FINELLI, Leonardo Augusto Couto.
“O embrião dos métodos projetivos: a projeção em
Freud e no Psicodiagnóstico de Rorschach” Belo Horizonte: UFMG, Programa
de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, da Universidade Federal de Minas
Gerais, 2005.
4 – OS MÉTODOS PROJETIVOS
Realizada a exposição da noção de projeção na obra de Freud e a apresentação
da técnica de Rorschach, passo à compreensão dos métodos projetivos. Por este título
busco identificar toda uma metodologia da psicologia aplicada a uma série de
instrumentos e testes que lidam com a apreensão do funcionamento psíquico.
Explico brevemente um pouco da história das técnicas, situando-as
paralelamente aos testes objetivos – psicométricos – com seus próprios estatutos
específicos. Apresento sua função na contribuição para o reconhecimento e a reflexão
diferencial sobre as modalidades das organizações de normalidade ou patologia.
Demonstro a origem do termo “métodos projetivos”, e apresento algumas de
suas formas de apreciação.
Relaciono-os sob a influência da psicanálise, a partir da noção de aparelho
psíquico: como o lugar “mapeável” de um aparelho que torna compreensível o
funcionamento psíquico; da ambivalência interno/externo que se associa à idéia de
percepção; e da situação do teste projetivo que ora se aproxima da psicanálise ora se
distancia desta. O teste projetivo oferece certa liberdade ao indivíduo e ao mesmo tempo
funciona como uma “psicanálise condensada” com delimitações precisas e restritas de
atividades.
Em seguida discorro sobre a clínica projetiva com as noções de
percepção/projeção e percepção/apercepção, reconhecendo suas semelhanças e
particularidades onde procuro explicitar brevemente cada uma.
Concluo este capítulo com a apresentação da metodologia projetiva, um campo
que se distanciou de suas origens e adquiriu firmeza, características e estatutos próprios
como área distinta de saber.
4.1 – As técnicas projetivas na psicologia
O funcionamento mental humano, em sua complexidade, deve ser considerado
tomando-se um grande número de fatores independentes que só apresentam sentido em
uma determinada organização de sua dinâmica. A compreensão do indivíduo é
fragmentada se observada apenas pelo prisma das técnicas objetivas que consideram a
soma de diferentes fatores parciais e isolados.
MARQUES (1999) considera que as ciências naturais podem estabelecer e
valorizar procedimentos e medidas para os fenômenos que estudam, e que as ciências
humanas não têm a mesma facilidade em isolar e identificar os fenômenos. Claro que
estas podem medir tempos de reação, acuidade visual, memória, atenção, até mesmo
inteligência e personalidade, contudo, aceder ao conhecimento do sujeito psicológico é
ir além da apuração que as funções desse tipo podem permitir. Esta autora considera
ainda que uma das tarefas da psicologia é conhecer em profundidade, e na maior
verdade e realidade possíveis, cada indivíduo. O resultado final de tal tarefa, porém,
nunca será mais do que uma aproximação, quer pela maleabilidade, plasticidade e
mudança constante de seu objeto de estudo, quer pelas restrições e limitações impostas
pelas concepções teóricas e pelos instrumentos disponíveis.
No processo de intervenção psicológica, em uma lógica de avaliação, usamos
instrumentos que facilitam e auxiliam na tarefa de construção de conhecimento sobre e
com um sujeito. Considerando um olhar modificado do modelo objetivo, as técnicas
projetivas possibilitam uma aproximação diferenciada do indivíduo, o que permite
apreciá-lo, em sua complexidade, sob outros ângulos.
As técnicas projetivas apresentam uma origem dupla: vinculada ao método
experimental – inerente aos testes – e vinculada ao método clínico com raízes na
psicanálise. Enquadram-se como metodologias, que permitem ordenar os elementos
dispersos que as mesmas são capazes de recolher, embora a exclusiva aprendizagem das
técnicas não garanta a exploração correta do sujeito, caso estas não se apoiem em uma
teoria que ordene e signifique seus achados.
SILVA (1986) considera que somente a realidade clínica pode evidenciar as
incorreções do raciocínio teórico, desse modo, nas técnicas projetivas, o instrumento
não substitui o psicólogo, o que dá margem à subjetividade que aparece na apreciação
do sujeito durante a aplicação do instrumento e na síntese dos elementos apurados;
porém, a agudeza clínica substitui e compensa o rigor estatístico na medida em que o
resultado não é dado, mas interpretado.
Em uma perspectiva histórica, estas técnicas surgiram como um movimento de
protesto à ciência oficial, o behaviorismo. Não seguiam então ao modelo estritamente
psicométrico de sua época, distando deste em muitos aspectos quantitativos e
normativos, priorizando porém, aspectos qualitativos e de uma abordagem clínica,
dotados de procedimentos definidos em função de critérios que continham os maiores
elementos possíveis da realidade e verdade psicológica do sujeito. A principal distinção
entre os métodos projetivos e os objetivos psicométricos – como os testes de aptidão, de
eficiência, de interesses, e os inventários de personalidade – está na liberdade de
respostas que é dada ao sujeito, o que os coloca dentro das tendências da psicanálise,
sem a finalidade de classificar e comparar.
As técnicas projetivas não surgiram para explicar o método experimental, mas
como uma solução para o impasse objetividade-subjetividade no sentido de conciliar as
tendências experimentais e clínicas. Como coloca DIAS (1983, p. 28):
“o problema para um campo de saber não é dispor de um método e
técnica rigorosamente científico, mas verificar a adequabilidade da resposta
metodológica ao objeto estudado, pois não são os métodos que criam os
problemas, mas eles é que são criados para resolvê-los.”
Tais técnicas são fundamentadas em uma teoria da personalidade, contendo
princípios metodológicos que analisam um grande número de fatores independentes que
não podem ser organizados objetivamente, mas devem ser compreendidos dentro de um
contexto clínico e dinâmico. Seu objetivo está para além de um diagnóstico
fundamentado em quadros nosográficos. Tende a um diagnóstico que, não esquecendo a
nosografia do quadro, busca também englobar as singularidades do sujeito,
estabelecendo critérios e procedimentos de análise em psicologia clínica que nos
revelem, ao mesmo tempo, a complexidade, multiplicidade e singularidade do
funcionamento mental e as capacidades e recursos de relação, ligação, transformação e
crescimento do indivíduo (MARQUES, 1999).
