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Schuon - A Unidade Transcendente Das Religiões

O livro 'A Unidade Transcendente das Religiões' de Frithjof Schuon explora a diferença entre conhecimento metafísico e filosófico, enfatizando a importância do Intelecto na compreensão das verdades universais. Schuon argumenta que as religiões, apesar de suas formas externas distintas, expressam uma verdade comum que transcende suas particularidades. A unidade das religiões deve ser entendida como uma realidade espiritual interna, sem desconsiderar as formas reveladas que são desejadas pelo Divino.

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Schuon - A Unidade Transcendente Das Religiões

O livro 'A Unidade Transcendente das Religiões' de Frithjof Schuon explora a diferença entre conhecimento metafísico e filosófico, enfatizando a importância do Intelecto na compreensão das verdades universais. Schuon argumenta que as religiões, apesar de suas formas externas distintas, expressam uma verdade comum que transcende suas particularidades. A unidade das religiões deve ser entendida como uma realidade espiritual interna, sem desconsiderar as formas reveladas que são desejadas pelo Divino.

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A UNIDADE TRANSCENDENTE DAS RELIGIões

Tradução de Pedro de Freitas Leal


PUBLICAÇõES DOM QUIXOTE LISBOA 1991
Schuon, Frithjof, 1907 A Unidade Transcendente das
Religiões
Publicações Dom Quixote, Lda. Rua Luciano Cordeiro, 116 ‑ 2.'
1098 Lisboa Codex ‑ Portugal
Reservados todos os direitos de acordo com a legislação
em vigor

Título srcinal: De Punité transcendente des refigions


1.0 edição: Julho de 1991 Depósito legal n.I 47 820191
Fotocomposição: FOTOCOMPOGRAFICA, LDA.
Impressão e acabamento: Gráfica Manuel Barbosa e Filhos, Lda

Digitalização
Mediateca da Caixa Geral de Depósitos
Uso exclusivo para os seus utentes deficientes visuais

íNDICE

Prefácio......................................................
... 11 1 ‑ Das dimensões
conceptuais................................ 17 II ‑ A 23
limitação do exoterismo................................
III ‑ Transcendência e universalidade do esoterismo............
45 IV ‑'A questão das formas de
arte.............................. 69 V ‑ Dos limites da
expansão religiosa......................... 83 VI ‑ O aspecto
ternário do monoteísmo.......................... 97
VII ‑ Cristianismo e
islão....................................... 105
VIII ‑ Natureza particular e universalidade da tradição
cristã... 121 IX ‑ Ser homem é
conhecer...................................... 143
*O Espírito sopra aonde quer:
e ouves a sua voz, mas não sabes
de onde vem nem para onde vai;
assim é todo aquele que nasceu
do Espírito (João, III, 8)+
PREFACIO
s considerações deste livro procedem
de uma doutrina que não é filosófica, mas sim metafísica. Tal
distinção
poderá parecer ilegítima aos olhos de quem engloba a
metafísica dentro
da filosofia. Mas, se já em Aristóteles e nos seus
continuadores escolásticos encontramos tal assimilação, isso
apenas demonstra que toda a filosofia tem limitações que,
mesmo nos casos mais benignos como o que acabamos de citar,
excluem uma apreciação perfeitamente adequada da
metafísica. Esta possui, na verdade, um carácter
transcendente, que a torna independente de qualquer parecer
humano. Para melhor definirmos a
diferença que existe entre os dois modos de pensar, diríamos
que a filosofia procede da razão, como faculdade individual,
enquanto a metafísica se
reporta em exclusivo ao Intelecto. Este último, foi mestre
Eckhart quem
melhor o definiu: *Existe na alma algo de incriado e de
incriável; se a alma toda fosse isso, seria então incriada e
incriável, e isso é o Intelecto.+
Achamos no esoterismo, muçulmano uma definição análoga, mas
ainda
mais concisa e mais rica em valor simbólico: *O sufi (ou seja:
o homem
identificado com o Intelecto) não foi criado.+ Se o
conhecimento puramente intelectual ultrapassa, por definição,
o indivíduo; se esse conhecimento tem uma essência
supra‑individual, universal ou
divina, que procede da Inteligência pura ‑ isto é, directa e
não‑discursiva
conclui‑se que tal conhecimento não só ultrapassa o raciocínio,
mas
também ultrapassa a própria fé, no sentido vulgar do termo.
Por outras
Frithjof Schuon

palavras, o conhecimento intelectual ultrapassa o conhecimento


especificamente teológico, já de si incomparavelmente superior
ao conhecimento
filosófico, nacionalista, pois ele, como o conhecimento
metafísico, emana
de Deus e não do homem. Só que, enquanto a metafísica procede
toda ela
da intuição intelectual, a religião procede da Revelação. Esta
é a Palavra
de Deus que se dirige às Suas criaturas, enquanto a intuição
intelectual é
participação indirecta e activa no Conhecimento Divino, não
participação
indirecta e passiva como no caso da fé. Por outras palavras,
diríamos que
na intuição intelectual não é o indivíduo enquanto tal que
conhece, mas
sim o indivíduo na sua essência, indistinto do seu Princípio
Divino. Assim, também a certeza metafísica é absoluta em razão
da identidade entre
conhecedor e conhecido, no Intelecto. Se nos é permitido um
exemplo de
ordem sensível para ilustrara diferença entre o conhecimento
metafísico, e
o teológico, podemos dizer que o primeiro ‑ a que chamaremos
*esotérico+ por se manifestar mediante um simbolismo religioso
‑ tem consciência da essência incolor da luz e do seu carácter
de pura luminosidade.
Uma crença
vermelha e religiosa
não admitirá, pelo contrário, que a luz é
verde, enquanto qualquer outra afirmará o oposto: ambas terão
razão ao
distinguirem as trevas da luz, mas não ao identificarem a luz
com esta ou
aquela cor. Queremos mostrar, através deste exemplo tão
rudimentar, que
o ponto de vista teológico ou dogmático, pelo simples facto de
se fundar
numa revelação e não num conhecimento acessível a todos ‑ facto
aliás
impensável em termos da grande colectividade humana ‑, confunde
necessariamente o símbolo ou a forma com a Verdade nua e
supraformal,
enquanto a metafísica ‑ a que so a título provisório poderemos
chamar
*ponto de vista+ ‑ pode servir ‑se do ‑mesmo símbolo ou forma
como simples meio de expressão, sem ignorar o que nele há de
relativo. E por esse
motivo que todas as grandes religiões, intrinsecamente
ortodoxas, podem,
através dos seus dogmas, ritos e outros símbolos, servir de
meio de expressão de toda a Verdade directamente conhecida
pelo olho do Intelecto,
aquele órgão espiritual a que o esoterismo muçulmano chama *o
olho do
coração+. Acabámos de afirmar que a religião traduz as
verdades metafísicas ou
universais em linguagem dogmática. Ora, se o dogma já não é
acessível a
todos na sua Verdade intrínseca, pois só o, Intelecto a ela
pode directa 12
A Unidade Transcendente das Religiões

mente aceder, também não o é mais pela fé, único modo de


participação
possível, para a maioria dos homens, nas verdades divinas.
Quanto ao conhecimento intelectual que, como vimos, não
procede nem de uma crença
nem de um raciocínio, ele é superior ao dogma, no sentido em
que, sem
nunca o contrariar, penetra na sua dimensão interior, ou seja,
a Verdade
infinita que domina todas as formas. Para sermos totalmente
claros, insistiremos ainda em que o modo racional de
conhecimento jamais ultrapassa o domínio das generalidades,
nunca chegando a atingir qualquer verdade transcendente. Pode,
porém, servir de modo de expressão a um conhecimento
supra‑racional, como foi o
caso da antologia aristotélica e escolástica, mas sempre
ocorrerá em detrimento da integridade intelectual da doutrina.
Alguns talvez objectem que
a metafísica mais pura se distingue por vezes pouco da
filosofia; que, como esta, faz recurso a argumentos e parece
chegar a conclusões. Mas tal
semelhança só se apoia no facto de que todo o conceito, desde
que é expresso, se reveste forçosamente dos modos do
pensamento humano, que é
racional e dialéctico. O que distingue aqui essencialmente a
proposição
metafísica da proposição filosófica é que a primeira e
simbólica e descritiva ‑ no sentido em que se serve dos modos
racionais como de símbolos
para descrever ou traduzir conhecimentos que comportam mais
certeza do
que qualquer outro conhecimento de ordem sensível ‑, enquanto a
filosofia, a que não foi em vão que se chamou ancilla
theologiae, nunca é
mais do que aquilo que exprime. No facto de a filosofia
raciocinar para
resolver uma dúvida vê ‑se que o seu ponto de partida é uma
dúvida que
ela quer ultrapassar; enquanto o ponto de partida do enunciado
metafísico
é sempre essencialmente uma evidência ou uma certeza que se
pretende
comunicar, aos que sejam aptos a recebê ‑la, por meios
simbólicos ou dialécticos capazes de actualizar neles o
conhecimento latente que inconscientemente, diríamos
*eternamente+, trazem em si. Tomemos a ideia de Deus, a
título de exemplo dos três modos de pensamento que já
abordámos. O conhecimento filosófico, quando não nega
pura e simplesmente a Deus ‑ o que equivaleria a dar a este
termo
sentidoumque ele não tem ‑, tenta demonstrar Deus servindo ‑se de
todo o
tipo de argumentos: por outras palavras, este conhecimento
tenta provar
tanto a *existência+ como a *inexistência+ de Deus, como se a
razão, que
13
Frithjof Schuon

não é fonte mas apenas intermediária do conhecimento


transcendente, pudesse demonstrar fosse o que fosse; aliás,
tal pretensão à autonomia da
razão, em domínios onde só a intuição intelectual ou a
revelação podem
ser fonte de saber, caracteriza o conhecimento filosófico,
pondo a descoberto toda a sua insuficiência. Quanto ao
conhecimento teológico, ele não
se preocupa em demonstrar Deus ‑ permite mesmo que se admita
que
tal é impossível ‑, mas funda ‑se na crença; diga ‑se de passagem
que a fé
não se reduz, de modo algum, à simples crença, ou Cristo não
teria falado
da *fé que desloca montanhas+, já que a crença religiosa não
tem essa virtude. Enfim, metafisicamente, não se tratará mais
de uma *prova+ ou de
uma *crença+, mas só de evidência directa, intelectual, que
implica certeza absoluta, mas que, no estado actual da
humanidade, não é acessível senão ' a uma elite espiritual
cada vez mais restrita. Ora a religião, independentemente da
sua natureza e das veleidades dos seus representantes, que
podem não ter disto consciência, contém e transmite, sob o véu
dos seus
símbolos dogmáticos e rituais, o Conhecimento puramente
intelectual, como referimos acima. Contudo, poderíamos
justamente perguntar por que razões, humanas e
cósmicas, é que verdades, a que chamamos *esotéricas+ num
sentido muito geral, são trazidas à luz e explicitadas,
precisamente, na nossa época
tão pouco dada à especulação. Há aí, com efeito, algo de
anormal, não
tanto no facto
condições geraisdeda
senossa
exporem as que,
época verdades, mas o
marcando sim dadas
fim as
de um
grande período cíclico o fim de um mahâ ‑yuga segundo a
cosmologia hindu ‑, deverá recapitular ou manifestar de novo,
de uma maneira ou de outra, tudo o que está
suposto nesse ciclo. Como diz o adágio: *os extremos tocam ‑se+.
De modo que coisas, que são anormais por si mesmas, podem
tornar‑se necessárias devido às referidas condições. Dum ponto
de vista mais individual,
o da simples oportunidade, concordaríamos que a barafunda
espiritual da
nossa época atingiu um grau tão elevado que os inconvenientes
que, em
princípio, podem resultar, para alguns, do contacto com as
verdades a que
aludimos, se acham compensados pelas vantagens que outros
poderão recolher das ditas verdades. Por outro lado, o termo
*esoterismo+ é frequentemente usurpado para esconder ideias
tão pouco espirituais quanto
perigosas, e o que conhecemos das doutrinas esotéricas é
muitas vezes
14 A Unidade Transcendente das Religiões

plagiado e deformado (para além de a incompatibilidade


exterior, de bom
grado amplíficada, das diversas formas tradicionais lançar o
maior descrédito na mente de muitos dos nossos contemporâneos,
sobre qualquer tradição, religiosa ou outra), de modo que não
há somente vantagem, mas
até obrigação de definir o que e e o que não e o verdadeiro
esoterismo e
de explicar em que consiste a profunda e eterna solidariedade
de todas as
formas do espírito. Para regressarmos ao tema principal,
que nos propomos tratar neste livro, insistiremos em que a
unidade das religiões não só é irrealizável no
plano exterior, o das formas, como não deve mesmo ser
realizada ‑ supondo que isso fosse possível neste plano ‑ sem
que as formas reveladas
se vejam desprovidas de razão suficiente; afirmar que são
reveladas é dizer que são desejadas pelo Verbo Divino. Se
falamos de *unidade transcendente+, queremos com isso dizer
que a unidade
se deve dasde
realizar formas religiosas
maneira puramente interior e espiritual,
sem traição de
qualquer das formas particulares. O antagonismo entre estas
formas constitui tanto uma ameaça à Verdade una e universal
quanto o antagonismo
entre as cores opostas ameaça a transmissão da luz una e
incolor, para retomarmos a imagem de ainda há pouco. E, assim
como toda a cor, pela
sua negação da obscuridade e pela sua afirmação da luz,
permite reencontrar o raio que a toma visível e remontá ‑lo até
à sua fonte luminosa, assim
toda a forma, símbolo, religião ou dogma, pela sua negação do
erro e a
sua afirmação da Verdade, permite remontar o raio da
Revelação, que
não é outro senão o do Intelecto, até à sua fonte divina.
DAS DIMENSões CONCEPTUAIS

compreensão verdadeira e integral


de uma ideia ultrapassa em muito o primeiro assenso de
inteligência que
se impõe em todo e qualquer acto de compreensão. Ora, se é
verdade que
a evidência que uma ideia nos fornece é, à sua maneira, uma
compreensão, não se esgota aí toda a extensão nem toda a
perfeição do entendimento, pois tal forma de evidência é para
nós, sobretudo, sinal de uma
aptidão para compreender integralmente tal ideia. Uma verdade
pode,
com efeito, ser entendida em diversos graus e segundo diversas
dimensões
conceptuais: portanto, segundo um sem ‑fim de modalidades,
correspondentes aos aspectos, numericamente indefinidos, da
verdade, ou seja, todos os seus aspectos possíveis. Tal forma
de encarar a ideia leva ‑nos, em
suma, ao problema da realização espiritual, cujas expressões
doutrinais
ilustram bem a indefinição dimensional da concepção teórica.
A filosofia, no que tem delimitador ‑ e é isso, aliás, que
constitui o específico ‑, funda ‑se na ignorância sistemática
seu carácter
do que acabámos de enunciar. Por outras palavras, ignora o que
seria a sua ‑própria
negação. Por isso, recorre a esquemas mentais que, na sua
pretensão à
universalidade, crê serem absolutos quando, do ponto de vista
da realização
espiritual, não passam de objectos puramente virtuais ou
potenciais não utilizados, dado o caso de as ideias serem
verdadeiras. Mas quando
isso não se verifica, como acontece geralmente na filosofia
moderna, tais
esquemas reduzem ‑se a artifícios inutilizáveis do ponto de
vista especulativo,
portanto desprovidos de todo o valor real. Quanto às ideias
verdadeiras ‑ isto é, as que sugerem, de forma mais ou menos
implícita, aspectos
da Verdade total e, consequentemente, a própria Verdade ‑, elas
são,
desse modo, chaves intelectuais e não têm qualquer outra razão
de ser:
são o que só o pensamento metafísico é capaz de atingir. Pelo
contrário,
quer na filosofia quer na teologia em sentido comum, existe
uma ignorância respeitante não apenas à natureza das ideias,
que se crê terem sido integralmente entendidas, mas sobretudo
à teoria enquanto tal: a compreensão teórica, com efeito, é
transitória por definição e a sua
delimitação será aliás, sempre, mais ou menos aproximada. A
compreensão puramente teorizante de uma ideia ‑ compreensão
assim definida devido ao princípio limitador que a paralisa ‑
poderia muito
bem ser caracterizada pelo termo *dogmatismo+. Com efeito, o
dogma religioso representa ‑ não em si mesmo, mas enquanto é
suposto excluir
outras formas conceptuais ‑ uma ideia concebida dentro do
princípio teorizante, havendo ‑se tal forma exclusiva tornado um
dos aspectos do pensamento religioso enquanto tal. Um dogma
religioso deixa, porém, de ser
limitado, desde que é entendido segundo a sua verdade interna,
de ordem
universal,
esoterismo.sendo isso,lado,
Por outro aliás, o que
mesmo nose passa em todo
esoterismo, como oem toda
a doutrina metafísica, as
ideias formuladas podem, por sua vez, ser entendidas dentro do
princípio
dogmatizante ou teorizante, resultando daí uma situação
perfeitamente
análoga à do dogmatismo religioso, a que nos acabámos de
referir. Insistamos ainda, a propósito, que o dogma
religioso não é, de maneira
alguma, um dogma em si mesmo. Só o é por ser entendido como
tal, devido a uma confusão entre a idéia e a forma que ela
reveste. Por outro lado, a dogmatização exterior de verdades
universais é perfeitamente justificada, visto que tais
verdades ou ideias, havendo de ser o fundamento de
uma tradição, devem estar ao alcance de todos, a um grau
qualquer.
O dogmatismo, pelo contrário, não é a simples enunciarão de
uma ideia,
nem a atribuição de uma forma à intuição espiritual; é, antes,
uma interpretação que, longe de ascender à Verdade informal e
total, parte de uma
das formas da Verdade, paralisando ‑a, negando ‑lhe as suas
potencialidades intelectuais e atribuindo ‑lhe um carácter
absoluto que só a Verdade
mesma pode ter.
18
A Unidade Transcendente das Religiões
O dogmatismo revela ‑se não só na sua inaptidão para
conceber a ilimitação interna ou implícita do símbolo ‑ aquela
universalidade que resolve
todas as oposições exteriores ‑, mas também na sua incapacidade
em reconhecer o elo interior que une duas verdades
aparentemente contraditórias, fazendo delas dois aspectos
complementares de uma só e mesma verdade. Também nos
poderíamos exprimir da seguinte forma: aquele que
participa do Conhecimento Universal contempla duas verdades
aparentemente contraditórias como se considerasse dois pontos,
situados num só e
mesmo círculo, o qual, unindo ‑os pela sua continuidade, os
conseguisse
reduzir à unidade. Se esses pontos se acham afastados,
opostos, portanto,
um ao outro, existe contradição; esta é levada ao seu limite
quando os
dois pontos estiverem em duas extremidades, a todo o diâmetro
da circunferência; mas uma tão extrema oposição ou contradição
só se manifesta
porque isola do círculo os pontos em causa, fazendo abstracção
dele, como se não existisse. Podemos concluir que, se a
afirmação dogmatizante
‑ que se confunde com a sua forma, sem admitir qualquer outra ‑
é
comparável a um ponto que contradiz, por definição, todos os
pontos,
o enunciado especulativo, pelo contrário, será comparável a um
elemento
do círculo que, pela forma que lhe é própria, aponta para a
sua continuidade lógica e ontológica, logo, o círculo inteiro,
ou, por transposição analógica, toda a Verdade. Esta
comparação traduzirá talvez melhor aquilo
que separa a afirmação dogmatizante do enunciado especulativo.
A contradição exterior e intencional dos enunciados
especulativos pode
aparecer não apenas numa só forma logicamente paradoxal, como
é o caso do Aham Brahmâsmi (*Eu sou Brahma+) védico ‑ a
definição vedântica do yogi ‑ ou do Anal ‑Haqq (*Eu sou a
Verdade+) hafiajiano ou ainda
das palavras de Cristo a respeito da sua divindade. Mas, com
mais razão
ainda, entre formulações diversas, onde cada uma pode ser
logicamente
homogénea em si mesma. Isto acontece em todas as Escrituras
Sagradas,
nomeadamente no Alcorão. Recordemos apenas a aparente
contradição
que existe entre as afirmações feitas sobre a predestinação e
o livre arbítrio, que só se contradizem por exprimirem
aspectos opostos da mesma
realidade. Mas existem teorias que, traduzindo a mais estrita
ortodoxia,
apresentam contradições exteriores, pela diversidade dos
respectivos pontos de vista, que não foram escolhidos
arbitrária e artificialmente, mas ad 19
Frithjof Schuon
quiridos espontaneamente, graças a uma verdadeira
srcinalidade intelectual. Para voltar ao que dizíamos
sobre a compreensão das ideias, podemos
comparar uma noção teórica com a visão de um objecto: da mesma
forma
que a visão não revela todos os aspectos possíveis ‑ a natureza
integral
‑ do objecto, cujo conhecimento perfeito mais não é do que a
nossa
identidade com ele, também a noção teórica não corresponde à
verdade
integral, da qual representa forçosamente um só aspecto, seja
ele essencial ou não'. Neste exemplo, o erro seria a visão
inadequada do objecto,
enquanto a concepção dogmatizante se poderia comparar à visão
exclusiva
de uma só faceta do objecto, supondo ‑se com isso a imobilidade
do sujeito vidente. Quanto à concepção especulativa,
intelectualmente ilimitada,
ela seria aqui comparável ao conjunto indefinido das diversas
visões do
objecto em causa, visões que pressuporiam a faculdade de
deslocamento
ou de mudança de ponto de vista do sujeito, portanto um certo
modo de
identidade com as dimensões do espaço, que revelam
precisamente a natureza integral do objecto, pelo menos no
respeitante à forma, que é o
que está em jogo neste exemplo. O movimento no espaço é, com
efeito,
uma participação activa nas possibilidades deste, enquanto a
extensão estática no espaço ‑ a forma do nosso corpo, por
exemplo ‑ é uma participação passiva nestas mesmas
possibilidades. Destas considerações, podemos facilmente
passar a um plano superior e falar de um *espaço
intelectual+ ‑ toda a possibilidade cognitiva que, no fundo,
não é mais
do que a Omnisciência Divina ‑ e das *dimensões intelectuais+ ‑
as mo
' Num tratado contra a filosofia nacionalista, Algazel fala de
uns cegosconhecimento,
qualquer que, não tendonem mesmo teórico, do elefante, se
encontram um dia na presença deste animal, pondo ‑se a tactear
as diversas partes do seu corpo. Ora, cada um
imagina o animal segundo as partes que tocou: para o primeiro
cego, que apalpou a pata, o elefante parecia uma coluna; para
o segundo, que tocou um dos dentes, o elefante
assemelhava‑se a uma estaca, e assim por diante. Através desta
parábola, Algazel pretende demonstrar o erro que consiste em
querer encerrar o universal em visões fragmentárias, em
aspectos ou pontos de vista isolados e exclusivos. Shri
Râmakrishna retoma a mesma parábola para mostrar a
insuficiência do exclusivismo dogmático no que
este tem de negativo. Poderíamos, contudo, expressar a mesma
ideia servindo ‑nos de
uma imagem ainda mais adequada: a de um objecto qualquer que,
para uns, *é+ tal
forma, para outros, *é+ tal matéria, para terceiros *é+ tal
número ou tal peso, e assim
por diante.
20
A Unidade Transcendente das Religiões

divindades *eternas+ desta Omnisciência. E o Conhecimento pelo


Intelecto
não é mais do que a participação perfeita do sujeito nestas
modalidades,
o que, no mundo físico, é bem representado pelo movimento.
Falando da
compreensão das ideias, podemos portanto distinguir uma
compreensão
dogmatizante ‑ comparável à visão que parte de um só ponto de
vista
e uma compreensão integral, especulativa, comparável à série
indefinida
de visões do objecto, possibilitadas por modificações
indefinidamente
múltiplas na perspectivação do mesmo. E, assim como, no caso
do olho
que se desloca, as diferentes visões de um objecto se
encontram ligadas
por perfeita continuidade que representa, de algum modo, a
realidade
determinante do objecto assim os diversos aspectos de uma
verdade,
por muito contraditórios que possam parecer, contendo
implicitamente toda uma infinidade de aspectos possíveis, mais
não fazem do que descrever
a Verdade Integral que os ultrapassa e determina. Repetiremos
o que dissemos acima: a afirmação dogmatizante corresponde a
um ponto que, como tal, contradiz, por definição, qualquer
outro ponto; enquanto o enunciado especulativo, elo
contrário, é sempre concebido como um

p
elemento do círculo que, pela sua forma, indica a continuidade
que lhe é
própria e, assim, o círculo inteiro, a verdade total. Daí
resulta que, em termos de doutrina especulativa, é o ponto de
vista
por um lado e o aspecto por outro que determinam a forma da
afirmação,
enquanto, em termos dogmatistas, esta se confunde com um ponto
de vista e com um aspecto determinado, excluindo por isso
mesmo todos os outros pontos de vista e aspectos igualmente
possíveis.
Os Anjos são inteligências limitadas a tal ou tal aspecto
da Divindade; um estado angélico é, por consequência, uma
espécie de ponto de vista transcendente. Aliás, a
*intelectualidade+ dos animais e das espécies periféricas do
estado terrestre, por exemplo
a das plantas, corresponde cosmologicamente ‑ num plano muito
inferior ‑ à intelectualidade angélica: o que distingue uma de
outra espécie vegetal mais não é do que o
modo da sua *inteligência+. Por outras palavras, é a forma ou
natureza integral de uma
planta que revela o estado ‑ eminentemente passivo ‑ de
contemplação ou de conhecimento da sua espécie; dizemos *da
sua espécie+, pois, isoladamente tomada, uma
planta não constitui um indivíduo. Recorde ‑se aqui que o
Intelecto ‑ diferente da razão, que não passa de uma faculdade
especificamente humana, e da inteligência, quer
nossa quer de outros seres é de ordem universal e acha ‑se em
tudo o que existe, de
qualquer
21 ordem que seja.'

A LIMITAÇÃO DO EXOTERISMO

ponto de vista exotérico, que pelo menos no que tem de


exclusivo face às realidades superiores ‑ só existe nas
tradições monoteístas, é no fundo, apenas, o do interesse
individual
mais elevado, ou seja, estende ‑se a todo o ciclo de existência
do indivíduo
e não se limita simplesmente à vida terrestre. A verdade
exotérica ou religiosa acha ‑se assim limitada por definição, e
isso deve ‑se à limitação da
sua finalidade, sem que essa restrição chegue a ameaçar a
interpretação
esotérica de que a mesma verdade é susceptível graças à
universalidade do
seu simbolismo, ou antes, graças à dupla natureza, *interior+
e *exterior+,
da própria Revelação. Por consequência, o dogma é
simultaneamente
uma ideia limitada e um símbolo ilimitado. Para darmos um
exemplo, diríamos que o dogma da unicidade da Igreja de Deus
deve excluir a existência ‑de outras formas de tradição
ortodoxa, porque a ideia da universalidade das tradições não
só é inútil para a salvação como pode até
prejudicá‑la, pois levaria os que não con seguem elevar ‑se acima
deste
ponto de vista individual, quase inevitavelmente, a um
indiferentismo religioso e à negligência dos seus deveres cujo
cumprimento é precisamente a
condição principal da salvação. Por outro lado, esta mesma
ideia de universalidade das tradições ‑ ideia quase
indispensável ao caminho da Verdade total e desinteressada ‑
não se acha menos simbólica e metafisicamente presente na
definição dogmática ou teológica da Igreja ou do
Corpo Místico de Cristo. Ou ainda, para usar a linguagem das
duas outras
23

c,

F ‑.
Frithiof Schuon
religiões nionoteístas, o judaísmo e o islão, é
respectivamente na concepção de *Povo Eleito+, Israel, e de
*Submissão+, El‑Islâm, que se acha
simbolizada dogmaticamente a ortodoxia universal, a
Sanâtana‑Dharma
dos hindus. Não seria necessário dizer que a limitação
*exterior+ do dogma, limitação que lhe confere precisamente o
seu carácter dogmático, é perfeitamente legítima, já que o
ponto de vista individual, a que esta limitação
corresponde, é uma realidade no seu próprio nível de
existência. É graças
a esta realidade relativa que o ponto de vista individual ‑ não
no que
tem de negativo em função de uma perspectiva superior, mas no
que tem
de limitado pela sua própria natureza ‑ pode e deve
integrar‑se, de qualquer modo, em todas as vias de finalidade
transcendente. Desta forma,
o exoterismo, ou antes, a forma enquanto tal, não implicará
mais uma
perspectiva intelectualmente restrita, mas desempenhará o
papel de um
meio espiritual acessório, sem que a transcendência da
doutrina esotérica
seja por isso afectada, não lhe sendo imposta qualquer
limitação por razões de oportunidade individual. Não é preciso
confundir, com efeito,
o papel do ponto de vista exotérico com o dos meios
espirituais do exoterismo: o ponto de vista em questão é
incompatível,
Esotérico que numa mesma consciência,
o dissolve com o Conhecimento
para o reabsorver
no centro de onde partiu; mas os meios exotéricos não
continuam a ser
menos utilizáveis, e são ‑no de dois modos diferentes, seja por
transposição intelectual na ordem esotérica ‑ e serão assim
suportes de *actualização+ intelectual ‑, seja pela acção
reguladora que exercem sobre a porção individual do ser. O
aspecto exotérico de uma tradição é, pois, uma disposição
providencial que, longe de ser censurável, é necessária, desde
que a via esotérica,
sobretudo nas condições actuais da humanidade terrestre, seja
apenas a
estrada de uma minoria e nada haja de melhor, para o comum dos
mortais, do que a via ordinária da salvação. O que é
condenável não é a existência do exoterismo, mas sim a sua
prepotência autocrática ‑ talvez devida, no mundo cristão, à
estreita *precisão+ do espírito latino ‑ que faz
com que muitos dos que estariam aptos para a via do
Conhecimento Puro
não só se detenham no aspecto exterior da tradição, mas
cheguem mesmo
a rejeitar o esoterismo que só conhecem através de
preconceitos ou defor 24
A Unidade Transcendente das Religiões

mações. A menos que, não achando no exoterismo o que convém a


sua
inteligência, não se desviem por doutrinas falsas e
artificiais, onde pretendem encontrar o que aquele lhes não
oferece e crê mesmo poder impedir ‑lho . O ponto de vista
exotérico ‑ desde que não mais animado pela presença interior
do esoterismo de que é ao mesmo tempo radiação exterior e
um véu ‑ desemboca, com efeito, na sua própria negação, no
sentido em
que a religião, ao negar as realidades metafísicas e
iniciáticas e ao fixar ‑se
num dogmatismo literalista, gera inevitavelmente a descrença.
A atrofia
provocado nos dogmas pela privação da sua *dimensão interna+
recai sobre eles mesmos, do exterior, sob a forma de negações
heréticas e ateias.

A presença do elemento esotérico numa religião de carácter


especificamente semítico garante a esta um desenvolvimento
normal e um máximo
de estabilidade; esse elemento não é aliás uma parte, mesmo
interior, do
exoterismo, representa pelo contrário uma dimensão quase
independente
em relação a este último'. Desde que falte esta dimensão ou
este elemento ‑ o que só pode ser efeito de circunstâncias
anormais, embora cosmologicamente necessárias ‑, o edifício
tradicional fica abalado, acaba mesmo em parte por ruir,
ficando reduzido ao que tem de mais exterior, ou
seja, o literalismo e o sentimentalismo'. Por isso, os
critérios mais reco
1 Lembremo ‑nos da maldição de Cristo: *Ai de vós, doutores da
Lei, pois roubastes a
chave do conhecimento; vós mesmos não entrastes e impedistes
aqueles que entravam.+ (Luc.,11:52). No que toca a tradição
islâmica, citemos a reflexão de um príncipe muçulmano da
índia: *A maioria dos não ‑muçulmanos e mesmo muitos muçulmanos
formados em ambiente e cultura europeia ignoram este elemento
particular do islão que constitui o seu
âmago e centro, que dá verdadeiramente vida e força às suas
formas e acções exteriores e que, graças ao carácter universal
do seu conteúdo, pode tomar por testemunhas
os discípulos das demais religiões. + (Nawab A. Hydari Hydar
Nawaz Jung Bahadur, no
seu prefácio aos Studies in Tasawwuf de Khaja Khan.)
' Daí a preponderância cada vez maior da *literatura+, em
sentido pejorativo, sobre a
verdadeira intelectualidade, por um lado, e a verdadeira
piedade, por outro. Daí também a importância exagerada que se
dá a todo o tipo de actividades mais ou menos fúteis que
sempre têm o cuidado de negligenciar o *único necessários.
25
Frithjof Schuon
nhecíveis de um tal processo são, por um lado, o
desconhecimento e mesmo a negação da exegese metafísica e
iniciática, isto é, do sentido *místico+ das Escrituras ‑
exegese que se acha intimamente conexa com toda a
intelectualidade
lado, a rejeição da
da forma tradicional
arte sacra, em causa
ou seja, ‑ e, por
das formas outro
inspiradas
e simbólicas através das quais irradia esta intelectualidade,
para assim se comunicar, por uma linguagem imediata e
ilimitada, a todas as inteligências. Mas tudo isto talvez não
baste para entendermos por que razão o exoterismo tem
necessidade indirecta do esoterismo, não para poder subsistir ‑
pois não está em causa o simples facto da sua subsistência nem
a incorruptibilidade dos seus meios de graça ‑, mas para poder
subsistir em condições normais. Ora a presença da *dimensão
transcendentes no seio da forma tradicional fornece ao seu
lado exotérico uma seiva vivificante de essência universal,
*paraclética+, sem o que este mais não faria do que dobrar ‑se
inteiramente sobre si mesmo, entregue aos seus recursos, por
definição limitados, tornando ‑se um corpo maciço e opaco cuja
densidade provoca fatalmente brechas, como o mostra a moderna
história da cristandade. Por outras palavras, quando o
exoterismo se priva das complexas e subtis interferências da
dimensão transcendente, acaba por se ver esmagado pelas
consequências exteriorizadas das suas próprias limitações,
tornando‑se estas, por as sim dizer, totais. Agora, se
partimos da ideia de que os exoteristas não entendem o
esoterismo e têm até o direito de o não entender ‑ por exemplo,
tomando‑o como inexistente ‑, também devemos reconhecer ‑lhes o
direito de condenarem certas manifestações de esoterismo com
que parecem esbarrar no seu caminho e que provocam neles o
*escândalo+, para usar a expressão do Evangelho. Mas como
explicar que na maioria dos casos, se não em todos, os
acusadores não usem de tal direito, antes procedam com
iniquidade? Não é por certo a sua incompreensão mais ou menos
natural nem a defesa do seu direito real, mas apenas a
perfídia dos ‑seus meios que constitui neles um verdadeiro
*pecado contra o Espírito'. Tal perfídia
'Assim, nem a incompreensão de tal autoridade religiosa nem
um certo fundamento da sua acusação perdoam a iniquidade do
processo intentado contra o sufi El ‑Hallâj, não menos do que a
incompreensão dos judeus desculpou a iniquidade do processo
contra Cristo. Muito analogamente, podemos interrogar ‑nos por
que razão existe tanta estupidez e
26

00~
A Unidade Transcendente das Religiões

prova, ‑aliás, que as acusações que eles crêem dever formular


só servem de
pretexto para alimentar um ódio instintivo contra tudo o que
pareça
ameaçar o seu equilíbrio superficial que, no fundo, não passa
de uma forma de individualismo e, portanto, de ignorância.
Lembramo ‑nos de ter ouvido um dia alguém dizer que *a
metafísica
não é necessária à salvação+; ora isto é radicalmente falso
quando aplicado em sentido genérico, pois o homem, que é
metafísico por natureza e já
disso tomou consciência, não pode encontrar salvação na
negação do que
o atrai para Deus. Aliás, toda a vida espiritual deve fundar ‑se
numa predisposição natural que determina o seu modo ‑ a isso
chamamos vocação. Nenhuma autoridade espiritual nos
aconselharia a seguirmos um
caminho para o qual não somos feitos. É o que ensina, entre
outras coisas, a parábola dos talentos; o mesmo sentido se
acha ainda nas palavras
de São Tiago: *Quem tiver observado toda a Lei, se vier a
faltar em um
só ponto, torna ‑se culpado de todos+ e *Aquele que, sabendo
fazer o que
é bem, não o faz, comete pecado+. Ora a essência da Lei,
segundo as próprias palavras de Cristo, é o amor de Deus
permeando todo o nosso ser,
compreendida aí a inteligência, que é a sua parte central. Por
outras palavras, como devemos amar a Deus com tudo aquilo que
somos, devemos
amá‑lo também com a inteligência, que é o melhor de nós mesmos.
Ninguém contestará que a inteligência não é um sentimento, mas
infinitamente
as Escrituras mais.
usam É portanto óbvio que o termo *amor+, que
para designar as relações entre o homem e Deus, acima de tudo,
entre

má‑fé nas polémicas religiosas, mesmo em homens que, de resto,


são isentos. Indício
certo de que, em muitas dessas polémicas, existe uma
percentagem de *pecado contra
o Espírito+. Ninguém é repreensível pelo simples facto de
atacar, em nome da sua fé,
uma tradição estranha, se o faz por simples ignorância. Mas
quando não é assim, é culpado de blasfémia, pois ‑ ao ultrajar
a Verdade Divina numa forma que lhe é estranha ‑ mais não faz
do que aproveitar ‑se de uma ocasião para ofender a Deus sem
problemas de consciência. É esse, no fundo, o segredo do zelo
grosseiro e impuro
daqueles que, em nome da sua convicção religiosa, consagram a
vida a tornar odiosas
as coisas sagradas, o que não poderiam fazer se não se
servissem de métodos desprezíveis.

27

"as
Frithjof Schuon

Deus e o homem, não poderia ter um sentido puramente


sentimental, designando somente um desejo de atracção. Por
outro lado, se o amor é a
tendência de um ser para outro ser, com vista à sua união, é o
Conhecimento que, por definição, realizará a união mais
perfeita entre o homem
e Deus, pois só ela faz apelo ao que, no homem, já é divino, a
saber,
o Intelecto. Este modo supremo do *amor de Deus+ é, pois, a
possibilidade humana, de longe a mais elevada, à qual ninguém
voluntariamente se
pode subtrair sem *pecar contra o Espírito+. Pretender que a
metafísica é,
por si mesma e para todo o homem, uma coisa supérflua, de modo
algum
necessária
natureza, à salvação, equivale não apenas a desconhecer a sua
mas também a negar, pura e simplesmente, o direito de
existência aos homens que foram dotados por Deus d o dom da
inteligência, a um grau
transcendente. Poderíamos ainda observar o seguinte: a
salvação é merecida pela acção, no sentido mais largo do
termo, e isso explica como alguns chegam a
depreciar a inteligência, que pode precisamente tornar a acção
inútil e cujas possibilidades põem em evidência a relatividade
do mérito e da perspectiva que a ele se refere. Por isso, o
ponto de vista especificamente religioso tende a considerar a
pura intelectualidade ‑ que não distingue aliás
quase nunca da simples nacionalidade ‑ com mais ou menos oposta
ao
acto meritório e, por consequência, como perigosa para a
salvação. É por
isso que se atribui facilmente à inteligência um aspecto
luciferiano e se fala de um *orgulho intelectual+ como se não
houvesse contradição de termos. Por isso, também se exalta a
*fé de criança+ ou a *fé do simples+,
que nós certamente muito respeitamos quando é espontânea e
natural,
mas não quando teórica e afectada. Ouve ‑se formular com
frequência a seguinte ideia: desde o momento
que a salvação implica um estado de perfeita beatitude e que a
religião
não exige outra coisa, porquê escolher a via que tem por fim a
*deificação+? A esta objecção responderemos que a via
esotérica não poderia ser,
por definição, objecto de uma *escolha+ para os seus
seguidores, pois não
é o homem que a escolhe, mas ela que escolhe o homem. Por
outras palavras, a questão da escolha não se põe, porque o
finito não poderia escolher o Infinito: trata ‑se mais de uma
questão de *vocação+ e os que são
*chamados+, para empregar a expressão evangélica, não têm como
se sub 28
A Unidade Transcendente das Religiões

trair a esse apelo, sob pena de *pecado contra o Espírito+,


não mais do
que um homem qualquer se poderia legitimamente subtrair às
obrigações
da sua religião. Se é inadequado falarmos de escolha no que
respeita ao Infinito, também o é falarmos de um desejo, pois
no iniciado não se pode dizer que
lhano desabo da ReaMade I)Mria,há @im uma tendência lógica e
ontológica no sentido da sua Essência transcendente. Esta
definição é de importância extrema.

