Parte 1 - A formação de professores de línguas:
políticas, experiências e identidades
Kleber Aparecido da Silva (org.)
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SILVA, K. A., ed. A formação de professores de línguas: políticas,
experiências e identidades. In: Línguas estrangeiras/adicionais, educação
crítica e cidadania [online]. Brasília: Editora UnB, 2022, pp. 16-210. ISBN:
978-65-5846-133-3. https://doi.org/10.7476/9786558461647.
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PARTE 1
A formação de professores de línguas:
políticas, experiências e identidades
CAPÍTULO 1
Políticas linguísticas em
educação: o lugar incerto
da formação docente1
Egon de Oliveira Rangel – PUC-SP
Em torno de “políticas linguísticas”
No singular ou no plural, “política(s) linguística(s)” é uma expressão que,
como bem nota Oliveira (2007), em prefácio à edição brasileira de Calvet (2007),
vem circulando “faz pouco tempo”2 no Brasil. Assim, não é de estranhar que,
salvo engano, ainda tenhamos muitos (des)entendimentos diferentes a respeito dos
significados que esse termo possa recobrir. E este é o motivo pelo qual começo
minha participação nesta discussão por uma tentativa de esclarecer e discutir alguns
sentidos implicados na expressão. Para evitar abordagens vinculadas a contextos
políticos e/ou a modelos teóricos muito específicos, parto de uma concepção geral
bastante difundida e compartilhada entre especialistas.
Num capítulo específico de sua introdução crítica à Sociolinguística, Calvet
(1993) define política linguística por meio de dois movimentos distintos. No primeiro,
o autor (1993, p. 145) entende o termo como referindo-se a “um conjunto de escolhas
1
Este capítulo é uma versão revista de minha intervenção na mesa redonda intitulada “Políticas Linguísticas de For-
mação de Professores”, no X Congresso Brasileiro de Linguística Aplicada, Rio de Janeiro, ALAB/UFRJ, 2013.
2
De acordo com o autor, os movimentos sociais, nas duas últimas décadas, teriam despertado o interesse social
pela diversidade linguística do país, expandindo o debate, portanto, a respeito de nossas políticas linguísticas.
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
conscientes referentes às relações entre língua(s) e vida social”. O objetivo final dessas
escolhas, efetuadas por “não importa que grupo” da sociedade, seria o de “gerenciar”
as trocas linguísticas de uma determinada comunidade, sempre sujeitas a algum grau
de “plurilinguismo” e, portanto, de conflito e/ou dificuldade de intercompreensão.
Desse ponto de vista, uma política linguística seria constituída, antes de mais nada,
como um imaginário e/ou um ideário social relativo à diversidade linguística.
No segundo movimento, Calvet (1993) afirma que “a implementação prática”
de uma política linguística – ou seja, as intervenções diretas sobre as formas e as
funções da(s) língua(s) – constituiria o planejamento linguístico. No entanto, só
o Estado, adverte o autor, teria “o poder e os meios de passar ao estágio do pla-
nejamento, de pôr em prática suas escolhas políticas” (CALVET, 1993, p. 145,
grifo meu). Em consequência, podemos supor que o planejamento implique novas
escolhas, efetuadas por organismos estatais, a partir daquelas que, na vida social,
caracterizariam ideários assumidos por diferentes grupos sociais.
Numa concepção assim elaborada, retomada e aprofundada em Calvet (1995),
a política linguística não só é considerada como “inseparável” do planejamento
linguístico, como a primeira é entendida, basicamente, como o momento da con-
cepção e da formulação; enquanto o segundo é percebido como aplicação do já
formulado. Podemos dizer, então, recorrendo a dois termos utilizados pelo próprio
autor, que Calvet (1995) apresenta as políticas linguísticas:
a) como um processo ou movimento sociolinguístico em dois estágios;
b) como um binômio, e, portanto, como uma unidade lógica constituída pela
articulação de dois termos.
Em consequência, tudo se passa como se uma política linguística fosse, acima de tudo,
uma ação organizada, com objetivos claramente estabelecidos e dotada de racionalidade.
Por outro lado, como bem explicita o autor, imediatamente após formular
essa concepção, tanto a expressão “política linguística” quanto o objeto social que
ela recorta teriam se constituído como tais na segunda metade do século XX, em
decorrência de questões mais amplas, diretamente relacionadas à política interna e
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Políticas linguísticas em educação: o lugar incerto da formação docente
externa de estados nacionais nesse período. Desse ponto de vista, podemos dizer que
uma política linguística é, também e necessariamente, um objeto histórico-social,
como a política do Estado Brasileiro em relação à nossa diversidade linguística
num determinado momento histórico. Nessa condição, ao contrário do que se passa
com um estágio de aplicação, uma política linguística está condicionada a fatores
sem quaisquer compromissos prévios com a razão, com o planejamento ou mesmo
com a explicitação de um ideário.
Vou tomar essas definições como ponto de partida para minhas considerações
sobre políticas linguísticas federais, na esfera educacional, voltadas para a formação
do professor de língua portuguesa como língua materna no Brasil. No entanto, não
as tomarei ao pé da letra nem assumirei os compromissos teóricos imediatos que
elas envolveriam. E isso, por duas razões principais.
Em primeiro lugar, creio haver motivos suficientes para concedermos autonomia
relativa, e até mesmo independência, ao que Calvet (1993) concebe como “estágios”
diferentes de um único processo. Afinal, se “não importa que grupo [até mesmo a
família] pode elaborar uma política linguística” (CALVET, 1993, p. 145), enquanto
“só o Estado tem o poder e o meio de passar ao estágio do planejamento” (CALVET,
1993, p. 146), temos de admitir, em consequência, que atores sociais bastante diver-
sos, movidos por interesses, modos de agir e objetivos diferentes, eventualmente
conflitantes, podem atuar em cada momento, com maior ou menor poder de influir
na formulação ao fim e ao cabo assumida pelo Estado. Isso nos autoriza a pensar
que a formulação e a aplicação de uma política, por mais que a burocracia estatal
responsável as distinga, podem confundir-se bastante. Nesse sentido, as instâncias
de elaboração e de execução, nesse âmbito da vida social, assemelham-se mais a
“arenas” e a “rounds” de embates políticos que à divisão racional de um trabalho.
Em segundo lugar, o ponto de vista que assumo, nesta intervenção, é a do
profissional que atua em políticas públicas, e não o do pesquisador acadêmico,
como se evidenciará ao longo do texto. Qualquer profissional que tenha atuado
diretamente em políticas públicas, ao menos no Brasil, pode constatar que o Estado,
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Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
seja como formulador, seja como executor de uma mesma política – como a de
dotar as escolas públicas de materiais didáticos “de qualidade” para o ensino de
língua portuguesa, por exemplo –, dificilmente se apresenta como uma entidade
homogênea, coesa e orientada para um mesmo e único objetivo.
A título de exemplo, autores, editores, impressores, especialistas universitá-
rios, técnicos do aparelho de estado, etc. participam, direta e/ou indiretamente,
da elaboração e da execução da avaliação pedagógica, promovida pelo Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD), das coleções de língua portuguesa e de língua
estrangeira moderna (inglês e espanhol) destinadas à educação básica. Considerando
a heterogeneidade dos atores em jogo, assim como suas diferentes atribuições e
interesses no processo, é possível entender a avaliação oficial desses livros não como
pura e simples aplicação de princípios e critérios que traduzem uma concepção
oficial de ensino de língua(s), mas como um processo de (re)construção conjunta
dessas referências, com forte impacto, inclusive, sobre a (re)formulação da política
para materiais didáticos e para o ensino de língua materna. Documentos como o
elaborado por Batista (2001),3 quando considerados à luz dos acontecimentos his-
tóricos a que se relacionam, dão um claro testemunho a respeito.
Por outro lado, convém levar em conta que a(s) política(s) linguística(s) em
princípio “executada(s)” pelo PNLD convivem – e eventualmente conflitam – com
outras, provenientes de outras instâncias do mesmo Estado. No próprio Ministério
da Educação (MEC), avaliação de livros didáticos e avaliação sistêmica do desem-
penho discente podem assumir concepções de leitura e produção de textos, por
exemplo, tão distintas que, em contextos como o da reflexão acadêmica, dificilmente
apareceriam articuladas, podendo, inclusive, ser consideradas “rivais”. No entanto,
a concepção de língua(s) e de ensino de língua(s) do MEC não é necessariamente
a mesma que se manifesta em iniciativas do Ministério das Relações Exteriores
para a difusão e o ensino do português fora do país.
3
Trata-se de uma síntese do seminário ocorrido em São Paulo que discutiu o PNLD e, com base nesse debate,
sugeriu correções de rumos para o processo avaliatório.
20
Políticas linguísticas em educação: o lugar incerto da formação docente
Assim, tomada em si mesma, cada política linguística – e, a rigor, qualquer
política pública – é indissociável de um momento histórico-social bem determi-
nado. Em consequência, tende a configurar-se como um arranjo conjuntural único,
dificilmente redutível a um binômio ou mesmo a um processo em duas etapas
articuladas apenas por uma relação lógico-temporal, o que, evidentemente, não
exclui a possibilidade de se identificarem procedimentos lógicos e etapas fortemente
articuladas entre si no interior de uma determinada iniciativa estatal.
Políticas linguísticas relativas à formação
de professores de língua portuguesa
Feitas as considerações iniciais, como poderíamos entender a articulação entre
políticas linguísticas e formação de professores?
Para os aspectos das políticas linguísticas que pretendo trazer à tona, interessa
distinguir políticas explícitas, como as determinações enunciadas em documentos
como as Orientações Curriculares Nacionais, para o ensino seja de língua estrangeira
moderna, seja de língua portuguesa, e implícitas, como, no âmbito do PNLD, a
aposta na leitura como ferramenta básica para o ensino-aprendizagem em todas as
áreas que a opção do Estado pelo livro implica. O mesmo se poderia dizer, ainda
a respeito desse programa, sobre o privilégio implicitamente concedido ao léxico,
tanto na abordagem da língua quanto na compreensão em leitura e na produção de
textos, que o investimento em dicionários, em princípio, representaria.
Considerando, agora, o lugar muito particular a partir do qual me sinto auto-
rizado a participar de um debate como o aqui proposto, chama a atenção o fato
de políticas públicas federais na esfera educacional implicarem, ora explícita, ora
implicitamente, o que bem poderíamos denominar como “políticas linguísticas
relativas à formação de professores”.
21
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
Se considerarmos, em conjunto, parte significativa dos documentos, das inicia-
tivas e dos programas que, nas duas últimas décadas, têm pautado a (re)orientação
oficial relativa ao ensino de língua materna,4 podemos detectar alguns traços comuns:
• Existência de exceção feita às línguas indígenas, contempladas em políticas
educacionais específicas para os anos iniciais do ensino fundamental. Ape-
nas o português é reconhecido como língua materna de cidadãos brasileiros.
• Em programas como o PNLD, o português em foco é, explicitamente, o portu-
guês brasileiro (PB). Em decorrência disso, os princípios e critérios de avaliação
das coleções didáticas, assim como os dos dicionários escolares, preconizam
que a linguagem empregada, os exemplos e as descrições linguísticas presentes
nas obras tenham o PB como objeto e evitem tomar os padrões europeus como
referência. No entanto, considerando-se a incipiência das transposições didá-
ticas de descrições do PB, há muito pouca clareza e precisão a esse respeito.
• A perspectiva pretendida para o tratamento didático dado à linguagem e
à língua é, predominantemente, a do uso. O padrão culto da língua é ex-
plicitamente reconhecido como objeto de ensino-aprendizagem, mas sua
abordagem, recomenda-se, deve incorporar uma reflexão de caráter socio-
linguístico, de forma a evitar e combater preconceitos e discriminações.
• As práticas de leitura, escrita e oralidade – e, portanto, o desenvolvimento
das proficiências correspondentes – constituem o foco do ensino. Além dis-
so, recomenda-se que os conhecimentos linguísticos só se constituam como
objeto de estudo à medida que e na ocasião em que se justificarem pelas
demandas das práticas referidas.
• O gênero é frequentemente referido como unidade básica para as ativi-
dades de ensino-aprendizagem; eventualmente, as sequências didáticas e as
“rotinas” (umas e outras entendidas de diferentes formas) aparecem como
4
É o caso dos parâmetros, das orientações e das diretrizes curriculares para o ensino fundamental e o médio, do
PNLD, dos programas e, mais recentemente, do Pacto Nacional para a Alfabetização (Pnaic), da Olimpíada de
Língua Portuguesa, etc.
22
Políticas linguísticas em educação: o lugar incerto da formação docente
referência metodológica para a organização do trabalho de sala de aula.
• A concepção de ensino-aprendizagem direta ou indiretamente assumida va-
loriza o papel da interação entre os sujeitos, assim como o dos processos
reflexivos envolvidos.
• O acesso da criança ao mundo da escrita é alvo de uma atenção especial, o que
confere a esse momento da escolarização um caráter decisivo e estratégico. Ex-
plícita ou implicitamente, conforme o documento ou o programa considerado,
a alfabetização é concebida como um ciclo de ensino-aprendizagem; muitas
vezes, sem que a escolarização posterior seja abordada pelo mesmo princípio
de organização curricular. Letramento e aquisição de sistema alfabético são
encarados como indissociáveis, como as duas faces de uma mesma moeda.
Vistas em conjunto, essas iniciativas podem ser encaradas, do ponto de vista das
escolhas relativas à língua e ao ensino que implicam, como frutos particulares da virada
pragmática no ensino de língua materna.5 Nesse sentido, podem ser vistas como inse-
ridas num mesmo paradigma teórico-metodológico. Ademais, na medida em que têm
como origem o MEC, frequentemente são percebidas como parte de uma única política
pública, razão pela qual se espera articulação e coerência entre os diversos programas,
em especial os que têm em comum objetos como a leitura ou a produção de textos.
Dessa perspectiva, as iniciativas referidas podem, de fato, ser entendidas como ins-
trumentos, diretos e/ou indiretos, de políticas linguísticas do Estado Brasileiro. Como tais,
recorrem mais à incitação que à prescrição direta; e incidem tanto sobre o status da língua
materna/nacional – concebida e nomeada como PB – quanto sobre o seu corpus, que se
supõe descrito ou passível de descrição/codificação em dicionários apropriados e obras
especializadas.6 Apesar das referências explícitas e das recomendações didático-pedagógicas
5
Refiro-me, aqui, à “brusca mudança na concepção do que seja ‘ensinar língua materna’, determinada por um
conjunto articulado de orientações teóricas e/ou metodológicas surgidas nas concepções tanto de ensino quanto
de linguagem que compõem esta área acadêmica” (RANGEL, 2001, p. 8-9).
6
Por ocasião da entrada dos dicionários entre os materiais didáticos avaliados pelo PNLD (2000), o MEC cogitou
fazer o mesmo com gramáticas. A desistência, circunstancial, deveu-se ao fato de não haver disponíveis, no
mercado, sínteses pedagógicas das descrições especializadas do português brasileiro.
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Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
sistemáticas à oralidade, há um claro privilégio da modalidade escrita. Nesse contexto, um
programa como a Olimpíada de Língua Portuguesa, até pela ausência de algo semelhante
consagrado à leitura e à oralidade, confere relevo à produção escrita.
No entanto, dificilmente poderemos identificar, no âmbito dessas políticas,
instâncias clara e exclusivamente responsáveis seja por sua formulação, seja pelo
seu planejamento e/ou por sua execução. Setores diversos do MEC, muitas vezes
agindo sem orquestração ou mesmo sem conhecimento de iniciativas assemelha-
das de outros órgãos, concorrem para a configuração desse conjunto. Além disso,
apesar da diferença de natureza e função entre documentos como as Orientações
Curriculares e programas como o PNLD e a Olimpíada, o paradigma que assim
se configura não está inteira e exclusivamente formulado nas primeiras; nem os
segundos limitam-se a executar o que já vinha previsto ou prefigurado nas Orienta-
ções. As fronteiras entre a formulação e a aplicação não estão, portanto, claramente
demarcadas, como a metáfora do binômio levaria a crer.
A “política linguística” a que nos referimos é, portanto, uma (re)construção, se
assim podemos dizer, produzida por algum(ns) dos agentes envolvidos em ações
governamentais voltadas para o setor educacional. O objetivo explícito do PNLD, por
exemplo, é o de prover as escolas das redes públicas do país de materiais didáticos
confiáveis, em todas as áreas ou disciplinas; no caso que nos interessa, de livros de
língua portuguesa e de língua estrangeira moderna, além de dicionários. Contudo, não
obstante esse foco no insumo, o programa também estabelece e dissemina, a cada edição,
uma formulação própria, digamos, do que seriam a natureza e o funcionamento da(s)
língua(s) em jogo, assim como de seu ensino. A Olimpíada, por sua vez, constitui um
concurso bianual de redação: poemas (5º e 6º anos do ensino fundamental), memórias
literárias (7º e 8º anos do ensino fundamental), crônicas (9º ano do ensino fundamental
e 1º do ensino médio) e artigos de opinião (2º e 3º anos do ensino médio). Como tal, a
Olimpíada também estabelece padrões de qualidade; no caso, relativos ao desempenho
discente em produção de textos, além de difundir amplamente a concepção de que
concursos e competições podem ser pedagogicamente proveitosos.
24
Políticas linguísticas em educação: o lugar incerto da formação docente
Ainda que provenham de diferentes instâncias do mesmo ministério responsável
pelas políticas federais de formação docente, cada uma dessas duas iniciativas pressu-
põe, como condição de sua efetiva implementação, uma atuação didático-pedagógica
determinada; e, em consequência, um perfil particular do professor, diferente e, na
maioria das vezes, distante do professor “real”. Como não poderia deixar de ser, essa
distância se manifesta claramente nos discursos sustentados por esses programas – no
caso, na sistemática oposição que, de forma mais ou menos marcada, eles estabelecem
entre a “tradição” a ser superada e a “inovação” pretendida.
No PNLD, o caminho da superação é apontado seja na apresentação geral das
coleções aprovadas, seja nas resenhas individuais, que indicam explicitamente
“pontos fortes” (e/ou inovadores) e “pontos fracos” (geralmente “tradicionais”)
das propostas pedagógicas, seja, ainda, nas orientações para a escolha, presentes
em um anexo específico. Dá-se, ainda, especial atenção ao Manual do Professor,
explicitamente concebido na formulação dos critérios eliminatórios, como uma peça
que deve contribuir significativamente para a formação docente. No caso particular
dos dicionários, o caminho a ser percorrido pelo professor é indicado num manual
que não só discute a natureza das obras lexicográficas, como também explicita seu
alcance pedagógico e sugere atividades de sala de aula (RANGEL, 2012)
A Olimpíada é, no entanto, a que mais explicita essas distâncias. Como condição para
a realização do concurso, o programa envolve uma proposta própria de formação docente
– continuada e à distância – orientada por demandas específicas do ensino-aprendizagem
da produção textual. Consagrados a cada um dos gêneros7 da Olimpíada, os cadernos des-
tinados ao professor organizam-se como sequências didáticas que formam “em serviço”.
Aposta-se, então, que as oficinas propostas ensinem o docente a ensinar... enquanto ensina.
Indiretamente, difundem-se modelos de planejamento e de atuação docentes.
Seja como for, nenhuma das duas iniciativas visa à formação do professor
como sua meta específica; antes, entendem-na como um meio para sua viabilização,
7
Poemas (5º e 6º anos do ensino fundamental), memórias literárias (7º e 8º anos do ensino fundamental), crônicas
(9º ano do ensino fundamental e 1º ano do ensino médio) e artigos de opinião (2º e 3º anos do ensino médio).
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Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
supondo um professor que, não estando imediatamente disponível, precisa ser formado.
Em consequência, projetam um perfil mais ou menos bem definido desse docente,
apostando, em maior ou menor grau, em materiais e atividades capazes de promover
sua (auto)formação de forma satisfatória. Apesar disso, exceção feita a programas como
a Olimpíada – e, evidentemente, também aos programas específicos –, a formação
necessária à realização da ação projetada não se apresenta como parte indissociável de
iniciativas e programas como os referidos ainda há pouco. Nem há qualquer garantia,
interna ou externa, de que o caminho apontado será percorrido pelo docente.
No âmbito do PNLD, por outro lado, o acesso aos Guias, que apresentam as
coleções e orientam a sua escolha, é restrito e, dadas as regras do próprio jogo da
escolha, pouco ou nada eficaz, como muitos estudos a respeito têm apontado (escas-
sez de exemplares, prazos insuficientes para a organização do processo seletivo,
escolhas efetuadas sem qualquer consulta ao Guia, possibilidade de as secretarias
escolherem pelo professor, etc.). A conclusão que se impõe é a de que, nesses
casos, a formação projetada funciona mais como parte das justificativas e/ou da
fundamentação das propostas em questão que como peças indispensáveis à sua
execução. Nesse sentido, servem, predominantemente, à formulação e à sustentação
da política em foco no plano do debate teórico-ideológico – mas entendido, esse
debate, como uma instância independente das iniciativas em jogo.
Partindo do estudo de Barbosa (2000), a propósito dos muitos percalços envol-
vidos na implementação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de língua
portuguesa para o ensino fundamental, cabe, então, ampliar a pergunta formulada
pela autora: seriam essas políticas linguísticas relativas à formação do professor
praticáveis? Ou, nos termos das teorizações que tomei como ponto de partida: seriam
as formulações políticas passíveis de planejamento e, em especial, de execução?
A julgar pelo lugar incerto da formação docente em muitas das iniciativas ofi-
ciais voltadas para o ensino de língua materna, a pergunta não pode ser respondida
com um simples sim ou não. E nos convida a (re)pensar o que devemos entender
por política linguística no contexto educacional.
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Políticas linguísticas em educação: o lugar incerto da formação docente
Formulação e execução de políticas
públicas: elucubrações teóricas
Ora, se uma pergunta como essa frequentemente se insinua, é porque a esfera
das políticas públicas impõe, à ação e à reflexão dos sujeitos envolvidos, condições
de produção particulares, bastante diferentes das que vigoram na pesquisa acadêmica.
Os objetos a partir dos quais agimos e refletimos, nas políticas públicas, não são de
nossa “livre escolha” nem se apoiam, necessariamente, em pesquisas anteriores, ainda
que, frequentemente, refiram-se a “estados da arte” e/ou a pesquisas, teorias/paradigmas e
autores oriundos da academia. No âmbito das políticas públicas, esses objetos são constru-
ídos ao longo de disputas e polêmicas essencialmente políticas. Por isso mesmo, refletem
esses conflitos e reportam-se, direta e indiretamente, a agendas públicas específicas – no
nosso caso, do setor educacional. Seja na instância da formulação, seja na da execução,
objetivos, público-alvo, cronogramas, parcerias, etc. são definidos com base em deman-
das e conveniências da administração, com interferência direta e/ou indireta de órgãos
governamentais os mais diversos. Com muita frequência, equipes ad hoc, não necessa-
riamente articuladas entre si ou com os técnicos dos setores envolvidos, são constituídas
para executar parte de uma determinada tarefa. Em consequência, a lógica das ações de
um mesmo programa oficial raramente sugere a de um binômio. E lembram, o mais das
vezes, as idas e vindas, os avanços e recuos inerentes às disputas e aos embates políticos.
Considerando-se esse quadro geral e, ainda, o fato de que a própria adminis-
tração pública reparte seus órgãos, em geral, em “propositivos” e “executivos”8
(“pedagógicos” e “operacionais”, no caso do MEC), ao mesmo tempo em que cada
um desses grupos funciona de acordo com demandas próprias, não é de estranhar
que a formulação e a execução de políticas públicas nem sempre caminhem lado
a lado. A articulação prevista pela metáfora do binômio parece, portanto, mais um
8
Curiosamente, essa categorização das funções próprias a cada órgão da administração pública é similar à que
Calvet (1993) estabelece para as políticas linguísticas, o que parece superar a mera coincidência.
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Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
pressuposto ideológico, estabelecido a posteriori e/ou estrategicamente reivindicado
por uma ou outra das instâncias envolvidas, que uma condição lógica a priori.
Nessa perspectiva, poderíamos formular algumas considerações mais gerais a
respeito de políticas linguísticas, ao menos no âmbito da educação:
• A instância da formulação não é tão articulada nem tão explícita quanto
pode parecer; e a instância do planejamento e/ou da execução não é pura
e simples aplicação, nem é tão organizada e racional quanto a metáfora do
binômio dá a entender.
• Há mais política e, sobretudo, mais burocracia estatal, no campo das po-
líticas linguísticas, do que o esquema elaboração/aplicação permite per-
ceber e compreender.
• Avaliar os produtos e/ou resultados de políticas linguísticas do ponto de
vista exclusivo da coerência entre política e planejamento é esquecer a rela-
tiva autonomia das políticas, como formulações ideológicas, e elidir a ação,
no entanto necessária e decisiva, das muitas instâncias que se estabelecem
entre a primeira e a segunda. É, portanto, esquecer as condições de produ-
ção próprias de uma e outra instância, tomando-se os efeitos da segunda
como resultantes do bem ou mal fundado, do acerto ou do erro, da primeira.
• Em consequência, não é raro que concepções de língua e linguagem, certas
práticas de letramento, determinados procedimentos docentes, etc. sejam
condenados como equivocados ou superados não em consequência de uma
efetiva análise de seus limites e possibilidades, ou mesmo de uma experi-
mentação controlada de cada um deles, mas porque os programas em que
figuravam “não deram certo”.
Com base nas considerações que acabo de fazer, creio ser possível, se quiser-
mos caminhar na direção de uma concepção de política linguística mais próxima do
que observamos nas práticas, inverter a fórmula de Calvet (1993) invocada no início:
é o planejamento e – com mais razão – a intervenção linguística propriamente dita,
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Políticas linguísticas em educação: o lugar incerto da formação docente
que, uma vez efetivadas, tornam-se inseparáveis de uma formulação. Formulação
esta que aparece, então, como seu pressuposto e/ou suporte... teórico/ideológico.
Nessa direção, podemos postular que uma definição de política linguística como
a proposta por Rajagopalan (2013, p. 21, grifos nossos) parece mais adequada à
compreensão dos fenômenos em jogo:
[...] a política linguística é a arte de conduzir as reflexões em torno
de línguas específicas, com o intuito de conduzir ações concretas de
interesse público relativo à(s) língua(s) que importam para o povo de
uma nação, de um estado ou, ainda, instâncias transnacionais maiores.
Duas noções pertinentes para a discussão que proponho aqui interferem numa
concepção de política linguística como esta: “arte” e “ação concreta”.
Em lugar do binômio de Calvet (1993), a noção de arte reconhece e legitima
o que pode haver de irracional e mesmo de contraditório na ação política. Assim,
alarga e aprofunda o olhar do analista, levando-o a enxergar também a imprevi-
sibilidade (ao menos lógica) que, em maior ou menor grau, pode caracterizar as
iniciativas do Estado. Por outro lado, ação concreta é uma noção que permite
reconhecer, no campo das iniciativas do Estado, algo mais – e, principalmente, algo
de diferente – do planejamento e/ou da execução de um só ideário, o que permite
integrar, à compreensão e à análise de uma política linguística, a heterogeneidade de
condições de produção a que uma “mesma” ação do Estado pode estar submetida.
Em resumo, a atuação direta em políticas linguísticas na área da educação nos
permite ter, delas, uma experiência pouco compatível com a imagem de uma ação
racional e organizada. Além de sugerir que o campo das políticas linguísticas tem
mais política(s) que língua ou linguagem.
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Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
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RANGEL, E. O. Livro didático de língua portuguesa: o retorno do recalcado. In: DIONÍSIO,
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Lucerna, 2001.
30
CAPÍTULO 2
A política linguística
brasileira para as línguas
estrangeiras: confrontando
discursos e práticas estatais1,2
Elias Ribeiro da Silva – Unifal-MG
Considerações preliminares
Como entendida tradicionalmente, a política linguística (language policy)
envolve a tomada de decisão no sentido de balizar, fomentar ou proibir o uso de uma
determinada língua ou variedade linguística. Em Calvet (2007, p. 11), por exemplo,
encontra-se esse entendimento, uma vez que, para o autor, a política linguística diz
respeito à “determinação das grandes decisões referentes às relações entre as línguas
1
Parte substancial deste texto integra o capítulo teórico de minha tese (RIBEIRO DA SILVA, 2011), a qual foi
desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada do Instituto de Estudos da Lingua-
gem da Universidade Estadual de Campinas (IEL/Unicamp) e contou com financiamento do CNPq (Processo
nº 140306/2007-2). Retomo, ainda, considerações presentes em Ribeiro da Silva (2014).
2
A análise político-linguística desenvolvida ao longo deste capítulo foi elaborada anteriormente à aprovação do
Projeto de Lei de Conversão (PVL) nº 34/2016, que instituiu o Novo Ensino Médio e que modificou a política lin-
guística (explícita) do Estado Brasileiro para as línguas estrangeiras. Caso essa nova política venha a se consolidar
nos próximos anos, a compreensão de suas implicações demandará uma análise detalhada e epistemologicamente
fundamentada. Diante desse cenário difuso que se nos apresenta, a publicação deste capítulo, que focaliza e contrasta
discursos e práticas estatais relativamente às línguas estrangeiras, justifica-se por desvelar aquela que era a política
linguística implícita do Estado Brasileiro nos últimos anos e que, no atual momento histórico, torna-se explícita.
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
e a sociedade”. Assim, a política linguística envolveria a intervenção consciente
e propositada de um agente em um determinado contexto sociolinguístico. Por
implicação, a análise da situação político-linguística de uma comunidade específica
se daria, principalmente, pelo exame de seus documentos oficiais.
Contudo, nos últimos anos, autores como Schiffman (1996, 2006), Shohamy
(2006) e Spolsky (2004) vêm apontando que a política linguística formalizada
em documentos oficiais pode não coincidir com aquela que, de fato, vigora na
sociedade. Schiffman (1996), por exemplo, sugere a existência simultânea de duas
políticas linguísticas em um mesmo contexto sociolinguístico, uma explícita e
outra implícita. Na mesma direção, Shohamy (2006) propõe a existência de uma
política linguística formal e de outra informal. Esses autores defendem, ainda, que
a política linguística pode existir independentemente de um agente que a promova
explicitamente. Como aponta Spolsky (2004, p. 8, tradução nossa),
[...] a política linguística existe mesmo onde ela não foi explicitada
ou estabelecida oficialmente. Muitos países, instituições e grupos
sociais não têm políticas linguísticas formais, de maneira que a natu-
reza de sua política linguística deve ser derivada a partir do estudo
de suas práticas e crenças linguísticas. Mesmo onde há uma política
linguística formal, seu efeito nas práticas linguísticas não é garantido
nem consistente.3
Em síntese, na perspectiva desses autores, para se apreender a “real” política
linguística de uma comunidade, deve-se confrontar a política linguística explícita
(ou formal) à implícita (ou informal) e, ao mesmo tempo, examinar suas crenças
e práticas sociais relacionadas às diferentes línguas e/ou variedades linguísticas.
É a partir dessa perspectiva ampliada de política linguística que procurarei, ao longo
deste capítulo, examinar a política linguística brasileira para as línguas estrangeiras.
Em um primeiro momento, perscrutarei a legislação educacional brasileira rela-
“[…] language policy exists even where it has not been made explicit or established by authority. Many coun-
3
tries and institutions and social groups do not have formal or written language policies, so that the nature
of their language policy must be derived from a study of their language practice or beliefs. Even where there
is a formal, written language policy, its effect on language practices is neither guaranteed nor consistent.”
32
A política linguística brasileira para as línguas estrangeiras: confrontando discursos e práticas estatais
tivamente ao ensino e à aprendizagem de línguas estrangeiras para, em seguida,
discutir duas práticas oficiais relacionadas à linguagem que indiciam a real política
linguística do Estado Brasileiro para as línguas estrangeiras.
A política linguística brasileira para as
línguas estrangeiras: o(s) discurso(s)
Apreender a política linguística brasileira para as línguas estrangeiras não é
uma tarefa simples, uma vez que, como procurei demonstrar em Ribeiro da Silva
(2011; no prelo), o Estado Brasileiro tem uma política explícita (ou formal) para as
línguas estrangeiras em geral, uma explícita para o espanhol e outra implícita (ou
informal) para o inglês. A essas três, soma-se uma política linguística específica para
a língua inglesa, que emana da cultura linguística (SCHIFFMAN, 1996, 2006) da
sociedade brasileira e que, ao mesmo tempo em que engloba o aparelho de estado,
funciona independentemente dele (RIBEIRO DA SILVA, 2011).
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei nº 9.394/1996,
texto máximo da legislação educacional brasileira, torna obrigatória a inclusão de
pelo menos uma língua estrangeira a partir do 3º ciclo do ensino fundamental.
Textualmente, afirma-se o seguinte, no parágrafo 5º, do artigo 26:
[N]a parte diversificada do currículo será incluído, obrigatoriamente, a
partir da quinta série [atualmente 6º ano], o ensino de pelo menos uma
língua estrangeira moderna, cuja escolha ficará a cargo da comunidade
escolar, dentro das possibilidades da instituição. (BRASIL, 1996).
Ao tratar do currículo do ensino médio, declara-se, no artigo 36, que “[s]erá
incluída uma língua estrangeira moderna, como disciplina obrigatória, escolhida
pela comunidade escolar, e uma segunda, em caráter optativo, dentro das disponi-
bilidades da instituição” (BRASIL, 1996).
Como se pode observar nesses dois artigos da LDBEN, a língua estrangeira
deve integrar, obrigatoriamente, a educação fundamental e média da população
33
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
brasileira. Contudo, é importante notar que a legislação inclui a disciplina de lín-
gua estrangeira moderna na chamada “parte diversificada do currículo”, isto é, na
parte da grade curricular que pode variar de uma região para a outra. Trata-se de
um dos fundamentos da LDBEN, qual seja, a importância de o sistema educacional
adequar-se às especificidades e às demandas locais.
Não seria incorreto afirmar, portanto, que a legislação educacional brasileira
valoriza o plurilinguismo, refletindo, assim, uma política linguística oficial cujo
principal traço é a valorização da diversidade linguística e cultural que caracteriza
o país. O legislador garante aos grupos minoritários o direito de preservar e cul-
tivar suas línguas ancestrais via aparelho educacional. Uma comunidade formada
por descendentes de imigrantes alemães, por exemplo, poderia incluir o alemão
moderno como uma das línguas estrangeiras a serem oferecidas em suas escolas.
Os Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino
fundamental: língua estrangeira (PCNLE) (BRASIL, 1998a), documento que
define as orientações específicas quanto ao ensino de línguas estrangeiras na rede
oficial de ensino, reafirmam o direito das comunidades locais de escolherem as
línguas estrangeiras que serão incluídas no currículo e estabelecem os fatores que
devem (ou podem) orientar essa escolha: fatores históricos, fatores relativos às
comunidades locais e fatores relativos à tradição (p. 22-23). Os fatores históricos
relacionam-se “[...] ao papel que uma língua estrangeira específica representa em
certos momentos da história da humanidade, fazendo com que sua aprendizagem
adquira maior relevância” (BRASIL, 1998a, p. 22-23). Os fatores relativos às
comunidades locais contemplam aquelas regiões em que há comunidades indígenas
ou de descendentes de imigrantes. Em linhas gerais, os fatores relativos à tradição
dizem respeito àquelas línguas que desempenharam um papel importante nas trocas
culturais com o Brasil. O francês seria o caso prototípico.
Se, por um lado, as características das comunidades locais e os fatores relativos
à tradição podem determinar a inclusão de uma língua estrangeira no currículo, por
outro, os fatores históricos (juntamente com questões práticas, como a falta de espaço
34
A política linguística brasileira para as línguas estrangeiras: confrontando discursos e práticas estatais
na grade curricular e a inexistência de professores de algumas línguas) são vistos
como de maior importância, como fica evidente no excerto citado anteriormente.
A preponderância dos fatores históricos e geopolíticos fica mais evidente na seção
dos PCNLE dedicada à discussão do papel da área de língua estrangeira moderna no
ensino fundamental diante da construção da cidadania (p. 37-41). Ao discorrer sobre
a escolha de línguas estrangeiras para o currículo, o legislador afirma:
[há] de se considerar critérios para definir que línguas estrangeiras
devem ser incluídas no currículo. É necessário se ponderar sobre a
visão utópica de um mundo no qual o desejo idealista de um estado
de coisas prevalece sobre uma avaliação mais realista daquilo que é
possível. Por um lado, há de se considerar o valor educacional e cultu-
ral das línguas, derivado de objetivos tradicionais e intelectuais para a
aprendizagem de Língua Estrangeira que conduzam a uma justificava
para o ensino de qualquer língua. Por outro lado, há de considerar as
necessidades linguísticas da sociedade e suas prioridades econômicas,
quanto a opções de línguas de significado econômico e geopolítico
em um determinado momento histórico. Isso reflete a atual posição
do inglês e do espanhol no Brasil. (BRASIL, 1998a, p. 40).
Nesse excerto, pode-se captar de forma clara a real política linguística do
Estado Brasileiro: por um lado (a política explícita), é reconhecido o valor da
aprendizagem de línguas estrangeiras na humanização da sociedade (a aprendiza-
gem de qualquer língua estrangeira confronta o aprendiz com a alteridade, ideia
expressa reiteradamente ao longo dos PCNLE e que coaduna com os objetivos da
educação nacional propostos na LDBEN), por outro (a política implícita), afirma-se
o viés utilitário da educação linguística no Brasil. Como procurarei demonstrar
no que segue, essa visão utilitarista aparece de forma implícita e/ou explícita nos
documentos publicados após a LDBEN e os PCNLE (1998a) e tem fundamentado
muitas ações práticas do Estado Brasileiro.
Em 1999, o Ministério da Educação (MEC), por meio da Secretaria de Educa-
ção Média e Tecnológica, publicou os Parâmetros curriculares nacionais – ensino
médio (PCNEM) (BRASIL, 1999), documento que consiste basicamente em uma
35
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
complementação dos PCNLE (1998a) relativamente à educação de nível médio.
Nas oito páginas dedicadas à língua estrangeira (p. 146-153), reafirma-se o caráter
formativo da aprendizagem de línguas e discutem-se as competências e habilidades
a serem desenvolvidas na disciplina língua estrangeira moderna. De forma breve,
o documento retoma a possibilidade de escolha das comunidades (uma vez que
valoriza a diversidade étnica da população), destaca a hegemonia da língua inglesa
no sistema educacional brasileiro, chama a atenção para a crescente importância
geopolítica do espanhol e, reiteradamente, afirma a relação entre a educação lin-
guística e o mercado de trabalho. É importante observar, nesse sentido, que a ideia
de educação para o mercado de trabalho domina a legislação educacional brasileira
relativamente ao ensino médio a partir da década de 1990 e, particularmente, a
partir da publicação da LDBEN. Segundo os PCNEM:
[e]videntemente, é fundamental atentar para a realidade: o Ensino
Médio possuiu, entre suas funções, um compromisso com a educação
para o trabalho. Daí não poder ser ignorado tal contexto, na medida em
que, no Brasil atual, é de domínio público a grande importância que
o inglês e o espanhol têm na vida profissional das pessoas. Torna-se,
pois, imprescindível incorporar as necessidades da realidade ao cur-
rículo escolar de forma a que os alunos tenham acesso, no Ensino
Médio, àqueles conhecimentos que, de forma mais ou menos imediata,
serão exigidos pelo mercado de trabalho. (BRASIL, 1999, p. 149).
Três anos mais tarde, em 2002, a Secretaria de Educação Média e Tecnológica
publicou um conjunto de orientações complementares aos PCNEM, sob o título de
Parâmetros curriculares nacionais + ensino médio (PCN+EM) (BRASIL, 2002).
Dessa vez, foram dedicadas 44 páginas (p. 93-137) à discussão de questões rela-
tivas ao ensino e à aprendizagem de línguas estrangeiras no ensino médio. Já na
introdução da seção dedicada à língua estrangeira moderna, afirma-se que:
[e]sse aprendizado [de língua estrangeira], iniciado no ensino funda-
mental, implica o cumprimento de etapas bem delineadas que, no ensino
médio, culminarão com o domínio de competências e habilidades que
36
A política linguística brasileira para as línguas estrangeiras: confrontando discursos e práticas estatais
permitirão ao aluno utilizar esse conhecimento em múltiplas esferas
de sua vida pessoal, acadêmica e profissional. (BRASIL, 2002, p. 93).
De forma geral, os PCN+EM visam explicitar as bases metodológicas que
devem orientar o ensino de línguas estrangeiras em nível médio, não havendo, em
todo o documento, nenhuma referência a quais línguas devem ser incluídas no cur-
rículo. Ao que parece, a ausência dessa discussão deve-se ao fato de os PCN+EM
caracterizarem-se como uma complementação dos documentos anteriores. Assim,
não seria necessário discutir essa questão, tendo em vista que ela já foi explicitada
nos PCNLE (BRASIL, 1998a). Em consonância com os documentos anteriores, os
PCN+EM mencionam brevemente o caráter formativo da aprendizagem de línguas
proposto pela LDBEN e fazem alusão à relação entre a aprendizagem de línguas
e a diversidade linguística e étnica do país.
Contudo, também em conformidade com os PCNEM, os PCN+EM reafirmam,
embora de forma menos explícita, a relação entre a aprendizagem de línguas estran-
geiras no ensino médio e o trabalho. Como se pode observar no excerto transcrito,
afirma-se que a aprendizagem de línguas estrangeiras terá uma função importante
na vida pessoal, acadêmica e profissional dos egressos do ensino médio. Do pessoal,
passa-se ao acadêmico e chega-se ao profissional. Novamente o objetivo último da
educação linguística é o trabalho.
Seis anos após a publicação dos PCN+EM, a Secretaria de Educação Básica do
MEC Educação editou novas diretrizes para o ensino médio, as Orientações Curricula-
res para o Ensino Médio (Ocem) (BRASIL, 2008). Nesse novo documento, fica mais
evidente a real política linguística do Estado Brasileiro. Uma primeira questão a se
observar é que, pela primeira vez após a publicação da atual LDBEN, um texto oficial
da área de educação aborda o ensino de uma língua estrangeira específica, o espanhol.
No volume das Ocem dedicado à área de “Linguagens, códigos e suas tecnologias”
(Volume 1), há duas seções dedicadas ao ensino e à aprendizagem de línguas estrangei-
ras. A primeira denomina-se “Conhecimentos de línguas estrangeiras” (p. 85-124), e a
37
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
segunda, “Conhecimentos de espanhol” (p. 125-164). A introdução da seção relativa
ao ensino de espanhol dispõe que:
[o] presente texto tem como objetivo o estabelecimento de Orientações
Curriculares Nacionais para o ensino da disciplina Língua Estrangeira
Moderna – Espanhol no ensino médio, em virtude da sanção da Lei
no 11.161 (5/08/2005), que torna obrigatória a oferta da Língua Espa-
nhola, em horário regular, nas escolas públicas e privadas brasileiras
que atuam nesse nível de ensino. A lei também faculta a inclusão do
ensino desse idioma nos currículos plenos da 5a a 8a séries do ensino
fundamental. (BRASIL, 2008, p. 127).
Como exposto nesse excerto, a proposição de orientações curriculares específicas
para o ensino de língua espanhola no ensino médio deve-se à sanção, em 2005, da Lei
nº 11.161, que tornou obrigatória a oferta da disciplina de língua espanhola na rede
oficial de ensino a partir de agosto de 2010 (BRASIL, 2005). A despeito das inter-
pretações e implementações divergentes dessa lei, importa, para a discussão que aqui
empreendo, observar que o Estado Brasileiro, pela primeira vez após a publicação da
LDBEN, implementa oficialmente uma política linguística específica para uma língua
estrangeira. No entanto, é importante notar que a lei torna obrigatório o oferecimento
da disciplina por parte das instituições educacionais, mas não a matrícula por parte
do corpo discente. Tudo leva a crer que esse dispositivo foi implementado de forma
a não ferir os artigos 26 e 36 da LDBEN, segundo os quais, como já apontei, a língua
estrangeira deve integrar a parte diversificada do currículo e a definição das línguas
a serem estudadas fica a cargo das comunidades locais.4
Independentemente desse artifício legal, a publicação da Lei nº 11.161 tornou evi-
dente a existência de pelo menos duas políticas linguísticas no aparelho estatal brasileiro.
A primeira, fundamentalmente democrática, valoriza o plurilinguismo e transfere para a
sociedade (e, em última instância, para o indivíduo) o direito de escolha relativamente
à aprendizagem de língua estrangeira. A segunda, também fundamentalmente demo-
4
Para uma ampla discussão sobre as questões envolvidas na introdução da língua espanhola na escola brasileira,
consultar, entre outros, Fanjul (2010) e Lagares (2013).
38
A política linguística brasileira para as línguas estrangeiras: confrontando discursos e práticas estatais
crática, fomenta a aprendizagem de línguas importantes do ponto de vista econômico
e geopolítico enquanto reforça a ideia de que o indivíduo pode optar entre elas.
