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Sobre Ética e Imprensa Eugênio Bucci

O documento discute a ética na imprensa, destacando os problemas éticos enfrentados pelos jornalistas e a importância da credibilidade na informação. Bucci argumenta que a ética é essencial para proteger o público contra o mau jornalismo e que a liberdade de imprensa deve beneficiar a sociedade democrática, não interesses comerciais. O texto também critica a concentração de mídia e a falta de independência no jornalismo contemporâneo.
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
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Sobre Ética e Imprensa Eugênio Bucci

O documento discute a ética na imprensa, destacando os problemas éticos enfrentados pelos jornalistas e a importância da credibilidade na informação. Bucci argumenta que a ética é essencial para proteger o público contra o mau jornalismo e que a liberdade de imprensa deve beneficiar a sociedade democrática, não interesses comerciais. O texto também critica a concentração de mídia e a falta de independência no jornalismo contemporâneo.
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Eugênio Bucci

r
Sobre Etica e Im prensa

C om panhia Das L etras


Não é preciso ser um estudioso
da mídia para perceber os pecados
da imprensa. Os exemplos são fre­
quentes. Alguns, bem fáceis de no­
tar. E a rede de televisão que apóia
explicitamente um candidato à Pre­
sidência da República, distorcendo o
noticiário. É o editor que aceita a
viagem paga pela companhia aérea e
pelo hotel, e na volta recomenda es­
sas empresas aos leitores do jornal.
É o colunista que, em época de elei­
ção, ganha um extra assessorando o
político sobre o qual publica notas
favoráveis. Quem mais perde com
isso é o público. Não pode haver jor­
nalismo de qualidade quando se atro­
pelam os padrões éticos. Jornalista
não é detetive, não é relações-públi­
cas, não é cabo eleitoral, não é cor­
tesão: jornalista é pago para oferecer
ao cidadão informações com credi­
bilidade. A ética o ajuda a desempe­
nhar bem a sua tunção — e protege
o público contra o mau jornalismo.
Que ética é essa? Como ela pode aju­
dar o profissional de imprensa? Por
que ela interessa a todos os leitores,
telespectadores, ouvintes e internau-
tas? Sobre ética e imprensa procura res­
ponder a perguntas como essas. Num
texto claro e abrangente, em que são
relembrados casos recentes de aten­
tados à ética na imprensa brasileira,
EUGÊNIO BUCCI

SOBRE ETICA
E IMPRENSA
2- edição
2- reimpressão

Companhia Das Letras


Copyright © 2000 by Eugênio Bucci
Para Celso Nucci Filho
Capa:
Raul Loureiro
índice remissivo:
Maria Claudia Carvalho Mattos
Preparação:
Márcia Copola
Revisão:
Isabel Jorge Cury
Beatriz de Freitas Moreira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, s p , Brasil)

Bucci. Eugênio
Sobre ética e imprensa / Eugênio Bucci. — São Paulo :
Companhia das Letras. 2000.

isbn 978-85-359-0056-9

1. Ética jornalística 2. Imprensa 3. Jornalismo i. Título.

00-3921 CDD-174.9097
índice para catálogo sistemático:
1. Ética jornalística 174.9097

2008

Todos os direitos desta edição reservados à


EDITORA SCHWARCZ LTDA.
Rua Bandeira Paulista. 702. cj. 32
04532-002 - São Paulo - SP
Telefone (11) 3707-3500
Fax (11) 3707-3501
www.companhiadasletras.com.br
ÍNDICE

INTRODUÇÃO - O SANGUE AZUL, A


DEONTOLOGIA E O DIREITO Ã INFORMAÇÃO........... 9
Conflito e convivência.......................................................... II
Fontes filosóficas da ética jo rn alística............................. 14
Uma ética além do m ercad o ................................................ 26

1. FAZ SENTIDO FALAR DE ÉTICA NA IMPRENSA? . . 29


O compromisso das empresas de comunicação
(ou a falta d e le ) ...................................................................... 30

2. A SÍNDROME DA AUTO-SUFICIÊNCIA É T IC A ......... 37


O assunto malquisto ............................................................ 37
Uma crítica à cultura de auto-suficiência das redações . . . 46

AGRADECIMENTOS
3. INDEPENDÊNCIA E CONFLITO DE INTERESSES . . . . -56
O método “ igreja-estado” ................................................... 60
A André Singer, Ricardo Setti, Humberto Werneck e Maria Paula Dallari Bucci
O jornalista e o conflito de interesses económicos . . . . 75
pela atenta leitura dos originais e pelas correções que fizeram. A Bernardo Kucinski, Conflitos de convicção e consciência.............................. 90
que me deu preciosas sugestões de temas a serem abordados. A Fernando Haddad e Uma fronteira da visão liberal sobre conflito de
Maria Rita Kehl, meus interlocutores de todo dia.
Entre janeiro e junho de 2000. estive licenciado de minhas funções na Editora
interesses................................................................................. 116
Abril para redigir um trabalho acadêmico. Terminado o trabalho, dediquei-me a este Nota sobre a internet e o “jornalismo vendedor” ..........125
livro, que foi escrito entre meados de maio e o final de junho. Agradeço a Thomaz Sou­
to Corrêa, que me concedeu a licença.
4. O VÍCIO E A VIRTUDE C ................................................. 129
“Os sete pecados capitais” ...................................................]37
“Os dez mandamentos” ........................................................165
Três comentários críticos com base nos "sete pecados
capitais” e nos "dez mandamentos” ...................................166
Introdução
O SANGUE AZUL, A DEONTOLOGIA
5. O ESPETÁCULO NÃO PODE P A R A R ............................. 188
E O DIREITO Â INEORMAÇÃO
O jornalismo como prolongamento do espetáculo.........190
As quatro idades da im p ren sa............................................. 194
Especialização e independência..........................................196
Ética ou etiqueta? Às vezes, o debate em torno do com­
CONCLUSÃO - PROPOSTAS QUE NÃO SÃO portamento da imprensa parece se reduzir a um receituário de
C O N SELH O S............................................................................. 203 boas maneiras. Uma confraternização de gala. Basta que não se
profiram palavrões, que os profissionais se movimentem como
Na universidade.....................................................................203
cavalheiros e damas da corte, que não se ofendam os interlocu­
Os códigos de ética têm serventia?.................................... 204
tores e que a privacidade dos convivas seja mantida na mais sa­
O que os sindicatos brasileiros poderiam f a z e r............... 208
grada inviolabilidade. Trajes que não ultrajem, discursos que
A sociedade precisa estar envolvida no d e b a te ................208
não desdourem, abordagens que não transbordem no assédio.
Como nos saraus literários da Paris do início do século xix, a
APÊNDICE - ALGUNS EXEMPLOS DE CÓDIGOS
coreografia das finezas suplanta a selvageria do mundo, e, as­
DE É T IC A ...................................................................................213
seguradas as reverências formais, observado o tom de voz en­
tre o melífluo e o discreto, a verdade dará o ar de sua graça.
Sugestões de le itu ra .............................................................. 233
Triunfará pela elegância, pela arte e pela ilustração. O jornalis­
N o ta s ....................................................................................... 237
mo terá garantido o seu posto de honra e nobreza. Quanto ao
índice rem issiv o .................................................................... 247
público, que lhe sejam servidas as mesuras — educativas, for­
mativas e tranquilizadoras. A imprensa saudável é o império da
boa educação.
A etiqueta é a pequena ética pela qual se estrutura a gra­
mática dos cerimoniais. Ela pacifica, erguendo-se pelos gestos
que representam, ritualizam e reafirmam as relações sociais e
de poder: para o rei, os súditos se curvam; do bispo, beija-sc o
anel; os talheres, sempre de fora para dentro. A etiqueta cria um
balé de sorrisos e saudações que celebram a autoridade posta,
traduzindo-se numa singular estética da conduta; extrai sua be­

9
leza dos meneios em glória da hierarquia e do silêncio sobre o nicação. É uma cobrança legítima. Adquirindo um vasto poder
que se esconde nas alcovas. Ela não se pergunta do poder. Ela sobre a sociedade, os meios de comunicação fizeram de seus
não inquire — nem deixa inquirir. Não por acaso, a etiqueta era proprietários e de seus funcionários figuras arrogantes, que se
o orgasmo social da aristocracia. Era a reiteração de uma or­ julgam acima de qualquer limite quando se trata de garantir
dem que havia nascido para ser eterna, bem acomodada e imu­ seus interesses e de se divertir com seus caprichos. Exigir que
tável. Condes, duques c princesas eram finos. ajam com responsabilidade social e com consciência, que não
Quando, nas guilhotinas francesas, suas cabeças começa­ abusem do poder de que estão investidos, que não se valham
ram a despencar pelos cadafalsos sob o jorro do sangue azul, a dele para destruir reputações e para deformar as instituições
plebe, que não tinha nem pão. nem dentes, nem bons modos, democráticas é exigir que o espírito que se encontra na origem
batia palmas e gritava insultos aos cadáveres decapitados. No do jornalismo não seja corrompido. Os meios de comunicação
final do século xvm, a velha ordem era degolada, e outra nas­ se edificam como o novo palácio da aristocracia — por isso,
cia, não mais baseada na finura dos tratos, mas nos direitos dos mais do que antes, devem ser regidos por uma ética que preser­
novos cidadãos incultos. Era o terror. Onde a etiqueta silencia­ ve, acima de tudo, os direitos do cidadão. O segundo tipo de
va, a ética lançava perguntas que penetravam como lâmina o exigência é inepto: pretende apenas resguardar as aparências
pescoço dos monarcas. Indagava sobre a justiça, sobre a verda­ das boas maneiras. Cultivar a idéia de que os bons modos — e
de histórica, sobre a dominação e sobre a liberdade. A impren­ as boas consciências — resolvem por si os impasses que se
sa é fruto das revoluções que forjaram a democracia moderna. apresentam é ajudar a tecer a cumplicidade entre o jornalismo
Nos Estados Unidos, a Constituição, firmada na Convenção e o poder, é reduzir os graves problemas da ética jornalística e
Federal de 1787, receberia sua primeira emenda em 1791, as­ dos meios de comunicação a uma questão de etiqueta. Os re­
segurando liberdade ao jornalismo: “O Congresso não legisla­ presentantes da mídia devem, sim, ser bem-educados, e muito
rá no sentido de estabelecer uma religião; ou proibindo o livre bem-educados (em todos os sentidos), mas não mais em rela­
exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de palavra, ou ção aos poderosos e aos saraus cibernéticos que eles organi­
de imprensa, ou o direito do povo de se reunir paeifieamente, zam. Devem sê-lo em relação ao público.
e de dirigir ao governo petições para a reparação de seus agra­
vos” . No limiar das democracias modernas, ganhou corpo, le­
gitimidade e lugar social o espírito que ainda hoje anima a im­ CONFLITO F. CONVIVÊNCIA
prensa. O jornalismo como o conhecemos, isto é, o jornalismo
como instituição da cidadania, e como as dem ocracias pro­ O jornalismo é conflito, e quando não há conflito no jor­
curam preservá-lo, é uma vitória da ética, que buscava o bem nalismo, um alarme deve soar. Aliás, a ética só existe porque a
comum para todos, que almejava a emancipação que pretendia comunicação social é lugar de conflito. Onde a etiqueta cala, a
construir a cidadania, que acreditava na verdade e nas leis ju s­ ética pergunta. De que adiantam equipes de repórteres de fino
tas — uma vitória contra a etiqueta. trato se o dono da rede de televisão põe a emissora a serviço de
Hoje, quando se cobram bons modos dos jornalistas, é seu candidato a presidente da República, distorcendo os fatos?
preciso separar bem dois tipos de exigência. O primeiro é Para que serve tanto cuidado na hora de investigar a privaci­
aquele que reclama um limite para o poder dos meios de comu­ dade de um senador, se não há o mínimo respeito para com os

10 II
desempregados que, detidos como suspeitos por um delegado School of Journalism, que publicou Committed journalism —
na periferia, são interrogados diante das câmeras como se fos­ An eth icfo r the profession; propõem abordagens dos dilemas
sem autores de crimes hediondos? Como pode a imprensa fis­ da profissão sem precisar se preocupar com a verificação das
calizar o poder — um de seus deveres supremos — se ela se premissas institucionais que garantem o exercício da imprensa
converteu num negócio transnacional, oligopolizado em con­ livre nos meios de comunicação de massa. Como será exposto
glomerados da mídia que trafica influência junto aos governos no quarto capítulo deste livro, nos Estados Unidos, a Comissão
para conseguir mais concessões dc canais e mais facilidades de Federal de Comunicações ( f c c ) regula o setor de modo a cer­
financiamentos públicos? Onde está a independência do jorna­ cear a concentração de propriedade de veículos de uma só
lismo? corporação num único território, procurando preservar a diver­
A ética jornalística não se resume a uma normatização do sidade. Mais que uma formalidade jurídica, trata-se de um prin­
comportamento de repórteres e editores; encarna valores que cípio amplamente cultivado pela vida política norte-americana.
só fazem sentido se forem seguidos tanto por empregados da É verdade que tem se observado, lá como no resto do
mídia como por empregadores — e sc tiverem como seus vigi­ mundo, uma inequívoca tendência de monopolização da mídia.
lantes os cidadãos do público. A liberdade de imprensa é um O crítico de mídia americano Ben H. Bagdikian, que já foi di­
princípio inegociável, ele existe para beneficiar a sociedade de­ retor adjunto do The Washington Post e diretor da Escola de
mocrática em sua dimensão civil e pública, não como prerro­ Jornalismo da Universidade da Califórnia em Berkeley, é um
gativa de negócios sem limites na área da mídia e das teleco­ dos que chamam atenção para o fenômeno. Em O monopólio
municações, em dimensões nacionais c transnaeionais. É nessa da mídia, ele apresenta dados que falam por si:
perspectiva que este livro foi escrito. Ele se afasta dos debates Os Estados Unidos dispõem de um conjunto impressionante de
estritamente teleológicos e deontológicos que costumam circuns­ meios de comunicação de massa: 1700 jornais diários, onze mil
crever o tema. Não que não tenham validade. Eles têm validade, revistas, nove mil estações de rádio, mil estações de tv , 2500
mas pressupõem uma ordenação da democracia que assegure a editoras de livros e sete mil estúdios de cinema [...] Hoje, cin­
pluralidade e a diversidade de veículos no espaço público, de quenta corporações dominam a maior parte dos canais de distri­
forma que tanto os debates políticos — pela multiplicidade de buição dos jornais diários e a maior parte das vendas e da audiên­
vozes e de pontos de vista pelos quais os fatos são reportados cia das revistas, estações radiodifusoras, livros e filmes.3
— como o regime de concorrência de mercado — pela multi­ São números da década de 1980. Mais recentemente, a re­
plicidade de competidores económicos — possam se dar de um vista The Economist destacou o que chamou de "oligopoliza-
modo minimamente não viciado. Isso significa que, no projeto ção" do setor na economia globalizada por sete grupos: Time
da democracia, a imprensa deve informar a todos sem privile­ Warner, Walt Disney, Bertelsmann, Viacom, News Corp, Sea-
giar os mais abastados, e também dar voz às diversas correntes gram e Sony.4 Não obstante, justamente em razão dos movi­
de opinião. mentos de concentração verificados com a mundialização da
Na sociedade americana, por exemplo, autores como Phi­ economia, ninguém de boa-fé recusa a necessidade de que as
lip Meyer, professor de jornalismo da University of Chapei democracias estabeleçam parâmetros dentro dos quais a diver­
Hill da Carolina do Norte, que escreveu A ética no jornalismo,' sidade seja protegida. Bagdikian, a propósito, nada mais faz
e Edmund B. Lambeth, professor da University of Missouri

12 13
que chamar a atenção de seus leitores para o fato de que o po­ como os preceitos foram estabelecidos. Mais que um rol de
der dos conglomerados ameaça atropelar os princípios demo­ normas práticas, a ética jornalística é um sistema com uma ló­
cráticos. Ele tem como retaguarda uma tradição democrática gica própria. Não é um receituário; é antes um modo de pensar
que, nos Estados Unidos, leva o Estado a agir contra o estabe­ que, aplicado ao jornalismo, dá forma aos impasses que reque­
lecimento de monopólios — que se tornaram predatórios. Sem rem decisões individuais e sugere equações para resolvê-los. O
diversidade, como é natural, não pode haver uma imprensa éti­ que se deve ter em conta, de início, é que a prática do jornalis­
ca — pois ela tenderá a representar apenas a voz das grandes mo não é auto-suficiente em sua dimensão ética, mas vai bus­
corporações. E todos sabem disso. car em correntes filosóficas que trataram da ética em geral os
Assim, os bons livros de Meyer e Lambeth não ignoram o parâmetros para enfrentar seus dilemas cotidianos.
problema. Apenas partem da premissa de que há, no fundo da
cultura sobre a qual se erguem os preceitos éticos, o apego ao Valor individual e social
princípio da diversidade e da pluralidade. E nem precisam
aprofundar esse tópico. No Brasil, porém, onde o problema da A palavra ética deriva do grego étlios, que, grosso modo,
concentração de propriedade é relativamente mais acentuado, refere-se aos costumes. Numa breve recuperação etimológica
principalmente nos meios audiovisuais, e onde o assunto não é do termo. Marilena Chaui, professora de filosofia da Universi­
debatido pelos meios de comunicação a não ser em circunstân­ dade de São Paulo, abre um pouco mais o conceito, de modo a
cias excepcionais, uma discussão sobre imprensa que não quei­ deixar bem clara a dupla face do comportamento ético, uma in­
ra se contentar com as etiquetas precisa tratar também disso. dividual e outra social: “Embora ta etlié c mores signifiquem o
Pois as premissas que garantem e disciplinam o exercício da mesmo, isto é, costumes e modos de agir de uma sociedade,
liberdade de imprensa não estão dadas entre nós — nem na ethos, no singular, é o caráter ou temperamento individual que
prática do dia-a-dia nem no plano das idéias. Falar sobre ética deve ser educado para os valores da sociedade e ta ethiké é
jornalística, portanto, é falar também sobre as premissas insti­ uma parte da filosofia que se dedica às coisas referentes ao ca­
tucionais da ética jornalística. ráter e à conduta dos indivíduos” .5 Desde sua origem, portanto,
Mas sem precipitação. Antes de discutir as premissas ins­ o assunto comporta duas faces: uma no indivíduo, em seu
titucionais, é preciso conhecer o modo como a filosofia tem “temperamento” , e outra na sociedade. Nem toda ética, porém,
alimentado o debate sobre jornalismo, fornecendo os conceitos é normativa, ou seja, nem toda ética se traduz em leis. A ética
da ética aplicada à profissão. de Espinosa, por exemplo, diz Marilena, não é normativa, ou
seja, não culmina no estabelecimento de máximas que possam
ser lidas como regras de conduta válidas para todos. Mas Espi­
FONTES FILOSÓFICAS DA ÉTICA JORNALÍSTICA nosa não vem ao caso, pois sua influência sobre os estudos do
jornalismo é bem pequena, embora também no jornalismo o
A ética do jornalismo não trata originalmente de premis­ estudo da ética não resulte obrigatoriamente em normatizações.
sas institucionais (embora as pressuponha), mas lida com o Já a de Kant é uma ética normativa: lida com deveres e obriga­
campo abrangido pelas decisões individuais dos jornalistas. E ções (e terá uma forte presença nos preceitos jornalísticos).
isso não se pode perder de vista quando se quer compreender Há diferentes correntes filosóficas que tratam da ética,

14 15
mas, de um modo geral, todas precisam ter como base uma teo­ formação dos diversos modos de ser” . A ética está na práxis.
ria que sustente a racionalidade, a liberdade e a responsabilida­ Há uma sintonia entre os costumes e a boa conduta, pois a éti­
de do sujeito, de forma que suas palavras e suas ações possam ca não está nem poderia estar fora dos costumes. O desafio fi­
ser medidas por ele e compreendidas e aceitas como válidas losófico é encontrar, no campo dos costumes, as pistas para o
por aqueles que o cercam. “Enfim” , escreve Marilena Chaui. Bem.
“a ação só é ética se realizar a natureza racional, livre e respon­ Este resumo é por certo apressado, mas, como está ciente
sável do agente e se o agente respeitar a racionalidade, liber­ o leitor, este livro não é um estudo filosófico. É um livro sobre
dade e responsabilidade dos outros agentes, de sorte que a sub­ jornalismo e sua ética aplicada. Só o que se pretende, com esta
jetividade ética é uma intersubjetividade.” A conduta ética é retomada sumária da génese do conceito, é enfatizar que, em­
fruto da decisão do agente — é por ter racionalidade e liberda­ bora a ética convide a um discurso prescritivo, marcado pelo
de, ou por ter o “livre-arbítrio” , como prega a tradição cristã, dever-ser, ela não se esgota numa tábua de mandamentos que
que ele é senhor de seus atos — mas essa decisão individual despenque dos céus sobre os homens. Antes, é gerada nos cos­
tem lugar na sociedade. O agente goza de autonomia e, ao mes­ tumes terrenos e na conciliação possível entre esses costumes
mo tempo, está atado aos valores sociais que lhe são exterio­ e os ideais que também deles emergem tendo em vista a reali­
res, isto é, que representam para ele uma heteronomia. A bus­ zação do Bem no convívio humano. O ideal de Bem, portanto,
ca do bom e do justo — que, embora sejam conceitos cujos é inescapável. Aqui, porém, já não se trata de um Bem que um
sentidos comportam variações entre os gregos, assim como o sujeito impõe aos outros; trata-se de um Bem que se realiza
conceito de virtude, unificam o pensamento clássico sobre a como projeto intersubjetivo. Trata-se, enfim, não de se acomo­
finalidade da conduta ética — é portanto um objetivo simulta­ dar aos costumes, mas — sem deixar de dialogar com eles —
neamente individual e social. Cada um, agindo eticamente, de procurar caminhos para elevá-los.
constrói o próprio caráter em direção à virtude; no mesmo mo­ É verdade que os costumes exercem uma pressão imobili-
vimento, constrói o bem comum tal como ele é entendido em zadora sobre si mesmos — Max Weber lembra que “A ética
sua comunidade. [mores] orgânica da sociedade é, em toda parte, um poder
Não se deve entender, contudo, que a filosofia forneça à eminentemente conservador e hostil à revolução” 7 — , mas a
prática as indicações do que é certo e do que é errado. Não é busca do Bem implica agir para transformá-los no curso do
exatamente assim. Conforme expõe o jornalista Adauto No- tempo. De resto, a ética jornalística não trata de promover re­
vaes, ex-coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas da volução nenhuma. Em Vícios privados, benefícios públicos?
Fundação Nacional de Arte, a Funarte, quando se trata de éti­ Eduardo Giannetti, economista, cientista social e professor da
ca, o exercício prático é o que se examina, e é dele que se ex­ Faculdade de Economia c Administração da Universidade de
traem as noções de virtude.6 Segundo preconizava Aristóteles São Paulo, afirma: “A ética lida com aquilo que pode ser dife­
no Livro n de Etica a Nicômaco, “o estudo não é teórico como rente do que é” .s Ao que se pode legitimamente acrescentar:
os outros (pois estudamos não para saber o que é a virtude, lida com aquilo que deve ser melhor do que é.
mas para sermos bons, já que de outra maneira não tiraríamos Melhor para quem? Segundo que valores? De que modo?
nenhum proveito dela). Devemos examinar o que é relativo às É isso que enfocam os debates contemporâneos. O jornalismo,
ações, como realizá-las, pois elas são as principais causas da tal como o conhecemos hoje, é uma invenção da democracia

16 17
moderna. Não desde sempre. Havia jornalismo antes dos regi­ de rádio e TV sob regimes despóticos, mas o espírito do jorna­
mes democráticos — e, por vezes, era um serviço voltado para lismo, tal qual ele foi gerado pelas revoluções que entregaram
a difusão dos decretos governamentais puramente. E assim era o poder ao cidadão (e ao povo), só faz sentido quando conju­
tratado pelos governantes. “Ainda em março de 1769", conta o gado com o projeto democrático.
filósofo alemão Jiirgen Habermas em Mudança estrutural da
esfera pública, “um decreto sobre a imprensa baixado pelo go­ Entre o certo e o errado — e entre o certo e... o certo
verno vienense testemunha o estilo dessas práxis: ‘Para que os
redatores dos jornais possam saber que espécies de decretos, Mas, se fosse só isso, tudo seria muito fácil. No exercício
dispositivos e outras coisas que ocorrem são adequadas para o da profissão, diariamente os profissionais de imprensa enfren­
público, essas notícias serão reunidas a cada semana pelos fun­ tam dilemas cuja solução nem sempre é simples. Os impasses
cionários públicos e fornecidas aos jornalistas’.” 9 cotidianos se apresentam como bifurcações entre dois valores
A imprensa ainda não era vista como uma instituição para que, de início, parecem ser igualmente válidos. Por exemplo,
fiscalizar o poder; era apenas uma extensão das necessidades entre o valor da verdade e a responsabilidade sobre as conse­
de comunicação do governo. Atualmente, contudo, falar em quências do que será publicado. Em Committed journalism,"3
jornalismo é falar em vigilância do poder e, ao mesmo tempo, Lambeth faz menção a um episódio bastante ilustrativo. Pouco
em prestação de informações relevantes para o público, segun­ antes da invasão da baía dos Porcos, em Cuba, por forças for­
do os direitos e necessidades do público (não do governo). Mais madas por cubanos exilados nos Estados Unidos, treinadas e
ainda, falar em imprensa livre é falar numa prática de comuni­ apoiadas pela cia , em abril de 1961, o jornal The New York Ti­
cação social historicamente forjada pela modernidade que orga­ mes tinha pronta uma reportagem sobre os preparativos milita­
niza o espaço público, o Estado e o mercado, segundo o prima­ res da operação. Sabendo disso, o presidente Kennedy telefo­
do dos direitos do cidadão. Nada do que repórteres e editores nou aos editores do diário e persuadiu-os a não dar a história,
possam fazer se situa fora dessa demarcação histórica, resul­ alegando razões de segurança. Os editores se dobraram ao pre­
tando daí sua técnica, sua lógica e sua ética. Não faria sentido sidente.
— nem técnico, nem lógico, nem ético — que os jornalistas se Como se sabe, o ataque a Cuba foi desastrado e resultou
mobilizassem contra a liberdade de imprensa. Seriam suici­ num fiasco vergonhoso para os Estados Unidos. Tempos de­
das. A liberdade de imprensa, a propósito, é um princípio asse­ pois, escreve Lambeth, o próprio Kennedy se arrependeu de
gurado não por eles, jornalistas, mas pela sociedade, que deles sua interferência no Times e julgou que talvez a publicação da
precisa para mediar a comunicação pública. Do mesmo modo, reportagem contribuísse para evitar o vexame em que desa­
está no fundamento da ética jornalística, qualquer que seja a guou toda a operação. Mas o fato é que, entre dizer a verdade
sua acepção, a defesa da liberdade, da verdade, da justiça, da ao público e preservar o que parecia ser um segredo que poria
pluralidade de opiniões e de pontos de vista, e da vigilância dos em risco a segurança nacional, os jornalistas ficaram com a se­
atos do governo. De forma que o que pode haver de melhor na gunda alternativa. É difícil dizer, a posteriori, se erraram ou
imprensa é aquilo que contribua para o aperfeiçoamento dos acertaram, mas enfrentaram um típico dilema ético do jornalis­
princípios e dos valores sobre os quais repousa a sua própria li­ mo e fizeram a escolha que lhes pareceu mais adequada.
berdade. E claro que pode haver publicações e programações Nem sempre, é claro, um dilema jornalístico envolve ra­

18 19
o errado quase sempre está num dilema entre o lícito e o ilíci­
zões de Estado. Aliás, é raro que isso ocorra. O mais comum
to. Um editor que se prevaleça de sua função profissional para
são dúvidas de ordem mais comezinha — mas, nem por isso,
chantagear quem quer que seja também não está desprezando
menos relevantes eticamente. Talvez não digam respeito às es­
a ética, apenas. Está incorrendo em crime. Assim como quem
tratégias militares de uma nação, mas envolvem a reputação de
calunia, ou como quem violenta uma criança. Se tudo se resu­
pessoas — daí sua importância. Com frequência, os órgãos de
misse a separar o lícito do ilícito, a ética jornalística seria uma
imprensa se vêem entre optar pelo respeito à privacidade de al­
trivialidade. Sua matéria-prima, porém, não é essa, mas é for­
guém que é tema da reportagem e o direito do cidadão de ser
necer ao profissional alguns parâmetros que o ajudem a tomar
bem informado. É justo devassar a intimidade de alguém? Não,
uma decisão entre duas alternativas igualmente lícitas, ou en­
lodo mundo sabe. Mas, de novo, não é com tanta simplicidade
tre o certo — e o certo.
que essas dúvidas costumam aparecer. Pergunte-se outra vez: é
justo investigar a intimidade de alguém que esteja exercendo
Teleologia e deontologia
uma função pública e guarda, em sua intimidade, práticas sus­
peitas que envolvem o Estado? O dilema ético do jornalista,
O dilema ético típico dentro do campo jornalístico é aque­
por excelência, é desse tipo. Não sc trata apenas de uma hesi­
le que opõe um valor justo e bom a outro valor que, de início,
tação, portanto, entre o certo e o errado.
apresenta-se como igualmente justo e bom. Por isso é tão difí­
Se losse assim, seria mais fácil. Um diretor de redação
cil e por isso merece tanta reflexão. É nessa medida que a teoria
que aceite suborno para poupar um ministro no noticiário, om i­
clássica sobre ética tem sido invocada para fornecer parâme­
tindo informações ao público, não está sendo apenas antiético.
tros ao jornalista. Em Committed journalism , Lambeth expõe
Está praticando um crime previsto no artigo 18 da Lei de Im­
as duas correntes básicas que comparecem aos estudos sobre
prensa: “Obter ou procurar obter, para si ou para outrem, favor,
imprensa: a teleológica e a deontológica. A primeira leva em
dinheiro ou outra vantagem para não fazer ou impedir que se
conta as consequências do ato. Então, ao pautar sua conduta, o
faça publicação, transmissão ou distribuição de notícias: Pena:
jornalista deve julgar o que é que traz mais benefícios (éticos)
Reclusão, de I (um) a 4 (quatro) anos, e multa de 2 (dois) a 30
para mais pessoas. É aí que Lambeth situa o chamado utilita­
(trinta) salários mínimos da região” . É verdade que a Lei de
rismo: o agente deve calcular qual das atitudes possíveis trará
Imprensa, de 1967, é uma aberração jurídica do regime militar
melhores consequências. Não se confunda o utilitarismo com a
cuja única finalidade era acobertar os atos dos chefes do Exe­
máxima segundo a qual os fins justificam os meios. Utilitaris-
cutivo e manter longe deles qualquer tentativa de investigação
ta ou não, nenhum jornalista está autorizado a fazer “qualquer
jornalística. Deveria ser imediatamente revogada — o que é
coisa” para atingir uma “boa” finalidade. Claro que há flexibi-
consenso entre os jornalistas brasileiros — , mas. para servir de
lizações possíveis em vista do benefício geral, mas nenhuma
exemplo para o que se argumenta aqui, ou seja, que um jorna­
contempla o uso de meios espúrios ou ilícitos. O utilitarista não
lista que aceita suborno pratica um crime, o seu artigo 18 pode
é um maquiavélico (termo adotado aqui em seu sentido quase
ser lembrado. E só assim, como um exemplo entre outros. Se a
anedótico), não é propriamente aquele que visa uma finalidade
ética lidasse apenas com a opção entre o certo e o errado, uma
com sua ação e que para tal se vale de quaisquer meios, mas
legislação democrática (não essa, da Lei de Imprensa) resolve­
apenas alguém que tende a levar em conta as consequências de
ria os problemas, já que aquele que se encontra entre o certo e
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20
seus atos, avaliando-os segundo os resultados que eles possam
Voltando ao exemplo do The New York Times por ocasião
vir a ter. Guardadas as distâncias necessárias, essa corrente
da invasão da baía dos Porcos, o que ocorreu ali foi que os edi­
lembra a “ética da responsabilidade” de Max Weber, pela qual
tores do Times empreenderam um cálculo tipicamente utilitá­
o homem moderno age tendo em vista as consequências de
rio: levaram em conta os efeitos para a segurança nacional que
seus atos, assumindo a responsabilidade pelos seus atos e tam­
a publicação da história poderia acarretar. Com base nas con­
bém pelos seus efeitos. Lembra-a, mas não se confunde com sequências, deliberaram não contar a verdade ao público. É
ela. Weber é um pensador do século xx que jam ais se filiou ao possível que, se fossem discutir o caso segundo uma ética deon­
utilitarismo. O fundador do utilitarismo é Jeremy Bentham (1748- tológica, chegassem a uma conclusão diferente. M as, mesmo
1832), cuja filosofia preconizava a máxima: “a maior felicida­ aí, teriam de escolher o princípio da verdade contra o princípio
de para o maior número possível de pessoas” . Seu fim é a feli­ da responsabilidade. Em termos puramente deontológicos, tal­
cidade e não o cxito em atingir um objetivo determinado. vez o primeiro prevalecesse sobre o segundo, mas, mesmo as­
O utilitarismo é uma fonte importante da ética jornalísti­ sim. seria uma escolha difícil. E é aí, precisamente, que reside
ca, mas é também bastante criticado. A fraqueza dessa filosofia a fraqueza da ética deontológica tal qual ela foi incorporada pe­
aplicada ao jornalismo é grave: como pode um mero profissio­ los estudiosos da imprensa: principista, ela não ajuda muito a
nal de imprensa prever com tamanha eficácia as consequên­ decidir entre dois valores que se julguem equivalentes. Sua ou­
cias de seus atos? Jornalistas não são profetas. Uma ética que tra fraqueza é sua pretensão de ser aistórica. Não há princípios,
depende, então, de cálculos que levam em sua receita uma boa por mais racionais e universais que sejam, que não se modifi­
dose de futurologia tem seus limites. quem no espaço e no tempo. Um pouco de relativismo é sem­
A segunda corrente, a deontologia, é bem menos flexível pre indicado.
e não requer de seus adeptos vocação para as artes de adivinha­ Em Ética jornalística — O novo debate," Rushworth Kid-
ção. Inspira-se na idéia de imperativo categórico de Immanuel der, presidente do Institute for Global Ethics, separa dessas
Kant (1724-1804), para quem uma regra de conduta só pode duas correntes uma terceira variante, a chamada “regra de
ser eticamente aceita se for universal, isto é, se tiver validade ouro” : o princípio segundo o qual cada um deve agir em rela­
tanto para o agente como para todos os outros seres racionais. ção aos outros do mesmo modo que gostaria que os outros
A consequência do ato já não importa. O que importa é que o agissem em relação a si. Aqui, o que fala mais alto é a preocu­
ato se revista das características de um imperativo categórico pação com o próximo. Mas, de novo, há problemas. A “regra
universal, quer dizer, que o ato se apóie em princípios que de ouro” é um bom princípio cristão, mas não é lá muito práti­
tenham a mesma validade para todos. Não roubar pode ser ca. Não que ela deva ser jogada fora; deve ser observada todos
tomado como um princípio racional e universal porque, ao os dias por qualquer sujeito de boa vontade. A dificuldade que
contrário, se todos roubassem de todos, a sociedade se tornaria ela traz para o jornalismo, porém, é o fato de não se prestar a
inviável. Dizer a verdade é um autêntico imperativo categóri­ soluções para os dilemas que surgem no cotidiano da profissão.
co kantiano, pois corresponde a um princípio passível de uni­ Como aplicar a "regra de ouro” em relação a um político que
versalização. Se ninguém mentir, tanto melhor. Pois bem: para visita a redação para pedir que uma reportagem sobre um caso
o jornalista, dizer a verdade é um imperativo categórico funda­ de corrupção não seja publicada? Deve-se tratá-lo com corte­
dor. Azar das consequências. sia, o que ele entenderá como um sinal verde para voltar outras

22 23
tenham cada vez mais familiaridade com essas e outras corren­
vezes com pretensões similares? Ou deve-se expulsá-lo da re­
tes filosóficas aplicadas ao seu ofício e com os paradigmas que
dação, com rispidez, dedicando-lhe um tratamento que nin­ elas oferecem. Dependem disso para estar à altura de sua pro­
guém gosta de receber? Em nome da independência editorial, fissão e dos desafios que ela encerra. Mais ainda, o debate éti­
esta segunda alternativa é mais apropriada. Quanto à “regra de co adquire mais qualidade e mais legitimidade quando é trava­
ouro” , não seria de grande utilidade nesse caso. Assim como do publicamente. Como diz Lambeth, “ambos, o jornalismo e
não é em muitos outros. o público, só têm a ganhar quando os julgamentos éticos são
E claro que, no ofício jornalístico, não existem nem deon- discutidos abertamente” . Isso porque a excelência da imprensa
tologistas puros nem utilitaristas puros. As duas correntes se interessa antes de tudo para o público e para a democracia. E
mesclam, com uma sutil inclinação para aquela que prevê a só por isso que ela também interessa aos jornalistas. Não é mui­
responsabilidade dos agentes sobre seus atos e as consequên­ to produtivo o debate fechado. E no público que a ética jorna­
cias deles. A decisão ética é de foro individual, mas tem seu lística adquire sua melhor consistência, é aí que ela encontra
sentido no bem comum — que portanto deve ser sempre con­ seu fundamento.
siderado. Pensar apenas e simplesmente na moralidade do ato Pretender que as redações possam ser ilhas de ética dentro
pode se traduzir em inconsequência. Em “Rejeições religiosas de empresas que realizam operações escusas, ou dentro de so­
do mundo e suas direções” , Max Weber (1864-1920) faz um ciedades em que as instituições democráticas sejam precárias,
comentário bastante esclarecedor: é o mesmo que apostar na boa medicina dentro de um hospital
que compra remédios falsificados. E o mesmo que acreditar na
Onde, no caso individual, pode o valor ético de um ato ser de­
terminado? Em termos de êxito ou cm termos de algum valor in­ excelência de uma cavalaria cujo comandante atue no tráfico
trínseco do ato per se ? A questão é se, e até que ponto, a respon­ de drogas. A ética jornalística não é apenas um atributo intrín­
sabilidade do agente pelos resultados santifica os meios, ou se o seco do profissional ou da redação, mas é, acima disso, um
valor da sua intenção justifica a sua rejeição da responsabilida­ pacto de confiança entre a instituição do jornalismo e o públi­
de do resultado, seja para transferi-lo para Deus, ou para a mal­ co, num ambiente em que as instituições democráticas sejam
dade e idiotice do mundo permitidas por Deus.'- sólidas. A ética interna das redações e a ctica pessoal dos jor­
nalistas devem ser cultivadas, aprimoradas e exigidas, mas elas
Não há como fugir à responsabilidade. O êxito, por si, não
só são plenamente eficazes quando as premissas da liberdade
torna eticamente aceitável a conduta daquele que age para atin­
de imprensa estão asseguradas.
gir a um fim. O jornalista não age para obter resultados que não
Ao longo deste livro, a ética jornalística é tratada como
sejam o de bem informar o público; ele não tem autorização
exigência e, ao mesmo tempo, como produto da democracia.
ética para perseguir outros fins que não este. Além disso, é ca­ Por isso, ele enfrenta perguntas que não se restringem ao uni­
da vez mais chamado a pensar nas consequências do que prati­ verso interno das redações. Trata também desse universo, mas
ca. Ele também não está autorizado a entregar os resultados a busea as relações necessárias entre ele e o mundo exterior, lan­
Deus ou ao acaso. çando indagações sobre a organização do espaço público e so­
Os dilemas éticos estão constantemente se transformando, bre a existência (ou não) da pluralidade de veículos informati­
assumindo complexidades inéditas, e não há receitas acabadas vos. O leitor reconhecerá, nos dilemas que serão analisados,
para dirimi-los todos. Daí a necessidade de que os jornalistas
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24
traços cias correntes filosóficas que aqui foram sintetizadas. E próprias necessidades e seus próprios interesses, acabaria con­
verá que, a estas, outras virão se somar. Tê-las em mente é ne­ tribuindo para estabelecer o equilíbrio social e o bem comum.
cessário, pois são elas que dão forma ao debate contemporâ­ Onde todos agem por egoísmo, a ambição de um serve de con­
neo. Mas só elas não bastam. E preciso ver que novas questões trapeso à ambição dos outros. Na origem desse pensamento,
se apresentam dentro de uma comunicação social marcada pela encontra-se a máxima que se tornou conhecida como “vícios
presença dos grandes conglomerados da mídia e pela crescen­ privados, benefícios públicos” . A expressão vem da obra de
te aproximação entre jornalismo e entretenimento, perfazendo Bernard de Mandeville, médico holandês radicado na Inglater­
a lógica do espetáculo. ra, A fábula das abelhas — Ou vícios privados, benefícios pú­
blicos, de 1714. Em parte, as idéias de Adam Smith às vezes
concorrem para reafirmar a fábula: “Pela busca de seu próprio
UMA ÉTICA ALÉM DO MERCADO interesse, ele [o homem] com frequência promove o da socie­
dade mais eficazmente do que quando de fato tenciona promo-
O propósito deste livro é compartilhar o assunto com o vê-lo” . Eduardo Giannetti faz referência à historinha das abe­
leitor leigo, pois adota a premissa de que ética em jornalismo é lhas e a essa passagem de Smith, em Vícios privados, benefícios
algo sério demais para ser deixado unicamente ao encargo dos públicos?" Giannetti vai então criticá-las. Para ele, há de exis­
especialistas. Os exemplos que aparecem ao longo do texto são tir uma ética além da fábula, ou as nações não teriam êxito
apenas ilustrativos. Todos são já bastante conhecidos. Não há, como projeto coletivo. O mesmo se pode dizer do jornalismo.
aqui, revelação de fatos novos. Os exemplos servem apenas pa­ Se ele for governado simplesmente pela ambição de seus pra­
ra elucidar o pensamento ético e para materializá-lo no cotidia- ticantes — e de seus empresários —, pode se degenerar na ne­
no. No limite, pode-se dizer que este livro tem o objetivo de pen­ gação da promessa liberal que traz de berço.
sar o jornalismo como um ofício que, acima de tudo, não é uma Este livro, como ficará evidente, não pretende regenerar
técnica, mas é (e deve ser) uma práxis ética. as doutrinas liberais. Tampouco pretende se filiar a elas, uma
Em sua maior parte, as discussões aqui apresentadas se si­ vez que vai questionar o alcance das soluções de mercado à luz
tuam nos paradigmas do liberalismo. Desses paradigmas é que das exigências postas pela cidadania como fonte do poder po­
brota a promessa da liberdade de imprensa. Agora, o desafio da lítico. Ele apenas toma como ponto de partida os paradigmas
reflexão contemporânea sobre jornalismo é examinar os limi­ liberais que inspiraram a liberdade de imprensa e enfrenta mo­
tes que o liberalismo enfrenta para realizar na prática a sua pro­ destamente a tarefa de pensar sobre os limites contemporâneos
messa. O mercado pode mesmo oferecer com eficácia as solu­ desses paradigmas — e sobre as possibilidades de superá-los.
ções éticas que o projeto democrático espera da imprensa? Agora não mais nos marcos do mercado, apenas, mas, acima
Além do mercado, qual é a origem e qual é a legitimidade dos das relações de consumo, nos marcos da vigência dos direitos
valores que devem orientar a prática dos jornalistas e de todos do cidadão, como o direito à informação e à liberdade de ex­
os que operam ou comandam os meios de comunicação? pressão. São estes, os direitos, que devem ser chamados a for­
E o que seria uma ética de mercado? Em boa medida, necer as bases para o exercício de uma imprensa que, embora
aquela que a corrente teleológica chamará de ética do egoísmo, tenha também um lugar no mercado e seja também uma reali­
ou seja, aquela pela qual o indivíduo, buscando atender suas dade económica, estabeleça sua meta mais alta na construção

26 27
da democracia e no aperfeiçoamento dos direitos humanos. Os
valores democráticos — que, por definição, são públicos e não
privados — são a mais fecunda inspiração, a mais elementar e
a mais básica, do jornalismo. Devem ser também seu funda­
mento contemporâneo e seu projeto de futuro. 1
FAZ SENTIDO FALAR DE
ÉTICA NA IMPRENSA?

No dia 25 de janeiro de 1984, o Jornal Nacional tapeou o


telespectador. Mostrou cenas de uma manifestação pública na
praça da Sé, em São Paulo, e disse que aquilo acontecia em vir­
tude da comemoração do aniversário da cidade. A manifesta­
ção era real: lá estavam dezenas de milhares de cidadãos em
frente a um palanque onde lideranças políticas discursavam.
Mas o motivo que o Jornal Nacional atribuiu a ela não passa­
va de invenção. Aquele comício nada tinha a ver com fundação
de cidade alguma. A multidão estava lá para exigir eleições di­
retas para a Presidência da República. O Jornal Nacional enga­
nou o cidadão naquela noite — e prosseguiu enganando duran­
te semanas a fio, ao omitir as informações sobre a campanha por
eleições diretas. Para quem sõ se inteirasse dos acontecimentos
nacionais pelos noticiários da Globo, a campanha das diretas
não existia.1
No dia 25 de abril daquele ano, a emenda constitucional
que restabeleceria o sufrágio universal e direto para a escolha
do presidente da República deixou de ser aprovada por 22 vo­
tos no Congresso Nacional. O brasileiro só reconquistou o di­
reito de votar para presidente com a Constituição de 1988, a
“constituição-cidadã” , como foi batizada por Ulysscs Guima­
rães, e só voltou a exercê-lo em 1989. O eleito foi Fernando
Collor de Mello, cuja candidatura contou com o apoio do Jor­
na! Nacional, do Fantástico e dos outros programas jornalísti-
28 29
cos da Rede Globo de Televisão. Apoio explícito e assumido. mentos já incorporados à história política do Brasil — a cam­
Roberto Marinho, o dono das Organizações Globo, foi muito panha das diretas de 1984, as eleições presidenciais de 1989 e
claro a esse respeito numa entrevista ao repórter Hélio Contrci- a mobilização popular pelo impeachment em 1992 —, a prin­
ras, publicada no Jornal cia Tarde de 6 de abril de 1993. Per­ cipal rede de televisão do país falsifica, distorce e omite infor­
guntou o repórter: “Mas o senhor reconhece que a Rede Globo mações essenciais. Deliberadamente. E passa ilesa por tudo is­
e O Globo influenciaram [o público] para a eleição do (presi­ so. A Globo foi a única? Não. Mas a sua liderança impõe a ela
dente) Collor?” . Respondeu Roberto Marinho: “Sim, nós pro­ o ônus de ser caso exemplar, sobretudo nos erros. Prossigamos,
movemos a eleição do Collor e eu tinha os melhores motivos então, um pouco mais nesses três casos exemplares.
para um grande entusiasmo e uma grande esperança de que ele Lembremo-nos de que o brasileiro se informa prioritaria­
faria um governo extraordinário” . Realmente, Collor realizou mente pela televisão, e que, agora, no ano 2000, a liderança da
um governo extraordinário, deixando para a posteridade o re­ Globo sobre as outras redes ainda é uma realidade. E era ainda
gistro de vultosas realizações na esfera da corrupção. Tão ex­ mais forte entre 1984 e 1992. Uma mentira narrada como verda­
traordinário que, em 1992, uma outra campanha de massas to­ de pelos locutores da Globo não é a mesma coisa que uma men­
mou as ruas, lembrando as jornadas pelas diretas de oito anos tira publicada num quinzenário de uma pequena cidade. Muitas
antes. Mas a bandeira era outra: agora, o que unia os manifes­ vezes, as versões consagradas na tela da Globo persistem tem­
tantes era a exigência do afastamento do chefe do Executivo porariamente como verdade. A propósito: tamanha hegemonia
federal. O jornalismo da Rede Globo adotou o mesmo compor­ exercida por uma única rede desequilibra o jogo democrático e
tamento de 1984. Ignorou — e, com isso, forçou os seus teles­ a competição que faz funcionar a economia capitalista — razão
pectadores a ignorar — inúmeras passeatas e atos públicos que pela qual, aliás, nos Estados Unidos e em outras democracias
tomavam conta do espaço público nacional. De novo, sonegou mais desenvolvidas, há fórmulas para evitar a concentração de
informação. Na tela da Globo, as jornadas que defendiam o im- poder na mídia (o que será visto com mais detalhes no capítu­
peachment de Collor não tinham vez. Foram aparecer apenas lo 4). O fato é este: as falsificações jornalísticas da Globo não
tardiamente, quando o movimento já estava perto da vitória. deram conta de barrar, mas contribuíram para retardar a evolu­
ção de movimentos populares e da própria democracia brasilei­
ra. Desobedecendo frontalmente aos imperativos éticos do jor­
O COMPROMISSO DAS EMPRESAS DE COMUNICAÇÃO nalismo. E então? Se isso pode acontecer, por que falar de ética?
(OU A FALTA DELE) A discussão ética só produz resultados quando acontece
sobre uma base de compromisso. Se uma empresa de comuni­
Faz sentido discutir ética num país onde coisas assim acon­ cação não se submete na prática às exigências de busca da ver­
tecem reiteradamente? Ninguém precisa ter frequentado aulas dade e do equilíbrio, o esforço de diálogo vira proselitismo va­
numa faculdade de comunicação social para intuir que ao jor­ zio. E inútil. No máximo, um colóquio de etiqueta. Aliás, é assim
nalismo cabe perseguir a verdade dos fatos para bem informar que acontece com frequência. Debatem-se as boas maneiras
o público, que o jornalismo cumpre uma função social antes de dos repórteres, se eles tratam bem o entrevistado, se se apre­
ser um negócio, que a objetividade e o equilíbrio são valores sentam corretamente como jornalistas, se ouvem os dois ou
que alicerçam a boa reportagem. E, no entanto, nesses três mo­ mais lados do tema que estão cobrindo, se invadem a privaci­

30 31
dade da atriz que depois decide processar a revista — que por dão. Ninguém mais. É para ele que a imprensa deve existir —
sua vez só vive de explorar detalhes da intimidade de pessoas e só para ele. As vezes, parece que todos nos esquecemos disso.
famosas —, e assim por diante. Tudo isso é importante, claro, Jornais, revistas, emissoras de rádio e televisão dedicados
mas é pouco diante das faltas éticas que vitimam a sociedade ao jornalismo, assim como os sites informativos na internet,
brasileira. Essas até contam com a colaboração ativa de jorna­ nada disso deve existir com a simples finalidade de gerar em­
listas que tomam parte na confecção das imposturas, mas em pregos, fortunas e erguer os impérios da mídia; deve existir por­
geral são cometidas por empresas e não por redatores; são fal­ que os cidadãos têm o direito à informação (garantido em todo
tas institucionais e não desvios pessoais. o mundo democrático, sobretudo desde a Declaração Universal
As empresas esforçam-se em contratar jornalistas íntegros, dos Direitos do Homem, de 1948, que estabelece, no artigo 19,
querem funcionários que não falsifiquem declarações alheias, o direito à liberdade de opinião e expressão, que inclui a liber­
que não cometam plágios, que não digam que gastaram no táxi dade de “procurar, receber e transmitir informações e idéias
a verba que na realidade consumiram tomando cerveja antes de por quaisquer meios e independentemente de fronteiras” , e ga­
voltar para a redação. As empresas têm razão em sua preferên­ rantido também no Brasil, pela Constituição Federal, artigo 5“
cia: do caráter dos seus profissionais depende diretamente a — xiv). Sem que esse direito seja atendido, a democracia não
qualidade técnica dos produtos jornalísticos que serão postos à funciona, uma vez que o debate público pelo qual se formam
venda. Mas elas precisam devolver essa mesma dedicação e as opiniões entre os cidadãos se torna um debate viciado. Por
isso a imprensa precisa ser forte, independente e atuante. E ver­
transparência ao público — e, infelizmente, não é sempre que
dade que a atividade jornalística se converteu num mercado,
agem assim. Por isso, uma discussão ética que não toque na éti­
mas, atenção, esse mercado é consequência, e não o fundamen­
ca das empresas resulta numa conversa de “porte e postura” .
to da razão de ser da imprensa. Do direito fundamental a que
Essa deontologia glútea termina por ajudar a esconder o fato de
corresponde a imprensa, o direito à informação, resulta a ética
que os piores problemas da imprensa brasileira são problemas
que deveria reger os jornalistas e as empresas de comunicação
construídos no interior das empresas de comunicação por for­
— e deveria reger também os vínculos que ambos estabelecem
ças e interesses que ultrapassam os domínios de uma redação e com as suas fontes (as pessoas que fornecem as informações
nada têm a ver com os interesses legítimos de seus telespecta­ aos jornalistas), com o público e, sobretudo, com o poder (eco­
dores, leitores, ouvintes. Mais ainda: ajuda a esconder o fato de nómico, político ou estatal). Quando o poder age no sentido de
que o ambiente de absoluta ausência de parâmetros éticos que subtrair ao cidadão a informação que lhe é devida, está corroen­
orientem as empresas de comunicação é uma situação social — do as bases do exercício do jornalismo ético, que é o bom jo r­
não restrita, portanto, a um segmento profissional. nalismo, e corrompendo a sociedade.
Discutir ética na imprensa só faz sentido se significar pôr Quando se trata das relações dos jornalistas e das empre­
em questão os padrões de convivência entre as pessoas, indivi­ sas de comunicação com o poder, um outro horizonte se abre
dualmente, e de toda a sociedade no que se refere ao trato com para aqueles interessados na discussão ética. Pois assim como
a informação de interesse público e com a notícia. A isso pre­ as redações não existem à margem das empresas, mas no inte­
cisam se subordinar não apenas os jornalistas, mas também os rior delas, também as empresas não pairam soltas no espaço,
seus patrões e as corporações em que funcionam os veículos de mas têm o seu lugar dentro da sociedade — e essa sociedade é
comunicação. Essa discussão só tem um interessado: o cida­ marcada (definida) pelas relações de poder e de dominação.

32 33
Tanto é assim que alguém que pretendesse fazer a defesa fícil, na qual é preciso combater o vale-tudo porque, embora
da conduta da Rede Globo em 1984, 1989 e 1992 poderia ale­ Papai Noel não exista, as práticas humanas podem ser melho­
gar que elas eram devidas não à vontade autónoma da empre­ res do que são. Não é ingenuidade pretender que as empresas
sa, e sim às pressões do Estado sobre a empresa. Pressões exis­ de comunicação devam dar prioridade, como valor, ao direito
tem, e são fortes. Principalmente sobre as emissoras de rádio e à informação.
TV. Até a promulgação da Constituição de 1988, um ato discri­ Em se tratando de canais de rádio e televisão, isso é ainda
cionário do Executivo bastaria para pôr fim à concessão de mais verdadeiro, pois é em nome desse direito que o Estado,
uma emissora de rádio ou televisão. Atualmente, contudo, as representando a sociedade, concede os canais para que se tor­
concessões dependem também do Congresso Nacional, e as nem objeto da atividade comercial. Uma emissora de televisão
possibilidades de uma rede de televisão enfrentar pressões go­ ou de rádio só pode funcionar mediante concessão pública; é
vernamentais são mediadas pelo Legislativo. De toda forma, preciso que o poder público conceda a permissão para que aque­
aceitar silenciosamente, durante tanto tempo, que uma ingerên­ la determinada frequência (aquele canal) seja utilizada por uma
cia governamental imponha a censura velada ao jornalismo empresa para enviar seus sinais aos aparelhos receptores. Sem
constitui, além de uma postura empresarial pusilânime, uma essa permissão, nada feito. O que vale dizer: em última análise,
traição à confiança do cidadão. o cidadão é o dono das frequências exploradas pelas empresas.
Não é o caso, aqui, de verificar os meandros das negocia­ Câmeras, antenas, parques eletrónicos instalados para a confec-
ções que empresas de comunicação e governos podem se permi­ ção das imagens eletrónicas, podem ser propriedade privada —
tir entre si. O que interessa saber é de que lado têm permanecido mas a frequência pela qual são transmitidas as ondas eletro­
as emissoras de televisão: se ficam do lado do direito à informa­ magnéticas pertence ao povo e, em nome do povo, é concedida
ção ou do lado das conveniências comerciais e políticas que exi­ à empresa privada. Portanto, o cidadão tem legitimidade para
gem sacrifício da ética. Como regra, elas têm preferido a segun­ exigir que essa exploração comercial não o desrespeite.
da alternativa. Eticamente, portanto, agem de forma condenável. Por tudo isso, o exemplo da conduta da Rede Globo em
Então a ética seria a negação do espírito pragmático que 1984, em 1989 e em 1992 ilustra de modo bastante claro o al­
caracteriza o mundo dos negócios? Não necessariamente. A cance que deve ter a discussão ética sobre imprensa. Mais do
ética na imprensa é, sim, a demarcação de limites para o prag­ que as normas de conduta que orientam a ação dos jornalistas,
matismo, que, por si, não conhece limites. Enfrentar a discus­ é preciso envolver no debate a ética das empresas que se dedi­
são ética é aceitar o pressuposto de que é possível, ainda que cam ao negócio da comunicação social e identificar, ou propor,
numa perspectiva mais ou menos utópica, buscar mecanismos limites ao poder (económico, político ou estatal) que procura
que protejam valores coletivamente eleitos contra um regime subordinar a comunicação aos seus interesses, violando, com
do não-valor moral. Esse pressuposto soa ingénuo para muitos, isso, o direito à informação.
mas a alternativa a ele é o abandono de toda pretensão a uma Os desvios éticos da imprensa brasileira não se resumem,
convivência melhor. Temos aqui uma encruzilhada lógica: de portanto, às falhas dos jornalistas — que, evidentemente, de­
um lado, abre-se o caminho do vale-tudo, já que a ética não vem ser analisadas em público, para o bem da melhoria da qua­
passaria de um sonho pueril como o das crianças que acreditam lidade de informação; eles se estendem às empresas e à socie­
em Papai Noel; do outro lado, está a estrada mais tortuosa e di­ dade. O problema ético é um problema estrutural e sistémico.

