Educação, Diversidades e Culturas
Educação, Diversidades e Culturas
Presidente
Ivete Jurema Esteves Lacerda
Conselheiros
Diogo Helal
Juliano Domingues
Luís Reis
Márcia Basto
Maria Ferreira
Rita de Cássia
ISBN 978-85-7019-685-9
© 2018 Dos organizadores
Reservados todos os direitos desta edição. Reprodução proibida, mesmo parcialmente,
sem autorização da Editora Massangana da Fundação Joaquim Nabuco.
XxxxXx Rodrigues, Cibele; Simões, Patrícia; Marques, Luciana; Torres, Ednaldo (Orgs.).
Educação, diversidades e culturas (PI-2 – Educação e Relações Étnico-raciais),
Cibele Rodrigues; Patrícia Simões; Luciana Marques; Ednaldo Torres. – Recife:
Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2018.
230 p.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7019-685-9
Os Organizadores.
SUMÁRIO
A AÇÃO COMUNICATIVA DO SENHOR BERTOLINO:
UM CONTADOR DE HISTÓRIAS COM UM DISCURSO FREIRIANO PARA
UMA EDUCAÇÃO CONTEXTUALIZADA NO CAMPO.....................................11
Sayonara Cordeiro de Marins Nogueira
11
Ressalto também o percurso metodológico de abordagem quali-
tativa, pois procuramos aqui compreender o fenômeno, e não explicá-lo
com dados e estatísticas. E a história oral como metodologia foi a mais
adequada, sendo a técnica utilizada a entrevista narrativa. Encerro com
os resultados preliminares e as considerações finais.
12
algo no mundo social comum (enquanto totalidade
de relações interpessoais legitimamente reguladas de
um grupo social) ou a algo no mundo subjetivo pró-
prio(enquanto totalidades das vivências a que têm
acesso privilegiado). Enquanto que no agir estratégi-
co um atua sobre o outro para ensejar a continuação
desejada de uma interação, no agir comunicativo, um
é motivado racionalmente pelo outro para uma ação
de adesão – e isso em virtude do efeito ilocucionário
de comprometimento que a oferta de um ato de fala
suscita. (HABERMAS, 1989, p. 79)
Pelo convencimento, os interlocutores podem se influenciar com
argumentos e mudar os planos previstos, sem coerção social, pois, se-
gundo a teoria habermasiana, não pode haver uma escala de poder, já
que o agir comunicativo requer legitimidade no seu discurso baseada em
razões, e não em recursos de poder, de comando;é a força das razões que
motiva o discurso, pressupondo aqui uma harmonização. No agir co-
municativo os atores tratam de harmonizar internamente seus planos de
ação e de só perseguir suas respectivas metas sob condição de um acordo
existente ou a se negociar sobre a situação e as consequências esperadas
(HABERMAS, 1989, p. 165).
E, com um jeito simples de falar, um discurso arraigado de força
e motivação, buscando harmonizar as decisões, trato agora de dar voz
e vez a um sujeito/ator que está inserido nesse comprometimento com
outros atores, que aderiram em conjunto ao saber conviver no seu lugar
com dignidade, lutando e conquistando, com palavras e ações.
A voz e a vez do senhor Bertolino na educação, na associação
e na rádio comunitária: uma rede de contribuição à educação
contextualizada para a convivência com o semiárido
Uribe Rivera, à luz de Habermas, diz que “os atores têm a capaci-
dade de agir em torno de um objetivo” (URIBE RIVERA, 1995, p. 22). É
preciso esclarecer que nosso sujeito/ator se coloca à disposição com ou-
tros sujeitos/atores para juntos visualizarem o melhor para todos e assim
alcançar seus objetivos.
Ao deparar com o ato de lecionar, o senhor Bertolino não fortale-
ceu a voz, não mudou de tom, permaneceu com a voz mansa, calma, mas
13
cativante;com vinte anos de sacerdócio na educação – para ele, ser profes-
sor é um sacerdócio –, contribuiu para o ensino tanto de crianças como
de jovens e adultos. Cativou, orientou e com a comunidade lutou para que
tivessem um ano inteiro de estudos, um ano letivo, já que era esporádica a
educação em 1966. Objetivos alcançados. Educação no campo, do campo,
para o campo. Não sabia, mas contribuiu vinte anos para uma educação
contextualizada. Martins nos esclarece que “a ‘Educação Contextualizada’
não se trata apenas de uma questão meramente estética, mas de uma polí-
tica de sentido” (2011, p. 53). Nosso sujeito/ator tratava de temas específi-
cos da realidade, “da cultura, dos saberes, dos sentires” de seus alunos, ora
crianças, ora jovens, ora adultos. Alfabetizou muita gente, inclusive sua
esposa, sempre tematizando e problematizando. Sobre tudo isso, Martins
fala que “fazer Educação Contextualizada é praticar uma Educação que
parta da realidade dos sujeitos; parta da riqueza, dos limites e da proble-
mática geral dos contextos de vida das pessoas” (Ibidem, p. 58).
Habermas nos diz que a ação comunicativa é orientada ao enten-
dimento (URIBE RIVERA,1995, p. 22), e foi com essa ação em busca de
entendimento que o senhor Bertolino buscou no outro os outros, para se
fortalecerem e não esperarem apenas por promessas políticas, promessas
eleitoreiras, mas para, na coletividade, alcançar o que desejavam. Assim,
buscou apoio e, com outras pessoas,fundou a Associação de Lavradores
de Conchas, que fica localizada no Distrito de Irrigação de Maniçoba no
semiárido baiano. A associação, que completou 30 anos de existência em
2015, promove reuniões em que seus membros sugerem, contribuem,
decidem e argumentam sobre as questões locais, sempre em busca da-
quilo que Habermas (1989) chama de “cooperativa da verdade”.
Outra proposta da associação é de ofertar cursos de criação de ani-
mais, de implementação de hortas, entre outros que venham a viabilizar a
permanência dos moradores na sua comunidade. Sabemos que a educa-
ção contextualizada também se dá nesses espaços não formais. Aqui per-
cebemos uma rede de argumentações, razões de atores que lutam e não
desistem. Hoje o senhor Bertolino é secretário da associação, já tendo sido
presidente, numa luta constante para a convivência no seu batido chão.
O trabalho que desenvolve na rádio comunitária Liberdade FM faz
que a rádio esteja a serviço da comunidade, realmente pertencendo àque-
le lugar. É preciso dizer aquilo em que se acredita e que se vivencia; para
nosso sujeito/ator, ser locutor na rádio é dar vez e voz ao povo do sertão,
acreditando em tudo o que diz. Nessa terceira rede de ação comunicativa,
14
ele interage com os ouvintes/atores por telefone, e-mail e Facebook. Todos
estão interessados em saber de assuntos da atualidade que influenciam no
modo de vida e no local, seja de maneira positiva, seja negativa, mas é ne-
cessário falar, ouvir, discutir e até tomar decisões, e também nessa rede de
comunicação se busca o melhor dos outros. Aqui há um entendimento di-
reto, sem rodeios, como propõe a ação comunicativa de Habermas citado
em Uribe Rivera (1995, p. 22); aqui há um discurso deles, e não do “outro”.
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movimento, envolvente, está presente sempre, numa luta constante. Pau-
lo Freire já refletia sobre esses sujeitos e a liberdade quando afirmou que
A liberdade, que é uma conquista, e não uma doação,
exige uma permanente busca. Busca permanente que
só existe no ato responsável de quem a faz. Ninguém
tem liberdade para ser livre: pelo contrário, luta por
ela precisamente porque não a tem. Não é também a
liberdade um ponto ideal, fora dos homens, ao qual
inclusive eles se alienam. Não é ideia que se faça mito.
É condição indispensável ao movimento de busca em
que estão inscritos os homens como seres inconclusos.
(FREIRE, 1987, p. 18)
Nessa inconclusão humana, o senhor Bertolino escreveu quatro li-
vros, todos tratando do outro, sobre a história de vida das pessoas da sua
comunidade e sobre a sua própria. Disse ele num livro “até esnobei”, mas
usando seu dom de contador de histórias colocou num papel seu ato de
libertação. As pessoas, disse ele, e mais precisamente os jovens “precisam
engajar-se na caminhada, na busca de mudanças para se construir uma
sociedade mais justa e igualitária” (NASCIMENTO, 2003, p. xx).
Esse contador de história, também escritor, tem fortemente em seu
discurso a voz de Paulo Freire. Nosso contador é mirado e admirado por
onde passa. Freire disse que “a operação de mirar implica noutra – a de
ad-mirar”(1981, p. 31). Continua ele,“ad-miramos e ao adentrar-nos no ad-
-mirado o miramos de dentro e desde dentro, o que nos faz ver” (Ibidem).
Com suas histórias, agora escritas, Bertolino Alves do Nascimento, mora-
dor de Conchas, em Maniçoba (BA), é ad-mirado, amado e muito festejado.
Por onde passa diz que os dias vividos ao lado de Paulo Freire foram
inesquecíveis e sempre recorda os ensinamentos do mestre: “a violência do
oprimido é gerada pela violência do opressor”; “no capitalismo não existe:
irmandade, fraternidade, amorosidade, morrer e ir para o céu”. Escreveu
essas palavras no seu primeiro livro,Nasce uma comunidade,de 1989, e
lembra ainda das palavras do grande educador: “alfabetizar é um ato cria-
dor, político de conhecimento”; “não é possível ensinar sem aprender”. De-
pois desse encontro, nosso sujeito/ator/contador de história não foi mais o
mesmo, descobriu-se um homem novo pela liberdade e descobriu que “a
libertação é um parto”. E um parto doloroso. “O homem que nasce deste
parto é um homem novo que só é viável na e pela superação da contradição
opressores-oprimidos, que é a libertação de todos” (FREIRE, 1987, p. 19).
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Terminou a nossa conversa dizendo que, na época, Paulo Freire
fora rejeitado, mas “agora depois todo mundo fala em Paulo Freire, ago-
ra é um mito, já pensou?” Assim, em Paulo Freire teve inspiração. Foi
alfabetizador para a liberdade, numa educação contextualizada. No seu
Reminiscências (2003), comprova a sua caminhada para a libertação.
PERCURSO METODOLÓGICO E OS RESULTADOS PRELIMINARES
A princípio busquei na abordagem qualitativa tencionar uma in-
vestigação que demanda ouvir, observar, descrever e interpretar as valio-
sas contribuições de sujeitos que ficam à margem, mas que encontram
no outro e para o outro o saber conviver nas diversidades locais, forjando
lutas por meio de movimentos e representações. A pesquisa qualitativa,
segundo Bogdan (1994), compreende o objeto de estudo, e esse entendi-
mento está além de números e estatísticas.
A investigação qualitativa sugere uma metodologia que mostre
uma relação específica dessa abordagem. Nesse sentido, busquei a his-
tória oral de vida do senhor Bertolino para dar conta de ações que rea-
lizou, atentando às narrativas por ele contadas. Foram realizados dois
encontros e,em entrevista narrativa, nosso protagonista, durante duas
horas no primeiro encontro e trinta minutos no segundo, narrou toda a
sua trajetória de vida e dedicação ao povo do seu município. De acordo
com Thompson, a história oral deve ter um julgamento imparcial, e “as
testemunhas podem ser convocadas entre as classes subalternas, os des-
prestigiados e os derrotados”(1992, p. 26).
Sob esse ponto de vista, a entrevista narrativa foi considerada a
melhor ferramenta para colher as informações necessárias a esse traba-
lho, pois ela nos permite reconstruir acontecimentos sociais a partir das
perspectivas dos informantes tão diretamente quanto possível (BAUER,
2002, p. 93) e, desse modo, encoraja e estimula o nosso entrevistado a
contar a sua história, a sua influência no contexto social em que vive.
Lembro aqui que as entrevistas foram gravadas.
Para fazer as análises, compreender e interpretar os dados colhi-
dos,e considerando que minha intenção foi de penetrar nos significados
do sujeito envolvido, na sua vivência e realidade, no agir de suas palavras,
busquei os procedimentos da análise temática, pois ela pressupõe o domí-
nio de técnicas linguísticas de interpretação dos textos recolhidos, basea-
das em análise semântica que dê sentido quer ao discurso dos narradores,
quer aos propósitos da investigação. Assim, fiz uma transcrição detalhada
17
convertendo os dados gravados e depois coloquei em três categorias de
análise: transcrição da história, primeira redução e, por último, palavras-
-chave para melhor interpretá-los, ainda dentro da lógica de Bauer (2002).
A seguir, um quadro demonstrativo da transcrição parcial.2
TRANSCRIÇÃO PARCIAL
AGINDO NA EDUCAÇÃO
Transcrição da história Primeira redução Palavras-chave
Em 66 nós assumimos a questão Professor alfabetizador Professor
da educação no município pela autodidata, somente Alfabetizador
prefeitura pra educar e aí a gente com a 2a série ginasial,
Autodidata
ficou (…) para alfabetização com foi contratado pela Pre-
Estiagem
crianças, e aí a gente ficou nesse feitura de Juazeiro para
trabalho durante vinte anos (…) a dar aula a crianças, e
gente não era formado, professor depois a jovens e adul-
autodidata, né? Nós não nos for- tos na época da estia-
mamos, mas chegamos aqui fazen- gem, fazendo um bom
do um trabalho de orientação (…) trabalho educacional
a gente veio aqui, o pessoal viu e com a comunidade, e
gostou (…), pois chegamos aqui ficou com o contrato
com alguma formação educacio- permanente durante
nal, porque nós estudamos até a 2a todo o ano letivo. Le-
série ginasial, (…) o pessoal achou cionou durante vinte
que daria bom para esse trabalho, anos.
porque antigamente só tinha o
pessoal que vinha de ano em ano
na ocasião da estiagem, tá enten-
dendo? Quando o pessoal não ti-
nha nada para fazer, quer dizer, não
tava trabalhando na roça, e alguém
contratava um professor para dar
aula naquele período da seca, e aí
depois eu assumi diretamente pela
prefeitura (…) também trabalhei
com o MOBRAL e aí fiquei durante
vinte anos dessa forma.
2 Não tive aqui pretensão de transcrever toda a conversa com o senhor Bertolino, por
isso trago apenas algumas partes que foram suficientes para essa análise.
18
AGINDO NA ASSOCIAÇÃO DE LAVRADORES DE CONCHAS
Transcrição da história Primeira redução Palavras-chave
19
AGINDO NA RÁDIO COMUNITÁRIA
Transcrição da história Primeira redução Palavras-chave
20
CONHECENDO PAULO FREIRE E AGINDO COMO ELE
Transcrição da história Primeira redução Palavras-chave
21
povo do campo, que trabalha de sol a sol, com chuvas escassas, numa
terra árida, porém cheia de possibilidades para conviverem de maneira
digna no seu chão. É uma voz sertaneja.
Busca sempre a melhora do seu povo, mesmo diante de tantas di-
ficuldades como o imediatismo das pessoas. Mesmo assim, nas reuniões
com os moradores e lavradores, mostra as possibilidades de viverem dig-
namente, não dependendo só da força dos políticos, lembrando-os que a
força e a organização estão no esforço de todos, na união, visando o bem
estar geral. Notamos aqui, no seu contexto, uma realidade experienciada
por ele, superando discursos ideológicos de políticos que não chegam a
se concretizar. Assim, mesmo nas adversidades, consegue manter o povo
unido. É uma voz política.
Quando diz da satisfação do seu trabalho como locutor da rádio
comunitária em Campos, outra vila da sua localidade, alegra-se, pois aos
domingos das 11h às13h, convida todo o povo das vilas, das roças e dos
lotes a participar do programa A hora e a voz do campo, com temáticas
sugeridas por ele e sua equipe técnica, abordando questões como a im-
portância do uso consciente da água, da educação de qualidade como
fomento à liberdade. Ouvintes de toda a região ligam, participam e tam-
bém pedem músicas. Esse espaço de interlocução é de grande impor-
tância para manter a comunicação. Percebo aqui o poder de persuasão
que Seu Bertolino tem, pois moradores de áreas distantes também ligam,
interagem, mandam e-mail, entre outras ações. Diz ele: “não gosto da
minha voz, não sei como as pessoas gostam do que eu digo”. Para nós,
esse gosto é notório na sua voz mansa, calma, que transmite paz, segu-
rança, reverberando a voz de outros. É uma voz coletiva.
Também, para concluir essa análise, o senhor Bertolino nos con-
ta sua história se reconhecendo como oprimido. Porém, quando bebeu
nas fontes de Paulo Freire, participando de um curso durante 15dias em
Carnaíba, ele despertou para as condições em que vivia, descobriu que
somente a classe dominante contou sua história, mas de maneira adulte-
rada, e decidiu, então, que contaria a história dos oprimidos não adulte-
rada, mas real, a verdadeira história. É uma voz libertadora.
Diante das análises realizadas, chegamos à parte final,interpretan-
do as entrevistas coletadas e as ações realizadas pelo nosso contador de
história, confirmando que o que é feito perpassa pelo dito, ramificando
o agir comunicativo.
22
Através das narrativas gravadas, transcritas e analisadas, chegamos
a alguns resultados preliminares, pois de acordo com os nossos objetivos,
constatamos que a ação comunicativa do senhor Bertolino Alves do Nas-
cimento se dá realmente em função do outro,o outro que ele não gosta
de ver oprimido, à mercê dos mandos e desmandos dos seus opressores.
No agir comunicativo desse senhor, na sua fala, é constante o uso
do pronome “nós” ou “a gente”, mesmo quando se refere a ele. Notamos
assim, no seu discurso, a importância da coletividade, propondo uma
participação mais ativa e igualitária para todos e mostrando que a histó-
ria se faz com o outro, no outro e pelo outro. Uma voz humana, cujas de-
cisões são tomadas coletivamente, buscando os objetivos comuns, num
ato harmonioso.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Compreende-se assim que a ação do nosso sujeito/ator/contador
de histórias, por meio de seu agir comunicativo, insere-se na perspec-
tiva da educação contextualizada para a convivência com o semiárido.
Preocupado com o outro, com a condição de submissão, de exclusão,
de opressão, tendo conhecido Paulo Freire, não por leituras, mas por
contato físico, apreendeu tudo que foi tematizado e problematizado
naquele momento, em 1983,em que se discutiu a liberdade. Com isso,
nosso contador, na condição de oprimido, buscou subverter sua con-
dição com ações comunicativas, sempre pensando no outro; escreveu
livros sobre seu povo, sua comunidade, sua vida, sua cultura;debate
a importância de uma educação que se articule coma convivência no
semiárido em seu programa na rádio Liberdade e na Associação de
Lavradores de Conchas, anteriormente como presidente e atualmente
como secretário. Na condição de professor alfabetizador, protagonizou
uma educação contextualizada mesmo desconhecendo essa conceitua-
ção teórica. Para ele, ser professor é um sacerdócio. Agora, a prática
de contar histórias se concretiza na prática de escrever toda a história,
uma história verdadeira.
Entende-se neste trabalho a importância desse ator, que é um su-
jeito-nos-sujeitos, numa reflexão-ação, nascido e criado em Conchas/
Maniçoba, no semiárido baiano, hoje com 68 anos de idade, casado, com
nove filhos; não lhe bastando apenas sustentar sua família com sua labu-
ta diária, foi preciso também sustentar o próximo, com suas palavras e
ações, dedicado à permanência e à convivência no seu semiárido chão.
23
Nas suas Reminiscências (2003),comprova sua caminhada pela liberda-
de,na qualé visível a teoria da ação comunicativa habermasiana, pois esse
sujeito toma decisões em conjunto, na coletividade. É certo afirmar, as-
sim, que a teoria de Habermas explica esse “fenômeno”.
REFERÊNCIAS
24
A CULTURA CORPORAL FEMININA E OS PADRÕES DE
BELEZA “DITADOS” NA SOCIEDADE
Ana Paula Rodrigues Figueirôa3
Catarina da Silva Souza4
Daniely Gomes Vieira de Souza5
Edilson Fernandes de Souza6
INTRODUÇÃO
O corpo foi objeto de estudo ao longo de vários séculos, seja na
concepção filosófica, social, política ou religiosa. No século XX, entra-se
em uma crise de identidade, na qual o corpo “dissocia-se da mente” e se
torna cada vez mais “coisificado”. A ditadura da beleza, da massificação
da estética, provoca desarmonia, ocasionando uma crise de identidade.
É difícil, porém, analisar esse contexto, porque há relações subjetivas en-
volvidas, como a dicotomia “corpo e mente”, em que o indivíduo é visto
como um todo, um ser que está interligado com o seu “eu” e o “mundo”.
Cada indivíduo-corpo traz consigo uma bagagem única, que é construí-
da no decorrer de sua vida. Por meio deles são revelados trechos da his-
tória a que pertencem esses corpos (SOARES, 2001).
Ser corpo, além dos aspectos físicos e emocionais, é romper com a
ciência clássica, alicerçada na cisão corpo/mente, e mergulhar no mundo
vivido da unidade corporal, repleto de experiências e desejos. A histori-
cidade do corpo vai de acordo com os momentos vividos de cada indi-
víduo, perpassando, até mesmo, a época em que estão relacionados os
costumes, as generalidades culturais, a sociedade, a economia, a moda, a
saúde, o esporte e, inclusive, os hábitos alimentares.
25
O corpo reflete a ação de paixões e de sociabilidades:
convergências, tensões, conflitos, exutórios das exalta-
ções locais, ou exibições das distinções, de uma socie-
dade categorizada, de práticas socialmente bem confi-
nadas. (VIGARELLO, 2008, p. 303)
Segundo Queiroz e Otta (2000, p. 96), “pensar o corpo é outra
maneira de pensar o mundo e o vínculo social; uma perturbação in-
troduzida na configuração do corpo é uma perturbação introduzida na
coerência do mundo”. Entretanto, o corpo transcorre pelo pensamento,
pelas configurações que o constituem, sobre jeitos e atitudes, e perpassa
a história e a cultura, diante das vontades, da obrigação e do deleite da
vida. Colocar o corpo em expectativa é descobri-lo em diversas ordens,
situações e visões biológicas e sociais.
Na sociedade em que vivemos, percebe-se a necessidade de inseri-
-lo em uma perspectiva mais abrangente, especialmente no que diz res-
peito ao tratamento dado ao corpo feminino, que não pode ser conside-
rado como sujeito-objeto, mas como um sujeito-próprio, que possui uma
identidade, capacidades e limitações e que, principalmente, é dotado de
intencionalidade. Um ser capaz de sentir, pensar e agir nas diferentes
situações de vida.
Várias pesquisas são realizadas em relação ao corpo, à cultura cor-
poral feminina e aos movimentos feministas. Bertha Lutz foi uma das
primeiras mulheres brasileiras a ser consagrada no movimento feminis-
ta, contudo as suas ideias não tratavam especificamente da libertação da
mulher e/ou da conceituação dos padrões de beleza impostos pela socie-
dade, e sim da participação das mulheres nas eleições políticas.
As mulheres brasileiras fazem parte de um percentual insignifican-
te, ou muitas vezes nem fazem parte, no qual estão inseridas mulheres
negras, deficientes, pobres, indígenas e participantes dos movimentos
sociais. Como alternativa do que é possível, enquanto esse processo de-
mocrático da equidade e liberdade da mulher, dentro de uma visão de
consenso conflituoso, seria a deliberação dessas mulheres, das quais de-
fendem ou não defendem o antagonismo dos direitos sociais, e, dentro
desses direitos, a diversidade da mulher urbana e rural.
Contudo, havendo um consenso de igualdade de gênero, há a pos-
sibilidade de haver a democracia, sabendo que ela nunca será linear e não
conflituosa, pois é uma questão complexa, com o risco de manter o status
quo da mulher branca, heterossexual, urbana, que é mais valorizada hie-
rarquicamente, devido à sua representação social.
26
(…) as mulheres se destacaram nesse cenário, na bus-
ca da divulgação de seu ideário. Muitas mulheres bus-
cavam adeptas, queriam formar um movimento de
opinião a favor das ideias de libertação, e isto tem sua
originalidade. É um tipo de feminismo distinto do de
Bertha Lutz e das demais integrantes da FBPF, muito
pragmáticas, preocupadas com as ações rígidas aos de-
tentores de poder. (PINTO, 2003, p. 30)
Mediante o exposto, as mulheres dos primeiros movimentos esta-
vam ligadas ao controle da sociedade brasileira, em que o poder advinha
dos homens detentores do conhecimento e membros da elite brasileira
– sem falar que, inicialmente, essas mulheres pertenciam à alta socieda-
de, eram brancas e bem vestidas. A mulher, seus supostos deveres e suas
lutas são representados de diversas formas, desde o modismo de várias
revistas, que publicavam artigos de como uma mulher de boa família
deveria se comportar, até as questões político-partidárias.
Nesta pesquisa, não se pretende exaurir a temática exposta, sa-
bendo que nosso viés, corpo e feminismo, ultrapassa as questões bioló-
gicas, sociais, raciais e políticas, tangendo as mais diversas áreas, como
antropologia, sociologia, saúde e educação. Louro (2011) nos diz que
Estudos sobre as vidas femininas – formas de trabalho,
corpo, prazer, afetos, escolarização, oportunidades de
expressão e de manifestação artística, profissional e
política, modos de inserção na economia e no cam-
po jurídico – aos poucos vão exigir mais do que des-
crições minuciosas e passarão a ensaiar explicações.
(LOURO, 2001, p.23-24).
Pretende-se, dessa forma, compor uma revisão bibliográfica como
método de pesquisa, pois ela tem como função verificar textos já pu-
blicados tratando de determinado assunto, a fim de fazer uma análise
ampla e cautelosa sobre uma área do conhecimento.
A pesquisa bibliográfica, ou de fontes secundárias,
abrange toda bibliografia já tornada pública em rela-
ção ao tema de estudo, desde publicações avulsas, bo-
letins, jornais, revistas, livros, pesquisas, monografias,
teses, material cartográfico. (MARCONI; LAKATOS,
2007, p. 185)
27
Pretende-se construir, assim, uma análise aprofundada no que
tange aos aspectos sociais, e uma compreensão dos diferentes compor-
tamentos, transformações e valores atribuídos por determinado grupo.
Para tanto, a pesquisa descritiva atende aos pressupostos metodológicos
necessários para o desenvolvimento deste estudo.
Essa metodologia contribuiu para a finalidade deste trabalho, uma
vez que se tem como objetivo compreender os aspectos estéticos e a vai-
dade estimulados nas mulheres pela mídia impressa e televisiva, discor-
rendo sobre a influência que a mídia teve e tem na concepção dos padrões
de beleza e analisando, também, os determinados padrões e posições que
o corpo feminino ocupa na sociedade, adentrando questões sociais.
28
obedecer a determinados padrões de beleza. Há uma verdadeira indús-
tria em volta dos desejos sobre esses corpos. A busca excessiva do mo-
dismo, da perfeição e da beleza nas academias, nas clínicas de estética e
com cirurgias plásticas, assim como o consumo exacerbado de cosméti-
cos, explicitam quanto o corpo vem sendo vitimado, tornando-se apenas
uma ponte para o consumismo. De maneira diversa e em qualquer faixa
etária, mesmo com o passar dos tempos, a beleza continua fundamental.
Enquadrar-se nos padrões de beleza ditados pela sociedade é o desejo e
até mesmo o objetivo de vida de diversas pessoas, seja no físico (corpo)
ou na aparência (maquiagem, cabelo e vestimenta).
Diferentes aspectos de beleza feminina são expressos
em artigos de cunho científico, conselhos médicos, di-
cas e truques para melhor cuidar do corpo, propagan-
das de produtos que buscam melhorar a aparência fí-
sica e notas sobre a moda esportiva, afirmando que as
práticas corporais embelezam as mulheres, ao mesmo
tempo que colaboram na aquisição e manutenção de
um bom estado de saúde. (GOELLNER, 2003, p. 31)
Existe uma necessidade de organizar as naturezas corporais, de es-
tabelecer classificações e padrões, excluindo as formas entendidas como
“estranhas”, tentando-se tornar naturais as formas aceitáveis de acordo
com um discurso que nasce no seio da sociedade de cada época. Porém,
segundo Louro (2011, p. 48), “nos discursos atuais, o apelo à diferença
está se tornando quase um lugar-comum”, isto é, vários discursos são
exaltados, com diferentes significados, mas sem uma estruturação que dê
base para as questões concretas das “diferenças”, sejam elas quais forem.
Vive-se uma era em que a liberdade de agir sobre o próprio corpo em
nome da beleza não cessa de ser estimulada. Assim, o corpo transforma-
-se no único guia e na única finalidade do processo embelezador.
As revistas de beleza, fitness e de moda são majoritariamente di-
recionadas ao público feminino. Tais revistas tratam de cuidados que a
mulher deve ter com o corpo, que deve ser sensual, feminino, magro,
modelado e com alto poder de sedução. O desejo estético e a vaidade,
estimulados nas mulheres pela mídia impressa e televisiva, contribuem
para que a mulher esqueça a posição que seu corpo deve ocupar na so-
ciedade. Qualquer imperfeição, por menor que seja, é digna de grandes
sacrifícios e altos investimentos. Para Goellner,“estas práticas, apesar de
serem incentivadas, estão sujeitas a diversas regras, com a intenção de
29
serem evitadas transgressões, além daquelas admitidas como ‘normais’,
ao organismo e ao comportamento femininos” (2003, p. 107).
O fascínio pela sensualidade e beleza feminina existe desde a an-
tiguidade. A mulher sempre se preocupou com sua aparência. Cleópa-
tra, rainha egípcia, é um bom exemplo disso, pois extremamente vaidosa,
criou diversos rituais de beleza, que, muitas vezes, mesmo sem sabermos
a origem, seguimos até os dias de hoje (LOURO, 2001). O sentimento de
integrar um grupo social, tão importante para a saúde psíquica do indiví-
duo, apresentando os traços e contornos corporais que condizem com os
padrões estabelecidos faz com que a imagem corporal seja um elemento
de suma importância para a saúde plena das pessoas (LOURO, 2001).
Constata-se que, em menor ou maior intensidade, a valorização
do corpo quanto à saúde estética é muitas vezes associada à futilidade ou
à satisfação de caprichos. Ademais, a vaidade, entendida às vezes como
fútil e sem importância, constitui-se como uma característica negativa
da mulher. Porém, ela se torna positiva quando advém do suposto desejo
de uma pessoa estar bem consigo mesma e de agradar seus semelhantes.
É importante destacar que a Organização Mundial de Saúde apresenta
como conceito de saúde o bem-estar físico, mental e social do indivíduo
(WOLF, 1992). Esse conceito é aceito universalmente.
A necessidade estética é a busca da beleza para o próprio corpo,
pois não se pode ignorar o modo como as pessoas passam o tempo. Uma
análise mais precisa indicará que os seres humanos, principalmente
aqueles do sexo feminino, gastam muitas horas na frente do espelho ou
em atividades diretamente ligadas ao cuidado e/ou embelezamento cor-
poral (LOURO, 2001; MORRIS, 1977; POLTRONIERI, 1995).
Tem a ver com a emergência do corpo no palco de
atuação do indivíduo. Alguns dos sintomas iniciais
que mostram esse novo clima podem ser apontados,
por exemplo, na prática das elites de colocar espe-
lhos na casa, dando uma importância diferente à
consideração da aparência física. (GHIRALDELLI,
2007, p. 43).
A sociedade ocidental acaba naturalizando aspectos presentes nas
relações de gênero,no qual, segundo Robert Connell, “a prática social se
dirige aos corpos”(LOURO, 2011, p. 26). Essas relações são construídas
sócio-historicamente, como as intervenções feitas no corpo feminino e
as conquistas obtidas pelo movimento feminista. É importante salientar
30
que houve vários movimentos feministas, como o denominado “das mu-
lheres bem-comportadas”, liderados por Bertha Lutz, e o das “mal-com-
portadas”, liderados por Romy Medeiros, advogada que atuou a favor da
reformulação do código civil brasileiro em relação às mulheres casadas.
O feminismo no Brasil se fortalece com o evento or-
ganizado para comemorar o Ano Internacional, reali-
zado no Rio de Janeiro sob o título “o papel e o com-
portamento da mulher na realidade brasileira”, e com
a criação do Centro de Desenvolvimento da Mulher
Brasileira. (PINTO, 2004, p.239).
Esses movimentos elevaram a luta das mulheres e consequente-
mente a emancipação feminina, que se materializa de acordo com as
possibilidades sociais, conforme os contextos políticos, culturais e histó-
ricos. Nesse sentido, Bell Hooks (2015, p. 200) nos diz que
As mulheres precisam saber que o feminismo não tem
a ver com se vestir para o sucesso, tornar-se executiva
de grandes empresas e nem ser eleita para cargos pú-
blicos; não tem a ver com ter um casamento em que
ambos têm profissões, ir esquiar nas férias e passar
tempos longuíssimos com o marido e dois filhos ado-
ráveis porque se tem uma empregada doméstica que
possibilita tudo isso, mas que não tem tempo ou di-
nheiro para fazer isso por si.
Considera-se que a corporeidade feminina ultrapassa as questões
de classes sociais ou de pertencimento que a ela foi atribuído. Percebe-se
que ao longo dos anos, outras formas de corporeidade – como padrões
de beleza, padrões de comportamentos ideais e a sedução como forma de
afirmação da sexualidade, isto é, uma necessidade de agradar o parceiro
e os esforços para se obter um corpo atraente esteticamente – foram alte-
radas e quiçá induzidas pela cultura corporal ocidental, que conduz para
um corpo magro, representando valores de competência, saúde, sucesso
e sensualidade.
De qualquer forma, investimos muito nos corpos. De
acordo com as mais diversas imposições culturais, nós
os construímos de modo a adequá-los aos critérios es-
téticos, higiênicos e morais dos grupos a que perten-
cemos. As imposições de saúde, vigor, vitalidade, ju-
ventude, beleza e força são distintamente significadas,
31
nas mais variadas culturas, e são também, nas distintas
culturas, diferentemente atribuídas aos corpos de ho-
mens ou de mulheres. (LOURO, 2001, p. 15)
Cada cultura condiciona os seus integrantes no tocante à percep-
ção de pormenores ou fragmentos corporais considerados atraentes ou
desagradáveis. Assim sendo, existe uma motivação, baseada na apren-
dizagem, para melhorar a aparência: pessoas bonitas e bem-sucedidas
profissional ou economicamente são modelos positivos, e seu sucesso
é atribuído à beleza, o que confirma a existência de estereótipos sociais
(LOURO, 2001).
Levando-se em consideração determinadas fronteiras, cada cul-
tura estabelece sua beleza corporal a seu próprio modo, de acordo com
as determinações do grupo. Os indivíduos mantêm um registro de refe-
renciais com respeito à aparência, e as impressões que se têm do outro
podem variar de acordo com a apresentação do corpo no meio social.
Aquilo que parece fugir ao padrão estabelecido imaginariamente pro-
duz formas de rejeição. Ao referenciar padrões de beleza, não se poderia
deixar de descrever alguns protótipos históricos da beleza –por exemplo,
hoje a mulher não quer se imaginar como na renascença, pois seria gor-
da, e a sociedade atual não é especialmente favorável a esse padrão.
Marie-Claire Phan em sua descrição da beleza no Re-
nascimento ressalta que “longos”, por exemplo, serão
o talhe, o cabelo e a mão; “curtos”, a orelha, o pé e
os dentes; “vermelhos”, a unha, o lábio e a face; “es-
treitos”, a virilha, a boca e o flanco; ou “pequenos” os
seios. Dez qualidades observadas, cada uma delas em
três lugares anatômicos diferentes para que a senho-
ra obedeça ao “molde da perfeição”.(VIGARELLO,
2006, p. 34)
O fato de um corpo ser ou não magro e corresponder às medidas
de beleza impostas pela sociedade passa mensagens diferentes, se con-
siderarmos duas épocas distintas: a Renascença e a atualidade. A cons-
trução do corpo no Brasil está associada à centralidade que esse corpo
adquiriu para determinados segmentos sociais. Pode-se afirmar que o
século XX e o início do século XXI serão lembrados como o momento
em que o culto ao corpo se tornou verdadeira obsessão, transforman-
do-se em um estilo de vida, pelo menos entre as mulheres das camadas
médias urbanas (GOLDENBERG, 2005). A percepção da existência do
32
corpo da mulher ocorreu quando ela saiu da obscuridade para o visível,
criando uma série de ocorrências até então não se tinha visto.
A influência do cinema, sobretudo o americano, é
visível quando o assunto é a beleza da mulher. As
atrizes são exemplos a serem imitados pela beleza
que ostentam, pelo corte dos cabelos, pela maquila-
gem, pelas roupas que vestem, pela maneira com que
se movimentam, pela juventude que emana dos seus
corpos bem delineados. (GOELLNER, 2003, p. 49).
As relações pessoais e científicas com o corpo, ao longo da histó-
ria, foram se estreitando. O corpo intocável e que também não poderia
ser mostrado viu suas entranhas expostas e dilaceradas. O todo se desfez
em pedaços cada vez menores e igualmente comercializáveis, no entanto
sem o verdadeiro entendimento do seu lugar na sociedade,ora apresenta-
do em relações de poder, com disciplina. Pois para o indivíduo, especifi-
camente a mulher, o corpo não é inerte, sem vida, e sim um ser que sofre,
que se move e se transforma, ou seja, um ser interagindo com as ações
das relações que o compõem, ora como partícipe de uma sociedade auto-
ritária, que desvincula e rejeita as demais representações corpóreas.
Hoje, como antes, a determinação dos lugares sociais
ou das posições dos sujeitos no interior de um gru-
po é referida a seus corpos. Ao longo dos tempos,
os sujeitos vêm sendo indiciados, classificados, or-
denados, hierarquizados e definidos pela aparência
de seus corpos; a partir dos padrões e referências,
das normas e valores e ideais da cultura. (LOURO,
2008, p. 75)
A aceleração do consumismo levou diversos tipos de mídias à
exploração de um corpo consumível, não deixando de apontar o pa-
drão de beleza aceitável na sociedade e suprimindo os corpos que des-
viassem desses padrões, até chegarmos ao ideal de corpos femininos
magros, porém musculosos, fortes e fisicamente vigorosos. São
imagens nascidas do imaginário dos estilistas e que, ao
serem popularizadas pelos estúdios de Hollywood, tor-
nam-se referências no estabelecimento e no reforço de
padrões de conduta e de aparência femininas, dissemi-
nando valores estéticos que criam expectativas nas mu-
33
lheres, no que diz respeito a sua vaidade, seus desejos e
sua sexualidade. (GOELLNER, 2003, p. 49)
Ainda que esse olhar expusesse as diversas etapas vivenciadas
pelo corpo, ele não poderia se esgotar no referencial teórico, requeren-
do uma ampliação do contexto, para uma reflexão mais profunda desse
fenômeno, questionando, assim, quais seriam as concepções filosóficas,
políticas, sociais e econômicas que poderiam explicar o fenômeno cor-
poral e de beleza de outra forma. Certamente a resposta a isso não seria
homogênea, pois os padrões de beleza e as práticas corporais exercem
uma função dinâmica que edifica-se na corporeidade feminina a partir
de suas relações com a sociedade, conjeturando os valores e os modelos
da época em que se vive.
CONCLUSÃO
Sabe-se que não é fácil falar sobre o corpo de maneira integrada,
com todas as suas implicações, pois cometemos sempre o deslize da dua-
lidade entre corpo e mente. Existem diversos estudos sobre o corpo, mas
é perceptível que foi nos séculos XX e XXI que se iniciou a valorização e
exposição midiática dele. Se nos reportarmos para o período do Renas-
cimento, as mulheres, para serem consideradas bonitas, apresentavam
medidas maiores, visando à reprodução. Atualmente, considerando o
poder simbólico, a valorização ganhou destaque em proporções menores
quando nos referimos às medidas e ao peso, e maiores ao mencionarmos
a realização de atividade física e as intervenções estéticas e cirúrgicas na
busca pelo corpo ideal.
Vivemos em uma sociedade que, pelos mais diversos meios de co-
municação, impõe a beleza padrão. E, para que não se sintam margina-
lizadas por essa imposição, as pessoas se submetem aos apelos da mídia
na constituição do sujeito, almejando o equilíbrio entre o que elas veem
e sua autoestima e aquilo que o outro vê. Esse aspecto resulta na busca
diária por um corpo esguio, magro, esbelto. Na contramão, as pessoas
que não buscam esse ideário de corpo provavelmente sofrem com os es-
tigmas que a sociedade lhes emprega. Na verdade, corpo esbelto passou a
ser considerado fator de status, considerado como aspecto fundamental
para a apresentação da “boa imagem corporal”.
Chega-se ao final deste estudo concluindo-se que a cultura é que
dita os padrões de beleza na contemporaneidade, não só da mulher
como também do homem. São todos presos aos padrões culturais, so-
34
bre os quais convém refletir, levando em consideração as consequências
profundas da resposta à temática explanada, não só em relação ao corpo,
mas também na definição do papel da corporeidade feminina na própria
sociedade, na cultura e no sistema político e econômico, diante das ideo-
logias, religiões, raças e crenças.
Esta reflexão termina tendo buscado algumas das possíveis razões
que levam a duvidar não só da possibilidade da exacerbação dos padrões
de beleza e da dicotomia do corpo feminino, mas também da necessida-
de de um objeto de conhecimento próprio da cultura corporal feminina
e, com isso, de um panorama concreto dessa temática. Afinal, a cultura
é uma prática de significações, uma identificação, uma ideia gerada pela
ordem da sociedade em que vivemos.
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36
A INTERFERÊNCIA DA TELENOVELA NA CONSTRUÇÃO
DA IDENTIDADE RACIAL DE CRIANÇAS
Emanuele Cristina Santos do Nascimento7
INTRODUÇÃO
No Brasil, mais especificamente a partir da década de 1970, o con-
tato da sociedade com os meios de comunicação de massa tem se inten-
sificado. Nesse cenário, podemos destacar a televisão, que,devido ao seu
discurso nacional popular, passa a se constituir como um elemento do
cotidiano da população brasileira (SETTON, 2002).
A televisão e os demais meios de comunicação de massa cons-
troem discursos que reproduzem a hierarquização racial. Esses discur-
sos, que se apresentam como verdades absolutas, ratificam a supremacia
de determinados grupos. Essa supremacia apresenta-se como elemento
da realidade brasileira, e as mídias, ao reproduzi-la, operam como meios
diretos da desigualdade racial (ARAÚJO, 2008).
Produto nacional de estrutura baseada nos folhetins e radionove-
las, a telenovela é um bem cultural que atua diretamente no cotidiano
dos telespectadores. Ela, um dos mais significativos elementos da televi-
são brasileira, faz parte de uma cultura de massa e sua base tem cunho
popular, usando linguagem cotidiana e abordando temas corriqueiros da
vida privada. Embora a telenovela seja inicialmente voltada ao público
feminino adulto, ela passou a contemplar toda a unidade familiar, sendo
assistida inclusive pelas crianças (ALMEIDA, 2007).
A telenovela se constitui como um campo de representações que,
diante de seu poder discursivo e a partir da apresentação de suas perso-
nagens, contribui grandemente para a construção das identidades raciais.
A estrutura das telenovelas aborda o sistema social de maneira complexa,
constituindo, por meio de um jogo discursivo, um imaginário social que
reafirma a democracia racial8, ao mesmo tempo em que fortalece sutil-
37
mente as relações hierárquicas entre negros e brancos (Ibidem). Além
disso, há o constante desejo pelo embranquecimento nessas narrativas.
Como afirma Silvia Borelli em seu artigo “Telenovelas brasileiras:
balanços e perspectivas” (2001), as telenovelas brasileiras se apresentam
como “novelas verdade”, cujas narrativas dizem apresentar a vida “real”
dos brasileiros. Hoje, tais narrativas, e mais especificamente as transmi-
tidas pela Rede Globo de televisão, fazem parte do cotidiano das famílias
brasileiras de segunda a sábado e duram, em média, sete meses.
Podemos afirmar que os meios de comunicação, especialmente a
televisão, participam de maneira direta no processo de socialização das
crianças, pois o contato delas com esse bem cultural é muito intenso, e
os seus efeitos são percebidos nas relações sociais em que elas atuam.
Embora haja esse contato, e seus efeitos sejam resvalados nas relações
interpessoais das crianças, hoje o meio acadêmico brasileiro ainda está
deficiente de literaturas que exponham a relação delas com a mídia con-
siderando-as decodificadora do discurso televisivo e televisionístico.
As crianças estão envolvidas num processo de socialização no qual
várias instituições propagam valores e ideias compartilhados socialmen-
te. Entre as instituições mais importantes podemos destacar a família e a
escola, que hoje, com o apoio das mídias, disseminam tais valores e ideias
(BELLONI, 2007).
Sendo assim, a estrutura dos estudos de socialização está sujeita a
transformações ao admitir que novos agentes interferem na socialização
das crianças, além de considerá-las enquanto sujeitos ativos desse pro-
cesso. Ou seja,
pensar as relações entre a família, a escola e a mídia (e
seus agentes) com base no conceito de configuração é
buscar compreender o equilíbrio de poder entre elas,
é entender o poder (enquanto relação) como uma ca-
racterística estrutural das relações entre grupos e ins-
tituições. (ELIAS, 1970 apud SETTON, 2002, p. 111)
Faz parte da socialização desses sujeitos o que podemos chamar
de “socialização racial”, na qual as crianças, por influência desses agentes
de socialização, atribuem significados a elementos raciais e os negociam
nas relações em que estão imersas. O processo de socialização é assim
considerado um campo complexo de diversas relações, no qual o fator
racial está presente e atrelado a outros elementos.
38
A partir dessa nova realidade do processo de socialização, a televi-
são, no momento em que oferece tramas que reproduzem as hierarquias
e estereótipos raciais, deve ser vista como mediadora das relações sociais.