Sobre as motivações políticas e econômicas da lei, as autoras das Ocem para
o ensino de espanhol afirmam que:
[m]ais de uma vez o Espanhol esteve presente como disciplina em
nossas escolas, porém essa nunca esteve tão claramente associada
a uma gesto marcado de forma inequívoca por um objetivo cultu-
ral, político e econômico, uma vez que a LDB prevê a possibilidade
de oferta de mais de uma língua estrangeira, sem nenhuma outra
especificação. É fato, portanto, que sobre tal decisão, pesa um certo
desejo brasileiro de estabelecer uma nova relação com os países de
língua espanhola, em especial com aqueles que firmaram o Tratado
do Mercosul. (BRASIL, 2008, p. 127).5
No que se refere à língua inglesa especificamente, seria de se esperar que
as Ocem fizessem referência explícita a essa língua já que, como transparece no
documento, a real política linguística do Estado Brasileiro privilegia as línguas
importantes do ponto de vista econômico e geopolítico, como indica a publicação
da Lei nº 11.161 sobre o ensino de espanhol. Contudo, isso não ocorre. A terceira
seção das Ocem, dedicada aos Conhecimentos de Línguas Estrangeiras, trata, como
o próprio título indica, das diretrizes para o ensino de línguas estrangeiras em geral,
e não somente de inglês (o que está de acordo com a política linguística oficial).
Nesse sentido, à introdução do documento, afirma-se o seguinte:
[l]embramos, ainda, que nos referimos a Línguas Estrangeiras em
quase todo o documento, exceto nos levantamentos que se realizaram
na área de ensino de inglês e cuja função está voltada para o ensino
dessa língua especificamente. Entendemos, assim, que as teorias apre-
sentadas neste documento se aplicam ao ensino de outras Línguas
Estrangeiras no ensino médio. (BRASIL, 2008, p. 87).
5
Sobre esse aspecto especíSobre esse aspecto espec leitura da seção das Ocem dedicada à língua espanhola,
consultar Rajagopalan (2002).
39
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
Considerando-se que esse excerto foi extraído da introdução de um documento
oficial que trata do ensino de línguas estrangeiras (no plural), essa nota explicativa
seria, a princípio, desnecessária. Ao se deparar, como de fato ocorre, com referên-
cias a pesquisas sobre ensino de inglês no Brasil ou com exemplos de atividades
de ensino dessa língua, o leitor do documento prontamente entenderia que o legis-
lador está lançando mão de um exemplo para ilustrar a questão sobre a qual está
discorrendo. Tratar-se-ia, então, de uma explicação redundante? Acredito que não.
Parece-me que essa nota tenta “dissimular” a verdade do documento, qual seja,
o fato de que se trata de orientações curriculares para o ensino de língua inglesa
no ensino médio. Como se pode inferir do excerto apresentado, deve-se aplicar a
discussão posta no documento a outras línguas estrangeiras, quando e se for o caso.
Assim, é importante observar que não há, como ocorre em outros documentos
aqui analisados, nenhuma referência aos critérios a serem utilizados na escolha de
línguas estrangeiras para o currículo. O que justificaria a ausência dessa discussão?
Ela não seria mais necessária? Ao longo das 39 páginas do documento dedicadas às
línguas estrangeiras, há somente duas referências indiretas à questão: na introdução,
afirma-se que “[a]s orientações curriculares para Línguas Estrangeiras tem como
objetivo [...] retomar a reflexão sobre a função educacional do ensino de Línguas
Estrangeiras no ensino médio e ressaltar a importância dessas [...]” (p. 87) e, na
seção dedicada à discussão da função educacional do ensino de línguas estrangeiras
na escola e à noção de cidadania (p. 88-93), destaca-se que “[n]os PCNEM, encon-
tram-se observações sobre o papel educacional do ensino de Línguas Estrangeiras”
(p. 88). Assim, as Ocem atualizam os pressupostos dos documentos anteriores no
que diz respeito aos critérios de seleção de línguas estrangeiras para o currículo
e, ao fazê-lo, reafirmam a política linguística informal do Estado Brasileiro, a
qual, como venho argumentando, ao mesmo tempo em que afirma o valor de uma
educação linguística plurilíngue, fomenta o ensino e a aprendizagem de línguas
economicamente importantes para o mercado de trabalho.
40
A política linguística brasileira para as línguas estrangeiras: confrontando discursos e práticas estatais
Enquanto a análise da legislação educacional brasileira referente ao ensino e à
aprendizagem de línguas estrangeiras revela a existência de uma política linguística
explícita (ou formal) e de outra implícita (ou informal), o exame das práticas estatais
relacionadas à questão linguística torna evidente uma política linguística explícita
(mas não formalizada) que funciona no sentido de fomentar a aprendizagem de
inglês e de espanhol. A seguir, serão discutidas duas dessas práticas: o Exame
Nacional do Ensino Médio (Enem) e o Plano Nacional do Livro Didático (PNLD).
A política linguística brasileira para as
línguas estrangeiras: a(s) prática(s)
A promulgação, em 1996, da atual LDBEN desencadeou profundas transfor-
mações no sistema educacional brasileiro. Entre as muitas mudanças propostas, a
LDBEN determina que a União organize um processo de avaliação do rendimento
escolar para todos os níveis de ensino. Esse sistema de avaliação teria como função
definir as prioridades em termos de investimentos públicos com vistas a melhorar
a qualidade do ensino oferecido à população.
Considerando-se as mudanças no ensino médio, propostas pela LDBEN, o exame
a ser desenvolvido para esse nível de ensino deveria desvinculá-lo do vestibular tradi-
cional (e da concepção de conhecimento e de aprendizagem que até então orientava
a maior parte dos vestibulares brasileiros) e, ao mesmo tempo, flexibilizar os meca-
nismos de acesso ao ensino superior. A partir dessa proposta, o MEC, por meio do
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), instituiu, em 1998, o
Enem. Sobre o conteúdo a ser avaliado no Enem, o documento que define as bases
do exame, denominado Documento Básico (BRASIL, 1998b), afirma que o:
[o] modelo da Matriz contempla a indicação das competências e habi-
lidades gerais próprias do aluno, na fase de desenvolvimento cognitivo
correspondente ao término da escolaridade básica, associadas aos con-
teúdos do ensino fundamental e médio, e considera, como referências
41
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
norteadoras, o texto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB), os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), os textos da
Reforma do Ensino Médio e as Matrizes Curriculares de Referência
para o SAEB. (BRASIL, 1998b, p. 5).
Como se pode observar, propõe-se que o Enem deve avaliar as competências
e habilidades a serem desenvolvidas ao longo do ensino médio, as quais estão
delineadas na legislação relativa a esse nível de ensino. Orientado por essas pre-
missas, o Enem avaliou, nas 12 primeiras edições (de 1998 a 2009), competências
e habilidades relacionadas aos três grandes eixos direcionadores do ensino médio:
“Linguagens, códigos e suas tecnologias”, “Ciências da natureza, matemática e
suas tecnologias” e “Ciências Humanas e suas tecnologias”.
No que se refere, especificamente, ao eixo “Linguagens, códigos e suas tec-
nologias”, as 12 primeiras edições do Enem avaliaram competências e habilidades
relativas aos seguintes componentes curriculares: língua portuguesa, literatura
(brasileira e portuguesa), artes, educação física, tecnologias da informação e
comunicação. Como se pode observar, a disciplina língua estrangeira moderna não
foi avaliada nessas edições do exame. Embora não esteja claro nos documentos
do Enem porque a disciplina foi mantida fora do exame nessas primeiras edições,
uma explicação bastante plausível é o fato de a LDBEN e a legislação comple-
mentar não determinarem qual língua devia ser ensinada na rede oficial de ensino,
pelo menos até a publicação da Lei nº 11.161/2005 sobre o ensino de espanhol.
Contudo, o edital de abertura do Enem 2010 trouxe mudanças nesse sentido,
e a disciplina língua estrangeira moderna foi incluída no exame. Contrariando o
que postula a LDBEN relativamente à aprendizagem de línguas estrangeiras, os
estudantes que participaram da edição 2010 do Enem (e das posteriores) somente
puderam escolher entre duas línguas estrangeiras: inglês e espanhol. O Estado
Brasileiro, em um exame que avalia as competências e habilidades desenvolvidas
ao longo do ensino médio e que funciona como meio de entrada para um número
42
A política linguística brasileira para as línguas estrangeiras: confrontando discursos e práticas estatais
cada vez maior de universidades públicas (um exame de alta relevância, portanto),6
avalia somente aquelas línguas estrangeiras que, como venho argumentando, são
importantes do ponto de vista econômico e geopolítico. No caso da língua espa-
nhola, a avaliação dos candidatos justifica-se, em parte, dada a obrigatoriedade
legal de incluí-la no currículo da rede oficial de ensino a partir da sanção da Lei
nº 11.161/2005. Contudo, isso não ocorre com o inglês, uma vez que, como o exame
dos documentos oficiais revela, o Estado Brasileiro não tem uma política oficial para
essa língua. O que, então, justificaria a inclusão dessa língua específica no Enem a
partir de 2010? Nos editais de abertura das edições 2010 e 2011 do exame, não há
qualquer referência a essa discussão. Parece correto afirmar que a inclusão dessas
duas línguas no Enem reflete a política linguística implícita do Estado Brasileiro,
segundo a qual importa ensinar e aprender inglês e espanhol.
Com relação ao PNLD, pode-se dizer basicamente o mesmo. Criado em 1929,
sob o nome de Instituto Nacional do Livro (INL), o PNLD objetiva, desde a sua
criação, possibilitar o acesso dos alunos da rede pública de ensino a livros didáti-
cos de qualidade e, ao tempo, fomentar o desenvolvimento do mercado editorial
brasileiro de materiais educacionais.
Tradicionalmente, o PNLD contempla aquelas disciplinas que compõem a base
comum do ensino fundamental: língua portuguesa, matemática, ciências, história
e geografia. Todavia, no edital do PNLD 2011, a disciplina de língua estrangeira
moderna foi incluída no programa. Novamente, as duas línguas estrangeiras con-
templadas foram o inglês e o espanhol. Como no Enem, os documentos relativos
ao PNLD 2011 não explicitam quais foram os critérios de seleção utilizados. Nova-
6
Na literatura da área de avaliação de línguas (language testing), distinguem-se três categorias de exames a partir
da relevância das decisões tomadas com base em seus resultados: no-stakes tests (exames de baixa relevância),
low-stakes tests (exames de média relevância) e high-stakes tests (exames de alta relevância). Como aponta
Luxia (2005, p. 142, tradução nossa), “[e]xames de alta relevância são aqueles cujos resultados são usados
para tomar decisões importantes que imediata e diretamente afetam os avaliandos e demais partes interessa-
das” (“High-stakes tests are those whose results are used to make important decisions that immediately and
directly affects the test-takers and other stakeholders”). Sobre o impacto ou efeito retroativo dos exames da
alta relevância na sociedade, consultar, entre outros, Hamp-Lyons (1997), Scaramucci (2004), Wall (1997).
43
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
mente parece não ser necessário justificar uma ação que, com relação ao inglês,
contraria a política linguística oficial do Estado Brasileiro: as comunidades locais
têm o direito de escolher a língua estrangeira a ser ensinada em suas escolas, como
afirma a LDBEN, mas o Estado Brasileiro somente oferece material didático para
as línguas importantes do ponto de vista geopolítico e econômico.
A despeito das possíveis dificuldades práticas de se elaborarem provas e materiais
didáticos para muitas línguas, importa aqui apontar as implicações político-linguísticas de
a União incluir somente o inglês e o espanhol em práticas importantes como o Enem e
o PNLD. Como propõe Shohamy (2006), especificamente em relação aos exames de
línguas, esse tipo de procedimento do Estado envia uma mensagem clara à população
acerca da importância que se deve atribuir às diferentes línguas estrangeiras. Por meio
do Enem e do PNLD, o Estado Brasileiro está legitimando o inglês e o espanhol e, ao
mesmo tempo, retirando a legitimidade de outras línguas.
Considerações finais
Como procurei demonstrar ao longo deste capítulo, o exame da legislação
educacional brasileira e de práticas estatais revela uma política linguística con-
traditória: por um lado, a LDBEN afirma a necessidade de a União valorizar a
diversidade étnica e linguística do país e permitir que a comunidade educacional
escolha a língua estrangeira a ser ensinada na rede oficial de ensino, por outro lado,
o Estado Brasileiro legisla a favor de uma língua específica (o espanhol), tornando
seu ensino obrigatório. A essa situação já conflitante, acrescenta-se uma política
linguística estatal implícita que favorece a língua inglesa.
Como explicar, então, essa política linguística contraditória? Uma primeira pos-
sibilidade seria supor que o Estado Brasileiro está deliberadamente manipulando
a população de forma a perpetuar um estado de coisas dominante relativamente
à aprendizagem de línguas. Entretanto, essa análise perde consistência quando se
considera que diferentes grupos políticos se alternaram no poder desde a sanção da
44
A política linguística brasileira para as línguas estrangeiras: confrontando discursos e práticas estatais
LDBEN, em 1996, sem que isso tenha acarretado mudanças significativas na política
educacional (e linguística). Assim, parece redutor supor que a real política linguística
do Estado Brasileiro reflete o desejo de um grupo sociopolítico específico. Outro
ponto a se considerar, nesse sentido, é que todos os documentos aqui analisados foram
elaborados por comissões compostas por educadores publicamente comprometidos
com a melhoria da educação nacional. Dessa forma, não parece apropriado pensar a
real política linguística brasileira a partir da ação consciente de um agente individual
(ou um grupo social) comprometido com essa ou aquela agenda sociopolítica. Parece
mais adequado supor, como propõe Tollefson (1991), que a legislação e as ações
das autoridades educacionais refletem, na verdade, a política linguística que de fato
vigora na sociedade. Legislação e legisladores estão inscritos na conjuntura histó-
rica da sociedade brasileira contemporânea, e essa, por sua vez, reflete a conjuntura
histórica global no que se refere ao mercado linguístico contemporâneo. Posto isso,
cabe aos educadores e a todos os interessados na formação humanística da população
brasileira discutir se essa é a política linguística que desejamos.
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45
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
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46
A política linguística brasileira para as línguas estrangeiras: confrontando discursos e práticas estatais
RIBEIRO DA SILVA, E. A política linguística brasileira para as línguas estrangeiras: o que
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47
CAPÍTULO 3
Experiências, crenças e
identidades de professores
de línguas em formação
inicial: um olhar a partir de
narrativas orais e visuais
Fabrízia Lúcia da Costa – UEG
Kleber Aparecido da Silva – UnB
Introdução
A arena de formação inicial, em especial o espaço do estágio supervisionado
da Licenciatura em Letras, e de outras licenciaturas, é visto como processo de
uma etapa importante do desenvolvimento profissional do aluno-professor, um
aprendizado situado nas práticas sociais diárias estabelecidas, considerando a visão
holística de fatores como ações, valores, crenças e vivências (GIMENEZ, 1999).
Assim, ao pensar sobre os contornos da formação inicial e compreender o
pressuposto de que as conquistas e transformações sociais permeiam o professor em
sua incansável tarefa de educar, entendemos que as experiências (MICCOLI, 2006,
2007) dos alunos em torno da aprendizagem da língua inglesa e aquelas vivenciadas
com a docência, bem como as crenças (BARCELOS, 2000, 2004, 2007) que os
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
graduandos compartilham sobre a língua estrangeira e o ensino, imbricam-se nos
processos de (re)construção de identidades docentes profissionais (MATEUS 2002;
PIMENTA, LIMA 2012; GIMENEZ, 1997; MOITA LOPES, 2002).
Desse modo, este estudo é motivado pela forma de pensar o estágio supervi-
sionado como momento ímpar de problematizações acerca do processo de ensino
e aprendizagem de inglês. Não que as demais disciplinas componentes da matriz
curricular do Curso de Licenciatura em Letras sejam irrelevantes, mas, no estágio,
pode ser que a formação profissional seja melhor situada, dada suas especificações
decorrentes do contato com a docência na escola-campo, com os planejamentos
de aula, etc., por se tratarem de experiências vivenciadas que são contextuais e
individuais para o aluno-mestre em formação.
A coleta de dados para esta pesquisa ocorreu na turma de 3º ano de Licenciatura
em Letras (inglês/português) de uma universidade pública do estado de Goiás. Tra-
ta-se de uma universidade pública cujos estágios supervisionados ocorrem no início
da segunda metade do curso, totalizando 400 horas (CONSELHO NACIONAL
DE EDUCAÇÃO, 2002).
Neste capítulo, faremos uma análise acerca dos três construtos, tomando as nar-
rativas das histórias de vida dos alunos-professores instrumentos para este estudo,
o qual se apresenta como sendo de caso (YIN, 2005; ANDRÉ, 2005; GIL, 2008),
de abordagem qualitativa (FLICK, 2009) e narrativa (CLANDININ; CONNELLY,
2011), por meio do qual os participantes narram por meio de histórias suas experiên-
cias pessoais, profissionais e sociais. As narrativas visuais (PAIVA, 2008; VIEIRA-
-ABRAHÃO, 2006), ou seja, os “desenhos”, são utilizadas a fim de resgatar as
percepções dos alunos-professores sobre o estágio supervisionado, visto que, para
eles, significou a primeira experiência com a docência.
O estágio supervisionado do currículo do Curso de Licenciatura Plena em
Letras na instituição em estudo contempla dois anos de orientações. O primeiro
ocorre durante o 3º ano do curso, no ensino fundamental II (6º a 9º ano), o segundo,
no 4º e último ano da graduação, quando os graduando realizam seus estágios nas
50
Experiências, crenças e identidades de professores de línguas em formação inicial:
um olhar a partir de narrativas orais e visuais
séries do ensino médio. Acreditando que poderão contribuir para a compreensão
dos fatores elencados nos objetivos dessa pesquisa é que foi feita essa escolha.
Diante de tais perspectivas, esta pesquisa, conduzida no contexto do estágio
supervisionado, visa identificar e analisar as experiências e crenças a respeito do
ensino de inglês dos alunos-professores bem como delinear possíveis construções
identitárias de três alunas de um Curso de Licenciatura Plena em Letras.
O estágio supervisionado
Aprender a ensinar não é algo fácil, mas um processo de complexidade que
não pode ser entendido somente como sinônimo de cursos de formação (MATEUS,
2000). De fato, comum às ações de cada indivíduo, há um conjunto de experiências
pessoais e profissionais do professor que estão disponíveis durante os processos
de planejamento e de ensino. Mateus (2000) explica que, na prática do estágio, os
alunos-professores fazem uma transição para o pensamento pedagógico, pois têm a
possibilidade de observar suas ações a partir da perspectiva do professor, aproprian-
do-se de um novo discurso que lhes permite conceituar o ensino de forma diferente
e que “constitui um elemento de uma aprendizagem que se inicia nos primeiro
anos da vida acadêmica e que não se sabe quando termina” (MATEUS, 2000, p. 3).
É necessário compreender o estágio como um lugar privilegiado em que
se consolidam transformações das práticas sociodiscursivas da/na comunidade
escolar; com vistas às novas possibilidades de ser professor (MATEUS, 2000).
Para Pimenta e Lima (2012), o estágio curricular sempre foi identificado como
parte prática dos cursos de formação de professores, em contraposição à teoria.
As autoras (2012) ainda dirigem uma crítica ao modo como os currículos de
formação são constituídos: desvinculados do campo de atuação dos futuros pro-
fissionais e desconectados da realidade que os determina.
De acordo com Pimenta e Lima (2012, p. 33, grifo nosso), as disciplinas com-
ponentes do currículo encontram-se isoladas entre si, e “nem se pode denominá-las
51
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
teoria, pois são apenas saberes disciplinares em cursos de formação”. As autoras
(2012) argumentam que a profissão professor também é prática, assim como qual-
quer outra profissão, no sentido de que se trata de aprender a fazer “algo” ou realizar
determinada “ação”. Todavia, sugerem um modelo de estágio no qual seja superada
a dicotomia teoria x prática e possibilitada a criação de uma perspectiva de estágio
que melhor explicite o que é teoria e o que é prática, a partir da práxis docente: “uma
atitude investigativa, que envolve a reflexão e a intervenção na vida da escola, dos
professores, dos alunos e da sociedade” (PIMENTA; LIMA, 2012, p. 34).
Nas palavras de Gimenez (2005, p. 5), a grande contribuição trazida para os
cursos de Letras pela Linguística Aplicada “é a maneira como aborda questões de
língua e linguagem, sua preocupação com questões práticas e as visões alternativas
sobre o que seja língua na sociedade”. Para a referida autora, se reconhecermos o
processo de formação de professores como prática social, cultural e historicamente
situada, a formação deve reconhecer o aprendiz-professor e os seus conhecimentos,
orientar esse aprendiz à tomada de decisões e, por ser um projeto político, conduzir
a transformações sociais. Esses pressupostos encaminham a autora a identificar
alguns desafios1 que a formação de professores enfrenta na atualidade.
Tratando-se da questão de teoria versus prática, a Resolução CNE/CP nº 02
(CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 2002) orienta que os cursos de
licenciatura, de graduação plena, cumpram um mínimo de 2.800 horas para os
cursos de formação de professores da educação básica, assim distribuídas:
• 1.800 horas de aulas – conteúdos curriculares de natureza científico-cultural;
• 400 horas ao longo do curso – prática como componente curricular;
• 400 horas a partir do início da segunda metade do curso – estágio curricular
supervisionado;
1
Em seu artigo, Gimenez (2005, p. 2) elenca pelo menos sete desafios da formação de professores: “1. Definição
da base de conhecimento profissional; 2. Relevância das pesquisas para a formação de professores; 3. Abordagem
articuladora da teoria/prática; 4. Impacto e sustentabilidade das propostas resultantes das pesquisas; 5. Relação
das pesquisas com políticas públicas de formação de professores; 6. Identidade profissional dos formadores;
7. Integração das formações inicial e continuada”.
52
Experiências, crenças e identidades de professores de línguas em formação inicial:
um olhar a partir de narrativas orais e visuais
• 200 horas – outras formas de atividades acadêmico-científico-culturais.
Como se nota, as 400 horas de prática são destinadas ao cumprimento das
exigências do estágio obrigatório, que tem início no 3º ano e término no 4º e último
ano da graduação: 200 horas no 3º ano, referentes ao ensino fundamental, e 200
horas, no 4º ano, destinadas ao ensino médio. Considerando a dupla habilitação do
Curso de Letras, metade do estágio está reservada ao cumprimento das atividades
em língua portuguesa, e metade para a língua inglesa.
Quanto à carga horária a ser cumprida, esta se subdivide em atividades de
orientação, planejamento, observação de aulas e regência na escola-campo. O está-
gio docente de inglês do 3º ano é composto da etapa de observação (cinco aulas de
inglês) dos profissionais titulares das escolas-campo e, posteriormente, da etapa de
regência (15 aulas de inglês). As 55 horas de ensino que integram o estágio de língua
inglesa são dedicadas, em sala de aula, para a discussão de teorias. Todavia, por
conta do tecnicismo e da tradição das normatizações do estágio, esse tempo é ocu-
pado com atividades que servem para o cumprimento de trabalhos que compõem o
portfólio: apresentação de projetos de oficina, miniaulas, produção de relatórios, etc.
O Projeto Político Pedagógico (PPP, 2009) é uma elaboração conjunta dos
multicampi da Universidade Estadual de Goiás, que visa melhorar a educação no
estado, atuando em aproximadamente 42 localidades diferentes, das quais 15 contam
com o Curso de Letras, visando se adaptar às demandas da sociedade.
Com o término da formação, o aluno do Curso de Letras está apto a trabalhar
as línguas materna e estrangeira e suas literaturas com segurança, pois foi formado
para ter um bom desempenho em sua função como docente da área.
As narrativas orais e visuais
Ao considerar as palavras de Nóvoa (1992 apud BUENO, 2002) de que, a partir
dos anos 1980, houve um direcionamento dos estudos sobre formação docente, com o
aparecimento de um grande número de obras e estudos sobre a vida dos professores, as
53
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
carreiras e os percursos profissionais, as autobiografias docentes ou o desenvolvimento
pessoal dos professores, é que optamos pela escolha desse instrumento/abordagem,
uma vez que este estudo se centra na questão das identidades docentes em formação.
Gimenez (1997) explica que as narrativas permitem aos indivíduos captar
os significados das experiências anteriores, revelar episódios significativos que
funcionam como pano de fundo para ações em sala de aula. Além disso, a autora
pontua que o uso de narrativas por estudiosos procura melhor entender o processo
de socialização dos professores e sua construção identitária.
O mundo em que vivemos pode ser entendido de forma narrativa, uma vez que a
vida é exercida por meio de fragmentos narrativos, estabelecidos em tempo e espaço
históricos (CLANDININ; CONNELLY, 2011). Desse modo, a melhor maneira de
compreender uma experiência é por meio da narrativa, pois o pensamento narrativo
se constitui como forma-chave para expressão e reflexão sobre a experiência.
Barcelos (2010) afirma que o interesse por narrativas e histórias como instru-
mento e abordagem da análise do processo de ensino e aprendizagem de línguas vem
crescendo tanto no Brasil quanto nos demais países do mundo. A autora refere que as
qualidades históricas e o potencial de caracterizar as experiências humanas, inerentes
à narrativa, fazem com que a pesquisa narrativa esteja presente em vários campos, tais
como teoria literária, história, antropologia, teatro, artes, filmes, teologia, entre outros.
Segundo Barcelos (2010), esse interesse é ainda mais recente na Linguística
Aplicada e se encontra dentro de um movimento ainda maior, cujo foco está nas
experiências e narrativas de aprendizes e professores de línguas.
Barcelos (2010, p. 147) reconhece “que, de certa forma, os estudos de cren-
ças, focalizam as experiências no processo de aprender línguas”. Para Clandinin e
Connelly (2000 apud BARCELOS, 2010, p. 148), “o termo ‘experiência’ é chave na
pesquisa narrativa”. Os autores têm sua base na filosofia, em estudos de John Dewey,
entendendo educação e estudos educacionais como formas de experiência, especifica-
mente em seus conceitos de situação, continuidade e interação (BARCELOS, 2010).
54
Experiências, crenças e identidades de professores de línguas em formação inicial:
um olhar a partir de narrativas orais e visuais
Da mesma forma, Clandinin e Connely (1990) veem o ensino como uma expressão
da biografia, das histórias pessoais, ou seja, como uma narrativa em ação. Para Ortenzi,
Mateus e Reis (2002), ensinar e aprender são ações altamente pessoais e relacionadas
com a identidade do professor e com sua história de vida. Com isso, as autoras anali-
sam que há, no âmbito da formação de professores, um espaço se abrindo para que as
experiências sejam compartilhadas e analisadas, dando voz às histórias dos docentes
para que sejam compreendidos seus pensamentos, seu conhecimentos e suas ações.
Escolhemos esse instrumento de coleta de dados por entender que ela possi-
bilita conhecer os significados construídos ao longo das experiências humanas dos
participantes, alunos-mestres, a fim de compreender escolhas, marcos, expectati-
vas, lutas, sucessos e fracassos, em seus respectivos contextos e experiências na
formação de professores. As narrativas foram gravadas (formato oral) devido ao
entendimento de que os participantes ficariam, assim, mais espontâneos ao narrar
suas experiências, falar de suas crenças e revelar traços identitários, contribuindo
mais fortemente para esta pesquisa.
Por sua vez, as narrativas visuais (PAIVA, 2008; OLIVEIRA, 2010) foram
coletadas a partir de uma indagação aos participantes da pesquisa, com vistas a
representarem, por meio de um desenho, suas concepções de ensino e aprendizagem,
no caso deste estudo, no âmbito do estágio supervisionado. As produções visuais
foram feitas pelos alunos com alguns dias de antecedência ao das gravações em
áudio, que foram posteriormente transcritas para comporem os dados deste trabalho.
As narrativas orais e as explicações das narrativas visuais foram gravadas em uma
sala de aula da universidade pública em estudo, no dia 27 de novembro de 2013.
Algumas considerações sobre os construtos:
experiências, crenças e identidades profissionais
A investigação do ensino e aprendizagem de línguas baseado nos pressupostos
das experiências justifica-se por sua natureza sociocultural. Isso significa dizer que
55
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
uma reflexão sobre as experiências permite-nos pensar, por meio da linguagem, em
ações para diferentes contextos. Tratando-se da formação inicial, as experiências
se correlacionam com as interações vivenciadas nas práticas sociais anteriores e
concomitantes à graduação e ao estágio supervisionado, em que presente, passado
e futuro se interconectam a fim de gerar novas experiências e significações de vida.
Vieira-Abrahão (2004, p. 132) afirma que o conhecimento experiencial do
professor vem sendo foco de estudiosos da área, tendo como premissa a idade que
o professor não é “mais visto como uma ‘tábua rasa’ que pode ser simplesmente
‘treinado’ para atingir comportamentos desejados, como ocorria quando ainda
reinava uma perspectiva positivista de formação de professores”. Além disso, no
contexto da formação pré-serviço nos Cursos de Letras, o aluno-professor traz
consigo uma experiência rica como aprendiz, entre outras experiências de vida.
Desse modo, a autora pontua a necessidade de abrir espaço para a reflexão sobre
esses aspectos para que as experiências sejam explicitadas e sua influência sobre
o próprio desenvolvimento do aluno seja notória.
As experiências ajudam-nos a compreender a natureza das ações e das cons-
truções e desconstruções de crenças e identidades docentes uma vez que, por meio
das interações, estamos constantemente a incutir valores de experiências anteriores
para a modificação de experiências futuras. Essas adaptações encontram-se teori-
zadas no princípio da continuidade, proposto por Dewey (1938), segundo o qual
sujeitos em um dado contexto interagem entre si viabilizando o surgimento de
novas experiências em situações específicas.
As experiências aliadas à pessoalidade do indivíduo, ao seu meio e contexto
culturalmente demarcado e complexo, à linguagem, condição inerente às interações
sociais, são ímpares nas abordagens biográficas de cada aluno-professor na confi-
guração deste estudo. Torna-se, portanto, imprescindível pensar as experiências a
partir das narrativas de cada participante, por evidenciarem, além da perspectiva
individual localizada em contexto, outras experiências relacionais em constante
interação, corroborando com Clandinin e Connelly (2011), os quais defendem que
56
Experiências, crenças e identidades de professores de línguas em formação inicial:
um olhar a partir de narrativas orais e visuais
o mundo em que vivemos pode ser compreendido de forma narrativa com base em
fragmentos narrativos estabelecidos em tempo e espaço históricos.
Ao pesquisar experiências de professores no ensino de inglês, Miccoli (2007)
analisou e classificou as experiências, classificando-as em duas categorias, a saber:
experiências diretas e experiências indireta. Propôs, ainda, outras subcategorias
para cada divisão. As experiências diretas são provenientes das ações propostas
pelo professor em sala de aula. De outro modo, as experiências indiretas têm sua
origem fora do contexto da sala de aula.
As experiências diretas dividem-se em três categorias: i) experiências pedagó-
gicas, que se referem aos relatos de tomadas de decisões sobre o ensino de língua
inglesa em sala de aula; ii) experiências sociais, aquelas construídas via interação com
os alunos em sala de aula; e iii) experiências afetivas, aquelas que agregam sentimen-
tos aflorados em sala de aula, seja por parte dos alunos, seja por parte do professor.
Por sua vez, as experiências indiretas repartem-se em duas categorias: i) expe-
riências contextuais, aquelas que reúnem relatos sobre o papel da língua inglesa na
sociedade, sobre a instituição onde o professor lecionava ou sobre a particularidade do
lugar onde se exercia a prática, no caso, o ambiente em sala de aula; ii) experiências
conceptuais, aquelas que se referem a teorias ou crenças oriundas da prática, da forma-
ção ou das experiências anteriores do professor como ex-estudante (MICCOLI, 2007).
O construto experiências de ensino, nesta pesquisa, faz referência às experiên-
cias observadas durante a tarefa de ensinar relacionadas ao estágio supervisionado,
relatadas nas narrativas orais e visuais, considerando o contexto educacional, social
e cultural em que ocorrem. Ademais, as informações indicativas de experiências
vivenciadas anteriormente também serão descritas.
O termo “crenças”, na Linguística Aplicada, não possui uma definição uniforme
(PAJARES, 1992, BARCELOS, 2004), e a sua utilização ocorre, muitas vezes, a
partir de vários significados que o termo apresenta, como, por exemplo: “[...] atitu-
des, valores, julgamentos, axiomas, opiniões, ideologias, percepções, concepções,
57
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
sistemas conceituais, preconceitos, disposições, teorias implícitas, teorias explícitas,
teorias pessoais, processos mentais, estratégias de ação [...] (PAJARES, 1992, p. 309).
Para Silva (2005), as crenças podem ser temporárias e são resultantes de expe-
riências de vida diversas que professores, alunos ou terceiros vivenciam. Em suas
palavras, crenças são:
Ideias ou conjunto de ideias para as quais apresentamos graus distintos
de adesão (conjecturas, ideias relativamente estáveis, convicção e fé).
As crenças na teoria de ensino e aprendizagem de línguas são essas
ideias que tanto alunos, professores e terceiros têm a respeito dos
processos de ensino/aprendizagem de línguas e que se (re)constroem
neles mediante as suas próprias experiências de vida e que se mantêm
por um certo período de tempo. (SILVA, 2005, p. 77).
Assim, crenças referem-se a impressões que professores e alunos têm sobre si e
seus pares e em relação um ao outro, dentro de um determinado contexto de atuação
real ou dentro de um contexto imaginário, que ainda não fez parte de suas experiências
pessoais. Tecendo uma relação entre as crenças e o método biográfico, Gimenez (1994,
p. 291) sugere que “[c]renças e biografias deveriam estar no núcleo de programas de
curso que almejam valorizar o passado do aprendiz e não desejam adotar uma perspec-
tiva de treinamento, no sentido de prescrever teorias externas aos professores”, uma vez
que possibilitam a (re)criação de experiências e modos de ser professor.
Os estudos sobre crenças na arena da formação inicial e continuada de professores
têm favorecido o mapeamento de aspectos decisórios (e que, portanto, merecem aten-
ção) para o desenvolvimento dos alunos-professores. Para Barcelos (2004), as crenças
têm sido um componente-chave nesse processo, capaz de influenciar professores e
alunos, no que realizam, fazem e sentem em relação ao ato de ensinar ou aprender
línguas. Nesse sentido, a investigação das crenças de ensino e a questão identitária irão
reverberar nas análises discutidas neste capítulo a fim de evidenciar a relação desses
dois construtos em um contexto específico de formação inicial do Curso de Letras.
Quanto às identidades docentes, optamos por considerar o paradigma pós-mo-
derno, com a finalidade de melhor compreender o processo de construção identitária.
58
Experiências, crenças e identidades de professores de línguas em formação inicial:
um olhar a partir de narrativas orais e visuais
No que tange à formação de professores, é cabível assegurar que consiste em um
processo de formação de identidades, uma vez que os atores nela inseridos estão
em interação e negociação de sentidos sobre o que é ensinar e ser professor.
Conforme Hall (2003), o indivíduo passa a exercer identidades variadas em dife-
rentes momentos, e carregamos, no nosso interior, identidades contraditórias, de tal
modo que nossas identidades estão sempre em deslocamento. Em uma era de mudanças
globais significativas, em que estruturas tradicionais de pertencimento passam a ser
questionadas, podemos dizer que as identidades se encontram fragmentadas e em crise
(HALL, 2003). Assim, não é mais possível falar de identidades fixas, mas provisórias,
variáveis e problemáticas. Trata-se, então, de uma era de pluralização das identidades.
Desse modo, à medida que os elementos de significação e exposição cultural
se propagam, somos colocados frente a uma multiplicidade de identidades, com
cada uma das quais seria possível nos identificar. De acordo com Hall (2003, p. 19),
“identidades são, assim, pontos de apego temporário que certas práticas discursivas
constroem para nós”. Tendo em vista o exposto, neste trabalho, adotamos a essa
concepção pós-moderna de identidade por acreditar que é possível compreender e
relacionar o processo de ensino e aprendizagem a partir desse paradigma.
Para Telles (2004), os sujeitos se constróem a partir de várias marcas e eventos
que são pessoais, vivências e experiências moldadas com o tempo e o espaço de
cada envolvido no processo:
[a] identidade profissional [...] leva em conta traços muito particulares
da experiência pessoal de cada participante: sua história de vida, suas
memórias e os eventos marcantes de suas vidas Isto é, não há uma
única marca ou traço de vida que está sendo considerado como a “ver-
dade” do ser-professor, de modo a constituir sua identidade profissional.
Ao contrário, tal identidade é múltipla, diferenciada e dinâmica. Ela se
produz em contextos de situação de aprendizagem (dentro ou fora da
escola, da sala de aula). Dependerá, portanto, de algumas referências
universais, como a definição de contexto de aprendizagem, questões de
gênero, etc., mas não se reduz a elas. (TELLES, 2004, p. 3).
59
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
Então, em relação à construção social da identidade do professor, podemos
dizer que se dá mediada pela interação social, por meio de experiências vivenciadas
pelos indivíduos, de acordo com o ensino que recebemos, com aquilo que pen-
samos e sentimos e com as experiências decorrentes daquilo que nosso contexto
nos propicia. A partir disso, é possível pensar na formação do professor com base
nas experiências com o ensino, com a língua inglesa em específico, com nossas
histórias de vida, com as interações diversas entre alunos, professores, gestores,
leis, sociedade, escolas, entre outras.
Procuramos compreender que as experiências, as crenças e as identidades são
fenômenos diretamente imbricados, correlacionados e dinâmicos por serem entendidos
como processos sociais, contextuais e sociodiscursivamente construídos via linguagem.
O movimento de diferentes experiências, crenças e identidades em sala de aula
torna-se essencial no interior de práticas discursivas, já que são processos dinâmi-
cos. O estágio é, pois, o lugar onde esses elementos constitutivos precisam ser (re)
construídos/(re)significados a partir do professor formador e das práticas desen-
volvidas tanto no ambiente/contexto acadêmico quanto fora dele, já que existem
muitas identidades em jogo, marcadas por relações de diferenças e semelhanças.
Quem são os alunos participantes? Que histórias contam?
O movimento das experiências e das crenças e sua
influência na construção de identidades profissionais
Na turma do 3º ano do Curso de Licenciatura em Letras, havia, ao todo, 25
alunos matriculados, supervisionados por duas professoras formadoras. Ao todo,
a pesquisa contou com nove participantes, todas do gênero feminino, com idade
entre 19 e 47 anos. Neste capítulo, escolhemos três delas para análise. No quadro
a seguir, constam informações sobre a idade e a atual profissão das participantes
do estudo, representadas por pseudônimos.
60
Experiências, crenças e identidades de professores de línguas em formação inicial:
um olhar a partir de narrativas orais e visuais
Tabela 1: Perfil das participantes do estudo2
Participantes Idade Profissão
Ana Júlia 19 Estudante
Danila 37 Estudante
Sofia 30 Atendente comercial
Fonte: Elaborada pelos autores.
As narrativas orais das participantes trazem à tona informações bastante sig-
nificativas para a compreensão das suas identidades profissionais. Na condição de
observadoras, relataram experiências informais3 que, sem dúvida, corroboram a
construção das suas identidades docentes.
Tratando da influência de professores na construção docente, Ana Júlia res-
gata histórias de uma professora do ensino médio que, por meio do exemplo dado,
condicionou experiências decisivas e marcantes em sua vida.
[1] É, ser professora de língua inglesa, EU comecei a pensar MAIS
no ensino médio quando eu comecei a, pensar como que eu, qual
seria a profissão que eu queria (+) e eu sempre fui apaixonada pela
língua inglesa, então foi no ensino médio que eu tive mais a certeza
que eu queria ser professora de língua inglesa. E também um pouco,
pela minha professora que eu tive no ensino médio, eu aprendi muita
coisa com ela, [...] Então, eu apaixonei pela língua inglesa, [...] e ela
mostrava como é importante a língua inglesa, como É, é fantástico a
gente estudar a língua inglesa, então foi por isso. [...] eu acho muito
linda a língua inglesa. (Ana Júlia – narrativa oral – 27/11/2013).4
No relato de Ana Júlia [1], é notória a influência da professora de inglês na
etapa escolar do ensino médio para a sua motivação pela docência, uma vez que o
2
As informações do perfil das participantes do estudo foram extraídos de um questionário socioeconômico,
respondido pelas participantes ao início da pesquisa.
3
Referimos às experiências informais, aquelas oriundas do período anterior ao curso de licenciatura, conforme
Oliveira (2013).
4
As convenções de transcrição foram feitas com base em Marcuschi (1991).
61
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
“encantamento” pela língua ela já tinha. Nas palavras de Ana Júlia [1], a professora
a ajudou muito a aprender inglês, algo pelo qual Ana Júlia já demonstrava grande
afinidade e interesse. A esse respeito, concordamos com Conceição (2005) quando
aponta que as experiências de sala de aula podem influenciar crenças e ações futuras
dos alunos e dos professores.
Como podemos notar, a crença evidenciada no relato transcrito é de que a lín-
gua inglesa é linda e que saber a língua inglesa é algo “fantástico” e “importante”.
Essa crença é fortemente evidenciada quando Ana Júlia afirma “paixão” pela língua,
o que parece ter gerado um incentivo e um gosto pelo inglês a ponto de a participante
querer seguir carreira como professora de línguas. Esse gosto pela língua inglesa
também foi ressaltado por Danila em sua narrativa oral: “desde o ensino médio eu
já gostava de inglês, é a matéria que eu mais tinha mais afinidade”. Por outro lado,
Sofia ressalta fatos de sua infância e o gosto pela docência já nessa época, marcada
para si pelo sofrimento e pela pobreza.
[2] Eu estudava * fundamental, É (+) por falta mesmo às vezes de uma
questão social, É, os alunos sempre tinham os melhores materiais, sem-
pre tinham as melhores bolsinhas, sempre tinha tudo, e eu lembro que
a minha mãe, É, ELA (+) ela lavava roupa para os outros pra cuidar da
gente. [...] Então assim, eu nunca perdi a vontade de estudar, eu sempre
estudei, sempre fui uma boa aluna embora conversasse de mais, mas
terminava a tarefa primeiro, Aí, (*) atazanava as outras pessoas, mas
sempre estudei, sempre, sempre tipo assim uma motivação própria,
porque minha mãe é analfabeta, então, eu sempre cresci com minha
mãe tendo o sonho de saber ler pra ler a bíblia/ ((unrum))/ sempre!
Então assim, eu pensava assim, gente quando eu crescer eu quero ser
professora, quero ser professora. (Sofia – narrativa oral – 27/11/2013).
Nesse relato, Sofia resgata histórias de sua infância. Para ela, o fato de sua mãe
ser analfabeta e precisar lavar roupas para conseguir dinheiro para seu sustento foi
marcante em sua escolha profissional. Superar aquela situação a levava a pensar sobre
o futuro, sobre as ações que ela promoveria, por meio dos estudos, a fim de tornar-se
vencedora. Sofia afirma que “nunca perdia a vontade de estudar”, mesmo não tendo os
62
Experiências, crenças e identidades de professores de línguas em formação inicial:
um olhar a partir de narrativas orais e visuais
melhores materiais escolares. Esses acontecimentos marcaram a vida de Sofia, e, ao
relatar sobre isso, ela deixa entrever a crença de que a educação possui um poder de
transformação social e de que o saber pode ser um caminho seguro para se percorrer
quando a pobreza é extrema e as dificuldades de toda ordem surgem.
Pelo prisma das experiências diretas e indiretas recorrentes em sua vida e hoje em
formação profissional, nota-se uma história de investimentos, guiada pela crença de
que a educação é a mola propulsora das grandes transformações sociais visualizadas
em sua vida pessoal, profissional e social. A seguir, confirmamos alguns traços identi-
tários de Sofia, engajada em princípios éticos e políticos em prol de um futuro melhor.
Figura 1: Desenho de Sofia
Fonte: Acervo pessoal dos autores.
A seguir, vejamos a explicação do desenho de Sofia:
ENTÃO, eu desenhei duas plaquinhas, como se fossem É (+) como
se fossem dois símbolos. Numa placa eu escrevi ‘futuro promissor’,
em outra (*), em outra placa eu escrevi ‘educação com qualidade’.
Na placa ‘futuro promissor’, EU, eu acredito que é o que eu vou
lutar PRA TER no futuro, É, ser uma profissional futuramente que
vá contribuir. E, a ‘educação com qualidade’ é a meta que eu quero
consegui para passar para os meus alunos. Ai se eu pegar, se eu juntar
o futuro promissor MAIS a educação com qualidade, ela vai resultar
no desenho que eu fiz, que é uma SALA com meu nome, e NA frente
63
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
da sala eu desenhei várias, vários bonequinhos em fila indiana e na
(*), na placa, na (*), na porta da sala tá escrito ‘sala dezesseis, tia Lili’,
que é o que eu realmente quero.