A doutrina exotérica enquanto tal ‑ ou seja, vista fora da


influência
espiritual que pode agir sobre as almas independentemente
desta doutrina
‑ não possui, de modo algum, certezas absolutas. Por isso, o
conhecimento teológico não pode excluir de si mesmo a tentação
da dúvida, nem
mesmo nos grandes místicos; e quanto' às graças que podem
intervir em
semelhantes casos, estas não são consubstanciais à
inteligência, de modo
que a permanência daquela não depende de quem destas
beneficia. Limitando‑se a um ponto de vista relativo, o da
salvação individual ‑ ponto
de vista interesseiro que influencia o próprio conceito da
Divindade num
sentido restritivo ‑, a ideologia exotérica não dispõe de
qualquer meio
de prova ou de legitimarão doutrinal proporcional às suas
exigências.
O que é, com efeito, característico de toda a doutrina
exotérica é a desproporção que existe entre as suas exigências
dogmáticas e as suas garantias dialécticas: as suas exigências
são absolutas, porque derivam de um
Querer Divino, portanto também de um Conhecimento Divino,
enquanto
as suas garantias são relativas, porque independentes desse
Querer e fundadas, não nesse Conhecimento, mas num ponto de
vista humano, o da
razão e sentimento. Se, por exemplo, nos dirigíssemos aos
brâmanes para
exigir deles o abandono total de uma tradição milenar, de cuja
experiência espiritual
usufruído, que produziuinumeráveis gerações houvessem
flores de sabedoria e santidade até aos nossos dias, os
argumentos que pudéssemos aduzir para justificarmos tão
inaudita exigência não conteriam
nada de logicamente concludente nem proporcionado à amplitude
da exigência em questão. A razão que tiverem os brâmanes para
permanecerem

29
Num
Frithjof Schuon

fiéis ao seu património espiritual serão, pois, infinitamente


mais sólidas
para eles do que as razões pelas quais os queiramos levar a
deixarem de
ser aquilo que são. A desproporção, do ponto de vista hindu,
entre a
imensa realidade da tradição bramânica e a insuficiência dos
contra‑argumentos religiosos é tal que isso deveria bastar para
provar que, se
Deus quisesse submeter o mundo inteiro a uma só religião, os
argumentos
desta não seriam tão fracos, nem os de alguns ditos *infiéis+
seriam tão
fortes. Por outras palavras, se Deus quisesse, de facto, uma
só forma de
tradição, o poder persuasivo desta seria tal que nenhum homem,
de boa‑fé, se ‑poderia subtrair a ela. Aliás, o próprio termo
*infiel+, aplicado a
civilizações ‑ com uma ou outra excepção ‑ muito mais antigas
do que a
cristã, civilizações que têm todos os direitos espirituais e
históricos de
ignorar esta
lógica da suaúltima,
ingénuafaz ainda pressentir,
pretensão, tudo o quepela falta
há de de nas
abusivo
reivindicações religiosas por
referência a outras formas de tradição ortodoxa. A
exigência absoluta de crer em tal religião e não em outra não
pode,
com efeito, tentar justificar ‑se senão por meios emi nentemente
relativos:
tentativas de provas filosófico ‑teológicas, históricas ou
sentimentais. Ora,
não existe qualquer prova em apoio de tais pretensões à
verdade única e
exclusiva; e todo o esforço de demonstração só se pode referir
às disposições individuais de cada homem, as quais,
reduzindo‑se no fundo a uma
questão de credulidade, são disposições extremamente
relativas. Toda a
perspectiva exotérica pretende, por definição, ser a única
verdadeira e@ legítima e isso porque o ponto de vista
exotérico, visando apenas um interesse individual ‑ a salvação
‑, não tem qualquer vantagem em conhecer a verdade das outras
formas de tradição. Desinteressando ‑se da sua
própria verdade, desinteressa ‑se muito mais da dos outros, ou
antes a nega, porque a noção de uma pluralidade de formas
tradicionais pode prejudicar a simples busca da salvação
individual. Isso põe precisamente a claro
o carácter relativo da forma que, ela sim, é de uma
necessidade absoluta
para a salvação do ind ivíduo. Poderíamos contudo interrogar ‑nos
por que
motivo as garantias, as provas de veracidade ou de
credibilidade, que a
polémica religiosa se esforça em produzir, não derivam
espontaneamente
do Querer Divino, como no caso dos imperativos religiosos. É
óbvio que
a questão só tem sentido quando referida a verdades, pois não
se iriam
'30
A Unidade Transcendente das Religiões

demonstrar os erros. Ora, precisamente os argumentos da


polémica
positivo religiosa
da fé. Umanão podem pertencer ao domínio intrínseco e
ideia cujo alcance é apenas extrínseco e negativo e que, no
fundo, só resulta de indução ‑ como a ideia da verdade e
legitimidade exclusiva de
tal religião ou da falsidade e ilegitimidade de todas as
outras ‑ não poderia ser objecto de uma prova quer divina quer
humana. No que respeita
aos dogmas verdadeiros ‑ não derivados por indução, mas de
alcance estritamente intrínseco ‑, se Deus não forneceu as
provas teóricas da sua
verdade é porque, em primeiro lugar, tais provas são
inconcebíveis e inexistentes no plano em que o exoterismo se
coloca, e exigi ‑Ias, como o fazem os não ‑crentes, seria uma
contradição pura e simples. Em segundo
lugar, como veremos mais adiante, se tais provas existem, é
num plano totalmente diferente, e a Revelação divina supõe ‑nas
perfeitamente, sem
qualquer omissão. Em ‑ terceiro lugar, para regressarmos ao
plano exotérico, o único em que esta questão se pode colocar,
a Revelação comporta,
no seu essencial, uma inteligibilidade suficiente para poder
servir de veículo à acção da graça' que é a única razão
suficiente plenamente válida
para a adesão a uma religião. Se a graça for apenas concedida
àqueles que
dela não possuam o equivalente sob outra forma revelada, os
dogmas perdem o seu poder persuasivo, demonstrativo, para os
que possuem um tal
equivalente. Estes serão, por consequencial, *inconvertíveis+ ‑
abstracção
feita dos casos de conversão devidos à força sugestiva de um
psiquismo
colectivo, agindo a graça então a posterior ‑ já que a
influência espiri Um exemplo de conversão por influência
espiritual ou graça, sem recurso a argumentos de ordem
doutrinal, é ‑nos facultado pela conhecida história de Sundar
Singli. Este
sikh, de srcem nobre e temperamento místico, mas sem grandes
qualidades intelectuais, tinha jurado um ódio implacável não
só contra os cristãos, mas contra o cristianismo e o
Evangelho. Este ódio, graças à sua paradoxal coincidência com
o carácter
nobre e místico de Sundar Singli, chocou com a influência
espiritual de Cristo e tornou ‑se desesperante. Sobreveio,
então, uma fulgurosa conversão provocado por uma visão.
Ora, não houve qualquer intervenção da doutrina cristã e o
convertido não tinha sequer em mente procurar a ortodoxia
tradicional. O caso de São Paulo apresenta aliás,
ainda que a um nível notavelmente superior quanto à personagem
e circunstâncias, certa analogia *técnica+ com o exemplo
citado. Em resumo, podemos afirmar que, quando um homem de
natureza religiosa odeia e persegue uma religião, é porque
está muito perto de se converter, ajudando ‑o para isso as
circunstâncias. É o caso dos não ‑cristãos que se convertem
ao cristianismo precisamente como adop 31
Frithjof Schuon
tual não terá poder sobre eles, da mesma forma que uma luz não
pode
iluminar outra luz. Isto é, pois, conforme ao Querer Divino,
que revestiu
a Verdade una de diferentes formas, repartindo ‑as por
diferentes humanidades, sendo cada uma simbolicamente a única
que existe. E acrescentaremos que, se a relatividade
extrínseca do exoterismo é conforme ao Querer Divino, que
assim se afirma na própria natureza das coisas, é natural
que esta relatividade não possa ser abolida por um querer
humano. Agora, se não existe qualquer prova rigorosa em
apoio de uma pretensão exotérica à detenção exclusiva da
verdade, não devemos ser levados a
crer que a própria ortodoxia de uma forma tradicional não pode
ser demonstrada? Essa seria uma conclusão artificial e, em
qualquer caso, completamente errónea: pois toda a forma
tradicional comporta uma prova
absoluta da sua verdade, portanto da sua ortodoxia. O que não
pode ser
demonstrado, à falta de prova absoluta, não é a verdade
intrínseca ‑ e,
assim, a legitimidade tradicional de uma forma da Revelação
Universal ‑,
mas somente o facto hipotético de tal forma particular ser a
única verdadeira e legítima. E, se isso não pode ser provado,
é pela simples razão que
isso é falso.
de uma religião. Existem,
Mas tais pois, provas irrefutáveis da verdade
provas ‑ que são de ordem puramente espiritual ‑, sendo as
únicas provas possíveis em apoio de uma verdade revelada,
comportam ao mesmo
tempo a negação do exclusivismo pretensioso de cada forma. Por
outras
palavras, quem quiser provar a verdade de uma religião, ou não
tem provas ‑ porque estas não existem ‑, ou tem provas que
afirmam toda a
verdade religiosa sem excepção, qualquer que seja a forma que
esta possa
assumir.
A pretensão exotérica à detenção exclusiva de uma verdade
única, ou
da Verdade sem epítetos, é pois um erro puro e simples. De
facto, toda a

tam quaisquer formas da moderna civilizaçã o ocidental. O que,


entre os Ocidentais, é
sede de novidade, é, entre os outros, sede de mudança,
poderíamos dizer, de renegação. Dos dois lados, a mesma
tendência para realizar e esgotar possibilidades que a
civilização tradicional havia excluído.
32

A Unidade Transcendente das Religiões

verdade expressa reveste necessariamente uma forma a da sua


expressão ‑ e é metafisicamente impossível que uma forma tenha
um valor único por exclusão de outras formas: porque uma
forma, por definição, não
pode ser única e exclusiva, não pode ser a única possibilidade
de expressão do que ela exprime. Quem diz forma, diz
especificarão ou distinção; e o específico só é concebível
como modalidade de uma espécie,
portanto de uma ordem que engloba um conjunto de modalidades
análogas. O limitado, que o é por exclusão daquilo que os seus
limites não contêm, compensa esta exclusão reafirmando ‑se ou
repetindo‑se fora dos seus
limites próprios,está,
outras limitadas o queem
equivale
rigor, a dizer que
implicado naaprópria
existência de
definição do limitado. Pretender
que uma limitação ‑ por exemplo, uma forma enquanto tal ‑ seja
única
e'

e incomparável no seu género, excluindo portanto a existência


de modalidades que lhe são análogas, equivale a atribuir ‑lhe a
unícidade da própria
Existência. Ora, ninguém poderá contestar que uma forma é
sempre uma
limitação e que uma religião é sempre e forçosamente uma forma
‑ não
obviamente pela sua verdade interna, que é de ordem universal,
supraformal, mas pelo seu modo de expressão que, enquanto tal,
não pode deixar
de ser formal, portanto específico e limitado. Nunca é de mais
repetirmos
que uma forma é sempre uma modalidade de uma ordem de
manifestação
formal, portanto distintiva ou múltipla, e por consequência,
como atrás
referimos, uma modalidade entre outras, sendo apenas única a
sua causa
supraformal. E repita‑se, pois não convém perder de vista, que
a forma,
pelo facto mesmo de ser limitada, deixa necessariamente algo
fora dela,
ou seja, tudo aquilo que os seus limites excluem; e esse algo,
se pertence
à mesma ordem, é forçosamente análogo à forma em causa. Porque
a distinção das formas compensasse por uma indistinção, uma
identidade relativa, sem o que as formas seriam absolutamente
distintas umas das outras,
o que equivaleria a uma pluralidade de unicidades ou de
Existências. Cada forma seria então uma espécie de divindade
sem qualquer relação com
outras formas, o que é absurdo. A pretensão exotérica à
detenção exclusiva da verdade esbarra, pois,
como acabámos de ver, com a objecção axiomática de que não
existe um
facto
que umúnico,
tal pela simples razão que é rigorosamente impossível
facto exista, sendo apenas única a própria unicidade e não
sendo o facto a
33
Frithjof Schuon

unicidade em si. É o que ignora a ideologia *crente+ que, no


fundo, não
passa de uma confusão interesseira entre o formal e o
universal. As ideias
que se afirmam numa forma religiosa, tais como a ideia do
Verbo ou da
Unidade Divina, não podem deixar de se afirmar, de uma forma
ou de
outra, nas outras religiões. Do mesmo modo, os meios de graça
ou de realização espiritual de que dispõe tal sacerdócio não
podem deixar de encontrar equivalente noutras partes. E,
acrescentemos, e precisamente na
medida em que um meio de graça é importante ou indispensável,
que ele
se acha necessariamente em todas as formas ortodoxas, de modo
apropriado ao contexto respectivo. Podemos resumir as
considerações precedentes nesta fórmula: a Verdade absoluta só
se encontra além de todas as suas expressões possíveis. As
expressões, enquanto tais, não pretendem ser atributos da
Verdade.
O afastamento relativo daquelas por referência a esta traduz ‑se
na sua diferenciação e multiplicidade, que forçosamente as
limitam.

A impossibilidade metafísica da detenção exclusiva da


verdade, por
uma qualquer forma doutrinal, pode ainda formular ‑se da
seguinte maneira, à luz dos dados cosmológicos que permitem
facilmente o recurso a
uma linguagem religiosa: não está em contradição com a
natureza de
Deus que este tenha permitido o declínio e, portanto, o fim de
certas civilizações, depois de lhes ter proporcionado milénios
de florescimento espiritual. Da mesma forma, o facto de toda a
humanidade ter entradocurto
período relativamente num ‑ de obscuridade, depois de milhares
de anos
de uma existência sã e equilibrada, continua a ser conforme ao
*modo de
agir+ de Deus. Pelo contrário, que Deus, querendo o bem da
humanidade, tivesse permitido que a imensa maioria dos homens
se corrompesse mesmo os mais dotados ‑ desde há milénios, sem
qualquer esperança,
nas trevas de uma ignorância mortal, e que, desejando salvar a
humanidade, tivesse escolhido um meio, material e
psicologicamente tão ineficaz
como uma nova religião que, muito antes de se dirigir a todos
os homens,
não só assumisse um carácter muito local e particularizado,
mas parcial 34
A Unidade Transcendente das Religiões

mente se corrompesse no seu meio de srcem, ou, enfim, que


Deus pudesse ter agido deste modo, eis uma conclusão abusiva
que não tem em
conta a natureza divina cuja essência é Bondade e
Misericórdia. A natureza de Deus pode ser terrível, mas não é
monstruosa. A teologia está longe
de o ignorar. Deus permitir que a cegueira humana provoque
heresias no
seio de civilizações tradicionais, isso é conforme às Leis
Divinas que regem a criação inteira. Mas Deus permitir a uma
religião, inventada por
um homem, conquistar uma parte da humanidade e manter ‑se,
durante
mais de um milénio, na quarta parte do Globo habitado,
enganando o
amor, a fé e a esperança de uma legião de almas sinceras e
fervorosas,
também isso é contrário às Leis da Misericórdia Divina ou, por
outras palavras, às da Possibilidade Universal. A Redenção
é um acto eterno que ‑não podemos situar nem no tempo
nem no espaço. O sacrifício de Cristo é disso manifestação ou
realização
particular no plano humano. Os homens puderam e podem
beneficiar da
Redenção tanto antes como depois da vinda de Jesus Cristo,
tanto fora
como dentro da Igreja visível. Se Cristo tivesse sido a
única manifestação do Verbo, supondo que tal
unicidade de manifestação fosse possível, o seu nascimento
teria tido como efeito reduzir num ápice o universo a cinzas.

Vimos acima que tudo o que se pode afirmar sobre os dogmas


se deve
aplicar igualmente aos meios de graça, como o são os
sacramentos: se a
Eucaristia é um meio de graça *primordial+, e portanto
indispensável, é
porque emana de uma Realidade Universal, onde vai buscar toda
a sua
realidade. Mas se é assim, a Eucaristia, como qualquer outro
meio de graça correspondente em outras formas tradicionais,
não pode ser única, pois
uma Realidade Universal não pode ter apenas uma manifestação,
à exclusão de outras, sem o que não seria universal. Aos que
objectam dizendo
que esse rito se reporta a toda ‑a humanidade pela simples
razão de que,
segundo o Evangelho, deve ser levado a *todos os povos+,
responderíamos que, no seu estado normal, pelo menos a partir
de certa época cíclica, o mundo se compõe de várias
humanidades distintas, que mais ou menos se ignoram, sendo ‑
sob certos aspectos e em certos casos ‑ a
35
Frithjof Schuon

delimitação exacta dessas humanidades uma questão bem


complexa, devido à intervenção de muitas condições cíclicas
excepcionais. Se sucedeu que grandes Profetas ou Avatâras,
conhecendo o valor universal da Verdade, tivessem negado
exteriormente tal ou tal forma de tradição, há que considerar,
por um lado, a razão imediata de tal atitude e,
por outro, o seu sentido simbólico, sobrepondo ‑se este àquela:
se Abraão,
Moisés e Cristo negaram os *paganismos+ do mundo que os
cercava,
é porque estes eram tradições que haviam perdido a sua razão
de
porser, sendo
vezes formas sem
de suporte a verdadeira vida espiritual e servindo
influências tenebrosas. Ora aquele que é *escolhido+, sendo
ele mesmo o
tabernáculo vivo da Verdade, não tem de se compadecer de
formas mortas, incapazes de desempenharem a sua primitiva
função. Por outro lado, a atitude negativa dos arautos da
Palavra de Deus é simbólica, e aí
se acha o seu sentido mais profundo e mais perfeitamente
verdadeiro.
Pois se tal atitude não pode evidentemente referir ‑se aos
núcleos esotéricos que sobreviveram no meio de civilizações
gastas e vazias de espírito,
ela é plenamente justificável quando aplicada a um facto
humano comum
‑ o da degenerescência ou *paganismo+ que se difunde no mundo
inteiro. Para citar um exemplo análogo: se o islão teve de
negar de certa maneira as formas monoteístas que o precederam,
isso teve uma razão imediata na limitação formal dessas
religiões. Está fora de dúvida que o
judaísmo já não podia servir de base tradicional à humanidade
do Próximo Oriente, visto que a forma desta religião havia
atingido um grau de
particularização que a tornava inapta a expandir ‑se. E, quanto
ao cristianismo, não só se particularizou muito rapidamente,
em sentido análogo,
sob a influência do mundo ocidental ‑ talvez sobretudo do
espírito roma
' Algumas passagens do Novo Testamento demonstram que o
*mundo+, para a tradição cristã, se identifica com o Império
Romano, representando o domínio providencial
de expansão e de vida para a civilização cristã. Foi assim que
São Lucas pôde escrever
‑ ou melhor, que o Espírito Santo pôde inspirar São Lucas a
escrever ‑ que *naqueles dias foi promulgado um edicto de César
Augusto para que todo o universo fosse recenseado+, a que
Dante faz alusão, no seu tratado sobre a monarquia, ao falar
do *recenseamento do género humano+ (in illa singulari generis
humani descriptione); e no
mesmo tratado: *Por estas palavras podemos compreender
claramente que a jurisdição
universal do mundo pertencia aos Romarios+ e ainda: *Portanto
afirmo que o povo romano... adquiriu... o império sobre todos
os mortais.+
36
A Unidade Transcendente das Religiões

no como também srcinou, na Arábia e em países adjacentes,


todo o
tipo de desvios que arriscavam inundar o Próximo Oriente, e
mesmo a índia, de muitas heresias bem distintas do
cristianismo primitivo e ortodoxo.
A Revelação islâmica, em virtude da autoridade divina inerente
a toda a
Revelação, tinha certamente o direito sagrado de pôr de lado
os dogmas
cristãos, na medida em que estes dessem srcem a desvios, que
não passavam de verdades esotéricas vulgarizadas e não
verdadeiramente adaptadas. Contudo, as passagens corânicas
referentes a cristãos, judeus, sabeus
e pagãos tinham sobretudo um valor simbólico que não visava
atingir, de
modo algum, a ortodoxia das tradições, servindo os respectivos
nomes
apenas para designar determinadas situações comuns da vida
humana. Por
exemplo, quando se afirma no Alcorão que Abraão não era judeu
nem
cristão, mas sim hanif (*ortodoxo+ por referência à Tradição
Primordial),
é evidente que os termos *judeu+ e *cristão+ só podem
aplicar‑se a atitudes espirituais genéricas, de que as
limitações formais do judaísmo e do
cristianismo são apenas manifestações particulares, portanto
exemplos.
Falamos de *limitações formais+ e não, como é óbvio, do
judaísmo e do
cristianismo em si mesmos, cuja ortodoxia não está em causa.
Voltando à
incompatibilidade relativa entre as formas religiosas ‑
sobretudo algumas
delas ‑, acrescentaremos que é forçoso que umas, até certo
ponto, interpretem mal as outras, porque a razão de ser de uma
religião reside, pelos
menos num certo sentido, no que a distingue das demais. A
Providência
Divina não admite amálgama entre as formas reveladas desde que
a humanidade se dividiu em *humanidades+ diferentes e se
afastou da Tradição Primordial, a Tradição única possível.
Assim, por exemplo, a má interpretação muçulmana do, dogma
cristão da Santíssima Trindade é
providencial, pois a doutrina encerrada neste dogma é
essencial e exclusivamente esotérica e não susceptível de
*exoterização+ em sentido específico: o islão devia portanto
limitar a expansão deste dogma, o que não prejudicou de modo
algum a, presença, no islamismo, da verdade universal
expressa pelo dogma em questão. Por outro lado, não será
talvez inútil
precisar aqui que a divinização de Jesus e de Maria, atribuída
indirectamente aos cristãos pelo Alcorão, dá lugar a uma
*Trindade+ que, de resto, este Livro não identifica, em lugar
nenhum, com a da doutrina cristã,
mas que não menos repousa em realidades como em primeiro lugar
a da
37

Iz@
Frithjof Schon

concepção da *Mãe de Deus+ *Corredentora+ doutrina não


exotérica
que, enquanto tal, não podia encontrar lugar na perspectiva
religiosa do
islão ‑ e em seguida a do marianismo de facto que, do ponto de
vista islâmico, constitui uma usurparão parcial do culto
devido a Deus. Existiu,
em algumas seitas do Oriente, certa mariolatria, contra a qual
o islão teve
de reagir tanto mais violentamente quanto ela se situava muito
perto do
paganismo árabe. Mas, por outro lado, segundo o sufi
Abd‑el‑Kati^m el‑Jili, a *Trindade+ mencionada no Alcorão é
susceptível de uma interpretação esotérica ‑ os gnósticos
concebiam, com efeito, o Espírito Santo
como *Mãe Divina+ ‑ e só então a exoterização ou alteração
deste sentido é censurada não só aos cristãos ortodoxos como
aos hereges
podemos adoradores
afirmar da Virgem. De outro ponto de vista,
‑ e a própria
existência dos referidos hereges o atesta ‑ que a *Trindade
corânica+
corresponde no fundo àquilo em que os dogmas cristãos ‑ por
inevitável
erro de adaptação ‑ se teriam tornado num meio árabe para o
qual não
haviam sido feitos. Agora, no que respeita ao dogma da
Santíssima Trindade, tal como o entende a ortodoxia cristã, a
sua rejeição pelo islão é
motivada, para além das razões de oportunidade tradicional,
por uma razão de ordem metafísica: é que a teologia cristã
entende por Espírito Santo não apenas uma Realidade puramente
principial, metacósmica, divina,
mas também o reflexo directo desta Realidade na ordem
manifesta, cósmica, criada. Na verdade, o Espírito Santo,
segundo a definição da teologia, compreende, para além da
ordem principial ou divina, o cume ou
centro luminoso da Criação total ou, por outras palavras, Ele
abarca a
manifestação informal. Esta é, para falar em termos hindus, o
reflexo directo e central do Princípio Criador, Purusha, na
Substância Cósmica,
Prakriti; tal reflexo, que é a Inteligência Divina manifesta,
Buddhi ‑ no
sufismo Er‑Rúh e El ‑Aql, ou ainda os quatro Arcanjos que,
análogos aos
Devas e aos seus Shaktis, representam outros tantos aspectos
ou funções
desta Inteligência ‑, tal reflexo, como dizíamos, é o Espírito
Santo na
medida em que ilumina, inspira e santifica o homem. Quando a
teologia
identifica este reflexo com Deus, tem razão no sentido em que
Buddhi ou
Er‑Rúh ‑ o Metatron da Cabala ‑ *é+ Deus na sua relação
essencial,
portanto *vertical+, ou seja, no sentido em que um reflexo é
*essencialmente+ idêntico à sua causa. Quando pelo contrário a
mesma teologia dis 38
A Unidade Transcendente das Religiões

tingue os Arcanjos de Deus ‑Espírito Santo, vendo neles apenas


criaturas,
tem ainda razão na medida em que distingue o Espírito Santo,
reflectido
na Criação, do seu Protótipo principial e divino. Mas é
inconsequente ao
ignorar que os Arcanjos são aspectos ou funções deste centro.
supremo da
Criação, que é o Espírito Santo enquanto Paracleto. Não é
possível, do
ponto de vista teológico, admitir, por um lado, a diferença
entre um Espírito Santo divino, principial, metacósmico, e um
Espírito Santo manifesto
ou cósmico, portanto *criado+, e, por outro, a identificação
deste último
com os Arcanjos. O ponto de vista teológico não pode, com
efeito, acumular duas perspectivas diferentes em um só dogma,
de onde a divergência entre o cristianismo e o islão: para
este último, a *divinização+ cristã
do Intelecto Cósmico é o mesmo que pôr em *pé de igualdades
(shirk)
com Deus algo que é *criado+, mesmo sendo a manifestação
informal, angélica, paradisíaca, paraclética. Fora esta
questão do Espírito Santo, o islão não se oporia à ideia de
que existe na Unidade Divina um aspecto ternário. O que
rejeita é a ideia de que Deus é exclusiva e absolutamente
uma Trindade, pois isso, do ponto de vista muçulmano, é
atribuir a Deus
uma relatividade ou atribuir ‑lhe um aspecto relativo de modo
absoluto. Quando afirmarmos que uma forma religiosa é
feita, se não para tal raça, pelo menos para uma colectividade
humana determinada por condições particulares ‑ condições que
podem ser, como no mundo muçulmano, de natureza bem complexa ‑,
não negamos o facto de os cristãos se
acharem entre quase todos os povos. Para compreendermos a
necessidade
de uma forma tradicional, não se trata de sabermos se há ou
não, no seio
da colectividade para a qual esta forma foi feita, indivíduos
ou grupos susceptíveis de se adaptarem a tiffia outra forma ‑ o
que nunca se poderia

poderia ‑, mas unicamente de sabermos se a colectividade total


discutir
habituar‑se a isso. Por exemplo, para poder pôr em dúvida a
legitimidade
do islão, não basta verificar que há árabes cristãos, pois a
única questão
que se coloca é a de saber no que se tornaria um cristianismo
professado
pela colectividade árabe no seu todo. Todas estas
considerações ajudarão a compreender que a Divindade
manifesta a Sua Pessoalidade através de tal ou tal Revelação e
a Sua Suprema Impessoalidade através da diversidade de formas
do Seu Verbo.
39
Frithjof Schuon
Chamámos a atenção, mais acima, para o facto de, no estado
normal da
humanidade, esta se compor de vários mundos distintos. Ora,
alguns obJectarão sem dúvida que Cristo jamais mencionou tal
delimitação do mundo, nem mesmo a existência de um esoterismo,
ao que responderemos
que também não explicou aos judeus como deveriam interpretar
as suas
palavras, que todavia os escandalizavam. De resto, o
esoterismo dirige ‑se
precisamente àqueles que têm ouvidos para ouvir+ e que, por
isso, não
têm minimamente necessidade dos esclarecimentos ou provas que
podem
desejar aqueles para quem o esoterismo não se dirige. Os
ensinamentos
que Cristo quis reservar para os seus discípulos, ou para
alguns deles, não
tiveram de ser explicitados nos Evangelhos, pois estão neles
implícitos de
forma sintética e simbólica, a única que as Escrituras
Sagradas admitem.
Por outro lado, Cristo, na sua qualidade de Encarnação Divina,
falava necessariamente de modo absoluto, devido a uma certa
subjectivação do
Absoluto, que é própria dos Homens de Deus e sobre a qual não
‑nos podemos alargar neste momento.' Não tinha, pois, de
atender a contingências
especificar que existem fora do domínio da sua missão, para
mundos
tradicionais *sãos+ ‑ para nos servirmos de termos do Evangelho
‑ para
além do mundo *doente+ a que a sua mensagem se dirigia. Também
não
havia de explicar que, ao designar ‑se como *o Caminho, a
Verdade e a
Vida+, em sentido absoluto, principal, não queria desse modo
limitar a
manifestação universal do Verbo; afirmava, sim, a sua
identidade essencial com este último, cuja vida cósmica vivia
de modo subjectivo.' Daí, a
Renê Guérion explica esta *subjectivação+ nos seguintes
termos: *A vida de alguns
seres, na sua aparência individual, apresenta factos
correspondentes aos da ordem cósmica, sendo aquela, de algum
modo, do ponto de vista exterior, imagem ou reprodução
destes. Mas, do ponto de vista interior, a relação é inversa,
pois, sendo estes seres realmente o Mahâ ‑Purusha, os factos
cósmicos são realmente modelados sobre a sua vida,
ou, mais exactamente, sobre aquilo de que a sua vida é
expansão directa, sendo os factos cósmicos por si mesmos
apenas expressão por reflexo.+ (Études traditionnelles,
Março 1939.) Citemos o adágio sufi: *Ninguém pode encontrar
Allâh sem antes ter encontrado o
Profeta+. Ou seja: ninguém chega a Deus sem ser através do Seu
Verbo, qualquer que
seja o modo de revelação deste último. Ou ainda, num sentido
mais especificamente
iniciático: ninguém alcança o *Si+ divino senão através da
perfeição do *Eu+ humano.
Importa sublinhar que, quando se diz *Eu sou o Caminho, a
Verdade e a Vida+, isso é
uma verdade absoluta para o Verbo Divino (*o Cristo+) e
relativa para a sua manifes 40
A Unidade Transcendente das Religiões

impossibilidade de um taX ser se considerar a si mesmo do


simples ponto
de vista das existências relativas, embora este ponto de vista
se ache compreendido em toda a natureza humana e se deva
afirmar
Mas issocom incidência.
em nada contribui para a perspectiva especificamente
exotérica. 'Para voltarmos às considerações precedentes,
teremos ainda de dizer
que, desde a expansão dos Ocidentais pelo mundo, a compreensão
do
exoterismo se tornou um facto importante que evitava
comprometer a religião cristã aos olhos de quem pensasse que.
tudo fora desta religião não
passava de um triste paganismo. Não se poderia censurar ao
ensinamento
de Cristo uma qualquer omissão, pois ele dirigiu ‑se à Igreja e
não ao
mundo moderno, que vai buscar o que tem à ruptura com essa
Igreja,
a sua infidelidade a Cristo. Todavia, o Evangelho contém
algumas alusões
aos limites da missão de Cristo e à existência de mundos
tradicionais não ‑assimiláveis ao paganismo: *Não são os sãos
que necessitam de médico,
mas sim os doentes+, e ainda: *Pois não vim chamar os justos,
mas sim os
pecadores+ (Mat.,9:12‑13) e, por fim, estes versículos que põem
em evidência o que é o paganismo: *Não vos preocupeis,
portanto, dizendo:
Que comeremos ou que beberemos ou de que nos vestiremos? Pois
são os
Gentios (os *pagãos+) que buscam todas estas coisas+
(Mat.,6:31‑32).' Poderíamos citar, no mesmo sentido, as
seguintes palavras: *Em verdade vos
digo, nem mesmo em Israel encontrei uma fé tão grande. É por
isso que
vos digo que muitos virão do Oriente e do Ocidente e tomarão
lugar no
banquete com Abraão, Isaac e Jacob, no Reino dos Céus,
enquanto os filhos do Reino (Israel, a Igreja) serão lançados
às trevas exteriores+
(Mat.,8:10‑12) e: *Quem não é contra nós, é por nós+
(Marc.,9:40). Dissemos acima que Cristo, na sua qualidade
de Encarnação divina e
conforme à essência universal do seu ensinamento, falava
sempre de modo absoluto, isto é, identificando simbolicamente
certos factos
princípios quecom ostraduzem e sem nunca se colocar no ponto
eles
de vista daquele para quem os factos apresentam algum
interesse em si mesmos .2 po_

tação humana (*Jesus+). Uma verdade absoluta não se pode


limitar a um ser relativo.
Jesus é Deus, mas Deus não é Jesus. O cristianismo é divino,
mas Deus não é cristão.
' De facto, o paganismo antigo, incluindo o dos Árabes,
caracterizava‑se pelo seu materialismo prático, não sendo
possível em boa ‑fé apontar o mesmo defeito às tradições
orientais que se conservaram até aos nossos dias.
Na linguagem de Cristo, a destruição de Jerusalém identifica ‑se
simbolicamente com
41

Friffijof Schuon

demos ilustrar uma tal atitude com o exemplo seguinte: quando


falamos
do Sol, quem vai pensar que o artigo definido colocado antes
da palavra
*Sol+ implica a negação da existência, no espaço, de quaisquer
outros
sóis? O que permite falarmos no Sol, sem especificarmos que se
trata de
um entre outros sóis, é precisamente o facto de, para o nosso
mundo,
o nosso Sol ser *o Sol+ e só a esse título reflectir a
Unicidade Divina.
Ora, a razão suficiente de uma Encarnação Divina é o carácter
de unicidade que a Encarnação recebe do que ela encarna e não
o carácter de facto que ela necessariamente recebe da
manifestação?

o julgamento final, o que é bem característico do modo de ver


sintético e, poderíamos
dizer, *essencial+ ou *absoluto+ do Homem ‑Deus. O mesmo vale
para as suas profecias sobre a descida do Espírito Santo:
englobam simultaneamente ‑ mas não ininteligivelmente ‑ todos
os modos de manifestação paraclética, donde nomeadamente a do
profeta Maomé, que foi
ou sua manifestação a própria
cíclica. personificação
Aliás, o Alcorão é do Paracleto
chamado uma
*descida+ (tanzil), como o é a epifania do Espírito Santo no
Pentecostes. Poderíamos chamar ainda a atenção para o facto de
que, se
a segunda vinda de Cristo, no fim do nosso ciclo, tiver para
os homens um alcance universal, no sentido de que não mais se
referirá a *uma humanidades na comum acção
tradicional do termo, mas sim ao género humano como a um todo,
o próprio Paracleto, na sua grande epifania, deverá manifestar
esta universalidade por antecipação, pelo
menos em relação ao mundo cristão, e é por isso que a
manifestação cíclica do Paracleto, ou a sua *personificação+
em Maomé, teve de acontecer fora da cristandade, quebrando
assim uma certa limitação *particularista+.
' Foi o que Cristo quis dizer ao afirmar que *só Deus é bom+.
Implicando o, termo
*bom+ todos os sentidos positivos possíveis, portanto toda a
Qualidade Divina, devemos igualmente entender aqui que *só
Deus é único+, o que se conjuga com a afirmação doutrinal do
islão: *Não há outra divindade (ou realidade) senão (só) Deus
(a Realidade). *A quem quiser confirmar a legitimidade de tal
interpretação das Escrituras,
responderemos com mestre Eckhart que *o Espírito Santo ensina
toda a verdade. Há,
de facto, um sentido literal que o autor tem em vista. Mas,
como Deus é o Autor da
Sagrada Escritura, todo o sentido verdadeiro é ao mesmo tempo
sentido literal. Pois
tudo o que é verdadeiro provém da própria Verdade, está nela
contido, dela deriva e é
por ela desejado+. Citemos igualmente esta passagem de Dante
por referência ao mesmo assunto: *As Escrituras podem ser
entendidas e devem ser expostas segundo quatro
sentidos. Um é chamado literal... O quarto é chamado
anagógico, ou seja, que ultrapassa o sentido (sovrasenso). É o
que acontece quando se expõe espiritualmente uma
Escritura que, sendo verdadeira em sentido literal, significa
além disso as coisas superiores da Glória Eterna, como podemos
ver no Salmo do Profeta onde se diz que,
quando o Povo de Israel saiu do Egipto, a Judeia se tornou
santa e livre. Embora seja
claramente verdade que assim foi segundo a letra, o que se
entende espiritualmente
42
A Unidade Transcendente das Religiões
As relações entre o exoterismo e o esoterismo reduzem ‑se,
em última
análise, às que existem entre a *forma+ e o *espírito+,
presentes em todo
o enunciado e em todo o símbolo. Tais relações devem
evidentemente
existir no interior do próprio esoterismo e podemos afirmar
que só a autoridade espiritual se coloca ao nível da Verdade
nua e integral. O *espírito+, ou seja, o conteúdo supraformal
da forma, que é a *letra+, manifesta
sempre uma tendência a quebrar as limitações formais e a
pôr‑se, por consequência, em contradição aparente com estas: é
assim que podemos considerar toda a readaptação tradicional,
portanto toda a Revelação, como
fazendo as funções de esoterismo face à forma tradicional
precedente, de
modo que, para citar um exemplo, o cristianismo é esotérico
por referência à forma judaica e o islamismo por referência às
formas judaica e cristã, o que, bem entendido, só vale do
ponto de vista particular em que
aqui nos colocamos e seria totalmente falso se o entendêssemos
literalmente. Aliás, se o islamismo se distingue, pela sua
forma, das duas outras
tradições monoteístas ‑ enquanto é formalmente limitado ‑,
estas comportam igualmente um aspecto de esoterismo em relação
àquele e a mesma reversibilidade de relação existe entre o
cristianismo e o judaísmo,
embora a relação que indicámos antes seja mais directa que a
segunda,
desde o momento que foi o islamismo quem quebrou, em nome do
*espírito+, as *formas+ precedentes e que foi o cristianismo
quem desempenhou a mesma função face ao judaísmo e não
inversamente. Mas para voltarmos à consideração puramente
principal das relações entre a forma e o
espírito, nada faríamos de melhor do que citar, a título de
ilustração, uma
passagem do Tratado da Unidade (Risâ1at ‑el ‑Ahadiyah) atribuído
a Mohyiddin ibn Arabi, mostrando precisamente esta função
esotérica
espírito+,que consiste
como dizíamosem mais
*quebrar a forma
acima. em ‑nome do
Esta passagem é a
seguinte: *A maioria dos iniciados diz que o
conhecimento de Allâh vem na sequência da extinção da
existência (fanâ
el‑wujúd) e da exti nção desta extinção (fanâ el ‑fanâ). Ora,
esta opinião é
totalmente falsa... O conhecimento não exige a extinção da
existência (do
eu) ou a extinção desta extinção. Pois as coisas não têm
existência alguma
e o que não existe não pode deixar de existiras Ora, as ideias
fundamentais
não é menos verdade, ou seja, que quando a alma sai do pecado,
ela se torna santa e
livre, no seu poder.+ (Convívio, 11, l.)
43
Frithiof Schuon

tais que Ibn Arabi rejeita, de resto com intenção puramente


especulativa
ou metódica, são contudo aceites por aqueles mesmos que
consideram Ibri
Arabi como o maior dos mestres. E, de modo análogo, todas as
formas
exotéricas são *ultrapassadas+ ou *quebradas+, portanto
*negadas+ em
certo sentido pelo esoterismo que é o primeiro a reconhecer a
perfeita legitimidade de todas as formas de Revelação e que é
também o único a poder reconhecer tal legitimidade. *O
Espírito sopra aonde quer+ ‑ e, em razão da sua universalidade,
ele quebra a forma. Contudo, é obrigado a revestir ‑se dela no
plano formal. *Se queres atingir o núcleo+, afirma mestre
Eckhart, *quebra primeiro
a casca.+

44
TRANSCENDENCIA E UNIVERSALIDADE DO ESOTERISMO

Antes de entrármos propriamente na


matéria, pareceu ‑nos indispensável darmos alguns
esclarecimentos sobre as
expressões mais exteriores do esoterismo, embora tivéssemos
preferido deixar de lado este aspecto contingente da questão
para nos atermos unicamente ao essencial. Mas como algumas
contingências podem dar srcem a contestações de princípio,
vemo‑nos forçados a debatê ‑las um pouco, ainda que
demorando nisso o menos possível. Com efeito, poderiam
surgir dificuldades pelo facto de, ao sabermos que o
esoterismo é ‑ por definição e natureza ‑ reservado a uma elite
intelectual
forçosamente restrita, constatarmos que as organizaçêos
iniciáticas desde
sempre contaram com um número de membros relativamente
elevado. Foi
esse, por exemplo, o caso dos pitagóricos e continua a ser a
fortiori o das ordens iniciáticas que, apesar do seu declínio,
ainda subsistem nos nossos dias,
como acontece com as confrarias muçulmanas. Tratando ‑se de
organizações
muito fechadas, serão quase sempre ramos ou núcleos de
confrarias mais
vastas, e não confrarias no seu todo, salvo excepções sempre
possíveis em
condições particulares. A explicação desta participação mais
ou menos popular no que a tradição comporta de mais interior ‑
e, como tal, de mais subtil ‑ é que o esoterismo deve
integrar‑se para poder existir num dado mundo ou numa
modalidade desse mundo, o que põe inevitavelmente em causa
elementos muito numerosos da sociedade. Daí que, em tais
confrarias, haja
a distinção entre círculos interiores e exteriores, sendo os
membros destes úl 45
Frithjof Schuon

timos quase impedidos de tomar consciência do verdadeiro


carácter da organização a que pertencem, dentro de certo grau,
considerando ‑a simplesmente
exterior, a única que lhes écomo uma forma
viável. Para da tradição
retomarmos o exemplo das confrarias muçulmanas, é o que
explica a distinção entre o membro que tem simplesmente o grau
de mutabârik (*abençoado+ ou *iniciado+), quase não saindo da
perspectiva exotérica que se propõe
viver intensamente, e o membro de elite que tem o grau de
sâlik (*viajante+)
e que segue o caminho traçado pela tradição iniciática. É
verdade que, nos
nossos dias, os verdadeiros sâlikún (*viajantes+) que se acham
em número
reduzidíssimo, enquanto os mutabârikún (*abençoados+) são
muito numerosos dentro das confrarias, contribuindo para
abafar a verdadeira espiritualidade, através de incompreensões
múltiplas. Em qualquer dos casos, os mutabârikân, mesmo quando
ignorantes da realidade transcendente da sua
confraria, não deixam, em condições normais, de tirar grande
proveito da
barakah (*bênção+ ou *influência espiritual+) que os cerca e
protege, na medida do seu fervor. Pois, a expansão de graças
no seio do esoterismo, pela
própria universalidade deste, atinge todos os graus da
civilização tradicional
e não se detém no limite das formas, tal como a luz, que é
incolor, não deixa
de penetrar num corpo transparente só por ele ser colorido.
Contudo, esta participação do povo ‑ homens que representam a
média
da colectividade ‑ na espiritualidade da elite não se explica
unicamente por
razões de oportunidade, mas também, e sobretudo, pela lei da
polaridade ou
da compensação segundo a qual *os extremos tocam ‑se+, e por
isso se diz
que *a voz do povo é a Voz de Deus+ (Vox populi, Vox Dei). O
povo, enquanto portador inconsciente e passivo dos símbolos, é
como que a periferia
ou o reflexo passivo ‑feminino da elite, que possui e transmite,
ela sim, os
mesmos símbolos de modo activo e consciente. Isso explica
também a curiosa e quase paradoxal afinidade entre o povo e a
elite. Por exemplo,
o confucionismo o taoísmo é esotérico
é simultaneamente e e
exotérico popular,
mais ouenquanto
menos
aristocrático e letrado, ou, dando ainda outro
exemplo, as confrarias sufi sempre tiveram, a par da sua
faceta elitista, uma
conotação popular correlativa. Isso porque o povo não tem
somente uma
função periférica, mas também uma função de totalidade,
correspondendo
esta analogicamente ao centro. Poderíamos dizer que as funções
intelectuais
do povo são o artesanato e o folclore, representando o
primeiro o método
46
A Unidade Transcendente das Religiões
ou a realização, e o segundo a doutrina. O povo reflecte assim
passiva e colectivamente a função essencialmente da elite, ou
seja, a transmissão do aspecto propriamente intelectual da
tradição, aspecto cujas vestes são o simbolismo em todas as
suas formas. Um outro ponto que devemos elucidar, antes de
entrarmos mais directamente na matéria, é o da universalidade
das tradições, ideia que, sendo de
ordem ainda muito exterior, está sujeita a todo o tipo de
contingências históricas e geográficas, embora haja quem não
hesite em duvidar da sua existência. Assim, ouvimos contestar
em algum lado que o sufismo admite esta
ideia. Mohyiddin ibn Arabi tê ‑la ‑ia negado, pois foi ele quem
escreveu que o
islão é o eixo das outras religiões. Ora, toda a forma de
tradição é superior
às outras de uma certa maneira, e tal maneira define mesmo a
razão suficiente dessa forma. É sempre essa maneira que aquele
que fala em nome da
sua religião tem em vista. O que conta, no reconhecimento das
outras formas de tradição, é o facto ‑ exotericamente
inconcebível ‑ deste reconhecimento, e não o modo ou o grau do
mesmo. O Alcorão oferece aliás o protótipo desta maneira de
viver: por um lado, afirma que todos os Profetas são
iguais e, por outro, diz que uns são superiores aos outros, o
que significa, segundo o comentário de lbn Arabi, que cada
Profeta é superior aos outros
por uma
certa particularidade que lhe é própria, portanto de uma
maneira.
Ibn Arabi era de cultura muçulmana e devia a sua realização
espiritual à barakah islâmica e aos mestres do sufismo, numa
palavra, à forma islâmica: teve, portanto, de adoptar este
ponto de vista, que esclarece como uma forma
comporta certa superioridade face às outras formas. Se tal
superioridade relativa não existisse, os hindus que se tomaram
muçulmanos no decurso dos
séculos jamais teriam tido qualquer razão positiva para agir
desse modo.
O facto de o islão constituir a última forma do Sanâtana ‑Marma
neste mahâ‑yuga ‑ para falar em termos hindus ‑ implica que esta
forma possui
uma certa superioridade contingente sobre as formas
precedentes. Do mesmo modo, o facto de o hinduísmo ser a forma
de tradição mais antiga actualmente viva implica que possui
certa superioridade ou *centralidade+ em relação às formas
posteriores. Não há aí qualquer contradição, pois as maneiras
de ver são diferentes de um lado e de outro. Igualmente, o
facto de São Bernardo ter pregado as Cruzadas, ignorando
a verdadeira natureza do islão, em nada contradiz o seu
conhecimento esoté 47
Frithjof Schuon

