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O Plano Real, lançado em 1994, não apenas estabilizou a economia brasileira, mas também transformou sua estrutura política e econômica, consolidando a financeirização como um processo central. Através da operacionalização da taxa Selic e da valorização cambial, o plano redefiniu o papel das finanças no poder político, impactando tanto a macroeconomia quanto a dinâmica de classes. Assim, o Plano Real é considerado um marco na história econômica do Brasil, simbolizando uma era de predominância das finanças na acumulação de capital.

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O Plano Real, lançado em 1994, não apenas estabilizou a economia brasileira, mas também transformou sua estrutura política e econômica, consolidando a financeirização como um processo central. Através da operacionalização da taxa Selic e da valorização cambial, o plano redefiniu o papel das finanças no poder político, impactando tanto a macroeconomia quanto a dinâmica de classes. Assim, o Plano Real é considerado um marco na história econômica do Brasil, simbolizando uma era de predominância das finanças na acumulação de capital.

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Artigos originais

Economia e Sociedade, Campinas, Unicamp. IE


http://dx.doi.org/10.1590/1982-3533.2024v33n1art05

Plano Real:
normatização de uma economia financeirizada 
Jorge Armindo Aguiar Varaschin **

Resumo
Apresentado como modelo de estabilização monetária, o Plano Real lançou as bases sobre as quais se revela a dinâmica
econômica brasileira contemporânea. Seus efeitos vão além do combate às pressões inflacionárias, com reflexos na
economia nacional em sua totalidade. Sua macroeconomia transformou a economia política brasileira, normatizando seu
processo de financeirização: desde 1994, sob seus contornos, reestruturou-se e, posteriormente, consolidou-se o papel
dominante das finanças nacionais no bloco no poder construído ao longo da década de 1990. A hipótese da inflação inercial
serviu como subsídio às suas regras, cujo cerne apresenta a operacionalização da Selic visando a demanda agregada interna
e a valorização cambial. Desse modo, pela maneira como alterou o panorama econômico brasileiro, compreende-se o Plano
Real como conceito em nossa história econômica, símbolo de seu tempo e espírito de sua época.

Palavras-chave: Plano Real, Economia Brasileira, Inflação, Bloco no poder, Economia política.

Abstract
Real Plan: standardization of a financialized economy
Presented as a model of monetary stabilization, the Real Plan laid the foundations upon which the dynamics of contemporary
Brazilian economy unfold. Its impact extends far beyond the containment of inflationary pressures, with repercussions on
the national economy as a whole. The macroeconomic scenario shaped by this plan catalyzed a transformation in the Bra-
zilian political economy, standardizing the financialization process: since 1994, under its contours, there had been a restruc-
turing and subsequent consolidation of the predominant role played by national finance in the power bloc built during the
1990s. The hypothesis of inertial inflation was a subsidy for its rules, with a central focus on the operationalization of Selic
to meet internal aggregate demand and exchange rate appreciation. Thereby, by the way it changed the Brazilian economic
panorama, the Real Plan is understood as a central concept in our economic history, a symbol of its time and the spirit of
this era.

Keywords: Real Plan, Brazilian economy, Inflation, Power Block, Political economy.
JEL: N26, N46.

1 Introdução
Certos acontecimentos, no decorrer do processo histórico, sobrepujam a concretude do
cotidiano, do dia a dia, para se revelarem como eventos, momentos que marcam a história de
determinado período. Acredito ser possível classificar desse modo o dia 27 de fevereiro de 1994, data
do lançamento do Plano Real. Naquele instante, como defende a análise deste artigo, lançavam-se as
bases da dinâmica econômica brasileira contemporânea, com efeitos nos curto e longo prazos, além
dos reflexos trazidos na vida de todos os brasileiros.
A historiografia econômica brasileira adquiriu certa formatação que atribui a cada período
histórico um “polo dinâmico”, um “motor”, um “centro” gerador de renda. Influenciada pela análise


Artigo recebido em 7 de agosto de 2021 e aprovado em 18 de outubro de 2023.
**
Doutor em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: j_varas-
[email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2694-7764.

Economia e Sociedade, Campinas, v. 33, n. 1 (80), p. 85-99, janeiro-abril 2024.