Os termos “teste” e “técnica” são utilizados para definir algumas das provas de
personalidade, que foram, e ainda são, muito questionados. No sentido psicométrico,
esses termos não deveriam se aplicar às provas, pois as mesmas careciam de um método
objetivo e de resultados objetiváveis das ciências exatas. Ainda assim, não é possível
negar que as mesmas contivessem um método próprio – mesmo que diferente dos da
psicometria –, que possibilitava um conhecimento clínico da pessoa e que acabava por
compensar seu menor rigor estatístico. Nesse sentido os termos “teste” ou “técnica” se
mostravam válidos para tais instrumentos.
Posteriormente, de modo a se manterem atualizados e satisfazer as demandas
metodológicas que definem os testes psicológicos, esses mesmos instrumentos também
são submetidos aos rigores de pesquisas quantitativas percorrendo os procedimentos de
análise mais habituais, estabelecidos em função de critérios externos e da comparação
com grupos de referência, normativos e/ou psicopatológicos. Além disso, o material e a
situação de aplicação foram estandardizados para que se tornassem iguais para todos os
sujeitos. Assim tornaram-se adequados e supriram as demandas e questionamentos da
psicometria.
Houve então a necessidade da caracterização de instrumentos sensíveis aos
movimentos e aos processos que levam à expressão das respostas dadas, de modo a
assinalá-las como recursos às concepções teóricas que lhe dêem corpo. Assimilado aos
processos que ocorrem na formação de símbolos e nos processos de pensamento o
Psicodiagnóstico de Rorschach, além de ser um instrumento usado para a categorização
e para o diagnóstico, tornou-se também, sensível aos movimentos e aos processos que
conduzem à expressão mais profunda e singular que se traduzem na maior marca da
“verdade” psicológica do sujeito – que é co-construída com o examinador (MARQUES,
1999).
Sua função, como a das demais técnicas projetivas, é contribuir para a reflexão
diferencial sobre as modalidades das organizações de normalidade ou patologia mental
(LELÉ, [s.d.]), reconhecendo que, nas ciências existem sempre progressos qualitativos
quanto a observação e manipulação do objeto de estudo, que buscam a explicação do
fenômeno recorrendo a instrumentos como recursos cada vez mais refinados e
adequados.
O Rorschach apresenta os critérios de validade fundados no modelo
psicométrico, assim como nos critérios clínicos, quantitativos, compreensivos e
interpretativos, que foram influenciados pela psicanálise, sendo então reconhecido como
instrumento de alto rigor e teor de compreensão do sujeito.
4.2 – Etiologia
O termo “Métodos Projetivos” foi criado por L. K. Frank em 1939 (apud
ANZIEU, 1979), quando publicou no Journal of Psychology, um artigo intitulado “Os
métodos projetivos para o estudo da personalidade”1.
Sua introdução foi uma analogia para explicar a conexão entre três técnicas de
exame psicológico, a saber, o Teste de Associação de Palavras, de Jung, publicado em
1904; o Teste de manchas de tinta, ou mais precisamente, Psicodiagnóstico, de
Hermann Rorschach, de 1921; e o TAT (Teste de Apercepção Temática) de Henry
Murray, de 1935.
“Frank mostrava que tais técnicas formam o protótipo de uma
investigação dinâmica e „holística‟ (global) da personalidade, isto é, abordando-
se a personalidade como uma estrutura em evolução, cujos elementos
constitutivos se encontram em interação: modo de investigação da ciência
moderna, ao estudar a natureza, assim como a do homem. (...) Com efeito, os
testes projetivos procuravam ser os mais valiosos instrumentos do método
clínico, em psicologia e a uma das mais fecundas aplicações práticas das
concepções teóricas da psicologia dinâmica.” (ANZIEU, 1979, p. 15)
Embora o termo método projetivo, introduzido por Frank remeta diretamente ao
mecanismo de defesa da projeção proposto por Freud – apesar de apresentar a sua
origem anterior a esse –, o termo projeção expandiu-se pela psicologia, tomando novas
conotações. A maior parte dos sentidos encontrados para o termo são cabíveis no
modelo proposto por Frank e dão origem a uma teoria da Psicologia Projetiva, ou como
também pode ser encontrado, Metodologia Projetiva.
Lançando mão a um dicionário, como o “Novo dicionário da língua portuguesa”
de FERREIRA (1986), é possível perceber que o termo projeção acumula vários sentidos
que vão desde o ato de projetar, atirar para longe; proeminência, saliência; passando por
conotações das ciências exatas, como representação de uma superfície num plano e
operação que transforma uma configuração em outra mediante retas sujeitas a
condições; financeiro, referente a especulação de importâncias e valores de
investimentos; da arte, com a apresentação de imagens fotográficas numa tela com o
auxílio de um projetor; cartográficos; até o psicológico como mecanismo de defesa com
1
Projective methods for the study of personality, reproduzido em MURSTEIN, B. I. Handbook of
projective techniques, New York: Basic Books, 1965. p. 1-22.
a projeção dos impulsos e conflitos internos em outrem ou mais generalizadamente no
mundo externo.
Desses, o sentido denotando a ação física, do lançamento, de arremesso para
longe, foi apropriado por Freud, metaforicamente, no mecanismo da paranóia, que
consiste em expulsar da consciência, atribuindo à outra pessoa, os sentimentos
repreensíveis. Nesse raciocínio, os testes projetivos favorecem a descarga de tudo aquilo
que o sujeito se recusa a ser ou que reconhece em si como mau, ou vulnerável, e desta
forma projeta o que ele é, sobre e a partir dos estímulos ambíguos. Aqui os testes
projetivos operam como uma psicanálise condensada, colocando o sujeito à prova.