A concepção de estágio supervisionado representado e contado por Sofia, por
meio do desenho e de sua explicação, sinaliza sua convicção acerca da sua futura
projeção profissional, de ser professora de crianças, com a importante missão de
ser formadora, a fim de contribuir positivamente para a educação de pessoas. Além
disso, Sofia crê que, devido à sua profissão, trará orgulho para seus filhos, ou seja,
a profissão escolhida outorga-lhe legitimação social e contentamento.
Retomando o prisma das experiências informais, as alunas-professoras Ana
Júlia e Danila retomam experiências vividas significativas, e é interessante perceber
os traços reflexivos e emotivos que as participantes produzem ao contar as suas
histórias, porque são conjugações pessoais e íntimas de cada uma delas. Isso corro-
bora a afirmação de Clandinin e Connelly (1990) de que o ensino é uma expressão
da biografia e das histórias pessoais, ou seja, uma narrativa em ação.
As três alunas-professoras pesquisadas tiveram suas experiências com a docên-
cia após o ingresso na universidade. Danila, por exemplo, quando foi cumprir as horas
de observação na escola-campo, recebeu um convite para substituir uma professora.
As demais tiveram seu primeiro contato com a sala de aula no período de regência do
estágio no ensino fundamental. Danila, em sua narrativa, afirma que, quando recebeu o
convite para a substituição, logo se organizou e tratou de providenciar os documentos que,
há algum tempo, estavam na subsecretraria para o caso de precisarem de uma professora:
[3] Ai como eu estava assim, precisando TRABALHAR, ansiosa com
muita COISA e precisando de dinheiro/ ((TAMBÉM))/ [...] tinha já
guardado meus documentos lá na subsecretaria (+) ai eu falei pra ela,
o que ela precisasse ela poderia contar comigo (+) ela tinha arrumado
outra professora, na qual não deu certo (+) ai ela me ligou no dia já,
(*) “ você pode vir, nos ajudar aqui?”, eu falei “na hora! Eu só vô
arrumar a mamadeira da minha menina e já estou correndo pr'aí”,
(Danila – narrativa oral – 27/11/2013),
64
Experiências, crenças e identidades de professores de línguas em formação inicial:
um olhar a partir de narrativas orais e visuais
Nota-se, pelo depoimento de Danila, que ela estava disposta a assumir as aulas
mesmo com a falta de experiência e cuidando de sua filha ainda pequena, pois via
na proposta uma oportunidade de conseguir dinheiro e de se engajar numa carreira.
Danila relata que não foi fácil quando resolveu ingressar em um curso superior,
mas tinha convicção de que seria uma possibilidade de projeção profissional que
ela, até então, não havia tido:
[4] Deus encaminhou tudo (+) porque eu já tinha dezesseis anos sem
estudar, já estava parada há dezesseis anos. Foi uma batalha que ai,
estudar sozinha em casa, com filhos, marido, cuidar de casa, e ainda
tentar estudar não é fácil.[...] então, eu era VENDEDORA de, de
algumas lojas lá em Goiânia, Fujioca, Fujifoto, (+) ai aqui eu não
consegui o serviço, porque eu não queria deixá minhas meninas em
casa ou em CRECHE, que, eu achava muito RUIM, ai eu fiquei desem-
pregada um bom tempo aqui Ai eu comecei a vender salada de frutas
na RUA, vendi por um ano e MEIO, ai eu comecei a estudar aqui na
faculdade né? ai ficou muito cansado eu trabalhar, estudar, em casa/ ((e
a família?))/ isso! AI, COM, no final do primeiro (*), do, TERCERO
BIMESTRE,(do primeiro ano) eu não estava conseguindo conciliar
tudo! Ai eu falai pro meu marido, eu vou parar de trabalhar, você vai se
virando com as contas (+) ai ele deu conta de tudo GRAÇAS à Deus.
((e você ficou por conta da, da faculdade?))/ da casa e da faculdade.
Foi onde eu peguei mais firme e fui, tentando aprender cada vez mais.
(Danila – narrativa oral – 27/11/2013).
As experiências de Danila são, sem dúvida, de luta e superação. Depois de casada,
com filhos, há 16 anos longe da escola e desempregada, decidiu, por incentivo de
uma amiga, prestar o vestibular. Além disso, ela exercia diferentes papéis sociais,
sendo dona de casa, mãe, esposa, vendedora, etc., e agora decide ir em busca de
uma formação docente na projeção de uma nova construção identitária profissional.
Nas narrativas orais, as participantes também relataram a importância do curso
para a construção de novos conhecimentos vinculados à docência. Ana Júlia, por
exemplo, julga “importante” e decisivo o período do estágio para a sua carreira:
65
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
[5] O que eu acho mais importante é o estágio, PORQUE a gente vê
como que é REALMENTE ser professor, quais são os desafios mesmo
que o professor enfrenta, porque quando a gente tá estudando aqui, tudo
na teoria, a gente pensa TANTA coisa que é, (*) chega LÁ, você, você
planeja alguma coisa, chega, vai fazer o quê você planejou e pronto,
deu certo. Então no estágio a gente, na prática a gente vê, que não é
totalmente como na teoria, mas é muito gratificante quando a gente tá lá,
(*) assim a gente passa momentos difíceis, os que eu acho mais difícil
é quando, há a falta de respeito dos alunos com o professor, o que a
gente enfrenta muito hoje né? (Ana Júlia – narrativa oral – 27/11/2011).
O estágio, visto como um momento ímpar para a compreensão de incertezas
da prática pedagógica relacionadas à teoria e à prática e dos problemas que podem
surgir na interação com os alunos, é essencial. Diante disso, podemos reconhecer
que o desenvolvimento profissional, a partir da instrumentalização técnica, e o
conhecimento científico não são suficientes para o entendimento das complexidades
que surgem no exercício da profissão, sendo necessária a prática reflexiva.
Gimenez (1997) afirma que, por um longo período, a educação de professores
baseava-se no pressuposto de que seria necessário moldar comportamentos de
futuros profissionais de acordo com as opções metodológicas vigentes, modelos
que enfatizam o “treinamento”. Porém, em estudos mais recentes, nota-se que
o “método” deixou de ser um conceito útil, pois raramente professores seguem
métodos pré-produzidos, ao invés disso, desenvolvem uma teoria pessoal de
ensino-aprendizagem considerando que o ensino é uma atividade cognitiva e repleta
de significados (GIMENEZ, 1997).
Liberali (2012) concebe que a formação de educadores nos remete a processos como
o relacionamento teoria-prática e a construção de reflexões acerca de teorias de ensino-
-aprendizagem, do papel do coordenador e do professor e da formação cidadã. Quanto a
isso, Contreras (2002) afirma que o processo de reflexão crítica envolve a colaboração.
Contudo, o estágio também pode ser compreendido como gerador de receios,
medos e sofrimentos. Como já dito, Mateus (2000) salienta que: aprender a ensinar
não é algo fácil, mas um processo de complexidade que não pode ser entendido
somente como sinônimo de cursos de formação. Nesse sentido, as alunas relatam
66
Experiências, crenças e identidades de professores de línguas em formação inicial:
um olhar a partir de narrativas orais e visuais
que as experiências de estágio geraram um desconforto tamanho que pensaram que
não conseguiriam efetivar a sua prática:
[6] Então assim, no início do estágio quando, É, a gente vai pra sala
de aula, a gente vai cheio de insegurança, né? Com medo dos alunos
rejeitarem, É, saber como que tá sendo o ENSINO, saber como que
aqueles alunos convivem em sala de aula, mas, o estágio PRA MIM,
foi assim, eu falo que foi a melhor parte, foi a comprovação REAL-
MENTE do que eu quero. Então o estágio pra mim, se perguntar pra
mim “o quê que é o estágio?”, é a confirmação de que REALMENTE
EU vou ser professora. (Sofia – narrativa oral – 27/11/2013).
[7] Olha (+) eu não, não tive, não tenho ainda, todo o domínio de
conteúdo (+) cada dia eu aprendo cada vez mais (+) eu faço o curso de
inglês fora, E estudo em casa também, que num dá pra parar, a gente
tem que tá sempre lendo, sempre fazendo, ouvindo música em inglês
e (+) e AI, as experiências devido a minha falta de EXPERIÊNCIA,
eu tive muitos momentos ruins, de assim, eu não consegui dominar
a sala/ ((indisciplina?))/ isso! Porque eu não tinha total domínio do
conteúdo, então acontecia. (Danila – narrativa oral – 27/11/2014).
Para Sofia, a experiência com o estágio, mesmo gerando certa insegurança,
serviu para que obtivesse a certeza de que ser professora era o que ela realmente
queria. A esse respeito, concordamos com Tardif (2012), para o qual o estágio é
um momento essencial durante a formação por propiciar sentimentos de angústia
e incerteza em relação à profissão.
No relato de Danila, também é possível perceber as crenças sobre ensino e apren-
dizagem de línguas. Uma vez que confessa ter dificuldades com o conteúdo, ela não se
acomoda e acredita que ouvir música é um excelente passo para se aprender a pronúncia
da língua inglesa. Para a participante, o estudo incansável de leitura e de músicas são
caminhos que a ajudarão a contornar o problema da indisciplina dos alunos.
Em relação às experiências das alunas com a docência no estágio de regência,
relataram, em sua maioria, que não foi uma experiência fácil, pois os alunos eram
desmotivados e não gostavam das aulas de língua inglesa. Para Ana Júlia, esse foi
um dos momentos em que ela quase pensou em desistir:
67
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
[8] É muito engraçado que a gente pegou, eu e minha colega a gente
pegou duas turmas totalmente diferentes. Uma turma que tinha pou-
cos alunos, alunos interessados, e uma turma LOTADA com, nossa é
raro os alunos que se interessavam pela língua, e eu ficava meditando
muito quando eles falavam que “pra quê estudar língua inglesa, eu
num vô usa isso mesmo, eu num quero saí do país”. Então, nessa turma
lotada eu passei experiências, a maioria ruins, que a gente até pensou
“não, eu não quero ser professora” (+) “não quero, tenho certeza/ ((e
como que você reagiu, diante desse DEPOIMENTO deles? (*))), os
alunos disseram não querer estudar a língua, porque eles não iam
viajar! (*)/ ((como que foi sua reação no momento da aula?))a gente
tentava conversando mesmo, conscientizando eles/ ((de que forma?))/
da importância da língua inglesa importância))/ isso! da importância
a língua inglesa, QUE, nada que a gente estuda num vai ficar, num
vai ter valia, sabe? A gente ficava tentando conscientizar eles assim.
(Ana Júlia – narrativa oral – 27/11/2013).
O fator que gerou essa angústia em Ana Júlia foi a desmotivação dos alunos
em relação ao inglês. Nota-se, pelos relato, que o contexto público de ensino em
que estava inserida se caracteriza por uma grande quantidade de alunos, os quais,
em sua maioria, não têm interesse em aprender a língua inglesa e, muitas vezes,
sequer acreditam que a aprendizagem do idioma lhes traria benefícios.
É interessante notar que a aluna-professora se incomoda com esse discurso
com o qual se deparou em seu estágio. Então, decidiu conscientizar os alunos sobre
a importância de estudar a língua inglesa na atualidade. A partir disso, podemos
verificar que, além de repassar o conteúdo, ela preocupou-se com a formação do
aluno, o que evidencia a sua ânsia por ressignificar/desconstruir as crenças negativas
enraizadas no contexto em que atua.
Nesse bojo, é imprescindível compreender o estágio como lugar privilegiado
em que se consolidam transformações das práticas sociodiscursivas da/na comuni-
dade escolar com vistas a construir novas possibilidades de ser professor (MATEUS,
2012). Esta experiência vivenciada por Ana Júlia pode ser compreendida como um
momento de reflexão que contribuiu para sua formação como professora. Analisando
sua narrativa visual e a respectiva explicação desta, podemos perceber um aglome-
rado de crenças e projeções identitárias em conflito com as experiências vividas:
68
Experiências, crenças e identidades de professores de línguas em formação inicial:
um olhar a partir de narrativas orais e visuais
Figura 2: Desenho de Ana Júlia
Fonte: Acervo pessoal dos autores.
A seguir, vejamos a explicação do desenho de Ana Júlia:
[9] Eu desenhei eu e a minha colega de estágio, como professoras, e
DESENHEI a sala em círculo (+) desenhei alguns balões, É, que estão
simbolizando a interação entre o professor e o aluno. Ai eu coloquei
que ‘interação (+) mais aprendizagem’ (+) que eu, como eu disse, É, a
interação entre os professores e os alunos, ela possibilita mais apren-
dizagem deles, porque eles se sentem mais liberdade PRA questionar
o professor, e quando o professor dá essa liberdade, é lógico QUE no
limite, ai o aluno, ele não vai ter medo de questionar, E conhecendo
o professor, porque alguns professores É (+) não, não têm educação,
vamos dizer assim, não SABEM responder aos alunos, então eles se
sentem, não tem essa, é!/ ((essa liberdade para))/ essa liberdade para
perguntar/ ((para PERGUNTAR, pra participar das aulas)). Então eu
desenhei esse círculo, É, mostrando a interação entre o professor e o
aluno/ ((unrum))/ que resulta na aprendizagem.
É nítido o movimento das experiências e das crenças de Ana Júlia no contexto de
estágio de regência: salas de aula cheias, alunos desmotivados e professores que silenciam
os alunos, tirando-lhes o direito de participar. Seu conflito está em lutar contra essas expe-
riências negativas, possivelmente vivenciadas ao longo de sua formação. A construção
69
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
de sua identidade profissional é balizada pelo anseio de “não ser” como aquele professor
tradicional, portador da voz e da autoridade em sala de aula, mas “ser” uma professora
amiga, facilitadora e mediadora do saber, com base no respeito e na participação mútua.
As experiências vivenciadas por Ana Júlia assemelham-se às de Danila sobre a
desmotivação dos alunos e as salas cheias. De acordo com Danila, as aulas teóricas
da disciplina de Prática de Ensino e Estágio Supervisionado I auxiliaram-na a rever
sua prática pedagógica e a melhorar suas ações em sala de aula:
[10] Eu não sabia os métodos/ ((que jeito que era o jeito que você
dava aula?))// o meu método era aquele TRADICIONAL, QUADRO
e GIZ, EXPLICANDO (+) mas ai depois que a gente fez aqui, essa
semana com os métodos na aula de Prática de Ensino né? sobre AS
orientações e os métodos, foi onde que eu vi que eu (*), poderia
ter me (*), se eu tivesse tido essa aula ANTES, eu poderia ter/(((*)
tinha te ajudado?))/ bastante! Eu teria diversificado minhas aulas.[...]
os alunos eram trinta, era, no diário, quarenta e cinco alunos, mas
ONZE, ERAM, REMANEJADOS, saíram da ESCOLA (+) então dava
média de trinta e cinco alunos, sendo alguns HIPERATIVOS, que não
QUIETAVAM, não queria estudar, só queriam badernar na sala, e não
adiantava por mais que, você chegasse com xerox, com material novo
(+) só um dia, alguns dias, que eu, algumas vezes eu, usei o multimídia
(+) eu passei material MÚSICA, FILME, TRALER (*)/ ((unrum))/ ele
sentava e assistia, mas do contrário, nada! nada interessava pra ele/
((unrum))/ se não fosse algo do que ele quisesse estudar, ele e alguns
da turminha dele. (Danila – narrativa oral – 27/11/2013).
Danila e Ana Júlia trazem reflexões sobre os desafios de ensinar para adoles-
centes no referido nível fundamental. Salas cheias e alunos indisciplinados e hipe-
rativos são algumas das experiências evidenciadas. Ambas revelaram suas crenças
sobre a dificuldade de se ensinar para a faixa etária em questão, bem como sobre
as demandas tecnológicas da atualidade aliadas ao ensino, na busca por autonomia
e comprometimento com próprio aprendizado (PAIVA, 2009).
Nesse contexto, o uso de tecnologias em sala de aula é importante desde que
haja uma atitude reflexiva e comprometida por parte do usuário. O seu uso poderá
fornecer a possibilidade de aprender sem ansiedade ou constrangimento, encora-
70
Experiências, crenças e identidades de professores de línguas em formação inicial:
um olhar a partir de narrativas orais e visuais
jando-o a uma atitude mais positiva frente ao propósito disciplinar (LÉVY, 1999).
Sem dúvida, tanto os alunos da sala de aula hoje são diferentes dos de alguns anos
atrás, devido a mudanças sociais da modernidade, quanto a sala de línguas também
o é, por ser mais dinâmica quando comparada com os formatos que a antecederam.
Em relação aos fatores que remetem a métodos e à utilização de tecnologias no
processo de ensino-aprendizagem de língua inglesa, percebemos movimentos de
construção identitária docente de Danila quando ela retoma o passado e o compara
com o momento presente.
[11] [o estágio] foi um grande (*) aprendizado, gostei muito, fiz muitos
amigos, tendo muitas coleguinhas na internet (+) foi muito bom! não foi
ruim não. ((e a professora hoje depois da experiência do estágio?)) depois
dos métodos que eu aprendi, vou tentar, ser melhor né? com novos méto-
dos/ ((tá em construção?))/ isso! (Danila – narrativa oral – 27/11/2013).
Percebemos, por meio do relato, que a construção identitária de Danila é
marcada por sua história de vida, pelos saberes que vem adquirindo na graduação
e pelo estágio supervisionado. Isso não é algo pronto, fixo, mas em movimento,
constantemente negociado e mediado pelas interações sociais, corroborando as
ideias de Nóvoa (2000, p. 16) de que:
A identidade não é um dado adquirido, não é uma propriedade, não é
um produto. A identidade é um lugar de lutas e conflitos, é um espaço
de construções de maneiras de ser e estar na profissão. Por isso, é mais
adequado falar em processo identitário, realçando a mescla dinâmica
que caracteriza a maneira como cada um sente e se diz professor.
Todavia, pelos depoimentos de Danila, notamos que os espaços de formação
têm, no estágio supervisionado, “um espaço de convergência das experiências
pedagógicas vivenciadas no decorrer do curso”, além de serem “uma contingên-
cia de aprendizagem da profissão, mediada pelas relações sociais historicamente
situadas” (PIMENTA, 2013, p. 102). A narrativa oral de Danila e a explicação do
seu desenho confirmam esses movimentos identitários.
71
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
Figura 3: Desenho da Danila
Fonte: Acervo pessoal dos autores.
A seguir, vejamos a explicação oral do desenho de Danila – 27/11/2013:
[12] Bom eu DESENHEI, a minha pessoa como uma professora tra-
dicional, no quadro, escrevendo lá, e sempre de olho no quadro e nos
alunos pra eles num fazerem tanta bagunça, né?! (+) ai têm os alunos com
sorriso, que é os, que eram os que gostavam de mim, né?! que eu sempre
tinha afinidade (+) e já outros que NÃO me engoliam de JEITO nenhum.
((que não gostavam de você, POR QUÊ?))
num sei, pelo meu jeito de SER, as vezes/ ((não te aceitavam))/ ãrram!
((VOCÊ, uma professora no quadro, uma professora tradicional, por
que que você fala assim?))
BOM devido (*) o MEU ensino médio, meus professores TODOS, ensino
médio e fundamental, todos eram tradicionais, eu tinha parado há dezesseis
anos, sem ir pra escola sem um nada, e voltar assim do nada FOI (+) sem
noção, da minha parte (+) eu falei (*) diretora eu fiquei com medo nos
dias que eu pedi o contrato, (*) eu falei com ela, estou com medo de não
CONSEGUIR dá conta de tudo, ela “não você consegue”/ ((a expectativa))
isso! de superar as expectativas, “(*) não, tenho certeza que você consegue,
você é inteligente, você é esperta, você não vai deixar a peteca cair”.
((e você HOJE, e essa, essa professora mudou?))
BOM, com os métodos que eu aprendi aqui na faculdade agora com as
aulas que nós tivemos com a professora de estágio))/ isso, do estágio
(+) eu espero mudar (+) pegar mais MATERIAL, pegar mais material
diversificado pra investir mais assim, pra ser uma melhor professora. [...]
72
Experiências, crenças e identidades de professores de línguas em formação inicial:
um olhar a partir de narrativas orais e visuais
Danila parece viver em conflito com aquilo que acredita “ser o ideal” e que
ainda não conseguiu atingir. As crenças em torno do que é o método/a abordagem de
ensino mais apropriado afugentam-na e desafiam seus saberes profissionais. As aulas
de estágio foram geradoras de reflexões sobre o ato de ensinar, mas, ao mesmo
tempo, de sofrimentos decorrentes das experiências negativas oriundas da época
de seu ensino médio, recorrentes em sua construção identitária como professora.
Considerações finais
O estágio propicia possibilidades efetivas de (des)construções de crenças e
identidades, de marcas enraizadas e demarcadas pelas interações sociodiscursivas/
formativas de cada participante.
As narrativas e histórias relatadas pelos alunas-professoras estão relacionadas
entre si e imbricadas em suas escolhas profissionais. São vivências revisitadas no
momento da pesquisa que, sem dúvida, geraram reflexões profícuas e significativas
para Ana Júlia, Danila e Sofia.
Ana Júlia resgata experiências positivas oriundas da época do seu ensino médio
e tem consciência dos desafios da profissão. Por detrás da identificação docente,
subjaz um encantamento pela língua inglesa. Ademais, ela acredita na interação
como geradora de relações igualitárias, de respeito e cooperação no âmbito do
ensino de língua inglesa e se preocupa em desmistificar crenças dos alunos, acre-
ditando que, assim, estará cumprindo seu papel de professora e mobilizadora de
transformações significativas por meio de sua prática.
O estágio supervisionado de regência representou, para Ana Júlia, uma opor-
tunidade de ter certeza da escolha com a qual já se identificava há algum tempo.
No seu caso, os conflitos identitários, representados como a disputa de um poder,
parecem ser poucos sinuosos e suas projeções futuras são de investimentos de busca
constante da aprendizagem de língua inglesa (NORTON-PIERCE, 2000). Além
73
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
disso, o modo como se vê (professora) é facilitado pelas crenças e experiências
positivas vivenciadas ao longo de sua trajetória de vida.
Danila traz consigo construções identitárias extremamente arraigadas e demostra, ao
longo de seu depoimento, uma enorme força de vontade em ser uma ótima professora, uma
professora reflexiva, que ensine a língua por meio de variadas metodologias/abordagens,
nos moldes que vêm aprendendo nas aulas de Prática de Ensino e Estágio Supervisionado
I. Ainda, nela visualizamos identidades multifacetadas, fragmentadas pelo desejo de ser
e de estar nos diversos posicionamentos de mãe, esposa, vendedora e, agora, professora.
Ela vislumbra a profissão como uma superação de seus próprios limites.
Quando iniciou o curso, trabalhava como vendedora ambulante, já há16 anos longe
da escola. Assim que iniciou a graduação, foi em busca de aprendizado extra da
língua inglesa no curso de idiomas, e, embora convivesse com suas experiências
negativas de ensino anteriores, são notórios seus investimentos nos estudos e na
busca por melhorar sua competência profissional, atentando para as metodologias
de ensino e acreditando ser possível transformar e se construir como professora.
No caso de Sofia, sua história sinaliza uma relação dialética de lutas e conflitos
internos e externos. Ela, que desde a infância é interpelada pela pobreza, apresenta
desejo de superação e de vencer na vida. Visualiza na educação uma oportunidade
para ascender socialmente e um convite ao empoderamento. Sua identificação
com a profissão docente, como formadora e agente de mudanças significativas,
é revivida quando se lembra da escola e da condição mísera em que vivia. No
entanto, traz consigo crenças de que a educação é garantia de futuro promissor,
de que o professor pode ser um agente transformador, começando por ela mesma.
As crenças e experiências desafiadoras estão muito ligadas às ações de Sofia, que
sempre lutou contra as intempéries e mantém, mesmo após o período de estágio, em
que vivenciou momentos de insegurança, de medo e de um sentimento de rejeição
dos alunos, a certeza da escolha profissional que fez.
Pela história de Sofia, podemos perceber as movimentações oscilantes das
nossas identidades. Estamos constantemente (re)visitando e testando nossas iden-
74
Experiências, crenças e identidades de professores de línguas em formação inicial:
um olhar a partir de narrativas orais e visuais
tificações a partir das diferenciações, estabelecendo nossos papéis e possibilitando
mudanças na nossa vida pessoal e, por conseguinte, na profissional, pois é no interior
da construção de uma “teoria da pessoalidade” que construímos uma “teoria da
profissionalidade” (NÓVOA, 2009, p. 16).
Por um lado, as experiências de ensino obtidas pelas participantes nos estágios
sob suas regência são, até certo ponto, comuns: salas de aula cheias, alunos desmo-
tivados com a língua inglesa e indisciplina. Por outro, crenças são evidenciadas,
tais como: é difícil ser professor, a docência é um grande desafio, o ensino é um
caminho promissor, a língua inglesa é importante para o aprendiz brasileiro, o
estágio é decisivo e muito importante para a (re)descoberta da profissão.
As histórias são tanto capazes de retratar desde lembranças marcadas pelo fator
tempo quanto de promover momentos de reflexões profundas sobre fenômenos
pessoais, profissionais e sociais. As experiências, as crenças e as identidades, todas
em movimento, são compreendidas, nesta breve análise, como fatores que podem
ser (re)construídos/ressignificados por meio das interações sociodiscursivas via
linguagem. O estágio supervisionado, desse modo, apresenta-se como causador e
problematizador de diversas questões inerentes às construções profissionais.
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79
CAPÍTULO 4
Identidades de professores/as
de inglês na mídia: tendências à
homogeneização e possibilidades
de contradiscursos
Mariana R. Mastrella-de-Andrade – UnB
Ana Castello – UnB
Gabriel Nascimento – UFSB
Introdução
Temos vivenciado, nas últimas décadas, uma explosão do interesse em iden-
tidade e ensino-aprendizagem de línguas (NORTON; TOOHEY, 2011). Com isso,
o termo “identidade” agora aparece na maioria das enciclopédias sobre ensino e
aprendizagem de línguas. No campo mais amplo da Linguística Aplicada, o interesse
em identidade também tem ganhado espaço, e, no Brasil, encontramos um reconhe-
cimento da importância dos estudos sobre identidade e ensino de línguas, já que,
como afirma Ferreira (2009), essas questões vêm sendo discutidas amplamente em
seminários, congressos e publicações, como livros e periódicos. Para Irala (2010),
não é de hoje que se multiplicam, na área dos estudos da linguagem, obras cole-
tivas de circulação nacional que abordam, em suas temáticas, questões relaciona-
das a aspectos identitários. Também Blommaert (2005) ressalta que as questões
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
identitárias estão em constante fluxo, uma vez que as pessoas do globo estão, por
opção, desejo ou expulsão, também em movimento contínuo entre as fronteiras.
A questão da identidade tem sido extensamente discutida na teoria social. Stuart
Hall (2003), já há algum tempo, argumenta não apenas que a questão da identidade
tem recebido atenção especial, mas também que temos vivido uma verdadeira “crise
de identidade”. Identidades são atribuídas, negociadas e, sobretudo, compreendidas,
no mundo pós-moderno, de maneira extremante diversa (HALL, 2003).
Diante dessas perspectivas socioculturais a respeito de identidade
(BLOMMAERT, 2005), o objetivo da presente pesquisa é discutir como a identi-
dade de professores/as de inglês tem sido construída em reportagens de publicação
local e nacional. A justificativa para o foco da análise aqui se volta para a mídia
porque, segundo Bourdieu (1997), ela detém o poder de formar opiniões e atitudes
em massa, tornando-se especialista ou guardiã de valores coletivos. As reportagens
foram selecionadas a partir de periódicos virtuais, publicados entre 2012 e 2013,
a fim de atender ao objetivo deste capítulo, isto é, problematizar a maneira como
os discursos dos meios de comunicação constroem as identidades dos professores/
as de língua inglesa e discutir suas possíveis consequências para os processos de
ensino-aprendizagem dessa língua estrangeira.
Considerando então o objetivo explicitado, o trabalho buscou responder às
seguintes perguntas: 1) que discursos são veiculados, nos meios de comunicação
selecionados, sobre quem é o/a professor/a de inglês hoje?; 2) de que maneira esses
discursos constroem a identidade de como é ou deve ser o/a professor/a de inglês?
Antes de apresentar a análise das construções de identidades que aqui pro-
pomos, é importante discutir certos aspectos teóricos sobre o conceito de identi-
dade, desde séculos atrás até o tempo presente, bem como tecer algumas reflexões
sobre a questão das identidades e a mídia. Ainda serão analisadas certas questões
particulares da problemática da identidade no contexto pedagógico – em especial no
que diz respeito ao ensino e à aprendizagem de línguas. Após esse percurso teórico,
serão apresentadas a metodologia de pesquisa e as análises dos dados selecionados.
82
Identidades de professores/as de inglês na mídia:
tendências à homogeneização e possibilidades de contradiscursos
Referencial teórico
Identidade: uma construção social
Para explicar a recente instabilidade nos modelos tradicionais de identidade, retor-
naremos aos trabalhos de Hall (2003), Woodward (2000) e Silva (2000). Os autores
argumentam que a pós-modernidade apresenta novas estruturações sociais e novos
valores, que rapidamente se modificam e modificam as configurações identitárias
pelo mundo. Nesse sentido, Hall (2003) enfatiza que a sociedade pós-moderna não
apenas rompeu com a maneira fixa de entender identidades, mas também está em
constante processo de transformação, vivenciando deslocamentos. Para explicar tais
conclusões, o autor descreve a evolução histórica do conceito de identidade.
Segundo ele, o sujeito do Iluminismo nasceu das profundas mudanças sociais do
século XVIII. Fenômenos como a Reforma Protestante enfraqueceram a sujeição do
indivíduo à sociedade. Acreditava-se, até então, que a estrutura da sociedade era divina-
mente estabelecida, e, por isso, o indivíduo não poderia se desvincular dela, tampouco
alterar sua posição nela. A ruptura moderna, porém, gerou um sujeito individualista,
autônomo e soberano; um sujeito cognoscente e cognoscível, centrado na razão.
Contudo, essa soberania individualista que o sujeito iluminista parecia ter con-
quistado não se consolidou porque o sujeito se tornou indissociavelmente ligado ao
Estado moderno, preso em suas maquinarias burocráticas como principal sustentáculo
do capital e da produção industrial. Essa nova concepção que então despontava, o
sujeito sociológico, foi firmada por acontecimentos como o surgimento de novas
ciências sociais. Enfim, o sujeito sociológico era interativo: formava a sociedade e
era formado por ela. Finalmente, Hall (2003) explica a gênese do nosso sujeito final,
fragmentado e pós-moderno, apresentando cinco avanços nas Ciências Humanas
que participaram do descentramento dos sujeitos anteriores, a saber: 1) releituras
do pensamento marxista, que destacava a ausência de alguma noção de “homem”
no centro de seu sistema teórico; 2) a descoberta do inconsciente por Freud, a qual
83
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
desafia o paradigma de que o ser humano estaria em completo domínio sobre suas
ações; 3) o trabalho do linguista Saussure, que afirmava que não somos autores/as dos
significados que expressamos, apenas nos posicionamos nas regras da língua, sendo
ela social; 4) o trabalho do historiador Foucault, o qual sugere que o poder se exerce,
não se possui, e que os discursos formam realidades; 5) o movimento feminista, que
deslocou para a abordagem política temas que eram limitados ao plano pessoal ou
íntimo e abordou profundamente conceitos a respeito de identidade. Esses foram os
fatores que, segundo Hall (2003), contribuíram para o descentramento do sujeito, isto
é, levaram a uma compreensão do indivíduo não como essencializado, unificado e
centrado na razão, mas sim construído discursiva e socialmente, portanto, fragmen-
tado, dando, assim, origem à nova compreensão das identidades na pós-modernidade.
Também Woodward (2000) traz questões importantes sobre os porquês da
crise de definição das identidades. A autora (2000, p. 22) analisa fatores da con-
temporaneidade que contribuíram para a desestabilização desse conceito, com
destaque para a globalização: “essa dispersão de pessoas ao redor do globo produz
identidades que são moldadas e localizadas em diferentes lugares e por diferentes
lugares”. Com isso, toda essa pluralidade de referências culturais confunde os
indivíduos no processo de identificação com o repertório de identidades que lhes
são disponibilizadas. Por exemplo, com a fragilidade das fronteiras, torna-se muito
mais delicada a adesão estável a uma identidade nacional definida e determinada,
ao passo que essas mesmas fronteiras são reforçadas à medida que as identidades
locais são reivindicadas (BLOOMMAERT, 2005).
Por meio desse raciocínio, Woodward (2000), Maalouf (2000) e Blommaert
(2005) esclarecem um aspecto importantíssimo da crise de identidade. Ela não
se dá apenas em níveis globais, ou teóricos e conceituais, mas também em níveis
pessoais, internos: o sujeito pós-moderno consegue sentir a vivência de suas identi-
dades em crise. A complexidade da vida moderna exige que assumamos diferentes
identidades, mas essas identidades podem estar em conflito. Podemos viver, em
nossas vidas pessoais, tensões entre nossas diferentes identidades quando aquilo
84
Identidades de professores/as de inglês na mídia:
tendências à homogeneização e possibilidades de contradiscursos
que é exigido por uma identidade interfere nas exigências de outra. Um exemplo
é o conflito existente entre nossas identidades como pai ou mãe e nossa identidade
como assalariado/a e profissional (WOODWARD, 2000). Com base na discussão
apresentada, assim compreendemos o chamado sujeito pós-moderno, um sujeito
de identidades fluidas, deslocadas e frequentemente contraditórias.
Sendo essas identidades, social e discursivamente construídas, Woodward
(2000) discute pelos menos dois aspectos decisivos para a compreensão da rele-
vância dos meios de comunicação (ou da mídia) na sua construção: seu aspecto
relacional e sua ligação com os sistemas de representação socioculturais.
Dizer que a identidade é relacional implica dizer que ela é construída na relação
com a diferença, ou seja, ela se constrói a partir de esquemas de comparação e dife-
renciação. Em seu trabalho, Woodward (2000) explica isso por meio de um episódio
descrito pelo escritor Michael Ignatieff. No episódio, que se passa durante a guerra
que dividiu a antiga Iugoslávia, um soldado sérvio é inquirido sobre o que faz os
sérvios pensarem que são diferentes dos croatas. O soldado responde que cada um dos
dois povos fuma os cigarros de sua própria cultura. “Vê isto? São cigarros sérvios.
Do outro lado, eles fumam cigarros croatas” (IGNATIEFF, 1994 apud Woodward,
2000, p. 2). Isso remete à ideia de que a reivindicação da identidade sérvia é o mesmo,
nesse caso, que a negação da identidade croata. Ser sérvio é ser não croata.
Esse exemplo também serve de subsídio para explicar o fato de a identidade
ser construída com base nos sistemas classificatórios/representativos socioculturais,
aqui marcado pelo fato de o cigarro ter sido apresentado como símbolo da diferença
entre sérvios e croata. Isso acontece porque o cigarro, nesse caso, não é meramente
um cigarro, mas um símbolo que porta informações sobre a pessoa que o consome.
Assim, fumar um cigarro sérvio, por ele ser sérvio, significa um investimento na
identidade nacional sérvia: “existe uma relação entre a identidade da pessoa e as
coisas que uma pessoa usa. O cigarro funciona [...] como um significante importante
da diferença e da identidade” (WOODWARD, 2000, p. 10).
85
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
Compreender o fato de a identidade ser construída de maneira relacional e mediante
associações simbólicas – depois de termos entendido que as identidades hoje não são
fixas, mas múltiplas e negociáveis – é o que nos indica por que a mídia é, hoje, funda-
mental na construção da identidade de indivíduos e grupos. Os meios de comunicação de
massa, por um lado, reúnem infinitos símbolos culturais (com seus respectivos valores
sociais) e, por outro, disponibilizam ao espectador uma gama de perfis e estereótipos
nos quais o espectador se apoia para adotar e rejeitar identidades, por meio de processos
de comparação (“identificação”) e diferenciação, ou distanciamento.
Considerando esses movimentos de construção identitária, os meios de comuni-
cação em massa (mass media) atuam como simulacro na construção de identidades.
A palavra “simulacro” aqui:
[...] vem de similis, que significa o semelhante. De similis vem as pala-
vras simul, fazer junto, mas também competir, rivalizar, e similitudo,
semelhança, analogia, comparação. De similis vem o verbo simulare,
que significa representar exatamente, copiar, tomar aparência de; este
último significado leva o verbo a significar também fingir, simular.
Ou seja, simulacrum tanto pode significar uma representação ou cópia
exata como um fingimento, uma simulação. [...] Em outras palavras, o
simulacro é a imagem de uma imagem percebida, ou seja, passamos
da percepção de uma imagem de uma coisa à sua representação ou
reprodução em uma outra imagem, como pintura, na escultura, no
retrato. (CHAUÍ, 2006, p. 82, grifos da autora).
Ao enquadrar a lógica dos mass media dentro da ideia de simulacro, Chauí
(2006) traz contribuições importantes para entendermos os meios de comunicação
como o que Derrida (1973) chama de provisoriedade constante do sentido, levan-
do-nos a pensar a representação como “representação de outra representação”.
Dessa forma, como simulacro, os meios de comunicação em massa representam
interesses e criam identidades, pois a indústria cultural:
Inventa figuras chamadas “espectador médio”, “ouvinte médio” e
“leitor médio”, aos quais são atribuídas certas capacidades mentais
“médias”, certos conhecimentos “médios” e certos gostos “médios”,
86
Identidades de professores/as de inglês na mídia:
tendências à homogeneização e possibilidades de contradiscursos
oferecendo-lhes produtos culturais “médios’. Que significa isso?
A indústria cultural vende cultura. Para vendê-la, deve seduzir e agra-
dar o consumidor. Para seduzi-lo e agradá-lo, não pode chocá-lo, pro-
vocá-lo, fazê-lo pensar, trazer-lhe informações novas que o perturbem,
mas deve devolver-lhe, com nova aparência, o que ele já sabe, já viu, já
fez. A “média” é o senso comum cristalizado, que a indústria cultural
devolve com cara de coisa nova. (CHAUÍ, 2006, p. 30).
É indispensável notar que existem sempre motivações sociais nesses processos
de negociação de identidades por meio da interação do sujeito com a mídia. O que
nos influencia a optar por essa ou aquela identidade entre as que estão disponíveis
a nós depende das relações de poder que permeiam – muitas vezes, implicitamente
– as identidades: “a mídia nos diz como devemos ocupar uma posição-de-sujeito
particular – o adolescente ‘esperto’, o trabalhador em ascensão ou a mãe sensível”
(WOODWARD, 2000, p. 17-18).1 Os estereótipos aqui exemplificados sugerem perfis
de prestígio em seu ambiente sociogeográfico e cultural – na nossa sociedade ocidental
contemporânea – e, portanto, oferecem maior poder e respeito social aos indivíduos
que o adotam: “É por meio dos significados produzidos pelas representações que
damos sentido a nossa experiência e àquilo que somos” (WOODWARD, 2000, p. 17).
Dessa maneira, é importante atentar para o modo como as identidades estão
sendo construídas nos meios de comunicação, especialmente no que diz respeito a
identidades minoritárias ou de menor prestígio social, pois “se um grupo é simboli-
camente marcado como inimigo ou como tabu, isso terá efeitos reais porque o grupo
será socialmente excluído e terá desvantagens materiais” (WOODWARD, p. 14).
Por outro lado, da mesma forma que a mídia pode servir à exclusão, também pode
servir à inclusão, mediante a valorização de grupos identitários desprestigiados.
Para Ferreira (2009, p. 193), “imagens publicadas pelos meios de comunicação
são ferramentas que podemos utilizar como uma forma de letramento crítico e,
assim, colaborar para uma leitura que possibilita a formação de cidadãos críticos”.
1
Isso não significa, de forma alguma, que as identidades são uma simples questão de opção dos indivíduos
(WOODWARD, 2000).
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Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
Levando a teoria à sala de aula: identidade e
ensino-aprendizagem de línguas
Norton e Toohey (2011) argumentam que teorias contemporâneas de identi-
dade possibilitam a compreensão do aprendiz Situado em seu contexto social, uma
vez que agora a identidade é compreendida como múltipla e instável. As autoras
também explicam que, assim como algumas posições identitárias podem limitar as
oportunidades de os aprendizes falarem, escutarem, lerem ou escreverem, outras
posições podem oferecer melhores possibilidades (NORTON; TOOHEY, 2011).
Isso confirma a ideia – já anteriormente vista aqui – de que as posições de identidade
são permeadas de relações de poder. A respeito da questão do poder, as autoras
afirmam que as teorias e pesquisas na área de aprendizagem de línguas precisam
abordar a maneira com que a posse de poder social afeta o acesso de aprendizes às
comunidades linguísticas que eles têm por alvo.
Outro ponto destacado pelas autoras é que a aprendizagem de uma segunda língua
não é inteiramente determinada por condições estruturais e contextos sociais, inclu-
sive porque tais elementos não são fixos, mas estão sempre em estado de produção
(NORTON; TOOHEY, 2011). Nessa perspectiva, esse constante estado de produção
implica na impossibilidade de uma estruturação fixa dos contextos de ensino e aprendi-
zagem, os quais devem ser considerados em suas especificidades locais, tendo em vista
a natureza cambiante das identidades e sua dependência social, cultural e discursiva.
Um exemplo da relevância das questões identitárias para a compreensão do
que ocorre no processo de ensino e aprendizagem de línguas é o caso da noção
de investimento, cunhadopor Norton-Pierce (1995) como uma alternativa à ideia
de motivação. Tradicionalmente, no campo de ensino e aprendizagem de línguas,
alunos têm sido classificados como “motivados” e “desmotivados”, que podem ser
categorizações identitárias taxativas e limitadoras. Além disso, o conceito de moti-
vação pode sugerir que a responsabilidade pelo aprendizado dependeria prioritaria-
mente de motivações inerentes aos alunos. No lugar desse conceito, Norton-Peirce
88
Identidades de professores/as de inglês na mídia:
tendências à homogeneização e possibilidades de contradiscursos
(1995) fala de investimento: “o construto investimento procura fazer uma conexão
significativa entre o desejo e o comprometimento do aprendiz para aprender uma
língua e as práticas de uso da língua da sala de aula ou da comunidade” (NORTON;
TOOHNEY, 2011, p. 415).
É necessário ressaltar, também, que a questão da identidade é especialmente
importante no contexto do ensino e aprendizagem de línguas porque, no exercício
da linguagem, identidades são formadas e movimentadas, como explica Moita
Lopes (2002, p. 37): “identidades sociais são construídas no discurso. Portanto,
as identidades sociais não estão nos indivíduos, mas emergem da interação entre
os indivíduos agindo em práticas discursivas particulares nas quais estão posi-
cionados”. Se considerarmos que ensinar e aprender línguas depende em grande
medida do envolvimento em interações e práticas linguísticas, temos, novamente,
um lugar de relevância para as questões identitárias, que são constitutivas desse
processo e constituídas nele. Nesse sentido, cabe-nos então levantar as seguintes
indagações como: quem são os sujeitos que habitam a sala de aula? O que lhes dá
ou nega acesso às interações? Que identidades essas interações constroem? Quais
são valorizadas ou desprestigiadas?
Também Kumaravadivelu (2012) e Zacharias (2010) discutem a respeito da
problemática da identidade no ensino-aprendizagem de línguas e problematizam
o enquadramento de alunos/as e professores/as em identidades limitadoras, nesse
caso, em especial, a dicotomia “falante nativo” e “falante não nativo”:
Apesar das múltiplas identidades (dos alunos), a pedagogia de ensino
da língua inglesa continua a reduzir essas diversas identidades den-
tro de um único grupo linguístico rotulado de falantes não-nativos.
O rótulo persiste porque as sugestões têm sido acompanhadas de téc-
nicas pedagógicas que tratem de acomodar as variadas identidades
dos alunos em sala de aula. (ZACHARIAS, 2011, p. 1).
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Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
Tendo em vista as questões teóricas apresentadas e discutidas até aqui, pas-
samos, a seguir, para as seções que descrevem a metodologia da pesquisa aqui
relatada e a análise dos dados.
Metodologia da pesquisa
Uma vez explicitado o arcabouço teórico que embasa este capítulo, trataremos,
nesta seção, da metodologia seguida para a construção das análises do trabalho. Pri-
meiramente, é necessário apresentar a perspectiva da pesquisa interpretativista, a qual
embasa nossa maneira de escolher e abordar os dados para a investigação aqui em
questão. Em seguida, explicitaremos os princípios seguidos para a análise dos dados.
O paradigma interpretativista
De acordo com Moita Lopes (1994), o paradigma interpretativista de pesquisa
em Linguística Aplicada traz em si o pressuposto de que o social é fruto de significa-
dos e interpretações que são produzidos pelos participantes de um determinado con-
texto. Assim, pesquisadores/as e sujeitos participantes são envolvidos no processo
de interpretação e de atribuição de significado aos eventos analisados. O texto de
pesquisa, como resultado, fornece uma explicação cultural dos fenômenos enfocados
ou detectados e considerados importantes para virem a ser investigados.