rico. Não se trata de sabermos se São Bernardo entendia ou não


o islão, mas
sim de sabermos se, em caso de contacto directo e seguido com
esta forma
de Revelação, ele a teria entendido como a entendeu a elite
dos Templários,
quando colocada nas condições requeridos. A espiritualidade de
um homem
não pode depender de conhecimentos históricos ou geográficos
ou de outros
conhecimentos *científicos+ da mesma ordem. Podemos assim
afirmar que o'
universalismo dos esoteristas é virtual quanto às suas
aplicações possíveis e
que não se torna efectivo sem que as circunstâncias o permitam
ou imponham uma aplicação determinada. Por outras palavras, só
através do contacto com outra civilização é que este
universalismo serigorosa,
aí qualquer lei actualiza.e Mas não existe
os factores que determinarão em
tal esoterista a
aceitação de tal forma estranha podem ser muito diferentes
consoante os casos. Não é evidentemente possível definir com
exactidão o que constitui um
contacto com uma forma estranha, ou seja, o que é suficiente
para determinar a compreensão de uma tal forma'.
Podemos também chamar a atenção para os espirituais que o
sufismo designa pelo termo
Afrad (*isolados+, sina. Fard): estes, sempre raros por
definição, caracterizam ‑se por possuírem a iniciação efectiva
de uma maneira espontânea e sem que tenham de ser iniciados
de forma ritual. Ora, tais homens, por terem obtido o
Conhecimento sem exercício nem
estudo, podem ignorar as coisas de que pessoalmente não
necessitam. Não tendo sido iniciados, não importa que saibam o
que significa a iniciação em sentido técnico. Por isso, falam
ao jeito dos homens da *Idade de Ouro+ ‑ época em que a
iniciação ainda não era
necessária ‑ mais do que à maneira dos instrutores espirituais
da Idade de Ferro. De resto, não tendo seguido um cantinho de
realização, não podem assumir o papel de mestres
espirituais. Da mesma forma, se Shú Râmakrislina não previu
o desvio da sua linhagem espiritual,
foi porque, ignorando o espírito ocidental moderno, lhe era
impossível interpretar certas
visões num sentido que não fosse simplesmente o hindu.
Acrescentemos aliás que o referido desvio, de natureza
doutrinal e de inspiração ocidental moderna, não desfez o
efeito da
graça de Shri Râmakrishna, mas a esta se somou como simples e
supérflua *decoração+,
portanto como um nada espiritual. Por outras palavras, o facto
de a bhakti do santo ter sido transformada numa pseudo ‑jnâna de
estilo filosófico ‑religioso, portanto europeia, em
nada impediu a influência espiritual de ser aquilo que é. Do
mesmo modo, se Shri Rãmakrishna queria no fundo difundir a sua
bhakti, de acordo com certas condições particulares de fim
cíclico, isso é independente das formas que pôde assumir o
zelo de alguns dos
seus discípulos. Esta vontade de se entregar totalmente
assemelha
de Cristo,aliás o santo
de modo de Dakshineshwar
que tudo o que pode serà dito
família espiritual
da natureza
particular da radiação crística pode também aplicar ‑se à
radiação do Paramahanua: E a
48
A Unidade Transcendente das Religiões
Devemos agora responder mais explicitamente à questão de
quais as
principais verdades que o exoterista deve ignorar, sem ter
expressamente
de as negar'. Ora, entre os conceitos inacessíveis ao
exoterismo, o mais
importante é talvez, pelo menos em certo sentido, o da
gradação da Realidade Universal: a Realidade afirma ‑se por
graus, sem deixar de ser una,
achando‑se os graus inferiores desta afirmação absorvidos nos
graus superiores, por integrarão ou síntese metafísica. É a
doutrina da ilusão cósmica
luz brilhou nas trevas, e as trevas não a compreenderam.
1 *O formalismo, instituição do homem médio, permite a este
atingir a universalidade... É justamente ele que é objecto da
shari'ah ou lei sagrada do islamismo... O homem médio
estabelece em redor de cada um uma espécie de neutralidade que
garante
todas as individualidades, obrigando ‑as a trabalhar para
todos... O islão como religião
é a via da unidade e da totalidade. O seu dogma fundamental
chama‑se Et ‑Tawhide, isto é, a unidade ou a acção de unir. Como
religião universal, supõe graus, mas cada um
desses graus é verdadeiramente o islão, ou seja, não importa
que aspecto do islão revela os mesmos princípios. As suas
fórmulas são extremamente simples, mas o número
das suas formas é incalculável. Quanto mais numerosas as
formas, mais perfeita é a lei.
É‑se muçulmano quando se segue o destino, ou seja, a razão de
ser... A sentença ex
cathedra do mufti tem de ser clara, compreensível a todos,
mesmo a um negro iletrado.
Ele não tem o direito de se pronunciar sobre outra coisa que
não seja um lugar ‑comum
da vida prática. Não o faz nunca, aliás, tanto mais que pode
iludir questões que não
pertencem à sua competência.
entre as questões sufitas É a clara e conhecida limitação
e charaítas que permite ao islão ser esotérico e exotérico sem
nunca se contradizer.
É por isso que nunca há conflitos sérios entre a ciência e a
fé nos muçulmanos que entendem a sua religião. A fórmula de
Et‑Tawhid ou do Monoteísmo é o lugar ‑comum
charaíta. O alcance que se dá a esta fórmula é uma questão
puramente pessoal, pois
deriva do sufismo. Todas as deduções que se possam fazer desta
fórmula são mais ou
menos boas, desde momento que não destruam o sentido literal,
Pois então estaremos
a destruir a unidade islâmica, ou seja, a sua universalidade,
a sua faculdade em se
adaptar e convir a todas as mentalidades, circunstâncias e
épocas. O formalismo é rigoroso. Não existe superstição, mas
sim uma linguagem universal. Como a universalidade
é o princípio e a razão de ser do islão e como, por outro
lado, a linguagem é o meio de
comunicação entre os seres dotados de razão, segue ‑se que as
fórmulas exotéricas são
tão importantes no organismo religioso como as artérias no
corpo físico... A vida não é
de modo algum divisível. O que a faz parecer assim é o facto
de ela ser susceptível de
gradação. Quanto mais a vida do eu se identifica com a vida do
não‑eu, tanto mais intensamente se vive. A transfusão do eu em
não‑eu faz ‑se pelo dom mais ou menos ritual, consciente ou
voluntário. Facilmente se compreende que a arte de dar é o
principal arcano da Grande Ob ra+ (Abul ‑Hadi, *L'Universalité en
'Islam+, em Le Voile
d'Isis, Janeiro de 1934).
49
Frithjof Schuon

ca: o mundo não e apenas mais ou menos imperfeito ou efémero,


e sim
desprovido de existência face à Realidade absoluta, pois a
realidade do
mundo limitaria a de Deus, o único que *é+. Mas o Ser em si,
que mais
não é do que o Deus pessoal, é por sua vez ultrapassado pela
Divindade
impessoal ou suprapessoal, o Não ‑Ser, de que o Deus pessoal ou
o Ser é
apenas uma primeira determinação a partir da qual se
desenvolvem todas
as determinações secundárias que constituem a Existência
Cósmica. Ora,
o exoterismo não pode admitir nem a irrealidade do mundo nem a
realidade exclusiva do Princípio Divino nem sobretudo a
transcendência do
Não‑Ser em relação ao Ser, que é Deus. Por outras palavras, o
ponto de
vista exotérico não pode aceitar a transcendência da Suprema
Impessoalidade Divina de que Deus é a afirmação pessoal. Estas
verdades são muito
elevadas e, por isso, muito subtis e complexas para o simples
entendimento racional. Tornam ‑se de difícil acesso a uma
maioria e pouco susceptíveis de formulação dogmática. Outra
ideia que o exoterismo não admite é
a da imanência do Intelecto em todos os seres, Intelecto esse
que mestre
Eckhart definia como *incriado e incriável+'. Esta verdade não
se pode
evidentemente integrar na perspectiva exotérica, não mais que
a ideia da
realização metafísica pela qual o homem toma consciência do
que na realidade jamais deixou de ser, a saber: a identidade
essencial como o Princípio Divino, o único que é real. O
exoterismo, por seu lado, vê ‑se obri Sabe ‑se que alguns
textos eckhartianos, que ultrapassam o ponto de vista
teológico, escapando assim ao controlo das autoridades
religiosas, foram por esta condenados. Se este
veredicto podia ser, de algum modo, legítimo por razões de
oportunidade, não o era certamente pela sua forma; e, por um
curioso feed‑back, João XX11, que emitiu essa bula, foi
obriga o por sua vez a retractar ‑se de uma opinião que ele
mesmo avia prega n
a sua autoridade ameaçada. Eckhart só se retractou por uma
questão de princípio, por
simples obediência e antes ainda de conhecer a decisão papal.
Por isso, os seus discípulos
não fizeram que
acrescentar muito
umcaso da o
deles, referida bula, e achamos oportuno
beato Henrique Suso, teve uma visão, depois da morte de
Eckhart, do *Bem ‑Aventurado
Mestre, transformado em Deus, em superabundante
magnificência.+
' O sufi Yahya Mu'adh Er~Râzi afirma que *o Paraíso é a prisão
do sábio assim como o
mundo é a prisão do crente+. Por outras palavras, a
manifestação universal (el ‑khalq,
ou o samsâra hindu), com o seu Centro Beatífico (Es ‑Samawât, ou
o Brahma ‑loka),
é metafisicamente uma (aparente) limitação (da Realidade
não‑manifesta: A11^ Brahma), tal como a manifestação formal é
uma limitação (da Realidade informal, mas ainda manifesta:
Es‑Samawât, Brahma‑loka) do ponto de vista individual ou
esoterista.
50

A Unidade Transcendente das Religiões


gado a manter a distinção entre o Senhor e o seu servo, para
já não falarmos das acusações de panteísmo que os profanos
fazem à ideia Meta física da identidade essencial, que os
dispensa aliás de qualquer esforço de
e compreensão Na verdade, o panteísmo consiste na
admissão de uma continuidade entre o Infinito e o finito, que
não pode ser concebida sem primeiro admitir mos uma
identidade substancial entre o Princípio Ontológico ‑ presente
em todo o teísmo ‑ e a ordem manifesta, concepção que pressupõe
uma ideia substancial, portanto falsa, do Ser; ou, então, sem
confundirmos a identidade essencial da manifestação e do Ser
com uma identidade substancial. É nisso, e só nisso, que
consiste o panteísmo. Mas parece que algumas inteligências são
irremediavelmente refractárias a uma verdade tão simples; a
menos que alguma paixão ou interesse as leve a agarrarem ‑se a
um i instrumento de polémica tão cómodo como o termo
panteísmo, que permite lançar uma dúvida geral sobre certas
doutrinas consideradas incómodas sem que alguém se dê ao
trabalho de as examinar em si mesmas'.
De qualquer modo, uma tal formulação é excepcional; o
esoterismo está normalmente implícito e não explícito, isto é,
a sua expressão normal tem o seu ponto de partida nos símbolos
da Escritura,
sufismo, de de
falamos modo que, para
*Paraíso+ retomarmos
servindo o exemplo
‑nos da do
terminologia
corâníca, para designar estados que se situam ‑ como o *Paraíso
da Essência+ (Jannat edh ‑Dhât) @ para além de toda a realidade
cósmica e, mais ainda, de toda a determinação individual. Se,
portanto,*//* aquele sufi fala do *Paraíso+ como sendo a
*prisão do iniciado+, aborda ‑o do ponto de vista ordinário e
cósmico, que é o da perspectiva religiosa, e é obrigado a
fazê‑lo quando quer pôr em evidência a diferença essencial
entre as vias *individual+ e *universal+ ou *cósmica+ e
*metacósmica+. Não podemos, pois, esquecer que o *Reino dos
Céus+ do Evangelho, tal como o *Paraíso+ (@ànnah) do Alcorão,
não designa apenas estados condicionados, mas também aspectos
do 1ncondiciõnado de que tais estados são apenas os reflexos
cósmicos mais directos. Para voltarmos à citação de Yahya
Mu'adh Er‑Râzi, encontramos nas sentenças conde nadas de
mestre Eckhart um ensamento análogo: *Os que não procuram nem
a fortuna, nem as honras, nem a utilidade, nem a devoção
interior, nem a santidade, nem a recom pensa, nem o reino dos
Céus, mas a tudo renunciam, mesmo ao que lhes pertence, é em
tais homens que Deus é glorificados ‑ Esta sentença, como a de
Er‑Râzi, não exprime outra coisa senão a negação metafísica da
individualidade na realização da União. O *panteísmo+ é o
grande recurso de todos os que querem sem esforço iludir o
esote rismo e pensam entender por exemplo um texto metafísico
ou iniciático só porque co nhecem gramaticalmente a lingua em
que está escrito. Em geral, que dizer do vazio das
51
Frithjof Schuon

Mesmo que a ideia de Deus mais não fosse do que uma concepção
da
Substância Universal (matéria ‑prima) e o Princípio Ontológico
estivesse
assim fora de causa, a acusação de panteísmo seria ainda
injustificada, visto que a matéria ‑prima permaneceria sempre
transcendente e virgem por
referência às suas produções. Se Deus é concebido como a
Unidade Primordial, a Essência Pura, nada lhe pode ser
substancialmente idêntico.
Mas, ao qualificar ‑se como panteísta o conceito da identidade
essencial,
nega ‑se ao ‑mesmo
atribuindo se‑lhestempo
uma relatividade às coisas,
realidade autónoma em relação ao Ser ou à Existência, como se
houvesse
duas realidades essencialmente distintas, duas Unidades ou
Unicidades.
A consequência fatal de um semelhante raciocínio é o
materialismo puro
e simples, pois desde que a manifestação deixa de ser
concebida como essencialmente idêntica ao Princípio, a
admissão lógica desse Princípio torna ‑se uma mera questão de
credulidade. E, se tal sentimentalismo vai à
falência, deixa de haver razão para admitirmos a existência de
algo que
ultrapassa a manifestação, mais particularmente a manifestação
sensível.
Mas voltemos à Impessoalidade Divina. Em rigor, esta é
sobretudo uma
Não‑Pessoalidade: não é pessoal nem impessoal, mas
suprapessoal. No
entanto, não há que entendermos o termo *Impessoalidade+ no
sentido
de uma privação, pois trata ‑se aqui, pelo contrário, da
Plenitude, da flimitação absoluta, por nada determinada, nem
mesmo por si própria. É a
Pessoalidade que, por referência à Impessoalidade, é um tipo
de privação
ou *determinação privativas, e não o inverso. Entendemos aqui
por *Pessoalidade+ apenas o *Deus Pessoal+ ou *Ego Divino+ ‑ se
assim se pode
falar ‑, e não o Si, que é o Princípio transcendente do Eu e a
que, sem
restrições, poderíamos chamar Pessoalidade por referência à
individualidade. O que aqui distinguimos é, pois, a *Pessoa
Divina+, Protótipo principal da individualidade, e, por outro
lado, a Impessoalidade, que é a Es
dissertações que pretendem fazer das doutrinas sagradas um
tema de estudo profano,
como se não existissem conhecimentos não acessíveis a certas
pessoas e como se bastasse ter estado na escola para entender
a mais venerável sabedoria, ainda melhor do que
os sábios a entenderam? Pois se são *especialistas+ e
*críticos+,
,alcance. É nada está fora
uma atitude quedo seuparece com a de crianças que,
mais
tendo encontrado livros
para adultos, os julgassem segundo a sua ignorância, o seu
capricho ou a sua preguiça.
52
A Unidade Transcendente das Religiões

sência infinita dessa Pessoa. Tal distinção entre Pessoa


Divina ‑ que
manifesta um querer particular, num mundo simbólico único ‑ e
Realidade Divina Impessoal ‑ que, pelo contrário, manifesta a
Vontade Divina
essencial e universal através das formas do Querer Divino
particular ou
pessoal, por vezes em aparente contradição com ele ‑ é
absolutamente
fundamental no esoterismo, não só pela importância que assume
na doutrina metafisica, mas porque explica a eventual
antinomia entre os domínios exotérico e esotérico. Por
exemplo, na pessoa do rei Salomão, há que
distinguir o seu conhecimento esotérico ‑ referente ao que
chamámos a
*Impessoalidade divina+ ‑ e a sua ortodoxia exotérica, a sua
conformidade ao Querer da *Pessoa Divina+. Não foi contra tal
Querer, mas em virtude desse conhecimento, que o grande
edificador do Templo de YHWH
reconheceu a Divindade em outras formas reveladas, ainda que
decaídas.
Não foi a sua degradação nem o seu *paganismo+ que o
Rei‑Profeta abraçou, mas sim a sua pureza primitiva,
reconhecível através do simbolismo;
de modo que se pode dizer que as aceitou através do véu da sua
degradação. Não será, aliás, a insistência, feita no Livro da
Sabedoria, sobre a
vaidade da idolatria, um desmentido da interpretação exotérica
formulada
no Livro dos Reis? Seja como for, o Rei ‑Proféta, ainda que
situado para
além das formas, havia de sofrer as consequências do que o seu
universalismo tinha de contraditório no plano formal.
Afirmando essencialmente
uma forma ‑ o monoteísmo
eminentemente judaico ‑ ehistórico
formal do simbolismo fazendo ‑o ‑no modo por
preso,
definição, aos acontecimentos ‑, a Bíblia teve de censurar a
atitude de Salomão, pois esta
contradizia visivelmente a manifestação pessoal da Divindade.
Mas, ao
mesmo tempo, fez constar que a infracção não comprometeu a
pessoa
mesma do Sábio!. A atitude *irregular+ de Salomão atraiu sobre
o seu

1 Assim, o Alcorão afirma que *Salornão não era um ímpio+ (ou


*herege+: mâ kafara
Sulaymân; súrat el ‑baqarah, 102) e exalta ‑o nestes termos: *Que
servo excelente foi Salornão! Na verdade, ele estava (no seu
espírito) constantemente virado para AIlâh+ (os
comentadores acrescentam: *glorificando ‑o e louvando ‑o sem
cessar+; sârat çad, 30).
Todavia o Alcorão faz alusões a uma prova enviada a Salornão
por Deus, depois de
uma oração de arrependimento do Rei ‑Profeta e enfim a resposta
divina (ibid., 34 ‑36).
Ora, o comentário desta passagem enigmática concorda
simbolicamente com a narração do Livro dos Reis, pois refere
que uma das esposas de Salornão adorou um ídolo
contra sua vontade e no seu próprio palácio. Salomão perdeu o
anel, e com ele o reino
53

X
Frithjof Schon

Reino o cisma político: Esta, a única sanção reportada pela


Escritura,
punição desproporcionada se o Rei ‑Profeta houvesse praticado um
politeísmo verdadeiro, o que não foi, de modo algum, o caso. A
sanção mencionada
não a mais do que refere ‑se exactamente
isso. Por esse motivo,à a*irregularidade+ e
memória de Salomão
permaneceu venerada não só
no judaísmo, nomeadamente na Cabala, mas também no islão
charaíta e
sufi. Quanto ao cristianismo, são conhecidos os Comentários
que o Cântico dos Cânticos inspirou a São Gregório de Nissa, a
Teodoreto e a São
Bernardo, entre outros. Ora, se a antinomia entre as duas
grandes *dimensões+ da tradição surge já na própria Bíblia,
que é todavia um livro
sagrado, é porque o modo de expressão deste Livro, como a
própria forma do judaísmo, dá preponderância ao ponto de vista
exotérico, quase diríamos *social+, e até *político+ ‑ embora
não em sentido profano. No
cristianismo, a relação é inversa. E no islamismo, síntese dos
gênios judaico e cristão, as duas *dimensões+ tradicionais
aparecem em equilíbrio:
por isso, o Alcorão só considera Salomão (Seyidnâ Sulaymân)
sob um
prisma esotérico e na sua dignidade de Profeta'. Mencionemos,
por fim,

por uns dias, encontrando em seguida o anel e recuperando


assim o reino. Depois, pediu a Deus que lhe perdoasse e obteve
dele um poder maior e mais maravilhoso do que
dantes. O livro sagrado do islão enuncia a impecabilidade
dos Profetas nos seguintes termos:
*Eles não O (Allâh) precedem pela palavra (não são os
primeiros a falar) e agem segundo o Seu mandamentos (súrat
el‑anbiyah, 27). O que equivale a afirmar que os Profetas não
falam sem inspiração e não agem sem ordem divina. Ora, tal
impecabilidade
só é compatível com as *acções imperfeitas+ (dhunúb) dos
Profetas em virtude da verdade metafísica das duas Realidades
Divinas, uma pessoal e a outra impessoal, cujas
manifestações podem contradizer ‑se de facto nos grande s homens
espirituais, mas nunca no comum dos mortais. O termo dhanb tem
igualmente o sentido de *pecado+, sobretudo *pecado por
inadvertências, mas sobretudo e srcinariamente *imperfeição
na
acçao+ ou *imperfeição resultante de uma acção+. E por isso
que sóquando
dhanb se usase
o termo
trata de Profetas, e não o termo ithm, que
significa exclusivamente
*pecado+ com carácter intencional. Se quiséssemos encontrar
uma contradição entre a
impecabilidade dos Profetas e a imperfeição extrínseca de
algumas das suas acções, deveríamos igualmente considerar
incompatíveis a perfeição de Cristo e a sua palavra sobre a
sua natureza humana: *Porque me chamas bom? Ninguém é bom
senão Deus.+
Esta palavra responde também à questão por que David e Salomão
não previram um
certo conflito entre tal grau da Lei Universal. É porque a
natureza individual sempre
guarda certos *pontos cegos+ cuja presença entra na própria
definição dessa natureza.
54
A Unidade Transcendente das Religiões
uma passagem da Bíblia onde YHWH ordena ao profeta Natan que
leve a
David as seguintes palavras: *Quando os teus dias se cumprirem
e fores
deitado com os teus pais, enaltecerei a tua posteridade depois
de ti, aquele (Salornão) que sairá das tuas entranhas, e
conformarei a sua realeza.
Será ele quem construirá uma casa para o Meu Nome e eu
confirmarei para sempre o trono do seu reino. Serei para ele
um pai, e ele para Mim um
filho. Se praticar o mal, castigá ‑lo ‑eí com verga de homens e
golpes de filhos de homens. Mas a minha graça jamais se
retirará dele, como a retirei
de Saul, que fiz sair de diante de ti+ (11 Sam.,7:12 ‑15). Um
exemplo muito análogo é o de David, a quem o Alcorão reconhece
igualmente a dignidade de Profeta e que os cristãos veneram
como um
dos maiores santos da Antiga Aliança. Parece ‑nos evidente que
um santo
não pode cometer os pecados ‑ não queremos dizer: praticar as
acções
‑de que se acusa David. O que é preciso entender é que a
transgressão,
que a Bíblia do ponto de vista legal atribui ao Santo Rei, só
surge em função
exotérica, da perspectiva
que predomina neste essencialmente
livro sagrado ‑ moral, portanto
o que explica
aliás a atitude de São Paulo,
e do cristianismo em geral, para com o judaísmo, que permite
encarar o
ponto de vista cristão como eminentemente *interior+; enquanto
a impecabilidade dos Profetas, afirmada entre outros pelo
Alcorão, é uma realidade mais profunda da que o ponto de vista
moral consegue alcançar.
Esotericamente, a vontade de David em desposar Betsabé não
podia ser
uma transgressão, pois a dignidade de Profeta só se concede a
homens livres de paixões, quaisquer que sejam as aparências. O
que é preciso discernir, antes de mais, na relação entre David
e Betsabé é uma afinidade
ou complementaridade cósmica e providencial cujo fruto e
justificação foi
Salornão, aquele que *YHWH ‑amou+ (11 Sam., 12:24). A vinda
deste se
Esta limitação necessária de toda a substância individual não
ameaça, de modo algum,
a realidade espiritual à qual esta substância se acha unida de
modo, por assim dizer,
*acidental+. Pois não existe medida cormun entre o individual
e o espiritual, que é simplesmente o divino. Citemos, para
terminar, esta palavra do califa Ali, representante por
excelência do
esoterismo no islão: *A quem vier a contar a história de David
como a contam os contadores de histórias (isto é, segundo uma
interpretação exotérica ou profana), darei
cento e sessenta chicotadas e isso será a punição dos que
proferirem falso testemunho
contra os Profetas.+
55
Frithiof Schuon

gundo Rei ‑Profeta foi como que uma conformação divina e uma
bênção
da união entre David e Betsabé, pois Deus não sanciona nem
recompensa
um pecado. Sgundo Mohyiddin ibn Arabi, Salomão foi para David
muito
mais do que uma recompensa: *Salomão era o dom de Allâh a
David,
conforme a Palavra divina: E fizemos dom a David de Salomão
(Alcorão,
súrat çad, 30). Ora, recebe ‑se um presente por favor, não como
recompensa de um mérito. É por isso que Salomão é a graça
superabundante, e
a prova evidente, e o golpe aterradoras (Fuçúç el ‑hikam,
Kalimah sulaymâniyah). Mas consideremos agora a narrativa no
que diz respeito a Urias
o Heteu: de novo, a atitude de David não deverá ser julgada do
ponto de
vista moral, pois ‑ já sem falarmos no que a morte heróica
representava
para um guerreiro e, tratando ‑se de uma Guerra Santa como a dos
Israelitas, tal morte assumia carácter sacrificial imediato ‑ o
móbil desta atitude só podia ser uma intuição profética.
Contudo, a escolha de Betsabé e a
condenação de Urias à morte, ainda que cosmológica e
providencialmente
justificados, chocavam com o Princípio exotérico. E David ‑
continuando
a desfrutar, pelo nascimento de Salomão, do que a sua atitude
tinha de intrinsecamente legítimo ‑ teve de suportar as
consequências deste choque.
Ora disto encontramos eco nos Salmos, Palavra de Deus e prova
de que
David era Profeta: as acções de David, se comportam um aspecto
negativo numa dimensão exterior, não constituem porém pecados
em si mes
mas; poderíamos mesmo dizer que Deus as inspirou tendo em
vista a Revelação dos Salmos que deveriam cantar, de um canto
divino e imortal,
não apenas os sofrimentos e a glória da alma, sedenta de Deus,
mas também os sofrimentos e a glória do Messias. A atitude de
David não foi evidentemente contrária ao Querer Divino, pois
Deus não só *perdoou+ a
David ‑ para usar o termo algo antropomórfico da Bíblia ‑, como
não
lhe retirou de imediato Betsabé, causa e objecto do pecado,
antes confirmou a união dos dois, fazendo ‑lhes dom de Salornão.
E, se em David, como em Salomão, a irregularidade exterior ‑
simplesmente extrínseca
importa reconhecer de certas
que esta acções
se limita provocou uma
estritamente ao reacção,
domínio
dos factos terrestres. Este dois aspectos um exterior ou
negativo, outro interior ou positivo ‑ da história da mulher de
Urias manifestam‑se ainda em dois factos: primeiro, na morte do
seu primogénito e, depois, na vida, grandeza e glória do seu
segundo filho, aquele que *YHWH amou+.
56
A Unidade Transcendente das Religiões
Esta digressão pareceu ‑nos necessária para ajudar a
entender que os
dois domínios, exotérico e esotéríco, são profundamente
distintos em natureza e que qualquer incompatibilidade só pode
derivar do primeiro e
nunca do segundo, que se encontra além das oposições, porque
além das
formas. Existe um dito sufi que esclarece com tanta limpidez
quanta concisão as diferenças de ponto de vista entre as duas
grandes vias: *A via
exotérica é: eu e Tu. A via esotérica é: eu sou Tu e Tu és eu.
O Conhecimento esotérico é: nem eu nem Tu, mas Ele.+ O
exoterismo funda ‑se, por
assim dizer, no dualismo *criatura ‑Criador+ ao qual atribui uma
realidade
absoluta, como se a realidade divina, que é metafisicamente
única, não
absorvesse ou anulasse a realidade da criatura, portanto toda
a realidade
relativa e aparentemente extradivina. Se é verdade que o
esoterismo admite a distinção entre o eu individual e o Si
universal ou divino, só o faz
provisoria e metodicamente, não em sentido absoluto. Partindo
desta dualidade, que corresponde a uma realidade relativa,
chega a ultrapassá ‑la
metafisicamente, o que seria impossível para o exoterismo,
cuja limitação
consiste precisamente em atribuir uma realidade absoluta ao
que é contingente. Chegamos assim à própria definição da
perspectiva exotérica: duafismo irredutível e procura
exclusiva de salvação individual ‑ dualismo
que implica que Deus seja considerado apenas sob o ângulo das
suas relações com o criado, e não na sua Realidade total e
infinita, a sua
aparentemente Impessoalidade
distinta dele. que
Nãoaniquila toda a
é o dualismo realidade
dogmático que
é em si mesmo censurável ‑ Pois corresponde ao ponto de vista
individual em que a religião se coloca ‑, mas
sim as induções que implicam a atribuição de uma realidade
absoluta ao
relativo. Metafisicamente, a realidade humana reduz ‑se à
Realidade Divina e é, em si mesma, apenas'ilusória.
Teologicamente, a Realidade Divina
reduz‑se aparentemente à realidade humana, no sentido em que
não a ultrapassa em qualidade existencial, mas só em qualidade
causal.
A perspectiva das doutrinas esotéricas manifesta ‑se de maneira
particularmente clara no seu modo de encarar aquilo a que
ordinariamente chamamos o mal. Atribuiu ‑se ‑lhes muitas vezes a
negação pura e simples do
57
Frithjof Schon
mal, mas tal interpretação é rudimentar e imperfeita. A
diferença entre'as concepções religiosa e metafisica do mal
não consiste no facto de uma ser falsa e a outra verdadeira,
mas simplesmente em a primeira ser parcial e individual,
enquanto a segunda é integral e universal. O mal ou o Diabo na
perspectiva religiosa só corresponde por consequência a uma
visão par cial e não é de modo algum equivalente à força
cósmica negativa aborda da pelas doutrinas metafisicas e que
a doutrina hindu designa pelo termo camas: se camas não é o
Diabo ‑ mas mais propriamente o derniurgo co mo a força que dá
consistência à manifestação cósmica, atraindo ‑a para baixo e
afastando‑a do Princípio‑Origem ‑, a verdade é que o Diabo é uma
forma de camas, considerada unicamente nas suas relações com a
al ma humana. Sendo o homem um ser individual consciente, a
força cósmi ca, em contacto com ele, assume necessariamente
uma feição individual, consciente e pessoal. Fora da esfera
humana, esta mesma força poderá to mar aspectos perfeitamente
impessoais e neutros, por exemplo, quando se manifesta como
peso físico ou densidade material, ou sob a aparência de um
animal hediondo ou de um metal vulgar e pesado como o chumbo.
Mas a perspectiva religiosa, por definição, só se ocupa do
homem
pois, e não vê esta
criticar a cosmologia senão em função dele. É escusado,
4 perspectiva por encarar camas de forma personificada, ou
seja, naquilo que atinge precisamente o mundo do homem. Se,
portanto, o esoterismo parece negar a existência do mal, não é
que ignore ou se recuse a admitir a natureza das coisas tais
quais são na realidade. Pelo contrário, penetra ‑as
inteiramente, e é por isso que lhe é impossível isolar da
realidade um ou outro dos seus aspectos, encarando um deles do
ponto de vista exclusi vo do interesse individual humano. É
demasiado evidente que a tendência cósmica de que o Diabo é a
personificação quase humana não é um *mal+, pois é esta
tendência que condensa os corpos materiais e, se por absurdo
desaparecesse, todos os corpos ou compostos físicos e
psíquicos instantaneamente se volatilizariam. Mesmo o objecto
mais sagrado neces sita desta força para poder existir
materialmente. Ninguém ousaria, por exemplo, afirmar que a lei
física que condensa a matéria de uma hóstia é uma força
diabólica ou um mal de qualquer espécie. Ora,.é devido ao
carác ter *neutro+ ‑ sem distinção de *bem+ e *mal+ ‑ da
tendência demiúrgica que as doutrinas esotéricas, reportando
todas as coisas à sua realidade essen cial, parecem negar
aquilo a que chamamos humanamente o mal.
58
A Unidade Transcendente das Religiões
Poderíamos todavia perguntar ‑nos que consequências implica
para o
iniciado uma tal concepção *não ‑moral+ ‑ embora não *imoral+ ‑
do
*mal+. A isso, responderemos que, na consciência e na vida do
iniciado,
a ideia de pecado dá lugar ao conceito de dissipação ‑ ou seja,
tudo o que é
contrário à concentração espiritual, digamos, à unidade.
Trata‑se sobretudo
de uma diferença de princípio e de método, que não intervém do
mesmo
modo em todos os indivíduos. Aliás, o que moralmente é pecado
é, do ponto de vista iniciático, quase sempre dissipação. Tal
concentração ‑ ou tendência à unidade (tawhid) ‑ exprime ‑se, no
islão exotérico, no acto de fé na
Unidade de Deus: a maior transgressão consiste em associar
outras divindades
um alcance a A11^
universal, o que para o iniciado (o faqir) tem
pois
toda a afinnação individual traz consigo a mácula de uma falsa
divindade.
E se, do ponto de vista religioso, o maior mérito consiste em
professar sinceramente a Unidade Divina, para o faqir trata ‑se
de realizá ‑la de um modo
espiritual, portanto num sentido que abarca todas as dimensões
do universo,
e isso precisamente pela concentração de todo o seu ser na
única Realidade
Divina. Para tornar mais clara a analogia entre pecado e
dissipação, diríamos, por exemplo, que a leitura de um bom
livro jamais será considerada no
exoterismo como um acto repreensível, mas poderá sê ‑lo no
esoterismo, caso
se trate de uma distracção ou sempre que esta leve a melhor
sobre a utilidade. Inversamente, algo sempre considerado pela
moral religiosa como tentação, como via para o pecado e,
portanto, começo deste, poderá no esoterismo desempenhar um
papel totalmente oposto, não sendo uma dissipação
*pecadora+, mas pelo contrário um factor de concentração em
virtude da inteligibilidade imediata do seu simbolismo. Há
mesmo casos, por exemplo no
tantrismo ou em alguns cultos da Antiguidade, em que coisas
por si mesmas
pecaminosas ‑ não apenas contra a moral religiosa, mas contra
as leis da civilização em que se produzem ‑ servem de suporte
para a intelecção, o que
pressupõe uma forte predominância do elemento contemplativo
sobre o elemento passional. Ora, uma moral religiosa nunca
existe só para os contemplativos, mas sim para todos os
homens. Ter ‑se‑á entendido que não se trata, de modo algum,
de depreciar a
moral, que é uma instituição divina. Mas o facto de ser divina
não impede
que seja limitada. Não percamos de vista que, na . maioria dos
casos, as
leis morais, fora do seu domínio ordinário, se tornam símbolos
e veículos
59
Frithjof Schuon

de conhecimento. Toda a virtude traz a marca de uma


conformidade à *atitude divina+, portanto um modo indirecto,
como que existencial, de conhecimento de Deus. O que equivale
a dizer que, se podemos descortinar um objecto pela sua
simples visão, a Deus só podemos conhecê ‑Lo pelo *ser+.
Para conhecer a Deus, é preciso assemelhar ‑se ‑Lhe, ou seja,
conformar o
nosso microcosmo ao Metacosmo, Divino ‑ e assim também ao
macrocosmo ‑ como o ensina expressamente a doutrina hesiciasta.
Dito isso, há que
sublinhar com veemência que a amoralidade da posição
espiritual é uma supramoralidade mais do que uma
não‑moralidade. A moral, no sentido mais
lato do termo, é ao seu nível o reflexo da verdadeira
espiritualidade e deve
ser integrada, com as verdades ou erros parciais, no ser
total. Por outras palavras, do mesmo modo que o homem mais
santo não está totalmente dispensado de agir neste mundo, pois
dispõe de um corpo físico que a isso o
obriga, também não está nunca totalmente liberto da distinção
entre *bem+
e *mal+, a forçosamente em toda a acção.
ja que esta se insinu Poder ‑se ‑iam, se não definir,
pelo menos descrever as duas grandes dimensões tradicionais ‑
o exoterismo e o esoterismo ‑ caracterizando a
primeira com o auxilio dos termos *moral, acção, mérito,
graça+; a segunda com a ajuda dos termos *simbolismo,
concentração, conhecimento,
identidades. Donde: o homem pass ional aproximar ‑se ‑á de Deus
através
da acção, cujo suporte é uma moral; o homem contemplativo
unir‑se‑á à
sua Essência Divina através da concentração cujo suporte é um
simbolismo que, naturalmente, não exclui a atitude precedente
dentro dosSmites
que lhe são próprios. A moral é um princípio de acção,
portanto, de mérito, enquanto o simbolismo é um suporte de
contemplação e um meio de
intelecção. O mérito, que se adquire por um modo de acção, tem
como
fim a graça de Deus, enquanto o objectivo da intelecção, se é
que
que a podemos
nunca dissociar deste, é a união ou identidade com o
deixámos
de ser na nossa Essência existencial ou intelectual. Por
outras palavras, o fim
supremo é a reintegração do homem na Divindade, do contingente
no Absoluto, do finito no Infinito. A moral, em si mesma, não
tem sentido fora do
domínio restrito da acção e do mérito, e não atinge portanto,
de modo
algum, realidades como o simbolismo, a contemplação, a
intelecção, a
identidade pelo Conhecimento. Quanto ao *moralismo+, que, não
podemos confundir com a moral, ele não passa de uma tendência
a substituir
qualquer outro ponto de vista pelo da simples moralidade. Daí
resulta,
60
A Unidade Transcendente das Religiões

pelo menos no cristianismo, uma espécie de finca ‑pé ou suspeita


contra
tudo o que tem um carácter agradável e o erro de crer que
todas as coisas agradáveis são apenas agradáveis e nada mais.
Esquece‑se que a
qualidade positiva, e portanto o valor simbólico e espiritual,
de uma
coisa agradável pode, no caso do verdadeiro contemplativo,
compensar
o inconveniente do deleite momentâneo da natureza humana, pois
toda
a qualidade positiva se identifica essencialmente ‑ mas não
existencialmente ‑ com uma qualidade ou perfeição divina, que é
o seu protótipo
eterno e infinito. Se pode haver, nas considerações
precedentes, alguma
aparência de contradição, esta deve ‑se ao facto de termos
encarado a
moral, e, por um lado, em si mesma, como oportunidade social
óu psicológica, por outro, como elemento simbólico, na sua
qualidade de suporte da intelecção. Neste último contexto, a
oposição entre moral e
simbolismo ou intelectualidade já não faz evidentemente
sentido. Agora,
ponto de vista quantosó
religioso aonos
problema darespostas
fornece existência do mal, o
indirectas
e'evasivas@ ao afirmar que a Vontade divina é insondável e que
todo o mal acabará, um dia, por ser vencido pelo bem. Ora,
esta segunda afirmação não explica o mal. E, quanto à'
primeira, dizer que IYeus é insondável significa que nós não
podemos résolver qualquer aparência de contradição nos Seus
*modos de agir+. Esotericamente, o problema do mal reduz ‑se a
duas questões: a primeira, por
que motivo o criado implica necessariamente imperfeição? A
segunda, por
que razão existe o criado? ‑A primeira destas questões é
preciso responder
que, se não houvesse imperfeição no criado, nada o poderia
distinguir do
Criador. Ou, por outras palavras, aquele não ‑seria efeito ou
manifestação,
mas sim Causa ou Princípio. E, à segunda questão,
responderemos que a
Criação ou manifestação está rigorosamente imphcada na
infinitude do Princípio, no sentido em que aquela é um aspecto
ou consequência deste, o que
equivale a dizer que, se o mundo não existisse, o Infinito não
seria o Infinito, pois, para ser o que é, o Infinito deve
negar‑se aparente e simbolicamente a Si mesmo, e é o que
acontece com a manifestação universal. O mundo
não pode não existir, pois é um aspecto possível, portanto
necessário, da necessidade absoluta do Ser; a imperfeição
também não pode não existir, pois
é um aspecto da própria existência do mundo; esta acha ‑se
rigorosamente
implicado na infinidade do Princípio Divino e também a
existência do
mal está implicado na existência do mundo. Deus é Todo ‑Bondade
e o
61
Frithjof Schwn

mundo é disso imagem. Mas como a imagem não pode ser, por
definição,
aquilo que representa, o mundo tem de ser limitado por
referência à Bondade Divina, donde se explica a imperfeição na
existência. As imperfei
ções por consequência ‑' não são do que rupturas na imagem
mais
da Perfeição Total da Divindade. Evidentemente não provêm
dessa Perfeição, mas
do carácter necessariamente relativo ou secundário da imagem.
A manifestação implica por definição a imperfeição, como o
Infinito implica por
definição a manifestação: esta tríade *Infinito, manifestação,
imperfeição+
co nstitui a fórmula explicativa de tudo o que o espírito
humano pode encontrar de problemático nas vicissicutes da
existência. Quando somos capazes de ver com o olho do
Intelecto as causas metafisicas de toda a aparência, deixamos
de nos fixar em contradições insolúveis, como
forçosamente acontece na perspectiva exotérica, cujo
antropomorfismo é
incapaz de abranger todos os aspectos da Realidade Universal.

Um outro exemplo de impotência do espírito humano face aos


seus próprios recursos é o problema da predestinação. Esta
ideia não traduz outra
coisa, na linguagem da ignorância humana, senão o Conhecimento
Divino
que engloba, na sua perfeita simultaneidade, todas as
possibilidades sem
qualquer restrição. Por outras palavras, se Deus é
omnisciente, conhece
as coisas futuras, ou antes, as que assim o parecem aos seres
limitados pelo tempo: se Deus não conhecesse essas coisas, não
seria omnisciente.
Desde momento que as conhece, elas aparecem como predestinadas
por
referência ao indivíduo. A vontade individual é livre na
medida em que é
real, Se não fosse, em algum grau e de alguma maneira, livre,
seria irrealidade pura e simples, portanto, coisa nenhuma. E,
de facto, aos olhos da
Liberdade Absoluta, não passa disso, ou seja, ela não existe
de modo algum. Contudo, do ponto de vista individual, o do ser
humano, a vontade
é real e é ‑o na medida em que este participa da Liberdade
Divina, de onde a liberdade individual tira toda a sua
realidade,
liberdade, em virtude
como toda ada sua relação
qualidade causal.
positiva, é Daí resulta que a
divina enquanto tal e humana enquanto não perfeitamente ela
mesma,
assim como um reflexo do Sol é idêntico a este não como
reflexo mas enquanto luz, sendo a luz una e indivisível na sua
essência.
62
A Unidade Transcendente das Religiões
Poderíamos exprimir a relação metafisica entre a
predestinação e a liberdade comparando esta a um líquido que
penetra todas às sinuosidades
de um recipiente, sendo este a predestinação: o movimento do
líquido
equivale ao exercício livre da nossa vontade. Se não podemos
querer outra coisa senão o que nos é predestinado, isso não
impede a nossa vontade
de ser aquilo que é, ou seja, uma participação relativamente
real no seu
protótipo universal. E é precisamente tal participação que faz
com que experimentemos e vivamos a nossa vontade como livre.
A vida do homem ‑ e, por extensão, todo o ciclo individual, de
que a vida e a condição de homem mais não são do que
modalidades ‑ está, de facto, contida no Intelecto Divino como
um todo finito, ou seja, como uma
possibilidade determinada que, sendo aquilo que é, não é em
nenhum dos
seus aspectos outra coisa senão ela mesma, pois uma
possibilidade mais não
é do que uma expressão da absoluta necessidade do Ser. Daí
deriva a unidade ou homogeneidade de tudo o que é possível, de
tudo o que não pode não
ser. Dizer que um ciclo individual está definitivamente
incluído no Intelecto
Divino equivale a afirmar que uma possibilidade está incluída
na Possibilidade Total, e é esta verdade que fornece a
resposta mais decisiva à questão da
predestinação. A vontade individual aparece então como um
processo que
realiza, de modo sucessivo, o encadeamento necessário das
modalidades da
sua possibilidade inicial, simbolicamente descrita ou
recapitulada. Também
podemos dizer que, sendo a possibilidade de um ser uma
possibilidade de
manifestação, o processo cíclico desse ser é o conjunto dos
aspectos da sua
manifestação e, portanto, da sua possibilidade; o ser mais não
faz do que
manifestar em diferido, por meio da sua vontade, a sua
manifestação cósmica e simultânea. Por outras palavras, o
indivíduo retraça de uma maneira
analítica a sua possibilidade sintética e primordial, que
encontra o seu lugar
inexpugnável, porque necessário, na hierarquia das
possibilidades. E a necessidade de cada possibilidade é
metafisicamente fundada, como vimos, na
absoluta necessidade da Possibilidade Divina Total.