Jorge Armindo Aguiar Varaschin

de Furtado (2009), a economia brasileira descortina-se através de seus supostos momentos: a cana-
de-açúcar do Brasil colonial deu lugar ao “desenvolvimento para fora” do setor cafeeiro de São Paulo.
Por fim, a industrialização, por meio do processo de substituição de importações, possibilitou a
interiorização do centro dinâmico da economia nacional, trazendo consigo a produção de bens de
capital (Mello, 1982).
Assim, a economia do país percorre os conceitos que a formaliza, totalizando, em um
movimento racional, um processo diverso, porém possuidor de uma lógica própria, de um sentido.
Generalizando as palavras de Silva (1976) em trabalho em que trata sobre a industrialização brasileira,
é “[...] o reforço da dominação do capital sobre o trabalho” (Silva, 1986, p. 20). A razão, com isso,
permite que a constituição do capitalismo brasileiro nos pareça um desenrolar lógico, qualificando
cada etapa como “momentos” desse processo. Nesse ínterim, tendo em vista a totalidade histórica do
capital, como poderíamos compreender o “momento” atual? À primeira vista, a crise do processo de
substituição de importações no início da década de 1980, bem como o advento do neoliberalismo nos
anos que daí seguiram, parecem interromper o que se poderia chamar de percurso conceitual da
economia brasileira. A luz totalizante perdeu-se sob os fragmentos das análises puramente estatísticas
ou exageradamente matematizadas. No entanto, para além da espontaneidade do concreto, este artigo
sustenta que o “momento” atual do capitalismo brasileiro representa as bases financeirizadas com que
se desenvolve. Refere-se, então, à financeirização do capital (Chesnais, 2005), cujos contornos em
solo nacional foram normatizados pelo Plano Real.
O Plano Real não representa apenas um modelo de estabilização monetária. Tampouco, seu
objeto foi pura e simplesmente o combate à aceleração inflacionária do final da década de 1980 e
início de 1990. Mais do que isso, consolidou-se como o modelo de desenvolvimento de longo prazo
da economia brasileira, com efeitos relevantes nas áreas social e política. É através do Plano Real que
se formaliza a financeirização econômica, realizando sua proposta básica: a operacionalização da taxa
do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic) para, em cenário inflacionário, conter a
elevação dos preços internos através do arrefecimento da demanda interna e, principalmente, da
valorização cambial. De 1994 a 1999 operou-se com a chamada “âncora cambial”, obtendo paridade
fixa entre real e dólar norte-americano. Somada a abertura da economia iniciada ainda no início dos
anos 1990, a valorização do câmbio permitiu a elevação da oferta interna por meio do aumento das
importações. Mesmo após a adoção do regime de metas, manteve-se a lógica da “indexação” externa
dos preços internos. No entanto, a partir de 1999, essa “âncora” tornou-se implícita (Carneiro, 2007),
considerando o advento do câmbio flexível, compondo o chamado tripé macroeconômico (regime de
metas para a inflação, superávits primários e câmbio flexível). Portanto, defende-se neste artigo que,
indo além do combate à inflação, o Plano Real formaliza a financeirização a partir de então, criando,
mantendo e legitimando os instrumentos que a realizam.
Cabe lembrar que a história econômica brasileira demonstra ainda outros exemplos de planos,
projetos e programas que estruturaram, sistematizaram e operacionalizaram modelos de
desenvolvimento de longo prazo, cujos focos eram a própria base da economia do país. Programas
que com sua execução alteraram a trajetória econômica nacional. A industrialização, por exemplo,
possui talvez como maior símbolo o Plano de Metas, anunciado e concretizado pelo presidente
Juscelino Kubitschek durante o seu mandato (1956-1961). É possível citar também o II Plano
Nacional de Desenvolvimento (II PND), gestado e executado a partir do governo Ernesto Geisel.

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Plano Real: normatização de uma economia financeirizada

Contudo, há uma diferença substancial entre os dois planos citados e o Plano Real: os dois primeiros
atribuíam-se como meta declarada as transformações que causaram. O Plano de Metas pretendia, de
fato, acelerar o processo de industrialização nacional. O mesmo se pode afirmar do II PND, com seus
investimentos nas indústrias de base. No Plano Real isso não ocorre. O objetivo do Plano era o
combate à inflação, sem declarar grandes alterações na estrutura econômica brasileira. No entanto, os
instrumentos elencados em sua estratégia levaram à primazia de um setor econômico específico, qual
seja, as finanças nacionais. É esse setor que, tendencialmente, beneficia-se dos juros altos e da
valorização cambial, tornando o combate à elevação do nível geral de preços prioridade da gestão
econômica.
Na construção da análise, esse artigo divide-se em cinco seções. Após esta introdução,
discorre-se sobre a forma e o conteúdo do Plano Real, sua concretude macroeconômica e a abstração
de sua economia política. Apesar de temas supostamente separados em Ciências Econômicas, o
estudo parte da hipótese de que uma determinada política macroeconômica traz consigo efeitos sobre
a própria estrutura econômica da sociedade. No caso do capitalismo, afeta a dinâmica de classes e
frações de classe. Desse modo, a análise desenvolve-se da macroeconomia do Real para duas
investigações acerca da economia política sob a qual o real se assenta: os trabalhos de Boito Jr. e dos
autores Pedro Fonseca, Marcelo Arend e Glaison Guerrero. Em ambos, o Plano Real constrói-se sob
a hegemonia financeira no interior do bloco no poder dos governos Fernando Henrique Cardoso e
Lula. Apesar das descontinuidades verificadas, a manutenção da política monetária representa a
tônica do período em investigação. Na seção 2, elabora-se o que se chamou de entrelaçamento entre
as linhas macroeconômicas do Plano e suas bases em economia política, revelando-se a primazia dos
interesses do capital financeiro nacional. Observado em seu contexto histórico, o Plano Real, para
além do combate à inflação, levou à reestruturação e ao fortalecimento do sistema financeiro
brasileiro através, principalmente, da reorganização do mercado da dívida pública. A última seção
desenvolve dois pontos: a compreensão de que o Plano Real, através das medidas que preconiza,
tornou-se um conceito na história econômica brasileira, aparecendo como síntese de um período de
nossa história econômica, símbolo de uma época em que as finanças nacionais dominam o processo
de acumulação de capital no país. Por fim, o trabalho apresenta suas conclusões.

2 A forma e o conteúdo
Há duas faces entrelaçadas sob o nome “Plano Real”: uma ligada ao seu conteúdo, isto é, o
processo de financeirização da economia brasileira; outra possui como cerne sua forma. Relaciona-se
ao primeiro aspecto a economia política do Plano, ou seja, ao modo como afeta a dinâmica de classes
e frações de classe. Em outras palavras, como o Plano Real, através da financeirização que
operacionaliza, altera as bases da economia política brasileira. Já o segundo elemento deriva da
macroeconomia do Real, bem como de sua “pedra angular”: a hipótese da inflação inercial. Discorre-
se, em primeiro lugar, sobre sua macroeconomia, seu concreto, indo em direção aos seus efeitos na
economia política brasileira.

