Posfácio
Sobre Máquinas e Docentes
MARIAN ÁVILA DE LIMA DIAS
Vês aqui a grande máquina do mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assim foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Camões, Os Lusíadas, canto X
São várias as passagens impactantes do livro de Marcelo Tomassini; o panorama
composto por diversas camadas do mal-estar a que estão submetidos os professores da
rede estadual de São Paulo vai se descortinando a cada capítulo com maestria. A trama
forma-se, sobretudo, a partir dos depoimentos contundentes dos quais ele se torna
testemunha, com sua escuta atenta e acolhedora. Destaco uma, dentre várias falas
contundentes, em que um professor se refere à escola como uma “máquina de moer
gente”.
O caráter maquínico das forças que movimentam o mundo é uma tópica antiga. A
palavra grega da qual deriva é mékhané, que pode significar invenção e engenho. É uma
palavra ligada tanto ao aspecto intelectual como artístico; na origem ela se referia a algo
que pode ser engendrado, maquinado, produzido com arte e astúcia; em outras palavras,
métis. A essa invenção astuciosa que é o mundo, Camões se refere em seu famoso canto
para exaltar não apenas a engenhosidade, mas, sobretudo, o artífice desta máquina: Deus.
Sendo o humano um ser do mundo, pode-se tanto compreendê-lo como parte dessa
engrenagem como ele mesmo pode passar a ser pensado como máquina; o corpo-máquina
de Descartes é um dos diversos momentos da história em que essa concepção aparece e
que se consolida na modernidade com a ideia de Homem-máquina.
Freud também faz uso da concepção mecanicista. No entanto, de uma forma
extremamente inovadora ele a utiliza para pensar forma, dinâmica e funções do
psiquismo. Mecanismos e aparelhos são expressões frequentes em seus escritos para
tentar dar contornos ao que se passa no inconsciente. Se há um paralelo entre a
conformação em camadas do aparelho psíquico e mundo externo, de um lado, e indivíduo
e forças sociais, de outro, Adorno (1974) evidencia que há na contemporaneidade um
desequilíbrio na ênfase dada a algumas dessas dimensões, indicando a desproporção
existente no choque entre o corpo do indivíduo e sua origem social, de um lado, e os
objetos e as forças da técnica, de outro o que muda sensivelmente o lugar destinado ao
maquínico. Estamos diante de um mundo em que o uso da técnica se dá sem que o aparato
sensorial dos indivíduos consiga dominar seus excessos, o que torna impeditiva qualquer
experiência; é por meio dos choques que o indivíduo “se dá conta de sua nulidade perante
a gigantesca máquina de todo o sistema” (Adorno, 1974, p.123). O fascínio e a submissão
às máquinas em nossa sociedade atingem seu ápice na descrição que o frankfurtiano faz
do tipo manipulador, que não apenas desloca seu amor para as coisas como também
compreende os próprios seres humanos como coisas, meros aparatos programáveis
destinados a servi-lo (Adorno, 1995).
A fusão homem-máquina, na sociedade de massas contemporânea, tem como
parâmetros a repetição automática e uniformizada das ações. Sob tal condição, até mesmo
o pensar reifica-se num processo automático. “Quanto mais a maquinaria do pensamento
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subjuga o que existe, tanto mais cegamente ela se contenta com essa reprodução”
(Horkheimer; Adorno, 1985, p.15) e as formas de expressão daquilo que passamos a
considerar como sendo o pensamento se dão por meio de uma razão instrumental, que por
sua vez reflete o modo de produção maquinal. Apesar desta imposição recair sobre todos
os indivíduos, aqueles que ocupam a posição de professores, pela própria natureza contida
na profissão e suas heranças arcaicas, se encontram diante de um conflito: seu ofício
baseia-se em uma impossibilidade e um não-saber, o que desestabiliza a diretriz
avassaladora de coisificação de tudo e de todos.
(...) Quando o desenvolvimento da máquina já se converteu
em desenvolvimento da maquinaria da dominação – de tal
sorte que as tendências técnica e social, entrelaçadas desde
sempre, convergem no apoderamento total dos homens
– os atrasados não representam meramente a inverdade.
(Horkheimer, Adorno, 1985, p. 19)
O atraso, o arcaísmo da profissão de professor supostamente “limitada” ao uso da fala
argumentativa e da demonstração na lousa, muitas vezes denunciado como um defeito a
ser corrigido com a adoção de técnicas cada vez mais protocolares e totalizantes como a
‘sala de aula invertida’, a ‘gameficação’ do ensino dentre outros modismos, pode ser na
verdade uma das últimas formas de resistência à adesão totalitária a esta racionalidade
estéril. A limitação à concepção de que o pensar se restringe à dimensão lógico formal à
qual professores estão sendo constrangidos a aderir, deixa de lado aspectos importantes
como a capacidade de fazer experiências intelectuais e, como já constatara Adorno
(1995), as propostas pedagógicas inovadoras ofertadas no último século têm se mostrado
avessas à imaginação, limitando-se à procedimentos que visam a mera adaptação, tanto
dos professores como daqueles que eles buscam formar, os estudantes. Tal processo de
adaptação é violento. Contudo, a violência não é percebida como tal, mas como algo
inexorável, resultando numa pedagogia da indiferença.
