C AP I T ULO V
EU ESTAVA DECIDIDO A PERMANECER acordado o resto da noite,
vigiando, mas a exaustão de meus nervos e de todo meu corpo era tamanha que,
quando a tensão diminuiu, o sono foi aos poucos me tomando com o tecido suave
do esquecimento. O fato de meu amigo ter adormecido contribuiu para isso. A
princípio, ele estava inquieto e a todo momento se sentava, perguntando se eu
ouvira esse ou aquele ruído. Revolvia-se em seu colchão de cortiça e dizia que a
barraca estava se movendo ou que o rio estava cobrindo a ilha; mas a cada vez
eu saía para dar uma olha e voltava dizendo que estava tudo bem, até que ele foi
ficando mais calmo e acabou aquietando-se. Algum tempo depois, sua
respiração tornou-se regular e ouvi com simpatia que roncava — acho que foi a
primeira e única vez na vida que o som de um ronco me fez bem.
Essa foi a última coisa que passou por minha cabeça antes que
adormecesse.
Acordei sentindo a respiração difícil e logo percebi que a colcha estava
cobrindo meu rosto.
Mas havia algo pressionando-me além daquela coberta e meu primeiro
pensamento foi o de que talvez o Sueco tivesse rolado dormindo para cima de
mim. Eu o chamei, sentando-me. No mesmo instante, senti que nossa barraca
estava cercada. Aquele mesmo som, semelhante a milhões de pequenos passos
se aproximando, estava de volta, enchendo a noite com seu horror.
Voltei a chamar pelo Sueco, dessa vez mais alto. Ele não respondeu, mas
não ouvi mais seu ronco e, ao mesmo tempo, percebi que a porta da barraca
estava entreaberta. Era o pecado imperdoável. Arrastei-me para fora, no
escuro, para prender novamente a porta e só então me dei conta que o Sueco
não estava mais ali. Ele se fora.
Saí correndo feito um louco, na maior agitação, e no instante em que me vi
do lado de fora, fui atingido em cheio por uma torrente de sons que me
circundavam, parecendo sair de todos os cantos do universo. Era o mesmo
murmúrio de antes, só que enlouquecido! Como se um enxame de abelhas
gigantes enchesse o ar à minha volta. O som parecia adensar a atmosfera, a
ponto de eu sentir que o ar faltava em meus pulmões.
Mas meu amigo estava em perigo e eu não podia hesitar um só instante.
O dia começava a nascer e uma luz esbranquiçada se espalhava sobre as
nuvens a partir de uma linha clara no horizonte. Não havia vento. Eu mal podia
divisar os salgueiros e o rio mais além, assim como a mancha pálida dos
caminhos de areia. Saí correndo pela ilha em frenesi, chamando o Sueco pelo
nome, gritando as primeiras palavras que me vinham à mente. Mas os salgueiros
e o ruído no ar abafavam minha voz e som morria a poucos metros de mim.
Mergulhei por entre os arbustos, abrindo caminho com o corpo, tropeçando nas
raízes, arranhando o rosto nos galhos que ia encontrando pela frente.
Até que, quase sem perceber, fui parar na ponta da ilha e, recortada entre o
céu e a água, vi uma silhueta escura. Era o Sueco. Estava a ponto de se jogar no
rio! Um minuto mais e teria mergulhado.
Atirei-me contra ele, atracando-me em sua cintura e puxando-o para longe
da beirada com todas as minha forças. Ele lutava com fúria, emitindo um som
que me pareceu semelhante ao maldito ruído que nos cercava, e soltando frases
desconexas sobre “ir ao encontro deles” ou “pegar o caminho da água e do
vento”, frases que depois eu tentaria desesperadamente recordar, mas que
naquele instante só me enchiam de estupefação e de horror. Mas afinal consegui
dominá-lo e arrasta-lo para dentro da barraca, onde o mantive, ofegante e
praguejando, até que a crise passasse.
A rapidez com que tudo se passou e como ele se acalmou de repente,
coincidindo com o abrupto silêncio que desceu sobre toda a ilha, foi, talvez, a
coisa mais estranha de tudo o que nos aconteceu. Porque ele simplesmente
abriu os olhos e virou para mim seu rosto cansado e pálido, banhado pela luz do
amanhecer que penetrava pela porta, dizendo, como se fosse um menino
assustado:
— Minha vida, meu amigo. Devo minha vida a você. Mas agora tudo
passou. Eles encontraram uma vítima, que tomou nosso lugar.
E se confiou sob as cobertas, dormindo instantaneamente. Desmaiou,
começando a roncar em seguida como se nada tivesse acontecido e não tivesse
tentado afogar-se, oferecendo-se em sacrifício. E, quando a luz do sol acordou-o,
três horas mais tarde — horas de vigília incessante para mim —, ficou tão claro
que não se lembrava de nada do que tentara fazer que achei melhor ficar quieto
e evitar perguntas perigosas.