Essa apresentação repleta de discriminação racial contribui para a natu-
ralização desse funcionamento desigual da sociedade brasileira por parte
das crianças.
Como já foi observado anteriormente, a proposta deste trabalho
é abordar como a identidade racial das crianças é constituída pelas re-
presentações telenovelísticas. Dessa forma, faz-se necessário realizar um
resgate desse conceito de identidade. Para este trabalho foi de fundamen-
tal importância a abordagem de Stuart Hall sobre a temática.
Para o autor, “as identidades modernas estão sendo ‘descentradas’,
isto é, deslocadas ou fragmentadas” (HALL, 2005, p. 8). Com o obje-
tivo de analisar essa problemática, no período que ele denomina “mo-
dernidade tardia”, Hall trabalha com três concepções de identidade. A
primeira aborda o sujeito do Iluminismo, cuja base está na centralidade
e racionalidade desse indivíduo. A segunda noção baseia-se no sujeito
sociológico, que tem a formação de sua identidade determinada pela in-
teração do indivíduo com a sociedade. Por último está a noção do sujeito
pós-moderno, que contém não apenas uma, mas várias identidades, que
se apresentam como móveis.
Ao trabalhar a cultura como elemento fundamental do mundo mo-
derno que interfere em todos os segmentos da vida dos indivíduos, Hall
aponta para o fato de que o indivíduo possui uma diversidade de possibi-
lidades quando o assunto é sua identidade. É nesse sentido que ele vai tra-
balhar com o conceito de identidades culturais/nacionais. Segundo ele, “as
identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são
formadas e transformadas no interior da representação” (Ibidem, p. 48).
Stuart Hall considera que nas culturas nacionais estão presentes
símbolos e representações, e que elas,“ao produzir sentidos sobre ‘a na-
ção’, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identi-
dades” (Ibidem, p. 51). A produção intelectual de Hall também abarca o
tema racial como elemento constitutivo dessa identidade. Para o autor,
Conceitualmente, a categoria “raça” não é científica.
As diferenças atribuíveis à “raça” numa mesma po-
pulação são tão grandes quanto àquelas encontradas
entre populações racialmente definidas. “Raça” é uma
construção política e social. É a categoria discursiva
39
em torno da qual se organiza um sistema de poder so-
cioeconômico, de exploração e exclusão – ou seja, o
racismo. Contudo, como prática discursiva, o racismo
possui uma lógica própria. Tenta justificar as diferen-
ças sociais e culturais que legitimam a exclusão racial
em termos de distinções genéticas e biológicas, isto
é, na natureza. Esse “efeito de naturalização” parece
transformar a diferença racial em um fato fixo e cien-
tífico, que não responde à mudança ou à engenharia
social reformista. (Idem, 2003, p. 69)
Nesse sentido, destaca-se que o termo racismo é recente, surgindo
entre o período das duas guerras mundiais, e sua entrada no Dicionário
Larousse ocorreu no ano de 1932, apesar de as ideias e práticas atreladas
a ele serem bastante antigas. No início dos estudos relacionados ao tema,
as ciências sociais, diante da dificuldade de se desprenderem dos estudos
da raça humana, que afirmam que a vida social e a cultura são explicadas
a partir da raça, de certa maneira contribuíram para a elaboração e for-
matação do racismo (WIEVIORKA, 2007). Neste estudo, trabalhamos
com o conceito de raça como uma “construção social que interfere nas
relações sociais, informa comportamentos individuais e coletivos, instrui
determinadas práticas discriminatórias na medida em que fornece sig-
nos e símbolos de pertencimento” (SEYFERTH, 2007, p. 106).
O racismo apresenta-se nas representações e relações sociais que
se estabelecem de maneira a afirmar a superioridade de determinados
grupos em detrimento de outros, e se constitui como fenômeno presente
nas diversas áreas da nossa sociedade, não somente em seu passado, e
como violência,na medida em que nega a sua vítima. Essa violência “de-
pende da análise sociológica e política, uma vez que ela se exprime não
no vazio social, político ou institucional, mas em um contexto que a tor-
na possível, até mesmo, aos olhos de seu protagonista, legítima” (WIE-
VIORKA, 2007, p. 72).
No caso brasileiro há uma forte influência do mito da democracia
racial que tem como “pai” o sociólogo Gilberto Freyre. Esse mito prega
que as relações raciais no Brasil se estabelecem da forma mais pacífica
possível. Florestan Fernandes aponta que em nossa sociedade há o dis-
curso de abominação à discriminação racial, mas nas práticas cotidianas
essa discriminação está presente, apenas mascarada pelas “sutilezas so-
ciais” (FERNANDES, 2008).
40
Assim é o racismo brasileiro: sem cara. Travestido
em roupas ilustradas, universalistas, tratando-se a si
mesmo como anti-racismo, e negando, como anti-
-nacional, a presença integral do afro-brasileiro ou
do índio-brasileiro. Para este racismo, racista é aquele
que separa, não o que nega a humanidade de outrem.
(GUIMARÃES, 1999, p. 57)
Como a sociedade, o racismo não é estático, ele toma variadas for-
mas e assume discursos diferentes, mas a sua base está na afirmação da
superioridade branca. Se antes o racismo afirmava a inferioridade bioló-
gica, com o avento da modernidade é a diferença cultural que vai legiti-
mar o discurso racista. “O outro, nessa perspectiva, sentido como se não
tivesse nenhum lugar nas sociedades dos racistas, é percebido como a ne-
gação de seus valores ou de seu ser cultural” (WIEVIORKA, 2007, p. 36).
No caso brasileiro o racismo assume um formato mais “cordial”,
ele é camuflado por práticas que negam a todo momento sua existência;
nesse país em que o mito da democracia racial permeia sua realidade
social, transfere-se toda a carga do preconceito de cor para o preconceito
de classe. Dessa forma, no Brasil o elemento cor é primordial para que o
indivíduo seja vítima de práticas racistas, e a cor “não se confunde com-
pletamente com a classe, dentro da própria classe desempenha um papel
discriminador” (BASTIDE; FERNANDES, 1971, p. 138).
Ao trabalharmos com o conceito de racismo, tomando-o como
um fenômeno ideológico que tem base nessa supremacia da raça branca,
devemos voltar nossa atenção inclusive para a atuação das mídias na di-
fusão desse fenômeno.
A questão merece ser examinada e debatida, pois se
deixarmos de tratar o racismo hoje sem nos interro-
garmos sobre o papel das mídias, não teremos certeza
de que elas mereçam um julgamento sistematicamente
crítico, insistindo em seu papel na produção e na difu-
são do ódio ou dos preconceitos racistas (WIEVIOR-
KA, 2007, p. 12).
Duas perspectivas são válidas a respeito da relação das mídias
com o racismo. A primeira seria que ela atua apenas na reprodução
do racismo, enquanto a segunda considera a mídia como produtora
desse fenômeno. É pertinente afirmar o que “acontece com o racismo
como em muitos outros fenômenos sociais: as mídias não agem aqui
41
de maneira nem homogênea, nem unidimensional, elas participam de
sistemas de ação nos quais estão em inter-relação com os tipos de
atores” (Ibidem, p. 120).
Diante do que foi exposto, convém afirmar que esses dois elemen-
tos constitutivos do ordenamento social estão ligados e interferem dire-
tamente no processo de socialização das crianças. Para Belloni, “com-
preender e explicar a infância hoje implica retomar e discutir a evolução
do próprio conceito de socialização”(2007, p. 61).
Dessa forma, deve-se considerar que
Nos dias de hoje, na maioria das sociedades as mídias
constituem um dos elementos mais importantes deste
universo, especialmente as mídias digitais e telemá-
ticas, que tendem a penetrar, com grande impacto e
consequências ainda desconhecidas, nas estruturas
simbólicas da sociedade e no cotidiano das crianças e
adolescentes. (Ibidem)
METODOLOGIA DO TRABALHO
A presente investigação, ao apresentar um viés qualitativo, cen-
trou sua análise em uma instituição escolar privada localizada na cida-
de do Recife (de constituição predominantemente branca), procurando
apreender como crianças dessa escola percebem a identidade racial a
partir da influência da telenovela Fina Estampa, da Rede Globo de tele-
visão, apresentada no horário das 21h entre os anos de 2011 e 2012.
Um ponto importante sobre o percurso metodológico dessa in-
vestigação foi a escolha da escola pesquisada. Nesse caso, a escola pri-
vada foi escolhida considerando o fato de ser um espaço frequentado
em sua maioria por crianças de classe média e brancas. Assim, o fator
classe social também deve ser destacado na maneira como as represen-
tações raciais se dispõem nos grupos de pares. A classe social significa
uma variável importante na apresentação dos resultados, à medida que
a referida instituição, como afirmam Bourdieu e Passeron (1975), opera
reafirmando os valores dessa classe hegemônica.
O foco desta pesquisa está na observação dos comportamentos
das crianças da escola visitada, mas especial atenção também foi dada à
análise do conteúdo veiculado na telenovela analisada. As visitas à escola
foram realizadas duas vezes por semana das 08h às 12h, enquanto a aná-
lise da novela foi diária.
42
O trabalho de pesquisa se deu de forma que o contato com as
crianças ocorresse de maneira cautelosa, centrando a atenção nos seus
comportamentos nos horários de aula, durante os horários de recreação
e em outras atividades desenvolvidas pela escola. Vale salientar que o
método utilizado nas visitas feitas a campo foi o de observação parti-
cipante, em que,além de observar as suas relações pessoais e raciais no
convívio escolar, a interação pesquisadora/crianças foi fundamental na
percepção de como elementos raciais estão presentes nos grupos de pa-
res. Assim, paralelo às visitas, foi produzido um diário de campo em que
foram destacados os elementos raciais presentes nas relações que essas
crianças protagonizam.
A análise do discurso dessas crianças foi realizada nesses momentos
e durante conversas informais que possibilitaram perceber quais elemen-
tos elas atribuem às personagens da novela, se elas se referem às perso-
nagens negras e de que forma o fazem. Durham (2004, p. 13) afirma que
Pesquisas com crianças são particularmente difíceis
porque pesquisadores adultos não só podem se mos-
trar capazes de entender as peculiaridades cognitivas e
afetivas de crianças, mas também porque sua posição
de autoridade, enquanto adulto, pode modificar as re-
lações das crianças, distorcendo as observações.
Dessa forma, como afirma Fazzi, foi importante o estreitamento de
laços com as crianças para alcançar a percepção que elas têm “das relações
raciais estabelecidas no cotidiano da escola e, através disso, entender o pro-
cesso de estruturação e consolidação do preconceito racial”(2004, p. 22).
As observações ocorreram numa turma de 17alunos do 4o ano do
ensino fundamental, com idade entre 7 e 10 anos, sendo a maioria deles
branca, filhos de professores universitários, engenheiros, médicos, juízes,
entre outras profissões consideradas de classe média. Diante desse cená-
rio, buscamos centrar as atenções nas relações e protagonismo dos dois
alunos pretos e quatro alunos pardos que compõem a turma. Vale desta-
car que a classificação racial realizada nesse trabalho está de acordo com
a classificação do IBGE, em que as cinco categorias mais utilizadas pelos
entrevistados foram branca, preta, parda, amarela e indígena, e 74% dos
entrevistados tomam a cor da pele como elemento principal de definição
da sua cor ou raça.
A observação possibilitou posteriormente a escolha de um grupo
focal (sete crianças). O limite de crianças é devido ao fato de que essa
43
pesquisa visou apreender mais profundamente as interfaces das relações
sociais dentro da escola. Essa escolha esteve fundamentada na formação
espontânea dos grupos de pares no horário da recreação.
Nesse momento, foram realizadas entrevistas que possibilitaram
revelar os fatores que estão presentes nas telenovelas e que interferem na
socialização das crianças e na construção da sua identidade racial. Para
que essa etapa fosse realizada, foi solicitada por meio de cartas a autori-
zação dos responsáveis pelas crianças.
É importante frisar que em nenhum momento a identidade dessas
crianças será revelada, pois tal prática fere os preceitos da ética da confi-
dencialidade. Ao mesmo tempo, nenhuma pergunta que pudesse trazer
qualquer constrangimento às crianças foi feita. Dessa forma, este estudo
prezou primordialmente pela não realização de algum tipo de coação
sobre as crianças por meio das perguntas realizadas. Além disso, outro
ponto importante para sua realização foi a preservação das identidades
de todos os sujeitos participantes da pesquisa, além do nome da escola e
real bairro da realização dessa investigação.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
O elemento racial se faz presente em telenovelas nas representa-
ções estereotipadas e ocupações desiguais das personagens negras e tam-
bém nas suas relações desiguais com as personagens brancas. Hoje, com a
intensificação das reivindicações dos movimentos em prol da afirmação
e igualdade racial, as telenovelas utilizam-se de recursos que “atendam”
essas reivindicações. Mas infelizmente essas tramas ainda valorizam o
ideário do Brasil branco.
Elemento constitutivo das telenovelas desde sua origem, o mito
da democracia racial ratifica a supremacia branca e nega a existência do
“problema racial” na sociedade brasileira. Embora reconfigurado, hoje
esse mito ainda persiste e representa um entrave na percepção de que o
convívio da diversidade racial brasileira não é pacífico, além de obscure-
cer a gama de estereótipos que as personagens negras carregam.
A proposta desse estudo foi observar,com base nas estruturas ra-
cistas das representações das telenovelas, como as crianças, por meio da
socialização, captam tais elementos e os transportam para suas relações
interpessoais. Assim, percebeu-se que nas telenovelas há o mascaramento
de um dos elementos mais marcantes da realidade brasileira, o racismo.
44
O racismo encontra-se presente nos diversos segmentos da nossa
sociedade, e com as telenovelas não foi diferente. Embora não seja mais
necessário discutir se o racismo existe ou não, pois é fato que ele consti-
tui o cenário desigual brasileiro, novas reflexões sobre tal problemática
são necessárias para revelar as formas com que esse fato se apresenta
nos diversos segmentos sociais. Assim, além de reproduzir elementos do
contexto social, entre os quais o racismo, os meios de comunicação de
massa também os produzem. Ou seja, as telenovelas produzem formas
de racismo que são apreendidas e introjetadas pelos receptores, inclusive
pelas crianças.
A partir dessa reprodução e produção de ideais racistas pela teleno-
vela, a apreensão de seu conteúdo por parte das crianças representa um
risco no processo de construção da identidade racial, pois,na medida em
que o perfil exaltado nas tramas é o branco, a criança negra não irá se per-
ceber no que está sendo ali valorizado. Ou seja, a criança negra vai se iden-
tificar justamente com um perfil branco, que nega suas características ne-
groides, passando por um processo de embranquecimento. Sendo assim,
a identidade racial dessa criança pode se construir de forma deturpada.
No caso da telenovela analisada, intitulada Fina Estampa, o mas-
caramento da discriminação racial no seu discurso se deu no instante
em que as personagens negras estão presentes, mas ocupando posições à
margem do lugar de destaque em que as personagens brancas se encon-
tram. Ou seja, ela reproduz um cenário em que os negros ocupam posi-
ções mais desvalorizadas na ordem da sociedade de classes. Diante disso,
é preciso estar atento para a forma como os elementos dessa telenovela
estão presentes nas relações, práticas e discursos das crianças.
Se é através da socialização que as crianças se apropriam e cons-
troem elementos racistas, o contato delas com esse aparelho socializante,
que atua no movimento de negação do negro, faz com que reproduzam
ações de afirmação da raça branca no seu convívio escolar. Aqui é im-
portante pontuar que as crianças, ao contrário dos adultos, não sabem
tornar mais sutis certos sistemas, e assim deixam evidenciar mais inten-
samente elementos de discriminação racial.
Comparado ao quantitativo de outras telenovelas, Fina Estampa
trouxe um número um pouco maior de personagens negras (houve
sete personagens negras ao longo da trama), tendo em vista que mui-
tas dessas telenovelas não possuem sequer um ator negro. Porém o
que deve ser percebido afinal é que, embora existam sete personagens
45
negras na trama, elas não atuam em papéis de alta representatividade.
Ao analisarmos com olhar crítico as posições dessas personagens, fica
evidente que as telenovelas criam representações que legitimam deter-
minados grupos identitários, cultivando o ideal do branqueamento,
anseio este que, segundo Fanon (2008), oferece uma falsa ideia de evi-
tar a “regressão” da raça, pois à medida que o modelo branco é valori-
zado, é introjetado nos indivíduos vítimas do racismo um falso anseio
de “igualar” a raça por meio do embranquecimento.
No caso da escola pesquisada, o fato de serem crianças de classe
média apresentou-nos um elemento em particular: nem todas assistem
a telenovelas. O discurso das crianças que não assistem revela que esse
elemento não faz parte do seu habitus, além de representar um elemento
de distinção entre as classes e até no interior da turma. Como afirma
Bourdieu (1983), o arbitrário capital dominante possui gostos que, em-
bora indivíduos de outros grupos conheçam, eles jamais irão se reconhe-
cer. Tal afirmação e as observações feitas no campo permitem constatar
que o estilo de vida representa um espaço de luta simbólica, inclusive na
escola observada. Por meio da violência simbólica, as crianças negras
que a frequentam, que são minoria, veem-se, como afirma Willet (2005),
como ausentes, como se estivessem fora daquele espaço. As observações
revelam que as crianças negras dessa turma são posicionadas como os
“forasteiros do interior” (termo de Patrícia Hill Collins).
É fundamental destacar a relevância de observar o comportamen-
to dessas crianças negras (pretas e pardas) e as suas relações em grupos
de pares. Particularmente importante também é a análise da presença de
uma garota preta em específico e de suas relações com as outras garotas,
pois nela estão mais fortes os fenótipos negros e consequentemente lhe
são atribuídos mais estereótipos. Essa garota preta em suas interações
com as garotas brancas e pardas tem o discurso desautorizado constante-
mente, pois para as meninas a sua entrada no círculo de amizades se faz
mais difícil, uma vez que suas brincadeiras exigem cooperação. Já com
os meninos, as atividades geralmente são de competição, e a competição
com um negro é algo “permitido”. É importante perceber como essa garo-
ta negra vive em um “mundo de brancos”, em que até os funcionários da
escola são “separados” de acordo com sua raça, pois os que estão ali para
servir, como as cozinheiras, os porteiros e os serventes, são todos negros;
já as funcionárias de maior poder, como coordenadoras e diretoras, são
todas brancas, e assim a identidade da menina é afetada intensamente.
46
A realização do grupo focal com as crianças selecionadas nos per-
mitiu, a partir de suas falas, captar uma supervalorização das personagens
brancas da telenovela, enquanto as personagens negras não eram citadas
pelos alunos; quando indagados pela pesquisadora, eles demonstravam
não se recordar da existência dessas personagens e, quando enfim recor-
davam, as características atribuídas não eram positivas. Devido a esse fato
e por as crianças não se referirem com tanta intensidade às personagens
negras, utilizamos também do recurso da apresentação de imagens com as
personagens da telenovela para podermos apreender mais características
que as crianças atribuíam às personagens negras e brancas da telenovela.
Trabalhamos nessa etapa com apenas sete crianças, sendo elas:
Ana Beth, Caio, Júlio, Maria Melo, Marina de Souza, Rosa Coraline e
Thiago.9 Dessas crianças, apenas Caio não assistia à trama.
Ao iniciarmos essa fase da pesquisa solicitamos que cada criança
falasse qual era a sua cor. Ao realizarmos essa pergunta e analisarmos as
repostas das crianças, percebemos que há um processo de recusa em se
considerar preto (FANON, 2008).
Essas foram as respostas dadas pelas crianças:
Marina de Souza: Eu sou mulata.
Maria Melo: Eu acho que sou morena.
Rosa Coraline: Eu acho que eu sou morena.
Ana Beth: Eu também acho que eu sou morena.
Júlio: Eu acho que eu sou branco.
Caio: Eu acho que eu sou branco.
(Nesse momento todas as crianças riem, pois ele é preto).
Thiago: Eu sou todo brancão.
Após as respostas, perguntamos o que eles acham que é ser more-
no. Eles respondem o seguinte:
Thiago: É marronzinho.
Ana Beth: Eu acho que morena é mais ou menos branca e mais
ou menos negra.
Rosa Caroline: Eu acho que é mais ou menos branca e mais ou
menos negra, fica moreno, pra mim, eu acho que é branco e
moreno aí fica um homem moreno.
Maria Melo: Eu acho que moreno é branco com negro.
9 Nomes fictícios.
47
Aqui recorremos à Schwarcz (2012), que destaca uma pesquisa
realizada pelo IBGE em seis estados da união: Amazonas, Paraíba, São
Paulo, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Distrito Federal. Essa pesquisa
demonstra que, embora 96% dos entrevistados afirmem saber sua cor ou
raça, persiste a dificuldade dos brasileiros em defini-las utilizando os ter-
mos preto e pardo, havendo predileção pelo termo moreno.
Dessa forma, como afirma Munanga, a mestiçagem não deve ser
percebida apenas como um fenômeno biológico, devemos considerá-la
como um processo “afetado pelas ideias que se fazem dos indivíduos que
compõem essas populações e pelos comportamentos supostamente ado-
tados por eles em função dessas ideias. A noção da mestiçagem, cujo uso
é ao mesmo tempo científico e popular, está saturada de ideologia.”(1999,
p. 18) Ou seja, o grande problema atrelado à mestiçagem centra-se na
ideologia do branqueamento.
Quando indagados sobre qual personagem eles mais gostavam,as
crianças se referiram sempre a personagens brancas, e aqui já foi possível
captar alguns elementos de predileção ao fenótipo branco:
Ana Beth: A personagem que eu mais gostei foi Patrícia10 da
novela.
Pesquisadora: Por que Patrícia?
Ana Beth: Porque eu achei ela bonita e inteligente.
Pesquisadora: E porque Patrícia é bonita?
Rosa Caroline: Vixe tia.
Ana Beth: É por causa do cabelo dela.
Pesquisadora: E como é o cabelo de Patrícia?
Ana Beth: Ele é meio liso em cima e cacheado em baixo.
Pesquisadora: E por que ele ser meio liso em cima e cacheado
em baixo é bonito? Por que é bonito? Como é isso? O que é um
cabelo bonito?
Marina de Souza: Um cabelo brilhoso.
Pesquisadora: Sim, mais o quê?
Marina de Souza: Cheiroso, liso. Não muito liso.
Júlio: Igual ao dele.
Thiago: É, o meu é liso, desininhado.
Júlio: Passa o pente.
10 Personagem branca.
48
Pesquisadora: Desininhado? E o que é cabelo ininhado?
Caio: É um cheio de nós.
Júlio: Parece uma ovelha.
Ana Beth: É feio.
Júlio: Como uma ovelha. O da minha mãe parece uma ovelha.
Sério sem brincadeira. É todo ininhado. Só não cheira a queijo
podre.
No que se refere à Dagmar, embora fosse a personagem negra com
“mais visibilidade” na trama, as respostas foram:
Crianças: Ham? (Todos fazem tom de indagação, a princípio
ninguém sabe quem é ela).
Júlio: Quem é Dagmar?
Ana Beth: Quem é?
Pesquisadora: Ninguém sabe quem é Dagmar?
Ana Beth: Eu lembro não.
Foi necessário dar algumas informações sobre a personagem para
que algumas das crianças lembrassem quem era ela. Posteriormente foi
realizada a pergunta: “O que vocês sabem de Dagmar?” As respostas foram:
Ana Beth: Eu acho que ela é legal e cozinha bem. Todo mundo
diz que gostava das empadas dela.
Maria Melo: Eu acho que Dagmar cozinha bem, porque todo
mundo dizia que as empadas dela eram cheirosas e gostosas.
Pesquisadora: E, vem cá, e só tinhas essa história que ela cozi-
nhava bem, era? O é que tem mais em relação a Dagmar?
Caio: A mulher era gostosa.
Júlio: Ela era negra.
Caio: Ela era fedorenta.
Thiago: Tia ele tá dizendo que ela fedia que nem…
Marina de Souza: Tia, é aquela que trabalha num bar, que ela
brigava muito com um homem?
Pesquisadora: Sim, sim, é essa.
Júlio: Era uma que tinha o cabelo enrolado que nem tu?
Pesquisadora: Sim, só que era bem comprido. O que é que tu
acha dela?
Marina de Souza: Tem aquela mulher que trabalhava na loja da
mãe de Antenor que brigou com ela.
49
Júlio: É aquela que brigou com aquele que parece que era o ir-
mão do português.
Pesquisadora: Sim, ela brigou com ele, mas tu lembra por que ela
brigou com ele?
Júlio: Porque ele tinha racismo com ela, com os negros.
Pesquisadora: E o que é que tu acha? Porque ele fez isso?
Júlio: Porque ele era racista.
Pesquisadora: E?
Marina de Souza: Preconceituoso.
Pesquisadora: E mais o quê? Vocês lembram-se disso que a gente
tá falando?
Marina de Souza: Não.
Pesquisadora: Lembra não? Lembra do primo do português?
Júlio: Lembro.
Pesquisadora: Que ele não gostava dela.
Júlio: Porque ela era negra.
Caio: Ela era fedorenta.11
Pesquisadora: Fedorenta? (risadas dos outros alunos)
Pesquisadora: Quem disse que ela era fedorenta?
Crianças: Caio.
Júlio: Ela não era fedorenta não.
Pesquisadora: Por que você acha que ela era fedorenta?
Caio: Só estou chutando.
Júlio: Ela era mais cheirosa do que tu.
Como citado anteriormente, diante da dificuldade em captar com
precisão o que as crianças achavam das personagens negras, pois elas
não se recordavam delas, foi preciso utilizar do recurso visual como es-
tímulo à fala. A utilização das imagens revelou elementos da ideologia
racista nos seus discursos. Mostramos as imagens não só de personagens
negras, mas também de personagens brancas. Vejamos os principais mo-
mentos e o que pudemos captar com a utilização desse novo recurso.
Primeiro as personagens negras.
11 Embora Caio seja a única criança do grupo focal que não assista à telenovela,
quando descrevemos a personagem Dagmar, ele prontamente fez a associação da
negritude com o mau cheiro.
50
Reação das crianças ao verem a imagem da personagem Dona Zilá:
Risos de todos.
Rosa Coraline: Ah, tia.
Thiago: É um monstro. (Todos riem)
Pesquisadora: Quem disse que ela é um monstro?
Ana Beth: Thiago.
Pesquisadora: Por que, Thiago, ela é um monstro?
Thiago: O cabelo dela parece uma montanha de fogo. (Todos riem)
Pesquisadora: Parece o quê? O cabelo dela parece o quê?
Thiago: Um monte de árvore de fogo. (Mais risos)
Pesquisadora: Vocês não lembram quem é essa?
Crianças: Não.
Ana Beth: Eu não.
Maria Melo: É uma barraqueira.
Ana Beth: Eu não conheço.
Ainda em relação às personagens negras, temos Mônica; vejamos
o que as crianças falam sobre ela:
Thiago: Eita, esse é feia demais. É namorada do tio Omolu.12
Esse é feio… É igualzinho ao cabelo de tio Omolu. (Todos riem)
Rosa Coraline: Tia, parece sua mãe. (Todos riem)
Pesquisadora: A minha?
Rosa Coraline: É.
Marina de Souza: Tu já viu a mãe dela?
Pesquisadora: Por quê?
Rosa Coraline: Não, porque é da mesma cor, parecia o mesmo
cabelo. É muito parecido. Tia, quem é essa mesmo?
Pesquisadora: Essa é Mônica, a advogada.
Ana Beth: A advogada de Teodora.13
Vejamos agora alguns comentários sobre personagens brancas:
Pesquisadora: Quem é essa?
Garotas: Patrícia.
13 Personagem branca.
51
Rosa Coraline: Ela ficou grávida, aí não teve, e aí ficou grávida de
novo.
Pesquisadora: Foi essa que vocês disseram que era muito bonita?
Thiago: Finalmente né.
Ana Beth: É, ela é muito linda.
Pesquisadora: Por que ela é muito linda?
Marina de Souza: Por causa do cabelo dela.
Júlio: Por causa do cabelo dela.
Rosa Coraline: Ah, tia, tu não entende.
Marina de Souza: O olho dela também é bonito, é verde. É um
esverdeado meio azul claro.
Esses comentários são referentes à Patrícia, personagem preferida
das crianças. Vale destacar que elas apontam a todo instante a beleza fí-
sica dessa personagem. Ao mostrar a imagem de Letícia, personagem de
papel secundário, as crianças falam:
Rosa Coraline: Eu sei.
Maria Melo: Eu sei.
Marina de Souza: Eu sei.
Ana Beth: Eu sei, só não lembro o nome.
Marina de Souza: Essa daí é aquela que ele tem duas mulheres.
Né, essa e a outra, Aline, parece, né?
Rosa Coraline: É aquela do dono da Fashion Motos.
A realização do grupo focal com as crianças selecionadas nos per-
mitiu, a partir de suas falas, captar uma supervalorização das personagens
brancas da telenovela, enquanto as personagens negras não eram citadas
pelos alunos; quando indagados pela pesquisadora, eles demonstravam
não se recordar da existência dessas personagens e, quando enfim recorda-
vam, as características atribuídas não eram positivas.
Assim, a realização desse grupo nos permitiu constatar que, em
relação às personagens brancas da trama, mesmo quando elas não eram
as personagens principais, as crianças lembravam-se de todas e em mo-
mento algum se referiram de forma pejorativa a tais personagens. Já em
relação às personagens negras, a reação permeada de risadas e de comen-
tários que não valorizam o fenótipo negro foi unânime e em relação a
todas essas personagens.
52
Um fato que nos chama a atenção e que merece ser retomado é
o instante em que um garoto preto que, mesmo não assistindo à tele-
novela, ao ver a imagem da personagem negra Dagmar, atribui a ela a
característica de ser fedorenta. Assim podemos perceber a existência de
pressupostos racistas que são compartilhados durante a socialização des-
sas crianças, não só pelas telenovelas, mas também por outros agentes
socializadores.
Percebe-se que o ideário branco está presente nessas tramas e in-
fluencia diretamente na construção da identidade racial dessas crianças.
Precisamos, então, estar atentos ao falso reconhecimento,no qual a mídia
atua diretamente oferecendo a ilusória noção de que o indivíduo é capaz
de participar da vida social como igual (FRASER, 2007), e problematizar
e combater o racismo presente em todos os segmentos da vida social.
CONCLUSÃO
Como afirma Hofbauer “já não é preciso comprovar a todo mo-
mento que existe discriminação racial. Mas mantém-se o desafio de de-
senvolvermos nossas reflexões teóricas sobre o racismo.”(2007, p. 184)
Através da articulação entre os conceitos de identidade, racismo e a re-
formulação do conceito de socialização citados anteriormente, este estu-
do realizou uma análise de como a mídia pode interferir na construção
da identidade racial de crianças.
O conceito de identidade desenvolvido por Stuart Hall foi de fun-
damental importância para compreender como os discursos e práticas
telenovelísticas agem sobre os indivíduos, refletindo nos lugares ocupa-
dos por eles na dinâmica social. Dessa forma, esse conceito contribuiu
para perceber como a identidade encontra-se envolvida nas representa-
ções que a telenovela realiza e permitiu observar os efeitos dessa repre-
sentação sobre a construção das identidades raciais das crianças. Além
disso, o conceito de cultura trabalhado por Hall, sendo ela mediadora
das relações sociais, contribuiu para analisar os elementos constitutivos
das relações entre pares dessas crianças.
O conceito de racismo permitiu entender a questão racial como
elemento presente nas representações telenovelísticas e nas práticas co-
tidianas das crianças no contexto escolar. A sua utilização possibilitou
realizar uma abordagem teórica eficaz sobre esse elemento naturalizado
socialmente. A respeito das duas perspectivas trabalhadas por Wieviorka
53
sobre a relação entre mídia e manutenção do racismo, sendo ela pro-
dutora ou reprodutora desse fenômeno, este estudo considerou os dois
posicionamentos como complementares.
Por fim, ao utilizar a proposta de reconfiguração do conceito de
socialização, abriu-se a possibilidade de se realizar uma análise em que a
televisão entra como um importante agente de socialização. Dessa forma,
foi possível identificar nas práticas das crianças elementos raciais presen-
tes nas telenovelas que vão interferir na construção de sua identidade.
Em suma, a presente fundamentação teórica, aliada à análise críti-
ca das cenas da telenovela, forneceu base para demonstrar que o contato
das crianças com esse aparelho socializante que atua no movimento de
negação do negro faz com que elas reproduzam, no seu convívio escolar,
ações racistas, além de interferir diretamente nos seus processos de cons-
trução da identidade racial.
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56
APROXIMAÇÕES ENTRE A ANÁLISE DE DISCURSO
E OS ESTUDOS CURRICULARES: UM OLHAR
A PARTIR DAS PESQUISAS EM EDUCAÇÃO NO
AGRESTE PERNAMBUCANO
Maria Angélica da Silva14
Maria Julia Carvalho deMelo15
Priscilla Maria Silva do Carmo16
Lucinalva Andrade Ataide de Almeida17
INTRODUÇÃO
57
A partir desse diálogo, as pesquisas analisadas apresentam uma
compreensão de currículo como movimento que se constrói numa pro-
dução discursiva, tomada como efeito de sentidos entre sujeitos inter-
locutores (PÊCHEUX, 1990), que reelaboram seus saberes-fazeres me-
diante a articulação entre o lugar por eles ocupado na tessitura curricular
e o processo discursivo, envolvendo tensões, resistências e ressignifica-
ção de sua própria formação.
Sendo assim, no presente trabalho objetivamos analisar as con-
tribuições da AD para compreender o currículo do curso de Pedago-
gia. Para tanto, identificamos a materialização das contribuições da AD
para as pesquisas em educação realizadas no agreste pernambucano.18
Dessa forma, analisamos as pesquisas que investigaram o currículo na
formação de professores a partir do eixo curricular de pesquisa e prática
pedagógica e dos componentes curriculares de estágio supervisionado
e de didática.
Assim, este artigo estrutura-se em duas seções. Na primeira trata-
mos de apresentar as imbricações entre a AD e a compreensão do cur-
rículo enquanto produção discursiva, evidenciando o elo de contributos
que a abordagem teórico-metodológica da AD nos fornece para dialogar
com as questões curriculares. Em seguida, apresentamos as contribui-
ções da AD para as pesquisas em educação sobre currículo, evidencian-
do as categorias mobilizadas e seu papel e lugar na produção de novos
conhecimentos e novos sentidos.
58
Assim, torna-se possível nos aproximarmos da diversidade de
sentidos de currículo em movimento que nos direcionam para pensá-lo
como uma prática política. Entendemos, pois, não ser mais suficiente es-
tabelecer distinções entre o currículo pensado e o currículo vivido, uma
vez que ambos precisam de espaço para ampliação e enriquecimento
mútuo a partir da intervenção prática política dos sujeitos envolvidos
com a produção discursiva curricular.
Nesse cenário de efemeridade dos sentidos acerca do currículo e
do campo de luta e interesses que essa área do conhecimento representa,
discutir currículo significa discutir discurso, ideologia, política e episte-
mologia. Sendo assim, por compreender o currículo enquanto mecanis-
mo que institui discursos que expressam as lutas pela produção de sen-
tidos, evocamos a AD, na perspectiva que nos apresenta Orlandi (2010),
enquanto aporte teórico-metodológico para nossa discussão.
Essa opção se justifica uma vez que a AD nos possibilita uma rela-
ção contextualizada e histórica com o discurso, compreendendo que este
não produz sentido absolutamente em si, mas em relação com outros
discursos e com os fatores influenciadores de sua produção, sejam eles a
formação discursiva, a ideologia ou o lócus do qual se permite enunciar
o discurso.
Na esteira dessas ideias, a escolha por Orlandi se dá por ser uma
das expoentes sobre a AD em solo brasileiro, e também por compreen-
dermos, tal qual a autora, que “a ciência se produz em diferentes lugares
com a força e a especificidade de sua tradição” (ORLANDI, 2003, p. 2).
Essa compreensão ganha sentido e relevância em nosso lugar discursivo
uma vez que inscrevemos nossa pesquisa no interior de Pernambuco,
um lugar outro de produção de conhecimento. Isso significa dizer que,
apesar de Orlandi ser herdeira da tradição francesa, e mais especifica-
mente de Pêcheux, não podemos pensar em uma AD desvinculada do
contexto sócio-histórico, mas como uma perspectiva que pede sua rein-
venção nos diferentes espaços-tempos. Dessa forma, podemos falar de
uma Análise de Discurso Brasileira, tendo como uma de suas principais
representantes a autora em questão, pois como ela bem nos informa “o
Brasil é, sem dúvida, um desses lugares em que a ciência da linguagem
tem sido produzida com grande capacidade de descoberta e de elabora-
ção” (Ibidem).
Ademais, apesar de não romper com os princípios da relação
língua/sujeito/história, ou da relação língua/discurso “tendo o discur-
59
so como lugar de observação dessa relação” (Ibidem) – relações essas
percebidas em pesquisas com filiação na AD de Pêcheux –, já podemos
evidenciar “como os estudos e pesquisas da análise de discurso, dessa
filiação, se constituíram com sua especificidade no Brasil, na França, no
México etc., tendo no Brasil um lugar forte de representação. A isto po-
demos chamar Análise de Discurso Brasileira” (Ibidem, p. 23).
Outrossim, existem vários segmentos na AD que podem conduzir
a processos investigativos distintos entre si. Contudo, o vínculo à linha
francesa inscrita na especificidade do Brasil mostra algumas singularida-
des dentre as quais estão a consideração pelo contexto histórico-social e
a utilização do conceito de formação discursiva.
Dessa maneira, torna-se possível compreender o currículo en-
quanto produção discursiva circunscrita em um tempo-espaço instau-
rado num movimento de circularidade discursiva em que o já- dito
possibilita os novos dizeres. Esses dizeres se constroem numa relação de
polissemia (sentidos emergentes) e paráfrase (sentidos reconfigurados)
que confere um caráter cíclico, híbrido, incompleto e inconcluso no cam-
po curricular.
Nesse contexto, o currículo é visto como um elemento discursivo
primordial na política educacional, tendo em vista que nele visualiza-se
“o espaço onde se concentram e se desdobram as lutas em torno dos dife-
rentes significados sobre o social e sobre o político” (SILVA, 2010, p. 10).
Nessa direção, Orlandi (2007) argumenta que não existe transpa-
rência no discurso, tampouco uma única maneira de interpretá-lo. O
dito, o não dito e o silêncio entrelaçam-se e formam um movimento que
merece ser compreendido articulado ao contexto. Sendo assim, o currí-
culo, como texto-discurso-prática-política, expressa um campo de con-
flitos e tensões e evoca o desvelamento dos sentidos em todas as possíveis
formas de expressão.
Por isso argumentamos que o currículo faz parte, na
realidade, de múltiplos tipos de práticas que não po-
dem reduzir-se unicamente à prática pedagógica de
ensino; ações que são de ordem política, administra-
tiva, de supervisão, de produção de meios, de criação
intelectual, de avaliação. (SACRISTÁN, 2000, p. 22)
Portanto, compreender esses sentidos e seus movimentos de pro-
dução constitui-se como uma das funções das teorias curriculares. Sob
60
o mesmo ponto de vista, Goodson (2007) nos fala acerca da necessidade
do desenvolvimento de estudos e pesquisas sobre o currículo que anun-
ciem novas formas de pensá-lo em diálogo com as dinâmicas e mudan-
ças sociais. Sendo assim, compreendemos que pensá-lo apenas como
prescrição estática que objetiva definir a prática seria simplificar um
tema com expressiva amplitude e, por isso, partimos da concepção de
currículo como movimento de relação entre o local e o global, no qual se
encontram interligados os contextos de debates e discussões acerca dele,
os contextos de produção do currículo prescrito, bem como o contexto
no qual ele é materializado.
Tomando por base essas ideias, não pensamos em um currículo
estático expresso em documentos formais que atende apenas a uma bu-
rocracia, mas enquanto elemento vivo que influencia a prática e é por ela
influenciado. Por isso mesmo, Felício e Possani, ao discutirem as concei-
tuações de Sacristán, afirmam que o “currículo não se limita a um corpo
de conhecimentos, mas constitui-se num terreno para múltiplos agentes,
cuja dinâmica envolve mecanismos diversos, numa confluência de prá-
ticas” (FELÍCIO; POSSANI, 2013, p. 131). Ou seja, pensar o currículo
é também pensar as políticas curriculares, os contextos sociais e histó-
ricos que influenciam a elaboração dessas políticas, e sua reelaboração
nos contextos locais através dos currículos praticados pelos professores,
alunos e demais atores da escola.
Diante das questões postas, percebemos a necessidade de superar
a dicotomia entre aquilo que é pensado e aquilo que é vivido (FERRA-
ÇO; NUNES, 2012), ou seja, captar o currículo em sua complexidade,
na articulação entre o que é prescrito e sua reinvenção na prática. Dessa
forma, como instrumento de formação (PACHECO, 2005), o currículo
mostra a necessidade de compreender os contextos, os atores e as inten-
ções que o constituem, deixando, portanto, de ser uma coisa ou outra
para se constituir enquanto elemento híbrido das teorias práticas curri-
culares (FERRAÇO; NUNES, 2012).
Assim, partimos de um sentido de currículo enquanto lugar ins-
tável e de contestação, tendo em vista que as decisões curriculares são
feitas não só pelo Estado, mas também pela administração escolar e por
professores, alunos e pais. Isso significa dizer que os autores do currículo
são múltiplos, e essa multiplicidade explicita a arena de conflitos em que
ele está situado.
61
A ANÁLISE DE DISCURSO ENQUANTO DISPOSITIVO
TEÓRICO-METODOLÓGICO
Esta pesquisa assume o caráter qualitativo por se debruçar sobre
uma materialidade discursiva. Contudo, é preciso dizer que a pesquisa
qualitativa “abriga, deste modo, uma modulação semântica e atrai uma
combinação de tendências que se aglutinaram, genericamente, sob este
mesmo termo […]” (CHIZZOTTI, 2003, p. 223). Isso significa que afir-
mar que nos encontramos dentro de uma abordagem qualitativa se tor-
nou insuficiente para delimitar os encaminhamentos metodológicos de
uma pesquisa.
Percebendo, então, a variedade de tipos de pesquisa que a aborda-
gem qualitativa abarca, entendemos a necessidade de evidenciar a nossa
vinculação à AD. Ressaltamos ainda que AD não fixa um desenho me-
todológico único, o qual deve ser percorrido pelo pesquisador, mas in-
tenciona compreender “[…]como um objeto simbólico produz sentidos,
como ele está investido de significância para e por sujeitos” (ORLANDI,
1999, p. 2627).
Segundo esse viés, cada pesquisador, tendo por base suas inquie-
tações de pesquisa, traça um percurso próprio ao aproximar-se do objeto
de estudo e, considerando as categorias que são fundantes nessa pers-
pectiva teórico-metodológica, vai elegendo instrumentos de coleta que
permitam relacionar sujeitos, sentidos e historicidade.
Assim, neste trabalho, que aborda e toma a AD como referen-
cial teórico-metodológico, temos como corpus discursivo o material
de análise de três pesquisas de mestrado já concluídas. Essas pesquisas
produziram dados, inicialmente, a partir de uma pesquisa exploratória
com estudantes dos cursos de Pedagogia de três instituições de ensino
superior (IES), sendo duas públicas e uma privada, seguida da aplicação
de questionários socioprofissionais para delimitação dos sujeitos a par-
tir dos critérios que correspondessem à especificidade de cada objeto de
pesquisa.19
19 As três pesquisas analisadas por nós foram: Pesquisa e prática pedagógica: discur-
sos sobre a profissionalidade das estudantes/professoras em formação (CARMO,
2013); Os sentidos partilhados sobre estágio supervisionado e as contribuições para
a prática docente do professor com experiência docente (MELO, 2014); e Sentidos de
profissionalidades revelados no movimento discursivo das contribuições da didáti-
ca na formação de pedagogos(as) (SILVA, 2015).
62
Para tanto, as pesquisas tomaram como procedimento metodoló-
gico entrevistas com estudantes (com e sem experiência na docência)
das referidas IES, bem como realizaram análise documental dos projetos
pedagógicos dos cursos de Pedagogia e das ementas dos componentes
curriculares como pesquisa e prática pedagógica, estágio supervisionado
e didática.
Sendo assim, para a tessitura deste texto, dialogamos com as seções
da metodologia e da análise dos dados das pesquisas sobre currículo – a
partir do eixo curricular pesquisa e prática pedagógica e dos componen-
tes curriculares estágio supervisionado e didática, conforme já situamos
na introdução – com a intenção de refletir sobre o percurso que se confi-
gurou no trabalho com a AD e sobre as contribuições que identificamos
dessa abordagem teórico-metodológica na coleta e análise dos dados.
Em síntese, lançamos um olhar para essas investigações buscan-
do evidenciar as contribuições e os achados viabilizados pela AD como
dispositivo de análise a partir de suas categorias teórico-metodológicas.
Para tanto, a seguir apresentamos o papel e o lugar que a AD assumiu e
as marcas discursivas que imbricam as pesquisas numa rede de produção
de sentidos em torno do currículo e das práticas curriculares dos cursos
de Pedagogia no agreste pernambucano.
CONTRIBUIÇÕES DA ANÁLISE DE DISCURSO PARA AS
PESQUISAS SOBRE CURRÍCULO NO AGRESTE PERNAMBUCANO
A AD não se propõe a anunciar um percurso que se possa seguir
para a materialização de uma pesquisa ancorada em sua perspectiva, vis-
to que ela não se apresenta como uma técnica. Contudo, é possível, a par-
tir das categorias que a constituem, compreender a realidade pesquisada
como processo discursivo que imbrica sujeito, sentido, ideologia e histo-
ricidade. Nessa direção, cada pesquisador tece um percurso teórico-me-
todológico específico e singular, que sob a luz da AD ganha flexibilidade
em sua produção e na sua identidade discursiva.