Para Schwandt (2006), ao tratar de metodologias de pesquisa, a pesquisa inter-
pretativista pressupõe que a subjetividade humana contribui de forma definitiva para
a construção do conhecimento, o que implica dizer que é o próprio sujeito humano
que torna possível o conhecimento da realidade da forma como ele se dá nas dife-
rentes instâncias e culturas em nossas sociedades, negando a existência de realidades
existentes em si mesmas sem o olhar, o entendimento e a concepção social humana
a seu respeito. Sendo assim, não haveria uma forma única ou objetiva de conhecer
que fosse a resposta às indagações das pesquisas. São as próprias interpretações dos/
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Identidades de professores/as de inglês na mídia:
tendências à homogeneização e possibilidades de contradiscursos
as pesquisadores/as e dos/as participantes que constroem as teorias que nomeiam e
trazem à existência as teorias formadas a partir do que é investigado. Nesse mesmo
sentido, não é possível a pesquisadores/as ou aos/às participantes obter um distan-
ciamento dos objetos em investigação a fim de lhes conferir objetividade ou isenção.
O objeto de análise
Conforme vimos discutindo, segundo o paradigma de pesquisa interpretati-
vista, o importante é investigar as ações humanas, seus discursos, inseridos em um
contexto particular, isto é, na própria situação na qual as essas ações fazem (ou
adquirem) sentido (SCHWANDT, 2006). Assim, buscamos analisar aqui a maneira
como as identidades de professores/as de inglês são construídas em reportagens da
mídia veiculadas por jornais que têm sua circulação on-line, ou seja, pela internet.
Escolhemos, para isso, três reportagens de jornais de diferentes locais do Brasil.
A primeira é do Jornal Tribuna do Planalto, do estado de Goiás, publicada em
06/03/2013. A segunda foi publicada no jornal Observatório da Imprensa, na data
de 31/07/2012, de circulação nacional. A última reportagem que compõe o corpus
de análise para as discussões neste capítulo foi publicada no portal G1 de São
Carlos, na data de 26 de março de 2013.
A condução das análises
Embasadas no paradigma interpretativista, como já explicitado anteriormente,
nossas análises se pautaram na divisão de temáticas que as reportagens apresentam,
considerando o modo como as identidades de professores são construídas. Para isso,
buscamos analisar, nos textos jornalísticos, a forma como o termo “professores/
as” e seus respectivos pronomes foram empregados e a maneira como se deu a
adjetivação sobre eles. Também, tomando como base o fato de que as identida-
des são construídas na relação com a diferença e na alteridade, buscamos termos
91
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
que se relacionam e se contrapõem ao papel de professor/a (como “alunos/as”,
“aprendizagem”, “ensino”, por exemplo) que, por sua vez, atuam na constituição
das próprias identidades a eles relacionadas (WOODWARD, 2000), bem como os
termos que são omitidos ou apagados no discurso, como orienta Ferreira (2009).
Análise de dados
Práticas de construção de identidades: quem é o/a professor/a de inglês?
Expostas as ferramentas para podermos compreender o impacto da maneira
com que identidades são construídas no contexto de ensino-aprendizagem de lín-
guas, partiremos agora para a análise dos dados. Como já foi dito, o foco aqui será
analisar a construção das identidades de professores brasileiros de inglês nos meios
de comunicação. As reportagens selecionadas para análise, neste trabalho, serão
discutidas individualmente, com a reprodução de alguns de seus trechos.
Ensino de inglês: um engodo?
A primeira reportagem a ser analisada foi publicada no jornal goiano Tribuna
do Planalto (2013) e se intitula “Ensino de inglês, um engodo no Brasil”. Por
meio do próprio título é possível entender a maneira como a reportagem veicula
o discurso que generaliza todo o ensino de inglês brasileiro sob a característica de
“engodo”. De forma geral, o termo “engodo” poderia remeter a ações desonestas
intencionais, exercidas com o conhecimento prévio de que não trarão os benefícios
esperados por aqueles que nelas investem. “Engodo” é um termo essencialmente
depreciativo, porque não sugere apenas um engano, mas um engano proposital;
portanto, a ideia produzida por seu emprego nesse contexto é de que aquele que
opera o ensino de inglês em todo o Brasil está não apenas enganando os brasileiros,
92
Identidades de professores/as de inglês na mídia:
tendências à homogeneização e possibilidades de contradiscursos
mas enganando-os propositalmente. Ou seja, “engodo” constitui-se como nomeação
negativa que constrói, da mesma maneira, identidades negativas.
Mas, afinal, quem é o sujeito do engodo? Quem opera tais atitudes supostamente
desonestas em todo o Brasil? A utilização da expressão “ensino de inglês” nos remete
primeiramente à figura de quem ensina, ou seja, à figura do/a professor/a. Note-se que
outras construções seriam possíveis aqui, como “a aprendizagem do inglês” ou “o
conhecimento do inglês”. Nesse contexto, considerando que a linguagem não apenas
expressa uma realidade anterior a ela, mas também contribui para construí-la (MOITA
LOPES, 2002), podemos entender que referenciar o ensino de inglês como um engodo
implica fazer também referência aos sujeitos que exercem a ação de ensinar: seriam,
então, eles os responsáveis mais diretos pelo exercício e pela prática do que é chamado
de “engodo”. Assim, se o ensino de inglês no Brasil caracteriza-se como “engodo” e
se o termo “ensino” está relacionado ao sujeito que o realiza, o/a professor/a de inglês
seria a figura mais diretamente responsabilizada pelos resultados não atingidos.
De acordo com De Grande (2011, p. 146), em geral, os/as professores/as são
distanciados/as da relação com o saber, o que os/as separa e desapropria dos sabe-
res e os/as considera como ilegítimos/as ou despreparados/as “para exercer sua
profissão e, consequentemente, responsáveis pelos males da educação brasileira”.
Essa é, assim, uma consequência identitária sobre os/as professores/as, que advém
dos discursos que os/as responsabilizam sempre pela situação atual da educação,
desconsiderando em si a estrutura social e política que abriga, constrói e perpetua
a realidade educacional do país.
A palavra “engodo” também faz sentido dentro de um conjunto relacional de
figuras em que os meios de comunicação em massa mais obrigam o leitor a sentir do
que a refletir. Por isso, perguntas como “o que você está sentindo?”, “como você se
sente?”, impedem o entrevistado de refletir, explicar ou descrever as práticas (CHAUÍ,
2006). O engodo, no caso do artigo citado, entra nos quadros de sentimento explora-
dos pela imprensa para construir a opinião pública. Conforme Chauí (2006, p. 10):
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Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
Nada mais constrangedor e, ao mesmo tempo, nada mais esclarecedor
do que os instantes em que o noticiário coloca nas ondas sonoras ou na
tela os participantes de um acontecimento falando de seus sentimentos,
enquanto locutores explicam e interpretam o que se passa, como se os
participantes fossem incapazes de pensar e de emitir juízo sobre aquilo
de que foram testemunhas diretas e partes envolvidas. Constrangedor
porque o rádio ou a televisão declaram tacitamente a incompetência
dos participantes e envolvidos para compreender e explicar fatos e
acontecimentos de que são protagonistas. Esclarecedor porque esse
procedimento permite, no instante mesmo em que se dão, criar a
versão do fato e do acontecimento como se fossem o próprio fato e o
próprio acontecimento. Assim, uma partilha é claramente estabelecida:
os participantes “sentem”, portanto não sabem nem compreendem (não
pensam); em contrapartida, o locutor pensa, portanto sabe e, graças
ao seu saber, explica o acontecimento.
Nesse caso, o “engodo” traduz o sentimento do locutor em relação ao ensino-
-aprendizagem de línguas no Brasil, contexto no qual a imprensa, como item da
indústria cultural e meio de comunicação em massa, usa a percepção do que seja
engodo conforme o sentimento do/a leitor/a, nesse caso, seu/sua interlocutor/a.
O que está em jogo não é a conjuntura global do ensino de línguas, mas como ele
deve ser sentido no jogo das percepções pela população. Ou seja, no jogo de sen-
tidos não são apresentadas opiniões de professores/as ou práticas escolarizadas do
ensino de línguas, mas a caracterização e a construção da opinião pública inserida
quadro do senso comum.
De maneira geral, as identidades, à primeira vista, são homogêneas e homoge-
neizantes (SILVA, 2000). Dessa forma, é possível entender, no caso da reportagem
aqui analisada, que não seriam apenas alguns/mas professores/as enquadrados/as
naquela posição identitária, já que o título faz referência ao ensino de inglês em todo
o Brasil. Não aparece, na forma como o título representa os/as professores/as, espaço
para outros fatores e agentes envolvidos na realidade do ensino e aprendizagem
de inglês no Brasil, como, por exemplo, o espaço na grade curricular designado
para aulas de inglês nos ensinos médio e fundamental ou a carência de políticas
públicas que visem à melhoria das condições de ensino e aprendizagem de inglês.
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Identidades de professores/as de inglês na mídia:
tendências à homogeneização e possibilidades de contradiscursos
Ao longo da reportagem, são discutidas questões relativas às deficiências no
ensino brasileiro de inglês, como se pode ver no trecho a seguir:
A Copa do Mundo e as Olimpíadas não acenam com expectativas
apenas festivas ao Brasil. Elas também revelam a deficiência em
várias áreas no país, mas uma delas chama atenção por se tratar de
um requisito básico para nações turísticas e desenvolvidas: a fluência
em inglês (ENSINO DE INGLÊS..., 2013).
Aqui, a fluência em inglês é apontada como um “requisito básico para nações
turísticas e desenvolvidas”, como aponta a reportagem. Obviamente, “nações” é uma
metonímia para as suas populações, afinal, não são as nações que adquirem fluência
em uma língua, mas as pessoas, nesse caso, todas as pessoas que pertencem a tais
nações. Ademais, uma vez que a fluência em inglês é apontada como um “requisito
básico” para as populações de “nações turísticas e desenvolvidas”, caso uma pessoa
não possua tal fluência, ou ela não pertence a um país turístico e desenvolvido, ou
não possui um “requisito básico” para as pessoas de seu país, algo fundamental para
toda a população e esperado dela. Nos dois casos, a identidade do sujeito que não
possui fluência em inglês é negativamente marcada. Desse modo, os/as brasileiros/
as são incluídos/as justamente nessa posição identitária, na posição inferiorizada
daqueles que não são fluentes, o que fica claro pelo emprego do termo “deficiên-
cia” para se referir à condição dos brasileiros no tocante à proficiência em inglês.
Mesmo sendo algo considerado “básico”, fundamental, o inglês seria algo que
os/as brasileiros/as não dominam. Aqui, as identidades de todos/as os/as brasileiros/
as são generalizadas no mesmo grupo de pessoas sem proficiência em inglês. O que
está implícito na marcação negativa da identidade de brasileiros/as quanto à fluên-
cia em inglês é a marcação negativa da identidade dos/as professores/as de inglês
desses/as brasileiros/as. Sendo a identidade construída, muitas vezes, por meio da
diferenciação e da comparação entre termos que permeiam os mesmos campos
semânticos (WOODWARD, 2000), os conceitos de professor/a e aluno/a são inter-
dependentes: só existe quem ensina porque existe quem é ensinado, e vice-versa.
95
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
Portanto, marcar negativamente a identidade de quem aprende ou deveria aprender
inglês (nesse caso, brasileiros/as que apresentam fluência insatisfatória) marcaria
também negativamente a identidade de quem está ou deveria estar possibilitando
esse aprendizado: o/a professor/a de inglês.
Mais adiante, na reportagem, são discutidos os motivos pelos quais o ensino
de inglês estaria tão problemático. Entre as principais razões apresentadas para a
deficiência, está a qualificação de professores/as, como se vê no seguinte trecho:
Outro indicativo do ranking sobre as dificuldades do aprendizado de
inglês envolve a qualificação dos professores, que, segundo o estudo,
é deficiente, principalmente no setor público. A professora de inglês
do Colégio Estadual José Lobo [...] por exemplo, cursou Letras/Inglês
e assume que teve muitas dificuldades em ministrar a disciplina de
língua estrangeira no início da carreira. “Eu não saí proficiente em
inglês. Tive que fazer cursinho e pós-graduação. Eu não tinha segu-
rança de entrar numa sala de aula e falar com meus alunos. Tive que
buscar um apoio”, conta. (ENSINO DE INGLÊS..., 2013).
Aqui, o termo “deficiente” é novamente utilizado na reportagem, agora para
descrever a “qualificação” dos professores, mais uma vez também de maneira
generalizante. Primeiro, constrói-se o professor (de ensino fundamental e médio)
graduado em Letras como um profissional despreparado. Utilizar o suposto despre-
paro de professores/as como um dos principais motivos da deficiência do ensino
de inglês no país é também, de certa forma, responsabilizá-los por essa deficiência.
Além disso, nesse mesmo contexto, são implicitamente construídas identidades
negativas para formadores de professores.
Professores/as) de inglês: problemas com a formação
A segunda reportagem a ser analisada, publicada no portal de notícias G1 de
São Carlos, intitula-se “Escolas têm dificuldade para achar professores de inglês
qualificados”. Logo no título há a construção da identidade de não qualificados
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Identidades de professores/as de inglês na mídia:
tendências à homogeneização e possibilidades de contradiscursos
para um grande grupo de professores: dizer que há dificuldade para encontrar
professores/as que sejam qualificados/as com relação ao inglês implica dizer que
muitos/as, ou a maioria, não o são. A reportagem, que argumenta justamente ser
precária a “qualificação” da maioria dos/as professores/as de inglês, contribui para
construir e reproduzir identidades generalizantes e negativamente marcadas, entre
as quais aqui destacamos as dos seguintes trechos:
A procura por cursos de inglês aumentou nas escolas de idiomas da
região de São Carlos (SP), principalmente devido à Copa do Mundo,
em 2014, e as Olimpíadas, em 2016. Mas não há professores suficien-
tes para dar conta dessa demanda. Um dos motivos é a dificuldade
em encontrar profissionais qualificados para preencher as vagas à
disposição. Apesar da situação nas escolas particulares, a Secretaria de
Educação da cidade diz que o problema não ocorre na rede estadual.
(ESCOLAS TÊM..., 2013).
A professora Evandra Rodrigues dá aulas e também faz o treinamento
dos novos “teachers”. Segundo ela, os candidatos quase nunca chegam
com o perfil ideal. “Nem sempre é só a formação, porque às vezes
o professor tem mestrado, mas não é fluente na língua, não tem a
didática de passar o conteúdo para o aluno”, explicou. (G1, 2013).
Nesses fragmentos, podemos notar, mais uma vez, a atribuição da caracterís-
tica de “desqualificados” aos/às professores/as de inglês de maneira geral. Porém,
dessa vez, há um contexto: os/as professores/as de inglês de São Carlos, ou pelo
menos a sua grande maioria, não têm qualificação suficiente para serem aceitos/as
por uma escola. Além disso, ao afirmar que não há professores/as suficientes para
suprir as demandas da Copa do Mundo e das Olimpíadas, responsabiliza-se esses
profissionais – com sua suposta falta de preparo – por uma insuficiência advinda
de questões que são políticas e históricas.
Outra realização de construção identitária muito importante, presente no segundo
fragmento transcrito, diz respeito à preparação dos/as professores/as. A declaração
de que “nem sempre é só a formação, porque às vezes o professor tem mestrado,
mas não é fluente na língua, não tem a didática de passar o conteúdo para o aluno”
97
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
sugere que a formação docente é deficiente nas áreas de conhecimentos relacionados
às habilidades didáticas e de domínio de línguas. Não há na reportagem menção à
falta de estrutura que os cursos de Letras muitas vezes enfrentam para qualificar pro-
fessores/as, assim como não uma discussão ou qualquer referência à maneira como
o ensino de línguas é tratado nos níveis de ensino fundamental e médio da educação
básica, os quais têm carências que impedem que o/a aluno/a chegue ao ensino superior
com níveis mais avançados de proficiência na língua inglesa para obter ali formação
didático-pedagógica nos Cursos de Letras (MASTRELLA-DE-ANDRADE, 2011).
Aqui, novamente, a mídia leva o/a leitor/a a identificar itens do senso comum como
opinião pública, sem fazer uso de dados e fatos que contrariem o próprio discurso
do/a locutor/a, seguindo o que pontua Santos (2000, p. 41) como uma informação
que “não vem da interação entre as pessoas, mas do que é veiculado pela mídia, uma
interpretação interessada, senão interesseira, dos fatos”.
A falta de políticas públicas de valorização do/a
professor/a: possibilidades de contradiscursos
A terceira reportagem a ser analisada intitula-se “Os custos do monolinguismo”,
publicada no jornal Observatório da Imprensa, em 31 de julho de 2012. A reportagem,
que aborda as dificuldades enfrentadas no ensino de inglês no Brasil e do nível de
domínio de inglês dos/as brasileiros/as, apresenta o seguinte trecho (sobre a demanda de
professores/as por mudanças na prova do Exame Nacional do Ensino Médio [Enem]):
As associações de Linguística Aplicada no Brasil (ALAB) e de Pro-
fessores Universitários de Língua Inglesa (Abrapui) consideram que
esse tipo de prova tem um “grande efeito retroativo” no ensino de
línguas estrangeira no país e sugeriram que o Enem, em suas próxi-
mas edições, aplique provas em que todas as questões e alternativas
sejam escritas na língua estrangeira (inglês ou espanhol). A questão
é saber se o governo ouvirá os professores universitários ou, se mais
uma vez, serão ignorados. (CRUZ, 2012).
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Identidades de professores/as de inglês na mídia:
tendências à homogeneização e possibilidades de contradiscursos
Segundo esse fragmento, os/as professores/as pedem que as provas de línguas
estrangeiras do Enem tenham as questões na própria língua estrangeira (inglês ou
espanhol). Ter questões em português para provas de inglês e espanhol ou tê-las na
própria língua estrangeira constitui uma polêmica que tem persistido nos debates entre
professores de diferentes instituições pelo país. Não é nosso intuito aqui aprofundar
a discussão a esse respeito, mas usar o trecho citado para discutir a maneira como
os docentes, de forma geral, têm pouca articulação política e não são considerados
como os especialistas que poderiam ter a dizer sobre assuntos que lhes são pertinentes.
No trecho citado da reportagem, encontramos que “a questão é saber se o
governo ouvirá os professores universitários ou, se mais uma vez, serão ignorados”.
Nessa frase, que encerra o parágrafo e o assunto – o que pode lhe conferir destaque
entre as demais informações do texto –, é atribuída aos/às docentes uma caracterís-
tica de impotência política. Isso se dá por meio da declaração a qual permite enten-
der que, se os/as professores/as forem ignorados/as a respeito de posicionamentos
teóricos que os/as constituem como especialistas da área de ensino-aprendizagem
de línguas, isso não será novidade.
É interessante notar também que, diferentemente das reportagens anteriormente
analisadas, os/as docentes aqui aparecem como especialistas sobre o processo de
ensinar e aprender línguas. Ainda que haja dúvida se de fato serão considerados/as
ou ouvidos/as pelo governo (como sugere a reportagem), são eles/elas que teriam a
dizer sobre essas questões, o que, de certa maneira, contribui para resistir às práticas
que constroem imagens de desvalorização vinculadas aos/às professores/as de línguas.
A reportagem sob o título “Os custos do monolinguismo” ainda apresenta bre-
vemente reflexões sobre o contexto de produção de um ensino precário de inglês.
Essas reflexões podem ser entendidas também como espaço de resistência e como
contradiscurso às identidades de professores negativamente marcadas que foram
analisadas nas reportagens anteriores desta análise, como se vê no trecho a seguir:
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Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
Leitores da Folha de S. Paulo comentaram, ao ler a reportagem sobre
o programa “Inglês sem Fronteiras”, que o brasileiro é preguiçoso
para aprender idiomas. Essa atitude de colocar apenas no indivíduo
a culpa por um problema que atinge toda a sociedade é preocupante
porque desvia o foco do problema e de suas possíveis soluções para
o grupo como um todo. [...] o ensino de línguas estrangeiras tem
melhores resultados quanto mais cedo se iniciar. É, portanto, no ensino
fundamental e no médio que se devem focar os esforços para que um
número maior de jovens fale bem línguas estrangeiras. E isso significa
também valorizar os profissionais formados nas faculdades de Letras,
que se tornarão professores de língua materna e de línguas estrangeiras
nas escolas públicas e privadas. (CRUZ, 2012).
Nesse fragmento, de maneira diferente das reportagens anteriores, encontramos
a figura individual do/a professor/a não como a única a ser responsabilizada pelos
problemas da aprendizagem. No trecho “a atitude de colocar apenas no indivíduo a
culpa por um problema que atinge toda a sociedade é preocupante porque desvia o
foco do problema e de suas possíveis soluções para o grupo como um todo”, temos
espaço aberto para pensar sobre as condições de produção dos problemas de ensino
de inglês no país. A falta de salários atrativos, a falta de estruturação da carreira
docente e a falta de preparação das escolas para abrigar o ensino de línguas (salas
de aula cheias, muitas vezes sem material adequado, número de aulas insuficientes
na grade curricular, etc.) são fatores a serem considerados para uma análise sobre
a falta de políticas públicas de incentivo à aprendizagem de línguas no Brasil.
Sendo a linguagem não um simples veículo de expressão das identidades, mas o
próprio espaço no qual elas são construídas, por meio dos discursos e nas relações de
poder (WOODWARD, 2000; MOITA LOPES, 2002; MASTRELLA-DE-ANDRADE,
2013; MAALOUF, 2000), podemos encontrar, no trecho analisado da reportagem,
também uma possibilidade de resistência a sucessivas construções identitárias negativas
sobre a figura do/a professor/a operadas na mídia.
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Identidades de professores/as de inglês na mídia:
tendências à homogeneização e possibilidades de contradiscursos
Considerações finais
A análise das reportagens aqui empreendida ilustram as discussões teóricas que
apresentamos no início deste capítulo, especialmente no que diz respeito ao caráter
de operação da linguagem e sua relevância na mediação das relações de poder. Isso
acontece porque pudemos observar, nos exemplos apresentados, discursos que
participam das diferentes construções identitárias referentes aos/às professores/as
atuando na construção de imagens que podem integrar o imaginário popular sobre
as posições de sujeito que os/as docentes podem ou devem ocupar.
Vimos, ainda, a partir das análises, que tais discursos constroem posições identitá-
rias negativamente marcadas, tais como as de professores/as “incompetentes”, “despre-
parados/as”, responsáveis por um “engodo”. É importante considerar essa discussão,
uma vez que tais posições identitárias podem lhes conferir – e provavelmente lhes
conferem – menos acesso a posições privilegiadas em relações de poder, tais como
possibilidades de um maior reconhecimento financeiro e social em suas carreiras profis-
sionais, bem como falta de prestígio social. Por essa razão, os/as professores raramente
são ouvidos no que se refere às análises sobre as condições de ensino. Isso, muitas vezes,
é feito por outros/as profissionais (como os/as da área de administração, por exemplo).
Finalmente, outra constatação importante a respeito dos discursos veiculados sobre
professores/as é que, muitas vezes, apresentam estereótipos injustos, distantes das rea-
lidades sociais que de fato precisam ser problematizadas. Por exemplo, muito é dito
sobre o fato de o suposto despreparo dos/as professores/as ser resultado de uma má ou
incompleta formação acadêmica, mas muito pouco é dito sobre as inúmeras dificuldades
que os/as professores/as enfrentam em busca dessa formação acadêmica ideal.
Além disso, raramente encontramos nas reportagens da mídia referência às
estruturas de trabalho que os/as docentes de inglês enfrentam na grande maioria
das escolas, como número de aulas e carga horária incompatíveis com o que seria
necessário para um bom desempenho no ensino da língua, alto número de alunos/
as em sala de aula e falta de estrutura física adequada às necessidades do ensino.
101
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
De acordo com nossas análises, reflexões que analisam também a falta de estru-
turação do ensino de inglês (e de línguas em geral) e o problema da ausência de
políticas públicas de incentivo e valorização da carreira docente para o ensino de
línguas podem contribuir para abrir possibilidades de se repensar as identidades
de professores/as de inglês, uma vez que a responsabilidade do fracasso não se
concentra somente na figura individual do/a professor/a, mas também em todo o
contexto de produção das dificuldades do ensino de inglês no país.
Tendo em vista que a mídia detém enorme poder sobre diferentes segmentos,
principalmente no que diz respeito à construção de identidades na vida da sociedade
(WOODWARD, 2000), é importante analisarmos a maneira como as identidades de
professores/as são construídas, a fim de entrevermos possibilidades de contradiscursos
que permitam mudanças. Em especial, ressaltamos as identidades de professores/as de
línguas, as quais recebem atribuições de desvalor e desprestígio que poucas vezes são
questionadas ou problematizadas, resultando sempre em posições políticas desfavoráveis
para o/a profissional que ensina línguas no país, em especial, aqui, a língua inglesa.
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103
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
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104
CAPÍTULO 5
O uso de relatos pessoais
para abordar questões
identitárias no ensino e
aprendizagem de línguas
Olena Kovalek – UFSCar
Introdução
É inegável que a globalização e o uso dos instrumentos tecnológicos possibili-
tam maior proximidade e interação entre povos de nações diferentes. Nesse sentido,
o contato entre as pessoas tem se intensificado de tal modo que elas se tornam
cidadãs do mundo (RAJAGOPALAN, 2003). As línguas e culturas são difundidas
entre diferentes pessoas, de forma que a noção de fronteiras, como linha divisória,
permanece delineada apenas no traçado de um mapa.
Há, portanto, um processo de desmistificação da visão fechada e da ideia fixa de nação
orientando-se para a proposta do multilinguismo, a qual, segundo Rajagopalan (2003),
possibilita o intercâmbio social, cultural e econômico – na língua de diferentes povos.
Notamos as influências desse contexto global nos conteúdos do ensino e apren-
dizagem de línguas. Alguns materiais didáticos e algumas propostas curriculares
de ensino de línguas estrangeiras já trazem termos como multilinguismo, plurilin-
guismo, interculturalidade, entre outros, para as discussões em sala de aula.
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
No entanto, como esses termos são novos e apresentam pouca exploração
pedagógica, faz-se necessário maior divulgação de artigos, pesquisas, publicações
e propostas na área, com o intuito de torná-los acessíveis aos professores de língua
estrangeira, tanto no âmbito teórico quanto em seu uso prático nas aulas.
Objetivo
Na perspectiva de abordar a língua-cultura no contexto escolar e contemplar
um ensino pedagógico crítico (CANAGARAJAH, 1999 apud RAJAGOPALAN,
2003) que envolva professores e alunos, optamos, neste capítulo, por observar como
as questões identitárias transbordam nas relações interculturais.
Para tanto, utilizaremos relatos pessoais como meio de demonstrar e discutir
com os alunos (em aula de língua estrangeira) de que modo as identidades de um
sujeito podem passar por modificações, alterações, quando postas em relação com
outra(s) língua-cultura(s).
As identidades em jogo no ensino
intercultural de língua estrangeira
A fundamentação teórica do presente capítulo enquadra-se na relação/intera-
ção entre língua-culturas no ensino e aprendizagem de língua estrangeira. Nessa
perspectiva, entendemos que o ensino da língua estrangeira pode assumir a mesma
posição de importância que o ensino da cultura estrangeira.
Ao abordarmos a língua estrangeira, não basta enxergá-la apenas como “instru-
mento para comunicação”, posto que a língua é mais que um instrumento – ela faz
parte da nossa história e nos constitui como sujeito. Dessa forma, compartilhamos
da seguinte visão de língua apresentada por Mendes (2011, p. 143):
106
O uso de relatos pessoais para abordar questões identitárias no ensino e aprendizagem de línguas
Mais do que um instrumento, a língua é um símbolo, um modo de iden-
tificação, um sistema de produção de significados individuais, sociais
e culturais, uma lente através da qual enxergamos a realidade que nos
circunda. Ao estruturar nossos pensamentos e ações, ela faz a mediação
entre nossas experiências e a do outro com o qual interagimos socialmente
através da linguagem, auxiliando-nos a organizar o mundo a nossa volta.
Os sujeitos envolvidos no processo de ensino e aprendizagem de língua estran-
geira constroem modos diferenciados de relacionarem-se com a língua que estão
aprendendo. Pode haver um processo de aproximação com a língua estrangeira,
tornando-a mais ou menos familiar, mais ou menos próxima ao aprendiz. Este
processo de aproximação ou distanciamento do ensino e aprendizagem de língua
estrangeira envolve as questões identitárias do aprendiz.
Segundo Revuz (1998), a primeira língua é tão onipresente na vida do sujeito
que ele tem o sentimento de jamais tê-la aprendido, visto que ela é aprendida
naturalmente (desde pequenos somos constituídos por discursos outros de modo
social, histórico e culturalmente).
Do mesmo modo, a nossa identidade, ou melhor, as nossas identidades (HALL,
2002), são mobilizadas pelo Outro, ou seja, pela alteridade. Somos constituídos por
identidades linguísticas, culturais, nacionais, entre outras, a partir de nossa língua
materna. Segundo Revuz (1998, p. 4):
A descoberta das palavras, das significações linguísticas é indissoci-
ável da experiência da relação com o outro e das significações libidi-
nais (desejo) que se inscrevem nela – voz da mãe: fonte de prazer e
desprazer da criança. Aprender a falar para criança é encontrar alguma
coisa para dizer de seu próprio desejo.
Em contrapartida, na língua estrangeira, o discurso do Outro não nos é familiar.
Os diálogos interculturais colocam o aprendiz em contato com essa outra língua-
-cultura, que é diferente da sua. Desse modo, há um verdadeiro trabalho interno
de expressão realizado pelo sujeito, ou seja, um questionamento permanente sobre
adequação daquilo que ele diz àquilo que ele quer dizer.
107
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
De acordo com Revuz (1998, p. 8, grifo nosso), há uma identificação forçosa
com os locutores nativos, seu modo de pensar, seus costumes; portanto: “Quanto
melhor se fala uma língua, mais se desenvolve o sentimento de pertencer à cultura,
à comunidade acolhida, e mais se experimenta um sentimento de deslocamento em
relação à comunidade de origem”.
O sentimento de deslocamento ocorre, no sujeito, a partir do momento que a língua
estrangeira passa a ser um novo espaço potencial para o sujeito se expressar, de modo a
fazê-lo questionar a relação da sua língua materna com a língua estrangeira. Nesse sen-
tido, o aprendiz da língua estrangeira passa por uma relação complexa, de estruturação e
restruturação na língua, que ele manterá consigo, com os outros e com esse novo saber.
Do mesmo modo, a identidade do sujeito em interação/relação com o outro
também sofrerá mudanças. Assim, não tomamos o posicionamento de que a iden-
tidade do sujeito é acabada, mas entendemos que ela está em movimento constante
e, portanto, em constante modificação.
Concordamos com Kristeva (1991 apud CORACINI, 2003) quando diz que
somos estrangeiros de nós mesmos, visto que dependemos do outro para entender-
mos quem somos. Segundo a autora (2003, p. 151): “a imagem que fazemos de nós
é construída, ao longo da vida, por aqueles com quem convivemos e estes vão provo-
cando em nós deslocamentos, ressignificações, novas identificações pela linguagem”.
O mesmo ocorre no processo de ensino e aprendizagem de uma segunda lín-
gua, posto que, para que ele possa ser bem-sucedido, o aluno precisa se inscrever
na língua do outro (CORACINI, 2003), ou seja, ele precisa ter a competência de
“se dizer” na e pela língua do outro. Novamente, há um desarranjo do sujeito e
de sua identidade provocado pelo deslocar-se na língua do outro (o estrangeiro).
Em síntese, defendemos que, quando a abordagem da interculturalidade e a sua
experiência for realizada em sala de aula por meio de atividades para sensibilização
dos alunos a cultura outra, o professor precisa respeitar as identidades linguísticas e
culturais dos seus alunos (BYRAM; GRIBKOVA; STARKEY, 2002), evitando tanto
a sobrevalorização quanto o apagamento de língua-culturas envolvidas no processo.
108
O uso de relatos pessoais para abordar questões identitárias no ensino e aprendizagem de línguas
O ensino da língua estrangeira irá confrontar o aprendiz com um outro recorte do
real que é diferente do da sua língua materna. Dessa forma, como orienta Revuz (1998,
p. 153): “É preciso, portanto, compreender que a língua estrangeira não é um sistema
vazio de sentido: ela traz consigo, à revelia do aprendiz, uma carga ideológica que o
coloca em conflito permanente com a ideologia da língua materna, o que é explicado
pela maneira diferente de configurar as cores, os objetos, o sistema dos tempos verbais”.
Sendo assim, a aprendizagem de outra língua nos ajuda a repensar a nossa lín-
gua. Fazemos isso constantemente durante o processo de aprendizagem de línguas,
pois partimos do referencial que temos, ou seja, de nossa língua materna.
Segundo Revuz (1998), quanto mais nos aproximarmos e aceitarmos a língua
estrangeira como menos estrangeira a nós, maior será a facilidade para superarmos
algumas dificuldades que envolvem questões identitárias do aprendiz. Alguns pontos
que influem na identidade, de acordo com a autora (1998), são:
1) a facilidade ou não para articulação dos sons na outra língua;
2) a nominação em língua estrangeira (visto que estamos trabalhando com ou-
tro recorte do real);
3) o deslocamento do referente: a língua estrangeira desloca o referente (que
é carregado de carga afetiva) e os signos linguísticos da língua materna,
abrindo espaço para outras significações, outros enunciados;
4) o sentimento de pertencimento: aprender uma língua é sempre tornar-se um outro;
5) o diferente reduzido ao mesmo: passar pela experiência de ruptura ou perda,
de descoberta ou apropriação, provocada pela necessidade de expressar-se
em uma outra língua.
Enfim, buscaremos observar como essas identidades são expostas em relatos
pessoais quando o sujeito é posto em relação intercultural com outra língua-cultura.
109
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
A importância dos relatos pessoais para abordar
a interculturalidade e a(s) identidade(s)
No contexto brasileiro, notamos que muitos professores e alunos não têm o privi-
légio de experienciar o contato com o outro por meio de viagens ao exterior. Sabemos,
também, que há vários programas oferecidos pelo governo que possibilitam tanto ao
professor quanto ao aluno essa oportunidade, como, por exemplo, a Fulbright, que
incentiva o intercâmbio dos professores da rede pública, e o Programa Ciências sem
Fronteiras, o qual possibilita que os alunos experienciem o intercâmbio. Apesar da
oportunidade, muitos professores e alunos esbarram em um dos fatores necessários
para a realização do intercâmbio, a proficiência na língua estrangeira.
Pensando nesses professores e alunos com dificuldade para viajar para o exterior
e naqueles que têm essa oportunidade, mas precisam melhorar a proficiência na língua
estrangeira, propomos um olhar para relatos pessoais daqueles que já vivenciaram o
contato com o outro por meio da interculturalidade. O intuito é criar uma reflexão sobre
essa experiência e uma sensibilização do processo intercultural mediante esses relatos.
Além disso, por meio dos relatos, podemos perceber questões identitárias con-
flitantes que precisam ser expostas aos alunos e professores que constatarão essa
experiência primeiramente em sala de aula (pela experiência do outro) e posterior-
mente em possíveis viagens para o exterior (para, então, uma experiência pessoal).
Análise da experiência intercultural por meio de relatos
O primeiro relato pessoal que escolhemos para análise das questões identitárias
foi retirado do livro The multilingual subject, da autora Kramsch (2009). O texto
serviu como material de apoio para explorar com os alunos, em sala de aula, as
questões identitárias frente à experiência intercultural.
110
O uso de relatos pessoais para abordar questões identitárias no ensino e aprendizagem de línguas
De modo geral, podemos observar que a experiência intercultural tanto da
aluna quanto da professora, no relato, trarão vários conflitos identitários internos.
Desse modo, observemos:
Durante o curso de cinco dias, lágrimas escorriam constantemente do
meu rosto por razões exteriores à minha consciência. Inúmeras vezes
ao dia, minhas costas entraram em espasmo, embora eu não tenha
apresentado nenhum problema nas costas, até o momento. Uma das
participantes do curso era uma profissional, jovem, casada com um
americano e que morava nos Estados Unidos. Ela nos disse: “Minha
irmã vem me visitar neste verão, então, eu acho que terei que voltar ao
meu eu sueco para me preparar para isso”. Ela estava claramente muito
sensível ao aspecto multidimensional da sua identidade, tanto linguística
quanto culturalmente. Então, eu me perguntei: “Você tem um eu persa?”
Apesar de usar diariamente o persa como língua para me comunicar
em casa (inglês é minha primeira língua) desde 1979, criando uma
criança bilíngue e ministrando rotineiramente cursos sobre comunicação
intercultural para professores, nunca levei em consideração que talvez
eu tivesse uma identidade persa (um eu persa). Quando partilhei essa
anedota com colegas (professores da faculdade), eles riram e disseram:
“Você tem também. Percebemos que você troca toda hora. Você fala
mais alto em persa do que em inglês”. Ao refletir sobre os comentários
deles, eu notei que estavam certos, e as dores que eu sentia junto com
as lágrimas que derramei eram conexões somáticas ligadas a questões
de identidades mal resolvidas. Sou uma pessoa diferente quando falo
persa? Certamente. Teria eu respondido a esta questão de forma afirma-
tiva cinco anos atrás? Absolutamente não. (tradução nossa).1
1
“Over the course of five days, tears often streamed down my face for reasons outside my consciousness. My back went
into spasms several times a day although I had not had any back problems to date. One of the course participants was
a young Swedish professional married to an American living in the Midwestern part of the U.S. She said to us: ‘My
sister is coming to visit this summer, so I guess I will have to get back into my Swedish self to prepare for this.’ She
was clearly very aware of this multidimensional aspect of her identity, both linguistically and culturally. I then asked
myself ‘Do you have a Persian self?’ In spite of using Persian on a daily basis as a language of communication in
my home (English is my first language) since 1979, raising a bilingual child, and teaching routinely on intercultural
communication course for language educators, it had never occurred to me to consider that I might have a 'Persian
self'. When I shared this anecdote with several Persian colleagues [...] they laughed and said 'You do too. We see you
switch all time. You speak more loudly in Persian than in English’. When I thought about their comments, I realized
they were right and the tears I was shedding along with the pain in my lower back were somatic connections to
identity issues I had not begun to solve. Am I a different person when I speak Persian? Absolutely. Would I have
answered this question affirmatively five years ago? Absolutely not.”
111
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
No excerto transcrito, notamos que a experiência da aluna de reencontro com sua irmã
suíça a fez recuperar sua “identidade suíça”. Destacamos o trecho em que a aluna demos-
tra seus sentimentos em relação à visita de sua irmã: “Minha irmã vem me visitar neste
verão, então, eu acho que terei que voltar ao meu eu sueco para me preparar para isso”.
A expectativa da aluna de ver a irmã despertou, em sua professora, a memória
de que ela também tinha uma identidade outra, a qual é revelada a partir de um
questionamento que ela faz para si: “Você tem um eu persa?”.
Para discutir essas identidades (da aluna e da professora) presentes no relato, os
professores podem ler esses relatos com os alunos e pedir para que eles identifiquem
as questões identitárias encontradas no texto e expressas pela aluna e pela professora.
Para dar continuidade à discussão, precisamos recuperar alguns trechos importantes da
fundamentação para embasar o professor em sua prática e para discutir o relato com os alu-
nos. Portanto, veja-se a, a seguir, um esquema a respeito do no ensino de língua estrangeira.
Figura 1: Identidades em jogo na interculturalidade
Fonte: Elaborado pela autora.
112
O uso de relatos pessoais para abordar questões identitárias no ensino e aprendizagem de línguas
De acordo com Revuz (1998), a cada língua que aprendemos fazemos associações
entre ela e nossas memórias e experiências vividas. No relato, a professora, ao ensinar a
língua inglesa e tê-la como língua primeira (“inglês é minha primeira língua”), recupera,
em sua memória (e por meio da experiência relatada por sua aluna), que ela tinha, em
algum lugar dentro de si, uma outra identidade, ou seja, uma identidade persa.
Nesse momento, a professora toma consciência de que utiliza a língua persa
em suas rotinas diárias e ao se comunicar com a filha em casa, como é possível
verificar em: “Apesar de usar diariamente o persa como lnicar com a filomunicar
em casa [...] criando uma criança bilíngue e ministrando rotineiramente cursos
sobre comunicação intercultural para professores, nunca levei em consideração
que talvez eu tivesse uma identidade persa (um eu persa)”. A professora precisou
observar a experiência intercultural de sua aluna, para então refletir sobre a sua.
Segundo Revuz (1998), a língua estrangeira pode nos ser familiar, porém,
jamais como a língua materna, visto que é por meio da primeira língua que nos
constituímos por discursos outros, de modo social, histórico e cultural. Os nossos
discursos e a(s) nossa(s) identidade(s) são mobilizados pelo outro, ou seja, na
alteridade. Nesse sentido, ao falar de identidade, precisamos falar também da alte-
ridade, pois somos constituídos por identidades linguísticas, culturais, nacionais,
entre outras, a partir da experiência com nossa língua materna.
Em contrapartida, na língua estrangeira, não temos esse discurso do Outro.
Há um verdadeiro trabalho de expressão, um questionamento permanente sobre
adequação daquilo que é dito àquilo que se quer dizer. Há uma identificação forçosa
com os locutores nativos, seu modo de pensar e seus costumes. “Quanto melhor se
fala uma língua, mais se desenvolve o sentimento de pertencer à cultura, à comu-
nidade acolhida, e mais se experimenta um sentimento de deslocamento em relação
à comunidade de origem” (REVUZ, 1998, p. 227, grifo nosso). Percebemos esse
sentimento de deslocamento no relato da professora, e esse sentimento é tão forte
que a afeta fisicamente (por meio de suas dores nas costas) e emocionalmente (por
meio de suas lágrimas “sem explicação”).
113
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
A língua estrangeira permite ao sujeito expressar-se num novo espaço potencial,
levando-o a questionar a relação atual instaurada entre si e sua língua. Essa percepção
da relação sujeito-língua materna e sujeito-língua estrangeira, no texto, é percebida
pelo Outro. Desse modo, são os colegas da professora que chamam a sua atenção
para o modo como seu comportamento modifica-se de uma língua para a outra: “[...]
We see you switch all time. You speak more loudly in Persian than in English”.
A percepção desse outro eu, dessa nova identidade na professora, irá aos poucos
confortá-la, à medida que há uma aceitação, uma aproximação a esse seu outro eu.
Nessa perspectiva, Revuz (1998, p. 229) afirma que “Aprender uma outra língua
é fazer a experiência de seu próprio estranhamento no mesmo momento em que
nos familiarizamos com o estranho da língua e da comunidade que a faz viver”.
É necessário afrontar esse espaço silencioso, existente no falante, no qual é pre-
ciso se inventar para dizer “eu”. Portanto, notamos, no relato da professora, que ela só
resolve seus problemas emocionais e físicos (conexões somáticas) ligados a questões
identitárias quando reconhece esse seu outro eu, persa, que é diferente do seu eu inglês.
Concordamos, então, com Revuz (1998, p. 217), quando defende que: “Toda
tentativa para aprender uma outra língua vem perturbar, questionar, modificar aquilo
que está inscrito em nós com as palavras dessa primeira língua”. Dessa forma,
muito antes de ser objeto de conhecimento, a língua é material fundador de nosso
psiquismo e de nossa vida relacional.
Por meio desse relato, das reflexões e discussões teóricas (que podem servir
como embasamento implícito do professor quando posto em sua prática em sala de
aula), podemos apresentar aos alunos noções básicas referentes à língua materna,
à língua estrangeira, à relação entre essas línguas e às questões de identidade e
alteridade. Os relatos podem servir como apoio para essas discussões e permitir
que o professor explore, também, outros relatos culturais dos seus próprios alunos.
A ideia do uso de relatos surgiu a fim de auxiliar o professor a ter consciência de
como trabalhar os aspectos culturais em sala de aula e, em seguida, na sua prática, con-
siguir conscientizar também seus alunos sobre a importância de conhecer esses aspectos
114
O uso de relatos pessoais para abordar questões identitárias no ensino e aprendizagem de línguas
culturais. A experiência intercultural poderá ser pensada em sala de aula, de modo que
o aluno possa estar preparado para conhecer a língua-outra e saber lidar com ela com
certa sensibilidade e respeito. Por fim, podemos, de certo modo, preparar professores e
alunos para observar as experiências interculturais em sala de aula e aquelas experiências
que eles possivelmente terão ao pleitear uma viagem de intercâmbio.
Análise de uma atividade de um livro
didático que utiliza relatos
Observamos, no tópico anterior, como é possível propor uma atividade reflexiva
de análise dos relatos para abordar a interculturalidade e as questões identitárias
em sala de aula de língua estrangeira. Agora, para aprofundarmos o uso prático
dos relatos em sala de aula, optamos por analisar uma atividade que consta em um
dos cadernos2 distribuídos, pelo estado de São Paulo às redes públicas de ensino.