34 35
A desinformação não se deve apenas a maus profissionais, mas
também a atitudes empresariais que revelam falta de compro­
misso com o direito à informação, que se articulam para excluir
o cidadão das decisões que em seu nome são tomadas. O único
interessado na discussão ética é o cidadão — não os proprietá­
2
rios dos órgãos de imprensa, não os jornalistas, não os gover­ A SÍNDROME DA
nantes (que também são cidadãos mas se encontram investidos
de condições que os diferenciam dos demais); o único interes­
AUTO-SUFICIÊNCIA ÉTICA
sado é o cidadão como outro qualquer, aquela pessoa comum
que consome as notícias e que, no fim, é o beneficiário final do
jornalismo de qualidade — ou a vítima do jornalismo vil. É por
Se o cidadão só tem a ganhar com o debate aberto sobre a
isso que essa discussão vale a pena, faz sentido e, mais que
ética na imprensa, por que é que esse debate no Brasil só come­
isso, é urgente.
çou a acontecer mais recentemente? E por que ele é tão tími­
do? O que é que o inibe? Para começar, é simplismo supor que
o vilão da história seja o “ sistema” - os grandes conglomera­
dos da comunicação, as ditaduras de direita e de esquerda etc.
O primeiro obstáculo que se apresenta para quem quer investi­
gar, entender e discutir a ética dos jornalistas são os próprios
jornalistas.

O ASSUNTO MALQUISTO

Jornalistas não gostam muito de falar de ética jornalística.


Na verdade, detestam. Sim, há exceções, mas a maioria detes­
ta. Para a média dos profissionais de imprensa, ou o assunto
parece representar elucubrações em torno do sexo dos anjos —
um exercício, portanto, inócuo — , ou é uma armadilha do ini­
migo, ou, finalmente, o caminho mais curto para melindrar o
patrão ou o chefe. O complicado da história é que, ao reagir as­
sim, um jornalista não está de todo enganado. Ao contrário, ele
até tem alguma razão.
Comecemos pelo aspecto sexo-dos-anjos das discussões
éticas: é disso mesmo que se trata quando se instalam os coló­
quios de generalidades, aqueles cujas conclusões são sempre

36 37
unânimes e cujas consequências práticas são nulas. “É preciso debate fosse perda de tempo ou um sinal de frouxidão e, por­
checar a informação antes de publicá-la” , “os indivíduos têm tanto, um pecado mortal. Mas esse traço atávico pode ser en­
direito à privacidade” , “ninguém é culpado até que o processo tendido com a ajuda de um rápido retrospecto histórico e a
transite em julgado” . Não há quem discorde disso, e, depois, na lembrança de uma razão prática. Comecemos pela explicação
competição diária pela notícia exclusiva, repórteres e editores histórica.
atropelam aqui e ali esses e outros princípios. E tudo continua A atitude automática, ato reflexo, de torcer o nariz para o
como antes. Discutir generalidades, então, para quê? tema é, antes de tudo, coerente com a tradição da cultura políti­
E também verdade que a bandeira da ética é desfraldada ca brasileira. Esta não prima por valores universais como os di­
com insistência por espertalhões para encurralar profissionais reitos humanos nem cultiva critérios impessoais e objetivos na
que investigam corretamente os fatos. Quantos não são os cri­ vida profissional e na vida política. Entre nós, os direitos huma­
minosos de colarinho branco, já condenados pela Justiça, que se nos ainda são novidade, o clientelismo ainda é corriqueiro, e a
lamuriam como se fossem vítimas de campanhas difamatórias palavra ética, quando aparece, surge mais na condição de adje­
da imprensa? Aí, a bandeira da ética é usurpada pelos inimigos tivo do que em sua dimensão substantiva. No cotidiano, quan­
da liberdade de expressão (como “inimigo” , aqui, designa-se o do alguém pronuncia essa palavra, quase sempre está se refe­
corrupto típico ou o tirano estabelecido — bem relacionados, rindo à qualidade de “honesto” de um certo fulano, ou a um
influentes, criminosos e beneficiários da impunidade, os maio­ atributo moral de uma prática; raramente o termo vem designar
res interessados em emascular o jornalismo). Semanalmente vêm um sistema de valores coletivamente compartilhados que sir­
a público argumentos aparentemente éticos invocados por no­ vam de parâmetro para as ações humanas.
tórios meliantes que, flagrados em crime, queixam-se de “inva­
Entre nós, portanto, a ética é um acessório, não uma base.
são de privacidade” . A resposta dos jornalistas costuma ser sim­
É um tema pouco familiar, que só mais recentemente começa a
ples e direta: “Com esse fulano eu não falo de ética” . Além de
fazer parte do mundo dos negócios e da agenda política. Nas re­
simples e direta, é explicável, embora não seja a atitude ideal. O
dações jornalísticas, também é um alienígena. Aí, porém, a es­
“fulano” em questão é quase sempre a encarnação da vileza.
tranheza diante dele adquire um contorno paradoxal: a recusa
Por fim, o tema pode também guardar uma emboscada. É o
em discutir ética em público se manifesta como se fosse afir­
que acontece quando o aprofundamento da discussão termina
mação de independência. Os jornalistas se recusam a prestar con­
por indispor o jornalista com o seu patrão ou com o seu chefe na
redação. Ninguém gosta de perder o emprego ou de cair em des­ tas a quem quer que seja. O paradoxo, contudo, é apenas apa­
prestígio acusado de deslealdade — mesmo quando a lealdade rente: o não-falar de ética parece querer exprimir uma atitude
implica um certo silêncio obsequioso sobre condutas discutíveis. de autonomia perante esferas externas, como a do poder e a dos
E, depois, sempre fica a dúvida: e se o chefe no fundo tem mo­ negócios, mas no seu fundamento essa pretensa autonomia é
tivos justos, mas não declarados, para agir como está agindo? apenas arrogância. Pode-se dizer que a arrogância jornalística
não é outra coisa senão a afirmação de uma auto-suficiência
Uma tradição que prescinde do debate ética. É como se a imprensa proclamasse: minha função é in­
formar o público, mas os meus valores não estão em discussão,
A má vontade que a cultura das redações reserva para a os meus métodos não são da conta de mais ninguém — eles são
discussão ética parece um traço atávico. É como se abrir-se ao bons, corretos e justos por definição.

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Na tradição brasileira, a dificuldade em lidar com o tema há o que dialogar com quem quer subornar. E, num momento
da ética pode ser tomada como um denominador comum entre histórico em que é impossível distinguir quem é quem, não há
o governo, a empresa e a imprensa. O que varia de uma esfera por que perder energias procurando canais de diálogos deontoló­
para outra é a forma como o denominador comum se manifes­ gicos. A “casca grossa” é útil. Ou, no mínimo, tem razão de ser.
ta. No governo, ele se expressa pela tendência da burocracia a Olhando para o passado recente do Brasil, nota-se que,
sobrepor sua racionalidade opaca a todo tipo de demanda social­ sem a “casca grossa" desenvolvida pelas redações para se pro­
mente legitima. Aí, o único valor possível (e não declarado) a teger da prepotência estatal e do tráfico dc influência dos cor­
ser perseguido é a manutenção e a ampliação das prerrogativas ruptos, é provável que a democracia brasileira estivesse hoje
da máquina estatal: os outros valores se subordinam a esse. Na mais atrasada do que está. Pelo menos, com arrogância ou não,
empresa, o denominador comum se traduz na não-relativização os jornalistas se protegeram para fazer jornalismo. Fizeram-no
do imperativo do lucro imediato em face de benefícios coleti­ sem ter de falar de ética. Em lugar de falar, agiram eticamente
vos de longo prazo. E entre um e outro, ou seja, entre a lógica ao realizar boas reportagens e dar notícias relevantes. Além de
estatal do governo e a lógica privada da empresa, a ausência da informar o público, garantiram com o seu trabalho a constru­
discussão ética tende a produzir um outro efeito: ajuda a abrir ção da democracia contemporânea e a liberdade de imprensa.
caminho, de um lado, para a privatização das finalidades da ad­ Não fossem as reportagens que expuseram a prática da tortura,
ministração pública e, de outro, para a proteção, pela máquina as mordomias e a corrupção, entre tantas outras, o regime mi­
do Estado, de negócios particulares. Já na imprensa, a má von­ litar talvez durasse um pouco mais do que durou.
tade diante do tema se manifesta na conhecida arrogância. A democracia atual no Brasil deve muito ao jornalismo. Eti­
camente, isso fala mais alto que a ausência de seminários perió­
dicos sobre o assunto. Fazer bom jornalismo já foi uma atitude
A influência do autoritarismo
ética. E aqui chegamos à razão prática da auto-suficiência ética
que caracteriza as redações. O fazer jornalístico pressupõe uma
A arrogância na imprensa pode ter uma explicação histó­
ética, mas não depende de discorrer sobre ela. E como se fazer
rica. No embate com lobistas de grupos económicos e com
jornalismo bem-feito, vale dizer, eticamente bem-feito, não de­
mensageiros do governo dispostos a interferir no curso das co­
pendesse de pensar sobre essa ética nem de discuti-la. Isso é em
berturas jornalísticas, a grossura no trato às vezes é uma ma­ parte verdadeiro e precisa ser compreendido. Entre um jornalis­
neira eficaz de manter a distância devida. Diante de forças que ta que não é lá muito versado nas doutrinas filosóficas de onde
agem em surdina, que não admitem o menor grau de transpa­ vêm os estudos éticos, mas faz o seu trabalho com brilho, e um
rência quanto a seus próprios métodos, a imprensa não teria ou­ outro que conhece todos os códigos, mas tem uma ponta de pre­
tra maneira de resguardar sua independência que não fosse fe­ guiça diante do trabalho de reportagem, o primeiro é muito mais
char-se, ela também, em barricadas, torres e muros bem altos e útil à sociedade. Passemos, portanto, às razões práticas.
espessos. Isso é ainda mais verdadeiro quando se leva em con­
ta que, entre 1964 e 1985, o Brasil viveu sob o estado ditatorial A necessidade prática da velocidade e da qualidade
imposto pelo regime militar, que incluiu a censura à imprensa
— e também a prisão, a tortura e o assassinato de jornalistas. O jornalismo já é em si mesmo a realização de uma ética:
Não há o que conversar com gente que defende a censura. Não ele consiste em publicar o que outros querem esconder mas que

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o cidadão tem o direito de saber. Isto é a notícia: a informação que trabalham em editorias de política), zelem por sua autono­
que, uma vez revelada, afeta as expectativas do cidadão, do con­ mia perante partidos, igrejas, grupos económicos, movimentos
sumidor, do homem e da mulher comuns quanto ao mundo que sociais. Tudo para evitar que o conflito de interesses, reais ou
os cerca, quanto ao futuro ou quanto ao passado. Notícia não é aparentes, prejudique a apuração dos fatos e sua publicação
apenas uma “novidade” . E uma novidade que altera o arranjo com autonomia.
dos fatos, dos poderes ou das idéias em algum nível. A notícia Entre tantas pressões e tantos interesses, e com a centrali-
incide, portanto, sobre as relações humanas: ela é socialmente dadc cada vez mais hegemónica dos meios de comunicação nos
notícia. Ou não é. O jornalism o não lida prioritariamente, espaços públicos, o poder de decisão que repousa nas chefias
portanto, com a “divulgação” de relatos. Ao contrário, sua jus­ dos melhores veículos de informação é considerável. Um edi­
tificativa é descobrir segredos que não se quer divulgar. Seu tor e, acima dele, um diretor de redação operam com uma gama
objeto primordial não é difundir aquilo que governos, igrejas, de múltiplas alternativas que requerem deliberações a cada ho­
grupos económicos ou políticos desejam contar ao público, em­ ra. No rádio ou na internet, as tomadas de posição editoriais
bora também se sirva disso, mas aquilo que o cidadão quer, pre­ ocorrem minuto a minuto. E preciso resolver qual informação
cisa e tem o direito de saber, o que não necessariamente coin­ será publicada, com que destaque, com que fundamento — e,
cide com o que os outros querem contar. ao resolver esses dilemas, uma redação está determinando quem
Logo, a notícia sempre tem uma vítima, e a primeira víti­ pode sair ferido e quem pode levar vantagem. Não só isso. Há
ma (não a única) é aquele que perde com a divulgação de uma um trabalho logístico que também requer soluções imediatas:
informação que era guardada em segredo. Com um detalhe: se quantos repórteres serão deslocados para a cobertura A, quan­
um perde, há quem saia ganhando. Um deputado que aparece tos serão retirados da cobertura B, que pessoas serão entrevis­
como corrupto no noticiário certamente sai perdendo; o seu ad­ tadas, qual matéria será sepultada para que uma nova, e mais
versário político vai comemorar. Se uma empresa é retratada co­ relevante, entre em seu lugar; como ganhar tempo e editar uma
mo má pagadora, sua concorrente lucra. Quando um produto história exclusiva antes que a concorrência possa tomar conhe­
qualquer, uma tinta de parede, uma fita de vídeo, um automó­ cimento dela.
vel, é criticado como caro demais, ou como defeituoso, ou co­ Uma série de resoluções no cotidiano jornalístico são re­
mo lesivo ao consumidor, as outras marcas se aproveitam para soluções solitárias. Não há tempo para debatê-las em equipe,
conquistar os fregueses que ficaram órfãos. Isso cria em torno não há condições técnicas nem práticas de ouvir todas as opi­
da imprensa um jogo de interesses que não tem fim. O que não niões, ponderá-las, voltar a avaliar. E, toda vez que uma opção
falta são grupos, empresas e personalidades que “preferem não se é feita, alguém perde e alguém ganha. Não apenas do lado de
identificar” oferecendo notas exclusivas com a finalidade de fora, mas também dentro da redação. Na eterna briga pelo pres­
prejudicar uma infinidade de outros grupos, empresas e perso­ tígio, pelo crédito, pelo reconhecimento e pelo progresso profis­
nalidades. Para lidar com o emaranhado de pressões, as reda­ sional, ganham os repórteres e os editores escalados para tocar
ções precisam se organizar como departamentos independentes a matéria que vai brilhar, que vai ser o carro-chefe da edição.
no interior das empresas — sobretudo independentes do depar­ Perdem os que vão assumir os assuntos secundários. Fora da
tamento comercial, que lida com os anunciantes. Mas é preci­ redação, perdem os que serão desmascarados — e ganham os
so também que os jornalistas, individualmente (em especial os que serão elogiados ou, às vezes, ignorados. Passar despercebi­

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do pela imprensa é o inferno dos escritores, dos atores, dos não é, por natureza, uma democracia de tempo integral. As de­
cantores, das socialites — e o paraíso de alguns empresários e cisões cruciais precisam ser rápidas e, sendo rápidas, não po­
políticos cujas condutas são lucrativas, mas discutíveis. dem ser muito negociadas. A dinâmica da tomada de decisão é
Em suma, toda decisão jornalística é uma decisão que gera por vezes mais do tipo militar que do tipo comunitário. Por
efeitos éticos. Mas se, para ser tomada, ela precisasse de semi­ mais abertos ao diálogo que sejam os chefes das equipes jorna­
nários e colóquios, o jornalismo seria uma quimera. Seria im­ lísticas, por mais “democráticos” e amigáveis que sejam, e é
possível. Por isso, há razões práticas no fazer jornalístico que preciso ser, jamais escapam das deliberações solitárias — e, se
vivem adiando os debates éticos, muito embora a responsabili­ quiserem fugir às decisões solitárias, serão maus chefes e maus
dade ética dos que chefiam as redações seja enorme. No dia-a- jornalistas. Pois serão lentos.
dia de uma redação, os motivos que embasam cada mudança Um jornalista que comanda uma equipe corre contra o tem­
de curso precisam ser sólidos e fundamentados, mas dificil­ po. Decide o destino das reputações alheias apostando corrida
mente podem ser debatidos no calor das deliberações — não há contra o ponteiro de minutos, que teima em girar naquela mal­
tempo. Serão então sólidos, fundamentados e... silenciosos. dita parede da redação. Daí que, quando alguém aparece dian­
Assim, para que uma redação funcione bem, os chefiados pre­ te dele para discutir ética, assalta-o a impressão de estar frente a
cisam confiar nos c h e fe s ---- e sentir que aprendem com eles. frente com um lunático que se julga capaz de parar o relógio
As vezes, confiar significa confiar cegamente. Significa ouvir: para tergiversar sobre a natureza da humanidade, das coisas e
“A sua matéria caiu” (não será publicada). E significa aceitar. suas implicações. Sexo dos anjos. Ora, isso não o ajuda em na­
Depois, mais adiante, quando o fechamento tiver passado, a
da, ele pensa (ou nem pára para pensar), não suspende a tirania
questão talvez seja rediscutida — isso se o chefe achar que o
dos minutos, que conspiram contra a exclusividade da informa­
jornalista inconformado merece tal investimento. Se não hou­
ção. Quem comanda no jornalismo quer derrotar o relógio. O
ver a confiança, ouvir que uma matéria “caiu” , ou seja, ouvir a
mesmo acontece com o repórter que se apressa pela cidade,
condenação à morte dc um trabalho de horas, dias ou semanas
que vai atrás de seus entrevistados, que segue alguém sem ser
será o início de uma conflagração. Ocasionalmente, é uma con­
flagração. E, quando é, o motivo da briga é ético: joga-se em notado ou que disputa um detalhe exclusivo da história que já
suspeita a atitude de quem não quer publicar alguma coisa que foi descoberta por outros veículos. Se ele não obtiver o detalhe
ferirá interesses de alguém. que faz a diferença, os seus leitores, telespectadores, ouvintes
A confiança nas atitudes dos chefes pode ser apenas táci­ ou internautas receberão marmita com ração requentada em lu­
ta — mas é indispensável que, na média, ela dê o tom na reda­ gar do quitute que merecem. Então, o repórter quer a notícia
ção. Claro que os chefes também precisam confiar nos seus su­ e mais nada. Ele quer essa notícia com mais profundidade e
bordinados, nas informações que eles trazem da rua e nas fontes com mais rapidez do que todos os outros. Ainda bem que é as­
que eles consultam, mas isso é uma outra história. Aqui se tra­ sim. A existência desse repórter e do seu chefe, obcecados pela
ta da confiança necessária à legitimação das decisões solitárias notícia, deve ser saudada pelo público. Quanto mais eles tive­
da chefia. Trata-se da confiança que sedimenta o poder interno rem fome de notícia, melhor. Buscar e publicar a notícia é seu
da redação, já que esse poder tem um inevitável componente primeiro dever ético. Sendo bons profissionais, os jornalistas
monárquico. As redações têm uma estrutura hierárquica que são éticos.

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UMA CRÍTICA À CULTURA DE AUTO-SUFICIÊNCIA DAS REDAÇÕES Falar de ética é discutir sexo dos anjos? Sim, com fre­
quência. Mas não falar é omitir-se de prestar contas: é desau­
E bom que seja assim. Mas é inadmissível que seja só as­ torizar a democracia. Falar de ética é uma armadilha posta no
sim. Fazer jornalismo sem refletir sobre jornalismo já não bas­ caminho da imprensa pelos inimigos da imprensa? As vezes;
ta. Se há razões que explicam a má vontade dos jornalistas basta lembrar dos corruptos que posam de vítimas da invasão
quando o assunto é ética da imprensa — razões que podem ser da “privacidade” quando, de fato, se escondem atrás de negó­
atribuídas à tradição da cultura política no Brasil e à vigência cios particulares para lesar a coisa pública. Mas fugir a essas
de regimes autoritários — , a persistência da má vontade num armadilhas, aos olhos do público, é dar razão a elas — e o me­
ambiente relativamente mais democrático já não aparece como lhor jeito de enfrentar tais armadilhas é mostrar que elas não
sinal de força, mas enfraquece a imprensa. O isolamento se vol­ passam de sofismas, de castelos de cartas de ilusionistas. Falar
ta contra quem se isola. Na ditadura, o jornalismo desenvolveu de ética implica entrar em debate com o chefe ou com o pa­
uma cultura que recusava diálogos questionadores de seus mé­ trão? Bem, pode acontecer. Aqui, a questão só depende da ma­
todos e procedimentos. Assim, protegia-se contra os conspira­ turidade das partes. Já existem chefes e patrões que conseguem
dores que, lançando mão de argumentos falaciosamente éticos, conviver com a diferença. Alguns até a estimulam. E, depois, o
ameaçavam a liberdade de imprensa. À medida que se expan­ bem mais precioso na vida de um jornalista não é o seu empre­
dem os espaços democráticos, porém, a sustentação da impren­
go, mas a sua credibilidade. Por isso é correto presumir que
sa passa a depender menos de seus segredos e muito mais da
tudo o que se pratica no campo do jornalismo, da apuração dos
legitimação social. Quanto mais é democrática a sociedade, me­
fatos à edição final do que será visto pelo público, é do interes­
nos basta aos jornalistas oferecer ao público apenas notícias de
se e da conta do cidadão. É preciso saber que o direito de ser
relevância em primeira mão: é necessário também comparti­
informado inclui o direito de saber como se é informado, o di­
lhar com o público os métodos e processos que envolvem a
reito de opinar sobre os métodos e de optar entre um veículo e
apuração e a edição das informações que são tornadas públicas.
Logo veremos por quê. outro com base nisso. Mais ainda: o cidadão tem preparo sufi­
A razão de ser do repórter, de um editor ou de um repór­ ciente para tomar partido em relação a dilemas éticos e também
ter fotográfico não é a empresa que lhe paga o salário, mas a técnicos do jornalismo.
existência do direito à informação, o qual pertence ao cidadão. O jornalismo não é uma atividade estranha ao dia-a-dia
Este é o destinatário do trabalho jornalístico e, no final da li­ democrático. Ao contrário, é tanto melhor quanto mais forte é
nha, quem paga a conta é ele: é ele quem compra o jornal ou a a democracia. O fazer jornalístico é uma técnica perfeitamente
revista e é ele que os anunciantes querem conquistar quando acessível a qualquer um que esteja familiarizado com a vida de­
investem altas somas em publicidade. Ora, quando a imprensa m ocrática, ou a qualquer um que tenha abraçado as causas
se recusa a discutir ética com esse cidadão, está se recusando a democráticas. Isso faz do jornalismo um ofício único — e de­
prestar contas a quem a sustenta. Não faz sentido. Sobretudo finitivamente enraizado nos valores cultivados pelo homem
porque a imprensa não é simplesmente um “serviço” de ofere­ comum. Apenas a título de comparação, a química, a física nu­
cer notícias ao público, não importando a que custos e por que clear ou a pesquisa genética não têm a mesma característica. O
meios. A imprensa é a materialização de uma relação de confian­ homem comum não tem o que dizer sobre o modo de se mistu­
ça e o que sedimenta a confiança é uma prática ética. rarem duas substâncias determinadas a uma pressão artificial­

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mente elevada, não sabe distinguir as etapas da fusão nuclear sabe que uma mentira é uma mentira, sabe que um plágio é um
nem é capaz de apontar com o dedo onde fica o trecho do fila­ plágio — e sabe também que mentir ou plagiar são práticas ab­
mento cromossômico responsável pela síndrome de Down. A jetas. A ética e a técnica do jornalismo estão na dimensão do
técnica dessas ciências ou tecnologias escapa ao não-especia­ homem comum — longe dele, elas se perdem.
lista. Só a sua ética, desde que vista à distância, em linhas ge­ Não que o jornalismo deva reproduzir os preconceitos tí­
rais, não escapa. O homem comum tem, sim, opiniões autori­ picos do senso comum. Não é disso que se trata. Como é sabido,
zadas quando o debate é ético, seja esse debate sobre química, cabe à imprensa o dever de formar, de esclarecer e de abrir pa­
física ou genética. Por exemplo: devem-se clonar seres huma­ ra o público o acesso não apenas à informação, mas do mesmo
nos? Um professor de português, ou um farmacêutico, ou um modo à educação e aos caminhos do conhecimento, guardando
modelo profissional, todos têm o que dizer a respeito. Nenhum também em relação ao senso comum uma distância crítica. O
deles será capaz de produzir um clone em laboratório, mas to­ jornalismo só faz sentido na democracia, na observância dos
dos possuem plena autoridade para opinar sobre a questão éti­ direitos humanos, numa sociedade que cultive a pluralidade c
ca, e tomam parte nas decisões que se produzem nesse plano. as diferenças de opinião. Na defesa desses temas, é bom frisar,
o jornalista nunca é isento, neutro e equânime, mas sempre é
A ética é da esfera do cidadão — e a técnica se restringe aos
um militante. O jornalista é democrata por definição — pelos
especialistas. Na democracia, porém, a técnica deve, ao menos
próprios pressupostos institucionais que alicerçam o ofício.
cm termos ideais, buscar uma subordinação às decisões éticas
Quem não é democrata não pode ser jornalista. O jornalismo a
socialmente compartilhadas.
favor de uma ditadura é algo tão despropositado quanto um
A ética, nessa perspectiva, é o campo em que se estabele­
sindicato a favor do pelourinho. O efeito político do bom jor­
ce o sentido comum — social — de um fazer específico; é o
nalismo é o fortalecimento da democracia: esta é a sua causa
campo em que se definem os benefícios comuns que devem ser
nobre. Por isso o jornalismo é, ou deve ser, ou deve-se esperar
promovidos por esse fazer específico e os limites além dos que seja, um fator de educação permanente do público — um
quais esse fazer não está autorizado a ir. A luz dessa compara­ fator de combate aos preconceitos, sejam eles quais forem. Di­
ção, se voltarmos ao jornalismo, verificaremos que, nele, a téc­ zer que o jornalismo planta suas raízes na ética do homem co­
nica e a ética não pertencem a territórios separados, mas estão mum, portanto, não significa torná-lo submisso aos preconcei­
no mesmo lugar. Praticamente não se distinguem. Por isso, o tos que caracterizam o senso comum. Significa apenas excluir
homem comum tem todas as credenciais para tomar parte num a possibilidade de que ele, jornalismo, possa buscar sua ética
debate sobre todos os aspectos do jornalismo, éticos ou técni­ num campo alheio ao do debate democrático. Ele se constrói
cos. Está certo ou errado um repórter mentir para um entrevis­ no diálogo crítico da cidadania — e não fora dela. Como a pró­
tado se dizendo eletricista para ver e ouvir aquilo que seria es­ pria democracia. E nesse sentido que a ética e a técnica do jor­
condido a um jornalista? É correto ou incorreto “melhorar” a nalismo estão na dimensão do homem comum. E também nes­
frase de um entrevistado, escrevendo entre aspas, como se fos­ se sentido que a ética e a técnica do jornalismo não se separam.
sem dele, expressões que ele nunca disse de fato, só para dar
mais “emoção” e impacto ao texto final? O homem comum Quando a técnica depende da ética, e vice-versa
tem o que dizer sobre tudo isso, e tem o direito de dizê-lo e de
conhecer as condutas daqueles encarregados de informá-lo. Ele Indo mais adiante, pode-se dizer que as exigências éticas

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do jornalismo aprimoram sua qualidade técnica. O professor de nessa comunicação. Trata-se de não mentir — e de não deixar
ética jornalística Carlos Soria, da Universidade de Navarra, na mentir. Tem razão Bernardo Kucinski, jornalista e professor da
Espanha, costuma sintetizar em suas conferências esse princí­ Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Pau­
pio com a seguinte fórmula: “Ética é igual a qualidade de in­ lo, ao dizer, em Jornalismo económico, que o jornalismo, en­
formação". Se a informação tem qualidade, ela necessariamen­ fim, “define-se por uma ética” .2 Ou seja, o jornalismo não se
te foi apurada e editada com ética. Se a ética foi atropelada, a define como algum tipo de arte (embora também lide com a es­
informação resultará tecnicamente débil. Essa noção não falha tética), nem como técnica (embora requeira habilidades técni­
nunca. E vem se tornando um consenso entre as muitas corren­ cas); define-se apenas por uma ética, uma ética baseada no
tes que pensam a respeito do jornalismo. O Manual de redação combate à mentira ou, noutra perspectiva, na busca da verdade
e estilo de O Globo afirma: “As exigências éticas não prejudi­ dos fatos — não da verdade metafísica, nem da verdade reli­
cam a prática do jornalismo; ao contrário, elevam a qualidade giosa, muito menos da verdade científica, mas simplesmente
da informação” .' da verdade dos fatos.
Não é difícil entender por quê. Dar voz aos dois lados de Pode parecer uma pretensão modesta, a do jornalismo.
uma mesma história, quando há dois lados que nela se enfren­ Mas na realidade ela é uma pretensão tão vasta que talvez seja
tam, é uma exigência ao mesmo tempo ética e técnica do jorna­ inalcançável. No fundo da ética jornalística dorme um proble­
lismo. Procurar a verdade dos fatos é um imperativo ético — e ma do tamanho do mundo. A verdade dos fatos existe? Existe
é, também, o objetivo de toda a técnica jornalística. Em nenhum um relato perfeitamente neutro e isento? A objetividade perfei­
aspecto haverá contradição entre técnica e ética jornalísticas. ta é possível? Não, não e não. A verdade dos fatos é sempre
Aliás, a competência e as habilidades técnicas são requisitos uma versão dos fatos. O relato, qualquer que seja ele, é um dis­
para a realização da ética. Tanto que os Cânones do Jornalis­ curso e, como tal, é inevitavelmente ideológico: mesmo quan­
mo, um código ético adotado nos anos 1920 pelo Comité de do sincera e declaradamente não opinativo, o relato jornalísti­
Ética da American Society of Newspaper Editors, trazem logo co é encadeado segundo valores que obrigatoriamente definem
no início uma descrição daquelas que devem ser as habilidades aquilo que se descreve. A objetividade perfeita nunca é mais
do jornalista para bem realizar sua profissão, ou seja, para bem que uma tentativa bem-intencionada. Dcnis Diderot disse cer­
realizar a ética de sua profissão: “A função primária dos jor­ ta vez; “Deve-se exigir de mim que eu procure a verdade. Não
nais é comunicar à raça humana o que seus membros fazem, que a encontre” . A frase serve de consolo a todo repórter e todo
sentem e pensam. O jornalismo, portanto, exige de seus prati­ editor no final de uma jornada. Mas só procurar a verdade não
cantes o mais amplo alcance de inteligência, de conhecimento basta. É preciso entregar ao público, pelo menos, alguma pista
e de experiência, assim como poderes naturais e treinados de a mais. Do jornalista, deve-se esperar que ele procure a verda­
observação e raciocínio” . O talento e as competências estão a de, mas não só; deve-se esperar que ele faça um progresso, por
serviço da qualidade da informação, que, no limite, é o sentido mínimo que seja.
da ética da profissão. Trata-se, afinal, de “comunicar à raça hu­ De todo modo, “a” verdade definitiva, ele jamais encon­
mana o que seus membros fazem, sentem e pensam” da manei­ trará. Ninguém que paga alguns trocados pela edição de um
ra mais objetiva, equilibrada e fiel possível. jornal diário está autorizado a pensar que encontrará em suas
Em poucas palavras, trata-se de não tapear a raça humana páginas toda a verdade, mas apenas as notícias da véspera,

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como já advertia em 1922 o jornalista americano Walter Lipp- Que efeitos produz no público a postura de auto-suficiência de
mann, em seu livro Public opinion2 E olhe que, se as notícias um órgão de imprensa que repele todo questionamento ético?
estiverem bem escritas, bem fotografadas, bem infografadas e O primeiro efeito é o da percepção de arrogância, que é cada
bem editadas, os trocados já terão valido muito. O público sabe vez menos temida e cada vez mais reprovada pelas pessoas co­
disso muito bem. muns. Um outro efeito é a impressão de que o veículo arrogan­
Se não pode oferecer “a” verdade, o que a imprensa pode te acredita (ou finge acreditar) que aquilo que publica é “a” ver­
então proporcionar? Ela pode oferecer confiabilidade. Por isso, dade: o que está publicado é o que é. É como se esse veículo
como já foi dito, a imprensa é a materialização de uma relação dissesse o seguinte: aí está, respeitável público, a verdade dos
de confiança, e não simplesmente um serviço de fornecimento fatos, e é só isso que lhe cabe — como essa “verdade” foi apu­
de produtos informativos para o consumo. O relato jornalístico rada, que critérios nós adotamos, bem, não é da sua conta. Ora,
precisa guardar um mínimo de confiabil idade — um mínimo quem age assim não é jornalista — talvez se imagine profeta.
sem o qual a autoridade da imprensa estará perdida. Há, então, Mas há outros efeitos perversos no comportamento dos que
um pacto entre os órgãos de imprensa e seus consumidores-ci­ se encastelam. A recusa à discussão ética significa recusa ao di­
dadãos segundo o qual esses órgãos são autorizados a contar o álogo — não apenas ao diálogo interno, mas ao diálogo com o
que se passa pelo planeta, no plano dos fatos e no plano das outro, com aquele que lhe é exterior —, e o não-diálogo fecha os
ideias, e segundo o qual aquilo que contam merece o crédito de jornalistas em si mesmos, de tal modo que sua atividade cotidi-
verdade aproximada. E provisória. A verdade jornalística é tão ana se converte na sua única referência ética. O que é um con­
durável quanto as páginas do jornal: hoje, trazem uma reporta­ tra-senso. Uma corporação, qualquer uma, que estabelece para si
gem que pode decidir a queda de um ministro de Estado; ama­ mesma os parâmetros entre o certo e o errado, que se basta nes­
nhã, vão servir de assoalho à gaiola de um curió. De novo, é o sa matéria, perde o juízo. Perde-o porque perde de vista o fato de
caso de dizer: o público sabe disso muito bem. que ela existe em relação ao outro, em relação àquele que lhe é
exterior, e toma a si mesma como a encarnação da virtude.
A verdade precária e a confiabilidade duradoura Num ambiente profissional em que prevalece a auto-sufi­
ciência ética, a hierarquia funcional se transforma em hierar­
A verdade da imprensa é por definição uma verdade pre­ quia da virtude. À medida que sobe na hierarquia, mais habili­
cária — sua força não virá jamais da veracidade total, de resto tado está o sujeito para dirimir as dúvidas entre o bem e o mal
impossível, mas de sua transparência em lidar com as limita­ até que, no seu topo, ele se enxergará acima do bem e do mal.
ções que lhe são congénitas. Se a verdade é precária, a credibi­ Para efeito de comparação, é mais ou menos como a Igreja ca­
lidade da imprensa pode ser duradoura. Ela só depende do vín­ tólica: padres prestam contas a bispos, que se reportam a arce­
culo de confiança. Daí procede a essencialidade da discussão bispos, numa pirâmide que culmina no papa, o qual é infalível
ética quando se trata de conferir qualidade ao jornalismo. A por definição e por dogma — pois, segundo a crença católica,
confiabilidade e a credibilidade advêm da atitude, em relação é o sucessor de Pedro na Terra, em linha direta com Deus. Se
aos fatos e ao público, daqueles encarregados de relatar os fa­ não fosse assim, a hierarquia da Igreja católica não faria senti­
tos a esse mesmo público — já não vêm da empáfia de quem do. Mas entre os jornalistas, que representam o direito à infor­
não admite ser desmentido jam ais, nem mesmo pelos fatos. mação tal como ele foi gerado pela modernidade laica, cuja

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existência não se apóia na fé, mas na razão e, mais ainda, na ra­ são, mas é exatamente assim, como ilusão, que ela é nefasta.
zão lastreada nos direitos democráticos, a hierarquia funcional Mata a qualidade de informação. Aí, o jornalismo, em lugar de
não deve se elevar acima da sociedade, e sim, ao contrário, um método ético para buscar a verdade dos fatos, sempre frá­
deve estar a serviço dela, subordinada a ela. Se não for assim, gil, torna-se fonte da verdade. Toma-se impostura.
o jornalismo é que não faz sentido. Por isso, a “infalibilidade Por isso, a pretensão da auto-suficiência ética é a negação
papal” que às vezes parece estar prestes a reeditar-se no interi­ do jornalismo. E é também a negação da ética, pois esta, afinal,
or de algumas redações é um sintoma clássico de falta de juí­ funda-se no reconhecimento do outro como parte solidária e
zo. Quando o jornalismo imagina bastar-se a si mesmo como não como estranho a ser calado ou eliminado — a ética é a bus­
referência ética, o efeito é que o chefe tende a encarnar o mo­ ca e o cultivo de valores capazes de orientar a conduta de cada
delo moral absoluto para o subordinado; o chefe do chefe é o um para tornar melhor e mais profícua a convivência entre to­
supra-sumo da virtude até que, no alto da hierarquia, o rei dos dos. A ética não tem um dono, nem pode ter. Quem se julga
reis, ou melhor, o diretor dos diretores nada vê acima de suas dono da auto-suficiência ética julga-se dono da ética e age co­
sobrancelhas. Nem mesmo Deus, já que Deus não há para o mo se prescindisse da convivência. É um louco, um pária ou
jornalismo. O papa católico, é bom lembrar, ajoelha-se diante um tirano. O jornalismo que não dialoga sobre seus próprios
daquele que está mais alto. Deus. Já o diretor dos diretores, ou métodos e procedimentos não é nem ético nem informativo —
o patrão dos patrões, este não se dobra a mais ninguém quan­ e aqui, outra vez, a ética e a técnica se esclarecem reciproca-
do acometido da síndrome da auto-suficiência ética. Eis então mente. Assim como o bom texto numa revista depende da ins­
que o chefe dos chefes se olha no espelho quando precisa se piração que busca na literatura e em outros veículos jornalísti­
perguntar acerca de seus limites. Ele é o juiz de si. Ele pode fa­ cos, a ética de uma profissão como esta só existe com base na
zer tudo o que julgar correto, o que o leva a julgar correto tudo ética adotada pela convivência entre os homens comuns na so­
quanto possa fazer. ciedade. Se uma revista imagina ser ela mesma o modelo de
Se a corporação perde o juízo, seus dirigentes perdem o seu próprio texto, cairá fatalmente numa autofagia destrutiva,
senso. É claro que nenhum jornalista e nenhum patrão de jo r­ copiando-se a si mesma até o paroxismo. Do mesmo modo, o
nalistas podem tudo, de fato. Há sempre a possibilidade de que jornalismo como um ambiente profissional só pode desenvol­
a sociedade os desautorizará, de que outros jornalistas os ques­ ver sua ética na relação com os outros, com outros campos
tionarão. O ponto, porém, não é esse. O ponto é que, entroni­ profissionais e sociais, com outras pessoas, outros ofícios e, fi­
zado na cultura da auto-suficiência ética, alguém há de experi­ nalmente, com outras form as de busca de verdades. Se o jo r­
mentar a ilusão de que pode encarar os dilemas entre o certo e nalismo fechado em si pôde um dia ser visto, com alguma boa
o errado sem cerimónia, sem humildade e sem a lembrança de vontade, como uma reação legítima e explicável, hoje ele é
que seu papel é apenas servir o cidadão. Nesse instante, o jo r­ apenas um traço cultural a ser superado.
nalista ou o patrão dos jornalistas se sente acima do bem e do
mal. E ao julgar-se mais, ao imaginar-se acima, ao pensar que
não precisa prestar contas de seus métodos e de seus valores a
mais ninguém, estará corroendo a função social que um dia
fundou sua profissão. Sua auto-suficiência no fundo é uma ilu­

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abre mão de sua independência, está atentando contra um prin­
cípio voluntariamente adotado por todos — está cometendo
um deslize, traindo a expectativa da sociedade e a confiança de
seus pares. Ninguém que abre mão de sua independência pode
3 fazê-lo pública e explicitamente; precisa agir de forma indigna,
precisa acobertar o desvio, escondê-lo ou, no mínimo, revesti-
INDEPENDÊNCIA E
lo de justificativas nobres.
CONFLITO DE INTERESSES Também entre os jornalistas a independência é um valor
enraizado. O Código de Ética da Federação Nacional dos Jor­
nalistas (Fenaj) traz como primeiro artigo as seguintes pala­
vras: “O acesso â informação pública é um direito inerente à
Embora o telejornalismo brasileiro seja pródigo em distor­
condição de vida em sociedade, que não pode ser impedido por
ções para fins eleitorais e embora a cultura das redações tenda
nenhum tipo de interesse” . E isso, mais que uma regra escrita
a considerar o debate ético público uma perda de tempo, o como valor mais alto, integra a cultura da categoria. A indepen­
princípio da independência editorial é um valor publicamente dência faz parte do brio profissional. Assim, tanto por pressão
assumido pelas maiores empresas de comunicação. “Manter da cultura dos jornalistas como por estratégia das próprias em ­
sua independência” constitui o primeiro dos dez preceitos do presas, as maiores redações brasileiras desfrutam de autonomia
Código de Ética da Associação Nacional de Jornais ( a n j ). O para tomar decisões editoriais sem prestar contas à área respon­
mesmo princípio aparece também como o primeiro dos oito ar­ sável pela venda de espaço publicitário. Os jornalistas têm, de
tigos do Código de Ética da Associação Nacional de Editores fato, boa margem de liberdade para investigar, apurar e editar
de Revistas ( a n e r ): “Manter a independência editorial, traba­ as notícias. Ora, perguntará o leitor, então quer dizer que os
lhando exclusivamente para o leitor” . Independência editorial, jornalistas podem publicar uma reportagem que prejudique um
portanto, significa manter a autonomia para apurar, investigar, grande anunciante da casa? Embora o senso comum sempre
editar e difundir toda informação que seja de interesse público, duvide dessa possibilidade — e é prudente duvidar — , a res­
o interesse do cidadão, e não permitir que nenhum outro inte­ posta é afirmativa: é claro que podem. Nas melhores revistas e
resse prejudique essa missão. nos melhores jornais do Brasil e do exterior, é assim que fun­
Sem dúvida, há enormes distâncias entre o que prometem ciona. Basta que a história a ser publicada atenda aos requisi­
os códigos e a prática tortuosa de boa parte das revistas e jo r­ tos da verdade dos fatos e da relevância — como, aliás, todas
nais. Uns e outros não trabalham sempre “exclusivamente para deveriam atender. O jornalismo tem meios assegurados para se
o leitor", mas levam em conta interesses de anunciantes, gover­ fazer prevalecer sobre os melindres comerciais e para dar a no­
nantes e outros agentes sociais na hora de informar o público. tícia que deve ser dada. Os exemplos são muitos.
Acabam desinformando. Isso, contudo, não elimina o fato de É verdade que também há exemplos, igualmente numero­
que a independência unifica as empresas jornalísticas brasilei­ sos, de empresas e de jornalistas que se curvam aos queixumes
ras como um valor a ser buscado, nem que seja como um ideal. de anunciantes e se antecipam na servidão aos governantes,
O que tem uma enorme importância. Quando algum veículo mas a regra geral é o princípio da autonomia das redações. Tra-

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ta-se de um dogma da imprensa liberal, ou, mais precisamente, vre dos governantes, onde não há igualdade de condições nas
um dogma próprio do liberalismo. Ele não constitui por si só uma disputas eleitorais, onde o poder não muda de mãos, prevalece
garantia de retidão e qualidade na imprensa, mas corresponde o autoritarismo sem muitas mediações. Quando essas institui­
ao atendimento de uma exigência clássica da ordem democrá­ ções têm mais solidez e tradição, ninguém que esteja no negó­
tica: a de que toda informação e todo conhecimento estejam, cio de informar o público pode passar sem prestar contas à cida­
em princípio, ao alcance de todos. Não fosse a necessidade de dania. E é para isso que existe a independência editorial; para
atender a essa exigência, o jornalismo não teria sido forjado atender à cidadania. Daí a sua extrema relevância na ética des­
pelo século das luzes como um instrumento da cidadania. Nes­ se negócio.
sa perspectiva, a independência editorial é o que materializa, Duas ordens distintas de forças podem golpear a indepen­
no cotidiano, o instituto da liberdade de imprensa. Isto é: a de­ dência editorial. A primeira é externa; origina-se diretamente
mocracia garante a liberdade de imprensa, e a independência do poder político e tem como alvo a liberdade de imprensa. Ela
editorial é o requisito prático para que a liberdade de imprensa vitima o direito à informação por meio da censura e da repres­
ganhe corpo e vida própria. A independência editorial, portan­ são a jornalistas e a órgãos de imprensa. Dessa força a ética jor­
to, tornou-se pressuposto obrigatório para que, em nome do ci­ nalística não se ocupa, uma vez que ela é exterior à profissão.
dadão, se investiguem, se escrevam e se publiquem as notícias. Tudo o que podem fazer os jornalistas a esse respeito é repudiar
Quem entra no ramo de informar o público tem que oferecer toda forma de censura e toda forma de constrangimento à liber­
informação independente, isto é, informação voltada exclusi­ dade de imprensa. A segunda força reside no interior mesmo da
vamente para atender o direito à informação. De sorte que, imprensa, e sua primeira manifestação é o conflito de interes­
embora a imprensa seja um negócio comercial e a notícia seja ses. Desta, a ética jornalística se ocupa em detalhes. Quando
mercadoria, e embora jornais, revistas, emissoras de televisão uma empresa jornalística se desvia do preceito tão bem sinteti­
e rádio e os sites jornalísticos na internet sejam rotineiramente zado pelo Código de Ética da a n e r , o de trabalhar “exclusiva­
transformados em instrumentos do poder económico ou do po­ mente para o leitor” , está incorrendo em conflito de interesses,
der político, a expectativa da sociedade continua a exigir, ain­ pois pode estar tentando trabalhar para outros interesses que
da que tacitamente, a independência editorial. não os do leitor, o que quer dizer; interesses contraditórios com
Esta, entretanto, não pode ser compreendida como uma os do leitor. Nessa situação, a independência editorial estará
conquista definitiva. Ela é mais forte ou mais fraca, de um mo­ vulnerável. Do mesmo modo, quando um jornalista deixa que
do geral, à medida que as instituições democráticas são mais o seu valor mais alto, que é o de servir ao direito à informação
fortes ou mais fracas. E a resultante não da vontade dos jorna­ e, portanto, servir ao cidadão, seja enfraquecido por outro tipo
listas ou do voluntarismo dos donos dos veículos jornalísticos de objetivo — como obter para si vantagens junto a um grupo
(embora ambos influam), mas da realidade social. Mais exata­ económico, ou favorecer uma legenda política, ou proteger
mente, a independência editorial resulta da tensão entre o grau uma autoridade pública —, está incorrendo em conflito de in­
de cultura democrática, de um lado, e a lógica do capital, de teresses. A independência editorial é, então, minada pela con­
outro; ou entre a justiça social e as garantias individuais, de um duta do indivíduo.
lado, e qualquer forma de poder despótico, de outro. Numa so­ O conflito de interesses, tanto aquele vivido pelas empre­
ciedade em que não prevalecem as regras básicas de escolha li­ sas como o individual, ameaça a independência editorial e a

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qualidade da informação que os órgãos de imprensa transmi­ zões do anunciante e o direito à informação representado pelos
tem ao público. Corrói por dentro a liberdade de imprensa. Por jornalistas. Há nisso uma vantagem de ordem ética, que é evi­
isso, combatê-lo não é simplesmente buscar um aprimoramen- tar a contaminação do relato jornalístico por interesses estra­
to da prática profissional, mas é defender diretamente o pleno nhos àquele de quem é titular do direito à informação, mas há
direito à informação. também uma vantagem operacional: a vida fica muito mais fá­
Boa parte das soluções conhecidas para enfrentar o confli­ cil. E é pela vantagem operacional que se pode entender a lógi­
to de interesses tem inspiração liberal, não apenas no sentido ca da autonomia editorial.
político mas também no sentido económico, isto é, são soluções Se uma companhia leva a sério sua função social de infor­
que foram consagradas como ideais do liberalismo político e se­ mar, deve pôr acima de tudo os interesses do cidadão. Menos
dimentadas como práticas éticas segundo mecanismos próprios por amor às aspirações iluministas e mais porque o cidadão,
do mercado. Essa dualidade não pode ser desprezada. É verda­ afinal, é o consumidor da informação, é para ele que trabalham
de que a independência jornalística se criou como um princípio os jornalistas. Ao menos teoricamente, não haveria contradição
da cidadania, como conquista de ordem pública, mas o modo entre o lucro, que é o objetivo de toda empresa, e a satisfação
como ela se viabilizou de forma hegemónica no interior das em­ plena do cliente, que é o cidadão. Ao mesmo tempo, porém, se
presas privadas passa por critérios de mercado. Ou seja: embo­ a mesma companhia tem anunciantes como clientes, deve tam­
ra o direito à informação seja uma garantia legal mantida pelos bém atendê-los com dedicação e presteza. O problema do confli­
Estados democráticos, uma garantia cujo lugar é a esfera públi­ to de interesses na imprensa comercial começa a existir porque
ca, os procedimentos práticos do jornalismo moderno foram os interesses dos dois clientes (leitores, de um lado, e anuncian­
também conformados nas relações capitalistas de produção e tes, de outro) frequentemente são conflitantes. Uma empresa pri­
de consumo. Por isso, além de conhecer os métodos consagra­ vada que explore o negócio do jornalismo traz em si a marca
dos pelo mercado para enfrentar toda sorte de conflitos de in­ da dualidade — que é potencialmente um fator de permanente
teresse, é essencial explorar os limites dos mecanismos do conflito interno.
mercado para dirimi-los. Pense-se num jornal: às vezes, a missão de dizer a verda­
de ao leitor significa pôr em apuros um anunciante. E aí? Co­
mo ordenar a convivência entre a missão de informar e a dedi­
O MÉTODO “ IGREJA-ESTADO” cação ao cliente-anunciante? Como abrigar os dois lados na
mesma empresa? A melhor solução inventada até hoje é uma
A viabilização da autonomia editorial requer medidas que solução elementar: pondo cada lado para o seu lado. Outra se­
vão além das declarações de princípios. Retórica não basta. ria retirar inteiramente o jornalismo do universo dos negócios
Nas empresas comerciais que têm como negócio o jornalismo, capitalistas, proibindo a existência de empresas privadas dedi­
é preciso adotar um método específico de administração pelo cadas ao negócio de informar o cidadão, idéia que nunca deu
qual as redações sejam autorizadas oficialmente a decidir os bons resultados para o público. Ao menos até hoje. Portanto, na
assuntos editoriais sem ter de consultar os setores comerciais empresa jornalística, a solução de pôr cada lado para o seu lado
da companhia, ou sem ter de passar pelo seu crivo. Assim, bus­ ainda é a melhor. Cada um que cuide da sua finalidade. Trata-
ca-se construir uma rotina que equacione os atritos entre as ra­ se de repartir a empresa em duas “metades” : uma editorial e

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outra comercial. As duas metades compõem uma estrutura ad­ cional para resguardar tanto a qualidade da informação quanto
ministrativa bipartida; são dois lados autónomos, separados en­ a qualidade das relações de negócio com os que compram es­
tre si, de modo que o repórter não precisa conversar com quem paços publicitários ou os financiadores. A fórmula evita, por
vende páginas de publicidade. Nem deve. E vice-versa. A vida exemplo, que um anunciante, ao comprar uma página na revis­
de um e a de outro caminham paralelamente. ta, alimente a expectativa de que as reportagens reservarão a
Com pequenas variações, as companhias de comunicação ele um tratamento diferenciado. Assim, contribui para limpar
que desfrutam de mais credibilidade funcionam com base nes­ as expcctativas. Negócios são negócios — e jornalismo fica à
se método: traçam uma linha divisória entre as decisões sobre parte. Não que o mundo fique cor-de-rosa e que todos os agen­
os assuntos editoriais e aquelas que se referem aos anúncios e tes do processo ganhem diploma de santinhos, mas operacio­
a todo o lado mais propriamente empresarial, que inclui a ges­ nalmente — aqui está o ponto — a vida fica mais clara e mui­
tão financeira, as ações de marketing voltadas para a circulação to mais civilizada.
e a publicidade, a direção de assuntos corporativos etc. Jorna­ Apenas para enfatizar a vantagem operacional do método,
lismo de um lado, comércio de outro. Não é um jogo de cena talvez seja o caso de detalhar um pouco mais o que significa a
nem uma simples medida de impacto para efeitos de marketing idéia de que o lado jornalístico e o lado de negócios numa em­
(embora haja efeitos de marketing). É apenas um método espe­ presa de comunicação têm clientes distintos. O cliente do jor­
cífico para a administração dos negócios voltados para bem in­ nalismo é o homem comum, cujos direitos o autorizam a rece­
formar o público. ber informações objetivas, apuradas e editadas tendo em vista
o seu interesse de cidadão ou de consumidor — e nenhum ou­
Por que separar “ igreja” de “estado” tro. Já o cliente das equipes que vendem anúncio é outro, e seus
interesses também são outros. Enquanto o leitor paga para sa­
No Brasil, há uma expressão emprestada dos norte-ameri­ ber a verdade dos fatos, o anunciante paga para que o leitor
canos que fez escola para designar esse método: “igreja-esta- acredite naquilo que a ele, anunciante, convém. Claro: as pre­
do” . Ela chegou até nós principalmente pela experiência de su­ tensões do leitor são antagónicas às dos anunciantes. Se tives­
cesso da revista semanal norte-americana Time. Após a criação sem que conciliar uns com outros, o tempo todo, os jornalistas
da revista, nos anos 1920, seu dono e fundador, Henry Luce, e praticamente todos os funcionários da área comercial se ve­
separou a redação de todo o resto. Temas jornalísticos são de­ riam na hesitação diuturna entre trair uns e trair outros. Seriam
cididos à parte, sem que se levem em conta os argumentos das traidores contumazes e cotidianos, pois não há como satisfazer
equipes que vendem anúncios ou dos que captam financiamen­ aos dois simultaneamente.
tos em bancos. O jornalismo (“igreja”) isolou-se do negócio (“es­ Um exemplo banal: o anunciante quer que todos pensem
tado”). Antes de tudo, é preciso ter claro que o modelo não faz que o seu cigarro é o que mais dá charme ao fumante, mas o
opções valorativas entre um lado e outro; ele não traz em si a leitor tem o direito de saber que fumar dá câncer. Dos anos
pressuposição de que a “igreja” seja mais nobre que o “esta­ 1980 para cá, as pesquisas que detectam os males causados
do” , ou de que o “estado” seja mais impuro que a “igreja” . A pelo tabaco vêm conquistando grande destaque na imprensa, o
separação não tem o sentido de privilegiar um em detrimento que levou parlamentares e governos de vários países, entre eles
do outro. Ela é apenas um método de trabalho, uma medida ra­ o Brasil, a propor leis cerceando a propaganda do cigarro. Com

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isso, as empresas podem ter perdido a simpatia de alguns anun­ informar o público, e que a área comercial deixe claro aos anun­
ciantes, mas ganharam credibilidade. Uns poucos veículos pre­ ciantes e financiadores, além de outros parceiros comerciais, que
feriram navegar contra a corrente. Foi o que fez uma revista es­ não há a possibilidade formal de que eles interfiram indevida­
panhola sobre curiosidades científicas, voltada para o público mente nos conteúdos editoriais. As regras de relacionamento com
masculino, que abdicou durante um bom período de publicar os clientes adquirem mais eficácia: o mesmo vale para todos.
reportagens sobre tabagismo para não melindrar seus clientes Não se pense, porém, que a administração dos impasses
comerciais. Manteve-os mais felizes, mas perdeu relevância seja pacífica e que o direito à informação esteja inteiramente
aos olhos do público. resguardado. Registre-se apenas que a “filosofia” é essa. Enten­
Outro exemplo: um anunciante pretende conquistar a una­ dê-la em sua coerência própria é fundamental — inclusive para
nimidade dos consumidores brasileiros para as vantagens pro­ criticá-la. Por isso a tentativa, aqui, é descrevê-la segundo a sua
metidas pelo automóvel que fabrica, mas o leitor de uma revis­ lógica interna. Ela começa pela certeza de que quem sustenta
ta especializada ou de jornal tem o direito de saber que aquele qualquer empresa dedicada ao jornalismo não é a publicidade,
modelo acaba de ser aposentado na Europa, onde já foi substi­ mas a credibilidade pública. Um engano bastante comum entre
tuído por outro, mais moderno. A maior parte da imprensa tem leitores, telespectadores, ouvintes, e mesmo entre jornalistas e
preferido dar a informação, mesmo sob protesto do anuncian­ profissionais de marketing e de publicidade, é supor que a pu­
te. São duas situações escolhidas de propósito, para demonstrar blicidade garante o sustento dos veículos de imprensa. O enga­
que os impasses entre o leitor, o telespectador, o internauta e o no é comum porque se apóia em números verdadeiros, o que o
ouvinte, de um lado, e o anunciante, de outro, são muito mais leva a parecer uma verdade objetiva. Quando se examinam as
corriqueiros do que pode parecer para o grande público. Só com contas de uma revista, por exemplo, verifica-se que 70% ou
independência editorial é que se pode equacioná-los, pois sem mais de seu faturamento pode vir da publicidade (o restante vi­
a independência esses impasses nem sequer se poriam como ria das vendas em banca e das assinaturas). “O nosso negócio é
impasses (estariam previamente resolvidos contra o direito à 70% publicidade” , dirá o desavisado. “Portanto, a nossa prio­
informação). O que seria do jornalismo se a cada situação des­ ridade é satisfazer o anunciante.” Poucos equívocos são tão de­
se tipo fosse necessária uma reunião entre jornalistas e funcio­ sastrosos na indústria editorial. Não é incomum que anuncian­
nários da área comercial para decidir o que fazer? Ele seria uma tes inibam um determinado tema (como acontecia com a revista
incessante queda-de-braço, e a ninguém sobraria tempo para, espanhola) ou que sugiram outros com alto índice de sucesso.
de um lado, fazer entrevistas, buscar informações exclusivas, Há casos em que o anunciante é quem cria uma revista. Em
pesquisar, investigar, escrever e, de outro, vender espaços pu­ 1995, um único anunciante, a Fiat, patrocinou sozinho no Bra­
blicitários. Seria apenas contemporização, conversa mole, não sil uma revista sobre automóveis, a Zero Kilômetro, que era
poderia sonhar com a qualidade. A administração pelo método vendida em bancas e tinha assinantes. O título nasceu e morreu
“igreja-estado” é a única forma de preservar a independência, em alta velocidade, mas a idéia de que os anúncios são a sus­
ao mesmo tempo que pacifica as expectativas dos anunciantes tentação de um órgão de imprensa está longe de falecer.
e de outros parceiros comerciais. A separação entre “igreja” e Na base do método “igreja-estado” está a convicção de
“estado", ou melhor, a “filosofia” que inspira essa separação que o único alicerce de uma revista ou qualquer outro veículo
permite que os jornalistas se dediquem exclusivamente a bem jornalístico é a sua credibilidade. Uma revista ou um jornal tem