Para concebermos a universalidade do esoterismo, que não é


mais do
que a da prática metafísica, importa acima de tudo entendermos
que o I1,1
63
Frithjof Schon
meio ou órgão do Conhecimento metafísico é ele mesmo de ordem
uni versal, e não de ordem individual como a razão. Por
consequência, esse meio ou órgão, que é o Intelecto, deve
encontrar‑se em todos os esca Iões da natureza e não apenas no
homem como é o caso do pensamento discursivo. Se quisermos
responder agora à questão de como o Intelec to se manifesta
nos reinos periféricos da natureza, há que recorrermos a
considerações algo complexas para quem não tiver o hábito das
espe culações metafísicas e cosmológicas. O que vamos
explicar é, em si, uma verdade fundamental e evidente.
Diríamos pois que, num estado periférico de existência, na
medida em que ele se encontra afastado do estado central do
mundo ao qual estes dois estados pertencem ‑ e o estado humano,
como qualquer outro estado análogo, é central em re lação aos
outros estados periféricos, terrestres ou não, portanto, não
A, somente em relação aos estados animais, vegetais e
minerais, mas tam bém aos estados angélicos, donde a adoração
de
numAdão pelos
estado anjos no Alcorão
periférico, ‑ na medida,
o Inte lecto dizíamos,
se confunde com oemseu
que
conteúdo ‑ uma planta não sabe o que quer, nem progride em
conhecimento, achando‑se passivamente ligada e identificado com
o conhecimento que lhe é imposto por natureza e determina
essencialmente a sua forma. Por outras palavras, a forma de um
ser periférico ‑ um animal, um vegetal, um mineral ‑ revela
tudo o que esse ser conhece e identifica ‑se de algum modo com
esse conheci mento. Poderíamos portanto dizer que a forma de
um tal ser define o seu estado ou sonho contemplativo. O que
distingue os seres, à medida que eles em estados cada vez mais
passivos ou inconscientes, é o seu modo de conhecimento ou a
sua inteligência. Humanamente falando, seria absurdo afirmar
que o ouro é mais inteligente do que o cobre e que o chumbo é
pouco inteligente. Mas, metafisicamente, não haveria nisso
nada de anormal: o ouro representa um estado de conhecimento
solar, e é isso que permite que o associemos às influências
espirituais, conferindo ‑lhe assim um carácter eminentemente
sagrado. O objecto do conhecimento ou da inteligência é sempre
e por definição o Princí pio Dívino e não pode deixar de o
ser, pois é metafisicamente a única Realidade. Mas esse
objecto ou conteúdo pode mudar de forma, con 64
A Unidade Transcendente das Religiões

soante os modos e graus indefinidamente diversos da


Inteligência reflectida nas criaturas. Acrescente ‑se ainda que
o mundo manifesto, ou criado,
possui uma dupla raiz: a Existência e a Inteligência, a que
correspondem
analogicamente, nos corpos ígneos, o calor e a luz. Ora, todo
o ser revela
estes dois aspectos ao nível da realidade contingente. O que
diferencia os
seres são os seus modos ou graus de Inteligência. Mas o que os
une, entre
si, e a sua Existência que é a mesma em todos. A relação
inverte‑se quando deixamos de olhar para a continuidade cósmica
e *horizontal+ dos elementos do mundo manifesto e observamos a
sua relação *vertical+ com o
Princípio Transcendente: o que une o ser, e mais
particularmente o espiritual *realizado+, ao seu Princípio
Divino, é o Intelecto. O que separa o

homem,‑ ao microcosmo ‑ desse Princípio é a Existência. No


mundo
inteligência é interior, e a existência, exterior. Como esta
última não coniporta em si qualquer diferenciação, os homens
formam apenas uma só espécie, mas as diferenças de tipos e de
espiritualidade são extremas. No ser
de um reino periférico, pelo contrário, é a existência que é
quase interior,
pois a sua indiferenciação não aparece em primeiro plano, e a
inteligência
ou modo de intelecção é exterior, aparecendo a sua
diferenciação nas próprias formas, donde a indefinida
diversidade de espécies em todos esses
reinos. Também poderíamos dizer que o homem é, por definição
primordial, puro conhecimento, e o mineral, pura existência. O
diamante, que se
acha no topo do reino mineral, integra na sua existência ou
manifestação,
de modo passivo e inconsciente, a inteligência em si, donde a
sua dureza,
transparência e luminosidade. O homem espíritualizado, que se
encontra
no cume da espécie humana, integra no seu conhecimento, de
modo activo e consciente, a existência: total, donde a sua
universalidade.

A negação exotérica da presença, virtual ou actualizada,


do Intelecto
incriado no ser criado, está bem patente no erro que exclui,
fora da Revelação, qualquer conhecimento sobrenatural
possível. Ora, é arbitrário pretender que não temos neste
mundo qualquer conhecimento imediato de
Deus ou que é impossível que tenhamos algum. É o mesmo
oportunismo
que, por um lado, nega a realidade do Intelecto e, por outro,
nega aos
65
Frithjof Schuon
que dela usufruem a possibilidade de conhecerem o que ela
os deixa co nhecer. E isso porque, em primeiro lugar, a
participação directa no que poderíamos chamar a *faculdade
paraclética+ não é acessível a todos, pelo menos de facto;
e, em segundo
criado lugar,
presente porque seria
na criatura a doutrina do Intelecto
prejudicial inhomem
à fé do
simples, pois choca com a noção de mérito. O que o ponto de
vista exotérico não pode admitir, nem no islão nem no
cristianismo nem no judaísmo, é a existên cia *natural+ de
uma faculdade *sobrenatural+ que o dogma cristão toda via
prevê para a pessoa de Cristo. Parece esquecer que a distinção
entre natural e sobrenatural não é absoluta ‑ a não ser no
sentido do *relativa
112 mente absoluto+ ‑ e que o sobrenatural pode também ser
chamado natu ral por agir segundo certas leis.'Também o
natural não está desprovido de
A carácter sobrenatural, na medida em que manifesta a
Realidade Divina,
sem a qual a natureza não passaria de um puro nada. Dizer
que o Conhe cimento sobrenatural de Deus, isto é, a visão
beatifica no Além, é um co nhecimento puro da Essência
Divina, de que goza a alma individual, equi vale a dizer
que o Conhecimento Absoluto pode ser objecto de um ser
relativo como tal, quando na verdade esse Conhecimento, sendo
absoluto, não e mais do que o Absoluto que se conhece a Si
mesmo. Ora se o Inte lecto, sobrenaturalmente presente no
homem, pode fazer o homem parti cipar do Conhecimento que a
Divindade tem de Si mesma, isso acontece graças a certas
leis a que o sobrenatural, por assim dizer, livremente obe
dece, em virtude das suas possibilidades. Ou ainda, se o
sobrenatural difere do natural em grau eminente obedece, ele
também, ou antes ele em pri meiro lugar, a Leis imutáveis.
O Conhecimento é essencialmente santo ‑ e, se assim não fosse,
como poderia Dante ter falado da *venerável autoridades do
Filósofo? ‑, de uma santidade que é propriamente
*paraclética+: *Conhecer‑Te é a justi ça perfeita+ ‑ diz o
Livro da Sabedoria (15:3) ‑ *e conhecer o Teu Po der é a
raiz da imortalidades. Esta sentença é de uma extrema riqueza
doutrinal, pois trata‑se de uma das mais claras e explícitas
formulações da realização pelo Conhecimento, ou seja,
precisamente, da via intelectual que conduz à santidade
*paraclética+. Em outras sentenças, igualmente excelentes, o
mesmo livro de Salomão enuncia as virtudes da pura intelec
tualidade, essência de toda a espiritualidade. Este texto
deixa aliás trans 66
A Unidade Transcendente das Religiões

parecer de maneira notável, para além da maravilhosa precisão


metafisica
e iniciática das suas fórmulas, a unidade universal da
Verdade, e isso pela
própria linguagem que lembra em parte as Escrituras da índia,
em parte
as do taoísmo: *Nela (Sabedoria), com efeito, existe um
espírito inteligente, santo, único, múltiplo, imaterial,
activo, penetrante, sem mancha, infalível, impassível,
bondoso, sagaz, ilimitado, benfeitor, filantrópico, imutável,
seguro, tranquilo, todo ‑poderoso, vigilante, penetrando todos
os
espíritos, os inteligentes, os puros e os mais subtis. Porque
a Sabedoria é
mais ágil que todo o movimento. Penetra e introduz ‑se em toda a
parte
graças à sua pureza. Ele é o sopro do Poder de Deus, pura
emanação da
Glória do Omnipotente. Por isso, nenhuma mancha a pode
atingir. Ela é
o resplendor da Luz eterna, o espelho imaculado da acção de
Deus e a
imagem da Sua bondade. Sendo única, tudo pode. Permanecendo a
mesma, tudo renova. Difundindo ‑se de idade em idade pelas almas
santas, faz
delas amigos de Deus e profetas. Deus, na verdade, só ama quem
vive
com a Sabedoria. Pois Ela é mais bela do que o Sol e do que a
disposição
das estrelas. Comparada à luz, leva a melhor sobre ela. Pois a
luz dá lugar
à noite, mas o mal não prevalece contra a Sabedoria. A
Sabedoria chega
velozmente de um canto ao outro do mundo, e tudo dispõe com
doçura+
(Livro da Sabedoria, 7:22 ‑30). Falta prevenirmo ‑nos contra
uma objecção frequentemente formulada:
há quem acuse de orgulho a inteligência transcendente,
consciente de si
mesma, como se, por existirem estúpidos que se crêem
inteligentes, se devesse impedir os sábios desabarem o que
sabem. O orgulho,
ou outro, *intelectual+
só é possível no ignorante que não sabe que, ele
mesmo, nada é.
Assim, também a humildade, na acepção psicológica do termo, só
faz sentido a quem crê ser aquilo que não é. Os que querem
explicar tudo o que
os ultrapassa pelo orgulho, que no seu espírito corresponde ao
panteísmo,
ignoram que, se Deus criou tais almas para ser conhecido e
realizado por
elas e nelas, os homens nada têm a ver com isso nem podem
alterar coisa
alguma. A Sabedoria existe porque corresponde a uma
possibilidade: a da
manifestação humana da Ciência Divina. *Ela é o sopro do
Poder de Deus, pura emanação da Glória do Omnipotente. Por
isso, nada de maculado cai sobre ela... A luz'dá lugar à
noite, mas o mal não prevalece contra a Sabedoria.+
67

N
IV
A QUESTÃO DAS FORMAS DE ARTE

deria alguém admirar ‑se de nos ver


fxtratar um tema que não so parece não ter qualquer relação
com os temas
dos capítulos precedentes, mas que em si mesmo parece não ter
senão
uma importância muito secundária. De facto, se nos propusemos
examinar aqui esta questão das formas de arte é precisamente
porque está longe
de poder ser negligenciada, apresentando relações estreitas
com realidades com que deparamos neste livro de um modo geral.
Antes de mais, temos de elucidar uma questão terminológica: ao
falarmos
arte+, e de
não*formas de
simplesmente de *formas+, queremos especificar
que não se
trata de formas *abstractas+, mas sim de coisas sensíveis por
definição. Se
evitamos falar de *formas artísticas+, é porque a isso se
associa correntemente a ideia de luxo, de algo supérfluo, que
é exactamente o contrário
do que temos aqui. No nosso 6entido, a expressão *formas de
arte+ é um
pleonasmo, pois é impossível dissociar tradicionalmente a
forma da arte,
sendo esta última o princípio de manifestação daquela. Tivemos
porem de
empregar este pleonasmo pelas razões que acabámos de referir.
O que é preciso saber, para entendermos a importância das
formas, é
que a forma sensível é a que corresponde simbolicamente, de
modo mais
directo, ao Intelecto. Isso em razão da analogia inversa que
existe entre as
ordens principial e manifesta.' Assim, as realidades mais
elevadas mani
*A arte+ ‑ diz São Tomás de Aquino ‑ *está associada ao
conhecimento.+
69
Frithjof Schuon

festam‑se de forma mais patente no seu mais distante reflexo,


ou seja, na
ordem sensível ou material; é esse aliás o sentido mais
profundo do adágio: *os extremos tocam ‑se+. Pelo mesmo motivo,
a Revelação desce ao
corpo e não apenas à alma dos Profetas, o que pressupõe de
resto a
perfeição física desse corpo.' As formas sensíveis
correspondem pois,
exactamente, a intelecções e, por essa mesma razão, a arte
tradicional
possui regras que aplicam ao domínio das formas as leis
cósmicas e os
princípios universais que, sob o seu aspecto exterior mais
genérico,
o seu modorevelam o estilo de uma
de intelectualidade. civilização,
Quando tal arteexprimindo este
deixa de ser
tradicional e se torna humana, individual, arbitrária, é
infalivelmente sinal, e causa, de um declínio espiritual
que, aos olhos de quem sabe *discernir os espíritos+ e ser
imparcial, se exprime pelo carácter mais ou menos incoerente,
espiritualmente insignificante, quase ininteligível, das
formas? Para evitar qualquer objecção, im Renê Guénon (Les
Deux Nuits, em Études traditionnelles, Abril e Maio 1939),
falando da laylat el ‑qadr, noite da *descida+ (tanzil) do
Alcorão, chama a atenção para o
facto de *essa noite, segundo o comentário de Mohyiddin ibri
Arabi, se identificar com
o próprio corpo do Profeta. O que é particularmente notório é
que a *revelação+ seja
recebida não no plano mental, mas no corpo do ser que é
*enviado+ a anunciar o Princípio: E o Verbo se fez carne, como
diz o Evangelho (came, e não mente), é a expressão própria da
tradição cristã daquilo que representa laylat el ‑qadr na
tradição islâmica+. Esta verdade está em estreita conexão com
a relação que encontramos entre as
formas e as intelecções.
' Fazemos aqui alusão ao declínio de certos ramos da arte
religiosa desde a época gótica, sobretudo tardia, e de toda a
arte ocidental a partir do Renascimento. A arte cristã
(a arquitectura, a escultura, a pintura, a ourivesaria
litúrgica, etc.), que era uma arte
sacra, simbólica, espiritual, acabou por ceder perante a
invasão da arte neo ‑clássica e
naturalista, individualista e sentimental. Tal arte, que nada
tem de *milagroso+ ‑ não
importa o que digam os defensores do *milagre grego+ ‑, é
totalmente inapta a transmitir as intuições intelectuais e já
só responde às aspirações psíquicas colectivas. É também o que
há de mais contrário à contemplação intelectual, entregando ‑se
exclusivamente ao sentimentalismo. Este vai ‑se aliás degradando
à medida que se adapta às
necessidades das massas, para acabar numa vulgaridade patética
e adocicada. É curioso
verificar que parece nunca nos termos dado conta de quanto
esta barbárie de formas,
que atingiu o seu auge de profunda e miserável fanfarronada no
estilo Luís
da Igreja XV, contribuiu
tantas ‑ e das
almas, e não contribui Estas‑ para afastar
piores.ainda
sentem‑se verdadeiramente sufocados por um ambiente que já não
permite à sua inteligência respirar.
Notemos a propósito que as relações históricas entre o
acabamento da nova basílica
70
A Unidade Transcendente das Religiões

porta referir aqui que, nas civilizações intelectualmente sãs,


por exemplo
a cristandade medieval, a espiritualidade se afirma muitas
vezes através de
uma indiferença em relação às formas e por vezes através de
uma tendência a desviar ‑se delas, como o mostra o exemplo de
São Bernardo proscrevendo as imagens nos mosteiros, o que não
significa a aceitação da barbárie e da feiura, assim como a
pobreza não significa a posse de muitas
coisas ignóbeis. Mas, num mundo em que a arte tradicional
morreu, em
que a forma se vê invadida por tudo o que é contrário à
espiritualidade e
onde quase toda a expressão formal se acha corrompida na sua
raiz, a regularidade tradicional das formas reveste uma
importância espiritual muito particular, que lhe era
srcinariamente alheia, pois a ausência de espíríto nas formas
era então algo de inexistente e inconcebível. O que
dissemos da qualidade intelectual das formas sensíveis não nos
deve levar a esquecer que, quanto mais remontamos às srcens
de uma
tradição, menos as formas aparecem em estado de
desenvolvimento.
A pseudoforma, a forma arbitrária, está sempre excluída; mas a
forma enquanto tal pode também estar ausente, pelo menos em
dominios periféricos. Pelo contrário, quanto mais nos
aproximamos do fim de um cicio tradicional, mais o formalismo
adquire importância,' mesmo do ponto de
vista artístico, pois as formas tornam ‑se então canais quase
indispensáveis
para a actualizarão do depósito espiritual da tradição. O que
nunca devemos esquecer e que a ausencia do aspecto formal não
equivale, de modo
algum, presença do informe e vice ‑versa; o informe e o
bárbaroà não
atingirão nunca a majestosa beleza do vazio, pense o que
pensar quem
justifica as deficiências de um sistema como sinal de
superioridade.' Esta

de São Pedro em Roma ‑ em estilo renascença, portanto


exibicionista, antiespiritual
e, *humano+, se quisermos ‑ e a srcem da Reforma são factos
que estão infelizmente
longe de ser fortuitos.
1 É o que ignoram alguns movimentos pseudo ‑hindus, de srcem
indiana ou não, que
vão para além das formas sagradas do hinduísmo, pensando
representar a sua essência
mais pura. Na verdade, é inútil conferir a um homem um meio
espiritual sem lhe dar
antecipadamente uma mentalidade que se harmonize com esse
meio, isso independentemente da vincularão obrigatória a uma
linhagem iniciática. Uma realização espiritual
é inconcebível fora do clima psicológico apropriado, isto é,
conforme ao ambiente tradicíonal do meio espiritual em
questão.
1 Alguns crêem poder afirmar que o cristianismo, achando ‑se
para além das formas,
não se pode identificar com uma civilização determinada. É
compreensível querermo 71
Frithiof Schon

lei da compensação, em virtude da qual certas relações de


proporcionalidade, do princípio ao fim de um ciclo, são alvo
de uma intervenção mais
ou menos acusada, faz ‑se sentir aliás a todos os níveis. Assim,
chegou até
nós esta palavra (hadith) do profeta Maomé: *Nos primeiros
tempos do
islão, quem omitir um décimo da Lei está condenado. Mas, nos
últimos
tempos, quem puser em prática um décimo da Lei será salvo.+
A relação analógica entre as intelecções e as formas materiais
explica
como o esoterismo se pode implantar a nível profissional,
nomeadamente
na arquitectura. As catedrais, que os iniciados cristãos
deixaram após si
dão o testemunho mais explícito e vigoroso da elevação
espiritual da
Idade Média.' Tocamos aqui num ponto muito importante da
questão
que nos ocupa: o da acção do esoterismo sobre o exoterismo,
através
das formas sensíveis, cuja produção é precisamente apanágio da
iniciação artesanal. Através destas formas, que graças ao seu
simbolismo se
tornam veículos da doutrina tradicional numa linguagem
imediata e
universal, o esoterismo infunde no domínio propriamente
exotérico da
tradição uma qualidade intelectual e, desse modo, um
equilíbrio, cuja ausencia levaria à dissolução de toda a
civilização, como aconteceu no mundo cristão. O abandono da
arte sacra roubou ao esoterismo o seu meio de
acção mais directo. A tradição exterior insistiu cada vez mais
no que tem
de particular, de limitador. Enfim, a ausência da corrente de
universalidade , que havia vitalizado e estabilizado a
civilização religiosa através,da linguagem das formas,
provocou reacções em sentido inverso. As limitações
formais, em vez de se compensarem e estabilizarem por acção
supraformal do esoterismo, suscitaram, pela sua opacidade e
massa, negações infraformais, provenientes do arbitrário
individual que, longe de ser uma
forma da verdade, não passa de um caos informe de opiniões e
fantasias. Para voltarmos à ideia inicial, acrescentaremos
que a Beleza de Deus
corresponde a uma realidade mais profunda do que a Sua
Bondade. Isso
talvez surpreenda à primeira vista, mas recordemo ‑nos da lei
metafisica
em virtude da qual a analogia entre as ordens principial e
manifesta é in
‑nos consolar da perda da civilização cristã, incluindo a sua
arte, mas a opinião que
acabamos
gosto. de citar uma
Perante não catedral,
passa também de uma
sentimo ‑nosbrincadeira de centro
realmente no mau
do mundo. Perante uma igreja, de estilo renascença, barroco ou
rococó, apenas nos sentimos na Europa.
72
A Unidade Transcendente das Religiões

versa: o que é principialmente grande é manifestamente


pequeno, o que é
interior no Princípio aparecerá como exterior na manifestação,
e vice ‑versa. Ora, é graças a esta analogia inversa que a
beleza no homem é exterior, e a bondade, interior ‑ pelo menos
no uso ordinário dos termos
‑, contrariamente ao que acontece na ordem principial onde a
bondade é
como que expressão da beleza.

Muitas vezes nos admiramos de os povos orientais, mesmo os


que têm
fama de veia artística, carecerem quase sempre de
discernimento estético
em relação ao que vem do Ocidente. Todas as coisas feias,
produzidas por
um mundo cada vez mais desprovido de espiritualidade,
expandem‑se com
incrível facilidade no Oriente, não só sob a pressão de
factores político‑econômicos, o que nada teria de
surpreendente, mas sobretudo pelo livre
consentimento daqueles que aparentemente haviam criado um
mundo de
beleza, uma civilização onde todas as expressões, mesmo as
mais modestas, traziam a marca de um mesmo gênio. Desde o
começo da infiltração
ocidental pudemos ver com surpresa os objectos de arte mais
perfeitos
lado a lado com as piores trivialidades de fabrico industrial.
Tais contradições desconcertantes não só se produziram entre
os ob ectos de arte, mas
em quase tudo, abstraindo o facto de, numa civilização normal,
tudo o
que é feito pelo homem pertencer ao domínio da arte, pelo
menos em algum sentido. A resposta a este paradoxo é contudo
muito simples
esboçámos e já
acima: a
e que precisamente as formas, até as mais
ínfimas, só
são obra humana de modo secundário. Elas derivam da mesma
fonte supra‑humana donde provém tQda a tradição, o que equivale
a dizer que o
artista, que vive num mundo tradicional sem rupturas, trabalha
sob a disciplina ou inspiração de um gênio que o ultrapassa.
Ele é no fundo apenas
instrumento deste, quanto mais não seja pela sua qualificação
artesanal.'
*Uma coisa não é apenas o que é para os sentidos, mas
também o que representa. Os
objectos, naturais ou artificiais, não são ... 'símbolos'
arbitrários de tal realidade diferente e superior. São sim ...
a manifestação efectiva dessa realidade: a águia ou o leão,
por exemplo, não são tanto um símbolo ou uma imagem do Sol,
são antes o Sol sob
uma das suas aparências (sendo a forma essencial mais
importante do que a natureza
em que se manifesta). Da mesma forma, toda a casa é o mundo em
efígie e todo o altar
73
Frithjof Schuon

Daqui se deduz que, na produção de tais formas de arte, o


gosto índividual desempenha apenas um papel muito apagado e
nada é quando o indivíduo se vê perante uma forma estranha ao
espírito da sua própria tradição. É o que acontece entre povos
estranhos à civilização europeia, no
referente às formas de importação ocidental. Para que isso
suceda, é porém
necessário que o povo, que aceita tais misturas, não tenha
plenamente consciência do seu próprio gênio espiritual ou, por
outras palavras, já não esteja à altura das formas de que
ainda se faz rodear e no meio das quais vive. Isso prova que
esse povo já sofreu um certo declínio e, por isso, aceita
as feiuras modernas com tanto maior facilidade quanto elas
respondem a
possibilidades inferiores que ele procura realizar
espontaneamente, não
importa como, talvez de modo inconsciente. Por isso, a pressa
irracional
com que um grande número de orientais, sem dúvida a imensa
maioria,
aceita tudo o que há de mais incompatível com o espírito da
sua tradição
explica‑se talvez pelo fascínio que exerce sobre o homem
ordinário algo
que responde a uma possibilidade ainda não esgotada, e tal
possibilidade
é, nesse caso, simplesmente a do arbitrário ou a da ausência
de princípios.
Mesmo sem querer generalizar esta explicação do que parece ser
uma
completa falta de gosto, existe um facto que é absolutamente
certo: muitos orientais já não entendem o sentido das formas
que eles próprios herdaram, com toda a tradição, dos seus
antepassados. Tudo o que acabámos
de dizer vale em primeira linha e a fortiori para os
Ocidentais que, depois

está situado no centro da Terra ... (Ananda K.


Coomaraswamy,'*Sobre a Mentalidade
Primitiva+ em Études traditionnelles, Ag. ‑Set. ‑Out. 1939). No
sentido mais lato ‑ implicando nisso tudo o que é de ordem
exterior e formal, portanto a Jortiori tudo o que
de algum modo pertence ao domínio ritual ‑, só a arte
tradicional, transmitida com e
pela tradição, pode garantir a correspondência analógica
adequada entre as ordens divina e cósmica, por um lado, e a
ordem humana e artística, por outro. Daí resulta que
o artista tradicional não se detenha a imitar pura e
simplesmente a natureza, mas *imi.te a natureza no seu modo de
agir+ (S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, 1, q. 117,
a. 1). É claro que o artista não pode improvisar, com os seus
meios individuais, uma tal
operaçao propriamente cosmológica. É a conformidade perfeita e
adequada do artista
a este *modo de agir+, subordinada às regras da tradição, que
faz a obra ‑prima ser o
que é. Essa conformidade pressupõe essencialmente um
conhecimento, seja seja
directo ou activo, pessoal,
herdado, indirecto e passivo, sendo
este último o caso dos artesãos
que, inconscientes enquanto indivíduos do conteúdo metafisico
das formas que aprenderam a fabricar, não conseguem resistir à
influência corrosiva do Ocidente moderno.
74
A Unidade Transcendente das Religiões

de terem criado ‑ não dizemos *inventado+ ‑ uma arte


tradicional perfeita, a renegaram perante os vestígios da arte
individualista e vazia dos
Greco‑Rbmanos, desembocando finalmente no caos artístico do
mundo
moderno. Sabemos que quem não quer reconhecer a
ininteligibilidade ou
a feiura do mundo actual emprega de bom grado o termo
*estética+
com uma nuance pejorativa muito próxima da dos termos
*pitoresco+ e
*romântico+ ‑ para, à partida, não ter de se preocupar com as
formas e
se fechar mais à vontade no sistema da sua própria barbárie.
Uma tal atitude nada tem de surpreendente vinda de um
modernista convicto, mas é
ilógica, para não dizer miserável, para quem se reclama da
civilização cristã. Pois reduzir a linguagem espontânea da
arte cristã ‑ a que não poderíamos censurar a beleza ‑ a uma
mundana questão de *gosto+, como se
a arte medieval pudesse ser produto de um capricho, equivale a
admitir
que a marca dada pelo gênio do cristianismo a todas as suas
expressões directas e indirectas não foi senão uma
contingência sem referência a esse
gênio e sem intenções serias ou se deveu a qualquer tipo de
inferioridade
mental. Pois *só o espírito conta+, segundo a ideia de alguns
ignorantes
imbuídos de puritanismo hipócrita, iconoclasta, impotente e
blasfemo,
que preferem pronunciar a palavra *espinito+ a reconhecerem o
que é, de
facto, o da
declínio espírito. Para entendermos
arte no Ocidente, há melhor as causas do
que termos presente que, na mentalidade europeia, existe um
certo idealismo, perigoso, nada estranho a este declínio, nem
ao da civilização ocidental no seu todo. Esse idealismo
encontrou a sua expressão mais brilhante e inteligente em
certas formas da arte gótica onde predomina um
dinamismo que parece querer roubar à pedra o seu peso real.
Quanto à
arte bizantina e românica ‑ e também certa arte gótica que
desta conservou o poder estático ‑, trata ‑se de uma arte
essencialmente intelectual,
portanto realista. A arte gótica flamejante, por muito
apaixonada, é contudo ainda arte tradicional ‑ excepção feita
da escultura e da pintura já
muito decadentes ‑ ou, mais exactamente, o canto do cisne deste
tipo de
arte. A partir do Renascimento, verdadeira vingança póstuma da
Antiguidade Clássica, o idealismo europeu debruçou ‑se sobre os
sarcófagos desenterrados da civilização greco ‑romana. Neste
gesto de suicídio, pôs ‑se
ao serviço de um individualismo em que creu descobrir o seu
próprio gé 75
Frithjof Schon

nio, para, através de uma série de etapas, acabar nas suas


afirmações mais
grosseiras e quiméricas. Houve aqui aliás um duplo suicídio:
em primeiro
lugar, o abandono da arte medieval, ou simplesmente da arte
cristã, e em
segundo, a adopção das formas greco ‑romanas. Ao adoptá ‑las,
intoxicou
o mundo cristão do veneno da sua própria decadência. Há
todavia que
responder a uma objecção muito possível: não era a arte dos
primeiros
cristãos precisamente a arte romana? A tal há que responder
que o verdadeiro começo da arte cristã são os símbolos
inscritos nas catacumbas e não
as formas que os cristãos, muitos deles de cultura romana,
foram provisoriamente buscar à decadência clássica. O
cristianismo foi chamado a de
arte saída espontaneamente substituir
um genioaespiritual
decadênciasrcinal.
por uma
Se, de facto, certas influências romanas persistiram na arte
cristã, foi em pormenores mais ou menos superficiais.
Dissemos mais acima que o idealismo europeu se enfeudou no
individualismo para descer por fim às formas mais grosseiras
deste último.
Quanto ao que o Ocidente acha de grosseiro nas outras
civilizações, isso
são quase sempre aspectos mais ou menos periféricos de um
realismo despido de véus ilusórios e hipócritas. Importa
todavia não perder de vista
que o idealismo não é mau em si mesmo, pois encontra o seu
lugar na
mentalidade do herói, sempre inclinado à sublimação. O que é
mau, e ao
mesmo tempo especificamente ocidental, é a introdução desta
mentalidade em todos os domínios, mesmo aqueles a que deveria
ter sido alheia.
Foi este idealismo desnorteado, tão frágil e tão perigoso, que
o islão quis
evitar a todo o custo com a sua preocupação de equilíbrio e
estabilidade
‑ ou realismo ‑, tendo em conta as possibilidades restritas da
época cíclica, já muito distante das srcens. Daí aquele
aspecto terra ‑a ‑terra que
os cristãos crêem dever censurar à civilização muçulmana.

Para darmos uma ideia dos princípios da arte tradicional,


assinalaremos
alguns dos mais gerais e rudimentares: é preciso antes de mais
que a obra
seja conforme ao uso a que é destinada e traduza esta
conformidade. Se
existe um simbolismo acrescentado, é preciso que este seja
conforme ao
simbolismo inerente ao objecto. Não deve haver conflito entre
o essencial
76
A Unidade Transcendente das Religiões

e
daopureza
acessório, mas sim harmonia hierárquica, que resulta aliás
do simbolismo. É preciso que o tratamento da matéria seja
conforme a essa matéria, como por seu lado a matéria deve ser
conforme ao emprego
do objecto. É preciso enfim que o objecto não dê a ilusão de
ser outra
coisa senão aquilo que é, transmitindo a desagradável sensação
de inutilidade que, quando é a finalidade da obra ‑ como é o
caso de toda a arte
clássica ‑, se torna com efeito na marca de uma inutilidade
demasiado
real. As grandes inovações da arte naturalista reduzem ‑se em
suma a outras tantas violações de princípios da arte normal:
em primeiro lugar, no
que se refere à escultura, violação da matéria inerte, seja da
pedra, do
metal ou da madeira, e, em segundo lugar, no que se refere à
pintura,
violação da superfície plana. No primeiro caso, trata ‑se a
matéria inerte
como se dotada de vida, quando ela é essencialmente estática,
só permitindo, por isso, a representação de corpos imóveis ou
de fases essenciais e
esquemáticas do movimento ‑ não de movimentos arbitrários,
acidentais
ou quase instantâneos. No segundo caso, o da pintura, trata ‑se
a superfície plana como se fosse um espaço de três dimensões,
e isso tanto nos escorços como nas sombras. É claro que
tais regras não são ditadas por simples razões de ordem
estética. Trata ‑se sim de aplicações de leis cósmicas e
divinas. A beleza será
o resultado necessário disso mesmo. Quanto à beleza na arte
naturalista,
ela não reside na obra enquanto tal, mas só no objecto dessa
obra, enquanto na arte simbólica e tradicional é a obra em si
que é,bela, seja abstracta ou vá buscar a beleza em maior ou
menor grau a um modelo da natureza. Nada saberia exprimir
melhor o que acabámos de dizer do que a
comparação da arte grega dita clássica com a arte egípcia: a
beleza desta
última não está apenas no objecto representado, mas
simultaneamente e a
fortiori na obra'enquanto tal, ou seja, na realidade interna
que a obra manifesta. Que a arte naturalista tenha podido por
vezes exprimir uma nobreza de sentimentos ou uma inteligência
vigorosa é demasiado evidente e
explica‑se por razões cosmológicas cuja ausência seria
inconcebível, mas
isso é totalmente independente da arte enquanto tal. De facto,
nenhum
valor individual 'oderia compensar a falsificação desta.

p A maioria dos modernos, que crêem compreender a arte,


estão convencidos de que a arte bizantina ou românica não tem
qualquer superioridade
77
Frithjof Schuon

sobre a arte moderna e que uma Virgem bizantina ou românica


não se parece mais com Maria do que as imagens naturalistas. A
resposta, porém, é
fácil: a Virgem bizantina ‑ que tradicionalmente remonta a São
Lucas e
aos Anjos ‑ está infinitamente mais perto da verdade de Maria
do que a
imagem naturalista, que é forçosamente sempre a de outra
mulher. Pois,
das duas, uma: ou se apresenta da Virgem uma imagem
fisicamente muito
semelhante, sendo para isso necessário que o pintor tenha
visto a Senhora, condição que evidentemente não pode ser
preenchida e portanto a
pintura naturalista perde toda a legitimidade, ou se apresenta
da Virgem
um símbolo perfeitamente adequado e a questão da parecença
física, sem
estar absolutamente excluída, não se coloca prioritariamente.
É esta segunda solução, a única sensata, que os ícones
realizam: o que não exprimem pela parecença física, exprimem ‑no
pela linguagem abstracta, mas
imediata, do simbolismo, feita ao mesmo tempo de precisão e de
imponderáveis. O ícone transmite assim, pela força beatifica
inerente ao seu carácter sacramental, a santidade da Virgem, a
sua realidade
realidade interior
universal de e
quea a própria Virgem é expressão. O
icone, ao consentir num estado contemplativo e numa realidade
metafisica, torna ‑se suporte de intelecção, enquanto a imagem
naturalista não transmite, para
além da sua mentira evidente e inevitável, senão o facto de
que Maria era
uma mulher. Poderia acontecer que, num ícone, as proporções e
as formas do rosto fossem as mesmas da própria Senhora, mas
tal parecetiça, se
se produzisse realmente, seria independente do simbolismo da
imagem e
apenas consequência de uma inspiração particular, sem dúvida
ignorada
do próprio artista. A arte naturalista teria certa
legitimidade se servisse para
reter as feições dos Santos, já que a contemplação dos Santos
(o darshan dos
hindus) é ajuda preciosa na via espiritual, sendo a sua
aparência externa
como que o perfume da sua espiritualidade. Todavia, essa
função limitada
de um naturalismo parcial e disciplinado corresponde a uma
possibilidade
muito precária. Mas voltemos à qualidade simbólica e
espiritual do ícone. A percepção
de semelhante qualidade é fruto de inteligência contemplativa
e de *ciência sagrada+. Para legitimar o naturalismo, é
certamente falso pretender
que o povo tenha necessidade de uma arte acessível, pois não
foi o *povo+
quem fez o Renascimento, e a arte deste, como toda a *grande
arte+ que
78
A Unidade Transcendente das Religiões

daí derivou, é pelo contrário um desafio à piedade do simples.


O ideal artístico da Renascença e de toda a arte moderna está
pois muito longe daquilo de que o povo necessita e, de resto,
quase todas as Virgens milagrosas para as quais o povo aflui
são bizààtinas ou românicas. Quem ousaria
dizer que a cor negra de algumas delas corresponde ao gosto
popular ou
lhe é particularmente acessível? Aliás, as Virgens feitas pelo
povo, quando não danificados pela, influência da arte
acadêmica, são objectivamente
mais verdadeiras do que as desta última. Admitindo mesmo que
as multidões precisem de imagens ocas e insensatas, será que
as necessidades da
elite não têm direito à existência? Pelo que precede, já
respondemos implicitamente à questão se a arte se
destina à elite intelectual em exclusivo ou se tem também algo
a transmitir
ao homem de inteligência média. Esta questão resolve ‑se por si
mesma
tendo em conta a universalidade de todo o simbolismo, que faz
com que a
arte sacra ‑ para além de verdades metafisicas e factos da
história sagrada ‑ não só comunique estados espirituais, mas
também atitudes psíquicas acessíveis a qualquer pessoa. Em
linguagem moderna, diríamos que
esta arte é, a um tempo, profunda e ingénua. Ora, esta
simultânea profundidade e ingenuidade são precisamente
caracteres muito notórios da
arte sacra. A ingenuidade, a candura, longe de serem uma
inferioridade
espontânea ou afectada, revelam o estado normal da alma
hum@na, seja
do homem médio ou superior. Pelo contrário, a aparente
inteligência do
naturalismo, a sua habilidade quase satânica para reprimir a
natureza, não
transmitindo senão as aparências e as emoções, só pode
corresponder a
uma mentalidade deformada, desviada da simplicidade, da
inocência primordial. É claro que uma tal deformação, feita de
superficialidade intelectual e de virtuosidade mental, é
incompatível com o espírito da tradição, não encontrando por
isso lugar na civilização fiel a esse espírito. Se,
portanto, a arte sacra se dirige à inteligência contemplativa,
ela orienta ‑se
igualmente para a sensibilidade humana normal. Só essa arte
parece possuir uma linguagem universal e nenhuma melhor do que
ela pode voltar ‑se
ao mesmo tempo para a elite e para o povo. No que se refere ao
aspecto
aparentemente infantil da mentalidade tradicional, pensemos
nas exortações de Cristo a sermos *corno crianças+ e *sim les
como pombas+, palap
vras que, seja qual for o seu sentido espiritual, correspondem
evidentemente também a realidades psicológicas.
79
Frithjof Schuon
Os Padres do séc. viii, muito diferentes da autoridade
religiosa dos
sécs. xv e xvi ‑ que traíram a arte cristã, abandonando ‑a à
impura paixão
dos mundanos e à ignorante imaginação dos profanos ‑, tinham
plena consciência da santidade de todos os modos de expressão
tradicional. Por isso,
estipularam, no segundo Concílio de Niceia, que *só a arte (a
perfeição
integral do trabalho) é do pintor; a ordenação (ou seja, a
escolha do tema) e
a disposição (o tratamento do tema do ponto de vista
simbólico, assim como
tecnico e material) cabem aos Padres+ (Non est pictoris ‑ ejus
enim sola ars
est ‑ verum ordinaúo et disposiüo Patrum nostrorum), o que
significa pôr toda a iniciativa artística sob a autoridade
directa e activa dos chefes espirituais
da cristandade. Assim sendo, como explicar que na maioria dos
meios religiosos se verifique, desde há séculos, uma
lamentável incompreensão para
com tudo o que, sendo de ordem artística, é na opinião desses
apenas algo
de *exterior+? Admitindo a priori a eliminação da influência
esotérica, existe
antes de mais uma perspectiva religiosa que tende a
identificar‑se com o ponto de vista moral que só aprecia o
mérito e crê dever ignorar a qualidade
santificante do conhecimento intelectual e, assim, o valor dos
suportes desse
conhecimento. Ora a perfeição da forma sensível não é
moralmente *meritóna+ ‑ não mais do que a intelecção que esta
forma reflecte e transmite ‑ e
é lógico
seja que a forma simbólica, quando já não compreendida,
relegada
para segundo plano para ser substituída por uma forma que fala
não já à inteligência, mas só à imaginação sentimental,
própria a inspirar o acto meritório no homem limitado. Este
modo de especular sobre as reacções com auxílio de meios
superficiais e grosseiros revelar ‑se ‑á em última análise
‑ilusório,
pois na verdade nada melhor do que uma arte sacra para
influenciar as disposições profundas da alma. A arte profana,
mesmo quando dotada de certa
eficácia psicológica em almas pouco inteligentes, esgota os
seus meios superficiais e grosseiros, acabando por provocar as
reacções de desprezo já nossas
conhecidas, que são como que o ricochete do desprezo que a
arte profana
manifestou inicialmente perante a arte sacra'. É de
experiência corrente que

' Da mesma forma, a hostilidade dos esoteristas perante tudo o


que ultrapasse o, seu
modo de ver traz consigo um exoterismo sempre mais duro, que
não pode não sofrer
rupturas. Mas, uma vez perdida a *porosidade espiritual+ da
tradição ‑ a imanência
na substância do exoterismo de uma dimensão transcendente que
compensa tal dureza
as ditas rupturas não podem senão produzir ‑se a partir de
baixo: é a substituição
dos mestres do esoterismo medieval pelos protagonistas da
descrença moderna.
so
A Unidade Transcendente das Religiões

nada poderia fornecer ao ateísmo um alimento mais


imediatamente tangível do que a hipocrisia das imagens
religiosas. O que se destina a estimular nos crentes a
piedade, confirma nos descrentes a impiedade. Ora, é
preciso reconhecer que a arte sacra não tem de modo algum o
carácter de
uma espada de dois gumes, pois, sendo mais abstracta, dá menos
azo a
reacções psicológicas
especulações que fazemhostis. Independentemente das
supor nas massas uma necessidade de imagens ininteligíveis e
radicalme ' nte
falseados, as elites existem e têm necessidade de outra coisa.
A linguagem
que lhes convém é a que evoca, não coisas humanas e
comezinhas, mas as
profundezas divinas. Ora, tal linguagem não pode emanar do
simples gosto profano, nem do gênio, mas procede
essencialmente da tradição, o que
implica que a obra de arte seja executada por um artista
santificado ou
*em estado de graça +. Além de servir para instrução e
edificação superficial das massas, o ícone, como o yantra
hindu e qualquer outro símbolo
visível, estabelece uma ponte do sensível ao espiritual: *Pelo
aspecto visível+ ‑ diz São João Damasceno ‑ *o nosso pensamento
deve ser arrastado num élan espiritual e subir à invisível
majestade de Deus.+ Mas voltemos aos erros do naturalismo:
a arte, desde que não determinada, iluminada, guiada pela
espiritualidade, encontra‑se à mercê
dos recursos individuais e puramente psicológicos do artista,
acabando
tais recursos por se esgotar devido à miopia do principio
naturalista que
pretende um decalque da natureza visível. Chegado ao ponto
morto do
seu próprio aviltamento, o naturalismo gerará inevitavelmente
as mons ‑truosidades do *surrealísmo+. Este não passa do cadáver
em decomposição da arte e é sobretudo um *infra ‑realismo+. É na
verdade a conclusão
satânica do luciferianismo naturalista. O naturalismo é
verdadeiramente
luciferiano ao querer imitar as criações de Deus, sem falar da
sua afirmação do psiquico em detrimento do espiritual ou do
invidual em detrimento'
do universal, do facto bruto em detrimento do símbolo.
Normalmente o
homem deve imitar o acto criador, não a coisa criada. É o que
faz a arte,
simbolista. Daí resultam *criações+ que, longe de copiarem as
de Deus,
Os pintores de ícones eram monges que, antes de se pôrem
ao trabalho, se preparavam através de jejuns, oração,
confissão e comunhão. Chegavam mesmo a misturar as
tintas com água benta e o pó das relíquias, o que não seria
possível se o ícone não tivesse um carácter verdadeiramente
sacramental.
81
Frithjof Schon

reflectem‑nas em conformidade com uma analogia real, revelando


o aspecto transcendente das coisas. É nisso que consiste a
razão suficiente da
arte, abstracção feita da utilidade prática dos seus objectos.
Existe aí uma
inversão metafísica, uma relação que já assinalámos: para
Deus, a criatura
reflecte um aspecto exteriorizado de si mesmo; para o artista,
a obra reflecte pelo contrário uma realidade *interior+ de que
ele é apenas um aspecto exterior. Deus cria a sua própria
imagem, enquanto o homem molda de certa maneira a sua própria
essência, pelo menos simbolicamente.
No plano principal, o interior manifesta ‑se pelo exterior; no
plano manifesto, o exterior molda o interior. Ora a razão
suficiente de toda a arte
tradicional é que a obra seja em certo sentido mais do que o
artista' e reconduza este, pelo mistério da criação artística,
às margens da sua própria
essência divina.