Sendo assim, nesta sessão buscamos trabalhar com as contribui-
ções recorrentes da AD para as produções científicas investigadas, bem
como com as especificidades emergidas do trato da AD, compreendendo
que cada uma das pesquisas percorreu um caminho teórico-metodoló-
gico específico a partir da posição de sujeito e das categorias discursivas
que escolheram privilegiar. Para tanto, apontamos como as categorias
ideologia, dito, não dito, silenciado, posição de sujeito e interdiscurso se
63
apresentaram enquanto domínio comum entre as pesquisas, evidencian-
do por fim as singularidades discursivas que as pesquisas apresentaram
ao atender seus objetivos.
Diante disso, as pesquisas20 tomam como linha da AD a perspec-
tiva de Orlandi e evidenciam que “a articulação entre linguagem, pensa-
mento e mundo consiste em ultrapassar o dito no texto, buscando o não
dito nos discursos, tendo em vista que a linguagem não se apresenta de
forma transparente, havendo a necessidade de encontrarmos o silencia-
do no discurso” (MACEDO, 2005, p. 3).
Dessa forma, a AD trabalha com a língua no mundo (ORLANDI,
2012), por isso o lugar ocupado pelo sujeito ganha espaço privilegiado,
bem como as maneiras deste outro significar, levando em conta as pro-
duções de sentido a partir da análise da relação estabelecida pela língua
com os sujeitos que a falam e as situações em que se produz o dizer.
As pesquisas revelam que, no movimento do enunciar/dizer, o su-
jeito também vai se constituindo, e que o lugar sócio-histórico influencia
sua produção de sentido, como é possível visualizar no extrato a seguir:
Ao significar a sua formação acadêmica articulando-a
ao seu exercício profissional as estudantes/professo-
ras vão também se significando, construindo a sua
identidade profissional, quando articulam entre as
experiências vivenciadas nas aulas de Pesquisa e Prá-
tica Pedagógica e Estágio Supervisionado, através das
pesquisas realizadas, aulas expositivas, leituras, parti-
cipação em seminários, dentre outros momentos da
aula com as suas experiências enquanto professor da
educação básica. (CARMO, 2013, p. 6667)
Frente ao exposto, a linguagem, que ora comunica ora não comu-
nica, serve também para legitimar o possível de ser dito em dada conjun-
tura social. Dessa forma, a AD visa compreender como os objetos sim-
bólicos produzem sentidos, analisando os próprios gestos, os silêncios,
pois eles interveem no real sentido, oportunizando a inscrição do sujeito
numa estrutura ou acontecimento.
64
Além disso, segundo Orlandi (2001), na AD há noções que en-
campam o não dizer (interdiscurso, ideologia e formação discursiva), e
por isso mesmo há sempre um não dizer necessário. “Portanto, o dis-
curso é o lugar onde se pode observar a relação entre língua e ideologia,
compreendendo-se como a língua produz sentidos por/para os sujeitos.”
(Ibidem, p. 17)
Nas pesquisas vemos a materialização da ideologia se apresentan-
do no esquecimento dos dizeres, bem como a demonstração de como
se dá essa relação entre língua e ideologia, muito embora considerando
cada objeto de pesquisa, como pode ser percebido no extrato abaixo:
Assim, tendo como referência nosso objeto, pudemos
visualizar a materialização da ideologia como proces-
so que agiu no esquecimento dos dizeres e como cam-
po de construção de múltiplos sentidos. Deste modo,
a inscrição histórica apagada pôde ser percebida nas
próprias produções de sentidos sobre o estágio. Sem
embargo, na década de 70 se apregoava no Brasil a ên-
fase na racionalidade técnica segundo a qual no está-
gio os sujeitos deveriam apenas aprender métodos de
ensino a serem aplicados nas salas de aula, discurso
este que volta a ser introduzido em políticas interna-
cionais de formação de professores agindo fortemente
no contexto brasileiro. Contudo, é um discurso tido
como novo, ou seja, teve sua inscrição histórica apa-
gada para que deste modo pudesse significar nova-
mente. (MELO, 2014, p. 55)
A AD aprofunda a discussão sobre o apagamento dos discursos
produzidos historicamente nos revelando que todos os dizeres congre-
gam também discursos que não foram ditos, mas que estão presentes,
assim como discursos que são silenciados pelas forças ideológicas.
O dito, o não dito e o silenciado emergiram como conceitos que se
referem aos espaços de produção de sentidos, que podem estar no discur-
so expresso e em evidência (dito), no que está suposto no discurso (não
dito), ou o discurso que é uma ausência que significa (silenciado), porque
algumas coisas foram ditas para que outras não aparecessem. Esses con-
ceitos da AD se materializam e podem ser exemplificados a seguir:
65
[…] identificamos momentos de silenciamentos e de
não-ditos, que nos revelam que embora os sujeitos
S5CE-IES C e S6SE-IES C tenham afirmado que a prá-
tica fica lá, bem pouca, dentro deste enunciado consi-
deramos que o dito deixa claro que ainda não há uma
articulação suficiente entre teoria e prática, todavia, o
não-dito se refere ao fato de que mesmo de maneira
incipiente a prática está presente nas discussões. Por-
tanto, o que está silenciado é o sentido de que mesmo
diante das incompletudes, inacabamentos e fragili-
dades as dimensões teóricas e práticas se apresentam
como complementares e interdependentes. (SILVA,
2015, p. 156)
A partir desse trecho podemos ver que as categorias da AD se fun-
dem às marcas que emergem dos dados empíricos, estabelecendo um diá-
logo que possibilita a construção de sentidos. Sendo assim, as bases que
a AD nos fornece não são estáticas, porque configuram sentidos diversos
dependendo dos sujeitos, dos objetos e do campo de pesquisa; tampou-
co possuem finalidade em si mesmas, uma vez que a AD não busca rea-
firmar os sentidos já construídos e as conceituações já configuradas,mas
caminha sobre a possibilidade do novo. Assim, as categorias da AD se
apresentam como uma possibilidade de vir a ser junto com o que os dados
e o olhar do pesquisador constroem na tessitura do conhecimento novo.
Considerando essas questões, assume lugar primordial a concep-
ção de sujeito forjada pela AD nas pesquisas. Situamos os sujeitos das
pesquisas, enquanto sujeito coletivo que é interpelado pela ideologia,
estando sua produção de sentidos ancorada no lugar social por esse
sujeito ocupado. Dessa forma, o dito, o não dito e o silenciado é deter-
minado pela marca do social que produz, inclusive, os deslocamentos
dos sentidos. Ou seja, a posição do sujeito foi elemento considerado
nas pesquisas analisadas, conforme podemos observar a seguir:
Sendo assim, por serem professores em formação,
ocupam uma posição discursiva a partir de seu status
como estudantes e ao mesmo tempo como sujeitos ex-
perientes na docência, posição esta que influenciou os
sentidos que atribuíram ao estágio. Dessa maneira, foi
preciso considerar a posição dos sujeitos na hierarquia
66
social, e como já o dissemos a ancoragem na experiên-
cia docente fez igualmente parte da análise dos senti-
dos investigados. (MELO, 2014, p. 61)
Esse sentido de posição de sujeito em sua mobilização e materia-
lização é corroborado nas pesquisas desenvolvidas, quando é possível
identificar que as experiências dos sujeitos e os lugares que eles ocupam
na sociedade influenciam nos discursos por eles construídos. Assim
quando um dos sujeitos afirma que
A disciplina de Didática veio a contribuir bem mais
quando eu fiz magistério do que aqui [no curso de Pe-
dagogia]… porque aqui é uma formação mais teórica
entendesse? Já no magistério ele falava da metodologia
e já colocava dentro da sala de aula e daí foi contri-
buindo para a formação. Aqui é uma coisa mais teó-
rica, num leva o aluno para a prática – S5CE- IES C.
(SILVA, 2015, p. 162)
vemos que essa relação que ele estabelece no seu discurso sobre o sen-
tido de contribuição da didática só pôde ser materializado dessa forma
por influência do lugar de quem já teve uma outra experiência forma-
tiva (nesse caso, o ensino médio na modalidade magistério). Esse lugar
ocupado pelo sujeito permitiu-lhe ter outras referências de relação teo-
ria-prática na formação e assim construir seu discurso sobre as contri-
buições efetivas da didática para a sua construção profissional enquanto
pedagogo em formação.
Nas pesquisas analisadas que se utilizam da AD, é preciso con-
siderar o status do indivíduo na hierarquia social, tendo em vista que
essa perspectiva teórico-metodológica compreende que esse status vai
condicionar o que pode e deve ser dito por ele, ou seja, qual posição de
sujeito enunciativo ele poderá ocupar (MELO, 2014). Dessa forma, as
pesquisas apresentam a distinção entre indivíduo e sujeito, sendo o sujei-
to enunciativo uma função vazia a ser ocupada pelo indivíduo, uma vez
considerado seu status socialmente legitimado (SILVA, 2011). Sob essa
perspectiva, as pesquisas apontam na análise dos dados que foi preciso
levar em conta o status do indivíduo para que sua posição como sujeito
enunciativo balizasse como disse e porque disse aquilo que disse.
As pesquisas analisadas ainda sinalizaram para a compreensão de
que as produções discursivas se configuraram num movimento que ten-
67
ciona o mesmo e o diferente, respectivamente, a paráfrase e a polissemia.
Essas conceituações apresentaram para as pesquisas a importância de
dialogar com outras já existentes em torno de sua temática. Portanto, a
construção de seus objetos se desenvolveu em diálogo com as pesquisas
socializadas na ANPED, ENDIPE, EPENN, BDTD da UFPE e no BDTD
da Capes, o que permitiu compreender o já-dito e a insurgência de novos
sentidos sobre os problemas de pesquisa.
Os discursos de outras pesquisas se apresentam como discursos
que falam aos objetos, tendo em vista que são referenciais teórico-analí-
ticos no decorrer das pesquisas analisadas.
Dessa maneira, para lançarmos um olhar acerca do
que vem se produzindo sobre a Didática é imprescin-
dível, antes de mais nada, compreender a evolução da
mesma, tendo em vista que estas marcas históricas
explicam muitos dos desafios e debates atuais. Nes-
sa direção, ao nos aproximarmos das produções do
ENDIPE, conforme veremos a seguir, partimos da
compreensão de que as marcas discursivas presentes
na trajetória histórica da Didática no Brasil não estão
circunscritas e restritas aos momentos históricos nos
quais aconteceram, isto significa dizer que os diversos
momentos da Didática se entrelaçam influenciando
os sentidos atuais da mesma, bem como sinalizam a
emergência de novos dizeres. (SILVA, 2015, p. 57)
Dessa maneira, nas pesquisas realizadas, a AD teve suas categorias
mobilizadas como lentes para a construção do objeto de estudo, auxi-
liando na compreensão do problema de pesquisa como uma construção
discursiva permeada de sentidos. Ou seja, as pesquisas utilizaram-se da
AD por ela ter como finalidade entender o que os textos e as falas querem
dizer, levando em conta que um texto-fala leva a outros textos-falas, ou
seja, a outros sentidos.
Ao compreendermos que sentidos imbricam-se a sentidos outros,
estamos trabalhando com o que na AD denomina-se interdiscurso, uma
categoria que nos revela que a produção discursiva se configura a partir
da ancoragem em discursos já existentes, embora muitas vezes esses dis-
cursos estejam situados em outros tempos/momentos históricos, e seus
significados sejam resguardados no silêncio. Assim, as pesquisas que
68
analisamos materializam o interdiscurso quando estabelecem o seguinte
diálogo entre si:
Identificamos que instrumentos avaliativos (provas,
seminários), instrumentos didáticos (como sequen-
cias didáticas e de conteúdo) e ações que compreen-
dem o planejamento da prática docente (como planos
de aula, programas de disciplinas) podem ser vistos
como elementos integradores das profissionalidades
docentes, sem, como nos diz (VEIGA, 1993, p. 9), “cair
numa inversão de que o saber é essencialmente técni-
co”. Nessa direção, a técnica não é compreendida como
o elemento que vai atribuir um sentido tradicional a
uma prática, contudo, a concepção que se tem de prá-
tica docente e de ensino-aprendizagem é que vai dire-
cionar a intencionalidade no uso das técnicas. (SILVA,
2015, p. 119)
Contudo, a AD nos auxilia a enxergar que esse receio de retorno à
predominância da dimensão técnica na formação tem uma justificativa
repousada nos sentidos fundados historicamente.
O discurso que hoje emerge […] traz o dizer de outro
discurso inscrito em um diferente tempo histórico, no
caso no período colonial, e nos remete ao sentido de
valorização do método, de enaltecimento do caráter
prático da formação […] o que acaba por fazer me-
mória aos primórdios da formação de professores no
Brasil, que assumiu a ênfase no preparo didático e pro-
fissional do docente. (CARMO, 2013, p. 113)
Diante desse diálogo estabelecido, é possível identificar a imbri-
cação entre os sentidos produzidos nos discursos das pesquisas mes-
mo quando se tratam de sujeitos e objetos diferentes, pois para a AD
não há obviedade nas relações entre os discursos nem acabamento na
construção dos sentidos. Com isso, estamos dizendo que um sentido
construído não pertence única e exclusivamente a uma categoria ou
área de estudo,mas que se lança num vazio que é preenchido a partir
da perspectiva do sujeito que dele se aproxima. Assim, sentidos e dis-
cursos se interpelam.
69
Todavia, é preciso dizer que, apesar das semelhanças entre as pes-
quisas, foi possível identificar algumas singularidades discursivas, o que
demonstra que dentro da AD vários caminhos podem ser tomados. Ao
aproximar-se do currículo pensado-vivido da formação de professores a
partir das contribuições da AD, Carmo (2013) trabalhou com a categoria
entremeio, que não foi tratada nas outras pesquisas.
Os sentidos das estudantes-professoras que participaram da pes-
quisa, considerando o currículo de sua formação, foram elaborados a
partir da tensão entre as experiências do espaço de formação acadêmica
e o espaço de atuação profissional. Ao experimentarem essa tensão, as
professoras afirmaram encontrar uma maneira de ser professor em meio
aos distanciamentos entre os pressupostos teóricos que elas elaboravam
na universidade (um espaço discursivo) e a realidade cotidiana por elas
vivenciada na sala de aula (outro espaço discursivo), o que permitiu a
emergência do entremeio na relação entre o currículo pensado e o vivido.
Outra singularidade presente em uma das pesquisas realizadas
relacionava-se à possibilidade de construção de uma rede discursiva de
sentidos (SILVA, 2015). Essa possibilidade apontou para a reafirmação da
compreensão de que nenhum sentido se produz isoladamente, mas que
todo sentido se relaciona com outros e com múltiplos contextos (contex-
to do texto, da fala, da prática). Nessa direção, seja qual for o objeto ou o
campo de pesquisa, o conhecimento que se produz refere-se a bem mais
do que aquilo que metodologicamente e inicialmente é delimitado pelo/a
pesquisador/a.
Ao nos debruçarmos sobre os estudos curriculares, ancoradas na
AD, passamos pelas discussões sobre as políticas educacionais e curricu-
lares, pelo currículo e práticas curriculares e pela relação de ambos com
as dimensões sociais, históricas, culturais e econômicas do cenário bra-
sileiro. Logo, produzimos conhecimento na relação com outros conheci-
mentos, ou seja, produzimos discursos na relação com outros discursos.
Quando as pesquisas analisadas tomaram o agreste pernambuca-
no como chão, por mais que cada uma das IES apresentasse as especifi-
cidades do lugar em que se encontram, viu-se que elas têm em comum
a política de interiorização da universidade no agreste pernambucano
como contexto micro e as políticas educacionais e curriculares brasileiras
como contexto macro. Isso permitiu às IES e aos sujeitos encaminharem
as investigações para a compreensão de que os discursos se articulam e
se imbricam sob a influência do movimento global-local.
70
Dessa forma, frente às recorrências e as especificidades represen-
tadas pelo que foi materializado nas pesquisas, vimos que, mesmo par-
tilhando do mesmo referencial e categorias teórico-metodológicas, as
pesquisas evidenciaram que a AD não comunica uma “maneira” única
de ser e estar nesta perspectiva. Ou seja, a AD possui a capacidade de ser
reconfigurada e recriada, contribuindo para nossas pesquisas e para si
mesma enquanto objeto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebemos que a AD vem contribuindo para os estudos de currí-
culo, uma vez que possibilita a compreensão de que não existe um sen-
tido único e fechado sobre ele, ajudando ainda a demonstrar como se
materializam as lutas hegemônicas nas quais esses sentidos se inscrevem
para se sobressair sobre outros. A AD incorpora nas pesquisas o entendi-
mento de que “alguns dos diferentes discursos circulantes tornam-se he-
gemônicos quando passam a constituir uma dinâmica de conhecimento
capaz de reestruturar o entendimento das relações sociais, tomando cer-
tas particularidades como universais” (LOPES, 2006, p. 40).
Nessa direção, com a AD foi possível evidenciar que houve uma
elaboração de sentido de currículo como espaço público, ou seja, como
espaço que possibilita a existência de diversos autores que recriam co-
tidianamente o currículo no chão da escola e influenciam a produção
de novas políticas curriculares. Essas políticas igualmente influenciam a
ressignificação do currículo praticado.
Além disso, mesmo se utilizando de percursos metodológicos e
categorias diferenciadas, as pesquisas apontam a partir da AD que os
discursos não se encontram isolados, que, para dizer algo sobre o eixo
pesquisa e prática pedagógica e sobre os componentes estágio supervi-
sionado e didática, é preciso não dizer ou até mesmo silenciar outros
discursos, e que a posição na hierarquia social pode determinar o que os
sujeitos investigados apresentam enquanto produção discursiva.
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EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: ESPECIFICIDADES
DA MODALIDADE E DESAFIOS DA FORMAÇÃO
DE PROFESSORES
Cristiane Kuhn de Oliveira21
Silvimar Araújo Lopes22
Camila Costa de Carvalho23
Adenir Carvalho Rodrigues24
Nas últimas duas décadas do século XXI, vem-se reconhecendo a
educação como uma ferramenta importante para o desenvolvimento hu-
mano e, consequentemente, para o crescimento socioeconômico do país.
As pautas que envolvem a temática deixam claro que nenhum avanço
poderá ser alcançado se o maior investimento não estiver voltado à busca
de uma educação mais adequada, pautada em princípios de igualdade e
firmada em princípios éticos e humanísticos. De uma educação de qua-
lidade, que busca um desenvolvimento social emancipatório de respei-
to à diversidade em todas as formas existentes, voltada também para os
avanços tecnológicos e para uma sociedade em constante transformação
social e política.
As mudanças ocorrentes revelam a importância de se conduzir
para o trabalho profissionais cada vez mais qualificados para enfren-
tarem as demandas dos sujeitos da sociedade, os desafios do desenvol-
vimento econômico e, consequentemente, as constantes e necessárias
transformações sociais.
A formação de professores é um tema de ampla discussão que
ocupa um espaço significativo no cenário educacional. Vê-se frequente
preocupação inclusive no que se refere à formação de professores para
21 Mestre em educação e diversidade pela Universidade do Estado da Bahia [Uneb]
(2016). Coordenadora pedagógica e professora da rede pública nos municípios de
Irecê e Jussara (BA). [email protected]
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atuarem na modalidade de educação de jovens e adultos (EJA), além de
tantos outros desafios dessa modalidade, como as altas taxas de abando-
no e evasão – realidade ainda frequente em muitas regiões brasileiras,
principalmente no nordeste do país.
Discutir essa temática requer atentar para as três dimensões que
envolvem a formação do educador – normativa, política e pedagógica.
Assim sendo, busca-se levantar uma reflexão pautada nessas dimensões,
em especial na dimensão pedagógica por perceber que, no campo da
EJA, o fazer prático da educação se apresenta imbricada numa série de
questões desafiantes que marcam a especificidade dessa modalidade.
O objetivo deste trabalho é provocar a discussão sobre o contexto
da EJA e suas complexas singularidades filosóficas, sociológicas, polí-
ticas e pedagógicas. Atentando mais ao que concerne ao atendimento
à modalidade, especialmente elementos da formação dos professores,
também pretende-se fomentar uma discussão sobre a promoção da qua-
lidade da educação a partir da formação do professor para atuar nesta
modalidade. Dessa forma, esta reflexão traz questionamentos acerca dos
fundamentos históricos da modalidade, suas especificidades e desafios
para a formação docente, quer em âmbito nacional, regional ou local. O
trabalho também contempla discussões realizadas por meio de pesquisa
em andamento acerca da temática.
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na medida em que a realidade vai fazendo exigências à sensibilidade dos
educadores e educadoras”(2001, p. 10).
A EJA apresenta sua necessidade de existir enquanto resultado de
uma fragilidade histórica e conjuntural da educação. Ela surge de con-
textos diversos, mas continuamente caracteriza-se como um processo
destinado a suprir a carência escolar daqueles que não participaram do
processo regular de escolarização, quaisquer que sejam as causas dessa
negação de direito ou de terem tido suas trajetórias escolares ceifadas.
Embora reconhecida por ser uma proposta pedagógica flexível,
que considera as diferenças individuais e os conhecimentos informais
dos alunos adquiridos a partir das vivências diárias e no mundo do
trabalho, a modalidade de EJA distingue-se do ensino regular em suas
especificidades, com concepção, estrutura e metodologia próprias, que
buscam assegurar o direito à educação por toda a vida. Essa é a proposta
defendida, mas nos estados e municípios não é o que ocorre. Sobre isso
o documento base para a VI Confintea (ocorrida em 2009) aponta que
as estratégias didático-pedagógicas da EJA também
tentam superar outros processos ainda marcados pela
organização social da instituição escolar, hierarquiza-
da como um sistema verticalizado, com saberes e co-
nhecimentos tomados como “conteúdos”, sem os quais
o sujeito não adquire a legitimidade pelo que sabe.
(BRASIL, 2008, p. 3)
Comumente refere-se a escolarização tardia, especialmente para
aqueles que não tiveram condições e/ou oportunidades de acesso à esco-
la durante a infância e o início da juventude. Embora a expressão traga o
sentido da faixa etária, as atividades dessa modalidade superam tal parti-
cularidade, sendo ampliada por critérios socioculturais.
Muitas fragilidades dessa modalidade se estendem em um contex-
to secular e perduram até os dias atuais. A reação de invisibilidade das
especificidades para o público atendido por parte dos gestores, a escassez
e até ausência de formação específica para os professores, a precarieda-
de dos serviços configuram o desprezo com a modalidade, que é conse-
quência da forma como a EJA tem sido concebida em muitos espaços.
Esse contexto de percalços da EJA manifestado no embate políti-
co, ideológico e cultural apresenta avanços após sua afirmação enquanto
modalidade de educação reconhecida com a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, LDB nº 9.394/1996 (Idem, 1996). Estabelecida como
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modalidade de ensino pertencente à educação básica brasileira, a EJA
passa a dispor de direitos e fundamentos próprios, porém sua trajetória
de direito e legalização ainda é pauta constante nas discussões ligadas a
direito social, qualidade da educação e analfabetismo no Brasil.
Os recentes documentos que direcionam o tratamento da moda-
lidade, como diretrizes e pareceres, apresentam elementos da especifici-
dade, da formação de professores e de investimento específico e direcio-
nado exclusivamente a essa modalidade, na tentativa de garantir direitos
e reparar injustiça social, fruto da grande desigualdade que assola nosso
país. Assim, as diretrizes para o ensino de nove anos fazem a seguinte
consideração acerca da EJA:
Ela requer um processo de gestão e financiamento que
lhe assegure isonomia em relação ao Ensino Funda-
mental regular, um modelo pedagógico próprio que
permita a apropriação e contextualização das Dire-
trizes Curriculares Nacionais, a implantação de um
sistema de monitoramento e avaliação, uma política
de formação permanente de seus professores, formas
apropriadas para a destinação à EJA de profissionais
experientes e qualificados nos processos de escolha e
atribuição de aulas nas redes públicas e maior aloca-
ção de recursos para que seja ministrada por docentes
licenciados. (Idem, 2009, p. 27)
Temos debatido as condições para o financiamento próprio, o reco-
nhecimento da especificidade, os modelos pedagógicos próprios, um sis-
tema de monitoramento e avaliação, o reconhecimento da necessidade da
formação docente e de valorização dos saberes profissionais de quem car-
rega uma boa bagagem. Porém, o que se tem questionado é a efetividade
disso tudo que os documentos oficiais garantem no papel. Para que isso se
efetive é necessário o contínuo e ininterrupto processo de lutas sociais, de
busca da real garantia dos direitos que já são legislados – o que representa
grande conquista, mas agora é a vez de lutar por sua efetivação de fato.
Dentro dessa discussão do que é garantido apenas na legislação,
mas ainda está longe de se efetivar como realmente precisa ser,vamos
discutir a modalidade a partir também da nossa realidade local, pois
certamente ela é um reflexo do que ocorre no país inteiro. Nos debates,
nas conferências sobre educação no geral e sobre a EJA e no imaginário
popular, as concepções e impressões que se têm dessa modalidade não
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fogem ao que ocorre em nossa realidade. Dito de outra forma, a EJA em
Bonito, em Jacobina ou em Jussara, todas cidades baianas, não foge ao
contexto das políticas públicas para essa modalidade, quer seja na ne-
gação de direitos sociais, na relegação para segundo plano nas pastas de
estado ou nas concepções de formação de professores. Nesse sentido to-
mamos agora a reflexão a partir da realidade da EJA em Jussara a partir
da reflexão de alguns dados sobre a modalidade.
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Tanto os questionários como as entrevistas semiestruturadas
foram apropriados à clientela a que se destinaram e abordaram a te-
mática sobre a formação do professor e a prática do educador na EJA.
A entrevista foi o instrumento escolhido para cruzamento de in-
formações entre docentes e equipe gestora, tendo sido entrevistados dois
gestores escolares e dois coordenadores pedagógicos. Foram aplicados 28
questionários, atingindo a meta de 100% do universo de professores de
EJA do período em estudo.
Entre os anos em estudo, houve intensa rotatividade de professores
nas turmas de EJA. Dos 28 professores entrevistados, apenas 3 possuem
cinco ou mais anos de experiência na modalidade, enquanto 6 estão
atuando na modalidade entre dois e cinco anos; a maior parcela dos pro-
fissionais, ou seja, 19 deles, possuem menos de dois anos de experiência.
Veja o Gráfico 1 abaixo, no qual ilustramos a experiência na modalidade
de EJA entre os professores pesquisados. Vê-se claramente que a maioria
não possui experiência, situação que agrava as condições da modalidade.
Gráfico 1: Experiência em EJA
80
profissionais, independentemente do tipo de formação. Além disso, essa
transitoriedade dificulta a criação de vínculos entre os profissionais, a
modalidade e as escolas.
Gráfico 2: Vínculo empregatício
81
A formação específica também aparece com graves problemas:
19 professores estão cursando a graduação em licenciatura (Pedagogia
e Letras); entre aqueles que concluíram o ensino superior, 1 possui gra-
duação em Ciências Biológicas, 2 possuem graduação em História, 2 são
licenciados em Letras e 2 em Pedagogia; e 2 possuem apenas ensino mé-
dio. Vide Gráfico 4. Por conta da ausência de professores com formação
específica, 26 deles dividem sua carga horária de trabalho entre duas ou
mais disciplinas. Para enfatizar as circunstâncias da EJA no município,
apenas um professor, no total de 28 professores, possui formação conti-
nuada voltada para o atendimento em EJA.
Gráfico 4: Formação
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as turmas de EJA se dá na adoção e no uso do livro didático, uma vez que
para a segunda há escolha de coleção específica para a modalidade.
Muitos professores desconhecem as singularidades do trabalho
educativo com a EJA devido à ausência de formação específica e à falta
de critérios na organização do quadro docente da modalidade, tornando
invisíveis as particularidades do público de jovens e adultos.
Tal realidade torna o ensino da EJA precário e distante das de-
terminações e discussões que permeiam a educação popular. As inicia-
tivas voltadas à orientação pedagógica iniciaram no ano de 2014, com
organização de coordenação pedagógica voltada para o atendimento das
demandas do turno noturno da escola da sede. Desse modo tal escola é a
que mais se aproxima do tratamento das singularidades da EJA, embora
tal aproximação esteja longe dos ideais projetados para a modalidade.
Não há no município material apropriado para os professores, or-
ganização curricular integrada, nem utilização de metodologias e meca-
nismos de assistência, visando favorecer a permanência e a aprendizagem
do estudante. São inexistentes políticas de fomento à produção de mate-
rial didático, ao desenvolvimento de currículos e metodologias específi-
cas, aos instrumentos de avaliação, ao acesso a equipamentos e laborató-
rios e à formação continuada de docentes das redes públicas que atuam
na educação de jovens e adultos articulada à educação profissional.
As escolas carecem de estímulos e propostas voltadas à diversifica-
ção curricular da EJA que articulea formação preparatória para o mundo
do trabalho e estabeleça a interrelação entre teoria e prática nos eixos da
ciência, do trabalho, da tecnologia e da cultura e cidadania, de forma a
adequar o tempo e o espaço pedagógicos às características desses estu-
dantes. Nos últimos anos não foram implementadas ações de alfabetiza-
ção de jovens e adultos com garantia de continuidade da escolarização
básica, sendo o programa Todos pela Alfabetização (TOPA) a única pos-
sibilidade e alternativa para jovens e adultos.
Formação de Professores em EJA: reflexões e desafios
A educação de jovens e adultos consiste em uma modalidade de
ensino configurada também como prática de caráter político, devido à
preocupação em resolver situações de exclusão que, algumas vezes, fa-
zem parte de um quadro maior de marginalização, e tem por objetivo
dar oportunidades de condições de ensino e aprendizagem a jovens e
adultos que, por algumas circunstâncias, quer sociais, quer econômicas,
abandonaram o ambiente escolar.
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A Educação de Jovens e Adultos tem como objetivo le-
var a educação às classes mais carentes do país, assim, a
legislação brasileira buscou suprir a escolarização regu-
lar para aqueles que não a tiveram na idade adequada e
nessa mesma linha de pensamento, com a perspectiva
de alavancar as oportunidades educacionais, o Estado
se propõe a criar meios de favorecer oportunidades
àqueles que tiveram, por algum motivo, de interrom-
per seus estudos. (HADDAD, 1994, p. 87)
A educação de adultos e jovens ao longo da história é permea-
da pela ausência de políticas públicas que garantam ações sistemáticas e
contínuas, numa visão carregada de exclusão e de preconceito, assumin-
do-se como uma prestação de favor e reparo para aqueles que fracassa-
ram em sua trajetória escolar. A escola destinada a esse público resume-
-se à oferta de vagas para sanar um problema específico de analfabetismo
e oportunizar a certificação sem assimilação do aprendizado, apresen-
tando suas fragilidades ao não se concretizar enquanto escola agregadora
e que se adapte a esse público, trazendo suas especificidades e conheci-
mentos, valorizando a contribuição dos jovens e adultos.
Nos anos finais do século XX e na primeira década desse novo
milênio, temos acompanhado uma implementação positiva do processo
de formação de professores da educação básica, em atendimento sobre-
tudo às exigências de políticas públicas, entre as quais se destaca a pró-
pria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB 9.394/1996
(BRASIL, 1996).
Nesse momento tornou-se necessário também aprofundar as aná-
lises sobre a formação dos professores/professoras com alguns questio-
namentos recorrentes como: se a formação profissional está verdadeira-
mente direcionada para atender aos interesses e necessidades educativos
da população brasileira, e se suas estratégias podem garantir, de fato, a
qualidade dos professores no fomento das aprendizagens escolares, con-
siderando que a necessidade de compensação que se constata atualmente
represente um desvio desses pressupostos curriculares da formação do-
cente atual. É importante indagar também onde deve incidir o foco da
formação de professores e os seus reflexos na relação com a qualidade
do ensino e aprendizagem, partindo do pressuposto da própria realidade
profissional cotidiana.
84
Quando se faz referência à qualidade em educação, à luz da profis-
sionalização e formação de professores, deve-se obrigatoriamente consi-
derar as estruturas que possibilitem tal qualificação, partindo das ações
e políticas institucionais (o papel do governo e as políticas públicas), da
função das instituições de ensino superior, perpassando pelos programas
de formação continuada e de acompanhamento das habilidades e com-
petências docentes. Esses componentes serão decisivos para a o exercício
da profissão docente na adoção das práticas pedagógicas cotidianas das
unidades/comunidades escolares, o que por sua vez garantirá o compro-
misso com a aprendizagem, edificando a tão almejada democratização e
igualdade dos saberes e consequente autonomia cidadã.
Sabe-se que todo processo formativo (inicial e continuado) deve
ser pensado e repensado continuamente de modo a atender às dinâmi-
cas e demandas sociais vigentes. Isso traz à tona a atual contextualização
das propostas e valores relacionados aos interesses econômicos em escala
global, assim como os desafios de uma comunicação que se tornou in-
tensa mediante processos tecnológicos altamente sofisticados.
Nessa perspectiva, nota-se atualmente que o grande desafio da
EJA é compreender as necessidades apresentadas por seus sujeitos, bem
como suas aspirações e perspectivas, reconhecendo que são produtores
de um conhecimento que pode ser articulado paralelamente às teorias
curriculares da prática docente. Assim, se faz necessário pensar o pa-
pel do professor que atua na EJA a fim de refletir sobre a estrutura da
sua formação e mesmo se ela tem conseguido atender às especificida-
des apresentadas pela modalidade de ensino. Vasconcelos (2003) aponta
para a necessidade de os cursos de formação de professor apresentarem
proposta curricular que possibilite a construção de competências e ha-
bilidades que contemplem de maneira adequada a EJA e suas especifi-
cidades.
Faz-se necessário, portanto, pensar a formação inicial do professor
como um elemento consubstancial para uma prática baseada nas mu-
danças do quadro social que emergem para o campo da EJA. No bojo
dessa complexidade de demandas no processo de formação dos profes-
sores, Perrenoud destaca:
[…] nem todos aprendizes vivem a mesma experiên-
cia. Ela difere conforme seu lugar, seu nível, sua dispo-
nibilidade, sua relação com o saber. Ninguém aprende
sozinho, mas sua história de formação é singular, por-
85
que duas pessoas jamais abordam as mesmas situa-
ções com as mesmas expectativas, os mesmos trunfos
e os mesmos limites. (PERRENOUD, 2000, p. 88)
A identidade, a singularidade e a subjetividade muitas vezes não
são consideradas, o que é pressuposto como um princípio elementar
num país com as dimensões territoriais do Brasil, com destacado mul-
ticulturalismo e grande disparidade socioeconômica. Não é possível co-
mungar com a estandardização institucionalizada dos processos de for-
mação profissional, especialmente daqueles voltados à docência.
Outro princípio inquietante é aquele que implica que a qualidade
na formação garantirá ao professor o saber-fazer, sendo que muitas vezes
esses profissionais não dispõem de estruturas mínimas (institucionais,
físicas, didático-pedagógicas) para o bom exercício da profissão. Para se
“formar” é preciso aprender, e para “aprender”é preciso tempo para es-
tudar/pensar.
Entende-se que “estudar/pensar” envolve uma busca pelo conhe-
cimento que passa pelos caminhos do discernimento, que gera questio-
namentos, argumentações e reflexões. Nenhum saber é construído com
imediatismos. Num sentido amplo, isso ocorre paulatinamente a partir
de um processo permanente de aprendizagem e (in)formação.
Recentemente um tema emergente tem renovado o fôlego no âm-
bito das discussões atreladas aos instrumentos da formação de professo-
res: a formação continuada. Segundo Gatti e Barreto (2009) é perceptível
um elevado índice de professores buscando novos cursos de capacitação,
especialmente aqueles providos por secretarias municipais de educação,
dos quais um elevado percentual objetiva se aproximar das novas tec-
nologias nas práticas desses professores. Com isso, algumas dualidades
acabam emergindo no ínterim dessa contenda: a formação/informação e
o aprender/ensinar (DEMO, 2002).
A formação continuada emerge em meio a uma crise, pois são
constantes os questionamentos e debates em que os processos que levam
à formação inicial aparecem no cerne das discussões. O bem-ensinar está
diretamente associado aos mecanismos do bem-aprender. Daí levanta-se
a questão da necessidade de reforçarmos os olhares para que o profes-
sor possa aprender a aprender para melhor instruir, ensinar e semear no
aluno o desejo de aprender, ou seja, o direito de aprender, como sugere
Demo (Ibidem).
86
Para que a prática do professor se dê na perspectiva acima dis-
cutida, a formação deverá proporcionar ao término de seus estudos, ou
mesmo na sequência, condições de articular o aprendizado com a prática
propriamente dita. É necessária uma proposta de formação que vincule
o contexto de vida de cada educando aos conhecimentos e experiências
pedagógicas adquiridos pelo professor em seu percurso formativo.
Intermediar o conhecimento científico e os saberes dos educandos
não é tarefa fácil, mas pode ser aprendida na trajetória das suas ações e
no seu processo de se tornar professor. É papel do professor ensinar a
ação de conviver e viver com todas as diferenças existentes dentro e fora
da escola, pois esta é uma extensão da vida em geral.
Freire (1996) instiga-nos a refletir sobre o contínuo processo de
formação do ser humano ao exaltar a tomada de consciência do inaca-
bamento e a constante necessidade da busca pelo crescimento por meio
da renovação dos saberes. Reconhecida a importância da formação de
professores para o desenvolvimento de uma educação de qualidade e em
se tratando da EJA, considera-se essencial o levantamento da presente
discussão por notar-se certa fragilidade nas práticas educativas que vi-
goram, como se fossem singulares ao ensino comum, e por notar-se cla-
ramente que há também uma especificidade pertinente à modalidade.
Assim, à prática de ensinar estão enredadas características que dão
ao ato maior complexidade. Sua importância na formação de professo-
res se delineia no caminho da docência e pode ser vista com uma nova
maneira de se pensar o ensino, bem como com uma nova maneira de se
pensar o professor, elevando-o a níveis mais abrangentes no reconhecer
das necessidades sociais apresentadas pelos alunos e da diversidade de
saberes que se caracterizam no espaço escolar e na prática docente.
A experiência se apresenta no campo do vivido, do trajeto de vida
de cada um, das andanças, do meio ao qual versamos;um campo enchar-
cado de saberes “do que nos acontece”, discernido por nós como objeto
da identidade cultural tal qual representada em nosso convívio social.
Com isso, percebe-se que o grande desafio da EJA, mesmo após algumas
experimentações, nem sempre se dá no campo de compreensão das par-
ticularidades apresentadas pelos sujeitos envolvidos.
As suas aspirações e perspectivas, experiências e saberes devem
ser interligados aos conhecimentos elaborados exigidos pela sociedade e
compreendidos como o produto de uma ciência, podendo ser articula-
87
dos paralelamente às teorias curriculares e mediados na prática docente.
Charlot (2000) aponta para a “dimensão epistêmica” de toda a relação
de saber, bem como para a relação de “identidade” que abarca, ou seja,
todo processo de aquisição do conhecimento está estreitamente ligado à
história de vida do sujeito, “às suas relações com o outro, à imagem que
tem de si e à que quer dar de si aos outros” (apud RIOS, 2008, p. 183).
Rios (2008) reforça essa compreensão apontando para o despertar do
saber pelo exercício empírico dos elementos reais existentes nas relações
compartilhadas entre os sujeitos.
Dados levantados indicam a ausência de políticas públicas especí-
ficas para a modalidade de EJA no município de Jussara (BA), ao tempo
em que não se percebem avanços significativos no que se refere à forma-
ção de professores que atendem à modalidade, além das altas taxas de
reprovação e evasão escolar nas turmas de EJA. Logo, fica evidente que a
formação de professores é um desafio que precisa ser encarado com vista
à promoção de uma educação de qualidade.
CONCLUSÃO
A intenção deste trabalho é possibilitar uma discussão sobre as vias
de transformação da realidade a partir da formação de professores com
vista à qualidade do atendimento do público da EJA.Ao mesmo tempo
se reconhece que os desafios impostos e presentes à realidade em estudo
não se restringem ao lócus de pesquisa, mas à demanda e especificidade
da EJA em outras regiões.
Ao relacionar o referencial teórico com as informações obtidas
nessas pesquisas, atenta-se à importância da formação inicial e conti-
nuada específica aos professores dessa modalidade para a qualidade da
educação ofertada. A formação inicial e a formação continuada possibi-
litam as condições necessárias para o desenvolvimento do trabalho do
professor, especialmente quando tratamos de uma modalidade com tan-
tas especificidades como a EJA.
Percebe-se diante do exposto a necessidade urgente de se pensar a
EJA seguindo os pressupostos da educação popular, ampliando a oferta e
a qualidade do ensino e calcando-se na perspectiva tanto dos jovens que
foram excluídos da escola nos mais variados estágios, numa trajetória
marcada por repetências, evasões esporádicas e retornos até a exclusão
definitiva,como dos adultos trabalhadores, que também por inúmeros
motivos tiveram suas trajetórias escolares truncadas.
88
A educação escolar e a ação educativa se constituem como um
caminho para a transformação social, política e cultural, evidentemente
sem deixar de reconhecer as limitações e os desafios que estão postos
nessa caminhada. O essencial do trabalho escolar é garantir a possibili-
dade de o homem tornar-se livre, consciente e responsável, a fim de con-
cretizar sua humanização. E para isso a escola deve instigara procura, a
investigação, a reflexão, buscando razões para a explicação da realidade.
Assim, entende-se que não é possível continuar improvisando
educadores de jovens e adultos. A ausência de formação docente especí-
fica e adequada amplia os questionamentos acerca da qualidade do en-
sino, dos referenciais e dos materiais que vêm sendo oferecidos a esse
público e põe em dúvida o cumprimento de um direito prescrito por lei.
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90
ESTUDOS CULTURAIS E CURRÍCULO:
POSSÍVEIS CONTRIBUIÇÕES ÀS IDENTIDADES
DA JUVENTUDE NEGRA
Graça Elenice dos Santos Braga25
Maria José dos Santos26
INTRODUÇÃO
Este artigo é fruto das reflexões realizadas no Grupo de Pesquisa
em Educação, Raça, Gênero e Sexualidades Audre Lorde (Geperges Au-
dre Lorde), a partir dos aportes teóricos dos estudos culturais (EC). Ele
é composto na perspectiva de inserir nas práticas educacionais o debate
das identidades de gênero, juventude e raça, concebendo os sujeitos em
suas diferentes experiências e culturas. Dentro disso a pesquisa educa-
cional, especificando os currículos de certo modo subsidiados pelos EC,
repensa a educação tradicional em sua ênfase teórica,de forma que os
conteúdos transmitidos sejam aplicados a qualquer situação.
As críticas dos EC em relação à educação tradicional, em sentido
amplo, devem contribuir com uma formulação científica, e não apenas
comum a análise negativa, para uma produção em construção, levan-
tando possibilidades e reações (JOHNSON, 2006). Sendo assim, os EC
rejeitam a pedagogia tradicional em seu conjunto de habilidades neutras
que não articulam as práticas culturais, de conhecimento e poder aos
diversos sujeitos que se inserem no cotidiano escolar.
O referido estudo propõe uma revisão do currículo escolar a partir
da realidade da juventude negra, com ênfase nos estudos culturais, à luz
de autores que compreendem a importância de respeitar e reconhecer a
presença da juventude como protagonista de mudanças no fazer peda-
gógico.
25 Mestre em educação, culturas e identidades pela Universidade Federal Rural de
Pernambuco [UFRPE] (2016).Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em
Educação, Raça, Gênero e Sexualidades Audre Lorde (Geperges Audre Lorde).
[email protected]
91
Desse modo, o trabalho divide-se em três partes. a) Estudos cultu-
rais e o lugar do currículo: de colonizar é possível? b) Estudos culturais e
as contribuições para as identidades da juventude, de gênero e de raça. c)
Educação, estudos culturais e perspectivas de diálogo.
Este trabalho não tem a pretensão de aprofundar a origem dos es-
tudos culturais, mas deseja dialogar com as possíveis contribuições para
as ciências humanas, no caso da educação, estimulando professores/as e
estudantes a repensarem a teoria e prática educacional na perspectiva de
descolonizar o currículo.
ESTUDOS CULTURAIS E O LUGAR DOS CURRÍCULOS
No trabalho intelectual sério e crítico não existem
“inícios absolutos” e poucas são as continuidades in-
quebrantadas. Não basta o interminável desdobra-
mento da tradição, tão caro a história das ideias, nem
tampouco o absolutismo da “ruptura epistemológica”.
(HALL, 2013, p. 143).
Parafraseando o autor, podemos dizer que as produções intelec-
tuais na perspectiva pós-estruturalista recusam a tradição e conceitos ab-
solutos, bem como apresenta questões paradigmáticas que rompem com
as ciências na concepção positivista. Essa ruptura paradigmática expõe
uma complexidade de sentidos, consequência de um processo de crise
das ciências em geral, e ao mesmo tempo sugere alternativas epistemo-
lógicas no campo das identidades, da cultura e, sobretudo, da educação.
Partimos da constatação de que a abordagem sobre identidade
apresenta sinais de esgotamento na “modernidade tardia”, observando as
inquietações teóricas de extenso debate na atualidade quanto ao modelo
de identidade universal. De outro modo, muitas das questões suscitadas
diante do surgimento das novas identidades, mesmo longe de serem re-
solvidas,permitem compreender o plural identitário no intenso sentido
de suas dimensões – cultural, política e social – diante da fragmentação
do indivíduo moderno.