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leitores porque tem credibilidade. A credibilidade é produzida que é peça publicitária existe exatamente para tomar imediata a
com qualidade editorial, que pressupõe conhecer o leitor, aten­ percepção de que os interesses comerciais não invadem a infor­
der suas necessidades e antecipar-se a elas, fazer valer seus di­ mação. Quando a atração não é um documentário ou um noticiá­
reitos, defendê-lo, informá-lo com exclusividade e em primei­ rio, mas um show de calouros ou uma obra de ficção, vale tudo
ra mão, escrever numa linguagem que ele entenda e goste, com em matéria de publicidade. Animadores de auditório anunciam
a qual ele aprenda e se divirta. Daí nasce a relação de confian­ tônicos capilares entre uma cantora e um engolidor de facas. A
ça. O público não vai atrás do anunciante, mas o contrário. Este trama das novelas admite o merchandising, isto é, a aparição de
é que vai atrás do público, beneficiando-se legitimamente da uma mercadoria no meio da cena para anunciá-la disfarçada­
relação de confiança que vincula o cidadão-consumidor a tudo mente ao telespectador: enquanto o mocinho e a mocinha sus­
aquilo que o jornal ou a revista publicam. Portanto, na lógica surram juras de amor, ela segura uma lata de refrigerante, fa­
que inspira o método “igreja-estado” , para atrair e manter anun­ zendo, claro, uma propaganda do produto — que por sua vez
ciantes é preciso cativar, conquistar e manter o público. Não o paga o privilégio de aparecer ali entre os dedos da cinderela.
inverso. Acusam de ingénuos os que acreditam nisso. Ingénuos, No jornalismo, porém, isso vai se tornando intolerável. E
na verdade, são os que não acreditam. Há emissoras de televi­ vai se tornando intolerável graças ao amadurecimento do sen­
são que obtêm sucesso omitindo informações ao público. O seu so crítico do próprio público. Antes, o telejomal podia se chamar
êxito é um êxito comercial no campo das diversões públicas — Repórter Esso que não tinha a sua credibilidade arranhada.
o negócio dessas emissoras não é prioritariamente o jornalis­ Hoje, se o Jornal Nacional mudasse de nome para Informativo
mo. Mas não há uma única publicação jornalística bem-sucedi­ Bom Bril, seria complicado. É o público quem dá o parâmetro
da, no longo prazo, que tenha descuidado por muito tempo da do grau necessário de independência. É ele quem rejeita o mer­
confiança do público e se dedicado a bajular anunciantes. chandising em jornalismo. Não se pode “falar bem” de um re­
No rádio e na televisão de canal aberto, cujos conteúdos frigerante no texto de uma reportagem com uma finalidade pro-
editoriais são de acesso gratuito, as coisas são um pouco dife­ mocional, ou melhor, não se pode agir assim sem que se corra
rentes. Para ouvir o rádio ou ver a tv aberta, o ouvinte ou o te­ o risco de que o público perceba a manobra e sem que se po­
lespectador não paga nada. Ele não é, portanto, um cliente di­ nha em xeque a imagem de independência e, portanto, a confia-
reto. Rádios e televisões de canal aberto, assim como boa parte bilidade. Disso depende o pacto de confiança sobre o qual se
dos sites jornalísticos, têm uma única fonte de receita: o anun­ ergue o jornalismo, um pacto cujas regras implícitas exigem
ciante. Mas até mesmo aí o jornalismo só se impõe pela credi­ independência editorial. Tais regras não decorrem da opinião
bilidade — é preciso ostentar a imagem de independência, pois de um ou outro telespectador ou ouvinte, individualmente con­
a simples expectativa de independência vai se tornando inego­ siderados, mas de uma mentalidade socialmente compartilha­
ciável para a opinião pública. Por isso, nem que seja como da, que dá os parâmetros do jornalismo.
inspiração distante, um mínimo de “igreja-estado” sempre tem
lugar nas emissoras (mesmo nelas, que não têm dois clientes Pressões contra a independência editorial
distintos, mas um só, o anunciante), e esse mínimo busca sem­
pre se expressar na edição final dos programas jornalísticos de Essa mentalidade é um fato. A simples existência do mo­
rádio e t v . A clara separação entre o que é matéria editorial e o delo “igreja-estado” o comprova — pois o modelo nada mais

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faz do que procurar transpor para dentro da empresa valores
res editoriais cabe zelar, antes de tudo, pela primazia desse in­
socialmente prestigiados fora dela. Mas a transposição não é
teresse sobre todos os outros. E comum encontrar repórteres
direta, nem mecânica. Não faz parte do modelo a pretensão de
em início de carreira que se dizem orgulhosos por “vestir a ca­
lazer cessar as tentativas dos anunciantes de controlar o con­ misa da empresa” . A declaração é deslocada e suicida. Um jor­
teúdo editorial. Ao contrário, sabe-se que elas se rearticulam nalista deve vestir a camisa de sua profissão, da ética de sua
em níveis superiores e ainda procuram subordinar o jornalismo profissão. Só ela. Se o fizer, estará correspondendo àquilo que
à sua estratégia de comunicação. Em 1997, um caso rumoroso a empresa espera dele. Intelizmente, porém, ainda é comum
foi tema de um artigo analítico na revista Columbia Journalism encontrar jornalistas com poder na imprensa que incentivam
Review.' Conforme narra o texto, a Chrysler passou a exigir suas equipes a “ajudarem a publicidade a faturar” . Agindo as­
das revistas que veiculavam seus anúncios a leitura antecipada sim, estão deformando seus profissionais, distanciando-os da­
das reportagens. O argumento básico era que ela não pretendia quilo que é o fundamento primeiro da carreira que escolheram.
ter a sua imagem vinculada a temas polêmicos e, para evitar a Estão também contribuindo para viciar a informação que ofe­
vinculação, seria prudente que as reportagens lhe fossem sub­ recem ao público e, no limite, enfraquecendo por dentro o pa­
metidas com antecedência. A investida do anunciante suscitou trimónio da credibilidade. O que “ajuda” a publicidade a atin­
a reação dos editores de revistas. Em nome da liberdade de im­ gir suas metas é o bom jornalismo praticado pelo veículo, e é
prensa, a American Society of Magazine Editors ( a sm e ), que só dessa forma — construindo a credibilidade — que o jorna­
representa 370 editoras e oitocentas revistas nos Estados Uni­ lismo pode “ajudar” a publicidade.
dos, rechaçou-a. Os atritos, como se vê, não acabaram, nem nos Portanto, o modelo “igreja-estado” não suprime por ante­
Estados Unidos nem em qualquer outra parte do mundo dito cipação os conflitos de interesses. Apenas faz com que eles, quan­
democrático. O que só torna mais premente o zelo pela linha do aparecem, passem longe de repórteres e editores e sejam
que separa “igreja” de “estado” . atraídos pela cúpula. Os conflitos devem ser enfrentados pelo
Além de ser uma solução operacional para as empresas, a comando das redações — nunca nos níveis inferiores. O papel
linha divisória tem também um componente que funciona co­ de quem comanda uma equipe jornalística já estaria muito bem
mo garantia para o cidadão. Graças a ela, repórteres e editores exercido se se limitasse a impedir que pretensões estranhas ao
não precisam prestar contas a ninguém além de suas chefias direito à informação penetrassem na confecção do discurso jor­
jornalísticas. Quanto aos diretores de redação ou diretores edi­ nalístico. Se a equipe tem talento (matéria-prima essencial),
toriais (que coordenam grupos de diretores de redação), res­ tem boa formação ética e técnica, se ela conhece seu consumi­
pondem diretamente a presidentes ou vice-presidentes das com­ dor final e sabe dialogar com ele com presteza e brilho, cabe ao
panhias. Não existe, no modelo “igreja-estado” , a possibilidade chefe deixar que ela trabalhe com bons estímulos e com as me­
de que um gerente de publicidade avalie a performance de um tas de melhor servir ao público. A razão de ser de quem coman­
repórter, ou de que ele diga quem é que deve ser entrevistado. da o fazer jornalístico pode se resumir ao dever de chamar para
Assim como não há a possibilidade de que editores chefiem os si as vicissitudes e os conflitos que obrigatoriamente aparecem
profissionais da publicidade. Às equipes jornalísticas cabe ter no dia-a-dia com aqueles que representam outras pretensões
em mente apenas o interesse do leitor — e nenhum outro. É estranhas ao cidadão, que é o leitor, o ouvinte, o telespectador,
para isso que elas são pagas. Aos diretores de redação e direto­ o internauta. Cumpre a esse profissional proteger o cidadão e,

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agindo assim, ensinar a seus colegas de empresa e aos demais é empresarial por definição: supõe jornalistas altivos, mas não
interessados que o procurem o valor da credibilidade e o lugar tem nada de antilucro ou de anticapitalista; ao contrário, é uma
em que ela deve estar. Do ponto de vista do jornalista, a credibi­ garantia para a empresa que se pretenda próspera e duradoura
lidade não atrapalha o lucro, mas ajuda-o. Quando a sua concep­ em uma democracia.
ção de credibilidade se chocar com os imperativos empresariais Com muitas vantagens. Quando a “igreja” é forte e autó­
movidos por objetivos imediatistas, cumpre a ele defender a noma, o “estado” também o será. Se a “igreja” é de fato indepen­
dignidade de sua profissão. As vezes, terá de defendê-la com dente, os responsáveis pelo faturamento publicitário deixam de
o próprio emprego. Nesse caso, o jornalista estará agindo se­ ser chamados pelos anunciantes a responder pelos conteúdos
gundo a sua coerência individual, mas essa coerência individual editoriais. Outro ganho do “estado” é que a confiança do públi­
o empurrará para fora da coerência da empresa. Estará, então, co, conquistada pela independência editorial, converte-se num
diante de um limite do método “igreja-estado” , que é o limite convincente argumento de vendas de anúncios. E isso funcio­
da própria empresa. O método não existe, é bom saber, para de­ na, dá certo — como a Time e muitas outras revistas e empresas
fender o jornalismo contra tudo e contra todos, mas para viabi­ no mundo todo estão cansadas de demonstrar. Ao mesmo tem­
lizar a vida empresarial compatibilizando-a com a ética da im­ po, e aí temos um aspecto ético decisivo, as equipes jornalísti­
prensa. As vezes, a compatibilidade se rompe. cas deixam de ter a desculpa de invocar os interesses comerciais
Então o jornalista é um adversário interno dos funcionários da companhia em que trabalham para justificar reportagens fra­
da área comercial? Não. De acordo com a lógica do método cas e tendenciosas. A autonomia das redações aumenta a respon­
“igreja-estado” , ele deve ser um interlocutor. O significado das sabilidade das redações. Poder fazer um jornalismo indepen­
palavras Igreja e Estado, que dão nome ao modelo, ajuda a en­ dente significa, nessa fórmula, a obrigação redobrada de fazer
tender a relação: na modernidade, o Estado se laiciza e a Igre­ bem feito. Não há mais escusas para a tapeação.
ja se desobriga da gestão mundana da coisa pública. A lem­ Uma outra consequência benéfica é que, com veículos in­
brança das idéias de Montesquieu sobre o equilíbrio entre os dependentes, legitimados pelo público e respeitados pelo mer­
poderes da República também vem a calhar: nenhum deve man­ cado anunciante, uma empresa de comunicação caminha ela mes­
dar mais que o outro, mas todos se completam e se limitam re- ma para agir com independência institucional na esfera pública.
ciprocamente. Nas empresas de comunicação, a relação entre Suas alianças financeiras tendem a ser mais mediadas pelo va­
os representantes da “igreja” e os do “estado” deve ser mais de lor da independência editorial, o que potencializa seu património
diálogo que de submissão. Ao jornalista, nesse equilíbrio, cabe de credibilidade. Naturalmente, ela procurará fugir das situações
o papel de atuar como o guardião do património maior que é a em que um número reduzido de anunciantes seja responsável
credibilidade. Para isso o patrão lhe paga o salário. A sua pro­ pela maior parte da receita, o que a deixaria vulnerável. Anun­
fissão, mais do que uma atividade do mercado, é a função so­ ciantes de muito peso acabam falando como sócios, adquirem
cial que garante o atendimento de um direito fundamental; é condições de chantagear um órgão de imprensa — o que, não
uma profissão cujo alcance vai além da empresa e do próprio se duvide, acontece mesmo, principalmente com pequenos jor­
mercado. Isso não lhe dá a prerrogativa da arrogância — mas nais e emissoras de rádio cujas receitas publicitárias vêm em
também não lhe autoriza a tibieza. Se ele for dócil demais, o peso dos governos municipal, estadual ou federal. (Os gover­
modelo “igreja-estado” se desequilibra. O modelo, a propósito, nos pressionam a imprensa não apenas como poder estatal, va­

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lendo-se de seus inúmeros instrumentos de coerção, mas tam­ torial, a credibilidade gera lucro. Se o público valoriza a inde­
bém como clientes de mercado, como anunciantes privados. Nos pendência, é preciso entregar independência ao público. A cre­
ataques que desferem contra o direito à informação, os gover­ dibilidade vende. A longo prazo, nada dá mais certo do que
nos agem simultaneamente como poder político — como um isso. Não seria impróprio afirmar que as empresas de comuni­
agente da esfera pública — e como poder económico — como cação prezam a independência editorial por interesse no lucro.
um agente da esfera privada.) Uma receita sem desequilíbrios Charles Baudelaire foi irónico, e também bastante verdadeiro,
deve ser um objetivo da gestão comercial nas empresas de co­ quando elogiou a "lisura" do financista em Meu coração des­
municação, é uma conquista do “estado” em benefício da “igre­ nudado ( lx x v ). Escreveu ele: “O menos infame de todos os co­
ja ” . A boa condução do “estado” é indispensável para que a in­ merciantes é o que diz: ‘Sejamos virtuosos, para ganhar muito
dependência editorial, na prática, seja possível. A credibilidade, mais dinheiro do que os tolos que são viciosos’. Para o comer­
portanto, além de um valor ético, é um património — um capi­ ciante, a própria honestidade é uma especulação de lucro” .
tal, pode-se dizer — que a “ igreja” constrói junto com o “esta­ Numa sociedade em que a informação jornalística, além de um
do” , em sintonia. A fórmula “igreja-estado” não se propõe como direito do cidadão, circula também como mercadoria, seria in­
um exercício de esquizofrenia organizacional, mas se acredita genuidade supor que a credibilidade não fosse fator de lucro.
uma base de método para o diálogo interno. Só dá bons frutos Um dos slogans mais bem-sucedidos na propaganda de
quando adotada como política unificada, compartilhada verti­ veículos de imprensa é aquele em que a Folha de S.Paulo ga­
cal e horizontal mente por todos os quadros da empresa. Ela se rantia ter “o rabo preso com o leitor” . Ora, se tem “o rabo pre­
traduz em algumas estruturas administrativas possíveis — não so com o leitor” , o jornal não terá “rabo preso" com mais nin­
há, entre as estruturas normalmente utilizadas em diferentes guém. O slogan é particularmente forte porque a expressão
companhias, um desenho único, rígido e fixo. Em todas, po­ “rabo preso” , sozinha, indica a situação daquele que não tem li­
rém, observa-se a existência da linha divisória entre aqueles berdade de dizer ou fazer o que pensa. Tem “rabo preso” quem
que atendem o cliente da informação pública, que é o cidadão não é dono de si mesmo. Daí que, ao declarar-se “de rabo pre­
ou o cidadão numa condição específica de consumidor (como so com o leitor” , a Folha se declarava “de rabo preso com a
é o caso das publicações para interesses específicos), e aqueles verdade” (onde leitor é sinónimo de verdade), o que desmonta
que atendem o cliente do espaço publicitário, o anunciante, e o significado original do termo, negando-o: quem tem “rabo
todos os outros parceiros comerciais. preso” com a verdade, na verdade não tem “rabo preso” com
nada nem ninguém. Assim, a campanha valorizava o conteúdo
A credibilidade que vende do jornal. Seu valor não estaria na pretensão de quem nunca
admite errar, mas no pacto com o leitor. O que o leitor compra
Em linhas concisas, é nisso que consiste o modelo “igre­ é o compromisso e a credibilidade — não a infalibilidade. Aban­
ja-estado” . E um engano supor que ele se deva a um compro­ donando a pretensão da infalibilidade, a campanha da Folha
misso purista de empresas capitalistas com o sacerdócio do jo r­ revelava um traço de modernidade adiante de outros veículos
nalismo. Nao se trata de uma saída resignada ou de uma devo­ — e entre todos os “comerciantes” que vendem informações jor­
ção abnegada à causa cívica. É uma solução de mercado, com nalísticas, a Folha seria o “menos infame” .
as virtudes e problemas próprios do mercado. No mundo edi­ Falando uma linguagem publicitária, a Folha declara as­

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sumir um compromisso público — e isso é o que interessa no rior da empresa, representam direitos do público. Esses espaços
debate ético. A questão se desloca: não é mais o que o jornal são informais, mas sempre estão ali. Abrem-se nos diálogos en­
diz de si mesmo que importa (isso importa apenas aos publicitá­ tre a área comercial e a área editorial, nas tomadas de decisões
rios), mas o modo como o jornal honra, no conteúdo da merca­ jornalísticas ou nas críticas éticas internas que circulam em jor­
doria que oferece, o compromisso que assumiu. A lógica da nais, editoras de revistas e emissoras de rádio e televisão. Ne­
campanha publicitária é simples: se o jornal tem o “rabo preso les, reproduz-se a dinâmica dos debates públicos. E como se
com o leitor” , é porque seus jornalistas não têm nenhum rabo uma extensão da esfera pública penetrasse os domínios da em­
preso com o anunciante. Ali existiria, então, o compromisso presa privada, fazendo falar aí dentro a voz do cidadão (o titu­
com a independência editorial. E se, nas suas páginas noticio­ lar do direito à informação) por meio daqueles que a represen­
sas, a independência se demonstra verdadeira ao julgamento do tam: os jornalistas. Isso contribui para instalar na vida interna
leitor, ela se torna fator de lucro. É evidente que a campanha da empresa de comunicação um clima de debate público bas­
pode influir nesse julgamento, mas, no limite, nenhuma cam­ tante profícuo, produtivo. Divertido ou descontrolado, depen­
panha publicitária de jornal nenhum influi mais na opinião do de do ponto de vista. Se bem compreendido e bem gerido, esse
leitor do que o próprio conteúdo que o jornal oferece. Se o con­ fenômeno se converte numa vantagem: a empresa de comuni­
teúdo não sustenta minimamente a campanha, nada feito. cação tende a tomar-se mais sensível às inclinações e às inquie­
O modelo “igreja-estado” é, portanto, um modelo tipica­ tações gerais da sociedade e dos setores aos quais se dirigem
mente liberal: ele se origina e se resolve nos mecanismos de seus veículos informativos. Se mal compreendido, será apenas
mercado. Por extensão, mas sem negar seu fundamento liberal, fonte de aborrecimentos e desgastes. E a emoção natural do jor­
funciona como um ambiente ético que favorece a informação nalismo se degenerará em um inferno para os acionistas da com­
de melhor qualidade. Na sociedade de mercado. É bom lembrar panhia. Eles então se surpreenderão pensando que talvez fosse
disso para que não se tome o modelo como solução universal, melhor investir em hotelaria, na construção civil ou, quem sa­
ou como “a” realização da ética absoluta sobre a Terra em todos be, num paraíso fiscal.
os tempos. A independência editorial é um valor ético ancora­ Que não se entenda com isso que o modelo “igreja-esta­
do no ideal democrático da imprensa, mas o modelo “igreja-es­ do” garanta por si só um jornalismo 100% objetivo, honesto,
tado” é antes um método que um valor, é um modo de ordenar independente. Não garante. Ele apenas pode abrir canais para
a estrutura administrativa, uma solução própria do mercado que a independência seja preservada e para que se desenvolva
que, no entanto, resguarda e valoriza a independência das reda­ uma cultura interna em que a credibilidade é de fato prezada
ções de forma compartilhada com o cidadão-consumidor. como um valor. Só isso. E só — mas não é pouco.
Ao resguardar e valorizar a independência, o modelo “igre­
ja-estado” representa, além de um método, também a materia­
lização de um valor e, nessa condição, termina por constituir O JORNALISTA E O CONFLITO DE INTERESSES ECONÓMICOS
um contrapeso ao imediatismo do capital: tende a assegurar, a
seu modo, que o objetivo do lucro não atropele a função social Os jornalistas são trabalhadores intelectuais. Vendem o seu
da imprensa ou, pelo menos, tende a instalar aí uma certa me­ trabalho e o seu talento, com ou sem vínculos empregatícios,
diação. Dando lugar ao debate ético, abre espaços que, no inte­ para empresas capitalistas — ou para empresas mais ou menos

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públicas, que, de todo modo, se viabilizam segundo critérios de numa falha técnica e ética; estará passando adiante informação
mercado. Alguém irá discordar: nem todos os jornais, revistas, de má qualidade. Se ele escreve mal, leva padecimento ao seu
emissoras de rádio e televisão, nem todos os sites jornalísticos leitor, além de promover injustiças involuntárias pela falta de
da internet pertencem necessariamente a capitalistas. Mas todos familiaridade com a palavra. Quem não se dobra diante do idio­
os jornalistas, sem exceção, vendem seu trabalho e seu talento ma, quem não o respeita, acaba escrevendo o que não quer, e aí
no mercado capitalista. Pense-se, por exemplo, nas emissoras é o desastre. É como o desenhista que, imaginando representar
de televisão pertencentes a fundações, como é a tv Cultura de um morango, garatuja um coração com catapora. Pensa uma
São Paulo. Pode-se argumentar que, tendo recebido verbas pú­ coisa, comunica outra. Os efeitos da inabilidade são impiedo­
blicas ao longo de sua existência e sendo declaradamente uma sos. É como um piloto de avião que não seja um exímio opera­
entidade sem fins lucrativos, a tv Cultura não é uma empresa dor dos instrumentos: mata os passageiros. Saber o português
capitalista. E não é mesmo. No entanto, a cada dia mais ela se é uma obrigação ética do jornalista. Quem tropeça no vernácu­
torna permeável aos critérios próprios do mercado: veicula lo mente sem querer. E não mentir é um dever técnico. E ético,
mensagens publicitárias e extrai daí parte do seu financiamen­ embora haja quem ache que esse impedimento depende do grau.
to; pauta-se e também se avalia, ainda que parcialmente, pelos Há jornalista que crê poder mentir: para um aqui, para ou­
indicadores de audiência (ou de audiência qualificada). Con­ tro ali, bem pouco, só de vez em quando, até que, um dia, nenhum
corde-se ou não com a crescente mercantilização das emisso­ de seus colegas e fontes será capaz de acreditar nele. Jornalis­
ras públicas brasileiras, ela é um fato — que aqui não será dis­ ta que mente, assim como o jornalista plagiário, é tecnicamen­
cutido. O que importa destacar é que tanto os jornalistas da tv te imprestável: não há como usá-lo na imprensa. Publicar as in­
Cultura como a sua programação estão expostos às leis de mer­ formações que ele traz à redação é como comprar remédios
cado, assim como os jornalistas e programas das emissoras co­ numa farmácia que, ocasionalmente, vende ali um antibiótico
merciais. O repórter da Rede Globo e o da tv Cultura disputam falsificado. É como usar um parafuso de isopor, unzinho só, na
o mesmo mercado: são assalariados em busca de melhores pro­ fabricação de um submarino. Lá na frente, ou lá no fundo, vai
ventos, e não diferenciam eticamente o fato de trabalhar numa dar errado. Não adianta. A integridade pessoal de um jornalis­
televisão pública do de trabalhar numa rede privada. Nem há ta é o começo e o fim dos valores que ele carrega — e que se­
por que diferenciar. O jornalista é um trabalhador intelectual rão determinantes de seu preço no mercado. Para o patrão, a éti­
assalariado e vai exercer sua profissão em qualquer órgão de ca aparente pode ser um fator de lucro. Para o jornalista, a ética
imprensa que respeite a função social que ele representa — e é fator de remuneração.
que o pague direito. Se pagar bem, tanto melhor. Repetindo: o
jornalista vive de vender seu trabalho intelectual e seu talento A ética de mercado, o assessor e o jornalista
no mercado. A sua ética tem muito a ver com essa condição.
O que tem um jornalista para vender? O trabalho que ele Ser ético, enfim, é uma questão de mercado — concepção
produz com a sua competência — e com a sua ética. No perfil do que se acha em perfeita sintonia com a idéia de que os meca­
profissional, a habilidade técnica não se separa dos princípios nismos de mercado são suficientes para indicar as vias do bem
ou valores éticos. Se o repórter é daqueles que acham bobagem comum. Essa idéia será questionada no final deste capítulo.
conferir todos os nomes das pessoas que entrevistou, incorrerá Antes de criticá-la, porém, é preciso compreender o poder de

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sua lógica. Dizer, então, que a ética é um fator de remuneração ca tomou posse. Chateaubriand não conhecia limites. Sua re­
para o jornalista é expressar uma máxima liberal. E é dotar o vista O Cruzeiro publicava matérias pagas,5 quer dizer, matérias
tema de seu alcance devido: a medida da ética, nesses termos, que elogiavam uns e outros em troca de pagamentos por baixo
é dada pelas necessidades postas pelo mercado, ou melhor, do pano, e seus jornais eram capazes de proezas jornalísticas
pelo modo como o mercado traduz a demanda do público. A como criticar um fabricante de caixas de fósforo para coagi-lo
demanda varia, como sabemos, de uma época para outra. a se tornar anunciante. Uma vez aceita a coação, as denúncias
Houve profissionais que ficaram ricos esnobando a corre­ cessavam.6
ção de conduta? Sim, houve. Mas os tempos eram outros. As­ Conflitos de interesses? Sim, dos mais escabrosos. Cha­
sis Chateaubriand talvez seja o caso mais exemplar. Ergueu-se teaubriand nunca se importou com isso. Por certo, ele não foi
com talento e suor, mas também com chantagens, achaques, o único velhaco da mídia nacional, e talvez não seja o maior.
além de agressões violentas, invasão de domicílio, o sequestro Não há bonzinhos no front. O fato, porém, é que os níveis de
da própria filha, tiros em inocentes etc. A história de sua ascen­ tolerância da sociedade são menos flexíveis hoje. Todas as bar­
são pessoal, profissional, empresarial e política é uma profusão baridades cometidas por jornalistas e patrões na imprensa bra­
de crimes de toda espécie, segundo o relato de Fernando Mo­ sileira, as que são conhecidas e as que ainda estão por se reve­
rais em Chatô, o rei do Brasil. Chateaubriand publicava artigos lar, são indicadoras não de que esse mundo é mesmo um antro,
para render governantes, destruir reputações e obrigar suas ví­ mas de que se processa uma lenta mudança na incidência da
timas a anunciar nos seus Diários Associados, ou a doar dinhei­ má-fé e da patifaria. Não que estas estejam extintas; elas ape­
ro para as suas campanhas. Para desocupar um imóvel aluga­ nas precisam ser mais veladas do que antes. No mínimo. A so­
do, extorquiu a família Matarazzo,2 à qual passou a destinar ciedade já não é tão indiferente. Nos termos do liberalismo, o
todo tipo de maledicência. Para ganhar a guarda de sua filha, mercado exige mais compostura.
Teresa, obteve de Getúlio Vargas a publicação do decreto-lei Mais do que antes, o sucesso de um profissional de impren­
n“ 5213, de 1943, modificando a lei sobre organização e prote­ sa depende de sua credibilidade pessoal. Se um veículo infor­
ção da família exatamente no ponto que lhe convinha: um de­ mativo (um diário, uma emissora de rádio noticiosa, uma revista,
creto tão absurdo que se tornou conhecido como Lei Teresoca.' um site) não pode acobertar conflitos de interesses sem arris­
Getúlio estaria retribuindo ao dono dos Associados o favor que car-se a perder o crédito do público, também o jornalista não
este lhe fizera um ano antes, quando demitira Dario de Almei­ pode procurar servir simultaneamente a dois interesses conflitan­
da Magalhães. Um dos mais atuantes diretores dos Associados, tes. Um jornal que deixa transparecer a impressão de que publi­
dos quais chegou a ser presidente, e colaborador direto de Cha­ ca notícias para favorecer uma determinada empreiteira está se­
tô por muitos anos, o advogado carioca Almeida Magalhães se­ meando sua ruína. Um jornalista que tem emprego em reparti­
ria alçado à condição de inimigo visceral. Os dois iriam se re­ ções públicas de Brasília “para complementar o salário” da t v ,
conciliar nos anos 1960, mas, até lá, o inimigo de Chatô sofreu ou que “faz uns bicos” para suas fontes de informação pelos
todo tipo de pirraça e perseguição. No início do governo Dutra, quais recebe pagamentos régios, cedo ou tarde cai em suspei-
foi nomeado ministro da Educação, e Chateaubriand chantageou ção. Quem é que lhe paga, afinal? A serviço de quem ele real­
o presidente: se seu desafeto assumisse a pasta, os Associados mente está?
iriam para a oposição no dia seguinte.4 Almeida Magalhães nun­ Esse tipo de confusão começa pela falta de rigor com que

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a palavra jornalista é invocada nas conversas cotidianas. Cha­ jornal, na rádio, na revista ou na tv , acumula uma função de
ma-se jornalista todo aquele que trabalha na imprensa e também assessor de imprensa (fixa ou esporádica) incorre num confli­
alguns que trabalham com a imprensa, seja dentro das redações to de interesses elementar, pois sempre fica a dúvida: na hora
ou fora delas. Chamam-se jornalistas não apenas os repórteres, em que os interesses de seus “clientes externos” estiverem em
os editores, os diretores de redação mas os assessores de im­ jogo, numa determinada pauta, como é que ele irá proceder? O
prensa de grupos políticos, económicos, ou de personalidades leitor pode realmente confiar nele?
públicas. Rigorosamente, porém, os assessores não praticam jor­ O mesmo se pode dizer do jornalista contratado por um
nalismo. O assessor de imprensa se encarrega de intermediar as órgão de imprensa que aceita encomendas “por fora” de agên­
relações de seu cliente (ou patrão) com repórteres em geral, e cias de publicidade. Terá ele a independência necessária para
sua eficiência é medida pela quantidade de reportagens favorá­ escrever uma reportagem sobre aqueles que o remuneram “por
veis que saem publicadas — e pelas informações negativas que fora”? Já para um publicitário ou para um assessor de impren­
são omitidas. O assessor de imprensa é um artífice e ao mesmo sa, o fato de ter uma coluna numa revista ou de colaborar even­
tempo um divulgador da boa imagem daquele que o contrata. tualmente em um jornal em nada é desabonador. Antes, o con­
Na prática, não é jornalista. Jornalista é estritamente o profis­ trário. Enfim, o que são virtudes no assessor de imprensa se
sional encarregado de levar notícias ao público, num serviço tornam pecados no jornalista, e vice-versa. Para o assessor, o
que atende, no fim da linha, o titular do direito à informação e fato de ser chamado de jornalista às vezes ajuda. Para o jorna­
mais ninguém. O assessor de imprensa — ainda que possa ter lista, é chato. Se quiser evitar a morte por esquartejamento mo­
se formado numa faculdade de comunicações com habilitação ral a que leva o conflito de interesses não resolvido, ele deve
em jornalismo, ainda que tenha anos de experiência numa re­ guardar distância de léguas de qualquer atividade profissional
dação — exerce tecnicamente um ofício diferenciado. Ele não que constitua assessoria de imprensa ou publicidade. Ou que
ganha para perguntar o que o público tem o direito de saber, possa ser vista como tal.
mas ganha para propagar aquilo que o seu cliente (ou empre­ A aparência aqui é quase tudo. A independência e a inte­
gridade do jornalista, como as dos órgãos de imprensa, preci­
gador) tem interesse em difundir.
sam ser mais que verdadeiras: precisam ser explícitas. Torná-
São duas ocupações igualmente dignas, nada de errado
las explícitas não é exibicionismo, é respeitar o público. Que
com uma ou com outra, mas são duas ocupações diferentes. Por
não pairem dúvidas. Aliás, a independência do jornalista só é
vezes, opostas. Embora ambas se declarem comprometidas com
verdadeira quando é escancaradamente explícita. Os códigos
o respeito à verdade, há distinções cruciais entre as normas de
de ética mais conhecidos condenam expressamente o conflito
conduta de uma e de outra. Para o assessor de imprensa, traba­
de interesses e, em igual medida, condenam também a aparên­
lhar para duas ou mais empresas ao mesmo tempo, desde que cia de conflito de interesses. Quem vive da confiança do públi­
não haja antagonismos entre elas, é absolutamente normal. co deve deixar claro, de antemão, a que veio, para quem traba­
Como é normal que uma agência de publicidade produza cam­ lha, a que interesses serve. Não lhe basta ser independente ali
panhas para diversos clientes. Para o jornalista, empregos si­ com seus botões: é preciso que todos vejam a toda hora que ele
multâneos constituem uma complicada exceção, e a atividade é mesmo independente. Essa é a regra básica apregoada e se­
de assessoria de imprensa é incompatível com as atribuições de guida (às vezes mais, às vezes menos) pelos mais importantes
um repórter ou um editor. O jornalista que, ao seu trabalho no veículos informativos do mundo e pelos melhores profissio­

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nais. Ela inclui não fazer “bicos” para “complementar o salá­ Hoje, isso talvez soe tão óbvio quanto dizer que aquele se­
rio” aceitando encomendas de empresas ou autoridades que nhor escalado para dirigir o ônibus escolar precisa ter sua car­
são fontes ou fontes potenciais de informação, inclui não exer­ teira de motorista profissional em ordem. Mas não foi sempre
cer atividade de assessor de imprensa, mas não pára aí. É pre­ assim. A postura de não aceitar favores, ajudas financeiras,
ciso descer aos detalhes. Por exemplo: um jornalista não deve descontos especiais, facilidades de todo tipo é uma conquista
aceitar presentes de suas fontes. Não que ele vá ser venal para
recente. Antes era uma tragédia — ou uma festa, dependendo
o resto da vida se receber de brinde uma caneta, mas sua inde­
de quem fala. Ainda hoje, jornalistas das melhores publicações
pendência terá contornos mais turvos se isso for um hábito e se
do Brasil recebem ofertas de automóveis com descontos das
ele, já que um presente não estraga ninguém, aceitar de bom
assessorias de imprensa das próprias fábricas. Algumas dessas
grado uma passagem aérea de primeira classe daquela tal com ­
panhia, comprar um carro com desconto de um certo fabrican­ ofertas chegam às redações por escrito. O mesmo se dá com as
te, vestir-se de graça na loja tal. O problema não é o que ele marcas de roupas de moda. As vezes, ainda chegam aos apare­
pensa de si mesmo e o fato de ele jurar que continua sendo lhos de fax de redações cartas destinadas aos “prezados ami­
isento mesmo desfrutando de tanta generosidade alheia — o gos” convidando os que ali trabalham a comparecer a um “bazar”
problema é que, assim, a sua independência deixa de ser explí­ onde estarão à venda peças nacionais e importadas a preços
cita. E surgem as aparências de que, não sendo explícita, ela “bem acessíveis” . Há poucos anos, aceitar propostas assim era
talvez não seja tão autêntica. corriqueiro. Quase todos diziam sim. Assim nasceu a imprensa
Embora as duas funções não se confundam, ou m elhor,em ­ brasileira. No fim da vida, Samuel Wainer contou que criou sua
bora haja diferenças abissais entre ambas, a independência do Última Hora com dinheiro arranjado por Juscelino Kubitschek,
jornalista é comparável à do juiz quando se trata de conflito de numa operação mantida em segredo por décadas. Em Minha ra­
interesses envolvendo dinheiro e presentes. Será que alguém que zão de viver — Memórias de um repórter, Wainer lembra o epi­
movesse um pedido de indenização contra uma fábrica de rou­ sódio em que conseguiu a ajuda do então governador de Minas:
pas ficaria tranquilo ao saber que o juiz a quem caberia a deci­ JK recebeu-me com a simpatia dc sempre. Expliquei-lhe meus
são de primeira instância ganhasse dessa fábrica, de vez em projetos e a necessidade de conseguir recursos, ressalvando que
quando, algumas calças, camisas e malhas de lã a título de lem­ qualquer ajuda que ele me prestasse deveria permanecer sob
branças de Natal? Parece pouco, mas o autor da ação não fica­ completo sigilo.
ria nada tranquilo. A isenção do juiz para julgar a causa está — Caso contrário, toda a imprensa ficará contra você — pre­
prejudicada. Pois é a mesma coisa que um leitor, um telespec­ veni.
tador ou um ouvinte têm o direito de pensar a respeito de uma Juscelino sabia dos riscos, mas não pareceu preocupado.
— Tenho interesse em ajudá-lo — disse. — De quanto você
editora de moda que, incumbida de fazer reportagens sobre
precisa?
roupas femininas e sobre as novidades no setor, veste-se de
Respondi que precisava de 3000 contos, como poderia ter
graça o ano inteiro. Sim, ela pode ser honestíssima — como é mencionado outra cifra qualquer: eu não havia feito cálculos pre­
discretíssima sobre os mimos que recebe. Mas será que os fa­ cisos para saber exatamente quanto teria de gastar na primeira
bricantes têm clareza sobre sua independência? Será que tanta etapa do jornal. Ele informou que determinaria a três bancos li­
gentileza não interfere nas reportagens que ela edita? gados ao governo que cada um me desse mil contos. Os emprés­

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timos sairiam em meu nome, com o aval de Medeiros Lima [jor­ cupavam em combater os conflitos de interesses. O leitor mal
nalista muito bem relacionado em Minas Gerais, que, a pedido reparava neles. Os profissionais também não se preocupavam.
de Wainer, ajudou-o a ter acesso a j k ]. Eram, evidentemente, tran­ É bom não esquecer que havia, como herança dos anos 1940,
sações de caráter político, já que nem eu nem Medeiros Lima tí­ uma institucionalização dos privilégios aos jornalistas. O arti­
nhamos condições de obter tanto dinheiro daquela forma.7 go 203 da Constituição da República dos Estados Unidos do Bra­
sil de 1946 os isentava do imposto de renda: “Nenhum impos­
Pode haver conflito de interesses pior? E, no entanto, o
to gravará diretamente os direitos de autor, nem a remuneração
jornalismo que se faz hoje no Brasil, naquilo que tem de posi­
de professores e jornalistas” . E o artigo 27 das Disposições Tran­
tivo, deve muito a Samuel Wainer. A Última Hora nasceu na
sitórias da mesma Constituição instituía uma outra benesse:
base do tráfico de influência, sim, mas deixou como herança al­
“ Durante o prazo de quinze anos, a contar da instalação da As-
guns progressos. Não se deve, de forma nenhuma, absolver os
sembléia Constituinte, o imóvel adquirido, para sua residência,
que praticam o tráfico de influência para obter dinheiro barato,
por jornalista que outro não possua, será isento do imposto de
e nem é isso o que se quer insinuar aqui, mas é um erro simpli-
transmissão e, enquanto servir ao fim previsto neste artigo, do
ficador pensar a realidade numa dimensão ética absoluta. A éti­
respectivo imposto predial” . Hoje, a mentalidade — institucio­
ca não se confunde com as catilinárias moralistas, mas, enrai­
nal e social — é diferente. A proteção da credibilidade é mais
zada que está nos costumes, tem existência social e se altera
intensa do que antes.
historicamente. É uma dimensão da convivência humana.
Quem se interessa pelo assunto e não leva em conta os con­
Duas éticas num só lugar
textos culturais da sociedade, começa a pontificar e abre mão
de pensar. Nenhum preceito ético recomendará que se tirem van­
O comportamento ético varia no tempo e, do mesmo mo­
tagens financeiras indevidas de relações privilegiadas com os
do, no espaço: cie não é homogéneo, ou monolítico. Um mes­
governantes. Isso é moralmente condenável em qualquer tem­
mo período histórico pode comportar duas ou mais posturas
po. Mas a compreensão da história da imprensa requer que se le­
vem em conta os contextos em que os sujeitos se relacionavam. éticas distintas num mesmo campo. No campo do jornalismo,
por exemplo. Há distâncias éticas enormes entre veículos dife­
E uma história pavimentada de pecados mas que tem uma linha
rentes, e às vezes elas se verificam entre editorias distintas de
geral de evolução (de melhora) dos padrões éticos socialmente
um mesmo veículo. Uma delas merece registro. E praxe entre
praticados. Samuel Wainer era contratado dos Diários Associa­
repórteres que cobrem política ou economia, as áreas ainda
dos, de Chateaubriand, de onde se demitiu para iniciar seu pró­
prio projeto. Não foi um anjo, mas teve uma folha corrida mais consideradas “nobres” do jornalismo, não aceitar que suas fon­
limpa — se é que se pode compará-los segundo parâmetros que tes lhes paguem viagens aéreas ou diárias de hotéis. A simples
não eram os de suas épocas — que seu antigo patrão. E mesmo oferta os ofende. Um repórter de política ou de economia via­
Chatô,escroque consagrado, foi um modernizador em seu tem­ ja com todas as suas despesas pagas pela empresa jornalística
po. E preciso notar que, de um para outro, o que muda não é o para a qual trabalha. Já um repórter da editoria de turismo, do
caráter dos homens, mas o grau de exigência ética da socieda­ mesmo jornal, ou da mesma empresa, pode aceitar passagens e
de. Aí é que está o fiel da balança ética: na sociedade e em suas estadas das fontes que ninguém vai se chocar. Aliás, tudo se
demandas. Até poucos anos atrás, jornais e revistas não se preo­ passa na mais serena normalidade. Claro que há aí uma contra­

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dição. Ou bem os repórteres de economia e política pensam das agências de turismo. Então, vai a um site jornalístico na in­
que são mais puros que o resto da humanidade ou bem os re­ ternet, lê uma revista especializada ou um jornal. Mas, saben­
pórteres de turismo estão admitindo relações ambíguas e im­ do que quem pagou todas as despesas dos jornalistas foram as
próprias com suas fontes de informação. Há dois pesos e duas mesmas agências que pretendem vender a ele, leitor, aqueles
medidas para a conduta ética dos profissionais de um mesmo mesmos roteiros turísticos, tem o direito de se perguntar: esse
jornal, ou de uma mesma editora, ou de uma única emissora de pessoal está mesmo falando sério comigo? Isso que eles publi­
televisão. E como se, para cobrir a área de turismo, os jornalis­ cam merece crédito ou é matéria paga? Será que a reportagem
tas não precisassem ser “tão” independentes quanto os que co­ foi publicada por ser de meu interesse ou só porque o jornalis­
brem a bolsa de valores.
ta ganhou um pacote para passear nessa cidade?
Um dos primeiros a apontar o problema no Brasil, o jor­ Há aí uma contradição, mas ela é temporária. A tendência
nalista Celso Nucci, ex-secretário editorial e ex-diretor de De­ é que também em turismo, assim como em moda, em culinária,
senvolvimento Editorial da Editora Abril, lançou um alerta num em saúde, em cultura — e nas diversas outras áreas cobertas
artigo intitulado “Jornalistas e... jornalistas” , publicado na Fo­ pela imprensa —, a ética siga os parâmetros já adotados em po­
lha de S.Paulo de 20 de julho de 1992: “Temos aí uma esqui­ lítica e economia. Fora do Brasil, a revista Traveler (da Condé
zofrenia ética que, não nos enganemos, é percebida pelo leitor Nast) costuma enviar um pequeno bilhete de agradecimento
e é um dos principais fatores que levam à perda de credibili­ aos que se tornam seus assinantes, com a assinatura de Thomas
dade da imprensa e dos profissionais que a fazem” . Nucci tem J. Wallace, o diretor de redação:
razão. Mas por que será assim? Será que uma informação jo r­
nalística sobre um hotel no Caribe é menos “séria” que uma en­ Caro amigo,
trevista coletiva do presidente da fiesp ? Na cultura média do Outras revistas de viagem são publicadas por empresas aéreas.
Companhias de cartão de crédito. E pessoas interessadas em
jornalismo contemporâneo, acredita-se que sim, é menos “sé­
vender pacotes turísticos. Outros ainda são convidados para os
ria” e menos importante.
lugares sobre os quais escrevem, de forma que suas viagens são
Para o público, no entanto, essa distinção não faz o míni­
pagas por hotéis ou pelos resorts que retratam em suas reporta­
mo sentido. Pense-se nas consequências que a cobertura de tu­ gens. Isso não estimula a objetividade. Diferentemente deles,
rismo pode ter na vida do cidadão. Ele irá comprar pacotes de nós viajamos incógnitos. Pagamos nossas contas. Recebemos e
viagem, escolherá acomodações, companhias aéreas, gastará reportamos os mesmos serviços que você pode esperar. Dize­
duas, três, quatro semanas de sua vida num passeio que esco­ mos exatamente o que pensamos. Entregamos a você informa­
lheu com base numa reportagem. Para ele, o interessado, o ín­ ções objetivas. E — mais importante de tudo — servimos exclu­
dice do custo de vida ou a declaração do ministro da Agricul­ sivamente a você.
tura não constituem informações “mais nobres” . Talvez, às vés­
O Brasil dá mostras de que irá pelo mesmo caminho. Fica
peras de suas férias, constituam apenas dados desnecessários.
mais caro para uma redação pagar todas as viagens, estadas,
Ele quer saber se o hotel é caro ou barato, se a praia é poluída,
restaurantes de suas equipes de turismo? Sim, fica. Mas repor­
o que há de novidade no roteiro que pretende fazer: precisa de
tagem custa dinheiro. A informação vale, e o leitor quer com­
jornalismo para isso. Ele busca notícias objetivas, apuradas
prar informação de boa qualidade. O jornalista, em defesa de
com independência, para não cair nas malhas da propaganda
sua própria credibilidade, precisa convencer as empresas que o
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contratam de que cabe a elas pagar a conta. Nos veículos mais grande coisa. Só o que pode é agir de acordo com a sua cons­
sérios, é assim que já é, e é assim que vai ser. E só uma ques­ ciência, esforçar-se para olhar o mundo com objetividade e não
tão de (pouco) tempo. mascarar suas limitações com a arrogância de quem tudo vê,
tudo ouve, tudo sabe. Para isso, precisa ser independente de
Não adianta o jornalista declarar que não é “comprável” quaisquer interesses estranhos àqueles legítimos de quem tem
o direito à informação. Ele não pode receber dinheiro, em hi­
pótese nenhuma, de partes interessadas em aparecer na impren­
Em síntese: onde há conflito de interesses não se gera in­
formação de qualidade. É elementar. A ética do jornalista po­ sa. Não pode receber favores, facilidades, agrados. Isso é tão
deria se resumir a um simples mandamento: não mentir. O úni­ elementar para a profissão do jornalista como a visão é essen­
co problema prático seria então o que fazer para seguir esse cial para o crítico de cinema. Imagine o que aconteceria se o
mandamento. O que é não mentir no caso de um repórter de rá­ repórter de rádio do exemplo (fictício) do parágrafo anterior
dio que tem apenas alguns minutos para narrar um deslizamen­ fosse sócio de um loteamento clandestino na área onde houve
to de terra que ele acaba de testemunhar, por acaso, ao voltar deslizamento de terra. Como é que ficaria a sua objetividade?
para casa? Ele tem o celular à mão e vai entrar no ar agora. Ele E se o repórter de tv (também fictício) tiver um cargo na pre­
só tem acesso a um fragmento dos fatos, e é só aquele fragmen­ feitura, pelo qual recebe salário — às vezes sem nem ter de ba­
to que ele poderá comunicar. A causa aparente do deslizamen­ ter o ponto? Estará ele suficientemente perto das condições de
to é a chuva torrencial, que não pára. Há barracos derrubados, objetividade?
mas não se sabe de vítimas. Ele tem algo a informar, tem um Não há ética possível onde viceja o conflito de interesses.
fato nas mãos, mas é pouco o que ele sabe. Em parte o ouvin­ Simples assim. Jornalistas às vezes pensam, e declaram, que o
te tem uma noção razoável dessas limitações, mas em parte es­ fato de aceitarem viagens de graça, presentes caros, descontos
pera ouvir ali um relato fiel. Ora, não mentir passa a ser então na compra de automóveis e outras facilidades económicas não
deixar clara a precariedade do relato. Não mentir, portanto, não lhes retira a objetividade. Não são “compráveis” , asseguram.
é dizer a verdade; é apenas não prometer “toda” a verdade. Assim, remetem o impasse para uma psicologia de segunda li­
Acontece que uma verdade parcial pode ser também uma men­ nha. O critério passa a ser, então, aquilo que cada um julga de
tira parcial. E aí? Imagine-se agora um repórter de tv que dá o si: “Eu sou honesto, e não é uma passagem de avião que vai me
microfone para que o prefeito, diante da câmera, diga lá o que corromper!” ou “O importante é o meu caráter” etc. Ora, se é
ele pensa sobre a acusação que lhe fazem de enriquecimento mesmo esse o critério que deve valer, jamais serão estabeleci­
ilícito. E se o prefeito mentir? O jornalista controla isso? Não, das normas universalizáveis de conduta. Acontece que o jorna­
claro que não. Bem, mas se não controla, está então livre para lismo, sendo função social, e sendo antes de tudo uma ética, é,
deixar que vá ao ar qualquer disparate que pronunciem? Tam­ sim, regido por normas de conduta. O jornalista não é um escri­
bém não. Nesse caso, o que pode dizer ou fazer esse pobre re­ tor ou um artista entregue às suas idiossincrasias personalíssimas,
pórter de tv para não passar uma mentira para o público? E não é uma “alma livre” flanando na literatura sem nenhuma ba­
aquele repórter de rádio, como é que ele pode agir para não liza que o enquadre. O jornalista é um trabalhador intelectual a
transmitir ao público uma mentira parcial? serviço da democracia e do direito à informação. O que o im­
A verdade — também parcial — é que o repórter não pode pede de aceitar suborno — seja um suborno disfarçado em es­

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peciarias exóticas seja um suborno cru como um depósito em gente que faz política, ou que namora, ou que se converteu a
dólares num banco espanhol — não é sua “índole” , sua “psico­ uma seita, ou que defende a causa dessa ou daquela etnia. Tudo
logia pessoal” , se é que isso existe em alguma parte, mas a na­ parece ter algo a ver com a crença, a ideologia, a etnia, a cul­
tureza de sua função. Quem deve estar impedido de aceitar di­ tura, a opção sexual de alguém. Daí a dúvida permanente que
nheiro de fontes canhestras não é o ser humano que se investiu acompanha o ofício dos jornalistas: como observar e reportar
da função, mas a função — que por sua vez limita, e deve mes­ com objetividade os dilemas, as vacilações morais, a ideologia
mo limitar, a prática do ser humano. O sentido dessa limitação e a conduta das pessoas que são notícia se eu mesmo estou su­
é, portanto, social. O problema é da estrutura da profissão — jeito aos mesmos dilemas, às mesmas vacilações, se eu tam­
não é da pessoa. É formal, e deve ser vigiado como uma for­ bém tenho minhas opções ideológicas e minhas restrições de
malidade a ser atendida por aquele que exerce a função social conduta? Como não cometer pré-julgamentos?
de informar o cidadão.
A objetividade subjetiva

CONFLITOS DE CONVICÇÃO E CONSCIÊNCIA O drama do jornalismo é próximo àquele da pesquisa de


campo nas ciências humanas, sobretudo na antropologia e, de
Há, porém, uma outra esfera da independência jornalísti­ modo específico, na etnologia: não há distinção clara entre o
ca que, esta sim, depende das convicções pessoais de cada pro­ sujeito e o objeto. Um evolucionista que estuda uma espécie de
fissional. Cada um é moldado por suas próprias crenças reli­ cacatua australiana consegue dizer sem maiores embaraços
giosas, suas ideologias políticas, suas identificações étnicas e qual é o seu objeto de estudo delimitando-o claramente. O ob­
culturais, sua preferência sexual, e não há como fugir a isso. Um jeto, a cacatua, é um bicho — o sujeito, o pesquisador, é outro.
católico fervoroso, por exemplo, não tem grande senso crítico Ambos palram, mas na maior parte das vezes não se confun­
quando se trata de avaliar a política externa do Vaticano. Um dem. O mesmo ocorre com um astrónomo que investiga a distân­
negro brasileiro, descendente de escravos, não terá olhado para cia entre duas supernovas. Ou com o epidemiologista diante do
o apartheid, o regime de segregação racial que vigorou na vírus causador de uma doença tropical e com o matemático que
África do Sul, com os mesmos olhos que um japonês, natural enfrenta a sua equação.
de Osaka. E humano que seja assim. Mas, como o jornalismo Nas ciências naturais e nas ciências exatas, a distinção en­
tem por meta a objetividade, muitas vezes esses aspectos da tre sujeito e objeto é imediata. Já nas ciências humanas o que
personalidade de cada um — repita-se, humanos — atrapalham surge é antes um problema — não uma distinção. Foi com os
o distanciamento requerido pela pretensão à objetividade. E etnólogos do século XX que a questão ganhou corpo. Para eles,
como se o jornalista se surpreendesse dizendo para si mesmo: o homem é ao mesmo tempo sujeito e objeto de estudo. E, mui­
ser o que eu sou não me deixa ver o que cu vejo. Surge um con­ to embora haja a distância entre as culturas originais do pesqui­
flito entre aquilo que lhe constitui a subjetividade e aquele que sador e do pesquisado, surge aí uma dificuldade nada desprezí­
é seu dever profissional. vel para o estabelecimento da distinção categórica entre um e
Não é um conflito raro. Os jornais, as revistas e as emis­ outro. Ambos, sujeito e objeto, ganham sua existência não na
soras de rádio e televisão contam o tempo todo histórias de natureza, e sim na linguagem, ou seja, no simbólico, e, mais ain­

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da, ambos se enxergam não como sujeito e objeto, enxergam- duas. Mas não se basta. Ela é uma informação que vem acom­
se como sujeitos que se olham como outros. panhada de vazios informativos. Do que tratam na reunião?
Nada disso interessa muito de perto à ética jornalística, Que ministros são? Qual deles dá o tom das conversas? Quem
mas ajuda a entender um pouco do mal-estar do repórter que mi­ tem a direção política dos trabalhos?
seravelmente procura ser objetivo. O jornalismo como técnica A objetividade passará a depender de iniciativas subjeti­
informativa é anterior à etnologia que ousou indagar-se a res­ vas daqueles que são notícia, e estas, por sua vez, só podem ser
peito do sujeito. Parece ter passado incólume por esse tipo de observadas por habilidades também subjetivas daqueles encar­
indagações. E dá sinais de que não se abala com elas. Contudo, regados de informar o público. Quanto menos elementares são
sua meta de precisão do relato, se vista à luz da distância entre as informações, mais elas dependem de aspectos subjetivos
sujeito e objeto, ou melhor, à luz da proximidade extrema en­ para se tornarem objetivas. Ora, o jornalismo não existe para
tre sujeito e objeto, assume a face de uma mistificação, uma de­ dar a temperatura de uma avenida, ou o placar das partidas do
claração de vontade, uma profissão de fé. Na prática, o jornalis­ campeonato paulista, ou a cotação das ações. Ele não foi inven­
mo sabe, a objetividade é redondamente impossível. Também tado para isso, embora faça também isso. Ele existe para pôr as
na prática, contudo, todos continuam acreditando nela — e ela idéias em confronto, para realizar o debate público, para suprir
está no fundamento do pacto de confiança que a imprensa man­ os habitantes do planeta das notícias diversas de que eles pas­
tém com a sociedade. saram a precisar para mover-se e tomar decisões na democra­
O pacto tem contradições internas. Diferentemente do que cia moderna. Existe para narrar a aventura humana no calor da
ocorre com o antropólogo que encara o índio bororo sob o sol hora, para difundir notícias. Mas quem produz as notícias são
dos tristes trópicos, não há nenlutm distanciamento cultural os homens, são sujeitos. O jornalista é portanto um sujeito fa­
entre o homem que é repórter, o homem que é notícia e o ho­ lando de outro sujeito para um terceiro sujeito. Ou é um sujei­
mem que é destinatário da informação. De onde pode então to falando com outro sujeito sobre um terceiro. E um quarto.
emergir a objetividade? Objetividade é uma palavra que vem Rigorosamente, então, o jornalismo não tem objetos — só tem
de objeto. Diz-se que tem objetividade o discurso em que se sujeitos. Os repórteres, editores, fotógrafos, os câmeras —
expressam as características próprias do objeto — e não as do todo mundo na imprensa — têm suas definições de foro ínti­
autor do relato (o sujeito). O jornalismo, produto que é do sen­ mo, são idênticos aos seus objetos (ou melhor, aos sujeitos que
so comum, adota a pressuposição tácita de que uma descrição lhes servem de objetos), isto é, são iguaizinhos àqueles que são
pode ser objetiva, ou seja, pode ser inteiramente fiel às carac­ notícia e àqueles que são leitores, telespectadores, ouvintes.
terísticas do objeto, sem que o sujeito a deforme. E, de fato, há Como é, então, que podem descrevê-los objetivamente?
informações inteiramente objetivas. O anúncio pelo rádio de que A única resposta possível é subjetiva: a objetividade de­
neste momento preciso a temperatura na avenida Paulista, em pende de quem for o jornalista e de qual for a história a ser inves­
São Paulo, é de 26 graus, é estritamente objetivo. E se basta. O tigada e contada. A melhor objetividade no jornalismo é então
placar de um jogo, zero a zero, também é uma informação ob­ uma justa, transparente e equilibrada apresentação da intersub-
jetiva. E também se basta. A notícia de que o presidente da Re­ jetividade. Quando o jornalismo busca a objetividade, está bus­
pública entrou em reunião com quatro de seus ministros no Pa­ cando estabelecer um campo intersubjetivo crítico entre os agen­
lácio do Planalto há dez minutos é objetiva como as outras tes que aí atuam: os sujeitos que produzem o fato, os que o

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observam e o reportam, e os que tomam conhecimento do fato pos, Os dez dias que abalaram o mundo, que narra com preci­
por meio do relato. Daí a necessidade de prestar atenção nas são a tomada do poder pelos sovietes na Rússia em 1917, foi
convicções pessoais dos jornalistas. Por exemplo: como fica um escrita por um repórter americano, John Reed, que era um en­
repórter irlandês, católico, que reporta um enfrentamento entre tusiasta das teses bolcheviques. Suas convicções pessoais pró-
jovens irlandeses católicos e a polícia da rainha? Ou então: será comunistas não lhe turvaram a visão nem estragaram seu texto.
que a promulgação de uma lei que dá aos cônjuges de uniões Há mesmo situações em que a tentativa de isentar-se inteira­
homossexuais os mesmos direitos de que já dispõem os casais he­ mente de toda emoção produz um alheamento no repórter que,
terossexuais será reportada do mesmo modo por um repórter aí sim, torna imprestável o seu relato. Sem a indignação, o es­
que é um ativista gay e por um outro que, membro de uma or­ panto, a surpresa não há reportagem. O que não significa que o
dem religiosa, tenha feito o voto de castidade? estilo deva ser meloso ou, noutro extremo, vociferante. Ele não
deve ser uma esponja embebida em adjetivos: a precisão jo r­
Não há uma resposta técnica, impessoal. De novo, ela pas­
nalística requer realçar a emoção que move os acontecimentos.
sa por prismas subjetivos. No caso da lei sobre os cônjuges de
A objetividade possível não é portanto a correspondência fria
uma união homossexual, pode ser que o segundo repórter faça
de uma descrição a objetos inanimados ou inumanos, mas o
um trabalho melhor, exatamente porque não tem nenhum tipo
impacto quente dos fatos produzidos por seres humanos no dis­
de interesse direto na causa. Ou não: pode ser que aquele que curso ininterrupto do jornalismo. Banir a emoção da informa­
tem envolvimento direto com a matéria da lei trabalhe com ção é banir a humanidade do jornalismo.
mais afinco, ouça mais fontes, revele aspectos mais inusitados E é banir o público. Os leitores, internautas, ouvintes e
sobre a realidade dos casais gays. Quanto ao jornalista irlandês, telespectadores reagem emocionalmente — com indignação,
e católico, ele não está de antemão impedido de testemunhar, com surpresa, com asco ou comiseração - aos acontecimen­
apurar e relatar com brilho e competência uma batalha campal tos. Não se trata de irracionalismo. É legítimo que seja assim.
em que tomem parte seus compatriotas. Mas pode ser que sua Voltemos ao repórter irlandês. Se seu texto resultar glacial,
condição o direcione para um ângulo mais, digamos, sectário simulando um distanciamento hermético entre o sujeito e os
— como também pode ser que, na tentativa de evitar o par- fatos, não conseguirá dialogar com o público, e, se não dialoga
tidarismo, ele seja acometido de uma neutralidade inumana, o com o público, o jornalismo é ruim. Por outro lado, se for um
que arruinará seu texto. discurso inteiramente conduzido pela ira e pelo protesto, será ine­
Aqui é preciso desmontar um pequeno tabu que paira so­ ficiente para transmitir os fatos — e será mau jornalismo tam­
bre a correção na reportagem. Pensa-se e declara-se que as bém. A objetividade no jornalismo, que é intersubjetividade,
emoções atrapalham a precisão. É um erro. O bom jornalismo não pede isenção total — pede equilíbrio. Nas duas hipóteses
nada tem a ver com a indiferença, com a neutralização do su­ de desequilíbrio (excesso de frieza em relação ao público, ou
jeito. Como toda atividade própria da cidadania, ele se alimen­ excesso de emocionalismo também em relação ao público), po-
ta também de indignação. As emoções devem integrar a repor­ de-se atribuir o déficit de qualidade à má adequação entre as
tagem assim como integram a alma humana — e, de fato, estão convicções do repórter e a sua tarefa de oferecer um relato efi­
presentes nas mais marcantes passagens do jornalismo, nos ciente dos acontecimentos: ou ele encenou neutralidade, e frus­
melhores textos, nas grandes manchetes, nas fotos que fizeram tra seu público, ou produziu uma narrativa panfletária, e con­
história. Uma das mais célebres reportagens de todos os tem­ funde o público. Por uma e por outra, desinforma.