O sentido da geometria projetiva, que estabelece correspondência entre um
ponto (ou conjunto de pontos) do espaço e um ponto (ou conjunto de pontos) de uma
reta ou de uma superfície, transmite a noção de “propriedade projetiva”, em que as
propriedades de uma figura são conservadas em qualquer projeção plana da mesma
figura. Essa noção é usada por arquitetos em construções; cartógrafos na confecção de
mapas; e também neurologistas, para sinalizar a correspondência estrutural entre uma
área cerebral e uma função sensorial ou motora. Os testes projetivos, também se valem
da noção de propriedade projetiva, e assim, propiciam a produção de protocolos que
correspondem à estrutura da personalidade projetada; há uma correspondência estrutural
entre o sistema de conduta de cada um, que é estável no tempo – personalidade –, e as
produções de associações individuais que preenchem a situação desestruturada do teste.
Esse sentido fundamenta o rigor científico dos testes projetivos.
No sentido físico da ótica, a projeção luminosa que parte de um foco, envia raios
ou radiações sobre uma superfície; da sua aplicação deriva o teatro de sombras, a
projeção fixa de uma imagem sobre uma tela (como a de um retroprojetor ou de um
projetor de slides), e o cinema. Esse sentido foi transposto para a psicofisiologia (por
exemplo, as sensações auditivas são localizadas pelo indivíduo como sentidas em nível
do aparelho receptor, são por assim dizer, “projetadas” sobre os ouvidos) e para a
psicanálise (o animismo, a superstição, o mito, são percebidos como estados afetivos
internos que são projetados no mundo externo; como demonstrei no capítulo 2, FREUD
apropria-se desse sentido da projeção em 1912-1913, na obra “Totem e tabu”). Os testes
projetivos, nesse sentido seriam como o facho que emite a luminosidade que atravessa o
interior da personalidade do sujeito, projetando a imagem de seu núcleo secreto sobre o
protocolo facilitando assim sua interpretação (agem como a imagem do cinema, a
luminosidade projeta o núcleo aumentado sobre a tela, ao mesmo tempo em que agem
como o raio-X que atravessa o sujeito possibilitando a percepção de seu interior). Nesse
sentido, os testes projetivos atuam como veículo das representações arcaicas da imagem
corporal (quando o interno se opõe ao externo, o escondido à superfície) que marcam a
formação da personalidade e cujo despertar mobiliza medos profundos (e que os
opositores de tais técnicas, infundadamente, denigrem as mesmas ao propor-lhes a
possibilidade de violar a personalidade de outrem, ou apropriar-se de sua vida interior).
ANZIEU (1979) afirma que Frank comparava o TAT à análise espectral em física
(ondas de rádio) e à radiografia através dos raios X em anatomopatologia (ciência que
estuda as estruturas do organismo alteradas por processos patológicos).
Dessa mesma maneira LELÉ [s.d.] compara, como Frank, o Psicodiagnóstico de
Rorschach ao exame de sangue em biologia (que reconhece marcas das doenças como
sífilis, hepatite B, etc.), isto é, as marcas das enfermidades sempre estarão presentes no
sangue mesmo na ausência de seus respectivos sintomas. Da mesma maneira, as marcas
da personalidade aparecem no protocolo mesmo em sujeitos livres de sintomas
patológicos.
A psicologia projetiva, além do referencial da psicanálise, partilha também, das
idéias da Gestalttheorie (teoria da Gestalt), da psicologia da forma, ampliando-a porém,
ao ultrapassar as condições externas da percepção.
Trabalha com a análise do material ambíguo, o que possibilita sua decomposição
em possibilidades de interpretação que são, ao mesmo tempo, livres e sistematizadas, o
que constituí uma maneira de abordar os processos da constituição do indivíduo, que diz
respeito às relações do ser humano com os outros e com o seu mundo vivenciado.
As técnicas projetivas destacam-se como métodos de avaliação da
personalidade, com instrumentos que possibilitam uma apreensão profunda de
conteúdos dos quais nem sempre o sujeito tem consciência (LELÉ, [s.d.]) e assim,
buscam conhecer a pessoa em seus aspectos mais profundos e não aparentes.
Cabe aqui definir, brevemente, as diferenças entre métodos e técnicas. Em sua
acepção etimológica, método quer dizer caminho. NOBRE DE MELO (1970, p. 50) coloca
que o método “é o caminho que o espírito percorre para chegar a um fim. Ou talvez
mais claramente, a direção que se imprime ao pensamento, no exercício de uma
atividade refletida e ordenada, para obtenção de um dado do conhecimento”. Comenta
ainda que, as técnicas são artifícios utilizados para a apreensão, descoberta e
demonstração da verdade.
Temos então a metodologia projetiva como o caminho que ordena e busca o
conhecimento por meio das várias técnicas – no caso os testes – que são seus
instrumentos, ou ferramentas, dessa busca.
4.3 – As formas de projeção nas técnicas
O processo resposta-Rorschach é formulado através da relação entre as
características objetivas do estímulo, as características psicológicas do sujeito e do
contexto em que o protocolo é produzido, considerando as ligações e as transformações
possíveis e expressas na relação entre o sujeito e a situação projetiva.
A construção no Rorschach possibilita o acesso à natureza do objeto interno
(com suas características de ligações e transformações) assim como às ligações e
transformações nas relações com o objeto externo.
Ombredane (apud ANZIEU, 1979) distinguiu, em 1952, diversas formas de
projeção atuantes nos testes projetivos:
a) Projeção especular, em que o indivíduo reencontra características, que
pretende serem suas, na imagem de outro. Propõe que a origem desse tipo de projeção
está no estágio do espelho, de indistinção primitiva da imagem de si e da imagem do
outro, em síntese, do narcisismo. Processa-se no modo indicativo (por exemplo, uma
criança aleijada, durante uma prova de desenho livre, faz um corpo humano atrofiado),
ou optativo (por exemplo, uma órfã criada por uma tia rabugenta, descreve uma cena de
ternura entre mãe e filhos, em um teste projetivo).
b) Projeção catártica, em que o indivíduo atribui à imagem do outro não mais as
suas características, ou as que desejaria fossem suas, mas as que erradamente pretende
não ter, ou recusa considerar como suas e das quais se livra (catarse), deslocando-as
para outro ou para o mundo exterior. É a que constitui o mecanismo do delírio
paranóico. Por exemplo, uma pessoa moralmente rígida vê cenas de violência crua, nas
imagens imprecisas de um teste projetivo.
c) Projeção complementar (proposta por Allport), em que a pessoa atribui aos
outros sentimentos e atitudes que justifiquem as suas. Assim, um jovem de conduta pré-
delinqüente, descreve personagens severos e injustos porque tem necessidade de
vivenciar as outras pessoas como injustas para com ele, o quê justifica sua delinqüência
como reação ao mundo ameaçador.