Nesse contexto contemporâneo, embora as noções de identidades,
de cultura como produção humana e de educação tenham seus papéis e
sentidos próprios, consideramos estarem interligadas, o que leva a um
exercício reflexivo sobre as diversas forças sociais e os sujeitos, para uma
nova configuração de situar-se e produzir-se no processo de transforma-
ções sociais.
92
As mudanças conjunturais ocorrem com as contribuições ao cam-
po do conhecimento dos EC, que iniciou na Inglaterra a partir de duas
matrizes. A primeira, a partir da crítica literária de Raymond Williams
e Richard Hoggart, numa sugestão da literatura para a vida cotidiana. A
segunda foi o processo de crítica de um grupo de historiadores,dentre os
quais Edward Palmer Thompson, à história social, no tocante à consciên-
cia de classe e às experiências manipuladas dentro dos termos culturais.
É possível ressaltar que as experiências desenvolvidas tiveram vigor
com a institucionalização do Centre for Contemporary Cultural Studies
(CCCS), sendo seus percussores Raymond Williams, Richard Hoggart,
E. P. Thompson e Stuart Hall. Eles trouxeram reflexões sobre a prática
educativa com uma visão sobre as disciplinas convencionais, o currículo
e o ensino formalizados pela academia em modelo, expressando o pri-
vilégio da cultura dominante em seus padrões textuais e representativos
excludentes com as diversas culturas subordinadas.
Observamos que a educação brasileira passa por mudanças que
redefinem o seu papel diante de uma sociedade também em transfor-
mação. Possivelmente o debate sobre os currículos tem sido acalorado,
conflituoso, porém tem indicado novas referências para a educação na
perspectiva dos direitos humanos, bem como das diferentes identidades
de geração, gênero e raça entre outras temáticas, em suas expressões e
produções culturais.
Dentro dessa perspectiva em que nos aproximamos dos EC, en-
quanto abordagem do pensamento pós-estruturalista, buscamos propor
novas formas de pensar e agir no campo das pesquisas das identidades e
das práticas pedagógicas. A partir dos autores Hall (2013; 2006), Giroux
(2011), Silva (2013), Gomes (2007) e Johnson (2006), dialogamos não ape-
nas com a ênfase na crítica às disciplinas acadêmicas “hiperespecializadas”
nos conteúdos de uma cultura eurocêntrica,ora ditas“altas culturas”, mas
também potencializando outras culturas de diferentes grupos humanos,
como jovens, mulheres, negras e negros e de territórios distintos.
Destacamos a importância dos EC na crítica ao paradigma tradi-
cional de hegemonizar o conhecimento de forma estruturalista e frag-
mentada. Percebemos a realidade da educação como paradoxal. Se por
um lado profissionais da educação, estudantes e pesquisadores/as pas-
sam a inserir os EC no trabalho educativo, por outro há resistência de
gestores e profissionais a recusar qualquer pedagogia e práticas culturais
93
que interagem em sua existência cotidiana com os estudantes, possivel-
mente buscando “conhecimentos científicos objetivos”.
Ao tratar dos EC com a educação, nos aproximamos das críticas
de Giroux.
Para os Estudos Culturais, a educação gera um espaço
narrativo privilegiado para alguns/algumas estudantes
e, ao mesmo tempo, produz um espaço que reforça a
desigualdade e a subordinação para outros/as. Cor-
porificando formas dominantes de capital cultural, a
escolarização frequentemente funciona para afirmar
as histórias eurocêntricas e patriarcais, as identidades
sociais e as experiências culturais dos/as estudantes
de classe média, ao mesmo tempo que marginaliza ou
apaga as vozes, as experiências e as memórias culturais
dos/as assim chamados/as estudantes da “minoria”.
(2011, p. 84).
Entendemos as críticas propositivas que os EC direcionam à edu-
cação no que correspondem a outras identidades que são ocultadas no
âmbito escolar. Ainda, observamos a relação com a cultura, o conheci-
mento e o poder. Essa resistência perpassa por todo sistema educacional
envolvendo os diversos setores em suas ações, e destacamos entre elas as
propostas curriculares, isto é, o formato de organização das disciplinas
convencionais.
Nessa divisão tradicional, possivelmente nossos/as estudantes têm
poucas oportunidades para estudar questões sociais com mais abertura
por meio de uma perspectiva interdisciplinar e multidisciplinar. De acor-
do com Johnson (2006), os estudos culturais partem do princípio inter-
disciplinar da relação entre as disciplinas acadêmicas como estudos lite-
rários, sociologia, estudos da mídia e comunicação, linguística e história.
Essa proposição ampliou o quadro das pesquisas históricas com a incor-
poração de atividades até então pouco investigadas, rompendo assim com
a compartimentação das ciências sociais (história, sociologia, psicologia,
economia, geografia) e privilegiando os métodos pluridisciplinares.
Uma vez que as estratégias de definição dos estudos culturais
não consistem apenas num simples plano dado às disciplinas tradicio-
nais, destacamos o caráter da complexidade enquanto ciência de seus
processos acadêmicos. Segundo Johnson,“os Estudos Culturais devem
94
ser interdisciplinares (e algumas vezes antidisciplinares) em sua ten-
dência” (2006, p. 22). O autor parte da crítica às disciplinas tradicio-
nais por suas metodologias específicas, em que não se religa o estudo
científico ao contexto. Elas não direcionam os objetos de estudos às
abstrações mais simples, tanto no plano da subjetividade quanto no
plano objetivo, dadas as experiências das relações sociais.
Nesse cenário de experiências situamos o contexto das políticas
públicas, que de certo modo tiveram contribuições provocadas pelos
diversos movimentos sociais,sobretudo o negro.27 Esses movimentos
foram capazes de gerar mudanças na agenda política, sobretudo para a
educação, como explicam Molina e Oliveira:
A demanda por cotas raciais e a conquista de leis,
como a Lei nº10639/2003, são grandes passos na bus-
ca por conteúdos e práticas educativas antirracistas.
Vale a pena, por isso, identificar na história o quanto
essas ações de resistência têm se constituído como es-
tratégias promotoras dos processos educativos. (2012,
p. 746)
Compreendemos que as mudanças sociais e culturais, somadas
aos mecanismos institucionais, têm provocado o surgimento de novos
currículos como propostas para eliminação do preconceito racial na so-
ciedade brasileira, que reconsideram e reconhecem a realidade brasileira,
cuja população, em grande medida, apresenta ascendência negra e afri-
cana multirracial, expressa de formas diferentes na cultura, na corporei-
dade e nas regiões.
Sob o olhar de de colonização dos currículos, Gomes (2007; 2012)
nos aponta o ingresso e a permanência de novos sujeitos no espaço es-
colar e traz novas teorias educacionais que orientam a socialização dos
saberes produzidos pela comunidade negra na formação inicial e con-
tinuada de professores/as. Ele trata da importância do diálogo com as
questões trazidas pelo movimento negro, assim como da articulação en-
tre o conteúdo da Lei 10.639/2003 e a educação da juventude negra.
27 A Marcha Zumbi contra o racismo, pela igualdade e pela vida, em 1995, entregou
ao governo federal um documento do qual foi retirado e instituído o “Programa de
Superação do Racismo e da Desigualdade Racial”.As resoluções da III Conferência
Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correla-
ta, realizada em Durban na África do Sul em 2011.
95
Na realidade mundial, bem como na situação brasileira, vão surgir
profundas mudanças nas relações de produção, nas comunicações e no
campo do conhecimento, a exemplo da educação. Como analisa Gomes,
Pode-se dizer que, na teoria educacional e na prática
do currículo, esses dois conjuntos de epistemologias
são produzidos por um movimento dinâmico: as re-
flexões internas à ciência e as questões colocadas pelos
sujeitos sociais organizados em movimentos sociais e
ações coletivas ao campo educacional. Quanto mais se
amplia o direito à educação, quanto mais se univer-
saliza a educação básica e se democratiza o acesso ao
ensino superior, mais entram para o espaço escolar su-
jeitos antes invisibilizados ou desconsiderados como
sujeitos de conhecimento. (2012, p. 99)
Nos argumentos dados, a autora nos convida a perceber como
o momento de efervescência e de tensões sociais se reflete no campo
educacional, da educação infantil à superior. Metodologias vem sendo
pautadas para discutir e reorientar conteúdos. Isso implica em pensar
e refletir as relações educativas e a proposta curricular como algo mais
significativo para os diversos sujeitos estudantis sem silenciá-los.
Desse modo, uma proposta curricular que recupere as culturas
negadas (negros, jovens, mulheres, entre outros) se destina a todos/as
membros de uma sociedade democrática, não se restringido a discipli-
nas ou unidades didáticas isoladas,dedicadas a um só campo de estudos.
Nesse sentido, os procedimentos de ensino e aprendizagem sugerem en-
volver todos os segmentos da escola, num conjunto de ações, metas edu-
cativas e conteúdos culturais que possa contribuir para a socialização e
desenvolvimento crítico dos indivíduos.
Ressaltamos que o trato pedagógico não deve dedicar um dia do
ano à luta contra preconceitos racistas, machistas, entre outros, mas estar
atento para que o currículo, como as situações didáticas,abarque as cul-
turas desprivilegiadas que mencionamos.
Em outras palavras, impulsionado pelas intervenções dos cientis-
tas e intelectuais envolvidos nos grupos feministas e nos movimentos so-
ciais negros, os EC passaram a oferecer algumas possibilidades de pensar
em práticas pedagógicas a partir dos diversos sujeitos, entre os quais os/
as estudantes. Nessa linha, os EC estimulam indagar os diversos discur-
sos e práticas culturais desenvolvidos dentro e fora da escola.
96
ESTUDOS CULTURAIS E CONTRIBUIÇÕES ÀS IDENTIDADES DE
JUVENTUDE, GÊNERO E RAÇA
Os estudos culturais tornaram-se referência no âmbito dos pro-
jetos de segmentos sociais específicos, como mulheres, negros, jovens,
entre outros, nas atividades acadêmicas, com destaque aos projetos de
pesquisas que tratam das categorias das identidades de juventude, gênero
e raça, sobretudo enfatizando a importância da educação na sociedade
contemporânea.
Em termos históricos, essa nova perspectiva de pesquisa de estu-
dos das “subculturas” advém primeiramente dos EC promovidos pelo
Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS), na Universidade de
Birmingham, na Inglaterra, fundado por Raymond Williams, Richard
Hoggart, E. P. Thompson e Stuart Hall nos meados dos anos 1950.
Nas últimas décadas, o processo de transformações foi amplamente
revelado numa complexidade de tendências, traduzidas em perdas, trans-
formações e, paradoxalmente, novas possibilidades. Essas mudanças es-
truturais massivas no “mundo real” das classes estavam começando a se
desmantelar não apenas pelo pós-guerra, pela desindustrialização e pela
recomposição da classe trabalhadora, mas também pelas tensões no de-
bate marxista sobre a questão de classe a respeito da identidade política.
As devidas alterações vão emergir no campo do conhecimento,
nas relações de produção, nas comunicações, nos espaços territoriais e,
sobretudo, nas mudanças identitárias. Essa produção de novas identida-
des fez com que se deixasse de considerar como única a identidade de
classe. Como afirma Hall, essa mudança surge com“o nascimento histó-
rico que passou a ser denominado de política de identidade, ou seja, uma
identidade para cada movimento” (2006, p. 45).
Escosteguy (2010), Johnson (2006) e Robbie (2011) veem a cons-
trução da nova concepção dos EC em duas vertentes: a literária,por Ray-
mond Williams e Richard Hoggart, com perspectiva de criticar o marxis-
mo ortodoxo em suas metanarrativas e seu economicismo ,estruturando
os estudos como algo que faz parte do modo de vida dos operários – tra-
balho, vida sexual, família e lazer. E a vertente histórica, por E. P. Thomp-
son, na perspectiva do marxismo evidenciado, atribuindo novo sentido
ao termo experiência a partir das particularidades da classe operária, ho-
mens e mulheres, em suas vivências não apenas em sua vida produtiva,
mas em sua expressividade cultural.
97
Apesar de se encontrar em fase de construção, é possível referen-
ciar a formulação dos EC como uma nova teoria cultural. Segundo Ri-
chard Johnson “os Estudos Culturais são um processo, uma espécie de
alquimia para produzir conhecimento útil: qualquer tentativa de codifi-
cá-los pode paralisar suas reações”(2006, p. 10).
Observamos que essa alquimia, em suas características humanas,
parte de uma construção coletiva, em contínua transformação, nos diver-
sos campos de estudos, que vêm oferecendo contribuições aos EC desde
os pós-marxistas e pós-estruturalistas, além dos movimentos feminis-
tas, dos intelectuais negros/negras e, sobretudo, nos variados momentos
históricos e territoriais. Desse modo, tendo iniciado na Inglaterra, a re-
percussão teórica e política dos EC em outros países tem revelado duas
situações: a primeira são as singularidades conjunturais de cada lugar, e
a outra as convergências afirmadas nas inquietações quanto às relação de
poder e em sua abordagem teórico-metodológica.
Ressaltamos as reflexões dos autores Johnson (2006) e Robbie
(2011) no que tange aos princípios metodológicos dos EC, defendendo
que devem ser considerados como abordagem interdisciplinar e algumas
vezes antidisciplinares. Aqui entendemos que a flexibilidade no percurso
conjuntural dos sujeitos não induz à espontaneidade, mas à intencionali-
dade, estratégica na conexão entre trabalho intelectual e político, levando
à análise do objeto de estudo e ao local da crítica, e subsidiando os sujei-
tos em suas demandas. Essa flexibilidade,como reflete Robbie, trata-se de
um modo de estudo que é engajado e que busca não a
verdade, mas o conhecimento e a compreensão como
um meio material e prático de nos comunicar com os
grupos e movimentos sociais subordinados e ajudar a
fortalecê-los. A teoria não precisa levar sempre direta-
mente à política. Mas o que tem me preocupado nos
Estudos Culturais é quando os desvios teóricos se tor-
nam excursões literárias e textuais e quando começo a
perder a noção da razão pela qual o objeto de estudo
é constituído, antes de mais nada, como o objeto de
estudo.(2011, p. 4243)
Observa-se que é papel do/a pesquisador/a e de profissionais da
educação repensar como os processos de construção das identidades se
desenvolvem dentro e fora do ambiente escolar. Deve-se perceber quais
identidades são construídas na emergência do mundo marcado pela di-
98
versidade, rompendo com concepções elitistas sobre cultura, bem como
com a hegemonia cultural. Os teóricos mostram a cultura nas distintas
ações cotidiana. Segundo Hall,
a cultura é uma produção. Tem sua matéria-prima,
seus recursos, seu “trabalho produtivo”. Depende de
um conhecimento da tradição enquanto “o mesmo
em mutação” e de um conjunto efetivo de genealogias.
Mas o que esse “desvio através de seus passados” faz
é nos capacitar, através da cultura, a nos produzir a
nós mesmos de novo, como novos tipos de sujeitos.
Portanto, não é uma questão do que as tradições fa-
zem de nós, mas daquilo que nós fazemos das nossas
tradições. Paradoxalmente, nossas identidades cultu-
rais, em qualquer forma acabada, estão à nossa frente.
Estamos sempre em processo de formação cultural. A
cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de
se tornar. (2003, p. 49).
A abordagem de Hall sobre a noção de cultura em processo de
formação entre“ser” e “se tornar” leva a refletir sobre os processos iden-
titários em suas diferenças também no processo de produção social e
cultural. Nesse caso, nas análises sobre o universo escolar, é inevitável
destacar as questões das diferentes culturas nele contidas, como assinala
Silva (2013).
É nessa perspectiva que os estudos sobre sujeitos e suas identida-
des são pautas da educação contemporânea e fazem conexão com a cul-
tura, com base nos teóricos Castells (1999), Hall (2006; 2013), Woordard
(2013) e Silva (2013).Em suas contribuições teóricas, eles explicam os
fenômenos sócio-políticos, destacando a concepção da identidade neste
contexto de transformação.
Percebe-se que o conceito de identidade está sendo discutido no
âmbito dos estudos culturais pela busca de novas explicações diante
do contexto dinâmico da contemporaneidade na relação simultânea
entre o “eu identidade pessoal”, e o “eu identidade coletiva”.
Identidade é um processo de construção e significado
com base em atributo cultural ou ainda um conjunto
de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(ais)
prevalece(m) sobre outras fontes de significados. Para
99
um determinado indivíduo ou ainda um ator coleti-
vo, pode haver identidades múltiplas. No entanto,
essa pluralidade é fonte de tensão e contradição tanto
no auto-representação quanto na ação social. (CAS-
TELLS, 1999, p. 22)
Na reflexão do autor, as identidades carregam vários elementos
constitutivos dos sujeitos, e essas diferenças nas relações sociais são con-
flituosas e/ou negociadas. Sendo assim, a construção da identidade é es-
tabelecida num contexto marcado por relações de poder, desmontando
a ideia essencialista e estruturalista (CASTELLS, 1999; HALL, 2003; SIL-
VA, 2013).
Entendemos, assim, que as análises dos estudiosos são conver-
gentes quando ressaltam a dimensão relacional das identidades e distin-
guem-se no que concerne à distribuição de poder entre os indivíduos e
grupos com base em contextos históricos e sociais.
Isso quer dizer que os processos identitários ancorados na condi-
ção geracional, especificando juventude, gênero e raça, são vivenciados e
significados de diferentes modos.
Segundo Silva (2013),
Têm sido analisadas assim as identidades nacionais,
as identidades de gênero, as identidades sexuais, as
identidades raciais e étnicas. Embora estejam em fun-
cionamento, nessas diversas dimensões da identidade
cultural e social, ambos os tipos de processos, eles obe-
decem a dinâmicas diferentes. (p. 84)
Observa-se que os processos de constituição das identidades são
distintos e plurais e que, de acordo com a formação de cada um/a, es-
ses elementos são diversos. No que corresponde à identidade no caso
do jovem, do negro, da mulher e do homem, nas demais dimensões es-
ses elementos implicam em diferenças. Possivelmente, essa construção
ocorre nas relações sociais, históricas e pelas circunstâncias econômicas
e políticas em transformação.
Entre as mudanças que fomentaram diversos campos das cultu-
ras,há aquelas nas culturas juvenis, outro conceito nos estudos culturais
implementados pelo (CCCS), que levou à valorização das pesquisas etno-
gráficas e das condições da juventude, ao mesmo tempo posicionando-a
100
como uma categoria distinta do mundo adulto, recusando as abordagens
funcionalistas. Como diz Santomé, “o adultocentrismo de nossa cultura
nos leva a uma ignorância realmente acerca do mundo idiossincrático da
infância e da juventude” (2011, p. 159).
A ideia de Santomé em traduzir o silenciamento das culturas in-
fantis e juvenis destaca que os caminhos sobre os estudos de juventude
são bastante recentes. Foi a partir dos anos 1980 e 1990 que houve maior
diversificação em termos teórico-metodológicos nos trabalhos sobre a
juventude no Brasil,possivelmente como resultado da influência dos es-
tudos culturais e seu interesse pelas diversas subculturas juvenis. Além
disso, outra hipótese de influência, diante dos efeitos da globalização,está
na dinâmica de inserção da juventude no mundo do trabalho e nos di-
versos problemas sociais que passaram a se relacionar com as diferentes
juventudes.
Ressaltamos, a partir de uma diversidade configurada de sentidos,
que se nomeia essa juventude conforme suas referências históricas, cul-
turais e de suas condições, que podem ser desiguais. Esses dinamismos,
aliás, não restringem a faixa etária, como nos diz Novaes (2000):
Nas definições de juventudes sempre há alguém em-
purrando alguém para ser jovem e não ter poder, ou
alguém que está retirando alguém da juventude e le-
vando–o a entrar na maturidade para trabalhar. De
fato, há interesses econômicos e políticos na delimi-
tação dessas fronteiras, razão pela qual elas podem
ser muito flexíveis na sociedade em que vivemos.
(p. 47)
A partir da definição da autora, o conceito de juventude não diz
respeito às características biológicas, mas à construção social e política
estabelecida pelas relações de poder. Dessa maneira, observamos que o
conceito de identificação é retomado nos estudos culturais com referên-
cias a poder e subjetividade.
Essa linha de pensamento aproxima os estudos culturais das ques-
tões sobre o poder da representação das diferentes identidades. Com
isso, nos EC, outros conceitos identitários como o gênero ganharam fô-
lego em sua atualização, dentro das perspectivas teóricas, muito argu-
mentadas pelos movimentos feministas, expressando uma identidade
discursiva socialmente construída num contexto complexo.
101
O conceito passa a exigir que se pense de modo plural,
acentuando que os projetos e as representações sobre
mulheres e homens aos diversos. Observa-se que as
concepções de gênero diferem não apenas entre as so-
ciedades ou momentos históricos, mas no interior de
uma dada sociedade, ao se considerar os diversos gru-
pos (étnicos, religiosos, raciais, de classe) que a consti-
tuem. (LOURO, 2011, p. 27)
Nessa perspectiva, os estudos de gênero superam o papel sexual,
demarcando uma estrutura discursiva constituída de um processo di-
nâmico, singular e plural, bem como fazem emergir deslocamentos da
identidade, construindo novas posições – a jovem, a mulher e a negra –,
que se referem a peculiaridades nos contextos históricos.
Ao aproximar as categorias de gênero e raça na sociedade brasilei-
ra, somos instigadas a perceber a conjuntura distinta de outros espaços
e tempos, pois, embora um artigo de Gonzalez sobre racismo e sexismo
tenha sido produzido em 1984, ainda encontramos essas visões em nossa
sociedade. Diz a autora:
A primeira coisa que a gente percebe, nesse papo de
racismo é que todo mundo acha que é natural. Que
negro tem mais é que viver na miséria. Por quê? Ora,
porque ele tem umas qualidades que não estão com
nada: irresponsabilidade, incapacidade intelectual,
criancice, etc. e tal. Daí é natural que seja perseguido
pela polícia, pois não gosta de trabalho, sabe? Se não
trabalha, é malandro e se é malandro é ladrão. Logo,
tem que ser preso, naturalmente. Menor negro só pode
ser pivete ou trombadinha (GONZALES, 1979b), pois
filho de peixe, peixinho é. Mulher negra, naturalmen-
te, é cozinheira, faxineira, servente, trocadora de ôni-
bus ou prostituta. Basta a gente ler jornal, ouvir rádio
e ver televisão. Eles não querem nada. Portanto têm
mais é que ser favelados. (GONZALEZ, 1984, p. 225)
Observa-se nos escritos da autora que a noção de raça, gênero e
juventude, incorporada nos EC após as críticas dos intelectuais negros,
foi percebida em suas diferenças,numa diversidade de situações. Ou seja,
ser homem, ser mulher, ser jovem e ser negro/a traz também comple-
xidade. As condições juvenis unem-se na mesma fase de vida, porém
102
a diversidade de experiências, potencialidades e dilemas envolve vários
fatores como políticos, econômicos e culturais, como descrevem Corti e
Souza (2005).
[…] à medida em que nos aproximamos ainda mais
da realidade social, vamos percebendo que estas cliva-
gens tendem a aumentar, inclusive no interior dos gru-
pos étnicos, das classes e assim por diante. Afinal, dois
jovens negros, por exemplo, que possuam diferentes
condições econômicas terão provavelmente experiên-
cias juvenis muito diferentes. (Ibidem, p. 14).
A efetivação de políticas estruturantes para a desconstrução de
imaginários racistas que não consideram a realidade trazida pelos jovens
negros e negras para a sala de aula, bem como sua identidade, cultura e
modo de vida, são desafios da sociedade e do sistema de ensino.
Segundo Santana,“estamos amadurecendo e construindo demo-
craticamente um novo projeto de sociedade. Nos últimos anos, passa-
mos a discutir amplamente o novo problema do racismo no interior
das relações sociais.”Essas discussões ampliam o debate como projeto
político de sociedade, não o restringindo ao aspecto econômico, mas
englobando os aspectos culturais e religiosos, enraizados nos processos
históricos. No cenário contemporâneo, em particular no mundo globa-
lizado, surgiram outras formas de desigualdades sociais e raciais, resul-
tando em grupos negados, excluídos na fragmentação de suas identida-
des, que se tornam distantes e desvinculadas dos mitos, das histórias,
das tradições.
O exercício de compreender as transformações atuais se dá a par-
tir do que aconteceu com a população negra escravizada no Brasil, pen-
sando as origens históricas dessa identidade expropriada, da cultura, da
história, da religiosidade – o que nos desafia a recontar, reconstruir e
ressignificar o que fora retirado, especialmente no contexto do processo
educativo.
Nesse sentido a noção de raça é importante para a constituição so-
cial em se tratando da sociedade brasileira, pois compreende uma com-
plexidade de sentidos que vão além das forças e estruturas que emergem
no contexto, sendo importante discutir esses temas enquanto categorias
de análise, e não pelo aspecto biológico. Nas considerações de Munanga
(2008), Gomes (2008) e Hall (2006), o conceito de raça não diz respeito
às características biológicas, mas à construção social e política.
103
Desse modo, para contribuir à proposição de políticas afirmati-
vas se faz necessário entender tanto o que aconteceu no passado como o
momento atual, pois a noção de raça, embora pareça antiga aos nossos
olhos, é bastante tensionada na sociedade. Para Castells, a questão racial
é “[…] importante e provavelmente mais do que nunca uma fonte de
opressão e discriminação”(1999, p. 71).
Portanto, os conceitos não são fixos, pois, como registrado ante-
riormente, os mesmos conceitos surgem do contexto e de problemas a
partir dos quais emergem sentidos. Desse modo, as noções de raça estão
sendo apresentadas no sistema escolar, com profundas controvérsias e
impondo desafios nos processos de acesso e permanência dos jovens no
ensino.
EDUCAÇÃO, ESTUDOS CULTURAIS E PERSPECTIVAS DE DIÁLOGO
Ao enfatizar a educação numa ação cultural, aproximamo-nos dos
EC por sugerir as dinâmicas de interação entre a noção de educação e cul-
tura. Consideramos ambas como algo humano, social e coletivo, pois são
tanto fontes, matérias primas, como possíveis resultados. Sendo assim,
pensamos e fazemos educação também como cultura.
Nessa perspectiva, o universo escolar, ao dialogar com os estudos
culturais, problematiza as instituições acadêmicas, observando os desa-
fios existentes, e propondo novas oportunidades. Considerando os pro-
cessos democráticos que poderão ser trabalhados nos currículos, como
afirma Giroux,
Os Estudos Culturais, portanto, levantam questões
sobre que conhecimentos são produzidos na univer-
sidade e como esses conhecimentos devem ampliar a
e aprofundar a vida pública democrática. Igualmente
importante é a questão de como democratizar as esco-
las de forma a capacitar aqueles grupos mal represen-
tados no currículo ou simplesmente não representa-
dos a produzir suas próprias autoimagens, contar suas
próprias histórias e se envolver num dialogo respeito-
so com outros grupos. (2011, p. 8990)
É nessa perspectiva que surge a proposta dos estudos culturais,
sobretudo relacionada com pedagogia da diferença e inclusão dos sujei-
tos políticos na reconstrução de suas expressões culturais, tanto quanto
devem os profissionais da educação e pesquisadores/asse debruçarem
104
nos estudos dos fenômenos sociais, na perspectiva da ampliação e com-
preensão da realidade.
[…] os Estudos Culturais estão menos preocupados
com questões de certificação e avaliação do que com
a forma como o conhecimento, os textos e os produtos
culturais são usados. A pedagogia torna-se, neste caso,
o terreno através do qual os/as estudantes discutem e
questionam, de forma critica os diversos discursos e
práticas culturais, bem como os meios populares de
comunicação com os quais interagem em suas existên-
cias cotidianas. (Ibidem, p. 85).
Isso significa, nas ideias de Giroux, que a prática dos EC no sis-
tema de ensino leva as universidades a uma riqueza na engenharia for-
mativa, no processo de preparação e no engajamento dos/as estudantes
por envolver diversas ações culturais, considerando a problemática da
inclusão dos sujeitos em sua realidade.
Ao refletir sobre as influências dos EC no campo da educação a
partir das experiências e das relações sociais, somos levados a repensar
os diversos sujeitos, agora inserindo o seu fazer na vida e na sociedade.
De acordo com Giroux, “ao desenvolver nossas práticas especificas, te-
mos muito a aprender dos trabalhos feitos em outros campos culturais,
assim como, talvez, tenhamos também algo a ensinar”(Ibidem).
Essa perspectiva exige pensar e sentir o que a abordagem da peda-
gogia crítica pode contribuir para o cuidado de si, o cuidado do mundo,
as lições de vida, que no campo da educação significa desafiar a pedago-
gia em direção a novos pressupostos metodológicos. De acordo com as
ideias de Silva(2013), a “pedagogia como diferença” surge em favor de
uma estratégia pedagógica e curricular que aborda a identidade e a dife-
rença, levando em conta precisamente as contribuições da teoria cultural
recente, sobretudo aquela de inspiração pósestruturalista.
A partir das ideias do autor acima, é possível dizer que os estudos
culturais incentivam a escola tradicional, assim como seus profissionais
da educação e pesquisadores/as, a investirem em práticas culturais, en-
raizadas nas experiências de vida, contemplando as dimensões humanas
nos âmbitos subjetivo e intersubjetivo e no caráter ativo, construtivo, afe-
tivo e histórico do sujeito, bem como nas relações dinâmicas com o meio
social.
105
Esse processo educativo possibilitará mudanças sociais, porém se
faz necessário problematizar, pensar sobre os discursos e suas relações
contextuais. É preciso refletir sobre os desafios que levariam educado-
res e pesquisadores/as a se inquietar e buscar construir novas propostas
curriculares e posturas práticas que contemplem os pertencimentos nas
identidades de geração, gênero e raça.
Na realidade, os estudos culturais permitem compreender como
o espaço social, histórico e cultural destacam-se no território brasilei-
ro, que tem constituído as identidades enquanto plural,além de permitir
observar as suas diferenças, como ao avaliar as ditas antigas identidades
para compreender o sentido das novas. E, no caso da juventude negra,
têm ocorrido modificações resultantes das interações sociais,no sentido
do conjunto das reflexões sobre o cenário escolar e seus currículos, numa
perspectiva de envolver os/as estudantes, professores/as e pesquisadores/
as afrobrasileiros mediante as práticas educativas cotidianas.
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108
FORMAÇÃO DE PROFESSORES E CURRÍCULO ESCOLAR
QUILOMBOLA: UM OLHAR A
PARTIR DE CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS
Delma Josefa da Silva28
INTRODUÇÃO
A comunicação oral que aqui apresentamos é fruto de pesquisa de
doutorado de tipo etnográfico e tem por objetivo retratar uma discussão
sobre a formação de professores e o currículo escolar numa escola qui-
lombola de Conceição das Crioulas (PE). Referência central do trabalho
é a Lei 9.394/1996, de Diretrizes e Base da Educação Nacional (LDB),
alterada pela Lei 10.639∕2003 e a Resolução nº 8, de 20 de novembro de
2012, que define Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação esco-
lar quilombola (BRASIL, 1996; 2003; 2012).
O referencial teórico metodológico se vale da teoria crítica do cur-
rículo em Silva (2000), Lopes e Macedo (2012; 2011) e Arroyo (2013);
da formação docente em Gatti, Barreto e André (2011), Souza (2009) e
Silva e Almeida (2010); das africanidades brasileiras referenciadas em
Cunha Jr. (1998) e Silva (2003; 2005); e dos estudos póscoloniais de ver-
tente latino-americana em Grosfoguel (2007; 2010) e Walsh (2005; 2009;
2010). Utilizamos de Bardin (1979) a técnica de análise de conteúdo para
a análise dos dados.
O trabalho está estruturado a partir da introdução, em que apre-
sentamos o tipo de abordagem da pesquisa e nossos referenciais teóri-
cos-metodológicos. Em seguida, enfocamos a formação de professores
e a educação escolar quilombola, nas quais analisamos a produção do
Grupo de Trabalho (GT) 21 no Encontro de Pesquisa Educacional Norte
e Nordeste (EPENN) sobre educação das relações étnico-raciais, uma vez
que no GT 8, referente à formação, não há uma produção sobre forma-
ção quilombola no período estudado de 20012011. No decorrer do texto,
focamos na educação escolar quilombola em Pernambuco, direcionando
nossas lentes para o processo formativo em uma escola na comunidade
de Conceição das Crioulas, para o que existe de avanços e para o que
109
ainda permanece como desafio. Por fim, apresentamos as conclusões,em
que anunciamos os resultados preliminares da pesquisa.
Enquanto resultados preliminares é possível afirmar que: a) no
que se refere à formação inicial e continuada do professor quilombola,
verificamos que a história e cultura afro-brasileira e africana estão in-
cipientemente contempladas no currículo do ensino superior, embora
exista todo um marco referencial legal e orientações teórico-metodoló-
gicas disponíveis, o que impacta na qualidade da educação básica;no que
se refere ao campo de pesquisa deste trabalho, o professor quilombola
tem sido agente de sua formação continuada, criando espaços formativos
e reflexivos de sua prática; b) o currículo escolar quilombola é resultado
da experiência política pelo direito humano à educação; c) identidades
culturais e ancestralidade são experiências carregadas de sentidos em es-
colas quilombolas; d) o diálogo da experiência dos movimentos sociais
negros com a escola imprime processos para assegurar direitos educacio-
nais para quilombolas.
110
culo XVI. Nesta pesquisa ouvimos professores que, a partir da reflexão
da prática, começaram a construir caminhos próprios e em alguns casos
com uma certa inovação – como afirma a gestora da escola –, “sem a
dependência dos técnicos da secretaria municipal de educação que che-
gavam com tudo pronto” (informação verbal).29 Essa afirmativa já diz
muito. Chegar com tudo pronto para trabalhar com professor é descon-
siderar a sua capacidade interativa e propositiva. Nosso trabalho situa a
prática pedagógica tendo por referência Souza, que afirma que
a noção de práxis pedagógica supõe uma teoria social,
nomeadamente uma teoria da ação coletiva, para com-
preendê-la e realiza-la na medida em que é constitu-
tiva da própria sociedade, assim como o são a práxis
econômica e a práxis política, entre outras. (SOUZA,
2009, p. 38)
A experiência pedagógica da formação continuada no chão da
escola campo de pesquisa tem articulado as famílias e os saberes que
elas vivenciam na vida econômico-produtiva-educativa. Consultam-se
as crianças sobre os problemas que vivenciam na comunidade e se per-
guntam sobre o papel que a escola pode ter frente a essa realidade, pois
“a formação continuada possibilita o encontro sistemático entre profes-
sores para fomentar diálogos em torno de suas práticas pedagógicas, dos
problemas que enfrentam e das soluções que tecem”(SILVA; ALMEIDA,
2010, p. 17). Dessa aproximação sistemática nasceu a decisão de enfren-
tar a cultura do “trazer tudo pronto” e trabalhar o princípio do projeto
pedagógico da escola a partir da metodologia de projeto. O projeto está
ligado à experiência concreta, está situado num contexto e é refletido nas
políticas curriculares em que
o direito à diferença vem sendo fortemente afirmado
por diferentes movimentos na sociedade contemporâ-
nea. Esses movimentos trazem impactos na educação,
especialmente nas disputas relativas aos currículos es-
colares, portanto, na formação de professores. (GAT-
TI; BARRETO; ANDRÉ, 2011, p. 24)
Ao decidir trabalhar por projeto, a escola criou uma dinâmica in-
tensa de acompanhamento da prática educativa e também da formação
continuada dos professores. Eles têm encontros regulares para acompa-
29
111
nhar o desenvolvimento da relação de aprendizagem e do envolvimento
das famílias, e também a dinâmica das necessidades de aprofundamento
na formação continuada, para ter foco no projeto, tendo consciência que
este tem uma temporalidade referenciada, ainda que não se encerre me-
ramente pela cronologia. Assim há sempre a possibilidade de um projeto
ser desdobrado ou aprofundado.
Estudos sobre o ensino de história e cultura afro-brasileira e afri-
cana têm indicado que a formação de professores passa por significativo
desafio para formar um professor crítico reflexivo, que trabalhe no cur-
rículo escolar a história e cultura afro-brasileira, africana e indígena de
forma positiva. Há desafios a serem superados, como desenvolver expe-
riências positivas compreendendo que
O sucesso das políticas públicas de Estado, institucio-
nais e pedagógicas […]dependem necessariamente
de condições físicas, materiais, intelectuais e afetivas
favoráveis para o ensino e para a aprendizagem.[…]
Depende ainda de trabalho conjunto, de articulações
entre processos educativos escolares, políticas públi-
cas, movimentos sociais, visto que as mudanças éticas,
culturais, pedagógicas e políticas nas relações étnico-
-raciais não se limitam à escola. (BRASIL, 2004, p. 13)
As experiências dos sujeitos são fundamentais para a implementa-
ção de um currículo com sentido. Com vistas a compreender as pesqui-
sas produzidas sobre o assunto, realizamos um levantamento dos traba-
lhos do EPENN 2001-2011 e organizamos sua tematização.
Neste levantamento, foi possível agruparmos seis temas: ancestra-
lidade, currículo, educação do campo, educação formal, identidade ne-
gra e sentidos da educação. De acordo com Bardin, “o tema é a unidade
de significação que se liberta naturalmente de um texto analisado segun-
do critérios relativos à teoria que serve de guia à leitura”(1979, p. 105).
Verificamos que ganha centralidade no conjunto dos trabalhos as pes-
quisas sobre ancestralidade e currículo, seguidas da investigação sobre a
educação formal, incluindo a educação do campo, e pesquisas referentes
à identidade negra e sentidos da educação, conforme pode ser verificado
no quadro 1.
112
Quadro 1: EPENN2001-2011 (GT 21 – Educação e Relações Étnico-Raciais)
Tradição e desenvolvimento
(2009); Importância da oralidade
Ancestralidade (2011); Linguagem dos mitos (2011);
4 trabalhos
Silenciamento dos mitos no livro
didático
TOTAL 17 trabalhos
113
Quadro 2: Resultados de pesquisas com foco no currículo
Tema Objetivos Resultados IES30
Os saberes tradicionais
sofreram alterações ao longo
do tempo, entretanto em
Verificar resultados
todos os períodos históricos
de investigações
contribuíram para o
que colaboram com
Educação desenvolvimento econômico, Uepa
a compreensão dos
formal político e cultural do Brasil. UFPA
saberes quilombolas
***
na direção dos
As atividades sociais e
estudos culturais.
econômicas permeadas pela
cultura representavam a luta
constante pela identidade.
A escola revela desejo e
preocupação para trabalhar
com a história e cultura da
Compreender
comunidade, porém não
a influência do
consegue questionar e
currículo escolar no
transgredir o currículo oficial.
processo de formação
Currículo *** Uneb
identitária dos
Existem algumas práticas
educandos, refletindo
pontuais na escola que estão
a relação identidade e
colaborando no processo de
autoestima.
identidade étnico-racial dos
educandos e na positividade
de sua autoestima.
Fonte: Delma Silva, 2014
114
Na pesquisa sobre educação e currículo nos chama a atenção o
campo de tensão apresentado. Os pesquisadores captaram que nes-
se contexto de tensões há rupturas sendo construídas nessa teia em
que há influências mútuas nas relações de poder entre dominantes e
dominados. Esses processos, à medida que explicitam as relações de
dominação, também revelam as resistências e insurgências travadas.
As pesquisas nos ajudam a compreender que a prática curricular
que está inscrita no chão da escola não está dada, mas é construída num
cotidiano em que se situam ações que indicam permanências e anún-
cio de mudança. Esse processo vem de um protagonismo dos sujeitos
quilombolas em suas organizações locais e nacionais, em diálogo com
o campo educacional e com outros campos, o que ao longo da última
década provocou no Estado brasileiro o reconhecimento da pertinência
de políticas educacionais específicas para os quilombolas. Como afirma
uma professora entrevistada na escola campo de pesquisa,
A educação escolar quilombola ela vem se dá justa-
mente na nossa forma de fazer diferente na sala de
aula. A nossa prática diária, porque a educação esco-
lar quilombola ela não tem que ser vivenciada ape-
nas no mês de novembro, porque as outras escolas do
município e fora do município, elas vê na gente essa
referência quando chega novembro e a gente como
integrante dessa educação escolar quilombola, a gente
não tem que trabalhar só o mês novembro. Então a
gente já começa a trabalhar dentro dos nossos conteú-
dos a gente sempre procura, inserir a nossa história, a
história do nosso povo, essa diversidade que a gente
tem aqui, que também existe em outros quilombos.
(informação verbal)3031
É nessa compreensão de educação que professores e professoras
atuando nacionalmente no movimento educacional quilombola refletem
sobre si e desenvolvem a práxis pedagógica de que Souza (2009) nos fala.
A trajetória de organização política e social dos quilombolas em seus ter-
ritórios e na vida nacional brasileira reflete ao mesmo tempo uma coleti-
vidade que, sendo plural, tem elementos-chave comuns de identidade – a
ancestralidade, a territorialidade –, mas também a particularidades, aquilo
31 29 anos
115
específico de cada comunidade. É historicamente significativa a conquis-
ta desses sujeitos político no campo educacional que, como afirma Souza
(2009), a fim de se tornarem mais humanos, desenvolvem uma ação cole-
tiva institucional, portanto, uma ação de todos os seus sujeitos (discentes,
docentes, gestores), permeada pela afetividade, na construção de conheci-
mento ou de conteúdos pedagógicos que garantam condições subjetivas e
algumas objetivas do crescimento humano de todos os seus sujeitos.
Verificamos por meio de nossa pesquisa que a experiência de cur-
rículo escolar quilombola em Conceição das Crioulas é resultado da ex-
periência política da comunidade, desenvolvida de forma articulada com
as professoras e todos os que, no interior da escola, fazem a educação,
mas uma educação que não é restrita à escolarização. Há uma práxis pe-
dagógica que, nos termos postos por Souza,
[…] são processos educativos em realização, historica-
mente situados no interior de uma determinada cultu-
ra, organizados, de forma intencional, por instituições
socialmente para isso designadas implicando práticas
de todos e de cada um de seus sujeitos na construção
do conhecimento necessário à atuação social, técnica e
tecnológica. (Ibidem, p. 34)
No que se refere à educação escolar quilombola em Pernambuco, a
Secretaria de Educação realizou em 2006 o Primeiro Seminário Estadual
de Construção de Política Educacional Quilombola, uma parceria com
a Articulação Estadual das Comunidades Quilombolas de Pernambu-
co. Nesse seminário se constatou que o direito humano à educação para
essas comunidades ainda está incipientemente contemplado seja nas
práticas curriculares do/a professor/a que não é quilombola, seja até na
ausência de escolas nas comunidades quilombolas do estado.
Embora o Estado tenha colocado em discussão essa orientação em
2006, em Conceição das Crioulas, desde 1996, a comunidade já tinha
construído uma proposta específica e diferenciada em suas escolas. Com
sua prática e com a construção do seu projeto político pedagógico, Con-
ceição das Crioulas é referência nacional no processo que fundamentou
a necessidade de uma educação específica para os quilombolas. O debate
se desenvolveu e se aprofundou no âmbito das organizações quilombolas
em suas esferas local e nacional, com representações da sociedade e do
poder público e, em 20 de novembro de 2012, foram homologadas as
Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação escolar quilombola.
116
No âmbito do estado de Pernambuco, em 2015 foi retomado o debate
pela Gerência de Políticas Educacionais em Educação Inclusiva, Direitos
Humanos e Cidadania para construção do Plano Estadual de Implemen-
tação da história e cultura africana, afro-brasileira e indígena na rede
estadual de ensino de Pernambuco.
A trajetória de escolarização dos quilombolas e do seu direito a
uma educação específica dentro do território nacional reflete um proces-
so de conquista marcado por situações de negação, interdição e também
por ruptura e fratura. De sujeito negado, violado, os quilombolas se co-
locaram como sujeitos políticos e de direito e vêm conquistando o lugar
de sujeitos epistêmicos. No ano de 2012 duas quilombolas defenderam
dissertação e tese em educação: uma na Universidade de Brasília (UnB),
e a outra em Curitiba, na UFPA. O ingresso de quilombolas na pós-gra-
duação é resultado de muito esforço, dedicação e superação dos obstácu-
los postos que estão sendo transpostos, e gradativamente os quilombolas
estão ingressando tanto no ensino superior, quanto na pós-graduação.
Conceição das Crioulas tem o maior número de professores da educação
básica com ensino superior.
Com a atuação pela democratização do acesso à educação vindo
de alguns intelectuais e pelos movimentos sociais negros, conquistou-se
o acesso, mantendo-se ainda alguns gargalos, uma vez que a educação
básica não atingiu ainda cem por cento da população em idade escolar, e
o currículo, nesse contexto, permaneceu direcionado aos interesses for-
mativos das classes dirigentes, levando ao que Sacristán atesta:
Não será fácil melhorar a qualidade do ensino se não
se mudam os conteúdos, os procedimentos e os con-
textos de realização dos currículos. Pouco adiantará
fazer reformas curriculares se estas não forem ligadas
à formação dos professores. Não existe política mais
eficaz de aperfeiçoamento do professorado que aquela
que conecta a nova formação àquele que motiva sua
atividade diária. (SACRISTÁN, 2000, p. 10)
Ao trazer para o debate a questão da formação do professor para
a mudança curricular, destacamos nesse aspecto a relevância posta pelas
Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação escolar quilombola em
ser o professor prioritariamente da comunidade e compartilhar da iden-
tidade de ser quilombola, pois isso fortalece a cultura, a ancestralidade e
dá sentido ao projeto que se pretende com o currículo: educar para quê?
