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Miolo Trabalho em Equipe - PMD

O texto discute a integralidade e o trabalho em equipe no campo da saúde, enfatizando a importância da construção social da demanda em saúde e a necessidade de práticas que reconheçam a alteridade dos usuários. As autoras argumentam que a integralidade deve ser vista como um dispositivo político que se constrói no cotidiano dos serviços de saúde, promovendo diálogos entre os diversos agentes sociais. Além disso, o texto propõe uma análise crítica das normas e práticas estabelecidas, defendendo que o trabalho em equipe deve ser pautado por princípios éticos que valorizem a participação ativa de todos os envolvidos.

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Miolo Trabalho em Equipe - PMD

O texto discute a integralidade e o trabalho em equipe no campo da saúde, enfatizando a importância da construção social da demanda em saúde e a necessidade de práticas que reconheçam a alteridade dos usuários. As autoras argumentam que a integralidade deve ser vista como um dispositivo político que se constrói no cotidiano dos serviços de saúde, promovendo diálogos entre os diversos agentes sociais. Além disso, o texto propõe uma análise crítica das normas e práticas estabelecidas, defendendo que o trabalho em equipe deve ser pautado por princípios éticos que valorizem a participação ativa de todos os envolvidos.

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Rafael da Silveira Gomes et al.

NEGRI, A. Exílio. São Paulo: Iluminuras, 2001.


NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das
Integralidade e trabalho em equipe no
Letras, 1998.
NIETZSCHE, F. Vontade de potência. v. 1/2. São Paulo: Escala, 2005.
campo da saúde: entre normas
PEDUZZI, M.; PALMA, J. J. L. A equipe de saúde. In: SCHRAIBER, L. B. et al. antecedentes e recentradas
(Org.). Saúde do adulto: programas e ações na unidade básica. São Paulo: Hucitec, 2000.
PÖRKSEN, B.; MATURANA H. Del ser al hacer: los orígenes de la biología del
conocer. Santiago: J C Saez, 2004. ANA PAULA FIGUEIREDO LOUZADA
ROLNIK, S. À sombra da cidadania: alteridade, homem da ética e reinvenção da democracia CRISTIANA BONALDI
[online] Disponível em: <http:// www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/textos/suely/
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MARIA ELIZABETH BARROS DE BARROS
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artic_ens_serv_area_saude2.htm> Acessado em: 15 set. 2004.
SCHWARTZ, Y. Circulações, dramáticas, eficácias da atividade industriosa. Trabalho,
Educação e Saúde. Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, p. 33-55, 2004.
SCHWARTZ, Y. Le paradigme ergologique ou un métier de philosophe. Toulouse: Editions Este texto busca ampliar o debate promovido pela segunda fase do
Octarès, 2000. Projeto Integralidade do LAPPIS (2005), que foi movido pela vontade
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de conversações. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. (Orgs.). Construção da
tindo do pressuposto de que tal demanda se constrói, dentre outros
integralidade: cotidiano, saberes, e práticas em saúde. Rio de Janeiro: Cepesc, 2003. p.
89-112. aspectos, na configuração de um trabalho em equipe que tenha como
VARELA, F. Sobre a competência ética. Lisboa: Ed. 70, 1995. marca o reconhecimento da alteridade dos usuários e a participação
VARELA, F; THOMPSON, E.; ROSCH, E. A mente incorporada: ciências cognitivas dos diferentes sujeitos nesse processo (MATTOS; PINHEIRO, 2005).
e experiência humana. Porto Alegre: Artmed, 2003. O Sistema Único de Saúde (SUS), expresso de forma mais geral
no texto da lei, é uma conquista dos usuários, trabalhadores, movi-
Nota mentos sociais e, como nos dizem Benevides e Passos (2005, p. 5),
Self seria mais bem traduzido por nossa experiência de um “si-mesmo”, a crença em um
“Eu” real e contínuo que manipula todas as ações, embora de fato esse self não possua “não pode suportar uma existência descolada do plano das experiên-
fundação ou invariância. cias concretas”. Para que o SUS se constitua no sentido do que
propunham (e continuam propondo) os autores-atores que o produ-
zem e que o compõem, é importante que ele deixe de ser visto
apenas como texto de lei, apenas como prescrição. É das práticas
inventadas no cotidiano, no concreto das experiências produzidas
pelos trabalhadores e usuários do SUS, que precisamos partir, ou
seja, partir de onde são atualizados os princípios descritos em lei.
É nessa direção que buscamos pensar a integralidade em saú-
de, que, de acordo com Guizardi e Pinheiro (2004), deve contem-
plar uma noção de cuidado que, apreendida como ação integral,
trata do encontro entre os vários atores envolvidos no cotidiano
das ações em saúde capaz de produzir relações de acolhimento,
respeito, dignidade e vínculo.