O Sueco acordou bem disposto, quando o sol estava alto no céu sem vento,
e começou os preparativos para o café da manhã. Segui-o, ainda ansioso, até a
beira do rio para o banho, mas ele não quis pular, apenas molhando a cabeça e
fazendo um comentário sobre a água estar fria demais.
— Finalmente, o rio está baixando — disse. — Fico contente com isso.
— Os ruídos também cessaram — acrescentei.
Ele me olhou mansamente, com a expressão de sempre. Com certeza,
lembrava-se de tudo, exceto de usa tentativa de suicídio.
— Tudo cessou — disse ele — porque...
Hesitou. Mas eu sabia que ele tinha em mente a mesma frase que dissera
antes de desmaiar.
E eu queria saber tudo.
— ...“Eles encontraram uma vítima”...? — perguntei, dando um risinho
forçado.
— Exatamente — Respondeu o Sueco. — Exatamente! Posso senti-lo,
como se... como se... O que quero dizer é que me sinto outra vez em segurança
— acrescentou.
Olhou-me com curiosidade. O sol derramava-se sobre os caminhos de areia.
Não havia uma brisa. Os salgueiros estavam quietos. Devagar, ele se levantou.
— Venha — disse. — Se procurarmos, vamos achar.
E saiu em disparada, enquanto eu o seguia. Manteve-se junto às margens,
fincando um vara que carregava em cada poça d’água, cada recuo ou pequena
baía que encontrava no caminho. Eu ia atrás.
— Ah! — exclamou de repente.
Alguma coisa em sua voz me fez reviver num segundo todo o horror das
últimas 24 horas e me aproximei correndo. Com a vara, ele apontava para um
objeto escuro na beira d’água, parcialmente submerso. Aparentemente fora
envolvido por raízes de salgueiros, que o impediam de rolar correnteza abaixo.
Poucas horas antes, aquele trecho da margem devia estar sob a água.
— Veja — disse o Sueco, baixinho. — A vítima que nos permitiu escapar.
E, quando espiei por sobre seu ombro, vi que a ponta da vara tocava o corpo
de um homem.
O Sueco tentou movê-lo. Era nitidamente o corpo de um camponês, cujo
rosto estava enterrado na areia. Pelo aspecto, afogara-se havia poucas horas e
com certeza o corpo fora carregado pelas águas até ir dar ali na ilha, quando o
dia amanhecia — no instante, talvez, em que o rumor cessara.
— Precisamos enterrá-lo.
— Acho que sim — respondi.
Mas estremeci, porque havia alguma coisa na aparência daquele pobre
homem afogado que me gelava a espinha.
O Sueco olhou para mim, com uma expressão indecifrável no rosto, e se
preparou para descer a escarpa de areia. Fui atrás dele, porém andando mais
devagar. A correnteza, reparei, havia arrancado parte da roupa do homem, cujo
pescoço e as costas nuas emergiam de dentro d’água.
Quando estávamos em meio à descida, meu amigo estancou, erguendo a
mão em sinal de alarme; não sei se meu pé escorregou, ou se eu estava curioso
demais para parar assim de repente, mas o fato é que esbarrei nele,
empurrando-o sem querer. Rolamos os dois pela escarpa até ir dar na areia dura,
onde nossos pé afundaram n’água. E, antes que nos déssemos conta do que
acontecia, colidimos com força no corpo do afogado.
O Sueco soltou um grito agudo. E eu dei um pulo para trás como se tivesse
levado um tiro.
No momento em que tocamos o corpo, dele se desprendeu o abominável
sussurro que tanto ouvíramos — apenas infinitamente multiplicado —, e algo
passou sobre nossas cabeças como um bando de criaturas aladas, que
desapareceu no céu, ressoando cada vez menos até cessar de todo.
Era como se tivéssemos interrompido um bando de criaturas invisíveis que,
atiradas sobre o cadáver, faziam seu barulho.
O Sueco agarrou meu braço com toda força e eu me segurei nele, mas
antes que pudéssemos recuperar-nos do choque, notamos que o movimento do
rio estava virando o corpo, que as poucos se libertava das raízes dos salgueiros.
Um momento depois já se tinha virado por completo e o rosto morto, voltado
para cima, mirava o céu. Estava a ponto de ser levado pela correnteza. Mais um
pouco e o rio o carregaria.
O Sueco ainda correu e tentou agarrá-lo, gritando alguma coisa sobre “um
enterro digno” — mas de repente caiu de joelhos na areia, tapando o rosto com
as mãos. Eu o alcancei.
E vi o que ele vira.
Porque, mexido pela correnteza, o cadáver tinha agora o rosto e o peito nu
inteiramente expostos, exibindo na pele e na carne dezenas de pequenas
crateras incrustadas, bem-feitas, e em tudo similares aos funis que se tinham
formado na areia por toda a ilha.
— É uma marca deles — ouvi meu companheiro murmurar, baixinho. — A
marca maldita.
E quando tornei a olhar na direção do rio, vi que a correnteza já fizera seu
trabalho e que o corpo era levado pelas águas, fora de nosso alcance, já quase
desaparecendo, rolando e rolando rio abaixo em meio às ondas, como se fosse
uma lontra.
FIM