117
Compreende-se que a educação é um processo amplo, inesgotá-
vel,e desenvolve-se articuladamente com a cultura. No que se refere à
educação escolar quilombola, uma referência a ser considerada é a diver-
sidade cultural dos povos que estão situados em quase todos os estados
brasileiros. Esses povos possuem e estabelecem relações educativas, éti-
cas, de respeito e de trocas entre si e estão organizados nacionalmente.
Nesse princípio da diversidade, eles mantêm suas referências an-
cestrais específicas, mas compartilham entre si experiências significati-
vas que podem contribuir para a sua permanência no lugar. Essas expe-
riências explicitam a interculturalidade entre os quilombolas. A relação
com a terra como território ancestral e de projeção de futuro é um ele-
mento que consideram como referencial de patrimônio histórico imate-
rial e que se constitui também em dimensão educativa.
Por essas diversidades é que falamos em educações quilombolas no
Brasil, compreendendo as relações existentes no dia a dia das pessoas e en-
tre as gerações: a relação entre homens, mulheres, crianças, adolescentes,
jovens e idosos e a relação deles com a terra, com o sagrado, com a cultura.
A obrigatoriedade do ensino da história e cultura afri-
cana e afro-brasileira na educação básica implica em
se adotar novas posturas em relação aos elementos que
compõem a história oficial do Brasil. A conexão deve
ser feita tendo como referência a Lei 10.639/2003. Po-
rém mesmo antes das mudanças aqui apontadas, co-
munidades quilombolas em vários lugares do país já
desenvolviam processos educativos que podem servir
de base para pensar a educação escolar nesses territó-
rios. (SILVA, 2012, p. 2)
Esse processo envolve todas as pessoas que estão no território qui-
lombola, dando-lhes sentido de territorialidade na acepção de “perten-
cer àquilo que nos pertence”.
A ideia de territorialidade se estende aos próprios
animais, como sinônimo da área de vivência e de re-
produção. Mas a territorialidade humana pressupõe
também a preocupação com o destino, a construção
do futuro, o que, entre os seres vivos, é privilégio do
homem. (SANTOS; SILVEIRA, 2001, p. 19)
Quando numa relação com uma comunidade quilombola, per-
cebemos a preocupação em cuidar das águas, muitas vezes onde eles
118
cultivam peixes e de onde tiram o barro dos arredores para produzir a
cerâmica decorativa ou utilitária. Vemos que na relação com a natureza
existente no território tudo está integrado num ciclo de vida, do qual a
morte faz parte. A ancestralidade é uma das dimensões que dão sentido
a essa relação vida-morte.
Nessa direção, temos no pensamento de Abdias do Nascimento a
defesa do “quilombismo como um conceito emergente do processo his-
tórico-cultural da população afro-brasileira” (2009, p. xx). Somam-se a
esse legado de Abdias a produção de tantos outros intelectuais negros e
não negros que sedimentarão o caminho para a afirmativa de duas ques-
tões fundamentais no Brasil: 1)a existência do racismo como determi-
nante na criação de obstáculos de inserção, visibilidade e participação
dos afrodescendentes na sociedade nacional, e 2)a efetiva participação e
produção de negros e negras no pensamento educacional brasileiro.
Sobre o primeiro ponto gostaríamos de brevemente informar que
a Frente Negra Brasileira (FNB) foi uma ação posterior à Imprensa Ne-
gra, e ambas, dentro do Estado Democrático de Direito, assumiram o
protagonismo de denunciar o racismo no Brasil. Desse modo já estavam
produzindo, em 1930, o que Walter Mignolo conceitua por “desobediên-
cia epistêmica”, pois a FNB impunha uma práxis, uma compreensão teó-
rica articulada numa ação social concreta. Na atuação da FNB não havia
pauta de separatismo; ao contrário, nos textos é comum haver a expres-
são “em comunhão”. Outro fato que chama a atenção é que a FNB atua
onde o Estado não chegava de modo algum. Além da educação, sua prin-
cipal atuação envolvia assistência social, na preparação para o trabalho, e
assistência médica, odontológica, jurídica e cooperativa.
Sobre o segundo ponto, o exercício de Kabengele Munanga (2000)
em organizar a produção de um século sobre a bibliografia sobre o ne-
gro no Brasil é inconteste. E, para fechar esse ponto, Nilma Lino Gomes,
num artigo denominado A contribuição dos negros para o pensamento
educacional brasileiro, afirma:
Podemos considerar que existem razões muito pro-
fundas para que a reflexão e a prática pedagógica não
fiquem distantes da articulação existente entre relações
raciais e educação. Nos últimos anos, temos acompa-
nhado uma crescente preocupação entre alguns teóri-
cos da educação, em eleger outras categorias de análise
que, juntamente com a classe social, o trabalho, o gê-
119
nero, a cultura, consigam explicitar um pouco mais a
complexidade das relações estabelecidas na escola e na
sociedade brasileira. (GOMES, 1997, p. 17)
Uma reflexão que produzimos ao concluir esse levantamento é
sobre o protagonismo negro nesse processo: o deslocamento do negro
enquanto objeto de pesquisa para o negro produtor de conhecimento.
EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA EM PERNAMBUCO:
AVANÇOS E DESAFIOS
No que se refere à educação escolar quilombola, as conquistas que
existem traduzem experiências das mais diversas desenvolvidas em pra-
ticamente todo o território nacional, desde a resistência no quilombo, no
que se refere à luta pelo direito ao território, à produção de conhecimen-
to de pesquisadores, professores e ativistas de movimentos, muitos des-
ses, negros que conseguiram pôr na agenda política nacional o direito à
educação quilombola. Nos anos 2000, quilombolas começam a ingressar
na pós-graduação e a obter títulos de mestre e doutor. De Conceição das
Crioulas, por exemplo, em 2012 uma quilombola foi a primeira professo-
ra a defender dissertação. Em 2015 duas professoras e gestoras de escola
passaram no mestrado em educação também da UnB, sendo uma delas a
primeira quilombola a tornar-se mestre em educação.
Os quilombos são uma experiência de povos africanos que foi ex-
pandida para as Américas; na América Portuguesa amplia-se a partir do
século XVI. A resistência ao regime escravagista se deu de diversas for-
mas, dentre elas rebeliões, insurreições e movimentos dos escravizados
que “jamais abriram mão de serem agentes e senhores de suas vidas”(S-
CHWARCZ; STARLING, 2015, p. 97). Para as autoras citadas, “é possível
que a experiência dos quilombos tenha construído um lugar radicalmen-
te novo no panorama político, capaz de conciliar, em igual medida, resis-
tência e negociação, rejeição e convivência” (Ibidem).
Historicamente, o Quilombo dos Palmares é a referência de maior
manifestação de rebeldia contra o escravismo na América Latina. Para
José Jorge de Carvalho, a ordem imposta pelos brancos colonizadores
moldou
profunda e definitivamente, até os dias atuais, o per-
fil ideológico, cultural e psicossocial de todos os paí-
ses das Américas Negras. E em cada um deles, se foi
construindo uma saga das lutas dos escravos, com seus
120
sucessos, fracassos, perseguições, retratações, armistí-
cios, traições e atos de heroísmo (BRASIL, 2000, p. 11).
As experiências diversas, inclusive de lutas e resistências de povos
africanos e afro-brasileiros por liberdade e direito, atravessaram séculos
no Brasil em diversos campos das políticas públicas: acesso à terra, habi-
tação, saúde, educação.
Após a Constituição de 1988, a mobilização dos quilombolas por
educação em Pernambuco intensificou-se, sobretudo após a Marcha
Zumbi 300 anos, que aconteceu em Brasília. Quilombolas do Brasil intei-
ro a partir da Marcha criaram a Coordenação Nacional de Comunidades
Quilombolas (Conaq),e a partir daí foram gradativamente instituídas as
articulações em cada estado da Federação.
Em Pernambuco, a Articulação Estadual de Quilombos realizou
quatro encontros no período de 1998 a 2015. O I Encontro Estadual das
Comunidades Quilombolas do Estado aconteceu em Garanhuns, e o
diagnóstico da situação educacional era grave: elevados índices de anal-
fabetismo, falta de escolas nas comunidades e currículo eurocêntrico.
Em 2000, a Articulação Estadual Quilombola realizou o II Encon-
tro e contou com o apoio de instituições como o Centro de Cultura Luiz
Freire, o Oxford Committee for Famine Relief (Oxfam) e o projeto Ima-
ginário da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Realizado em
maio em Salgueiro, houve uma ampliação do diagnóstico das comuni-
dades, incluindo a situação territorial: a maioria das comunidades tinha
intrusos no território e sua liderança ameaçada.
No que se refere às iniciativas do poder público e os passos para
implementar uma educação escolar quilombola, a Secretaria de Educa-
ção de Pernambuco realizou em 2006 o Primeiro Seminário Estadual de
Construção de Política Educacional Quilombola, uma parceria com a
Articulação Estadual das Comunidades Quilombolas de Pernambuco.
Nesse seminário constatou-se que o direito humano à educação para
essas comunidades ainda está incipientemente contemplado, seja nas
práticas curriculares do/a professor/a que não é quilombola, seja até na
ausência de escolas.
Também em 2006, o Movimento Estadual Quilombola organizou
em Gravatá seu terceiro encontro, discutindo educação e regularização
fundiária e traçando estratégias para cobrar do governo os compromis-
sos anunciados.
121
Em 2015 em Moreno ocorreu o IV Encontro de Comunidades Qui-
lombolas de Pernambuco, no qual se verificou que há poucos avanços na
garantia de uma educação escolar quilombola. A comunidade que mais
avançou foi Conceição das Crioulas, que conquistou escola de ensino mé-
dio, concurso específico para professores quilombolas da própria comu-
nidade e que tem em seu território o acesso pleno à educação básica. Em
2016 houve o segundo concurso público para professores quilombolas.
No que se refere ao direito à educação e ao currículo escolar qui-
lombola, há muito o que caminhar. Para muitos o acesso ainda é um
gargalo, uma vez que são poucas comunidades no Brasil que têm seus
jovens com a educação básica completa.
CONCLUSÃO
Na última década a disciplina de história e cultura afro-brasileira
e africana começou a integrar, por força de lei, o currículo das licen-
ciaturas nas instituições de ensino superior. Verificamos nas entrevistas
com as professoras que as IES em cujas licenciaturas encontram-se os
conteúdos da disciplina têm feito uma abordagem etnocêntrica colo-
nialista. Os professores da escola campo de pesquisa relatam que têm
dialogado com as coordenações dos cursos que frequentam em IES
do Sertão, no sentido de contribuir com conteúdo e abordagens que
apresentam o protagonismo de africanos e afro-brasileiros diante da su-
bordinação colonialista. Eles têm conseguido realizar seminários com
representação de pessoas da comunidade para falar sobre quilombos e
desse modo trazer as experiências desses sujeitos políticos e epistêmicos
para o ambiente acadêmico.
Verificamos que a formação continuada na escola campo é uma
prática desenvolvida com regularidade. A formação que o município
realiza não tem regularidade e muito frequentemente não responde a
uma necessidade das professoras nos seus contextos sócio-político-cul-
turais na relação de aprendizagem e na especificidade da formação do
professor quilombola. Quando acontece é ampla, para todos, sendo o
especifico raramente contemplado.
A produção de conhecimento sobre currículo escolar quilombola
está silenciada no GT 12, que discute o tema, no EPENN e na Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação(ANPEd). Isso não
significa que não existam práticas acontecendo e que produções não se-
122
jam submetidas em outros GTs. Em 2011, por exemplo, um trabalho so-
bre currículo quilombola foi aprovado no GT 21, que trata da educação
das relações étnico-raciais. Uma pergunta que fica é: quem produz sobre
currículo quilombola não está submetendo o trabalho ao GT 12, ou o
referido GT não tem aprovado os trabalhos que estão sendo submetidos
sobre o assunto?
Na formação continuada de professores e na práxis pedagógica,
as identidades culturais e a ancestralidade são experiências carregadas
de sentidos que tecem o fazer educacional na escola campo de pesquisa.
Essas práticas conseguem imprimir sentido para que os alunos estejam
na escola – os relatos das professoras indicam que os estudantes se iden-
tificam e constroem uma relação de pertencimento com a escola.
As experiências carregadas de sentido estão assentadas na memória
dos mais velhos, no encontro com os mais jovens e no diálogo dos movi-
mentos sociais negros com a escola. É esse diálogo que imprime processos
de pertencimento, que tem assegurado direitos e proporcionado emancipa-
ção como, por exemplo, a conquista pela segunda vez do concurso especí-
fico para professor quilombola na comunidade, realizado em abril de 2016.
Uma referência forte tanto para as práticas de professores quanto
para o significado que os estudantes atribuem à escola é o diálogo esta-
belecido entre as pessoas com vivência nos movimentos sociais negros e
quilombolas, e a relação de colaboração que constroem com a escola. A
experiência em Conceição das Crioulas inicia como movimento social e,
a partir dessa atuação, vai discutir o fazer da escola dentro do território
quilombola. É um movimento que imprime processos sociopolíticos e
culturais articulados com a política social do direito humano à educa-
ção quilombola, processos esses, por vezes, carregado de tensões, muitas
mobilizações e que têm colaborado sobremaneira com a superação de
entraves históricos no que se refere à formação de professores e ao currí-
culo escolar quilombola.
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126
MULTICULTURALISMO NA IMPLEMENTAÇÃO DA
EDUCAÇÃO RELIGIOSA NO CURRÍCULO ESCOLAR
Laiz Gomes Ferreira31
Sônia Regina Fortes da Silva32
INTRODUÇÃO
No contexto da educação nacional apresenta-se uma proposta
curricular de educação religiosa, sua implementação entre o contexto
conservador do cotidiano de algumas escolas, os projetos pedagógicos
explícitos ou implícitos na prática docente e os movimentos sociais na-
cionais, a fim de correlacioná-los com as estruturas organizacionais do
currículo nas escolas.
Questiona-se, nesta investigação, a proposta de mudança dos pres-
supostos tradicionais do ensino religioso para uma proposta que fun-
damente o currículo diante dos interesses dos educandos da escola em
sua dinâmica cultural, trazendo a diversidade religiosa para uma visão,
ora multicultural, ora intercultural ou monocultural. Visões estas que
perpassam pela organização disciplinar do currículo escolar, pela visão
multicultural e intercultural que a religião possa oferecer ao cotidiano
da vida do educando e da escola. Questão esta, muitas vezes, com a pre-
tensão de solução para os processos divergentes e discriminatórios ét-
nicos e preconceituosos da elite social e econômica, mas que em alguns
sistemas e escolas têm acirrado o conflito religioso entre os educandos
e os professores. Tal conflito materializa-se no sentido da qualificação
docente para esta área e na ausência da valorização das opções religiosas
dos educandos neste componente curricular, diante das propostas de si-
tuações de ensino dos professores, evidenciando os dilemas entre os sa-
beres docentes, as crenças da vivência e da prática religiosa na mediação
do ensino-aprendizagem.
Dessa forma, no estudo destacou-se na literatura sobre o tema do-
cumentos, que orientam a proposta curricular para a educação religiosa,
e autores que têm se dedicado à inserção da diversidade cultural no con-
127
texto socioeducativo da religiosidade nas suas relações entre família-es-
cola, preservando as culturas da comunidade.
VISÃO MULTICULTURAL E INTERCULTURAL NAS DIRETRIZES
CURRICULARES NACIONAIS PARA O ENSINO RELIGIOSO
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9.394, de 20
de dezembro 1996, (LDBEN/1996) orienta que a finalidade da educação
básica, em seu artigo 22, é “desenvolver o educando, assegurar-lhe a for-
mação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe
meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores”. Integram
nessa lei a formação para a cidadania e o ensino religioso. Inicialmente,
em sua promulgação, retirava da responsabilidade do Estado a proposta
curricular e a disponibilidade de profissionais para o seu ensino, sem co-
brar aos cofres públicos por essa formação, perante a negociação entre os
representantes das religiões e os educadores, realizada para a construção
do texto legal.
Essa orientação legal estipulava, em seu artigo 33, que
o ensino religioso, de matrícula facultativa, constitui
disciplina dos horários normais das escolas públicas
de ensino fundamental, sendo oferecido, sem ônus
para os cofres públicos, de acordo com as preferências
manifestadas pelos alunos ou por seus responsáveis,
em caráter: I – confessional, de acordo com a opção
religiosa do aluno ou responsável, ministrado por pro-
fessores ou orientadores religiosos preparados e cre-
denciados pelas respectivas igrejas ou entidades reli-
giosas; ou II – interconfessional, resultante de acordo
entre as diversas entidades religiosas, que se responsa-
bilizarão pela elaboração do respectivo programa.
Observa-se em seu texto o conflito entre os ensinos confessional
e interconfessional, em que, em nenhum momento, orientava-se para
uma visão multicultural ou intercultural, prevalecendo a disputa pela
oferta da religião no Estado, a fim de congregar e buscar a oficialização
do domínio de uma crença, mudando somente de mãos a manipulação
religiosa.
A Lei nº 9.475, de 23 de julho de 1997, mudou a redação do arti-
go 33 da LDBEN/1996, orientando até os dias atuais o ensino religioso,
estabelecendo:
128
De matrícula facultativa, é parte integrante da for-
mação básica do cidadão e constitui disciplina dos
horários normais das escolas públicas de ensino fun-
damental, assegurado o respeito à diversidade cultural
religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de pro-
selitismo. § 1º Os sistemas de ensino regulamentarão
os procedimentos para a definição dos conteúdos do
ensino religioso e estabelecerão as normas para a ha-
bilitação e admissão dos professores. § 2º Os sistemas
de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas di-
ferentes denominações religiosas, para a definição dos
conteúdos do ensino religioso.
A atual orientação, buscando o caráter laico do ensino, ao ter em
sua redação “assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do
Brasil”, reconhece os movimentos sociais, orientando a participação da
sociedade na dimensão religiosa no currículo, substituindo a proposta
anterior centralizada nas entidades religiosas. No entanto, as entidades
civis persistem na luta pela participação ao solicitarem ao sistema de ensi-
no que cumpra seu direito consultivo ao currículo escolar. Nessa disputa
ideológica, mantém-se a nomenclatura “ensino religioso” no atual texto
legal, como um ranço da tradição nas negociações, dando ao currículo
restrições à educação multicultural e intercultural. No limite do direito de
participação nesta dimensão, deixa para as normas e instruções estaduais
e municipais a responsabilidade de ampliar e orientar a abertura para a
discussão da religião entre as diversas culturas discentes e docentes, inse-
ridas nas comunidades das escolas.
A Lei nº 9.475, de 22 de julho de 1997, normatiza as inovações do
texto original da LDBEN/1996 com as seguintes orientações: (a) retirou o
caráter confessional do ensino religioso, presente na antiga expressão sem
ônus para os cofres públicos e o denomina religiosa, expressando no texto
as preferências pelos alunos ou responsáveis; (b) inclui o ensino religioso
– ER como parte integrante da formação básica do cidadão; (c) determi-
nou o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer
formas de proselitismo e (d) remeteu aos sistemas de ensino a respon-
sabilidade de regulamentar os procedimentos pertinentes. A Câmara da
Educação Básica, do Conselho Nacional de Educação (CNE), implemen-
tando este entendimento, ao fixar as diretrizes curriculares nacionais para
o ensino fundamental, assim estabeleceu na Resolução nº 2 de 1998:
129
Em todas as escolas deverá ser garantida a igualdade
de acesso para alunos a uma base nacional comum, de
maneira a legitimar a unidade e a qualidade da ação
pedagógica na diversidade nacional. A base comum
nacional e sua parte diversificada deverão integrar-se
em torno do paradigma curricular, que vise a estabe-
lecer a relação entre a educação fundamental e a) vida
cidadã através da articulação entre vários dos seus as-
pectos como: saúde, sexualidade, vida familiar e social,
meio ambiente, trabalho e ciência e tecnologia, cultura,
linguagens e b) as áreas de conhecimento: língua por-
tuguesa, língua materna (para as populações indígenas
e migrantes), matemática, ciências, geografia, história,
língua estrangeira, educação artística, educação física
e educação religiosa.
Sob o ponto de vista de Carneiro (2011), o ensino religioso com-
preende três dimensões: 1) dimensão antropológica em que há uma face
humana a ser trabalhada, aclarada, conhecida e, enfim, educada; 2) di-
mensão epistemológica em que há uma área específica de conhecimento,
com autonomia teórica e metodológica; ou seja, capaz e necessária de ser
aprofundada, sem riscos aos sistemas laicos de ensino, como bem escla-
rece a Resolução nº 2 de 1998, da Câmara da Educação Básica do CNE;
e 3) dimensão política em que há uma responsabilidade dos sistemas de
ensino, e não como equivocadamente alguns pensam das confissões re-
ligiosas, uma vez que se “trata de campo de conhecimento que não pode
ser visto como exceção epistemológica e pedagógica, ficando fora do al-
cance gnosiológico de que estuda e aprofunda os conhecimentos cientí-
ficos” (CARNEIRO, 2011, p. 270).
Em outras palavras, Carneiro (2011, p. 270) destaca que “a religio-
sidade é uma complexa circunstância humana a ser conhecida (Ciências
das Religiões) e uma dimensão do sentimento humano a ser educado”.
Nesta perspectiva, os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Re-
ligioso, redigido pelo Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso,
contempla os objetivos gerais do ensino religioso, que são os seguintes:
O Ensino Religioso, valorizando o pluralismo e a di-
versidade cultural presente na sociedade brasileira,
facilita a compreensão das formas que exprimem o
transcendente na superação da finitude humana e que
130
determinam subjacentemente, o processo histórico da
humanidade. Por isso necessita: a) proporcionar, o co-
nhecimento dos elementos básicos que compõem no
fenômeno religioso, a partir das experiências religiosas
percebidas, o contexto do aluno; b) subsidiar o edu-
cando na formulação do questionamento existencial,
em profundidade, para dar sua resposta devidamen-
te informada; c) analisar o papel das tradições reli-
giosas em estruturação e manutenção das diferentes
culturas e manifestações socioculturais; d) facilitar a
compreensão do significado das afirmações e verdades
de fé das tradições religiosas; e) refletir o sentido da
atitude moral, como consequência do fenômeno reli-
gioso e expressão da consciência e da resposta pessoal
e comunitária do ser humano; f) possibilitar esclare-
cimentos sobre o direito à diferença na construção de
estruturas religiosas que têm na liberdade o seu valor
inalienável. (CARNEIRO, 2010, p. 270)
Nessa compreensão, o ensino religioso pressupõe a ética, dignida-
de humana, cidadania e alteridade, o que significa que a Legislação Edu-
cacional não envolve em seus objetivos para o ensino religioso, dogmas,
mitos, cultos específicos, conteúdos catequéticos, favorecendo, assim, na
sua prática escolar a impossibilidade de ocorrer o proselitismo e a into-
lerância. Sugere ainda que este seja trabalhado em sala de aula, seguindo
uma abordagem interdisciplinar, visando desenvolver os diversos currí-
culos do ensino religioso, num contexto em que a cultura e sua dinâmica
não aconteçam através de intervenção pedagógica “monologal”, mas sim
através do conhecimento com base na dialógica.
É nesta perspectiva que os Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCN) do Ensino Religioso (BRASIL, 1997b) trata da formação do pro-
fessor que, longe de uma postura fechada e dogmática, deve ser alguém
que se coloca a serviço da liberdade do aluno, permeável ao diálogo, às
articulações dos saberes e sensível à pluralidade das opções humanas.
Este profissional tem, no princípio da democratização social e cultural,
precondição indispensável à realização do seu trabalho.
Para esclarecimento, é preciso compreender o percurso histórico
de escolarização do ensino religioso, perceptível na LDBEN 9.394 (BRA-
SIL, 1996, art. 33), logo após a sua estruturação, através da elaboração
131
do Parâmetro Curricular do Ensino Religioso (BRASIL, 1997a), influen-
ciado pelo Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (Fonaper).
Fórum este, criado em 1995, composto de professores, associações, pes-
quisadores, religiosos de cultos diversos, que buscaram organizar e acom-
panhar o processo de ensino da disciplina ensino religioso no Brasil, que
se desenvolve no espaço escolar, a “transitar” de pressupostos teológicos
para pressupostos pedagógicos. Neste sentido, Rodrigues, Machado e
Junqueira33 (2003, p. 1-2) expõem que, no Fonaper,
o cenário que se evidencia é a necessidade da forma-
ção do professor para atuar nesta área do conhecimen-
to. O Ensino Religioso não pode ser considerado um
estranho dentro da escola, mas sim uma área do co-
nhecimento que constitui na humanização e conheci-
mento do educando.
Na época em que o Fonaper fora instituído, o seu 1o passo para
a estruturação do ensino religioso de forma coerente com o ambiente
escolar foi a elaboração de uma carta de intenções com os primeiros
princípios norteadores do ensino religioso, sendo estes transcritos por
Junqueira (2001 apud FONAPER, 1995, p. 3-4), como:
1. Garantia de que a escola, seja qual for a sua nature-
za, ofereça Ensino Religioso ao educando, em todos os
níveis de escolaridade, respeitando as diversidades de
pensamento e opção religiosa e cultural do educando;
2. Definição junto ao Estado do conteúdo programáti-
co do Ensino Religioso, integrante e integrado às pro-
postas pedagógicas; 3. Contribuição para que o Ensi-
no Religioso expresse sua vivência ética pautada pela
dignidade humana; 4. Exigência de um investimento
real na qualificação e capacitação de profissionais
para o Ensino Religioso, preservando e ampliando as
conquistas, de todo magistério, bem como garantin-
132
do-lhes condições de trabalho e aperfeiçoamento ne-
cessários.
Ressalta-se ainda que o Fonaper (1995), em suas várias sessões,
atualmente está em plena atuação, em seus estudos subsidia e fomenta
os esforços dos professores na prática escolar do ensino religioso a partir
da escola. Neste processo entre sessões, seminários e congressos a nível
nacional e internacional, desde 1995 até o momento atual, Junqueira,
Rodrigues e Machado (2003) explicam que, no texto Fonaper e sua con-
tribuição para o ensino religioso, o novo modelo foi estruturado a partir
das orientações do CNE para estruturação das diretrizes curriculares.
Segundo Junqueira (2000, p. 89), o ensino religioso, tendo como
base o modelo fenomenológico:
a) Estrutura-se a partir da escola, não mais ligado a
uma comunidade de fé, mas a várias comunidades
de fé; b) desenvolve-se a partir do conhecimento re-
ligioso e não do conhecimento de fé, o conhecimento
teológico; c) alicerça-se nas tradições religiosas como
critério de segurança do cidadão. Assim, o Ensino Re-
ligioso torna-se elemento de formação que “favorece
o desenvolvimento integral do educando, a educação
de pessoas capazes de fazer coisas novas, não apenas
repetir o que outras gerações produziram e a formação
do indivíduo crítico”.
O ensino religioso, como disciplina curricular no ensino funda-
mental, segundo a Proposta do Fonaper (1995), traz os seguintes prin-
cípios estruturais, que devem ser concebidos na escola: ser integrante
na formação básica do cidadão; saber o conhecimento que subsidia o
educando; disciplina dos horários normais; aprendizagem processual
progressiva e avaliação que permeia os objetivos, conteúdos e práticas
didáticas; e prática didática contextualizada e organizada.
No entanto, ainda se observam concepções que remontam ao pro-
cesso de colonização brasileira, como o Tratado de Tordesilhas, de forte
influência da Igreja, que enraizada nas tendências de “raça” europeia, na
educação religiosa, suspirava pela sua emancipação intercultural na re-
lação com outras legislações, que iriam fortificá-la em seu processo de
valorização de culturas.
133
Neste sentido, a Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008, orienta
a obrigatoriedade no ensino fundamental e médio do estudo da his-
tória e cultura afro-brasileira e indígena, cumprindo o artigo 26 da
LDBEN/1996. Em seu texto, tal lei amplia a visão intercultural da popu-
lação brasileira em todo o currículo escolar, abrindo espaço para a inser-
ção das entidades religiosas e as igrejas na discussão histórica, resgatan-
do as relações de dominação e submissão, preconceitos e manipulação
étnica, social, econômica, política e religiosa. Conforme o artigo 26 da
LDBEN/1996, redação dada pela Lei nº 11.645/2008:
§ 1o O conteúdo programático a que se refere este ar-
tigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura
que caracterizam a formação da população brasileira,
a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo
da história da África e dos africanos, a luta dos negros
e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indí-
gena brasileira e o negro e o índio na formação da so-
ciedade nacional, resgatando as suas contribuições nas
áreas social, econômica e política, pertinentes à histó-
ria do Brasil. § 2o Os conteúdos referentes à história e
cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasilei-
ros serão ministrados no âmbito de todo o currículo
escolar, em especial nas áreas de educação artística e
de literatura e histórias brasileiras.
Nesse sentido, a educação religiosa insere-se numa história mais
ampla do processo colonizador, de expropriação e de lutas dos movi-
mentos sociais, influenciando a legislação e reconhecendo a disciplina
de ensino religioso na educação básica, na visão inter e multicultural,
ficando a cargo dos sistemas de ensino e suas escolas a sua efetivação,
conforme a história da própria região do país, resgatando identidades.
Portanto, cabe neste estudo definir a concepção de multiculturalidade e
interculturalidade, para localizar o ensino religioso.
CONCEPÇÕES DE MULTICULTURALISMO:
COMPLEXIDADES E DILEMAS PARA A AÇÃO POLÍTICA
NA EDUCAÇÃO CONTEMPORÂNEA
Para melhor compreender o multiculturalismo, é importante con-
siderar algumas concepções de vários autores nesta área do conhecimen-
to, destacando-se: Banks (1997), Fraser (1997), Gitlin (1975), McLaren
134
(1997), Pina et al. (1997) e Torres (2001). Estes definem o multicultura-
lismo numa perspectiva de filosofia política, levando em conta as faces e
interfaces das sociedades modernas que se caracterizam por mudanças
contínuas nas esferas social, cultural, política, educacional etc.; carecen-
do sempre de instrumentos que propiciem essa mudança. Nesta visão,
espera-se que a educação faça seu papel como agente catalisador dessa
dinâmica, num processo ativo em relação aos recursos que contribuam
para que se possa interagir com novas exigências contemporâneas.
A educação, entre tantas incumbências atribuídas, tem uma que
se sobrepõe a outras: a de contribuir para que os alunos adquiram as
capacidades necessárias para se desenvolverem como cidadãos na socie-
dade. Para tal, essa capacidade tem relação com o conhecimento que é
ministrado nas escolas, não só das disciplinas curriculares, como tam-
bém suas abordagens e temas relevantes e atuais da nossa sociedade, tais
como: violência; descriminações e desigualdades; degradação do meio
ambiente; solidariedade entre as sociedades; preconceito étnico-racial e
discriminação de gênero, sexualidade e homossexualidade; religiosidade
e tantos outros, que na convivência entre diferentes grupos sociais oriun-
dos de diversas culturas e movimentos sociais vão conquistando espaços
e influenciando a legislação no país. Situações estas nas quais as pessoas
se distinguem pelo seu estilo de vida escolhido, como também pela pró-
pria origem social, étnica e econômica, caracterizando-as, em sua visão
antropológica e social, muitas vezes como multiculturais, outras vezes
como interculturais ou monoculturais na sociedade brasileira.
Nessa visão, segundo Pina et al. (1997, p. 791):
A educação multicultural parte da constatação e do
reconhecimento da diversidade cultural em que a
própria interação entre culturas é um fato educativo
em si mesmo. Não há dúvida de que a escola é um lu-
gar onde se produz habitualmente um encontro entre
culturas. É responsabilidade sua, portanto, que a di-
versidade cultural seja vivida a partir de condições de
igualdade. Deve-se cuidar do processo educativo para
que a interação cultural produza um enriquecimento
mútuo.
Mas, para entender melhor o termo multicultural na bibliografia
anglo-saxônica não se pode restringir essa ideia à mera justaposição ou
presença de várias culturas numa mesma sociedade, como colocam os
135
europeus. Trata-se de um termo amplo em que se incluem diversos mo-
delos ou paradigmas de intervenção educativa. Pina et al. (1997, p. 791)
destacam ainda que
É notório saber que, atualmente na educação, a melhor
opção ao se trabalhar o multiculturalismo é se realizar
uma interpretação crítica do currículo situando dessa
forma os eixos transversais como organizadores dos
conhecimentos que o ensino obrigatório deverá trans-
mitir e divulgar, para conseguir a formação crítica e
integral dos valores, como a convivência democráti-
ca e o sentido da responsabilidade social e ambiental,
educação para os direitos sociais etc. Todas as áreas
terão de assumir os temas transversais, apesar de ser
mais adequado tratar determinados conteúdos a partir
de uma área específica, no caso, a educação multicul-
tural. Segundo Feldmann (2009), o objetivo, conforme
declarado pelos vários autores que tratam dessa temá-
tica, tem sido a denúncia de uma formação escolar
eurocentrista e a necessidade de tornar a educação
menos desigual e mais reconhecedora das diferenças.
Entretanto, sabe-se que interagir na prática educativa conforme
declarado, com as principais abordagens e modelos de educação multi-
cultural, nem sempre ocorre como orienta a literatura. Nesta perspectiva,
Pina et al. (1997) defendem na obra Educação multicultural as diversas
abordagens e modelos de multiculturalismo que vêm se desenvolven-
do, historicamente, na sociedade. Nestes termos, destacam as principais
abordagens que não obedecem, necessariamente, a um processo linear
na sua relação tempo e espaço, devido às variações ideológicas, políti-
cas, de movimentos migratórios ocorridos entre os países, que produzem
formas diversas de multiculturalismo e interculturalismo. Abordagens
estas classificadas em cinco temáticas (PINA et al., 1997, p. 792) e adap-
tadas a esta pesquisa:
1 – Manter a cultura hegemônica de uma determinada
sociedade – essa posição baseia-se na crença, na in-
compatibilidade de diferentes culturas, num mesmo
contexto social e no diferente peso específico de cada
uma delas;
136
2 – Reconhecer a existência de uma sociedade multi-
cultural – essa abordagem surge da não aceitação por
parte das minorias étnicas das práticas de aculturação
e assimilação a que se encontram submetidas quando
entram em contato com a maioria, mantendo-se a di-
versidade e, por isso, a escola deveria preservar e am-
pliar o pluralismo cultural.
3 – Fomentar a solidariedade e reciprocidade entre
culturas – caracteriza-se pelo seu caráter humanis-
ta, aceitando as diferenças e considerando-se fatos de
amadurecimento; desenvolvendo-se uma consciência
histórica capaz de interpretar o presente a partir do pas-
sado; distinguindo-se pela solidariedade operativa e,
sobretudo, por cultivar metodologicamente o diálogo.
4 – Denunciar a injustiça provocada por uma assime-
tria cultural – Essa abordagem, chamada sociocrítica,
tenta criar uma sociedade mais justa, enfrentando a
desigualdade cultural, social e política.
5 – Avançar para um projeto educativo integrador –
Este modelo tenta integrar, em profundidade, as várias
abordagens multiculturais baseadas na valorização das
diferenças existentes, como modelo antirracista, ao
mesmo tempo valorizando a diversidade, promoven-
do a igualdade e atendendo ao conteúdo multicultural,
mas sem deixar de incidir no processo e na estrutura,
sendo assim, esta situa a educação para a cidadania
num contexto multicultural e pluralista.
O entendimento da concepção de multiculturalismo, em sua com-
plexidade, tem relação com as políticas das diferenças. Segundo Torres
(2001, p. 196), isso ocorreu “com o surgimento das lutas sociais contra as
sociedades racistas, sexistas e classistas”. Este autor ressalta que a discus-
são sobre o multiculturalismo nos Estados Unidos começou por
uma sutil mas importante distinção entre as noções
entre o multiculturalismo como movimento social e
abordagem teórica, a educação multicultural como
movimento reformista e a educação da cidadania como
uma especialidade dos programas de estudo que, dadas
as características especiais da composição racial dos Es-
137
tados Unidos, precisa levar em conta os temas da iden-
tidade racial e da diversidade cultural para formação da
cidadania como pedagogia antirracista. (Ibidem)
Esta realidade dos Estados Unidos não difere da realidade brasileira
que, em sua tradição histórica, educativa e religiosa, seguiram e, atualmen-
te, ainda seguem modelos multiculturais, com base no assimilacionismo,
que se utiliza de intervenção educativa, visando facilitar os processos de
aculturação das minorias étnicas. Sendo assim, a cultura detentora do
poder econômico e do letramento sobrepõe à cultura majoritária, como
também se serve do modelo segregacionista, que tem em seu fundamento
a exclusão dos alunos de classes sociais desfavorecidas. População esta
formada, normalmente, por indígenas e negros, que ao serem inseridos
nas escolas, são enfatizadas suas inter-relações culturais, sociais e raciais,
sobressaindo a questão da “cor”, da classe socioeconômica e suas culturas.
Tal visão é salientada pelo pensamento de McLaren (1997, p. 210),
quando destaca que “o multiculturalismo é uma orientação filosófica,
teórica e política, que não se restringe à reforma escolar, e que aborda
o tema das relações de raça, sexo e classe na grande sociedade”. Rela-
ções estas, que provocam repensar sobre o que seja o multiculturalismo
como teoria e prática na educação, sabendo que se verifica muitas vezes
a segregação racial na cidade, nos pátios, na cantina, nas relações alu-
no/professores/aluno, e no qual se observa uma política de assimilação
opressora no que diz respeito às diferenças raciais, de gênero, religiosas e
outros aspectos de estigmas.
Nessa perspectiva, Torres (2001, p. 196) propõe “o multiculturalis-
mo como movimento programático de reforma”, já que para ele “a edu-
cação liberal multicultural visa garantir igualdade nas escolas”. Os seg-
mentos mais liberais do movimento consideram que uma de suas metas
centrais é desenvolver uma ideia de tolerância multicultural. Neste caso,
Fraser (1997, p. 174) destaca que a luta por equidade e reconhecimento
deveria ser acompanhada por uma luta pela redistribuição e igualdade, e
não apenas pela equidade. Essa sugestão abre o caminho para uma com-
preensão mais radical do problema, que, no tocante ao multiculturalis-
mo, a discussão deveria começar pela questão da “cor branca”, retoman-
do McLaren (1997, p. 268), quando este vincula a educação multicultural
à pedagogia crítica, desafiando a política do “branco como um tipo de
prática articuladora que se localiza na convergência de colonialismo, ca-
pitalismo e formação do sujeito”.
138
Neste sentido, acrescenta Torres (2001) que não restam dúvidas
de que exista a presença de metas multiculturais nas discussões mais re-
centes de educação para a cidadania, a educação cidadã. Alguns estudio-
sos, sobretudo Banks (1997, p. 199), argumentam que “educar cidadãos
numa sociedade multicultural exige uma educação multicultural”. A esse
respeito, Gitlin (1975, p. 217) refere-se que nada como uma experiência
vivida para mostrar as implicações práticas da teoria social da educação.
Isto é, quando o objetivo central na construção de uma cidadania demo-
crática multicultural é entender a importância de cultivar “o espírito de
solidariedade superando os limites da diferença”.
Além disso, procura-se desenvolver nos alunos atitudes e práticas
de valores que os fortaleçam como indivíduos e agentes sociais compro-
metidos com as mudanças da sociedade, com vistas a reduzir ou erra-
dicar as diferenças e disparidades sociais, as várias formas de racismo e
sexismo que interferem nas interrelações na escola. Esses valores, quan-
do persistem na escola, ocasionam bullying, termo utilizado para descre-
ver atos de violência física e psicológica, intencionais e repetidos, pratica-
dos por um indivíduo ou grupos de indivíduos causando dor e angústia,
sendo executados dentro de uma relação desigual de poder. Assim, fica
explícito que se faz necessária uma proposta intercultural no currículo,
que, segundo Pina et al. (1997, p. 798),
deverá estabelecer atuações globais, que se devem con-
cretizar em projetos educativos que levem em conta
e favoreçam o desenvolvimento de valores, atitudes,
sentimentos e comportamentos que se oponham aos
estereótipos e preconceitos e respeitem a riqueza da di-
versidade e a variedade cultural de uma sociedade plu-
ral. Abordar a ação educativa a partir da intercultura-
lidade não significa fazer um “trabalho acrescentado”
ao habitual. Pressupõe introduzir um novo elemento
de reflexão e análise na mentalidade dos professores:
levar em consideração a diversidade cultural dos alu-
nos e o aproveitamento do seu potencial educativo.
Neste sentido, o currículo intercultural é um conjunto de expe-
riências do cotidiano dos alunos, sendo mais do que uma seleção de te-
mas ou programa de conteúdos. Este pode ser estruturado na prática, de
forma que auxilie os estudantes a adotar em suas vivências significados
culturais. À escola cabe o papel de construir um elo entre as culturas
139
acadêmicas tradicionais e as culturas dos alunos e as culturas que estão
sendo criadas na comunidade social. Dessa maneira, necessita-se identi-
ficar essas culturas numa visão intercultural ou multicultural, conforme
a vivência das partes envolvidas no currículo, para que este se torne um
veículo emancipatório, por meio do qual as pessoas se constroem e se
reconstroem, conforme o significado das suas transferências entre as cul-
turas na sociedade mundial.
METODOLOGIA
140
ANÁLISE E RESULTADOS
A análise dos dados baseou-se na seleção de argumentos na litera-
tura que fundamentasse a proposição de um cenário emancipador histó-
rico dos movimentos sociais para educação religiosa e discriminador do
processo colonizador, na trajetória da tramitação da visão multicultural
e intercultural nas diretrizes curriculares da última reforma da educação
no Brasil para o “ensino religioso” no ensino fundamental.
Constatou-se que os documentos, conforme aqueles que os escre-
vem e defendem, apresentam ideologias, muitas vezes, em conflito com
as crenças e valores de quem os produz. Ao chegarem aos sistemas de
ensino, os textos passam por interpretação carregada de crenças e valo-
res, muitas vezes reafirmando as orientações, ou causando mais conflitos
ideológicos que se materializam nas ações dos sistemas de ensino.
Ainda hoje, observa-se nos interiores de Pernambuco, local onde
foi realizada a pesquisa documental, o componente curricular da edu-
cação religiosa ou ensino religioso distribuído para completar a carga
horária de professores de história, português, matemática, entre outros.
Essa prática denota a monocultura, um não saber sobre a educação
religiosa e uma desvalorização dos interesses majoritários da sociedade.
Ao mesmo tempo, mostra também o descompromisso daqueles que têm
direito ao estudo de suas culturas, deixando ao critério dos “outros” a
abordagem sobre sua própria cultura ou ainda monopolizando um pro-
jeto pedagógico da escola, fazendo aquilo que sempre fizeram com as
suas religiões e costumes.
CONCLUSÃO
O ensino religioso, como disciplina do currículo escolar, acom-
panha em sua prática, uma complexidade de processos regulatórios e
contrarregulatórios para chegar a uma proposta ao ensino fundamental,
etapa medial da educação básica no Brasil. Vinculada ao percurso histó-
rico e aos contextos de época, os aspectos sociais, políticos, econômicos
permeiam sua caminhada, como também as interrelações internas e ex-
ternas das instituições religiosas, políticas e educacionais no país.
A compreensão sobre o conflito existente entre as propostas curri-
culares dos sistemas de ensino e a implementação da docência nas visões
dicotômicas existentes nas escolas leva-se a pensar que pouco mudou
desde a promulgação da Lei nº 9.394/1996 e da Lei nº 9.475/1997. É co-
141
mum perceber nas escolas a ausência de critérios para seleção de do-
centes para educação religiosa, não havendo um documento redigido,
de âmbito nacional e estadual, para esta finalidade. Constatou-se, ainda,
que diversas tentativas têm sido propostas para a inserção do multicultu-
ralismo e interculturalismo no componente curricular, mas tem ficado a
cargo dos professores que ministram essa disciplina. No entanto, alguns
sistemas de ensino têm realizado tentativas de regulamentar propostas,
entretanto, pouco tem sido o envolvimento das religiões dos municípios.
Portanto, nas escolas, as propostas de educação religiosa ainda têm sido
influenciadas pela cultura religiosa e pela formação docente dos profes-
sores, geralmente, cristãos, que conhecem pouco outras religiões.
Para finalizar, espera-se que este trabalho contribua para uma re-
flexão sobre a relação do ensino de religião com o processo de coloniza-
ção, para desvelar a formação de cidadãos construídos nas escolas. Ao
mesmo tempo, que percebam as possibilidades de mudanças e se posi-
cionem, desafiando o conservadorismo e a estagnação social, revertendo
essa educação em igualdade, solidariedade, respeito ao outro e às diver-
sidades cultural e religiosa no país.
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144
O ENFRENTAMENTO DO RACISMO NA CONSTRUÇÃO
DE CURRÍCULOS DECOLONIAIS
Michele Guerreiro Ferreira34
Janssen Felipe da Silva35
INTRODUÇÃO
Este trabalho adota como abordagem teórica o pensamento de-
colonial (DUSSEL, 1994, 2007; GROSFOGUEL, 2005, 2007; GRUESO,
2007, 2010; MIGNOLO, 1996, 2005a, 2005b, 2011; MALDONADO-
-TORRES, 2007, 2010, 2012; PALERMO, 2005; QUIJANO, 2005, 2007;
WALSH, 2005, 2007, 2008, 2010) procedido dos Estudos Pós-Coloniais
(com contribuição de Césaire; Fanon; Said; Mariátegui; Amílcar Cabral;
Fausto Reinaga; Vine Deloria Jr.; Rigoberta Menchú; Anzaldúa; entre ou-
tros) para analisarmos o racismo enquanto uma construção sociológica,
mental e política da ideia de “raça”, fruto de um padrão de dominação co-
lonial fundado na racionalidade eurocêntrica (QUIJANO, 2005, 2007).