O intenso sofrimento narrado pelo professor Fernando, em que ele se percebe
como coisa a ser triturada para alimentar uma máquina, é um importante indício de que
ainda existem laços de Eros com a vida social. Assustado com o reconhecimento de que
nos tornamos meras carnes prontas para o abate, o jeito é fazer com as palavras
trocadilhos macabros. Mas, talvez, o que a expressão não evidencie é a questão do
artífice: se antes era possível identificar Deus como seu criador, se com Freud
consolidamos a ideia de que os seres humanos são simultaneamente criaturas maquínicas
e criadores das máquinas, no século 21 tal racionalidade tem nos levado a crer que as
máquinas que nos aniquilam parecem ser fruto do ‘sistema’, uma entidade abstrata para
a qual somos empurrados sem que existam culpados para tal estado de coisas. Ou seja; é
preciso estar atento para o fato de que as próprias propostas pedagógicas passaram a ser
engrenagens da “máquina de moer gente”.
Ao internalizar normas de funcionamento das máquinas e transformá- las em
imperativos próprios, em uma “eichmanização do sujeito” (Anders, 2023), atrofia-se a
imaginação, a consciência moral e, no limite, atrofia-se o que seria próprio do ser humano.
Reduzido a respostas automáticas a comandos, o ser humano emprega seu corpo, sua
força de trabalho para a mera autoconservação. Na profissão docente isso dá lugar a uma
nova vestimenta: somos ‘facilitadores’, ‘mediadores’, ‘instrutores’, tutores’; enfim, nos
tornamos “vendedores de conhecimentos”, como preconizou Adorno (1995).
Isso tudo leva a uma banalização do mal-estar. É sempre importante lembrar que
a “banalidade do mal”, expressão cunhada por Hannah Arendt (1999), refere-se a alguém
que zelosamente cumpre com seu trabalho sujo, alguém que internaliza a forma de
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operação das máquinas para executar com crueldade seu trabalho. Acostumados às
demandas quantitativas meramente burocráticas aplicadas diariamente – agora
evidenciadas pela imposição da SEDUC do uso pelos professores das plataformas em
sala de aula – a própria instituição escolar passa a produzir estratégias de adaptação e
padronização dos modos de ser e estar de professores e estudantes. Esta
institucionalização é também um traço da banalidade denunciada por Arendt, já que o
mal se encontra enraizado nos procedimentos e normas da instituição, no caso, a escolar.
Seu funcionamento parece tão total e autônomo que transmite a impressão de que
prescinde de seus agentes para operá-lo. No entanto, a banalização institucionalizada
desta forma destrutiva precisa moer o substrato de “gente” que ainda resta em alguns ao
entrarem na carreira docente, e é exatamente isso o que foi percebido pelo professor
Fernando. Sua percepção, embora dolorosa, ocorre porque ele consegue romper com o
aprisionamento imposto pela imagem preponderante na atualidade de que qualquer
trabalho é isolado e fragmentado. Ele consegue, por meio desta dor, enxergar o aparato
geral da educação em seu funcionamento mais complexo e situação técnico- totalitária à
qual esta conformação da ideia de trabalho tem conduzido (Anders, 2023).
Embora sob constante ataque, a lucidez da evocação feita pelo professor Fernando
indica que ainda resiste vida e imprevisibilidade no ofício docente. A “máquina de moer
gente” que ele descortina traz consigo sua antítese e por meio daquilo que ela não é, mas
pode vir a ser, pode-se convocar o maravilhamento daquela máquina do mundo
desenhada pelos antigos de modo a emergir suas facetas de invenção e engenho, de
conhecimento intelectual e artístico, resgatando no trabalho docente a sua dimensão
artesanal, capaz de imprimir um andamento do tempo distinto, de produzir uma memória
significativa naqueles que compartilham a sala de aula. O movimento de resistir contido
nesta possibilidade depende simultaneamente de um Eu singular, capaz de diferençar-se
da totalidade administrada e que se articule coletivamente, um Eu que faz uso da
metonímia como forma de tentar habitar este mal-estar sem sucumbir. E é a própria
resistência que ajuda a dar contornos mais definidos ao Eu e fortalece os laços com o
mundo ao redor. Em suma: em tempos de falência das formas de resistência coletiva
características da organização da classe trabalhadora, a linguagem permanece lançando
mensagens ao mar numa garrafa (Adorno,1996) conectando o indivíduo e a sociedade.
Referências
ADORNO, T. W. Filosofia da nova música. Trad. Magda França.
São Paulo: Perspectiva, 1974.
ADORNO, T.W. Educação e emancipação. Trad. Wolfgang Leo
Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
ADORNO, T.W. “Mensagens numa garrafa”. In: Zizek, S. (org.) O
mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
ANDERS, G. Nós, filhos de Eichmann. Trad. Felipe Catalani. São
Paulo: Ed. Elefante,2023.
ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém. Trad. José Rubens Siqueira.
Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras,
1999.
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HORKHEIMER, M.; ADORNO, T.W. Dialética do esclarecimento.
Trad. Guido Antônio de Almeida. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1985.