2.1 A macroeconomia do Real


A criação do Real ocorreu no ano de 1994. No entanto, esse é apenas o ápice de um percurso
de análise e elaboração teórica sobre as causas da inflação brasileira. Já durante a década de 1980,

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frente ao fenômeno da aceleração inflacionária, discorria-se sobre o comportamento dos preços


internos, trazendo à tona um conceito central para o Plano Real, qual seja, a hipótese da inflação
inercial. É nesse conceito que se condensa a principal tese sobre a inflação da época, a hipótese da
existência de um conflito distributivo entre os agentes econômicos, cada qual buscando defender sua
parcela da renda real:
Uma interpretação generalista [...] sem se a atentar para as especificidades de cada autor
inercialista, sugere que a inflação é o resultado do conflito distributivo entre os agentes
econômicos na tentativa de manter a respectiva parcela de renda real. Neste sentido, as propostas
inercialistas para estabilizar a economia brasileira indicavam a necessidade de desindexação com
o imperativo de gerar um novo status quo econômico em que a nova distribuição de renda fosse
idêntica à da velha economia inflacionada. (Curado; Pereira, 2018, p. 490)
Assim, o processo inflacionário apresentaria como seu principal vetor o conflito distributivo,
em um cenário onde os agentes econômicos, objetivando manter seus respectivos patamares de renda
real, reajustariam preços com base na inflação passada. Em outras palavras, através do
reconhecimento dos agentes de um quadro de aceleração inflacionária, sancionava-se o nível corrente
dos preços internos através do nível de preços de períodos anteriores. A inércia, nesse caso, ocorria
justamente pela dinâmica de perpetuação da inflação no decorrer de diferentes períodos. Era a
existência de inflação prévia, em um contexto em que as expectativas dos agentes recaiam em
reajustes generalizados de preços, que motivava as mudanças nos preços internos:
A ideia básica é que num ambiente cronicamente inflacionário, os agentes econômicos
desenvolvem um comportamento fortemente defensivo na formação de preços, o qual em
condições normais consiste na tentativa de recompor o pico anterior de renda real no momento
de cada reajuste periódico de preço. Quando todos os agentes adotam esta estratégia de
recomposição periódica dos picos, a taxa de inflação existente no sistema tende a se perpetuar: a
tendência inflacionária torna-se igual à inflação passada (Lopes, 1984 p. 137).
Para Lara Resende (1979), o impasse inflacionário formava-se no bojo de uma disputa entre
um setor industrial oligopolizado, capaz de defender suas margens de lucro, e sindicatos. Resolvia-se
“através do uso feito pelo setor industrial oligopolizado do seu poder de fixação de preços. O resultado
é um piso inflacionário proporcional ao hiato de incompatibilidade” (Lara Resende, 1979, p. 15). A
defesa de suas margens por meio da fixação de preços possibilitava o repasse dos reajustes salariais
para as mercadorias, levando à indexação de salários e, posteriormente, aos demais contratos. Em
síntese, o conflito distributivo levava à indexação:
A essência da inflação da teoria inercialista de André Lara Resende e Pérsio Arida é a reprodução
da taxa de inflação pretérita através da indexação contratual, resultado da ação defensiva por parte
dos agentes em relação à manutenção da participação relativa da respectiva renda real em relação
à renda nacional (Curado; Pereira, 2018, p. 501).
Pode-se afirmar que a inflação se tornou um sintoma do próprio descompasso em que se
arrastava a economia do país. A corrosão do poder de compra da população e a tentativa de convívio
com elevados índices inflacionários apenas reforçaram a ideia de uma “corrida” de reajustes. O
argumento era simples: se todos os agentes reajustassem seus preços, perdem os últimos que o
fizerem. Assim, a expectativa de queda da renda real generalizou mecanismos de indexação que, de

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Plano Real: normatização de uma economia financeirizada

modo automático, repassavam a inflação passada para os preços correntes. Dessa forma, o conceito
de inflação inercial condensa a principal hipótese então elaborada: o conflito distributivo ensejou a
criação de instrumentos de indexação, construindo, com isso, o caráter inercial do fenômeno
inflacionário brasileiro.
A partir desse conceito, Pérsio Arida e André Lara Resende constroem os contornos do que
chamaram de moeda indexada, ferramenta para debelar o fenômeno inflacionário. A proposta de uma
reforma instituindo padrão monetário duplo foi a base da chamada Unidade Real de Valor (URV), a
moeda indexada da origem do real. O objetivo era simples: anular a memória inflacionária,
extinguindo a trajetória inflacionária dos preços internos. O Real surgiria justamente dessa unidade
de referência, compondo a terceira (e última) fase de implementação do Plano. De fato, a URV passou
a existir no dia primeiro de fevereiro, dando lugar ao real propriamente dito no dia primeiro de maio
de 1994. Funcionou como uma moeda indexada capaz de conter a aceleração inflacionária. No entanto
é necessário ressaltar o papel de outra variável que, oficialmente, não possuía a relevância obtida após
a criação da nova moeda, qual seja, a taxa de câmbio.
Há, no que concerne a valorização cambial, duas fases: de 1994 a 1999, a taxa de câmbio
manteve-se fixa em relação ao dólar norte-americano, funcionando explicitamente como “âncora
cambial”. Com o advento do tripé macroeconômico e a consequente adoção do câmbio flexível, sua
atuação tornou-se implícita (Carneiro, 2007). Porém, nos dois cenários, a valorização cambial
funcionou como “indexador” externos dos preços internos. Com isso, pode-se afirmar que na essência
do Plano encontrava-se “uma cajadada e dois coelhos”: a manutenção da SELIC em patamares
elevados atuava tanto como contenção à demanda agregada interna quanto como ferramenta de
valorização cambial, considerando que propiciava fluxo de entrada de dólares norte-americanos ao
país. Explícita ou implicitamente, a valorização do câmbio teve papel decisivo para o sucesso do
Plano Real no combate à inflação.
Portanto, mesmo inicialmente não aparecendo com o destaque obtido posteriormente, a
valorização cambial tornou-se variável-chave do modelo. Difícil imaginar o sucesso do real em
espaço tão curto de tempo sem o aumento da oferta interna com base em importações. O custo dessa
política, contudo, apresentou-se sob a forma de déficit crônico em transações correntes, pelo menos,
até o advento do câmbio flexível em 1999. Após esse período, o resultado do balanço de pagamentos
emoldurou-se conforme os ditames da taxa de câmbio. Apenas a partir de 2003, com o início do
chamado boom de commodities desfez-se essa trama: a valorização cambial passou a ocorrer em
paralelo à obtenção de superávits na posição externa. Abria-se aí a brecha no gargalo externo que o
próprio Plano construía.