36 TRABALHO EM EQUIPE SOB O EIXO DA INTEGRALIDADE


Ana Paula Figueiredo Louzada, Cristiana Bonaldi e Maria Elizabeth Barros de Barros Integralidade e trabalho em equipe no campo da saúde

As autoras qualificam a integralidade como dispositivo político, dos seres vivos consiste, justamente, naquilo que possibilita o
como exercícios cotidianos de produção de novas e mais potentes enfrentamento e a transposição dos obstáculos.
práticas de atenção à saúde. Assim, a integralidade, para além do texto Assim, considerando que os humanos criam normas de vida,
da lei, se constrói no dia-a-dia dos serviços, no diálogo entre os diver- entendemos que todos esses atores constroem os serviços de saúde
sos agentes sociais que compõem o SUS. Assim, não tem um sentido inventando formas de trabalho, de gestão, inventando novas formas
estável, apenas a partir do que está instituído, mas no vai-e-vem dos de se relacionar, a partir de um agir ético configurado em rede,
movimentos constantes de transformação das práticas de saúde. produzindo ressonância dos atos, uns com relação aos outros, e que
Tais movimentos cotidianos, colocados em funcionamento por possui um poder de amplificação e de propagação. Ao nos referir-
usuários, trabalhadores, gestores/administradores, pesquisadores, ga- mos à integralidade como um referencial ético de trabalho e luta na
rantem o aspecto processual do conceito de integralidade e permi- construção e transformação da saúde pública brasileira, afirmamos
tem que este possa se apresentar como um princípio, uma postura essa postura ética que viabiliza as relações entre os diferentes atores
ético-política capaz de guiar as práticas em saúde no sentido da implicados no processo de produção de saúde, inscrevendo seus atos
defesa da vida, da potencialização dos coletivos, da valorização dos na rede de outros atos.
espaços públicos. Nessa direção, compreendemos a impossibilidade de quantificar as
É em meio à realização das atividades nos serviços de saúde que práticas em saúde, uma vez que não existem práticas mais ou menos
as políticas públicas se constituem como tais. É no fazer cotidiano integralizadas. Existem condições para seu exercício. A integralidade
que as políticas de governo são atualizadas. “Construir políticas pressupõe encontro entre fazeres e saberes efetivos de diferentes agen-
públicas na máquina do Estado exige todo um trabalho de conexão tes. É possível, apostando na potência normativa dos viventes huma-
com as forças do coletivo, com os movimentos sociais, com as prá- nos, produzir as condições para esse encontro, o que não significa
ticas concretas no cotidiano dos serviços de saúde” (BENEVIDES; remodelar experiências nem “ensinar” práticas de integralidade.
PASSOS, 2005). Então, como se efetivam práticas de integralidade? Como são pos-
Como protagonistas, os humanos são capazes de, coletivamen- tas em funcionamento? Como essas práticas são atualizadas por sujei-
te, produzir realidades outras sempre que se fizer necessário. “Tra- tos encarnados? Como compor um trabalho em equipe que, pautado
ta-se, então, de investir, a partir desta concepção de humano, na nos princípios éticos que apontamos, tenha como marca o reconheci-
produção de outras formas de interação entre os sujeitos que mento da alteridade dos usuários e a participação dos diferentes sujei-
constituem os sistemas de saúde, deles usufruem e neles se trans- tos nesse processo, conforme se exige de um trabalho guiado pelo
formam, acolhendo tais atores e fomentando seu protagonismo” princípio da integralidade? Ao mergulharmos nessa discussão, toma-
(BENEVIDES; PASSOS; 2005). mos como ponto de partida a análise do agir coletivo dos trabalhado-
Estamos afirmando, a partir de Canguilhem (2000), a importância res em seus contextos de atividades, seus fazeres em ato.
de se considerar o humano em sua diversidade normativa. Tudo o Visando a pensar sobre essas questões, de forma a nos deslocar
que é vivo possui a capacidade de criar e instituir novas normas, dos confortáveis lugares em que muitas vezes nos colocamos – ou
negando qualquer indiferença da vida às condições a ela impostas. seja, lugares de pura recusa, de contestação ou de queixa –, é preciso
Portanto, o indivíduo é capaz de avaliar a eficácia da norma em construir uma caixa de ferramentas conceituais que nos ajude a de-
curso, no sentido da realização das tarefas impostas pela nova situ- bater o tema em tela: o trabalho em equipe em saúde. Mas de que
ação que se apresenta, e a necessidade ou não de renormalização. Os equipe e de que trabalho falamos? O que estamos considerando
fracassos, os riscos, as infidelidades do meio são movimentos que como aspectos coletivos do trabalho? Como construir equipes que
constituem a vida humana. Nesse sentido, a capacidade normativa funcionem ao estilo de uma orquestra? (GOMES et al., 2005).