Optamos3 pela análise do volume 1 do Caderno da Primeira Série do Ensino Médio.
A atividade encontra-se no tópico chamado de “Situação de Aprendizagem 3”, com
o título: Intercultural Studies 2 (Estudos Interculturais). O título dessa situação
de aprendizagem já nos desperta a curiosidade de saber como serão abordados os
Estudos Interculturais na atividade.
O enunciado da atividade apresenta o título do texto: AFS Benefits of Intercultural
Studies (AFS Benefício dos Estudos Interculturais). Esse título mostra a importância de
se abordar os Estudos Interculturais com os alunos no ensino e aprendizagem de língua
estranheira. E é isto que esperamos que seja desenvolvido na atividade.
2
Os Cadernos são materiais didáticos distribuídos aos alunos e professores da Rede Pública. Cada disciplina
tem quatro cadernos, ou seja, quatro volumes que são entregues a cada bimestre. No final do ano, a soma dos
quatro cadernos resultaria em um livro didático. Nesse sentido, é como se um livro didático fosse dividido em
quatro cadernos ao longo do ano.
3
Optamos pela análise desse caderno, pois a desenvolvemos em nossa dissertação de mestrado.
115
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
Os alunos são orientados a responder às perguntas em português, como notamos
pelo enunciado: “Responda às perguntas em português” (tradução nossa).4 Ainda,
notamos que as três perguntas da atividade seguem o objetivo, que é localizar
informações específicas a partir da leitura de um texto proposto pelo professor.
Dessa forma, no item “a”, “No texto, encontramos depoimentos escritos ou estu-
dantes que participaram do programa. Quantos são os participantes? Quais são seus
nomes?” (tradução nossa),5 os aprendizes precisam localizar no texto que são três
participantes, chamados Vilde, Alexis e Ho. Na questão “b”, “Os depoimentos foram
escritos por meninos ou meninas? De onde eles são? Onde eles estudam?” (tradução
nossa),6 os alunos precisam localizar no texto a palavra: women (mulheres), para per-
ceberem que os relatos foram escritos por mulheres, visto que, como notamos, o nome
dos três estudantes não possibilita esse entendimento. Além disso, os alunos precisam
associar as estudantes a seus países de origem e onde estudaram, por exemplo, “Vilde é
da Noruega e estudou no México” (resposta sugerida pelo Caderno do Professor, p. 30).
Já no item “c”, “O que é o AFS 2007 – A minha opinião diferente? Onde você pode
encontrar os ensaios/textos?”,7 é demandado o conhecimento prévio dos alunos refe-
rente a palavras-chaves, como contest (concurso) e essays (redações ou ensaios), para
responderem a essa pergunta. Por isso, o uso de um glossário torna-se fundamental para
ajudar os aprendizes a responderem às perguntas em português. Notamos, pela análise
das questões, que há um trabalho, a ser realizado pelos alunos, de buscar informações
no texto. No entanto, a interpretação do texto acaba não sendo levada em consideração.
Tendo isso em vista, julgamos que os relatos escritos pelas estudantes na página da
internet possibilitariam um trabalho de interpretação dos conteúdos culturais referentes à
experiência vivida por elas em outro país, ou seja, experiências interculturais de contato
com o outro, que não são exploradas pela atividade. Os relatos de experiências pessoais
4
“Answer the questions in Portuguese.”
5
“In the text we find testimonials written by students who joined the program. How many are there? What are
their names?
6
“Are the testimonials written by boys or girls? Where are they from? Where did they study?”
7
“What is the 2007 AFS ‘My different view’? Where can you find the essays/texts?”
116
O uso de relatos pessoais para abordar questões identitárias no ensino e aprendizagem de línguas
das estudantes revelam o seu olhar em relação ao outro, no processo da alteridade, e,
ao mesmo tempo, as suas identidades são modificadas pelo outro.
Assim, sugerimos que o professor discuta com os alunos cada um desses relatos, a fim
de que eles reflitam, por meio de suas interpretações, sobre como as estudantes se sentem
ao conviver com a cultura do outro. Para auxiliá-los, o professor pode incentivá-los na
busca dos valores positivos ou negativos em relação ao outro, das mudanças pessoais que
o contato com o outro revelaram sobre elas mesmas, das crenças e descrenças promovidas
pelo contato com esse outro. Agindo dessa forma, o professor é um “agente facilitador”
(MENDES, 2011) para a abordagem da interculturalidade em sala de aula.
Observemos os relatos e uma possível forma de o professor analisá-los com os alunos:
Quadro 1: Análise dos relatos por meio de questões identitárias
Relatos retirados da atividade 1 Questões identitárias
“O México causou algo em mim, e em “O México causou algo em mim, e em todos
todos aqueles que foram para Benito Juárez aqueles que foram [...]”
naquele outono. Eu não me tornei uma ↓
pessoa ‘nova’. Eu não sei ao certo se quero Consciência do outro que a modifica
dizer que mudei. Eu experienciei uma nova (CORACINI, 2003)/identidade mobilizada pela
dimensão para minha vida, e uma base mais alteridade novas identidades (HALL, 2002).
ampla de equilíbrio ao construir minha per- ↓
cepção do mundo,” (tradução nossa).8 “Eu não me tornei uma ‘nova’ pessoa [...] eu
não sei se quero dizer que mudei.”
↓
Distancia-se da cultura do outro, pois se an-
cora na sua identidade materna. O discurso
do outro não lhe é familiar (REVUZ, 1998).
↓
“Eu experienciei uma nova dimensão para mi-
nha vida, e uma base mais ampla de equilíbrio
ao construir minha percepção do mundo.”
↓
Evidencia-se a experiência com o outro,
parte da sua concepção do mundo, da sua
identidade. Os sujeitos, por meio da língua
estrangeira, constroem modos diferenciados
de relacionar-se com a língua que estão
aprendendo (REVUZ, 1998).
8
“Mexico did something to me, and to everyone else who came to Benito Juárez that fall. I did not become a
‘new’ person. I am not even sure I want to say I changed. I did get a new dimension to my life, and a broader
foundation to balance on when making my perception of the world.”
117
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
“O tempo que passei na Alemanha me ensi- “O tempo que passei na Alemanha me ensi-
nou o valor de fazer perguntas e de aprender nou o valor de fazer perguntas e de aprender
a verdade deles, com dificuldade, por meio a verdade deles, com dificuldade, por meio
de suas respostas.”
de suas respostas. A Alemanha mudou, a meu
ver, de uma ilha da ‘Cerveja e Salsicha’ para Há aproximação em relação ao outro. A des-
uma ilha de pessoas sinceras, cujas atitudes e coberta do outro leva o aprendiz a adequar-
percepções refletem a história deles. Conse- -se à “nova” língua e aprendê-la.
quentemente, agora percebo que todo país da
“A Alemanha mudou, a meu ver, de uma
Terra vale a pena, sem dúvida ser explorado e ilha da ‘Cerveja e Salsicha’ para uma ilha de
compreendido”. (tradução nossa).9 pessoas sinceras, cujas atitudes e percepções
refletem a história deles.”
↓
Percebe-se o deslocamento do referente.
A língua estrangeira é o espaço para novas
significações, outros enunciados (REVUZ,
1998). Busca-se compreender o outro em
sua realidade histórica, social e cultural.
“Antes de partir para a Itália, eu constante- “Antes de partir para a Itália, eu constante-
mente me preocupava se dariam risada de mente me preocupava se dariam risada de
mim, se me encaixariam. Hoje eu percebo mim, se me encaixariam.”
como eu era bobo.” (tradução nossa)”.10 ↓
O referente outro passa pela experiência da
carga afetiva (REVUZ, 1998) da língua ma-
terna. Observa-se o outro a partir da identidade
materna, o que causa medo do desconhecido.
“Hoje eu percebo como eu era bobo.”
↓
Descobrir o outro como diferente de si leva
à aproximação com ele. Há um proces-
so de ressignificação e reestruturação
em relação ao outro (KRISTEVA, 1991
apud CORACINI, 2003).
Fonte: Elaborada pela autora.
Observamos, no caderno analisado, que os relatos apresentados para a atividade
apresentam a fonte da qual foram retiradas as informações, no caso, a American
Field Service, o que atribui confiabilidade aos relatos (KRAMSCH, 1993) aos
9
“My time in Germany taught me the value of asking questions, and of learning their true, if harsh, answers.
Germany has changed, in my eyes, from a land of ‘Bier und Bratwurst’ to one of sincere people, whose attitudes
and perceptions reflect their history. Consequently, I now realize that every country on earth is undoubtedly
worthy of exploration and understanding.”
10
“Before leaving for Italy, I constantly worried whether I´d be laughed at, whether I´d fit in. Now I realize how
silly I was.”
118
O uso de relatos pessoais para abordar questões identitárias no ensino e aprendizagem de línguas
relatos apresentados, possibilitando que professor e alunos trabalhem com as dife-
rentes vozes, diferentes significados (BYRAM; GRIBKOVA; STARKEY, 2002)
dentro de um contexto cultural, além de permitir que encontrem posicionamentos
diferentes quando culturas diferentes são postas em contato.
Podemos concluir, por meio da análise da atividade 1 deste Caderno, que:
• a atividade apresenta o termo “Estudos Interculturais”; porém, não o explica para o
professor nos procedimentos, tampouco refere-se ao modo como abordá-lo;
• as perguntas sugeridas pela atividade possibilitam a localização de informa-
ções no texto, assim como é proposto no objetivo da atividade;
• o trabalho com as palavras do texto, por meio de um glossário, auxilia os
alunos a responderem às perguntas da atividade;
• a interpretação do texto não é levada em consideração;
• a atividade possibilita um trabalho de interpretação dos conteúdos culturais
por meio dos relatos, que trazem experiências interculturais das alunas;
• a atividade possibilita a abordagem das questões identitárias;
• a atividade apresenta a fonte da qual os relatos foram retirados.
Considerações finais
Neste capítulo, cujo objetivo é atribuir à prática de ensino e aprendizagem dos aspec-
tos culturais a mesma importância e posição do ensino da língua estrangeira, optamos por
apresentar relatos pessoais daqueles que experienciaram e conviveram com a língua-cultura
outra, no processo intercultural. A partir dos relatos, buscamos demonstrar e discutir com os
alunos (em aula de língua estrangeira): de que modo as identidades, de um sujeito, podem
passar por modificações, alterações, quando postas em relação com outra(s) língua-cultura(s).
A discussão fundamentou-se nos textos teóricos de Revuz (1998), Coracini (2003),
Hall (2002), Byram, Gribkova e Starkey (2002), entre outros. Propomos a análise dos
relatos retirados do livro The multilingual subject, da autora Kramsch (2009). E fize-
mos a análise de uma atividade do Caderno do aluno que também apresentava relatos.
119
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
Concluímos, mediante as análises, que é possível abordar questões identitárias
com os alunos (em sala de aula de língua estrangeira) por meio de experiências
interculturais apresentadas em relatos pessoais. Entendemos que esse trabalho pos-
sibilita que tanto o professor quanto os alunos tenham um primeiro contato com os
jogos identitários trazidos pelos sujeitos nos relatos. Além disso, essa abordagem do
professor de língua estrangeira com seus alunos permite a sensibilização destes em
relação às questões culturais e prepara-os para uma possível viagem de intercâmbio,
quando experienciarão o contato com a língua-cultura outra.
Referências
BYRAM, M.; GRIBKOVA, B.; STARKEY, H. Developing the intercultural dimension in
language teaching: a practical introduction for teachers. Strasbourg: Council of Europe, 2002.
CORACINI, M. J. R. F. Língua estrangeira e Língua materna: uma questão de sujeito e
identidade. In: CORACINI, M. J. R. F. (org.). Identidade & discurso: (des)construindo
subjetividades. Campinas: Unicamp; Chapecó: Argos, 2003. p. 139-159.
HALL, S. A identidade cultural na pós modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e
Guacira Lopes LouroTOMAZ, T.S. e LOURO, G. L. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
KRAMSCH, C. Context and culture in language teaching. Oxford: Oxford University Press, 1993.
KRAMSCH, C. The multilingual subject. Oxford: Oxford University Press, 2009.
MENDES, E. O português como língua de mediação cultural: por uma formação intercultu-
ral de professores e alunos de PLE. In: MENDES, E. (org.). Diálogos interculturais: ensino
e formação em português língua estrangeira. Campinas: Pontes Editores, 2011. p. 139-158.
RAJAGOPALAN, K. Por uma linguística crítica: linguagem, identidade e a questão ética.
São Paulo: Parábola Editorial, 2003.
120
O uso de relatos pessoais para abordar questões identitárias no ensino e aprendizagem de línguas
REVUZ, C. A língua estrangeira entre o desejo de um outro lugar e o risco do exílio. In:
SIGNORINI, I. (org.). Língua(gem) e identidade: elementos para discussão no campo
aplicado. Campinas: Mercado das Letras, 1998.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação. Caderno do aluno: LEM – Inglês, ensino
médio – 1ª série. São Paulo: SEE, 2009.V. 1.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação. Caderno do professor: LEM – Inglês,
ensino médio – 1ª série. São Paulo: SEE, 2009. V. 1.
121
CAPÍTULO 6
O estágio supervisionado
de língua inglesa à luz da
Linguística Aplicada
Domingos Sávio Pimentel Siqueira – UFBA
Mônica Veloso Borges – Uneb/UFBA
O pensamento de fronteira torna-se, então, a epistemologia
necessária para libertar e descolonizar o conhecimento e, no
processo, construir histórias locais descolonizadas.
(MIGNOLO, 2012, p. x, tradução nossa).1
Introdução
O estágio supervisionado, como sabemos, é a etapa dos cursos de licenciatura em
que os futuros professores entram em contato com a realidade da sala de aula e têm a
oportunidade de se engajar na sua tarefa docente inicial. No caso do futuro professor
de língua inglesa formado nos cursos de Letras oferecidos em muitas de nossas uni-
versidades, é o momento de colocar em prática todo o conhecimento da língua-alvo
escolhida, assim como de refletir sobre os aportes teóricos adquiridos ao longo de sua
graduação. Chegado este período especial e tão importante, o grande desafio que se
impõe, entre vários, é aquele de fazer a devida associação entre teoria e prática para
1
“Border thinking becomes, then, the necessary epistemology to delink and decolonize knowledge and, in the
process, to build decolonial local histories” (MIGNOLO, 2012, p. x).
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
que não haja distanciamento entre ambas, mas sim uma associação sólida que, de
maneira contundente, seja capaz de provocar mudanças e melhorias no processo de
formação destes cada vez mais importantes profissionais em um contexto de globa-
lização cuja língua de interação mais difundida é exatamente o inglês. Como ressalta
Seidlhofer (2011, p. 2, grifo do autor), nestes tempos contemporâneos, “o inglês não
é apenas uma língua internacional, mas a língua internacional”.2
Segundo Vieira-Abrahão (2007, p. 157), “o estágio supervisionado envolve obser-
vação, reflexão e ação direta no contexto de ação futura”. É o encontro com a prática
pedagógica na sua fase inicial, a experiência que podemos considerar como uma espécie
de laboratório da vida real que, ainda na visão da autora, “pode ser enriquecido e não
substituído com tecnologias da informação” (VIEIRA-ABRAHÃO, 2007, p. 157).
Os elementos que constituem a dinâmica cotidiana do estágio supervisionado são
estabelecidos a partir de ações que não estão necessariamente contempladas em um
roteiro predeterminado. Muitas das atitudes a serem encampadas pelos estagiários,
estejam eles conscientes ou não de tal fato, devem partir de situações improvisa-
das diante do inesperado, o que vai exigir de cada um deles a capacidade de refle-
tir cotidianamente sobre os inúmeros obstáculos que estarão sempre os rodeando.
O envolvimento de diversos atores no âmbito escolar, como o professor regente,
representantes da direção e coordenação escolar, pais de alunos, além do próprio pro-
fessor formador, responsável pela disciplina de estágio no curso de Letras, estabelece
uma rede de interações que deve ser muito bem administrada pelo futuro professor
neste primeiro momento oficial de prática pedagógica, para que seja alcançado o êxito
desejado na sua experiência em sala de aula, neste caso específico, de língua inglesa.
Considerando tais aspectos, este capítulo trata de alguns questionamentos que
temos encontrado ao longo de nossa experiência como professores formadores e
também como responsáveis, em vários momentos de nossa trajetória acadêmica,
pela disciplina Estágio Supervisionado, assim como da nossa crença na necessidade
2
“English is not only an international language, but the international language.”
124
O estágio supervisionado de língua inglesa à luz da Linguística Aplicada
de evidenciarmos a pesquisa em Linguística Aplicada desde o começo da vida
profissional desses aprendizes. Certamente, não ambiciamos apresentar respostas
para todos os questionamentos aqui delineados, uma vez que muitos deles fazem
parte de um trabalho de pesquisa de mestrado (BORGES, 2015), cujo objeto cen-
tral é a sala de aula da disciplina Estágio Supervisionado. Acreditamos, também,
no poder da autoanálise diante da prática inicial, assim como na reflexão crítica
sobre o empreendimento pedagógico, certos de que tal postura é fundamental para
o período do estágio supervisionado do professor-estudante de línguas.
Desvelando o contexto
O trabalho contínuo de vários anos à frente da disciplina Estágio Supervisionado
em Língua Inglesa levou a diversos momentos em que nos questionamos sobre o
planejamento do curso, desde o período de construção dos planos com os alunos
estagiários até o período final, da leitura dos relatórios dos professores em formação.
Muitos desses questionamentos, na realidade, levaram-nos, entre outras coisas, a
sentir fortemente que era preciso repensar o nosso próprio trabalho como professores
formadores. Entre muitas questões que, não raramente, atiçavam nossos próprios con-
flitos internos, as mais recorrentes foram: Qual o objetivo do Estágio para os futuros
professores de língua inglesa? Como devemos orientar o Estágio? Devemos fazer
intervenções? Teoria e prática andam juntas? Qual o papel do professor orientador
de Estágio? O orientador de Estágio deve ser especialista em áreas como Linguística
Aplicada, Pedagogia ou Educação Geral? Qual o papel do professor regente? Qual
o papel do aluno estagiário? Como ensinar? Como criticar? Como se relacionar
em um mundo tão heterogêneo e cada vez mais dinâmico? Como bem nos lembra
Fabrício (2006), ocupamos, atualmente, espaços de “desaprendizagem” cada vez
mais complexos, fincados em momentos de transição que parecem ser a regra, em
fluxo contínuo, refletindo a condição de trânsito permanente. A escola que aguarda
o futuro professor, em maior ou menor grau, não escapa a tal realidade.
125
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
Na nossa visão, as questões possivelmente “perturbadoras” aqui colocadas
são bastante pertinentes e importantes para todos aqueles envolvidos no cotidiano
da formação profissional de futuros professores de línguas. Em um sentido amplo,
longe de ser um desafio de fácil resolução, o ato de se pensar o funcionamento de
uma sala de aula de língua estrangeira passa, necessariamente, por entendê-la como
um espaço de diversidade e dotada de um alto grau de complexidade. Em especial,
a sala de aula de inglês, língua franca global da contemporaneidade, cujo avanço
pelas mais diversas partes do planeta tem provocado inúmeras reflexões e debates
acalorados sobre as premissas básicas do seu ensino, tradicionalmente amparado
em construtos hoje tidos como superados, precisa ser totalmente redesenhada,
repensada e reconstruída para que passe a ser orientada por parâmetros realistas e
não idealizados, cujo pano de fundo, historicamente, têm sido modelos, práticas e
valores oriundos dos centros hegemônicos de língua inglesa. Tal argumento encontra
ressonância nas palavras de Pennycook (1990, p. 303), o qual, já há algum tempo,
afirmava que “uma lacuna significativa na área de educação de segunda língua é
exatamente o seu distanciamento das questões mais amplas da teoria educacional”.
Para este trabalho em particular, é natural que estejamos longe de responder
a todas as nossas inquietações, pois o que buscamos aqui é nos aventurar em uma
tentativa de esboçar um debate que leve à reflexão sobre o fazer cotidiano da sala
de aula de língua estrangeira e que servirá de contexto real para o futuro professor
de inglês no nosso país. Para tanto, optamos em fazer uso das premissas da Linguís-
tica Aplicada como um espaço de diálogo com a educação em geral, cujo objetivo
final será sempre a ampliação da nossa capacidade de refletir sobre e responder aos
desafios demandados pelo ambiente escolar contemporâneo.
Nesse sentido, é importante salientar que, na nossa elaboração, distanciamo-
-nos da versão da Linguística Aplicada que, como aponta Kumaravadivelu (2006, p.
137), “ainda é informada quase que exclusivamente por questões de base linguística,
referentes à política e ao planejamento da língua inglesa, ao ensino e aprendizagem
de inglês como segunda língua ou língua estrangeira”, e filiamo-nos àquela que se
126
O estágio supervisionado de língua inglesa à luz da Linguística Aplicada
pauta em “operar dentro de uma visão de construção de conhecimento que tente
compreender a questão da pesquisa na perspectiva de várias áreas do conhecimento,
com a finalidade de integrá-las” (MOITA LOPES, 2006, p. 98). Entre as diversas pos-
sibilidades de abordagem que envolvem a relação ensino e aprendizagem de línguas,
materna ou estrangeira, nos tempos atuais, e que circulam na hoste desta Linguística
Aplicada concebida como “indisciplinar” (MOITA LOPES, 2006), escolhemos a
abordagem intercultural,3 elegendo-a como âncora para o nosso objeto de reflexão.
A dificuldade de se repensar o momento do estágio não está somente no traba-
lho individual do professor de Estágio Supervisionado. Há, na verdade, vários ele-
mentos que compõem esta disciplina e que influenciam diretamente na preparação
do futuro profissional de línguas. Podemos pensar, por exemplo, nas condições de
trabalho para a realização desse empreendimento pedagógico, assim como podemos
citar o papel da própria escola básica em todo o processo. Outro elemento indis-
pensável é o professor regente e sua contribuição para o bom andamento do plano
a ser traçado na recepção do estagiário. Como aponta Vieira-Abrahão (2007), não
é qualquer professor que pode ser escalado para receber um estagiário. Segundo a
autora, a escolha não deve pautar-se apenas na experiência do professor regente,
pois isso, de alguma sorte, eliminaria “as pessoas mais jovens, bem formadas, que
também desenvolvem um trabalho eficiente” (VIEIRA-ABRAHÃO, 2007, p. 160).
Um professor competente para receber e cuidar de um estagiário, ainda sob a ótica
de Vieira-Abrahão (2007, p. 160), “é aquele que consegue motivar seus alunos,
gerenciar a interação de forma bem sucedida e criar boas oportunidades de aprendi-
zagem, seja de uma perspectiva gramatical, seja de uma perspectiva comunicativa”.
Além disso, há a importância das outras disciplinas teóricas cursadas pelos alunos
ao longo de sua graduação. Caso essas peças não se encaixem, emerge, então, uma
grande possibilidade que pode gerar um certo jogo de culpa no tocante a quem é
3
Alinhamo-nos com Mendes (2008, p. 61) no tocante à qualificação que a autora atribui ao termo “intercultural”
no contexto educacional: “o sentido de um esforço, uma ação integradora, capaz de suscitar comportamentos e
atitudes comprometidas com princípios orientados para o respeito ao outro, às diferenças, à diversidade cultural
que caracteriza todo processo de ensino/aprendizagem, seja ele de línguas ou de qualquer outro conteúdo escolar”.
127
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
o responsável por algum tipo de fracasso por parte do estagiário que, porventura,
venha a ocorrer no espaço da sala de aula de língua estrangeira.
Naquilo que nos interessa diretamente, qual seja, o trabalho de formação do
profissional de línguas, no nosso caso inglês, identificamos, como primeiro passo
do processo de escolha do professor orientador do estágio, o domínio da língua a
qual estamos capacitando nossos alunos a ensinar. Não é possível que, nos cursos de
Letras espalhados pelo país, ainda formemos futuros professores de língua estrangeira
sem a proficiência linguística mínima que os habilite a ensinar o idioma escolhido
de maneira razoável. Não se pode ensinar o que não se sabe, e, portanto, é preciso
que, na condição de formadores de professores de línguas, estejamos atentos para as
chamadas novas formas de aperfeiçoamento,4 o que, no fundo, deveria ser condição
sine qua non para o exercício da profissão do licenciado em língua estrangeira.
Além da competência linguística ainda em processo de aquisição por parte de
alguns estudantes de Letras – Língua Inglesa, não podemos esquecer que nossos
graduandos precisam de uma formação mais condizente com a realidade globalizada
em que nos encontramos, fazendo-se necessário, portanto, que a graduação reflita
esse mundo híbrido e sem fronteiras no qual estamos inseridos. É neste cenário
que a abordagem intercultural tem seu lugar e precisa permear currículos e práticas
de formação docente, pois, como indica Mendes (2008, p. 60), estamos falando
de “uma abordagem de ensino a partir da qual concepções, crenças e saberes são
redimensionados em prol da criação de espaços de aprendizagem mais produtivos,
eficazes e sensíveis culturalmente”. Ao futuro professor de língua estrangeira, o
acesso a concepções, crenças e saberes não cabe mais ser negado.
4
Embora falemos tanto sobre o quanto é possível obter conhecimento através da internet, mas, proporcional-
mente, este continua a ser um meio subutilizado na nossa área. Guardados os cuidados necessários, sabemos,
claramente, que o ambiente virtual se apresenta como uma das principais fontes de pesquisa e aperfeiçoamento
no âmbito teórico e na aquisição do próprio conhecimento linguístico através dos milhares de sites com conte-
údo variado de que podemos fazer uso para nosso próprio benefício profissional. No caso do ensino de língua
estrangeira, precisamos estimular nossos aprendizes, futuros professores, a “desbravar” os espaços de qualidade
que comprazem este diversificado universo de produção de conhecimento e de encontros interculturais.
128
O estágio supervisionado de língua inglesa à luz da Linguística Aplicada
Dessa forma, aliado a essa competência linguística, muitas vezes precária, nos
nossos cursos de graduação,5 podemos falar também da falta que faz ao professor
a competência para estudar o meio social em que estamos inseridos, isto é, a falta
que faz a este profissional desenvolver o interesse pelas pessoas e por suas neces-
sidades. Segundo Leffa, (2011, p. 29), desenvolver tal interesse levaria à criação
de uma sala de aula regida pela cumplicidade saudável entre professor e aluno, na
qual ambos estariam imbuídos do mesmo objetivo educacional, em um ambiente
reconhecidamente heterogêneo, de mútuo respeito e positivamente sensível às
diferenças presentes em toda e qualquer sociedade.
Tal iniciativa teria sempre como referência a reavaliação do trabalho perpetrado
na sala de aula de línguas, com a preocupação iminente de se garantir a manutenção
do diálogo entre as mais diversas culturas. Como reitera o próprio Leffa (2011, p. 30),
“a história tem mostrado incansavelmente que só a diversidade, a mestiçagem e o hibri-
dismo de raças e ideias conseguem sobreviver”. Enquanto as aulas de língua estrangeira,
em especial da escola pública, contexto já tão prejudicado por suas inúmeras dificuldades
estruturais, continuarem a receber os futuros professores insensibilizados para esta e
tantas outras questões cruciais relacionadas a um fazer pedagógico mais apropriado
para os tempos contemporâneos, os obstáculos só tendem a se avolumar e se agigantar.
Diante do que faltou na formação disciplinar (é assim que funcionam até hoje
os currículos dos nossos cursos de Letras por todo o país), ainda que tardiamente,
a fase do estágio supervisionado, caso a ele seja dada a devida importância, pode
ser aquele momento de docência compartilhada em que muitas das acepções men-
cionadas, sob a ótica da Linguística Aplicada e a partir de abordagens críticas de
ensino de língua estrangeira, sejam, de fato, discutidas, sugeridas e incorporadas,
contribuindo, dessa forma, para que o professor em pré-serviço venha a iniciar sua
5
Como bem lembra Oliveira (2009, p. 29), “os cursos superiores responsáveis pela formação de professores de
línguas não estão cumprindo seu papel satisfatoriamente. Na medida em que uma universidade confere o diploma
de licenciatura em determinada língua estrangeira a uma pessoa que não domina esta língua, ela contribui deci-
sivamente para que o ensino de línguas nas escolas públicas não tenha uma perspectiva futura positiva”.
129
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
caminhada profissional de maneira significativa e compromissada com aspectos
quase sempre tangenciados durante a sua graduação.
Linguística Aplicada e educação para a formação docente
Entre as tantas frentes em que a Linguística Aplicada tem atuado ao longo de sua
trajetória, enxergamos o processo de formação dos futuros profissionais de línguas,
sejam maternas ou estrangeiras, como uma das mais importantes e promissoras. É fato
que, no início da consolidação da área como campo de estudo e de desenvolvimento
de pesquisa, seja teórica ou prática, muitos estudiosos mantiveram-se, em grande parte
de suas investigações, voltados primordialmente para questões vinculadas ao ensino e
aprendizagem de língua estrangeira e, consequentemente, bastante focados no debate
relacionado à concepção e ao uso de métodos que apresentassem diferentes níveis de
eficiência, aliados a premissas básicas que, certamente, desembocariam na prática
de ensino propriamente dita e na produção de materiais instrucionais que prometiam
ensinar a língua-alvo com competência frente a resultados cada vez mais desafiadores.
No processo evolutivo dos estudos em Linguística Aplicada, diz-nos Almeida
Filho (2005), passamos também a contemplar o conceito de abordagem,6 o qual se
opõe, hoje em dia, aos conceitos de método e metodologia, por levar em conta, entre
outros aspectos, as necessidades dos aprendizes, seu contexto social e o respeito à sua
identidade e à sua potencial formação crítica. Como assinala o autor (2005, p. 62), a:
exaustão do método como modelo de ensino e formação de professores
e de pesquisa reconhecida amplamente nos anos 90 abriu espaço para
o interesse na abordagem como ordem superior mais abstrata de teoria
com a qual sustentar o ensino, a formação e a pesquisa aplicada no
âmbito do ensino de línguas.
6
Almeida Filho (2005) argumenta que o conceito de abordagem se diferencia do de método por se tratar de um
conceito mais amplo e mais abstrato, já que, para o professor planejar a sua aula, ele deve estar atento a um
conjunto potencial de crenças, conceitos, pressupostos e princípios no tocante ao que ele acredita ser parte do
processo de ensinar e aprender línguas.
130
O estágio supervisionado de língua inglesa à luz da Linguística Aplicada
Sob esse prisma, não podemos perder de vista, embora possamos estar cha-
mando a atenção para uma obviedade, que o ensino de línguas não está somente
atrelado àquele processo pedagógico meramente técnico, tão comum, especialmente
nas salas de aulas de nossas escolas públicas e privadas de todo o país. Atualmente,
não custa rememorar, partimos da necessidade de o futuro profissional de línguas,
como aponta Celani (2008, p. 27), ser dotado de “uma conscientização política e
uma sensibilidade em relação aos problemas inerentes à linguagem e sua estreita
vinculação com o contexto social, e com seu papel na construção dos contextos
sociais nos quais vivemos”.
Ao pensarmos em políticas educacionais, temos que estar conscientes de que
nenhuma sala de aula, incluindo a de línguas, é uma ilha desconectada da realidade
que a cerca. Esse é um grande equívoco, criticado por Pennycook (1990, p. 303), o
qual afirma que o ensino de línguas esteve sempre isolado de questões sociopolíti-
cas, ignorando, na maioria dos contextos, o fato de que “a natureza da educação de
segunda língua nos obriga a compreender a nossa prática educacional em termos
sociais, culturais e políticos mais amplos” (tradução nossa).7 A permanente inte-
ração entre a Linguística Aplicada e outras áreas do conhecimento, como Sociolo-
gia, Estudos Culturais, História, Antropologia, Educação e, mais recentemente, a
Pedagogia Crítica, demonstra o seu enorme potencial como um campo de estudo
híbrido, capaz de ultrapassar as fronteiras disciplinares, não apenas com o objetivo
de conceber e tentar garantir uma visão mais equilibrada, no nosso caso específico,
da educação linguística, mas também, em um escopo de maior envergadura, de
melhorar ou aperfeiçoar a própria vida contemporânea (PENNYCOOK, 1990;
MOITA LOPES, 2008). Sem dúvidas, estamos aqui incluindo todo o processo de
formação docente, uma vez que os futuros professores de línguas continuam a sair
dos bancos das universidades com lacunas importantes na sua formação, como a
não rara redução do conceito de língua a um sistema de transmissão de mensagens a
7
“The nature of second language education requires us to understand our educational practice in broader social,
cultural, and political terms.” (PENNYCOOK, 1990, p. 303).
131
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
ser ensinado de forma descontextualizada. Mais uma vez, o chamado de Pennycook
(1990) não deixa de nos fazer refletir:
O contexto social de ensino e teorização não é reconhecido, e mantém-se
uma distinção prejudicial entre prática e teoria que descontextualiza
e transforma o trabalho acadêmico em algo inaplicável, assim como
concebe o professor não como um intelectual autônomo, mas um téc-
nico de sala de aula. (PENNYCOOK, 1990, p. 304, tradução nossa).8
É exatamente o que nos fala Pennycook (1990) que vem à tona, principalmente
no momento do estágio supervisionado. E é aqui que também emerge o trabalho
do professor orientador de estágio que, na nossa visão, ao pautar a sua prática em
pesquisas em Linguística Aplicada, pode vir a contribuir de forma significativa
para uma formação mais sólida do futuro professor, além de, quem sabe, ajudar a
todos os envolvidos no processo a superar a frustração de termos tantos trabalhos
científicos produzidos na área, mas ainda com uma insípida repercussão na sala de
aula de língua estrangeira (OLIVEIRA; SOUZA, 2010). Como salientam Oliveira e
Souza (2010, p. 82), os cursos de Letras, gostemos ou não, “consomem, por vezes,
grande parte do seu tempo e esforços em atividades unicamente voltadas para o
ensino da LE aos futuros professores, ainda centradas na língua como um sistema
fechado e sem implicações políticas ou sócio-históricas”.
Na nossa visão, o interessante de uma ancoragem do processo de formação nas
pesquisas em Linguística Aplicada é que professor orientador e futuros docentes
façam uso das teorias nascidas das investigações encampadas nos mais variados
contextos escolares, no intuito de gerar novos questionamentos e revelar contribui-
ções de estudos relevantes para o fazer pedagógico. Tal postura, indubitavelmente,
leva ao fortalecimento da parceria universidade-escola, uma vez que a presença do
estagiário no ambiente instrucional, vivenciando e levantando dúvidas e questões
8
“The social context of teaching and theorizing is not acknowledged and a harmful distinction is maintained
between theory and practice that decontextualizes and makes inapplicable academic work and renders the
teacher not as an autonomous intellectual but as a classroom technician”(PENNYCOOK, 1990, p. 304).
132
O estágio supervisionado de língua inglesa à luz da Linguística Aplicada
de toda ordem, e não apenas aquelas ditas linguísticas e/ou práticas, contribui, entre
outros aspectos, para a atualização do professor orientador sobre o que ocorre no
ensino básico (VIEIRA-ABRAHÃO, 2007) e, de certa maneira, pode vir a estimular,
desde cedo, o interesse do professor em pré-serviço pela pesquisa de sala de aula.
Como sabemos, o profissional de ensino que reconhece o real valor de seu ofício
utiliza sua sala de aula como fonte de pesquisa, questionando, registrando, criando seus
diários, recorrendo a teorias para propor possíveis soluções aos desafios que diariamente
se apresentam. Nesse sentido, o professor orientador de estágio é o elemento capacitado
para sugerir pesquisa em Linguística Aplicada em sua disciplina, no momento em que seus
alunos vivenciam e buscam conectar teoria e prática. Como sugere Almeida Filho (2008,
p. 44), “os professores de Prática de Ensino de Línguas [...] e de Estágio Supervisionado
[...] deveriam igualmente buscar os meios de absorver os avanços obtidos em investiga-
ção aplicada concentrados na Linguística Aplicada/área de ensino e aquisição de línguas”.
A ideia da associação da prática do professor orientador de estágio com as descobertas e os
caminhos de pesquisa da Linguística Aplicada sugere também que seja proposto um diálogo
amplo e profícuo entre a Linguística Aplicada e a Pedagogia no sentido de, concretamente,
aproximar os dois campos de estudo, elevando, consequentemente, a qualidade do processo
de formação profissional dos alunos dos cursos de graduação em Letras.
O processo reflexivo do futuro profissional de línguas
Somos todos munidos da capacidade de pensar e refletir sobre nossas atitudes coti-
dianas a fim de nos tornamos indivíduos melhores a cada dia. Isso ocorre comumente
quando enfrentamos algum dilema que só uma reflexão profunda e significativa é capaz
de amenizar ou, por fim, solucionar. Contudo, tal atitude não é tão fácil para muitos de
nós, uma vez que, às vezes, precisamos aprender a exercitar tais práticas ou estratégias
reflexivas que nos conduzam a um importante repensar sobre o que somos e fazemos.
Podemos dizer que processo semelhante também se desencadeia na nossa cami-
nhada profissional, já que, nas cada vez mais complexas jornadas diárias a que nos
133
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
submetemos ao longo dos anos, enfrentamos problemas, muitos deles recorrentes,
e sequer criamos, ou somos instigados a criar, oportunidades para refletir sobre
como podemos melhorar e aperfeiçoar nosso desempenho nos mais variados níveis
e aspectos. Quando paramos para analisar nossa prática diária de sala de aula e
buscamos, à luz de alguma teoria e, claro, com base na nossa vivência, a melhoria
do processo educacional com o qual estamos envolvidos, observamos que estamos
atuando como profissionais que procuram estar engajados em um projeto de forma-
ção constante. Para Leffa (2001, p. 4), “o treinamento tem um começo, um meio
e um fim. A formação, não. Ela é contínua”. Mais especificamente, complementa
o autor (2001, p. 4), “um professor que trabalha com um produto extremamente
perecível como o conhecimento, tem obrigação de estar sempre atualizado”, e, no
caso dos professores de língua inglesa contemporâneos, tal detalhe é de extrema
importância, já que, como salienta Gee (1994, p. 190 apud MOITA LOPES, 2003,
p. 33), gostem ou não, eles “estão no âmago dos temas educacionais, culturais e
políticos mais cruciais de nossos tempos”.
Orientado por esse raciocínio, então, Leffa (2001, p. 3) distingue treinamento
profissional de formação profissional, chamando a atenção para o fato de que o
primeiro, em geral, tem como objetivo atingir um resultado imediato, enquanto
o segundo prepara o profissional para o futuro. Diferentemente do que propõe o
treinamento, acreditamos que o estágio supervisionado precisa ser (re)visto como a
experiência que, entre diversos aspectos, apresenta-se ao futuro docente como um
meio de tentar desenvolver sua prática reflexiva e a sua busca por aperfeiçoamento
contínuo. Consequentemente, nós, professores formadores, precisamos atribuir
um novo significado ao período do estágio, concebê-lo para além do conceito de
treinamento, ou seja, precisamos nos esforçar de tal maneira que este primeiro
contato com a realidade escolar conduza nossos futuros professores a um processo
de formação perene, em que teoria, prática e reflexão atuem e se (retro)alimentem
dentro de um ciclo de diálogo permanente entre si.
134
O estágio supervisionado de língua inglesa à luz da Linguística Aplicada
Entendemos que, no nosso contexto educacional, haverá sempre demandas no
tocante à necessidade de políticas de aprimoramento de ensino, além de reformas que
pressuponham maior compromisso do profissional de educação, exigindo diversos
elementos, entre os quais, sua qualificação e atualização constantes (PIMENTA; LIMA,
2008). Embora não se chame muito a atenção para este pormenor, o estágio supervi-
sionado, neste caso, funciona como um processo de troca de conhecimentos entre a
universidade e a escola de ensino básico, proporcionando ao professor regente, aquele
que toma sob seus cuidados um professor em formação, acesso a possíveis resultados
de pesquisas mais recentes no âmbito educacional, a novas perspectivas relacionadas
ao ensino de línguas, em especial no âmbito da Linguística Aplicada, desembocando,
certamente, em benefícios ao aluno estagiário, a fim de que este possa viver e aprender
com o professor regente, realizando as devidas conexões entre teoria e prática.
Como afirmado anteriormente, não custa reiterar, entendemos a formação de
professores de língua inglesa como um processo contínuo, cujo início se dá nas dis-
ciplinas teóricas da graduação, sejam estas de língua, literatura, metodologia, etc.,
avança pelo estágio supervisionado e, ao que se espera, deve perdurar durante toda a
vida profissional do docente. A exigência, nessa formação, é o domínio de um bom
nível de proficiência da língua-alvo, em muitos casos adquirido durante os quatro
anos do curso de Letras (embora ainda estejamos formando professores com essa
habilidade muito aquém do recomendado), como também a busca por conhecimentos
pedagógicos e outros mais gerais relacionados à natureza política da linguagem que
possam transformar este professor em muito mais que um técnico de ensino, em um
educador linguístico crítico-reflexivo (PENNYCOOK, 1990; RAJAGOPALAN, 2003).
Nesse sentido, faz-se necessária a preparação de profissionais que se vejam
como futuros pesquisadores de sua sala de aula e que tenham como objetivo prin-
cipal o desenvolvimento regular desse espaço socioeducacional, dentro de um
universo de conhecimento e investigação sobre sua prática. Para que isso possa
ser alcançado, é essencial ao professor orientador de estágio se utilizar de maneira
vantajosa do debate teórico, a fim de refletir, juntamente com seus alunos, sobre as
135
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
experiências que estes já trazem e, dessa forma, projetar um novo conhecimento
que surja da dialética e da salutar relação entre teoria e prática.
Sob esse mote, o estágio supervisionado seria, portanto, para o estudante da
graduação, o momento, por excelência, que o levaria a pensar criticamente a prática
docente que começa a abraçar. Além disso, trata-se de uma via de mão dupla, pois
cabe também ao professor orientador, entre as muitas tarefas inerentes à disciplina,
criar possibilidades capazes de conduzir o professor em formação ao exercício
ininterrupto de reflexão, levando em consideração que refletir não é um processo
técnico e mecânico, mas uma ação que acontece e se materializa a partir de uma
investigação sobre as relações de trabalho, das dificuldades oriundas do meio que
desafiam o exercício da função docente e, finalmente, do levantamento de possibi-
lidades de desenvolvimento e planejamento do cotidiano escolar em si.
Para Pimenta e Lima (2008), o processo de reflexão nesta seara específica edi-
fica-se na comunicação entre os pares e na busca por referenciais teóricos que auxi-
liem o futuro professor de línguas na sua caminhada. No caso do estágio, a troca de
informações entre os colegas, a partir de relatos escritos ou orais sobre suas dúvidas,
seus problemas, as medidas adotadas neste período para a solução de problemas,
bem como sobre a construção coletiva de planejamento, auxilia no aprendizado,
por meio da troca de experiências entre os professores em formação. Obviamente, é
importante ressaltar que essa troca de conhecimento deve, potencialmente, ser rea-
lizada sob a supervisão do professor orientador de estágio, que, certamente, saberá
como conduzir toda a discussão em prol do crescimento profissional dos aprendizes.
Nesse caso, o reconhecimento da importância de um exercício reflexivo na rotina
profissional de ensino de língua inglesa que se inicia, podemos afirmar, auxilia num
desenvolvimento mais sólido e, mesmo ainda em início de carreira, legitima crenças,
atitudes e comportamentos, assim como ilumina as próprias práticas do estagiário,
engrandecendo, sem sombra de dúvidas, o processo de formação e contribuindo para
que o verdadeiro objetivo do período de estágio supervisionado seja enfim alcançado.
136
O estágio supervisionado de língua inglesa à luz da Linguística Aplicada
A interculturalidade na formação docente
Entre as temáticas contempladas pela discussão sobre abordagens metodo-
lógicas para o ensino de línguas (materna e estrangeiras), tão cara à Linguística
Aplicada, está o conceito de interculturalidade. Como sabemos, embora tal premissa
em determinados contextos seja relevada a um plano secundário, toda sala de aula
de qualquer disciplina, a de língua inglesa mais ainda, é um ambiente complexo e
heterogêneo, no qual histórias singulares se encontram, principalmente em tempos
de globalização, quando prevalecem interações cada vez mais amplas e diversi-
ficadas através da internet, das redes sociais e de todas as influências atreladas a
essa realidade. Associado a isso, temos também as diferenças ideológicas, sociais,
de gênero, religiosas, só para citar algumas, que, naturalmente, garantem, à sala
de aula de inglês, o status de um ambiente múltiplo e diverso, propenso a confli-
tos, às chamadas “tensões criativas” (KUMARAVADIVELU, 2012), que exigem
reflexão dos sujeitos que frequentam esse espaço, curiosamente ainda tratado como
“compartimento fechado, um contexto educacional isolado da sociedade em geral”9
(PENNYCOOK, 2000, p. 89, tradução nossa), ao invés tratado como os espaços
socioculturais e políticos complexos que, verdadeiramente, o são.
