-Line - Com base nessa troca dam, Alemanha, de 17 de julho a 2 de agosto
estadia na Casa Branca, enfrentou o período de correspondência, poderia expli- de 1945. Os participantes foram os vitoriosos
da Grande Depressão e a Segunda Guerra Mun- car com mais detalhes sobre a ajuda aliados da II Guerra Mundial, que se juntaram
dial. (Nota da IHU On-Line) para decidir como administrar a Alemanha,
3 Harry Salomon Truman (1884-1972): polí- que os EUA ofereceram à URSS logo que se tinha rendido incondicionalmente nove
tico estadunidense, 33º presidente dos EUA. após sua invasão pela Alemanha? semanas antes, no dia 8 de maio. Os objetivos
Governou de 1945 a 1953. De 17 de julho a 2 Ângelo Segrillo - O livro deixa bem da conferência incluíram igualmente o estabe-
de agosto de 1945 participou juntamente com lecimento da ordem pós-guerra, assuntos re-
Stalin e Churchill da Conferência de Potsdam, claro que Roosevelt fez uma aposta lacionados com tratados de paz e o contornar
quando dividiram a Alemanha e Berlim, crian- estratégica importantíssima naquele os efeitos da guerra. Participaram Josef Sta-
do a Alemanha Oriental e a Alemanha Ociden- momento. Muitos no Departamento lin, Winston Churchill e Harry Truman. (Nota
tal. (Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line)
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apoiavam em alguns aspectos?
Ângelo Segrillo - Esta imagem dos dois
países como inimigos que temos hoje é
proveniente da Guerra Fria. A imagem
de inimigos foi inicialmente criada com
Brasil em Foco
a Revolução Russa de 1917,5 pois ela foi
anti-capitalista e os países capitalistas
tiveram más relações com a nova Rús- Fascismo: moralismo faz a política ficar
sia soviética. Entretanto, é interessante
notar que houve uma interrupção des-
ta imagem durante a Segunda Guerra
de fora da discussão
Mundial. Quando EUA e URSS se torna-
ram aliados na Guerra, uma profunda Luiz Werneck Vianna alerta para o perigo do espírito
campanha de propaganda foi realizada salvacionista que está se formando em nossa sociedade
nos EUA, com apoio de Roosevelt, para
que o público americano aceitasse a
nova aliança e passasse a ver os russos POR GRAZIELA WOLFART
favoravelmente. Hollywood, inclusive,
participou deste esforço de propaganda
A
com filmes como Missão em Moscou, que o analisar os recentes episódios de corrupção no Brasil, a par-
mostrava o embaixador americano em tir da prisão (ou da tentativa de) do banqueiro Daniel Dantas, o
Moscou com uma visão extremamente professor Luiz Werneck Vianna, do Iuperj, em entrevista concedi-
positiva dos “corajosos russos” que es- da por telefone à IHU On-Line, identifica apenas “o capitalismo
tavam lutando contra os fascistas. operando”. Para ele, o mal não está em figuras como a de Dantas
Este é um dos pontos altos do livro. ou de Eike Batista, “como se a sociedade fosse melhorar se nos livrássemos
Mostrar que esta imagem de inimigos delas”. Ele garante: “Não vai melhorar. A sociedade vai melhorar se organi-
irremediáveis foi interrompida duran- zando em torno das suas questões centrais”, que são, na sua opinião, o cres-
te a Guerra e sua retomada no perí-
cimento econômico, a reforma agrária e a democratização da propriedade.
odo da Guerra Fria não era uma ine-
O pesquisador acredita que “os piores instintos da sociedade estão sendo
vitabilidade histórica, e sim resultado
de escolhas políticas específicas. suscitados com tudo isso”. E que a solução virá “com mais política”. “O que
constatamos, ao longo desse episódio, é que a política recua. Não há políti-
IHU On-Line - Pessoalmente, o se- ca. Está faltando sociedade organizada, reflexiva. A política está reduzida ao
nhor acredita que o Pós-Guerra teria noticiário policial”, explica.
sido diferente caso Roosvelt tivesse Werneck Vianna é professor pesquisador do Instituto Universitário de Pes-
permanecido no poder? Por quê? quisas do Rio de Janeiro (Iuperj). Doutor em Sociologia, pela Universidade de
Ângelo Segrillo - História contrafactu- São Paulo, é autor de, entre outros, A revolução passiva: iberismo e ameri-
al é um exercício perigoso. Não sei se canismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997), A judicialização da política
seria possível evitar um confronto entre e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999) e Democracia
países capitalistas e socialistas no pós- e os três poderes no Brasil (Belo Horizonte: UFMG, 2002).
guerra, mas acho que Roosevelt tinha
uma visão diferente de Truman e, caso
prosseguisse vivo, o relacionamento EUA
e URSS poderia ter sido menos inamisto-
IHU On-Line - Personagens como Daniel Dantas e Eike Batista avançaram
so do que veio a ser.
sobre nacos importantes do patrimônio do Estado brasileiro. Quais fo-
ram as condições políticas e econômicas que permitiram o surgimento
5 Revolução Russa de 1917: série de eventos
políticos na Rússia que, após a eliminação da
desses personagens?