4.4 – A influência da psicanálise nas técnicas projetivas
A influência da psicanálise inicia-se a partir da noção da associação de idéias
como uma função mental geral que busca as leis de funcionamento impessoal. A partir
da proposição de Freud das “associações livres” e do teste de Jung – Teste de
Associação de Palavras – as associações do sujeito passam a ser interpretadas como
reveladoras de suas tendências e seus conflitos. Rorschach, distanciando-se de seus
contemporâneos, ao invés de buscar o estudo da imaginação, a partir da interpretação de
manchas fortuitas de tinta, percebeu que a organização da personalidade é estruturada e
pode ser investigada por esse método (associação de idéias).
Bleuler, em seu prefácio à publicação do Teste de Associação de Palavras, de
Carl G. Jung, descreve a metodologia projetiva, em sua generalidade, propondo que na
atividade associativa há o reflexo de todo o psiquismo passado e presente, com suas
experiências e tendências. Dessa forma essa atividade é um índice de todos os processos
psíquicos, que cabe ao psicólogo decifrar para conhecer o indivíduo em sua completude.
RAPAPORT (1971) recorre à organização dinâmica da memória; à ação das
motivações e repressões sobre a recordação (com suas distorções e esquecimentos); à
força do ego que possibilita ao indivíduo a manutenção da atitude exigida pelas
instruções do teste; e aos mecanismos de antecipação e formação de conceitos (quando
a organização conceitual pode ligar-se à neutralidade afetiva), para propor uma teoria,
mais específica, da projeção.
Ressalta, que toda a atividade do indivíduo traz a marca reflexa de sua
individualidade e suas características de adaptação, já que todo indivíduo vive em um
mundo único. Esse mundo interno (inconsciente) pode ser deduzido de sua conduta a
partir das classes de projeção múltiplas e hierarquizadas (podendo ser receptáculos de
defesa projetiva) que são captadas e clarificadas (decodificadas) pelas técnicas
projetivas.
ANZIEU (1979) sugere que uma fonte histórica adicional dos testes projetivos é
encontrada na experiência do desenho. Utilizado por psicanalistas, entre 1920 e 1930,
no atendimento a crianças, o desenho livre serviu como instrumento de associação livre
em substituição à expressão verbal. Nesta mesma época, pedagogos buscaram expandir
a personalidade das crianças, valendo-se de técnicas ativas de desenhos e relatos livres,
que demonstraram possuir um significado simbólico que pode ser tomado como análogo
ao dos sonhos. Apesar desse reconhecimento precoce, somente em 1935, Murray,
estrutura o TAT (Teste de Apercepção Temática) que faz a análise do relato livre; e em
1949 surgem os primeiros testes projetivos, empregando o desenho livre que são o teste
da árvore, de Koch, na Suíça, e o teste do desenho da figura humana, de Machover, nos
Estados Unidos.
4.4.1 – A noção de aparelho psíquico
A noção de aparelho psíquico perpassa a obra de Freud, sendo introduzida em
“A interpretação dos sonhos” (FREUD, 1900). Freud define o aparelho psíquico,
dividindo-o e atribuindo cada função particular a uma parte constitutiva do aparelho, de
modo a tornar compreensível o funcionamento psíquico. O aparelho psíquico possui a
capacidade de transmitir e transformar uma energia em sistemas e instâncias
(LAPLANCHE, 2001). É a partir da noção de aparelho psíquico, em sua explicação do
funcionamento psíquico, que Freud estrutura, posteriormente, e mantém a preocupação
de revisão constante da metapsicologia (que se justifica a partir do modelo fictício de
um aparelho psíquico).
No plano metapsicológico, a projeção encontra sua base fundamental na teoria
das pulsões. O organismo é submetido a duas espécies de excitação: aquelas das quais
ele pode proteger-se pela fuga; e aquelas em relação as quais ele não pode fazer nada.
Em todo caso, isso ocorre no início da vida, antes que se estabeleça o sistema de para-
excitação. Essa distinção permite uma primeira diferenciação entre interno e externo. A
projeção oferece um recurso defensivo em relação às excitações internas, colocando no
exterior as excitações desagradáveis e evitando-as como qualquer perigo exterior.
Retomando a hipótese de Fechner sobre a diferença da vida da representação
acordada e a cena que se move em sonhos, FREUD (1900) estabelece a noção essencial
de lugar psíquico que é um desvio da idéia de localização anatômica. A partir da
metáfora do modelo ótico Freud constrói a representação de um aparelho psíquico como
um instrumento em que as partes são chamadas de instâncias ou sistemas.
Diferentemente do sistema ótico, não há necessidade da hipótese de que esses sistemas
psíquicos realmente se disponham numa ordem espacial, basta que uma ordem fixa seja
estabelecida a partir de um determinado processo psíquico que mobilize a excitação a
atravessar os sistemas numa dada seqüência temporal. O aparelho constituído desses
diferentes sistemas se modifica constantemente, partindo de estímulos internos ou
externos e terminando em inervações. Desse modo o aparelho apresenta duas
extremidades: uma sensorial (que recebe as percepções) e uma motora (que abre as
portas à atividade motora) em que os processos psíquicos se modificam na direção da
extremidade sensitiva em direção a extremidade motora (FREUD, 1900).
O primeiro modelo do aparelho psíquico é constituído sobre o aparelho reflexo.
Nesse tempo, no interior dos sistemas, diferenciações devem ser introduzidas levando
em conta as funções que lhe são atribuídas (CHABERT, 2004).