É o que explica o perigo que havia, entre os Semitas, de


pintarem sobretudo esculpirem a figura de seres vivos. Se o
hindu e o Oriental adoravam a Realidade Divina atravês de um
símbolo e sabemos que um símbolo é, na perspectiva da
realidade essencial, aquilo mesmo que simboliza ‑, o Semita era
levado a divinizar o próprio símbolo.
A proibição da arte plástica e pictórica entre os povos
semíticos tinha
naturalista, certamente
perigo a intenção
muito real de impedir
entre homens cuja o desvio
mentalidade é
mais individualista e sentimental.
82

v
DOS LImites DA EXPANSÃO RELIGIOSA

epois desta digressão, voltemos aos


aspectos mais directos da questão da unidade das formas
religiosas: propomo‑nos agora mostrar como a universalidade
simbólica de cada uma
dessas formas im líca limitações da universalidade em sentido
absoluto.
Afirmações verdadeiras, tendo por objecto factos sagrados e
verdades
transcendentes como a pessoa de Cristo, podem com efeito
tornar‑se mais
ou menos falsas quando artificialmente retiradas do seu
enquadramento
providencial; este é, para o cristianismo, o mundo ocidental,
onde Cristo
é *a Vida+, com artigo definido e sem epítetos. Este
enquadramento foi
quebrado pela desordem moderna, havendo ‑se *a humanidades
alargado
exteriormente de modo artificial e quantitativo. Daí resultou
que uma
parte não quis aceitar outros *Cristos+ e outra parte negou a
Jesus qualquer qualidade crística. Foi cojno se, perante a
descoberta de outros sistemas solares, uns defendessem que só
existe um sol ‑ o nosso ‑, enquanto outros negassem a
existência de qualquer sol, por nenhum deles ter
direito à exclusividade. Ora a verdade situa ‑se entre ambas as
teses:
o nosso sol é, de facto, *o Sol+; mas só é único por
referência ao sistema
de que é o centro. Como existem muitos sistemas solares, há
muitos sóis,
o que não impede que cada um seja único por definição. O Sol,
o leão, o girassol, o mel, o âmbar, o ouro são várias
a águia,
manifestações naturais do princípio solar, cada uma única e
simbolicamente absoluta na sua
ordem. Ao deixarem de ser únicas ‑ porque subtraídas aos
limites das res 83
Frithjof Schuon

pectivas ordens que as transformavam em sistemas fechados ou


microcos~
mos ‑ e ao manifestar ‑se o que nessa unicidade há de relativo ‑
nem
por isso tais manifestações perdem a sua identificação com o
princípio solar, embora revestindo modos apropriados às
possibilidades de cada ordem. Seria falso afirmar que Cristo
não é *o Filho de Deus+ mas apenas
*um Filho de Deus+, pois o Verbo é único e cada uma das suas
manifestações reflecte, em essência, a divina unicidade.
Algumas passagens do Novo Testamento permitem entrever que o
*mundo+ de que Cristo é *o sol+ se identifica com o Império
Romano que
representava o domínio providencial de expansão e de vida para
a civilização cristã: quando, nestes textos, se fala de *todos
os povos debaixo do
céu+ (Act.,2:541), trata ‑se com efeito apenas dos povos
conhecidos do
mundo romano'. Do mesmo modo, quando se diz que *não existe
debaixo
do céu outro Nome pelo qual os homens possam ser salvos+
(Act., 4:12),
não há razão para admitir que esse *céu+ deva ser interpretado
de modo
diverso. A menos que se entenda o nome de *Jesus+ como
designação
simbólica do próprio Verbo, o que equivale a dizer que no
mundo existe
um só Nome, o do Verbo, pelo qual os homens podem ser salvos,
qualquer que seja a manifestação divina que esse nome
particularmente designe ou, por outras palavras, qualquer que
seja a forma particular desse Nome eterno: *Jesus+, *Buda+ ou
outro. Tais considerações levantam um problema que não
podemos aqui silenciar: será então a actividade dos
missionários, que trabalham
piedosos de todos fora dos
os povos debaixo doli
céu+,Ao
a falar de *judeus
Escritura não
tem
certamente em vista os Japoneses ou os Peruanos, embora
pertençam também a este
mundo terrestre *debaixo do céu+. O rilesmo texto precisa
aliás mais longe o que era,
para os autores neotestamentários, este conjunto de *todos os
povos debaixo do céu+:
*Nós, partos e medos e elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da
Judeia e ‑da Capadócia, do Ponto, da Asia (Menor), da Frígia, da
Panfilia, do Egipto e das regiões da Líbia
em direcção a Grene, nós, peregrinos de Roma, judeus e
prosélitos, cretenses e árabes, ouvimo ‑los proclamar nas nossas
línguas os prodígios de Deus.+ (Act.,2:541).
A mesma concepção necessariamente restrita do mundo geográfico
e étnico acha ‑se implicada nestas palavras de São Paulo: *Antes
de mais, dou graças a Deus por Jesus
Cristo por vós todos (da Igreja de Roma); pois a vossa fé é
conhecida no Mundo inteiro+. Ora, é evidente que o autor não
quis dizer que a fé da primitiva Igreja de Roma
era conhecida entre todos os povos que, segundo os
conhecimentos geográficos actuais,
fazem parte do *mundo inteiro+.
84
A Unidade Transcendente das Religiões

in tes normais do cristianismo, inteiramente ilegítima? A isso


há que responder que, embora beneficiando materialmente de
circunstâncias
anormais pelo facto de a expansão ocidental se ter devido à
superioridade
material resultante do actual desvio, os missionários trilham
uma vida
que tem, pelo menos em princípio, um carácter sacrificial. Por
consequência, a realidade subjectiva dessa via conservará
sempre o seu sentido
místico, independentemente da realidade objectiva da acção
missionário
enquanto tal. O factor positivo, que esta actividade vai
buscar à sua raiz
evangélica, não pode desaparecer totalmente, pois os limites
do mundoforam ultrapassados ‑ o que já havia acontecido antes
cristão
da era moderna em condições bem diferentes e excepcionais ‑ e
foram invadidos
mundos que não precisavam de ser convertidos, já que, não
sendo *cristãos+ em Jesus Cristo, eram ‑no no Cristo universal,
que é o Verbo inspirador de toda a Revelação. Mas esse aspecto
positivo da acção missionário
só se manifestará no mundo objectivo em casos mais ou menos
pontuais,
seja porque a graça que emana de um santo ou de uma relíquia
ultrapassa
uma influência espiritual autóctone, seja porque a religião
cristã se adapta
melhor à mentalidade particular de certos indivíduos, o que
faz supor que
estes não compreenderam a própria tradição ou que o
cristianismo corresponde melhor às suas aspirações,
espirituais ou não. A maior parte destas
reflexões vale também, como é óbvio, em sentido inverso e em
benefício
das tradições não ‑cristãs, com a diferença de, nesse caso, as
conversões
serem muito mais raras, por razões que em nada abonam o
Ocidente: em
primeiro lugar, porque os Orientais não têm colónias nem
*protectorados+ no Ocidente nem mantêm aí missões
poderosamente protegidas; em
segundo, porque os Ocidentais são mais propensos à descrença
pura e
simples do que a uma espiritualidade que lhes é estranha'. As
reservas
que se podem formular, quanto à acção missionário, não se
referem por
certo à evangelização enquanto tal ‑ embora esta tenha sofrido
certa diminuição e declínio devido às circunstâncias anormais
já por nós assinaladas ‑, mas apenas à sua solidariedade activa
com a moderna barbárie
ocidental. Aproveitaremos a ocasião para notar que, na
época em que se iniciou a
Todavia, desde meados do séc. xx, verificamos que um
número crescente de ocidentais se vira para formas de
espiritualidade
85 oriental, sejam elas falsas ou verdadeiras.
Frithjof Schuon

expansão a oriente, já estas paragens haviam entrado em


profunda decadência, por certo não comparável ao declínio
ocidental moderno cujo
princípio é inverso daquele. De facto, enquanto o declínio
oriental é pássivo, como o de um organismo físico desgostado
pela idade, o declínio
moderno é activo, voluntário, cerebral. Isso dá ao Ocidental a
ilusão de
uma superioridade que ‑ se efectivamente existe a nível
psicológico, graças à divergência de modos que acabámos de
referir ‑ não deixa de ser
muito relativa e tanto mais ilusória quanto se reduz a nada
perante a superioridade espiritual do Oriente. Poderíamos
também dizer que a deca
dência deste é toda feita de *inércia+, enquanto a do Ocidente
se edifica
sobre o *erro+. Só a predominância do elemento passional os
torna solidários, e é aliás tal predominância que caracteriza
a *idade sombria+ em
que o mundo se acha mergulhado e cujo aparecimento foi
previsto por todas as doutrinas sagradas. Se a diferença no
modo de declínio explica, em
parte, o desprezo que muitos ocidentais sentem por certos
orientais muitas vezes mais do que um simples preconceito,
tornando‑se um ódio às
tradições orientais ‑ e, em parte, a admiração cega que muitos
orientais
sentem por alguns aspectos positivos de mentalidade ocidental,
é claro
que o desprezo que o velho Oriente sente pelo Ocidente moderno
tem
uma razão não apenas psicológica ‑ relativa e discutível ‑, mas
total,
porque fundada em razões espirituais decisivas. Aos olhos de
um Oriente,
fiel ao seu espírito, o *progresso+ dos Ocidentais será sempre
um círculo
vicioso tentando em vão eliminar misérias inevitáveis ao preço
do que pode dar
missionário: sentido
o facto de à
a vida. Masuma
passagem de voltemos
a à questão
outra forma tradicional poder ser legítima não impede que, em
certos casos, possa haver verdadeira apostasia. É apóstata
quem muda de forma
tradicional sem razão válida. Pelo contrário, quando existe
*conversão+
de uma a outra tradição ortodoxa, as razões invocados têm pelo
menos
certo valor subjectivo. Podemos passar de uma a outra forma
tradicional
sem nos termos propriamente *convertido+, apenas por razões de
oportunidade esotérica ou espiritual. Nesse caso, as razões
que determinarão a
passagem serão objectiva e subjectivamente válidas, ou antes,
deixaremos
de,poder falar de razões verdadeiramente subjectivas. Vimos
que a atitude do exoterismo face às formas religiosas que lhe
são
86
A Unidade Transcendente das Religiões

estranhas é determinada por dois factores, um positivo, outro


negativo,
o primeiro referente ao carácter de unícidade inerente a toda
a Revelação
e o segundo à consequencia extrínseca dessa unicidade, a
rejeição de um
*paganismo+ particular. Por exemplo, no que se refere ao
cristianismo,
bastará situá ‑lo nos seus normais limites de expansão ‑ que
jamais haveria transposto, salvo raras excepções, não fosse o
desvio moderno ‑ para
entender que esses dois factores já não são literalmente
aplicáveis fora dos
seus limites naturais, devendo pelo contrário ser
universalizados, transpostos para o plano da Tradição
Primordial que permanece viva em todas as
formas ortodoxas. Por outras palavras, é preciso entender que
cada forma
tradicional estranha pode reivindicar semelhante unicidade e a
negação de
um *paganismo+.
intrínseca, cadaÉ como dizer que, pela sua ortodoxia
uma é forma daquilo a que poderíamos chamar, em linguagem
cristã,
a *Igreja Eterna+. Nunca será de mais insistirmos no facto
de o sentido literal ser, por definição, um sentido limitado,
que se detém nos confins do domínio particular a que se
aplica, segundo intenção divina ‑ situando ‑se o critério
desta, em condições normais, na natureza das coisas ‑, quando
só o sentido puramente espiritual pode reivindicar um alcance
absoluto. A exortação de *ensinar a todas as nações+ não
constitui excepção, assim como
outras expressões onde se torna patente a limitação natural da
literalidade, sem dúvida porque não existe interesse em
conferir a essas um sentido
incondicionado. Recordemo ‑nos, por exemplo, da proibição de
matar, da
ordem de dar a face esquerda, de não *multiplicar as palavras
ao rezar+
ou de não nos preocuparmos com o dia de amanhã. O Divino Meste
jamais explicitou os limites em@que tais ordens são válidas,
de modo que
logicamente lhes poderíamos conferir um alcance incondicional,
como
se faz para a ordem de *ensinar a todas as nações+. Importa
porém acrescentar que o sentido directamente literal se acha
presente, em certa medida, não apenas na ordem de pregar as
naçoes, mas também nas outras palavras de Cristo, a que
fizemos alusão. Tudo consiste em sabermos por
este sentido no seu devido lugar, sem excluirmos outros
sentidos possíveis.
Se é verdade que a ordem de ensinar a todas as nações não se
pode limitar, de modo absoluto, ao propósito de constituir o
mundo cristão, mas
deve poder implicar a pregação entre todos os povos
alcançáveis, é tam 87

N
Frithjof Schuon

bém verdade que a ordem de dar a face esquerda se pode


igualmente entender de modo literal em certos casos de
disciplina espiritual.
que esta última Mas é claro
interpretação será tão secundária quanto é a
interpretação
literal de pregar a todos os povos. Para definirmos claramente
a diferença
entre os sentidos directo e indirecto desta exortação,
recordaremos o que
já acima deixámos entrever: ou seja, que, no primeiro caso, o
fim é sobretudo objectivo, pois trata ‑se de constituir o mundo
cristão, enquanto no
segundo caso, o da pregação entre povos de civilização
estranha, o fim é
sobretudo subjectivo e espiritual, levando o plano interior a
melhor sobre
o plano exterior, que não é mais do que um suporte da
realização sacrificial. Poderia alguém objectar citando as
palavras de Cristo: *Este Evangelho do Reino será pregado em
todo o mundo, para servir de testemunho a
todas as nações. Então virá o fim+. Ao que responderemos que,
se tal palavra se refere ao mundo inteiro e não apenas ao
Ocidente, é porque não
se trata de uma ordem, mas sim de uma profecia que se reporta
a condições cíclicas em que a separação entre os diferentes
mundos tradicionais
será abolida. Significa, por outras palavras, que *Cristo+ ‑
que para os
hindus é o Kalki ‑Avatâra e para os budistas o
Bodhisattwa‑Maitreya restaurará a TradiçãoTrimordial.
Dissemos mais acima que a ordem dada por Cristo aos
Apóstolos se
restringia aos limites providenciais do mundo romano. É claro
que uma
tal limitação não é particular ao cristianismo: a expansão
muçulmana, por
exemplo, detém ‑se forçosamente em fronteiras análogas, e isso
pelas mesmas razoes. O princípio, que colocou os politeístas
árabes perante a alternativa islão ou morte, foi tão logo
abandonado, mal as fronteiras da Arábia se viram
ultrapassadas. Assim, os hindus, que não são propriamente
*monoteístas+', foram governados por muçulmanos durante vários
séculos, sem que estes tivessem aplicado, depois das suas
conquistas, a alter Os monoteístas são as *gentes do Livro+
(ahl el ‑Kitâb),
revelações ou seja,abraâmico.
de espírito os judeus Parece
e os cristãos,
‑nos quaseque receberam
supérfluo
acrescentar que os hindus, se não são monoteístas em sentido
especificamente semítico
também não são politeístas, pois a consciência da Unidade
metafísica através da multi'
plicidade indefinida das formas é precisamente uma das
características mais evidentes
do seu espírito.
88
A Unidade Transcendente das Religiões

nativa dantes imposta aos árabes pagãos. Um outro exemplo é o


da delimitação tradicional do mundo hindu. Contudo, a
reivindicação de
universalidade por parte do hinduísino, conforme ao carácter
metafisico e
contemplativo desta tradição, é repleta de uma serenidade que
não se encontra nas religiões semíticas. A concepção de
Sanâtana‑Narma, *Lei
eterna+ ou *primordial+, é estática, e não dinâmica, sendo uma
constatação de factos, e não uma aspiração, como o é a
correspondente concepção
semítica: esta parte da ideia de que é preciso levar aos
homens de Fé verdadeira que eles ainda'não possuem, enquanto,
segundo a concepção hindu, a tradição bramânica é a Verdade e
a Lei Original que os estrangeiros
perderam, conservando dela apenas vestígios, tendo ‑a alterado
ou mesmo
substituído pelo erro. É todavia inútil convertê ‑los porque,
mesmo decaídos do Sanâtana ‑Dharma, nem por isso se deixam de
salvar, achando ‑se
apenas em condições espirituais menos favoráveis do que os
hindus. Este
ponto de vista não proíbe que *bárbaros+ sejam Yogis ou
Avatâras‑, e é
um facto que os hindus veneram indiferentemente santos
muçulmanos,
budistas ou cristãos, sem o que a expressão Mlechha ‑Avatâra
(*descida divina entre os bárbaros+) não teria sentido ‑, mas a
santidade ocorrerá
Sem dúvida muito mais raramente nos não ‑hindus do que no seio
do
índia'. ‑Dharma, cujo
SanâtanaPoderíamos último refúgio
igualmente é a ‑terra
interrogar nos sesagrada da
a penetração
do islão em terras da índia não deveria ser vista como uma
usurparão tradicionalmente
ilegítima, podendo a mesma questão estender ‑se as partes da
China e da
Insulíndia que se vieram a tornar muçulmanas. Para responder a
esta
questão, há que nos determos em considerações que parecerão
talvez algo
longínquas, mas que são aqui indispensáveis. Antes de mais, é
preciso ter
em conta o seguinte: se o hinduísmo, no que respeita a sua
vida espiritual,
sempre se adaptou às condições cíclicas com que teve de se
defrontar no
decurso da sua existência histórica, nem sempre porém
conservou o carác Existiu, no Sul da índia, um *intocável+
que foi um Avatâra de Shiva: o grande mestre espiritual
Tiruvalltivar, o *divino+, cuja memória é ainda venerada na
região e que
nos deixou um livro inspirado, o Kural. O equivalente da
concepção hindu do Sanâtana ‑Dharma encontra ‑se nas passagens
corânicas que afirmam que não existe povo a que Deus não
tivesse suscitado um Profeta; a afirmação exotérica segundo a
qual todos os povos teriam rejeitado ou esquecido
a Revelação que respectivamente lhes dizia respeito não
poderia fundar ‑se no Alcorão.
89

kI,
Frithjof Schon

ter *primordial+ que lhe é próprio; nomeadamente, na @sua


estrutura formal, apesar das modificações secundárias que
sobrevieram por força das
circunstâncias, como por exemplo a fragmentação quase
indefinida das
castas. Ora, tal primordialidade, plena de serenidade
contemplativa, deu
lugar, a partir de certo *mornento+ cíclico, a uma maior
preponderância
do elemento passional na mentalidade genérica, segundo a lei
do declínio
que rege todo o ciclo da humanidade terrestre. O hinduísmo
acabou por
perder em actualidade e em vitalidade, à medida que se afastou
das srcens, e nem as reformulações espirituais, como a
eclosão das vias tântricas
e bhákticas, nem as readaptações sociais, como a já aludida
fragmentação
das castas, bastaram para eliminar a desproporção entre a
primordialidade
inerente à tradição e uma mentalidade sempre mais passional'.
Contudo,
a substituição do hinduísmo por outra forma tradicional, mais
adaptada às

' Um dos sinais deste obscurecimento parece ser a


interpretação literal dos textos simbólicos sobre a
transmigração que. deram srcem à teoria da reencarnação. O
mesmo literalismo, aplicado às imagens sagradas, gerou uma
idolatria de facto. Sem este aspecto real de paganismo,
patente no culto de muitos hindus de casta baixa, o islão não
poderia ter causado uma fenda tão profunda na realidade
indiana. Se, para defender a
interpretação reencarnacionista das Escrituras hindus, há quem
se reporte ao sentido literal dos textos, tudo deveria então
interpretar‑se de modo literal, chegando ‑se assim a
um antropomorfismo grosseiro e a uma adoração grosseira e
monstruosa da natureza
sensível, quer se trate de elementos, animais ou objectos. O
facto de muitos hindus interpretarem actualmente à letra o
simbolismo de transmigraçao só prova o declípio intelectual
próprio de kali ‑yuga e previsto nas Escrituras. Aliás, já nem
nas religiões ocidentais os textos sobre a vida depois da
morte são entendidos literalmente. O fogo do
Inferno não é um fogo físico, o seio de Abraão não é o seu
seio corporal, o banquete
de que Cristo fala não é constituído de alimentos terrestres,
ainda que o sentido literal
tenha também os seus direitos, sobretudo no Alcorão. Por outro
lado, se a reencarnação fosse uma realidade, todas as
doutrinas monoteístas
estados póstumos nesteseriam
mundo.falsas, pois
Mas todas nunca
estas situam os
considerações
são vãs se pensarmos na impossibilidade metafísica da
reencarnação. Mesmo admitindo que uin
mestre espiritual hindu possa fazer sua uma interpretação
literalista das Escrituras, no
que diz respeito a uma questão cosmológica como a da
transmigração, isso nada prova
contra a sua espiritualidade, pois podemos conceber nele uma
sabedoria que nada tem
a ver com realidades puramente cósmicas, consistindo numa
visão puramente sintética
e interior da Realidade Divina; o caso seria diferente num
mestre espiritual cuja vocação consistisse em expor ou
comentar uma doutrina especificamente cosmológica, mas
tal vocação é quase de excluir na nossa época, devido às leis
espirituais que a regem no
quadro de uma tradição determinada.
90
A Unidade Transcendente das Religiões

condições particulares da segunda metade do kali ‑yuga, não


chegou a estar em causa; o mundo hindu, no seu conjunto, não
tem necessidade de
transformações drásticas, já que a Revelação de Manu
Vaivaswata conserva suficiente actualidade e vitalidade para
justificar a persistência de uma
civilização. Em qualquer dos casos, há que reconhecer que se
produziu
uma situação paradoxal no hinduísmo, que poderíamos
caracterizar dizendo que ele é vivo e actual no seu conjunto,
mas não em alguns aspectos
secundários. Cada um destes aspectos teve a suas consequências
no mundo exterior: consequência da vitalidade do hinduísmo foi
a resistência invencível que ele opôs ao budismo e ao islão;
consequência do seu enfraquecimento foi precisamente a vaga
budista, que apenas passou por ele,
e o alastramento e estabilização da civilização islâmica em
solo indiano.
Mas a presença do islão na índia não se explica unicamente
pelo facto
de, sendo a mais jovem das grandes Revelações', estar melhor
adaptada
do que o hinduísmo às condições gerais deste último milénio da
*idade
sombria+ ‑ tendo em maior conta o elemento passional nas almas
mas ta mbém pela seguinte razão: o declínio cíclico traz
consigo um obscurecimento geral, a par de um aumento mais ou
menos considerável das
populações, sobretudo as suas camadas inferiores. Ora, tal
declínio é assistido por uma força cósmica compensadora que
actua no interior da colectividade social a fim de restaurar,
pelo menos simbolicamente, a sua
qualidade primitiva. Em primeiro lugar, a colectividade será
como que
atravessada por excepções, paralelamente ao seu crescimento
quantitativo, como se o elemento qualitativo (ou *sáttwico+,
do Ser puro) nela contido se concentrasse para compensar, em
casos especiais, a dilatação quantitativa. Em segundo lugar,
os'meios espirituais tomam ‑se de mais fácil acesso
para quem for qualificado e tiver aspirações sérias; isso, por
uma lei cósmica da compensação que intervém, já que o ciclo
humano, para o qual as
castas são válidas, chega ao fim. Por isso, a referida
compensação tende
não apenas a restaurar, simbolicamente e dentro de certos
limites, aquilo
O islão é a última Revelação deste ciclo da humanidade
terrestre, como o hinduísmo
representa a Tradição Primordial, sem se identificar com ela
pura e simplesmente, sendo apenas o seu ramo mais directo.
Existe, portanto, entre estas duas formas tradicionais uma
relação cíclica ou cósmica que, como tal, nada tem de
fortuita.
91
Frithjof Schuon
que as castas eram na sua srcem, mas o que era a
humanidade antes da constituição das castas. Todas estas
considerações permitirão entrever qual o papel positivo e
providencial do islão na índia: em primeiro lugar, absorver
os elementos que, pelo facto das novas condições cíclicas já
refe ridas, não encontram *o seu lugar+ na tradição hindu ‑
pensemos aqui particularmente em elementos das castas
superiores, os Dwijas; em segun do lugar, absorver os
elementos de elite
litadas numa das
espécie decastas inferiores,
indiferencíação assim reabi
primordial. O islão,
com a simplicidade sintética da sua forma e meios espirituais,
é um instrumento
N@
providencialmente apto a preencher rupturas que se produzam
em civili zações mais antigas e arcaicas ou a captar e
neutralizar, pela sua presença, germes de subversão de que
essas civilizações sejam portadoras nas di tas rupturas.
Ora foi sob esse aspecto ‑ e apenas esse ‑ que certas ci
vilizações entraram parcialmente no dominio providencial de
expansão islâmica.
Para não negligenciarmos nenhum aspecto desta questão,
precisaremos ainda estas considerações do seguinte modo,
mesmo que nos tenhamos de repetir um pouco: a possibilidade
bramânica deve manifestar ‑se, em todas as castas e entre os
próprios Shúdras, não apenas de maneira analógica, como
sempre foi o caso, mas de maneira directa, e isso porque de
*par te+, que inicialmente era, a casta inferior tornou ‑se
um *todo+, nos finais do ciclo, sendo esse todo comparável a
uma totalidade social: os elemen tos superiores dessa
totalidade serão, de algum modo, *excepções nor mais+. Por
outras palavras, o estado actual das castas parece copiar, sim
bolicamente e em certa medida, a indistinção primordial,
sendo as diferenças intelectuais entre as castas cada vez
mais diminutas. As castas inferiores, tornando ‑se muito
numerosas, representam de facto todo um povo, comportando
por consequência todas as possibilidades humanas, enquanto
as castas superiores, que não se multiplicaram nas mesmas pro
porções, sofreram um declínio tanto mais sensível quanto *a
corrupção do melhor é a pior+ (corruptio oprimi péssima).
Sublinhemos todavia, para evitar qualquer equívoco, que os
elementos de elite das castas inferiores conservam, do ponto
de vista colectivo e hereditário, o seu carácter de
*excepções que confirmam a regra+, não podendo por isso
misturar‑se le gitimamente com as castas superiores, o que
não os impede de modo al 92
A Unidade Transcendente das Religiões

gum de serem individualmente aptos a vias reservadas


normalmente às
castas nobres. Assim, o sistema de castas, que foi durante
milénios
factor deum
equilíbrio, manifesta forçosamente certas rupturas
no fim do mahâ ‑yuga, à semelhança dos desequilíbrios no
ambiente terrestre. Ouanto
ao aspecto positivo que estas rupturas implicam, ele tem
srcem na mesma lei cósmica de compensação que tinha em vista
Ibri Arabi quando afirmava,de acordo com diversos ditos do
Profeta, que no fim dos tempos as
chamas do Inferno esfriariam. É ainda a mesma lei que faz
dizer ao Profeta que, no fim do mundo, se salvará quem cumprir
um décimo do que o
islão exigia de início. Tudo o que acabámos de expor não só
diz respeito
às castas hindus, mas também à humanidade no seu todo. Por
outro lado,
quanto às rupturas na estrutura exterior do hinduísmo, em
todas as formas tradicionais encontramos factos análogos, em
um ou outro grau. No que diz respeito à analogia funcional
entre budismo e islamismo por
referência ao fiínduísmo ‑ tendo ambas as tradições o mesmo
papel negativo e positivo face a este último ‑, os budistas
mahâyânistas ou hinayânistas têm dela plena consciência, pois
vêem nas invasões muçulmanas, sofridas pelos hindus, o castigo
pelas perseguições que eles mesmos
tiveram de sofrer por parte dos hindus.

Depois desta digressão, indispensável para mostrar um


aspecto importante da expansão muçulmana, voltamos a uma
questão mais fundamental, a da dualidade de sentido inerente
às exortações divinas quando referidas às coisas humanas. Tal
dualidade acha‑se prefigurada no próprio
nome de *Jesus Cristo+: *Jes'us+ ‑ como *Gáutama+ e *Maomé+ ‑
indica o que há de limitado e relativo na manifestação do
Espírito, e designa
o suporte desta manifestação; *Cristo+ ‑ como *Buda+ ou *Rassul
AIlah+ (Apóstolo de Deus) ‑ indica a realidade universal da
manifestação,
ou seja, o Verbo enquanto tal. Embora a teologia não se
coloque numa
perspectiva capaz de esgotar as suas consequências, tal
dualidade de aspectos volta a encontrar ‑se na distinção entre a
*natureza
*natureza humana+
divina+ e
deaCristo. Ora, se os Apóstolos concebiam
Cristo e a sua missão em sentido abso 93
Frithjof Schuon

luto, isso não se devia a limitações de tipo intelectual: de


facto, no mundo
romano, Cristo e a sua Igreja tinham um carácter único,
portantosrelativamente absoluto+. Esta expressão, que parece
ser e é logicamente uma
contradição de termos, corresponde todavia a uma realidade: o
Absoluto
deve reflectir‑se *corno tal+ no relativo; e esse reflexo será,
por referência
às outras relatividades, *relativamente absoluto+. A diferença
entre dois
erros será sempre relativa por referência à sua falsidade,
sendo uma simplesmente mais falsa ‑ ou menos falsa ‑ do que a
outra. A diferença entre o erro e a verdade será, pelo
contrário, absoluta, mas apenas de modo
relativo, sem sair das relatividades, pois o erro não poderia
ser absolutamente independente da verdade, não sendo mais do
que uma negação
mais ou menos confessada da mesma. Por outras palavras, o
erro, nada
tendo de positivo, não poderia opor ‑se à verdade de igual para
igual e
com plena autonomia. Isto permite entender porque não poderia
haver aí
um *absolutamente relativo+: esse seria o nada, e o nada nada
é de modo
algum. Dizíamos que Cristo e a sua Igreja tinham um carácter
único, *relativamente absoluto+, no mundo romano. Por outras
palavras, a unicidade principal, metafísica e simbólica de
Cristo, da Redenção, da Igreja, exprimiu ‑se necessariamente
numa unicidade de facto a nível terrestre. Se os
Apóstolos não explicitaram os limites metafisicos que todo o
facto naturalmente supõe e a experiência os levou a descorarem
o sentido da universalidade tradicional, isso não significa
que a sua Ciência espiritual não englobasse, no estado
principal, o conhecimento dessa universalidade, ainda
que não ‑actualizado quanto às suas apl icações a contingências
determinadas. Daformas,
todas as outras mesma forma,
ainda o olho
que que vê umausentes
actualmente círculo e
vêmesmo
que a visão se exerça apenas sobre esse círculo. A questão do
que teriam dito os Apóstolos, ou o
próprio Cristo, se tivessem encontrado um ser como Buda é
perfeitamente
inútil, pois esse tipo de coisas jamais acontece por ser
contrário às leis
cósmicas. Dificilmente teremos ouvido falar de encontros entre
grandes
santos pertencentes a civilizações diferentes. Os Apóstolos
eram, no seu
mundo, um grupo único. Mesmo admitindo, no seu raio de acção,
a presença de iniciados assénicos, pitagóricos ou outros, a
luz de tão pequenas
minorias acabaria por se diluir na radiação de luz crística.
Além disso, os
Apóstolos não teriam de se preocupar com estes *homens
rectos+, pois
94
A Unidade Transcendente das Religiões

disse Jesus: *Não vim chamar os justos, mas sim os pecadores+


(Mat.,9:13).
De um ponto de vista algo diferente, mas respeitando o mesmo
princípio
da delimitação tradicional, notaremos que São Paulo que, no
cristianismo,
foi o artesão primordial da expansão, como Omar o será mais
tarde no isIão, evitará penetrar no domínio providencial desta
última forma da Revelação, segundo uma passagem muito
enigmática dos Actos dos Apóstolos
(16:6‑8). Sem insistirmos no facto de os limites da expansão
desconhecerem por certo o rigor das fronteiras políticas ‑ as
objecções fáceis, que
previmos, não voltem no terreno em que se situa o nosso
pensamento
limitar‑nos‑emos a notar qu e a vinda do Ap óstolo dos Gentios
para ocidente tem um valor simbólico, mais por referência ao
islão do que por referência à delimitação do mundo cristão.
Por outro lado, o modo como
este episódio foi relatado mencionando a intervenção do
Espírito Santo de Jestis+ e passando em silêncio as causas
e do *Espírito
destas inspirações ‑ não permite admitir que a abstenção de
pregar a volta brusca do
Apóstolo só tivesse sucedido por motivos exteriores, sem
alcance principíaI, nem permite comparar este episódio a uma
qualquer peripécia das
viagens apostólicas'. Por fim, o facto de a província onde
ocorreu esta intervenção do Espírito ser chamada *Asia+
acrescenta‑se ainda ao caráct er
simbólico das ditas circunstâncias.
Permita ‑se ‑nos notar que, se nos referimos a exemplos
concretos em vez de conjecturarmos sobre princípios e
generalidades, nunca é com a intenção de convencer, mas
unicamente para revelar alguns aspectos da realidade a quem
assim os quiser entender.
É só para esses que escrevemos, recusando ‑nos desde já a
polémicas que não teriam interesse nem para os nossos
eventuais contraditores nem, sobretudo, para nós mesmos.
Devemos igualmente acrescentar que não é como historiadores
que abordamos os factos, citados a título de exemplo, visto
que eles não interessam em si mesmos, mas apenas na medida em
que podem ajudar à compreensão de verdades transcendentes,
verdades essas jamais à mercê dos factos.
95
vi O ASPECTO TERNáRIO DO Monoteísmo

unidade transcendente das formas


religiosas revela ‑se de forma particularmente instrutiva na
relação recíproca entre as três grandes religiões ditas
monoteístas e isso porque só estas
fazem questão em se apresentar como exoterismos
inconciliáveis. Mas,
antes de mais, há que estabelecermos uma clara distinção entre
aquilo a
que poderíamos
objectivas. chamar *verdade
Citaremos, a títulosimbólicas e *verdade
de exemplo, os argumentos do
cristianismo e do budismo
no referente às formas tradicionais que, de algum modo, lhes
deram srcem, a saber: o judaísmo e o hinduísmo,
respectivamente. Tais argumentos são simbolicamente
verdadeiros, pois as formas abandonadas não são
vistas em si mesmas, na sua verdade intrínseca, mas unicamente
nos seus
aspectos contingentes e negativos, produtos de um declínio
parcial. A reJeição dos Vedas corresponde, portanto, a uma
verdade quando esta Escritura é tida exclusivamente como
símbolo de uma erudição estéril, muito
comum no tempo de Buda, tal como a rejeição paulina da Lei
judaica é
plenamente justificado quando não passa de um formalismo
farisaico sem
vida espiritual própria. Se uma nova Revelação tem autoridade
para depreciar valores tradicionais de srcem mais remota é
por ser independente
e não fazer uso dos mesmos, já que, possuindo o equivalente
desses valores, se basta totalmente a si mesma. Esta
verdade aplica‑se ainda ao foro interno de uma mesma forma
tradicional, por exemplo, à antinomia entre as Igrejas Grega e
Latina: o *cisma+
97.
Frithjof Schuon

é uma contingência que não pode afectar a realidade intrínseca


e essencial
das Igrejas. O cisma entre Igrejas, como o cisma entre
muçulmanos, que srcinou a corrente chiita, não depende apenas
de vontades individuais: tem a
ver com a própria natureza da religião que exteriormente, e
não interiormente, divide. O espírito da religião pode exigir
adaptações diversas, mas
sempre ortodoxas, de acordo com contingências étnicas ou
outras. O mesmo
não acontece com as heresias, que dividem a religião por
dentro e por fora
sem poderem realmente dividi ‑Ia, pois o erro não é parte da
verdade
e que, não
outros apenas são incompatíveis, no plano formal, com
aspectos
de uma mesma verdade, mas são em si mesmas falsas.
Consideremos agora a questão da homogeneidade espiritual e
cíclica
das religiões no seu conjunto: o monoteísmo ‑ que engloba as
religiões judaica, cristã e islâmica, ou seja, as religiões de
espírito semítico ‑ funda ‑se
essencialmente na concepção dogmática da Unidade (ou
Não‑Dualidade) divina. Ao dizermos que esta concepção é
dogmática, especificamos que ela
exclui qualquer outro ponto de vista, sem o que se tornaria
impossível a aplicação exotérica que dá aos dognias toda a sua
razão de ser. Vimos que é esta
restrição, tão necessária à vitalidade das formas religiosas,
que subjaz à limitação inerente ao ponto de vista exotérico
enquanto tal. Por outras palavras,
este caracteriza‑se precisamente pela incompatibilidade entre
concepções dotadas de formas aparentemente opostas, quando nas
doutrinas puramente
metafisicas ou iniciáticas os enunciados aparentemente
contraditórios não se
excluem nem se perturbam entre si'.

1 A unilateralidade com que certos factos das Escrituras são


interpretados pelos exoteristas prova que o interesse que
aqueles têm não é alheio às suas especulações limitadoras,
como mostrámos no capítulo sobre o exoterismo. Na verdade, a
interpretação esotérica de uma Revelação é admitida pelo
exoterismo, sempre que tal interpretação
sirva para o confirmar, e é arbitrariamente omitida quando
susceptível de prejudicar o
dogmatismo exterior por detrás do qual se esconde um
individualismo sentimental: assim, há quem se sirva da verdade
crística, que pela sua forma é um esoterismo judaico,
para condenar o formalismo excessivo do judaísmo; mas não faz
a aplicação universal
dessa verdade, projectando luz sobre toda a forma sem
excepção, incluindo a sua. Segundo a Epístola de São Paulo aos
Romanos (3:27 ‑ 4:17), o homem é justificado pela
fé, e não pelas obras; para a Epístola Católica de São Tiago
(2:14‑26), o homem é justificado pelas obras e não apenas pela
fé. Ambos
esses doiscitam Abraão
textos como exemplo.
pertencessem Ora, se
a religiões diferentes, ou a
dois ramos reciprocamente
*cismáticos+ de uma mesma religião, não há dúvida de que os
teólogos de cada uma
98
A Unidade Transcendente das Religiões
Esta tradição monoteísta pertencia srcinariamente a todo
o ramo nómada do grupo semítico, saído de Abraão, e que se
subdividia em dois
grupos, o de Isaac e o de Ismael. Só a partir de Moisés o
monoteísmo se
torna realmente judaico. Moisés foi chamado a dar ao
monoteísmo um
forte contributo, associando ‑o de algum modo ao povo@ de
Israel, que se
tornava assim seu guardião, enquanto a tradição abraâmica se
ia obscurecendo entre os ismaelitas. Mas tal gesto, por muito
necessário e providencial, conduziu fatalmente a uma restrição
da forma exterior, devido à tendência particularista inerente
a cada povo. Podemos dizer que o judaísmo
anexou o monoteísmo, tornando ‑o coisa de Israel, fazendo com
que a herança de Abraão se tornasse, desde então, inseparável
de qualquer adaptação secundária, de qualquer consequência ri
tual ou social implicado na
Lei mosaica. O monoteísmo, canalizado e cristalizado no
judaísmo, adquiriu, assim,
um carácter histórico, embora não em sentido exclusivamente
genérico e
exterior, o que seria incompatível com o carácter sagrado de
Israel. Foi
esta absorção da tradição primitiva por parte do povo judeu
que permitiu
distinguir exteriormente o monoteísmo mosaico do dos
Patriarcas, sem
que tal distinção atingisse a esfera doutrinal. Esse carácter
histórico do judaísmo teve como consequência natural a ideia
messiânica, não inerente
ao monoteísmo primitivo, mas ligada, enquanto tal, ao
mosaísmo. Estas reflexões sobre o monoteísmo srcinal, a
sua adaptação por Moisés, a sua anexação pelo judaísmo e a sua
concretizarão em ideia messiânica bastarão para passarmos à
consideração do papelque
monoteísta. Diríamos orgânico do cristianismo
o cristianismo dentro do ciclo
absorveu,
na afirmação messiânica, toda a herança doutrinal do
monoteísmo, e fê ‑lo
de pleno direito, sendo ele o legítimo ponto de chegada da
forma judaica.

delas se afadigariam em demonstrar a incompatibilidade destes


textos. Mas como estes
pertencem a uma única e mesma religião, os esforços tendem
pelo contrário a demonstrar a sua perfeita compatibilidade.
Porque não aceitar então as Revelações diferentes
daquela a que se adere? *Deus não pode côntradizer ‑se+, dirão,
ainda que isso não
passe de uma petição de princípio. Ora, das duas uma: ou
admitimos que Deus se contradiz, e não aceitamos nenhuma
Revelação; ou admitimos, por impossibilidade cóntrária, que há
em Deus aparências de contradição, mas aí já não temos o
direito de rejeitar uma Revelação estranha pela simples razão
de ela ser, à primeira vista,
contraditória por referência à Revelação que admitimos a
priori.
99
Frithjof Schwn

O Messias, pelo facto de realizar na sua pessoa a Vontade


Divina que srcinou o monoteísmo, vai necessariamente além da
forma que não lhe permite realizar plenamente a sua missão.
Para dissolver uma forma transitória, é preciso que, na sua
qualidade de Messias, goze eminentemente da
autoridade inerente à tradição de que se faz última palavra.
Por isso
é mais do que Moisés e anterior a Abraão: tais afirmações do
Evangelho
demonstram uma identidade *de força maior+ entre o Messias e
Deus,
que permitem entender que um cristianismo que negue a
divindade de
Cristo nega a sua própria razão de ser. Afirmámos que a
pessoa *avatática+ do Messias absorveu inteiramente
a doutrina monoteísta, o que significa que Cristo devia ser
não apenas o
termo do judaísmo
nionoteísmo e o histórico, mas o ponto de apoio do
templo da Presença Divina. Esta extrema positividade histórica
de Cristo
arrastou consigo uma limitação da forma tradicional, como
acontecera no
judaísmo, onde Israel tinha o papel preponderante que deveria
mais tarde
caber ao Messias, papel forçosamente restritivo e limitador da
realização
do nionoteísmo inte ral. Aqui intervém o islão, cuja posição e
significado
9
no ciclo monoteísta nos falta ainda precisar'. Antes de
abordarmos este assunto, consideremos ainda um outro aspecto
da questão que acabámos de tratar. O Evangelho refere esta
palavra de
Cristo: *A Lei e os Profetas vão até João. Depois de João, é
anunciado o
Reino de Deus, e cada um se esforça por entrar nele+
(Luc.,15:16)., Além
disso, o Evangelho refere que, no momento da morte de Cristo,
o véu do
templo se rasgou de alto a baixo, facto que, como a palavra
acima citada,
indica que a chegada de Cristo pôs fim ao mosaísmo. Ora,
poderíamos
objectar que o mosaísmo, enquanto Palavra Divina, não é
susceptível de

1 A perspectiva que acabámos de enunciar poderia lembrar a


descrita por Joaquim de
Fiori que atribuía a cada pessoa da Santíssima Trindade uma
preponderância particular
em cada divisão do ciclo tradicional na perspectiva cristã: o
Pai dominava a Antiga Lei,
o Filho a Nova Lei e o Espírito Santo a última fase do ciclo
cristão que começava com
as novas ordens monásticas fundadas por São Francisco e São
Domingos. Podemos detectar facilmente a assimetria destas
correspondências: o autor desta teoria devia ignorar, real ou
formalmente, o islão, que corresponde, segundo o dogma
islâmico, ao reino
épocaque Joaquim dedo Paracleto.
Fiori Mas não é menos verdade que a
colocava
sob a especia1,ipúu@Ucia do Espírito Santo, conheceu no
Ocidente uma renovação espiritual. ‑x P, PA
100
A Unidade Transcendente das Religiões

anulação, pois *a nossa Torah é para a eternidade: nada lhe


podemos somar ou subtrair+ (Maimónides). Como conciliar então
a abolição do mosaísmo, ou do ciclo glorioso da sua existência
terrestre, com a *eternidade
da Revelação mosaica? Há, antes de mais, que entendermos que
esta abolição, se é real na ordem que lhe cabe, não deixa por
isso de ser relativa;
mas a realidade intrínseca do mosaísmo é absoluta, porque
divina. É essa
qualidade divina que necessariamente se opõe à supressão de
uma Revelação, pelo menos por tanto tempo quanto a forma
doutrínal e ritual desta
permanecer intacta ‑ o que era o caso do mosaísmo, sem o qual
Cristo
não se teria podido conformar a ele.' A abolição do mosaísmo,
levada a
cabo por Cristo, remonta a um Querer Divino; a permanência
intangível
do mosaísmo é todavia de ordem mais profunda, no sentido que
remonta
à própria essência divina, de que este Querer é apenas uma
manifestação
particular ‑ tal como a vaga é manifestação particular da água
de que
não pode modificar a natureza. O Querer Divino, manifestado
por Cristo,
só podia afectar um modo particular do mosaísmo e não a sua
qualidade
Importa notar que o declínio do esoterismo judaico na
época de Cristo ‑ Nicodemos,
doutor em Israel, ignorava o mistério da ressurreição! ‑
permitia ver o mosaísmo na
sua totalidade, e por referência à Nova Revelação, como um
exoterismo exclusivo e
maciço, visão essa de valor acidental e provisório, porque
limitada à srcem
mosaica não deviado cristianismo.
condicionar Em todo
o acesso aosonovos
caso,Misté~
a Lei
rios como faria um exoterismo por referência a um esoterismo,
de que é complemento.
Mas foi um outro exoterismo que se constituiu para a nova
religião, com vicissitudes de
adaptação e interferências que continuaram durante séculos.
Paralelamente, por seu Iado, o judaísmo reconstituía e
readaptava o seu exoterismo no novo ciclo da sua história, a
diáspora; e parece que houve aí um processo de algum modo
correlativo ao do
cristianismo, precisamente graças ao amplo influxo de
espiritualidade que representava
a manifestação do Verbo crístico. Todos os elementos vizinhos
dessa manifestação sofreram directa ou indirectamente, aberta
ou encobertamente, a sua influência, e foi assim que se deu,
no primeiro século do ciclo cristão, por um lado, o
desaparecimento
dos antigos mistérios, uma parte dos quais foi absorvida pelo
esoterismo cristão, e por
outro lado, uma irradiação de forças espirituais nas tradições
mediterrânicas, por
exemplo, no neoplatonismo. No que se refere ao judaísmo,
existiu até aos nossos dias,
e existe sem dúvida ainda hoje, uma verdadeira tradição
esotérica, não importa a
época exacta em que se operou essa transformação depois da
manifestação de Cristo
e do começo do novo ciclo tradicional, a diáspora, e qual
tenha sido mais tarde o
papel aparentemente análogo do islão face ao judaísmo, assim
como face ao cristianismo.
101

IL
Frithjof Schon

*eterna+. Portanto, embora a presença real (Shekhinah) já não


habite no
Santo dos Santos no Templo de Jerusalém, a Divina Presença
permanece
sempre em Israel, não já como um fogo ininterruptojocalizado
num santuário,
o fogo de modo mas como uma pedra ardente que, sem manifestar
constante, o contém virtualmente, podendo manifestá ‑lo em
certos períodos ou ocasiões.