autocracia russa, e depois do Governo Provi- Luiz Werneck Vianna – O Brasil é um país capitalista. E esses são empresá-
sório (Duma), resultou no estabelecimento do rios audaciosos, jovens, e têm encontrado um terreno favorável a tratativas
poder soviético sob o controle do partido bol-
chevique. O resultado desse processo foi a cria-
com o executivo no sentido de fazer negócios de interesse comum. E nisso
ção da União Soviética, que durou até 1991. A ambos parecem que têm se complicado muito. No entanto, há uma zona
Revolução compreendeu duas fases distintas: a de sombra que ainda precisa ser esclarecida. Meu problema em relação a
Revolução de Fevereiro de 1917, que derrubou
a autocracia do Czar Nicolau II, o último czar a
tudo é essa sucessão de intervenções espetaculosas da Polícia Federal, a
governar, e procurou estabelecer em seu lugar mobilização da mídia, do Ministério Público, do Judiciário e da opinião pú-
uma República de cunho liberal, e a Revolução blica para esses fatos. As questões centrais não são essas. Com essa cortina
de Outubro, na qual o Partido Bolchevique, li-
derado por Vladimir Lênin, derrubou o governo
espetacular, o mundo continua como dantes. Nada muda no que se refere à
provisório e impôs o governo socialista soviéti- questão agrária, às políticas sociais. A população anda desanimada, desen-
co. (Nota da IHU On-Line)
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sindicalistas? Acabou-se a velha con-
tradição capital — trabalho?
Luiz Werneck Vianna – Essa questão
dos fundos previdenciários existe em
“O respeito aos direitos humanos não é levado em toda a parte, não apenas no Brasil.
E o controle disso tem sido em boa
conta na formação, na cultura profissional, e essa parte corporativo. Quem mexeu com
a questão e falou no surgimento de
tem sido uma constante” uma nova classe foi o Francisco de
Oliveira. Não sei se devemos concor-
dar inteiramente com o que ele diz,
mas, pelo menos, é uma alusão im-
portante. O capital hoje tem uma ou-
tra forma de circular, e isso não ajuda
cantada. Além disso, o que aparece o mundo sindical a se reorganizar. O
aqui, que é muito perigoso, é um es- IHU On-Line - Pode-se afirmar que que vemos é um sindicalismo inteira-
pírito salvacionista. Há um “Batman os anos dourados do neoliberalis- mente cooptado pelo Estado. Dantas
institucional” atuando sobre a nossa mo brasileiro produziram uma nova jogou com as oportunidades que viu.
realidade. Esse “Batman” é a Polícia burguesia nacional da qual Daniel Até agora, as únicas coisas concretas
Federal associada ao Ministério Públi- Dantas e Eike Batista são hoje per- pelas quais ele pode ser pego são o
co. Há elementos muito perigosos aí, sonagens centrais? O que distingue suborno ao policial e seu problema
de índole messiânica, salvacionista, essa nova burguesia da “velha bur- com o Imposto de Renda. Esse é o
apolítica, que podem indicar a emer- guesia nacional” do período desen- capitalismo operando. Daqui a pouco
gência de uma cultura política fascis- volvimentista? vão querer “prender” o capitalismo.
ta entre nós. Todos esses escândalos Luiz Werneck Vianna – Eike Batista E não creio que isso esteja na inten-
e espetáculos atraem a opinião públi- não é um homem das finanças, e sim ção da Polícia Federal. O mal não está
ca como se dependesse da salvação um homem da produção. O Daniel nessas figuras, como se a sociedade
de todos apurar os negócios do Eike Dantas, não. Ele é um homem do se- fosse melhorar se nos livrássemos
Batista e do Daniel Dantas. Não de- tor financeiro. Este setor apresentou delas. Não vai melhorar. A sociedade
pende, isso é mentira! Com isso, se enormes possibilidades. Esses execu- vai melhorar se organizando em torno
mobiliza a classe média para um mo- tivos do setor financeiro não têm 40 das suas questões centrais.
ralismo que não pára de se manifes- anos. Se examinarmos os currículos
tar. A política cai fora do espaço de deles, veremos que são formados por IHU On-Line - O banqueiro Dantas
discussão. Enquanto isso, aparecem boas universidades, com doutorado estabeleceu uma rede de conexões
dois personagens institucionais, am- no exterior. Apareceu um novo mundo políticas tecida ao longo de três go-
bos vinculados ao Estado: o Ministério para esses setores médios e educados vernos – Collor, FHC e Lula. Como
Público e a Polícia Federal. Este ca- da população, especialmente os eco- entender o poder de Daniel Dantas,
minho é perigoso, e a sociedade não nomistas. Se passa da posição de eco- sua capacidade de manipulação e
reage a ele faz tempo. A cultura do nomista para a posição de banqueiro envolvimento de tantas pessoas, de
fascismo pode se manifestar com tra- hoje muito facilmente. diferentes governos, nessa malha
ços mais bem definidos, a partir da de corrupção?
idéia de que nosso inimigo é a corrup- IHU On-Line - Como o senhor interpre- Luiz Werneck Vianna – Era necessá-
ção, especialmente aquela praticada ta essas relações aparentemente am- rio que nessa rede público-privada
pelas elites. Então, a sociedade acha bíguas que o banqueiro Dantas tinha, aparecessem personagens. Essa rede
que se resolve esse problema colo- ao mesmo tempo, com o mercado fi- não podia se montar sem pessoas con-
cando a elite branca na cadeia. Desse nanceiro internacional e os fundos de cretas. Dantas foi uma. O ponto da
modo, o país viveria numa sociedade pensão do Estado do qual fazem parte privatização estabeleceu um caminho
justa. Não vai, mentira!