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Ana Paula Figueiredo Louzada, Cristiana Bonaldi e Maria Elizabeth Barros de Barros Integralidade e trabalho em equipe no campo da saúde

As questões que propomos neste texto instauram um campo pro- vez que a Ergologia aborda o trabalho em ato, os sujeitos – ou, como
blemático que nos convoca a produzir rupturas nas formas habituais seria mais apropriado, segundo Schwartz (2003) – como corpo si,
de pensar o trabalho em equipe no âmbito da saúde. Convoca-nos a atravessado pelas normas, deveres, pela história vivida. É possível
colocar em análise formas naturalizadas de pensar os coletivos de falar em subjetividade e trabalho? O trabalho não seria o terreno
trabalho, o que não se faz sem a criação de dispositivos conceituais menos propício para essa análise?
e metodológicos que possam nos instrumentalizar nessa tarefa. “Uma De acordo com Schwartz (2002) houve uma tentativa de separar o
opção conceitual é, sempre, uma escolha dentre outras possíveis e campo do trabalho do campo da vida, a partir do século XIX. Em
uma escolha é, portanto, política, uma vez que implica interesses, decorrência da objetivação do trabalho, coisificam-se homens, proces-
saberes, poderes, que constituem modos de ver o mundo, de nele sos e resultados. Ao objetivar o trabalho, separa-se a instância da
existir, de inventá-lo” (BARROS, 2005, p. 133). cognição/ação da instância das emoções: trabalhador não sofreria, não
Os conceitos que utilizamos não têm sua definição evidente e levaria problema para o trabalho, encarnaria uma roupagem profissio-
consensual, e podem ser utilizados de forma a ocasionar muitas nal (os jalecos das profissões da área de saúde – garantia da não-
confusões, quando empregados em qualquer contexto, de forma contaminação, não-contato entre corpos e separação de lugares hierár-
indiscriminada, fazendo-os perder em rigor conceitual, em precisão, quicos). Essa roupagem afastaria qualquer possibilidade de antemão já
em força. São operadores de realidade, ferramentas com força crítica, não previstas nos regulamentos, procedimentos, normas, visto que os
que produzem crise, desestabilizam (BENEVIDES; PASSOS, 2000). sujeitos, em seus fazeres, apenas traduziriam atos já determinados.
Assim, fizemos uma escolha: entender os conceitos como intercessores. O trabalho tornado mecanizado exigiria um trabalhador também
Um conceito como intercessor1 opera pelo entrecruzamento de mecanizado em seus devidos códigos profissionais, em suas ações
diferentes domínios de saber, que só podem ser pensados na relação ensaiadas/treinadas, em sua cognição minuciosamente separada de
de interferência produzida entre esses domínios. A importância das valores, sentimentos, ou outros atravessamentos considerados peri-
diferentes formas de conhecimento reside, exatamente, na sua força de gosamente perturbadores de um curso antevisto.
intervenção concreta na prática que visa a constituir. O conhecimento, Seguindo a direção que nos oferece Canguilhem (2002), esse
na perspectiva que adotamos, só se efetiva como tal na medida em que caminho seria possível? O sonho taylorista de um trabalho
for ataque e confrontação com o que está constituído, como crítica da desencarnado seria viável? De fato, as instâncias cognição/ação e
realidade a partir da que existe, com vistas à sua transformação na emoção perfeitamente separadas nunca existiram, ainda que ampla-
direção ética que estamos indicando neste texto. Ou seja, uma cons- mente naturalizadas nos discursos.
trução cotidiana de ações que viabilizam o entrar em relação com os É necessário produzir uma torção nessa forma de análise e pensar
outros, que se inscreve na rede de outros atos, não tem o sentido de a atividade industriosa nos diferentes contextos laborais, para além
integração ou relação de harmonia entre membros de uma equipe. da mera execução. O trabalho é corporificado por sujeitos reais, em
É nessa direção analítica que consideramos que o aporte ergológico face de situações reais, marcadas pela imprevisibilidade. A própria
das situações de trabalho nos permite fazer este debate, uma vez que abre idéia de execução traz uma separação entre pensamento e ação.
vias para pensar os processos de cooperação na realização de toda ativi- Para a Ergologia, a mais simples tarefa, por mais dividida que seja,
dade como atos éticos e, assim, contribuir para a temática dessa coletânea. sempre encontra naquele que a faz um modo singular de fazê-la,
através da cognição/afeto/ação/produção de sentidos: “a vida é
A Ergologia como intercessora sempre tentar se criar parcialmente, talvez ainda que pouco, mas
Fizemos aqui uma opção: trazer os conceitos produzidos pela sempre, como centro em um meio não produzido por ele”
abordagem ergológica como intercessores de nossas análises, uma (SCHWARTZ, 2003, p. 5 – grifo no original).

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Ana Paula Figueiredo Louzada, Cristiana Bonaldi e Maria Elizabeth Barros de Barros Integralidade e trabalho em equipe no campo da saúde