2.2 A economia política do Real


Assim como outras ciências, a economia também se divide em temas, assuntos e áreas que,
apesar de sua diversidade, congregam-se no que chamamos de ciências econômicas. Uma
macroeconomia, qualquer que seja, ao tratar de variáveis que refletem relações sociais toca na própria
dinâmica de classes e frações de classe que permeia determinada sociedade. Com o Plano Real não é
diferente. Ao tratar de sua macroeconomia e da noção originária de inflação inercial buscam-se os
principais traços de sua forma, dos contornos que o formalizam como plano econômico. No entanto,

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Jorge Armindo Aguiar Varaschin

para além destes, o estudo do conceito abarca seu próprio conteúdo. Nesse caso, trata-se da economia
política do Plano Real, do modo como influencia a estrutura de classes e suas frações e quais destas
beneficiam-se das políticas que estão em seu bojo. Trataremos neste artigo do que se considerou como
as duas hipóteses que registram as principais alterações em economia política sob o período iniciado
em 1994, cada qual, formalizando suas teses centrais: a nova burguesia nacional na análise de Boito
Jr. e a centralidade da hegemonia financeira na análise de Pedro Fonseca, Marcelo Arend e Glaison
Guerrero.

2.2.1 A nova burguesia nacional na análise de Boito Jr.


Ao tratar da configuração de classes e suas frações no interior dos governos Lula, Boito Jr.
percorre um caminho que o antecede na busca de suas raízes. Desse modo, analisa não apenas o
período pós-2003, momento em que se inicia o primeiro mandato do presidente Lula, mas traz sua
digressão ainda para os governos Fernando Henrique Cardoso e a hegemonia financeira que aí se
instalou. Utilizando-se do conceito de bloco no poder de Nicos Poulantzas, Boito Jr. investiga a
conformação de classes que sustenta os governos Lula, evidenciando linhas de continuidade e
descontinuidade em relação ao governo anterior. Assim, a principal tese do autor relaciona-se a uma
mudança essencial entre os dois períodos: se durante os governos Fernando Henrique Cardoso
construiu-se e consolidou-se a hegemonia do capital financeiro internacional, o período iniciado pelo
presidente Lula inaugurou um novo relevo para o que chamou de burguesia interna. Em outras
palavras, “grupos industriais, bancos, agronegócio, construção civil e outros”, convergindo “numa
mesma fração burguesa”, tendo como ponto de ligação “sua disputa com o capital financeiro
internacional” (Boito Júnior, 2012, p. 77).
Em trabalho de 2005, Boito Jr. relaciona a política monetária dos governos Fernando
Henrique Cardoso aos interesses do capital financeiro. Para o autor, essa fração do capital
predominava no bloco no poder que sedimentava os dois governos, atribuindo aos instrumentos de
política monetária do Plano Real papel decisivo no atendimento das demandas desta fração de classe:
Essa política [abertura comercial] provocou, no primeiro governo FHC, sucessivos déficits na
balança comercial, o que era “compensado” da maneira que melhor convinha aos interesses do
capital financeiro: taxa básica de juros elevadíssima para atrair capital financeiro estrangeiro
volátil em busca de valorização rápida e elevada, compensando com o ingresso desse capital de
risco de curto prazo o desequilíbrio da balança comercial e das contas externas – claro que tal
política poderia produzir mais à frente uma dívida pública e um desequilíbrio externo cada vez
maiores (Boito Júnior, 2005, p. 60)
Em outro trabalho, o autor enfatiza a continuidade entre os governos Fernando Henrique
Cardoso e Lula considerando a política monetária de ambos. Para Boito Jr., “o mesmo rumo já
estabelecido pelos governos Collor e FHC, pelo FMI e pelo Banco Mundial: está tocando adiante a
criação da Alca, manteve a política de juros elevados, aumentou consideravelmente a meta de
superávit primário [...]” (Boito Júnior, 2003, p. 1). O autor não se refere especificamente à política
monetária dos governos citados, mas ao citar “taxa básica de juros elevadíssima” traz luz sobre o
comportamento da principal ferramenta do Real. O autor não distingue nesses dois trabalhos
diferenças substanciais em relação à política monetária dos presidentes Fernando Henrique Cardoso
e Lula, traçando esta como uma de suas principais linhas de continuidade.

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Plano Real: normatização de uma economia financeirizada