No judaísmo e no cristianismo, o monoteísmo conheceu duas


expressoes antagónicas, que o islão, antagónico por referência
a estas formas, de
algum modo recapitulou, harmonizando o antagonismo
judaico‑cristão numa síntese que marcou o termo de expansão e
realização integral do monoteísmo. Isso acha ‑se expresso no
facto de o islão ser o número 3 desta
corrente tradicional, ou seja, representar o número da
harmonia, enquanto o cristianismo, o número 2, o da
alternativa, não se basta a si mesmo,
devendo ou ser reconduzido à unidade, por absorção de um dos
seus termos pelo outro, ou recriar a unidade, pela produção de
uma unidade nova. O modo de realização da unidade é
precisamente o islão, que resolve
o antagonismo judaico‑cristão de que, em parte, surgiu e que,
em parte,
anula, por redução ao monoteísmo puro de Abraão. Poderíamos
comparar o islão a um judaísmo que não rejeitou o cristianismo
ou a um cristianismo que não renegou o judaísmo. Mas se, por
ser produto de ambos, a
sua atitude pode ser caracterizada deste modo, o islão
coloca‑se porém fora da dualidade ao rejeitar por um lado o
*desenvolvimento+ judaico e
por outro a *transgressão+ cristã, pondo em relevo não o povo
judaico ou
a pessoa de Cristo, mas a afirmação fundamental do monoteísmo,
a Unidade de Deus. Para ultrapassar o messianismo foi preciso
que o islão se
colocasse num ponto de vista diferente deste, e o reduzisse,
para o integrar, ao seu próprio ponto de vista, donde se
explica a integrarão de Cristo na linhagem dos Profetas, de
Adão a Maomé. É claro que o islão, como as duas religiões
precedentes, nasceu por intervenção directa da
Vontade Divina, da qual surgiu o monoteísmo, e que o Profeta
reflectia a
verdade messiânica essencial, inerente ao monoteísmo srcinal
ou abraâmico.
abraâmica O islão
à ane 102pode ser considerado como uma *reacção+
A Unidade Transcendente das Religiões

xação do monoteismo por Israel, por um lado, e pelo Messias,


por outro.
Se metafisicamente estes dois pontos de vista não se excluem
de modo algum, o dogmatismo não pode entendê ‑los
simultaneamente nem afirmá ‑los senão por dogmas antagónicos que
dividem o aspecto exterior do monoteísmo integral. Se o
judaísmo e o cristianismo representam, em certa medida, uma
frente única face ao islão, o cristianismo e o islão opõem ‑se
por seu lado ao
judaísmo, pela sua tendência à plena realização da doutrina
monoteísta. Mas
vimos que essa tendência foi limitada, na forma cristã, pela
preponderância
da ideia messiânica, que é secundária para o monoteísmo puro.
O elemento
legislativo do judaísmo foi quebrado por uma *exteriorização+,
necessária e
legítima, das concepções esotéricas, e absorvido pelo *Além+,
de acordo
com a fórmula: O meu reino não é deste mundo. A ordem social
foi substituída pela ordem espiritual, sendo os sacramentos da
Igreja a legislação
correspondente a esta ordem. Mas como a legislação espiritual
não responde às exigências sociais, houve que recorrer a
elementos de legislaçãoheterogéneos, o que gerou um dualismo
cultural nefasto para o mundo
cristão. O islão restabeleceu uma legislação sagrada para
*este mundo+,
juntando‑se assim ao judaísmo, sem deixar de reafirmar a
universalidade
que o cristianismo antes dele havia reposto ao quebrar a casca
da Lei mosaica. Também poderíamos dizer que o equilíbrio
entre os dois aspectos divinos, Rigor e Clemência, constituiu
a essência da Revelação maometana,
que nisso se harmonizou com a Revelação abraâmica. Se a
Revelação crística afirma a sua superioridade face à Revelação
mosaica, é porque a Clemência é principal e ontologicamente
*anterior+ ao Rigor, como o confirma a inscrição do Trono de
A11âh: *Na
precedeu a verdade, a Minha
Minha Cólera+ Clemência
(Inna Rahmati sabagat Ghadabi). O
monoteísmo revelado a Abraão possuía em perfeito equilíbrio o
esoterismo e o
exoterismo, primordialmente indistintos nas religiões de cepo
semítico.
Com Moisés, é o exoterismo que, por assim dizer, se torna
tradição, determinando a forma desta, sem prejudicar a sua
essência. Com Cristo,
é inversamente o esoterismo que se torna tradição. Com Maomé,
o equílíbrio inicial é restabelecido e o ciclo da Revelação
monoteísta encerrado.
Tais alternâncias na Revelação integral do monoteísmo procedem
da sua
103
Frithjof Schon

própria natureza, não sendo exclusivamente imputáveis às


vicissitudes da
contingência. Sendo a *letra+ e o *espírito+ sinteticamente
entendidos no
monoteísmo integral ou abraâmico, deveriam cristalizar ‑se
sucessivamente
ao longo da Revelação monoteísta, devendo o abraamismo
manifestar o
equilíbrio indiferenciado do *espírito+ e da *letra+; o
mosaísmo, a *letra+;
o cristianismo, o *espírito+; e o islão, o equili 'brio
diferenciado destes dois
aspectos da Revelação. Toda a religião é forçosamente uma
adaptação, uma limitação. Se isso
vale para as tradições puramente metafisicas, vale muito mais
para os dogmatismos que representam adaptações a mentalidades
mais limitadas.'
Tais limitações não devem encontrar ‑se, de algum modo, nas
srcens das
formas tradicionais; manifestam ‑se, antes, no decurso do seu
desenvolvimento, tornando ‑se mais notórias no fim e concorrend o
para esse fim. Se
tais limitações são necessárias para a vitalidade das
religiões, nem por isso
deixam de ser limitações com todas as consequencias. As
heterodoxias são
consequência indirecta desta necessidade de restringir a
amplitude da forma tradicional, limitando ‑a, à medida que se
avança para a idade sombria.
E não pode ser de outra maneira, mesmo para os símbolos
sagrados, pois
só a Essência infinita, eterna e informal, é pura e
inviolável, devendo a
sua transcendência manifestar ‑se na dissolução das formas e na
sua irradiação através das mesmas.

Se temos fundamentos para afirmar que a mentalidade dos


povos ocidentais, incluindo os do Próximo Oriente, tem
qualquer coisa de mais limitado que a da maioria dos
povos orientais, isso deve ‑se a uma certa intrusão, nos
Ocidentais, do elemento passional na esfera da inteligência,
donde a sua propensão a ver as coisas criadas sob um único
aspecto, a do *facto bruto+, e a sua inaptidão à contemplação
intuitiva das essências
cósmicas e universais que se insinuam nas formas. E o que
explica a necessidade de um
teísmo abstracto que se deve acautelar perante o perigo de
idolatria, assim como de
panteísmo. Trata ‑se de uma mentalidade que se expande, há já
vários séculos e por razões cíclicas, cada vez mais entre
todos os povos, que permite entender por um lado a
facilidade relativa das conversões religiosas de povos de
civilização não ‑doginática, mitológica ou metafísica, e por
outro lado o carácter providencial da expansão muçulmana
nessas civilizações.
104
Vil

CRISTIANISMO E ISLÃO

mos que, de entre as religiões que


dão testemunho
cristianismo e mais ou menos
o islão directodentro
representam, da Verdade primordial, o
da herança
espiritual dessa Verdade,
dois pontos de vista diferentes. Isso levanta ‑nos a questão do
que é, em si
mesmo, um ponto de vista. Nada mais simples do que considerá ‑lo
ao nível da visão física, em que o ponto de vista determina
uma perspectiva
coordenada e necessária, onde tudo muda de figura segundo a
posição
de quem vê, ainda que os elementos da visão sejam os mesmos ‑
os
olhos, a luz, as cores, as formas, as proporções, a situação
no espaço. Altera ‑se o ponto de partida da visão, não a visão
em si mesma. Se admitimos isso no mundo físico, que é reflexo
das realidades espirituais, como
podemos negar a existência ou preexistência de semelhantes
relações em
tais realidades? O olho é o coração, o órgão da Revelação; o
Sol, Princípio Divino, o dispensador da'luz; a luz, o
Intelecto; os objectos, as Realidades ou Essências Divinas.
Mas se nada nos impede de mudar de ponto
de vista, a nível físico, o mesmo não se passa naquele plano
espiritual que
ultrapassa o indivíduo, tornando a sua vontade determinada e
passiva. Para entendermos um ponto de vista espiritual ou
religioso, não basta a
nossa boa intenção em estabelecermos correspondências entre
elementos
religiosos extremamente comparáveis. Tal poderia tornar ‑se uma
síntese
superficial e pouco útil, mesmo se as comparações têm
legitimidade quando não tomadas como ponto de partida e
antepostas a uma análise da
105
Frithjof Schuon

constituição interna das religiões. Para chegar ao ponto de


vista religioso,
há que entrever a unidade em que todos os seus elementos
constitutivos se
acham necessariamente coordenados. Tal unidade é a do ponto de
vista
espiritual, em si mesmo, que é germe da Revelação. A causa
primeira da
Revelação não é, de modo algum, assimilável a um ponto de
vista, tal como a luz nada significa para a situação espacial
do olho. Mas o que constitui toda a Revelação é precisamente o
encontro entre a única Luz e uma
ordem contingente e limitada que representa como que um plano
de refracção espiritual fora do qual não há Revelação.
Antes de considerarmos a relação que existe entre cristianismo
e islamismo, seria oportuno notarmos que o espírito ocidental
é quase todo de
essência cristã no que tem de verdadeiramente positivo. Não
está no poder do homem desfazer ‑se de uma hereditariedade tão
profunda, servindo‑se de meros artifícios ideológicos. A sua
inteligência exerce ‑se segundo
hábitos seculares, mesmo quando inventa erros. Não podemos
esquecer a
sua formação intelectual e mental, por muito diminuída que
seja. Se assim
é e se algo do ponto de vista tradicional subsiste
inconscientemente em
quem pensa ter ‑se libertado de todos os seus elos ou, por
imparcialidade,
se coloca fora do ponto de vista cristão, como podemos esperar
que elementos de outra religião sejam interpretados no seu
verdadeiro sentido?
Não é flagrante que opiniões correntes sobre o islamismo sejam
sensivelmente as mesmas na maior parte dos Ocidentais, digam ‑se
cristãos ou se
gabem de já não o serem? Nem os próprios erros filosóficos
seriam concebíveis se não representassem a negação de certas
verdades e tais negações
não fossem reacções directas ou indirectas a limitações
formais da religião. Por aí se vê que nenhum erro, seja qual
for a sua natureza, pode aspirar a uma perfeita independência
face à concepção tradicional que rejeita ou desfigura. Uma
religião é comparável a um organismo vivo, que se desenvolve
segundo leis necessárias e precisas. Poderíamos, portanto,
chamar‑lhe um
organismo espiritual, ou social no seu aspecto mais exterior;
mas sempre
um
Nãoorganismo, e nãolegitimamente
podemos, pois, uma construção de convenções
considerar arbitrárias.
os elementos
constitutivos de uma
religião fora da sua unidade interna, como se fossem factos
sem importância. Esse erro é frequentemente cometido, mesmo
pelos mais imparciais,
106
A Unidade Transcendente das Religiões

ao estabelecerem correspondências externas sem terem em conta


que o
elemento tradicional é determinado pelo ponto de partida da
religião integral e um mesmo elemento, personagem ou livro,
pode ter significados diferentes de uma religião para outra.
Ilustrámos tais observações, considerando paralelamente
elementos fundamentais das tradições cristã e muçulmana. A
incompreensão habitual e
recíproca dos representantes das duas religiões revela ‑se nos
mais ínfimos
pormenores, como ao chamar *maometano+ a um muçulmano,
transposição imprópria da apelidarão de *cristão+. Se esta
última convém perfeitamente,aos fiéi; da religião que, fundada
por Cristo, o perpetua na Eucaristia e no Corpo Místico, não é
correcta quando aplicada aos islamitas,
cuja fé não assenta imediatamente no Profeta, mas sim no
Alcorão, afirmação da Unidade Divina, que não consiste numa
perpetuação de Maomé, mas na conformidade ritual e espiritual
do homem e da sociedade à
Lei corânica, à Unidade. Por outro lado, o termo árabe
mushrikún,
*aqueles que associam (falsas divindades a Deus)+, referido
aos cristãos,
esquece que o cristianismo apenas não repousa imediatamente na
ideia de
Unidade, já que o seu fundamento é essencialmente o mistério
de Cristo,
mas sendo mushrikún um termo sagrado ‑ no seu sentido corânico
‑ é
evidentemente o suporte de uma verdade que ultrapassa o facto
histórico
da religião cristã. Os factos têm aliás no islão um papel
muito menos relevante do que no cristianismo, cuja base é
essencialmente
uma ideia, comoum facto, e
acontece nonão
islão. É aí que se manifesta, em
suma, a divergência fundamental entre as duas formas
tradicionais. Para o cristão,
tudo gira em torno da Encarnação e na Redenção. Cristo absorve
tudo
mesmo a ideia de Princípio Divino, que aparece sob um aspecto
trinitário,
e de humanidade, que se torna seu Corpo Místico ou Igreja
militante, padecente e triunfante. Para o muçulmano, tudo se
centra em A11^ o Princípio Divino visto no Seu aspecto de
Unidade' e Transcendência, e na
conformidade, no abandono a ele: el ‑Islâm. No centro da
doutrina cristã
está o Homem ‑Deus: o homem universalizado é o Filho, a segunda
Pessoa
da Santíssima Trindade. Deus individualizado é Cristo Jesus. O
islão não
atribui tal importância ao intermediário. Não é ele que
absorve tudo: só a
Afirma ‑se expressamente, neste credo islâmico, que é o Fikh
el‑akbar de Abu Hanifa,
que Allâh não é um em sentido numérico, mas por não ter quem
se lhe compare.
107

119
Frithjof Schuon

concepção monoteísta da Divindade está no centro da doutrina


islâmica e
a comanda inteiramente. A importância dada pelo islão à
ideia de Unidade pode parecer, do
ponto de vista cristão, supérflua e estéril, ou mesmo um
pleonasmo da
tradição judaico‑cristã. Esquece ‑se que a espo ntaneidade e a
vitalidade da
religião islâmica não pode ser efeito de um empréstimo e que a
srcinalidade intelectual dos muçulmanos só pode provir de uma
Revelação. Se no
islão
certa a ideia de Unidade é suporte da espiritualidade e, em
medida,
de aplicação social, o mesmo não se passa com o cristianismo:
o seu ponto
central, como já dissemos, é a doutrina da Encarnação e da
Redenção,
concebida de modo universal na Santíssima Trindade, não tendo
aplicação
humana a não ser nos Sacramentos e na participação no Corpo
Místico de
Cristo. O cristianismo, tanto quanto a história nos permite
julgar, jamais
teve uma aplicação social no sentido pleno do termo. Nunca
integrou em
si inteiramente a sociedade dos homens. Colocou ‑se, como
Igreja, acima
dos homens, sem os envolver nem lhes atribuir funções que lhes
permitissem participar mais directamente na sua vida interna.
Não consagrou os
factos humanos de modo suficiente. Deixou os elementos laicos
fora de si,
reservando‑lhes uma participação mais o menos passiva na
tradição. É assim que se apresenta a organização do mundo
cristão segundo a perspectiva muçulmana. No islão, cada homem
é padre de si mesmo, pelo simples
facto de ser muçulmano. É o patriarca, o imâm ou o califa da
sua família.
Esta é reflexo de toda a sociedade islâmica. O homem é uma
unidade,
ima em do Criador, de quem é *vigário+ (khalifah) na Terra.
Não poderia
9
portanto ser leigo. Também a família é una: uma sociedade
dentro da sociedade, um bloco impenetráveV, à semelhança do
homem responsável e
submisso, o muslim, e do mundo muçulmano, que é de uma
homogeneidade e estabilidade quase incorruptíveis. O homem, a
família e a sociedade são forjados na ideia de Unidade como
suas múltiplas adaptações. São
unidades como Affih e a Sua Palavra, o Alcorão. Os cristãos
não podem
O símbolo supremo do islão, a ka'bah, é um bloco quadrado,
exprimindo o número
quatro, o da estabilidade. O muçulmano pode constituir família
até quatro esposas: estas representam a substância da família,
ou a própria substância social, e são excluídas
da vida pública. O homem é, na sociedade islâmica, uma unidade
fechada. A casa árabe é traçada segundo a mesma ideia: é
quadrada, uniforme, fechada para o exterior,
ornada no interior e aberta sobre um pátio.
108
A Unidade Transcendente das Religiões

reclamar‑se da ideia de Unidade ao mesmo título que os


muçulmanos.
O conceito de Redenção não se associa necessariamente ao de
Unidade
Divina. Poderia subsistir numa doutrina politeísta. A Unidade
Divina,
que o cristianismo teoricamente admite, não aparece nele como
um elemento *dinâmico+. A santidade cristã, a participação
perfeita no Corpo
Místico de Cristo, só indirectamente procede desta ideia. Tal
como a doutrina islâmica, a doutrina cristã parte de uma noção
teísta, mas insiste expressamente no aspecto trinitário de
Deus. É Ele quem encarna e resgata
o mundo. É o Princípio que desce ao manifesto para
restabelecer nele o
equilíbrio interrompido. Na doutrina islâmica, Deus afirma ‑se
pela Unidade. Ele não encarna por uma distinção intrínseca.
Ele não resgata o mundo. Ele absorve ‑o pelo islão. Ele não
desce ao manifesto, projecta ‑se nele, como o sol se projecta
pela luz. É essa projecção que permite à
humanidade participar nele. Acontece que certos muçulmanos,
para quem o Alcorão significa tanto
como Cristo para os cristãos, acusam estes de não possuírem um
Livro
equivalente ao seu, ou seja, um único compêndio doutrinal e
legislativo,
escrito na língua em que foi revelado. Na pluralidade dos
Evangelhos e
dos textos neotestamentários vêem a marca de uma divisão,
agravada pelo
facto de esses escritos não se conservarem na língua em que
Jesus falava,
mas numa língua não ‑semítica, ou traduzidos desse para outro
idioma,
igualmente estranho aos povos saídos de Abraão, e apontam o
facto de
esses textos serem traduzidos para qualquer língua
estrangeira. Postura
tão confusa como censurar o Profeta por ser um simples mortal.
De facto,
se o Alcorão é Palavra Divina ' também Cristo, vivo na
Eucaristia, é o
Verbo Divino, e não o Novo Testamento. Este desempenha somente
uma
função de suporte da mensagem divina, não sendo ele a mensagem
em si.
A lembrança, o exemplo e a intercessão ‑do Profeta estão
subordinados ao
Livro revelado. O islão é um bloco espiritual, religioso e
social.' A Igreja é um centro,
e não um bloco. O cristão leigo é, por definição, um ser
periférico. O muçulmano, pelo seu carácter sacerdotal, é um
ser central dentro da sua tra
' Um bloco, imagem da unidade. A unidade é simples e, por
consequência, indivisível.
Como nota um antigo alto funcionário inglês no Egipto, *o
islão não pode ser reformado. Um íslão reformado já não seria
o islão. Seria outra coisa+.
109
Frithjof Schon

dição e pouco importa que esteja exteriormente separado da


comunidade
a que pertence. Ele é padre de si mesmo e unidade autónoma,
pelo menos do ponto de vista religioso. Daí deriva a convicção
profunda do muçulmano. A fé do cristão é de outra natureza:
ela *atrai+ e *absorve+ a alma, mais do que a *engloba+ e
*penetra+. O cristão, segundo o ponto de
vista muçulmano, só pelos Sacramentos se liga à tradição.
Acha‑se sempre
relativamente excluído, conservando uma atitude de
receptividade. Na
Cruz, seu símbolo supremo, os ramos afastam ‑se indefinidamente
do centro,
islão, embora
o todo a ele
reflecte ‑sesempre ligados.
na mais ínfima Na ka'bah,
parte que, símbolo
pela suado
coesão interna, permanece
idêntica às restantes partes e à ka'bah em si mesma. As
correspondência entre os elementos tradicionais acima
referidos não
excluem outras de pontos de vista diferentes. Assim, a
analogia entre o
Novo Testamento e o Alcorão permanece real na sua ordem, tal
como
Cristo e o Profeta correspondem analogicamente um ao outro. Se
negar
tais correspondências é afirmar que existem semelhanças
desprovidas de
sentido, também proceder de modo exterior ou sincretista às
mesmas,
quase sempre em prejuizo de um dos elementos em presença, é
tirar valor
real ao resultado de tais comparações. Existem, com efeito,
dois tipos de
correspondências tradicionais: por um lado, as fundadas na
natureza fenoinénica dos elementos; por outro, as derivadas da
estrutura interna de cada religião. No primeiro sentido, será
algo como um livro, um rito, uma
instituição, uma personagem; no segundo, um ou outro
significado orgânico dentro de uma tradição. É a analogia que
existe entre os pontos de vista físico e espiritual: para o,
primeiro, um objecto permanece sempre o
mesmo, podendo mudar de aspecto ou de importância segundo as
várias
perspectivas ‑ lei facilmente transponível para a ordem
espiritual.

Importa precisar que, em todas estas considerações,


abordamos exclusivamente as religiões enquanto tais, ou seja,
enquanto organismos, não
nos referindo às suas possibilidades puramente espirituais,
que são em
princípio idênticas. É evidente que aí não pode intervir
qualquer questão
de preferência. Se o islão, enquanto organismo tradicional, é
mais homogéneo e mais intimamente coerente do que a forma
cristã, esse Transcendente
A Unidade é um fac 110
das Religiões

tor muito contingente. Note ‑se, por outro lado, que o carácter
solar de
Cristo não confere ao cristianismo superioridade sobre o
islamismo. Mais
tarde explicaremos porquê, limitando ‑nos agora a recordar que
cada forma tradicional é necessariamente superior às outras,
sob um aspecto determinado quanto à sua manifestação ‑ não quan
' to à sua essência ou
possibilidades espirituais. Aos que, para julgar a forma
islâmica, se querem apoiar em comparações superficiais e
forçosamente arbitrárias, partindo da forma cristã, diremos
que o islão, por corresponder a uma possibilidade espiritual,
tem tudo o que necessita para manifestar tal
possibilidade. Do mesmo modo, o Profeta, longe de ter sido
apenas um
imitador imperfeito de Cristo, foi tudo o que devia ser para
realizar a possibilidade espiritual representada pelo islão.
Se o Profeta não é Cristo ou
se aparece sob um aspecto mais humano, é porque a razão de ser
do islamismo não assenta numa ideia crística ou *avatárica+,
mas numa noção
que deve mesmo excluir aquela. A ideia, realizada pelo
islamismo e pelo
Profeta, é a da exclusiva Unidade Divina, cujo carácter de
absoluta transcendência implica ‑ para o mundo criado ou
manifesto ‑ um correlativo
aspecto de imperfeição. Foi o que permitiu aos muçulmanos
servirem‑se,
desde o início, de meios humanos como a guerra para constituir
o seu
mundo tradicional, enquanto para o cristianismo foi preciso
uma distância
de séculos, desde os tempos apostólicos, para que se servisse
do mesmo
meio, tão indispensável na propagação da fé. As guerras,
levadas a cabo
pelos Companheiros do Profeta, foram ordálios tendo em vista a
elaboração ou cristalização dos aspectos formais de um mundo
novo. O ódio nada tem a ver com isso e os santos homens, que
assim combateram,
de lutarem longe
contra indivíduospr interesses humanos, agiram
dentro do
espírito da Bhagavad ‑Gita: é Krishna quem incita Arjuna a
combater; não
a odiar nem a vencer, mas a cumprir o seu destino, como
instrumento do
plano divino, sem se apegar ao fruto das obras. Tal luta de
pontos de vista, quando se constitui um mundo tradicional,
reflecte a concorrência
principal das possibilidades de manifestação que ocorre quando
do caos
surge um cosmos. Era da natureza do islão ou da sua missão
colocar‑se,
desde início, em terreno político, no que respeita à sua
afirmação exterior, o que teria sido não apenas contrário à
natureza ou à missão do cristianismo primitivo, mas totalmente
irrealizável num ambiente tão sólido e
Frithjof Schuon
tão estável como o Império Romano. Mas, desde que o
cristianismo se tornou religião do Estado, não apenas pôde
como teve de se colocar em terreno político, tal como fez o
islamismo. As vicissitudes que se deram, no,islão, a partir da
morte do Profeta, não são certamente imputáveis a uma
insuficiência espiritual, são sim imperfeições inerentes à
política enJ@ quanto tal. O facto de o islão se ter imposto
exteriormente por meios hu manos tem como único fundamento o
Querer Divino que não quis interfe rências esotéricas na
estruturação terrestre da nova forma tradicional. Quanto à
diferença entre Cristo e o Profeta, podemos adiantar que os
grandes mestres espirituais, independentemente dos respectivos
graus, manifestaram quer uma sublimação quer uma norma. A
primeira, no caso de Buda ou de Cristo, como em todos os
santos mon es ou eremitas; a se gunda, no caso de Abraão, de
Moisés ou Maorné, como em todos os san tos que viveram no
mundo, por exemplo os santos, monarcas ou guerrei ros. A
atitude de uns corresponde à palavra de Cristo: *O Meu Reino
não é deste mundo+; a atitude dos outros, à palavra: *Venha a
nós o Vosso Reino+. Os que crêem deve negar ao Profeta do
islão qualquer legitimidade, in vocando argumentos de ordem
moral, esquecem ‑se de que a única ques tão que se coloca é
saber se Maorné foi ou não inspirado por Deus, não se é
comparável a Cristo
estabelecido. Quandoousese
nosagiu
põede acordo com
o problema deuma moral
Deus ter
permitido aos Hebreus,a poli gamia ou ordenado a Moisés que
passasse o povo de Canaã ao fio da es pada, a questão da
moralidade de tais modos de agir não se coloca de ma neira
alguma. O que conta é exclusivamente a Vontade Divina, cujo
fim é invariável, mas cujos meios ou modos variam em razão da
Infinidade da sua Possibilidade ou, secundariamente, em razão
da indefinida diversida de das contingências. Do outro lado
cristão, censuram ‑se frequentemente ao Profeta factos como a
destruição da tribo dos Coraiditas. Mas esquece ‑se que
qualquer Profeta de Israel teria agido mais duramente do que
ele. Seria bom lembrarmo ‑nos de como Samuel, por ordem de Deus,
agiu pa ra com os Amalecitas e o seu rei. Tanto o caso dos
Coraiditas como o dos Fariseus oferece um exemplo de
*discernimento dos espíritos+, quase au tomático para quem em
contacto com manifestações de Luz. Por muito neutro que possa
parecer um indivíduo colocado no meio do caos ou da
112
A Unidade Transcendente das Religiões

indiferença de que o Próximo Oriente do tempo de Maomé fornece


uma
imagem bem característica ‑ igual à de todos os meios em que se
dá uma
reforma religiosa ‑, o seu estado de espírito actualiza ‑se
espontaneamente perante a alternativa de contacto com a Luz.
Isso explica por que motivo se abrem as portas do Inferno,
sempre que as portas dos Céus se descerram para derramar a
Revelação; também na ordem sensível, toda a luz
projecta uma sombra. Se Maomé fosse um falso profeta, não
entendemos porque Cristo não
falaria dele, como falou do Anticristo. Mas se é um verdadeiro
Profeta, as
passagens sobre o Paracleto devem ‑ não exclusivamente, mas
eminentemente ‑ respeitar‑lhe, pois é impossível que Cristo, ao
falar do futuro, tivesse passado em silêncio sobre um fenómeno
de tais dimensões. É isso
também que exclui a priori que Cristo, nas suas predições,
tenha podido
englobar Maomé no número dos *falsos profetas+. Maomé não foi
de modo algum, na história da nosssa era, um exemplo entre
outros do gênero.
Foi, pelo contrário, único e incomparável'. Se fosse um dos
falsos profetas
*Se a grandeza do desígnio, a exiguidade dos meios e a
imensidão dos resultados são
as três medidas do gênio humano, quem ousaria comparar um
grande vulto da história
moderna a Maomé? De entre estes, os mais famosos apenas
moveram armas, leis e impérios. Se algo fundaram, foi poderios
materiais que, multas vezes, desabaram antes
deles. Aquele moveu exércitos, legislações, impérios, povos,
dinastias, milhões de homens, num terço do globo habitado.
Moveu ainda ideias, crenças, almas. Fundou uma
nação espiritual sobre um livro, de que cada letra se tornou
lei. Entre povos de todas
as línguas e raças imprimiu com carácter indelével o ódio às
falsas divindades e a paixão pelo Deus uno, imatería1.+
(Lamartine, Histoíre de la Turquie.) *A conquista árabe
desencadeado simultaneamente sobre a Europa e a Asia não
conhece precedentes. A rapidez dos seus sucessos é somente
comparável àquela com que
se constituíram os Impérios Mongóis de um Atila, ou mais tarde
de um Gengiscão ou
de um Tamerlão. Estes, porém, foram muito efémeros, enquanto a
conquista do islão
foi duradoura. Esta religião conta com fiéis em quase toda a
parte onde se impôs desde
os primeiros califas. Foi um verdadeiro milagre a sua difusão
fulminante, comparada à
lenta progressão do cristianismos (H. Pirenne, Mahomet et
Charlemagne.) *A força de nada serviu na propagação do
Alcorão, pois os Arabes sempre concederam aos vencidos
liberdade de religião. Se os povos cristãos se converteram à
fé dos
vencedores, foi porque os novos conquistadores se mostraram
mais justos para com
eles do que os antigos mestres e porque a nova religião era
mais simples do que a que
lhes havia sido ensinada até então... Longe de se impor pela
força, o Alcorão difundiu ‑se pela persuasão... Só esta poderia
levar povos que mais tarde venceram os Arabes,
113
Frithjof Schon
anunciados, ter ‑se‑iam seguido outros e, nos no ssos dias,
haveria uma
grande quantidade de falsas religiões posteriores a Cristo,
comparáveis,
pela sua importância e extensão, ao islamismo. A
espiritualidade, patente
no islamismo, desde as srcens até aos nossos dias, é um facto
inegável:
e *pelos seus frutos os reconhecereis+. Recordemo ‑nos aliás de
que o
Profeta deu testemunho, na sua própria doutrina, da segunda
vinda de
Cristo, sem atribuir a si mesmo qualquer glória, que não seja
a de último
Profeta deste ciclo. E a história demonstra que falou verdade,
pois não
houve depois dele manifestação igual à sua. Enfim, é
indispensável agora dizer algo sobre o modo como o islão
encara a sexualidade: se a moral muçulmana difere da cristã ‑
não quanto à
Guerra Santa nem quanto à escravatura, mas só quanto à
poligamia e ao
divórcio' ‑, é porque deriva de um outro aspecto da Verdade
Total.
O cristianismo, como aliás o budismo, vê na sexualidade apenas
o lado
carnal, substancial ou quantitativo. O islão, pelo contrário,
à semelhança
do judafsmo e da tradição hindu e chinesa ‑ não de certas vias
espirituais
que rejeitam o amor sexual por razões de método ‑, vê na
sexualidade o
aspecto essencial, qualitativo, cósmico; a santificarão
confere ao sexo uma
qualidade que ultrapassa a sua dimensão carn al, neutralizando ‑a
ou mesmo abolindo ‑a, como no caso das cassandras e das sibilas,
na Antiguida
como os Turcos e os Mongóis, a adoptar o islamismo. Na índia,
onde os Arabes não se
chegaram a instalar, o Alcorão espalhou ‑se de tal modo que
conta hoje
mais de (1884) com
cinquenta milhões de adeptos. O seu número aumenta
cada dia... A difusão do
Alcorão na China não foi menos considerável. Embora os Arabes
não hajam nunca
conquistado uma parcela mínima do império Celeste, os
muçulmanos formam hoje aí
uma população de mais de vinte milhões.+ (G. Le Bon, La
Civilisation des Arabes.)
1 A poligamia entre os povos do Médio Oriente ‑ povos, por
sinal, guerreiros ‑ era
factor determinante para a subsistência das mulheres, quando
os homens morriam dizimados pela guerra. A isso acrescia ainda
a grande mortalidade infantil, de modo que a
poligamia se impunha mesmo para a conservação da raça. O
divórcio deve ‑se à separação entre ambos os sexos que não
permite que os cônjuges se conheçam suficientemente bem antes
do casamento. Tal separação justifica ‑se pelo temperamento
sensual dos
Arabes e dos povos meridionais em geral. O que acabámos de
dizer explica o uso do
véu por parte das muçulmanas e também o purdah das hindus de
casta alta. O facto de
o véu ser usado apenas no islão, a tradição mais tardia, e o
purdah só tardiamente ter
sido instituído no hinduísmo mostra bem que tais medidas só se
explicam pelas condições particulares do fim da *idade de
ferro+. Pela mesma razão, as mulheres foram excluídas de
certos ritos bramânicos a que primitivamente tinham acesso.
114
A Unidade Transcendente das Religiões

de, do Shri Chakra tântrico e de grandes mestre espirituais,


de que convém
citar o exemplo de Salomão e Maomé. Por outras palavras, a
sexualidade
pode ter uma conotação de nobreza como de impureza, um sentido
vertical como horizontal, para falarmos em simbolismo
geométrico. A carne é,
por si mesma, impura, quer haja ou não sexualidade, e o sexo,
é nobre em
si mesmo, tanto na carne como fora dela. A nobreza na
sexualidade derivadiríamos
termos islâmicos, do seu Protótipo
que *DeusDivino: *Deuseéque
é Unidade+, Amor+. Em
o amor,
sendo um modo de união
(tawhid), é conformidade à natureza divina. O amor pode
santificar a carne, como a carne aviltar o amor. O islão
insiste na primeira destas verdades, enquanto o cristianismo
insistirá de preferência na segunda, exceptuando, como é
óbvio, o Sacramento do Matrimónio, onde forçosa e
pontualmente ele se associa à perspectiva judaico ‑islâmica.