Em face de um meio infiel, como aponta Canguilhem (2002), a outra maneira, é na imanência das práticas em saúde que os valores
vida teimosamente também é infiel. O trabalho não pode ser meca- e princípios da integralidade se atualizam.
nizado, porque as condições em que ele se dá não são constantes, É pelas normas antecedentes, e em seus necessários vazios, que
assim como o organismo que executa não é meramente executante. uma funcionária da limpeza de um hospital percebe que um usuário
Isso aponta para uma reintrodução conceitual – pois na vida isso está de cadeira de rodas e sem acompanhante. Ela reluta. Não faz
nunca deixou de ocorrer, até mesmo no auge da administração cien- parte da prescrição do seu trabalho. “Posso fingir que não vi”. Ele
tífica do trabalho – de um espaço de negociação sempre em via de está em dificuldade. Ela se aproxima. Pergunta: “precisa de ajuda?”
construção, a cada momento em que a atividade se defronta com as O usuário, meio constrangido, afirma que não e sai meio desajeitado,
exigências e as possibilidades de se atualizar. A tarefa a ser realizada com aquele aparato técnico que não domina. Ela dá as costas. Tanto
se viabiliza em face de um ambiente técnico, de um ambiente histó- chão e paredes detalhadamente descritos para ela limpar. Mas ela não
rico e um ambiente humano. É nesse entremeio que as atividades se contém. Paredes e chão esperam. Apesar da recusa, empurra a
ultrapassam as meras tarefas. cadeira, percebendo o sorriso de alívio do usuário.
As atividades são tecidas na atualização das técnicas, segundo É nas imprevisibilidades, nas renormalizações, nos trabalhos em
Schwartz (2002), no vazio das normas. Há normas criadas pelos traba- ato, que os valores da integralidade podem se apresentar. Mas cada
lhadores ao longo da história de um determinado ofício, que incluem um responde a essas lacunas nas normas antecedentes à “sua”2
todo um conjunto de saberes e codificações acerca de algo, isto é, maneira. Com sua história e seus valores.
normas antecedentes. Mas por mais que tenham sido criadas pelos Essa funcionária da limpeza se colocou em risco ao sair das
humanos, jamais dão conta dos processos imanentes da vida. No exer- prescrições definidas para suas atividades no hospital. Trabalhar é
cício do trabalho, “o vazio” deixado por elas convoca cada um a um assumir riscos, ir além do delimitado. Envolve diferentes usos an-
novo fazer, a um novo exercício, a uma renormalização. A partir dessa teriormente não previstos. Por isso, trabalhar é um drama. Para
gestão, pode-se efetivamente viver. Assim, segundo o autor: Schwartz, trabalhar envolve sempre uma dramática do uso de si. Tra-
Viver, isso não pode ser somente executar as consignas, se submeter balhar é sempre um drama, no sentido de que envolve o trabalha-
às contraintes, às regras, às normas, enfim se viver unicamente dessa dor por inteiro, é o espaço de tensões problemáticas, de negocia-
forma [...] essa necessidade então apela a um “uso”, não somente ções de normas e de valores.
a uma execução. O que teria sido invivível é ser pura execução. Esse Schwartz (1999, p. 208) afirma:
não é exatamente o caso, logo o sujeito pode viver, ou seja, tentar
recentrar (mesmo minimamente) o meio em torno disso que não isto quer dizer que vemos o outro como alguém com quem vamos
são normas. É necessário que ele escolha, pois as exigências ou as aprender coisas sobre o que ele faz, como alguém de quem não
consignas são insuficientes! Então é necessário que ele faça esco- pressupomos saber o que ele faz e por que faz, quais são seus
lhas. É necessário que ele se dê a si mesmo as leis para completar valores e como eles têm sido retratados. [...] Esta disposição não se
o que falta (Schwartz, 1992, p. 28). ensina, mas se empresta no sentido de que nos impregnamos no
contato recíproco com aqueles que estão no outro pólo. Vemos
Tendo em vista o cenário das práticas em integralidade, essa dis- como funciona sua relação com o trabalho e os valores, impregnamo-
cussão aponta que as mesmas não se consolidam apenas em sua nos da idéia de que, quando vemos alguém trabalhar, é preciso
transposição direta entre o dever ser e sua realização. Como um tentar reconstituir, em parte, suas “dramáticas de uso de si.
conjunto de valores, conforme trabalhado nesta coletânea por Go- Portanto, falamos de drama em um tempo e espaço reais, com
mes et al. (2007), a integralidade se efetiva a partir de renormalizações, atores no interjogo de saberes e fazeres, implicando escolhas, pois ao
que significa criar novas normas sempre que as que estão vigentes trabalhar são agenciadas dramáticas do uso de si, que se expressam
não conseguem dar conta do que precisa ser feito. Dizendo de uma numa luta entre o uso de si pelos outros (organização, organogramas,

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Ana Paula Figueiredo Louzada, Cristiana Bonaldi e Maria Elizabeth Barros de Barros Integralidade e trabalho em equipe no campo da saúde