IHU On-Line – O que o senhor consi-
dera como as questões centrais na
sociedade brasileira, que devem ser “A formação de policiais deveria se converter em
discutidas com mais ênfase?
Luiz Werneck Vianna – O tema do treinamento e capacitação permanente”
crescimento econômico, da reforma
agrária, da democratização da pro-
priedade. Para isso ninguém mobiliza
ninguém.
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para que esses homens encontrassem IHU On-Line - Qual é a sua opinião
a sua oportunidade. sobre o combate à corrupção no
Brasil? Este episódio recente abre a
IHU On-Line - O senhor considera possibilidade de mudanças?
que o caso Dantas ameaça o concei- Luiz Werneck Vianna – Nesse proces-
to de República, ou se pode afirmar so, a ordem racional legal avança, se
que efetivamente o Brasil nunca “No Brasil, se aprimora, se aperfeiçoa. No entanto,
desfrutou do status de República? o que tento combater é uma visão
Luiz Werneck Vianna – Não ameaça quisermos enfrentar salvadora, justiceira, messiânica do
nada. Esse é um affaire midiático, papel policial para a erradicação dos
com cortinas de fumaça. Os piores o problema da nossos males, como se não devesse
instintos da sociedade estão sendo haver nenhum impedimento entre a
suscitados com tudo isso. Vejo as pri- segurança pública, ação da polícia e a sociedade, como
meiras fumacinhas de uma síndrome se não devêssemos ter habeas cor-
fascista entre nós. E isso deve ser de- precisamos começar pus, como se as pessoas pudessem ser
nunciado, combatido, e com política, presas, retiradas das suas casas nas
com mais política. O que constata- fazendo com que o primeiras horas da manhã, algema-
mos, ao longo desse episódio, é que a das, e tudo isso passando por câme-
política recua. Está faltando socieda- Estado cesse de ras de televisão... Não creio que isso
de organizada, reflexiva, e a política seja um indicador de democracia.
está reduzida ao noticiário policial. praticar crimes. Se o
IHU On-Line - Que tipo de sentimen-
IHU On-Line - Como o senhor analisa Estado é responsável to esse episódio provoca na popula-
a postura do Supremo Tribunal Fe- ção brasileira? Revolta, descrédito
deral nesse caso? Como interpreta o por garantir segurança nas instituições?
comportamento do ministro Gilmar Luiz Werneck Vianna – Descrédito. E
Mendes? aos cidadãos, em também aprofunda o fosso entre a so-
Luiz Werneck Vianna – Interpreto ciedade e a política, mantém a socie-
bem. O papel da Suprema Corte é de- primeiro lugar, antes dade fragmentada, isolada, esperan-
fender a Constituição, as liberdades do que a ação desses novos homens,
individuais, e também não deixa de mesmo de conter os dessas corporações novas, nos livre
incorporar essa preocupação com o do mal. Talvez eu tenha dado muita
testemunho do espetacular que essas crimes cometidos pela ênfase à dimensão negativa de tudo
operações policiais manifestam. Uma isso, mas também vejo que esse pro-
outra questão vinculada a isso é a es- sociedade, ele tem e cesso pode ser corrigido se a ordem
cuta telefônica. Estamos indo para um racional legal for defendida por re-
estado policial? E a sociedade aprende pode suprimir os seus cursos democráticos, sem violência,
a apontar como culpado o “malvado” com respeito às leis, à dignidade da
lá da ponta, responsável por todos os próprios crimes” pessoa humana. É possível se avançar
males, que, caso preso e execrado, na ordem racional legal, investigando
fará com que ela melhore. Num ano a corrupção, prendendo seus respon-
eleitoral, tudo se discute, menos a po- sáveis, mas sem que isso assuma o
lítica. Não podemos defender a idéia caráter de escândalo, de espetáculo,
de que um grande inquérito, um gran- no qual parece que temos um agente
de processo, pode resolver as máculas de salvação em defesa da sociedade.
da nossa história, criar um novo tipo rando, investigando e não discutindo Isso sim é perigoso.
de um encaminhamento feliz para nós políticas e soluções para os problemas.
(e isso é feito pela polícia, pelos gram- Além do mais, temos um grupamento
pos telefônicos, pela repressão!). Isso novo na sociedade: a Polícia Federal é LEIA MAIS...
não lembra a linguagem do regime mi- nova. Ela foi extraída da classe média. >> Confira outras entrevistas concedidas
litar, quando ele se impôs? De que o Seu pessoal é concursado, bem forma- por Luiz Eduardo Soares. Acesse nossa página
eletrônica www.unisinos.br/ihu
grande inimigo é a corrupção? Só que do, com curso superior. Seus integran-
agora tudo está sendo feito numa esca- tes estão autonomizados a ir para as Entrevistas:
la nova, imensa, com um domínio total ruas com esse sentimento messiânico, * O ovo da serpente está sendo gestado no sul.
dos meios de comunicação. O próprio que aparece no relatório do delegado Edição número 158, de 03-10-2005;
Congresso se tornou uma ampla co- Protógenes, de que a Polícia pode sal- * Treinados para matar: limites da polícia brasi-
leira. Edição número 182, de 29-05-2006.
missão parlamentar de inquérito, apu- var o mundo.