Propomo ‑nos agora mostrar em que consiste na verdade a


diferença entre a manifestação crística e a inaornetana.
Importa todavia sublinhar que
tais diferenças dizem respeito apenas à manifestação dos
homens de Deus,
e não à sua realidade interior e divina que é idêntica, e que
mestre Eckhart enuncia nestes termos: *Tudo o que a Sagrada
Escritura afirma sobre
Cristo verifica‑se igualmente, na totalidade, em todo o homem
bom e divino+, ou seja, em todo o homem que possua a plenitude
da realização espiritual, segundo a *amplitude+ e a
*exaltação+. E Shri Râmakrishna:
*No Absoluto, eu não sou, e tu não és, e Deus não é, porque
Ele (o Absoluto) está além da palavra e do pensamento. Mas,
enquanto existir algo
fora de mim, devo adorar Brafima, nos limites do mental, como
algo fora
de mim+. Este ensinamento explica, por um lado, como Cristo
foi capaz
de rezar sendo divino e, por outro, como o Profeta,
manifestando‑se expressamente como homem, pôde ser divino na
sua realidade interior. Nesta ordem de ideias, devemos atender
ao seguinte: o dogmatismo funda ‑se
essencialmente num *facto+ a que atribui carácter absoluto;
por exemplo,
a perspectiva cristã assenta no estado espiritual supremo,
realizado por
Cristo e inacessível ao individualismo místico, mas atribui ‑o
só a Cristo,
donde a negação, pela teologia, da União metafisica ou da
Visão beatífica
115
Frithjof Schuon

já nesta vida. O esoterismo, pela voz de mestre Eckhart,


reconduz o Mistério da Encarnação à ordem das leis
espirituais, atribuindo ao homem
que atingiu a santidade suprema as características de Cristo,
excepto a
missão profética, ou antes, redentora. Um exemplo análogo é o
de certos
sufis que reivindicam para alguns dos seus escritos inspiração
idêntica à do
Alcorão. Ora, tal grau de inspiração não é atribuído, no islão
exotérico,
senão ao Profeta, conforme a perspectiva dogmatista que sempre
se funda
num *facto transcendentes que reivindica exclusivamente para
tal ou tal
manifestação do Verbo. Aludimos já ao facto de o Alcorão,
que corresponde ao Cristo ‑Eucaristia, constituir a grande
manifestação paraclética, a *descida+ (tanzio do Espírito
Santo (Er ‑Rúh, designado pelo nome de Jibril na sua função
reveladora). O papel do Profeta pode assim ser entendido como
análogo ou simbolicamente idêntico ao da Virgem Santíssima,
ela também
receptara do Verbo de Deus. E tal como a Vir em, fecundada
pelo Espí9
rito Santo, é *Corredentora+ e *Rainha do Céu+, criada antes
de toda a
Criação, também o Profeta, inspirado pelo mesmo Paracleto, é
*Apóstolo
de Misericórdia+ (Rasúl Er ‑Rahmah) e *Senhor das duas
existências+
(Sayid el‑kawnayn) ‑ do *aquém+ e do *além+ ‑, criado antes de
todos
os seres. Esta *criação anterior+ significa que a Virgem e o
Profeta encarnam uma realidade principal ou metacósmica'. Eles
identificam‑se ‑‑ no
seu papel receptivo, não no seu Conhecimento Divino nem, no
que respeita a Maorné, na sua função profética ‑ com o aspecto
passivo da Existência Universal (Prakriti, em árabe: El ‑Lawh
el‑mahfúzh, *a Mesa Guardada+). Por isso, a Virgem é
*imaculada+, *Virgem+
puramente físico, e o do pontoéde
Profeta vista
*iletrado+ (ummi), como o eram
aliás os
Apóstolos, puros da mácula do saber humano ou de um saber
humana A opinião que faz de Cristo a nona encarnação de
Vishnu ‑ a Mleccha ‑Avatâra, *descida divina entre (ou para) os
Bárbaros+ ‑ é de rejeitar, primeiro por uma razão de
facto tradicional e depois por uma razão de princípio: Buda
sempre foi considerado pelos hindus como um Avatâra, mas como
o hinduísmo devia excluir o budismo, explicava ‑se a aparente
heresia budista pela necessidade de abolir os sacrifícios
sangrentos e
de induzir em erro os homens corrompidos a fim de precipitar a
chegada fatal do kali ‑yuga. Em segundo lugar, é impossível que
um ser, que encontra o seu lugar *orgânico+
no sistema hindu, pertença a um mundo que não é a índia,
sobretudo um mundo tão
distante como o mundo judaico.
116
A Unidade Transcendente das Religiões

mente adquirido. Tal pureza é condição primordial para a


recepção do
Dom paraclétíco e, ainda na ordem espiritual, a castidade, a
pobreza, a
humildade e outras formas de simplicidade ou unidade,
indispensáveis para a recepção da Luz Divina. Para precisar
ainda a relação de analogia entre a Virgem e o Profeta,
acrescentaremos que este último, no estado em
que se achava mergulhado ao receber as Revelações, podia ser
directamente comparável à Virgem, carregando em si ou dando à
luz o Menino ‑Deus. Mas, devido à sua função profética, Maorné
realiza uma dimensão
nova e activa, pela qual ‑ ao proclamar os versos do Alcorão ou
ao deixar o *Eu Divino+ falar pela sua boca ‑ se identifica
directamente com
Cristo, que é o que para o Profeta é a Revelação e de quem,
por consequência, cada palavra é Palavra Divina. No Profeta,
só as *palavtas do
Santíssimo+ (ahâdith quddúsiyah) apresentam, fora do Alcorão,
este carácter divino. As duas outras palavras têm um grau de
inspiração secundário (nafath Er ‑Rúh, a Smriti hindu), como
certas partesàdo
Mas voltemos Novo Testamento,
*pureza+ do nomeadamente as Epístolas'.
Profeta: encontramos nele o equivalente exacto da *Imaculada
Concei~
ção+. Segundo a narração tradicional, dois Anjos fenderam o
peito do
menino Maomé e lavaram ‑lhe, com neve, o *pecado original+, que
apareceu sob a forma de uma mancha negra sobre o coração.
Maomé, como
Maria ou a *natureza humana+ de Jesus, não é portanto um homem
comum, e por isso se diz que *Maomé é um homem (simples), não
como um
homem (vulgar), mas como uma jóia entre as pedras (vulgares)+
(Muhammadun basharun lã kal ‑bashari bal hua kal ‑yaqúti bayn
al‑hajar). O que
nos faz pensar na fórmula da Ave ‑Maria: *Bendita sois entre as
mulheres+, indicando que a Virgem, em si mesma e
independentemente da acção do Espírito Santo, é uma *'jóia+ em
relação às outras criaturas, portanto algo como uma *norma
sublime+. Em certo sentido, a Virgem e o Profeta *encarnam+
o aspecto ‑ ou o
*pólo+ ‑ passivo/*feminino+ da Existência Universal (Prakriti).
Encarnam, por isso, a fortiori, o lado benéfico e
misericordioso de Prakriti',
o que explica a sua importante função *intercessora+ e os
títulos como

Opinião do autor, não partilhada por nenhuma igreja cristã (N.


do T.). A Kwan ‑Yin do budismo extremo ‑oriental, derivada do
Bodhisattva Avalokiteshvara,
o *Senhor de olhar misericordiosos

117

Il@
Frithjof Schuon

*Mãe de Misericórdia+ (Mater Misericordiae.), *Nossa Senhora


do Perpétuo Socorro+ ou, no que respeita ao Profeta, *Chave da
Misericórdia de
Deus+ (Miftâh Rahmat Allâh), *Misericordioso+ (Rahim),
*Curador+

pecados+ *Consolador+ (Kâshif el ‑kurab), *O que tira os


(Shafi'),
(Afuww) ou a *mais bela criação de Deus+. (Ajmalu khalq
Allâh). Que
relação existe entre a misericórdia, o perdão, o benefício e a
Existência
Universal? Sendo a Existência indiferenciada, virgem e pura,
em relação
às suas produções, é capaz de reabsorver na indiferenciação as
qualidades
diferenciadas das coisas. Por outras palavras, os
desequilíbrios da manifestação podem sempre ser integrados no
equilíbrio principal. Todo o *mal+
provém de uma qualidade cósmica (guna), de uma ruptura no
equilíbrio:
com ' o a Existência traz em si todas as qualidades em
equilíbrio indiferenciado, pode dissolver na sua infinidade
todas as vicissitudes do mundo.
A existência é realmente *Virgem+ e *Mãe+, já que, por um
lado, nada a
determina, a não ser Deus, e, por outro, dá à luz o Universo
manifesto:
Maria é *Virgem ‑Mãe+ pelo Mistério da Encarnação. Maorné é
*virgem+,
*iletrado+, porque só de Deus recebe inspiração, nada
recebendo dos homens; é *mãe+, pelo seu poder intercessor
junto de Deus. As personificações, humanas ou angélicas, da
divina Prakriti comportam essencialmente
aspectos de pureza e amor. Os aspectos de Graça ou de
Misericórdia da
Divindade, virginal e materna, explicam o gosto desta em se
manifestar
de modo sensível, sob a forma de uma aparição humana,
acessível aos homens: as aparições da Virgem são conhecidas de
todos no Ocidente, e
quanto às do Profeta, são frequentes e quase regulares entre
os muçulmanos mais espiritualizados. Existem mesmo métodos
para obter essa graça,
que equivale, em suma, a uma concretizáção da visão
beatífica'. O Profeta, não ocupando no Islão o lugar que
Cristo ocupa no cristianismo, não tem uma situação menos
central na perspectiva islâmica. Resta ‑nos precisar por que
motivo pode e deve
islão integra, serperspectiva,
na sua assim e de que maneirareconhecendo
a Cristo, o ‑lhe,
através do

1 Lembremo ‑nos a propósito das aparições da Shakti no hinduísmo


‑ em Shri Râmakrishna e Shri Sâradâ Devi, por exemplo ‑ ou a de
Kwan‑Yin ou Kwannon nas tradições do Extremo Oriente, por
exemplo em Shonin Shinran, grande santo budista do
Japão. Sabemos, por outro lado, que no judaísmo a Shekhinah
aparece sob a forma de
uma mulher bela e clemente.
118
A Unidade Transcendente das Religiões

nascimento virginal, o seu carácter solar: o Verbo, nesta


perspectiva, não
se manifesta num homem isolado, mas sim na função profética ‑
no sentido mais elevado do termo ‑ e sobretudo nos Livros
revelados. Ora,
sendo real a função profética de Maomé, e o Alcorão uma
verdadeira Revelação, os muçulmanos, que só admitem estes dois
critérios, não vêem
razão para preferir Jesus a Maoiné. Dão, pelo contrário, ao
último a precedência, pela simples razão que, sendo o último
representante da função
profética, recapitula e sintetiza todos os modos desta e fecha
o ciclo da
manifestação do Verbo, donde o nome de *Selo dos Profetas+
(Khâtam el ‑anbiyâ). É esta situação única que confere a Maomé a
posição central
que o islamismo lhe reconhece e que permite chamar ao próprio
Verbo,
Luz maometana (Núr muhammadi). O facto de a perspectiva
islâmica só encarar a Revelação enquanto tal e
não os seus modos possíveis explica por que motivo esta
perspectiva não
atribui aos milagres de Cristo a importância que lhes atribui
o cristianismo: de facto, todos os *Enviados+, incluindo
Maoiné, fizeram milagres
(mu'jizât)'; a diferença, neste aspecto, entre Cristo e os
restantes *Enviados+ é que só em Cristo o milagre tem uma
importância central e é operado por Deus *no+ suporte humano,
e não apenas
O papel *através+
do milagre desse esuporte.
em Cristo no cristianismo explica ‑se pelo
carácter
particular que constitui a razão de ser desta forma de
Revelação e que explicaremos no capítulo seguinte. No que
respeita ao ponto de vista islâmico, não são os milagres que
importam acima de tudo, mas o carácter divino da missão do
Enviado, independentemente do grau de importância que
o milagre tenha nessa missão. Poderíamos dizer que a
particularidade do
cristianismo é que este se funda no milagre, perpetuado na
Eucaristia, enquanto o islão se funda numa ideia, apoiada em
meios humanos, com a
A maior parte dos arabistas, se não todos, deduz
falsamente a partir de diversas passagens corânicas que o
Profeta não teria feito qualquer milagre, o que é contrariado
não só pelos comentadores tradicionais do Alcorão, mas também
pela Sunnah que
constitui o pilar da ortodoxia islâmica. Quanto ao carácter
*avatárico+ do Profeta, para além dos critérios infalíveis de
ordem mais profunda, ele evidencia ‑se a partir dos sinais que,
segundo a Sunnah, precederam e acompanharam o seu nascimento,
e que são iguais aos que a tradição faz constar a respeito de
Cristo ou de Buda.
119
Frithjof Schuon

ajuda divina, perpetuando ‑se na Revelação corânica, onde a


oração ritual
é de algum modo a actualizarão incessantemente renovada. Já
demos a entender mais acima que, na sua realidade interior,
Maorné
se identifica com o Verbo, tal como Cristo e ‑ fora da
perspectiva especificamente dogmatista ‑ todo o ser que atinge
a plenitude da realização
metafisica. Donde, estes ahâdith: *Quem me viu, viu a Deus (no
seu aspecto de verdade absoluta)+ (Man ra'âni faqad rã'
al‑Haqq), e: *Ele
(Maomé) era Profeta (Verbo) quando Adão estava ainda entre a
água e a
lama+ (Fakâna nabiyen wa Adamu baynal ‑mâ'i wat ‑tin), palavras
que podemos comparar às de Cristo: *Eu e o Pai somos um só+,
e: *Nade
antes verdade,
Abraão ser, Eu sou+.

120
VIII NATUREZA PARTICULAR E UNIVERSALIDADE DA TRADIÇÃO
CRISTÃ
Aquilo que, à falta de melhor, somos
obrigados a designar por exoterismo cristão não é estritamente
análogo
aos exoterismos judaico e muçulmano, tanto na srcem como na
estrutura. Enquanto estes foram instituídos como tais desde o
princípio, fazendo
parte da Revelação e aí se distinguindo claramente do elemento
esotérico,
o que viria a tornar ‑se o exoterismo cristão não aparece como
tal na Revelação crística ou manifesta ‑se aí pontualmente. É
verdade que os textos mais antigos, nomeadamente as Epístolas
de
São Paulo, deixam entrever um modo exotéríco ou dogmatista. É
o que
acontece quando a relação hierárquica entre o esoterismo e
exoterismo
como se apresenta como uma relação histórica entre a Nova e a
Antiga
Aliança, identificando‑se uma com a *letra que mata+ e a outra
com o
*espírito que dá vida'+. Tal distinção não tem em conta a
realidade integral da Antiga Aliança, nem o que equivale à
Nova Aliança que é apenas
uma sua variante ou adaptação. Este exemplo mostra como o
ponto de
vista dogmatista ou teológico', em vez de abranger
integralmente a verda A interpretação exotérica desta
expressão equivale a umcontra
voltar inevitavelmente verdadeiro suicídio,
o exoterismo pois
que acaba por
a anexou. Foise
o
que demonstrou a Reforma, que avidamente se apoderou de tal
palavra (11 Cor., 3:6) para fazer
dela a sua principal arma, usurpando assim o lugar que deveria
normalmente pertencer
ao esoterismo. O cristianismo é herdeiro do judaísmo, cuja
forma coincide com a srcem deste ponto
121
Frithjof Schuon

de, escolhe, por razões de oportunidade, um só aspecto da


mesma, atribuindo ‑lhe um carácter exclusivo e absoluto. Não
devemos esquecer que,
sem esse carácter do mático, a verdade religiosa seria
ineficaz quanto ao
9
fim particular a que o seu ponto de vista se propõe em virtude
das ditas
razões de oportunidade. Existe pois aqui uma dupla restrição
da verdade
pura: por um lado atribui ‑se a um aspecto da verdade o carácter
de verdade integral; por outro, atribui ‑se ao relativo um
carácter absoluto. Para
além disso, tal perspectiva oportunista traz consigo a negação
de tudo o
que, não sendo acessível nem indispensável a todos sem
distinção, ultrapassa a razão de ser do ponto de vista
teológico, ficando fora deste, donde
as simplificações e sínteses simbólicas próprias ao
exoterismo'. Mencione‑se ainda, como característica destas
doutrinas, a assimilação de factos históricos a verdades
principais e as confusões inevit@eis que daí resultam:
por exemplo, quando se afirma que todas as almas, de Adão aos
defuntos
contemporâneos a Cristo, tiveram de esperar que este descesse
aos Infer
de vista. A sua presença no cristianismo primitivo em nada
atingiu a essência iniciática
do mesmo. Afirma Orígenes que *há diversas formas de o Verbo
se 'revelar aos seus
discípulos, conformando ‑se ao grau de luz de cada um, segundo o
grau doos
Assim, seu progresso semíticos
exoteristas na santidades (Contra
negam Cels., 4:16)
a transmigração da alma,
e, por consequência,
a existência de uma alma imortal nos animais, ou ainda, o fim
cíclico total a que os hindus chamam mahâ ‑pralaya, fim que
implica a aniquilação de toda a criação (samsâra).
Tais verdades não são de modo algum indispensáveis à salvação
e comportam mesmo
alguns perigos para as mentalidades a que as doutrinas
exotéricas se dirigem. Um exoterismo vê ‑se sempre forçado a
passar em silêncio ou rejeitar elementos esotéricos
incompatíveis com a sua forma dogmática. Todavia, para
prevenir qualquer objecção contra os exemplos que acabámos de
citar,
devemos formular duas reservas: quanto à imortalidade da alma
nos animais, a negação
teológica tem razão na medida em que um ser não pode com
efeito alcançar a imortalidade quando sujeito ao estado
animal, já que este, tal como o estado vegetal ou mineral, é
periférico, e a imortalidade e a libertação não podem ser
alcançados senão a partir de um estado central como o humano.
Vê‑se, por este exemplo, que uma negação
religiosa do carácter dogmático nunca é desprovida de sentido.
Por outro lado, no que
respeita à negação da mahâ ‑pralaya, devemos acrescentar que
esta não é estritamente
dogmática e que o fim cíclico total, que completa uma *vida de
Brahmâ+, se acha claramente atestado em fórmulas como as
seguintes: *Pois, em verdade vos digo, mesmo
que passem o Céu e a Terra, não passará um só iota nem um só
traço da Lei antes que
tudo se cumpra+ (Mat.,5:18). *Eles permanecerão aí (khâlidin)
enquanto durarem os
122
A Unidade Transcendente das Religiões

nos para as poder libertar, confunde ‑se o Cristo histórico com


o Cristo
cósmico e representasse uma função eterna do Verbo como um
facto temporal por Jesus ter sido manifestação desse Verbo. O
que é dizer que, no
mundo em que esta manifestação se produziu, ele foi a
encarnação única
do Verbo. Um outro exemplo é o da divergência entre cristãos e
muçulmanos quanto à morte de Cristo: o Alcorão nega ‑a
aparentemente, para
no fundo afirmar que Cristo não foi morto ‑ o que é evidente
pela natureza divina do Homem ‑Deus e pela natureza humana que
ressuscitou: os
muçulmanos recusam‑se a admitir a Redenção histórica e os
factos que
para a cristandade são a únicia expressão terrestre da
Redenção Universal,
o que significa em última análise que Cristo não morreu para
os *justos+,
que são aqui os muçulmanos, que beneficiam de outra forma
terrestre de
Redenção una e eterna. Por outras palavras, se em princípio
Cristo morreu por todos os homens ‑ do mesmo modo que a
Revelação islâmica se
dirige em princípio a todos eles ‑, de facto só morreu pelos
que beneficiam dos meios de graça que perpetuam a sua obra
redentora'. Ora a distância tradicional do islão, em relação
ao Mistério crístico, deve revestir
exotericamente a forma de uma negação, tal como o exoterismo
cristão

Céus e a Terra, a menos que o teu Senhor decida de ' outro


modo+ (Alcorão, XI, 107).
' Recordemos igualmente, nesta ordem de ideias, a frase de
Santo Agostinho: *Aquilo
a que hoje se chama religião cristã existià já entre os
Antigos e jamais deixou de existir
desde as srcens do gênero humano. Até que, vindo Cristo, se
começou a chamar cristã à verdadeira religião que já existia
antes+ (Retract., I, XIII, 3). Esta passagem foi
comentada por sua vez pelo padre P.4. Jallabert no seu livro
Le Catholicisme avant Jésus ‑Christ: *A religião católica mais
não é do que a continuação da religião primitiva
restaurada e generosamente enriquecido por aquele que conhecia
a sua obra desde o
princípio. É o que explica que. o apóstolo São Paulo apenas se
considerasse superior
aos Gentios por conhecer Jesus crucificado. Com efeito, aos
Gentios só e
Encarnação faltava que adquirissem
da Redenção o conhecimento
enquanto factos da
consumados.
Pois já haviam recebido o depósito de todas as outras
verdades... É oportuno notar
que esta divina revelação, desfigurada pela idolatria, se
conservou porém na sua pureza, e ‑talvez em toda a sua
perfeição, nos antigos mistérios de Elêusis, de Leninos e de
Samotrácia.+ Tal *conhecimento da Encarnação e da Rendenção+
implica, antes de
mais, o conhecimento da grande renovação operada por Cristo,
de um meio de graça
que é, em si mesmo, eterno, como o é a Lei que Cristo veio
cumprir e não abolir. Tal
meio de graça é essencialmente sempre o mesmo e o único que
existe, não importa as
diferenças de modo, dependentes dos meios étnicos e culturais
em que se revela.
A Eucaristia é uma realidade universal como o próprio Cristo.
123
Frithiof Schuon

deve negar a possibilidade de salvação fora da Redenção


operada por Jesus. Uma perspectiva religiosa, que pode ser
contestada ab extra, ou seja,
a partir de outra faceta da verdade, não é menos contestável
ab intra,
pois, podendo servir de meio de expressão da verdade total, é
chave desta. Por isso nunca se deve perder de vista que as
restrições inerentes ao
ponto de vista dogmático são, na sua devida ordem, conformes à
Bondade
Divina que impede os homens de se perderem, dando a todos o
que lhes é
acessível e indispensável, tendo sempre em conta as
predisposições mentais da colectividade humana em causa'.
Estas considerações permitem ‑nos compreender que tudo o que,
nas
palavras de Cristo e nos ensinamentos dos Apóstolos, parece
contradizer
ou depreciar a Lei mosaica, mais não faz no fundo do que
exprimir a superioridade do esoterismo sobre o exoterismo',
não se pondo a priori no
terreno dade
concebida Lei', desde que tal relação hierárquica não seja
É em sentido análogo que se afirma no islão que *a
divergência dos exegetas é uma
bênção+ (ffitilâf el'ulamâ'i rahamah).
' Isto é muito claro nas palavras de Cristo sobre São João
Baptista: do ponto de vista
exotérico, é evidente que o Profeta mais próximo de Cristo ‑Deus
é o maior dos homens, mas, por outro lado, o menor dos
Bem‑Aventurados no reino dos Céus é maior
do que qualquer ser humano na Terra, devido a essa proximidade
de Deus. Metafisicamente, esta palavra enuncia a superioridade
do principal sobre o manifesto e, iniciaticamente, a do
esoterismo sobre o exoterismo, sendo São João Baptista
considerado como o auge e o expoente deste último, o que aliás
explica por que motivo o seu nome é
idêntico ao de São João Evangelista, que representa o aspecto
mais interior do cristianismo.
' Encontramos em São Paulo esta passagem: *A circuncisão é
útil se observares a Lei.
Mas, se transgredires a Lei, a tua circuncisão torna ‑se
incircuncisão. Ora se o incircunciso observar os preceitos da
Lei, não será a sua incircuncisão considerada circuncisão?
Muito mais o homem, incircunciso por nascimento, se observa a
Lei, te julgará a ti que
com a letra (da Lei) e a circuncisão transgrides a Lei. Não é
judeu o que o é exteriormente e não é circuncisão a que se
manifesta na carne. Mas é judeu quem o é interiormente e é
circuncisão a do coração, no espírito, e não na letra. Esse
recebe o seu louvor, não dos homens, mas de Deus+ (Rom.
2:25‑29). A mesma ideia volta a surgir, de forma mais
concisa, na seguinte passagem do Alcorão: *E eles dizem:
Tornai‑vos judeus ou nazarenos, para que sejais guiados.
Responde: Não, (nós seguimos) a via de Abraão que era puro (ou
*primordial+, hanif) e que
não era dos que associam (criaturas a A11^ efeitos à Causa ou
manifestações ao Princípio), ‑ (Recebei) o baptismo de Allâh.
(e não o dos homens). E quem baptiza melhor do que Allâh? É a
ele que adoramos+ (Alcorão, súrat el ‑baqarah, 135 e 138).
124
A Unidade Transcendente das Religiões

modo dogmático. É evidente que os ensinamentos de Cristo


ultrapassam
portanto também a Lei e só assim se pode explicar a atitude de
Cristo perante a lei do talião, a mulher adúltera e o
divórcio. De facto, dar a face
esquerda a quem bate na direita não é algo que possa ser posto
em prática
por uma colectividade social que tem em vista o seu
equilíbrio', só fazendo sentido como atitude espiritual. Só o
espiritual se acha decisivamente
além do encadeamento lógico das reacções individuais, pois
para ele a
participação nessas reacções equivale a um declínio,'pelo
menos quando
envolve a parte central ou alma do indivíduo, não como acto
exterior e
impessoal de justiça da Lei mosaica. Quando o carácter
impessoal da lei
do talião deixou de ser compreendido, e foi substituído pelas
paixões,
Cristo veio exprimir uma verdade espiritual que, limitando ‑se a
condenar
a pretensão, parecia condenar a própria Lei. Isso é patente na
resposta
aos que se dispunham a apedrejar a mulher adúltera, os quais,
em vez de
agirem impessoalmente em nome da Lei, queriam agir
pessoalmente em
nome da sua hipocrisia. Cristo não se colocava, @pois, do lado
da Lei, mas
do das realidades interiores, suprassociais, espirituais, Foi
esse também o
seu ponto de vista na questão do divórcio. O que, no
ensinamento de
Cristo, põe talvez mais claramente em evidência o carácter
puramente espiritual, supra ‑social e extra moral da doutrina
crística é a seguinte palavra: *Se alguém vem a mim sem odiar
o seu pai e a sua inae, a sua esposa
e os seus filhos, os seus irmãos e as suas irmãs, e até a
própria vida, não
pode ser meu discípulos (Luc.,14:26) É evidentemente
impossível opor
um tal ensinamento à Lei mosaica.
Tal *baptismo+ significa, do ponto de vista da ideia
fundamental, o que São Paulo exprime por *circuncisão+.
Isso é de tal modo verdade que os cristãos nunca fizeram dessa
exortação de Cristo
uma obrigação legal, o que prova que ela não se situa no mesmo
terreno da Lei judaica
e não queria nem podia consequentemente substituí ‑Ia. Existe
um hadith que demonstra a compatibilidade entre o ponto de
vista espiritual,
afirmado por Cristo, e o ponto de vista social, que é o da Lei
mosaica: o primeiro Iadrão da comunidade muçulmana foi levado
diante do Profeta para que a mão lhe fosse
amputada segundo a Lei corânica. Mas o Profeta empalideceu.
Perguntaram‑lhe: *Tens
algo a objectar?+ Ele respondeu: *Como não teria algo a
objectar! Deverei eu ajudar
Satanás na inimizade contra os meus irmãos? Se quereis que
Deus vos perdoe o vosso
pecado e o cubra, também vós deveis cobrir o pecado dos
outros. Pois, quando o pecador for conduzido à presença do
monarca, o castigo há ‑de cumprir ‑se.+
É 125
Frithjof Schon
O cristianismo não tem portanto as características normais
de um exoterismo instituído como tal, mas apresenta ‑se antes
como uma espécie de
exoterismo de facto, não de princípio. Aliás, mesmo sem
recorrermos a
passagens das Escrituras, o carácter essencialmente iniciático
do cristianismo e sempre reconhecível em indícios de primeira
ordem, como a doutrina da Santíssima Trindade, o Sacramento da
Eucaristia e particularmente
o uso do vinho nesse ritual, assim como em expressões
puramente esotéricas como *Filho de Deus+ e sobretudo *Mãe de
Deus+. Se o exoterismo
se pode definir como *o que é indispensável e acessível a
todos sem distinção', o cristianismo não poderia ser um
exoterismo no sentido habitual do
termo, pois não é acessível a todos, embora de facto ‑ em
virtude da sua
aplicação religiosa
inacessibilidade ‑ a todos
exotérica dossedogmas
imponha. É em suma
cristãos essa
que exprimimos
ao qualificá‑los de *mistérios+, termo que só recebe sentido
positivo na ordem iniciática, a que
aliás pertence, mas que, aplicado de modo religioso, parece
querer justificar ou velar o facto de os dogmas cristãos não
possuírem qualquer evidência intelectual directa. Por exemplo,
a Unidade Divina é uma evidência
imediata, susceptível de formulação exotérica ou dogmática,
pois tal evidência é, na sua expressão mais simples, acessível
a todo o homem de espírito são. Pelo contrário, a Trindade,
por corresponder a um ponto de
vista mais diferenciado e representar um desenvolvimento
particular da
doutrina da Unidade, entre outros desenvolvimentos igualmente
possíveis,
não e, em rigor, susceptível de formulação exotérica, pela
simples 'razão
de uma concepção metafisica diferenciada ou derivada não ser
acessível a
todos. Aliás, a Trindade corresponde forçosamente a um ponto
de vista
mais relativo do que a Unidade, como a *Redenção+ é uma
realidade
mais relativa do que a *Criação+. Qualquer pessoa normal pode
conceber,
a qualquer nível, a Unidade Divina, já que esta é o aspecto
mais universal
e mais simples da Divindade. Pelo contrário, só compreende a
Trindade
quem compreende a Divindade ao mesmo tempo sob outros aspectos
mais
ou menos relativos, ou seja, quem, por participação espiritual
no Intelecto
Divino, se sabe mover de algum modo na dimensão metafisica.
Essa é porém uma possibilidade longe de ser acessível a todos,
pelo menos no esta Definição dada por Guérion no seu artigo
*Création et Manifestation+ (Études tradi'tionnelles, Out.
1937).

126
A Unidade Transcendente das Religiões

do actual da humanidade terrestre. Quando Santo Agostinho


afirma que a
Trindade é incompreensível, coloca ‑se necessariamente ‑ sem
dúvida devido aos hábitos do mundo romano ‑ no ponto de vista
racional, que é o
indivíduo, e que, aplicado às verdades transcendentes, so gera
a ignorancia. A luz da pura intelectualidade, só é
absolutamente incompreensível o
que não tem realidade, o nada identificado com o impossível
que, nada
sendo, não pode ser objecto de incompreensão. Poderíamos
acrescentar que o carácter esotérico dos dogmas e dos
sacramentos cristãos é a causa profunda da reacção islâmica
contra o cristianismo. Ao misturar a haqiqah (Verdade
Esotéríca) com a shari'ah (Lei
Exotérica), o cristianismo comportava ‑ certos perigos de
desequilíbrio que
de facto se manifestaram no decurso dos séculos, contribuindo
indirectamente para a terrível subversão que é o mundo
moderno, segundo a palavra de Cristo: *Não deis coisas santas
aos cães nem pérolas a porcos, para
que não as pisem e, voltando ‑se contra vós, vos agridam.+

Se o cristianismo confunde os dois domínios que deveriam


estar separados, como confunde as duas Espécies eucarísticas
que respectivamente os
figuram, perguntamos: teria podido ser de outra maneira, sendo
tal confusão produto de erros individuais? Certamente que não.
Mas é preciso dizer que a verdade interior ou esotérica por
vezes se deve manifestar à luz
do dia, em virtude de uma possibilidade de manifestação
espiritual que
não tem em conta as deficiências do meio humano. Por outras
palavras,
esta *confusão' é consequência negativa de algo que é, em si
mesmo, positivo e que mais não é do que a própria manifestação
crística. A ela se refere a palavra inspirada: *E a luz
brilhou nas trevas, e as trevas não a
A expressão mais geral desta *confusão+, a que também
poderíamos chamar *vacilação+, é a mistura, nas Escrituras do
Novo Testamento, dos dois graus de inspiração que
os hindus
Smriti e osdesignam respectivamente
muçulmanos pelos termos pelos
nafathtermos
Er ‑RúhShruti
e ilqâe
Er‑Rahmâniyah: este último termo, como o de Smitri,
designa a inspiração derivada ou secundária, enquanto o
primeiro, como o de Shruti, se
refere à Revelação propriamente dita, ou seja, à Palavra
Divina em sentido directo.
Nas epístolas, tal mistura aparece mesmo explicitamente várias
vezes. O sétimo capítulo da primeira epístola aos Coríntios é
particularmente instrutivo a este propósito.
127
Frithjof Schon
compreenderam+. Cristo devia, por definição metafisica ou
cosmológica,
quebrar a casca que era a Lei mosaica, sem todavia a negar.
Sendo ele
mesmo o núcleo vivo dessa casca, tinha todos os direitos do
seu lado. Era,
portanto, *mais verdadeiros do que aquela, que é um dos
sentidos da sua
palavra: *Antes de Abraão ser, Eu sou+. O facto de o
esoterismo não se
dirigir a toda a gente é comparável à luz que penetra certas
matérias e não
outras. Se esse por vezes se deve manifestar em pleno dia ‑
como aconteceu com Cristo, e, em menor grau de universalidade,
num El ‑HaIlâj é porque analogamente também o Sol tudo ilumina
sem distinção. Portanto, se *a Luz brilha nas trevas+, em
sentido principal ou universal, é porque manifesta uma das
suas possibilidades: e uma possibilidade é por definição algo
que não pode não ser, enquanto aspecto da absoluta
necessidade do Princípio Divino. Estas considerações não
devem fazer ‑nos perder de vista um aspecto
complementar da questão, mais contingente todavia que o
primeiro: deve
haver igualmente do lado humano, ou seja, no meio em que tal
manifestação divina se produz, uma razão suficiente para essa
produção. Ora, para
o mundo a que a missão de Cristo se dirigia, tal manifestação
desvelada
de verdades que normalmente deveriam permanecer encobertas ‑
pelo
menos, em certas condições de espaço e de tempo ‑ era o único
meio
possível de operar o ordenamento de que o mundo necessitava.
Isto basta
para justificar o que, na radiação crística tal como a
definimos, seria anormal, e legítimo em circunstâncias
normais. Um tal desnudamento do *espírito+ escondido na
*letra+ não poderia contudo abolir inteiramente certas leis
inerentes a todo o esoterismo, sob pena de retirar a este a
sua
própria natureza. Assim, Cristo *nada lhes dizia sem
parábolas, para que
se cumprisse a palavra do Profeta que diz: Abrirei a minha
boca em parábolas, proferirei coisas escondidas desde a
criação do mundo+ (Mat.,
13:34‑35). Apesar disso, um tal modo de radiação, sendo
inevitável neste
caso particular, não deixa de ser uma *espada de dois gumes+.
Mas há outro aspecto: a via crística, análoga nesse ponto às
vias *bhákticas+ da índia a a certas vias budistas, é
essencialmente uma *via de Graça+. Ora,
nestes métodos, em razão da sua natureza específica, a
distinção entre aspecto exterior e interior acha ‑se atenuada e
por vezes ignorada, já que a
128
A Unidade Transcendente das Religiões

*Graça+, que é de ordem iniciática no seu núcleo ou essência,


tende a
dar‑se na maior medida possível, o que pode fazer devido à
simplicidade
e universalidade do seu simbolismo e meios. Também poderíamos
dizer
que, se a separação entre a *via do mérito+ e a *via do
Conhecimento+ é
forçosamente profunda por se referir respectivamente ao acto
meritório e
à contemplação intelectual, a *via da Graça+ ocupa, de certa
maneira,
uma posição intermédio, As aplicações interior e exterior
associam‑se aí
numa mesma radiação de Misericórdia, de modo que surgem, no
domínio
da realização espiritual, mais diferenças de grau do que
diferenças de
princípio. Toda, a inteligência e vontade pode participar, na
medida do
possível, numa mesma e única Graça, o que faz pensar no Sol
que a todos
sem distinção ilumina, agindo porém diferentemente sobre as
diversas matérias. Abstraindo ‑se de que o desvelamento de
verdades, que deveriam ter ficado encobertas, era o único meio
possível para operar o reordenamento
espiritual de que o mundo ocidental necessitava, temos porém
de acrescentar que esse modo tinha um carácter providencial
face à evolução cíclica, achando ‑se compreendido no Plano
Divino do desenvolvimento final
de dado ciclo da humanidade. Poderíamos também reconhecer na
desproporção entre a qualidade puramente espiritual do Dom
crístico e o seu
meio por demais heterogéneo de recepção o indício de um modo
excepcional da Misericórdia Divina que se renova
constantemente na criatura:
Deus, para salvar *uma humanidades, consente em ser profanado.
Por
outro lado, manifestando a Sua Impessoalidade, serve ‑se dessa
profanação
pois *é preciso que haja escândalos ‑ para levar a cabo o fim
do referido ciclo, fim tão necessário para esgotar as
possibilidades que nele estão
dadas, necessário ao equilíbrio e cumprimento da gloriosa
radiação universal de Deus. O ponto de vista dogmatista,
quando os não pode negar, é forçado a
qualificar os actos aparentemente contraditórios da Divindade
impessoal
como *misteriosos+ e *insondáveis+, atribuindo naturalmente
tais *mistérios+ ao Querer do Deus pessoal.

129
Frithjof Schuon
A existência
carácter de um esoterismo
eminentemente cristão,
esotérico do ou antes,
cristianismo o
primitivo,
não ressalta apenas do Novo
Testamento, onde certas palavras de Cristo não fazem qualquer
sentido a
nível exotérico, nem se deduz apenas da natureza dos seus
ritos ‑ para só
falar do que, na Igreja Ocidental, nos é exteriormente
acessível. Também
o testemunho dos autores antigos dá prova disso. Assim, São
Basílio, no
seu Tratado sobre o Espírito Santo fala de uma *tradição
tácita e mística
mantida até aos nossos dias+ e de *uma instrução secreta que
os nossos
Pais observaram sem discussão e que nós seguimos permanecendo
na simplicidade do seu silêncio. Pois eles aprenderam quanto o
silêncio foi necessário
para guardar o respeito e a veneração devidos aos nossos
santos mistérios.
E, com efeito, não era conveniente divulgar por escrito uma
doutrina contendo coisas que aos catecúmenos não é permitido
contemplaras. *Só são aptos à salvação os espíritos
deificados+ ‑ afirma São Dinis,
o pseudo ‑areopagita ‑ *e a deificarão é a união e semelhança
que nos esforçamos por ter com Deus... O que é uniforme e
abundantemente repartido pelas Essências Bem ‑Aventuradas nos
Céus a nós é transmitido em
fragmentos e na multiplicidade dos símbolos por oráculos
divinos. Pois estes são a base da nossa hierarquia. E por isto
há que entender não só o
que os nossos mestres inspirados nos deixaram nas Sagradas
Letras e nos
escritos teológicos, mas o que transmitiram aos seus
discípulos por um ensinamento espiritual, quase celeste,
iniciando‑os espírito a espírito, de ' modo corporal, pois
falavam, mas também de modo imaterial, pois não escreviam.
Ora, devendo tais verdades ser traduzidos para uso da Igreja,
os
Apóstolos expuseram‑nas sob o véu dos símbolos e não na sua
sublime
nudez. Pois nem todos são santos e, como diz a Escritura, a
Ciência não é
para todos'.
Permita ‑se ‑nos citar também um autor católico muito
conhecido, Paul Vulhaud:
*O processo de enunciarão dogmática foi durante os primeiros
séculos o da Iniciação
sucessiva. Existia, numa palavra, um esoterismo na religião
cristã. Por muito que isso
desagrade aos historiadores, encontramos incontestavelmente o
vestígio da *lei do arcano+ nas srcens da nossa religião...
Para entender com clareza o ensinamento doutrinal da Revelação
cristã, há que admitir um duplo grau na pregação evangélica. A
lei
que mandava que os dognias só fossem revelados aos iniciados
perpetuou‑se por muito
tempo, facto que impede os cegos ou refractários de negarem a
sua existência. Sozómeno, um historiador, escreve a propósito
do Concílio de Niceia que era sua intenção en 130
A Unidade Transcendente das Religiões
Dissemos mais acima que o cristianismo representa uma *via
de Graça+
ou de *Amor+ (o bhakti ‑mârga dos hindus). Tal definição requer
ainda algumas precisões de ordem geral que formularemos do
seguindo modo: o
que mais profundamente distingue a Nova Aliança da Antiga é
que nesta
o aspecto divino de Rigor predominava, enquanto naquela é o
aspecto de
Clemência que prevalece. Ora, a via de Clemência é em certo
sentido
mais fácil que a de Rigor, porque, sendo de ordem mais
profunda, benefi
trar no pormenor *para deixar à posteridade um monumento
público de verdade+. Foi
porém aconselhado a omitir *o que só os padres e os fiéis
deveriam saber+. A *lei do
segredo+ perpetuou‑se certamente em alguns lugares depois da
divulgação universal do
dogma conciliar... São Basílio, na sua obra Sobre a Fé
Verdadeira e Piedosa, conta que
se abstinha de se servir dos termos Trindade ou
Consubstancialidade, que não se
acham
estes nas Escrituras,
significam... embora aí contra
Tertuliano, se encontrem as coisas
Praxeias, afirma que
que
não é necessário falar claramente da Divindade de Jesus Cristo
e que se deve chamar Deus ao Pai e Senhor ao Filho... Tais
locuções habituais não parecerão indícios de uma convenção, já
que esta forma de linguagem
reticente se acha em todos os autores dos primeiros séculos,
sendo de uso canónico?
A disciplina primitiva do cristianismo comportava uma sessão
de exame em que os
competentes (os que pediam o Baptismo) eram admitidos à
eleição. Tal sessão era chamada escrutínio. Traçava ‑se o sinal
da cruz sobre as orelhas dos catecúmenos pronunciando ‑se as
palavras de Jesus: Ephpheta, o que fazia com que a cerimônia
se chamasse
o *escrutínio da abertura das orelhas+. Os ouvidos eram
abertos à recepção (cabâlâh),
à tradição das verda6 divinas... O problema
sinóptico‑joânico... só se resolve reco rrendo à existência do
duplo ensinamento, exotérico e acroamático, histórico e
teológico‑místico... Existe uma teologia parabólica. Esta faz
parte daquele património a que
Teodoreto chama, no Prefácio do seu Comentário ao Cântico dos
Cânticos, a *herança
paterna+, que significa a transmissão do sentido que se aplica
à interpretação das Escrituras... O dogma, na sua parte
divina, constituía a revelação reservada aos Iniciados,
sob *a disciplina do arcano+. Tentzélio queria fazer remontar
a srcem desta *lei do segredo+ aos finais do séc. ii...
Emnianuel ScheIstrate, bibliotecário do Vaticano, cons tatava ‑a
com razão nos séculos apostólicos. Na verdade, o modo
esotérico de transmissão
das verdades divinas e de interpretação dos textos existiu
entre os judeus, entre os gentios, por fim também entre os
cristãos... Se nos obstinarmos em não estudar os processos
iniciáticos de Revelação, jamais chegaremos a ter uma
assimilação inteligente e
subjectiva do do ma. As litur ias antigas não são
suficientemente consideradas e a pró 9 9
pria erudição hebraica é absolutamente negligenciada... Os
Apóstolos e os Padres conservaram em segredo e em silêncio a
*Majestade dos Mistérios+; São Dinis, o Pseudo ‑Areopagita,
buscou
Cristo,com
queafectação o emprego de termos obscuros. Como
se autodesignava como *Filho do Homem+, ele chamou ao
baptismo: a Iniciação à
Teogénese... A disciplina do arcano era muito legítima. Os
profetas e o próprio Cristo
131
Frithjof Schwn
cia de uma Graça particular: é a *justificação pela Fé+
cujo *jugo é doce e o fardo, ligeiro+ e que torna inútil o
*jugo do Céu+ da Lei mosaica. Esta *justificação pela Fé+ é,
de resto, análoga à *libertação pelo Conhecimen to+, o que
lhe confere o seu alcance esotérico, sendo tanto um quanto ou
não revelaram os divinos arcanos com clareza tal que se
tornassem compreensíveis a to dos+ (Paul Vulliaud, Études
d'Ésotérisme catholique). Por fim, permita ‑se ‑nos citar, a
título documental e apesar da extensão do texto, um autor de
princípios do séc. xix. *Nas srcens, o cristianismo foi uma
iniciação semelhante à dos pagãos. Falando desta religião,
Clemente de Alexandria exclama: *ó mistérios verdadeiramente
sagrados! ó pura luz! A luz incandescente perde o véu que
cobre Deus e o Céu. Sou santo desde que iniciado. O próprio
Senhor é o hierofante. Põe o seu selo no adepto que ilumina.
E, para recompensar a sua fé, recomendado eternamente ao Pai.
Eis as orgias dos meus mistérios. Vinde e recebemos vós
também.+ Poderíamos tomar estas palavras por @im ples
metáfora. Mas os factos provam que as devemos interpretar à
letra. Os Evange lhos estão cheios de reticências
calculadas, de alusões à iniciação cristã. Aí se lê: *Quem
pode adivinhar, adivinhe. Quem tem ouvidos, ouça.+ Jesus,
dirigindo‑se às massas, emprega sempre parábolas: *Buscai e
encontrareis. Batei e abrir ‑se ‑vos ‑á ... + As assembléias eram
secretas, Só se era admitido em condições determinadas. Só se
chegava ao pleno conhecimento da doutrina passando por três
graus de instrução. Os iniciados eram por consequência
divididos em três classes. A primeira era a dos,ouvin tes,
a segunda a dos catecúmenos ou competentes, a terceira a dos
fiéis. Os ouvintes eram uma espécie de noviços que eram
preparados, através de certas práticas e instru ções, para
receber a comunicação
desses dog mas era dos dogmas
revelada docatecúmenos,
aos cristianismo. Uma depois
que, parte
das purificações ordenadas, recebiam o baptismo ou a
iniciação da teogénese (geração divina), como lhe chama São
Dinis na sua Hierarquia Eclesiástica. Tornavam ‑se desde então
domésticos da fé e tinham acesso às igrejas. Para os fiéis,
nada havia de secreto ou de escondido nos mistérios. Tudo se
4 fazia na sua presença. Tudo podiam ver e ouvir. Tinham
direito a assistir a toda a litur gia. Era ‑lhes prescrito
que se examinassem atentamente para que não penetrasse ent re
eles gente profana ou iniciados de grau inferior. E o sinal
da cruz servia para se reco nhecerem uns aos outros. Os
mistérios dividiam‑se em duas partes. A primeira era cha
mada a Missa dos Catecúmenos porque os membros dessa classe
podiam assistir a ela. Compreendia tudo o que se diz desde o
começo do ofício divino até à recitação do Cre do. A
segunda chamava‑se Missa dos Fiéis. Compreendia a preparação do
sacrifício, o sacrifício em si, e a subsequente acção de
graças. Quando começava essa missa, um diácono dizia em alta
voz: *As coisas santas aos santos. Que os cães se retirem!+
Então
132
A Unidade Transcendente das Religiões

tra relativamente independentes da *Leí+, ou seja, das obras'.