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A impostura da neutralidade sileira no século XX , que atuou na modernização de O Estado
de S. Paulo nos anos 1950 (assumiu a Secretaria de Redação
Assim como atribui um sinal negativo à presença de emo­ do jornal aos trinta anos) e da Folha de S.Paulo, da qual foi
ção no relato jornalístico, ou exatamente por causa disso, o sen­ diretor de redação nos anos 1970, também combateu esse mito:
so comum acalenta o ideal da objetividade sobre-humana; ima­ A noção segundo a qual o jornalista é uma espécie à parte na hu­
gina que o bom repórter é inteiramente imune às crenças, às manidade, o Homo informens, sc nos for permitida tal liberalida­
convicções e às paixões. O repórter ideal seria o que não tor­ de, é não apenas desprovida de racionalidade como desprovida de
cesse para nenhum time de futebol, não tivesse suas pequenas moral e, se adotada, levaria os jornalistas a se considerarem aci­
predileções eróticas, nem seus fetiches, nem seus pecados, que ma do bem e do mal, ou, de outra forma, se julgarem agentes ab­
não professasse nenhuma fé, que não tivesse inclinações políti­ solutamente passivos na sociedade, como uma vassoura ou uma
cas e nenhum tipo de identificação étnica ou cultural. No mí­ pistola automática.1'
nimo, o repórter ideal é aquele que parece “neutro” . Sendo
Mesmo assim, a impostura da neutralidade ainda constitui
“neutro” , ele não favorecerá um dos ângulos de sua história e,
uma regra. E, como toda impostura, desinforma.
consequentemente, será mais confiável. Eis a síntese do bom
O pecado ético do jornalista não é trazer consigo convic­
jornalismo segundo a mistificação do senso comum. A própria
ções e talvez até preconceitos. Isso, todos temos. O pecado é
liturgia do ofício jornalístico parece ainda estar envolta no mito
não esclarecer para si e para os outros essas suas determinações
da neutralidade.
íntimas, é escondê-las. posando de “neutro” . O pecado ético do
Esse mito, que se converte numa perniciosa impostura, já jornalista, em suma, é falsear a sua relação com os fatos, toman­
foi devidamente desmascarado por autores e jornalistas das mais do parte na impostura da neutralidade. Esse falseamento — ain­
diversas formações. Em A ética no jornalism o, Philip Meyer da muito comum — pode ser facilmente verificado, em três va­
cita uma frase de Katherine Carlton McAdams (ganhadora do riantes básicas. A primeira variante é a ocultação involuntária,
Prémio Carol Burnett-University of Hawai í - a e j m c para jornais que consiste em fazer de conta que não se têm convicções ou
de estudantes sobre ética jornalística) que dá uma boa síntese preconceitos, ou que esses não interferem na objetividade pos­
do drama do profissional: “Os jornalistas são pessoas reais que sível. Resultam daí os relatos supostamente isentos, por trás dos
vivem em famílias, votam, e torcem pelo time local [...] Espera- quais o jornalista se esconde como se sua pessoa fosse um en­
se que todas as lealdades pessoais sejam postas de lado quando te impessoal e como se a notícia não fosse também determina­
se está atuando num papel profissional — mas... os jornalistas da pelo seu modo de olhar e de narrar. A máxima segundo a qual
nunca podem estar seguros de até que ponto são influenciados quem deve aparecer é o fato e não o jornalista reforça a ocul­
por fatores pessoais que controlam percepções e predisposi­ tação involuntária. É claro que o repórter não deve disputar com
ções” .8 Meyer ironiza a pretensão da neutralidade: “Ela presu­ a notícia a atenção do leitor, mas os sentidos e as habilidades,
me a postura do ‘homem-de-M arte’, o estado de alheamento naturais ou treinadas, de quem cobre um fato (intuições, modos
total” . Não raro, a fantasia de “homem-de-Marte” acaba aju­ pessoais de olhar, repertório cultural) enriquecem, e não empo­
dando a erguer uma trágica impostura, que põe em risco a base brecem, a narrativa que será levada ao público. Esconder tudo
democrática do jornalismo. O paulistano Cláudio Abramo (1923- isso é empobrecer o jornalismo como ofício e enfraquecê-lo co­
87), um dos jornalistas que desenhou a face da imprensa bra­ mo instituição social.

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A segunda variante pela qual o jornalista simula neutrali­ te, é preciso que haja clareza e positividade na relação do jor­
dade pode ser chamada de ocultação deliberada. Mais própria nalista com seus colegas e com seu chefe. Se o diálogo e a tro­
de editores e repórteres de maior patente, ela consiste em mas­ ca de pontos de vista não são cultivados como método numa
carar convicções e preconceitos sob a aparência de informação redação, o segundo nível se torna impraticável. Mas, quando
objetiva, contrabandeando, assim, para o público, concepções ele é possível — e deve ser, pois faz parte da formação ética do
pessoais como se fossem informações objetivas. A ocultação profissional, que só acontece com o diálogo sobre os valores
deliberada se beneficia da crença do público de que a neutrali­ com outros profissionais —, é também possível o tratamento
dade é possível e, além de não esclarecer ninguém sobre os fa­ compartilhado de problemas de conflito de consciência. Não se
tos (pois, propositadamente, transmite uma versão montada trata de fazer da redação um palco hamletiano, onde os atores
dos fatos como se fossem os fatos falando por si mesmos), ali­ se torturam entre sins e nãos que jamais se consumam. Trata-se,
menta ainda mais o mito do jornalista neutro. Por fim, a ter­ isto sim, de superar um modelo ainda bastante frequente de re­
ceira variante é a ocultação determinada pela servidão voluntá­ dações onde não se conversa sobre isso. Segundo esse modelo
ria. Acontece mais entre aqueles que “vestem a camisa” não da arcaico, a ética se absorve por imitação silenciosa. Ninguém
empresa, mas do chefe. De preferência, já suada. Os que ves­ fala do assunto: os novatos se adestram pela tentativa e erro,
tem a camisa do chefe anulam voluntariamente sua visão críti­ pelo mimetismo, pela adaptação intuitiva; os mais velhos ensi­
ca em nome do cargo, do salário, da ambição ou do medo, e as­ nam pelo exemplo nem tanto de conduta mas de reserva sobre
sumem para si os valores, as convicções e os preconceitos de os temas delicados.
quem está no comando. É antes de tudo na prática que se aprende — e é na práti­
As três variantes se alternam e se completam, produzindo ca que se consolidam os valores. Não obstante, esse ambiente
a desinformação não apenas no público, mas também ao longo de mutismo precisa ser ultrapassado. As conversas transparen­
da linha de produção da notícia. Os jornalistas, fingindo-se de tes orientam os iniciantes, obrigam os mais experientes a se ex­
neutros uns para os outros, armam entre si mesmos a impostu­ plicar perante seus pares, tornam claros os critérios éticos que
ra da neutralidade. Assim, varrem para baixo do tapete os con­ presidem as escolhas para cada cargo, para cada área e para ca­
flitos de consciência — que não são resolvidos, e sim escondi­ da cobertura.
dos. O modo eticamente seguro de enfrentá-los, como já foi dito, Finalmente, o terceiro nível é o da transparência entre o
requer a transparência. Em três níveis igualmente complemen­ veículo e seu público. É preciso haver a disposição de revelar
tares. O primeiro é o da positividade do jornalista consigo mes­ e debater claramente episódios que envolvam conflito de inte­
mo. Aqui, a transparência depende do conhecimento que cada resses. Isso forma a visão crítica do cidadão, que é quem, no fim
um é capaz de ter de si, de seus valores, de suas convicções e da linha, sustenta a qualidade do jornalismo. Ou seja: quem quer
até mesmo de seus medos. Buscar o conhecimento de si mes­ jornalismo melhor precisa ajudar a formar cidadãos melhores.
mo e tentar construir fundamentações racionais dos valores que Primeiro jornal a adotar a figura do ombudsman na imprensa
preza é um dever ético do jornalista. Por que fundamentações brasileira, a Folha de S.Paulo costuma discutir publicamente
racionais? Porque só elas são passíveis de entrar como argu­ casos de conflito de interesses e seus efeitos na independência
mentos num diálogo racional. editorial. Numa dessas ocasiões, a ombudsman Renata Lo Pre-
O que nos remete ao segundo nível de transparência. Nes­ te, em sua coluna dominical de 4 de junho de 2000, condenou

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a indicação (aceita) de um repórter do jornal para o júri de um ética — pois esta é uma conduta já tipificada — , um jornalista
festival de música a ser realizado pela Globo. O mesmo repór­ que cobre assuntos religiosos e ao mesmo tempo professa uma
ter escrevera a reportagem que, dias antes, dera a notícia do religião específica pode viver intimamente um conflito de cons­
festival, mas não informou o leitor sobre sua condição de jura­ ciência e pode ser levado a imprecisões informativas por isso
do. “Não há como esperar jornalismo independente dessa du­ — mas não está cometendo nenhum deslize aparente. A liber­
pla jornada”, escreveu a ombudsman. O conflito, além dc ser pos­ dade dc culto é uma garantia individual, é um direito. Apenas
to pelo acúmulo de duas atividades com propósitos distintos é preciso zelar para que essa liberdade não se converta numa
num mesmo evento, assume também a forma dc um conflito de porta pela qual os interesses estratégicos de uma ou outra reli­
consciência: terá ele o distanciamento necessário para cobrir gião obstruam, por meio da consciência de um repórter, ou de
criticamente a performance do júri? Discutir assuntos como es­ um editor, o direito à informação do cidadão. E só disso que se
se com o leitor é um serviço para a sociedade: ajuda a formar trata. De resto, a decisão sobre ser ateu, agnóstico, católico ou
sua mentalidade crítica a respeito do papel do jornalismo. umbandista pertence ao foro íntimo de cada um — e não se po­
Mas o conflito de interesses motivado por convicções pes­ de esperar que o jornalismo exija que seus praticantes abram
soais não pode ser confundido com o conflito de interesses de mão da própria consciência.
fundo económico ou funcional (quando duas atividades incom­ Do mesmo modo, não se pode pretender que todos os que
patíveis são exercidas pelo mesmo profissional). Se alguém é cubram assuntos religiosos sejam indiferentes às manifestações
designado editor de política de um jornal diário e acumula com da fé. Não faz sentido. Como seria o jornalismo se todos os que
essa função uma assessoria a um determinado partido político, falassem de futebol não apreciassem a arte dos craques, se to­
tanto o jornal como o jornalista incorrem numa falta óbvia. O dos os que cobrissem a área política defendessem a abstenção
profissional pode perfeitamente declarar que isso não lhe traz sistemática em todas as eleições, se todos os que fotografassem
nenhum drama de consciência (embora as convicções políticas moda considerassem todos os desfiles uma celebração de futi­
lidade e se todos os que escrevessem sobre religião fossem
pertençam à esfera da consciência), mas a caracterização de
ateus resolutos? O ideal ético para superar esses dilemas de cons­
seu conflito não depende de suas convicções. Ele está posto
ciência requer a derrubada da impostura da neutralidade e, em
objetivamente. O jornalista está trabalhando para dois patrões
lugar dela, a busca de um equilíbrio, de uma pacificação entre
cujos interesses conflitam. A sua falta ética, portanto, não pre­
as convicções e crenças pessoais do jornalista e o nível de ob­
cisa passar por nenhuma razão de consciência. Qualquer códi­
jetividade requerido pelo público. Do encontro desse equilíbrio
go de ética estabelecerá um veto a essa “dupla jornada” , reto­ depende a condição de diálogo do jornalista (e do veículo) com
mando a expressão da ombudsman da Folha. As funções é que o seu público. Em outras palavras, a legitimidade do jornalista
são incompatíveis, quaisquer que sejam as convicções pessoais como narrador dos fatos sociais depende também do encontro
do profissional. Não se trata, portanto, de uma questão da esfe­ desse equilíbrio. Trata-se portanto dc um equilíbrio que se estru­
ra da consciência. Os conflitos motivados puramente por razões tura como uma conciliação possível entre a consciência do jor­
de consciência são menos simples, exatamente porque depen­ nalista, seu dever de ofício e as demandas postas pelo público.
dem de componentes subjetivos. Esse equilíbrio não é um ponto fixo, não é um referencial
Se um jornalista que aceita agrados de alto valor comer­ absoluto, mas um centro relativo, que se desloca à medida que
cial incorre numa prática facilmente demonstrável como falta se transformam a cultura e a mentalidade da comunidade. Ou

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seja, a pacificação possível entre os limites de consciência de A virtude de estar no centro faz parte da natureza política
cada um e a objetividade requerida pelo público em relação aos do jornalismo: implica conceder um pouco a cada força entre
fatos guarda uma sintonia com a mentalidade geral do público. todas as que atuam no espaço público. O centro (ou a ilusória
Com base nisso, pode-se dizer que a percepção de neutralidade “neutralidade” ) tende a coincidir com o centro da força hege­
emerge como ilusão de ótica. Como o equilíbrio a ser alcança­ mónica na sociedade. Se a força hegemónica for o poder eco­
do pelo jornalista (ou pelo veículo em que ele trabalha) represen­ nómico falando sozinho, sem mais interlocutores, o equilíbrio
ta um centro que se desloca em sintonia com a transformação jornalístico se aproxima do que atualmente se chama de discur­
da cultura e da mentalidade do público, mantendo com essas so (ou pensamento) neoliberal. Se a afirmação dos direitos so­
um paralelismo constante, nasce no próprio público a sensação ciais tiver mais peso, como teve nos tempos do welfare State na
de que o centro ocupado pelo jornalista é um ponto fixo no uni­ Europa, o centro se confundirá com o ideário da social-demo­
verso social. Daí, aquele que ocupa o papel legitimado de nar­ cracia. Em matéria de costumes, a “neutralidade” jornalística
rador dos acontecimentos assume a imagem de imparcial. Pela certamente não é a mesma em San Francisco e em Teerã (onde,
ilusão de ótica, o bom jornalismo seria então aquele que não aliás, os jornais são censurados e fechados). E por saber disso, e
toma partido de nada. Na verdade, porém, é aquele que sabe se não por acreditar na ilusão de ótica, que o melhor jornalismo pro­
pôr no centro de tudo, não aos olhos do mundo inteiro, mas do cura evitar ao máximo o conflito de consciência. Um repórter
seu público específico. O centro ocupado pelo observador pa­ pode ser adepto do islamismo, mas não pode se pôr a serviço
rece ser um centro fixo, mas ele é apenas um ponto de equilí­ dos interesses estratégicos de sua religião em detrimento da in­
brio relativo à luz do público específico. formação tal qual o público a reclama. Quando a sua religião o
Isso vale para as questões políticas, religiosas ou de costu­ leva a isso, ou quando se tem a aparência de que sua religião o le­
mes. O campo dos costumes, aliás, é particularmente ilustrativo. va a isso, ele precisa ser afastado daquela cobertura, ou daque­
O jornalismo não fica olimpicamente alheio aos padrões de com­ la editoria, ou daquele veículo. O mesmo ocorre com a área po­
portamento sexual, por exemplo. Ele não é neutro, não é indi­ lítica. A razão de evitar o conflito de consciência não é a fé na
ferente, mas reage a esses padrões, registra-os e consolida-os, neutralidade, como se pensa, mas o seu contrário: é a percep­
atuando mais ou menos emocionalmente. O decisivo aqui é que ção, pelos jornalistas, ao menos pelos melhores, do engajamen­
o jornalismo sempre acompanha o deslocamento do centro de to natural de que se alimenta o jornalismo. E por estar visceral­
gravidade da mentalidade do público ao qual ele se destina. Se mente atado às paixões humanas e aos valores sociais que ele
não acompanhar, rompe as ligações do diálogo. O jornalismo deve se policiar.
não apenas se dirige a um público, mas, como discurso, origina-
se também desse público. Não é algo que se dirija ao público de Partidarismos
fora para dentro, mas é uma expressão do público dirigida ao
próprio público. O jornalismo acontece como comunicação so­ O envolvimento político é expressamente condenado pe­
cial e pública. O jornalista não pode, portanto, estar neutro — ele los códigos de ética americanos. Para os mais ortodoxos, é um
é tão comprometido quanto qualquer cidadão. Por isso é que pre­ princípio rígido: o jornalismo e o exercício da atividade políti­
cisa vigiar-se de um modo especial. Se a neutralidade fosse real­ ca pelo jornalista são campos antagónicos, que não admitem
mente possível, essa questão não seria uma questão ética. conciliação nem coexistência. Ou se opta por um, ou por outro.

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Na vida prática, porém, não dá para ser assim tão purista. esportiva e, ao mesmo tempo, participa de uma organização
Há um quê de “homem-de-Marte” nessa concepção de jorna­ não governamental cuja finalidade é proteger as florestas tropi­
lista absolutamente não político. O profissional de imprensa cais. O inadmissível é, por exemplo, ser ao mesmo tempo mili­
tem uma formação intelectual, sofre (ou já sofreu) influências tante ativo num partido e repórter de assuntos nacionais num
de doutrinas e filosofias as mais diversas, tem um senso de jus­ jornal ou numa revista que prometa informações colhidas e edi­
tiça social, tem opções como eleitor. E é bom que seja assim: tadas de um ponto de vista apartidário. Portanto, ao recomen­
um sujeito obsessivamente apolítico não se dará bem nesse ofí­ dar aos jornalistas o distanciamento dos vários tipos de movi­
cio de informar o público. O jornalismo requer de seus prati­ mentos comunitários, mais ou menos partidários, o espírito dos
cantes alguma dose de vocação política: é desejável algum ta­ códigos visa preservar a independência editorial. Preservando
lento para liderar equipes e também a opinião pública, além de a independência, os códigos protegem a qualidade de informa­
sensibilidade (política) para as tensões que angustiam ou mo­ ção que é oferecida à sociedade.
bilizam a sociedade. O jornalismo tange a esfera do poder, cri­ Mas isso é só metade da equação. Para que a independên­
tica e vigia os governantes e, nesse sentido, é uma atividade so­ cia se efetive, é preciso que o proprietário desse jornal ou dessa
cial marcadamente política — mas é política pela informação, revista tome os mesmos cuidados que seus empregados ou co­
pela opinião, e não pelo partidarismo. O jornalista, portanto, laboradores jornalistas. Por isso, as normas éticas do jornalis­
sobretudo o jornalista político, é um político fazendo política mo americano costumam abranger tanto a conduta dos profis­
por outros meios. Assim como são políticos os veículos volta­ sionais como a dos veículos e a dos patrões. Tanto o jornalista
dos para a cobertura política, e é político o pacto de confiança como o seu empregador, diz o Código da Society of Professio-
que esses veículos estabelecem com o público. Por isso o en­ nal Journalists ( spj ), devem evitar empregos públicos, envolvi­
volvimento partidário pode ser danoso, mas, também por isso, mento político e até mesmo fazer serviços em organizações co­
é preciso relativizar o princípio pelo qual não pode haver en­ munitárias quando isso puder comprometer ou dar a aparência
volvimento político de nenhuma forma na pessoa do jornalista de que compromete sua independência.
— pois, se ele não tivesse nenhuma formação política, não se­ Do ponto de vista de quem comanda redações e contrata
ria um bom jornalista político. jornalistas, os conflitos de interesses não financeiros (os con­
O que não pode haver é uma ligação formal de subordina­ flitos de consciência) começam a ser enfrentados pelo bom ge-
ção pública entre o jornalista dedicado à cobertura política e renciamento de equipe. Ou, no linguajar dos executivos, pela
um partido: ele não está na profissão para obedecer ao partido, boa gestão de recursos humanos. Os profissionais designados
mas ao interesse público. Mas essa exigência não pode ser en­ para uma função devem ter um perfil de consciência adequado
carada como uma lei absoluta. Ela somente faz sentido quando àquela função. Em outras palavras, é preciso que as convicções
vista à luz dos casos específicos. Não se trata de um imperati­ e os valores de quem é escalado para um cargo estejam em sin­
vo incondicional válido para todos os jornalistas de todos os tonia com a objetividade que o público espera de quem exerça
tempos e de todos os lugares, mas de uma regra destinada àque­ aquele cargo. Mais óbvio impossível, certo? Certo, mas a res­
les profissionais que cobrem assuntos políticos. O objetivo da ponsabilidade dos que comandam as redações quase nunca é
regra é apenas evitar a perda (ou perda aparente) da indepen­ lembrada quando os conflitos de consciência vividos por um
dência. Não há problema se o sujeito é repórter de uma revista repórter ou por um editor começam a arranhar a credibilidade

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dc um veículo. Ao recrutar e promover alguém, um chefe pode da noção de pecado, dos desejos etc., ou seja, dos fatores cons­
estar acendendo o pavio de um conflito danoso, ou pode estar cientes e inconscientes — pode ser definido como o discurso
resolvendo por antecipação esse tipo de embaraço. Isso signi­ de fundo que cada profissional traz consigo. Os modos de olhar,
fica pedir “atestados ideológicos” aos candidatos a uma deter­ as percepções mais sutis, as reações ao inesperado, tudo isso
minada vaga? Não: o atestado ideológico — que tem um certo emerge desse discurso de fundo. Trata-se de um repertório tão
gosto de caça às bruxas — não ajuda em nada. O critério não natural no comportamento de alguém quanto a língua materna
passa por investigações do passado ideológico de ninguém, mas é natural na fala. Falsear deliberadamente esse repertório pode
fixa-se em verificar a honestidade com que esse profissional ser perigoso para o sujeito e. se esse sujeito for jornalista, é tam­
lida com suas próprias convicções diante dos debates públicos. bém perigoso para aqueles que serão informados por ele. Esse
Se ele é fiel a elas e confiável aos olhos dos seus interlocuto­ jornalista terá perdido o referencial de sua intuição e de sua es­
res, é forte candidato a ser um bom jornalista. Além disso, é pontaneidade: vai se transformar num repórter ou num editor
preciso que os critérios de recrutamento e promoção sejam ra­ mecânico, em permanente desencontro com o seu modo “natu­
cionais e de fácil compreensão. Assim, funcionarão como bali­ ral” de agir, pensar, olhar e reagir. Enquanto ele permanecer as­
zas para a conduta geral. sim, estará renunciando ao brilho e ao talento. Será mediano,
Já do ponto de vista de quem é contratado — ou de quem ou medíocre. Ou ele encontra o ponto de equilíbrio entre seu
quer ser contratado —, de quem é promovido ou quer ser, os dever profissional e seu repertório interno — e buscar esse equi­
conflitos desse tipo começam pela administração da própria líbrio é um dever ético — , ou ele não atingirá um nível ótimo
carreira. Há aqui um cuidado específico a ser observado. Não de performance. Mesmo assim, não faltam exemplos de con­
adianta nada decretar-se neutro, isento e apartidário dc uma ho­ versões abruptas na corrida por empregos bem remunerados. E
ra para outra. O mito da neutralidade leva muitos jovens pro­ uma pena. E é uma das causas das mazelas da profissão.
fissionais a encenar para os chefes uma isenção que de fato não
possuem. Em silêncio, agridem suas convicções íntimas mais Opinião e informação
arraigadas. Isso é tão pernicioso numa redação quanto as velei­
dades dos aprendizes que não aceitam ser corrigidos. Estes, os Voltando ao ponto de vista dos veículos, há uma outra or­
petulantes, são logo expelidos. Os camaleões, contudo, recém- dem de atitudes que ajudam a evitar que visões subjetivas con­
convertidos à impostura da neutralidade, costumam durar um taminem o relato dos fatos. Agora, já não se trata da escolha do
pouco mais e não têm noção da desinformação, que carregam time, da gestão de recursos humanos, mas da transparência em
em si como um vírus. Quem, apenas para agarrar uma vaga, fin­ relação ao público. Do mesmo modo que é preciso zelar para
ge que abraçou um ideário que na verdade mal conhece está que a independência de cada repórter contribua para a indepen­
inadvertidamente abrindo mão da espontaneidade e da intuição, dência final do veículo, é preciso ajudar o leitor a distinguir o
fatores básicos do trabalho jornalístico. Não é tão difícil enten­ que é opinião do que é informação. Daí vem a antiga norma éti­
der por quê. ca de separar aos olhos do público o que são artigos opinativos
O que chamamos aqui grosseiramente de perfil de consciên­ (que expressam visões subjetivas) do que são as reportagens
cia de cada um — que é composto dos valores, da formação re­ (que têm a pretensão de objetividade). Separando uma coisa da
ligiosa, das convicções e, de modo mais profundo, dos medos, outra, joga-se limpo.

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Nos Estados Unidos, os mais importantes códigos de éti­ lato factual. Excepcionalmente, o que distingue a opinião — opi­
ca, tanto de associações profissionais como de associações de nião do editor ou do âncora — em alguns telejornais é um su­
empresas, recomendam a distinção. Assim acontece com o Có­ til movimento de câmera, que aproxima o rosto do apresenta­
digo da Sociedade de Jornalistas Profissionais americana (“A dor. Só muito raramente o telespectador é convidado a ouvir a
prática sadia faz uma clara distinção entre reportagens noticio­ leitura de um editorial explicitamente chamado de editorial.
sas e expressões de opinião”), com o Código da Associated Press Também nas revistas semanais e mensais não existe uma linha
Managing Editors Association (“Os editoriais e outras expres­ visível isolando opinião de informação. A fórmula editorial pe­
sões de opinião por repórteres e editores devem ser claramen­ la qual elas são confeccionadas não prevê essa distinção. As re­
te rotulados”) e com os Cânones do Jornalismo da American vistas têm uma utilidade diferente da dos jornais. Enquanto es­
Society of Newspaper Editors, a asne (“A prática sadia estabe­ tes oferecem a informação bruta — sua missão é dizer o que se
lece clara distinção entre reportagens noticiosas e expressões passa imediatamente —, as revistas, de periodicidade mais es­
de opinião. As reportagens noticiosas devem ser livres de opi­ paçada. fornecem os contextos dos fatos, interpretam o noticiá­
nião ou preconceito de qualquer espécie”). rio, explicam-no, dão a ele uma direção.
Os maiores jornais do mundo — e a maior parte dos me­ A fórmula da revista semanal de informação, inventada
nores, que os imitam — têm nisso um ponto de honra. Os edi­ pela Time nos anos 1920, propõe-se a dar a resenha dos fatos
toriais e os artigos assinados são claramente postos à parte dos da semana — o que significa interpretar os acontecimentos pa­
textos informativos. Essa divisão ajuda a cimentar o pacto do ra o leitor. Ora, isso requer que uma visão de mundo esteja pre­
veículo com o público: de um lado, editores e repórteres pro­ sente em todas as páginas da revista para determinar o peso que
curam, até onde sua consciência alcança, não contaminar o re­ cada um dos muitos fatos vai merecer naquela edição, e de que
lato dos fatos com visões opinativas; de outro, a audiência é modo esses fatos serão enfocados. Diz-se que o texto das revis­
orientada a distinguir os relatos baseados em observações em­ tas (não apenas as semanais) é “editorializado" e que, às vezes,
píricas relativamente impessoais, ou seja, as reportagens, dos parece que foi escrito por um único autor. É verdade, mas isso
exercícios de argumentação, ou seja, os artigos opinativos. Tra­ não é nenhum defeito ético. Isso é apenas da natureza do veí­
ta-se de um pacto de intenções. A confiança se apóia naquilo culo. Daí vem a sua utilidade. Nas revistas, é natural que a opi­
que uma redação promete procurar fazer, isto é, na tentativa de nião do editor pontue todo o conteúdo noticioso, confundindo-
buscar separar ao máximo opinião de informação. se aí com a informação objetiva.
Alguns desdenham dessa separação, alegando que ela não Aliás, não é raro que julgamentos subjetivos — do editor
passa de formalidade. O fato, no entanto, é que a simples ob­ — sejam incorporados ao texto como se fossem dados objeti­
servância da formalidade, assim mesmo, como formalidade, já vos. Exemplos disso podem ser encontrados semanalmente. Um
indica uma tendência de respeito à confiança do público. Um que já foi bastante comentado — e que ainda se presta a fins di­
jornal será tanto mais confiável quanto menos as argumentações dáticos — é a reportagem de capa da revista Veja sobre o cantor
expressas em seus editoriais interferirem na correção empírica e compositor Cazuza, publicada na última semana de abril de
de suas reportagens. 1989: “Cazuza: uma vítima da aids agoniza em praça pública” .
Ao contrário do que se verifica nos jo rn a is, a maior parte dos Rigorosamente baseado nas declarações do próprio roqueiro, o
noticiários de TV não prima pela separação entre opinião e re­ texto é objetivo e repleto de informações factuais. Ao mesmo

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tempo, é qualificativo. Cazuza é caracterizado como “garoto- editor se manifesta sobre tópicos abordados na edição, ou so­
problema” , “homem-problema” e “doente-problema” . Foi, cla­ bre os talentos de sua equipe e, de vez em quando, comenta um
ro, uma edição polêmica. Mas ela é lembrada aqui não pela con­ problema de interesse público, criticando ou elogiando autori­
trovérsia que causou, e sim pelo que ela deixa ver da fórmula dades e sugerindo ou aplaudindo soluções. Como regra, no en­
do texto nas revistas semanais. tanto, a opinião do editor se espraia por todas as páginas. Não
Numa passagem do texto, fica bem claro o modo como a se restringe à “carta ao leitor” , mas comparece em cada título,
opinião — do editor — se confunde com o relato informativo: em cada legenda, em cada nota. As revistas não pretendem nem
a parte em que se afirma que Cazuza “não é um gênio” . Trata- dizem pretender retratar o mundo e a vida como eles são, mas
se de uma opinião (certa ou errada, não importa) expressa co­ pretendem fazer uma leitura do mundo, uma interpretação da
mo se fosse fato. Segundo quem Cazuza não seria um gênio? realidade — e é com isso (com essa leitura, com essa interpre­
E quem, em contrário, sustentava em sua obra algum sinal de tação) que o leitor se identifica. Diz-se até, não sem vaidade,
genialidade? Qual critério de classificação estética permitiria que as revistas devem ter “a cara do editor” .
afirmar que o cantor não era genial? O critério era a opinião da Além de vaidosa, é uma presunção ilusória. Na verdade, a
própria revista. Assim, a não-genialidade de Cazuza era toma­ boa revista tem a cara de seu público. A visão de mundo do edi­
da como um dado da realidade, objetivo e pacífico, e, o que é tor não é forjada no interior da cabeça dele para daí espalhar-
ainda rnais sintomático: na lógica do texto, funcionava como a se pelo universo dos leitores; apenas representa uma consolida­
premissa para que ele merecesse aquele enfoque não laudató- ção de opiniões médias do público ao qual se destina, e a isso
rio. Cazuza era um doente-problema, e assim era retratado, por­ acrescenta alguma pitada de surpresa e de invenção. O bom edi­
que não era um gênio. A opinião, portanto, embasava e organi­ tor já não é o visionário que, como nos ideais do iluminismo,
zava o relato factual. iria promover o esclarecimento do povo sequioso de luzes. O
As críticas à reportagem apontavam sensacionalismo e bom editor é aquele cuja visão de mundo é bem próxima à do
moralismo da parte da revista, o que se pode discutir, mas o fa­ seu leitor. Tem uma certa ousadia aqui, um toque de conserva­
to é que o tom “editorializado” é natural, congénito, na fórmu­ dorismo ali, mas não pode pretender nada de espetacularmen­
la consagrada da revista semanal de informação. Pode-se errar te original sob pena de não conseguir termos de diálogo com o
ou acertar na dose, mas o componente da opinião é indissociá­ leitorado.
vel do modo como se desenvolve o texto. Não é por acaso que A fórmula das revistas assimila e prevê a incidência sub­
os títulos das reportagens exprimem muito freqiientemente um terrânea da opinião na forma de articular as informações —
julgamento, como se fossem pequenas sínteses da moral da his- mas, importante, essa opinião já é, ao menos em parte, uma vi­
torinha, ou apelidos para personagens conhecidos, ou piadas são compartilhada pelo público. O que se confirma mesmo nos
qualificativas. Essa editorialização, em si, não é um falseamen­ casos mais conturbados. O tom não laudatório da reportagem
to. Ela é um traço de nascença nas revistas. que Veja publicou sobre Cazuza em 1989 gerou protestos e abai-
Nas revistas de um modo geral (não apenas nas sema­ xo-assinados. Mas, das 625 mensagens recebidas pela redação,
nais), o único texto que nomeadamente traz a opinião da revis­ 59% endossavam a matéria. Ela representava os humores ao
ta — o único “editorial” propriamente dito — costuma ser a menos de parte de seu leitorado. E sempre é assim. A opinião
“carta ao leitor” , que vem logo nas primeiras páginas. Ali, o que norteia a edição das grandes revistas é menos “a” opinião do

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encarregado de plantão e mais a expressão média das inclina­ nando, o jornal não está distorcendo o noticiário para atingir
ções do público. É possível, aliás, que essa característica — a de um fim político; está simplesmente expressando com transpa­
corresponder a uma demanda do público em termos de visão de rência a sua proposta. Mas nas revistas, nas quais não há uma
mundo — esteja no fundamento da fórmula predominante nas demarcação explícita entre um texto de editorial e um texto de
revistas, que é o entrelaçamento entre a opinião e a informação. reportagem, às vezes uma questão de opinião aparece como se
Independentemente de certa ou errada, de mais ou menos confu­ fosse a mera constatação de fatos.
sa, de menos ou mais objetiva, foi essa a receita que se consa­ Um dos exemplos disso foi a edição da revista Exame de
grou no mercado editorial das democracias ocidentais. 28 de setembro de 1994. O Brasil vivia a campanha eleitoral
pela Presidência da República. Assumindo o apoio a um dos
A opinião partidária candidatos, Exame trouxe a seguinte chamada de capa: “Por
que Fernando Henrique é melhor” . Ao se dirigir ao texto no in­
Quando a opinião, e, mais ainda, a opinião partidária, pre­ terior da revista, o leitor encontrava o título: “Nunca foi tão fá­
valece sobre o bom senso e sobre a verdade dos fatos, aí, sim, cil fazer a opção certa” .11' Texto de opinião? Talvez, mas não
tem-se o que as normas clássicas do jornalismo vão chamar de era isso que asseguravam as palavras logo acima do título, no
partidarismo. Trata-se de um desvio condenável. O Código da alto dí^página: “Reportagem de capa” . Como uma reportagem,
Sociedade dos Jornalistas Profissionais dos Estados Unidos é ou seja, como um relato objetivo de fatos empiricamente veri­
taxativo: “O partidarismo viola o espírito do jornalismo ameri­ ficáveis por qualquer observador, o texto dizia: “Há um candi­
cano” . A neutralidade é impossível, e a objetividade — ou o dato à Presidência diante do qual os demais se apequenam: o
que se chama de objetividade em jornalismo — é uma conquis­ tucano Fernando Henrique Cardoso. Ninguém reúne tantas con­
ta efémera, não durável, relativa e precária, mas, sobretudo em dições, como ele, para comandar a arrancada que se vislum ­
política, um mínimo de distanciamento crítico pode e deve ser bra para o Brasil” .
pretendido pelos profissionais de imprensa. É bom não esque­ Há duas abordagens possíveis para examinar o problema
cer que a função de fiscalizar o poder (uma função política, por do partidarismo nessa reportagem de Exame. A primeira delas
concluirá que uma capa como aquela, em defesa de uma can­
excelência) está entre as razões que justificam a existência da
didatura específica, não representa nada de anormal. Essa abor­
imprensa. E fiscalizar o poder significa vigiar governantes e
dagem se baseia na premissa de que uma boa revista de infor­
possíveis governantes, ou seja, vigiar também os partidos e os
mação deve refletir na média a inclinação de seus leitores. Ela,
políticos, sejam eles da situação ou da oposição. Ora, sem dis­ além de informá-los, pode também representá-los. Ao declarar
tanciamento crítico não há fiscalização possível. que um dos candidatos é “melhor” , em tese está refletindo a
Um jornal que se pretenda apartidário pode, dentro do que opção média do leitorado. E assume uma responsabilidade e
se entende por normalidade ética, recomendar o voto num ou um risco. Se sua atitude oferece perigos a alguém, é somente a
noutro candidato, excepcionalmente, desde que o faça no espa­ ela mesma. Se não estiver em sintonia com seu público, pode­
ço reservado aos editoriais. Pode também apoiar um projeto de rá perder a confiança dele. Por essa argumentação, a capa de
lei, ou pedir a demissão de um ministro. Mas sempre em edi­ Exame não trouxe riscos para mais ninguém, além dela mesma
toriais. Isso é interferir em assuntos políticos? Sim. Mas é uma — não ameaçou propriamente a democracia; apenas favoreceu
interferência legítima. Ao opinar, deixando claro que está opi­ um candidato em detrimento de outros.

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Em favor dessa primeira abordagem, deve-se ter em con­ só faz sentido se se deixam explícitas as premissas da escolha:
ta o peso específico de uma revista como Exame na esfera pú­ melhor para quais interesses?; melhor para que segmento da
blica. Não se pode pretender que, ao defender uma candida­ sociedade?; melhor para fazer o quê, segundo quais diagnósti­
tura, uma revista especializada em negócios e economia, com cos? Exame, no entanto, pretendeu demonstrar — com decla­
cerca de 140 mil exemplares de circulação na época, tenha o rações, fatos e expectativas de fatos futuros — que Fernando
mesmo impacto que uma emissora de televisão de canal aber­ Henrique seria “melhor” com base em razões que seriam uni­
to. O partidarismo das emissoras de televisão, quando acontece, versais, que teriam a mesma validade para qualquer eleitor bra­
distorce o noticiário e tem efeitos sobre milhões de telespecta­ sileiro, independentemente de suas condições sociais, econó­
dores, alguns deles analfabetos (que não dispõem de outras micas, partidárias, e de suas prioridades. Por isso, funcionou
fontes de informação que não a t v ). Uma revista como Exame, como uma peça partidária, de convencimento político. E ver­
ao contrário, abrange um público segmentado e bem informa­ dade que um certo tom “editorializado” está presente na maio­
do. Ao assumir uma posição declarada perante a eleição, ela ria das reportagens da maior parte das revistas. Mas, ainda aí,
deixa ao seu leitor a opção de discordar. Como se fosse um edi­ o partidarismo constitui um limite a ser observado no texto, so­
torial de jornal diário. Admita-se então que, embora autopro- bretudo quando se trata de reportagem. Nesse sentido, pela se­
clamado “reportagem de capa” , o texto de Exame pôde ser lido gunda abordagem, é possível argumentar que, com sua capa,
como se fosse um editorial. Exame beneficiou-se da aproximação natural que as revistas
A segunda abordagem é mais crítica — e localiza um promovem entre opinião e informação, ultrapassando o limite
exemplo de partidarismo naquela edição de Exame. Por quê? do partidarismo.
Porque a revista faz parecer um fato empírico simples o que, na
verdade, é uma opinião eleitoral. A reportagem de capa sobre As opiniões que prevalecem
Fernando Henrique sugeria ao leitor que o candidato era “o
melhor” de fato, isto é, que ele era “melhor” porque sua supe­ Quanto a partidarismos, resta ainda um comentário a ser
rioridade seria objetiva, assim como a dívida externa é um nú­ feito. Quando o assunto é eleição, os donos dos meios de co­
mero exato e o peso de um boxeador é um número exato. Logo, municação, na prática, têm mais espaço para se manifestar do
o que estaria em jogo no pleito não seriam programas diferen­ que os jornalistas empregados. E um desequilíbrio. Nos edito­
tes para governar o país, mas apenas uma proposta correta con­ riais de jornal ou nas capas de revista, as opiniões partidárias
tra outras mais ou menos equivocadas. Equivocadas de fato. que prevalecem são as opiniões da empresa ou do dono. Ao
Ora, todos sabem que diferentes eleitores podem ter diferentes que alguém poderia objetar: “Ora, nada mais lógico. Afinal, os
prioridades, e sabem também que o candidato mais indicado veículos são propriedade particular deles. Se a opinião não fos­
para governar segundo as prioridades de A pode não ser o mais se a deles, de quem mais haveria de ser?” . Bem, trata-se de um
indicado segundo as prioridades de B. Por isso, aliás, é que as fato insofismável. Se o jornalista quiser opinar diferentemente
eleições constituem um processo universalmente aceito nas de­ sobre o melhor candidato numa eleição presidencial, que se
mocracias: elas consagram não “o” melhor, mas o que mais (ou tome sócio controlador de um jornal ou de uma revista, ou crie
melhor) representa os anseios da maioria. um site na internet e torça para que ele seja um sucesso.
Portanto, dizer que um candidato “é melhor” que os outros Ironias à parte, o fato é que a simples constatação de que

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os empregadores têm mais condições de opinar do que os em ­ dência), seus negócios irão mal. Portanto, é o mercado quem te­
pregados indica mesmo um desequilíbrio. A imprensa, afinal, ria os mecanismos para motivar as companhias privadas a ze­
atende a um direito extramercado, o direito à informação, e es­ larem pela independência editorial e a combaterem o conflito
se direito pressupõe o livre debate de idéias. Quando um único de interesses. A teoria, ao menos, sempre foi essa. Mas será que
segmento da sociedade — aquele composto dos que são donos hoje o mercado é realmentc um juiz confiável?
de rádios, televisões, jornais, revistas, sites na internet — opi­
na mais que os outros setores, algo não vai bem. E, no Brasil, As megafusões e os conglomerados da mídia
não vai bem sobretudo na televisão. O que é ainda pior. Sendo
concessão pública, uma emissora de rádio ou de televisão não O método “igreja-estado” revelou-se eficiente para dirimir
é exatamente propriedade privada como são os jornais e as re­ conflitos no âmbito interno das empresas de comunicação. Mas
vistas. O dono das emissoras não é completamente dono, ele é ele é um método datado. Fazia todo o sentido num mercado em
apenas um concessionário — e, eticamente, deveria ter alguma que as empresas de comunicação se dividiam entre aquelas mais
cerimónia para pôr no ar as suas opiniões. Como os donos não voltadas para o entretenimento — como as que produzem fil­
costumam ter cerimónia nessa matéria — ao contrário, as emis­ mes e discos — e aquelas empenhadas em prover a sociedade
soras vêm sendo explicitamente usadas para fins eleitorais, ao de informações jornalísticas — como os jornais e as revistas
menos até as eleições de 1998 —, o desequilíbrio entre os que jornalísticas. Hoje, o mercado não é mais assim. As emissoras
podem opinar e os que não podem apresenta proporções conti­ de rádio e televisão, quando surgiram, começaram a fundir os
nentais. dois negócios num só. Elas veiculavam tanto as obras de ficção
como programas de reportagens e documentários. O seu lucro
dependia mais da fidelidade do público, e da extensão desse
UMA FRONTEIRA DA VISÃO LIBERAL SOBRE CONFLITO DE INTERESSES
público, e menos da qualidade estritamente editorial de seus con­
teúdos informativos. Antes de o modelo das emissoras de tele­
Na prática, a ética jornalística sobre conflito de interesses visão adquirir hegemonia no mercado editorial, a empresa jor­
é a ética da empresa. É dentro dela que se conceituam os con­
nalística era uma entidade auto-suficiente. Os jornais, sobretudo
flitos e os métodos para superá-los. Ou seja: no espaço priva­
os de mais tradição, permaneciam funcionando como empresas
do (no âmbito interno de uma companhia particular), enfrentam-
autónomas, ou seja, seu negócio era jornalismo e só jornalis­
se problemas que, em tese, pertencem à esfera pública (pois a
mo. A publicidade vinha como consequência do vínculo essen­
independência editorial corresponde ao direito à informação,
cial que essas empresas travavam com seus leitores: se estes
que é de ordem pública). No aspecto específico do conflito de
confiavam na informação, se eram fiéis, se eram muitos e se ti­
interesses, não é incomum que jornais, emissoras e editoras de
nham bom poder aquisitivo, a publicação vendia bem e o anún­
revistas adotem normas internas para os seus funcionários. São
normas éticas da empresa — uma solução privada —, que, em cio atingia um alto preço. A saúde financeira dos grandes jor­
parte, correspondem a uma expectativa pública. Mas só em par­ nais decorria diretamente da qualidade jornalística que eram
te. Na verdade, o que leva um empresário a tentar evitar o con­ capazes de oferecer ao público. O jornal era o negócio. O jor­
flito de interesses é sua clareza de visão. Ele enxerga que, se seus nal era a empresa. Aí, a independência editorial se confundia
veículos perderem a independência (ou a aparência de indepen­ com a independência da própria empresa.

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Em outras palavras: se a empresa não dependia de nenhum lembrar a edição de 21 de novembro de 1998, da revista ingle­
anunciante em particular, ela se encontrava com um alto grau sa The Economist, que identificou a oligopolização da mídia
de liberdade para informar sem maiores constrangimentos. Por­ mundial. Neste cenário, o velho tópico do conflito de interes­
tanto, evitando conflitos entre o interesse do leitor e o interesse ses assume outro porte. Muito maior e mais complexo.
do anunciante, resguardava automaticamente a qualidade do Em termos clássicos, ou melhor, de acordo com o modelo
seu produto: as notícias cotidianas que vendia na sociedade. À de mercado em que a independência jornalística se confundia
medida que o entretenimento passou a englobar o negócio jor­ com a independência da empresa jornalística em relação a seus
nalístico, a configuração do negócio se alterou. A partir da dé­ anunciantes e aos governos, bastava que a empresa não depen­
cada de 1980e,de modo mais acentuado, a partir dos anos 1990, desse visceralmente de forças económicas fora dela mesma pa­
grupos económicos que antes exploravam apenas o entreteni­ ra que os seus jornalistas desfrutassem de liberdade para apu­
mento começaram a fundir-se com outros antes dedicados ao rar o que fosse de interesse público. Agora, no entanto, é preciso
jornalismo. Um marco dessa tendência foi a fusão da Time (em­ que a atividade dos jornalistas de um conglomerado da mídia
presa jornalística) com a Warner (entretenimento). O jornalis­ não seja constrangida pela pressão, velada ou explícita, dos
mo, pouco a pouco, foi mudando de lugar: o que antes eram braços desse mesmo conglomerado que se dedicam ao entrete­
empresas independentes começou a se transformar em departa­ nimento. Esse é hoje o desafio para os que querem preservar a
mentos no interior dos grandes conglomerados da mídia. Mais: reportagem de tudo o que seja estranho ao direito à informação.
os jornalistas dessas empresas passaram a ter também, como Para isso, o mercado já não oferece parâmetros seguros.
objetos de seu interesse, de sua cobertura e de sua análise, pro­ Se se transportam os critérios de independência da velha em ­
dutos culturais — filmes, c d s , vídeos e livros — gerados por presa jornalística autónoma para dentro dos atuais conglomera­
seus empregadores. dos da mídia, o que se tem é um conjunto de regras anacróni­
Com isso, o velho desafio do jornalismo, o de ser indepen­ cas. Antes, havia margem para entender que os interesses do ci­
dente do anunciante ou do governo, também mudou de lugar. dadão estariam garantidos pela independência das empresas
Agora, trata-se de saber se ele consegue, além de ser indepen­ jornalísticas. Se estas se dedicassem exclusivamente ao negó­
dente do governo ou do anunciante, ser independente dos pró­ cio de informar o público e se fossem de fato independentes (tan­
prios donos. O negócio dos meios de comunicação mudou de to em termos financeiros como políticos), poderiam atuar co­
escala. Em janeiro de 2000, quando a America Online assumiu mo representantes, no mercado, do direito à informação que
o controle da Time Warner por 162 bilhões de dólares, o mun­ pertence ao cidadão. Podia-se mesmo afirmar que elas eram
do viu surgir um gigante avaliado em 350 bilhões de dólares, “mandatárias” — para usar aqui uma metáfora bastante culti­
cujo faturamento anual é da ordem de 30 bilhões de dólares. Na vada pelo liberalismo — do cidadão. Comprando um jornal,
economia globalizada, essas associações são transnacionais e por exemplo, ele estaria conferindo à empresa jornalística um
envolvem valores que muitas vezes se comparam ao p ib soma­ “mandato” para que ela exercesse a função social de informá-
do de alguns países mais pobres. O que complica ainda mais o lo. Se seu jornalismo fosse bom, o jornal seria mais vendido, e
problema. Como fica a independência jornalística num país em os lucros viriam na exata proporção da qualidade da informa­
que o fôlego financeiro dos acionistas consegue ser mais forte ção. Hoje, as coisas já não são assim. O negócio dos conglome­
que o porte da maioria das empresas nacionais? É o caso de re­ rados da mídia não é exclusivamente o jornalism o, e, em alguns

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casos, o jornalismo é mesmo um departamento secundário, de texto, Isaacson afirma que a Time tem feito uma cobertura obje­
sorte que os velhos critérios baseados na hipótese do “manda­ tiva dos produtos culturais da Warner (como cinema, vídeo ou
to” do leitor já não são suficientes. Não há mais nenhuma rela­ música). Ele argumenta que o problema da independência jor­
ção de equivalência entre o direito do cidadão de receber infor­ nalística em relação à empresa a que pertence uma revista ou
mações confiáveis e a independência da empresa. Como esta um jornal não sofreu grandes mudanças. Sempre houve — sus­
não é apenas uma empresa jornalística, sua independência fi­ tenta ele —, como há até hoje, proprietários de publicações ou
nanceira e política não se traduz necessariamente em indepen­ de emissoras de rádio e TV que pressionam seus jornalistas a fa­
dência editorial. Pode haver um conglomerado que não depen­ zer reportagens ou críticas tendenciosas quando seus interesses
da nem de determinados grupos de anunciantes em particular empresariais ou políticos estão em jogo. Sempre houve, também,
nem do governo, e, nem por isso, o jornalismo, dentro dele, se­ os menos imediatistas, que percebem o óbvio: é da indepen­
rá independente. Este poderá estar atado aos interesses econó­ dência editorial de seus veículos que vem o lucro.
micos dos acionistas em outras áreas económicas que não o O editorial prossegue, lembrando que foi justamente para
jornalismo. Antes, os critérios de mercado de alguma forma en­ preservar essa independência que Henry Luce, o fundador da
contravam coincidência com os direitos do cidadão. Agora, já Time, inventou a divisão entre “igreja” e “estado” . Sabe-se que
não podem ter a mesma pretensão. tanto a solução “ igreja-estado” como o problema que ela tenta
As regras que antes resguardavam a independência edito­ resolver — o conflito de interesses — são anteriores à era das
rial precisam ser atualizadas. Nada indica que não haverá contra­ megafusões. Mas, segundo o editorial da Time, do ponto de
dições entre os interesses do capital e os interesses da cidadania. vista da independência, tanto faz se o jornalista trabalha para
Ao contrário, abre-se entre ambos um vasto feixe de antagonis­ um patrão individual ou para um conglomerado. Ou ele está
mos. A democracia exige a pluralidade dos veículos informati­ numa empresa que reconhece na independência jornalística uma
vos no espaço público, exige a diversidade de pontos de vista das bases para a informação de qualidade — e, portanto, para
e de opiniões — os conglomerados tendem à concentração de o lucro, promovendo aí uma conciliação e uma coincidência en­
capital e de poder. A confiar unicamente nas receitas forjadas tre a ética do jornalismo e a função pragmática do jornalismo
pelo mercado para preservar a independência editorial, o cida­ de mercado — , ou numa empresa que considera a independên­
dão corre o risco de se ver abandonado às circunstâncias do cia apenas mais um quesito negociável, perspectiva pela qual a
grande capital. lógica de mercado subordina a ética jornalística. Walter Isaac­
Hoje, a pergunta é uma só: o jornalismo pode ser indepen­ son deixa claro que trabalha numa empresa do primeiro tipo e
dente do dono? O drama foi vivido publicamente pela revista assegura: “Nós [jornalistas da Time] permaneceremos vigilantes,
Time, após a fusão com a Warner. Em sua edição de 21 de outu­ pois qualquer coisa que comprometa a integridade editorial
bro de 1996, ela trouxe um editorial que expressa de modo en­ destruiria não apenas nossa revista como nossas carreiras". Até
fático a necessidade de independência do jornalismo cultural que ponto a boa vontade declarada por Isaacson prevalecerá?
em relação à indústria do entretenimento, na qual, justamente, A resposta é obscura, mas há sinais positivos. Em junho
a Warner é uma das maiores forças. O managing editor Walter de 1995, já depois de realizada a fusão com a Warner, a Time
Isaacson assinou um texto cujo objetivo era pôr às claras a si­ foi às bancas com a seguinte chamada de capa: “A música e o
tuação da revista dentro do conglomerado Time Warner. Nesse cinem a estão matando a alma americana?” . Título da matéria:

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“ Uma companhia sob fogo cerrado” . O assunto havia esquen­ mudou de patamar — e ser independente do dono se tornou tão
tado em razão dos ataques do senador republicano Bob Dole essencial quanto ser independente dos governos e dos anuncian­
contra letras de música que estimulam o uso de drogas e filmes tes. A confiar nas palavras de Isaacson, que não deixam de ser
que glorificam assassinatos. A Time Warner se destacava como uma aposta, esse desafio só será vencido com o empenho dos
um dos alvos da fúria do senador. Adotando uma postura inde­ jornalistas, desde que eles saibam ser intransigentes em manter
pendente, os jornalistas da Time contaram a história toda da vivos os preceitos de seu ofício.
polêmica e deram três páginas inteiras ao relato dos ataques Da parte das cúpulas dos conglomerados da mídia, o de­
sofridos especificamente pela Time Warner. safio ético é enxergar a dualidade que se abre entre entreteni­
Mais tarde, na edição de 9 de março de 1998, comemora­ mento e jornalismo. A seu modo, a Bertelsmann, um dos sete
tiva dos 75 anos da Time, Isaacson voltou ao tema da emergên­ grandes conglomerados da mídia mundial, com 73 mil empre­
cia dos conglomerados na mídia num ensaio, “Os valores de gados em 54 países, assimilou o debate em seu Annual Report
Luce — ontem e hoje” . Lembrando as idéias de Henry Luce, de 1992-93, que contém um artigo a respeito dessa dualidade e
Isaacson se referiu ao jornalismo como um contrapeso à
da responsabilidade que ela enseja:
tendência da oligopolização. Escreveu:
Vivemos em uma época de profundas mudanças políticas, eco­
Porque acreditamos no valor da informação, festejamos a ex­
nómicas e culturais [...] As mudanças que varrem o mundo ali­
plosão de fontes que é uma marca da era digital [ele se refere à
mentam a insegurança. Exigem que os indivíduos reavaliem e
internet, que amplia a quantidade de fontes de informação ao
mudem suas atitudes, para dominar os novos desafios. Os indi­
alcance do homem comum |. Não é apenas saudável para o
público, mas é também saudável para nós. Num mundo com víduos anseiam por orientação e informação, mas têm também
milhares de vozes, as pessoas irão gravitar em torno daquelas uma forte necessidade de entretenimento e recreação. Para fazer
em quem confiam. Isso nos encoraja a prosseguir na fórmula face a essas diferentes exigências, uma corporação global de
que ainda é atual: boa reportagem, bom texto, análises justas e mídia tem responsabilidades especiais. A comunicação é um ele­
com autoridade. Além disso, uma diversidade sempre renovada mento básico de qualquer sociedade. A mídia torna essa comu­
de fontes ajuda a contrabalançar a tendência (da qual Time e sua nicação possível, ajuda a sociedade a entender as idéias políti­
proprietária, Time Warner, são uma parte) de conglomeração da cas e culturais, e contribui para formar a opinião e o consenso
mídia. democráticos. Hoje, a sociedade utiliza a mídia para exercer uma
forma de autocontrole."
Estejam ou não com a razão, os textos de Isaacson expres­
sam a urgência e a pertinência do assunto. Para os interessados De um lado, entretenimento e recreação, de outro, a neces­
no debate sobre ética da imprensa, não é tão importante con­ sidade de informar e orientar para ajudar o público a formar a
cordar com o que ele diz ou acreditar nele. É, sim, indispensá­ opinião e o consenso democráticos. E aqui que se situa o jo r­
vel registrar o fato de que, por meio dele, a revista Time, onde nalismo, por mais que ele possa se valer do bom humor e dos
surgiu o modelo liberal “igreja-estado” , viu-se intimada a reno­ recursos que lhe permitem informar criativamente, com leveza
var seu propósito de manter a independência editorial. Inclusi­ e graça. Mas, para que essa responsabilidade se traduza na
ve em relação ao dono. E viu-se intimada a isso porque, a par­ prática, é preciso que os profissionais de imprensa sejam críti­
tir das megafusões, o problema da independência editorial cos e independentes, até mesmo em relação àquilo que pre­