Com base na compreensão dos conceitos-chave desta abordagem
teórica percebemos que a ativa participação dos movimentos sociais ne-
gros no Brasil tem desencadeado uma série de medidas que se traduz em
ações afirmativas que apontam para uma atitude decolonial. Com base
nessas/es autoras/es, entendemos que a descolonização, que assistimos
desde o final da Segunda Guerra Mundial até os anos 70 do século XX,
foi apenas uma primeira parte da descolonização, ou seja, a indepen-
dência política e jurídica das ex-colônias não significa que o processo de
descolonização foi concluído, dada a força da colonialidade(MIGNOLO,
2005;QUIJANO, 2005, 2007) que mantém viva as marcas do colonia-
lismo através de estruturas subjetivas e da colonização epistemológica,
como veremos mais adiante. Para tal perspectiva teórica, a descoloniza-
ção só será completa quando as ex-colônias concluírem o processo em
marcha, chamado de decolonialidade por Aníbal Quijano, Walter Mig-
nolo, Nélson Maldonado-Torres e Catherine Walsh.
145
Nesse sentido, neste texto nosso objetivo é identificar as possíveis
confluências entre o enfrentamento do racismo e a construção de uma
pedagogia decolonial, por meio da descolonização dos currículos. Para
tanto, selecionamos o corpus e procedemos a uma análise documental
das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) promulgadas a partir da Lei
nº 10.639/2003, a qual modificou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDBEN 9.394/1996), tornando obrigatório o ensino de história
e cultura afro-brasileira e africana nos sistemas de ensino brasileiro.
Assim, este texto está dividido em quatro partes, além desta in-
trodução: (a) na primeira parte apresentaremos como a abordagem
teórica adotada revela a matriz colonial do racismo; (b) em seguida,
abordaremos as lutas dos movimentos sociais negros e seu impacto no
âmbito educacional; (c) após, analisaremos a partir da análise de con-
teúdo (VALA, 1990), via análise temática (BARDIN, 2011), as DCN
que são promulgadas neste contexto para que possamos buscar as
aproximações destas com a construção de uma pedagogia decolonial e
(d), por fim, traremos as considerações finais deste texto.
PENSAMENTO DECOLONIAL COMO CHAVE PARA A
COMPREENSÃO DA CLASSIFICAÇÃO RACIAL DA
SOCIEDADE E DO RACISMO
Como opção política e epistêmica adotamos como abordagem
teórica os discursos de fronteira que visam romper hierarquias epistê-
micas, deste modo, adotamos o pensamento decolonial que resulta das
formulações de um coletivo multi-transdisciplinar de autoras/es latinoa-
mericanas/os.
Suas formulações remontam ao período das lutas de libertação co-
lonial com autores como Aimé Césaire (Discurso sobre o colonialismo –
1950); Frantz Fanon (Pele negra, máscara branca – 1983; Os condenados
da terra – 1979); Kwame Nkrumah (Consciencism – 1964); Albert Mem-
mi (O colonizador e o colonizado – 1965) e Edward Said (Orientalismo –
1978) que são considerados como as obras seminais dos Estudos Pós-Co-
loniais. Mas incorporam também a influência de outras produções que
distingue as formulações latino-americanas dos estudos pós-coloniais:
A genealogia global do pensamento decolonial (real-
mente outra em relação com a genealogia da teoria
pós-colonial) até Mahatma Gandhi, W. E. B. Dubois,
Juan Carlos Mariátegui, Amílcar Cabral, Aimée Cé-
146
saire, Frantz Fanon, Fausto Reinaga, Vine Deloria Jr.,
Rigoberta Menchú, Gloria Anzaldúa, o Movimento
Sem-Terras no Brasil, os zapatistas em Chiapas, os
movimentos indígenas e afros na Bolívia, Equador e
Colômbia, o Fórum Social Mundial e o Fórum Social
das Américas. A genealogia do pensamento decolonial
é planetária e não se limita a indivíduos, mas incorpo-
ra nos movimentos sociais. (MIGNOLO, 2008, p. 258,
grifo nosso)
Percebemos que o pensamento decolonial estabelece um estrei-
to diálogo com os Estudos Pós-coloniais, pois, de acordo com Migno-
lo (1996), o pós-colonial não significa apenas uma condição histórica,
mas, sobretudo, uma mudança epistemológica radical a partir de no-
vos loci de enunciação da produção teórica e intelectual. Todavia, há
o interesse em promover um deslocamento do eixo moderno/colonial
que o situa em outra perspectiva. Assim, concordamos com Luiz Fer-
nandes de Oliveira (2016, p. 35) ao afirmar que:
O termo decolonial deriva de uma perspectiva teó-
rica que estes autores expressam, fazendo referência
às possibilidades de um pensamento crítico a partir
dos subalternizados pela modernidade capitalista e,
na esteira dessa perspectiva, a tentativa de construção
de um projeto teórico voltado para o repensamento
crítico e transdisciplinar, caracterizando-se também
como força política para se contrapor às tendências
acadêmicas dominantes de perspectiva eurocêntrica
de construção do conhecimento histórico e social. A
caracterização desses intelectuais com o termo deco-
loniais, é mais uma das expressões dadas por alguns
pesquisadores que os estudam no Brasil. Na verdade,
é um conjunto de autores denominado por Arturo Es-
cobar (2003) como grupo de pesquisadores da pers-
pectiva teórica “Modernidade/Colonialidade” (MC).
Não obstante ao nome dado à abordagem teórica adotada, enten-
demos que as chaves conceituais trazidas por estas/es autoras/es estão
interessadas em desenvolver sistemas de interpretação que valorizam a
prática social para alterar não só os termos contidos nas epistemologias
147
hegemônicas, mas também “os termos da conversa” (MIGNOLO, 2005,
p. 42), com a finalidade de desenvolver um pensamento e uma ação de-
colonizadora.
É nesse sentido que buscamos compreender as chaves conceituais
desses estudos e partimos da premissa básica de que: “a colonialidade é
constitutiva e não derivada da Modernidade” (MIGNOLO, 2005, p. 75).
O que Mignolo quer dizer é bem explicado por Quijano (2005) ao afir-
mar que Modernidade e colonialidade são dois lados da mesma moeda e
constituem o ponto cego dos estudos pós-coloniais anglo-saxônicos que
não conseguiam articular os aspectos econômicos e culturais sem cair
em reducionismos.
Como nos mostra Quijano (2005), a criação da identidade do con-
quistador europeu se traça quando em contato com a América, consti-
tuindo um padrão de poder que se funda em duas pilastras: a racialização
(forma de classificar a sociedade em raças) e a racionalização (formas de
articulação de controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos).
Num primeiro momento, no âmbito do colonialismo, se constituem com
o objetivo de estabelecer as relações de dominação dos povos conquista-
dos, mas depois este padrão de poder acabou por se expandir para todo
o mundo e, ainda hoje, sentimos suas consequências por meio da colo-
nialidade.
Para Quijano (2007), o colonialismo é um padrão de dominação
e exploração que, apesar de exercer o controle da autoridade política,
dos recursos de produção e do trabalho de determinada população com
identidades diversas e situados em jurisdição territorial diferentes, não
representa, necessariamente, relações racistas de poder, senão uma rela-
ção política e econômica na qual a soberania de uma nação é subjugada
por outra. Porém o colonialismo forja em seu bojo a colonialidade, e
passam a ser estabelecidas, dessa maneira, relações racistas de poder. Ve-
jamos o que nos diz Maldonado-Torres (2007, p. 131, grifo nosso):
La colonialidad se refiere a un patrón de poder que emer-
gió como resultado del colonialismo moderno, pero que,
en vez de estar limitado a una relación formal de poder
entre dos pueblos o naciones, más bien se refiere a la for-
ma como el trabajo, el conocimiento, la autoridad y las
relaciones intersubjetivas se articulan entre sí, a través
del mercado capitalista mundial y de la idea de raza. Así,
pues, aunque el colonialismo precede a la colonialidad,
148
la colonialidad sobrevive al colonialismo. La misma se
mantiene viva en manuales de aprendizaje, en el criterio
para el buen trabajo académico, en la cultura, el sentido
común, en la autoimagen de los pueblos, en las aspiracio-
nes de los sujetos, y en tantos otros aspectos de nuestra
experiencia moderna. En un sentido, respiramos la colo-
nialidad en la modernidad cotidianamente.
A colonialidade, como podemos perceber, atua sobre várias di-
mensões do colonizado, por isso pode ser apresentada a partir de pelo
menos quatro eixos: Colonialidade do poder (QUIJANO, 2005, 2007);
Colonialidade do saber (GROSFOGUEL, 2007); Colonialidade da mãe
natureza (WALSH, 2005, 2007) e Colonialidade do ser (MIGNOLO,
2005, 2007; MALDONADO-TORRES, 2007). Estes eixos possuem sen-
tidos sociais, culturais, epistêmicos, existenciais e políticos. Eles atuam
de maneira a afirmar e celebrar os sucessos intelectuais e epistêmicos
europeus, ao passo que silenciam, negam e rejeitam outras formas de
racionalidade e história (WALSH, 2007).
Devido a questões de espaço, neste texto não vamos caracterizar
cada um dos eixos da colonialidade, mas devemos destacar que a colo-
nialidade do poder é o termo cunhado por Quijano (2005) para se refe-
rir a um sistema de classificação social da população mundial baseada
na ideia de “raça”.36 De acordo com essa construção mental, formam-se
identidades sociais e se desenvolve uma hierarquia social classificando
de superior a inferior os brancos, mestiços, índios e negros. Vale destacar
que “mestiços”, “índios” e “negros” são tomados como identidades ho-
mogêneas e negativas (WALSH, 2008) no intuito de negar as diferenças
e as especificidades e impor como referência um único padrão: branco,
masculino, heterossexual, cristão, “europeu”.
Esta noção de “raça” surge com o objetivo de afirmar a hegemonia
europeia, convertendo-se, de acordo com Quijano (2005, p. 230), “no
primeiro critério para a distribuição da população mundial nos níveis,
lugares e papéis na estrutura de poder da nova sociedade”. A colonialida-
de do poder também está relacionada à exploração do trabalho baseada
na hegemonia do capitalismo mundial. Assim, Quijano (2005, p. 231)
nos mostra que “as novas identidades históricas produzidas sobre a ideia
36 Quijano entende a raça como uma ficção. Dessa forma, para marcar esse carácter
fictício o autor sempre usa o termo entre aspas. Da mesma forma quando se refere a
termos com “europeu”, “índio” sempre entre aspas para mostrar que esses termos
representam uma classificação racial.
149
de ‘raça’ foram associadas à natureza dos papéis e lugares na nova estru-
tura global de controle do trabalho”. Em suma, a colonialidade do poder
associa esses elementos para manter uma acomodação social em que o
padrão hegemônico do branco europeu se situa acima dos “outros”.
Embora a “raça” seja uma construção (mental, sociológica, políti-
ca), dá origem a uma doutrina conhecida como racismo que, de acordo
com Guimarães (2005), se apresenta sob a forma de uma pretensa su-
perioridade estética, cultural e, até mesmo, moral, todavia, baseada na
“ideia construída” como vimos anteriormente.
Buscamos três definições de racismo em autor/as, como Gomes,
Schucman e Delacampagne, de campos e abordagens teóricas distintas
e todas convergem para a constatação de que mesmo sem fundamentos
científicos, a ideia de “raça” dá origem ao racismo. A primeira definição é
trazida pela professora Nilma Lino Gomes (2005, p. 52) na qual afirma que:
O racismo é, por um lado, um comportamento, uma
ação resultante da aversão, por vezes, do ódio, em re-
lação a pessoas que possuem um pertencimento racial
observável por meio de sinais, tais como: cor da pele,
tipo de cabelo, etc. Ele é por outro lado um conjunto
de ideias e imagens referente aos grupos humanos que
acreditam na existência de raças superiores e inferio-
res. O racismo também resulta da vontade de se impor
uma verdade ou uma crença particular como única e
verdadeira.
A segunda definição é da psicóloga Lia Vainer Schucman (2010, p.
44), que dentro da sua compreensão, a ideia de raça se estende também
às questões étnicas, de gênero, geracionais, econômicas etc.:
Considero racismo qualquer fenômeno que justifique
as diferenças, preferências, privilégios, dominação,
hierarquias e desigualdades materiais e simbólicas
entre seres humanos, baseado na ideia de raça. Pois,
mesmo que essa ideia não tenha nenhuma realidade
biológica, o ato de atribuir, legitimar e perpetuar as
desigualdades sociais, culturais, psíquicas e políticas
à “raça” significa legitimar diferenças sociais a partir
da naturalização e essencialização da ideia falaciosa de
diferenças biológicas que, dentro da lógica brasileira,
se manifesta pelo fenótipo e aparência dos indivíduos
de diferentes grupos sociais.
150
A terceira definição é extraída do filósofo francês Christian Dela-
campagne, citado pelo sociólogo Antonio Sérgio Guimarães, apontando
que o racismo hierarquiza as “raças” humanas com base em estereótipos
pseudonaturais abalizados nas características físicas, como também psi-
cológicas, morais, intelectuais etc.:
O racismo, no sentido moderno do termo, não começa
necessariamente quando se fala da superioridade fisio-
lógica ou cultural de uma raça sobre outra; ele começa
quando se faz a (pretensa) superioridade cultural de
um grupo direta e mecanicamente dependente da sua
(pretensa) superioridade fisiológica; ou seja, quando
um grupo deriva as características culturais de outro
grupo das suas características biológicas. O racismo é a
redução do cultural ao biológico, a tentativa de fazer o
primeiro depender do segundo. O racismo existe sem-
pre que se pretende explicar um dado status social por
uma característica natural. (DELACAMPAGNE, 1990,
p. 85-86 apud GUIMARÃES, 2005, p. 32)
Percebemos nas três definições que o racismo tem servido à domi-
nação e à exploração dos povos subalternizados, como os negros, índios,
mulheres, gays, refugiados, entre outros. É partindo dessa concepção que
se faz importante discutir o racismo compreendendo que este é um con-
ceito forjado desde construções mentais, sociológicas e políticas para que
assim possamos desnaturalizá-lo e, consequentemente, enfrentá-lo.
A atuação dos movimentos sociais foi imprescindível para a des-
mistificação do mito da democracia racial, ou do racismo brasileiro, para
que pudesse ser estabelecida uma nova agenda de políticas para a pro-
moção da igualdade racial como veremos a seguir, focando especialmen-
te nas medidas que abrangem a educação.
A ATITUDE DECOLONIAL DOS MOVIMENTOS NEGROS
NO BRASIL NO ENFRENTAMENTO AO RACISMO
Vimos na seção anterior que a colonialidade do poder por meio da
ideia de “raça” serve de base de sustentação para o racismo, doutrina de-
rivada desta construção mental, sociológica e política que é instituída por
um padrão de poder moderno/colonial. Dessa forma, entendemos que
enfrentar e superar o racismo significa uma atitude decolonial, enten-
dida como as diversas estratégias políticas de descolonização do conhe-
151
cimento e libertação do ser. Estamos falando sobre a decolonialidade, a
qual assume um caráter que ultrapassa a descolonização, mas pressupõe
a viabilidade de lutas contra a colonialidade a partir das pessoas e de suas
práticas sociais, políticas e epistêmicas.
Porém, falar em decolonialidade, combate e superação do racismo
no Brasil foi por um bom tempo um grande desafio dos movimentos
sociais negros, porque a imagem de paraíso racial exigia em primeiro
lugar superar o mito da democracia racial. E esse desafio tem a ver com
a cosmovisão da sociedade:
El reto de los movimientos negros a la sociedad brasi-
leña y la desmitificación del mito de la democracia ra-
cial exige repensar las concepciones sobre sociedad y po-
lítica en el país pues estos dejan poco espacio, si alguno, a
respuestas tradicionales de corte liberal o marxista. Una
razón para esto es que tanto el liberalismo político, como
el marxismo, y el mismo mito de la democracia racial
son todos productos de la misma matriz conceptual y de
poder moderna. Es decir, todas presuponen un horizonte
en común en el cual la prosperidad de algunos consi-
derados como dignos de apropiarse de los recursos del
planeta en nombre de la humanidad va acompañada de
la marginalización de otros que aparecen como comu-
nidades no capacitadas o aun dispensables. (MALDO-
NADO-TORRES, 2007, p. 1)
Consideramos que o mito da democracia racial no Brasil estava an-
corado à matriz colonial do racismo que exerce a função de assegurar os
privilégios dos brancos. Como nos mostra Quijano (2005, p. 235) ao afir-
mar que a forma mais eficiente de justificar, ainda nos dias de hoje, porque
se paga “o menor salário das ‘raças’ inferiores pelo mesmo trabalho dos
brancos, nos atuais centros capitalistas, não poderia ser, tampouco, expli-
cado sem recorrer-se à classificação social racista da população do mundo”.
A maneira como a sociedade brasileira recebeu ao longo de sua
história as teorias da mestiçagem, o ideal de branqueamento, entre ou-
tras, tem a ver com a forma como são percebidas as tensas relações ra-
ciais, ou étnico-raciais, em nosso país. E essas relações foram eriçadas
especialmente a partir da segunda metade da década de 1990, quando o
país se viu diante da impossibilidade de continuar negando o racismo la-
tente sob o grande embuste que era a democracia racial brasileira. Espe-
152
cialmente, quando em 20 de novembro de 1995, em Brasília, realizou-se
um ato histórico pela passagem dos 300 anos do assassinato de Zumbi
dos Palmares: a Marcha Zumbi dos Palmares contra o racismo, pela cida-
dania e a vida. Os organizadores da marcha elaboraram um documento
em que descreveram a situação do negro brasileiro e sugeriram políticas
de superação do racismo e das desigualdades raciais no Brasil.
No ano seguinte, o Seminário Internacional Multiculturalismo e
Racismo: o papel da ação afirmativa nos estados democráticos contem-
porâneos, realizado em julho de 1996 também em Brasília, é outro exem-
plo das sugestões e reivindicações expressas no documento derivado da
Marcha Zumbi dos Palmares. De acordo com Guimarães (2009, p. 165),
“foi a primeira vez que um governo brasileiro admitiu discutir políticas
públicas específicas voltadas para ascensão dos negros no Brasil”. Assu-
mir oficialmente seu racismo, em âmbito nacional e internacional, torna-
ria viável as necessárias medidas de ação afirmativa para a correção das
desigualdades raciais que se estabeleciam no país sob a égide do mito da
democracia racial.
Contudo, é no tenso cenário entre as políticas neoliberais dos anos
1990 e as resistências e reivindicações sociais que começam a ser implan-
tadas as políticas de ação afirmativa no Brasil. E é Fausto Reinaga (apud-
MIGNOLO, 2008, p. 290) que nos ajuda a compreender o espírito destas
lutas quando afirma: “Danem-se, eu não sou um índio, sou um Ayma-
ra. Mas você me fez um índio e como índio lutarei pela libertação”. Ou
seja, “raças” humanas não existem, a não ser no campo das ideias. Mas
já que a colonialidade perpetuou essa construção mental, vamos usá-la
para lutar pela nossa libertação! É com esse espírito que os movimentos
negros no Brasil ressignificam o termo “negro” e confrontam o mito da
democracia racial.
É nesse contexto que as políticas de ação afirmativa passam a fazer
parte da agenda nacional a partir das pressões dos movimentos sociais.
Tais pressões estavam embasadas em instrumentos internacionais que
exigiam o combate à discriminação racial e ao racismo bem antes do
Brasil assumir-se um país racista já no início do século XXI.
O principal instrumento para a proposição e garantia de medidas
nessa compreensão de acordo com Roland (2012) é a Icerd, ou seja, a
Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Dis-
criminação Racial, adotada pelas Nações Unidas desde 1965. De acordo
com a autora:
153
Ao mesmo tempo que prevê o combate a todas as ma-
nifestações de discriminação racial, a Icerd introduz a
proposta da promoção da igualdade racial, prevendo
a adoção de medidas especiais destinadas a assegurar
a proteção dos grupos e indivíduos que são vítimas da
discriminação racial e de promoção da harmonia entre
todas as raças, o que implica não apoiar, não incitar e
proibir qualquer ato ou prática de discriminação racial,
bem como rever as políticas governamentais nacionais
e locais que, porventura, contenham elementos discri-
minatórios. Além disso, o poder público deve adotar
medidas especiais e concretas para assegurar adequa-
damente o desenvolvimento ou a proteção dos grupos
e indivíduos vítimas de discriminação racial a fim de
garantir o pleno exercício dos direitos humanos e das
liberdades fundamentais. (ROLAND, 2012, p. 251,
grifos nossos)
E é com base no protagonismo dos movimentos sociais, ou seja,
nas práticas sociais de combate ao racismo que destacamos seu impacto
nas políticas curriculares, como podemos perceber nas Diretrizes Curri-
culares Nacionais promulgadas após a alteração à LDB/96 em 2003:
• DCN para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino
de história e cultura afro-brasileira e africana – Resolução nº 1, de
17 de março de 2004;
• DCN para a educação escolar indígena na educação básica – Reso-
lução nº 5, de 22 de junho de 2012;
• DCN para a educação escolar quilombola na educação básica –
Resolução nº 8, de 20 de novembro de 2012;
• DCN para a formação de professores indígenas em cursos de edu-
cação superior e de ensino médio – Resolução nº 1, de 7 de janeiro
de 2015;
As diretrizes curriculares mencionadas constituem parte das polí-
ticas curriculares, as quais têm sido influenciadas pelas lutas dos movi-
mentos sociais negros e indígenas. Este diálogo com o Estado pode cons-
tituir-se em prática contra-hegemônica, focada em reverter a designação
de alguns conhecimentos como legítimos e universais e a relegação de
outros (SARTORELLO, 2011), como veremos na próxima seção.
154
UMA LUTA A MAIS: VENCER O RACISMO EPISTÊMICO E
DESCOLONIZAR OS CURRÍCULOS
Ainda devemos tratar, neste trabalho, da presença do eurocentris-
mo nos currículos escolares, ou seja, a herança colonial que ultrapassa o
período do colonialismo e chega aos nossos dias como “história univer-
sal”. Esta é uma estratégia usada para contar apenas uma versão da histó-
ria, silenciando tantas outras, buscando-se negar as diferenças, cristali-
zar identidades e manter a hegemonia de um único padrão estabelecido
como “normal”: branco, masculino, heterossexual, cristão e urbano.
O eurocentrismo, manifestado como racismo epistêmico, per-
passa toda a formação escolar através dos currículos colonizados. O co-
nhecimento selecionado é o que irá garantir a posição hegemônica do
padrão eurocentrado na sociedade, através de práticas que privilegiam
a transmissão de saberes propedêuticos que são “depositados” no outro,
colonizando-o, subalternizando-o.
O estudo das tendências teóricas curriculares (LOPES; MACE-
DO, 2011; SILVA, 2000) revelam que nas teorias tradicionais do cur-
rículo a pretensa neutralidade que professa não consegue encobrir a
colonialidade, especialmente se analisarmos que conteúdos são consi-
derados como válidos e quais são os papéis sociais que determinam. O
silenciamento e a negação das diferenças por meio da homogeneiza-
ção e da hierarquização, – através do estabelecimento do lugar social de
cada indivíduo dentro da sociedade capitalista, isto é, da racialização e
da racionalização (QUIJANO, 2005), perpetuam a hegemonia do pa-
drão branco eurocentrado.
Nas teorias críticas, as quais vão se preocupar com o que o currícu-
lo é capaz de fazer, denunciando através de análises baseadas nas lutas de
classes, como os currículos são capazes de manter o status quo e garantir
a hegemonia das classes dominantes no poder, não há uma ruptura com
o etnocentrismo branco europeu. Ele não é questionado e o cânone co-
lonial continua hegemônico. As ditas classes dominadas, dentro desta
visão, não produzem saberes, não possuem epistemologias. Para Migno-
lo (2008, p. 244), “o privilégio epistêmico da modernidade é o que gera e
mantém a colonialidade do saber e do ser”. Nessa perspectiva, os povos
subalternizados, no máximo, devem lutar pela sua libertação, mas man-
tendo uma postura epistemicamente obediente.
155
São as teorias pós-críticas que vão buscar as “conexões entre sa-
ber, identidade e poder” (SILVA, 2000, p. 15) se preocupando com o que
conta como conhecimento e questionando a presença universal de uma
única cultura, a eurocêntrica, nos currículos. Ao reivindicar seu espaço
nos currículos, os grupos subalternizados passam a lutar pela presen-
ça de suas histórias, provocando fraturas, significativas mudanças, no
campo curricular ao cobrar o espaço do pluri-multi-intercultural nos
currículos.
É aqui que se inserem, por meio das lutas dos movimentos so-
ciais, os saberes dos povos do campo, das reivindicações feministas, das
relações raciais e passam, pouco a pouco, a ocupar um lugar nos currí-
culos. Embora, ao longo das teorizações sobre o currículo, a questão da
diferença cultural só esteja realmente presente como centro da discus-
são nas teorias pós-críticas, vemos que os pilares trazidos por Quijano
(2005), o da racionalização e o da racialização, estão presentes desde
sempre. Podemos compreender que as teorias não se negam, vão se
complementando.
Não podemos esquecer que “o currículo é uma opção cultural, o
projeto que quer tornar-se na cultura-conteúdo do sistema educativo
para um nível escolar ou para uma escola de forma concreta” (GIMENO
SACRISTÁN, 2000, p. 34). Assim, os conteúdos representam uma seleção
cultural que valida a cultura de referência, podendo assumir um caráter
homogeneizador, uma vez que se há uma seleção, há, consequentemente,
uma exclusão de conteúdos que não expressam a cultura referenciada.
As fraturas denunciadas nas teorias pós-críticas do currículo ex-
pressam as lutas dos grupos subalternizados pela coexistência de dife-
rentes formas de produção de conhecimento, o que pode evidenciar a
emancipação epistêmica (decolonialidade), em detrimento da condição
hegemônica que impera na sociedade brasileira sob os efeitos da colo-
nialidade.
Um exemplo de conquista das mobilizações dos movimentos ne-
gros e indígenas foi a promulgação da Lei nº 10.639/2003 e da Lei nº
11.645/2008, e a continuação das lutas desses movimentos se faz nas rei-
vindicações por suas condições de implementação. Assim, promulgação
e implementação das DCN passam a demarcar um espaço onde aconte-
cem relações étnico-raciais estabelecidas dinamicamente, de acordo com
as ideias e os conceitos que se tenha a respeito das diferenças e das seme-
156
lhanças e do seu próprio pertencimento étnico-racial constituído social,
cultural, histórica, ideológica e politicamente dentro e fora do universo
escolar.
Assim a decolonização dos currículos reivindicada pelos grupos
subalternizados por meio dos movimentos sociais negros e indígenas
representa uma opção decolonial. Ou seja, “uma opção e paradigma de
coexistência [que] rejeita sempre uma única maneira de ler a realidade,
seja esta cristã, liberal ou marxista” (MIGNOLO, 2008, p. 246).
Dessa forma, a promulgação da Lei nº 10.639/2003 e de suas Di-
retrizes Curriculares (BRASIL, 2004) representam, em boa medida, os
anseios dos movimentos sociais para ver o negro retratado de maneira
positiva nos currículos oficiais da educação básica brasileira.
Para que o ensino dos conteúdos de história e cultura afro-bra-
sileira e africana se tornasse obrigatório nos sistemas de educação por
força de lei fez-se necessária uma grande mobilização dos movimentos
sociais negros e de diversos setores da sociedade que encamparam essa
luta. Por isso, e por outras razões, consideramos na promulgação da lei
uma intenção de política intercultural, mas que em si não garante práti-
cas curriculares interculturais (FERREIRA; SILVA, 2013).
O problema das relações raciais no Brasil é uma questão que não
afeta apenas as comunidades negras, e a superação do racismo e da de-
sigualdade racial faz parte da luta pela construção da cidadania e da
democracia para todos, o que representa um projeto de sociedade. De
acordo com Mignolo (2008, p. 248), “a opção descolonial toca tanto o
colonizado como o colonizador, ou seja, a opção descolonial propõe o
desprendimento da lógica da colonialidade, de um horizonte de vida
onde se vive para trabalhar, em lugar de trabalhar para viver”. Por isso
nos remete à ideia de interculturalidade, conforme apresentada por Tu-
bino (2005) e Walsh (2008), tal como um projeto social, cultural, educa-
cional, político, ético, estético, epistêmico que conduz à decolonização e
à transformação dos padrões estabelecidos pela herança colonial.
Mas precisamos ser cautelosos quanto ao sentido, ou à perspecti-
va da interculturalidade, pois como nos adverte Tubino (2005), o con-
ceito pode assumir uma roupagem meramente normativa e funcional
aos interesses do neoliberalismo para manter o status quo. Enquanto na
sua perspectiva crítica o conceito materializa a revalorização e o fortale-
cimento das identidades étnicas. Para Tubino (2005, p. 7):
157
Ser ciudadano intercultural es por ello ejercer el derecho
a construirse una identidad cultural propia, y no limi-
tarse a reproducir en uno mismo ni la identidad here-
dada ni la identidad que la sociedad mayor nos fuerza
a adoptar por todos los medios.
No cenário educacional, a interculturalidade pode estar pautada
na pedagogia decolonial (WALSH, 2008), ou seja, em “uma práxis ba-
seada numa insurgência educativa propositiva – portanto, não somente
denunciativa – em que o termo insurgir representa a criação e a cons-
trução de novas condições sociais, políticas, culturais e de pensamento”
(OLIVEIRA; CANDAU, 2010, p. 28). A finalidade de tal práxis seria ul-
trapassar os processos de ensino e de transmissão de saberes eurocentra-
dos, comprometendo-se com uma pedagogia como política cultural e de
identidade na política (MIGNOLO, 2008).
É nesse sentido que vemos no corpus documental selecionado a
educação das relações étnico-raciais como uma possibilidade de educa-
ção intercultural. Tanto pelo rompimento com o paradigma hegemônico,
através do diálogo estabelecido com os saberes produzidos no continente
africano e na sua diáspora, como pelo estímulo de construção e valori-
zação da identidade negra e indígena de forma positiva como podemos
perceber no Quadro 1.
Quadro 1: A educação das relações étnico-raciais
como possibilidade da educação intercultural
DCN DESTAQUE
Resolução nº 1, de
17 de março de Art. 2º, § 2º. O ensino de história e cultura afro-brasileira
2004 – educação e africana tem por objetivo o reconhecimento e valoriza-
das relações étni- ção da identidade, história e cultura dos afro-brasileiros,
co-raciais e para o bem como a garantia de reconhecimento e igualdade de
ensino de história valorização das raízes africanas da nação brasileira, ao
e cultura afro-bra- lado das indígenas, europeias e asiáticas.
sileira e africana
Resolução nº 5, Art. 2º, II. Assegurar que os princípios da especificidade,
de 22 de junho de do bilinguismo e multilinguismo, da organização comu-
2012 – educação nitária e da interculturalidade fundamentem os projetos
escolar indígena na educativos das comunidades indígenas, valorizando suas
educação básica línguas e conhecimentos tradicionais.
158
DCN DESTAQUE
Art. 1 . Ficam estabelecidas Diretrizes Curriculares Nacio-
º
159
As lutas dos movimentos sociais pela superação do racismo es-
tão impactando nos currículos da educação brasileira, e esta é uma
possibilidade de desnaturalizar a subalternização a que foram subme-
tidos, colocando em marcha o processo de construção de uma peda-
gogia decolonial, por meio da descolonização dos currículos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A construção da ideia de “raça” e o racismo servem para negar as
diferenças culturais e tentar silenciar as formas de pensamento-outro.
Um agravante a esta situação no nosso caso especificamente era a ne-
gação da existência do racismo no Brasil, que sob a falsa ideia de uma
pretensa democracia racial, mantinha-se uma acomodação social na
qual apenas os brancos, e raros casos de negros e indígenas, chegavam às
universidades, por exemplo.
O fato de o país ter assumido seu racismo proporcionou a adoção
de medidas de ações afirmativas, inclusive no cenário educacional, que
apontam para um processo de decolonialidade dos negros e indígenas no
Brasil no cenário educacional.
Como observamos, a promulgação dos dispositivos legais, perce-
bidos aqui no âmbito das Diretrizes Curriculares Nacionais, em relação
à consolidação de uma educação para as relações étnico-raciais, surge
num contexto de lutas dos movimentos sociais que pressionam e garan-
tem espaços dentro do corpo legal. Nestes dispositivos evidencia-se a
concepção de que o Brasil é formado por uma diversidade cultural que
precisa ser respeitada e valorizada.
Podemos perceber que no campo do contexto as questões referen-
tes à assunção da necessidade da promoção de uma educação antirra-
cista têm sido contempladas. Cabe agora nos lançar ao campo empírico
para aprofundarmos essa discussão e compreendermos como elas são
tratadas para perceber seu potencial como horizonte de enfrentamento
do racismo em contextos mais amplos.
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163
164
ORDEM MORAL E DOMÉSTICA EM PROL DA
LONGEVIDADE ESCOLAR DE FILHOS DE
FAMÍLIAS NEGRAS DE MEIOS POPULARES
(PERNAMBUCO E PARAÍBA, 1940-1970)
Fabiana Cristina da Silva37
Andrea Tereza Brito Ferreira38
INTRODUÇÃO
Este artigo tem como objetivo descrever e analisar a organização
familiar – condutas e normas – exercidas por famílias negras, “não-her-
deiras39 e de meios populares que possibilitaram a manutenção e lon-
gevidade escolar40 dos filhos e das filhas, levando-os a atingir o ensino
secundário e ou superior na Paraíba e em Pernambuco entre as décadas
de 40 e 70. Neste trabalho iremos analisar dados obtidos em duas pesqui-
sas realizadas: uma já concluída e outra que se encontra, no momento,
em andamento.41
O espaço territorial do estudo se estende entre Pernambuco e Pa-
raíba, em que busca-se identificar como as famílias analisadas construí-
ram a trajetória de escolarização de seus filhos e filhas nesses estados. O
período analisado refere-se ao processo de escolarização dos filhos e das
165
filhas das famílias estudadas. É importante destacar que, nesse momen-
to histórico, os indivíduos negros e pertencentes aos meios populares
não se caracterizavam como o principal público de níveis superiores de
ensino e muito menos obtinham, ao menos com frequência, uma longe-
vidade escolar.
Nas décadas de 50 e 60 do século XX, período em que esses filhos
e filhas frequentaram a escola, o ensino ainda não se encontrava plena-
mente democratizado, e as taxas de escolarização dos níveis secundário e
superior eram ainda muito baixas. Segundo dados da Revista Conjuntura
Econômica, de março de 1957,42 no Censo de 1950, apenas um pouco
mais de 20% dos habitantes ativos remunerados possuíam cursos com-
pletos, e em cada 100 deles, 84 tinham certificado do ensino primário, 15
do secundário e apenas 1 tinha o ensino superior.
Essa disparidade se torna ainda maior quando tomamos como
característica de análise a cor. No mesmo Censo de 1950, tomando a
população de mais de 10 anos de idade, a percentagem de alfabetiza-
dos situava-se ao redor de 48%; e com curso completo, seja primário, se-
cundário ou superior, cerca de 18%. Nesse contingente de alfabetizados,
verificamos que 42% dos brancos, 38% dos amarelos e apenas 6% dos
pardos e 6% dos negros tinham curso completo (seja primário, secundá-
rio ou superior). É dentro deste contexto que as três famílias estudadas
conseguiram que seus filhos e filhas tivessem uma maior aproximação da
leitura e da escrita levando-os a atingir níveis de ensino estatisticamente
improváveis para sua classe social e raça.
A especificidade do objeto a ser analisado, ou seja, o trabalho com
a memória de trajetórias familiares de escolarização, em um período his-
tórico anterior ao nosso, apontou a necessidade da utilização da “his-
tória”43 oral, o que tornou, ao longo do desenvolvimento da pesquisa,
os depoimentos orais como a principal fonte de trabalho, no qual nos
amparamos para redigir este artigo.
42 Trata-se de uma revista econômica que traz um artigo intitulado: “Os negros na sociedade
brasileira”, que aborda as ocupações profissionais, econômicas e a situação educacional dos
negros no Brasil, tomando como análise o censo de 1950.
43 Utilizamos a palavra “história” entre aspas para ressaltar, que concordamos com
autores da área de que se trata de uma expressão equivocada, pelo fato de pressu-
por o entendimento da existência de outro ramo da história e não do trabalho com
outro tipo de fonte (AMADO; FERREIRA, 1998). Acreditamos que as fontes é que
são orais e não a história (GALVÃO, 2006).
166
A entrevista com base na memória dos indivíduos, ou de grupos
sociais que viveram em determinado tempo histórico e cronológico, só
pôde ser utilizada e valorizada como uma fonte de pesquisa científica,
principalmente no campo histórico, a partir do surgimento dos Anna-
les44 que possibilitou o alargamento das fontes que poderiam ser utili-
zadas. Recentemente, a partir desses pressupostos, é que se começou a
utilizar a memória para se tentar reconstituir passagens históricas e a his-
tória de indivíduos comuns. Essa utilização se deve ao fato da chamada
“história” oral trazer várias e importantes reflexões teóricas e metodoló-
gicas necessárias à realização de pesquisas, a exemplo das relações entre
história e memória, entre trajetórias de vida e construção de biografias
e autobiografias, entre a tradição oral e a tradição escrita, a postura e a
ética do pesquisador, além de outros aspectos que indicam a riqueza e o
potencial dessa que compreendemos ser uma metodologia.45
As relações entre os membros da família, de meio popular, cujos
pais tinham baixa escolarização e a trajetória escolar contínua de seus fi-
lhos e filhas, foram analisadas teórica e metodologicamente sob os pres-
supostos da história cultural e da micro-história,46 além do auxílio per-
manente de pesquisas realizadas nos campos da sociologia da educação,
que destacaram algumas condições e fatores, que contribuíram para uma
maior permanência no âmbito escolar.
Podemos considerar que a aproximação entre os campos da socio-
logia da educação e da história da educação tem se tornado estreita na
medida em que a complexidade de alguns objetos históricos de pesquisa
suscita a necessidade do apoio de conteúdos estudados pela sociologia.
Mais especificamente neste trabalho, apesar de sua definição histórica
tanto teórica quanto metodológica, observamos, ao longo da pesquisa,
44 Corrente teórica que teve seu momento inicial em 1929, na França. Para maior
aprofundamento ver: Burke (1992 e 1997), Lopes e Galvão (2001), Le Goff (1988).
45 Para o aprofundamento dessas questões, ver, entre outros, Alberti (1990), Amado e
Ferreira (1998), Thompsom (1992).
167
que algumas questões sobre escola, sucesso escolar, capital cultural, he-
rança e meios populares eram de fundamental valor para a compreensão
da família estudada e vêm sendo amplamente discutidas pela sociologia
da educação. Em seu artigo, Nunes (2007) faz uma análise das contribui-
ções que essa área vem dando à pesquisa histórica, destacando aproxi-
mações e afastamentos, do ponto de vista de uma historiadora:
Apesar das dificuldades de troca e circulação entre
áreas, o fato é que elas ocorrem pela necessidade de ar-
ticular os conhecimentos imprescindíveis para a cons-
trução de nossos objetos […] Afinal, Fernand Braudel
já escrevia, no final da década de 1950, que a histó-
ria aceitava de bom grado as lições dos seus vizinhos.
(NUNES, 2007, p. 60)
Diante de diferenciais, como trajetórias escolares, memória, raça,47
herança, classe social e capital cultural, buscamos identificar quais estra-
tégias essas famílias utilizaram para que possibilitassem a seus filhos e
filhas alcançarem uma longevidade escolar no período estudado.
DESENVOLVIMENTO
A configuração familiar
A configuração familiar é um dos elementos fundamentais para
podermos compreender as normas e condutas que levaram esses indiví-
duos a percorrer trajetórias escolares parecidas e de sucesso. Constata-
mos que fazer parte de uma família com determinadas características e
práticas possibilitou uma relação diferenciada com a escola, nesse caso,
uma relação que determinou a progressiva longevidade escolar dos filhos
e das filhas. Sendo assim, neste artigo, analisaremos três famílias negras,
advindas de meios populares que dentro da estrutura familiar organi-
zou, muitas vezes intencionalmente, normas e condutas que favoreceram
uma trajetória escolar e contínua para os seus filhos e filhas. As famílias
pesquisadas foram escolhidas a partir de cinco critérios: os filhos e as
filhas deveriam ter desenvolvido seu processo escolar entre 1940 e 1980;
eles deveriam ter realizado o ensino secundário e/ou superior no período
47 O termo “raça” é utilizado neste artigo como conceito relacional, que se constitui
histórica e culturalmente a partir de relações concretas entre grupos sociais, em cada
sociedade, rejeitado o determinismo biológico e valorizando a cultura e a identida-
de de cada um, conforme Munanga (2003).
168
estudado; as famílias autodeclararem como negras e que pertencessem,
no período, a meios populares (que tivessem baixos rendimentos econô-
micos); ter os pais com nenhum ou baixo grau de escolaridade, ou seja,
uma escolarização razoavelmente menor do que a dos filhos e das filhas.
Neste artigo, não realizaremos uma discussão intensa em relação
à questão étnica, mas é fundamental destacar que no depoimento dos
membros dessas famílias, em determinados pontos de suas trajetórias
escolares, ser negro os diferenciava e os distinguia dos demais indivíduos
em vários espaços de sociabilidade. É importante ressaltar que a questão
étnica é de fundamental relevância nesta trajetória, a partir do momento
que a escola brasileira de nível secundário e superior não era destinada a
indivíduos com essas características, fato este que eleva a singularidade
da trajetória de sucesso escolar desses sujeitos. Porém, acreditamos que,
dentro da proposta deste artigo de analisar a organização familiar segun-
do os depoimentos coletados, a questão social-econômica aparece mais
efetivamente, não nos parece distinguir entre famílias pobres brancas ou
negras, ou seja, ter uma configuração e organização familiar estritamente
relacionadas à questão étnica. Vale ressaltar que, em outras perspectivas
analíticas já realizadas com esta pesquisa, a questão de ser uma família
negra vai, sim, ter sua importância e significação.
Para a melhor compreensão do contexto familiar desses sujeitos,
segue uma breve descrição da composição dessas famílias.
No período da pesquisa a família A era constituída por pai, mãe
e três filhos: a mãe, dona Conceição, tinha 77 anos e era costureira; o
pai, seu Edmilson, tinha 82 anos e havia trabalhado como pedreiro, am-
bos não concluíram o primário, e eram aposentados. A primeira filha
do casal, Lúcia com 58 anos, era solteira e sem filhos. Ela graduou-se em
pedagogia e realizou o mestrado e o doutorado em educação, trabalha-
va como professora universitária desde 1976. Seu irmão do meio, Luiz
era o único homem, estava casado, tinha 56 anos e três filhas. Ele havia
interrompido os estudos durante o secundário. Já a irmã caçula era Lu-
ciana, que tinha 55 anos, era divorciada e tinha três filhos. Ela havia se
formado em letras e trabalhava como professora nas redes municipal e
estadual de ensino do Recife. Durante quase toda a infância e o início da
adolescência dos três irmãos, a família havia residido em uma casa pró-
pria no bairro Águas Compridas48 em Olinda. Dali só mudariam para o
48 Bairro popular, na periferia da cidade de Olinda.
169
Cajueiro, bairro localizado no Recife, no final dos anos 1950, onde dona
Conceição e seu Edmilson residem até hoje.49
Paralelamente a família B era constituída por pai, mãe e três filhos.
Os pais, seu Robson, alfaiate e dona Célia, bordadeira e dona de casa, já
eram falecidos na época do estudo do caso. Eles haviam cursado o pri-
mário e educaram um casal de dois filhos biológicos e uma filha adotiva.
Sendo o filho mais velho, já com 64 anos, José era casado e tinha três
filhos. Graduou-se médico e exercia a atividade de psiquiatra, na cidade
de São Paulo. A filha do meio, Célia tinha 60 anos de idade, era solteira
e sem filhos. Também formada em medicina, seguiu os estudos até ti-
tular-se mestre e doutora em antropologia, e trabalhar como professora
universitária. Já a caçula dos irmãos, Dorinha havia sido adotada por seu
Robson e dona Célia na cidade de Barreiros,50 zona da mata sul de Per-
nambuco. Tinha 56 anos, era casada e havia tido dois filhos. Com gra-
duação em pedagogia, ela já era aposentada na rede estadual do ensino.
Após residirem em Barreiros, durante quase toda a infância, os irmãos
mudaram com os pais, para outra casa própria, também no bairro de
Cajueiro,51 no Recife.52
A família C tem uma configuração bastante diferente das anterio-
res, é composta por pai, mãe e doze filhos.53 O pai concluiu a 1ª série do
curso primário, conseguia ler e escrever, porém, com certa dificuldade.
Tornou-se funcionário público e trabalhou em grande parte de sua vida
no 3º Batalhão de Engenharia do Exército, na construção de estradas.
49 Nesta família, coletamos o depoimento de três membros: a mãe, a filha mais velha
e a filha mais nova. O pai, no momento de realização da pesquisa, já era falecido
e, por uma série de questões inerentes ao próprio processo e tempo da pesquisa, o
irmão mais novo não foi entrevistado.
53 Na verdade, essa família teve 14 filhos (7 homens e 7 mulheres), dos quais sobrevi-
veram 12 (7 mulheres e 5 homens).