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Memória
Odair Firmino: uma vida a serviço dos empobrecidos
POR IVO POLETTO
F
aleceu, em 5 de julho, após longa convalescência, o ex-secretário geral da Cáritas Brasilei-
ra, Odair Firmino. Conhecido por seu comprometimento com as causas e as lutas sociais e
populares do País, Firmino deixa a marca da solidariedade e da luta pela construção de um
mundo melhor. O site do Instituto Humanitas Unisinos — IHU (www.unisinos.br/ihu), através
das Notícias do Dia, deu ampla repercussão ao estado de saúde de Firmino, que infelizmen-
te culminou com seu óbito. A seguir, a pedido da IHU On-Line, o atual assessor da Cáritas, Ivo Poletto,
escreve um artigo relembrando a importância de Firmino e seu legado.
Odair Firmino nasceu na cidade de Ipameri, no dia 22 de junho de 1945. Aos dois anos, foi morar
em Anápolis com sua família. Estudou no Colégio Santo Antônio e aos 12 anos começou a participar
das atividades da Igreja como coroinha. Obedecendo ao chamado de Deus e da Igreja, foi seminarista
do Seminário Regina Minorum, em Anápolis, escola de formação dos Frades Franciscanos. Ordenou-se
padre no ano de 1972. Atuou nas Paróquias de Pires do Rio e Jataí. Em 1975, voltou para Anápolis,
onde ocupou até 1982 a direção do Colégio São Francisco de Assis. Deixou a congregação franciscana
para se casar com a professora Maria Dadiva Firmino e mudou-se em 1984 para Brasília, onde traba-
lhou como educador no Colégio Santo Antônio e onde também ingressou na Rede Cáritas Internationals
— Cáritas Brasileira —, organismo da CNBB de intensa atividade social em prol dos direitos humanos
tendo sido, dentro da organização, secretário-geral e vice-presidente.
No final do ano de 1999, a convite do primeiro reitor da UEG, professor José Izecias, veio trabalhar
na Instituição recém-criada pelo governador Marconi Perillo como pró-reitor de Graduação. Nestes
oito anos de dedicação total à Universidade, ocupou diversos cargos na instituição como pró-reitor de
extensão, diretor da Funcer, diretor da Licenciatura Plena Parcelada, secretário-geral e por último,
diretor institucional. Por diversas ocasiões, ocupou também a reitoria da UEG, em caráter interino.
Ivo Poletto é assessor de pastorais e movimentos sociais. Trabalhou durante os dois primeiros anos
do governo Lula como assessor do Programa Fome Zero e foi o primeiro secretário-executivo da Co-
missão Pastoral da Terra (CPT). Autor, entre outros, do livro Brasil, oportunidades perdidas — Meus
dois anos no governo Lula (Rio de Janeiro: Garamond, 2005). É filósofo, teólogo, cientista social e
educador popular.
Odair Firmino faleceu no dia Um bem-aventurado qual delas não foi vivida por Odair?
5 de julho de 2008. Escrever este Na celebração eucarística, A resposta, unânime, foi de que ele
depoimento sobre sua vida é uma nova celebrada na sede da CNBB, em estava incluído em todas.
oportunidade de sentir-me apoiado e Brasília, lembrou Vitélio Pasa, do De fato, para começar, ele, filho
questionado em relação à missão cristã Secretariado da Cáritas Brasileira, que de João Firmino Neto e Maria de
livremente assumida. É nova porque Dom Demétrio Valentini, presidente Lourdes Firmino, foi um dos pobres a
a amizade que tivemos fez com que da mesma Cáritas, estimulou a quem pertence o Reino. Sua acolhida
muitas vezes tenha sido questionado participação da comunidade na e vivência da mensagem de Jesus
pela sua fidelidade à opção de seguir a meditação sobre o evangelho das valeu-lhe, como poucos, a oração: eu
Jesus Cristo. bem-aventuranças, perguntando: te louvo, Pai, porque escondeste estas
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coisas aos sábios e orgulhosos e as Colégio Santo Antônio, mas já no início Excluídos, da renovação da Campanha da
revelaste aos pequeninos. de janeiro deste ano ingressou na Cáritas Fraternidade; é o tempo do lançamento
Odair chorou muitas vezes diante Brasileira, como Assessor Técnico. E a da Campanha pela Convivência com o
das situações de abandono, exploração Cáritas foi sua casa, seu engajamento, Semi-Árido e da Articulação do Semi-
e exclusão em que se encontravam sua paixão pelo resto da vida, uma vez Árido, com seu Projeto de 1 Milhão
pessoas e comunidades que assumiu e que, nela, foi subsecretário, secretário de Cisternas caseiras; é o tempo do
amou como seu próximo. Percebendo nacional e duas vezes vice-presidente, Seminário Internacional e o do Tribunal
que o sofrimento das pessoas tinha sua encerrando o segundo mandato apenas sobre a Dívida Externa, que deu início ao
causa nas injustiças, nas estruturas em dezembro de 2007. trabalho da Rede Jubileu Sul, responsável,
de pecado da sociedade brasileira e O que mais caracterizou São no Brasil, pelos plebiscitos populares
do mundo capitalista, teve fome e Francisco foi seu amor incondicional sobre a dívida, em 2000, e sobre a ALCA,
sede de justiça. Seu modo de vida, pelos pobres e pela natureza. Odair em 2002; é o tempo das avaliações
sempre alegre e cheio de esperança, foi franciscano de modo especial pelo dos Pequenos Projetos Comunitários e
nunca deixando que o diabetes o amor aos pobres. Não fez da Cáritas da consolidação da Economia Popular
levasse ao medo de enfrentar o que um emprego, mesmo tendo vivido a Solidária... A Cáritas foi se firmando
a vida lhe apresentava, fez dele uma como uma das forças essenciais de todos
pessoa mansa, pura de coração e esses processos, e o Odair, um dos seus
misericordiosa. Diante da violência “A Cáritas lhe principais animadores.