No entanto, como já citado, o cientista político reconhece uma diferença substancial: durante
o decorrer dos mandatos do presidente Lula ocorreu um reposicionamento do que chamou de
burguesia interna. A partir do instrumental analítico de Nicos Poulantzas, Boito Jr. afirma que o
conceito de burguesia interna está ligado ao mercado interno e, principalmente, sua tentativa de
contenção da ação imperialista. “A grande burguesia compradora tem interesses na expansão quase
sem limites do imperialismo, enquanto a grande burguesia interna, embora esteja ligada ao
imperialismo e conte com a sua ação para dinamizar o capitalismo brasileiro, procura impor limites
àquela expansão” (Boito Júnior, 2012, p. 75). O conceito traz consigo a hegemonia financeira, porém
a limita, delineando áreas específicas de atuação. Nesse cenário, se durante os mandatos do presidente
Fernando Henrique Cardoso, a atuação do capital financeiro desenrolou-se sem maiores
constrangimentos, durante os governos Lula, beneficiou-se parte da burguesia interna, possibilitando
seu reposicionamento no interior do bloco no poder:
A desativação a frio da Alca, a diplomacia e a política de comércio exterior visando à conquista
de novos mercados no hemisfério sul, o fortalecimento das relações da economia brasileira com
as economias sul-americanas, o congelamento do programa de privatização, o fortalecimento
econômico e político das empresas estatais remanescentes e o novo papel do BNDES na formação
de poderosas empresas brasileiras nos mais diferentes segmentos da economia, configura um
conjunto de medidas dessa política econômica que tende a priorizar os interesses da grande
burguesia interna em detrimento, muitas vezes, dos interesses da grande burguesia compradora e
do capital financeiro internacional (Boito Júnior, 2012, p. 81).
No entanto, cabe salientar que nenhuma das políticas indicadas pelo autor relacionam-se ao
receituário do Plano Real. De fato, não se verificam alterações na política monetária, nem mesmo nas
bases do tripé macroeconômico, durante os mandatos do presidente Lula. As iniciativas citadas por
Boito Jr. referem-se a políticas de investimento, bem como alterações na área fiscal. Mesmo assim,
foi suficiente para atender parte das demandas do que chamou de burguesia interna. O autor, em
trabalho de 2012, apresenta o que considera uma evidência da relação próxima entre burguesia interna
e o então mandatário do país, qual seja, o apoio dado pela Federação das Indústrias do Estado de São
Paulo (Fiesp) ao governo durante a chamada “crise do mensalão”. A preferência da entidade paulista
pela defesa do governo, ao invés de atacá-lo, em um cenário de debilidade política, mostra a
importância e a proximidade desta relação.
Este artigo vai ao encontro da análise de Boito Jr., mas com algumas diferenças. De fato,
parece haver uma melhoria da posição de determinados setores ligados ao mercado interno durante
os oito anos de mandato do presidente Lula. Contudo, dada a manutenção do Plano Real, suas bases,
instrumentos e ferramentas de ação, a hegemonia financeira nunca foi, de fato, ameaçada. Porém,
neste momento, cabe uma ressalva: diferentemente do autor acima analisado, o arcabouço do Real
conduz a efeitos tendencialmente benéficos ao capital financeiro, porém, deve-se se fazer uma
especificação. O Plano, em conjunto com outras medidas, como o Programa de Estímulo à
Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer), realizado a partir do ano
de 1995, e a dificuldade de entrada de bancos estrangeiros no mercado interno, fazem-nos concluir
que prevalecem os interesses das finanças nacionais. É o capital financeiro nacional o principal foco
das políticas do Plano Real, seus efeitos e consequências.

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2.2.2 A hegemonia financeira na análise de Pedro Fonseca, Marcelo Arend e Glaison Guerrero
Em Política econômica, instituições e classes sociais: os governos do partido dos
trabalhadores no Brasil analisa-se a conformação política dos governos Lula e Dilma Rousseff. Para
os autores, o que prevalece no período analisado é a manutenção da hegemonia do capital financeiro.
Diferentemente de Boito Jr., não utilizam os conceitos de burguesia interna ou compradora. Contudo,
a construção da análise parte também do instrumental analítico de Nicos Poulantzas, através de seu
conceito de bloco no poder. No trabalho, os autores defendem a existência de uma hegemonia do
capital financeiro, inclusive com reflexos institucionais, tendo em vista a atuação e centralidade do
Banco Central na condução da política econômica. Para tanto, relacionam os interesses das finanças
à operacionalização do sistema de metas de inflação e do tripé macroeconômico:
Tal compromisso firmou-se através da manutenção do regime de metas de inflação e do tripé
macroeconômico do governo de F. H. Cardoso. É esse compromisso que permite falar em
hegemonia, pois se trata de políticas decisivas para sua manutenção como a fração mais
importante dentro do bloco no poder, e que acabou por levar a joia da coroa: o Banco Central,
com a promessa de manter sua autonomia (cabendo sua presidência a Henrique Meirelles, ligado
ao PSDB). No marco institucional brasileiro, cabe ao Banco Central, através do Comitê de
Política Monetária, a definição das políticas monetárias e cambial. Ao aceitar manter essa regra,
o governo Lula abriu mão de parcela significativa da política econômica, restando apenas ao
governo propriamente dito, sob sua área de influência, a política fiscal, no Ministério da Fazenda
(e uma válvula de escape que será de ora em diante utilizada para compensar os demais segmentos
empresariais e os trabalhadores no enfrentamento do setor privado bancário: os bancos públicos)
(Fonseca; Arend; Guerrero, 2018, p. 21).
Desse modo, citam a política monetária executada no período em observação, sem mencionar
explicitamente o Plano Real. Especificamente, tratam sobre o regime de metas e o tripé
macroeconômico. Para os autores, o modelo instituído a partir de 1999 e cerne do Plano Real desde
então, institucionalizou uma política monetária benéfica para o capital financeiro, transformando o
Banco Central em baluarte desse arranjo.
Cabe salientar que as duas análises defendem a existência de uma hegemonia do capital
financeiro. Suas diferenças residem na composição do restante do bloco no poder: para Boito Jr., os
governos Lula marcam uma melhoria relativa no posicionamento da chamada burguesia interna. Já
Pedro Fonseca, Marcelo Arend e Glaison Guerrero não tratam desse conceito, priorizando a
investigação dos canais institucionais dessa hegemonia, seja através do regime de metas de inflação
e do tripé macroeconômico ou na posição assumida pelo Banco Central do Brasil, tornando-se então
a “joia da Coroa”. No entanto, apesar de não citarem de maneira explícita, debruçam-se sobre a
própria dinâmica do Plano Real, bem como seus efeitos na economia política brasileira. Indo ao
encontro das duas análises expostas, trataremos na próxima seção sobre os reflexos do entrelaçamento
da macroeconomia do Real com sua economia política. O Plano, de fato, enseja e consolida uma
hegemonia financeira no movimento de acumulação de capital da economia brasileira?