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tende entreter e recrear o público — atividades que fazem parte blica qualquer fizesse, para a emissora, a cobertura dessa mes­
dos negócios dos conglomerados. ma repartição. Mas é embaraçoso que o Código de Ética dos
jornalistas brasileiros deixe subentendido que o profissional
Assessores e jornalistas sob um mesmo código de ética. pode manter esses dois empregos e ainda assim estar de acor­
Dá certo? do com a ética profissional.
Os jornalistas devem rediscutir o assunto, talvez criando
Nos Estados Unidos, Isaacson e outros têm contribuído dois códigos distintos para as duas profissões, que, de fato, são
para dar visibilidade à questão. No Brasil, o conflito de interes­ distintas. E poderiam fazê-lo publicamente, não apenas por
ses é um dos temas mais urgentes para os jornalistas, para as meio dos jornais sindicais e nas associações, mas em todos os
empresas e para a sociedade. Os primeiros deveriam assumir a veículos possíveis. Sem uma iniciativa dessa ordem, o tema
liderança do debate, mas enfrentam limitações corporativas continuará sendo assunto exclusivo das empresas, quase sem­
que teriam de ser superadas. O atual Código de Ética da cate­ pre longe do público. Não que elas não devam cuidar do assun­
goria pretende representar tanto os jornalistas como os assesso­ to. Devem tratar dele, e é bom que o façam. Mas é preciso en­
res de imprensa: as duas categorias profissionais fazem parte volver nisso outros setores da sociedade. Hoje, quando o velho
dos mesmos sindicatos, o que acarreta contradições de origem. modelo de empresa jornalística independente está deixando de
Apenas para comparar, cm Portugal, que está à frente do Bra­ existir em face dos conglomerados da mídia, no mundo todo, a
sil nessa matéria, o jornalista é impedido pela Comissão da atuação dos trabalhadores da imprensa, que são os jornalistas,
Carteira Profissional de Jornalista de exercer assessoria de im­ é ainda mais necessária. Só eles podem liderar a discussão. Só
prensa e atividades publicitárias. Quando se filia a essa entida­ eles têm a legitimidade para estabelecer socialmente novos pa­
de, o profissional tem que assinar um documento em que se radigmas de independência editorial.
compromete a devolver a carteira se for trabalhar como asses­
sor de imprensa.
NOTA SOBRE A INTERNET E O “ JORNALISMO VENDEDOR”
No Brasil, repórteres e assessores, aos olhos dos sindica­
tos de jornalistas, desempenham a mesma profissão. O Código
de Ética do Jornalismo, aprovado num Congresso Nacional dos Tudo o que foi dito até aqui vale para os jornais, as revis­
Jornalistas em 29 de setembro de 1985, toca no tema do con­ tas, as rádios, as emissoras de televisão — e também para os si-
flito de interesses apenas marginalmente e, ao fazê-lo, assina a tes de jornalismo na internet. Alguns acreditam, entretanto, que,
confissão de sua contradição intrínseca. O artigo 10, em sua com o advento do jornalismo pela internet, as fronteiras entre
alínea e, estabelece o seguinte: “O jornalista não pode exercer a publicidade e o conteúdo editorial se tornaram mais flexíveis,
coberturas jornalísticas pelo órgão em que trabalha, em institui­ mais tênues e mesmo mais permissivas. Um sitc, dizem, ofere­
ções públicas e privadas, onde seja funcionário, assessor ou ce informação jornalística, mas, com um simples toque no mou-
empregado” . Ou seja, admite implicitamente o duplo emprego se, o internauta acessa a mercadoria que é citada na reportagem
do profissional como uma prática eticamente correta. Seria de e vai direto a uma outra página de comércio virtual, onde pode
fato um escândalo que um repórter de uma emissora de Brasí­ comprar a tal mercadoria. Reportagens na internet sobre moda,
lia que acumulasse a função de assessor em uma repartição pú­ sobre decoração ou sobre viagens são bastante propícias a esse

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tipo de possibilidade. Com um complicador a mais: o site jo r­ menda a seus filiados que prestem atenção nos potenciais con­
nalístico por meio do qual o consumidor fez a compra fica com flitos trazidos pelos novos meios:
uma porcentagem da operação. O anunciante já não é um clien­ A tecnologia dinâmica das páginas eletrónicas e dos hipertextos
te que compra espaço publicitário no veículo informativo; trans­ cria um alto potencial de confusão para os leitores. Permitir essa
forma o veículo em sócio daquela operação. Essa prática che­ confusão é trair a confiança do leitor e corrói a credibilidade,
gou ao Brasil a partir da segunda metade dos anos 1990. Um dos prejudicando não apenas a publicação, mas também a própria
exemplos seria o comércio de livros. Um romance citado numa empresa que a publica. Por isso, é responsabilidade de cada pu­
resenha publicada por uma revista virtual poderia ser compra­ blicação on-line deixar claro para seus usuários o que é conteú­
do editorial e o que é publicidade, e evitar qualquer justaposição
do com um ou dois toques no mouse, que conduzem o inter-
que dê a impressão de que algum conteúdo editorial tenha sido
nauta à livraria virtual, a Amazon.com, por exemplo. Depois, a produzido para — ou influenciado por — anunciantes.
revista virtual receberia sua comissão. Com isso, o jornalismo
não é apenas um campo influenciado pela publicidade: sem se Da mesma forma, um dos sites de maior sucesso nos Es­
dar conta, ele se converte em parte interessada em fomentar o tados Unidos até o início do ano 2000, o APBnews.com, adotou
consumo. Quanto mais a mercadoria citada vender, mais a em ­ a seguinte regra: “O conteúdo editorial será sempre separado
de mensagens comerciais. Propagandas, anúncios, promoções
presa que é dona do site vai lucrar.
de e-commerce e material de marketing nunca aparecerão no
Não é nessa direção, porém, que apontam as melhores ini­
espaço destinado ao jornalismo de forma que os usuários pos­
ciativas de imprensa na era digital. Sites jornalísticos buscam
sam tomá-los por conteúdos noticiosos” . Na missão da Online
se desvincular do comércio — e sites cuja função é vender ten­
News Association, entidade americana, lê-se o mesmo tipo de
dem a separar-se do jornalismo. Uma revista virtual inaugura­
cuidado: “O jornalismo responsável na internet requer que a
da no início de 2000, Notícia e Opinião, apressa-se em alertar
distinção entre notícias e outras informações seja sempre clara
o internauta: “Notícia e Opinião nasceu de um projeto financia­
para que os indivíduos possam diferenciar conteúdo editorial
do pelo Opportunity e a GP Investimentos. Mas essas empresas
independente de promoções pagas e outras não-notícias” .
não influenciarão sua postura editorial. Nela, caberá exclusiva­ A internet, portanto, embora traga novas aberturas tecno­
mente aos jornalistas definir o que será publicado e como será lógicas que encurtam caminhos, não aposenta os preceitos do
publicado. Haverá sempre limites explícitos entre a publicida­ bom jornalismo. A loja de roupas, a livraria ou a agência de tu­
de e o jornalismo” . O motivo da declaração de princípios é rismo estão muito mais perto do consumidor. Basta um clique.
simples. Como sempre, o que o cidadão procura, seja pela in­ Assim como os veículos de informação estão mais próximos e
ternet seja em um veículo impresso, é informação confiável. A mais acessíveis. E as prefeituras, as bibliotecas, os departa­
ele interessa saber se aquilo que ele lê está ali, diante dele, para mentos do governo, as o n g s , os institutos de pesquisa, os ban­
levá-lo a consumir um produto específico ou para atendê-lo em cos de dados. A internet, nessa perspectiva, mais que um “meio
seu direito de saber dos fatos. Com o tempo, ele tenderá a pre­ de comunicação” , é um paradigma de mobilidade a serviço da
ferir, como já antecipara Walter Isaacson, as fontes nas quais cidadania e do consumo que elimina distâncias e demoras. Mas
adquirir confiança. tanta proximidade — no tempo e no espaço — não revoga a
A a s m e (American Society of Magazine Editors) reco­ necessidade de distinguir o que é jornalismo do que é comér-

126 127
cio. Ao contrário, exige novas formas de demarcar a distinção.
O direito do cidadão de estar bem informado não deixou de
existir. Ao contrário, hoje pode ser atendido com ainda mais
eficiência.
4

O VÍCIO EA VIRTUDE

Paul Johnson é um pensador influente no pensamento li­


beral contemporâneo. Historiador, ensaísta e jornalista, é autor
de artigos na revista britânica Spectator que têm servido de re­
ferência ao debate sobre ética na imprensa no mundo inteiro.
Não pelo que pontificam, mas pelos problemas que apontam.
Ele propõe uma grade de análise para os erros mais frequentes
do jornalismo: listou sete pecados capitais e, como antídotos,
dez mandamentos. Trata-se antes de uma forma de abordagem;
é um modo de classificar os erros em categorias claras, de
grande utilidade para a organização do debate. A vantagem
dessa grade é que ela pode ser empregada independentemente
de se concordar ou não com o ideário defendido por Johnson.
Por exemplo: ele diz que um dos pecados capitais é o assassi­
nato de reputação. A direita e à esquerda, essa é uma queixa
frequente. Jornalistas identificados com distintas doutrinas po­
dem cometer o pecado de assassinar reputações, vitimando
pessoas de diferentes matizes políticos ou religiosos. E assim é
com todos os “pecados capitais” e todos os “mandamentos” .
Eles são antes uma classificação tópica do que juízos de valor.
Pode-se aceitar a grade que ele sugere, aceitá-la como um mé­
todo primitivo, e divergir na análise dos conteúdos. É nessa
perspectiva que ela é aqui adotada.
Antes, porém, é bom saber que Johnson está longe de ser
uma unanimidade. Na verdade, também comete erros graves
de avaliação. Em 1999, escreveu um artigo em defesa do gene-

128 129
ral Pinochet que serve mais para desautorizá-lo do que para re­ Agora, os sete pecados capitais listados por Johnson. No
comendá-lo. Quando o ex-ditador chileno se encontrava preso Brasil, eles foram publicados no Jornal da Tarde de 24 de mar­
na Inglaterra aguardando a decisão sobre sua extradição para a ço de 1993, inaugurando uma série de debates sobre a ética na
Espanha, onde seria julgado por seus crimes contra a humani­ imprensa brasileira. São os seguintes:
dade, Johnson afirmou que estava em marcha uma campanha 1. Distorção, deliberada ou inadvertida.
difamatória contra o ex-ditador. Seu artigo, que foi publicado 2. Culto das falsas imagens.
em O Estado de S. Paulo de 7 de fevereiro de 1999, com um tí­ 3. Invasão da privacidade.
tulo em inglês, “All the lies it’s safe to print” (Todas as menti­ 4. Assassinato de reputação.
ras que se podem publicar com segurança), enumerava as “men­ 5. Superexploração do sexo.
tiras” que eram publicadas impunemente. Entre essas, estariam 6. Envenenamento das mentes das crianças.
as informações que davam conta das atrocidades cometidas 7. Abuso de poder.
pela ditadura chilena nos anos 1970. Disse Johnson: “Outra ví­
A listagem é arbitrária, mas é um bom ponto de partida.
tima, em escala enorme, internacional, é o general Pinochet, úl­ Antes de detalhar cada um dos “pecados” , é bom registrar que
timo alvo importante da máquina de agitação e propaganda da algumas outras listas já foram sugeridas, e são igualmente
grande mentira soviética, antes de sua ruína. Suas invenções úteis. Entre elas a de Marcelo Leite, então ombudsman da Fo­
acerca de Pinochet continuam circulando graças à rede de pro­ lha de S.Paulo, num artigo de 31 de dezembro de 1995. Dos
paganda de Castro e são impensadamente reproduzidas na maio­ problemas que ele apontava na imprensa brasileira, há cinco
ria da imprensa britânica” . De algoz, Pinochet teria se transfor­ que ainda permanecem preocupantes:
mado em vítima. 1. Fernandohenriquismo. Na visão de Marcelo Leite, uma
E possível que, entre tantas reportagens e análises que tra­ unanimidade havia se apossado da cobertura política brasilei­
taram do tema, uma ou outra tenham cometido excessos e in­ ra entre 1994 e 1995. A adesão festiva às teses do presidente
corrido em inverdades pontuais. Aí, o correto seria examinar as Fernando Henrique Cardoso passou a contribuir para a distor­
imprecisões específicas, criticá-las e corrigi-las, também pon­ ção dos fatos. O ombudsman escreveu uma advertência contra
tualmente. Generalizar o que se falou sobre Pinochet como o movimento que iria culminar na reeleição de f h c , três anos
uma campanha difamatória orquestrada pela “propaganda de depois:
Castro” é apenas uma proposição ridícula. Johnson sabe, aliás,
O arrastão económico, parapolítico e antidemocrático produzi­
que a generalização é um dos caminhos que mais levam ao erro
do pelo Plano Real continua em marcha. Investiu Fernando Hen­
de informação. É um vício. E Johnson caiu nessa armadilha,
rique Cardoso no Planalto e, apesar do fogo amigo na Esplana­
arriscando-se a ser desqualificado como um reles serviçal da da dos Ministérios e no Congresso, ainda alicerça um consenso
máquina de propaganda da ex-primeira-ministra britânica Mar- inabalável entre os donos do poder. O bezerro de ouro se chama
garet Thatcher. Mas isso seria, também, generalizar, seria redu­ estabilização. O bolo já não precisa crescer: basta que não de­
zir todas as suas idéias a uma debilidade ideológica pela qual sande. Há coisas mais urgentes que dividi-lo, como reeleger o
ele se deixou acometer. Descontadas fraquezas dessa ordem, as presidente-professor. Todo o debate público se esfuma diante de
reflexões de Paul Johnson sobre os problemas contemporâneos meia dúzia de pedras de toque: modernidade, anticorporativis-
da imprensa são contribuições positivas. mo, eficiência, privatização, competitividade, reforma. Esse cre-

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\
cio deixou há muito as salas de editorialistas e fincou raízes fun­ virado regra. Qualquer código de posturas éticas recomenda
das nas redações. cautela e parcimónia no uso do off. Além de ser um recurso
2. Vazamentismo. Aqui, a referência do ombudsman eram pelo qual o jornalista encontra um subterfúgio para escapar ao
“os escândalos postos no colo da imprensa” com base em in­ trabalho duro de sair atrás de confirmações — basta-lhe, antes
formações “oficialmente” vazadas dos gabinetes do poder. Na da informação de fonte obscura, que ele não foi checar, acres­
verdade, esse “vazamentismo” estava se tornando um expedien­ centar um “comenta-se que” —, o “offismo” se converte numa
te rotineiro de políticos interessados em prejudicar a imagem de porta para que boatos infundados interfiram na opinião públi­
outros. Denúncias chegavam aos jornais sem origem declarada ca. Marcelo Leite enumerou os cuidados que o uso do off requer:
e eram publicadas sem maior trabalho de verificação prévia. O jornalista deve ter plena confiança na fonte, com base em um
3. Offismo. O o ff é um termo que faz parte do jargão das histórico de veracidade;
redações. Tem origem na expressão inglesa offth e retorci, que A fonte deve ter motivo plausível e aceitável para proteger-se
designa aquilo que se diz a um jornalista “confidencialmente” , (como risco de vida ou de punição);
isto é, algo que se diz para não ser registrado. Há aqui uma va­ A informação em pauta deve ser de grande relevância para o
riante sutil que merece nota. O que a fonte declara cm off, ri­ público;
gorosamente, é algo que não deve ser publicado nem mesmo O jornalista deve tentar confirmá-la com pelo menos uma
quando ela, fonte, não é mencionada na reportagem. Diferente fonte independente;
disso é aquilo que a fonte declara para publicação, pedindo no Cabe à fonte pedir e ao jornalista aceitar — ou não — o “off”,
nunca o inverso.
entanto sigilo sobre sua identidade. No Brasil, a expressão “de­
A maioria das reportagens em “off”, neste país, não satisfaz
claração em o ff” admite os dois significados. Em seu uso mais
nenhuma dessas condições. Na Folha, o leitor pode reconhecê-
corrente, a expressão se refere à informação que poderá ser pu­
las pelo emprego da fórmula canónica "a Follui apurou que...”.
blicada desde que não se identifique a fonte. Entre nós, é ver­
dade, o uso do off tornou-se rotina e se transformou em abuso. 4. Retranquismo. Outro neologismo, retranquismo é deri­
Com frequência, o leitor, o telespectador ou o ouvinte não fica vado de retranca, que, no jargão das redações, dá nome àque­
sabendo da origem da informação. Ele só é avisado de que las palavrinhas que classificam as diversas reportagens por
“uma alta autoridade do Ministério tal” ou “um professor que assunto. Nas revistas, as retrancas aparecem no alto de cada re­
prefere não se identificar” ou ainda “uma fonte qualificada” portagem, normalmente acima do título: Política Nacional,Tea­
disse isso ou aquilo. Outros recursos para o mesmo procedi­ tro, Esportes, Saúde. De cara, o leitor é informado pela retran­
mento são os cacoetes de texto do tipo “comenta-se” , “garan- ca sobre o tema geral daquela página. Para Marcelo Leite, o
te-se” etc. Muito comum nas colunas de notas de informação uso abusivo das retrancas acabou redundando no "retranquis­
política, económica e de interesse geral, esse modo de infor­ mo” : a subdivisão obsessiva de uma única história em inúme­
mar, salvo exceções, é também um modo de desinformar. Afi­ ros “departamentos” . De fato, isso se tornou uma prática roti­
nal: quem diz? quem garante? quem comenta? Não se faz bom neira e sistemática no jornalismo impresso — e agora também
jornalism o com declarações anónimas. O que o ombudsman da na internet. Em lugar de textos longos, dá-se preferência a uma
Follui apontava é que, em lugar de um procedimento excepcio- sequência de brevíssimos tópicos, em forma de legendas ou
nal, aceitável apenas sob condições muito especiais, o off tinha boxes (pequenas caixas de texto) de dois ou três parágrafos. As

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velhas retrancas se multiplicam em incontáveis sub-retrancas. realizadas na França). Enquanto a lista de Marcelo Leite é o
De um lado, essa tendência se justifica em nome da falta de diagnóstico de alguém que observa a redação pelo lado de den­
tempo do leitor, que tem o direito de achar o mais rapidamen­ tro — ele flagra problemas técnicos internos do fazer jornalís­
te possível a informação de que precisa sem ter de percorrer tico — , a lista de Marcondes Filho reúne vícios que são vistos
colunas e mais colunas de texto. A divisão de uma longa repor­ por quem está fora das redações. A lista do ombudsman identi­
tagem numa série coerente de vários tópicos ajuda o leitor. O fica os pecados no modo de trabalhar; a de Marcondes Filho os
problema é a edição malfeita, que empobrece a informação. A encontra nos resultados. Pode-se ler a sua compilação como
proliferação das retrancas suprime a visão de conjunto — e, uma sequência das queixas mais comuns da sociedade. E bom
com isso, suprime também a compreensão do contexto — , conhecê-las:
transformando o jornalismo numa fragmentação caleidoscópi­
1. Apresentar um suspeito como culpado.
ca sem a menor unidade.
2. Vasculhar a vida privada das pessoas, publicar detalhes insig­
5. Egocentrismo. Aqui, o ombudsman se referia à “tríade nificantes de personalidades e de autoridades para desacredi­
ego-corpo-consumo” : o jornalismo começa a girar em torno da tá-las.
satisfação narcisista dos desejos do consumidor. Ora, mas que 3. Construir uma história falsa, seja em apoio a versões oficiais,
problema ético haveria nisso? Aparentemente, nenhum. Mas seja para justificar uma suspeita.
há, sim, um problema. Conforme o grau em que os órgãos de 4. Publicar o provisório e o não-confirmado para obter o furo.
imprensa assimilam a lógica do egocentrismo, tal qual ele foi Transformar o rumor em notícia.
definido por Marcelo Leite, põem em risco sua capacidade de 5. Filmar ou transmitir um suicídio ao vivo.
informar criticamente a sociedade — pois isso requer uma vi­ 6. Expor pessoas para provar um flagrante.
são crítica dos hábitos da sociedade. Se o jornalismo aceita os 7. Aceitar a chantagem de terroristas.
paradigmas de classificação do mundo dados pelo consumis- 8. Incitar “rachas” [discórdias, cizânias, buscar a polêmica pela
mo, ele foi engolido pela lógica do consumismo — e não mais polêmica, jogar uns contra os outros].
pode vê-lo com distanciamento. O curioso é observar que no jor­ 9. “Maquiar” uma entrevista coletiva ou exclusiva.
nal Valor Económico, lançado em maio de 2000, numa associa­ Aqui, a maquiagem pode acontecer por meio da “transfor­
ção da Folha de S.Paulo com O d o b o , há um caderno destina­ mação" mal-intencionada de uma entrevista coletiva numa
do a lazer, entretenimento e consumo que se chama, exatamente, “exclusiva” : o repórter ou o editor fazem parecer que declara­
“Eu ções gravadas numa entrevista coletiva, para vários órgãos de
imprensa, foram dadas com exclusividade para aquele veículo.
A maquiagem também acontece pela modificação das declara­
Uma outra tábua de pecados da imprensa aparece no livro ções, para dotá-las de mais “ impacto” .
do professor Ciro Marcondes Filho, da Escola de Comunica­
ções e Artes da Universidade de São Paulo, A saga dos cães 10. Comprar ou roubar documentos.
11. Gravar algo à revelia, instalar microfones escondidos.
perdidos.' São ao todo doze deslizes, compilados pelo autor
12. Omitir que se é jornalista para obter confidências.
com base em livros e artigos nos quais prepondera uma visão
européia (boa parte das pesquisas de Marcondes Filho foram O décimo segundo “deslize” admite uma ressalva. Há ca-

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sos em que o interesse público justifica que o repórter não se ele representa. Ele não está eticamente autorizado a se valer de
declare como tal. Por exemplo: em 1999, foram publicadas na recursos que estejam fora desse campo, como a espionagem ou
imprensa brasileira algumas reportagens sobre a venda de ga­ a força — como um policial, nos termos da lei, está. Seus pa­
solina adulterada. Se os repórteres se identificassem logo de râmetros de conduta são os mesmos do homem comum. No
início perante os traficantes de combustível diluído em solven­ exercício da profissão, ele está autorizado a agir dentro desses
te (diluído contra a lei), jamais poderiam chegar aos depósitos marcos. Pode fazer tudo o que é socialmente tolerado que se
clandestinos. Na primeira abordagem aos falsificadores, eles se faça à luz do dia. Não pode fazer o que precisa ser escondido.
apresentaram como compradores comuns. Uma vez obtida a O único segredo específico da profissão do jornalista se refere
confirmação da fraude (o que pode passar pela gravação sem ao sigilo de fonte — ele não é obrigado a revelar sua fonte
consentimento de uma conversa telefónica, por exemplo), e quando julgar que deve preservá-la, o que está assegurado na
comprada a gasolina adulterada, eles se identificam perante os legislação das democracias contemporâneas. E isso tem um
criminosos, que então podem apresentar sua versão dos fatos. motivo só: como jornalista, ele tem acesso a informações que
Sem esse recurso, a imprensa não teria como obter as confir­ o homem comum não teria — eis aí sua única especificidade.
mações sobre uma conduta ilegal que lesa o cidadão, expondo- Ele pode, portanto, guardar em sigilo as suas fontes, mesmo
o a riscos de vida (uma falha mecânica provocada pelo com­ em juízo. E só aí se diferencia dos mortais comuns. Mas nada
bustível pode ocasionar acidentes graves), e lesa também o em sua conduta pode ser motivo de segredo. Ele não pode, no
consumidor, prejudicando a conservação de seu automóvel. O exercício da profissão, adotar uma conduta que o envergonha­
mesmo se dá com o repórter que vai a uma loja, a um hotel ou ria se fosse revelada. Se algum aspecto de seu comportamento
a um restaurante para verificar como é que os fregueses co­ profissional precisar ser omitido num almoço de domingo com
muns são tratados nesses estabelecimentos. É essa ainda a si­ a família, algo está fora de lugar. Então, quando precisa ocul­
tuação de repórteres que investigam histórias de crimes em zo­ tar temporariamente sua identidade num ambiente hostil, ele
nas dominadas pelo tráfico de drogas, que visitam áreas onde precisa saber exatamente por que está agindo assim, pois terá
se explora o trabalho ou a prostituição infantil, e também re­ de explicar-se, logo adiante, em público.
giões em guerra. As vezes, declarar-se jornalista é aumentar
desnecessariamente o risco de vida.
Como princípio, claro, o repórter deve sempre se identifi­ “ OS SETE PECADOS CAPITAIS”
car. Casos excepcionais requerem uma autorização expressa do
comando da redação. Depois, na publicação da reportagem, a Há, como se vê, uma profusão de listas alternativas dos
decisão de ocultar a profissão do repórter naquele episódio es­ pecados cometidos pelos jornalistas. Das tecnicalidades ultra-
pecífico deve ser informada ao público e devidamente explica­ detalhistas sobre, por exemplo, o lugar mais indicado para in­
da. Não há no jornalismo nenhuma possibilidade de que uma serir o crédito do fotógrafo ao lado da foto, até os imperativos
conduta que não possa ser explicada e compreendida pelo pú­ morais de fundo, como a falta para com a verdade, listas de pe­
blico esteja de acordo com a ética da profissão. As normas de cados são o que não falta. A opção pela grade sugerida por Paul
conduta do jornalista começam e terminam dentro do campo Johnson se justifica pela simplicidade com que ela organiza o
abrangido pelos padrões de comportamento da sociedade que debate. Vamos, então, aos sete pecados.

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1. Distorção, deliberada ou inadvertida proporções. Os números falam por si. Segundo estimativas de
1999, seriam aproximadamente 38 milhões os lares brasileiros
A distorção deliberada é a mentira deslavada e conscien­ com um ou mais aparelhos de televisão, o que representa cer­
te. E um pecado evidente que não mereceria maiores comentá­ ca de 87% de todos os domicílios. Num levantamento realiza­
rios não fosse o fato de que, no Brasil, ela não se deve apenas do pelo jornalista paulista Gabriel Priolli, vê-se que 90% da
à má intenção de editores e donos de jornais, revistas ou emis­ população sintonizava alguma emissora, ao menos uma vez
soras de rádio e TV, mas tem uma origem estrutural: o regime por semana.2 E uma presença ubíqua, só comparável à do rá­
de propriedade dos meios de comunicação eletrónicos de mas­ dio. Mas o poder da tv é bem maior que o do rádio, pois este
sa. Por isso, a distorção deliberada se confunde com frequên­ tem uma audiência pulverizada em quase 3 mil emissoras, que
cia com o sétimo pecado capital, que é o abuso de poder. É o em sua maioria não se estruturam em redes nacionais, enquan­
que se verificou com as coberturas políticas da Globo em 1984, to a tv tem platéias verdadeiramente nacionais.
quando a campanha popular por eleições diretas não aparecia Priolli lembra também que, de acordo com o Grupo de
na tela da Globo: distorção deliberada e abuso de poder. Mídia de São Paulo, apoiado em pesquisa do instituto Marplan
Embora a Constituição da República Federativa do Brasil, Brasil, 98% da população entre dez e 65 anos via tv pelo me­
no parágrafo quinto do artigo 220, diga expressamente que “os nos uma vez por semana e que, sozinha, a tv atraía duas vezes
meios de comunicação social não podem, direta ou indireta­ mais público do que todos os meios impressos, aí computados
mente, ser objeto de monopólio ou oligopólio” , o que se veri­ também os livros, além de jornais e revistas. Para que se possa
fica na prática é exatamente o oposto. É um quadro típico nas ter uma idéia aproximada do que representam os meios impres­
cidades brasileiras, de grande ou pequeno porte: um só grupo sos, lembre-se que, em 1999, entre os estimados 164 milhões
pode dominar a maior emissora de tv de canal aberto, o maior de habitantes, o Brasil tinha 371 jornais de circulação diária e
jornal diário, a maior emissora de rádio a m , a maior emissora em algo em torno de 1500 revistas semanais ou mensais. A tiragem
f m , a maior empresa de distribuição de canais por assinatura, e total, diária, dos jornais em 1999 foi de 7,245 milhões, um vo­
assim por diante. lume 69% maior que o d e 1990 (fonte: a n j ). A tiragem total das
Nesse quadro, o grupo que exerce o monopólio fala sozi­ revistas em 1999 foi de 350 milhões de exemplares, o que não
nho no espaço público, sem sofrer contestações e sem conhe­ ultrapassa dois exemplares por habitante por ano. Na Argenti­
cer competidores económicos, o que gera um ambiente propí­ na, no mesmo ano, esse número foi de 3,3; nos Estados Uni­
cio para as distorções deliberadas de informação, sobretudo em dos, 31; na França, 41. (Fonte; fipp )
época de eleições. Os meios de comunicação tornam-se cabos Uma mentira na televisão brasileira é duplamente grave (é
eleitorais. E, como não há outros veículos com igual penetra­ grave em si mesma e é grave porque dificilmente será corri­
ção para contestá-los, as distorções informativas acontecem im­ gida em tempo por outros meios com igual penetração). A te­
punemente; não são identificadas, debatidas, criticadas e con­ levisão monologa no Brasil e, estando vinculada aos interesses
denadas no espaço público. políticos de famílias oligárquicas de várias regiões do país, de­
A situação é especialmente grave na televisão brasileira. forma o espaço público. Assim é que as distorções deliberadas
Como o Brasil é um país que se comunica e se reconhece pela cometidas pelas emissoras de t v , encorajadas pelo exercício
t v , qualquer distorção que nela ocorra gera efeitos de grandes prático dos monopólios regionais e pelos oligopólios nacio­

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nais, configuram também abuso de poder, que será comentado possível notícia. Ao publicá-la, correndo o risco de ter de cor­
adiante. A existência dos monopólios, as distorções deliberadas rigi-la adiante, ele assume também o risco de distorcer os fatos.
e o abuso de poder não são um problema ético exclusivo dos A pressa é justa, boa e necessária — mas, quando assumida
jornalistas, mas de toda a sociedade. Os jornalistas, sozinhos, como um valor ético equiparável à correção, pode ser o atalho
são impotentes para resolvê-lo. Os donos dos meios de comu­ para o erro. O engano ético de superestimar a agilidade como
nicação, em geral, não têm interesse nisso. um bem em si mesmo conduz à falha técnica.
Jornais e revistas também praticam a distorção deliberada. O jornalista é pago para perguntar — e duvidar. Seu santo
O que a permite, novamente, é a garantia de “ impunidade” , isto padroeiro é são Tomé — o apóstolo que, no Novo Testamento,
é, a sensação compartilhada pelos donos dos órgãos de impren­ quis antes ver as chagas de Jesus Cristo para só depois aceitar
sa e pelos jornalistas no comando das redações de que não se­ que ele era mesmo o Cristo ressuscitado. Quanto mais pergun­
rão chamados a responder, perante o público, pelas mentiras te, confirme e cheque, menos se expõe ao erro. A sua pressa é
que difundem. Sem pluralidade e diversidade nas comunica­ a urgência que emana do direito à informação. A concorrência
ções, dificilmente essas deficiências serão combatidas. comercial entre os veículos — ditada unicamente por critérios
de mercado — estimula a agilidade, mas não deve se confun­
dir com a pressa essencial do jornalismo. E verdade que o de­
A distorção inadvertida não é menos importante. Mas é sejo do furo estimula o bom jornalismo; ele corre também para
mais “doméstica” , diz respeito estritamente à competência in­ vencer a competição com os concorrentes, numa disputa de
terna das redações, e pode ser enfrentada e superada com os mercado. Mas o tempo do mercado não é, para o jornalismo, o
cuidados técnicos e éticos já conhecidos do jornalismo. O “of- tempo decisivo. Acima das exigências de velocidade do merca­
fismo” e o “vazamentismo” apontados por Marcelo Leite, bem do, deve estar o compromisso com a verdade.
como a transformação do rumor em notícia e a pressa em pu­ As distorções inadvertidas conduzem ao vexame ou, o que
blicar uma revelação ainda incerta para sair na frente da con­ é pior, ao assassinato de reputação. Foi isso que se deu com o
corrência — falhas arroladas por Ciro Marcondes Filho —, caso da Escola Base, em São Paulo, que será lembrado no quar­
costumam levar à distorção inadvertida. Não que a pressa seja, to pecado capital.
como todos dizem, inimiga da perfeição. A pressa é obrigató­
ria no jornalismo. Ela faz parte do ideal de perfeição. Quanto 2. Culto das falsas imagens
mais rapidamente a notícia vai para o público, melhor. O que
acontece é que o jornalista se vê entre dois imperativos de or­ O jornalismo não se confunde com a literatura ou com a
dens distintas: um é o da agilidade e o outro o da precisão. O arte, mas sempre se beneficiou de recursos literários e, mais
dilema, aqui, não chega a constituir o dilema ético por excelên­ tarde, no campo das imagens, das influências que recebeu do
cia, aquele em que o sujeito se encontra entre dois valores cinema. As suas narrativas comportam naturalmente a emoção,
igualmente válidos. A agilidade é um requisito da qualidade, e é legítimo que pretendam prender o público pelos sentimen­
mas não encarna, por si só, um valor ético do mesmo porte que tos que podem despertar. Recentemente, porém, à medida que
a verdade. Se a informação de que o jornalista dispõe ainda não as empresas jornalísticas foram sendo engolidas pelos conglo­
está checada, ela é apenas uma pista, não é uma notícia; é uma merados da mídia (que acumulam o negócio do jornalismo

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com o negócio do entretenimento), ocorreram alterações na or­ nas últimas décadas. Emergem santos e vilões no noticiário,
ganização social da cultura, e, no ambiente específico da im­ como ícones do bem e do mal que movimentam um formidá­
prensa, houve também mudanças culturais. A aproximação vel video game. O estereótipo subjuga o homem. O líbio Muham-
com o entretenimento não é apenas económica — é cultural. A mar Kadhafi, o iraquiano Saddam Hussein e o cubano Fidel
linguagem do jornalismo já não dialoga tanto com a literatura Castro são eternos demónios no circo da notícia. Madre Tere­
e com o cinema como dialoga com a chamada “cultura pop” , sa, o papa, Lady Di, santidades iluminadas. Yasser Arafat, anjo
com as comédias feitas para a tv e com desenhos animados, vi- mau de outrora, subiu aos céus à medida que começaram os
deo games e as letras de canções que tocam no rádio. Hoje, é o acordos de paz com o primeiro-ministro de Israel, Yitzhak Ra-
entretenimento que influencia as narrativas jornalísticas. bin, sacramentados num encontro histórico em setembro de
O noticiário da atualidade constrói pequenas novelas diá­ 1995 em Washington, mediado e abençoado pelo presidente
rias ou semanais cujos protagonistas são tipos da vida real ab­ americano Bill Clinton. A imagem dos três, com Clinton ao
sorvidos por uma narrativa que funciona como se fosse ficção. centro, virou um novo símbolo da paz mundial. Um estereóti­
Programas jornalísticos na televisão desenvolvem-se como se po revoga outro. O México descreveu trajetória inversa. Em
fossem filmes — de ação, de suspense, de romance, de horror. 1994, o sombrero, a tequila e los mariachis eram marcas da as­
O telejornalismo disputa mercado não apenas com outros veí­ censão neomonetária, do ajuste económico celestial. Com a
culos informativos, mas também com as opções de lazer. Pre­ derrocada e a vertiginosa desvalorização do peso no início de
cisa ser envolvente, divertido, leve, colorido, ou perde o públi­ 1995, a terra dos sacrifícios humanos nos rituais astecas virou
co sedento de novas sensações. Os âncoras de tv disputam o sinónimo de inferno e de terremotos outra vez, tectônicos e fi­
tempo do público com o carisma da atriz que está numa fita de nanceiros.
vídeo que se aluga na esquina. Em contrapartida, os filmes de O bem e o mal organizam a informação. No Brasil, o for­
ficção precisam ter cada vez mais o apelo do “drama real” para mato do Jornal Nacional — que se tornou o paradigma de um
empolgar a audiência. A realidade que interessa, para um (jor­ gênero — dá bem o tom dessa lógica. A tendência de cada edi­
nalismo com base nos fatos) e para outro (entretenimento com ção diária é ter um happy end com algum a historinha edifi­
base na ficção), é a realidade espetacular, uma realidade que se cante para fechar o programa. Vale um acasalamento de mamí­
confecciona para seduzir e emocionar a platéia. feros no zoológico, o dia feliz de uma criança que achou uma
A consequência da confecção da realidade espetacular não escola na zona rural, a entrevista de um astro da música serta­
está apenas no sensacionalismo; ela redunda em egocentrismo, neja que se dedica à filantropia. Entre nós, a sequência dramá­
em fetichismo, em sexismo e se materializa no culto das falsas tica do telejornalismo é precisamente melodramática, segue a
imagens. Os personagens são reais e, no entanto, fabricados — estrutura das narrativas das telenovelas, que fundaram no pú­
sempre falsos, em alguma medida. Reais porque de fato têm lu­ blico nacional o hábito de ver televisão. É esse o estilo brasi­
gar no mundo dos mortais, como pessoas de carne e osso. Fabri­ leiro pelo qual a imagem preside a notícia. O massacre de tra­
cados (e falsos) porque sua composição segue uma coerência balhadores sem-terra em Eldorado dos Carajás, no interior do
mais dramática do que propriamente factual. Essa característi- Pará, em abril de 1996, só foi manchete porque veio acompa­
ca sempre esteve aí, desde que começaram a ser publicadas as nhado de cenas vibrantes. Alguém havia gravado os tiros, a
primeiras reportagens, mas ela se intensificou violentamente correria e os confrontos em vídeo. A força das imagens era a

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força da notícia. O mesmo aconteceu quando, em 1997, um ci- na mais do que informa, tem-se aí um problema ético, que é a
negrafista anónimo registrou a violência policial contra cida­ negação da sua função de promover o debate das idéias no es­
dãos na Favela Naval, em Diadema, São Paulo. Não fossem as paço público. Isso significa que antes da televisão a imprensa
imagens, e a notícia não teria merecido destaque, embora os fa­ não caía na vala do culto das falsas imagens? Não, não signifi­
tos reais, com vídeo ou sem vídeo, fossem os mesmos. O tele- ca. Esse é o engano das críticas conservadoras ao telejornalis­
jornalismo não registra os acontecimentos em si, mas as ima­ mo (entre as quais se inclui a de Paul Johnson, que descarrega
gens dos acontecimentos. E são as imagens que determinam sua artilharia contra a televisão e os tablóides sensacionalistas
quais serão os temas do debate público. ingleses). Ele não inventa os estereótipos, mas os potencializa.
A fábrica das falsas imagens é refundada pelo telejornalis- É um engano supor que foi a televisão que inventou o cul­
mo, no qual a notícia depende da cena vívida, pulsante. Fora da to das imagens e, por meio delas, o culto dos estereótipos. Mui­
televisão, torna-se uma constante em toda a imprensa — con­ to antes da t v , o apego do público aos estereótipos já havia
denada a concorrer com as ofertas incessantes de entreteni­ sido bem diagnosticado por Walter Lippmann, no livro Public
mento. Jornais e revistas não escapam à teatralização do relato opinion, de 1922. Dizia Lippmann que as pessoas só enten­
factual. A estes não restam muitas outras saídas além de repro­ diam o mundo com base nos estereótipos que traziam “dentro
duzir em seus universos próprios, com suas linguagens especí­ da cabeça” . Para ele, os estereótipos são conceitos internaliza-
ficas, o culto das (falsas) imagens. Na era da imagem ao vivo, dos. “As formas estereotipadas emprestadas ao mundo não
o jornalismo impresso, ao noticiar os fatos, parece estar sem­ procedem apenas da arte, no sentido da pintura, da escultura
pre atrás, sempre comentando as imagens que já foram notícia. e da literatura” , escreve Lippmann, “mas também de nossos
A figura de um jovem chinês interrompendo o caminho de um códigos morais, filosofias sociais e agitações políticas.” Um
tanque de guerra na avenida é a síntese dos protestos que toma­ exemplo: “a americanização fda cultura], pelo menos superfi­
ram conta da praça Tian’Amen, a praça da Paz Celestial, no co­ cialmente, é a substituição dos estereótipos europeus pelos nor­
ração de Pequim, em 1989. No mesmo ano, jovens no meio da te-americanos” .
noite empoleirados sobre o muro de Berlim, bebendo champa­ É bem curiosa a teoria de Lippmann, principalmente por­
nhe, cantando e agitando bandeiras, convertem-se no selo do que ela não é propriamente uma teoria científica, mas uma es­
“fim do comunismo” . Não é que a imagem valha mais que mil pécie de constatação empírica de um jornalista mais arguto.
palavras: a imagem organiza as palavras, e passa a ser uma ins­ Para ele, os estereótipos — com base nas “imagens” que as
tância do discurso e do pensamento. No telejornalismo, o que pessoas trazem “dentro da cabeça” — são o que possibilita a
não rende imagem não rende notícia. As palavras, elas mes­ compreensão do mundo. O que, em sua visão, não é bom nem
mas, agora se articulam para emoldurar imagens, para erguer- ruim. É apenas natural, humano. E graças aos estereótipos que
lhes o pedestal, para cultuá-las. se enxerga a realidade. Diz ele: “Na maior parte das vezes, não
O jornalismo perde na medida em que a imagem, tal qual vemos primeiro para depois definir, mas primeiro definimos e
ela é confeccionada e difundida no espetáculo, achata o pensa­ depois vemos” . Ou seja. primeiro se formam “as imagens den­
mento. Convertidas em estereótipos, pressionam o discurso tro da cabeça” , e depois, com base nelas, é que se decodifica a
jornalístico por um maniqueísmo acrítico e, no limite, não in­ realidade.
formativo, apenas emocionante. Quando o jornalismo emocio­ O trabalho de Lippmann é lembrado aqui para enfatizar

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que a presença das falsas imagens (ou os estereótipos) já é per­ A falsa imagem não é a fotografia de Saddam Hussein, mas a
cebida há tempos no jornalismo pelos jornalistas. E para que legenda que vai embaixo dela, o seu significado. Saddam é um
não se caia no falso entendimento (outro estereótipo) de que a tirano? Sim, é. Mas o jornalismo tem a obrigação de dizer mui­
fabricação dos estereótipos seja uma inovação produzida pela to mais do que isso para o público. E tem a obrigação de dizê-
tv ou mesmo pela fotografia. É justamente o oposto. Os este­ lo de forma atraente e interessante. Prisioneiro do culto das fal­
reótipos já interiorizados “pelas pessoas” , no dizer de Lipp- sas imagens, ele renuncia a esse papel.
mann, ou já consagrados pelo imaginário, é que condicionam o A propósito, o problema maior que o telejornalismo en­
modo de ver e de fotografar o mundo. Assim, é porque o culto carna não é tanto a falsa imagem, mas a imagem verdadeira
das falsas imagens já fazia parte da natureza do relato jornalís­ mesmo, aquela que simula uma total independência em relação
tico que o problema se agravou tanto com o advento da t v . a qualquer texto. Aquela que pretende passar pela verdade nua
O telejornalismo, portanto, não é o agente criador das fal­ e crua. De fato, são as palavras que constroem o altar para a
sas imagens. Não é o causador da maneira estereotipada de ver imagem. Mas a ilusão que se vende é a de que a imagem diz
a realidade. Ele participa das transformações da cultura, mas tudo — e ela não diz. No campo do jornalismo, somente as pa­
não é, sozinho, como o cinema falado também não era, o gran­ lavras podem processar o pensamento crítico sobre a imagem.
de culpado da transformação. Ele é antes o produto de um As palavras é que criam mediações entre o que se vê e o que se
modo de ver e de entender que já estava embrionário no olhar compreende daquilo que é visto. As palavras é que combatem
do jornalismo desde antes da televisão. Quando se analisa o os estereótipos. Desde o advento do telejornalismo, uma das
culto das falsas imagens com base não apenas na perspectiva principais funções éticas da imprensa — cuja obrigação é re­
posta pela t v , mas também na tendência anterior do jornalismo portar criticamente os acontecimentos — passou a ser criticar
de se valer dos estereótipos, a questão adquire uma outra di­ o culto das falsas imagens, função da qual ela raramente dá
mensão, uma outra grandeza e uma outra — e mais complexa conta.
— gravidade ética. Para suprimir o culto das falsas imagens
não bastaria banir da imprensa a fotografia, o filme e o vídeo 3. Invasão da privacidade
— como querem os conservadores. Para suprimir esse pecado
capital é preciso aguçar a visão crítica dos profissionais de im­ Ninguém acha justo fuxicar a intimidade alheia. Não obs­
prensa e investir na autonomia da narrativa jornalística em opo­ tante, o público devora sôfrego tudo o que se publica de mexe­
sição às formas de narrativa já desgastadas pelo entretenimen­ ricos sobre os ricos e famosos. Fofoca vende jornal e dá au­
to. Não que o jornalismo deva ser chato e pouco atraente, mas diência. Vende cada vez mais, numa escalada sem medidas. E
ele só pode se afastar do culto das falsas imagens na medida quanto mais vende, mais gera protestos. A polêmica em torno
em que se torne atraente por aquilo que ele tem de essencial — do assunto ganhou proporções inéditas com a morte de Lady
a informação exclusiva, clara e inteligentemente articulada — , Di, em 1997. Foi um episódio espetacular. Na noite de 30 de
e não pelo que ele acabou incorporando de enfeites midiáticos. agosto de 1997, às 21h50, Lady Di e seu namorado, Dodi AI
Banir a fotografia, o vídeo e o filme só traria prejuízos ao Fayed, cruzaram a porta de entrada do Hotel Ritz de Paris.
bom jornalismo. E não valeria de nada para combater as falsas Como faziam quase sempre, viajavam às escondidas, buscan­
imagens, pois estas são acima de tudo fabricadas com palavras. do abrigo das lentes dos fotógrafos e dos cinegrafistas de t v ,

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mas quando deixaram o hotel, cerca de duas horas depois, num nas clama por invasão, como é uma privacidade construída em
Mercedes-Benz em alta velocidade, foram seguidos pelos pa- público (daí a iniciativa de Lady Di de contar na televisão que
parazzi. Por volta da meia-noite, o automóvel, a 150 quilóme­ era adúltera). Nessa medida, o público tem, sim, o direito de
tros por hora, espatifou-se contra pilastras de concreto no meio saber de suas intimidades. A morte da princesa foi uma fatali­
de um túnel às margens do rio Sena. Lady Di virou mártir: dade — mas não retira a legitimidade dos que viviam de foto­
morreu fugindo dos flashes. Setembro de 1997 foi a tempora­ grafá-la.
da de condenações ao sensacionalismo. Todo mundo era con­ A tragédia, no entanto, relembra a todos o desafio de um
tra. Naquele mesmo mês, no entanto, o rosto frágil de Lady Di, limite. Há de existir um limite — onde não existe limite não
que em vida era um campeão de vendas de revistas nos Esta­ existe ética. Nos meses seguintes, os próprios tablóides ingle­
dos Unidos e na Europa, continuou a abarrotar as bancas de ses se manifestaram sobre o assunto, e novos pactos de condu­
jornal e a render enorme audiência na tv . Seu funeral monopo­ ta se apresentaram. Mas o desafio do limite, anterior até mes­
lizou a mídia. Enquanto isso, os fotógrafos eram execrados mo ao nascimento de Lady Di, persiste. Como regra geral, ele
como abutres e acusados de causar a morte do casal. Alguns fo­ é dado pela prevalência do interesse público sobre a alegação
ram presos e indiciados. Tempos depois, eram inocentados. Fi­ da privacidade. Mas, no caso de Lady Di, a pergunta básica pa­
cou provado que o motorista, que também faleceu no acidente, rece nem ter sentido: que interesse público pode haver em sa­
estava bêbado. Levou a culpa sozinho. ber para onde vai a princesa com seu namorado à meia-noite?
Como ressaca do episódio, ficou a sensação de que a sa­ Há duas vias de resposta. A primeira se refere à suposta rele­
nha dos paparazzi pode matar as celebridades. Desde então, vância pública dos movimentos íntimos da família real inglesa.
quando se fala em invasão de privacidade, fala-se de uma for­ A realeza, que por tradição torna privados os negócios públicos
ça que não respeita nem a integridade física daqueles que são — a representação do Estado (público) é encarnada por uma
o objeto do desejo da massa. Ao mesmo tempo, porém, as ce­ família em linha hereditária (um critério, portanto, privado) —,
lebridades não são passivas nesse circo fatal: elas posam para tem a característica de, ato reflexo, tornar públicos seus negó­
os fotógrafos, oferecem-se às revistas de fofocas, alimentam a cios privados e mesmo íntimos. O casamento de um príncipe-
indústria do fuxico. Pouco antes de morrer, Diana dera uma en­ herdeiro é assunto de Estado, e, conseqúentemente, o compor­
trevista na televisão admitindo ter traído o príncipe Charles an­ tamento da esposa do príncipe também o é. Isso se ancora nos
tes da separação do casal. Ela mantinha relações de cordialida­ costumes da sociedade em relação à família real, o que admite
de com repórteres de tablóides sensacionalistas britânicos. Mas variações. Na Grã-Bretanha, o público acompanha tradicional-
fazia o jogo duplo. Beneficiava-se de sua fama — como todos mente cada movimento de cada membro da família real, esse é
os famosos — para depois pedir descanso e direito ao anoni­ o costume que cimenta também uma ética; já na Espanha, a
mato. Dessa dança de fascínio e repulsa coreografada pelas ce­ privacidade da família real é resguardada por um pacto tácito
lebridades nasce a aura ambígua que cerca a chamada invasão entre os veículos de comunicação, o que cimenta outra ética
de privacidade. O seu encanto não vem do respeito aos limites, baseada em costumes. Não há um padrão absoluto. Mas os
mas da incessante renegociação de fronteiras, da instabilidade membros da família real britânica já sabem, de antemão, com
delas, da burla, do excesso consentido e depois negado, do ar­ que costume estão lidando.
rojo e da incorreção. A privacidade das celebridades não ape­ A outra via de resposta passa pelas atitudes das personali­

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dades cuja privacidade é objeto de reportagens, não importa se como era Lady Di, mas tem profunda relação com a cobertura
de bom ou de mau gosto. Alguém que espontaneamente ali­ política.
menta os jornalistas com detalhes íntimos de sua vida familiar, A cultura atual é marcada pela invasão da arena pública
conjugal ou extraconjugal — e assim agia, ainda que de modo por assuntos privados, como vem sendo observado há décadas.
seletivo, a princesa Diana —, não goza da prerrogativa de im­ Richard Sennett, professor de sociologia na London School of
por silêncio aos meios de comunicação conforme mudem suas Economics e na New York University, afirma, em O declínio
conveniências. Quem transforma em notícia os seus namoricos do homem público, que “vemos a sociedade mesma como ‘sig­
deixa de ter fundamento para exigir que alguns de seus flertes nificativa’ somente quando a convertemos num grande sistema
não sejam mais notícia. A sua vida privada deixou de ser ape­ psíquico” .4 Os debates políticos se tornam melodramas senti­
nas vida privada. mentais, e os temas públicos são tratados como assuntos da in­
Paul Johnson, no entanto, discorda. Diz ele: "Por mais pri­ timidade salpicados de namoros e intrigas pessoais. A dimen­
vilegiados que sejam, como a realeza, por mais bem-sucedidos, são clássica do homem público se esvanece, consumida pela
como os astros do cinema e da música, por mais poderosos, co­ sua intimidade exposta. Escândalos sexuais conduzem a cena
mo os chefes de governo, ou ricos e comemorados, todos pre­ política e, aqui e ali, desgraçam carreiras políticas. O presiden­
cisam de alguma privacidade” . Nada contra esse preceito geral. te Bill Clinton, excepcionalmente, sobreviveu a alguns. O mais
Mas se ele é válido, o problema passa a ser de outra ordem: rumoroso foi noticiado em 1998, quando o promotor indepen­
quem é que arbitra o domínio privado a ser mantido em sigilo dente Kenneth Starr apurou e divulgou a ligação libidinosa de
— a celebridade ou a imprensa? A única resposta possível pas­ dezoito meses que Clinton manteve com uma estagiária da
sa pela administração, responsável e consciente, que cada um Casa Branca, Monica Lewinsky. Starr preparou um relatório
é capaz de imprimir à sua própria vida privada, mantendo cla­ que, publicado na internet, causou furor nas redações do mun­
ros os muros sobre sua própria intimidade o tempo todo. Não do inteiro. Para o bem, para o mal — e para a comédia. Em
era esse o diapasão da princesa, nem é o da maioria das cele­ setembro de 1998, Larry Flynt, editor da ultrapomográfica
bridades. E, mesmo assim, ainda continua a ter procedência a Hustler, “homenageou” o promotor pelo caráter libertino do
máxima que, entre nós, já foi bem sintetizada no início do sé­ texto e ofereceu-lhe emprego em sua revista. O presidente sa­
culo por Rui Barbosa (1849-1923): “Queiram ou não, os que se fou-se do impeachment e da renúncia, mas saiu do escândalo
consagraram à vida pública, até à sua vida particular deram desgastado e sem autoridade. O affaire ganhou mais projeção
paredes de vidro".’ Essa é uma regra sagrada da democracia que qualquer outro tema presidencial na América, não apenas
americana. Lá, o argumento mais recorrente que se dá a essa por moralismo da nação, ou por um certo espírito de futrica-
matéria é a seguinte situação hipotética: se o presidente da Re­ gem da massa. O caso ganhou destaque pelo que revelava sobre
pública mente para a própria mulher, o público tem o direito de o caráter do chefe de Estado. Pode um mandatário do Executi­
saber, pois a atitude de enganar a esposa denota o caráter do vo alegar privacidade quando seduz uma jovem no próprio
homem que exerce o cargo máximo do país, e seu caráter é ambiente de trabalho? O fato de ele ter sobrevivido no cargo
assunto de interesse do eleitor, que leva isso em conta na hora indica que existe mais tolerância e menos hipocrisia sobre o
de decidir o voto. Assim, o tema da invasão de privacidade não tema, o que não autoriza ninguém a afirmar que temas da inti­
se reduz às paqueras de uma figura decorativa da nobreza, midade estão inteiramente fora do interesse público e que, por­

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tanto, não devem mais ser objeto da investigação jornalística. “invasão de privacidade” . Quando temas da intimidade alheia
E claro que é deprimente ver toda a cobertura política escorrer se prestam aos mercadores de fofocas, movidos pelo mero
pelo ralo de aventuras amorosas, mas, sem recorrer à censura, interesse de extrair lucro da curiosidade perversa do público, o
o que seria intolerável, não há como impedir que o público te­ problema não está na privacidade invadida: ele está no desres­
nha acesso a tais assuntos. O desejável é que prepondere a mo­ peito do jornalismo aos padrões de elegância.
deração nesse tipo de cobertura. O desejável, porém, é incon- Diz-se que a elegância não pode ser definida e que, assim,
trolável. Daí o mal-estar. Como regra geral, Johnson é mais atual não serve como parâmetro ético. É verdade que ela não pode
que Rui Barbosa: todos têm direito à privacidade, mesmo sen­ ser definida em termos universais, mas serve de base. E é sim­
do figuras públicas. Em contrapartida, a alegação de privacida­ ples entender por quê. Do jornalista se pode exigir que ele se
de pode ser uma barreira ao direito à informação quando se re­ guie segundo o seu bom senso de cidadão, que, embora pareça
laciona com os assuntos públicos. Ainda que indiretamente. um critério tênue e subjetivo, é real. Bastaria que os jornalistas
A orientação da imprensa não precisa ser a de sonegar não aceitassem oferecer ao público aquilo que não gostariam
dados, mas a de educar o público, demonstrando que preferên­ de ver oferecido aos seus filhos, e boa parte dos problemas que
cias de ordem privada não têm necessariamente consequência tangem o mau gosto estariam resolvidos.
na lisura com que um político administra a coisa pública. Os Um ficcionista. um pintor, um cineasta têm o direito de
preconceitos morais devem ser neutralizados com a informa­ criar e difundir obras que combatam e mesmo que destruam os
ção, não sem ela. Há muita deselegância nas páginas dos jo r­ padrões morais da sociedade em que vivem. A liberdade abso­
nais, sem dúvida, mas há também avanços, que redundam em luta faz parte de sua ética. O mesmo não se pode dizer do jor­
maior tolerância às diferenças. É o que se verifica quando a nalista; enquanto os artistas criam mundos irreais, às vezes
homossexualidade de parlamentares e chefes do Executivo conseguindo com isso descortinar verdades profundas, o jorna­
passa a ser aceita com normalidade pelos eleitores. Antes, um lista lida com o mundo dos fatos e está atado à verdade imedia­
congressista gay seria impensável. E por puro preconceito. Ho­ ta. Sua matéria-prima é aquela substância informativa que in­
je, em muitas comunidades, já não é assim. Mas mesmo esse teressa à cidadania, o que o subordina aos padrões morais que
congressista, gay ou não, não pode se valer do cargo para se­ vigem para os cidadãos — estes é que delegam a ele o direito
duzir os parceiros. E, quando ele assim agir, sua conduta deve, de ser um jornalista. Ele é um representante da sociedade e,
sim, ser examinada e julgada pelo público. Foi em parte o que logo, é regido pelos mesmos princípios que pautam o compor­
justificou a cobertura ao affaire de Clinton. tamento público de qualquer um. Isso não significa estar sub­
O ponto crítico não é portanto a informação em si: é o jugado por preconceitos obscurantistas, significa apenas que
modo como ela é explorada pela imprensa. A privacidade não ele é instado a dialogar com a moralidade vigente em termos
é um tabu, uma zona proibida, mas um limite socialmente aceitos como sendo civilizados. Quem é pago para informar o
posto. O dilema não é bem “invadi-la” ou não: o dilema está cidadão e publica aquilo que não gostaria de ouvir em sua pró­
nos critérios claros e socialmente justificáveis para abordá-la e pria casa está traindo a delegação de que está investido. E nes­
também para a maneira acertada de fazer isso. O sensaciona- ses termos que se pode falar de bom gosto em jornalismo. Não
lismo, o moralismo e o mau gosto prejudicam o jornalismo em se trata de definir e decretar “o” bom gosto acima da socieda­
todos os campos — não apenas no que se refere à chamada de, mas de algo que pode — e deve — ser a expressão do que