que sempre atinge mais duramente
os empobrecidos, e especialmente os possibilitou viver sua Um educador aprendente
negros, os jovens e as mulheres, Odair Sua vida adulta foi toda dedicada
foi um promotor da paz verdadeira. No paixão pela libertação à educação. Seus últimos anos foram
percurso de sua vida, foi perseguido dedicados, ao mesmo tempo, à direção
e foi sempre solidário com as irmãs integral das pessoas, da Cáritas e à Universidade Estadual de
e irmãos perseguidos por causa da Goiás, onde foi Vice-Reitor Acadêmico
justiça. Tudo somado, Odair foi um tendo nos excluídos e Secretário Geral. Dedicou-se com
discípulo fiel do Mestre Jesus, não entusiasmo à formação de professores/
se abalando com as incompreensões, e excluídas os as em todo o interior de Goiás e
injúrias e perseguições. envolveu os educadores em processos
É por isso tudo que ele já está protagonistas de alfabetização. Sentia-se feliz
vivendo a grande alegria dos acolhidos colaborando para consolidar espaços
pelo Pai. E tornou-se um dos fortes principais. Isto é, de formação universitária que criavam
protetores de todas as pessoas que oportunidades para pessoas que não
assumem o mandato de Jesus: amem-se possibilitou-lhe viver teriam como deslocar-se à capital. E
uns aos outros como eu amei a vocês. fazia o possível para que professores
o ideal de São e alunos se ligassem com a realidade
Um franciscano social, política, econômica e cultural das
Desde cedo, Odair foi atraído pelo Francisco de forma localidades, comprometendo-se com o
exemplo de São Francisco de Assis, e enfrentamento das causas dos problemas
foi um franciscano autêntico em toda atualizada” que provocam o empobrecimento e a
sua vida. exclusão de tantas pessoas.
Nasceu em Ipameri, Goiás, no dia 22 Foi sempre, mesmo na universidade,
de junho de 1945, mas sua família mudou- um educador aprendente, como deve
se para Anápolis, Goiás, quando tinha partir do trabalho nela durante muitos ser todo discípulo de Jesus, de São
apenas dois anos. A partir daí, conviveu anos. A Cáritas lhe possibilitou viver Francisco e de Paulo Freire. Estava
com franciscanos e franciscanas. Estudou sua paixão pela libertação integral sempre aberto ao novo, às possibilidades
no Colégio Santo Antônio e no seminário das pessoas, tendo nos excluídos e de ação libertadora presentes nas
Regina Minorum, na mesma cidade. excluídas os protagonistas principais. contradições históricas. E com a
Completados os estudos de filosofia e Isto é, possibilitou-lhe viver o ideal de qualidade já destacada acima: o espírito
teologia, tornou-se frei franciscano em São Francisco de forma atualizada. jovial, alegre, esperançoso, capaz de
1972. Atuou nas paróquias de Pires do Rio Foi essa paixão também que o relativizar as dificuldades, capaz, por
e Jataí, seguindo depois para Anápolis, manteve firme e o fez sujeito ativo isso, de ajudar a abrir novas veredas.
onde assumiu, em 1975, a direção do em todo o processo de redefinição da Vai fazer falta, o Odair. Resta-nos
Colégio São Francisco até 1982. missão da Cáritas. Foi em parte desse confiar que sua proteção nos ajudará
Decidiu deixar a congregação período, entre 1993 e 1999, que tive o a ser melhores educadores populares,
franciscana, casando com Dádiva Firmino privilégio da trabalhar com ele na equipe sempre aprendentes, seguindo os seus
e mudando sua residência para Brasília nacional. É a década das Semanas Sociais e os nossos mestres e inspirados pelo
em 1984. Manteve-se como educador no Brasileiras, do nascimento do Grito dos exemplo de sua vida.