As percepções deixam traços que são conservados pela memória; assim é
necessário considerar a existência de dois sistemas: um perceptivo, que não retém, mas
que dá à consciência variedade de qualidades sensíveis; e outro, inconsciente, que
conserva traços mnêmicos graças às lembranças que testemunham as qualidades
sensíveis. Ambos asseguram tarefas diferentes em que “a memória e a qualidade que
caracteriza a consciência são mutuamente exclusivas” (FREUD, 1900).
Freud coloca que a passagem de um sistema ao outro é possível, mas se faz por
meio das censuras que exercem controle e reforçam o aspecto espacial da teoria do
aparelho psíquico (a noção de exterioridade das partes e a especialização funcional de
cada uma são implicadas em outras imagens – antecâmara, fronteiras entre os sistemas –
também utilizadas por esse autor).
A noção de um aparelho psíquico está presente no estudo que aborda o
funcionamento mental. Esse é atualizado no tratamento psicanalítico por meio da
emergência e da dinâmica da transferência. Ao mesmo tempo, o funcionamento
psíquico é compreendido a partir dos dados projetivos se se admitir que a compreensão
adquirida, na situação da avaliação projetiva, mobiliza condutas psíquicas individuais,
passíveis de serem interpretadas a partir do modelo freudiano do aparelho psíquico
(CHABERT, 2004).
O ponto de vista tópico possibilita a estruturação e análise dos dados, já que o
enunciado das instruções dos instrumentos projetivos, convoca o sistema
consciente/pré-consciente/inconsciente, a associar a partir de estímulos visuais
(externos) e imagens sustentadas por representações inconscientes (internas); ao passo
que o sistema Ego/Id/Superego apreende o conflito intrapsíquico, em termos de desejos
e defesas.
O ponto de vista dinâmico fornece elementos à análise dos protocolos
articulando conflito psíquico aos movimentos de desdobramentos associativos que
surgem durante a aplicação da prova projetiva.
O ponto de vista econômico considera a intensidade de excitações (desenfreada,
transbordante) que emergem como forças mobilizadoras do tratamento e que são
localizáveis apenas devido à especificidade dos mecanismos de defesa utilizados para
integrá-lo ao processo associativo (idem, 2004).
4.4.2 – A ambivalência interno/externo
A percepção, na perspectiva psicanalítica insere-se no sistema percepção-
consciência que é situado na periferia do aparelho psíquico e recebe informações do
mundo exterior e interior ao mesmo tempo – se a considerarmos do ponto de vista
tópico. Do ponto de vista econômico, as informações provenientes da percepção, se
inscrevem em termos da dialética prazer/desprazer. Esse funcionamento é regido por
dois princípios: na assimilação da consciência à percepção – na sua capacidade de
receber qualidades sensíveis –; e um outro sistema – que deve ser autônomo em relação
ao psiquismo – que é regido pelo funcionamento quantitativo.
No “Projeto para uma psicologia científica”, FREUD (1895-b) já havia reunido
em um único sistema a ligação entre consciência e percepção. O sistema percepção-
consciência, do ponto de vista funcional, opõe-se aos sistemas de traços mnésicos
(inconsciente e o pré-consciente), não guardando nenhum vestígio durável das
excitações. Do ponto de vista econômico, o sistema percepção-consciência, apresenta
uma energia livremente móvel, capaz de se apegar e investir a este ou àquele elemento.
Este sistema (percepção-consciência) representa, ainda, uma função essencial na
regulação dos dois princípios do funcionamento (princípio do prazer e princípio da
realidade).
A noção de ambivalência – a partir da proposição introduzida por Bleuler – é
retomada por FREUD (1915), no “Os instintos e suas vicissitudes”2, quando lida com o
2
Na revisão mais atual das “Obras Completas” de Freud esse texto de 1915 aparece sob o título de
“Pulsões e destino das pulsões”, e já apareceu, em outras revisões, também como “Pulsões e suas
vicissitudes”.
desenvolvimento dos instintos, ou como é visto nas revisões mais recentes de sua obra,
pulsões.
A idéia da percepção sugere que o sujeito é submetido a excitações, em termos
de representações e afetos, que vêm de fora – da realidade externa –, mas também que
vêm de dentro – realidade interna – e assim lida com a ambivalência interno/externo.
Segundo CHABERT (2004, p. 32) “o sujeito se constrói e se desenvolve por meio das
reservas de trocas com seu ambiente relacional, mas também com ele mesmo e seu
mundo interior.”
4.4.3 – A situação do teste projetivo
A situação de aplicação de teste projetivo assemelha-se à psicanálise,
apresentando assim semelhanças e diferenças em relação à situação psicanalítica. O
cliente, em processo de análise, é convidado a falar livremente, a comunicar idéias,
impressões, sentimentos, à medida que esses vão se apresentando à sua consciência.
Não há tema desencadeante, e nenhuma diretriz lhe é dada previamente por seu analista.
Sua única limitação é o tempo definido das sessões, mas por outro lado o número dessas
não pode ser fixado previamente – sob o risco de comprometer a técnica como propõe
FREUD (1913) em “Sobre o início do tratamento”.
Aquele que se submete a um teste projetivo encontra-se em situação de liberdade
semelhante. Na avaliação há a introdução de um material prévio e de um inquérito (que
no Psicodiagnóstico de Rorschach ocorre posteriormente à tomada do protocolo; em
outras técnicas projetivas o inquérito pode ocorrer simultaneamente à apresentação das
respostas). O sujeito testado é livre para responder, ou fazer o que quiser
(diferentemente de um teste de aptidão, cujo material tem uma estrutura latente de
natureza cognitiva a ser descoberta pelo sujeito, havendo uma – e geralmente apenas
uma – boa resposta ou resposta correta). Não há respostas predeterminadas que são
classificadas como boas ou más; adequadas ou inadequadas; enfim, corretas ou
incorretas. A boa reposta é aquela primeira idéia que ocorre ao examinando. Como na
psicanálise, vale aquilo que espontaneamente vem à consciência.