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a sociedade em sua média deseja de melhor como padrão de pecto que aqui se quer destacar não são as minúcias factuais, e
convivência, de diálogo e de formação cívica. Quem dita esse sim o dilema ético que se apresenta em casos assim. Trata-se
padrão não são os humores do público, ou suas curiosidades de um duelo entre dois valores: o interesse público versus a pri­
perversas, e sim o interesse público. Por isso, o sensacionalis- vacidade dos personagens da história. Os editores de Veja se­
mo é eticamente reprovável. Sensacionalismo, atenção, não é guiram o princípio de que as denúncias de Pedro Collor eram
sinónimo de “jornalismo popular” , como se costuma acreditar. relevantes por si mesmas, mas optar por publicá-las era uma
“Jornalismo popular” , nessa acepção, é em si uma acepção pre­ decisão especialmente difícil, porque Pedro Collor não apre­
conceituosa: supõe que popular seja sinónimo de mau gosto. sentava provas naquele momento. Mesmo assim, a revista se­
Pode-se fazer jornalismo popular e mesmo jornalismo policial, guiu o princípio de que o cidadão tinha o direito de conhecer
cujo tema é a violência, dentro de bons padrões éticos. Sensa­ as denúncias. Não restam dúvidas de que acertou.
cionalismo é o jornalismo que se curva ao preconceito, inten­ Além disso, é bom lembrar que atributos privados de Fer­
sificando-o. O jornalism o que toma por objeto realidades nando Collor foram tornados públicos, por ele mesmo, como
normalmente envoltas em preconceitos - a criminalidade e a virtudes que o credenciavam para ocupar o cargo de presiden­
sexualidade, por exemplo — pode muito bem ter um efeito te. Ele se apresentou ao país como alguém capaz de exercer a
educativo, que contribui para a consciência dos direitos e do Presidência porque, segundo sua propaganda, era jovem, saudá­
respeito às diferenças. O mau gosto não está no assunto nem na vel, ousado, corajoso, casado, fiel, religioso, empreendedor. Os
linguagem (termos que são considerados “chulos” por um de­ aspectos de sua vida íntima faziam parte de seu currículo e,
terminado leitorado podem fazer parte da normalidade linguís­ com base neles, Fernando Collor pediu apoio a seus eleitores.
tica de outro, e isso deve ser levado em conta, dentro do bom Estavam portanto postos por ele mesmo como premissas de sua
senso). Está na orientação geral da cobertura. conduta pública. Haviam se tornado assunto de interesse públi­
O dilema entre o respeito à privacidade e o interesse pú­ co — investigá-los era dever dos jornalistas. Se, naquele ano de
blico é recorrente. Em 1992, ele foi vivido diariamente na im­ 1992, tivesse prevalecido um suposto respeito à privacidade de
prensa. Denúncias contra o presidente da República, Fernando Fernando Collor, a democracia brasileira estaria hoje mais atra­
Collor, eram manchetes em todo o país. Muitas delas invadiam sada do que está. E o jornalismo também.
sua privacidade. Era o interesse público que assim exigia. No Há outros cuidados que ajudam em dilemas entre o respei­
dia 23 de maio de 1992, um sábado, a revista Veja foi às ban­ to à privacidade e o interesse público. Um deles é sugerido por
cas com o retrato de Pedro Collor, irmão do presidente, em sua vários críticos da imprensa: diferenciar o que é interesse públi­
capa: “Pedro Collor conta tudo — O vídeo e a entrevista com co do que é curiosidade perversa do público (que pede o escân­
os ataques do irmão do presidente” . As declarações do entre­ dalo pelo escândalo, doa a quem doer). E verdade que ninguém
vistado, mais do que invadir, devassavam segredos pessoais consegue traçar a fronteira universal entre um c outra, não
do chefe do Executivo, lançando contra ele acusações de uso existe uma receita abstrata que seja válida para todas as situa­
de drogas, entre outras. Sem provas. A substância da reporta­ ções, mas a simples lembrança dessa cautela já traz mais ele­
gem eram as declarações do irmão do presidente. O episódio é mentos para uma boa decisão sobre os casos concretos que se
narrado em detalhes pelo jornalista Mario Sérgio Conti, ex-di- apresentem.
retor de redação de Veja, em Notícias do Planalto,5 mas o as­ Nesse ponto, o maior problema é que a separação entre in­

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teresse público e curiosidade perversa do público, normalmen­ ninguém. É como se nem mesmo o sensacionalismo mais ba­
te, costuma ser viciada por um certo preconceito de classe. Os rato pudesse prejudicar a imagem de alguém que, afinal de
personagens que se situam no topo da pirâmide social têm me­ contas, nem goza do direito de ter uma reputação. Aí, de modo
recido mais esse tipo de preocupação do que aqueles que se si­ privilegiado, aparece nítido o caráter de classe da ética jornalís­
tuam na base. E tristemente curioso que só se fale em invasão tica praticada no Brasil.
de privacidade quando a pessoa prejudicada é alguém de pos­
se ou de poder. É como se gente pobre não tivesse intimidade 4. Assassinato de reputação
a ser preservada.
Os programas sensacionalistas do rádio e os programas Quando os personagens se situam acima da linha da dig­
policiais de final da tarde em televisão saciam curiosidades nidade humana, e desfrutam de alguma reputação, aí, sim, en­
perversas e até mórbidas tirando sua matéria-prima do drama tende-se que a imprensa é capaz de destruí-los. E de fato os
de cidadãos humildes que aparecem nas delegacias como sus­ destrói. Por distorção deliberada ou inadvertida. Um exemplo
peitos de pequenos crimes. Ali, são entrevistados por intimida­ de assassinato de reputação aconteceu em 1992, quando se ve­
ção. As câmeras invadem barracos e cortiços, e gravam sem rificou uma campanha contra o ministro da Saúde de Fernando
pedir licença a estupefação de famílias de baixíssima renda que Collor, Alceni Guerra. Mario Sérgio Conti, em Notícias do
não sabem direito o que se passa: um parente é suspeito de es­ Planalto, conta como a Rede Globo liderou essa campanha.
tupro, ou o vizinho acaba de ser preso por tráfico, ou o primo Alceni fora encarregado pelo presidente Collor de se apro­
morreu no massacre do fim de semana no bar da esquina. A po­ ximar de um opositor graúdo — o então governador do Rio de
lícia chega atirando; a mídia chega filmando. As taras sexuais Janeiro, Leonel Brizola, que depois se converteria num apoia-
dos miseráveis são transformadas no prato do dia nos banque­ dor do presidente. A missão do ministro da Saúde era conduzir
tes do sensacionalismo; as mortes trágicas viram show; as trai­ ações conjuntas do governo federal com o governo do Rio. Al­
ções conjugais se transformam em comédia chula dos progra­ ceni pressentiu que iria pisar em terreno minado e tentou safar-
mas de auditório. É mais fácil um camelo passar no buraco de se da missão. Ele acreditava que essa aproximação iria fazer
uma agulha do que um rico entrar nas bizarrias dos shows de dele um desafeto dos Marinho, donos da Globo, inimigos his­
televisão. Crianças são expostas em suas deformidades físicas tóricos de Brizola. Mas não conseguiu se livrar do encargo. De
e suas doenças incuráveis. Outras vêem seus pais se estapea- fato, logo começaram a surgir reportagens maliciosas do Jor­
rem sob acusação de adultério. Como vivem à margem dos di­ nal Nacional, que, no entanto, não falavam nada a respeito de
reitos, essas pessoas não têm reconhecido o seu direito à priva­ Brizola. Apenas batiam no ministro. A licitação para a compra
cidade; sua intimidade não existe — ou não vale nada. Se o de 30 mil bicicletas (além de mochilas e guarda-chuvas) pelo
fato de um milionário acusado de corrupção ser tratado com Ministério da Saúde, que serviriam de meio de locomoção para
maus modos pelas manchetes é motivo para seminários sobre os agentes de saúde das regiões Norte e Nordeste, virou emble­
ética — com razão — , o fato de um subassalariado ser humi­ ma para a perseguição, encampada por vários outros órgãos de
lhado por um entrevistador de t v é um dado a mais do cotidia- imprensa. Numa das reportagens, o repórter Alexandre Garcia
no. Não desperta a menor crise de consciência. Entre os po­ apareceu no Jornal Nacional andando de bicicleta e segurando
bres, a invasão de privacidade é uma regra que não incomoda um guarda-chuva. Pressionado, o próprio ministro contratou

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uma auditoria em sua pasta. Dali, surgiram vinte irregularida­ centes. E decidiu esperar. Os outros embarcaram na corrida
des, que se tornaram objeto de investigação. Mais notícias con­ sensacionalista — e assassinaram a reputação de cidadãos con­
tra seu ministério. Alceni deixou a pasta e, nove meses mais tra os quais jamais houve prova consumada de abuso sexual.
tarde, conforme informou a revista Veja na edição de 21 de ju­
nho de 2000. teve seu processo — em que era acusado de aco­ 5. Superexploração do sexo
bertar as irregularidades na Saúde — arquivado pela Procura­
doria Geral da República. O estrago, porém, já estava feito. O A superexploração do sexo é outro pecado capital bastan­
ex-ministro, anos mais tarde, conseguiu reiniciar sua carreira te difícil de mensurar, uma vez que depende das balizas que
política se elegendo prefeito de Pato Branco, no Paraná, onde são dadas pelos costumes de cada comunidade. Mas há um
sua família está instalada desde os anos 1950. alerta a ser levado em conta. Paul Johnson adverte os respon­
Os acusados no caso da pequena Escola Base, que tinha sáveis pela comunicação social para que não cedam às deman­
sede no bairro da Aclimação, em São Paulo, não tiveram a das dos chamados baixos instintos, o que é razoável. Aí, tanto
mesma chance para se reerguer. Eles constituem o mais elo­ o sexo como a violência (embora Johnson não fale desta) assu­
quente exemplo de assassinato de reputação da década de 1990 mem um destaque preocupante.
no Brasil. Foram vítimas não de distorções deliberadas, mas de Criticando os canais abertos de televisão, George Gilder,
distorções inadvertidas cometidas pelos jornalistas. Em março cujas análises sobre o futuro das telecomunicações o transfor­
de 1992, uma denúncia infundada de abuso sexual das crianças maram num dos mais requisitados palestrantes dos Estados Uni­
do maternal alastrou-se em ritmo de histeria coletiva em tele­ dos, credita o rebaixamento do nível ético e estético das pro­
visões, rádios e jornais. A escola foi pichada, atingida por um gramações á supremacia dos interesses perversos. Em A vida
coquctcl molotov e depredada. A casa de dois dos acusados foi após a televisão, ele diz: “As pessoas têm pouco em comum,
saqueada. Alguns ficaram presos em condições humilhantes. exceto seus interesses lascivos e seus medos e ansiedades mór­
Dois meses depois das denúncias, os jornais iniciaram o mea- bidas. Tendo necessariamente por alvo esse mínimo denomina­
culpa, e vários artigos e reportagens tentaram recompor a ver­ dor comum, a televisão piora a cada ano".7 Quando a receita é
dade. Mas a vida dos acusados jamais se reconstruiu. O caso simplesmente dar ao público o que o público deseja, os meios
todo foi reconstituído no livro-reportagem de Alex Ribeiro, de comunicação perdem as medidas. O mecanismo é simples.
Caso Escola Base — Os abusos da imprensa,6 em que a genea­ Nenhum cidadão precisa assumir publicamente sua preferência
logia dos erros inadvertidos é esclarecida. Com base nas decla­ por atrações de gosto duvidoso: tudo o que ele tem a fazer é
rações de um delegado precipitado, que logo seria afastado das sintonizar sua televisão no canal que explora em exagero o se­
investigações, a imprensa prcjulgou os suspeitos e contribuiu xo e a violência. Como se acredita que os índices de audiência
para que eles ficassem expostos à fúria popular. Apenas o Diá­ refletem fielmente o interesse público e as necessidades dos ci­
rio Popular, que, segundo o livro de Alex Ribeiro, era o que ti­ dadãos, os responsáveis pela comunicação social sentem-se au­
nha o maior número de repórteres policiais e também mais ex­ torizados à prática da baixaria. Assim, cria-se um dos parado­
periência na área, mesmo tendo tido acesso à história antes dos xos do nosso tempo: as predileções inconfessáveis de cada um,
outros, julgou que não havia elementos suficientes para a pu­ que só podem ser cultivadas sob a proteção do anonimato, en­
blicação das investigações, a qual poderia expor pessoas ino­ tre quatro paredes, convertem-se em regra de conduta pública

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dos meios de comunicação. Esse mecanismo, porém, não vale em vídeo que são vendidos ao público infantil, não se podem
apenas para as emissoras de televisão de canal aberto que bus­ culpar as reportagens pelo que se passa. Hoje, pais que se or­
cam o “mínimo denominador comum” da grande massa, mas gulham de não presentear seus filhos com espingardinhas de
para todas as formas de comunicação eletrónica atuais, inclusi­ plástico para não ensiná-los a ter atitudes violentas orgulham-
ve a internet, onde sexo e violência são chamarizes recorrentes se também de poder comprar equipamentos caros que, acopla­
e muito bem-sucedidos. dos à televisão, oferecem não apenas pistolas automáticas, mas
Há uma hipocrisia moralista em toda essa história. Para aviões de guerra, tanques, morteiros e até bombas. As crianças
começar, do público. Não é difícil observar que os programas não têm direito a ganhar de Natal um revólver e um chapéu de
que mais geram protesto são também os que mais se destacam xerife, mas podem aprender a matar zumbis (como no video
na audiência. A sociedade vê aquilo que diz repudiar. No Bra­ game Resident Evil II) e soldados comunistas (em 007). De ou­
sil, e também fora do Brasil, não são as classes mais pobres que tro lado, a publicidade as ensina a fumar e beber, com marcas
sustentam a audiência do sexo e da violência; os adeptos das de cigarro estampando o macacão dos ídolos da Fórmula 1 e
modalidades ditas “baixas” se distribuem em todas as camadas marcas de bebida patrocinando campeonatos esportivos ou
sociais. Em segundo lugar, há a hipocrisia dos responsáveis pe­ atrações culturais as mais diversas. As propagandas na t v en­
las programações, que se escudam no argumento de que dão ao sinam que ter um tênis caro é mais importante do que ser soli­
público o que o público pede. A popularidade, um indicador de dário. Não é o jornalismo que “envenena a mente das crian­
mercado, se sobrepõe à legitimidade. Então, é legítimo aquilo ças” , ou pelo menos não é ele o maior culpado.
que goza de popularidade. A imprensa tem o dever de se insu­ Mesmo assim, a imprensa poderia ser mais crítica do que
bordinar contra isso. De novo, a única solução ética ao alcance é e poderia combater o envenenamento. E se furta a isso, tal­
dos jornalistas — e, acima deles, dos responsáveis principais vez porque não queira parecer antipática — ela também con­
pelos meios de comunicação — é buscar um parâmetro míni­ funde popularidade com legitimidade — , ou para não criar
mo de bom gosto, sendo o critério do bom gosto aquilo que mal-estar com anunciantes, ou simplesmente para não ser ta­
cada um aceitaria com tranquilidade dentro de sua própria chada de mal-humorada. O bom humor, ultimamente, tem vi­
casa. Isso não basta, por certo, mas seria um bom patamar mí­ rado sinónimo de conformismo contente.
nimo. Não se pode condenar ninguém pelo pecado da desele­
gância, mas pode-se perfeitamente questionar um dono de 7. Abuso de poder
emissora que oferece à sociedade aquilo que sabidamente não
toleraria que fosse oferecido a seus filhos. Diz Paul Johnson:
Desde que Macaulay denominou a imprensa de “o Quarto Po­
6. Envenenamento das mentes das crianças der", há consciência do poder político de que a mídia dispõe, o
que pode scr chamado de “síndrome de cidadão Kane” [...] Os
Esse é um pecado não da imprensa, mas da cultura. O jor­ proprietários dos meios de comunicação nem sempre estão
nalismo sozinho não é o responsável pelo que Johnson chama conscientes do grau de poder que exercem, e de sua natureza
de envenenamento da mente das crianças. Quando a indústria corruptora. Pois o dito de lord Acton de que todo poder tende a
dos games adota enredos de extrema brutalidade para os jogos corromper aplica-se tanto à mídia quanto à política. O exercício

160 161

*
por longo prazo de um grande poder produz uma vulgarização meios eletrónicos. Daí resulta um desequilíbrio que distorce a
das sensibilidades morais, uma certa abordagem descuidada e informação e que convida os proprietários a se esquecer da res­
temerária de decisões graves. ponsabilidade que lhes cabe. Eles, afinal, não precisam prestar
Não há como discordar dessas palavras. contas a ninguém. A concessão pública de um canal a uma
Isso é ainda mais grave quando se pensa no poder de um emissora de televisão no Brasil tem validade de quinze anos, e
veículo como a televisão que, nas últimas três décadas do sé­ sua não-renovação depende da aprovação de, no mínimo, dois
culo, exerceu hegemonia na organização do espaço público quintos do Congresso Nacional em votação nominal (artigo
contemporâneo em todo o mundo e, de modo mais marcante, 223, parágrafo terceiro da Constituição Federal). Ora, isso é o
no Brasil. Muitos já lançaram advertências sobre o perigo des­ mesmo que dizer que a concessão é perpétua. Que parlamentar
sa hegemonia, entre eles o filósofo austríaco Karl Popper (1902- quer arriscar-se a cair nas listas negras das redes de televisão?
94), que, no livro Televisão — Um perigo para a democracia, A concessão não está subordinada na prática sequer a uma
pediu um controle para o poder da televisão: “Não pode haver carta de princípios que, se desobedecida, justificaria uma pena
democracia se não submetermos a televisão a um controle, ou, de suspensão ou mesmo de cassação da concessão. As emisso­
para falar com mais precisão, a democracia não pode subsistir ras de televisão no Brasil, quando distorcem as informações,
de uma forma duradoura enquanto o poder da televisão não saem impunes. O abuso de poder é uma lei — a lei da selva.
for totalmente esclarecido” .8 A introdução desse mesmo livro, Nessa matéria, a ética jornalística não basta. Esperar que a li­
assinada por Giancarlo Bosetti, exprime o desconforto repre­ mitação de poder possa brotar da boa consciência dos proprie­
sentado por Karl Popper: “A televisão tornou-se um poder in- tários é insistir no erro. E preciso que, por força da legislação,
controlado, e qualquer poder incontrolado contradiz os princí­ haja limites para o poder das emissoras — como existe nos Es­
pios da democracia” . tados Unidos, por exemplo. Lá, esse limite é um limite da pro­
Ninguém aqui irá propor qualquer fórmula de censura ou priedade privada. Uma agência, a Comissão Federal de Comu­
qualquer colegiado de autoridades públicas que sejam encarre­ nicações ( f c c ), é a responsável pela regulação do setor. Por
gadas de “filtrar” aquilo que a televisão pode veicular. A liber­ meio do estabelecimento de regras e também pela fiscalização,
dade de imprensa é inegociável. Mas, como poder que são, os ela procura proteger a pluralidade e a diversidade de empresas
meios de comunicação requerem de seus controladores uma e de opiniões na comunicação social.
subordinação a valores éticos que construam — e não corrom­ Tradicionalmente, a fcc não autoriza que uma mesma em­
pam — a democracia em nome da qual a liberdade lhes é con­ presa tenha uma emissora de televisão e um jornal numa mes­
ferida. Não é a veiculação de conteúdos que precisa ser moni­ ma cidade. A partir da década de 1990, é verdade, esse veto
torada pela autoridade, mas o poder que precisa ser limitado — vem admitindo flexibilizações em casos específicos, o que em
e isso significa limitar a propriedade dos meios eletrónicos de parte se deve ao advento das novas tecnologias (com a confluên­
comunicação. E disso que se trata. cia dos meios, não há mais um limite claro entre um jornal pela
A democracia deve assegurar um regime em que prevale­ internet e meios eletrónicos, e a lei não pode impor regras ba­
ça, no mínimo, a pluralidade de veículos informativos e a com­ seadas em tecnologias ultrapassadas). Mas, acima das flexibi­
petição entre os órgãos de imprensa. Isso, infelizmente, como lizações, o princípio de garantir a diversidade permanece. “O
já foi visto, ainda não se verifica no Brasil no que se refere aos mercado de mídia torna-se cada vez mais dinâmico e competi­

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tivo, com um crescente número de distribuidores de informa­ tos e afrouxados nos Estados Unidos, mas o princípio de man­
ção e plataformas de mídia e os americanos usando essas op­ ter a diversidade continua vivo. No Brasil, jamais se cultivou
ções mais que nunca” , disse William E. Kennard, presidente da verdadeiramente nada parecido. Aqui, o abuso de poder cami­
FCC.9 “Nosso relatório equaciona o interesse público relativo à nha sem a menor perspectiva de controle. E uma pena. A ética
diversidade da propriedade com as exigências de um mercado jornalística, para prosperar, depende da existência de um ambien­
em mudança e com a necessidade de as empresas de radiodifu­ te minimamente equilibrado e plural para os meios de comuni­
são aproveitarem a eficiência económica e continuarem com ­ cação.
petitivas.” Segundo a f c c , as restrições não serão revogadas,
mas apenas afrouxadas em casos específicos.
No relatório bienal que foi divulgado em junho de 2000, a “ OS DEZ MANDAMENTOS”
FCC reafirma seus objetivos históricos:
Contra as mazelas e as falhas, Paul Johnson propõe “dez
Por mais de meio século [a agência foi criada pelo Communica­
tions Act de 1934], as regulações desta Comissão para os servi­ mandamentos” que devem nortear o trabalho dos jornalistas.
ços de radiodifusão vêm sendo guiadas pelas metas de promover Devem também orientar o público, pois cabe ao público exigir
competição e diversidade [...] Competição é uma parte impor­ que lhe seja dada informação de qualidade. São eles:
tante porque promove o bem-estar do consumidor e o uso eficien­ 1. Desejo dominante de descobrir a verdade.
te dos recursos, além de ser um componente necessário para a 2. Pensar nas consequências do que se publica.
diversidade. A diversidade de proprietários |dos meios de comu­
nicação] leva à diversidade de pontos de vista e promove os Em Normas y conflictos, carta reservada editada por Car­
princípios centrais da Primeira Emenda [a emenda constitucio­ los Soria, da Universidade de Navarra, divulgada em 1993, há
nal de 1791 que consagra a liberdade dc reunião, de expressão um episódio que ilustra bem a procedência desse mandamento:
e de imprensa]. “A informação mata. Um editorial do diário italiano II Tempo
Por isso, em nome de manter a diversidade e a pluralida­ resumiu nessa idéia sua decisão de não publicar mais nenhuma
de, a FCC proíbe expressamente qualquer fusão ou aliança en­ informação sobre as circunstâncias e métodos usados pelos sui­
tre as quatro grandes redes de t v nos Estados Unidos: a Fox, a cidas para se matar. Dez jovens italianos já tinham se matado
a b c , a nbc e a c b s.
pelo método de respirar os gases do cano de escapamento de
Não se trata de discutir em detalhes o número de jornais seus carros” .10
que cada empresa pode ter em combinação com outro número 3. Contar a verdade não é o bastante. Pode ser perigoso sem jul­
de canais por assinatura e mais a participação em redes nacio­ gamento informado.
nais. O que é preciso destacar é o princípio democrático de li­
Aqui, o apelo de Johnson é de natureza utilitária, ou seja,
mitar a propriedade dos meios de comunicação para resguardar
o jornalista deve levar em conta as consequências de seus atos
o regime da concorrência entre as empresas e um ambiente de
antes de decidir o que fazer.
multiplicidade de opiniões e pontos de vista. Esse princípio é
que é essencial. É verdade que vários dos limites de concentra­ 4. Possuir impulso de educar.
ção de propriedade de meios de comunicação vêm sendo revis­ 5. Distinguir opinião pública de opinião popular.

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O termo popular na frase não é feliz. Permite um entendi­ esse ideal subsiste como um mito. Antes, talvez há dois sécu­
mento de que o “popular” carrega um valor negativo em opo­ los, era um conceito capaz de unificar os projetos democráticos
sição ao público, e não é esse o caso. O mais preciso seria di­ em oposição ao regime absolutista. Na época, a imprensa era a
zer: distinguir o interesse público da curiosidade perversa do voz da opinião pública; a soberania popular estava acima de
público e distinguir legitimidade de popularidade. tudo. Era em nome dela que as transformações urgiam. Atual­
mente, a idéia de opinião pública perdura como lembrança lon­
6. Disposição para liderar. gínqua: foi englobada pelo mercado de consumo, e a velha sa­
7. Mostrar coragem. bedoria democrática, cidadã por definição, parece dar lugar a
manifestações dos desejos dos consumidores.
O sexto e o sétimo “mandamentos” soam um tanto épicos. Hoje, a imprensa integra uma superindústria que vai das
O jornalismo não é nenhuma liderança política da sociedade. atrações do entretenimento às infra-estruturas de telecomuni­
Mas deve-se ter em conta que “disposição para liderar” signi­ cações, envolvendo o planeta como um novelo de cabos, saté­
fica ser capaz de remar contra a maré, ter a iniciativa de, se ne­ lites e antenas por onde navegam conteúdos os mais diversos.
cessário, combater o senso comum. O que se completa com a A informação caminha como o capital — eletronicamente, na
obrigação de “mostrar coragem” . Sem bravatas nem demons­ velocidade da luz. Os conglomerados da mídia concentram
trações de valentia, a imprensa não pode se dobrar às pressões tanto dinheiro quanto os bancos, e a mídia está entre os maio­
— e tem de deixar explícito que não se dobra. res negócios da atualidade, envolvendo cifras comparáveis às
da indústria automobilística e das companhias fabricantes de
8. Disposição de admitir o próprio erro. softwares. Dois séculos de história e montanhas de dólares se­
9. Equidade geral. param o jornalismo atual dos jornais que buscavam realizar os
10. Respeitar e honrar as palavras. ideais iluministas no calor da Revolução Francesa. Não obstan­
te, aqueles mesmos princípios, de cidadania e de direitos hu­
manos, ainda servem de norte para o jornalista. E justo que seja
TRÊS COMENTÁRIOS CRÍTICOS COM BASE NOS “ SETE PECADOS assim, mas as coisas já não são o que costumavam ser. Há um
CAPITAIS” E NOS “ DEZ MANDAMENTOS” quê de anacronismo no ar quando um repórter invoca o concei­
to de opinião pública para fazer isso ou aquilo.
1. O mito da opinião pública (e da verdade por ela revelada)
O público capaz de julgar
Dos pecados aos mandamentos de Paul Johnson, há ideais
de fundo que permanecem encobertos, intocados. Para um en­ O conceito de opinião pública entra na cena histórica
tendimento menos ingénuo do lugar histórico — e ideológico como realização das Luzes e da Razão, o canteiro em que flo­
— do jornalismo, devem ser examinados criticamente. O cen­ resceria a árvore da Verdade e da Justiça: era o grande tribunal
tro desses ideais é o da opinião pública, que subjaz como ori­ dos homens comuns. Robespierre, um dos jacobinos mais radi­
gem de tudo e, ao mesmo tempo, como instância suprema da cais a liderar a Revolução Francesa, era retórico e contunden­
sabedoria democrática: a fonte da verdade. Em nosso tempo, te: “Opinião Pública, eis o único juiz competente das opiniões

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particulares, o único censor legítimo dos escritos. Se ela os noção de “opinião” aparecia associada a uma crença ou a uma
aprovar, com que direito vocês, homens do poder, poderão convicção particular, impossível de ser comprovada cientifica-
condená-los?” . Tudo em nome dela, inclusive a própria liber­ mente. Mesmo quando compartilhada por um grupo de pes­
dade de imprensa. soas, a opinião não era vista como algo que coincidisse com a
Uma breve arqueologia do conceito pode ser encontrada verdade, ou com a ciência. Ela representava justamente o con­
em Opinião pública e revolução, de Milton Meira do Nasci­ trário: a opinião era uma aglomeração personalíssima de palpi­
mento. O autor sustenta que, no século xvm, na França, as pro­ tes, superstições, preconceitos. É verdade que a opinião parti­
duções intelectuais que buscavam diálogo com o povo, como cular de um líder poderia até ser coletivizada, isto é, poderia
as dos enciclopedistas, entre tantos outros, constituíam um pre­ ser aceita como verdade por uma comunidade inteira, mas essa
núncio do nascimento da opinião pública tal como ela veio a “coletivização” não lhe mudaria o caráter: ela jamais poderia
ser entendida. “Já não estaria ali o pressuposto da existência de alçar-se à condição de verdade à luz da razão; era produto de
um público capaz de julgar?” , pergunta-se Meira do Nascimen­ uma visão pessoal, avessa aos métodos científicos, avessa à ra­
to." Na época, deu-se um sólido crescimento do público leitor, cionalidade.
o que seria indispensável para que os philosophes se comuni­ Já a opinião pública tal como foi idealizada pelo iluminis­
cassem com os cidadãos em larga escala. “O número de alfa­ mo, esta estaria num grau superior ao das opiniões particulares.
betizados provavelmente duplicara no curso do século” , diz Pelo esclarecimento, ela seria uma força racional capaz de
Robert Darnton em Boémia literária e revolução — O submun­ substituir o preconceito, que, no dizer de Meira do Nascimen­
do das letras no Antigo Regime. “A constante tendência ascen­ to, nada mais é do que a perpetuação do erro como verdade.
dente da economia, combinada com o aperfeiçoamento do sis­ Mas como é que a verdade poderia emergir no caldeirão da
tema educacional, gerou, quase certamente, um público leitor opinião pública e sepultar os preconceitos? Pelo livre debate
maior, mais rico e com mais tempo disponível. A produção de das idéias. Malesherbes, um dos filósofos do século das luzes,
livros disparou.” 12 Sim, havia um público em formação, mas assegurava que “a discussão pública das opiniões é um meio
uma dúvida já se insinuava: seria esse público, de fato, capaz seguro para fazer brotar a verdade, e talvez seja o único” . Es­
de julgar e de adotar decisões racionais? clarecido, o povo no exercício de seus direitos de opinião e ex­
O ideal democrático iria supor que sim. Mas seria neces­ pressão faria nascer a verdade — ela prevaleceria no final, por
sário preparar os comuns do povo para que estes pudessem as­ sua força intrínseca. A verdade haveria de triunfar, sempre, em
sumir tão elevado encargo. Como, então, preparar o povo para paz com a justiça. Por isso a idéia de opinião pública surge com
convertê-lo em opinião pública? A resposta do iluminismo era tanta força na retórica dos revolucionários franceses: porque
direta: pela ação pedagógica e doutrinária dos philosophes, os ela é a mãe da verdade.
“iluminadores” por excelência. “O povo só será soberano, isto É curioso, mas a razão iluminista não é tão-somente uma
é, só se constituirá como detentor do poder máximo da socie­ razão: é uma Razão acima da racionalidade; deposita suas es­
dade, se for suficientemente esclarecido pelos homens de le­ peranças em um mecanismo, para dizer o mínimo, supra-racio-
tras” , escreve Meira do Nascimento, sintetizando o pensamen­ nal. Segundo essa razão iluminista, a verdade irá se desvelar
to de um dos pensadores da época, Louis-Sebastien Mercier.13 numa epifania, coroando como uma apoteose o exercício do
Foi esse, de fato, o grande tema do século xvm. Até ali, a debate.

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A voz de D eus A voz do m ercado

Para vários revolucionários franceses, entre eles Saint- Mais tarde, já no início dos anos 1960, o filósofo alemão
Just, a opinião pública, assembléia compacta das consciências Júrgen Habermas, em Mudança estrutural da esfera pública,
de todos os homens livres e iguais, poderia até mesmo ser por­ também irá tratar a opinião pública, ao menos em sua acepção
tadora da verdade divina. O que faz um profundo sentido his­ liberal, como “ficção” . Para Habermas, o malogro do conceito
tórico. Tendo parte com Deus, ela nasce como a primeira força é de outra natureza. Para ele, o que houve foi que o público se
humana capaz de opor-se ao próprio Rei, que era anunciado transformou e deixou de ser a instância que congrega as cons­
como o escolhido da vontade divina, vontade cujos desígnios ciências livres e lúcidas. A sociedade em que um público pen­
eram misteriosos e inacessíveis aos comuns do povo. O adven­ sante (constituído de sujeitos privados que adquirem relevân­
to da opinião pública ajuda, assim, a romper a sustentação di­ cia pública) constrói um ambiente dialógico na recepção e
vina dos monarcas, aqueles que eram eleitos por Deus. emissão de opiniões esvaneceu-se com o surgimento dos meios
Desde então, a tese mística da revelação da verdade como de comunicação de massa. E o ideal de opinião pública esvane­
a salvação contra todas as tiranias jam ais abandonou o concei­ ceu-se também. Enquanto os jornais do século xix eram produ­
to de opinião pública. Esta se tornou a fonte de um poder sem to da iniciativa dos cidadãos de se comunicar, de dialogar e de­
precedentes. Alexis de Tocqueville foi encontrá-lo na democra­ bater idéias, os meios de comunicação de massa do século xx
cia americana: “Não há monarca tão absoluto que possa reunir são produto do mercado. Não mais são produzidos pelas neces­
em sua mão todas as forças da sociedade e vencer as resistên­ sidades políticas do público, mas pelas necessidades de merca­
cias, como pode fazê-lo uma maioria investida do direito de fa­ do. O público é que é agora “produzido” para então ser vendido
zer as leis e executá-las” .14 Nascido do iluminismo francês (e aos anunciantes. A fé na opinião pública vai perdendo o senti­
europeu), o conceito de opinião pública consagra-se como o do. Habermas diagnostica: “Os desejos ‘privados’ por automó­
tribunal máximo da democracia americana e, de forma disse­ veis e geladeiras recaem na categoria ‘opinião pública’ tanto
minada, de todas as democracias do século xx. A mediá-la, quanto todos os demais modos de comportamento de grupos
sempre está lá a imprensa. Não surpreende que algumas das quaisquer” .16
críticas mais fortes ao mito que ela encerra tenham vindo dos Ele também diz que o próprio conceito de público já não
próprios jornalistas. Walter Lippmann não dispensava a ironia. é válido. Agora, para Habermas, existiria a massa no lugar do
"Os retratos dentro da cabeça dos seres humanos, retratos de­ público. Ao final de seu livro, ele cita C. W. Mills para dar o
les mesmos, dos outros, das suas necessidades, propósitos e re­ atestado dessa transformação. “Num público” , escreveu Mills,
lacionamentos, são suas opiniões públicas” , diz ele em Public “ [...] opiniões formadas através de tal discussão [o livre deba­
opinion. “Aqueles retratos que são adotados por grupos de pes­ te das idéias] rapidamente encontram uma saída na ação efeti­
soas, ou por indivíduos agindo em nomes de grupos, são Opi­ va, mesmo contra — caso necessário — o sistema dominante
nião Pública com letras maiúsculas.” 15 Lippmann, na lingua­ de autoridade. E instituições autoritárias não penetram o públi­
gem seca do jornalismo, desnudou a opinião pública como uma co, que nisso é mais ou menos autónomo em sua operação.”
espécie de crendice, uma figura retórica sem correspondência Em oposição ao que se dá no público, ainda segundo Mills,
na prática. Não haveria, para ele, verdade científica nenhuma
nisso que aprendemos a chamar de opinião pública. numa massa, muito menos gente expressa opiniões do que as

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recebe, pois a comunidade do público torna-se uma coleção abs­ and norms e “L’espace public, 30 ans après” ,17 ele mesmo cui­
trata de indivíduos que recebem impressões dos meios de comu­ da de atenuar seu pessimismo, localizando novas possibilida­
nicação de massa. As comunicações que prevalecem são organi­ des para o diálogo das idéias em esferas menos cerceadas pelo
zadas de tal modo que é difícil ou impossível para o indivíduo poder (que ele prefere chamar de sistema e subsistemas). As
responder de modo imediato ou com qualquer eficácia. A efetiva­ o n g s , os avanços da cidadania nos países onde a social-demo­
ção da opinião em ação é controlada por autoridades que organi­ cracia exerceu influência e os meios alternativos de comunica­
zam e controlam os canais de tal ação. A massa não tem autono­
ção teriam propiciado novos espaços — em oposição ao poder
mia frente às instituições; pelo contrário, agentes de instituições
do Estado e ao poder do capital. O que permanece dessas críti­
autorizadas penetram essa massa, reduzindo qualquer autonomia
que ela possa ter na formação de opinião através de discussão. cas, no entanto, sejam elas pessimistas ou não, é a constatação
de que se deu uma transformação histórica (e estrutural) das
Alguém pode alegar que essas palavras de Mills, publica­ democracias e também das relações do público (e da opinião
das em 1956, encontram-se superadas pelo advento recente da pública) com o poder. Alterou-se a esfera pública. A indepen­
internet. Não estão. É verdade que, na década de 1950, a comu­ dência do público em relação ao poder não existe mais — ou,
nicação de massa, com seus milhões de receptores para um re­ pelo menos, não existe mais nos mesmos termos em que sonha­
duzido contingente de emissores, vivia o início de seu apogeu. vam os primeiros democratas. Consequente mente, a imprensa,
O crescimento da internet, nas décadas que se seguiram, alte­ representante da opinião pública, já não tem seu alicerce ape­
rou as proporções entre emissores e receptores, e, ao menos
nas na cidadania — este também se deslocou para o mercado.
virtualmente, descentralizou o controle sobre emissão de opi­
No início do século. Rui Barbosa afirmava que “a impren­
niões. Mas há algo de fundamental na descrição de Mills que
sa é a vista da nação” .18Tinha fundamentos para isso. A nação,
ainda permanece verdadeiro: ainda há o controle “de autorida­
em seu modo de ver, era uma categoria que antecedia o Estado
des” não sobre os canais de emissão mas sobre os “canais de
e o próprio poder do capital. Agora, esses conceitos já não se
ação” da democracia; a massa continua sem autonomia peran­
te as instituições e ainda é “penetrada” pelos “agentes de insti­ podem separar com tanta simplicidade: seus entrelaçamentos
tuições autorizadas” . O problema, portanto, não está no campo se tornaram mais complexos, e é mais difícil estabelecer a pri­
da comunicação. Está no campo da própria organização da de­ mazia de um sobre o outro. A natureza da comunicação na esfe­
mocracia: o público, na visão de Habermas, é desnaturado pela ra pública também se modificou. O volume de capital dos meios
ação dos meios de comunicação de massa, mas não é a comu­ de comunicação de massa dos anos 1950 e dos conglomerados
nicação e sim a própria institucionalização da democracia que da mídia dos anos 1990 é muito superior àquele necessário para
se transforma estruturalmente. Como efeito disso, há a neutra­ a confecção de jornais de papel (mesmo em termos relativos,
lização da ação política do velho público que, antes, era o ali­ se o negócio da imprensa da época fosse comparado a outros se­
cerce da opinião pública soberana e que, agora, já não goza da tores da economia). O aumento do público em massa (que cons­
mesma autonomia perante o poder (económico e estatal). His­ titui a audiência vendável) também muda as regras do jogo.
toricamente, a soberania do público teria deixado de existir.
Há um tom claramente pessimista na visão de Habermas O Estado como protetor da democracia
— e tanto pessimismo já não se justifica. Em trabalhos mais re­
centes, como Teoria de Ia acción comunicativa, Between facts Contra isso, é bom lembrar, o próprio Estado se levantou

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com o propósito cie preservar as bases do jogo democrático. De novo, a ética da profissão
Nos Estados Unidos, a lei age na esfera económica, se não para
regular o mercado, ao menos para obstruir o estabelecimento Qual o significado prático disso? A resposta está na ética
de monopólios predatórios em vários setores do mercado, in­ jornalística. Se a opinião pública já não se apresenta como fon­
clusive o da mídia, e para impedir a concentração de capital (e te absoluta para dar os parâmetros do certo e do errado — pois,
de mercado) nas mãos de um só grupo económico. Solução um repetindo, tende a confundir popularidade com legitimidade e
pouco diferente foi adotada nos países da Europa, onde se cria­ tende a sobrepor preferências de mercado a exigências de di­
ram sistemas públicos de rádio e televisão nos quais deveria reitos — ,é preciso que o jornalismo de qualidade encontre ba­
prevalecer o interesse público sobre os critérios comerciais. lizas mais eficazes para informá-lo e orientá-lo. Aí é que inci­
Para preservar a diversidade no espaço público, o Estado pre­ de a ética jornalística. A propósito, é historicamente bastante
cisou agir. compreensível que a preocupação ética tenha se manifestado
Hoje, as redes públicas da Europa encontram-se em declí­ de modo mais enfático por volta dos anos 1920, década em que
nio, e a f c c americana procura caminhos para tornar mais elás­ a American Society of Newspaper Editors aprova seus Câno­
nes do Jornalismo. É nessa época, justamente, que as injustiças
ticos os limites que impõe às empresas de comunicação, mas o
da imprensa já se faziam sentir com mais clareza. E ali, tam­
fato é que as democracias ainda tentam encontrar formas de
bém, que a indústria das comunicações ensaiava seus passos
controle sobre o poder da mídia, e isso só é assim porque o pú­
mais arrojados. O jornalismo era um negócio capitalista desde
blico já não é tão soberano como o iluminismo o imaginou. O
antes, sem dúvida, mas é na segunda metade do século xix e,
público, entendido como uma categoria capaz de abrigar a opi­
de modo mais acentuado, após o início do século xx, que ele
nião pública como expressão da cidadania, é muito mais frágil
vai deixando de ser apenas a expressão cívica da cidadania
do que sonhavam os iluministas. Esperar que a opinião públi­
para se converter em empreendimento de mercado. A sua fun­
ca seja o termómetro do que é certo ou errado na imprensa e
ção democrática é que exige para ele uma ética.
acreditar cegamente nos seus julgamentos são esperanças te­ O complemento do significado prático de dizer que, para
merárias. O jornalismo, por definição, deve continuar a traba­ a imprensa, o compromisso com a democracia está acima do
lhar para o público — e isso é bom. Mas não deve confundir o compromisso com os humores do público é que muitas vezes a
público-cidadão com o público articulado em torno das deman­ imprensa deve remar contra a opinião popular. Só assim ela
das de consumo. pode servir de vigilante do poder. As sociedades precisam da
Acima do mercado, o jornalismo deve trabalhar para a de­ imprensa como uma espécie de agente fiscalizador. Sociedades
mocracia. Seu compromisso não é mais com as preferências marcadas por abismos sociais, como a brasileira, precisam ain­
voláteis de um público transformado em feira de consumo, em ­ da mais. Nas grandes cidades, recrudescem sentimentos racis­
bora tenha vínculos de subordinação com os cidadãos, sujeitos tas. No Sul, por exemplo, esses sentimentos se voltam contra os
de direitos, que aí se encontram. O compromisso do jornalis­ imigrantes nordestinos. Insinua-se nas metrópoles uma contra­
mo, agora, deve ser um compromisso com a observância e o fação cabocla do neonazismo austríaco, francês e alemão. Além
aperfeiçoamento das regras democráticas — e isso está acima disso, a violência urbana leva as pessoas a pedir linchamentos
dos humores do público. de malfeitores e a defender ações policiais que sumariamente as­

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sassinem os suspeitos de delinquência. O papel do jornalismo não é o problema central, nem o maior, por mais estranho que
não é fazer coro com essa mentalidade, mas o contrário: é com- pareça à maioria dos críticos da imprensa. Se a manipulação
batê-la. fosse realmente o fantasma poderoso que dizem ser, a socie­
Aí se distingue o sensacionalismo, que acirra os precon­ dade seria apenas uma espécie de curral dominado por capata­
ceitos, da imprensa de qualidade. E isso é uma questão de so­ zes maquiavélicos. Se o mundo fosse mesmo assim, seria mais
brevivência. O que garante a liberdade de imprensa já não é a fácil entendê-lo. Mas não é: nem é assim, nem é tão fácil en­
opinião pública transformada na multidão consumista, mas o tendê-lo.
regime democrático que, na sua base, garante a vida humana e
o respeito às diferenças. Hoje, a fé na opinião pública não pode Enxergando conspirações em cada redação
mais ser cultivada como um mito pelos jornalistas. Ela deve ser
atualizada pela fé no aperfeiçoamento de mecanismos demo­ O poder da manipulação vem sendo exacerbado tanto pe­
cráticos que garantam a pluralidade. Já não é aceitável o argu­ los críticos como pelos aproveitadores. Os primeiros enxergam
mento dos que dizem oferecer aquilo que “o povo pede” . acordos de cúpula secretos para dominar corações e mentes —
Paul Johnson não faz o mesmo raciocínio que aqui se apre­ expressão que lhes é muito cara — sem que os corações e men­
sentou. Mas, quando fala que o jornalismo deve ter disposição tes se dêem conta do que acontece à sua volta. Assumem então
de educar, chama a atenção exatamente para isso. Educar, ago­ ares de espertos cuja missão na Terra é acordar seus semelhan­
ra, não mais como queriam os philosophes, que iluminariam o tes, que são bobos adormecidos. Prestam bons serviços quan­
povo com sua Razão e seu saber, mas educar como quer o pro­ do desmontam tapeações reais — que acontecem com frequên­
jeto democrático. O jornalismo não pode se pretender acima cia — , mas o seu método de abordagem costuma vir marcado
desse projeto — e jamais pode estar fora dele. por uma postura essencialmente autoritária, baseada na subes-
timação da inteligência alheia. Enganam-se. Há mais contra­
2. O fantasma da manipulação dições nas páginas de um jornal do que jamais sonhou sua chã
filosofia. Já os aproveitadores querem tirar vantagem da possi­
A compreensão da natureza industrial do jornalismo con­ bilidade de manipulação: acreditam que podem enganar inin­
temporâneo — o que torna crucial a elaboração e a observân­ terruptamente os cidadãos com suas mentiras recorrentes.
cia de uma ética pública, clara e compreensível tanto para o O fantasma da manipulação não é assim tão poderoso. Se
jornalista como para o cidadão — ajuda a desfazer a falsa idéia fosse, o movimento pelas diretas, em 1984, não teria adquirido
que se criou em torno das possibilidades de manipulação da in­ as proporções que adquiriu. Ele ganhou corpo a despeito das
formação. Vamos a isso. omissões que os telejornais lhe dedicavam. E Luis Inácio Lula
Que existe manipulação, existe. Ela nada mais é que a da Silva, candidato à Presidência da República pelo Partido
distorção deliberada da informação. Movidos por interesses dos Trabalhadores nas três últimas eleições, não teria chegado
escusos, há donos de meios de comunicação e funcionários da ao segundo turno em 1989. Ele quase se elegeu, mesmo tendo
cúpula das empresas que patrocinam mentiras para atingir ob­ contra si uma saraivada de falsificações. O apoio que o susten­
jetivos particulares. A manipulação agride o cidadão e deve tava não se dobrou inteiramente aos manipuladores — o que
ser combatida, como é óbvio. Mas a prática da manipulação indica que a sociedade não é apenas um curral manietado. Os

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donos dos meios de comunicação, sobretudo no Brasil, coman­ como cultura de massa, A dialética do esclarecimento. Para os
dam um poder praticamente sem controle, mas não podem tu­ autores, a dominação de classes já não se dava apenas pelos
do. Há outros processos, além da televisão, do rádio, dos jornais instrumentos de repressão do Estado, mas pelo controle da
e das revistas, pelos quais os cidadãos se articulam nas teias so­ ideologia. Num dos capítulos do livro, “A indústria cultural: o
ciais, formando convencimentos e atuando no mundo. É graças esclarecimento como mistificação das massas” , eles afirmam:
a isso, por sinal, que há sentido em acreditar na democracia e
Os padrões [da indústria cultural] teriam resultado originariamen-
também na ética da imprensa. Do contrário, seríamos todos
te das necessidades dos consumidores: eis por que são aceitos
bois — entre bobos e espertos. sem resistência. De fato, o que o explica é o círculo da manipu­
lação e da necessidade retroativa, no qual a unidade do sistema
De onde vem a ideia da manipulação se torna cada vez mais coesa. O que não se diz é que o terreno
no qual a técnica conquista seu poder sobre a sociedade é o poder
Não há aqui o objetivo de estabelecer uma genealogia do que os economicamente mais fortes exercem sobre a sociedade.19
fantasma da manipulação. Mas, ao menos entre alguns críticos
Com primazia, os dois teóricos descreveram os processos
de esquerda, talvez se possa creditá-lo, em parte, a uma leitura
pelos quais a indústria cultural passou a produzir uma estética
empobrecida das teses da Escola de Frankfurt, principalmente
segundo normas próprias, na qual a arte não mais está destina­
dos textos dos filósofos alemães Theodor Adorno e Max Hork-
da a revelar o que a realidade esconde, mas a esconder o modo
heimer, e de seus desdobramentos posteriores. Por certo. Paul
como uma classe oprime a outra. Assim, ao contrário da arte,
Johnson, de perfil liberal, não finca raízes nesses pensadores,
que antes sublimava, “a indústria cultural não sublima, mas re-
que eram de filiação marxista. E nem os aproveitadores — es­
prime .
tes, em geral, não têm lustro intelectual nenhum. A referência A soberania popular, segundo o que demonstrou a Escola
que aqui se faz à Escola de Frankfurt — cujos postulados se de Frankfurt, não é mais a mesma do século xviti, quando re­
tornaram conhecidos como a Teoria Crítica — se justifica por­ presentava a possibilidade de emancipação da tradição absolu­
tanto como uma tentativa de esclarecer os limites do conceito tista e semifeudal, acentuando a autonomia do indivíduo como
de manipulação. um ser capaz de tomar decisões. Para Adorno e Horkheimer,
Para muitos críticos, o maior problema da imprensa é este, não há mais autonomia a ser perseguida no conceito de sobe­
a manipulação: não apenas aquela que é promovida diretamen­ rania popular, pois, no público, já não é a iniciativa de eman­
te pelos dirigentes dos meios de comunicação em prejuízo do cipação que conta, e sim a obediência. “A indústria cultural
público cm geral, o que constitui um dos pecados listados por acaba por colocar a imitação como algo absoluto” , dizem
Johnson, mas também a manipulação exercida por uma classe eles.21 O consumidor apenas imagina que é soberano, que é ele
(“dominante”) contra outra classe (“dominada”). Esse entendi­ quem decide, e a indústria cultural vive de alimentar essa ilu­
mento, convertido num fantasma, ronda o debate sobre ética no são. Na verdade, porém, o consumidor não é o sujeito da indús­
jornalismo. Merece atenção à parte. tria cultural: é somente o seu objeto. Se, em Marx, o modo de
Pais do conceito de “indústria cultural” , Adorno e Hork- produção transforma o homem em mercadoria — força de tra­
heimer assinam em dupla um conjunto de estudos que são a balho —, ou seja, transforma-o num objeto, uma “coisa” de mer­
chave inaugural para a compreensão do que veio a ser definido cado, em Adorno e Horkheimer a indústria cultural reduz o in­

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divíduo a objeto de uma lógica de dominação que ele não seria conteúdos, como um carteiro que carrega um envelope fecha­
capaz de entender espontaneamente. do) e os receptores (que, passivos, desempacotam as “mensa­
gens” , sendo “ inconscientes” e incapazes de impor exigências
A sobrevida empobrecida do conceito de manipulação aos emissores-dominadores). À luz dessa fórmula, a edição de
tudo o que circula nos meios de comunicação seria produto de
Esse modelo acabou se prestando a um entendimento me­ maquinações malévolas sob controle das “classes dominantes” .
cânico da sociedade, segundo o qual o mundo é governado pe­ Ora, a descoberta mais inovadora da Escola de Frankfurt
la permanente conspiração dos dominadores contra os domi­ é justamente o caráter industrial da cultura, o que a retira do
nados. O que, antes de tudo, é injusto para com a beleza e a campo estrito das idéias, onde antes residia, e a insere no cam­
força das idéias de Adorno e Horkheimer. A teoria da Escola po da economia e das relações de produção. A indústria cultu­
de Frankfurt pode ter pontos ultrapassados — e certamente os ral, mais que uma ferramenta de disseminação de ideários, é
tem —, mas é muito mais rica e complexa do que isso. Embo­ um negócio capitalista — de produção e de consumo. Isso sig­
ra a análise de seus postulados não seja o tema deste livro, que nifica que os conteúdos que nela se encontram são gerados não
trata apenas de ética na imprensa, não se deve deixar sem re­ apenas como opiniões que buscam dominar a mentalidade ge­
gistro que os cultores contemporâneos do fantasma da manipu­ ral tendo em vista finalidades políticas, mas principalmente
lação não estão à altura do legado que por vezes reivindicam. como mercadorias. Os conteúdos existem antes para ser vendi­
Com alguns poucos rudimentos colhidos dc modo assistemáti- dos — mercadorias que são — e menos para doutrinar os in­
co na Teoria Crítica, eles na verdade reeditam pela esquerda as cautos. Compõem não uma escola, mas um mercado, um mer­
teses funcionalistas da comunicação, que nada têm de ernanci- cado onde ocorrem crises de toda sorte e que não é passível de
padoras. controles premeditados, seguros e absolutos — e isso mesmo
O que são as teses funcionalistas? Típicas da sociologia quando se admite a existência dos monopólios da mídia.
americana, elas operam na base do esquema emissor/veícu- É o que se lê na Dialética do esclarecimento, onde os au­
lo/receptor. Desse estranho hibridismo que mescla uma retó­ tores afirmam que, para os “capitães da indústria cinematográ­
rica inspirada em Frankfurt com o pensamento linear do fun­ fica” , “sua ideologia é o negócio” .22Adorno e Horkheimer dei­
cionalismo, o que resultou foi um postulado simplório: 1) os xam claro que a ideologia não é um sistema unidirecional que
donos dos meios de comunicação têm um projeto para a socie­ vai fechado do dominador para o dominado, mas é uma rela­
dade, projeto fundado na dominação de classes; 2) valem-se ção que também incorpora as demandas do dominado. O pro­
dos meios de comunicação para “incutir” meia dúzia de estereó­ blema, para eles, não é portanto a manipulação premeditada,
tipos na cabeça da multidão incauta; 3) a massa, objeto que é, por mais que façam menção a ela. O problema é que essas de­
assimila acriticamente aquilo que lhe despejam e passa a com- mandas não realizam mais o ideal de emancipação — um ideal
portar-se de acordo com os desígnios lançados por seus domi­ fundador dos sonhos iluministas —, mas aprofundam a domi­
nadores. Supõe-se, assim, a existência de três esferas autóno­ nação.
mas: os emissores (que formulam suas “mensagens" de forma Os autores enfatizam que “o consumidor torna-se a ideo­
premeditada e são plenamente “conscientes” , não padecendo logia da indústria da diversão” .21 Ou seja, sua ideologia não é
da letargia dos dominados), o veículo (que apenas transporta o conjunto de ideários das “classes dominantes” , nem seus va­

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lores, nem sua etiqueta, mas a condição de consumidor de que A percepção das inclinações de mercado — do mercado
a indústria cultural reveste o homem comum; não é o homem de notícias — torna-se um ingrediente indispensável do cardá­
comum, em si, mas o consumidor que nele se implanta. O pro­ pio de talentos a ser preenchido pelos profissionais de impren­
blema todo, enfim, é que o consumidor convertido em nova sa. E das equipes nas redações. E isso que impulsiona o dia-a-
ideologia é a negação reiterada da antiga ideologia de emanci­ dia do jornalismo acima das teses patronais premeditadas. E
pação pela soberania popular. Antes, o sonho iluminista fazia verdade que os donos de jornal convocam reuniões para escre­
crer que o povo soberano construiria o caminho de liberdade, ver os editoriais que merecerão maior destaque, mas, fora isso,
sepultando as tiranias. Com a Escola de Frankfurt, percebe-se e acima disso, a imensa maioria das informações que diaria­
que o consumidor da indústria cultural não tem mais qualquer mente são despejadas pelos órgãos de imprensa para o consu­
perspectiva de emancipação. No limite, a indústria cultural não mo do público passa por processos impessoais — industriais
é aquilo de que a cidadania precisa — mas é aquilo que o con­ — de confecção e acabamento editorial cuja medida é o consu­
sumidor deseja (sem saber que deseja e por que deseja). mo. Nesse quadro, o que impressiona não é o fato de haver ma­
nipulações intencionais, mas o fato de que, mesmo quando elas
Além do fantasma não ocorrem, o conteúdo médio da imprensa mundial mantém
uma profunda coerência com valores hegemónicos e, mais que
Desde a Escola de Frankfurt, as teorias da comunicação já isso, com um discurso dominante. A vigilância cerrada para
que tudo seja tão compacto não é exercida pelos patrões, mas
caminharam bastante. Assimilaram conceitos da teoria psica-
pelo próprio público refeito em mercado.
nalítica para descrever os meandros do desejo, e, pelos chama­
Em Sobre a televisão, o sociólogo francês Pierre Bourdieu
dos estudos culturais, investigaram as práticas e as vivências
constata que a concorrência entre as emissoras de televisão na
comunitárias para localizar ali os elementos de formação da
França, em lugar de produzir diversidade, gerou uma indistin­
vontade e da opinião. Da Teoria Crítica, no entanto, ficaram
ção entre as programações.24 Ele tem razão: o mercado tem le­
formulações que se situam muito acima das noções primárias
vado os veículos mais a se copiarem do que a se diferenciarem.
da manipulação.
Também as marcas de calçados esportivos e de automóveis
Na mídia contemporânea, o que fala com muita força é a apresentam produtos cada vez mais numerosos, mas, parado­
lógica do desejo voltada para o consumo. O que hoje prevale­ xalmente, cada vez mais parecidos. Como decidir entre um e
ce é muito menos o que pretendem os proprietários “dominan­ outro, se são tão equivalentes?
tes” (embora esse retrato esteja ali) e muito mais a expressão Há dois séculos, quando o modelo do jornalismo era o da
de demandas de consumo. A mídia em geral e o jornalismo em imprensa de opinião, ou seja, quando os jornais nasciam para
particular são moldados por essas demandas. Muitas vezes, su- interferir na esfera pública segundo uma visão programática
põe-se que o jornalista é um serviçal da “classe dominante” e particular, havia tantos títulos quantas eram as correntes que
que escreve o que o patrão lhe pede. Não é assim que funcio­ disputavam politicamente a influência na sociedade. Agora,
na. O jornalista, se for um serviçal, é antes o criado dos dese­ engolidos pelos conglomerados da mídia, os modelos jornalís­
jos de consumo; ele encarna mais os desejos do consumidor ticos de sucesso se tornam cada vez mais parecidos ideologica­
que os estratagemas do patrão. Nessa perspectiva, o que é no­ mente, ainda que muito numerosos e repletos de diferencia­
tícia? Notícia é aquilo que vende jornal. Aí é que está a cilada. ções de estilo. São homogeneizados pelo mercado.