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Invenção
Editoria de Poesia
Mário Alex Rosa
POR ANDRÉ DICK
Natural de São João Del Rei (MG), o seus passantes em noite longa / mãos / da luz que é baixa e fria, alguém /
poeta Mário Alex Rosa nasceu em 1966. É cerradas, pé por pé vagarosos seguiam desconfia do dia que se aproxima”.
formado em História, pela Universidade /em suas próprias vigílias à espera Mário igualmente reflete sobre um
Federal de Ouro Preto (UFOP), e mestre do perdão”. A paisagem também traz certo movimento familiar, com um
e doutorando em Literatura Brasileira, resquícios da interseção entre Minas, certo tom melancólico, a exemplo do
pela Universidade de São Paulo (USP). São Paulo e Rio de Janeiro, num poema que ocorre no poema “Do tempo”, que
Entre os poetas que fazem parte de seus como “Serra da Mantiqueira”: “Daqui o autor dedica aos irmãos: “Entra /
estudos, estão Drummond e Armando / as montanhas / fundem belezas um por um / no seu silêncio / paterno.
Freitas Filho. Também atua como desesperadas / em volta delas poucos / / Sai um por um / no seu silêncio /
professor no Centro Universitário de saem. / / Daqui / as montanhas / materno. / / Agora todos são / menos
Belo Horizonte (UNI-BH) e é membro do fixam estranhos silêncios / de dentro dois / eternos”. Junto a isso, há, claro,
conselho editorial da revista Estudos. Na delas saem poucos. / / Daqui / as lembranças de infância. Aliás, em seu
área infantil, publicou o livro de poemas montanhas / acordam dormem / entre livro de poemas infantis, ABC Futebol
ABC Futebol Clube e outros poemas elas / mas levam consigo / os que Clube, Mário brinca com a sonoridade
(Belo Horizonte: Bagagem, 2007). Como saem / delas”. das palavras de maneira a lembrar os
tradutor, por sua vez, apresentou versos Há uma imagética bastante melhores momentos de poetas como
da poeta argentina Alejandra Pizarnik trabalhada, e os poemas trazem José Paulo Paes. No poema que dá título
na plaquete Primeiros poemas (Belo estruturas bem definidas, com um ao livro, as letras são consideradas
Horizonte: Espectro Editorial, 2005). verso capaz de mostrar as dúvidas como jogadores: “Atenção, atenção
Com poemas publicados em revistas silenciosas que remetem a uma / foi dada a formação do abc: / a
como Inimigo Rumor (RJ), Cacto (SP), introspecção. Em “Ao lado da tarde”, escalação tem ares de ataque: / Na
Teresa (USP/SP), Jandira (Juiz de a paisagem, por exemplo, passa a Área o A / Arma, Avança, / passa um,
Fora), e nos jornais Folha de S. Paulo e representar a subjetividade poética: passa dois, / lan... çou para o B... /
Suplemento Literário de Minas Gerais, “Quando naquela tarde / depois da linnnnda bola, / e ele encaixa / e
entre outros, Mário pretende reunir chuva, ao lado da janela, / olhava o despacha para o C / Corta um, Corta
muitos deles, como os que enviou arco-íris, lembrei / que aqui dentro o dois, Corta três...”. Também artista
especialmente à IHU On-Line, no escuro prevalecia / longamente perto plástico, organizou a exposição “A régua
volume inédito Sem asa. Eles trazem do amor. / Daqueles dias recordo / as da memória ou A regra da memória”,
uma certa nostalgia, visualizando, treze estrelas contadas / e a cada uma com objetivos construídos sobretudo
sobretudo, paisagens solitárias, que dizia: / aquela que cai infinitamente a partir da observação do universo
parecem lembrar bastante o interior / é para lembrar de nossas alegrias. / infantil. Nesses objetos, o autor utiliza
de Minas Gerais. No poema “Uma Ouro Mas se indagar pelas outras respondo: objetos como lápis, borrachas, réguas,
preto”, por exemplo, há os versos “Há / o amor tem ponto”. Há, em outros apontadores, clips, botões, compassos
várias ouro preto / de fora e dentro. / poemas, a mudança no sujeito indicada etc., destacando-se cores chamativas
/ De fora são as carnes / que deixaram pela hora do dia, como em “Mudança”: aos olhos do observador. Como alguns
de ser anjos. / / De dentro são os anjos “Deixei a aurora, / agora só resta uma desses objetos trazem palavras, há uma
/ que deixaram de ser carnes”. Outro, hora. / Desfiz para permanecer / aproximação mais visível entre poesia e
intitulado “Olhando montanhas”, juntos o eclipse e o amanhecer”. Ou artes plásticas. Uma junção que Mário
parece lembrar a cidade de Drummond, o anoitecer em “Noturno”: “Quem pôs Alex Rosa deixa clara em toda sua
Itabira: “Era tempo de minérios / a tudo nessa noite / deixou de avisar que produção poética, seja verbal, seja por
cidade de luto vestia a glória / dos ali ao lado / onde a distância se afasta meio de objetos para exposição.
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Entre folhas
Fora daqui
há uma imensa chuva,
sem tempo se apropria de todo o espaço
avolumando-se sem cessar.
Abaixo um cinza céu,
os mais encolhidos, os pássaros, recolhem-se
entre as folhas das árvores, verdemente abertas.
No entanto, dentro daqui,
no pulso esquerdo as horas circulam
pontualmente uma chuva
que não pára de cair de você.