hierarquias, códigos coorporativos, produtividade, índices), uso de si  Normas recentradas: “remetem a vida no presente a ser vivida no
por si, nas singularizações e invenções dessas normas. presente, [...], ressingularizadas, mais ou menos desgastadas por
Mas os usos de si não polarizam o trabalho. Depreende-se, desses suas histórias” (SCHWARTZ, 2005, p. 8).
usos, o trabalho prescrito, aquilo que é esperado como resultado, e  Entre as normas antecedentes e as normas recentradas, fazeres
como o trabalho é realizado. Não se nega o componente de expro- vão sendo afirmados num processo de consolidação de valores.
priação presente no trabalho, nem mesmo se afirma que o trabalho Schwartz aponta para a necessidade de analisar, nas necessárias
seja puramente inventivo. É um drama, exatamente por se constituir escolhas e/ou arbitragens evocadas pelas atividades, valores
nesse ínterim. Drama que atravessa sujeitos em suas singularizações, dimensionáveis e valores sem dimensão.
sempre coletivas, negociadas com outros dramas, compostas com Para Schwartz (2005), os valores dimensionáveis são aqueles que
outros corpos diretamente envolvidos pelas renormalizações. podem ser quantificados, remetem aos números e às avaliações, igno-
As formas de trabalhar de um enfermeiro, de um técnico, de um rando as microgestões; os valores sem dimensão relacionam-se ao “bem
administrador, em uma UTI neonatal, por exemplo, estão previstas. comum”, enraizando-se nas situações da vida (singulares/históricas).
Mas, ao exercê-las, cada um vivencia as normas antecedentes (pró- Uma coordenadora de uma UTI neonatal, apesar da existência de
prias de cada hierarquia das profissões, compartilhadas com outros uma carga excessiva de trabalho e da superlotação das enfermarias,
da mesma categoria profissional), em função de como realizar a admite um novo neonato. Nessa decisão, entra em jogo um debate
ação, ao mesmo tempo rotineira e nova, disparando dramas com intensivo de valores. Por um lado, os leitos ocupados, ausência de
sentidos em suas histórias de vida e em seus valores, criando uma respiradores em quantidade suficiente para a demanda, a equipe no
“desanonimação” de cada fazer. Cada atividade, necessariamente limite de sua ação – isto é, valores dimensionáveis, demonstráveis
renormalizada, singularizada, vai necessitar de um terreno coletivo pelos quantitativos, pelas estatísticas, das normas de funcionamento.
que lhe atribua novas significações. De outro, valores sem dimensão, como solidariedade, justiça, igual-
Essas escolhas disparadas pelos usos de si por si não são da dade, situados e necessariamente vividos nas histórias singulares de
ordem da “consciência”. Do sujeito conhecedor do mundo, como vida – neste caso, na possibilidade de tornar uma vida viável.
era pressuposto da modernidade. Não há nenhuma pretensão de se A integralidade, pensada além do plano do prescritivo, como
pensar o sujeito como autofundante, consciente, senhor de si e do exclusivamente o direito ao acesso e permanência dos usuários nos
mundo no referencial ergológico. Admitir o sujeito como centro na serviços de saúde, ao ser entendida como lugar privilegiado de en-
atividade, ou como seria mais apropriado, segundo Schwartz (1992), contro entre diferentes agentes produtores-vivos de saúde, nos leva
há em cada fazer um corpo si, algo escapa sempre da ordem das a pensar para além das garantias constitucionais. Apontam para as
prescrições, remetendo a negociações: “a atividade é sempre um debate microgestões de saberes e fazeres frente às normas antecedentes e
de normas entre um ser vivente – um corpo si – e um meio saturado aos valores dimensionáveis.
de valores” (SCHWARTZ, 1992, p. 10). Essas normas antecedentes e esses valores dimensionáveis mar-
Assim, o corpo si realiza constantemente gestão, faz da atividade cam o trabalho em saúde: os códigos, as regras, os protocolos, os
algo seu, ao mesmo tempo em que ela ocorre num ambiente prévio saberes coorporativos, a relação de quanto cada usuário custa ao
e de sentidos coletivos. A atividade, nessas dramáticas envolvidas serviço, as metas esperadas dos serviços, impregnam, norteiam os
pelo corpo si e jogos gestionários, implica um debate de normas: espaços de atuação. Mas não são suficientes. Cada ator ressignifica as
 Normas antecedentes: procedimentos, protocolos, formas de ação normas antecedentes e os valores dimensionáveis. Cada um escolhe,
já consolidadas, não levam em conta as especificidades locais ou o que não significa solidão do agir, uma vez que essa escolha está
temporais. Atravessam o enfermeiro, o médico, o administrador, pautada nas normas antecedentes que são produção coletiva. Reinventa
o faxineiro...
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os códigos, em nome de valores não-prescritivos, não-dimensionáveis. curso que se envereda por questões como: não viram porque não quise-