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O jornalista francês Serge Halimi, do Le Monde Diploma- mais dos interesses dos patrões, tampouco do público entendi­
tique, faz referência a isso no seu livro Os novos cães de guar­ do como opinião pública, mas da ideologia desse negócio, que
da?■ Para ele, a imprensa vem ecoando uma só cartilha, com é a ideologia que idolatra o consumidor.
poucas variações. “Será que ainda é possível ser jornalista sen­
tindo pelo neoliberalismo um desagrado qualquer?” , pergunta Uni outro patamar para a ética
ele, para logo a seguir reproduzir a resposta que mais escuta:
“Não é o pensamento que é único, mas a realidade que se tor­ Aí, num outro nível, a ética existe para proteger o jorna­
nou única” . Halimi constrói sua tese sobre “os novos cães de lismo — e a condição de cidadão que, no homem comum, vem
guarda” com base na conduta de jornalistas — e não de patrões sendo sobrepujada pela condição de consumidor. A ética deve
— que, ocupando os cargos de mando na imprensa francesa, cuidar de orientar o jornalismo a atender o consumidor de for­
articulam-se numa espécie de confraria e se apressam a zelar ma crítica, sem se restringir às demandas do mercado. Ela cer­
pelos interesses de seus empregadores promovendo uma ade­ tamente condena qualquer tentativa de manipular informações,
quação entre esses interesses e as demandas de mercado. O re­ mas não pára aí. Procura estabelecer um norte para que, no afã
sultado é a opacidade e o imobilismo. Nada se explica (ou ex­ de servir ao consumidor, o jornalista não se desvie de sua fun­
plica-se o mínimo necessário) e nada muda. Diferentemente do ção social. A ética ajuda o jornalista a se afastar da idolatria do
que Halimi acaba sugerindo, no entanto, “os novos cães de consumo, e o convida ao atendimento das exigências de diver­
guarda” não têm a capacidade de fabricar a face da imprensa, sidade e pluralidade que a democracia impõe.
mas eles também são resultado de relações de mercado. Tam­ Quando cai na idolatria do consumo, dos modismos e das
bém eles são mercadorias (de luxo) no mercado de trabalho. mentalidades cm voga, o jornalista, mesmo sem manipular de-
Para que não restem mal-entendidos, vale repetir: a mani­ liberadamente coisa alguma, está repetindo chavões e, com
pulação acontece e precisa ser combatida. Há manchetes mali­ eles, contribuindo para o empobrecimento da visão crítica do
ciosas, enfoques tendenciosos, além das omissões deliberadas. cidadão. Não que ele, mero jornalista, tenha algo a ensinar a
Mas, além da manipulação, há um processo industrial que pro­ quem quer que seja. Só o que acontece é que dele, profissional
move a identificação entre editores e consumidores sob a égide de imprensa, depende funcionalmente a tarefa de fornecer in­
de mecanismos de mercado que automatizam os efeitos ideo­ formações ao público, e, se ele não souber ser crítico, proces­
lógicos da imprensa. Ao contrário do que supõem as teorias da sará informações de baixa qualidade. Cabe a ele saber dirigir-
conspiração permanente, esses efeitos se produzem sem a ne­ se aos cidadãos como sujeitos de direitos, e não apenas como
cessidade de interferências diretas de supostos agentes das platéia consumista, objeto fabricado pela indústria cultural. A
classes dominantes infiltrados nas redações e sem que os jo r­ ética da imprensa pode contribuir para elevar o jornalismo à al­
nalistas precisem se investir do papel de agentes do patronato. tura de sua função crítica contemporânea.
Basta que sejam agentes do mercado. A ideologia é o negócio,
como diriam Adorno e Horkheimer — e, hoje, o negócio pro­ 3. A indistinção entre meios de comunicação e imprensa
duz a nova ideologia. De tal forma que, perseguindo as deman­
das de consumo de seus públicos, os próprios jornalistas se tor­ Por fim, um esclarecimento demarcatório. Tanto os peca­
nam os promotores (os intelectuais orgânicos cibernéticos) não dos como os mandamentos arrolados por Paul Johnson deixam

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uma fronteira indefinida entre o que seria uma ética para os ca também não serve de parâmetro para os programas de audi­
meios de comunicação em geral e o que seria uma ética para o tório, ou para as revistas não jornalísticas voltadas para o sim­
jornalismo. As duas são próximas, mas a segunda tem suas par­ ples divertimento dos leitores.
ticularidades. Uma e outra visam resguardar a diversidade, a A ética da imprensa é específica e assim deve ser, para be­
pluralidade, o regime de concorrência entre as empresas e o nefício do público. Ela traduz um pacto, também específico,
respeito aos padrões morais da sociedade. Para isso os alertas entre o leitor (ou o telespectador, ou o ouvinte, ou o internau-
de Paul Johnson são bastante úteis. É mesmo pertinente que se ta) e o jornalista, um pacto baseado na credibilidade - e não
analisem os meios de comunicação com base em preceitos éti­ na diversão ou no entretenimento. E graças a esse pacto espe­
cos próprios do jornalismo. Mas há distinções. cífico e à ética que ele encerra que a função social de informar
Os meios de comunicação podem se dedicar exclusiva­ pode se proteger como uma atividade digna da confiança pú­
mente ao entretenimento; a imprensa não: ela deve noticiar e blica. Esta não pode ser abalada por outras atividades da comu­
interpretar os fatos, assim como dar espaço às idéias e aos de­ nicação. Ao contrário, precisa ser cultivada, cultuada e protegi­
bates de interesse público. Os primeiros — os meios de comu­ da. Os meios de comunicação, mesmo aqueles veículos que
nicação, genericamente — lidam com divertimentos de todo não se dedicam ao jornalismo, não têm o direito de sabotar esse
tipo e também com obras de ficção, que não têm compromisso pacto — embora às vezes o façam, vendendo como verdade
algum com a objetividade; já a imprensa trabalha sobretudo factual o que não passa de circo dos honores (caso do sensacio-
com fatos e idéias. Por isso, quando os jornais publicam um nalismo), ou o que é mera promoção de celebridades (caso das
conto, fazem-no em caráter excepcional; as caricaturas ou car­ revistas de fofocas). Se os jornalistas devem "respeitar e hon­
tuns, cuja função é “comentar” os fatos, bem como os textos hu­ rar as palavras” , os meios de comunicação devem respeitar e
morísticos e as crónicas, têm lugares claramente delimitados — honrar o jornalismo, não usando seu nome em vão.
tudo para impedir qualquer confusão. E é aqui que se funda a É o direito de acesso à informação (e à cultura) que justi­
particularidade do jornalismo em relação aos meios de comuni­ fica democraticamente a livre existência de toda forma de co­
cação em geral: ele lida com a verdade factual e deve promover municação social. Quando a confiança na informação jornalís­
a busca da verdade de forma equilibrada e crítica, enquanto os tica é prejudicada pelo barateamento do jornalismo, a pretexto
meios de comunicação prestam-se a qualquer tipo de conteúdo. de encobrir sob o timbre de “reportagem” atrações puramente
Daí resultam éticas diferentes. Ao apurar um aconteci­ apelativas, todos saem perdendo; uma instituição social está se
mento, o repórter tem o dever de procurar todos os lados envol­ enfraquecendo. Por isso, faz sentido que se considere a ética
vidos. Não se pode dizer o mesmo da propaganda, que tem pre­ dos meios de comunicação pelo ângulo da ética da imprensa.
sença maciça nos meios de comunicação e também nos órgãos Vista desse ângulo, a comunicação social como um todo é be­
de imprensa: o publicitário não pode mentir, por certo, mas a neficiária do princípio da liberdade de imprensa e deve portar-
ele basta mostrar o argumento de venda de seu produto; nin­ se à altura dessa sua condição.
guém espera de uma peça publicitária que ela traga opiniões
críticas sobre a mercadoria em questão. Da mesma forma, não
se pode exigir ética jornalística dos autores e dos elencos das
telenovelas — cuja matéria-prima é a ficção. A ética jornalísti­

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seios com tudo pago). Os jornais americanos, que têm normas
proibindo seus repórteres de aceitarem viagens pagas, costu­
mam abrir exceção para os que cobrem a indústria cinemato­
gráfica. De forma que todos os convidados aceitam de bom
5 grado a incumbência de passar dois ou três dias em um hotel
aprazível, onde vêem a fita e depois entrevistam atores, atrizes,
O ESPETÁCULO NÃO PODE PARAR adestradores, animadores, maquiadores, diretores e produtores.
As fotos de cada um já vêm prontas. Para os repórteres de te­
levisão, há até mesmo o conforto de uma câmera de vídeo ins­
talada numa sala já devidamente preparada para gravação de
entrevistas, com décor aconchegante e flores frescas sobre me­
Quando uma superprodução cinematográfica estréia no
sinhas. Cada um tem lá seus dez minutos para fazer perguntas —
circuito comercial de qualquer país do mundo, o comporta­
“Como foi a emoção de contracenar com Robert de Niro?” —,
mento da imprensa é quase sempre igual. Capas de revistas, pá­
e depois levam uma fita para a sua emissora. E a reportagem
ginas inteiras de jornal, programas de rádio e televisão e sites
prêt-à-porter. Ou será propaganda?
na internet falam do filme como um megaevento cultural. Ato­
Tecnicamente, não é propaganda. A propaganda é aquilo
res e diretores são (de novo) biografados como se seu passado
que se publica mediante o pagamento do espaço ocupado pela
contivesse revelações de alta relevância pública. Em entrevis­
mensagem, e, na cobertura dos lançamentos de filmes, não há
tas, despejam declarações ocas sobre a audiência. Dizem que
amadureceram graças aos dramas existenciais de seus persona­ pagamento algum. Outra diferença técnica é que o conteúdo da
gens, que aprenderam muito sobre as artes dramáticas ao con­ propaganda é preparado integralmente fora das redações, e, em
tracenar com seus colegas de elenco, que gostam de conviver se tratando da cobertura dos filmes em cartaz, ao menos a re­
com a natureza, que são felizes no matrimónio, que são contra dação final do que é publicado fica sob a responsabilidade dos
o preconceito racial e que estão seriamente preocupados com a jornalistas. Não se trata de propaganda, portanto. Os estúdios
extinção do urso panda. Boa parte de tudo o que é dito pela im­ apenas facilitam o trabalho da imprensa, oferecendo fotos, re­
prensa já vem mastigado nos folhetos (os press-releases) distri­ sumos e agenciando entrevistas. Mas, sob o impacto de tão aca-
buídos pelos estúdios aos jornalistas. As fotos também são pro­ chapantes coberturas, o público tem o direito de se perguntar:
duzidas pelos estúdios, são press-releases visuais. Em regra, mas não é mesmo propaganda? A dúvida procede e tem expli­
não há propriamente reportagem no que é publicado — há ape­ cações na forma como esse tipo de cobertura é conduzido pe­
nas reprodução, às vezes mais inventiva, às vezes menos, do los estúdios. Ao "facilitar o trabalho” da imprensa, eles direcio­
material de divulgação. Por isso, tudo é tão igual. nam a pauta e até mesmo estipulam o que pode (e o que não
Os estúdios investem pesado em suas boas relações com pode) ser perguntado às estrelas. Questionamentos sobre a in­
os veículos jornalísticos. Antes do lançamento do filme, nos timidade não são bem-vindos e, com frequência cada vez maior,
Estados Unidos, é comum que críticos e repórteres, primeiro os são vetados. Temas que não tenham relação direta com o enredo
da imprensa “doméstica” e, em seguida, os correspondentes es­ do filme também são mal recebidos.
trangeiros, sejam convidados para os famosos junkets (pas­ Tudo é preparado com um tal engenho que, no fim, o que

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é publicado, com um juízo favorável ou desfavorável ao filme, publicidade e informação, uma lógica que acaba englobando o
não importa, situa-se dentro de um espectro que interessa aos jornalismo — de preferência, a seu serviço. Entre os estúdios e
estúdios. Seu produto e seus astros se tornam assunto da mídia. os espectadores, a imprensa é apenas uma passagem, e não é a
E o que eles querem. É verdade que, atendendo ao chamado única. O cinema, repita-se, é só um exemplo para que se tenha a
dos estúdios, a imprensa cumpre o seu dever. Cabe a ela dar in­ dimensão de como o espaço público se encontra alterado pelo es­
formações sobre os programas que se oferecem ao lazer do pú­ petáculo] Expandido pelos meios de comunicação de massa em
blico, mas, sem que os jornalistas se dêem conta, ao embarcar meados do século xx, o espaço público atualmente foi retrans-
nesse tipo de lógica acabam ajudando a convidar as pessoas a formado pela indústria do entretenimento, que já não opera no
irem ao cinema e, depois, a alugarem uma fita de vídeo. Qua­ interior dos meios de comunicação, mas os instrumentaliza de
se sempre, o efeito final é, sim, propagandístico. fora para dentro. Isso reduziu a área de influência da imprensa em
termos relativos, ou seja, o jornalismo já não contém em si to­
das as formas de comunicação social como continha há dois sé­
O JORNALISMO COMO PROLONGAMENTO DO ESPETÁCULO culos, quando vigorava o modelo da imprensa de opinião; hoje,
a comunicação social é mais ampla, mais ampla que o jornalis­
E como poderia ser diferente? O filme é de interesse do mo e mais ampla que os próprios meios de comunicação.
público, não é? Os fãs querem saber cada detalhe da nova su­ Além da indústria cinematográfica, a indústria dos video
perprodução estrelada pelo seu astro favorito, não querem? A games, a da música e o próprio mercado de livros funcionam
resposta é sim. Se não derem no mínimo a cobertura esperada nas mesmas bases. Por meio de suas assessorias de imprensa,
pela platéia, os órgãos de imprensa estarão desservindo seus que já se organizam como novas indústrias à parte, essas indús­
leitores, telespectadores, ouvintes e intemautas.|Estes, legitima- trias pré-configuram o universo de dados que será depois tra­
mente, irão buscar o que querem saber em outros veículos. Não balhado pelos jornalistas. Assim também operam as divulgações
há muito que a imprensa possa fazer sobre isso, a não ser pro­ dos campeonatos esportivos. É hábito, hoje, que emissoras de
curar melhorar a cobertura, tentar não se contentar com os televisão se associem a campeonatos de futebol e de Fórmula
press-releases, buscar uma abordagem mais crítica e mais abran­ 1, entre outros, e se tornem co-promotoras desses eventos. Elas
gente. Mas é possível ir além disso — e às vezes se consegue não fazem mais a cobertura dos fatos, mas, comprando a exclu­
ir. A imprensa pode, com mais assiduidade, alertar o público sividade de transmissão, transformam seus locutores em ani­
para o funcionamento dos junkets e explicar como é que os es­ madores dos eventos. A indústria do turismo, com seus circui­
túdios operam na divulgação de seus produtos. Além de dar in­ tos, seus cruzeiros, suas redes de hotéis, restaurantes e casas
formações sobre o lançamento, ela pode contar como funcio­ noturnas, opera do mesmo modo. Tudo isso redimensionou (re­
nam as estratégias de divulgação — que interessam, sim, ao pú­ duzindo, em termos relativos) o lugar ocupado pela imprensa
blico. Muito mais que isso, a imprensa sozinha não pode fazer. na confecção dos conteúdos informativos que serão postos de­
O que se passa com o lançamento de filmes, no entanto, é pois ao acesso do público.
apenas um exemplo de um sistema bem maior. A lógica desen­ O que não se resume aos campos do lazer e do divertimen­
cadeada pelos estúdios é uma lógica superior à das redações: é to. A cidadania, ela mesma, torna-se um ingrediente na lógica
a lógica do espetáculo, um festival de imagens onde se fundem do espetáculo. Órgãos públicos de diversas naturezas recorrem

190 191

;
a assessorias de imprensa, pois, sem elas, não conseguiriam vi­ xico, faz um registro difícil de contestar: “Homens e mulheres
sibilidade no espaço público. Mais ainda: além das técnicas de percebem que muitas das perguntas próprias dos cidadãos — a
assessoria, os recursos da linguagem publicitária são emprega­ que lugar pertenço e que direitos isso me dá, como posso me
dos em escala e em cifras gigantescas para estabelecer um con­ informar, quem representa meus interesses — recebem suas res­
tato direto com o público habituado à linguagem do consumo. postas mais através do consumo privado de bens e dos meios
É assim que se comunicam também os partidos políticos. A pu­ de comunicação de massa do que das regras abstratas da demo­
blicidade é hoje corriqueira, e dominante, na comunicação que cracia ou pela participação coletiva em espaços públicos” .2
antes era estritamente política. E com os instrumentos do mar­ Além de mediar as relações sociais, o consumo transfor­
keting publicitário que os partidos fazem chegar suas mensa­ ma direitos fundamentais como educação e saúde em mercado­
gens aos eleitores. Pesquisas de mercado e pesquisas de opi­ rias de uma cidadania, por assim dizer, privatizada. Os planos
nião, tal qual foram concebidas pelo marketing voltado para o da rede pública de hospitais são oferecidos aos eleitores pela
consumo, tornaram-se decisivas nas disputas eleitorais. televisão em campanhas eleitorais como se fossem ilhas para­
Entre os muitos estudiosos que já se aperceberam do fenô­ disíacas em meio à miséria, com salas cirúrgicas ultra-ilumina-
meno está o sociólogo francês Alain Touraine. Em “Comunica- das e helicópteros lustrosos cruzando os céus da metrópole.
ción política y crisis de la representatividad” , ele constata: “Di­ São objetos do desejo nas inserções de publicidade, perfeita­
reita e esquerda parecem fazer esforços análogos para reduzir ao mente análogos aos anúncios de planos privados de seguro mé­
mínimo seus programas e para recolocá-los [...] por meio de uma dico. O mesmo ocorre com as escolas públicas: até elas são
detalhada pesquisa política de mercado, e em especial por reu­ vendidas como imagem nos filmes promocionais dos governos.
nir a maior quantidade possível de consumidores com temas que Mesmo os eventos mais fundamentais da democracia, de
proporcionem tranquilidade” . E conclui: “O que desaparece de uma escolha de prefeitos ao processo de impeachment de um
maneira acelerada é essa autonomia do discurso político” .1 presidente, adquirem visibilidade à medida que se convertam
Na sociedade contemporânea, é como consumidor que o em shows na mídia. As eleições despertam coberturas espeta­
cidadão se assenhora das informações que lhe dirão como vo­ culares, como se fossem cerimónias de abertura de jogos olím­
tar. Numa certa perspectiva, é possível dizer que ele já não se picos. Os jornalistas não estão fora disso. Ao contrário, quase
engaja politicamente nas causas partidárias, mas “consome” sempre trabalham para promover a aproximação entre o públi­
propostas administrativas — “compra-as” com o seu voto — co e o show: eles mesmos são animadores do show. Qualquer
como quem escolhe o melhor pacote turístico. O livre debate que seja o assunto. Na área da ciência, por exemplo. A n a s a ,
das idéias políticas, que para Robespierre só era possível me­ hoje, parece muito mais uma agência de marketing e de propa­
diante a liberdade de imprensa — leia-se: a liberdade do jorna­ ganda do que uma agência científica. Em suas instalações na
lismo de opinião —, passa muito bem hoje por fora da comu­ Flórida, ela recebe a platéia para projeções de filmes repletos
nicação mediada pelo jornalismo: passa pela publicidade e de efeitos especiais, e vende livros e vídeos que glorificam a
pelo marketing. conquista espacial. Ela depende de ser popular, pois, pela po­
Em Consumidores e cidadãos — Conflitos multiculturais pularidade, adquire a visibilidade e também a legitimidade ne­
da globalização, o professor Nestor Garcia Canclini, da Uni- cessária para pleitear mais financiamentos para seus projetos
versidad Autónoma Metropolitana Unidad Iztapalapa, no Mé­ intergalácticos. Os repórteres, cobrindo os feitos da NASA, vêem-

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se enredados por um contagioso clima grandiloqiiente. Assim organização dos conteúdos que, depois, terão a mídia como
também agem os laboratórios farmacêuticos, a indústria auto­ passagem para então se massificarem. Não que o jornalismo de
mobilística — que convida os repórteres para lançamentos de opinião, a imprensa de massa e os meios de comunicação de
modelos em paragens deslumbrantes — , a indústria da moda e massa tenham cessado de existir, mas todos agora existem den­
a da decoração. Assim é o mundo contemporâneo. Tudo, da po­ tro de um campo maior, no qual a hegemonia é exercida pelas
lítica aos medicamentos, do turismo aos planos de saúde, con­ relações públicas generalizadas.
verge para o espetáculo. Os conteúdos informativos já não são Em 1989, o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo com ­
gerados pelas redações. putava uma cifra sintomática: 51% dos profissionais do estado
trabalhavam em atividades catalogadas como “extra-redação”
(principalmente nas assessorias de imprensa), e apenas 49%
AS QUATRO IDADES DA IMPRENSA estavam contratados por veículos jornalísticos propriamente
ditos. De lá para cá houve flutuações. Atualmente, estima-se
Longe do jornalismo de opinião e do século das luzes, a que cerca de 31% dos jornalistas brasileiros trabalham em as­
comunicação social vive hoje num outro estágio. Bernard Miè- sessorias, mas esse é um contingente de difícil quantificação:
ge, professor de teoria da comunicação da Université Stendhal muitos não trabalham com carteira assinada, há aqueles que
constituíram microempresas, atuando como pessoas jurídicas
de Grenoble, na França, sugere uma demarcação para as trans­
prestadoras de serviços, e nem todos são jornalistas diplomados
formações que ocorreram. Num breve ensaio intitulado “Espa­
(universo a que se restringem as estimativas dos sindicatos).
ço público: perpetuado, ampliado e fragmentado” , ele divisa
Os números, portanto, não devem ser tomados como informa­
quatro estágios.' O primeiro foi o da imprensa de opinião, mar­
ções absolutas e não são apresentados aqui como medições exa­
cada pela presença literária e pelo estilo polêmico, nascida em
tas. O que interessa é sua ordem de grandeza e o que eles indi­
meados do século xvm. Depois, veio a imprensa comercial, a
cam como tendência. Os departamentos de relações públicas e
partir da metade do século xix, já bastante vinculada à publici­ as assessorias de imprensa (próprias ou terceirizadas) vão a ca­
dade e ao atendimento das necessidades de consumo dos leito­ da dia assumindo mais o papel de interlocutores oficiais e ofi­
res. Esta não tinha mais o objetivo de influir politicamente, ciosos dos jornalistas. E cada vez mais a informação passa por
mas de atender as necessidades do público como consumidor, um processamento prévio antes de entrar nas redações.
como cliente. No século xx surgem os meios audiovisuais de Isso significa que o jornalismo e, de um modo mais am­
massa. Nasce aí o terceiro estágio, que alarga o espaço público plo, os que gerenciam os conteúdos nos meios de comunicação
e transforma o público de consumidores em massa. já não detêm controle integral sobre as informações. Assim
Finalmente, por volta dos anos 1970, começa a se confi­ como as fotos dos filmes que estréiam na semana não são tira­
gurar o quarto estágio, que Miège define como a era das rela­ das por repórteres fotográficos, mas são produzidas internamen­
ções públicas generalizadas (ou comunicação generalizada). te nos estúdios, uma série de informações, visuais ou escritas,
Aí, a mudança de modelo se dá porque a gestão da cultura não já vêm prontas de fora. São transformações radicais que repre­
mais se encontra no interior dos chamados meios de comuni­ sentam novos desafios para a técnica do jornalismo — e tam­
cação; os Estados, as grandes e pequenas empresas e as insti­ bém para a sua ética. O maior deles talvez seja o da especiali­
tuições passam a se equipar para promover, por si mesmas, a zação aliado ao do preparo crítico.

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ESPECIALIZAÇÃO E INDEPENDÊNCIA checar um dado, precisam recorrer a o n g s , a universidades, a
pesquisadores de institutos ou laboratórios privados. Esse mo­
Exceções à parte, a maioria dos jornalistas não mais domi­ delo traz pelo menos uma vantagem: o jornalista especializado
na os conhecimentos necessários para questionar, em pé de já não é o comentarista que sabe das coisas; é antes de tudo um
igualdade, e com rapidez, o funcionamento de um novo siste­ bom repórter especializado, com boas fontes alternativas, que
ma de rastreamento por satélite das áreas consumidas por in­ sabe, isto sim, a quem perguntar. Isso desmistifica na prática o
cêndios em florestas tropicais que acaba de ser divulgado por jornalismo como fonte da verdade, e reforça a necessidade de
uma assessoria de imprensa, ou os procedimentos de uma pes­ investir no jornalismo como uma máquina de fazer reporta­
quisa sobre a cura do câncer que é anunciada pelo departa­ gens. As redações não mais dispõem das bases de dados, dos
mento de relações públicas de um laboratório multinacional. O conhecimentos básicos e da formação prévia para avaliar com
desenvolvimento científico não é mais público — ele foi priva- segurança tudo aquilo que é notícia no espaço público.
tizado nas grandes corporações, foi incorporado pela atividade A especialização do jornalista, portanto, precisa hoje ser
económica na condição de um fator estratégico para o lucro de vista em outras bases. É verdade que os jornais não são a fon­
longo prazo. Vale dizer: a ciência foi privatizada na sociedade te do saber. São, como sempre foram, apenas um canal. Para o
contemporânea. As pesquisas de ponta já não são “segredos de jornal ser um canal devidamente autorizado e crível, desenvol­
Estado” como nos tempos da guerra fria; tornaram-se segredos veu-se a figura do especialista, que dispunha de um repertório
industriais. Com isso, a própria interpretação da ciência, isto é, adequado para noticiar com alguma profundidade assuntos es­
a sua tradução para o leigo, já não é totalmente realizada pelos pecíficos. Hoje, essa figura é igualmente necessária, mas o seu
jornalistas. perfil precisa atender a um outro requisito: ela precisa ter um
Na era do jornalismo de opinião, ou mesmo da imprensa preparo crítico para não ser engolida pela lógica das relações
comercial, as melhores redações possuíam, em seus quadros, públicas generalizadas e para não assumir como verdades fac­
jornalistas especializados que eram intelectuais de ponta, capa­ tuais os pontos de vista pré-fabricados por elas. Mais uma vez,
zes de avaliar e julgar técnica e teoricamente cada um dos ar­ o preparo ético é indispensável para a performance técnica.
gumentos que ouviam dos governantes, dos empresários, dos Ser independente da fonte é um desafio clássico e já bas­
líderes religiosos e dos cientistas. Agora, isso só é possível no tante conhecido. Trata-se de não permitir que a proximidade
interior dos conselhos editoriais de publicações ultra-especiali- necessária entre o repórter e sua fonte se transforme na coop-
zadas, que não pertencem mais ao campo do jornalismo desti­ taçâo do repórter pela fonte: sem notar, o primeiro começa a
nado ao grande público, mas ao campo das próprias áreas do adotar os pontos de vista da segunda, começa a usar o seu lin­
conhecimento de que tratam. Na era das relações públicas ge­ guajar e a desenvolver espontaneamente raciocínios que não
neralizadas, o saber, além de ter sido privatizado, distanciou-se são próprios nem do veículo em que ele trabalha nem do públi­
ainda mais das redações. co ao qual ele se dirige, mas dela, fonte. Agora, na era do es­
Não que a especialização tenha sido abandonada pelos petáculo — em que tudo o que precisa de visibilidade já vem em ­
veículos jornalísticos. Ela apenas está mudando de perfil. As pacotado para as redações como uma atração em si mesma —,
grandes redações ainda contam com profissionais especializa­ o desafio não é mais de nível individual, mas sistémico. A im­
dos em diferentes áreas, mas, mesmo esses, quando têm de prensa, tanto a especializada como a generalista, precisa saber

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como se distanciar das estratégias das assessorias, ou ficará no fator decisivo para garantir a qualidade da informação. A for­
papel de ecoar as campanhas (propagandísticas, sim) que elas mação ética estimula o crescimento de profissionais críticos —
desencadeiam. A imprensa pode atuar como reserva crítica pe­ e ser crítico não significa ter um olhar canhestro sobre o mun­
rante o espetáculo. E raramente se lembra disso. As assessorias do, mas ter um olhar fundamentado, atualizado e independente
e suas megaações de convencimento continuam invisíveis para sobre a área de sua cobertura. Isso, claro, vai se somar ao ta­
o grande público, como se não fossem notícia. Fala-se de um lento e à intuição que constituem a melhor vocação jornalísti­
novo remédio, mas não do que foi gasto em publicidade e em ca, mas só talento e só especialização já não bastam. Quando
marketing para promovê-lo. Fala-se do efeito químico da nova as informações chegam ao jornalista por meio de assessorias
droga, mas não dos bilhões de dólares que ele representa para cada vez mais equipadas e poderosas, o que lhe resta fazer?
o laboratório — como se isso não interessasse ao público. Reescrever releases? Ou então, na tentativa de adotar uma in­
O preço das novas maravilhas da medicina já traz embuti­ dependência aparente, reescrever releases inserindo aqui e ali
do o que foi gasto para agradar os médicos e para promover uma adjetivação mal-educada? Reeditar vídeos distribuídos por
apresentações de luxo para os jornalistas — e o público não laboratórios para preparar uma matéria de medicina do telejor-
sabe disso. A ação das relações públicas generalizadas continua nal das oito?
invisível para o homem comum, e, no entanto, são elas que for­ A prática jornalística nunca dependeu tanto da reflexão e
matam o espetáculo que o envolve — com a ajuda da impren­ do estudo como agora. Uma redação não é um balcão onde no­
sa, que gosta de gabar-se de ter descoberto informações que, na tícias são empacotadas. Uma redação é um núcleo encarregado
verdade, não descobriu: assessores pagos para isso foram até de pensar. Ela é tanto melhor quanto melhor for a sua capaci­
ela e contaram. A verdade é constrangedora, mas o que aconte­ dade de elaboração coletiva. A qualidade do que ela apura, es­
ce com o lançamento de um filme de Tom Cruise não é radical­ creve, narra, edita, fotografa e desenha é consequência do
mente diverso do que acontece com uma nova luta de Mike modo como ela pensa — ou do modo como ela não pensa. Jor­
Tyson, com o anúncio de descoberta de um novo coquetel de nalistas não são “mineradores” de informação exclusiva que
drogas contra a a id s , com a festa de lançamento de um novo ocasionalmente são instados a pensar, mas precisam ser pensa­
portal na internet. As relações públicas generalizadas postam- dores com grande capacidade executiva. O jornalismo é uma
se ao redor de todas as redações como uma imensa fortificação atividade intelectual — ou é inconsequente e tolo.
que, se as alimenta com relatórios, press-releases, imagens de Numa época em que se tornou lugar-comum dizer que o
todo tipo, oportunidades de entrevistas exclusivas com celebri­ conhecimento é o segredo de todas as atividades, chega a ser
dades, e até mesmo furos (as assessorias distribuem as notícias chocante constatar que a maioria dos jornalistas praticamente
de mais impacto com exclusividade para os veículos mais im­ não estuda. Ao contrário, dão mostras de um sentimento antiaca-
portantes), no limite obstrui a relação direta entre a reportagem dêmico e antiintelectual quase sem precedentes. Nenhum deles
e a realidade. A propósito: onde é mesmo que ficou a realida­ levaria o filho a um dentista que se orgulhasse de não cursar pós-
de? Talvez logo ali adiante, detrás da profusão das imagens, às graduação. Nenhum deles iria se tratar com um cardiologista que
vezes sedutoras, às vezes chocantes, produzidas pelo espetáculo. não frequentasse os congressos internacionais de sua área, de
Em cada redação, o investimento em recursos humanos, preferência apresentando trabalhos. Nenhum contrataria como
isto é, o investimento na formação contínua de seus quadros, é advogado um curioso inculto; dariam preferência aos que fos­

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sem professores titulares de alguma universidade. E, mesmo cês Guy Debord via nele um estágio superior do capitalismo.
assim, consideram normal que o público seja informado por pro­ Um ano antes das grandes manifestações estudantis de maio de
fissionais que, na média, pouco lêem e não estudam. Que não 1968 na França, publicou seu livro A sociedade do espetáculo,
estudam sequer o que se passa com a comunicação e com o es­ que logo se tornou inspirador dos movimentos de contestação
paço público nas democracias atuais. A persistir nessa toada, a na Europa. Debord, um filósofo visionário que jamais chegou
mentalidade média das redações continuará a reproduzir o es­ perto de qualquer carreira acadêmica, dando preferência à mi­
petáculo. litância de extrema esquerda, matou-se em 1994, aos 62 anos.
O reexame dessa postura é urgente. O jornalismo pode ter Tornou-se um ícone antiestablishment. "O espetáculo não é um
perdido parte de sua hegemonia no espaço público, mas não conjunto de imagens” , escreve ele, “mas uma relação social en­
perdeu sua essencialidade. Para valorizá-la e reforçá-la, a for­ tre pessoas, mediada por imagens.”4 Indo mais longe, Debord
mação crítica permanente nunca foi tão decisiva. Tanto para os diz que “o espetáculo é o capital em tal grau de acumulação
órgãos de imprensa, como para os profissionais e para o públi­ que se torna imagem” .5 Naturalmente, suas teses são discutí­
co. A formação crítica permanente não é outra coisa senão a veis — e dirimir as discussões possíveis que elas admitem não
formação ética. Mas a formação ética, atualmente, precisa con­ está entre as pretensões deste livro —, mas o fato é que o espe­
templar não apenas os preceitos clássicos — como o da busca táculo é uma forma de organização da cultura e das comunica­
da verdade, o do respeito à privacidade, o da independência em ções que se impõe por si mesma. Mais que isso.é uma premên­
relação aos governos e aos anunciantes — , mas também os te­ cia posta pela platéia. No espetáculo, tudo se destina ao prazer,
mas incómodos, como o do entretenimento, o dos conglomera­ até mesmo as notícias.
dos da mídia e o do espetáculo. Julgar que os conhecimentos Se, para os gregos e para os iluministas, assim como para
éticos tradicionais estão automaticamente assegurados pela Jeremy Bentham, o fundador da filosofia utilitarista, a felicida­
prática do dia-a-dia e que são suficientes para as coberturas de era uma meta e, ao mesmo tempo, um direito, no espetácu­
contemporâneas é tão anacrónico quanto acreditar que os cui­ lo a felicidade vira uma compulsão. Se, na Declaração de Inde­
dados que um pistoleiro do Velho Oeste dispensava ao seu Colt pendência dos Estados Unidos, de 1776, a busca da felicidade
45 são suficientes para que os generais da o t a n tomem conta aparece como um direito inalienável dos homens, ao lado da
de seus mísseis nucleares. O jornalismo dentro do espetáculo vida e da liberdade, no espetáculo, a felicidade é uma obriga­
não é a mesma coisa que o jornalismo produzido pelo ideal da ção, é compulsória. Por isso, ele já não pode parar. Cabe à im­
opinião pública, assim como a guerra não é mais a mesma. Se prensa encontrar os meios para compreendê-lo, para informar
ele não tem consciência do ambiente social e cultural em que o público sobre os mecanismos pelos quais ele reconfigura a
foi inserido pela História, converte-se em presa fácil da estra­ realidade e, principalmente, para não se conformar à função de
tégia de comunicação das relações públicas generalizadas — linha auxiliar das relações públicas generalizadas.
cujos profissionais, por sinal, estudam, e muito.
O espetáculo é um estado irrevogável da cultura. Com a
supremacia das imagens ao vivo na comunicação social, abriu-
se como uma nova era na sociedade global. Antes mesmo de o
termo globalização entrar para o vocabulário da moda, o fran­

200 201
Conclusão
PROPOSTAS QUE NÃO SÃO CONSELHOS

O que é que pode ser feito, afinal, para melhorar a imprensa?


Do ponto de vista ético, a resposta a essa pergunta passa
por uma palavra: educação. Não mais a educação das boas ma­
neiras, mas a educação para a cidadania. Para os militantes do
ceticismo, a frase soa oca. Mas é o único meio. E preciso for­
mar os jornalistas, é preciso envolver o público no debate, e é
preciso investir na construção de uma mentalidade social que
prestigie e cobre excelência da imprensa. Por fim, é preciso as­
segurar um regime democrático que seja capaz de garantir, em
nome do direito à informação e da liberdade de expressão, a
pluralidade e a diversidade dos meios informativos que atuam
no espaço público. Sem pretender dar conselhos a quem quer
que seja, este livro assume o risco de lançar pequenas sugestões.

NA UNIVERSIDADE

Comecemos pela formação dos jornalistas. Tanto as facul­


dades como as redações, tanto as empresas como os sindicatos
e associações profissionais ou empresariais, têm o dever de
cultivar a noção de que o jornalismo, acima de tudo, é uma éti­
ca. Não é uma técnica fria, mas uma relação de credibilidade
pela qual os profissionais são autorizados a informar o cidadão
de forma equilibrada, voltada para a verdade dos fatos. Nas es­
colas, isso se traduz por currículos que contemplem não apenas

203
a existência de uma disciplina sobre ética, mas o compromisso tivar e a respeitar suas fontes de informação; aí ele conhecerá
ético como fundamento dc cada uma das disciplinas. na carne o valor da independência e os perigos dos conflitos de
No cam po do jornalismo, a universidade não existe para interesses. Mas como, na prática, as redações e as empresas po­
entregar ao m ercado profissionais treinados — esse é o enga­ dem dar seguimento à formação ética de seus profissionais?
no niais freqUente sobre o papel da universidade. As empresas Adotar códigos de ética tem alguma serventia?
de comunicação não apenas adotam cursos para os iniciantes, Pelo exemplo e pelas orientações expressas que dão, os
com o objetivo de familiarizá-los com as técnicas próprias de profissionais mais experientes podem atuar na formação de
seu ramo de atividade, mas também complementam a forma­ seus colegas e subordinados — e para isso não precisam de có­
ção dos novatos que ingressam no ofício. É nas redações que a digos escritos. Os princípios, os valores e as condutas do jorna­
profissão é de fato aprendida. A universidade, por mais que te­ lismo se sedimentam mais pelos costumes do que pelas normas
nha em vista o mercado de trabalho, tem sua vocação mais fun­ explícitas, grafadas em letras grandes e penduradas na parede
da no cultivo da reflexão — e da reflexão independente do da sala do chefe. Para a educação dos profissionais, um código
mercado. Ela pensei a sociedade. Sua melhor contribuição está de ética pronto e fechado não adianta muito. Na verdade, não
em formar profissionais não tecnicamente prontos, mas críti­ vale quase nada. Um código tem a vantagem de pôr o preto no
cos, capazes de pensar por si mesmos (o que Cláudio Abramo branco, isto é, de sacramentar os princípios que regem as toma­
chamava de “autonomia conceituai”). Isso, o mercado, sozinho, das de decisão. Um iniciante que seja apresentado a ele não
não faz. A universidade é o celeiro da pesquisa e do questiona- tem mais a prerrogativa de dizer que o ignora. Nesse sentido,
mento intelectual, ela opera num tempo distinto do tempo do normas sobre conflitos de interesses, por exemplo, especial­
mercado, mais lento e mais aberto ao aprofundamento. O que mente as que estipulam proibições a que se aceitem presentes
ela tem de m elhor a dar aos jornalistas em formação é o conví­ caros das assessorias de imprensa ou a que o jornalista exerça,
vio com as ciências humanas aplicadas aos temas da imprensa. nas “horas vagas” , alguma função profissional de assessor de
E aí que os jovens devem tomar contato com as correntes filo­ imprensa, podem ser de alguma eficácia. Também são úteis nor­
sóficas pelas quais a ética pode ser estudada e aplicada. A uni­ mas expressas sobre a separação entre jornalismo e publicidade;
versidade pode ensiná-los a seguir aprendendo pelo resto da além de explicitar princípios, elas ajudam a regular o relacio­
vida. Nisso, ela é insubstituível. namento entre o lado editorial da empresa e o lado comercial.
Essas normas são facilmente entendidas pelo profissional
como uma política da empresa em que trabalha, e ele vai acatá-
OS CÓDIGOS DE ÉTICA TÊM SERVENTIA? las por subordinação. Mas o mais importante é que elas sejam
parte ativa da cultura local. Isso pode ser estimulado pelos che­
A formação se completa nas empresas, nas redações e no fes, na prática, com base nos casos que se apresentem no dia-
mercado. M ais que isso, porém, completa-se no exercício da a-dia em cada editoria ou em cada revista da empresa. Além do
função pública que é o jornalismo. É no convívio diário com quê, é preciso explicá-las com calma aos recém-contratados, e,
as reações do leitor, do ouvinte, do telespectador e do internau- de tempos em tempos, vale a pena revisá-las e atualizá-las com
ta que o profissional terá contato com a relevância prática e a participação do maior número possível de jornalistas. Só as­
imediata de sua função social. Aí, também, ele aprenderá a cul- sim elas se tornam letras vivas do fazer jornalístico.

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Quanto às normas que não se referem diretamente a pro­ aquele conjunto de princípios, valores e padrões de conduta.
blemas de conflito de interesses — as que tratam da conduta Vistos desse ângulo, os códigos são educativos e podem pro­
diante das fontes, da necessidade de ouvir o outro lado de to­ porcionar um patamar comum para que os dilemas éticos sejam
dos os fatos reportados, que definem a objetividade e a respon­ equacionados e, depois, se assim for indicado, debatidos em
sabilidade social sobre o que é publicado, além de outras — , público.
estas, que dependem de avaliações subjetivas para sua aplica­ Para as redações e para as empresas, o ponto não é ter ou
ção em cada caso específico, ou são produto de um processo não ter um ou rnais códigos. Pode-se tê-los como um documen­
coletivo de elaboração, ou não têm eficácia nenhuma para apri­ to decorativo, o que de nada vale. Em contrapartida, há ambien­
morar os costumes. Viram profissões de fé sem consequência tes profissionais onde nada está escrito e, não obstante, os
prática. “A força de um código de ética” , lê-se no manual pu­ melhores valores do jornalismo são vivamente cultivados, ci­
blicado pela Society of Professional Journalists, Doing ethics mentando a cultura dos que ali trabalham. Códigos não fabri­
injournalism , “é uma função não apenas de seus vários princí­ cam bom jornalismo. Ao contrário, com incómoda frequência,
pios e recomendações, mas de sua legitimidade e autoridade são brandidos para encobrir mau jornalismo. O ponto é outro:
aos olhos daqueles para quem ele foi escrito.” 1A legitimidade os que comandam equipes jornalísticas e os proprietários das
se consegue pelo envolvimento do maior número daqueles que empresas de comunicação devem incluir no seu rol de afazeres
deverão seguir o código na elaboração desse mesmo código. A a formação ética permanente dos jornalistas, dando-lhes retor­
autoridade vem da conduta exemplar dos que comandam as re­ no transparente sobre cada decisão ética e promovendo deba­
dações na observância das regras e também das punições que tes periódicos sobre o tema, o que inclui a recomendação de
se verificam em caso de desobediência clara. Em alguma me­ leituras e o apoio a cursos de aperfeiçoamento aos que têm in­
dida, há um aspecto de norma jurídica nos códigos de ética: teresse em se aprofundar. Se essa atividade é encarada com se­
eles prevêem sanções. Caso contrário não têm autoridade. riedade e empenho, a decisão entre ter ou não ter um código,
Normas legais e ética jornalística, porém, não se confun­ ou uma carta de princípios, mais concisa, é apenas uma decor­
dem. As primeiras têm sua validade e sua eficácia asseguradas rência. Acompanhar e monitorar a cultura ética das equipes é
pelo Estado. Quanto aos códigos de ética que existem na im­ muito mais vital.
prensa, surgem como a manifestação da consciência da profis­ Os princípios e valores são claros para todos os jornalistas
são ou da empresa ou da organização. Expressam um compro­ daquela redação ou daquela companhia? Há muitas formas de
metimento voluntário com um determinado padrão de conduta. averiguar. Se cada um fosse convidado a sintetizar em cinco ou
Sua validade, portanto, não se mede tanto pela obediência, dez pontos sucintos quais são os valores da redação ou da em­
pois, quando adotados com base no engajamento coletivo dos presa que o emprega, será que os resultados seriam parecidos?
interessados, já trazem em si uma promessa de conduta ética Todos têm na cabeça a missão da publicação em que traba­
por parte daqueles mesmos que deverão obedecer a eles. A va­ lham? Sabem expressá-la? Diante de um dilema hipotético, a
lidade dos códigos de ética está no compromisso prévio que maioria apontaria soluções mais ou menos sintonizadas entre
eles contêm e no acúmulo de sabedoria ética que representam. si? O questionário que ajuda a medir a quantas anda a clareza
Eles anunciam para a sociedade que seus signatários firmam o ética dos jornalistas de um determinado grupo é vasto, quase
propósito de observar, para benefício dessa mesma sociedade, interminável. As opções são muitas — e não é o caso de inven-

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tariá-las aqui. Tudo o que os dirigentes têm a fazer é não des­ são sintomas da deformação do espaço público pela ação do
cuidar do acompanhamento e da formação de suas equipes. jornalismo dos meios audiovisuais: a conduta da Rede Globo
Disso depende o sucesso dos veículos e. num plano geral, a durante a campanha pelas eleições diretas, em 1984, nas elei­
própria sobrevivência da credibilidade do jornalismo (no pri­ ções presidenciais de 1989 e, depois, em 1992, por ocasião do
meiro capítulo de Committed journalism , Edmund Lambeth processo de impeachment do presidente Fernando Collor. Nos
apresenta dados que mostram declínio da confiança do público três, houve distorção ou omissão de informações. A democra­
americano nos seus jornalistas; pesquisas em vários outros paí­ cia brasileira pode contribuir para corrigir práticas como essas?
ses vêm indicando uma tendência parecida). Pode. Como foi visto no quarto capítulo, há mecanismos insti­
tucionais para produzir uma legislação atualizada que impeça
a concentração do poder da mídia nas mãos de monopólios re­
O QUE OS SINDICATOS BRASILEIROS PODERIAM FAZER gionais ou nacionais.
Mas o regime de propriedade dos meios de comunicação
No Brasil, os sindicatos de jornalistas e a Federação Nacio­ não é a causa única das distorções informativas: é apenas um
nal dos Jornalistas, assim como a Associação Brasileira de Im­ ambiente que favorece as distorções, pois favorece o abuso de
prensa, a Associação Nacional de Jornais e a Associação Nacio­ poder. Alem dessa dimensão institucional, há a dimensão ética
nal de Editores de Revistas, poderiam realizar em seus fóruns propriamente dita: a desinformação praticada pela t v nasce da
específicos o exame das novas questões éticas que a realidade ação humana, tem origem nos atos individuais daqueles que es­
impõe. Para os sindicatos, as relações entre jornalismo e asses- tão encarregados de dirigir as emissoras e as redes. E interes­
soria de imprensa talvez sejam o tópico mais urgente. Como sante notar que, se fossem observados os preceitos éticos do
eles congregam sob um mesmo código os profissionais das jornal O Globo, que pertence ao grupo de empresas da Rede
duas áreas, tendem a não aclarar, mas a ocultar os conflitos en­ Globo, as distorções e omissões sistemáticas de 1984, 1989 e
tre os dois campos. Os sindicatos — sem abrir mão de sua luta 1992 jamais teriam acontecido.
por emprego, salário e boas condições de trabalho — não erra­ Diz o Manual de redação e estilo de O Globo:
riam se patrocinassem a elaboração de códigos distintos para Todo jornalista, do repórter ao editor, seleciona e dá pesos dife­
cada um dos dois, o que seria um passo significativo para a ele­ rentes aos elementos de informação que passam por suas mãos.
vação dos padrões éticos de todos os profissionais. Todas as fe­ Isso é inevitável — pois não há outra maneira de trabalhar — e
derações e associações da área, porém, têm um debate em co­ representa o exercício de considerável poder: o de decidir como
mum: como fica a independência editorial com o advento dos determinado aspecto da realidade será apresentado à opinião pú­
grandes conglomerados transnacionais da mídia? Como cada blica. A primeira questão ética que se põe para o jornalista é
um se posiciona diante do fato? Como preservar o jornalismo? aprender a não abusar desse poder. E inaceitável que o proces­
samento da informação seja posto a serviço de fins políticos,
ideológicos e pessoais?
A SOCIEDADE PRECISA ESTAR ENVOLVIDA NO DEBATE. É muito bom que esse preceito faça parte do manual de O
Globo e que seja difundido para o público. Melhor ainda seria
No início deste livro, foram lembrados três episódios que se a Rede Globo agisse em consonância com ele.

208 209
E se admitisse suas faltas. Se a Rede Globo reconhecesse demandas éticas que, ao longo do tempo, acabam se transfor­
seus erros passados e os explicasse à opinião pública, prestaria mando em lei. Assim foi com a abolição da escravatura, o voto
um grande serviço e sua credibilidade não sairia ferida — ao feminino, as garantias trabalhistas. Mas, como se viu ao longo
contrário, iria se reforçar. Disposição para reconhecer e corri­ deste livro, o dilema ético por excelência não é aquele que
gir as falhas é um mandamento sagrado da ética jornalística. opõe o lícito ao ilícito: é aquele que abre uma escolha entre o
Quando mostram essa disposição, os veículos informativos certo e o certo, isto é, entre dois valores que se apresentam co­
ajudam a elevar o espírito crítico do público e abrem uma dis­ mo igualmente justos e bons. Por isso, também, a ética está pre­
cussão essencialmente educativa. E assim — e só assim — que sente em toda decisão que busque qualidade de informação. De­
a imprensa ajuda na formação ética dos cidadãos, e, sem essa bater abertam ente as questões éticas, à luz de episódios reais,
formação continuada, é inútil pretender que os jornalistas dêem é um serviço de utilidade pública: educa o espírito crítico dos
conta de todos os recados. cidadãos e ajuda a melhorar a imprensa.
Ao mesmo tempo, é igualmente inútil, além de desastro­
so, esperar que a lei garanta a qualidade dos conteúdos infor­
mativos. A legislação pode, c deve, estabelecer limites de pro­
priedade, assim como pode, e deve, ter regras mais severas
para a concessão de canais de rádio e televisão. A lei também
garante a integridade das pessoas, protegendo-as contra a calú­
nia, a injúria e a difamação (o que está no Código Penal). Pro­
tege também a liberdade de expressão, o direito à informação,
e condena a censura (na Constituição Federal). A lei, enfim, cui­
da das premissas para que a democracia funcione, mas não há
como esperar que ela tenha o poder de determinar que todo jo r­
nalismo seja bom. Assim como é insano incumbir o Estado de
filtrar o que é veiculado na mídia. Qualquer que seja o regime
democrático, sempre haverá a decisão que cabe ao indivíduo,
e, onde há liberdade de imprensa, não pode haver nenhum tipo
de censura.
É unanimidade nos estudos contemporâneos sobre ética
na imprensa que a lei não garante qualidade. Ela apenas esta­
belece o território comum, as regras de base para que a liber­
dade de expressão seja exercida por todos. Acima dessa base,
a ética lida com as escolhas individuais que são feitas para
atender o direito à informação. Sobre cada escolha, entretanto,
os indivíduos e as empresas devem assumir a plena responsa­
bilidade. Por certo, ética e direito são temas imbricados: há

210 211
IT

Apêndice
ALGUNS EXEMPLOS DE CÓDIGOS
DE ÉTICA

BRASIL

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE EDITORES DE REVISTAS (ANER)

(Publicado em dezembro de 1997)

Princípios éticos recomendados pela Comissão de Ética


da anerà s Editoras associadas:
1. Manter a independência editorial, trabalhando exclusi­
vamente para o leitor.
2. Garantir, efetivamente e sem subterfúgios, o direito de
resposta aos que provarem que foram difamados, caluniados
ou injustiçados.
3. Zelar pela liberdade de expressão e pelo livre exercício
da profissão de jornalista.
4. Assegurar o acesso do leitor às diferentes versões de um
fato e às diversas tendências de opinião da sociedade sobre
esse fato.
5. Preservar o sigilo das fontes.
6. Respeitar o direito do indivíduo à privacidade, salvo
quando esse direito constituir obstáculo à informação de inte­
resse público.
7. Diferenciar espaço editorial de espaço publicitário de
maneira facilmente identificável pelo leitor.

213
8. Defender os direitos humanos, os valores da democra­ que deverá subordinar-se a atuação do profissional, nas suas
cia representativa e a livre iniciativa. relações com a comunidade, com as fontes de informação, e
entre jornalistas.
PRECEITOS DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE JORNAIS
1 — Do direito à informação
Os jornais afiliados à a n j (Associação Nacional de Jor­
nais) comprometem-se a cumprir os seguintes preceitos: Art. 1 — O acesso à informação pública é um direito ine­
1. Manter sua independência rente à condição de vida em sociedade, que não pode ser impe­
2. Sustentar a liberdade de expressão, o funcionamento dido por nenhum tipo de interesse.
sem restrições da imprensa e o livre exercício da profissão Art. 2 — A divulgação da informação precisa é dever dos
3. Apurar e publicar a verdade dos fatos de interesse pú­ meios de comunicação pública independente da natureza de
blico, não admitindo que sobre eles prevaleçam quaisquer in­ sua propriedade.
teresses Art. 3 — A informação divulgada pelos meios de comuni­
4. Defender os direitos do ser humano, os valores da de­ cação pública se pautará pela real ocorrência dos fatos e terá
mocracia representativa e a livre iniciativa por finalidade o interesse social coletivo.
5. Assegurar o acesso de seus leitores às diferentes versões Art. 4 — A prestação de informações pelas instituições
dos fatos e às diversas tendências de opinião da sociedade públicas, privadas e particulares, cujas atividades produzam
6. Garantir a publicação de contestações objetivas das pes­ efeito na vida em sociedade, é uma obrigação social.
soas ou organizações acusadas, em suas páginas, de atos ilíci­ Art. 5 — A obstrução direta ou indireta à livre divulgação
tos ou comportamentos condenáveis da informação e a aplicação de censura ou autocensura são um
7. Preservar o sigilo de suas fontes delito contra a sociedade.
8. Respeitar o direito de cada indivíduo à sua privacidade,
salvo quando esse direito constituir obstáculo à informação de li — Da conduta profissional do jornalista
interesse público Art. 6 — 0 exercício da profissão do jornalista é uma ati­
9. Diferenciar, de forma identificável pelos leitores, mate­ vidade de natureza social e de finalidade pública, subordinado
rial editorial e material publicitário ao presente Código de Ética.
10. Corrigir erros que tenham sido cometidos em suas edi­ Art. 7 — 0 compromisso fundamental do jornalista é com
ções a verdade dos fatos, e seu trabalho se pauta pela precisa apura­
ção dos acontecimentos e sua correta divulgação.
CÓDIGO DE ÉTICA DO JORNALISMO Art. 8 — Sempre que considerar correto e necessário, o
jornalista resguardará a origem e identidade das suas fontes de
Aprovado em 29 de setembro de 1985, Federação Nacio­ informação.
nal dos Jornalistas (Brasil) Art. 9 — É dever do jornalista:
a) Divulgar todos os fatos que sejam de interesse público.
O Congresso Nacional dos Jornalistas fixa as normas a b) Lutar pela liberdade de pensamento e expressão.
214 215
c) Defender o livre exercício da profissão. a) Com interesse de favorecimcnto pessoal ou vantagens
d) Valorizar, honrar e dignificar a profissão. económicas.
b) De caráter mórbido e contrários aos valores humanos.
e) Opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem
Art. 14 — O jornalista deve:
como defender os princípios expressos na Declaração Univer­
a) Ouvir sempre, antes da divulgação dos fatos, todas as
sal dos Direitos do Homem.
pessoas objeto de acusações não comprovadas, feitas por ter­
f) Combater e denunciar todas as formas de corrupção, em
ceiros e não suficientemente demonstradas ou verificadas.
especial quando exercida com o objetivo de controlar a infor­
b) Tratar com respeito a todas as pessoas mencionadas nas
mação. informações que divulgar.
g) Respeitar o direito à privacidade do cidadão. Art. 15 — 0 jornalista deve permitir o direito de resposta
h) Prestigiar as entidades representativas e democráticas às pessoas envolvidas e mencionadas em sua matéria, quando
da categoria. ficar demonstrada a existência de equívocos ou incorreções.
Art. 10 — 0 jornalista não pode: Art. 16 — 0 jornalista deve pugnar pelo exercício da so­
a) Aceitar oferta de trabalho remunerado em desacordo berania nacional, em seus aspectos político, económico e social,
com o piso salarial da categoria ou da tabela fixada por entidade e pela prevalência da vontade da maioria da sociedade, respei­
de classe. tados os direitos das minorias.
b) Submeter-se a diretrizes contrárias à divulgação corre­ Art. 17 — 0 jornalista deve preservar a língua e a cultura
ta da informação. nacionais.
c) Frustrar a manifestação de opiniões divergentes ou im­
pedir o livre debate. iv — Aplicação do Código de Ética
d) Concordar com a prática de perseguição ou discrimina­
Art. 18 — As transgressões ao presente Código de Ética
ção por motivos sociais, políticos, religiosos, raciais, de sexo e
serão apuradas e apreciadas pela Comissão de Ética.
de orientação sexual.
Parágrafo U — A Comissão de Ética será eleita em As­
e) Exercer coberturas jornalísticas pelo órgão em que tra­
sembleia Geral da categoria, por voto secreto, especialmente
balha, em instituições públicas e privadas, onde seja funcioná­ convocada para este fim.
rio, assessor ou empregado. Parágrafo 2U— A Comissão de Ética terá cinco membros
com mandato coincidente com o da diretória do Sindicato.
m — Da responsabilidade profissional do jornalista Art. 19 — Os jornalistas que descumprirem o presente
Art. 1 1 — 0 jornalista é responsável por toda a informa­ Código de Ética ficam sujeitos gradativamente às seguintes pe­
ção que divulga, desde que seu trabalho não tenha sido altera­ nalidades, a serem aplicadas pela Comissão de Ética:
do por terceiros. a) Aos associados do Sindicato, de observação, advertên­
Art. 12 — Em todos os seus direitos e responsabilidades o cia, suspensão e exclusão do quadro social do Sindicato;
jornalista terá apoio e respaldo das entidades representativas da b) Aos não-associados do Sindicato, de observação, ad­
categoria. vertência pública, impedimento temporário e impedimento de­
Art. 13 — 0 jornalista deve evitar a divulgação de fatos: finitivo de ingresso no quadro social do Sindicato.