Como o teste projetivo dispõe de um número limitado de sessões – geralmente
uma (duas para o TAT) –, apesar do tempo de aplicação não ser limitado, este se
diferencia da psicanálise, o que remete a idéia daquele atuar como uma “psicanálise
condensada”. As “associações livres” do sujeito devem ser provocadas, daí a
necessidade de apresentar-lhe um material desencadeador de tais associações. As
instruções subordinam o sujeito à sua própria vontade: desenhar uma árvore, um
personagem, um item como quiser; organizar cartões coloridos ou peças de um jogo de
construção como quiser; escolher entre fotografias, as que lhe agradam e as que lhe
desagradam. Há também a necessidade de proceder a um inquérito ao termino do teste,
a fim de apreender a dinâmica psíquica pessoal que levou o indivíduo a fornecer as
respostas tais como acabou de o fazer.
ANZIEU (1979) propõe que diferentemente da situação psicanalítica as instruções
representam para o sujeito uma restrição. Ele é condenado a ser livre, isto é, a revelar-
se. Essa perspectiva mobiliza simultaneamente a angústia diante da emergência de
desejos internamente proibidos.
O caráter restritivo da situação é expresso na psicanálise por duas regras
fundamentais: a regra da não-omissão (o sujeito se engaja na tentativa de não triar
voluntariamente o material psíquico que lhe vem à mente); e a regra da abstinência
(engaja-se também na tentativa de declarar ao psicanalista seus desejos, sem procurar
realizá-los com ele). As duas regras acham-se implicadas na situação projetiva. Por
exemplo, no teste de Rorschach, as instruções pedem ao sujeito “para dizer tudo o que
se poderia ver” nas manchas de tinta – o que corresponde à regra da não-omissão; além
disso, o inquérito permite colher imediatamente as respostas que teriam ficado não-
formuladas durante o teste. A regra da abstinência permanece em geral subentendida: o
testando só pode fazer o que lhe é proposto – relatar (ou desenhar, ou construir, ou
organizar de acordo com a técnica) o que imagina, ou o que sente, e nada mais.
Caso o sujeito se afaste – abertamente pela manifestação de recusa – da situação
de teste, ele é trazido de volta a ela. O aplicador é frustrante; obriga o indivíduo a
desvelar seu desejo, mas recusa-se a tomar conta dele; adota a atitude de neutralidade
indulgente como o psicanalista. Estabelece-se entre o examinador e o examinando uma
relação transferencial mais ou menos manifesta e mais ou menos breve que, conforme
seja positiva ou negativa, estimula a produção do sujeito – ou a manifestação de seus
bloqueios – e subentende o conteúdo de certas respostas.
Em relação ao tratamento psicanalítico, as diferenças residem em alguns fatos.
Um deles é a presença do material proposto ao indivíduo constituir um anteparo entre o
testando e o aplicador. O sujeito revela, apenas indiretamente, seu desejo ao psicólogo;
fala-lhe por meio da sua elaboração do material apresentado.
Outro é baseado no desprendimento terapeuta-cliente, o testando está mais livre,
no referente à transferência, do que o cliente em análise: envolve-se rápido,
intensamente, mas por pouco tempo, o de algumas sessões até que se dê por encerrada a
sessão de devolução; assim, o sujeito sente-se mais seguro em poder se desligar, logo
que a prova termine.
Uma terceira diferença encontra-se na escuta do examinador e sua recusa em dar
seqüência ao tratamento. A não ser em casos excepcionais, quando o próprio
psicoterapeuta aplica um teste projetivo antes de iniciar a psicoterapia, o examinador
deixa implícito para o sujeito que não cuidará dele seguidamente, e isto introduz a
frustração de desejos despertados no indivíduo, por outro lado, possibilita a liberdade da
situação.
Por fim, uma outra diferença entre os métodos psicanalítico e projetivo está na
posição do cliente durante as sessões. Este em geral fica deitado, enquanto o testando
em geral fica sentado3. A regressão psíquica ligada à posição do corpo no espaço é,
assim, mais profunda na psicanálise. Essa diferença relativa ao espaço coloca uma
situação análoga à diferença relativa à duração: convida-se o testando para um rápido
mergulho no inconsciente, facilitando-lhe os meios de se refazer prontamente.
4.5 – A clínica projetiva: percepção – projeção
As interferências perceptivas e projetivas, formuladas por RAUSCH de
TRAUBENBERG (1998) constituem uma das articulações essenciais das provas projetivas.
Os testes projetivos, como objetos reais, em sua própria materialidade, solicitam a
emergência de discursos que levem em conta imagens e associações introduzidas a
partir de mecanismos perceptivos. O apelo à percepção – presente nas instruções das
provas – permite uma ancoragem ao “real”, que constitui o fundamento da inscrição no
meio ambiente.
Por outro lado, os testes projetivos também agem como objetos imaginários,
permitindo uma interpretação das percepções em função das preocupações essenciais do
sujeito, dos modos de ajustes de suas relações com seus objetos internos e externos,
3
Para a aplicação de um Rorschach ou um TAT, alguns psicólogos americanos fazem o examinando
estender-se em um sofá de relaxamento e sentam-se atrás dele.
representações e afetos que os traduzem. Graças à característica fortuita do material é
aberto todo um campo às associações pela indução da projeção.
A partir da solicitação da linguagem verbal – veículo das mensagens –, a
instrução – que faz um apelo aos mecanismos perceptivos e projetivos – incita o sujeito
a imaginar, a expressar o que pertence à sua realidade interna, a partir do material do
teste, isto é, em referência à realidade externa. O sujeito encontra-se, portanto,
confrontado a uma dupla exigência: mostrar até que ponto; e como ele se organiza; para
lidar ao mesmo tempo com seu mundo interno e o mundo externo (meio ambiente,
realidade), deixando lugar aberto ao possível, ao imaginário, aos fantasmas e afetos que
neles se ligam.
MARQUES (1999) propõe que ao se apresentar as instruções que dão início à
prova (no Rorschach, pedir ao sujeito que diga o que é que as manchas podem ser) tem
início a situação que ela chama de “situação catastrófica” devido ao seu caráter
desconhecido e disruptivo. Apresenta-se uma situação de violência, de subversão,
visando à estabilização do mundo psíquico, visando à coerência, à união, à integração.
As respostas Rorschach representam sempre os fatos que estão na sua origem –
situação projetiva nas suas múltiplas expressões – e o trabalho que o sujeito faz para
transformar esses fatos originais, valendo-se dos compromissos e das expressões a que o
mesmo acedeu.