Com efeito, a Fé não é mais do que o modo *bháktico+ do
Conhecimento e da
certeza intelectual, o que significa que ela é um acto passivo
de inteligência, tendo por objecto não imediatamente a verdade
enquanto tal, mas
um símbolo desta. Tal símbolo revela os seus segredos à medida
que a Fé
aumenta, e esta só aumenta através de uma atitude confiante de
certeza
emocional, de um elemento de bhakú, que é amor. A Fé, sendo
uma atitu
mandavam‑se embora os catecúmenos e os penitentes ‑ estes
últimos eram fiéis que,
tendo cometido falta grave, eram submetidos à expiação
ordenada pela Igreja ‑, não
podendo assistir à celebração, dos terríveis mistérios, como
lhes chamava São João Crisóstomo. Os fiéis, uma vez sós,
recitavam o Credo,
os assistentes para
tinham se assegurarem
recebido de que
a iniciação todos
e que se podia
falar diante deles abertamente
e sem enigmas sobre os grandes mistérios da religião e
sobretudo da Eucaristia. Mantinha ‑se a doutrina e a celebração
deste Sacramento em segredo inviolável. E, se os doutores
falavam deles nos seus sermões ou livros, só o faziam com
grandes reservas, por
meias palavras, enigmaticamente. Quando Diocleciano ordenou
aos cristãos que entregassem aos magistrados os seus livros
sagrados, os que de entre eles, com medo da
morte, obedeceram ao edicto imperial, foram expulsos da
comunhão dos fiéis e considerados traidores e apostaras.
Podemos ver em Santo Agostinho que dor sentiu então a
Igreja ao ver as Sagradas Escrituras serem entregues às mãos
dos infiéis. Aos olhos da
Igreja, era uma horrível profanação que um homem não iniciado
entrasse num templo
e assistisse aos Sagrados Mistérios. São João Crisóstorno
assinala um facto desse género ao papa Inocêncio 1. Soldados
bárbaros haviam entrado na Igreja de Constantinopla
na vigília de Páscoa. "As catecúmenas, que se haviam despido
para serem baptizadas,
foram obrigadas a fugir nuas com o medo. Esses bárbaros não
lhes deram tempo de se
cobrirem. Entraram nos lugares onde se conservam com profundo
respeito as coisas
santas, e alguns deles, ainda não iniciados aos nossos
mistérios, viram tudo o que aí havia de mais sagrado". O
número de fiéis, que aumentava cada dia, levou a Igreja, no
séc. vii, a instituir as ordens menores, entre as quais a dos
porteiros, que sucederam
aos diáconos e aos subdiáconos na função de guardar as portas
das igrejas. Cerca do
ano 700, toda a gente foi admitida a assistir à liturgia. E,
de todo o mistério que nos
primeiros tempos cercava o cerimonial sagrado, só se conservou
o uso de recitar secretamente o Cânone da Missa. Contudo, no
rito grego o oficiante celebra ainda hoje o
ofício divino por detrás de uma cortina, que só é aberta no
momento da elevação. Mas,
nesse momento, os assistentes devem prostrar ‑se ou inclinar ‑se
de tal modo
possam ver oque não
Santíssimo Sacramento.+ (F. ‑T. ‑B. Claver, Histoire
pittoresque de la
Franc‑Maçonnerie et des Sociétés secrètes anciennes et
modernes.)
' Uma diferença análoga à que opõe a *Fé+ e a *Le i+ encontra ‑se
dentro do próprio
campo iniciático: à *Fé+ correspondem aqui os diversos
movimentos espirituais fundados na invocação do Nome Divino (o
japa hindu, o buddhânusmriti, nien ‑fo ou nembut 133
Frithjof Schuon

de contemplativa, tem como sujeito a inteligência. Pode ‑se pois


dizer que
é um Conhecimento virtual. Mas, como o seu modo é passivo, tal
passividade deve ser compensada por uma atitude activa
complementar, ou seja,
por uma atitude voluntária cuja substância é precisamente a
confiança e o
fervor, graças aos quais a inteligência recebe certezas
espirituais. A Fé é a
priori uma disposição natural da alma para admitir o
sobrenatural. É pois
essencialmente uma intuição do sobrenatural, ocasionada pela
Graça,

su budista e o dhikr muçulmano); um exemplo muito típico é o


de Shri Chaitanya deitando fora todos os seus livros para se
consagrar apenas à invocação *bliáktica+ de
Krishna, atitude semelhante à dos cristãos que rejeitaram a
*Lei+ e as *obras+ em nome da *Fé+ e do *Amor+. Da mesma
forma, para citar um outro exemplo, as escolas
budistas japonesas Jôdo e Jôdo ‑Shinshu, cuja doutrina fundada
nos sútras de Amithaba
é análoga a certas doutrinas do budismo chinês e procede como
estas do *voto srcinal
de Amida+, rejeitam as meditações e,as austeridades das outras
escolas budistas, praticando apenas a invocação do Nome
sagrado Amida: o esforço ascético é substituído pela simples
confiança na Graça do Buddha ‑Amida, que este concede na sua
compaixão a
quem o invoca,
invocação semsagrado
do Nome qualquer *mérito+
deve da parte do
ser acompanhada deorante. *A
absoluta
sinceridade de coração e da fé mais completa
na bondade de Amida que quis que todas as criaturas se
salvassem. Amida, tendo piedade dos homens dos "Ultimos
Tempos", permitiu que as virtudes e o saber fossem
substituídos, para os livrar dos sofrimentos do mundo, pela fé
no valor salvífico da sua
Graça.+ *Somos iguais devido à nossa fé comum, à nossa
confiança na Graça de Amida ‑Buddha.+ *Toda a criatura, por
muito pecadora que seja, pode estar certa'da'sua
salvação na luz de Amida e de obter um lugar na Terra eterna e
imperecível da Felicidade, se simplesmente crer no Nome de
Amida‑Buddha e, abandonando as preocupações presentes e futuras
deste mundo, se refugiar nas Mãos Libertadoras, tão
misericordiosamente estendidas a toda a criatura, recitando o
Seu Nome com toda a
sinceridade de coração.+ *Conhecenios o Nome de Amida pela
pregação de Shâkya ‑Muni e sabemos que, nesse Nome, está a força
do desejo de Amida em salvar toda a
criatura. Escutar esse Nome, é escutar a voz da salvação, que
diz: Tende confiança em
mim e certamente vos salvarei, palavras que Amida nos dirige
directamente. Este sentido acha ‑se presente no Nome de Amida.
Enquanto todas as nossas outras acções são
mais ou menos manchadas de impureza, a repetição do
Namu‑Amida‑Bu é um acto
isento de qualquer impureza, pois não somos nós que o
recitamos, mas o próprio Amida que, dando ‑nos o Seu No me, no ‑lo
faz repetiras *Quando a nossa fé na salvação de
Amida desperta e se fortalece, o nosso destino é fixado:
renascemos na Terra Pura,
tornando‑nos Budas. Então se diz que somos totalmente abarcados
pela Luz de Amida
e, vivendo sob a Sua direcção, cheia de amor, a nossa vida é
preenchida por indescritível alegria, dom de Buddha+ (vide Les
sectes bouddhiques japonaises por E. Steinilber 134
A Unidade Transcendente das Religiões

a actualizar através de uma atitude de fervorosa confiança'.


Quando, pela
Graça, a Fé se completa, ela dissolve ‑se no Amor, que é Deus. É
por
que,isso
do ponto de vista teológico, os Bem ‑Aventurados no Céu já
não conservam a Fé, pois contemplam o seu objecto: Deus, que é
Amor ou Beatitude. Acrescente ‑se que, do ponto de vista
iniciático, tal visão pode e deve obter ‑se já nesta vida, como
o ensina aliás a tradição hesicasta. Mas há
outro aspecto da Fé que convém aqui mencionar: referimo ‑nos à
relação

‑Oberlin e Kuni Matsuo). *O voto srcinal de Amida é o de


receber na sua Terra de felicidade quem quer que pronuncie o
Seu Nome com confiança absoluta: felizes pois os
que pronunciam o Seu Nome! Um homem pode ter fé, mas se não
pronuncia o Nome,
a sua fé de nada lhe servirá. Outro pode pronunciar o Nome
pensando apenas em si,
mas se a sua fé não é bastante profunda, o seu renascimento
não ocorrerá. Mas o que
crê firmemente no renascimento como fim da nembutsu
(invocação) e pronuncia o Nome, esse sem dúvida há ‑de renascer
na Terra da recompensam (vide Essais sur le
Bouddhisme Zen, vol. 111, por Daisetz Teitaro Suzuki).
Reconhece‑se com facilidade a
analogia sobre a qual queríamos atrair as atenções: Amida mais
não é do que o Verbo
Divino. Amida ‑Buddha pode pois transcrever ‑se, em termos
cristãos, por *Deus Filho,
Jesus Cristo+. O Nome de *Cristo Jesus+ equivale pois ao de
Buddha Shâkya ‑Muni;
o Nome salvífico de Amida corresponde exactamente à
Eucaristia; e a invocação desse
Nome, à Comunhão. A distinção entre o jiriki (poder
individual, ou seja, esforço em
vista do mérito) e o tariki (*poder do outro+, ou seja, graça
sem mérito) ‑ sendo este
último precisamente a via do Jôdo ‑Shinshu ‑ é análoga à
distinção paulina entre a
*Lei+ e a *Fé+. Acrescentemos ainda que, se o cristianismo
moderno sofre de certa regressão do elemento intelectual, é
precisamente porque a sua espiritualidade srcinal
era *bháktica+ e a exoterização da bhakti traz consigo
inevitavelmente uma regressão
da
' Aintelectualidade em proveito
vida do grande bhakta do sentimentalismo.
Shri Râmakrishna oferece um exemplo
bem instrutivo do
modo *bháktico+ do Conhecimento: em vez de partir de um dado
metafísico, que lhe teria
permitido entrever a vaidade das riquezas, como teria feito um
jnânin, ele orou a Kâ1i para o fazer entender por revelação a
identidade entre o outro e a argila: *Todas as manhãs,
durante longos meses, segurei na inao uma moeda de ouro e um
pedaço de argila, e repeti: O ouro é argila e a argila é ouro.
Mas este pensamento não fazia em mim qualquer efeito
espiritual. Nada vinha demonstrar ‑me a verdade de tal asserção.
Ao fim de meses de
meditação, estava eu sentado de manhãzinha, à beira do rio,
suplicando à nossa Mãe que
me concedesse luz quando, repentinamente, todo o universo me
apareceu revestido de um
véu de ouro brilhante... Depois a paisagem tomou um tommais
escuro, cor de argila castanha, mais bela do que o ouro. E
enquanto tal visão se gravava profundamente na minha
alma, ouvi como que o rumor de mais de dez mil elefantes
gritando aos meus ouvidos: Argila e ouro são o mesmo para ti.
As minhas orações tinham sido ouvidas, e eu lançava para
longe, no Ganges, a moeda de ouro e o pedaço de argila.+
135
Frithjof Schon

entre Fé e milagre, relação que explica a importância capital


que este último desempenha não só em Cristo, mas também no
cristianismo enquanto
tal. Contrariamente ao que acontece no islão, o milagre
desempenha no
cristianismo um papel Central, quase orgânico, que não deixa
de ter relação com o carácter bhakti, próprio à via cristã. O
milagre seria inexplicável.sem o papel que desempenha no
domínio da Fé. Não tendo qualquer
valor persuasivo em si mesmo, sem o que os milagres satânicos
seriam critérios de.verdade, existe porém um extremo em
relação a todos os outros
factores que intervêm na Revelação crística. Por outras
palavras, se os milagres de Cristo, dos Apóstolos e dos Santos
são preciosos e veneráveis,
e unicamente
permitem a porque se acrescentam a outros critérios que
priori atribuir a tais milagres o valor de *sinais+ divinos. A
função essencial e primordial do milagre é desencadear, seja a
graça da Fé ‑ o que
pressupõe no homem, tocado por essa graça, uma disposição
natural,
consciente ou inconsciente, para admitir o sobrenatural ‑, seja
a perfeição de uma Fé já adquirida. Para precisar ainda melhor
o papel do milagre não apenas no cristianismo mas em todas as
formas religiosas ‑ pois
nenhuma delas ignora os factos milagrosos ‑, diremos que o
milagre,
abstraindo‑nos da sua qualidade simbólica que o aparenta ao
próprio objecto da Fé, está apto a suscitar uma intuição que
será, na alma do crente,
um elemento de certeza. Enfim, se o milagre desencadeia a Fé,
esta pode
por sua vez desencadear o milagre, que será assim uma
confirmação dessa
*Fé que desloca montanhas+. Tal relação recíproca mostra ainda
que esses
dois elementos se acham cosmologicamente associados e que a
sua relação
nada tem de arbitrário, estabelecendo o milagre um contacto
imediato entre a Omnipotência Divina e o mundo, e a Fé, por
sua vez, um contacto
análogo, mas passivo, entre o microcosmo e Deus. O simples
raciocínio, a
mera operação discursava do mental, está tão longe da Fé como
as leis na Citemos nesta ordem de ideias as reflexões de um
teólogo ortodoxo: *Exprimindo
o dogma uma verdade revelada, que nos aparece como um mistério
insondável, deve
ser vivido por nós num processo, ao longo do qual, em vez de
assimilarmos o mistério ao nosso modo de entender, há, pelo
contrário, que aspirarmos a uma mudança
profunda, a uma transformação interior do nosso espírito, para
nos tornarmos aptos
a experiência mistica+ (Viadimir Lossky, Essai sur Ia
théologie mystique de VEglise
d'Orient).

A 136
Unidade Transcendente das Religiões

turais o estão do milagre, enquanto o conhecimento intelectual


é capaz de
ver milagre no natural, e inversamente. A Caridade, que é a
maior das três virtudes teologais, comporta dois
aspectos, um passivo e outro activo. O Amor espiritual é uma
participação passiva em Deus, que é Amor infinito. Mas o amor
será, pelo contrário, activo em relação às coisas criadas.
O amor ao próximo, como expressão necessária do amor de Deus,
e um
complemento indispensável da Fé. Estes dois modos da Caridade
acham‑se
presentes no ensinamento evangélico de que só Deus é Beatitude
e Realidade e o segundo a consciência de que o ego é apenas
ilusório, identificando ‑se o *eu+ dos outros, na verdade,
*comigo mesmo'+. Se deve amar
o *próximo+ porque ele sou *eu+, isso significa que devo
amar‑me a priori, já que mais não sou do que o meu *próximo+.
E, se me devo amar, seja em *mim mesmo+ seja no meu *próximo+,
é porque Deus me ama e
devo amar o que ele ama. E, se ele me ama, é porque ama a sua
criação
ou, por outras palavras, porque a própria Existência é Amor e
o Amor é
como que o perfume do Criador inerente a toda a criatura. Tal
como o
Amor de Deus, a Caridade que tem como objecto as Perfeições
divinas e
não o nosso bem ‑estar, é o Conhecimento da única Realidade
Divina na
qual se dissolve a realidade aparente do criado ‑ conhecimento
que implica a identificação da alma com a sua Essência
incriada', o que é ainda
um aspecto do simbolismo do Amor ‑., também o amor ao próximo
no
fundo mais não é do que o conhecimento da indiferenciação do
criado perante Deus. Antes de se passar do criado ao Criador,
ou do manifesto ao
Princfpio, é necessário ter ‑se realizado a indiferenciação ou o
*nada+ desse manifesto. É a isso que visa a moral de Cristo,
não só pela indistinção
que estabelece entre o *eu>; e o *não ‑eu+, mas também
secundariamente

' Esta realização do *não ‑eu+ explica o papel importante que a


humildade desempenha
na espiritualidade cristã, a que corresponde na
espiritualidade islâmica a *pobreza+
(faqr) e na espiritualidade hindu a *infância+ (bâlya).
Recordamo‑nos aqui do simbolismo da infância nos ensinamentos
de Cristo.
2 *SOMOS totalmente transformados em Deus+ ‑ afirma mestre
Eckhart ‑ *e mudados nele. Da mesma forma que, no sacramento, o
pão se transforma em Corpo de
Cristo, também eu sou transformado nele, de modo que ele faz
de mim o seu Ser
uno e não apenas uma semelhança. Pelo Deus vivo, é verdade que
não há aí qualquer distinção.+
137
Frithjof Schon

pela sua indiferença para com a justificação individual e o


equilíbrio social. O cristianismo situa ‑se, pois, fora das
*acções e reacções+ de ordem
humana. Não é primeiramente exotérico na sua definição. A
caridade
cristã não tem nem pode ter qualquer interesse no *bem ‑estar+
em si, pois
o verdadeiro cristianismo, como toda a religião ortodoxa, cre
que a unica
verdadeira felicidade de que pode usufruir a sociedade humana
é o bem ‑estar espiritual, na presença do Santo: esse o fim de
toda a civilização.
Pois *grande número de sábios é a salvação da Terra+
(Sab.,6:24). Uma
verdade que os moralistas ignoram é que quando a obra de
caridade está
concluída pelo amor de Deus, ou em virtude do conhecimento de
que
*eu+ sou o *próximo+ e que o *próximo+ é *eu mesmo+
‑,conhecimento
que aliás implica esse amor ‑, a obra de caridade terá para o
próximo
não só o valor de uma beneficência exterior, mas também a de
uma bênção. Pelo contrário, quando a caridade não é exercida
nem por amor de
Deus, nem em virtude do dito conhecimento, mas unicamente em
vista do
simples *bem‑estar+ humano, 'considerado como fim em si, a
bênção inerente à verdadeira caridade não acompanha a aparente
beneficência, nem
em quem a exerce nem em quem a recebe.

A presença das ordens monásticas só se pode explicar pela


existência de
uma tradição iniciática, na Igreja do Ocidente, tal como n ' a
1grej a do
Oriente, tradição que remonta ‑ confirmam ‑no São Bento e os
hesicastas
‑ aos Padres do Deserto, aos Apóstolos e a Cristo. O facto de o
cenobitismo da Igreja Latina remontar às mesmas srcens do da
Igreja Grega formando este último, aliás, uma comunidade única
e não várias ordens
distintas ‑ prova precisamente que tanto o primeiro quanto o
segundo
são de essência esotérica. E, do mesmo modo, o eremitismo é
considerado por ambas as partes como o expoente da perfeição
espiritual ‑ afirma ‑o São Bento explicitamente na sua Regra ‑, o
que nos permite concluir
que o desaparecimento dos eremitas marca o declínio do
florescimento
crístico. A vida monástica, longe de constituir uma via que se
basta a si
mesma, é designada na Regra de São Bento como *um começo de
vida
religiosas. Para *o que apressa os seus passos na perfeição da
vida monástica, existem os ensinamentos dos Santos Padres,
cuja observância conduz
138
A Unidade Transcendente das Religiões

o homem ao fim supremo da religião'. Ora, são tais


ensinamentos que
constituem a própria essência doutrinal do hesicasmo. O
órgão do espírito, principal centro de vida espiritual, é o
coração.
Também aqui a doutrina hesicasta está de perfeito acordo com o
ensinamento de todas as outras tradições iniciáticas. É
notório o que o hesicasmo fornece ensinamentos acerca do meio
de realizar a participação natural do micrososmo humano no
Metacosmo Divino, transmutando ‑a em
participação sobrenatural e, finalmente, em união e
identidade: esse meio
é a *oração interior+ ou *oração de Jesus+. Essa *oração+
ultrapassa em
princípio todas as virtudes, pois é um acto divino em nós e,
como tal,
o melhor acto possível. Só através dessa oração a criatura se
pode unir
realmente ao Criador. O fim dessa oração é por consequência o
estado espiritual supremo, em que o homem ultrapassa tudo o
que pertence à criatura e, unindo ‑se intimamente à Divindade, é
iluminado pela Luz Divina.
Esse estado é o *santo silêncio+, simbolizado aliás pela cor
negra de certas imagens da Virgem'. Aos que julgam que a
*oração espiritual+ é coisa fácil e mesmo gratuita, o
palamismo responde que ela constitui pelo contrário a via mais
es Citemos igualmente a seguinte passagem do último
capítulo do livro intitulado: *Que
a prática da justiça não está toda contida nesta regra+: *Oual
é com efeito a página,
qual a palavra de autoridade divina no Antigo e no Novo
Testamento, que não seja
uma regra muito segura para a conduta do hornem9 Ou ainda,
qual o livro dos Santos
Padres católicos que não nos ensina elevadamente o caminho
recto para chegar ao nosso Criador? Além disso, as
Conferências dos Padres (do Deserto), as suas Instituições e
Vidas, a Regra do Nosso Pai São Basílio, que outra coisa são
senão o exemplar dos
monges que vivem na obediência,e documentos autênticos de
virtudes? Para nós, relaxados, de má vida, cheios de
negligência, existe aí matéria para corarmos de vergonha.
Tu, que apressas o teu passo para a pátria celeste, cumpre
primeiro, com a ajuda de
Cristo, este fraco esboço da regra que traçámos. Chegarás,
enfim, sob
Deus, às a protecção
mais sublimes dealturas da doutrina e das virtudes, que
acabámos de recordaras
' Este *silêncio+ é o equivalente exacto do nirvâna hindu e
budista e do fanâ sufita.
Ao mesmo simbolismo se refere a *pobreza+ (faqr) em que se
realiza a *união+
(tawhid). Mencione ‑se igualmente, a propósito desta união real
ou reintegração do
finito no Infinito, o título de um livro de São Gregório
Palamas: *Testeinunhos dos
santos, mostrando que os que participam na Graça divina se
tornam, conforme a
Graça, sem origem e infinitos.+ Recorde ‑se aqui o adágio do
esoterismo muçulmano: *O sufi não é criado+.
139
Frithjof Schwn

treita que existe, conduzindo aos mais altos cumes da


perfeição, na condição essencial de o acto de oração se achar
de acordo com os restantes
actos humanos! Por outras palavras, as virtudes ‑ a
conformidade à Lei
Divina ‑ são a condição sine qua non para a oração espiritual
ter qualquer eficácia. Estamos portanto bem longe da ilusão
ingénua dos que pensam poder chegar a Deus através de práticas
simplesmente maquinais e
sem qualquer outro empenhamento ou obrigação. *A virtude ‑
ensina
a doutrina palamita ‑ dispõe ‑nos para a união com Deus, mas a
Graça
realiza esta união inexprimível.+ Se as virtudes desempenham o
papel
dos modos de conhecimento é porque representam, por analogia,
*atitudes divinas+. Não há na verdade virtudes que não derivem
de um
Protótipo Divino, sendo esse o sentido mais profundo das
mesmas.
*Ser+ é *conhecer+. Chamaremos enfim a atenção para o
alcance fundamental e universal
da invocação do Nome Divino. Este é no cristianismo ‑ como no
budismo e em certas linhagens iniciáticas do hinduísmo ‑ o Nome
do Verbo
Encarnado', portanto, o Nome de *Jesus+ que, como todo o Nome
Divino revelado e ritualmente pronunciado, se identifica
misteriosamente com
a Divindade. É no Nome Divino que ocorre o misterioso encontro
entre o
criado e o Incriado, o contingente e o Absoluto, o finito e o
Infinito.
O Nome Divino é assim uma manifestar ão do Princípio Supremo
que se
manifesta. Não é, primeiramente, manifestação, mas o próprio
princípio'.
*O Sol mudar ‑se ‑á em trevas e a Lua em sangue antes de chegar o
grande
e terrível Dia do Senhor+ ‑ diz o profeta Joel ‑, *mas todo o
que invocar o Nome do Senhor será salvo'. Recordemos
igualmente o começo da
Primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios, dirigida *a
todos os que invocam, onde quer que seja, o Nome de Nosso
Senhor Jesus Cristo+ e,
também, na Primeira Epístola aos Tessalonicenses, a exortação
nestes termos: *Há que aprender a invocar o Nome de Deus mais
do que se respi
' Queremos referir ‑nos aqui à invocação de Amida Buddha e à
fórmula Om mani padmê hum e, no que respeita ao hinduísmo, às
invocações de Râma e de Krishna.
1 Do mesmo modo, Cristo, segundo a perspectiva cristã, não é
primeiramente homem,
mas Deus.
Os Salmos contêm várias referências à invocação do Nome de
Deus: *Invoco o Se 140

A Unidade Transcendente das Religiões

ra, a todo o momento, em todo o lugar e durante qualquer


ocupação.
O Apóstolo diz: Orai sem cessar; ou seja, ele ensina que nos
devemos
lembrar de Deus a todo o momento, em todo o lugar e durante
qualquer
ocupação'. Não é portanto sem razão que os hesicastas
consideram a invocação do Nome de Jesus como herança deste aos
seus Apóstolos:
e Inácio ‑ que o *É assim
nosso ‑ afirma a Centúria
misericordioso dos monges
e bem ‑amado Senhor Calisto
Jesus
Cristo, ao chegar a hora da Sua
Paixão, livremente aceite por nós, e depois da Sua
Ressurreição ao mostrar ‑Se visivelmente aos Apóstolos,
preparando‑Se para ascender junto do
Pai... legou aos seus estas três coisas (a invocação do Seu
Nome, a Paz e
o Amor, que correspondem respectivamente à Fé, à Esperança e à
Caridade)... O começo de todo o acto de amor divino é a
invocação confiante
do Nome salvífico de Nosso Senhor Jesus Cristo, tal como ele
próprio o
disse (Jo.,15:5): Sem mim, nada podeis fazer... Pela invocação
confiante
do Nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, esperemos firmemente
obter a
Sua Misericórdia e a verdadeira Vida oculta nele. Esta
assemelha‑se à
Fonte Divina inesgotável (Jo.,4:14), que jorra os seus dons
sempre que o
Nome do Nosso Senhor Jesus Cristo é invocado, sem
imperfeições, no coração.+ Citemos ainda esta passagem de uma
epístola (Epistola ad Monachos) de São João Crisóstomo: *Ouvi
dizer aos Padres: quem é este monge que abandona a regra, e a
negligencia? Quando come, bebe, se senta

nhor com a minha voz e Ele ouve ‑me desde a Sua montanha santa.+
‑ *Mas eu invoquei o Nome do Senhor: Senhor, salva a minha
alma!+ ‑ *O Senhor está perto de todos os que O invocam, dos
que O invocam em verdade.+ ‑ Duas passagens se referem
ainda ao modo eucarístico: *Abre a tua boca, quero enchê ‑la.+ ‑
*O que faz feliz a
tua boca para que voltes a ser jovem como a águia.+ ‑ E Isaías:
*Não temas, pois te
salvei, chamei ‑te pelo teu nome, 'tu pertences ‑Me.+ ‑ *Buscai ao
Senhor, pois pode
ser encontrado. Invocai ‑o, porque está próximo.+ ‑ E Salornão,
no Livro da Sabedoria: *Invoquei, e o Espírito da Sabedoria
veio a mim.+ Neste comentário de São João Damasceno, os
termos *invocar+ e *recordar ‑se+ aparecem para descrever ou
ilustrar uma mesma ideia. Ora, sabe ‑se que o termo árabe
dhikr significa
Igualmente ao mesmo tempo *invocação+ e *lembrança+.
no budismo
*pensar em Buddha+ e *Invocar+ a Buddha exprime ‑se com uma só
palavra (buddhânusmriti; o nienfo chinês e o nembutsu
'aponês). Por outro lado, é de notar que os hesicastas e os
dervixes designam a invocação pelo mesmo termo: os primeiros
chamam
*trabalho+ à recitação da *Oração de Jesus+, enquanto os
segundos chamam *ocupa
ção+ ou *tarefa+ (Augh0 a qualquer invocação. @I
141
Frithjof Schuon
ou serve os outros, quando caminha ou faz o que fizer, deve
invocar sem
cessar: Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de
mim'... Persevera sem cessar no Nome de Nosso Senhor Jesus,
para que o teu coração
beba o Senhor e o Senhor beba o teu coração, e assim os dois
se tornem
Um!+

Esta fórmula reduz ‑se frequentemente, sobretudo em homens


mais espiritualizados,
ao simples Nome de Jesus. ‑ *O meio mais importante na vida de
oração é o Nome de
Deus, invocado na oração. Os ascetas e todos os que levam uma
vida de oração, desde
os anacoretas da Tebalda e os hesicastas do monte Atos...
insistem sobretudo nesta importância do Nome de Deus. Fora dos
Ofícios, existe para todos os ortodoxos uma regra de oração,
composta por salmos e diferentes rezas. Para os monges é muito
mais
considerável. Mas o que mais importa na oração, o que
constitui o coração da oração,
é aquilo a que se chama a oração de Jesus: *Senhor Jesus
Cristo, Filho do Deus Vivo
tem piedade
vezes de mim, pecador!
ou indefinidamente, Esta
forma oração, repetida
o elemento centenas
essencial de de
qualquer regra de oração monástica. Pode, em
caso de necessidade, substituir os Ofícios e demais orações,
pois o seu valor é universal. A força desta oração não está no
seu conteúdo, que é simples e claro (é a oração
do caminheiro), mas no Nome duIcíssimo de Jesus. Os ascetas
dão testemunho de que
este Nome encerra a força da presença de Deus. Não é apenas
Deus que é invocado
por este Nome: está sim presente na invocação. Podemos
afirmá‑lo certamente de todo
o Nome de Deus. Mas há que dizê ‑lo sobretudo do Nome divino e
humano de Jesus,
que é o Nome próprio de Deus e do homem. Em suma, o Nome de
Jesus, presente no
coração humano, comunica ‑lhe a força da deificarão que o
Redentor nos concedeu+
(S. Boulgakoff, L'Orthodoxie). *O Nome de Jesus+ ‑ diz São
Bernardo ‑ *não é apenas luz. É também alimento.
Qualquer alimento é demasiado seco para ser assimilado pela
alma se não for suavizado por este condimento. É demasiado
insípido, se este sal não lhe der sabor. Não gosto
dos teus escritos, se não puder ler neles este Nome. Não gosto
dos teus discursos, se
não o ouvir ressoar. É mel para a minha boca, melodia para o
meu ouvido, alegria para o meu coração, mas também um remédio.
Algum de vós se sente oprimido pela tristeza? Que experimente
Jesus com a boca e com o coração, e eis que à luz do Seu Nome
toda a nuvem se dissipa e o céu fica sereno. Alguém se deixou
levar pelo erro ou
sente a tentação do desespero? Que invoque o Nome da Vida e a
Vida o reanimarás
(Sermão 15 sobre o Cântico dos Cânticos).
142
IX

SER HOMEM CONHECER

evidência da unidade transcendente


das religiões deriva não só da unidade da Verdade, mas também
da unidade do gênero humano. A razão suficiente da criatura
humana é saber pensar. Não pensar ao acaso, mas pensar no que
importa e, no fundo, na única coisa que importa. O homem é o
único ser sobre a Terra capaz de
prever a morte e desejar sobreviver. É quem deseja e quem pode
saber o
porquê do mundo, da alma e da existência. Ninguém pode negar
que é da
natureza humana pôr essas perguntas, ter direito a respostas e
acesso às
mesmas, seja por Revelação ou por Intelecção, agindo cada uma
dessas
fontes segundo leis próprias e no quadro de condições
correspondentes. Queríamos talvez desculpar ‑nos por parecer
que *arrombamos portas
abertas+, não vivêssemos nós num mundo em que as portas
habitualmente
abertas são sabiamente fechadas. Isso, cada vez mais, graças
aos cuidados
de um relativismo psicologistà, subjectivista, biologista, que
ainda ousa
designar‑se por *filosofia+. Com efeito, vivemos numa época em
que a inteligência é metodicamente arruinada nos seus próprios
fundamentos e em
que se torna cada vez mais oportuno falar da natureza do
espírito. Nem
que fosse a título de *consolação+ ou para fornecer
argumentos+ para os
devidos efeitos+. Dizendo isto, recordamo ‑nos de uma
passagem do Alcorão em que
Abraão pede a Deus para lhe mostrar de que maneira ressuscita
os mortos. Deus responde ‑lhe, pondo a questão: *Não crês
ainda?+ Abraão res 143
Frithiof Schuon

ponde: *Sim, mas peço ‑o para que o meu coração fique tranquilo.
+ É nesse sentido que sempre é permitido recordar verdades
evidentes,
conhecidas de todos, tanto mais que as verdades conhecidas são
muitas
vezes as mais desconhecidas.

O sinal distintivo do homem é a inteligência total,


objectiva, capaz de
conceber o absoluto. Dizer que possui tal capacidade equivale
a dizer que
é objectiva ou total. A objectividade, pela qual a
inteligência humana se
distingue da inteligência animal, seria desprovida de razão
suficiente não
fosse a capacidade de conceber o absoluto ou o infinito ou o
sentido da
perfeição. Afirmou‑se que o homem é um animal racional, já
que a razão é o seu
sinal distintivo. Mas essa não poderia existir sem a
inteligência supra‑racional, que é o Intelecto, que a prolonga
no mundo dos fenômenos
sensoriais. Do mesmo modo, a linguagem é o sinal distintivo do
homem,
pois prova a presença da razão e, a fortiori, a do Intelecto.
A linguagem,
como a razão, é a prova do Intelecto, tendo tanto uma como a
outra a sua
motivação profunda no conhecimento das realidades
transcendentes e dos
nossos fins últimos. A inteligência como tal prolonga ‑se na
vontade e no sentimento: se a
inteligência é objectiva, a vontade e o sent imento sê ‑lo ‑ão
igualmente.
O homem distingue ‑se do animal por uma vontade livre e um
sentimento
generoso porque se distingue dele por uma inteligência total:
a totalidade
da inteligência dá lugar, extensivamente, à liberdade da
vontade e à generosidade do sentimento e do carácter. Pois só
o homem pode querer o que
é contrário aos seus instintos ou aos seus interesses
imediatos. Só ele se
pode colocar no lugar dos outros, sentindo com eles e neles. E
só ele é capaz de sacrifício e piedade. A vontade está
presente para realizar, mas a sua realização é determinada
pela
quantointeligência.
à O sentimento está presente para amar ‑
sua natureza intrínseca e positiva ‑, mas o seu amor é tambénI
determinado pela inteligência, tanto racional como
intelectual, sem o que seria
cego. O homem é a inteligência, a objectividade, e tal
inteligência objectiva determina tudo o que ele é e fez.
144
A Unidade Transcendente das Religiões
É lógico que os que se reclamam da Revelação e não da
Intelecção tendam a desacreditar a inteligência, donde a noção
de *orgulho intelectual+.
Têm razão se se trata da *nossa+ inteligência *por si só+, mas
não quando
se trata da inteligência em si e inspirada pelo Intelecto que,
afinal, é divino. Pois o pecado dos filósofos consiste não em
fiar‑se na inteligência enquanto tal, mas em fiar ‑se na sua
inteligência. E em fiar ‑se apenas na inteligência desligada das
suas raízes sobrenaturais. Há que entender duas coisas:
primeiro, que a inteligência não ‑ nos pertence e que o que nos
pertence não é toda a inteligência. Segundo, que a
inteligência, se nos pertence, não se basta a si mesma,
precisa da nobreza
de alma, da piedade e da virtude para poder ultrapassar a sua
particularidade humana, unindo ‑se à Inteligência em si. A
inteligência, não acompanhada da virtude, carece de
sinceridade e a falta de sinceridade limita forçosamente o seu
horizonte. É preciso sermos aquilo em que nos queremos
tornar ou, dito de outra maneira, é preciso antecipar
moralmente ‑ *esteticamente+ ‑ a ordem transcendente que
queremos conhecer, pois
Deus é perfeito em todos os sentidos. A integridade moral
intrínseca não
é certamente uma garantia de conhecimento metafísico, mas e
uma condição de funcionamento integral da inteligência com
base em dados doutrinais suficientes. O orgulho intelectual
‑ ou, mais propriamente, intelectualista ‑ está
excluído da inteligência em si e da inteligência acompanhada
da virtude.
Esta faz supor o sentido da nossa pequenez, assim como o
sentido do sagrado. Seria necessário acrescentar que, se
existe uma inteligência conceptual
ou doutrinal,
inteligente existe outra existencial ou moral: é preciso ser
não
apenas no pensamento, mas também no ser, que é
fundamentalmente uma
adequação à Realidade Divifia. A inteligência é tanto
individual como universal. Ela é razão ou Intelecto. A
individual deve inspirar ‑se na sua raiz universal se pretende
ultrapassar a ordem das evidências materiais. Mas é também
conceptual e existencial, devendo ligar ‑se ao seu complemento
moral, de modo a ser
plenamente conforme àquilo de que pretende dar ‑se conta. A
vontade do
Bem e o amor do Belo são as concomitâncias necessárias às
repercussões
incalculáveis do conhecimento do Verdadeiro. Em princípio,
a inteligência é infalível. Mas é ‑o por Deus, não por nós.
145
Frithjof Schuon

Por Deus: pela sua raiz transcendente, sem a qual é


fragmentária; e pelas
suas modalidades volitivas e afectavas, sem as quais se
condena a não ser
mais do que um jogo do espírito. Inversamente e a fortiori
jamais se pode
dissociar a vontade ou o sentimento da inteligência que os
ilumina, determinando as suas aplicações e operações.

Disse ‑se que a razão é uma enfermidade, o que é justo se a


compararmos à visão directa que é a Intelecção. A razão é uma
enfermidade, mas a
contingência também o é, embora não sob o seu aspecto positivo
de adequação. A adequação discursava é necessária ao homem,
desde que situada entre o exterior e o interior, entre o
contingente e o absoluto. Toda a
discussão sobre a capacidade ou incapacidade do espírito
humano em conhecer a Deus resolve ‑se no seguinte: a nossa
inteligência só pode conhecer a Deus *por Deus+, é portanto
Deus que Se conhece em nós. A razão
pode participar, instrumental ou provisoriamente, nesse
conhecimento se
permanecer unida a Deus. Pode participar na Revelação por um
lado e na por outro, derivando a primeira de Deus *acima de
Intelecção
nós+ e a
segunda de Deus *em nós+. Se entendermos por *espírito humano+
a razão cortada da Intelecção ou da Revelação ‑ sendo esta em
princípio necessária para actualizar aquela ‑, é óbvio que este
espírito não é capaz
nem de nos iluminar nem a fortiori de nos salvar.
. Para o fideísta, só a Revelação é *sobrenatural+. A
Intelecção, cuja natureza ele ignora, reduzindo ‑a à simples
lógica, é para ele *natural+. Para
o gnóstico, pelo contrário, tanto a Revelação como a
Intelecção são sobrenaturais, dado que Deus ‑ ou o Espírito
Santo ‑ opera em uma como em outra. O fideísta tem todo o
interesse em crer que as convicções
do gnóstico resultam de silogismos e crê ‑o tanto mais quanto de
facto uma
operação lógica, como um qualquer simbolismo, pode provocar a
centelha
da Intelecção e levantar o véu do espírito. De resto, o
fideísta não pode
negar totalmente o fenômeno da intuição intelectual, mas
evitará associá‑lo a essa Revelação *naturalmente sobrenatural+
e imanente, que é o Inte lecto. Atribuí ‑lo ‑á à *inspiração+ e ao
Espírito Santo, que no fundo é o
mesmo, salvaguardando porém o axioma da incapacidade do
*espírito humano+.
146
A Unidade Transcendente das Religiões
O tomismo distingue o conhecimento *obtido pela razão
natural+ do
*obtido pela graça+, o que sugere que as certezas metafisicas
seriam dons
pontualmente concedidos', embora haja também no homem aquilo a
que
paradoxalmente chamaríamos uma *graça naturalmente
sobrenatural+,
que é o Intelecto. Pois uma coisa é uma luz que nos vem por
inspiração
subtil e outra coisa é uma luz a que temos acesso pela nossa
*natureza sobrenatural+. Todavia, poderíamos designar essa
natureza como *imanência divina+, dissociando ‑a assim do
humano, comopode
que só Deus fazemos ao afirmarmos
conhecer a Deus, seja em nós ou fora de nós.
Em qualquer dos casos, o receptáculo *natural+ que é concedido
ao *sobrenatural+ tem já algo de sobrenatural ou de divino'.

A essência da epistemologia constitui a razão de ser e a


própria possibilidade de inteligência, a saber: a adequação, o
*conhecimento+, por muito
que isso desagrade aos agnósticos. E quem diz adequação, diz
prefiguração e mesmo imanência do cognoscível no sujeito
cognoscente ou chamado a conhecer. O motivo da polarização
do real em sujeito e objecto acha ‑se no Ser.
Não no puro Absoluto, o Sobre ‑Ser, mas na sua primeira
autodeterminação. A Maya divina é a *confrontação+ de Deus
enquanto Sujeito ou
Consciência e de Deus enquanto Objecto ou Ser. É o
conhecimento que
Deus tem de si mesmo, da sua perfeição e das suas
possibilidades.
Tal polarização principal refracta ‑se inumeravelmente no
universo, mas
Do ponto de vista gnosiológico São Tomás é sensualista,
portanto quase nacionalista
e empirista. Todavia, segundo ele, os princípios da lógica
situam‑se em Deus, embora
uma contradição entre o nosso conhecimento e a Verdade Divina
seja impossível. E esse um dos axiomas de toda a metafísica e
de toda a epistemologia. Por analogia, poderíamos dizer que
Maria é *divina+ não apenas por Jesus, mas também e a priori
pela sua receptividade na Encarnação, donde a sua *linaculada
Conceição+, que é uma qualidade intrínseca da Virgem. Assim
sendo, o Logos *encarnou+
nela ainda antes do nascimento de Cristo, o que é indicado
pelas expressões cheia de
graça e o Senhor está consigo e que explica que ela tenha
podido ser apresentada
tanto pelos cristãos como pelos,muçulmanos ‑ como a *Mãe de
todos os Profetas+.
O Lotus (Padma) não poderia trazer a Jóia (Mani) se não fosse
ele mesmo uma teofania.
147
Frithjof Schuon

de modo desigual ‑ segundo o que exige a Possibilidade


manifestante
e por isso as subjectividades não são epistemologicamente
equivalentes.
Mas dizer que o homem é *feito à imagem de Deus+ significa
precisamente que ele representa uma subjectividade central,
não periférica e por consequência um sujeito que, emanando
directamente do Intelecto Divino,
participa em princípio no poder deste. O homem pode conhecer
tudo o
que é real, portanto cognoscível, sem o que não seria essa
divindade terrestre que de facto é. O conhecimento relativo
é limitado subjectivamente por um ponto de
vista e objectivamente por um aspecto. Sendo o homem relativo,
o seu conhecimento também o é, pois é humano. E é ‑o na razão,
não no Intelecto
intrínseco. É ‑O'no *cérebro+, não no *coração+ unido ao
Absoluto. E é
nesse sentido que, segundo um hadfth, *o Céu e a Terra não se
podem
conter (diz Deus), mas o coração do crente, esse contém ‑me+ ‑
esse coração que, graças ao prodígio da Imanência, desemboca
sobre o *Si+ Divino e sobre a infinidade extintiva e unitiva
do cognoscivel, portanto do
Real. Poderíamos perguntar: porquê este desvio pela
inteligência humana?
Por que motivo Deus, que Se conhece a Si mesmo, Se quer ainda
conhecer no homem? Como nos ensina um hadith, *Eu era um
tesouro oculto e
quis ser conhecido. Por isso, criei o mundo.+ O que significa
que o Absoluto quer ser conhecido a partir do relativo.
Porquê? Porque isso é um
possibilidade que deriva da ilimit ação do Possível Divino.
Uma possibilidade, portanto algo que jamais pode não ser, e
cujo porquê reside no
Infinito.

148

59
FRITHJOF SCHUON

DADOS BIOGRAFICOS
thjof Schuori nasceu em BâIe, no
ano de 1907, e é filho de um alemão do Estado de Wurtemberg e
de uma
francesa natural da Alsácia. Obteve a nacionalidade francesa
graças ao
Tratado de Versailles; trinta anos mais tarde, depois de
haver‑se casado
com a filha de um diplomata suíço, recebeu a nacionalidade
helvética.'De
1930 a 1932, trabalhou como desenhador de arte em Paris, sem
com isso
haver negligenciado os estudos orientalistas, incluindo a
aprendizagem do
árabe; pouco depois esteve no Norte de Africa para aprofundar
o conhecimento do Sufismo. Fez em seguida toda uma série de
viagens a diversos países do Oriente.
Visitou Renê Guénon, por duas vezes, no Cairo; e encontrava ‑se
na índia, quando teve início a Segunda Guerra Mundial. Mais
tarde, em 1959 e
em 1963, Schuon viveu bastante tempo junto dos índios da
América do
Norte, tendo inclusivamente sido adoptado pela tribo Sioux.
Durante cerca de vinte anos colaborou com Guénon na revista
Études Traditionnelles.
Enfim, após ter vivido durante quatro décadas junto do lago
Leman, retirou ‑se para os Estados Unidos da América.

149
OUTRAS OBRAS DE FRITHJOF SCHUON

L'ffil du cxur, Dervy ‑Livres


Perspectives spirituelles et Faits humains, Les Cahiers du Sud
Sentions de Gnose, La Colombe
Castes et Races, Dervy ‑Livres
Les Stations de la Ságesse, Buchet ‑Chastel
Images de 1'Esprit: Shintô, Bouddhisme, Yoga, Flammarion
Regard sur les Mondes anciens, Éditions traditionelles
Logique et Transcendence, Éditions traditionelles
Forme et Substance dans les religions, Dervy ‑Livres
L'Esotérisme comme Principe et comme Voie, Dervy ‑Livres

(fim do livro)

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