O dinamismo dos elementos cognitivos que envolvem a relação ensino-aprendi-
zagem em uma sala de aula, principalmente de língua estrangeira, são normalmente
referenciados por questões de identidade e de conflito cultural. Vejamos a afirmativa
de Maher (2007, p. 89) sobre essa questão:
Além das identidades culturais não serem uniformes ou fixas, o que
ocorre em sala de aula não é simples justaposição de culturas. Ao con-
trário: as identidades culturais nela presentes (tanto de professor, quanto
de alunos) esbarram, tropeçam umas nas outras o tempo todo, modifi-
cando-se e influenciando-se continuamente, o que torna a escola con-
temporânea não o lugar de “biculturalismo”, mas de interculturalidades.
9
“[...] a closed box, an educational context separated from society” (PENNYCOOK, 2000, p. 89).
137
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
Sob a égide da interculturalidade, portanto, endossamos outro argumento da
própria Maher (2007, p. 83), quando ela afirma que:
[o] tratamento dado à diversidade cultural na escola tem se limitado, no
mais das vezes, à alocação, no currículo, de espaço para a apresentação,
de forma geralmente bastante fetichizada, de aspectos da cultura mate-
rial dos alunos (expressões artísticas, preferências gastronômicas, etc.).
Dessa forma, como preconizam Cox e Assis-Peterson (2007), precisamos con-
ceber e ensinar língua como uma atividade mediadora capaz tanto de reproduzir
como de transformar a realidade, principalmente nos dias atuais, em que se com-
prova facilmente que línguas como o inglês, por exemplo, ao viajarem pelo mundo,
não mais se vinculam a uma comunidade supostamente estável e, claro, seguem se
transformando ao longo do caminho (BLOMMAERT, 2010), por conta do contato
direto com outros universos culturais.
A partir desta ótica, em que emerge um cenário de preocupação com as relações
entre seres humanos culturalmente diferentes uns dos outros (SOUZA; FLEURI,
2003), é necessário que o futuro professor, no momento de planejar suas aulas de
línguas, seja materna ou estrangeira, seja capaz de reconhecer a existência desse
lugar intercultural. Na proposta já aqui mencionada, Mendes (2008) encampa uma
abordagem intercultural, cuja busca é sempre por se criar um ambiente cultural-
mente sensível, com atenção voltada, entre outros pontos, para o planejamento
constante, a observação e a avaliação da prática de sala de aula, a reflexão sobre
objetivos alcançados (ou não) e também para o cuidado no tocante ao uso e à pro-
dução de material instrucional. Todo material para o ensino de línguas deve ser
relevante e significativo para cada grupo específico de aprendizes, oriundo de fontes
diversas, não somente da cultura-alvo (MENDES, 2008), na tentativa não apenas
de apenas aprender o caráter de várias culturas, mas, sobretudo, de “compreen-
der os sentidos que suas ações assumem no contexto de seus respectivos padrões
culturais e na disponibilidade de se deixar interpelar pelos sentidos de tais ações e
pelos significados constituídos por tais contextos” (SOUZA; FLEURI, 2003, p. 69).
138
O estágio supervisionado de língua inglesa à luz da Linguística Aplicada
Na esteira desse pensamento, é necessário que avancemos tendo em mente o obje-
tivo de compreender e aceitar não apenas a língua de um povo culturalmente diferente,
mas também a nossa própria postura cotidiana em relação a questões importantes,
como sexualidade, crença religiosa, posturas políticas e ideológicas, entre outras.
Adicionamos a isso, a importância da valorização da própria cultura do aluno, a fim
de evitarmos o já tão discutido e conhecido sentimento de inferioridade em relação
à língua-cultura estudada – e isso não é por acaso. Diz-nos Fleuri (2003, p. 18):
De modo particular, no mundo ocidental a cultura europeia tem sido
considerada natural e racional, erigindo-se como modelo da cultura
universal. Desse ponto de vista, todas as outras culturas são conside-
radas inferiores, menos evoluídas, justificando-se, assim, o processo
de colonização cultural.
Portanto, só podemos tornar a nossa sala de aula um ambiente de respeito
cultural se nós mesmos carregarmos este sentimento dentro de nós. Tal temática,
embora quase sempre ausente da pauta dos encontros de formação e treinamento
de professores de línguas, é de pertinência extrema para o docente que começa a
dar os primeiros passos na profissão.
No mesmo escrito, Fleuri (2003) traça um histórico de como a relação entre
culturas foi geralmente tratada pelo poder público ao longo do tempo e aponta a
escola como a grande fomentadora de desigualdades ao, de alguma maneira, acei-
tar e agenciar dicotomias como “colonizadores x colonizados; mundo ocidental
x mundo oriental; saber formal escolar x saber formal cotidiano; cultura nacional
oficial x culturas locais etc.”, contribuindo, segundo o autor, “para a manutenção
e difusão dos saberes mais fortes contra as formas culturais que eram consideradas
como limitadas, infantis, erradas, supersticiosas” (FLEURI, 2003, p. 18).
Não é estranho afirmar que este modelo dicotômico ainda está fortemente pre-
sente no cotidiano de nossa sociedade. Setores acadêmicos e meios de comunicação,
não raramente, superlativizam a importância da norma culta e do português formal
em detrimento do falar dito popular. Além disso, a aprendizagem de uma língua
139
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
adicional como o inglês, por exemplo, continua a ser privilégio de poucos, não
havendo o espaço nem o compromisso necessários para seu ensino efetivo na escola
regular, em especial, na escola pública. Em outras palavras, as políticas de acesso
à língua mais difundida da contemporaneidade há tempos continuam a ostentar um
caráter marcadamente excludente, deixando fluir e se perpetuar no inconsciente cole-
tivo a perversa premissa de que só se aprende inglês em cursos de línguas e que o
aluno da escola pública não tem condições ou o menor talento para língua estrangeira.
Essas falsas crenças e a eterna postura de subalternidade de todos nós, cada
um em seu tempo e lugar, envolvidos com educação linguística no Brasil, só fazem
reforçar a inércia que se apossou do aprendizado de línguas estrangeiras na escola
pública brasileira. A necessidade de mudança, contudo, precisa ser reconhecida,
quem sabe, abrindo espaço para um novo pensar, em que a escola sirva como palco
de transformação social e ideológica. Nesse sentido, Giroux (2007, p. 163) defende
a pedagogia crítica aliada à educação e, em muitas de suas reflexões, argumenta
que “os professores deveriam se tornar intelectuais transformadores se quiserem
educar os estudantes para serem cidadãos ativos e críticos”. Tal premissa, certa-
mente, aplica-se perfeitamente ao contexto daqueles que se formam para ensinar
uma língua de alcance global, como o inglês na atualidade.
Sendo assim, o estudo intercultural torna-se “interdisciplinar e transversal”
(FLEURI, 2003, p. 23), quando traz, para a sala de aula de línguas, temas complexos
para serem analisados e teorizados pelos alunos, influenciando estes, principalmente,
em questões importantes, como a construção identitária, cada vez mais fragmentada
nos chamados tempos pós-modernos. Como aponta Blommaert (2010, p. 1, tradução
nossa), a globalização atual, ao contrário do que muitos pensam, não transformou o
mundo numa vila, mas em “uma rede tremendamente complexa de vilas, cidades e
bairros, assentamentos frequentemente interligados por laços materiais e simbólicos
das formas mais imprevisíveis”.10 No tocante ao ensino de línguas internacionais,
10
“The world has not become a village, but rather a tremendously complex web of villages, towns, neighbourhoods,
settlements connected by material and symbolic ties in often unpredictable ways”(BLOMMAERT, 2010, p. 1).
140
O estágio supervisionado de língua inglesa à luz da Linguística Aplicada
como o inglês, as implicações de tal processo, inegavelmente, são visíveis e devem
contribuir para que, entre outras ações, repensemos muitas de nossas práticas peda-
gógicas, hoje universalizadas e carentes de uma revisão em nível local, assim como
consideremos outros elementos importantes a serem explorados em sala de aula,
já que o encontro de culturas constitui “espaços alternativos produtores de outras
formas de identidades, marcadas pela fluidez, pela interação e pela acolhida do
diferente” (FLEURI, 2003, p. 26).
As discussões sobre temas relacionados à interculturalidade no contexto da sala
de aula da disciplina Estágio Supervisionado nos levam a reafirmar a importância da
reflexão crítica no processo de formação do futuro professor de línguas (materna e
estrangeira). Desse modo, o docente em formação deve, entre muitas demandas que
vão bater à sua porta, ter consciência do seu papel em formar, acima de tudo, o usuá-
rio intercultural da língua estudada, capaz de exercer sua cidadania no cada vez mais
comum e saudável diálogo de culturas. Isto é, os futuros docentes devem ter pleno
conhecimento sobre o que seria uma proposta intercultural para o ensino de línguas,
e nada melhor que a trazer para as aulas teóricas de preparação e a tomar como pano
de fundo durante as análises in loco do estágio em si, momentos em que, ainda que de
forma inconsciente, os estagiários experimentam uma vivência autêntica desse universo
de intercultura, no qual professor orientador e estagiário, se deparam com material farto
para trabalho e discussão sobre as mais variadas questões que, sabemos, permearão
todo o processo de inserção do futuro profissional no mundo real da docência.
À guisa de conclusão
O estágio supervisionado, momento único na formação do professor-estudante
de línguas, ganha maior importância quando conseguimos refletir sobre as questões
surgidas ao longo do processo. Quando entendemos nosso trabalho como capaz de
realizar mudanças sociais. É fato que todos têm o direito de aprender uma nova língua,
e, como aqui discutimos, o acesso a tal bem cultural não pode estar restrito a apenas
141
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
algumas classes mais afortunadas. Por todo esse histórico, acreditamos que uma das
soluções para começarmos a implementar algum tipo de mudança nesta realidade seria
uma formação mais eficiente, com caráter crítico-reflexivo, dos futuros professores,
visando prepará-los para lidar com os enormes obstáculos e desafios que os aguardam
no sistema educacional básico do nosso país (ASSIS-PETERSON; SILVA, 2011).
Um dos elementos importantes a ser contemplado nesta capacitação inicial é
o planejamento, que, ao se embasar no conhecimento mais acurado dos problemas
sociais que envolvem os alunos da educação básica, pode permitir que o futuro
professor, ao iniciar sua atuação profissional, possibilite a seu aprendiz de línguas
caminhar e disputar, em tempos de globalização, seu lugar no mundo em igualdade
de condições com todos aqueles indivíduos com que venha a se comunicar através
de interações interculturais dentro da arena global.
Esse tipo de planejamento, na nossa visão, só se concretiza mediante autorrefle-
xão e pesquisa constantes. Portanto, o período do estágio para o professor de línguas
precisa, de fato, ser conduzido como uma etapa crucial no processo de formação
profissional, tendo, como objetivo principal, colocar teoria e prática frente a frente,
a fim de, por meio dessa interação, alcançar resultados significativos que venham
a contribuir para que o futuro docente se encontre e se reconheça na profissão que,
naquele momento, começa a se desvelar para sua vida. É exatamente aí que o futuro
professor-estudante experimentará o verdadeiro “choque de realidade”, mas, se
bem preparado, técnica e emocionalmente, encontrará os meios para aprender com
sua nova realidade e aquela de seus colegas de profissão, estando, assim, melhor
equipado para se empenhar nas buscas por possíveis soluções para os problemas
que, naturalmente, chegarão às suas mãos.
Enfim, procuramos aqui unir fios importantes de um tecer cada vez mais
complexo, o do ensino de língua estrangeira na contemporaneidade, em especial,
a língua inglesa. Sob a ótica da Linguística Aplicada, propomos e discutimos a
condução da disciplina Estágio Supervisionado nos cursos de Letras, assim como
o próprio estágio na educação básica, ancorada em princípios de uma abordagem
142
O estágio supervisionado de língua inglesa à luz da Linguística Aplicada
intercultural, conscientes de que esta é uma questão ainda muito pouco explorada.
Como argumentam Assis-Peterson e Silva (2011, p. 358), “enquanto os dilemas
e percalços dos primeiros anos da carreira do professor têm sido detalhadamente
documentados na área da educação”, muito pouco tem sido publicado com foco
específico na transição inicial de aluno de Letras para professor. Em outras palavras,
parece haver parco interesse da parte dos nossos pares em conhecer e entender
como se desenvolve o processo de tornar-se professor em um ambiente autêntico
de trabalho e quais lacunas precisam ser preenchidas antes do estágio para que as
escolas recebam um professor munido das competências mínimas que o habilitem
a exercer a sua tarefa docente com segurança, desenvoltura e dignidade.
Mais especificamente, entre muitos aspectos que devem ser (re)pensados no
tocante à formação profissional do futuro professor de línguas, seria de grande
valia oportunizar o diálogo entre as diversas disciplinas e a Linguística Aplicada,
com vistas a uma associação entre teoria e prática, que leve o estagiário a observar,
questionar e refletir sobre sua vivência pedagógica e o espaço educacional singular
pelo qual irá se responsabilizar. Espera-se, também, o desenvolvimento de um
trabalho rumo à conscientização a respeito do seu papel crucial como profissional
de línguas na contemporaneidade, cada vez mais envolvido com questões sociais e
diretamente implicado com a criação de um ambiente em que as diferenças culturais
sejam respeitadas, com a valorização do conhecimento de seus aprendizes e com a
consequente melhoria de vida da comunidade em que está imerso. Como vimos, o
cenário global que hoje nos circunda está muito mais complexo e cada vez menos
previsível. O futuro professor de inglês, nosso foco específico neste trabalho, não
pode chegar à sua sala de aula alheio a tais questões, não pode assumir o seu papel
de educador linguístico desprovido de uma tomada de consciência e privado das
habilidades necessárias para a condução de sua prática com as esperadas compe-
tência, segurança e responsabilidade. Afinal, este não é um jogo para amadores.
143
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
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147
CAPÍTULO 7
Aprendendo a ser professor
de inglês: uma experiência
em sala de aula da rede
pública de ensino
Marcia Letricia Gomes Barbosa – UFT
Introdução
Nas últimas décadas, as expectativas de aprendizagem de uma língua estran-
geira em contextos de escolas regulares, tanto dos alunos quanto da família e da
sociedade como um todo, têm sido baixas e, na maioria das vezes, distorcidas,
sobretudo quando se trata da escola pública brasileira (ALMEIDA FILHO, 1998).
De certa maneira, é correto admitir que, salvo raras exceções, não se aprende inglês
na escola. Apesar disso, professores e pesquisadores têm se preocupado em mudar
essa realidade, esforçando-se para produzirem conhecimentos relevantes e que, de
alguma forma, possam contribuir para uma mudança qualitativa no contexto de
ensino de língua e educação em geral.
Conforme pontua Almeida Filho (1998), um dos principais problemas encon-
trados é a falta de sentido para as aulas de inglês na escola pública, que são enca-
radas pelos alunos como algo para preencher o tempo. Nelas há pouco ou nenhum
aprendizado efetivo, uma vez que, supostamente, os alunos não conseguirão aplicar
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
nenhum desses conhecimentos em experiências futuras ou situações concretas de
uso da língua. Isso acontece porque as aulas, da maneira como são conduzidas,
não possibilitam aos alunos, na maioria das vezes, desenvolver as habilidades para
compreensão tampouco para comunicação na língua inglesa.
Por outro lado, apesar de reconhecida a relevância do ensino de língua inglesa
pelo professor, em geral, as aulas não conseguem passar de mera transmissão de
regras gramaticais ou da simples tradução para a língua materna (ALMEIDA FILHO,
1998). No entanto, o ensino de línguas tem passado, nas últimas décadas, por várias
reconfigurações, nas quais professores e pesquisadores buscam soluções para questões
como a preocupação em ofertar uma abordagem mais comunicativa em sala de aula.
Segundo Almeida Filho (1998), a busca não deve ser por uma abordagem comunica-
tiva apenas no aspecto de mudar o livro didático ou aplicar algumas técnicas dessa
abordagem, mas sim por uma verdadeira mudança na concepção do professor acerca
do que significa ensinar comunicativamente uma língua estrangeira, que levará, como
consequência, à reflexão sobre a prática em sala de aula.
O surgimento de centros universitários dedicados à tarefa de desenvolver pes-
quisas e buscar formas mais eficientes de formação docente, que agora se torna
regra, toma força, mesmo que a médio prazo, conforme pontua Almeida Filho
(1998), o que, a nosso ver, é um ganho imenso, visto o papel importantíssimo das
universidades no processo de formação docente, tanto inicial quanto continuada.
Nesse sentido, nasceu, em 2010, o Projeto Centro de Estudos Continuados em
Letras, Linguística e Artes (Ceclla), idealizado pelo curso de Letras do campus de
Porto Nacional da Universidade Federal do Tocantins. O projeto tem na formação
inicial de professores de línguas estrangeiras sua maior preocupação e, desde sua
criação, tem conseguido formar com melhor qualidade alunos do curso de Letras
que lá encontram um espaço no qual podem vivenciar o contexto de sala de aula
de forma ininterrupta, por no mínimo seis meses.
A formação profissional adotada pelo Ceclla é baseada no modelo reflexivo
proposto por Wallace (1991), segundo o qual a prática deve ser nutrida pelo saber
150
Aprendendo a ser professor de inglês: uma experiência em sala de aula da rede pública de ensino
teórico e subsequentemente seguida de reflexão. Desse modo, o Ceclla constitui-se
o ambiente em que podemos aplicar, na prática, as teorias aprendidas e refletir sobre
as consequências dessas práticas, utilizando-nos, para isso, da capacidade de nos
adaptar e adaptar as diversas metodologias buscando aquilo que melhor condiz com
contexto escolar e com os nossos alunos (PRABU, 1990; NÓVOA, 1997). Isso
ocorre pela crença de que uma língua, quando estudada, precisa ser usada para fins
comunicativos, e a abordagem comunicativa é uma das que melhor trabalha essas
habilidades nos aprendizes. Segundo Almeida Filho (1993), a abordagem comu-
nicativa apresenta como principal característica o foco no sentido, no significado
e na interação propositada entre sujeitos na língua estrangeira.
Assim, podemos dizer que o objetivo deste capítulo foi, primeiramente, buscar
um maior desenvolvimento profissional mediante a observação e a compreensão do
contexto de escola pública, por meio de um trabalho investigativo e colaborativo
acerca de nossas práticas e percepções sobre a sala de aula de línguas. Esta pes-
quisa também visou propiciar momentos em que a professora participante pudesse
refletir acerca dos aspectos relacionados às suas concepções sobre língua, ensino e
aprendizagem, papel dos professores, comportamento dos alunos e valor ou prestígio
da língua inglesa em contextos de escola publica. Para tanto, procuramos também
desvelar concepções de língua, ensino e aprendizado implícitas nas práticas da pro-
fessora – e que nem sempre são percebidas por ela. Buscou-se, ainda, por meio de
uma reanálise das práticas, construir as práticas de descrever, informar e confrontar
(LIBERALI, 2012), que, posteriormente, poderá levar a professora ao desenvol-
vimento da prática reflexiva crítica, com vistas a buscar sempre o seu crescimento
profissional e, com isso, atingir melhores resultados na formação de seus alunos.
A prática reflexiva na formação de professores
O termo “reflexão” tem sido utilizado em um grande número de sentidos,
devido à sua popularização entre os estudos na área da formação de professores
151
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
(GARCIA, 1999 apud ROCHA, 2008). Este mesmo autor enumera alguns dos
sentidos assumidos pelo conceito, os quais, apesar de se assemelharem, referem-se
a realidades diferentes. Os sentidos são prática reflexiva, formação de professores
orientada para a indagação, reflexão-na-ação, professor como investigador, pro-
fessor como sujeito que toma decisões, professor como profissional, como sujeito
que resolve problemas (GARCIA, 1999 apud ROCHA, 2008).
Já para Pérez Gómez (1992), a reflexão implicaria a imersão consciente do
homem no mundo de sua própria experiência, mundo esse que estaria repleto de
conotações, valores, intercâmbios simbólicos, correspondências afetivas, interes-
ses sociais e cenários políticos. Ainda segundo este autor, a reflexão não seria um
conhecimento puro, mas “um conhecimento contaminado pelas contingências que
rodeiam e impregnam a própria experiência vital” (PÉREZ GÓMES, 1992, p. 103).
Garcia (1999 apud ROCHA, 2008), conforme dito anteriormente, conceitua
reflexão como uma série de características próprias de um professor, o qual, na sua
visão, seria, flexível, aberto a mudanças, capaz de analisar o seu ensino, autocrítico,
com um amplo domínio de competências cognitivas e relacionais. Zeichner e Liston
(1996) consideram um professor reflexivo aquele profissional que questiona tanto
sua própria realidade e suas atitudes perante os alunos, quanto as próprias ideias e
teorias subjacentes à sua prática.
Aprofundando nossos estudos, chegamos a John Dewey (1959), o primeiro
autor a conceituar o termo “refletir”. Ele distinguiu “refletir” de “pensar”. Para
Dewey (1959), o ato de refletir seria diferente do ato corriqueiro de pensar, uma vez
que traria um propósito “além da diversão proporcionada pelo curso de agradáveis
invenções e representações mentais. Esse curso deve conduzir a algum lugar; deve
tender a uma conclusão passível de constituir uma substância exterior à corrente
de imagens” (DEWEY, 1959, p. 15). Nesse sentido, cabe dizer que o ato de refletir
seria o pensamento que visa à resolução do problema causador da reflexão.
Dewey (1959) enfatiza também que refletir seria diferente de pensar uma vez
que abrangeria duas fases. Primeiro, o estado da dúvida, da hesitação, da perple-
152
Aprendendo a ser professor de inglês: uma experiência em sala de aula da rede pública de ensino
xidade, da dificuldade mental, que originaria o ato de pensar. Segundo, um ato
que se constituiria pela pesquisa, procura, inquirição para encontrar material que
resolvesse a dúvida, assentasse e esclarecesse a perplexidade.
Além disso, Dewey (1959 apud ROCHA, 2008) apresenta quatro atitudes
fundamentais para um profissional que se proponha a pensar de maneira reflexiva,
que seriam: 1) manter o espírito aberto, ou seja, livrar-se dos preconceitos, do par-
tidarismo e de hábitos como manter a mente fechada, se indispondo à consideração
de novos problemas e novas ideias; 2) estar envolvido “de todo o coração” com
determinado objeto ou causa (principal fonte propulsora durante a prática reflexiva);
3) estar atento quanto à responsabilidade de suas ações e de seus pensamentos; e
4) comprometer-se com a sua formação profissional.
A colaboração e a prática reflexiva
Considerando os objetivos desta pesquisa que, além de buscar aprofundar
o conhecimento da realidade escolar, mais especificamente das aulas de Língua
Inglesa, teve como meta também o desenvolvimento conjunto e colaborativo da
pesquisadora e da colaboradora, passemos agora a pontuar algumas questões acerca
da prática reflexiva e da colaboração.
Se, por um lado, o contato com o contexto de escola pública trouxe mais
consistência e segurança à minha formação inicial, por outro lado, possibilitou à
professora já em serviço, uma melhor compreensão da sua prática, por meio do
desenvolvimento de uma prática pautada na reflexão, conforme será abordado
posteriormente. Considerando, ainda, que a prática reflexiva seria melhor desen-
volvida em contexto de colaboração, uma vez que, nesse meio, não foi discutida a
superioridade ou não de um participante sobre o outro, mas as partes colaboraram
para um crescimento mútuo, torna-se necessário trazer uma breve discussão sobre o
que vem a ser uma aprendizagem colaborativa. Para isso, foram pontuados aqui os
153
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
pressupostos de Vygotsky (2002), considerados apropriados para embasar o papel
e a importância dada à colaboração e à interação na construção do conhecimento.
Baseada na teoria sociointeracional, a aprendizagem colaborativa vygotskiana é
vista como de suma importância para o processo de ensino e aprendizagem, bem como
para o desenvolvimento pessoal em geral. Conforme essa perspectiva, o homem seria
um ser social que aprenderia e se desenvolveria por meio da interação com outras
pessoas. Segundo Vygotsky (2002), é na interação que o desenvolvimento individual
aconteceria, e essa interação com o outro ou com membros de um grupo possibilitaria
o desenvolvimento de processos inter-psicológicos, internalizados posteriormente.
Daí então a importância de se trabalhar em grupo (ROCHA, 2008).
Brown (1994) define interação em um sentido, de certa maneira, mais amplo.
Para ele, a interação seria qualquer troca colaborativa de pensamentos, sentimentos
ou ideias entre duas ou mais pessoas, o que resultaria em um efeito recíproco entre os
participantes. Oxford (1997, p. 444), afirma que a interação “se refere a situações em
que pessoas agem umas sobre as outras. [...] envolvem professores, alunos e outras
pessoas agindo umas sobre as outras e conscientemente interpretando tais ações”.
No que diz respeito à formação de professores, Nóvoa (1992) pontua a impor-
tância da constituição de espaços de formação que contemplem a colaboração
como instrumentos para a formação profissional. Logo, nota-se a importância da
consolidação de espaços de formação profissional em contextos de colaboração
para a formação docente, seja ela inicial ou continuada.
A linguagem da reflexão crítica: algumas considerações
Todos os passos seguidos neste trabalho, assim como a escolha dos métodos
e dos instrumentos de coleta e tratamento dos dados, tiveram como aporte teórico,
principalmente, os pressupostos de Liberali (2012), que propõe quatro processos, os
quais serão explicados a seguir, para o empreendimento de uma abordagem reflexiva
de formação de professores, que pode e deve abarcar questões metodológicas e ir
154
Aprendendo a ser professor de inglês: uma experiência em sala de aula da rede pública de ensino
além, buscando intervir de forma mais emancipadora em todos os envolvidos no
processo de formação, por meio da reflexão crítica.
Partindo de uma vertente crítica da pedagogia e da Linguística Aplicada no
que concerne à formação de educadores, a autora considera fundamental o estudo
da linguagem. Nesses termos, a linguagem seria objeto e instrumento da ação do
educador, uma vez que, por meio dela, seria possível perceber tanto o discurso na
sala de aula como o discurso sobre a sala de aula. O trabalho com a linguagem dá
subsídios aos educadores para refletir sobre suas ações (instrumento) e agir em sala
de aula (seu objeto), o que permitiria o desenvolvimento de um poder emancipatório.
O estudo das características linguísticas, das ações da reflexão crítica,
segundo Liberali (2012), instrumentalizaria os professores para o processo refle-
xivo crítico. Para isso, seria necessário considerar as características desse processo
tendo em vista uma perspectiva que tem como foco as ações da reflexão crítica.
Essas características são: descrever, informar, confrontar e reconstruir suas práticas
(LIBERALI, 2012; SMITH, 1991).
A primeira característica, o processo de descrever, implicaria ao professor
rever a sua ação de uma maneira consciente, informada. Nesse sentido, entender seu
cotidiano e expandir sua autopercepção constituem a percepção “do que conhece
sobre sua própria ação, principalmente, para sustentar as opiniões formadas sobre
um determinado fato” (LIBERALI, 2012, p. 38).
Ao contrário de descrições que trazem somente simples impressões sobre ações
ocorridas na sala de aula, que, segundo a autora, não permitiriam a avaliação destas,
descrever iria além. Em suas palavras:
O descrever é compreendido como a palavra própria (BAKTHIN,
1953), a voz do ator sobre a sua ação. A palavra que o educador usa
do seu lugar de praticante, para falar da sua própria ação. As teorias,
outras ideias, outras definições alcançadas auxiliam a percepção da
prática, mas é preciso uma consciência do que foi feito, do que aconte-
ceu para que a pessoa possa chegar a novas conclusões do seu trabalho.
(LIBERALI, 2012, p. 38).
155
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
Descrever significaria, então, o ato de o educador, mais do que detalhar sua
própria prática, ter consciência dos fatos, a fim de se compreender seu trabalho, não
só para fins de conhecimento, mas também para empreender uma ação de mudança.
A segunda característica, que diz respeito à análise do que foi trabalhado na
aula, é informar, que seria apresentar a explicação com base nas teorias desenvol-
vidas ao longo da história. O foco estaria na compreensão de que tipo de conhe-
cimento os eventos em sala de aula estariam privilegiando. Para por em prática o
informar, o educador necessitaria retomar conceitos fundamentais sobre questões de
sala de aula, como, por exemplo, compreender as teorias de ensino-aprendizagem.
Nesse contexto, faz-se necessária, também, uma discussão das teorias implícitas,
o que auxiliaria os educadores a emergirem de suas práticas de maneira a situá-las
de forma ampla. Para Liberali (2012), o texto do informar pode se apresentar na
terceira pessoa do plural e no presente, podendo ter uma organização explicativa
ou descritiva. Na forma explicativa, o texto apresentaria um aspecto conceitual e
os procedimentos que auxiliariam sua compreensão em etapas ou itens.
Liberali (2012) explica, ainda, que, no informar, é de suma importância evitar as
rotulações do tipo (Isso=isso), “o professor foi behaviorista”. É fundamental evitar
também o uso da análise pela negação, que já apresentaria índices de crítica típicos
do confrontar, por exemplo, em “O professor não trabalhou a construção conjunta
do conhecimento, apenas transmitindo informações” (LIBERALI, 2012, p. 51).
A terceira das características do processo do pensamento crítico reflexivo é o
confrontar. Para a autora, o ato de confrontar remeteria a questões políticas, tais
como: Quem tem o poder em minha sala de aula? A que interesses minha prática
está servindo? Acredito nesses interesses ou somente os reproduzo?. Seria, então,
no ato de confrontar que a emancipação se faria evidente, já que agiríamos de
acordo com aquilo que acreditamos, considerando se o que acreditamos poderia
ser transformado. Além disso, para se entender o confrontar e trabalhar com ele,
Liberali (2012) defende que seria preciso fazer um questionamento profundo de
valores que estão na base das ações pedagógicas. Nessa perspectiva, confrontar seria
156
Aprendendo a ser professor de inglês: uma experiência em sala de aula da rede pública de ensino
“adotar uma visão crítica que tem como base central a confrontação das práticas
e as teorias que as embasam com a realidade e as necessidades na construção de
uma sociedade mais justa e igualitária” (LIBERALI, 2012, p. 55).
Nas palavras da autora, ao tratar sobre o reconstruir, “transformação sem
ação não é transformação” (LIBERALI, 2012, p. 65), ou seja, o reconstruir estaria
baseado no pressuposto de que, no ato de reconstrução das práticas, os educadores
estariam planejando mudança. O próprio pensar em reconstruir nos remete a novas
possibilidades de fazer. Para Giroux (1992 apud ROCHA, 2002, p. 257), reconstruir
significaria “reestruturar o currículo para definir o cotidiano como um importante
recurso para vincular as escolas às tradições, às comunidades e às histórias que pro-
porcionam aos alunos uma sensação de voz e relacionamento com os outros”. Nesse
sentido, o reconstruir implica em uma ação pedagógica direcionada à mudança de
ações que precisam ser revistas. Em outras palavras, refletir sem que essa reflexão
sirva a fins práticos não constitui uma prática crítico-reflexiva.
Metodologia
Antes de falar sobre a metodologia empregada neste trabalho, importa trazer
alguns esclarecimentos a respeito das motivações para o seu desenvolvimento.
Durante a graduação, sempre estive envolvida tanto em projetos de extensão quanto
de pesquisa. Desde o segundo semestre de 2011, ministro aulas de língua inglesa
para a comunidade portuense no Ceclla e, paralelamente a isso, tenho pesquisado
assuntos como representações e prática docente, por meio de programa de iniciação
científica, no caso o Programa Institucional Voluntário de Iniciação Científica (Pivic)
e o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Cientifica (Pibic). Foram dois
anos de pesquisas, cujas experiências decorrentes contribuíram para o crescimento
do meu interesse por questões que envolvem o ensino de língua estrangeira em
si, mais especificamente, da língua inglesa, e uma preocupação com a formação
157
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
docente, no que diz respeito tanto à investigação da prática, quanto à reflexão crítica
sobre essa prática, com vistas a uma maior consolidação profissional.
Voltando às questões relacionadas à formação de professores, considero de extrema
importância essa vivência no Ceclla para minha formação inicial. Após alguns anos
de participação no projeto, percebo o quanto essas experiências foram primordiais,
principalmente porque passei a pensar minha futura profissão de forma mais madura
e consciente. Diante das exigências do estágio formal exigido pela instituição, era
chegado o momento de adentrar a sala de língua inglesa de escolas públicas para nós,
estudantes, pudéssemos conhecer aquele contexto (que até então somente tínhamos
vivenciado na posição de alunos). Pude, então, perceber o quão preparada estava para
não só estagiar, mas também para intervir de forma mais informada e consciente naquele
contexto, a fim de buscar melhores entendimentos acerca de aspectos inerentes a um
e outro contexto, bem como para intervir de forma a melhorar a qualidade do ensino,
bastante deficiente, conforme salientou Almeida Filho (1998).
Corroborando todas as opiniões dos teóricos descritas anteriormente, eu,
enquanto estudante, considero muito importante desenvolver pesquisas de natureza
prática e que sejam desenvolvidas em conjunto com professores de escolas públicas,
o que se deve aos fatores já mencionados. Porém, também se deve ao fato de que
precisamos de pesquisas que busquem associar os conhecimentos adquiridos na
universidade à sua aplicação prática, uma vez que, a partir daí, poderemos inves-
tigar como realmente ocorrem as aulas de língua inglesa na escola pública, o que
contribui para a nossa própria formação. Além disso, tais aulas são importantes para
podermos ajudar os professores a desenvolverem uma prática mais ativa, informada,
investigativa e autônoma acerca do seu próprio contexto. Por fim, por acreditarmos
que, a partir desse consórcio entre universidade, na figura de seus professores e
alunos, e escola poderemos contribuir para um ensino de melhor qualidade aos
alunos que lá estudam, visto que merecem o melhor que consigamos oferecer.
Considerando, ainda, que nós, futuros educadores, estamos sendo habilitados
para atuar em escolas regulares, fica evidente a necessidade de avançarmos no sentido
158
Aprendendo a ser professor de inglês: uma experiência em sala de aula da rede pública de ensino
de conhecer a fundo a realidade do ensino de língua inglesa na escola pública. Essa
é outra razão pela qual me propus a desenvolver esta pesquisa, realizada em estreita
colaboração com a professora participante, para que pudéssemos maximizar o quanto
fosse possível as reflexões e o aprendizado gerado a partir de nossos estudos e nossas
práticas, conforme detalharemos na parte da metodologia deste estudo.
O suporte metodológico utilizado nesta pesquisa foi principalmente o método
qualitativo-interpretativista, utilizado em boa parte dos trabalhos na área de educa-
ção e ensino de línguas (VASCONCELLOS, 2002). O presente estudo é denominado
como sendo colaborativo qualitativo-interpretativista de cunho etnográfico.
A pesquisa qualitativa no ambiente de sala de aula teria como objetivo o des-
velamento do que Bortoni-Ricardo (2008) chama de “caixa preta” do dia a dia dos
ambientes escolares. Segundo a autora, seria possível identificar os processos que,
por serem rotineiros, muitas vezes, poderiam se tornar invisíveis para os atores
participantes dele. Além disso, ainda de acordo com a autora, segundo o paradigma
interpretativista, que teria surgido em alternativa ao positivismo, não haveria como
observar o mundo de maneira independente das práticas sociais. Ademais, sob o
guarda-chuva do interpretativismo estaria um conjunto de métodos empregados
na pesquisa qualitativa, sendo eles: pesquisa etnográfica, observação, observação
participante, estudo de caso, entre outros. O interpretativismo seria uma boa deno-
minação aos métodos que têm como compromisso a interpretação das ações sociais
e o significado que as pessoas atribuem a essas ações na vida social.
Devido à natureza desta pesquisa, ela também se constitui como sendo uma pes-
quisa colaborativa, ou melhor, etnográfica colaborativa, uma vez que nela a pesquisa-
dora não se limitou a apenas observar e tentar entender o outro, mas coparticipou na
construção de conhecimento (BORTONI-RICARDO, 2008). O estudo proporcionou
que os participantes ou sujeitos parceiros, no caso pesquisadora e professora, tivessem
um trabalho colaborativo muito proveitoso, também estabelecido pela ausência de
hierarquia entre os participantes. Vejamos o que pontua Bortoni-Ricardo (2008, p. 72):
“Valendo-se da metodologia etnográfica, necessariamente adjetivada como colaborativa,
159
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
na medida em que o objeto da pesquisa é a ação/reflexão/ação dos sujeitos parceiros,
os formadores têm como procedimento básico a observação participante.”
Por meio da presente pesquisa, tivemos uma experiência de ação, de reflexão
e de reflexão seguida de ação, sendo esse um dos procedimentos básicos da obser-
vação participante.
A participante do estudo
Devido à falta de tempo hábil e espaço, optamos por convidar somente
uma professora de língua inglesa de escola pública para participar deste estudo.
Considerando o fato de eu já ter trabalhado com uma professora quando das minhas
experiências no Pivic, aqui chamada pelo pseudônimo Tayani, resolvi voltar à
mesma escola e convidá-la a fazer esse trabalho em colaboração comigo. Devo
pontuar que, o que, de certa forma, também motivou o trabalho com a professora
Tayani foi ter realizado a disciplina Prática Pedagógica e Estágio Supervisionado em
Língua Inglesa junto com ela, o que nos possibilitou desenvolver laços de confiança
e respeito mútuo. Acrescenta-se a isso também o fato de que sempre notei, durante
as observações de estágio, que a professora se mostrava bastante comprometida
com suas aulas e com seus alunos, fato que pôde ser notado pela organização da
disciplina e por sua preocupação com esta.
Apesar de sua dedicação, notei também que suas aulas limitavam-se à trans-
missão de regras gramaticais. Em uma das conversas informais com a docente,
ficou claro o seu interesse em melhorar sua prática, bem como a sua preocupação
com sua formação, tendo declarado que sua formação não havia sido boa, tanto no
aspecto linguístico quanto teórico-metodológico.
A professora colaboradora Tayani tem 41 anos e habilitou-se em Letras –
Língua Portuguesa e Língua Inglesa pela Universidade Federal do Tocantins (UFT),
no ano de 2010. É também pós-graduada em Psicopedagogia e tem complementação
em Pedagogia. É professora do quadro efetivo na Escola Estadual Professor Florên-
160
Aprendendo a ser professor de inglês: uma experiência em sala de aula da rede pública de ensino
cio Aires, leciona as disciplinas de Inglês e Português no ensino fundamental II – 6º
ao 9º ano e na Educação de Jovens e Adultos (EJA). Quanto à sua proficiência em
língua inglesa, ela declarou que o contato que teve com o idioma foi somente em
ambiente acadêmico, porém, pretende aperfeiçoá-lo posteriormente.
Os instrumentos e procedimentos utilizados
durante a coleta e análise dos dados
Os dados desta pesquisa foram coletados por meio de observação de aulas,
questionários, entrevistas, sessões reflexivas e análise de aulas, tanto por parte da
professora pesquisada quanto da pesquisadora. As observações das aulas se deram
durante a realização da disciplina obrigatória, o Estágio, mais especificamente o
Estágio II, realizado durante o primeiro semestre de 2013. Os questionários foram
aplicados já no segundo semestre de 2013, ou seja, posteriormente à observação
das aulas da professora pesquisada. Na sequência, foram feitas as entrevistas e,
por fim, realizadas as sessões reflexivas, com base nos dados coletados por meio
das observações, questionários, entrevistas e análises realizadas pela professora
participante e pela pesquisadora.
Foram aplicados dois questionários e uma entrevista a fim entender a realidade
dessa professora, sua metodologia e sua abordagem de ensino de língua inglesa.
Foram observadas quatro aulas da professora, cujo registro foi feito por meio de
diário de campo. Essas aulas foram analisadas e comparadas com as respostas dadas
as perguntas do questionário e entrevista. Também foram realizadas as sessões
reflexivas e a descrição e análise interpretativa das aulas da professora. Essas des-
crições e análises foram realizadas tanto pela participante quanto pela pesquisadora
(estagiária), conforme já mencionado. Para melhor entendimento de cada instru-
mento utilizado, foram definidas as seguintes siglas: Primeiro Questionário (Q1);
Segundo Questionário (Q2); Entrevista (EM); Diário de Campo da Pesquisadora
(DCP); Sessão Reflexiva Colaborativa (SRC); Sessão Reflexiva da Pesquisadora
161
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
(SRP); Descrição e Análise de Aulas pela Pesquisadora (Dapesq); Descrição e
Análise de Aulas pela Professora (Daprof).
Análise e discussão dos dados
Agrupamos as opiniões da professora participante acerca de alguns pontos-
-chave para nós, buscando responder às seguintes perguntas: Há alguma discrepân-
cia entre o que a professora defende como suas concepções e as reais concepções
que ela deixa transparecer nas suas práticas ou discursos? Caso haja, quais são essas
discrepâncias? As respostas dadas pela professora participante ao questionários,
à entrevista e aos demais instrumentos foram classificadas em cinco categorias
que nos ajudaram a entender a relação entre as percepções de suas concepções e
as práticas desenvolvidas pela professora em sala de aula, além do que ela deixa
transparecer acerca das suas concepções em momentos distintos de fala durante
as aulas ou sessões reflexivas.
As categorias estabelecidas foram: 1) concepção de língua, ensino e aprendiza-
gem da professora articipante; 2) a visão dos alunos sobre língua inglesa, segundo
a percepção da professora participante; 3) a visão da professora participante sobre
língua inglesa; 4) o bom professor na opinião da professora participante e 5) o bom
aluno na opinião da professora participante. Vejamos cada uma dessas categorias
e os seus respectivos excertos que são discutidos em sequência.
Concepção de língua, ensino e aprendizagem da professora participante
Ao trazermos os excertos nesta primeira categoria de análise, procuramos
investigar as respostas da professora participante em relação às suas concepções
de língua, ensino e aprendizagem. Para uma análise mais completa, buscamos,
além de suas respostas aos questionários e entrevistas, algumas passagens e falas
suas quando das análises de suas aulas e durante as sessões reflexivas. Assim, foi
162
Aprendendo a ser professor de inglês: uma experiência em sala de aula da rede pública de ensino
possível chegar a percepções mais acuradas acerca do que a professora diz ser suas
concepções e o que realmente está inerente em sua pessoa acerca do que significa a
língua e seu ensino e aprendizagem. Os trechos em destaque são os que demonstram
explicitamente os objetos de análise desta subseção.
[1] A língua é um instrumento de comunicação onde o indivíduo
pode se relacionar, pode interagir, pode expor suas ideias. E a sua
utilidade é essencial né... como meio de comunicação e pra você
também poder estar contribuindo de certa forma, aperfeiçoando né,
sua linguagem. (Q1)
[2] Se vocês não colocarem em prática, se vocês não forem em busca
do vocabulário, do significado do sentido, daquela palavra alí, vai se
tornar muito difícil então vocês só vão ter noção do que vocês estão
sabendo de uma segunda língua a partir do momento que vocês tive-
rem já ampliado o vocabulário e isso aí é buscando é pesquisando,
é interagindo, é conversando. (Daprof)
[3] A questão da leitura, da interpretação de texto é essencial, porque
se você trabalhar com texto, você buscar trabalhar a gramática lá
dentro do texto, uma gramática contextualizada [...] mas é necessário
se você quiser explorar bem o texto, porque tem várias coisas, você vai
explorar a leitura, você vai explorar a interpretação, você vai explorar a
pronúncia correta das palavras, a conversação entre eles, a gramática,
são vários itens que pode se analisar dentro do texto né, então, isso aí é
uma forma interessante da gente tá trabalhando em sala. (EN)
[4] Aí vai iniciar a atividade o texto que seja, temos o livro didático,
temos recursos do multimídia na escola, as vezes eu procuro trazer
música só que as musica muitas vezes não agrada todos os gostos né
e você tem que pensar, e você tem que pensar o conteúdo que você
vai trabalhar a gramática dentro da música, então você tem que
selecionar a musica dentro daquilo que você vai trabalhar né, não é
uma coisa aleatória né, e as vezes é difícil [...]. (Daprof/SRC)
No excerto número 1, percebemos que a professora tem uma visão de si mesma
como uma pessoa que entende a língua como instrumento para a comunicação (oral),
através do qual o indivíduo pode se relacionar e interagir com os pares, bem como
expor seus pensamentos, suas ideias. No entanto, percebemos também, a partir dos
demais excertos, que, para a professora, o aprendizado de uma língua estrangeira
163
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
só seria possível com a prática, através do acúmulo de vocabulário, e, para isso, o
trabalho com o texto seria essencial, visto que por meio dele seria possível estudar
gramática, além de trabalhar com interpretação. A professora também considera
importante o uso da conversação, o trabalho com a pronúncia correta das palavras
como meio de aprendizado de uma língua, no caso, a língua inglesa. Isto é, a pro-
fessora tem uma percepção de si enquanto uma pessoa que entende que a língua
é um instrumento de comunicação, mas, ao mesmo tempo, quando do seu ensino,
pontua como possível sua aquisição não por meio das necessidades comunicativas,
mas por meio do acúmulo de vocabulário, do estudo das estruturas ou da gramática
da língua, além de por meio do trabalho com a pronúncia correta das palavras.