MARQUES (1999) afirma ainda, que o sujeito ao ser confrontado com a situação
Rorschach, mobiliza a projeção em vários sentidos, diferentes, mas complementares,
que vão da deformação à coloração, do finito ao infinito. Assim, quando se confronta
com as manchas de configuração ambígua, com impressões sensoriais sem um
significado semântico preciso, surge nele a necessidade de converter essas impressões
sensoriais, a partir da percepção, em abstrações, em pensamentos utilizáveis e
comunicáveis, em palavras que são imagens e conceitos.
Esse confronto exige do examinando um trabalho de reunião, unificação
decorrente da relação com o objeto externo que suscita no sujeito a capacidade de
pensar. Ao transformar a impressão sensorial “percepcionada” em palavra, e quando
esta merece a designação de um símbolo, há a recriação do objeto (ou criação de um
novo objeto) tornando eminente a capacidade de situar, separar e ligar os objetos dentro
e/ou fora do eu.
O conteúdo dos protocolos fornecidos a partir do teste de Rorschach é
constituído por um material verbal. Nele dominam os substantivos de séries e imagens,
de clichês estáticos ou de cenas em movimento, evocados por meio da linguagem em
um sistema de palavras significantes. Evidencia assim, um trabalho de figuração que
permite passar da mancha de tinta para uma representação, não somente perceptível,
mas identificada a um objeto (CHABERT, 2004).
Shentoub (apud, CHABERT, 2004, p. 67) afirma que “construir uma história no
TAT é mais um ato de organização do que um ato de imaginação. A análise dessa
organização retoma o „testar‟ da autonomia relativa do ego, de sua função de síntese e
de integração.”. É possível pensar, como Shentoub, que da mesma maneira a resposta-
Rorschach é uma organização do conteúdo interno do examinando que é projetado sobre
o objeto externo da mancha imprecisa de tinta. Esta age como um objeto de percepção
“evocador” da projeção.
4.6 – Percepção – apercepção
RORSCHACH (1978) toma sua obra como uma prova de percepção, percebendo
que a intuição de formas fortuitas ultrapassa a noção de imaginação e se refere ao
conceito de percepção e de idéia.
Retoma as idéias de BLEULER (1916), de que as percepções têm sua origem nas
sensações, ou grupos de sensações, que ressaltam as imagens-recordações de antigos
grupos de sensações, de tal modo que despertam no indivíduo um complexo de
lembranças ligadas às experiências anteriores. Na percepção há, então, três processos:
os de sensações, os de evocações e os de associações. Quando há a identificação de um
complexo de sensações com suas conexões surge a idéia.
Reconhecer e identificar objetos, ou manchas, pressupõe um processo de
assimilação associativa dos traços definitivamente impressos na psiquê por uma
experiência física individual passada – engrama – com os quadros de sensações de que o
sujeito que interpreta dispõe. É a partir das sensações que se organizam imagens e se
chega à idéia, com base na experiência que lhe atribuiu sentido, a partir da associação
com os quadros de sensações disponíveis.
A percepção está intimamente ligada à noção de interpretação. É a partir da
associação que a interpretação se torna uma forma específica de percepção.
O sentido do conceito de percepção ligado à noção de interpretação aproxima-se
do conceito de apercepção de Johann Friedrich Herbart. BELLAK (1954), retoma o
conceito de apercepção considerando-o como uma atividade mental pela qual uma nova
experiência é assimilada; esta por sua vez é transformada pelo resíduo da experiência
passada do indivíduo, para formar uma nova totalidade. O resíduo da experiência
passada é chamado de “massa aperceptiva” (LELÉ, 2002).
Podemos tomar a apercepção como uma interpretação, significativa
dinamicamente, que um indivíduo faz de uma percepção. Ela descreve um continuo que
parte da projeção (como mecanismo de defesa), vai para a projeção simples (como
sensibilização para perceber certos objetos em virtudes de carências do indivíduo, como
externalização manifestada quando o sujeito reconhece sua vivência), até chegar à
percepção pura (que leva à conduta adaptativa) (SILVA, 1986).
A noção de percepção está ligada à noção empirista de mobilização de processos
cognitivos, enquanto que a apercepção está mais próxima de uma psicanálise aplicada,
em que apercepção e projeção justificam a ação do inconsciente e a existência do
conflito-angústia.
Nesta concepção as técnicas projetivas permitem revelar mais do sujeito que
percebe do que do objeto que é percebido. “O trabalho de assimilação entre o complexo
de sensações e o engrama é tão grande que por esta razão será percebido
intrapsiquicamente (...) [o que] dá à percepção o caráter de interpretação” (RORSCHACH,
1978, p. 17).
Rorschach identifica um grande número de indivíduos (a maioria dos doentes
mentais, epilépticos, maníacos, débeis e alguns sujeitos normais) que não reconhecem o
trabalho de assimilação por definirem as imagens (e não as interpretar). Em tais casos
fala-se de uma percepção simples, e não de uma interpretação, pois o trabalho de
assimilação associativa está fora do alcance dos sujeitos. Reconhece então, que deve
haver um limiar a partir do qual a percepção simples (assimilação sem consciência de
tal trabalho) se transforme em interpretação (assimilação consciente).
LELÉ (2002) afirma que os trabalhos que se apoiam nos conceitos que
argumentam que as percepções são interpretações, foram inspirados nos conceitos sobre
a projeção que são usados em diferentes sentidos e sustentados pelas concepções e
modelos que advêm da psicanálise.
A partir da revisão bibliográfica pode-se constatar que o Psicodiagnóstico de
Rorschach sofreu evoluções e expandiu-se amplamente na Europa e nos Estados
Unidos. Contudo, devido à ausência de um único modelo sistematizador, os
procedimentos de aplicação, de cotação e interpretação desse instrumento modificaram-
se e evoluíram em vários métodos, sistemas, correntes ou escolas4. Atualmente, as duas
correntes ou escolas mais conhecidas e divergentes são: a corrente estadunidense (que
se preocupa com o reconhecimento como um teste psicológico) e a corrente francesa
(cujo interesse volta-se aos mecanismos projetivos envolvidos no processo da resposta
ao Rorschach).