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Dois instantes
Na hora que o sol
aponta para o quarto
e todas as sombras formam outras sombras,
começa o silêncio a acender
seus poucos faróis.
Uma palavra envolve
uma na outra,
e no canto esquerdo
juntas inventam um céu de alegrias.
Mas nesse lugar
de dois
ficar à beira
de uma luz relâmpago
é o bastante para dois instantes.
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Destaques On-Line
Essa editoria veicula entrevistas que foram destaques nas Notícias do Dia do sítio do IHU.
Apresentamos um resumo delas, que podem ser conferidas, na íntegra, na data correspondente.
Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line e disponí- corporativa das polícias e na política de segurança errada.
veis nas Notícias do Dia do sítio do IHU (www.unisinos.
br/ihu) de 14-07-2008 a 19-07-2008. “Gilmar Mendes não tinha condições para ser Ministro
do Supremo Tribunal Federal”. Entrevista com o ju-
rista Dalmo Dallari
Polícia: entre aplausos, medo e descrédito Confira nas Notícias do Dia 17-07-2008
Entrevista com Silvia Ramos Para o jurista, o ministro do STF, Gilmar Mendes, não tem
Confira nas Notícias do Dia 14-07-2008 equilíbrio emocional para ocupar um cargo de tamanha im-
Uma análise da atuação da polícia brasileira pode ser portância.
conferida nesta entrevista que a IHU On-Line fez com a
professora Silvia Ramos, que acredita que o Brasil pre- O papel do jornalista está em xeque.
cisa, urgentemente, reformar o setor da segurança pú- Entrevista com Gustavo Gindre
blica nacional. Confira nas Notícias do Dia 18-07-2008
Para Gindre, a evolução das tecnologias da informação per-
Das minorias à multidão. A contribuição de Antonio mitiu que o papel de intermediário fosse desempenhado
Negri por vários sujeitos e não mais apenas pelo jornalista.
Entrevista com Luigi Bordin
Confira nas Notícias do Dia 15-07-2008 “Tudo o que é desconhecido precisa ser olhado com
Para o filósofo, ler Negri hoje é importante pela crítica desconfiança”
radical que este fez à globalização perversa. Entrevista com Bartira Rossi Bergmann
Confira nas Notícias do Dia 19-07-2008
“Com a polícia que temos a sociedade não está segura” Para a professora, os estudos em relação às nanotecno-
Entrevista com Luiz Eduardo Soares logias precisam avançar, mas necessitam de estudos
Confira nas Notícias do Dia 16-07-2008 profundos para que não causem problemas à saúde
Para o sociólogo, o problema da violência está na cultura das pessoas.
acesse
www.unisinos.br/ihu
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Perfil Popular
Marta Izabel Castro
POR BRUNA QUADROS
FOTO BRUNA QUADROS
O
Perfil Popular desta semana é uma das integrantes do gru-
po Costura Solidária, da Cooperativa Progresso, localizada
no bairro Rio dos Sinos, em São Leopoldo. Marta Izabel Cas-
tro, 47 anos, é de origem humilde. Nem por isso deixou de
viver com dignidade. Aos sete anos de idade, ela já sabia
o que era trabalho, resultado de uma infância que teve que ficar para
trás. O impulso para ultrapassar, uma por uma, as pedras que o desti-
no pôs em seu caminho vêm de casa. Além de educação, seus pais lhe
ensinaram que a vida oferece caminhos certos e errados. Por isso, ela
tem orgulho em honrar os valores deixados pelos seus mestres. “Não é
porque sou pobre que posso sair fazendo bobagens rua afora. A gente
pode sobreviver com dignidade.”
Nascida em Iraí, no interior do Estado, sobrinhos. “Era a melhor hora para trouxe de casa. Não é porque sou pobre
Marta Izabel Castro tem origem mim. Quando estava com ela, era a que posso sair fazendo bobagens rua
humilde. “Meus pais tinham terras, única hora que eu podia me considerar afora. A gente pode sobreviver com
eram colonos, trabalhavam na roça.” uma criança. Ali, eu estava com dignidade.”
A penúltima de 11 filhos, Marta hoje crianças, podia estudar e fazer alguma
está com 47 anos. Quando tinha coisa da qual eu gostava também.” Aos 21 anos, Marta casou. A união se
quatro anos, seu pai, que sofria de desfez há 20 anos, mas deixou a maior
problemas cardíacos, não agüentou a Com 11 anos de idade, Marta e herança de Marta: os filhos Mara, de 30
rotina na colônia. “Então, ele vendeu a família vieram morar em São anos; o Carlos, de 24 e o Tiago, de 21
as terras em Irai e comprou um sítio Leopoldo. “Os médicos diziam que anos. “Meus filhos são tudo para mim,
em São Miguel do Oeste, em Santa o problema cardíaco do meu pai os meus amores. Acho que uma família
Catarina, onde passei a maior parte da não tinha solução. E meu pai queria se constrói assim, com muito amor.” O
minha infância.” Desta fase da vida, morrer na terra dele.” Além disso, São mesmo apego que tem pelos filhos e
ela recorda pouco. Leopoldo oferecia oportunidades de quatro netos Marta têm pelos irmãos.
trabalho que no interior não existiam. “Sempre nos relacionamos muito bem.