Já neste primeiro aspecto podemos constatar uma discrepância entre o que a pro-
fessora pensa sobre si e a visão de língua e seu ensino e aprendizagem que realmente
está inerente em suas concepções. Além disso, como poderemos constatar em seguida,
tal discrepância também está presente e justifica suas práticas diárias em sala de aula.
[5] Em seguida passou as questões para serem respondidas a res-
peito do texto. Depois que os alunos copiaram o texto no caderno.
Ela começou a explicar como era o Carnaval nos países que falam
língua Inglesa. E leu o texto falando traduzindo para os alunos e
pediu para que respondessem as questões. Buscou alguns dicionários.
Os alunos falaram que não compreendiam e então ela disse que era
fácil era só copiar as respostas do jeito que estava no texto, mesmo
assim eles não entendiam, então eles levavam para ela ver e ela mar-
cava as questões erradas corrigindo-as. (DCP)
O excerto número 5 trata-se de uma parte da descrição de uma das aulas da
professora que foi observada pela pesquisadora. A aula conduzida pela professora
demonstra suas concepções implícitas de língua, aprendizado e ensino. A professora
procede de maneira a explanar o conteúdo para os alunos, e eles não são provocados
a dar suas próprias impressões a respeito da temática. Mais uma vez, temos uma
situação em que o professor aparece como detentor do saber e transmissor deste.
164
Aprendendo a ser professor de inglês: uma experiência em sala de aula da rede pública de ensino
Como podemos notar, ela também não estimula os alunos a tentarem extrair
sentido do texto, pelo contrário, apresenta de imediato o significado deste, o que é
agravado pelo fato de que eles não se interessam pelo assunto, independentemnte
das diversas possibilidades de se trabalhar o material de maneira a conseguir a
participação dos alunos. A atividade proposta não conseguiu passar do simples
preenchimento de lacunas, uma vez que os alunos não sabiam identificar nem ela-
borar respostas para as perguntas, quando a professora mostrava as respostas, ou
seja, eles não foram desafiados a procurarem as respostas por si mesmos, apenas
receberam as respostas prontas, o que, de certa forma, contradiz a afirmação da
professora de que o aluno deve ser estimulado na busca de conhecimento e ir atrás
deste. Está claro aqui que a professora, em nenhum momento, instiga os alunos a
fazer isso; pelo contrário, entrega as respostas.
A visão dos alunos sobre a LI na opinião da professora participante
A segunda categoria investigada nesta parte das análises diz respeito à opinião
da professora acerca do que os alunos pensam da língua inglesa. Segundo ela:
[6] [...] os meninos ainda tem assim muita restrição, muita falta de
interesse, por que eles não valorizam tanto o idioma [...] não demons-
tram interesse de primeira, você tem que trabalhar muito motivar
muito para conseguir atingir alguns objetivos. (EN)
[7] [...] tem alguns que se interessam realmente, que eles querem
saber a pronuncia correta, quando a gente leva o CD para trabalhar
em sala tem alguns que querem ouvir que querem saber, e tem outros
que pensam que não é importante saber outra língua.” (Q1)
[8] [...] eles só dão importância as coisas na hora que realmente estão
precisando, então acredito assim se um dia forem ingressar no mercado
de trabalho e, for cobrado a língua inglesa, essa pessoa vai correr
atrás, vai buscar. (EN)
Conforme a professora pontua, a maioria dos alunos não se interessam
pelo idioma, cujo acesso ainda é, de certa forma, restrito. Muitos deles só darão
165
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
importância à língua inglesa nos momento de necessidade, assim como a maior
parte da população brasileira. Sabemos que essa, infelizmente, é uma realidade,
visto que, entre as principais motivações para se aprender um novo idioma, estão
o trabalho e os estudos. Ocorre que, no geral, a escola não cumpre seu papel no
ensino de línguas (ALMEIDA FILHO, 1998), tendo um aluno consequentemente
desmotivado, o qual, por sua vez, somente procura aprender outra língua quando
requisitado para trabalho, estudos, etc.
A visão da professora participante sobre a língua inglesa
No excerto seguinte, a professora expõe sua visão sobre a importância da
língua inglesa nos dias atuais. Ela pontua aspectos relacionados às motivações
externas para o aprendizado da língua, ou seja, motivações para trabalho, estudos,
etc. Vejamos:
[9] [...] cada vez mais vai ser necessário ter domínio de uma língua
né, para poder ocupar o mercado de trabalho, até mesmo pra tá aí
participando dos vestibulares, concurso público [...]. (SRC).
Na visão da professora, a língua inglesa é muito importante devido a ser
uma língua mundial ou global. Ela ainda atribui importância ao seu aprendizado
para que se tenha uma boa colocação no mercado de trabalho, para ingresso
em universidades ou ainda para ingressar no serviço público. Mais uma vez, a
professora não parece fazer muita questão de pontuar os aspectos relacionados
à comunicação e à interação com outros povos falantes do idioma, vendo sua
utilidade apenas para conseguir bons empregos ou vagas em concursos públicos
ou vestibulares. Assim, podemos afirmar que ela valoriza muito os aspectos ins-
trumentais da língua em detrimento dos comunicacionais, o que, mais uma vez,
pode justificar as práticas desenvolvidas por ela em sala de aula.
166
Aprendendo a ser professor de inglês: uma experiência em sala de aula da rede pública de ensino
O bom professor na opinião da professora participante
Podemos perceber, na fala da professora, as características que definem um
bom professor, entre elas a importância de este ter proficiência na língua que ensina
e ser um profissional inovador e que vai em busca do conhecimento a fim de pro-
porcionar um melhor ensino aos alunos. Vejamos:
[10] [...] de ele tá sempre buscando ver o que pode trazer de novo né,
se não tá dando certo uma metodologia, procurar inovar né, procurar
abranger o maior número possível de alunos é, procurando contagiar
mesmo, procurando aqueles que têm interesse né que têm [...] que
buscam, que querem buscar o aprendizado, colocar para incentivar
os colegas na sala, muitas vezes na hora da atividade, alunos que tem
maior facilidade que concluíram a tarefa mais rapidamente, eu coloco
como monitor, para ajudar os alunos que tem mais dificuldade. (EN)
[11] [...] os dois têm que caminharem juntos, o professor tem que tá
interessado, saber, conhecer a classe que ele tem, as dificuldades, por
onde que ele vai começar né, procurar traçar estratégias, como eu
falei, buscar monitores né para estar trabalhando em sala [...]. (EN)
[12] Uma pessoa responsável que vai vir que vai cumprir seu plane-
jamento, atender os alunos conforme você gostaria [...]. (SRC)
[13] A professora de faculdade, que foi a professora M... que foi
uma ótima professora, que foi assim que me incentivou, que me fez
realmente gostar da língua inglesa [...] Realmente, ela provocava
a participação do aluno, se você queria transmitir algo, você tinha
que saber, e qual é o vocabulário que você deveria utilizar naquele
momento, você tinha que ir atrás, você perguntava sua colega, você
olhava no dicionário [...] e aí era tão motivante que você queria par-
ticipar e falar né, participar da aula sendo na língua inglesa. (SRC)
[14] Então passar essa atividade né, motivar os alunos para que rea-
lizem a atividade para que tirem as dúvidas e depois realizar a socia-
lização. (Daprof/SRC)
[15] então agora meu objetivo é entrar no curso de língua inglesa
para poder colaborar cada vez mais com os alunos em sala e para
ficar assim satisfeita comigo mesma. (SRC)
167
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
Para a professora Tayani, o bom professor seria flexível, capaz de perceber o que
não está dando certo em sua aula e ter a capacidade de adotar outros procedimentos,
outros métodos. Seria aquele professor interessado no aprendizado dos alunos, que
motiva a interação entre eles, encorajando-os a utilizar a língua por meio de diferentes
estratégias. O bom professor seria, ainda, o responsável, que planeja suas ações. Além
disso, ele precisa dominar o idioma, o que pode ser inferido quando a professora
Tayani diz que ingressar em um curso de idiomas é o seu próximo objetivo.
No entanto, junto à esta visão de professor colaborador e motivador, podemos
constatar também, nos excertos, uma visão de professor como o único responsável
pelo bom andamento da aula, e o aluno teria, então, um papel mais passivo (embora
ele possa ser usado como monitor). Essa visão é confirmada nas observações das
aulas da professora, conforme já pontuado, em que ela controla o andamento da
aula, na qual o aluno participa apenas com receptor, ou até mesmo mero expectador,
uma vez que ele não participa de maneira significativa, em que possa se ver como
agente do seu aprendizado ou ainda de maneira que o ensino faça mais sentido para
este aluno. Uma outra característica que não podemos deixar de abordar diz respeito
à subserviência da professora ao plano de aula. Conforme os excertos, podemos
notar que, embora o bom professor deva inovar e realizar atividades diferenciadas
para motivar o aluno, este, na opinião da participante, deve ainda ter como meta
cumprir o planejamento. Em outras palavras, o bom professor deve inovar, desde
que suas inovações não prejudiquem o que foi previsto em seu planejamento.
Apesar de suas limitações, um dos aspectos muito importantes que podemos
perceber, tanto em um dos excertos prévios quanto neste imediatamente a seguir,
diz respeito ao reconhecimento, por parte da professora, de que ela ainda precisa
investir mais em sua formação profissional:
[16] [...] meu objetivo agora é realmente buscar aperfeiçoamento na
língua inglesa [...] o contato que eu tive com a língua inglesa foi só
na Universidade, de quando eu terminei a universidade até agora, não
tive disponibilidade para aperfeiçoar em algum cursinho que , porque
168
Aprendendo a ser professor de inglês: uma experiência em sala de aula da rede pública de ensino
trabalho 40 horas, porque fiz pós- graduação, saí da pós-graduação já
entrei no aperfeiçoamento do curso de pedagogia, então agora meu
objetivo é entrar no curso de língua inglesa para poder colaborar
cada vez mais com os alunos em sala e para ficar assim satisfeita
comigo mesma. (SRC)
De acordo com a fala da professora, podemos notar que o seu contato com a
língua inglesa foi na universidade e, anteriormente a isso, na escola pública que
frequentou. A própria professora reconhece os motivos pelos quais não tem um
bom desempenho linguístico no idioma que ensina e, consequentemente, percebe
isso como um dos motivos pelos quais sua prática em sala de aula, em sua própria
opinião, não tem sido satisfatória. Ela percebe ainda a necessidade de aperfeiçoa-
mento como condição necessária para a realização de um bom trabalho, o aumento
de sua confiança como profissional e a satisfação com seu próprio trabalho.
O bom aluno na opinião da professora participante
A última categoria deste trabalho diz respeito ao que a professora entende
como um bom aluno. Passemos aos excertos:
[17] [...] mas tem que haver o interesse do aluno, tem que haver a
participação, tem que querer ouvir e ele tem que querer conversar, se
ele não quiser ouvir, escutar a pronuncia correta, não quiser repetir, se
ele não quiser pronunciar, fica difícil, tem que haver essa participação
mesmo, tanto entre professor e aluno e aluno e aluno. (EN)
Com base nesse excerto, podemos verificar que, para a professora, o bom aluno
seria aquele que tem interesse nas aulas, que participa delas e se dispõe a ouvir e
conversar sobre os assuntos nela abordados, ou seja, seria aquele que está disposto a
colaborar para seu próprio aprendizado. Esse aluno “ideal” produziria as sentenças
corretamente, sempre se atentando a uma boa pronúncia – e, para isso, deveria repe-
tir as sentenças. Podemos perceber aqui uma concepção de aprendizado de língua
mais voltada para os moldes behavioristas, ou seja, baseada no estímulo-resposta
169
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
(o professor dá o estímulo, e o aluno responde). A partir desse excerto, também é
possível notar que o tipo de interação que a professora espera do aluno não é em
termos de uso comunicativo da língua, ou seja, não é baseado nas trocas de infor-
mação, na construção e interpretação de sentido, mas voltado somente para uma
repetição ou reprodução de algo que é fornecido pronto, por meio de uma música
ou diálogo já predeterminado, demandnado apenas apronúncia correta por parte
dos alunos. Vejamos agora o trecho de uma das descrições da aulas da professora:
[18] E apontando para o título da atividade, perguntou aos alunos
qual era o conteúdo da aula. Então ela lia e repetia as palavras com
os alunos. Pediu para que copiassem do quadro e fez a chamada. Em
seguida, a professora passou uma atividade fotocopiada na qual os
alunos deveriam associar as frutas aos nomes. (DCP)
Neste excerto, vemos a descrição da professora em uma de suas aulas e perce-
bemos o quanto ela está se centrando em sua própria figura como a controladora da
situação. Nesse contexto, fica o papel do aluno restrito ao de copiar do quadro, repetir
o que a professora determinava e associar figuras de frutas aos seus nomes em inglês.
Em outro momento, a professora menciona o fato de os alunos não serem capa-
zes de produzir algo, mas apenas copiarem partes que já estão prontas. Vejamos:
[19] Eu acredito que eles devam produzir mais dentro da Língua
Inglesa, porque agora mesmo quando trabalhamos os conteúdos de
datas comemorativas, eu pedi pequenas mensagens sobre o Valentine’s
day, e a gente vê assim que, a maior parte dos alunos, só copiou trechos
de letras de músicas que já existem e trouxe como sendo produção
própria, então a gente tem que atentar para isso aí né, para que eles
realmente produzam, para que eles tentem escrever, uma mensagem
mínima [...] uma mensagem que seja própria. (SRC)
A partir desse excerto, podemos perceber que a professora tem consciência
desta educação voltada para a reprodução e memorização de regras e de que seus
alunos, em vez de criarem mensagens suas, por menores que sejam, tentando trans-
mitir o que realmente gostariam em um cartão de Valentine’s Day, preferem copiar
170
Aprendendo a ser professor de inglês: uma experiência em sala de aula da rede pública de ensino
trechos de músicas. Essa consciência de que algo está errado nos permite afirmar
que a professora não está satisfeita com suas práticas nem com os resultados desta
na formação de seus alunos, mas, ao mesmo tempo, parece que não se reconhecer
como capaz de lutar contra um sistema que parece instituído e dado como pronto.
Em sua sala de aula, a professora, isolada e com tantas coisas mais urgentes para
resolver, apesar de saber que os alunos não estão produzindo, mas copiando, não
se sente suficientemente capaz de mudar esta realidade, apesar de ter consciência
dela, ao menos em alguns momentos, quando é levada a pensar a esse respeito, e
de não concordar com o que está em voga na educação de nossas crianças.
Todos os tópicos discutidos anteriormente nos levam à necessidade de ressaltar
a importância da linguagem como fundamental na construção da profissionalidade
do professor. Corroborando o que pontua Liberali (2012), a linguagem deve servir
de instrumento de ação do educador para que esse tenha condições de refletir sobre
suas ações e deve ser usada para fazer emergir o que está implícito nas práticas dos
professores, bem como as concepções nem sempre conscientes que o professor car-
rega acerca de sua profissão. A autora considera fundamental o estudo da linguagem
também porque é por meio dela que os professores, tendo se informado sobre suas
práticas e concepções, têm maiores chances de agir mais autonomamente em sala
de aula e, com isso, envolverem-se em um processo emancipatório.
Algumas considerações
Apesar de termos sempre trabalhado a abordagem comunicativa no Ceclla e,
pensando especificamente em contextos de escolas regulares, muitas vezes com
condições adversas de ensino, devemos considerar, para este estudo, assim como
pontua Prabhu (1990), que não há um método que possa ser considerado o melhor,
pois tudo depende de questões amplas, relacionadas ao contexto, ao professor
e ao aluno. E assim foi feito neste estudo. Tentamos sempre discutir questões
que eram possíveis de serem desenvolvidas e, a partir delas, refletir acerca das
171
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
práticas possíveis ou não, de acordo com as questões contextuais da professora
envolvida, buscando desenvolver a prática da reflexão e da autoanálise com vistas
ao desenvolvimento da autonomia em ambas as participantes, sem que, para isso,
fosse proposto o estudo ou a aplicação de um método em específico. Isso porque
acreditamos que devemos investir em uma formação mais holística com vistas
à formação mais autônoma do professor para que este tenha a oportunidade de
construir sua profissionalidade a partir das condições que lhe são peculiares, e
não simplesmente ficar preso a alguma receita que supostamente, quando bem
aplicada, irá ocasionar bons resultados.
Partindo dessa ideia, nossa intenção era despertar a professora para uma abor-
dagem reflexiva crítica sobre sua prática, ou seja, fomentar o desenvolvimento
do ato de refletir sobre a sua situação e pensar em alternativas e soluções para os
problemas próprios de sua realidade. Assim, concordamos com Zeichner e Liston
(1996) quando defendem que, na prática reflexiva, o professor deve ter um papel na
formulação de objetivos e ser agente nesse processo. Nesse sentido, ele não deve ser
mero reprodutor ou repassador dos conteúdos preestabelecidos ou do livro didático.
Daí, então, a importância de nós, professores-aprendizes, desenvolvermos nos-
sas práticas junto aos professores que estão efetivamente em sala de aula, visando
não apenas observar para fazer, mas desenvolver nossa prática reflexiva sobre
a experiência individual e, sobretudo, em discussão com um profissional mais
experiente, a fim de aprender e trocar experiências com esses professores que estão
em contato diário com a realidade da sala de aula da escola pública. E isso só pode
realmente ser alcançado mediante o conhecimento da realidade da sala de aula.
Acreditamos que o contato com professores da rede pública de ensino é, sem
dúvida, bastante relevante para a nossa formação, pois poderemos contar com as
suas experiências, saber das suas necessidades e, junto a eles, procurar refletir sobre
esses problemas em busca de soluções. A esse respeito, concordamos com Nóvoa
(1999), o qual afirma que as mudanças esperadas para a educação, no geral, não
podem ser gestadas se não passarem pela formação de professores.
172
Aprendendo a ser professor de inglês: uma experiência em sala de aula da rede pública de ensino
Como foi visto, a formação profissional, seja ela inicial ou continuada, pode
ser melhor empreendida em contextos de colaboração, visto que os coparticipantes
podem colaborar para a construção de conhecimento. Nessa pesquisa em especial,
foram agregadas experiências, o que fomentou a capacidade de pensar reflexiva-
mente nossas próprias atuações em sala de aula.
O empreendimento de uma prática crítico reflexiva proporcionou, tanto para
mim, enquanto pesquisadora, quanto para a professora participante, o desenvol-
vimento da capacidade de pensar e repensar nossas próprias práticas com vistas
a mudanças que possam melhorar o aprendizado dos nossos alunos, por meio de
uma tomada de consciência do que está por trás de nossas ações, ou seja, de quais
teorias embasam nossas ações.
Percebemos, ainda, a importância de o profissional estar preocupado com seu
próprio desenvolvimento e crescimento na profissão. Ele precisa estar comprome-
tido com seus alunos e com o aprendizado destes, o que seria um dos primeiros
passos para uma autoavaliação e crítica sobre sua ação (LIBERALI, 2012; SMITH,
1991; WALLACE, 1991).
O tema aqui abordado faz-se realmente relevante no que diz respeito à for-
mação de professores. Portanto, por meio deste trabalho, sugere-se que a cons-
trução da profissão docente passe pela experiência prática contínua e apoiada
pelo estudo teórico e pela reflexão sobre as práticas desenvolvidas como forma
de se alcançar melhores resultados.
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Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
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Aprendendo a ser professor de inglês: uma experiência em sala de aula da rede pública de ensino
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ZEICHNER, K. M.; LISTON, D. P. Reflective teaching: an introduction. MahwahNew
Jersey: Lawrence Erlbaum Associates Publishers, 1996.
175
CAPÍTULO 8
O Projeto Ceclla e a criação de
uma comunidade de prática:
questões sobre a necessidade
de melhor formação linguística
e o despertar para o papel
social e político do professor
Daniella Corcioli Azevedo Rocha – UFT
O mundo não é. O mundo está sendo. Como subjetividade
curiosa, inteligente, interferidora na objetividade com que
dialeticamente me relaciono, meu papel no mundo não é só o
de quem constata o que ocorre mas também o de quem intervém
como sujeito de ocorrências. Não sou apenas objeto da História
mas seu sujeito igualmente. No mundo da História, da cultura, da
política, constato não para me adaptar mas para mudar.
(Paulo Freire)
Introdução
Compreender questões inerentes à formação docente e os aspectos relacionados
ao desenvolvimento de um profissional mais autônomo, responsável, reflexivo e
crítico tem sido, há muito, alvo de minhas preocupações. Enquanto formadora de
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
professores, venho observando, há alguns anos, as limitações presentes nas práticas
pedagógicas desenvolvidas nas disciplinas de Estágio Supervisionado. É sabido que
a formação prática oferecida aos nossos futuros professores não tem dado conta
de abarcar muitos dos aspectos envolvidos na aquisição do “gênero profissional”
(CLOT, 2007; FAÏTA, 2004 apud REICHMANN, 2012; MARTINY, 2012). Isso
acontece, em parte, devido ao fato de nosso estágio supervisionado obrigatório ser
baseado em um modelo que vê a prática de ensino como uma atividade episódica
(CRISTÓVÃO, 2005), em que o aluno ministra certo número de aulas em diferentes
turmas de uma escola-sede, sem ter a oportunidade de vivenciar todas as etapas
envolvidas no processo de ensino e aprendizagem. Realizado desta maneira, o está-
gio não provê oportunidades de os futuros professores criarem vínculos importantes
com os alunos e de desenvolverem um senso de responsabilidade e envolvimento
com a comunidade escolar onde realizam suas regências obrigatórias.
Diante dessas inquietações e da constatação de que a nossa formação inicial
docente poderia ser conduzida de forma mais eficiente, o Colegiado do Curso de
Letras da Universidade Federal do Tocantins, campus de Porto Nacional, criou,
no ano de 2010, o Centro de Estudos Continuados em Letras, Linguística e Artes
(Ceclla). O projeto tem como objetivos o oferecimento gratuito de cursos de idio-
mas à comunidade local e, principalmente, o fomento de uma melhor formação
docente aos nossos alunos da graduação em Letras, por meio da oportunidade de
os graduandos ministrarem aulas na condição de professores-monitores, supervi-
sionados por professores do colegiado, por, no mínimo, seis meses ininterruptos.
O modelo de formação docente desenvolvido no Ceclla é baseado nos pres-
supostos defendidos por Wallace (1991), segundo o qual o estudo teórico deveria
ser atrelado à prática efetiva e contínua em contextos reais de ensino e seguido
da reflexão acerca das práticas desenvolvidas. Tal modelo vai ao encontro do que
defendem Kumaravadivelu (2001), Prabhu (1990) e Medrado (2012, p. 152), o
qual afirma que estamos presenciando, cada vez mais, a “necessidade de o futuro
professor estar, desde o início da sua formação, mais próximo do seu contexto real
178
O Projeto Ceclla e a criação de uma comunidade de prática:
questões sobre a necessidade de melhor formação linguística e o despertar para o papel social e político do professor
de atuação, vivenciando experiências singulares que não podem ser simuladas ou
reproduzidas na academia”.
Em relação à formação linguístico-metodológica, posso afirmar que, a partir
da implantação do projeto, atingimos com sucesso os objetivos de melhorar a
formação dos nossos futuros professores, bem como no que diz respeito ao desen-
volvimento de uma postura mais reflexiva e investigativa com nossos discentes,
visto que hoje é prática corrente o envolvimento deles em pesquisas e a sua parti-
cipação em eventos com apresentação de trabalhos. Tais pesquisas extrapolaram os
muros de nossa universidade, inclusive a partir da publicação de um livro (LIMA;
LUDWIG; ROCHA; SOUZA, 2016), no ano de 2016, contendo artigos de alunos
que realizaram projetos de pesquisas enquanto eram monitores do Ceclla. Mais que
isso, podemos nos orgulhar de termos formado uma comunidade de prática1 que
propicia aos nossos graduandos o orgulho de serem parte do projeto e a motivação
para investir cada vez mais em sua própria formação e na melhoria da educação
de nosso país, como um todo (ROCHA, 2013).
Após o investimento inicial em uma melhor formação linguístico-metodológica,
partimos à investigação de aspectos mais profundos relacionados ao “ser professor”.
Para este estudo, propus-me a investigar a aquisição ou não das seguintes competên-
cias inerentes à profissão: autonomia e tomada de decisão; capacidade de adequação
e implementação de práticas mais conscientes e sensíveis ao contexto ou contexto-o-
rientadas; desenvolvimento emocional e habilidades para lidar com as dificuldades
e frustrações próprias dos ambientes escolares; e desenvolvimento do profissional
crítico e reflexivo. Tendo em mente esses objetivos, formulamos a seguinte pergunta
de pesquisa: além das competências linguístico-metodológicas, quais outras compe-
tências inerentes à profissão docente foram adquiridas pelas discentes participantes do
projeto Ceclla e as influenciaram em suas práticas durante o estágio supervisionado?
1
Comunidades de prática, segundo Wenger (1998 apud GIMENEZ, 2012), “são grupos de pessoas que compartilham
de uma preocupação ou paixão por algo e que aprendem a fazê-lo melhor por meio de interações regulares”.
179
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
Devido à limitação de espaço para abarcar toda a pesquisa, para este capítulo foram
analisados dados coletados junto a três professoras-monitoras do projeto, por meio
de dois questionários e análise de seus relatórios de estágio e das suas monografias,
apresentadas como trabalho de conclusão de curso. Tendo discutido algumas questões
iniciais, passemos agora à fundamentação teórica que embasa o presente estudo.
Fundamentação teórica
Este estudo está apoiado em visões da profissão de professor e de formação
docente defendida por alguns teóricos, como: Prabhu (1990), Kumaravadivelu
(2001), Vasconcellos (2003), Dubet (2008) e Liberali (2012). Na medida do possí-
vel, nos valeremos de outros escritos, com o objetivo de enriquecer nossos embasa-
mentos e, com isso, poder abarcar mais questões inerentes a esses aspectos. Come-
cemos por abordar o que Prabhu (1990) tem a nos dizer acerca de nossa profissão.
Em seu artigo intitulado “There is no best method: why?”, Prabhu (1990) defende
a formação de um professor que traga consigo um acurado senso de plausibilidade em
relação ao que é necessário e possível de ser desenvolvido no seu contexto de traba-
lho. Segundo ele, é chegada a hora de investirmos na formação de um profissional o
qual, mais que dominar as etapas de desenvolvimento e aplicação de um determinado
método, seja capaz de ser o senhor de sua própria prática, com autonomia, senso de
envolvimento e responsabilidades suficientes para decidir acerca do que é aplicável
ou não e das melhores formas de fazer com que o aprendizado seja alcançado por
seus alunos, da forma mais eficiente possível. Para Prabhu (1990, p. 172):
[...] quando o senso de plausibilidade está operando no processo de
ensino e aprendizagem o professor pode ser considerado como envol-
vido e o ensino não é mecânico. E mais, quando o senso de plausibi-
lidade está engajado, a atividade de ensinar é produtiva: temos aqui a
base para o professor ficar satisfeito ou insatisfeito acerca da atividade
e cada instância de sua satisfação ou insatisfação é, por ela mesma,
uma nova influência no seu senso de plausibilidade, confirmando,
180
O Projeto Ceclla e a criação de uma comunidade de prática:
questões sobre a necessidade de melhor formação linguística e o despertar para o papel social e político do professor
desconfirmando ou revisando sua prática em alguma pequena medida
e, geralmente, contribuindo com seu crescimento ou mudança.
Durante nossa revisão teórica, percebemos que o modelo defendido por
Prabhu (1990) se contrapõe a um outro modelo individualista de formação docente
em voga ainda hoje, que não privilegia nem a troca de experiências nem o desen-
volvimento da colaboração entre os futuros docentes. Como resultado desse outro
modelo, encontramos profissionais que, depois de formados, não desenvolvem
trabalhos conjuntos, não têm o hábito de compartilhar experiências e refletir cola-
borativamente e são impedidos até mesmo de conversar com seus pares devido
à estrutura organizacional das escolas regulares, vendo-se imersos no que Pessoa
(2002) denomina “solidão pedagógica”.
Voltando ao modelo mais abrangente de formação docente, não podemos dei-
xar de mencionar as contribuições dos estudos de Clot (2007) e Faïta (2004 apud
REICHMANN, 2012 e MARTINY, 2012) no que concerne ao desenvolvimento
do “gênero profissional”.2 Acreditamos que precisamos investir em uma formação
que faça com que- os futuros professores adquiram este gênero e, com ele, carac-
terísticas docentes mais profundas, a fim de serem capazes de se reconhecerem
como parte integrante e importante do processo contínuo de construção, avaliação
e reformulação da nossa profissão. A aquisição de tais características é o pontapé
inicial na construção de práticas educacionais que vão além do modelo transmis-
sor, em que professores e alunos assumem posições dicotômicas que, na maioria
das vezes, pouco contribuem para o processo de coconstrução do conhecimento.
Kumaravadivelu (2001) aprofunda-se nesse tema ao salientar a necessidade
de termos como meta uma formação profissional que reveja o atual processo de
ensino e aprendizagem e redefina os papéis de estudantes, professores e formado-
res de professores para que possamos ultrapassar o atual modelo de transmissão
2
O gênero profissional fundamenta-se em uma memória coletiva da atividade, em um falar sobre o trabalho docente,
sendo que um gênero sempre “vincula entre si os que participam de uma situação, como co-autores que conhecem,
compreendem e avaliam essa situação da mesma maneira” (CLOT, 2007, p. 44 apud REICHMANN, 2012, p. 938).
181
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
de conhecimento. Segundo o autor, uma pedagogia baseada em três principais
aspectos, particularidade, aplicação prática e possibilidade, é uma alternativa ao
nosso modelo deficiente de formação, no qual os profissionais são incapazes de agir
autonomamente e se reconhecer como responsáveis por e capazes de interferir ativa-
mente nos contextos em que trabalham. Para Kumaravadivelu (2001), a pedagogia
de ensino de línguas precisa ser relevante e sensível ao contexto, ou seja, precisa
ser realizada por um grupo particular de professores, para um grupo específico
de alunos pertencentes a um determinado contexto sociocultural e com objetivos
particulares a partir das suas necessidades locais e possibilidades institucionais.
Ainda segundo Kumaravadivelu (2001), os futuros professores precisam ser
auxiliados nos seus processos de construção da autonomia que, em nosso enten-
der, é adquirida a partir de uma formação mais holística, que leve em conta não
somente os aspectos teóricos da formação, mas também, e principalmente, os aspec-
tos emocionais dos docentes. Acerca dos aspectos emocionais, podemos enumerar
o desenvolvimento da autoconfiança e da autoestima como os mais importantes e
necessários para poder habilitar os futuros docentes a se verem como pertencentes
ao contexto de sala de aula, com competências suficientes para identificar e entender
seus problemas, analisar e propor soluções, considerar alternativas e testá-las, obje-
tivando melhorar a formação de seus alunos. Entendemos que esses aspectos estão
relacionados à capacidade de intervir conscientemente e com responsabilidade em
seu campo de atuação, a fim de modificá-lo para um mais favorável ao desenvol-
vimento linguístico e cidadão dos alunos, enquanto cidadãos ativos, emancipados
e conscientes dos seus direitos e deveres em relação à comunidade em que vivem.
Outros importante fator a ser fomentados nos profissionais inseridos na era
pós-método: suas competências para se verem como sujeitos de transformação
(VASCONCELLOS, 2003), capazes de desenvolver práticas sensíveis ao contexto,
ou contexto-orientadas, que descortinem a pretensa neutralidade pedagógica e consigam
encorajar tanto professores quanto alunos a questionarem determinadas práticas de
dominação que criam, sustentam e mantêm a grande maioria das desigualdades sociais
182
O Projeto Ceclla e a criação de uma comunidade de prática:
questões sobre a necessidade de melhor formação linguística e o despertar para o papel social e político do professor
(KUMARAVADIVELU, 2001). Esse tipo de formação somente pode ser conseguido
quando temos professores autônomos, com profundo senso de responsabilidade e com-
promisso com sua comunidade e, mais ainda, com motivação, maturidade emocional
e segurança profissional suficientes para se sentirem capazes de intervir positivamente
na mudança social da realidade ampla que os cerca.
Como bem aponta Kumaravadivelu (2001), o desenvolvimento de um profis-
sional com essas características não pode dar-se, senão, mediante a prática, ou seja,
é o próprio professor, na sua prática contínua e cotidiana, que, tendo as ferramen-
tas de exploração e as condições necessárias, irá produzir suas teorias e se tornar
autônomo o suficiente para intervir profundamente em seu contexto, opinião que
também é compartilhada por Prabhu (1990), conforme já mencionado.
Em se tratando, ainda, de uma visão de professores enquanto sujeitos de trans-
formação, não podemos deixar de mencionar que a estes cabe a perspicácia de, além
de descortinar, situar, junto com seus futuros alunos, os reais alcances da escola
no que concerne à promessa de educação como meio de ascensão social. Segundo
Vasconcellos (2003, p. 25), a escola, na verdade,
nunca promoveu a ascensão de classe; só que havia essa impressão, pelo
fato de as melhores colocações no mercado estarem com quem tinha
diploma. Não se dava conta, no entanto, de que quem conseguia chegar ao
diploma – e aos bons empregos – já era da classe dominante, obviamente
adicionado de mais alguns da classe pobre, que conseguiam sobreviver
ao esquema formal da escola e que, portanto, eram ‘compatíveis’ com os
interesses dominantes, podendo assumir cargos de gerência.
Essa opinião também é compartilhada por Dubet (2008), que vai além, ao
afirmar que a escola, ao utilizar o modelo meritocrático supostamente neutro, vende
a ideia de que todos os cidadãos dispõem de condições iguais de competição em
nossa sociedade e que, portanto, a todos é dada a chance de ascensão social. Ora,
essa visão de escola não é real e em nada ajuda na tomada de consciência dos
estudantes acerca dos muitos aspectos envolvidos em um modelo educacional
que foi planejado para atender aos interesses de uma minoria que já traz consigo
183
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
os aparatos culturais valorizados por ela. Diante do exposto até aqui, podemos ter
uma ideia do quão imprescindível é o papel do professor e, mais, do quanto ainda
precisamos investir em nosso contexto de atuação, em pesquisas, em ações práticas
mais direcionadas e em formação inicial e continuada, como forma de realmente pôr
em prática uma nova forma não só de conceber a escola, mas também de torná-la
mais uma ferramenta na construção de uma sociedade justa e igualitária.
Passando agora às nossas inquietações acerca de como fomentar o desenvol-
vimento de profissionais com as características anteriormente citadas, buscamos
em Liberali (2012) algumas diretrizes básicas que em muito nos auxiliaram em um
momento inicial. Os escritos de Liberali (2012) adentraram nosso contexto de for-
mação, tanto na universidade quanto no projeto Ceclla, a partir do momento em que
começamos a nos informar sobre nossas ações e a procurar formas de intervir para
melhor fomentar o nosso desenvolvimento e pensamento crítico. Assim, mais que uma
contribuição teórica, Liberali (2012) nos forneceu informações sobre como agir, quais
resultados esperar e como privilegiar esse tipo de formação ainda na formação inicial.
A esse respeito, uma das questões que nos fez tomar consciência da situação do
modelo de formação docente na maioria das nossas instituições foi a constatação de
que, devido ao nosso modelo transmissor, meritocrático e tecnicista, é retirada “do
nosso educador a possibilidade de pensar e tomar decisões de conhecer sua ação”
(LIBERALI, 2012, p. 25). Nesse sentido, a estrutura escolar mascara e impede uma
tomada de consciência acerca dos reais objetivos educacionais ao fazer parecerem
neutras as relações de poder que regem a sociedade e privilegiam apenas uma pequena
camada da população, conforme já mencionado. Ao propor um modelo de formação
em que os professores se vejam como agentes de transformação social, a Pedagogia
Crítica visa, antes de tudo, munir os docentes com competências para reconhecer suas
práticas como embebidas de valores éticos e morais que precisam ser os mais acurados
e justos possíveis para que os educadores sejam capazes de reconhecer essas relações
supostamente neutras e, mais que isso, interferir em tais relações com o objetivo de
184
O Projeto Ceclla e a criação de uma comunidade de prática:
questões sobre a necessidade de melhor formação linguística e o despertar para o papel social e político do professor
fomentar “experiências e atividades que levam a formas de vida preocupadas com a
justiça, igualdade e realizações concretas” (LIBERALI, 2012, p. 31).
Quando afirmamos que Liberali (2012) nos forneceu não somente arcabouço teó-
rico, mas também alternativas de ação e, portanto, procedimentos metodológicos, o
fazemos por reconhecer, em seus escritos, sugestões de formas de agir e comportamentos
a desvelar que foram utilizados durante o nosso processo de reflexão e desenvolvi-
mento do pensamento crítico. Eentre os aspectos mais importantes que devem ser aqui
salientados, está o poder da linguagem não somente como meio de expressão, mas
também como forma de construção, coconstrução e reconstrução de práticas, discursos
e identidades. Assim, para Liberali (2012, p. 37), “trabalhar com a linguagem significa
instrumentalizar os educadores para refletir sobre suas ações (instrumento) e para agir
em sala de aula (objeto). Significa, portanto, desenvolver poder emancipatório”.
A esse respeito, a autora, valendo-se dos escritos de Smyth (1991 e 1992), pon-
tua quatro características linguísticas das ações dos professores envolvidos em um
processo reflexivo crítico. A primeira delas diz respeito ao ato de descrever. Segundo
Liberali (2012), o professor, a partir do ato de descrever sua prática, toma consci-
ência do que foi feito, entendendo o que fez e como o fez. A partir das análises das
descrições dos professores, é possível perceber, também, através do seu discurso, o
envolvimento do educador, por meio do uso da primeira pessoa, ou o seu distancia-
mento, por meio do uso da terceira pessoa. A segunda característica é o informar,
momento em que o educador irá explicar suas práticas, ou seja, o ato de informar
envolve uma busca pelos princípios que embasam, conscientemente ou não, as ações
dos professores e está relacionado ao entendimento das teorias formais que sustentam
as ações e os sentidos dessas ações em seu ambiente de trabalho. Entendemos que
a tomada de consciência do papel político do professor ou o despertar para a falsa
neutralidade das práticas educativas começa com o ato de informar. A terceira carac-
terística refere-se ao ato de confrontar, vinculada ao fato de o profissional submeter
as teorias que embasam suas ações a um questionamento que busca compreender
os valores que servem de base para seu agir e pensar. Isto é, busca-se, por meio do
185
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
confrontar, entender as normas culturais e históricas, as influências e as razões que
levaram o educador a desenvolver ou não determinado tipo de prática. Aqui temos as
bases para o início da mudança das práticas ou, ao menos, a conscientização de que
o professor é responsável, mesmo que em parte, pela reprodução das desigualdades
sociais quando não promove uma educação que considere os valores emancipatórios,
como o direito à igualdade, à liberdade e à autonomia e o respeito às diferenças.
A última característica diz respeito à capacidade de reconstruir suas práticas. Nesse
estágio, os professores, munidos de poder profissional, segurança, autoconfiança,
autoestima, autonomia e, ainda, consciência do seu papel político e transformador,
veem a si mesmos como capazes de reconstruir suas práticas para que estas atendam
aos reais interesses dos envolvidos em seu contexto de trabalho.
Linguisticamente, segundo Dolz e Schneuwly (1996 apud LIBERALI, 2012,
p. 66), “o reconstruir está ligado à reorganização da ação através de exemplificações,
relatos e regulação de comportamento, ou seja, instruções/indicações de ações com
discurso mais interativo e como relato e apresentação de possibilidades de ações”.
Nesse estágio, os professores se mostrariam dispostos a repensar suas ações e a
reorganizá-las de modo a melhor atender seus objetivos e a rever suas posturas e
ações diante dos alunos, de forma a promover um ensino mais contextualizado,
libertador e emancipatório. Entendemos que, nesse estágio, também, os próprios
papeis do professor e dos alunos são revistos, de forma a reconstruir um novo
modelo de educação como coconstrução do conhecimento que, cremos, substi-
tuirá, muito em breve, o atual modelo transmissor e domesticador ainda presente
na maioria dos contextos escolares. Tendo pontuado algumas questões acerca dos
escritos que embasaram nossos estudos, passemos agora a uma breve descrição
dos procedimentos adotados durante a realização da pesquisa.
186
O Projeto Ceclla e a criação de uma comunidade de prática:
questões sobre a necessidade de melhor formação linguística e o despertar para o papel social e político do professor
Procedimentos metodológicos
Para prosseguir às investigações que originaram o presente capítulo, valemo-nos
dos pressupostos da pesquisa colaborativa de cunho etnográfico (BORTONI-RICARDO,
2008; BURNS, 1999). Segundo Bortoni-Ricardo (2008), os estudos colaborativos são
aqueles em que os pesquisadores não se limitam a apenas observar e tentar entender o
outro, mas coparticipam da pesquisa, colaborando, assim, para sua própria formação.
Nessa perspectiva, o pesquisador não é somente um observador passivo procurando
entender o outro, ambos são coparticipantes ativos no ato de construção e de trans-
formação do conhecimento (BORTONI-RICARDO, 2008). Burns (1999) defende o
desenvolvimento de pesquisas realizadas em contextos colaborativos por considerar que
estas são mais produtivas, visto que encorajam professores a compartilhar os problemas
comuns vivenciados cotidianamente. Para esta autora, ainda, as pesquisas colaborati-
vas incentivam os participantes a trabalharem cooperativamente como pesquisadores
comunitários examinando suas acepções, seus valores e suas crenças, enriquecendo a
pesquisa à medida que esta conta com interpretações e pontos de vista diferentes e, por
isso, mais completos e abrangentes.
Para o desenvolvimento deste estudo, convidamos três professoras-monito-
ras de língua inglesa do Ceclla a discutirem suas práticas e, de forma reflexiva e
apoiada pelo estudo teórico, pensar sobre os variados aspectos envolvidos na pro-
fissão docente. As três professoras-monitoras foram escolhidas como participantes
deste estudo por terem sempre demonstrado grande interesse e disponibilidade
para estudo e discussão sobre o assunto, bem como por terem escolhido desen-
volver seus trabalhos de conclusão de curso na área de formação de professores,
o que garantiria a elas maiores leituras e aprofundamento acerca do tema. Além
disso, todas elas ministraram aulas no projeto Ceclla por mais de dois anos e não
contavam com nenhum tipo de experiência docente anterior ao projeto, sequer,
tinham proficiência linguística ou metodológica na língua inglesa. Esses aspectos
nos ajudariam a ter uma noção mais acurada dos alcances do projeto, já que suas
187
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
experiências, ao adentrar as salas de aula da escola pública no estágio supervisio-
nado, estavam relacionadas somente às suas vivências enquanto alunas e enquanto
professoras-monitoras do projeto.
A identificação de cada uma das participantes será por meio do uso dos pseudô-
nimos Kelly, Eva e Mariane. Para as análises deste estudo, especificamente, foram
utilizados dados provenientes dos seguintes instrumentos: dois questionários apli-
cados às participantes, seusrelatórios de estágio supervisionado obrigatório e suas
monografias, defendidas como requisito para a conclusão do curso de Letras. O uso
de diferentes instrumentos nos permitiu realizar a triangulação dos dados obtidos,
apresentando perspectivas diferentes sobre a pergunta de pesquisa e conferindo
maior credibilidade e validade aos resultados desse estudo. As siglas utilizadas na
identificação de cada instrumento nos excertos encontram-se no quadro a seguir.
Quadro 1: Siglas dos instrumentos de coleta de dados
Instrumento de Coleta Sigla
Primeiro Questionário Q1
Segundo Questionário Q2
Relatório de Estágio Supervisionado RES
Trabalho de Conclusão de Curso TCC
Fonte: Elaborado pela autora.
Tendo pontuado os caminhos percorridos durante o desenvolvimento deste
estudo, passemos à análise dos dados até então abarcados.
188
O Projeto Ceclla e a criação de uma comunidade de prática:
questões sobre a necessidade de melhor formação linguística e o despertar para o papel social e político do professor
Análise e discussão dos dados
Com o intuito de promover uma melhor fluência ao longo da leitura deste
texto, os excertos foram agrupados em categorias para facilitar as análises e melhor
responder à pergunta de pesquisa: além das competências linguístico-metodoló-
gicas, quais outras competências inerentes à profissão docente foram adquiridas
pelas discentes participantes do projeto Ceclla e as influenciaram em suas práticas
durante o estágio supervisionado? Assim, durante a análise preliminar das res-
postas aos questionários e a análise dos relatórios de estágio e das monografias
das participantes, foi possível distinguir duas categorias diferentes que se com-
plementam e comungam de uma perspectiva holística de formação docente com
vistas à emancipação e transformação social, a saber: a) capacidade de reconhecer
as qualidades inerentes a um bom professor e ao desenvolvimento de autonomia,
autoconfiança, autoestima e capacidade de agir colaborativamente; e b) formação
de um profissional reflexivo e desenvolvimento do pensamento crítico. Passemos,
em seguida, a cada uma destas categorias e suas respectivas discussões.