No modelo da corrente francesa, Roy Schafer (apud RAUSCH de TRAUBENBERG,
1998) discorre sobre um “continuum psíquico”, de movimentos no interior do teste de
Rorschach, que vão do sonho à percepção realista. RAUSCH de TRAUBENBERG (1981)
afirma que o Psicodiagnóstico de Rorschach deve ser considerado como “um espaço de
interações entre a atividade perceptiva e a atividade fantasmática”, ou seja, um espaço
que solicita, ao mesmo tempo, mecanismos perceptivos e projetivos (LELÉ, 2002).
EXNER (1999) e WEINER (2000), da escola estadunidense, afirmam que não é
porque o Psicodiagnóstico de Rorschach é um “método projetivo” que os dados
proporcionados por ele sejam de natureza exclusivamente projetiva. Para eles há outros
fatores de personalidade que influenciam as respostas, como as necessidades e/ou os
interesses, não havendo razões de peso para só se explorar a projeção.
EXNER (1999) considera o Psicodiagnóstico de Rorschach como um “teste
perceptivo-cognitivo”, a partir do qual os dados empíricos constituídos devem ser
analisados levando-se em consideração as operações cognitivas que os sujeitos realizam
para dar uma resposta. Com seu Sistema Integrado do Rorschach (S.I.R.), também
chamado de Sistema Compreensível, realizou esforços metodológicos em busca da
precisão e validação dos diferentes passos do instrumento.
4.7 – A metodologia projetiva
A questão que ordena o trabalho sobre os testes projetivos é elaborada sobre as
operações mentais empregadas durante sua aplicação, com a hipótese que elas traduzem
o modo de funcionamento psíquico do examinando. Aqui, intervêm as referências
4
“Métodos, sistemas, correntes ou escolas são similares denominações que vêm fazer referências a
diversos domínios do conhecimento e chamar a atenção para a especificidade daquilo que constitui a
matriz, que fundamenta a abordagem teórica na utilização desta prova projetiva” (LELÉ, 2002, p. 28).
teóricas que constituem o quadro de interpretação dos dados. Os testes projetivos, de
fato, não contêm intrinsecamente um modelo teórico específico mesmo se seus
respectivos autores dispusessem de um. Uma orientação fenomenológica, genética,
caracterológica, cognitivista ou uma abordagem sociológica, etnológica, psiquiátrica,
psicopatológica podem ser aplicadas.
A metodologia projetiva se inscreve num procedimento global, específico e
complementar à formação dos psicólogos clínicos. Sua hipótese central baseia-se na
manifestação das modalidades do funcionamento psíquico, próprias de cada indivíduo, a
partir do emprego das operações mentais que se articulam durante as aplicações das
técnicas projetivas. Assim, demarca as condutas psíquicas subjacentes às operações
mobilizadas pelas provas projetivas concernindo os fundamentos teóricos do estudo do
funcionamento psíquico.
A metodologia projetiva apresenta estreita relação com a teoria psicanalítica,
principalmente no que concerne ao lugar e importância da atitude que dirige a
intervenção psicológica. MARQUES (1999) busca estabelecer a comunicação entre aquilo
que, segundo a teoria, aparece como fator de explicação, compreensão e significação do
funcionamento do sujeito (pela via da interpretação) e aquilo que se pode extrair num
protocolo de Psicodiagnóstico de Rorschach, sempre resguardando os princípios
teóricos e metodológicos usados.
Ela se privilegia e se vale dos modelos de funcionamento psíquico construídos
pela psicanálise, tomando suas noções de conteúdos manifestos e de conteúdos latentes
e aplicando-as ao material dos testes projetivos. Situa-os no domínio da psicanálise
aplicada, que conduz a consideração dos conceitos que tomam emprestados a fim de
utilizá-los no campo particular da psicologia projetiva.
O modelo da escola francesa apresenta como característica conformidade de
coerência entre teoria, que deriva da metapsicologia freudiana, e metodologia, com
critérios de diagnóstico diferencial e articulação entre imagens, afetos e representações.
A metodologia projetiva se inscreve dentro das perspectivas abertas por Roy
Schafer, na década de 50, nos Estados Unidos, e desenvolvidas na França nos anos 70
por Didier Anzieu, Nina Rausch de Traubenberg, Vica Shentoub, Catherine Chabert,
entre outros. Os franceses propõem a análise das duas principais técnicas projetivas, a
saber, o Rorschach e o TAT; frisando sua complementaridade, já que apresentam os
grandes eixos que estruturam o procedimento e o método de interpretação numa
perspectiva clínica (CHABERT, 2004). A especificidade da situação de testagem é
definida em termos de movimentos transferenciais (no sentido amplo) levando-se em
conta seus componentes intrasubjetivos e intersubjetivos.
A concepção do funcionamento psíquico, considerando o modelo freudiano,
observa o continuo normal-patológico que fundamenta o procedimento clínico. A
metodologia projetiva contempla os três sistemas essenciais de conflito da
psicopatologia psicanalítica: a neurose, a patologia dos limites e do narcisismo, e a
psicose; assim os métodos projetivos são tidos como pertinentes em termos de
diagnóstico já que a qualidade do investimento da situação projetiva e da transferência
são primeiramente associadas às condições dentro das quais as aplicações das provas
são propostas, levando em conta que os resultados encontrados – em termos de
diagnóstico – colocam em evidência os pontos de sustentação e as potencialidades
efetivas de mudança do funcionamento psíquico (CHABERT, 2004).
A participação do estudo projetivo a fins de avaliação diagnóstica em
psicopatologia, introduz o procedimento de investigação dentro de uma conduta
terapêutica. A aplicação das provas projetivas não constitui uma etapa de “cura”; ela
possibilita recolher informações profundas, dificilmente acessíveis nos quadros clínicos
complexos e se associa aos métodos de investigação cujo objetivo é estabelecer um
projeto terapêutico pertinente. Sua utilização oferece um recurso precioso toda vez que
a clínica estiver vaga ou que se coloca a questão de um diagnóstico diferencial,
essencial para estabelecer modalidades de tratamento terapêutico específico.