As ações não são da ordem da mera execução e também não são da ram. Operar a troca de valores morais nos ajuda na construção de
ordem da simples escolha individual, uma vez que estamos sempre práticas de cuidado na direção ética do SUS que queremos.
enredados nas normas antecedentes que dizem de um patrimônio Ao gerir, ao tomar um sentido para cada fazer, o trabalhador
construído coletivamente ao longo da história. Ser solidário, justo, atualiza esses sentidos em fazeres coletivos, compartilhados. Se por
atencioso, não está inicialmente previsto na realização da tarefa. Não um lado desanonimam, ao impregnarem o trabalho de marcas singu-
é algo que se treina; é algo que se vai fazendo no processo de trabalho. lares – nas quais circulam afetos, desejos, cognições referendadas nas
Pode-se treinar, por exemplo, atendentes a falar “bom dia”, sorrir, histórias individuais – por outro, tomam como eixo valores não-
mas isso não alterará necessariamente sua rispidez ou postura de dimensionáveis que se constroem em coletivos. São as dramáticas
superioridade em face de questões levantadas por usuários na fila de dos usos de si referendadas em contextos necessariamente sociais.
espera num posto de saúde. O treino, como constitutivo de normas Porque é uma angústia, foi uma angústia muito grande da equipe,
antecedentes, pode ser efetivado e até mesmo dimensionado; pode- ainda mais porque a gente fazia 24 horas e essas usuárias... tinha
se acompanhar de uma série de atendimentos e contar/verificar a esse acesso a todas que queriam, de repente chegou um período
realização do mesmo. Mas os sentidos, as escolhas efetivadas em face não tem mais, isso nunca tinha acontecido... Até quando acaba os
leitos aqui, a gente cria leitos desse na Casa de Parto, teve várias
de, no encontro com, no estar com, são sempre da ordem de valores não
situações que teve seis partos em 24 horas e eu sempre peço para
dimensionáveis. elas estarem vindo; olha, os quartos estão lotados não tem mais
As escolhas, as arbitragens implicadas nos fazeres não são aleató- jeito, a gente pode elas com consultório viram o lugar... Elas fa-
rias. Não visam apenas ao exercício de um bem-estar, nem mesmo lam: “Não, eu faço tudo para ter aqui”. Então, ou monta o quarto
passam por uma escolha da ordem da consciência: “agora serei aco- com dois pós-partos, o que eu vejo muito grande é a solidarieda-
lhedor”, por exemplo. As escolhas operam sentidos coletivos dos de, elas concordam em dividir quartos. [...] eu lembro de um caso
que tinha acabado as vagas, tinha uma gestante que vinha do dis-
valores sem dimensão. As escolhas não se referem, portanto, a saídas
trito, já tinha conhecido a casa, era o terceiro filho, queria muito
individuais. Quando uma funcionária da limpeza “vê” um usuário em ganhar na Casa de Parto, ia filmar. Mas tinha acabado as vagas,
“apuros”, cabe perguntar: por que há visibilidade para uns e para não tinha jeito, já tinha tido seis partos, eu falei: “não tenho onde
outros não? Como os outros trabalhadores do setor não viram o arrumar”. Aí o filhinho dela saiu lá da maternidade, veio aqui e
usuário em dificuldade? batia na porta, veio conversar comigo, “deixa minha mãe, pelo
Podemos traçar algumas pistas investigativas: que valores norteiam amor de Deus, ganhar aqui, ela sonhou muito com parto na água”.
Aí eu tive que redimensionar e ela teve a criança aqui [...] Foi
aqueles profissionais, e como eles compartilham esses sentidos cole-
muito engraçado porque a casa inteira vivenciou o parto, até os
tivamente? Quantas pessoas foram atendidas naquele dia pelo médi- outros usuários, porque eles viram os movimentos da família. Essas
co e pelo técnico do raio X? Há quantas horas trabalham? Como são as diferenças que, às vezes, num hospital, devido às práticas,
outros médicos e outros técnicos fazem? O que “pesou” na tomada as rotinas rígidas, que a gente não consegue perceber muito isso.
de decisão sobre a invisibilidade de alguém em necessidade? Não se (Enfermeira, coordenadora da Casa de Parto do Hospital Sofia
trata de produzir um sentido moral (olha como esse trabalhador é Feldman, Belo Horizonte-MG).
atencioso, e aqueles outros não são); trata-se ao contrário, de analisar A experiência relatada pela enfermeira aponta para práticas de
a questão de outra forma, o que significa dizer que não se trata integralidade, direito ao acesso, garantia do atendimento, vai além
apenas de uma pessoa trabalhando, mas de um agir coletivo em desse plano da lei, e além das definições de trabalho em equipe
funcionamento. Nesse debate, é importante salientarmos as dramáti- pautada em aspectos burocrático-organizacionais ou sócio-profissio-
cas de uso de si atualizadas nas atividades. Pouco interessa um dis- nais. É viva. Traduz dramáticas gestionárias. Debate de normas, de