170
A mãe é analfabeta e parece54 não tendo frequentado, por muito tempo,
a escola, e divide as atividades domésticas com o trabalho informal de
costureira. Os filhos são segundo a ordem de nascimento: a filha 1, mais
velha de todas, é graduada em língua portuguesa e professora da rede
estadual da Paraíba. O filho 2, mais velho dos homens, era engenheiro
mecânico e funcionário público. A filha 3 é licenciada em história. A
filha 4 é pedagoga, tem mestrado em educação e atualmente exerce a
função de professora universitária de uma instituição pública. O filho
5 é engenheiro mecânico e tem mestrado e doutorado na mesma área,
atualmente é professor universitário de uma instituição pública. A filha 6
é enfermeira, especialista em saúde pública e trabalha como funcionária
pública na área. A filha 7 é licenciada em geografia. O filho 8 é engenhei-
ro mecânico, tem o mestrado incompleto na mesma área e atua como
funcionário público. O filho 9 é graduado em matemática com mestrado
e doutorado em física. O filho 10 atualmente faz o ensino médio. A filha
11 é graduada em pedagogia, e a filha 12, a mais nova, é graduada em
biologia. A família é natural da cidade de Piancó, interior do estado da
Paraíba, que por volta da década de 70 mudou-se para Petrolina, cidade
do Sertão Médio do São Francisco, localizada no interior do estado de
Pernambuco, onde vivem atualmente.55
O que difere essas famílias das demais, nesse período histórico,
é o percurso escolar de seus filhos e filhas, estreitamente ligado a uma
trajetória de sucesso, pois, em todas as famílias quase a totalidade dos
filhos, excluindo o filho mais novo da família A e o filho 10 da família
C, tiveram acesso e concluíram o ensino superior, no período estudado.
Diante de diferenciais, como herança, classe social e capital cultu-
ral, buscamos analisar como a organização interna e a conduta familiar
contribuíram para que esses filhos e filhas alcançassem essa longevidade
escolar. Vale ressaltar que a história que aqui iremos analisar trata-se da
versão construída/elaborada muitas vezes por anos na memória desses
54 Como não contamos ainda com o depoimento integral da mãe, não podemos afir-
mar se ela frequentou mesmo a escola. Algumas afirmações contidas neste texto são
a partir dos depoimentos dos filhos e do marido, além da própria mãe, no momento
que fez algumas intervenções na entrevista do marido.
171
indivíduos e que neste momento foi cedida a nós, através da pesquisa e
da realização dos depoimentos, ou seja, trata-se da visão desses indiví-
duos sobre sua própria história.
ORGANIZAÇÃO FAMILIAR: A ORDEM MORAL E DOMÉSTICA
Bourdieu (1998) afirma que existe uma estreita relação entre o
perfil da família e o sucesso escolar de seus filhos, ou seja, a formação
cultural dos antepassados, a trajetória social do chefe da família, entre
outros fatores, interfere diretamente na trajetória escolar de seus des-
cendentes.
É também no âmbito familiar que os filhos, desde pequenos, ab-
sorvem os conceitos fundamentais para cada família, a maneira de se
conduzir dentro daquela sociedade. Segundo Lahire,
[…] moral do bom comportamento, da conformidade
às regras, moral do esforço, da perseverança, são esses
os traços que podem preparar, sem que seja consciente
ou intencionalmente visada, no âmbito de um projeto
ou de uma mobilização de recurso, uma boa escolari-
dade. (LAHIRE, 1997, p. 26)
É como se famílias de meios populares, por não terem um patri-
mônio financeiro e, às vezes, intelectual a ser preservado, têm na sua
herança moral o bem mais precioso. Segundo Lahire (1997, p. 25), “[…]
uma parte das famílias das classes populares pode outorgar uma grande
importância ao ‘bom comportamento’”.
As famílias A e C mostram que essas características as distinguiam
das demais famílias de sua localidade. Eram famílias que, ao longo dos
anos, e principalmente no período analisado, tornaram-se muito respei-
tadas dentro da sua comunidade, principalmente na rua onde moravam.
As características de famílias que, através da educação dos filhos e de sua
relação com os demais membros da comunidade, revelava certa rigidez,
estabilidade, confiabilidade e segurança.
Os pais eram conhecidos como pessoas que “[…] tomavam con-
ta dos filhos, que a casa era ordenada, essas coisas todas” (FILHA MAIS
VELHA, FAMÍLIA A). As crianças eram vistas como caseiras, que não se
misturavam com as outras crianças da rua, e só saíam de casa acompa-
nhada pelos pais. No caso da família C, essa perspectiva diferenciada e de
respeito se revelou nos depoimentos, carregado de um sentido também
172
preconceituoso, pois, por ser uma família negra, como muitas naquele
contexto social, eles se diferenciavam das demais:
E às vezes isso soava até como um certo respeito, sabe?
Não era desdenho não. Os negros de “fulano” [nome
do pai]? Os negros de “fulano” são diferentes! Eu ouvi
isso muitas vezes, os caras dizer isso. […] Porque a
gente, olha, questões sociais, famílias desestrutura-
das no batalhão, é jovens embriagados, embriaguez,
envolvidos com drogas, com prostituição, jovens que
se perderam nessa estrada longa […] E sem remorso
nenhum, eu considerava a gente assim que um vence-
dores certo? De uma certa forma vencedores. Compa-
rando assim com outras né? (FILHO 2, FAMÍLIA C)
Ainda nos depoimentos dos filhos das famílias A e C, podemos
observar o orgulho de pertencer àquelas famílias, uma clareza dos atri-
butos positivos que suas famílias tinham dentro daquela localidade. E
isso provavelmente contribuía para uma boa autoestima desses filhos,
que viam nessa conduta familiar um diferencial:
Exemplo assim, de família cuidadosa que os meninos
não iam pra rua, que os meninos não saíam sozinhos,
né, porque, quando os meninos ficam na rua você per-
de, perdia aquele perfil, não é, então aqui meninos que
não iam pra rua, não brincavam na casa dos outros
é, que só saíam acompanhados, né, que saíam com
os pais, que eram da escola pra casa, né? Então isso aí
eram características da família que merecia, vou dizer,
o respeito da comunidade [risos]. (FILHA MAIS VE-
LHA, FAMÍLIA A)
No caso da Família C, o espaço familiar é, até hoje, referendado
como unido e de laços bastante estreitos entre os irmãos: “[…] A gente
nunca teve problema de família, né. Tinha problema de família uma dis-
cussão besta, né, de farinha pouca meu pirão primeiro! […]” (FILHO 5,
FAMÍLIA C). Além de que fazer parte de uma família grande, isso é rela-
tado, em muitos momentos, de uma forma positiva, o que possibilitava a
diversidade de ideias e opiniões:
É uma verdadeira assim, aprendizagem do dia a dia,
uma troca de experiência de comportamento, tá en-
173
tendendo? Quando a gente vai ficando assim adulta,
aí a gente observa, a gente vive dentro de uma mesma
estrutura e cada pessoa tem o seu ponto de vista com
relação à vida, tá entendendo? (FILHA 6, FAMÍLIA 6)
Por outro lado, na família B, o que sobressai no depoimento da
filha é que sua família, ainda em Barreiros, possuía certo prestígio como
diferencial, um prestígio de caráter, sobretudo, intelectual, pois o pai era
alfaiate e a mãe se tornou bibliotecária da Biblioteca Municipal da cidade:
Tinha o prestígio intelectual. Porque ela era bibliote-
cária. Ele era alfaiate, quer dizer, ele não era um co-
merciário, ele não era um sapateiro, ele não era o […]
agora, não era o prestígio intelectual do médico, do en-
genheiro […] do padre evidentemente, era uma coisa
intermediária. (FILHA DO MEIO, FAMÍLIA B)
O papel que a família ocupava dentro da comunidade, acredita-
mos também que se deve, além das características de “ordem moral”, ao
fato de que esses filhos possuírem um grau de escolarização mais alto do
que colegas da mesma idade dentro da localidade.
É perto da gente lá em águas compridas, todo mundo
estudava, mas, do meu grupo, o do grupinho da minha
faixa etária eu era uma das pessoas mais adiantadas,
né, tanto é que, aqui onde nós morávamos em águas
compridas eu de imediato assumi a tarefa de ajudar os
outros meninos. (FILHA MAIS VELHA, FAMÍLIA A)
Estudar ou ter uma escolarização contínua na década de 50 não
era muito comum nos meios populares. Esse fato certamente dava a esses
filhos um lugar simbólico na comunidade que a distinguia dos colegas
de bairro.
Diante do exposto, podemos destacar que existia nestas famílias
uma “ordem moral familiar”, para usar a expressão de Lahire (1997), que
é definida como a predisposição à obediência, à organização doméstica,
aos horários rígidos, entre outros elementos.
Para reforçar esse conceito, observamos que as três famílias estu-
dadas pareciam criar hábitos e uma rotina bem definida entre as ativida-
des domésticas e as atividades escolares, que tinham como finalidade o
sucesso escolar dos filhos. No caso das famílias A e C, em que os pais ti-
nham um baixo grau de escolarização, a mãe, mesmo que intuitivamen-
174
te, compreendia a importância de incentivar, acompanhar e sistematizar
diariamente as atividades escolares dos filhos.
E como mamãe era mais presente aí, a cobrança dela
era bem maior ainda. […] A cobrança era de que de-
via estudar. E bastante autoritária né. Nesse […] deve
estudar e era muito autoritária, que a gente temia não
estudar. (FILHA 4, FAMÍLIA C)
Mesmo que não tivesse dever, significava sentar, olhar
o livro, organizar, não é […] “tem dever?” Tem. “Então
fazer o dever para depois ir brincar. Não tem dever?
Não, não tem, mas vai estudar assim mesmo”. (FILHA
MAIS VELHA, FAMÍLIA A)
Na família B, em que os pais tinham um grau de escolarização
maior, pareciam saber a importância da disciplina e de uma rotina de
estudo para o desenvolvimento intelectual dos filhos.
Aí, é, nós chegávamos, almoçávamos, tomava banho
essa coisa toda e tinha aquela hora de chegar e sentar
na mesa […] e estudava de x horas a x horas que eu
não sei te precisar. (FILHA DO MEIO, FAMÍLIA B)
Uma das estratégias utilizadas por essas mães, como forma de va-
lorização da escola, era o esforço que faziam para comprar o fardamento
e o material escolar dos filhos. Esse fato aparece em vários depoimentos,
de forma bastante enfática. Para que os filhos fossem à escola com todo o
material necessário faziam sempre mais que o possível:
Comprava tudinho. Comprava fiado. Comprei mui-
to fiado […]. Eu acho que uma pessoa ter comprado
mais fiado do que eu, não tem não! Agora, fiado eu
comprei muito. Ochê! E o povo era tudo doido pra eu
comprar. […] “Mãe eu quero. Mãe, precisa isso na es-
cola. Mãe! Precisa não sei o quê, não sei o quê, não sei
o que mais”, eu me virava com tudinho. Dava! Um jeito
pra tudinho. (MÃE DA FAMÍLIA C)
Aí vamos fazer a farda. Tem que já entrar de farda
completa: meia, sapato, saia, blusa, até o lacinho que
for botar na cabeça é branco, ou qualquer coisa assim
[…] não bota lenço, nem entra com nada. Eu digo: ih,
agora? Vamos cuidar da farda. Aí fui lá comprei uma
blusa. (MÃE DA FAMÍLIA A)
175
Podemos também destacar o zelo com o material escolar realizado
por essas famílias:
A gente só tinha aquele livro tradicional, o livrinho que
a gente levava e que minha mãe tinha um cuidado com
os livros da gente, era tudo bem encapadinho, tudo di-
reitinho. […] Era. Minha mãe junto com a gente, né.
Eu sei que os livros da gente eram bem encapados com
o nomezinho direitinho, a sacolinha do lanche, a toa-
lhinha bordadinha com o nome da gente […] Sempre
teve esse cuidado com a gente, sempre. (FILHA MAIS
VELHA, FAMÍLIA A).
Comprava tudo é. Fazer com a história, a gente po-
dia não ter é […] o calçado [riso] para outras coisas,
mas o sapato, as meias, a fardinha toda aquela fardi-
nha de […] de preguinha, sim, com a blusa de volta
o mundo na época, não era? Ou então, de popelina
aquelas coisas todas, a gente sempre teve tudo arru-
madinho, mamãe sempre. (FILHA 6, FAMÍLIA C)
O zelo com os materiais escolares, assim como a apresentação pes-
soal, a apresentação visual dos exercícios, letras bonitas, cadernos enca-
pados, tratados com cuidado é, segundo Lahire (1997), o tipo de caráter
que a escola exige objetivamente, e essas características, nesse caso, são
também desenvolvidas pelas famílias, que assim, consciente ou incons-
cientemente, objetivam o melhor aceite, relacionamento ou a maior ade-
quação dos seus filhos na escola.
A participação desses pais no processo de aprendizado dos filhos
pode não ser caracterizada como intencional, mas foi realizada de forma
sistemática, controlada e, muitas vezes, simbólica. Tudo indica que talvez
essas práticas tenham sido exercidas de forma inconsciente como afirma
Zago (2000, p. 20-21):
A família, por intermédio de suas ações materiais e sim-
bólicas, tem um papel importante na vida escolar dos
filhos, e este não pode ser desconsiderado. Trata-se de
uma influência que resulta de ações muitas vezes sutis,
nem sempre conscientes e intencionalmente dirigidas.
Mesmo balanceando as diferenças em torno da intencionalidade
dessas atividades, as três famílias criaram práticas e procedimentos pa-
176
recidos para desenvolver o acompanhamento escolar dos filhos, sendo a
mãe a principal figura responsável por esse monitoramento.
Dentro da atividade familiar, principalmente nos meios populares,
observamos que há uma real necessidade de manutenção da organiza-
ção da casa e, consequentemente, de uma rotina de atividades no dia a
dia doméstico.56 Como as famílias estudadas só podiam contar com seus
membros, não possuindo uma pessoa de fora da família que os auxilias-
se, a organização da casa é rememorada como necessária para o bem-es-
tar da família. Nos depoimentos dos filhos das famílias A e C isso aparece
com bastante frequência,
Nós não tínhamos empregada, éramos nós que fazía-
mos tudo e que tínhamos também o tempo de estudar.
[…] Os três […] Tudo dividido, era, porque senão a
minha mãe não podia costurar. (FILHA MAIS NOVA,
FAMÍLIA A).
Todos tinham por obrigação de fazer os afazeres do-
mésticos, né. (FILHA 5, FAMÍLIA C)
Sendo assim, era necessário que essas atividades fossem bem de-
limitadas entre seus membros. Dentro dessas famílias analisadas existia
um papel específico para cada um dos filhos nas atividades domésticas,
ou seja, havia uma rotina diária muito bem dividida entre as atividades
domésticas e escolares.
A organização que envolve uma casa pode simbolizar para os fi-
lhos uma organização de vida. Os meios populares, por estarem mais
próximos dessas atividades domésticas, tornam esses momentos muito
importantes, tanto de união entre a família como de uma organização e
divisão de atividades.
Intencionalmente, essa “disciplina” poderia ser realizada como um
trabalho exercido pelos pais, principalmente pela mãe, com os filhos,
para que essa “ordem e regularidade” que simboliza também uma boa
família, como dito anteriormente, fosse incorporada pelos filhos. Os fi-
lhos levariam, assim, essas atitudes para a vida e, principalmente, para
o âmbito escolar: a responsabilidade na divisão das tarefas, a ordem e a
seriedade em suas realizações, ou seja, como afirma Lahire (1997, p. 26),
“pôr ordem em casa é outra maneira de pôr ordem nas suas ideias”.
56 Como também foi observado por Lahire (1997).
177
O valor que era atribuído à escola nessas famílias superava muitas
vezes as necessidades básicas, como alimentação e moradia. Observamos
no caso da Família C em que o pai também é relatado nos depoimen-
tos com ações que o colocam como alguém atento a essas questões, por
mais que sua participação não tenha sido sistemática, principalmente
pelo papel de provedor e financiador, que ocupava dentro das famílias.
No depoimento do filho 2, o mais velho entre os homens, observamos o
valor e a importância que a escola tinha para essa família, quando com o
dinheiro destinado à compra de alimentos para a família, o pais não os
comprou e fez a matrícula do filho na escola:
Sim, aí, mas tinha que pagar a matrícula, aí eu me lem-
bro, num sábado papai tava com um dinheirinho pra
comprar uma carne, eu não esqueço isso nunca! [riso]
Mamãe ficou brava, porque papai tirou o dinheiro e
me deu pra comprar, pra fazer a matrícula e não foi
comprar a carne [risos]. (FILHO 2, FAMÍLIA C)
Pais não escolarizados, tomando aqui como comparação o estudo
realizado por Rancière (2005),57 podemos considerá-los como “pais ig-
norantes” no sentido de que esses pais não tinham uma relação estreita
com o mundo escolar, porém são pais que “ensinaram” pois compreen-
diam o processo escolar, a importância da escola e faziam uso de práticas
específicas de acompanhamento dos filhos nos estudos, como afirma o
autor: “não há ignorante que não saiba uma infinidade de coisas, e é so-
bre este saber, sobre esta capacidade em ato que todo o ensino deve se
fundar”. (RANCIÈRE, 2005, p. 11). É esse tipo de ensino que pode ser
comparado à prática exercida por esses pais para manter seus filhos na
instituição escolar.
Mesmo tendo pais “ignorantes”, suas indicações (comportamen-
to, hora de estudar, de fazer a tarefa, rotina específica) construíram nos
filhos uma formação sólida que lhes garantiu a compreensão da impor-
tância da escola e a valorização dos estudos:
Demais. Não. É tanto que a gente estudou porque eles
achavam importante […] Os dois. Havia uma grande
importância de ambas as partes, né. (FILHA 4, FAMÍ-
LIA C)
178
Diante do exposto, podemos considerar que foram essas ações,
muitas vezes inconscientes, dessas famílias, que contribuíram na constru-
ção de um papel familiar, de extrema importância para a trajetória escolar
dos filhos. De acordo com Setton (2005), fazendo um comentário da obra
de Bourdieu (1998 apud SETTON, 2005, p. 79):
Na realidade, cada família transmite a seus filhos, mais
por vias indiretas que diretas, um certo capital cultural
e um certo ethos, sistema de valores implícitos e pro-
fundamente interiorizados, que contribui para definir,
entre outras coisas, as atitudes em face do capital cul-
tural e da instituição escolar.
Nesse caso, essa família possuía um “certo capital cultural” e tam-
bém tinha um “ethos familiar” predisposto a valorizar e incentivar o co-
nhecimento escolar, ou seja, era detentora de práticas efetivas que con-
tribuíram, de certa forma, para a consolidação do capital escolar que era
dado na escola.
CONCLUSÃO
Os resultados apontaram para a existência de uma organização fa-
miliar nos meios populares em que se destacava, entre outros elementos,
a conduta e a moral dessas famílias, ou seja, é como se os pais visassem
certa respeitabilidade familiar da qual seus filhos deveriam ser os prin-
cipais representantes. Podemos também observar que a construção do
que era ser uma boa família advinha do rigor e do controle que esses pais
tinham em relação aos filhos, tanto no dia a dia, dentro da comunidade,
quanto nas atividades escolares. A família aparece como um “lugar” re-
lativamente fechado, para evitar influências negativas, os pais proporcio-
navam para esses filhos, mesmo que de forma intuitiva, rotinas, espaços
e momentos específicos para o estudo, assim como práticas de leitura,
acompanhamento das atividades escolares, além da manutenção mate-
rial dos filhos na escola, com o fardamento, livros entre outros.
No caso das famílias estudadas, diante do exposto, podemos con-
siderar que ambas possuíam “certo capital cultural” e também tinham
um “ethos familiar” predisposto a valorizar e incentivar o conhecimento
escolar, ou seja, tinham práticas efetivas e papéis bem definidos, que
contribuíram para a consolidação do capital escolar que era dado na
escola.
179
Este estudo tem possibilitado compreender, em períodos ante-
riores – em que não existia uma discussão ampla sobre a necessidade e
a importância da contínua escolarização –, a formação de uma organi-
zação familiar, objetivando a permanência dos filhos na escola.
REFERÊNCIAS
180
MUNANGA, K. Uma abordagem conceitual das noções de raça,
racismo, identidade e etnia. Geledés, São Paulo, 2003. Disponível
em: <https://goo.gl/a27VFe>. Acesso em: 11 maio 2018.
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PORTES, É. A. O trabalho escolar das famílias populares. In:
NOGUEIRA, M. A.; ROMANELLI, G.; ZAGO, N. (Orgs.).
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populares. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 61-80.
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emancipação intelectual. Tradução Lílian do Valle. 2. ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2005.
SETTON, M. G. J. Um novo capital cultural: pré-disposição
e disposições à cultura informal nos segmentos com baixa
escolaridade. Educação e Sociedade, Campinas,v. 26, n. 90, p. 77-
106, jan./abr. 2005.
THOMPSON, P. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1992.
ZAGO, N. Processos de escolarização nos meios populares: as
contradições da obrigatoriedade escolar. In: NOGUEIRA, M. A.;
ROMANELLI, G.; ZAGO, N. (Orgs.). Família e escola: trajetórias
de escolarização em camadas médias e populares. Petrópolis: Vozes,
2000. p. 17-43.
181
182
POR UMA GEOGRAFIA PÓS-COLONIAL:
UM OLHAR SOBRE AS (DES)TERRITORIALIDADES
DOS ESPAÇOS QUILOMBOLAS
Marcos Antonio Solano Duarte Silva58
INTRODUÇÃO
Este texto se propõe a discutir sobre a leitura espacial das comuni-
dades quilombolas a partir de algumas reflexões levantadas nos encontros
do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação, Raça, Gênero e Sexua-
lidades Audre Lorde (Geperges). O referido grupo debate e realiza pes-
quisas sobre o pós-colonial em torno das categorias de educação, raça,
gênero e sexualidades. Ou seja, seu foco é desenvolver estudos e pesquisas
de forma interdisciplinar privilegiando a interseccionalidade entre as ca-
tegorias citadas. Atualmente seus trabalhos estão vinculados a Universi-
dade Federal Rural de Pernambuco e a Fundação Joaquim Nabuco.
Partindo desse pressuposto, entendemos que há uma necessidade
em discutir sobre as espacialidades e identidades negras, relacionando-as
com o ensino da geografia, uma vez que detectamos uma escassez de
produções neste sentido.
O texto escolhido para discussão em um dos encontros no Geper-
ges foi “O conceito de quilombo e a (re)construção de identidades e espa-
cialidades negras”, de Conceição de Maria Ferreira Silva e Silvânia Alves
de Moraes. Privilegiamos como lentes teóricas dessa discussão, as con-
tribuições dos estudos pós-coloniais da vertente latino-americana, que
vêm atualmente lastreando importantes debates sobre subalternidades e
epistemologias dominantes. Esses debates também imprimem várias crí-
ticas ao eurocentrismo enquanto definidor de algumas categorias, como:
raça, identidade e território.
A escolha desta corrente teórica configura-se em uma escolha polí-
tica, que no campo educacional da geografia merece maior atenção. Outro
fator que nos leva a acreditar no potencial desta corrente é a necessidade
de reescrever a história a partir de uma geopolítica do conhecimento que
não reproduza o viés eurocêntrico universal, mas que nos possibilite uma
construção epistemológica a partir de uma localidade espacial.
58 Mestre em educação, culturas e identidades pela Universidade Federal Rural de
Pernambuco(2016). Professor aulista concursado do Colégio Municipal Terezinha
Pessoa de Queiroz. [email protected]
183
Desse modo, esperamos que o referido texto possa contribuir para
o fomento de outros estudos que tratem das questões étnico-raciais para
o ensino da geografia numa leitura pós-colonial. É nesta perspectiva que
o referido estudo promoverá novos olhares e direcionamentos que pos-
sibilitem a construção de um currículo pluriétnico, pois tratar das ques-
tões que envolvam as relações étnico-raciais nesta contemporaneidade
tem se tornado uma prática urgente e necessária.
OS ESTUDOS PÓS-COLONIAIS E OS TERRITÓRIOS
SUBALTERNIZADOS
Os estudos pós-coloniais da vertente latino-americana, a partir de
autores, como Quijano (2001, 2005), Mignolo (2008), Grosfoguel (2007)
e Quental (2012), vêm criticando fortemente as concepções de raça e
território, advindas da Modernidade europeia. De acordo com essa cor-
rente de estudo, o pensamento hegemônico europeu tem se apropriado
da natureza dos lugares para determinar a construção de um conceito
de raça que subalterniza os sujeitos locais e define uma geopolítica do
conhecimento totalmente eurocêntrica.
Com base nos processos de ocupação das colônias europeias na
América Latina, os modelos econômicos capitalistas determinaram as
estruturas de organização e controle do trabalho, nas quais eram estabe-
lecidas funções remuneradas aos brancos e não remuneradas aos sujeitos
classificados como inferiores (indígenas e negros). Na verdade, há um for-
te poder ideológico como legado da colonização que delimitou as tensas
relações entre os povos europeus e os não europeus (QUIJANO, 2005).
Foi a partir do eurocentrismo que a Europa elevou seu status de re-
ferência no qual se intitulou como um território legitimamente válido, no
que se refere à sua produção cultural e cognitiva. Nessa perspectiva, com-
preende-se que as expressões ou saberes oriundos de outros povos (não
europeus) tornaram-se inválidos ou invisibilizados. Tomamos, então,
como grande desafio a possibilidade de refletir sobre a identidade territo-
rial dos espaços de origem africana e afro-brasileira. Essas identidades se
estabeleceram no Brasil, porém foram silenciadas nos espaços escolares,
ou muitas vezes sofrem leituras reducionistas sobre o seu real significado.
Levando em consideração os processos pelos quais se deu a for-
mação histórico-política e sociocultural do Brasil, já é possível perceber
o forte grau de desigualdade social deixado pelo processo de coloniza-
ção. Nesse limiar de desigualdades, atentamos para a visibilidade de uma
184
cultura imperialmente branca, tida como superior, e a desvalorização de
uma cultura negra marginalizada, tida como inferior. Confere-se então a
construção de um padrão referencial de poder que segrega e controla as
identidades territoriais bem como suas subjetividades e produções locais
(QUENTAL, 2012).
Esta construção do pensamento hegemônico perfaz um caminho
destoante entre a realidade e a representação, conferindo-nos um dis-
tanciamento dos reais significados e sentidos. Neste caso podemos citar
o próprio significado de América Latina que, segundo Quental (2012),
emana do assédio imposto pelos colonizadores em querer impingir aos
povos subalternizados uma descrição geográfica imposta para utilizá-la
como referenciais identitários e de pertença territorial.
Partindo deste ponto, percebemos que o conceito de identidade
calcado pela Modernidade europeia se deu a partir de um forte domínio
histórico colonial, no qual tanto os sujeitos como os lugares sofreram e
ainda sofrem os efeitos de uma lógica globalizada. Neste caso, podemos
entender que se os territórios do ponto de vista geográfico encontram-se
racializados, consequentemente sofrem racializações estendidas ao cam-
po cultural que responde aos interesses de um sistema-mundo dominan-
te e capitalista.
Levando em consideração o modelo de racialização territorial
imposto pela Europa sobre outras formas de racionalidades históricas,
surge a necessidade de um novo projeto de emancipação epistêmica, que
por sua vez dê um novo sentido ao conceito de identidade a partir de
uma nova geopolítica do conhecimento (GROSFOGUEL, 2007).
Este caminho seria uma forma de legitimar toda a diversidade his-
tórica e cultural antes subalternizada, pois, na sua concepção, o cerne da
problemática que circunda as discussões sobre a identidade não está na
atualidade, e sim na história arbitrariamente imposta e universalizada
(QUIJANO, 2005).
Se, por um lado, há um campo de tensões que dificulta o reco-
nhecimento das complexidades que envolvem os aspectos identitários
e territoriais, por outro, surge a necessidade de se criar ações e políticas
públicas que não se legitimem apenas nos moldes do pensamento hege-
mônico europeu. Conforme anuncia Mignolo (2008), a necessidade mais
emergente é que se desenvolva um contexto de “identidade em política”
e não uma “política de identidade”, pois esta tem como pano de fundo a
apropriação de alguns conceitos universalizados, tais como o cristianis-
185
mo, marxismo, entre outros, e tende a construir um caráter identitário
fora do seu significado real.
É nesta perspectiva que os valores calcados na Modernidade eu-
ropeia servem de sustentáculo para reproduzir as diferenças e justificar a
subalternização de saberes epistêmicos outros (índios, negros etc.). Para
Quijano (2005), o cerne da problemática que circunda as discussões sobre
a identidade está na história arbitrariamente imposta e universalizada.
Diante desse cenário histórico, abre-se uma discussão em torno
dos espaços negros, sua organização, relações e contribuições para a for-
mação política, social, econômica e cultural brasileira. Desse modo nos
interrogamos a partir da seguinte reflexão: Como os conceitos de territó-
rio e espaço geográfico em torno das comunidades quilombolas podem
articular outros olhares e promover uma discussão pós-colonial no ensi-
no da geografia? Esta reflexão tem nos inquietado fortemente à medida
que as espacialidades negras no decorrer da história têm sofrido e sofrem
com as representações reducionistas que lhes são impostas.
186
pressividades tidas como válidas nas estruturas de organização do traba-
lho como forma de controle e na formação e classificação racial.
Também em oposição ao desenho colonial do que seria um qui-
lombo, o historiador Joel Rufino dos Santos afirma que:
Uma organização de camponeses livres, que cultiva a
terra, que pratica a policultura, que não destrói a natu-
reza, porque não tem necessidade disso, e que é homo-
gêneo, relativamente homogêneo, em que a distância
entre os que mandam e são mandados é muito peque-
na, e mesmo quando existe, quando é grande, não é
uma diferença de fortuna, é uma diferença de poder;
não é uma diferença de riqueza, não é uma diferença
de acesso às coisas boas que o grupo tem, o quilombo
e a colônia são dois mundos contrastantes. (SANTOS
apud RATTS, 2006, p. 313-314)
Deste modo, as territorialidades produzidas nos espaços negros,
bem como suas expressões culturais não são orientadas por uma pers-
pectiva dominante que homogeneízam as formas espaciais e suas ocu-
pações. Sendo assim, não podemos deixar de enfatizar que os espaços
quilombolas são marcos históricos que, em sua organização espacial,
conferem uma complexidade de detalhes, seja do ponto de vista físico,
ou simbólico. Infelizmente essa riqueza de detalhe pouco se anuncia nos
livros didáticos de geografia onde as associações desses espaços com os
conceitos trabalhados por ela são praticamente escassos.
O segundo ponto analisado no texto refere-se aos processos de
reconhecimento dos espaços quilombolas e dos elementos necessários
para que esse reconhecimento seja de fato validado. Silva e Moraes (2009,
p. 1-2, grifos das autoras) avaliam que:
Nas últimas décadas, os processos de reconhecimen-
to de terras de preto como de remanescentes de qui-
lombos têm sido motivo de polêmica na mídia e têm
envolvido várias esferas de poder como o Estado e a
Academia que buscam as origens dessas comunida-
des e questionam se elas realmente têm direitos sobre
a terra. Nesse contexto, vale problematizar, quais ele-
mentos são utilizados para se classificar o que é um
quilombo hoje na legislação brasileira.
187
As autoras realizaram uma leitura aprofundada sobre o conceito
de quilombo desde o século XIX, enfatizando as aproximações das aca-
demias com a temática, a apropriação do movimento de esquerda nas
décadas de 50 e 60 e das articulações do Movimento Negro nas décadas
de 70 e 80, com destaque para os estudos da historiadora, ativista e poeta,
Beatriz Nascimento. De acordo com esses estudos, faremos uma leitura
de algumas políticas identitárias, assim como dos processos de organiza-
ção que envolve a problemática nas relações étnicas bem como na estru-
tura política das comunidades quilombolas.
Segundo Silva e Moraes (2009, p. 4), o Conselho Ultramarino em
1740 definiu formalmente os quilombos como: “toda habitação de ne-
gros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que te-
nham ranchos levantados e nem se achem pilões nele”.
No próprio texto há uma crítica sobre esse critério que define, de
forma tão linear, os espaços quilombolas e coloca os sujeitos dessas espa-
cialidades numa condição de fugitivos, além de estabelecer os quilombos
apenas como localidades rurais com artefatos rudimentares.
Para Abdias Nascimento (apud RATTS, 2006, p. 313), “quilombo
não significa escravo fugido. Quilombo quer dizer reunião fraterna e li-
vre, solidariedade, convivência, comunhão existencial”.
Outro exemplo que destacamos é o Decreto nº 4.887, de 20 de no-
vembro de 2003, art. 68 dos Atos e Disposições Transitórias, que reco-
nhece a propriedade definitiva como remanescente de quilombo e esta-
belece o dever do Estado na emissão de título respectivo (BRASIL, 2003).
Somando-se a esse decreto acrescentamos algumas ações não citadas no
texto, como a: Instrução Normativa nº 20, de 19 de setembro de 2005,
que regulamenta o procedimento para identificação das terras ocupadas
de que tratam o artigo supracitado.
Quando nos referimos aos processos de reconhecimento dos espa-
ços quilombolas, estamos nos referindo a um processo de reordenamen-
to político pelo histórico social de um grupo, pois como afirma Arruti
(1997), a questão em voga não é salvaguardar etnias, mas sim produzir
outros sujeitos com perspectivas políticas articuladas quanto a sua iden-
tidade, pois, trata-se de sujeitos que se caracterizam pela sua historici-
dade de submissão em vários aspectos, principalmente nos de natureza
territorial.
188
No que concerne ao processo de reconhecimento da identidade
étnica quilombola, ainda é frequente destacar que as ações direcionadas
nesse sentido ocorram tanto em caráter interno quanto externo.
Em síntese, queremos apenas ressaltar que a relação entre os povos
quilombolas e as instituições públicas configurou-se numa considerável
luta, de modo especial as lutas dos movimentos sociais negros, em prol
do reconhecimento da comunidade e da garantia da permanência e re-
gularização fundiária. Destaque-se que por permanência não se com-
preenda apenas da terra pela terra, mas signifique a reafirmação de um
território cujo espaço seja construtor da história e da memória do povo.
Enveredando nessa discussão, destacamos um conceito de territó-
rio defendido por Santos et al. (2007 p. 140), quando afirmam que
o território não é apenas o conjunto dos sistemas na-
turais e de sistemas de coisas superpostas. O território
tem que ser entendido como o território usado, não
o território em si. O território usado é o chão mais a
identidade. A identidade é o sentimento de pertencer
aquilo que nos pertence. O território é o fundamento
do trabalho, o lugar da residência, das trocas materiais
e espirituais e do exercício da vida”.
Tal argumento vem destacar a necessidade de um reconhecimento
territorial e identitário que contemple as dimensões das identidades so-
ciais em todos os aspectos.
Outro argumento que merece destaque é o defendido por Anjos
(2006, p. 339), o qual mostra-nos uma geografia que, na sua própria na-
tureza, se configura como ciência do território.
A geografia é a ciência do território e este componen-
te básico continua sendo o melhor instrumento de
observação do que aconteceu – porque a presenta as
marcas da historicidade espacial – do que está aconte-
cendo – porque tem registrado os agentes que atuam
na configuração geográfica atual – e do que pode acon-
tecer, – porque é possível capturar as linhas de forças
da dinâmica territorial e apontar as possibilidades da
estrutura do espaço num futuro próximo.
Para os autores anteriormente citados, a geografia possui ferra-
mentas importantíssimas para o entendimento dos territórios, pois se
189
apresenta como uma ciência da espacialidade e de suas dinâmicas de
ocupação, além de contribuir para a formação da cidadania dos sujeitos
que historicamente possuem uma diversidade ímpar no que diz respeito
aos seus aspectos étnicos, culturais e socioeconômicos.
De modo geral, no que se refere à construção territorial na his-
tória dos quilombos, de acordo com o levantamento do Diagnóstico de
Ações Realizadas pelo Programa Brasil Quilombola (BRASIL, 2012), os
quilombos podem ser definidos como grupos étnico-raciais segundo
critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de
relações territoriais específicas e caracterizados como territórios oriun-
dos de diferentes situações.
Diante dos critérios levantados pelo referido diagnóstico destaca-
mos os seguintes: doações de terras realizadas a partir da degradação da
lavoura de monoculturas, como a cana-de-açúcar e o algodão; compra
de terras pelos próprios sujeitos, possibilitada pela desestruturação do
sistema escravista; terras que foram conquistadas por meio da prestação
de serviço, inclusive de guerras; bem como áreas ocupadas por negros
que fugiam da escravidão. Há também as chamadas terras de preto, terra
de santo ou ainda terra de santíssima que indicam uma territorialidade
vinda de propriedades de ordens religiosas, da doação de terras para san-
tos e do recebimento de terras em troca de serviços religiosos prestados a
senhores de escravos por sacerdotes de religiões afro-brasileiras.
No que concerne tais processos, podemos entender que os es-
paços quilombolas se distinguem pelas suas identidades étnicas, pois
têm fortemente desenvolvido práticas de manutenção e reprodução de
modos de vida característicos em determinado lugar. Sendo assim, ve-
rificamos o quanto os territórios quilombolas carregam em sua essên-
cia um caráter consideravelmente histórico, dinâmico e processual em
relação às suas trajetórias e tradições bastante particularizadas.
Desse modo, a concepção de território deve considerar os elemen-
tos de organização espacial desenvolvidos pelos espaços quilombolas no
decorrer da história. A geografia desses territórios apresenta uma rique-
za de complexidades, nas quais devem ser evidenciadas e discutidas de
forma abrangente e não de forma essencializada.
Apoiando-se na crítica de Claval (2014, p. 311, grifo do autor):
A geografia possui um caráter disciplinador das so-
ciedades ocidentais, procedentes da Revolução Indus-
trial, como mostram as pesquisas dedicadas aos asilos
190
e instituições psiquiátricas, aos sistemas escolares, as
técnicas de enquadramento administrativo: o pro-
gresso do Ocidente resulta, em parte, dos meios de
controle que as suas elites e os seus governos imagi-
naram e empregaram para enquadrar os indivíduos,
prevenir suas ações desviantes e fazer reinar a ordem
através do ajustamento generalizado das populações.
Dessa forma, podemos compreender que o Ocidente tem firmado
sua dominação e controle sobre o resto do mundo, daí a importância dos
estudos pós-coloniais de criticar os modelos imperiais e hegemônicos de
alguns países europeus e, assim, redesenhar um novo contexto de terri-
tório e de sujeitos outros.
Dentro dessa perspectiva, podemos considerar um forte aspecto
histórico defendido por Santana (2012, p. 120) quando afirma que:
O nosso sistema escolar institucionalizou-se confliti-
vamente, a partir de uma perspectiva cultural que ad-
ministrou a diversidade cultural brasileira desde uma
perspectiva eurocêntrica. Os interesses predominantes
da monocultura da cana-de-açúcar formataram du-
rante séculos as instituições socioculturais brasileiras.
A nossa escola é, portanto, filha desses interesses.
Não tão distante desta questão, podemos afirmar o quanto os siste-
mas educacionais e os currículos foram fomentados para atender a uma
relação de poder que segrega identidades a partir de um instrumento
sociocultural excludente. No caso dos quilombos, a discussão merece
atenção ainda maior, pois se tratam de espaços arbitrariamente esque-
cidos pelo processo histórico e geográfico. Os aspectos identitários e
representacionais, que estes territórios apresentam, possuem uma gama
de valores e significados que vão além das fronteiras físicas e que são in-
trinsecamente vinculados aos seus fatores históricos (AMORIM, 1998).
Diante disso, defendemos que a proposta de uma geografia pós-
-colonial resvala-se na possibilidade de reconhecer os processos de ter-
ritorialização quilombola, devendo respeitar a sua própria natureza de
mudanças. Esse reconhecimento identitário deve ser minimamente ana-
lisado sem a égide de uma leitura folclorista, na qual imprime a perma-
nência de elementos culturais fixos e o isolamento sociogeográfico.
É neste sentido que a objetividade consolidada no pensamento li-
near ocidental nos colocou diante de uma certeza racional e reducionista,
abre-se, aqui, uma discussão sobre a diversidade cultural, humana e os
191
processos históricos de sua construção nos espaços físicos. É importante
destacar que as relações assimétricas, por sua vez, ditaram os processos
produtivos das identidades e das diferenças na sociedade. Conforme dia-
loga Santana (2012, p. 118), esses “processos são realizados em circuns-
tâncias históricas e socioambientais determinadas, envolvem relações
de poder […] entre outras infinitas possibilidades de interações sociais
assimétricas”. Entretanto, quando se fala em territorialidade, podemos
caracterizá-la como um espaço pelo qual são reproduzidas afirmações
bem definidas no campo social, econômico e cultural.
Contudo, a reprodução dessas afirmações no território negro não
pode ser associada apenas à área ocupada, pois requer uma leitura holís-
tica que contemple os fatores exógenos responsáveis pelos diversos níveis
de conflitos e tensões historicamente estabelecidos (LOPES, 2011, p. 277).
De acordo com os autores, podemos entender que o processo de
construção identitária está intimamente ligado ao processo de constru-
ção territorial, porém, torna-se relevante destacar que a linha tênue, que
separa ambos, compreende tanto aspectos físicos/geográficos quanto
simbólicos/representacionais. Essa complexa realidade tem sido histo-
ricamente negligenciada, e que, a partir de um olhar reducionista, ren-
deu as comunidades quilombolas a condição de um lugar que representa
apenas a resistência negra contra a escravidão.
Uma geografia pós-colonial, de fato, defende as espacialidades étni-
cas e considera o seu modo de pensar com os espaços habitados. É nessa
perspectiva que se criam ações e redefinições de novos caminhos. A busca
por estes caminhos não são necessariamente disputas espaciais, mas sim
uma luta pela completude dos territórios e de suas territorialidades.
AINDA POR CONCLUIR
Os grupos étnicos-raciais no Brasil merecem uma maior atenção
sobre sua distribuição, quer seja nos espaços urbanos, quer seja nos es-
paços rurais. O desejo de fomentar uma geografia pós-colonial recai so-
bre a necessidade de ainda se saber muito a respeito das espacialidades
afro-brasileiras.
Os quilombos, por sua vez, silenciados necessitam de uma maior
leitura sobre sua distribuição, matrizes culturais, resistência, organização
espacial, contribuições econômicas e técnicas de sobrevivência.
A pretensão deste texto não é, de fato, cumprir com todas essas
ações, mas abordar discussões que mostrem as tensões históricas a par-
192
tir de construções teóricas e empíricas. De acordo com esse propósito,
queremos enfatizar que a concepção de raça, a partir do pensamento
hegemônico europeu, silencia e subalterniza as espacialidades afro-bra-
sileiras. Esse processo de silenciamento corroeu elementos diversos da
cultura negra no Brasil, seja na construção do conhecimento, ou nas con-
tribuições desta cultura para a formação da identidade brasileira.
Apesar dos espaços quilombolas apresentarem em sua dinâmica
uma complexa rede de elementos identitários, a sua representação social
se deu de forma muito reduzida. Daí a necessidade de enfrentarmos um
sério desafio no trato das diversas tensões que se desenham entre o pas-
sado e o presente.
Ressaltamos também como produto deste estudo o reconheci-
mento da importância das lutas dos movimentos sociais negros, para o
atendimento das questões em pauta. Esta luta representa um elo muito
forte entre a memória e a consciência negra, pois serve como processos
iniciais de descolonização em muitos aspectos, no caso dos quilombos
aos decretos e políticas de reconhecimento.
Queremos também ressaltar a importância de se estudar os qui-
lombos considerando o conceito de território, pois se tratam de espacia-
lidades específicas com formas de organizações particulares e bem com-
plexas. Nesta perspectiva primamos para que haja uma ressignificação do
conceito de território, partindo de uma descolonização da ciência geográ-
fica. Desse modo, o direito à diferença e aos próprios valores, culturais ou
não, deve ser reconhecido não só nas letras das leis e decretos. Primar por
um projeto de uma geografia pós-colonial é dar autonomia aos sujeitos e
suas expressões políticas e identitárias.
A partir dessa percepção, entendemos que o caminho a enfrentar
ainda é longo e bastante sinuoso. Os projetos que desenvolvem ações de-
coloniais, todavia, estão em caráter de construção.
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195
196
REPRESENTAÇÕES IMAGÉTICAS DA CULTURA
NEGRA E INDÍGENA NOS LIVROS DO PNLD/CAMPO
2013: UM OLHAR A PARTIR DOS ESTUDOS
PÓS-COLONIAIS LATINO-AMERICANOS
Maria Iveni de Lima Silva59
Isaias da Silva60
INTRODUÇÃO
O presente texto é fruto de duas pesquisas61 em andamento, a pri-
meira intitulada A representação da cultura negra nos livros didáticos
aprovados pelo PNLD/Campo 2013, e a segunda Representações da cultu-
ra indígena nos livros didáticos aprovados pelo PNLD/Campo 2013. Am-
bas estão sendo desenvolvidas no Núcleo de Formação Docente (NFD)
do Centro Acadêmico do Agreste (CAA) na Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE).
Neste artigo, objetivamos identificar e categorizar as iconografias
que fazem menção aos elementos da cultura negra e da cultura indígena
presentes nos livros didáticos do Programa Nacional do Livro Didáti-
co do Campo 2013 (PNLD/Campo 2013). Para tanto, fazemos uso das
seguintes fontes documentais: a) coleção Girassol: saberes e fazeres do
campo, e b) coleção Projeto Buriti Multidisciplinar.
A abordagem teórica adotada são os estudos pós-coloniais latino-
-americanos que evidenciam/questionam os modelos teóricos eurocên-
tricos e os processos de subalternização, silenciamento e apagamento de
culturas, saberes, formas de produzir conhecimentos, entre outros ele-
mentos(MIGNOLO, 2005; 2008; QUIJANO, 2005; WALSH, 2008). Fa-
zemos uso dessa abordagem por nos possibilitar diálogos com questões
que foram/são negados pelos modelos teóricos eurocêntricos sobre os
197
povos da América Latina, como por exemplo, os povos negros e povos
indígenas.