216 217
Parágrafo único — As penas máximas (exclusão de qua­ Art. 25 — A notória intenção de prejudicar o jornalista,
dro social, para os sindicalizados, e impedimento definitivo de manifesta em caso de representação sem o necessário funda­
ingresso no quadro social, para os não-sindicalizados) só pode­ mento, será objeto de censura pública contra o seu autor.
rão ser aplicadas após prévio referendo da Assembléia Geral Art. 26 — 0 presente Código de Ética entrará em vigor
especialmente convocada para este fim. após a homologação em Assembléia Geral de Jornalistas, espe­
Art. 20 — Por iniciativa de qualquer cidadão, jornalista ou cialmente convocada para este fim.
não, ou instituição atingidos, poderá ser dirigida representação Art. 27 — Qualquer notificação deste Código somente po­
escrita ou identificada à Comissão de Ética para que seja apu­ derá ser feita em Congresso Nacional de Jornalistas mediante
rada a existência de transgressão cometida por jornalista. proposição subscrita no mínimo por 10 delegações represen­
Art. 21 — Recebida a representação, a Comissão de Ética tantes do Sindicato de Jornalistas.
decidirá sua aceitação fundamentada ou, se notadamente inca­
bível, determinará seu arquivamento, tornando pública a deci­
são, se necessário. ESTADOS UNIDOS
Art. 22 — A aplicação de penalidade deve ser precedida
de prévia audiência do jornalista, objeto de representação, sob CÂNONES DO JORNALISMO
pena de nulidade.
Parágrafo l 2 — A audiência deve ser convocada por escri­
Adotado pelo Comité de Ética da American Society of
to pela Comissão de Ética, mediante sistema que comprova o
Newspaper Editors ( a s n e ) , em 1922
recebimento da respectiva notificação, e realizar-se-á no prazo
de 10 dias a contar da data do vencimento do mesmo.
A função primária dos jornais é comunicar à raça humana
Parágrafo 22 — O jornalista poderá apresentar resposta es­
o que seus membros fazem, sentem e pensam. O jornalismo,
crita no prazo do parágrafo anterior, ou apresentar suas razões
portanto, exige de seus praticantes o mais amplo alcance de in­
oralmente, no ato da audiência.
teligência, de conhecimento e de experiência, assim como po­
Parágrafo 3a — A não-observância pelo jornalista dos pra­
deres naturais e treinados de observação e raciocínio. As suas
zos previstos neste artigo implica a aceitação dos termos da re­
oportunidades como cronista estão indissoluvelmente ligadas a
presentação.
suas obrigações como professor e intérprete.
Art. 23 — Havendo ou não resposta, a Comissão de Ética
Com o fim de encontrar alguns meios de codificar a práti­
encaminhará sua decisão às partes envolvidas no prazo máxi­
ca sadia e as aspirações justas do jornalismo americano, estes
mo de 10 dias, contados da data marcada para a audiência.
cânones são apresentados:
Art. 24 — Os jornalistas atingidos pelas penas de adver­
tência e suspensão podem recorrer à Assembléia Geral, no pra­
i
zo máximo de 10 dias a contar do recebimento da notificação.
Parágrafo único — Fica assegurado ao autor da represen­ Responsabilidade. O direito de um jornal de atrair e man­
tação o direito de recorrer à Assembléia Geral, no prazo máxi­ ter leitores não é restrito por nenhuma coisa senão as conside­
mo de 10 dias a contar do recebimento da notificação, caso não rações com o bem-estar público. O uso que um jornal faz da fa­
concorde com a decisão da Comissão de Ética. tia de atenção pública que obtém serve para determinar seu

218 219
senso de responsabilidade, que partilha com cada membro de minuciosidade ou exatidão ao alcance de seu controle ou falha
sua equipe. O jornalista que usa seu poder para qualquer pro­ em obter comando dessas qualidades essenciais.
pósito egoísta ou de algum outro modo pérfido é indigno de 2. Os títulos devem ser plenamente garantidos pelo con­
uma alta confiança. teúdo dos artigos que encabeçam.

n v
Liberdade de Imprensa. A liberdade de imprensa deve ser Imparcialidade. A prática sadia estabelece clara distinção
protegida como um direito vital da humanidade. Ela é o direi­ entre reportagens noticiosas e expressões de opinião. As repor­
to inquestionável de discutir qualquer coisa que não seja expli- tagens noticiosas devem ser livres de opinião ou preconceito de
citamente proibida por lei, inclusive a sabedoria de qualquer qualquer espécie.
estatuto restritivo.
1. Essa regra não se aplica aos assim chamados artigos es­
ui peciais inconfundivelmente devotados à advocacia ou caracte-
rizados pela assinatura autorizando as conclusões e interpreta­
Independência. A liberdade de todas as obrigações, exce­
ções próprias do redator.
to a da fidelidade ao interesse público, é vital.
vi
1. A promoção de qualquer interesse privado contrário ao
bem-estar geral, por qualquer razão, não é compatível com o Jogo Limpo. Um jornal não deve publicar acusações não
jornalismo honesto. As assim chamadas comunicações noticio­ oficiais afetando reputação ou caráter moral sem proporcionar
sas de fontes privadas não devem ser publicadas sem conheci­ a oportunidade de o acusado ser ouvido; a prática correta exi­
mento público de sua fonte ou qualquer outra substanciação de ge a concessão de tal oportunidade em todos os casos de acu­
sua afirmação de valor como notícias, tanto em forma como sação séria fora de procedimentos judiciais.
em substância.
2. Partidarismo em comentário editorial que sabidamente 1. Um jornal não deve invadir direitos ou sentimentos pri­
se afasta da verdade constitui violência ao melhor espírito do vados sem garantia segura de direitos públicos, distinto da curio­
jornalismo americano; em colunas noticiosas é subversivo de sidade pública.
um princípio fundamental da profissão. 2. É privilégio, como é dever, de um jornal fazer correção
pronta e completa de seus próprios erros sérios de fato ou opi­
IV nião, seja qual for sua origem.
Sinceridade, Veracidade, Exatidão. A boa-fé com o leitor
VII
é o fundamento de todo jornalismo digno do nome.1
Decência. Um jornal não pode escapar da condenação por
1. Por todas as considerações de boa-fé, um jornal é cons­ insinceridade se, enquanto professando alto propósito moral,
trangido a ser verdadeiro. Não deve ser escusado por falta de proporciona incentivos à baixa conduta, tais como são encon­

220 221
trados em detalhes de crimes de vício, cuja publicação não é sitos desonrosos são indignos da confiança pública. A impren­
demonstravelmente pelo bem público. Carente de autoridade sa americana nasceu livre não apenas para informar ou para
para forçar os seus cânones, o jornalismo aqui representado servir de fórum de debates, mas também para trazer um escru­
não pode expressar senão a esperança de que, se servir delibe- tínio independente sobre as forças do poder na sociedade, in­
radamente de instrumento a instintos viciosos, irá encontrar clusive sobre a conduta do poder oficial em todos os níveis de
efetiva desaprovação pública ou dobrar-se à influência de uma governo.
condenação profissional preponderante.1
— Liberdade de Imprensa. A liberdade de im­
a r t ig o ii

DECLARAÇÃO DE PRINCÍPIOS — ASNE* prensa pertence ao povo. Ela deve ser defendida contra usurpa­
ção ou ataque por parte de quaisquer interesses, públicos ou
A Declaração de Princípios da American Society of News- privados. Os jornalistas devem estar constantemente alertas
paper Editors ( a s n e ) foi adotada inicialmente em 1922 como para garantir que os assuntos do público sejam conduzidos em
os Cânones do Jornalismo. O documento foi revisto e renomea- público. Devem estar vigilantes contra todos aqueles que pos­
do como Declaração de Princípios em 1975. sam explorar a imprensa para propósitos egoístas.

A Primeira Emenda, protegendo a liberdade


pr eâ m bu lo . a r t ig o iii — Independência. Os jornalistas devem evitar

de expressão contra a restrição por qualquer lei, garante direi­ impropriedade e a aparência de impropriedade, bem como
to constitucional às pessoas por meio de sua imprensa e, con- qualquer conflito de interesses ou a aparência de conflito. Não
seqúentemente, atribui particular responsabilidade ao pessoal devem aceitar nada nem buscar nenhuma atividade que possa
da imprensa. Assim, o jornalismo exige de seus profissionais comprometer ou parecer comprometer sua integridade.
não somente diligência e conhecimento, mas também a busca
de um padrão de integridade proporcional à obrigação indivi­ — Veracidade e Exatidão. A boa-fé com o leitor
a r t ig o iv

dual do jornalista. Para esse fim, a American Society of News- é o fundamento de todo jornalismo digno do nome. Todo esfor­
paper Editors estabelece esta Declaração de Princípios como ço deve ser feito para garantir que o conteúdo da notícia seja
padrão para incentivar o mais elevado desempenho ético e pro­ exato, livre de preconceitos e contextualizado, e que todos os
fissional. lados sejam apresentados de maneira imparcial. Editoriais, ar­
tigos e comentários analíticos devem ser mantidos nos mesmos
a r t ig o i — Responsabilidade. O objetivo principal de co­
padrões de exatidão das reportagens noticiosas com respeito
letar e distribuir notícias e opinião é atender o bem-estar públi­ aos fatos. Erros significativos de fato, bem como erros de omis­
co informando as pessoas e capacitando-as a fazer julgamentos são, devem ser pronta e explicitamente corrigidos.
sobre as questões do momento. Os jornalistas que abusam do
a r t ig o v — Imparcialidade. Ser imparcial não implica
poder de seu papel profissional por motivos egoístas ou propó­
que a imprensa deva ser condescendente ou se eximir da ex­
* Esta Declaração e os códigos que seguem foram traduzidos por Cid Knipel pressão editorial. A prática sadia, contudo, exige que se faça
Moreira. uma distinção clara para o leitor entre reportagens noticiosas e

222 223
opinião. Artigos que contenham opinião ou interpretação pes­ necimento de um relato imparcial e abrangente dos eventos e
soal devem ser claramente identificados. questões. Os jornalistas conscienciosos de todos os meios de
comunicação e especialidades se empenham em atender o pú­
a r t ig o vi — Jogo Limpo. Os jornalistas devem respeitar blico com meticulosidade e honestidade. A integridade profis­
os direitos das pessoas envolvidas nas notícias, observar os pa­ sional é a pedra angular da credibilidade do jornalista. Os
drões conhecidos de decência e permanecer responsáveis pe­ membros da Sociedade compartilham uma dedicação ao com­
rante o público pela imparcialidade e exatidão de suas reporta­ portamento ético e adotam este código para declarar os princí­
gens noticiosas. Pessoas acusadas publicamente devem receber pios e padrões da prática da Sociedade.
a mais pronta oportunidade de resposta. As promessas de con-
fidencialidade para com as fontes de notícias devem ser honra­ Buscar a Verdade e Divulgá-la
das a todo custo e, por isso, não devem ser feitas levianamen­
Os jornalistas devem ser honestos, imparciais e corajosos
te. A menos que haja necessidade clara e premente de manter
na apuração, relato e interpretação das informações.
sigilo, as fontes de informação devem ser identificadas.
Os jornalistas devem:
• Testar a exatidão das informações de todas as fontes e
Estes princípios se destinam a preservar, proteger e forta­
exercitar a atenção para evitar o erro inadvertido. A distorção
lecer o laço de confiança e respeito entre os jornalistas e o povo
deliberada jamais é admissível.
americano, um laço essencial para sustentar a concessão de li­
• Procurar diligentemente pessoas envolvidas nas reporta­
berdade a ambos confiada pelos fundadores da nação.
gens noticiosas para lhes dar a oportunidade de responder a
alegações de má conduta.
CÓDIGO DE ÉTICA
• Identificar as fontes sempre que viável. O público tem
direito ao máximo de informações possível sobre a confiabili-
Sociedade dos Jornalistas Profissionais Sigma Delta Chi dade das fontes.
(O primeiro Código de Ética da Sigma Delta Chi foi toma­ • Sempre indagar as motivações das fontes antes de pro­
do de empréstimo da American Society of Newspaper Editors meter anonimato. Esclarecer as condições vinculadas a qual­
em 1926. Em 1973, a Sigma Delta Chi redigiu seu próprio có­ quer promessa feita em troca de informações. Cumprir as pro­
digo, revisto em 1984 e 1987. A presente versão do Código de messas.
Ética da Sociedade dos Jornalistas Profissionais foi adotada em • Certificar-se de que as manchetes, chamadas para repor­
setembro de 1996.) tagens e material promocional, fotos, vídeo, áudio, imagens,
comentários e citações não sejam deturpações. Esses elemen­
Preâmbulo tos não devem simplificar demais ou destacar incidentes fora
do contexto.
Os membros da Sociedade dos Jornalistas Profissionais • Nunca distorcer o conteúdo de fotos ou vídeo de notí­
acreditam que o esclarecimento público é o precursor da justi­ cias. O realce de imagens para melhor esclarecimento técnico
ça e fundamento da democracia. O dever do jornalista é incre­ é sempre permissível. Identificar montagens e ilustrações foto­
mentar estes objetivos por meio da busca da verdade e do for­ gráficas.

224 225
• Evitar reconstituições enganosas ou eventos noticiosos • Mostrar compaixão por aqueles que possam ser afetados
encenados. Se a reconstituição é necessária para relatar um adversamente pela cobertura noticiosa. Utilizar particular sensi­
caso, explicitar que se trata de reconstituição. bilidade ao lidar com crianças e fontes ou pessoas inexperientes.
• Evitar espionagem ou outros métodos sub-reptícios de • Ser sensíveis ao procurar ou utilizar entrevistas ou fotos
coletar informações, exceto quando os métodos tradicionais di­ daqueles afetados por tragédia ou sofrimento.
retos não propiciarem informações vitais ao público. O uso de • Reconhecer que a apuração e divulgação de informações
tais métodos deve ser explicado como parte da matéria. podem provocar dano ou incómodo. A procura das notícias não
• Nunca plagiar. é uma licença para a arrogância.
• Contar corajosamente a história da diversidade e magni­ • Reconhecer que as pessoas comuns possuem um direito
tude da experiência humana, mesmo quando fazer isso for im­ maior ao controle das informações sobre si mesmas do que re­
popular. presentantes públicos e outros que buscam poder, influência ou
• Examinar seus próprios valores culturais e evitar impor atenção. Apenas uma necessidade pública prioritária pode jus­
esses valores aos demais. tificar a invasão da privacidade de uma pessoa.
• Evitar estereotipar por raça, gênero, idade, religião, et­ • Mostrar bom gosto. Evitar a exploração da curiosidade
nia, geografia, orientação sexual, deficiência física ou mental, sensacionalista.
aparência física ou status social. • Ser cautelosos quanto à identificação de suspeitos ou ví­
• Apoiar o intercâmbio aberto de opiniões, mesmo daque­ timas juvenis de crimes sexuais.
las que consideram repugnantes. • Ser judiciosos quanto a nomear suspeitos de crimes an­
• Dar voz aos sem-voz; tanto as fontes oficiais como as tes do registro formal de acusações.
não oficiais podem ser igualmente válidas. • Estabelecer um equilíbrio entre os direitos de um suspei­
• Distinguir entre defesa de causa e reportagem noticiosa. to de crime a um julgamento imparcial e o direito do público
A análise e o comentário devem ser identificados e não detur­ de ser informado.
par o fato ou o contexto.
• Distinguir entre notícia e propaganda, e evitar híbridos Atuar com Independência
que turvem as fronteiras entre as duas.
Os jornalistas devem estar livres de obrigação com qual­
• Reconhecer como obrigação especial garantir que os ne­
quer interesse que não o direito do público de saber.
gócios públicos sejam conduzidos às claras e que os registros go­
Os jornalistas devem:
vernamentais sejam abertos à inspeção.
• Evitar conflitos de interesses, reais ou potenciais.
• Permanecer livres de associações e atividades que pos­
Minimizar Danos
sam comprometer a integridade ou prejudicar a credibilidade.
Os jornalistas éticos tratam fontes, pessoas envolvidas em • Recusar presentes, favores, gratificações, viagens gratui­
suas matérias e colegas como seres humanos merecedores de tas e tratamento especial, e evitar segundo emprego, envolvi­
respeito. mento político, cargo público e serviço em organizações comu­
Os jornalistas devem: nitárias se isso comprometer a integridade jornalística.

226 227
• Revelar conflitos inevitáveis. Nenhuma declaração de princípios pode prescrever deci­
• Ser vigilantes e corajosos na responsabilização daqueles sões concernentes a todas as situações. O senso comum e o
dotados de poder. bom discernimento são necessários na aplicação de princípios
• Negar tratamento preferencial a anunciantes e grupos de éticos às realidades jornalísticas. À medida que novas tecnolo­
interesses especiais, e resistir a sua pressão para influenciar a gias evoluem, estes princípios podem orientar os editores na
cobertura noticiosa. garantia da credibilidade das notícias e informações que eles
• Desconfiar de fontes que ofereçam informações em tro­ fornecem. Cada um dos jornais é encorajado a ampliar essas
ca de favores ou dinheiro; evitar ofertas de notícias. diretrizes da a p m e para aplicá-las mais especificamente a sua
própria situação.
Ser Responsável
Os jornalistas são responsáveis perante seus leitores, ou­ Responsabilidade
vintes, espectadores e entre si. O bom jornal é imparcial, exato, honesto, responsável, in­
Os jornalistas devem: dependente e decente. A verdade é seu princípio norteador.
• Esclarecer e explicar a cobertura noticiosa, e provocar o Evita práticas que possam conflitar com a capacidade de
diálogo com o público sobre a conduta jornalística. relatar e apresentar as notícias de uma maneira imparcial, exata
• Encorajar o público a verbalizar queixas contra a mídia e sem preconceitos.
noticiosa. O jornal deve propiciar uma crítica construtiva de todos os
• Admitir erros e corrigi-los prontamente. segmentos da sociedade. Deve refletir sensatamente, em seu
• Revelar práticas antiéticas de jornalistas e da mídia de pessoal e cobertura, sua clientela diversificada. Deve expor vi­
notícias. gorosamente a má conduta, duplicidade ou abuso do poder, pú­
• Pautar-se pelos mesmos padrões elevados pelos quais blico ou privado. Editorialmente, deve advogar a necessária re­
consideram os demais. forma e inovação no interesse público. As fontes de notícias
devem ser reveladas, a menos que haja uma razão clara para
CÓDIGO DE ÉTICA DOS EDITORES-CHEFES DA ASSOCIATED PRESS não fazer isso. Quando é necessário proteger a confidencialidade
REVISTO E ADOTADO EM 1995 de uma fonte, deve-se explicar o motivo.
O jornal deve defender o direito de livre discurso e a liber­
Estes princípios são um modelo em relação ao qual os dade de imprensa, e deve respeitar o direito do indivíduo à pri­
membros do pessoal de reportagem e editoria podem avaliar vacidade. O jornal deve combater vigorosamente em favor do
seu desempenho. Foram formulados na convicção de que os acesso público às notícias do governo por meio de reuniões e
jornais e as pessoas que os produzem devem seguir os mais registros abertos.
elevados padrões de conduta ética e profissional.
O direito do público de saber sobre questões de importân­ Exatidão
cia é supremo. O jornal possui uma responsabilidade especial O jornal deve precaver-se contra imprecisões, descuidos,
como delegado de seus leitores para ser um zelador vigilante preconceito ou distorção por meio de ênfase, omissão ou ma­
de seus interesses públicos legítimos. nipulação tecnológica.

228 229
Deve reconhecer erros substantivos e corrigi-los pronta e Os jornalistas são encorajados a se envolver em suas co­
explicitamente. munidades, na medida em que essas atividades não criem con­
flitos de interesses. O envolvimento em política, manifestações
Integridade e causas sociais que possa gerar conflito de interesses, ou a
O jornal deve empenhar-se pelo tratamento imparcial das aparência de tal conflito, deve ser evitado.
questões e pela abordagem desinteressada de assuntos contro­ Também deve-se evitar que membros do quadro de pes­
vertidos. Deve propiciar um fórum para a troca de comentários soal do jornal trabalhem para pessoas ou instituições por eles
e críticas, particularmente quando esses comentários são con­ cobertas.
trários a suas posições editoriais. Os editoriais e outras expres­ Investimentos financeiros por parte dos membros do qua­
sões de opinião por repórteres e editores devem ser claramente dro de pessoal ou de outros interesses externos que possam criar
rotulados. A propaganda deve ser diferenciada das notícias. a impressão de um conflito de interesses também devem ser
O jornal deve divulgar as leis de imprensa independente­ evitados.
mente de seus próprios interesses, atento à necessidade de re­ As matérias não devem ser redigidas ou editadas com o
velar conflitos potenciais. Não deve dar tratamento noticioso propósito principal de conquistar condecorações e prémios.
preferencial a anunciantes ou grupos de interesses especiais. Concursos e prémios de jornalismo que servem a interesses
Deve divulgar assuntos relativos a si mesmo ou seu pes­ próprios e refletem desfavoravelmente sobre o jornal ou a pro­
soal com o mesmo vigor e franqueza que dedicaria a outras ins­ fissão devem ser evitados.
tituições ou indivíduos. Preocupação com interesses comunitá­
rios, comerciais ou pessoais não deve levar o jornal a distorcer
ou deturpar os fatos.
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tores de notícias. Deve cumprir suas promessas.
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Independência
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com as fontes e produtores de notícias. Mesmo a aparência de
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Os jornais não devem aceitar nada de valor das fontes de
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gratuitas ou com tarifas reduzidas, entretenimento, produtos e
alojamento não devem ser aceitos. As despesas vinculadas à
cobertura noticiosa devem ser pagas pelo jornal. Favores espe­
ciais e tratamento especial para membros da imprensa devem
ser evitados.

230 231
SUGESTÕES DE LEITURA

A imprensa e o dever da verdade, de Rui b a r b o s a . São Paulo,


Edusp; Com-arte, 1990.
Noticias do Planalto —A imprensa e Fernando Collor, de Má­
rio Sérgio CONTI. São Paulo, Companhia das Letras, 1999.
Um trabalhador da notícia, de Perseu a b r a m o . São Paulo, Edi­
tora Fundação Perseu Abramo, 1997.
A regra do jogo — O jornalismo e a ética do marceneiro, de
Cláudio a b r a m o . São Paulo, Companhia das Letras, 1988.
A ética no jornalismo, de Philip m e y e r . Rio de Janeiro, Foren­
se Universitária, 1989.
Chato, o rei do Brasil — A vida de Assis Chateaubriand, de Fer­
nando m o r a is . São Paulo, Companhia das Letras, 1994.
O pape! do jornal, de Alberto d in e s . 2- ed. Rio de Janeiro, Arte-
nova, 1977.
A saga dos cães perdidos, de Ciro Ma rco nd es f il h o . São Pau­
lo, Hacker Editores, 2000.
Minha razão de viver — Memórias de um repórter, de Samuel
w ainer (org. e editoração Augusto n u n e s ). 2- ed. Rio de Janeiro, Re-
cord, 1988.
O jornalismo como gênero literário, de Alceu a m o r o so l im a .
São Paulo, Edusp; Com-arte, 1990.
Jornalistas e revolucionários, de Bernardo k u c in s k i . São Pau­
lo, Scritta Editorial, 1991.
Jornalismo económico, de Bernardo k u cin sk i . São Paulo, Edusp,
1996.
Seminário de jornalismo. São Paulo, Folha de S.Paulo, 1986.

233
“A culpa é da imprensa”, de Yves m a m o u . São Paulo, Marco Revista Brill's Content:
Zero, 1992. http://www.brillscontent.com/
Ética na comunicação, de Clóvis ba rr o s filh o (com a colabo­ American Society of Newspaper Editors:
ração de Pedro lo za n o b a rto lo zzi ). São Paulo, Moderna, 1995. http://www.asne.org
Os novos cães de guarda, de Serge h a l im i . Petrópolis, Vozes,
Instituto Gutenbcrg:
1998, col. Zero à Esquerda.
http://www.igutenberg.org/
Caso Escola Base — Os abusos da imprensa, de Alex r ib e ir o .
São Paulo, Ática, 1995. International Ccnter for Journalists:
O Globo: manual de redação e estilo, org. e ed. Luiz g a r c ia . http://www.icjf.org
20 ed. São Paulo, Globo, 1994. (Ver o capítulo v, sobre questões éti­ Institute for Global Ethics:
cas. a partir da página 111.) http://www.globalethics.org/
Sobre a televisão, de Pierrc BOURDIEU. Rio de Janeiro, Jorge
The Society of Professional Journalists e Sigma Delta Chi
Zahar, 1997.
Foundation:
Liberty and the news, de Walter l ip p m a n n . New Brunswick,
http://www.spj .org
Transaction Publishers, 1995.
Public opinion, de Walter lippm a n n . Nova York, Free Press Pa-
perbacks (Simon and Schuster), 1997.
Doing ethics in journalism — A handbook with case studies, de
Jay b l a c k , Bob ste ele e Raalph b a r n e y . The Sigma Delta Chi Foun­
dation e The Society of Professional Journalists, 1993 (16 S. Jackson
Street, Greencastle, in , 46135, u s a ). Impresso por eb sco Media, Bir-
mingham, a l , e u a .
Committed journalism — An ethic for the profession, de Ed-
mund B. l a m b e t h . 2j ed. Indiana University Press, 1992.

NA in ter n et

Observatório da Imprensa:
http://www.observatoriodaimprensa.com.br
Associação Brasileira de Imprensa:
http://www.abi.org.br/frame.html
Associação Nacional de Jornais:
http://www.anj.org.br/
Revista CJR (Columbia Journalism Review):
http://www.cjr.org/

234 235
NOTAS

INTRODUÇÃO — O SANGUE AZUL, A DEONTOLOGIA E O DIREITO À INFOR­


MAÇÃO (pp. 9-27)

1. Ph. m e y e r , A ética no jornalismo, Rio de Janeiro, Forense


Universitária, 1989.
2. E. B. l a m b e t h , Committedjournalism — An ethicfor thepro-
fession, 2a ed.. Indiana University Press, 1992.
3. B. H. b a g d ik ia n , O monopólio da mídia, São Paulo, Scritta
Editorial, 1993, p. 15.
4. The Economist, A survey of technology and entertainment
(caderno especial), 21/11/1998.
5. M. c h a u i , “É tic a e v io lê n c ia ” . Teoria & Debate, n- 39, out.
1998.
6. A . novaes (org.). Ética, São Paulo, Companhia das Letras,
1992.
7. M. w e b e r , “Rejeições religiosas do mundo e suas direções”,
em Ensaios de sociologia, Rio de Janeiro, ltc Editora, 1982.
8. E. g ia n n e tti , Vícios privados, benefícios públicos? — A ética
na riqueza das nações, São Paulo, Companhia das Letras, 1993, p. 19.
9. J. h a b e r m a s , Mudança estrutural da esfera pública, Rio de
Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984, p. 36.
10. E. B. lambeth, op. cit., pp. 31 e 120.
11. R. k id d e r . Ética jornalística — O novo debate, Washington,
International Center for Joumalists, 1998, p. 21.
12. M. w e b e r , op. cit., p. 388.
13. E. g ia n n e t t i , o p . c it., pp. 110 e 134.

237
1. FAZ SENTIDO FALAR DE ÉTICA NA IMPRENSA? (pp. 29-36) tido político do evento e retratá-lo como uma grande festa que cele­
brava o aniversário da cidade.
I. No dia 24 de setembro de 2003, no artigo “A Globo não fez Vamos à transcrição:
campanha; fez bom jornalismo”, publicado no jornal O Globo, Ali
Kamel, diretor executivo de jornalismo da Rede Globo, divulgou a repó r ter : São Paulo, 430 anos, nove milhões de brasileiros
íntegra do que teria sido o texto da reportagem sobre o comício das vindos de todo o país. A cidade de trabalho. São Paulo fez
Diretas Já em São Paulo. Outros pesquisadores haviam procurado antes feriado hoje para comemorar o aniversário. Foi também o
essa fita, sem sucesso. Dezenovc anos passados, ela veio a público. aniversário do seu templo mais importante, a Catedral da
Portanto, ao escrever este livro, eu não dispunha da fita. Tinha em Sé. De manhã, na missa, o cardeal arcebispo dom Paulo
mãos, além de depoimentos e artigos de fontes confiáveis, uma gra­ Evaristo Arns lembrou o importante papel da Catedral da
vação de parte da reportagem, incluindo a chamada que foi lida pelo Sé nesses 30 anos em que ela vive no coração da cidade.
apresentador do Jornal Nacional, Marcos Hummel, na noite de 25 de dom pa u lo : Nessa igreja se promoveu praticamente a

janeiro de 1984; “Festa em São Paulo. A cidade comemora seus 430 libertação de um povo que quer manifestar-se como povo.
anos em mais de 500 solenidades. A maior foi um comício na praça Eu acho que isso é fundamental para uma igreja-mãe que é
da Sé”. Tinha também as primeiras frases lidas pelo repórter que tratada com tanto carinho.
cobriu a manifestação, Ernesto Paglia: r e pó r ter : E junto com a cidade aniversariou também
hoje a Universidade de São Paulo. A USP completou 50 anos
São Paulo, 430 anos, nove milhões de brasileiros vindos de de existência. A ministra da Educação, Ester Figueiredo Fer­
todo o país. Cidade de trabalho, São Paulo fez feriado hoje raz, foi à USP hoje. Ela falou da importância da Universi­
para comemorar o aniversário. Foi também o aniversário do dade com suas 33 faculdades e 45 mil alunos e assistiu a
seu templo mais importante, a Catedral da Sé. De manhã, uma inesperada manifestação de estudantes e funcionários.
na missa. o cardeal arcebispo dom Paulo Evaristo Arns lem­ Eles tomaram o anfiteatro com faixas e cartazes e pediram
brou o importante papel da Catedral da Sé nesses 30 anos verbas para a educação, eleições diretas para reitor c para
em que ela vive no coração da cidade. presidente da República. Mas à tarde, milhares de pessoas
vieram ao Centro de São Paulo para, na Praça da Sé, se reu­
A chamada de Marcos Hummel e o trecho citado da narração de nir num comício cm que pediam eleições diretas para pres­
Paglia podem ser vistos e ouvidos no documentário Beyond Citizen idente. Não foi apenas uma manifestação política. Na aber­
Kane, produzido e dirigido por Simon Hartog para o Channel Four, tura, música, um frevo do cantor Moraes Moreira. A Praça da
da Inglaterra, em 1992, e exibido naquele país em 93. Sé e todas as ruas vizinhas estão lotadas. No palanque mais
Na transcrição da fala de Ernesto Paglia, tal como foi publicada de 400 pessoas, deputados, prefeitos e muitos artistas, Chris-
em 2003, surge a menção, de passagem, à reivindicação pelas eleições tiane Torloni, Regina Duarte, Irene Ravache, Chico Buarque,
diretas. Essa menção, contudo, não modifica o sentido nem a perti­ Milton Gonçalves, Ester Góes, Bruna Lombardi, Alceu Va-
nência do que está escrito neste livro desde a sua primeira edição. No lença, Fernanda Montencgro. Gilberto Gil. A chuva não afas­
texto divulgado, o pedido de eleições diretas é tratado como se fosse ta o povo. Os oradores se sucedem no palanque e ninguém
uma excentricidade da multidão. Logo em seguida, Paglia diz que o arreda pé. O radialista Osmar Santos apresenta os oradores.
ato público “não foi apenas uma manifestação política” e retoma o fio O governador de S. Paulo, Franco Montoro, fez o discurso
condutor original de sua narrativa, montada para descaracterizar o sen­ de encerramento. Franco Montoro: “Um dos passos na luta

238 239
da democracia. Houve a anistia, houve a censura, o fim da de que todos se manifestavam apenas e exclusivamente para exigir elei­
tortura; mas é preciso conquistar o fundo do poder que é a ções diretas para presidente da República, Diretas Já, independente­
Presidência da República”. mente de quem fosse o escolhido. Não há como extrair do texto a in­
formação de que aquilo não tinha nada a ver com o aniversário de São
Seis constatações são inevitáveis após uma leitura atenta da fala Paulo. Ao contrário, diz-se expressamente que foi em comemoração
do repórter e da chamada lida por Marcos Hummel (“Festa em São Pau­ ao aniversário da cidade que o comício aconteceu.
lo. A cidade comemora seus 430 anos em mais de 500 solenidades. A 6. Naquela noite o Jornal Nacional, mesmo que admitamos que
maior foi um comício na praça da Sé”): tenha citado as diretas, não informou sobre a campanha de massa que
1. O Jornal Nacional mentiu expressamente ao afirmar, na cha­ estava em marcha no Brasil. O Jornal Nacional diluiu a razão de ser
mada, que o ato da Sé aconteceu para celebrar o aniversário da cidade. do ato público da praça da Sé e chegou a dizer que ele “não foi apenas
2. O Jornal Nacional sonegou ao público a origem da manifes­ uma manifestação política” — e. ora, ele foi apenas isso, uma mani­
tação. Sonegou ao público o fato de que o ato de São Paulo fazia parte festação política. Naquela noite, é preciso repetir, o Jornal Nacional
de uma campanha nacional por eleições diretas, liderada publicamente tapeou o telespectador. E, agora, a mais recente prova disso é a trans­
pelos principais expoentes da oposição, como Lula, Brizola, Montoro, crição divulgada em 2003.
Quércia, Ulysses Guimarães, entre outros, a qual, de modo seqúencia- Mais algumas linhas devem ser acrescentadas a esta nota.
do, organizava comícios nas maiores cidades brasileiras. E sabido por todos que a Rede Globo boicotou em seus telejor-
3. A reivindicação das diretas surge na narração de Ernesto Paglia nais nacionais a campanha das diretas. O boicote foi total desde o seu
como um dado marginal, uma surpresa vinda do nada em meio às fes­ início, com um comício de 15 mil pessoas, no Pacaembu, no dia 27
tividades dos 430 anos da capital paulista, dos trinta da Catedral da de novembro de 1983 (ver, a respeito, o livro Diretas Já: o grito preso
Sé e dos cinquenta da u s p . Aí, a bandeira das diretas para presidente na garganta, de Alberto Tosi Ro d r ig u es , lançado em novembro de 2003
soa como um dado exótico, mais ou menos como os pedidos de mais pela Editora Fundação Perseu Abramo, de São Paulo). Depois, a Globo
verbas para a educação ou de eleições diretas para reitor, que são quali­ foi recuando, recuando, até se render completamente na reta final. O
ficados como “uma inesperada manifestação”. Se o Jornal Nacional vei­ comício do Rio de Janeiro, que aconteceu na Candelária, no dia 10 de
culou essa menção às diretas, só o fez para mais bem ocultá-las, para re­ abril de 1984, mereceu uma cobertura sem restrições do Jornal Na­
duzi-las a uma esquisitice sem articulação nacional e fora de contexto. cional. Quanto aos anteriores, ou eram noticiados de modo distorcido
4. O tom dominante enfatiza um suposto caráter festivo do en­ ou eram ignorados.
contro na Sé. Tanto que, no relato do telejornal, cantores, ídolos po­ O ato que ocorreu em Curitiba no dia 12 de janeiro de 1984, com
pulares e artistas são mais numerosos, expressivos e importantes que a presença de 50 mil manifestantes, nem sequer foi registrado no Jor­
os políticos. nal Nacional. Já em novembro do mesmo ano, a Revista Vozes ano­
5. O resultado mais confunde que esclarece o telespectador. A tava essa atitude antijornalística em seu artigo de capa, “A televisão no
desorientação aumenta no final, quando é reproduzido um trecho do Brasil; desinformação c democracia”, dc Vcnício A. de lim a c Murilo
discurso de Franco Montoro, no qual não há referência à bandeira César ram os (Revista Voz.es, Petrópolis, Vozes, ano 78, n- 9, 1984, p.
política das Diretas Já, que unificava a multidão. Em lugar disso, no 43). Venício dc Lima retomaria o tema anos depois, num livro mais
trecho escolhido Montoro fala em “conquistar [...] a Presidência da alentado e documentado, Mídia: teoria e política. Cito um breve tre­
República”. Fica no ar a impressão obscura de que alguém ali estaria cho: “Do ponto de vista da televisão brasileira, o fato central foi a omis­
se candidatando ao mais alto cargo da República e seria esse o obje­ são de cobertura, por parte da Rede Globo, de qualquer evento rela­
tivo do comício. Não há como extrair do texto a informação segura cionado com a campanha das Diretas Já durante 90 dias, até duas

240 241
semanas antes da votação da Emenda Dante de Oliveira” (Mídia: teo­ 3. W. l ip p m a n n , Public opinion. Nova York, Free Press Paper-
ria e política. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2001. A backs (Simon and Schuster), 1997, pp. 201-3.
passagem citada se encontra no capítulo 6, “A Rede Globo e a tran­
sição para a democracia: 1982-1985”, p. 152). A emenda seria derro­
tada no Congresso Nacional no dia 25 de abril de 1984, por uma dife­ 3. INDEPENDÊNCIA E CONFLITO DE INTERESSES (pp. 56-128)
rença de 22 votos.
Roberto Marinho, que na época era proprietário e comandante da 1. Columbia Journalism Review, Graduate School of Journa-
Globo, declarou, em setembro de 1984, à revista Veja: “Achamos que lism da Universidade de Columbia, set.-out. 1997.
os comícios pró-diretas poderiam representar um fator de inquietação 2. F. m o r a is , Chatô, o rei do Brasil — A vida de Assis Chateau-
nacional, e por isso realizamos num primeiro momento apenas reporta­ briand, São Paulo, Companhia das Letras, 1994, p. 349.
gens regionais. Mas a paixão popular foi tamanha que resolvemos tratar 3. Idem, ibidem, p. 410.
o assunto em rede nacional” (“Vitória da notícia — aos quinze anos, o 4. Idem, ibidem, p. 462.
Jornal Nacional é o programa mais visto no país”, Veja, n- 845, 5 de 5. Idem, ibidem, p. 370.
setembro de 1984, p. 54). Três meses depois, numa reportagem publi­ 6. Idem, ibidem, p. 475.
cada no The New York Times (matéria assinada por Alan Riding, “On TV, 7 . S. w a in e r . Minha razão de viver — Memórias de um repór­
Brazil is getting a clearer picture of itself’, 13 de dezembro de 1984, p. A- ter, Rio de Janeiro, Record, 1987, p. 131.
2), ele voltaria ao assunto: “Quando a campanha começou, decidimos 8. Ph. m e y e r , A ética no jornalismo, Rio de Janeiro, Forense
cobri-la em nível local, mas não no noticiário nacional. Mas, depois, sen­ Universitária, 1989, p. 115.
timos que o povo brasileiro realmente queria eleições diretas, então ce­ 9. C. a b r a m o , p a le stra tra n sc rita em Seminário de jornalismo.
demos à pressão democrática do povo. Decidimos não nos afastar da São Paulo, Folha de S.Paulo, 1986.
opinião pública”. A reportagem do diário americano, citada no livro Mí­ 10. Exame, ano 26, n“ 20, 28/9/1994, p. 16.
dia: teoria e política, foi traduzida em O Globo do dia 16 de dezembro 11. Mark w o ssn er , “Success and responsability”, em Annual Re-
de 1984, sob o título "TV Globo, símbolo da integração do Brasil”. port, Bertelsmann, 1992-93, pp. 4-7, cit. por Octavio IANNI, Teorias da
E público, notório e reconhecido que a Globo boicotou a cam­ comunicação,5aed., Rio de Janeiro,Civilização Brasileira, 1998,p. 108.
panha das Diretas Já.
(Esta nota é uma versão reduzida do meu ensaio “A História na
era de sua reprodutibilidade técnica”, publicado em Videologias — 4 . O VÍCIO E A v irtud e (p p . 129-87)
Ensaios sobre televisão, que reúne textos meus e de Maria Rita Khel,
livro que a editora Boitempo lançou em 2004.) 1. C. MARCONDES f il h o , A saga dos cães perdidos. São Paulo,
Hacker Editores, 2000, p. 137.
2. G. pr io l l i , participação no seminário internacional Uma Cul­
2. A SÍNDROME DA AUTO-SUFICIÊNCIA ÉTICA (pp. 37-55) tura para a Democracia, promovido pelo Ministério da Cultura em
parceria com o Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade
1. Luiz g a r c ia (org. e ed.), O Globo: manual de redação e es­ de Maryland ( e u a ), sob o patrocínio do Banco Interamericano de De­
tilo, 20a ed., São Paulo, Globo, 1994, p. 111. senvolvimento.
2. B. k u c in s k i , Jornalismo económico. São Paulo, Edusp. 1996, 3. R. b a r b o s a , A imprensa e o dever da verdade (Bahia, 1920),
p. 173. São Paulo, Edusp; Com-arte, 1990, p. 75.

242 243
4. R. SENNETT, O declínio do homem público — As tiranias da 25. S. h a l im i , Os novos cães de guarda, Petrópolis, Vozes,
intimidade, São Paulo, Companhia das Letras, 1988, p. 17. 1998, col. Zero à Esquerda.
5. M . S . CONTi, Notícias do Planalto — A imprensa e Fernando
Collor, São Paulo, Companhia das Letras, 1999.
6. A . r i b e i r o , Caso Escola Base — Os abusos da imprensa, São 5. o espetá c u lo n ã o po d e parar (pp. 188-201)
Paulo, Ática, 1995.
7. G. g i l d e r , A vida após a televisão. São Paulo, Ediouro, 1996, 1. A. t o u r a in e , “Comunicación política y crisis de la represen-
p. 13. tatividad, em El nuevo espacio publico (coletânea), 2Sreimp., Barce­
8. K. p o p p e r , Televisão — Um perigo para a democracia, Lis­ lona, Editorial Gedisa, 1998, p. 55.
boa, Gradiva Publicações, 1995, p. 30. 2. N. G. c a n c l in i , Consumidores e cidadãos — Conflitos multi-
9. Em “ EUA liberalizam normas para empresas de rádio e televi­ culturais da globalização. Rio de Janeiro, Ed. da u f r j , 1995, p. 30.
são”, O Estado de S. Paulo, 1/6/2000. 3. B. m iè g e , “Espaço público: perpetuado, ampliado e fragmenta­
10. C. SORiA (ed.), Normas y conflictos, n- 1, p. 12. do”, revista Novos Olhares, São Paulo, Escola de Comunicações e
11. M. M. do n a sc im e n t o . Opinião pública e revolução, São Artes da Universidade de São Paulo, n“ 3, primeiro semestre 1999,
Paulo, Edusp; Nova Stella, 1989, p. 23. pp. 4-11.
12. R. d a r n t o n . Boémia literária e revolução —- O submundo 4. G. d e b o r d , A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Con­
das letras no Antigo Regime, São Paulo, Companhia das Letras, traponto, 1997, p. 14.
1987, p. 27. 5. Idem, ibidem, p. 25.
13. M. M. do n a s c im e n t o , op. cit., p. 60.
14. A. de TOCQUEVILLE, A democracia na América, São Paulo,
Martins Fontes, 1998, p. 298. c o n c lu sã o — pr o po stas q u e n ã o sã o c o n se lh o s (pp. 203-11)
15. W. l ip p m a n n , Public opinion, Nova York, Free Press Paper-
backs (Simon and Schuster), 1997, p. 18. 1. Jay b l a c k , Bob STEELE e Raalph b a r n e y , Doing ethics in
16. J. h a b e r m a s , Mudança estrutural da esfera pública. Rio de journalism — A handbook with case studies, The Sigma Delta Chi
Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984, p. 283. Foundation e The Society of Professional Journalists, impresso por
17. Idem, Teoria de la acción comunicativa, Madri.Taurus, 1987; eb sco Media, Birmingham, a l , e u a , 1993, p. 8.

Betweenfacts and norms, Cambridge, m it Press, 1996, e “L’espace pu- 2. Luiz GARCIA (org. e ed.), O Globo: manual de redação e es­
blic, 30 ans après”, Quaderni, Paris, n“ 18, 1992, pp. 173 e 184. tilo, 20a ed., São Paulo, Globo, 1994, pp. 111-2.
18. R. BARBOSA, op. cit., p. 37.
19. T. ad orno e M. h o rk h eim er , A dialética do esclarecimento APÊNDICE — ALGUNS EXEMPLOS DE CÓDIGOS DE ÉTICA (p p . 2 1 3 -3 1 )
(Amsterdam, Querido, 1947), Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985, p. 114.
20. Idem, ibidem, p. 131. 1. Conforme tradução publicada em apêndice em A ética no jor­
21. Idem, ibidem, p. 123. nalismo, de Philip m ey e r , Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1989.
22. Idem, ibidem, p. 128.
23. Idem, ibidem, p. 148.
24. P. b o u r d i e u , Sobre a televisão. Rio de Janeiro, Jorge Zahar,
1997,p . 31.

244 245
ín d ic e r e m is s iv o

abc, re d e d e tv , 164 B a u d e la ire , C h a r le s , 73


A b ra m o , C lá u d io , 9 6 , 2 0 4 B e n th a m , Je re m y , 2 2 , 201
A c t o n , l o r d , 161 B o s e tti, G ia n c a rlo , 162
A d o rn o , T h e o d o r, 1 7 8 -8 1 , 184 B o u r d ie u , P ie r r e , 183
A I F a y e d , D o d i, 147 B riz o la , L e o n e l, 1 5 7 , 2 3 9
A lm e id a M a g a lh ã e s , D a rio d e , 78
A m e r i c a O n l i n e , 118
A m e r i c a n S o c ie ty o f M a g a z in e E d i to r s C a r d o s o , F e r n a n d o H e n r iq u e , 1 1 3 -5 ,
( a s m e ) , 6 8 , 126 131
A m e ric a n S o c ie ty o f N e w s p a p e r E d i­ C a s tr o , F id e l, 143
t o r s ( a s n e ), 1 0 8 C a z u z a , 1 0 9 -1 1
A P B n e w s .c o m , 1 2 7 CBS, r e d e d e TV, 1 6 4
A ra fa t, Y a sse r, 143 C h a n n e l F o u r , r e d e d e TV , 2 3 8
A r i s t ó t e l e s , 16 C h a r le s , p r ín c ip e , 148
asme, ver A m e r i c a n S o c ie ty o f M a g a ­ C h a te a u b ria n d , A s s is , 7 8 -9 , 8 4
z in e E d i t o r s C h a u i, M a r ile n a , 1 5 -6
asne, ver A m e r i c a n S o c ie ty o f N e w s ­ C lin to n , B ill, 1 4 3 , 1 5 1 , 152
p a p e r E d ito rs C o llo r d e M e llo , F e rn a d o , 2 9 -3 0 , 154-
A s s o c ia ç ã o B r a s il e ir a d e I m p r e n s a (ABI), 5 ,1 5 7 .2 0 9
208 C o l l o r d e M e l l o , P e d r o , 1 5 4 -5
A s s o c ia ç ã o N a c io n a l d e E d ito re s d e C o lu m b ia J o u m a lis m R e v ie w , 68
R e v is ta s ( a n e r ):, 5 6 , 5 9 ,2 0 8 , 2 1 3 C o n ti, M a rio S é rg io , 154
A s s o c i a ç ã o N a c i o n a l d e J o r n a i s ( a n j ), C o n tre ira s , H é lio , 30
5 6 , 1 3 9 .2 0 8 ,2 1 4 C r u is e .T o m , 198
A s s o c ia te d P ress M a n a g in g E d ito rs Cruzeiro, O, 79
A s s o c ia tio n , 108 C u ltu ra d e S ã o P a u lo , re d e d e T V , 7 6

B a g d i k i a n , B e n H . , 13 D a rn to n , R o b e rt, 168
B a r b o s a , R u i, 1 5 0 , 1 5 2 , 173 D e N iro , R o b e rt, 189

247
D e b o r d , G u y , 201 J o r n a l d a T a rd e, 3 0 , 131 M o n d e D ip lo m a tiq u e , L e , 1 8 4 S e n n e t t , R i c h a r d , 151

D i a n a , p r i n c e s a , 1 4 3 , 1 4 7 , 1 4 9 . 151 J o r n a l N a c io n a l, 2 9 , 6 7 , 1 4 3 , 1 5 7 , M o n te s q u ie u . C h a r le s d e S „ 7 0 S in d ic a to d o s J o r n a lis ta s , 195

D iá r io P o p u la r , 158 2 3 8 -4 2 M o n to ro , A n d ré F ra n c o , 2 3 9 -4 0 S m ith , A d a m . 27

D iá rio s A s s o c ia d o s , 7 8 , 84 M o ra is , F e rn a n d o , 78 S o c ie ly o f P r o f e s s io n a l J o u m a l i s t s ( s p j ).

D i d e r o t , D e n i s , 51 nbc, re d e d e tv . 164 105


K a d h a f i. M u h a m m a r , 143 N e w York T im es. T h e , 1 9 , 2 2 , 2 4 2 S o r ia . C a r lo s , 5 0 , 165
D o le . B o b . 122
K a m e l, A li, 2 3 8 N o tíc ia e O p in iã o ( r e v i s t a v ir t u a l ) , 1 2 6 S p e c ta to r , 1 2 9
K a n t, I m m a n u e l, 15 , 2 2 N o v a e s . A d a u t o , 16 S ta r r , K e n n e t h , 151
E c o n o m is l, T he, 13, 119 K e n n a r d , W i l l i a m E .. 1 6 4 N u c c i, C e ls o , 8 6
E s p i n o s a , B a r u c h , 15 K e n n e d y , J o h n F ., 19
E s ta d o d e S . P a u lo , O , 97, 130 K h e l, M a ria R ita , 2 4 2 T em p o , II, 1 6 5
E x a m e , 113-5 K id d e r. R u s h w o rth , 23 O n lin e N e w s A s s o c ia tio n , 127
T e re s a d e C a lc u tá . M a d r e , 143
K u b its c h e k , J u s c e lin o , 83 T h a tc h e r. M a r g a r e t, 130
K u c i n s k i , B e r n a r d o , 51 T im e, 7 1 , 1 0 9 , 1 2 0 - 2
F a n tá s tic o , 29 P a g lia , E r n e s to , 2 3 8 -4 0
F e d e ra ç ã o N a c io n a l dos J o rn a lis ta s T o c q u e v ille , A le x is d e , 170
P in o c h e t, A u g u s to , 130
(F e n a j), 5 7 , 2 0 8 ,2 1 4 T o u r a in e . A la in , 192
L a d y D i, ver D ia n a , p rin c e s a P o p p e r , K a r l, 162
F l y n t , L a r r y , 151 T r a v e le r , 8 7
L a m b e t h , E d m u n d o B ., 1 2 . 1 4 , 1 9 , 2 1 , P r io lli, G a b r ie l, 139
F o lh a d e S .P a u lo , 7 3 - 4 . 8 6 , 9 7 , 9 9 - T y s o n , M ik e , 198
2 5 ,2 0 8
1 0 0 , 1 3 1 -4
L e ite , M a r c e lo , 1 3 1 . 1 3 3 -5 , 140
F o x , re d e d e r v , 164 Q u é rc ia , O re s te s , 2 4 0
L e w i n s k y , M o n i c a , 151
Ú ltim a H o r a , 8 3 - 4
L i m a , V e n íe i o d e , 2 4 1
G a r c i a C a n c l i n i , N e s to r , 192 L i p p m a n n , W a l te r , 5 2 , 1 4 5 - 6 , 1 7 0
R a b in , Y itz h a k . 143
G a r c i a , A l e x a n d r e , 157 L o P re tc , R e n a ta , 9 9
R e d e G lo b o d e T e le v is ã o , 2 9 -3 1 . 3 4 - V alor E c o n ó m ic o , 1 3 4
G ia n n e tti, E d u a rd o , 17. 27 L u c e , H e n r y , 6 2 , 1 2 1 -2
5 . 7 6 . 1 (X), 1 3 8 , 1 5 7 , 2 0 8 - 9 , 2 3 8 - 4 2 V a rg a s, G e tú lio , 7 8
G i l d e r , G e o r g e , 159 L u la d a S ilv a , L u is In á c io , 1 7 7 , 2 3 9
R e e d ,Jo h n . 95 V eja, 1 0 9 - 1 1 . 1 5 4 , 1 5 8 , 2 4 1
G lo b o , O , 3 0 , 5 0 , 1 3 4 , 2 0 9 , 2 4 2
R e p ó rte r E s s o , 6 7
G u e r r a , A le e n i, 157
M a c a u l a y , T h o m a s B ., 161 R e v is ta V ozes, 2 4 1
G u im a rã e s , U ly s s c s , 2 9 , 2 4 0
M a le s h e r b e s , C ris tia n o G u ilh e rm e d e , R ib e iro , A le x . 158 W a in e r, S a m u e l, 8 3 -4
169 R id in g , A la n , 2 4 2 W a lla c e , T h o m a s J ., 8 7
H a b e r m a s , J i i r g e n . 1 8 , 1 7 1 -2 M a n d e v ille , B e rn a rd d e , 27 R o b e s p ie rre , M a x im ilie n , 1 6 7 , 192 W ash in gton P o s t, T h e , 13
H a lim i, S e rg e , 184 M a r c o n d e s F ilh o , C ir o , 1 3 4 -5 , 140 R o d rig u e s , A lb e rto T o s i, 241 W eb e r, M a x , 1 7 ,2 2 ,2 4
H a rto g , S im o n , 2 3 8 M a r in h o , f a m ília , 157
H o r k h e i m e r , M a x , 1 7 8 - 8 1 , 184 M a r in h o , R o b e r to , 3 0 , 241
H u m m e l, M a rc o s , 2 3 8 -9 M a r x .K a r l, 179 S a in l-J u s t, L o u is A n to in e L é o n , 170 Z e ro K ilô m e tr o , 6 5
H u s s e i n , S a d d a m , 1 4 3 , 147 M a ta ra z z o , f a m ília , 78
H u s t l e r , 151 M c A d a m s , K a th e rin e C a r lto n , 9 6
M e d e iro s L im a , 8 4
M e ir a d o N a s c im e n to , M ilto n , 1 6 8 -9
I s a a c s o n , W a l te r , 1 2 0 - 4 , 1 2 6
M e r c ie r, L o u is -S e b a s tie n , 168
M e y e r, P h ilip , 12, 1 4 ,9 6
J o h n s o n , P a u l. 1 2 9 -3 1 , 1 3 7 , 1 4 5 , 15 0 , M iè g e , B e r n a r d , 194
159 6 1 . 1 6 5 -6 , 1 7 6 , 1 7 8 , 185 M ills , C . W „ 1 7 1 -2

248 249
o jornalista Eugênio Bucci convoca o
leitor — e, especialmente, os atuais
e futuros jornalistas para uma re­
flexão salutar e imprescindível numa
sociedade ainda em processo de con­
solidação democrática.

Ia e d iç ã o [2 0 0 0 ] 2 re im p re s s õ e s
2 a e d iç ã o [ 2 0 0 4 ] 2 r e i m p r e s s õ e s

ESTA OBRA FOI COMPOSTA PELO GRUPO DE CRIAÇÃO EM TIMES,


TEVE SEUS FILMES GERADOS PELO BUREAU 34 E FOI IMPRESSA PELA
RR DONNELLEY EM OFSETE SOBRE PAPEL PÓLEN SOFT DA SUZANO
PAPEL E CELULOSE PARA A EDITORA SCHWARCZ EM JUNHO DE 2008

Eugênio Bucci nasceu em Orlân-


dia, São Paulo, em 1958. E formado
em direito e jornalismo pela Univer­
sidade de São Paulo. Foi editor da re­
vista Teoria e debate, diretor de reda­
ção das revistas Set, Superinteressante
e Quatro Rodas e secretário editorial
da Editora Abril. Foi articulista da
Folha de S. Paulo e colunista de 0 Estado
de S. Paulo, Jornal do Brasil e Veja. Em
2003, assumiu a presidência da Ra-
diobrás. E autor de Brasil em tempo de
TV (Boitempo Editorial, 1996), entre
outros livros.
C on seq u ên cia d o m o n o p ó lio dos m eios
de co m u n icaç ão , da p ressa in e re n te ao j o r ­
n alism o , da b rig a a c irra d a e d iá ria p e la n o ­
tícia exclusiva ou da g u e rra p ela au d iên cia ,
o fato é q u e os jo rn a lista s e seus p a trõ e s
m u itas vezes se afastam da c o n d u ta ética e
o fe re c e m ao p ú b lico u m a in fo rm a ç ã o de
m á q u alid ad e. E m Sobre ética e imprensa, o
jo rn a lis ta E u g ên io B ucci ex am in a o p r o ­
b le m a d e vário s ân g u lo s, n u m te x to v o lta ­
d o p a ra o le ito r c o m u m , q u e é o m a io r
in te re ssa d o n u m a im p re n s a de c re d ib ili­
d ad e. N e ste m o m e n to em q u e a lógica do
e sp e tá c u lo e d o e n tre te n im e n to c o n ta m i­
na os v eícu lo s jo rn a lís tic o s , em q u e as m e -
gafusões d e e m p re sa s d e c o m u n icaç ão a u ­
m e n ta m c o m o n u n c a o p o d e r da m íd ia em
to d o o m u n d o , Sobre ética e imprensa tra z
u m a re fle x ã o de p rim e ira n ece ssid a d e.

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