Aliás, poucos foram os momentos Marta não teve muitas oportunidades Se tivermos que dar a mão, é agora e
que ela pode se permitir ser criança. de estudar. Cursou até a 4ª série do não depois. Quando um precisa, estão
“Comecei a trabalhar muito cedo, ensino fundamental, já morando em todos prontos para ajudar.”
aos sete anos. A minha irmã mais São Leopoldo. “O resto eu aprendi com
velha era professora no Paraná. Como a vida.” Marta conta que seu pai lhe O trabalho no grupo Costura Solidária,
eram muitos filhos, e as dificuldades deu uma boa educação, lhe ensinou a na Cooperativa Progresso, ainda é
financeiras eram grandes, as irmãs vida como ela é, com caminhos certos novo: tem apenas dois meses. Marta
mais velhas levavam uma das menores e errados. “Não perdi nada do que eles explica que havia outro grupo de
para cuidar dos seus filhos.” E foi na me ensinaram. Conservo tudo até hoje costura, mas este se dissolveu, o que
casa da irmã que Marta aprendeu a ler e passei para os meus filhos, também. originou o início de um novo trabalho.
e a escrever, além de cuidar de quatro Tudo o que sou, ganhei dos meus pais, “Nós não somos da cooperativa, mas
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trabalhamos lá dentro. As pessoas
vão lá e fazem os pedidos. Temos
a nossa renda, 20% fica no caixa e o
resto é dividido entre o grupo, que
IHU Repórter
são três pessoas.” Antes disso, Marta
trabalhava como doméstica, e “com
muito orgulho, porque era com o que José Roque Schneider
eu ganhava o meu salário”, destaca.
Ela afirma que sempre gostou de
costura e o incentivo veio de dentro POR BRUNA QUADROS E GRAZIELA WOLFART
de casa. “Minha mãe sempre teve
máquina de costura, dava chance para
U
a gente aprender.” Modesta, Marta m homem simples, mas que nunca cansa de aprender mais e
diz que não é uma grande costureira, mais com a vida. Este é José Roque Schneider, que dedica sua
mas, sim, uma eterna aprendiz. força laboral à Unisinos há mais de 30 anos. Nascido no interior
do Rio Grande do Sul, Roque conta sua caminhada como semina-
Até agora, Marta já passou por muitos rista da Companhia de Jesus e fala sobre sua trajetória de vida,
momentos marcantes. Alguns são sua família, preferências e visão de mundo. Conheça parte do mundo deste
guardados na memória pela tristeza.
colega da comunidade acadêmica da Unisinos:
“Quando eu perdi o meu pai, eu era
muito nova, tinha 11 anos, e não sabia
o que eu estava perdendo. Perdi a
minha mãe há oito anos e foi a minha
maior dor.” A felicidade, na percepção
de Marta, veio em dose tripla. “A
Mara, o Carlos e o Tiago. Filho é uma
dádiva de Deus, e quando é bem-
vindo, melhor ainda.”
Esperança e política
Se há algo que Marta não perde jamais
é a esperança. “Meu maior sonho é
ter a minha casa própria.” Para ela,
a política do país está decadente.
“Espero que melhore, porque nós
dependemos deles. Não gosto de
política, mas, quando chegam as
eleições, nós temos que averiguar Origens – Nasci e fui criado no interior, onde nasci. Com a idéia
qual é a melhor solução.” interior, na localidade de Piedade, de ser jesuíta, aos 13 anos, em
pertencente ao distrito de São 1957, ingressei no ótimo Colégio
Fé Vendelino, que hoje é município. Santo Inácio, em Salvador do Sul,
Criada nos princípios da Igreja Na época, vivíamos uma vida muito uma espécie de universidade em
Evangélica Assembléia de Deus, natural, os alimentos não tinham miniatura. Era um lugar de muita
hoje, Marta não segue uma religião agrotóxicos. Era aquela vida da disciplina, onde as partes esportiva
específica. “Sou meio passarinho, vôo colônia. Se pescava no arroio e se e de espiritualidade foram muito
de galho em galho, mas um dia eu voltava para casa para fritar os importantes. Tenho saudades
me acho.” No entanto, ela acredita peixes. Já disse mil vezes que, se desse período sob vários aspectos,
e tem muita fé em Deus. “Quando pudesse retornar, não trocaria minha porque acho que me deu uma boa
Jesus andou no mundo, ele não vida atual pelo período da infância. consistência em termos de formação
pregou religiões, apenas a palavra de Gosto da vida e da comida o mais pessoal. Em 1959, entrei no Colégio
Deus. É só Ele quem ajuda a gente.” simples possível. Meus pais eram Cristo Rei, em São Leopoldo. Aos
E, nos momentos difíceis, é também agricultores, viviam do trabalho na 18 anos, parti para o noviciado, no
na fé que ela encontra forças para lavoura. Tenho oito irmãos e estou Colégio São José, em Pareci Novo.
seguir adiante. “Quando me sento entre os do meio. Foi nesse período de dois anos que
fragilizada, escuto um hino da Igreja e trabalhei no Hospital Centenário,
não preciso de psicólogo algum.” Noviciado - Fiz o primário no em São Leopoldo, cuidando de
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