Este trabalho filia-se à abordagem qualitativa, desenvolvendo-se
por meio de pesquisa documental (OLIVEIRA, 2007). Para tratar os da-
dos coletados, utilizaremos a análise de conteúdo via análise temática
(BARDIN, 1977; VALA, 1999), por nos possibilitar acessar os núcleos de
sentidos que constituem o nosso objeto.
Desse modo, a título de organização deste artigo, subdividimo-lo
nas seguintes seções: a) Cultura negra e cultura indígena: um olhar atra-
vés dos estudos pós-coloniais latino-americanos; b) Currículo: livro didá-
tico enquanto texto curricular; c) Metodologia; e d) Considerações finais.
Na primeira seção, apresentamos a discussão sobre cultura (BHA-
BHA, 1998; CASTILLO; MALLET, 1997, FANON, 1968; HALL, 2003),
cultura negra (OLIVEIRA, 2003; ALGARVE, 2004) e cultura indígena
(BANIWA, 2006; JESUS, 2013), tendo como lente a abordagem dos estu-
dos pós-coloniais latino-americanos (MIGNOLO, 2005, 2008; QUIJANO
2005; WALSH 2008).Na segunda seção, “Currículo: livro didático en-
quanto texto curricular”, dialogamos com a conceituação de livros didáti-
cos segundo Ferreira (2013),Moreira e Martins (2015) e Pesavento (2004).
Em seguida, na terceira seção, apresentamos a metodologia, evi-
denciando o caminho metodológico percorrido, instrumentos de coletas
de dados e análise de dados utilizados. Na quarta seção, com as conside-
rações finais, apresentamos nossos resultados.
198
Evidenciamos nossa compreensão teórica sobre o termo “cultura” à
luz dos autores indicados, que nos possibilitam a compreensão desse con-
ceito de forma plural, em uma perspectiva heterogênea, pois “cada povo
tem uma cultura distinta da outra, porque se situa no mundo e se relacio-
na com ele de maneira própria” (BANIWA, 2006, p. 44).
Atrelado a isso, pontuamos a discussão de cultura na perspectiva
da diferença. Segundo Bhabha, a diferença cultural
não pode ser compreendida como um jogo livre de po-
laridades e pluralidades no tempo homogêneo e vazio
da comunidade nacional. […] O objetivo da diferença
cultural é rearticular a soma do conhecimento a partir
da perspectiva da posição de significação da minoria,
que resiste à totalização – a repetição que não retorna-
rá como o mesmo, o menos-na-origem que resulta em
estratégias políticas e discursivas nas quais acrescentar
não soma, mas serve para perturbar, o cálculo de po-
der e saber, produzindo outros espaços de significação
subalterna. (1998, p. 227228)
A diferença cultural se constitui em uma perspectiva dialógica que
vai para além do ato de tolerar, centrando-se no respeito às diferenças,
sem hierarquizar e classificar os elementos culturais entre superiores e
inferiores. É nessa direção que reafirmamos nossa compreensão de cul-
tura como “[…] los modos de vivir o los modos de ser compartidos por
seres humanos” (CASTILLO; MALLET, 1997, p. 4).
Posta a reflexão sobre cultura, buscamos entender especificamente
cultura negra e cultura indígena, reconhecendo-as enquanto patrimô-
nios compostos de conhecimentos, valores, símbolos (FORQUIN, 1993),
que se constroem e se ressignificam a partir das vivências/experiências
das comunidades. Nesse sentido, advogamos pela compreensão de cul-
tura enquanto produções identitárias dos povos. Também ressaltamos a
compreensão de que a forma com que os povos negros vivem, trabalham,
manifestam sua religião, fazem suas festas, se alimentam, lutam, assu-
mem sua negritude, enfim, seus modos de ser e viver são todos manifes-
tações de cultura negra (ALGARVE, 2004).
Na busca do reconhecimento das expressões culturais e identitá-
rias dos povos negros e indígenas, evidenciamos que os estudos pós-co-
199
loniais latino-americanos contribuem para os questionamentos sobre o
processo perverso de colonização/colonialismo ocorrido entre a Europa
e a América (MIGNOLO, 2005). Esse processo exaltado com o advento
da modernidade foi silenciando/negando as expressões culturais que não
se enquadravam na perspectiva moderna/eurocêntrica/colonial. Dessa
forma, a “América se constituyó como el primer espacio/tiempo de un
nuevo patrón de poder de vocación mundial y, de ese modo y por eso, como
la primera id-entidad de la modernidad” (Ibidem, p. 107).
A abordagem dos estudos pós-coloniais latino-americanos evi-
dencia que o processo de colonização/colonialismo,que ocorre com a
invasão da Abya Yala (um dos nomes usados pelos indígenas antes da
invasão dos europeus), centra-se em dois pilares: a racialização e a racio-
nalização. A racialização centra-se na construção da ideia de raça (ele-
mento biológico) como construção mental e social para difundir o novo
padrão mundial de poder, estipulando os sujeitos superiores e inferiores.
Com esse processo, forja-se o modelo de sujeito superior que deve
ser seguido, apresentando as características: homem, heterossexual, eu-
ropeu, branco, cristão e urbano. Todos os demais sujeitos que não aten-
dam a esses elementos são hierarquizados e classificados como sujeitos
inferiores (MIGNOLO, 2005). Nessa lógica, a racionalização surge para
justificar a naturalização dos povos negros à condição de escravo, bem
como contribui para forjar uma concepção de indígena, chegando a ser
concebidos, por exemplo, no século XIX, como fósseis vivos, sem histó-
ria (JESUS, 2013).
Assim, é relevante pontuarmos que
quando refletimos nos esforços empregados para
provocar a alienação cultural da época colonial, com-
preendemos que nada foi feito ao acaso e que o re-
sultado global pretendido pelo domínio colonial era
convencer os indígenas de que o colonialismo devia
arrancá-los das trevas. (FANON, 1968, p. 175)
Desse modo, destacamos que a colonização/colonialismo não
acabou no momento em que as colônias ficaram independentes de seus
colonizadores. Esse processo passa a se materializar e se reconfigurar
na colonialidade, quando hierarquiza e dita os valores europeus como
únicos/verdadeiros e as epistemologias dos povos subalternos como não
válidas.
200
Nessa conjuntura, Quijano (2005, p. 342) concebe a colonialidade
como
uno de los elementos constitutivos y específicos del pa-
trón mundial de poder capitalista. Se funda en la im-
posición de una clasificación racial/étnica de la pobla-
ción del mundo como piedra angular de dicho patrón
de poder y opera en cada uno de los planos, ámbitos y
dimensiones, materiales y subjetivas, de la existencia so-
cial cotidiana y la escala societal.
A colonialidade como processo de exploração/controle penetra na
estrutura social na dimensão material e, de forma “natural”, dita os luga-
res e os papeis que os sujeitos irão ocupar, e na dimensão subjetiva, ao
legitimar comportamentos e epistemologias. Nesse caso, os povos negros
e os povos indígenas ocupam um não lugar na lógica branca e eurocên-
trica. Para Quijano (2005) esse processo desdobra-se em três eixos: po-
der, saber, ser. Nessa lógica de discussão, Walsh (2008) pontua um quarto
eixo: a colonialidade da natureza.
O eixo da colonialidade do poder busca hierarquizar de forma
racial os povos entre inferiores e superiores. Assim, os povos negros e
os povos indígenas ocupam um local de menor prestígio social/político,
tendo como elemento determinante a raça (elemento biológico). Atrela-
do a essa classificação e hierarquização, manifesta-se a colonialidade do
saber, legitimando uma razão hegemônica, única e eurocêntrica de se
produzir conhecimento, na medida em que o único conhecimento vá-
lido é o produzido pelo europeu (colonizador). Portanto, todos os ele-
mentos epistêmicos, políticos e culturais produzidos pelos povos negros
e indígenas, nessa lógica, não são considerados válidos.
No processo constante da colonialidade do poder e do saber, cons-
titui-se a do ser, com a internalização da subalternidade do não europeu/
superior/colonizador. Tal dimensão consolida a condição “natural” dos
povos negros e indígenas como sujeitos inferiores, não epistêmicos, sem
referência, sem identidade, sem cultura etc.
Nessa abordagem Walsh (2008), ao discutir a colonialidade da na-
tureza, evidencia a divisão binária entre o homem e a natureza, no con-
texto em que o homem concebe os elementos naturais meramente como
fonte de exploração, alicerçada na concepção mercantilista, oriunda do
capitalismo. Dessa forma os povos indígenas se constituem como um
201
elemento da natureza, devido a seu pertencimento à Terra. Nessa lógica
justifica-se a colonização/exploração desses povos.
No entanto, na contramão da colonialidade, os povos indígenas
que foram/são historicamente silenciados lutam e resistem a esse pro-
cesso de dominação por intermédio da decolonialidade. Mignolo (2008,
p. 304), ao refletir sobre opções descoloniais, nos possibilita compreen-
der que “descolonial significa pensar a partir da exterioridade e em uma
posição epistêmica subalterna vis-à-vis à hegemonia epistêmica que cria,
constrói, elege um exterior a fim de assegurar sua interioridade”.
A tensão existente entre os povos que se autodenominam superio-
res e os que são considerados por eles como povos inferiores resulta na
construção da diferença colonial, que coloca em questão os valores cul-
turais e as epistemologias que outrora/atualmente foram/são sonegadas
(MIGNOLO, 2005) e invalidadas pela cultura hegemônica. Desse modo,
os povos negros e os povos indígenas constituem-se enquanto uma força
impulsionadora desse processo decolonial quando, por exemplo, advo-
gam pelo lócus de enunciação, distanciando-se da cosmovisão de uma
suposta identidade e cultura defendida/propagada de forma imperativa
por um único povo.
Ao evidenciarmos a importância de reconhecermos as diferenças
e tensões existentes entre os povos, ressaltamos a perspectiva da intercul-
turalidade crítica, que segundo Walsh (2008)
va mucho más allá del respeto, la tolerancia y el reco-
nocimiento de la diversidad; señala y alienta, más bien,
un proceso y proyecto social político dirigido a la cons-
trucción de sociedades, relaciones y condiciones de vida
nuevas y distintas. Aquí me refiero no sólo a las condi-
ciones económicas sino también a ellas que tienen que
ver con la cosmología de la vida en general, incluyendo
los conocimientos y saberes, la memoria ancestral, y la
relación con la madre naturaleza y la espiritualidad, en-
tre otras. (p. 140)
Dessa forma, compreendemos que a interculturalidade crítica se
constitui de forma eficaz para o rompimento do silenciamento e subal-
ternização dos povos negros e indígenas. A luta desses povos pelo reco-
nhecimento de suas culturas centra-se na construção de um projeto de
sociedade outro, pautado nas diferenças geopolíticas do conhecimento,
que os considerem sujeitos de direito.
202
CURRÍCULO: LIVRO DIDÁTICO ENQUANTO TEXTO CURRICULAR
Nesta seção realizamos reflexões sobre currículo segundo os auto-
res Lopes (2004), Moreira e Silva (2008); Sacristán (2000); Silva (2000),
e também pontuamos a compreensão de currículo enquanto um espaço
complexo que se constitui por tensões e disputas. Atrelada a isso, versa-
mos sobre livros didáticos enquanto textos curriculares a partir da dis-
cussão dos autores Ferreira (2013), Moreira e Martins (2015) e Pesavento
(2004), que também se constitui por tensões.
Compreendemos que o currículo se constitui do “resultado de
uma seleção: de um universo mais amplo de conhecimentos e saberes
seleciona-se aquela parte que vai constituir, precisamente, o currículo”
(SILVA, 2000, p. 13). Assim, o currículo não se constitui no campo da
neutralidade, da ingenuidade, de maneira inocente e desinteressado de
conhecimentos.
Sacristán enfatiza que na configuração e no desenvolvimento do
currículo, podemos ver se
entrelaçarem práticas políticas, administrativas, eco-
nômicas, organizativas e institucionais, junto a práti-
cas estritamente didáticas; dentro de todas elas agem
pressupostos muito diferentes, teorias, perspectivas e
interesses muito diversos, aspirações e gestão de rea-
lidades existentes, utopia e realidade. A compreensão
do currículo, a renovação da prática, a melhora da
qualidade do ensino através do currículo não deve es-
quecer todas essas inter-relações (2000, p. 2009).
Centrados nas diferentes perspectivas e interesses que permeiam o
currículo,pontuamos o silenciamento sofrido pelos povos negros e pelos
povos indígenas ao terem seus saberes, culturas e tradições não contem-
pladas nos currículos escolares e nos livros didáticos. Um currículo assim
constituído contribuiu na construção de “uma história que definiu o não lu-
gar do indígena” (JESUS, 2013, p. 49), que os estereotipam e genericamente
os tratam como se “índio” fosse uma entidade homogênea. Nesse mesmo
viés, confinaram-se também os povos negros a determinadas temáticas que
reafirmam o lugar social ao qual esse povo está limitado (OLIVEIRA, 2003).
Para ampliarmos as compreensões sobre currículo, apresentamos
a seguir as cinco características pontuadas por Sacristán (2000, p. 32):
1) O currículo é a expressão da função socializadora
da escola.
203
2) É um instrumento que cria toda uma gama de usos,
de modo que é elemento imprescindível para compreen-
der o que costumamos chamar de prática pedagógica.
3) Está estreitamente relacionado com o conteúdo da
profissionalização dos docentes. O que se entende por
bom professor e as funções que se pede que desenvol-
va dependem da variação nos conteúdos, finalidades e
mecanismos de desenvolvimento curricular.
4) No currículo se entrecruzam componentes e deter-
minações muito diversas: pedagógicas, políticas, práti-
cas administrativas, produtivas de diversos materiais,
de controle sobre o sistema escolar, de inovação peda-
gógica, etc.
5) Por tudo o que foi dito, o currículo, com tudo o que
implica quanto a seus conteúdos e formas de desen-
volvê-los, é um ponto central de referência na melhora
da qualidade do ensino, na mudança das condições da
prática, no aperfeiçoamento dos professores, na reno-
vação da instituição escolar em geral e nos projetos de
inovação dos centros escolares.
Essas características nos possibilitam refletir sobre o currículo en-
quanto espaço-tempo complexo e dinâmico, que se configura por con-
frontos de saberes sistematizados que serão ou não privilegiados. O currí-
culo implicado em relações de poder “transmite visões sociais particulares
e interessadas e sociais particulares” (MOREIRA; SILVA, 2008, p. 8).
Centrado nessas relações de poder e cosmovisões, evidenciamos
que os livros didáticos se constituem enquanto seleção e produção de sa-
beres. O currículo, bem como os livros didáticos, traz “visões de mundo,
de habilidade, de valores, de símbolos e significados, portanto de cultu-
ras capaz de instituir formas de organização do que é selecionado, tor-
nando-o apto de ser ensinado” (LOPES, 2004, p. 111).
Nesse sentido, os livros didáticos se constituem enquanto um ar-
tefato intencional e “representam escolhas, que estão relacionadas com
discursos impostos por políticas públicas, práticas de produção editorial,
expressando uma relação de ‘decisão’ que é muito comum nas práticas
sociais contemporâneas, textualmente mediadas” (MOREIRA; MAR-
TINS, 2015, p. 56).
204
Assim, ao refletir sobre os elementos culturais que constituem os
povos negros e os indígenas, pontuamos a importância da valorização
dos conhecimentos dos povos outros, para que sejam contemplados nos
currículos escolares, ou seja, no que é estabelecido pela Lei 11.645/2008
(BRASIL, 2008).
Com isso, os livros didáticos devem contemplar com coerência os
conhecimentos dos povos indígenas e dos povos negros, de maneira a
valorizá-los enquanto sujeitos protagonistas na/da História. Assim, com-
preendemos que os materiais “dizem mais do que aquilo que mostram
ou enunciam, carregam sentidos ocultos, que, construídos social e his-
toricamente, se internalizam no inconsciente coletivo e se apresentam
como naturais, dispensando reflexão” (PESAVENTO, 2004, p. 41).
Dessa forma, entendemos os livros didáticos como instrumentos
que se constituem por lutas e tensões políticas, epistêmicas e culturais
forjadas em relações de dominação. Pontuamos também que os livros
didáticos estão cobertos de intencionalidades, e por isso ressaltamos a
necessidade de submetê-los a análises/reflexões.
METODOLOGIA
Neste texto objetivamos compreender como a cultura negra e a
cultura indígena vêm sendo traduzidas nos livros didáticos da educação
do campo, e com isso buscamos identificar e caracterizar as imagens que
se referem a essas culturas nos livros do PNLD/Campo 2013.
Este estudo centra-se na abordagem metodológica de cunho qua-
litativo, que “além de permitir desvelar processos sociais ainda pouco
conhecidos referentes a grupos particulares, propicia a construção de
novas abordagens, revisão e criação de novos conceitos e categorias du-
rante a investigação” (MINAYO, 2010, p. 21).
A partir da abordagem qualitativa, nos aproximamos da pesqui-
sa documental, que segundo Oliveira (2007, p. 69) “caracteriza-se pela
busca de informações em documentos que não receberam nenhum tra-
tamento científico”. Nesse sentido, aqui os livros didáticos constituem-se
enquanto um desses documentos passivos de análise.
Compreendemos que
quando um pesquisador utiliza documentos objeti-
vando extrair dele informações, ele o faz investigando,
examinando, usando técnicas apropriadas para seu
205
manuseio e análise; segue etapas e procedimentos; or-
ganiza informações a serem categorizadas e posterior-
mente analisadas; por fim, elabora sínteses, ou seja, na
realidade, as ações dos investigadores – cujos objetos
são documentos – estão impregnadas de aspectos me-
todológicos, técnicos e analíticos. (SÁ-SILVA; ALMEI-
DA; GUINDANI, 2009, p. 4)
No que se refere às fontes documentais desta pesquisa, faremos
uso das coleções didáticas Girassol: saberes e fazeres do campo e do pro-
jeto Buriti Multidisciplinar. Ambas as coleções foram aprovadas e sele-
cionadas pelo PNLD/Campo2013.
No tratamento dos dados, utilizaremos a análise de conteúdo via
análise temática (BARDIN, 1977;VALA, 1999) por nos possibilitar aces-
sar os núcleos de sentidos que constituem o nosso objeto. De acordo com
Vala (1999, p. 104),
a análise de conteúdo permite inferências sobre a fon-
te, a situação em que esta produziu o material objecto
de análise, ou até, por vezes, o receptor ou destinatário
das mensagens. A finalidade da análise de conteúdo
será pois efectuar inferências com base numa lógica
explicitada, sobre as mensagens cujas características
foram inventariadas e sistematizadas.
Segundo Bardin (1977), a análise do conteúdo via análise temática
ocorre em três fases: pré-análise, exploração do material e tratamento e
inferências. A primeira se materializa por meio da seleção do material
de investigação e da retomada dos objetivos e dos pressupostos iniciais
da pesquisa. A segunda fase corresponde à exploração do material(li-
vros didáticos). Esse procedimento diz respeito à codificação dos dados,
transformando os dados brutos em núcleos de compreensão, para deles,
inferirmos significados.
A terceira fase do procedimento da análise temática é o tratamento
dos resultados e inferências. Esse procedimento trata da construção de
uma rede de sentido e de significados em torno da temática em ques-
tão, que serão realizadas com base na abordagem teórico-metodológica
dos estudos pós-coloniais latino-americanos, levando em consideração o
contexto em que os livros didáticos foram produzidos.
206
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das análises iniciais dos dados coletados, identificamos
que os livros didáticos, enquanto textos curriculares identitários, apre-
sentam por meio de iconografias elementos pertencentes à cultura ne-
gra e à indígena. Neste primeiro momento, apresentamos no Quadro 1
o quantitativo das iconografias presentes nos livros didáticos sobre as
referidas culturas. Nos quadros 2 e 3, trataremos das categorizações de
cada um de seus elementos.
Quadro 1: Quantidade de imagens que
representam a cultura negra e a cultura indígena
Girassol: saberes e
Projeto Buriti Multidisciplinar
fazeres do campo
Cultura Cultura Cultura Cultura
ANO ANO
negra indígena negra indígena
1º
2 7 1º
- 1
2 º
3 13 2 º
1 10
3 º
- 4 3 º
2 5
4 º
2 11 4 º
13 19
5º 4 3 5º 9 3
Total: 11 Total: 38 Total: 25 Total: 38
207
Quadro 2: Categorização e quantificação das
imagens referentes à cultura negra nas
dimensões de cultura africana e cultura afro-brasileira
Projeto Projeto
Girassol: saberes e Buriti Girassol: saberes e Buriti
fazeres do campo Multidisci- fazeres do campo Multidisci-
plinar plinar
Culinária 1 2 Culinária 1 -
Artefato
2 3 - - -
cultural
Modo de ser 1 - - - -
Manifestação Manifestação
- 1 1 4
artística artística
História da História
1 3 1 9
África afrobrasileira
208
Figura 1: [indicar nome]
UNIVERSIDADE DA CAROLINA DO SUL, COLÚMBIA
Gravura de Theodore de
Bry, final do século XVI,
representando trocas entre
africanos e europeus em
um ponto da costa africana.
Coleção Buriti, 4o Ano, p 337.
Fonte: [indicar com especificidade].
209
MUSEUS CASTRO MAYA, RIO DE JANEIRO Figura 3:[indicar nome]
Negros acorrentados
levando para a cadeia
o jantar que foram
buscar no Hospício da
Misericórdia,aquarela
de Jean-Baptiste
Debret, 1820-1830. A
escravidão foi mantida
após a independência,
e os negros foram
escravizados continuaram
sendo a mão de obra mais
utilizada no Brasil.
Coleção Buriti, 5o Ano, p 327.
210
É necessário ressaltarmos que compreendemos imagem como uma
linguagem que se constitui como uma informação, um texto ou o seu
complemento (ARAÚJO, 1986).Por ser uma informação, ela se configu-
ra como conhecimento, que no caso passa por uma seleção curricular,
também sujeita aos movimentos de tensão e intensão. Nesse contexto,
ressaltamos que as imagens referentes à cultura negra estão enquadradas
na colonialidade do poder por inferiorizar de forma funcional os conhe-
cimentos que não se enquadram no padrão de poder, e na colonialidade
do saber por estabelecer quais seleções de informação sobre a cultura dos
povos negros serão contextualizadas/transmitidas nos livros didáticos etc.
As imagens referentes à cultura indígena, por sua vez, estão loca-
lizadas em sete categorias: artefato cultural, modos de vida, modos de
ser, lazer, história indígena, ancestralidade e expressões religiosas,como
consta no Quadro 3.
Quadro 3: Categorização e quantificação das
imagens referentes à cultura indígena
Lazer 6 Lazer 4
Ancestralidade 3 Ancestralidade 1
Total: 38 Total: 38
211
modo, é pertinente refletirmos que a cultura indígena em “nada se refere
ao grau de interação com a sociedade nacional, mas com a maneira de
ver e de se situar no mundo; com a forma de organizar a vida social,
política, econômica e espiritual de cada povo” (BANIWA, 2006, p. 46).
As iconografias, ao retratarem as culturas indígenas nas referidas
categorias, apresentam-nos elementos que caracterizam diversos povos
indígenas que têm suas especificidades e que necessitam ser validados.
Isso pode ser visto nas figuras de 5 a 8.
Ornamentos e instrumentos
dos Camacã. Gravura em
cobre de Maximilian Wied-
Neuwied, início do século XIX.
212
Figura 7: [indicar nome]
ROSA GAUDITANO/STUDIO R
Povo pataxó,
aldeia Barra Velha,
município de
Caraíva, estado da
Bahia.
213
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216
UM OLHAR EMERGENTE PARA AS CRIANÇAS DO
CAMPO A PARTIR DA TEORIA PÓS-COLONIAL
Elaine Suane Florêncio dos Santos62
Karla Cabral Barroca63
Patrícia Maria Uchôa Simões64
INTRODUÇÃO
Atualmente diversos estudos e teorias vêm contribuindo para se
pensar a emergência de práticas que reconheçam os sujeitos que, desde o
término da colonialidade material, física e territorial, mantêm-se numa
colonialidade subjetiva. Essa colonialidade está expressa numa relação
de poder com gêneros, raças, etnias, religiões e classes sociais que opri-
mem esses sujeitos e os excluem nos âmbitos social, cultural, econômico
e político, negando suas culturas e identidades numa relação hegemôni-
ca e dominante.
Nesse sentido a linha pós-colonial emerge do discurso dos mo-
vimentos sociais e se consolida nos estudos mais amplos da academia,
com o intuito de repensar essas relações de poder e propor novas for-
mas de discutir as ações e pensamentos que negam o outro, conscienti-
zando acerca das práticas que subalternizam os sujeitos e possibilitando
um diálogo entre as culturas no processo de decolonização (MIGNO-
LO, 1996). Assim articulamos a discussão da teoria pós-colonial com
a infância e a educação infantil do campo para pensarmos nas práticas
educativas e nas relações sociais e culturais que vêm sendo trabalhadas
comas crianças do campo, dando ênfase na firmação da identidade e do
protagonismo da criança enquanto sujeito do campo.
Para Mignolo (Ibidem) o que deve atrair a nossa atenção na pós-
-colonialidade é o lócus de enunciação, a raiz que se configura e a sua
razão que parte da contraposição do discurso colonial, que manteve as
217
relações de poder na pós-modernidade nas desigualdades, na negação
do outro, tratado como sujeito periférico.
Nessa perspectiva, o paradigma emergente defendido por Souza
Santos (2008) nos ajuda a pensar a urgência de trazer para o discurso
acadêmico, político e social a criança do campo diante das suas neces-
sidades e direitos. Para tanto, a teoria pós-colonial, que abarca o pensa-
mento de rompimento de fronteiras, do reconhecimento do outro diante
sua cultura e de sua identidade,permite-lhe participar do contexto social,
cultural, político e econômico por meio de uma relação dialógica. Pro-
põe-se a quebra de práticas de dominação e poder que envolvem os sujei-
tos considerados à margem da sociedade, que os colocam numa situação
de fragilidade (WALSH, 2009).
Este estudo, de cunho bibliográfico, surge da inquietação de re-
fletir sobre o lugar da criança do campo no contexto social e educativo,
diante da invisibilidade em que ela ainda se encontra inserida. Para tanto,
levantamos a seguinte questão: como pensar na visibilidade da criança
do campo a partir dos estudos emergentes diante das relações de poder
presentes na contemporaneidade?
Procuramos aqui discutir o lugar da infância do campo como um
lugar emergente por reconhecimento social e contribuir com os estudos
pós-coloniais às discussões sobre o espaço da educação infantil nos terri-
tórios campesinos. Ancoramo-nosem estudos sobre a póscolonialidade
de Mignolo (1996), Walsh (2009), Quijano (2005), Souza Santos (2008) e
em estudos sobre a infância e a criança e a educação do campo de Silva,
Pasuch e Silva (2012), Kuhlmann (2011), Arroyo (2011; 2012), Caldart
(2002), Molina e Spada (2014), entre tantos outros que norteiam o pre-
sente trabalho.
As teorias pós-coloniais nos ajudam a pensar na relação de poder
que submerge a criança na condição de frágil, de quem precisa ser dis-
ciplinado, silenciando sua voz e retirando dela sua participação social.
Isso está atrelado à colonialidade do poder e do ser, que estão expressas
na negação da participação da criança em tomadas de decisão que dizem
respeito a ela própria, como na falta de cuidado e respeito à criança pelos
adultos e na desatenção aos cuidados necessários e à sua proteção. Nessa
dimensão os estudos póscoloniais contribuíram significativamente para
repensarmos a relação adulto-criança no âmbito escolar e social, como
também na relação pesquisador-pesquisado, que deve partir do ouvir a
criança e compreender seu olhar ante a realidade.
218
Portanto, para que haja uma relação discursiva que entrelace teo-
ricamente os discursos dos referidos autores e possibilite o desenvol-
vimento dos objetivos propostos, o trabalho foi construído a partir de
três tópicos – a saber, primeiro tratamos da criança do campo e do re-
conhecimento social, na perspectiva do paradigma emergente. Segundo,
abordamos a educação infantil do campo, dialogando com a teoria pós-
-colonial, em que buscamos tratar a realidade educativa que vem sendo
trabalhada, pensando em práticas educativas decolonializadoras. E, por
fim, apontamos as considerações reflexivas a fim de não concluir, mas de
contribuir com muitas outras problematizações.
CRIANÇA DO CAMPO E O RECONHECIMENTO SOCIAL:
DISCUTINDO A PARTIR DO PARADIGMA EMERGENTE
A inscrição deste trabalho no campo das teorias emergentes consis-
te em discutir a relação dos estudos da infância, focando o lugar a que vêm
sendo destinadas a criança e a infância do campo na sociedade. Discutire-
mos a partir das reflexões que giram em torno do pensamento pós-colo-
nial, do qual buscamos nos aproximar pelo diálogo, para tratar a infância
camponesa em sua dimensão social, cultural, política, educativa e humana.
Para pensar o reconhecimento da criança do campo, torna-se re-
levante voltar um pouco ao processo histórico de reconhecimento da in-
fância, que esteve circundada por visões de negação e adultocentrismo.
Segundo Ariès (2006), as crianças até o século XVII não eram reconhe-
cidas em suas particularidades, estando inseridas no trabalho e nas prá-
ticas sociais em todo momento com os adultos, e eram vestidas e princi-
palmente vistas como adultos em miniatura.
Por volta do século XVII, o olhar dos educadores, médicos e con-
sequentemente da família voltou-se para a criança e sua infância, que
começa a ser pensada. Entretanto, esse espaço novo de percepção por
parte da sociedade ainda não permitia a participação da criança como
um ser ativo que influencia e é influenciado na relação entre os sujeitos,
colocando-a numa posição de subalternização diante dos adultos.
Nesse processo a criança popular, segundo Pinto (1997), permane-
ceu num lento período de reconhecimento, pois os olhares se detinham
nas crianças das classes majoritárias. A criança popular, por séculos, este-
ve esquecida nos tratos da educação, da medicina, dos cuidados familiares
ou, quando sem família, abandonada e deixada nas casas de misericórdia
que as acolhiam. Muitas crianças também eram expostas ao trabalho es-
219
cravo pela mão de obra barata,o que retirava delas o direito de ser visibi-
lizadas pela sociedade e as mantinha numa condição de colonialidade do
poder. Nesse sentido, a criança pobre assistencializada ao longo do tempo
adquiriu sobre si uma visão que, segundo Kuhlmann (2011), produzia
uma imagem de ameaça social que precisava ser controlada.
Assim, essa imagem da criança pobre evidencia a colonização que
sobrepõe à criança uma relação de poder que a mantém limitada às con-
dições precárias de assistência às necessidades básicas como saúde e edu-
cação. Essa situação nos leva a refletir acerca do paradigma dominante
como prática que permanece subjetivamente evidenciada na relação de
poder entre adultos e crianças quando são negados a elas os direitos reais
de garantia de suas condições básicas (SANTOS, 2008).
Nessa perspectiva, voltamo-nos à reflexão acerca da criança do
campo, que constitui uma parcela da população silenciada, caracteriza-
da como ignorante, atrasada, incapaz, matuta, constituindo preconceitos
que as colocam em situações sociais diferenciadas. A teoria póscolonial
defende o rompimento da negação do outro pelo reconhecimento da di-
versidade cultural entre os sujeitos, com a quebra da exclusão que silencia
as crianças ao não permitir que elas exponham o que sentem e pensam
sobre a realidade que vivenciam. Assim, por meio do diálogo,defende-se
que a criança evidencie seu posicionamento diante da realidade.
Para tanto, a emergência de estudos paradigmáticos que reconhe-
çam o contexto histórico, social, cultural e os saberes da criança tem sido
discutida e tratada por diversos estudiosos que buscam incluir a crian-
ça num espaço. Ela estar inserida desde o seu nascimento na sociedade
não implica que seja devidamente visibilizada. Como afirma Kuhlmann
(2011, p. 31),“é importante perceber que as crianças concretas, na sua
materialidade, no seu nascer, no seu viver ou morrer, expressam a inevi-
tabilidade da história e nela se fazem presentes, nos seus mais diferentes
momentos”.
Assim nos pautamos no paradigma emergente defendido por Sou-
za Santos (2008, p. 60) quando expõe “o conhecimento prudente para
uma vida decente”, ressaltando a necessidade de permitir que os sujei-
tos tenham acesso aos saberes para adquirir a consciência crítica de sua
realidade e agir sobre ela, na busca por modificar as ações de poder que
coagem e escamoteiam para a margem, numa relação desigual. O pa-
radigma emergente constitui um pensamento póscolonial que visa pos-
sibilitar aos indivíduos a construção crítica e reflexiva da realidade na
220
qual estão inseridos e, desde a infância, desenvolver ações que permitam
que a criança pense e perceba as condições sociais que compartilha com
outros sujeitos.
Nesse sentido a póscolonialidade, pelo pensamento intercultu-
ral como um projeto complexo e dinâmico nas relações sociais, busca
produzir espaços de possibilidade por meio da construção de relações
de saberes e da visibilização das maiorias consideradas marginalizadas
(WALSH, 2009). Os movimentos sociais,enquanto precursores de ações
em prol da garantia do direito da criança na educação e no espaço social,
iniciaram essa luta de ocupação por espaços e por direitos na contem-
poraneidade e têm sido movimentos de relevância para a inclusão da
criança no território do direito. O lugar da criança no âmbito governa-
mental,embora seja um lento processo de inserção, também tem apre-
sentado conquistas.
Em meio a esses espaços de trato para a infância, um grande desa-
fio vem surgindo na contemporaneidade: o reconhecimento da criança
do campo nas particularidades de suas práticas cotidianas, delineadas
em sua relação com a natureza, os animais, as plantas e os rios, tendo em
vista sua participação junto da família no plantio, na colheita, no cuidado
com a terra e no cuidado com os animais. Isso além das práticas educa-
tivas trabalhadas no interior dos espaços da educação infantil e escolar
no campo. De acordo com Silva, Pasuch e Silva (2012), o atendimento de
qualidade na educação infantil no campo precisa estar articulado com a
realidade da criança e com a dinâmica da vida no campo.
Nesse sentido, para pensar o lugar da criança do campo diante de
tantos espaços na contemporaneidade, faz-se necessário rever práticas
que estão cristalizadas em ações educativas e sociais que são reproduzi-
das nas instituições educativas no campo e nas instituições que recebem
as crianças do campo, como também na sociedade que constrói situações
de negação das culturas populares, de caracterização de sujeitos como
outros (ARROYO, 2012).
Esses outros, vistos muitas vezes nas crianças, reagem ao silen-
ciamento da sociedade que os subalterniza, por meio dos movimentos
sociais e sindicais dirigidos por seus pais, familiares e educadores. Esses
movimentos propõem outras pedagogias que legitimem a diversidade
cultural e social e que abram espaços para participação, rejeitando pe-
dagogias deslegitimadoras, que desconhecem os seus direitos (Ibidem).
Dentro disso, oferecer à criança uma formação emancipatória crítica sig-
221
nifica pensar numa emancipação que se contraponha à visão passiva e
camuflada de liberdade, pautada na participação ativa das pessoas,cons-
cientizadas de sua realidade e de sua participação social (SANTOS, 2004).
Portanto, é necessário discutir sobre a formação social, humana e
educativa da criança enquanto ser que necessita do acompanhamento da
família e das instituições educativas nos cuidados físicos e na formação
cognitiva e educativa. É preciso permitir que ela construa autonomia e
participação consciente em sua realidade, que contribua para sua for-
mação social e que tenha reconhecidos os seus direitos, como pessoas
ativamente fazendo parte da sociedade.
EDUCAÇÃO INFANTIL NO CAMPO:
DIALOGANDO COM A TEORIA PÓS-COLONIAL
Estudar a educação infantil atrelada aos estudos póscoloniais é um
desafio que nos leva a refletir sobre a articulação desses estudos com a
educação infantil do campo, pois seguimos o pensamento de Mignolo
(2006) quando retrata que as práticas dos estudos póscoloniais estão asso-
ciadas aos indivíduos que provém das heranças coloniais.
Las prácticas teóricas postcoloniales se asocian conindi-
viduos que provienen de sociedades con fuertes heren-
cias coloniales, que han estudiado y/o están em algún
lugar del corazón del imperio. (MIGNOLO, 2006, p.9)
Ao tratar da relação da infância com o pensamento póscolonial,
partimos da ideia de que a educação infantil do campo se constitui por
fortes heranças coloniais que permeiam todo o seu processo de cons-
trução social. Partimos também da possibilidade de atrelar os estudos
póscoloniais que se desdobram para tratar o reconhecimento do outro e
sua cultura na política e no contexto social, dialogando com as diversas
etnias;e, por último,da sensibilidade em refletir sobre as heranças colo-
niais e o processo de visibilidade da infância em seu percurso histórico,
repensando a realidade de nosso país.
Para tanto, repensamos as práticas educativas que vêm sendo de-
fendidas para a educação infantil especificamente para a infância do
campo, levando em consideração suas particularidades. Abordamos as
possibilidades de inserção de práticas decolonizadoras que trabalhem as
relações de poder presentes entre adultos e crianças e entre as próprias
crianças.
222
A educação infantil no campo ainda tem sido trabalhada como
uma extensão da cidade, na qual as práticas educativas visam a formação
da criança para adentrar no ensino fundamental, com ações que desca-
racterizam a vida da criança no campo. Como refletem Silva, Pasuch e
Silva (2012), isso é feito
[…] acolhendo-as muitas vezes com adaptações pre-
cárias, sem colocar no centro da ação pedagógica a
concretude da vida da criança do campo: seus espaços
de convívio, seus ritmos de viver o tempo, sua parti-
cipação na produção coletiva de seus familiares e de
suas comunidades, seus brinquedos e brincadeiras or-
ganicamente vinculados aos modos culturais de exis-
tir. (p. 36)
A escolarização da criança tem sido vista de forma colonizadora,
silenciando suas diferentes linguagens e centrada apenas na oralidade
adulta – o adulto fala, a criança escuta e obedece, numa relação linear. A
escolarização ainda perpassa uma relação de poder que envolve os dis-
cursos sobre gênero, raça, etnia, cultura e classes sociais que recaem so-
bre a criança, que tende a reproduzir isso que aprende.
Em contraposição a essas práticas de poder que tendem a repro-
duzir subjetivamente ações colonialistas, Walsh (2009, p. 25) propõe a
interculturalidade crítica como uma
ferramenta pedagógica que questiona continuada-
mente a racialidade, subalternização, inferiorização e
seus padrões de poder, visibiliza maneiras diferentes
de ser, viver e saber e busca o desenvolvimento e cria-
ção de compreensões e condições que não só articu-
lam e fazem dialogar as diferenças num marco de le-
gitimidade, dignidade, igualdade, equidade e respeito;
mas ao mesmo tempo- alentam a criação de modos
‘outros’ – de pensar, ser estar, aprender, ensinar, sonhar
e viver que cruzam fronteiras.
Nesse sentido pensar numa prática educativa decolonial exige a
construção de projetos que articulem pedagogicamente ações que visibi-
lizem a diversidade e a diferença entre os sujeitos, de modo a tratar seus
aspectos culturais, sociais e políticos assentados na realidade e no rom-
pimento de relações excludentes. Assim faz-se necessário ouvir a criança
223
para compreender o seu olhar enquanto sujeito que faz parte do campo
para perceber determinadas situações que os olhares adultos invisibili-
zam. O olhar das crianças permite revelar situações que estão obscureci-
das nas práticas educativas e nos projetos pedagógicos que são dirigidos
a elas sem questionar seu interesse.
Para tanto, discutir um projeto educativo para a educação infan-
til precisa levar em conta o currículo disciplinar que vem sendo traba-
lhado nas práticas educativas, para além de uma proposta de ensino na
transmissão do saber. É preciso um projeto que tenha como fundamento
trabalhar a dimensão cultural e social da criança, articulando e incenti-
vando sua relação com a natureza, com a comunidade e com as culturas
infantis que fazem parte do cotidiano da criança. Como defendem as
Orientações Curriculares Nacionais para a Educação Infantil do Campo,
é necessária “uma educação infantil que valorize suas experiências, seus
modos de vida, sua cultura, suas histórias e suas famílias, que respeite os
tempos do campo, os modos de convivência, as produções locais” (SIL-
VA; PASUCH, 2010, p. 2).
Dessa maneira, Walsh (2009) defende a pedagogia decolonizadora
que possibilite a construção de uma humanidade questionadora e dialó-
gica, uma pedagogia que aborde o pensar a partir da autoconsciência, da
ação em conjunto e individual para a liberdade. Como ela expõe,
Pedagogias que se constroem em relação a outros se-
tores da população, que suscitam uma preocupação
e consciência pelos padrões de poder colonial ainda
presente e a maneira que nos implicam a todos, e pelas
necessidades de assumir com responsabilidade e com-
promisso uma ação dirigida à transformação, à criação
e ao exercer o projeto político, social, epistêmico e éti-
co da interculturalidade. (Ibidem, p. 38)
Pensar numa educação infantil que vise pontuar o pensamento
pós-colonial exige dos educadores o que Morin (2011) chama de refor-
ma do pensamento, para que haja um trabalho curricular, pedagógico
e disciplinar que busque tratar a quebra de paradigmas que têm subal-
ternizado e hierarquizado as crianças numa relação de poder com seus
educadores e entre si. O autor propõe que se dialogue com a cultura do
campo respeitando suas particularidades, pois, como defende Souza
Santos (2004), emancipar é elevar o sujeito de sua condição de outro –a
ele atribuída pela colonialidade – para a condição de ser que está imerso
numa diversidade cultural.
224
Portanto, firmar a identidade da criança como sujeito do campo vai
ao encontro da perspectiva póscolonial, que defende o reconhecimento
da pluralidade identitária dos diversos sujeitos e reconhece a necessidade
de flexibilizar as práticas educativas que visam o trabalho social, cultural
e político para a participação das chamadas minorias.
CONSIDERAÇÕES REFLEXIVAS
Ao longo das leituras exaustivas e cuidadosas que nos possibili-
taram aprofundar o conhecimento acerca do lugar que vem sendo ocu-
pado pela criança do campo, percebemos que a criança popular, carac-
terizada durante todo o processo de visibilidade pela sociedade, ainda
encontra-se amparada por ações assistencialistas que retiram dela a in-
clusão participativa, apenas lhe oferecendo condições de compensação
pelas lacunas deixadas ao longo da história da educação oferecida a ela.
Dessa forma, os estudos póscoloniais nos permitem pensar a
criança do campo nos diferentes lugares que habita, incluindo os movi-
mentos sociais, como o das mulheres trabalhadoras que lutaram por um
lugar para deixar seus filhos enquanto trabalhavam, que têm contribuído
com fóruns, sindicatos e movimentações de reivindicação, nos quais as
crianças se fazem presentes.
Há hoje as políticas públicas que lentamente vêm abrindo espa-
ços dentro das leis para a garantia da oferta e qualidade da educação
infantil. No entanto, a realidade da demanda se distância da quan-
tidade de vagas que há nas creches e préescolas, principalmente no
campo, no qual não há tal estrutura para muitas de suas comunidades.
Isso se contrapõe à obrigatoriedade de oferecer vagas e garantir a per-
manência da criança com qualidade,respeitando seu tempo nos espa-
ços campesinos, que se diversificam, por exemplo, com o tempo da
chuva, das cheias dos rios e mares, da colheita e da plantação. Faltam
práticas pedagógicas que valorizem e contribuam para a firmação da
identidade da criança do campo; práticas educativas decolonizadoras
que rompam com a reprodução de pedagogias deslegitimadoras, que
distanciam a criança de sua realidade.
A sociedade, enquanto ambiente social e cultural, que se diversifi-
ca ainda tende a reproduzir ações de poder que as subalternizam e man-
têm (in)visíveis; os olhares acelerados passam despercebidos pelas crian-
ças do campo, enxergando-as como estrangeiros em seu próprio espaço.
225
As instituições de educação infantil, enquanto ambientes propi-
ciadores da formação cognitiva, física, social e cultural da criança,que
influenciam diretamente na construção de sua identidade, ainda apre-
sentam práticas que reproduzem a realidade que se contrapõe a uma
educação do campo, necessitada do diálogo com o significado do terri-
tório, de suas relações com a comunidade, com a família e entre os pares.
Refletimos aqui a partir dos estudos póscoloniais, que nos revelam
as relações de poder deixadas pela colonização e que ainda permeiam
os diversos sujeitos, estando também presentes nas práticas educativas
que legitima a linearidade ao subestimar o conhecimento do outro, sua
cultura e sua participação, negando a ele seu direito.
Portanto, apontamos como elemento essencial a necessidade da
construção de projetos decolonizadores, de desde cedo se trabalhar com
crianças a valorização de si e do outro, a firmação de sua identidade e o
respeito pela pluralidade de povos que fazem parte da sociedade. Por ora,
isso vem sendo um desafio para os estudos emergentes.
Por fim, acreditamos que reconhecer a criança do campo e ofe-
recer a ela condições necessárias para o seu desenvolvimento humano,
cultural, social e educativo tem sido um caminho percorrido pelos movi-
mentos sociais, pelas famílias e pelas próprias crianças. Contribuir para
essa valorização tem sido o papel de trabalhos na academia e nos estudos
sobre e com as crianças. Para que possamos alcançar esse propósito, es-
peramos contribuir para estudos que têm buscado revelar a realidade e
repensar novas possibilidades na contemporaneidade.
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Esta edição foi composta nas fontes Minion Pro e
Fira Sans com miolo sobre Papel OffSet 90 g/m²
e capa em Papel Supremo 250 g/m²,
impressa pela Gráfica & Editora Xxxxx Xxxxx Ltda-ME,
para a Editora Massangana, em 2018.
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