3 O entrelaçamento
Não é trivial que determinado arranjo político assuma a forma de um plano econômico. Não
há simples linearidades entre política e economia e nem é possível considerar a política como

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Plano Real: normatização de uma economia financeirizada

economia idealizada. A dinâmica política possui seus próprios atributos e quando se trata da análise
de determinado bloco no poder a investigação torna-se ainda mais complexa. O que chamamos aqui
de entrelaçamento entre a macroeconomia do Real e sua economia política poderia, com algum
relaxamento conceitual, ser tratado como uma síntese. No entanto, preferiu-se o termo utilizado por
resguardar certa autonomia entre as esferas que se entrelaçam e, principalmente, porque uma síntese
supõe a superação de uma contradição através de algo novo, uma “solução para frente”. Novamente
não é o caso aqui. A macroeconomia do Real e sua economia política perpetuam-se desde 1994.
Como explicitado na seção 1.1, a macroeconomia do Real baseia-se no suposto combate à
inflação através de uma política monetária restritiva, queda da demanda interna e, principalmente,
valorização cambial. O resultado expressou-se pelo aumento do chamado rentismo em detrimento dos
investimentos na economia real. Além disso, uma taxa de câmbio valorizada permite ganhos de
arbitragem com o diferencial entre juros internos e externos, bem como facilita a dolarização de parte
da riqueza financeira. Não é preciso uma grande digressão na demonstração de que, no contexto do
Plano Real, o capital financeiro obteve algumas vantagens na defesa de seus interesses.
Nesse sentido, cabe observar que o entrelaçamento citado se operou por meio de uma
condensação: a partir da década de 1990, o combate à inflação ganhou prioridade entre os objetivos
de política econômica, tornando-se o baluarte da gestão da economia como um todo. A suposta luta
contra o fenômeno inflacionário apresentou-se desde então como justificativa para a aplicação do
receituário do Plano Real, mesmo considerando seu caráter recessivo. É nesse ponto onde é possível
encontrar o contato entre gestão econômica e dinâmica de classes e frações de classe que daí decorre.
A principal evidência da correlação abordada nesse trabalho é o processo de financeirização da
economia brasileira, transformando-a no que Paulani (2009) chamou de “plataforma de valorização
financeira”. Segundo trabalho de Miguel Bruno e Ricardo Caffé (2015), entre os anos de 1993 a 2003,
a média de juros pagos ao sistema financeiro nacional alcançou cerca de 30% do produto interno bruto
brasileiro, sendo que a renda de títulos e valores mobiliários passou de 20% em 1995 para cerca de
80% em 2007. A análise ainda sugere a elevação de ganhos não operacionais das empresas brasileiras,
cenário explicado por juros altos e câmbio valorizado:
De um lado, dadas às oportunidades de ganhos substanciais, fáceis e rápidos com operações
financeiras, a indústria manterá montantes expressivos das poupanças empresariais (lucros retidos
ou não distribuídos aos proprietários e acionistas) sob a forma de ativos financeiros e isto reduzirá
o ritmo de acumulação de capital industrial, entendida como o crescimento do volume de
máquinas, equipamentos e instalações, que permitiriam incrementar o potencial produtivo e as
condições de competitividade externa da economia nacional (Bruno; Caffé, 2015, p. 38).
De fato, a financeirização é uma realidade, o que explica em parte o baixo desempenho do
lado real da economia a partir da década de 1990. O Plano Real, nesse caso, normatizou esse processo
ao ditar as “regras do jogo” econômico a partir de então. Ao encaminhar de maneira institucional um
movimento que atende tendencialmente os interesses do capital financeiro, não é difícil compreender
porque os trabalhos até aqui analisados defendem a existência de uma hegemonia financeira no
interior do bloco no poder que sustentou os governos Fernando Henrique Cardoso e Lula.
No entanto, a análise aqui empreendida apresenta uma divergência com esses mesmos
trabalhos. Se Boito Jr. enxerga a hegemonia financeira, indo, nesse ponto, ao encontro do estudo de

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Pedro Fonseca, Marcelo Arend e Glaison Guerrero, salienta-se evidência de, apesar da predominância
do capital financeiro, a dinâmica do Plano Real realçou o papel das finanças nacionais no bloco no
poder. De fato, a instrumentalização do Plano Real não faz diferenciação em relação ao caráter interno
ou externo, nem representa sua face nacional ou internacional desta fração de classe. Contudo, é
possível encontrar evidências que na “República do Real” (Nobre, 2019) governa a finança nacional.
Trataremos aqui de duas das principais evidências nesse sentido, quais sejam, a elaboração e execução
do Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional
(Proer), implementado em 1995, e o movimento dos dealers nas transações envolvendo títulos da
dívida pública brasileira.
O Proer propunha a remodelação do sistema financeiro nacional, com o intuito de adaptá-lo
à nova realidade da economia pós-Plano Real, apresentando-se como uma medida preventiva, após a
estabilização monetária e o fim das benesses oriundos do fenômeno inflacionário.
[…] o caráter preventivo do Proer foi ressaltado pelo presidente Gustavo Loyola em todas as
oportunidades em que falou sobre o assunto. “Não estamos beneficiando o banqueiro A ou B”,
disse Loyola em discurso aos membros da Associação Brasileira das Empresas de Leasing
(ABEL), no dia 17/11/95, “a preocupação não é favorecer os bancos, mas preservar o sistema e a
economia com um todo (Bacen, [2020?]).
Desse modo, o objetivo principal era consolidar o sistema bancário através do
reposicionamento de bancos maiores. Bancos menores, considerados financeiramente frágeis, seriam
alvo de fusões e aquisições, financiados através do Tesouro Nacional:
O Proer criou uma linha especial de assistência destinada a financiar as reorganizações
operacionais, financeiras e societárias. Estabeleceu também que nas fusões, a instituição em crise
era dividida em duas, ficando com o Banco Central os ativos de má-qualidade e os créditos com
o próprio BC. O restante era vendido, ou seja, os bancos compradores assumiam os correntistas
e os ativos de boa qualidade (Aliski, 2008)
Em síntese, pode-se afirmar que o Proer acelerou e organizou o processo de centralização e
concentração do capital financeiro no país, buscando fortalecer os bancos brasileiros, isto é, o capital
financeiro nacional. Nesse programa, o governo federal gastou aproximadamente R$ 20 bilhões, cerca
de 2,7% do produto interno bruto médio entre 1995 e 1997, diminuindo o número de bancos operantes
no mercado interno, centralizando seu capital em apenas algumas instituições.
Analisando-se a medida em seu contexto, parece-nos revelador a diferença de tratamento
entre os diversos setores da economia. Se a indústria não foi alvo de medidas de reestruturação ou
reposicionamento estratégico em meio a um processo de abertura comercial, as finanças nacionais
contaram com recursos e um programa específico do então governo federal para sua consolidação e
fortalecimento. Desse modo, não é possível afirmar que os governos Fernando Henrique Cardoso não
construíram medidas de fomento à economia do país. Tais iniciativas existiram, tendo como objeto o
capital financeiro nacional. Esse reposicionamento permitiu ao sistema financeiro passar praticamente
incólume às novas regras no bojo do Plano Real, tornando-se em importante agente no mercado de
dívida pública brasileira.
Outro fator onde é possível constatar a presença do capital financeiro nacional diz respeito
ao dealers da dívida pública. Os dealers são “instituições financeiras credenciadas pelo Tesouro