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valores dimensionáveis e valores sem dimensão. Normas anteceden- deslocamentos epistemológicos importantes: das equipes formais às
tes e normas recentradas. “entidades coletivas relativamente pertinentes”, do trabalho prescrito
Tudo ali indicava a impossibilidade de acolher mais uma parturi- e previsto à atividade concreta.
ente: existência de muitos outros pós-partos, falta de espaço, carga Não se pode, portanto, compreender o “trabalho de equipe” sem
excessiva de trabalho da equipe. Se os protocolos tivessem sido se- procurar conhecer os ECRP em funcionamento nas situações reais
guidos rigidamente, essa ação não seria possível. Seria o imperativo e sem aceitar se confrontar, assim, com o difícil problema que é a
da norma prescrita. Dolorosa e angustiante para o profissional que colocação em palavras atividades cuja resolução é sempre provisória
(EFROS, 2004, p. 5).
a encarna e decide em seu favor. Mas por escuta de um agente
tradicionalmente “desqualificado” nos espaços de trabalho, ou seja, Nessa direção, as fronteiras dos ECRP são sempre singulares.
uma criança, espaços de negociações foram abertos. Diferentemente das chamadas “equipes”, ou das “unidades de traba-
Nesse sentido, afirmamos que as práticas de integralidade tracejam lho” constituídas por categorias sócio-profissionais (como por ex.
fazeres éticos, coletivos, de abertura ao vivo. Nunca se trabalha enfer meiras, médicos, psicólogos etc.) ou por categorias
sozinho. Os sentidos são tecidos nos coletivos. É assim que preci- organizacionais e hierárquicas como esquematizadas num
samos pensar os trabalhos das equipes que tenham como marca o organograma, os ECRP não preexistem antes das ações concretas
reconhecimento da alteridade e a participação dos diferentes sujei- nos atos de trabalho, que são as necessidades do “trabalho conjunto”
tos nesse processo. que as faz existir de maneiras diferentes, segundo os momentos es-
pecíficos da situação de trabalho.
Ergologia e trabalho em equipe: das equipes formais aos coletivos Efros (2004) nos oferece um exemplo dessas entidades como as
Nessa direção, a abordagem ergológica das situações de trabalho que se constituem num serviço de neurologia. Segundo a autora, a
permitiu a formulação de um conceito, que é o de “entidades cole- análise da atividade de uma equipe de cuidadores mostrou que no
tivas relativamente pertinentes – ECRP” (EFROS, 2004) que abre efetivo oficial é necessário incluir pessoas que, mesmo sem ter for-
uma via interessante para o debate sobre os fazeres coletivos, com- mação de competência médica ou terapêutica, participam concreta-
partilhados, o trabalho em equipe no campo da saúde. Trata-se de mente da atividade e da eficácia da equipe, como é o caso da secre-
uma maneira de abordar os processos de cooperação efetivados na tária, que está no coração das relações entre os pacientes e seus
realização de toda atividade e que pode contribuir para debates atuais familiares, entre a equipe médica e a equipe de cuidadores, entre o
sobre o trabalho coletivo (se essa expressão não é um pleonasmo...) serviço e os outros serviços do hospital. Também os psicólogos e
nas unidades de saúde. fisioterapeutas participam igualmente da eficácia coletiva dos proce-
No âmbito da Ergologia podemos dizer, seguindo Efros (2004), dimentos, na medida em que eles têm elementos importantes sobre
que os aspectos coletivos de uma atividade são tanto observáveis os pacientes, portam um conhecimento sobre eles que é da maior
como invisíveis, formalmente prescritos como clandestinos, formali- importância no processo terapêutico. Assim, como apontado por
zados e referenciados como indizíveis ou inclassificáveis, e a noção uma enfermeira, importante na equipe é o trabalho coletivo:
de “trabalho em equipe” pode reduzir o campo de análise do que Eu acho que na prática é visto assim, não tem hierarquia nas pro-
pode ser a eficácia coletiva. Conhecimentos gerais e saberes práticos fissões, eu acho que todas, na minha concepção, têm o mesmo
peso. Todas têm a sua importância. Não adianta eu querer levar o
devem ser conjugados para fazer avançar no que efetivamente as paciente para aquela sala se aquela sala está suja. Se ela está suja eu
práticas coletivas produzem. preciso do profissional. Ele é extremamente importante ali, para eu
Ainda segundo Efros (2004), para a abordagem ergológica, a di- colocar a gestante naquela sala (Enfermeira, Grupo Hospitalar Con-
mensão coletiva das atividades de trabalho nos obriga a operar dois ceição, Porto Alegre-RS).