Capacidade de reconhecer as qualidades inerentes a um bom
professor e desenvolvimento de autonomia, autoconfiança,
autoestima e capacidade de agir colaborativamente
Um dos aspectos importantes que foram encontrados durante a análise dos dados
deste estudo diz respeito à capacidade das participantes de reconhecer as características
de um bom professor. Esse aspecto foi considerado uma das categorias para esta pesquisa
por entendermos que a construção da nossa profissionalidade passa pela capacidade
de nos vermos como professores, coautores, pertencentes a esse gênero profissional
e, por isso mesmo, capazes de falar sobre ele, compreender e avaliar nossas próprias
ações e a dos nossos colegas de profissão (CLOT, 2007, p. 44 apud REICHMANN,
189
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
2012) e, a partir de nossas reflexões, intervir nessas ações, (re)construindo-as ou (re)
elaborando-as (LIBERALI, 2012).
Passemos aos primeiros excertos deste estudo:
[1] Outra colocação em relação a esta aula foi o fato de a professora
não mostrar entusiasmo algum ao passar o conteúdo para o aluno,
pois além de o conteúdo ter sido passado da forma tradicional este
foi passado também de forma insignificante, sendo que o professor
é uma figura importante do processo de aprendizagem, e este deve
transparecer total motivação, até porque este é um dos fatores deter-
minantes para o aluno atingir um bom desempenho, pois o aluno
motivado buscará usar a LE fora da sala de aula. Além da falta de
entusiasmo, foi possível perceber que a professora falava muito pouco
em Inglês, pois ela apenas lia as sentenças em Inglês e na frente das
frases escritas em Inglês estavam as traduções em Português, não
instigando os alunos a entenderem através da explicação ou mímica
o que significava cada frase. E o uso da Língua Inglesa na sala de
aula favorece não somente os alunos, mas também o professor pois
este não estará colocando em prática todo o aprendizado recebido
da Língua Inglesa se não usa a língua. (RES Kelly)
[2] O maior problema observado nesta aula foi o fato da professora de
Inglês não ter falado simplesmente nada em Inglês, nem mesmo ela
cumprimentou os alunos com um “Good afternoon”, o que é uma pos-
tura extremamente preocupante, pois se nem mesmo a professora fala
Inglês como é que os alunos irão falar? [...] Na maioria das observações
que fazemos nas escolas, percebemos professores desmotivados e pron-
tos a dar os conteúdos da grade impondo o aprendizado por que precisa
cobrar a matéria, desta forma o desinteresse e a falta de comprometi-
mento que é passado e sentido pelos alunos atrapalha a aprendizagem
significativa para o aluno, o que é extremamente grave, visto que somos
os responsáveis pelos futuros falantes da Língua Inglesa. (RES Kelly)
[3] Percebo que as aulas na escola pública podem sim ser conduzidas
de maneira a envolver os alunos e fazê-los interagir, numa aula mais
comunicativa. O problema da falta de tempo do professor é realmente
um grande dificultador, porém o professor pode driblar essa dificul-
dade sendo criativo, mesmo que o conteúdo por aula seja pouco, mas
que o aprendizado seja privilegiado. É preciso parar de pensar somente
em quantitativos de notas, precisamos olhar principalmente para a
qualidade do ensino. O que falta na maioria das vezes é motivação dos
professores, acredito que esse seja um dos maiores desafios da educa-
190
O Projeto Ceclla e a criação de uma comunidade de prática:
questões sobre a necessidade de melhor formação linguística e o despertar para o papel social e político do professor
ção nos dias atuais. Nesse sentido, os cursos de formação continuada
se mostram bastante válidos, e necessários quando cumprem com sua
função que é dar suporte e atualizar esse professor que está em sala
de aula, de maneira a torna-lo mais seguro e motivado. (RES Eva)
[4] A minha análise desta aula deixa claro a tomada de consciência de
que apesar das dificuldades enfrentadas no ambiente de escola pública
é possível sim fazer diferente, ou seja, empreender uma aula de língua
inglesa em que haja o envolvimento dos alunos e o aprendizado destes.
Não queremos simplificar aqui o problema, deixamos claro o entendi-
mento deste como sendo de natureza complexa, no entanto, depende
também do professor procurar fazer algo para mudar essa situação e
fazer com que funcione melhor. Vale pontuar, no entanto, que sei que,
o que deu certo nessa aula, não necessariamente daria certo em outro
contexto, isso é bastante relativo. Nota-se também a consciência de que
a aula precisa ser significativa para os alunos, ou seja, tem que dizer
respeito a coisas e assuntos que fazem parte de sua realidade. Essa
estratégia pode trazer melhores resultados para a aula de LI. (RES Eva)
A partir desses primeiros excertos, podemos perceber que tanto Kelly quanto Eva
conseguem perceber a falta de motivação ou entusiasmo para o ensino por parte das
professoras regentes e a falta de uso do idioma em sala como alguns dos principais
entraves ao aprendizado dos alunos. A esse respeito, inclusive, uma das participantes
demonstra capacidade de questionamento acerca das atitudes dos professores obser-
vados: “se nem mesmo a professora fala inglês como é que os alunos irão falar?”.
A outra participante sugere atitudes que podem ser implementadas caso queiram
modificar ao menos um pouco tal situação: “as aulas na escola pública podem sim
ser conduzidas de maneira a envolver os alunos e fazê-los interagir, numa aula mais
comunicativa”, “a aula precisa ser significativa para os alunos, ou seja, tem que dizer
respeito a coisas e assuntos que fazem parte de sua realidade” e “É preciso parar de
pensar somente em quantitativos de notas, precisamos olhar principalmente para a
qualidade do ensino. O que falta na maioria das vezes é motivação dos professores”.
Suas capacidades de avaliação e propostas de intervenção no contexto de
ensino e aprendizagem ao qual foram expostas corroboram o que Clot (2007 apud
REICHMANN, 2012) defende acerca das competências adquiridas por quem se reco-
nhece como pertencente a um determinado gênero profissional. Podemos perceber
191
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
que o senso de pertencimento à profissão de professor lhes possibilitou falar sobre
a profissão, bem como compreender, descrever os pontos falhos da aula e avaliar as
práticas de outros professores, intervindo ou propondo intervenções de forma res-
ponsável e consciente. Suas vontades de interferir e melhorar o contexto pesquisado
não prejudicaram suas demonstrações de maturidade ao falar do assunto, visto que
podemos observar a consciência das participantes de que este não é um contexto igual
ao que estão acostumadas e que, por isso, reconhecem que as mesmas práticas empre-
gadas em uma turma podem não funcionar em outra: “sei que, o que deu certo nessa
aula, não necessariamente daria certo em outro contexto, isso é bastante relativo”.
A maturidade ao tratar de questões próprias ao contexto em que estão inseridas segue
visível nos excertos seguintes, em que as participantes propõem algumas questões
que podem e precisam ser modificadas pelos docentes observados:
[5] Em conversas informais com a professora em questão, ela nos
revelou que ensinar Inglês é bem “fácil”, pois a escola não cobra
nada a esse respeito, mas segundo ela, com o Português é diferente,
pois a escola cobra “resultados”. Em outra ocasião ela nos falou que
não seria legal que nós trabalhássemos músicas nas nossas regências,
pois segundo ela, os alunos fazem a maior “algazarra” e não aprendem
nada, mas não foi isso que ocorreu em nossas regências. Então, pelo
que sabemos desta professora, poderíamos dizer que todos os proble-
mas que ocorrem em sua sala de aula são decorrentes da falta de domí-
nio dela com o Inglês, e também devido ao modo problemático, sem
compromisso, como ela vê o ensino de Língua Inglesa, e percebe-se
isso, claramente, quando ela diz que é “fácil” ensinar Inglês, pois a
escola não cobra “resultados”. Dado o exposto, pode-se inferir que
as nossas atitudes como professores estão diretamente relacionadas
com a nossa consciência, com as nossas concepções do que seja o
ensino da língua estrangeira ou da importância que a mesma tem na
vida do nosso aluno. (RES Mariane)
[6] Sabemos que ainda predomina a velha forma de dar aula, na
qual o professor fala e o aluno escuta, sem fazer perguntas, mas
hoje, a nova forma de fazer o ensino-aprendizagem, o professor e o
aluno têm que andar de mãos dadas, sempre trocando informações e
conhecimentos, enfim aprendendo juntos. Como dizia Paulo Freire:
ensinar exige a convicção de que a mudança é possível. (RES Mariane)
192
O Projeto Ceclla e a criação de uma comunidade de prática:
questões sobre a necessidade de melhor formação linguística e o despertar para o papel social e político do professor
[7] Entendo que o professor não pode somente escolher o conteúdo,
ou atividade para ministrar sem antes pensar na realidade dos alunos,
bem como, nos motivos e objetivos dessa prática, e ainda mais após
essa intervenção, refletir sobre os resultados dessa prática de maneira
a reconstruí-la a fim de melhorá-la. (RES Eva)
Tais excertos demonstram o quanto as participantes da pesquisa estavam preparadas
e se mostravam familiares com a sua profissão quando adentraram as salas de aulas para
a observação no estágio supervisionado. Sua maturidade em relação à profissão pode ser
melhor percebida, ainda, quando elas estão no lugar de regentes das aulas no estágio:
[8] Então eu entreguei os exercícios que estavam cortados aos alunos
para que estes os colassem em seus cadernos e respondessem as ati-
vidades em cinco minutos, desta forma eu não perderia muito tempo
com eles ainda copiando. [...] Esta aula eu planejei e realizei por meio
de projetos de estudos, os quais continham um tema central que fosse
do interesse da turma, que estivesse de acordo com os seus níveis de
maturidade e, principalmente, que fossem além da língua propria-
mente dita, para que tivessem significado para os alunos ou ainda que
pudessem proporcionar a eles um acréscimo cultural. (RES Kelly)
Podemos perceber que, antes mesmo da aula, Kelly, ciente do número de alunos
e do tempo insuficiente, foi capaz de planejar atividades em que poderia melhor
aproveitar o tempo disponível para os alunos e demonstrou grande preocupação
em trazer temas relevantes, ou seja, de acordo com os interesses e a maturidade
dos alunos, buscando algo mais do que somente o aprendizado linguístico. Suas
preocupações com a qualidade do ensino seguem na descrição e análise de sua
aula no estágio; dessa vez, preocupada, também, em causar uma boa impressão
nos alunos – ao mudar suas expectativas de somente aprender gramática – para um
ensino que fornecesse a eles, também, um “acréscimo cultural”.
Sua vontade de melhorar o histórico de ensino naquele contexto pode ser ainda
percebida pela motivação que demonstra ao querer chamar a atenção dos alunos, ao
querer que eles voltem a ver o ensino da língua inglesa como produtivo. Podemos
perceber que a professora-monitora inclusive utilizou-se de atividades lúdicas para
193
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
motivar os alunos para a aula e entusiasmá-los para o próximo encontro, como
podemos observar nos excertos seguintes:
[9] Deste modo, os alunos foram motivados a se comunicar em LE em
momentos diversos das aulas, através de atividades lúdicas realizadas
no início do período, como forma de motivação para a aula que iniciava
e, no final, para deixar os alunos ansiosos pelo próximo encontro ou
ainda como forma de fixar um conteúdo ou vocabulário novo. A esco-
lha desse tipo de atividade para os momentos de speaking é baseada
na necessidade de fazer com que os alunos sintam-se a vontade para
expressar-se em uma língua estrangeira, ou seja, é necessário que se
estabeleça um clima de confiança na sala para o uso da LE. (RES Kelly)
[10] Assim, de acordo com os princípios dessa abordagem, a meta das
minhas atuações, foi tornar os alunos comunicativamente competentes,
de modo a serem capazes de usar a língua dentro de um contexto social,
por isto, a gramática foi ensinada de modo indutivo e procurei falar na
língua alvo durante o maior tempo possível nas aulas, utilizando de
mímicas, gravuras e outros elementos visuais para auxiliar o entendi-
mento dos alunos, assim como a própria língua materna. Tentei quebrar
o paradigma existente na maior parte das escolas regulares, de que a
gramática é o centro das atenções no ensino de língua estrangeira, uma
vez que, como já me referi anteriormente, o mais extraordinário em
aprender uma nova língua é a comunicação. (RES Mariane)
Eva também demonstra grande maturidade ao adentrar aquele contexto, por
meio de suas preocupações e observações acerca de como poderia ter agido para
privilegiar mais a habilidade de speaking, embora reconheça que, de certa forma,
esta habilidade foi abordada pela professora regente.
[11] Algo que poderiam ter explorado mais seria a habilidade
de speaking dos alunos, porém acredito que para isso deveria estar
trabalhando com eles a mais tempo de maneira a construir um voca-
bulário, o que daria base fazer algum jogo, dinâmica. Acredito que a
repetição era o que poderia ser feito em uma aula tão curta, uma hora
de duração, isso como maneira e apreensão do novo conteúdo. Mas
por outro lado, a parte em que eles deveriam entrevistar os colegas,
de certa forma, contemplou essa habilidade. Não foi possível observar
o desempenho de todos os alunos no momento da entrevista, mas os
alunos que consegui acompanhar estavam fazendo as perguntas em
194
O Projeto Ceclla e a criação de uma comunidade de prática:
questões sobre a necessidade de melhor formação linguística e o despertar para o papel social e político do professor
português, então eu falei que a intenção era falar em inglês, caso
contrário a atividade não serviria para nada. Falei isso em voz alta
também para que todos ouvissem. (RES Eva)
[12] Os alunos tiveram bastante facilidade na parte mais fácil da
atividade, porém na parte mais complexa eles solicitavam a minha
ajuda o tempo todo. Mesmo com a complexidade da atividade eles
continuavam tentando fazer a tarefa. Percebi que as atividades mais
complexas motivam os alunos, uma vez que são desafiadoras para eles.
As aulas nas duas turmas foram boas, porém acredito que eu poderia
ter explorado mais a habilidade de speaking, ao invés de apenas pedir
para que escrevessem frases no quadro, eu deveria ter pedido para que
criassem frases e falassem para todos na sala ouvirem. Porém, o tempo
de 1 hora é realmente muito curto para que todos os alunos falassem
em sala. Além disso, eu deveria ministrar o conteúdo em uma média
de 3 aulas por turma, pois a professora pediu para que eu concluísse o
conteúdo nesse período para que ela aplicasse a avaliação. (RES Eva)
No excerto número 12, podemos verificar que a professora-monitora continua
reconhecendo ainda suas falhas acerca do trabalho com o speaking e a falta de opor-
tunidade para que os alunos pudessem criar as suas próprias frases e dizê-las para a
turma. No entanto, reconhece o tempo como principal entrave para esse problema,
o que sugere que, em outras ocasiões, poderá lidar melhor com a situação. Outro
aspecto importante, relacionado a esse excerto, diz respeito à percepção de que
as atividades mais complexas são as que mais motivam os alunos a aprender, por
instigá-los a pensar e se constituírem como um desafio para eles. Essa percepção
está relacionada à motivação dos discentes para realizar a atividade e ao número de
vezes em que a professora-monitora foi solicitada para ajudá-los. Podemos perceber
que ela se reconhece como uma pessoa que pode trazer atividades desafiadoras
para os alunos e instigá-los a realizar as atividades, mas que, no momento da aula,
precisa se colocar em uma posição de colaboradora no processo de aquisição, de
ensino e aprendizagem, e não na posição de transmissora de conteúdos prontos
que precisam ser assimilados pelos alunos. Consideramos esses comportamentos
como um dos primeiros indícios de desenvolvimento do pensamento crítico nas
discentes pesquisadas. Posteriormente, verificaremos outros.
195
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
Mudando agora um pouco o foco de nossa discussão, abordaremos, neste
momento, uma das questões que nem sempre é fonte de preocupação e que costuma
ser ignorada durante a formação docente: os aspectos emocionais e as características
pessoais que precisam estar presentes nos futuros docentes. Desde há muito tenho
percebido que a aquisição do gênero profissional passa por um amadurecimento
emocional e pelo desenvolvimento de habilidades para lidar com as frustrações
próprias de sala de aula, conforme já mencionado. Creio que, munidos dessas
habilidades, ou ao menos cientes da necessidade de investimento nelas, os futuros
professores poderão adquirir competências suficientes para lidar com a sua pro-
fissão com maior segurança e autonomia e poderão, assim, reconhecer-se como
verdadeiros professores. Acredito também que grande parte da solidão pedagógica
(PESSOA, 2002), enfrentada por muitos docentes, é fruto de uma formação defi-
citária, que não investe no desenvolvimento de profissionais com autoconfiança e
autoestima suficientes para agir colaborativamente, para se colocarem na posição de
parceiros e para contribuir com experiências ou compartilhá-las com seus colegas
de profissão. A esse respeito, trazemos os seguintes excertos que podem demonstrar
indícios de que as professoras-monitoras pesquisadas tiveram oportunidades de
uma formação mais elucidada em relação a esses aspectos:
[13] No Ceclla, comecei a testar coisas diferentes, métodos, adquiri
confiança para ministrar aulas, e acima de tudo a experiência em sala
de aula. (Q1 Eva)
[14] E enquanto os acadêmicos que não participaram do Ceclla esta-
vam tendo sua primeira experiência em sala, nós chegamos ao estágio
seguros, capazes de projetar uma aula e desenvolvê-la de maneira
satisfatória e nos comportando como verdadeiros professores. (Q1 Eva)
[15] O Ceclla é muito importante para a nossa formação inicial, pois
permite fazer relação entre as teorias estudadas e a prática na sala de
aula. Além de nos ensinar a ter autoestima para assumir uma postura
confiante diante dos nossos alunos. (Q2 Mariane)
196
O Projeto Ceclla e a criação de uma comunidade de prática:
questões sobre a necessidade de melhor formação linguística e o despertar para o papel social e político do professor
[16] No decorrer das minhas práticas, ao longo do curso, procurei
incansavelmente me apropriar das teorias e metodologias adequadas
ao objetivo que desejava alcançar, além de observar cada turma com
a qual trabalharia, com o intuito de promover a eles um ensino mais
motivador e de despertar-lhes o interesse pela Língua Inglesa. Dessa
busca surgiram bons resultados, como se fosse uma árvore que plantei
e colhi os frutos, hoje, posso afirmar com orgulho que consegui atingir
grande parte dos meus ideais no ensino de línguas, certamente não
consegui atingir a todos os alunos, mas espalhei as sementes e percebi
que muitas estavam germinando. (RES Mariane)
[17] Enfim, toda esta experiência de práticas pedagógicas, e de aluna
dentro do centro universitário, me transmite uma sensação de tarefa
cumprida, de crescimento profissional e acima de tudo pessoal, de
aperfeiçoamento e mérito pelo meu próprio esforço [...] Com certeza
este não é o fim do caminho, é a apenas uma pequena mudança de
rumo para uma caminhada que recém se inicia. (RES Kelly)
A partir das falas das participantes, podemos perceber o desenvolvimento da
confiança necessária para assumir uma sala de aula e de uma autoestima que as
levou, posteriormente, a desenvolver um senso de pertencimento àquele contexto
e uma maior segurança, bem como a agir com mais maturidade e autonomia ao
lidar com os problemas do dia a dia da profissão, conforme já demonstrado nos
excertos anteriores. Tais características podem ser vistas como fundamentais para
o desenvolvimento de outro aspecto, a capacidade de confiar nos colegas e de agir
colaborativamente, conforme podemos verificar nos excertos seguintes:
[18] Nós do CECLLA somos uma família e por isso melhorou muito a
minha interação com todos porque fazemos parte de um único grupo
e sempre fazemos reuniões, festinhas e trocamos ideias sobre aspectos
da nossa sala de aula. (Q2 Mariane)
[19] Troco experiências, posso contar com a colaboração dos colegas
no sentido de me ajudar em aspectos que não tenho segurança; conto
com uma vivência profissional e isso tem desenvolvido em mim a
capacidade de conviver de maneira sociável e a capacidade de saber
lidar com as situações que envolvem o dia a dia da profissão. (Q1 Eva)
197
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
[20] Por conta mesmo das minhas experiências enquanto professo-
ra-monitora do Ceclla, é que surgiu a ideia de colaborar com outros
professores de escolas públicas e compartilhar o que tenho desen-
volvido nas aulas do projeto. Assim, gostaria de transmitir minhas
vivências e trocar experiências, bem como vivenciar outras experi-
ências e refletir com professores de um novo contexto para mim que
é a escola pública. (TCC Eva)
[21] É muito importante compreender o quanto é necessário investir
em uma educação de qualidade e investigar como isso tem retorno
para as pessoas que se dispõem a mudar suas condições primárias
a fim de estarem aptos a mudar a realidade de um lugar no que diz
respeito à educação. (TCC Kelly)
A partir desses excertos, podemos perceber o quão importante as professoras-
-monitoras consideram as experiências de poder colaborar e trocar experiências com
os colegas e com outros professores. Com base no exposto, é possível afirmar que
as experiências vividas no projeto Ceclla podem ter gerado a formação de um grupo
de professores que, por terem participado de uma comunidade de prática (ROCHA,
2013), em vez de se isolarem em suas salas de aula, estarão abertos a construir um
modelo de escola mais colaborativo. Professores com esse entendimento acerca
dos processos educacionais estarão mais dispostos a abrir as portas de suas salas de
aula para deixar outros professores assistirem suas aulas e, a partir daí, refletirem
colaborativamente, trocarem vivências e contribuírem para as práticas uns dos
outros. Desse modo, é possível que estejam dispostos a construír um novo ambiente
escolar, no qual as disciplinas não mais estejam divididas em blocos, delimitadas
nas diferentes salas de aula com seus respectivos cinquenta minutos de duração,
e os professores não mais se vejam solitários em sua lida diária (PESSOA, 2002).
Talvez ainda não estejamos falando de profissionais que são humildes o bas-
tante para não mais se colocarem na posição de detentores e transmissores, mas
de coconstrutores do conhecimento. Tais profissionais, espera-se, advogarão em
favor de uma educação que não considere os papéis dos professores e alunos como
dicotômicos e estruturados em uma determinada relação de poder, mas que trate
198
O Projeto Ceclla e a criação de uma comunidade de prática:
questões sobre a necessidade de melhor formação linguística e o despertar para o papel social e político do professor
os estudantes como parceiros em busca do desenvolvimento mútuo e engajamento
com vistas à modificação da sociedade como um todo.
Formação do profissional reflexivo e
desenvolvimento do pensamento crítico
Para prosseguir a discussão, trouxemos alguns exemplos de excertos com base
nos quais poderemos demonstrar a capacidade das participantes de compreender a
educação em um sentido mais abrangente e emancipador, considerando seus papéis
na formação de cidadãos capazes de pensar criticamente e entender os processos
de opressão de que são vítimas e, a partir desses entendimentos, intervir em suas
comunidades com vistas a transformar nossa sociedade em uma mais justa e igua-
litária. A esse respeito, no entanto, é preciso considerar algumas outras questões
que devem ser tratadas quando lidamos com a formação de profissionais reflexivos
e com o desenvolvimento do pensamento crítico.
Digo isso por entender que há muitas questões envolvidas na formação desses
profissionais, tais como as capacidades discutidas anteriormente (autonomia, senso
de responsabilidade e pertencimento, construção de uma base emocional sólida e
coerente com os desafios da profissão e desenvolvimento das habilidades colabo-
rativas nos futuros docentes) e outras que estão relacionadas a um macrocosmo do
qual nossa sociedade e, por consequência, nossas escolas e modelos educacionais
são parte inseparável. Busco, aqui, pontuar que, apesar de tentarmos nos formar
como profissionais reflexivos e críticos, capazes de pensar nossos papéis formativos
para além dos muros da escola e de sermos conscientes dos problemas sociais e edu-
cacionais de uma escola que dissemina a ideia de um ensino supostamente neutro,
reconhecemos que a verdadeira mudança nos paradigmas educacionais deve estar
atrelada a uma mudança no nosso modo de conceber a própria sociedade em que
vivemos. Nesse sentido, concordo com Elliot (1993 apud Kumaravadivelu, 2001,
p. 538 e 539), ao pontuar que “uma pedagogia significativa não pode ser constru-
199
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
ída sem uma interpretação holística das situações particulares e sua qualidade não
pode ser melhorada se não melhorarmos as situações particulares como um todo”.
Assim, diante do que poderemos constatar a partir de agora, afirmamos que
nossos objetivos, quando nos propusemos a desenvolver o projeto Ceclla e, poste-
riormente, quando nos dispusemos a investir na formação de professores reflexivos
e no desenvolvimento do pensamento crítico, foram atingidos. Contudo, ainda
falta sabermos a quais condições de trabalho tais profissionais estarão expostos e
se tais condições fornecerão a eles ao menos alguns dos subsídios necessários para
que possam desenvolver um projeto de ensino e aprendizagem condizente com os
pressupostos de um ensino emancipador e voltado para a construção da igualdade
e da justiça social. Voltaremos a esse assunto mais adiante. Passemos, agora, às
análises e discussões sobre os indícios de desenvolvimento do pensamento crítico
e formação reflexiva crítica pelas participantes do estudo.
Nos excertos que seguem, podemos observar que tanto Mariane quanto Kelly
e Eva saíram da universidade conscientes e munidas da capacidade de pensar criti-
camente o papel da escola e de se verem como agentes importantes na construção
e transformação de nossa sociedade.
[22] Poder dar aos menos favorecidos condições de disputar em pé
de igualdade com a elite. Então como hoje vivemos em um mundo
em que saber uma segunda língua é algo de muita importância, que
abre muitas portas, permite conhecer novos países, novas culturas,
novas pessoas, fornece ao falante status social, boas oportunidades
de emprego e etc... Pode-se dizer que o ensino de Inglês tem grande
contribuição para a redução da desigualdade social e a escola pública
precisa de bons professores para que esta contribuição social se efe-
tive de fato. (Q2 Mariane)
[23] Então, hoje nem de longe penso em Direito, quero mesmo é ser
uma boa professora de línguas, viajar para o exterior, aprender outras
línguas além do Inglês, ser muito feliz e poder fazer a diferença na
vida de muitos alunos. (Q2 Mariane)
200
O Projeto Ceclla e a criação de uma comunidade de prática:
questões sobre a necessidade de melhor formação linguística e o despertar para o papel social e político do professor
[24] Assim, quando eu entrei, estava muito neutra quanto ao meu
objetivo neste curso, apenas entendia que estudaria, pegaria o diploma
e iria exercer a minha profissão. Mas graças a Deus consegui mudar a
minha concepção a respeito do papel que uma pessoa realmente deve
exercer ao fazer um curso tão importante como esse. Tal mudança
ocorreu a partir do momento em que eu tive o real contato com meu
futuro espaço de trabalho, fiquei admirada, pois realmente aprende-
mos sobre um sistema perfeitamente estruturado, que é a escola, e
aprendemos a nos portar dentro deste sistema, mas na prática a minha
concepção de um modelo “perfeitamente estruturado” foi por água
abaixo, então comecei a entender que eu preciso fazer o melhor pelos
meus alunos, pois eu tenho em minhas mãos a capacidade de destruir
ou melhorar a vida dos meus alunos de acordo com a forma que eu
exercer o meu trabalho. E com certeza quero mudar a realidade deles
e os ajudar a se verem como pessoas tão capazes para fazerem o que
querem como qualquer outra pessoa. Assim o meu foco agora é fazer
mestrado na área de formação de professores e aprendizado de língua
inglesa, crescer profissionalmente dentro desta área e ajudar os meus
futuros colegas de profissão, ao final deste trajeto. Estou muito feliz e
empolgada com o que quero para a minha vida. (Q2 Kelly)
[25] O curso de licenciatura não é como outros, pois aqui, longe de
lidar com coisas materiais, estamos lidando com vidas que necessitam
ser instruídas para fazer a diferença na vida de outras pessoas, mas
que para isso precisam primeiro ter suas concepções de educação
mudadas. (TCC Kelly)
[26] Isso realmente não tira meu entusiasmo. Pois, acredito também
em superação, uma vez que a minha vida toda lidei com isso, tendo
que me superar a cada dia para alcançar meus objetivos, e dentro
das possibilidades e oportunidades que tinha ou das que não tinha,
consegui fugir à regra. Negra, filha de pais pobres, aluna de escola
pública. Minha vontade de vencer foi maior. Não me vangloriando,
pois me sinto entristecida com o fim que outras amigas tiveram. Sou
uma exceção, pois a maior parte das minhas colegas ficaram grávidas
e não conseguiram terminar o segundo grau. E é com essa garra que
quero ir para escola, acreditando nos meus alunos, levando a minha
história de superação através da educação. (RES Eva)
Podemos perceber, por meio da análise dos textos, o quanto as participantes se
mostraram convictas do papel primordial da educação enquanto chave que abre as
portas para a maior igualdade de oportunidades. Todavia, podemos notar que ainda
carregam consigo uma visão que julgamos um tanto quanto imatura dos processos
201
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
envolvidos na educação formal: a visão de que ela pode mudar a sociedade, sem que
esta mude junto com a educação. Nas palavras das professoras-monitoras, podemos
perceber que elas entendem que, assim como elas próprias, que estão vivenciando
certa ascensão social por meio da educação formal que tiveram e por meio do apren-
dizado da língua inglesa, seus alunos, caso tenham as mesmas oportunidades, poderão
também ascender socialmente: “o ensino de inglês tem grande contribuição para a
redução da desigualdade social e a escola pública precisa de bons professores para
que esta contribuição social se efetive de fato”, “quero mudar a realidade deles e
os ajudar a se verem como pessoas tão capazes para fazerem o que querem como
qualquer outra pessoa”, “é com essa garra que quero ir para escola, acreditando nos
meus alunos, levando a minha história de superação através da educação”. Ou seja,
elas ainda não demonstram maturidade suficiente para entender que fazem parte de
um número pequeno de pessoas que, contrariando as estatísticas, conseguiram vencer
algumas das grandes barreiras econômicas e sociais para chegarem ao ensino superior.
Quanto a esse aspecto, eu mesma, enquanto professora formadora, não con-
sigo vislumbrar melhor alternativa no momento do que fazer com que os alunos
acreditem no poder da educação e invistam nos estudos para poderem melhorar
suas condições econômicas e sociais. No entanto, creio que, mesmo motivando os
alunos a investirem na superação dos obstáculos, as futuras professoras podem, ao
mesmo tempo, abordar este assunto de forma a não termos uma visão inocente do
tema. Assim, penso ser possível ainda acreditar na escola como meio de ascensão
social, mas somente a partir do momento em que esta seja, também, considerada
espaço de conscientização acerca do seu próprio modelo alienante, meritocrático
e excludente. Afirmo isso por acreditar que, a partir do momento em que os alunos
souberem que os saberes valorizados nos ambientes escolares – e a própria cultura
valorizada em seus corredores – foram determinados pela classe dominante para
atender aos seus interesses, eles terão formadas as bases para reconstruírem esse
modelo ou, então, conscientizarem-se de que os fracassos dos que não conseguem se
sobressair nesse sistema não são, na realidade, seus, mas sim frutos de um sistema
202
O Projeto Ceclla e a criação de uma comunidade de prática:
questões sobre a necessidade de melhor formação linguística e o despertar para o papel social e político do professor
opressor e desigual de competição que somente privilegia aqueles que já trazem
consigo o capital cultural exigido pela escola (DUBET, 2008).
Retornando às análises dos excertos, as participantes continuam suas pontu-
ações e reflexões em seus relatórios de estágio e trabalhos de conclusão de curso
mencionando como os professores podem intervir de forma mais significativa nas
vidas dos seus alunos, objetivando mudar as condições sociais de que são vítimas:
[27] Acredito que não tenha sido apenas a minha vontade, mas uma
soma disso com alguns professores que conseguiram me passar esse
desejo de ir além. Penso que o professor precisa assumir o papel de
conscientizador, procurar despertar nos alunos o interesse pelo apren-
dizado, sendo esse um passaporte para a vida, a vida fora da escola, o
mercado de trabalho, as relações interpessoais marcadas pelo respeito
mútuo, o respeito às diferenças, dentre outras questões. Enfim, o profes-
sor, a escola, a família, a sociedade como um todo precisam dar condi-
ções para que esse aluno se desenvolva quanto ser humano. (RES Eva)
[28] O desenvolvimento da capacidade de pensar e repensar nossas
próprias práticas com vistas a mudanças que possam melhorar o apren-
dizado dos nossos alunos, isso por meio de uma tomada de consciên-
cia do que está atrás de nossas ações, ou seja, que teorias embasam
essas ações. Percebemos ainda a importância de o profissional estar
preocupado com seu próprio desenvolvimento e crescimento dentro
da profissão, ele precisa estar comprometido com seus alunos e com
o aprendizado destes, este seria um dos primeiros passos para uma
autoavaliação e crítica sobre sua ação. (TCC Eva)
[29] A escola é um ambiente onde é possível observar os desafios e
responsabilidades do ofício do professor, pois há muitos problemas
que interferem no rendimento escolar dos alunos, dentre eles está a
questão social. O Estágio supervisionado serviu para que tenhamos
uma base de observação do nosso futuro ambiente de trabalho e para
que possamos ter real consciência dos problemas e desafios do nosso
ramo profissional. Através das experiências adquiridas, entendemos
que é necessário firmarmos um conceito de que a escola jamais deve
ser um espaço de reprodução das desigualdades sociais, mas sim um
espaço de promoção de uma educacional humanitária. (RES Kelly)
A partir desses excertos, também podemos perceber que as participantes depo-
sitam, nos ombros dos professores, a enorme tarefa de mudar a vida de todos os
203
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
seus alunos. Acredito que todo esse entusiasmo é muito bem-vindo, visto que elas
sabem de suas responsabilidades para com seus alunos e estão dispostas – e bem
mais que isso, muito motivadas – a se engajarem nessa empreitada. No entanto,
devemos pontuar aqui que ainda falta a essas profissionais, para que não desanimem
nas suas lutas assim que se depararem com as muitas condições adversas presentes
nas escolas, um contato mais prolongado com o contexto escolar e que este esteja
apoiado em outras vivências colaborativas e investigativas.
Penso que um modelo de formação continuada desenvolvido dentro das escolas
com o envolvimento de toda a comunidade escolar ou, quem sabe agora, um modelo
de escola mais aberto às novas propostas que estão nascendo nos meios acadêmicos
seria de grande valia para podermos, ao mesmo tempo, apoiar as iniciativas dessa nova
leva de profissionais, os quais, ainda que timidamente, chegam aos contextos educa-
cionais, e realmente fomentar um modelo de educação mais condizente com nossas
necessidades de construção de justiça social e igualdade de oportunidades. Continuemos
nossas análises, agora examinando os últimos excertos selecionados para este estudo:
[30] Entendo o professor crítico e reflexivo como alguém que antes de
assumir um método, por exemplo, como é comum nos cursinhos de lín-
gua, reflete e assume uma postura crítica sobre aquilo e pode até seguir
a risca, o método, pela necessidade do emprego, mas que não é um
bonequinho mandado e percebe os efeitos tanto positivos como negativos
daquele determinado método. Mas isto foi apenas um exemplo, pois ser
um professor crítico e refletivo vai muito além disto, pois acredito que
seja aquele professor que entende dos processos políticos do sistema
educacional e luta contra aquilo que acha que é injusto. (Q2 Mariane)
[31] Para mim o professor reflexivo crítico é aquele que olha a sala
de aula e a vê como uma oportunidade de transformação de vidas, é
aquele que vê os alunos não só como um absorvedor de conteúdo, mas
como ser humano e busca a melhor forma para ajudá-los a crescerem,
é aquele que ouve os alunos e vê a mudança em suas vidas, e que
adapta o contexto de ensino as necessidades destes. O que expressei
acima é o que percebo na minha prática, aprendi a agir desta forma,
não apenas através de teorias, mas através do contato sincero com os
meus alunos, quando estou com meus alunos, não me comporto como
uma pessoa que está em um nível superior a eles e nem mantenho
204
O Projeto Ceclla e a criação de uma comunidade de prática:
questões sobre a necessidade de melhor formação linguística e o despertar para o papel social e político do professor
uma relação totalmente profissional, pois acredito que nós professores
aprendemos muito mais com os nossos alunos do que eles conosco, já
que o perfil dos alunos atualmente está mudando graças aos recursos
midiáticos e a facilidade de obter informação, fazendo com que os
alunos estão até muitas vezes a frente do professor na questão do
conhecimento, conhecimento este que às vezes vem de forma implí-
cita, mas que acontece. (Q2 Kelly)
[32] Ser professor é ser responsável e ter compromisso com os alunos
é pensar que estamos trabalhando com vidas e que isso é algo muito
sério. Ser professor é fazer a diferença na vida de alguém. O professor
deve ter consciência de seu papel como agente de mudança e que
ele deve despertar nos alunos o desejo de fazer a diferença. Entendo
o professor critico reflexivo como sendo aquele que investiga sua
própria atuação, isso quer dizer, o professor que procura entender
sua prática a fim de melhorar sua atuação em sala de aula. (Q2 Eva)
A partir dos últimos excertos contendo as palavras das participantes, podemos
perceber que elas compreendem o professor crítico como aquele que leva em conta
que os professores são responsáveis diretos pela mudança na vida dos seus alunos e
pelo seu próprio desenvolvimento profissional. Neles podemos perceber, ainda, que
as participantes consideram como professores críticos aqueles que não demonstram
uma visão inocente acerca das metodologias de ensino, corroborando as palavras de
Prabhu (1990), e consideram o ambiente de sala de aula como aquele em que profes-
sores e alunos trocam experiências e aprendem uns com os outros. Ademais, podemos
verificar que as participantes estão conscientes do papel ativo que o professor deve ter
em relação às responsabilidades com seus alunos e, principalmente, em relação ao seu
próprio desenvolvimento profissional. Isso vai ao encontro do que antes pontuamos
acerca de um modelo de professor reflexivo autônomo, em contraposição ao modelo
tecnicista de formação em que os professores agem como se estivessem esperando que
as soluções de seus problemas pudessem ser obtidas por meio de fórmulas milagrosas
receitadas por pesquisadores fora do seu contexto de ensino.
Após essas discussões, cremos ter chegado ao final de nossas análises, para
este estudo ao menos. Passemos agora a algumas considerações que precisam ser
feitas para podermos concluir, ainda que momentaneamente, nossas reflexões.
205
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
Algumas considerações
Este estudo teve como objetivo inicial trazer à tona alguns dos alcances do
projeto Ceclla no que diz respeito a um modelo de formação docente que considere
aspectos importantes da formação inicial, geralmente ignorados durante ela. Assim,
visando responder à pergunta de pesquisa, procurei observar quais aspectos inerentes
ao ofício de professor, em um sentido mais amplo da profissão, foram internalizados
pelas participantes e puderam ser diagnosticados por meio de suas palavras e práticas
durante o estágio supervisionado, bem como observar quais ainda carecem de maior
tempo de trabalho, experiência, reflexão e maturidade para serem adquiridos.
A partir dos dados que nos propusemos a analisar e discutir, podemos dizer que
os principais ganhos para as participantes deste estudo, no que diz respeito ao modelo
de formação que sonhamos para nossos futuros professores, foram relacionados ao
amadurecimento profissional que elas demonstraram quando adentraram as salas de
aula para realizar suas práticas no estágio supervisionado. Conforme já pontuado,
devido às suas experiências prévias no projeto, as discentes já chegaram ao contexto
de escola pública cientes dos seus papéis enquanto professoras, demonstrando capa-
cidades de avaliar tanto as práticas e os comportamentos dos professores regentes
quanto os seus próprios e, mais que isso, foram capazes de refletir conscientemente
sobre suas práticas e de intervir com responsabilidade nos contextos em que atuaram,
visando ao melhor aproveitamento dos seus alunos. Em relação a esses aspectos,
podemos afirmar que as participantes demonstraram ter autonomia, segurança, auto-
confiança, autoestima e capacidade de agir colaborativamente quando foram expostas
ao estágio e às salas de aula das escolas públicas, demonstrando maturidade e senso de
responsabilidade naquele contexto, o que as permitiu refletir acerca das suas carências
e propor soluções conscientes, plausíveis e possíveis aos problemas enfrentados.
Em relação à formação reflexiva e crítica das participantes, apesar de não poder
ter observado uma visão menos ilusória de escola, tal qual bem pontuam Vasconcellos
(2003) e Dubet (2008) nos seus discursos e em suas práticas, creio que os aspectos
206
O Projeto Ceclla e a criação de uma comunidade de prática:
questões sobre a necessidade de melhor formação linguística e o despertar para o papel social e político do professor
até então elaborados por essas profissionais são condizentes com um modelo de
formação profissional que melhor atenda às necessidades das nossas tão carentes
escolas brasileiras. Faço tal afirmação por considerar que as bases para a reflexão e
o desenvolvimento de uma forma de pensar que privilegie a criticidade e o espírito
investigativo estão presentes em seus discursos. Essas bases servirão a um futuro
desenvolvimento profissional que as impulsionará, cada vez mais, a desvelar todos
os múltiplos aspectos relacionados à educação e ao desenvolvimento humano em
geral. Assim como já pontuado, no entanto, creio que suas formações profissionais, e
a minha inclusive, ainda carecem de maiores relações colaborativas e investigativas
para que frutifiquem e para que possamos, cada vez mais, contribuir de forma dura-
doura e contínua para a mudança qualitativa não só dos ambientes escolares, mas da
nossa comunidade imediata também e, quiçá, do contexto social amplo que nos cerca.
Apesar de termos conseguidos grandes avanços após a implantação do projeto
Ceclla e da mudança de foco nas nossas práticas de formação docente, há ainda
questões que não foram abarcadas, apesar de já começarem a despertar nosso inte-
resse de intervenção. A esse respeito, gostaria de retomar algumas das questões que
Kumaravadivelu (2001) nos propõe ao final de seu texto. Se os aprendizes, professores
e professores formadores inseridos na era da pedagogia pós-método têm papéis ativos
a desempenhar na implementação dessa pedagogia, de que forma estes participantes
podem colaborar uns com os outros? E como os seus objetivos diferentes e possivel-
mente conflitantes podem ser reconciliados de forma a beneficiar a todos?
Para tentar responder, ainda que de forma rudimentar a este questionamento, acre-
dito que, em uma pedagogia pós-método, o próprio conceito das palavras “aprender” e
“ensinar” precisam ser revistos, assim como os conceitos de aluno e professor e, prin-
cipalmente, o de conhecimento. Comecemos por repensar a palavra “conhecimento”:
é esta ligada a questões retrospectivas ou prospectivas? Ou seja, o conhecimento deve
ser priorizado somente em relação à aquisição de competências para compreender o
histórico e desenvolvimento de algo que já foi realizado? Ou está relacionado também
207
Línguas estrangeiras/adicionais, educação crítica e cidadania
a competências para criar, inventar e construir o inédito – e, assim, a habilitar os seres
humanos a darem um passo à frente em relação ao que já está pronto?
Tais questionamentos, dependendo de como os respondemos, irão nos levar a
rever os demais conceitos, como ensino e aprendizagem, professor e aluno. Assim,
caso consideremos conhecimento somente enquanto competência para tratamento
e compreensão de questões passadas, poucas serão as chances de reconciliação
dos objetivos conflitantes dos alunos, professores e professores formadores, já
que, aos alunos, caberá a tarefa de aprender ou memorizar algo e, aos professores,
de ensinar esse algo, dinâmica na qual o “algo a aprender” e o “como aprender o
algo” poderão continuar para sempre sendo o principal entrave nesse processo.
No entanto, a partir de uma visão de conhecimento que leve em consideração a
aquisição de competências e habilidades para agir no mundo, para modificá-lo, para
recriá-lo quando da invenção e construção não somente de novidades tecnológicas,
mas também de novas formas de ser e fazer nossa sociedade, ou seja, a partir de uma
visão prospectiva de conhecimento, todos nós – alunos, professores e formadores de
professores – temos interesses em comum. Nossos objetivos poderão ser os mesmos, e,
assim, não mais haverá tanta distinção e separação de papéis e tarefas a desempenhar.
Com base em uma visão prospectiva de conhecimento, todos nos colocaremos na
posição de inventores e, portanto, de aprendizes e coconstrutores do novo, trabalhando
para descobrir o mundo, não somente no que ele já é, mas principalmente no que
ainda poderá vir a ser – e, para isso, precisa ser reconstruído, repensado, redesco-
berto, recriado e reinventado conjuntamente. Nesse sentido, seremos todos, em um
só tempo, professores, alunos, formadores e, em suma, sujeitos de transformação.
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O Projeto Ceclla e a criação de uma comunidade de prática:
questões sobre a necessidade de melhor formação linguística e o despertar para o papel social e político do professor
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