As três irmãs (Mia Couto) Evelina: a bordadeira
Eram três: Gilda, Flornela e Evelina. Filhas do viúvo Na varanda, ia bordando Evelina, a mais nova. Seus olhos
Rosaldo que, desde que a mulher falecera, se isolara tanto eram assim de nascença ou tinham clareado de tanto
e tão longe que as moças se esqueceram até do sotaque bordar? Certa vez, ela se riu e foi tão tardio, que se
de outros pensamentos. O fruto se sabe maduro pela mão corrigiu como se alma estrangeira à boca lhe tivesse
de quem o apanha. Pois, as irmãs nem deram conta do aflorado. Lhe doía se lhe dissessem ser bonita. Mas não
seu crescer: virgens, sem amores nem paixões. diziam. Porque além do pai, só por ali havia as irmãs. E, a
essas, era interdito falar de beleza. As irmãs faziam ponto
O destino que Rosaldo semeara nelas: o serem filhas final. Ela, em seu ponto, não tinha fim.
exclusivas e definitivas. Assim postas e não expostas, as
meninas dele seriam sempre e para sempre. Suas três Dizem que bordava aves como se, no tecido, ela
filhas, cada uma feita para um socorro: saudade, frio e transferisse o seu calcado voo. Recurvada, porém,
fome. Evelina, nunca olhava o céu. Mas isso não era o pior.
Grave era ela nunca ter sido olhada pelo céu.
Olhemos as meninas, uma por uma, espreitemos o seu Às vezes, de intenção, ela se picava. Ficava a ver a gota
silencioso e adiado ser. engravidar no dedo. Depois, quando o vermelho se
excedia, escorrediço, ela nem injuriava. Aquele sangue,
Gilda, a rimeira fora do corpo, era o seu desvairo, o convocar da amorosa
mácula.
Gilda, a mais velha, sabia rimar. O pai deu contorno ao
futuro: a moça seria poetisa. Mais ela versejava, menos a Em ocasiões, outras, sobre o pano pingavam cristalindas
vida nela versava. Esse era o cálculo de Rosaldo: quem tristezas. Chorava a morte da mãe? Não. Evelina chorava
assim sabe rimar, ordena o mundo como um jardineiro. E a sua própria morte.
os jardineiros impedem a brava natureza de ser bravia,
nos protegem dos impuros matos. Três por todas e todas por nenhum.
Todas as tardes, Gilda trazia para o jardim um volumoso Mas eis: uma súbita vez, passou por ali um formoso
dicionário. O gesto contido, o olhar regrado, o silêncio jovem. E foi como se a terra tivesse batido à porta de suas
esmerado. Até o seu sentar-se era educado: só o vestido vidas. Tremeu a agulha de Evelina, queimou-se o guisado
suspirava. Molhava o dedo sapudo para folhear o grande de Flornela, desrimou-se o coração de Gilda.
livro. Aquele dedo não requebrava, como se dela não
recebesse nervo. Era um dedo sem sexo: só com nexo. No tecido, no texto, na panela, as irmãs não mais
Em voz alta, consoava as tônicas: Sol, bemol, anzol... encontraram espelho. Sucedeu foi um salto na casa, um
assalto no peito. As jovens banharam-se, pentearam-se,
De quando em quando, uma brisa desarrumava os aromaram-se. Água, pente, perfume: vinganças contra o
arbustos. E o coração de Gilda se despenteava. Mas logo tudo que não viveram. Gilda rimou “vida” com “nudez”,
ela se compunha e, de novo, caligrafava. Contudo, a rima Flornela condimentou afrodisiacamente, Evelina
não gerava poema. Ao contrário, cumpria a função de transparentou o vestido. Ardores querem-se aplacados,
afastar a poesia, essa que morava onde havia coração. amores querem-se deitados. E preparava-se o desfecho
Enquanto bordava versos, a mais velha das três irmãs não do adiado destino.
notava como o mundo fosforecia em seu redor. Sem
saber, Gilda estava cometendo suicídio. Se nunca chegou Logo-logo, as irmãs notaram o olhar toldado do pai.
ao fim, foi por falta de adequada rima. Rosaldo não tirava atenção do intruso. Não, ele não
levaria as suas meninas! Onde quer que o jovem
Flornela: a receitista vagueasse, o velho pai se aduncava, em pouso rapineiro.
Até que, certa noite, Rosaldo seguiu o moço até à
A do meio, Flornela, se gastava em culinárias ocupações. frondosa figueira. Seu passo firme fez estremecer as
No escuro úmido da cozinha, ela copiava as velhas donzelas: não havia sombra na dúvida, o pai decidira pôr
receitas, uma a uma. Redigia palavra por palavra, cobro à aparição. Cortar o mal e a raiz.
devagar, como quem põe flores em caixão. Depois, se
erguia lenta, limpava as mãos suadas e acertava panelas As três irmãs correram, furtivas, entre as penumbras e
e fogo. Dobrada sobre o forno como a parteira se anicha seguiram a cena a visível distância. E viram e ouviram.
ante o mistério do nascer. Rosaldo se achegando ao visitante e lhe apertando os
engasganetes. A voz rouca, afogada no borbulhar do
Por vezes, seus seios se agitavam, seus olhos sangue:
taquicardíacos traindo acometimentos de sonhos. E até,
de quando em quando, o esboço de vim cantar lhe surgia. - Você, não se meta com minhas filhas!
Mas ela apagava a voz como quem baixa o fogo,
embargando a labaredazinha que, sob o tacho, se O moço, encachoado, rosto a meia haste. E ante o terror
insinuava. das filhas, o braço ríspido de Rosaldo puxou o corpo do
jovem. Mas eis que o mundo desaba em visão. E os dois
Os fumos da cozinha já se tinham pegado aos olhos, homens se beijaram, terna e eternamente. Estrelas e
brumecido seu coração de moça. Se um dia ela dedicasse espantos brilharam nos olhos das três irmãs, nas mãos
seu peito seria a um cheiro, cumprindo uma engordurada que se apertaram em secreta congeminação de vingança.
receita.
Há muitos sóis. Dias é que só há um. Para Rosaldo e o
visitante, esse foi o dia. O derradeiro.