48 TRABALHO EM EQUIPE SOB O EIXO DA INTEGRALIDADE TRABALHO EM EQUIPE SOB O EIXO DA INTEGRALIDADE 49
Ana Paula Figueiredo Louzada, Cristiana Bonaldi e Maria Elizabeth Barros de Barros Integralidade e trabalho em equipe no campo da saúde

As ouvidoras, no Hospital Sofia Feldman, apesar de não fazerem cessário haver uma equipe – em sintonia – na Casa de Parto e no
parte do corpo técnico, possuem uma função importante nesse coletivo: Hospital, para que as mulheres pudessem transitar na linha do cui-
“Por que o médico não passou até agora pra olhar o meu filho?” A dado de forma mais integrada:
gente vai lá e diz –”Não, é porque o médico está na sala de parto A nossa preocupação sempre era não desmembrar o Sofia. Aqui
e está muito ocupado, o lugar está muito cheio.” Então a gente [Casa de Parto] é mais um espaço em que a usuária pode ser aten-
tenta tranqüilizar a usuária, porque às vezes a enfermeira passa, tem dida. Então a nossa preocupação era muito grande em não criar
muita coisa pra fazer e fala – “Não, ele está vindo aí.” Então você duas equipes: a equipe da Casa de Parto e a equipe do Sofia. Então,
fica naquela expectativa, então a gente vai lá fundo e diz pra ela: todos os enfermeiros que dão plantão aqui necessariamente têm de
“Olha o médico não veio até agora e deve demorar um pouco, ter um plantão lá no Sofia.
porque ele está na sala de parto, ou está fazendo uma cesariana. E
o pediatra está olhando os recém-nascidos da UTI. Então, é assim [...] Se hoje eu estou de plantão por aqui, tem outro profissional que
que a gente leva as informações, porque elas ficam internadas e faz plantão no Sofia e que também dá plantão aqui. Essa referência
querem saber por que o médico não veio. Então a gente leva pra ajuda muito. Se eu precisar transferir uma mulher, outro profissio-
elas essas informações pra elas ficarem mais calmas. nal, por conhecer a realidade da Casa de Parto, vai receber essa
mulher com uma visão diferente.
Portanto, um ECRP não se constitui sobre um coletivo pré-defi-
nido; seus contornos variam em função do conteúdo e do ritmo da Quando há vaga, esse profissional ajuda a identificar aquelas mulhe-
atividade de trabalho, e é o que justifica o uso do termo “entidade” res que estão dentro do protocolo da Casa de Parto, a encaminhar
para cá. Então as duas que chegaram hoje foram orientadas pelas
que designa essa indeterminação a priori. Assim, o que estamos afir-
enfermeiras de lá, então isso ajuda muito aqui.
mando a partir da abordagem ergológica é que a dimensão coletiva
do trabalho em equipe não é aparente, visível a olho nu, uma vez que [...] E tem a questão da referência. Quando você transfere a mulher
você tem algum motivo: ou o trabalho de parto está prolongado,
os atos efetivados isoladamente por um dos trabalhadores da equipe
uma desaceleração, alguma alteração do batimento cárdio-fetal. E às
podem ser indiretamente endereçados aos membros ausentes numa vezes, no início, a gente via alguns profissionais dizendo: “Ih! Já
situação específica. vem o pepino, já vem o pepino da Casa de Parto”. Quando tem
No âmbito dos coletivos de trabalho, as tarefas se distribuem em uma pessoa inserida, eles sabem a realidade da Casa de Parto.
função de múltiplos critérios. O tempo, o espaço, o objeto de traba-
Em consonância com a abordagem ergológica, afirmamos que o
lho, a natureza das operações e dos procedimentos a serem realiza-
trabalho atualiza fazeres e saberes, para além das decisões e/ou “res-
dos, a finalidade das atividades, são alguns dos elementos que carac-
ponsabilidades” individuais. As instâncias pessoais não podem ser
terizam uma situação na qual vários indivíduos operam.
negadas ou apagadas, pois trabalhar também é fazer uso de si por si,
A co-atividade reúne num mesmo espaço, profissionais de diferen-
mas isso não se opõe – ou ainda, trabalhar remete sempre ao plano
tes especialidades que perseguem finalidades diferentes; a coopera-
ção supõe que os indivíduos agem em conjunto sobre um mesmo do coletivo.
objeto visando o mesmo “fim proximal”; na colaboração os indiví- Dessa forma, é invenção permanente, levada a cabo pelos coleti-
duos não realizam as mesmas operações, por outro lado, agem sobre vos de trabalho, que permite a atualização de novas práticas, traçando
o mesmo objeto com um fim comum. (EFROS, 2004, p. 3). acordos entre os fazeres “encarnados”, a produção de saúde e o
No trabalho em saúde, cooperação/co-atividade são elementos princípio da integralidade.
centrais nas tomadas de decisões. É necessário convergir diferentes Apostar nas práticas em saúde nessa direção ético-política é, também,
experiências para uma produção do cuidado, que seja comum, ampa- apostar na potência inventiva dos coletivos de trabalho que, em suas
rada na mesma referência ética. Conforme relatado pela enfermeira, negociações e renormalizações cotidianas, são capazes de engendrar
coordenadora da Casa de Parto do Hospital Sofia Feldman, foi ne- formas de trabalho mais potentes, saudáveis e efetivamente coletivas.

50 TRABALHO EM EQUIPE SOB O EIXO DA INTEGRALIDADE TRABALHO EM EQUIPE SOB O EIXO DA INTEGRALIDADE 51
Ana Paula Figueiredo Louzada, Cristiana Bonaldi e Maria Elizabeth Barros de Barros

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governo, planejados mediante a imposição de “modelos ideais” (PI-
Notas NHEIRO; LUZ, 2006), sem levar em consideração o contexto local,
1 Com Deleuze (1992), diríamos que os intercessores podem produzir efeitos de com o qual sempre se deparam no momento de sua implementação,
desestabilização. Os intercessores interessam-nos pelos movimentos que produzem, pelo que nos cotidianos dos sujeitos em suas práticas nos serviços de saúde.
se dá “entre” (o “entre pessoas”, “entre profissionais”, “entre disciplinas”, “entre concei-
tos”), ou seja, pelo que está em curso. É no contato entre gestores, trabalhadores e usuários, num dado
2 Colocamos a palavra sua entre aspas, por acreditarmos que um trabalhador nunca está
lugar, que se produzem práticas diversificadas de saúde.
sozinho no momento em que realiza suas atividades, pois parte-se, necessariamente, de um
No espaço político cotidiano onde se constroem as demandas,
patrimônio cultural construído ao longo da história dos coletivos de trabalho.
fruto de um inter-relacionamento entre normas e práticas que orien-

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