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Nacional com o objetivo de promover o desenvolvimento dos mercados primário e secundário de


títulos públicos. Os dealers atuam tanto nas emissões primárias de títulos públicos federais como na
negociação no mercado secundário desses títulos” (Dealers, 2020). Em outras palavras, compõem um
grupo de doze instituições financeiras permitidas (por portaria do Banco Central a cada seis meses) a
repassar ao mercado os títulos da dívida pública obtidos via leilão do Banco Central. Considerando o
modelo instalado em 1994 e a relevância da taxa de juros como ferramenta de política monetária,
vislumbra-se o papel-chave da dívida pública, bem como dos agentes econômicos que estruturam e a
distribuem para a realização do Plano Real em sua plenitude. Real, Proer e posicionamento dos
dealers são aspectos de uma mesma realidade, faces de um mesmo movimento.
Segundo dados do próprio Banco Central, em julho de 2000, das 29 instituições credenciadas,
13 eram instituições estrangeiras. Já em agosto de 2010, das 14 instituições credenciadas, apenas 6
eram estrangeiras. Em síntese, as finanças internacionais não foram capazes de desalojar as
instituições nacionais na distribuição de títulos da dívida pública, variável-chave da macroeconomia
do Real. Nesse contexto, compreende-se a frase publicada pelo jornal Folha de São Paulo, em 26 de
março de 2001, do então presidente da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), Gabriel Jorge
Ferreira, sobre a capacidade dos bancos estrangeiros fortalecerem suas operações no mercado interno
brasileiro: “Os estrangeiros terão de comer muito feijão para chegar à posição de maior banco no
Brasil” (FRASES, 2001).
Com isso, somados real, Proer e reestruturação do mercado de dívida pública através,
principalmente, de bancos nacionais fortalecidos, atavam-se os três “nós” do modelo implementado
em 1994. Fundou-se a “República do Real” (Nobre, 2019) sobre essas bases. Mesmo após a adoção
do regime de metas de inflação e do tripé macroeconômico em 1999, o Plano manteve suas linhas
gerais amarrando ainda a área fiscal através da política de superávits primários, exigindo praticamente
um cenário de ajuste fiscal permanente.

4 O Plano Real como conceito


Avaliar o Plano Real apenas como um plano de estabilização monetária é ir apenas à metade
do caminho: seus efeitos merecem ser estudados em sua totalidade, mesmo que originalmente não
abarquem seus objetivos declarados. Nesse contexto, o combate à inflação torna-se apenas a ponta de
um iceberg cuja parte submersa esconde as transformações estruturais pelas quais passou a economia
brasileira desde 1994. Neste artigo fez-se dois movimentos: foram apresentados os traços básicos do
Plano como um modelo, imerso em sua própria macroeconomia; em seguida, foram registradas suas
linhas na economia política, através de duas análises que observam o bloco no poder no qual o Plano
Real se desenrola. Não é necessariamente ir do concreto ao abstrato para depois retornar, em um
processo cujo resultado é o concreto pensado (Marx, 1978) ou a totalidade concreta (Kosik, 1985),
mas partir da hipótese que os contornos de uma macroeconomia, de um plano econômico, trazem
consigo as marcas de uma economia política. Em mais esse aspecto, não há diferenças em relação ao
Plano Real. Ali também os efeitos de uma política de estabilização passam pela dinâmica de classes
e frações de classe. Porém, não se trata aqui de um aspecto fenomênico que esconde o real do
movimento econômico, ou a aparência obscurecendo a essência. Antes de esconder, obscurecer ou
dificultar a análise sobre o processo de financeirização, o Plano Real o instrumentaliza, estrutura e

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normatiza como receituário de política econômica da economia brasileira. O curioso no Real é


justamente o contrário: a financeirização que traz consigo é evidente demais.
Quando Hegel elabora um conceito, parte do desenvolvimento do Espírito, em um
movimento de reflexão: é a ideia que ganha corpo sobre si mesma. Pode-se pensar caminho
semelhante entre a economia e a política ou, usando termos de Lukács (2003), o trajeto da classe-em-
si para a classe-para-si. No caminho lukacsiano é a consciência de classe que permite a passagem de
um termo a outro, o caminho da ideologia à política. O Plano Real, nesse sentido, é a própria totalidade
que o enseja apresentada de forma pensada, a dominância do capital financeirizado elevado à
condição de política econômica. Também o capital pode ter sua passagem ao conceito,
transformando-se em receituário, o modo como o neoliberalismo chama sua própria política.
Desse modo, partindo do estudo sobre as principais ferramentas do Plano, ou seja, seu
instrumental de política monetária, de seu percurso e do processo histórico no qual estava inserido,
bem como de seus efeitos na economia do país desde sua implementação, pode-se afirmar que o Plano
Real aparece na história econômica brasileira como pilar sobre o qual se reestruturou o capital
financeiro nacional. Ao eleger a política monetária restritiva, através de seus efeitos recessivos na
demanda agregada interna e na valorização da taxa de câmbio, como principal baluarte no arcabouço
de combate à inflação, somadas a reorganização do sistema financeiro nacional e a estruturação do
mercado de dívida pública, o Plano Real criou as condições para a proeminência do setor financeiro
na dinâmica econômica a partir de então. Mesmo considerando a financeirização da economia como
um trajeto iniciado antes do lançamento do real, há evidências consistentes de que o Plano acelerou e
consolidou esse movimento.
Nesse sentido, apesar da análise de Boito Jr. indicar a hegemonia financeira internacional nos
governos Fernando Henrique Cardoso e, apenas nos governos Lula um maior espaço para as finanças
nacionais através do que chamou de burguesia interna, é possível afirmar que o objetivo de
reestruturação do espaço econômico das finanças internas é oriunda ainda dos governos Fernando
Henrique Cardoso. Dessa forma, verifica-se uma linha de continuidade entre os dois governos aqui
mencionados: tanto os governos Fernando Henrique Cardoso quanto os governos Lula propiciaram
as condições necessárias pata a manutenção da hegemonia do capital financeiro nacional. A principal
delas: o prosseguimento do Plano Real sem alterações. De fato, não só mantiveram as metas de
inflação e o tripé macroeconômico estabelecidos em 1999, como se aprofundou sua execução, com
aumentos, por exemplo, das metas de superávit primário a partir de 2002. Mesmo as alterações
verificadas no final da década de 1990 recaem em grande parte ao instrumental de política, sem tocar
no conteúdo originário do Plano: troca-se uma “âncora” cambial explícita por uma implícita, e amarra-
se a política fiscal através dos resultados primários, objetivando o pagamento de juros. Considerando-
se que a maior parte do mercado de dívida encontrava-se nas mãos dos bancos brasileiros, não é difícil
encontrar logicamente os principais beneficiários de tal política.
No entanto, cabe ainda uma ressalva: como o Plano mantém seu vigor, mesmo com os
reflexos inerentes de uma política de juros altos e valorização cambial, quais sejam, baixo crescimento
econômico e altos índices de desemprego? Como afirmado anteriormente, os efeitos do Plano na
financeirização da economia são evidentes demais, isto é, antes de esconder seus objetivos, ele os
realça, fazendo da própria financeirização e seus efeitos intrínsecos uma consequência necessária na

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Plano Real: normatização de uma economia financeirizada

luta contra um mal considerado maior, a inflação. Nesse sentido, pode-se afirmar que o real é filho
resoluto do neoliberalismo e de sua ideologia dos tempos supostamente “pós”-ideológicos em que
vivemos. Sua política emerge como um receituário, sob os quais não cabem contestações, e onde o
debate econômico divide-se entre os “responsáveis” e os “lenientes” com o aumento do nível geral
de preços. Nesse caso, a inflação condensa os temores de uma ampla parcela da população brasileira,
utilizados para legitimar a adoção de políticas restritivas. Em outras palavras, é a crença em uma
suposta tecnicidade ideologicamente neutra, na unidimensionalidade do pensamento, que baseia a
legitimação necessária para a implementação da política do Real. Contudo, a negação da ideologia
como componente relevante da política, ou mesmo a ideologia da “não”-ideologia constroem o
cenário em que justamente é possível encontrá-la em estado puro:
A sociedade reproduz a si mesma em um crescente ordenamento técnico de coisas e relações que
incluiu a utilização técnica dos homens – em outras palavras, a luta pela existência e a exploração
do homem e da natureza se tornaram ainda mais científicas 155 e racionais. O duplo significado
de “racionalização” é relevante nesse contexto. A gestão científica e a divisão científica do
trabalho aumentam imensamente a produtividade da empresa econômica, política e cultural.
Resultado: um padrão mais alto de vida. Ao mesmo tempo e na mesma base essa empresa racional
produziu um padrão de mente e comportamento que justificou e absolveu até mesmo as
características mais destrutivas e opressivas dessa empresa. A racionalidade técnico – científica
e a manipulação fundiram-se em novas formas de controle social. Alguém pode se contentar com
a suposição de que esse efeito não-científico é o resultado de uma forma específica de aplicação
da ciência? Penso que a direção geral na qual ela foi aplicada era inerente à ciência pura, mesmo
quando não havia nenhum propósito prático, e que a questão pode ser identificada onde a Razão
teórica se torna prática social (Marcuse, 2015, p. 155).
Nesse sentido, o Plano Real não é uma novidade, mas fruto de seu tempo. Não é possível
analisá-lo fora de seu contexto histórico, mesmo nas medidas que preconiza em política monetária
quanto em sua ideologia. Mas é justamente sua legitimação como supostamente neutro, sua defesa de
si próprio como receituário e não política que possibilita trazer à tona seus próprios efeitos. Ao
normatizar a financeirização da economia brasileira, o Plano Real jogou luz sobre o próprio fenômeno
e o faz à vista de todos.

5 Conclusão
Este artigo buscou elucidar alguns pontos do Plano Real, e principalmente demonstrar como
sua macroeconomia afeta a economia política brasileira em benefício do capital financeiro nacional,
bem como sua importância na reestruturação e fortalecimento desse setor durante a década de 1990.
Pretendeu também lançar luz ao fato de que, pela relevância de seus efeitos, é preciso defini-lo como
um conceito na historiografia econômica brasileira, servindo como síntese das transformações do país
após a crise do processo de substituição de importações. Assim como outros planos, projetos e
programas em nossa história econômica, o Plano Real condensa o espírito de uma época.
Considerando seu contexto histórico, pode-se afirmar que é um dos frutos mais longevos do
neoliberalismo brasileiro, tanto nas ferramentas de política econômica que propõe, quanto na
ideologia que o embasa. Sobre suas bases consolidou-se um bloco no poder e, de certa forma, a própria
República pós-1985.

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Jorge Armindo Aguiar Varaschin

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